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Series & Trilogias Literarias
Sua máscara ocultava um segredo, mas seus braços ardentes confessavam sua paixão.
Na Nova Inglaterra colonial, os britânicos perseguem um destemido patriota mascarado, cujas façanhas zombam deles a cada passo: O Corsário.
Jessica Taggert, mulher bonita e de temperamento orgulhoso, vibra à meia-noite nos braços do Corsário, mas despreza Alexander Montgomery, que todos na cidade consideram alcoólatra e bobo da cidade.
Na verdade o astuto Alexander Montgomery leva uma vida dupla. Se por um lado, é um tolo, gordo e alcoólatra, pelo outro é o admirado Corsário... A razão para essa vida dupla é que em uma tentativa heróica foi ferido, e para que não suspeitem dele se veste com roupas coloridas e acolchoadas para parecer gordo.
Jessica Taggert despreza Alexander por acreditar que ele é um covarde e, adora o Corsário. Por ironia do destino, Jessica é forçada a casar-se, e por desgraça seu marido não é outro senão Alexander. Entretanto, mesmo casada, ela continua adorando o Corsário.
Conseguirá Alexander que Jessica veja além da sua aparência física e perceba quem ele é realmente?
Somente sua vitória contra os odiados ingleses permitirá, finalmente, conhecer em sua plenitude o amor de Jessica.
A cidade fictícia de Warbrooke está localizada no que hoje é o estado de Maine. No entanto, durante a década de 1760, quando ocorre a narrativa de O Corsário, essa área era parte do que hoje é chamado Commonwealth. Mais tarde, foi separada de Massachusetts e entrou na União sob o nome de Maine, vigésimo terceiro estado, em 15 de Março 1820. (Nota da Escritora)
01
1766
Alexander Montgomery se reclinou na cadeira, estirando suas pernas largas e esbeltas sobre o tapete que cobria o piso do camarote do capitão, a bordo do Grande Duquesa, enquanto Nicholas Ivanovitch repreendia a um dos servos. Alex nunca tinha visto ninguém tão arrogante como esse russo.
— Se voltar a guardar mal minhas fivelas te cortarei a cabeça. — Assegurou Nick, com seu forte sotaque e sua voz rouca.
Alex se perguntou se os duques russos ainda tinham permissão para decapitar a quem os desagradasse.
— Agora vai. Fora de minha vista — adicionou Nick, agitando um punho envolto de rendas para o acovardado servo. E adicionou, dirigindo-se a Alex, assim que ficaram sozinhos no camarote: — Veja as coisas que devo suportar.
— É muito, reconheço-o — concordou o jovem.
Nicholas o olhou arqueando uma sobrancelha e voltou a concentrar-se nos mapas navais desdobrados sobre a mesa.
— Atracaremos a uns duzentos e vinte quilômetros de seu Warbrooke, pelo sul. Acredita que achará alguém disposto a te levar ao norte?
— Já arrumarei alguém — disse Alex, despreocupado, enquanto se estirava um pouco mais, com as mãos sob a nuca. Seu longo corpo ocupava quase todo o camarote.
Muito tempo atrás tinha treinado suas reações faciais para que ocultassem seus pensamentos. Nicholas conhecia em parte suas idéias, mas Alex não permitia a ninguém apreciar a profundidade de sua preocupação.
Meses atrás, Alex estava na Itália, quando recebeu uma carta de sua irmã Mariana, onde lhe rogava que voltasse para o lar. Dizia nela que precisava dele desesperadamente, e contava o que seu pai a tinha proibido de revelar: que ele, Sayer Montgomery, tinha caído gravemente ferido em um acidente a bordo de um navio e tinha as pernas destroçadas. Tinha sobrevivido, contra todos os prognósticos, e estava agora condenado a viver em seu leito, inválido.
Mariana dizia também que ela se casara com um inglês, o inspetor de alfândega da pequena cidade de Warbrooke e, quem ele era não informava. Não entrava em detalhes sobre as atividades de seu marido, provavelmente em um conflito entre a lealdade a seu marido e a fidelidade a sua família e ao povo que conhecia desde que nascera, mas Alex percebeu que ela calava muitas coisas.
Mariana tinha entregado a carta a um dos muitos marinheiros que saíam Warbrooke, na esperança de que chegasse às mãos de Alex e o fizesse voltar para casa. Seu irmão tinha recebido a carta pouco depois de ancorar na Itália. O veleiro em que partira de Warbrooke, mais de quatro anos atrás se afundara fazia já três semanas, ele esperava na ensolarada costa italiana, sem empenhar-se muito em conseguir outro posto de oficial.
Foi na Itália que conheceu Nicholas Ivanovitch. Na Rússia, a família de Nick tinha um estreito parentesco com a czarina, motivo pelo qual Nick esperava que todo mundo o tratasse com respeito, admiração e a submissão que ele considerava devido a sua posição.
Alex tinha intervindo para salvar seu gordo pescoço de um bando de marinheiros que não gostaram do que Nick dizia deles. O jovem Montgomery tinha tirado sua espada, tinha-a arrojado às mãos do russo e tinha extraído de seu cinturão duas adagas, uma para cada mão.
Os dois combateram juntos por uma hora. Ao terminarem estavam cobertos de sangue e com as roupas feitos farrapos, mas eram amigos. Alexander foi objeto da hospitalidade russa, tão generosa quanto à arrogância desse povo. Nick o levou a bordo de seu navio particular; era um lugre, um tipo de navio tão veloz que estava proibido em quase todos os países, já que era capaz de deixar para trás a qualquer outra embarcação. Mas ninguém incomodava aos aristocratas russos, que não obedeciam nenhuma lei a não ser a sua própria.
Alex se instalou no opulento navio e, por duas semanas desfrutou de que o servissem. O exército de submissos servos que Nick havia trazido da Rússia antecipava e satisfazia cada um de seus desejos.
— Na América não somos assim — havia dito Alex a Nick, depois da quinta caneca de cerveja.
Falou-lhe da independência dos norte-americanos, da capacidade com que criavam um país próprio a partir do campo.
— Combatemos contra os franceses e os índios; combatemos contra todo mundo. E sempre ganhamos! — gabou-se.
Quanto mais bebia, mais ponderava as glórias da América do Norte. Depois que Nick e ele tiveram já consumido a maior parte de um tonel, o russo tirou um líquido claro que chamou de vodca e ambos começaram a beber dessa garrafa. "Embora não se diga outra coisa dos russos", pensou Alex, "é preciso reconhecer que bebem o melhor”.
Na manhã seguinte, enquanto que para Alex parecia que a cabeça se partia e sua língua dava a sensação de ter limpado a lambidas o fundo do navio, chegou à carta. Nick estava na proa, descarregando sua dor de barriga contra os acovardados servos. Quando Elias Downey pediu permissão para subir a bordo e falar com Alexander. Nick deixou de gritar e de queixar-se para acompanhar o homem ao camarote. Morria de curiosidade por saber que mensagem de grande importância trazia esse homem.
Nick serviu três copos de vodca e os pôs na mesa. Alex se limitou a revirar olhos. Passando por cima dos zumbidos que sentia na cabeça, escutou os relatos de Elias sobre tudo quanto se passava em Warbrooke. Jogou uma olhada à carta de sua irmã, que não dizia muitas coisas.
— Casou-se com um homem muito mau. Rouba a todos — estava dizendo Elias. — Tirou o navio de Josiah, aduzindo que havia contrabando a bordo. E como fez tudo parecer legalmente, ninguém pôde impedir-lhe Se Josiah pudesse reunir sessenta libras poderia entrar com um pedido no tribunal para recuperar seu navio. Era tudo que tinha no mundo e agora o perdeu.
— E o que fez meu pai? — perguntou Alex, inclinando-se para frente. — Não o imagino deixando que seu genro roube o navio de outro homem.
Elias começava a fechar os olhos por efeito da vodca.
— Sayer não tem pernas. É como se as tivessem cortado. Não pode mover-se da cama. Todos pensavam que ia morrer, mas vive... se a isso se pode chamar viver. Apenas come. Eleanor Taggert que cuida da casa.
— Os Taggert! — exclamou Alex. — Ainda vivem naquele abrigo, tratando de dominar a seus filhos terríveis?
— James se afundou com seu navio, faz dois anos, e Nancy morreu ao nascer seu filho caçula. Alguns dos moços foram embora, mas ainda ficaram alguns. Eleanor trabalha para seu pai e Jess circula com um bote pelo porto. Com isso mantêm a família. Você conhece os Taggerts: não aceitam esmolas. Essa Jess vale a pena; foi à única que enfrentou seu cunhado, senhor Montgomery. Claro que os Taggerts não têm nada que perder se se inimizarem com ele. Não possuem nada que alguém possa desejar.
Alex intercambiou um sorriso com Elias. Os Taggerts eram verdadeiros personagens na cidade e, que se usava para medir a própria má sorte. Por mais mal que fossem as coisas a uma pessoa, sempre se encontrava a um deles que estivesse em condições pior. Eram os mais pobres e os mais sujos... e dissimulavam sua miséria com orgulho.
— Continua Jessica tão temperamental como sempre? –murmurou Alex, sorrindo ante a lembrança de uma moça fraca e suja que, por motivos inescrutáveis, tinha-o eleito para complicar a vida. — Agora deve ter, calculo, uns vinte anos.
— Mais ou menos. — Elias estava quase fechando os olhos.
— E não se casou?
— Ninguém quer a esses pirralhos — assegurou Elias, já grogue. — Você tem muito tempo sem ver Jess. Essa moça mudou.
— Não sei por que, mas duvido — comentou Alex, no momento em que Elias deixava cair à cabeça contra o peito. Vendo que seu interlocutor estava dormindo, olhou para Nick. — Terei que ir ver do que se trata. Mariana me pede que vá para casa para ajudá-los. Duvido que as coisas estejam tão mal como eles as pintam. Meu pai sempre acreditou que a cidade de Warbrooke era seu pequeno feudo pessoal; agora tem que compartilhar a autoridade com outra pessoa e disso ele não gosta. E se algum dos Taggert colocou o nariz para provocar distúrbios, não estranho que tudo esteja alvoroçado. Irei ver do que se trata. Há um navio que parte de volta a América do Norte dentro de seis semanas. Talvez o capitão ainda não tenha tripulação.
Nick enfiou pela à garganta o resto da vodca.
— Levarei-te. Meus pais queriam que eu visitasse a América e lá tenho primos. Levarei-te a essa cidade para que averigúe o que acontece. Todo filho deve obedecer a seu pai.
Alex sorriu para não demonstrar o muito que o preocupava a ferida de seu pai. Não conseguia imaginar a esse homem corpulento, estridente e exigente convertido em um inválido.
— Está bem — disse. — Será um prazer ir contigo.
Desde então tinham transcorrido várias semanas; agora faltavam poucas horas para chegarem ao cais e Alex estava ansioso por ver outra vez a sua pátria.
A cidade de Nova Sussex estava florescendo. Ouvia-se o ruído dos navios ao atracar, os gritos das pessoas que vendiam sua mercadoria, discussões e regateios. E o ar puro do mar se mesclava com o aroma de peixe e de pessoas sujas.
Nick estirou seu grande corpo e bocejou, o sol arrancava reflexos dos fios de ouro que bordava sua jaqueta.
— Meu primo te receberá de bom gosto. Não tem quase nada que fazer e lhe servirá de distração.
— Agradeço-lhe, mas prefiro iniciar o trajeto para minha casa - respondeu Alex. — Tenho muito desejo de ver outra vez meu pai e de averiguar em que problemas se colocou minha irmã.
Separaram-se no cais. Alex carregava só um saco no ombro. Acima de tudo pensava comprar um cavalo, depois, roupas novas. Tudo quanto possuía se perdera no naufrágio, na Itália; no navio do Nick tinha usado somente as cômodas e folgadas roupas dos marinheiros comuns.
— Eh! Olhe! — gritou um soldado britânico, que formava parte de um grupo de seis. — Ouça, você! A escória como você deve olhar com respeito a seus superiores.
Alex não teve tempo de defender-se, um dos homens o empurrou por trás, fazendo cair o saco, e voltou a empurrá-lo. O jovem caiu de bruços no chão. Enquanto cuspia terra e calhaus, as gargalhadas lhe ressoaram nos ouvidos.
Em questão de segundos estava em pé, disposto a jogar-se contra os soldados, que já haviam dado as costas, mas uma mão forte o deteve.
— Em seu lugar não faria isso.
Alex estava tão furioso que demorou em distinguir o marinheiro que se deteve a seu lado.
— Eles estão em seu direito. Se os atacar não fará mais nada não ser se colocar em mais problemas.
— Como que estão em seu direito? — Perguntou Alex, com os dentes apertados.
Agora que estava de pé começava a recuperar o bom senso. Eles eram seis. Ele, só um.
— São soldados de Sua Majestade e têm o direito de fazer o que lhes agrade. Se cometer tolices com pessoa como essa, terminará no cárcere.
Como Alex não respondeu, o marinheiro encolheu os ombros e seguiu seu caminho. Alex, depois de jogar uma olhada fulminante nas costas dos soldados que se retiravam, voltou a pegar seu saco e continuou caminhando. Tratou de voltar a pensar em roupa limpa e um bom cavalo entre as pernas.
Ao passar de frente a uma taberna sentiu o aroma de guisado de peixe e percebeu de que estava faminto. Poucos minutos depois estava sentado em uma suja mesa, comendo um saboroso guisado em um prato de madeira, enquanto recordava as comidas que tinha compartilhado com Nick, utilizando talheres de ouro e pratos de porcelana tão fina que eram quase translúcidos.
Não estava alerta e a ponta de uma espada no pescoço o pegou de surpresa. Ao levantar a vista se encontrou com o mesmo soldado que o tinha arrojado na terra, momentos antes.
— Então aqui está outra vez nosso pequeno marinheiro — provocou o homem. — Imaginava-te muito longe daqui. — A cara do jovem soldado perdeu seu ar de brincadeira. — Se levante. Esta mesa é nossa.
As mãos de Alex saíram lentamente de abaixo da mesa. Não levava armas, mas tinha destreza e celeridade. Antes que os soldados se dessem conta de nada, arrojou a mesa contra eles, derrubando ao primeiro, aplicando-lhe um golpe tão forte na perna que o fez gritar de dor. Os outros cinco atacaram Alex imediatamente.
Conseguiu derrubar os outros dois. Logo tomou pelo cabo o pesado caldeirão que pendia sobre o fogo. Queimou suas mãos, mas também queimou todo o ventre do homem contra o qual o arrojou. Estava por quebrar uma cadeira contra a cabeça do quinto quando o estalajadeiro o golpeou na cabeça com uma caneca de cerveja.
Alex caiu graciosamente no chão.
Um cântaro de água fria e suja foi jogado contra seu rosto. Alex se levantou penosamente. Doía-lhe a cabeça e tinha muita dificuldade para abrir os olhos. A julgar pelo aroma desse lugar, teve certeza de estar no inferno.
— Se levante. Está em liberdade — disse uma voz resmungona enquanto ele tratava de levantar-se.
Conseguiu abrir um olho, mas certos fulgores o fizeram fechar outra vez.
— Alex, — disse uma voz, que ele reconheceu como a de Nick — vim te tirar deste lugar imundo, mas que me matem se pensa em levá-lo no ombro. Levante-se e venha comigo.
O fulgor provinha de um ou dois quilos de ouro incluídos no bordado do uniforme russo. Alex percebeu que seu amigo usava um dos trajes que estava acostumado a colocar para impressionar a alguém e obter tudo quanto desejava. E compreendeu que seu amigo não sujaria essa jaqueta por ajudá-lo a caminhar.
Embora tivesse a impressão de que ia cair sua cabeça, conseguiu segurá-la e manter-se em pé. Começava a dar-se conta de que estava em um cárcere, àquilo era um calabouço repulsivo, com palha muito velha no chão e quem sabe o que mais nos cantos. A parede que tocou estava fria e viscosa; aquela viscosidade ficou na sua mão.
De algum modo se recompôs para seguir Nick, que saiu do edifício com as costas perfeitamente retas. Fora os esperava a luz do dia, já mortiça, uma carruagem magnífica, com cavalos que não iriam deixá-los na retaguarda de ninguém. Um dos criados de Nick o ajudou a subir na carruagem.
Apenas tinha se sentado quando Nick iniciou seu discurso.
— Sabia que planejavam te enforcar pela manhã? Inteirei-me por acaso. Um velho marinheiro te viu descer de meu navio e presenciou sua briga. Tem consciência de que fraturou a perna de um deles? É possível que a perca. Queimou o outro e o terceiro ainda não reagiu de seu golpe. Olhe, Alex: uma pessoa de tua condição social não pode fazer esse tipo de coisas.
Essa afirmação fez com que Alex arqueasse uma sobrancelha. Sem dúvida alguma, Nick estava em uma condição social que lhe permitia fazer o que muito desejasse.
Reclinou-se no assento para olhar pela janelinha, enquanto seu amigo continuava lhe dizendo que não podia fazer o que tinha feito. De repente, Alex viu que um soldado inglês tomava a uma jovem pelo braço e a levava a puxões para trás de um edifício.
— Detenha — pediu.
Nick, que também tinha visto a cena, negou-se a dar a ordem de que o cocheiro detivesse os cavalos. Como Alex tratasse de descer igualmente, empurrou-o com força contra os almofadões. Alex apertou a cabeça dolorida.
— São só camponeses — observou Nick, como se custasse a acreditar nessa reação.
— Sim, mas são meus camponeses — sussurrou o jovem.
— Ah, sim, começo a compreender. De qualquer modo sempre terá outros. Reproduzem-se com celeridade.
Alex não se incomodou em responder a esses absurdos. A cabeça doía tanto pelo golpe recebido, como pelo que acabava de ver. Tinha ouvido rumores sobre as coisas horrendas que aconteciam na América, mas sem acreditar de tudo. Na Inglaterra se falava dos ingratos colonos como se fossem meninos delinqüentes que precisavam de uma mão firme. Até tinha visto que se descarregava e inspecionava os navios norte-americanos antes de lhes permitir retornarem. Mas por algum motivo não chegava a convencer-se de que isso fosse certo.
Recostou-se contra os almofadões, em silêncio, e não quis voltar a olhar pela janelinha.
Quando chegaram à casa grande, edificada nos subúrbios da cidade, Nick desceu de um salto, deixando que Alex se virasse sozinho. Estava obviamente encolerizado com seu amigo e não tinha intenções de continuar ajudando-o.
Alex desceu. O ajudante de câmara do russo o precedeu até um quarto aonde o esperava uma tina cheia de água quente. Alex tirou a roupa e se banhou; a água quente lhe acalmou a dor de cabeça. Mas ao banhar-se começou a pensar na carta de sua irmã. Ele a tinha descartado, tomando-a por reação emotiva de mulher; agora se perguntava se por acaso ela se referiu a esse tipo de coisas ao dizer que Warbrooke precisava de ajuda. Segundo Elias, tinham tirado o navio de Josiah por se suspeitar que vendesse mercadoria de contrabando. Se os soldados se sentiam tão superiores para atacar a um indefeso marinheiro na rua e incomodar a uma moça sem temor de castigo: o que fariam os oficiais, os homens que detinham o poder?
— Vejo que segue pensando no que ocorreu hoje — comentou Nick, ao entrar. — O que esperava, considerando que tinha saído do cais vestido dessa maneira?
— Todo homem tem o direito de se vestir como desejar sem correr perigo por isso.
— Essa é a doutrina de todos os camponeses — disse Nick, suspirando, enquanto fazia gestos a um servo para que começasse a abrir seus numerosos baús. — Por esta noite pode usar as roupas de meu primo. Amanhã nos encarregaremos de vestí-lo adequadamente. Então poderá viajar a casa de seu pai sem temor.
Como de costume, Nick fez que suas palavras soassem como uma ordem, não sugestão. Passou a vida dando ordens que todos obedeciam.
Quando Nick partiu, Alex dispensou o criado que lhe oferecia uma das toalhas com o monograma de seu amigo, com intenção de secá-lo. Envolveu o tecido na cintura e se aproximou da janela. Fora já tinha escurecido por completo, mas as luminárias já estavam acesas e se via os soldados vagando pelas ruas. Como se alojavam nas casas dos habitantes, iam e vinham a seu bel prazer. A pouca distancia se ouviam gargalhadas estrondosas e ruído de vidros quebrados.
Esses homens não temiam a nada. Contavam com a proteção do rei da Inglaterra. Se alguém se opunha, como tinha feito Alex, tinham todo o direito de enforcá-lo. Eram ingleses; os norte-americanos também eram ingleses, mas os consideravam selvagens e ignorantes, necessitados de disciplina.
Alex se afastou da janela, aborrecido, e jogou uma olhada no baú entreaberto de Nick. Em cima de tudo havia uma camisa negra.
E se alguém pagasse a esses homens com a mesma moeda? E se um homem, vestido de negro, saísse à noite para deixar claro a esses arrogantes soldados, que não podiam fazer mal aos colonos sem medo de castigo?
Revolveu o baú de Nick até achar uma calça negra.
— Posso perguntar o que está fazendo? – inquiriu Nick, da porta. — Se buscas jóias, asseguro-te que estão bem ocultas.
— Cale-se Nick, e me ajude a encontrar um lenço negro.
O russo cruzou o quarto e apoiou uma mão no braço de seu amigo.
