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Província de Saitama, Japão, 1936.
A mort e dançava entre as planícies e montanhas daquela terra fria. Havia tanto um cheiro de sangue e dor no ar, como um grito seco e agoniado de vozes que partiam, sem misericórdia, em direção ao túmulo. Honrado ou não, aquele dia poderia passar despercebido, não fosse a presente apreensão que tomava as ruas, através do olhar de cada habitante.
Era fevereiro, o gelo já derretia, tornando tudo ainda mais úmido e triste, lágrimas espessas de mais um ciclo que terminava.
Mas nem todos os ciclos tinham fim.
O golpe militar contra Hirohito não surtira efeito. O Imperador Showa não era tolo como supunham seus oponentes e, ao ser avisado da rebelião, conteve-a com morte e força. Muitos jovens oficiais foram mortos, punidos pela traição contra seu líder, trazendo a desonra e a vergonha sob seus nomes.
Independente da questão política que fazia o sangue de todos os habitantes da ilha tremer, o menino de dez anos chorava ao lado do leito, não pelos soldados mortos, ou pela nova guerra que já despontava no horizonte. Lamentava pela mãe, que fraca demais para erguer a cabeça, apenas o consolava com um carinho gentil nos cabelos.
Shiromiya Kazue havia perdido o pai na invasão da Manchúria. Tinha apenas cinco anos na época, por isso não se lembrava com clareza do rosto paterno, mas cresceu ouvindo sobre a hombridade do homem que o gerou, sobre como ele havia sido um herói no Grande sismo de Kanto, quando salvara muitas pessoas que ficaram soterradas pelas casas que caíram durante o evento. No entanto, o herói morrera lutando na Ásia, deixando desamparados a esposa doente e os dois filhos pequenos.
A mãe trabalhou, cuidando das plantações de arroz que cercavam o casebre pobre em que viviam, até o corpo não aguentar mais. Ele e o irmão Satoshi haviam ajudado-a da forma que podiam, mas ambos ainda não tinham idade para fazer a parte mais difícil do labor, e a rotina pesada minou o resto de forças que existia na frágil mulher.
— O que será de nós, Nii-chan [1] ? – ele perguntou ao irmão que sentava num canto, os olhos arregalados.
Satoshi baixou a face, mortificado. Tinha doze anos, mas era miúdo, quase do tamanho do irmão mais novo. Porém, a grande diferença entre eles era a aparência. Shiromiya Kazue era incrivelmente belo, olhos amendoados e cabelos negros como a noite sem estrelas. O nariz arrebitado formava um conjunto harmônico com a boca pequena. Tão bonito que parecia uma menina. E isso era o motivo de anedota em toda a comunidade, mas a criança parecia não perceber. Alheio a tudo, o garotinho vivia correndo de um lado para o outro, brincando com espigas de milho que fingia serem seus amigos, sem se importar com as maledicências. Satoshi, todavia, não tinha tamanho torpor.
Na roda de amigos, era ridicularizado por causa do irmão. Na rua, os maiores apontavam para Kazue e riam, irritando Satoshi. Diziam–lhe que ele devia cuidar da “irmã”, pois ela seria muito bela quando crescesse. Caso o pai fosse vivo, com certeza, daria fim às palavras maldosas. Mas Satoshi, apesar de ser, então, o membro masculino mais velho de seu lar, não tinha a capacidade de proteger a honra dos Shiromiya como seu pai faria e isso o irritava intensamente.
Então, aquela raiva, sem que percebesse, foi se transferindo, gradativamente contra Kazue. Maldito, por que nascera? passou a questionar. A mãe nunca mais foi a mulher saudável que antes era após dar-lhe à luz. Teriam sido bem mais felizes sem aquele pirralho com rosto feminino dentro de casa.
Satoshi abraçou a si mesmo, numa vã tentativa de espantar o sentimento ruim.
— Ainda teremos um ao outro — Kazue se aproximou e o enlaçou, entendendo errado aquele silêncio doloroso.
A casa de tábuas velhas rangeu ao atrito do vento. Um cão, ao longe, uivou, e em seguida, o som da chuva bateu contra o telhado de barro. Um leve gemido escapou dos lábios maternos. Kazue e Satoshi correram até a mãe, e aguardaram.
Naquela mesma tarde, ambos choraram em luto. A vida tirava deles, cedo demais, a pessoa que mais os amaria, deixando-os ao léu e solitários perante o que o destino lhes preparava.
***
O som da carroça fez o menino olhar para as rodas. O velho transporte de madeira parecia prestes a ruir, deixando claro que estava no seu limite. Kazue observou a lona que o irmão colocou por cima, na intenção de formar uma guarida nas noites frias. Baixinho, pediu ao espírito da mãe para manter a carroça em pé pelo tempo necessário, temeroso de ter que ficar sem um abrigo.
Foram expulsos de casa na manhã seguinte à morte da mãe. A proprietária da casa em que viviam, havia lhes dito que lá não era lugar de criança. Ela estava dando a casa para um casal, que pagaria o teto com o labor na roça. Kazue quis ajoelhar-se perante ela, implorar por misericórdia, mas Satoshi estava convicto em irem embora.
Já haviam se passado três meses desde então, e não haviam conseguido nada além de um pouco de comida e água pelos trabalhos que haviam feito. Com os conflitos que logo começariam, a economia decaía a olhos vistos, e a maioria das pessoas não podia se dar ao luxo de contratar meninos para ajudar nas colheitas.
— Estou com fome... — o menor choramingou.
Dois dias havia se passado desde o último bolo de arroz. E eles haviam caminhado muito, procurando trabalho. O estômago queimava, a boca salivava e a mente lhe provocava vertigens.
— Também estou com fome! — Satoshi gritou, zangado. — Pare de me importunar!
O menor quis chorar, mas temeu que o irmão pegasse uma vara e lhe desferisse golpes no bumbum. Então, apenas aquietou-se, segurando firme o boneco de espiga de milho que havia trazido consigo.
Chegaram a uma vila pouco tempo depois. As casas rústicas, pobres e feias eram a combinação perfeita para o cheiro desagradável de sujeira.
— Onde estamos? — o menor indagou.
— Fique aqui — foi tudo que ouviu.
Satoshi caminhou até um lugar que parecia um bar. Homens sentavam-se em tocos de madeira. Um cheiro de saquê invadiu suas narinas, incomodando-o.
Pouco depois, o irmão voltou. Estava acompanhado de um homem velho, aparentando ter cerca de cinquenta anos. Ambos estavam sérios e Kazue segurou-se na carroça velha, nervoso. Porém, em seguida, o homem sorriu em sua direção. Os olhos infantis voltaram-se para o irmão, questionadores.
— Ele vai nos dar comida — Satoshi contou.
Todavia, não havia em seu semblante qualquer conotação de alívio ou felicidade. A carranca mais parecia conflituosa e culpada.
— Arigato u [2] — o menino curvou-se perante o homem.
O velho lambeu os lábios, encarando-o com curiosidade.
— Parece uma menina de cabelos curtos — falou, pela primeira vez.
— É um menino — Satoshi insistiu.
Em segundos, estava ao seu lado. A carroça parada entre a rua deserta e uma parede de concreto bloqueava a visão dos transeuntes. Com a privacidade, o irmão mais velho não pestanejou, e tão logo se aproximou, puxou-lhe as calças para baixo, expondo o pênis minúsculo.
Kazue assustou-se, ajeitando novamente o tecido sob si, cobrindo-se. Enrubescido, abotoou as calças, olhando sem jeito para o homem. Viu-o rindo baixinho.
— É muito bonitinho — murmurou, encantado. — Quanto você quer?
— Trezentos ienes e dois pratos de arroz com peixe — Satoshi fixou.
— Dinheiro não é o forte dessa vila, meu rapaz — o homem voltou a lamber os lábios.
Kazue enojou-se perante a imagem úmida. Virou o rosto para o irmão, tentando entender o que estava sendo negociado.
— Preciso do dinheiro para me manter — o mais velho dos Shiromiya justificou-se.
— Dou-lhe os dois pratos de arroz com peixe, um saco de milho e algumas batatas para você levar na viagem.
Satoshi pareceu ponderar.
— Tudo bem — disse, por fim. — Mas só terá o que quer após pagar.
***
O sol já sumia no horizonte quando o homem de boca molhada voltou. Como combinado, ele trouxe o arroz e peixe prontos em uma bacia, e os sacos com os milhos e as batatas. Kazue sorriu, feliz, quase correndo em direção aos alimentos, quando o irmão voltou-se para ele.
— Entre na carroça — ordenou.
Não entendeu a ordem, mas a obedeceu. Assim que estava abrigado, sentou-se entre os panos que lhes servia de coberta, os ouvidos atentos ao que acontecia lá fora. Porém não houve sons, nem discussões. Apenas ouviu o barulho de passos e imaginou que fosse o homem indo embora. Havia se enganado. Quem se afastou foi Satoshi. O homem de lábios úmidos entrou na carroça e sentou-se a sua frente.
Sentiu-se incomodado, especialmente pela forma com que era olhado.
— Como você se chama? — o homem perguntou, lambendo, de novo, os lábios.
O estômago da criança revirou novamente, e ele pensou que fosse vomitar.
— Kazue — respondeu.
O homem assentiu.
— Sente-se aqui no meu colo, Kazue — ele o chamou. — Quero brincar com você...
***
Satoshi tremia tanto que mal conseguia segurar as malditas sacolas. Ouviu os gritos de Kazue durante os quinze minutos que se sucederam como se fossem horas. Estava pálido, maldizendo a si mesmo, sabendo que condenava a sua jovem alma ao inferno depois daquilo.
Porém, motivado pelo desespero, decidiu ignorar o remorso. Depois de alguns dias sem comer, Satoshi soube que faria qualquer coisa. Até entraria na carroça, caso o homem quisesse. Mas ele, nem de longe, era tão bonito quanto Kazue, nem despertava tanta atenção.
Quando o corpo grande saiu da carroça, ele, enfim, saiu do torpor. O homem acenou para ele, sorrindo e foi embora. Satoshi, então, caminhou até a carroça, sabendo de antemão a imagem que veria.
Solidificou o coração o suficiente para nada sentir, mesmo quando a visão do menino de dez anos, nu e ensanguentado entre as nádegas, atingiu-o em cheio. Fechou os olhos, enchendo os pulmões de ar. Em seguida, voltou a abri-los, frio.
— Aqui, o arroz — disse, enquanto colocava um pote de cerâmica ao lado da criança deitada. — Coma — mandou.
Kazue ergueu os olhos lacrimejantes para o irmão. Em seguida, porém, seus dedos pequenos afundaram–se no alimento, e com uma urgência angustiante, ele comeu tudo com sofreguidão.
Capítulo 1
Tóquio, Japão, 28 de setembro de 1940.
— O embaixado r Saburu Kurusu assinou o pacto entre a Alemanha, Itália e Japão — a informação fez Mamoru Aiko voltar-se em direção à voz feminina.
— Quem disse isso? — indagou, subitamente apreensivo.
— Se ouvisse rádio com mais interesse, saberia — a velha Nana irritou–se, balançando os braços gordos para o ar em uma postura cômica. — Não se fala em outra coisa. Sabe o que isso significa?
— Que agora existe uma aliança de cooperação militar, política e econômica? — o rapaz murmurou, os passos lentos, a fim de que a velha pudesse acompanhá-lo.
— Diz mais do que isso, Mamoru! — ela ralhou, o tom baixo, escapando de um lado da boca. — É questão de tempo para as coisas piorarem...
Caminhavam lado a lado pelas ruas de chão batido do subúrbio de Tóquio. O rapaz de cabelos negros, compridos e lisos, magro e de beleza impressionante, resolveu que ali não era o melhor lugar para uma discussão política e apenas deu de ombros. A velha percebeu imediatamente sua decisão e balançou a face, concordando.
— O Japão já está em guerra com a China desde 37. As coisas não vão mudar — disse ele, encerrando definitivamente o assunto.
O suspiro feminino fê-lo voltar-se novamente para ela. Sorriu e apertou–lhe os ombros, carinhosamente, depositando-lhe um casto beijo em sua bochecha enrugada.
— Maldito! — Nana o xingou. — Não me beije no meio da rua! — ordenou.
Mamoru achou graça. Pareciam avó e neto, caminhando como iguais. Mas, a verdade era que Nana não passava de uma velha prostituta que o havia criado antes e depois de a mãe morrer.
Masami Aiko havia sido a terceira gueixa de uma geração de mulheres Aiko. Dona de uma casa num bairro yukaku [3] , ela era uma das mais populares e belas mulheres de sua época. Porém, Masami decidiu encerrar suas “atividades” pouco tempo antes de morrer de tristeza. Mamoru assumiu seu posto em seguida, vendo, em sua bela propriedade, a chance de conseguir viver confortavelmente e ainda ter acesso a todo tipo de informação sem ser notado. Assim, a casa de gueixas transformou-se em prostíbulo, que na sua estrutura tinha como diferencial apenas o ambiente mais requintado do bairro.
Em pouco tempo, a casa Ai, ou simplesmente “Casa do amor” já abrigava meia dúzia de belas mulheres que sabiam dançar, cantar e entreter os homens, o suficiente, para que se tornasse um dos lugares mais disputados da região. Havia uma lista de clientes fixos, e alguns à espera. Diziam, em cochichos entre cavalheiros, que a bebida e a música já valeriam o ingresso. As mulheres eram apenas a pérola dentro da ostra.
Claramente, Mamoru sentia falta dos belos tempos em que seu lar oferecia a pureza das mulheres ao invés da malícia de seus sorrisos, mas o jovem admitia que sua época era cruel, especialmente para homens como ele.
— O que faremos para o jantar? — Nana indagou, tirando-o do devaneio.
O sorriso masculino veio acompanhado com um olhar de relance para a banca que vendia verduras.
— Oh, eu quero sua sopa de couve, Nana — respondeu, feliz. — Algo bem quente porque já tem alguns anos que o outono não é tão frio assim.
A mulher aquiesceu.
— Vou comprar a couve. Vá atrás dos peixes.
O jovem balançou a cabeça, concordando. Em segundos, ele já caminhava em direção à peixaria.
As ruas pareciam calmas, apesar do clima pesado que inundava o ar. As pessoas estavam carrancudas, mas aquilo não era nenhuma novidade para o jovem. Tóquio costumava ser uma cidade fria e de pessoas introvertidas. Porém, nas suas noites, quando as mulheres de família dormiam, seus maridos perdiam a postura gélida e se atiravam nos prazeres carnais do bairro em que residia.
Ouviu alguns suspiros em sua direção, mas não fez caso. Há muito tempo sua aparência perfeita chamava a atenção, mas ele não se importava. Sabia que era desejado, tanto por homens quanto por mulheres. Já havia recebido inúmeros convites e propostas para fazer sexo, mas a todas recusou. Era celibato, não por opção. Apenas amava e não era correspondido, como muitos, aliás.
— Senhor?
Uma voz baixa e urgente chegou até ele. Voltou-se para um jovem de rosto esquelético; aparentava ter uns dezesseis anos, mas sabia que a fome costumava pregar peças na aparência das pessoas. Sua pobreza era visível, tanto pela pele suja quanto pelo cheiro que exalava. Postava-se ao lado de uma carroça velha, prestes a desabar.
— O que quer?
— Tenho algo a lhe oferecer, senhor — o rapaz o chamou para trás da carroça, com a face.
O que seria? Pervitin [4] estava sendo vendido em alguns pontos da cidade, sob as vistas grossas da polícia. Mas, o mais certo era que lhe seria oferecido ópio. Não gostava de se estimular com drogas, então pensou em simplesmente prosseguir em sua caminhada. Contudo algo o fez seguir o jovem rapaz. Talvez o desespero em seus olhos, e o tremor de suas mãos.
— Serei generoso, senhor — ele disse, subindo a lona que cobria a carroça. — Pode usá–lo por duas horas em troca de apenas um prato de comida.
Os olhos de Mamoru estreitaram–se para dentro da carroça. Havia lá um menino, de talvez doze ou treze anos, deitado sobre cobertas imundas, e tremendo de frio. Como também suava, o jovem cortesão entendeu que ele estava febril.
— Ele está morrendo? — indagou ao outro à sua frente.
— É só fraqueza, senhor — o outro respondeu, rápido. — Faz três dias que não comemos nada. A comida está começando a se tornar algo difícil de encontrar.
Mamoru voltou os olhos novamente ao menino deitado. O rosto empoeirado e o cheiro horroroso que propagava no ar, deixou claro que a situação dentro da carroça era terrível.
— Quantos anos ele tem?
— Vai completar quinze no próximo verão, senhor.
Era uma criança, na visão de Aiko. Fechou os olhos, pensando no que fazer. Viviam um tempo cruel. Uma Grande Guerra estava às portas, e o futuro – especialmente o dele – ainda era incerto e amedrontador. Mas, como virar as costas e deixar aquele menino doente para trás?
Pôs a mão dentro da carroça e puxou a coberta, descobrindo a forma frágil. Viu o sangue seco nas pernas e as marcas de mordidas e arranhões nos braços e no peito. Sentiu náuseas.
— Onde você o achou?
— É meu irmão — o outro explicou, incomodado. — O senhor vai querer ou não?
Mamoru voltou a olhá-lo, sentindo um misto de ódio e piedade. O que a fome era capaz de fazer?
— Há quantos dias está em Tóquio?
O outro deu os ombros.
— Dois ou três. Viemos do interior.
Aiko deu um passo à frente, intimidador.
— Sabe o que é a Kempeitai?
O rapaz concordou, subitamente apavorado.
— Sabe o que a Kempeitai faz com quem pratica prostituição ilegal?
Os olhos do rapaz arregalaram-se em um dilema. Havia em si o desespero pela necessidade e a precipitação da fuga pelo medo.
— Quanto você quer pelo seu irmão? — Mamoru indagou, firme.
Os olhos pretos desanuviaram.
— Já disse, senhor... Um prato de...
— Não quero dormir com seu irmão, quero levá–lo para minha casa e ficar com ele — foi firme. — Sei que ele é o seu ganha-pão, mas não aguentará muito tempo. Está morrendo, percebeu? Dar-lhe-ei dinheiro e você irá embora. No interior, encontrará trabalho.
— Mas...
— Tem que aprender a ganhar seu sustento com o próprio suor, meu jovem — sua voz era ritmada. — Ou com sua própria bunda, se preferir.
Houve um resquício de dúvida nos olhos escuros do outro. Porém, após uma rápida olhada para a carroça e a constatação de que realmente o irmão mais novo estava perecendo, a decisão foi instantânea.
— Negócio fechado.
***
O cheiro de chá inundou a bela sala tradicional. O herdeiro da família Ryo adentrou o ambiente e encarou a amante com um sorriso bonito nos lábios. Não havia nada que o agradava naquela sala, mas gostava de olhar para a bela mulher que se sentava com candura numa poltrona.
— Comprei sua passagem para Kyoto — comunicou, gentil.
— Já? — As sobrancelhas negras elevaram–se, inquisidoras. — Achei que ficaria um mês.
— Um mês é tempo demais, querida — ele permaneceu sorrindo. — Amantes são como peixes, depois de três dias numa casa, começam a feder.
A bela mulher bufou, zangada.
— Como pode falar assim comigo? Achei que me amasse!
Ryo bebeu o chá. Era calmo por natureza, mesmo em momentos como aquele.
— Comprei para você aquela joia de que tanto gostou, Mina — ele contou. — E sua passagem de trem é de primeira classe. Além disso, seu pagamento será mais que o suficiente para mantê-la por um bom tempo.
A jovem de vinte anos calou-se. Até porque já dormia com aquele homem há três anos e ele sempre a tratava da mesma maneira. No fundo, o herdeiro da frota pesqueira mais importante do norte era até respeitoso, do seu jeito.
— Se a guerra durar muito tempo... — ela começou, mas foi interrompida.
— Eu não serei convocado, Mina. Além de ter dinheiro para me manter seguro, sou amigo íntimo de Shin Sakamoto.
Mina fechou os olhos em repulsa, lembrando–se do detestável protegido do Imperador. Havia visto o rapaz algumas vezes naqueles três anos, mas os curtos encontros foram suficientes para causar-lhe asco.
— Mas Shin Sakamoto está louco para ser chamado ao fronte...
— Shin tem ilusões românticas em relação à guerra — objetou. — Quando se deparar com a verdade sobre o que ocorre entre os tiros, atos heroicos e justiça mundana, aposto que deixará de ser um fã tão ardoroso do exército imperial.
Falar aquilo poderia levar Ryo ao fuzilamento, mas ele confiava em Mina para dizer tais palavras.
— E seu casamento?
— Que casamento?
— Completará vinte e dois anos em breve, e tenho conhecimento da tradição dos Ryo em se casar na vigésima segunda primavera de vida.
O homem riu, bebendo mais chá.
— Não vou me casar, Mina. A mulher dos meus sonhos não apareceu ainda, esqueceu-se?
Ela riu baixinho.
— A mulher dos seus sonhos não existe, querido — importunou. — Até quando insistirá em procurá-la?
Deu os ombros.
— Sonho com ela desde moleque, conheço seu rosto, sua voz e seu cheiro. Kami-sama [5] não me daria essas visões em cima de uma ilusão. Um dia, ela aparecerá. Então me casarei com ela e me aquietarei, cuidando de minha rainha e de meu pequeno reino, com a devoção de um cão.
A japonesa abriu a boca para replicar, mas a entrada de um servo a calou.
— Ryo-san — o homem de meia idade se curvou. — Mandou me chamar?
O jovem afirmou com a fronte.
— Tadao, quero que envie uma missiva a Mamoru Aiko em Tóquio.
— Vai deixar Hokkaido [6] ?
— Sim, pretendo ir morar em minha casa na capital. Aproveitarei o pouco tempo que terei ao lado de Shin, que provavelmente viajará com os embaixadores até a Alemanha e Itália, para acertos da aliança.
A mulher à sua frente remexeu-se na poltrona.
— Espero que ele vá para a Guerra e morra lá!
Ryo bebeu o último gole de seu chá e se ergueu. Curvou-se perante ela, inclinado a afastar-se.
— Às nove horas, Tadao a levará para a estação. Adeus.
Ela ficou rubra e ergueu-se.
— Tão frio! — reclamou. — Poderia ter mais consideração?
O homem apenas deu as costas. O assunto estava encerrado.
***
A jovem e bela japonesa Mina jamais soube, mas o principal motivo que levou o rico Ryo a riscá-la de sua lista de "servidoras sexuais" foi suas críticas não veladas a Shin Sakamoto. Obviamente, o jovem Ryo sabia que todas as palavras grosseiras tinham fundamento. Shin era, na mais barata e débil palavra, um arrogante estúpido, sem respeito ou modos. Mesmo assim, via-o como um irmão, e essa irmandade estava acima de qualquer falha.
Haviam se conhecido na infância, aos nove anos. Ambos tinham a mesma idade, mas Ryo nascera alguns meses antes do amigo. Foi numa tarde gelada de janeiro que se viram pela primeira vez. Era aniversário de Shin, e todos os filhos dos mais importantes membros da nobreza foram convidados para o aniversário do menino. Ainda ria quando se lembrava da forma como ele desqualificava todas as crianças que tentavam se aproximar.
"Bakas [7] " , ele dizia, enquanto voltava os olhos ao Botchan [8] . Mas, ele não teve a mesma antipatia pelo menino de rosto redondo e aparência gentil.
— Posso ser seu amigo — constatou, antes mesmo de Ryo ter aberto a boca.
E foi.
Amigos inseparáveis em todas as artes juvenis. Gostavam de fugir juntos e irem banhar-se nas águas de Arakawa. Também andavam pelo subúrbio, olhando com interesse para os pobres e admirando as formas das prostitutas.
— Eu vou me casar com uma mulher que vejo nos meus sonhos — Ryo lhe segredou certa vez, aos onze anos.
Esperou o riso debochado, mas o amigo encarou-o com interesse.
— Você tem visões?
— Todos os dias — confirmou. — Vejo uma linda jovem de cabelos negros e olhos amendoados. Ela tem a pele tão pálida quanto uma gueixa e é tão bela quanto as sakuras [9] na primavera.
Shin pareceu surpreendido.
— Então nunca macule essa imagem — aconselhou, sério. — Nem todos ganham presentes tão preciosos assim de Kami-sama. Respeite isso.
Soube naquele momento que não importaria o homem que Shin se tornasse, sempre o amaria.
Foi mais ou menos na mesma época que Mamoru Aiko apareceu. Shin e Ryo estavam perambulando pela área dos bordéis quando viram um lindo menino de cabelos negros brincando com um carrinho de madeira. Foi instintivo, especialmente para Shin e Mamoru. Eles se viram, conversaram meia hora, e já eram os melhores amigos. Ryo não sentiu ciúmes, pois tudo pareceu natural.
Mas, visivelmente, a mãe de Shin não achou a mesma coisa. Prima distante do Imperador, a soberba mulher descobriu que o herdeiro andava com o filho de uma gueixa. Proibir Shin da companhia só a fez descobrir que a personalidade livre do garoto era ainda mais impetuosa do que imaginava. Após quebrar o quarto todo, o rapaz fugiu de casa. Foi achado um dia depois numa casa abandonada, ao lado de Mamoru. Sem saída, foi levado para uma escola interna nas montanhas e permaneceu lá por anos. Porém, assim que se viu livre, já adulto, a família teve a desagradável surpresa de descobrir que os sentimentos de Shin permaneciam os mesmos.
Apesar disso, o Imperador o amava como um filho. Era o único jovem da família com quem poderia conversar e debater todo o tipo de assunto. Os demais, estafantes, mal conseguiam manter um diálogo num nível aceitável. A recíproca, aliás, era a mesma. Shin idolatrava o Imperador, a quem chamava carinhosamente de “tio”, amando-o acima de todas as coisas. E, talvez por isso, os Sakamoto deixaram o filho em paz, para viver sua amizade estranha com aquele rapaz de tão baixa estirpe.
Ryo ria ao pensar nos dois melhores amigos tão diferentes, tão opostos. Mesmo assim, muito necessitados da companhia um do outro. Separá-los era missão impossível.
De fato, ambos estavam sempre juntos. Era a casa Ai que Shin frequentava com mais interesse, e era no quarto de Mamoru que ele dormia sempre que estava em Tóquio. Isso, aliás, era algo que Ryo não concordava. Dois homens dividindo a mesma cama era a coisa mais estranha que ele tivera conhecimento, mas por sorte, sabia que os amigos não estavam envolvidos em nada imoral. Eram apenas irmãos que gostavam de conversar até que os olhos pesassem e o sono batesse à porta.
Ryo sentou-se na sua bonita cadeira, no escritório da família. Os pensamentos ainda voltados para Shin e Aiko, e no quanto desejava poder estar com ambos para uma noitada regada a saquê e sexo com as belas prostitutas que Mamoru agenciava.
A vida era realmente muito divertida. E ele não se fazia de rogado em aproveitar cada momento, pois sabia que assim que a bela de seus sonhos surgisse diante dele, não haveria mais espaço para nada e ninguém.
— Senhor Ryo — Tadao interrompeu seus pensamentos. — Trouxe a lista de entregas para essa semana — apontou um relatório.
O homem estava pálido e apesar de não ter muito interesse na vida dos servos, Ryo indagou:
— Aconteceu alguma coisa.
— Não senhor...
— Ora, me diga! — irritou–se. — Trabalhamos juntos há tantos anos, você foi o mais leal e fiel servo de meu falecido pai, quero apenas ouvi–lo.
O homem pareceu pensar, mas, por fim, murmurou.
— Ouvi alguns boatos sobre... — a voz falhou.
— Sobre o quê?
O silêncio durou alguns segundos.
— Dizem que estão acontecendo muitas coisas terríveis na China.
Ryo gargalhou.
— E você é chinês, por acaso? — rebateu. — Mantenha sua mente longe do que não está em suas mãos — aconselhou. — Sabe o que aconteceria com você, sua mulher e filhos caso alguém o ouvisse?
— Sim, senhor.
— Então saia agora e vá ocupar sua mente com trabalho. Vou viajar e quero deixar tudo arrumado. Estamos numa época turbulenta, e não preciso de um empregado sendo estraçalhado em praça pública pela Kempeitai. — ralhou.
Quando o homem afastou–se, Ryo enfim se acalmou.
— Idiota... — suspirou.
E apartando a imagem da mente, voltou ao trabalho.
Capítulo 2
— Você sa i para comprar peixe e me traz um moribundo? — Nana gritou, indiferente ao corpo dormente no leito.
Mamoru encarou a velha e sorriu feliz.
— Ele não é a criatura mais linda que já viu na vida? Estou simplesmente encantado, poderia ficar olhando-o para sempre.
Estavam em um dos inúmeros quartos da casa. O garoto dormia exausto e alheio ao que acontecia. Aliás, fazia sete dias que ele já não tinha consciência de sua realidade, quando, numa oportunidade de ouro, o irmão o vendera para três rapazes ao mesmo tempo. Foi tão abusado e maltratado, que suas forças esvaíram-se antes mesmo dos três terminarem. Ao ser devolvido para Satoshi, não conseguia mais andar, e foi atirado na carroça, aguardando a morte.
— Diga-me que ele não é perfeito para ser um taikomochi [10] e eu o mando embora agora.
A velha aproximou-se da cama. Espantou-se com a aparência bela do jovem miúdo, mas manteve a carranca.
— Estamos em guerra e você me traz mais uma boca pra comer — perseverou.
— O garoto não comerá de graça. Ele vai trabalhar!
— Pelo estado do traseiro dele, se deitar-se com mais algum homem, vai rasgar-se permanentemente.
Aiko riu, triste. Era bem verdade que durante o banho que Nana e ele haviam dado no rapaz, perceberam que ele havia sido usado com brutalidade doentia por um tempo bastante longo. Mas também sabia que um tempo de abstinência lhe devolveria a forma.
— Não vou vendê-lo — afirmou, decidido.
A velha irritou-se.
— Era só o que nos faltava! O que fará com esse pirralho? É justo ele comer sem ajudar a comprar a comida?
— Já disse que ele vai trabalhar — foi novamente firme. — Mas não com sexo. Vamos ensiná-lo a dançar.
— Dançar? Você definitivamente ficou louco.
Mamoru postou-se atrás da mulher e a abraçou, carinhoso. Depois lhe deu um beijo estalado na bochecha e continuou:
— Você foi a mais atraente e maravilhosa vadia que já dançou nesse mundo, Nana — ele amorteceu as palavras com um carinho nos cabelos grisalhos. — Se alguém pode ensinar esse garoto a dançar, é você. E pense bem nisso. Imagine-o como um taikomochi vestindo um quimono preto com flores brancas, e balançando-se ao som de pequenos tambores, selvagemente, num kabuki [11] .
Nana pareceu interessada, mas logo negou com a face.
— É loucura.
— Loucura é, mas imagine o quanto chamará a atenção. Será nosso mistério, a mais bela joia que teremos, nosso diferencial.
A mulher fez um muxoxo baixo, e Mamoru soube que havia conseguido dobrá-la. Voltou-se novamente para o futon, e sentou-se ao lado, observando o menino. Como mesmo o irmão havia dito que era seu nome antes de ir embora sem olhar para trás?
Kazaki? Kazama?
— Kazue... — recordou-se, instantaneamente.
Como se chamado de um pesadelo, os olhos amendoados abriram-se e encararam o jovem cortesão. Houve um misto de apreensão e desespero, mas Mamoru logo o acalmou, com seu famoso sorriso angelical.
— Kazue, né? — ele indagou, amistoso.
O garoto tentou sentar, mas uma forte dor nas ancas, fê-lo voltar a deitar-se.
— Fique calmo, Kazue — pediu. — Está entre amigos. Eu sou Mamoru Aiko e essa — apontou a velha — é Nana. Sou o dono dessa casa, e você é bem vindo a ela.
O rapaz pareceu confuso, mas em seguida ele abriu a boca pela primeira vez, deixando Aiko chocado com seu tom gentil e delicado.
— Obrigado, senhor Aiko. Mas qual é o preço de sua generosidade?
Pergunta coerente, sabia. Kazue, com certeza, jamais havia recebido um lugar quente para repousar sem ter que pagar um alto preço por tal.
— Você vai comer — Aiko indicou-lhe um prato com peixe próximo do futon. — E vai dormir. Quero que descanse. Quando estiver melhor, vamos conversar.
Todavia, não conseguiu deixá-lo na ignorância. Percebeu o pânico e o medo nos lindos olhos amendoados e segurou suas mãos.
— Kazue... — chamou, gentil. — Quando ficar melhor, vamos ensiná-lo a dançar — sorriu. — Você já dançou alguma vez?
O rapaz negou.
— Pois Nana vai ensiná-lo e você ganhará seu sustento assim, está bem? Fique tranquilo. porque somos boas pessoas e não vamos machucá-lo nem abusar da sua confiança.
Então se foi.
Naquele dia, Kazue Shiromiya realmente acreditou que ele fosse um anjo. E, era uma sorte que estava sendo acolhido em suas asas.
***
O cheiro de peixe acordou-o novamente. Shiromiya ainda estava fraco e frágil, mas a fome era maior que qualquer coisa. Abriu os olhos e observou a bandeja ao lado do futon. Peixe, pão e rodelas de cebola. Nunca havia visto nada mais apetitoso em toda a vida.
Já se esgueirava em direção ao prato, quando um gato gordo surgiu diante dos seus olhos.
— Olá — brincou, encantado pelo belo animal.
Era malhado, as cores laranja, branca e preta se fundindo como se num pote de tinta fresca. Os olhos verdes enormes o encararam curiosos, até que ele voltou-se para o prato.
— Não! — o garoto gritou, mas não teve sucesso em impedir que o gato roubasse seu pedaço de peixe.
Não pensou muito quando o animal saiu em disparada com sua comida na boca. A fraqueza foi esquecida e a sua necessidade provocada pela fome lhe deu forças. Pondo-se de pé, ele correu atrás, saindo do quarto e chegando até o corredor. A visão o deixou tonto por alguns segundos.
A Casa Ai era na verdade um conjunto de pequenas casas de madeira num enorme terreno, repleta de árvores, um bonito jardim e uma fonte de água limpa. Era quase um pequeno paraíso e, para Shiromiya, acostumado à sujeira e pobreza, serviu de ânimo.
Porém, o ronco no estômago fê-lo lembrar-se de coisas mais urgentes que a admiração pelo lugar.
— Gatinho! — chamou. — Vem cá!
Estava a poucos metros do animal quando uma voz feminina o alertou.
— Não toque no gato!
Voltou-se para trás. Duas belas e jovens mulheres o encaravam com interesse. Ele baixou os olhos, assustado e nervoso.
— Como é bonito... — a mais jovem delas aproximou-se e segurou seu rosto, medindo-o. — Nunca vi nada igual.
— Nana comentou que Mamoru vai torná-lo um taikomochi — a outra anotou. — O que acha? — indagou à amiga.
— Acho que será uma difícil missão deixar os clientes longe dele.
Elas riram baixinho.
— Sou Keiko. — A maior se apresentou. — E essa é Midori — apontou a outra. — Somos parte da Casa do Amor — parecia sentir-se honrada. — E você, quem é?
— Shiromiya Kazue — disse, simples.
— Nossa, que nome grande. Não é grande, Mi-chan [12] ? — voltou-se para a amiga.
— Sem dúvidas.
—Vamos chamá-lo de Shiro — disse. — Só Shiro.
O rapaz concordou. Que escolha tinha?
— Prazer em conhecê-las — foi sincero. — Mas, me deem licença, pois agora vou tentar recuperar meu almoço.
— Esqueça seu almoço — Keiko ordenou. — Vá à cozinha e pegue outro peixe. Deixe em paz esse gato maldito.
— Maldito?
— É o gato de Sakamoto Shin.
As duas viraram os olhos com desprezo.
— Sakamoto Shin?
— Ele é parente do Imperador e amigo de nosso chefe Mamoru. Mas, acredite, tudo de bom que existe em Aiko falta em Shin. Não entendo como ambos podem se dar tão bem.
Shiro ficou confuso, mas ambas já estavam tagarelando sem parar e ele não achava um gancho para interrompê–las.
— Evite que Shin o veja — Midori alertou. — Ele dorme com homens também e se vê-lo, vai querer levá-lo para cama. Advirto-o que será a pior experiência de sua vida.
Pior que as demais? Shiro duvidava.
— Ele é muito feio?
— Ele é um dos homens mais bonitos que já nasceram no Japão. É grande, tem a pele rígida e uma bunda capaz de enlouquecer qualquer uma. Mas trata todas as mulheres e homens com quem se deita apenas como buracos onde enfia o pau.
Shiro ficou espantado pelas palavras, mas preferiu se abster de opinar.
— E nunca toque no gato dele. — A mulher prosseguiu, apontando o felino que já se deliciava com o peixe. — O gato é provavelmente a única coisa que ele ama e respeita no mundo todo.
— O gato, o Imperador, Ryo-san [13] e Mamoru-san — Keiko completou.
O som de passos pesados fê-las virarem para trás.
— Duas matronas enxeridas. Vão se arrumar e sumam da minha frente! — Nana berrou, fazendo com que elas saltassem e corressem em direção aos seus respectivos quartos.
A velha pareceu espantada por vê-lo em pé, mas tão logo seus olhos se pousaram no gato que comia, entendeu.
— Vamos à cozinha que lhe darei mais comida — ela disse. — Esse gato dos infernos rouba nosso alimento e anda por aqui como se fosse um rei — resmungou. — Ouvi o que elas lhe disseram, e entenda aquelas palavras como um bom conselho: Shin Sakamoto não é a pessoa que você desejaria como amigo ou amante.
Shiro não queria nem amigos nem amantes.
— E o maldito ainda virá nessa noite! — ela ralhou, como se o garoto fosse capaz de entender seu surto. — Odeio Mamoru por aceitá-lo nessa casa. Só ele não percebe que Shin Sakamoto é o próprio demônio?
O menino sentou-se à mesa. Já havia conhecido muitos demônios, homens suados e fétidos que se forçavam para dentro dele, enquanto lhe cobriam os lábios com as mãos sujas para que não gritasse.
Ela lhe deu uma tigela de sopa e um prato com peixe. Enquanto degustava o alimento, Shiromiya sorriu. Não temia nada e nem ninguém com a barriga cheia.
***
A noite estava morna, apesar do frio que andava fazendo naquela tarde. Pequenos insetos batiam contra as luzes, causando um barulho seco e momentâneo. A casa Ai abriu suas portas e Mamoru colocou-se à entrada para cumprimentar os clientes que chegavam. Ansioso para ver o rosto de Shin, ele estendeu o olhar ao longe, porém nenhum sinal. Em vez de parecer frustrado, no entanto, abriu o sorriso marcante e habitual, para cada um que cruzava por ele, completando a recepção com cumprimentos formais e breves comentários sobre o tempo. O resto da rotina, ficava a cargo dos sorrisos sedutores das mulheres, tão logo os homens adentravam o salão.
— Boa noite, senhor Aiko.
A saudação fê-lo sair do torpor. Aiko encarou o antigo cliente, Kenzo, com um sorriso mais do que amistoso.
— Há quanto tempo não o vejo? Acredito que a última vez que esteve aqui, a casa ainda era dirigida por minha mãe.
O homem, de cerca de cinquenta anos, encarou o jovem e devolveu-lhe o sorriso.
— Soube o que aconteceu à bela Masami — ele lhe deu as condolências. — Uma perda irreparável — sussurrou. — Pessoas boas não deviam morrer.
Aiko baixou a face.
— É verdade.
Mamoru ergueu os dedos, chamando uma das meninas, Keiko, para fazer companhia ao homem.
— Por onde esteve?
Houve um breve pestanejar, mas logo a resposta surgiu, acanhada.
— Na China.
Então o homem havia sido chamado para lutar na China? Mamoru resolveu não prosseguir no diálogo, pois só a menção lhe dava calafrios. Fingindo seu melhor ar despreocupado, ele voltou-se para a bonita prostituta:
— Cuide bem do senhor Kenzo, Keiko — pediu. — Ele é um herói nacional.
O homem curvou a fronte, parecendo culpado. Mas, em seguida entrou.
Aiko fechou os olhos, cansado daquilo tudo. Talvez Nana estivesse certa e ele necessitasse abandonar o ofício. Se fosse morar numa casa no interior, quem sabe seu fardo não fosse tão pesado. Quem desconfiaria de um simples camponês?
— Sempre valerá a pena regressar, se a imagem que terei em cada volta, será a sua de olhos fechados, me aguardando...
O leve sopro de Shin fez Mamoru rir.
— Quer um beijo? — Sakamoto brincou.
O outro abriu os olhos, encarando-o. Estava ainda mais bonito, mais forte e determinado. Seus olhos continuavam intensos, sua pele estava levemente bronzeada e os generosos lábios pareciam um pouco secos. Ao contrário do resto da humanidade, a guerra parecia estar fazendo muito bem a Shin, pois seu semblante brilhava em um contentamento absurdo.
— Não quero seus beijos — Aiko o importunou. — Você beija qualquer um.
— Mentira — Shin chispou os olhos. — Eu durmo com qualquer um. Eu alivio minha inquietação masculina com qualquer um. Mas beijar é só você.
Um pigarrear fê-los desviarem a atenção para o homem que acompanhava Sakamoto.
— Não se incomode com as frases de efeito de Shin, Takako-san — Mamoru disse ao outro oficial do exército. — Ele gosta de provocar, você sabe!
— Nós somos apenas amigos — Shin seguiu sua linha de raciocínio, encarando Takako.
E aquilo era real. Mamoru não podia dizer que se ressentia do fato. Shin lhe devotava a mais pura e leal amizade, sendo que o jovem cortesão era conhecido por ser o único a quem Sakamoto tratava com consideração e respeito.
Mesmo assim, vê-lo correr em direção às mulheres, cortou seu coração. Observou ao longe ele abraçar Yuki e cheirar a nuca de Rika. Elas riram baixinho, como se estivessem adorando, o que Aiko não duvidava.
Suspirou.
Amava Sakamoto desde criança. Não saberia precisar exatamente quando começou a se apaixonar, mas desde suas primeiras lembranças, sabia que Shin era seu escolhido. Porém quis o irônico destino que Shin não só não o correspondesse, como se deitasse com qualquer um que lhe despertasse interesse: homens ou mulheres.
Qualquer um... menos Mamoru.
— Quando teremos carne nova na casa Ai? — Shin surgiu novamente ao seu lado, enlaçando a sua cintura.
Quis gritar que ele era carne nova, que ele estava ali à disposição, mas tudo que fez foi dar os ombros.
— Não tenho culpa se você já dormiu com todas as prostitutas da cidade.
— Isso soa ciúmes — o moreno o importunou.
Aiko fechou os olhos, respirando fundo. Em seguida, o encarou.
— Desculpe, estou exausto.
— A guerra o incomoda mais do que devia, Aiko — Shin observou. — Não carece temer, pois eu estou ao seu lado e nada vai lhe acontecer. É nossa sina sermos vencedores.
Aiko assentiu, a cabeça baixa. Apesar da ânsia, apertou os lábios para não retrucar a última frase. Só Deus sabia o quanto orava à noite pelo fim daquela guerra e a derrota do Japão.
— Eu fiz o chá de ervas que você gosta — contou. — Preparei as folhas durante a tarde, quer que eu o sirva agora?
— Sim, mas antes quero ver Minikui–sama [14] .
Mamoru riu baixinho, achando graça da seriedade na voz de Sakamoto ao falar do gato. O felino malhado havia sido entregue em suas mãos quando ambos eram adolescentes. Nunca esqueceria o dia que encontraram o filhote abandonado em um caixa de papelão perto do rio. Shin o pegou nos braços, os olhos brilhando de contentamento, um amor instantâneo.
“Você vai cuidar dele” — disse a Mamoru. “Ele é meu, mas será você que vai criá–lo”.
Acostumado a obedecer sem questionar, o menor trouxe o gato para casa e o criou com todo o mimo que suas possibilidades permitiam. Já adultos, certa vez, ele questionou Sakamoto sobre a decisão, e a resposta fez seu coração bater apressadamente durante dias.
“Ele é nossa ligação. Assim, não importa o que aconteça em nossas vidas, você sempre terá que me aceitar por perto, porque Minikui é meu”.
— Minikui estava dormindo no meu quarto até agora há pouco. Quer ir lá?
Shin negou.
— Depois irei vê-lo, agora quero beber e aproveitar sua companhia.
Mais uma vez, o coração do jovem Mamoru alegrou-se perante as palavras impensadas.
— Amanhã viajarei novamente ao interior, a fim de verificar recursos. Não posso perder nenhum segundo, não é?
***
— Já ouviu falar no Departamento de Prevenção de Epidemias e Purificação de Água?
Mamoru sorriu, enquanto servia o chá para os dois homens.
— Fica no nordeste da China, não? — Shin indagou a Takako, mas seus olhos estavam fixos em Mamoru. Sorriu quando a xícara foi totalmente preenchida, e as mãos bateram de leve no ombro do amigo, num agradecimento mudo.
— Dizem que não é bem um departamento pacífico — Takako sorriu, os dentes branquíssimos.
— O que não falta são boatos e lorotas nessa época de guerra — Shin desconversou.
O som de botas na madeira polida do chão fez com que ambos se virassem em direção ao homem que se aproximava. Kenzo estava rubro, o olhar assombrado e agoniado, a boca entreaberta, como se todas as verdades do mundo pudessem escapar-lhe, trazendo o caos.
— Acredita demais na integridade do exército, Shin Sakamoto — ele o enfrentou, com raiva.
Mamoru ergueu-se rapidamente, colocando-se entre os homens. As mãos começaram a tremer sem controle, enquanto ele empurrava levemente Kenzo para trás.
— Já bebeu demais, meu querido — suas palavras eram carregadas de implicações. — Tenho certeza que sua senhora o espera com ansiedade no lar.
Mas o homem não se deixou levar. Estava firme, rígido, estancado no lugar.
— Antes de ficar babando pelo seu covarde exército, procure se informar sobre a unidade 731.
Aiko começou a levantar as mãos, numa posição teatral.
— Por favor, não vamos falar da guerra aqui — pediu. — Estamos numa casa de amor! Nossas meninas querem ser amadas e não incomodadas com as coisas que acontecem lá fora.
Contudo, era como se sua voz fosse apenas uma brisa que soprava, sem incomodar a ninguém.
— Fiquei uma semana inteira fora — Shin comentou, indiferente. — Voltei e minha única intenção é ficar perto de meu amigo. Portanto, recolha-se a sua insignificante existência! — O tom aumentou, e logo o jovem homem colocava-se em pé. — Verme! — xingou. — Desapareça da minha frente antes que eu perca o resto da paciência que tenho! — mandou. — E caso eu saiba que anda espalhando mentiras e insinuações maldosas sobre nosso sagrado exército, eu mesmo ordenarei sua morte como exemplo!
Mamoru assustou-se perante o grito, mas tentou manter a calma. Shin era assim, impetuoso. Contudo, ele não tinha o costume de cumprir ameaças, então imaginou que na manhã seguinte tudo estaria bem para Kenzo, caso o homem permanecesse em silêncio. Voltando-se ao senhor, sorriu tranquilizador, e já estava indicando a porta de saída quando a voz do homem se ergueu, em direção a Sakamoto.
— Pirralho maldito! Estive lá desde 37, eu vi com meus próprios olhos atrocidades que você sequer sonha acontecer. Vi prisioneiros sendo sentados nus sob o gelo e deixados para morrer. Vi pequenas crianças chinesas enfiadas em buracos fundos e sendo enterradas vivas. Vi homens sendo colocados em minúsculas câmeras e sendo queimados apenas para que o exército pudesse se divertir — A voz foi baixando, assombrada. — Vi mulheres sendo estupradas por grupos enormes de homens... Estacas de madeira sendo enfiadas em suas genitálias...
Kenzo encarou Mamoru. Os olhos de Aiko estavam encharcados, mas havia em seu brilho algo maior que o assombro. Era medo.
— Não temo a Kempeitai — prosseguiu. — Nada do que me fizerem, pode ser pior do que acontece aos chineses. Eu vi o inferno, e nunca mais poderei esquecê-lo, mesmo que morra tentando.
Seu discurso foi ouvido por todos. Algumas das prostitutas ficaram comovidas, enquanto outras sorriram, desdenhosas. Os homens, ao contrário, não demonstravam em seu semblante qualquer sentimento. A seriedade de Shin amedrontou ainda mais Aiko. Antes, porém, do jovem oficial dizer qualquer coisa, Kenzo deu as costas e saiu. O alívio de Aiko foi tão grande que ele quase suspirou.
— Por favor, não faça caso — pediu ao amigo. — Kenzo-san está muito perturbado desde que regressou da China.
Mas havia uma frieza absurda em Shin que despertou o desespero no cafetão.
— Por favor, Shin-chan — implorou. — Como você mesmo disse, ficou uma semana fora e amanhã irá viajar novamente. Não desperdice nosso pouco tempo com alguém que não está com boa saúde mental.
Shin o encarou. Calmo, ele ergueu as duas mãos de Aiko e depositou um beijo devotado em cada uma delas.
E então saiu.
***
Aiko bateu com força na porta de madeira. Ouviu o som de passos, e irritou-se com a demora da pessoa que lá estava. Voltou a bater, dessa vez com mais força e chutes.
A porta abriu. Kenzo estava vestido um quimono de algodão, enquanto sua esposa se postava atrás dele, curiosa.
— Fuja! — Mamoru disse, em aflição. — Pegue suas coisas e fuja agora. A Kempeitai vai chegar a qualquer momento.
— Não os temo, jovem Aiko.
— Perceba que não verá a luz do dia, se permanecer aqui — elucidou. — Conheço uma pessoa no interior que pode abrigá-lo por um tempo. Arrume rapidamente suas coisas e vá!
O homem bateu de leve no seu ombro.
— Morrer será um alívio, garoto — foi sincero. — Não aguento mais, Aiko-san. Não durmo há anos; escuto as vozes das crianças que me pediram clemência enquanto eu largava sobre elas a terra gelada. Eu me tornei um demônio sobre as ordens do Império. Prefiro a morte a viver com essa certeza.
O som do carro da polícia surgiu. Aiko assustou-se, virando-se em direção à rua.
— Obrigado, Aiko-san — Kenzo lhe apertou os ombros. — Você é um bom homem, mas vá embora antes que Shin Sakamoto perceba que tentou me ajudar. Não ache que ele terá piedade de você, quando souber a verdade.
— Verdade?
— Nós dois sabemos a verdade, Aiko-san — Kenzo disse, misterioso. — Todavia, seu segredo morrerá comigo.
Não houve tempo para mais nada. Mamoru escondeu-se atrás de um arbusto, assim que a polícia parou em frente à pequena casa de madeira. Camuflado, ele observou os homens da Kempeitai saindo do carro, ao lado do imponente Shin. Ouviu os gritos da mulher, que se ajoelhou perante o jovem Sakamoto.
De onde estava, as acusações lidas num papel eram ditas com seriedade pelo policial, como se estivessem em um julgamento. Traição ao Império, tentativa de denegrir a imagem do exército, desordem pública, entre outras coisas, pareciam espadas cortando a carne do homem.
Kenzo ajoelhou-se no chão no momento final. Mamoru desviou os olhos e cobriu os ouvidos. Mesmo assim, o som do disparo permaneceu em sua mente, como uma doença maldita, marca infinita de guerra.
Capítulo 3
O so l já despontava no horizonte quando Shin Sakamoto abriu a porta do quarto. Os olhos ansiosos e pesados focaram-se no chão de madeira, mais precisamente no futon convidativo e aquecido, onde o amontoado de cobertores macios indicava o corpo do amigo.
— Saia do meu futon — ouviu o sussurro zangado, assim que se deitou ao lado de Aiko.
Sorriu.
Abraçando o amigo, aspirou profundamente seu perfume cítrico. Há quantos dias não dormia? Já havia perdido as contas. Por alguma estranha razão, nunca conseguia descansar longe de Mamoru. Precisava dele como do ar que respirava.
— Eu disse...
— Eu ouvi — resmungou. — Sei que está zangado, mas estamos em guerra, Mamoru. Como eu poderia ouvir tamanha afronta e me calar?
Shin percebeu o leve tremor de Aiko e ouviu o choramingar calado. Levou as mãos espalmadas nas costas do amigo e depois o virou, abraçando-o. Aiko escondeu o rosto na curva de seu pescoço e ambos ficaram assim, cada um absorvido em sua própria verdade.
— Quando você voltará? — o menor indagou, mudando o assunto.
— A Guerra irá intensificar-se, Aiko. Sei de algumas coisas... Então, é provável que só nos vejamos novamente no próximo ano.
— Janeiro?
— Pretendo passar meu aniversário com você, meu querido.
— Isso é daqui a três, quatro meses! — reclamou. — É muito tempo, Shin!
— Eu sei, mas não há nada que possa fazer. Os soldados ficam muito mais tempo longe de suas famílias, eu tenho sorte de pertencer à nobreza. Se fosse outra circunstância, Aiko, eu estaria no fronte e não voltaria até a guerra acabar. Você e Ryo-san também seriam convocados.
Aquilo só confirmava as suspeitas de Mamoru, de que não havia sido chamado por causa de Shin.
— Os EUA limitaram a venda de petróleo ao Japão — Shin contou, os dedos acariciando os longos cabelos negros do amigo. — Sabe o que isso significa?
— Tenho medo de pensar... — Aiko sussurrou.
— Por enquanto, há apenas um clima hostil no ar, mas caso o Japão declare guerra aos Estados Unidos, as coisas poderão se complicar. Se isso acontecer, penso em tirar você de Tóquio.
— E existe algum lugar seguro no mundo, Shin-chan?
O homem pareceu pensar.
— Tem razão, por enquanto não existe lugar seguro. Porém, se houver, vou descobrir. E quando isso acontecer, levá-lo-ei para lá. Confie em mim para protegê-lo.
Era quase uma declaração de amor. Mesmo que não fosse, Aiko entendeu como tal e suspirou sem medo. Fechou os olhos, certo de que Sakamoto cumpriria sua palavra. Sabia que enquanto a verdade ficasse oculta, era a pessoa mais importante do mundo dele.
A percepção o fez estremecer. Apertando Shin nos braços, ele voltou a chorar. Entendendo mal seus motivos, Sakamoto apenas voltou a acariciar suas costas, consolador.
***
Dezembro de 1940
— Moleque desgraçado! — Nana gritou. — Já tem mais de um mês que estou lhe dizendo: “seja delicado!” . — Ela pegou a vara e bateu com ela em seus braços. — E você sempre dança como se fosse um cavalo de salto alto!
Shiromiya esfregou o vergão e desculpou-se. Nana voltou a sentar na cadeira de madeira, e fez sinal para que Keiko voltasse a tocar a canção. Minikui, o gato malhado, subiu no colo da velha que o segurou carinhosamente, contrariando todas as vezes que xingou o felino.
— Mãos para frente — Nana mandou, assim que o garoto começou a dançar com passos curtos e graci osos. — Isso, agora gire a mão direita e leve-a até seu coração — Shiro cumpriu a ordem. — Estique a outra mão e mostre-a às pessoas. Isso. Nesse momento você está entregando seu coração às pessoas que o estão vendo dançar.
Shiro sorriu diante das palavras. No exato momento, a vara voltou a atingi-lo.
— Não mandei sorrir! — Nana berrou. — Só sorria quando eu mandar!
Um riso alto fê-lo esquecer da ardência no braço e voltar-se para Aiko. O cortesão estava à porta, observando o ensaio. O coração do menor alegrou-se instantaneamente, e ele correu até o outro.
— Aiko-san — chamou. — Viu como progredi?
— Você é um excelente dançarino, meu amor — ele sorriu, tocando delicadamente no belo rosto de Shiro, num carinho. — Pena que sua professora seja uma megera.
— Filho da puta! — Nana gritou. — Estou aqui ensinando de graça e você ainda me recrimina.
Mamoru gargalhou. Adorava aquela velha malcriada e não segurou a vontade de lhe abraçar. Em segundos, apertava-a nos braços, fazendo o gato miar alto por sentir-se comprimido.
Shiromiya observou tudo com os olhos atentos. Desde que havia chegado até a casa Ai, ele havia ficado sob a tutela de Mamoru. Ao contrário do que sempre imaginou para sua vida, descobriu que ainda existiam pessoas boas, incapazes de praticar o mal. Aiko era seu anjo, seu guardião. Na primeira noite que teve pesadelos, já frequentes antes mesmo de ser salvo por Mamoru, ele correu até seu quarto e o embalou até que voltasse a adormecer. Também o ajudou a tomar banho até que conseguisse fazer isso por si mesmo e sempre lhe trazia flores ou lhe cantava canções para alegrá-lo. Em pouco tempo, Shiro já o amava profundamente.
— Shin prometeu que viria para seu aniversário. Estamos a pouco mais de um mês do evento e quero muito que Shiro possa estrear durante o tal. É possível?
Keiko olhou de relance para Shiromiya, que entendeu o recado. Desde que havia chegado a casa Ai, as mulheres haviam-no ajudado de todas as formas. E eram extremamente cautelosas também. Assim, Shiro sabia que podia se tornar um alvo de Shin. Contudo, na mesma proporção, reconhecia o quanto era importante para Mamoru apresentar uma noite inesquecível ao amigo.
A vida de Mamoru Aiko era para Shin Sakamoto. Naqueles meses, ouviu o nome de Shin circular pela Casa do Amor como se ele fosse um dos seus habitantes. Aiko o citava durante o almoço e até nas noites, em conversas com outros clientes. Shin tinha privilégios, era o único com quem Mamoru dividia o futon, e era também o único que podia aparecer no horário desejado.
— Por que levar o moleque pra dançar para Sakamoto? — Nana inquiriu, inquieta. — Descontraia-o você mesmo!
— Será uma noite especial, com muitos convidados — Aiko insistiu. Então se voltou para Shiromiya. — Você dançaria no aniversário de Shin? — perguntou. — Eu quero muito que seja um momento especial...
Shiro assentiu.
— Darei meu melhor para que Aiko-san fique contente.
Mamoru sorriu em sua direção, encantado. Ouviu o suspiro de Keiko e voltou-se à mulher.
— Desculpe, mas eu também tenho o direito de suspirar por ele — ela deu os ombros, fazendo com que o chefe voltasse a rir.
— Não a condeno. Shiro-chan é realmente a coisinha mais linda do mundo todo. Tenho certeza de que teremos filas à nossa porta para vê-lo dançar.
— Contará ao público que ele é homem? — Nana perguntou, interrompendo o desfile de elogios.
— Talvez, ainda não pensei nisso. Como nenhum cliente terá o direito de se aproximar ou tocar nele, não vejo motivos. — Em seguida, o cortesão saiu em direção à porta. — Nana, recebi uma carta de Ryo-san — contou.
— Ele virá para o aniversário de Shin Sakamoto?
— Parece que Ryo-san já está em Tóquio, mas soube que a guerra está atrapalhando a venda dos pescados, e ele precisará fazer novos acordos comerciais. Então, tudo leva a crer que demorará algumas semanas para vir até aqui. De qualquer forma, quero que mande uma das meninas comprarem mais bebida e vinhos de qualidade. Ryo gosta muito.
Nana assentiu. Contudo, assim que Aiko desapareceu da sala, Shiro a ouvir reclamar.
— Não gosta dos amigos de Aiko-san, Nana?
A mulher preparou uma reprimenda, a fim de mandá-lo cuidar da própria vida. No entanto, quando se voltou para o rapaz, viu que sua pergunta era apenas curiosidade.
— Mamoru estaria bem melhor sem essas amizades. Especialmente, Shin Sakamoto.
Shiromiya tinha a sensação de que todos haviam ensaiado o mesmo discurso. Sempre que o nome de Shin surgia entre eles, era dito com raiva e repugnância. As mulheres o odiavam, mas era Nana que mais se irritava com sua presença. Havia nos olhos da velha algo que Shiromiya não podia identificar, mas que lhe dava calafrios.
Repentinamente, porém, seus pensamentos foram interrompidos por uma forte pancada no braço.
— Eu mandei você parar?
Correndo em direção a Keiko, o rapaz voltou a dançar.
***
O ano de 1941 começou com a Alemanha tomando a África através da sua divisão motorizada de elite. Havia relatos aqui e acolá sobre a tecnologia nazista, e muitos se congratulavam da ventura japonesa em estar do lado certo.
Independente do turbilhão de mortes que ocorria lá fora, dentro da casa Ai outra revolução acontecia.
Tudo começou na manhã do dia 22 de janeiro. Enquanto os britânicos e australianos capturaram Tobruk na Líbia, os gritos de Keiko acordaram Shiro. O garoto vestiu seu quimono rapidamente e correu em direção ao quarto da mulher. No caminho, encontrou-se com duas ou três prostitutas que lá moravam, e todos pararam à porta, atrás de Nana que havia chegado um segundo antes.
— A escolha é sempre sua — ele ouviu a voz de Mamoru.
Segundos depois, a porta era aberta. O cortesão encarou Nana, que lhe observava curiosa.
— Keiko está com dois meses de gravidez — ele contou. — Expliquei a ela as regras, mas ela não consegue decidir.
A mulher assentiu, compreensiva. Os olhos do homem, então, encontraram Shiro, e ele achou prudente explicar a situação, antes que o outro pensasse inverdades.
— Quando uma mulher da casa Ai engravida, ela tem dois caminhos. O primeiro é tirar. O segundo é manter a gravidez e depois de o bebê nascer, entregá-lo a uma ama de leite que vai criá-lo até que tenha idade para ir a uma escola interna nas montanhas. É claro que a segunda alternativa é cara e faz com que o dinheiro ganho no ofício se torne cada vez mais precioso.
Shiromiya assentiu.
— Ela não pode ficar com o bebê aqui?
Aiko sorriu, triste.
— Eu adoraria ter muitas crianças correndo por entre esses corredores, Shiro-chan — admitiu. — Mas, sejamos realistas: isso aqui é um bordel, e não existe a menor possibilidade de uma criança crescer dentro dessa casa. Eu mesmo só vim para cá quando já tinha idade suficiente. — Ele suspirou. — Enfim, em todo caso, a escolha não é nossa, nunca é. Aprendi com minha mãe que cada um dele levar seu fardo e o peso de suas decisões. Eu já carrego muitas culpas, Shiro. Essa, infelizmente, não poderei partilhar com Keiko-san.
Shiromiya concordou e curvou-se quando sentiu que Aiko Mamoru deixava o quarto. Em seguida, ele entrou e postou-se ao lado de Nana, que olhava piedosa para a jovem prostituta. Algumas outras mulheres balbuciavam algum conselho, mas Keiko parecia ainda mais confusa pela falação.
— Pelo menos você pode escolher — Kazue tentou perceber o lado positivo. — Não é?
Todas as mulheres o encararam com mágoa, contudo, foi Nana que abriu a boca.
— Tirar um bebê não é cortar o cabelo, moleque estúpido! — ralhou. — É uma decisão que vai acompanhá-la ao túmulo. — Depois riu. — Escolha? Tola é a mulher que acha que tem alguma decisão a tomar. Nessa época, no passado, no futuro... Toda mulher que tira sua própria cria é só mais uma que é manipulada pelos homens e nem percebe. Eles nos colocam filhos e depois não assumem a sua responsabilidade. Resolvem tudo pagando remédios ou açougueiros que arrancam os filhos de nossos úteros. Que merda de escolha é essa? Que merda de direito de escolha é essa?
Shiro desculpou-se perante o olhar sombrio da senhora. Sentiu, em seu tom, que havia muita dor em seu passado, mas não quis se ater a isso. Gostaria de ajudar de alguma forma as mulheres que lá estavam, já que todas o tratavam muito bem. Porém sabia que nada podia fazer.
— Deixe-nos sozinhas — Nana se voltou a ele. — O membro no meio das tuas pernas, mesmo que pequeno, nos irrita nesse momento.
Kazue curvou-se, mais uma vez balbuciando desculpas.
— Não é verdade, Shiro-san — Keiko disse. — Nós gostamos muito de você. Mas, realmente precisamos ficar sozinhas.
O rapaz, então, saiu. Seus passos foram retos até a saleta onde Mamoru administrava a Casa do Amor. Encontrou-o curvado sobre papéis, escrevendo e calculando, como se não estivesse acontecendo nada de relevante em sua propriedade.
— É tudo muito triste, Aiko-san — ele sussurrou, chamando o chefe. — Será que o pai do bebê não pode ajudar?
— O pai é um cliente. Se eu pressionar um cliente para assumir o fruto de uma noite que ele pagou para ter, perderei todos os fregueses e iremos à falência. Todas elas passariam fome ou teriam que se prostituir na rua, onde não poderiam ser protegidas de homens agressivos.
Shiromiya sabia muito bem como funcionava a prostituição nas ruas e estremeceu.
— O que acha que ela vai fazer?
Aiko o chamou para perto. Shiro sentou-se ao seu lado, curioso.
— Keiko já tem vinte e cinco anos. Logo ela chegará à idade limite das prostitutas. Infelizmente, é uma vida cruel, elas envelhecem cedo, sofrem muito, e são solitárias. Ela sabe que precisa guardar dinheiro para poder comprar sua própria casa e se manter quando sua vida de dama da noite terminar. Assim sendo, o racional seria abortar.
— E ela fará isso?
— Quem sabe — Mamoru deu os ombros. De repente, ele riu. — Lembro-me da primeira vez que uma das meninas engravidou sob meu comando. Ela optou por tirar a criança, e eu fiquei meses me culpando por não tê-la impedido. Mas se existe algo que a experiência ensina é a dar pouca importância à vida. Os anos que comando a casa Ai me doutrinaram a ter um coração frio.
Shiro o encarou. Estranhamente, as palavras eram contrárias aos olhos emocionados. Contudo, o que mais poderiam fazer?
—Aiko-san — Nana surgiu à porta. Seus olhos eram indecifráveis. — Keiko irá para Hiroshima. Ela tem uma irmã lá, e decidiu manter o bebê.
Houve um sorriso de puro deleite nos lábios de Aiko.
— Prepare algum dinheiro para que Keiko leve. Vou ver se Shin tem contatos em Hiroshima para que ela possa arrumar emprego por lá.
Nana ironizou.
— Como se Shin Sakamoto fosse se importar com uma prostituta.
— Tenho certeza de que Shin vai se importar se for um pedido meu — Mamoru o defendeu. — Falarei com ele durante sua festa de aniversário.
Nana deu os ombros.
— Vamos perder uma boa garota. Precisamos achar mais uma bela mulher para ocupar seu lugar.
Aiko concordou. Antes, porém, de manifestar-se verbalmente, outra mulher entrou na sala.
—Aiko-san — Midori o chamou. — Ryo-san acaba de chegar...
***
Aiko pediu que tanto Shiro quanto Nana saíssem de sua sala antes da entrada de Ryo. Não que o assunto entre eles fosse secreto, mas Ryo era como Shin em vários aspectos, especialmente na forma julgadora de olhar para as pessoas. Não foram poucas as vezes que teve discussões com Shin por causa da maneira com que ele tratava Nana. A velha prostituta era casca grossa e aguentava qualquer palavra maldosa, mas Ryo poderia dizer algo para Shiromiya que magoaria o, já frágil, garoto.
— Eu o esperava para o aniversário de Shin-chan — Mamoru disse, abraçando o amigo. — O que o traz durante o dia à Casa do Amor?
Ryo riu, de forma enigmática. Depois, sentou-se em uma confortável cadeira de madeira forrada de camurça.
— Amanhã mandarei entregar o presente a você, e peço que o dê a Shin — Ryo adiantou-se. — Não poderei estar presente...
— Sabe quanto tempo faz que não o vê? — Mamoru o interrompeu. — Ele ficará magoado por essa desfeita.
O outro virou os olhos.
— Por favor! — exclamou. — Estará tão bêbado que nem perceberá minha falta. Sabe como Shin é deprimente com comemorações.
Mamoru não negou.
— Por que não virá ao aniversário?
— Estarei viajando a negócios. O lado bom de ser um comerciante de alimentos, é que não importa se estamos em guerra ou não, todos precisamos comer.
Aiko assentiu.
— Mas voltarei para Tóquio depois disso — completou. — Espero que tenha um bom material de entretenimento quando eu retornar.
Contendo uma louca vontade de retrucar, Aiko simplesmente aquiesceu.
— Talvez, quando voltar, poderá usufruir de minha mais preciosa novidade.
Subitamente, Ryo ficou interessado.
— Uma nova mulher? Bonita?
— Não contarei nada, terá a oportunidade de ver por si mesmo quando voltar. Assim sendo, se apresse.
Entendendo a provocação, Ryo gargalhou.
— Espero que seja boa de cama, a última com que me deitei fez-me duvidar de minha virilidade.
Mamoru odiava aquele tipo de comentário, mas não se atrevia a devolvê-lo. Ryo era, acima de tudo, um cliente.
— Não é uma prostituta — negou. — Será alguém que dançará.
— Uma bailarina? — a sobrancelha ergueu-se, em escárnio.
— O rosto mais lindo que você já viu em vida — prometeu.
— Duvido que seja mais linda o que a mulher que vejo nos meus sonhos. Mas não me negarei a assistir à bela apresentação.
Pouco depois, eles se despediram. Ryo ergueu-se e saiu. O lugar cheirava bem e era bastante agradável. Ele sempre gostou muito daquele bordel. Começou a caminhar em direção ao enorme portão de madeira, quando esbarrou num garoto que corria em direção ao quarto de Mamoru.
— Olhe por onde anda, moleque — não se dignou a olhá-lo na face.
— Desculpe, senhor — disse, a voz baixa.
Virando-se de costas, sem mais tempo a perder, o jovem comerciante foi embora.
Capítulo 4
Aquele fina l de janeiro terminava como começou: gelado. O ar frio parecia um guerreiro, portando uma arma de lâmina mortal, pronto para cortar e matar. De fato, histórias de pessoas sendo massacradas não só pelas tropas em guerra, mas também pelo poder terrível e cruel da natureza circulavam sem parar, parecendo a morte e sua foice, incomodando e sussurrando o medo em cada vivente.
Apesar disso, o ambiente estava calmo. Era como se a guerra não incomodasse, de fato, a todos que ali estavam. Ora, sabiam que era uma guerra ganha, o Japão e seu invencível exército havia se unido ao sagaz Hitler e ao dinâmico Mussolini. Tanto o fascismo quanto o nazismo pareciam apenas lados de uma mesma moeda que se adequava, com louvor, à mentalidade nipônica de superioridade.
Não que Shiromiya pensasse dessa forma. Ele apenas não estava preocupado. A dor e a violência que havia vivido durante anos, anestesiaram-no. Assim, sua maior preocupação, naquele momento, era ouvir o final da história que Nana contava, enrolado em um cobertor e sentado aos pés da senhora.
— E então, Nana? O que ele fez?
A história era sobre dois jovens amantes. Ele, muito rico e poderoso; e ela, uma empregada órfã. Ambos se apaixonam, mas como em todo bom drama, foram separados por armadilhas impostas pela mãe do mocinho. Anos depois, se casaram e outro vilão apareceu, querendo destruí-la. Mais uma vez, o amor dos dois foi posto à prova [15] .
A velha limpou a garganta e finalizou:
— Ele a salvou do vilão, é claro. Matou-o e ambos viveram felizes para sempre.
Kazue limpou os olhos lacrimejantes. Nana sempre o recompensava com boas histórias, quando ele acertava todos os passos da dança. Num outro dia, ela havia contado para ele sobre o amor de um elfo e um homem que se apaixonavam e tiveram que viver nas trevas por conta daquele amor [16] .
— Esse tipo de amor existe mesmo, Nana-baba [17] ?
A mulher deu os ombros.
— O amor é mais destrutivo que o ódio, Shiro — foi sincera. — A única forma de evitar a dor, é não se apaixonar.
Shiro negou com a face.
— Mas eu amo Aiko-san — afirmou. — E esse sentimento só me faz feliz!
A velha gargalhou.
— Era só o que me faltava, mais um idiota apaixonado por aquele lá — ralhou, apesar do sorriso animado nos lábios.
A réplica de Shiromiya foi interrompida pela entrada de Mamoru.
— Shiro, precisamos conversar.
Kazue se ergueu. Os olhos brilhantes focaram-se no seu anjo protetor, e ele aproximou-se, ansioso.
— Você quer dançar essa noite?
Era a noite do aniversário de Shin Sakamoto. Já fazia uma semana que os preparativos estavam sendo organizados, e aquela manhã de sábado havia começado com alguns empregados contratados encerrando o trabalho de ornamentação.
Shiro sabia de antemão o quanto aquele evento era importante para Aiko. O jovem cortesão estava ansioso e nervoso, constantemente levando as unhas aos lábios para roê-las. Havia se passado meses, desde a última vez que ele vira o amigo. Parecia doente de saudades e eufórico pelo encontro.
— Não sei se estou preparado — disse, franco. — Mas se Mamoru-san quiser que eu dance, eu dançarei com todo o meu coração.
Aiko sorriu diante da resposta. Shin gostava de novidades, gostava da arte. Sabia que o amigo viajava léguas apenas para visitar museus ou assistir uma boa peça de teatro. Quando Shiro entrasse no palco, surpreenderia a todos.
Aquela noite seria restrita a clientes convidados especialmente para a ocasião. “Conhecidos de Shin” , como Mamoru costumava chamar, já que os únicos amigos de Sakamoto eram Aiko e Ryo.
À tarde, Keiko foi até Aiko informar que seria sua última noite na casa Ai. Combinaram então que ela tocaria para Shiro, junto com Nana. Tudo estava se encaixando perfeitamente, os planos impecavelmente alinhados.
Quando a noite começou a dar sinais de chegada, Aiko já se encontrava em pé, à entrada da casa Ai, vestido com seu melhor quimono, segurando um ramalhete de flores que havia escolhido para Shin. No fundo, estar pronto para recepcionar os convidados tão cedo acabou sendo de valia, pois Sakamoto apareceu antes do sol sumir.
Aiko se surpreendeu quando o portão abriu. Notou que Shin estava um pouco mais magro, com olheiras profundas e parecia cambaleante. Ele havia bebido? Preocupado, correu até o amigo, trazendo-o para os seus braços, num carinho confortador e intenso.
— Shin-chan... — murmurou nos seus ouvidos. Queria dizer muito mais coisas, mas a boca respeitou as ordens do cérebro e ele ficou em silêncio.
Sentiu as mãos fortes de Shin apertando-o, os corpos tão grudados que pareciam um só. Porém, em seguida, Shin afastou-o com força. O odor de saquê irritou seu nariz.
— Você bebeu? — perguntou o óbvio.
Shin apenas o encarou, raivoso.
— E desde quando eu lhe dou a liberdade pra questionar o que faço?
Aiko ficou espantado com as palavras, pois mesmo quando bebia, Shin não costumava se mostrar agressivo com ele.
— O que aconteceu, Shin-chan?
Shin pareceu querer dar dois passos para frente, mas perdeu o equilíbrio. Aiko o amparou.
— Você precisa de um banho... — disse, firme. — Vamos até meu quarto.
Ao longe, Nana os observava. Mamoru viu em seus olhos o rancor e o ódio que ela nutria pelo membro da família imperial, mas a ignorou. Levou Shin até seu aposento, gritando para que as mulheres trouxessem água quente para pôr numa enorme tina de madeira que tinha no local. Raramente a usava, preferindo o ofurô, que ficava em um banheiro de madeira do lado direito da residência, mas não lhe pareceu boa ideia deixar Shin naquele estado a lidar com suas mulheres.
Midori e Rika trouxeram a água quente em poucos minutos. De cabeça baixa, elas encheram a tina e saíram correndo, antes que Sakamoto pudesse usar sua felina língua contra uma delas.
Aiko o encarou, assim que ficaram sozinhos. Shin estava sentado em uma cadeira, a cabeça baixa, quase dormindo. Então o puxou e começou a desabotoar seu casaco oficial. Quando suas mãos abriram a calça, estremeceu. Observou se Shin havia percebido sua reação, mas o olhar apagado do outro deixava claro que não estava prestando a mínima atenção em suas ações.
Guiou-o até a água quente e o fez sentar na tina. Pegou uma esponja e deslizou nas costas de Shin, ensaboando-o com vigor.
— Nada como um banho quente, não é Shin-chan? — puxou assunto, ansioso por fazê-lo sorrir. — Como foi sua viagem pelo interior do Japão?
Sakamoto demorou cerca de dez segundos para respondê-lo.
— Estive na Coreia.
O exército imperial havia ocupado a Coreia em 1910. Mamoru imaginava que as coisas estivessem calmas por lá, já que já fazia cerca de 30 anos que tudo — inclusive as pessoas — pertenciam ao Japão.
— Não me avisou que iria até a Coreia — observou. — Por favor, quando viajar para fora do país, mande uma missiva. Sempre estou preocupado com você.
Shin atirou a cabeça para trás. Sua nuca encostou levemente na fronte de Aiko.
— O Imperador precisa de minério e outras coisas que não temos no nosso país — contou, sério. Pareceu a Mamoru que o efeito da bebida estava passando. — Não tive escolha a não ser visitar algumas fábricas por lá...
O outro assentiu.
— E como estão as coisas por lá?
Dessa vez não recebeu nenhuma resposta. Shin se ergueu. Aiko entendeu e logo buscou uma toalha, ajudando-o.
— Você quer descansar um pouco antes da festa? — indagou. — Vários conhecidos seus confirmaram presença, e Ryo-san mandou um lindo quimono escuro de presente.
Shin não parecia ouvi-lo.
— Fiz os pratos que você mais gosta e comprei saquê e vinho importado.
Mais uma vez, o silêncio reinou. Respeitoso, Mamoru ajudou-o a ir até o futon, e quando Shin se deitou, ele deixou o quarto, apreensivo.
***
O salão de festas estava repleto de pessoas. Mamoru sorriu para todos, na sua eterna postura doce e acolhedora. Acostumado a receber os clientes, ele deu a cada um a devida atenção, perguntando sobre suas famílias, saúde, e seus negócios. Demonstrou interesse, quando na verdade não o sentia. As indagações eram, sempre, apenas uma cortesia a mais, que o tornava querido por cada um dos frequentadores, o anfitrião mais respeitado de Tóquio.
Após circular pelo salão, ele caminhou até a porta. Os olhos foram em direção a uma das casas do terreno, seu quarto. Shin ainda não havia aparecido, sequer o agradecera pela festa, e não demonstrou vontade de participar do evento. Estava decepcionado e magoado, mas engoliu o choro que despontava na garganta.
— Mande-o embora daqui, Mamoru — ouviu o tom feminino de Nana às suas costas.
Voltou-se para a mulher.
— Já falamos sobre isso, Nana!
A mulher o puxou pelo braço, tirando-o do salão. Quando ambos já estavam sozinhos no pátio, ela voltou a falar, baixo, mas exigente:
— Apenas quero pôr um pouco de juízo nessa cabeça oca! — reclamou. — Shin Sakamoto está no seu quarto, sozinho! E se ele vir o que não deve? O que fará, moleque?
Aiko desviou dela, mas foi seguro com força, soube então que não escaparia.
— Eu sei dos riscos, Nana! — defendeu-se. — Mas, eu não vou me afastar de Shin! — perseverou. — Seria ainda mais estranho se eu pedisse que ele não mais me procurasse, não? O que acha que ele pensaria? No mínimo, iria querer saber os motivos pelos quais o melhor amigo o abandonou.
Nana negou.
— Ele nem se importaria. Aiko, ele não o ama, ele não ama ninguém. Shin só vê a si mesmo. Poderia ficar confuso, mas logo acharia outro para chamar de amigo. Ele só o procura porque você o trata como um deus, único motivo. Acorde, meu querido...
De alguma forma, Aiko entendia aquelas palavras como verdadeiras. Contudo, não as aceitava. Desviando-se dos dedos que insistiam em segurá-lo, ele voltou ao salão. Ainda em conflito, ele passeou os olhos pelo ambiente, quando percebeu Shin sentado à mesa de costume, com Midori no colo.
A visão o incomodou, mas ele manteve a aparente calma. Caminhou até Shin e sorriu para o amigo. O sorriso, porém, sumiu ao perceber que Shin estava bebendo novamente, como um louco.
— Quer comer algo? — questionou, sentando-se ao seu lado. Em seguida, encarou Midori. — Traga o sashimi para Shin experimentar. Preparei mochi também, sei que gosta.
Shin sequer levantou os olhos, completamente focado na bebida. Midori saiu de seu colo e foi em direção à cozinha. Shin não tentou impedi-la, parecia alheio a tudo que acontecia ao seu redor. Porém, quando ele foi servir-se novamente de saquê, Mamoru segurou suas mãos.
— Fale, Shin — disse, baixo.
— Não há nada para falar.
— Nós dois sabemos que sim. O que você fez para que não possa se perdoar?
Só então Sakamoto o encarou. Não ficou surpreso por Aiko o decifrar com tanta facilidade e apenas sorriu, triste, diante da verdade.
— Nada que qualquer outro homem em tempo de guerra não faça— sussurrou.
Mamoru entendeu instantaneamente.
— Onde foi? Na Coreia?
— Estávamos visitando uma fábrica. Havia uma mulher lá, uns vinte anos, talvez. Ela estava acabada, magra, fraca, esfomeada. Mas, mesmo assim, tirou forças sabe-se lá de onde para virar na direção da minha comitiva e nos xingar.
Aiko permaneceu em silêncio, esperando-o prosseguir.
— Os homens então a pegaram e a levaram para a sala do diretor da fábrica. Amarram suas pernas e braços na parede e fizeram uma fila. Eu fiquei olhando aquilo pelo tempo que durou, até que chegou a minha vez.
Aiko soltou suas mãos. Sentiu aversão e não quis ouvir mais, mas Shin o encarou com seriedade e percebeu que não podia fugir.
— Só segui o fluxo. Era o que se esperava de mim, não? Além disso, era só uma coreana... Quem se importa com os coreanos?
Bebeu novamente. Subitamente, tremeu.
— No dia seguinte, eu voltei à fábrica e o corpo dela estava lá, ainda amarrado. Haviam-na matado durante a noite.
— Shin...
— Desde então, eu só consigo alguma paz quando estou bebendo. Até nos meus sonhos a cadela aparece para me assombrar — riu. — Nunca pensei que fosse tão fraco assim.
Ele nunca admitiria a culpa, mas Mamoru a percebia estampada nos olhos escuros. Quis dizer alguma coisa, mas Midori voltou e ele recusou-se a falar sobre aquele horror diante dela. Encarou a japonesa, e se afastou.
Desde que assumiu a casa Ai, tentava cuidar das prostitutas da única forma que podia. Mantinha sob elas um regime rígido de normas imutáveis. Os clientes eram selecionados e, caso algum agisse em desacordo com as regras, era riscado sumariamente da lista, sem nenhuma chance de retorno.
A Casa Ai era conhecida pela região como o ambiente mais limpo e acolhedor possível. Os homens se sentiam amados pelas mulheres que lá estavam, coisa rara naquela época. Na Casa do Amor havia tempo para que seus problemas fossem ouvidos, e o sexo costumava ser uma arte de conquista e paixão.
Eram tão iludidos com o aspecto afável do ambiente que mal percebiam os dois seguranças no portão, que trabalhavam lá toda noite, a encará-los com severidade. Sempre havia música, boa comida e companhia. Era um paraíso masculino, do qual nenhum deles se incomodava em pagar caro para usufruir.
A maioria das mulheres que passavam pela Casa Ai vinha da rua, onde as regras eram terríveis. Muitas chegavam machucadas e feridas mortalmente na alma. A maior parte nunca se recuperava, vivendo num eterno inferno interior, até que sua vida exterior, enfim, desse seu suspiro final.
Muito cedo, Aiko aprendeu que não podia salvar a todos. Saber dar as costas e fingir que não via, era o mínimo que uma pessoa podia fazer para tentar manter a própria sanidade.
Achegou-se à saída do salão e observou o movimento lá dentro. Viu Midori acariciando os cabelos de Shin, silenciosa e compreensiva, obediente ao que aprendeu. Fechou os olhos, recusando-se a olhar para aquela ação que parecia cortar seu coração.
— Vou para o palco — Nana disse às suas costas. — Shiro está pronto para entrar.
Ele voltou-se para a velha.
— Como ele está?
— Colocamos o quimono mais bonito que tínhamos e a peruca negra que sua mãe usava. A maquiagem o deixou ainda mais feminino. Ninguém aqui dentro acreditará se dissermos que é um homem.
— Deixe a caixa preparada, porque tenho certeza que ele receberá muitos presentes dos seus novos fãs. Duvido muito que alguém não se encante — sorriu.
***
Nana sentou-se no chão do palco de madeira. Suas costas doeram, mas houve uma vibração juvenil nela quando segurou o Shamisen [18] . Ao seu lado, Keiko sorriu. Com o Koto [19] nas mãos, ela aguardou as mãos enrugadas de Nana iniciarem a bela melodia. Havia um silêncio respeitoso no ar, quebrado apenas pelas respirações pesadas dos homens que observavam, com atenção, o início da composição. Tudo estava escuro, no breu. Apenas uma ou outra vela iluminavam os rostos. Mamoru sorriu perante o cenário idílico que criara.
Porém assim que os primeiros acordes ficaram audíveis, o palco se iluminou exatamente no ponto onde uma pequena gueixa surgiu. Ela estava de joelhos, um pano branco diante de si, seu rosto baixo, as mãos delicadas escoradas nas pernas, o olhar calmo e gentil.
Houve algumas exclamações abafadas diante de tanta beleza. Havia algo que beirava ao êxtase nos homens, uma admiração instantânea. Mamoru desviou os olhos do palco e encarou a plateia. Desde que a mãe morrera, ele não via algo semelhante na Casa Ai.
Voltou novamente os olhos para o palco. Sorriu para Shiro quando percebeu que o menor o encarava. Estava assustado, intuiu nos olhos amendoados. Mas, mesmo assim, havia nele uma beleza que nada poderia igualar.
A música soou com mais força e, então, viu-o se erguer. Uma das mãos bailando como uma cobra no éden e a outra segurando um leque floral. Os passos leves foram primeiro à direita, um giro e, então, ele foi à esquerda, o leque balançando no ar; ora com força, ora com delicadeza.
A canção se tornou mais intensa, e então Shiro pareceu fazer amor com a melodia. Houve um clímax súbito, onde seus passos adquiriram velocidade. E então, tão surpreendente quanto começou, tudo acabou. O som do Koto e do Shamisen finalizaram no mesmo instante que Shiro caía no chão, como se estivesse sendo esmagado por todas as guerras, todas as amarguras, todas as dores do mundo.
Os olhos de Aiko encheram-se de lágrimas, mas ele não foi o primeiro a se erguer. Palmas não eram comuns em casas como a Ai — e, bem da verdade, em nenhum lugar do Japão —, mas não houve um único homem que não tivesse se colocado de pé. Pareciam todos espantados e encantados, na mesma proporção.
Contudo, a musa de todos os sonhos que se formaram naquela noite não permaneceu no ambiente para receber os cumprimentos. A luz novamente se apagou e, conforme combinado, Shiromiya saiu pela porta lateral.
Em segundos, estava no corredor. Correu até o quarto de Mamoru, pois sabia que o chefe iria até ele para avaliar sua performance. Arrancou a peruca, já que os grampos doíam, e sentou-se na cadeira. Porém, não precisou aguardar muito. Cerca de cinco minutos depois, a porta do quarto de Aiko se abriu.
— Nunca vi nada igual... Nada — Mamoru disse, puxando-o para seus braços. — Você é perfeito, meu amor.
Shiro abraçou-o, feliz. Encostou o rosto no peito firme de seu ídolo, e aspirou seu perfume.
Subitamente, porém, palmas irônicas surgiram. Ergueu os olhos e encarou um homem de aparência assustadora, olhar frio e imponente presença.
***
O som às suas costas, fez Mamoru saltar. Olhou para Shin e viu seus olhos possessos, como se estivesse cometendo o pior dos crimes em abraçar o pequeno. Estremeceu perante o ódio, e afastou delicadamente Kazue para trás.
Shiro desviou-se, constrangido. Pareceu triste pelo distanciamento, mas logo o olhar voltou a se dirigir à porta e ele encarou Shin, que mantinha o ar de extrema arrogância, mesmo claramente alcoolizado.
— Então, a linda e encantadora gueixa é um garoto?
Shin deu dois passos para frente, aproximando-se perigosamente. O olhar cruel o mediu, sem piedade. Era como se buscasse defeitos no corpo frágil e, não achando nenhum, irritou-se ainda mais.
— Shiro é o nome dele — Aiko contou. — Eu o achei há algum tempo e Nana ensinou-o a dançar. Hoje foi sua primeira apresentação, e ele a fez especialmente para o seu aniversário.
A frase macia de Mamoru tinha a intenção de apaziguar os ânimos de Sakamoto. Compreendendo imediatamente o intento, o efeito em Shin foi o inverso.
— A única coisa que me interessa num garoto como esse não é a dança, Mamoru — disse, puxando Shiro pelo braço. — Saia — ordenou.
Aiko nunca recusou a nada a Shin. O imponente herdeiro da família Sakamoto sempre havia sido franco no que queria, e Mamoru esforçava-se para cumprir o que ele desejava, sem sequer pensar a respeito. Era como se tivessem um acordo mudo, algo entre eles que nunca havia sido contestado ou questionado. Todavia, ao ver o semblante de horror que Shiro adquiriu, ele o segurou no outro braço.
— Solte-o — pediu.
Contudo, a voz era fraca. Era a primeira vez naqueles muitos anos que se conheciam que Mamoru se objetava ao homem, e havia nele um medo irracional no ato. O que faria caso Shin o odiasse por isso? Não poderia vê-lo partir... Não aguentaria. A vida já era terrível demais para que nunca mais visse o rosto que tanto amava.
Foi então que ele percebeu Shiromiya o encarando. E, acima disso, notou que o rapaz podia ler sua alma e compreender seus sentimentos. O pobre Shiro colocava-se disponível para o sacrifício, para qualquer coisa que aliviasse a culpa e o medo de Aiko.
— Não se preocupe, Aiko-san — Shiro murmurou. — Eu não ficarei aqui.
A risada de Shin foi diabólica. Ele estava, claramente, ridicularizando o rapaz.
— Farei com que esteja, docinho — apertou ainda mais forte o braço de Shiro.
Mas Aiko entendia o que Shiromiya declarava. Kazue poderia estar sendo abusado mais uma vez, porém, sua mente e sua alma estariam na infância perdida, nas brincadeiras com a espiga de milho que considerava seu amigo, e no colo da mãe.
Sentindo o ar faltando em seus pulmões, Mamoru deu as costas e saiu do quarto.
***
Mamoru sentou-se no chão de madeira. Estava em frente à porta do próprio quarto, ouvindo o som contínuo de Sakamoto. Escondeu o rosto com as mãos, chocado, angustiado, derrotado. Mas não era apenas a própria consciência que o esmagava, Nana havia ouvido toda a conversa do quarto e surgiu diante de si, revoltada.
— Passei muitas noites pensando nos motivos que você tolera isso, Mamoru. — A voz dela era firme. — Pensei que você amasse Sakamoto, mas não acredito muito nisso, já que o que vi não é amor, e sim doença.
As lágrimas de Aiko começaram a escorrer pela pele pálida. Ele encarou a velha.
— Depois, pensei que era apenas instinto de sobrevivência. Ora, caso tivesse uma relação muito próxima com o querido protegido do Imperador, estaria automaticamente excluído de qualquer desconfiança. Mais tarde, imaginei que era medo. Se fosse investigado, Shin Sakamoto imediatamente seria avisado pela família, e ele viria até você e o preveniria antes que fosse tarde demais. Pensei ser essa a resposta: você tinha medo e queria ter a chance de fugir. Mas depois acordei para a vida. Você, na verdade, é apenas um covarde cego de paixão. Um amor não correspondido que o faz ser manipulado como um boneco por Sakamoto. Você, Aiko Mamoru, mancha a memória da sua mãe, mancha a mulher que ela foi, e eu tenho vergonha de um dia ter trocado as suas fraldas.
A crítica dura e fria foi o estopim para que Aiko, enfim, explodisse. Ergueu-se e marchou em direção à porta.
***
Quando Aiko saiu do quarto, Shiro foi solto por Shin. Então, caminhou até o futon e retirou o quimono. Toda a ação foi realizada com a face baixa, envergonhada. Nunca olhava para seus algozes, porque acreditava que depois jamais poderia esquecer seus rostos. Aliás, tinha em si essa certeza, pois ainda se lembrava de cada detalhe da face do primeiro homem que o submetera. Ainda sentia com exatidão seu cheiro asqueroso e sua boca molhada. Nos seus pesadelos, encontrava-o nos corredores, e ele sempre o estuprava novamente.
— Muito bonito — Shin admirou suas formas. — Deite-se.
Shiro não pestanejou. Deitou-se no futon e virou-se de costas. Segurou com força a colcha e fechou os olhos. Sabia de antemão que a dor era extremamente forte e, de fato, ela veio com insuportável rapidez. Ele sentiu que Sakamoto se ajoelhava atrás dele e erguia seu quadril. Cerrou os dentes para não gritar e ouviu os gemidos do homem, que parecia estar gostando muito da experiência.
Já havia sentido muita dor em todas as outras vezes. Lembrou-se de quando o irmão lhe vendera para três irmãos que o mantiveram numa cama preso durante uma noite toda. Lembrou-se de um velho que lhe enfiou um pedaço de galho de madeira fino, porque não conseguia ficar duro... lembrou-se das muitas vezes que era machucado até quase desmaiar de dor. Contudo, dessa vez, a dor era diferente. Era um misto de repugnância e piedade... Mesmo ali, naquele momento, ele ainda pensava no desespero estampado nos olhos do seu anjo Mamoru.
A velocidade de Sakamoto aumentou, e sentiu as mãos grandes do homem apertando sua cabeça contra o futon. Não gritou, nem mesmo quando o ar começou a faltar. Podia morrer ali, naquele instante, não se importava.
Então ouviu as batidas na porta. A voz de Aiko chegou até ele, mas não tinha forças para se erguer. Sentiu Shin saindo de dentro de si, sem ainda ter terminado. O homem foi até a porta e a abriu. Aiko entrou, empurrando-o e correu até a cama. Então os dedos de Mamoru acariciaram sua pele, e ele o cobriu. A voz chorosa chegou até ele, e o pedido de perdão que ouvia de Aiko quase o fez rir.
Por que se desculpar? Ele faria aquilo um milhão de vezes, se preciso fosse, para que Mamoru não se sentisse triste.
— Foi a pior foda da minha vida — ouviu a voz de Shin. Só então o olhou e percebeu o ódio estampado no olhar. O que havia feito para atrair tanta raiva? — Parece que fiz sexo com uma boneca sem vida.
Aiko se ergueu. O rosto dele estava rubro, nunca o havia visto assim.
— Vá embora — mandou.
— Eu? Mande esse moleque embora! — Shin gritou, apontando Shiro. — Eu durmo aqui, e você sabe disso!
— Vá embora da minha casa! — gritou. — Desapareça daqui, e nunca mais volte!
Tanto Shiro quanto Shin ficaram pasmos com a ordem. Todos que conheciam Aiko sabiam da devoção dele para Sakamoto. Ele vivia cada dia em prol da felicidade do melhor amigo. Nada havia preparado Shin para aquilo.
— Peça desculpas, Mamoru, e eu o perdoarei — Shin disse, a voz estrangulada.
— Saia ou mandarei os seguranças o tirarem à força.
— Sabe que se atrever-se, eu mando a Kempeitai invadir a Casa Ai e destruir tudo... Eu mando prendê-lo, matá-lo! — ameaçou, aos berros.
Mamoru se aproximou. Os rostos quase grudados, a raiva pungente escapando de si.
— Mande! Eu não tenho medo de você! Vá agora atrás dos seus mercenários e mande-os para cá. Eu ficarei esperando, morrerei se preciso for, mas eu juro por Kami-sama e pela memória de minha mãe que você nunca mais tocará um dedo em ninguém da Casa Ai!
Shin ergueu a mão para esbofetear Aiko, porém, algo o travou e ela parou antes de alcançar o objetivo. Mordendo os lábios de raiva, ele saiu do quarto e da propriedade como um louco.
Assim que sumiu no horizonte, Nana surgiu à porta. Ela encarou Aiko com seriedade, e ambos pareceram conversar com o olhar.
— Não, ele não chamará a Kempeitai — Mamoru disse, não tão certo. — Ele jamais faria isso.
— E se o fizer?
— Verei tudo pelo lado bom, Nana — sorriu. — Talvez a morte seja melhor do que essa angústia sem fim.
A mulher aquiesceu e ambos se mantiveram em silêncio. Voltando ao futon, eles passaram o resto da noite cuidando de Shiro.
Capítulo 5
Já er a madrugada quando o último cliente deixou a casa Ai. Porém, antes mesmo do homem sair do quarto de Midori, as mulheres estavam em polvorosa, querendo saber por que Sakamoto Shin não havia participado da própria festa, e por que Mamoru não dera as caras desde a apresentação de Shiromiya.
As residentes Midori, Rika e Keiko se uniram e andaram até o quarto de Aiko, próximo das duas da manhã. Encontraram-no vazio e então avistaram Nana, que as avisou sob a ameaça.
Apesar das palavras tranquilizadoras de Mamoru, nenhuma delas ficou em paz naquela noite. Cada movimento e barulho vindo da rua assustavam-nas, e todas fizeram vigília perante o quarto de Shiro, como se lá sentissem seguras perto de Aiko, o qual estava sentado ao lado da cama.
O garoto acordou próximo do amanhecer. Seus olhos se encontraram com os do cafetão, e ele sorriu. Percebeu imediatamente que estava sendo cuidado pelo outro e ficou grato pela atitude.
— Não dormiu, senhor Aiko?
Aiko negou. Mesmo que quisesse, não conseguiria fechar os olhos. Era bem verdade que havia tentado tranquilizar as mulheres sobre a ameaça de Shin, mas ele mesmo não se sentia tão confiante. Pelo menos, Shin não sabia seu segredo; se soubesse, sua morte seria ainda mais cruel.
Pensando nisso, agradeceu a Kami-sama, já que, imaginava, morreria de forma rápida e respeitosa. A maioria dos membros da Kempeitai o queria muito bem.
Nana apareceu no quarto ao amanhecer. Eram seis da manhã e a velha trouxe uma xícara de chá. Mamoru sentiu os olhos nublarem pelas lágrimas ao perceber que a idosa não havia descansado. Ela sentou-se ao seu lado e segurou suas mãos, confortadora.
— Cuide de Shiromiya — Mamoru sussurrou o pedido. — Eu prometi a ele que não iria mais se prostituir, então não permita que ninguém o tome à força.
A mulher assentiu. Na cama, o jovem já havia dormido novamente.
— Nunca pensei que Shin Sakamoto fosse reagir assim ao seu pedido para ir embora.
Aiko riu.
— Shin nunca aceitaria uma ordem facilmente.
Nana sentiu-se culpada, mas não o disse. Havia ido para a vida dura das ruas muito cedo. Os pais morreram quando tinha quinze anos, e o marido que a havia desposado aos catorze, foi pouco depois. Sozinha no mundo e sem dinheiro, descobriu que aquilo que fazia à noite com o esposo, poderia lhe render a janta.
Porém, veio a saber depois, as ruas não eram fáceis para uma mulher. Havia homens violentos, homens asquerosos, homens maus. Alguns sequer a pagavam, preferindo dar-lhe uma surra no final do prazer.
Já se aproximando da velhice, sentindo os clientes rarearem e a fome apertar, foi que conheceu Masami. A gueixa, a mais linda de todas, estava procurando uma empregada para ajudá-la em uma viagem. Nana se ofereceu e embarcou com a jovem cativante num navio onde a gueixa se apresentaria no salão principal todas as noites.
Sorriu triste ao recordar-se do passado. Era uma época tão bonita, tão mágica... Alguns meses depois daquilo, Mamoru nasceu. Masami pediu para que Nana o criasse em uma casa alugada ao sul de Tóquio. Ela viu o menino crescendo, indo para a escola, brincando e a chamando de vovó. Amou-o desde o momento em que o teve nos braços, e ainda o amava demasiadamente. Ele era uma cópia fiel e perfeita de gentil Masami, que vinha frequentemente à casa ver o filho e levar dinheiro.
Quando Mamoru tinha cerca de dezessete anos, a mãe morreu. Foi um choque para todos, especialmente para os clientes da Casa Ai, que na época, era uma respeitável e bela casa de gueixas. Não levou muito tempo e o jovem assumiu o lugar da mãe, acolhendo prostitutas em situação de risco. Ensinou-as a dançar, flertar e conversar. Era naturalmente agradável e acolhedor. Só então Nana percebeu que Masami o havia ensinado a lidar com a situação durante as visitas que fazia na casa que viviam.
Quando completou dezoito anos, Mamoru Aiko mudou-se definitivamente para a casa Ai. Levou consigo a velha Nana, que mantinha tudo com rigorosa disciplina. A casa do Amor perdeu seu tom imponente, mas tornou-se um sucesso em pouco tempo. Aliás, até teve sua clientela aumentada.
A lembrança foi interrompida por uma estrondosa batida no portão de madeira maciça. Não haviam ouvido o som de carros, nem de muitos homens. Era apenas a batida, seca, seguida por silêncio.
Aiko se ergueu, no mesmo instante em que as mulheres corriam cada uma em direção à porta dos seus quartos. Nos corredores de madeira, todos observavam o pátio, esperando que a Kempeitai quebrasse o portão e entrasse.
Mamoru caminhou em direção ao centro do terreno. Keiko apareceu ao seu lado e segurou suas mãos. Aiko a olhou e sorriu.
— Embaixo do meu colchão tem algum dinheiro — avisou-a. — Eu iria entregar quando fosse partir, mas acabei por esquecer. Por favor, pegue-o e vá para Hiroshima. Iria lhe arrumar um emprego, mas diante dos fatos, isso é tudo que poderei fazer por você.
Mais batidas. Os olhos femininos lacrimejaram.
— Fez mais por mim do que qualquer outra pessoa, Aiko-san — disse, sincera.
A sucessão de batidas fortes, nervosas e ansiosas, quase o levou ao pânico. Mamoru sabia que devia abrir o portão para evitar a visão das mulheres de ser levado pela polícia, mas estava estaqueado no lugar. Começou a tremer e maldisse a si mesmo pela covardia. Em segundos, Nana estava consigo, segurando suas mãos.
— Me leve com você, meu filho — a velha disse, baixo. — Não me deixe morrer sozinha, Aiko...
Quis chorar, mas manteve-se firme. Dois passos, e então foi surpreendido pelo grito choroso de Shin.
— Aiko!
Voltou os olhos para as mulheres, incrédulo. Era Shin, um bêbado, lacrimoso e vergonhoso Sakamoto.
— Aiko! Aiko, abra!
Havia um misto de alívio e raiva em todas. Os olhos femininos encontraram-se, como se transmitissem palavras inapropriadas. Porém, em Aiko, tudo que havia era um vazio embranquecido, como se estivesse se apagando aos poucos.
— Não me deixe, Aiko... — a voz masculina implorou.
Shin estava chorando. Merecia, Mamoru sabia, mas mesmo assim, aquele vazio tornou-se um breu, e ele sentiu-se adiantar-se à frente, mesmo contra a vontade. Nana segurou sua mão, os olhos do rapaz e da velha encontrando-se num pedido mudo.
—Aiko! — ele berrou. — Aiko! Abra o portão!
Mamoru sentia o coração chorar. Todo o corpo estava inclinado para frente e a única coisa que o mantinha parado era Nana.
— Não vá, Aiko. Essa é a chance da sua vida. Shin não chamou a Kempeitai, e acabamos de ver que ele não chamará. Deixe-o ir, livre-se dele.
O conselho adentrou sua mente. Sabia que era razoável; mais, sabia que era o que devia fazer.
— Não tenho mais ninguém, Aiko... — O grito agoniado fê-lo voltar-se ao portão. — Não me deixe sozinho... Você é o único motivo que tenho para viver...
Quis cobrir os ouvidos, mas o som de seu nome sendo gritado repetidas vezes, atingiu-o brutalmente. Desvencilhando-se de Nana, ele, enfim, abriu o pesado portão. A visão de Sakamoto chorando, sujo e bêbado o tomou. Shin estava sentado no chão, e Mamoru correu até ele, trazendo-o para seus braços.
— É claro que eu nunca o abandonaria, meu amor — murmurou nos seus ouvidos, esquecido de tudo, inclusive da mágoa.
Shin escondeu seu rosto no ombro de Aiko. Convulsionava no choro, segurando uma garrafa de saquê nos dedos.
— Eu fiquei com raiva porque o vi abraçando o garoto — assumiu, sem medo. — Você não pode fazer isso! Não pode abraçar mais ninguém... Apenas eu... Somente eu!
A frase fez Aiko apertar ainda mais Shin ao encontro do peito. Parecia querer colocá-lo dentro de si. Sabia que atrás de ambos, as mulheres o encaravam com um ar de desprezo e raiva. Aliás, ele podia ouvir Nana bufando. Mas, nada importava. Nada. Não tinha o menor orgulho próprio quando se tratava do melhor amigo.
— Tolo — murmurou. — Tolo! — exclamou. — Olhe o seu estado, está bêbado e sujo. Onde dormiu?
— Não sei.
— Está fedendo — pasmo, percebeu que estava sorrindo. — Precisará tomar outro banho.
De cabeça erguida, Mamoru ajudou Shin a se erguer. Não pestanejou perante os olhares que recebeu, era o dono daquela casa e colocaria para a rua qualquer um que se interpusesse entre Shin e ele. Com o olhar firme, ele passou essa mensagem a Nana, e depois às mulheres. Todas pareceram entender, porque ele viu todos os olhares baixando-se, em submissão. Todavia, quando viu Shiromiya parado atrás de uma pilastra, sentiu o coração em frangalhos.
Não havia em Shiro, porém, qualquer vestígio de rancor, como nas mulheres. Ao contrário, foi a visão de compreensão que o abalou profundamente. Era como se Kazue não só perdoasse seu ato, como o apoiasse.
Contudo, o pensamento desviou-se rapidamente quando ouviu o choro de Shin voltar. Já completamente focado no homem, Aiko carregou-o até seu quarto. Não precisou pedir, Rika surgiu com um balde de água. A mulher organizou tudo e, pouco depois, o amigo já se sentava na tina de madeira, com Aiko às suas costas, no costumeiro ritual da purificação.
Permaneceram em silêncio durante todo o tempo. Mesmo assim, Aiko não pôde se reprimir, e diante de um Shin passivo, ele beijou as costas do outro enquanto o secava. Quando ambos deitaram na cama, abraçaram-se tão forte que sabiam que nada poderia separá-los.
Esquecido do mundo, Mamoru fechou os olhos e dormiu tranquilo e feliz.
***
Roosevelt havia declarado, muitas vezes, que o mundo precisava deter o avanço do imperialismo. Nos anos 30, suas condenações morais ao Japão eram ditas até com vergonhosa repetição, sem que nada a mais fosse feito para deter o exército imperial e sua violência contra países mais frágeis.
No Japão, tanto no governo quanto no exército, os americanos eram tratados como fracos, pensamento compartilhado por Hitler, que deixava claro o quanto não era necessário temer o poder militar do outro lado do oceano.
O Japão manifestava claramente que seus militares pretendiam submeter todo o sudeste asiático ao Império do Sol Nascente. Os Estados Unidos temiam serem prejudicados economicamente por tal. Até julho de 1941, o Japão tentou, inutilmente, um acordo com os americanos. Porém, no mesmo mês, os Estados Unidos cessaram definitivamente as relações comerciais com os japoneses.
Nos anos vindouros, o bloqueio seria de extremo peso na economia e vida do povo nipônico, porém, até então, tudo estava muito tranquilo para aqueles que comiam e bebiam em abundância no Japão.
O ano de 41 foi marcado por ocupações e demonstração de poderio bélico, mas na Casa Ai, tudo parecia tranquilo e alegre. Desde o problema com Sakamoto Shin em janeiro, nada mais de importante havia ocorrido entre os corredores de madeira.
Shin voltou para a guerra dois dias depois da vergonhosa demonstração de dependência a Mamoru. Não falou, nem se desculpou com ninguém, além de Aiko, Mas antes de ir, ele acenou discretamente para Shiromiya, que o observava ao longe.
Aiko sorriu durante todo o mês de fevereiro. Não demonstrou amargura, nem preocupação pela forma esquiva com que as mulheres falavam com ele, parecia alheio e entregue a sua própria felicidade interna.
Shiro voltou a dançar no meio de fevereiro. Março foi um mês marcado pela clientela em abundância e a falta de espaços na Casa Ai. Subitamente, o sexo tornou-se a coisa menos importante ali. Ver a gueixa de rosto perfeito dançar por alguns minutos, valia a noite toda para a maioria daqueles homens. Abril, maio e junho seguiram-se à rotina.
Em julho, Mamoru recebeu uma carta de Shin. O Japão tomava a Indochina Francesa, desembarcando cerca de 50.000 soldados na Cochinchina. Na missiva, Shin declarava o orgulho que sentia do exército, da forma como o Japão era indestrutível e na certeza do futuro promissor que se avistava. Com a tomada, a Cochinchina foi entregue à Tailândia, aliada japonesa.
Em outubro, chegou outra carta de Shin. Ele avisava que estava em Tóquio, mas que não podia ir vê-lo. Abalado, Mamoru tentou descobrir os motivos, mas a notícia logo chegou às rádios. O príncipe Konoye, que havia tentado de todas as formas impedir que os Estados Unidos entrassem na guerra, pediu sua demissão, alguns dias após os americanos suspenderem a venda de petróleo ao Japão. Aquilo podia — e devia — ser encarado como um mau sinal, mas Sakamoto, logo depois, avisou-lhe da formação do governo Tojo no país.
Mamoru sorriu ao lembrar-se da forma como ele encerrava aquela carta: “Tudo está em boas mãos, e em breve, a guerra terminará e eu poderei ficar ao seu lado para sempre”.
Havia naquelas palavras uma promessa implícita que o alegrou muito. Ainda em outubro, os preços dos alimentos começaram a subir, mas Aiko apenas aumentou a taxa para os clientes verem Shiromiya e as meninas.
Em novembro, as rádios locais falavam muito das tentativas do novo governo em negociar com os americanos. E foi nesse momento tempestuoso que outra carta chegou à Casa Ai.
— Ryo-san! — Mamoru gritou, chamando Nana. — Ryo-san voltará hoje de viagem e pretende comemorar um novo acordo comercial na Casa Ai.
A mulher que estava lavando a louça voltou-se para ele.
— Nosso vinho está quase no fim — observou.
Mamoru assentiu.
— Compre vinho e saquê. Ryo prefere saquê — volveu para a porta. — Onde está Shiro? Ele já ensaiou o novo passo? Quero que ele dê o seu melhor hoje à noite...
Saiu novamente, deixando Nana irritada para trás. Toda vez que um dos dois moleques (Ryo ou Shin) aparecia era assim: Mamoru querendo oferecer todas as novidades e o melhor atendimento possível. Chamando Midori, ela resmungou dos motivos do tratamento diferenciado. Masami nunca fez acepção entre os clientes, mas era irritantemente diferente quando se tratava de Sakamoto e Ryo.
— Senhora Nana?
Encarou a jovem e puxou alguns trocados de um bolso.
— Mande entregarem vinho e saquê até à tarde — mandou.
A mulher curvou-se respeitosamente, e saiu.
***
O ar da noite estava agradável e calmo. Ryo ergueu o pequeno copo e bebeu um gole do excelente saquê que havia sido servido pela Casa Ai. À sua frente, Tamura Ito parecia encantado com o lugar. O homem de meia idade havia, naquela tarde, fechado um acordo comercial com Ryo, e a noite foi reservada para comemorar o feliz negócio.
— Estou há meses tentando entrar na lista de clientes da Casa Ai. — Ito contou. — E você conseguiu uma reserva sem nenhum problema?
— Sou amigo do dono — Ryo sorriu. — A Casa Ai sempre foi muito disputada, mas admito, por sorte, não preciso de nenhum esforço para desfrutar desse ambiente celestial.
Midori, no seu colo, riu baixinho. Ryo não resistiu e pressionou o nariz na nuca dela, aspirando o perfume de flores.
— Todas as mulheres vivem aqui? — Ito indagou à garota.
— Não, senhor — ela negou. — Somente as fixas. No momento, apenas Rika-chan e eu. As demais moram na região e vêm à noite.
— E Keiko? Onde está? — Ryo questionou.
Keiko era a favorita de Ryo. Agradável, fazia o que precisava fazer para um homem, recebia o dinheiro de cabeça baixa e não cobrava nenhum vínculo emocional.
— Keiko-san foi para Hiroshima — Midori contou, simplesmente.
Respeitando a privacidade das mulheres, Ryo deu os ombros e voltou a beber. Em seguida, porém, notou que o número de frequentadores parecia ainda maior. Curioso, encarou-a.
— Diga-me, Midori, o que aconteceu para que tantos homens estejam aqui nessa noite? Esse lugar está superlotado.
A mulher o encarou e sorriu.
— Temos, desde o começo do ano, uma nova atração.
— É mesmo? Uma nova dama?
Ignorando a sexualidade, Midori negou, esclarecendo a dúvida com a frase que todos diziam na cidade.
— “O rosto mais belo do mundo, a perfeição em forma de dança”.
Pigarreando, Tamura entrou na conversa.
— Dizem que todo o requinte e beleza da Casa Ai, mesclados com suas belas mulheres, agradável conversa e excelente bebida, tornou-se apenas um adicional para o verdadeiro espetáculo — concordou com ela. — Eu frequentei a Casa Ai na juventude, e vi com meus próprios olhos a beleza de Masami Aiko. Contudo, dizem que essa nova dançarina supera a linda Masami. Dizem que como as sereias, ela hipnotiza os homens e que você nunca mais será o mesmo depois de vê-la bailar.
Ryo gargalhou alto e voltou a beber.
— É isso mesmo, Midori? Ela é mais encantadora que você?
A mulher riu, beijando-o na boca. Não respondeu, e Ryo não insistiu. Sabia que Mamoru não tolerava intrigas nem disputas entre elas. Assim sendo, permitir que uma mulher alcançasse o status de estrela ia contra o que sempre viu na Casa Ai. Não se importou, é claro. Aiko tinha jeito para lidar com egos, a maior prova disso era a forma com que agia com Shin Sakamoto.
Girou o rosto à procura do amigo. Ao contrário do que sempre acontecia com Shin, Aiko não costumava aguardá-lo na porta para cobri-lo de abraços e beijos. No entanto, sempre aparecia poucos minutos depois para ver se tudo estava ao agrado do amigo.
Já ia voltar-se para a entrada quando sentiu a mão gentil no seu ombro. Suspirou aliviado, já temeroso em haver feito algo que tivesse ofendido o amigo.
— Onde esteve? — indagou, sem ao menos cumprimentá-lo. — Preocupei-me com sua ausência.
— Estive resolvendo algumas pendências. Você está preparado para o melhor espetáculo de dança que verá em toda a sua vida?
Ryo afastou um pouco Midori e voltou-se para Mamoru.
— Todos dizem a mesma coisa, então estou curioso.
— Não aparenta.
— Aiko, meu querido amigo e irmão, sabe bem que nada pode realmente me provocar ao ponto de perder o controle. Estou em uma busca longa e fiel pela minha esposa.
— Sua esposa? — Ito pareceu surpreso.
Aiko riu, sentando-se ao lado dos homens.
— Ryo-san acredita que existe uma mulher destinada a ele.
— Não só acredito — Ryo completou — como conheço seu rosto, pois o vejo em sonhos.
Os homens sorriram. A mulher apenas fingiu que não ouviu, preferindo abster-se de chamar Ryo de idiota. O amor não existia, e era impressionante que um homem da idade dele ainda acreditasse naquelas fábulas. Então, apenas fez o que era paga pra fazer: sorriu. Mesmo sem vontade, o dinheiro da noite iria servir para manter a mãe e a irmã mais nova durante um mês inteiro.
— Agora preciso dar atenção aos demais clientes — Aiko levantou-se. — Ryo-san, fique à vontade, espero que goste do espetáculo.
Ryo voltou-se para Midori. Trazendo-a para perto novamente, ele buscou seus lábios. Sentiu uma leve resistência que quebrou rapidamente colocando dentro do quimono dela uma nota de um valor considerável. A mulher sentiu o toque e deixou-se ficar perante ele, sem mais imposição.
Quando as luzes se apagaram, soube então que a Casa Ai começaria o afamado espetáculo. Pasmo, notou todos os rostos voltados para o palco de madeira, ansiosos. Midori saiu de seu colo e sentou-se ao seu lado, parecendo também encantada pela aura mágica existente.
Uma luz no meio do palco de madeira se acendeu.
Foi quando ele a viu...
A figura miúda apareceu em pé, no meio do palco. Seu rosto estava coberto pelo leque branco, mas seus olhos castanho-claros eram nítidos e perfeitos. Ryo ficou verdadeiramente interessado e inclinou-se para frente, a fim de ver mais.
A música começou e ele percebeu o movimento leve e perfeito dos pés, de um lado para o outro, como se a gueixa misteriosa estivesse bailando sobre nuvens. A mão dela voou no ar, e o leque foi levado ao longe. Seu corpo girou, e então ele viu seu rosto...
Ali, diante de toda aquela gente, diante de todos os fascinados homens, dançava sem pudor a sua mulher, a mulher de sua vida, a mulher que Kami-sama havia lhe dado em sonhos há muitos anos.
Quis erguer-se, mas a música se tornou mais ritmada, e ele não pôde interrompê-la. Sentiu o coração aos saltos, num ciúme desesperador, horrível, maldito. Queria sim que ela dançasse, mas só pra ele... Apenas para ele.
O leque voou e voltou aos dedos gentis. Então, apaixonado, ele a viu sorrir. Era, sem dúvida, a visão mais bela e delicada que já havia visto. Por Deus, como era linda! Tão perfeita... ainda mais bonita do que se lembrava. Suas mãos tremeram e sua boca secou. Estudou com a atenção a pele branca da maquiagem, e o nariz arrebitado. A boca pequena, de lábios carnudos e delicados e o pescoço alvo, deixavam-na quase uma visão mística, arrebatadora.
Então, de forma idílica, tudo terminou exatamente como começou: com o apagar das luzes. Pouco depois, o ambiente voltou a ficar claro e ele viu os homens de pé, gritando palavras de congratulação como “Bravo” e batendo palmas.
Ainda pasmo, ele empurrou levemente a mão de Midori sobre a sua. Seus olhos focaram-se no palco, mas a visão havia sumido.
Ryo havia achado a sua deusa destinada. Nada o separaria dela.
Erguendo-se, ele foi à busca da porta de saída. A mulher, com certeza, devia ter se retirado pela porta lateral. Custasse o que custasse, iria encontrá-la. E, não se importando com mais nada, ele a faria sua para sempre.
Capítulo 6
Shiromiya entro u no quarto. Seus passos foram retos até a cadeira e, sem pensar, ele pegou a esponja para retirar o excesso da maquiagem.
Mais uma vez, a noite fora um sucesso. Era simplesmente impressionante que pudesse ganhar dinheiro simplesmente atiçando a fantasia dos homens. Ouvia os suspiros da plateia e, ao observá-los, notava sobre si olhares apaixonados. Quem diria que ele, um prostituto de rua sem família ou base, pudesse despertar tanta paixão.
A mão ergueu, mas não chegou a limpar o pó branco. Encarou-se, pela primeira vez, verdadeiramente. Nunca pensou na sua beleza como uma bênção, e sim como um fardo maléfico. No entanto, naquele momento, agradecia aos céus pelo rosto perfeito. Com o canto dos olhos visualizou o futon e sorriu sabendo que embaixo dele havia várias notas de ienes que estava juntando desde sua estreia.
Mamoru aparecia todas as manhãs após a apresentação. Entregava a ele não só dinheiro, mas também presentes que havia ganhado dos fãs. Já tinha alguns colares e também brincos. Outros lhe mandavam flores (Que merda ele faria com flores? Flores não lhe garantiriam seu futuro!), e perfumes. Dava as flores para as mulheres e usava os perfumes sem se importar muito com o odor. Porém, as joias e o dinheiro eram seu tesouro amado, em que ele estava depositando toda sua esperança de dias melhores.
Um dia, mais velho, não mais dançaria. E então teria o suficiente para comprar sua própria casa e, talvez, até abrir um negócio. Senão, poderia viver apenas modesta, mas dignamente. Mal podia esperar para enfiar-se em seu próprio lar e desaparecer. Apenas, eventualmente, receber visitas do seu amado Aiko-san.
Um estrondo na porta o tirou da letargia. Encarou a madeira maciça, surpreso pelo barulho. Desde que Shin Sakamoto flagrou o abraço trocado entre o cafetão e ele, Mamoru não vinha mais depois das apresentações para lhe felicitar. Preferia aparecer no dia seguinte, quando podiam tomar café da manhã juntos e fofocar pela noite passada.
Ergueu-se. Imaginou que podia ser uma das mulheres a lhe contar algo. Talvez uma briga? Ou talvez uma nova proposta (só Kami-sama sabia quantas havia ouvido nos últimos meses) para um encontro particular. Porém, ao abrir a porta deparou-se com o rosto redondo de Ryo, o amigo de Aiko que havia vindo vê-lo no início do ano.
Reconheceu-o imediatamente, já que o homem havia trombado nele e sido excessivamente grosseiro quando o afastou, meses antes. Sabia que as mulheres o odiavam, tanto quanto a Shin, mas que aceitavam se deitar com ele pelo fato de que o homem era extremamente generoso com as amantes, e dinheiro nunca era algo a se recusar.
— O que deseja, senhor? — indagou, nervoso.
Sentiu as duas mãos firmes de Ryo segurando seu braço. Os olhos do comerciante estavam fixos nos dele, havia emoção lá, até lágrimas reprimidas.
— Não é a voz que imaginava — Ryo sussurrou. — Mas, por Deus, seu rosto é exatamente como nos meus sonhos.
Quando Shiro ouviu a porta se fechando, percebeu que o homem o havia empurrado para trás, e que ambos estavam sozinhos. Desde o fatídico dia com Shin, não havia sido submetido a mais ninguém, e agradecia aos céus por isso. No entanto, a mera sugestão de que o terror voltasse ao seu leito, angustiou-o. Tentou se desvencilhar, mas Ryo o pressionou, firme.
— Não se debata, meu amor — o som da voz dele era caloroso.
— Me deixe! — implorou. — Aiko-san não permite que ninguém entre no meu quarto!
— Escute — Ryo começou a forçá-lo para baixo, em direção ao futon. — Não precisa me temer — afirmou. — Eu amo você — disse, sem pestanejar. — Amo você desde criança, procuro por você há anos e, quando o dia amanhecer, farei de você minha esposa.
Shiro arregalou os olhos.
— Você é louco?
— Louco por você — concordou. — Minha bela sakura [20] , sempre fui e sempre serei o mais devotado e fiel homem a você.
Kazue quis gritar, mas no mesmo instante, sua boca foi tomada pela do homem. Ryo era jovem e bonito, mesmo assim lhe causou o mesmo asco que sentia cada vez que era forçado a deixar os homens tocá-lo. Porém, daquela vez, ele não era obrigado a aceitar aquilo. Reunindo todas as suas forças, ele conseguiu empurrar o intruso. Assim que o homem caiu para trás, ele gritou e tentou sair correndo.
Contudo, já no chão, Ryo agarrou sua canela. O jovem desequilibrou-se e se esborrachou no chão. Ainda gritando, ele tentou rastejar até a porta, mas o outro estava muito mais determinado, e em segundos, Shiromiya sentiu-se deitado, com a barriga para cima, e o corpo inteiro de Ryo sobre si.
— Por favor — implorou. — Me deixe em paz! — pediu.
— Não chore, meu amor. — A voz chegou até ele baixa, como se fosse da intenção de Ryo acalmá-lo. — Não precisa me temer, eu já disse que lhe farei uma mulher honrada, mãe de meus filhos.
Só então Shiromiya percebeu que Ryo achava que ele fosse uma mulher. Subitamente, recordou da peruca e da maquiagem. Quando os dedos de Ryo começaram a deslizar nas suas coxas, adiantou-se.
— Não sou quem pensa. Chamo-me... — suas palavras foram interrompidas por um novo beijo.
Lutou novamente. Queria gritar, porém a língua quente do homem adentrou sua boca, quase o asfixiando. Tentou chutar, mas Ryo estava rígido demais, firme demais. Então os dedos ágeis do homem deixaram sua coxa e tocaram no meio de suas pernas.
O beijo cessou no mesmo instante. Ryo ergueu-se, encarando-o com uma postura pálida e pasma. Então, as duas mãos dele seguraram o quimono e ele o puxou com tanta forma que a parte frontal se rasgou.
— Onde estão seus seios? — a voz indagou, ainda incrédula, enquanto os olhos observavam o peito magro.
Shiromiya abriu a boca para se explicar, mas o ódio que viu estampado no olhar de Ryo o calou. Viu-o então, impotente, puxar seu quimono para cima, revelando o pequeno órgão nipônico cercado por curtos e poucos pelos negros.
— Onde ela está? — Ryo indagou, levando a mão até a peruca e puxando-a com força.
Percebendo que o outro perdia o controle, Shiro tentou novamente se libertar. Porém, foi atingido por um soco. A surpresa, inicialmente, foi maior que a dor. Voltando os olhos para seu agressor, ele ergueu as mãos, tentando proteger o único patrimônio que tinha.
— Devolva-me! — outro soco. — Devolva agora a minha mulher!
Tentou segurar as mãos do outro, mas era muito mais magro e fraco. Então, apenas se protegeu, tentando evitar que os socos atingissem o rosto que lhe garantia o sustento.
Laconicamente, recordou-se das muitas surras que recebeu na rua. Era, diziam os homens com quem se deitava, muito frio entre os lençóis. Então, eles retribuíam a sua gélida atitude com socos e chutes. Cada surra recebida era recompensada com fome. Machucado e com o rosto deformado, o irmão não podia vendê-lo. Sem sexo, sem comida.