— Quero saber o que está fazendo.
— Me ocorreu dar uma dor de cabeça a esses ingleses. Possivelmente como um fantasma negro saído da noite.
— Ah, sim... começo a entender. — Os olhos de Nick brilhavam. Essa ocorrência era atrativa a seu temperamento russo. Abriu um segundo baú. — Alguma vez te falei de meu primo, que desceu a cavalo a escadaria de nossa casa de campo? O animal fraturou as duas patas dianteiras, é obvio, mas foi um momento magnífico.
Alex afastou a vista da camisa que tinha nas mãos.
— E o que aconteceu com seu primo?
— Morreu. Todos os bons morrem jovens. Em outra oportunidade, estando ébrio, decidiu sair com seu cavalo por uma janela do primeiro andar. Tanto ele como o cavalo morreram. Era um bom homem.
Alex silenciou seus comentários sobre o primo de Nick e vestiu a apertada calça de montar negra. Seu amigo era mais baixo e mais robusto que ele, mas Alex tinha as pernas grossas por ter passado vários anos se exercitando pelo balanço dos navios; por isso usava calças, que deveriam ficar folgadas, mas esta o envolvia como uma segunda pele. A camisa de amplas mangas caia solta sobre ela.
— Toma isto — disse Nick, oferecendo botas de cano alto. — E aqui tem um lenço. — Abriu a porta. — Me tragam uma pena negra! — Uivou para o corredor.
— Não tem por que divulgar a notícia — observou Alex, enquanto colocava as botas.
Nick encolheu os ombros.
— Aqui não há ninguém, exceto meu primo e sua esposa.
— E uma centena de criados.
— Eles não contam. — O russo levantou a vista para o servo que lhe oferecia uma pena de avestruz grande, de cor negra.
— A condessa envia seus cumprimentos — disse o criado, antes de retirar-se.
Em poucos minutos Nick vestiu Alex de negro. Abriu buracos no lenço e cobriu com ele a metade superior da cara de seu amigo. Depois colocou um grande tricórnio na sua cabeça. A pena se enrolava ao redor da aba, deixando cair algumas mechas sobre a testa.
— Sim — aprovou Nick, retrocedendo alguns passos para admirar sua obra. — E agora o que pensa fazer? Cavalgar pelas ruas, assustando aos homens e beijando as moças?
— Algo assim.
Agora que estava vestido, Alex não tinha certeza do que tinha pensado no princípio.
— Nos estábulos há um bonito cavalo negro. Está na última baia. Quando voltar brindaremos pelo... Corsário. Sim, isso, brindaremos pelo Corsário. Agora saia, se divirta e não demore, pois tenho fome.
Alex, sorrindo, seguiu as indicações de seu amigo para chegar aos estábulos. A vestimenta negra o confundia com a escuridão. Enquanto avançava começou a adquirir certa decisão. Pensou nos soldados que tinha visto arrastar aquela moça até o beco; pensou em Josiah, que tinha perdido seu navio. Josiah havia ensinado aos três moços Montgomery a atar nós de marinheiros.
O cavalo que Nick tinha recomendado era um demônio furioso que não estava disposto a deixar montá-lo. Alex o tirou do estábulo e o montou. Teve que lutar bastante para dominá-lo, mas por fim saíram a todo galope para as ruas.
Alex conduziu silenciosamente o animal pelos arredores da rua principal, em busca de um lugar onde pudesse ser útil. Não demorou em se apresentar a ocasião. Diante de uma taberna havia uma bonita jovem, com os braços carregados de pequenos barris de cerveja rodeada por sete soldados ébrios.
— Nos dê um beijo — disse um deles. — Só um beijinho.
Alex não perdeu tempo em esporear sua montaria para sair de entre as sombras e atacar o grupo. Seu cavalo, se lançando a todo galope, teria bastado para que os homens se sobressaltassem, mas o cavaleiro vestido de negro, cuja cabeça se recortava ante a luz da luminária do sistema de iluminação pública, fez que retrocedessem, atemorizados.
O jovem não se deteve a pensar como dissimularia sua voz, mas ao falar o fez com o sotaque de inglês da classe alta e não com vogais fechadas que se impuseram na América do Norte nos últimos cem anos.
— Se metam com homens, não com mulheres — disse.
E tirou a espada, avançando até dois dos homens, que estavam recuando com a aparição e o nervosismo do cavalo.
Com um movimento hábil, cortou os botões ao uniforme do primeiro homem, depois o do outro. Os pedaços de metal polido caíram tamborilando nos paralelepípedos. O cavalo esmagou um sob sua ferradura. Alex o fez retroceder, já se perdendo nas sombras. Sabia que a surpresa contava em seu favor, mas assim que esses homens recuperassem o senso comum o atacaria ou pediriam ajuda aos gritos.
Cortou o ar com a espada sibilante e apoiou a ponta sob o queixo de outro soldado.
— Antes de incomodar outra vez a um americano, pensem bem, se não quiserem que o Corsário os encontre.
E moveu a ponta da espada para baixo, cortando o uniforme do homem até próximo à pele, mas sem sequer arranhá-lo. Após soltou uma gargalhada. Era uma gargalhada de puro prazer, nascido do triunfo que o alagava por haver submetido a esses caipiras autoritários, que só tinham coragem quando estavam em grupos. Ainda sorridente sob a máscara, fez virar a seu cavalo e galopou rua abaixo, veloz como o vento.
Mas mesmo toda sua velocidade não lhe permitiu se esquivar da bala que dispararam contra suas costas. Sentiu que algo quente lhe rasgava o ombro. Sua cabeça caiu para trás e o cavalo se elevou empinando, mas ele conseguiu sustentar-se.
Então girou para a mulher e os soldados que ainda permaneciam diante da taberna; um dos homens tinha na mão uma pistola fumegante.
— Jamais apanharão o Corsário — disse, com voz triunfal. — Os perseguirá dia e noite, sem que possam se livrar dele.
Teve a prudência de não abusar de sua sorte: mudou de direção e seguiu galopando pela rua abaixo, levemente inclinado. Nas casas começavam a abrir as persianas. Os que apareceram puderam ver um homem de negro que voava sob suas janelas. Alex ouviu em suas costas os gritos de uma mulher, provavelmente a empregada que acabava de resgatar, mas estava muito preocupado pela ferida de seu ombro e não chegou a entender o que ela dizia.
Ao chegar aos limites da cidade compreendeu que devia se desfazer do animal. No lombo desse demônio negro era muito visível. Desmontou perto dos cais, protegido pela confusão de navios e cordas. Deu no cavalo uma palmada na garupa e o viu afastar-se para voltar aos estábulos.
Embora não pudesse ver a ferida, sentia que estava perdendo muito sangue e que se debilitava com celeridade. O refúgio mais próximo era o navio de Nick, ancorado a pouca distância e vigiado pela tripulação do russo.
Enquanto abria caminho entre os navios, sempre oculto, escutou a gritaria crescente das pessoas nas ruas. Ao que parecia, todos os habitantes da cidade tinham saído de suas casas para participarem da busca.
Ao chegar ao lugre de Nick rezou por que a tripulação russa lhe permitisse subir a bordo. Esse povo era tão ciumento em sua ferocidade como em seu amor.
Mas sua preocupação era injustificada. Um dos tripulantes o viu e desceu ao cais para ajudá-lo a subir a bordo. Possivelmente estavam habituados que os amigos de seu amo chegassem no meio da noite, com a camisa ensangüentada. Alex não recordou nada mais, a partir do momento em que os marinheiros o ajudaram a subir a bordo e o levaram a adega, meio suspenso no ar, perdeu os sentidos.
Ao abrir os olhos viu o vaivém familiar de um abajur balançado pelo ritmo do mar.
— Bom, parece que vai sobreviver.
Alex moveu um pouco a cabeça. Nick estava sentado junto dele, sem jaqueta e com a camisa manchada de sangue no peito.
— Que horas são? — perguntou Alex, tratando de levantar-se. O esforço provocou enjôos e o obrigou a deitar-se outra vez.
— Está por amanhecer — replicou seu amigo, se levantando para lavar as mãos em uma bacia de água. — Ontem à noite esteve a ponto de morrer. Custou bastante extrair a bala.
Alex fechou os olhos por um momento, pensando naquela tolice de apresentar-se como o Corsário.
— Oxalá não o incomode que abuse um pouco mais de sua hospitalidade, mas por dois dias não estarei em condições de viajar a Warbrooke.
Nick secou as mãos com uma toalha.
— Acredito que nem você e nem eu tínhamos idéia das consequências do que fez ontem à noite. Ao que parece, esta cidade estava procurando um herói e te escolheu como tal. Não se pode sair à rua sem ouvir falar das façanhas do Corsário. Atribuem-lhe todas as ações que se perpetraram contra os ingleses nos últimos dez anos.
Alex emitiu um grunhido de desgosto.
— E isso é o de menos. Os ingleses enviaram a todos os soldados disponíveis em sua busca. Já há cartazes pedindo sua detenção. Ordena-se matá-lo a primeira vista. É esta amanhã vieram duas vezes, pedindo para revistar meu navio.
— Então partirei — resolveu Alex.
Tratou de sentar-se, mas estava muito fraco pela perda de sangue e o ombro doía abominavelmente.
— Mantive-os fora de minha cobertura ameaçando que meu país lhes declararia a guerra. Se pisar na prancha, Alex, o matarão em segundos. Procuram a alguém alto e esbelto, de cabelo negro. — Os olhos do russo se fixaram nos de seu amigo, ardentes de febre. — E sabem que está ferido.
— Compreendo.
Alex, ainda sentado na borda da cama, compreendendo a situação. Sabia que enfrentava à morte, mas não podia permanecer a bordo e arriscar a de seu amigo. Tratou de levantar-se, apoiando-se com força na cadeira que tinha ante si.
— Tenho um plano — disse Nick. — Como não quero que me persiga a marinha inglesa, eu gostaria de permitir que revistassem meu navio...
— Sim, é obvio. — Alex tratou de sorrir. — Ao menos isso me evitará ter que caminhar pela prancha. Essa idéia eu não gosto nada.
Nicholas passou por cima desse toque de humor.
— Mandei procurar alguma roupa na casa de meu primo, que é homem obeso e afeiçoado às roupas vistosas.
Ouvindo isso, Alex arqueou uma sobrancelha. A seu modo de ver, a vestimenta de Nick teria envergonhado um pavão. Como seriam as de seu primo?
O russo continuou:
— Acredito que, se lhe acolchoarmos para que preencha as roupas, fizermos exalar um pouco de whisky e colocarmos uma peruca com pó nessa massa de cabelo negro, pode passar pela inspeção dos soldados.
— Não basta com que me ponha o disfarce e saia caminhando do navio?
— E depois, o que faria? Precisa ajuda, mas quem quer que lhe dê arriscará sua vida. Além disso, quantos destes norte-americanos pobres poderão resistir à recompensa de quinhentas libras que oferecem por sua cabeça? Não, permanecerá a bordo de meu navio, comigo, e depois navegaremos até sua cidade. Haverá ali alguém que te atenda?
Alex se recostou contra a parede, sentindo-se até mais fraco que ao despertar. Pensava na cidade de Warbrooke, estabelecida por seu avô, que seu pai era agora quase proprietário. Estava habitada por amigos deles, pessoas que o conheciam de sempre... e ele era um produto desse povo. Se ele era corajoso, eles o eram em dobro. Nenhum soldado inglês assustaria a cidade de Warbrooke.
— Sim, ali há pessoa que me ajudará — disse, por fim.
— Nesse caso, devemos te vestir.
Nick abriu a porta do camarote e chamou um servo para que trouxesse as roupas necessárias.
— Chegamos, Alex — disse Nick, com suavidade.
Olhou para seu amigo com simpatia. Alex tinha tido alta temperatura durante toda a semana; seu aspecto era o de quem tinha passado vários dias em estado de embriaguez: olhos fundos, pele seca e avermelhada, músculos débeis e lentos.
— Teremos que voltar a te vestir com as roupas de meu primo. Os soldados continuam procurando o Corsário e temo que chegaram até aqui. Compreende-me?
— Sim — murmurou Alex. — Em Warbrooke me cuidarão. Já verá.
— Espero que não se equivoque e que eles possam acreditar no que verão.
Referia-se ao ridículo espetáculo que representava o jovem, com seus acolchoados de gordura, a jaqueta de brocado e a peruca coberta de pó. Não se parecia em nada ao bonito moço que deveria voltar para sua cidade natal para salvá-la de um malvado parente.
— Já verá — repetiu Alex, grogue pelo conhaque que Nick lhe tinha dado para ajudá-lo a suportar o esforço iminente. — Me conhecem. Quando me virem assim começaram a rir, pois compreenderão que aconteceu algo. Eles me cuidarão até que cicatrize este maldito ombro. Só rogo que não me delatem frente aos soldados. Porque nunca se viu a um Montgomery vestido de pavão, compreende? Imediatamente se darão conta de que há um motivo.
— Sim, Alexander — disse Nicholas, mais tranqüilo. — Espero que tenha razão.
— Tenho. Já verá. Conheço estas pessoas.
02
—Não sei por que tenho que ir espera-lo, justamente eu — alegou Jessica Taggert pela milésima vez, com sua irmã Eleanor. — Alexander nunca representou nada para mim... pelo menos, nada bom.
Eleanor ajustou os cordões do espartilho de sua irmã. Embora fosse bastante bonita, em presença de Jessica ninguém olhava nela, e o mesmo ocorria com todas as mulheres da cidade.
— Deve estar presente porque a família Montgomery sempre se comportou muito bem conosco. Desça daí, Sally! — ordenou dirigindo-se a irmãzinha de quatro anos.
A casa dos Taggert era um pouco mais que um barracão, de reduzido espaço, que só recebia a atenção de duas mulheres cujo uso completo de tempo era dividido e dedicado a casa, trabalho e com sete irmãos menores para cuidarem. Estava no limite da cidade, oculta em uma diminuta enseada, sem vizinhos próximos... não porque à família gostasse de viver no isolamento, mas sim porque dezoito anos atrás, ao chegar ao mundo o quinto dos meninos, tão ruidoso e sujo como os anteriores, sem que a multiplicação parecesse não ter fim, os vizinhos tinham deixado de construir nas proximidades.
— Nathaniel! — gritou Jessica ao de nove anos, que balançava três gordas aranhas frente à cara de sua irmãzinha.
— Fica quieta, Jess — protestou Eleanor. — Como quer que feche este vestido se te sacode assim?
— É que não quero que me feche. Na verdade, não vejo nenhuma necessidade de que eu vá. Não preciso da esmola de pessoas como Alexander Montgomery.
Eleanor soltou um sincero suspiro.
— Não o vê desde que eram meninos. Talvez tenha mudado.
— Ahahah! — riu Jess, afastando-se de sua irmã para levantar Samuel, o bebê, que estava tratando de comer alguma substância impossível de identificar, recolhida do chão. Uma das aranhas de Nathaniel tinha ido parar na sua mãozinha suja e gordinha. — Quando se é mau como Alexander não se muda. Faz dez anos era um sabichão pomposo, e tenho certeza de que não mudou. Se Mariana tinha que chamar um de seus irmãos para que a ajudasse a livrar-se desse homem com quem cometeu a estupidez de casar-se, por que não chamou um dos mais velhos, a um dos Montgomery bons?
— Acredito que escreveu a cada um deles, mas Alex foi o que primeiro recebeu a carta. Fica quieta, que vou desembaraçar um pouco seu cabelo.
Eleanor tomou com as mãos a cabelos de sua irmã, sem poder dominar certa inveja. Outras mulheres passavam muitas horas tratando de fazer o possível por seus cabelos. Jessica, em troca, expunha o seu ao sol, ao ar salgado das águas do mar e a seu próprio suor; entretanto o tinha mais bonito que ninguém. Era uma densa massa loira e suave que brilhava a luz.
— Oh, Jess, se te esforçasse um pouco poderia ter a qualquer homem...
A irmã a interrompeu:
— Não comecemos outra vez, por favor. Por que não busca você marido? Um marido rico, que mantenha aos dois e a todos os meninos.
— Nesta cidade? — soprou Eleanor. — Uma cidade que tem medo de um só homem? Uma cidade que se deixa dominar por um tipo como Pitman?
Jessica se levantou, afastando a cabelos de seu rosto. Havia muito poucas mulheres que pudessem recolher o cabelo tão apertado e continuar sendo bonitas, mas ela conseguia.
— Se você não quiser a nenhum destes covardes, eu tampouco. — Deixou outra vez no chão o pequeno Samuel. — Mas pelo menos não cometo a tolice de confiar em um só homem para que nos salve, sobre tudo se esse homem é Alexander. Acredito que todos vocês recordam os Montgomery como um grupo, não como indivíduos. Estou de acordo que nunca existiu um grupo de homens mais estupendo que Sayer e seus dois filhos mais velhos; chorei tanto como qualquer um de vocês quando os moços embarcaram... mas não quando se foi Alexander.
— Parece-me que é injusta, Jessica. O que te fez Alex, em nome de Deus, para que lhe tenha tanta antipatia? Não pode ter em conta as travessuras que fazia quando era moço. Se assim for, teriam enforcado Nathaniel faz quatro anos.
— É por sua atitude. Sempre se acreditou ser muito melhor que qualquer um de nós. Seus irmãos e seu pai trabalhavam por todo mundo, mas Alexander se considerava muito acima dos outros. Sua família era a mais rica da cidade, mas só ele percebia isso.
— Está falando das esmolas? Da vez em que lhe jogou na cara as lagostas que nos trazia? Nunca pude compreendê-la. Se todos da cidade nos davam coisas!
— Bom, pois agora não o fazem! — respondeu-lhe Jessica, zangada. — Sim, refiro às esmolas, a viver sem saber o que comeríamos no dia seguinte, sempre sem ter nada, sempre necessitados. E papai, que voltava para casa a cada nove meses, bem a tempo para deixar a mamãe... — Fez uma pausa para acalmar-se. — Alexander era o pior. Que ar tinha cada vez que nos trazia um saco de cereal! Com que superioridade nos olhava! Cada vez que um bebê de nossa família lhe aproximava, sacudia suas calças.
Eleanor sorriu.
— Pois era necessário sacudir as calças ou as saias, Jess, cada vez que se aproxima de um bebê de nossa família. Parece-me que é injusta. Alexander não era melhor nem pior que os outros dessa família. O que ocorre é que só tinha dois anos e, portanto, tinha mais afinidade com ele.
— Pois preferiria ter afinidade com um tubarão.
Eleanor revirou os olhos.
— Recorda que ajudou Patrick para que o empregassem como grumete no Donzela Loira.
— Faria qualquer coisa para ter um Taggert a menos na cidade. Está pronto?
— Mais um momento. Farei um trato contigo: se Alexander for mais vaidoso que você diz, amassarei e farei três tortas de maçã na semana que vem.
— Ganharei sem o menor esforço. Arrogante como é, provavelmente pretenda que lhe beijemos a mão. Dizem que esteve na Itália. Provavelmente conheceu o Papa e aprendeu alguns costumes dele. Usará roupa interior de renda perfumada?
Eleanor não prestou atenção.
— Mas se ganhar eu — continuou — você terá que usar vestido toda a semana e ser amável com o senhor Clymer.
— Esse velho com hálito de peixe? Oh, bom, não importa, porque de qualquer modo vou ganhar. Esta cidade terá que vê-lo: quando Alexander está sozinho, sem seus irmãos e seu pai, é um pirralho preguiçoso, cheio de vaidade e condescendência...
Interrompeu-se porque Eleanor a empurrava para a rua.
— E você, Nathaniel, cuida desses meninos ou se verá comigo - ameaçou o mais velho, por sobre o ombro.
Quando chegaram ao cais, Jessica já ia de arrastão, enumerando tudo o que era preciso fazer: remendar as velas, reparar as redes de pesca...
— Bom, Jessica, — comentou Abigail Wentworth, assim que as irmãs Taggert pisaram no cais — vejo que não suportou a ansiedade de ver novamente Alexander.
Jessica vacilou entre o desejo de dar uma bofetada na moça e o de abandonar o porto. Abigail era a segunda entre as jovens bonitas da cidade e odiava Jessica por ser a primeira. Por isso adorava recordar que ela, com seus dezesseis anos, estava na flor da idade, enquanto que Jess podia considerar uma solteirona de vinte e dois anos.
Dedicou a Abby seu mais doce sorriso, disposta a dizer-lhe o que dela pensava, mas Eleanor a puxou pelo braço para afastá-la.
— Não quero que hoje entre em uma rixa. Quero que os Montgomery passem bem o dia, sem que Sayer tenha que te tirar do tronco. Bom dia, senhora Goody — adicionou, com doçura. —Ali está o navio onde viaja Alex.
Ao ver a nave, Jessica ficou boquiaberta.
— Esse cais é muito estreito! Tenho certeza de que isso vai contra os estatutos. Terá visto Pitman? Provavelmente confiscará o navio. E então o que fará seu precioso Alexander?
— Não é meu. Se fosse de alguém, Abigail não estaria esperando aqui.
— Muito certo — suspirou Jess. — Verdade que o encantaria lançar mão dos dois mil e quatrocentos metros de ancoragem que têm os Montgomery? Ouça, o que olham todos para ali?
Eleanor se voltou nessa direção. Um grupo de pessoas olhavam algo, petrificadas e boquiabertas. Começaram a abrir caminho, mas sem pronunciarem uma palavra.
Um homem caminhava para as moças. Vestia uma jaqueta de cor amarelo canário, com uma larga borda de flores e folhas bordadas na bainha. A jaqueta cobria uma barriga enorme, e o sol se refletia nas múltiplas cores do bordado de seda. As calças que cobriam suas gordas pernas eram de cor verde esmeralda; usava também uma peruca cujos cachos cobriam seus ombros. Caminhava pelo cais cambaleando de vez em quando, pelo evidente efeito da bebida.
Os habitantes pareciam tomá-lo por outro funcionário enviado da Inglaterra, mas Jessica o reconheceu de imediato. Nem a obesidade, nem a peruca podiam dissimular por completo essa imperiosa expressão dos Montgomery. Apesar dos quilos em excesso ainda se viam os maçãs do rosto que Alexander tinha herdado de seu avô.
Jessica se adiantou, balançando suas saias para que todos a vissem. Sempre tinha sabido com segurança de que Alexander Montgomery era um dejeto e ali estava a prova. Nisso se converteu assim que escapou do comando paterno.
— Bom dia, Alexander — disse, em voz alta e rindo. — Bem-vindo ao lar. Não mudou nem um pouco.
Ele se deteve para olhá-la, piscando, sem compreender. Tinha os olhos avermelhados pelo álcool, cambaleava tanto que seu acompanhante, um homem moreno e corpulento, teve que sustentá-lo.
Jessica deu um passo atrás para olhá-lo dos pés a cabeça. Logo pôs as mãos na cintura e pôs-se a rir. Momentos depois, as pessoas da cidade começaram a imitá-la.
Não puderam deixar de rir nem sequer quando Mariana Montgomery chegou correndo ao cais. Ao ver seu irmão se deteve em seco.
— Olá, Mary, tesouro — disse Alex, com um sorriso torcido.
Uma vez mais, o homem da camisa suja teve que segurá-lo. Mariana olhou seu irmão, incrédula. A multidão deixou de rir.
Alex não deixava de sorrir, mas a boca da mulher ia se abrindo mais e mais. Por fim jogou o avental sobre o rosto e começou a chorar. Fugiu a toda carreira dos cais, com os calcanhares aparecendo por debaixo de suas saias e os soluços arrebatados pelo vento.
Diante disso, a multidão ficou em quietude. Todos jogaram um olhar depreciativo para Alex, com sua vistosa jaqueta, e começaram a retomar aos seus trabalhos. No vento ressonavam as palavras:
— Pobre Sayer...
— E os irmãos, tão boa gente!
Em poucos minutos só ficaram quatro pessoas no cais: Jessica, que desfrutava extremamente de todo aquilo, pois havia dito a todos que Alex não servia de nada; Eleanor, com o cenho franzido; o aturdido Alexander e o homem corpulento de camisa suja.
Jessica se limitava a sorrir triunfalmente, enquanto Alex tratava de limpar-se. Por fim se voltou a olhá-la.
— Tudo isto é tua culpa — sussurrou.
Jess alargou seu sorriso.
— Oh, não, Alexander. A culpa é tua, por mostrar finalmente sua verdadeira personalidade. Enganou a todos por muitos anos, mas a mim não. Oh, agradeceria que me desse o endereço de seu alfaiate. — Voltou-se para sua irmã. — Você não adoraria ter uma anágua dessa cor?
Eleanor a olhou entortando os olhos.
— Basta já, Jessica.
Jess dilatou os olhos com ar inocente.
— Não sei do que está falando. Não faço mais que admirar suas roupas... e sua peruca. Faz anos que ninguém usa peruca aqui, em Warbrooke. — Dedicou ao viajante o mais doce de seus sorrisos. — Oh, caramba, estou te atrasando quando deve estar faminto. — Olhou maldosamente para o ventre enorme. — Uma coisa como essa tem que requerer um esforço constante.
Alexander quis jogar-se contra ela, mas Nick o impediu.
— Bom Deus — zombou Jessica. — O leitãozinho tem garras.
— Já me pagará por isso, Jessica Taggert – assegurou Alexander, em voz baixa.
— Com o que? Com tortas de nata?
Eleanor se interpôs antes que Alex pudesse dizer uma palavra a mais.
— Bom, Alexander, é hora que volte para sua casa. Deixe-me ver, você — ordenou, dirigindo-se a Nicholas — se encarregue de trazer sua bagagem. Uma vez que estejamos na casa, ocupar-te-ás de atender a seu amo. E você, Jessica, vai procurar algo para o jantar.
— Sim, senhorita — disse Jess. — Não sabe como me alegro de não ser parente dos Montgomery. Posso alimentar a seis ou sete meninos, mas a isso... — e olhou a enorme barriga de Alex.
— Vai! —ordenou Eleanor.
Jessica abandonou o cais, assoviando alegremente e falando das tortas que comeria essa semana. Eleanor tomou Alex pelo braço, sem mencionar o fato de que estava obviamente ébrio e não podia caminhar sem ajuda. O suposto servo de Alex permaneceu no cais.
— Como se chama? — perguntou a moça a Alex.
— Nicholas — disse o jovem, com os dentes apertados. A irritação ruborizava seu rosto e fazia mais negros seus olhos.
Eleanor se deteve, sempre segurando o braço de Alex.
— Faça o que te digo, Nicholas. Traga os pertences de seu amo e me acompanhe. E faça-o agora mesmo.
Nick esperou um momento. Depois olhou para Eleanor dos pés a cabeça, lascivo. Sorrindo apenas, inclinou-se para recolher a pequena bolsa com roupas emprestadas por seu primo.
— Sim, senhorita — disse com suavidade, enquanto se punha a andar atrás deles, observando o vaivém das saias dela.
— Cento e vinte quilos, no mínimo — ria Jessica, sentada à cabeceira da mesa. Eleanor ocupava o outro lado. Entre ambas se sentavam sete pequenos Taggerts, de distintos tamanhos e idades e com diversos graus de sujeira. Cada um tinha um prato de madeira, cheio de fumegante guisado de peixe, e uma colher de madeira. Eram utensílios preciosos, tratados com tanta delicadeza como se se tratasse de prata fina. O guisado era muito singelo, sem nenhum condimento: só peixe cozido por um longo momento. Já tinham se acabado as poucas hortaliças restantes do verão e o novo pomar ainda não rendia frutos.
— O que disse Sayer? — perguntou Jessica, sempre rindo.
Eleanor a fulminou com o olhar. Estava a quatro anos trabalhando na casa dos Montgomery; ao morrer a mãe de Alex, dois anos atrás, havia assumido a direção domestica da casa. Mariana, a mais velha dos filhos, ficou solteirona, por sua corpulência ou por seus ares dominantes, embora fosse ela quem estivesse no comando da enorme casa e encarregada de cuidar do pai inválido, tinha esquecido tudo ao chegar o novo funcionário da alfândega, John Pitman. Naturalmente, meia cidade tratou de lhe explicar que o inglês só a cortejava pelo dinheiro de seu pai, mas Mariana, arrogante, negou-se a escutar. Nas primeiras duas semanas de casada compreendeu que as pessoas tinham razão, agora carregava o remorso de saber ser a responsável por muitos dos problemas de Warbrooke. Entregou a manutenção da casa a Eleanor e se encerrou em seu quarto, onde agora passava a maior parte de suas horas, bordando um trabalho atrás de outro. Se não podia curar a enfermidade que tinha provocado, pelo menos queria dissociar-se dela por completo.
— Parece-me que não é o momento para falar disso. — Eleanor jogou um olhar expressivo aos meninos, que estudavam atentamente seus pratos de guisado, mas em realidade, escutavam com tanta atenção que quase os via mover as orelhas.
— O senhor Montgomery disse que sua esposa sempre malcriou ao mais novo dos filhos e que já tinha previsto algo assim — interveio Nathaniel. — Acredito que se referia à roupa de lorde Alex e pelo gordo que está. Milady Mariana chorou muitíssimo. Quem é esse tal Nicholas, Eleanor?
A irmã mais velha fulminou com o olhar ao jovem Taggert.
— Nathaniel, quantas vezes te disse que não deve se entremeter nas conversas dos mais velhos? E que não escute atrás das portas? Além disso, havia te encarregado de cuidar de Sally.
— Eu também fui — esclareceu à pequena. — Nos escondemos no...
Nathaniel tampou sua boca.
— Sim, eu estava cuidando dela! Mas queria me inteirar. E quem é esse Nicholas?
— O servo de Alex, suponho — disse Eleanor. — E não trate de mudar o assunto. Disse-te mil vezes...
— Não há torta de maçã nesta casa? — preguntou Jessica. — Não quero ouvir uma palavra a mais sobre Alexander Montgomery. É uma baleia velha que se tornou encalhada e, finalmente, mostra os fiapos. Amanhã, Nate, quero que vá à enseada com uma bolsa e recolha algumas lagostas.
— Outra vez! — grunhiu ele.
— Você, Henry — continuou a moça, dirigindo-se ao de doze anos — irá ver se já amadureceram as amoras, leve contigo Sam. Philip e Israel terão que vir manhã comigo, faremos uma inspeção pela costa juntando lenha.
— Lenha? — estranhou Eleanor. — Acha que Mary Catherine pode carregar tanto peso?
Jessica ergueu as costas, como sempre que alguém fazia comentários sobre seu navio. A embarcação não era grande coisa, talvez Jahleel Simpson tivesse razão quando dizia: 'O Mary Catherine pode flutuar, mas é óbvio que não gosta'. De qualquer modo era seu barco, única herança que tinha deixado seu pai, além de várias bocas que alimentar, e ela estava orgulhosa de tê-lo.
— Pode. Além disso, precisamos de dinheiro. Alguém terá que pagar tantas maçãs.
Eleanor baixou a vista a seu prato, aonde havia agora uma porção de torta de maçãs. Às vezes 'tomava emprestados' algumas provisões da cozinha de Sayer Montgomery. Fazia raras vezes, sempre em pequenas quantidades, e invariavelmente as devolvia assim que era possível, mas mesmo assim se sentia culpada. Sem dúvida alguma, Sayer ou Mariana lhe teriam dito que pegasse todo o necessário se tivesse pensado em pedir. Mas Sayer estava muito ocupado em compadecer-se de si mesmo, como Mariana estava em lamentar os males que acarretou sobre seus vizinhos, e nenhum dos dois tinham em conta os problemas particulares de outros.
Samuel, o de dois anos, decidiu envolver a colher pegajosa no cabelo de Molly e puxou com todas as suas forças. Isso pôs fim a qualquer conversa adulta.
Na manhã seguinte, Alexander despertou com a mandíbula dolorida de tanto apertar os dentes durante a noite. A irritação lhe durou até adormecer. No dia anterior tinha sofrido o que parecia ser insuportável. Depois de desembarcar, preocupado pela possibilidade de que voltasse a sangrar a ferida, vendo o cais rodeado de soldados ingleses montados a cavalos, obviamente em busca de alguém, ter tido que enfrentar a essa malcriada Jessica Taggert, que ria abertamente dele. Com que facilidade se convenceram seus vizinhos de que ele era um covarde como a moça afirmara! Com quanta celeridade se esqueceram do que ele tinha sido!
Ao chegar à casa de seu pai, a notícia já tinha se pulverizado. Mariana tinha a cabeça apoiada na cama de seu pai e chorava ruidosamente. Sayer se limitou a lançar uma olhada a seu filho e fez um gesto de que se retirasse, como se ao vê-lo assim, o mais novo de sua prole o desgostasse ao ponto de deixá-lo sem palavras.
Alexander estava muito fraco pela perda de sangue e tão furioso pelo ocorrido no cais que nem sequer tentou defender-se. Seguiu Nicholas até seu próprio quarto e se deixou cair na cama.
Nem sequer se animou ao ver Nicholas Ivanovitch, duque da Rússia, carregando sua bagagem. Caiu em um sono leve, no que se imaginou estrangulando Jessica Taggert, mas em outra parte do sonho fazia-lhe amor como um louco. Quando havia se tornado tão linda? O espanto de ver-se tentado por uma mulher bonita não o deixava em paz.
E agora, com a cabeça dolorida e o ombro palpitante, seguia deitado na cama, olhando o teto. Uma parte de seu cérebro, o único que não tinha sido invadido pela fúria, começava a funcionar. Talvez fosse melhor que todos tivessem engolido seu disfarce. Ele já tinha visto o que acontecia em Nova Sussex e o modo que os soldados governavam a cidade. Tinha ouvido falar das atrocidades cometidas contra os americanos, que eram tratados como meninos maus. Também tinha visto os preços das mercadorias que na Inglaterra vendiam pela metade do valor... embora fossem produtos da América.
Possivelmente em Warbrooke também ocorriam esse tipo de coisas.
Sua primeira idéia, ao despertar, tinha sido chamar Mariana para mostrar a ferida e revelar sua identidade de Corsário. Sabia que sua irmã o ajudaria até que se recuperasse e o protegeria da cólera britânica. Além disso, teria gostado de ver seu rosto quando se inteirasse de que ele não era um gordo alcoólatra. Mas agora compreendia que com isso podia pô-la em perigo.
Nick, sonolento, entrou no quarto e se deixou cair em uma cadeira.
— Essa mulher me fez levantar antes do amanhecer para que cortasse lenha — disse, triste e com certa estranheza na voz. — Graças ao que observei atentamente de meus próprios peões, tive alguma idéia do que devia fazer. Entretanto, essa mulher não tolera a menor vacilação.
— Jessica? — Perguntou Alexander, com ar bastante zombador. Era só pensar nela que despertava muita vontade de aferrá-la pelo pescoço.
— Não, a outra. Eleanor. — Nick deixou pender a cabeça entre as mãos.
Alex já tinha visto as mudanças de humor de seu amigo e sabia que o melhor era não lhe permitir se autocompadecer. Tentou levantar-se. O lençol, ao cair, deixou a descoberto a bandagem que rodeava seus ombros fortes e largos.
— Acredito que não devo revelar a ninguém meu verdadeiro aspecto — começou. — O melhor será continuar usando estas roupas chamativas até que me cicatrize o ombro e tenha passado o interesse pelo Corsário. Poderia me emprestar um criado? Alguém discreto, que não tema o perigo.
Nick levantou asperamente a cabeça.
— Todos meus homens são russos e os russos não temem a ninguém. Pensa voltar a se apresentar como Corsário?
— Talvez.
Em realidade, Alex só pensava em ajustar contas com Jessica por haver rido dele. Imaginava-se vestido do negro, subindo até a janela da moça para lhe atar as brancas mãos aos postes da cama e...
— Está me escutando? — acusou Nick. — Não conheço pessoas mais insolentes que seus americanos. Deveria zarpar agora mesmo para minha pátria, antes de conhecer só mais um. Mas este assunto do Corsário me entusiasma. Enviarei meu navio ao sul, em busca de mais roupas de meu primo e uma peruca nova.
— Me deixará um desses criados dos quais você abusa, suponho.
— Não — retrucou Nick, pensativo. — Este jogo me diverte. Ficarei, desempenhando o papel de teu servo, e guardarei seu segredo. — Entrecerrou os olhos. — E farei com que essa Eleanor Taggert lamente haver dito de mim as coisas que disse esta manhã.
— Trato feito — aceitou Alex. — Continuaremos juntos. Eu serei o mais delicado dos jovens americanos. E você ensinará a trabalhar nosso povo.
Isso fez com que Nick franzisse o cenho.
— Se alguém me mandar trabalhar nos campos, renunciarei. Ah, mas que coisas poderei contar a minha família! – Disse Nick
— Espero que sua família te dê mais crédito que a minha. Comecemos a luta com esta roupa? Começo a odiar essa peruca.
03
Alexander levou bastante tempo para vestir-se. Depois de examinar a ferida, Nick o ajudou a acolchoar as coxas até preencher as calças de cetim; aplicaram camadas e mais camadas de tecido e algodão a sua cintura, até que sua barriga sobressaiu em quase trinta centímetros, e por fim cobriram seu cabelo negro com a grande peruca coberta de pó. Quando terminaram, usava tantas camadas que a testa estava se cobrindo de suor.
— Não sei se estas pessoas valem a pena — comentou o jovem, amargurado.
— É seu povo — aduziu Nicholas, encolhendo-se os ombros.
— Mas se voltaram contra mim.
Alex imaginou Jessica Taggert, rindo dele no cais. Se ela não tivesse estado ali, talvez às pessoas do povoado não tivessem acreditado com tanta facilidade em seu disfarce.
As onze em ponto entrou no salão da casa. Ali lhe esperavam muita pessoa. Embora fingissem terem coisas que fazer na casa dos Montgomery, Alex percebeu, pela forma em que o olhavam, de que aguardavam só para vê-lo. Por um momento conteve o fôlego, seguro de que alguém começaria a rir e lhe diria que tirasse o disfarce, já que estava em sua casa e entre amigos.
Um a um, todos baixaram a vista às taças que tinham na mão.
Alex jogou uma olhar para Eleanor, que dirigia às duas mulheres encarregadas de cozinhar na lareira aberta. O salão era uma combinação de cozinha, salão e sala de reuniões. Devido ao fato que a família Montgomery fosse proprietária da maior parte de Warbrooke, também, a maior parte dos negócios corriam por conta da família. Durante o dia, quase todos os vizinhos da cidade se apresentavam nesse salão por um motivo ou outro. Sayer Montgomery sempre tinha cuidado de que houvesse mantimentos e bebida preparada para todos que vinham a sua casa.
Em um canto havia dois homens sentados na ponta de uma das duas mesas largas, um deles começou a falar em voz bastante alta.
— Meu genro cultivou pessoalmente esse trigo, mas antes que eu pudesse levá-lo a Espanha tive que me deter na Inglaterra e descarregá-lo para sua inspeção.
— E me obrigaram a levar a Inglaterra o cacau do Brasil antes de desembarcá-lo em Boston.
Os homens olhavam para Alexander por sobre a borda das taças, mas o jovem fingia não ouvir. Se não se incomodavam em lhe dirigir diretamente a palavra, por que demonstrar interesse? E o que podia fazer ele com essa lei inglesa? Pelo que parecia, eles ainda viviam nos tempos medievais, onde o suserano podia apresentar suas queixa pessoalmente diante do rei.
— E eu perdi meu navio por sessenta libras — disse Josiah Greene.
Alexander contemplou o enorme prato de comida que Eleanor tinha posto diante ele. Era como se fosse um único espectador diante uma obra que já tinha visto. Enquanto comia escutava o relato de Josiah. Sem dúvida, seu vizinho já tinha contado mil vezes, mas os presentes repetiam tudo em benefício de Alexander.
Entre todos, descreveram o belo navio de Josiah, que estava tão orgulhoso dele. Mas o homem tinha aborrecido John Pitman por uma parcela de terreno que se negava a vender ao inglês. Pitman assegurou que Josiah tinha a adega cheia de tinta verde, artigo de contrabando. Mas ao seqüestrar e revistar o navio de Josiah não achou tinta alguma, apresentou-se em sua casa com dez ou doze soldados para inspecioná-la no meio da noite. No transcurso dessa "inspeção" destruiu um porão cheio de provisões, a roupa de cama foi rasgada, os móveis destroçados e suas filhas, aterrorizadas. Josiah tratou de recuperar seu navio, mas lhe disseram que devia pagar uma fiança de sessenta libras. Como todo seu dinheiro estava investido na fiança que devia pagar a Pitman cada vez que zarpava de Warbrooke, não podia abonar sessenta libras a mais. Seus amigos reuniram esse dinheiro, mas o proprietário do navio deveria apresentar as provas de sua inocência. Ele dizia que nunca tinha tido tinta verde a bordo; o inglês dizia que sim. Apresentaram o caso diante da Corte Colonial do Almirantado - a cargo de um juiz, não de um jurado - e o navio foi entregue à alfândega, já que Josiah não podia provar a inexistência da tinta.
Almirantado - Comando supremo da marinha: o almirantado britânico.
Alexander logo esqueceu suas próprias angústias ao observar Josiah, que tinha sido aniquilado com toda legalidade por um inglês ambicioso. Pitman queria as terras de Josiah; não só tinha conseguido essa parcela, mas também tudo que pertencera antes à família Greene.
Alex mantinha a cabeça encurvada e o olhar fixo na comida para dissimular a fúria que fervia nele. Se quisesse manter seu disfarce não podia deixar entrever o efeito que lhe provocavam esses relatos. Sentia que todos os olhares estavam fixos nele, tratando de comprovar se continuava sendo o homem de antes. Eram como meninos, convencidos de que quem quer que tivesse o sobrenome Montgomery poderia solucionar seus problemas e fazer que tudo voltasse a está bem.
Alex se salvou de revelar suas sensações quando a porta se abriu, dando entrada a Jessica Taggert, que trazia duas grandes cestas cheias de ostras.
A moça lançou uma só olhada aos presentes, que permaneciam muito quietos, como se esperassem o estouro de uma tormenta, e compreendeu imediatamente o que acontecia.
— Ainda conservam as esperanças? — riu, passando a vista entre os homens. — Ainda pensam que este Montgomery vai ajudar? Deus só fez três Montgomery: Sayer, Adam e Kit. Este não merece o sobrenome. Toma, Eleanor — adicionou, entregando as cestas a sua irmã. — Parece que irão faltar mais, se este desfile se mantiver por todo o dia. — Jogou a Alex um olhar zombador, embora ele não tivesse levantado os olhos do prato. — Com esse aqui, todo mundo tem bastante o que olhar.