Os socos se sucederam, parecendo sem fim. Subitamente, uma dor muito forte na cabeça fê-lo perder as forças, baixando a mão. Sentiu o gosto pastoso do sangue na boca as vistas se escurecendo. Ryo então ficou de pé e lhe chutou no lado. A dor nos rins fez com que ele se encolhesse, como uma criança em posição fetal.
— Você é um homem, seu maldito! — ouviu. — Aberração!
Lembrou-se de ter ouvido aquela acusação antes, na infância.
— Um homem! Beijei um homem! — gritou Ryo. — Quero minha mulher agora! — exigiu.
Imaginou que morreria ali, mas a porta se abriu.
***
Aiko Mamoru sorriu para o homem de meia idade, enquanto o ouvia reclamar da vida. Suas mãos pálidas colocaram saquê no copo do cidadão e, após vê-lo levando o copo aos lábios, indagou:
— Mas tenho certeza que a senhora Yamada é uma boa esposa, não?
— É uma megera — o outro respondeu. — Acredita que ela se recusou a limpar minhas botas nessa manhã? E tudo por quê? Por causa de um tapa que lhe dei. E, diga-se a verdade, foi totalmente merecido. Nada naquela casa funciona bem, a comida é péssima, e as crianças mal educadas. Qualquer outro homem daria uma surra na esposa, mas eu apenas lhe dei um tabefe! Essas mulheres estão, a cada dia, piores.
Aiko quase riu, mas manteve sua seriedade profissional.
— Yamada-san, tente ser carinhoso com ela. Se a agressão não funciona, tente outra tática. Fale palavras bonitas e lhe dê presentes. Talvez, com um marido mais carinhoso, ela seja mais receptiva à vida doméstica — sugeriu, de forma mansa.
— Para que ser carinhoso? — Yamada bateu a mão na mesa. — Essas mulheres estão cada dia piores! — repetiu, insistindo na ideia — Aqui há alguns dias vão querer os mesmos direitos que os homens! Escute o que lhe digo, Aiko-san, se não colocarmos a moral em alta agora, essa anomalia vai tomar conta da sociedade. Já sei de mulheres trabalhando em escritórios, pode? O lugar da mulher é dentro de casa, cuidando do seu marido e de seus filhos.
A sociedade japonesa naquele período era bastante rígida com suas normas. As mulheres de família deviam ser caladas, boas donas de casa, esposas e mães. Apenas isso. Para a diversão e o amor, havia as mulheres do prazer. Mamoru, sonhador e idealista, não entendia muito bem como as pessoas podiam considerar aquela forma de vida, mas respeitava as opiniões e mantinha-se calado diante das circunstâncias.
— Aiko-san? — Midori apareceu as suas costas.
O cortesão voltou-se para ela, sorrindo.
— O que quer Midori?
— Posso falar em particular um momento?
Ouviu Yamada bufar, pois sabia que a interrupção era um atrevimento. Mesmo assim, tentou ser cortês e calmo.
— É urgente? Senhor Yamada e eu estamos discutindo sobre...
— Por favor, senhor Aiko — o tom feminino era imperioso.
Mamoru ergueu-se e, após um gesto de desculpas para o homem, acompanhou a mulher. Ela parecia calma, mas quando saíram do salão, seu rosto transbordou nervosismo.
— Senhor Ryo estava comigo — contou rapidamente. — Mas, quando Shiromiya começou a sua apresentação, ele mudou completamente de comportamento. Empurrou-me e saiu porta afora. Pareceu-me que foi atrás de Shiro-san, pois deu ares de conhecê-lo de algum lugar.
Aiko olhou para os lados.
— Você viu para onde ele foi?
— Não, tentei ir atrás dele, mas quando me ergui, o homem que o acompanhava me segurou as mãos e começou a perguntar meu preço... Enfim, levei certo tempo para me livrar dele e poder ir atrás do senhor. Preciso voltar ao salão, senhor Aiko, mas pode, por favor, verificar?
Aiko assentiu, tranquilizando-a. Pouco depois ele aproximou-se do portão e fez um aceno com a mão para um dos guardas segui-lo. As pernas tremiam demasiadamente, pois se enervava ao imaginar que o episódio de Shin voltasse a acontecer com Ryo. Por que os dois melhores amigos eram assim?
Chegou ao corredor de Shiromiya. Não havia sinal de Ryo, e ele quase respirou aliviado. Iria ver Shiro para se sossegar e depois faria uma busca rápida ao comerciante, apenas para ter certeza de que ele havia ido embora.
Seus planos, no entanto, logo foram quebrados pelo grito agoniado de Kazue. Correu em direção ao quarto do rapaz e abriu a porta. Encontrou-o deitado no chão. O rosto coberto de sangue, e os gemidos escapando dos lábios. Ryo estava em pé, ao seu lado, como se em transe, bufando de ódio.
Aiko não pensou. Avançou contra o amigo, esmurrando-o. Nem assim, Ryo reagiu, e então ele mandou o segurança colocá-lo na rua.
— Nunca mais volte à minha casa — mandou, o dedo em riste.
Só então o semblante do outro voltou à lucidez. Contudo, um riso irônico o surpreendeu. Como Ryo ousava rir do que fez?
— Uma pena que não sou Shin, né? Se fosse Sakamoto, com certeza, poderia fazer qualquer coisa e você sempre estaria disposto a abrir suas pernas...
Aiko ficou chocado, mas se recusou a objetar. Com um sinal seu, o segurança arrancou Ryo da casa. Pouco depois, Nana surgia. A velha havia sido avisada pelo guarda e já trazia consigo um pano e uma bacia com água.
— Chame um médico — Aiko pediu. — Ele não acorda... — pareceu realmente aflito.
A mulher voltou a sair correndo. Mamoru então ergueu o corpo frágil e o pôs no futon. Tentou limpar o sangue com o pano, enquanto conversava baixinho com Shiro, na tentativa de fazê-lo despertar.
O rapaz acordou alguns minutos depois, para seu alívio. Mal conseguia abrir os olhos e também tinha dificuldades para falar. Mas, quando notou o olhar choroso de Aiko Mamoru, quis dizer-lhe que tudo estava bem.
O médico tratou-o durante a madrugada. Não parecia ter quebrado nada, mas comentou com Aiko que seria bom o rapaz ir até um hospital no dia seguinte para exames complementares. Ele assentiu.
— O rosto dele ficará inchado por semanas, e as manchas roxas vão demorar a sumir. O que fará durante esse tempo? — Nana perguntou, assim que o homem foi embora. — Não pode cancelar as apresentações. Os clientes ficarão loucos!
Aiko sabia que era verdade, mas não havia o que fazer.
— Mande Rika enviar uma nota ao jornal informando a todos que a Casa Ai ficará fechada durante duas semanas. Digam-lhe que estaremos fazendo algumas reformas.
— Não pode fechar a Casa Ai, Mamoru! — Nana quase gritou. — As meninas precisam do dinheiro!
Aiko ergueu as mãos ao rosto, tentando conter a dor de cabeça.
— E o que eu posso fazer?
Queria chorar, queria gritar, queria sentar no chão e bater os pés como uma criança. Acima de tudo, queria o colo de Shin, seus conselhos. Sakamoto saberia o que dizer, o que fazer. O sobrenome do melhor amigo dava a ele poder para decisões como aquela.
— Mandarei uma carta a Shin pedindo que venha me ver em dezembro — decidiu, por fim. — E Rika colocará uma nota no jornal informando que estaremos em reforma até lá porque estaremos organizando uma festa em prol de nosso amado exército imperial. Deixe um rodapé informando que os clientes precisarão garantir presença fazendo uma reserva paga. Com esse dinheiro, eu saldarei uma quantia às meninas para se manterem e as suas famílias até a data.
Nana concordou.
— Pela primeira vez desde que ficou amigo de Sakamoto, torço para que ele apareça — a mulher disse.
O som de sua frase permaneceu em Aiko, mesmo após ela ter se retirado.
***
Os raios de sol bateram contra seus olhos, e aquela sensação desagradável o acordou. Ainda com dificuldade, ele abriu-os totalmente e observou o local. À sua frente, seu leal servo Tadao o encarava com preocupação. As mãos masculinas o sacudiam de leve, e então Ryo percebeu que havia dormido sentado em uma calçada, segurando uma garrafa de saquê nas mãos.
— Senhor Ryo? — o homem o chamou, acordando-o totalmente.
Ryo levantou as mãos à fronte, sentindo uma dor insuportável tomando-o.
— O que está fazendo aqui? — questionou.
— Cheguei essa manhã à Tóquio, fui direto a sua casa. Porém, as servas me disseram que o senhor não havia aparecido, e estavam muito preocupadas. Fui então à Casa Ai, mas Aiko Mamoru recusou-se a me dar explicações. Percebi então que brigaram e saí à sua procura. Como acompanhei sua puberdade, sabia de antemão que estaria bebendo em algum lugar que frequentava com Shin Sakamoto.
Ryo ficou admirado pela devoção do empregado, mas nada disse. Erguendo os olhos, percebeu estar no Hama Rikyu [21] . Assustou-se pela gafe cometida, mas Tadao tranquilizou-o imediatamente.
— Alguns guardas da família imperial viram-no entrando ontem à noite, de madrugada. Parece que disse a eles que queria ficar sozinho, e todos acreditam que está sofrendo pela falta de seu amigo Shin Sakamoto.
Ryo gargalharia, não fosse a intensa dor na têmpora.
— Vou me desculpar pessoalmente com a família imperial assim que tomar um banho e comer alguma coisa. Você veio de carro?
— Sim, senhor. O motorista nos aguarda no final do jardim.
Tadao o guiou para o veículo. Ryo ainda segurava a garrafa vazia quando entrou no automóvel. Fechou os olhos, tentando acalmar a pulsação latente, e pensou que dormir seria a melhor coisa a fazer naquele momento.
— Permita-me uma pergunta, senhor? — Tadao o encarou, sentado ao seu lado. — Aiko-san quase atirou o gato de estimação na minha cabeça, quando fui vê-lo. O que aconteceu?
Ryo abriu os olhos, encarando-o.
— Sabe a mulher que procuro?
— A de seus sonhos?
— Aiko-san tem alguém dentro da Casa Ai com a feição idêntica — assentiu. — Imagine meu choque ao perceber isso. Acabei enlouquecendo.
Naquele momento, a cena do quarto voltou à sua mente. Lembrou-se dos lindos olhos amendoados do menino, da forma como ele implorou para que o soltasse, de como parecia odiar seus beijos...
— E o que fez, Ryo-san?
O patrão respirou fundo, irritado.
— Perdi a cabeça — admitiu.
— Tentou tomá-la à força?
Ryo riu.
— Não era uma mulher. Era um garoto transvestido. Se você o vir, ficará assombrado com a semelhança feminina. Eu jamais poderia imaginar — defendeu-se.
Tadao assentiu.
— Eu bati no menino...
Após falar, percebeu em si mesmo a culpa. Não devia ter espancado o garoto. Que mal ele havia feito? Só porque era idêntico à mulher que amava, não merecia aquilo.
— Preciso me desculpar. Mande flores a Mamoru com um cartão meu, dizendo que sinto muito pela atitude impensada.
Tão logo deu a ordem, percebeu que chegava em casa. Sem pensar em mais nada, entrou e foi descansar.
***
Acordou no final da tarde, já completamente refeito da ressaca. Tomou banho, comeu um pedaço saboroso de bolo e bebeu chá. Já começava a planejar a noite quando uma das servas apareceu com uma caixa diante dele.
— Mandaram entregar, senhor Ryo — avisou. — É da parte de Mamoru Aiko.
Ryo mandou-a se aproximar. A mulher largou a caixa sobre a mesa e afastou-se. Assim que se viu sozinho, abriu a caixa de papelão e observou que ela estava cheia de flores despedaçadas. Já prevendo o que viria, abriu o envelope anexo.
“Enfie essas flores na bunda e morra! Mamoru Aiko.”
Quis ficar com raiva, mas viu-se rindo diante da mensagem. Sabia que Aiko não era tão benevolente com ele como era com Shin, mas não imaginava que fossem brigar por causa de um vadio de rua.
Saiu da mesa e foi até o jardim. O ar da noite já começava a dar sua graça e ele sorriu diante de tanta beleza. Com a carta de Aiko nas mãos, recordou-se novamente do garoto. Era tão bonito que doía a alma, mas ele não costumava esgueirar-se com homens por aí. Aliás, tinha completa aversão. Fazia vistas grossas aos casos passageiros de Shin, porque admitia que eram apenas alguns segundos sem importância e também porque não sentia vontade de se indispor com alguém com tanto poder nas mãos. Contudo, que graça tinha? Um homem era duro, rígido, sem a pele macia das mulheres, além de outras delícias.
Contudo, não precisava ter batido no menino, não é?
A culpa de outrora voltou, daquela vez com força. Sabia que diante do estado de Aiko, era melhor esperar um melhor momento para se desculpar, mas começou a ficar nervoso por causa do moleque.
Resoluto, decidiu voltar à Casa Ai em breve, e pedir desculpas pessoalmente.
Com isso em mente, voltou para dentro da residência, e foi terminar a noite lendo e ouvindo rádio.
Capítulo 7
Ryo sentou-s e à mesa, aquecendo o corpo naquela manhã fria de outono com o chá verde que sua serva costumava preparar com louvor. Após beber o líquido quente, pôs-se a comer o os alimentos servidos no café da manhã com a costumeira tranquilidade. Antes, porém, de terminar, Tadao apareceu a seu lado, trazendo-lhe o jornal.
— Notícias da guerra?
O homem manteve-se em silêncio, deixando que Ryo encontrasse as informações necessárias.
Na primeira página havia uma nota graúda sobre a extensiva alemã contra Moscou. Diziam que mais de cinquenta divisões marchavam contra os comunistas, e Ryo sorriu. Todo aquele embate poderia favorecer bastante seus negócios. Contudo, ao virar a página e deparar-se com uma nota sobre a Casa Ai, preocupou-se.
— Mamoru está louco? Ele vai ficar na miséria se fechar a Casa Ai nesse período! Os preços dos alimentos estão subindo, e logo a moeda vai se desvalorizar. Aiko precisa manter os negócios ativos pelo maior tempo que puder! — exclamou.
Em seguida, contudo, entendeu o porquê da decisão do cortesão.
O garoto!
Precisava tomar alguma atitude rápida referente àquilo, afinal de contas, amava Aiko. Eram amigos e sempre o seriam.
Dispensando Tadao com a mão, ele voltou a comer.
***
Ainda naquela mesma manhã, o portão da Casa Ai recebeu uma sucessão de batidas. Mamoru estava contabilizando os lucros e perdas que teria naquele mês de recesso, mas ao perceber que Nana e as demais mulheres ainda estavam na cozinha, foi atender ao chamado.
— O que quer? — indagou, ríspido, ao observar o rosto redondo daquele que chegava.
Ryo o encarou com o olhar inocente de outrora. Tinha os ombros caídos, demonstrando a mesma culpa que sentira em um evento do passado. A mente, tempestuosa, recordou-se de quando eram adolescentes. Um dia de verão, Ryo apareceu no bairro de Aiko junto com os colegas de escola. Os garotos riam apontando as prostitutas e calculando entre eles o dinheiro que tinham para comprar sexo. Aiko, por coincidência, cruzou por eles na rua. Ao avistar Ryo, acenou para o amigo. Assombrado, viu-o virando o rosto para o outro lado, fingindo não conhecê-lo, a fim de não ficar em uma situação embaraçosa perante os colegas de escola.
“Para quem aquele garoto está acenando?” ouviu a voz de um dos amigos de Ryo.
Com lágrimas nos olhos, assistiu Ryo dando os ombros e rindo de sua cômica postura. Chorou por dois dias seguidos, amaldiçoando sua condição que trazia vergonha aos amigos. Depois das lágrimas, veio a raiva, e ele prometeu nunca mais olhar para Ryo.
Todavia, Aiko o perdoou assim que ele surgiu na semana seguinte com o rosto triste e a aparência abatida. O rapaz de cabelos longos havia compreendido o grande desnível cultural e social que os separava, e percebeu que precisava aceitar a amizade do outro do fundo do coração, mesmo que a mesma fosse repleta de restrições. Contudo, dessa vez, não havia em si um resquício sequer de complacência.
— Acho que você é surdo! — xingou. — Eu disse para nunca mais vir à minha casa.
Ryo deu os ombros.
— Eu li a nota sobre a Casa Ai. Vai fechá-la?
— Por pouco tempo, até que o rosto de meu dançarino volte ao normal. Se hoje estamos passando por problemas, a culpa é sua.
Surpreendentemente, Ryo concordou.
— Eu sei, Mamoru — admitiu. — Vim aqui humildemente me desculpar com você. Por favor, me perdoe.
Aiko o encarava, sério. Sabia que Ryo tinha lá seu orgulho, talvez não tanto quanto Shin, mas o ato era uma demonstração de boa vontade.
— Vai pedir perdão também para meu dançarino?
Os olhos de Ryo se arregalaram. Por Deus! pedir desculpas para um rapaz que se vestia de mulher para dançar? Para um vagabundo de rua? Um nada?
— Tudo bem, Aiko. — disse, por fim. Queria a paz entre eles e resolveu passar por cima de sua arrogância. — Posso entrar e me desculpar devidamente com o menino?
Mamoru concordou. Dando passagem, deixou que o outro adentrasse por entre o pátio da Casa do Amor. Assim que Ryo entrou, mandou-o à sala de chá. Em seguida, foi atrás de Shiromiya.
Ryo costumava ir à sala de chá durante as tardes que passava em Tóquio. Lembrava-se do primeiro ano que Aiko assumiu a Casa Ai, e da forma como Shin e ele aproveitaram aquela ventura para deliciarem-se por uma semana inteira entre os prazeres culinários e sexuais do antro. Recordava-se bem de cada pedaço daquela sala, havia perdido a virgindade ali, com uma prostituta que deixou a casa pouco depois, por não se adequar às regras de Aiko.
Regras, aliás, que muito incomodavam o burguês, pois Mamoru o proibiu de dormir com suas mulheres durante o dia, e devia receber o tratamento de qualquer outro cliente. Sua única vantagem era poder visitar a casa à luz do sol, porém, sem o benefício do sexo fácil.
Sentou-se diante de uma pequena mesa de madeira e aguardou. Levou cerca de dez minutos para Aiko voltar com uma figura pequena e tristonha atrás de si. O garoto não se atrevia a erguer os olhos, parecendo envergonhado. Ryo quase riu diante daquilo. Quem diria que aquele que dançava despudoradamente pudesse se acanhar sem as roupas de gueixa?
— Ontem, enfim, a boca desinchou e ele voltou a falar — Aiko disse. — Mas, segundo o médico, as manchas roxas do seu rosto vão demorar a sair. Dançar é o seu ganha-pão, e você roubou isso dele, Ryo-san. Espero que esteja envergonhado.
Ryo conteve um riso diante do ridículo e se pôs de pé.
— Com certeza, tremendamente envergonhado.
Só então o rosto do menor se ergueu. Os olhos amendoados se focaram nele, e o comerciante estremeceu. Mesmo ali, com roupas masculinas, de cabelo curto, de manchas roxas e de olhar deprimido, ele ainda podia ver a mulher que amou durante toda a sua vida. Ficou vacilante, subitamente tomado de um poderoso arrependimento. Caso não soubesse que o jovem era homem, com certeza correria até ele e o abraçaria, implorando perdão.
— Como é seu nome? — perguntou.
O rapaz baixou a fronte, e Aiko respondeu.
— Kazue Shiromiya.
Ryo assentiu.
— Shiromiya, peço seu perdão pelo que aconteceu naquela noite. Não tenho palavras para descrever como me sinto. Você pode me desculpar?
O rapaz voltou a baixar a face e se aproximou ainda mais de Aiko. Mamoru percebeu sua inquietação e o cercou com os braços, transmitindo-lhe proteção. Ryo irritou-se imediatamente. Havia em si um misto de simpatia pela figura frágil e arroubo de desprezo. Ora, ele era um rico e importante comerciante e estava se desculpando com um prostituto qualquer. O tal Shiromiya devia sentir-se honrado!
Então, a face do garoto se ergueu. Os olhos voltaram a se fixar no jovem comerciante, e ele voltou a sentir aquele estranho formigamento que o tomava com intensidade. Em segundos, a boca abriu-se, sem regras, e sugeriu:
— Mamoru, por favor, me diga quanto ele ganha por noite. Virei todas as manhãs às nove horas tomar chá com o garoto e trarei o reembolso do que ele perdeu. Pode ser, Shiromiya-san?
Aiko ficou surpreso com a oferta, mas não teceu comentários. Seus olhos se focaram em Shiro, e percebeu que o outro ficou tentado. Dinheiro era exatamente o que eles precisavam e ninguém em juízo perfeito recusaria. Shiro então assentiu, ainda inseguro.
Ninguém ali sabia, mas naquele exato instante, dançarino e comerciante estavam interligando seus destinos de forma irreversível.
***
Os olhos de Ryo fixaram-se na figura miúda e acanhada diante de si. À luz do dia, percebeu que Kazue era realmente muito mais belo do que supunha, e a visão o extasiou. Como poderia se culpar se tudo na feição delicada lembrava uma mulher? O menor tinha os cabelos negros e brilhantes, a boca pequena, como um coração vermelho e apetitoso, os olhos castanhos num tom de mel, e a pele, extremamente pálida, quase tornando a maquiagem branca um acessório dispensável para a dança da noite. A única coisa que o desmerecia eram os machucados. Sentiu um leve peso na consciência e então sorriu para o outro.
— Kazue, não? Seu nome é muito bonito — elogiou, tentando buscar assunto.
Os olhos se ergueram para ele, mas a boca não abriu, permanecendo em silêncio. Embora a leve fumaça do chá trouxesse um odor agradável e convidativo à frente de ambos, diferente do convidado, Shiro não tirou as mãos dos joelhos para prová-lo.
— Diga-me, Kazue, você tem irmã? — perguntou, após bebericar o chá de sua xícara.
Havia em Ryo uma esperança forte na resposta. Talvez Shiromiya fosse apenas parecido com a mulher que amava, talvez fosse apenas uma triste coincidência e tudo fosse se resolver da melhor maneira possível.
Porém, decepcionou-se ao vê-lo negando com a face.
— Uma prima, talvez?
Outra vez, a cabeça do rapaz se moveu de um lado para o outro.
— Nenhuma mulher em sua família? Nada?
— A única mulher de minha família foi minha falecida mãe — falou pela primeira vez, a voz muito baixa.
Ryo precisou se conter para não sair chutando a mesa e tudo que estivesse sobre ela. O que faria, então? Talvez suas visões tivessem sido apenas uma besteira, algo que devesse desconsiderar. De que adiantava sonhar com a mulher que amava, se era não existia?
— Você é sozinho no mundo?
— Tenho um irmão, mas não sei se está vivo ou morto.
Ryo sentiu-se inflar, mas antes de tomar outra decisão da qual se arrependeria, levantou-se, tirou algumas notas do bolso, atirou-as sobre a mesa e foi embora, sem se despedir.
***
Shiro não esperava que Ryo fosse aparecer no dia seguinte. Quando o relógio marcou nove horas e o homem não surgiu no portão, o rapaz respirou aliviado, apesar de sentir um leve aborrecimento devido à falta do pagamento daquele dia. Porém, Ryo apareceu meia hora depois e, sem se desculpar pelo atraso, rumou para a sala de chá, como se estivesse vivendo um turbilhão de emoções por trás do eterno semblante pacífico.
— Como passou a noite? — Ryo lhe perguntou, solícito, assim que Shiro sentou-se à sua frente.
— Bem — foi a resposta curta.
O comerciante observou-o novamente com muita atenção. O inchaço estava sumindo, a as manchas roxas estavam diminuindo. A beleza que o havia fascinado na noite que o conheceu permanecia inalterada, como uma carga eterna a ser carregada pelo garoto.
Shiro serviu o chá e Ryo o bebericou.
— Quantos anos você tem?
O outro o olhou e Ryo maldissesse a ideia idiota de ir todas as manhãs beber chá com alguém que não tinha o menor assunto a ser discutido.
— Fiz quinze anos no último verão.
Era definitivamente um garoto, quase uma criança. Porém, se fosse uma mulher, já estaria casada e com alguma criança a tiracolo.
O silêncio voltou e Ryo percebeu que já havia tomado todo o chá.
— Não quer saber nada sobre mim? — indagou, tentando levantar algum tema entre eles.
— Não.
Riu baixinho diante da sinceridade e voltou a encarar o jovem.
— Tenho vinte e dois anos — contou, mesmo assim.
Nada, nenhum comentário.
— Eu tenho uma frota de pesqueiros. Vendo peixes para todo o país, e no momento estou muito contente, pois o exército também está me dando lucro. Estamos trabalhando dobrado em uma das minhas fábricas para enlatar muita sardinha... Aliás, você já comeu Niboshi [22] ?
Shiro estendeu a mão e segurou a xícara. Nenhum sinal de interesse na falação.
— Sabe, Kazue — prosseguiu, chamando sua atenção —, a guerra é boa para algumas pessoas. A guerra destrói vidas, mas também constrói impérios. Por exemplo, os homens que vendem armas estão muito contentes com toda essa disputa e mortes. No meu caso, vender comida em tempo de guerra é muito bom para os negócios. Se as coisas ficarem piores, já estarei protegido com minha riqueza. Sabia que é bom ter minha amizade?
Shiro bebeu o chá, os olhos ainda baixos.
— Ter minha amizade e minha aprovação pode ser a diferença entre a vida e a morte no futuro, Kazue — disse, num tom neutro. — Pense nisso.
Levantou-se, deixou o dinheiro no lugar de costume e foi embora novamente, sem saber que na verdade Shiromiya já estava morto dentro de si.
***
O terceiro dia de visita de Ryo foi como os demais. Ele chegou ao mesmo horário, rumou para a sala de chá e permaneceu em silêncio enquanto Shiromiya servia o líquido quente na sua xícara.
Enquanto bebia, repensou por que estava fazendo aquilo. Podia simplesmente pagar o que devia a Aiko, ir embora e, simplesmente, voltar no final do ano para usufruir novamente das mulheres e do ambiente agradável. Mas algo o impelia a permanecer ali, olhando o rosto machucado daquele garoto de olhar triste e atrevido, que mantinha o orgulho mesmo não tendo um único motivo para tal.
— Fale-me de você — Ryo exigiu, cansado do silêncio.
O olhar o mediu, e Ryo se arrepiou. Céus! Como era bonito, mesmo sendo irritante e petulante.
— Onde nasceu? — prosseguiu, diante da mudez.
— Não sei a cidade.
— Não sabe? Como não sabe? De que região é?
— Eu não lembro, era muito pequeno quando fomos embora.
— Fomos?
— Meu irmão e eu.
“Ah, é mesmo, o irmão!”
— Foram para onde?
Os olhos de Shiro se nublaram.
— Perambulamos por aí.
— Atrás de emprego?
Shiro olhou para o lado. Estava claramente incomodado com aquele interrogatório, mas Ryo ficou interessado pelo semblante angustiado e não quis parar.
— Por que foi embora da sua casa?
— Minha mãe morreu.
— E seu pai?
— Morreu também.
Shiro insistia em não encará-lo.
— Que trágico — desdenhou. — E como sobreviveram, seu irmão e você?
Shiro estremeceu. Ryo percebeu aquilo, e resolveu não insistir. Voltou a beber o chá. Pouco depois, largou as notas sobre a mesa e desapareceu.
***
— Sabe por que fui atrás de você naquela noite?
Shiro ergueu os olhos e observou o homem à sua frente. Já fazia duas semanas que Ryo aparecia religiosamente às nove horas da manhã para beber chá. Na última semana, ele havia ficado em silêncio, bebia o líquido, e depois ia embora. Cada vez que ele levava a mão ao bolso da calça e puxava um rolo de notas, Shiro suspirava aliviado. Porém, naquela manhã gelada, ele não se ergueu após beber.
— E então, sabe? — insistiu.
Shiro manteve a boca fechada. Aiko preferia não falar sobre a fatídica noite e Kazue o agradecia por isso. Todas as vezes que a mente se recordava daquela dor horrenda, sentia uma ânsia forte de chorar.
— Disse algo sobre uma mulher.
Ryo assentiu.
— E não tem curiosidade de saber sobre ela?
— Não.
Daquela vez, Ryo não segurou a gargalhada. Deitando a cabeça para trás, ele riu de forma sonora, alta.
— Pois eu vou contar mesmo assim — afirmou, voltando a encarar o rapaz. — Desde minha infância, eu sonho com uma mulher. Ela é linda e delicada, e em todos os meus sonhos, eu sei que ela me pertence. Sei que foi um presente de Kami-sama, pelo qual sempre fui muito grato, e passei a vida toda em sua busca.
Nada. Nenhuma reação por parte do ouvinte.
— O fato é que você é, quando está transvestido, a personificação dessa mulher. Por isso, fiquei louco quando descobri que era homem.
O olhar amendoado pareceu confuso, e então Ryo percebeu a dúvida no semblante.
Naquela final de manhã, quando Ryo foi embora, deixou para trás um Shiromiya confuso e surpreso, atípico do garoto que nada sentia.
***
Quando dezembro chegou, as manchas roxas e o inchaço desapareceram por completo. No rosto de Shiro, ficou apenas uma leve cicatriz perto do olho direito, facilmente coberta pela maquiagem. Junto com a neve que caiu na segunda quinzena, começaram os preparativos para a festa que Mamoru prometera aos seus clientes.
Apesar de Shiromiya já estar pronto para voltar ao palco, Ryo prosseguiu em suas visitas matutinas. Ambos não costumavam conversar muito, apenas monossílabas sobre o tempo, sobre a guerra ou sobre a infância.
Contudo, aparentemente, naquela manhã, o comerciante estava disposto ao diálogo.
— O que você faz para passar o tempo quando não está dançando ou me servindo de companhia?
Shiro remexeu-se sobre a almofada antes de responder.
— Ajudo nos afazeres. E depois Nana conta-me histórias.
Ryo não escondeu a surpresa.
— Histórias? O que aquela velha puta tem para narrar?
Shiro o fuzilou com o olhar. Sentindo o clima pesado, preferiu desmerecer.
— O que ela fala?
— Nana conta histórias de amor.
— De livros?
— Histórias que ela ouviu falar.
Ryo assentiu, de repente, sentindo uma ânsia de mostrar ao garoto o que realmente eram boas histórias.
***
Shiro entrou na sala de chá e observou o rosto moreno. O homem sorriu para ele, erguendo um volume encadernado de um livro bonito.
— Vou lhe contar uma boa história, Kazue — ele sorriu. — Apenas não diga a ninguém que eu estarei lendo para você. Shin não gosta de literatura internacional, especialmente aquelas que não fazem parte do Eixo. Sente-se e ouça-me.
Ouvir histórias era o ponto fraco de Shiro. No mundo imaginário, ele podia ser o herói que quisesse, esquecendo-se de toda a dor e sofrimento por que já passara. Assim sendo, o garoto não pestanejou em sentar-se diante do homem.
— O texto começa em 1801 — explicou, abrindo o livro. — “ Acabo de regressar da visita que fiz ao meu senhorio — o único vizinho que poderá perturbar o meu isolamento. Esta região é, sem dúvida, magnífica”.
Naquela manhã fria, Ryo leu o primeiro capítulo de “O Morro dos Ventos Uivantes” diante de um rapaz completamente absorvido. No final da narração, percebeu o olhar questionador, e preferiu esclarecer:
— Toda manhã, eu irei ler um capítulo para você.
— Um capítulo?
Parecia muito pouco para Shiro. Ele tinha ânsia de saber mais, ouvir mais, ser levado ao universo das letras mais vezes.
— O livro tem 34 capítulos, Kazue. Teremos, então, 34 dias de amizade. Está bem?
Pela primeira vez desde que o conheceu, Ryo viu Shiromiya sorrir em sua direção. Era a visão mais idílica e perfeita que já havia visto em toda a vida. Sentiu todo o corpo estremecer e o coração pulsar em uma frequência intensa. Antes que se visse completamente enlouquecido pela visão, ergueu-se, largou as notas e foi embora.
Capítulo 8
— Ryo ve m todas as manhãs? — Shin indagou, espantado.
— Religiosamente às nove horas. Bebe o chá, fica um pouco de tempo e depois vai embora.
Mamoru postou-se atrás de Sakamoto, erguendo o casaco, ajudando-o a vesti-lo. Shin havia aparecido na Casa Ai na noite anterior à festa, já próximo do horário de dormir. Aiko o recebeu de braços abertos, apertando-o fortemente antes de guiá-lo até o quarto. Conversaram quase até o amanhecer, mas o assunto das visitas do comerciante foi a pauta apenas quando Shin já se vestia.
— E você desconfia do motivo?
— Ele comentou com Shiromiya sobre sua semelhança com a mulher que ama, mas não creio que seja essa a razão.
— E crê ser o quê?
Mamoru girou Shin, trazendo-o para sua frente. Agindo da forma dedicada de costume, começou a abotoar seu casaco.
— Acredito que Ryo se culpe pela forma como tratou Shiro.
Shin riu.
— E por que diabos ele se culparia por uns tapas em um prostituto? Poupe-me, Mamoru. Como se o moleque nunca tivesse apanhado na vida!
Mamoru ficou profundamente magoado pelas palavras impensadas e não escondeu o sentimento. Empurrando Shin, deu as costas, pronto a sair do quarto. Porém não chegou a realmente ir, pois foi segurado na cintura por Sakamoto, que o trouxe para si e o abraçou por trás.
— O que faria se fosse eu no lugar de Shiro? — questionou, encurralando o oficial. — Também acharia normal que alguém batesse num simples cafetão? Um cortesão dono de um bordel? Sabia que muitas pessoas esperam que eu morra em alguma briga na Casa Ai? Ou que eu tenha alguma doença sexual e que apodreça sozinho entre essas paredes?
Shin voltou a rir, e Aiko tentou se desvencilhar. Porém, antes de conseguir avançar para a porta, os lábios do homem o aquietaram. Sentiu o toque macio a deslizar pelo seu pescoço, arrepiando-o instantaneamente e, por simples instinto, deu um passo para trás, grudando o corpo delgado ao outro.
— Se alguém tocar um dedo em você, Mamoru — ouviu o sussurro sensual —, eu destruo a pessoa com minhas próprias mãos. Não importa quem seja, ninguém nunca vai feri-lo, eu prometo.
— Não devia fazer promessas que não vai cumprir — objetou.
Sentiu a mão de Shin apertar fortemente seu braço, fazendo seu corpo girar. Em segundos, ambos se encaravam. Percebeu no amigo uma inquietação tremenda e arrependeu-se pela frase.
— O que quer dizer? — Shin perguntou. — Duvida da minha capacidade?
— Não duvido de nada — afirmou. — Apenas acho que, um dia, você mesmo pode tentar me aniquilar.
— Por quê?
Aiko arregalou os olhos, percebendo que estava cada vez mais exposto a uma armadilha que poderia destruí-lo.
— Por nada, Shin — desconversou. — Esqueça.
— Não esquecerei! O que quer dizer?
— Você tem a aptidão de me afligir. Apenas isso.
O olhar do maior obscureceu alguns instantes. Ele parecia estudar Aiko, o que o inquietou ainda mais. No entanto, para seu alívio, em seguida, foi solto.
— Vou até o Palácio Imperial, contudo volto antes da festa da noite — comunicou. — Onde está Minikui que ainda não o vi? — desconversou, falando do gato.
— Ele gosta de ficar na cozinha nesse horário — Mamoru explicou.
— Leve-o até o salão quando eu chegar — pediu. — Quero ficar com ele essa noite.
Era um pedido incomum, mas Aiko estava acostumado. Baixando a fronte, ele assentiu.
***
O som das risadas preenchia todo o ambiente. Aiko sorriu com Minikui no colo, enquanto caminhava entre os clientes. A Casa Ai esteve silenciosa por mais de um mês, e aquilo muito angustiou o cortesão. Por sorte, conseguiu manter o padrão de vida das mulheres — e de si mesmo — sem grandes percalços. A ajuda financeira de Ryo aliviou as tensões, mesmo que ele ainda não conseguisse encará-lo com a antiga fraternidade.
Ao longe, ouviu a risada de Shin. Sakamoto, não obstante, estava de bom humor desde que voltara de sua viagem. Apesar de o Japão ter atacado Pearl Harbor no começo do mês de dezembro e, em seguida, os americanos terem declarado guerra aos japoneses, tudo ainda parecia bastante cômodo ao amigo.
Era como se o conflito realmente não importasse. Bem, verdade que a vida não havia mudado muito desde o início da guerra, mas Aiko ainda se ressentia da ausência frequente de do amigo.
Voltou-se para Shin e o viu rindo para Ryo. Era um reencontro depois de meses de separação, e Mamoru achou, por bem, deixá-los um pouco sozinhos para conversarem sobre seus assuntos importantes. Ao lado deles, outro oficial bebia saquê com um riso debochado nos lábios. Aiko já o havia visto antes, ele era um frequentador assíduo da Casa Ai antes da guerra. Chamava-se Hiroshi, devia ter uns quarenta anos e havia sido promovido a capitão do exército há pouco tempo.
Pouco depois, percebeu Shin a encará-lo. Sakamoto fez um aceno e ele se aproximou. Sentando-se ao lado dos homens, entregou o gato ao seu dono.
— Aiko está cuidando bem de você, meu amor? — Shin indagou ao felino, acariciando-o com a boca. — Quem é o amorzinho do papai?
Mamoru riu baixinho, percebendo Minikui erguer o rabo esfregando-se inteiro no outro homem. Depois, o gato sentou entre as pernas de Shin, e ronronou diante dos carinhos que recebeu. A mente do cortesão então se fixou no pensamento de como Shin podia ser tão amoroso com um animal, mas igualmente frio com pessoas.
— Não sabia que você gostava de bichos — Hiroshi comentou, sorrindo.
— Shin adora animais — Ryo afirmou, comentando. — Ele só não suporta pessoas.
— Pessoas são maçantes — Shin concordou com o amigo.
— Nem todas — Aiko interrompeu. — Adoro animais, mas gosto também da companhia humana.
Shin fez um barulho com a boca que mais pareceu um irônico gracejo.
— Mês que vem é seu aniversário — Mamoru lembrou, encarando o melhor amigo. — Estará em Tóquio? Posso organizar outra festa...
— Infelizmente, passarei meu aniversário na ilha Okunoshima [23] .
— Ilha Okunoshima? — Mamoru ergueu as sobrancelhas. — O que fará lá?
— Segredo, benzinho — Shin sorriu, levando à boca as orelhas de Aiko, arrepiando-o. — Apenas uma visita de rotina a uma fábrica. Nada importante. — Afastou-se novamente. — Porém, boas novas: meu amado tio me presenteará com uma viagem de aniversário. Irei conhecer um ídolo, uma pessoa que muito amo e admiro.
Todos se encararam, surpresos.
— Vai conhecer o Führer ? — a indagação veio de Ryo.
— Führer ? — Mamoru questionou. — Fala do líder alemão?
— Sim, Adolf Hitler — Ryo assentiu. — Shin fala dele em todas as cartas que me envia.
— Porque ele é realmente uma das pessoas mais admiráveis que já nasceu — o outro afirmou. — Guardem minhas palavras, caros compatriotas, daqui a alguns anos, o mundo todo louvará o dia que Hitler veio ao mundo. Depois de nosso amado Imperador, Adolf Hitler é o maior líder que o mundo já conheceu. Estou fascinado por ele desde que li Mein Kampf [24] .
— E o que há de tão especial desse livro?
— Ora, é a obra máxima de um homem — respondeu, num elogio. — É como se fosse possível ouvi-lo falar sobre sua adolescência, sua juventude e seus sonhos. Li uma versão traduzida, conseguida por um primo distante. Dizem que algumas mensagens se perderam na tradução, mas mesmo assim, a obra ainda é única, quase divina.
Aiko sorriu diante da idolatria.
— Bom, gostaria de ler um dia.
— Oh, querido — Shin bateu de leve na sua coxa. — Você não entenderia — desmereceu. — Eu contarei de uma forma simples para você assim que possível.
Ryo e Mamoru trocaram um olhar crítico diante das palavras, mas nada falaram. Até porque, segundos após as palavras ferinas escaparem dos lábios de Shin, Hiroshi murmurou com um riso frouxo na boca:
— Deve se preocupar, Aiko-san. Os nazistas o matariam assim que o vissem.
Por alguns instantes, o choque das palavras apenas fizeram com que Aiko ficasse rígido, pasmo. Em seguida, no entanto, o coração começou a bater tão apressadamente que um mal-estar súbito o tomou. Sentindo que poderia desmaiar, ele segurou-se na mesa de madeira, tentando ter algum apoio antes que se rosto transparecesse o desespero.
— Do que está falando?
A pergunta bruta partiu de Shin. Havia em Sakamoto uma raiva incontrolável pelas palavras mordazes. Hiroshi percebeu imediatamente e se explicou, ainda sorrindo.
— Os nazistas odeiam os maricas. Não sabiam? Eles mandaram matar até mesmo Ernst Röhm, e isso que o oficial foi um dos responsáveis pelo Partido Nacional Socialista chegar ao poder.
As palavras causaram um alívio tão grande em Aiko que ele quase suspirou. Porém não chegou realmente ao seu intento, pois Sakamoto rugiu como um leão ao seu lado.
— Maricas? Como se atreve a falar assim com Aiko?
Hiroshi enrubesceu.
— Peço desculpas, não foi minha intenção ofender.
Mamoru sorriu, aceitando. Não que ser gay fosse algo ofensivo, afinal de contas, desde sempre na história conhecida, homens se relacionavam com homens. Mesmo no período Edo, samurais e daimyos [25] viviam histórias de amor, dando às mulheres apenas o papel de mãe e esposa, nunca de amante.
Porém, desde a chegada dos ingleses no ano de 1867, a homossexualidade deixou de ser encarada como algo natural entre os homens, uma faceta a mais da amizade. Mesmo naquele momento, sentado ao lado do homem que amava, e recebendo de Shin toda a proteção, Aiko não se sentia à vontade com o termo empregado a ele.
— Quando voltará da Alemanha? — Ryo intrometeu-se, tentando abrandar o clima carregado.
— Ainda não sei. Mas acredito que até junho já terei regressado. Talvez a guerra já tenha terminado até lá.
— Mas os Estados Unidos aderiram há poucos dias...
— Ora, não sabe que os americanos são um povo fraco, sem pulso ou coragem? — Shin ridicularizou. — Dizem que não honram seus pais, nem cumprem a palavra dada. É um povo digno de pena.
Ryo nada disse, mas pelo movimento na face pareceu concordar com Shin. No entanto, logo em seguida, pediu para Aiko acompanhá-lo para o jardim.
— Preciso de ar — argumentou ao amigo.
Envolvido em uma discussão que ia do poderio bélico americano à suposta divindade de Hitler, Shin Sakamoto apenas moveu as mãos para o alto, concordando com a retirada. Assim, Ryo e Aiko logo estavam no jardim, respirando o ar frio da noite, observando as flores iluminadas pela luz artificial.
— Você ainda não me olha nos olhos — Ryo sussurrou, chamando a atenção do amigo.
— Ainda não o perdoei.
Ryo mordeu os lábios, colocando as mãos nos bolsos do casaco de veludo escuro.
— É justo. Disse coisas que não devia e me arrependo. Mas preciso saber: o que é necessário fazer para que me perdoe, Aiko?
O outro deu os ombros.
— Agora que não virá mais todos os dias, talvez esse afastamento seja benéfico a nós. Espero que esse sentimento ruim passe.
Percebeu Ryo estreitando o olhar, como se as palavras não fossem compreendidas em sua totalidade.
— Como assim não virei mais?
— Shiro já está melhor e nessa noite voltará a dançar. Não existe mais a necessidade de que venha.
Shiro... Preferia chamá-lo de Kazue, mas gostou da forma com que Aiko falava do outro.
— Continuarei a vir, e quero que não o deixe dançar.
Houve um silêncio incômodo entre eles. Mamoru digeriu as palavras com cuidado, temeroso de ter entendido errado e acabar por causar alguma confusão. No entanto, a intenção de Ryo era bastante clara e franca.
— Você deve estar brincando.
— Não estou. Pago o dobro para que ele não dance.
— E qual seria o motivo? Você, que sempre teve nojo de relacionamento entre homens, agora está encantado com um garoto órfão, sem condição financeira ou moral?
Ryo sentiu-se inflar pelas palavras.
— É claro que não!
— Então o que quer?
— Quero...
O pensamento buscou qualquer justificativa, mas só então se deu conta de que não tinha nenhuma.
— Acho degradante um homem dançar como uma mulher — disse por fim.
Aiko não se deu por satisfeito.
— Nossa cultura é historicamente representada por Taikomochis , então, por favor, use outro argumento que pelo menos eu possa tolerar.
— Para que argumentar? — Ryo insistiu. — Meu dinheiro é meu argumento. Desde quando preciso dar satisfação?
— Não vou tirar a estrela da Casa Ai dos palcos simplesmente porque você quer — Aiko foi firme. — Respeite isso, e não teremos problemas.
Mamoru preparou-se para dar as costas, quando foi seguro pelo braço.
— Posso continuar a vir? — Ryo indagou, a voz suplicante.
— Para quê?
— Droga, Aiko! — ralhou. — Pode simplesmente dizer sim sem esse interrogatório?
— Posso, mas a curiosidade inibe minha discrição.
Ryo olhou para baixo. As botas de couro pretas contrastavam com as pedras brancas do jardim Ai. Por alguns segundos, a constatação manteve sua atenção, até que ele ergueu novamente a face, e confessou:
— Incomoda-me ver a imagem da minha mulher dançando para outros homens.
Aiko ficou espantado.
— Tem consciência de que Shiro é um homem e não é seu?
— Sim, é claro. Apenas... — emudeceu por alguns segundos. — Não poderia me compreender, Aiko. Não sabe o que eu sinto ao vê-lo como mulher...
Mamoru deu os ombros. Ainda não estava disposto a ter misericórdia de Ryo. Não depois do que viu, não depois do que ele fez.
— Shiro continuará dançando todas as noites, recebendo seu salário para isso — decretou. — Se não gosta da situação, simplesmente não venha à Casa Ai. No mais, Shiromiya decidirá se quer continuar a receber suas visitas.
Ryo assentiu. Quando Aiko fez menção de se retirar, interpôs-se.
— Tenho mais uma coisa a dizer.
— Sim?
— Quero que construa um abrigo antibomba.
Por alguns segundos, o silêncio entre eles foi tão intenso que até o som de uma coruja ao longe pareceu alto. Em seguida, porém, num tom mais ameno e baixo, Mamoru retrucou.
— Shin poderia encarar isso como uma traição, uma demonstração de descrédito ao exército.
— Mamoru, serei franco e direto. Eu já construí meu abrigo em Hokkaido. Tenho um de menor escala em minha propriedade de Tóquio. Quero que construa um na Casa Ai. Faça um grande, de preferência com mais de dois metros de profundidade. Se não tem recursos, eu lhe dou o dinheiro.
— Não me ouviu? — Aiko perseverou. — Shin-chan...
— Aproveite a viagem dele para a Alemanha. Contrate pessoas de longe, gente que não falaria nada. Feche a Casa Ai por mais uma ou duas semanas, apenas o tempo necessário para a construção. Sakamoto não precisa saber.
Aiko permaneceu indeciso.
— Você acha que perderemos a guerra? — indagou, de repente.
— Sim.
— Céus, Ryo-san!
— Jamais diria isso em voz alta, Aiko. Apenas para você estou dizendo por que somos irmãos de alma, amigos de longa data. Confiaria minha vida a você. Essa guerra levará anos, e a chance de sermos vencidos é enorme. Os americanos possuem muito armamento e ótimos estrategistas. Nós, japoneses, estamos cegos na nossa soberba.
Houve um misto de sentimentos tão intensos em Mamoru diante das palavras: o medo dos bombardeios, a preocupação por Shin, e o alívio da derrota. Só Kami-sama sabia o quanto ele torcia pelos aliados.
— Farei o abrigo, Ryo-san.
***
Mamoru e Ryo voltaram para o salão pouco antes das luzes se apagarem. Enquanto Ryo sentava-se ao lado de Shin, Mamoru ficou ao lado do palco. Todos os rostos voltaram para o palco imediatamente e, em segundos, Shiro surgiu diante deles, pronto para dançar sedutoramente.
Ryo percebeu que ele estava sorrindo. Era como se estivesse com saudades das apresentações, como se ansiasse para se expor, como se o ritmo musical entrasse em sua alma e dominasse o seu coração.
Shiromiya mudou um pouco a coreografia com os leques naquela noite. Ao invés de erguê-los e balançá-los no ar, o rapaz os deslizou sobre o corpo, fazendo com que sua plateia suspirasse audivelmente.
Pouco depois, ele fez seu último passo e se curvou, a fim de receber os aplausos. As luzes voltaram a se apagar e quando o local iluminou novamente, o palco estava vazio. Havia um misto de mística e paixão no ar, e a maioria dos homens parecia absorvido. Ryo era um deles. Por mais que lutasse com afinco contra a sensação de posse e loucura que o tomava, sentia cada nervo do corpo formigar perante a visão.
— Eu já comi — Shin sussurrou no seu ouvido, debochado. — Não é grande coisa. A única coisa que chama a atenção é realmente a aparência.
Por alguns segundos, Ryo tentou entender o que ele falava. Encarou Shin e o viu com um riso no canto dos lábios, o olhar irônico, cruel. Quando a percepção o tomou, o corpo agiu sem qualquer ordem da mente. Antes mesmo que pudesse se conter, desferiu um soco forte no melhor amigo, fazendo com que ele voasse em direção ao chão.
Shin Sakamoto não esperava por aquilo, então ficou entre a indecisão e a perplexidade. Ao lado dele, Minikui parecia ainda mais espantado, mas abandonou o tutor assim que percebeu sua desvantagem.
— Por que diabos fez isso? — questionou, a mão no nariz.
Ryo não conseguiu responder. Visualizou, em sua mente, Shin em cima de Shiro, afagando-o, beijando-o, tomando-o de uma forma intensa. Enlouqueceu e atirou-se sobre ele, pronto para mais. Porém, em segundos, sentiu duas mãos fortes o apertando.
— Os dois: rua! — exclamou Mamoru, indicando aos seguranças que os expulsassem da Casa Ai. Em seguida, o cortesão ergueu o gato do chão, mantendo-o seguro nos braços.
— Por quê? — Shin gritou. — Eu não fiz nada!
—Estou farto dos dois — Aiko foi sincero. — Conhecem as regras há anos, e mesmo assim, não a respeitam! — girou em direção aos seguranças. — Na rua, agora!
— Mas eu não fiz nada! — Shin perseverou.
No entanto, nada do que disse mudou a opinião do outro.
***
— Gomen [26] ... — Ryo murmurou, enquanto levava a mão ao rosto de Shin, para verificar a gravidade do machucado.
O outro o afastou com um safanão.
— Você quase quebrou meu nariz! — reclamou. — Por que fez isso?
Ambos estavam do lado de fora da Casa Ai. Ryo voltou o corpo para o enorme muro que o separava de Shiro e, ignorando o amigo, começou a procurar por elevações.
— Me ajuda aqui — pediu a Shin, que o encarava descrente.
— O que você quer?
Ryo uniu as duas mãos, mostrando ao amigo que queria que ele fizesse um suporte.
— Por que vai pular o muro?
Era uma pergunta que até mesmo Ryo evitava fazer a si mesmo.
Vendo-o em silêncio, Shin enfim uniu as mãos. Colocando um dos pés sobre a escada humana improvisada, Ryo forçou-se para cima. Com alguma dificuldade, segurou na parte superior do muro, pondo as pernas entre o concreto. Dois segundos depois, dava um forte impulso.
O som vindo de dentro fez Shin gargalhar. Com certeza Ryo caíra como um boneco de trapo no gramado do jardim Ai.
— Você está bem? — perguntou assim que conseguiu acalmar o riso.
— Acho que não quebrei nada, mas meu braço está doendo — o outro contou.
***
Sentia-se um idiota esgueirando-se por entre as árvores do jardim. Ao longe, viu os outros homens a caminhar com as mulheres, bebendo tranquilamente. A imagem piorou sua percepção de idiotice, imaginando que, em qualquer outra situação, estaria no salão, bebendo e se divertindo.
Hiroshi apareceu no corredor ao lado de Rika. Ele então soube que o oficial havia contratado os serviços da bela mulher, e mais uma vez, recriminou a si mesmo.
Quando o casal entrou no quarto, intuiu que o caminho estava livre para si. Vagarosamente, caminhou pelo corredor, avançando até a porta de Shiro. Assim que chegou até ela, lembrou-se da última vez que esteve ali e da besteira que fizera.
— Como você entrou aqui?
A voz de Mamoru o fez saltar. Voltou-se e encontrou-se com o cortesão que o afrontava com olhos frios.
— Eu não o coloquei na rua?
— Posso falar com ele? Dois minutos?
— Eu não consigo entender qual seu propósito, Ryo-san, mas juro que estou a cada dia mais irritado perante ele.
Ryo se preparou para defender-se, mas no mesmo instante a porta se abriu. Shiro surgiu, já completamente livre de todo o aparato da fantasia e da maquiagem. Voltava a ser o simples, porém belo, garoto.
Assim que os olhos amendoados focaram-se no comerciante, Shiromiya correu para Aiko, bastante nervoso. Pasmo com a reação, Ryo enrubesceu de culpa e vergonha. Já fazia um bom tempo que eles se encontravam, e Shiro ainda o temia à luz da noite?
— Quero falar com você — disse, no entanto.
— Por quê? — Mamoru o pressionou. — Se não quer falar na minha frente, pode ir embora. Shiro não atende clientes em particular!
Ryo, então, mordeu os lábios. Respirou fundo e se aproximou.
— Shiro — começou, chamando-o pela primeira vez daquela forma, esperando que o gesto demonstrasse amizade. — Mamoru me disse que, como você voltou a se apresentar, não existe mais a necessidade de minhas visitas matinais — esclareceu. — Todavia, estou me colocando à disposição para prosseguir com elas.
— Por quê? — Aiko persistiu.
— Por favor, posso vir amanhã de manhã para vê-lo?
— Não — Mamoru respondeu por ele.
Ryo sentiu um sentimento potente e raivoso formando-se no seu âmago. Segurou a ânsia de avançar contra Aiko e tirar Shiro dele. O que ele achava que era? Seu dono? Como aquele maldito se atrevia a se colocar contra sua nova... amizade?
— A senhora Catherine casou-se com o Sr. Linton e foi morar na Granja dos Tordos... E o Sr. Heathcliff voltou ao Morro... — Shiro contou baixo. — Não posso viver sem saber como será o reencontro deles e o que farão com seu amor tão renegado.
Aiko encarou Shiro, as sobrancelhas curvadas.
— Do que está falando?
— De O Morro dos Ventos Uivantes — Ryo contou. — Estou lendo para ele.
Mamoru encarou seriamente o amigo, tentando buscar nele qualquer traço de mentira. Nada. Kazue estava sendo franco sobre as manhãs compartilhadas com Ryo.
— Tudo bem, Shiro — O cortesão concordou. — Você poderá permanecer no seu mundo de faz-de-conta.
Shiromiya sorriu para o amigo, agradecido. Em seguida, voltou para o quarto, fechando a porta. Pelo barulho feito, Ryo tinha certeza que ele estava trancando o local e o protegendo com cadeiras. Recriminou-se mentalmente mais uma vez.
— Hora de ir embora — Mamoru o puxou pela mão. — Pode vir de manhã, mas não será bem vindo à noite.
— Por quanto tempo?
— Até minha raiva passar.
Chegaram ao portão. Aiko levou a mão ao ferrolho, mas antes se voltou ao amigo.
— É a última vez que vou perguntar — Aiko chamou sua atenção. — Por quê?
— Se eu soubesse a resposta, teria dito a você na primeira vez que perguntou.
Diante das palavras enigmáticas, Mamoru abriu o portão. Do outro lado, Shin os aguardava fungando.
— Eu não fiz nada... — ele reclamou.
Aiko gargalhou, trazendo o homem para os braços. No fundo, Shin sempre seria uma criança grande.
— Vem cá — beijou-o na bochecha.
— Você me expulsou — o outro demonstrava a mágoa.
— Sim, me perdoe.
— Nunca mais faça isso!
Esquecidos de Ryo, eles deram as costas ao amigo e voltaram para a Casa Ai. O comerciante ainda manteve sobre eles seu olhar durante algum tempo, mas, em seguida, deu as costas e foi embora.
Capítulo 9
Janeiro de 1942.
— “Demorei-me a contemplá-las, sob aquele céu clemente, a ver as borboletas esvoaçando por entre a urze e as campânulas, a ouvir a brisa suave soprando através da relva e a pensar como poderia alguém imaginar, sequer, sonos agitados sob aquela terra”.
Ryo ergueu a fac e e encarou Shiromiya. Viu o rapaz com os olhos repletos de lágrimas, parecendo em transe sob o efeito das palavras de Emily Brontë.
— Acabou, Shiro — disse, num tom mórbido.
Kazue assentiu, baixando a face.
— É uma história muito triste, sem dúvidas.
— Bem, não posso negar que o livro é fascinante — Ryo concordou. — Heathcliff é um dos melhores personagens criados pela mente humana.
— Eu lamento que a Senhora Catherine não tenha se apaixonado pelo doce Edgar.
As palavras surpreenderam Ryo.
— Deve ser a única pessoa que conhece a obra a pensar assim.
— Senhor Edgar era um bom homem, afetuoso e gentil. Ele a teria feito feliz, se Catherine tivesse se disposto a isso. Mas, de alguma forma, ela se recusou a esquecer Heathcliff.
— Ela o amava.
— Concordo que o fato de nunca ter amado me desqualifica para julgá-la, mas acho tolice recusar o amor de um homem como o senhor Edgar.
— Por que ele lembra Aiko? — Ryo reagiu, nervoso.
Levou alguns segundos para Ryo perceber que a constatação o irritava demasiadamente. Ele estava ao ponto de erguer o livro e atirá-lo no chão, exigindo explicações.
— É verdade, Edgar lembra Aiko — Shiromiya concordou, parecendo não perceber o estado do outro.
Ryo mordeu o lábio inferior. Ordenou a si mesmo a calma, mas tudo ali o enfurecia. Tanto Shiro quanto os seus próprios sentimentos que insistiam em confundi-lo.
— Mas o que realmente me pareceu é que a vingança foi mais importante para Heathcliff que o amor de Catherine.
— Heathcliff sofreu muito. Qualquer pessoa que tenha sofrido como ele desejaria vingança.
Shiro baixou a face, recusando-se a retrucar. Mas, em si, veio a certeza de que Heathcliff não sofrera o tanto que ele mesmo sofreu, e não mantinha em si qualquer traço de ódio na sua frágil personalidade. Mesmo que um dia reencontrasse cada pessoa que o machucara, não faria nada para prejudicá-los.
— Se um dia eu amasse alguém e fosse correspondido, seria essa minha prioridade — disse, simples.
Algo se manifestou no âmago de Ryo, enervando ainda mais o comerciante que se ergueu, pronto para ir. Retirou as notas de costume dos bolsos e afastou-se em direção à porta.
— Senhor Ryo?
O chamado o fez voltar-se.
— Sim?
— Acredito que é a última vez que nos veremos durante as manhãs, não é? — Shiro se curvou. — Sou muito grato por ter me contado essa história.
Ryo abriu a boca, pasmo. Sim, com o término do livro, terminavam também suas justificativas para as visitas, tanto a Aiko quanto a si mesmo. A constatação fê-lo perceber que não queria deixar de vir. Aquele tempo passado com o outro era extremamente agradável. Mesmo que não conversassem muito, a simples presença de Kazue parecia um alento.
— Adeus, então — tentou parecer frio.
Mas só Kami-sama sabia o vazio que sentiu naquele momento.
***
Maio de 1942.
Shin esperava estar em Berlim à noite. Olhou para o céu de dia claro e esfregou os braços espantando o frio. Apesar de protegido por um grosso casaco de veludo, o dia estava bastante gelado. Às vésperas de seu encontro com Hitler, ele havia desembargado em Sobibor, na Polônia, ao lado dos oficiais Hiroshi e Takako. Estavam, naquele momento, parados à entrada do campo de trabalho nazista, aguardando o membro do exército japonês que estava vivendo na Alemanha desde janeiro e que lhes serviria de tradutor para as eventuais conversas com os germânicos.
Sobibor era um local muito bonito, um campo grande, mas não excessivamente. Havia uma pequena estação de trem onde, imaginava Shin, eram trazidos os mantimentos e também as pessoas que deveriam trabalhar para o progresso dos alemães. Sorriu ao ver um gato, ao longe, correndo pela floresta que cercava o local.
— Você gosta muito de gatos, não é? — Takako comentou, seguindo o olhar do membro do Império.
— Amo gatos. Um dia terei muitos. Mas, no momento, só posso ter Minikui.
— Assemelha-se em algumas coisas com Adolf Hitler — o outro observou. — Hitler também ama animais. Você sabia que ele faz o que pode para defendê-los?
— Não sabia — Shin se interessou. — Alguns membros da família que conheceram o Führer contaram-me que ele é uma pessoa encantadora. Atencioso com os idosos e as crianças, agradável, artista nato e amante da beleza. Mas ninguém comentou que ele gostava de animais.
— Mikako-san — Hiroshi comentou, citando outro oficial que Shin conhecia superficialmente — disse que a boca do Führer fede.
O que diabos aquele comentário tinha a ver com a conversa que estavam tendo?
— Meça suas palavras para falar desse grande homem — Shin cuspiu, irritado.
— Me desculpe — Hiroshi se curvou.
— Pense antes de abrir a boca! — balbuciou.
Percebendo a irritação do membro da família imperial, Takako desconversou.
— Voltando ao assunto, Hitler tem cachorros, e dizem que abomina a caça. Sequer come carne.
— Mais um motivo para admirarmos esse homem.
— Mas — Hiroshi não aguentou manter a boca fechada —, soube que essa semana ele mandou sacrificar todos os animais dos judeus.
— Como assim?
— O mais recente decreto dos nazistas diz que os judeus e quem mora com eles estão proibidos de manter animais. Os bichos também não podem ser doados a terceiros. Então, todos serão sacrificados coletivamente.
Shin ficou chocado.
— Isso é verdade? — ele voltou-se para Takako.
— Pelo que sei, sim. Mas o que é a morte dos animais perante tanta morte de homens, mulheres e crianças nessa guerra maldita?
— Ora — Shin resmungou. — Humanos sempre podem se defender. Os animais não!
Parecia imoral, mas Takako jamais contrariaria o protegido do Imperador. Shin, aliás, não havia ido ao fronte ainda, não sabia o quanto a guerra era terrível. Dentro das festas oficiais, onde os cabeças daquele massacre banqueteavam sem pudor, ele estava protegido de qualquer trauma. Mesmo a mulher coreana de meses atrás já havia sido esquecida, vítima apagada da maldade.
O som de passos interrompeu a conversa. Shin girou para trás. Aproximavam-se dois membros da SS [27] e um nipônico que, pelo uniforme, era um oficial do exército imperial. Os olhos de Sakamoto arregalaram quando o outro se achegou o suficiente para ser visto.
Era jovem, vinte e um ou vinte e dois anos. Talvez um pouco menos. Mesmo assim, ostentava um medalhão de metal próximo ao peito, indicando que já tinha algum tempo de guerra. Nas lapelas do uniforme novo, dois distintivos vermelhos em forma de retângulo horizontal simbolizava o posto de Sargento Major. Mas o que realmente instigou Shin foi sua impressionante beleza.
Havia naquele rapaz um ar de realeza e mistério. Era tão bonito que os olhos chegavam a doer. Com certeza, em outras épocas, seria disputado à espada por samurais. Naquele momento, todavia, era dono de si mesmo e parecia fazer questão de demonstrar isso pela forma como arrebitava o nariz reto.
— Sargento Saito — apresentou-se, curvando-se a Shin. — Deve ser o sobrinho de nosso amado Imperador, Sakamoto-san? — indagou.
— O Imperador é primo distante de minha mãe, mas é verdade que o chamo de tio — Shin explicou, um sorriso se formando no canto da boca. — Você será meu intérprete? Como sabe alemão?
— Sou da província de Okayama [28] , e meus pais plantam arroz. Há alguns anos um padre alemão esteve lá e me ensinou o idioma.
— Okayama? Então você é descendente de Miyamoto Musashi [29] ?
Era claro que Shin estava tentando elogiá-lo ao compará-lo com uma lenda. Mesmo assim, Saito pareceu não entender e apenas deu os ombros, ainda sorrindo. Shin então passeou os olhos pelo corpo delgado e o imaginou sem aquele uniforme feio. Com certeza, um homem para fazer qualquer outro perder a cabeça.
— Há quanto tempo está na Alemanha? — Shin prosseguiu.
— Vim transferido em janeiro.
— Onde estava antes?
— Na China.
Sakamoto aquiesceu. Depois se voltou para os membros da SS que foram educados o bastante para permitir aos japoneses a devida apresentação.
— Diga-lhes que me sinto orgulhoso em sermos companheiros de batalha nessa busca por um mundo melhor — Shin murmurou.
Saito voltou-se para os alemães e disse algumas palavras. Shin manteve o sorriso no rosto, fascinado pelo que via.
Os homens estenderam a mão a Sakamoto que, mesmo contra seu costume, apertou-as firmemente. Em seguida houve mais palavras, mas Sakamoto foi incapaz de entender.
— Eles dizem que chegou em boa hora — Saito explicou.
— É mesmo? Por quê?
A resposta não foi dada. Antes mesmo de o sargento abrir a boca, o som forte de apito chamou a atenção de Shin, que olhou para os trilhos do trem.
— Você vai entender — Saito disse, enigmático.
Os quatro japoneses, então, silenciosos, colocaram-se de lado, observando a movimentação que ocorria. Alguns membros da polícia alemã, vestindo preto, correram em direção aos trilhos. Todos eles impunham armas grandes, ameaçadoras e, em ordem, eles se postaram ao lado dos trilhos a aguardar quem chegava.
O trem surgiu pouco depois. Escuro e sujo, ele foi parando vagarosamente entre os trilhos, num som sinistro que lembrava um grito agonizante. Nas minúsculas janelas, mãos estendidas pareciam buscar amparo, ajuda. Havia lamúria e choro, dor e sofrimento. Shin ficou chocado.
— Quem são eles? — indagou a Sakamoto.
— Judeus — Saito respondeu, passivo. — Também há homossexuais, talvez alguns de pele escura, comunistas ou ciganos. Mas a grande maioria, sem dúvida, é de judeus.
Ao som de um grito forte de um membro do regimento, as portas se abriram. Aos berros, homens, mulheres e crianças eram ordenados a deixar os vagões. Alguns tropeçavam no chão e eram pisoteados. As crianças choravam, mulheres tentavam ajudar os mais velhos, e alguns homens pareciam delirantes. O terror era estampado nos olhos de todos. Empurrados para frente da plataforma, logo os oficiais os separaram em grupos.
Do lado direito de Shin, ficaram as mulheres e as crianças pequenas. Ao lado esquerdo, os homens. Afastado deles, estavam os idosos.
— O que eles vão fazer?
Shin começou a se preocupar. Não estava preparado para aquilo. Bem da verdade, sabia apenas superficialmente sobre os campos de trabalho, onde os judeus eram separados do restante da sociedade.
O oficial nazista, então, se aproximou do japonês. Começou a falar, e Sakamoto encarou Saito.
— Ele está dizendo que os idosos, as mulheres mais frágeis e as crianças vão para o banho e depois irão descansar.
Era definitivamente uma cortesia e Sakamoto sorriu aliviado. Na verdade, precisou conter o ímpeto do riso diante de seu temor. Ora, e as pessoas ainda sussurravam sobre os nazistas! Deviam aprender a civilidade com aquele grandioso exemplo.
Subitamente, um grito de uma mulher chamou sua atenção. Era uma mãe que viu sua filha de mais ou menos quatro anos escapar de suas mãos e correr em direção aos homens. Sakamoto sorriu diante da pequena que tinha olhos encantadoramente escuros, parecidos com os de Mamoru.
A menina disse algo e começou a rir, apontando para Shin.
— Ela disse que você tem olhos rasgados — Saito murmurou, sério.
Shin jogou a cabeça para trás e gargalhou.
— Volte para sua mãe, fedelha — amenizou as palavras com um afago nos cabelos escuros.
Os nazistas apenas observaram o gesto, sem tecer comentários. Saito permaneceu circunspecto e impassível.
— O chefe do campo gostaria que se juntasse a ele no lanche da manhã — Saito avisou.
Shin o encarou. O soldado japonês era excessivamente sério. Não que aquilo o incomodasse, afinal, havia simpatizado com ele desde o primeiro instante que o viu, e adoraria poder ter sua amizade.
— Eu adoraria.
— Depois, eles disseram que irão ver os banhos.
— Ver os banhos?
— Sim — havia um desgosto camuflado nas palavras que incomodou Shin.
— Há crianças ali — Sakamoto se irritou. — Não sou o tipo de homem que fico espiando crianças. Tudo bem ver as mulheres, mas as crianças eu me recuso a ver se banharem.
Saito ficou emudecido, sem saber como transmitir aquelas palavras adiante.
— Diga a ele! — Shin ordenou.
— Senhor...
— Estou mandando! Diga que acho um absurdo assistir crianças tomando banho!
Saito sabia que Shin havia compreendido mal as palavras, mesmo assim resolveu transmiti-las aos alemães. Para seu espanto, os homens riram.
— Eles disseram que você não precisa se preocupar — Saito sussurrou após ouvir a réplica.
Aquiescendo, Shin, enfim, os seguiu até uma casinha de madeira branca próxima dos trilhos. Estava com fome e sede, ansioso pelo lanche.
***
O corredor feito de trepadeiras verdes e floridas parecia um lindo cenário de sonhos. Sobibor estava bem mais bonita que de costume. O vilarejo em si lembrava muito aquelas típicas cidades do interior que Shin lia em livros. Era primavera. E a primavera na Polônia é temperada e ensolarada, com geadas ocasionais em meados de maio. Naquele dia em questão, estava frio, mas não congelante. O sol aquecia e o casaco aliviava um pouco a umidade. Shin, Hiroshi, Takako e Saito caminhavam em fila indiana atrás dos nazistas. Quando a caminhada parou, por cima do ombro de Takako, ele viu um enorme portão de madeira.
— Qual seu primeiro nome? — Shin voltou-se para Saito que caminhava atrás de si.
O outro pareceu surpreso com a pergunta.
— Jiro — murmurou.
— Jiro? Sou Shin.
Aquele nível de intimidade gritante, sendo que ambos acabaram de se conhecer, fez Saito arquear as sobrancelhas.
A voz de um dos policiais interrompeu o momento fraterno e a atenção deles voltou novamente à entrada. O portão de madeira abriu e os homens sorriram. Acompanhando-os no riso, Shin entrou.
Por trás do portão, escondia-se um enorme pátio com dois prédios de alvenaria. Havia uma chaminé que jogava no ar uma fumaça escura e um cheiro insuportável de carne queimada. Shin percorreu o olhar pelo pátio assolado de pessoas, e sentiu as pernas falharem ao horror que via.
Na porta de um dos prédios, formava-se uma enorme fila. Nus, idosos, mulheres e crianças choravam, enquanto tentavam se aquecer do vento gelado que soprava. Os corpos sem roupa buscavam-se, doloridos, e a lamentação parecia uma cantiga sem fim.
— Não faça nada — Jiro murmurou sobre seu ombro. — Não diga nada. Está sob o domínio dos nazistas e tudo pode acontecer se manifestar qualquer ato contrário às suas práticas.
De repente, a menina pequena que Shin havia visto uma hora antes surgiu. Ela estava sem roupa e pranteava, com medo. Escapou novamente dos dedos da mãe, que até tentou segui-la, mas foi impedida por um policial. Batendo com um cassetete em sua cabeça, a mulher desmaiou no chão.
Não viu, portanto, um dos membros da SS caçar a menina. Em segundos, alcançavam a criança. Puxando-a pelos cabelos, derrubaram-na no chão. Não houve muito após isso. Puxando um revólver do coldre, o homem atirou na cabeça infantil.
Shin estava tão atônito que não conseguia se mexer. A mão de Saito nas suas costas conseguiu mantê-lo estático, sem manifestar reação. Mas, por dentro, explodia raiva e ódio por aqueles homens.
— Respire fundo — Jiro sussurrou.
Shin cumpriu o ordenado. Em seguida, voltou-se ao sargento.
— Vamos embora.
— Para onde?
— Berlim — disse, calculista. — Preciso sair daqui, vou enlouquecer.
— Entendo — Jiro assentiu. — Mandarei que arrumem um carro para levá-lo. Creio que a noite já estará...
Shin negou.
— Você vem comigo.
— Meus superiores me mandaram ficar...
— Eu sou seu superior — foi firme. — Eu ordeno que venha comigo para Berlim.
Shin segurou firme no seu braço. Houve alguma espécie de carga entre ambos.
— Você sabe mais do que imagino, não é?
A indagação do homem fez Jiro baixar a fronte.
— Responder sua pergunta pode me levar à morte.
— Não responder, também.
Os gritos do prédio próximo interromperam a conversa. Shin fechou os olhos e saiu daquele local, sentindo-se o mais vil covarde que nasceu.
Naquele mesma manhã, ele partiu para Berlim.
Capítulo 10
Shin chego u à noite em Berlim. Foi encaminhado pela SS até um importante e imponente hotel familiar, onde recebeu uma bonita suíte, com uma enorme cama de casal e móveis de madeira. Era marrom em sua totalidade — tanto as cortinas, quando os móveis, tinham essa coloração.
Não se importou e quando, enfim, ficou sozinho, pôde respirar pela primeira vez. Hiroshi e Takako haviam sido mandados para outro hotel, mais simples, mas Shin fez questão de exigir um excelente quarto para Jiro.
Disse a si mesmo que era apenas um agradecimento.
Desde a maldita manhã, ele esteve ao seu lado. Seu toque leve e breve, em diversos momentos desde então, o havia impedido de explodir diante daqueles homens cruéis e covardes. Foi o sargento Saito que o manteve sereno e frio, mesmo que, dentro de si, eclodisse uma bomba de repúdio.
Eles não haviam conversado muito. Shin temia revelar suas emoções se falasse, então mantiveram silêncio, mesmo quando se despediram brevemente no saguão do hotel. Então, assim que se banhou, o japonês se encaminhou ao quarto do outro, buscando o diálogo.
— Precisamos ir embora daqui agora — Shin disse, assim que Jiro abriu a porta.
Marchou para dentro do aposento, sem esperar convite. Saito trancou a porta atrás dele, olhando rapidamente para o corredor.
— Meu tio não sabe o que está acontecendo — explicou. — Preciso voltar para Tóquio e avisá-lo.
Saito baixou o olhar.
— Senhor Sakamoto...
— Me chame de Shin — pediu. — Quero que embarque comigo. Preciso estar em Tóquio ainda...
Shin foi interrompido por dois dedos brancos que se firmaram contra seus lábios macios. Com os olhos fixos em Jiro, ele, enfim, percebeu o estado abatido do outro.
— Estamos em uma guerra do bem contra o mal — Saito afirmou. — E nós somos os bandidos.
Shin afastou os dedos brancos.
— O que quer dizer?
— Achei que soubesse quando foi a Sobibor. Fiquei surpreso, quando percebi seu espanto.
— É claro que eu não sabia! — Shin exclamou. — Como eu poderia imaginar que algo assim fosse realizado por nossos aliados?
— Somente nossos aliados? Fizemos pior do que isso na China desde 37, Shin-san. Você apenas não havia sido informado.
Shin arregalou os olhos. O ar dos seus pulmões pareceu desaparecer e ele sentiu o choque tomá-lo por completo. A imagem de Kenzo, o homem que matou por dizer a mesma coisa que agora Jiro declarava, tomou sua mente. Pôde visualizar seu olhar sincero, e o orgulho que pareceu demonstrar enquanto se ajoelhava perante ele, pronto para receber seu tiro na fronte.
Um grito histérico formou-se em sua garganta, mas antes de expeli-lo em dor, Saito pegou um travesseiro e o pressionou contra seu rosto. Shin apertou o tecido contra os lábios, sentindo o choro misturar-se ao ódio profundo, desnorteando-o.
Ele caiu no chão, antes mesmo de dar-se conta. Ao seu lado, Saito o prensou nos braços, como se sua piedade fosse o bastante para acalmar tanta culpa. Nunca haviam se visto antes daquele dia, mas havia algo que os ligava profundamente. Shin sabia que Jiro conseguia abrandar o remorso que estava a ponto de enlouquecê-lo.
— Conte-me tudo — pediu, quando os gritos se findaram. — Diga-me tudo o que sabe.
***
— Faz três meses que você vem todas as noites, Ryo. E em todas as noites eu te digo que não é bem vindo. Por que continua vindo? Por que tem esperança de que, nessa noite, minha resposta seja diferente da resposta dada ontem?
Ryo encarou Mamoru. Seus ombros baixos, em total rendição. Três meses havia se passado desde que seus encontros matutinos com Shiromiya se findaram. Desde então, havia feito de tudo para derrubar as barreiras do amigo, mas foi em vão.
— Isso está passando dos limites, Aiko. Só quero entrar e beber um pouco.
— Existem muitas casas como a Ai nesse bairro, Ryo. Escolha uma delas e divirta-se.
Ryo o encarou, incrédulo. Era difícil acreditar que Mamoru pudesse ser tão firme em suas decisões. No passado, inúmeras vezes, ele relevou seus erros. Agora, estava irredutível.
— Shin não o espancou — Mamoru pareceu ler seus pensamentos. — Shin apenas quis uma vingança e, quando a teve, largou-o. Você não. Bateu nele até quase matá-lo.
Ryo mordeu o lábio inferior.
— Sakamoto comentou que havia dormido com o garoto.
— Estuprado, seria a palavra mais correta.
— Mesmo assim você o perdoou.
— Shin tem muitos defeitos, sou ciente disso. E sim, ele errou, e eu o perdoei. Os motivos que me fizeram relevar só dizem respeito a mim. Nunca dei satisfação de meus atos a você e não começarei agora.
Aiko deu as costas, pronto para entrar novamente na Casa Ai. Em uma hora, o estabelecimento estaria aberto e ele ainda não havia se banhado e se arrumado para receber os clientes.
— Mamoru — Ryo segurou no seu braço. — Dois minutos é tudo que peço. Trouxe um presente para ele.
Aiko o observou atentamente, enquanto o comerciante abria o casaco para lhe mostrar um livro. Hesitou, pesando os pós e os contras antes de dar sua autorização. Apesar de saber que o mimo faria Shiro feliz, temia as consequências que aquelas visitas imprudentes e regulares pudessem ter em seu coração frágil e despedaçado.
— Tudo bem, dois minutos.
***
— Nana — Shiromiya chamou a velha.
A mulher voltou-se para o jovem e o viu parado, olhando-a seriamente.
— O que quer, fedelho? Eu tenho que terminar de fazer a comida! — respondeu, volvendo o corpo para o forno de pedra.
Shiro ficou em silêncio alguns segundos, parecendo buscar as melhores palavras.
— Nana, você já amou?
A velha ficou espantada e virou-se novamente para ele.
— Não no sentido com que você e eu amamos Aiko-san, e sim amar como Heathcliff amou Catherine.
— Heath o quê?
— Heathcliff — balbuciou. — Como aqueles casais das histórias que você me conta — exemplificou.
Nana limpou as mãos no avental. Seus olhos não pareciam nem um pouco animados.
— Por que está perguntando isso? Está louco pra dar essa bunda, não é?
— Não, Nana-baba. Juro que não!
— Então, por que quer saber?
— Apenas porque queria entender como alguém pode amar tanto outra pessoa a ponto de não ver mais nada.
— Ah — a mulher deu os ombros. — O que não falta nesse mundo é idiotas. Não percebe Mamoru? É um tolo!
No fundo, Shiromiya concordava.
— Nana, qual é o nome de Ryo-san? — indagou, de supetão, quase fazendo a mulher derrubar uma cerâmica que tinha nas mãos.
Ela o encarou, furiosa.
— Por que diabos quer saber? — Ergueu a mão, ameaçadora. — Te dou uma coça se ousar começar a gostar daquele lá! Quer sofrer? Quer passar o resto da vida sendo pisado como Mamoru? Tome vergonha na cara!
— Não é isso — se defendeu. — Apenas conversei com Ryo-san todos os dias por mais de um mês e dei-me conta de que nunca perguntei o nome dele.
O olhar descrente dela o incomodou. Mas, antes de Nana replicar, Aiko surgiu. O cortesão fez um sinal para que Shiromiya o seguisse. Porém, antes de ir, o garoto abraçou Nana e lhe deu um beijo estalado na bochecha. Um pedido de desculpas por preocupá-la.
***
— Tinha acabado de completar vinte anos quando terminei meu treinamento no exército imperial — contou. — Era jovem e idealista, e estava ansioso para ver o mundo, para levar a nossa bandeira a outros povos, para lutar por justiça. No fundo, me sentia como um personagem de qualquer livro romântico, buscando honra e prestígio.
Shin acendeu o cigarro. Estava sentado no chão, ao lado de Jiro. Ambos, escorados na cama, tinham, um copo de cerveja na mão. Sakamoto não encarou o novo amigo ao vê-lo começar a narrativa. Mas o interrompeu assim que Jiro deu uma pausa.
— Fale-me de como aprendeu alemão.
— Já expliquei isso.
Shin riu, debochado.
— Andei muito por todo o Japão, Sargento Saito, e nunca, em nenhum momento, vi um padre alemão — cutucou. — Fale a verdade.
Jiro não resistiu e gargalhou. Shin entregou-lhe o cigarro e Jiro deu uma tragada antes de prosseguir.
— Tive uma amante que me ensinou.
— Você quis dizer que teve “um” amante — o corrigiu.
Jiro o encarou.
— Como sabe?
— Tem coisas que a forma de gesticular e a maneira de andar denunciam. Mesmo aqueles que se mantêm em segredo, eu consigo descobrir suas inclinações apenas os observando.
— E isso o incomoda?
Jiro devolveu o cigarro. Ao pegá-lo, Shin segurou seus dedos, adentrando seus olhos. A química foi instantânea.
— Fale do seu amante — exigiu.
Saito bebeu um gole. Em seguida, sorriu, parecendo que as recordações eram boas.
— Minha família tem uma pequena propriedade, como já contei antes. Meus pais plantam arroz, batatas, e outros alimentos. Tive uma vida simples, até chegar à minha adolescência — murmurou. Depois, voltou a falar num tom normal. — Eu tinha dezesseis anos quando um agrupamento do exército acampou próximo à minha casa. Eles estavam em treinamento e foram pedir ao meu pai para usarem algumas montanhas que estavam na nossa propriedade.
— Eles pediram? — Shin arqueou as sobrancelhas. Normalmente o exército imperial se impunha.
— Sim. Só mais tarde, percebi que foi apenas uma estratégia do capitão para se aproximar de mim. Acredito que ele tenha me visto vindo da escola.
— Capitão? Qual o nome?
— Oguri-san. Conhece?
Shin negou.
— Bom, ele é um homem muito bonito. Trinta e poucos anos, acredito. Enfim, ele começou a vir quase todos os dias, conversava muito comigo, começou a me elogiar, aquelas coisas que qualquer experiente faz para conseguir os favores de um idiota. — Jiro riu. — O idiota sou eu, caso não tenha notado.
Shin terminou o cigarro e o espremeu em um cinzeiro no chão. Antes mesmo de acender outro, Saito prosseguiu.
— Um dia, ele insinuou que iria passar a tarde sozinho em um celeiro afastado. Eu entendi o recado e fui até ele. — Jiro emudeceu alguns minutos. — Não me arrependo, foi a melhor época da minha vida. Na primeira semana só transávamos. O mundo pareceu parar de existir, ele me ensinou tudo, fez-me descobrir como sentir prazer, fez-me descobrir homem. Depois, quando o fogo acalmou-se um pouco, começou a me ensinar sobre a vida, sobre literatura, teatro e, por fim, me ensinou alemão. Oguri havia passado alguns anos na Alemanha na década de trinta. Sabia falar com fluência e eu aprendi sem dificuldade. — Sorriu. — Foram meses verdadeiramente maravilhosos.
— Por que não estão juntos?
— Pouco depois, Oguri foi chamado novamente a Tóquio. Eu enlouqueci, não queria ficar longe dele, então resolvi entrar para o exército. Fiz todas as etapas e me tornei um bom soldado. Um dia, soube que ele estava no meu regimento. Eu já tinha dezenove anos. Era um dia de festa, comemoração de algo que não me lembro. Arrumei-me todo, usei meu melhor uniforme e fui até ele. Quando me viu, ele me abraçou e disse que ficava feliz pelo meu destino. Depois me deu as costas e voltou para perto da sua esposa...
Jiro voltou a beber.
— Filho da puta... — Shin murmurou.
— Tudo bem, eu devia saber. A maioria dos homens é assim mesmo. Mas, eu descobri que jamais iria me casar com uma mulher. Recuso-me a enganar alguém simplesmente para esconder o que sou.
Shin pensava igual.
— E depois?
— Não levou uma semana e recebi uma carta me informando que eu estava sendo transferido para a Unidade 731. Fiquei feliz, era um campo científico, sem guerra. Muitos estudantes de medicina iam para lá complementar os estudos e imaginei que teria um bom tempo de paz.
Jiro terminou a cerveja e voltou a encher o copo. Houve um silêncio longo entre eles. Na rua, os carros faziam um barulho estridente, e a voz de pessoas estava bastante alta, mesmo já havendo escurecido. Aquela cidade pouco lembrava a calma Tóquio.
— Eu devia saber que estava me metendo no inferno. No dia que cheguei, o médico responsável pela base pegou um gato vivo e o jogou no meio de centenas de ratos famintos. Eu estava de serviço e não quis demonstrar reação, mas ainda posso ouvir os gritos agoniantes do animal, enquanto era devorado.
Um gato?
Os olhos de Shin encheram-se de lágrimas. De todos os animais do mundo, era sua espécie favorita a primeira a sofrer na maldade humana?
— Shirô Ishi [30] é o nome que ainda me causa pesadelos.
— Já ouvi falar dele.
Nos corredores do palácio, diziam ser um demente. Por que então entregaram toda uma base em suas mãos?
— Ishi chama suas cobaias de macacos. E tinha de tudo: crianças, idosos, homens e mulheres. Ele não diferenciava vida humana de animal, tudo devia servir ao propósito da ciência. Dizia ser o avanço, dizia que o mundo, um dia, o agradeceria por tudo. Durante um ano, eu o vi fazer centenas de experiências das quais jamais me esquecerei. Cumpri suas ordens sem questionar, era meu dever — riu, arrasado. — Eu mesmo colocava homens presos de cabeça para baixo, e anotava o tempo que levava para morrerem por asfixia. Eu ajudei a segurar os instrumentos de vivissecção por diversas vezes, vendo-o abrir pessoas vivas e sem anestesia.
A voz de Saito engasgou e Shin o puxou, abraçando-o.
— Você não tem ideia do que acontece na Unidade 731, Shin... Mesmo que eu um dia fale tudo que vi, sem visualizar os cadáveres, você jamais poderia compreender o tanto de horror.
Os dedos de Sakamoto deslizaram pelo cabelo negro e levemente encaracolado. Os olhos de ambos se encontraram, e Shin comoveu-se pela dor lá existente.
— Um dia, ele me mandou escolher uma menina de, no máximo, três anos de idade. Havia muitas, todos os dias chegavam caminhões repletos de chineses e coreanos. Mas eu sabia que estaria escolhendo alguém para morrer, e senti-me em pânico. Fui até o pátio e observei. Percebi o medo em todos ali, ao me encarar. Então, caminhei ao léu e parei diante da primeira menina que vi. Sua mãe a tinha nos braços, e eu a arranquei dela. Condenei minha alma para sempre naquele momento.
Jiro bebeu mais um gole. Parecia que a cerveja era um combustível indispensável para lembrar-se de tudo.
— Entreguei-a a uma turma de estudantes e outros membros da base. Vi alguns soldados fortes e grandes entrando na sala e pus-me de lado. Imaginei que tipos de experimento fariam naquela criança tão frágil, mas nada me preparou para vê-la sendo amarrada em uma cadeira e seu rosto ser preso por cintas. Depois, um dos grandalhões socou-a...
Sua voz sumiu por alguns instantes.
— O experimento da vez era calcular qual devia ser a força empregada para quebrar o crânio de uma criança.
Shin voltou a fumar. Suas mãos tremiam tanto que mal conseguia levar o cigarro à boca.
— Naquele dia, ao sair da sala de experimentos, eu não fui até meu alojamento. Rumei em direção ao laboratório e o vasculhei até encontrar uma cápsula com cianeto . Assim que a achei, fui em direção ao meu quarto. Eu não queria morrer colocando uma bala na cabeça, porque achei que isso seria uma vergonha para minha pobre avó.
— O que o impediu?
— Antes de chegar ao meu quarto, meu superior cruzou comigo pelo corredor. Ele me perguntou se era verdade que eu sabia alemão. Confirmei e, então, ele me ordenou que arrumasse minhas coisas porque partiria naquela noite para a Alemanha, a fim de ser intérprete de alguns membros do exército.
Mais um gole.
— Saí de um inferno para outro. O que viu hoje foi um dos menores campos de concentração que a Alemanha possui. Por pior que pareça eu dizer isso, Sobibor é um paraíso perto de Auschwitz.
— Auschwitz?
— É uma rede de campos de concentração, localizados um perto do outro. Existe o Auschwitz UM, DOIS e TRÊS. Auschwitz, aliás, tem seu próprio Shirô Ishi. Um médico chamado Josef Mengele. — Saito riu, chamando a atenção de Shin. — Acredito que monstros disfarçados de cientistas e médicos sempre existiram, não é? Não vi muito sobre Mengele, mas o pouco que vi já me mostrou que ele é um lunático.
Shin ergueu uma das mãos, escondendo o rosto com ela. Estava destruído, arrasado. Tudo pelo que passou a vida acreditando não existia mais. Sentiu os dedos de Jiro no seu ombro. Depois, vagarosamente, Saito o abraçou, trazendo-o para si. Por alguns instantes, eles ficaram abraçados em silêncio. Depois se encararam. Em segundos Jiro aproximou o rosto.
Todavia, no último instante, Shin desviou a face.
— Desculpe... — Jiro murmurou ao perceber a inquietação do outro.
— Não me entenda mal, Jiro — Shin adiantou-se. — Eu nunca quis tanto ser consolado por alguém. Na verdade, acho que você seria o único remédio que poderia me acalmar agora. Mas...
— Mas?
— Eu não beijo na boca.
Saito não resistiu e riu. Seria cômico, não fosse tão fofo.
— Você ama alguém — constatou, achando bonitinho o olhar acanhado.
— Não é nenhum amante — Shin explicou. — É meu melhor amigo.
Voltando ao abraço, Jiro sorriu.
— Falei de meus sentimentos, agora fale você. Conte-me tudo sobre ele.
Shin sorriu. Era a primeira vez que faria aquilo. Até então, nunca havia confessado a ninguém, nem a si mesmo, seus sentimentos por Mamoru.
— Somos amigos de infância. Na verdade, contra toda a família, eu trouxe essa amizade para a vida adulta.
— Contra a família?
— Mamoru é dono de um bordel em Tóquio. Já ouviu falar na “Casa Ai”?
— A casa do Amor — Jiro sussurrou. — Dizem ser o lugar mais caro e disputado da cidade. Mas, por ter apenas mulheres trabalhando, nunca me interessei em ir lá.
— A casa Ai é mais que um prostíbulo. Vou levá-lo lá quando voltarmos — prometeu. — A comida e a bebida são maravilhosas. E a conversa, então... É um lugar acolhedor, com boa música e pessoas inteligentes. Muito bem frequentado.
Jiro assentiu.
— Fale-me de Mamoru — insistiu. — Como ele é?
Por alguns instantes Shin buscou a imagem do cortesão na mente.
— Ele parece um anjo. Aiko é gentil, mesmo quando está irritado. O tom da voz dele é neutro, ele dificilmente se altera. Gosta de crianças, de animais. É uma pessoa justa, conhecido por tratar suas prostitutas com deferência e cortesia.
— E fisicamente?
— Ah, ele é lindo! — Shin sorriu. — Tem os cabelos num tom castanho, longos, quase chegando à cintura. É magro, mas não aquele tipo de magro sem carne. Mamoru tem uma bunda deliciosa e coxas macias...
— E ele O ama?
— Eu sei que ama.
— Então por que não são amantes?
— Não quero perder os sentimentos dele — Shin explicou. — Se fôssemos para a cama, você entenderia. Eu sou péssimo fazendo amor. Perco o controle, sou rápido demais e dificilmente presto atenção no que o outro está sentindo.
Saito ficou pasmo com a sinceridade. Nunca nenhum outro homem havia confessado isso a ele. Não resistiu e provocou.
— Agora terá que me provar suas palavras, Shin.
Em segundos se punha de pé. Tirou a camisa e a calça, ficando nu perante o membro da família real. Percebeu os olhos brilhantes de Sakamoto sobre si, e sorriu. Era bem verdade que não havia amor ali, mas ele não buscava aquela sensação. Era jovem e tudo que queria era viver. Até porque não sabia o quanto ainda teria diante do horror que aquela guerra estava se tornando.
Quando Shin ergueu-se e avançou sob ele, soube que teria tudo naquela noite.
***
— Boa noite, Shiro — Ryo sorriu, erguendo-se da cadeira e avançando até o outro.
Seus olhos brilharam ao vê-lo, sentindo-se subitamente feliz e alegre, o corpo completo de uma sensação poderosa e desconhecida.
— Senti muito sua falta, Shiro — admitiu. — Sentiu a minha?
— Não.
A sinceridade latente do outro o fez sorrir ainda mais. Kazue Shiromiya, o prostituto que se vestia de mulher na Casa Ai, não tinha o costume de mentir ou mascarar as palavras. Não elogiava de acordo com a vontade dos outros. Ao contrário do que imaginou Ryo, aquilo lhe fez bem.
— Ficarei aqui — Mamoru mostrou um banco no canto. — E você pode entregar seu presente para ele. Não vou interferir.
Não iria interferir, mas também não os deixaria a sós, percebeu Ryo. Mesmo assim, estava contente pela oportunidade, e puxou Shiro até a mesa que ambos costumavam usar nos chás da manhã.
— Trouxe um presente — Ryo disse, abrindo o casaco.
Estendeu diante de Shiromiya um livro grosso de capa negra. Kazue encarou o encadernado com interesse.
— Meu livro favorito, Shiro. É a história de Rosa e Cornélius.
— Uma história de amor? — o interesse do rapaz pareceu ainda mais aflorado.
— Sim, mas também é uma história de conspiração política e aventura.
— E qual é o nome?
Ryo estranhou a indagação, sendo que o título estava escrito na capa.
— A Tulipa Negra.
Shiro puxou o livro e folheou as páginas.
— Muito obrigado, Ryo-san. Vou guardá-lo com todo meu coração.
Naquele momento Ryo viu refletindo uma gratidão que muito o espantou. Era como se Shiromiya possuísse o mais caro tesouro nos dedos. Nunca havia visto aquilo nem nas mulheres que recebiam joias caras após o sexo.
— Quando lê-lo, me diga o que achou.
Os olhos de Shiromiya pareceram surpresos por alguns momentos. Então, ele abriu a boca, inocente.
— Não sei ler.
Ryo ficou pasmo. Ele sabia que algumas pessoas de baixa renda não sabiam ler, mas até Tadao havia frequentado a escola e era alfabetizado. Então, em seguida, um desprezo pungente o tocou, fazendo-o cair em si.
Ele era um poderoso comerciante, um homem estudado, rico, dono de uma frota pesqueira e de várias fábricas de sardinha enlatadas, e estava ali buscando a amizade de um ninguém?
Erguendo-se, ele desviou-se de Shiro e foi até Aiko.
— Virei à noite. Por favor, peça para Rika me aguardar.
Mamoru não negou as palavras. Rika estava muito precisada de dinheiro, parecia que a mãe estivera doente. Então aceitou aquele interesse.
— Sr. Ryo — Shiro o chamou assim que percebeu que ele se preparava para ir embora. — Mais uma vez, agradeço o presente.
— Meio inútil já que você é analfabeto, não é? — Ryo replicou, frio.
Sem mais, foi embora. Assim que sua figura desapareceu, Shiromiya se voltou para Aiko.
— Ryo - sanestá zangado com alguma coisa?
Percebendo que o outro não havia identificado o preconceito no tom de voz, Mamoru negou. Shiromiya não precisava de mais aquela dor.
Naquela noite, Ryo não apareceu.
***
Assim que Shin Sakamoto caiu sobre o corpo nu de Jiro, o sargento soube que o outro não havia mentido sobre sua forma de fazer amor. Aliás, “fazer amor” era um eufemismo para enfiar-se rapidamente em seu corpo algumas vezes, gemer e ejacular. Pronto. Em dois minutos, talvez até menos, Shin havia terminado o que havia se proposto.
— Quando você disse que era ruim de cama, achei que estivesse fazendo charme — Jiro riu. — Mas, definitivamente, você é o pior amante que já tive nos braços.
Shin não ficou ofendido.
— Entende agora por que fujo dos sentimentos de Aiko?
Jiro assentiu.
— Precisa aprender a se portar com um amante, Shin. Senão, adianto, sua vida com Mamoru Aiko não durará muito tempo.
— Não sei o que fazer.
Saito sorriu, acariciando os cabelos em desalinho.
— Eu vou te ensinar.
O tom macio e caloroso com que ele disse aquilo, causou formigamento no outro. Shin o encarou, sentindo o órgão sexual endurecer novamente, pronto para o ataque.
— Me beije, Shin-chan... — Saito pediu, íntimo.
— Mas...
— Não estará traindo a memória do seu amado Mamoru — prometeu. — Estará apenas aprendendo o que fazer...
Ainda duvidoso, Shin baixou a face. Sentindo Jiro abraçá-lo, ele buscou os lábios apetitosos do outro. Em segundos, sua língua afoita acariciou a outra, e todo seu corpo foi tomado por um poderoso desejo.
— Não ainda, Shin — Jiro disse. — Primeiro, me acaricie com as suas mãos. Aproveite o momento.
Quando os dedos másculos passearam pelo seu peito, agarrando firmemente sua coxa firme, Saito gemeu.
—Você está indo muito bem, Shin — elogiou, a voz quase falhando de prazer. — Agora, deslize sua boca pelos lugares onde sua mão foi...
Obediente, Shin parecia um bom aluno aplicado aos ensinamentos do seu mestre. Jiro jogou a cabeça para trás, gemendo alto quando os lábios macios brincaram com seus mamilos e depois buscaram sua barriga e coxa. Porém, logo depois, Shin enfiou-se dentro dele novamente. Jiro gemeu ao sentir a carne dura, mas não se irritou com aquela ânsia de Sakamoto. Apenas disse a si mesmo para ter paciência.
— Shin, vá entrando devagar até sentir uma saliência...
Na primeira metida, apesar de vagarosa, Shin não sentiu nada. Mas, na segunda vez que enfiou-se em Jiro, ele pôde sentir uma leve protuberância.
— Acho que encontrei — gemeu.
Jiro riria se não estivesse agoniando em prazer.
— Sim, você achou — confirmou. — Agora mete bem forte aí...
Cumprindo o que fora ordenado, Shin começou a estocar com força. O ar esquentou, os gemidos subiram de nível e em segundos os dois estavam em um ritmo animalesco, doentio e forte.
O clímax foi rápido. Jiro e Shin chegaram ao orgasmo praticamente ao mesmo tempo. Assim que o homem grande caiu sobre ele, Jiro o abraçou carinhosamente. Percebeu naquele instante que ensinar as artes do erotismo a Sakamoto seria uma delícia que lhe faria muito bem.
Capítulo 11
Na enorm e mansão, ao sul de Berlim, ecoava o som ritmado de uma banda alemã, cujo nome Shin não sabia. No centro do palco, uma mulher de silhueta grande e de cabelos loiros como palha, cantava sensualmente, olhando para os homens que bailavam no centro. Seu quadril balançava, numa pose até um tanto cômica, enquanto a voz aguda ecoava um refrão empolgante.
Naquele momento torpe, Shin percebeu que, assim como no Japão, a Alemanha também não parecia sentir os efeitos da guerra. Aliás, pareciam alheios aos próprios atos, ignorando os horrores que cometiam a poucos quilômetros dali. Comiam e bebiam sem moderação, gargalhando alto, enquanto conversavam e apertavam as mãos, débeis em seu próprio universo.
Shin baixou a fronte, enojado. Ao seu lado, Saito ergueu um cálice e observou o ambiente. Parecia mais à vontade, como se não se incomodasse com tamanha imundície.
“Estou em tempo emprestado” , havia dito de manhã, enquanto se vestia. Naquele momento, Sakamoto entendeu o que ele quisera dizer. E podia jurar que a cápsula de cianeto balançava no bolso da camisa de Saito, como um lembrete feliz de que todo aquele inferno logo teria fim.
— Está vendo aquele lá — Jiro chamou sua atenção, apontando com a face um homem bonito, com os cabelos penteados para o lado, de olhos intensos e, ao mesmo tempo, gentis.
Sakamoto observou o nazista ao lado de uma mulher loira, e então se voltou para Saito, aguardando explicações.
— Dizem que Hitler e ele... — ergueu os dois dedos indicadores, esfregando um no outro, num vai e vem bastante esclarecedor.
— Não brinca! — Sakamoto murmurou. — Mas Hitler não é celibato? Dizem que ele é...
Naquele momento, percebeu o mundo de mentiras que vivia. Pensou no amado tio, e imaginou se ele também lhe enganava com palavras doces.
Não! Não seu amado Imperador!
— Não se deprima — Jiro sussurrou, ao perceber seu estado de espírito. — Pense nas pessoas que precisam de você, nas pessoas que dependem de você. Eu me esqueci de minha família durante meu tempo na China, mas quando cheguei à Alemanha, fiquei feliz por não ter me suicidado. Tenho um pai de saúde frágil e uma avó que precisa do seu neto.
— E sua mãe? — Sakamoto encarava o sargento.
— Minha mãe e eu não temos um bom relacionamento — admitiu. — Eu sei que ela me ama, mas tem dificuldade de me aceitar. Ela sabe que eu me encontrava com Oguri.
Shin assentiu. Voltou os olhos para o homem do qual falaram anteriormente.
— Como ele se chama?
— Albert Speer. — Fez um bico adorável com os lábios. — Arquiteto-chefe e ministro do Armamento do Terceiro Reich — disse imponente, mas, ao mesmo tempo, fazendo graça.
Shin segurou um riso atrevido.
— E você acredita que os boatos são reais?
Saito deu os ombros.
— Talvez nunca saibamos... — murmurou. — Já imaginou um mundo onde homens como esses sejam os líderes?
Sakamoto bebeu um pouco da sua própria bebida. Quis replicar, mas o zunzunzum de vozes chamou sua atenção. Havia naquelas pessoas uma espécie de frenesi e alvoroço. Logo soube por quê.
A poucos metros dele, um homem de estatura mediana e de olhos claros caminhou até o palco, seguido de um grupo de homens vestindo preto. Shin o reconheceu imediatamente, mesmo nunca o tendo visto pessoalmente antes. Tinha uma foto daquele homem no próprio quarto, havia lido seu livro e ouvido seus discursos. Havia sido um ídolo durante uma etapa de sua vida, e agora tudo que lhe causava era asco e nojo.
Adolf Hitler subiu no palco e se aproximou do microfone. A estática surgiu antes que começasse a discursar. Todo o salão ficou em silêncio absoluto, ouvindo a voz enérgica que falava.
Mesmo não entendendo nada do que Hitler dizia, Sakamoto entendeu a força de sua natureza. Seus olhos eram mágicos, fascinantes. Ainda que não olhasse para ninguém em particular, era como se observasse a cada um, soubesse seus segredos, seus medos, e também suas paixões. Como um deus de autoridade, ele erguia as mãos, gestos belamente ensaiados. Tinha um timbre que ora era calmo e sereno, e ora, nos momentos mais importantes de sua fala, erguia-se num tom alto, voraz.
Era um lobo e estava diante de suas ovelhas. Um amante diante da nudez de sua amada, consumindo-a totalmente. E ninguém presente parecia capaz de entender o efeito de sua manipulação.
Entretanto, livre da lavagem cerebral, Shin Sakamoto conseguia perceber tudo sem hesitação. Naquele instante, imaginou os motivos que o haviam trazido até ali. Seu amado Imperador, mesmo sem falar muito, costumava agraciar o membro favorito da família com os mimos que podia. Hirohito nunca vira Hitler pessoalmente, mas as histórias que contara para Shin referente à trajetória do líder nazista, o fascinara. Mais, Shin sabia que alguns japoneses eram voluntários no exército alemão. Havia entre as duas culturas algo que as aproximava, tornando-as irmãs.
Fechou os olhos. Nada do que havia visto nos últimos dias combinava com a imagem que tinha do Imperador. Filho da deusa do sol, Hirohito com certeza, não poderia ser responsável por tantas atrocidades. Assim sendo, tudo indicava que os militares estavam abusando da divindade e a manipulando de acordo com os seus sórdidos interesses.
Abriu novamente os olhos. O rosto do tio apareceu em sua mente. Amava-o e sempre amaria, adorava-o com todo o coração. Nunca o havia tocado — esse privilégio só era permitido para algumas pessoas — e mesmo quando conversavam, Shin temia olhá-lo nos olhos, pois a audácia poderia ser considerada uma abominação. Mesmo assim, sabia que o gentil líder japonês era, certamente, inocente de tudo aquilo. No entanto, negar a responsabilidade de Hirohito era também admitir que a constituição era falha, pois Hirohito era a grande voz de sua sociedade. Na mesma medida, assumir sua culpa seria um crime hediondo, lesa-majestade. Nesse misto de sentimentos, sentiu-se confuso, desejoso de se sentar no chão e choramingar como criança.
O rápido discurso terminou. Hitler desceu do palco e começou a caminhar diante de sua plateia que ainda o aplaudia. Logo cumprimentava um o outro. O olhar de Shin o seguiu até as crianças, viu-o afagando a cabeça de um pequeno de cabelos loiros.
Para sua surpresa, pouco depois, ele começou a seguir em sua direção. Os homens da SS estavam ao seu lado e sorriam. Não demorou a perceber os motivos: era membro da realeza japonesa, importante aliado dos alemães. Era óbvio que Hitler iria querer cumprimentá-lo.
Em segundos, o grande líder nazista estava diante de si. Mantinha um sorriso sereno nos lábios e disse algo. Shin pareceu fascinado por alguns instantes. Porém estava estático demais para se mexer.
— O Führer indaga se deve se curvar como fazem os japoneses, ou você aceita um cordial aperto de mão?
As palavras de Jiro cravaram-se em sua mente. Mas não conseguia responder. Havia em si ódio e revolta demais. Temia o que falaria, caso abrisse a boca.
Diante do silêncio do outro, Saito arregalou os olhos.
— Shin? — balbuciou, tentando chamar a sua atenção.
Nada.
Percebendo então que havia algo entre os orientais, Hitler estendeu a mão. Foi um dos mais constrangedores momentos até então, pois Shin não fez nem menção de cumprimentar o outro.
— Não vou tocá-lo — disse, enfim, para Jiro.
— Então se curve.
— Nunca.
Inferno! Saito quase desmaiou diante do que via. Aquele cara era realmente um mimado infantil!
— O senhor Sakamoto não se sente bem desde que chegou à Alemanha, e teme passar qualquer tipo de doença para o Führer — explicou, em alemão. — Nós japoneses acreditamos que possamos passar doenças através do toque.
Hitler pareceu impressionado... E lisonjeado. Depois, disse mais algumas coisas.
— O Führer diz que foi informado sobre seu carinho por “Minha luta”. Diz que está feliz pela união entre duas nações soberanas e poderosas e que crê que a vitória está próxima.
Shin assentiu, incomodado.
— Ele diz agora que espera que esteja sendo bem tratado. Fala que admira seu tio, que é um grande homem, uma mente que guiará o mundo para um novo apogeu.
Shin permaneceu em silêncio. Saito achou melhor falar mesmo sem ser autorizado.
— O senhor Sakamoto certamente está muito feliz pelas suas palavras, mas acredito que precise descansar. Temo por sua frágil saúde — mentiu. — Porém, certamente, assim que se sentir melhor, tenho certeza que desejará conhecer melhor o homem que tanto idolatra, seu amado Führer.
Adolf Hitler adorava ser bajulado, e não se fez de rogado em receber as palavras. Sorriu e curvou-se perante Jiro, que respondeu com igual energia. Pouco depois, os nazistas os deixavam.
— Irá comigo para o Japão. — Shin murmurou, assim que os homens sumiram.
— Não posso...
— Já disse que só deve obediência a mim. Eu pedirei pessoalmente ao Imperador que preste seus serviços diretamente a mim como guarda pessoal.
Era uma honra, Jiro sabia.
— Obrigado, Sakamoto-san.
***
Junho de 1942.
Mamoru Aiko surgiu no corredor com um sorriso enorme nos lábios. Desde que soube que Shin havia partido para a Alemanha, ele meditava em um argumento para fechar a Casa Ai e poder, enfim, construir o abrigo antibomba. Desde a conversa com Ryo, o abrigo não saía de sua mente, e o fato de que no dia quatro de junho, na Batalha de Midway, quatro porta-aviões japoneses terem sido afundados, só confirmou a importância de tal. Contudo, naquela manhã ensolarada, recordou-se de um fato que, há muito, havia esquecido.
Shiro o encarou surpreso. Estava passando um pano úmido nas esculturas de gesso que se espalhavam por todo o corredor, decorando-o. Mamoru apareceu ao seu lado tão rapidamente que parecia um fantasma.
— Estamos no verão — Aiko riu. O leque vibrando de um lado para o outro, fazendo o cabelo balançar com o vento feito. — Sabe o que quer dizer?
— Que está calor? — Shiromiya sorriu, terminando seu afazer.
— Significa que está completando dezesseis anos! — Mamoru riu. — Faz mais de um ano que está conosco, e eu nunca pensei em indagar sobre seu aniversário. Qual é o dia?
Shiromiya Kazue buscou na mente a data. Lembrava apenas que quando as chuvas tradicionais de junho atingiam seu ápice, a mãe o erguia nos braços e o mimava, dizendo que completava mais um ano.
Disse aquilo a Mamoru, sorrindo.
— Então você pode estar hoje de aniversário! — Aiko gritou. — Injusto não saber a data! — fez um muxoxo adorável, fazendo Kazue rir. — Diga-me, Shiro: você já teve uma festa de aniversário?
— Uma festa de aniversário?
Camponeses pobres não tinham aquele tipo de luxo. A mãe costumava fazer um bolo de milho, e eles comiam embaixo de um pé de cerejeira próximo. Pensou no irmão, Satoshi, e sentiu um súbito impulso de chorar. Lembrou-se de que ele nunca fora um companheiro, mas tinha seus momentos bons. Costumava subir no pé de laranja do pomar e colher laranja para Shiro. O porquê de a vida tê-los separados com tanta dor e sofrimento era algo que ele nunca entenderia.
— Vou mandar Nana fazer um bolo, mandarei comprar refrigerantes e enviarei uma nota ao jornal informando que a Casa Ai não abrirá as portas durante a semana. Precisamos de descanso, ora essa!
— As meninas não ficarão zangadas? Sei que elas precisam do dinheiro...
— Alguns dias de descanso não farão mal a ninguém — Mamoru pareceu empolgado. — Você, eu, Nana e as garotas! Teremos uma noite ótima.
— Posso convidar Ryo-san também?
A pergunta repentina o espantou. Ryo não aparecia há quase um mês. Desde que seu olhar amigável tornou-se aversão, o comerciante perdeu o interesse pelo rapazote de rosto adorável.
— Shiro...
— Por favor, Aiko-san! — implorou. — Ryo-san é o único amigo que tenho fora da Casa Ai. Ele leu um livro inteiro para mim e depois me trouxe outro de presente.
Aiko respirou fundo. Não sabia como explicar que Ryo não se interessava por aquela amizade. Via Shiro como Shin o enxergava, apenas como um adereço excêntrico, algo para trazer diversão para a enfadonha vida. Algo que o tirasse da mesmice, que o fizesse viver novidades e o divertisse. Não queria que Shiro tivesse o mesmo destino que ele mesmo, numa eterna espera por algo que nunca viria.
— Ryo-san é uma pessoa muito ocupada, Shiro. — disse.
— Mas não custa convidar, não é mesmo?
Aiko mordeu o lábio inferior.
— Shiro — começou, cauteloso, — eu mandarei uma carta convidando-o. Mas, promete não ficar triste se ele não vier?
Shiromiya sorriu, mas não respondeu. Diante disso, Aiko apenas resmungou e foi até o portão para chamar um menino que costumava levar recados.
***
Havia uma sucessão de estrondos que pareciam queimar sua audição. O chão tremeu e tudo ficou escuro. Ryo caminhou cambaleante, segurando-se nas paredes que pareceram balançar diante das bombas.
Estava tudo escuro, e ele gritou, chamando-o. Para todo lugar que olhava, não o encontrava. Mesmo arriscando sua vida, ele não pôde parar. Buscou-o num dos bonitos quartos que o outro costumava usar. Nada. Desceu até a biblioteca, até o jardim. Ao longe, a cidade queimava, e havia gritos e choro no ar. Mesmo ele morando fora do núcleo urbano, os gritos de agonia ecoavam por entre as árvores, e a morte bailava nos suspiros de dor que retiniam pela escuridão.
Foi então que percebeu que havia um único lugar que não havia ido. Correu para o abrigo antibomba, e entrou na sala subterrânea. Como se sua alma voltasse a viver, como um náufrago encontrando terra firme, como um sedento sendo abençoado por um cálice de água, ele o viu.
Shiro estava sentado num canto, enrolado em um cobertor. Parecia assustado, mas mantinha a calma. Quando seus olhos se encontraram com os seus, sorriu.
— Eu o procurei por todos os lugares — Ryo disse, num misto de alívio e inquietação.
— Você me disse que eu sempre devia procurar o abrigo se as bombas...
— Tolo! — Ryo o interrompeu, dessa vez zangado. — Quase me matou do coração! — ralhou. — Mas fez bem em se proteger, estou aliviado.
Seus passos seguiram retos em direção ao outro. Não houve hesitação, firme e direto, ele segurou o outro pelo rosto, erguendo a face em sua direção.
Tomou-o nos lábios com um beijo que nunca havia dado em mais ninguém. Chupou a língua quente, lambeu toda a boca generosa, e percebeu, deleitoso, que Shiro se entregava para ele sem embaraço.
— Senhor Ryo! — A voz de Tadao fê-lo abrir os olhos.
Ryo sentou-se na cama, confuso. Mais um sonho com aquele garoto prostituto e ignorante que ele desprezava. Desde que o viu pela última vez, quando lhe entregou um livro, os sonhos — ou pesadelos? — não haviam mais lhe deixado. Todas as noites o via, na maioria das vezes, nu, em seus braços. Podia até sentir sua pele arrepiada e seus sussurros de paixão. Odiou a si mesmo por aqueles malditos devaneios, e prometeu procurar ajuda médica antes que ficasse louco.
Sim, porque, com certeza, aqueles sonhos nada tinham a ver com os demais, que envolviam a mulher que amava. Os sonhos de infância eram visões, e esses de agora eram apenas... distúrbios.
Precisava de uma mulher!
Devia ter alguma bela prostituta em Tóquio disposta a ir para a cama com ele ainda naquele dia.
— Senhor Ryo? — Tadao ainda estava a sua frente.
— O que quer? — indagou.
Não ousou reclamar pela entrada não autorizada em seu quarto, pois o empregado o havia tirado de um sonho terrível.
— Senhor Aiko lhe mandou uma missiva. Pedi ao garoto de recados para aguardar, mas ele disse que Aiko tem pressa. Então, achei por bem lhe acordar. Pensei que poderia ser algo importante.
Ryo segurou a carta estendida e a abriu sem titubear. No começo, pareceu incrédulo às primeiras linhas e, depois, gargalhou.
— Aiko deve estar doente da cabeça se considera que eu irei a uma festa de aniversário de um ninguém — amassou a carta e a jogou longe.
O empregado continuou observando-o com curiosidade.
— O garoto analfabeto que lhe comentei está fazendo aniversário — disse a Tadao. — E Mamoru me convidou — riu, fazendo gracejo.
Tadao assentiu.
— Diga a Aiko que eu tenho mais o que fazer.
— Nessas palavras?
— Sem tirar uma letra — irritou-se. — O que ele acha que eu sou? Se ainda fosse sua própria festa, eu poderia considerar, mas...
Preferiu se calar. Estava a cada dia com o humor piorado. O melhor era levantar-se, tomar um banho e ir trabalhar.
***
Já era noite quando Aiko voltou do centro. Havia ido buscar refrigerantes e um presente para Shiro. Nana pôs a mesa de madeira da cozinha no jardim, e todas as mulheres que trabalhavam lá, as residentes ou não, haviam comparecido. Riam e se divertiam, comendo e bebendo. Não havia álcool nem luxo, mas parecia a mais nobre e feliz festa de aniversário do mundo.
Shiro recebeu abraços como nunca até então. Ele ficou surpreso com tanta afeição, mas adorou. Nana foi a última das mulheres a lhe abraçar, mas foi dela que ele mais aproveitou o afago.
— Me solte, pirralho — disse, quando ele fez menção de não deixá-la ir.
— Eu te amo, Nana-baba — confessou, do fundo do coração.
A velha sentiu os olhos formigarem, mas desviou o olhar.
— Deve ser um idiota se acha que essas palavras vão me comover.
Shiro sorriu. Tinha certeza de que ela o amava.
Quando Aiko surgiu, Shiro o abraçou sem nem esperá-lo abrir os braços.
— Eu tenho um presente para você — Mamoru contou. — Mas vou deixar para dá-lo mais tarde, tudo bem?
— Já me deu o melhor presente de todos — olhou para as pessoas. — Essa é a melhor festa de aniversário que eu poderia desejar.
Aiko o beijou na bochecha.
— Aiko-san, Ryo virá?
De manhã, logo após receber a missiva do outro, Aiko preferiu sair, a fim de evitar o confronto com Kazue. Contar para Shiro que Ryo não tinha o menor interesse naquela amizade era algo que o machucava.
— Shiro... — começou.
— Ah, tudo bem. — O menor o interrompeu, assim que percebeu as palavras tristes. — Eu sei que ele é ocupado.
Depois disso, o garoto saiu rapidamente de perto de Aiko. Mesmo assim, Mamoru percebeu os olhos cansados e um resquício de lágrimas a formar-se. Mais uma vez, amaldiçoou a si mesmo. Fora leviano e deixou-se levar pelas palavras inteligentes de Ryo. Agora, Shiro estava obviamente magoado, e o outro nem se importava.
Fez menção de seguir Shiromiya, cercá-lo com os braços e o levar para um lugar calmo, a fim de terem uma franca conversa. Mas antes de mover-se, uma batida no portão chamou sua atenção.
Deu dois passos em direção à entrada. Provavelmente, algum freguês que não lera o jornal aparecia para a sua sessão semanal de felicidade. No entanto, adiantando-se, viu Shiromiya correr em direção ao portão e abri-lo sem perguntar o nome da outra pessoa.
Surpreso, observou Ryo parado do outro lado. O rosto, num misto de vergonha e raiva de si mesmo provavelmente.
Por que viera? Não havia sido extremamente desagradável ao recusar o convite? Quis avançar e mandá-lo embora, mas não conseguiu pronunciar uma única frase ao perceber o estado de felicidade que ficou o aniversariante.
— Oh, ele veio, Senhor Aiko — Shiro disse, feliz.
Mamoru encarou Ryo. Estava furioso, e Ryo percebeu. Mesmo assim, ergueu a face, e voltou o olhar para Shiro.
— Eu trouxe uma lembrança. — disse. No tom da voz havia um conflito que Aiko não conseguia compreender o que era. — Pegue — ergueu um pequeno embrulho e o deu a Shiro. — Mas já estou indo.
— Nana fez um bolo, por favor, não vá sem experimentar.
Shiromiya o puxou pelo braço, levando-o até o jardim. Ryo ficou surpreso por ele sequer ter aberto o embrulho, pois nenhuma das pessoas que ele costumava presentear desconsiderava seus mimos. De repente, percebeu que para Shiro sua presença era muito mais importante que o que quer que fosse que estivesse dentro do pacote. Considerando que o garoto era pobre e sem bens, aquilo era quase que uma prova de amor.
Prova de amor?
Para onde os pensamentos iam?
Antes, porém, de raciocinar melhor, eles chegaram à mesa. Shiro puxou uma cadeira e o convidou a se sentar. As mulheres ficaram em silêncio, incrédulas diante da cena. Ryo as encarou e percebeu que eram diferentes sem a maquiagem excessiva sobre a pele. Parecia mais simples, verdade, mas também mais bonitas. Aliás, se não soubesse, jamais diria que eram simples prostitutas.
Sentou-se quieto, os olhos de Aiko cravados em si. Adquirindo coragem, encarou-o, mas logo baixou a face. Sabia que o amigo estava magoado e furioso, mas o que mais ele poderia fazer? Mesmo negando sua presença, ele não havia tido paz um único minuto no dia. A simples possibilidade de visitar Shiro sem precisar dar uma série de explicações parecia uma oportunidade única.
— Eu pensei que não fosse vir, Ryo-san — Shiro admitiu. — Aiko parecia triste, me deu um susto — encarou o cortesão, rindo.
Assim que percebeu o olhar de Shiro em si, Aiko sorriu.
— Claro que não, querido — desconversou.
Um aniversário era sempre uma data especial, e Aiko jurou a si mesmo não estragá-la por conta das atitudes impensadas do comerciante.
— Abra seu presente — Ryo sussurrou ao outro.
Só então, Shiro pareceu se lembrar de que tinha algo nas mãos. Voltou os olhos para o pequeno embrulho e sorriu. Abriu-o e encarou uma pequena caixa.
— Obrigado, Ryo-san! É lindo!
Ryo quase riu, mas lembrou-se de que o outro, com certeza, nunca havia recebido uma joia, e então ordenou:
— Abra a caixa.
Shiro cumpriu o que fora ordenado e a abriu. Dentro, havia um cordão com um medalhão. A figura de um coração lhe fez sorrir. Olhou para Ryo.
— Eu ganhei alguns cordões das pessoas que me assistem dançar e os guardei para vendê-los mais tarde, quando for comprar um lugar para morar. Mas o seu eu guardarei para sempre, porque é um símbolo da nossa amizade.
Havia tanta inocência e sinceridade naquelas palavras que Ryo se comoveu. Viu Shiro erguendo o cordão e o colocando em si mesmo. O mundo pareceu desaparecer naquele momento, pois ele teve consciência de cada pedaço da pele do outro. Subitamente, o sonho voltou, e ele olhou para a boca linda. Shiro era tão perfeito que doía. Em si, percebeu que talvez ele fosse a sua pessoa destinada, mas em seguida recusou os pensamentos.
Sim, poderiam ser amigos. Ele era de Aiko, e Mamoru jamais seria alguém que frequentaria seu vínculo social.
Mesmoassim, ainda se sentia confuso. Então, desculpando-se, ele reafirmou que precisava ir. Shiro pareceu entender, e mais uma vez agradeceu por Ryo ter ido vê-lo.
— Venha me ver dançar quando puder, Ryo-san — pediu.
A imagem daquele corpo delicado balançando no palco o excitou. Surpreso pela reação, Ryo apenas assentiu e se afastou.
Quando o portão fechou-se, Aiko postou-se ao lado de Shiromiya.
— Shiro, nós precisamos conversar.
O tom de Aiko era doce e gentil. Assim, Shiro apenas assentiu e seguiu seu guardião. O coração de ouro batia contra seu peito, conforme andava. Um sentimento de felicidade total a tomá-lo, e uma certeza de que seu vínculo com Ryo seria para sempre.
Capítulo 12
Ao long e , os risos femininos fizeram Shiro sorrir. Mesmo sentado no seu futon, afastado da própria festa, ele alegrava-se com o entusiasmo demonstrado pelas mulheres da Casa Ai. Mamoru estava certo, eles precisavam daquela confraternização, pois ela os deixara ainda mais unidos e contentes.
— Eu estou feliz por vê-lo assim — Aiko sussurrou. — Muito me preocupa seu olhar abatido.
— Mas não estou abatido, senhor Aiko. — Shiro adiantou-se, negando. — Tenho comida e teto, por que estaria triste?
— Nem sempre comida e teto bastam para nos fazer feliz, Shiro.
— Oh, para mim bastam — afirmou. — Só chora por outras coisas quem nunca teve que dormir sob as estrelas, sentindo a barriga doer de fome.
Mamoru se comoveu. Então, sentou-se ao lado de Shiromiya. Antes de irem até o quarto do menor, ele havia passado no próprio aposento e pegado o presente que comprou especialmente para ele. Assim, estendeu-lhe uma caixa de metal no tamanho da palma da mão. Era um bonito trabalho artesanal que havia lhe custado um bom dinheiro. Contudo, ao ver os olhos felizes a segurar a caixa, Mamoru percebeu que valera cada centavo.
— Eu tenho uma igual — contou a Shiro. — Guardo nela coisas importantes. Sei que está poupando dinheiro e joias, então eu pensei em dar-lhe uma igual, para que também possa manter seus bens bem guardados. Percebe — apontou um pequeno cadeado com chave — você pode fechar e mantê-los a salvo.
O sorriso de gratidão de Shiromiya fez com que Aiko o abraçasse. Tão logo se separaram, Mamoru achou por bem entrar no assunto que tanto necessitava. Cuidadosamente, ele ergueu o rosto de Shiromiya para si, e resolveu introduzir o assunto de forma pacífica e gentil.
— Shiro, você sabe que amo Shin-san, não sabe?