Muito lentamente, Alex levantou a cabeça. Tratou de dissimular sua cólera, mas o conseguiu só em parte.
— Bom dia, senhorita Jessica — saudou, em voz baixa. — Você vende ostras? Não tem marido que a mantenha?
Os homens sentados à mesa começaram a rir entre dentes. Sendo Jessica tão bonita, não havia um entre os presentes que não tivessem tido algum tipo de contato com ela. Alguns tinham proposto casamento ao morrer suas esposas, esgotadas pela procriação; outros tinham um filho que aspirava a sua mão; a maioria sonhava, simplesmente, em possui-la. Mas ali havia um homem disposto a insinuar que ninguém a queria.
— Posso me manter sozinha — assegurou Jessica, erguendo-se em toda sua estatura. — Não quero ter um homem que me diga o que fazer e como fazê-lo.
— Compreendo. — Olhou-a de cima a baixo. Jess tinha descoberto, tempo atrás, que não podia pilotar seu pequeno barco se usava saias largas, por isso tinha adaptado para seu uso as roupas de marinheiro. Usava botas altas sob as calças folgadas, que chegavam ao joelho, e completava o traje com uma blusa folgada e um colete sem botões. Vestia como quase todos os homens de Warbrooke, embora sua cintura fosse muito estreita e devia ajustar muito o cinturão para sustentar as calças.
— Me diga você — continuou Alex, serenamente: — ainda quer o endereço de meu alfaiate?
Os homens riram com mais expressividade do que a piada merecia. Muitos deles tinham observado o bambolear dos seus quadris quando Jessica caminhava pelo cais. Até com roupas masculinas tinha todas as curvas que uma mulher poderia desejar.
Eleanor interveio antes que brotasse outro sarcasmo.
— Obrigada pelas ostras. Poderia trazer um pouco de arenque pela tarde?
Sua irmã assentiu sem dizer uma palavra, ainda furiosa com Alex por ter feito que rissem dela. O fulminou com o olhar, sem se incomodar em saudar os que gozavam com sua humilhação, e saiu da casa sem voltar à cabeça.
Eleanor retirou o prato de Alexander, ainda meio cheio, e lhe cravou um olhar duro, embora sem dizer nada. Depois de tudo, ele era o filho do patrão. Em troca se voltou para Nicholas, que vadiava diante da porta.
— Leve isto aos porcos. E se apresse!
Nick abriu a boca para dizer algo, mas a fechou, os olhos faiscantes.
— Sim, senhorita — disse. — Eu não sou dos que contradizem às mulheres.
Diante disso explodiram novas gargalhadas. Por um momento, Alex voltou a sentir-se parte da cidade e não um desconhecido.
Mas as risadas cessaram um momento depois, quando Alex ficou de pé... melhor dizendo, quando tentou fazê-lo. Não estava acostumado à protuberância do ventre e se chocou contra a ponta da mesa. Ao mesmo tempo girou o ombro, forçando a carne da ferida que estava meio sarada. Entre a dor e a confusão, demorou um momento em se desembaraçar da cadeira.
Para ele, a cena foi quase divertida. Para seus vizinhos era patética.
Ao levantar a vista, Alex viu piedade em todos os olhos. Saiu do salão afastando o rosto para dissimular sua irritação. Era hora de apresentar-se diante de John Pitman.
Estava exato onde Alex tinha suposto: no escritório que os Montgomery usavam há três gerações. Era um homem baixo e musculoso, calvo até a metade da cabeça. Alex não pôde ver-lhe o rosto, porque estava concentrado nos livros contábeis abertos sobre o escritório. Antes que Pitman levantasse a vista, o jovem teve tempo de estudar o quarto. Viu que os dois retratos de seus antepassados tinham sido retirados das paredes. Certo armário que tinha pertencido a sua mãe estava provido de um forte cadeado. Pelo que parecia, o homem se instalou ali com intenções de ficar.
— Ahamm! — pigarreou Alex.
Pitman levantou a vista.
A primeira impressão de Alex foi de olhos penetrantes: grandes, fortes, reluzentes como diamantes negros. "Este homem é capaz de tudo", pensou o jovem: "de bom e de mau."
John Pitman olhou seu cunhado de cima a baixo, avaliando-o com seu duro olhar, como se tratasse de recordar o que lhe tinham contado dele e o comparasse com o que tinha diante si.
Alex disse a si mesmo que, se desejava enganar esse homem, teria que esforçar-se muito. Extraiu um lenço de seda branca com borda de renda.
— Que calor faz hoje! Verdade? Estou quase desmaiando. — E entrou com passinhos curtos, deixando que seus quadris o levassem para a janela. Recostou-se contra o marco, secando delicadamente a transpiração do pescoço.
Pitman, reclinado em sua cadeira, estudava-o em silêncio.
Alex olhou pela janela, com os olhos entrecerrados em um gesto de preguiça. Nicholas estava arrojando comida aos frangos, mas o fazia de tal modo que a brisa levava a metade das sementes. Eleanor correu para ele, com o avental revoando, com dois de seus irmãozinhos presos a seus calcanhares.
O jovem se voltou para o intruso.
— Tenho entendido que é meu novo cunhado.
Pitman levou um momento para responder.
— Em efeito.
Alex se afastou da janela para sentar-se delicadamente, cruzando as pernas até onde permitia o acolchoado nas panturrilhas, coxas e cintura.
— E o que é isso que está roubando o povo de Warbrooke?
Deixou passar um instante antes de levantar a vista. Os olhos desse homem refletiam sua alma. Quase se via fazer cálculos mentais.
— Não faço nada ilegal. — A voz de Pitman soava contida.
Alex retirou uma imaginária penugem de seus punhos de renda.
— Eu adoro a renda fina — comentou, melancólico. — Suponho que se casou com minha irmã, a solteirona, para ter acesso aos dois mil e quatrocentos metros de cais que os Montgomery possuem.
Pitman não respondeu, mas seus olhos cintilavam e sua mão se moveu para uma gaveta. Alex se perguntou se guardaria ali uma pistola.
Com sua voz mais fatigada, prosseguiu:
— Possivelmente nos convenha tratar de nos entendermos mutuamente. Dir-te-ei: nunca estive a gosto entre os Montgomery. Minha família é um monte de caipiras agressivos e ferozes. Eu prefiro a música, a cultura e a arte de comer bem, antes que estar na cobertura de um navio que se balança, lançando impropérios a uma manada de marinheiros fedorentos. — Fingiu um leve estremecimento. — Mas meu pai decidiu "fazer de mim um homem" segundo suas próprias palavras, e me afastou de casa. O dinheiro que me deu se foi então me vi obrigado a retornar.
Sorriu, mas o outro não dizia nada.
— Se eu fosse um de meus irmãos, acredito que teria todo o direito de te expulsar deste escritório. – Assinalou com a cabeça o armário fechado. — Suponho que isso está cheio de documentos, talvez até contenha algumas escritura de propriedades. E até adivinho que usou recursos dos Montgomery para comprar os bens que possui, portanto, legalmente esses bens são dos Montgomery.
Os olhos do Pitman eram como duas brasas. Parecia a ponto de saltar.
—Façamos um trato. Eu não tenho nenhum desejo de passar minha vida neste escritório, dirigindo papéis, nem confinado em um navio, obrigado a cumprir atos heróicos como os que realizam meus irmãos por pura rotina. Se você se comprometer em não vender nenhuma parte de nossas terras, porque nós jamais vendemos terras, e a pagar-me... vinte e cinco por cento de seus lucros, digamos, eu não me intrometerei em suas atividades.
Pitman ficou boquiaberto. Seus olhos passaram de perigosos a desconfiados.
— Por quê? — foi tudo o que disse.
— E por que não? Não vejo a necessidade de me esforçar pelas pessoas desta cidade. Minha própria irmã não se incomodou em me dar as boas-vindas, só porque não correspondo ao ideal de todo Montgomery. Além disso, é mais fácil deixar que você trabalhe e me limitar a receber parte das utilidades.
Seu cunhado começava a relaxar. A mão se afastou da gaveta, mas ainda havia cautela em seus olhos.
— Por que voltou? — perguntou.
Alex deixou escapar uma risada.
— Querido amigo, voltei porque todos esperavam que me encarregasse de você.
Pitman esteve quase a ponto de sorrir e se tranqüilizou um pouco mais.
— Possivelmente possamos trabalhar juntos.
— Oh, sim, acredito que sim.
Alex começou a conversar de uma maneira preguiçosa, para dar a impressão de que não se interessava muito por nada. Precisava saber até que ponto estava comprometido o patrimônio dos Montgomery pelos atos desse homem e, se era possível, quais eram seus planos. O fato de ser funcionário da alfândega lhe outorgava muito poder, deixando a seu livre arbítrio e integridade se abusava ou não dele.
Enquanto o jovem tratava de obter essa informação, viu aparecer uma cabeça na parte alta da janela, era o rosto travesso de um dos Taggert. Desapareceu quase imediatamente, mas Alex compreendeu que o pequeno tinha estado escutando. Então saudou Pitman com um leve bamboleio da mão.
— Já estou cansado. Mais tarde continuaremos conversando, mas acredito que agora vou dar um passeio e depois dormirei até a hora de jantar.
Bocejou atrás do lenço e se retirou sem dizer uma palavra mais.
— Se chego a colocar a mão nesse menino — murmurou em voz baixa — atar-lhe-ei as orelhas ao pescoço.
Não podia apressar o passo para não arruinar sua imagem diante de quem pudesse vê-lo. E não era fácil se apressar sem estragar seu ar lânguido. Tinha que alcançar essa criança e averiguar o que tinha ouvido.
Quando esteve fora se deteve, tratando de adivinhar para onde correria o menino se o surpreendia fazendo o que não devia. Recordou que, sendo menino, tinha escapado muitas vezes para o bosque.
Seguiu um velho atalho índio para o interior silencioso e escuro do bosque que crescia detrás de sua casa. Uns oitocentos metros mais à frente havia um ravina que descia até uma pequena praia rochosa, chamada Enseada Farrier. Para lá se encaminhou.
Desceu agilmente pela ravina e se encontrou cara a cara com o menino que tinha visto escutando. Estava com Jessica.
— Pode ir, Nathaniel — indicou ela, altiva, com os olhos cravados em Alexander. Neles se refletia todo seu ódio.
— Mas Jess, ainda não te contei...
— Nathaniel! — exclamou ela, asperamente.
O menino subiu pela ravina. Ouviu-se o ruído de seus passos ao retroceder.
Alex não disse uma palavra. Queria averiguar o quanto tinha se informado o moço.
— E bem: agora sabemos por que voltou para Warbrooke. Esses pobres tolos pensavam que fosse ajudar, mas com vinte e cinco por cento poderá se encher de rendas, verdade?
Alex tentou de que seu rosto não revelasse suas emoções. Pelo que parecia, esse pirralho tinha contado tudo. E que memória surpreendente, para não mencionar a acuidade de seu ouvido! Voltou-se de costas para que Jess não visse seu rosto. Devia achar o modo de lhe impedir de falar. Se tudo isso chegasse aos ouvidos do povo... Pensou em seu pai, que já estava inválido. Esse golpe poderia matá-lo.
Quando se voltou para ela estava sorridente.
— Quanto me cobrará por não abrir a boca?
— Não me vendo por dinheiro.
Ele a percorreu dos pés a cabeça com um olhar zombador. Depois levou o lenço ao nariz, para evitar o fedor de peixe das suas roupas.
— Já percebi.
Jess avançou para ele. Alex era mais alto, mas a postura encurvada que mantinha o reduzia à estatura da moça.
— Não há palavras bastante baixas para te aplicar. É capaz de aceitar dinheiro de um homem que arruína seus vizinhos, e só para continuar comprando roupa de seda.
Nesse momento Alex esqueceu as contas que devia ajustar com ela, só teve consciência do fogo que ardia naqueles olhos, nos seios que palpitavam tão perto de seu torso. Ela começou a gritar insultos como nunca os tinha ouvido na boca de uma mulher, mas ele não escutou uma palavra. Os lábios de Jess chegaram a está muito perto dos seus. A moça se deteve abruptamente e retrocedeu. Alex respirava quase ofegando.
Jessica ergueu as costas e o olhou piscando, como se estivesse confundida.
Alex se recuperou. Lançou um olhar nostálgico ao mar, com vontade de jogar-se na água, que poderia esfriar seu ânimo.
— E a quem pensa contar tudo isto? — perguntou, por fim, sem olhá-la. Sentia-se muito a sós com ela e já não confiava em si mesmo.
— Os habitantes de Warbrooke têm medo de Pitman porque representa o rei... para não mencionar à Marinha Inglesa. Mas não temem a você. Se soubessem o que Nate ouviu esta manhã, o emplumariam antes de te enforcar. Jamais perdoariam sua vida. Querem alguém a quem culpar pelo que ocorreu a Josiah.
— E o que vai fazer com sua informação?
— Seu pai morreria se se inteirasse.
Jess contemplou a praia rochosa. A pouca distância havia um cesto meio cheio de mariscos. Obviamente ela tinha estado buscando na areia.
— Possivelmente eu possa te facilitar essa decisão.
Alex tratou de manter seu ar desenvolto e de dissimular o enérgico desejo que corria pelo corpo.
— Se contar isso as outras pessoas, — ameaçou — mesmo que seja a sua irmã, sua família pagará as conseqüências. Agora têm um teto e algo que comer. — Estudou as unhas. — E todos seus pirralhos estão vivos e sãs.
Olhou-a de frente. Algo o apertou no peito ao comprovar que ela acreditava em suas ameaças. Essas pessoas o conheciam desde seu nascimento. Ninguém era capaz de levantar-se e dizer que Alexander Montgomery não era capaz de semelhante coisa?
— Se... seria capaz?
Alex se limitou a olhá-la sem fazer comentários.
— Comparado com você, Pitman parece um anjo do Senhor. Pelo menos ele atua em parte para beneficiar a seu país. Você só o faz por cobiça.
Girou sobre seus calcanhares para deixá-lo sozinho, mas um impulso a obrigou a voltar-se para lhe dar uma bofetada em pleno rosto. A peruca desprendeu uma nuvem de pó.
Alex tinha visto chegar o golpe, mas não fez nada para impedi-lo. Quem tivesse ouvido o que ele falara naquela manhã, entenderia que ela tinha o direito de esbofeteá-lo à causa de suas dores. Afundou as mãos no acolchoado de suas coxas para não estreitá-la entre seus braços e lhe dar um beijo.
— Tenho pena de você — sussurrou ela. — Tenho pena de todos nós.
E se afastou dele, muito ereta com seu belo corpo, para subir pelo o bosque.
04
— Se lembre do que te digo: Ben Sampson vai perder tudo quanto possui — estava dizendo Eleanor.
Ambas estavam na cozinha dos Taggert: Jess, terminando de comer. Eleanor, limpando.
— Pode ser — replicou Jessica, brandamente. — Mas também pode ser que obtenha lucros.
A noite anterior tinha amarrado seu barquinho junto ao de Ben, que acabava de voltar da Jamaica. Enquanto dava as boas-vindas ao proprietário, um dos membros da tripulação tinha deixado cair um caixote, cujo fundo falso estava cheio de chá de contrabando.
— Basta armazená-lo durante vinte e quatro horas — adicionou. — Depois poderá levá-lo furtivamente a Boston.
— Se você viu esse caixote quebrado, muitos outros puderam vê-la também.
— Não, ninguém. — A moça envolveu com as mãos sua tigela de madeira. — Não viu sequer seu precioso Alexander.
— O que significa isso? Só disse que não come tanto como para ser tão gordo e que foi muito cortês e respeitoso. Não nos deu nem um pouco de trabalho a mais — afirmou a irmã mais velha, enquanto cortava a cabeça de um peixe grande.
— Você não sabe nada dele — disse Jess, pensando no que Nate tinha ouvido. Se apanharem ao Ben e confiscavam sua propriedade, Alexander sairia beneficiado. — Eu gostaria que Adam ou Kit voltassem para casa. Eles tirariam Pitman daqui a chutes.
— A seu cunhado, um homem designado pelo rei? Seja realista, Jessica. Pensa ficar sentada aí toda a noite vadiando? Tenho que voltar para casa dos Montgomery e você deve levar estes peixes à senhora Wentworth.
Jess jogou uma olhada ao cesto de peixe limpo.
— Que mulheres preguiçosas as dessa família — zombou. — A senhorita Abigail teme que os homens não gostem do aroma de peixe em suas brancas mãozinhas.
Eleanor colocou o cesto na mesa.
— Pois não seria mal pensar um pouco em como você mesma cheira. Bom, anda, toma isto e não pense em brigar com Abigail.
Jessica ia defender-se, mas Eleanor não se incomodou em escutá-la. Como sua irmã saiu da casinha, Jess tomou o cesto, contra sua vontade, e iniciou o trajeto para a grande casa dos Wentworth.
Depois de entregar o peixe à proprietária de casa, acreditou poder escapar sem se ver obrigada a falar com Abigail, mas sua boa sorte acabou no momento em que abria a porta traseira para sair ao alpendre.
— Jessica! — saudou Abigail. — Quanto me alegro em vê-la!
Sem dúvida, a moça mentia descaradamente.
— Boa noite. Vamos ter uma noite muito clara, não acha?
Abby se inclinou para ela, com ar de conspiração.
— Soube do senhor Sampson? Hoje trouxe chá sem passar pela inspeção da Inglaterra. Acha que o senhor Pitman descobrirá?
Jessica, atônita, não pôde responder. Se Abigail estava informada, Pitman não deixaria de estar.
— Tenho que advertir ao Bem — foi tudo quanto pôde balbuciar.
Caminhou para os degraus com Abby, que não tinha intenções de perder a oportunidade de desfrutar com a novidade. Ao chegar à entrada, ambas estiveram quase a ser atropeladas por um homem vestido de negro, que montava um grande cavalo da mesma cor.
As duas se detiveram. Jess cruzou um braço diante do peito de Abigail, em um gesto protetor.
— Jess — exclamou a jovem, sem fôlego — esse homem tinha colocada uma máscara, verdade?
Em vez de responder, Jessica pôs-se a correr, seguindo o rastro de pó levantado pelo mascarado. Abigail recolheu as saias até os joelhos, rezando para que sua mãe não a vissem e nem os diáconos da igreja, e seguiu sua companheira.
Detiveram-se diante da casa de Ben Sampson. Ali havia seis soldados britânicos, que apontavam para Ben com seus mosquetes.
— Não sei do que estão falando — mentiu Ben.
O suor jorrava pelo seu rosto, apesar do ar fresco da noite, e isso o delatava.
— Você abra, em nome de John Pitman, o agente do rei — disse um dos soldados, levantando um pouco mais seu mosquete.
— Onde está o homem de negro? — sussurrou Abigail.
Jessica prestou atenção aos sons e sombras da cidade.
— Ali — murmurou, assinalando com a vista as árvores que cresciam depois da casa de Ben.
Divisou algum movimento que a impulsionou a tomar pelo braço à gordinha Abby, para arrastá-la até a segurança de um alpendre, na calçada em frente. Assim que conseguiram se ocultar ali explodiu o inferno.
O mascarado galopou para os soldados, levando atrás de si uma rede de pescar com pequenos pesos. O elemento surpresa estava a seu favor, pois os soldados e Ben ficaram boquiabertos. O cavaleiro arrojou a rede sobre quatro dos soldados e tirou uma pistola para mirar aos outros dois. Na cintura levava um verdadeiro arsenal. Os homens que não tinham ficado presos sob a rede deixaram cair seus mosquetes por instinto. Os apanhados na rede ainda tinham suas armas, mas preferiam lutar contra a rede em vez de apertar os gatilhos.
O homem a cavalo disse:
— Nenhum homem de Warbrooke tem chá que já não tenha sido declarado.
Seu sotaque era estranho, diferenciava-se do dos ingleses, mas também do das famílias que tinham várias gerações instaladas na América.
Abigail olhou para Jess para protestar, mas sua companheira sacudiu a cabeça.
— Voltem diante seu amo e lhe digam que, se voltar a fazer falsas acusações, terá que responder diante do Corsário. — Arrojou a linha da rede a um dos soldados e ordenou: — Leve-os.
O Corsário passou diante de Ben e dos soldados; os cascos de seu cavalo golpeavam o chão muito perto de seus pés. Quando chegou ao alpendre onde estavam Abigail e Jessica, de pé na alta galeria, puxou as rédeas de seu cavalo e as olhou. Embora a máscara cobrisse a parte superior do seu rosto e tinha o tricórnio muito baixo sobre suas feições, o viam belo. Seus penetrantes olhos negros brilhavam com ferocidade atrás da seda; abaixo dela se perfilava uma boca cheia, sensual, de lábios bem modelados. A camisa negra, as calças e as botas da mesma cor, cobriam seu corpo musculoso e de ombros largos.
Abigail emitiu um sincero suspiro e esteve a ponto de desmaiar diante do olhar do Corsário. Teria caído na varanda, se Jess não a tivesse segurado por debaixo dos braços.
Os lábios do Corsário se estiraram em um sorriso, tão doce e reconhecendo que Jess era obrigada a sustentar sua companheira com redobradas forças.
Sempre sorridente, o Corsário se inclinou para frente, pôs sua mão grande na nuca de Abby e a beijou longamente, com sensualidade.