Mamoru não costumava falar das próprias emoções, mas Kazue havia percebido o fato há bastante tempo. Assim sendo, assentiu.
— Shin é um bom amigo. Ele sempre está ao meu lado quando preciso, costuma tratar-me com consideração, apesar de já ter me magoado muitas vezes — fechou os olhos, lembrando-se de todas as vezes que Sakamoto dormira com alguém dentro de sua própria casa. — Shin me dá proteção. A Kempeitai costuma ser bastante agressiva com as outras casas desse bairro, mas nenhum dos membros da polícia se impõe aqui. Eu, definitivamente, não sei o que faria sem Shin — assumiu.
Shiro segurou suas mãos. Apesar das palavras ternas, ele entendeu que Aiko iria expor algo mais sério do que os elogios.
— No entanto, Shiro... — emudeceu alguns segundos. Respirou fundo, como se fosse muito difícil buscar as palavras. — Shiro — repetiu, com dificuldade —, se eu tivesse o poder de voltar no tempo, se fosse me dada a chance de rever cada um dos meus atos e escolhas, eu jamais teria me aproximado de Shin — confessou. — Hoje sou um escravo do meu coração, mas ser escravo não traz felicidade a ninguém, meu querido. Eu sei que preciso ser livre para poder ser verdadeiramente feliz e, no momento, não tenho nem forças para lutar contra as amarras que me prendem.
Aiko o encarou, seriamente.
— Shiro, eu o amo e quero que seja feliz. Por isso, preciso que se afaste de Ryo-san — disse, de supetão.
A sobrancelha de Kazue se ergueu. Em si brotou um pânico incoerente perante as palavras.
— Não entendo, Aiko- san. ..
— Shiro, olhe para mim — pediu. — Você já está há mais de um ano na Casa Ai. Diga-me, quantas vezes viu Shin me convidando para passear com ele na rua?
Aquilo nunca havia acontecido.
— Shin jamais olharia para mim fora desses portões. Quando crianças, Ryo e ele não se importavam com o que eu era. Mas quando voltaram da escola nas montanhas, percebi a mudança. Os eventos na cidade, as festas religiosas ou simplesmente qualquer comemoração: nunca sou chamado. Ryo já realizou inúmeras festas de aniversário, o convite para mim nunca veio. Shin finge não me ver fora desses murros — sentiu as lágrimas inundarem os olhos. Nunca havia admitido aquilo nem para si mesmo. — Várias vezes, insinuei minha vontade de vermos os fogos de ano novo juntos, mas ele sempre desconversa. É claro que eu não insisto, Shiro. Mas não sou tolo...
— Aiko-san...
— Eu sei que você ainda não entende seus sentimentos, mas eu vejo nos seus olhos o mesmo olhar que eu dava a Shin. Antigamente, ele era um ídolo para mim, alguém tão inalcançável que me dava atenção. No entanto, com o tempo, esse sentimento só me trouxe frustração. Não quero que fique como eu, Shiro. Preciso que se afaste de Ryo.
Shiro baixou a face. Os dedos claros seguraram o cordão que havia acabado de ganhar. Por algum motivo, percebeu seu próprio desespero. Não queria se afastar de Ryo, mesmo tendo passado tão poucos momentos com ele.
— Ele é meu amigo — insistiu.
— Shiro...
—Eu lhe prometi amizade, não voltarei atrás.
Repentinamente, algo se inflou no seu âmago. Ergueu-se e correu em direção à porta. Nos olhos já brotavam as mesmas lágrimas que se derramavam em Aiko.
— Entenda — Aiko gritou. — Ele jamais vai considerá-lo como você o considera. Ryo nunca olhará para você fora da Casa Ai. Não sabe como vai doer quando ele desviar os olhos para o outro lado da rua quando eventualmente se cruzarem.
— Por que acha que Ryo - san terá por mim os mesmos sentimentos que Sakamoto tem pelo senhor?
—Por ele é rico, Shiro! — Mamoru esbravejou. — E nós dois somos a escória da sociedade. Sou dono de um bordel e você é só um dançarino que já se vendeu nas ruas. Ryo e Shin vêm de famílias tradicionais, e nós somos apenas dois pobretões sem eira nem beira.
— Eu não me importo — insistiu. — Eu nunca tive um amigo como ele, não pode nos separar!
Mamoru suspirou. Claramente, a inquietação juvenil elevava os hormônios de Shiromiya ao ponto máximo. Talvez não devesse se preocupar tanto, em breve o próprio Ryo decepcionaria Kazue de tal forma que ele iria decidir por si mesmo o afastamento.
— Você acha que é diferente de mim, mas é igual — Mamoru decretou, por fim. — Posso me ver na sua idade dizendo as mesmas coisas para Nana, fazendo a mesma birra, chorando da mesma forma. Espero apenas que acorde dessa ilusão antes que não reste nada em você, como já aconteceu comigo.
Quando a porta do quarto de Mamoru se fechou, percebeu que o garoto não havia aceitado nenhum dos seus conselhos.
***
Ryo ergueu os olhos para o rapaz de cabelos longos. No seu requintado escritório de Tóquio, atrás de uma mesa de madeira cara, sentado em uma excelente cadeira estofada, o comerciante sorriu para Mamoru Aiko.
— Nove horas da manhã? — olhou no relógio de pulso. — Achei que homens da noite não acordavam cedo. Como foi o restante da festa?
— Graças a você, não teve mais festa — Mamoru murmurou.
— E por quê? Ficou nervoso com a minha presença e descontou no garoto?
Aiko suspirou. Em seguida, voltou os olhos para o amigo.
— Precisamos conversar. Posso me sentar?
Ryo negou. O sorriso debochado ainda brincando nos lábios.
— Veja bem, Mamoru — inclinou-se sobre a mesa, os olhos atrevidos. — Já é um escândalo você ter vindo pessoalmente ao meu escritório. Sabe disso, não? Pode me prejudicar. Homens sérios de negócios não se encontram com donos de bordéis durante o dia. Assim sendo, vamos conversar em outro lugar, fora daqui. Não quero que meus clientes saibam que um simples cafetão anda frequentando...
— Cale a boca! — Aiko gritou, o punho batendo forte na mesa. — Estou cansado de você, então serei breve. Não é mais bem vindo à minha casa, não vá mais lá!
Ryo bateu palmas, irônico.
— Com essa, já deve ser a quarta vez que me fala isso — riu. — Já terminou? Então vá embora que tenho que trabalhar e não tenho tempo para sua frescura — dispensou-o.
— Eu estou falando sério.
— Eu também — Ryo o encarou. — Você me trata como quer na sua casa, aqui eu o trato como eu quiser, portanto, saia do meu escritório porque estou farto de você.
Diante das palavras, Aiko ficou reto. Seus olhos duvidosos ainda ficaram sobre Ryo por alguns segundos, e então o rapaz deu as costas.
— Shiro tem dezesseis anos, não? — Ryo indagou, fazendo com que Mamoru estancasse. — Nessa idade se acredita tão facilmente em qualquer promessa vazia, você não acha?
Aiko se voltou pro outro.
— Acho que seria bom você escolher se prefere que eu o veja embaixo das suas asas, ou que eu o engane com promessas idiotas e o leve de você — ameaçou.
Houve um resquício de incredulidade em Aiko.
— Você o deseja?
— Um homem? — Ryo resmungou, enojado. — Faça-me o favor, Aiko!
— Então, por quê?
— Shin tem Minikui, eu não tenho nenhum bichinho de estimação — explicou, sorrindo.
— Isso é cruel.
— Você fala como se eu me importasse.
Mesmo sem ser convidado, Aiko voltou. Sentou-se diante de Ryo, pronto para tentar trazer lucidez ao amigo.
— Eu o encontrei numa manhã quente no centro de Tóquio quando tinha catorze anos — contou. — Ele estava deitado em uma carroça velha, coberto por cobertores sujos. Estava machucado, de todas as formas que você pode imaginar. O irmão o vendia por comida, mas eu não sei se ele estava alimentando Shiro quando o encontrei. Parecia estar morrendo de fome, havia sido estuprado muitas vezes, e não tinha luz nos olhos. Aos poucos, ele voltou a ser feliz. Acho que não totalmente, mas ele adora Nana, adora dançar, adora ouvir histórias. — respirou fundo, para evitar o pranto diante do outro. — Ryo, você tem tudo. Tem uma boa casa, tem bens, riquezas, mulheres... Basta estalar os dedos e é servido, amado e admirado. Shiro, ao contrário, só tem seus sonhos. Não destrua o pouco que ele tem.
Ryo estava estático, o olhar sério e fixo em Mamoru. Durante algo tempo, o silêncio imperou entre eles, fazendo com que até mesmo os pássaros lá fora fossem audíveis. A súplica de Aiko ecoou nos seus ouvidos, repetidas vezes, fazendo com que o homem estremecesse. Então, assim como veio, o silêncio se foi.
Primeiro, a cadeira sendo afastada. Ryo se levantou e caminhou até a porta. O som esganiçado da porta de madeira se abrindo, o barulho da máquina de escrever da secretária do lado de fora, o som de passos, o barulho irreconhecível que o próprio Ryo deixava escapar dos lábios semiabertos, nada, contraditoriamente, ecoou tão forte quanto a voz baixa, porém firme com que pronunciou as próximas palavras:
— Vou dizer de novo, fala como se eu me importasse.
Diante disso, Mamoru nada pôde fazer além de se erguer e caminhar reto até a porta. Antes de sair, ele olhou mais uma vez para o amigo. Quis dizer mais coisas, mas o olhar frio o espantou.
Ryo fechou a porta assim o outro saiu. Por alguns segundos, ele ainda observou a madeira fria, como se buscando nela qualquer redenção. Em seguida, porém, explodiu.
Atirou no chão todos os vasos e os papéis. Chutou a cadeira, derrubou a mesa. Do outro lado da porta, a secretária estava apavorada, mas não ousou se intrometer. Quando, enfim, tudo que tinha foi ao chão, vitima de seu ódio e revolta, Ryo se sentou no tapete, segurando o próprio tremor.
“ Oseu eu guardarei para sempre, porque é um símbolo da nossa amizade.”
A frase de Shiro pegou-o desprevenido. Pôde visualizar novamente o garoto segurando o cordão como se fosse o mais precioso bem que tivesse. Seu sorriso límpido e puro negava todas as coisas que Aiko acabara de relatar.
Ryo sabia que Shiro era um prostituto. O próprio Shin já lhe contara que havia dormido com ele. Mas ouvir as verdades dos lábios de Mamoru, o enlouqueceu. Não aceitava aquilo!
— Não quero a amizade daquele lixo! — disse a si mesmo.
Mas não entendeu por que chorou no instante seguinte.
***
Julho de 1942.
A Casa Ai voltou a abrir as portas no mesmo dia que o exército alemão capturou a cidade de Sebastopol. As rádios, em polvorosa, declaravam a feliz notícia, e Aiko sabia que era uma boa hora para os homens comemorarem. A perspectiva de dinheiro o animou.
No dia anterior, enfim, o abrigo ficara concluído. Agora necessitavam trabalhar bastante para pagar o gasto extra. Havia tirado das economias os valores que precisava para aquela construção, e todo o lucro que viesse seria bem vindo.
A noite estava enluarada, e o ar calmo e seco. Os homens começaram a chegar logo após os portões se abrirem, e Aiko os recebeu com um sorriso autêntico nos lábios. Sorriso esse que sumiu, assim que Ryo surgiu diante dele.
— Não vai me mandar embora? — Ryo ironizou, assim que ficaram frente a frente.
A verdade é que havia sido um custo para Aiko fazer as pazes com Shiro. Após tantas acaloradas discussões, Shiromiya lhe afirmou que não estava apaixonado por Ryo e que não iria se iludir perante o outro. Assim sendo, pediu que eles pudessem continuar a se ver. Aconselhado por Nana, Aiko achou melhor aceitar. Seria muito pior se Shiro resolvesse fugir para ir até Ryo. Amava Shiromiya como amaria um filho ou um irmão, caso os tivesse, e não conseguiria viver sabendo de sua dor.
Então, abriu caminho.
— Já foi meu grande amigo e agora nem me olha nos olhos — Ryo suspirou, a voz ainda debochada.
— Estou surpreso que se importe — devolveu, na mesma moeda.
Ryo pareceu surpreendido. Porém não lhe deu mais atenção. Olhando para frente, ele rumou até o salão.
Mamoru sentiu-se triste perante aquilo, mas o que mais ele podia fazer? Para Ryo tudo não passava de uma brincadeira, um divertimento que perderia a importância assim que encontrasse outra coisa que lhe chamasse a atenção. Para Shiromiya, era o nascimento de uma amizade sólida, que o alegrava e o tornava uma pessoa normal, como qualquer outra.
Ledo engano.
Cumprimentando mais dois ou três clientes, Mamoru decidiu afastar-se do portão. Precisava de ar, precisava de tranquilidade para colocar os pensamentos em ordem. Se Shin estivesse ali... Ah, sim, Shin faria algo para ajudá-lo. Mesmo que fosse apenas uma frase solta, um discurso irônico ou um conselho engraçado. Shin o animaria.
— Não o vi no salão... — A voz grave e masculina o fez voltar-se.
Observando ao seu redor, Aiko percebeu que havia caminhado até a parte fechada do jardim, onde havia algumas árvores que lhe forneciam frutos. Depois, observou o homem à sua frente e se curvou, humilde.
— É um grande prazer revê-lo, Hiroshi — disse. — Como foi a viagem para a Alemanha?
— Foi como sempre — o outro sorriu. — Shin Sakamoto agindo como um rei, e Takako- san o idolatrando como um idiota.
Mamoru se absteve de comentar sobre aquilo. Na outra visita que Hiroshi havia feito à Casa Ai junto com Shin, notou certa animosidade entre eles.
— Shin voltará logo para o Japão? — perguntou, ansioso.
— Ele voltou ontem — Hiroshi sorriu. — Todos nós voltamos ontem.
Ontem? Mamoru arqueou as sobrancelhas, incrédulo. Por que, então, ainda não havia ido vê-lo? Não sabia que ele estava aflito e ansioso pelo reencontro? Que morria de saudades, que adoraria abraçá-lo e mimá-lo? Shin Sakamoto não lhe escrevia há meses, deixando-o cada dia mais inquieto.
— Shin virá hoje? — subitamente percebeu que Sakamoto podia chegar a qualquer momento.
Num salto, ele tentou correr em direção ao portão, mas teve o braço preso por Hiroshi.
— Ele não virá, Aiko Mamoru — o outro contou.
— Por quê?
Shin havia se ferido na guerra? Mas ele nunca fora ao fronte, o Imperador jamais permitiria que Shin sofresse qualquer mal.
Repentinamente, o dedo direito de Hiroshi deslizou pelo seu rosto. Aiko enojou-se e tentou se desvencilhar da mão que o prendia.
— Vou ser sincero, marica — Hiroshi voltou a insultá-lo. — Agora você está sozinho, sem protetor. Shin Sakamoto encontrou um novo amante na Alemanha, um japonês bem mais bonito que você. — Diante do olhar descrente, Hiroshi se explicou. — Veja bem, toda Tóquio sabe que você é um pedaço de mau caminho, mas, acredite, o sargento que está dividindo a cama com Sakamoto tem ainda mais beleza e sedução.
— Como se atreve a falar assim? — Aiko se revoltou. — Como se atreve a me segurar?
— O que vai fazer? Vai contar para Sakamoto? Ainda não percebeu? Acabou. Shin Sakamoto tem um novo divertimento, um novo amante. Ele não virá mais, e caso não me aceite, ficará sem proteção. O que fará, caso a Casa Ai se torne alvo da Kempeitai? Já imaginou se alguém denunciá-lo como... traidor da pátria?
A frase assustou Aiko, que começou a lutar. Diante da recusa, Hiroshi o estapeou.
A força da agressão derrubou-o. Assim que ele caiu no chão, tentou correr, mas o outro se sentou sobre ele.
— Vai me incriminar com a polícia? — Aiko questionou, furioso.
— Isso quem vai decidir é você — Hiroshi riu. — Se me tratar bem, me der tudo que dá a Sakamoto, poderei ser generoso e me tornar o novo guardião da Casa Ai. O que acha?
— Contarei tudo a Shin! — ameaçou.
— Contar tudo a Shin? Ainda não entendeu? Quantas vezes terei que repetir: Shin Sakamoto não virá mais. Ele não vai perder o novo amante visitando o antigo! Nesse momento, enquanto luta contra mim, ele está na cama do Sargento Saito, fazendo sabe-se lá o quê.
— Então falarei a Ryo!
— Ryo não é da família real nem é do exército. Posso destruí-lo e incriminá-lo assim como farei a você, caso se recuse a mim!
Para nojo de Aiko, Hiroshi então se curvou a ele. Segurando seu rosto, pôs-se a beijá-lo. Mamoru tentou se mexer, afastar aquela boca asquerosa de si, mas o outro era mais forte. As palavras de Hiroshi sobre Shin e um novo amante martelaram em sua mente, e as lágrimas vieram em abundância.
Shin o amava, ou assim imaginava que fosse. Contudo não o desejava. Nunca se atrevera a tocá-lo com volúpia, nunca dera qualquer demonstração de luxúria, nem sentimentos profundos. Eram amigos, e apenas isso. Porém ninguém cria na relação daquela forma e, bem da verdade, caso realmente Shin estivesse com um amante, o outro poderia coagi-lo a não mais vir vê-lo.
— Oh, está chorando? — Hiroshi riu. — Que cena patética. Seja homem — mandou. — Não sabe que o amor romântico é coisa de mulherzinha? Ah, claro, ia me esquecendo, você é praticamente uma garota com esses cabelos longos, essa pele macia e essa postura submissa. Imagino como é na cama, mal posso esperar.
Mesmo com a enorme diferença de força entre eles, Mamoru lutou como um louco. A boca, coberta pela mão grande, não conseguia emitir sons, mas as mãos lutavam com desespero tentando impedi-lo de estuprá-lo.
O quimono rasgou até a cintura. Sua pele pálida, tão branca quanto a das mulheres com maquiagem, surgiram diante do olhar admirado do outro. Aiko chorou, quando ele levou a boca até seus mamilos, mordendo o bico, enojando-o ao ponto de vomitar.
Quando uma das mãos tocara seu membro pequeno, foi que ele encontrou forças e o empurrou. Ao ver seus lábios livres da mão de Hiroshi, gritou alto, tentando conseguir ajuda. Logo, porém, voltou a ser emudecido pelo outro.
Pensou em Shin, pensou nos seus tolos sonhos românticos e na forma como estava sendo destruído pelo colega de exército de seu amor. Acabou por desistir de lutar, não achava mais forças, não diante da verdade de que era abandonado por Sakamoto, entregue sem piedade à Kempeitai.
No entanto, o corpo de Hiroshi saiu de cima de si em seguida. Pasmo, viu Ryo puxá-lo, derrubá-lo no chão e socá-lo tantas vezes que perdeu a conta. Seus olhos assustados então viram Shiro, ainda vestido como a dançarina da Casa Ai, ao lado de Ryo. O garoto estava assustado, talvez a mente recordando-se de si mesmo. Aiko quis ir até ele, dizer que tudo ficaria bem. Mas, antes de qualquer coisa, viu que Ryo se voltava para si.
A mente não aguentou a compreensão do amor sincero que viu. Mesmo numa época de tantas discussões entre eles, assim que Ryo ajoelhou-se a sua frente, ele entendeu que mesmo as palavras duras e ferinas não haviam mexido com os sentimentos que os uniam.
Abraçou Ryo, e chorou no seu ombro. A boca falou, o que, nem ele sabia. Só queria que Ryo soubesse que e era grato pela amizade, e que nunca esqueceria o que o amigo havia feito.
Pouco depois, Nana apareceu junto com os seguranças. Ouviram alguns gritos, disseram. Mamoru escondeu o rosto no ombro de Ryo e deixou que o amigo o levasse até o quarto. Deixou para Shiro a incumbência de explicar tudo. Tudo que pediu foi que levassem Hiroshi a um hospital. Caso ele ficasse com alguma sequela, todos na Casa Ai poderiam ser punidos pela Kempeitai. Sem a proteção de Shin, poucas opções restavam.
Ryo foi embora cerca de uma hora depois. Aiko não contou nada a ele a respeito do que disse o oficial, mas quando Shiro surgiu pouco depois para passar a noite com ele, não aguentou e chorou tudo que o coração quis.
Kazue chorou com ele, abraçando-o fortemente. Disse que devia ser um mal entendido, que o senhor Sakamoto nunca o abandonaria. Mas dentro de si, Mamoru sabia que Shin havia mudado. E ele odiava o tal Saito, culpado pela mudança.
***
Shiromiya sorriu para o homem que o observava. Ficou feliz porque Ryo havia vindo para vê-lo dançar. Era sempre uma honra ter um amigo que se preocupava com seus dons e seus sonhos. Ryo sorriu para ele, e Kazue quase perdeu o passo. Depois, baixou os olhos, e voltou a se concentrar. Por sorte, não levou muito e a música chegou ao final. Curvando-se ao público, ele esperou as luzes se apagarem para se afastar.
Chegou ao corredor pouco depois, mas não foi até o próprio quarto. Esperou um pouco, afobado, pensando que estava enlouquecendo em ficar no aguardo de alguém que provavelmente não viria. No entanto, não levou cinco minutos e Ryo apareceu diante de si.
Não disseram nada. Ryo lhe segurou a mão e o arrastou até o jardim. Sabendo que Mamoru era contra aquele encontro, esconderam-se atrás de um arbusto, rindo como duas crianças aprontando travessura.
— Senti sua falta — Shiromiya disse, inocente.
Ryo afastou os pensamentos carnais que surgiu em si. Devolveu o sorriso, amistoso.
— Mamoru não me deixa vê-lo.
— Aiko-san pensa que o senhor quer me machucar — explicou.
— E você? O que pensa?
— Penso que sua amizade é sincera.
Uma leve culpa o tomou. Porém, espantou-a. Ora, não estava fazendo mal nenhum para o garoto. Tudo que queria era olhar para ele porque...
Por quê? Nenhuma justificativa formou-se em sua mente. E se enervava cada vez que as causas de suas visitas tornavam-se obscuras até mesmo para si.
— Shiro... — começou, mas um grito abafado o interrompeu.
Kazue girou a cabeça, deixando claro que também ouviu o som repentino. Ryo não levou muito tempo para reconhecer o timbre. Ambos então correram em direção ao lado leste do jardim. Atrás de árvores frondosas, viram, chocados, Mamoru no chão lutando desesperadamente contra um homem de uniforme do exército.
— Hiroshi? — Ryo estava surpreso.
Hiroshi era guarda imperial. Sua alta patente o tornara guardião de Shin. E agora o idiota se atrevia a submeter Mamoru, sendo o mesmo protegido de Sakamoto? Agarrou o homem por trás e livrou o amigo. Assim que afastou Hiroshi, encarou Aiko. O cortesão estava com os lábios machucados, e a frente do quimono rasgada. Cegou-se e partiu para cima do oficial.
Nem Aiko nem Shiro conseguiram se mover ao verem os homens se atracarem. Ryo derrubou Hiroshi com um soco e, mesmo de menor estatura, conseguiu se impor. Provavelmente pela raiva, sua força teve o efeito desejado. Assim, socou-o até desacordá-lo. Só quando sentiu que o outro não mais se movia foi que parou.
Assustou-se com o sangue nas mãos, mas o que realmente o surpreendeu foi o olhar temeroso de Shiromiya. Pensou em ir até ele, abraçá-lo e dizer que não devia temê-lo, mesmo que em outra época, sua força fora contra o próprio garoto. No entanto, o choro manso de Aiko chamou sua atenção. Correu até o outro e o abraçou.
— Achei que me odiasse — Mamoru sussurrou nos seus ouvidos.
— Eu nunca permitiria que alguém lhe fizesse mal, Aiko — disse, um sorriso franco nos lábios. — Eu amo você, mesmo que muitas vezes não saiba expressar isso.
Aiko o apertou forte. Pouco depois, os seguranças apareciam, provavelmente chamados pelo barulho da briga. Com um gesto das mãos, Mamoru mandou-os levar Hiroshi até o hospital. Não queria problemas com a Kempeitai, então se absteve de jogá-lo na rua sem ajuda.
Uma hora mais tarde, quando Mamoru já havia se recolhido, Ryo voltou a procurar por Shiro. O garoto havia sumido tão logo Hiroshi fora expulso. Encontrou-o no corredor, já livre da maquiagem e da roupa feminina.
— Agradeço pelo que fez hoje, Ryo-san — curvou-se perante o outro.
— Então por que me olha como se me receasse?
— Lembrou-me que sabe ferir — admitiu, sem hesitar. — Mas me conforta saber os motivos.
Ryo assentiu, compreensivo.
— Ficarei com Aiko-san — Shiro disse. — Ele está muito nervoso pelo que aconteceu. E, Nana contou, está arrasado porque o senhor Shin encontrou outro amor.
Shin encontrando o amor? Ryo segurou uma risada histérica.
— Está bem, meu querido — concordou. — Voltarei amanhã para vê-lo dançar.
Shiro sorriu. Ryo curvou-se e se afastou. Em si, a certeza de que ir embora era o que melhor faria. Precisava se afastar de Shiro naquela noite, antes que cometesse uma loucura.
Capítulo 13
Shin bocejo u , abriu os olhos e se espreguiçou em meio aos lençóis emaranhados. O cheiro da cama estava bom. Adorava o perfume que Saito usava, e o aroma parecia impregnado em sua pele e na sua roupa de cama. Girou o corpo, ficando com a barriga para cima. Aos seus pés, diante de um espelho, o sargento Jiro ajeitava o casaco sobre si.
Impecável.
Shin sorriu. Não que estivesse apaixonado, mas há muito tempo que não desfrutava de uma amizade tão rica e completa quanto a de Jiro. Mesmo com Mamoru tinha lá seus segredos. Nunca havia lhe confessado seus sentimentos, por exemplo. Mas com Saito, podia ser totalmente franco, sem máscaras ou fingimentos.
— Aonde você vai? — perguntou, sorrindo.
— Irei ao Daihon'ei [31] verificar se está tudo bem sobre minha troca de ofício sem ordens superiores.
— Sem ordens superiores? — Sakamoto se sentou, irritado. — Acima de mim, apenas o próprio Hirohito!
— Menos, Shin, menos... — Saito riu. — Mas acredito que não haverá problemas.
— Claro que não...
— Me pergunto se as pessoas não o criticam por esses atos impensados — Jiro observou. — Trazer-me para o Japão sem antes indagar aos meus superiores ou ao Imperador... — murmurou, e então ergueu a voz. —Você não se importa com o olhar de censura que recebe?
Shin deu os ombros.
— Quando sou criticado, sinto como se estivesse no zoológico Ueno, e alguns macacos estivessem jogando cocô em mim. Sei que fazem isso porque não gostam da minha pessoa, mas não os condeno. Afinal, reconheço que não os agrado porque são mentalmente incapazes de compreender o quanto sou fenomenal.
Saito riu brevemente.
— Penso que serei bastante invejado. Saindo da guerra comum para tornar-me guarda imperial — brincou.
— Eu não teria aguentado sem você — confessou.
Saito assentiu. Depois, se aproximou da cama.
— Quando irá ver seu amado Aiko? — indagou, de supetão. — Chegamos anteontem e você ainda não fez menção de ir até ele.
Sakamoto baixou a face. Sentiu-se pressionado e não gostou.
— Isso não envolve você — retrucou.
— Tenho medo de que se apaixone por mim — foi sincero, como sempre. — Tornamo-nos amigos, mas sua ânsia em estar sempre ao meu lado me preocupa. Não estou aberto ao amor, Shin-kun [32] .
— Eu sei disso.
— Então?
Fechou os olhos, emburrado. Na verdade, sentia-se culpado. Mesmo quando dormia com outras pessoas, era apenas um alívio sexual, mais nada. Nunca se deixou envolver, nunca permitiu que ninguém conhecesse sua alma além de Mamoru. Porém, naquele momento, Saito era tão ciente de Shin quanto Aiko. Com certeza, era traição, e ele não sabia como olhar para o outro sem deixar todos os seus sentimentos de remorso à mostra.
— Mamoru não precisa saber o que houve entre nós, Shin — Jiro sussurrou, acariciando seus cabelos, compreendendo perfeitamente seu silêncio.
— Ele vai saber — Shin resmungou. — Ele vai perceber estampado na minha cara. Aiko consegue me ler com tanta naturalidade que assusta.
— Mesmo assim, o que pensa que ele sentirá quando souber que está em Tóquio e não foi vê-lo? Você lhe deve isso.
Jiro era, de fato, tudo que Shin precisava. Alguém que lhe dissesse o que fazer, que lhe falasse com clareza e lhe apontasse fatos e visões. Sorriu novamente.
— Eu irei. Vou tomar um banho e então irei.
***
A casa Ai amanheceu calada. Rika e Midori andavam de um lado para o outro, varrendo e limpando em total silêncio, numa vã tentativa de dar a Aiko tranquilidade. Ele, sentado à mesa da sala de chá, bebericava o líquido verde sem tecer nenhum comentário. À sua frente, Nana costurava uma toalha, enquanto o olhava de relance para novamente desviar o os olhos para o tecido.
Já era perto das dez horas quando Aiko, enfim, abriu a boca. Seu tom, estrangulado, estava cabisbaixo, triste e arrasado. Sua dor não era apenas pelo que ocorrera com Hiroshi, mas também por ter sido abandonado por Sakamoto, entregue à própria sorte, sem sequer ser avisado disso.
— O que faremos, Nana? — perguntou.
— Talvez seja bom vender a Casa Ai — a velha aconselhou.
— E o que será das meninas? E de Shiro?
— Shiro poderá ir conosco. Logo ele já será adulto e poderá conseguir algum trabalho. As meninas podem achar outra casa.
— Nenhuma casa dá a proteção que damos aqui.
— Que proteção? — Nana largou a agulha. — Nunca pensei que diria isso, mas precisa procurar Shin Sakamoto e pedir que ele volte a resguardá-lo.
— Nunca! — Aiko esbravejou. — Prefiro ser...
— O quê? Morto? Estuprado e depois escalpelado? Porque é isso mesmo que vai acontecer agora que perdeu a proteção de Sakamoto! — As mãos dela tremiam. — A Kempeitai pode entrar aqui a qualquer momento — seus olhos pareceram aflitos diante da possibilidade. — Pode ser que encontrem...
— Cale-se! — Mamoru ralhou. — Não vão encontrar. Sequer desconfiam. Mesmo Shin, que dormiu muitos anos no meu quarto nunca notou nada.
A mulher pôs os cotovelos na mesa, escondendo o rosto com as mãos. Aiko percebeu que a sua velha ama estava desesperada, e seus olhos se encheram de lágrimas.
— Não estava preparada para a chegada desse dia — assumiu. — Sempre quis Shin longe por medo do que ele pudesse descobrir, mas na minha mente, nunca passou o pensamento de que outras pessoas pudessem estar à espreita para pegá-lo, assim que Sakamoto se desfizesse.
As palavras machucaram Aiko. Nunca pensou que ser rejeitado pudesse doer tanto. Havia um espinho cravado em seu coração, uma dor que começava no seu âmago e machucava sua garganta. Queria chorar mais do que já havia chorado. Queria se esconder no quarto e desaparecer. Contudo tinha responsabilidades e sabia disso. Muita gente dependia dele e não podia recuar.
— O que vai ser de mim, Nana? — murmurou, as lágrimas já cascateando. — Eu nunca pensei que isso fosse acontecer. Na verdade, planejava que envelheceríamos juntos...
A mulher o encarou. Sua raiva estampada, incontida.
— Estou preocupada com nossas vidas, e você chora por seu amor platônico? — seu tom elevou. — Por Deus! Se não fosse um homem feito, eu o colocaria no colo agora e abaixarias as suas calças. Bateria em você e só o soltaria quando essa bunda branca estivesse em sangue!
Mamoru se envergonhou. A bem da verdade, se morresse naquele momento não se importaria. Sentia-se morto, completamente destruído. Era um fraco por estar chorando por motivo tão tolo. Sakamoto nunca fora seu.
A batida na porta fê-lo voltar-se para a entrada. Shiromiya apareceu, sorridente. Aliás, o menor andava bastante feliz ultimamente. Os motivos, Mamoru até temia perguntar.
— Senhor Sakamoto está aí — Shiro disse.
O choque de Aiko foi enorme. Ele não esperava encontrá-lo. Não depois de tudo que Hiroshi havia dito. Ao seu lado, Nana se ergueu. Pela primeira vez na vida, a velha sorriu à menção de Sakamoto.
— Vá vê-lo, Aiko. Arraste-se aos seus pés se preciso for — aconselhou. — Precisamos dele, você...
— Não preciso de alguém que me troca por um puto qualquer! — Aiko a cortou. — Diga a ele que não quero vê-lo — falou a Shiro.
Shiromiya pareceu surpreso. Voltou os olhos para Nana, buscando explicações.
— Dê uma chance a Shin Sakamoto — Nana volveu até Aiko, e o segurou no braço. — Quem sabe não é tudo uma grande mentira de Hiroshi?
— Caso fosse mentira, Hiroshi jamais me tocaria.
— Aiko...
Mamoru desvencilhou-se das mãos da mulher.
— Deixe-me! — pediu. — Eu irei pessoalmente mandar Shin embora. Que ele vá para o inferno com seu amante, que morram os dois durante a guerra! — desejou. — Eu darei outro jeito para me proteger da Kempeitai.
Tão logo pronunciou as palavras, saiu porta afora. Nana voltou-se para Shiro.
— Vá atrás dele. Tente ajudar no que for preciso. Se precisar, siga Sakamoto e lhe conte que Aiko está sofrendo. Se Shin veio, é porque Mamoru não lhe é indiferente.
— Acho que ele o ama, Nana — Shiro concordou.
— Você não acha nada! — a mulher ralhou. — Um pirralho como você não sabe o que é amor! Vá criar pelo na cara antes de querer me ensinar sobre a vida! — resmungou, voltando a se sentar.
Conforme mandado, Shiromiya saiu porta afora.
***
Shin Sakamoto estava parado no corredor. Vestido impecavelmente com um uniforme escuro, ele segurava um pequeno mimo que havia comprado na Alemanha para Aiko. Voltou os olhos para o corredor, aguardando ansioso pelo rosto que tanto amava.
Era bem verdade que a sensação de traição não saía de seu pensamento. Porém, igualmente em si, a certeza de seus sentimentos lhe dava confiança. Afinal de contas, por que tudo aquilo? Jiro havia sido apenas mais um. Aiko era único — ensaiou a desculpa perfeita que poderia amenizar sua culpa, mas não podia ser leviano consigo mesmo.
Jiro não era apenas mais um... Era especial.
Nos dias que passaram juntos, criaram um forte vínculo. Jiro o divertia, era exatamente o tipo de pessoa que Sakamoto buscava aprovação. Mesmo assim, se tivesse que escolher entre ambos, com certeza escolheria Aiko.
— Vá embora!
O grito raivoso o atingiu antes que a visão do cortesão surgisse. Aiko estava lívido, os olhos vermelhos e inchados, nitidamente havia passado toda a noite chorando. O quimono bonito estava abarrotado, e ele tinha marcas vermelhas no pescoço.
— Fiquei meio ano longe e é assim que me recebe? — reclamou, nervoso.
Deu dois passos em direção a Mamoru, e o viu recuando.
— Volte para seu amante — Aiko mandou. — Tenho certeza que o sargento bonito com quem anda dividindo o leito é companhia bem mais agradável.
Como Aiko sabia?
Sakamoto não conseguir mascarar as emoções. Seu semblante era tão culpado quando o de uma criança pega, em flagrante, roubando doce.
Diante disso, Mamoru sentiu um soluço escapando dos seus lábios.
— Eu odeio você! — gritou. — Odeio! Nunca mais apareça na minha frente!
— Aiko — tentou trazê-lo à razão. — Eu posso explicar.
Um jato de saliva atingiu seu rosto no mesmo instante. Pasmo, Shin limpou o cuspe dos olhos, cada vez mais irritado.
— Por Deus, Aiko! Você está passando dos limites.
— Essa é a minha resposta para as suas explicações — o cortesão disse. — Nunca vou perdoá-lo. Já o perdoei muito, mas dessa vez, você me deixou meses sem uma única carta, uma única palavra... E quando sei algo sobre você, é que retornou a Tóquio e não veio me ver porque seu novo amante é mais importante. Até Ryo-san tem mais consideração por mim!
Shin ficou surpreso.
— Quem lhe contou que eu estava em Tóquio?
— E isso importa?
— Aiko, não vou permitir que me afaste — foi firme.
— Então, mande a Kempeitai vir aqui e me matar. Porque eu não me importo mais. Faça o que quiser, você já me destruiu.
— Está sendo ridículo!
— Ridículo é você! — Aiko quase avançou sobre ele. — Seu arrogante, desgraçado! Desapareça das minhas vistas, odeio você e nunca mais quero vê-lo. Espero que você e seu amante... — emudeceu.
Percebendo a situação, decidiu dar as costas e se afastar. Shin ainda tentou contê-lo, mas Aiko se desvencilhou. Pasmo com a situação, Shin só se deu conta de que o perdera quando a imagem de Mamoru sumiu de suas vistas.
— Senhor Shin?
Girou o corpo, observando o menino que dançava parado ao lado de um pilar. Ele havia crescido, desde que o vira pela última vez, e estava também mais bonito.
— Shiro, não é? — Lembrou-se de seu nome. — O que quer?
Kazue o chamou para um canto, como se fosse acompanhá-lo à saída. Mas seu rosto denotava algo a mais, e por isso Shin o seguiu.
— Aiko-san acha que o senhor não o ama, mas eu sei que ama — disse, baixinho.
— E como sabe disso? — se interessou.
— Naquela noite que me quis — explicou, nervoso por estar se recordando de coisas que o incomodavam — não me molhou.
Não o molhou? Shin levou alguns segundos para entender que Shiro estava lhe dizendo que não havia ejaculado.
— Eu... — ficou sem palavras.
— Não me molhou porque Aiko-sangritou do outro lado da porta. Então o senhor saiu de cima de mim na mesma hora, como se estivesse aliviado pela interrupção tanto quando eu. — segurou o braço de Shin. — Muitos homens já ficaram em cima de mim, me machucando. E nenhum havia deixado de me molhar — ilustrou. — Então, eu sei que o ama. E Aiko-san o ama também.
— Ele cuspiu em mim — Shin murmurou.
Pelos céus, estava prestes a sentar Shiro no chão e deitar no colo dele. Por que nunca havia reparado no quão encantador ele era?
—Aiko-san quase foi estuprado ontem à noite — contou de supetão. — Está machucado de muitas formas, e por isso não consegue ver tudo com clareza.
O choque estampou o olhar de Sakamoto. Seu ódio explodiu instantaneamente, sem controle.
— Quem?
— Aquele moço que esteve junto com o senhor no dia que veio na festa em homenagem ao exército. Hiroshi é seu nome.
Hiroshi? Mataria o filho da puta!
— Como?
— Ele apareceu ontem à noite e disse ao senhor Aiko que Sakamoto-san não mais o amava. Contou que tem um novo amante, que agora Aiko-san está desprotegido. Assim teria que aceitá-lo, ou ele mandaria a Kempeitai vir aqui incriminá-lo. Como Aiko se recusou, ele bateu em Aiko-san e o jogou no chão. Ryo-san e eu estávamos conversando no jardim e ouvimos os gritos. Ryo-san o salvou. — Shiro relatou rapidamente. — Não sei se devia ter contado ao senhor — admitiu. — Por favor, não diga a Aiko-san que eu lhe contei. Ele está muito abatido, envergonhado e revoltado.
Shin sorriu. Suas mãos grandes bagunçaram o cabelo do outro, num cafuné carinhoso.
— Eu não esquecerei sua lealdade, Shiro — disse. — A partir de hoje está no meu rol de amigos.
Shiro não sabia exatamente o que aquilo significava, mas sorriu.
— Diga a Aiko que eu provarei ainda hoje meu amor por ele — pediu.
E então saiu rapidamente da Casa Ai, os passos em direção ao quartel da Kempeitai.
***
— Provar o amor? — Ryo murmurou. — O que ele quis dizer com isso?
— Não sei. Aiko-san também não sabe. — Shiro respondeu. — O senhor já recebeu uma prova de amor?
A pergunta repentina fez Ryo se afogar com o chá. Em seguida, tossiu, pensando sobre a questão. Estavam na sala de chá, era final de tarde, mais um dia quente e febril. Ryo havia terminado seus afazeres e ido para a Casa Ai. Sentia falta de Shiromiya, mesmo o tendo visto na noite anterior.
— Agora que falou, não, nunca recebi.
— Eu já — Shiro contou, feliz. — Meu irmão, uma vez, foi trabalhar numa fazenda próxima e ganhou bolos de morango. E ele trouxe para mim. Então, mesmo que ele tenha feito coisas que me magoaram, eu sei que ele me amava.
Era tão pouca coisa que Ryo quase riu. Na sua infância, tinha bolos de qualquer sabor que desejasse expostos em cima da mesa. Porém, não tinha irmão que se importava. E bem da verdade, nem pai e mãe que o olhassem. Era apenas um garoto criado pelos empregados.
— Você o ama? — Ryo indagou. — Seu irmão? — completou.
— Meu irmão era um bom garoto, mas... — emudeceu.
Shiro olhou para a mesa. Havia nele uma forte emoção e Ryo sorriu. Era tão frágil e transparente.
— Gostaria de dizer a ele que não o culpo por tudo que nos aconteceu — disse, por fim. — Ele fez o que devia ter feito.
— É muito bondoso por pensar assim.
— Nós dois precisávamos sobreviver — sussurrou.
Ryo assentiu.
— Shiro, você gosta de nadar? — mudou de assunto, incomodado com o teor da conversa.
Shiro negou.
— Não sei nadar.
— Existe um lago perto de Tóquio, é um lugar isolado e bonito. Gostaria de ir lá comigo?
A animação no olhar do outro foi instantânea. Todavia, morreu em seguida.
— Aiko-san não vai deixar.
— Aiko não precisa saber — disse, no mesmo tom. — Que horas se encerram as atividades na Casa Ai?
— Por volta das três da manhã.
— Então, eu o espero às três e meia do outro lado do muro. E quando o dia estiver para amanhecer, eu o trago de volta.
Shiro sabia que aquilo era errado. Mas a inquietação de sua juventude pareceu dominá-lo.
— Está tão quente, não é? — Ryo o provocou. — Não sabe como é maravilhoso brincar de madrugada nas águas calmas de um lago.
Parecia uma tortura.
— Eu quero ir, Ryo-san. Mas...
— Mas? Ora, você é jovem e eu sou seu amigo.
— É errado sem Aiko saber.
— Aiko está ocupado demais sofrendo por aquele idiota do Sakamoto. Deixe-o com seus próprios problemas e decida algo por si.
Shiro pareceu meditar alguns segundos. Por fim balançou a cabeça.
— Eu aceito.
***
O distrito policial estava repleto de membros do exército naquele final de manhã. Estavam comemorando algo, Sakamoto não sabia o que era e nem lhe importava o fato. Sabia que Hiroshi tinha vários amigos na policia militar e, após tê-lo buscado nos arredores do palácio imperial sem sucesso, rumou para o centro de Tóquio.
Percebeu alguns homens se curvarem quando cruzou por eles, mas não se dignou a encarar nenhum.
— Tenente Hiroshi? — indagou a localização a um jovem policial que estava sentado a porta do prédio.
O rapaz estabanado quase escorregou quando percebeu quem lhe abordava. Pôs-se de pé imediatamente e se curvou.
— Sakamoto-san! — cumprimentou. — Tenente Hiroshi está lá dentro conversando com o major...
Shin não lhe deu mais atenção. Ignorando-o, entrou no prédio.
O chão de madeira ecoou com suas pisadas fortes. O cheiro de água quente inundou suas narinas. Provavelmente. os homens estavam bebendo chá enquanto se congratulavam pela guerra. O Japão acreditava demasiadamente na vitória. Não perdiam uma batalha há mil anos, tinham a confiança da proteção dos deuses e depositavam sua fé em seu Imperador. No entanto, não era aquele um momento para pensar sobre a luta. Havia em Shin algo mais forte do que aquilo.
Entrou na sala do chefe da polícia e percebeu que havia mais pessoas lá, além de Hiroshi. Todos se levantaram, curvando-se, mas ele nem os olhou. Seu olhar frio estava completamente focado no homem que o acompanhou à Alemanha.
Hiroshi foi designado para sua guarda pessoal ainda no início da guerra. Nunca simpatizou com ele, apesar de não tê-lo rejeitado. Ao contrário de Takako, Hiroshi falava sem pensar, postava-se sem disciplina e costumava encará-lo sem o devido merecimento que sua linhagem merecia.
No entanto, jamais imaginou que ele fosse tentar forçar Mamoru. Só de pensar naquelas mãos grandes e grossas a tocar na pele delicada como cetim, Shin perdia o controle.
— Você — apontou Hiroshi — para o campo, agora.
O campo era um terreno vazio atrás do prédio, usado pelos homens para treinamento. Naquela hora, estava repleta de oficiais e soldados.
Assim que deu a ordem, Shin saiu da sala. Seus passos foram retos para o campo. Ao chegar lá, caminhou até as espadas usadas para o treinamento de esgrima, pegando duas. Pouco depois, Hiroshi e os demais membros da polícia chegavam.
— Sakamoto-san? — Hiroshi o chamou, curioso.
Uma espada voou até Hiroshi. Pegando-a na mão, o tenente ficou sem entender.
— Nunca toque no que pertence a outro homem, Hiroshi — Shin disse, cauteloso. — Você não conhece esse princípio básico de civilidade?
O outro pareceu meditar por alguns segundos. Olhou a espada e encarou Sakamoto. Sabia que era perito em luta, mas admitia que o outro não era nenhum fraco. Na verdade, o resultado daquele embate era desconhecido.
— Se eu matá-lo — Hiroshi começou —, serei morto em seguida. Ninguém pode tocar em um membro da família imperial.
Shin riu.
— Ouçam todos — gritou, olhando em volta, para todos os soldados que já se aproximavam curiosos. — Caso eu morra nessa manhã, sejam testemunhas da legitimidade dessa luta. Que ninguém toque um dedo no tenente Hiroshi, que ele mantenha seu posto e sua patente. A luta que vão presenciar nada tem a ver com a guerra ou a lealdade desse homem ao Imperador. — voltou-se para Hiroshi. — Satisfeito?
Não, Hiroshi não parecia satisfeito.
— Sou mais velho, mais experiente — avisou. — E sou perito na arte dos antigos samurais.
— Você considera mesmo que eu o tema? — Sakamoto riu. — Levante a sua espada, maldito, e eu lhe provarei quem aqui é perito em luta.
Já cego e inflamado pela raiva, Shin avançou. As duas espadas se encontraram, dando um som agudo, tilintando no ar.
Shin tinha postura, e isso Hiroshi percebeu imediatamente. E ele jamais tentava se defender ou recuar, os passos sempre avançavam, buscando o adversário. Era forte, mas imprudente. Hiroshi deu dois passos para trás, buscando fôlego e então também avançou. Uma espada bateu contra a outra com rapidez e, claramente, eles empatavam na destreza.
— Assim que morrer — Hiroshi disse, baixo. — Eu tomarei Mamoru para mim.
Estava tentando desconcentrar Sakamoto, mas o efeito foi o inverso. A imagem de Aiko tentando se defender surgiu em sua mente, e seu ódio aumentou. A força se tornou ainda mais potente e ele desferiu a espada a altura do peito de Hiroshi, que a desviou com a outra lâmina.
— Não entendendo sua raiva — Hiroshi disse. — Achei que estava feliz com Saito.
— Saito é meu amigo.
— Ora, por favor, eu os observei durante meses. Sei muito bem o que fazem no quarto.
— O que faço no quarto com Jiro, é problema meu — se defendeu. — Isso não lhe dá o direito de machucar Aiko.
— Só o machuquei porque ele tem a desprezível mania de se guardar apenas para você — gargalhou. — O que fará, se morrer? Não terá outro para proteger aquele rosto perfeito e sensual.
Ver outro homem descrever Aiko fez com que Shin não mais reprimisse seu temperamento. A espada voltou a voar, mas, daquela vez, ele pôs tudo de si nela. Hiroshi se mostrou surpreso, afastou a espada com a sua e tentou cravá-la em seu oponente, mas ele foi mais rápido e deu um salto para trás. Logo em seguida, voltou a atacar. Quando Hiroshi tentou repetir o mesmo gesto, Shin parou o ataque no meio. Ao ver a espada de Hiroshi afastando-se solitária, percebeu que era o momento.
Desprotegido, o tenente Hiroshi perdeu a vida às exatas onze horas e trinta minutos, quando a espada de Shin Sakamoto arrancou sua cabeça.
O crânio caiu no chão antes do corpo tombar para o lado. Os olhos mantiveram-se abertos, arregalados, como se ainda surpresos do ataque súbito. Todos que presenciaram a cena, até então, temiam Shin pelo sobrenome que carregava. Naquele instante, o temeram pelo homem forte que era.
— Traga-me um saco — Sakamoto ordenou a um jovenzinho que o encarava de olhos esbugalhados.
O pedido foi atendido em segundos. Com o pano de estopa nas mãos, Sakamoto caminhou até a cabeça e a ergueu pelos cabelos.
— Estão vendo esse pedaço de carne sem vida? — gritou. — Isso é o que acontece com aqueles que se atrevem a tocar no que é meu! — advertiu. — Quando ousarem erguer seus olhos para o dono da Casa Ai, lembrem-se desse episodio, e pensem se o belo rosto de Aiko vale a cabeça de vocês.
Depois disso, saiu com o saco nas mãos.
***
— Keiko mandou uma carta — Nana surgiu com um papel nas mãos.
Aiko ergueu as vistas, encarando a velha que corria até ele, no jardim.
— Como sabe que é ela? — indagou, antes de pegar a correspondência.
Pouco depois Rika, Midori e Shiro também se aproximavam, ansiosos por notícias.
— Quem mais escreveria para mim?
Mamoru sorriu. Nana lhe entregou o papel, ansiosa para que ele lesse as novidades. A velha, assim como as demais, também não conhecia as letras, e sempre que recebiam uma missiva, corriam para o cortesão.
— Oh, ela disse que o seu menino já está falando — Mamoru sorriu. — Não é maravilhoso? — emudeceu, subitamente os olhos se encheram de lágrimas. — Chama-o de Kazue Mamoru. — olhou para Shiromiya.
Shiro sorriu, também emocionado.
— O que mais ela diz, senhor Aiko? — exigiu que prosseguisse.
— Diz que está vivendo tranquila, graças ao emprego que Sakamoto arrumou para ela numa fábrica. O filho, ela deixa com a irmã mais nova, que o criará até ele ter idade de ir à escola. Disse que está feliz, que sente saudades nossas e que um dia virá nos ver.
Todos sorriram quando Aiko baixou o papel. Era um alento que uma antiga prostituta conseguisse agora viver de forma decente e tranquila. Uma esperança para Rika e Midori.
O momento fraterno, porém, foi interrompido por chutes fortes no portão. Mamoru se ergueu, pronto a correr para lá e expulsar quem se atrevia a tal afronta, quando o portão se escancarou, quebrando-se.
Seu espanto por ver Shin Sakamoto à sua frente depois de ter certeza de que o outro não mais voltaria, era nítido. Havia chorado a noite toda e parte da manhã e decidira não mais se abater por qualquer coisa que Shin falaria ou faria. Caminhou reto até o outro, de cabeça erguida.
— O que faz aqui? — perguntou. — E como se atreve a quebrar meu portão?
— Você não abriria, se soubesse que era eu.
— Não abriria mesmo! — confirmou. — Não quero mais vê-lo. Vá embora!
Shin riu, desdenhoso.
— Já me disse isso muitas vezes, Aiko. Mas agora sei que o diz porque não confia nos meus sentimentos. Contudo, estou aqui para prová-los a você.
Antes mesmo de Mamoru retrucar, Sakamoto atirou aos seus pés o saco. A cabeça de Hiroshi rolou contra suas sandálias. Num salto, Aiko pulou em cima de Nana, berrando. Rika e Midori acompanharam os gritos. Os três ficaram histéricos enquanto Shiro observava tudo com atenção e Nana voltava os olhos para Shin.
— Quando, em nome de Kami-sama, isso é uma prova de amor? — Aiko gritou.
— Um homem protege aquele a quem ama — Shin afirmou. — Isso é o que vai acontecer com qualquer um que ouse tocar em você ou ameaçá-lo.
Após isso, Shin deu as costas e foi embora. Shiromiya o acompanhou com os olhos até vê-lo sumir, e depois encarou Mamoru.
— Foi muito romântico — murmurou.
Aiko sequer prestou atenção à fala. Estava quase escalando Nana, tamanho apavoramento.
— Tirem essa cabeça daqui! — gritou.
— Não olhe pra mim — Rika saiu correndo.
— Muito menos pra mim — Midori foi atrás da amiga.
Nana bufou.
— Se você me soltar, eu posso colocá-la novamente no saco — a velha gorda resmungou.
— Eu coloco... Eu coloco — Shiro se ofereceu, correndo em direção ao crânio. Ergueu-o pelos cabelos, observando atentamente o rosto. Depois, o pôs dentro do saco de pano. — Onde devo guardar, Aiko-san?
Assim que a imagem de Hiroshi sumiu, Aiko soltou Nana.
— Guardar? Não! Leve-o para à sede da Kempeitai, e explique o que aconteceu. Caso não volte, eu mesmo irei para lá atrás de você. Porém, sei que todos eles já sabem, pois Shin adora mostrar para todo mundo seus feitos.
Shiro assentiu e saiu saltitante para a rua.
— Fico aliviada — Nana murmurou. — Shin deixou claro que o protege e ninguém mais vai se atrever...
— Não acredito que admire esse ato...
— Queime seu segredo — Nana o cortou. — Assim, ele vai morrer comigo. Apenas nós dois sabemos o que você tem dentro da caixa de madeira de seu quarto. Podemos aproveitar que Shiro saiu, e Rika e Midori estão na cozinha...
— Não! — Aiko recusou. — Prefiro morrer a fazer isso. Sabe que o quanto me importo...
— Mas Sakamoto não vai voltar a frequentar essa casa?
— Shin matou Hiroshi, o que prova que é possessivo em relação a mim. No entanto, não o inocenta de ter um amante.
Nana irritou-se.
— Foda-se o amante! Você pode ser morto caso...
— Eu já disse não! — Aiko foi firme. — Não insista mais, por favor.
Quando ele se afastou, Nana negou com a fronte. Mesmo com tudo que Shin andava fazendo em nome do dito amor que dizia sentir, a mulher sabia que esse sentimento morreria diante do pecado de Aiko, guardado em seu quarto.
Capítulo 14
Saito Jir o aproximou-se do balcão. Após receber alguns papéis de um soldado que aparentava ter cerca de vinte anos, pegou uma caneta e pôs-se a assiná-los. Não sabia por que havia sido mandado à delegacia para oficializar sua transferência de posto, mas preferiu não questionar. Já estava tendo muita sorte de ter saído daquele inferno que havia se tornado a Alemanha. Mesmo não livre do passado que o angustiava, agora ao menos não precisava assistir mortes terríveis. Além disso, estava no seu próprio país.
— Já soube o que aconteceu de manhã? — um dos guardas indagou ao outro.
Saito olhou para ambos, que cochichavam em um canto afastado. Desviou os pensamentos, não se importando com os fuxicos que rolavam no local.
— Posso ir? — indagou ao atendente, devolvendo-lhe as folhas assinadas.
— Sim senhor, sargento — o soldado fez uma referência.
Sargento. Provavelmente aquele posto não duraria muito. Imaginou que Sakamoto o elevaria de cargo em pouco tempo. Não que aquilo importasse. Na verdade, odiava o exército e só estava nele por conta da própria inconsequência adolescente.
Repentinamente, um garoto bonito de cabelos negros e olhos intensos esbarrou em si. Jiro o encarou, aguardando o pedido de desculpas que não veio. Sabia que se fosse qualquer outro oficial, o menino seria punido pela falta de modos, então, para fazê-lo entender o tipo de sociedade a qual pertencia, segurou-o pelo braço.
— Ei, não percebeu que trombou em mim? — indagou, a voz grossa. — Peça desculpas — mandou.
O rapaz o encarou. Apesar de claramente alegre — até porque entrou saltitante no local — seu olhar trazia um traço de melancolia e tristeza que fez Jiro recuar. Era extremamente bonito; aliás, nunca havia visto outra pessoa com tamanha beleza em toda a sua vida.
— Me perdoe, senhor — o garoto pediu, curvando-se.
Saito sorriu. Fez um cafuné em sua cabeça, aceitando as desculpas inocentes. Era tão fofo que sentiu vontade de colocá-lo no colo e brincar com ele como se fosse um boneco de pano.
— E então, garoto dos olhos tristes — apelidou-o. — Por que está correndo assim?
O garoto ergueu um saco. Só então Jiro notou que ele tinha algo nas mãos.
— Trouxe a cabeça que o senhor Shin Sakamoto decepou — contou.
Um silêncio sepulcral tomou conta do ambiente. Saito ficou chocado. Por alguns instantes meditou que talvez não houvesse entendido muito bem a colocação, até pediu para o outro repetir, mas diante da reprodução das palavras, abriu a boca, em espanto.
— Trouxe de volta a cabeça de Hiroshi? — outro soldado, que ouvira as palavras do menino, aproximou-se.
— Sim, o senhor Aiko pediu que a devolvesse para que fosse entregue à família junto com o corpo.
No fundo, Shiromiya sabia que era bem menos humanitário que isso aquilo a ordem de Mamoru. Aiko queria apenas se precaver de possíveis retaliações.
— Sakamoto-san fez isso? — Saito voltou-se para o soldado.
— Sim, o senhor Sakamoto apareceu de manhã e convocou o tenente Hiroshi para um duelo.
Então Shin matara Hiroshi. Claramente, havia percebido certa animosidade entre ambos durante a viagem. Hiroshi gostava de falar sem pensar, insinuar coisas que só irritavam a Sakamoto. Porém nunca pensou que Shin fosse chegar às vias de fato. E o que Aiko tinha a ver com aquilo?
— Você mora na Casa Ai? — perguntou ao garoto.
— Sim, senhor.
— Pode me levar até lá?
— A Casa Ai só abre suas portas à noite, senhor.
Jiro sorriu. Voltou a fazer um cafuné no garoto, que o encarava surpreso. Era um menino, mas não uma criança. Parecia estar na puberdade, mas havia tanta inocência em seus olhos que o sargento não resistia a afagá-lo.
— Qual seu nome, garoto dos olhos tristes?
— Shiromiya Kazue, oficial. Mas me chamam de Shiro.
“Garoto de olhos tristes” combinava melhor com ele.
— Sou amigo de Shin Sakamoto. Você sabe onde ele está?
Shiro negou.
— Então preciso ver Aiko Mamoru. Ele é dono da Casa Ai, não é?
— Sim, senhor.
— Leve-me até ele – repetiu.
Shiromiya pareceu em conflito. Por fim, percebendo que não havia como recusar, ele curvou-se perante Jiro e assentiu.
***
Aiko ouviu o barulho vindo do quarto. Correu até lá e viu Rika agachada com um pano nas mãos. A garota, ao percebê-lo na porta, sorriu.
— Resolvi limpar seu quarto, Aiko-san — contou-lhe, feliz.
A reação, porém, não era a que ela esperava. Mamoru ficou lívido ao vê-la abaixada diante do seu roupeiro. Antes mesmo de se conter, avançou contra ela.
— Eu mesmo faço isso, ou Nana — disse, aproximando-se e tomando o pano de linho das mãos da mulher. — Pode ir, Rika.
O tom era de expulsão. A garota se abateu imediatamente, afinal, queria apenas ajudar. Mas Mamoru sabia que ser duro naquele momento poderia livrá-la do pior mais tarde. Assim, apenas lhe agradeceu pela boa vontade, mas reafirmou que ela não era bem vinda àquele local.
Quando a porta se fechou, ele sentou-se na cama. Os olhos foram em direção ao antigo roupeiro de madeira onde, embaixo de pilhas de roupas, sua antiga caixa mista de metal e madeira guardava memórias que deviam já estar destruídas.
— Sou tão patético — ele murmurou.
Apegava-se a coisas sem valor, sem importância, e que poderia levá-lo à morte. Mesmo em outros campos de sua vida, sempre fazia as piores escolhas, aquelas que trariam vergonha.
O pensamento voltou a Shin e ele escondeu o rosto entre os dedos. Pelos céus! O que havia acontecido com Sakamoto? Como se atrevera a atirar uma cabeça ensanguentada aos seus pés? Odiava Hiroshi pelo que tentou fazer, mas não o queria morto. Ou, ao menos, não vê-lo morto com os próprios olhos.
Diante de tal pensamento, percebeu o quanto a guerra abalara seu senso de moral. Antes, jamais desejaria a morte de alguém, mesmo um inimigo. Agora, após as ameaças do tenente, suspirava de alívio por Shin ter cortado a cabeça daquele homem.
— Aiko — Nana abriu a porta sem bater, chamando-o.
Encarou a velha, o olhar em interrogação.
— Um homem muito bonito pediu para falar com você — ela contou. — Não me disse seu nome, mas está vestido com o uniforme do exército. Parece ser um sargento.
Mamoru sequer pensou muito. Claramente o novo amante aparecia para lhe exigir que deixasse Shin em paz. Preparado para um combate, Aiko repensou em tudo que falaria enquanto o escorraçasse porta afora.
Sem mais receio, saiu ao seu encontro.
***
Saito Jiro observou a sua volta. A Casa Ai realmente não era nada parecida com o puteiro que imaginava. Ao contrário, semelhava mais a um palacete, limpo e organizado. Naquele momento, por exemplo, estava sentado à mesa de uma sala que foi chamada pelo menino de olhos tristes como “sala de chá”. Ele, aliás, desapareceu assim que o deixara lá.
A sala de chá era um ambiente arejado, com uma grande janela lateral que dava para o jardim. O ambiente era perfumado e agradável. Mesmo diante do intenso calor que estava acontecendo, havia uma leve brisa que aliviava muito o ar carregado.
Saito olhou para o relógio de pulso, pensando no porquê da demora de Aiko Mamoru. Já havia chegado há alguns minutos e, desde então, não havia nem sinal do cortesão.
Estava curioso. Como devia ser aquele a quem Shin amava com tanto desespero e devoção? Bonito ou simpático? Doce ou felino? Não fazia ideia. Shin costumava idolatrar Aiko, colocando-o num pedestal em que era quase impossível definir sua personalidade. Todavia, admitia que a pessoa que controlava a casa Ai devia, sim, ter suas qualidades definidas; afinal de contas, a própria Casa do Amor testemunhava em favor do cortesão.
Desde o início da guerra, não era tão fácil assim manter a comida na mesa. Costumava mandar seu soldo para o pai, portanto se tranquilizava em saber que sua família estava bem. Porém já vira muitas pessoas nas ruas em situação esquelética, diferente do garoto que o encontrou na sede da Kempeitai, que parecia bem alimentado e nutrido.
Aiko Mamoru conseguia manter sua casa fora do horror que estourava em todo o mundo.
— Desculpe a demora.
A voz gentil fê-lo levantar. Voltou o corpo para aquele que chegava e surpreendeu-se com a visão arrebatadora que o tomou.
Pelos céus! Que homem perfeito!
O cortesão era alto, mas não excessivamente. Era da altura de Saito e Shin, o que já o destacava do restante da população, que mantinha estatura baixa. Tinha os cabelos escuros, num castanho indo para o preto, extremamente longos, chegando à cintura. Os olhos eram mesclados num tom escuro como a noite, e delicado como o mel. A boca, perfeita e pequena, parecia uma maça vermelha, apetitosa.
E, por Kami-sama , como cheirava bem! Desde que ele entrara na sala, o aroma de rosas invadiu as narinas de Saito, confortando-o.
Um miado interrompeu seus pensamentos.
Só então notou um grande gato gordo nos braços do outro, como um rei sendo carregado por seu súdito. Com certeza, aquele era Minikui.
Sorriu.
O gato era uma cópia felina fiel de Shin.
— Você é Aiko Mamoru? — indagou, por via das dúvidas, volvendo o olhar para o homem.
— Parece não acreditar. Por quê?
— Sakamoto-san me disse que era perfeito, mas eu não esperava que fosse acima dos versos apaixonados dele.
Mamoru ficou surpreso pelas palavras, pois não esperava elogios.
— Sente-se — apontou a cadeira a Saito, e também se sentou a sua frente. — O que deseja?
Objetivo. Jiro gostou de mais aquela faceta.
— Chamo-me...
— Já sei que é o sargento Saito — Aiko adiantou-se. — Aliás, faz jus à sua fama.
— Fama?
— De ser um dos homens mais belos do Japão.
O tom do cortesão era carregado de rancor.
— Fama injusta. Não chego aos seus pés.
Aiko riu diante do galanteio. Subitamente o clima entre eles amenizou.
— E também não estou ao nível de me comparar ao garoto dos olhos tristes.
— Garoto dos olhos tristes?
— Shiro é seu nome, não? Fiquei pasmo quando o vi. É seu irmão?
O tom de Saito era tão amigável que Aiko esqueceu-se da birra e se pegou respondendo de forma cordial.
— É como se fosse. — Aiko então serviu o chá que estava sobre a mesa, previamente colocado lá por Nana. — Mas de que me adianta ser belo, se você também o é? E foi você que Sakamoto escolheu.
Jiro arqueou as sobrancelhas. A conversa caminhava para um lado que não lhe agradava. Tentou despistar, fazendo um cafuné no felino que se deitou sobre a mesa.
— Não sei o que lhe falaram, mas Shin e eu somos amigos.
Aiko riu, irônico.
— Por favor, Sakamoto sequer teve a decência de negar. A culpa era tão visível na sua cara de pau que mal conseguia parar de gaguejar!
Saito ficou incomodado, sem ao menos entender os motivos. De repente, Aiko ter conhecimento que os dois oficiais mantiveram uma amizade sexual o incomodou, fazendo-o desmerecer-se, irritar-se com a própria irresponsabilidade. Ao mesmo tempo, seu já denegrido senso de moral surgiu, como se voltando à vida, em seu coração.
— Foi apenas um conforto entre amigos.
— Conforto? — Aiko o encarou, como se o medisse. — Já confortei amigos e posso garantir que em nenhuma das vezes abri minhas pernas para tal.
O dono de um bordel estava lhe dando lição de moral?
—Você fala como um virgem... — Jiro retrucou, irritado.
No entanto, o olhar assombrado de Mamoru o espantou. Não podia ser, podia?
— Você é virgem? — questionou à queima roupa.
— Isso não é da sua conta! — Mamoru devolveu.
Como diabos a conversa chegara naquele tópico?
— Mal o conheço e vem questionar minha vida e meu corpo?
Jiro percebeu que havia passado dos limites. Porém como poderia se justificar? Era como se Aiko fosse um velho conhecido, alguém com quem pudesse trocar confidências e intimidades. Talvez, por ter ouvido aquele nome tantas vezes durante os últimos meses, estava familiarizado com a pessoa. No entanto, Mamoru não parecia compartilhar da mesma fraternidade.
— Peço desculpas — foi sincero. — Não ache que o estou discriminando por ser virgem.
— Não sou virgem! — mentiu.
— Aiko-san, acho lindo você se guardar para seu amor. Num mundo tão torpe, quantos têm a coragem e a honra de fazer o mesmo?
Aiko se viu sem palavras diante do elogio. Queria motivos para brigar com Saito e expulsá-lo da sua casa, mas não encontrava nenhum. Ao contrário, o sargento parecia bastante amigável.
— Então — resolveu ser prático —, o que deseja de mim?
Saito bateu com os dedos na mesa, pensativo.
— Bom, primeiramente eu gostaria de conhecê-lo, afinal, Shin fala muito sobre você. Depois, preciso saber o que aconteceu com Hiroshi.
Aiko respirou fundo.
— Não sou culpado do que aconteceu. Sequer falei para Shin que Hiroshi tentou me forçar.
— Hiroshi tentou forçá-lo?
A ideia causou asco a Jiro.
— Não sabia?
— Não fazia ideia — foi franco. — Shin saiu de manhã para vê-lo e não retornou. Encontrei Shiro na sede da Kempeitai, ele estava devolvendo a cabeça de Hiroshi. Assim, resolvi vir com ele até aqui para conversarmos.
Mamoru assentiu, compreensivo.
— Shin viu coisas que o perturbaram bastante, Aiko. Você o conhece melhor do que eu, sabe o quanto é suscetível.
— Shin sempre achou a guerra algo fascinante e incrível.
— Não mais. Nossos últimos meses na Alemanha quase tiraram seu juízo.
Aiko ficou curioso. Tentou trazer à mente a imagem de Sakamoto, mas não conseguiu identificar nenhum traço de mudança em seu sádico humor. Todavia será que realmente prestara atenção nele?
— Como assim?
— Visitamos vários campos de trabalho. — Jiro emudeceu alguns segundos, antes de prosseguir. — Na verdade, campos de extermínio. Campos onde pessoas são obrigadas a trabalhar antes de serem mortas em câmaras de gás, ou morrer pela fome.
— Shin não sabia que esses campos existiam?
Aiko duvidava muito. Shin se interessava por tudo referente à guerra.
— Ninguém por fora dos campos sabe realmente o que acontece lá dentro. Atrevo-me a dizer que mesmo os alemães civis desconhecem os horrores praticados pelos nazistas. Ou, pelo menos, desconhecem as piores partes — Saito suspirou. — Shin conseguiu manter a sanidade nas primeiras semanas. Apesar de extremamente abalado, ele lutou contra a própria mente. Contudo...
Aiko sentiu a angustia na voz de Jiro.
— Contudo?
— Numa manhã de junho, uma família judia que estava escondida em um porão de um prédio abandonado foi capturada pela S.S. A única mulher da família tinha um bebê de alguns meses no colo. A criança foi tomada por um dos nazistas — Jiro fechou os olhos, como se a lembrança fosse muito dolorosa. — O homem atirou o bebê no chão... — Aiko percebeu-o estremecer. — Eu ainda consigo ouvir o som dos ossos da criança estalando no momento que foram quebradas pelo tombo.
— Por Kami-sama! — Aiko exclamou.
— A criança chorou, óbvio. Todos da família choravam. O policial, então, se irritou e atirou na cabeça do bebê e, depois, na mãe...
Aiko baixou a fronte, piedoso daquela família desconhecida e de Shin que, com certeza, estava em frangalhos depois daquilo.
— Desde então, ele tem muitos pesadelos e se culpa pela guerra, mesmo sabendo que nada tem a ver com isso. Shin não se perdoa por tê-la apoiado e por ter idolatrado Hitler durante tanto tempo.
Mamoru sentiu os olhos repletos de lágrimas. Por que não observou o olhar de Sakamoto? Como pôde tê-lo deixado sozinho, à mercê da própria mente amaldiçoada? Talvez pudesse tê-lo ajudado e evitado a atitude inesperada em relação a Hiroshi.
— Shin perdeu completamente o bom senso depois daquilo. Ficaríamos até dezembro na Alemanha, mas consegui convencer Takako-san a conversar com os oficiais do Império para que nossa viagem fosse antecipada. Eu temia os atos dele. Temia que resolvesse se rebelar e provocasse um problema entre as duas nações. A guerra não está nas mãos de Shin, e por mais que lhe doa saber disso, ele nada pode fazer para terminar com ela. Ele é apenas uma peça nesse enorme tabuleiro.
Mamoru sabia que Shin não era nenhum exemplo de neutralidade. Confuso e confrontado com o próprio senso moral, deve ter se sentido perdido e destruído.
— Onde ele está agora? — indagou a Jiro.
— Não sei — Saito deu os ombros. — Provavelmente, voltou para casa.
— Shin considera a Casa Ai como sua casa. É aqui que dorme quando está em Tóquio.
— Crê que ele voltará para cá, então?
— Não. Está magoado com minha reação pelo relacionamento de vocês.
Saito concordou, compreensivo.
— Vou para sua residência. Caso não o encontre lá, irei buscá-lo por Tóquio. Em algum lugar, ele deve estar!
— Sim, mantenha-me informado, por favor.
Jiro se levantou. Mamoru fez o mesmo. O gato miou e Mamoru o pegou novamente no colo. Ambos se dirigiram para a porta. Porém, antes de sair, Saito voltou os olhos novamente para o outro. Sorriu.
— Espero vê-lo em breve — disse. — E você também, belo Minikui — acariciou novamente o felino.
Havia algo no tom de Jiro, que fez Aiko arquear as sobrancelhas. Parecia terno e caloroso e, ao mesmo tempo, sedutor e atrevido.
— Será bem vindo à Casa Ai — disse por fim, antes de abrir a porta para que o sargento fosse embora.
***
Shiro moveu o leque contra o rosto. Estava tão abafado que mal conseguia respirar. O suor já havia molhado sua camisa, e ele sentia o cabelo grudado na testa. Era, provavelmente, a noite mais quente que já haviam enfrentado nos últimos anos.
Sentado à porta, observando o movimento por uma fresta, respirou aliviado quando percebeu o último cliente indo embora. Um relógio que descansava sobre a mesinha do seu quarto marcava quinze para as três horas da manhã e, se tudo desse certo, logo estaria no lago, refrescando-se daquele inferno.
Mamoru surgiu no corredor, fazendo com que Shiro se escondesse novamente atrás da porta. Parecia apenas estar conferindo se tudo estava no lugar.
Estava.
Logo o cortesão entrou no próprio quarto e o silêncio tomou conta da Casa Ai. Shiro se sentiu culpado por estar fugindo de madrugada para se encontrar com Ryo, mas não queria preocupar ainda mais Mamoru. Shin havia desaparecido, e o sargento Saito mandou-lhe um bilhete informando-o que entraria em contato assim que o achasse.
Por ter que manter a Casa Ai aberta, Aiko não saíra à procura de Shin. Mas disse a Shiro antes de ele ir se preparar para a dança, que caso Sakamoto não aparecesse até o dia seguinte, iria pessoalmente a cada canto da cidade. Devia aquilo a Shin, por tudo que já lhe fizera.
A lua estava cheia. Sua claridade tornava a noite fantástica. Pouco depois que o silêncio dominou a Casa Ai, Shiro abriu sua porta. Pé ante pé, ele caminhou até o portão. Em segundos, estava na rua.
Como combinado, Ryo o aguardava do lado de fora. O comerciante mantinha-se encostado em um automóvel e parecia aflito.
— Achei que não fosse vir — disse, assim que Shiro surgiu.
— Mas ainda não são três horas — o outro se desculpou.
Ryo enrubesceu, notando seu estado de alerta. O que parecia? Um adolescente esperando a namorada?
Depois, abriu a porta do carro para o garoto, e ambos entraram.
— Este é Tadao — apresentou o motorista. — Tadao é servo de minha família há anos e foi ele que cuidou de mim desde criança.
Shiro fez uma leve saudação.
— Prazer em conhecê-lo.
O japonês, que servia de motorista, encarou o menino e sorriu.
— O prazer é meu, Shiro — disse.
O fato de o servo saber seu nome passou despercebido por Kazue. Subitamente, sua mente ficou em branco quando sentiu o solavanco do carro andando. Fascinado, percebeu que estavam se movendo.
— Nunca andou de carro antes? — Ryo notou a surpresa.
— Só andávamos de carroça.
O comerciante riu.
— Bom, realmente é diferente. Um veículo se move pela força de um motor e o outro pela força de um cavalo.
— Não — Shiro negou. — Não tínhamos animais. Meu irmão puxava a carroça.
Todas as vezes que Shiromiya contava aquilo, como se não se envergonhasse da sua miserável vida, Ryo se irritava. Desviou os olhos, mudando de assunto.
— Logo chegaremos ao lago — disse. — Fica bem próximo de Tóquio. Durante o dia está sempre repleto de banhistas, mas, à noite, é deserto.
Shiro sequer percebeu o tom desagradável. Bateu palmas, ansioso, e então voltou os olhos para a rua. Parecia fascinado com o movimento das ruas que desfilavam diante de seus olhos.
Ryo o observou com o canto dos olhos.
Nunca, até então, se importou em ajudar alguém a ter uma ínfima alegria. Mas, por algum motivo, queria que Shiromiya se alegrasse e fosse feliz. Pensou que talvez os anos estivessem tornando-o uma pessoa mais humana e bondosa.
Recusou os pensamentos. Pessoas boas só tinham a perder em tempos como aquele.
Fechou os olhos e recostou a cabeça para trás. O vento que entrava da janela balançou seus cabelos, e ele cochilou. Dez minutos depois, acordou quando o carro parou.
— Vem conosco? — indagou a Tadao.
— Não senhor, ficarei aqui. Dormirei um pouco no carro.
Fez um lembrete mental de dar folga a Tadao no dia seguinte e chamou Shiro. O lago ficava após uma caminhada de cinco minutos em uma trilha estreita. Mesmo durante a noite, a lua cheia ajudou-o a se localizar e, pouco depois, eles encaravam um bonito tapete de pedras lisas e um lago calmo e cristalino.
— Nunca vi um lugar tão bonito — Shiro murmurou ao seu lado.
Ryo sorriu. Era tão simples fazê-lo feliz.
Contudo, em segundos, o sorriso morreu. Percebeu Kazue arrancando a roupa, sem pestanejar. Ficou nu em menos tempo do que Ryo precisou para entender o que ele estava fazendo. Pouco depois, Shiro corria até a água e se jogava nela.
— Ryo-san! Está fria! — gargalhou.
Ambas as ações reforçaram o estado nervoso de Ryo. Primeiro, Shiromiya nu. Não que já não soubesse que o outro era belíssimo, mas vê-lo daquele jeito, sem pudores e ao mesmo tempo completamente inocente, causou-lhe um turbilhão de sensações que foram da cabeça ao baixo ventre.
Depois, a gargalhada. Por Deus! Nunca o ouvira rir daquela forma. E era um som tão bonito e único que o comerciante sequer percebeu que já arrancava a roupa do corpo e também ia ao encontro de Shiro.
Por sorte, a razão voltou antes de tomá-lo nos braços. Pasmo com a própria reação, Ryo foi até o outro lado do lago, afastando-se o suficiente de Kazue. Respirou fundo, antes de se voltar e ser envolvido por outra visão arrebatadora.
Shiro agora estava sentado na pedra, gotículas de água sob sua pele desnuda, as mãos apoiando o corpo, e a cabeça jogada para trás. A visão de uma sereia, caso estivessem no mar. Ryo gemeu baixinho, fechando os olhos, tentando afastar a imagem erótica. No entanto, quanto mais tentava não pensar, mas o corpo magro e curvilíneo o atingia. Abriu os olhos novamente, entregue ao pecado. Observou-o nu, cada detalhe exposto sem pudor. Automaticamente, as mãos foram para baixo e ele tocou o membro duro, acariciando-se.
O juízo voltou rápido e ele retirou as mãos. Devia estar maluco! Ou, enfim, fora influenciado por aquele idiota de Sakamoto, que adorava foder homens. Ora essa! Shiro era do sexo masculino, e Ryo não tinha interesse nenhum em alguém com um pênis no meio das pernas.
— Senhor Ryo — a voz suave o chamou.
Por que diabos, Shiro gostava tanto de falar? Quando se conheceram, ele não abria a boca. No entanto, naquele momento, não a mantinha fechada!
O outro o encarava com interesse. Era inocente, percebeu Ryo. Nenhuma demonstração da paixão que tomava o comerciante encontrava-se no menor. Shiromiya estava feliz, mas não excitado. Estava tranquilo, não arrebatado.
Ryo se envergonhou.
— Nunca me falou sobre sua família — Shiro pareceu perceber que jamais haviam falado sobre a vida de Ryo. — Conte-me como foi sua infância.
Por que aquele interesse? Ryo arqueou as sobrancelhas, notando repentinamente que Shiromiya acreditava que eram amigos verdadeiros. Admitiu que tudo que andava fazendo ultimamente remetia àquele pensamento.
— Meus pais morreram há muitos anos.
— É órfão como eu?
— Sim.
A verdade é que a mãe foi obrigada a casar com Eiji Ryo quando ela tinha apenas treze anos. O pai de Ryo, na época, ostentava seus quarenta e dois anos, os quais passou, na maior parte do tempo, na cama de meninas de idade infantil. Yume, sua mãe, morrera no parto. Soube, por uma antiga empregada, que ela suspirou de alívio quando sentiu a morte a tocá-la. Não demorou muito e o pai arrumou outra menina, daquela vez de doze anos. Não se casou com ela, mas Ryo recordava-se de vê-la caminhando pelos corredores carregando uma boneca. Quando a garota completou dezoito anos, foi mandada embora, só Deus sabe para onde.
O pai morreu de sífilis quando Ryo tinha quatorze anos. Lembrava-se de Tadao pôr a mão no seu ombro, confortando-o, mas o garoto deu os ombros, não se importando nem um pouco com a morte do genitor.
Tadao cuidou dos negócios da família até Ryo ter condições para assumir os negócios. E aquela era sua história de vida até então.
— Não tem irmãos, Ryo-san?
— Não.
— Você é sozinho, então?
Havia uma tristeza tão nítida na voz de Shiromiya que Ryo quase gargalhou. Era como se Kazue tivesse muitas opções contra a solidão. Todavia, preferiu recapitular.
— Não sou sozinho. Tenho Shin e Aiko. — Depois de uma breve pausa, finalizou: — E tenho você, não tenho?
As palavras pareceram animar Shiromiya, que assentiu, sorrindo.
Ryo então percebeu que a conversa, enfim, tranquilizou seu corpo. Saiu da água e se sentou ao lado dele. Pouco depois, ambos deitavam em cima da pedra. Em segundos, cochilaram.
***
— Ryo-san, acorde. Já são cinco e meia e logo amanhecerá.
A voz delicada fê-lo abrir os olhos. O semblante perfeito de Shiromiya o tomou. Quase ergueu as mãos, para segurar a face bonita e tomar-lhe os lábios. No entanto, sentou-se, constrangido.
— Sim, vamos embora.
Voltaram pela mesma trilha, ainda deserta. Alguns pássaros já começavam a cantar, acordando. Ryo encarou Shiromiya.
— Gostou do passeio?
— Gostei muito, Ryo-san. Já não dormia há dias por causa do calor. Sinto-me descansado, apesar do pouco tempo.
Ryo concordou. Estranhamente, ele também havia se revitalizado.
Voltou os olhos para frente, pensando já no café da manhã e do dia no escritório. Tinha muitas coisas para fazer, e planejava realizar todos os afazeres para voltar à Casa Ai no final da tarde para ver Shiromiya.
Porém um estrondo acima da sua cabeça, tirou-o do devaneio e o fez saltar.
Voltou os olhos para o céu. Dois aviões cruzaram sobre ele, em direção à cidade. Sabia que o Império tinha caças ágeis, mas, até então, não costumavam sobrevoar a cidade. Por quê...?
Uma explosão o cegou. Ryo segurou Shiro e o abaixou, assustado.
— Kami ... — murmurou, pasmo.
Várias bombas atingiram a cidade ao longe. Quase todos os prédios começaram a pegar fogo. Mesmo afastado do local, os gritos horrorizados invadiram seus ouvidos.
Subitamente, tudo ficou branco, num tom tão forte que o cegou. E, então, outra cidade surgiu. Assustou-se ao perceber as pessoas caminhando em sua direção. Suas mãos erguidas, andando como sonâmbulas. Choramingavam de dor enquanto a pele parecia descolar de seus corpos.
— Ryo-san! — Shiro gritou.
E então tudo voltou ao normal. Não havia mais caças, nem bombas, nem mortos. Apenas o som de grilos cantando, e Shiromiya a encará-lo assustado.
— Ryo-san? — repetiu, baixo. — O que aconteceu?
Ryo sabia exatamente o que estava acontecendo. As visões voltaram. A guerra estava perdida. Mesmo a bela Tóquio seria devastada. No entanto, até então, ele nunca havia tido as visões acordado. E foi aquela constatação que mais o assustou.
— Fale alguma coisa, Ryo — Shiro pediu. — Está pálido e me assustando.
O tom urgente de Shiro o fez reagir. Resolveu ser sincero. Erguendo-se, ele respondeu:
— Lembra-se de quando contei sobre a mulher dos meus sonhos?
— Aquela que se parece comigo?
Ryo assentiu.
— Shiro, eu tenho visões. Eu a vi, como vi muitas outras coisas antes dela. Vi meu pai morto, antes de ele falecer. Vi o ataque a Pearl Harbor alguns anos atrás, antes mesmo da guerra se iniciar. Vi tantas coisas, em sonhos, que até hoje me aterrorizo. Mas agora eu vi, acordado...
— Viu o quê?
— Tudo destruído.
Shiromiya se arrepiou. Entretanto, sua frase seguinte surpreendeu Ryo e o fez perceber que o jovem não era mais uma criança manipulável e tola. Estava crescendo, e se tornando cada vez mais astuto.
— Aiko-san sabe de seu dom, não é? É por isso que ele fez o abrigo antibomba na ausência do senhor Shin?
Ryo concordou.
— Então, vamos perder a guerra?
— Sim.
— Vamos morrer?
A ideia quase enlouqueceu Ryo. Repentinamente, ele abraçou Shiromiya.
— Nunca. Eu jamais permitiria.
— Como você pode impedir?
— Por mais cruel que possa parecer minha frase, Shiro — Ryo o encarou —, a verdade é que quem tem muito dinheiro sempre está protegido. E eu tenho muito, muito dinheiro. Mais do que você possa imaginar. Mais do que as outras pessoas sabem. Eu tenho tesouros guardados, coisas que...
Emudeceu. Não devia falar daquilo a ele. Não ainda.
— Vamos embora — disse, por fim, pegando sua mão e voltando a caminhar. — Apenas, não diga nada disso a ninguém. E fique tranquilo porque eu cuidarei de você.
— Não direi, Ryo-san.
Nem perceberam, mas quando chegaram até Tadao, ainda estavam de mãos dadas.
Capítulo 15
Shiromiya entro u vagarosamente no pátio da Casa do Amor. A luz do dia já havia surgido no horizonte, mas o silêncio tomava conta de tudo ali. Por experiência, sabia que o local não começaria o seu movimento antes das nove horas, quando Nana acordava. Assim, respirou fundo, certo em não fazer barulho, e ficou na ponta dos pés enquanto se aproximava da porta do próprio quarto.
Um miado alto fê-lo voltar o rosto para o lado. Minikui o encarava com olhos condenadores. Shiromiya ergueu o dedo indicador aos lábios e pediu silêncio ao bichano. Sua resposta foi outro miado forte, provocador.
Maldito gato!
Entrou e fechou a porta atrás de si, deixando para trás o felino de Shin, que pareceu detestar sua audácia. Ouviu o bichano afiando as unhas na porta e soube, naquele instante, que Minikui se vingaria, talvez fazendo xixi no seu futon, assim que pudesse.
Porém o gato foi a última das suas preocupações, quando, ao virar-se em direção à cama, percebeu Aiko Mamoru sentando em uma cadeira, com os olhos fixos em si.
Estava enrascado, sabia.
— O calor piorou durante a madrugada, e então eu resolvi colocar uma bacia com água nos quartos para umedecer um pouco o ar. Mas assim que cheguei ao seu, encontrei-o vazio — Aiko contou. O tom, apesar de calmo, estava furioso. — Por muito menos, várias garotas da Casa Ai foram mandadas embora, Shiromiya — avisou. — Nunca tolerei desobediência e não pretendo começar agora. — respirou fundo. — Com quem você estava?
Shiro baixou a face, constrangido. A resposta era óbvia.
— Oh, nem preciso perguntar, não é? — Aiko se ergueu e caminhou até ele. — Como pôde fugir de madrugada para se encontrar com Ryo? Não tem respeito próprio?
— Não fiz nada de errado, senhor Aiko — Shiro adiantou-se. — Ele me levou para tomar banho no rio.
— De madrugada? — era difícil acreditar.
Shiromiya quis se defender, usar de argumentos fantasiosos ou coerentes para se explicar. No entanto, viu-se a dizer a verdade.
— O senhor ia ao rio com Shin-san e Ryo-san quando eram mais jovens, não é? Tenho certeza que tem boas lembranças de sua infância. Eu não tenho nenhuma boa lembrança de minha infância, Aiko-san, então apenas queria construir uma boa memória que pudesse me confortar quando ficasse mais velho.
Mamoru o observou alguns segundos. Se fosse qualquer outra pessoa a lhe dizer aquilo, teria a certeza de que estaria tentando manipulá-lo com palavras tristes. Mas não Shiromiya. Kazue era inocente e franco demais para tal.
— Nunca mais saia sem me avisar. Como acha que fiquei quando vi o quarto vazio?
Sua frase saiu mais sentimental que o planejado. No entanto, deu os ombros. Como ficar com raiva de Shiromiya se ele fazia as mesmas coisas quando tinha a sua idade?
— Me perdoe — o outro pediu.
Aiko assentiu e lhe fez um cafuné nos cabelos molhados. Depois se afastou.
— Durma um pouco, agora que o calor deu uma trégua.
— Obrigado por me compreender, Aiko-san.
Havia uma troca significativa de amizade naquelas palavras. Mamoru sorriu e saiu do quarto.
***
Às dez horas daquele mesmo dia, Saito Jiro regressou à Casa Ai. Foi recebido por Midori, que pareceu encantada pela aparência do homem, mas pouco depois, perdera completamente o interesse ao ser informada de que ele era amigo de Shin Sakamoto.
Saito caminhou até a sala de chá. Aparentemente, o local era usado como escritório por Aiko. Aguardou por cerca de dez minutos, até que ele entrasse.
Curiosamente, esperava que a aparência celestial do rapaz não o envolvesse daquela vez, afinal, não tinha mais o fator surpresa para desencadear reações em si. No entanto, mais uma vez, foi tomado por um formigamento estranho ao vê-lo.
Aiko havia tomado banho. Os cabelos estavam molhados e presos em um coque à altura da nuca. Sua postura aristocrata estava ainda mais visível, fazendo-o sorrir perante o nariz arrebitado que teimou em se erguer para ele, assim que o viu.
— Encontrou Shin? — Aiko indagou.
O gato de Sakamoto surgiu novamente, daquela vez não sendo carregado no colo, mas enroscando-se às suas pernas. Jiro olhou para baixo e acariciou o focinho rechonchudo antes de responder.
— Não. Não voltou para casa, não esteve em nenhum bordel das redondezas. Passei a noite em claro, atrás dele. Ninguém o viu.
Aiko sentiu os olhos formigarem e segurou as lágrimas. Sakamoto, apesar de excêntrico, não costumava desaparecer. Depois do que narrara Jiro, tudo podia estar acontecendo. E se Shin tentasse suicídio? Mamoru nunca se perdoaria por tê-lo deixado à mercê de si mesmo.
— Vou pedir para alguns dos homens que fazem a segurança da Casa Ai irem atrás dele.
— Não é necessário. Toda a Kempeitai está à sua procura. Irão me comunicar, assim que Shin aparecer.
Mamoru assentiu, esperando que as notícias viessem em breve. Porém, o sol já estava no meio do céu quando um dos soldados apareceu diante do portão. Saito comia um pedaço de peixe que Nana havia preparado para o almoço, e Aiko andava de um lado para o outro, quando um barulho fez ambos se voltarem.
— Senhor Sakamoto foi encontrado próximo daqui — o policial avisou a Jiro.
Não houve mais explicações. Entrando no carro, Jiro e Aiko foram levados até uma área residencial de casas pobres e chão de terra. Shin estava deitado em um bueiro, coberto de vômito e trazendo uma garrafa de saquê nas mãos.
— Shin-san, você está bem? — Aiko correu até ele.
Saito manteve-se a distância, permitindo privacidade. Estremeceu perante a imagem de um lindo Mamoru curvando-se diante de um famigerado Shin. Observando-os, era difícil acreditar que não eram amantes. Havia entre ambos uma intimidade gritante e algo que ia muito além do amor entre amigos.
Sentiu-se profundamente incomodado com aquilo.
O homem maior abriu os olhos. Seu bafo cheirando a álcool adentrou as narinas de Aiko. Shin parecia ter voltado naquele instante da guerra, tamanho o estado de destruição que aparentava em seu olhar.
— Você não me ama mais? — indagou, choramingando.
Jiro ficou surpreso pela pergunta. Não pensava que Shin era infantil quando estava com Mamoru. Consigo, havia se portado como um legítimo membro da família Imperial.
— Por que não me contou que estava sofrendo?
— Você não me deu nenhuma chance... — Shin murmurou. — Já foi me acusando...
Ambos repentinamente se lembraram de Saito, que apenas ergueu as sobrancelhas diante das palavras.
— Vamos levá-lo embora — Aiko disse e depois se voltou para Shin. — Você já comeu? Vou preparar algo bem gostoso para você se alimentar.
Como uma criança de cinco anos, Shin largou a bebida e assentiu sorrindo para o melhor amigo.
***
— Ele está dormindo — Mamoru explicou. — Não poderá vê-lo agora.
Assim que deitou Shin no futon de Aiko, Saito foi embora. Disse que passaria à noite para vê-lo. Mesmo que o tom na voz indicasse que ele tinha outros interesses além de Shin, Aiko se fez de desentendido, e apenas assentiu.
Limpou Shin e deixou-o dormindo. Porém, menos de meia hora depois, Ryo surgiu, e não parecia se importar com o sono do outro.
— Eu o acordo.
— Ele não dormiu a noite toda! — Aiko pestanejou.
— Porque bebeu como um inconsequente! — resmungou o comerciante, já prevendo os motivos da insônia do amigo.
Aiko ficou furioso com a acusação.
— Ora, ora. E quem é você para julgá-lo? Acha que eu não sei que também passou a noite em claro? Que andou levando meu menino para um rio durante a madrugada?
Se Ryo ficou espantado, não demonstrou.
— Shiro te contou?
— Eu o peguei voltando escondido de madrugada.
— E qual foi sua reação?
Mamoru suspirou.
— O que isso importa? — subitamente, algo lhe ocorreu. — Você quer que eu o expulse? São esses seus motivos para fazê-lo me desobedecer?
Aquilo não havia passado a Ryo. No entanto, a possibilidade de Shiro ficar desamparado, consequentemente — por pura amizade, claro — obrigá-lo-ia a lhe oferecer um teto. A constatação causou-lhe frenesi.
— Tire esses pensamentos da cabeça, porque não vai acontecer. Shiro é como se fosse minha família, eu o amo e ficarei com ele.
Ryo pronunciou indistintamente algo que ele mesmo não entendeu. Depois, voltou o foco ao assunto que o trouxera à Casa Ai.
— Por favor, quero ver Shin.
— Eu já disse que ele está descansando. Pode vir à noite...
Irritado, o comerciante empurrou Mamoru. O proprietário da Casa do Amor até tentou impedi-lo, mas em segundos Ryo estava no quarto bonito de madeira. Seus passos firmes ecoaram no local, mesmo assim Shin não parou de roncar.
— Deixe-o — Mamoru insistiu.
— Acorde, agora! — Ryo disse quase ao mesmo tempo, atirando um travesseiro com força na face do amigo.
Shin abriu os olhos, sentando-se assustado. Depois olhou para os dois amigos.
— Por que me acordou? — perguntou a Ryo, a voz chorosa. — Estou doente, não vê?
— Sua doença é falta de vergonha na cara! — o outro parecia possesso. — Bebeu até desmaiar, não é?
— Não fale assim com ele — Mamoru interveio. — Shin precisa de um amigo que o ame e o compreenda, não de um que despeja sobre ele suas críticas.
— Isso mesmo — Sakamoto concordou.
— Eu não tenho tempo para amá-lo e compreendê-lo — o outro devolveu. — Por favor, pode nos deixar sozinhos? Preciso conversar com ele.
Mamoru ficou um tanto surpreso pelo pedido, mas diante do fato de Shin já ter acordado, não pestanejou. Pouco depois, Ryo se sentava em um banco próximo do futon, já pronto para contar sua inquietação. Todavia, a boca não abriu num primeiro momento.
Diabos! Estava nervoso.
— O que é? — Shin resmungou. — O que aconteceu para você atrapalhar meu sono?
Encarou Sakamoto. Havia um leve traço do antigo Shin ali, mas também havia algo novo, algo que Ryo não entendia ou não conseguia ler.
— Você está diferente. Emagreceu?
— Não, engordei — o outro retrucou. — Você sabe que eu sou do tipo que desconta todos os meus problemas na comida. Acho que estou uns cinco quilos acima do normal.
Era verdade. Encarando-o atentamente, percebeu o rosto mais redondo desde a última vez que o viu.
— Faz tempo que não nos vemos — percebeu. — Como foi sua viagem à Alemanha? — questionou.
De repente, seus problemas não pareciam mais tão importantes. O olhar apagado de Shin chocou-o tanto que preferiu ouvi-lo a falar.
— Nada é como eu imaginava — Shin balbuciou. — Sabe quando você acredita muito em algo, luta por aquilo, defende aquilo com unhas e dentes e até avassala quem não aceita o foco da sua fé?
— Hitler o decepcionou?
— Tudo me decepcionou — levantou os olhos para o amigo e confessou, sério. — Penso em acabar com tudo.
— O que quer dizer?
— Morrer — respondeu. — A única coisa que me impede disso é saber que Aiko precisa de proteção. Destruí Hiroshi, mas outros podem estar à espreita.
Hiroshi estava morto? Shiro sabia? Por que não havia contado?
— Morrer nunca é solução — afirmou. — Quer falar sobre o que viu?
Sakamoto riu, irônico.
— Preciso? Aposto que você sabe. Aposto que vê isso em suas visões durante seus sonhos. Você nunca foi a favor da guerra, apenas se omite porque sabe que levantar a voz contra as decisões do Império pode levá-lo ao fuzilamento.
— Deixo as contestações para os heróis. — Ryo concordou. — Prefiro me abster e viver.
— Sábia decisão — Shin murmurou. — Até porque não existem bons e maus, ninguém vale nada, todos são a mesma corja... — mordeu os lábios com força. — Eu me odeio por tudo que já fiz em nome do que considerava sagrado...
— Se martirizar não resolve nada — Ryo foi frio. — Tente não pensar e seguir em frente. Como você mesmo disse, Mamoru precisa de você, o que acarreta em mais pessoas. Afinal de contas, Aiko mantem muita gente durante esses tempos.
— Eu sei disso. — Shin fechou os olhos alguns segundos, e então pareceu se recordar de algo. — Você não costuma me procurar — constatou. — Aconteceu alguma coisa?
Diante dos problemas que Sakamoto estava enfrentando, o seu parecia simplesmente descabido. Mesmo assim, resolveu ser franco, afinal, já não tinha paz desde a noite anterior.
— Tive... — começou, e repentinamente a boca fechou, com extrema vergonha do que viria.
— Teve o quê?
Ryo engoliu em seco.
— Você acredita que um homem que gosta de mulher e só sente atração física por mulheres possa se sentir sexualmente atraído por outros homens?
Shin deu os ombros.
— Isso é comum na guerra e nas prisões — respondeu. — A abstinência costuma causar essa reação.
Abstinência? Ryo percebeu imediatamente ali as respostas de todas as suas inquietações.
— Você se sentiu atraído por um cara? — o tom cômico na voz de Sakamoto fez Ryo enrubescer.
— Nem lembro quando foi a última vez que estive com uma mulher — defendeu-se.
Shin ergueu as sobrancelhas, em escárnio.
— E por quê? Está doente? Ficou impotente? — brincou.
— Simplesmente não sinto vontade — foi franco. — Na verdade, só agora percebo que estou há bastante tempo sem me deitar com uma dama. Simplesmente estar próximo dele parece ser mais importante do que dividir o leito com qualquer outra pessoa.
Shin pareceu impressionado.
— Quem é?
— Um amigo — desconversou.
— Aiko?
Sakamoto devia estar maluco.
— De onde você tira essas ideias? — Ryo retrucou. — Claro que não é Aiko.
— Aiko e eu somos seus únicos amigos — Shin considerou. — Se não é ele... — aquietou-se alguns segundos, pensativo. Então, pareceu nervoso. — Agradeço sua consideração, mas realmente eu não sinto nenhum tipo de...
— Ah, vá se foder! — Ryo se ergueu, quase chutando a cadeira. — Também não é você!
Depois, caminhou até a janela. As duas mãos no bolso.
— Ontem à noite, Shiro e eu fomos tomar banho de rio. — contou. — Quando ele tirou a roupa, eu tive...
Não terminou, não precisava.
— Acha que está gostando dele? — Shin indagou.
Não havia graça no tom de Sakamoto e Ryo percebeu que Shin estava levando a sério seu desabafo. Ficou satisfeito.
Então, abriu a boca para negar, mas o som não saiu.
— Não gosto de homens — disse por fim, perseverante. — Gosto de mulheres.
— Então?
— Gosto de vê-lo feliz — assumiu, em seguida. — Isso me torna o quê?
Shin riu.
— Está preocupado demais com rótulos. Se por acaso sentiu-se estranho diante de Shiro, leve uma mulher para a cama e tire a prova.
A ideia não agradava Ryo. Na verdade, causava repulsa. Contudo, era lógica e racional, e diante dela ele assentiu ao amigo.
***
Shin dormiu durante toda a tarde. Já era noite, quando ele acordou ainda exausto da ressaca e do massacre psicológico que fazia contra si mesmo. Abriu os olhos e encarou Aiko, que se vestia diante de um espelho bonito. Sorriu involuntariamente, agradecido ao amigo por ter-lhe acolhido.
— Pretende ir até o salão? — Aiko perguntou, assim que o viu acordado.
— Vou ficar aqui — negou. — Quero ficar sozinho.
Mamoru assentiu,compreendendoinstantaneamente.
Mordeu o lábio inferior e voltou a se olhar no espelho. Os dedos ágeis abotoaram os botões de metal, enquanto a cinta de tecido moldava o quimono de linho. Estava bonito naquela noite, admitiu a si mesmo, talvez porque resplandecia felicidade em saber que Shin estava ali com ele...
Shin não o havia abandonado.
Mesmo Saito Jiro ser uma tentação difícil de ser negada, foi Aiko que Shin escolheu, e isso lhe trouxe enorme alegria.
Os pensamentos voaram até o dia anterior, a prova de amor que Shin lhe dera. Será que perante seu pavor não conseguiu compreender o romantismo do ato? Shiro havia achado bonito, e talvez o menor estivesse mais aberto a demonstrações de amor.
Voltou-se para Shin novamente. Encararam-se. Passou a Aiko a ideia de que talvez todo o seu sofrimento por viver um amor platônico fora tolamente criado por sua própria consciência. E se fosse correspondido? E se apenas não havia entendido os sentimentos de Sakamoto?
— O que somos um para o outro, Shin? — indagou, à queima roupa.
Sakamoto ficou pasmo com a pergunta. Imaginou o que responderia, mas nenhuma palavra saía de si.
— Você disse que me amava — Aiko murmurou diante do silêncio do outro.
— E eu amo.
— Um sentimento semelhante ao que dedica a Ryo?
Claro que o sentimento não era igual.
— Por que estamos falando disso? — perguntou, irritado.
— Às vezes você age como se fôssemos amantes. Tem ciúmes, é protetor, possessivo e amoroso. Todos imaginam isso, ninguém acredita na nossa amizade. Até Ryo desconfia que nosso envolvimento não é fraterno. Eu quero saber, de verdade, o que eu significo para você.
Shin sentou-se. Apoiou os braços nos joelhos, numa postura defensiva. A verdade é que não estava disposto àquela conversa, não sabia o que dizer. Tinha medo de que qualquer avanço com Mamoru os afastasse definitivamente.
Repentinamente, sentiu que Aiko sentava-se a sua frente. Os dedos brancos e bonitos seguraram suas mãos.
— Eu amo você, Shin — confessou. — Eu acho que você já sabe disso há muitos anos, mas eu queria me declarar.
Shin afastou as mãos, sem encará-lo. Sentia-se um prisioneiro de guerra, diante de um interrogatório.
— Não me pressione — balbuciou, incerto.
Mamoru sentiu os olhos encherem-se de lágrimas diante da recusa do outro.
— Por que qualquer um, menos eu? — perguntou, arrasado. — Quanto tempo levou para levar Saito para a cama? Um dia? — acertou em cheio. — Você nem olha direito para aqueles com quem dorme. Contudo nunca me escolheu. Por que com qualquer pessoa que sequer lhe importa e não comigo, que sei que ama?
— Se não der certo, como vamos terminar? — o outro questionou. — Aliás, a probabilidade de tudo dar errado é enorme e você sabe disso. Eu prefiro continuar assim...
“Cômodo para ele!”. Pensou Aiko.
— Mas eu não! — o outro o interrompeu. — Eu quero ser amado como Saito foi.
— Jiro não é como você. Pare de se comparar — mandou.
As mãos de Aiko quase se elevaram para agredir Shin, mas ele entendeu que não tinha aquele direito. Shin nunca lhe prometeu nada.
— Está certo — disse, a voz engasgada. — Não vou mais pedir nada — prometeu.
Antes de se erguer, porém, foi seguro por Shin Sakamoto.
— Se Kami-sama me dissesse que eu devia escolher apenas uma pessoa no mundo para mim, eu escolheria você, Aiko. Nunca houve rivais, meus sentimentos sempre foram seus — admitiu. — Mas não posso... — baixou a voz. — Ainda não...
— Por quê?
— Porque eu sei que vou fazê-lo me odiar. Não quero machucá-lo.
Já machucava. Mamoru revoltou-se contra aquelas desculpas estapafúrdias. Quis gritar, xingá-lo, mandá-lo às favas com seus pensamentos ridículos. Mas reuniu seu resto de dignidade e orgulho e se levantou. Saiu do quarto sem olhar para trás, focando sua mente no trabalho. Não sabia, mas aquela noite ainda lhe reservaria grandes surpresas.
Capítulo 16
Julho fo i um dos meses mais calmos da guerra. Desde a captura da cidade de Sebastopol no terceiro dia, nada mais de interessante havia acontecido que pudesse tomar conta das conversas dentro da Casa Ai.
No fundo, era um alívio. Ryo não aguentava mais ouvir falar em Hitler, Hirohito e Roosevelt. Seu único refresco era Shiromiya. Ainda quando estavam em silêncio, ele sentia paz. Mesmo quando o corpo reagia de forma transformadora, ele se confortava perante a presença do outro. De resto, todos os seus dias e noites eram baseados em visões e sonhos de coisas que aos poucos, sentia, estava tirando sua sanidade.
— Estou pensando em expandir os negócios — uma voz o tirou da letargia.
Olhou para o lado. Um vizinho seu, Miura Oto, igualmente rico e comerciante — do ramo naval — bebericava saquê. Não haviam marcado um encontro, apenas se encontraram por acaso naquela noite na Casa Ai. Já haviam se visto antes, Ryo comprara seus novos barcos da fábrica de Oto e, ao se avistarem dentro do salão, resolveram sentar juntos para colocarem a conversa em dia.
— De que maneira? — Ryo se interessou.
— Sabe que não tenho filhos homens, não é? Apenas uma menina que agora está com catorze anos. Uma jovem linda, que logo estará pronta para se casar. Quero uni-la a um jovem audacioso e com bom tino para os negócios.
A insinuação era clara. Ryo pareceu pensar por algum tempo. A verdade é que havia desistido da busca pela mulher dos seus sonhos. Sabia, de alguma maneira, que ela era apenas um reflexo de Shiromiya. Confundiu, portanto, amor e amizade. Considerava que a amava, mas agora compreendia que seus sentimentos eram apenas fraternais, afinal de contas, jamais sentiria algo a mais por um homem.
— Talvez possamos conversar sobre isso daqui a uns dois anos — Ryo sorriu. — O que acha?
— Acho que é a melhor escolha que um pai pode desejar — Oto assentiu.
A conversa foi interrompida pelo som melodioso de uma antiga canção de amor. Pouco depois, as luzes se apagaram, e o silêncio reinou. Ryo pensou em como Aiko conseguia manter a mesma aura mágica do espetáculo de Shiromiya sem perder a surpresa. Mesmo quando ele dançava uma mesma coreografia repetidas noites, ainda assim, seu público apaixonado cravava o olhar no palco, e suspirava pela mesma cena, sem se importar com mais nada.
Shiro surgiu. Ryo observou atentamente suas mãos gentis balançando no ar, fazendo um movimento rápido e harmonioso com o leque. Os costumeiros passos em sintonia com o baque do tambor. Era perfeito, como sempre.
— Boa noite, Ryo-san — uma voz feminina o atingiu.
Virou o rosto e encarou uma bonita prostituta. Não era das residentes da Casa Ai, mas já trabalhava lá há um bom tempo. Lembrava-se do seu nome vagamente.
— Mieko? — indagou, ainda em dúvida.
— Mika — ela corrigiu, rindo. — Não se preocupe, muitos confundem — disse baixo.
Depois, sentou-se ao lado de Ryo, languidamente. Suas mãos bonitas e macias deslizaram pela coxa do homem, que pareceu incomodado com tal ato.
— Reservou sua noite para outra das meninas, Ryo-san? — Mika perguntou, ainda sorrindo.
Ryo voltou os olhos para o palco. No mesmo instante, seu olhar encontrou o de Kazue. Sentiu um leve traço de tristeza nos olhos dele, e arrepiou-se.
— Não — respondeu.
Aquilo tinha que ter fim. Sua proximidade com o pirralho estava tirando seu próprio senso sexual e, provavelmente, causando confusão na já abalada personalidade de Shiro. Precisavam cortar aquele vínculo antes que as coisas piorassem cada vez mais.
— Quer companhia? — ela insistiu diante do silêncio.
A música findou. Shiro não se curvou como de costume. Permaneceu parado no palco. Alguns se encararam surpresos, mas logo tudo voltou à normalidade ao desligar-se as luzes. Quando o palco se iluminou novamente, não havia mais ninguém. Só então os homens parecerem entender que tudo continuava como sempre, e bateram palmas.
Todavia, Ryo não se sentia da mesma forma. Nada estava igual.
— Sim, vamos para um quarto.
Era costume na Casa Ai aproveitar a mulher não apenas como objeto para o sexo, mas também companhia enquanto conversavam. Ryo sabia daquilo, mas não estava com paciência nem para Oto, nem para a bela garota.
Acenando para o homem, ele se ergueu. A moça não objetou e o acompanhou.
Segundos depois, estavam no corredor a caminho dos quartos. Ryo parecia estar flutuando, como se sua alma estivesse a quilômetros dali. No fundo, não agia por vontade própria, só queria salvar a sua identidade, a pessoa que era. Enredar-se com Mika numa cama era só parte disso.
Mika parou, encarando-o. Percebeu que haviam chegado à porta de um dos quartos. Encarou a madeira, disposto a prosseguir, mesmo que a mente lhe ordenasse que saísse correndo dali.
Estava doente. Claro. Era a única explicação do porquê não fazia sexo com uma mulher há tanto tempo. E, mesmo assim, não sentia a menor disposição.
— Vamos entrar? — ela sorriu, abrindo a porta.
No entanto, ele não se mexeu. Atrás dos ombros dela, percebeu Shiromiya escondido, a observá-lo. Ele ainda não havia tirado a roupa de gueixa, mas Ryo sabia que ele não estava na personagem. O olhar da gueixa secreta de Aiko era atrevido e petulante, parecendo provocar todos aqueles que a admiravam. Mas o olhar que, então, era dirigido a si, denotava dor e mágoa.
Por quê?
Não havia promessas entre eles, sequer uma relação mais firme. Eram apenas amigos, mais nada. E mesmo a amizade tinha restrições.
— Ryo-san? — Mika insistiu, ao percebê-lo pestanejar.
Ryo desviou os olhos de Shiro e entrou no quarto sem olhar para trás.
***
Comparada às outras noites da semana, aquela estava sendo bastante agradável. A temperatura havia dado uma trégua, e uma leve brisa balançava agora os cabelos de Saito Jiro.
O sargento cumprimentou um dos homens no portão. Em seguida, entrou e observou o ambiente. Havia pequenos postes de luz espalhados por todo o jardim e, ao longe, a música agradável tocava, sendo fundo de conversas e risos masculinos.
A Casa Ai definitivamente pertencia à noite.
Sorriu, disposto a se divertir. Havia prometido a si mesmo ignorar o resto do mundo. Que a guerra, o Império e o Eixo fossem todos para o diabo! Ele apenas queria beber e se distrair. Se tivesse sorte, talvez, ainda, conversar um pouco com Aiko Mamoru, com quem simpatizou no instante que viu.
Seus planos, no entanto, foram interrompidos antes mesmo de continuar caminhando. O olhar percebeu, escondido no jardim, uma figura de ombros caídos e aparência triste. Reconheceu Shiromiya imediatamente, apesar das vestimentas; afinal de contas, nada no mundo o faria esquecer aqueles olhos derrotados. Ficou dividido em seguir até o salão ou ir até ele, verificar se o rapaz estava bem.
Por fim, andou até o garoto. Sentou-se ao seu lado e sorriu. Notou, então, que ele estava com o rosto lavado pelas lágrimas. Condoeu-se.
— Por que está vestido assim? — indagou, puxando assunto.
Shiro, ao perceber que não estava sozinho, secou o rosto com as mãos. Depois sorriu, numa encenação tão nítida, que Jiro preferiu fingir que acreditava naquele sorriso a repreendê-lo por estar se contendo na sua frente.
— Eu danço, sargento Jiro — explicou. — Me apresento todas as noites como gueixa. Por favor, não conte a ninguém, pois todos acreditam que sou mesmo uma mulher.
Saito conteve um riso histérico ao perceber que o garoto e Aiko conseguiam enganar praticamente toda a ala masculina de Tóquio. Porém, no fundo, entendia, afinal, Shiro era bastante feminino e delicado. Sob uma luz neutra, passaria facilmente por uma mulher baixa e jovem.
— Não contarei seu segredo, Shiro — afirmou. — Mas, Olhos Tristes, diga-me: por que está chorando?
Por alguns segundos, Shiromiya aparentou pânico. Depois, perante a compreensão nos olhos do sargento, deu os ombros.
— Nem eu mesmo sei os motivos.
— Sei que sabe. E falar deles poderão aliviar-lhe a alma.
Shiro mordeu o lábio inferior. Pareceu uma eternidade até ele abrir novamente a boca. E mesmo claramente disposto a falar, ainda assim Jiro notou certo receio de como seriam recebidas suas palavras.
— Eu tenho um amigo...
— Sim?
— Ele foi para o quarto com uma das meninas...
Shiro não explicou mais nada, não precisou. Saito compreendeu imediatamente. Percebeu, então, que podia ver a si mesmo com a idade de Shiromiya, a esperar por Oguri. O primeiro amor era sempre marcante.
— Ele sabe como você se sente?
— Não, claro que não.
— E por que não?
— Eu mesmo não entendo como me sinto.
Silêncio.
Jiro pensou em se erguer e deixá-lo à mercê dos próprios pensamentos, mas a voz de Shiromiya voltou, tão sincera que o arrepiou.
— Quando eu era criança, eu costumava ir para a casa de uma vizinha para observar sua família. Por ter um pai, os filhos da vizinha comiam melhor e tinham mais direitos na terra arrendada. Minha mãe, coitada, não conseguia mais plantar e aguentar a vida difícil do campo, e por isso nossa comida era pouca...
Jiro sabia que a vida no campo não era fácil. Seus pais também viviam do que plantavam.
— Quando essa vizinha me via, ela me mandava embora com vassouradas. Irritava-se por me ver lá, salivando, e me chamava de lixo e asqueroso. Eu entendo, porque ninguém quer um pirralho faminto observando sua família lanchar...
Pigarreou antes de prosseguir.
— Depois que minha mãe morreu, meu irmão e eu fomos tentar a sorte nas ruas. — Emudeceu, perante as lembranças tristes. — Eu já me deitei com tantos homens que o senhor jamais acreditaria. Foram tantos que nem me lembro dos nomes ou dos rostos.
Jiro assentiu, incomodado. Não gostava de saber que crianças passavam por aquilo, mas sabia ser uma realidade das ruas, não somente de Tóquio, mas do mundo todo.
— De certa forma, continuo o mesmo menino pobre a olhar a comida inalcançável — balbuciou. — Então, mesmo que Ryo-san sentisse o mesmo que sinto, por que me daria uma oportunidade? Ele pertence a uma família importante, tem muito dinheiro. Até um carro ele tem — contou, espantado. — E eu? Eu tenho alguns trocados guardados dentro de uma caixinha. Não tenho casa, nem família — prossegue. — Nem pureza — completou. — Sou alguém que sequer pode acompanhá-lo na rua, a perigo de algum homem que me comprou me interceptar e o envergonhar.
Era um fato. Saito gostaria de poder dizer palavras de conforto, mas não podia iludir aquele menino como fora iludido no passado. Queria que sua vida tivesse sido diferente. Não se arrependia por ter amado Oguri, mas se culpava pela tolice em crer que era correspondido. Por causa daquilo enfiou-se num exército que lhe dava asco, passou por todo o tipo de tortura mental, e agora era um homem solitário e descrente.
Mais que isso, era amargurado.
— A vida não é um conto de fadas, Shiro — murmurou. — Especialmente para pessoas como nós.
— Como nós?
— Caras que gostam de outros caras.
Shiromiya, por alguns instantes, ficou pasmo. Nunca até então havia pensado sobre sua própria condição sexual. Aliás, sexo era algo que lhe causava excessiva repulsa. Mesmo com mulheres, ele nunca sentiu qualquer desejo. No entanto, havia algo diferente referente a Ryo. Não que desejasse dormir com o comerciante — nunca! —, mas havia um conforto em seu coração perante a figura que o outro representava.
Reconhecia o sentimento, mesmo sendo diferente de tudo que já havia sentido antes. Quando começou? Por que começou? Talvez nunca encontrasse as respostas. Mas, naquele momento, naquela noite tranquila ao lado de Jiro, percebia que seus anseios não representavam a amizade que tão fervorosamente acreditava.
— Eu sei que a vida não é como os livros — retrucou. — Sei que a vida é dor e sofrimento. Em alguns momentos, somos felizes e nos alegramos, mas no geral é só infelicidade. Mesmo assim, eu acho que valeu a pena gostar de Ryo-san, pois, mesmo que por pouco tempo, eu fui muito feliz.
Jiro assentiu, acariciando o rosto do outro.
— Isso mesmo — concordou. — Sempre veja o lado positivo. Tenho certeza que um dia aparecerá alguém que vai amá-lo. É natural, você é encantador.
Kazue sorriu, dessa vez os olhos iluminaram-se um pouco. Saito sabia que mentia. Por mais belo e doce que fosse Shiro, ele tinha uma mancha impagável na sua existência. Poucos homens aceitariam aquilo. Mesmo assim, torceu com todas as forças por ele, não queria que o menino fosse infeliz.
— O senhor é muito gentil e bondoso, oficial — Shiro sorriu.
Rindo, Jiro o trouxe para seus braços, a fim de trocarem um abraço.
No entanto, não chegou realmente a envolvê-lo, pois uma voz masculina e potente chegou às suas costas, fazendo com que ambos se levantassem.
— O que, diabos, estão fazendo?
Saito encarou o homem. Era bonito, de estatura média, cabelos pretos harmoniosamente cortados à última moda, roupas caras e bem alinhadas e uma aparência que demonstrava riqueza e posses.
Mas foi o olhar sombrio, que fez Jiro notar que era aquele jovem homem a pessoa da tal Shiromiya falara.
— Estávamos... — Shiro começou, mas foi interrompido por Ryo.
— Pelo que sei, Aiko não permite que você ande pela Casa Ai vestindo essas roupas. Vá agora para o seu quarto! — mandou.
Estava furioso, e Saito imaginou se era questão de tempo para se atracarem no chão.
— Eu só...
— Vá para o seu quarto! — Ryo gritou. — E você? — olhou Jiro. — Não conhece as regras da Casa Ai? Ninguém fala com Shiro! Ninguém!
— Não precisa se alterar — Saito cutucou. — Eu sou amigo de Shin Sakamoto e já conheço Kazue. Tenho certeza que Mamoru não se importa...
— Quem lhe perguntou alguma coisa? — Ryo reagiu.
Ao contrário do que imaginou Jiro, ele não foi para cima de si. Encarando Shiro, segurou-o firme no braço e o puxou.
— Vamos, vou levá-lo até seu quarto.
— Mas eu...
— Já disse que não quero saber! — Ryo havia perdido o controle. — Dê-se por satisfeito por eu não ir até Aiko e contar tudo.
— Tudo o quê? — Saito provocou.
— Isso não é problema seu! — o outro retrucou.
Obediente, Shiromiya acompanhou Ryo, mas não sem antes se desculpar com Jiro. Saito entendeu os sentimentos do comerciante, assim que viu o menor se curvando perante o sargento. Ora, então o tal Ryo não era tão insensível às emoções do pequeno? Era uma agradável surpresa, e Saito percebeu que fazia muito tempo que não se alegrava pela sorte de outra pessoa.
***
Quando a porta se fechou, Ryo encarou a jovem prostituta.
Mika era bastante deleitosa de ser ver, especialmente porque tinha formas mais voluptuosas que as demais garotas da Casa Ai. Gostava disso, gostava de carne e seios fartos, de...
Subitamente o olhar triste de Shiromiya surgiu em sua mente, interrompendo sua dedicada tentativa de excitação. Por que diabos ele o olhou como se Ryo o houvesse traído? Nunca entenderia o que se passava naquela cabeça!
— Você quer se deitar?
A voz de Mika o fez encará-la. A mulher abriu o quimono, deixando o corpo à mostra. Mais uma vez, Ryo pensou que qualquer homem natural reagiria a tanta perfeição, mas era outro rosto que sua mente buscava.
— Quanto você ganha por noite? — indagou.
— Como assim?
— Quantos clientes você atende numa noite?
— Normalmente três — ela respondeu, sincera. — Mas, se for generoso, posso ficar apenas com você — entendeu errado seu questionamento.
Ryo se levantou. Puxou a carteira e retirou dela uma quantia que pagava pelo menos uns cinco clientes generosos.
— Por favor, não volte ao salão. Não quero que ninguém saiba que eu... — respirou fundo. — Não ando me sentindo muito bem nos últimos dias.
A masculinidade, saúde ou luxúria de Ryo não poderia importar menos para Mika. Na verdade, se ele fosse um tremendo impotente ou se estivesse castrado, para ela estava bem. Agarrando as notas, ela curvou-se, servil.
Assim sendo, Ryo abandonou o quarto alguns minutos após entrar. Caminhou por entre os corredores da Casa Ai, ansioso para encher a cara de saquê ou fumar um cigarro. Infelizmente, caso voltasse ao salão, sua reputação estaria abalada.
Então, sem saída, foi em direção ao jardim. Quem sabe, se tivesse sorte, Aiko ou Shin surgiriam, e ele poderia conversar sobre todas as suas angústias. No entanto, todos os seus planos foram à ruína quando percebeu Shiromiya sentado em um banco ao lado de um homem bonito.
Não estavam fazendo nada demais, mas Ryo se importou. Algo explodiu em seu âmago, e ele correu até o local. Chegou a tempo de impedir um abraço e, por pouco, não avançou contra o rosto sem vergonha do estranho.
Quem era? Entendeu vagamente que ele falava sobre Aiko ou Shin. Amigos, talvez. Todavia, aquilo tampouco importou. Aquele maldito ousou tocar em Shiromiya. Pior, Kazue permitira a intimidade.
Agarrando o menor pelo braço, ele o levou até o quarto. Não sentia seu próprio corpo, apenas a raiva o movia. Praticamente, atirou Shiro dentro dos aposentos e bateu a porta. Caso tivesse uma chave, prendê-lo-ia lá.
Depois, rumou até o salão. Onde estava Mamoru? Onde?
***
— Estou lhe dizendo! — Ryo gritou. — Ele agarrou Shiromiya, eu vi!
Aiko ergueu as duas mãos no rosto.
— Shiro gritou?
— Não.
— Shiro pareceu zangado?
Ryo bufou.
— E isso importa?
Aiko estava pastoso. Erguendo um copo de saquê, ele encarou Ryo.
— Jiro é mais decente que você — despejou. — Se Jiro quiser Shiro, e Shiro aceitá-lo, terá minha total aprovação. O sargento Saito não é um cretino mimado e rico como você e aquele desgraçado do Shin — choramingou.
Ryo entendeu imediatamente. Aiko e Shin brigaram novamente. Aliás, nos últimos anos mais pareciam gato e rato, gritando e esbravejando um contra o outro. De que adiantava tantas recriminações se, após os berros, iam dormir novamente na mesma cama, de mãos dadas?
— Você conhece esse sargento? E se ele for um bandido? Achei que amasse Shiromiya como um irmão.
— Eu amo. A dúvida é: e você? O ama como?
Ryo engasgou. Ergueu-se da cadeira, pronto para uma luta corporal com Aiko. Como ele ousava insinuar tamanha afronta? No entanto, percebeu que era a bebida que falava. Mamoru estava completamente bêbado. Em todos aqueles anos, era a primeira vez que ele via Aiko naquele estado.
— Aconteceu alguma coisa?
— Não quero falar sobre isso — o outro devolveu. — Se quiser, sente-se novamente e beba comigo.
Ryo até pensou em sentar, mas o som de botas o fez virar-se em direção a porta. Não estavam no salão, e sim na sala de chá. Portanto, imaginava que fosse Shin a vir, mas foi o tal sargento Jiro que surgiu.
— Ah, apareceu o conquistador barato — provocou. — Shiro não está aqui, e você não vai seduzi-lo com suas palavras...
—Do que você está falando? — Saito o interrompeu. — Não sei o que acredita que viu, mas Shiromiya e eu nos tornamos amigos.
— É verdade, Ryo — Aiko interveio. — Até porque o sargento Jiro prefere homens mais velhos, como o Shin.
A voz saiu chorosa, e em segundos o resto de Mamoru seguiu a reação. Afundando o rosto entre as mãos, ele chorou até soluçar. Sem ânimo para aguentar aquela pieguice, Ryo saiu pisando firme, blasfemando contra todos os deuses já conhecidos sobre a terra. Jiro, porém, aproximou-se.
— Você está bem? — perguntou, sentando-se perto de Aiko.
Aiko encarou-o. Jiro segurou a respiração. Mesmo com o nariz e os olhos molhados, mesmo enrubescido pelo choro, mesmo bêbado e descontrolado, ainda assim, era uma visão única, magnífica.
— Ele me recusou — Aiko contou. — Depois de tantos anos... Confessei-me. — gaguejou. — E... ele me recusou.
Shin Sakamoto devia ser o maior filho da puta da face da Terra.
— Não deve chorar por causa disso — Jiro aconselhou.
Mamoru segurou as mãos de Saito.
— Tem razão! Eu realmente sou virgem, e eu realmente me guardei para ele — contou, exasperado. — Sou o maior idiota que já nasceu.
Jiro negou.
— É apenas romântico.
Aiko riu, irônico.
— Um romantismo que só me traz dor. — Encarou Saito seriamente. — Aposto que você não precisou de muito para dormir com Shin, não é?
— Não existe sentimento entre Shin e mim — Jiro avisou. — Portanto as coisas são mais simples. É diferente entre vocês. Ele quer preservá-lo.
— Para o inferno a “preservação” dele. Quem aqui quer ser preservado? — perguntou. — Quero ser amado! Quero saber como é ser beijado com paixão, como é ser surpreendido por palavras gentis e amorosas. Quero alguém para me amar em uma noite chuvosa e, depois, dormir abraçado e ouvir o som do coração da outra pessoa batendo contra minhas orelhas. É isso que eu quero!
Jiro ficou impressionado. Desde Oguri, havia tido muitos homens. Gostava de sexo, mas não entregava o coração. Até porque sabia que a grande maioria dos homossexuais que existia no exército só estava buscando o mesmo que ele: distração e prazer. Relacionamento e compromisso não faziam parte da sua vida há muito tempo.
Contudo, diante de si estava alguém que tinha tanto a oferecer, e ninguém a aceitar. Como Shin podia desperdiçar um único dia de sua vida longe de tanto encanto? Aiko era inteligente, gentil, humano e belo. Era doce, mas não tolo. Era como uma rosa em um campo cheio de ervas daninha. E, ainda assim, estava ali, pronto a amar e ser amado, a entregar-se com o coração sincero a dar-se inteiramente, sem reservas.
Mal percebeu quando uniu sua boca àquela úmida e generosa. Mamoru ficou surpreso num primeiro momento, mas não recuou, resultado, talvez, da bebida. O gosto do cortesão era exatamente como ele: doce e viciante. Jiro adentrou a língua, enquanto as mãos cercaram as costas, puxando-o mais para si, tentando prendê-lo com todas as forças, tentando deixar claro, através daquela carícia, que podia ser tudo que Aiko procurava e não encontrava.
Ouviu um breve gemido e se acendeu. Ora, era óbvio que tudo que Mamoru reprimiu por anos estava ali, afoito para se libertar.
— Estou louco por você... — confessou, assim que desgrudaram as bocas.
A frase não era uma tentativa de sedução. Ao contrário, representava os verdadeiros sentimentos de Jiro, admitindo a si mesmo pela primeira vez que algo diferente surgiu pelo outro, assim que o viu naquela mesma sala de chá. No dia seguinte, ao vê-lo com Shin, ficou inquieto e fugiu. Mas não mais fugiria. Shin recusou aquilo que ele desejava, não se faria de rogado.
Porém, o outro pareceu chocado. Aiko afastou-se quase correndo e foi até a porta.
— Por muito menos, Shin...
— Shin? Acha que tenho medo de Sakamoto? Por você, eu o coloco pra correr.
Aiko ficou pasmo.
— Eu amo Shin — afirmou. — Amo — repetiu. — E nada mudará isso!
— Está tentando me convencer ou está tentando convencer a si mesmo? — devolveu. — Você pareceu bem interessado em meus braços.
Aiko enrubesceu.
— Abusado! — ralhou. — Eu bebi, e estou deprimido. Você se aproveitou...
— Quando eu me aproveitar de você, Aiko — Jiro o interrompeu, levantando-se —, implorará para que eu repita o gesto até o fim de nossas vidas.
— Cretino!
Saito emudeceu alguns segundos. Não queria o repúdio de Aiko, ao contrário. Então, pensou melhor antes de falar.
— Desculpe-me se o ofendi — pediu. — Acho que estou apaixonado por você — disse de supetão.
— Você nem me conhece...
— Engana-se. Passei meses ouvindo seu nome, sei que adora animais, sei que criou Minikui com amor, que considera uma velha prostituta como sua própria mãe, que é adorado pelas meninas que aqui trabalham. Sei que ama a cor verde, que adora chá gelado e bolo de morangos. Sei que não gosta de ler, mas que fugiu muitas vezes para ouvir poesias em saraus. Sei tanto de você, Aiko... Talvez você não me conheça, mas eu estou fascinado por você há muito tempo e, agora mais que nunca, quero me afundar no mar que representa. Não vou desistir de você, prepare-se para ser amado por mim.
Após a inesperada declaração, Saito fez uma referência e saiu da sala. Sua figura desapareceu entre a noite, mas pareceu fixada em Aiko, que estava completamente ciente da veracidade daquelas palavras.
Capítulo 17
Aiko Mamor u mexeu o leque com rapidez, buscando ar. Além do calor insuportável que andava fazendo nas últimas semanas, sua dor de cabeça tinha também raízes na noite anterior. Não entendia como havia ido de uma confissão a Shin para um beijo em Jiro. Estava profundamente envergonhado e irritado consigo mesmo.
— Senhor Shin irá tomar café conosco? — Midori indagou.
Olhou para frente e a viu, inquieta. Nenhuma das mulheres se sentia à vontade na presença de Shin. No entanto, o que ele poderia fazer? Expulsá-lo? Estavam, naquele momento, à mesa do café da manhã, e Sakamoto ainda não havia aparecido.
Aiko não voltou ao quarto depois que Jiro foi embora. Naquela noite, dormiu sentado na sala de chá com uma garrafa de saquê nos dedos. Culpou-se pelo ato impensado, mas estava cansado de ser uma pessoa correta quando todo o resto do mundo apodrecia em maldade.
— Eu não sei — respondeu.
Obrigá-lo a aturá-lo depois de ter dado um fora tão grosseiro em Aiko era no mínimo constrangedor. Todavia, Shin Sakamoto não costumava se importar muito com suas descomedidas atitudes, portanto, tudo levava a crer que ainda ficaria mais alguns dias na Casa Ai, forçando Mamoru a vê-lo todos os momentos.
— Aiko-san — Shiromiya surgiu na porta, afobado. — O Sargento Saito quer vê-lo.
Eram nove horas da manhã! Por Deus, não teria paz?
— Diga que vá embora, pois a Casa Ai só abre à noite.
Shiromiya enrubesceu.
— Mas já o convidei a entrar, Aiko-san.
Aiko suspirou nervoso. Sentiu o olhar das mulheres em cima de si, como se a pressioná-lo. Ergueu-se.
— Mande-o à sala de chá — avisou a Shiro. — Vou ao banheiro molhar o rosto e logo estarei lá.
Na verdade, só queria um tempo para pensar no que diria. Precisava de um argumento que colocasse Saito porta afora. No entanto, não encontrava nenhum.
Era claro que a confissão de Jiro era uma mentira. Quem cairia em algo do tipo? Um homem bonito e experiente como ele nunca se encantaria com um dono de bordel.
“Dono de bordel virgem” completou em pensamento, tomado pela vergonha.
Depois de lavar o rosto, ele foi até o sargento. Sentiu seu cheiro, uma essência amadeirada, antes mesmo de ver seu rosto. Quando Saito voltou-se para ele, espantou-se pelo nítido olhar culpado que o encontrou.
— Vim vê-lo para me desculpar — Jiro adiantou-se, antes mesmo de cumprimentá-lo.
Erguendo o queixo, Aiko cruzou por ele e sentou-se à mesa, a sua frente.
— Continue.
— Nunca devia ter me imposto daquela forma. Estou envergonhado.
Aiko assentiu.
— Está tudo bem, não tocamos mais no assunto.
Jiro arqueou as sobrancelhas.
— No entanto — prosseguiu —, eu farei questão de conversar com Sakamoto ainda hoje. Não agirei como um falso amigo, tentando lhe roubar o amado.
— Não está tentando roubar Shin de mim — Aiko interveio, entendendo errado a colocação. — Não somos namorados, ele me recusou, esqueceu-se? Assim sendo, fique à vontade para ficar com ele — o tom o desmentia.
— Ficar com Shin? Acho que não está me entendendo, Aiko-san. Eu disse ontem à noite que havia me apaixonado por você.
— Sim, e hoje veio se desculpar.
— Não vim me desculpar por alguma falácia. O que quero é que me desculpe pela forma como impus meus sentimentos a você. Não tentarei beijá-lo quando estiver bêbado. Não abusarei da sua confiança. Quando o amor surgir em você — e, acredite, vai surgir — serão, então, consentidas todas as minhas ações. Até lá, eu respeitarei seus limites.
Mamoru o encarava embasbacado.
— Você realmente não deve estar falando sério.
— Nunca estive mais sério em toda a minha vida. Até, então, nunca me senti assim.
Mamoru perseverou.
— Você não me conhece! Acha que me conhece pelas coisas que Shin disse, mas a verdade é que não sabe realmente quem sou!
— Eu não disse que o amava — Jiro retrucou. — Eu disse que me apaixonei. Se apaixonar é o primeiro passo para o amor. Estou aqui, completamente entregue a você, disposto a ser o que desejar de mim. E tenho absoluta certeza que esse sentimento vai crescer ainda mais, e em pouco tempo será mútuo.
— Por que tem tanta certeza?
— Porque ambos somos pedaços de um coração maltratado, desejando ardentemente conhecermos a felicidade.
As palavras, enfim, calaram Mamoru. Ele não conseguia ver mentira ou brincadeira em Jiro. Na verdade, tudo que enxergava era um reflexo de si mesmo, diante de um Shin que não o desejava.
— Me perdoe — pediu, por fim.
— Aiko, não estou pedindo que me corresponda. Portanto, não deve se desculpar. — respirou fundo. — Estou aqui dizendo como me sinto — explicou. — E dizendo que irei lutar para despertar o mesmo em você.
Saito se ergueu. Pareceu a Mamoru que a conversa estava terminada. Mas ele não podia deixá-lo ir daquele jeito.
— Não diga nada a Shin, por favor.
— Está preocupado comigo? — Jiro sorriu. — E ainda acha que não sente nada por mim?
Mamoru suspirou.
— Eu gosto de você — admitiu. — No instante que o vi, simpatizei. Busquei desesperadamente por defeitos para apontá-los, mas não os encontrei. Considero-o um homem fascinante, uma pessoa gentil e calorosa. Estou disposto a ser seu amigo.
— E é isso que eu quero — Saito se aproximou, segurando suas mãos. — Não estou impondo-me a você, nem quero obrigá-lo a se apaixonar por mim. Estou apenas comunicando que vou lutar para que me ame. Shin teve, por anos, a chance dele, e a desperdiçou. É justo, portanto, que eu tenha a minha também.
Aiko observou as mãos juntas. Seu coração aqueceu.
— Não diga nada a Shin — pediu, mais uma vez. — Não estou preparado para lidar com as crises de ciúmes dele.
Jiro assentiu.
— Por enquanto não falarei que quero o homem que ele ama. Mas, um dia, eu falarei — advertiu. — Agora, preciso ir.
Saito curvou-se diante dele e beijou seus dedos. Seu cavalheirismo beirava a cafonice, mas Aiko sorriu.
***
— Notou como Aiko-san está estranho?
Shiromiya encarou Rika. Ambos estavam cuidando do jardim. As mãos cobertas de terra, e cada um tinha uma pequena pá, onde mexiam na terra fofa para pôr as flores.
— Você também percebeu? — Shiro ficou espantado. — Achei que era coisa da minha cabeça.
— É algo que envolve o sargento bonitão — Rika apostou. — Porque primeiro ele não quis vê-lo durante a manhã, e depois saiu sorrindo da sala de chá.
— Mas Aiko-san ama o senhor Shin.
Rika nem o ouviu, enquanto confabulava.
— Shin Sakamoto não sai do quarto. Midori foi levar café a ele e disse que seus olhos estão opacos e sem vida. Disse também que ele parece depressivo e parece chorar...
— Senhor Shin chorando? — Shiro duvidou.
— É um bebê chorão — a outra retrucou. — Lembra-se de quando ele ficou chorando no portão? O nariz vermelho? Parece que está igual.
— Ah, quero ver...
— Melhor não. Deixe que Midori ou Nana levem a comida. Tenho medo dele.
— Medo? Por quê?
— E você me pergunta isso? Esqueceu o que ele fez a você?
Shiro deu os ombros.
— Ele disse que agora sou seu amigo.
— Shin lhe disse isso?
— Sim. Por quê? Isso é ruim?
Rika negou.
— Ao contrário, você tem muita sorte. Sakamoto é um monstro, mas é extremamente sincero. Se disse que agora você é seu amigo, ele vai proteger e cuidar de você, não importa como.
— Como sabe?
— Ele só declarou amizade até hoje para Aiko e Ryo, e os protegeu de todas as formas que pôde. Parece que ficou próximo do tal sargento também, e por isso ele foi retirado da guerra, e voltou ao Japão.
Shiro pareceu impressionado, mas logo voltou os olhos para seus afazeres. Ficaram em silêncio por alguns segundos. Incomodada com aquilo, Rika prosseguiu.
— Aconteceu alguma coisa? Você parece triste.
Shiromiya engoliu em seco.
— Não — tentou aparentar indiferença.
Rika o observou mais alguns segundos, e então mudou de assunto.
— Tenho outra fofoca para você — bateu palmas, feliz.
Virou o rosto para ela, já curioso.
— Sabe Ryo-san? — ela indagou, parecendo não se lembrar de que Ryo havia passado vários meses visitando Shiromiya. — Mika o atendeu ontem a noite e...
— E?
Por que estava ali ouvindo? Devia se levantar e sair correndo, evitando coisas que machucassem seu coração.
— Ryo-san negou fogo — riu.
Shiro estreitou os olhos.
— Como assim?
— Você sabe... — ela ergueu o dedo indicador e depois o baixou, rapidamente.
Shiromiya tentou entender o gesto, sem sucesso.
— Ah, Shiro — Rika riu, percebendo a confusão. — Digamos que a lança quente dele esfriou — gargalhou.
Nada. Nenhuma reação de Kazue. Rika então respirou fundo e foi clara.
— Ele não dormiu com Mika. Segundo ela, Ryo-san lhe deu dinheiro e saiu do quarto, nervoso. Acho que virou impotente. Não é o máximo? Bem feito pra ele!
O tom feminino era de deboche. Shiromiya não se importou. Em si, uma felicidade absurda tomou conta de todo o seu corpo, invadindo sua alma, transbordando em seu olhar.
— Você tem certeza?
— Claro que sim. Mika mostrou o dinheiro que Ryo deu pra mantê-la calada. — voltou a rir. — Dinheiro colocado fora, claro, ela já contou pra todas as meninas.
De repente, o mundo coloriu, e a vida pareceu maravilhosa. Olhou para cima, o sol brilhando intensamente no céu. Era o melhor verão de sua existência.
— Vou entrar — ela avisou, encerrando a sessão de fofocas. — Quero tomar um banho e dormir um pouco porque a noite será longa.
Shiro assentiu.
— Até mais — disse.
Quando ela sumiu de suas vistas, enfim, ele pôde sorrir como queria, entregando-se a uma sonora e aliviada gargalhada.
***
— Depois do ataque Doolittle [33] , é difícil acreditar que perderemos essa guerra — Kayo Tori gargalhou. — Os americanos são fracos, não sabem sequer precisar a distância que devem tomar para bombardear um inimigo. Não é à toa que seus soldados foram capturados.
Ryo recostou as costas na cadeira, encarando o homem.
— Em minha opinião, nenhum país do mundo tem chance contra nosso amado Japão — mentiu, descaradamente. — Não perdemos uma guerra...
— Há mais de mil anos — Kayo completou, interrompendo-o.
Ryo assentiu.
Era próximo do meio dia e ele estava em seu escritório em Tóquio negociando a compra de redes e instrumentos de pesca com Kayo, que importava e vendia a um preço razoável. Fazia anos que negociavam, mas Ryo não se sentia disposto a falar com ele. Sabia que Kayo era um defensor incansável do Império, e que já havia delatado vários membros do comércio por conta de suas opiniões comprometedoras.
— Conhece um bom lugar para almoçar? — o homem indagou, fechando sua pasta e encerrando a reunião.
— Bom, a melhor comida de Tóquio é servida na Casa Ai. No entanto, está aberta apenas à noite.
— Mas dizem que você tem o aval do dono para ir durante o dia — o outro insinuou.
Ryo se viu sem palavras. Então, apenas assentiu e se levantou.
O carro os levou até o bairro que a Casa do Amor se fixava. Ryo até tentou pensar em argumentos para evitar o confronto, mas não encontrou nenhum. A verdade é que ainda era muito cedo para ele ver Shiromiya depois do que havia feito na noite anterior. Pelo menos ninguém sabia que ele não havia conseguido dormir com Mika.
Não havia nenhuma pessoa no portão, mas, por sorte, ele não estava trancado. Olhou adiante e tudo parecia tranquilo e calmo, como sempre. Imaginou como o ambiente podia estar daquele jeito sendo que Shin Sakamoto ali se encontrava.
— Ryo-san!
O grito feliz fê-lo voltar-se em direção ao jardim. Shiromiya acenou para ele e riu. Estava lindo, mesmo completamente sujo. As mãos, encardidas pela terra vermelha, seguravam uma muda de rosa, que ele prontamente largou no chão enquanto corria em sua direção.
— Não acredito no que estou vendo... — Kayo murmurou, fazendo com que a atenção de Ryo voltasse para o homem.
Tentou imaginar o que havia chamado sua atenção, mas o olhar assombrado de Shiromiya assim que se aproximou, deixou claro que ambos já haviam se conhecido antes.
— Ora, ora... — Kayo riu, passeando vagarosamente com os olhos pelo corpo do menor. — Você não é mais tão magro, nem tão pequeno, mas ainda é um pedaço de mau caminho, hem?
O tom despudorado enervou Ryo. Ele encarou Shiromiya, subitamente ciente de que Shiro já havia estado nos braços de Kayo. Já era o segundo homem que sabia ter dormido com Kazue. Enojou-se, revoltou-se, precisou de todo o seu alto controle para não perder a razão.
— Então você saiu das ruas para a Casa Ai? — Kayo indagou a Kazue. — Belo progresso, não?
Ryo percebeu o olhar lacrimoso de Shiro em si. Desviou o seu.
— Foi a foda mais barata que já tive — o homem riu, voltando-se para Ryo. — Custou-me um pão e um peixe. É verdade que foi uma merda, poucas vezes na vida tive alguém tão frio embaixo de mim.
Ryo conteve um tremor forte que o tomou. Odiou Kayo com todas as suas forças, mas nada se comparava ao que sentia por Shiromiya. Um fútil. Uma pessoa podre, sem pudor, sem respeito próprio, sem nada.
Queria matá-lo... E o mataria se tivesse qualquer direito sob ele.
— Agora deve estar um pouco mais caro, não é? — ele se aproximou de Shiro e o segurou no braço. — Mesmo sendo uma porcaria na cama, sua beleza ainda o torna desejável.
— Solte-o.
A ordem de Ryo fez Kayo encará-lo.
— É só um prostituto de rua. — O outro riu, justificando-se.
— Isso não importa. Ele é protegido de Aiko Mamoru, então o solte.
— Protegido ou não, ainda quero devorá-lo... — a gargalhada quase fez Ryo vomitar.
Por que Shiromiya não se defendia? Seu olhar acanhado, repleto de lágrimas, parecia envergonhado e enojado. Mas, mesmo assim, ele não dava um passo para trás. Repentinamente Ryo percebeu que Shiro parecia um boneco sem vida diante dele.
— Eu acho que você não ouviu! — Uma voz potente os interrompeu. — O garoto é protegido desta casa e ninguém toca no que pertence a Aiko.
A dupla olhou para o lado, enquanto Shiro permanecia com o olhar baixo. Viram, então, um homem alto e forte, vestindo quimono e segurando um gordo gato malhado nos braços.
— Toco no que eu quiser — o outro se irritou. — Quem você acha que é para me dar ordens? Um simples segurança de um bordel? Ou o proprietário, defensor de putos?
O recém-chegado desceu alguns degraus de pedra e se aproximou. Estendeu a mão livre para Shiro, e o puxou. Protegido atrás do corpo grande, enfim, Kazue respirou.
— Todos que entram na Casa do Amor estão cientes de suas regras. Se você não sabe se comportar, não é bem-vindo — comunicou.
Kayo riu, olhando Ryo.
— Esse seu amigo Aiko é realmente corajoso. — Depois, voltou-se novamente para o outro. — Sabe o que eu vou fazer com você?
— Não — o outro respondeu.
— Vou mandar a Kempeitai invadir esse prostíbulo, estuprar suas vadias e trazer esse putinho para mim.
Depois da ameaça, houve um silêncio. Todavia, o mesmo não durou muito.
— Kayo — Ryo interveio. — Não está falando com Mamoru Aiko. Este — apontou o homem com o gato — é Shin Sakamoto, amado sobrinho do Imperador, membro da família real, oficial do exército e um dos líderes da Kempeitai.
Kayo Tori enrubesceu rapidamente, enquanto toda a sua vida cruzava diante dos seus olhos. A afronta que cometeu poderia levá-lo ao fuzilamento ou poderia ser desprovido de suas posses.
— Perdão, senhor — ajoelhou-se diante de Shin. — Perdoe-me, eu jamais imaginaria...
— Levante-se — Shin mandou. — Detesto pessoas sem orgulho próprio.
O outro se ergueu rapidamente.
— Está vendo o garoto? — Afastou o corpo, deixando Shiromiya à mostra. — Se eu souber que você andou se gabando dele, ou que andou tentando prejudicá-lo, ou se apenas tentou vê-lo... mandarei prendê-lo. Depois, vou pessoalmente visitá-lo na prisão, carregando comigo um cabo de vassoura. Arriarei suas calças e enfiarei o cabo na sua bunda, não parando de meter até que eu o veja saindo pela sua boca. Fui claro?
O homem assentiu.
— Eu não ouvi, miserável — Shin rugiu. — Fui claro?
— Sim senhor!
Shin sorriu.
— Agora se recolha à sua insignificância. Nunca mais quero vê-lo perto da Casa Ai, entendeu?
— Perfeitamente, senhor.
Sem esperar por Ryo, o outro saiu correndo. O comerciante ainda ficou olhando por alguns segundos para a saída, apático diante de tal cena. Depois, virou-se para Shin.
— Eu também vou indo, Sakamoto — disse. — Talvez possamos almoçar juntos algum dia desses.
Shin percebeu que ele estava ignorando Shiromiya propositalmente. Estranhou, mas aceitou. Assentiu e se afastou. Ryo também começou a andar em direção ao portão, quando um par de mãos o segurou firmemente.
— Ryo-san — Shiromiya murmurou. — Eu queria dizer...
— Não toque em mim! — Ryo o empurrou, perdendo o controle. — Tenho nojo de você — disse, cruel. — Você é sujo, podre, vulgar... Eu o odeio! — gritou.
Shiromiya nada disse enquanto o viu indo embora. Enfim, a realidade o atingiu, sem piedade.
***
O som de palmas fê-lo voltar-se para a porta. Nana estava ali, batendo uma mão contra a outra, numa atitude irônica e sádica.
— Devo dar meus parabéns — ela disse, aproximando-se. — Tanto fez que, enfim, conseguiu virar uma cópia fiel de Mamoru. — Estendeu um pano ao rapaz, para que secasse o rosto. — Limpe essas lágrimas, porque não vale a pena chorar pelo que não tem solução.
A velha sentou-se ao lado dele no futon. Shiromiya tentou conter o choro, mas ele voltou, intensamente. Fungou com o rosto escondido no tecido, tentando secar a face.
— Eu achei que ele... — começou, mas foi interrompido.
— Que ele o quê? Te amasse? Ah, poupe-me, Shiromiya Kazue. Homens como Ryo não amam. E, caso venham a amar, seria alguém da mesma estirpe, mesma classe social. Você, eu, as outras meninas e até mesmo Mamoru... — ela mordeu o lábio, e depois prosseguiu. — O que somos nós? Somos pobres coitados que damos graças a Kami-sama porque temos o que comer e onde repousar nossas cabeças à noite.
Shiro assentiu.
— Sua prioridade de vida é ter sua própria casa, não? Sei que guarda seu dinheiro com muito afinco e tem esse sonho. Sabe qual é a dele? Apenas ganhar mais dinheiro do que já tem e gastar em futilidades. — Nana percebeu o choro voltando, e o puxou para seus braços. — Todas as prostitutas que se apaixonaram, só sofreram, Shiro. Porque mesmo que você não mais se prostitua, você sempre será alguém que vendeu o próprio corpo. Então, anule esse sentimento, coloque-o em algum lugar dentro de você que você não mais o encontre...
— Eu farei isso, Nana. Quem já sofreu pela fome sabe que chorar por amor é bobagem — ele riu, ainda com as lágrimas despencando.
Nana beijou sem rosto e deixou-o. Naquele momento, ao menos, Shiro precisava prantear. Só o desabafo espiritual que o choro dava, poderia curá-lo e torná-lo apto a prosseguir em sua vida.
***
— Voltar para Hokkaido? — Tadao estranhou. — Achei que iria continuar os negócios em Tóquio...
— E por que diabos eu faria isso? — Ryo rugiu. — Minha residência oficial é em Hokkaido, e odeio essa maldita Tóquio! — depois olhou furioso para o servo. — Por que está me questionando? Você é só um empregado. Arrume tudo, pois quero estar em casa à noite.
Tadao curvou-se e se afastou. Assim que ficou sozinho, Ryo permitiu-se gritar.
Que ódio!
Nunca havia sentido nada igual.
No fundo, sabia que não era justo, sempre soube o que Shiromiya era. Mas, saber que outros homens o haviam tocado... ouvi-los vangloriar-se das noites que possuíram Shiro... era demais para ele.
— Nunca mais quero vê-lo — disse alto, sabendo que mentia.
Na verdade, nem conseguia imaginar seus dias longe de Kazue.
Capítulo 18
Aiko soub e o que havia acontecido com Shiro pelos lábios de Shin, que foi até ele para narrar o episódio. Sentiu ímpetos de ir a Ryo, recriminá-lo pela baixeza, mas se conteve, afinal de contas, de que adiantava mais uma briga? Nada poderia mudar a personalidade do outro.
Shiromiya voltou ao trabalho cerca de meia hora depois que Ryo foi embora. Não aceitou curvar-se à dor, não aceitou entregar-se à desesperança. Ele, até então, havia sobrevivido a tudo, não se abateria por mais uma humilhação. E foi assim que Mamoru o encontrou, agachado ao lado das roseiras, com as mãos sujas de terra e a mente ocupada em cavar.
— Kazue? — chamou, com a voz baixa e triste.
— Sim?
Shiromiya voltou-se para ele, como se nada estivesse acontecido. Aiko percebeu então que apesar dos olhos inchados de chorar, ele era forte como poucos naquela época.
— Você precisa de alguma coisa? — perguntou, esforçando-se para não voar até ele e abraçá-lo com força.
Shiro negou. Eles não conversaram mais durante aquele dia.
***
Aiko soube que Ryo voltara para Hokkaido no mesmo dia que o Brasil teve um de seus navios afundados por um submarino alemão. Respirou aliviado por seu retorno, torcendo para que ele nunca mais voltasse. Claro que amava Ryo, mas não o queria perto de Shiromiya.
Poucos dias depois, Shin foi embora de sua casa. Após quase um mês dormindo fora do próprio quarto, a fim de evitar um confronto com o outro, pôde deitar-se na própria cama. Antes, todavia, trocou os lençóis e limpou todo o ambiente, não queria o cheiro de Shin no seu travesseiro, qualquer coisa que o lembrasse, machucava-o muito.
Apesar de em setembro ter início um dos episódios mais importantes da época — a Batalha de Stalingrado — nada de anormal aconteceu dentro dos portões da Casa Ai. Tirando um ou outro membro da Kempeitai visitando o estabelecimento, e apavorando Nana com sua presença, tudo permaneceu como sempre.
Em outubro, Shin voltou a frequentar a sua casa, parecendo ansioso e culpado ao mesmo tempo. Chegou de mansinho, pediu uma bebida e recusou a companhia de uma das garotas. Depois, procurou Mamoru com os olhos, e o encontrou próximo ao palco, preparando o local para a entrada de Shiromiya.
Aiko estava bonito, corado e sorridente, diferente dele que andava a cada dia mais destruído e acabado. Achou que o afastamento dele tinha também mexido com o amigo, mas se surpreendeu ao vê-lo completamente feliz.
O motivo surgiu pouco depois. Saito Jiro apareceu ao seu lado, e os dois se entreterem em um papo animado referente a alguma coisa sobre a madeira que revestia o ambiente.
Shin sentiu-se nervoso, como um marido a observar a esposa e a amante conversando animadamente sobre qualquer assunto. Sabia não ter poder sobre nenhum dos dois, mas não gostou daquela aproximação.
Pouco depois, Saito pareceu enxergá-lo e, deixando Aiko, foi até ele.
— Achei que não fosse mais sair do quarto — riu. — Como se sente?
— Achei que não gostasse de mulheres — Shin retrucou, ignorando a questão.
— Adoro as mulheres — o outro devolveu. — Apenas não quero dormir com elas.
— O que faz aqui então? Não existem homens a se prostituir na Casa Ai. Mamoru não se vende, e Shiromiya apenas dança. O que lhe interessa aqui?
— Está incomodado com a minha presença?
O sorriso de Jiro não sumiu, mesmo que a pergunta fosse bastante franca.
— Não — Shin então pareceu respirar. — Me desculpe — pediu, sincero. — Estou bastante estressado.
Jiro deu os ombros.
— Eu sei, não se preocupe — bateu de leve nas mãos de Shin. — Esqueceu que sou seu amigo? Não farei nada nas suas costas, Sakamoto. Quando eu fizer, você será o primeiro a saber.
Ignorando o sentido das palavras, Shin assentiu.
— Soube que o Brasil entrou na guerra.
— Estou ouvindo inúmeros boatos sobre isso — Jiro roubou o copo de saquê de Shin e bebeu. Sakamoto pareceu fascinado alguns instantes, mas logo voltou à razão. — Dizem que os americanos afundaram o navio para pôr a culpa nos alemães.
Shin meditou alguns segundos sobre as palavras.
— O que você acha?
— Hitler é louco. Mas não é burro. O Brasil é um ponto estratégico importantíssimo na guerra. Contudo tem males que vem para o bem, não?
— Como assim?
— Você sabe para quem eu torço nessa guerra, Sakamoto — Jiro se aproximou mais de Shin, hipnotizando-o com seus lábios lindos. — Me odeia por isso? Quer que eu morra por isso?
Shin riu, percebendo a sedução.
— O que quer, Jiro?
— Quero que saia desse casulo, que pare de sentir pena de si mesmo e pare com essa depressão. Quero que veja a vida pelo que é. Você é jovem, bonito e rico. Está protegido das maldades da guerra, o que já é uma bênção imensurável. E tem o amor de alguém que, mesmo quando desaparece e não dá notícias, ainda permanece leal e fiel a você — disse, rígido. — Só quero que sorria, que volte a sentir paixão pela vida...
— Antes tudo era tão simples — comentou. — Havia os mocinhos e os bandidos. Agora, nada mais tem lógica... — fechou os olhos, suspirando. Quando voltou a abrir, Jiro viu lágrimas. — Sonho com aquele bebê morto todas as noites, Jiro...
— Se culpa pelo quê? Você começou a guerra? Você perseguiu a família daquela criança? Foi você que deu o tiro fatal? Esse fardo não é seu. Eu sim, eu tenho um fardo insuportável para carregar, eu levei pessoas até as salas onde seriam torturadas e mortas. Eu tenho em minhas mãos o sangue de crianças, mulheres e homens. Eu sou um monstro, você não é!
Shin se comoveu diante do desespero em seus olhos. Em segundos, indiferente aos possíveis olhares recriminadores em volta, ele abraçou Jiro, deixando que ele descansasse a cabeça em seu ombro.
— Você foi obrigado a isso, Jiro — sussurrou. — Não se culpe, por favor. Se não fosse você, eu não estaria mais aqui, e muitas coisas ruins teriam acontecido.
Separaram-se, Saito conteve a custo as lágrimas, enquanto Shin o acariciava na fronte.
— Nós vamos sobreviver a essa guerra, Jiro — Shin prometeu. — E iremos ser felizes.
Repentinamente, Shin olhou sobre o ombro de Saito e viu Aiko parado a encará-los. Não precisou de muita sensibilidade para entender que o amigo estava ferido e furioso. Jiro seguiu seu olhar, e então praguejou.
— Vá atrás dele, Shin — pediu. — Não quero que pense besteiras.
Sakamoto pareceu pestanejar.
— Se você não for, irei eu — Jiro avisou.
Diante daquilo, não havia escolhas.
***
Sakamoto encontrou-o do lado de fora do salão, no jardim, a observar as rosas. Seu semblante fechado deixava claro que não queria conversa, mas se aproximou mesmo assim, cuidadoso.
— Jiro é meu amigo — explicou, gentil.
— Eu sei.
Não parecia.
— Não o amo como amante — retificou.
— Não perguntei nada.
— Ora, Mamoru — riu. — Você sabe muito bem que Jiro e eu nos aproximamos durante a guerra, mas que não ocorre nada entre nós.
— Agora, não é? Esqueceu-se de que já dormiram juntos?
— Isso tem meses! — brigou. — Agora não acontece mais nada. Acho até que ele se apaixonou por alguém, pois antes vivia flertando com qualquer um, e hoje em dia se fechou, parecendo se guardar.
A frase fez Aiko encará-lo. Aquilo confirmava o que Saito havia lhe dito, alguns meses atrás. Não que duvidava dos sentimentos dele, mas sentia-se conflituoso, referente aos seus sentimentos. Ora, por que um sargento bonito e cheio de experiência se importaria com alguém como ele?
— Ele te falou por quem está apaixonado?
— Não, mas me disse que precisávamos conversar sobre isso. — Shin respirou fundo. — Na verdade, estou fugindo dessa conversa, porque sinceramente ela não me interessa. Eu não quero ficar sabendo dos romances de Saito. A única coisa que me importa é você.
A última frase mexeu tanto com Aiko que ele se viu sorrindo, mesmo sem querer. Conteve o desejo de voar nos braços de Shin, comprimindo-o.
— Vamos voltar para dentro? — Shin ofereceu o braço.
— Eu te amo, Shin — confessou novamente.
Era degradante, mas não conseguia impedir. Desde que confessara seu amor pela primeira vez, pareceu ter cortado um lacre que mantinha aquele sentimento aquietado. Depois, não mais podia se conter, não mais esconder. Queria anunciar milhares de vezes, até que Shin finalmente o correspondesse à altura.
— Aiko...
— Não precisa dizer nada — Mamoru riu, negando com a face. — Por Deus! realmente não abra a boca. Você é péssimo com palavras e sempre que fala, me magoa.
— Cortarei minha língua então — brincou. — Faço qualquer coisa para agradá-lo.
Menos o que ele mais desejava — pensou o cortesão, desiludido.
***
Em novembro, um dos jornais da época estampou a imagem de Hitler em Paris como ilustração do fato das forças alemães terem entrado na França. Mesmo que a imagem datasse de 1940, a força da imagem do Fuhrer ao lado de Speer, tendo como fundo a bela Torre Eiffel, trouxe um inegável sentimento de vitória que pareceu tomar conta da capital japonesa.
Apesar daquilo, dezembro não foi um dos melhores meses do Eixo. Mesmo que as tropas alemãs tenham tentado de todas as forças romperem o cerco a Stalingrado, seu sucesso foi nulo.
Na mesma época, Saito contou a Aiko que Shin fora chamado pela família para estudar a possibilidade de viajar até Campanha de Guadalcanal. Aiko desesperou-se, afinal de contas, naquela batalha em questão, o Japão fora miseravelmente massacrado pelas forças americanas, tendo mais de quinhentas baixas contra dezesseis dos rivais.
Mas percebendo o estado do sobrinho favorito, Hirohito pessoalmente empenhou-se em uma conversa com o irmão responsável pelo regimento de Shin. Dissuadi-lo não foi tarefa fácil, mas todos perceberam que Sakamoto voltara da Alemanha não muito bem do juízo. A história de que ele decepara a cabeça de um oficial e desfilara com ela por Tóquio ainda era sussurrada entre os empregados.
Daquela forma, mais uma vez, Shin permaneceu no Japão, onde se sentia um pouco mais animado e seguro, onde a dor parecia um pesadelo irreal.
— Aiko vai dar uma folga às meninas da Casa Ai — Jiro contou a ele enquanto tomavam café da manhã. — Uma folga remunerada — explicou, depois. — Assim, elas poderão passar o Ano Novo com suas famílias. Estive pensando em levar Shiromiya ao templo, o que acha?
Shin deu os ombros.
— Desde julho ele parece tão triste, seus olhos estão ainda mais apagados.
— Ele ficou magoado com o que Ryo fez — contou.
Sakamoto já lhe havia relatado a questão alguns meses atrás.
— Então — Jiro adiantou-se. — Não seria algo maravilhoso? Shiro poderá rezar e acender velas para a mãe. E depois posso levá-lo para comer algo gostoso.
Shin assentiu.
— Penso no que Ryo está fazendo agora — admitiu. — Quando ele ofendeu Shiro pareceu tão...
— O quê?
— Tão abatido. Acho que as palavras também o machucaram.
Jiro riu, descrente.
— Não o conheço muito bem, mas posso garantir que um homem que humilha um garoto como ele fez, não é digno de ser homem.
Shin negou.
— Ryo gosta de Shiro — afirmou. — Apenas não sabe o que fazer com essa informação.
— Ele mandou algum recado desde que partiu?
— Nada. Já escrevi duas vezes, mas não responde. Tentei telefonar, mas ninguém atende.
Jiro mordeu um pedaço de queijo, antes de continuar, mudando de assunto.
— Soube que vai haver uma apresentação especial no Kabuki-za [34] . Quero ir, o que acha?
— A maioria dos oficiais e membros importantes do Império estarão lá — Shin relatou. — Acho que seria ótimo. Quantas apresentações realizarão?
— Três. A primeira e mais disputada apresentação será a estreia, na noite de N atal.
— É essa que você quer ver?
— Eu comprei ingressos para o dia seguinte, mas se você conseguir os do dia vinte e quatro, ficarei muito feliz.
Dia vinte e quatro de dezembro era o aniversário de Mamoru. Shin costumava jantar com ele em comemoração, contudo sabia de antemão que provavelmente toda a família estaria no teatro naquela data e não seria de bom tom faltar. Então, tentou reajustar os planos. Iria almoçar com Aiko e sair à noite com Jiro. Assim, ninguém ficaria zangado e ele ainda poderia ficar próximo da família.
— Por que ficou com essa cara de satisfação?
Deu os ombros.
— Nada — respondeu Shin. — Apenas feliz por poder me divertir um pouco.
***
Shiromiya espirrou a primeira vez no dia primeiro daquele mês gelado. Dois dias depois, ele já estava de cama, e tiveram que chamar o médico. Uma leve pneumonia, devido ao inverno que parecia ainda mais rigoroso naquela época.
Abaixo do peso e com os olhos tristes e cansados, ele não dava ares de estar disposto a melhorar. Aiko e Nana, as únicas pessoas a estar na Casa Ai durante aquele recesso, permaneceram ao seu lado, tentando ajudá-lo a se erguer.
— Por que você não come? Por que não sorri? Por que não tenta se levantar? Você deseja tomar um banho? Quer ver o sol?
As perguntas de Aiko não enervavam Shiromiya, que simplesmente aquiescia e sorria sem vontade.
Na manhã de aniversário de Aiko, Shiro sentou-se na cama pela primeira vez desde que adoecera. Aiko quase chorou de felicidade por aquilo, sentindo como se o ato fosse um dos mais maravilhosos presentes que alguém podia receber.
Naquela manhã fria, véspera do Natal, Aiko trouxe o jornal para ler para Shiro as últimas novidades sobre a guerra, enquantoele bebia chá quieto, a ouvi-lo. Subitamente, no entanto, Aiko se calou. Estranhando a postura, Shiro indagou:
— Aconteceu alguma coisa?
— Vai acontecer uma apresentação especial no Kabuki-za — contou. — Eu sempre sonhei em ir lá. Além disso, ainda tem ingressos à venda. O que acha?
— É um ótimo presente para dar a si mesmo, Aiko-san — Shiro concordou.
— Vou convidar Shin-san — decidiu, um tanto quanto receoso. — Acha que ele aceitaria me acompanhar?
— Só saberá se o chamar.
Aiko ergueu-se, e saiu. Pouco depois, dava dinheiro ao menino de recados para comprar dois ingressos. Eram caros, mas disse a si mesmo que valia o preço e o momento. Nunca esbanjava, estava na hora de deixar de viver tão seriamente e aproveitar um pouco o que economizava.
O garoto trouxe os ingressos meia hora antes de Shin chegar para o almoço. Aiko o recebeu na sala de chá, sorridente. Trocaram um abraço carinhoso, e Sakamoto lhe entregou um pacote embrulhado para presente.
— O tecido é das Filipinas — contou, assim que Aiko ergueu o lindo linho colorido nos dedos. — O artesão é um dos mais famosos por lá, e a fazenda é de ótima qualidade. Acho que dará um belo quimono.
Aiko sorriu.
— Muito obrigado Shin-chan — puxou-o até a mesa. — Também tenho algo para você.
Sakamoto sentou-se na cadeira e aguardou. Esperava que o algo de Aiko fosse relacionado à comida, pois estava faminto. Mas, para seu desprazer, percebeu dois ingressos marrons sendo colocados à sua frente.
— O que é isso?
— Hoje haverá uma apresentação especial no Kabuki-za. Eu comprei dois ingressos e gostaria que me acompanhasse.
Shin ficou lívido. Assustado, encarou o par de papéis durante algum tempo e depois voltou os olhos para o aniversariante. Percebeu-o feliz e ansioso pela resposta e culpou-se tremendamente.
— Kabuki-za estará lotado hoje, Aiko — explicou. — Haverá muita gente rica e importante, você vai se sentir deslocado. Por que não vai amanhã?
Mamoru não deixou de perceber que Shin não se incluiu no evento. Mordeu o lábio inferior, recolhendo os ingressos.
— Tem razão — sorriu, envergonhado. — Não ficarei confortável...
Feliz por ele não ter insistido, Shin anuiu.
— Claro que não. Prometa-me que não irá.
Aiko baixou a fronte.
— Sim, Shin-chan.
O outro aparentou alívio, e Mamoru ficou num misto de sensações que iam do carinho pela preocupação de Shin com seus sentimentos à mágoa por passar a noite de seu aniversário sem ele.
— Vamos comer?
Mamoru o serviu em seguida. Sakamoto pareceu não perceber seu abatimento, e comeu sofregamente, como sempre. Aiko mal engoliu o alimento, parecendo que não só ele, mas toda a vida, não tinha o menor sabor.
***
Durante a tarde Aiko voltou até Shiro. Encontrou-o a brincar com o cordão que havia recebido de Ryo. Nada disse ao ver que ele escondeu o pingente, assim que seus olhos se encontraram.
— Ainda não foi se arrumar, Aiko-san?
Um evento daquele porte exigia um bom e relaxante banho, e roupas bonitas e vistosas. Todavia, Aiko vestia um velho quimono e parecia desleixado.
— Não irei.
— Por que não? Estava tão ansioso.
— Não tenho com quem ir — contou, de supetão.
Shin havia recusado o convite, pelo jeito. Shiro resolveu não inflamar ainda mais a ferida.
— E Nana?
— Nana disse que está muito velha para essas coisas. Disse que quer aproveitar essa folga da Casa Ai e dormir cedo.
— Uma pena eu não poder ir — Shiro choramingou. — Adoraria tanto assistir... — depois pareceu pensar um pouco. — Não pode deixar de ir, Aiko-san. É seu aniversário e merece isso. Além disso, já comprou os ingressos. Se não tem ninguém para acompanhá-lo, vá sozinho.
— Sozinho? — a perspectiva não o animava.
— Ora, e por que não? Comprou esses ingressos, não os roubou. Comprou com o seu dinheiro e tem tanto direito de ir quanto qualquer outro. Vá aproveitar sua noite!
Meditou nas palavras por alguns instantes. Em seguida, saltou da cadeira, abraçando Shiro.
— Tem toda a razão! Essa é a minha noite, e nada me fará perdê-la!
Depois disso, correu em direção ao próprio quarto para arrumar-se.
***
O som de vozes e risos chamava a atenção. Mesmo sendo, culturalmente, um povo silencioso, naquela noite os japoneses pareciam em alvoroço, animados pelo espetáculo que viria.
Aiko sentou-se em uma cadeira afastada, no pavimento superior ao palco, um local confortável. Por respeito aos artistas, chegou quase meia hora antes e ficou lá, estático, encarando o palco.
Depois de um tempo, percebeu alguns olhares curiosos sobre si e observou o ambiente. Os homens, na sua maioria clientes da Casa Ai, viraram o rosto rapidamente, fingindo não reconhecê-lo. Provavelmente, temiam que Mamoru os cumprimentasse, mas ele jamais faria tal coisa.
Ser o cortesão responsável da Casa do Amor era também saber ser discreto, especialmente fora dos portões do antro.
Baixou a face, constrangido. Shin estava certo, ele estava completamente sem jeito perante aquelas pessoas. Sabia que não pertencia àquilo. Pensou em se erguer e ir embora, mas sua vontade de assistir ao butai era maior que o acanhamento.
Durante quinze minutos, evitou observar o ambiente, os olhos fixos nos pés. Quando, enfim, a música da peça começou, ele ergueu a face, observando o palco.
O primeiro ato durou meia hora. Mamoru conteve as lágrimas, enquanto assistia uma jovem sacerdotisa dividida entre o dever com deus e o amor por um samurai. Reconheceu o quão difícil era o amor não correspondido e apiedou-se da protagonista, afinal, vivia situação semelhante.
Quando as luzes se acenderam, no intervalo que levava para o segundo ato, Aiko percebeu algumas pessoas se erguendo. A maioria descia até o restaurante ao lado para beber e conversar. Como ele não tinha companhia,permaneceu sentado, estatelado.
Olhou para os dedos das mãos, parecendo interessado pelas próprias unhas. Bateu levemente o pé no chão, imaginando quanto tempo duraria o intervalo e o que podia fazer para se distrair enquanto aguardava.
Era a única pessoa sozinha ali. Todos tinham companhia para conversar, todos tinham alguém para quem virar o rosto.
Ele não tinha ninguém.
Subitamente, o som alto de uma risada chamou sua atenção. Reconheceu o timbre imediatamente.
Olhou então para o pavimento térreo, à procura de Sakamoto. Logo o encontrou, ao lado de Jiro. Ambos entretidos em uma conversa amistosa, os rostos próximos, como se a contar segredos.
Shin havia vindo à peça.
Shin sentia vergonha dele.
Shin não o queria por perto.
A constatação fê-lo perder o ar. Sentiu as vistas nublarem-se pelas lágrimas, e o queixo tremer. Tomado pela vergonha, ele se ergueu. A garganta secou e ele sentiu que não iria conseguir controlar o choro até chegar à saída.
Há muito tempo não via Shin tão feliz. Percebeu-os vestidos com seus uniformes do exército, como iguais. E isso o machucou ainda mais. Sakamoto via Saito como alguém a sua altura. Não temia levá-lo a um local público e mostrá-lo a todas as pessoas. Acompanhou-o naquela noite, mesmo que a mesma fosse seu aniversário. Mais que nunca, a verdade sobre o que, de fato, sentia Shin por ele atingiu-o com tanta brutalidade que ele teve que se segurar na cadeira para não cair no chão.
Nesse exato momento, Saito o viu. Quis virar o rosto, mas notou que Jiro sorria em sua direção, erguendo os braços vigorosamente, num aceno feliz e amistoso.
Então, Shin também se voltou para ele.
O choque foi claro. Sakamoto se ergueu da cadeira, desconexo. Sentindo que aquele era o pior aniversário de sua vida, Aiko virou-se de costas e, enfim, correu até a saída.
Capítulo 19
Não devi a doer. Há quanto tempo coisas como aquelas já aconteciam? Quantas vezes sonhou em ir a um aniversário de Shin ou estar ao seu lado enquanto recebiam o ano novo? Sempre que surgiram tais coisas, fora gentilmente colocado no seu lugar. Naquele momento, mais que nunca, soube que nada poderia mudar a relação entre eles.
— Mamoru!
O grito atrás de si o estancou. Sentiu-se apreensivo, nervoso e com uma culpa inexplicável em si. Por quê? Não fizera mal nenhum, apenas comemorara seu aniversário indo assistir a algo que queria. Mesmo assim, um choro dolorido ameaçava escapar de sua garganta e espalhar-se pelo seu semblante.
— Shin? — indagou, voltando-se.
Encontrou o olhar igualmente culpado do outro.
— Você disse que não viria — Shin balbuciou, as palavras desencontradas. — Eu achei...
— Já havia comprado os ingressos — Aiko se explicou. — Mas estou indo embora.
Aquilo era óbvio, pois estava na rua em frente ao teatro.
— Você quer que eu pague um carro de aluguel?
Aiko mordeu o lábio inferior,subitamente ciente de que Shin não viera desculpar-se. Apenas queria vê-lo longe dali o mais rápido possível, para que a presença incômoda não o envergonhasse perante os seus.
— Não é necessário — Aiko negou. Queria que a voz saísse firme e grossa, mas por alguma maldade do destino, parecia fina e chorosa. — Eu vou a pé.
— Mas Aiko... — tentou intervir.
— Shin-san — Mamoru o cortou. — Sabe quando eu disse que o amava?
Não respondeu. Seu olhar assombrado e nervoso respondia por ele.
— Por favor, finja que eu nunca disse tal coisa — pediu. — Porque não sinto mais nenhum sentimento por você.
E então caminhou para longe daquele ninho de gente rica e arrogante. Quando alcançou a rua de chão batido que levava até o bairro de prostituição, ele respirou aliviado. Enfim, estava no seu lugar.
***
— E Aiko?
Shin sentou-se ao lado de Jiro. O sargento o encarou com o olhar questionador, exigindo explicações.
— Ele foi embora — respondeu simplesmente.
— Por quê? Brigaram?
— Não.
— Então por que ele não está aqui conosco? Achei que tivesse ido buscá-lo para se juntar a nós.
Inferno! Saito não sabia calar a boca?
O som de um pequeno tambor avisava ao público que o segundo ato começaria. Shin remexeu-se, indicando foco no palco, mas Jiro manteve seu olhar interrogativo sobre si. Resmungou baixo, tentando se ater ao butai que transcorria, entretanto percebeu que o acompanhante estava possesso e não aceitava sua breve justificativa.
— O que diabos aconteceu com Aiko? — Jiro sussurrou.
— Respeite os artistas — Shin afirmou, baixo. — Não era você que queria ver a apresentação?
— Responda-me ou farei um escândalo.
A ameaça surtiu efeito. Shin ergueu os olhos para o amigo, tentando perceber qualquer traço de que Saito pudesse cumprir o que prometia. Vendo a determinação em seus olhos, levantou-se.
— Vamos conversar lá fora.
Não levou muito tempo e ambos se dirigiram para a área exterior do teatro. Sakamoto foi à frente, num misto de apreensão e raiva. Odiava dar satisfações de suas ações, mas a forma como Saito o colocara contra a parede não lhe deixou escapatória.
— Vamos até o final da rua?
O local estava repleto de ambulantes e pessoas que preferiram beber a assistir a apresentação. Percebendo que não teriam privacidade diante do local, eles caminharam até estarem bem afastados. Só então Shin se voltou a Jiro.
— O que você quer?
— A verdade.
— A verdade? — Shin repetiu. — Aiko nos viu juntos e foi embora.
— Magoado, não é? Você explicou que não existe...
— Ele não ficou zangado por nos ver juntos — Shin o interrompeu. — Não da forma como você imagina.
Jiro arqueou as sobrancelhas.
— Explique-se.
— Hoje é o aniversário dele.
Por alguns segundos, Jiro parou de respirar. Depois, aos poucos, o ar foi voltando, como uma leve chuva em uma terra devastada pela seca.
— Está brincando, não é?
— Não.
— Então, por que em vez de me trazer, não o trouxe?
Shin respirou fundo.
— Aqui não é lugar para Mamoru.
A explicação teve o efeito inverso ao esperado.
— O lugar de Aiko é apenas dentro de um muro, num prostíbulo, certo? O lugar dele é nas sombras, escondido, como se fosse um cachorro sarnento de que você gosta, mas tem vergonha de que as demais pessoas o saibam.
— Não é assim.
— Então, como é? Quantas vezes já andou com ele na rua?
— Sou o sobrinho de Hirohito! — Shin exclamou, num tom baixo, mas urgente.
— E ele é só um pobretão criado por uma prostituta, não é? Mesmo sendo ele que o tenha aceitado como é, que o acolheu de braços abertos todas as vezes que foi até ele... Mesmo assim, ainda é só alguém indigno do seu sobrenome e da pessoa que você é. — Jiro chutou o chão, com raiva. — Você definitivamente não o merece, mas o mantém preso a si, matando e avassalando quem tenta colocar-se em seu caminho. — Aproximou-se perigosamente. — Saque seu revólver e atire em mim, Sakamoto — mandou.
Shin manteve a frieza, enquanto o encarava, espantado.
— Do que diabos está falando?
— Atire na minha cabeça — repetiu. — Mate-me.
— Está louco?
— Se não fizer isso agora, arrepender-se-á no futuro — confirmou. — Porque eu roubarei Aiko de você e o ensinarei o que é o amor verdadeiro. Vou ter orgulho de ser seu companheiro, seu amigo. Vou apresentá-lo à minha família e, caso não o aceitem, fugirei com ele dos olhares maledicentes. Eu darei a Aiko meu corpo, meu coração, minha proteção.
Após a explosão, Jiro se afastou. Porém, não chegou a dar dois passos, segurado por Sakamoto.
— O que está dizendo? — exigiu.
— Me apaixonei por ele — confessou, sem medo.
— Quando? Como?
— Eu já nutria alguma afeição pelas coisas que me dizia. No entanto, tudo pareceu se encaixar quando o vi pela primeira vez.
Shin negou com a face, pasmo.
— Não consigo entender...
— Quando nos encontramos, ele parecia um anjo. Era doce e gentil. Puro de todas as formas. A devoção em seus olhos quando citava seu nome fez-me compreender que ainda poderia existir algo bonito no mundo. Eu fiquei encantado. Enquanto você se trancava em casa e fingia que o mundo havia acabado, estive perto dele. Conversamos sobre várias coisas, Aiko sempre tinha um sorriso para dar, mesmo quando estava sofrendo. — Jiro sorriu. — E as coisas que ele faz... Mesmo sendo o dono de um bordel, ele trata as meninas com tanta generosidade e cortesia. É capaz de morrer por elas.
Shin negou com a face. Depois, afastou-se, andando em direção ao nada.
— Encare-me, Sakamoto! — Jiro exclamou. — Não fuja como um covarde!
— Isso não pode estar acontecendo — Shin voltou novamente para perto do sargento. — Aiko é minha vida, e você é meu amigo — explicou. — Não posso matá-lo...
Saito entendeu o conflito e o respeitou.
— Por que fez isso comigo, Jiro? — questionou. — Amo você, é como um irmão. Nunca havia tido uma amizade tão... intensa.
— Vai me odiar agora?
A pergunta era coerente e bem colocada. Shin a respondeu com sinceridade.
— Não. Contudo, amo Aiko e não vou deixar que o roube de mim.
Jiro riu, desgostoso.
— Se eu realmente acreditasse nos seus sentimentos, eu afogaria os meus.
Shin assentiu.
— Compreendo. Mas por mais íntimos que tenhamos nos tornado, você ainda não sabe o que se passa no meu coração.
Saito concordou.
— No entanto, será uma batalha justa. Eu serei honesto e espero que você também o seja.
— Sempre.
— Então, que vença o melhor.
Shin riu.
— Está enganado nisso, Jiro. Não é uma batalha. Não há guerra. Pode fazer o que quiser, nunca conseguirá o coração de Aiko. Ele me pertence.
Saito irritou-se, mas não demonstrou. Deu dois passos e colou os lábios no ouvido do mais alto. Pouco depois, sussurrou.
— Vamos ver.
***
O dia amanheceu ameno, uma leve brisa vindo do norte, refrescando um pouco mais o ambiente. Mamoru estendeu uma toalha sobre o colo de Shiromiya, e colocou sobre ela um prato com peixe frito e pão.
— Coma — pediu. — Precisa se alimentar para ficar forte e saudável.
Shiromiya encarou o alimento e, após um breve pestanejar, levou-o à boca.
— Como foi a sua noite?
Aiko baixou os olhos. Pareceu pensar numa boa resposta, o que fez Shiro perceber imediatamente que as coisas não haviam saído bem.
— Sabe, Shiro — Mamoru falou, após um breve silêncio. — Um dia, quando tivermos mais recursos, podemos vender a Casa Ai e nos mudar para o interior, né? Podíamos abrir um negócio bem visto, como uma loja ou uma mercearia. O que acha?
— Quer fugir, Aiko-san?
— Só quero não ter vergonha de sair na rua — admitiu.
Shiro pareceu meditar nas palavras.
— Talvez daqui a alguns anos, mais crescido, eu não seja facilmente reconhecido — esperançou-se. — Não seria maravilhoso, Aiko-san? Ser livre, poder andar na rua sem medo de que alguns dos homens...
— Um dia, seremos livres — Aiko prometeu, interrompendo-o. — Longe de Tóquio, talvez depois de a guerra terminar. Nana, você e eu.
Shiromiya sorriu, os olhos brilhantes. Aiko se viu sorrindo também, apesar do coração aos cacos.
— Mesmo que isso demore, Aiko-san — Shiro chamou sua atenção. — Mesmo assim, somos afortunados por estarmos na Casa Ai, protegidos do mundo lá fora. Eu já apanhei tanto nas ruas, já aconteceram tantas coisas...
— Falhei pelo menos duas vezes em protegê-lo, Shiro — lembrou-o.
— Errou, é verdade. Mas não mais cometeu esses erros. Desde sempre, se esforçou para me dar um lar, Aiko-san.
Mamoru sorriu.
— Sabe o que mais me alivia? Aqui ninguém grita — afirmou Kazue. — Todos falam normalmente, e eu fico mais tranquilo. Quando eu apanhava, mais que as surras, eram os berros que me deixavam nervoso. Doíam os ouvidos e me assustavam. Eu paralisava de medo, então era uma presa muito fácil. Por isso, amo muito a Casa Ai, Aiko-san.
Sentiu ímpetos de jogar-se na cama e abraçar Shiro com força. A maioria das meninas que chegavam ali tinha trauma de gritos e berros. Lembrou-se brevemente de Rika, que foi encontrada perto de um esgoto, nua, estuprada e machucada. Ela se prostituía desde criança e Aiko queria ter o suficiente para retirá-la daquela vida, assim como a Midori e a todas as outras. Mas tudo que a Casa Ai fornecia, servia apenas para que ele pagasse as contas e a elas. Apenas uma pequena parcela era retida, ainda assim, para garantir a manutenção da Casa do Amor.
Queria tanto poder fazer mais... Poder ampará-las financeiramente, caso, um dia, fechasse o antro. Queria ter a certeza de que tivessem condições de sobreviver sem que precisassem voltar às ruas, o pesadelo de qualquer prostituta.
Infelizmente, seus desejos não correspondiam à sua realidade.
— Aiko-san — Nana surgiu na porta, o olhar amistoso. — O sargento bonitão quer vê-lo.
Aiko enrubesceu. Na sua alma, um turbilhão de sentimentos que iam da vergonha por Jiro tê-lo visto na noite anterior à felicidade pela presença amistosa. Desde que se conheceram, o tempo trouxera entre eles um sentimento fraterno muito poderoso. Jiro vinha quase todos os dias. Era cortês com as mulheres, beijava as mãos de Nana como se ela fosse uma dama e fazia promessas a Shiro. Mas, de todos, era Aiko quem tratava com maior deferência.
— Ele está na sala do chá? — indagou, já se erguendo.
— Não, no jardim.
Mamoru sorriu e saiu do quarto.
***
O sorriso gentil e envergonhado o atingiu antes mesmo que a voz serena de Mamoru o cumprimentasse. Saito curvou-se perante ele, numa saudação cortês e humilde. Aiko imediatamente percebeu que ele se culpava pela noite anterior, mas quis deixar claro que não partilhava da mesma opinião, antes mesmo que Jiro começasse com a ladainha.
— Se veio falar de ontem à noite, eu não quero ouvir — adiantou-se. — Eu sei que você não sabia que era meu aniversário, eu sei que não viu a visita ao teatro como um encontro de amantes, e sim apenas acompanhou Shin porque são amigos.
Jiro sorriu diante daquela vã tentativa de orgulho.
— Na verdade, eu vim fazer um convite.
— Um convite?
— Bom, você não assistiu ao final da peça. Acho injusto, então...
— Obrigado, mas não quero — cortou-o. — Em uma coisa Shin tinha razão, eu não me senti à vontade com tantos olhares sobre mim. Na verdade, parecia que todos ali me odiavam. Senti-me só — admitiu. — Não quero mais passar por tal experiência.
— E quem disse que estará só?
— Mas... — calou-se, entendendo o significado da sugestão. — Jiro, você iria comigo? Mesmo com o risco de manchar a sua imagem?
Saito se aproximou. Suas mãos seguraram as do outro. Os olhares chocaram-se com a constatação da resposta.
— Você alguma vez considerou que eu me envergonharia da sua amizade? — indagou. — Aiko, se alguém aqui é indigno, essa pessoa sou eu.
As palavras tocaram fundo o coração machucado do cortesão. Viu-se então se adiantando e abraçando o outro. O ato trouxe surpresa a ambos. Porém, Jiro não se fez de rogado e aceitou prontamente o gesto.
— Ninguém nunca fez isso por mim — Aiko sussurrou.
A ação atingiu Jiro que ficou, então, num estado de euforia. Não que pensasse em, tão cedo, conquistar Aiko. Mas sentiu que sua dedicação ao outro poderia despertar-lhe o mesmo que brotou em seu ser.
— Mas iremos como amigos, não é? — Mamoru afastou-se, como se lendo sua mente.
— Como amigos, Aiko, eu prometo.
***
O anfiteatro não estava tão cheio quanto na noite anterior. A maioria dos rostos masculinos era desconhecida, o que causou um imenso alívio em Aiko. Ele sorriu para Jiro, que vestia seu pomposo uniforme de sargento enquanto caminhava ao seu lado.
Aiko não tinha muitas roupas novas, então estava vestido com o mesmo quimono bonito que usara anteriormente. Mas a roupa era a única coisa que permanecia igual em si. Estar ali, sem sentir-se diminuído e deslocado era algo maravilhoso. Sentou-se com Jiro à direita do palco, e antes de o espetáculo começar, Saito entreteve-o com um animado diálogo sobre Shiromiya e como Aiko enganava aos homens fazendo com que acreditassem que o rapaz era mulher.
— Acreditam porque são tolos — Aiko afirmou, sem dó. — Nunca disse a nenhum cliente que assistiam a uma dama dançar.
— Não é crime ter um Taikomochi dançando, não é? — riu, balançando a cabeça. — Sua mãe era gueixa, não? Shin comentou isso na Alemanha — explicou-se. — Diga-me, Aiko, porque transformou a Casa do Amor em uma casa de prostituição?
Aiko sentiu-se encorajado a conversar diante do olhar gentil e amistoso. Mas mentiu levemente ao responder.
— Não poderia receber as meninas das ruas em uma casa de gueixas.
— Mas algumas gueixas se prostituem — Jiro perseverou.
Mamoru viu-se sem palavras. Como explicar que gueixas costumavam guardar a sete chaves o que ouviam dos homens? Suas meninas lhe contavam tudo, assim ele sempre estava preparado. Caso alguém começasse a desconfiar dele, poderia fugir.
— Desculpe — Saito falou, percebendo-o nervoso. — Não quero interrogá-lo, foi apenas uma pergunta sem propósito.
Aiko sabia que devia falar alguma coisa para não levantar suspeitas, mas a boca não abriu. Não queria mentir mais que o necessário para Jiro, não depois de tudo que ele estava fazendo ultimamente para ajudá-lo.
O som do apito do primeiro ato o salvou. Virou-se para frente, focado no palco. Saito sorriu e o acompanhou.
***
— Nos intervalos — Aiko estendeu as mãos, como se o tempo pudesse ser medido pela distância das mãos — nós fomos beber chá e conversar. Foi muito diferente de ontem, e foi tão bom!
Shiromiya sorriu, enquanto Nana batia palmas.
— O sargento é um bom rapaz — a velha confirmou. — Alguém que com certeza pode fazê-lo feliz.
Aiko enrubesceu, enquanto Shiromiya arregalava os olhos.
— O que diabos está falando, Nana?
— Ora, apenas dizendo que Saito Jiro é a pessoa ideal para ser seu amigo.
Diante de tais palavras, Aiko se calou. A velha então ergueu-se da cadeira e saiu do quarto de Shiro, rindo. Mamoru e Kazue se encararam.
— O senhor acha que Sakamoto-san vai aceitar sua... anh... — buscou a palavra — amizade próxima com o Saito-san?
— E desde quando eu preciso de uma autorização de Shin para ter amigos?
— Mas antes a opinião dele era muito importante para o senhor.
— Não é mais!
Por Deus, sentia-se tão ridículo. Até Shiromiya o considerava um escravo de Shin?
— Eu não amo mais Shin! — afirmou para o outro, fazendo com que Shiro soltasse uma gargalhada.
Sentiu o âmago enervar-se perante a descrença do outro.
— Não o amo mais! — repetiu.
— Aiko-san, sentimentos não são coisas que podemos controlar. Pode repetir quantas vezes quiser, mas sabe tão bem quanto eu que não vai esquecê-lo só porque está decepcionado.
— Diz isso por que não esquece Ryo?
A pergunta pegou o acamado desprevenido. Shiro pareceu pensar um pouco, mas ignorou a questão quando voltou a falar.
— Saito-san é um homem maravilhoso. Uma pessoa única, ele é gentil e bom. Eu o adoro, pode acreditar. Qualquer pessoa seria feliz em ser amada por ele. Mas assim como Catherine não amou Edgar, por maior que fosse a bondade dele por ela, o senhor também sempre terá Shin em seu coração. Sakamoto-san é o seu próprio Heathcliff.
— Está falando daquele livro que Ryo leu para você? — Aiko perguntou. — A vida não é como os livros — afirmou.
— Então está disposto a amar Jiro?
A pergunta era direta. Mas Mamoru não soube responder.
— Eu gostaria de me apaixonar por ele...
— Mas não consegue? — tentou completar.
— Posso tentar — corrigiu.
Shiro deu os ombros, desistindo do embate.
— Então, boa sorte, Aiko-san — desejou do fundo do coração.
A conversa encerrou-se ali.
***
O cheiro de tabaco irritou seu nariz. Ryo bateu o pé no chão de madeira, tentando chamar a atenção da matrona a sua frente, que o encarava com nítida incredulidade.
— Um rapaz? — A mulher indagou.
Ryo sentiu a cabeça doer. A música ao longe mais parecia um porco sendo morto. Odiou estar ali. Não que fosse o pior lugar do mundo — mil vezes ali do que em qualquer lugar do mundo, ao lado de uma multidão de homens fétidos e segurando mosqueiros sobre os ombros — mas o que ele podia fazer?
— É, um rapaz — assentiu.
Depois de meses visitando prostíbulos, cortejando desde jovens senhoritas até as mais vadias putas de rua, e se mostrando impotente com todas elas, o homem admitiu a si mesmo que talvez a curiosidade que Shiromiya despertara em si havia sido forte demais e, provavelmente, seria sanada apenas se experimentasse dormir com um homem.
— Ninguém em Hokkaido pode saber — adiantou-se, já prevendo a maledicência — Pago bem pela discrição.
A mulher concordou.
— Sim, não fique preocupado com isso. Ninguém saberá.
Ryo remexeu-se na cadeira. Queria resolver logo aquilo.
— Tenho meninos de várias idades, até homens mais velhos. Prefere os mais fortes ou mais frágeis?
— Quero um rapaz jovem, dezesseis ou dezessete anos. Cabelos escuros, cortados próximo da nuca. Quero que tenha olhos amendoados e o nariz arrebitado. Minha altura, ou perto. Magro, bonito... — calou-se, ao perceber que estava descrevendo Shiromiya. — Você tem pra hoje?
— Sim. Quer ir até um quarto? Assim, eu o mando lá daqui a alguns minutos e ninguém desconfiará.
Ryo concordou. Ergueu-se da cadeira e saiu da sala da cafetina. O melhor bordel de Hokkaido tinha luxo e uma boa aparência, mas demoraria muito tempo para chegar perto do ambiente que a Casa Ai ostentava, fora as mulheres, todas magras como se passassem necessidade. Não havia brilho nos olhos, nem riso. Era apenas uma mecânica sedução que enojou Ryo.
O comerciante subiu até o segundo andar daquela casa de madeira do subúrbio da cidade. Entrou no quarto que a mulher indicou que usasse, e sentou-se na cama, aguardando a entrada do rapaz.
Ele sabia muito pouco sobre sexo entre homens. Algumas anedotas contadas por Shin, e alguns comentários que pescava aqui e ali. Mas, na prática, realmente não sabia direito como proceder. A única coisa que o tranquilizava era que o rapaz — um prostituto experiente, esperava — o ajudaria.
Alguém bateu na porta. Pouco depois, entrou. Conforme esperado, um rapaz com as características que pediu entrou no quarto. O olhar manso e abatido, como se fosse um terrível esforço estar ali.
Apesar de ter as mesmas características que Shiromiya, não o lembrava nem se parecia com ele. Ryo ficou nitidamente decepcionado.
— Boa noite, senhor.
Não respondeu.
— Como se chama?
Pelo tempo que o rapaz demorou em responder, Ryo percebeu que ele estava inventando um nome.
— Arai.
Era um nome comum, mas não combinava com ele.
Ryo ergueu-se da cama e caminhou pelo quarto. Depois, apontou a cama para o moço, que retirou o quimono antes de se deitar. Ryo observou-o atentamente, tinha um membro mediano, e os ossos do quadril bem visíveis.
Olhou para baixo, esperando o maldito pênis reagir à visão. Nada.
— Alguns homens precisam ser estimulados, senhor Ryo — o rapaz explicou ao percebê-lo nervoso pela falta de reação.
— Como assim estimulado? — apavorou-se.
Antes de Shiromiya entrar na sua vida, bastava olhar para um belo par de seios e a visão estonteante da nudez feminina era suficiente para fazê-lo reagir. Agora, era humilhado assim? Odiava Shiro mais que nunca!
— Com licença — o rapaz pediu, ajoelhando-se a sua frente.
Abriu o zíper da calça. Pasmo, Ryo o viu pegando seu membro e envolvendo-o com as mãos. Assim que fez menção de o pôr na boca, o homem saltou para trás, afastando-se.
— Não quero isso — disse, constrangido, guardando-o novamente na calça. — Eu vou pagar a sua noite, fique tranquilo, mas realmente não estou disposto.
Quando chegou em casa, cerca de meia hora depois, ele sentou-se na varanda que dava frente a um bonito jardim. Tremia, abatido pela constatação do óbvio.
— Senhor Ryo? — Tadao interrompeu seus pensamentos. — Estou indo para casa — avisou. — Precisa de mais alguma coisa?
— Temos compromissos agendados em Hokkaido? — indagou de supetão.
O homem surpreendeu-se pela questão.
— Preciso consultar sua agenda, mas creio que algumas reuniões importantes de negócios...
— E quando ficaremos livres?
— Acredito que em dois meses resolvemos todos os nossos problemas. Provavelmente, em março poderemos descansar.
— Vou para Tóquio em março. Assim sendo, não agende nenhum compromisso, está bem?
O homem assentiu, espantado.
— Quer que eu mande uma carta a algum dos seus amigos?
— Não é necessário. A pessoa que irei ver não sabe ler.
Depois, ergueu-se e foi dormir. Estranhamente, não se sentiu derrotado naquela noite, nem nos dias que passaram até chegar ao tempo que aguardou.
Capítulo 20
Final de Janeiro de 1943.
Shin bate u o pé levemente, enquanto aguardava na sala de recepção da imponente construção no centro do quartel. Estava nervoso, era tão incomum ser chamado à presença de seus superiores que se surpreendeu por tal. Havia feito alguma coisa? Deixara escapar seu descontentamento alguma vez?
— Sakamoto-san? — um homem corpulento, vestindo um bonito uniforme negro e de aparência impecável se aproximou. — Por favor, entre.
A sala em questão era a do major Yasuko. O local, imaculável em todos os seus detalhes, emitia um aura poderosa da forte presença do outro. A um sinal da cabeça, Sakamoto se sentou na cadeira, cruzou as pernas e aguardou.
— Soube que esteve de aniversário na semana passada — o homem comentou. — Meus parabéns.
Shin assentiu, sem vontade. A verdade é que havia sido um péssimo aniversário. Depois do problema com Aiko no Natal, não foi mais um membro assíduo da Casa Ai. Apareceu lá apenas uma semana antes do próprio aniversário, e Mamoru o recebeu frio, sem dar qualquer mostra de que se lembrava da data importante. Depois, viu Shiro, que lhe segredou sobre Mamoru estar numa árdua luta para esquecê-lo, e que Jiro estava aproveitando a ocasião para flertar.
Quis odiar Saito com todas as forças, e até tentou não receber o abraço que ele lhe deu naquele dia de janeiro que comemorava um ano a mais de vida, mas por fim acabou entendendo que também o amava, de uma forma diferente, mas não ignorava mais tal acontecimento.
— Nosso começo de ano não foi muito bom, Sakamoto — Yasuko espichou-se para trás, escorando as costas na cadeira alta. — O 6º exército alemão se rendeu em Stalingrado. E no Mar de Barents, a marinha alemã foi severamente humilhada — sua voz era seca e sem sentimentos. — Correm boatos de que Hitler ficou louco e ordenou a destruição de todos os navios de superfície alemães.
Shin havia ouvido alguma coisa a respeito.
— Então, realmente é um momento complicado, mas não devemos deixar que palavras desencorajadoras alimentem o medo no coração do povo japonês. Assim, por ordens diretas de Hirohito, queremos que fique no Japão observando qualquer tipo manifestação que pareça traição à pátria.
Shin quase riu. Aquele pedido era uma clara demonstração de que a família não mais acreditava em suas habilidades. Provavelmente, até a mãe já andava achando que havia enlouquecido. Qualquer idiota faria aquele trabalho, e ele tinha um treinamento muito superior para se envolver em picuinhas.
— Haviam comentado no início do mês que eu iria para as Forças Expedicionárias do Japão em Nanquim. Mudaram de ideia?
O olhar de Yasuko o mediu. Não era comum um jovem, mesmo da família imperial, questionar as ordens do exército. O homem então se levantou, foi até a porta e a abriu. Pareceu espiar para fora, como se não quisesse que ninguém ouvisse a conversa que ali aconteceria. Depois, voltou a fechá-la, indo novamente ao seu lugar. Shin interessou-se imediatamente.
— Na verdade, sua não ida à China foi pedida pessoalmente pelo Príncipe Mikasa.
Takahito, também carinhosamente chamado de tio por Shin, havia dispensado seus serviços? Por quê?
— Como sabe, o Príncipe Mikasa está na China — o major explicou.
— Sim.
— Quando nosso amado Príncipe soube que você seria enviado para lá, falou com o irmão e pediu sua dispensa. Depois, conversamos por telefone. Takahito disse que a honra e a dignidade se perderam dentro das unidades. Disse — fechou os olhos, como se as palavras fossem muito difíceis — que as coisas não estão como planejadas... Que não queria seu querido sobrinho sobre tal impacto...
Yasuko segurou a cabeça com as mãos. Diante de um impassível Shin, ele suspirou longamente, e então voltou a olhar para o jovem, como um pai diante de seu filho.
— Meu guarda pessoal prestou serviço na unidade 731 — Sakamoto disse, como se aquilo explicasse tudo.
— Então você sabe...
— Sim.
— Não pense que eu sou um traidor — Yasuko adiantou-se. — Eu amo meu país, amo meu Imperador. Morreria por Hirohito sem pensar duas vezes.
— Não penso nada.
O outro assentiu, aliviado.
— Então, desejo sorte na busca de traidores — levantou-se, curvando-se.
Indiferente, Sakamoto repetiu o gesto e se afastou.
***
A única boa notícia que os jornais estamparam naquele início de ano foi em março, com a retomada de Kharkov pelos alemães. De mais, apenas derrotas e retrocesso, um atrás do outro. Dividido entre a lealdade à família e a amargura de sentir-se traído por seguir por tantos anos uma ideologia falsa e cruel, Shin manteve-se discreto durante tais meses.
Conforme ordenado, ele reprimiu pensamentos contra a guerra. Porém, não entregou às autoridades aqueles que murmuravam contra o Império, apenas lhes dava uma surra e os mandava calar a boca.
“Se voltarem a falar, eu mesmo os mato” ameaçava, não tão certo em cumprir suas palavras.
Junto com alguns descontentes, surgiram os tais pacifistas. Imbecis que achavam que podiam mudar o mundo numa resistência não violenta. Shin os odiava! Como refrear alguém que sequer pensava em se voltar contra o agressor?
Numa noite, Saito e ele estiveram atrás de uma família que andava repassando mensagens contra a guerra, através de panfletos deixados nas casas. Não foi difícil achá-los. Amadores, espalhavam seus rastros como numa estrada de migalha.
Entrou na casa pobre de madeira, e em cima da mesa encontrou os panfletos. Dentro do ambiente, tinha uma jovem e três garotos. Agarrou a mulher pelos cabelos, esfregando o papel em seu rosto. Jiro, atrás dele, não moveu um músculo.
— Está com sorte hoje, cadela — disse, frio. — Vou deixá-la viver, mas antes mesmo de amanhecer o dia, vai queimar todos esses papéis, entendeu?
Ela assentiu. Shin a atirou contra a mesa. Depois, observou bem o ambiente. Não havia homens ali (soube mais tarde que o marido dela havia morrido na tomada da Coreia), mas as crianças o encaravam com aflição.
— Devemos amar ao próximo como a nós mesmos — ela sussurrou. — Somos todos iguais perante Deus. Chineses, coreanos, japoneses, americanos... Não importa. Somos todos iguais.
Sakamoto a estapeou, fazendo-a calar-se. Depois, a puxou pelos cabelos.
— Eu só vou repetir uma vez: se não quiser que seus filhos amanheçam mortos, trate de se livrar desses papéis. Amanhã, ao nascer do sol, a Kempeitai invadirá a sua casa. Suas ordens serão de matá-la, assim como às crianças, caso encontrem qualquer coisa que a condene como traidora da pátria.
Depois disso, se afastou. Fora da casa, a chuva engrossou um pouco e Sakamoto blasfemou por não poder fumar. Caminhou entre o lamaçal em direção ao carro, escondendo o corpo dentro do grosso casaco de couro.
— Pergunto-me se um dia ela entenderá que você acabou de salvar sua vida — Jiro meditou, entrando no veículo.
Mas Shin pareceu não ouvi-lo. Abrigou-se no carro, os olhos para frente.
— Amar o próximo? — riu. — Que pensamento tolo.
— É um pensamento cristão — Saito corrigiu. — Ela deve ter ouvido algo. Pensamentos religiosos costumam prosperar em solo fértil. E esse Japão dividido entre a certeza da vitória nas mãos de seu líder, e também a descrença dela por conta dos recentes fracassos, é um ótimo terreno para a religião. — Depois, respirou fundo, e ligou o carro. Quando o veículo já se movia há uns cinco minutos, voltou a falar. — A Kempeitai irá mesmo à casa dela amanhã?
— Sim — Shin afirmou. — Ouvi que irão às seis horas em ponto. Se ela ainda não tiver queimado os papeis, será presa e sabe-se lá o que farão com as crianças.
— Você é um herói, Shin — Jiro sussurrou, a mão direita saindo do câmbio do veículo e deslizando delicadamente pela coxa máscula do outro.
Shin recebeu o carinho com um sorriso no rosto.
— Achei que estivesse apaixonado por Mamoru.
— Talvez, eu queira os dois — brincou.
— É mesmo? — foi sério.
Jiro riu, retirando a mão.
— Eu te amo, Shin — admitiu. — Eu amo muito, e se Mamoru não conseguir te esquecer, eu aceitarei isso e irei apoiá-los da forma que puder. Sua atitude com Aiko me irrita, mas não considere que eu desejo mal a você.
— Eu sei que não — desviou os olhos, observando a janela.
— Então, por que está assim tão depressivo? Quando verei a pessoa que diziam ser Sakamoto? Todos comentavam que era um patusco, gostava da noite, de sexo, de beber e se divertir. Fui eu que trouxe tanta falta de sentido a sua vida? Desde que nos conhecemos, você se tornou alguém apático e sem rumo.
— Você foi o único motivo para eu não ter me destruído, Jiro — confessou. — Nunca mais pense que a culpa de minha infelicidade é sua.
Saito assentiu.
— Por que não vamos à Casa Ai? Ainda deve estar aberta. Poderíamos beber algo e rir. Mamoru sente sua falta, ele não fala, mas eu percebo pelo seu olhar.
— Se quiser ir, vá. Eu quero ir pra casa.
Jiro não retrucou. Apenas concordou com a fronte e dirigiu-se até o palacete que morava Sakamoto. Entrou atrás do homem na casa, disposto a permanecer ao seu lado, fiel e leal como devia ser, mesmo diante do humor abalado do jovem.
— Senhor — uma das servas prostrou-se a sua frente.
— Já é de madrugada — Shin observou. — Por que ainda não foi dormir?
— Um amigo seu o aguarda desde o início da noite — ela explicou.
— Amigo? São quase duas da manhã! Quem seria idiota...
Uma voz masculina e gentil o interrompeu.
— O idiota em questão sou eu, Shin — Ryo surgiu à porta do escritório do outro. — Sei que é tarde, mas precisamos conversar.
***
— Quase um ano? — Sakamoto se surpreendeu, arqueando as sobrancelhas. — Já procurou um médico?
Ryo remexeu-se na cadeira. O escritório de Sakamoto estava iluminado, mas aos olhos de Ryo tudo parecia breu.
— Eu já procurei tudo que você possa imaginar. Minha última tentativa foi em dezembro do ano passado com um garoto.
— Um garoto?
— Eu pensei que funcionaria com um homem, afinal de contas, tudo começou por causa de Shiromiya!
Sakamoto riu com gosto antes de voltar a falar.
— Nunca pensei em ouvi-lo falar assim. Você sempre abominou homens e jamais quis desfrutar da cama de um.
Ryo fechou os olhos, atirando a cabeça para trás.
— Tenho tanta vergonha de mim mesmo — admitiu. — Não sei o que fazer...
— Já disse que se preocupa demais com besteiras. Ora, desde a antiguidade, homens se deitam com homens para compartilhar prazer e masculinidade. Por que acha que os samurais eram tão fortes e poderosos? Sabiam que dormir com mulheres tornava-os fracos e femininos — despejou preconceito. — Mas, quando dormiam com homens, compartilhavam com eles a essência da honra e virilidade.
Ryo nem pensou em retrucar. Nunca havia dormido com um homem e sempre se orgulhara daquilo. Não pensava como Shin, apesar das histórias dos samurais serem verídicas. Sabia que os samurais costumavam se relacionar, quase sempre entre mestre e pupilo, compartilhando muito mais do que a sabedoria. O pensamento de que aquelas ações eram sujas e impuras, entraram no país mais recentemente, com os ingleses. Como os repudiava, Shin jamais recusaria o prazer ao lado de um homem.
Mas Ryo...
— Como foi com o garoto? — interrompeu seus pensamentos.
— Não foi — respondeu, franco. — Nem consegui tentar.
— Talvez, você só esteja nervoso — tentou lhe dar esperanças. — Talvez, apenas esteja dando a Shiro uma importância que não existe.
Ryo negou. Aproximou-se da mesa que os separava. O escritório de Shin pareceu-lhe grande demais e ele quis proximidade.
— Quando eu penso em Shiro... — olhou para baixo, o olhar sugestivo.
Shin abriu a boca, espantado.
— Está apaixonado por ele?
— Por favor, Sakamoto! É de um puto de rua que estamos falando!
— Mas esse puto de rua não se prostitui mais, e Aiko não vai dá-lo a você.
— Eu sei disso — voltou a sentar-se para trás. — Shiro fala de mim?
— Para mim nunca citou seu nome. Ele é bem próximo de Jiro, mas eu nunca soube que tenha falado de você para ele. O que não me surpreende, afinal você o tratou muito mal.
Ryo enfureceu-se diante do nome do sargento.
— O que esse cara faz na sua casa?
Havia visto Jiro entrar junto com Shin na residência, mas o outro sumira assim que Sakamoto o levou para o escritório.
— O sargento Saito é meu guarda pessoal.
Ryo deu os ombros.
— Ele quer Shiro — contou o motivo de sua mágoa.
— Shiro? Ele quer Aiko!
— Aiko? — sentiu um alívio tão grande em si que quase sorriu.
— Sim, Aiko. Estamos num conflito diante disso, mas Jiro é honesto e eu me vejo dividido.
Ryo não se importava. A única coisa que queria saber era referente àquilo que estava tirando dele o sossego.
— Como vou me aproximar de Shiro agora?
— Dê-lhe um presente. Pobres costumam se alegrar por qualquer porcaria. Ele vai perdoá-lo. — subitamente algo lhe ocorreu. — Ah, não pode fazer mal para ele — adiantou-se.
— Como assim?
— Eu o estou protegendo. Se o machucar, terá que se ver comigo.
— Não quero fazer nada do que muitos já fizeram — defendeu-se. — Inclusive você.
— Não magoe o garoto — pediu, firme. — Shiro é leal a mim e sempre me ajuda quando pode. Além disso, me afeiçoei àqueles olhos de cachorro abandonado.
Ryo irritou-se. Até Shin?
— Pense em mim, que sou seu amigo antes mesmo de termos barba! E eu estou desesperado!
— Então, faça o que eu disse. Procure tornar-se seu amigo novamente, o garoto gosta de você.
O “gosta de você” fez Ryo recuar, sentindo um súbito aquecimento no peito. Shiro gostava dele? E ele? O que sentia por Shiro?
— Amanhã irei à Casa Ai — decidiu-se.
— Ótimo. Agora que tomou sua decisão, posso ir dormir? — indagou.
— Não, temos que conversar sobre o que eu darei de presente.
Suspirando, Sakamoto blasfemou mais uma vez naquele dia.
***
Shiromiya varria o corredor quando Midori surgiu. Ela o cumprimentou brevemente, e depois o avisou que Mamoru queria vê-lo. Shiro assentiu, largando a vassoura de lado e correndo em direção à sala de chá, onde sabia que Aiko estava tomando seu café da manhã naquele momento.
— Queria me ver? — perguntou, entrando rapidamente na sala.
No mesmo instante seus olhos encontraram-se com os de Ryo. O outro o encarou, um sorriso gentil nos lábios, parecia simplesmente emocionado por vê-lo, o que fez Shiro recuar dois passos, nervoso.
Sentiu as pernas falharem e o coração doer. Percebeu que poderia chorar, mesmo que as lágrimas já — acreditava ele — tivessem secado há algum tempo.
Ryo estava mais magro e queimado do sol. O cabelo preto, um pouco mais comprido, estava alinhadamente penteado para trás. Seus olhos castanho-escuros brilhavam, como se numa travessura. Shiro amedrontou-se.
— Shiro, há quanto tempo não o vejo?
A indagação era tão saudosa que Shiromiya perguntou a si mesmo se todas as ofensas passadas haviam sido apenas um triste pesadelo, um devaneio que nunca existiu. Mas o olhar mortal de Aiko diante de Ryo era uma prova de que tudo acontecera.
Bom, dizem que quem apanha nunca esquece. Ryo, o que bateu, podia não se lembrar de tudo que falou, mas Shiro ainda apertava o travesseiro contra o rosto a noite, ao se lembrar das coisas ponderadas.
— Pedi a Mamoru para vê-lo porque queria dar-lhe um presente.
O seu tom alegre o irritou. Por que se dirigia a ele com tanta liberdade?
— Estive viajando a negócios, sabe? E olha só o que eu comprei — ergueu uma garrafa. — É Shochu [35] feito no estilo antigo — contou, como se aquilo importasse a Shiro. — Sei que ainda é menor de idade, mas guarde-a para quando tiver idade legal para beber. Não irá demorar muito tempo, não é?
— Irá — Mamoru se intrometeu. — Shiro fará apenas dezessete anos em junho.
Ryo assentiu.
— Ah, então — segurou os dedos de Shiromiya e colocou a garrafa entre eles. — Guarde-a. Dizem que a bebida fica mais saborosa com o tempo.
Para sua surpresa, Shiro segurou a garrafa. Encarou seriamente o rótulo e depois a abriu. Em fração de seguros, Ryo sentiu todo o líquido derramar-se em sua cabeça, escorrendo pescoço abaixo, empapando sua roupa e fazendo-o cheirar mal.
Só acreditou no que ocorreu quando ouviu a gargalhada histérica de Mamoru. Segurou-se para não bater no pirralho ali mesmo, sentindo uma raiva insuportável tomando conta do seu coração.
— Com licença.
Shiromiya deu as costas e saiu. Sua firmeza era tão visível que Ryo se deu conta de que não seria fácil reconquistar sua amizade e confiança. Desesperou-se.
— Espera — alcançou-o na porta e segurou seu braço. Sentiu atrás de si que Aiko se levantava, como se pronto para proteger o menor. — Eu sei que está ferido, mas eu quero ter novamente a sua amizade.
— Não quero voltar a ser seu amigo — Shiro foi direto.
Como assim? Como alguém sem família ou direitos se atrevia a recusar sua amizade?
— Eu posso protegê-lo quando a guerra... — começou, mas Shiro o interrompeu.
— Não me importo em morrer, Ryo-san. Passei a maior parte da minha vida sofrendo e sendo humilhado. Se me resta pouco tempo, vivê-lo-ei com dignidade.
As palavras o chocaram. Percebeu Shiro puxar o braço, desvencilhando-se dele. Suas mãos quase agiram por conta própria, voltando a prendê-lo. Mas no último instante conseguiu se controlar. A visão de um pequeno coração de ouro apareceu, quase que imperceptível, pela abertura de sua camisa.
Antes, porém, de esboçar qualquer coisa, Shiro o deixou.
— Ele não é como eu — Aiko disse, orgulhoso. — Depois disso, acredito que você não voltará mais à Casa Ai, não é?
Ryo gargalhou.
— Está enganado, volto em breve.
O sorriso não desapareceu, mesmo quando ele chegou à rua.
***
— Acha que ele planeja algo? — Jiro levou um pedaço da torta aos lábios. Após mastigar, voltou a falar. — Se quiser que eu faça alguma coisa... — sugeriu. — Sabe que posso chamá-lo para um duelo.
Se não estivessem em um lugar público, uma discreta confeitaria no centro da capital, Mamoru, com certeza, riria alto.
— Duelando por uma linda donzela? — brincou. — Ops... Não... Um donzelo — corrigiu-se. Depois negou. — Não se preocupe, Shiro já o colocou pra correr. Ele pode até tentar alguma coisa, mas Shiromiya saberá se proteger.
— Mas ele ainda ama Ryo — Saito não parecia certo da situação. — Ainda posso ver a tristeza do amor platônico em seu olhar.
— Bobagem, ele ainda é jovem. Logo se apaixonará por outra pessoa e será feliz.
— Diz isso, mas ainda ama Shin — retrucou.
Mamoru mordeu os lábios. Olhou para fora, viu os transeuntes andando de um lado para o outro, carregando sacolas e o peso da vida em seus ombros. Voltou a olhar Jiro, sorrindo.
— Não vamos tocar nesse assunto — pediu. Depois, mudou o rumo da conversa. — Sabia que nunca havia vindo a uma confeitaria com alguém? Às vezes eu sentia vontade de comer um pedaço de bolo, então o comprava e o comia na rua. Tinha medo do olhar das pessoas. Mas, agora, eu me sinto seguro com você.
Saito sorriu, sedutor.
— Sempre vou proteger você, amor — segurou seus dedos.
Por algum motivo, Aiko sentiu-se esquivo com aquele carinho romântico. Talvez fosse porque não era costume seu receber tal demonstração de afeto.
— Mamoru? — o tom de Jiro parecia sério.
— Sim?
Será que Saito iria querer subir o nível da relação deles? Tinha medo de não saber como reagir.
— Preciso que veja Shin.
Nunca esperou tal solicitação. Na verdade, imaginava até algo como um pedido de namoro ou alguma coisa trivial, mas nada que envolvesse Sakamoto. Ficou pasmo.
— Por quê?
— Ele não está bem...
— Diz isso há meses.
— Mas... — emudeceu alguns segundos. — Shin ficou maluco.
— Ele sempre foi estranho.
— Ele está fazendo coisas... Vão matá-lo se descobrirem — disse, baixinho.
Aiko surpreendeu-se pelas palavras.
— Você já comeu? Quero conversar em um lugar discreto.
Saíram dali e foram direto para um hotel usado frequentemente por amantes. Jiro pagou uma hora para uma senhora que os encarou maliciosa, pegou uma chave e levou Aiko para um dos quartos.
— O que está acontecendo? — Aiko questionou, assim que ficaram sozinhos.
Saito foi até uma das janelas e fechou a cortina. Depois, acendeu as luzes e apontou a cama para Mamoru que sentou imediatamente.
Por mais que o cortesão dissesse que não mais amava Shin, percebeu nos olhos o amor estampado e mesclado com preocupação. Não doeu, apesar de não ter sido agradável de ver.
— Shin está descobrindo aqueles que estão, à surdina, falando contra o Imperador.
— E...? – incentivou-o a prosseguir.
— E ele está se antecipando a Kempeitai. Por causa de seu sobrenome e sangue, tem acesso aos papéis de investigação da polícia. Sempre que sabe que a Kempeitai irá atrás de alguém, ele vai algumas horas antes e faz com que as provas sejam destruídas.
— Shin está ajudando civis a escapar?
Aquilo parecia tão irreal que Mamoru quase duvidou. Lembrou-se vagamente da morte de Kenzo, que o próprio Shin ordenou e realizou. Agora, fazia ao contrário? Por quê?
— Daquele jeito dele — Jiro riu —, chega chutando tudo, dando alguns tabefes e socos, e ameaça. As pessoas acreditam que ele está a mando da própria polícia, sem desconfiar que, na verdade, ele está dando a elas uma chance de sobreviver.
— Você acha que caso o Exército descubra...?
— Shin é esperto. Ele pode dizer que está apenas cumprindo ordens, pois um dos tios o ordenou a caça a traidores. Mas é arriscado. E ele está fazendo isso de uma forma tão... — buscou a melhor palavra — inconsequente... Não tem cuidado, coloca a própria vida em jogo. Aiko, sei que um dos motivos de Shin estar assim é por sua causa.
— Minha causa?
— Ele ficou muito abalado quando voltou da Alemanha, mas conseguiu se acalmar com você por perto. Mas agora... Agora que você o ignora, é como se não tivesse mais motivos para viver.
Aiko baixou a fronte.
— Ele me ignorou primeiro.
— Eu sei disso. Mas é o jeito dele. Um jeito que pode mudar. Ele foi criado para ser como é, como espera que ele mude facilmente sem apoio?
— Passei anos apoiando-o — perseverou. — Ele sequer olha para meu rosto fora da Casa Ai. Diz que me ama, mas me rejeita. Não posso aguentar isso — levantou-se. — Por favor, não insista.
Afastou-se de Jiro e foi até a saída, decidido a encerrar ali a discussão. No entanto, ao abrir a porta, deparou-se com a imagem estática de Sakamoto. Boquiaberto, voltou-se para Saito, imaginando que havia caído em uma armadilha. Encontrou-o igualmente surpreso.
— O que faz aqui? — Mamoru inquiriu, nervoso, irritado e furioso.
O silêncio pesado e culpado de Shin era a melhor das respostas.
— Você mandou um dos seus homens me seguir? — revoltou-se.
Shin até tentou negar. Mas, por fim, admitiu.
— Para o seu próprio bem. Para protegê-lo.
— Protegê-lo de mim? — era a vez de Saito se irritar.
— Você o trouxe a um local desses — apontou as paredes sujas e o ambiente degradante. — O que queria que eu pensasse?
— Que eu sou o seu amigo e nunca faria nada que pudesse magoá-lo.
Jiro então pediu licença e saiu. Aiko o seguiu, sem sequer se despedir. Escorado na porta de madeira, Shin sentiu-se ainda mais diminuído, mais destruído. Perdido, tentou pensar em uma saída.
Não havia nenhuma.
Capítulo 21
A menin a e a professora não se conheciam. Não antes da guerra. Shin sabia disso, apesar de não ouvi-las falando ou comentando tal fato. A menina e a professora eram apenas duas tristes figuras sentadas no chão de concreto gelado, apertadas e nuas, tentando se aquecer.
De fato, Shin não tinha conhecimento se eram realmente uma menina e uma professora. A menina podia ser já uma moça, mas seu estado esquelético enganava sua avaliação. E a mulher apenas aparentava a calma exigida dos mestres. Então, foi assim que Shin as chamou.
A menina e a professora.
Shin não sabia seus nomes. Não sabia de que lugares vieram. Nada do que as tornava humanas era de seu conhecimento. Seus sonhos, suas ilusões, seus entes queridos, eram apenas fragmentos perdidos em algum tempo ou espaço.
Mesmo assim, ele se apiedou. Não que devesse, afinal de contas, ele estava ao lado de fora do banheiro onde elas aguardavam que os chuveiros despejassem água. Ele fazia parte dos monstros que as mataria apenas porque eram judias.
Fechou os olhos no exato momento em que a porta do banheiro era trancada.
A menina e a professora tomaram o último banho de suas vidas.
Ouviu gritos, pouco depois. Eram súplicas tão desesperadas que Shin tinha consciência de que nunca mais conseguiria esquecê-las. E, então, as vozes mesclaram-se com o som de ossos quebrando, de gemidos agonizantes.
Assim, acabou.
Abriram a porta do banheiro um tempo depois. Shin, catatônico, ainda encarou a menina e a professora embaixo de outros corpos, de mãos dadas. Seus olhos mantiveram-se abertos, como se não acreditassem no que ocorrera.
***
Shin abriu os olhos. A escuridão do quarto era quebrada pela luz de uma vela próxima da cama. Apesar de estar frio, suava. Ergueu uma das mãos, tentando limpar a testa.
O som de um choro fê-lo levantar o rosto. A menina e a professora, duas visões fantasmagóricas, estavam ao pé da cama. Seus olhos grandes o encaravam com horror.
E Shin soube que, por mais que não fosse um nazista e não tivesse colocado pessoalmente o gás naquela câmara, ele era culpado pelas suas mortes.
Era culpado por omissão.
***
Shin abriu os olhos. Não houve sobressaltos nem medo. Aos seus pés, diferente do pesadelo, não havia mulheres cobrando-lhe pela covardia. Tudo estava como sempre, uma paz até pecaminosa diante de tantos horrores que aconteciam no resto do mundo.
Levantou-se da cama, procurando a calça. Achou-a atirada num dos cantos do quarto. Vestiu-se de forma displicente, colocando a primeira camisa que achou no guarda-roupa. Saiu do quarto, andando vagarosamente pela mansão. Chegou ao corredor sem se incomodar com o som das botas de couro batendo no assoalho de madeira. Em segundos, descia as escadas.
Pouco depois, já estava na rua deserta. Ao longe, podia-se ouvir o som noturno de alguns grilos e de uma coruja, nada que realmente pudesse incomodá-lo. A lua no céu parecia deixar iluminado apenas um caminho, e Shin rumou para lá.
Em cima da ponte Niju, observou atentamente o lago calmo que cortava o jardim imperial.
Subiu sobre o protetor de pedra. Permaneceu ali alguns segundos, equilibrando-se com os braços abertos. Pouco depois, permitiu-se cair em direção ao léu.
***
Saito Jiro não havia conseguido dormir. Abatido por Shin ter desconfiado de sua amizade durante a tarde, ele sentou-se em uma agradável poltrona na sala da família Sakamoto, enquanto bebericava saquê. A sua frente, uma enorme janela de vidro dava para um bonito jardim bem cuidado. Estava feliz por estar ali, num local calmo e protegido, mas ao mesmo tempo, incomodava-se por saber que tantos irmãos compatriotas morriam nas trincheiras naquele momento.
O som de botas fê-lo voltar-se para as escadas. Shin as descia como um sonâmbulo, alheio a tudo a sua volta. Jiro se levantou, preparando-se para um embate, meditando nas palavras que trocariam, mas foi surpreendido pela total apatia do outro.
Sakamoto cruzou por ele, e saiu da casa. Era como se não o enxergasse.
Levou menos de um segundo para notar o intento do membro da família Imperial. Sem pestanejar, seguiu-o.
—Shin? — chamou-o quando divisou suas costas largas andando no jardim da família.
Nada, nenhuma resposta.
Pouco depois, Sakamoto chegava à ponte. Pareceu olhar à frente, como se visse diante de si todo o futuro. Jiro manteve-se a distância, respeitando o seu senhor. No entanto, não pôde ficar impassível por muito tempo. Rapidamente, Sakamoto subiu no parapeito da ponte e, antes do sargento ter qualquer reação, jogou-se de lá. Saito atirou-se atrás, alcançando-o pouco depois de ambos caírem nas águas geladas.
—Shin-chan — o chamou tão logo o retirou do rio.
Sakamoto estava encharcado, os olhos fechados, e o corpo completamente imóvel. No entanto, sua respiração regular era um alívio.
— Por que você está fazendo isso? — Jiro murmurou a pergunta de uma forma extremante dolorida. — Por quê? Diga-me, por quê?
Sakamoto abriu os olhos. Mas a boca permaneceu fechada. Não havia respostas, apenas uma agonia tão profunda que parecia matá-lo aos poucos.
***
A chuva começou pouco depois da Casa do Amor fechar naquela noite. O vento batia com força nas janelas, e o som dos pingos no telhado parecia um convite para a cama. Aiko deitou-se pouco depois, enrolando-se no lençol de linho e respirando fundo, sentindo o torpor do sono tomá-lo.
Porém, em seguida, batidas chamaram sua atenção. De início, parecia apenas um som provocado pelo vento, mas, logo depois, a voz de Saito fez com que saltasse da cama. Encontrou Nana do lado de fora do quarto. A mulher estava com o olhar tão espantado quanto o seu e erguia um guarda-chuva.
— Ouvi a voz do sargento — ela explicou.
Mamoru assentiu e ambos foram até o portão. Ao abri-lo, encontraram Saito carregando o desacordado Sakamoto. Por alguns segundos, o coração de Aiko parou, e ele não conseguiu se mexer. Vendo-o em choque, Jiro o trouxe à razão.
— Ele não está ferido — explicou, acalmando-o. — Por favor, nos deixe entrar.
Rapidamente, a dupla abriu caminho. Jiro carregou Sakamoto até o quarto de Aiko e o colocou sobre a cama. Pouco depois, Nana saiu para fazer chá e aquecer o homem molhado.
— O que aconteceu? — Mamoru indagou, ajudando o outro a retirar o calçado do membro da família Imperial. — Shin tentou contra a própria vida? — questionou, acertando em cheio.
— O vi saindo de casa — Jiro confirmou, contando. — Após segui-lo, encontrei-o próximo ao lago. Foi muito rápido, não consegui impedi-lo de se jogar.
Aiko sentiu o ar faltando. Estremecendo, ele sentou-se na cama, enquanto a mão deslizava pelo rosto de Shin. À sua frente, Saito começou a se secar com uma toalha que fora estendida anteriormente pelo anfitrião.
— Ryo me contou que quando éramos crianças, logo após a família tê-lo mandado a um internato, Shin cortou os pulsos no quarto. O escândalo foi abafado e mesmo o médico que o atendeu na época nunca falou disso a ninguém. Mesmo assim, não é a primeira vez que ele faz isso, e temo não ser a última.
Jiro assentiu, compreensivo.
— Nunca pensei que Shin fosse o tipo de pessoa que evitasse a realidade.
— Talvez esteja com medo — Aiko murmurou. — Medo do homem que se tornou. — O cortesão voltou a encarar Saito, e sorriu. — Sabia que quando éramos crianças, Shin e eu fugimos? Lembro-me até hoje de ele aparecer no meu portão e dizer que a família havia proibido nossa amizade. Então, ele falou: “Vamos embora, Aiko!”. Pegou-me pela mão e saímos correndo sem direção, sem dinheiro, sem comida, sem nada. Dormimos uma noite numa cabana abandonada e, na manhã seguinte, um policial nos encontrou. Depois disso, Shin foi levado para o internato e eu fiquei alguns anos sem vê-lo. Ryo aparecia às vezes, com notícias. Cada uma pior que a outra. Shin era indisciplinado, egoísta, maldoso, perseguia os colegas mais fracos, respondia rispidamente aos professores... Mas suas notas eram boas. Então, mesmo que tivesse uma postura insuportável, era mantido na classe.
Suspirou. O sorriso se manteve no rosto.
— Imaginei que nunca mais fosse vê-lo, afinal, foram alguns anos separados. Nesse ínterim, mamãe faleceu e eu assumi a Casa Ai. Ryo, um dia, veio até mim para me contar que Sakamoto havia terminado os estudos e que queria me ver. Preparei-me para um reencontro frio, já que ele nunca sequer me escreveu durante todo aquele tempo. Mas quando ele entrou na sala, correu até mim e me abraçou com tanta força... Era como se ele estivesse esperando aquele momento durante muito tempo.
— Com certeza estava — Jiro concordou.
— Não sei — deu os ombros. — Achei que tudo seria como antes, mas pouco depois percebi que ele se envergonhava de mim. Fora daqui, nunca existi para ele.
Saito devolveu a toalha a Aiko. Depois, vestiu uma camisa do amigo, pois a sua estava muito molhada. Na cama, as roupas de Shin foram retiradas. Quando ele ficou completamente nu, foi coberto pelos dois. Notaram então que ele estava tão exausto que dormiu mesmo quando mexiam no seu corpo.
Nana apareceu com uma bandeja de chá. Saito serviu-se, tentando tirar aquele espírito gelado de si. A cada dia que passava, sentia-se mais pesado, como se todo o universo o pressionasse para baixo.
— Por que não o levou para casa? — Nana indagou ao homem, claramente incomodada pela presença de Sakamoto.
— Queria levá-lo onde ele se sentisse amado quando acordasse — respondeu, encarando Mamoru, que desviou os olhos.
A velha fez um som estranho com os lábios, como se ridicularizasse a situação. Depois avisou que iria dormir.
— Se quiser descansar, temos um quarto vago — Aiko comentou. — Nana pode mostrá-lo a você.
Agradecendo, Jiro se curvou.
***
Sakamoto Shin acordou antes mesmo de o sol despontar no horizonte. O cheiro de flores o atingiu e ele percebeu que estava na única cama que sempre queria deitar. Pouco depois, seus olhos encontraram-se com os de Mamoru.
Aiko estava sentado próximo à janela, a pele iluminada pela réstia de lua que já se despedia com a chegada do dia. Minikui dormia no seu colo, despreocupadamente.
— O que aconteceu? — perguntou, o corpo moído, cansado, mesmo tendo acabado de despertar.
Aiko o encarou. Levantou-se da cadeira e foi até a cama. De pé diante dele, parecia medi-lo. O gato miou, incomodado por ter sido acordado, então Mamoru o colocou na cama. Minikui foi até ele e recebeu um carinho simples no focinho.
— Não lembra o que fez?
— Sei o que fiz — afirmou. Depois, seu olhar ficou profundamente apático. — A vida é um grande sanitário, Mamoru, onde pessoas como eu estão aguardando em vão Deus puxar a descarga — blasfemou.
Aiko ignorou a frase de efeito.
— Jiro o salvou — disse, por fim. — Não se arrepende?
Sakamoto o encarou, segurando uma risada histérica.
— Te preocupa minha vida? — inquiriu. — Ou se preocupa com o que aconteceria a você, caso eu viesse a faltar? Hiroshi está morto, mas outro...
Suas palavras foram silenciadas por um Mamoru histérico que se atirou sobre ele, tentando estapeá-lo. Sakamoto apenas o segurou firmemente, girando-o na cama, fazendo com que seu corpo ficasse fortemente preso debaixo de si.
O gato observou o dono, incomodado com aquele balanço todo, então pulou para o chão.
— Estou ficando louco, Aiko... — Shin murmurou, sério. — Tenho medo do que posso fazer... Receio machucar você...
Seu rosto foi fortemente segurado pelo outro. Sem pestanejar, Mamoru o trouxe para si, fundindo seus lábios em Shin.
Houve uma espécie de mágica entre eles. Sakamoto não fugiu do beijo, como já fizera algumas vezes no passado. Apenas se deixou ficar, recebendo a única coisa que parecia valer a pena naquele mundo desgraçado e cruel. Percebendo que não seria rejeitado, Aiko circulou as mãos em seu pescoço, trazendo-o para um desengonçado abraço.
— Deixe-me cuidar de você, Shin-chan...
Sakamoto fechou os olhos.
— Eu prometo que não vou deixar que nada o machuque — continuou.
Repentinamente, o corpo de Aiko ganhou vida própria. Talvez, fosse o cheiro adocicado do outro, talvez o seu próprio instinto que reagiu ao contato corporal, enfim, tudo resultou em uma dança erótica e meticulosa contra os músculos de Shin.
Sakamoto gemeu, descansando a testa no peito de Aiko.
— Aiko — murmurou. — Você não tem noção do perigo que isso...
— Tenho noção de tudo que está acontecendo, Shin — disse, contra suas orelhas. — E quero mesmo assim — afirmou. — Por favor, me ame... Apenas uma vez, dê a mim tudo que já deu a outros.
Sakamoto não resistiu àquele apelo. Deixando o corpo em ebulição guiá-lo, ele ajoelhou-se na cama, trazendo Aiko de encontro a si. Pressionando os lábios contra a pele do outro, arrancou-lhe o quimono, atirando-o para longe, fazendo com que o tecido repousasse em cima do gato que dormia no chão.
O miado em tom de reclamação fê-los gargalhar.
Aquele clima arrebatado, tão diferente do que os cercava segundos atrás, fez Shin encarar Aiko como nunca havia feito até então. Diante de si, existia um homem absorvido pela paixão e focado em todo o momento carnal que os unia. E que corpo! Delgado, generoso em toda a sua plenitude. Baixou os olhos, observando o membro bonito que se erguia aos seus olhos.
Abriu as pernas de Aiko, trazendo as coxas para cima das suas. Mamoru ficou sentado a sua frente, os pés unindo-se nas suas costas.
Beijou-o novamente, dessa vez, mais delicado.
— Você sabe que não vai ter volta, não é? — Sakamoto indagou, tomado pelo desejo.
— Você diz isso pra todos? — Aiko perguntou, rindo.
— Sabe que com você é diferente...
— A única coisa que sei é que o desejo mais que tudo no mundo.
Voltaram a se beijar com sofreguidão. Shin empurrou Aiko para trás, fazendo com que se deitasse. Estava tão absorvido pelo calor de seu corpo que, de repente, não sabia mais o que fazer, onde tocar, o que beijar. Cada pedaço da pele desnuda o enlouquecia.
— Aiko!
A porta abriu-se de repente. Ciente de que já amanhecia e de que havia ficado no quarto apenas para velar por Shin, Mamoru recordou-se de que não a havia fechado. Nana apareceu no quarto, fazendo com que ambos saltassem, um para cada lado, com o semblante culpado e febril.
— O que estavam fazendo? — a velha perguntou, apesar de saber a resposta. — Trouxe chá — ela avisou, colocando a bandeja em cima da mesa.
Shin cobriu seu pênis erguido, enquanto tentava controlar a respiração. Viu, com o canto dos olhos, Aiko indicando com as mãos para que Nana saísse. Apesar de claramente não desejar fazê-lo, a velha deixou-os a sós.
De costas para Mamoru, Shin percebeu-o aproximando-se devagar, avançando sobre si, e beijando suas costas.
— Shin-chan... — chamou-o, disposto a continuar exatamente do ponto onde haviam parado.
Mas Sakamoto havia saído do torpor de excitação que o havia tomado. Levantando-se, ele foi até as roupas cuidadosamente dobradas sobre uma cadeira. Ainda estavam úmidas, mas vestiu-as mesmo assim.
— Por favor — Aiko choramingou ainda na cama.
Não o olhou. Caso o olhasse, voltaria atrás e cometeria aquele erro. Então, saiu do quarto, fugindo de todos os demônios, até do mais belo deles.
***
— Como assim? — Shiro arregalou os olhos. — Podemos ver a história?
— Sim, os personagens andam, falam, choram e sorriem. É maravilhoso.
— Então é igual a um butai ?
— Não, não é — Midori negou, movendo a cabeça de um lado para o outro. — Um butai tem apenas um ambiente, num filme você pode ver vários locais. Ah, é tão difícil explicar.
Ambos estavam sentados na cozinha, comendo pão e tomando chá. Ainda era cedo, mas quando Shiromiya acordou de manhã, todos já estavam de pé. Ouviu alguns cochichos que Jiro e Shin passaram a noite ali, mas não os viu, então não se importou.
— Sanshiro Sugata é o nome do filme que você quer ver? — Shiro indagou a ela.
— Meu cliente de ontem disse que é fabuloso!
— Eu também quero ver! — Shiro choramingou. — Nunca vi um filme, nem sei como é... Preciso assistir!
Ela deu os ombros.
— Não posso ir com você — avisou. — Tenho que trabalhar todas as noites, pois minha irmã mais nova precisa de livros novos. Então...
— O cinema só abre à noite?
— Sim. Mas peça a Aiko ou a Jiro que o leve.
Sem pestanejar, Shiromiya acatou a ideia. Correu em direção a Aiko que, naquele momento, revirava a terra do jardim com um graveto.
— Aiko-san — chamou-o, alegre.
Aiko não o encarou, parecendo absorto.
— Aiko-san, pode me liberar essa noite? Gostaria de ir ao cinema.
Silêncio. Shiro resmungou baixo, percebendo que o outro não estava lhe dando a menor atenção.
— Aiko-san — tocou-o. — Posso ir ao cinema?
Mamoru então se voltou para ele. O olhar apagado.
— Cinema?
— Sim, posso ir?
Por mais que Mamoru o encarasse, ainda parecia não o entendê-lo.
— Claro.
Shiromiya nem tentou se explicar. Diante da afirmativa, resolveu desaparecer das vistas de Aiko antes que ele mudasse de ideia.
***
Aiko e Jiro foram passear durante a tarde. Saito gostava de circular com Mamoru nos vários pontos turísticos de Tóquio, então normalmente a Casa Ai ficava silenciosa sem seu proprietário durante as tardes. Shiro aproveitava os momentos para ficar perto de Nana, pedindo à velha que lhe contasse histórias. Porém, naquele dia, ele estava sentado em sua cama, separando as notas de dinheiro que levaria consigo à noite para comprar seu ingresso para o cinema.
— Você vai sozinho? — Midori apareceu à porta.
— Por que não?
— As ruas não são um bom lugar para um jovem bonito como você.
— Como se eu fosse ser desvirginado — gargalhou.
Ela deu os ombros.
— Peça ao sargento que o leve — sugeriu. — Saito não parece incomodado por sair com pessoas do nosso tipo.
Shiromiya deu os ombros, louco para que ela se afastasse. Não queria ir com ninguém, queria a liberdade que qualquer outro homem teria naquela idade.
— Nana quer que vá a padaria comprar pão — avisou a mulher, parecendo só então se recordar do que a levarar até o quarto do garoto.
Shiro assentiu, guardando a caixinha de dinheiro no guarda-roupa. Depois, rumou até a cozinha, pegando com Nana um pouco de dinheiro. Em segundos, já estava na rua. Caminhou alguns minutos sobre o sol forte, quando percebeu um veículo andando vagarosamente perto de si.
Voltou-se ao automóvel e viu Ryo em seu interior, sorrindo.
— Quer uma carona?
— Quero que vá pro inferno — respondeu, malcriado. Porém, ao perceber Tadao no volante, envergonhou-se. — Peço desculpas, senhor Tadao, minhas palavras não foram ao senhor.
O homem assentiu, compreensivo.
— Foram para mim? — Ryo se fez de desentendido.
Shiromiya resolveu não responder. Deu as costas e começou a caminhar no sentido contrário, tentando fazer com que o outro o deixasse em paz. Ouviu o som da porta do carro abrindo e depois fechando. Instantes depois, Ryo estava ao seu lado.
— Sinto sua falta — Ryo disse, repentino.
Kazue não esperava por aquelas palavras. Seu susto foi nítido. Ele encarou o outro, pasmo.
— Me deixe em paz.
— Mas, Shiro...
— Estive muito bem enquanto esteve longe. Não me faz falta nenhuma!
Ryo sentiu-se desesperado diante das palavras.
— Nenhuma falta? Achei que fôssemos amigos.
— Éramos, mas você esqueceu isso quando disse que tinha nojo de mim.
Era verdade, e o fato emudeceu o comerciante que o viu afastando-se novamente.
***
— Estou arrependido do que disse — Ryo aparentou sinceridade. — Quero novamente sua amizade.
Kazue o encarou, a mágoa era tão nítida que o arrepiou.
— Não quero mais ser seu amigo, Ryo-san. Até quando vai insistir?
Ryo o seguiu até a padaria. Diante do olhar abismado do atendente, ele segurou o cotovelo de Shiromiya.
— Então, por que ainda está usando o cordão que eu lhe dei?
O choque foi claro. Shiro baixou o rosto, subitamente percebendo que não o havia retirado do pescoço desde a primeira vez que o colocara.
— Porque... — buscou uma resposta. Não a achou. — O que isso importa?
— Disse que o cordão representaria nossa amizade.
Diante de tal circunstância, suspirou.
— Está bem — disse por fim. — Podemos ser novamente amigos. Mas tenho uma condição.
— Qual?
Ele faria qualquer coisa por Shiromiya.
— Já ouviu falar em Sanshiro Sugata ?
— O livro inspirado em Miyamoto Musashi?
— Sim, eu soube que um tal de Akira Kurosawa [36] fez um filme sobre ele.
— Um filme?
— Midori-san disse que é uma história contada em uma tela. Que podemos enxergar os personagens, ouvir suas vozes e ver suas lágrimas. Eu gostaria muito de ver isso.
A implicação do pedido de Shiromiya não passou despercebida a Ryo.
— Por que não pede a Aiko que o leve?
— Porque não é ele que quer minha amizade novamente — devolveu.
Ryo pigarreou.
— Shiro, veja bem, eu não posso...
— Eu sabia que diria isso — Shiromiya o cortou. — Quer que eu seja para você o que Aiko-san é para Sakamoto-san. Apenas um adorno que o aguarda na Casa Ai. Bom, eu não aceito esse tipo de relação, portanto, passar bem, Ryo-san.
Sem deixar espaço para réplica, Shiromiya lhe deu as costas e começou a caminhar rapidamente em direção à rua. Diante daquilo, Ryo agiu por impulso.
— Está bem, Shiro — segurou seu braço. — Eu farei o que quiser, o que desejar de mim.
Quando Shiro sorriu, soube que estava perdido.
Capítulo 22
No fina l daquela tarde, uma leve garoa começou a cair em Tóquio. Ryo torceu para que ela parasse antes do seu encontro com Shiromiya. Afinal, odiava sair de carro quando chovia, sempre um risco de atolar naquelas ruas enlameadas do subúrbio. Mesmo assim, quando a chuva se intensificou, ele não reclamou, e prosseguiu com seu plano de ir à Casa Ai. Às oito em ponto, Tadao estacionou em frente aos portões da Casa do Amor. Em segundos, Shiro surgiu, entrando rapidamente no carro, antes de se molhar.
Ryo o observou atentamente. Estava usando uma calça de linho escura e uma camisa. Ambas grandes demais para seu tipo miúdo. Reconheceu a roupa rapidamente, eram de Aiko. Mordendo os lábios, percebeu que Shiromiya sequer tinha roupas para usar em eventos especiais. Aquilo o irritou e o apiedou ao mesmo tempo. Aquele garoto que lhe despertava sensações estranhas era também a pessoa mais miserável que conhecia.
— Boa noite, Ryo-san — ele cumprimentou assim que se sentou ao seu lado.
Quando Shiromiya sorriu, todo o íntimo de Ryo pegou fogo. Ele conteve com esforço a ânsia de jogá-lo sobre o banco do carro e fundi-lo com sua volúpia.
— Sabia que Sugata Sanshiro, o filme, é inspirado em um livro? — mudou de assunto, tentando afastar os pensamentos do desejo que estava despertando a visão desengonçada do garoto.
— Um livro?
O interesse dele era nítido. Era uma pena que Shiromiya não soubesse ler. Com certeza, seria uma pessoa bem instruída e amante da literatura, caso conhecesse as letras.
— Sim, escrito por um homem chamado Tsuneo Tomita.
Os olhos negros de Shiro brilharam.
— Mal posso esperar pra ver o cinema, Ryo-san.
Ryo sorriu. Depois disso, não conversaram mais. Shiro voltou o rosto para a janela, e ficou observando a cidade com claro interesse. Só voltou a encarar Ryo quando o carro parou em frente ao local onde veriam o filme. Ryo desceu e depois estendeu a mão para que Shiro o acompanhasse.
O local pareceu um templo aos olhos do adolescente. Suspirando, ele olhou para cima, onde um grande letreiro indicava o filme. Pôs imediatamente a mão no bolso, retirando algumas notas.
— Onde eu compro meu ingresso? — perguntou ao amigo.
— Tadao já os comprou durante a tarde.
Shiro encarou Ryo e depois o dinheiro.
— Quero pagar a minha parte — explicou. — Quanto custou?
— Não tenho ideia, esqueça.
Ryo então começou a andar em direção a porta de entrada. Quieto, Shiro o seguiu.
— Insisto em saber o preço, Ryo-san.
Ryo resmungou algo e Shiro se pôs em sua frente, resoluto.
— Por favor — perseverou.
— Eu realmente não sei. Acha que eu me preocupo com esmolas?
Percebeu imediatamente que as palavras feriram Kazue, que guardou as notas preciosas no bolso, enquanto o olhar afundava no chão. Culpou-se.
— Vamos fazer uma troca? — sugeriu. — Eu paguei os ingressos e você pagará os doces.
Os pequenos saquinhos com balas vendidos à porta do local eram bem mais baratos que um ingresso para um filme concorrido. Mesmo assim, Shiromiya não precisava saber disso. Percebeu que o outro pareceu mais tranquilo após sua sugestão.
— Está bem — voltou a sorrir.
Poucos minutos depois, munidos de chá e de balas, os dois se sentaram em duas cadeiras de madeira estofadas com veludo azul. A sala enorme estava cheia, e todos pareciam entretidos em uma conversa sobre o talento de Akira Kurosawa, o diretor do filme.
— Aiko não reclamou por eu trazê-lo ao cinema? — Ryo questionou quando o silêncio entre eles ficou incômodo.
— Mamoru-san parecia estranho nessa tarde, aéreo. Sinceramente, acho que nem me ouviu, apesar de eu ter falado duas vezes e reforçado a ideia antes de sair.
— Você disse que viria comigo?
— Falei, logo após ele ter voltado de um passeio com Saito-san.
Subitamente as luzes se apagaram. Nervoso, Shiro deu um salto em direção a Ryo, segurando-se no comerciante.
— Ryo-san, o que aconteceu?
Aquela ingenuidade e pureza fizeram Ryo rir. O toque singelo e amedrontado do rapaz o arrepiou.
— É normal, Shiro — explicou. — O filme vai ser rodado.
Mesmo assim, ele permaneceu segurando seu braço até que a tela iluminou-se. Só quando a sala voltou a ser visível, foi que o soltou. Olhando para os lados, Shiromiya percebeu todos focados à frente, repentinamente silenciosos. Aos poucos, foi sentando-se corretamente na cadeira, e também olhou adiante.
A história girava em torno de um jovem forte e teimoso e sua busca pelos ensinamentos sobre ju-jutsu . O enredo, ora centralizado na busca pela excelência no esporte, ora na indisciplina do protagonista, encantou Shiromiya que mal parecia piscar, enquanto assistia o desenrolar na tela.
Com o canto dos olhos, Ryo o observava atentamente. Até tentou se concentrar no filme algumas vezes, mas a visão ao seu lado era deveras preciosa para se deixar levar por qualquer outra coisa. Segundos depois, ele sentiu sua parte de baixo entumecer. Nervoso, colocou o balde de pipoca e encobriu aquele monte que cada vez crescia mais.
Fechou os olhos e respirou fundo.
— Ryo-san, acha que Sayo e o Sanchiro estão apaixonados? — a pergunta foi feita baixinha, contra suas orelhas.
Conteve um gemido enquanto olhava para Shiromiya. Esperou o olhar malicioso que sempre recebia de suas amantes, quando elas percebiam que ele estava desejoso, mas tudo que viu foi a legítima curiosidade.
— Apaixonados?
A pergunta era um tanto inconveniente. Quem, em sã consciência, se apaixonava em tempos como aquele? O seu mundo era bem mais simples. Mulheres deviam servir ao lar, que seria provido por seus maridos. E a paixão devia ser sanada por simples profissionais do prazer. Sem compromissos ou lealdade. Apenas gozo e fim.
— Não percebe o olhar dela? Não parece ser mais que admiração?