Os soldados e Ben haviam quase se esquecido do motivo daquela aparição. Esse homem despertava neles o senso do romantismo; além disso, para os soldados nostálgicos de sua pátria tinha muito pouca importância se achassem ou não esse chá no porão de Ben Sampson. O que concentrava sua atenção era esse mascarado vestido de negro, que galopava pelo país e beijava as moças bonitas.
Quando o Corsário beijou a senhorita Abigail, todos aplaudiram. Logo, contendo o fôlego, viram-no voltar-se para a senhorita Jessica, a mulher que assolava os sonhos de todos, mas que ela ria no rosto de quem quisesse abordadá-la.
Jessica ficou atônita diante da expressão de quem se apresentava com o nome de Corsário. Acaso a achava tão tola como Abigail, que desmaiava diante de qualquer homem, que lhe fizesse um elogio?
No momento em que o Corsário se inclinava para frente, como se pensasse em beijá-la também, Jessica retrocedeu. Não pôde se afastar muito, pois ainda tinha entre os braços Abby, mas gritou:
— Não me toque.
Não estava preparada para apreciar a mudança daqueles olhos. Por um momento foi quase como se ele a odiasse.
Por estar de pé no alpendre, sustentando Abigail, meio inconsciente, passou somente um segundo para estar atravessada sobre a sela do Corsário. O cabeçote da sela golpeou dolorosamente seu estômago, no momento em que se ouvia o ruído de Abigail ao cair no alpendre. Também se ouvia a gargalhada ensurdecedora dos soldados e de Ben. Rua acima e rua abaixo, as portas começaram a abrirem-se: os vizinhos abandonavam o jantar para ver que causava tanta comoção.
Os que saíram as ruas se encontraram diante do espetáculo de um homem vestido de negro, com uma máscara da mesma cor e montado em um cavalo negro também, que galopava rua abaixo com uma mulher atravessada na sela. Parecia ser a senhorita Jessica, com o traseiro para cima. Seguiam-no quatro soldados meio envoltos em uma rede, pelo que parecia, sem quaisquer intenções de escaparem dela, levados a puxões por outros dois soldados. Os seis riam a todo pulmão. Atrás dos soldados ia Ben Sampson, levando quase no ar Abigail Wentworth, meio desmaiada. Mais à frente, os vizinhos viram que a senhora Sampson e seus dois filhos mais velhos retiravam caixotes do porão.
Ninguém tinha idéia do que estava acontecendo, mas todos se uniram às risadas ao verem que o mascarado jogava Jessica Taggert em uma tina de água saponácea que a senhora Coffin tinha deixado no sereno.
Jessica levantou a vista, piscando pela água que jorrava por seu rosto.
— Por favor, me desculpe senhora Coffin por lhe arruinar a roupa lavada. — Pronunciou o Corsário por sobre o ombro, antes de bater com o calcanhar em seu cavalo para desaparecer rua abaixo.
A risada dos vizinhos ressonava nos ouvidos de Jessica, que lutava por sair da tina. Tratou de manter a cabeça elevada, mas não era fácil. Tinha certeza de que todos os habitantes de Warbrooke estavam na rua, observando-a. Com toda a dignidade que pôde reunir, saiu da tina, sabendo que suas molhadas roupas de marinheiro, ao se aderirem a seu corpo, davam até mais motivos de risada à população.
Nathaniel apareceu como saído de um nada e a puxou pela mão. "Meu doce e querido Nathaniel...", pensou ela, arrependida por todas as vezes que tinha ameaçado matá-lo por suas travessuras.
— Deixem de rir de minha irmã — chiou o jovenzinho.
Mas ninguém lhe obedeceu.
— Me leve até Eleanor — conseguiu dizer Jessica.
Não queria chorar. Sob nenhuma circunstância soltaria uma lágrima. Manteve as costas retas, o queixo erguido e o olhar fixo para frente.
Nathaniel, por motivos que só ele conhecia, não conduziu Jessica onde estava Eleanor, e sim ao quarto de Sayer Montgomery. Jessica, cujas energias estavam dedicadas por inteiro ao esforço de não chorar, encontrou-se ali, como uma estúpida, olhando o ancião que tinha perdido o uso de suas pernas. Em sua infância o tinha considerado um personagem formidável, desde que foi ferido só o via raras vezes.
Teve a vaga consciência de que Nate contava ao ancião o ocorrido, explicando por que Jessica estava empapada e, por que suas roupas cheiravam como todos os peixes de todos os oceanos do mundo, e por que tinha a rosto inchado de pranto sem derramar.
Sayer arregalou os grandes olhos. Depois abriu os braços.
— Embora, agora, seja inútil como homem — disse — ainda tenho dois ombros para que as moças bonitas possam chorar neles.
Jessica, sem pensar duas vezes, deixou-se cair contra ele e chorou como se tivesse rompido o coração.
— Não lhe fiz nada — gemeu. — Nunca o vi em minha vida. Que obrigação tinha de deixar que me beijasse?
— Ah, mas ele é o Corsário — observou Sayer, acariciando suas costas como se em nada o incomodasse o aroma de peixe. — A maioria das moças teria agido como Abigail.
— Abigail é uma idiota — afirmou ela, levantando-se um pouco, mas sem escapar de seus braços.
— Certo — Sayer sorriu. — Mas uma idiota muito bonita. Muito beijável.
— Mas eu... quero dizer... — Jessica voltou a chorar. — Eu não gosto dos moços e eles não gostam de mim.
— Claro que gostam. Só que têm medo. Poucos deles poderiam fazer a metade do que você faz. A veem navegar em tua velha tina, levantar âncoras e... — interrompeu-se para sorrir. — ...e manter na raia o jovem Nathaniel, aqui presente. Sabem que é mais homem que qualquer um deles.
— Homem? — exclamou ela. — Você acha que eu sou homem?
Ele voltou a estreitá-la contra si, enterrando as mãos nos cabelos que caía até a cintura.
— Muito longe disso — assegurou. — Todos nós sabemos que é a mais bonita das moças.
— Mas não tão bonita como Abigail — aduziu ela, olhando-o de soslaio.
— Abigail é bonita agora, aos dezesseis anos, mas não o será amanhã. Você, minha querida, será bonita mesmo que tenha cem anos.
— Pois eu gostaria de ter cem anos agora mesmo. Não sei como vou enfrentar amanhã as pessoas desta cidade.
Sayer levantou seu queixo com um dedo.
— Não fez nada de mau. Olhe-o deste modo: enquanto todos estavam atentos a você, a esposa de Ben pôde tirar o chá de seu porão.
— Mas bastará que Pitman acuse ao Ben.
O rosto do ancião, antes serena, tornou-se dura.
— Sim. Basta com que o acuse. Talvez Alexander...
— Alexander! — Exclamou Jessica, levantando-se. — Como pôde você ter dois filhos gloriosos e o terceiro tão... tão...
— É o que estive me perguntando — reconheceu Sayer, pensativo. Logo olhou outra vez para a moça. — Quero que pense no que esse Corsário fez pelo Ben. Tente pensar no que te ocorreu como parte da cena completa. — Sorriu. — E da próxima vez, quando vir a esse Corsário, corra em direção oposta.
— A próxima vez! Não terá a coragem de apresentar-se novamente. Pitman fará que seus soldados revistem toda a zona buscando-o.
O ancião a afastou da cama com um empurrão.
— Agora vá se lavar. Realmente, Jessica, de vez em quando deveria pôr um vestido.
Ela também sorriu, sentia-se muito melhor.
— Sim capitão. — inclinou-se para lhe dar um beijo na bochecha. — Obrigada.
E saiu do quarto.
Sayer aguardou alguns segundos antes de bramar:
—Nathaniel!
O menino apareceu quase imediatamente, levando pela mão o pequeno Samuel.
— Quero que averigúe tudo o que possa sobre esse Corsário.
— Não posso fazer nada. Eleanor me deu o bebê para cuidar. E ele não sabe sequer subir nas árvores.
O lábio inferior do menino me sobressaía vários centímetros.
Sayer franziu o cenho, pensativo.
— Abre essa gaveta e me traga o que está dentro: um novelo de corda, uma argola de bronze e minha navalha. Quando meus filhos eram bebês e Lily era jovem, ela estava acostumada navegar comigo. Eu lhe tecia um saco para que atasse aos bebês nas costas. Veremos se podemos fazer um para o Samuel. Acha que poderá subir em uma árvore com esse robusto mocinho às costas?
— Poderia subir às estrelas — assegurou Nathaniel. — Tem você um pouco de doce de hortelã? Isso o mantém calado.
— Se descobrir quem é esse Corsário, comprarei todo um tonel de guloseimas de hortelã.
— É Sam quem gosta de doce de hortelã, não eu — corrigiu Nate, com os dentes apertados em um gesto que o assemelhava muito com o de sua irmã.
— E do que você gosta? — inquiriu Sayer, enquanto começava a atar longas partes da corda à argola de bronze.
— Um bote próprio, para poder pescar e vender peixe.
Sayer sorriu.
— Concordo. Chamá-lo-emos O Corsário. Agora segura esta ponta, e você, Sam abre essa caixa, a veja se encontrar algo.
Nathaniel e Sayer sorriram mutuamente.
Jessica limpou as lágrimas com a manga e se pôs a andar pelo bosque, em direção a sua casa.
John Pitman saiu de detrás de uma árvore, lhe fazendo afogar um grito. Era seu costume estar perfeitamente vestido, sem um botão fora de seu lugar, como se desejasse demonstrar aos americanos como deviam embelezar-se. Essa noite, em troca, estava desalinhado, não usava a jaqueta e tinha o colete desabotoado. Seus olhos tinham uma expressão selvagem e cheirava a rum.
— Senhorita Jessica — disse, com voz grogue. — Foi à única pessoa, além de mim, que o rechaçou.
Jessica nunca tinha estado tão perto do funcionário da alfândega e não desejava alterar a situação nesse momento. Deu um sorriso pálido e tratou de continuar seu caminho. O último que lhe convinha era estar a sós com esse bêbado, acostumado a fazer o que queria.
— Ah, senhorita Jessica — murmurou Pitman, bloqueando seu caminho, com a vista fixa nas fitas da camisa de marinheiro. — Já se secou? Conseguiu se libertar da odiosa lembrança desse homem?
Ela deu um passo atrás, estupefata.
— Você saiu para embriagar-se por esse Corsário, esse vilão que só procura fama?
Pitman se aproximou um pouco mais.
— Percebe que hora são? O que poderia está fazendo qualquer homem no bosque a esta hora, preso a uma garrafa, se tivesse uma esposa quente e bonita que o esperasse em sua casa? Venho todas as noites. – Já estava quase roçando-a. Colocou sua mão no cordão que atava a blusa da moça. — Venho sonhar com você, senhorita Jessica. Com a Jessica, a dos quadris saborosos. Com a Jessica, a de...
Jess o afastou com um empurrão, arregalou os olhos, e pôs-se a correr. Pitman estava tão ébrio que demorou um momento em recuperar o equilíbrio. Mas a moça já tinha desaparecido.
Correu pelo bosque, evitando todos os atalhos, até que chegou a sua casa e pôde fechar a porta. Deixou cair à taboa de carvalho que assegurava e se voltou.
Eleanor a acudiu, de camisola e gorro de dormir.
— Onde estava? — perguntou. — Nós estávamos preocupados.
Como Jessica não respondeu a irmã a abraçou.
— Teve um mau dia, verdade? Contaram-me o que aconteceu faz um momento.
Jess não queria lembrar-se do Corsário, da tina e nem de John Pitman, com seu aroma de rum e suas mãos invasoras.
— Volte para a cama — disse a Eleanor. — Vou lavar esta imundície e me deitarei também.
A irmã assentiu, sonolenta, e voltou a deitar-se.
Depois de lavar-se com a esponja, sem deixar de amaldiçoar a todos os homens do mundo, Jess subiu a escada para o sótão. Todos os meninos ocupavam uma só cama, os mais altos, com a cabeça apontando ao norte, os menores, para o sul. Ela os agasalhou com o acolchoado e beijou as cabecinhas mais próximas.
Nathaniel se levantou sobre um cotovelo.
— Por que corria?
Esse menino nunca deixava nada sem observar.
— Possivelmente lhe conte isso amanhã. Agora dorme.
Nate voltou a deitar-se entre dois irmãos.
— Achá-lo-ei por você, Jess. Acharei o Corsário para que possa enforcá-lo.
Jess sorriu diante da idéia.
— Enforcá-lo-ei com a corda que usa a senhora Coffin para estender a roupa. E agora, dorme.
Ainda estava sorrindo quando se introduziu na outra cama, com Eleanor e o bebê.
Jessica afundou a pá na praia rochosa, afastou um molusco e a deixou cair no cesto.
— Caramba, esses animais não são seus inimigos.
Levantou a vista. Ali estava Alexander Montgomery de pé, com a seda amarela de sua jaqueta reluzente sob o sol.
— Você também veio rir de mim? — Cravou-lhe um olhar muito hostil. — Não bastou o desta manhã? Tinha que me espreitar deste modo para poder rir de mim em particular?
E extraiu outro molusco de seu esconderijo na areia. Não tinha sido fácil sobreviver essa manhã. Assim que entrou no salão dos Montgomery, todo mundo haviam se dobrado em risadas. Os homens eram um rio de piadas sobre o dia de lavagem de roupa. E o senhor Coffin era quem mais ria.
Quando Alexander, com rosto sonolento, entrou no salão, todos se precipitaram a contar as fabulosas façanhas do Corsário, esse herói corajoso. Segundo os vizinhos, o Corsário era muito alto, - media mais de um metro oitenta - muito belo, - a pequena Abigail Wentworth desmaiou só em vê-lo - e excelente espadachim. Jessica deveria ter mantido sua boca fechada, mas não pôde resistir a tentação de apontar que o Corsário não havia sequer desembainhado a espada, muito menos demonstrado sua habilidade com ela. Isso fez que a atenção geral voltasse a concentrar-se nela. Todos a reprovaram porque ela não sabia ser agradecida ao Corsário por ter arriscado a vida para ajudar aos outros.
Jessica tinha tomado o cesto e a pá que Eleanor usava para procurar moluscos e ali estava, refugiada em sua praia favorita. E agora Alexander estava ali, decidido a arruinar sua paz.
— Não preciso que ria de mim — disse, com as mãos nos quadris.
Alex se sentou em uma árvore caída na praia.
— Não vim para rir de você. Só queria te dizer que não merece o que ocorreu ontem à noite. Acredito que o Corsário fez mal.
Jessica manteve sua atitude agressiva por um instante.
Logo fechou a boca e atacou outro buraco de molusco.
— Para me dizer isso desceu até aqui, se arriscando a sujar suas preciosas roupas? Por quê? O que quer de mim? Vinte e cinco por cento do que eu ganho?
A voz de Alex soou muito serena.
— Sei muito bem o que se sofre quando toda a cidade ri de você por algo que não se pode evitar.
Jess o olhou de frente, recordando muito bem como tinha provocado as risadas de toda Warbrooke no seu retorno. Com as bochechas muito vermelhas, cravou a pá junto a outro respiradouro de molusco.
— Peço-te perdão. Talvez tenha exagerado um pouco. Mas todos diziam que um dos Montgomery viria para arrumar tudo, e quando te vi me pareceu uma idéia ridícula. – Olhou-o no rosto. — Me arrependo de haver rido de você.
E seguiu com seu trabalho, embora menos zangada.
— É verdade que você gosta de minhas roupas? — perguntou Alex. — Poderia fazer que meu alfaiate te costurasse algo. Talvez um vestido azul, para que contrastasse com seus cabelos.
Jess ia soltar uma réplica mordaz, mas ao ver seu rosto sorridente ela também começou a sorrir.
— Quantos moluscos teria que juntar para pagar um vestido de seda azul?
— Custaria-te algo mais que moluscos. Custaria-te um pouco de amizade. Basta que deixe de incitar os vizinhos a me ridicularizar, eu te comprarei o vestido.
— Oh...
Uma quebra de onda de culpabilidade se abateu sobre Jessica. Até então não tinha pensado no que sentia Alexander ao ser o alvo de todas as brincadeiras... mas agora sabia muito bem.
— Não me compre nenhum vestido, por favor — disse, baixando a vista para sua pá.
— Mas podemos ser amigos?
— Suponho... suponho que sim.
Houve uma pausa. Ao levantar a vista, Jess viu que Alexander sorria. Não era feio, embora grande parte de seu rosto desaparecesse debaixo dessa enorme peruca coberta de pó. Sem dúvida alguma, esse servo metido barbeava sua cabeça todos os dias. Essas roupas e essa barriga eram absurdas, é obvio. Até Abigail, que gostava de qualquer homem, que fosse solteiro e rico, não se importava com Alexander.
Ele tirou a jaqueta, com um sorriso satisfeito, e se deitou no tronco. Seu enorme ventre me sobressaía como gordura de baleia flutuando no mar.
— Me diga o que pensa do Corsário.
Jessica refletiu por um momento.
— Gosta da glória. Do contrário, por que cruzou a cidade desse modo, à vista de todos?
— Talvez essa fosse à idéia: que todos estivessem atentos a ele para que Ben pudesse retirar seu chá. Sabe que todos se foram, não? Ben, sua esposa e seus quatro filhos partiram no meio da noite. Não acha que o Corsário lhes deu a oportunidade de escapar de Pitman?
— Não volte a mencionar esse homem! Justamente você, que aceita dinheiro dele!
Ele a segurou pelo pulso, sem apertar.
— Não te ocorreu pensar que, se aceito vinte e cinco por cento dos lucros de meu estimado cunhado, saberei quanto ganha? Já que somos mais ou menos sócios, posso examinar seus livros. Quer dizer, se ele começar a confiar em mim, poderei saber que navio pensa apreender de imediato. - E lhe soltou o pulso.
— Não tinha pensado.
Alex colocou as mãos debaixo da cabeça.
– Pois pense.
Jess deixou cair alguns moluscos no cesto e o olhou de soslaio. Suas gordas coxas mantinham estirado o cetim amarelo. O ventre estava a ponto de fazer saltar dois botões.
— De qualquer modo, o Corsário não terá coragem para aparecer outra vez. Pitman o tem na mira.
— E você, naturalmente, está segura de que Pitman é mais inteligente que o Corsário...
Depois do que esse cavaleiro lhe tinha feito, custava a Jess pensar nele se não fosse com ódio.
— É um caipira arrogante que só procura glória. Espero não voltar a vê-lo em minha vida.
—Não tem alguma idéia de quem pode ser? Depois de tudo, viu-o muito de perto.
— Não tenho a menor ideia. Mas tenho certeza de que, se voltasse a vê-lo, reconhecê-lo-ia. Tem a boca muito cruel. Oh, não! — gritou, olhando de volta para o mar.
Tinha deixado uma de suas duas preciosas redes de pesca em uma rocha, para que secasse. Uma das lagostas que a maré tinha levado a praia a estava arrastando para o mar. Lançou um tapa no ar que não serviu de nada e correu para a água.
Alex abandonou imediatamente o tronco para segui-la, mas se conteve. Tinha que manter a imagem de seu personagem.
— Jessica, pensa em nadar até a China seguindo essa rede?
Ela se deteve, afundada até a cintura na água gelada, enquanto a rede se afastava flutuando.
— Se pudesse me pendurar dessa saliência rochosa a alcançaria. — Mediu Alex com o olhar. — Seguraria-me pelos pés para que pudesse fazê-lo?
Alex assentiu, olhava-a aos olhos para que não o distraísse a camisa molhada que se aderia a seus seios.
— Sim, acredito que posso.
— Olhe que sou muito pesada.
Ele limpou as mãos suadas nas coxas.
— Provemos.
Jess se deitou na erva, sustentando-se com os braços para descer meio corpo da saliência rochosa. Alex se colocou a seu lado. As calças de marinheiro dela se aderiam às pernas, mostrando todas as curvas de seu encantador traseiro.
— Alex! — protestou Jess, impaciente. — Me sustenta ou não?
— Sim — respondeu ele, em voz baixa. Segurou-a pelos tornozelos e a ajudou se pendurar na saliência.
— Um pouco mais — pediu ela, esticando-se para alcançar a rede. — Já peguei. Pode me puxar para cima.
Alex a levantou com toda facilidade, tendo cuidado em não esfolá-la contra as rochas. Quando a moça esteve em chão plano, soltou-lhe os pés.
Jess permaneceu imóvel por um momento, examinando a rede.
— Graças a Deus, não tem mais rasgões. — Levantou-se com agilidade. — Está um pouco pálido, Alex. Acredito que sou muito pesada. Sente-se e descansa.
Alex obedeceu.
— Vou procurar os moluscos e te acompanharei até sua casa. Um homem com tua... corpulência não deve fazer tanto esforço.
Desceu a ravina às carreiras e recolheu o cesto de moluscos. Quando voltou viu que Alex continuava sentado na rocha, pálido e suado. "Pobre homem", pensou. "Não está habituado ao exercício." E lhe ofereceu o braço.
— Te apóie em mim, te ajudarei. Iremos para casa de seu pai e Eleanor preparará uma xicara de chá. Chá legal, bem caro — esclareceu, sorrindo, enquanto dava tapinhas na mão apoiada em seu braço. — Eleanor te ajudará a se repor.
—Trata-me como se eu tivesse noventa anos! — Queixou-se Alexander a Nicholas, com os dentes apertados, enquanto escovava o grande potro negro.