Sorriu diante do fato de que Shiromiya, apesar da vida que levara, ainda tinha sonhos românticos e clichês.
— Quem sabe — murmurou.
Voltou a fechar os olhos, e mudou o rumo dos pensamentos. Pensou em paisagens e, depois, nos negócios. Por fim, focado e determinado a acalmar o corpo, ele sentiu que o pênis amolecia.
Suspirou.
De alguma forma, tudo aquilo era um alívio. Apesar do problema em sentir-se excitado por um homem, confirmar que não estava doente ou impotente abrandava a mente enlouquecida.
Abriu os olhos e olhou a tela. Shiro não falou mais depois daquilo e ele pôde se concentrar no filme. No final, quando a cena se focou em Sanchiro e Sayo dentro de um trem, partindo, Ryo sentiu-se aliviado. Estava enlouquecendo, pois até mesmo a respiração de Shiromiya ao seu lado parecia lhe inflamar.
Quando as luzes se acenderam, ele, enfim, encarou o outro. Viu-o emocionado, os olhos contendo as lágrimas.
— Foi a coisa mais bonita que eu já vi, Ryo-san — Shiro disse, explicando-se. — Quero vir sempre ao cinema.
Não era um convite, era apenas um desejo. Ryo entendeu.
— Vem — disse, puxando-o pela mão. — Vamos embora?
Se Shiro fosse uma mulher, ele a levaria a um hotel. Mas como era um garoto, ele sabia que o correto era levá-lo direto para casa. Talvez, no futuro, mais ciente do que desejava o corpo, transgrediria aquela regra — sabia que a quebraria um dia — mas, naquele momento, queria apenas que o garoto chegasse em segurança à casa.
Porém seus planos foram interrompidos ao constatar a bagunça que estava em frente ao cinema. Um acidente entre dois carros interrompeu a única via de acesso, e muitos veículos estavam parados, aguardando para cruzarem. Erguendo o olhar, viu que nenhum deles era o seu.
— Onde está o senhor Tadao? — Shiro perguntou.
— Provavelmente tentando chegar até nós.
— E será que ele vai demorar muito? — o outro pareceu preocupado.
Ryo estranhou.
— Eu disse a Aiko-san que estaria em casa antes da meia-noite — explicou-se. — Então, para chegar em tempo, vou andando.
Não esperou réplica. Dando as costas a Ryo, começou a descer as escadas do cinema. Porém não caminhou muito.
— Está maluco? Não vou deixar que volte sozinho à noite pelas ruas desertas...
— Dizem que é seguro, a Kempeitai está sempre vigiando.
Como se a Kempeitai fosse de uma ética respeitável , pensou Ryo.
— Vamos, eu vou acompanhá-lo.
Nunca, em toda a sua vida, andou a pé à noite. Sempre servido por empregados que faziam questão de tratá-lo como rei, mesmo quando não tinha à mão o próprio veículo, surgia outros a lhe fornecer transporte. Mas, como ele permitiria que Shiromiya, com aquela aparência deslumbrante, andasse desprotegido pelas ruas escuras?
Ciente de que era o maior dos perigos ao garoto, ele pôs-se a andar, determinado. Todavia, arrependeu-se tão logo a bota de couro negra afundou-se no barro. Reclamando, ele chutou a lama que se encravou no tecido, tentando limpar o calçado. Ouviu Shiro gargalhando alto, então, sem explicação, riu também.
— Estou sem documentos — lembrou-se, de repente, que os deixara no carro.
— Se vermos virmos a Kempeitai, podemos fugir correndo — Shiro sugeriu.
A chuva que havia dado uma trégua voltou a cair. Apesar de gelada, ambos riram enquanto corriam rua afora à procura de uma proteção. Embaixo de um prédio, eles conseguiram um espaço sem chuva. Ficaram lá, no escuro, alguns minutos.
Nunca, até então, haviam compartilhado de um momento tão fraterno. Mesmo quando lia para Shiro, Ryo nunca se sentiu tão parte de algo, uma mágica atmosfera entre ambos.
— Já se apaixonou por alguém, Ryo-san? — a voz de Shiromiya o tirou da letargia, fazendo com que o encarasse.
Estava tão escuro que não pôde ver seu rosto, mas reconheceu o interesse.
— E você? Já?
— Perguntei primeiro — brincou.
— Então responda primeiro — devolveu.
Um clarão no céu antecedeu-se à resposta. Naquela réstia de luzes, ele percebeu o olhar abatido de Shiro.
— Já — o murmuro era emocionado. — Mas não fui amado.
Ryo sentiu toda a pele arrepiando-se. Mesmo sem dizer o nome do dono de seu coração, Shiro pareceu falar como se estivesse diante dele.
— Shiro...
Sem resistir, Ryo o prensou contra a parede do prédio, todo seu corpo eclodindo em tesão. Mas foram interrompidos por um apito.
— É a polícia — Shiro avisou.
Não pareceu preocupado, ao contrário, riu novamente, enquanto puxava Ryo pela mão. Correram em direção à escuridão mais intensa, entregues à combustão que parecia existir em seus jovens corações.
***
Ryo bateu as costas em um muro de concreto. Ria como um adolescente em traquinagem, sentindo-se vivo e feliz como nunca até então. O rosto estava lavado pela chuva, e ele mal conseguia ver algo adiante por causa do aguaceiro. Além disso, estavam em um beco escuro, camuflados pela negritude da noite. No entanto, mesmo assim, ele percebeu o olhar feliz do seu companheiro, que sorria para ele.
— Nunca pensei em vê-lo correr tanto — Shiro murmurou. — Parecia um louco. Achei que me deixaria para trás.
Deixá-lo? Repentinamente Ryo avançou contra Shiromiya, segurando seu rosto de forma firme. As costas de Shiromiya bateram contra a parede do prédio oposto, enquanto sua frente era esmagada pelos músculos do outro.
— Ryo-san?
Havia em seu tom dúvida, estranheza e carinho. Ryo só conseguiu sentir a última característica.
Ele encarou os lábios do outro por alguns segundos, num misto de desejo e desespero. A mente lhe dizia que devia parar com aquilo, mas o resto do corpo lhe ordenava que prosseguisse.
Sem mais poder se conter, ele curvou-se perante Shiromiya, lambendo vagarosamente o lábio, antes de afundar-se na boca do outro.
Shiro não recuou, mesmo que aquele fosse o primeiro beijo que trocava com alguém. Já havia sido beijado antes, mas havia sido horrível e nojento. Naquele momento, porém, sentia que estava completamente ciente de que desejava a mesma coisa, sem medos ou pudores, apaixonadamente entregue.
As línguas se encontraram, gentis, numa dança erótica. Shiro pôs as mãos sobre as de Ryo, como se reforçasse a segurança que aquele toque lhe dava.
— Oh, merda... — Ouviu Ryo gemer antes de se afastar.
Não precisou questionar a frase, entendeu instantaneamente o motivo do resmungo esmagado contra seu ventre antes de ele largá-lo.
Ryo ficou de costas para ele, olhando para baixo. Parecia sem saber o que fazer.
— Ryo-san?
— Fique aí, ok? — disse, irritado. — Vou resolver o problema...
Todavia, parecia que suas palavras eram inverdades. A chuva fria não o acalmou, e Ryo percebeu que só havia uma solução. Era uma sorte que estivessem em um beco escuro e solitário, cercados por uma parede alta de um prédio, e um muro de um terreno baldio. Sem pensar duas vezes, ele enfiou a mão dentro da calça.
Blasfemou ao sentir que não conseguia fazer nada sozinho. Simplesmente, seus dedos não lhe provocavam nenhum prazer, e tudo parecia mecânico.
— Ryo-san — Shiromiya voltou a chamá-lo.
Ryo girou a face e o contemplou. À luz fraca que vinha de um poste ao longe, ele percebeu-o observando-o. Seus cabelos em desalinho caíam sobre a testa molhada, e a boca, ainda vermelha pela atividade anterior, pareceu ainda mais apetitosa do que nunca.
O corpo voltou a reagir e Ryo, mais uma vez, percebeu que seu ser, por algum motivo louco, estava completamente viciado em Shiromiya. Era ele, com seu passado tenebroso, sua vida miserável, suas roupas emprestadas e seu olhar triste, que lhe despertava uma paixão carnal e selvagem que nunca havia sentido antes.
— Eu posso ajudá-lo.
Não foi um convite, sequer um oferecimento gratuito. Shiro não estava pedindo autorização ou coisa do tipo. Estava ele afirmando algo que Ryo já sabia.
Derrotado de muitas maneiras, e vitorioso de outras, Ryo deixou as costas voltarem para o concreto do muro. Sua face se ergueu e ele olhou o céu. Esperou que Shiromiya se curvasse perante ele, como já havia feito muitas mulheres no passado.
Mas, para sua surpresa, Shiro ficou de frente a ele, de pé. Suas mãos puxaram o rosto de Ryo, obrigando-o a encará-lo. Ryo gemeu diante daquilo, não conseguindo mais esconder de si mesmo o quanto o desejava.
Shiro, então, esfregou o nariz no seu, depois desceu-o nos seus lábios, entreabrindo-os. Beijaram-se no mesmo momento que os dedos de Shiro seguraram seu mastro erguido. Ryo conteve um grito excitado, sentindo-se enlouquecido diante de tal.
— Você já fez isso antes?
Por que a maldita boca perguntou aquilo? Quis gritar, xingando-se. Percebeu que por alguns instantes Shiro ficou estático, mas logo o outro começou a bombeá-lo, de forma leve.
— Meu papel na cama dos homens é apenas abrir as pernas e tentar não chorar, Ryo—san — ele contou, a voz embargada. — Mas você deve imaginar que eu não seja ignorante no meu ofício.
Percebeu, mesmo com a chuva, as lágrimas que inundavam os olhos de Shiromiya. Sentiu-se péssimo por estar usando-o como muitos já haviam feito.
Uma onda de prazer o atingiu, antes de pedir desculpas. Segurou-se em Shiromiya, buscando novamente seus lábios, impedindo-se de gritar. O que não conseguia falar, tentou demonstrar enquanto o tomava de forma voluptuosa e quente.
Quando enfim o clímax o atingiu, sentiu todo o corpo convulsionar contra o outro, atingindo um ápice inigualável, algo que nunca até então havia sentido. Abraçando Shiro, ele tentou se recuperar do turbilhão de emoções que o tomava.
Satisfação e vergonha o atingiram de tal forma que quase caiu. No entanto, ao mesmo tempo, Shiromiya o largou, virando-se de costas e buscando uma poça no chão para limpar os dedos.
— Shiro — o chamou, percebendo o quanto ele estava incomodado.
— Não se preocupe, Ryo-san — ele disse, baixo. — Ninguém ficará sabendo disso.
— Mas, Shiro...
— Não estou pensando bobagens, Ryo-san — adiantou-se, segurando um choro descontrolado que parecia querer escapar de si. — Eu sei o meu lugar — afirmou. — Agora, vamos, pois Aiko-san deve estar preocupado.
***
Ryo o levou até a frente da Casa Ai. Eles não se despediram, Shiro entrou reto e fechou o portão. Ao longe, apenas o barulho do movimento da casa Ai, com sua costumeira música e risadas. Um mundo alheio ao inferno.
Caminhou até o quarto e fechou a porta. Retirou as botas sujas de barro, encarando o futon e a pequena mesinha. Uma garrafa de água descansava em cima do criado mudo, e o velho roupeiro de madeira ainda estava com a porta desengonçadamente aberta.
Nada ali era seu.
Não tinha nada nem ali, nem no mundo.
E fora tolo o suficiente para entregar-se a alguém que tinha tudo.
Sentou-se no chão, as costas apoiadas na porta. E ali, no escuro, solitário, enfim ele permitiu-se chorar como a muito não fazia.
***
Saito Jiro observou o movimento. As mulheres riam com a boca escondida atrás de leques, enquanto os homens bebiam e conversavam sobre banalidades. Estava tudo igual, como sempre.
Bom, repensou, nem tudo igual. Aiko estava parado próximo do palco, o olhar abatido e longe, como se apenas seu corpo sem alma estivesse ali, administrando o bordel.
Durante a tarde o havia levado para passear. Não falaram muito, na verdade, Mamoru nem tentou responder suas divagações sobre o tempo ou sobre a guerra. Simplesmente aquiescia ou contrapunha com monossílabas. Sabia que seu estado apático era fruto da manhã que teve ao lado de Shin. Mas não fazia ideia do que acontecera dentro daquele quarto.
Olhou para o copo de saquê, resoluto em ir embora, assim que terminasse a bebida. Devia estar ao lado de Sakamoto. Só Kami-sama sabia o que ele aprontaria naquela noite.
— Jiro? — o som fê-lo erguer os olhos.
— Aiko?
Encarou o amigo. Não havia notado que ele se aproximara.
— Quero pedir um favor.
— É claro — concordou, de imediato. — O que você quiser.
— Quero que faça amor comigo.
Capítulo 23
A maldit a caneta estava sem tinta. Shin Sakamoto bateu-a contra a mesa e depois a rolou nas mãos, tentando fazer com que um resto da cor ainda surgisse. Como, ao testar, viu que a caneta continuava sem traçar as linhas, atirou-a longe, irritado, e então se voltou à gaveta, à procura de outras.
Na sua frente, um soldado da Kempeitai aguardava em pé, silencioso, enquanto ele tentava assinar a documentação. Estava em seu escritório particular em casa, terminando alguns relatórios sobre alguns civis investigados de traição. Todos inocentados por Sakamoto que fê-los repensar suas atitudes através de alguns socos e ameaças.
“Melhor que uma bala nas fuças” , pensou.
— Ah! — exclamou com alívio ao ver uma caneta antiga escondida na gaveta. Ergueu-a e assinou seu nome no papel. — Tome — estendeu os documentos ao rapaz.
O soldado agarrou os documentos e se curvou, afastando-se. Na porta, chocou-se contra um bonito sargento que apareceu, como um fantasma, repentinamente.
— Desculpe-me, senhor — o rapazote curvou-se, servil.
Jiro sorriu e ele soube que havia sido perdoado. Quando o soldado sumiu, Saito entrou no escritório, fechando a porta.
— Ocupado? — indagou a Shin, que o encarava num semblante impassível.
— Não — respondeu. — Terminei há pouco meus relatórios.
Saito assentiu, respirando fundo. Depois, se endireitou na cadeira, parecendo conflituoso. A postura chamou a atenção de Sakamoto, que se resvalou para trás, à espera do que viria.
— Aiko-san me fez um pedido — Jiro começou. — E eu aceitei.
— Um pedido?
Saito ficou em silêncio por alguns segundos, encarando o amigo. Então, ele proferiu, num tom extremamente rápido:
— Ele pediu sexo — contou e cobriu os ouvidos, aguardando os gritos.
Mas eles não vieram. Pasmo, depois de cerca de um minuto, retirou as mãos das orelhas.
— Você não vai tentar me bater? Xingar-me? Chamar-me de traidor? — perguntou, ainda incrédulo.
— Aiko lhe pediu isso? — parecia ainda mastigar a informação.
— Sei que é uma situação...
— Incômoda? Cruel? — completou, parecendo, enfim, zangado. — Por que me contou? Não sabia que era do tipo de pessoa que se aproveita da dor dos amigos.
Jiro negou.
— Shin-chan, não é comigo que ele quer dormir.
— Eu sei disso. Mas você sabe que eu não posso. E mesmo assim aceitou...
— Você não pode? Quer dizer que você dorme com qualquer pessoa que sentir vontade, menos com a única que ama? E assim a condena a uma vida sem prazer sexual, apenas dando a ela migalhas da sua atenção? E ainda tem a coragem de irritar-se por ela procurar em outra pessoa uma sensação que você lhe nega?
— Você nunca entenderia — perseverou.
Saito levantou-se da cadeira, andou até a porta, disposto a encerrar a discussão. Mas, ao pôr a mão na maçaneta, voltou-se.
— Vou levar Aiko hoje à tarde a uma cabana que aluguei durante a manhã. Fica a oeste, próximo do Fuji. Estaremos lá perto das quinze horas. É sua escolha nos impedir ou nos deixar livres. Caso deseje a segunda opção, saiba que farei Aiko muito feliz, vou me doar inteiramente a ele. Porém, se escolher a primeira, tenha consciência de que a única coisa que me fará arredar o pé de lá será a certeza de que estará disposto a dar-lhe tudo o que ele desejar.
Sakamoto pareceu espantado pelas palavras.
— Daria Mamoru a mim, sem lutar? — questionou.
— Eu o amo, e quero que seja feliz. Quando ele está perto de você, resplandece. Quando estão separados, parece sem luz — confessou.
E com aquelas palavras, afastou-se.
***
— Está tremendo — Jiro riu enquanto abria a porta da cabana.
Aiko tentou sorrir para o amigo, mas a boca parecia mortificada. Depois, ralhou consigo mesmo, afinal de contas, era um homem de vinte e poucos anos, não um adolescente diante do primeiro amor.
Era apenas um homem que faria sexo. Ponto.
Ignorando o “pela primeira vez” que a mente parecia querer completar à sua ideia, ele entrou no local. A cabana de madeira era pequena, uma cozinha conjugada a um quarto. Tudo muito limpo e organizado, ideal para um encontro romântico ou uma lua de mel.
A cama estava coberta com uma bonita colcha floreada, e os travesseiros, revestidos de linho, pareciam convidativos.
Aiko caminhou por entre os móveis, colocando a bolsa em cima da pequena mesa ao lado do fogão. Olhou atentamente cada detalhe, antes de voltar-se para Saito. Quando o olhar de ambos se encontraram, Jiro sorriu.
— Não quero que fique nervoso. Não precisamos fazer nada que não queira.
— Mas eu quero! — Mamoru adiantou-se. — Eu preciso!
— Não, não precisa — Jiro negou. — Quer adequar-se a um mundo que o despreza por ser um homem que nunca desfrutou da cama de outra pessoa. Esse desejo de não mais ser diferente não configura uma necessidade. Apenas uma besteira. Não se deixe levar pelo que pensam as outras pessoas, Mamoru. Você é perfeito como é.
Aiko suspirou.
— Você não me entende. Ninguém me entende. Vivo num mundo onde todos são ativos sexualmente, e eu sequer sei qual é a sensação de um corpo nu sobre o meu.
A frase fez Jiro estremecer. Todavia, dizendo a si mesmo para ter calma, andou na direção contrária do cortesão. Aproximou-se de um armário e retirou dele uma garrafa de saquê.
— Quer um pouco? — perguntou.
O olhar ansioso do outro parecia ignorar a bebida.
— Você vai beber? — perguntou o óbvio. — Quando vai fazer amor comigo?
Saito conteve uma risada histérica.
— Aiko, você não tem noção do quanto eu estou me contendo.
— Não quero que se contenha!
Jiro sorriu, triste.
— Meu querido, é isso mesmo que você quer? Ter sua primeira vez com quem não ama?
— Mas você me ama! — persistiu. — Ensina-me a amá-lo — pediu.
Era um pedido tentador, porém, pela primeira vez Saito sentiu-se temeroso diante da tarefa. Nunca, até então, havia dormido com alguém que não quisesse estar em seus braços. A verdade, por mais cruel que fosse, era que Aiko não queria que sua primeira vez fosse com ele, e sim com Shin. Saito acreditava que um dia poderia vir a fazê-lo amá-lo, mas ainda não conseguira tal coisa.
O sexo entre homens era muito mais carnal e intenso que entre um homem e uma mulher. Estaria Aiko preparado para tal?
O olhar decidido do cortesão, enfim, fez Jiro agir. Aproximou-se com cuidado, roçando seu corpo ao do outro de forma leve, quase imperceptível. Depois, segurou o queixo de Mamoru e o beijou, levemente. Não tentou forçar a língua, nem mesmo o corpo. Sabia que Aiko estava amedrontado, apesar do que dizia, e jamais se perdoaria se transformasse aquela experiência numa lembrança ruim.
— Já disse, vou repetir: não importa em que momento estivermos, se você me pedir para parar, eu vou — reafirmou, tentando lhe transmitir confiança.
O outro assentiu.
— A sua primeira vez foi ruim? — indagou, de supetão.
— Não, foi maravilhosa. E sabe por quê? Porque estava completamente apaixonado pela pessoa com quem me deitei.
Mamoru suspirou.
— Nós dois sabemos que Sakamoto nunca vai me amar da mesma forma que eu o amo — afirmou. — Então, por favor, Jiro... Pare de tentar me jogar para ele. Não diz que está apaixonado por mim? Então lute por mim! — mandou. — Estou disposto a esquecê-lo, mas preciso que me ajude.
Saito assentiu, encantado. Voltou a puxá-lo, daquela vez, mais determinado. As bocas se encontraram, mas Jiro não tentou conter a língua afoita de brincar com a de Aiko. Enroscaram-se, não só pelos lábios, mas também numa clara demonstração dos corpos que o desejo entre eles surgia, forte.
Os dedos gentis de Jiro puxaram o cinto do quimono, abrindo-o levemente. O peito desnudo e perfeito surgiu diante dos seus olhos, e Saito agachou-se um pouco, a fim de beijá-lo. Ouviu, extasiado, um gemido baixo de Aiko, que se contorceu quando Saito capturou o rosado mamilo com a boca.
— Lindo... lindo — Jiro sussurrou, ao ver aquela pequena demonstração de prazer.
E era a única. De mais, Aiko permanecia completamente duro e nervoso. Mesmo sem querer, aquela comprovação de nervosismo machucava Saito, que não conseguia tirar da cabeça de que, com Shin, o cortesão não ficaria tão petrificado.
No entanto, não lhe restou muito a pensar. Tão logo voltou a beijar aqueles lábios perfeitos, o barulho de batidas fortes na porta fê-lo afastar-se de Mamoru.
Enfim, Shin viera. Não que o aguardasse, mas esperava que aparecesse. Diante de um pasmo Aiko, ele foi até a porta e a abriu. Sakamoto entrou como um vulcão, espumando raiva e revolta. Nada falou, mas Jiro percebeu que, caso objetasse, ambos se atracariam no chão como dois moleques pela atenção da mãe.
— Saia — ele disse a Jiro.
Aiko, que até então estava pasmo, resolveu intervir.
— Como se atreve? — revoltou-se. — Saia você.
Apesar da frase, era nítida nos olhos do cortesão a emoção, quase alívio pela interrupção. Saito notou aquilo, e afastou-se, sem deixar espaço para réplica.
Quando a porta fechou-se às suas costas, Jiro respirou fundo e conteve as lágrimas. Mesmo que doesse, agir com hombridade era algo que ele mantinha em si como uma boia que o salvava de afundar-se no mar de maldade que havia levado a sua alma.
***
Shin encarou Mamoru com legitima surpresa. É verdade que sabia que Jiro havia levado o cortesão até aquela cabana, e também era de seu conhecimento o propósito do encontro, mas não esperava encontrar Aiko com o peito desnudo, a boca avermelhada e a pele marcada pela paixão do outro.
— Por que está aqui? — Aiko inquiriu. — Por que mandou Jiro embora? Como se atreveu?
— Você devia se perguntar o porquê Saito se foi — retrucou.
Mamoru emudeceu. Mesmo assim, Shin continuou.
— Jiro sabe que eu o amo, Aiko — afirmou. — Ele sabe que não tem o direito de tomar o que é meu.
— Seu? — quis rir e dizer que não lhe pertencia. Porém percebeu ser aquela a verdade. — De que me adianta ser seu se você não me toma? Não estou mais disposto a ficar esperando meu príncipe encantado como uma princesa numa torre. Eu quero um relacionamento em que eu exista, seja respeitado e amado.
— Eu sempre respeitei você!
— Dormindo com outras pessoas na minha frente?
A frase envergonhou Shin.
— Eu te amo, Aiko — afirmou. — Mesmo com todos os meus defeitos, eu amo você.
— Um amor platônico. Eu não quero mais isso, Shin. Ou você me assume, ou me deixa ficar com Jiro. É um pedido justo.
Shin assentiu. Colocou as duas mãos no bolso da calça e então sorriu.
— Jiro me contou que vocês estariam aqui hoje à tarde. E me disse que, caso eu os interrompesse, devia ser por que estaria disposto a ser seu, de verdade.
— E você está?
— Eu estou aqui, não estou?
— Para me deixar insatisfeito na cama? Para começar algo que não vai terminar?
Shin deu dois passos para frente. Estancou.
— Você deixou Jiro tocá-lo — constatou. — O que você sentiu?
— Não está na posição de me cobrar qualquer coisa.
— É verdade, mas, mesmo assim, quero saber.
Mamoru suspirou.
— Eu só queria saber como é ser amado por alguém, porque nunca o fui em toda a minha vida — riu, triste. — E Jiro estava disposto a me amar.
— Você estava gostando dos beijos e toques dele? — exigiu.
Mamoru olhou para o lado. Parecia não querer responder aquela pergunta.
— Aiko — o tom de Sakamoto era forte.
— Não — foi franco, mesmo contra a vontade. — Não — repetiu. — Mas de que importa isso? Você está aqui para me amar?
Shin não respondeu. Mais dois passos e ele agarrou Aiko pela cintura, num toque possessivo e firme. Encarou-o, daquela vez sem qualquer medo, e o beijou com volúpia. Ao contrário do beijo gentil de Jiro, o beijo de Sakamoto era duro e exigente e, ao mesmo tempo, quente e vigoroso. Também, ao contrário do momento com o sargento, Aiko se viu fervendo em milhões de focos de fogo que dançavam e andavam sobre a sua pele, fazendo com que ele amolecesse e gemesse alto e sem escrúpulos, enquanto os corpos se comprimiam um contra o outro.
Sentiu Shin empurrando-o contra a cama. Caiu nela, tomado pelo desejo. Ali percebeu o inevitável: por mais perfeito que fosse Saito, não era ele que seu ser desejava. Uma culpa tremenda o tomou, abafada em seguida pela visão erótica de Sakamoto arrancando o casaco, e depois a camisa. O torso desnudo o arrepiou. Guiado por um instinto primitivo, Aiko avançou contra o outro, lambendo o peito definido, sentindo a língua acariciar a pele salgada como se fosse o mais delicioso alimento dos deuses.
— Nunca fez isso antes? — Shin parecia incrédulo diante daquele Aiko febril.
— Desculpe — o outro se afastou. — Estou fazendo algo errado? — indagou. — Realmente, eu nunca fiz nada parecido, mas eu estou tão necessitado por você...
Sakamoto sorriu com o canto dos lábios. Com as duas mãos, segurou o bumbum empinado de Mamoru, trazendo-o contra si, apertando as duas elevações duras uma contra a outra.
— Você me deseja — riu, extasiado, quando sentiu que o amigo estava completamente rígido.
— É claro que eu o desejo — Shin retrucou. — Por que acha que eu vim atrás de Jiro e você?
— Uma parte de mim acreditou que era por Saito que você estava aqui — admitiu.
— É um tolo, Mamoru — riu, voltando a beijá-lo. — Um tolo que quero devorar, lamber e chupar em cada pedaço de pele que minha língua conseguir alcançar.
Aiko viu Shin curvar-se perante ele, a fim de abrir o cinto do quimono. Em segundos, a peça tradicional descansava no chão. Pouco depois, era acompanhada das roupas íntimas de Mamoru. Envergonhado, ele tentou cobrir o pênis ereto, mas Sakamoto não deixou. Levando a boca até a elevação, Shin lambeu a base com carinho, enquanto a mão direita deslizava para cima e para baixo do genital.
— Shin-chan — Aiko gritou diante da sensação que teve.
Nunca havia sentido aquele estremecimento. Era como se o corpo convulsionasse de prazer.
Diante daquilo, Shin retirou as calças. Com ambos nus, o membro da família imperial tomou a dianteira. Empurrando levemente o amigo, agora amante, para a cama, ele deitou-se sobre ele.
O toque entre eles foi completo. Acariciando a face delicada, Shin o tomou nos lábios, num beijo ardente. Aiko gemeu, erguendo uma das pernas, circulando a cintura de Shin com ela, tornando-se completamente entregue a ele.
— Nunca fiz isso antes — Shin sussurrou.
— Ora, eu sei que fez — Aiko riu. — Com muita gente, aliás.
— Fiz sexo, nunca fiz amor — perseverou. — Sou tão louco por você — admitiu.
Descendo os lábios, ele fez um trilho de beijos que foi do pescoço até a barriga. Quando ficou diante da virilidade do outro, voltou a tomá-lo, dessa vez engolindo-o inteiro, fazendo com que a cabeça se movimentasse rapidamente para cima e para baixo.
Aiko agarrou o lençol, tão entregue ao momento que se sentiu explodir em mil pedaços poucos segundos depois. Achou que era o fim daquele apogeu, mas Shin o libertou na frente e, após virá-lo de costas, atacou-o por trás.
O prazer era tão intenso que ele tentou fugir, desesperado. Quando a boca chupou sua traseira, Aiko choramingou. Subitamente, precisava de mais. Dando leves movimentos com o bumbum para trás, ele fez com que Shin percebesse que só aquilo não bastava.
Em segundos, Sakamoto deitava sobre ele, colocando o membro grande e duro na sua entrada.
— Vai doer, Aiko — avisou.
Não podia doer mais que todos aqueles anos que Shin o renegou. Isso ele pensou, claro, antes de Shin entrar nele, numa estocada rápida e profunda.
Gritou como uma mulherzinha. Irritado consigo mesmo, cobriu os próprios lábios, impedindo-se de continuar. Então, a mente traiçoeira o fez pensar em Jiro. Agradeceu aos céus por Saito ter ido embora, e Shin ter chegado. Nunca poderia ter se entregado a outra pessoa. Aquela dor, aquele prazer, aquele misto de céu e inferno, jamais poderia viver com mais ninguém.
— Ainda está doendo muito? — Shin indagou baixinho.
Aiko negou. A dor insuportável que o invadiu momentos antes, tornou-se apenas uma leve ardência.
— Vou meter, está bem?
Quis recusar. Talvez eles pudessem apenas ficar daquele jeito, sem se mexer. Mas, quando o pênis de Shin saiu e voltou, ele percebeu que a sensação fora extremamente potente em seu amado. Então, baixou a cabeça, abafando os gemidos de dor no travesseiro.
O desconforto permaneceu por umas cinco entocadas diretas, até que Sakamoto remexeu-se um pouco e quando voltou, o pênis tocou-lhe alguma parte sensível, fazendo-o gritar de prazer.
— Ah, achei — Sakamoto riu, feliz. — Em Jiro foi mais fácil — disse, recebendo um safanão no braço.
— Você vai mesmo me contar sobre como fez sexo com Jiro agora?
Shin riu, saindo de dentro de Aiko. Virou-o, erguendo as pernas a altura da sua cintura, entrando novamente nele. Ouviu protestos, mas os calou com um beijo molhado.
Então, com aquele novo ingrediente, logo a dança ficou frenética. Isolados naquela cabana, nenhum dos dois escondeu os gemidos e os gritos. Numa dança voluptuosa, os corpos entraram num estado de frenesi. Aiko sentiu-se como se estivesse escalando uma montanha e precisasse chegar ao topo o mais rápido possível.
Arfando, agarrou-se em Shin, pedindo por mais, para que o outro fosse mais rápido, que não parasse, que o fizesse logo aliviar-se daquela tempestade. Pouco depois, sentiu-se novamente explodir, num alívio e estremecimento forte, num prazer indescritível. Em seguida, Shin deu um grito rouco, caindo sobre ele.
— Estou vivo? — Sakamoto perguntou, limpando com as mãos a ponta melecada do pênis. — Você está bem?
Aiko olhava para o teto, sorrindo.
— Não acredito que você me privou uma vida toda dessa sensação.
A alegria, subitamente, virou raiva. Sentando-se com cuidado na cama — até porque estava sentindo dores — Aiko socou o braço de Shin.
— Por que nunca fez isso antes comigo?
— Você devia estar sorrindo apaixonado e não me cobrando! — Sakamoto reclamou, pulando da cama. — Definitivamente, nós dois não combinamos...
O homem foi até o banheiro, procurando toalhas. Ao encontrá-las, molhou-as e começou a se limpar. Sorriu ao percebeu que Aiko havia molhado seu peito, numa demonstração de que a experiência fora boa para ele. Jiro era o responsável pela sua felicidade, de muitas maneiras, Nunca saberia como dar prazer a Aiko sem os ensinamentos certeiros do amigo.
Voltou ao quarto, e a visão o endureceu novamente, nunca havia ficado assim, logo depois do sexo! Aiko, deitado sobre a cama, nu e com um sorriso safado no rosto, parecia um convite em forma de gente.
— Então, a gente não combina? — questionou, mexendo o pé sobre o lençol, numa postura lânguida.
— Talvez combinemos um pouquinho — Sakamoto devolveu, correndo até a cama.
Ao sentir que o outro levava seu tornozelo até os lábios, Aiko riu. Enfim, descobrira o que era a felicidade.
***
Saito entrou no pátio da Casa Ai e buscou Shiromiya com os olhos. No entanto, foi a velha Nana que viu, varrendo o chão de terra, próximo da fonte de água.
A idosa pareceu surpresa ao vê-lo, e foi em sua direção com o semblante fechado.
— Onde está Mamoru? — ela questionou.
— Está com Shin — respondeu, simplesmente. — Posso ver Shiro?
Queria conversar com o adolescente. Shiromiya era maduro, sempre o entretinha com conversas inteligentes, mesmo que não fosse uma pessoa realmente culta.
— Você o deixou com Sakamoto Shin? — a velha parecia revoltada.
Jiro deu os ombros.
— Por que lhe incomoda tanto o sentimento deles?
— Por que me incomoda? — ela repetiu. — Por que não incomoda você? — retrucou. — Não é apaixonado por ele?
— Sim, eu aprendi a amá-lo, e esse sentimento é tão intenso e poderoso que me faz capaz de negar a mim mesmo para vê-lo feliz — afirmou.
Nana bateu uma mão na outra, cruel.
— Imbecil — xingou. — Você o está condenando à morte!
— O que quer dizer?
A velha deu-lhe as costas, voltando a varrer, parecia desconhecer as próprias palavras ditas segundos antes.
— Nana-baba, o que quer dizer? — Jiro insistiu.
— Quem se importa com a opinião de uma velha? — devolveu, enquanto se afastava.
Uma sensação ruim permaneceu em Jiro durante o resto do dia.
***
Às onze horas em ponto, Shiromiya entrou no palco. A música ritmada não pareceu contagiar a estrela da Casa Ai, que dançou numa coreografia ensaiada, sem erros, porém, sem também qualquer traço de sentimento.
O público, é claro, sentiu a diferença, mas os aplausos permaneceram fortes e entusiasmados. Shiro tinha seus fãs. Mesmo que o cortesão Aiko Mamoru estivesse completamente aéreo, sorrindo feliz e distante dali, tudo transcorreu como sempre.
Bom, quase tudo.
Shiro não voltou para seu quarto ao final da apresentação, sendo interceptado por Ryo que surgiu na escuridão da noite, com os olhos brilhantes e um sorriso intenso nos lábios.
— Ryo-san? — Shiro murmurou, assim que percebeu sua figura masculina escorada na sua porta.
— Shiro, qual seu maior desejo?
A pergunta o assombrou. Não esperava por uma questão tão íntima e repentina.
— O quê? — pareceu em conflito.
Mas não estava. Até a noite anterior, Shiromiya tinha por cobiça uma vida tranquila em uma casa própria. Tinha por desejo envelhecer em paz, sem ver ninguém, sem jamais precisar se prostituir novamente. Todavia, as emoções mudaram depois do desabrochar de seus sentimentos.
Naquele momento, seu maior sonho era ser correspondido pelo homem a sua frente.
— Seu desejo é ter uma casa, não? — Ryo prosseguiu perante o silêncio.
Shiro pareceu nervoso, mas assentiu. Então, percebeu Ryo enfiando as mãos no bolso, de onde retirou um punhado de notas.
— Eu posso te dar uma casa, Shiro, e dinheiro — balançou as notas no ar. — Muito dinheiro — retificou. — E tudo que você tem a fazer é repetir o que fez ontem...
Por alguns segundos, Shiromiya perdeu o ar. Talvez fosse a constatação de entender que Ryo havia compreendido erroneamente seu gesto, talvez a forma humilhante com que ele balançava as notas na sua face, talvez a demonstração de que, para o comerciante, não passava de um prostituto, enfim... tudo o fez sentir uma dor absurda no peito.
Naquela escuridão tremenda, Ryo não viu as lágrimas nublarem os olhos cansados e tristes. Não viu Shiromiya mordendo os lábios, tentando segurar um gemido de dor. Aliás, entretido demais na sua necessidade sexual, ele mal o enxergava. Mas quando a voz do mais novo surgiu forte, entre eles, estremeceu.
— Obrigado pela oferta, mas eu a recuso.
— Recusa? — o semblante de Ryo foi tomado pelo ódio. — Como assim, recusa? Sabe quantas noites vai precisar balançar esse traseiro no palco para ganhar o que eu estou lhe oferecendo?
Shiro segurou o braço de Ryo, puxando-o da porta, deixando sua passagem livre. Abriu a porta do quarto e entrou. Antes de fechá-la, no entanto, voltou-se ao comerciante e disse, convicto.
— Não quero seu dinheiro, Ryo-san. Nunca o quis. Espero que um dia descubra que nem tudo está à venda.
Quando a porta de madeira enfim os separou, tanto Shiro quanto Ryo permaneceram alguns segundos olhando aquela divisória, abatidos.
Nenhum deles dormiu naquela noite.
Capítulo 24
A vassour a se moveu, formando poeira a sua frente. Mesmo assim prosseguiu, levando-a de um lado para o outro, afastando as folhas amareladas até uma pilha que se formava próxima de uma das árvores. Mamoru Aiko tinha um jardineiro que aparecia uma vez por semana para arrumar o jardim, mas Shiromiya gostava de ocupar-se com as plantas. Além de ajudar a manter o local bem organizado nos dias que o homem não aparecia, ajudava-o a se distrair.
Era cedo ainda, para a Casa Ai. Acostumadas a dormir de madrugada, ainda levaria umas duas horas para que as pessoas levantassem de suas camas, mas ele já estava de pé, antes mesmo do sol nascer. Não dormiu a noite toda, a cama parecia incômoda, então se levantou, lavou-se, e foi até o jardim, varrer.
Viu, portanto, Shin Sakamoto saindo do quarto de Aiko ao amanhecer. Ao longe, avistou o par e sorriu diante do beijo apaixonado que trocaram. Ficou feliz quando percebeu Aiko encostando-se languidamente na porta, enquanto dizia algo que Shiromiya entendeu como uma declaração de amor. Depois, Shin foi embora sem olhar para trás, mantendo um sorriso satisfeito no rosto.
Não precisava ser um gênio para constatar que os dois, enfim, haviam se acertado. Quando Shin cruzou por ele, não trocaram nenhuma palavra, mas o homem grande acenou, rindo.
Alegre pela imagem bela de amor durante a manhã, Shiro animou-se. Olhou para cima, vendo o céu azul e recebendo o calor do sol no rosto. Era um novo dia, sem dúvida. Devia deixar para trás a tristeza no coração e prosseguir, como havia feito muitas vezes no passado.
— Shiro.
O chamado o assustou. Com um pulo para trás, ele viu Ryo diante de si, ansioso.
— Como entrou?
Havia muitas dúvidas em sua mente, mas só aquela escapou de seus lábios.
— Estava aguardando no portão desde às cinco horas — confessou. — Não conseguia dormir, então, fiquei ali — apontou adiante, mas Shiro não seguiu seu dedo com o olhar. — Quando Shin saiu, eu entrei — explicou.
Assentiu.
— Veio ver Aiko? Ele acabou de acordar — adiantou-se.
Na verdade, os pés formigavam na ânsia de fugir. Mal conseguia encará-lo depois da noite anterior.
— Vim ver você — Ryo explanou. — Pensei muito no que me disse, Shiro, e entendi os motivos do porquê se recusou a mim.
Enfim, Kazue ergueu os olhos. Viu o sorriso confortador de Ryo e, então, sorriu também, aliviado. Ryo havia entendido seu sentimento? Não o repudiava por senti-lo? Não mais o considerava uma aberração?
— Você tem medo de Aiko, não é? Teme que Mamoru o mande embora, caso se venda — Ryo afundou suas esperanças em um mar de ácido ao falar aquilo. — Eu compreendo o que o inquieta, mas eu tenho a solução.
Encarando o silêncio de Shiro como um consentimento, prosseguiu:
— Podemos nos encontrar às escondidas. Não precisa acontecer nada na Casa Ai. Aiko nunca vai desconfiar de nada. É só você pensar num bom horário e dia. Não importa qual... — esperou alguma reação a sua frente. Nada. — Que tal hoje à tarde? Lá pelas quinze horas?
Enfim, Shiromiya respondeu.
— Não.
— Então, amanhã?
— Nem hoje, nem amanhã — foi claro. — Nunca — reforçou. — Me deixe em paz! — pediu, sentindo que novamente a vida perdia a cor, e as lágrimas voltavam em tempestade.
— Mas...
— Eu só quero que vá embora e nunca mais fale comigo — foi sincero, apesar de não parecer.
Mesmo todo o passado não parecia machucá-lo tanto quanto aquele momento.
— Você se deitava com qualquer um — o tom de Ryo resplandecia ódio. — Com qualquer um! Por que não comigo? Que diferença vai fazer?
— Eu não me prostituo mais — tentou fazê-lo entender.
— Então abra uma exceção! — Ryo mandou. — Eu não tenho culpa por ter chegado atrasado na sua decisão de virar um celibato! — espumava de raiva. — Você me encara como se fosse uma virgem pudica, quando na verdade até mesmo amigos meus já te...
Não ficou para ouvir mais. Virando-se de costas, fugiu. Porém não foi muito longe. Antes de chegar à sacada que servia de corredores do prostíbulo, foi segurado pelo braço.
— Qual seu preço, Shiromiya? — exigiu o comerciante.
Não havia um preço. Havia apenas o desejo desesperado de ser amado e respeitado. Algo que qualquer pessoa normal teria sem esforços. Mas não ele. Infelizmente, a mácula em sua alma era tão forte que jamais teria fim.
Desvencilhou-se dos braços fortes em seguida. Correu como um louco em direção ao banheiro. Assim que chegou lá, permitiu que as lágrimas caíssem sem misericórdia, avermelhando a pele pálida e perfeita.
Em seguida, foi até o lavabo de porcelana branca e molhou as mãos. Sentia-se tão sujo como se uma crosta de lodo o cercasse. Ensaboou as mãos e os braços abundantemente, esfregando com vigor a pele. Enxaguou-os logo depois, constatando em sua mente perturbada o quanto ainda estava suja. Voltou a esfregá-las e a enxaguá-las, mas a podridão continuava lá, como se fixada em si.
Desesperou-se. Conteve um grito horrorizado, avergonhado. Não queria que ninguém o visse ali, sujo e encardido. Porém, duas mãos o cercaram e o puxaram para trás. Caiu sobre os enormes seios de uma mulher velha, que o segurou firme, mantendo sua cabeça em seu peito e acariciando gentilmente seus cabelos.
Explodiu em lágrimas, mas soube que não estava sendo recriminado. Aquilo lhe trouxe um traço de alívio.
— Todos nós já passamos por isso, meu amor — Nana o embalou como um bebê de colo. — Você não está sujo e, um dia, vai perceber isso...
Abraçou o corpo feminino e flácido com devoção. Afundou o rosto em seu quimono velho de algodão e deixou-se ficar, chorando.
Nana estava errada. Ele estava sujo e apodrecido. Talvez até morto. Infelizmente, não tinha forças para dizer aquela verdade a ela, então deixou-se ali, a ficar sendo consolado por algo que não tinha conforto.
***
Aiko Mamoru estava diante do espelho, admirando-se com o quimono escuro bonito, quando a porta abriu e a velha prostituta Nana entrou. Os dois se encararam, mas foi o jovem cortesão que falou primeiro, irritado.
— Não quero ouvir suas recriminações — avisou. — Estou feliz, não venha tentar estragar a minha alegria.
Nana fez um som parecido com um assobio, e o cortesão a observou com atenção.
— Não vim aqui falar de você ou do quanto gostou de dar o cu — estava possessa. — Estou aqui por Shiromiya! — Depois ela caminhou pesadamente até a cadeira mais próxima e se sentou, cansada. — Enquanto você brinca de príncipe encantado, Kazue está sendo massacrado por seu amigo Ryo — explicou.
— Como assim?
— Desconheço o que Ryo está fazendo com ele, mas desde que voltou do cinema, não come. Hoje, flagrei o comerciante lhe apontando o dedo, falando rispidamente. Não sei o que era, seu tom era baixo, mas depois Shiromiya foi até o banheiro e começou a se esfregar...
Aiko compreendeu imediatamente.
— Vou falar com Ryo — disse.
— Como se fosse fazer uma grande diferença! — ridicularizou. — Quando você teve qualquer pulso com um dos seus amigos? Fazem o que querem com você e sequer se protege. Agora, estão abusando novamente de Shiromiya e ele ainda é um menino.
Aiko envergonhou-se. Apesar das palavras machucarem, ele as reconhecia como reais.
— Nana... — começou.
— Sugiro mandar Shiro embora — a velha adiantou-se.
O cortesão quase engasgou.
— Nunca faria isso! — foi firme. — Shiro fica comigo, não importa o quê.
— Ficar com você até não restar nada do garoto?
— Vou cuidar dele!
— Não cuida nem de si mesmo — levantou-se. — O melhor é afastá-lo, por enquanto. Keiko-san tem uma casa em Hiroshima, e Shiro pode ficar com ela uns dias. Tenho certeza de que não haverá nenhum problema...
— Não.
— Eu vou com ele — prosseguiu, não deixando margem para contestação.
Nana nunca havia se afastado de Mamoru. Aquilo surpreendeu o jovem. Se a velha Nana se dispunha a viajar, mesmo com tantas dores no corpo e nas pernas, os motivos deviam ser verdadeiramente preocupantes.
— Shiro passa os dias esgueirando-se pelas sombras. Faz seus afazeres sem reclamar, anda de cabeça baixa, esconde-se da presença das outras pessoas... Não sorri, não se diverte, não age como um garoto normal.
— Ele não o é.
— Ele não precisa viver pelo passado, sentindo-se sujo e desgraçado pelas coisas que a fome o obrigou a fazer — afirmou. — Todos nós aqui temos do que nos envergonhar, mas nenhum de nós é obrigado a reviver isso todos os dias.
Aiko pareceu em dúvida. Sabia que havia verdade nas palavras femininas, mas ele era muito apegado a Shiromiya. Desde que o havia salvado anos atrás, nunca se afastou dele. Não sabia como viveria sem sua presença.
— Um mês, então. Se não voltar depois disso, eu mesmo vou atrás de vocês.
Nana concordou e saiu do quarto sem se despedir. Aiko ainda ficou lá alguns segundos, como se a meditar na própria decisão, depois também se afastou. Chegou ao corredor e observou o pátio. Estava vazio. Caminhou então pela sacada de madeira, até chegar à porta de Shiro.
Estava aberta. Viu-o sentado no chão, dobrando cuidadosamente a roupa que havia emprestado a ele para ir ao cinema.
Quando Shiro o viu, sorriu. Aiko ficou tocado por aquele gesto, mesmo vendo nos olhos do menor uma dor imensurável.
— Muito obrigado pela roupa, Aiko-san — Kazue agradeceu. — Eu a lavei e a passei para você. Estava dobrando-a agora para levar até seu quarto.
Aiko caminhou até o outro.
— Sente saudades de Keiko? — indagou.
O olhar de Shiromiya pareceu animado.
— Muito. Ela vai voltar?
— Não, Nana quer ir vê-la. Gostaria de ir junto? Não gosto que Nana viaje sozinha. Sabemos que ela é uma velha muito rabugenta, mas também fraca. O que acha?
Shiromiya levantou-se.
— Vamos parecer avó e neto — a perspectiva o acalorava. — Duvido que alguém descubra quem realmente somos.
Ficou ainda mais claro a Mamoru, naquele instante, o quanto Shiro sentia vergonha de si mesmo. Apiedou-se e o puxou para seus braços.
— Vai adorar o passeio, eu prometo — sussurrou contra os cabelos negros.
Que Kami-sama ouvisse suas preces!
***
Ryo voltou à Casa Ai dois dias depois de ouvir a negativa de Kazue. Daquela vez, foi preparado. Trouxe consigo não só dinheiro, mas também joias e um pequeno pedaço de ouro maciço que compraria tranquilamente uma boa casa no centro da capital.
Entrou pelo portão da frente, fazendo uma reverência a Midori. A mulher percebeu sua felicidade, e conhecedora também dos motivos que levaram Shiro a acompanhar Nana em uma viagem, ela sorriu internamente, ansiosa para ver aquela cara de bolacha espumando de raiva.
— Shiro, por favor. — ele pediu, lisonjeiro.
— Não está — respondeu calma. — Vou chamar Aiko-san.
— Não quero ver Aiko — Ryo adiantou-se. — Apenas Shiro. Que horas ele volta?
— Não vai voltar, foi embora da Casa Ai.
Lógico que ela não comentou que era de forma provisória e que voltaria no mês seguinte. Não perderia por nada a careta de espanto que Ryo fez tão logo disse as palavras. Amou a boca retorcendo-se como se num ataque do coração, e o tremor que pareceu atingi-lo como se estivesse em transe.
— Vou chamar Aiko — ela repetiu.
Quando virou-se de costas, não mais escondeu o riso de satisfação. Correu em direção à sala de chá, onde Mamoru anotava os lucros da noite anterior. Quando entrou, rapidamente lhe contou sobre a visita e afastou-se, ficando de longe a observar o cortesão saindo da sala e indo em direção ao comerciante.
— Bom dia — Aiko o cumprimentou assim que se aproximou o suficiente para ver o rosto avermelhado do outro. — Gostaria de entrar e tomar...
— Enfie o chá na bunda! — Ryo gritou, revoltado. — Onde está Shiro?
— Já soube das novidades? — sentiu uma enorme satisfação ao vê-lo torcer as mãos, nervoso.
— Você o mandou embora? Ele está nas ruas? Por que fez isso? Devia ao menos ter me avisado!
Aiko estranhou a postura. Esperou que a única coisa que Ryo se preocupasse ao saber de Shiro fosse com seu próprio desgosto e insatisfação. Mas via claramente em seus olhos uma apreensão com o bem estar do outro. Aquilo o surpreendeu.
— Ele só está passeando — disse. — Foi visitar Keiko. Voltará em mais ou menos um mês.
Aquilo aparentemente acalmou Ryo.
— Um mês? — perguntou, porém. — É muito tempo para um passeio.
— Por que está preocupado? Que diferença vai fazer ficar um tempo sem vê-lo?
— Ele é meu amigo!
A frase espantou-o novamente. Amigo? Ryo considerando um reles prostituto um amigo?
— Quero dizer... — tentou consertar.
— Se você se importa, deixe-o em paz. Shiro não come e está deprimido. Quero apenas vê-lo bem, e isso não vai acontecer enquanto você despejar suas baboseiras em cima dele.
À custo, Ryo assentiu. Não que fosse respeitar qualquer acordo, mas reconheceu que estava sendo cruel e avassalador. Então, apenas deu as costas ao amigo e, sem se despedir, começou a rumar em direção a saída.
Um segundo depois, caiu de joelhos no chão. Aiko permaneceu imóvel, pasmo, quando viu Ryo cobrir as suas orelhas com as mãos, parecendo estar ouvindo um som ensurdecedor. Assim, nervoso, correu até ele e tentou ajudá-lo, mas percebeu que o amigo estava em um transe horrendo.
***
A sirene tocou forte, machucando sua audição. Ryo percebeu todas as pessoas olhando para cima, como se à espera de algo. O algo não veio. Então, aos poucos, o apito agudo teve seu som diminuindo até não existir mais. Levantou-se, observando a cidade e as pessoas que caminhavam como se nada tivesse acontecido.
Dois meninos cruzaram por ele, correndo atrás um do outro, brincando. Ao longe uma senhora ofereceu-lhe cenouras, e então um homem bateu em seu ombro, pedindo que saísse do caminho.
Andou até um pequeno restaurante, ansioso para pedir qualquer informação. Onde estava? Por que estava ali? Sabia que era uma visão, mas visão do quê? Nunca até então havia tido uma visão tão nítida e real como aquela.
Voltando os olhos para uma vitrine, ele leu “restaurante Hiroshima”. Ao longe, o prédio arredondado da prefeitura o extasiou. Nunca havia estado ali, mas reconheceu a cidade de fotografias vistas em casa. O pai costumava viajar para lá no outono para negociar com um empresário local.
Sem aviso, porém, tudo ficou branco. Assustado, ele encostou-se na parede, olhando apavorado as crianças, jovens e velhos sumindo, virando pó. Sentiu um calor forte na pele, como se agulhas o perfurassem. Então, o som apavorante de uma explosão pareceu queimá-lo. Permaneceu com os olhos abertos, vendo todas as construções ao redor de si sendo devastadas.
Em seguida, a escuridão reinou.
Estava tudo morto. Tudo. Rapidamente as pessoas sumiram, prédios caíram, e um silêncio mortal surgiu. Em sua volta, havia apenas um mundo destruído. Arrasado, ele nem sabia pelo quê. Nunca havia visto nada igual.
Para seu espanto, então, começou a chover. Eram gotas grossas e ardiam em contato com a pele.
Assustado, começou a mover as pernas, sem direção certa. Para seu espanto, percebeu que vagava rapidamente. Cerca de um quilômetro depois,começou a ouvir gritos agoniados, últimos suspiros de uma gente que foi morta sem piedade e sem sequer entender os porquês.
— É gasolina! — ouviu um som masculino atingi-lo. — Os americanos vão nos queimar.
Assustado, olhou em direção à voz, mas o homem já estava morto. Subitamente, várias pessoas surgiram no horizonte. Um amontoado de corpos caminhava sem destino. Era gente arrastando as próprias tripas, crianças sem mães e mães sem crianças. Havia homens que pareciam ter bolhas do tamanho de bolas nas costas, e outros que perderam a sola dos pés.
Era tudo morte e dor.
Ajoelhando-se, ele cobriu o rosto, chorando. Implorou a Kami-sama que o tirasse daquele inferno que não aguentava mais ver.
E então, como se ouvido pelos anjos no céu, ele sentiu uma mão confortadora no ombro.
Acordou.
***
— Está tudo bem, Ryo-san — Mamoru murmurou, acariciando-lhe os cabelos negros.
Estavam ambos sentados no chão. Ryo havia perdido a fala, escorado em Mamoru, que se dispôs a consolá-lo.
— Quer falar o que viu?
Levou alguns segundos, e então Ryo disse:
— Não seremos apenas derrotados nessa guerra, Aiko. Seremos mortos, massacrados e humilhados. Vão nos pisar como se pisa em baratas, não sobrará nada de nossa dignidade...
Calou-se. Em si, um misto de dúvida, medo e raiva dominava-o. Quando aquele horror aconteceria? E por que ele teve que ver tudo antes? Por que as visões não o deixavam em paz, permitindo-o viver decentemente, sem parecer um louco?
— Onde está Shiro? — indagou, sério.
A pergunta surgiu sem pensar, apenas a boca abriu e pronunciou, sem ordem.
— Em Hiroshima.
Ryo mal conseguiu se levantar ao ouvir a resposta. Sem hesitar, correu em direção ao portão. Naquela mesma tarde, ele entrou no carro e dirigiu como um louco para o sul. Não sabia exatamente para onde ia, mas em si havia uma certeza absurda que encontraria Shiro, não importava onde, e o salvaria, do que quer que fosse.
***
— Não tem leite? — Shiro estranhou, enquanto movimentava um boneco em frente ao pequeno Kazue Mamoru, fazendo-o dançar. O menino bateu palmas e riu, tentando segurar o brinquedo com os dedos. — Em nenhuma mercearia?
— Sempre falta um ou outro alimento desde que a guerra começou — Keiko comentou. — Mas leite é o que mais me preocupa. Infelizmente, meus peitos secaram quando Kazue-chan tinha dois meses. Desde então, preciso sempre fornecer leite de vaca ou cabra para ele.
— Já tentou uma ama? Não tem nenhuma mãe recente nas redondezas? — Nana perguntou.
O semblante da mulher deixou claro que ela não havia pensado naquilo. Sorriu para a velha, agradecendo a ideia.
Verdadeiramente, estava feliz pela visita inesperada. Quando Nana e Shiromiya surgiram em sua porta dois dias antes, preocupou-se. Estava com pouca comida, o suficiente apenas para ela, o filho pequeno e a irmã menor que trabalhava de criada para um rico comerciante. Mas sabendo de suas limitações, a velha Nana, antes mesmo de entrar na casa pequena de madeira, já lhe avisou que compraria comida e trouxera dinheiro para ajudar a família que os acolhia.
O alívio em Keiko foi tão nítido que até se envergonhou, sentindo-se uma interesseira. Devia muito a Nana. Ela a resgatara de um estupro ocorrido, após um programa na rua. Levou-a para a Casa Ai, onde ela conheceu Aiko, que a acolheu até a jovem ter condições de voltar a trabalhar. Sabia que era um prostíbulo e que todos ali viviam para dar prazer aos ricos, mas ao mesmo tempo, existia uma amizade e irmandade entre os membros da Casa do Amor que não encontrou em outro lugar.
E, além do mais, Aiko lhe deu a chance de escolher ser mãe. Apesar de o dinheiro ganho na fábrica ser inferior ao que recebia como prostituta, ainda assim, não se arrependia em nenhum momento de ter optado pelo nascimento de seu bebê. O pequeno Kazue era seu sol, sua vida, seu alento. Por ele, tudo valia a pena. Não importava quem era o pai, nem que ele nunca fosse capaz de reconhecer seu bastardo. Kazue teria tudo que Keiko não teve, principalmente amor.
— Que hora irá trabalhar? — Nana questionou.
— Farei o turno da tarde — disse. — Ainda bem, poderei passar a manhã toda com Kazue — levantou o menino nos braços. Ele reclamou baixinho por ser retirado da brincadeira com Shiro, e choramingou ao ser beijado na bochecha. Depois, foi posto novamente no chão, de frente ao rapaz, que voltou a chamar sua atenção com o boneco. — Vou fazer o almoço.
Estava um agradável dia, o sol forte e intenso, acalmado pela brisa de primavera.
Repentinamente, aquela cena familiar foi quebrada pelo som de palmas em frente à casa. Keiko afastou-se em direção à porta e espiou. Abriu a boca, espantada, e então se voltou às visitas:
— É Ryo-san.
***
— Estou há dois dias à sua procura — explicou, aceitando um copo de água que Keiko lhe ofereceu. — Dirigi sem parar de Tóquio até aqui — depois se corrigiu. — Bom, na verdade, parei para abastecer. Mas não comi, nem dormi — aparentava se orgulhar do fato.
— E nem tomou banho — Nana comentou, esfregando o nariz. — O que diabos está fazendo aqui?
Ryo estava sentado em um velho sofá da casa de Keiko. Todos os olhos estavam sobre ele, inclusive o do menino que ainda tinha um boneco nas mãos.
— Não sabia seu endereço — olhou para a mulher jovem que já havia dormido com ele várias vezes no passado. — Então procurei por uma Keiko. Conheci várias Keikos pela cidade, até que alguém me disse de você... Então eu vim. Não pararia até encontrá-lo — olhou Shiro.
— Por que está aqui? — O jovem repetiu a pergunta de Nana.
— Não temos muito tempo para conversar. Precisamos sair de Hiroshima.
O trio se olhou, confuso.
— Você está louco? — Shiro arriscou.
— Estou salvando sua vida! — o comerciante ficou possesso. — Vamos embora agora!
O que ocorreu em seguida foi tão rápido que Shiro não teve tempo de reagir. Ryo segurou seu pulso, puxando-o contra si. Esperou um abraço, que não aconteceu. Logo o outro se abaixava, colocando sua anca sobre os ombros. Segundos depois, Shiro se viu suspenso no ar, sendo carregado nos ombros como um saco de batatas. Ryo nem deu qualquer explicação, assim que chegou o carro, enfiou-o lá dentro e fechou a porta.
— O que você está fazendo? — Nana berrou e Shiro soube que ela iria avançar sobre o outro.
— Você também, velha! — ralhou. — Entre no carro. — Depois encarou Keiko. — Se quiser vir também, tem lugar. Mas, caso resolva ficar, saiba que está colocando a si mesma e ao seu filho em perigo.
Keiko e Nana se encararam. A mais velha aproximou-se da outra e disse baixinho.
— Parece que alguma coisa afetou seu juízo. Vou com eles, mando notícias em breve.
Keiko assentiu enquanto via a velha Nana entrando no carro, com o semblante impassível.
— E suas roupas? — A jovem recordou.
Ryo reclamou durante os dez minutos seguintes, enquanto via a velha Nana e Keiko trazendo os pertences. Parecia apressado, nervoso, maluco.
Só respirou aliviado quando chegou aos limites da cidade. Olhou para trás. Freou. Pelo retrovisor, um enorme cogumelo de poeira cinza escura se erguia, devastador. Assustado, girou o corpo naquela direção. Não havia nada.
Nana e Shiro se entreolharam perante a cena. A velha ficou temerosa do que aquele maluco poderia fazer. Mas, Shiro, conhecedor dos dons com que Ryo havia sido agraciado — ou amaldiçoado — por Kami-sama, preocupou-se com a mulher e o bebê que ficaram em Hiroshima.
Prometeu a si mesmo pedir a Aiko que lhe mandasse uma carta quando chegasse a Tóquio. Pediria a ela para deixar a cidade, antes que o pior acontecesse.
***
A cama se remexeu e em seu sono, Shin sorriu, feliz. Havia dois dias que não dormia direito — Aiko não o deixava dormir! — e mal podia acreditar na ventura de estar deitado, quietinho, entregue ao próprio cansaço. Porém, despertou em seguida, sentindo um leve toque na sua traseira, mais precisamente entre as nádegas.
— Mamoru! — gritou furioso.
— Eu é que devo estar zangado — Aiko ralhou. — Você só dorme!
— Nós já fizemos amor!
— Sim, uma vez! Você parece um velho brocha ridículo — seus olhos faiscavam. — Deu uma e vai dormir. Mas eu quero mais, trate de ficar duro — apontou para baixo, porém o membro triste e abatido de Shin sequer fez menção de se erguer e saber o que tanto falavam dele.
— Não é assim que as coisas funcionam.
Dois segundos depois, era jogado porta afora, sem uma única peça de roupa cobrindo sua nudez.
— Isso é ridículo, Aiko! — reclamou. — Estou nu! — avisou, como se o outro não soubesse. — Pelo menos me devolva as roupas.
Nada.
— Aiko! — gritou, batendo com força na porta.
— Vá para o inferno!
— Eu vou, mas vestido — perseverou.
A porta abriu, e ele encarou o namorado possesso a encará-lo. Nas mãos de Aiko, apenas um retorcer medonho, furioso. Nenhuma roupa.
— Você parece um coelho — Shin resmungou.
— E você parece que não gosta de dormir comigo.
Sakamoto sorriu, entrando no quarto e trazendo Aiko para seus braços.
— Meu amor, eu adoro — garantiu. — Eu nunca me senti tão feliz quanto agora. Mas eu não tenho a sua disposição — explicou.
Quando foi expulso novamente, ele suspirou resignado. Pelo menos, daquela vez, havia conseguido pegar a calça que estava atirada sobre uma cadeira.
Capítulo 25
— São mai s de seiscentos quilômetros e tantas horas de viagem. Você não imagina o que eu passei para chegar até você.
Com o canto dos olhos, Shiromiya encarou Ryo. O comerciante dirigia, feliz. Mesmo que as estradas estivessem em más condições e o carro trepidasse bastante, ele parecia não se importar. Enfiara um sorriso no rosto, desde que passaram por Kyoto, e não o havia retirado até então.
Alegre, parecia se sentir um herói que havia cumprido sua missão. Não se importava com o olhar embasbacado da velha resmungona no banco traseiro e, muito menos, com o inquieto Shiromiya que o observava nervoso ao seu lado.
— Eu ainda estou esperando por seu agradecimento — disse, ao perceber que Shiro não compartilhava de seu contentamento.
— O quê?
— Você sabe — Ryo permanecia fixo à estrada. — Eu o salvei.
— Do quê?
A sobrancelha do comerciante arqueou-se, e ele ficou pensativo. Sabia que algo horrível aconteceria a Hiroshima, mas o que viu em sua visão não parecia em nada com uma bomba ou com qualquer coisa que já havia ouvido falar. Bombas não transformavam pessoas em pó, ou pelo menos, ele não sabia de uma que o fazia. Então, o que era aquele horror? E a luz branca? A chuva que o homem chamou de gasolina?
— Não sei... Esqueça — resmungou, amuado.
Já anoitecia quando eles chegaram a Nagoya. Cruzaram a enorme cidade, e Ryo estacionou perto de um pequeno hotel no centro. Shiro percebeu que ele parecia aflito novamente e, mesmo contra a vontade, aproximou-se, tentando acalmá-lo.
— Muitos vultos no céu — Ryo sussurrou.
O rapaz apiedou-se. Naquele instante, percebendo o enorme conflito que Ryo vivia referente às suas visões, toda a mágoa pelas coisas horríveis que dizia, evaporou-se. Como não sentir o coração aos frangalhos ao ver sofrer alguém a quem tanto se ama?
Nana e ele seguiram o homem para dentro do estabelecimento. O hotel parecia acolhedor, pequeno, mas bem equipado, cheirava bem e tinha móveis luxuosos. Shiro nunca havia entrado num ambiente tão requintado e ficou pasmo ao ver a beleza do lugar. Olhava em volta, extasiado, cada canto chamando sua atenção. Ao seu lado, a velha resmungona também aquietou-se, espantada e deslumbrada com tudo.
Ao longe, observou Ryo. Assim que entraram no local, ele retomara a sua postura séria e dona de si. Indo até a recepção, ele conversou com o atendente com familiaridade e destreza. Claramente, Ryo pertencia àquele ambiente elegante, onde tudo parecia se encaixar. Em contrapartida, Shiromiya estava completamente deslocado com suas roupas gastas e sua sacola de pano velho embaixo do braço.
Ele aguardou ao lado de Nana. Ambos permaneciam em silêncio, sem tecer qualquer comentário, mesmo quando um ou outro hóspede passava por eles com olhar mortal ou curioso. Shiro só reagiu quando Ryo voltou trazendo um sorriso suspeito nos lábios.
— Nana vai ficar num dos quartos, e nós vamos dividir o outro — a perspectiva parecia animá-lo muito.
O contrário emanava no semblante de Shiromiya.
— Não há mais quartos vagos — explicou-se.
— Não é necessário mais um quarto — Shiro negou. — Eu posso ficar com Nana.
— Nana é uma mulher.
— E?
— Não pode ficar com uma mulher solteira num quarto — ralhou, dando uma ótica ridícula ao assunto. — O que as demais pessoas vão pensar?
Pela primeira vez desde que havia entrado ali, a velha falou.
— Com certeza vão maliciar — a ironia era nítida também nos olhos agressivos. — Uma velha como eu, e um garoto que nem barba na cara tem! — então se acalmou e explicou. — Vão pensar que é a avó e seu neto.
Mas Ryo permaneceu determinado.
— Não se preocupe, Nana querida — pegou-a pelo cotovelo, levando-a até as escadas. — Vai ficar bem acomodada... Logo a equipe do hotel trará o seu jantar.
— Mas...
Ele ouviu em silêncio toda a reclamação. Em nenhum momento, deu qualquer sinal de irritação ou de que mudara de ideia. Caminhando, o trio logo chegou ao corredor de quartos, onde, depois de abrir a primeira porta, Ryo praticamente empurrou Nana para dentro.
— Espero que tenha uma boa noite.
Quando fechou a porta, trancou-a com a chave. Nana gritou, mas Shiro não fez qualquer menção de interceptá-lo. Parecia preocupado e pensativo. Apenas quando Ryo se afastou, indo em direção ao próprio quarto, foi que o rapaz se aproximou da porta e sussurrou num tom que apenas a mulher poderia ouvir:
— Não se preocupe, Nana, eu ficarei bem. Descanse tranquila — aconselhou.
Diante daquilo, a velha ama de Aiko aquietou.
Shiro então seguiu Ry e entrou pela porta que o mais velho abriu. Lá dentro, observou o quarto discreto com duas camas de solteiro cobertas por colchas floreadas e claras. O lugar tinha um cheiro bom de flores, e estava bem iluminado por vários abajures ligados em cada canto.
— Você gostou? — Ryo indagou, mal conseguindo conter a alegria. — Eu iria pedir um quarto com cama de casal, mas achei que seria estranho.
Shiro não o encarava.
— Então...
— Você está fedendo — Shiro o cortou, irritado.
Ryo levantou o braço e se cheirou. De fato, seu odor não era dos mais agradáveis.
— Estou há dois dias sem banho — riu, repetindo o que contou quando chegara à casa de Keiko. — Mas vou agora mesmo me lavar — indicou uma porta lateral. — Você quer ir tomar banho comigo?
O convite foi natural, mas Shiromiya segurou-se para não voar contra ele e enchê-lo de socos nas fuças.
— Não — disse, simplesmente.
O homem sumiu de suas vistas, e o rapaz se sentou na cama. O colchão de molas o assustou quando sentiu o corpo sendo balançado no ar. Nunca havia sentado em algo assim, sempre dormiu no chão frio ou no futon. Nem imaginava como devia ser dormir em algo tão aconchegante.
Ficou daquele jeito pelo tempo que durou o banho de Ryo. Não levantou, não andou pelo quarto, não falou sozinho, sequer pensou. Tudo que fez foi aguardar, ansioso, a volta do outro. Assim que Ryo surgiu às vistas, ele ergueu-se e pegou a pequena sacola que tinha debaixo dos braços.
— Eu também vou me lavar — explicou ao outro, cruzando por ele, evitando encarar seu olhar assanhado e satisfeito.
Quando a porta se fechou, suspirou profundamente, encostando as costas na parede fria de madeira. Estava sofrendo, num conflito interno muito profundo. Sabia que nutria sentimentos poderosos pelo comerciante, mas, ao mesmo tempo, temia-o por todas as palavras maldosas que já desferira contra si. No fundo, percebeu que, ao contrário do que tudo que planejou na vida, não estava fugindo dos problemas e sim indo em direção a eles.
Afastando-se da porta, retirou a roupa. Na sua lateral, havia um espelho enorme e, pela primeira vez, ele se viu de corpo inteiro, nu. A imagem o surpreendeu, pois percebia um traço de beleza em suas formas que jamais desconfiou ter. Ficou de frente, olhando as pernas delicadas, o membro pequeno envolvido por caracóis negros e, mais acima, a barriga bonita, sem músculos e sem gordura. O tórax era reto, os mamilos escuros e o torso bem delineado. Entendeu, assim, porque atraia tanta gente para vê-lo dançar.
Uma batida forte o assustou.
— Você precisa de ajuda? — a voz de Ryo surgiu, ansiosa.
Shiro ficou furioso por entender que o outro imaginava que ele não soubesse usar o chuveiro. Bom, na Casa Ai ensinaram-no e ele sabia sim ligar o chuveiro de cobre.
— Não preciso de nada — disse, o tom bastante agressivo.
Depois, foi até o chuveiro e abriu a torneira. A água aquecida o extasiou. O chuveiro da Casa Ai não tinha água quente! Feliz, ele molhou os cabelos, usando um sabão cheiroso para lavar-se com vigor.
O banho o renovou, e ele saiu debaixo da água com um sorriso contente nos lábios.
***
Ryo caminhava de um lado para o outro. Shiro estava demorando.
Demorando demais!
Ele precisava vê-lo, ficar perto, sentir seu cheiro, tocá-lo. Aquele desespero, que já o tomava há algum tempo, parecia ter atingido um ápice desde a noite do cinema. Queria muito experimentar todas as sensações que o outro poderia lhe proporcionar.
Comparou-se aos viciados por Pervitin , que aparentemente haviam perdido a razão e o bom senso desde que passaram a usar anfetamina. Shiro era a sua versão de Pervetin .
Quando a porta se abriu, ele respirou de alívio e excitação. O outro surgiu a sua frente, os cabelos molhados, em desalinho, a franja delicada e grande cobrindo os olhos escuros, a pele pálida, os ombros desnudos... Ele quase avançou sobre o outro, ansioso por beijar cada pedaço de pele que conseguisse.
— Como você é lindo! — elogiou, despudorado.
— Eu sou mais do que uma aparência — Shiro devolveu, ofendido.
Dentro do menor havia uma explosão de vergonha e arrependimento.
Se não tivesse aceitado que Ryo lesse para ele.
Se não tivesse aceitado sua amizade.
Se não tivesse aceitado seu pedido de desculpas.
Se não tivesse ido ao cinema com ele.
Se não tivesse lhe dado prazer num beco escuro em uma noite chuvosa...
Se não tivesse se apaixonado...
Os “se” continuaram torturando-o, enquanto se aproximava da cama oposta de Ryo e se sentava. Tudo poderia ser diferente. Tudo poderia estar diferente. Ele poderia estar na Casa Ai, a juntar seu dinheirinho suado que seria o que lhe daria uma casa. Poderia estar ouvindo as histórias de Nana e comendo o peixe delicioso que a velha costumava fazer para a janta. E aquela dor agoniante e vexatória seria apenas parte de um futuro que nunca teria vivido.
Uma vez, havia ouvido alguém dizer que o amor era maravilhoso e que trazia felicidade. Queria rever essa pessoa apenas para chamá-la de mentirosa.
Estava de costas para Ryo, mas sentia o olhar dele queimando sua nuca. Sem pestanejar, deitou-se, cobrindo-se até o queixo.
— Está com fome? Gostaria que eu pedisse alguma refeição no quarto?
— Não.
Imaginou que horas seriam. O sol já havia sumido, e ele estava cansado depois de tantas horas balançando dentro do carro. Então, fechou os olhos. No entanto, os abriu assim que sentiu a cama afundar-se ao seu lado. Girou o corpo e encarou um Ryo aturdido, em nítido desespero.
— Eu estou louco por você, Shiro... — ele sussurrou.
Estar louco pelo corpo dele e pelo que as mãos habilidosas podiam proporcionar não significava que Ryo o amasse ou o respeitasse. Aliás, não significava nada, além de desejo.
— Saia da cama agora — disse, resoluto.
— Mas, Shiro...
— Saia ou eu vou tirá-lo à força — ameaçou. — Eu não sou mais uma criança para ser coagido, eu aprendi a me defender — preveniu.
— Não quero obrigá-lo a nada Shiro — Ryo tentou se explicar. — Eu nunca vou me impor a você. Ao contrário, eu quero recompensá-lo por tudo...
Shiro se sentou, indignado.
— Eu vou dormir com Nana — avisou.
— A porta dela está trancada.
— Então, eu vou dormir na rua.
— Por quê? Eu te causo tanto asco assim?
Os olhos de Shiro encheram-se de lágrimas. Ryo sentou-se ao seu lado, demonstrando compreensão.
— Pare de me ofender — pediu. — Quando diz que vai pagar, sinto-me humilhado.
Obviamente, Ryo entendera errado a solicitação.
— Está certo. Posso deixar o dinheiro escondido num canto sem falar...
Não pôde terminar sua frase. Um tapa forte na sua face o fez ver estrelas. Shiro saiu da cama e foi para o outro lado do quarto, como se preparado para uma luta corporal. Por alguns segundos, os instintos de Ryo até o fizeram segui-lo e erguer a mão, mas em seguida, ele percebeu que não conseguia agredir o outro, mesmo para defender-se.
Querendo ou não, os meses de convivência que tiveram, despertaram em Ryo algo muito forte. Algo parecido com o que sentia por Aiko, mas mesclado a desejo.
Baixou a mão.
— Desculpe, Shiro — pediu. — Por favor, deite-se na cama, eu não farei nada.
Os olhos aturdidos causaram em Ryo algo intenso. Não queria feri-lo, não mais.
— Se eu ofendi você, eu peço desculpas, nunca foi minha intenção — prosseguiu, ao ver que o outro não se mexia. — Você desperta em mim tantas emoções e sentimentos que eu fico atordoado, sem saber como reagir. Então, vamos combinar: se eu assustá-lo com meu furor, você só precisa pedir para que eu pare, e eu vou parar.
Pasmo, Shiromiya ouviu-o sem parecer acreditar.
—Ryo-san... — murmurou.
No entanto, Ryo já voltava à própria cama e deitava-se nela. Levou pelo menos dez minutos para Shiro conseguir se mexer e também ir ao seu leito.
Imaginou se no dia seguinte as coisas ainda estariam iguais entre eles.
***
Ryo soube que estava em mais uma de suas visões quando abriu os olhos e reconheceu o quarto de sua casa em Hokkaido. A mesma cama imponente, comprada do exterior, o mesmo cheiro de tulipas, com que as servas costumavam enfeitar seu quarto; o espaço decorado com eficiência, cheio de adornos caros e belos; os quadros famosos nas paredes e a estante de livros no fundo.
Sim, estava tudo ali.
E Shiro também.
Shiromiya, com a sua beleza impressionante, sua pele pálida e translúcida, seu corpo de formas gentis e adoráveis, sua postura que exalava sensualidade e que o enlouquecia. Parado, em pé, ao lado da janela, olhando pela cortina, o rosto sério, preocupado, o corpo desnudo, desavergonhado.
Ryo enlouqueceu diante de tal visão. Por Kami-sama, como o adorava, como o desejava! Talvez o quisesse para sempre, não importava que tivesse que dar-lhe toda a sua fortuna... Tinha certeza que por mais que o tivesse, nada bastaria, ele sempre iria querer mais.
Pulou da cama. Percebeu-se nu, mas não se importou. Correu até ele e o abraçou por trás, aspirando o cheiro delicado de sua pele. Shiro não o afastou, apenas suspirou pesadamente.
— Estou com medo, Ry-chan... — murmurou, baixo.
O apelido, que nunca tinha ouvido antes, mas que aos lábios dele parecia um presente de Deus, o arrepiou. Beijou sua nuca, seu pescoço, espalhando seu toque por toda extensão da barriga e do peito.
Porém, Shiro não reagiu. Conflituoso, o encarou. Só então percebeu sua aflição, seu olhar adiante, como se estivesse apavorado. Acompanhou os olhos lindos até onde eles viam. Pela janela, então, percebeu a cidade que nasceu no fundo, destruída. Havia fumaça e fogo em alguns pontos, prédios caídos e pequenas figuras no chão. Percebeu serem corpos.
***
— Ryo-san?
O toque gentil no seu ombro, fê-lo abrir os olhos. Shiro estava parado a sua frente, vestido com a roupa do dia anterior, o olhar igualmente assustado, como em sua visão.
— Desculpe acordá-lo, mas já amanheceu — disse.
Ryo ainda sentia os efeitos da noite anterior, um misto de desejo reprimido e terror pela visão horrenda. Remexeu-se na cama, sentando-se.
— Sim, eu já estou indo.
Evitou encarar o outro. Não sabia o que faria diante daquele olhar que parecia mexer com cada célula do seu corpo.
Meia hora depois, ele abria a porta de Nana. A mulher já estava pronta, sentada na cama e voou até Shiromiya, com os olhos interrogativos assim que o avistou.
— Não se preocupe, Nana, eu estou bem — acalmou-a, baixinho, e sorriu, para confirmar sua afirmação.
Então, a velha prostituta olhou o moço rico. Ryo parecia mal, olheiras profundas e cansado. Tudo nele indicava que a noite havia sido péssima e, por causa disso, ela se manteve silenciosa, sem recriminá-lo ou importuná-lo, como era de sua vontade.
Enquanto Shiro e Nana iam até o carro, Ryo foi a recepção acertar as contas. Enquanto aguardava o rapaz que o atendeu na noite anterior calcular os gastos e fazer recibo, ele sentiu um toque no ombro. Era uma jovem senhorita a lhe entregar um folder pacifista, muito comum na época. Era cômico que aquela gente parecia não sentir a animosidade popular diante de sua postura, e nem temer a morte que a Kempeitai imporia, caso os pegasse.
— Temos livre escolha sobre nosso destino — a moça disse. — Vamos escolher a paz.
Fez cara feia e devolveu o papel. Disse uma ou duas palavras rudes que a colocaram para correr. Depois, voltou-se ao rapaz que pareceu satisfeito com sua reação, mas que evitou tecer qualquer comentário referente a ela.
Enquanto voltava para o carro, pensou sobre a tal livre escolha que a japonesa havia comentado. Riu. O tal “livre arbítrio” era uma invenção ridícula. Sabia, de antemão, que não importava as escolhas que os homens faziam, o destino estava traçado. Era uma sorte que manteve a boca fechada sobre as suas visões. Poucas pessoas sabiam de sua clarividência, e assim não era perseguido por acertos ou erros do que quer que fosse. Em outras épocas, seria considerado um profeta; nessa, era apenas um homem louco que via o futuro e que o temia.
***
Quando Shiromiya chegou ao portão da Casa Ai, Mamoru o recebeu de olhos arregalados. Porém não parecia surpreso. Mais tarde, ao conversarem, o cortesão contou que já sabia das ações de Ryo e também de suas visões sobre Hiroshima.
No mesmo dia, postou uma carta para Keiko, implorando-lhe que fosse embora da cidade. Passou-se um mês inteiro, e não recebeu resposta. Em maio, enquanto o Eixo se preocupava com a rendição da Afrika Korps [37] , Aiko voltou a escrever para a amiga. Daquela vez, ofereceu dinheiro e fez uma promessa de lhe comprar uma casa. Quase um mês depois, no mesmo dia que Shiro completou dezessete anos, chegou às mãos de Mamoru a resposta: Keiko havia recebido uma promoção na fábrica e não queria sair da cidade. Estava feliz lá, o filho estava indo na, chamada carinhosamente por ela, “escolinha” e tudo parecia estar encaixando-se perfeitamente num futuro brilhante e feliz.
— Você deu a ela uma escolha e ela a fez, Aiko-san — disse Shiromiya, sabiamente, tentando consolar o amigo.
Em julho, a visão de Ryo pareceu apenas uma tempestade que se acalmou antes mesmo de chegar até eles. Sem qualquer ameaça de bomba à cidade, e apenas alguns boatos de ataques às Ilhas Curilas, tudo parecia voltar à normalidade. Inclusive a relação dos amigos.
Saito voltou a frequentar a Casa Ai como se o episódio no Fuji nunca tivesse ocorrido. Ele costumava flertar com Aiko na frente de Shin para vê-lo possesso, e ao receber críticas sobre seu comportamento, estendia as mãos bonitas na coxa de Sakamoto e a acariciava, sobre os olhares constrangidos de Aiko. Com os meses que se passaram, o par pareceu compreender que Saito era uma parte importante de ambos, e o ciúme morreu, restando apenas um carinho descomunal, que o tornou uma espécie de padrinho do sentimento.
Ryo também voltou à Casa Ai. Não mais tentou comprar Shiromiya, mas costumava lhe dar presentes mínimos, como se fosse um pedido de desculpas. Trazia sempre consigo um pedaço de torta ou uma flor. Os dois, aos poucos, voltaram a conversar normalmente, e a amizade pareceu bem encaminhada.
Houve dias em que Ryo se perguntava se ainda o desejava. Havia reprimido tanto seu anseio pelo corpo do outro que, muitas vezes, não mais se sentia pulsar na sua presença. Mas bastava Shiro sorrir para que seu coração voltasse a saltar como sapos numa lagoa à procura de alimento.
— Você desistiu dele?
A pergunta foi feita numa noite chuvosa pelo sargento Saito, com quem costumava beber. Não que fossem amigos, mas como o outro já havia se tornado assíduo da Casa Ai, não podia evitá-lo para sempre, e então trocavam algumas palavras sem comprometimento.
— Por quê?
— Curiosidade.
— Curiosidade? Ou talvez seja por que está interessado?
Saito sorriu com aquela fileira de dentes perfeitamente alinhados e brancos. Ryo ferveu.
— Quem não iria ficar interessado por uma criatura tão bela?
Ryo ergueu um copo. Bebeu o saquê tranquilamente, tentando não demonstrar a combustão que estava por dentro.
— Quem ousar tocar nele, eu mato — avisou. — Shiromiya é meu.
— Ah, e ele sabe que é sua propriedade? — riu, provocando ainda mais.
Ryo emudeceu. Não entraria no jogo. Já tinha problemas demais. Precisava descobrir uma forma inteligente de deixar Shiro sem escolhas, trazê-lo para si antes que enlouquecesse completamente, tomado pela luxúria e desejo.
***
Aiko bateu o pé levemente no assoalho de madeira espelhado. Com o leque, espantou o calor terrível que fazia naquele dia. Depois, suspirou, olhando para a porta fechada. À sua frente, uma bonita oriental de olhos gentis encarava-o.
Era a secretária do departamento de segurança onde, sabia ele, Shin andava durante os dias. Jiro contou que Shin arrumara um escritório lá. Mamoru nem desconfiava dos motivos, afinal, Sakamoto tinha um bonito ambiente na própria residência.
Bom, o escritório residencial era apenas imaginado por Aiko, já que ele nunca havia visitado a casa de Shin. Mas Ryo costumava comentar sobre a quantidade de livros que ele mantinha no escritório e em como eles costumavam dormir bêbados lá. Então, o imaginava como um ambiente acolhedor e belo.
Nunca havia procurado Shin no seu trabalho. Bem da verdade, nas poucas vezes que se viram nas ruas, ele fingia não perceber que Sakamoto o ignorava. Porém, desde que se entregaram à paixão latente que nutriram por toda a vida, meditou sobre o fato de que não aceitava mais ser um amor escondido dos olhos públicos. Não que Shin fosse assumi-lo como amante — ora, eram homens! —, mas, ao menos, queria ser visto ao seu lado, mesmo que como amigo.
Assim sendo, inventou uma desculpa e foi até ele.
— O senhor deseja um chá? — a moça indagou, servil.
Aiko negou. Bem da verdade, a própria saliva doía para descer. Estava apreensivo, com medo da reação de Sakamoto quando o visse.
O som de passos fez seu coração disparar. Depois, a porta abriu e um oficial saiu por ela. A porta voltou a fechar. O homem, então, aproximou-se da mulher e suspirou. Não viu Aiko e, ao falar, sequer se virou em sua direção.
— Shin Sakamoto é o próprio demônio.
Não precisou pensar muito para compreender que Shin estava em um péssimo dia. Assim que o homem foi embora, Aiko meditou se não devia fazer o mesmo. Mas não houve tempo de se erguer, pois a secretária levantou-se e foi até a sala de Sakamoto.
— Vou avisá-lo de sua presença — disse-lhe.
Aiko assentiu. O bumbum parecia grudado na cadeira.
A mulher entrou e saiu em menos de um minuto. Então, estendeu a mão, num convite a entrar. Aiko agradeceu e adentrou no local. O ambiente era grande e masculino, o cheiro da colônia de Sakamoto estava em cada canto e o tom pastel o acolheu, deixando-o ainda mais nervoso.
A porta atrás de si fechou, e então ele ergueu os olhos. Sakamoto estava à sua frente, sentado e inclinado para vários papéis estendidos na mesa. Ele mantinha uma caneta nas mãos, e Aiko se recriminou por interromper seu trabalho por uma besteira.
— Eu... — começou, ao perceber que não seria cumprimentado.
Apavorado, um branco formou-se em sua cabeça e esqueceu a desculpa inventada que o levara até ele.
— Eu preciso de dinheiro — disse a primeira coisa que passou pela sua cabeça.
— Não poderia me pedir à noite, quando eu fosse até você? — Shin retrucou.
Estava zangado, era nítido. Um bolo formou-se na garganta de Aiko, e ele segurou-se para não chorar. Era ridículo que achasse que as coisas fossem mudar com sexo. Sexo não mudava nada. Vivia disso e ainda não havia aprendido?
— Eu não volto mais — soltou, virando-se de costas, já preparado para correr daquele lugar.
Todavia, não chegou a dar dois passos. A mão de Sakamoto segurou firme seu braço e ele voltou-se ao amante.
— Não estou com raiva por você ter vindo — Shin explicou.
— Está sim.
— Não, Aiko, não estou — reforçou. — Eu já havia pensado nisso antes, e você está certo quando me acusa de me envergonhar de nossa relação. Admito que seja um tolo, mas eu amo você. Não vou mais esconder isso de ninguém.
Parecia um sonho, e por alguns instantes ele realmente pensou que fosse. Então, sentiu as mãos firmes do homem que amava apertando sua cintura e o puxando contra seus músculos firmes e fortes.
Derreteu-se diante do beijo gentil e apaixonado que o tomou. Sentiu a língua de Shin, desafiante, brincando com a sua e, não resistindo mais, o abraçou com força. No entanto, aquele não era o local ideal para tal demonstração de carinho e logo eles se afastaram.
— De quanto você precisa, Aiko? — Shin o largou e voltou para trás da mesa.
Não tinha ideia. Então, desconversou.
— Você parece nervoso — disse. — Aconteceu alguma coisa?
Shin lambeu o lábio inferior e depois respondeu, franco.
— Mussolini foi preso, e o governo derrubado.
O efeito da frase caiu como uma bomba sobre Aiko. Ele sentou-se na cadeira em frente ao namorado, tentando conter o tremor nas pernas.
— Logo a notícia vai se espalhar, Mamoru. As coisas não vão bem. A nossa amada guerra santa parece não ser tão sagrada assim. Os aliados já desembarcaram na Sicília, a Alemanha parece uma barata tonta fugindo de botas que querem pisá-la.
Aiko esforçou-se para não demonstrar reação. Estar em sua situação era como estar entre o céu e o inferno. Havia alívio por si mesmo, mas medo pelo que poderia acontecer ao seu país e ao homem que amava.
— Não precisa se preocupar, Mamoru. Eu morreria por você, prometo que nunca deixarei que nada o machuque.
O som melodioso fez Aiko sorrir.
— Se você morrer, que motivos eu teria para continuar vivendo?
A frase causou um efeito poderoso no outro.
— Me espere à noite, está bem? Deixe aquela velha chata da Nana cuidando de tudo. Nessa noite quero você só pra mim.
— Sempre sou só seu.
— Você me entendeu — sorriu, sedutor.
Quando Aiko deixou o departamento naquela tarde, o sorriso que deu a cada um que cruzou seu caminho foi como o sol que nascia e trazia esperança de um novo amanhã.
Capítulo 26
Apesar da s promessas de uma noite sedutora, Shin não apareceu naquela noite na Casa Ai. Inseguro, Aiko chorou até o dia amanhecer, mas foi confortado por uma missiva curta que chegou até ele no início da manhã.
“O Marechal Badoglio declarou lei marcial na Itália”.
Sentiu-se estranho ao ler a breve explicação de Sakamoto pela ausência em sua casa. Era como se todos aqueles problemas de guerra fossem uma situação inventada, tão longe de suas vistas. Tirando a falta de alguns alimentos no mercado, e um ou outro rumor de que as coisas estavam indo mal no fronte, até então, apesar do tempo já transcorrido, a guerra não havia alterado em nada sua rotina ou sua vida. Às vezes descobria que algum cliente havia morrido em algum país longínquo, mas nada que o afetasse ao ponto de chorar. Sentia pena, fazia lá o seu “minuto de silêncio respeitoso” e depois prosseguia com seus afazeres. Estranhamente, até Nana, que costumava cobrar-lhe diariamente para que fugissem ou destruíssem as provas que existiam contra si, parecia mais calma, sem se importar com o que poderia vir.
No entanto, Shin o afetava, mais precisamente, a ausência dele. Quando Sakamoto esteve na Coreia ou na Alemanha, Mamoru sentiu-se apreensivo, sempre à espera de más notícias. Por mais protegido que Shin fosse, eles estavam em guerra e o sobrinho de Hirohito poderia ser um alvo dos aliados. Porém, acalmou-se assim que o amante voltou a firmar-se em Tóquio. No entanto, Shin voltava a afastar-se, sabiam-se lá os motivos. Aquela atmosfera de mistério e medo apavorava Aiko.
Os dias começaram a passar. Via Jiro algumas vezes, ele sempre estava perto de Ryo, ambos conversavam baixo e num tom amigável, mas sentia certa animosidade entre eles. Porém, sua preocupação com Sakamoto não o permitia mexericar nos problemas dos outros. Shiro, aos poucos, voltou a se alimentar regularmente, e a trabalhar com animação. Percebeu que os motivos daquele estado eufórico era Ryo e sua suposta amizade, na qual Aiko não acreditava nem um pouco.
Quase um mês sem ver Shin, fê-lo emagrecer cerca de três quilos. A maçã saliente do rosto sumiu e a pele perdeu o brilho. Andava com os ombros caídos, sem entusiasmo ou alegria. Saito ainda tentava animá-lo, mas nada parecia ter sabor.
Jiro era também aquele que lhe dava notícias. Shin estava ocupado, o Japão já não acreditava mais que poderia derrotar a União Soviética por meios militares. Soube, num cochicho de Jiro em seus ouvidos, que o Japão pensava em intermediar um pacto entre a Alemanha e a URSS. A grande preocupação, dizia sorrindo, era que após derrotar os nazistas, os soviéticos decidissem ameaçar os nipônicos. Assim sendo, precisavam do dom da palavra que Shin tinha para ajudar a arquitetar um plano, a fim de mostrar aos russos a boa vontade japonesa. Mesmo que Stalin não aceitasse a reconciliação com os alemães, não veria o Japão como um país a ser eliminado.
— Não sei os motivos do medo — Saito gargalhava diante de um sério Mamoru. — Não somos o povo protegido do deus do sol? — Depois seu semblante perdia a ironia. — A grande maioria dos membros do governo já sabe que vamos ser derrotados — contou. — Mas, ainda usam a Kempeitai para impor ao povo o pensamento vitorioso. A população é ignorante perante as verdades que virão. É questão de tempo para tudo ser bombardeado, muitos morreram dentro de suas casas.
Egoísta, apesar de tantas vidas em jogo, Aiko logo esqueceu todo aquele jogo político e se concentrou em uma única questão: quando veria Sakamoto novamente? Sentia sua falta, precisava dele como do ar que respirava.
Sua inquietação foi acalmada no começo de setembro, quando um carro bonito parou em frente à Casa Ai. Já era noite, mas ele nem pestanejou em deixar o estabelecimento sozinho e seguir o motorista que viera buscá-lo para ir ao encontro de Shin.
Imaginou que Sakamoto o levaria a um hotel, mas quando o carro parou em frente ao palacete bonito em que residia, ele perdeu o ar. Sim, já havia visto o lugar. Andara por perto, vendo de longe a casa nos tempos que eram apenas amigos. Nunca se aproximou, com medo de ser rechaçado e, mesmo que havia dito a si mesmo não aceitar mais migalhas de Sakamoto, jamais esperou que fosse ser convidado a ir à casa de um membro da família real.
Quando a porta do veículo se abriu, ele saiu ainda incerto. E se fosse um engano? E se alguém da família descobrira o relacionamento e aquilo fosse apenas uma armadilha? Porém, quando a porta da casa se abriu e ele viu Shin sorrindo em sua direção, percebeu que tudo estava bem. Um sentimento de felicidade explodiu em seu ser e, então, correu escadas acima, para abraçá-lo.
— Eu senti tanto a sua falta... — comentou, assim que se desgrudaram.
— Pude descansar depois de umas poucas boas notícias — disse o anfitrião, satisfeito. — A Alemanha ocupou Roma, e Mussolini foi resgatado da prisão.
Mamoru sorriu, pouco se importando com a Alemanha ou com Mussolini. Tudo que ele queria estava diante de si, amoroso e calmo, apaixonadamente gentil.
— Eu te amo — sussurrou. — Estou com saudades, me leva para o quarto.
O pedido súbito fez Shin gargalhar. Erguendo as mãos de Mamoru, ele as beijou, enquanto o puxava para dentro de casa.
A primeira visão que o tomou foi a enorme sala de móveis caros. Enfileirados, cerca de meia dúzia de mulheres aguardavam ordens, com os olhos baixos, numa total postura submissa, comum à época.
Shin caminhou até elas e Aiko permaneceu a seu lado.
— Este é Aiko Mamoru, ele é meu companheiro. Espero que o tratem bem sempre que vier. Caso venha e eu não esteja, recebam-no com a mesma deferência que prestam a mim.
Aiko arregalou os olhos, enquanto observava as mulheres fazerem o mesmo. Entenderam elas o significado de “companheiro”? Caso sim, aquilo não seria um enorme problema para o sobrenome de Shin? Porém, foi só quando estavam na sala de jantar, degustando uma enorme quantidade de pratos típicos como Gyudon e Tempura [38] que Aiko resolveu tocar no assunto.
— Shin, não teme o que pensarão os empregados diante de suas palavras?
— Meu caro, pessoas do meu nível social são completamente protegidas. Elas sabem o que acontece com quem solta maledicências com o nome de um membro da família real.
Mesmo não sendo as palavras que gostaria de ouvir, Aiko sorriu, ficando grato por aquela demonstração de amor.
— Nos conhecemos a vida toda, e é a primeira vez que eu venho na sua casa — disse, olhando ao redor, percebendo os quadros na parede e as cortinas belas e escuras nas janelas.
— Fui um tolo, Mamoru, mas eu juro que isso não vai mais acontecer. A partir de agora, não vou mais escondê-lo de ninguém, nem mesmo de Hirohito. Eu prometo fazê-lo feliz enquanto vivermos.
Parecia um pedido de casamento, e Mamoru prontamente saiu da cadeira e correu até Shin. Sentou-se em seu colo, beijando a boca salgada de peixe, enquanto remexia-se sobre a masculinidade que despertava motivada pela saudade do tempo que estiveram afastados.
***
As nádegas firmes bateram com tanta força contra ele que Shin gemeu, de dor. Estava deitado, o corpo reto, enquanto Mamoru Aiko sentava em cima de si e se movia para cima e para baixo, num ritmo intenso e enlouquecedor.
— Aiko... — implorou, quase em lágrimas. — Pare um pouco — afastou-o, fazendo com que o outro fosse para o lado.
O membro de Shin escapuliu para fora de Aiko, ainda duro. Parecia não entender o que o seu dono tramava.
— O que foi?
— Você quase me estourou as bolas — disse, num misto de alívio e zanga.
Aiko suspirou, resignado.
— Me desculpe, não percebi.
Porém, não parecia arrependido, ao contrário, estava mais para insatisfeito e irritado.
— Acho que estou pagando meus pecados — Shin murmurou. — Você é tão frio comigo — reclamou. — Ora, devia me amar, e não me usar.
— Eu te amo — afirmou. — Mas você faz sexo como uma menininha.
Shin se enfureceu.
— Quer parar de falar assim? Eu jamais usaria esse tom com você na cama — retrucou. — No entanto, você parece ter perdido completamente o respeito por mim desde que começamos a fazer amor.
A afirmação era verídica, e Aiko se envergonhou por tal. Baixou a face, constrangido. Depois, voltou a abraçar Shin, tentando fazer as pazes.
— É que eu sinto que tenho tanto ainda pra colocar “em dia”.
— Isso não é um serviço atrasado, Aiko. Nós fizemos sexo no momento certo, quando ambos estavam preparados. Porém você está me assustando com esse apetite fora do comum — saiu da cama, ignorando o membro ereto, e foi até o quimono. Vestiu-se. — Vou dar uma volta, depois conversamos...
— Shin-chan...
— Não quero brigar, nem nada do tipo. Então, só vou esfriar a cabeça.
Ignorando o olhar abatido do amante, ele saiu do quarto em direção ao escritório. Ao chegar lá, foi direto à mesa de bebidas, encheu o copo de conhaque e bebeu num único gole.
— Ora, ora... Alguém não está tendo uma boa noite.
O tom de Jiro o fez sorrir. Voltou-se para o sargento, que aparentava estar chegando em casa naquele momento.
— Achei que estivesse na Casa Ai — Sakamoto balbuciou.
— Aquele lugar não é tão atrativo sem Mamoru — disse, sem dó. — Mas, pelo que Shiro me disse, você mandou buscá-lo. Estou orgulhoso, está tratando-o como merece.
— Nem tanto.
A sobrancelha negra do sargento se ergueu, inquisidora.
— Como assim?
— Aiko e eu temos um pequeno problema sexual.
Jiro abriu a boca, espantado. Mas não disse nada.
— Eu não consigo... Enfim...
— Lhe dar prazer? — completou, curioso.
— Não, ele sente prazer... até demais. O problema é que ele nunca fica satisfeito. Quando eu termino, desmaio de sono... e Aiko...
— Aiko fica ainda mais acordado, pronto pra mais?
— Sim.
Jiro riu.
— Realmente, você tem um problema.
Depois, afastou-se. Porém, antes de chegar às escadas, Saito foi interceptado por Shin.
— Ei, espera — pediu. — Onde está meu conselho?
— Conselho? — gargalhou. — Não existe conselho diante disso. Vocês dois vão ter que chegar a um consenso, ou devem terminar.
— Terminar?
Aquilo estava fora de cogitação.
— Converse com ele, Shin. Vai ficar procurando respostas em quem não está envolvido? Sente-se com Mamoru e falem sobre o assunto. Ceda no que puder, e peça o mesmo para ele. Um relacionamento perfeito não nasce do nada, vocês precisam trabalhar as diferenças.
Shin assentiu e permitiu que Saito sumisse escada acima. Na verdade, nunca esperou passar por aquele tipo de situação. A verdade é que em todos os seus devaneios, quando sonhava com a realização pessoal ao lado de Aiko, imaginava que eles se completariam de todas as formas. Mesmo as diferenças que ocasionalmente podiam surgir, seriam devido à diferença social ou econômica, jamais sexual.
Porém, o sexo era exatamente o que estava separando-os. Aliás, o status ou o dinheiro não faziam a menor diferença entre eles, era na cama que as coisas pareciam mal encaminhadas.
Quando regressou, percebeu que Aiko ainda estava acordado. O cortesão estava sentado na cama, o lençol a cobrir-lhe a nudez. O queixo descansava no joelho, as pernas encolhidas, e o olhar acanhado.
— Mamoru — chamou, sentando ao seu lado. — Precisamos conversar.
Aiko assentiu, mas permaneceu em silêncio.
— Eu quero que saiba que é a pessoa mais importante da minha vida — confessou. — Morreria por você sem pensar duas vezes. Além disso, adoro fazer amor com você, adoro desfrutar a sua cama, lamber seu corpo, vê-lo choramingar quando atinge o clímax. Mas, quando termina, eu — tossiu —, meu corpo — corrigiu, — meu corpo precisa de descanso. Não sei por quanto tempo, mas não consigo me excitar tão em seguida.
— Mas você ainda é tão jovem... — persistiu.
— Aiko, não sou como você — irritou-se. — Você goza em mim e antes mesmo de eu conseguir limpar a meleca, já está duro de novo.
— E o que você quer que eu faça? — retrucou.
— Não quero que faça nada. Quero apenas saber se você acha que podemos continuar assim? Se você está disposto a manter a relação dessa forma? Não quero que se arrependa amanhã, porque não dividiu a vida com alguém com a mesma intensidade que você.
Ao falar isso, percebeu-o em choque. Então, o deixou livre para se decidir. Deitou-se de costas para Mamoru, e fechou os olhos. Aiko ficou em silêncio, sentado, como se meditasse nas palavras. Depois de algum momento, quando Shin imaginou que aquele era o fim, sentiu um abraço carinhoso, e o rosto de Aiko afundando-se em suas costas.
— Nesses dias que sumiu — Aiko sussurrou —, eu quis morrer. Quando não está perto de mim, não sinto vontade de sorrir, nem de comer, nem de ver o sol. Se me deixar, eu me mato — prometeu.
Aquilo foi tão infantil que Shin gargalhou. Então, virou-se para frente e o tomou nos braços.
— Não tenho vida sem você, Aiko...
— Então não fale assim comigo — pediu. — Não sabe que o amo acima de tudo?
Shin riu.
— Então, pode, por favor, esperar eu me recuperar para pular em cima de mim?
O cortesão pareceu pensar.
— Posso tentar — sorriu.
Beijaram-se.
— Obrigado por ter me falado de suas aflições — Aiko disse, feliz. — Quero sempre compartilhar as alegrias e as tristezas da vida com você, Shin-chan. Fico mais tranquilo por ter me contado o que o incomodava. Prometo fazer o mesmo se um dia surgir algo.
Shin girou o corpo, ficando por cima de Mamoru.
— Como companheiros?
— Sim.
— Então, é nosso trato: sem segredos. Se existir qualquer coisa que esteja entre nós, não importa o quê, ela deverá ser dita. Sinceridade acima de tudo.
A frase chocou Aiko. Para disfarçar, ele ergueu a mão até o bumbum de Shin, num carinho sensual. Shin o beijou na boca, enquanto os corpos voltavam a ser aquecidos pela volúpia da paixão. No entanto, daquela vez foi Aiko que estancou.
Sinceridade? Ele não podia ser sincero! Shin jamais poderia desconfiar dele! Não confiava tanto assim no amor de Sakamoto para confessar seu segredo. Sabia que diante da verdade, tudo poderia acontecer.
— Perdeu a vontade? — Sakamoto riu, segurando o pênis de Aiko com as mãos.
— Fiquei sonolento — riu, disfarçadamente. — Se importa de me deixar dormir um pouquinho?
Estranhamente, o sentimento de insatisfação agora mudava de lado. Sakamoto o viu girando o corpo e fechando os olhos. Não gostou, mas não tentou impedi-lo. Ainda lhe deu um leve beijo na nuca antes de também se entregar ao deus do sono.
***
Ryo encarou Saito. O sargento era uma incógnita difícil de entender. Nada em seu semblante ou em sua postura denunciava suas intenções. Observou o corpo delgado, parando os olhos nos dedos brancos que acariciavam o gato de Shin, deitado em seu colo. Jiro o encarou, percebendo o olhar. Sorriu misterioso.
Incomodado, Ryo desviou os olhos, pousando-os no tabuleiro antigo, e pareceu pensar.
— A Casa Ai é um ambiente muito agradável, não? — Jiro o chamou.
O som fê-lo levantar os olhos novamente.
— Com certeza.
Era início da tarde, ambos haviam almoçado com Aiko e agora jogavam xadrez à sombra de uma velha cerejeira no jardim.
— Imagino se essa lendária casa conseguirá se manter afastada da guerra.
O comentário não parecia ter nada implícito. Era apenas uma simples observação.
— Com certeza — Ryo disse, firme. — Não existe meio de o Japão ser atingido pela Guerra. Certamente, ela se manterá longe de nossas terras.
Jiro deu um sorriso cúmplice, como se entendesse que Ryo estava mentindo. Incomodado com aquilo, o comerciante não aguentou:
— Crê que seremos derrotados?
Saito olhou para o tabuleiro. Era sua vez de jogar, e ele pareceu decidido a arriscar apenas um peão. Moveu-o, voltando-se novamente ao homem.
— Meu caro Ryo-san, eu creio que o mundo foi criado, pelo quê é o que ainda me causa dúvida. Deus, Kami-sama, seres de outros planetas, ou uma simples explosão, não importa. O mundo surgiu de alguma forma. E isso foi único, perfeito e completo. E creio que então esse criador fez as plantas e os animais, lindos e majestosos — ergueu Minikui. — Veja esse belo exemplar de felino. Olhos claros, bonitos e arrogantes. Pelos macios, uma combinação perfeita de cores. Ele não é lindo?
O gato era de Shin, então, obviamente Ryo não concordava.
— Minikui tem personalidade, ele gosta ou não gosta. E ele demonstra isso, sem falsidade — voltou a pousá-lo no colo e o gato ronronou ao sentir o carinho. — E não só os felinos, mas todos os animais. A beleza das borboletas, a docilidade dos pássaros, a mansidão do gado ou a importância dos répteis... Enfim, todos são perfeitamente incluídos nesse ciclo de vida, de criação.
Pigarreou e prosseguiu.
— No entanto, em algum momento, esse deus criador ou, simplesmente, as consequências da explosão criaram uma doença. Uma moléstia de pele e osso, que anda e fala, que até tem sentimento às vezes, mas que na maioria do tempo só destrói, mata e aniquila tudo que toca. Esse erro da natureza usurpa o que não é seu, consume exaustivamente todas as reservas do planeta, mata os animais, destrói as matas, e ainda é capaz de destruir a si mesmo sem nenhum peso na consciência. Sabe de quem falo?
— Dos seres humanos.
Jiro assentiu.
— Então, eu torço para que essa guerra destrua a todos os humanos. Quero que todos morram.
Ryo ficou chocado.
— E seus amigos? Sua família?
O outro deu os ombros.
— É o preço a se pagar — sorriu.
Ryo baixou a face, voltando à atenção ao tabuleiro. A opinião de Jiro era cruel e incômoda, mas quem era ele para julgá-lo? Sabia, por Sakamoto, que a vida do sargento não havia sido nada fácil. Que ele fora submetido a uma forte tortura psicológica que devia ter alterado sua visão do mundo. E, diante das visões que tinha, como poderia não entendê-lo?
Moveu uma peça, sem pensar direito.
— Oh, Shiro — ouviu o som da voz de Jiro novamente, dessa vez doce e carinhosa. — Eu não vi você aí.
Ergueu os olhos rapidamente, encontrando aquele olhar semelhante a um mar negro de sensualidade e luxúria. Pelos céus, como queria se afundar-se naquele corpo frágil e delicado...
Shiro estava parado próximo deles, com um bule de chá na mão. Sorria.
— Aiko-san pediu para que eu trouxesse o chá.
Ao lado dos homens, havia uma xícara. Ambos as estenderam e ele as encheu com um líquido verde.
— Para a digestão — explicou.
Depois, virou-se de costas, afastando-se.
Ryo respirou fundo, segurando-se para não ir até ele, abraçá-lo, beijá-lo e usá-lo para todos os seus desejos pecaminosos. Como o queria! Nem ao menos conseguia entender o quanto. Faria qualquer coisa para tê-lo, pagaria qualquer preço...
— Xeque-mate — o som o acordou.
Voltou-se para Jiro e o viu rindo, debochado.
— Um rival desconcentrado é sempre mais fácil de derrotar.
— Está falando de Shiro ou do jogo?
A gargalhada de Saito ecoou pelo jardim.
— Dos dois.
Ryo resmungou alguma blasfêmia, antes de se erguer e ir embora. Como odiava Saito Jiro!
Capítulo 27
Ryo paro u diante da porta aberta, observando dentro do quarto o ambiente pobre, mas extremamente limpo e perfumado. As paredes de madeira pintadas num tom bege claro eram adornadas por pequenos quadros baratos de crianças sorrindo. Deu um passo à frente e raspou o dedo médio na mesinha lateral, percebendo que não havia qualquer resquício de pó no móvel.
Então, percebeu o roupeiro escuro, velho e com uma porta torta, quase caindo. Aquilo lhe causou um desconforto tremendo. Detestava pobreza ou qualquer coisa que a lembrasse. No entanto, ignorou o local logo em seguida, desviando os olhos para Shiromiya, que estava sentado no futon, a dobrar roupas.
— Bom dia — cumprimentou-o, chamando sua atenção.
Shiro ergueu a face, espantado pela presença.
— Ryo-san?
Ryo sorriu. O semblante de Shiro deixava clara sua surpresa, e aquilo o motivou a prosseguir.
— Shiro, posso me sentar?
Não havia cadeiras disponíveis, então Shiro ficou pasmo por vê-lo sentando no futon no chão. Era verdade que o comerciante andava surpreendendo-o ultimamente. Não mais dizia palavras ferinas, nem tentava comprá-lo e usá-lo. Apenas costumava permanecer ao seu lado para conversarem sobre trivialidades. Naquele momento mesmo, sua postura não denotava nenhuma segunda intenção. Observando-o bem, achou-o até mais simples, sem as roupas caríssimas que costumava ostentar. Percebeu então uma pequena sacola em suas mãos e a temeu.
— Tenho algo para você, mas tenho medo de lhe dar — Ryo disse, sério. — Temo ofendê-lo.
O coração de Shiro começou a bater mais rápido. Ele também temia as palavras de Ryo. Temia que, por conta delas, voltassem a se afastar. Sabia ser incapaz de manifestar qualquer confissão ao amigo sobre seus sentimentos secretos — e, bem da verdade, acreditava que jamais fosse ser capaz de amar livremente qualquer pessoa. — Porém, estar perto dele, sentindo sua presença e recebendo qualquer palavra amiga, acalentava seu coração.
— Minha serva fez uma limpeza no meu guarda-roupa e acabou achando algumas roupas que eu não uso mais. Então, se você não se ofender, quero saber se quer ficar com elas — estendeu o pacote a Shiromiya.
Obviamente, era uma mentira. A verdade é que Ryo odiava vê-lo usando trapos e roupas velhas. Aliás, usando sempre os mesmos trapos e roupas velhas. As únicas vezes que o via bem vestido era quando estava transformado em gueixa. No mais, eram apenas roupas que Mamoru não mais usava. E, levando-se em conta de que o próprio Aiko não tinha lá muitos recursos para comprar roupas novas, o estado das vestes de Shiro eram sempre deploráveis.
Assim sendo, foi até um dos melhores alfaiates de Tóquio e pediu a ele que preparasse a confecção de cinco camisas e cinco calças novas, além de três quimonos. Assim que pudesse (ou que não fosse tão óbvio), levar-lhe-ia também calçados.
— São lindas, Ryo-san — Shiro disse, abrindo o pacote e olhando o tecido perfeito e caro. — São tão novas... Parece que nunca foram usadas.
— Ah, mas eu as usei sim — Ryo se adiantou, prevenindo-se. — Porém estavam guardadas há quase dois anos.
— É mesmo?
— Sim, só estavam ocupando espaço. Então, como temos o mesmo tamanho, achei que você fosse gostar.
— Oh, sim. Muito obrigado, Ryo-san.
Aquele tratamento o fez ter uma selvagem manifestação em seu interior. Congratulou-se pelo olhar agradecido de Shiro, mas queria ouvir o “Ry-chan” de seus lábios. Precisava daquilo, como do ar.
— Me chame de Ry-chan — pediu.
Devia estar maluco. Havia realmente manifestado aquelas palavras em voz alta?
— Ry-chan? — os olhos negros se arregalaram. — Jamais seria tão desrespeitoso com um amigo.
— Não é desrespeito se eu pedir — Ryo opinou. — Quero muito que me chame assim, por favor.
— Por quê?
Ryo meditou na resposta. Então, resolveu ser franco.
— Vi meu futuro, e você estava nele. — A frase surpreendeu o outro, que abriu a boca em espanto — E era assim que me chamava... Ry-chan . Quando ouvi o som, fiquei surpreso, mas depois percebi que gostava muito.
Shiro sorriu. Os olhos de Ryo focaram-se naquela fileira linda de dentes. Percebeu a forma como o lábio superior parecia cobrir os dentes, um sorriso tão bonito quando discreto.
— Então seremos amigos para sempre?
Amigos? Voltou a pensar na visão. A forma com que o corpo nu de Kazue se mostrava languidamente em sua janela não significava nenhum laço de amizade.
Só então se deu conta de algo que até então havia passado despercebido. Ora, Shiro estava no seu futuro, e não apenas como amigo, mas sim como amante. Por qual motivo então estava tão desesperado? A comprovação de que era apenas uma questão de tempo para que Shiromiya caísse em seus braços, animou-o.
— Sim, para sempre.
— Estou feliz por isso, Ry-chan.
O corpo de Ryo reagiu diante das palavras. Sem conseguir se conter, ele segurou o rosto de Shiro com as duas mãos. Aproximou a própria face, mas diante dos olhos assustados, desviou dos lábios e beijou a bochecha fofa.
Um pigarrear característico fê-lo se levantar. Olhando para porta, viu Aiko encarando-o com olhos indecifráveis.
— Eu só vim trazer algumas roupas velhas para Shiro — Ryo se explicou.
E não ficou para ouvir as lamúrias do outro.
Assim que Mamoru e Kazue ficaram a sós, Aiko se aproximou do outro, curioso. Após uma breve explicação, disse:
— Ryo nunca se preocupou em doar roupas — parecia pasmado. — Estou feliz por ele parecer estar demonstrando um pouco de compaixão ao próximo.
Aiko sentou-se ao lado de Shiromiya. O menor estendeu uma camisa para Mamoru olhar.
— É linda.
— Não parece ser nova? — Shiro indagou.
— Parece... Mas ricos costumam usar roupas apenas uma ou duas vezes, e depois se desfazem.
— É? Que desperdício.
— Também acho — Mamoru riu. — Mas sorte a sua que isso acontece.
Ambos permaneceram no quarto a observar as novas roupas e jogar conversa fora até próximo do meio-dia.
***
— Então quer dizer que Shiro e você...?
— Exato.
Shin estreitou o olhar, em dúvida.
— Quando teve essa visão?
— Você sabe, eu já a tinha desde criança. Depois, os anos passaram, e ela foi adquirindo uma forma mais sedutora. E então conheci Shiro, e a gueixa de minhas visões foi se tornando ele. De início, eu considerava uma besteira, afinal, sempre via como se fôssemos casados. Mas as últimas visões me deixaram claro que, na verdade, éramos amantes.
— Amantes em Hokkaido?
Estavam no escritório da casa de Sakamoto. O ar estava ameno, calmo e tranquilo. Alguns dias antes do encontro, a Europa vivia um dos seus cruciais momentos: Mussolini declarava um Estado fascista no norte da Itália, enquanto o governo oficial italiano assumia guerra contra a Alemanha. O ano se encaminhava para o final sem grandes perspectivas de paz.
Mesmo assim, a conversa entre amigos em nada lembrava o difícil momento que viviam.
— Amantes de Hokkaido? Há! — Shin repetiu a pergunta, dessa vez soltando uma exclamação irônica no seu final. — Só por cima do cadáver de Aiko.
A observação fê-los ambos arregalarem os olhos. Subitamente, Shin inclinou-se para frente.
— Aiko...?
— Não tenho ideia. Não vejo Mamoru em minhas visões. Nem você.
— Acha que vamos...
— Não! — interrompeu-o. — Se algo tão importante assim ocorresse, eu saberia.
Mas ele não tinha tanta certeza assim. E se Kami-sama estivesse apenas sendo piedoso em poupá-lo da dor de saber sobre a perda dos dois melhores amigos?
***
A entrada de um novo ano não foi cheia de esperança e desejos. Ao contrário, existia em cada pessoa naquele país um sentimento de apreensão e medo. A última notícia que estampou os jornais naquela virada de ano era a que o cruzador SMS Scharnhorst, motivo de orgulho de Hitler e de toda a Alemanha, havia sido afundado pelos britânicos.
— Talvez os britânicos apenas tenham ajudado a enfraquecer um futuro inimigo — Saito disse, após ler a notícia. Seu tom era tão gozador que Aiko se arrepiou. — Com certeza, o Japão entraria em conflito com a Alemanha após a nossa certa vitória.
— Pare de falar assim — Mamoru ralhou, irritado. — E se alguém o ouvir dizendo tais coisas?
— Mas o que eu disse de tão mal? — fez-se de inocente.
— Não “o quê” e sim “como”. Seu tom mordaz não deixa dúvidas de que lado está!
Saito largou o jornal em cima da mesa. Estavam na sala de chá. A conversa havia girado sobre a noite de virada do ano, até que os olhos auspiciosos de Jiro perceberam o folhetim embaixo de uma xícara.
— E o que fariam? — permanecia jocoso.
— Você sabe muito bem — desconversou. — Vamos mudar de assunto?
Saito assentiu.
— Está bem. Conte-me, como vai esse lindo coração?
Aiko suspirou.
— Penso se Shin virá para o jantar de virada do ano na Casa Ai. Seria a primeira vez, desde que nos conhecemos, que ele passaria o evento longe do Imperador.
— Ele comentou algo?
— Não disse nada, mas agora somos...
Não sabia como nomear seu atual relacionamento. Seria bem mais simples classificar seu envolvimento se fosse uma mulher. Porém, como chamar o que vivia com Sakamoto sendo que ambos eram homens?
— São o quê?
Encarando Saito, percebeu que ele o encurralava propositalmente. Parecia se divertir em vê-lo sem palavra.
— Companheiros — considerou a palavra a menos ofensiva possível.
— Oh sim, mas vocês sempre foram companheiros. Agora são mais que isso. São amantes e namorados.
Aiko ficou envergonhado, mas não negou as palavras.
— Não se preocupe com isso. Tenho certeza que Sakamoto não deixará de vir — acalmou-o.
— Você também estará aqui, não é?
— É claro. Onde mais eu poderia estar?
Mamoru sorriu, servindo mais chá na xícara de Jiro.
— Espero que o ano de 1944 seja o ano que essa guerra chegue ao fim, e que a paz reine sobre todos os povos — Aiko desejou.
— Ah, com certeza isso vai acontecer.
A forma com que Jiro retrucava era tão amarga que Aiko se arrepiou.
***
Shin Sakamoto estacionou o carro ao portão da Casa Ai. Conforme fazia todo o ano, Aiko deu folga as meninas para que fossem passar as festividades com a família, portanto todo o ambiente estava vazio e silencioso. O portão estava aberto. Entrou no local, vendo ao longe Jiro, Shiro e Nana. Sorriu para os três, e recebeu de dois deles um sorriso de volta. Nana apenas resmungou chateada pela presença.
Ignorou a velha chata e foi até os quartos. O de Aiko estava todo aberto, bem arejado e aconchegante. Mamoru terminava de abotoar o quimono e, ao vê-lo, praticamente correu em sua direção.
— Achei que não fosse vir — admitiu, assim que ambos se separaram.
Shin beijou suas mãos, mas nada respondeu.
— Não admito passar um segundo de folga longe de você, Mamoru. Não mais.
Como estava romântico! Romântico e completamente cafona. Porém, Mamoru gargalhou feliz, estendendo os braços para mais um abraço.
— Você veio direto do quartel para cá?
— Sim, sequer me banhei ou descansei. Na verdade, estou sem dormir desde ontem.
— Quer descansar um pouco antes de jantar?
— Sim, se não for incômodo. Também gostaria de tomar um banho.
Meia hora depois, o querido sobrinho do Imperador deitava no futon bem arrumado. Estava com os cabelos molhados e o pijama de Mamoru parecia pequeno demais para seus músculos expansivos. Mesmo assim, o sono o venceu. Sozinho no quarto, ele sonhou com um mundo onde Aiko e ele envelheceriam juntos, dividindo todas as alegrias e tristezas da vida.
Acordou pouco depois. Olhou para o relógio na parede e percebeu não ser tão tarde. Perto das vinte e duas horas, o jantar logo devia sair.
Levantou-se e tirou o pijama. Olhou para o uniforme dobrado sobre uma cadeira e sentiu que ele tinha um cheiro desagradável de suor. Assim, resolveu ir até o roupeiro de Aiko, pegar um quimono qualquer para usar.
As roupas cuidadosamente empilhadas foi sua primeira visão. Olhou-as atentamente antes de escolher um quimono de linho branco que estava na parte de baixo. Ao pegá-lo, percebeu uma pequena caixinha metálica, estrategicamente escondida no fundo do móvel.
Provavelmente, era o local onde Aiko guardava dinheiro.
De repente, lembrou-se que há um tempo Aiko havia lhe pedido dinheiro. Envolvido com a guerra, esqueceu-se completamente de levá-lo para ele. E Aiko também não lhe cobrara nada, provavelmente constrangido em pedir pela segunda vez.
Irritado consigo mesmo, Shin puxou a caixa. Veria quanto dinheiro havia ali. E, possivelmente, as contas também deviam estar sendo guardadas naquele local. Assim, quitaria todas elas, para desculpar-se com o amante.
Abriu a caixa. Não havia dinheiro, mas havia um punhado de papéis e fotos.
***
Aiko Mamoru sorria, enquanto ia em direção ao próprio quarto. Mal podia acreditar que Sakamoto estava ali. Era como um presente divino, após tanto tempo de espera.
Abriu a porta do quarto e o viu sentado no futon.
— Shin-chan?
O chamado fez Sakamoto encará-lo. Quando girou o corpo, Aiko viu em seu colo um punhado de papéis e fotos que reconheceu imediatamente. Todo o seu corpo gelou, numa agonia tremenda.
Olhou para Shin, em seguida. O olhar frio e cruel atingiu-o imediatamente. Todas as palavras de Nana durante aqueles anos chegaram-lhe com o mesmo temor com que haviam sido pronunciandas a ele. Estava morto. Pior que morto, seria levado a um campo de extermínio, para ser torturado até que perdesse as forças.
Era o pior destino que podia imaginar.
Capítulo 28
Japão, 01 março de 1920.
Masami Aik o respirou fundo, sentindo a leve brisa gentil tocar seus cabelos. O som das ondas se batendo contra a enorme carcaça de ferro e aço à sua frente, fê-la abrir os olhos, admirada com o enorme navio britânico que estava parado no porto japonês.
— Diga-me, Mamoru — ela chamou o homem grande, parado próximo de si. — Não é a coisa mais linda e impressionante que você já viu?
— Pode ser lindo e impressionante — O tenente Mamoru Yoshiaki sorriu. — Mas não chega perto da sua beleza e elegância [39] .
A jovem gueixa jogou a cabeça para trás, soltando uma sonora gargalhada. Ao lado dela, uma senhora de cinquenta e poucos anos, deu um muxoxo, reclamando da atitude escandalosa. Só então, o oficial do exército pareceu notá-la e dirigiu-se a ela.
— Bom dia. Não fomos apresentados?
— Ela é Nana — Masami respondeu pela antipática. — Eu a contratei para me acompanhar na viagem.
O homem fez uma respeitosa reverência diante de Nana, que deu os ombros, indiferente. Depois, estendeu o braço para a bela gueixa e o trio se dirigiu até a entrada do imponente navio.
— Estou tão aliviada pelo fim da guerra — Masami comentou. — Era muito assustador saber que você lutava contra os alemães no pacífico.
— A guerra é sempre terrível, minha cara, mas o importante é que sobrevivi a ela. Assim, posso continuar cuidando das mulheres que tanto amo — o olhar dele era carregado de carinho.
O quarto que Masami recebeu era bonito, requintado e claro. Duas camas de solteiro postas em lados opostos, um bonito guarda-roupa, uma escrivaninha de madeira de lei, dois criados-mudos em cada canto e uma infinidade de cadeiras, bancos e poltronas compunham a mobília. Nana e Masami também receberam um moderno banheiro privativo, com banheira, chuveiro e sanitário europeu.
— Não é lindo?
— Muito bonito, senhora — Nana concordou.
— Vamos ganhar muito dinheiro aqui, Nana — Masami riu. — Conheci uma gueixa que se apresentou numa viagem como essa e recebeu muito ouro — os olhos dela brilharam. — Poderei reformar toda a Casa Ai e refazer o jardimcom o dinheiro.
Nana apenas assentiu. Depois, não resistindo mais, ergueu a voz.
— Senhora?
— Sim?
— Com todo o respeito que lhe devo, posso fazer uma pergunta?
A linda gueixa assentiu.
— Por que o tenente Yoshiaki embarcou conosco?
A jovem baixou a face, constrangida.
— Yoshiaki não gostou da ideia de que eu viajasse sozinha. Então, ele disse à sua esposa que precisava descansar das batalhas e veio comigo. Mas sei que a senhora Yoshiaki sabe que o marido mentiu sobre o motivo.
— Ele é casado?
— A maioria dos clientes da Casa Ai é — desconversou.
— Ama o tenente, não? Sofre muito por isso?
Só então Masami percebeu que Nana havia entendido erroneamente seu relacionamento com Mamoru. Sorriu, compreensiva.
— Está enganada, Nana querida. Yume Yoshiaki, a esposa de Mamoru, sabe de minha existência e não se importa. Ela até já, certa vez, veio escondida tomar chá comigo na Casa Ai. Mamoru é apenas zeloso, não somos amantes.
— Zeloso?
Homem nenhum zelava por uma mulher sem interesse.
— Vamos mudar de assunto? — Masami riu. — Vou me apresentar já nessa noite. Será um grande evento, preciso ensaiar. Por favor, me ajude a guardar as roupas e escolher o quimono. Depois, vamos repassar os passos da melodia — os olhos bonitos pareciam cheios de vida. — Essa viagem mudará nossa vida, Nana.
***
Masami Aiko observou sua plateia. O som melodioso ao fundo fê-la estender os braços, enquanto as pernas davam passos delicados para o lado.
Fazia aquilo desde pequena. Criada de forma rígida pela mãe, a fria Maya Aiko, ela nunca teve outra opção a não ser tornar-se uma gueixa. Lembrava-se de querer brincar e correr na infância, mas nunca pôde. Precisava ser treinada, e o foi. Aos dez anos, já se portava como a melhor gueixa que o Japão já vira. Sabia preparar o chá, sorrir, mover-se com uma natural sensualidade e dançar como poucas.
A mãe morreu de pneumonia quando tinha catorze anos, e ela assumiu a Casa Ai, apesar da pouca idade. É claro que contou com a presença de Yoshiaki, que não a deixou sozinha em momento nenhum. Poucas pessoas mantinham uma relação tão leal e fiel, e por ela, Masami era muito grata.
O ritmo aumentou, tornando-se uma cadeia de força e vigor. O corpo feminino acompanhou os acordes e batidas e, aos poucos, seus movimentos eram tão rápidos que cada pessoa naquele salão, sentiu-se entregue aos pecados que a dança prometia.
Os cabelos lisos e negros caíram do coque bem arrumado. Naquele momento, a gueixa parecia uma maravilhosa selvagem. A maioria dos homens arrumou-se na cadeira, num misto de fascínio e paixão. Porém, quando a dança terminou, as palmas cessaram-se e a gueixa saiu do palco e voltou ao próprio quarto. Apenas um homem a seguiu.
— Estava linda, Masami — Mamoru Yoshiaki disse, sorrindo. — Provavelmente, será a melhor e maior gueixa que o Japão já conheceu.
Era um elogio delicado e, como tal, ela o recebeu.
— Obrigada — curvou-se para o tenente.
Nana aproximou-se pouco depois. O homem acenou para ela e se afastou.
***
— Acredita em Akai Ito? — Masami indagou.
As duas mulheres estavam sentadas no convés. O sol estava forte, apesar da primavera. Nana balançava um leque em direção à sua patroa, tentando afastar o calor.
— Akai Ito?
— "Um fio invisível conecta os que estão destinados a conhecer-se. Independentemente do tempo, lugar ou circunstância. O fio pode esticar ou emaranhar-se, mas nunca irá partir".
Enquanto citava a lenda, o dedo de Masami ergueu-se, em direção ao nada. Ao longe um grupo de faxineiros lavava com baldes o chão de madeira. Falavam em um idioma que Masami não conhecia, mas todos eram orientais. Chineses, provavelmente.
— Isso tudo é baboseira para enrolar jovens inexperientes.
— Você é tão romântica — a gueixa gargalhou.
— E você não ri como uma gueixa — a outra retrucou.
Ainda com o dedo erguido, Masami concordou.
— Mamoru me ensinou a gargalhar. Ele achava simplesmente ridículo que eu reprimisse demonstrações de alegria.
— E por acaso acha que o seu outro lado do fio está no tenente? — a mulher resmungou.
Subitamente, um dos faxineiros ergueu o dedo. Apenas Masami percebeu o gesto, vendo o jovem de aparentemente vinte e cinco anos levantar o mindinho, parecendo tentar descobrir em que direção o vendo soprava.
— Masami? — Nana a chamou, tentando fazê-la sair de um transe.
Por alguns segundos, a jovem gueixa percebeu um fio vermelho guiando-a até o homem. Baixou a mão rapidamente, e o fio desapareceu.
— Amo Mamoru, Nana — disse, firme. — Mas está errada sobre a forma com que nutro meus sentimentos por ele.
Depois, se levantou e afastou-se.
***
Na terceira noite de apresentações, a caixa de presentes à artista que ficava próxima do palco, encheu-se de joias e dinheiro. Enquanto permanecia sentada na cama, Masami contava as notas, uma por uma, entretida nos planos que fazia referente ao futuro.
— Vou lhe dar metade de tudo, Nana — disse, firme. — Por ser a amiga sincera que é.
A prostituta surpreendeu-se com a atitude desprovida de interesse da outra.
— Só meu salário já é o suficiente, jovem Masami.
— Não — a gueixa negou. — Quero que fique comigo, Nana. Isso mesmo! Ficará comigo, está decidido. Sairá desse navio como minha serva. Irá comigo para a Casa Ai.
— Mas a casa Ai é uma casa de gueixas. Eu não posso...
— Danem-se todas elas! — Masami ralhou. — Não sabe como é passar a vida toda num ninho de cobras peçonhentas que querem lhe dar o bote apenas porque você tem uma bonita aparência, ou a proteção de um homem como Mamoru. Preciso de alguém em quem posso confiar. Por favor, venha comigo.
Nana sentiu-se tão feliz que quase chorou. Mas, antes de derramar qualquer lágrima, conteve o pranto.
— Muito me honra, Masami-san.
O abraço que trocaram ali selou o início de uma amizade que seria eterna.
***
Já havia se passado uma semana que Masami Aiko embarcara no enorme navio para suas apresentações. Desde então, via-se entretida entre seus ensaios, almoços e jantares com Mamoru. Seus planos para a viagem eram de dois meses em alto mar. Depois, voltaria para Tóquio.
Pensava naquilo quando chegou ao final da escadaria que levava à parte inferior do navio. Um enorme corredor estreito surgiu à sua frente. A gueixa, então, ergueu um pouco a barra do quimono, disposta a andar até o final dele. Sabia que havia uma sala de jogos lá e ela estava disposta a ganhar um pouco de dinheiro com o baralho. Os trouxas que lá estavam jamais imaginariam o quanto ela sabia cartear.
No entanto, seu plano foi interrompido quando, ao sentir um dos pés deslizando no corredor, veio a se esborrachar no chão. As duas mãos, espalmadas, foram em direção ao piso de madeira e ela o sentiu molhado.
— Senhora? — um jovem aproximou-se rapidamente, ajudando-a a se erguer. — Peço desculpas...
— Desculpas? Eu podia ter me machucado seriamente! — ralhou, revoltada. — Eu preciso do meu corpo! Pago minhas contas dançando, senhor! Como pôde deixar o chão molhado?
Só então notou que era o faxineiro que havia visto no convés alguns dias antes.
— Mais uma vez, perdão, senhora.
Masami o observou atentamente. Era chinês, certo. A pele num tom pálido e os olhos ainda mais puxados que os dela. Era da sua altura, e tinha o mesmo tipo físico. E era também muito bonito. Porém parecia bobinho e ingênuo. Masami adorou.
— Como se chama?
— Cun Xi, senhora.
— Como sabe meu idioma, Cun Xi?
— Eu trabalho em navios desde que era criança, aprendi muitos idiomas.
Ela o mediu com os olhos, antes de prosseguir.
— Não vou delatá-lo ao seu capitão, mas considere-se meu servo a partir de agora, entendeu?
— Sim, senhora. Muito obrigado.
Ele curvou-se até o chão perante ela. Masami então deu as costas, escondendo um sorriso satisfeito nos lábios.
***
— Cun Xi, meu chá!
O jovem chinês postou-se ao lado da gueixa, servindo o líquido verde na sua xícara. Depois, andou até o outro lado da mesa, inclinando-se para fazer o mesmo por Nana.
— Não quero que um chinês toque na minha xícara! — Nana reclamou, espantando-o com as mãos. — Odeio essa raça — disse a Masami.
— Raça? Ele não é um cachorro.
Masami parecia enfurecida pela colocação. Era verdade que de início ela costumava ignorar o racismo de Nana, mas na última semana, cada palavra proferida contra Cun Xi inflamava nela uma raiva absurda.
— Chineses, coreanos e cachorros — a outra resmungou. — Qual a diferença?
Uma batida forte na mesa quase fez Nana cuspir o chá. Encarando a sua jovem patroa, viu-a avermelhada, como se sentisse um ódio descomunal pelas palavras.
— Nunca mais fale assim com Cun Xi, entendeu? — Masami ordenou. — Nunca mais!
Nana, irritada, disse um monossilábico sim e se levantou.
— Vou tomar ar — avisou.
Quando ficaram sozinhos na sala onde Masami costumava beber seu chá matinal, o chinês, enfim, disse algumas palavras.
— Muito obrigado, senhora Masami.
A forma como ele sorriu diante dela, fê-la estremecer. A imagem do rapaz erguendo o dedo mindinho como ela, naquela manhã de sol, fez com que imaginasse se ambos podiam estar destinados àquele encontro. Não que estivesse apaixonada, mas não podia negar que gostava da companhia dele, do som da sua voz, e da forma respeitosa com que a olhava.
— Você acredita em pessoas predestinadas? — indagou de supetão.
— Na China, costumamos dizer que um encontro é um acaso, mas um reencontro é destino.
— Um reencontro?
— A senhora não acredita que as almas gêmeas foram criadas juntas por algum deus e depois, separadas? E que sua missão de vida é apenas buscar uma a outra?
As palavras a fizeram lacrimejar. Cun Xi dizia exatamente o que ela sempre esperou ouvir de alguém.
— Pensei que fosse a única a pensar assim — admitiu, sorrindo.
O rapaz assentiu, envergonhado. Só então, ela percebeu que ele a admirava de muitas formas. Não resistiu a seduzi-lo.
— Já pensou que eu poderia ser sua alma gêmea?
— Jamais me atreveria em pensar algo assim — ele respondeu, franco. — A senhora é uma jovem gueixa, admirável, bela e de posses. Eu sou o faxineiro do navio.
Masami sentiu um estado de piedade e dor ao ouvir aquilo. Quis dizer ao jovem que não se importava com tais coisas, mas a entrada abrupta de Mamoru Yoshiaki interrompeu seus pensamentos.
O tenente, primeiramente, a cumprimentou com um aceno na fronte. Depois, observou o homem ao lado. Pareceu revoltado.
— Onde está Nana?
— Ela foi tomar ar.
— E a deixou sozinha com um homem?
— Ora, Mamoru — Masami riu. — Sou uma gueixa, não temos tantas formalidades.
— As outras podem não ter, mas você não é como elas.
O tom agressivo do tenente fez Masami curvar a face, constrangida.
— Perdão — pediu, sincera.
Porém o oficial não se dignou a respondê-la.
— Saía já dessa sala, chinês! — ordenou a Cun Xi. — E não se aproxime mais de Masami!
O jovem parecia querer negar, mas os olhos implorantes da gueixa, fizeram-no sair calado.
Depois que ele deixou o cômodo, o tenente sentou-se à frente dela.
— Pensei que havia embarcado para trabalhar e não para flertar — provocou-a, frio. — Não admito esse tipo de atitude, Masami.
— Independente do quanto me protege, não sou uma mulher para casar e ter filhos. Sou apenas uma gueixa.
— Não precisa ser para sempre. Sabe que pode largar essa vida. Eu lhe daria todo o apoio financeiro que precisasse.
— E a custo de quê? De toda Tóquio rindo às costas de Yume-san? Dizendo que o marido dela está sustentando uma vadia? Eu jamais faria algo assim a ela.
— Cuidado com esse vocabulário! — ralhou. Depois, prosseguiu. — Minha esposa sabe de você e me apoia. Yume e eu nos amamos! — ele perseverou.
— Sou uma lendária Aiko. Não posso abandonar o que nasci para ser.
O outro deu os ombros. Sabia de antemão que não adiantava discutir com ela.
A gueixa suspirou, também dando a discussão por encerrada. Apesar de ter dito a última frase com convicção, sabia que era da boca pra fora. No fundo, era uma tola romântica, capaz de desistir de tudo por um amor.
***
Depois de ter passado alguns dias ao lado do faxineiro chinês, sua ausência provocada pelas ordens do tenente Yoshiaki fez com que uma dor insuportável atingisse a bela gueixa. Mesmo tentando ocupar a mente com o trabalho — fazendo até duas apresentações por dia — a falta que sentia dele, era demasiadamente grande.
Cun Xi tinha algo especial. Talvez, ele realmente fosse a ponta do seu Akai Ito. E conforme os dias iam passando, ela odiava ainda mais Yoshiaki por afastá-lo dela.
Porém, assim com o filho que nasceria algum tempo depois, Masami era impetuosa e não pensava muito para agir. Depois de chorar algumas noites, decidiu escapar das asas do protetor. Numa noite chuvosa, tão logo Nana começou a roncar na cama ao lado, ela vestiu o quimono e saiu à procura do chinês.
Desceu a pobre ala dos empregados. Não imaginava que abaixo dos quartos tão bonitos e requintados, fosse encontrar tanta pobreza e tristeza. Sem pintura, sem limpeza e numa atmosfera sufocante, ela perguntou a uma jovem serva que tentava fazer seu bebê parar de chorar, onde era o dormitório do chinês Cun Xi.
Tão logo recebeu a indicação, bateu na porta. O outro a abriu, espantado.
— Senhora Masami?
Sem deixá-lo falar, a jovem pegou-o nas mãos e o puxou. A impetuosidade da juventude os guiou até o convés. Chegaram lá rindo, exaustos. Estava tudo deserto, a chuva molhava o assoalho de madeira, e em segundos ambos estavam ensopados.
— Abandone o tenente — Cun Xi implorou. — Sei que não tenho muito a oferecer, mas prometo trabalhar e lhe dar uma vida decente.
A jovem sentiu os olhos repletos de lágrimas.
— É mais do que muitos já me ofereceram — admitiu. — Mas se engana se pensa que Mamoru e eu sejamos amantes...
— Ele a ama, isso eu sei — o jovem insistiu.
— Sim, ele me ama, mas não somos amantes — ela perseverou. — Acredite em mim, homem nenhum jamais me tocou.
Um clarão ao longe indicou a queda de um raio. Ambos não se moveram.
— Querida, eu não me importo. O seu passado não me importa, apenas desejo que passe o resto da sua vida ao meu lado.
Naquela noite, beijaram-se pela primeira vez. Amaram-se também, sentindo a chuva caindo sobre os corpos que se espremiam contra a parede.
Um amor que mudaria suas vidas...
***
Masami e o jovem Cun Xi encontraram-se durante um mês inteiro, durante as madrugadas. A serva Nana e o tenente Mamoru pareciam satisfeitos por vê-los separados, sem saber que assim que repousavam a cabeça no travesseiro, a bela gueixa estreitava-se pelas sombras da noite, atrás do amante.
Porém o segredo terminou numa manhã de abril. Após comer um pedaço de presunto, Masami passou mal e vomitou. Ao seu lado, Nana desconfiou imediatamente da reação. Preocupada, ela compartilhou sua experiência com Mamoru.
A reação do oficial, primeiramente, foi incredulidade. Masami jamais havia tido um homem, pelo que ele sabia. Depois, porém, resolveu chamar um médico. No final da manhã, o homem já confirmava o diagnóstico. Apesar de necessitar de exames mais precisos, tudo indicava que ela estava grávida.
Mal ouviu as palavras, e Yoshiaki saiu em disparada pelo convés. Encontrou o jovem faxineiro limpando as janelas do restaurante. Agarrou-o pelo colarinho e o levou até o quarto de Masami.
Assim que lá chegaram, jogou-o no chão, aos pés da jovem gueixa.
— Apenas me diga se é ele — Yoshiaki disse, já puxando a pistola do coldre.
— Imploro que não o mate — Masami correu em direção a Mamoru. — Não lhe faça mal, eu o amo!
— Não sabe o que é amor, menina tola!
Nana, de lado, assistia à cena de olhos arregalados. O jovem chinês, no entanto, não tinha nenhuma reação.
— Nós ficaremos juntos, Mamoru — Masami explicou ao outro. — Vamos nos casar!
— E acha que ele vai sustentá-la como? Limpando sanitários? Lavando o chão?
— É um trabalho digno — defendeu-o.
— Sim, é. Porém não paga sequer o sabão perfumado que usa para tomar banho.
Masami sentiu um choro reprimido sufocá-la. Diante do olhar de desespero, Yoshiaki desviou-se dela e foi até Cun Xi.
— Você a ama, chinês?
— Eu a amo mais que tudo, senhor.
O outro respirou fundo.
— Então, você vai desembarcar assim que o navio ancorar em um porto. Vai voltar para sua terra, e vai construir uma vida para que possa receber minha Masami. Vou dar-lhe dinheiro, vai abrir um negócio, trabalhar sem descanso, comprar uma casa confortável, e ter recursos para manter o padrão de vida que Masami é acostumada. Assim que tiver condições, eu irei levá-la até você.
— E por que você faria isso?
O tenente não respondeu. Mas Masami Aiko resolveu revelar o segredo que guardava há anos.
— Mamoru e eu somos irmãos.
O gritinho de surpresa veio de Nana. O tenente não esboçou reação perante a verdade que vinha à tona.
— Meu pai ficou viúvo cedo. Avesso a casamento, ele escolheu uma bonita gueixa para amante exclusiva. Mas, não desejoso de que o mundo o soubesse, pagava para que a mãe de Masami se mantivesse calada. Adoeceu tão logo ela morreu. Mas antes de falecer, contou-me que eu tinha uma irmã...
— Mamoru me procurou em seguida. Eu ainda era uma menina, e ele me assumiu. No entanto, não podíamos assumir nosso vínculo perante a sociedade. Por minha posição e, por mais estranho que pareça, é menos escandaloso acreditarem que somos amantes.
O tenente concordou.
— Por isso, chinês, eu não deixarei que leve minha irmã para um mundo de sofrimento. Vai trabalhar para dar a ela a vida que merece. Enquanto isso, cuidarei dela e do bebê que vai nascer.
A menção da criança fez o outro espantar-se. No entanto, havia felicidade em seus olhos.
— Prometo trabalhar dia e noite por você, Masami. Não importa o tempo que levar, eu conquistarei o que for preciso para tê-la comigo.
Aquela promessa jamais se cumpriria.
***
Japão, 1931.
O menino Mamoru Aiko correu pelas ruas enlameadas do subúrbio. Ao longe, seu tio e sua mãe o observavam.
— Graças a Deus, ele não tem traços chineses — Mamoru Yoshiaki comentou. — Agora que começaram os “incidentes” na China, não sei o que seria de meu sobrinho, caso alguém descobrisse sua origem.
Masami Aiko baixou a face, assustada.
— Conversei com Mamoru. Expliquei que ele jamais deve contar a ninguém sua origem. É uma sorte que todos acreditam que é seu filho.
Nana, ostentando seus sessenta e poucos anos, apareceu ao lado do par como um fantasma invocado.
— Cun Xi mandou cartas?
— Sim — o homem respondeu. — Pediu-me para ir até ele. Parece que, enfim, conseguiu uma propriedade rural. Disse também que seu salário é alto e que pode manter uma família. Eu acredito naquele maldito, sei que não mente e que ama Masami. Manda-me uma carta por mês há mais de dez anos.
Masami sorriu.
— Obrigada por me trazer as cartas e as fotos.
— Se a guerra estourar, quero que as destrua.
— Aquelas cartas e fotos são a única prova de que o amor que vivi com Cun Xi não é apenas um sonho...
— E o pequeno Mamoru, é o quê? — o tenente gargalhou.
— Você me entendeu. — suspirou. — E como está Yume?
O assunto nublou os olhos do irmão.
— Continua doente, mas tenho fé que irá se recuperar.
Durante alguns segundos, as duas mulheres se mantiveram em um silêncio respeitoso. Depois, Nana se manifestou.
— Quando irá à China?
— No próximo mês. Mas Masami só irá quando não houver mais ameaças entre as duas nações. Não vou arriscar as vidas de minha irmã e meu sobrinho.
Compreensiva, Masami assentiu.
***
Masami nunca chegou a ir à China. O próprio Cun Xi achava perigosa uma viagem após tantas desavenças entre os países. Assim sendo, a cada carta trocada, eles fortaleciam a promessa da união que jamais aconteceria.
Os anos de passaram. Yume morreu em 1932. Mamoru ficou alguns meses em total isolamento, e Masami respeitou o seu luto. Mas em 1933, ele voltou ao trabalho, entregando-se de corpo e alma ao que exigia o imperialismo nipônico. Esteve na Manchúria, foi um dos responsáveis pela instalação da base que o exército usaria para mais tarde firmar-se ali. As cartas que Cun Xi enviava ao tenente com um pseudônimo nipônico passaram a ser entregues a Masami por uma criada de confiança. Mamoru permaneceu lá até junho de 1937.
No mês seguinte, avisado sobre a invasão da China, ele saiu em busca do cunhado. Masami aguardou notícias pelos meses que se seguiram, mas nenhuma missiva chegou até ela. Rezou e acendeu incenso todos os dias, implorando aos deuses que protegessem seu irmão e seu amor.
Quando, enfim, teve uma notícia, não foi a que esperava.
Numa manhã de novembro, alguém bateu na porta da Casa Ai. A gueixa saiu em disparada, seu coração antecedendo o que viria.
Mamoru estava ali. Sujo, cansado, a barba por fazer. Ele a contemplou com seus lindos olhos, e segurou seus ombros.
— Cun Xi? — ela indagou, o som de sua voz mais parecia uma súplica agoniante.
— Morreu tentando proteger duas meninas de cinco anos de serem estupradas durante a invasão.
As palavras seguintes, a explicação de como Mamoru chegara até seu endereço, a forma como encontrara seu corpo já em decomposição ao lado do cadáver de duas pequenas garotinhas, o relato de uma sobrevivente, e o conforto de que ele havia morrido como o homem digno que sempre fora, Masami nunca ouviu.
Tudo que havia nela era a dor por constatar que os sonhos que guardara no coração por dezessete anos haviam sido destruídos. Pensou em Mamoru, seu filho, que jamais conheceria o pai. Pensou no fardo que ele teria que carregar, escondendo sua origem... E, enfim, pensou na sua própria condição. Uma gueixa de quase quarenta anos, sem filha mulher, sem ter a quem deixar seu legado, uma vergonha para as mulheres de sua linhagem.
Odiou Cun Xi por ter sido um herói. Devia ter fugido, ignorado as crianças, lutado pela própria vida. Devia isso a ela, disse a si mesma. Todavia, em seguida percebeu a loucura das palavras. Amou Cun Xi exatamente pelo homem gentil e bondoso que ele era. O filho, que pela graça de Kami-sama era uma cópia fiel do tio oficial do exército, tinha a personalidade doce do pai.
— Você quer entrar e descansar, Mamoru? — teve forças de indagar ao irmão.
Ele negou. Deu-lhe as costas e foi embora, sem se despedir.
Mais tarde, naquela mesma noite, informaram-lhe que Mamoru Yoshiaki havia se suicidado. Segundo os relatos, deitou na sua cama com a foto de sua amada Yume nas mãos e deu-se um tiro na boca.
Ao ouvir aquilo, a leal irmã morreu por dentro.
***
Contudo, o corpo só seguiu o espírito um mês depois. Antes de morrer de tristeza, Masami chamou Nana e lhe entregou as chaves da Casa Ai. Na cama onde convalescia, disse a prostituta para mandar todas as gueixas embora, contou-lhe a forma como sempre a trataram mal por ser a filha da antiga dona, e como não a aceitavam por ser bonita e livre. Então, sugeriu que abrissem um bordel. Com a supervisão de Nana, Mamoru Aiko podia ser um bom proprietário.
— O tio lhe deu estudo. Não a melhor escola, mas uma escola decente. Aiko vai saber administrar muito bem a Casa Ai. Além disso, se conseguir fiéis meninas para trabalhar com ele, sempre irão protegê-lo, dando-lhe informação caso alguém desconfie de sua origem. — suspirou pausadamente antes de continuar. — Temo que as gueixas possam descobrir sobre ele e entregá-lo à polícia — admitiu.
— Soube que o filho dos Sakamoto estará voltando da escola no mês seguinte... — a anciã parecia alarmada.
— Shin Sakamoto é um perigo, Nana... Ele sempre me causou calafrios. Temo por Mamoru perto dele...
— Mas expulsá-lo é arriscado e pode levantar suspeita.
Masami sorriu.
— Creio que não há com que se preocupar... Provavelmente, ele nem se lembra de meu filho. Nunca lhe mandou sequer uma carta desde que foi para o internato.
Nana assentiu.
— Vou cuidar de Mamoru como se fosse meu próprio filho — prometeu.
Masami sorriu.
— Ou neto, não? Você me dedicou mais amor de mãe que minha própria genitora — a mulher disse.
— Eu a amo muito, senhora — Nana confessou.
— Então proteja meu filho — pediu. — Não destruí a caixa de lembranças de seu pai. Entregue-a a Mamoru. Peça que ele esconda, mas que a mantenha. Um dia, quando essa guerra acabar, quero que ele conte a todos que não era filho do tenente Yoshiaki, e sim seu sobrinho.
Nana assentiu.
— Dirá adeus a seu filho?
— Não tenho coragem. Diga a ele apenas que eu o amo — seu olhar era calmo, mas abatido. — E que ele deve ter orgulho de ser quem é.
O vento norte soprou com força naquele instante.
Nana levantou-se da cadeira e inclinou-se sobre o futon. Beijou a testa de Masami Aiko com carinho, dizendo-lhe que descansasse em paz.
Foi o último beijo que lhe deu.
Capítulo 29
Masami Aik o acreditou durante todos os seus dias na antiga lenda oriental da linha vermelha do amor. Confiou nos seus olhos, ou em sua alma, em tê-la visto ligada a Cun Xi, e morreu reafirmando a si mesma que havia feito a escolha certa.
Anos depois, sentado em um banco no próprio quarto, ao lado oposto ao outro ocupante — o querido protegido do Imperador — seu filho pensava se realmente a mãe estivera certa. Racionalmente, em troca de alguns dias de felicidade, ela estragou a própria vida, confinou-se em uma esperança que nunca se realizou, e condenou o filho a um futuro de medo e apreensão.
— Amo minha mãe, mas ela nem pestanejou em se entregar ao desespero e à desesperança, deixando-me só, sem qualquer outro parente vivo a quem eu poderia confiar — terminou sua narrativa ao quieto Shin, que havia ouvido cada palavra sem expressar qualquer comentário. — Apeguei-me muito a Nana, por conta disso. Foi ela quem cuidou de mim quando fiquei doente, ou que me ensinou a ser um homem. Nana foi minha verdadeira mãe, e por isso eu a amo muito — completou.
Houve um silêncio desesperador depois daquilo. Shin, sentado no futon, descansava os braços em cima dos joelhos. Os dedos polegares se uniam, adiante, formando um círculo. Parecia pensativo, ainda absorvendo cada palavra, cada frase dita. Não parecia real, não devia ser real. Lembrava-se de, certa vez, ter ouvido um comentário aleatório sobre Aiko ser o bastardo de um tenente, e por isso a gueixa Masami havia lhe dado o nome Mamoru. Também comentavam que quando descobrira o fato, a mulher do tenente — que não podia ter filhos —havia se matado. Naquele momento, percebia o quão enganosas eram as más línguas, que sequer uma fofoca coerente conseguiam fazer.
— Quando soube sua origem? — foi sua primeira frase no novo ano que começava.
Era meia-noite e quarenta minutos do dia primeiro de janeiro de 1944. Recordava-se de que durante a tarde havia cumprido seus afazeres, cumprimentado a família, preparando-se para ir até seu amante. Havia jurado a si mesmo o novo ano que se iniciava seria diferente. Que ele faria Aiko feliz, que daria ao seu amor tudo que pudesse. Porém, seu sentimento esmoreceu diante da confissão.
— Sempre soube.
Percebeu que Mamoru estava sendo sincero na resposta. Talvez, aquela houvesse sido a primeira vez que o outro havia sido franco com ele.
— Então, você me seduziu e depois me aceitou como amante, sabendo que não passava de um chinês?
— Eu te amo, Shin — tentou se defender, ignorando o tom grosseiro. — Eu só queria ficar perto de você, demonstrar a cada dia o quanto eu o adoro...
Sakamoto ergueu-se do futon, e começou a caminhar em direção à porta. Mamoru o interceptou antes de alcançá-la.
— Você sabe o quanto fui franco em relação aos meus sentimentos — o jovem cortesão o enfrentou. — Eu o amo mais que qualquer outra coisa, amo-o acima de mim mesmo e faria qualquer coisa para ficar com você. Eu me submeteria a qualquer coisa, destruir-me-ia se preciso fosse, então... Shin, não vá embora me deixando nessa agonia.
Shin riu, cruel.
— Definitivamente, você é igual à sua mãe. A vadia dormiu com um chinês, sem se importar com a própria honra. Uma cadela que colocou um bastardo estrangeiro nas terras da deusa do sol. Você, sua mãe, seu tio... Todos que têm qualquer ligação com você me dão nojo.
Pasmo, Aiko não conseguia se mover.
— Saia da frente — seu tom era baixo, apesar de raivoso. — Eu jamais teria qualquer relação com um chinês sujo — disse, cruel. — Você me enoja, me revolta...
Lutando contra as lágrimas, mas sem conseguir expressar nenhuma réplica, Mamoru desviou-se da porta e permitiu que o outro saísse.
***
— Shiro, como você fez um kadomatsu [40] tão bonito?
O garoto enrubesceu e sorriu para Saito Jiro. O sargento estava, pela primeira vez desde que se conheciam, sem a farda. Vestindo um quimono branco de flores pretas, parecia ainda mais bonito, tão à vontade. Apesar do inverno, a noite estava agradável e a janta havia sido posta sobre uma mesa no jardim. Ficou feliz pela presença, porque, caso Jiro não estivesse ali, passaria aquela virada de ano apenas ao lado da velha sonolenta Nana, que já estava fechando os olhos.
Ryo Satoshi havia aparecido à tarde. Comentou sobre ir a um evento importante com alguns empresários do ramo pesqueiro, e depois mais nada disse. Assim, não perguntou se ele viria à Casa Ai. Simplesmente, falaram sobre banalidades e depois se despediram sem qualquer desejo de boas novas ou qualquer promessa vazia.
— Midori me ensinou antes de ir viajar — esclareceu.
— Ah, é mesmo! Acabei de perceber que as meninas não estão aqui. Elas passam as festividades com as famílias?
— Sim, e levam dinheiro para seus pais e irmãos também.
— Boas moças, com certeza.
Shiro assentiu.
— Jiro-kun, muito obrigado por estar aqui — disse, subitamente.
— Eu que agradeço pela companhia — o outro sorriu. — Sem você, o que seria de mim? Aqueles dois — referiu-se a Aiko e Shin — sequer saíram do quarto desde que o ano começou.
Como se os deuses resolvessem discordar de sua colocação, a porta de Mamoru abriu. Ambos perceberam Shin Sakamoto descendo rapidamente as escadas. Parecia ir em direção ao portão, mas antes de chegar a ele, Mamoru surgiu das sombras e segurou seu braço.
— Por favor, não vá embora — implorou, alto o suficiente para que Shiro e Jiro ouvissem.
Pareciam ter brigado e Saito quase riu diante do ridículo. Porém a risada não feita tornou-se espanto quanto sentiu o homenzarrão empurrando com força o outro, atirando-o no chão.
Era uma violência que o sargento jamais imaginou ver de Shin contra aquele que ele dizia amar mais que tudo. Ao seu lado, Shiromiya deixou seu posto e correu em direção ao cortesão. Nana pareceu acordar e colocou-se de pé, apreensiva. Só então Saito se mexeu, sentindo as pernas percorrerem o caminho que o separava da dupla. Ao se aproximar, percebeu Shiro ao lado de Aiko, como se pronto a protegê-lo, e Shin de pé, na frente dos dois, possesso.
— Ora, o que é isso, Sakamoto? — brincou, tentando acalmar aquela tempestade. — Desde quando você age assim?
— Desde que descobri que o dono da Casa Ai não passa de um chinês imundo, que merece a morte — despejou num tom irado e, virando de costas, saiu pelos portões, deixando todos em estado de choque.
Jiro, por alguns instantes, até pareceu não acreditar no que havia escutado, mas depois se voltou ao amigo, que o encarava com os olhos nublados de lágrimas.
— É verdade? — indagou, ainda pasmo.
Mamoru apenas assentiu, sem coragem para responder. Em seguida, Nana chegou a eles e puxou-o do chão.
— Se fugir agora, quem sabe conseguirá pegar um trem sem ser notado...
Aiko pareceu aflito, o olhar inquieto. Mal conseguia falar.
— Em quinze minutos, talvez menos — Jiro a interrompeu — toda a Kempeitai do país estará em busca dele.
As palavras cortaram a corrente que mantinha a sanidade de Nana. Tapando a boca com as mãos, ela não conseguiu encobrir um grito seco que escapou dos lábios. Ao lado dela, Shiro agarrou-se firme a Mamoru, como se pudesse abrigá-lo de tudo que vinha. Mas, Aiko reagiu de forma surpreendente. Não se movia, não falava, parecia tranquilo e frio. Talvez estivesse esperando por aquilo durante anos.
Só quando ele, enfim, abriu a boca, Saito entendeu o porquê.
— Faça o que tem que ser feito, Jiro — disse ao sargento.
Saito não pestanejou. Bem sabia o que era a vida nos campos. Aquele conhecimento o moveu até o coldre que descansava em um banco. Buscou-o, e com a mesma firmeza, voltou até os dois rapazes e a velha. Em segundos, apontava o revólver para a cabeça de Aiko.
— Deve haver uma saída — Shiromiya murmurou, pela primeira vez. — Talvez seja possível negociar com a Kempeitai.
— Quando a polícia chegar, ou Mamoru será morto a pauladas na rua, ou vão enviá-lo a um campo de trabalho. Lá, será torturado tanto que pedirá a Kami-sama que a morte o encontre o mais breve possível. Mesmo que eu descreva tudo que eu vi, jamais poderia explanar o tamanho do horror que ele viverá. Portanto, é muito mais seguro morrer rapidamente pelas minhas mãos.
Não houve despedidas. Aiko fechou os olhos, enquanto Jiro escorregava o dedo no gatilho. No entanto, o som do portão sendo aberto, fê-lo abaixar a arma. Shin voltava. E estava sozinho.
Num misto de esperança e apreensão, eles perceberam o homem caminhar reto, cruzando por eles e indo até a cozinha. De lá, saiu alguns segundos depois, carregando consigo um galão de querosene. Pouco depois, foi ao quarto de Aiko. Voltou, derramando no gramado todas as provas que incriminavam o cortesão.
Quando ele derramou o líquido inflamável em cima dos papéis e fotos, Aiko compreendeu seu propósito. Mesmo entendendo que aquilo era sua salvação, ele desvencilhou-se de Shiromiya e correu em direção a Shin. Quando o alcançou, tentou tirar dele o isqueiro platinado que já estava pronto a ser usado.
Insano, Sakamoto o esbofeteou, atirando-o longe. Mesmo assim, Mamoru fez menção de voltar a impedi-lo, mas Saito surgiu de repente e o segurou.
— Minha família... Minhas lembranças... — o cortesão murmurou ao sargento. — Não lembrarei mais do rosto de minha mãe, Jiro-kun...
A fumaça logo invadiu suas narinas. O fogo, naquele material encharcado, não levou nem um minuto para destruir toda a vida pela qual Mamoru tanto prezava. O som do choro do filho da gueixa e o chispar do fogo foi tudo que se ouviu pelos minutos seguintes. Quando tudo que restou do amontoado de papeis era pó preto e cinza, Shin Sakamoto foi até ele.
— Considere-se feliz por eu ter destruído as provas que o incriminavam. Nenhuma palavra sairá dos meus lábios sobre essa noite, mas saiba que a partir de agora você morreu para mim. Não pretendo ver seu rosto nunca mais e, caso você me procure, vou incriminá-lo com a polícia e o mandarei para a China. Portanto, esqueça-se de minha existência, pois eu farei o mesmo com você.
***
O dia amanhecia quando Nana voltou ao quarto de Mamoru. A idosa trazia consigo uma bandeja com três xicaras de chá. Shiro e Jiro aceitaram o agrado com cumprimentos baixos. Aiko, porém, virou o rosto diante da bebida verde, rejeitando-a.
A velha, então, sentou-se no futon ao seu lado. Puxou-o para seu colo e acariciou sua face, gentil.
— Eu devia ter colocado fogo naquelas fotos e cartas, assim que Masami morreu — assumiu. — Mas eu havia prometido à irresponsável da sua mãe que eu entregaria tudo a você...
— Minha mãe apenas tentou...
— Sua mãe era uma idiota! — Nana cortou-o, revoltada. — Com aquela carinha de menina boazinha, fez-me colocar a vida do próprio filho em risco. E se Shin Sakamoto não tivesse sido tão benevolente?
Aiko fechou os olhos, respirando fundo.
— Acredito que devemos ir embora — Nana disse, séria. — Uma casa bem longe de Tóquio. No interior, onde ninguém nos conheça.
Saito assentiu, parecendo concordar com a mulher. Shiro manteve-se em silêncio, aguardando a decisão.
— Não vou embora — Mamoru disse, firme.
— Desde que essa maldita guerra começou, a Casa Ai não dá mais lucro como antigamente. Você continua a manter a comida e a bebida de primeira qualidade, mas elas estão cada vez mais caras. Antes da guerra, um mês de trabalho custeava todas as meninas, as comidas e bebidas e você ainda podia guardar um pouco no banco, junto com o pouco que seu tio lhe deixou. Agora, o mês inteiro de trabalho não paga todas as contas. Eu sei que andou mexendo no dinheiro guardado para dar as meninas para que fossem viajar. Iremos à falência em pouco tempo, Mamoru.
— Não vou embora — perseverou.
— Não há mais nada para você em Tóquio — insistiu.
— E se Shin mudar de ideia? — ele ergueu-se, encarando a mulher. — Ele pode se arrepender do que disse e voltar para me ver...
— Ele pode se arrepender é de não entregá-lo a Kempeitai — ela ralhou.
— Não vou desistir do amor dele — Aiko foi firme. — Sei que ele não me esquecerá apenas por um detalhe.
— Detalhe? — Nana arregalou os olhos. — É um tolo teimoso e inconsequente, igual à sua mãe!
Depois daquilo, a mulher se levantou e saiu do quarto, bufando.
— Nana está certa, Aiko — Jiro disse, após ficarem sozinhos com Shiro. — Shin não vai voltar atrás. Dê-se grato por ele ter mudado após ver o nazismo com os próprios olhos. Tenho certeza que, caso contrário, Sakamoto não pestanejaria em chamar a Kempeitai.
Mamoru baixou a face, envergonhado.
— Podemos ser felizes no interior, Aiko-san — Shiro falou pela primeira vez, desde que Shin havia ido embora. — Uma nova vida longe de todos...
— Não vou embora...
— Mas...
— Pare! — gritou. — Shin não vai me esquecer. Ele vai voltar, e será em breve. Vamos ficar juntos, porque é assim que é pra ser.
— Como sua mãe achava, na lenda Akai Ito? — Jiro cutucou.
Nana havia relatado a ele e Shiro toda a história depois que Mamoru adormeceu entre um choro abafado durante a madrugada.
— Sua mãe passou a vida toda a esperar por algo que não aconteceu. Não aprendeu nada com ela, Mamoru?
Birrento, o cortesão fez um bico revoltado, e depois deitou-se de costas para os amigos. Jiro e Shiromiya se encararam, sem saber como reagir a tanta pirraça.
— Você consegue entender a importância do que aconteceu, Aiko? — Jiro indagou. — Você poderia estar morto agora mesmo!
— Eu sei disso — o outro respondeu. — Por Deus! Acha que ignoro meu destino? Mas em mim só existe Shin, só consigo pensar nele, viver por ele, nada mais me importa se ele não estiver comigo.
Revoltado, Saito se levantou.
— Nana está certa, não passa de um idiota! Inúmeras pessoas nesse momento estão morrendo, sendo vítimas dessa maldita guerra. Você teve o presente de Kami-sama de ser poupado e, ao invés de ser grato por isso, retrai-se em um amor que passou.
Mamoru não abriu a boca para retrucar. O que poderia dizer? Sem mais nada que pudesse fazer, Saito resolveu ir embora. Saiu sem se despedir, fechando a péssima noite de ano novo que todos tiveram.
— Você também ficará contra mim? — Aiko indagou ao último que ficara.
Shiromiya sorriu.
— Mesmo que eu amasse alguém com a intensidade que o senhor ama Shin-san, eu jamais permaneceria em um local que pudesse pôr minha segurança em risco. Na verdade, Aiko-san, não acho uma atitude inteligente ficar, mas estou ao seu lado nas suas escolhas, mesmo não concordando com elas.
Aiko sorriu para Shiro.
— Ficar aqui é manter minha esperança — explicou-se. — Se eu for embora, é a aceitação definitiva de que não terei mais Shin. E, se eu não o tiver, para quê vou querer viver?
Havia muitos motivos para viver. Mas, Shiromiya resolveu ser prático e não tentar convencer Mamoru disso. Infelizmente, era questão de tempo para que o cortesão percebesse que seu conto de fadas havia desmoronado.
***
— Sabe o que aconteceu entre Shin e Aiko? — Ryo indagou ao jovem ao seu lado.
Shiromiya o encarou, nervoso. Estavam em um parque familiar ao leste de Tóquio. Era uma tarde bonita de domingo, e o comerciante havia aparecido na Casa Ai cerca de uma hora antes para chamar o jovem para um passeio.
— Por quê?
— Shin se recusa a dizer o nome dele, e quando questionei os motivos, me disse que Aiko havia morrido. Disse-me também que não quer mais saber nada sobre Mamoru.
Shiro baixou a face. Sentado em um banco de madeira embaixo de uma enorme laranjeira, ele pareceu meditar nas palavras.
— Aposto que Aiko o traiu com o sargento — Ryo chutou.
— O quê? — Shiro quase riu. — Por quê?
— Aquele cara não me engana.
— Jiro-san é muito bonito, mas Aiko-san só tem olhos para o senhor Sakamoto.
Ryo o encarou.
— Você o acha bonito?
— Quem não acharia Jiro bonito?
Ryo se levantou, raivoso. Começou a caminhar em direção ao lago, e Shiromiya o seguiu, correndo atrás.
— Ryo-san? — chamou, ao percebê-lo se distanciar.
— Ry-chan! — corrigiu. — Já não avisei para me chamar assim?
Shiro não entendia o motivo do semblante fechado do outro. Todavia, não teve muito tempo para pensar nos motivos de Ryo. Sentindo o pé falsear, ele caiu no chão.
— O que foi? — Ryo virou-se para ele.
— Acho que torci o tornozelo — explicou-se.
Subitamente, viu-se sendo erguido do chão. Ficou tão pasmo que não conseguiu nem reclamar. Ryo o mantinha firme, seguro. O coração de Shiromiya encheu-se de expectativa enquanto o corpo entrou em um estado misto de calor e carinho.
Percebeu os olhos negros fixos em seus lábios. Sem pensar, deslizou a língua sobre a própria boca, umedecendo os lábios que pareceram secar sobre o olhar intenso.
— Você me provoca, Shiro. — Ryo murmurou.
— Não entendo...
— Entende sim — Ryo sorriu. — Mas não vamos discutir isso agora, estamos em um lugar público. Vou levá-lo até o carro.
Todo o trajeto de volta ao prostíbulo foi feito em silêncio. No banco da frente, Tadao dirigia sem aperceber-se do par atrás de si, de mãos dadas.
Capítulo 30
O so m dos aplausos ainda ecoava aos ouvidos da falsa gueixa que se esgueirava pelos corredores, em busca do próprio quarto. Depois de um início de ano bastante conturbado, não só para a Casa Ai, mas também para o Eixo, o mês de março trazia boas notícias, tanto ao país, quanto ao seu lar. Aiko Mamoru, após quase dois meses enfurnado no quarto recusando-se a ver qualquer pessoa, havia, finalmente, saído do casulo na manhã do dia 19. Shiromiya até assustou-se ao vê-lo zanzando pelo jardim, ainda de olhos úmidos e vermelhos, como um fantasma. Porém, o susto tornou-se felicidade, e ele correu até o outro, recebendo-o com um sonoro “bom dia”. No dia seguinte, as rádios noticiaram a ocupação alemã da Hungria. Ciente do sangue que corria nas veias do seu ídolo Aiko, Shiromiya sentiu um misto de alegria pela boa notícia ao Eixo, e apreensão pelo que pudesse acontecer com Aiko, caso seu segredo fosse revelado por Shin.
No entanto, nos três primeiros meses do ano, Sakamoto não dera sinal de vida. Mesmo o sargento Saito não citava seu nome. Suas visitas, sempre corteses, eram apenas um alento, um carinho.
Quando Shin disse que Mamoru havia morrido para ele, Kazue não creu nas palavras. Ora, o amor não se esquece, ele bem sabia. Mas, diante da ausência dele nos corredores da Casa Ai, não restavam dúvidas de que a gravidade do sangue que corria em Aiko,havia separado-os.
Porém ninguém morria de amor, isso Shiro também sabia. Mamoru podia sofrer, chorar, até desejar a morte, mas a verdade é que ele sobreviveria. Não era fraco como a mãe, que se entregara ao desespero. Aiko e ele envelheceriam juntos, rindo das bobagens da juventude.
Subitamente, um puxão no escuro o tirou da letargia. Os pensamentos interrompidos centralizaram-se no outro homem que pareceu sair dos sonhos. Ryo o prensou com o corpo contra a parede, deixando Shiro ciente do quanto estava desejoso naquela noite.
Quis reclamar, mas a boca logo foi coberta pela do outro. Não foi um beijo selvagem como os outros. Era doce e gentil. Também levemente adocicado. Não levou muito para Shiromiya perceber que o comerciante estava bêbado.
— Ryo-san? — chamou, num misto de dúvida e incerteza, assim que as bocas se descolaram. — O que está fazendo?
Ryo riu. Parecia um menino travesso, pego em uma arte.
— Quero te fazer um convite... — disse, a voz pastosa.
A boca dele chegou ao ouvido de Shiro, e ele sentiu uma leve mordida na orelha. Quis reclamar, mas ao mesmo tempo, um arrepio intenso percorreu todo o seu corpo. Segurou-se em Ryo, acreditando que poderia cair a qualquer momento. Não entendia a própria reação, nunca ficara tão quente diante de um toque.
— Não quero ouvir — choramingou, imaginando que o outro poderia querer comprá-lo novamente.
Já fazia algum tempo que a relação deles estava perfeita. Ryo aparecia durante as manhãs, tomavam chá, conversavam sobre o tempo, sobre livros, sobre filmes ou lugares que Ryo já visitara e então, ele ia embora. Às vezes, levava Shiro para passear, compartilhando com ele agradáveis tardes ao sol. No entanto, tirando alguns toques leves nas mãos, ocasionais, não aconteciam aproximações desconfortáveis.
Todavia, bêbado e inconveniente, Ryo parecia ter perdido a capacidade de racionar e respeitar os limites. Ele tocava em cada pedaço de pele que o quimono deixava a mostra, não apenas com as mãos, mas também com a boca.
— Eu quero que pare — Shiro implorou, tentando fazê-lo lembrar-se da promessa dita há tempos.
Respirando fundo, percebeu o outro se afastar levemente, deixando-o livre.
— Não quero te assustar, Shiro... — sussurrou, erguendo as mãos até a face vermelha, e deslizando o dedo na boca suja de batom. — Só está cada vez mais difícil ficar longe de você.
A confissão pegou-o, desprevenido.
— Está apenas bêbado, Ryo-san...
— Ry-chan! — corrigiu-o, pela milésima vez, desde que pedira para ser chamado daquele jeito.
Shiro assentiu.
— Ry-chan... — murmurou.
— Shiro, quero te convidar para viajar comigo — disse, de supetão.
O menor arregalou os olhos.
— Viajar?
— Sim, você gostaria de conhecer Hokkaido?
— Hokkaido?
— Podemos ir de avião, tenho um conhecido que tem um monomotor. Mas eu prefiro ir de carro até Aomori. Lá, existe uma balsa, podemos fazer a travessia até Matsumoe. Algumas horas a mais de carro e estaremos em Sapporo, onde eu possuo uma casa. — riu, parecendo se recordar do local. — Na verdade, possuo casas espalhadas por toda Hokkaido, mas a de Sapporo é a mais bonita, mais bem equipada. Tenho belos quartos de hóspedes, você iria amar. Claro que a viagem de carro seria cansativa, mas poderíamos ir parando nos parques e hotéis pelo caminho.
Após aquela narração, ficou em silêncio, esperando a resposta. O coração pesou ao ouvi-la.
— Não, obrigado.
Quis gritar, blasfemar, chutar o chão, ralhar... Mas tudo que fez foi indagar:
— Por quê?
Shiro temia ficar sozinho com Ryo, mas preferiu dar outra desculpa.
— Aiko-san precisa de mim...
Ryo ficou possesso, mas simplesmente escondeu as mãos no bolso da calça, tentando não demonstrar seu espírito.
— Quanta bobagem! Aiko só está assim porque brigou com Sakamoto. Mas, antes que você perceba, ambos voltarão às boas.
Shiro não contestou. Porém não voltou atrás na sua decisão.
— Mas um dia irá comigo para Hokkaido, Shiromiya — o outro provocou. — Eu sei, eu vi em minhas visões.
— Suas visões devem ter lhe enganado, Ry-chan — chamou-o como tanto desejava. — Jamais me afastarei de Aiko-san.
Ryo sorriu. Sabia que não havia o que temer. Então, simplesmente buscou as mãos de Shiromiya e, após beijá-las, saiu sem se despedir.
***
— Kaiten — Shin contou, rindo. — Homens-rãs — explicou. — Ou simplesmente fukuryus [41] .
A gargalhada feminina, do outro lado da cama, fê-lo rir também. Levantou a mão, erguendo um copo de saquê, despejando na garganta o líquido ardente, num misto de alívio e repugnância.
— Eles fixarão as bombas de efeito retardado nos cascos do navio...
— Mas assim os soldados não morrerão junto com os americanos? — a prostituta o interrompeu, perguntando.
— É uma honra morrer pelo nosso país — Shin retrucou, irritado.
Percebendo que mudava o humor do membro da família real, a bonita meretriz inclinou o corpo delgado mais para cima do homem, esfregando os seios perfeitos no peito masculino. Porém o prazer, tanto o sexual quanto o da própria conversa, já havia terminado, e Shin a empurrou, forte.
Experiente, a mulher deixou-se afastar, sem tentar provocar ainda mais raiva no outro. Contudo, respirou aliviada ao ouvir a porta se abrindo. Aparentemente, o sargento que acompanhava o homem em outras noites àquele prostibulo voltava para buscá-lo.
— Vá embora — Sakamoto reclamou ao ver Saito.
— Disse-me que ficaria em casa essa noite — Jiro ficou possesso.
— E desde quando eu tenho que te dar satisfação da minha vida? — o cheiro do álcool inundou as narinas de Jiro. — Só porque não estou mais comendo aquele puto da Casa Ai, não quer dizer que não possa me divertir.
Sakamoto mal teve tempo de reagir ao ser atingido por um forte soco, bem em cima do olho.
— Nunca mais desrespeite o nome de Aiko, ouviu? — o sargento estava possesso.
— Não cite esse nome em minha presença! — avisou-o.
Jiro respirou fundo, inclinando o corpo e puxando o de Shin. Apoiou-o nos ombros, e o levou do quarto. Antes de ir, atirou algumas notas à mulher, que pareceu mitigada com a ida dos dois.
Dirigiu como um louco até a mansão de Sakamoto. Ao chegar, não o levou até o banheiro para um banho frio, como era seu costume fazer já há três meses. Daquela vez, atirou-o na cama, de forma displicente, segurando-se para não começar uma briga que podia resultar em uma separação definitiva.
— Precisa ver Aiko — disse, por fim. — Quanto tempo faz? Quatro meses! Quatro meses que passo os dias cuidando de você como se cuida de um pirralho. Bebe sem pensar no amanhã, conta informações importantes e secretas do Império a qualquer um — respirou fundo. — Estava falando dos planos de retaliação que planejamos contra os americanos, não é? O que falará amanhã? Das pesquisas avançadas de Ishii Shiro e do quanto o Japão está se preparando para uma guerra bacteriológica?
— Está preocupado com isso? — Shin quase gargalhou diante do outro.
— Eu não me importo com o futuro da guerra, mas me importo com você! Age sem pensar, tornou-se um inconsequente, desde que soube a verdade sob Mamoru. Até quando vai continuar assim? Ele está sofrendo... ele nem ao menos cuida mais da Casa Ai. Passa os dias trancado no quarto, chorando por você. Tenha piedade e vá vê-lo, ao menos tentem conversar.
—Vê-lo? Dê graças por eu não mandar matá-lo — disparou. — Deixe-me em paz! — gritou, nervoso.
Ciente de que a conversa não teria frutos positivos, Jiro o deixou sozinho com seus próprios fantasmas.
Na manhã seguinte, um oficial de meia idade apareceu, trazendo consigo papéis importantes que necessitavam do aval de Shin. Jiro o recebeu no escritório, e o informou que aguardasse, pois logo o outro desceria a fim de ler as notas.
Sozinhos, o homem pareceu mais relaxado, e logo iniciou uma conversa com o sargento sobre as belezas chinesas que ele havia usufruído no país ocupado. Perguntou a Jiro se ele também havia se divertido no outro país, mas recebeu um olhar gelado como resposta. Então, ao invés de aquietar-se, formou um sorriso enorme no rosto, e não resistiu à provocação.
— Dizem que o sargento prefere corpos mais... duros — piscou os olhos, deixando claro que estava à disposição.
Saito fingiu não ouvir, desviando os olhos e simulando ler algumas anotações de Shin na escrivaninha.
— Também ouvi falar que Shin Sakamoto anda atrás de outras beldades por Tóquio — prosseguiu, não se sentindo acanhado pelo silêncio do outro. — Será que Aiko Mamoru está à disposição, agora? Não quero acabar como Hiroshi, com a cabeça sendo carregada dentro de um saco — riu, debochado.
Repentinamente, um cano frio alcançou sua nuca. Engolindo seco, o oficial percebeu ser uma pistola Nambu Tipo 14 cravada com força contra sua pele.
— Você tem mais alguma pergunta? — Shin questionou. O tom era selvagem e cruel.
— Nenhuma pergunta, senhor Sakamoto — o oficial corrigiu, rapidamente. — Nem sei por que questionei tal coisa — riu, nervoso, tentando disfarçar o tremor no corpo. — Não nutro nenhum tipo de interesse por tal assunto. Só estava tentando puxar assunto com o sargento.
Shin baixou a arma, e o homem se virou para ele. Curvou-se até o chão, pedindo perdão, e então saiu em disparada, indo embora.
— Não pode ameaçar pessoas dessa forma — Jiro falou, igualmente frio.
— Eu posso fazer o que eu quiser — retrucou. — Eu sou um membro da família Imperial, sou o protegido do Imperador, meu amado tio, e posso ameaçar quem me der vontade dentro do meu país.
Saito aquiesceu, não preparado para um embate.
— Você pensou sobre o que falamos ontem? Sobre Mamoru?
— Acho que você ficou surdo e não me ouviu — Shin continuava com um olhar demoníaco, que arrepiava. — Dê-se por satisfeito por eu não mandar matá-lo agora — afirmou. — Uma vez me disse, Jiro, que você vivia em tempo emprestado. Mas é o dono da Casa Ai que vive. Mamoru sobrevive enquanto eu quiser, enquanto eu conseguir conter minha ira. Mas se ele me provocar, ou tentar se aproximar, eu o mando matar na mesma hora. Então, pare de citar seu nome, não quero nunca mais ouvir falar desse indivíduo. Ele morreu para mim, entendeu?
Curvando a fronte, contrariado, Saito assentiu.
— Eu achei que havia mudado — disse, no entanto. — Que a guerra o havia tornado mais humano, menos racista.
Não ficou para ouvir a resposta revoltada do outro. Saindo rapidamente pela porta, sumiu das vistas do seu senhor.
***
Ryo aproximou-se da porta de seu escritório quando foi interceptado por sua secretária. Mal olhou a mulher de meia idade, enquanto lhe indagava o que queria.
— Um membro do exército pediu para falar com o senhor — ela se explicou, diante do mau humor do chefe. — Então, solicitei que entrasse em sua sala, e o servi com chá.
O comerciante imaginou que fosse Sakamoto. Azedo como andava ultimamente, permitiu que um palavrão escapasse dos lábios, fazendo com que a mulher se avergonhasse e se afastasse.
Porém, quando entrou na sala e observou o homem sentado diante de sua mesa, sua irritação tornou-se revolta. O que aquele desgraçado de Saito Jiro estava fazendo no seu trabalho?
Não que ainda mantivessem uma relação desarmoniosa. No entanto, ainda não eram amigos. Talvez, nunca fossem. Não gostava da forma como o sargento era próximo de Shiromiya.
— O que quer? — perguntou, sem ao menos olhá-lo nos olhos.
— Bom dia para você também — Jiro devolveu, sorrindo.
— Tenho muito trabalho, Saito — retrucou, sentando-se na cadeira. — E não tenho tempo para conversa fiada...
— Até porque você gosta de encerrar suas atividades ao meio-dia para poder almoçar com Shiro e, se possível, passar a tarde ao lado dele, não é mesmo?
A opinião certeira o deixou nervoso.
— Não sei do que está falando.
Jiro deu os ombros. Realmente, não havia ido ver Ryo para confrontá-lo sobre Shiromiya e os sentimentos que o comerciante nutria a contragosto. Inclinando o corpo, resolveu ser direto:
— Preciso de sua ajuda.
Ajuda? Ryo ficou curioso.
— Sobre Aiko e Shin — explicou-se.
Aiko e Shin? O que aquilo lhe interessava? Sabia que ambos estavam brigados desde o começo do ano, mas imaginava que era por qualquer bobagem. Era questão de tempo para ficarem andando de mãos dadas como duas gazelas sem vergonha.
— Sei que é amigo de ambos — Jiro prosseguiu.
— Só sou amigo deles porque não me envolvo nos seus problemas — interrompeu-o.
— Terá que se envolver — Jiro persistiu. — Precisa ajudar. Temo pela vida de Aiko, e pela sanidade de Shin.
— Como assim?
— Infelizmente, não posso contar sobre o problema que os separou. Mas talvez Mamoru lhe conte, se achar necessário. Porém não é simplesmente uma briga de namorados. É algo sério, que pode matar Aiko. E em relação a Shin, ele não está conseguindo encarar tal situação. Ontem à noite, flagrei-o contando planos secretos do exército a uma prostituta. Está falando demais, expondo demais... Parece estar se colocando em uma posição de perigo propositalmente...
A situação preocupou Ryo, apesar de não querer demonstrar.
— E o que você quer que eu faça? — disse, no entanto. — Ambos são homens, donos da própria vida...
— Aproxime-se mais de Shin — Jiro pediu, interrompendo-o. — Saia mais com ele. Fique perto dele.
— Shin não está indo na Casa Ai. Ficar com ele significa ficar andando por qualquer muquifo de Tóquio.
Jiro assentiu.
— Sei que é pedir demais para que se afaste de seu querido Shiromiya...
— O que Shiro tem a ver com isso? — interrompeu-o, incomodado. — Você deve saber que sou homem, e Kazue é apenas um amigo.
— Com certeza, eu sei — Jiro preferiu não retrucar. — É apenas temporário, preciso de ajuda. Está cada vez mais difícil controlar Shin, ele não me respeita. Sou muito inferior socialmente, mas Sakamoto vai ouvi-lo. Peço em nome da amizade que nutrem há tantos anos.
***
A lua brilhava intensamente no céu. Pela janela entreaberta do bordel fedorento e sujo, Ryo podia visualizar a liberdade que se encontrava a tão pouca distância de si. A Casa Ai devia ter aberto suas portas há umas duas horas, então provavelmente em quinze ou vinte minutos Shiromiya começaria a dançar. E ele perderia aquilo. Por culpa de quem?
Voltou os olhos para frente, observando o amigo que deixava o rosto cair em cima de uma mesa de madeira escura. Shin Sakamoto já havia bebido duas garrafas cheias de saquê, e deixara de falar fazia uma meia hora. No momento, parecia dormitar, exausto, sem pena do outro que o encarava com raiva.
— Já chega — Ryo murmurou. — Vamos para casa?
Shin deixou claro que estava acordado quando respondeu.
— Que casa? Não tenho casa...
— Então quer dizer que aquela enorme mansão é apenas uma ilusão?
— Aquilo é só uma construção. Minha casa e meu lar eram a Casa Ai — assumiu.
Ryo sabia que Shin só estava assumindo aquilo porque estava completamente alcoolizado.
— E por que não vamos para lá? Seja o que for que o fez brigar com Aiko, com certeza, uma boa conversa deixará tudo para trás.
— Uma conversa não o torna um japonês.
Ryo arqueou as sobrancelhas.
— Como assim?
Shin levantou a cabeça e encarou o amigo. Os olhos extremamente vermelhos demonstravam mais que bebida... Eram lágrimas.
— Sabe quem é o pai de Mamoru?
— Um tenente — respondeu, direto. — Um herói da primeira guerra — completou. — Todos sabem que a gueixa Masami tinha um envolvimento com o tenente Yoshiaki. Aiko até recebeu seu nome.
— O tenente e a gueixa eram irmãos — contou, sem medo. — Nunca foram amantes, apenas encenaram isso para esconder a verdade sobre o garoto que ela gerou.
— Quem é o pai de Aiko, então?
Repentinamente, ficou apreensivo.
— Um chinês... — murmurou a resposta. — Um maldito chinês para quem a puta abriu as pernas. — Sentiu as lágrimas despencando. — Você e eu passamos a vida chamando Mamoru de amigo. Passamos a vida ao lado de um chinês bastardo...
Ryo assustou-se. Girando o corpo, tentou observar se alguém teria ouvido o sussurro de Shin. Por sorte, a música e as conversas paralelas os deixaram camuflados.
— Não pode estar falando sério! — disse, erguendo-se.
Entendia, por fim, a inquietação de Jiro. Precisava tirar Sakamoto dali antes que ele abrisse a boca. Precisava manter o amigo quieto, acalentar seu coração traído. Assim, talvez, Mamoru sobrevivesse à guerra.
Capítulo 31
Mamoru senti u um movimento leve nas coberturas. Resmungou baixo, recusando-se a abrir os olhos. Sabia ser Minikui, podia sentir suas patinhas delicadas nas suas costas, como se dissesse “Papai, acorde, estou aqui e quero ser amado”. Mas, bem da verdade, ele não estava dando atenção a ninguém, desde que Shin saíra de sua vida.
Já havia se passado quatro meses desde que vira Sakamoto pela última vez, mas sentia como se fossem anos. Respeitou o acordo entre eles, não o procurou. Na verdade, mal saiu do quarto naquele tempo todo, distraindo-se com suas próprias lágrimas, alimentando-se com a vã esperança de ser perdoado.
As patinhas fofas voltaram a bater nas suas costas. Mamoru virou-se, pronto para puxar Minikui para debaixo das cobertas, tentando transmitir-lhe todo o carinho possível. Era uma sorte que Shin não o tivesse tirado dele. Provavelmente, ainda não havia se lembrado de que deixara o gato para trás. Temia que quando percebesse, arrancasse Minikui de seus braços.
O gato já tinha lá seus dez anos. Ora, não era mais um filhote e dificilmente se adequaria longe da Casa Ai, onde podia zanzar à vontade, subir nas árvores e dormir na grama, ao sol. O felino não suportaria viver em outro lugar, longe dos seus domínios.
No entanto, seus pensamentos amorosos caíram por terra ao ver Minikui e a coisa asquerosa que ele tinha na boca. Sem pestanejar, assim que se viu com toda a atenção do cortesão, o gato soltou sobre o futon um pequeno rato estripado, como se fosse um presente cortês.
Mamoru soltou um berro alto, voando para o lado oposto. Em segundos, Nana corria em direção ao seu quarto, assustada. Ao chegar lá, encontraram o rapaz de um lado, e o gato do outro.
— Minikui me trouxe um rato — contou, como se fosse um horror tremendo tal fato.
Nana imaginou-o num campo de concentração, naquele momento. Mamoru Aiko havia sido criado com todo amor, estudado em uma boa escola, e tido tudo que faltava às crianças ao redor. Recordou-se de que quando ele era criança, ela costumava fritar ovos e assar pães bem cedo da manhã, e levar ao quarto dele para que se alimentasse ainda na cama. Aiko crescera em seu colo, ouvindo histórias, dormindo sobre seu peito, sentindo o calor que dela emanava.
Nana nunca pôde ser mãe. Mal tinha dinheiro para comer, quanto mais para sustentar uma criança. E como poderia dar a alguém uma vida nas ruas, vendo a própria genitora sendo usada como lixo por homens? Muitas vezes, ela dormiu sobre o sereno, sem teto. Não... Nunca daria aquela vida a uma criança.
Nunca soube se um dia havia engravidado. Afinal, conhecia as ervas e tomava os chás contra bebês todos os dias, enquanto se prostituía. Assim sendo, provavelmente nunca gerou. Mas todo o amor que ela tinha para dar a alguém,foi dado a Aiko. Mamoru era muito mais seu do que, um dia, foi de Masami. Nana nunca se permitiria morrer deixando o filho sozinho como a gueixa fizera. Aliás, Masami nunca trocou as fraldas, nunca cuidou dele quando esteve doente. Não viu o filho chorar por amor pela primeira vez, quando Shin foi enviado para uma escola interna, nem o viu sofrendo pela indiferença de Ryo, quando ele fingiu que não o havia reconhecido numa manhã que esteve no bairro para se divertir com os amigos. Masami nunca viu o filho sorrir, quando ajudava alguém, nem sabia o quanto ele gostava de bolos com chá.
Masami negligenciou um tesouro, e Nana não se fez de rogada em tomá-lo para si. E então, naquele momento, segurando uma risada tranquila diante de um homem adulto fugindo de um rato, ela percebeu que preferia vê-lo morto a ser mandado aos campos que Saito Jiro contou a ela que vivenciara.
— É apenas um camundongo — disse, recolhendo pelo rabo o defunto.
Minikui a olhou com seu eterno semblante de desprezo. Parecia irritado por a velha tirar dali o presente que ele havia levado a manhã toda caçando para Mamoru. No entanto, ronronou quando Aiko o buscou com as mãos, enquanto a velha levava o ratinho para longe.
— Obrigado — Aiko agradeceu, beijando o focinho, esquecido que há pouco um rato estivera ali. — Mas nunca mais me traga ratos, está bem?
O gato pareceu pensar. No entanto, perdoou a falta que a velha havia cometido, assim que a viu entrando novamente no quarto, trazendo consigo um pedaço de peixe frito nas mãos. Dando o agrado ao gato, ela voltou-se a Aiko.
— Você quer comer algo?
— Não, obrigado.
— Mas — parecia incerta — você não come direito há dias...
Mamoru abriu a boca para replicar, contudo os sons dos passos de Midori o calaram. Voltou o corpo para a porta, antevendo a entrada da moça.
— Sim?
— Seu amigo Ryo quer vê-lo.
— A mim? — arqueou as sobrancelhas.
Desde que havia se enfurnado no quarto, Ryo não o havia visto. Pensando no tempo passado, percebeu que já havia decorrido cerca de quatro meses! Por que então queria vê-lo agora? Provavelmente, tinha algo a ver com Shiromiya.
— Peça para que entre — disse à moça.
— Não prefere vê-lo na sala do chá?
Provavelmente, ela queria tirá-lo do quarto. Sorriu diante do carinho visto nos olhos femininos, mas negou.
— Só diga a ele que entre.
Nana afastou-se atrás de Midori. Ryo apareceu pouco depois e fechou a porta, assim que entrou no local escuro. Sozinhos, os dois amigos se encararam. Aiko sorriu, mas o outro permaneceu rígido e sério.
— Eu já sei toda a verdade — disse, antes mesmo de cumprimentá-lo.
Não que Mamoru tivesse ficado surpreso. Sabia que Shin iria contar a descoberta ao melhor amigo. Apenas lhe espantou o fato de que Ryo estivesse ali, diante dele, depois de tudo vir à tona.
— E? — inquiriu, incerto.
— E eu tenho casas por todo o país. Basta escolher o local.
As sobrancelhas curvilíneas do cortesão se ergueram.
— O que quer dizer com isso?
— Quero dizer que deve deixar a Casa Ai. Vá para o interior, posso conseguir documentos falsos, poderá viver no anonimato durante o tempo que a guerra durar. Depois, dependendo do resultado dela, poderá voltar a ser Aiko Mamoru ou não.
— Acha que Shin vai me delatar?
— Não sei o que pensar — foi franco. — Mas tudo agora se encaixa.
— Se encaixa?
— Nunca o vi nas minhas visões, Mamoru — disse aquilo que sempre o angustiou. — Não o vejo, não sei se sobreviverá à guerra. Temo por isso, temo o que poderá ocorrer.
Um arrepiou doloroso percorreu todo o corpo de Aiko.
— Eu não irei, Ryo-san — foi direto e sincero. — Mas agradeço profundamente sua preocupação.
Um balbuciar ríspido surgiu nos lábios de Ryo. Em seguida, porém, o tom da sua voz foi alto o suficiente para que Mamoru o entendesse.
— Está ficando louco? Não ouviu o que eu disse?
— Não irei a lugar nenhum — repetiu. — Não vê? Ir embora é assumir que Shin não me perdoará, e que jamais ficaremos juntos novamente.
— Ele não vai perdoá-lo, e vocês não ficarão juntos! — Ryo parecia enfurecido. — Deixe de ser idiota e salve a sua pele!
— Respeito sua opinião, mas desconhece o amor que uniu Shin a mim.
— Não me interessa esses sentimentos de maricas! — esbravejou. — Quero que sobreviva ao inferno. Tem consciência do que vai acontecer com você se cair nas mãos da Kempeitai?
Aiko mantinha um semblante indecifrável. Ryo suspirou, dando os ombros. Sabia que o outro era teimoso, ainda mais em relação a Sakamoto.
— Se Shin não voltar... — disse, após alguns minutos de silêncio. — Se ele não me perdoar... Que motivos terei para viver?
Havia inúmeros motivos para se viver. Mas de que adiantava perder seu tempo tentando convencer alguém completamente cego de paixão? Esperava nunca cair numa teia de sentimentos, como a qual Mamoru estava enlaçado.
— Não chorarei sua morte — avisou o comerciante, já se afastando em direção à porta.
Aiko sorriu quando o viu saindo, bufando. Tinha certeza de que Ryo o prantearia. No entanto, esperava que ainda levassem muitos anos para que tal coisa acontecesse.
***
Shiromiya pôs a cabeça para fora do automóvel e observou bem o enorme prédio residencial, antes de voltar novamente para dentro do carro, assustado.
— Você me disse que iríamos caminhar no parque — resmungou para Ryo, que o encarava com um incontido sorriso nos lábios.
— Você viria à minha casa se eu o convidasse? — acusou, bem humorado. — Duvido — respondeu, antes mesmo de o outro abrir a boca. — Então, a única maneira era trazê-lo sem saber.
— Sua casa?
Voltou novamente os olhos para o enorme prédio de três andares.
— Uma das muitas que tenho — Ryo afirmou.
Apesar de incerto, Shiromiya aceitou a mão que Ryo estendeu para ajudá-lo a sair do carro. Os dedos entrelaçaram-se com uma familiaridade que pareceu branda aos dois. Não havia nada de esquisito naquilo, era apenas um ato instintivo, como se houvesse sempre ocorrido. Entrou na casa, e estranhou o silêncio. Olhou para Ryo, nervoso, mas ele sorriu, tranquilo.
— Pedi aos empregados que fossem embora, pois sabia que você ficaria constrangido.
Shiro quis dizer a ele que estava constrangido por ambos estarem completamente sozinhos naquele ambiente, mas seus lábios nada disseram, pasmos diante da magnifica visão que apercebeu segundos depois de entrar.
— Quantas pessoas moram aqui com você?
Indagou curioso, pois o ambiente era muito grande, praticamente um castelo.
— Ninguém — Ryo respondeu, simples. — Pergunta porque acha a casa grande? — riu. — Nisso tem razão, são quase quinze quartos.
— E para que tantos quartos? — seu semblante era dúbio.
— Porque uma casa imponente é sinal de poder.
A resposta parecia tão elementar. Era como se a pergunta não tivesse nenhum propósito.
— Quantas casas têm?
— Muitas. Perdi a conta.
Kazue constatou a enorme diferença entre eles, mais uma vez. Ryo tinha tudo, ele, nada. Mesmo as roupas que agora vestia, haviam sido dadas pelo comerciante. Por que no mundo uns tinham tanto e outros coisa alguma?
Depois daquilo, ficaram em silêncio. Ryo o guiou até uma enorme biblioteca, parecendo muito satisfeito por ver o olhar de surpresa e adoração do outro. No meio do ambiente repleto de livros, uma mesinha posta com um bule de chá e um pequeno bolo de laranja, deu o tom de encontro.
— Sua casa é tão bonita, Ryo-san! — disse, feliz, ao se sentar de frente para o outro.
Ryo reparou que em todos aqueles anos que o conhecia, sempre era Shiromiya que o servia. Naquele momento, porém, estendeu a mão para o bule de cerâmica e o serviu com o líquido quente. O cheiro agradável de cidreira invadiu suas narinas e ele prometeu a si mesmo dar um bônus a empregada que arrumara tudo e saíra discretamente da casa, assim que ambos chegaram.
— Eu gosto de ser seu amigo, Ry-chan — Shiro disse, subitamente emocionado.
— É mesmo?
A palavra “amigo” repentinamente não soou agradável aos seus ouvidos. No entanto, era um avanço importante, e ele ficou feliz por tal.
— Sim.
— Posso saber o motivo da confissão?
Shiro sorriu. O coração de Ryo começou a bater descontroladamente no peito diante da visão.
— Você é bom para mim.
A resposta era genuína e doce. Não havia nada implícito. Era apenas uma afirmação delicada e afável como o próprio Shiro.
— Nunca fui bom para você, Shiro — Ryo pareceu envergonhado. — Sempre o magoei.
— É o único amigo que tenho — o outro insistiu. — Aiko-san é mais como um irmão mais velho, mas não é alguém com quem eu possa contar tudo. Jiro também é meu amigo, mas aparece tão poucas vezes na Casa Ai... Ultimamente, mal o vejo. Mas você é meu companheiro de aventuras — riu.
— Aventuras? Tomar chá numa biblioteca não deve ser muito estimulante — brincou.
— Para mim é — Shiro sorriu. — Ainda mais com tantas histórias ao nosso redor — olhou para os livros. — Você deve passar horas aqui.
Desde que o havia conhecido, Ryo passava horas pensando nele, e não lendo.
— Às vezes, fico mais tempo que o razoável — disse, porém.
— Fico imaginando as pessoas que criaram essas obras. Você não pensa nisso? Como elas devem ser? O quanto de esforço colocaram em cada linha? Suas emoções? Suas almas derramadas em letras? Ah, como eu gostaria de poder ler...
Ryo pareceu absorto pelo tom por alguns segundos, depois sorriu.
— Penso neles, os autores, como um bando de antissociais, enfurnados em seus quartos ou escritórios, escrevendo sem conseguir dominar o próprio dom. Pessoas que bebem demais, que dormem de menos. Apenas isso.
Shiro voltou seus olhos ao amigo. Ele riu baixinho novamente, e depois sorveu um gole do chá calmante. Quando se volveu outra vez para Ryo, pareceu disposto a conversar.
— Qual é seu nome?
A pergunta fez Ryo abrir a boca, espantado. Deu-se conta de que Shiro o chamava de Ryo-san ou Ry-chan. Sempre o nome da família, nunca seu nome pessoal. E só então percebeu que era porque o outro não o sabia.
— Que vergonha! — Ryo riu. — Há quanto tempo nos conhecemos? Dois ou três anos? E você não sabe meu nome?
— Uma vez perguntei a Nana, mas acabou que fomos interrompidos e ela nunca me disse. E como sempre temos outras coisas para falar, eu acabei deixando passar.
— Até porque prefiro que me chame de Ry-chan — Ryo insistiu. — Ninguém me chama de Satoshi mesmo.
Satoshi? O olhar de Shiromiya arregalou. O comerciante rico percebeu claramente que aquele nome trazia-lhe memórias, e pela tristeza que viu estampada em sua expressão, elas não deviam ser muito prazerosas.
— O que foi?
— Meu irmão — murmurou.
— Seu irmão?
— Satoshi Shiromiya.
Enquanto mordia o lábio inferior segurando uma palavra maledicente, Ryo pensou no seu azar. De todos os nomes que existiam no Japão, o pai teve que dar a ele o mesmo nome do irmão que vendia a troco de arroz o corpo daquele a quem ele desejava?
—Viu? — disse, contudo, rindo. — Tenho certeza de que agora não mais ficará constrangido em me chamar de Ry-chan. Melhor isso que Satoshi.
Shiro assentiu.
— Às vezes sinto saudades do meu irmão — falou, surpreendendo o outro. — Ele era um bom garoto antes de mamãe morrer.
Ryo não tinha irmãos, nem sequer qualquer parente por quem pudesse nutrir afeição. Então, aquele sentimento dedicado do outro apenas lhe causou desconforto.
— Tenho sorte, Ry-chan — Shiro disse, depois de perceber seu sorriso. — Encontrei um amigo Satoshi que jamais me magoará como o antigo Satoshi o fez.
Não sabia o pobre rapaz, mas arrepender-se-ia amargamente de suas palavras em um futuro ainda distante.
***
— Dizem que o governo está fazendo abrigos — Ryo contou, enquanto descia as escadas que os levavam ao abrigo antibombas que ficava no subsolo da mansão. — No entanto, não gosto de confiar no governo — brincou. — Digamos que, tirando Sakamoto, não tenho ninguém lá por quem colocaria minha mão no fogo.
Aproximaram-se de uma maciça porta de ferro. Ryo girou uma maçaneta redonda com força e a abriu.
— O abrigo não está embaixo da casa — contou. — Na verdade, as escadas levam até o quintal. Minha maior preocupação é que a casa caia por cima da porta e não consiga sair dele...
A forma como falava era como se tivesse certeza de que o enorme prédio iria cair. Shiro não resistiu.
— Você já viu sua casa destruída?
Ryo confirmou.
— Tudo vai virar cinza... Toda a Tóquio, cada rua, cada casa... Quando andar nas ruas, Shiro, olhe com carinho e saudosismo tudo que vê, pois, provavelmente, daqui a alguns dias, meses ou anos, nada mais existirá. Ou pelo menos, não existirá da forma como hoje existe.
O menor se arrepiou. Em seguida, a porta do abrigo abriu e ele seguiu Ryo, que adentrava o ambiente.
O local era iluminado por um gerador próprio, tinha cerca de quatro metros quadrados de tamanho e estava limpo e conservado. Havia um fogão e uma cama, também uma prateleira com mantimentos. Ao lado, galões de água. Uma porta ao fundo dava para um pequeno banheiro.
— Eu faço a substituição da água duas vezes na semana, usando a que choca para o jardim. Também observo a data de validade dos enlatados, não quero ter que ficar semanas ou meses aqui comendo comida podre. Como estão organizadas as coisas no abrigo que Mamoru construiu?
Shiro ficou rubro.
— Não estão — admitiu, envergonhado.
— Então, você vai fazer isso hoje mesmo, prometa-me — pediu.
Assentiu. Notou, então, o outro se aproximando cauteloso de si.
— Quero que saiba, Shiro, que apenas penso no destino de Mamoru quando lhe peço essas coisas, pois pretendo que esteja comigo num dos meus abrigos, quando a guerra atingir nosso país.
Kazue pareceu absorto pelo tom gentil.
— Então terá que colocar mais uma cama aqui — disse, pueril.
— Dormirá comigo.
Antes mesmo de conseguir raciocinar diante das palavras de Ryo, sentiu a mão firme do comerciante segurando seu rosto. A boca máscula o tomou, num beijo potente e sedutor. Novamente, como da outra vez, sentiu-se queimando, como se ansiasse desesperadamente por tê-lo mais e mais perto.
De súbito, percebeu que o outro o puxava para baixo, em direção à cama. Assustou-se, e o afastou.
— Você tem medo de mim, Shiro? — Ryo indagou, magoado. — Ou não quer porque sou eu? Se fosse outro, seria menos reticente?
O rapaz sentiu os olhos úmidos.
— Gosto muito de você, Ry-chan — assumiu, temeroso. — Mas...
— Mas foi muito machucado, não é? — Ryo tentou ser compreensivo, apesar de não sentir a menor vontade de, no momento, ser generoso. Estava há mais de um ano sem sexo. Irritado, cansado de se masturbar, pensando num garoto que mal o olhava diretamente. Queria fazer sexo com Shiro, usá-lo até cansar e poder esquecer-se de uma vez de que, um dia, dormira com um homem. — Eu não vou machucá-lo, Shiro — prometeu.
O outro manteve-se em silêncio, pensativo.
— Você já sentiu prazer? — Ryo questionou, de repente dando-se conta de que o outro provavelmente só conhecera o lado ruim do sexo.
— Prazer?
— É... Já sentiu? Por que acha que as pessoas dormem umas com as outras? É porque é bom — sorriu.
Shiro levantou-se da cama, afastando-se rapidamente. Ryo o seguiu de perto. Ainda tentou contê-lo nas escadas, mas suas mãos foram afastadas com força pelo outro.
— Shiro...
— É para isso que quer minha amizade? — o menor questionou. — Achei que gostasse de mim!
— E eu gosto. Gosto até demais. E sei pela forma como corresponde aos meus beijos que você também se sente da mesma forma.
Assim que alcançaram a sala, Shiro virou-se para o outro. Parecia furioso.
— Se tem qualquer esperança de que um dia dividiremos a mesma cama, lamento informar que isso jamais acontecerá. Então, talvez, devamos cortar nossa amizade agora.
Ryo quase riu, ciente de todas as suas visões em que podia beijar, morder e lamber o corpo nu do outro sem qualquer impedimento.
— Está bem, Shiro — concordou, temporariamente. — Não quis ofendê-lo. Apenas...
— Apenas?
— Acho que me apaixonei por você.
Mentiu. Sim, é claro que mentiu. Afinal de contas, ele era rico, poderoso e dono de si. Pagava as amantes desde sempre, jamais entregou o coração a alguém. E diante dele estava apenas um moleque sem berço, dinheiro ou honra. Um ninguém que já havia desfrutado da cama de muitos homens, incluindo seu melhor amigo e um conhecido. Jamais se apaixonaria por alguém como Shiro.
Porém, arrependeu-se das palavras ditas ao perceber lágrimas grossas formando-se nos olhos do outro.
— Você é muito cruel — Shiro disse, derrotado. — Fala como se eu não soubesse exatamente o que significo para você.
Sem mais, ele saiu da casa. Não ouviu Ryo avisando-lhe que o levaria para casa, nem seu pedido de desculpas. Como um cego, correu pelas ruas de uma Tóquio ainda calma e bonita, desejando ardentemente queimar junto dela quando as bombas caíssem.
Capítulo 32
Shiromiya dobrav a os lençóis, sentado em seu futon. Na Casa Ai costumavam lavar a roupa de cama todos os dias, e ele sempre ficava incumbido de organizar os tecidos para que Nana os passasse. Era uma tarefa que cumpria com um singular prazer, mas naquela manhã amena de primavera, o rapaz sentia a garganta queimar e lágrimas surgirem com força nos olhos. Ele as continha com custo, respirando fundo e tentando não pensar.
De repente, o som do rangido da porta sendo aberta fê-lo girar naquela direção. Uma mão apareceu as suas vistas, bonitas e magras. Reconheceu-as imediatamente, e sentiu-se apreensivo. Então, repentinamente, a mão voltou para trás, desaparecendo. Ao surgir novamente, trazia um pequeno pano quadrado e branco. Era um sinal universal de paz, e Shiromiya sentiu-se comovido perante ele.
— Posso entrar? — ouviu o tom amigável.
— Sim.
Largou os lençóis de lado, enquanto preparava-se para a conversa.
— Ontem, você saiu correndo da minha casa — Satoshi Ryo disse, enquanto entrava no quarto. — Eu sequer tive tempo...
— Não queria ouvir suas desculpas mais uma vez — foi direto. — Não estou disponível para um jogo sensual, Ryo-san. Então, se você pensa de alguma forma em conseguir tal coisa de mim, por favor, vamos encerrar nossa amizade agora.
Ryo gemeu. Na sua vida, virgens haviam sido mais fáceis de conquistar. Aliás, mesmo alguma jovem senhorita de família não necessitava de palavras falsas de amor.
— É tão difícil assim acreditar nos meus sentimentos? — disse, fazendo sua melhor cara de culpado.
— Sei como me vê — Shiro não vacilou. — Sei o que pensa sobre mim. Já tentou me comprar muitas vezes, esqueceu-se? Sou pobre e sem entender as letras, mas não sou tolo, Ryo-san — sentiu novamente os olhos ardendo. — É claro que sou jovem, mas cresci nas ruas. A fome e a desesperança são ótimas professoras.
Repentinamente, Ryo sentiu-se completamente envergonhado. Contudo, de quem era a culpa? Foi Shiro que o seduziu com aquele rosto perfeito, e foi ele que o impediu de prosseguir sua vida como um homem normal. Dizendo a si mesmo para não pestanejar, Ryo segurou o rosto do outro.
— Shiro, eu só quero ficar com você — disse, tão franco que assustou a si mesmo. — Sei que é difícil acreditar, mas minha única vontade é cuidar de você — segurou suas mãos. — Me deixa ficar do seu lado, Shiro... Só quero fazê-lo feliz.
Era um pedido tão intenso que Shiromiya abriu a boca, espantado. Porém, não teve tempo de responder, Ryo aproximou-se com rapidez e o beijou, de forma lasciva.
Não se sentiu forçado, daquela vez. Ryo sentou-se ao seu lado do futon, desfrutando seus lábios de uma forma muito gentil. Derreteu-se, entendendo que seria difícil negar qualquer coisa ao comerciante, desde que estava ciente dos sentimentos que nutria por ele.
No entanto, gelou quando sentiu os dedos bonitos do outro tocando abaixo do seu ventre. Tentou se desvencilhar, mas Ryo o abraçou, extremamente carinhoso. Dizendo palavras confortadoras, acalmou-o.
— Quando duas pessoas se gostam, Shiro — prosseguiu —, é natural que elas sintam necessidade de sentir o coração da outra batendo contra si, da reação dos seus corpos, do calor que emanam...
Shiro o olhou, nervoso e surpreso.
— Eu sinto uma necessidade enorme de tocar você — continuou, num murmúrio, antes de voltar a pousar os lábios macios sobre o do outro. — Apenas, deixe-me acariciar seu corpo — gemeu, descendo a mão novamente para o pequeno monte que pareceu se enrijecer sobre seu contato.
Shiromiya choramingou, mas Ryo não parou, estimulado pelo abraço que ele lhe deu. Parecia que o menor procurava algo a que se agarrar, e Ryo não se fez de rogado em deixar a si mesmo disponível para tal.
Enquanto levava a boca às orelhas de Shiro, ele abriu com os dedos ágeis o botão da calça de linho. O pequeno monte tornou-se duro e escapuliu da calça, ereto, masculino. Shiro assustou-se com a reação do próprio corpo e tentou fugir, mas Ryo já havia prendido seu corpo com o próprio peso.
Deitados no futon, pela primeira vez na vida, Shiro sentiu uma dor absurdamente maravilhosa percorrer todo o seu corpo. Não conseguia falar, mas algo dentro de si gritava para que parasse. Todavia, outro lado seu mandava às favas todos os medos. Entregue, ele gemeu, deixando o outro num estado tal de euforia que, por alguns segundos, ele acreditou que Ryo fosse devorá-lo sem pudor.
Num misto de satisfação e raiva de si mesmo, Shiro, enfim, parou de lutar contra os próprios sentimentos.
Repentinamente, as mãos que outrora empurravam Ryo agarraram a nuca do comerciante. Cravando as unhas no pescoço, Shiro gemeu alto, inflamando ainda mais o outro.
— Eu vou lhe dar prazer — Ryo prometeu contra seu ouvido, o corpo numa dança erótica contra o outro, deixando claro o quanto o queria. — Mas eu não vou me satisfazer enquanto você não estiver pronto, eu prometo — sussurrou.
Quando as mãos perfeitas do mais velho abandonaram o toque romântico, e tornaram-se carnalmente agressivas, Shiro mordeu o ombro de Satoshi, tentando não gritar. O contato, num movimento para cima e para baixo, era num ritmo tão cadenciado, que ele pareceu ver estrelas por alguns segundos.
— Não quero ser como aqueles homens — Shiromiya disse, repentinamente, surpreendendo a ambos.
Deu-se conta de que estava em um estado tão grande de excitação que poderia sim se assemelhar àqueles malditos que haviam roubado dele os sonhos e a infância.
— Olhe para mim — Ryo puxou seu rosto. — Você não está fazendo nada de errado — afirmou. — Está com a pessoa que gosta! — pareceu se comover por alguns segundos. — Não existe nada mais lindo que compartilhar o prazer ao lado de quem você ama...
Ryo mordeu o lábio inferior, sentindo que aquelas palavras iam contra tudo que acreditava. Ora, o que diabos estava dizendo? Sentiu-se desumano por usar tal ludíbrio com um garoto que jamais experimentaria a sensação do amor.
Se bem que... ele também nunca havia sido amado antes!
Então, percebeu que Shiromiya era a primeira pessoa que nutrira sentimentos por ele. Aquilo quase o fez levantar da cama, mas a respiração acelerada do outro o estancou. Aumentando o ritmo, permitiu que Shiro explodisse em suas mãos, enquanto o corpo convulsionava numa cadência sexual.
Por alguns segundos, enquanto observava a respiração pesada, ele volveu os olhos para as próprias mãos. O líquido branco e geloso deslizou por seus dedos. Nunca imaginou que teria o gozo de outro homem nas mãos.
— Ry-chan — o som melodioso arrancou dele qualquer culpa ou debilidade. — Eu...
Os olhos cansados, pós-orgasmo fizeram com que Ryo sorrisse. Então, pegou um lenço do bolso e limpou os dedos.
— Está tudo bem, Shiro — disse, tranquilizando-o. — Durma agora, você deve estar cansado...
Uma vida toda sendo libertada de forma tão quente numa manhã de abril, definitivamente deixaria qualquer um exausto.
— Você vai voltar? — Shiro questionou, lutando contra os próprios olhos que pareceram pesados como nunca até então.
— É claro que eu vou voltar — Ryo sorriu. — À noite, como sempre...
— E como será nossa amizade a partir de agora?
Ryo sorriu novamente. Esperava que as coisas mudassem.
— Agora sou seu — disse, voltando para perto do outro e beijando seus lábios. — E estarei esperando o momento de que você seja meu...
Shiro sorriu e então se entregou aos braços de Morfeu.
***
Ryo percebeu o homem sentado diante da escrivaninha, rabiscando papéis com furor, enquanto resmungava sobre o aumento dos preços do material de pesca e do baixo lucro que a sua empresa havia dado naquele mês.
Não levou muito tempo para reconhecer o lugar. Era sua casa em Sapporo, Hokkaido. Porém, os móveis estavam um pouco diferentes, o ambiente mais claro, e a sensação mais confortadora. Era sua casa, mas soube sem precisar pensar muito que, diferente do que vivia atualmente, vivia ali uma família.
Sua família.
Andou alguns passos, como um fantasma. O homem ergueu as mãos, movendo os dedos curvilíneos até os cabelos, levando a franja para trás. E foi então que Ryo se reconheceu. Ali, diante de si, estava uma imagem perfeita do seu futuro. Talvez uns dez ou quinze anos à frente, não muito velho, contudo, provavelmente no auge dos seus quarenta e poucos anos.
Repentinamente, Ryo ouviu o som de passos. Voltou-se para trás e encarou uma jovem adolescente de rosto bonito e olhos inquietos.
— Você disse para Mitsuru que cortaria o pinto dele caso ele me namorasse?
Ryo arregalou os olhos, olhando então para a figura sentada na escrivaninha, aguardando sua reação. O homem, todavia, não pareceu tão surpreso. Na verdade, seu rosto era quase divertido.
— Eu disse que lhe cortaria o pinto se estivesse querendo namorar minha filha com más intenções.
Ryo ficou espantado. Ele teria uma filha? Era uma surpresa que jamais esperou.
— Não tem o direito de interferir no meu namoro! Mitsuru terminou comigo por sua culpa!
— Não tenho o direito?
— As coisas não são mais como eram na sua época — ela o enfrentou. — Hoje em dia, nós mulheres...
— Isso é coisa que aqueles artistas americanos ficam colocando na cabeça de jovens ingênuas como você! — interrompeu-a.
Percebeu então o rosto da garota ficar vermelho, e seus olhos chisparam. Deu dois passos para trás, temeroso do furacão que viria.
— Não fale mal do Elvis! — gritou.
— Um homem que dança rebolando... — Ryo parecia pasmo. — Você devia ouvir músicas do seu próprio país!
— Eu escuto o que eu quiser, ninguém me manda!
— Como não? Eu a sustento, eu pago a escola em que estuda, as roupas que usa! Além disso, eu sou seu pai — O homem devolveu. — Não ouse levantar a voz para mim, Miya!
Subitamente, o rosto vermelho da garota, embranqueceu. Os olhos bonitos, negros, tornaram-se um mar de lágrimas. Ela deu as costas, correndo em direção as escadas. Ryo, pasmo, viu a si mesmo parecer incomodado, abatido. Jamais pensou na vida em correr atrás de uma garota, ainda mais de uma filha que gritava com o pai. Na verdade, caso fosse ele ali agora, a discutir, e não um Ryo do futuro, nitidamente diferente, teria enfiado a mão na cara dela por ousar retrucá-lo.
— Filha — o outro Ryo a chamou. — Me perdoe, eu não devia gritar com você...
Ryo resmungou irritado, pensando em que momento da vida havia se tornado um banana mandado pela própria filha.
No entanto, sentiu um choque no coração ao ver a moça voltando-se para ele, e correndo em sua direção.
Aquele abraço fraterno que trocaram, fez com que o comerciante do passado sentisse um enorme vazio... Percebeu naquele instante o quanto precisava daquela menina... o quanto sentia-se solitário sem ela... E sem a mãe dela, seja lá quem fosse a tal mulher.
***
— Quando aconteceu? — Shin indagou, levando o copo de whisky à boca.
— Hoje à tarde, enquanto cochilava no escritório.
— E?
— Entende o que significa? — Ryo parecia espantado com suas próprias conclusões. — Vou me casar! E será logo, tendo em vista que eu não parecia muito mais velho. Então, quer dizer que a mulher da minha vida aparecerá em breve. Não é emocionante? Sei que não é aquela que eu aguardei desde a infância, mas com certeza será especial.
Shin concordou. Depois, voltou os olhos para o lado. A Casa Vermelha, outro bordel do bairro da prostituição, estava estranhamente calma naquela noite. Mesmo assim, ele sentiu-se desconfortável com a visão. Afastou os pensamentos.
— Então vai deixar de ver Shiromiya?
— E por que eu deixaria?
— Mas, você mesmo disse...
— Ora, Shin Sakamoto! Sejamos práticos. Vou fazer o possível para dormir com ele, para me livrar dessa obsessão. Depois, vou seguir minha vida...
— E se não passar? O que fará?
— Muitos homens mantêm amantes em casas vizinhas às suas cidades. Shiro me recusa agora, mas sei que vai aceitar ir para Hokkaido comigo. Quando isso acontecer, e será em breve, vou usufruir de tudo que puder. Depois, caso ainda mantenha algum desejo pelo corpo dele, vou mandá-lo para uma de minhas casas, e lhe darei uma vida confortável. Irei vê-lo sempre que quiser, ou puder.
— Parece cruel — Shin resmungou.
— Cruel é envelhecer sem dinheiro ou passando necessidades. Vou dar a ele tudo que necessitar. Terá uma boa vida comigo e, ao mesmo tempo, vou manter uma esposa que será igualmente amada dentro de minha casa.
Shin deu os ombros, voltando a beber.
— Eu jamais submeteria alguém que eu amasse a tal coisa — retrucou, indiferente ao olhar raivoso do outro. — Se eu amasse uma mulher e me casasse com ela, ser-lhe-ia fiel. Da mesma forma, se eu amasse um homem, jamais o deixaria de lado para viver uma vida de mentiras.
Ryo ficou irritado pelas palavras, mas não as contradisse. Como, aliás, defenderia seu ponto de vista diante da verdade que Sakamoto escancarou nas suas fuças?
— Shiro é só um prostituto... — disse, todavia, numa vã tentativa de se defender.
— Você diz isso com uma incômoda insistência. Quer mesmo se convencer que ele é só isso?
— O que quer insinuar?
— Não sei — admitiu. — Apenas, nunca o vi correndo atrás de alguém como faz com Shiro. Pelos céus, nunca o vi assim! Você passa os dias dedicando toda a sua atenção a um garoto que insiste em chamar de ninguém. Está me incomodando essa dubiedade. Ora você é um homem completamente guiado por seus instintos e que deseja um rapaz que dança vestido de mulher, ora é um pai de família, que adora a filha boca-suja.
— Como você pode falar assim da minha filha?
— A garota disse “pinto”. — Shin constatou. — Que mulher fala “pinto”? Se ainda fosse minha filha, mas sua?
— Talvez você seja como um segundo pai.
O pensamento agradou Shin.
— Isso não importa — Ryo resvalou para trás, apoiando-se na cadeira. — Essa é a minha vida, independente do quanto você a considere errada.
Sakamoto respirou fundo, desistindo do embate.
— Boa sorte, então...
— Não preciso de sorte, quando tenho todo o futuro diante de mim.
O outro deu um sorriso triste.
— Nunca viu nada sobre mim, não é? A cada dia que passo, mais me convenço de que não sobreviverei à guerra.
— O fato de eu não vê-lo, não quer dizer que tenha morrido, e apenas que não estaremos no mesmo lugar em determinados momentos. Por exemplo, essa visão da minha filha. Talvez, você estivesse na cidade, talvez até na minha casa, dormindo no quarto ou lendo no jardim. Eu apenas não o vi.
— Está tudo bem, Ryo — Shin o tranquilizou. — Eu não me importo mais...
Ryo não estava com paciência para aguentar o choro de Shin, então apenas pegou uma caneta que tinha no bolso e começou a rabiscar um nome em um pedaço de guardanapo.
— Elvis? — Shin observou, curioso.
— Apenas um lembrete, meu amigo... Apenas um lembrete.
***
Shiromiya curvou-se diante do seu público. Depois, se afastou como sempre do palco, adentrando pelo corredor escuro e estreito, indo em direção ao próprio quarto.
Reprimindo lágrimas, ele condenou a si mesmo. Ryo não viera vê-lo, como prometera. Aliás, a tarde também não deu as caras. Provavelmente, arrependido do ato que fizeram naquela manhã. Envergonhado, sentiu-se tremendamente obsceno, havia sujado as mãos de Ryo com aquela sensação que lhe cortava a alma cada vez que pensava.
Porém, ao mesmo tempo em que se contorcia de embaraço, uma poderosa sensação de felicidade brotava em seu coração. Ryo falara de sentimentos, talvez o amasse da mesma forma. Mesmo que não viera vê-lo... Mesmo assim, podia ter esperança?
Subitamente sentiu o corpo trombar em outro. Desculpou-se com Midori, que sorriu para ele.
— Já terminou sua dança? — ela indagou.
— Sim. Não estava no salão?
— Não — negou. — Estava atendendo um cliente que precisava ir embora cedo porque era aniversário do filho.
O comentário causou uma sensação desagradável em Shiromiya.
— Midori, você acha que esse homem que esteve contigo ama sua esposa e sua família?
— Não sei — ela não pareceu estranhar o questionamento. — Quem poderia responder algo assim?
— Ele veio encontrá-la na mesma noite que o filho faz aniversário. Não é horrível?
— Eu só estou fazendo o meu trabalho! — retrucou, incomodada.
Shiro negou imediatamente, tocando-a como se num pedido de desculpas.
— Não é isso que eu quis dizer... Apenas, será que homens de posses são capazes de amar?
O olhar feminino desnuviou.
— Ah, não acredito muito nisso...
— Você acha que alguém poderia se apaixonar por pessoas como nós?
Midori respirou fundo, compreendendo perfeitamente onde essa história iria chegar.
— Você se apaixonou? Por quem? Jiro ou Ryo?
Shiromiya pareceu espantado.
— O quê? Não é isso...
— Pessoas como nós, Shiro, só saímos dessa vida se formos para outro lugar. Só nos casaremos ou teremos uma família, se conseguirmos encontrar alguém que não saiba nosso passado.
— Midori...
— Se você gosta de Jiro, tem uma chance. O sargento é uma pessoa gentil e doce. Ele é bem capaz de assumi-lo, sem medo do que as demais pessoas vão pensar. Porém, existe uma chance, mesmo que ínfima, de que no futuro ele o despreze. Quando a paixão passa, nosso passado se torna um fardo muito pesado, acredite.
— Mas eu...
Sem deixá-lo continuar, a mulher prosseguiu.
— Mas se gosta de Ryo, eu só tenho a lamentar por você. Passará a vida toda sofrendo por alguém que jamais vai amá-lo. Ryo quer uma mulher de boa família para apresentá-la à sociedade. Ele jamais assumiria um homem como amante. Mesmo que você aceite isso, estará condenado a viver nas sombras, escondido de todos. E quando ele se cansar, vai descartá-lo como lixo, como já fez com muitas antes de você.
Shiro baixou a face, derrotado, e então a garota percebeu de quem ele havia se enamorado.
— Ah, merda! — ralhou. — Por que Ryo? Ele só vai machucá-lo!
— Eu sei...
— Esqueça isso, entendeu? — aconselhou. — Não seja ingênuo, Ryo Satoshi vai cozinhar seu fígado e comê-lo no café da manhã. Ele vai destruir você, vai reduzir seus sentimentos a migalhas.
— Ele disse que gostava de mim — perseverou.
— Ele diz isso para todas as mulheres da Casa Ai! Uma vez, ele disse a Keiko que se casaria com ela, acredita? Keiko era extremamente profissional e manteve-se firme enquanto ele brincava de seduzir. Ela o serviu durante um bom tempo e, um dia, simplesmente ele chegou à Casa Ai e pediu outra menina. Sem nem dar motivos, apenas se cansou. Quando Keiko foi embora, ele apenas comentou algo irrelevante, como se a garota que o serviu durante mais de um ano fosse apenas um adorno. Então veio Rika, Aki, Sumiko... E até mesmo eu. Ele sequer nos olhava na cara. Mas, para todas nós, ele falou de sentimentos.
Shiro encolheu-se. Midori ficou com pena e o abraçou, apesar de continuar a ser durona.
— Prometa-me de que não vai cair na conversa dele...
O outro assentiu.
— Você tem uma chance de sair daqui, Shiro. Poderá juntar dinheiro, comprar uma casa, fugir dessa vida. Não perca essa chance, não a desperdice com alguém como Ryo.
As palavras dela continuaram cravadas nele, mesmo quando Midori sumiu na escuridão.
Capítulo 33
— Vinho?
— E saquê — Nana completou. — Shiro está amuado desde a manhã, Midori e Rika estão se preparando para a noite... Não tenho quem mandar fazer as compras.
— Mas já anoiteceu — Aiko pestanejou. — Não temos bebidas para essa noite?
— Não temos — Nana negou. — E eu estou velha demais para ir buscar, minhas pernas não aguentam.
— Onde vou encontrar álcool nesse horário?
— Tem uma loja que vende bebida clandestina no final do bairro. Conhece Oji-san?
— Sim, o comerciante.
— Ele atende por uma pequena janela. Você só precisa bater e pedir três garrafas de vinho e cinco de saquê.
Mamoru concordou. Na verdade, fazia meses que não deixava a Casa Ai. Talvez, Nana houvesse deixado acabar propositalmente a bebida, para fazê-lo sair do casulo. Não a culpava, também estava preocupado consigo. Havia se enfurnado no escuro, na dor, no choro... Parecia não ter forças de sair de lá.
O bairro do prazer, como era popularmente conhecido o bairro de prostituição, não era um dos lugares mais seguros para se andar àquela hora, mas Mamoru havia crescido nele, era conhecido por todos, desde os que praticavam a prostituição ilegal, até mesmo aqueles que vendiam drogas. Cumprimentou com a fronte várias pessoas por quem cruzou pelas ruas enlameadas. Havia chovido durante a tarde, e o verão úmido que estavam tendo, não deu espaço para que o solo secasse. Assim sendo, ele ergueu o longo quimono à altura dos tornozelos para não sujá-lo.
Andou por várias ruas, percebendo que, aos poucos, as casas pareciam estar perdendo o brilho. Na verdade, era a falta de dinheiro que parecia, enfim, ter atingido aquela classe. Antigamente, a maioria daquelas moradias era pintada e bem cuidada; mas, no momento, grande parte parecia estar mofada e suja.
Percebeu que os clientes também mudaram. Era bem verdade que os mais abastados costumavam ir à Casa Ai, mas as demais casas também tinham lá seus bons clientes. No entanto, a grande parte, então, mais parecia formada por farrapos humanos. Mal vestidos e alimentados, a maioria, bêbados. Enojou-se.
Começou a andar mais rápido, repentinamente incomodado com os olhares.
A casa de Oji ficava em um beco escuro, circundado por outros becos igualmente sombrios. Mamoru apressou-se naquela direção, mas antes de chegar num dos becos, sentiu uma mão segurando-o no braço.
— Coisa linda — era um bêbado, tão cambaleante que mal conseguia se manter em pé. — Quanto cobra para acalentar o coração desse pobre infeliz?
Mamoru percebeu que não havia perigo, tão logo o homem sentou-se no chão, chorando. Pensou em ir embora, deixando-o com seus próprios demônios, mas viu-se curvando-se a sua frente, oferecendo compreensão.
— O senhor precisa de ajuda?
— Eu preciso de coragem para me matar — ele sussurrou.
Não precisava ser um gênio para entender que aquela pessoa estava sendo massacrada pela guerra.
— Esteve no fronte? Ou algum filho? Um irmão?
— Estive na Manchúria — respondeu. Depois pareceu meditar nos seus atos. — Muitos dizem que somos obrigados pela guerra a sermos maus, mas eu acho que nós nos aproveitamos da guerra para isso. No fundo, apenas a usamos como desculpa para sermos os piores seres que a natureza criou.
Mamoru baixou a face, constrangido. Muitos choravam não só pela morte de seus entes queridos, mas também pela morte da própria alma, perdida em algum canto do combate. Ele, no entanto, estava vivo. Os amigos que tanto amava, todos vivos. Não havia precisado matar ninguém, nem estuprar, nem estripar. Podia dormir tranquilo à noite.
Deu-se conta de como era abastado. De como Kami-sama o havia protegido de toda aquela situação. Baixinho, proferiu uma curta reza, agradecendo por tal.
— Eu sinto muito — disse, voltando a atenção ao homem.
O bêbado fechou os olhos, escorando a cabeça na parede de concreto.
— Não sinta. Eu irei para Iwo Jima semana que vem — disse. — Se tiver sorte, morrerei lá.
Mamoru deu as costas, segurando as lágrimas. Então, voltou-se novamente para o beco, nervoso e angustiado. Porém, tão logo deu dois passos, estancou.
Shin Sakamoto surgiu às suas vistas, como uma tempestade intensa de inverno. Seu olhar crítico, sua postura altiva e forte fizeram-no vacilar. Lembrou-se, instantaneamente, de tudo que ouviu do outro, e quis correr, fugir do olhar ainda tão destrutivo que era destinado a si. No entanto, talvez pelo medo, permaneceu parado na calçada, sem conseguir se mover.
O nobre o observou dos pés a cabeça Seu olhar rubro e seus passos falseados denotavam o quanto estava embriagado, mas mesmo assim, ele pareceu bem firme ao lhe dirigir a palavra.
— Como se atreve a aparecer na minha frente?
Mamoru tentou inutilmente sair do caminho, mas estava tão apavorado que não conseguiu se mexer.
— Eu...
— Não me dirija a palavra, maldito! — retrucou. — Desapareça das minhas vistas, você não é digno de pisar no mesmo chão que eu.
Mesmo diante da afronta, o corpo permaneceu imóvel. Todavia, salvo pelo gongo, Aiko viu Ryo sair das sombras e segurar Sakamoto.
— Pare com isso, Shin — disse, ríspido, mal-humorado. — Você bebeu demais.
— Eu faço o que eu quiser...
— Eu sei, rei do mundo — ironizou.
Foi um alento quando Ryo, que acenou para ele assim que se cruzaram, desapareceu carregando Sakamoto sobre os ombros.
***
Ryo Satoshi só voltou à Casa Ai em meados de junho, perto da data em que comemoravam o aniversário de Shiromiya. Não que estivesse fugindo dos sentimentos que o assustavam (ora, já havia decidido não temê-los, e sim vivê-los, sem medo), mas Shin Sakamoto estava insuportavelmente despreparado para a separação de Aiko.
Assim sendo, passou os primeiros meses do ano de 1944 andando atrás de um bêbado que tropeçava não só nas próprias pernas, como também nas palavras. Repentinamente, a guerra tão amada de Shin se tornou apenas um acaso, algo que não mais o preocupava.
Só respirou quando, no dia quinze de junho, Shin não o recebeu sorrindo e fedendo a álcool na porta da mansão.
— Os americanos desembarcaram em Saipan, nas Marianas — disse, afobado, voltando ao seu escritório, sendo seguido por Ryo.
Saipan, a maior das Ilhas Marianas do Norte no Oceano Pacífico ocidental, estava sob o domínio japonês desde 1919, quando foi assinado o Tratado de Versalhes. O Japão havia desenvolvido nela indústrias importantes para a economia do país. Desde 1941, havia também mais de trinta mil soldados protegendo aquela riqueza. A invasão americana era extremamente prejudicial ao Império.
Ryo observou o amigo sentado à mesa, nas mãos o telefone, através do qual ele discutia com superiores estratégias para o combate.
— Eu vou para lá — disse, após ouvir algo do outro lado da linha.
Ryo amedrontou-se pelo companheiro, mas foi acalmado pelo semblante contrariado de Shin. Mais uma vez, a família o impedia de ir a combate. Sentou-se em um canto e ficou a observar Sakamoto trabalhar. Pelo menos, para aquilo a guerra havia servido, para tirá-lo do álcool e da dor do amor.
— Vamos perder — Shin disse, após desligar o telefone. — Não dou um mês para sermos derrotados.
— Shin, não deve falar assim...
— Yoshitsugu Saito [42] já informou que os americanos asseguraram o avanço de uma média de seis quilômetros e estão se aproximando do aeroporto. Além disso, perdemos, pelo menos, três porta-aviões, além de aeronaves. O prejuízo foi imenso.
— Talvez seja bom recuar — sugeriu.
— A ordem é para lutarem até o último homem.
Naquele instante, o sargento Saito Jiro entrou na sala. Pelo seu semblante honestamente displicente, percebeu-se que havia ouvido a conversa entre os amigos.
— Lutar até o último homem? É fácil ser herói quando não é a cabeça dos líderes que estão lá à deriva. Será que se fossem seus filhos ou pais a serem massacrados pelos americanos, ainda assim as ordens seriam para resistirem até o fim?
Shin fulminou-o com os olhos.
— Pare de falar como se seu Imperador não fosse honrado!
— Mande-me para lá, Shin — disse, como se não tivesse sido ouvido. — Diga que irei como reforço.
— Qual é o seu problema? Quer morrer?
— Só quero ir embora — foi sincero.
Shin abriu a boca em espanto. Ryo arregalou os olhos, mas nada disse. Aguardou a explosão de Sakamoto, e apenas encolheu-se quando ela veio, sem freios.
— Nunca! — gritou. — Não vai me abandonar!
— Só quero respirar, por favor...
Shin saiu por trás da mesa e se aproximou perigosamente de Saito. Os narizes de ambos quase se tocaram, enquanto a respiração carregada arrepiou Ryo.
— Se falar algo assim novamente, eu o mato — ameaçou.
— Então, mate — Jiro enfrentou-o. — Pegue a sua arma e dispare agora! — berrou.
Só então Ryo percebeu Shin vacilar. Ele pareceu abatido, os olhos perderam o brilho ameaçador e, segundos depois, para seu espanto, viu-o cercando Jiro com os braços, apertando-o tão forte que Ryo imaginou se não o estava machucando.
— Não me abandone, Jiro — Shin pediu, dessa vez como se fosse uma criança implorando para a mãe não ir embora. — Por favor...
Ryo percebeu o sargento em um enorme conflito interno. Porém, quando ele ergueu as mãos e circulou as costas de Shin com um carinho de irmãos, notou que ambos ficariam bem.
***
Shiromiya lustrava os talheres de prata quando percebeu Ryo à entrada da cozinha, encarando-o sorridente. Fazia um bom tempo que não o via, mas ele estava igual, o mesmo olhar inquietante, avassalador, que parecia dominá-lo facilmente, sem restrições.
— Eu sei que está magoado comigo — Ryo adiantou-se diante do semblante carrancudo. — Porém eu tenho uma justificativa. Não a melhor, mas é uma boa desculpa para ter sumido.
Kazue permaneceu em silêncio. O outro então andou até ele, e sentou-se à sua frente. Shiro voltou a lustrar os talheres, como se não se importasse com as palavras, todavia, seu coração parecia saltar no peito diante da expectativa.
— Seu amigo Saito me pediu para ficar de olho em Sakamoto. Acho que você já sabe os problemas que envolvem Shin e Aiko — diante do olhar assombrado de Shiro, Ryo percebeu estar certo. — Antes eu conseguia um tempo livre, mas nas últimas semanas, Shin parecia com o diabo no couro. Não pude vir vê-lo...
— Não se preocupe — Shiromiya o interrompeu. — Fez bem em cuidar do seu amigo.
— Não está magoado, então? — Ryo indagou, mais tranquilo. — Vamos conversar em um lugar mais... tranquilo? O que acha de irmos até a minha casa?
Sabia que Shiromiya não se entregaria tão fácil, mas não custava tentar. Caso permanecesse como um monge celibato ao seu lado, claramente não conseguiria nada. Seria através do cansaço que venceria aquela questão.
— Ry-chan... — Shiro começou, mas ficou quieto alguns segundos. Respirou fundo, e então prosseguiu. — Eu pensei muito na nossa situação.
— É mesmo?
— Sim, e cheguei à conclusão de que meus sentimentos por você são muito fortes.
Ryo sorriu, animado.
— Mas eu não os quero.
O comerciante ficou pasmo com a audácia. Repetida audácia, diga-se de passagem.
— Sou pobre, sem família, não letrado. Não tenho teto, nem dinheiro. Tudo que tenho é a minha momentânea paz. Você pode facilmente destruí-la. Então, por uma questão de sobrevivência, eu quero que nos afastemos. Por favor, não volte à Casa Ai.
Ryo percebeu as lágrimas do outro. Mesmo reprimidas, elas estavam lá, nublando os olhos lindos e negros.
— Por quê? Acha que vou machucá-lo?
— Você diz que gosta de mim...
— E gosto — interrompeu-o. — Gosto muito.
— Mas também disse que gostava de outras pessoas e, na verdade, era apenas um passatempo, uma diversão.
— Não engano as pessoas, Shiro — reagiu. — Fui gentil com minhas amantes, sou generoso. Gosto que se vistam bem, tenham dinheiro para suas necessidades. Ajudá-las nunca me fez falta. Mas sempre disse a qualquer pessoa que o amor da minha vida era a mulher que eu via em minhas visões.
— A mesma que você achou que fosse eu? Ainda acredita que ela vai aparecer?
— Eu sei que não. Sei que ela é você e que apenas confundi as coisas... Mas o importante é o agora, não?
Shiro pareceu meditar nas palavras. Largando a prataria sobre a mesa, ele adquiriu coragem.
— Você já prometeu casamento a Keiko, não? E amor a Midori? E às outras meninas?
Ryo não aguentou e gargalhou.
— Pelo amor de Deus, Shiro. É claro que eu estava brincando. E elas sabiam disso!
— Um coração machucado, às vezes, não entende como brincadeira uma palavra amorosa.
— Pare com isso, Shiro. Acha que farei o mesmo com você?
— E não fará?
— Shiro, se você quiser, eu o tiro da Casa Ai agora. Eu compro uma mansão, onde você poderá viver confortavelmente para o resto da vida. Sustentarei cada luxo que quiser ter. E isso não quer dizer que eu queira comprá-lo, apenas demonstra o quanto estou sério em relação a você.
De um lado, havia o desejo intenso de crer naquelas palavras, de jogar-se de cabeça em cada promessa dita. De outro, havia as palavras de Midori cravando fundo em sua racionalidade.
— Não quero que me dê casas ou bens materiais — disse, por fim. — Quero conquistar tudo isso com meus próprios méritos.
— Eu sei disso.
— Mas sobre nós... Eu quero pensar.
Suas incertezas eram tão nítidas que Ryo resvalou na cadeira, mordendo o lábio inferior, numa postura enfadonha. Estava cansado de tantas dúvidas. Ora, a vida podia ser bem mais prática para ele, sempre foi. No entanto, Shiro, continuamente, reagia com uma postura irritante, como se temesse cada passo que o faria avançar ao futuro.
— Você gosta de mim e eu gosto de você — afirmou, sem medo. — Pense nisso também.
Shiro assentiu.
— Eu pensarei.
Porém, antes mesmo de Ryo sair pela porta, ele já havia decidido. Não se entregaria às paixões carnais que massacrariam o resto de sua alma, o pouco que ainda sobrava de si.
***
Mais tarde, naquela mesma manhã, Mamoru surgiu diante dele. Convidou-o para irem para o jardim, e Shiro o seguiu, respeitoso. Encontrou uma mesa postada com chá e biscoitos. Sorriu, diante do agrado.
— Você me mima demais, Aiko-san.
— Você é a minha pessoa favorita — Mamoru brincou. — Por que não mimaria?
Mas a intenção do cortesão era narrar o encontro da noite anterior. Havia voltado para casa em silêncio, não querendo preocupar Nana com bobagens. Depois permaneceu no quarto, acordado a noite toda, lacrimejando pelo seu amor perdido. Então, quando percebeu o movimento do dia do lado de fora da casa, resolveu ir atrás de Shiro, a quem considerava muito mais que um amigo, era seu irmão.
— Você ainda o ama? — Shiro questionou, após ouvir o relato, erguendo a xícara aos lábios.
— Meu coração acelerou. — Aiko admitiu. — Mas, mais por medo do que por amor. Shin me olhou de uma forma tão cruel...
Shiro segurou suas mãos, transmitindo-lhe forças. Era uma manhã tranquila de abril, e ambos tomavam chá, sentados à sombra de um enorme carvalho.
— Sei que o amo, Shiro — disse, contudo, em seguida. — Eu morreria por ele. E me dói demais saber que Shin não sente nada por mim além de ódio.
— Mas, talvez, um dia ele possa sentir — Shiro tentou manter-se otimista.
— Eu duvido muito que Shin possa me perdoar, mas mantenho a esperança, porque ela é tudo que me resta.
Repentinamente, um soco forte no portão fê-los voltar-se à entrada. Mamoru se pôs de pé, imaginando quem vinha àquela hora. Abriu o portão de madeira e encarou um jovem oficial que curvou-se respeitosamente, entregando-lhe uma carta.
Aiko a segurou e sequer teve tempo de indagar as intenções, percebeu o mesmo se afastando silenciosamente, indo em direção às outras casas.
O selo do Império o arrepiou.
Capítulo 34
Ryo Satosh i entrou sem bater. Diante dele, a velha Nana encarou-o com os olhos lacrimosos. Atrás dela, Shiromiya e Mamoru o esperavam com intensa apreensão.
— Obrigado por ter vindo — Aiko curvou-se diante dele, frágil.
Ryo então andou reto até Aiko, retirando dele o documento timbrado do Império. Leu as linhas, subitamente, rubro de raiva.
— Quando recebeu essa missiva?
— De manhã — Mamoru mordeu o lábio inferior. — Não me importo de ir, mas as meninas precisam trabalhar. E Shiromiya ainda é muito pequeno e frágil.
Na verdade, Shiromiya não se sentia nem pequeno, nem frágil. Já havia completando dezoito anos. Era um homem feito, dono de si, disposto a enfrentar o que viesse.
— Havia rumores de que a Kempeitai estava fechando casas de chá e bares desde a primavera — Mamoru contou. — Midori me comentou que algumas prostitutas estavam sendo enviadas para as fábricas, mas quando os rumores começaram a envolver gueixas, eu realmente acreditei que fosse apenas uma lorota.
— Você não acreditou?
— Não pode me culpar, não é? — perseverou. — Gueixas sempre foram tratadas com todo respeito, e sempre foram mimadas. Agora, estão sendo retiradas de suas casas e mandadas para o trabalho braçal. Quem acreditaria em algo assim?
Ryo voltou a ler a carta.
— As ordens são que todos devem ir para as fábricas — leu. — Até Shiro e você — disse, indignado.
— Sim, pelo jeito. Apenas Nana, por ser idosa, está fora dessa lista.
— Ninguém manda Shiro para lugar nenhum — ele murmurou, colocando a folha de papel no bolso. — Irei ver Shin.
Virou-se em direção à porta, mas foi seguro por Mamoru.
— Por favor — Mamoru o interceptou. — Salve as meninas também...
***
Shin Sakamoto ergueu os olhos e encarou o amigo de tantos anos. Ryo estava afobado, respirando irregularmente, e seus olhos pareciam raivosos, como um cão diante de um gato.
O pensamento brusco trouxe a sua memoria um certo gato malhado e gordo. O coração vacilou por alguns segundos diante da lembrança, mas pigarreando, ele voltou sua atenção ao homem que chegava.
— Algum problema? — questionou.
Uma folha de papel branco foi atirada à sua frente. Encarando a missiva, ele perguntou a si mesmo se a raiva de Ryo seria por alguma convocação. Havia retirado o nome de Satoshi na lista há muito tempo, usando a desculpa de que ele jamais poderia se unir ao exército, pois precisava administrar as fábricas que forneciam alimento para as tropas. Ora, o Império sempre se demonstrou satisfeito pela ajuda com mantimentos.
Porém, ao erguer o papel e ler as primeiras linhas, o nome de Mamoru Aiko surgiu, logo abaixo do texto confortador, chamando-o para trabalhar numa das fábricas.
— Dê um jeito — Ryo rugiu. — Tire o nome de Shiromiya daí! Eu pago! Diga-me o preço.
Shiromiya? Prosseguindo a leitura, após passar pelo nome de algumas mulheres, ele leu Kazue Shiromiya . Na verdade, ficou espantado por tal, sequer sabia que Mamoru havia conseguido documentos para o rapaz. Só assim para que o governo descobrisse a existência daquele pobre menino.
— É uma honra trabalhar nas fábricas de armamentos — comentou, indiferente.
— Uma honra o cacete! — Ryo avançou e Shin se colocou de pé, pronto a se defender caso a raiva do amigo se tornasse física. — A maioria das fábricas vai ruir! Não quero Shiro em nenhuma delas.
— Ruir?
Então, Ryo havia visto a queda?
— Venceremos em Saipan? — questionou, sério.
O lábio inferior do comerciante tremeu.
— Não responderei.
— Por quê?
— Não serei um joguete nas mãos de nenhum governo, por causa dessa maldita clarividência. O fato de eu ver o futuro não quer dizer que eu esteja disposto a intervir no que vai vir.
Shin deu dois passos à frente. Ambos se encararam, rivais numa opinião que poderia dividi-los para sempre caso não fossem tão próximos.
— Responda-me — Shin ordenou. — Não estou pedindo, estou mandando como membro da Família Imperial.
Ryo fraquejou. Uma coisa era seu nítido desinteresse nos assuntos do Império. Outra era a lealdade que prestava ao homem a sua frente.
— Sete de julho — disse por fim.
Shin arregalou os olhos, ficou pálido, abalado.
— Em menos de um mês?
Ryo assentiu.
— Hitler... — começou, mas freou as palavras antes que falasse demais.
— O que tem Hitler?
Shin não parecia disposto a recuar. Então, Ryo apenas deu os ombros.
— Não sei — foi sincero. — Apenas vi uma mesa, vários homens em volta dele. Havia um que saiu, para falar ao telefone, acredito. Depois, tudo explodiu.