Estavam em uma pequena ilha rochosa, frente ao porto de Warbrooke, essa terra não servia para nada a não ser para criar mosquitos e mutuca. Dezoito anos antes, um navio tinha encalhado na costa sul, durante uma terrível tormenta de inverno, e toda sua tripulação tinha morrido. Na manhã seguinte, tinham achado a um homem, congelado na ponta do mastro, com uma lâmpada na mão. Segundo as pessoas, por várias vezes se pôde ver uma luz vagando pela ilha. Mesmo tendo feito investigações não se achou a ninguém. Passaram a chamar de Ilha Fantasma e evitá-la. Por isso era um lugar perfeito para ocultar o cavalo e o traje do Corsário.
Mutuca - Nome que se dá a um tipo de mosca que pica os cavalos, assim como alguns outros animais, sugando o seu sangue. A denominação é comumente aplicada a uma nova mosca preta que vive próximo aos açudes, valas e fossos à beira das estradas, assim como cursos de água das Américas (NT).
— Fica de frente a mim, com a roupa molhada que se cola em todo o corpo, e se deita no chão para arrastar-se mostrando o traseiro... Desculpa — disse ao cavalo, depois de aplicar uma escovada muito enérgica. — De que massa acha que sou feito?
— De cento e vinte quilos de gordura.
— Nem por ser gordo sou menos homem — objetou Alex. Só usava calças de montar que se aderia a suas coxas grandes e fibrosas. O sol bronzeava a pele de suas largas costas.
— Talvez seja pela peruca — disse Nick, com olhos sorridentes. — Ou pelo cetim. Ou talvez seja seu modo preguiçoso da caminhar e o fato de que não faz nada todo o dia, salvo ler e comer. Ou esse ligeiro tom queijoso de sua voz.
Alex abriu a boca para falar, mas voltou a fechá-la e escovou o potro com mais força.
— Não sou tão bom ator. Ela deveria perceber que eu... de que...
— De que a desejas?
— A Jessica Taggert? Nem morto! O que posso esperar dos Taggert? A única que tem cérebro, nessa família, é Eleanor.
— Mas não é o cérebro de Jessica o que tem feito mal a você, verdade?
— Só fiz este comentário para lhe demonstrar o quanto é estúpida essa mulher. Disse que reconheceria o Corsário pelo aspecto cruel de sua boca, mas o tinha enfrente a si e... Olhe, não falemos mais dela. Viu o rosto dessa pequena Abigail Wentworth quando a beijei? Essa sim é uma mulher a quem poderia lhe dedicar um pouco de tempo!
— Mataria a qualquer um de aborrecimento em dois anos de matrimônio — assegurou Nick, bocejando. — Teria que idear muitos entretenimentos. E o que faria quando se aborrecesse do Corsário? Se vestir de diabo por mais dois anos? E depois o que?
— Abigail percebeu as intenções do Corsário: de que estava arriscando a vida para salvar a alguém. Jessica não captou nada.
— Talvez por excesso de água suja nos olhos.
Alex fez uma careta de desgosto.
— Já me desculpei por isso. Pelo menos, fiz o que pude. Não teria procurado uma mulher agressiva e tola como Jessica se não tivesse motivos.
— Compreendo perfeitamente. Examine a pata dianteira — indicou Nick, ocioso, dando ordens a seu amigo como só os duques russos sabem fazê-lo. — Talvez conviesse que Alex procurasse à senhorita Wentworth e deixasse em paz à senhorita Taggert.
— Boa ideia — reconheceu Alex, voltando para sua escova.
05
O suor que jorrava pelo pescoço de Alexander se mesclava com o pó da peruca, formando uma massa irritante. Teria querido tirar a peruca para se coçar, mas manteve sua lânguida postura, escancarado no duro sofá da sala dos Wentworth.
— Além disso, é alto e muito belo — dizia Abby, sonhadora, enquanto seus grandes olhos pardos, quase líquidos, se perdiam pela janela.
— Tinha entendido que esse homem ia mascarado — objetou Alex, brincando com a pena de seu chapéu.
Na manhã anterior, enquanto Pitman estava tomando o desjejum, ele tinha aproveitado a oportunidade para examinar seu escritório. Havia ali uma carta, assinada por certo almirante da marinha de Sua Majestade, onde agradecia ao Pitman por confiscar o Sereia, pertencente à Josiah Greene, nela informava também, que o navio tinha sido vendido e que sua parte correspondente aos lucros chegaria no Golden Hind.
Essa manhã, Alex tinha se informado que o Golden Hind já tinha chegado nas cercanias e que atracaria em Warbrooke ao anoitecer do dia seguinte.
— Oh, claro que estava mascarado — respondeu Abigail. — Mas uma mulher sabe destas coisas. Era um homem extraordinariamente belo.
— Não se parecia com nenhum de nossos vizinhos de Warbrooke? — perguntou Alex, olhando-a através da pena.
Enquanto isso estava pensando em como esconder-se no navio para roubar o dinheiro do representante do rei e escapar sem derramamento de sangue... sobre tudo, de seu próprio sangue.
— Droga! Em Warbrooke não há ninguém como o Corsário, é obvio! Vivo nesta cidade desde que nasci e tenho certeza de que não há ninguém aqui tão elegante, alto e corajoso como o Corsário. É o mais...
Alex não prestou atenção ao resto. Na semana transcorrida da façanha, Abigail tinha se estabelecido como a maior autoridade em tudo que se referia ao Corsário... e sua longa língua dificultava uma nova aparição do herói. Pitman não gostava de ter perdido uma batalha diante desse mascarado presumido e ninguém na cidade se atrevia a recordá-lo de sua perda... com exceção de Abigail, naturalmente. Pelo que parecia, essa moça não era capaz de conversar sobre outra coisa. Por dois dias, a partir daquele acontecimento, foi o centro da atenção da cidade, já que todos desejavam conhecer suas impressões sobre o homem. Por volta do quarto dia todos voltaram a pensar em encher as caçarolas e manterem-se abrigados. Todos, salvo Abigail, que ainda não pronunciava uma palavra que não estivesse referindo-se ao Corsário.
— Acredite-me: eu sei como ele é.
— Jessica Taggert disse que ele tinha a boca cruel.
Abigail se levantou, seu seio gordinho palpitava de irritação.
— E o que pode saber uma dessas Taggert? Já viu você o que o Corsário pensava dela, verdade? Sempre soube que essa mulher precisava um banho.
Alex abriu a boca para dizer que, talvez, o Corsário se enfureceu porque desejava muito beijar Jessica e ela o tinha rechaçado. Mas em realidade não lhe interessava a opinião de Abigail e não se incomodou em fazer o comentário. O que mais desejava era ir a Ilha Fantasma, para tirar essa roupa quente e mergulhar na fria água do mar. E precisava riscar planos para tirar do Pitman esse dinheiro sujo.
Com toda cortesia, desculpou-se ante a senhorita Abigail e saiu à transitada rua principal de Warbrooke. Sentia-se atraído para as brisas frescas do oceano e pôs-se a andar nessa direção. Um par de forasteiros se deteve para olhá-lo com assombro. Nesse dia tinha posto seu traje de cetim azul real, cujo colete tinha um bordado de flores verdes e amarelas. Nick tinha enviado seu cortejo de criados até Nova Sussex, em busca de mais roupa emprestadas de seu gordo primo, portanto, Alex contava com várias vestimentas de cores vistosos e com quatro enormes e detestáveis perucas.
A primeira coisa que viu foi à velha tina de Jessica: Mary Catherine, amarrado no cais. Warbrooke tinha o porto mais profundo da costa norte-americana e até os navios de maiores porte podiam entrar na baia sem problemas.
— Olá, Alex! — saudou a moça. Estava sentada no aparelho da vela mais alta, fazendo o possível por remendar as cordas podres. — Esteve fazendo a corte?
Dois marinheiros riram detrás dele, olhando-o de cima abaixo.
— E você, a quem esteve cortejando? – respondeu Alex, referindo-se às roupas de marinheiro.
Foi um prazer ouvir que os dois homens presentes riam até mais que antes.
Jessica, muito sorridente, desceu dos cordames.
— Venha a bordo — convidou. — Mas tome cuidado para não arruinar essa bonita roupa. Há alcatrão e pregos por toda parte.
O navio de Jess era ainda mais patético visto de perto. Tinha só duas velas, mas mesmo assim custava acreditar que sua proprietária pudesse pilotá-lo sozinha. A âncora devia pesar cem quilos, no mínimo.
Baixando o passadiço estreito até a cabine, o visitante pôde farejar o aroma de todos os peixes que alguma vez tenha viajado no barco. Pela primeira vez usou de verdade o lenço perfumado.
— Muito para você? — perguntou ela, divertida.
Alex provou a solidez de uma das duas cadeiras e tomou assento nela.
— Como faz para suportar esta banheira?
Os olhos da moça perderam parte de seu brilho.
— Sou uma Taggert, recorda?
— É certo. Sem dúvida, isso significa que não sente cheiro de nada.
Jessica se pôs a rir
— Sim, talvez seja um pouco insuportável. Tenho um pouco de rum. Quer um gole?
— Depois de passar toda uma tarde com a senhorita Abigail, precisaria um tonel inteiro.
— Fala assim da moça mais bonita da cidade? A que roubou o coração ao Corsário?
Alex grunhiu.
— Não volte mencionar esse nome. Depois das peroratas de Abby, espero nunca mais ouvir esse nome.
Jessica tomou duas tigelas de madeira e os encheu de rum até a metade.
— Não conte a Eleanor — pediu, sorrindo.
Depois do primeiro gole, seu amigo fez uma careta.
— Já compreendo por que o aroma não te incomoda. Com uns goles disto adormece seu nariz.
Jess se sentou, com um pé na cadeira e o outro apoiado no trinco de um armário. Era uma pose muito masculina, mas seu corpo mantinha nela toda sua feminilidade. A camisa solta destacava a linha do busto e as calças envolviam suas coxas... tal como Alex queria envolvê-los com suas mãos. Reclinou-se na cadeira.
— Bem, e o que tem Pitman entre mãos? — perguntou Jess, meneando sua tigela de rum enquanto esperava que o líquido chegasse aos ossos. Um momento de descanso e alguém com quem compartilhar seu prezado rum eram o mais puro dos prazeres. Nenhuma das mulheres queria amizade com ela e os homens a tratavam como se fosse à peste, do contrário, consideravam que era pouco virtuosa e a assediavam. Compartilhar seu repouso com Alex, que não sentia interesse físico por ela, era como ter um amigo muito especial.
— Jess, se pudesse se pôr em contato com o Corsário, o que faria?
— Por que o pergunta?
— Tenho algumas informações que poderia lhe interessar.
Alex passou a contar do dinheiro que receberia Pitman no navio inglês. Tinha tido em conta que, se o Corsário aparecia por uma informação que só podia ter sido obtido revistando os papéis particulares de Pitman, Jessica podia adivinhar quem a tinha conseguido.
— Bom, poderia contar a Abigail — disse Jessica, com um sorriso malicioso. — Apostaria que o Corsário entra furtivamente por sua janela, pelas noites.
— Está com ciúmes? — Alex arqueou uma sobrancelha.
— De um ladrão furtivo? O Corsário não é melhor que os assaltantes de estradas. Se fosse realmente corajoso mostraria o rosto e denunciaria Pitman.
"Para que o enforcassem", pensou Alex, enquanto dizia:
— Então não tem idéia de como soube o Corsário que Ben Sampson ia ser detido por seu contrabando de chá.
— Toda a cidade sabia de Ben e do chá. Até a Abigail sabia.
Jess deixou sua tigela e se inclinou para frente, com os olhos brilhantes e as bochechas ruborizadas.
Alex rompeu outra vez em suores.
— E se divulgássemos a informação? — Sugeriu ela. — E se contássemos a algumas pessoas que o Golden Hind traz dinheiro para Pitman pela venda do navio de Josiah? Se o rumor se iniciar nos cais, talvez Pitman pense que quem revelou foi um marinheiro de Sua Majestade.
Alex sorveu seu rum, pensando que talvez ela fosse das Taggert provida de cérebro.
Jessica não abandonou sua cobertura, mesmo quando os marinheiros do Golden Hind lhe gritavam comentários lascivos. Estavam há vários meses no mar e esse espetáculo, essa mulher tão bonita naquela relíquia ancorada junto a eles, era mais do que a imaginação podia suportar. Habitualmente Jess tomava precauções e se mantinha longe dos navios recém-chegados, mas na noite anterior tinha feito todo o possível por amarrar seu barquinho junto ao navio inglês, que se erguia a seu lado como uma velha gorda. Os olhos cobiçosos de seus tripulantes eram como ratos que rondavam sua cintura. Jess fazia o possível para não prestar atenção.
Depois da visita de Alex, na manhã anterior, ambos haviam começado a divulgar em separado, como por casualidade, o rumor de que o Hind trazia dinheiro para PitmaIl. Não tinha importância em repeti-lo muitas vezes para irritar a população. O dinheiro era à venda de um navio que pertencia a um deles. Portanto, todos dirigiram a irritação contra os marinhos ingleses recém-chegados. Já tinham explodido quatro rixas e havia três homens amarrados nos troncos da praça.
Depois de iniciar o rumor, Jessica tinha saído do porto para pescar camarões, sempre perto da costa pelo nordeste, de onde veria a chegada do Golden Hind. Passou a tarde jogando e recolhendo suas redes... e esperando. Não tinha certeza do que desejava fazer, mas se o Corsário se apresentava e requeria sua ajuda, ela estaria ali para facilitar-lhe.
Sua mente se rebelou por duas vezes ante a idéia de ajudar ao homem que a tinha humilhado em público, mas o desejo de castigar Pitman era mais potente que seu aborrecimento pessoal. Se o povo americano não começasse a protestar pelo trato dos ingleses, a tirania não acabaria nunca.
Seu porão estava pela metade, cheia de camarões antes que chegasse a avistar o casco de navio inglês. Jessica fez o possível por fingir desinteresse, enquanto entrava no porto e amarrava seu barco junto do Hind. Depois que tinha baixado as velas quando Nathaniel apareceu no cais, disposto a apanhar sua corda no ar e atá-la ao ancoradouro. Nate subiu pela corda que sua irmã lhe jogou pela amurada.
— Chega tarde. Eleanor me mandou te esperar.
Jess, sem responder, passou a observar a atividade do navio inglês, tudo o que lhe permitia sua posição, mais baixa.
— Quantos... — comentou Nate, ao ver a quantidade de camarões que havia no porão.
— Traga os outros meninos para que ajudem a embolsá-los. Depois vá vendê-lo por aí.
Nathaniel lançou um olhar sagaz. Esse menino sabia muito para seus poucos anos.
— Não me complique a vida. Faça o que te digo! - Jess estava chateada porque não conseguia ver o que passava a bordo do Golden Hind.
Permaneceu a bordo de sua fedorenta embarcação durante toda a noite. Quando Eleanor veio no cais, ela respondeu a suas perguntas de que não pensava voltar para a casa. Dormiu muito pouco, nem sequer se permitiu o relativo luxo de deitar em seu beliche. Preferiu permanecer na cobertura, recostada contra o lado do barco, armada de uma boa adaga se por acaso algum dos marinheiros decidia cumprir com o que anunciavam luxuriosamente.
Levantou-se pouco antes do amanhecer, rígida e com as costas doloridas. A pouca distância se ouviu o suave relincho de um cavalo. Meio pendurada na amurada, viu que no cais havia um cavalo selado e esperando.
Então despertou por completo. O cavalo tinha nervuras cinza na pelagem, mas nada podia dissimular suas linhas esbeltas e seus coices nervosos: era o cavalo do Corsário.
Pelo outro lado do Mary Catherine apareceu uma cabeça. Era a de George Greene, o filho mais velho de Josiah, o encolerizado jovem de vinte e seis anos que se considerava injustamente privado de sua herança.
— Você também o viu — disse George, brandamente. Logo levantou a voz. — Me disseram que você tem camarões para vender, senhorita Jessica.
Seus olhos revelaram à moça que os estava vigiando.
— Sim, George, tenho. Darei-te uma bolsa.
Jess desceu precipitadamente os degraus até o porão. Tomou um saco de tecido sujo, guardou dentro um pedaço de corda velha e voltou para cobertura.
— É suficiente isto? — perguntou, enquanto se aproximava de George para perguntar, em voz baixa: — Sabe de algo?
— Nada. Meu pai tem medo de albergar esperanças. Quer ver morto ao Pitman.
— Eu gostaria de navegar com ela — disse uma voz, do alto.
— Será melhor que vá — sussurrou Jess. — Que saboreiem de seus camarões — adicionou, quase gritando, para os ouvidos do marinheiro.
— Ficarei junto ao cavalo. Ele pode precisar de mim.
Jess, com um gesto de assentimento, voltou-lhe as costas. Nesse momento se ouviu um grito vindo de cima. De imediato, o ruído de uma algazarra desconhecida.
— É ele! — exclamou George. A esperança que revelava sua voz deveria estar reservada para o Segundo Advento.
— Se aproxime de seu cavalo — ordenou Jess. — Ele pode precisar de ajuda.
E subiu velozmente pelo breve passadiço até a cobertura superior. Pôs o pé no cordame como para escalar, mas não teve tempo.
Do alto parapeito do Golden Hind, o Corsário se pendurou por uma corda atada ao alto do mastro principal. A luz do sol nascente refletia brilhos ao cofre que carregava sob o braço esquerdo, impedindo de mover-se a todos os que estavam nas proximidades.
Por um momento todo pareceu deter-se. O Corsário deslizou com agilidade pela corda e aterrissou na cobertura superior do Mary Catherine, diante de Jessica.
Olhou-a aos olhos.
— Você resgatou o dinheiro — sussurrou ela, com os olhos cheios de vida e alegria.
Ele a segurou com um só braço e a beijou na boca entreaberta.
Jessica ficou tão surpreendida que não pôde afastar-se. Mas quando ele se afastou tão subitamente como havia chegado, à moça esqueceu por que estavam todos ali. Só tinha consciência de que esse desconhecido tinha ousado beijá-la. Levantou a mão para o esbofetear, mas ele segurou seu punho e lhe deu um beijo audaz na palma da mão.
— Bom dia, senhorita Jessica — disse, sorrindo com ar presunçoso.
Um momento depois já não estava ali. Encaminhava-se para a corda que pendia pelo lado do navio.
Mas ela não podia perder um tempo precioso em cóleras inúteis. Devia ajudar o Corsário em sua fuga. Se os marinheiros do Golden Hind estavam estupefatos, não ocorreria o mesmo com seu capitão. Jess ouviu as ordens que gritava. Vindo de cima se viam os movimentos de quatro homens que se preparavam para abordar Mary Catherine.
Jessica não cometeu a tolice de acreditar que tinha condições de deter os marinheiros de Sua Majestade, mas sim resolveu atrasá-los. Tomou um cilindro de corda que tinha a seus pés, grossa como seu braço, e arrojou uma ponta para George, que tinha voltado para a cobertura com os primeiros sinais de comoção. O Corsário desapareceu pelo lado do navio.
Quatro marinheiros corriam pela cobertura do pequeno bote pesqueiro, pisando nos calcanhares do herói. George puxou pela ponta de seu lado da corda, Jess fez o mesmo. Os quatro marinheiros caíram escancarados, exato quando no cais se ouvia um tamborilar de cascos de cavalos.
— Capturem-no! — ordenou o capitão do navio inglês.
Um momento depois, mãos rudes a seguravam com cobiça. Os homens sorriam ao lhe roçar os seios ou as nádegas.
Tiraram-na aos puxões de seu navio para levá-la pelo cais e pela prancha de Golden Hind. Depois a empurraram até fazê-la cair de joelhos diante do capitão inglês, com George a seu lado.
O capitão, homem cinqüentão, baixo e musculoso, olhou-a com o nariz altivo.
— Então é assim que se vestem as damas nas Colônias? –Zombou. — Levem-nos para abaixo.
Separaram à moça de seu companheiro e a jogaram em um quartinho imundo, na adega da nave. No fundo havia cinco centímetros de água lamacenta, cabia suspeitar que, em outros tempos, tinha sido um depósito, de excrementos de porco.
Em poucos minutos tinha a sensação de haver passado a vida inteira nesse lugar úmido e escuro. Não podia mover-se sem pisar no sedimento do chão. Não havia onde sentar-se nem modo de escapar da sujeira.
Ali permaneceu de pé na água, que se infiltrava rapidamente pelo couro de suas botas. Esperava. Não lamentava ter ajudado o Corsário, mas agora pensava nas conseqüências de seus atos.
Quando a porta de sua cela se abriu, horas depois, Jessica estava disposta a enfrentar seu verdugo.
Quem estava de pé na cobertura era Alexander, resplandecente em seu traje de cetim amarelo, a luz do sol se refletia em sua enorme barriga, arrancando brilhos que a cegaram. Levantou uma mão para proteger os olhos.
Embora não pudesse ver muito bem seu amigo, percebeu seu aborrecimento com muita claridade.
— Vamos! — Foi tudo quanto ele ordenou, em voz baixa e sibilante.
— Mas eu...
Ele a empurrou pelo ombro para a prancha.