— Hitler morrerá?
— Não sei...
Shin não sabia o que dizer, o que pensar, o que sentir. Era um ídolo pelo qual ele agora tinha aversão. Imaginava que o grande erro japonês fora ter ficado ao lado dos alemães. Deviam ter feito sua própria guerra, sem se aliar aos monstros nazistas. Porém, sozinhos, não teriam muita força, e depois das coisas que falou Jiro, ele já não sabia mais quem na verdade era pior.
Cambaleante, voltou à mesa e segurou a missiva. Leu-a novamente, e então pegou o telefone do gancho. Em menos de meia hora, tanto Shiromiya quanto Mamoru estavam livres do trabalho nas fábricas de armas.
***
— Shin me liberou? — Aiko encarava o papel timbrado e selado do Imperador, dispensando-o dos serviços. — Ele se preocupou comigo? — a esperança brotava em seus olhos, firme, clara, nítida.
— Também fiquei surpreso — Ryo resmungou. — Na verdade, considerei que ele apenas liberaria Shiromiya.
Shiro adiantou-se tão logo seu nome foi pronunciado.
— Mas, e as meninas?
Midori e Rika estavam logo atrás deles. O grupo, no jardim, mal conseguia respirar.
Dando-se conta de que sequer citara o nome das mulheres, Ryo pensou em uma boa desculpa para dar. Não queria, de forma nenhuma, parecer desinteressado ao seu objeto de desejo.
— Implorei a Shin — disse a Shiro. — Joguei-me no chão, prometi dinheiro, pus-me à disposição para eu mesmo ir no lugar das mulheres, mas ele sequer me ouviu.
Todos pareceram acreditar na mentira, até mesmo Nana que ouvia tudo ao longe, sentada em um banco.
— Na conversa com Shin, ele me garantiu que até mesmo as gueixas estão indo para as fábricas — completou. — Ou seja, não é um boato. Se gueixas vão, como dispensar suas meninas?
As gueixas eram o símbolo de maior status feminino que se poderia esperar daquela sociedade. Não trabalhavam, viviam confortavelmente, tinham mais dinheiro e direitos que qualquer outra mulher. Porém, o fechamento das casas de chá significava também a morte secular daquelas que, durante toda uma vida, serviram como representação de uma nação.
— Se até mesmo as gueixas estão indo para as fábricas, que esperança resta para nós? — Midori completou, choramingando.
Ryo considerou-a fraca, até Aiko abrir a boca, deixando claro o motivo das lágrimas.
— Eu prometo que sua família não passará fome, Midori — foi firme.
— Não pode ficar mandando dinheiro para eles, Aiko-san — ela disse. — Precisa manter a Casa Ai. Além disso, como eu o pagaria?
— Eu posso lhe dar o dinheiro.
As palavras escaparam da boca de Ryo, surpreendendo-o. Nunca deu nada de graça a ninguém. Até então, nunca havia se preocupado se qualquer pessoa passasse necessidades, ou vivesse de forma difícil. No entanto, repentinamente, os olhos tristes de Shiromiya ao ver o abalo da mulher, fê-lo reagir.
— Apenas me dê o endereço para onde você manda o dinheiro todo o mês. Eu farei um depósito — disse. — Não precisa me pagar, é um presente — concluiu, antes que ela dissesse a ele o que falara a Aiko.
Midori ficou profundamente grata pelo gesto. Aproximou-se de Ryo e segurou suas mãos. Depositou nelas um beijo casto e, depois, partiu em direção ao quarto, procurando o endereço que guardava a sete chaves dentro de seu guarda-roupa.
Ao sumir, Ryo voltou sua atenção a Shiromiya. Viu o sorriso agradecido e percebeu que aquele era o melhor presente que recebia em anos. Aliás, era a primeira vez que via mais que um simples sorriso naquele rapaz. Era uma expressão nítida de admiração e adoração. Repentinamente, ficou muito claro qual era o caminho para a aceitação de Shiro, e ele não se fez de rogado.
— Rika — virou-se para a outra jovem. — E você?
— Eu estou bem — ela deu os ombros. — Tenho economias.
Ok, nem todas as mulheres estavam caindo na sua encenação. Porém, o que aquilo importava? Shiro parecia uma criança diante de um doce e era só isso que lhe interessava no momento.
— Aiko, com a Casa Ai fechada, você precisará de ajuda?
Mamoru pareceu em dúvida alguns minutos, como sem saber o que dizer.
— Talvez, mas não agora.
— Está bem — Ryo não insistiu, ciente do seu desconforto. — Prometa-me apenas que, caso precise, virá para mim — pediu.
O cortesão assentiu.
— Shiro, posso falar com você em particular? — voltou-se para o mais jovem.
Depois de toda aquela demonstração de generosidade, Shiromiya sequer pestanejou em mover a cabeça, afirmativo.
***
Shiromiya seguiu Ryo Satoshi até o carro do comerciante, que aguardava à direita do portão da Casa Ai. Esperou ver o servo Tadao, mas logo percebeu que Ryo estava sozinho. Só então se deu conta que ele não era tão dependente dos empregados quanto supunha.
Encarou-o. Parecia mais bonito que o normal, e o jovem imaginou que era porque, naquela manhã, demonstrara um lado que jamais imaginou que ele tivesse. Ryo não pudera livrar as mulheres do sistema, mas amenizara a situação.
— Apenas quero que saiba que eu jamais o deixarei à mercê de qualquer coisa — Ryo afirmou, fazendo com que Shiromiya enrubescesse. — Vou protegê-lo, Shiro. Antes, durante e após a guerra. Essa ou qualquer outra. Nunca permitirei que nada o machuque.
Aquela promessa gentil o comoveu e ele quase abraçou o homem. No entanto, a chegada de Midori com um papel nas mãos o interceptou.
— Muito obrigada por sua ajuda, Ryo-san — Midori estendeu o papel.
Ryo sorriu enquanto segurava-o.
— Escreva uma carta aos seus pais e irmãos informando o que aconteceu e dizendo que o dinheiro será enviado trimestralmente. Mandarei Tadao cuidar disso ainda hoje.
A mulher curvou-se.
Em seguida, Ryo os deixou, entrando no carro e afastando-se rapidamente, sem se despedir.
— Ele mudou... — Midori murmurou, maravilhada. — Jamais faria isso algum tempo atrás.
Shiromiya implorou a Kami-sama para que ela estivesse certa.
***
As mulheres deixaram a Casa Ai no dia seguinte, após lágrimas e uma triste despedida. Nana preparou um lanche para elas, e Aiko as levou até o ônibus que as mandaria para algum lugar entre o norte e o leste do Japão. Aquilo o apavorava, sequer sabia o destino das amigas, mas não tinha condições de enfrentar a Kempeitai. Shin lhe dera uma chance de permanecer em casa, devia ser grato por isso, e não exigir nada além.
Sem as mulheres, a Casa Ai fechou-se, não apenas para os clientes, mas para si mesma. Aiko não abria o portão, mesmo que batessem nele. Nana passava todas as tardes sentada ao lado do rádio, à espera de notícias, e Shiromiya só saia do jardim para dormir ou conversar com Ryo, que costumava aparecer uma ou duas vezes por semana.
Os dias tornaram-se uma infinidade de lágrimas solitárias e um silêncio respeitoso. Os três remanescentes da casa do amor sabiam que dificilmente veriam novamente Midori e Rika. As notícias eram sempre as piores possíveis e, no dia sete de julho, coroando com louvor a profecia de Ryo Satoshi, as rádios anunciaram, enfim, que as tropas japonesas haviam sido derrotadas em Saipan.
Depois disso, o espírito de entrega passou a dominar a nação. De alguma forma insana, parecia ser melhor morrer lutando do que viver com a desonra da derrota. Jovens, crianças, mulheres de todas as classes, passaram a se alistar para ajudar nas fábricas. A nação inteira passou a viver a fim de levantar novamente sua amada terra.
Mas não tardou muito para outra forte punhalada submeter os japoneses.
No dia vinte e um de julho, Shin bateu na porta da casa de Ryo. Tadao o recebeu e o encaminhou ao escritório do patrão. Saito o acompanhava em silêncio e assim permaneceu pelos primeiros minutos que teve acesso ao ambiente requintado.
— Já ouvi a rádio — Ryo se antecipou ao ver o amigo. — Parece que houve uma tentativa de golpe a Hitler, que quase morreu.
— Exatamente como você previu — Shin assentiu. — Mas não é por isso que estou aqui. Já sabe de Guam?
A ilha de Guam havia sido ocupada pelo Império em 1941. Caso fosse tomada, seria outra derrota significativa.
— Não. O que aconteceu?
— Os Americanos acabaram de desembarcar lá — Jiro contou, sorrindo.
— Como?
— Por Oroe [43] .
— Você viu isso, Ryo? — Shin inquiriu. — Você previu isso?
— Jamais! — o comerciante adiantou-se. — O que eu ganharia apoiando os americanos? — indagou. — Mas acredito que tenha sido meio óbvio que isso aconteceria, não? Que outro lugar seria perfeito para montar uma base? Ainda mais depois do que sucedeu em Saipan?
— O que você vê agora? — Shin exigiu, sem se importar com a reprimenda.
— Meu dom não funciona assim. Ele vem e vai sem...
Subitamente ficou em silêncio. O transe foi percebido imediatamente pelos dois homens que permaneceram quietos, aguardando.
Quando Ryo voltou, os olhos assustados diziam mais que qualquer palavra.
— Será tão terrível assim?
— Não vamos nos render, mas seremos derrotados — Ryo assumiu, abatido.
— Como assim?
— Ficaremos tão espalhados que seremos apenas ratos fugindo.
Shin Sakamoto se ergueu. Andou em círculos pelo enorme cômodo, até parar de forma repentina. Encarou o amigo e disse forte:
— Não há derrota enquanto houver soldados. Só nos entregaremos quando não restar mais nenhum de nós em pé.
Ryo Satoshi sabia que aquilo não era verdade.
Capítulo 35
— Você te m medo?
— Medo?
— Sim, medo. Não sente calafrios em pensar que tudo que está diante de você agora, poderá não estar amanhã? Que cada uma dessas pessoas que agora cruza por nós poderá morrer de forma tão cruel?
Ryo levou a maçã aos lábios. Mordeu-a e ficou a meditar na frase dita.
O parque Ueno estava muito belo naquela bonita manhã de novembro. O outono havia trazido uma tonalidade rosa para as cerejeiras frondosas. Adiante, o lago brilhava em contato com o sol, e o vento frio dava a paisagem uma atmosfera ainda mais bonita. Ryo suspirou feliz por estar ali, sentado ao lado de Shiromiya.
— Não existe muito diferença entre um especialista em guerra e eu. Muitos homens que estão agora em estratégias de combate já sabem nosso destino, mesmo sem as visões.
— Mas deve ser assustador.
Ryo sorriu e segurou a mão direita de Shiro. Os dedos entrelaçados, escondidos embaixo do enorme casaco que cobria as pernas deles, foi o único toque ocorrido naquele ambiente público. Mas, era tão confortador e quente que Ryo sentiu-se em chamas.
— Já estou acostumado — desconversou.
Shiromiya assentiu.
— Diga-me, Ry-chan — ele sussurrou, gentil. — Quanto tempo você acha que vai demorar para que tudo ocorra?
— Está assustado? — Ryo apertou sua mão, tentando lhe transmitir apoio.
— Um pouco — admitiu.
Ryo riu baixinho, escondendo uma estranha satisfação.
— Já disse que vou cuidar de você.
— Sim...
O tom entre eles era doce. Desde junho, quando Ryo o salvara de ser enviado às fábricas, Kazue Shiromiya parecia mais confiante sobre as intenções do comerciante. Assim, não mais fugia dos seus toques ou de seus beijos, que eram trocados em cada visita ocorrida na Casa Ai.
Mesmo assim, Ryo estava insatisfeito. Por mais que Shiro não se negasse a despedir-se com um carinho mais íntimo, não existia nenhum convite espontâneo para visitar o quarto. Ryo até tentava dar-lhe alguma indicação de como estava interessado em ficar sozinho com ele, mas o outro sorria e dizia que já estavam, pois Mamoru estava trancado no próprio quarto e Nana, na cozinha.
Mordendo o lábio, Ryo segurava uma reclamação de que o “estar sozinho” que queria com o menor, não era exatamente ficar tomando chá no jardim. Porém como já o havia assustado muitas vezes no passado, achou por bem permanecer quieto em seu canto, aguardando o desenrolar da situação.
— Parecemos namorados — Shiro riu.
Ryo o encarou. Subitamente percebeu: estava visitando o rapaz há meses, levando-lhe agrados, levando-o para lugares familiares, onde ficavam discretamente de mãos dadas, compartilhando momentos. E, ainda por cima, fazia-lhe promessas. A percepção de Shiro não estava errada, e aquilo o assustou. Puxou a mão, tremendamente incomodado.
— Vamos embora? — indagou, sorrindo, tentando distraí-lo de seu recuo.
— Me perdoe — Shiromiya deixou claro que havia percebido a reação. — Não quis dizer isso em voz alta.
Ryo assentiu.
— Está tudo bem.
Porém, não confirmou nada. Ora, e como poderia? Eram homens. Ambos. Jamais se envolveria em um relacionamento homossexual. Tudo que queria era apenas compartilhar do prazer que passou a vida toda ouvindo Sakamoto falar. E também se casaria. Em breve, pela idade que a filha parecia ter em sua visão.
Além de tudo, não eram igualitários. Caso Shiro estivesse numa posição como a de Shin, ou talvez até de Saito, ele poderia imaginar em tê-lo como amante fixo e duradouro. Sabia que havia muitos casos assim, entre os ricos.
No entanto, Shiro era só Shiro. Magro, pobre, de olhar sofrido, roupas doadas e sapatos velhos. Não havia a menor possibilidade de mantê-lo como um amante estável. No máximo, lhe daria uma casa e o deixaria lá, à sua espera, para servi-lo quando sentisse necessidade. Já havia decidido aquilo, não havia necessidade de iludi-lo mais que o necessário para conseguir dele o que desejava.
Ao longe, o som de um rádio alto anunciava a rendição do Eixo na Grécia. Ryo olhou naquela direção, curioso sobre o desfecho. Shiro levantou-se do banco e postou-se ao seu lado.
O comerciante evitou encará-lo e começou a caminhar. Ouviram alguns suspiros tristes de transeuntes, um grupo conversava sobre as batalhas. Era um mundo completamente entregue ao desespero.
— Ry-chan — Shiro o chamou, fazendo com que ele se voltasse para trás, encarando o rapaz que o seguia. — Disse-me uma vez que eu sobreviveria à guerra, né?
— Sim, eu o vi num futuro próximo e não parecia machucado por ela.
— Quando a guerra terminar, pretendo procurar um emprego fora da Casa Ai. Se eu não fosse um dançarino, teria orgulho de mim?
As dúvidas presentes naquele olhar abatido acabaram por moer o resto de sanidade de Ryo. Dando as costas ao rapaz, ele caminhou rapidamente para longe dele, fugindo pela primeira vez, não só do que Shiro representava, mas também das suas próprias reações perante o que sentia por ele.
***
Shiro não mais viu Ryo pelo resto do ano. Novembro e dezembro passaram com uma lentidão angustiante, como se o tempo repousasse sobre as costas de uma enorme tartaruga. Sozinhos, Shiro, Mamoru e Nana não recebiam visitas e sentiam-se completamente abandonados. Não havia mais riso nem alegria naquele lugar.
Assim como Aiko, Shiro entregou-se à tristeza. Porém, não por muito tempo. Após ficar o resto de novembro escondido no quarto, ele passou o último mês do ano trabalhando em uma espécie de estufa que construiu para proteger as plantas da neve que começara na segunda quinzena.
Recusava-se a pensar em Ryo, ou no que quer que fosse que o outro estava se ocupando. Sabia, por todos aqueles anos de experiência, que o comerciante apareceria com qualquer desculpa estúpida, pediria desculpas e as coisas ficariam como sempre, afinal, tinha uma excessiva dificuldade de cortar os vínculos, de afastá-lo definitivamente.
Porém, ao começar a planejar o reinício de sua vida, longe da Casa Ai, aos poucos, deu-se conta de que talvez pudesse realmente vencer aquele desafio. Longe, em outra cidade, ele poderia esquecer Ryo e suas promessas vazias. Poderia esquecer as marcas que manchavam seu passado, que o tornavam impuro e arredio.
E foi com isso em mente que, no primeiro dia de 1945, ele se aproximou de Mamoru para lhe felicitar um feliz novo ano.
— Você quer ir embora? — Aiko indagou, nervoso, diante da possibilidade.
— Não vou abandoná-lo — Shiromiya negou. — Apenas, acho que não existe mais nada aqui para nós. Por que não vamos todos? Você, Nana e eu?
A velha que bebia chá ao lado deles pareceu se animar.
— Podemos ir para o sul — ela disse a Mamoru. — Fukuoka é uma boa cidade para se morar. Se colocar a Casa Ai à venda, com certeza, teremos um bom dinheiro para nos estabelecermos em outro lugar.
Mamoru sabia que as coisas jamais voltariam a ser as mesmas. Naquela madrugada de virada de ano, completava-se um ano que Shin o havia abandonado. Nunca mais o procurara, sequer perguntara por ele. Contudo, admitir o fim era algo tão difícil que ele se minava só de pensar.
— Talvez — respondeu, por fim, não querendo destruir os sonhos da velha e do rapaz. — Quem sabe? Posso pensar um pouco?
Nana e Shiro nada responderam, mas animaram-se porque era a primeira vez que Mamoru, ao menos, aceitava ponderar na possibilidade de irem embora de Tóquio.
Naquela noite, ao recolherem-se em suas camas, cada um nutria em si uma esperança. Nana sonhou com uma casa calma, onde poderia repousar o resto de seus dias sem problemas. Shiro imaginou um emprego — não importava qual — onde poderia ter orgulho de ser quem era. E Aiko pensou apenas em esquecer cada detalhe de sua existência, o que sentia, e se sair vitorioso em recolher os cacos de seu coração ferido.
***
Não houve comemorações de ano novo naquela Tóquio silenciosa e desesperada. Shin observava ao longe a escuridão reinante, através das janelas de vidro gigantescas que tinha em casa. Saito aproximou-se por trás dele e estendeu-lhe um copo de conhaque vagabundo que comprara durante uma ronda da tarde.
— Feliz ano novo — o sargento disse, num tom de gracejo.
Pela primeira vez em um ano, Sakamoto gargalhou como nunca. Subitamente, o tom da ironia soara engraçado, e o homem segurou-se ao outro, enquanto ria até quase cair no chão.
— Demorou — Jiro disse, sério. — Mas parece que, enfim, você perdeu o resto de sanidade que tem.
— Eu? — Shin secou os olhos, ainda segurando o riso. Repentinamente, ficou sério. — Sonhei com a vitória santa de nossa pátria. Mas não existe muito o que dizer diante do que está por vir.
— Falou com Ryo? Ele disse algo a mais sobre o futuro?
— Não. Ryo-san não aparece há dias. Procurei-o em sua casa, mas ele me recebeu com cara de poucos amigos. Disse que tem mais o que fazer, e não tem tempo para assuntos de guerra.
— Honto ni [44] ?
— Sim, mas não é por ele que percebo que não há mais solução.
Shin então estendeu um papel que estava em seu bolso para o amigo. Jiro o pegou e leu o título: Vento divino [45] .
Saito precisou se escorar na parede para não cair. Seu semblante denotava o quão pasmo e chocado estava.
— Meu Deus — foi tudo que disse.
— Nossos melhores pilotos já morreram — Shin murmurou. — Que outra escolha tínhamos?
— Nos render?
— A rendição é uma vergonha que nenhum de nós está preparado para enfrentar.
— E mandar meninos se jogarem com seus aviões cheios de explosivos em navios americanos não é vergonhoso?
— O suicídio é uma honra — Shin defendeu a ideia. — Eu morreria sem hesitar pelo que acredito!
Jiro se afastou. Queria distância de Sakamoto, mas foi seguido de perto pelo mesmo por ele. Nas escadarias, confrontaram-se novamente.
— Cada soldado japonês matará inúmeros soldados americanos. Cada navio destruído ou repleto de avarias será talvez o que nos salvará da derrota. Precisamos evitar que os Estados Unidos cheguem ao Japão.
— Destruir nossos aviões e matar nossos soldados não nos salvará!
Shin negou.
— Enquanto houver um japonês em pé, não nos renderemos. Mesmo que esses morram, outros virão. Todos estão dispostos a dar sua vida e sua alma em nome de sua nação. “Todo japonês é capaz de converter-se em membro da unidade.”
— Não cite Sekio Nishina [46] para mim!
— Jiro, tente entender — pediu. — É nossa pátria, nosso motivo de existir. Estamos fazendo isso pelo Império e nosso amado Imperador.
Saito havia dado mais ao Império do que qualquer outra pessoa ali. Dedicou sua juventude à causa, cometeu barbárie por ela e ainda Shin se atrevia a lhe pedir mais?
— Eu tenho um motivo para existir — retrucou. — Eu mesmo — explanou. — Eu, eu, eu! — gritou. — Não preciso e não quero provar nada a ninguém.
Tentou subir, mas as mãos de Shin o prensaram. Repentinamente, sentiu-se sendo atirado contra a parede. Quis reclamar, mas a boca máscula do outro o envolveu. Irritado, tentou se afastar, mas Sakamoto demonstrava mais uma vez sua força.
— Me consola, Jiro... — pediu, num choramingo irritante.
O sargento tentou empurrá-lo mais uma vez, mas o corpo pareceu ainda mais forte, mais pesado, mais dominante.
— Achei que já havíamos superado isso — Saito resmungou.
— Eu sempre desejo você...
— Olhe bem para a minha cara, Sakamoto. — Seu tom era firme e duro. — Acha que sou algum imbecil? Faz um ano que não tem Mamoru, não é? Está abatido, derrotado. A guerra não é a única causa de seu tormento. E então quer alguém para remendar suas feridas? Que o diabo o carregue se acha que eu sou algum tipo de conforto descartável!
— Jiro...
— Estou farto de você! — disse, parecendo expulsar de si toda a raiva acumulada durante todo o tempo. — Faz um ano que minha vida é tentar evitar que fale demais, que beba demais, que estrague a própria vida! E enquanto isso, eu vejo Mamoru Aiko definhar, dia após dia. Ele continua chorando por você, como se o fim da relação de ambos tivesse ocorrido ontem — Jiro sentiu os olhos molharem, mas ele respirou fundo e engoliu o choro. Reunindo suas forças, empurrou Shin e se desvencilhou. — Fez-me desistir dele, prometendo-me que o faria feliz. E olha o que fez? Seu amor é fraco, é inútil. É um sentimento semelhante a folhas secas, qualquer vento leva embora.
Sakamoto não conseguia se mover. Mesmo assim, retrucou.
— Sou seu superior, como pode falar nesse tom?
— Não gosta? — Saito o enfrentou, quase tocando o nariz de ambos. — Já disse a solução. Mate-me! Não tem coragem? Então me envie para o fronte.
A proximidade culminou no desejo. Shin podia odiar as coisas que Jiro falava, mas o desejava. Mesmo que não o amasse romanticamente, ainda sim, o corpo reagia ao seu cheiro adocicado. Segurando firme sua nuca, trouxe-o para um beijo necessitado.
Saito lutou como um louco, enquanto era carregado até o quarto e jogado entre os lençóis. Depois, tentou se desvencilhar da boca que desceu dos seus lábios, até seu pescoço, e peito. Por fim, sem ter outra escolha, ergueu o joelho e bateu com toda a força na masculinidade dura do amigo.
Quando Shin caiu para o lado, ele saiu da cama, e caminhou rapidamente até o próprio armário. Pegou de lá uma sacola, em que jogou algumas roupas. Virou-se de costas, pronto a sair, quando foi prensado pelos pés. Desequilibrado, caiu no chão.
— Sakamoto! — gritou.
Agarrado às suas pernas, o outro o manteve tão fixo que mal parecia que havia acabado de ser agredido nas partes baixas.
— Não me deixe — implorou. — Jiro...
— Eu cansei, Shin — o sargento retorquiu, incomodado.
— Eu sei — admitiu, cansado. — Mas se você não estiver ao meu lado, o que será de mim?
Enquanto Shin estava agarrado em suas pernas, Saito olhou para a porta. Um novo chute e ele teria sua liberdade. Porém, quando as lágrimas começaram a cair, ele percebeu que não eram simplesmente as duas mãos fortes que o mantinham ali.
***
Saito Jiro não foi embora da casa de Sakamoto. Até tentou, mais de uma vez, no decorrer daquele janeiro, mas vacilava a cada olhar suplicante, a cada mão estendida, a cada lágrima que escorria, sincera, pelo rosto do outro.
Então, no final do mês, quando Shin lhe contou, entre soluços, que o Japão retirou-se da costa chinesa, ele decidiu ficar. Ora, logo eles seriam derrotados, pisados como baratas, talvez até mortos. Por que não passaria seus últimos momentos ao lado de Sakamoto? Shin, apesar de todos os defeitos, era a única pessoa a demonstrar interesse por ele.
Em fevereiro, os americanos desembarcaram em Iwo Jima. A guerra já estava perdida, mas o lema era enfrentar tudo com a cabeça erguida. Não se permitir ser capturado e se suicidar com um tiro caso não existisse mais chances de vitória, era a ordem que ecoava entre todos que serviam ao Império. Saito sabia, naquela manhã abafada do dia dezenove de fevereiro, que muitos ali entregaram as suas vidas a uma bala de revólver. Ele podia ouvir o “Banzai [47] ” gritado em sua mente. Quando aquilo ocorreu, percebeu que não precisava ser um adivinho como Ryo para saber exatamente o destino de cada soldado.
Nessa mesma época, Shin passou a beber mais. O membro da família Imperial sequer encarava os formulários e papéis com respeito. Não passava um único minuto do dia em que não estivesse com um copo na mão, os olhos vermelhos e as pernas cambaleantes.
Como o servo leal que era, Saito o seguia durante os dias, cuidando do seu senhor. Depois, o colocava na cama, tirando-lhe os sapatos. Deitava-se num futon ao lado, pronto a qualquer coisa que Shin precisasse.
Por conta da situação, ele não conseguiu ir à Casa Ai. Quando março chegou, ele decidiu que era hora de ver Mamoru. Sentia falta do cortesão e de Shiro. Queria o colo de Nana, queria ouvir qualquer som que não fossem as palavras de desespero de seu superior. Então, numa noite, ele levou Shin para a cama, deitou-o e deu-lhe as costas. Arrumou-se com esmero e, sem se importar com o horário, saiu.
Sabia que, provavelmente, os habitantes da Casa Ai já estariam dormindo, afinal de contas, não teriam motivos para adentrarem a madrugada sem o movimento dos clientes. Mas sabia também que Mamoru não lhe negaria uma conversa e uma cama livre. Planejava ficar lá, tomar seu café ao lado de Aiko, e passar o dia falando de qualquer coisa que não envolvesse bebidas e guerra. Assim, antes de se aproximar do bairro vermelho, parou em frente a uma padaria. Vários estabelecimentos atendiam a noite. Mesmo que o pão ficasse amanhecido, ainda seria bom se alimentar com a manteiga que Nana batia tão bem. Seu intento, porém, foi negado pela placa de aviso na frente. Não havia pão, nem farinha. Não havia suplementos a serem vendidos. Dois estabelecimentos depois e o mesmo comunicado, fê-lo desistir da intenção.
Porém, ao afastar-se da terceira padaria, ao longe, ele percebeu dois membros da Kempeitai agredindo um homem velho. Pensou em desviar o caminho, afinal, não estava com seu uniforme e nem documentos, mas, repentinamente, percebeu que não havia nada a perder. Saito Jiro era um homem que andava com uma cápsula de cianeto nos bolsos, era um homem que a própria família não escrevera nenhuma vez para saber seu estado, um homem que vivia uma relação doentia com o rival pelo amor de alguém que nada desejava dele.
E, pelos céus, o país estava morrendo! Uma fruta podre prestes a cair no chão, destruída pela guerra. Então, avançou em direção aos policiais.
— Ei, covardes — chamou-os. Ao perceber o olhar furioso em sua direção, prosseguiu. — Venham aqui bater em alguém que pode se defender.
Capítulo 36
Shin Sakamot o abriu os olhos e espreguiçou-se. Acabara de acordar, mas estava exausto. Erguendo o braço, observou o relógio. Resmungou diante do horário. Não era meia noite ainda, por que estava na cama? Costumava ir dormir quando o sol nascia, desde que perdera a esperança pelo futuro.
Estendeu a mão para o lado, procurando a garrafa de saquê. Pegou-a, mas estava vazia. Irritado, atirou para longe o vidro, que se espatifou no chão.
Levantou-se. Nu, caminhou até o quimono. A cabeça girou, e ele percebeu que estava sofrendo de uma forte ressaca. Precisava de mais álcool. Planejando sua saída para qualquer bordel que ainda estivesse aberto — bem sabia que alguns estavam atendendo às escondidas — ele apertou firmemente o laço da vestimenta.
A batida forte na porta quase o derrubou no chão. Sua testa pulsava e tinha a impressão que sua cabeça explodiria a qualquer momento.
— Jiro — gritou.
Saito costumava dormir ao seu lado. Porém o futon posto ao lado da cama estava vazio. Onde estava o sargento? Como pudera deixá-lo sozinho? Não sabia o quanto precisava dele?
Mais uma batida na porta. Caminhou até lá e ficou de frente com uma tímida serva que se curvou perante ele.
— Senhor, um soldado da Kempeitai está lá embaixo. Disse que era urgente.
Shin a seguiu, ainda de quimono. Desceu as escadarias e observou curioso um jovem membro da polícia. Pelos céus! A cada dia pareciam mais jovens. O rapaz, claramente assustado por estar diante dele, daria pena a qualquer um; porém, Sakamoto estava exausto demais para se compadecer.
— Senhor, desculpe vir à sua casa a essa hora — começou, antes mesmo de Shin cumprimentá-lo.
— Está tudo bem — tranquilizou-o. — O que quer?
— Bom, senhor... — começou tímido. — Prenderam um homem sob a acusação de violação às leis de Preservação da Paz e de Segurança Nacional.
Shin resmungou alguma coisa. Na verdade, qualquer pessoa pacifista ou que mostrasse oposição ao xintoísmo era preso pelo mesmo motivo. O que diabos ele tinha a ver com isso?
— Apesar de estar vestido como civil, tenho quase certeza que o homem era o sargento Saito.
Jiro? Shin arqueou as sobrancelhas. Depois, dispensou o rapaz, dando-lhe uma pequena gratificação em dinheiro. E então chamou a serva.
— O sargento saiu faz umas duas horas — ela respondeu a sua pergunta sobre a localização do outro.
Era só o que faltava. Cabeças rolariam se alguém tivesse ousado encostar um dedo em Saito.
Foi até o escritório. Ligou direto para a central da polícia, e alguém lhe disse que foram feitas algumas prisões. Depois de algum tempo, o policial verificou os registros e constatou que um homem com as características de Jiro havia sido detido, pois desacatou a polícia e não portava documentos.
— O nome informado na ficha? — Shin pediu, suspirando resignado.
— Ele disse um nome, mas não ouso pronunciá-lo ao senhor.
Chutando o pé da mesa, Shin indagou o nome da prisão para onde Jiro havia sido levado. Depois de ouvir a palavra Sugamo, desligou. Em seguida, discou novamente.
Cerca de meia hora depois, Ryo Satoshi entrava pela porta. Só de vê-lo, Sakamoto já percebia seu mau humor latente. Ryo não o cumprimentou, sentou-se diante dele, e segurou o rosto.
Pelo semblante, Sakamoto percebeu que não era o único que andava bebendo demais nos últimos dias.
— Estava dormindo, então espero que seu chamado tenha algum propósito.
— Minha cabeça parece que vai explodir. Porém, preciso chegar a Toshima [48] . Não consigo dirigir e não quero nenhum servo envolvido nisso.
— Envolvido no quê?
— Saito foi preso. Vou até ele para libertá-lo e destruir qualquer processo que possa ter sido aberto. Porém gosto de agir sem testemunhas próximas.
Ryo gargalhou. A cabeça de ambos doeu pelo som alto.
— E eu não sou próximo?
— Você é indiferente demais para se importar com quem o sobrinho do Imperador protege ou não.
— E quem se importaria com isso? — deu os ombros. — Toda Tóquio sabe que você é louco por seu amante.
Shin não retrucou.
— Mas Jiro e eu costumamos ir apenas a prostíbulos. Então, muitos da alta sociedade não o conhecem...
— E?
— E ele poderá sumir assim que a guerra terminar.
Ryo arqueou as sobrancelhas. Subitamente, o interesse ficou mais visível.
— Vou destruir as provas e os cadastros da participação de Saito na guerra. Muitos dos documentos estão no quartel da Kempeitai, ao qual tenho acesso irrestrito. Mas Sugamo mantém também alguma papelada. Então, preciso aproveitar a ocasião. — respirou pausadamente. — Ao final da guerra, Saito será apenas meu servo, talvez até meu cortesão particular. Mesmo que alguém diga que ele esteve na unidade 731, não haverá provas de tal coisa.
— No que está pensando?
— Vamos perder a batalha, eu já sei disso. Quero protegê-lo de acusações de crimes de guerra.
Shin Sakamoto pensando adiante? Era realmente uma surpresa.
— Jamais imaginei ouvi-lo falando assim.
— Igualmente. Estarei indo nessa madrugada buscar meu amante Saito Jiro, filho de um agricultor que me serve há cerca de cinco anos. O sargento Saito Jiro nunca existiu.
Ryo assentiu.
***
A prisão de Sugamo fora construída nos anos 20 e abrigava a maior parte dos presos políticos da época. Grande, em estilo europeu, imponente, ela causaria calafrios em qualquer pessoa. Porém Shin não pensou em nada daquilo enquanto adentrava pelas portas e encarava os guardas que o observavam alarmados.
— Sakamoto-san — o chefe noturno o chamou, pasmo. — O que o traz a Sugamo? E à noite?
— Assuntos do Império — respondeu, simplesmente. — Leve-me até a sala em que ficam os documentos oficiais referentes aos presos capturados. Quero algo sobre um jovem preso nessa noite.
— Trouxeram um jovem rapaz, mas ele não citou seu nome. Quando amanhecer, iremos fazer uma varredura, a fim de verificar sua identidade e puni-lo com todo o rigor. Porém, por ter sido trazido tão tarde, apenas o levamos até a cela. Está sob o poder do Império, e nada poderá fazer para afrontar nosso amado Imperador.
Shin respirou fundo. Menos mal.
— O jovem preso não é um inimigo, apenas está doente, ficando insano. Chama-se Jiro, é meu servo pessoal. Leve-me até ele.
Ao lado de Sakamoto, Ryo Satoshi não abria a boca. Se havia algo que não desejava, era se envolver em mais problemas do que já tinha.
Sakamoto entrou no prédio de três pisos. O tom marrom do ambiente e seu cheiro desagradável não foram as únicas coisas que o incomodaram. Ao abrir a galeria de celas para que entrasse, o soldado lhe estendeu o molho de chaves. Deixando-os sozinhos com o jovem baderneiro, Shin, enfim, percebeu o estado demente de Jiro.
Fora responsável por Saito ter perdido o juízo? Shin, apesar de inconsequente, era forte. Agressivo, ele costumava usar bem as palavras e os momentos para deixar-se afundar no desespero. Mas não sabia ou não percebera que havia levado Saito para o fundo com ele.
— Jiro... — chamou-o.
O sargento estava sentado na cama de pedra, um pequeno fino colchão tentava dar a cama um pequeno conforto, mas a escuridão reinante deixava tudo completamente sufocante, claustrofóbico.
Saito o encarou. Seu olhar era debochado, irônico, desdenhoso. Tão rápido quanto um raio, ele postou-se de pé, e correu até as grades.
— Uma maldade prender-me — gargalhou, a testa encostada na grade que o separava de Sakamoto.
Shin tentou manter o tom amigável, mas firme.
— Que sirva de lição. Não se envolva com a Kempeitai.
— Foi por isso que acha que me prenderam? — O sargento ficou sério. — Não, não foi por causa de uma briga de rua. Na verdade, me deram voz de prisão depois que eu disse que nenhum deles seria covarde com um civil quando os americanos vierem às nossas terras e chutarem o traseiro de todo o exército. Disse que não restará nenhum homem vivo para proteger o descendente da Deusa do Sol — referiu-se a Hirohito.
— Enquanto houver um japonês respirando, Nossa Alteza estará seguro — Ryo interferiu, tentando pôr panos quentes.
— É mesmo? — Jiro o encarou. — E se restar apenas você e eu? Claramente, eu quero que todos se fodam. Mas e você? Dará sua vida por seu Imperador?
Ryo demorou em responder. Respirou fundo, furioso pela colocação.
— É claro — mentiu.
Jiro jogou a cabeça para trás. Seu riso sonoro invadiu as paredes da prisão.
— O povo ama o Imperador — Shin disse irritado, e prestes a avançar sobre o zombeteiro sargento. — E o Imperador ama seu povo. É por esse amor que estamos em guerra, pela soberania de nossa nação.
— Lembre-se disso quando um americano enfiar uma bala nas suas fuças, enquanto estupra sua mãe — o outro prosseguiu no jogo de provocações.
Sakamoto apertou os dedos contra as próprias mãos. Seu rosto retorcia-se de raiva, mas ele conseguiu se controlar. Estranhamente, não conseguia odiá-lo, apesar de claramente Jiro estar odiando-o, talvez tanto quanto a si mesmo.
— É por isso que eu não me matei — a voz de Saito completou seus pensamentos, certeiros. Shin sentiu os olhos encherem-se de lágrimas que recusou a derramar. — Porque eu mereço muito mais que a morte. Eu mereço ser preso e torturado. Eu mereço ser capturado pelos americanos, ser enforcado sem honras. Muitas vezes, nesses anos todos, perguntei-me os motivos da cápsula não ter sido quebrada pelos meus dentes. Mas agora vejo o porquê de forma tão clara...
Não aguentando mais, Shin abriu a porta da cela. Avançou sobre Saito. Segurou-o pelo colarinho. Parecia colérico, mas quando falou, deixou claro que seu semblante denotava o desespero e não a raiva.
— O patriotismo de nosso exército é bravo! — exclamou. — Nossas tropas lutam com todo o coração, enquanto você as ridiculariza!
— Nossas linhas de frente foram aniquiladas em todas as suas posições. Os americanos já chegaram ao nosso país. Estão à beira de chutar nossos traseiros e você ameniza com heroísmo? Os nossos soldados estão morrendo de fome — riu. — Nossos cães [49] estão mais aguerridos que nossos homens! Acorde! É o fim!
Sakamoto quis falar mais. Desejou ardentemente gritar, implorar por qualquer traço de piedade em Jiro, mas o som de uma sirene ao fundo o fez soltá-lo. O trio se observou, estranhando o som. Um soldado entrou correndo no corredor e, afobado, avisou-os:
— Os americanos!
Não parecia real. Em algum lugar na mente de Shin, ele pensou se aquilo não era um pesadelo, como os muitos que o tio amado Hirohito costumava ter. Recordou-se da reunião que participou em 1940, quando o ministro da defesa afirmava sem pestanejar o quão grandiosa seria a vitória do Japão. Lembrava-se da confiança de todos os presentes. Mesmo quando os EUA entraram na guerra, nada abalou a certeza de que seriam os vitoriosos.
Porém, a sirene tocava. Duas, três, quatro vezes. E depois mais. Um zumbido intenso, forte e longo, indicou que aviões americanos sobrevoavam sua terra, o amado solo que o vira crescer, o país pelo qual jurou matar e morrer.
— Precisamos ir para o abrigo, Shin! — Ryo gritou, puxando-o pelo braço.
Fugir... Esconder-se em um buraco, como um rato. Uma vergonha pela qual ele jamais pensou em passar.
Sem saída, deixou-se guiar em direção às profundezas da terra.
***
Alguns minutos antes, no outro lado de Tóquio, Mamoru Aiko olhava para cima. O céu estava enluarado, e as estrelas brilhavam com sua eterna beleza e esplendor. Sentado nas escadarias da Casa Ai, ele pensava nas decisões que devia tomar a respeito do seu futuro.
Shiro cruzou por ele, e o cortesão sorriu para seu menino favorito. Recebeu um aceno como resposta, e sentiu o coração aquecer pela amizade compartilhada.
O pequeno havia praticamente lhe implorado para que fossem embora. Sabia que ficar na Casa Ai não era apenas um problema seu. Seria um grande egoísmo obrigar Shiromiya a viver por Ryo, como ele vivia por Shin. Shiro era forte, aguerrido, iria reconstruir a própria vida longe das promessas vazias. Pela primeira vez na vida, ele percebeu que devia seguir seu exemplo.
— Já passa da meia-noite — comentou. — Não vai dormir?
— Estava ouvindo a rádio, e o radialista aconselhou a guardar os pertences mais importantes no abrigo. Estou levando para lá minha caixinha de dinheiro e joias e também meu livro — mostrou “A Tulipa Negra” para o outro.
— Faz bem...
— Devia guardar suas coisas no abrigo também, Aiko-san — recomendou. — Por precaução.
— Farei isso, meu querido — assentiu.
Shiromiya foi em direção ao pátio, onde ficava a entrada para o abrigo. Mamoru o acompanhou com as vistas, até o rapaz sumir no horizonte, descendo pela portinhola no chão.
Suspirou, levantando-se.
A brisa suave bateu contra seu rosto, e o cabelo longo balançou. Levou os dedos às madeixas e prometeu a si mesmo cortá-las assim que fosse embora.
Sim... iria embora.
Cansado, havia chegado ao seu limite. Era hora de seguir em frente, de pôr seu amor por Shin em um canto obscuro de seu coração, esquecer-se dos momentos compartilhados e viver com a dignidade que lhe restava.
— Filho?
Virou-se para Nana. A velha estava parada no topo da escada e o encarava, curiosa.
— Está sorrindo — ela comentou. — O que aconteceu?
— Amanhã irei colocar a Casa Ai à venda — contou a ela, resoluto.
O semblante de Nana tornou-se puramente felicidade. Percebeu os olhos lacrimejantes, aliviados, e ficou feliz.
— É verdade?
— Shiro está certo. Não há mais nada para nós aqui — afirmou.
Nana desceu dos degraus. Parecia ansiosa para ir até ele e abraça-lo pelo presente. Porém, o som agudo de sirenes interrompeu o momento.
— O que é isso? — ela indagou, olhando para o céu.
Um dia, Nana havia dito a ele que a vida era uma tempestade que nascia de forma inesperada, intensificava-se rapidamente e, aos poucos, se apagava, restando apenas gotas de uma chuva mansa, lembranças para aqueles que ficavam ao vê-la partir. Ele lembrou-se das palavras, quando um som intenso chocou-se contra suas orelhas. A pele esquentou, e sentiu-se sendo projetado para trás. Em seguida, um líquido úmido cobriu-o totalmente, lavando-o do fogo que queimava.
O chão tremeu, e a noite virou dia. O som das explosões intensificou-se, uma após a outra, como uma chuva forte de verão. Percebeu que, após ser atirado ao léu, acabou deitado sobre a grama outrora verdejante da Casa Ai. Sentou-se, observando a si mesmo. Estava vermelho, coberto de sangue vivo e grosso, correndo por todo o seu corpo.
Ergueu a face. Percebeu a metade de um corpo nas escadarias. Um par de pernas gordas, e só. Ajoelhou-se, arrastando-se até aquele pedaço de carne. No caminho, um braço o fez parar. Era de Nana, reconheceria aquela pele em qualquer lugar. Olhou em volta, a cabeça da velha estava a uns cinco metros do corpo, perto da fonte de água.
Subitamente, entrou em choque, procurando o resto do corpo. Queria Juntar as partes, unir os pedaços da sua mãe. Queria-a de volta, porque ambos iriam para o interior. Ela viveria tranquilamente seus dias finais, e morreria quentinha numa cama macia, ao lado dos filhos que adotou durante a vida — Shiro e Aiko.
Outra explosão. O resto do corpo perdeu-se naquele amontoado de fogo.
O olhar de Mamoru também perdeu-se ali, a olhar o vermelho crescente consumindo a carne da pessoa que mais o havia amado em sua vida.
***
Shiromiya Kazue entrou no abrigo e encontrou o gato Minikui parado em volta das latas de sardinha. Riu, percebendo que o felino havia encontrado aquele paraíso de alimentos.
— São para alguma emergência — disse-lhe, planejando levá-lo a cozinha para que comesse o resto de peixe que havia sobrado da janta.
Depois, guardou atrás das latas sua caixa preciosa. O livro deixou mais à vista, perto da cama.
Pegou o gato gordo no colo, preparando-se para deixar o local, quando o som de um forte estrondo o estancou. Todo o abrigo tremeu, e a luz de emergência piscou duas vezes. Shiro permaneceu imóvel, assustado, repentinamente ciente do que aquilo significava.
Largou o gato no chão e foi até a porta do abrigo. Com uma mão no ferrolho, ele abriu levemente e observou o ambiente fora do local. Estava tudo iluminado e quente. Não precisava ser um gênio para perceber que havia explodido uma bomba em cima da Casa Ai.
Chamou por Aiko e Nana, mas não recebeu respostas. Pensou se devia permanecer onde estava — em segurança — ou ir atrás da sua família. O coração decidiu por ele. Segundos depois, ele saía pelo pátio flamejante, gritando.
Foi em direção ao local, onde havia visto Aiko momentos antes. Ao longe, percebeu um homem de joelhos no chão, a segurar algo que percebeu — assombrado — ser um braço humano.
— Mamoru! — gritou. — Mamoru! — repetiu, diante da passividade do outro.
Deu dois passos em sua direção. No entanto, algo explodiu ao seu lado. Jogado para um lado, ele caiu como um boneco de pano no chão. Subitamente, o silêncio. Gritou, e não ouviu a própria voz. Estaria surdo?
Foi quase engraçado quando ouviu novamente outro estrondo. Que tipo de alívio podia existir em escutar o inferno? Porém, chegou até Aiko. Encontrou-o inundado em sangue. Abraçou-o com força. O corpo do cortesão estava estagnado, fixo no lugar.
Tentou movê-lo, mas não conseguiu. Então, decidiu ficar ali e morrer com ele...
***
— Preciso ir para o Bairro Vermelho!
O soldado do Corpo de Lei postou-se em frente a Sakamoto.
— A cidade agora é só uma lavareda de fogo, meu senhor.
— Não! — Shin retorquiu. — Não! Somos a cidade da deusa do Sol! Não é verdade! — seu desespero era nítido, mas agravou-se ao perceber o que havia ficado para trás. — Aiko... — murmurou. — Preciso voltar!
— Preciso protegê-lo, senhor — o soldado se recusou a abrir a porta. — Não pode sair daqui. Só há morte fora dessa porta.
Enquanto Shin pôs-se a gritar, Ryo e Jiro correram em direção à enorme porta maciça. Estava trancada. Então, ambos se voltaram ao soldado.
— Não somos da família Imperial — Ryo disse. — Então, nos deixe sair!
— Abrir essa porta é pôr em risco o amado sobrinho de Vossa Alteza.
— Não me importo — Ryo gritou. — Aiko está lá fora! Shiro está lá fora! Preciso ir até eles!
— Eu lamento, senhor. Mas minhas ordens são...
— Que se danem suas ordens! — Shin avançou sobre o rapaz.
O soldado, visivelmente confuso, tentou proteger o molho de chaves, mas os outros dois homens o seguraram, enquanto Sakamoto procurava as chaves em seu bolso. Ao encontrá-las, resmungou diante do molho de mais de cem pequenas chaves.
Jiro as roubou de suas mãos, e correu até a porta. Uma a uma, ele começou a experimentar. Levou quase vinte minutos, até ouvir a fechadura destrancar. Subindo as escadas livres, eles chegaram à parte superior da prisão.
Correndo até a porta, Ryo observou a cidade a distância. As bombas não haviam atingido Toshima, mas ao longe se podia observar o fogo que subia quase até os céus.
— Bombas de gasolina — Jiro surgiu ao seu lado. — Os que não morrerem nas explosões serão queimados vivos pelo fogo.
— Shiro...
— Shiro e Aiko devem estar mortos — constatou, chocado.
O tom exausto de Jiro fê-lo avançar contra o sargento. Segurou-o pelos braços, e o balançou com raiva.
— Repita isso e será um homem morto!
— Não pode matar o que já morreu.
Ao lado deles, Sakamoto observava tudo espantado. Aquela imagem na janela era literalmente o pior final possível para a tão santa guerra que travaram. As chamas subiam, raivosas, explosivas. Mesmo ali, longe do horror, podiam-se ouvir os uivos de agonia. Parecia uma canção, intensificada por muitas vozes. Jiro estava certo, era literalmente impossível que Mamoru ou Kazue sobrevivessem.
Erguendo as duas mãos, segurou o rosto, tentando não ficar insano diante do que via. Repentinamente,o rosto de Mamoru o observando destruído naquela ruela, o som de sua voz dizendo que o amava, implorando-o para que ficasse com ele, para que não o abandonasse, para que não o rejeitasse, mesclou-se com a sensação do toque das peles, do som dos gemidos nos seus ouvidos, da forma como ele exigia durante o sexo, da maneira como ele acariciava seu rosto enquanto dormia... Das mãos que se uniam desde crianças para que ambos se sentissem seguros...
Esse Aiko... O seu Aiko... Morto.
E então mais nada importou. Nem o sangue chinês que corria nas veias do cortesão, nem a sensação de que fora enganado por tantos anos, nem o tempo que passou... Tudo que restava era o amor que ainda fazia com que seu coração batesse com força no peito.
Capítulo 37
Shiromiya Kazu e salvou Mamoru Aiko. Seria mentira dizer que o que o impulsionou a arrastar o corpo pesado de seu amigo até o buraco que dava entrada ao abrigo fosse algo grandioso, como a legítima coragem ou o terno amor. A verdade foi que, agarrado em Mamoru, enquanto sentia a cabeça latejar pelo som forte das explosões, e o choro cortar sua garganta na mesma medida que o terror resplandecia em seu âmago, o dançarino da Casa Ai lembrou-se do pequeno gato gordo e malhado que deixara no abrigo.
Subitamente, ficou consciente que Minikui estava preso lá, cheio de latas de comida e galões de água que não iria conseguir abrir para se alimentar e beber. Quem daria falta de um animal quando Tóquio inteiro ardia em chamas? Sua mente, então, visualizou o pobre gato miando desesperado enquanto a terra tremia e as luzes piscavam. Imaginou-o com os dias passando, sofrendo de inanição e sentindo-se abandonado. Minikui era tão parte da sua família quanto Aiko e Nana. Ele não podia mais salvar Nana, mas jamais abandonaria Minikui à própria sorte. Então, colocando-se de pé, pôs as mãos abaixo das axilas de Mamoru e o puxou. Determinado, focou-se no objetivo de salvar seu protetor.
Enquanto o inferno parecia instalado ao seu redor, Shiro fez um trajeto difícil e dolorido até a entrada do abrigo. Ao chegar lá, puxou o ferrolho de ferro para cima e praticamente jogou o corpo de Aiko para baixo. Quando entrou atrás dele e fechou a porta, ouviu mais um som terrível sobre sua cabeça. Percebeu então que uma bomba estourara no exato lugar onde estivera um minuto antes. Consciente de que podia estar morto, enfim, resvalou das escadas de madeira e caiu para baixo, chocando-se contra um Mamoru entorpecido.
Depois, as horas pareceram se arrastar. O som das bombas durou tanto tempo que sua cabeça ainda sentia os latejos doentios mesmo quando as explosões pararam; porém, horas depois, tudo que restava era o silêncio. Pareceu ao rapaz que o gato malhado, Mamoru Aiko e ele eram os únicos sobreviventes daquele horror.
Shiromiya, alguns anos depois, saberia que naquela noite, a capital japonesa havia sido bombardeada por mais de 300 aeronaves especialmente carregadas de explosivos que transformaram uma área de quarenta quilômetros num grande fogareiro movido à gasolina.
Sobrevivente passivo de uma quantidade de mortos que ultrapassou os cem mil, mantido sobre um abrigo privado com água e comida, enquanto milhares ficaram desabrigados e desamparados, seria eternamente grato a Ryo por ter convencido Mamoru a construir aquele ambiente que o livrara da dor e da devastação.
Porém, no instante que colocava o corpo de Aiko em cima da cama, Shiromiya só conseguia pensar na própria dor e desespero. O que faria? O que seria deles? Pensava sim na guerra, às vezes. Porém, nunca a imaginou daquela forma. Sentiu-se tão fraco e desprotegido que se sentou ao lado da cama e chorou por tanto tempo que perdeu a noção das horas.
A mente focou-se muito em Nana, apesar de ela não ser a única pessoa que amava que estava morta. Não sabia o destino de Mika e Midori. Será que Keiko sobrevivera? E Jiro? Shin? Por Deus! Se algo tivesse acontecido a Ryo, ele não iria aguentar.
No dia seguinte, ainda trancados no abrigo, ele resolveu se ocupar. Quando Ryo o magoava, costumava passar o dia todo no jardim, cuidando das plantas. Naquele momento, sabendo que suas flores estavam todas destruídas e sem poder se afastar do lugar que estava, começou a cuidar da única coisa ali que realmente precisava de cuidados.
Pegou uma toalha e a umedeceu com um pouco de água. Depois, voltou para perto de Aiko, tentando limpar o sangue que secara em seu rosto. Enquanto trabalhava, deu-se conta de que nunca mais veria Nana, de que não a abraçou pela última vez nem se despediu. Nunca lhe agradeceu por tudo que fizera por ele, nem a recompensou com algo que a orgulhasse. Assim, lavando Aiko, ele esforçou-se para segurar o pranto. Mas as lágrimas foram mais fortes do que ele. Ajoelhou-se perante Mamoru e chorou novamente, agarrado em seu colo.
Conforme o choque foi passando, percebeu que Aiko não reagia às suas palavras e toques. Também não chorava, não falava, não reclamava. Ficava sentado, os olhos inertes. Olhava para frente, mas Shiro soube que ele realmente não estava vendo nada em particular. Em silêncio, até mesmo seu piscar foi lento e forçado.
Então, abriu a primeira lata de atum das muitas armazenadas ali. Serviu a metade para Minikui num pequeno pote e levou o restante para Mamoru. Como ele sequer o encarava, pegou um pedaço do peixe moído e o pôs em sua boca, forçando a entrada. Nada.
— Precisa comer, Aiko-san — disse.
Não recebeu retornos. Até tentou impelir o amigo a abrir os lábios, mas a boca travada não fez qualquer menção de ajuda. Então, levou o restante novamente para o gato, que pareceu não estar tão chocado quanto os humanos.
No final do primeiro dia dentro do abrigo, Shiromiya começou a sentir frio, o que era até engraçado, pois alguns metros sobre sua cabeça, Tóquio literalmente pegava fogo. Com um pequeno cobertor, enrolou-se e sentou-se ao lado de Aiko, enquanto sentia os dentes batendo um contra o outro. Teve febre ali, ao lado de alguém que perdera a consciência, e de um gato que nada podia fazer para ajudá-lo.
— Reaja, por favor — implorou enquanto se deitava ao lado do cortesão. — Por favor, não vou conseguir sozinho — choramingou.
A sua resposta foi o silêncio.
Momentos depois, Minikui pulava sobre a cama de solteiro e se encolhia entre os corpos aquecidos dos seus tutores. E com o ronronar baixo do gato, ele fechou os olhos.
***
Shin Sakamoto e Ryo Satoshi precisaram ficar presos dentro do abrigo para sua própria segurança. Enquanto a cidade queimava e seus habitantes eram carbonizados, ambos queriam percorrer as ruas da capital como heróis indo salvar seus amados. Tolice à parte, o mais lúcido deles, Jiro Saito, ao perceber o intento, prendeu-os. Não foi tarefa fácil, é verdade, mas depois de nocautear Sakamoto — coisa que ninguém mais se atreveria a fazer — ele conseguiu o apoio de um dos soldados e ambos, enfim, conseguiram algemar Ryo e carregá-lo para o subsolo. Shin foi parar lá desacordado.
Claro que Saito se preocupou com Aiko e Kazue. Todavia, não havia o que fazer. O calor no centro ao raio de quarenta quilômetros de onde as bombas foram arremessadas atingia uma temperatura de 800ºC. Nenhum ser humano sobreviveria àquilo. A maioria dos que tentaram avançar para ir ao encontro de seus familiares, morreram queimados ou asfixiados.
Mesmo ali, onde as bombas não atingiram, o ar esfumaçado era difícil de respirar. Usando uma máscara de gás, ele seguiu com alguns soldados nas imediações de Tóquio, tentando encontrar um caminho seguro para ir com Shin mais tarde. Porém, foi impossível tal intento nas primeiras quarenta e oito horas.
Na manhã do terceiro dia, após o bombardeio, ele abriu a porta do abrigo. Sakamoto avançou sobre ele, mas Jiro se defendeu, atirando o corpo do membro da realeza contra a parede.
— Ora, está preocupado com o chinês? — resmungou, irritado. — Achei que desejasse que ele morresse — disse, cruel. — Talvez, se as bombas não o mataram, nós mesmos podemos terminar o serviço?
Ryo ficou chocado pelo tom, mas compreendeu a irritação de Jiro. Foi preciso um bombardeio e a possibilidade quase inquestionável da morte de Aiko para que Shin reagisse como o homem apaixonado que era.
Pôs-se entre eles, e encarou Saito.
— Aiko tem um abrigo — contou, a contragosto. — Vi Shiro em muitas visões futuras, então sei que ele está vivo. Porém, não quero contar com isso sem olhá-lo e ver com meus próprios olhos “físicos” — destacou. — Só assim terei certeza de que realmente está bem.
— Sim, eu sei do abrigo — Saito assentiu. — Porém, foi tudo tão rápido... Temo que não tenha dado tempo.
Sakamoto nada disse. O que poderia manifestar? Tinha vergonha de si mesmo, por estar tão desesperado. Ora, não devia sentir-se aliviado? Por que sofria tanto por alguém que sequer era um japonês legítimo?
No entanto, as respostas estavam mais claras que qualquer dúvida. Ele amava Mamoru, não mais o deixaria à mercê de nada.
Eles saíram pelas ruas pouco tempo depois. Conforme iam se aproximando das áreas atingidas, a agonia tornou-se um nítido desespero. Por todo o lado, as enormes construções tornaram-se apenas amontoados de concreto. A maior parte das casas virou pó, e as pessoas eram apenas pedaços de pernas, cabeças e braços jogadas ao léu.
Enquanto os passos vacilantes avançavam, o rosto de Shin contorcia-se em dor e tristeza. Mais do que em qualquer outra pessoa, ele sentia cada lágrima derramada, cada grito de desesperança de sobrevivente e cada luto estampado em faces desconhecidas. No entanto, nada o assolava mais que a culpa.
— Por quê? — indagou-se pela primeira vez desde o início da guerra. — Por quê? — repetiu, dessa vez mais alto, fazendo com que Saito o encarasse. — Por que fomos tão arrogantes? Por que ouvimos os militares? Por que permitimos que nosso povo perecesse?
Não ouviu nenhuma resposta. Aliás, não existiam respostas coerentes a serem dadas. Havia sido uma sucessão de erros e más escolhas que os levara até aquele momento. E, diante de tantos corpos, nenhum pedido de perdão bastaria.
Levaram quase um dia todo caminhando entre os destroços. Nenhum carro conseguia chegar até o bairro vermelho, pois as ruas estavam intransitáveis. Então, cada um deles saiu de manhã com uma garrafa com água e determinação de encontrar os amigos.
À medida em que a Casa Ai se aproximava, Ryo retardou o passo e fez um sinal para que Saito o acompanhasse. Afastados de Shin, o comerciante segredou:
— Sempre vi Shiro em minhas visões, mas nunca vi Aiko. Então...
— Acha que Mamoru morreu?
— Não quero acreditar nisso, mas a possibilidade existe e é a mais certa até então — assumiu, sentindo os olhos arderem. Resmungou, fingindo ser a fumaça a causa de sua fraqueza, e secou os olhos, voltando-se novamente para Jiro. — Se Aiko morreu, Shin vai enlouquecer.
— Eu sei disso.
— Precisa tirar o revólver do coldre dele — pediu. — No momento que vir o corpo de Aiko, ele vai disparar na própria cabeça, eu tenho certeza disso.
Jiro assentiu.
— Vou me manter alerta — prometeu.
A rua que dava acesso à Casa Ai estava completamente coberta de cinza. Não havia mais casas nem muros circundando-a. Vários pedaços do que um dia fora gente estavam espalhados por cima e por baixo dos restos das residências. No entanto, todos estavam queimados e não era possível reconhecer nem os rostos e nem os sexos.
Quando chegaram diante da antiga Casa do Amor, a comoção não pôde mais ser evitada. Não havia sobrado nada. Nenhuma parede ou uma das flores que Shiro cuidava com tanto amor. Até mesmo o portão estava no chão, queimado.
Jiro foi o primeiro a entrar. O corredor de pedras estava sujo, e a fumaça ainda saía das paredes de madeira de lei em volta dele. Cobriu o nariz com um pano ao ficar asfixiado pelo cheiro.
Os pedaços de Nana foi a sua primeira visão completa. Reconheceu as pernas pelo tamanho, apesar do tom escuro. A parte de cima do seu corpo não estava em nenhum lugar à vista.
— Onde está Mamoru? — ele ouviu o tom aflito de Shin. — Onde ele está? — Sakamoto gritou, empurrando Jiro e entrando nos destroços.
Saito tentou segurá-lo, enquanto Ryo Satoshi permaneceu estático. Afinal, sua inquietação era outra: onde estava Shiromiya?
Devia estar ali, sentado nas escadas, aguardando-o. Porém, Nana estava morta, e Aiko podia ter virado cinza.
Conforme Ryo previra, quando entrou no que restava do quarto e não achou Mamoru, Shin puxou o revólver da cintura. O estrondo forte da bala chocou-se contra uma parede, fazendo com que lascas de madeira voassem longe. Foi assim porque Saito Jiro agarrou Sakamoto no exato momento em que ele levava o cano para a boca.
— Seu covarde filho da puta! — Jiro gritou.
Pela segunda vez naqueles dias, ele bateu em Shin.
— Eu? Covarde? — Shin reagiu. — Meu país acabou, perdemos a guerra! — gritou. — Meu tio será humilhado, minha família poderá ser enforcada, e a única pessoa que eu amei morreu enquanto eu estava longe e nada podia fazer por ela! Dê-me um motivo para que eu viva, Saito!
Um miado baixo chegou até ele naquele instante. Girando o rosto, ele percebeu um gato gordo e assustado perto de si.
Repentinamente, ajoelhou-se no chão, e Minikui correu até ele. Apertou o pequeno corpo contra o rosto, molhando os pelos com suas lágrimas. Não percebeu logo atrás do gato Shiromiya Kazue, enrolado em um cobertor sujo, chorando diante da cena.
***
Ryo foi o primeiro a vê-lo, parado ao lado do que devia ser um pilar de concreto, o rosto empoeirado de cinzas escuras e os olhos transbordando lágrimas. Vivo, no entanto. Mesmo que estivesse para sempre marcado por aquela noite de março, naquela manhã três dias depois do bombardeio, Kazue Shiromiya respirava diante dele, enquanto tentava aquecer o corpo num cobertor mais sujo que o chão que pisavam.
Correu em sua direção. Naquele instante, Saito e Shin também o perceberam, mas Ryo chegou antes até ele. Não conseguiu pensar, segurou seu rosto com as duas mãos, observando com atenção cada detalhe que tanto adorava.
Sorriu.
Shiro estava ali. Shiro estava bem. Percebeu naquele momento que o garoto pobre era seu bem mais precioso. Puxando seu rosto para si, beijou seus lábios com ardor, tentando não só confortá-lo por sua ausência de meses, mas também deixar claro que o protegeria a partir daquele momento. O outro não recusou, apesar de também não corresponder ao seu carinho. Estático, apenas sentiu os lábios serem esmagados pela boca faminta de Ryo, que só o soltou quando o ar começou a faltar de seus pulmões.
Saito Jiro ficou tentado a soltar algum comentário grosseiro, irritado pelo que considerou mais um teatro do comerciante, mas seus olhos permaneciam em Shin e no que quer que fosse que o seu senhor estivesse prestes a fazer. Para seu alívio, Sakamoto caminhou até Shiro. Afastando o outro de Ryo, após largar o gato no chão, ele segurou firme os ombros de Kazue. Observou-o atentamente, e percebeu o olhar derrotado do menor.
— Você está bem? — indagou, apesar de não serem aquelas as palavras que desejava dizer.
— Estou bem... — Shiro assentiu.
Era mentira. O corpo trêmulo embaixo das cobertas denotava outra coisa. Saito se aproximou dele e estendeu a mão na sua testa. Depois, deu um olhar significativo aos companheiros de jornada.
— Precisa ver um médico — Ryo o puxou pela mão.
— Mas...
— Aiko — Shin o interrompeu, dizendo o nome que parecia cortar sua alma. — Ele está...?
Não completou a frase. Não conseguia.
— Ele está no abrigo, mas não sei dizer se está bem...
A resposta fez o peito de Sakamoto doer.
— Como assim?
Shiro apontou a direção do que era o pomar. Shin correu para lá, e Saito o seguiu. Ryo ficou ao seu lado, sem conseguir se mover.
— Me preocupei tanto com você — admitiu. — Digo, eu sabia que sobreviveria, pois eu o vi...
— Nas suas visões — Shiromiya concluiu. — Sim, você sempre diz isso.
— Desculpe se isso o incomoda — pareceu sincero. — Apenas, de alguma forma, eu sabia que estava bem. Então, assim que foi possível passar pelas ruas, vim atrás de você porque é muito importante para mim.
— É muito triste que seja necessário um bombardeio para que as pessoas reconheçam a importância de outras em sua vida. — Shiro o encarou. — Eu precisei de você muitas vezes no passado. Precisei de você naquele dia que me ignorou no parque, fugindo porque eu fiz um comentário infeliz sobre sentimentos. Precisei que colocasse as mãos nos meus ombros e, mesmo que dissesse que não compartilhava das mesmas emoções, ainda entendia as minhas. Mas não esteve lá para mim. Também não esteve ao meu lado quando as bombas explodiram, e eu sobrevivi. Então, definitivamente, não preciso de você agora, Ryo-san. Eu já me confortei sozinho, eu já aprendi que sou forte.
Negando suas palavras, ele tentou se afastar, mas as pernas vacilaram. Cairia no chão, não fossem as mãos fortes de Ryo a segurá-lo.
— Não precisa de mim, Shiro — sussurrou. — Mas eu preciso muito de você — assumiu.
***
Shin Sakamoto foi o primeiro a descer pelo buraco no solo. Percebeu que o abrigo que Aiko havia construído era bem planejado e feito, com um bom sistema de ventilação. E também havia um estoque de água e comida desidratada em prateleiras à esquerda. Estava iluminado por um gerador de energia, e a cama de solteiro do lado estava com um colchão e cobertores. Contudo, realmente não prestou muito atenção no ambiente. Logo seus olhos observaram um rapaz sentado, os olhos abertos, mas apagados. Respirava lentamente, com dificuldades.
Mamoru...
O corpo coberto por sangue seco estava sujo. Os cabelos lindos que ele costumava ostentar soltos e brilhantes, estavam grudados, a roupa rasgada e a boca seca.
— Ele está em choque — Saito surgiu ao seu lado, e depois correu até o amigo. — Mamoru — chamou. — Sou eu, Jiro... — pôs uma das mãos diante dos olhos de Aiko e balançou a mão de um lado para o outro, tentando chamar sua atenção. Nada. — A boca está seca — disse para Shin. — Ele está desidratado, deve estar sem beber água desde o bombardeio. Precisamos tirá-lo daqui e levá-lo até um médico. Precisa de soro...
Mal terminou de falar e percebeu Shin puxá-lo. Em seguida, o outro curvou-se perante Aiko e o ergueu.
— Vamos logo — disse com urgência.
Jiro assentiu.
Voltaram para o pátio em minutos. Shin trouxe Aiko, que recebeu um afago na fronte de Ryo. Os dois amigos se encararam, e sorriram. Por mais estranho que parecesse tal coisa, foi importante para ambos aquele ânimo novo.
— Aiko está vivo — Shin contou, a voz transbordando emoção. — Vou levá-lo para o bunker [50] .
— Preciso falar com você antes de irmos — Ryo avisou.
— Agora? Mamoru precisa de cuidados.
— Agora — Ryo afirmou.
Contrariado, Shin colocou Mamoru sentado em um banco de pedra que sobreviveu ao ataque. Depois, seguiu o homem para a direção do ex-jardim. Ryo só parou de andar quando estavam a uma distância segura do trio.
— Vai levar Mamoru para o bunker?
— É o lugar mais seguro de Tóquio. Nesse momento, minha família deve estar lá. O Imperador também foi levado para lá...
— E vai levar Mamoru e Shiro? — voltou a indagar, repetitivo.
— Nunca mais deixarei Mamoru fora das minhas vistas.
— E Shiro...?
— Bom — curvou a fronte, incomodado. — Darei um jeito. Minha sala no bunker tem duas camas. Uma para mim e outra para meu servo. — olhou Saito. — Mas podemos dividir o leito. Aiko e Shiro poderão dormir na cama. Durmo no chão se for preciso.
Ryo respirou fundo.
— Levarei Shiromiya comigo para Hokkaido.
— O quê? — Shin arqueou as sobrancelhas. — Não pode fazer isso! Shiro e Aiko são muito próximos. Além disso, com a morte de Nana, Shiromiya é tudo que Aiko tem que possa considerar sua família.
O comerciante tossiu. Depois, respirou fundo novamente, buscando as melhores palavras. Quando não as achou, disse aquilo que precisava, apesar da dificuldade.
— Vou ser bem claro, para que não reste nenhuma dúvida sobre a seriedade da situação, meu amigo — disse. — Shiromiya vai comigo para Hokkaido. Não haverá nenhuma discussão sobre isso. Você dirá a ele isso agora, e será enfático e claro. Se ele não quiser ir, vai obrigá-lo, nem que precise usar sua posição como membro real. Não me interessa a sua forma de coação, fará com que ele entre no meu carro de qualquer forma.
Shin mordeu o lábio inferior, bastante irritado.
— Shiromiya é meu protegido — disse. — O país pode estar ruindo, mas não falará comigo nesse tom, seu merda.
Pronto. Shin havia perdido a paciência, e agora seria bem mais fácil de ser manipulado.
— Vamos ser objetivos, meu caro amigo. Você está levando seus amigos ao bunker, que devia ser usado apenas pela família Imperial. Estará quebrando regras, mas creio que ninguém se colocará contra sua vontade. Porém, será que terão a mesma compreensão ao descobrirem que um dos que serão levados é um chinês? — Abriu a boca, encenando um espanto. — Oh céus, um chinês respirando o mesmo ar que o poderoso Imperador!
— Eu te mato.
— Vai demorar um pouco para achar a arma que Saito tirou de você e colocou sobre os escombros — abriu o casaco e mostrou-lhe a pistola. — Sakamoto-san, somos amigos desde crianças, eu jamais faria nada para prejudicá-lo, mas o mundo está acabando e eu não morrerei sem aproveitar os prazeres que até então me foram negados.
— Vá pro diabo! — Shin sussurrou.
— Não machucarei Shiromiya. Ao contrário, darei a ele uma vida maravilhosa. Será meu amante particular, colocá-lo-ei em uma casa bonita, com servos para cuidarem de cada pedaço dele. Terá comida, bebida, prazeres. Terá mais comigo do que você possa imaginar.
— Mas é cruel — retrucou. — Afastá-lo de Mamoru é de uma crueldade sem tamanho. — Pôs as duas mãos no rosto, afastando a franja para trás. — Eu achava que você gostava dele...
— E eu gosto.
— Não gosta — negou. — Se gostasse tentaria mantê-los juntos. Não gosta nem de Aiko, sabendo o que ele sentirá quando acordar desse choque e notar que o irmãozinho que ele tanto ama foi levado para longe.
Ryo ficou incomodado com as palavras.
— Estou apenas fazendo com que o meu destino se cumpra. Nada precisaria ser assim se Shiromiya fosse menos...
— Menos o quê? Não vai achar a palavra, meu amigo. Porque o que você deseja de Shiromiya é que ele não tenha amor próprio, que ele se submeta a tudo por você. E quer saber? Venceu, Ryo. Leve-o com você, mas guarde as minhas palavras. Um dia, no futuro, você vai se arrepender do que está fazendo. Vai perceber que seria muito mais fácil atingir o coração de Shiro com respeito. E também vai se arrepender do que está fazendo aos seus amigos.
— Guarde as suas palavras na bunda, Shin Sakamoto — Ryo ergueu o dedo para ele, em riste. — Eu estive ao seu lado durante meses, eu aguentei seus porres e as suas irresponsabilidades. E quer saber mais? Seu amado Mamoru só está vivo agora porque eu o avisei para construir um abrigo. Não ouse tentar atirar maldições contra mim, porque eu mereço ser feliz, e eu o serei com Shiromiya.
Shin deu as costas, e começou a caminhar em direção ao trio.
— Não guardarei mágoas, Ryo. Sei que um dia me pedirá perdão por isso.
— Nunca.
— Veremos...
***
— Ele pode ficar no meu lugar — Saito retorquiu, sendo fulminado pelo olhar raivoso de Ryo.
— E você ficará onde? — o comerciante resmungou.
— Ora, posso ir para Hokkaido com você.
Shin e Ryo não contaram com aquele obstáculo. Saito parecia ler a mente deles, e estar disposto a atrapalhar aqueles planos.
— Não pode, Jiro. Preciso de você. Além disso, não poderei levar Shiro até o bunker.
— Eu posso ficar aqui — Shiromiya se manifestou. — Tenho água e comida no abrigo.
— Está com febre, precisa de cuidados. Além disso, assim que as outras pessoas perceberem que aqui tem comida, poderá ter problemas. Não é seguro.
— Mas não quero ir para longe de Aiko-san — firmou-se.
— Também não quero que vá, Shiro — Shin curvou-se perante ele, segurando seus joelhos. — Não imagina como temo a reação de Aiko quando notar que não está ao lado dele. Mas, Shiro...
Calou-se. Havia puro arrependimento no seu tom. E não era uma culpa falsa como a de Ryo Satoshi. Conhecendo Shin como conhecia, Saito percebeu o seu drama, e resolveu intervir.
— Bom, será por pouco tempo, não é? — virou-se para Shiro. — Confie em mim, assim que possível eu irei até você.
Ryo pareceu ainda mais irritado do que de costume, e quase se colocou entre eles. Porém, nada fez para não amedrontar Shiro. Queria que o outro achasse que suas ações eram apenas consequências do momento.
— Tenho um bom abrigo, Shiro — disse. — Ficará seguro comigo, prometo.
O garoto então assentiu. Porém, logo após, explodiu num choro incontrolável. Jiro sentiu os olhos arderem e Shin deu as costas, recusando-se a ver aquilo. Ryo, no entanto, permaneceu impassível. Sabia que Shiro chorava naquele momento, mas o faria muito feliz. Um dia Shiromiya o agradeceria por aquilo.
Então Shiro foi até Mamoru. Ajoelhou-se perante ele e agarrou-o, escondendo o rosto na sua barriga. Chorou tanto que molhou o quimono do protetor, sentindo-se tão perdido e abandonado como nunca até então.
— Me perdoa Aiko-san — pediu. — Eu prometo que um dia eu voltarei — ergueu o rosto, sentindo as lágrimas caírem sem controle.
Shiromiya não sabia, mas o beijo na face cansada de Mamoru seria uma lembrança que o acalentaria durante muitos anos. Como se previsse, ele guardou na mente o semblante impassível de Aiko, e prometeu nunca esquecer seu rosto, sem saber que os anos levariam aquela lembrança, restando apenas um calor gentil no coração.
Capítulo 38
Shiromiya fo i medicado em uma espécie de tenda erguida do lado de fora do hospital de Tóquio. Por ter apenas febre, o médico mal o olhou, apesar das tentativas de suborno de Ryo Satoshi, que exigia uma avaliação mais minuciosa sobre o amigo. Já Shiro, compreensivo, tomou o remédio e saiu do local, dando lugar a um homem que segurava um pano ensopado de sangue no lugar do braço.
Havia muitas vozes naquele ambiente. Quase todas eram gemidos de agonia, e algumas frases soltas sobre qual atitude o Imperador iria tomar diante de tal afronta americana. Porém, nenhum tom era mais alto do que o choro interno de Shiro, diante da solidão que sentia.
Despediu-se de Aiko duas vezes. A primeira, chorando desesperado sentado diante dele, o rosto afundado em seu corpo tentando aspirar qualquer resquício do amigo/irmão. Depois, quando o grupo chegou até uma encruzilhada no caminho. Sakamoto colocou as mãos nos seus ombros e prometeu que iria atrás dele, assim que possível. Jiro o abraçou, apertando-o tanto que sentiu o ar faltar.
— Por favor, cuide de Aiko-san — lembrava-se de ter pedido.
Saito assentiu, segurando lágrimas que não derramou. Shiro afagou a cabeça do gato que Jiro levava e sorriu, triste. Depois, o trio foi embora, pelo caminho que direcionava o palácio. Ele carregaria para sempre a imagem de Mamoru sendo levado no colo, seus longos e lindos cabelos balançando, embaçados, ao vento, e o olhar perdido em algum lugar do espaço.
Ryo não se despediu dos amigos. Estranhamente, no momento, Shiromiya não se atinou ao fato. No entanto, enquanto eles se aproximam do hospital, a constatação de que os dois inseparáveis amigos Shin e Ryo estavam brigados o enervou. Por que motivo?
No final do dia, eles, enfim, chegaram até a casa que Ryo mantinha em Tóquio. Todo o lado leste da residência estava no chão, mas os fundos e a parte frontal oeste havia se salvado do fogareiro.
— Vamos embora hoje mesmo — Ryo avisou, e Shiro apenas concordou, já que realmente não tinha capacidade de retrucar qualquer coisa.
A verdade é que estava exausto. Por causa dos bombardeiros, as ruas estavam intransitáveis, uma multidão trôpega balançava entre corpos mutilados. O cheiro de carne queimada, o ar esfumaçado misturado a cimento, e os pedaços de concreto que fazia uma simples ladeira transformar-se em uma montanha, eram apenas alguns dos muitos percalços que enfrentaram naquele primeiro dia fora do abrigo. A febre enfraqueceu-o, e Shiro já estava há várias horas sem comer ou beber nada. Queria se sentar, descansar. Um sono absurdo tomou conta de seu íntimo, e ele apenas esgueirou-se no chão, assim que ouviu as palavras de Ryo.
Satoshi sumiu de suas vistas. Shiromiya escorou as costas em uma parede demolida e fechou os olhos. Por mais impressionante que parecesse, adormeceu em segundos, vencido. No entanto, seu cochilo durou pouco. O som de uma buzina minutos depois o acordou.
— Graças a Deus, um dos carros está inteiro — Ryo disse, sorrindo. — Peguei comida no abrigo, temos transporte... Acho que estamos com sorte.
Realmente, estavam. Enquanto a maioria da população revirava escombros, Ryo estava com várias latas de atum e salsichas. Também frutos. Colocou dois galões de água no porta-malas e conseguiu um cobertor no antigo abrigo. Ajudou Shiromiya a entrar no veículo e saíram em direção ao norte.
Normalmente, levava um dia ou dois para chegar até Hokkaido. Contudo, daquela vez, permaneceram mais de cinco dias antes até mesmo de pegar a balsa. Descobriram, a contragosto, que aeronaves americanas estavam atirando em qualquer coisa que respirasse e que conseguissem visualizar. Bombas de gasolina eram arremessadas contra vilas pobres, contra ônibus de civis, e até um trem descarrilhado encontraram pelo caminho.
Porém, nenhuma aeronave cruzou por eles. Bom, nem só pela sorte, é verdade. Ciente de muitos fatos que outras pessoas desconheciam, Ryo preferiu trafegar à noite, em luz baixa. Quando o sol raiava, ele estacionava o carro perto de qualquer floresta fechada que encontrasse. Dormia um pouco, ou ficava tentando conversar com Shiromiya, apesar de o outro passar boa parte da prosa respondendo em monossílabas.
Então, quando parou em frente a sua enorme propriedade, respirou com alívio pela sua jornada ter se completado sem grandes problemas.
A mansão da família Ryo em Hokkaido era um enorme palacete térreo, que se estendia por um bosque repleto de Matsu e sugi [51] . As árvores, corpulentas, praticamente cobriam a casa. Mais afastadas,havia macieiras, cerejeiras e laranjeiras. Era um lugar mágico, e Shiromiya abriu a boca, extasiado.
A porta do carro abriu e Ryo estendeu a mão para Shiro. O menor aceitou, ainda inseguro.
— Sua casa é muito bonita — disse. — Obrigado por ter me oferecido abrigo.
Ryo abriu a boca, espantado. Era a primeira vez desde que saíram de Tóquio que Shiromiya falava uma frase inteira em sua direção.
— Sapporo ainda não foi bombardeada, mas será — afirmou. — Apenas... — olhou em direção a casa e estendeu as mãos. — aluguei um monomotor alguns anos atrás e sobrevoei a residência. Percebi então que, apesar de estarmos afastados uns dois quilômetros da cidade, ainda assim era um risco considerável ser atingido por alguma bomba. Então, mandei plantar mudas de canelas, que crescem rápido — estendeu as mãos até algumas árvores menores que os pinheiros. — Derrubei o segundo andar e mandei pintar o telhado de verde. Acredite, ano retrasado voltei a sobrevoar a propriedade, e a casa está completamente camuflada. O telhado se confunde com as árvores próximas. Mesmo assim, se tivermos o azar de jogarem bombas, ainda teremos o abrigo. — sorriu. — Era por isso que eu queria tanto que estivesse aqui comigo, Shiro. Só existem, a meu ver, dois lugares seguros em todo o Japão: o bunker do Imperador e a minha casa. O bunker, por motivos óbvios, e a minha casa porque eu sei de antemão o que vai ocorrer.
Seu tom franco comoveu Shiromiya que se sentiu esperançoso, apesar de todos os seus instintos lhe instigarem cautela.
— Mais uma vez, arigatou — curvou-se perante o homem.
O som de sapatos no piso de madeira das escadas chamou a atenção de Ryo, que olhou quem chegava. Tadao o cumprimentou com seu eterno semblante cortês, e depois tocou os ombros de Shiromiya, como a lhe transmitir coragem.
— Ryo-san ligou de Tóquio avisando que você vinha — disse ao rapaz, para explanar os motivos de não estar surpreso pela visita. — Estou feliz que esteja bem.
Shiro assentiu.
— Apenas fedendo — riu, baixo. — Estou há oito dias sem tomar banho, coberto de sangue e cinza.
— Arrumei o antigo quarto de Ryo-san para você — Tadao assentiu. — Creio que ficará bem lá.
O servo então se virou para o seu senhor.
— Ryo-san, ontem à noite chegou outro hóspede — avisou.
A forma como a face de Tadao tornou-se uma carranca fez Ryo perceber que a visita não devia ser de nenhum amigo.
— Como assim? Não estou à espera de ninguém.
Sem mais delongas, entrou na casa. Shiromiya e Tadao seguiram-no de perto. Viram quando Ryo jogou a bolsa de viagem em cima de uma poltrona, e esparramou-se na outra.
— Céus, também preciso de um banho — resmungou.
— Vou mandar preparar a banheira agora mesmo — Tadao disse, servil.
Quando o servo os deixou sozinhos, Shiromiya pareceu incomodado. Era verdade que havia estado a sós com Ryo por vários dias, mas o temor de qualquer ameaça não os deixou muito próximos — ou pelo menos o impediu de buscar proximidade —; contudo, naquele momento estavam no território de Satoshi, onde cada mobília lembrava sua riqueza e soberba. Era impossível não ficar intimidado.
— Ryo-san... – tentou começar.
Em segundos, o comerciante postou-se em pé. Aproximou-se como um raio de Shiro e segurou seu rosto. A mente nublada de Kazue lembrou-se do beijo que recebeu, quando Ryo o agarrou daquela mesma forma, dias atrás. Em si, explodiu um misto de pavor e desejo. Como sobreviveria todos aqueles dias ali, ao lado de Ryo, quando cada célula de seu corpo sentia uma inevitável atração por ele?
Contudo, o som de uma terceira pessoa entrando na sala fez com que Ryo o soltasse rapidamente, como se fosse leproso. Ryo caminhou para o outro lado da sala e encarou uma jovem e bonita oriental que sorriu de forma sedutora para ele.
— Mina? — sua surpresa era palpável. — Há quanto...?
— Cinco anos — ela gargalhou. — Na verdade, estive aqui em quarenta, lembra-se?
— Sim...
Ela caminhou até Ryo, recusando-se a olhar Shiromiya. Era como se Shiro, naquele momento, não existisse para nenhum deles.
— Comprei uma casa em Kyoto, mas ela foi destruída.
— Bombardeios?
— Sim. Não tinha para onde ir, então me lembrei de meu bom amigo — deslizou as mãos pelo peito de Ryo. — Andei perguntando, soube que não se casou e que sua casa estava desocupada. Então, vim. Incomoda-se de me hospedar por alguns dias?
Ryo olhou Shiromiya pela primeira vez. O rosto do menor estava indecifrável.
— É claro que não...
A mulher sorriu, aliviada.
— Oh, não imagina! Quando o vi saindo do carro com o garoto — virou-se para Shiromiya, parecendo só então notar sua presença. — Achei que Shin Sakamoto havia levado-o para o mundo da imundície...
— Imundície...?
— Você sabe, não? A natureza sendo desrespeitada. Homens deitam-se com homens, sem vergonha nenhuma de tal coisa.
Shiro arregalou os olhos diante da fala, e Ryo sentiu-se enrubescer. Antes de abrir a boca, ele ainda olhou Shiro por alguns segundos, e então ralhou, alto.
— Como se atreve a falar assim comigo? Eu sou um homem! Está me comparando a um maricas?
— Claro que não, me perdoe — desculpou-se, rápida. — Apenas — apontou Shiromiya como faria a qualquer cachorro sarnento — dá pra ver de longe que o moleque é... Você sabe... — desprezou. — Não sabia que tinha esse tipo de amizade.
— Ele não é meu amigo! — Ryo gritou. — Apenas um conhecido a quem estou dando pouso nesses dias de aflição. Não fique pensando besteiras!
Os olhos de Shiromiya encheram-se de lágrimas, mas ele não disse nada. Baixou a fronte e olhou para os pés. A guerra, segundo Jiro, estava perdida. Talvez em questão de dias o Imperador declarasse sua rendição. Sem as bombas, ele poderia ir embora, voltar para perto de Mamoru. Teria que aguentar tudo até lá.
— Me perdoe, Ryo querido — ela segurou as mãos do comerciante e as levou aos lábios, beijando-as. — Sei que falo sem pensar, mas ainda sou sua favorita, não?
— Não será mais se não aprender a maneirar a boca — reclamou.
— Vou me desculpar devidamente à noite, depois que você tomar um banho — ela riu, apertando o nariz.
Ryo então virou-se para Shiromiya. Parecia culpado pelas palavras ditas há pouco, mas ao mesmo tempo, que escolha tinha? Não queria que ninguém pensasse algo tão vergonhoso a seu respeito.
— Siga por esse corredor e na terceira porta, entre. Tadao já arrumou tudo, você pode tomar um banho e descansar. — explicou. — O jantar é servido às oito — completou, indiferente.
Shiromiya assentiu. Deu as costas e começou a caminhar naquela direção.
Fazia muito tempo que não se sentia tão derrotado. Nunca pensou que sua vida tomaria esse rumo, sem Nana e Aiko. O que faria então, sem sua família? Negou-se a chorar por Nana, mas acabou que as lágrimas começaram a correr antes mesmo de ele entrar no quarto. O lugar extremamente bonito e abastado o atingiu. Mais diminuído que nunca, ele largou a sacola de pano que tinha nas mãos — dentro dela estava sua caixinha com dinheiro, a economia de sua vida! — e sentou-se no chão.
Estava cansado, mas não queria dormir. Na verdade, queria morrer. Ficar perto de Nana novamente.
Que Kami-sama tivesse misericórdia dele.
***
O quarto tinha um banheiro anexo extremamente bonito. Shiromiya o observou com interesse, espantado com os detalhes de cada canto. O lavabo era de porcelana, o tom marfim. Embaixo dele, um armário da mesma tonalidade estava repleto de toalhas e produtos para a higiene pessoal. O sanitário ficava no lado oposto e também era de porcelana. Mais adiante, um chuveiro de ferro denotava o luxo do ambiente requintado. Shiro deu apenas dois passos, quando notou o enorme espelho ao lado do lavabo. Encarando-se, ele percebeu seu abatimento. Os cabelos estavam tão sujos que sequer se moviam. Estranhou como a cabeça não havia coçado até então, porque só de ver seu estado, ele sentia ânsia de levar as mãos à fronte e esfregar com todo vigor.
Ao concentrar-se em sua face cansada, percebeu os riscos provocados pelas lágrimas, formando um caminho alheio à poeira entre seus olhos e seu queixo. Ficou algum tempo assim, parado, encarando a si mesmo, até que percebeu que autopiedade não lhe serviria de nada.
Então, resolveu ser prático. Tirou a única roupa que tinha e a colocou na bacia de porcelana. Sabia que o lugar onde se lavava o rosto não era o ideal para lavar a roupa, mas que escolha tinha? Pegando o sabão, fez o melhor que pôde. Quase quinze minutos depois, após esfregar muito e deixar um pouco de molho, ele torceu a camisa e a calça. Apesar de as vestimentas estarem danificadas, estavam limpas, e então ele as estendeu em uma cadeira do quarto para que secassem.
Depois, foi a sua vez de limpar-se. Ligou o chuveiro e colocou-se em baixo da água. Aos seus pés, o piso de cerâmica começou a ficar tingido de uma cor escura, suja. Todo o corpo parecia impregnado de uma mistura pastosa de sangue e terra. Porém, conforme o sabão ia deslizando pelo corpo, mais que a sujeira, ele também lavava a dor. Aos poucos, Shiro pareceu aquecido, tranquilo e mais calmo.
Enrolou-se em uma toalha enquanto secava o chão do banheiro. Arrumou tudo, conforme Nana o ensinou a fazer. Depois entrou no quarto, observando as roupas úmidas. Pensou bem, e decidiu não vesti-las. Não podia pegar nenhum resfriado nem ficar doente, pois não tinha quem cuidasse dele caso ocorresse alguma coisa de mal. Então, refugiou-se embaixo das cobertas para aquecer-se.
Não levou muito tempo, dormiu. No seu sonho estava novamente na Casa Ai. Nana estava sentada no seu costumeiro banco. Sentou-se aos seus pés, sorrindo feliz por estar perto dela.
“Tome cuidado”.
O conselho feminino pareceu sábio e ele assentiu. Depois, recostou-se em suas pernas, deitando a cabeça em seu colo. Sentiu os dedos velhos tocarem suas mechas, num cafuné que ele agradeceu profundamente.
Contudo, logo percebeu o corpo afastando-se daquela imagem. Sentiu que estava em um sonho e, em desespero, acordava, voltando para a vida horrível que nada se assemelhava ao devaneio tranquilizador.
Abriu os olhos. De fato, recebia um cafuné nos cabelos. Porém, o carinho em nada lembrava o sincero de Nana. Atento ao rosto de Ryo, viu o homem dar um passo para trás, afastando-se, assim que foi pego no ato.
Sentando-se na cama, Shiromiya o encarou, surpreso.
— Não sabia que tinha o costume de dormir nu — Ryo comentou, e Shiro se observou.
Só então percebeu que havia se descoberto durante o sono. Cobriu-se rapidamente e explicou:
— Minhas roupas estão molhadas...
Ryo riu e caminhou até o roupeiro.
— Shiro, acha mesmo que eu não pensei no seu conforto? — abriu o armário, mostrando-lhe uma infinidade de camisas, calças e quimonos. — Sei que suas roupas queimaram no bombardeio, então mandei Tadao comprar roupas novas para você. E tem sapatos também. Quero que fique tranquilo, pois vou cuidar de cada uma de suas necessidades.
Shiro não o agradeceu. Manteve o rosto impassível, perturbador.
— Me perdoe — Ryo pediu, subitamente.
Os olhos voltaram a lacrimejar, mas ele desviou o olhar do comerciante, baixando a fronte.
— É claro que é meu amigo — Ryo se adiantou, sentando-se na cama. — Apenas, fiquei assustado. Entenda, Mina sabe das preferências sexuais de Shin e temia que ela pensasse que eu quero a mesma coisa.
Cada palavra do comerciante parecia piorar a situação. Ryo sentiu aquilo, e então se levantou.
— Apenas, me perdoe, está bem? É meu amigo e... — pensou um pouco. — Na verdade, Shiro, é meu melhor amigo. A pessoa mais importante da minha vida. Eu jamais iria atravessar o país para salvar alguém que não fosse inteiramente importante para mim.
A sua franqueza foi transformadora no semblante de Shiromiya, que pareceu ressuscitar diante das palavras. Porém, em nada se comparava ao turbilhão que provocou em Ryo. Tão logo pronunciou a declaração, disse a si mesmo que era apenas mais uma mentirazinha bem planejada. Contudo, sabia que estava enganando a si mesmo. De alguma forma, passou mais tempo com Shiromiya nos últimos anos do que com Sakamoto. Contou para Shiro coisas que não disse a mais ninguém. Compartilhou com ele momentos sobre os pais, sobre suas visões. Quando Tóquio foi bombardeada, foi em Shiromiya que ele pensou, foi por ele que ficou desesperado.
Shiromiya Kazue... Seu melhor amigo. Era simplesmente inacreditável.
— Vista-se — disse, tentando mudar o foco da conversa. — Quero te mostrar uma coisa.
Quando ele saiu do quarto, Shiro não pôde evitar um sorriso feliz.
***
O abrigo de Ryo era um dos lugares mais fantásticos que Shiro já havia visto. Uma sala que media em torno de dez metros, iluminada com gerador elétrico, tinha um moderno sistema de ar, deixando o ambiente bastante agradável. Do lado esquerdo, uma cama de casal era cercada por dois criados-mudos. Em cima deles, algumas pilhas de livros.
Havia um roupeiro e um armário para guardar coisas necessárias. Mais afastado dali, uma porta dava entrada para um banheiro semelhante ao que Shiro tinha no quarto. Na esquerda, uma cozinha com fogão, mesa, cadeiras, armários com mantimentos. Havia também um sistema hidráulico, fornecendo água diretamente de um poço, puxada por uma bomba que fazia um baixo ruído de sucção. Mesmo assim, Ryo era precavido e guardava água em tonéis. Sorrindo, Shiro percebeu as garrafas de saquê na parte superior do armário.
— Está preparado para tudo — comentou.
— Você viu Tóquio; então, condena-me por tanta cautela?
Kazue negou.
— Estou feliz por você estar aqui comigo, Shiromiya — aproximou-se.
A proximidade logo fez Shiromiya arder em um fogo desconhecido. Era sempre daquela forma entre eles. Mesmo quando era ferido pelas palavras maldosas de Satoshi, ainda assim, ele balançava diante de qualquer demonstração de afeto. Por quê?
Por que não andou para o outro lado quando sentiu Ryo se aproximando, rapidamente?
Por que não o afastou? Não fugiu?
Por que era tão fraco?
Ryo segurou sua cintura e tudo mais se perdeu no beijo que recebeu. Fechou os olhos, sentindo a boca de o outro afundar na sua, buscando toda sua alma e seu gosto. Segurou-se para não cair, quando se sentiu sendo levemente direcionado para a cama.
Só então entendeu o intento e conseguiu reunir forças para empurrar Ryo.
— Sua namorada não vai ficar ofendida por estar aqui comigo? — indagou, magoado.
— Mina? — a gargalhada de Ryo era de um deboche cínico inquestionável. — Mina é só uma prostituta. Muito bem paga pelo silêncio, aliás.
A mulher era uma meretriz?
— Surpreso? — Ryo voltou a se aproximar, segurando sua cintura.
— Não parece uma cortesã — admitiu, a contragosto.
— De fato, não parece. Mina é muito cara, uma das rameiras mais valorizadas do país. E realmente faz um bom serviço, nunca pude me queixar. Porém, ela tem um jeito de desmerecer as pessoas que gosto — lembrou-se da forma como ela citava Shin. — Costumo mandá-la embora após dois ou três dias, mas dessa vez não sei como me livrar desse incômodo. Que desculpa daria tendo um garoto aqui? Ela pode pensar...
Calou-se, percebendo que falava demais.
— Ela pode pensar mal de você na companhia de um garoto como eu, não? — Shiro completou.
— Não me leve a mal, Shiro — pediu. — Mas o mundo em que eu vivo dá muita importância à aparência. Porém eu o adoro, quero-o por perto, não farei nada que possa machucá-lo. Apenas preciso me proteger de maledicências porque elas prejudicam muito os negócios.
Shiromiya assentiu, voltando a se afastar. Novamente, Ryo voltou a segui-lo, de perto, segurando-o novamente pela cintura.
— Você consegue me entender?
Shiro se voltou para ele. Frente a frente, ambos pareceram nervosos diante da resposta.
— Não, desculpe. Eu jamais teria vergonha de um amigo, fosse ele o que fosse. Mas eu não sou você, então não vou julgá-lo, apenas estou grato por estar me oferecendo auxílio.
Um novo beijo o calou. Daquela vez, sentiu o corpo sendo prensado na parede, e o tamanho do desejo de Ryo esmagado contra seu abdômen. Era delicioso, perigoso e desesperador. Queria muito e ao mesmo tempo não queria nada. Havia dois Shiros dentro de si, e ambos lutavam um contra o outro na ânsia de se entregar àquela paixão ou esquivar-se para sempre dela.
Sentiu-se resvalando para o chão. Ryo levou as mãos espalmadas até seu baixo ventre, fazendo-o gemer. Sentiu que novamente iria se entregar aos prazeres tão perigosos, e ficou desesperado.
Quando as lágrimas começaram a cair, Ryo parou. Secou cada uma delas com beijos castos, e depois apenas segurou sua mão, erguendo-o do chão.
Saíram do abrigo, sabendo que aquele primeiro dia de Shiromiya na residência de Ryo seria apenas o primeiro de muitos que os envolveria num caminho sem volta.
***
“ Tetsu no bofu [52] ” foi o nome que a rádio anunciou naquele primeiro dia de abril de 1945.
Shin e Jiro se encararam, baixando a fronte. O quarto no bunker parecia pequeno demais para o tamanho do horror que transparecia em seus rostos. Ao lado de Mamoru, Saito torceu as mãos, afobado.
— Belo nome, não? — ele comentou, daquela vez sem ironia na voz.
— Se os moradores de Okinawa estão chamando assim a invasão americana, é porque devem estar sendo bombardeados com tantas balas e bombas...
Saito levantou-se. Foi até a pequena sacola de soro e a observou. Mamoru Aiko estava sendo alimentado por sonda e soro desde sua chegada ao bunker. O médico imperial constatou que o cortesão estava num estado avançado de desidratação e em condição catatônica. Acalmando Shin, que pareceu em tal confusão diante das palavras, o médico afirmou que a circunstância costumava durar algumas semanas e, depois, o paciente normalmente voltava a si.
Eles chegaram ao bunker poucas horas depois da despedida a Shiromiya. Desceram pela abertura que tinha dentro do laboratório de botânica e estudos marinhos do Imperador. Depois que entraram, não saíram mais. Os dias dentro do abrigo pareciam anos, tamanha a lentidão com que passavam. E a forma como Mamoru mantinha os olhos abertos, quase sem piscar, e a total paralisia, piorava a situação.
— Okinawa vai cair. Hoje, amanhã ou na próxima semana, é um fato. Quanto tempo vai demorar para que os americanos cheguem em Tóquio?
Shin acariciou a face melancólica de Minikui. Subitamente, seus pensamentos para com seu animal de estimação se tornaram extremamente piedosos. Pobre Minikui, acostumado à liberdade do grande pátio da Casa Ai, com suas árvores cheias de pássaros e roedores nos galpões. Devia estar se sentindo em uma jaula trancado naquele quarto, sem contato com o sol e o ar puro.
— Os militares continuam afirmando que podemos prosseguir em combate...
— Me pergunto que tipo de neurônios eles têm na cabeça — Saito resmungou. — Shin, por que não fala com seu tio?
— E dizer o quê? Que eu não acredito mais na nossa vitória? Acha que meu amado tio já não sabe disso? Além disso, ele parece aéreo, prefere passar o dia estudando moluscos e crustáceos no seu laboratório do que confrontando a guerra.
— Não deve ser fácil para o Imperador — Jiro afirmou. — Não queria estar na pele de Hirohito.
Fizeram silêncio por mais alguns segundos.
— Jiro, se a família Imperial...
— Não, você não vai morrer — interrompeu-o. — Então, não tente jogar Mamoru para as minhas costas, porque ele é sua responsabilidade, não minha!
Shin sorriu. Apesar do que dizia, tinha certeza que, caso precisasse, Saito se encarregaria de proteger e amparar Aiko.
— Obrigado, Jiro — murmurou.
Saito respirou fundo diante das palavras.
— De nada — foi tudo que disse.
Ficaram em silêncio após aquilo, os ouvidos atentos ao que a rádio anunciava. A última grande batalha da II Guerra era travada naquele momento. Shin e Saito não sabiam, mas presenciavam a história.
Capítulo 39
O primeir o jantar na casa de Ryo foi bastante difícil para Shiromiya. Após o encontro no abrigo, ele não o viu até o momento que Tadao bateu na sua porta avisando que a comida estava servida.
Grato pela chance de estar abrigado num momento tão complicado, Shiro prometeu a si mesmo ser de agradável presença. Não queria ser um estorvo ou um incômodo, então se esforçou para causar uma boa impressão. Vestiu um dos muitos quimonos do roupeiro, surpreendendo-se com o tecido de boa qualidade. Depois, correu até a sala de jantar, evitando o atraso.
Porém Ryo e Mina já o aguardavam. Apesar da fome crescente no país, a mesa de Ryo era farta. Havia mais do que eles seriam capazes de comer, e Shiro pensou no tamanho do desperdício. No centro, um enorme pedaço de carne suína assada exalava um odor forte que fez sua barriga roncar. Ao lado, batatas assadas, arroz, saladas e pães. Também duas garrafas de vinho, uma branca e outra tinta.
— Sente-se, Shiro — Ryo o chamou.
O sorriso de Ryo o acalmou. Apesar da frase infeliz da tarde, naquele momento, Satoshi parecia não temer demonstrar o quanto eram próximos e amigos.
Sentou-se à direita do comerciante, de frente a Mina que o encarava com nítido aborrecimento. A face antipática o surpreendeu, afinal, sempre considerou as prostitutas mulheres gentis e carinhosas. Na Casa Ai costumava ser mimado por todas elas, mas ali recebia da outra um olhar mortal.
— É surpreendente como mesmo uma roupa cara não esconde um rosto pobre — a voz feminina fez com que Shiromiya tremesse.
Ryo servia-se da carne no exato momento que ouviu o tom recriminador. Sentindo uma explosão no âmago, viu-se a retrucar:
— O mesmo vale para você.
O rosto rubro da mulher alegrou o comerciante. Ora, ninguém tinha o direito de falar daquele modo com Shiro. Voltando-se para Kazue, esperou receber o olhar agradecido, mas o percebeu a olhar os inúmeros talheres, sem saber como agir diante deles.
— Use os hachis , Shiro — indicou os utensílios de madeira.
Quase pôde ouvir o suspiro de alívio.
Em seguida, Tadao entrou na sala. Fez um sinal para o patrão, que se levantou e o seguiu.
Shiro, a ver-se sozinho com a mulher, quase correu atrás do outro. Esperou as palavras mordazes e, de fato, elas vieram, segundos depois.
— Se não sabe se portar à mesa, devia comer na cozinha.
Sabia que ela estava possessa pela presença dele, o que muito o assustava. Shiro jamais se consideraria um rival. Até porque, o que ela desejava de Ryo — dinheiro e bens materiais — não importavam para ele. Tudo que ele desejava era o amor dele, mas os sentimentos pareciam tão longínquos e inalcançáveis.
— E, então, onde você se vendia?
A pergunta obtusa o fez tossir.
— Não sou um prostituto — disse, no entanto.
— Ah — ela ralhou, alto. — Por favor! Considera-me uma tola? A única coisa que me surpreende nisso tudo é que Ryo anda querendo um moleque como você. Mas aceite um conselho: Não se apaixone. Tire dele o que conseguir de dinheiro, ele é bastante generoso com amantes.
Shiro sentiu-se ofendido.
— Não sou amante dele e não quero seu dinheiro.
Ela sorriu, irônica.
— Está tudo bem, vou fingir que você é apenas um garotinho apaixonado e inocente. Contudo, lamento informar: agora é o meu momento. Estou aqui para forrar os bolsos, e caso se meta nos meus negócios, eu farei com que se arrependa.
O som das botas de Ryo surgiu e ambos se calaram. O comerciante sentou-se à mesa, voltando os olhos para o prato. Pareceu alheio ao clima pesado.
— O jantar está maravilhoso — Mina exclamou, alisando o braço do homem.
— Fico feliz que esteja gostando — Ryo sorriu, em resposta. Porém, tirou a mão feminina da mulher de cima de si.
O resto do jantar aconteceu em silêncio.
***
Apesar do início complicado, o restante do mês de março foi bastante tranquilo para Shiromiya. Mina pareceu controlar mais a língua, e o máximo que dirigia a ele era um olhar cáustico. Já Ryo se mostrou a melhor das surpresas. Pareceu, em algum momento, que a sua estadia na casa dele era apenas uma extensão da sua vida na Casa Ai. Assim como em Tóquio, o comerciante passou a passar as tardes com ele, compartilhando histórias e conversa amigável.
Na primeira semana, Ryo evitou tocá-lo, como se temesse machucá-lo, como havia acontecido no primeiro dia. Contudo seu autocontrole sumiu na segunda semana. Um dia, Ryo o convidou para ver o bosque. Surpreendendo-o, prensou-o contra uma árvore, beijando-o tão intensamente que Shiromiya se contorceu diante dos toques fogosos. Depois daquilo, passaram a frequentar os bosques todas as tardes, fazendo de cada tronco um ninho de amor.
No entanto, não houve avanços mais significativos. E o fato causou no jovem rapaz um contentamento enorme. Pela primeira vez na vida, parecia estar vivendo um relacionamento normal, um namoro como qualquer outro. Durante toda a sua existência, o sexo pareceu imposto como se ele existisse apenas para aquilo. Mas com Ryo, ele sentia como se também fosse possível conversar ou beijar, sem sentir-se um objeto de satisfação de outra pessoa.
No início de abril, Mina ficou ansiosa para ir embora. Contudo, precisava de dinheiro. Então decidiu conseguir o recurso desejado de Ryo. Como o comerciante passava as tardes andando com o moleque miserável, resolver procurá-lo numa das noites.
Entrou sorrateiramente pelo quarto e o aguardou.
Perto das onze horas, Ryo apareceu, entrou no aposento e pareceu espantado por vê-la.
Mina tinha perto de vinte e cinco anos, o corpo era de uma beleza clássica, seios volumosos, eretos, firmes, de aréolas escuras que se esgueiravam pela transparência do quimono de renda. E ela estava ali, parada diante dele, pronta para ser amada como Ryo já havia feito muitas vezes no passado.
Porém o comerciante deu dois passos para o lado, completamente incomodado pela presença.
Era um homem. Como podia reagir daquela forma?
Sabia bem o porquê. A culpa era de Shiromiya. Sua obsessão pelo outro havia ultrapassado todos os limites. Precisava terminar logo com tal anormalidade, para voltar aos prazeres que sempre lhe foram tão preciosos.
— Mina... — começou, sem saber exatamente o que dizer.
Percebeu-a avançando, tocando os corpos sem pudor.
— Estou com saudades... — seu murmúrio era muito sensual.
— Me perdoe — Ryo se afastou, caminhando até a porta. — Estou muito abalado com a guerra. Perdi algumas pessoas — mentiu. — Estive no bombardeio de Tóquio, vi muitas outras mortas, despedaçadas — a lorota prosseguiu, sem constrangimento. — Então, não me sinto disposto a ter uma noite de amor...
Mina não insistiu, mas o comerciante percebeu seu rosto encarnado, furioso. Talvez jamais houvesse sido dispensada daquela forma, mas prometeu a si mesmo acalmar aquele furacão com algumas joias, antes que ela abrisse a boca sobre sua impotência.
A mulher deu as costas e saiu do quarto, batendo a porta. Ryo sentou-se na cama, escondendo o rosto com as mãos, sentindo-se o mais lixo dos homens. Ninguém, em sua posição, recusaria aquele corpo. Por que então ele estava assim? Por que só conseguia se imaginar com Shiromiya?
Sua vergonha era tamanha que mal dormiu naquela noite.
Na manhã seguinte, a primeira coisa que fez foi procurar Shiro. Mesmo raivoso com sua própria atitude, viu-se sorrindo para o jovem, quando o achou sentando no jardim, a olhar as plantas.
— Bom dia — cumprimentou, sentando-se ao seu lado. — Gosta do meu jardim? — questionou, ao perceber o olhar admirado de Kazue para as flores.
— Sua casa é perfeita — Shiro afirmou. — Porém não é um lar ainda...
Ryo arqueou as sobrancelhas.
— Sim, porque não sou casado — admitiu.
— Não falo de casamento — retorquiu. — Falta um gato ou um cachorro para que sua casa possa ser considerada um lar. Não existe lar onde um animal de estimação não esteja andando de um lado para o outro, afagando as pernas de seu tutor, e espalhando amor onde passa.
Ryo gargalhou, escondendo os dedos dentro do bolso do casaco leve.
— Você falou igual a Shin.
— Eu entendo porque o Sakamoto-san deixou Minikui na Casa Ai — contou, indiferente. — Porque lá era o seu lar...
Pareceu que o complemento “ao lado de Mamoru” dançou em seus lábios, mas ele não o disse. Ryo deu ares de compreender e ficou em silêncio.
Alguns pássaros, ao longe, voaram pelo céu, cantando seus cânticos ao divino. Satoshi lembrou-se de uma das visões, em que os via mortos devido às fortes explosões e apiedou-se. Nunca antes sentira pena de bichos, mas a forma com que Shiromiya falava deles pareceu modificá-lo aos poucos.
— Tenho uma coisa para te mostrar — Ryo murmurou.
Shiromiya o encarou, curioso. Então o comerciante se levantou e estendeu-lhe a mão. O menor a segurou, ficando também de pé. Os dois saíram em direção ao abrigo de mãos dadas. Ao longe, a mulher rameira Mina os observava atentamente.
Diante da cena, tudo que fez foi retorcer os lábios, planejando uma forma de se livrar de uma vez daquele empecilho.
***
Shiromiya observou o abrigo, olhando para os lados, esperando ver o que quer que fosse que Ryo quisesse mostrar. Como nada parecia diferente da primeira vez que estivera lá, voltou-se para o comerciante e o viu trancando a portinhola, como se desejasse não ser surpreendido por ninguém.
Não o temeu, porque sabia que Ryo não o machucaria. Então apenas o aguardou. Quando Ryo voltou para ele, não o tocou nem se aproximou muito. Caminhou até o criado-mudo, e o arrastou de lá. Shiro permaneceu parado, a observá-lo. Só quando o móvel ao lado da cama se moveu, foi que entendeu o alvo. Embaixo, um alçapão discreto estava camuflado.
— Existe mais um andar?
Ryo sorriu, como se fosse o mais inteligente dos homens.
— Estamos em cima de uma laje de concreto. Existe um subsolo do mesmo tamanho que esse em que estamos — contou. — E aqui embaixo está o motivo de eu não temer a guerra ou a pobreza...
Puxou o alçapão para cima, erguendo a tampa, pondo-a de lado. Uma escadaria escura os aguardava. Ryo desceu primeiro e acendeu a luz. Depois, chamou Shiromiya.
O olhar de espanto do garoto ao verificar o que havia de tão precioso no andar de baixo foi nítido. Até porque, ninguém em sã consciência não ficaria pasmo diante da cena. Estantes repletas de ouro, pilhas de joias e pedras preciosas eram mantidas sigilosamente embaixo das terras do comerciante.
— Existem milhões aqui — Ryo comentou. — E tudo começou com meu avô, que não confiava muito no Japão na Primeira Guerra. Então, ele vendeu a maior parte das fábricas e comprou ouro. Mandou cavar um buraco enorme no chão e construir esse subsolo. Numa noite, trouxe o ouro pra cá. Quando vencemos a guerra, e a moeda se valorizou, recuperamos todas as fábricas sem praticamente mexer em nada do ouro guardado. Então, meu pai, ao assumir o posto depois da morte do meu avô, reverteu em ouro todo o lucro. Eu prossegui no seu intento quando ele faleceu. E aumentei muito a quantidade depois que a guerra começou. Vender comida para o exército foi de grande valia para mim.
Shiro mal podia acreditar. Sabia que Ryo era muito rico, mas jamais imaginou que tanto.
— Além de mim, somente Tadao conhece esse lugar. E agora você. Quero que, caso algo me aconteça, você desça aqui e pegue o que conseguir carregar. Isso o manterá até sua velhice.
Ao contrário do fascínio que esperava ver nos olhos de Shiromiya diante da sua frase, o menor o encarou com apreensão.
— Se algo acontecer com você... para que vou querer qualquer uma dessas coisas? — sua pergunta era séria. — Não quero viver, se você não existir, Ry-chan... Consegue entender o quanto sua amizade é preciosa para mim?
Qualquer outra pessoa jamais recusaria uma fortuna daquelas...
Qualquer outra pessoa falaria naquele tom apenas para convencê-lo de que era mais valioso que seu dinheiro...
Qualquer outra pessoa...
Mas não Shiro. Sabia, sem precisar pensar muito, que Kazue havia dito a verdade. Ora, ele ainda ostentava orgulhoso um medalhão barato que havia dado a ele, comprado a custo do que daria a um mendigo na rua. Ninguém com quem compartilhou o leito aceitaria algo tão desvalorizado. Contudo, o pingente de coração parecia mais estimado do que qualquer barra de ouro empilhada naquele quarto.
— Como vou conseguir me afastar de você, Shiro? — indagou, aproximando-se.
O abraço foi tão cúmplice e gentil que todo o corpo de Satoshi estremeceu.
— E por que nos afastaríamos? — Shiro indagou, o hálito doce dele se chocando contra seus ouvidos.
A intenção: Ryo planejava ter dele os momentos propícios de prazer e depois pagá-lo por isso. Assim que se cansasse, colocá-lo-ia no primeiro trem de volta a Tóquio, para nunca mais vê-lo. A verdade, todavia, era bem mais complicada. Não poderia mandá-lo de volta para Aiko, porque já sabia que não conseguiria tal coisa. Contudo, planejava se casar — e logo — então, teria que deixá-lo na cidade, em alguma das suas muitas casas, escondido das outras pessoas.
Assim, nada disse. Segurou suas mãos e o puxou em direção à saída. Sentia-se destruído interiormente, mas havia algo mais forte do que o sentimento que reconhecia nutrir pelo jovem.
A vergonha e a desonra de planejar manter um homem — um homem! — como amante, minava sua racionalidade. Podia ser fácil para Shin, que adorava exibir sua excentricidade. Mas não era simples para ele. Jamais seria.
***
Naquela tarde, Ryo foi chamado ao escritório. Estava num dos piores momentos da sua empresa, desde então. Precisava tirar a frota de navios do mar, já completamente tomado por embarcações americanas. Aquilo significava que ficaria sem lucrar por alguns meses. Num ato de generosidade, que ele mesmo não entendia de onde havia saído, decidiu manter os salários dos funcionários dos barcos e das fábricas, mesmo suspendendo o serviço local.
Enquanto o amigo resolvia tais problemas, Shiromiya se viu solitário na enorme casa. Tadao parecia bastante ocupado, e Mina não era exatamente o tipo de companhia que ele queria para poder conversar.
Então, resolveu passear pelo pomar. Descobriu que, além dos pés de laranja, maçã e cereja que visualizou no primeiro dia, Ryo ainda tinha pés de ameixa espalhados pelo local. No chão, estendiam-se ramos verdes, em que era possível visualizar melões ainda verdes e abóbora.
Encantado, Shiro foi até a macieira e colheu uma fruta. Mordeu-a, agradecendo aos céus pela generosidade da terra que parecia bastante fértil ali. Contudo, um movimento ao longe, no portão, chamou sua atenção.
Caminhou até lá, notando que três crianças de aproximadamente dez anos o encaravam, com o rosto transbordando fome. Condoeu-se imediatamente, reconhecendo nelas um pouco do que já havia passado não muito tempo atrás.
— Querem frutas? — ele indagou.
A maior delas, um menino, assentiu vigorosamente.
— Estamos com muita fome, senhor — ele disse.
Shiromiya sentiu os olhos lacrimejantes. Então, fez um sinal com as mãos e pediu para que aguardassem. Correu até a casa, entrando na cozinha afobado. Procurou durante cinco minutos nas gavetas, até que encontrou um saco de estopa. Pegou-o e voltou correndo para o pomar. Ali, colheu várias maçãs e laranjas. Cortou também uma abóbora verde, e ofereceu às crianças.
Os garotos curvaram-se agradecidos ao pegarem os mantimentos que Shiro entregou pelo portão. Viu-os então voltando para a estrada que levava a cidade, as pernas tão magras que se assemelhavam a varetas, e entendeu que aquelas frutas não seriam de muita valia para crianças que precisavam comer comida mais nutritiva.
—Ei — chamou-os novamente. — Estejam aqui antes que o sol nasça — mandou. — Vou arrumar mais alimentos.
O sorriso feliz das crianças foi algo que o encheu de alegria. Contudo, ele mesmo não tinha nada para oferecer. Estava comendo de favor na casa de Ryo, vivendo ali graças à compaixão do outro. Mesmo assim, sabia que não havia muito o que pensar: eram crianças passando fome. A guerra exigia atitudes drásticas.
Quando Satoshi voltou no final da tarde, Shiromiya até pensou em indagar sobre comida. Ora, quem sabe Ryo não fosse piedoso? Porém, a experiência com o comerciante lhe ensinara que o outro era um homem prático, avesso à caridade e à filantropia. Ryo visava lucro e tudo que não lhe direcionava àquilo não o interessava.
Então, decidiu roubar.
Não que fosse a mais nobre atitude a se tomar, mas em nenhum momento Shiromiya sentiu-se pesaroso. Bem sabia que naquela casa havia comida sobrando, sendo sempre desperdiçada. Então, antes do nascer do sol, ele se levantou, recolheu as sobras da noite anterior que iria para o lixo: um pedaço enorme de carne suína que mal havia sido tocada, três latas de feijão, outra de salsicha e dois pães amanhecidos. Ryo nem daria falta, mas faria muita diferença para aquelas crianças.
Saiu porta afora e se aproximou do portão. Não demorou muito e a mais velha das crianças surgiu. Shiro nada disse, apenas passou a sacola por cima das grades e sorriu diante do olhar esperançoso que o garoto tinha.
— Muito obrigado, senhor — o menino falou.
Shiro assentiu e fez um sinal para que ele fosse embora de uma vez. A criança pareceu entender a urgência da situação e correu, carregando as sacolas.
Shiromiya suspirou. Considerou que seu plano havia dado certo, tudo ocorrera sem grandes problemas. No entanto, ao se voltar, deu de cara com Ryo Satoshi e Mina. Ambos o encaravam como se fosse a pior das criaturas.
Capítulo 40
Sentado n a poltrona da sala, Shiromiya Kazue mantinha o olhar baixo. Não havia vergonha em seu ser, mas, mesmo assim, ele não estava disposto a encarar ninguém.
Havia roubado. Só o fato em si já devia lhe provocar uma intensa vergonha. Contudo, não se sentia assim. Repentinamente, percebeu que após ter sido vítima do bombardeio de Tóquio, mudou os parâmetros de sua moralidade. O que significava seu pequeno delito diante da enormidade de coisas piores sendo praticadas pela raça humana em todo planeta?
Ora, crianças sentiam fome e Ryo desperdiçava comida. A única coisa da qual se arrependia era de não ter furtado mais.
— Mande-o embora — ouviu o tom feminino, extremamente zangado. — Um larápio! Um ladrão! Não é seguro ter alguém dessa laia dentro de casa.
Shiro não a encarou. Permaneceu de cabeça baixa, alimentando uma zanga tremenda. Ouviu os passos de Ryo, que batia com força os pés no assoalho de madeira enquanto zanzava de um lado para o outro.
— Mande-o embora — Mina repetiu, parecia estar disposta a escorraçá-lo. — O que mais ele pode tirar de você?
Shiro levantou o rosto no mesmo instante que Ryo a pegava pelo braço, puxando-a e levando-a até uma das portas que davam para o corredor. Colocou-a lá e passou a tranca. A mulher percebeu imediatamente que havia ultrapassado os limites e ficou quieta.
Tão logo ficaram a sós, Ryo voltou para Shiro, ajoelhando-se a sua frente.
— Por que me roubou?
A pergunta não foi embraveada ou estúpida. Foi doce e gentil.
— Se eu pedisse, forneceria comida para dar as crianças? — retrucou, sem medo.
Ryo baixou a face alguns instantes, parecendo pensar na melhor resposta.
— Precisa entender, Shiromiya — pediu. — Essas pessoas se inflamaram em arrogância. Agora, estão apenas recebendo o que plantaram. Por que não estocaram alimento desde o começo da guerra? Por que não se preocuparam com a possibilidade da derrota?
— É um tolo, Ryo-san — a frase firme gelou Ryo. — Ao contrário de você que possui recursos para guardar alimentos, a maior parte da população sequer tem o que comer no dia a dia, mesmo sem a guerra. É fácil para você, que possui um abrigo cheio de ouro, julgar um pai ou uma mãe que nesse momento não tem um pão para oferecer ao seu filho.
Quis se levantar, mas Ryo segurou-o no lugar.
— Shiro, estou profundamente magoado com a sua atitude — confessou. — Nunca pensei que você fosse capaz de pegar algo da minha casa sem me pedir. Veja bem, desde que eu o trouxe para cá, lhe ofereci tudo que tenho. Meus recursos, minha comida... Dei-lhe roupas, calçados, abrigo e proteção. E você me apunhalou.
— Vai me mandar para Tóquio? — questionou, sem medo.
— Não, não irá para lugar nenhum — foi firme. — Porém, nunca mais faça isso.
— E se eu disser que o farei todas as vezes que for preciso?
Ryo se ergueu, e caminhou para perto da janela. O que diria? Havia trazido Shiro ali para dominá-lo, deixá-lo à sua mercê. Porém, parecia que a cada dia ao seu lado, era ele a vítima, manipulado pelos olhos lindos e sinceros.
— Não me provoque — disse por fim.
Shiromiya caminhou até ele. Parecia disposto a afrontá-lo.
— Gosto muito de você, Ry-chan, mas está errado. No seu palácio, protegido pelo seu dinheiro, é incapaz de ver a dor. Se eu tivesse conhecido alguém que tivesse me dado comida sem ter exigido meu corpo quando eu era criança, hoje poderia ser alguém diferente.
— Diferente?
— Talvez, eu pudesse ter autoestima e confiança. Talvez, eu tivesse um bom emprego; talvez, não precisasse que me desse abrigo, roupas e calçados.
— E talvez não me conhecesse...
— Ou talvez eu o conhecesse e você me visse como alguém que pudesse chamar de amigo — retorquiu.
Ryo chispou os lábios.
— É isso, então? Está me punindo por eu ter negado nossa amizade a Mina?
— Estamos nos encontrando todos os dias há mais de um mês. Você me abraça, me beija, me aperta contra as árvores, faz-me promessas de amor. Contudo, até mesmo tem vergonha de me assumir como amigo. Como acha que eu me sinto?
Como Shiro havia conseguido virar aquela conversa a seu favor?
— Eu...
— Não tem que me explicar nada, Ryo-san. Apenas, me mande embora, me coloque em um ônibus. Vou para Tóquio. Eu ficarei bem lá, no abrigo. A maioria das pessoas está zanzando pelo país, sem teto. Já passei por isso antes e posso sobreviver.
Repentinamente, as mãos firmes seguraram-no pelos braços. Frente a frente, Shiro sentiu-se esmorecer perante o olhar duro do outro.
— Nunca mais diga isso, Shiro. Eu lhee disse uma vez que ficará comigo, e é assim que será.
— Mas...
— Não prossiga — pediu. — Ninguém jamais foi tão importante para mim quanto você. Entende que sou capaz de engolir meu orgulho para que não me deixe? Sabe o que eu faria com qualquer outra pessoa que ousasse mexer no que é meu? Mas você me roubou e diz que ainda continuará a fazê-lo... E apesar disso, sinto-me morrer só de pensar em deixá-lo ir embora.
De repente, as mãos de Shiro seguraram seu rosto. Pela primeira vez, Ryo foi beijado de surpresa. Foi um beijo amargo, inundado pelas lágrimas do menor. Mas foi igualmente intenso, delicado e maravilhoso.
Ambos permaneceram abraçados naquela sala, durante um bom tempo. Do outro lado da porta, a prostituta Mina percebeu o silêncio que seguiu às vozes alteradas. Intuindo o que ocorria, revoltou-se, sabendo que estava certa dos motivos de, até então, não conseguir uma única joia do cliente generoso Ryo Satoshi.
E naquele momento, ela decidiu livrar-se da pedra no seu sapato. Definitivamente.
***
Naquele caos que se tornou o Japão, não era difícil conseguir veneno dos farmacêuticos em troca de comida ou dinheiro. Arsênico ou cianeto eram vendidos para qualquer fim sem fiscalização. Mina só precisou ir a uma drogaria e pedir para falar com o dono.
O químico de meia-idade parecia um daqueles alquimistas medievais, sentado em uma mesa que tinha espalhadas sobre si diversas folhas secas e potes de pós brancos. Ele não falou muito, apenas estendeu um pequeno pote amarelado e velho para a outra e recebeu em troca um envelope com algumas notas.
Não houve diálogo. A prostituta levantou-se e voltou para a mansão de Ryo.
Sabia que por ter sumido durante a tarde, não poderia envenenar Shiromiya no mesmo dia, afinal de contas, toda a culpa cairia em cima de si. Assim sendo, resolveu agir com calma e cautela.
Não que fosse tarefa fácil.
O rapaz, apesar de ser um jovem de dezoito anos, não parecia interessado em coisas instigantes para sua idade. Mina não conseguia seu interesse mostrando as pernas ou tentando seduzi-lo. Bem da verdade, quando ela levantava da cama pela manhã, o rapaz já estava no pomar cortando galhos, varrendo o chão e molhando as flores. Rindo, ela dava-se conta de que Shiro tinha mais do que a miséria impregnada em sua pele. Ele era espiritualmente pobre, de pôr-se a trabalhar debaixo do sol como qualquer plebeu humilde, ignorando todas as vantagens que poderia ter ao lado de um amante generoso como Ryo.
Ah, se fosse ela...
Como a vida podia ser tão injusta? Se Ryo a olhasse como o olhava, já estaria com pelo menos duas mansões em Hokkaido e uma em Tóquio. Mas a vida costumava ser bondosa com quem não merecia ou não sabia aproveitar.
Levou cerca de uma semana para conseguir um momento livre com o rapaz. Numa tarde, já perto das dezoito horas, ele resolveu se recolher mais cedo. Entrou na casa, e foi subitamente interceptado pela mulher. Mina sorriu para Shiromiya, tentando deixar claro que buscava paz e amizade.
—Vamos tomar chá? — ela indagou, tão gentil que Shiro arqueou as sobrancelhas, incrédulo.
Puxando-o pela mão, fê-lo sentar numa das poltronas e acomodou-se em outra à frente dele.
— Desculpe pela forma como o tratei — pediu. — Na verdade, quando soube que você era amigo de Shin Sakamoto, não consegui segurar meu lado ríspido. Shin é um homem bruto e maldoso, sempre foi muito agressivo comigo.
A desculpa dela não o deixou tão espantado quanto o fato de que ela conhecia Sakamoto. Sabia que as meninas da Casa Ai não gostavam de Shin, mas nenhuma havia sido fria com ele por conta da sua amizade com o membro da família real. Aliás, nunca entendeu porque Sakamoto não agradava a maioria das pessoas. Depois que o conheceu melhor, passou a nutrir muita afeição por ele. Sabia que, com Shin, não precisava temer as palavras, o jovem jamais mentia, doesse a quem doesse. Pessoas tão sinceras e francas não deviam ser temidas. A vida o havia ensinado que o perigo se encontrava naquelas que sorriam gentilmente, dizendo palavras doces. Essas sim, incapazes de seres exatas, podiam massacrar um coração.
E era aquilo que estava acontecendo exatamente naquele momento. Shiro, então, pigarreou e a enfrentou.
— Como soube que eu era amigo de Shin Sakamoto?
Mina enrubesceu.
— Ah, eu ouvi uma conversa de Ryo com Sakamoto, pelo telefone — assumiu. — E Shin perguntou de você...
— Shin e Ryo conversaram no mesmo dia que eu cheguei?
Era óbvio que não. E era óbvio também que a forma como ela o maltratou quando ele pisou na casa nada tinha a ver com Sakamoto. Assim que Shiromiya deixou claro que não era um tolo como Mina supunha, a mulher se levantou.
— Meu querido — desconversou. — Vou buscar o nosso chá.
Mina praticamente correu até a cozinha. Queria livrar-se daquele olhar enigmático que impossibilitava a manipulação.
Aproximou-se das xícaras. O chá já estava pronto, ela o havia deixado aquecendo no fogão à lenha durante a tarde. Não queria perder nenhuma chance e preparou-se para tal. Serviu duas xícaras, tendo o cuidado de escolher uma xícara azul com bordas douradas para Shiromiya. Jogou dentro dela o pó, e voltou-se para a porta, já carregando as bandejas.
Perdeu o fôlego quando deu de cara com Tadao.
— O que a senhora pôs no chá? — o homem questionou, firme.
— Não pus nada, ficou louco?
— Dê-me a xícara, por favor.
O servo avançou, pronto para pegar a bandeja, mas a mulher foi para o outro lado da mesa, revoltada.
— Como se atreve a me confrontar? — perguntou. — Não passa de um empregado! Eu sou convidada do seu patrão!
Tadao, contudo, manteve o rosto impassível. Abriu a boca para retrucar, mas nesse exato momento Ryo Satoshi entrou na cozinha, seguindo o tom alto de Mina. Shiro apareceu atrás dele, e observou a cena em total silêncio.
— O que está acontecendo aqui?
A mulher respirou fundo, colocando a bandeja em cima da pia. Parecia bastante ofendida e fez questão de demonstrar aquilo ao anfitrião.
— Seu empregado entrou na cozinha e me...
— Vi a senhora Mina colocando um pó dentro da xícara — Tadao a interrompeu.
A mulher ergueu as mãos, numa teatral postura ultrajada.
— Vê? Ele ousa me acusar...
Mais uma vez, foi interrompida.
— Qual xícara? — Ryo questionou.
— A azul, senhor — Tadao apontou-a.
Ryo então se voltou para Shiromiya. O menor parecia alheio ao acontecimento.
— Ela lhe ofereceu chá?
— Sim — respondeu, no entanto. — Disse que estava vindo buscar.
Ryo então respirou fundo. Pareceu completamente calmo e frio. Virou-se em direção ao servo.
— Ouvi na rádio que caças estão vindo em direção a Sapporo. Quero que vá para o abrigo da sua família, ficar com sua esposa e filhos.
O homem curvou-se e saiu da sala. Pareceu a Mina que Ryo havia desconsiderado completamente a cena. Não soube como reagir, e então aguardou.
— Shiro, nos dê licença — ele pediu ao outro.
O rosto indiferente de Shiromiya permaneceu sem qualquer demonstração. Ele apenas assentiu e sumiu das vistas. Depois disso, o anfitrião fechou a porta da cozinha e encarou Mina.
— Diga a verdade — mandou.
— A verdade é que eu queria beber chá com seu amigo, vim buscar duas xícaras e então sou completamente massacrada por tais mentiras.
Ryo permaneceu calculista. Volveu os olhos para o recipiente cheio de líquido verde e então voltou a encará-la.
— Beba — exigiu.
A mulher respirou fundo, sentindo os olhos inundarem-se pelas lágrimas.
— Não acredito que está colocando em dúvida minha honra! Há quantos anos nos conhecemos?
— Minha cara, nos conhecemos o suficiente para eu saber que você não vale nada.
Ela deu dois passos em direção à porta que levava ao pomar. Pensou em fugir, e preparou-se para aquilo, quando ouviu uma sirene longa e aguda cortando o ar.
Já havia ouvido aquilo antes... Era o som do inferno.
— Ryo-san — voltou-se para o homem. — Por favor — implorou.
Mas Ryo não se sentiu tocado. Antes mesmo que ela pudesse raciocinar, ele agarrou seus cabelos e a arrastou até o portão, num trajeto que levou alguns minutos. Quando chegaram à parte frontal da propriedade, ouviram a primeira explosão ao longe.
— Por favor, não vou sobreviver — tentou fazê-lo voltar à razão. — Não me deixe desamparada.
Ryo a jogou no chão, do lado de fora. Ela caiu sobre o chão de terra batida, sujando o rosto. Em seguida, sentiu algumas notas sendo atiradas sobre si.
— Meu pagamento pelos seus serviços — Ryo disse, com nojo. — Nunca mais precisarei deles, então não volte.
— Vou morrer, Ryo — ela agarrou suas pernas, culpada. — Me deixe ficar só essa noite.
— Existe um abrigo há uns dois quilômetros daqui. Arrisque a sua sorte, porque de mim não terá mais nada.
Depois disso, desvencilhou-se e entrou na casa.
***
Tudo aconteceu muito rápido depois da primeira bomba. Um som forte e estrondoso, sendo seguido por outros, mais intensos ainda. Ao longe, o entardecer já pronto para escurecer, tornou-se manhã de verão.
Sapporo estava sendo bombardeada. Ryo correu em direção a casa, procurando Shiromiya, precisava encontrá-lo, ir com ele para o abrigo.
O chão tremeu e todas as luzes da casa se apagaram. Naquele breu, Ryo caminhou cambaleante, segurando-se nas paredes que pareciam balançar como amantes numa noite de amor.
Andou até a sala, a cozinha, nada. Correu para o quarto de Shiro, estava vazio. Já estava desesperado quando chegou à biblioteca.
— Shiro! — gritou, chamando-o.
Nenhuma resposta além das explosões que pareciam queimar sua audição.
Correu para o jardim, quando se deu conta de que já havia vivido aquilo antes. Sim, uma visão. Foi em Tóquio, numa noite próxima ao aniversário de Shiromiya, quando lhe deu o cordão. Lembrou-se de que o viu no abrigo e, sem raciocinar mais, correu naquela direção.
A portinhola do local estava aberta, e ele entrou sem problemas. As luzes de emergência estavam ligadas, e Shiro parecia aguardá-lo, sentado em cima da cama.
— Eu o procurei por todos os lugares — a frase escapou exatamente como na visão.
E exatamente como na visão, veio a resposta.
— Você me disse que eu sempre devia procurar o abrigo se as bombas...
— Tolo! — Ryo o interrompeu. — Quase me matou do coração! — ralhou. — Mas fez bem em se proteger, estou aliviado.
Não foi por saber o que aconteceria depois daquilo que ele andou. Na verdade, toda a sua ação era natural e não pensada. Segurou o rosto de Shiro, erguendo sua face gentil, e o beijou com toda paixão em seu âmago.
Descolaram os lábios. Ryo sentou-se ao seu lado, enquanto sentia Shiro aconchegar-se em seu abraço. Parecia assustado.
— Será que Tadao-san chegou em segurança em sua casa?
— No início da guerra, eu lhe dei dinheiro para construir um abrigo. Ele não mora longe daqui, deve estar protegido.
— E a senhorita Mina?
Ryo levou algum tempo para responder.
— Ela foi embora.
— Agora? Mas não é perigoso?
— Ela mexeu com o que é mais caro para mim, Shiro — confessou.
Shiro ergueu a face, encarando-o. Seus olhos resplandeciam sentimento. Naquele momento, Ryo soube que não conseguiria mandá-lo embora assim que o tivesse. Claro, jamais o manteria na sua casa, como amante, mas não o deixaria longe. Assim que a guerra se findasse, mandá-lo-ia para uma bonita residência há dez quilômetros da sua. Poderia vê-lo toda semana, mais de uma vez.
Antes que o pensamento pudesse prosseguir, ele sentiu as mãos macias de Shiro no seu rosto. Kazue observou seus lábios, antes de puxá-lo para mais um beijo suave, um tocar de lábios.
Encararam-se. Por alguns segundos, Ryo e Shiro simplesmente observavam a respiração rápida um do outro. Subitamente, contudo, como se ouvissem uma ordem divina, abraçaram-se rapidamente, apertando tão forte o corpo um do outro quanto possível.
Eles ficaram naquele abraço cúmplice por alguns segundos. As bombas do lado de fora pareceram se intensificar. Mesmo que não desse mais para ouvir as sirenes e as aeronaves, o som das explosões prosseguia, impiedoso. Naquele ínterim, Ryo deitou-se na cama. Shiro levou alguns segundos antes de decidir acompanhá-lo. No entanto, assim que o menor aconchegou-se ao seu lado, trouxe-o para mais um beijo.
O primeiro, delicado, foi apenas uma prévia do seguinte, generoso e caloroso. O corpo de Shiro começou a formigar em várias partes e, sem sentir, ele grudou em Ryo, que o acariciava com as mãos e com o próprio corpo.
E então veio o calor. Como se todas as bombas estivessem ali com eles naquele abrigo. Ryo e Shiro arrancaram as camisas praticamente ao mesmo tempo. Porém, a calça de Satoshi saiu antes. A cueca desapareceu antes mesmo que Shiro se desse conta do que estava acontecendo.
Já haviam se visto nus, antes, durante aquele banho noturno. Porém, nem de longe Shiromiya lembrava que o membro do outro era tão avantajado e intimidador. Por mais que tentasse, não conseguiu esconder o medo nos olhos.
Ryo sentiu aquilo e se ajoelhou perante ele, em cima do leito. Sentado, Shiro sentiu o peso de seu olhar, a medi-lo. Desviou os próprios olhos, mas o comerciante segurou seu queixo, fazendo com que os olhares se encontrassem novamente.
— Não vou machucar você, eu prometo.
— Não pode prometer — rebateu. — Nunca fez isso antes, não sabe o quanto é horrível...
— Sei o quanto te adoro — o tom fez a pele de Shiro se arrepiar. — E sei o quanto me adora, também...
Antes que Shiro pudesse se controlar, lágrimas deslizaram pela sua face, caindo do seu queixo em cima do colo.
— Eu o amo, Ryo-san — confessou.
Aquela frase, dita num tom tão baixo como um segredo proibido sendo confidenciado, fez Ryo se comover. Buscando-o novamente, trouxe-o para seus lábios.
— Shin me explicou algumas coisas...
Sua frase tinha por intenção apenas fundamentar que não era um completo ignorante no assunto.
— Mas eu tenho certeza de que não preciso de nenhuma teoria para te amar — finalizou, seguro.
E então Shiromiya se entregou.
Permitiu que o resto de suas roupas fossem arrancadas de seu corpo. Deixou que a boca sedenta de Ryo deslizasse por sua pele arrepiada, causando nele um frenesi sem controle. E quando os dedos longos e bonitos de Ryo entraram dentro dele, mordeu os lábios, segurando um gemido de dor.
— Acho que fiz errado — ouviu Ryo sussurrar.
Não, não havia feito. Todas as vezes que foi tomado, a dor era muito mais intensa do que aquela. No entanto, viu Satoshi correndo até o criado mudo e pegando um pote com um tipo de creme. Colocou uma boa quantidade dos dedos e voltou para Shiro, invadindo-o novamente.
Um dedo, dois, três... estranhamente, Shiro não sentiu dor daquela vez. Maravilhado, ele percebeu que Ryo estava preparando-o, enquanto seus dedos montavam caminho para o membro elevado, duro e firme.
Quando Shiro gemeu de prazer, Satoshi subiu em cima dele. As pernas abertas de Kazue enroscaram-se na cintura musculosa.
E então Ryo entrou numa entocada rápida e firme. Em nenhum momento, os olhos deles deixaram-se. Era muito mais do que sexo, era um encontro de almas e Shiro sabia disso. Quando o puxou para um beijo, sentiu um prazer tão intenso numa entocada, que não aguentou e chorou, de puro deleite.
Depois daquilo, foi uma sucessão de entocadas vigorosas, gritos e gemidos tão altos que nem mesmo a guerra fora capaz de amenizar. Que o mundo se destruísse! Ryo estava tão entregue, tão apaixonadamente oferecido, que entendeu naquele instante o quão importante era fazer sexo com alguém com o qual pudesse nutrir afeição.
Nunca havia sentido aquilo. Nada o havia preparado para o aperto de Shiro, para a forma como ele deslizava as pernas pelas suas costas, como ele lambia sua língua, sussurrava palavras de amor contra suas orelhas, arranhava suas costas.
E então o ápice o atingiu. Um grito mudo escapou da sua garganta e ele sentiu-se derramar contra Shiro.
Naquela noite, uma das mais horríveis da história, muitos pereceram e choraram por seus mortos. Outros choraram por si mesmos, pela sua vida destruída. Mas, escondidos naquele abrigo, Shiromiya e Ryo se entregaram a uma felicidade tão extensa que nem mesmo a guerra podia devastar.
Capítulo 41
O so m fez Ryo abrir os olhos e se sentar com as duas mãos no rosto, como se tentando se proteger do barulho. Era uma batida forte, que ecoava por todo o abrigo, colidindo nas paredes e voltando-se contra ele. Não que sua cabeça doesse. Bem da verdade é que fazia muito tempo que não se sentia tão satisfeito e tão feliz ao acordar.
— Ryo-san — a voz de Tadao surgiu, rouca. — Está tudo bem aí?
Ryo sentiu a cama se movendo e lembrou-se imediatamente da outra presença. Virou o rosto e percebeu Shiromiya sentando-se, os olhos inquietantes questionando muito mais do que ele seria capaz de responder.
— Está tudo bem — gritou para o servo. — Vamos subir já — avisou. — A casa está de pé?
— Sim, as bombas caíram apenas no lado leste de Sapporo.
Ryo assentiu.
— Por favor, mande preparar o meu café da manhã — pediu. — Já estamos indo para a mesa.
Quando ouviu o som de passos se afastando, ele, enfim, conseguiu encarar Shiromiya com mais calma. As marcas avermelhadas dos beijos que lhe dera percorriam um caminho perigoso, que ia do pescoço até para baixo do ventre. Shiro estava lindo, tão delicado quanto uma flor preciosa, exposto em sua cama com a mesma confiança de uma noiva na manhã de suas núpcias.
Resolveu ser prático e acalmou suas dúvidas com um beijo cálido, profundo. Sentiu os dedos de Shiro segurarem seu rosto, retribuindo a carícia com a mesma intensidade. Com a respiração rápida, Ryo o soltou.
— Queria me perder para sempre em você, Shiro — confessou. — Mas eu preciso ir ver como ficaram as fábricas. Prometo voltar tão logo termine meus afazeres.
Kazue sorriu.
— Ficarei o dia todo esperando-o, Ry-chan — sussurrou.
Ryo foi até seu escritório, tão logo se alimentou. Nas ruas, as casas demolidas e os corpos mutilados e queimados pelo caminho lembrou-lhe muito Tóquio. Porém, era lugar-comum. Já havia visto aquilo tantas vezes em suas visões que nada o sensibilizou ou escandalizou.
Entrou no edifício onde armazenava a documentação de todas as fábricas e barcos, e começou a encaixotar os documentos mais importantes. Devia ter feito aquilo antes, mas só então se dera conta dos problemas que teria, caso perdesse seus dados. Tadao chegou pouco depois, trazendo informações sobre as fábricas. Aparentemente, os galpões onde os barcos foram guardados na ilha de Okushiri foram completamente incendiados pelas bombas potentes. Soube também que alguns dos seus empregados morreram, pois não chegaram a tempo no abrigo que Ryo mandou fazer na fábrica.
— Queria mandar suspender o trabalho apenas nas fábricas de Hokkaido, mas acho que mandarei fechar as de todo o país — disse ao servo.
— Mas o governo...
— O governo, os militares e todos que estão com eles, que vão para a puta que pariu! — rebelou-se. — Ajudei mais do que minha obrigação. Estou até mesmo fornecendo alimentos nos últimos meses sem receber nada em troca, pois ainda me devem.
— Isso pode ser considerado...
— Traição? Ora, Tadao, não sabe que o Conselho de Guerra já está estudando um acordo com Stalin para mediar a paz? Mandam o povo lutar até o fim, mas tentam a todo custo salvar seus traseiros.
Porém, antes mesmo da primeira semana de abril se encerrar, as rádios locais anunciaram que a União Soviética anulava o Pacto de Não Agressão nipônico-soviético. Não que tal coisa preocupasse Ryo. Caso recebesse uma missiva do governo para que as fábricas voltassem a trabalhar, o faria. No entanto, tinha estoque e sua rebeldia seria facilmente escondida do já desamparado império.
Assim sendo, após algumas decisões tomadas, decidiu concentrar-se em viver a única coisa que importava no momento: sua paixão por Shiromiya Kazue.
Os dias tornaram-se apenas alguns amontoados de horas, enquanto ele desfrutava da companhia de Shiro. Tanto nas conversas matinais ou vespertinas, enquanto bebiam chá e comiam bolo, tanto nos encontros quentes antes de irem dormir, ou durante a tarde, quando ninguém estivesse à vista.
— Qual é seu sonho? — Shiro lhe perguntou numa noite, logo após fazerem amor.
Sonho? Ryo arqueou as sobrancelhas, sem saber direito o que falar.
— Jamais pensei sobre frivolidades — admitiu.
— Sonhar faz de você frívolo? — O outro gargalhou, acariciando a face suada de seu parceiro. — Sou o mais frívolo dos homens, então, Ry-chan.
— É mesmo? Qual seu sonho?
— Não estamos falando de mim — retrucou.
— Mas eu quero ouvir — foi firme. — Diga-me, para que eu possa ajudá-lo a conquistá-lo.
Shiro pareceu pensar um pouco. A mão gentil que bagunçava os cabelos de Ryo afastou-se, e ele pareceu acanhado em falar.
— Quero aprender a ler e escrever — contou.
Para que ele iria querer aquilo? Ryo achava tão inútil. Shiromiya já era adulto, e já tinha sua própria profissão: servi-lo. Era um desperdício de tempo. Aliás, era um desperdício de tempo PARA ELES. Afinal, o tempo que Shiro gastaria com livros podia ser mais bem aproveitado entre os amantes.
— Bom... — disse, no entanto, sem querer comprometer-se nem irritá-lo. — Vamos ver o que podemos fazer para conseguir isso.
Porém, esqueceu-se de tudo no instante seguinte, quando Shiro pulou contra ele e encheu seus lábios de beijos agradecidos.
— E você, Ry-chan? Conte-me!
— Não tenho sonhos, já disse.
— Todos têm sonhos!
— Não eu.
— Ry-chan...
Os dedos de Shiromiya começaram a brincar com os mamilos de Ryo, que sentiu-se enrijecer em segundos. Quis pular em cima dele, mas viu-se apenas buscando sua mão e a levando até a boca, a fim de depositar ali beijos cálidos.
— Quando criança, eu gostava de pintar... — confessou. — Ficava horas desenhando as paisagens, as pessoas... Meu sonho era ser um artista.
A boca de Shiro abriu-se, espantando. Jamais imaginou.
— E por que desistiu?
— Meu pai descobriu e destruiu minhas pinturas. Disse-me que arte não dava lucro, e que eu devia me preparar para assumir os negócios da família. — pigarreou. — Quer saber? Ele estava certo.
— Pode ser, mas hoje você seria mais feliz, não?
Ryo deu os ombros. Sua mão acariciou as nádegas de Shiro, enquanto ele pensava no que acabava de escutar. Era verdade que afundara seus devaneios, porém... Ele amava dinheiro! Sentia-se seguro por ser rico, poderoso por todas as propriedades, barcos e fábricas que possuía. Mesmo o país à beira de um colapso, ele bebia chá tranquilamente na sua sala todas as tardes. E, mais, durante a noite, podia desfrutar do corpo de um amante que só conseguira porque tinha recursos suficientes para arcar com as visitas à Casa Ai.
— O que me faz feliz é ter você aqui comigo — disse, de forma romântica.
Shiromiya derreteu-se diante das palavras, abraçando-o fortemente.
No dia seguinte, Ryo o encontrou no café da manhã. O rapaz já se alimentava, e simplesmente cumprimentou-o com um sorriso.
— Parece feliz — o comerciante comentou, sentando-se à mesa.
— Resolvi ir à cidade — disse, como se tivesse todos os direitos.
Se havia algo que Ryo odiava em Shiro era sua insistência em ser livre. Ora, não que desejasse um escravo, mas queria que cada decisão tomada fosse indagada a ele antes. Porém, ao mesmo tempo, não desejava criar um clima hostil. Shiro se mostrava um amante valoroso, como poucos. Entregava-se sem reservas, e a conversa pré e pós-sexo era fabulosa.
— É mesmo?
— Posso colher algumas laranjas? — perguntou. — A maioria está caindo no chão, então, se não se incomodar, vou levar algumas comigo para dar às pessoas.
Ryo apenas assentiu.
— Vou com você — disse, em seguida, no impulso.
— Mas não precisa organizar alguns...
— Tadao fará isso. Vou com você — reafirmou.
Shiromiya preferiu não retrucar. A companhia de Satoshi era sempre deliciosa e o fazia feliz. Nunca pensou que pudessem compartilhar de tantos momentos maravilhosos juntos.
Sapporo estava pior do que Shiro imaginava. Ele caminhou por entre os destroços, entregando sacolas de estopa com algumas laranjas para os sobreviventes. Ryo o seguia silencioso, por trás, quase como um guardião.
— Por que não nos rendemos logo? — Shiro indagou, baixo, para o amante.
Ryo olhou para os lados, preocupado que alguém pudesse ter ouvido a frase. Por sorte, ninguém estava prestando atenção. Mesmo com tanta desgraça assolando o país, a grande parte da população ainda acreditava numa reviravolta.
— Porque nosso orgulho é mais forte que nosso bom senso — respondeu.
Depois daquilo, praticamente não falaram. Até porque era mais respeitoso, diante de tantos corpos no chão, o silêncio. O número de mortos no bombardeio havia sido grande, e muitos ainda apodreciam sobre o que, um dia, havia sido suas casas, à espera de um enterro decente.
Já era final da tarde, quando eles decidiram voltar. Contudo, um som agudo preencheu o ambiente no exato momento que se viravam em direção à estrada que levava à casa de Ryo.
Uma sirene...
Um novo ataque?
Ryo encarou Shiro. Não havia visto aquilo em nenhuma das suas visões e ficou transtornado por não estar no seu perfeito abrigo, desfrutando da companhia do outro.
— Vamos voltar — disse, puxando-o pela mão.
— Não teremos tempo, vamos para o abrigo público.
— Não vou ficar com essa... — o restante da frase “gente pobre” perdeu-se diante do olhar magoado do outro. — Meu abrigo é mais seguro — considerou.
— Já disse que não temos tempo!
Então, Ryo resolveu seguir a multidão. Sapporo mantinha vários abrigos nos bairros, cada um com cerca de dez metros, que podia abrigar até cem pessoas. Porém, era só isso. Não havia nenhum conforto além da energia elétrica que permitia uma vista nada agradável de rostos ansiosos.
Shiro e Ryo se sentaram no chão, assim como todos os demais. Algumas mulheres e crianças choravam, mas grande parte das pessoas fazia silêncio, a espera do barulho vindo de fora.
Repentinamente, Ryo sentiu Shiro segurando sua mão. Houve um aquecimento imediato em seu corpo, mas não era referente a nenhum clima sexual. Era um carinho tão intenso que sentiu vontade de abraçá-lo pelo simples fato de não estar ali sozinho.
Duas horas depois, e sem nenhum som de explosão, a porta do abrigo foi aberta. Um por um, cada cidadão saiu, ainda amedrontado, como se temesse voltar à superfície.
— Era um avião meteorológico — avisou um dos homens, de forma coletiva.
Ryo respirou, aliviado. Não sabia o que teria acontecido, caso Shiro tivesse ido sozinho à cidade. Teria ficado desesperado pelo som das sirenes sem ele por perto.
O que faria se o perdesse?
Sem respostas, apenas o puxou e ambos voltaram para casa.
***
O corpo de Shiromiya arqueou-se para trás. Aquela visão era tão eroticamente perfeita que Satoshi não resistiu e afundou-se ainda mais forte, em entocadas rígidas sobre o corpo delicado.
— Mais... — Shiro exigiu.
Aquele pedido o enlouqueceu. Sentiu o pênis se contorcendo dentro do outro, aumentando ainda mais de tamanho.
Um longo gemido depois, e ambos desabaram sobre a mesa de mogno que enfeitava o quarto de Ryo.
— Desculpe — o mais velho falou. — Não deu tempo de chegar até a cama.
A gargalhada de Shiro o fez rir também.
Depois, afastou-se do corpo jovem e foi até a calça, à procura de um cigarro. Quanto tempo fazia que não fumava? Mais jovem, tragava para acompanhar Sakamoto quando ele estava ansioso. Agora, havia outra coisa pesada em seu coração.
Encarou Shiro, enquanto acendia o cigarro. Já fazia algumas semanas que desfrutavam o leito. Não devia ter cansado? Nunca, até então, havia ficado tanto tempo com o mesmo amante. Mesmo quando tinha fixas, como Keiko, ele costumava intercalar com outras beldades para não enjoar. Mas Shiromiya preenchia todas as suas vontades.
O amante cruzou por ele e foi até o quimono, vestindo-se. A visão do corpo suado e manchado pelo seu prazer fez com que Ryo se esquentasse novamente, mas quando Kazue o olhou, soube que Shiro não queria mais fazer sexo.
— Ryo, para se trabalhar numa das suas fábricas é preciso ser estudado?
A pergunta não o interessou.
— Depende para que cargo.
O outro respirou fundo.
— Talvez um faxineiro. Ou talvez um ajudante geral.
Ryo tragou novamente. Virou-se de costas e foi até as bebidas. Encheu um copo de cristal de conhaque e bebeu.
— Para essas funções, normalmente, não se exige nada.
Sentiu os passos de Shiro atrás de si. Logo as mãos dele o cercaram, num abraço fraterno.
— Quando a guerra acabar, você me daria emprego?
— Quando a guerra acabar, não voltará para a Casa Ai?
A pergunta escapou, sem que Ryo realmente quisesse fazê-la. Porém, não imaginava que Shiromiya estivesse a planejar uma vida longe de Tóquio.
— A Casa Ai foi destruída — murmurou o rapaz.
— Mas Aiko...
— Eu pediria a Aiko-san, claro. Mas como acho que, após a guerra, ele ficará com Sakamoto-san, acredito que devo pensar sobre o meu futuro.
Shiromiya o soltou, afastando-se. Ryo virou-se e o observou. Parecia incomodado.
— Eu sei que estou pedindo demais, mas... Eu preciso de um emprego em Sapporo para poder ficar por aqui...
— Você não precisa de um emprego para ficar! — ralhou. — Já te disse, terá tudo que quiser.
— Não quero me sentir comprado — admitiu, nervoso.
— Não é uma compra, é uma troca. Eu o mantenho, e você me faz feliz.
Shiro virou o rosto para o lado. Pensativo, mordeu o lábio inferior, como se medisse as palavras.
— Shiro, sei que algumas atitudes minhas o irritam, mas eu só quero protegê-lo. Por exemplo, mesmo sem as fábricas ativas, eu preciso sair uma ou duas vezes por semana para verificar os pedidos do exército. E se, numa de minhas idas, começar um bombardeio e eu morrer? O que vai acontecer com você? — colocou o copo sobre a mesa e foi até ele. — Sabe onde está meu ouro, mas terá que se manter até ter tempo de vendê-lo ou trocá-lo. Por isso, eu irei dar-lhe dinheiro. Inclusive, dinheiro americano. Quero que guarde em sua caixinha e o mantenha com você. Não é uma compra, é uma precaução.
Mesmo a contragosto, Shiromiya concordou.
***
O chiado forte quase o ensurdeceu. Ryo bateu de leve no telefone, tentando fazer com que a ligação fosse mais bem captada. Depois de alguns segundos, enfim, ouviu a voz de Sakamoto do outro lado da linha.
— Como está Shiro?
Quase sorriu. Era cômico que depois de tantos anos de amizade, fosse o nome de outro que Shin citasse.
— Ele está bem.
— Se não fosse perigoso, eu iria buscá-lo! — ralhou, como se não acreditasse em suas palavras.
— Shiro não vai querer voltar — avisou. — Disse que me ama, e que quer ficar ao meu lado.
Houve um silêncio estranho do outro lado da linha e os chiados voltaram. Ryo voltou a bater no telefone, até ouvir os berros de Sakamoto:
— Vou enfiar um revólver na sua garganta, desgraçado! — gritou.
— Você mesmo me aconselhou... — objetou, mas foi interrompido.
— Não sabe como está Aiko? — demonstrou seu desespero. — Tenho medo do que possa acontecer se ele perder o garoto!
Ryo meditou na frase.
— Ele ainda não voltou a si?
— Aiko passa os dias sentado na cama. À noite, Jiro o deita e fecha seus olhos, porque nem isso ele é capaz. Ele come por sonda, bebe por soro... — houve um silêncio angustiante depois daquilo. Porém, Ryo aguardou. Quando a voz voltou a soar, o tom o arrepiou. — Tem que usar fraldas porque não tem controle sobre o próprio corpo...
Ryo se sentou na cadeira. Seu escritório subitamente pareceu nublado. Sentiu que era os olhos que se enchiam de lágrimas.
— Não sabia, Shin-san...
— Não peço por mim, Ryo, mas por ele. Por favor, você também ama Mamoru.
— Não estou ferindo Shiro — afirmou. — Ao contrário, estou lhe dando a melhor vida que é possível. Mandarei comprar uma casa para ele, vou mantê-lo com todos os luxos que quiser. Nunca mais precisará trabalhar nem dançar. Acha que Aiko ficaria magoado por eu tratá-lo bem?
Shiromiya apareceu na porta naquele momento. Seus olhos pareceram questionadores, preocupados. Ele andou até Ryo, como se aguardasse notícias, e sem saber o que falar diante de sua presença, Satoshi apenas se despediu do amigo.
— Fique tranquilo que tudo está bem. Iremos ver Aiko assim que pudermos e for seguro.
E então desligou.
— Aiko-san está melhor? — perguntou, seriamente angustiado.
— Sim, querido — mentiu. — Ele mandou dizer que sente a sua falta.
Shiromiya sorriu e abraçou Ryo, que se sentiu o indivíduo mais crápula sobre a face da terra no momento que recebeu o carinho agradecido.
Capítulo 42
Shiromiya o aguardou chegar em casa na porta da frente. Seu sorriso era tão apaixonado que Ryo viu-se sorrindo também, retribuindo o gesto com profundo carinho. O menor pegou sua mão e o puxou para o quarto. Lá, ele o levou até o banheiro, onde a banheira o aguardava para um banho quente.
— Por quê? — Ryo indagou, sabendo não ser merecedor de nenhum agrado.
— Porque eu o amo — respondeu, simplesmente, como se fosse a mais lógica de todas as respostas.
Kazue ajudou o comerciante a tirar a roupa. Quando Ryo se sentou na banheira, Shiro se ajoelhou às suas costas, e as esfregou com um pedaço de sabonete de cor lilás. O perfume da água encantou Ryo, que se viu a relaxar pela primeira vez em meses.
— Dispensei suas empregadas — contou. — Queria fazer seu jantar — sorriu, a cabeça baixa.
— Você sabe cozinhar?
— Nana me ensinou — admitiu, o tom triste.
Ainda era muito difícil falar da velha falecida sem sentir a garganta doer.
— Está bem, irei experimentar sua comida então — Satoshi concordou, sorrindo.
Shiro curvou-se para ele e o beijou na boca. Depois, se levantou.
— Enquanto termina seu banho, estarei arrumando a mesa do quarto.
De fato, tão logo Ryo saiu do banheiro, encontrou uma mesa posta próxima da cama. Sorriu diante dos pratos simples — arroz, peixe e saladas —, mas feitos com esmero. Largou a toalha em cima da cama e vestiu seu quimono. Percebeu os olhos negros de Shiromiya cravados no seu corpo nu, e o desejo pareceu resplandecer nele.
Vagarosamente, fechou o quimono, deixando que o abdômen definido ficasse exposto o máximo de tempo possível. Gostou daquela brincadeira maliciosa, em que podia manipular os olhos amendoados do rapaz, conforme sua vontade.
— Quero comer...
— Então, sente-se — Shiro puxou uma cadeira.
— Quero comer você...
Em segundos, estava diante do outro, que nem tentou lutar contra o desejo. As mãos macias de Shiromiya deslizaram pelo quimono de Ryo, não ficando dois minutos sobre o corpo masculino. Em seguida, era arrancado, atirado ao longe, como se fosse nada mais que um empecilho entre eles.
— Preparei a comida com tanto cuidado — Shiro choramingou, como se lutasse contra a própria vontade.
— Terá a vida toda para preparar comida para mim, Shiro...
— Nesse pensamento, terei a vida toda para ser amado por você — rebateu, rindo, tocando com o nariz no do outro.
O pênis ereto de Ryo tocou sua barriga. Olhou para baixo, percebendo que o seu parecia querer escapulir da calça, ansioso para encontrar-se com o do outro.
Ryo, então, enfiou a mão dentro da calça de linho clara e puxou o pequeno órgão do amante, unindo com as mãos os dois mastros que provocaram uma intensa e dolorosa onda de prazer ao se encontrarem. Apertando os dois membros um contra o outro, Ryo gemeu, enquanto observava a forma como pareciam se contorcer, como se quisessem se unir ainda mais, encaixando-se perfeitamente naquele jogo erótico.
— Tire a calça e fique de quatro — Ryo mandou, a voz quase esganiçada.
Shiro se viu cumprindo a ordem. Baixou a calça, chutando-a com os pés para o mesmo lugar onde o quimono de Ryo descansava. Depois, cravou os joelhos na cama, deitando a parte da frente sobre o travesseiro, aguardando com ansiedade o prazer que sabia que viria de antemão.
Ryo ajoelhou-se atrás dele, os dedos brancos segurando seus cabelos, apertando com força seu rosto contra a cama, fazendo-o agoniar de prazer.
E então veio a penetração, lenta e gentil. Shiro sentiu-se inflar diante da sensação do corpo de Ryo dentro de si, provocando nele todas as sensações que sempre soube merecer, mas jamais esperou receber.
Ryo se afastou e voltou. E de novo. Mais uma vez. Aquela dança erótica, o vai e vem perfeito, unindo ambos num pecado tão doce quanto o mel, fê-lo gemer alto, sem conseguir evitar o som.
— Ry-chan... — chamou.
Como se guiado por puro instinto, Ryo tirou o pênis e o virou na cama. Ergueu suas pernas e voltou a invadi-lo.
— Gosto de fazer olhando para você — Ryo sussurrou.
Shiro o puxou para um beijo. As línguas, afoitas, passaram a imitar o movimento dos quadris.
Repentinamente, o prazer pareceu aumentar. Mesmo que não quisessem que a sensação parasse, os corpos passaram a se mover numa cadência mais intensa. Shiro gritou diante da forma como Ryo ergueu ainda mais suas pernas, colocando seus tornozelos sobre os ombros.
— Ry-chan — implorou. — Mais rápido... Por favor...
Ryo passou a bater com mais força contra o bumbum de Shiro, quase o machucando. Havia perdido completamente a razão e só conseguiu perceber o que fazia quando gritou diante do orgasmo que o tomou, e o seu membro escapou para fora de Shiro, melecando todo o corpo do amante.
— Céus... — murmurou, caindo em cima dele.
Sentiu os dedos trêmulos de Shiro segurando sua fronte, e novamente sendo beijado com paixão.
— O que você faz comigo? — questionou.
— Nunca foi assim com outras pessoas? — o outro devolveu, interessado.
— Não — Ryo admitiu. — Havia prazer, mas não era nada comparado ao que acontece quando estou com você — descansou a cabeça no pescoço de Shiro, aspirando seu perfume. — E com você?
Silêncio.
— Shiro?
— Você perguntou isso brincando, não foi, Ryo?
Levantou a cabeça e o observou. Percebeu os olhos cheios de lágrimas.
— Desculpe — disse, culpado.
— Nunca amei ninguém, além de você. Jamais me entreguei a alguém, além de você. Nunca senti nenhum tipo de prazer, além desses vividos em seus braços — Shiro disse, sério, a voz transbordando emoção. — Nunca ninguém me ofereceu nada, apenas me tomou, Ry-chan. Com seu jeito estranho, você foi o primeiro que compartilhou algo comigo...
Ryo o beijou, como se desculpasse pelas palavras impensadas.
— Me perdoe.
O outro assentiu, e então Ryo sorriu.
— Agora que já comi você, quero provar a comida — brincou, arrancando de Shiro uma gargalhada ferina.
Shiro então se levantou, e serviu-lhe um prato.
Ryo soube, naquela noite, como era ser mimado. Ao ser alimentado por Shiromiya ainda na cama, ele pensou mais uma vez no quanto ele era especial. Prometeu a si mesmo dar-lhe muito mais do que havia planejado. Faria de Shiromiya o amante mais feliz de todo Japão, com todos os bens inimagináveis a cercá-lo. E, daquela forma, nada e nem ninguém poderia tirar Shiro dele.
***
“Caiu, caiu a Alemanha” , a rádio local anunciou, num tom lacônico, como se noticiasse o fim de toda uma era.
Era o dia 02 de maio de 1945. Ryo sentava-se ao lado do rádio, enquanto bebericava conhaque. Ainda era de manhã, mas ele não conseguia evitar a apreensão, e achou que beber poderia aliviar sua amargura. À sua frente, Shiromiya ouvia em silêncio o locutor prosseguir a narração, louvando o heroísmo das tropas alemãs, que lutaram bravamente as últimas das batalhas nazistas. Enquanto as tropas germanas se rendiam na Itália, em Berlim havia ainda um pequeno exército acuado, tentando proteger a cidade divina dos vermelhos.
Repentinamente, houve um mexer de papéis, audíveis pelo som da caixa. Shiromiya percebeu que havia chegado mais (e más) notícias à imprensa e encarou Satoshi, que simplesmente deu os ombros.
— As rádios britânicas estão anunciando que Hitler se suicidou. Hitler está morto! — o homem desconhecido disse, como se não acreditasse em tais palavras. — Hitler está morto! — ele repetiu, daquela vez mais firme.
Shiro estremeceu.
— Eu duvido — Ryo bebeu mais um gole, o último, e colocou o copo sobre uma bancada. — O covarde deve estar é em outro país, talvez às fuças dos americanos — gargalhou.
Shiro pareceu pensativo, porém não o contradisse.
— E Shin? — questionou, porque até então, era a única coisa que o preocupava.
— Não sei, Shiro — admitiu. — O Japão também será derrotado e não faço ideia do que acontecerá à família Imperial. Preocupo-me com isso, mas não está em minhas mãos, e nada posso fazer.
O menor assentiu.
— Gostaria que essa guerra terminasse logo. Quero rever Midori, Rika e Keiko. E quero ver Aiko-san também. Toda vez que as sirenes tocam, meu coração começa a saltar com força, me sinto tão mal...
Ryo respirou fundo. As sirenes costumavam tocar todos os dias. Às vezes ocorriam explosões, mas na maior parte dos dias, eram apenas aviões meteorológicos passando, nada que preocupasse a ele ou ao resto da cidade.
— Ao mesmo tempo, temo o final da guerra, temo o que pode acontecer a Sakamoto-san.
— Shin tem sangue nas mãos, Shiro — Ryo disse, sério. — Ele sabe disso, por isso tenho certeza que não teme o que virá. Sua única preocupação deve estar sendo Mamoru.
Shiromiya se incomodou com a forma fria de falar de Ryo.
—Ele é seu amigo.
— Eu o amo e morreria em seu lugar, se preciso fosse. Porém, sou realista.
Shiromiya se levantou. Preparou-se para sair da sala, quando o som do rádio voltou, fazendo com que o jovem voltasse novamente sua atenção às notícias.
— A Itália caiu! A Alemanha caiu! — um homem diferente do locutor começou a falar. — Mas nossa pátria resistirá! O Japão lutará até o final glorioso, porque nós, os protegidos da deusa do sol, não lutamos em vão. Nossa guerra santa, muitas vezes dolorida e esmagadora, nos prepara para as vitórias certas, fazendo com que valorizemos cada sorriso do amanhã. Venceremos! — o homem exclamou. — Venceremos! Banzai!
Ryo gargalhou.
— Pelos céus! Como odeio os militares.
Ergueu-se e desligou o rádio. Depois, foi até Shiromiya, segurando seus ombros.
— Não nos preocupemos com o amanhã, Shiro — aconselhou. — O destino já está traçado, gostamos dele ou não. Vamos apenas viver o hoje, porque o hoje significa que estamos juntos, não é?
Puxou-o, beijando seus lábios.
Shiromiya pareceu não gostar das palavras, mas manteve-se em silêncio, não disposto a retrucar. Simplesmente concordou e se afastou.
A Alemanha rendeu-se incondicionalmente às forças aliadas e russas cinco dias após. A notícia chegou aos japoneses no dia seguinte, e foi ouvida sem grande surpresa. Contudo, mesmo assim, o povo prometeu se esforçar ainda mais na resistência.
Muitas cidades já haviam sido bombardeadas. A maioria delas, mais de uma vez. Os mortos e feridos se acumulavam. Ainda assim, ironicamente, havia esperança. Por mais que a guerra houvesse cessado na Europa, naquele país do oriente, os soldados ainda juravam pela lealdade ao Imperador, e o povo se unia trabalhando nas fábricas e nas orações no templo.
Na segunda quinzena de junho, Ryo lembrou-se do aniversário de Shiromiya. Sabia ser uma data muito especial, e quis aproveitar com o amante, porque provavelmente seria o último aniversário de Shiro em que estariam juntos. Então, organizou uma pequena festa a dois, e o fez beber álcool pela primeira vez.
— Não é mais um menino — brincou. — Mesmo ainda não tendo idade para beber, quem se importa? Dezenove anos sem tomar um gole é tempo demais — riu.
Shiro odiou o vinho, o saquê e até mesmo o conhaque. Voltou para o suco, ouvindo o riso gozador de Satoshi às suas costas.
Aquela noite de junho, devia ter sido uma data feliz, mas o jovem se amargurou e emburrou em um canto. Ryo até tentou fazê-lo se distrair, mas a saudade que o outro sentia de Mamoru Aiko, por fim, minou-lhe as forças, e ele terminou a noite chorando.
Alguns dias depois, Okinawa caiu.
***
— Masahide Ota disse que continuará a combater os invasores — a rádio discursou, na manhã seguinte a queda da cidade. — E muitos dos nossos valentes soldados não se entregaram .
Shiromiya se aproximou de Ryo. Ele estava sentado diante do aparelho, como era seu costume fazer nos últimos meses. Estendeu a ele uma xícara de chá, que foi recebida com um sorriso.
— Quem é Masahide Ota? — questionou.
— O prefeito de Okinawa.
Shiro baixou a face, pensativo.
— Se ainda existem soldados lutando, porque dizem que Okinawa caiu?
— Não existe um exército, existe apenas alguns homens escondidos em cavernas e buracos a atirar a esmo contra os americanos. Não existe organização, apenas desespero.
Shiromiya sentou-se à sua frente. As mãos bateram nos joelhos algum tempo, como se ele se preparasse para uma discussão. Ryo o observava curioso, e aguardou até que ele abrisse a boca.
— Posso pedir algo?
Shiro não costumava pedir muita coisa. Fora, é claro, no sexo, quando ele se mostrava extremamente exigente. Porém, no dia a dia, não solicitava nada. Seu pedido de emprego, semanas antes, foi a única coisa que requereu. Aquilo fazia com que Ryo se sentisse estranho, pois era acostumado a pagar pelos serviços de suas amantes anteriores. Contudo, Shiromiya recusava as joias, e mesmo o dinheiro que ele insistiu em dar como pretexto de proteção, foi recebido com olhos inquietos e vacilantes.
— Você pode me pedir qualquer coisa — avisou, feliz, em enfim o outro parecer estar se soltando mais.
— Posso falar com Aiko-san?
Ryo quase cuspiu o chá.
— As ligações estão péssimas, Shiro... Ontem mesmo tentei falar com Shin, e não foi possível — mentiu.
— Então, eu poderia ditar uma carta... Escreveria para mim?
— As chances de sua carta ser recebida são quase nulas. Os americanos estão bombardeando os carros dos correios, a comunicação está bastante complicada... — amenizou suas palavras em seguida. — Sei que sente saudades de Aiko, compreendo isso — afirmou. — Mas, a guerra está perto do fim, aguente mais um pouco. Quando tudo acabar, iremos para Tóquio e você o verá novamente.
Subitamente, percebeu que poderia comprar uma casa para Shiro em Tóquio. Ora, ele ficaria perto de Aiko e não se sentiria sozinho quando Ryo voltasse para a família. E, longe das vistas de sua futura esposa e filhos, poderia mantê-lo em total sigilo de bocas maledicentes.
— Sim, Ryo-san — ouviu o tom confortado de Shiro. — Confio em você — acrescentou com um sorriso.
Ryo estendeu a mão. Shiro segurou-a, e sentiu-se sendo puxado. Sem reprimir suas vontades, sentou-se no colo de Satoshi, que beijou levemente seu pescoço. Ficaram daquele jeito pelo restante da manhã, a ouvir as informações na rádio. Mesmo que péssimas, não os atingiu, pois na sua bolha de amor, pareciam alheios ao resto do mundo.
Capítulo 43
O di a 16 de julho entraria para a história como a data em que ocorreu o primeiro teste nuclear, no deserto de Alamogordo, Novo México. Enquanto a área, conhecida como Trinity, ficava iluminada como se mil sóis a tocassem, Ryo e Shiro acabavam de fazer amor.
Era final de tarde no Japão. Não sabiam os japoneses o horror que os aguardava, e — bem da verdade — em especial a dupla que repousava sobre a cama macia, enquanto recuperavam o fôlego. Assim, apenas se acariciavam, enquanto desfrutavam do pós-orgasmo, tão bem recebido quanto o clímax de momento antes.
Ryo fechou os olhos, sentindo o peso de Shiro sobre o peito. Os dedos de Kazue brincavam em seu mamilo direito, mas ele pouco se importou. Aos poucos, o torpor do sono foi tomando-o, e ele quase dormiu, não fosse a pergunta estranha que surgiu em seguida:
— Eu te faço feliz?
A indagação de Kazue foi tão surpreendente que Ryo tossiu. Então, baixou a face, e encontrou os olhos curiosos.
— Como assim? — desconversou.
— Midori me dizia que você sempre teve muitas amantes. Não sente saudades das mulheres com quem se deitava?
Um riso estranho surgiu na garganta de Ryo. Porém, a constatação do fato o anulou, e ele simplesmente resmungou.
— Você já me esgota o bastante.
A gargalhada deliciosa invadiu o ambiente e o fez rir também.
— Isso é porque você é um velho — Shiro provocou, pondo-se em cima de Ryo. — Um velho acabado — lambeu-lhe o queixo. — Não faço ideia do que vi em você...
Ryo suspirou aliviado por sentir que o assunto morria. Abraçou Shiromiya, mas em seguida, sentiu-o escorregando para o lado, como se o cansaço da tarde movimentada o atingisse. Minutos depois, o ressonar dele também o fez fechar os olhos, pronto a descansar.
No entanto, abriu os olhos em seguida, ao perceber um vulto no quarto. Sentou-se na cama, à procura do que quer que fosse que houvesse visto entre os olhos entreabertos. Nada. Voltou a deitar, quando a imagem de uma garotinha ao lado da cama quase o fez saltar.
A criança devia ter nove ou dez anos. Vestia um uniforme escolar bonito, de mangas compridas. Os cabelos estavam cuidadosamente atados, mas a franja grossa quase lhe cobria os olhos.
— Miya?
Reconheceu-a imediatamente. Não que a adolescente de dias atrás e a criança de agora tivessem muito em comum. Porém, como não notar os olhos inquietos?
— Miya... — repetiu, emocionado.
— Hum? — o gemido ao seu lado o fez voltar-se para Shiro. — O que é Ry-chan? — o outro resmungou, ainda sonolento e sem abrir os olhos.
Ryo encarou o amante, e voltou-se para a menina.
Miya?... Shiro... Miya... Shiromiya!
Pasmo, percebeu que havia dado à filha o nome do amante. Aquilo significava o quê?
— Eu quero ser homem! — ela gritou, quase o fazendo cair da cama de susto.
— O quê? — indagou, num murmúrio.
— Eu quero ser homem AGORA! — o berro dela o fez erguer as mãos, como se quisesse tocá-la. — Tio Shin disse que as mulheres são inúteis e não servem para nada! Eu quero ser homem!
A situação era tão excêntrica que Ryo sequer notou que a visão parecia interagir com ele. Apenas percebeu-se erguendo as mãos. Sentiu, pela primeira vez, o toque da pele dela, e se emocionou. Tão perfeita... Tão linda... Novamente, a sensação do coração aquecido o tomou, e ele a abraçaria, não fosse a forma brusca com que a menina se afastou.
“Shin é um idiota”, ouviu a própria voz, mesmo não tendo aberto a boca.
— Não fale mal do tio Shin! — ela exigiu, batendo o pezinho, birrenta.
Pelos céus! Sakamoto, além de ter sobrevivido à guerra, ainda transformaria sua filha num demônio?
— Não vai me deixar ser homem, não é? — ela voltou a incomodá-lo com o assunto. — Você é o pior pai do mundo! — gritou e saiu correndo do quarto.
Repentinamente, um riso histérico o tomou. Sentiu a cama balançando e Shiro sentou-se ao seu lado.
— O que foi?
Satoshi girou o rosto e o encarou. O sorriso morreu ao perceber que tinha que fazer logo uma escolha. Precisava de uma mulher, uma mãe para Miya. Não precisava ser bonita ou interessante, ele sequer desejava qualquer outra pessoa na sua cama além de Shiro. Contudo, precisava de uma barriga para gerar seu fruto. Uma mulher de boa linhagem, que orgulhasse sua descendente. Shiromiya não serviria para aquilo, mesmo que fosse uma mulher.
— Assim que a guerra terminar, iremos para Tóquio — avisou. — Está com saudades de Aiko, não é?
Shiromiya não escondeu a surpresa. Sorriu, sentindo os olhos umedecendo de felicidade.
— Eu te amo — afirmou. — Muito obrigado — abraçou Ryo, recostando o rosto no ombro.
O que ele não sabia é que Ryo pretendia deixá-lo lá.
Suspirando, Satoshi começou a planejar imediatamente seus passos. A guerra duraria muito pouco, talvez algumas semanas apenas. Assim que as bombas cessassem, mandaria comprar uma casa confortável para o amante, onde ele poderia receber a visita fraterna de Mamoru, e onde sempre estivesse disponível para recebê-lo quando fosse à capital. Era um plano tão perfeito que ele se congratulou por tal.
— Sempre vou cuidar de você, Shiro — disse, beijando os cabelos negros e lisos.
— Eu sei, já disse que confio em você...
***
Ele estava com frio, apesar de a mão esquerda parecer aquecida por algo que o rapaz não sabia o que era. O corpo doía, não uma dor intensa e forte, mas uma dor que ia além de qualquer explicação. Permaneceu no escuro por tempo demais, como se estivesse morto, mas ainda sentia o horror da respiração. E então, aos poucos, viu um pequeno sinal de luz, ao longe, como um túnel, e seguiu em frente. A luz logo o envolveu num manto de sanidade. Então, ele pareceu ver, pela primeira vez em meses.
A respiração acelerou enquanto tomava consciência da sua própria existência. Estava deitado, a barriga para cima, o olhar fixo num teto branco. Piscou, mexeu os olhos, observando o ambiente. Era um quarto branco, com duas camas opostas, um armário bonito e uma mesa. Não muito grande, nem muito confortável, mas parecia seguro.
Girou o rosto e entendeu o porquê da mão estar aquecida. Os dedos estavam entrelaçados aos de Saito que deitava a cabeça na cama onde ele descansava, enquanto sentava no chão.
Jiro ...
Quis chamá-lo e pedir sua ajuda, quando a imagem de Nana destruída o atingiu novamente, e ele convulsionou. Instantaneamente, Jiro ergueu a cabeça, parecendo chocado por vê-lo reagir e levantou o corpo, indo a seu socorro. Girou Mamoru para o lado, tentando fazer com que o jovem não engolisse o próprio vômito, caso ele viesse.
Aiko cuspiu no chão um líquido embranquecido e então respirou fundo, voltando a se deitar, de costas, na cama.
Só então, sentiu as dores reais, muito aquém das psicológicas. O pulso ardia, onde o soro havia sido posto. O nariz parecia entupido, as costas e o bumbum queimavam e a garganta estava seca. Fora a fraqueza, ele até tentaria se erguer, se tivesse forças, mas estava tão desgastado que mal conseguia falar.
— Você ficou paralisado desde março — Jiro explicou, em prantos. — Deus! Achei que nunca mais veria seus olhos lúcidos novamente...
Sentiu os beijos de Saito sobre suas mãos. As palavras do sargento levaram um tempo para serem entendidas, mas quando ele as compreendeu, espantou-se.
— Março? — murmurou.
— Estamos em julho, Mamoru — Saito explicou. — Eu lamento muito... Eu lamento demais...
Mais de um trimestre de sua vida completamente apagado de sua consciência.
— Meu corpo dói — queixou-se ao amigo. — Me ajuda a sentar — pediu, angustiado por sentir as costas queimando.
Ficou zonzo quando ergueu as mãos e segurou o pescoço do outro. Jiro o tomou, fazendo com que ele se sentasse e ele tentou demonstrar força, mesmo que estivesse prestes a cair novamente na cama.
— Você está com escarras — Jiro disse. — Fizemos de tudo, todos os cuidados que podíamos, mas elas pareciam brotar sem controle — contou. — Meu amado, eu faria qualquer coisa para que...
Jiro só percebeu que falava sozinho, quando o peso nos braços ficou absurdamente mais pesado. Deitou-o novamente, daquela vez aliviado. Sabia que o sono que, naquele momento tomava Aiko, era apenas temporário.
***
— Eu ainda não entendi porque você está gritando comigo — Shin resmungou.
Do outro lado da linha, os berros prosseguiam.
— Você é uma péssima influência para Miya!
— Eu sequer estou aí em Sapporo! — devolveu, revoltado. — O que eu fiz para Shiromiya?
— Não Shiro! Miya! — repetiu.
— Não Shiromiya?
Um chiado forte cortou a ligação por cerca de cinco segundos. Quando voltou, ele ouviu a pergunta:
— Você é surdo ou retardado?
Shin contou até dez, enquanto os xingamentos prosseguiam. Afastou o telefone do ouvido por alguns segundos, pareceu admirar um vaso de tulipa que adornava a sala de comunicação do bunker.
— Maldito Sakamoto! Você não está ouvindo, não é? — o berro foi mais alto, audível além do fone.
— Estou aqui — Shin resmungou.
— Não quero que você chegue perto da minha filha! — Ryo disse, firme.
— A filha das suas visões? — Shin deu os ombros. — Como se eu fosse querer ser amigo de uma pirralha. Não sabe que eu odeio crianças? — repentinamente, algo lhe ocorreu. — Vou sobreviver à guerra? — indagou.
— Oh, é mesmo! Foi por isso que eu liguei — Ryo retrucou. — Miya me falou de você, então, acredito que vai conseguir escapar da forca ou fuzilamento.
Shin respirou fundo.
— Estou aliviado — confessou. — Não apenas por mim, mas por Mamoru. Preciso cuidar dele...
— Não houve melhoras?
— Nada — disse, abatido. — Não sei se um dia ele voltará a ser o antigo Aiko que conhecemos.
Ryo suspirou.
— Eu realmente fico arrasado, meu amigo. Sabe que o que precisar de mim, terá. Estou até mesmo planejando levar Shiro para Tóquio, assim que a guerra se findar para que ele possa ajudá-lo a cuidar de Aiko.
O tom não comoveu Shin.
— Já se cansou dele? — foi cruel.
— Não, mas preciso tirá-lo daqui — admitiu. — Quero me casar em breve, e Shiro seria um empecilho difícil de explicar.
— Casar? Com quem?
— Ainda não achei nenhuma mulher...
— Você está me zoando? Quer mandar Shiro embora logo, e sequer tem uma mulher para...?
Saito apareceu na porta da sala naquele momento. Parecia desesperado, e fazia sinal com as mãos. Shin arqueou as sobrancelhas e sequer se despediu. Desligou o telefone na cara de Ryo e correu até o outro.
— Aiko?
— Ele acordou — Jiro contou, sorrindo. — Voltou a dormir, mas falou comigo por alguns instantes...
Ambos se abraçaram naquele momento, sorrindo.
***
Mamoru Aiko acordou novamente no mesmo dia, duas horas depois. Abriu os olhos, e percebeu duas figuras ao seu lado, como se estivessem aguardando ansiosamente por qualquer sinal vital seu.
Sorriu para Jiro, mas entrou em pânico ao perceber Shin. O que Sakamoto fazia ali? Por que estava no mesmo lugar que ele? Quis implorar para não ser morto ou levado a um dos campos na China, quando percebeu que não se importava mais com tal destino. Encarou-o com audácia, preparado para uma guerra, se preciso fosse.
Contudo, seu corpo não reagiu como sua mente e ele sequer teve forças para se sentar.
— Está tudo bem, Aiko — Jiro disse, sorrindo. — O médico já o viu, e falou que está tudo bem, só precisa recuperar suas forças.
Pela primeira vez, Aiko ergueu uma das mãos. Sua pele parecia oleosa e ele poderia implorar por um banho, não fosse o extremo cansaço. Levou a mão à face e alisou os cabelos. Estancou quando percebeu que o tamanho dos fios estava bem mais curto do que o normal.
— Nós tivemos que cortar — o amigo explanou. — Precisávamos cuidar de você, Aiko, e não podíamos manter seus fios longos.
Foi até cômico que algo tão sem valor pudesse significar tanto para o cortesão, que sentiu um choro incontrolável dominá-lo, fazendo com que sua garganta ardesse e soluços escapassem de seus lábios.
— Meu cabelo... — ele gemeu. — Quero um espelho — pediu.
Jiro encarou Shin que se mantinha completamente imóvel, como se temesse dar qualquer passo.
— Aiko... — tentou trazê-lo à razão.
— Que lugar é esse? — Mamoru o interrompeu.
— É o Bunker da família de Shin — explicou.
Mamoru encarou Sakamoto, que constrangido demais para manter o olhar, baixou a face.
— E o que eu faço aqui?
— A cidade está destruída, Mamoru. Aliás, o Japão todo... Ainda não perdemos a guerra, mas é questão de dias. Não havia nenhum outro lugar para que pudéssemos...
— Quero ir embora daqui agora — foi firme.
— Não existe lugar para ir, Aiko...
— Não me importa — retrucou. Repentinamente, olhou em volta. — Onde está Shiro?
Jiro apenas se afastou. Assim que se viu sem alguém para interceder à conversa, Shin obrigou-se a encarar o homem que amava. Percebeu o olhar afogueado sobre ele, e suspirou.
— Ele morreu? — a pergunta foi quase um grito. — Onde está Shiromiya? — fez menção de se levantar, lutando contra toda a exaustão.
Shin se ajoelhou perante a cama. Os dois ficaram face a face.
— Ele está bem, Aiko... Ligo quase todos os dias para saber como está.
— Liga? Para onde?
Shin mordeu o lábio inferior, tentando buscar palavras confortadoras. Não achou nenhuma, e então foi sincero.
— Para a casa de Ryo em Sapporo...
Como se ressuscitasse dos mortos, Mamoru sentiu todo o sangue subir para seu rosto. Subitamente, ele adquiriu forças e conseguiu chegar até Shin. Sabia que não conseguiria agredi-lo, mas tentou. Sakamoto segurou suas mãos, que lutavam para se libertar.
— Pare com isso, Aiko! — Shin pediu. — Você vai se machucar!
Contudo, nada parecia controlá-lo. O choro desesperado, a percepção de que Shiro estava sozinho nas mãos de um canalha, a morte de Nana e o fim da Casa Ai... Era uma junção de coisas e ele precisava culpar alguém.
Porém, foi sacudido pouco depois. Levou alguns segundos para notar que Jiro havia subido na cama e o mantinha firme.
— Não vou deixar que faça isso — Saito ralhou, sério.
— Por quê? — Aiko questionou, em lágrimas. — Por que fizeram isso com Shiromiya?
— Aiko, não estava nas mãos de Shin — explicou. — Ele precisava te salvar, e fez o que foi necessário.
— Me deixasse morrer, então...
— É um mimado egoísta! — Jiro devolveu. — Sakamoto tratou suas feridas, deu banho em você todos os dias, cortou seus cabelos, cuidou do seu soro, da sua sonda, trocou suas fraldas, e você ainda se atreve a culpá-lo? Não vou admitir isso!
Cada palavra foi atingindo Mamoru, como uma fagulha de fogo em um palheiro.
— Por quê? — ele perguntou, volvendo o rosto para Shin.
Sakamoto não sabia se a pergunta era referente aos seus atos ou a Shiro, então não respondeu. Simplesmente ficou em silêncio, de cabeça baixa.
— Você sabe o que Ryo fará, não? Ele vai destruir os cacos que conseguimos colar de Shiro. — cobriu o rosto, chorando copiosamente.
Jiro o soltou, e saiu de cima da cama. Os dois homens ficaram em silêncio, respeitando o pranto desesperado do terceiro.
— Eu vou para Sapporo. — parecia resoluto.
— Não, não irá — Jiro negou. — Não vai sair do bunker. Não tem ideia do inferno que está lá fora.
— Você não pode me impedir.
— Eu posso e irei — Jiro gritou. Depois, tentou se acalmar. — Sei que esteve ausente por meses, que não tem ideia do que se tornou a vida, Aiko. Mas precisa confiar em mim. Shiro está vivo e está bem. Está protegido. No momento, não poderá vê-lo, mas é por pouco tempo. Logo vocês vão se encontrar, eu prometo.
Aiko fechou os olhos. Logicamente, ele não aceitou as palavras, mas fez o jogo.
— E Minikui? Vocês conseguiram salvar o meu gatinho?
— Seu gato velho e obeso está por aí, pelo bunker. Não se preocupe, ele sobreviveu.
— Tem notícia das meninas?
— Aiko, não sabemos de nada além das informações militares. Perdoe-me, provavelmente, elas morreram. Boa parte das fábricas foi incendiada.
Parecia um pesadelo.
— Você precisa descansar — Jiro o tentou acalmá-lo. — Precisa recuperar suas forças. Amanhã irá tomar um banho, irá comer. Agora, por hora, tente não pensar.
Aiko aceitou o conselho. Porém, levou bastante tempo para dormir. Só fechou os olhos quando as lágrimas por fim o esgotaram.
***
— Ele me odeia — Shin disse ao amigo.
O ar esfumaçado do jardim imperial parecia pesado demais. Porém, Sakamoto não conseguia permanecer no mesmo quarto de Mamoru. O peso do olhar raivoso do cortesão assemelhava-se a bigornas sobre seus ombros.
— Ao contrário, Aiko ama você — Jiro respondeu, apertando os ombros do amigo. — Precisa tentar se aproximar dele, dar-lhe suporte. Aiko está numa situação muito difícil, afastado do mundo real por tempo demais. Está confuso, amargurado. É nessa hora que você deve se mostrar.
— Nem sei o que falar a ele — Shin se voltou para o outro. — Disse muitas coisas ruins antes das bombas.
— Mas se arrepende, não?
O outro assentiu, inseguro.
— Uma parte de mim ainda o odeia por ser quem é. Mas a outra só pensa em protegê-lo e cuidar dele.
Saito puxou um cigarro do bolso. Acendeu e tragou enquanto pensava em um bom conselho. Não havia muito que se dizer, então apenas estendeu o cigarro ao amigo, dividindo com ele a droga.
— Vai desistir do amor de Aiko? — questionou, sério.
— Mesmo que eu quisesse — a resposta foi franca. — Mesmo que eu lutasse com todas as minhas forças... Mesmo assim, eu sempre amaria Mamoru.
Aquelas palavras ecoaram, acalmando o coração de Jiro.
***
Ryo Satoshi entrou na pequena padaria ao norte de Sapporo. Observou o ambiente, percebendo de imediato que não estava tão bonito e organizado quanto há meses atrás. Na verdade, a variedade de bolos a serem oferecidas era pequena, e o lugar estava vazio, senão a presença de um homem corpulento e sorridente em um dos bancos.
— Miura Ota — Ryo o cumprimentou, curvando-se. — É um prazer revê-lo.
— Digo o mesmo — o homem se ergueu, também curvando-se respeitosamente. — Sente-se, Ryo-san, precisamos conversar.
O apelo foi bem recebido, e Ryo se fixou à frente do homem, sendo logo servido de chá por um perspicaz servo, que apareceu assim que o homem ajeitou-se na cadeira.
— Já sabe dos boatos?
— Boatos? — Ryo arqueou as sobrancelhas. — Há muitos boatos ultimamente. Do que seria esse?
Ota olhou de soslaio para os lados, e respondeu tão logo notou que ambos estavam sozinhos.
— Parece que Stalin está interessado em Hokkaido.
Ryo não havia ouvido nada sobre aquilo. Era uma notícia ruim, e ele não escondeu a decepção.
— Você sabe como são os comunistas, não? — Ota indagou. — Eu prefiro que um americano me abaixe as calças todas as noites e me foda sem dó, do que viver num estado comunista. — Apesar da vulgaridade do comentário, foi franco. — Vou transferir-me para Tóquio em breve, mas infelizmente boa parte das minhas fábricas estão por aqui. Então...
— Então?
— Lembra-se de nossa conversa na Casa Ai, há uns dois ou três anos?
Ryo pareceu meditar alguns minutos. Recordava-se de ter se encontrado com Ota, mas tudo que a mente lhe trazia era a imagem de Shiromiya dançando e depois sentado no jardim com Jiro.
— Refresque minha memória — pediu.
— Minha filha está com dezessete anos. É uma jovem bem afeiçoada, gentil, inteligente e foi preparada para ser uma boa esposa.
Ryo respirou fundo. Sentiu mil borboletas no estômago, percebendo que havia chegado o momento.
— Vou deixar todos os meus bens para ela, Ryo-san. Quero que assuma a administração de tudo que possuo. E minha pequena Hana precisa de um homem. Então gostaria de oferecê-la a você...
Ryo não precisava pensar.
— Será um imensurável prazer.
Miura Ota sorriu, feliz.
— Quero que a conheça antes do casamento. Podemos fazer um jantar de noivado, o que acha?
— Está bem. Posso preparar algo assim.
— Então, em uma semana?
Ele não conseguiria mandar Shiromiya embora em tão pouco tempo. Porém, era só um jantar de noivado, e podia escondê-lo no quarto, contar-lhe alguma mentira e pedir para que não aparecesse na sala naquela noite.
— Uma semana é tempo mais que suficiente para que meu servo organize uma bonita recepção.
Ao entrar no carro, cerca de meia hora depois, Ryo sorria com tanto vigor que foi olhado com estranheza por Tadao.
Porém, nada disse ao servo. Seu tão precioso destino precisava ser protegido pelo silêncio.
Tudo estava andando conforme Kami-sama havia planejado para ele...
***
Saito Jiro entrou no quarto bonito. Encarou o amigo, que parecia novamente em transe. Porém, assim que ele desviou os olhos para si, soube que ele estava bem.
— Subi mais cedo para a superfície — Aiko contou, surpreendendo o amigo. — Está tudo destruído — sua voz estava mortificada.
— A que horas você foi?
Shin e ele não costumavam deixá-lo sozinho, porém, naquela manhã, Shin havia sido chamado para uma reunião de emergência e Jiro foi jogar fora a areia da caixa de Minikui.
— Por que as pessoas são tão más?
A indagação fez Saito dar os ombros. Imaginava o quanto estava sendo difícil para Mamoru a percepção de que sua bonita cidade não existia mais.
— O ser humano traiu seu próprio criador, o que não faria ao seu semelhante ou aos animais?
As palavras francas fizeram o cortesão assentir.
— Preciso de um enorme favor — Mamoru disse, mudando o tom. — Sei que o que vou pedir é algo muito pesado, mas não tenho mais a quem recorrer.
Saito se ajoelhou diante do homem que amava. Aiko parecia tão cansado, suas olheiras estavam intensas e sua pele pálida.
— Sabe que eu faria qualquer coisa... — afirmou. — Qualquer coisa — repetiu. — Não existe algo que eu não faria por você...
Aiko sorriu.
— Até mesmo colocar sua própria vida em risco?
— Não dou muito valor para a minha vida, se não reparou — o outro riu.
Aiko ficou sério. Respirou fundo.
— Eu o faria — contou. — Mas quando subi hoje de manhã... — lacrimejou. — Não tenho nem forças para chegar até o jardim, como poderia ir a Sapporo?
— Quer que eu vá atrás de Shiro? — percebeu a intenção das palavras. — Quer que eu o traga novamente para você?
— Não. Quero que desapareça com ele. Quero que o leve para longe de Ryo, para um lugar onde Satoshi nunca descubra onde ele está. Mesmo que eu próprio jamais o veja novamente, saberei que ele estará bem com você.
As palavras foram tão surpreendentes que Jiro sentiu a respiração acelerar.
— Aiko, mas... E se Ryo estiver sendo um bom companheiro? E se Ryo o amar?
— Ryo não o ama. Ryo o despreza porque ele é pobre e porque já foi um prostituto. Pior, Ryo o vê como uma aberração, mesmo desejando seu corpo. Ryo vai iludi-lo, vai destruí-lo, vai reduzi-lo ao mesmo pó que hoje é Tóquio. Preciso salvá-lo, Jiro... Morreria se o visse novamente como o encontrei.
O silêncio do sargento o fez prosseguir.
— Quando achei Shiro, ele estava morrendo. Era violentado diariamente, e não era alimentado. Seus olhos eram mortos, como se nele só existisse dor. Mas no colo de Nana, ele renasceu. Porém, existem dores que não são apagadas, Jiro. E elas poderão voltar, dependo da forma como Ryo o tratar — segurou as mãos de Saito entre as suas. — Eu imploro, apenas vá vê-lo. Sei que é perigoso, mas você é um militar, e é tão esperto. Se existe alguém que possa ir salvá-lo, é você. Se ele sumir da casa de Ryo, saberei que foi você que o roubou. Não precisa me escrever, não precisa me avisar onde está... porque estarei tranquilo, ele estará em boas mãos.
— Teme que, caso eu lhe conte, Shin descubra e relate a Ryo?
— Sim, Ryo não ama Shiro, mas uma vez me disse que prezava muito por seu “brinquedo”.
Saito puxou as mãos de Aiko para seus lábios. Beijou-as calidamente.
— Eu salvarei seu garoto — prometeu. — E eu juro que, caso Ryo o estiver magoando, jamais colocará os olhos nele novamente.
Capítulo 44
Shin Sakamot o postou-se ao seu lado. Os portões do jardim Imperial se abriram e Saito estancou, observando adiante.
Fazia meses que o ar era carregado e esfumaçado. Contudo, abaixo do chão ainda se vivia uma ilusão de que a vida podia ser simples e segura. No entanto, naquele momento, não havia mais escapatória. A veracidade do horror o dominou, e ele quase retrocedeu, não fosse a promessa feita a Mamoru.
— Você tem certeza? — Shin perguntou-lhe, incerto.
Encarou o amigo. Viu seus olhos apavorados e vermelhos, como se ele também não quisesse que fosse. E, bem da verdade, Saito também não queria ir. Estava tão bem ali, ao lado dos dois... podia tocar e acariciar Mamoru todos os dias, e também podia conversar com Sakamoto, sem nada temer.
— Você sobreviverá à guerra — disse, firme. — Seu amigo Ryo o avisou, não? Eu preciso ver como está minha família.
Na verdade, tirando o fato de que mandava seu dinheiro para eles, em nada se importava com os seus. Não eram más pessoas, mas eram frias, como se cada um devesse cuidar da própria vida e como se não houvesse elos unindo-os. Era diferente com Shin e Aiko.
— Shin... — começou, mas foi interrompido.
— Tome — Sakamoto estendeu um ofício. — Aí diz que você foi meu servo desde 1937. Ou seja, nunca esteve na China, sequer na Alemanha. Apenas me serviu em Tóquio. Mandei espalhar boatos de que estou com dois amantes dentro do quarto, para que ninguém ache que é um militar.
— Shin... — não sabia o que dizer.
— Tudo que existia sobre você, todas as suas passagens pelo exército, todos os documentos que assinou, as viagens que fez... tudo está destruído.
— Shin... — sentiu as lágrimas escapando dos olhos. — Não sei o que dizer — segurou o papel, dobrando-o e o colocando no bolso.
— Não diga nada, apenas se cuide — pediu.
Saito olhou para os lados. Percebeu o olhar indiscreto de alguns seguranças, então apenas assentiu.
— Eu queria beijá-lo, mas não quero causar um mal-estar — admitiu. — Contudo, Shin... — mordeu o lábio inferior, buscando as palavras. — Sei que o que vou dizer vai dar a percepção de imoralidade...
— Você, imoral? — Sakamoto riu. — Nada poderia fazer com que eu o amasse menos, Jiro — disse, gentil.
Saito sorriu. Levantou a mão e tocou o peito de Shin.
— Eu te amo, Shin — confessou. — E eu amo Aiko também. Na verdade, eu amo os dois. Não poderia escolher, mesmo que quisesse. Seguidamente, me imaginei envelhecendo ao lado de Mamoru, mas não consigo me imaginar longe de você. Sabe, não? Quantas vezes guardei minhas coisas e me preparei para ir embora, mas então você me segurava e eu esquecia de tudo, até mesmo da racionalidade...
— Também não quero perdê-lo — declarou.
Jiro negou.
— Você é homem de um único amante, meu amado. Sentir-se-ia um lixo se tivesse que manter qualquer pessoa, além daquela que está lá embaixo esperando-o... Além disso, Aiko é ciumento e jamais iria aceitar dividi-lo com alguém. Então — respirou fundo — essa é a hora de eu ir embora. Mamoru já acordou, e você vai protegê-lo.
— Você vai voltar?
— É claro que vou voltar — riu, achando cômico o tom desesperado do outro. — Eu retornarei em visitas periódicas, prometo.
Trocaram um abraço cúmplice. Depois, Jiro foi até um dos veículos e entrou. O automóvel era discreto e a paisana, em nada lembrando que pertencia ao exército.
— Vou com ele até Oma. De lá...
— Já sei, uma balsa — Shin foi até a janela. — Enviarei um comunicado pedindo para que busquem o veículo.
— Obrigado.
Apertaram as mãos.
— Dê lembranças minhas a Ryo.
Jiro assentiu. Havia dito a Shin que passaria em Sapporo antes de ir para casa. O alívio que percebeu nos olhos de Sakamoto lhe deu a certeza de que estava fazendo o certo.
— Por favor, cuide-se.
— Seu excesso de preocupação não está fazendo bem ao meu ego — brincou.
Subitamente, puxou a mão. Ela pareceu tão bem segura por Shin que ele assustou-se, imaginando que o amigo não permitiria que fosse embora.
— Shin... — murmurou.
— Eles nunca te escreveram — Sakamoto reclamou. — Contou-me uma vez que jamais demonstraram qualquer preocupação contigo. — Sentiu os olhos molhados e não mais se impediu em dar um espetáculo. — Eu te amo, e eu preciso de você. Por favor, não me deixe.
— Preciso ir, Shin... — Jiro insistiu, puxando a mão com mais força.
— Não me abandone — implorou.
Saito deu a partida e acionou a primeira marcha. Ele chorava antes mesmo do carro se mover. Quando estava a uma distância segura do outro, olhou para trás. No retrovisor, viu Shin correndo atrás de si, como um cão deixado para trás numa mudança.
Seus olhos permaneceram nublados pelas lágrimas até deixar Tóquio. Depois, engoliu o choro e a dor. Se sobrevivessem, ambos, ele voltaria. Um dia, não sabia quando, mas voltaria. Naquele momento, contudo, precisava ajudar Shiromiya, outra pessoa a quem ele queria tão bem.
***
A semana que se seguiu após a partida de Jiro foi bastante difícil para Shin. Aiko não falava com ele. Apenas lhe dirigia olhares duros, como se o culpasse por todas as mazelas do mundo. Então, aos poucos, ele também se fechou, sempre à espera de uma ligação de Ryo ou Saito, as pessoas com quem ele poderia se abrir sem problemas.
As ligações não vieram. Na única vez que ligara para Ryo, naquela semana, ele não o atendeu. Tadao o informou que Ryo estava às vésperas de um importante acordo de negócios, e por isso não poderia falar com ele. Porém, aliviou-o saber que Shiromiya estava bem. Pediu para falar com o jovem, mas o servo disse, muito constrangido, que tinha ordens de que ninguém falasse com ele.
O fato não o surpreendeu, pois sabia que Ryo estava querendo colocar Shiro em uma bolha. Provavelmente, Shiromiya nem soubesse que Mamoru estivera em estado catatônico ou coisa assim. Então, resolveu ser prático e esquecê-los por alguns dias, afinal de contas, havia rumores de que os americanos estavam preparando um bombardeio intenso e em massa novamente, e ele passou a ser chamado para reuniões diárias.
Longe dos planos políticos, no norte do país, na ilha de Hokkaido, Shiromiya vivia um momento bastante feliz. Na última semana, Ryo passara as tardes em reuniões, recebendo conselhos de advogados. Porém, o menor não se sentiu inseguro ou desmerecido em nenhum momento. O homem sério de negócios de dia, voltava aos seus braços como um amante impetuoso e apaixonado à noite.
Então, passou a trabalhar com afinco nas coisas de que gostava. Começou a planejar uma horta nos fundos da propriedade. Um espaço pequeno onde ele podia organizar fileiras de alface e tomate. Couve também se tornou um dos seus objetivos. As sementes conseguiria facilmente num mercado de Sapporo, e a disposição ele já tinha. Mesmo que Ryo falasse sobre a volta deles a Tóquio, ele ainda assim queria sua horta em Sapporo. Gostava da cidade, e planejava convencer Ryo a ficarem ali.
A horta seria uma surpresa para Ryo, que não costumava andar pelos próprios domínios. Então, arrumou uma enxada e começou o trabalho. Nos dois primeiros dias, limpou o terreno, arrancou as ervas daninha e arrumou a irrigação. Depois, plantou as sementes. No restante da semana, cercou com um fio de arame sua pequena obra de arte, ansioso para ver cada uma daquelas plantas crescendo e dando seus frutos.
Assim, quando Ryo o chamou, às vésperas do jantar importante que o havia ouvido falar a Tadao que realizaria, estava exausto, cansado e precisando dormir. Contudo, ele jamais recusaria nada a Ryo, e quando ouviu seu nome sendo gritado do quarto, correu naquela direção.
Atirou-se sobre Satoshi, antes mesmo que ele abrisse a boca. A porta bateu, e eles sequer conversaram, enquanto arrancavam as roupas.
O sexo foi intenso e magnífico, como sempre. Resvalado sobre o peito de seu amado, Shiro sorriu, agradecendo aos céus pela graça de amar e ser amado, cuidar e ser cuidado, com tanta gentileza e bondade.
— Você é a minha pessoa favorita no mundo todo — sua confissão era diferente, mas significava a mesma de sempre. — Eu te amo.
Sentiu os dedos macios de Ryo acariciarem suas mechas e fechou os olhos, diante do cafuné. Contudo, o som da voz de Satoshi fê-lo abrir os olhos novamente.
— Queria falar com você sobre amanhã.
Shiro o encarou, colocando o queixo no peito masculino.
— Não quer que eu apareça no seu jantar, não é?
A frase surpreendeu tanto o comerciante que ele não soube o que responder. Shiro o percebeu nervoso e riu, acalmando-o.
— Eu entendo, Ry-chan. Sou jovem, mas não tolo. Sei que você tem negócios importantes e que não pegaria bem ter um rapaz na sua casa, como amante. Além disso, eu me lembro do encontro com seu amigo na Casa Ai... Não quero arriscar e encontrar outro homem que me comprou quando criança.
— Não ficará magoado, então?
— Claro que não. — Apoiou as mãos no colchão e se impulsionou para frente, dando um beijo molhado nos lábios vermelhos. — Se você ficar bem, ficarei bem também — afirmou. — E eles só o terão por algumas horas, eu o terei para sempre — pareceu confiante.
Ryo assentiu, acariciando a face delicada. Dormiram pouco depois, um sono protegido pelos anjos.
***
Na manhã seguinte Ryo sentou-se à mesa do café da manhã com um sorriso nos lábios. Ficaria noivo naquela noite e pediria um mês mais ou menos para organizar o casamento. Talvez até lá a guerra até já tivesse findado. Em menos de um ano, estaria com a filha nos braços e aquilo era tudo que lhe importava.
Serviu o chá de laranja, e começou a pensar em Shiromiya. Uma das suas melhores casas ficava perto do Jardim Imperial. O lugar estava sendo ocupado, no momento, por inquilinos, mas na próxima semana ele mandaria uma carta pedindo para que saíssem. Shiro iria adorar o lugar, um casarão enorme, requintado, cercado por um jardim rico e florido. Havia espaço para ele mexer nas plantas e servir chá à tarde. Seria feliz lá, sempre o aguardando.
Enquanto bebia, pensou que seria um problema esconder Shiro da filha, quando ela fosse maior. Se bem que a maioria dos homens conseguia a façanha. Além disso, podia manter Miya sempre ocupada com estudos e férias para a Europa, evitando que ela colocasse os pés em Tóquio.
— Sorrindo, Ryo-san? — Tadao apareceu ao seu lado, colocando eu seu prato um pedaço de queijo amarelo.
— Estou feliz porque hoje me tornarei um homem compromissado.
— Como assim?
— Não percebeu o intento de meu jantar?
O servo olhou adiante, a meditar.
— Um novo acordo comercial? — questionou. — Foi isso que me disse, e eu considerei que iria expandir os negócios.
— Na verdade é um investimento.
— Em novos barcos?
— Na minha felicidade — respondeu. — Vou me casar.
Tadao perdeu o ar por alguns segundos, pasmo. Abriu a boca, tentou falar, mas nada saiu. Esperou, então, a risada irônica de Ryo, falando que era brincadeira, mas ele estava sério. Então, tudo que fez, foi indagar referente à pessoa que parecia esquecida diante de seus planos.
— E Shiromiya-san?
— O que tem ele? — perguntou, indiferente.
— Ele sabe?
— Não precisa saber. Shiro irá para Tóquio em uma ou duas semanas.
— Mas...
Ryo arqueou as sobrancelhas. Esperou que sua clara denotação de arrogância calasse o servo, porém, ele não resistiu ao atrevimento.
— Achei que o amasse.
Amar? Shiromiya? Ryo gargalhou diante da fala patética.
— Shiro é adorável — disse. — Poucas vezes na vida gostei tanto da companhia de alguém. E pretendo mantê-lo, vou lhe dar tudo que precisar, será meu exclusivo em Tóquio. Contudo, vamos ser sinceros? O que ele é?
— Um garoto que ama você?
A resposta enrubesceu Ryo, que segurou uma resposta malcriada.
— Ele é só um prostituto analfabeto — foi firme. — Ele não sabe sequer se portar à mesa, não sabe ler um livro, não sabe manter uma conversa culta. Era comprado por homens a troco de arroz, dançava num palco de um prostíbulo vestido de mulher. Nunca esteve e jamais estará à minha altura. O único lugar que alguém como ele serve para estar é numa cama.
Bateu a mão espalmada na mesa.
— E onde ele está? — questionou. — Por que ainda não desceu? Vá chamá-lo!
Tadao não respondeu. Percebendo que havia despertado em Ryo uma gana tremenda, simplesmente aquiesceu e saiu da sala.
***
Shiromiya acordou naquela manhã ensolarada sorrindo. Saiu do quarto e foi em direção ao próprio aposento, ansioso para tomar um banho e ir lanchar com Satoshi.
Depois de lavar-se, ele vestiu um quimono floral bonito e calçou sandálias novas. Perfumou-se, ajeitou os cabelos atrás da orelha e observou-se no espelho. Via em si um brilho que nunca antes estivera lá. Estava muito iluminado, mesmo diante da guerra.
Ainda sorrindo, ele saiu do quarto, e caminhou até a sala. O cheio de chá inundou suas narinas e ele anteviu a cena de um Ryo compenetrado a bebericar. A barriga roncou, fazendo com que se lembrasse que praticar sexo lhe dava ainda mais apetite.
“Vou me casar”.
O som da voz de Ryo o fez estancar. Repentinamente, ciente de que estava a dois passos da sala, mas oculto pela porta, ele simplesmente não conseguia deixar que Ryo soubesse de sua presença.
Era desculpável, claro. A frase de Ryo o chocou. O rapaz pareceu espantado por alguns segundos, como se esperasse uma risada irônica após a afirmativa, algum tom de brincadeira, qualquer coisa que representasse mentira, mas deu-se conta de que a única mentira ali era a que vivia.
“E Shiromiya-san?”, a pergunta de Tadao era a mesma que a dele.
E ele? O que seria dele?
“Shiro irá para Tóquio em uma ou duas semanas”.
Como um objeto — que era — iria ser usado e depois mandado embora. Escorou as costas na parede. Sabia que devia sair dali, já ouvira demais, mas não conseguia dar um passo sequer.
“Achei que o amasse”.
Shiro riu da frase do empregado. Quis dizer: “eu também achava” , mas o que ele era para ser amado por alguém como Ryo?
“Ele é só um prostituto analfabeto”.
Caiu no chão. As pernas tremiam e a garganta doeu de forma absurda. Ryo não mentira, apenas apontava exatamente o que ele era. Porém, doía muito. Doía mais do que qualquer dor. Era praticamente insuportável.
“Ele não sabe sequer se portar à mesa, não sabe ler um livro, não sabe manter uma conversa culta. Era comprado por homens a troco de arroz, dançava num palco de um prostíbulo vestido de mulher. Nunca esteve e jamais estará à minha altura.”
Pôs as duas mãos sobre o peito, tentando acalmar a aflição insuportável que o tomara.
A mente começou a processar mil informações.
Ryo iria se casar, Ryo o mandaria para Tóquio. Ele era apenas um prostituto analfabeto... Ele...
“O único lugar que alguém como ele serve para estar é numa cama”.
Se houve palavras além daquelas, o jovem Kazue jamais soube. Silenciosamente, correu em direção ao próprio quarto, fechando a porta, passando a tranca. O ar faltava, fazendo com que caísse novamente no chão, enquanto lágrimas espessas corriam pela face, inundando seu rosto num mar de desespero.
“O único lugar que alguém como ele serve para estar é numa cama”.
A frase se repetiu tantas vezes na sua mente, que ele cobriu as orelhas tentando fazer aquele som parar de soar. À sua frente, observou o quarto rico, a cama aconchegante. Girou o rosto; à esquerda, o criado-mudo e o roupeiro mostravam uma infinidade de roupas luxuosas que não lhe pertenciam.
Havia considerado aqueles presentes uma forma de afeição, mas naquele momento, parecia tão nítido que eles não haviam passado de um adorno que Ryo havia colocado no seu prostituto.
Engatinhando, foi até o banheiro que estivera segundos antes. Abriu a gaveta, procurando a lâmina de barbear que Ryo deixara ali. Levou o lado afiado até os pulsos. Subitamente, encarou-se no espelho.
Viu o jovem destruído de anos atrás, com o rosto marcado pela dor. Porém, a mente traiçoeira trouxe também a imagem de Nana, segurando seus ombros e o amparando. A velha havia lhe contado que quando jovem também considerou o suicídio uma saída honrosa da desgraça que chamava de vida. Mas não se matou, e não se arrependia. Viveu a tempo de conhecer Aiko e ter um motivo para continuar respirando.
Afastou a lâmina e secou os olhos.
Ele também não se mataria. O que eliminaria era o sentimento que existia em si. Precisava ir embora. Mas como? Para onde ir? De que maneira?
— Senhor Shiromiya? — Tadao bateu na porta. — Está tudo bem? Ryo-san o aguarda para o café da manhã.
Engolindo o resto do choro, ele respirou fundo.
— Estou me arrumando, logo irei, Tadao — respondeu, afoito.
Abriu a torneira e lavou o rosto. Em seguida, caminhou em direção à sala novamente. Daquela vez, sem nenhum traço de carinho em seu coração.
***
Shiro sentou-se à mesa. Ao seu lado, Ryo o encarou com apreensão.
— Sente-se bem? — o homem questionou, tocando suas mãos.
Reprimiu a necessidade de puxar os dedos, permitindo o carinho falso.
— Acho que estou resfriado — respondeu. — Sinto minha cabeça doer, gostaria de ficar na cama por hoje.
Ryo arqueou as sobrancelhas, como se o estudasse.
— Está com o nariz vermelho — disse, concordando com o diagnóstico. — Quer ver um médico?
O outro negou.
— Apenas descansar.
— É claro, meu querido. À vontade — sorriu.
O som de passos chamou a atenção de Ryo. Tadao se postou ao lado do mestre e sussurrou algo em seu ouvido. O semblante de Ryo pareceu incomodado, mas depois ele voltou a sorrir, como se estivesse muito seguro de si mesmo.
E por que não estaria?
Seus planos perfeitos estavam encaminhados com precisão.
— Dê-me licença por alguns minutos, meu querido — pediu.
Shiromiya se encolheu, enquanto recebia um beijo na têmpora. Quando Ryo sumiu de suas vistas, ele limpou o local.
***
Saito Jiro parou diante de um enorme quadro. Ele encarou a mulher com sorriso enigmático, imaginando que a réplica de qualidade lembrava muito um quadro famoso que ele havia visto certa vez. Depois, girou o corpo, observando o ambiente majestoso. A casa de Ryo assemelhava-se a de Shin. Porém, Sakamoto era mais prático, e não muito dado à arte. O comerciante, no entanto, parecia gostar de quadros e esculturas.
— Sargento? — o tom o recebeu, num sorriso casto. — É uma surpresa.
— Sim — Jiro devolveu o sorriso, curvando-se. — Com a aproximação da derrota, Shin achou por bem que eu voltasse para perto de minha família. Decidi, então, ver Shiromiya-san antes de voltar para casa.
Era nítido que Ryo não gostara da surpresa, mas também era claro que ele não iria impedi-lo de ver Shiro.
— Sim, vou mandar chamar Shiro — avisou. — Mas, antes, tenho algo que lhe pertence — caminhou em direção a outra porta diagonal. — Aguarda-me por alguns segundos?
Jiro assentiu.
Tão logo ele sumiu das vistas, Saito virou o corpo e pôs-se a andar. A sala de visitas era a primeira de muitos cômodos bonitos que o corredor deixava à vista. Caminhou rápido, os olhos buscando a imagem de um garoto bonito.
Quando o encontrou, sentado à mesa, sentiu o coração aos saltos.
Shiromiya estava abatido, compenetrado. A cabeça baixa observava um pedaço de pão, mas sua mente estava perdida em algum lugar que Jiro não sabia qual era. As mãos sobre o colo não faziam questão de se erguer, e ele parecia tão derrotado que Saito quase o tomou nos braços naquele instante.
— Shiro? — chamou-o.
Levou alguns segundos para que Kazue erguesse a fronte. E, então, lentamente, ele virou o rosto para Jiro. O olhar batido encheu-se de lágrimas, como se aos poucos ele estivesse acordando de um sonho ruim.
— Olhos tristes... — Jiro sussurrou, usando o apelido de antigamente. — O que fizeram com você?
Em segundos, o rapaz dava um salto da cadeira e corria até ele. Saito o apertou tão forte nos braços que quase o machucou. Sentiu o coração descompassado a bater contra si, e Shiro suspirava, nitidamente aliviado.
— Escute — puxou-o, fazendo com que os olhos se encontrassem. — Amanhã de manhã, às sete e meia, na rodoviária. Irei comprar a sua passagem e iremos embora juntos, está bem?
Não precisavam conversar sobre o que quer que fosse. Saito entendia instantaneamente que Mamoru estava certo.
— Eu estarei lá — Shiro prometeu, num murmuro.
O som de passos os afastou. Ryo entrou na sala de estar, o olhar gelado para o par.
— Shiro se emocionou ao me ver — Jiro disse, explicando as lágrimas que brotaram no outro.
Ryo andou até o menor e o puxou pelo braço contra si. Possessivamente, pôs a mão esquerda sobre a cintura de Shiro, mantendo-o preso. Com a outra, estendeu uma pistola para Saito.
— É sua, não? Eu a roubei de você quando Shin tentou se matar.
Saito encarou a arma, reprimindo uma vontade extrema de pegá-la e dispará-la contra o almofadinha.
— A arma é do exército. A verdade é que sequer dei por falta.
Mesmo assim a pegou, colocando-a na cintura.
— Almoça conosco? — Ryo convidou.
— Infelizmente, meu ônibus sai ao meio-dia. Então — respirou fundo, — eu preciso ir. Já vi Shiro, sei que está bem. Obrigado por estar cuidando dele.
Ryo pareceu satisfeito pelas palavras. Não viu, portanto, a piscadela que Saito deu ao outro, antes de sair pela porta.
***
O comerciante sumiu durante a tarde, e Shiromiya, enfim, pôde respirar aliviado. No fundo, queria chorar até cansar, mas tinha medo de que fosse pego em flagrante e tivesse que confessar que ouvira a conversa. Então, tentou simplesmente não pensar. Fechou os olhos e afundou-se embaixo das cobertas. O dia estava ameno, mas ele tremia, sentindo uma exaustão tamanha que pensou que não teria forças de ir até Jiro.
Próximo de anoitecer, Ryo apareceu no seu quarto. Sentou-se ao seu lado na cama, e pôs a mão na sua testa.
— Não tem febre — ele disse, tranquilo. — Mas se não se sentir bem, por favor, me avise para que eu chame um médico.
— Está tudo bem Ryo-san.
Ryo chispou os lábios.
— Ryo-san? — questionou.
— Não estou com disposição para jogos de palavras — Shiro cortou-o, ferozmente.
Obviamente, Satoshi estranhou o tom.
— Jiro lhe contou sobre Aiko, não é?
Shiromiya o encarou, sério. Aiko? O coração pareceu desfalecer. Não... Não podia ser! Algo aconteceu a Mamoru? Matar-se-ia com ele, não teria mais nenhuma vontade de viver se seu amado protetor...
— Mas eu só não te contei porque não queria preocupá-lo. E, veja bem, antes de levar Saito-san até a porta, eu lhe perguntei sobre Mamoru, e ele me disse que ele já estava bem. Viu como de nada serviria ficar sofrendo por preocupação?
Shiromiya assentiu. Estava ansioso para que Ryo o deixasse em paz, saísse pela porta e não mais retornasse, mas o atrevido ainda se curvou sobre ele. A intenção era beijar seus lábios, mas Kazue virou o rosto.
— Vai ficar zangado comigo?
Deslizou o nariz pelos cabelos negros. Havia tempo para sexo antes de a noite começar, e Shiromiya sabia disso.
— Estou com dor de cabeça — respondeu, sem mentir, pois a cabeça parecia que iria explodir mesmo.
Ryo pareceu irritad e se levantou.
— Tudo bem, vou deixá-lo descansar.
Quando a porta bateu e Shiro, enfim, soube que ele não voltaria, permitiu-se derramar as suas lágrimas. Não queria chorar, queria ser forte e enfrentar toda aquela situação com arrogância, mas tudo que ele ansiava na vida era que aquele homem o amasse tanto quanto ele amava.
Entretanto, não iria acontecer. E se a vida ensinava algo às pessoas como ele, era de que ninguém ama quando não se dispõe a isso.
Ele entregou tudo a Ryo, corpo e alma, deixando-se à mostra de uma forma que não fez a mais ninguém. E Satoshi apenas desprezou o que viu.
Quando a noite chegou, e ele ouviu vozes na casa, sentou-se à porta do quarto e ficou a espiar por uma fresta. Ao longe, tocava uma leve e bonita melodia, enquanto cristais se chocavam, brindando o noivado de Ryo.
Ele ouviu os risos... Ouvia especialmente o de Ryo, que jamais esteve mais feliz. Sua vontade de espiar o encontro quase o fez se mover, mas disse a si mesmo que não tinha nada a ver com aquilo. Ryo estava se casando com alguém do seu nível social, e Shiro era apenas...
Um prostituto.
Um analfabeto.
Um ninguém, sem família, sem lar, sem dinheiro, sem honra.
Permitiu-se chorar mais, afundando o rosto num travesseiro, afogando não só as lágrimas, mas também os gritos.
Em algum momento, cochilou, a cabeça encostada na porta. Então, quando acordou, já de madrugada, ele assustou-se, acreditando que havia perdido a hora.
A casa estava silenciosa, e não havia luz em nenhum lugar. Buscou um relógio ao lado da cama, e percebeu serem três horas da manhã.
Tirou o quimono bonito e o dobrou cuidadosamente. Buscou, então, as roupas velhas e rasgadas com que chegara no fundo do roupeiro, vestindo-as. O tecido áspero pareceu machucá-lo, mas sentiu-se melhor ao vesti-las. Depois arrumou a cama, ajeitou tudo conforme estava quando ele chegou.
Assim que viu tudo em perfeito estado, pegou sua caixinha de dinheiro embaixo da cama. Tirou dela as notas estrangeiras e o dinheiro que Ryo havia lhe dado. Contou com cuidado, tentando não se esquecer de nenhum centavo. Dividiu em montes em cima da cama, ao lado do quimono dobrado.
Quando percebeu que havia separado tudo, guardou o dinheiro que ganhou na Casa Ai dentro da caixinha e a colocou na sua sacola de pano. Saía da casa de Ryo sem tirar de lá um centavo. Queria que ele soubesse que mesmo que o considerasse nada mais que um puto, ele nada fizera por dinheiro.
Girou o corpo em direção à porta, quando se lembrou de algo e estancou.
As lágrimas voltaram, quando ele volveu as mãos para trás do pescoço e abriu o fecho que prendia o cordão que havia ganhado de Ryo, anos antes.
“Guardarei para sempre, porque é um símbolo da nossa amizade.”
Ele lembrou-se imediatamente da promessa, e ergueu o coração de ouro até a altura dos olhos. Nunca havia tirado aquele agrado do pescoço, mesmo quando Ryo o magoara das outras vezes. Mas, no momento, não havia mais volta. E ele não podia ter um símbolo tão importante consigo.
— Não lhe desejo mal — murmurou. — Espero que seja feliz com a sua esposa — disse, sem saber se estava sendo verdadeiro. — Apenas, lamento não ser uma mulher ou não ser respeitável. Eu sempre te amei — mordeu os lábios, engolindo um soluço. — Eu sempre vou te amar, mas nunca mais quero olhar para seu rosto...
Então soltou o cordão sobre a cama. Ele caiu em cima das notas abertas.
Shiromiya saiu porta afora.
A estrada, ao redor da propriedade, estava deserta e escura. Ele mal via adiante quando abriu o portão. Contudo, respirou fundo e buscou forças.
Assim como seu país, um dia ele olharia para aquele mês de julho de 1945 como uma lembrança ruim, mas esquecível. Renasceria como a fênix. Era uma promessa e ele iria cumpri-la.
Capítulo 45
Viver nu m país em guerra deixava a população em tal estado que as noites perderam a sua importância. Não havia mais repouso, apenas apreensão. Então, quando Shiromiya Kazue chegou ao terminal de ônibus, perto das cinco e meia da manhã, percebeu o local movimentado, apesar da hora.
A maior parte, crianças. O Japão havia se tornado um país de órfãos. Os maiores trabalhavam para as fábricas de carvão em troca de sopa e de um lugar para se acomodar e dormir; mas muitas crianças pequenas se sentavam diante da estrada e choravam dia e noite, à espera de pão.
Até que morriam...
Normalmente, ele levaria uma hora para chegar até a rodoviária. Contudo, o atraso foi ocasionado pelas várias vezes que precisou contornar corpos mutilados atirados ao léu. No primeiro bombardeio, grande parte dos mortos foi enterrada, mas como praticamente todos os dias caíam bombas do céu, os sobreviventes perderam a força de velar seus entes.
Shiro sentou-se num banco de madeira, observando as pessoas por que cruzavam. Pareciam mortos-vivos, o olhar apático, sem esperança, à procura de algo. Baixou a fronte, secando o resto de lágrima que escorria em sua face. Havia dores maiores no mundo do que uma decepção amorosa, e ele sabia disso. Aliás, já havia vivido aquilo na carne e, por maior que fosse o sofrimento ocasionado por Ryo, ele encontraria um motivo para viver.
Repentinamente, viu uma menina cruzando por ele. Era bonitinha, pele pálida e cabelos negros e lisos soltos às costas. Nada tinha de especial senão o fato de que parecia pequena demais, até mesmo para os órfãos que andavam por ali.
Quantos anos tinha? Três ou quatro? A garotinha correu pelo terminal, fazendo com que o som de seus passos soasse ao longe. Havia nela a inocência da infância e ele pensou no quão feliz ele seria se houvesse tido uma meninice pueril para aproveitar.
Olhou ao redor, à procura dos pais. Nenhum dos adultos parecia notá-la. Porém, tão logo pensou naquilo, viu um homem se aproximando. Respirou fundo, observando os dois a conversar.
O homem se curvou e afagou o topo da cabeça da menina. Shiro sorriu, pensando serem pai e filha. Contudo, em seguida, o homem olhou para os lados, como se estivesse preocupado que alguém pudesse ter notado a ocorrência. Depois, pegou a criança pela mão e foi puxando-a para fora do terminal.
Shiro se ergueu.
De fato, não havia nada demais no ato, mas era o olhar estimulado daquele homem que ele reconheceu como os muitos que havia sido submetido anos antes.
Antes mesmo de poder se controlar, avançou em direção aos dois.
— Ei! — gritou.
O homem se voltou para ele, um tanto incomodado.
— Aonde vai com a minha filha? — indagou, nervoso.
Era um chute no escuro, mas foi certeiro.
— Desculpe, eu... — o homem tentou se explicar, mas antes que Shiro pudesse se voltar para um policial ao longe, ele soltou a menina, praticamente correndo dali.
Toda a dor de Shiromiya tornou-se revolta. Ele sentiu ânsia de ir atrás do outro, e chamá-lo para a briga. Desgraçado! Como se atrevia a tentar pegar uma criança pequena como aquela? Homens daquele tipo mereciam a forca!
— Hum? — a criança puxou seus dedos, fazendo com que ele se voltasse para ela, esquecendo quase que imediatamente o cidadão. — O moço disse que ia me dar comida — ela explicou. — Estou com fome.
Kazue olhou em volta. Perto de onde se comprava as passagens, uma mulher oferecia pão quente. Pensou na pouca economia que tinha e calculou se poderia comprar algo para aquela criança sem se prejudicar.
— Vem comigo — disse, pegando-a pela mão.
Os dedos pequenos prenderam-se com força nos seus. Ele sorriu, completamente embevecido pela delicadeza.
Comprou um pequeno pãozinho e estendeu-o à menina. Ela praticamente engoliu tudo, em poucas mordidas, tão rápido que comia. Observando-a, notou que estava magra, os ossos ao redor do pescoço bastante salientes.
Crianças naquela idade deviam ser roliças e não esqueléticas!
— Você tem pais? — inquiriu.
Ela assentiu.
— E onde eles estão?
Com certeza, eram pais irresponsáveis que permitiam que uma criança daquele tamanho andasse sozinha pelo terminal em tal horário!
— Lá — ela apontou uma ruela abaixo.
— É muito longe?
Negou.
— Vamos — estendeu a mão. — Vou levá-la até seus pais.
A menina terminou de comer o pão, assim que eles chegaram à parte exterior da rodoviária. Então, ela limpou a mão suja na roupa, fazendo com que Shiro encarasse também as vestimentas.
— Parecemos dois mendigos — ele riu, e ela também sorriu.
O coração do rapaz se aqueceu. Era tão pequena, tão frágil... Como ele gostaria de ter alguém assim para ele.
Quatro quadras depois, ela apontou uma casa destruída. Shiro respirou fundo, subitamente ciente dos motivos da menina estar tão mal vestida e faminta.
— Lamento muito — disse, encarando-a.
— Vovó e vovô nunca mais apareceram depois do “cabum” — ela contou.
Deviam ter morrido nas explosões e seus pais contaram-lhe alguma história, a fim de esconder o horror pelo qual a família estava passando.
Shiro bateu palmas, tentando chamar os proprietários. Apesar de ao longe o sol estar nascendo, a casa estava aberta, e a porta escancarada.
Então ele entrou.
— Olá? — chamou, à entrada.
Sem respostas.
Preparava-se para voltar-se para a criança, quando notou um pé no chão, perto de um compartimento que devia ser um quarto.
Entrando, precisou cobrir o nariz, diante do odor forte.
— O vizinho cobriu papai e mamãe com um lençol — a criança explicou, surgindo ao seu lado e apontando os dois corpos no piso. — Eu chamo pela mamãe, mas ela não acorda. Desde do segundo “cabum” eles só dormem.
Shiromiya sentiu os olhos encherem-se de lágrimas.
Então, ajoelhou-se diante dos dois corpos e fez uma breve prece. A garotinha o encarava, como se estranhasse sua postura.
— Você tem tios?
Ela negou.
— Ninguém com quem ficar?
A menina negou novamente. Shiromiya respirou fundo e voltou a observar os mortos. Depois, estendeu a mão novamente para a garotinha. Curvou-se para ela, querendo que ficassem na mesma altura.
— Escute, seus pais não vão mais acordar. Mas eles me deram você — contou, como se fosse uma das histórias que Nana narrava a ele. — Eu sou seu pai agora — repentinamente a frase fez sua garganta doer e um pranto engasgado tomá-lo.
A garotinha o encarava como se não compreendesse tais palavras. Quando Shiro abriu a boca, tentando explicar novamente, ela o interrompeu, dizendo:
— Mamãe não vai mais acordar?
— Não, meu amor...
— Nem papai?
— Sou seu pai, agora — reafirmou, tentando fazê-la entender. — Não sou a melhor escolha, mas sou a única que tem — brincou.
Contudo, a criança pareceu não entender a brincadeira e pôs-se a chorar. Shiromiya segurou suas mãos, respeitando sua dor. Então, sentiu que ela abria os braços e o apertava, descansando a cabeça sobre seu ombro.
Naquele instante, Shiromiya descobriu que era, de fato, o pai dela. O amor que sentiu, foi algo muito forte e instantâneo, capaz de dar-lhe força para lutar por eles. Jamais permitiria que qualquer coisa os separasse.
Com ela no colo, fechou a porta da casa, e voltou para o terminal.
Nana estava certa, sempre existia esperança, mesmo quando a dor era mais forte que qualquer palavra.
Ele tinha um novo motivo para viver... E por esse motivo, tudo valeria a pena.
***
Saito Jiro chegou ao terminal meia hora antes do horário combinado. Olhou para os lados, apavorado, à procura do amigo. Quando não o viu, tudo lhe passou pela cabeça, desde que Shiro fora descoberto por Ryo, até que ele se perdera pela cidade destruída. Contudo, pouco depois, suspirou aliviado ao visualizá-lo, ao longe, carregando uma criança no colo.
UMA CRIANÇA NO COLO?
Correu até ele, os olhos questionadores. Shiro apenas murmurou, firme:
— Minha filha — apresentou.
Saito sentiu as pernas vacilarem, tamanho o susto. Contudo, em seguida, percebeu com mais clareza a situação.
— Shiro, você não pode — disse, tentando trazê-lo à razão.
— Por quê?
— Shiro — respirou fundo, buscando calma. — Não dá para salvar todas as crianças.
— Todas não — concordou. — Mas essa eu salvarei.
Jiro ergueu as duas mãos para o céu.
— Pelo amor de Deus! — exclamou. — Não vê a nossa situação? O país está em guerra, teremos sorte se chegarmos até a minha casa sem sermos mortos no trajeto. Uma criança...
— Acho que você não entendeu, Jiro-san — interrompeu-o. — Não estou pedindo a sua autorização. Já tenho dezenove anos e sou um homem feito há bastante tempo. Estou assumindo essa criança, ela é minha e eu juro que mato quem ousar dizer que não — ameaçou. — Não irei a lugar nenhum sem a minha filha. Você comprou uma passagem para mim, não é? Irei reembolsá-lo. E não precisa se sentir responsável por mim ou por ela, porque sequer precisamos seguir pelo mesmo caminho.
Saito percebeu que ele estava furioso e resolveu abrandar os ânimos. Observou com mais atenção a criança que parecia dormir, segura nos braços do amigo.
— Parece com você — resmungou.
Shiro ficou surpreso e sorriu diante do semblante resignado do outro.
— Para onde iremos?
— Para o pior lugar que alguém iria querer ir, no momento — contou. — Okayama é o lugar onde mora minha família.
— Mas... — Kazue pareceu impressionado. — Teremos que cruzar o país inteiro.
— De fato. Vê agora o risco que iremos enfrentar?
Shiro apertou a menina. Era impossível não temer.
— Minha família tem uma pequena propriedade. Eles nos darão teto até o fim da guerra. Depois disso, vamos nos virar — foi otimista. — Sei falar vários idiomas, pretendo conseguir um bom emprego.
Shiro assentiu.
— Fazendo planos?
— Ora, depois de tudo que passei, mereço, não? E você? Quais seus planos?
— Vou cuidar da minha filha — sorriu. — Ela vai estudar, vai crescer forte, vai ter tudo que eu nunca tive.
— Hum — Saito assentiu. — Ok, já entendi que essa pequena princesa será uma rainha — brincou. — Mas e o pai dela?
Os olhos ficaram tristes e o jovem suspirou.
— Eu vou sobreviver.
A resposta enigmática ecoou aos ouvidos de Jiro.
***
Ryo Satoshi aproximou-se da mesa e observou o café da manhã atentamente. Não que houvesse algo de interessante sobre a mesa, além das iguarias de sempre, mas estava bastante pensativo desde a noite passada.
Noivo.
Apesar das gargalhadas que ele fingia dar diante das histórias pouco engraçadas que Miura compartilhou, a verdade é que o coração estava em trevas. A jovem Hana era bonita e até atraente, mas sequer conseguira repousar os olhos sobre ela muito tempo. Não o atraía. Não se sentia à vontade com sua voz, nem com sua presença. No entanto, ela tinha um útero, e ele reafirmou a necessidade de uma barriga para sua Miya.
— Senhor Ryo? — Tadao apareceu ao seu lado. — Alguma coisa o desagradou? — apontou a mesa farta.
Ryo negou e se sentou.
— Shiro ainda não acordou?
— Não. Quer que eu o acorde?
— Não — negou. — Deve ainda estar doente. Irei vê-lo. Se não melhorou, vou chamar um médico.
Enquanto caminhava em direção ao quarto, sentiu o coração apressado. Pelos céus, havia passado uma única noite longe de Shiromiya e já estava aos cacos. Precisava tanto vê-lo que quase começou a correr.
Porém, uma presença cruzou por ele, e Ryo estancou. Voltou-se para a figura adolescente e a viu rindo, feliz.
— Miya? — chamou-a.
A garota ajeitou a franja atrás da orelha, graciosamente, e então contou, alegre:
— Papai chegou.
Por alguns segundos a frase fez com que Ryo paralisasse. Então, deu dois passos em sua direção, completamente furioso.
— Pai? Eu sou seu pai! — gritou.
Porém, era como se ela não o visse. Riu novamente, e então lhe deu as costas, correndo para fora.
Ryo a seguiu de perto, ansioso para ver o que aquela cena representava. Logo estavam na área externa de sua mansão, descendo as escadarias. Ao longe, ele visualizou um veículo que não se lembrava de já ter visto. Preto, aristocrata, um modelo novo, diferente de tudo que existia. Então, percebeu Tadao com os cabelos grisalhos saindo do carro e dirigindo-se à porta de trás. Imaginou que iria se ver, como sempre, mas outro homem saiu do carro.
Miya atirou-se em seus braços. Ryo diminuiu o passo, embasbacado com a cena.
— Trouxe-me tudo que pedi? — ela indagou, parecendo buscar algo nos bolsos dele.
— Não iria para Tóquio e não traria nada, não é? — a voz que ele reconheceu imediatamente retrucou.
Shiro...
Shiromiya...
Shiro... e Miya...
Aproximou-se mais, absorvido pela cena. Kazue estava mais velho, talvez chegando aos quarenta, mas não saberia dizer sua idade com precisão, afinal, ainda parecia igual, talvez umas poucas rugas abaixo dos olhos, mas a mesma aparência que o conquistou na Casa Ai. E o sorriso dele era tão feliz!
Percebeu que a jovem encontrou o que buscara nos bolsos. Parecia uma presilha, mas tinha aquelas malditas letras americanas com o nome daquele tal Elvis que a filha parecia idolatrar.
— Eu te amo, eu te amo, eu te amo! — ela gritou infinitas vezes enquanto beijava a bochecha de Shiro.
Depois, foi até Tadao e o abraçou. O servo e a filha saíram de braços dados em direção à casa, enquanto Ryo acompanhava-os com o olhar.
— Sentiu minha falta?
Voltou às vistas e percebeu que Shiro falava com ele. Porém, não conseguia responder.
Percebendo seu estado entorpecido, o outro se aproximou, arrumando a gola de sua camisa. Shiro então o beijou apaixonadamente nos lábios, diante de todos. Mesmo pasmo, Ryo percebeu-se correspondendo.
— Senti sua falta — respondeu, por fim, assim que as bocas se desgrudaram.
E sentia mesmo. Uma única noite longe dele pareceu destruir sua vida. Foi então que entendeu que o aquecimento no coração que tanto buscava em Miya, também se encontrava em Shiro. Grudando sua testa na do outro, ele respirou fundo, entregue à certeza de que encontrara sua família.
Pelos céus! Estava tão na cara, como não percebera antes?
Não poderia se casar com a filha de Ota, porque não a amava. E não era apenas isso, ela não era sua destinada, a pessoa que Kami-sama havia escolhido para ele. Fora Shiro que foi entregue em seus braços, e ele quase chorou ao notar que até então nada havia feito para recompensar o outro pela devoção. Ao contrário, tudo que dissera ao seu respeito... Haveria perdão?
— Vocês terão a noite toda para namorar — ouviu o grito feminino e desviou os olhos de Shiro, voltando-se para a garota. — Agora, quero ver todos os meus presentes! — exigiu.
Shiro riu baixinho.
— Juro que quando ela grita assim, eu enxergo Sakamoto — contou.
Ryo quis replicar e dizer que sua amada pequena nada tinha a ver com aquele imbecil quando a boca abriu sem domínio.
— Maldito! Ele a tornou uma cópia de si mesmo.
Shiro jogou a cabeça para trás e gargalhou. Depois, desviou-se dele e foi até as escadas. Com o coração em paz, Ryo o viu abraçando a filha e ambos riram de alguma coisa que ele falou.
— Eu te amo?
A pergunta que se fazia foi respondida pelas próprias lembranças. Shiro ao seu lado enquanto ele contava que era uma criança solitária, Shiro acariciando sua face ao ouvi-lo dizer que sonhava em ser um artista. Shiro o perdoando mais de uma vez por sua maldade. Shiro embaixo do seu corpo, entregando-se a ele de uma forma única.
— Eu te amo — Ryo afirmou, sorrindo, completamente ciente dos seus sentimentos, então. — Eu te amo — repetiu, para que não restasse nenhuma dúvida.
Contudo, subitamente, a imagem na escada foi se apagando. E não era como nas outras vezes, quando elas sumiam repentinamente. Daquela vez, foi um ato quase desesperador. Aos poucos, como se uma borracha estivesse nelas, os pedaços foram destruídos. E quando tudo sumiu, o coração de Ryo doeu, em pânico.
— Ok — disse a si mesmo, tentando se acalmar. — Vamos consertar as coisas.
Correu para dentro de casa, gritando por Tadao. O servo surgiu diante dos seus olhos, assustado,
— O que houve, Ryo-san?
— Mande uma missiva a Ota, agora! — disse, já volvendo o corpo em direção ao quarto de Shiro.
— Mas...
— Vou desistir do casamento — explicou.
O servo sorriu, assentindo.
Então Ryo não mais impediu as pernas de correrem. Entrou no quarto de Shiro e, encontrando-o vazio, foi até o banheiro.
— Kazue? — chamou, abrindo a porta do toalete.
Nada. Apenas o vazio.
Girou o corpo em direção à saída, pronto para ir em busca do homem que amava, quando o olhar encontrou-se com o dinheiro em cima da cama.
Shiro não sabia escrever, então não deixara nenhum bilhete. Mas quando percebeu o brilho dourado do cordão que havia lhe dado anos antes, soube que o outro desistira dele.
Perdera-o.
Caindo de joelhos diante da cama, percebeu que Kami-sama havia lhe dado um presente, uma promessa. Ansioso para ver seu futuro se concretizando, ele não respeitou o tempo de deus, e agora era punido por aquilo.
Curvou-se até face encostar-se ao chão. Quando as lágrimas vieram, sentiu-se morto.
Naquela manhã, Satoshi Ryo teve a última visão de sua vida.
***
O balanço do ônibus acordou a menina. Estava no colo do homem que a havia alimentado de manhã. O rapaz dormia, então ela estudou atentamente seu rosto, sorrindo. Era jovem e bonito. Doce e gentil também. Ele dissera que era seu pai.
Aconchegou-se no seu peito, sentindo-se protegida.
Porém, em seguida, o som de um pigarrear fê-la voltar a atenção para um homem ao lado.
— Olá — um homem formoso sussurrou. — Sou o tio Jiro — apresentou-se.
Ela encarou o pai, sem saber se devia ou não conversar com o estranho. Afinal de contas, o seu novo genitor não havia gostado nada de vê-la com o outro estranho, de manhã.
— Deixe Shiromiya dormir — aconselhou. — Ele não deve ter dormido a noite toda.
— Shiromiya?
Seu pai se chamava Shiromiya? Ela riu, mostrando os dentes infantis.
— Sim. E você? Como se chama?
Houve um breve silêncio. Em algum lugar, o destino sorriu diante da resposta.
— Eu sou Miya.
Jiyuu na Karada
O amor se apaga com o tempo?
Ele era um guerreiro.
O jovem homem Shiromiya Kazue jamais lutou com armas, mas saiu da guerra que destruiu seu país fortalecido pela dor. Corajoso, ele reconstruiu sua vida, formou uma família, e conquistou o respeito e a confiança de todos da pequena cidade que vivia. Contudo, ainda sofria pelo passado, ainda amava a quem devia odiar...
Ele era um derrotado.
O comerciante Ryo Satoshi conquistou o respeito dos aliados ao final da II Guerra Mundial. Sagaz, tornou-se um popular membro do comércio internacional, expandindo sua fortuna e seu poder. Porém, vítima dos próprios erros do passado, ele caminhava pelo seu presente sem sentir o sabor da vida. Podia ter tudo que desejava, porém, a única coisa que realmente queria estava fora de seu alcance...
Em 1950, o Japão estará reconstruindo mais do que suas estruturas. Um país retornando do caos, progredindo em direção ao futuro. E nesse cenário, os protagonistas de Kinshi na Karada se reencontram. O que restou de seus intensos sentimentos?
[1] Nii-chan é uma expressão carinhosa, maneira de chamar o irmão mais velho.
[2] Tradução – Obrigado.
[3] "Quarteirões do prazer" ou bairros onde a prostituição era legal.
[4] Anfetamina.
[5] Deus.
[6] Ilha ao norte do arquipélago.
[7] Tradução: Idiotas.
[8] Famoso livro escrito por Natsume Soseki.
[9] Flor de cerejeira
[10] Gueixo masculino.
[11] Dança tradicional japonês, praticada por gueixas.
[12] Título honorífico japonês. Chan é usado para demonstrar informalidade, confiança, afinidade ou segurança com a outra pessoa, não obrigatoriamente do sexo feminino.
[13] Título honorífico japonês. San é usado para referir-se a alguém de mesma hierarquia, quer etária, quer profissional. Aplica-se tanto a homens como a mulheres
[14] Minikui significa feio. Sama é a versão formal de san , sendo utilizado para tratar pessoas de altíssima posição ou importância, como imperadores e deuses. Minikui-sama é o antepassado de Minikui da saga Rendição/Redenção e Remissão.
[15] Referência a A ROSA ENTRE ESPINHOS.
[16] Referência a TRAÇOS.
[17] Sufixo que significa "velha" de uma forma pejorativa, mas também afetiva.
[18] Shamisen é um instrumento semelhante ao banjo, com três cordas tocadas por um plectro (bachi) de marfim, madeira, plástico e carapaça de tartaruga e o “corpo”, parecido com um tambor.
[19] Espécie de cítara japonesa composta de 13 cordas e uma caixa de ressonância
[20] Flor de cerejeira.
[21] Hama Rikyu – Jardim imperial.
[22] Niboshi são sardinhas japonesas recém—nascidas secas (às vezes traduzido como anchova).
[23] Ilha Okunoshima – local onde se fabricavam secretamente armas químicas com base no gás mostarda.
[24] A grande obra de Hitler, traduzida como "Minha Luta".
[25] Senhores de terras.
[26] Tradução – desculpe.
[27] Schutzstaffel ou "Tropa de Proteção" abreviada como SS foi uma organização paramilitar ligada ao partido nazista e a Adolf Hitler.
[28] Província japonesa localizada na região de Chugoku.
[29] Musashi é conhecido como o maior samurai já existente.
[30] ( 25 de Junho de 1892 — 9 de outubro, 1959) foi um japonês microbiologista e tenente-general da Unidade 731. Considerado por muitos, um monstro.
[31] O Quartel-General Imperial
[32] Título Honorífico – A forma empregada por Saito indica intimidade.
[33] Doolittle Raid foi o lançamento de um bombardeamento a partir da costa japonesa em 18 de Abril de 1942. O ataque tinha o objetivo de servir de propaganda e resposta ao ataque a Pearl Harbor.
[34] Principal teatro de Tóquio, aberto em 1889 e permanece em atividade até a presente data.
[35] Bebida tradicional, destilada.
[36] Kurosawa Akira foi um dos cineastas mais importantes do Japão, e seus filmes influenciam uma grande geração de diretores do mundo todo.
[37] Conjunto das forças da Alemanha na Líbia durante a Campanha do Norte da África na Segunda Guerra Mundial.
[38] Pratos típicos
[39] É um trocadinho. O nome Masami significa Elegante Beleza.
[40] É uma decoração tradicional no feriado de ano-novo no Japão.
[41] Dragões sorrateiros.
[42] General que comandava as tropas japonesas na ilha Saipan.
[43] Península a Oeste da ilha.
[44] Expressão: “Realmente? Mesmo?”.
[45] Kamikaze.
[46] Comandante Sekio Nishina defendeu o projeto dos kamikazes na Nippon Times em 1944.
[47] Grito e/ou expressão de guerra, usado em conflitos armados. Também significa “Longa vida ao Imperador”.
[48] Bairro de Tóquio.
[49] O exército japonês usou os Pastores Alemães como combatentes.
[50] Casamata fortificada à prova dos projéteis inimigos
[51] Respectivamente, pinheiro e cedro.
[52] Chuva de ferro.
Josiane da Veiga
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