Jess tratou de manter a cabeça erguida ao passar entre a multidão que se reuniu de ambos os lados do cais. Alex subiu à boléia de uma carreta sem sequer a olhar. Enquanto ela subia a seu lado, fracamente, agitou as rédeas e dirigiu os cavalos rua abaixo.
— Por que está tão zangado? — gritou ela, para fazer-se ouvir por sobre o ruído da carreta.
Não houve resposta.
Ele a levou por um caminho de terra até deixar para trás o bosque. Quando começaram a subir a colina, Jess compreendeu que se encaminhavam para a encosta mais próxima.
— Baixa — ordenou ele, quando se detiveram.
— Antes me dirá o que aconteceu.
Alex, debatendo-se contra seu falso ventre, deu a volta ao veículo para aproximar-se pelo outro lado.
— Tive que subornar para te salvar da forca, sabia? Ao ajudar o Corsário estava indo contra a marinha inglesa.
— Esse capitão queria enforcar você e George, como exemplo para outros. Pensava que assim deteria o Corsário.
— Ah — murmurou Jessica, enquanto descia. — Já achava isso. Por que viemos aqui?
Alex asserenou sua voz.
— Eleanor te enviou roupas limpas, sabão e toalhas. Cheira pior que antes de entrar naquela cela. — O jovem tampou o nariz com o lenço perfumado. — E Eleanor considera que será bom se manter fora da vista por alguns dias.
— Por que não veio contigo? — sentia saudades da irmã, enquanto recolhia a trouxa de roupa do fundo da carreta.
— Pelo que parece, sofreu uma pequena colisão com um cubo de água saponácea. Conforme acredito, foi como resultado de um comentário que fez de Nick, algo como: que não servia para esfregar roupa suja. E Nick parece ter pensado o contrario.
Jessica o olhou, boquiaberta.
— Vai dizer-me que esse menino malcriado jogou água suja em minha irmã?
— Isso acredito, sim.
— Pois terá que me ouvir — assegurou ela, voltando a subir na carreta.
Alex a segurou por um braço.
— Eleanor já lhe disse o que pensava dele. Não tem importância mais, asseguro-lhe isso. Agora devemos nos ocupar de você. Precisa de um banho com urgência.
Contra sua vontade, Jessica o seguiu pela colina até a vertente e seu pequeno lago. Ele se sentou de costas para a moça para que pudesse despir-se. Além disso, desse modo ela não veria o suor que estava correndo pelo seu pescoço.
— Me conte o que aconteceu — disse, obtendo que sua voz soasse mais ou menos normal.
Jessica tratou de suprimir as emoções e começou a contar tudo como tinha acontecido na tarde anterior e como tinha esperando a chegada do Golden Hind. Só parte de sua mente estava atenta ao relato. A outra parte se perguntava por que sua irmã tinha enviado esse homem com instruções de obrigá-la a banhar-se. Em outras circunstâncias teria achado inconcebível despir-se a tão pouca distância de um homem... mas Alexander Montgomery lhe recordava tão pouco de um homem que era quase natural. Se tivesse sido esse horrível Corsário, em troca...
— Continue — insistiu Alex, secando as palmas das mãos na erva. — O que aconteceu ao aparecer o Corsário?
Jessica e ensaboou os pés.
— Como odeio esse homem! Como o odeio! Ali estava eu, arriscando a pele para ajudá-lo, e me fez passar por tola mais uma vez.
— Dizem que te beijou.
— Se isso pode chamar-se beijo. Digamos que tentou. Depois de tudo o que eu tinha feito por ele! Doem-me os braços de tanto levantar a rede carregada de camarões e ele me trata desse modo. Deveria ter arrancado sua máscara para revelar a todos quem era. Ele merecia.
— Mas não o fez — observou Alex, em voz desce. — Em troca deteve a perseguição dos homens do rei. Se não fosse por sua ajuda, o Corsário não teria podido fugir.
— E percebeu como me paga? Não o fiz por ele, asseguro-lhe isso, mas sim por Josiah Greene.
— Sabe que o Corsário entregou o dinheiro a Josiah? E este abandonou imediatamente a cidade.
— Com o George?
— Não. — Alex vacilou. — Amanhã George receberá vinte chicotadas com um látego de nove tiras com pontas de chumbo.
Jess ficou sem respiração.
— Isso poderá matá-lo — sussurrou, enquanto enxaguava os cabelos. — Temos que fazer algo por ajudá-lo, Alex.
— Não faremos nada. Você, menos que ninguém. Depois de hoje já tem uma marca contra você. Façam o que fizerem Jess, não poderá ajudar ao Corsário nunca mais.
— Não se preocupe. Quanto muito, ajudá-lo-ia a subir ao patíbulo.
— Está zangada com ele, verdade? Não te ocorreu pensar que esse beijo pôde ser uma maneira de dizer: obrigado?
— Não — assegurou Jess, enquanto atava o colete do vestido diante de seu amigo. O algodão verde estava descolorido e gasto, os cordões, puídos pela velhice. Esse vestido tinha sido de sua mãe e de Eleanor antes de passar a suas mãos. — Acredito que se considera o favorito de todas as mulheres.
Sentou-se de frente a ele para desembaraçar os cabelos com o pente de madeira que Alex tinha lhe entregado.
— E não é seu favorito? Deixe-me vê-la, dê uma volta, que eu farei isso. Do contrário não ficará um cabelo nessa cabeça.
Com muita suavidade, Alex começou a pentear o longo cabelo.
— Posso te assegurar que não. — Ela jogou a cabeça atrás, aproveitando a sensação que deixava o pente.
— Você não gostaria de se casar e ter filhos, Jess?
— E quem se casaria com uma dos Taggert? Aqui todos temem ver-se obrigados a criar Nathaniel. Sabe o que precisa esta cidade? —Adicionou, voltando-se para olhá-lo — A presença de Adam. Ou de Kit. Sim, Kit poderia fazê-lo.
— Meus irmãos? — estranhou Alex, horrorizado. — E o que acha que fariam meus irmãos?
— Salvar-nos. Quero dizer, salvar a cidade. Eles não permitiriam que Pitman mandasse na casa dos Montgomery. Jogá-lo-iam na rua.
— Arriscando-se a ira do rei? — observou Alex, incrédulo.
— Eles encontrariam a maneira de fazê-lo, de salvar Warbrooke, de libertar sua irmã e eliminar Pitman. Há outros funcionários de alfândegas, sabe?
Ele se recostou na erva e cortou uma margarida para cheirá-la.
— Então acha que meus irmãos são capazes de tudo isso — comentou, dissimulando a tensão de seus lábios atrás da flor.
— Adam ou Kit seriam capazes de algo assim. Quando era pequena estava acostumada...
— O que? —perguntou Alex, ocioso.
Jess sorriu, sonhadora.
— Estava acostumado a me imaginar casada com Adam. Era tão belo, tão orgulhoso e inteligente. E tinha olhos de águia. Não sabe onde está agora, verdade?
— Demônios — exclamou ele. E adicionou apressadamente: — Desculpa. Espetei meu dedo. Segundo minhas últimas notícias, Adam ia rumo a Cathay e Kit combatia não sei em que guerra.
— Não acredito que receberam as cartas de Mariana pedindo ajuda.
— Não. Não virá outro, além de mim.
De repente Jess compreendeu os sentimentos que devia estar despertando em seu amigo. Pelo visto, ele não podia evitar ser como era.
— Alex, alguma vez pensou em fazer um pouco de exercício? Talvez se me ajudasse a pescar camarões por alguns dias, baixaria de peso.
Alexander se estremeceu delicadamente.
— Não, obrigado. Está pronta? Começa a fazer frio.
— Não discutimos o que faremos para ajudar George.
— Não há nada que possamos fazer. Curar-se-á. Tive que molhar a mão desse capitão para que não o enforcasse. Melhor esfolado que pendurando em um nó no patíbulo. Amanhã, durante o castigo, ficará em sua casa. — Olhou-a de soslaio. — Talvez o Corsário resgate George.
Ela lançou um grunhido.
— E quem resgatará o Corsário? É incompetente, no melhor dos casos. Por sua arrogância morrerá alguém.
"Eu, provavelmente", pensou Alex.
06
Alexander olhou a seu redor com cautela. Tinha sido difícil resgatar George Greene do castigo do látego. Nicholas tinha ajudado instalando seus criados atrás da multidão. No momento em que Alex, vestido de corsário, preparava-se para sair a galope de seu esconderijo, Nick deu a ordem de fazer fogo. Na confusão conseguinte, o cavaleiro pôde cruzar a multidão, subir George a sua sela e escapar sem dano. Levou muito tempo para escapar dos soldados ingleses, mas estes não conheciam a zona; tinha sido um jogo de meninos ocultarem-se e fugir.
Josiah Greene estava esperando no limite do bosque, com cavalos e uma passagem de bordo de um navio que zarparia para o sul.
— Tinha certeza de que você viria — disse. — Tinha certeza de que não deixaria açoitarem meu moço por havê-lo salvado.
Alex ficou um pouco desconcertado ao ver que Josiah tinha previsto facilmente os atos do Corsário e o lugar por onde entraria no bosque. Se ele adivinhava assim, talvez a próxima vez houvesse todo um exército esperando-o. Sem dizer uma palavra, o Corsário liberou George e desapareceu entre as árvores.
Surpreendia-lhe pensar na celeridade com que essas pessoas o tinham convertido em um símbolo de esperança. Já dependiam dele para que os salvasse de qualquer injustiça. Nem todos, é obvio. Ali estava Jessica Taggert.
Recordou as palavras da moça: Adam ou Kit poderiam salvar à cidade. "Não pensou em baixar de peso, Alex?" Bem teria gostado faze-la sentir seu peso. E Eleanor o tinha enviado com roupas limpas para sua irmã, encarregando-o que a obrigasse a banhar-se. Essas mulheres pareciam ignorar sua condição de homem. Jessica se despia a dois metros dele. Até lhe tinha pedido que a sustentasse pelos tornozelos para alcançar essa rede podre. Nessa oportunidade, Alex não tinha acreditado ser possível sobreviver à experiência.
Ajeitou a máscara, assegurando-se de que estivesse bem ajustada. Às vezes sentia desejos de segurar Jessica e demonstrar que era um homem.
— Ohhhhh!
O grito era meio desmaio e meio súplica. Imediatamente compreendeu que, concentrado em seu dilema a respeito de Jessica, tinha esquecido em manter-se alerta.
Reprimiu seu cavalo e prestou atenção. Alguém avançava para ele, quebrando os galhos secos. Com a espada na mão, aguardou.
A senhorita Abigail Wentworth, com seu bonito rosto avermelhado pelo esforço, apareceu entre as árvores. Lançou uma só olhada ao Corsário, montado em seu potro negro, e começou a cair, com a mão no seio.
Alex desmontou em um segundo e a sustentou antes que tocasse o chão.
— Usará isso comigo? — ofegou ela, amolecida entre seus braços, olhando a espada. — Cortará minhas roupas para tirá-las antes de satisfazer sua vontade comigo?
— Caramba, não, não é mi...
Não tinha certeza do que responder a isso, mas o espetáculo desse seio palpitante, tão exposto à vista - ela já tinha tirado o xale, deixando à vista um bom pedaço de carne jovem e rosada – deixando claro seu oferecimento.
— Sente-se bem? — perguntou.
Jogou os braços no seu pescoço, estreitando-se contra ele.
— Sou sua escrava, sua cativa. Faça comigo o que queira.
Alex arqueou as sobrancelhas. Entretanto não era dado a duvidar dos golpes de sorte, e um minuto depois a estava beijando. Ela respondeu ao beijo com tanta paixão que, quando o jovem reagiu, estavam já meio deitados pelo chão.
A moça era quente e estava bem disposta... mas nem por isso deixava de ser a filha de Wentworth, velho amigo dos Montgomery.
— Abby — rogou, tratando de desprender-se daqueles braços. O cabelo da moça se soltou e roçava sua bochecha, suavemente. — Abby...
O nome surgiu como uma queixa.
— Eu adoro como diz meu nome. Meu corsário, meu verdadeiro amor... — A moça moveu os quadris contra ele, tratando de voltar a beijá-lo, mas ele se afastou.
— Volte para sua casa, com sua mãe — disse, com voz um pouco estremecida. Que castigo, ser o Corsário em sua cidade natal! Em qualquer outro lugar se sentiria em liberdade de aproveitar-se dessa jovem sem pensá-lo duas vezes. — Volte para sua casa, Abby, por favor.
Ela se jogou contra uma árvore, ruborizada; os seios pareciam a ponto de escapar do ajustado vestido.
— Que nobre você é! — murmurou.
— Oh, estúpido! — balbuciou ele, observando-a. Se não fugisse logo perderia o domínio de si. E metade de seu cérebro o estava chamando de tolo. Por fim subiu de um salto à sela de montar. — Adeus, senhorita Abigail — sussurrou, enquanto aplicava os calcanhares nos lados de seu cavalo.
"Malditas sejam todas as mulheres!", jurava para seus adentro.
Jessica não acreditava sequer que ele fosse homem. Abigail acreditava que ele era mais viril que dez sementais. Moveu-se na sela, inquieto, absolutamente seguro de sua própria virilidade. Seria melhor chegar a Ilha Fantasma... e rezar para que Deus não pusesse mais mulheres em seu trajeto.
Jessica olhou o grande cesto cheio de amoras e fez uma careta. Ela, que era capaz de pilotar seu próprio navio até as costas de Nova Sussex, sem ajuda alguma, estava relegada à tarefa de recolher amoras como um menino travesso.
E tudo por culpa do Corsário!
Ao se anunciar que George Greene ia ser açoitado, todo mundo havia dito que o Corsário o salvaria. Que o Corsário devia salvar o moço, como se fosse questão de honra.
Como se alguém soubesse algo sobre o senso de honra do Corsário! Todos os habitantes da cidade pareciam ter adotado esse homem de habilidades mágicas e talentos sobre-humanos. Supunham que o mascarado corrigiria todas as ofensas e brigaria sozinho contra as leis britânicas.
Mas nem todos acreditavam na perfeita bondade do Corsário. Ao entregar dez quilos de peixe na casa dos Montgomery, Jessica tinha recebido a mensagem de que Sayer desejava falar com ela. Não o via desde aquela noite em que o Corsário a jogou na água suja de roupas lavada. Entrou correndo no quarto do inválido, mas ao sair já não sorria.
Sayer tinha exigido que ela, no dia seguinte, permanecesse fora da cidade. Ela estava a ponto de perguntar quem lhe tinha dado direito de ordenar semelhante coisa, mas calou seus pensamentos. A família Montgomery tinha ajudado muito à sua, de ano a ano. Além disso, não estava bem mostrar-se desrespeitosa com um ancião inválido, que só se preocupava com seu bem-estar. Ainda contra sua vontade, prometeu que passaria eh! O dia inteiro no bosque. Sayer não queria que se aproximasse sequer do cais.
Por isso estava ali, fazendo trabalhos de menino. E tudo por culpa desse homem que se fazia chamar de Corsário.
Perto das matas de amoras, sob algumas árvores, havia um leito de musgo que era muito tentador. Talvez fosse conveniente chegar em casa muito tarde, para que Eleanor se preocupasse um pouco por ela. Com um sorriso um pouco orgulhoso, estendeu-se no musgo e, em poucos minutos, estava adormecida. Por desgraça, começou a sonhar com o mascarado que tanto tinha arruinando sua vida. Reviveu em sonhos o momento em que o homem a tinha humilhado e o beijo que lhe tinha dado um segundo antes de escapar com sua ajuda.
— Jessica! Está bem, Jessica?
A moça despertou com dificuldade, aferrando-se aos fortes braços que a sustentavam.
— Estava sonhando — disse. — O... — Interrompeu-se, porque quem a abraçava era o mesmo homem que estava causando tantos problemas: o Corsário.
— Você! — exclamou. — Você!
E, sem pensar duas vezes, atirou-lhe um murro em plena mandíbula.
— Maldita malcriada! — bramou o mascarado, segurando-a pelos os ombros para empurrá-la contra o chão.
O tecido do vestido, já muito desgastado, rasgou-se do pescoço até a cintura, deixando descoberto uma linha de fio branco muito sutil, através do qual se entrevia o tom rosado da pele.
Jessica sentiu o rasgão e apreciou a expressão dos olhos, meio cobertos pela máscara negra.
— Se me tocar, vai...
— Você merece — assegurou ele, furioso.
E a manteve imobilizada contra o chão, enquanto seus lábios desciam sobre os dela.
Jessica sentiu o contato daquela boca pela segunda vez e começou a debater-se. Preferia morrer antes que esse homem a obrigasse a tais intimidades. Atacou-o a ponta pés e conseguiu acertar uma tíbia. O Corsário afundou o estômago pela dor, mas não deixou de beijá-la.
Bastou colocar uma perna sobre as dela para imobilizá-la. Jess tratou de tirá-lo de cima, retorcendo-se, e afastou bruscamente o rosto para escapar daquele beijo torturante.
O Corsário segurou suas mãos por cima da cabeça com a mão direita; logo usou a outra mão para sustentar seu queixo e voltou a apoderar-se de sua boca. Para impedir que movesse os quadris jogou em cima dela todo o peso de seu corpo.
Por um momento, Jessica permaneceu imóvel. Por ela passavam emoções que nunca antes tinha experimentado. Era isso o que fazia cochichar às recém-casadas, entre risadinhas tolas? Era esse sentimento o que fazia brilhar os olhos das moças comprometidas?
O Corsário se afastou de seus lábios, mas manteve o rosto muito perto do seu. Já era noite, a luz das estrelas dava a seu olhar mais brilho que nunca e obscurecia até mais seu rosto.
— Jessica — disse e em sua voz havia algo estranho.
Ela piscou por duas vezes. Por fim, com um movimento brusco, afastou-o de si e se levantou. O Corsário, sorridente, olhou-a com fixidez.
— E bem, Jessica: apesar de seus ares masculinos, é toda uma mulher, depois de tudo.
Jess tomou um punhado de amoras de seu cesto e se dispôs a arrojar-lhe no rosto.
O homem, como um grande gato, levantou-se de um salto e segurou sua mão. Fechou o punho ao redor de seus dedos e apertou até que as frutas brotaram entre eles, reduzidas à polpa. Sem deixar de olhá-la nos olhos, ele lambeu o suco que se filtrava entre as unhas. Sem saber por que, Jessica sentiu que o coração pulsava mais depressa só em ver sua língua.
O Corsário não teve nenhuma dificuldade em imobilizar sua mão às costas. Aproximou seu corpo até quase tocá-la.
— Acredito que escaparam algumas amoras — sussurrou.
Inclinou o rosto até beijar o seio palpitante. Depois a olhou.
— Adeus, minha doce Jessica. Tenho certeza de que voltaremos a nos ver.
Enquanto ele montava seu cavalo, Jessica continuava imóvel, com as mãos paradas aos lados e as amoras esmagadas jorrando pela saia.
Ele levou a ponta dos dedos aos lábios para jogar um beijo.
Foi seu sorriso, esse sorriso conhecedor e presumido, o que tirou a moça de seu estupor. Tomou outro punhado de amoras e o jogou na cabeça. Mas ele já estava em plena cavalgada. Só ficou no bosque o ruído de sua gargalhada, que retumbava entre as árvores.
— Odeio-o, odeio-o, odeio-o! — exclamou, golpeando o chão com os pés, enquanto recolhia os dois cestos de fruta. — O odeio francamente, com todo meu coração!
Começou a andar pelo atalho para a cidade. Num impulso voltou-se para olhar o leito de musgo aonde tinha estado com o Corsário. Sem pensar no que fazia, arrancou uma diminuta flor amarela de junto ao musgo e a enfiou ao esmigalhado corpete de seu vestido.
— Terei que dar um jeito isto — murmurou, enquanto deslizava a mão pela borda da roupa. — Odeio-o, como o odeio! — repetiu.
Era como se pela primeira vez não desse crédito a si mesma. Por fim começou a andar para sua casa.
— Outra vez castigando o cavalo? — assinalou Nicholas, aproximando-se de Alexander por atrás. — Semelhante atitude só pode ter sido causada por sua Jessica.
Alex continuou escovando energicamente o cavalo. A pelagem negra estava reluzente. Com um gesto distraído, espantou os mosquitos que buscavam sua pele suada.
— Pelo que sei, tampouco para você está muito bem. Enlameou o chão da cozinha?
Nick grunhiu a maneira de resposta, enquanto depositava seu enorme corpo no lugar mais seco que encontrou naquela ilha pantanosa.
— Essa mulher acabará sendo usada como bucha.
— Compreendo-te bem. Jessica vai ser minha perdição. Por momentos se mostra mais fria que o inverno, que cristaliza até as pestanas, por momentos me chamusca a pele.
— Eleanor quis que limpasse a lareira. Disse-lhe que eu ponho lenhas ali, mas nunca as tiro.
— Claro que Jess arriscou a vida para ajudar o Corsário. Se não fosse por ela o teriam preso. E não é justo que ele a trate com tão pouco respeito.
Nick esfregou o queixo.
— Sempre me disseram que tenho porte de realeza. Muitas mulheres asseguram que adivinhariam meu parentesco com o czar mesmo que me vissem nu. Ou talvez com mais facilidade ainda. Sendo assim, como é possível que essa Eleanor Taggert não reconheça minha origem real? Como pode fazer de mim um... uma faxineira de cozinha?
Alex começou a pentear as crinas do cavalo.
— Na verdade é muito corajosa — disse. — Sabia que toda a cidade estava rindo dela por se deixar prender em um calabouço? George Greene era um herói e o Corsário também, mas Jessica Taggert era uma tola.
— Eleanor tem que está cega. Tem os olhos mais azuis e luminosos do mundo, mas são inúteis.
— Riem dela por suas roupas, por seu velho navio e por esse bando de pirralhos, mas ela faz o melhor que pode. A pequena Molly me disse que Jess só tem aquela calça que usa para pescar e esse velho vestido verde, tão feio. — Deixou de escovar. — E o Corsário rasgou seu vestido.
— Disse Eleanor... — Nick se interrompeu. — Ouça, não é você o Corsário? Não foi você quem lhe rasgou o vestido?
Alex franziu o cenho.
— Sim, acredito que sim. Não era minha intenção, mas foi culpa de Abigail. "Faça de mim o que queira", — repetiu, zombador. — e lá estava Jessica, estendida na terra. Dormia, mas no princípio acreditava que estava ferida e o Corsário... quero dizer, abracei-a e ela me golpeou e...
— E o vestido se rasgou. Compreendo. Você arrancou tudo?
— Não, é obvio! Nem sequer o Corsário, arrebatado como é, faria mal a uma mulher virtuosa.
— Poderia ter usado sua espada. Às mulheres gostam. Uma vez despi a uma cigana, peça por peça, enquanto dançava. E depois...
Alex arrojou a escova ao chão e começou a andar em direção a Nick.
— Ela não é uma dessas! É corajosa, generosa, inteligente e...
— Mas o Corsário se aproveitou dela. Deveria desafiá-lo a um duelo.
Os olhos de Nick riam, a boca se contraía, travessa.
Alex se deteve diante dele, com os músculos duros pela irritação. Começava a apreciar o absurdo do que estava dizendo. Então se voltou para o potro.
— Sou o Corsário, mas também sou Alexander.
— Aí está o dilema! As mulheres amam ao homem em si ou o que acreditam ver nele? Talvez ela não possa escolher entre a mente do homem e seus beijos. O que acha que escolherá?
Alexander não pôde responder por que, no momento, não tinha certeza do que teria preferido, ele mesmo, que Jessica escolhesse.
A idéia o fez rir.
— O que me importa que faça Jessica Taggert? Agradeço-lhe que ajudou o Corsário. Quer dizer, que me ajudasse. É bonita e desejável, mas também é a metade das mulheres solteiras do mundo. Meu pai me informou ontem a noite de que é hora que me case e lhe dê um ou dois herdeiros. Não quer morrer sem netos, e acredito que está dedicando muito tempo ao jovem Nathaniel.
— Não mencione esse pirralho! — protestou Nick. — Não deixa Eleanor só nem a sol nem a sombra. Ontem... — Nick se interrompeu, sorrindo ante alguma lembrança que, pelo que parecia, preferia guardar para si. — Não seria tão difícil se esse jovenzinho não estivesse sempre entre meus pés. — Levantou a cabeça. — Por que não se casa com sua Jessica?
— Sob que nome? O do Corsário ou de Alexander, a quem ela acha gordo e preguiçoso? O Corsário a desposaria em meio de um salto entre ramos e galhos, fugindo dos ingleses. Alex não conseguiria decidir-se entre uma jaqueta e outra. Duvido que ela escolha a qualquer um dos dois.
— Ah.
— E isso o que significa?
— Ah, nem mais nem menos.
Alex deu uma última escovada no cavalo.
— Amanhã Alexander Montgomery sairá, a cortejar. Há outras mulheres na cidade, além da senhorita Jessica. Mulheres doces, dóceis, que julgam a um homem pelo que tem em seu interior. Talvez não impressione muito bem com acolchoados e peruca, mas debaixo de todo isso há um homem. Já verá essa Jessica, quando outras mulheres saibam ver por detrás de uns quantos metros de cetim.
— Tem mais fé nas mulheres que eu.
— Só tenho fé na Jessica. Tem mais senso comum que as outras mulheres.
— Como a irmã. Salvo de vez em quando...
— De vez em quando Jessica atua como idiota. Por que não se dá conta de que sou...?
E os homens continuaram com os lamentos de todos os homens.
Eleanor tratava de preparar o jantar na mesma mesa onde Jessica estava fazendo a contabilidade.
— Quer pôr mais cuidado? — protestou Jess, quando Eleanor lhe salpicou uma página com massa líquida. — Não acredito que ao velho Clymer goste de ver manchas em seus livros.
— Importar-lhe-ia muito pouco. Só os usa como desculpa para ver-te. Isso de que tem a mão ferida é mentira. Ontem lhe vi usar um machado.
— Seja como for, virá-nos bem o couro de seu curtume. Os meninos precisam sapatos para o inverno.
Eleanor seguiu batendo a massa no prato de madeira.
— Viu ultimamente Alexander, Jess?
— Faz uma semana que não o vejo — respondeu ela, enquanto somava mentalmente.
— Não houve rixa, verdade?
Jess olhou sua irmã como se a achasse louca.
— Do que está falando? Por que teríamos que brigar?
A mais velha derramou a massa líquida em um molde de ferro, junto à pequena lareira.
— Não sei. Pareciam muito bons amigos e agora não o vê. Esteve zombando outra vez dele?
Jess apertou os dentes.
— Não. Não ri mais dele. Não lhe ameacei com o dedo. Não me escondi atrás das portas para assustá-lo quando passa. Você deveria saber muito bem por que não o vejo, por que não vejo ninguém.
O olhar que cravou em Eleanor, por cima da mesa, era fulminante. Como resultado de seu encarceramento por ter colaborado na fuga do Corsário, uma vez que Alex teve obtido sua liberação, Jessica tinha recebido um enérgico sermão da boca do Sayer Montgomery, enquanto sua irmã, sentada a pouca distância, empapava de pranto cinco ou seis lenços de seu patrão. Não bastava com que a tivessem relegado no bosque, no dia em que se açoitaria George Greene: ao retornar dali, com o vestido esmigalhado e um hematoma no pescoço, encontrou Eleanor quase histérica. Tratou de explicar porque o vestido estava rasgado com uma mentira, mas sua irmã percebeu imediatamente e ela acabou sendo descoberta ao ruborizar-se como uma tola assim que se mencionou o nome do Corsário.
Agora, uma semana depois daquela incursão, Jess continuava mais ou menos encerrada em sua casa. Não tinha saído a navegar e nem tinha ido à cidade. Em troca devia encarregar-se dos sete meninos. Como se não bastasse isso para deixá-la louca, o velho Clymer tinha pedido que revisasse as contas de seu curtume em troca de vários couros curtidos.
Fazia uma semana, Jess registrava vendas, — Clymer estava dois anos atrasado com a contabilidade — tirava uma criança da lareira acesa, somava uma coluna de cifras; evitava que um de seus irmãos matasse o outro, voltava a somar a coluna; chiava para Nathaniel que fosse juntar moluscos, em vez de atormentar a sua irmã, somava a coluna pela terceira vez e dava uma palmada em Sam por puxar a cauda do gato e... assim foi ao longo de sete longos dias.
E agora Eleanor vinha perguntar se não tinha feito zangar Alexander.
— Não tenho feito ninguém se zangar. Comportei-me como uma perfeita senhorita. Fundi finais de velas para fazer outras, lavei roupa suja, limpei caras e traseiros, e...
— E se esquivou todo o tempo do funcionário da alfândega. Sabe que esse homem suspeita de você, Jessica. Só o senhor Montgomery...
— Sim, sei e estou muito agradecida — suspirou Jess. — Agradeço-lhe realmente tudo o que fez e lamento muitíssimo ter cometido à estupidez de ajudar o Corsário. — Olhou sua irmã nos olhos. — Algumas não é verdade?
— Há pôsteres pregados em qualquer parte, oferecendo recompensa por ele. O senhor Pitman está decidido a liquidar com o seu Corsário.
— Não é meu Corsário! Absolutamente! Só cometi o engano de estar aonde não devia e no pior dos momentos.
Eleanor abriu a boca para falar, mas a interrompeu um golpe à porta. Levou um momento abrir caminho entre os meninos, que tinham corrido para lá. Na soleira estava Alexander, resplandecente com seu traje de seda rosada. Usava os cachos de sua grande peruca recolhidos sobre o pescoço com um laço de cetim, rosado também. Nas mãos sustentava um arca de madeira esculpida. Enquanto saudava Eleanor, deu um tapinha na cabeça de um menino, depois olhou sua mão.
Eleanor lhe entregou um pano molhado, dizendo:
— Boa noite, Alexander. O que te traz por aqui?
— Vim para falar com Jessica — explicou ele, com certo acanhamento. — Poderia vê-la aqui fora? Poderíamos caminhar até o moinho.
— Quieto, Sam! — ordenou Jess. — Não sei, tenho que trabalhar nestes livros. É importante?
— Acompanhará-te imediatamente — respondeu sua irmã, empurrando Alex para fora, enquanto voltava a tomar o pano molhado. — Jess, ponha meu manto e o acompanhe.
— Quando quero sair de casa me diz que é muito perigoso, mas assim que chega Montgomery desaparece o perigo. Quem me protegerá dos beija-flores que poderiam atacar essa jaqueta dele?
— Jessica! — Advertiu Eleanor. — Faça o favor de acompanhá-lo. Ele passou a semana cortejando a distintas jovens casadouras.
Jess abriu muito os olhos.
— E acha que agora é minha vez? Oh, céus! Nathaniel, vá procurar um pote de tinta de guerra, que o senhor Alex saiu em caçada.
Eleanor, imóvel, fulminava-a com os olhos.
— Está bem, já vou. Nate, se me ouve gritar, vá me buscar.
— E os beija-flores? — perguntou Molly.
Eleanor empurrou à moça, que ainda usava seu traje de marinheiro, sem colocar sequer o manto.
— Comporte-se bem com ele — sussurrou, antes de fechar a porta.
— Olá, Alexander. Esteve trabalhando? – perguntou Jess, sorrindo-lhe, quando se puseram a caminhar.
Teria se alegrado de vê-lo — qualquer coisa seria uma distração — senão fosse pela contabilidade do senhor Clymer, que precisava terminar o quanto antes.
— Inteirei-me que esta semana esteve recebendo o senhor Clymer — comentou Alex, apertando contra o peito o arca apoiada em seu ventre.
— Com mais freqüência do que eu gostaria. Diz que machucou a mão e que não pode contabilizar suas notas contáveis. E acha desculpas para me visitar quatro vezes ao dia.
— Não te pediu que se casasse com ele? — perguntou Alex.
— A cada doze minutos, conforme calculo. A última vez que o fez, Sam urinou em seu colo. Esse velho cara de peixe não moveu um músculo. Continuava sentado, esperando minha resposta.
— E qual foi?
— Não, obrigado, senhor Clymer, mas é uma honra que me proponha isso. O mesmo que venho lhe dizendo há anos.
— E por que não se casa com ele? É rico. Poderia lhe proporcionar um bom lugar para você, Eleanor e a seus irmãos viverem. Também roupas bonitas e todas as coisas que as mulheres desejam.
— Não todas as mulheres. Quando morreram nossos pais, Eleanor e eu fizemos um juramento: que só nos casaríamos se assim o desejávamos e que esperaríamos que se apresentasse o candidato devido. Não nos conformaríamos a não ser com o melhor.
— E Clymer não é o melhor?
Ela se deteve para olhá-lo de frente.
— A que vem tudo isto, Alex? E o que tem nessa caixa? Eleanor disse que passou a semana cortejando. Tem algum problema?
— Não poderíamos nos sentar? — Propôs ele, com sinceridade. — Estes sapatos me apertam. — Sentou-se em uma pedra plaina, à beira do caminho. — Na verdade Jess vim te pedir um conselho. Meu pai quer que me case.
Olhava-a atentamente, procurando suas expressões emotivas.
— E? — Perguntou ela, enquanto se sentava na erva, a pouca distância, com um talo de erva entre os dentes. — Há mulheres de sobra nestes arredores. Não encontra nenhuma de seu gosto?
— Algumas. Cynthia Coffin é muito bonita.
— Sem dúvida alguma. Além disso, seu pão é delicioso. Seu pai gostaria. Propôs?
Não viu o olhar de desgosto no rosto de Alex.
— Ainda não tenho proposto a ninguém. Estou investigando, nada mais. Os Coffin adoram a ideia de me ter por genro.
— O senhor Coffin adoraria colocar a mão desse espaço do cais que vocês possuem. Provavelmente pensa que é tão incompetente como... — interrompeu-se para lançar uma olhada dos pés à cabeça. — Jaqueta nova?
Iluminou o rosto dele ao redor dos olhos, que tinham uma fria expressão de aço.
— Você gosta?
— Alex... por que não...?
— E Ellen Makepeace me convidou para jantar — a interrompeu ele.
— Ellen é uma víbora. Em seu lugar, não me casaria com ela.
O jovem apertou os dentes.
— Cathryn Wheatbury não pareceu interessar-se por mim absolutamente.
Jess bocejou.
— Porque está apaixonada por Ethan Ledbetter, como outras tantas. Ethan te vai causar alguns problemas. Você tem dinheiro e o sobrenome dos Montgomery, mas Ethan tem... — Sorriu.
— Que tem esse Ethan?
— Atitude, encanto, inteligência. É todo um cavalheiro. A última vez que esteve no Mary Catherine...
— Ah, no Mary Catherine! O que estava fazendo sozinha com ele? — acusou Alex.
Jessica se levantou, surpreendida.
— Ah! Você também vai me dar ordens! Já tenho muito com seu pai e minha irmã. Acontece que Ethan veio comprar peixe... e veio com sua mãe, para carregar as cestas.
Alex relaxou.
— Pois estranho que tenha podido levantá-la.
— Com aqueles braços? — Aduziu Jess, sorrindo com a lembrança, sonhadora. — Esse homem poderia carregar um quarto de baleia. — Levantou-se, muito rígida. — Contar-te-ei algo, Alex: por duas vezes pensei que Ethan poderia ser o Corsário. Têm a mesma estrutura física. Os dois são altos, belos, fortes... e duvido que Ethan tenha medo de alguma coisa. Apenas no ano passado...
Alex estava muito erguido em sua pedra, rígido como uma espada.
— O que sabe você de como é o Corsário? A última vez que o viu assegurou que o odiava.
— É verdade, mas nem por isso sou cega. Ethan poderia perfeitamente pendurar-se por uma corda, como fez o Corsário.
— O mesmo pode dizer de quase todos os marinheiros que pisam nesse cais. Qualquer um deles poderia ser esse Corsário que tanto elogia.
— Que eu... — Olhou-o à luz escassa do anoitecer. — Está com ciúmes, Alex?
— Do Corsário? — Estranhou ele.
— Não: do Ethan. Muitas moças desta cidade seguem Ethan com a vista, aonde quer que vá. Deve compreender que, se corteja uma mulher, pode estar competindo com Ethan. E ele... ele não tem... quero dizer...
Tratava de andar e falar com tato, mas era muito difícil. Olhou significativamente o ventre e o cabelo de Alex.
Por um momento, os olhos de seu amigo lançaram chamas. Depois os baixou.
— Quero te dizer algo, Jessica. Algo que não contei a ninguém mais, nem sequer a meu pai. Só sabe Nicholas, meu criado. Veja: quando naufragou o navio em que eu viajava, nas costas da Itália, caí com uma febre muito alta. Estive a ponto de morrer.
Olhou-a por entre as pestanas antes de continuar:
— Como resultado dessa enfermidade, certos músculos de meu corpo ficaram afetados. — Colocou uma mão no ventre. — Devido minha febre não posso baixar de peso. Não posso controlar os músculos, que estão muito debilitados.
Jess ficou muda por um momento, varrida por quebras de onda de culpabilidade ao recordar as vezes que riu dele.
— E seu cabelo? — perguntou.
— O que acontece com meu cabelo? Ah, sim, também o perdi. Uso peruca para cobrir a careca.
— Sinto-o muito, Alex — sussurrou ela. — De verdade. Não tinha a menor ideia. E suponho que essa enfermidade te debilitou. Por isso não pode montar a cavalo nem caminhar bem.
— Sim — confirmou ele.
— Mas essa roupa... Talvez se usasse...
— São as únicas que me cabe — enrolou ele. — Se tirar a roupa de seda, só ficará um ex-marinheiro gordo, calvo e de músculos debilitados.
— Suponho... suponho que sim. Lamento-o muito, Alex. Se essas mulheres idiotas soubessem...
— Que mulheres?
— As que você procura para esposa. Se elas soubessem, sem dúvida alguma delas aceitaria ser mais sua enfermeira que esposa. Tentou com Nelba Mason?
— Com a Nelba Mason! — Exclamou ele. — A seu lado os sapos são bonitos. Terá boca bem baixo do narigão?
— Sim, e pequena, mas sem lábios. Olhe Alex, seu pai tem oitenta hectares de terras boas para o cultivo. Está bem! Esqueçamo-nos de Nelba. É certeza que alguma das moças tem que ambicionar seu dinheiro.
— Menos que os braços de Ethan — murmurou Alex.
— É um bom argumento. Mas alguma te quererá.
— Toma — disse ele, mudando abruptamente de assunto. — Te trouxe isto.
Jess tomou a arca de madeira que lhe estendia. Ao abri-lo encontrou no interior um vestido de algodão azul.
— Era de minha mãe — esclareceu ele. — Apenas foi usado.
— Mas não posso aceitar Alex.
— Minha irmã se casou com Pitman e lhe deu poder sobre a cidade. E Pitman é o motivo pelo qual o Corsário apareceu aqui e te rasgou o vestido... Sim, Eleanor me contou isso. Portanto, devo-te um vestido.
— Mas Alex...!
Ele cobriu uma de suas mãos com a sua.
— Aceite-o, Jess, por favor. Também trago laranjas para os meninos. Estão na arca, debaixo do vestido.
— Laranjas? — sussurrou ela.
Recordava algo que tinha ocorrido sendo ela muito menina. Sempre tinha pensado que Adam Montgomery era o mais fascinante de todos os homens que conhecia. Estava acostumado a segui-lo a todos os lados, mesmo que ele era só um jovenzinho com pernas longas. Certa vez, enquanto corria atrás dele pelo cais, caiu e machucou o joelho. Não tinha idéia de que Adam soubesse ainda seu nome, muito menos que soubesse de que ela o seguia. Mas o moço se voltou, ajudou-a a levantar-se e a sentou em um tronco para examinar seu joelho. Por fim lhe sorriu, prometendo: "De hoje em diante caminharei mais devagar." Nessa noite tinha enviado Alex com um precioso abacaxi, só para ela.
— Jess, sente-se bem? — perguntou Alex.
Ela levantou a vista, com um sorriso.
— Talvez seja um Montgomery, depois de tudo.
— Talvez? — Os olhos do Alex se arregalaram. — Já compreendo: me comparado com meus ilustres irmãos.
— Bom... — Balbuciou ela, notando que tinha conseguido deixá-lo zangado outra vez. — Aceitarei o vestido e as laranjas. Muito obrigada.
— Retornemos? — Sugeriu ele, rígido.
Não tinha sido a intenção de Jessica ofendê-lo. Como compensação, segurou-o pelo braço durante o trajeto. Ele voltou a lhe sorrir e pôs uma mão sobre a dela por um instante.
— Não se preocupe, Alex. Já encontrará noiva, asseguro-lhe isso. Falarei com Eleanor e ambas procuraremos por aí. Tenho certeza de que, com o espaço de cais de seu pai e essa linda mansão, acharemos uma jovem bonita e que não se importe com a sua barriga nem a calvície. Talvez tenhamos que procurar pelo sul, porque entre as mulheres que conhecem seus irmãos não haverá possibilidades. Mas não se preocupe.
Sorriu-lhe na escuridão, mas ele mantinha o rosto desviado. Não voltou a dizer uma palavra até que chegaram a casa. Então entregou a Jess a arca de madeira e, com uma cortesia que para a moça pareceu bastante gélida, despediu-se dela.
No dia seguinte Eleanor insistiu que Jessica devia permanecesse novamente em casa. Ainda se mencionava muito o Corsário, pois as pessoas se perguntavam quem poderia ser. O nome de Jessica se associava a ele com freqüência. Eleanor omitiu dizer a sua irmã que a citavam sempre acompanhado de risadas. A bonita moça havia se convertido em fonte de diversão.
Ao cair da noite Jessica já estava desesperada para sair. Não deixava de pensar que apodreceria o fundo de seu navio ou que os soldados ingleses receberiam ordens de rebocá-lo. Eleanor dizia que isso sim, teria sido muito elogio para a embarcação, pela qual só os ratos tinham interesse.
Jessica saiu de casa para esvaziar uma artesa de água suja e, por um momento, deteve-se no limite do bosque, respirando o ar fresco da noite.
De repente um braço rodeou sua cintura e uma mão cobriu sua boca.
— Não se mova. Não faça ruído.
Teria conhecido esse sotaque em qualquer parte. Sacudiu a cabeça e tratou de libertar-se daquela mão.
— Se não gritar te soltarei. Mas se disser uma palavra pode atrair para nós os ingleses.
Jessica assentiu a contra gosto a essa extorsão, pois aquela mão estava deixando-a sem fôlego.
Quando ele retirou a mão, Jess aspirou fundo. Em um só movimento, ele a fez virar até pô-la de costas contra uma árvore. Uma de suas pernas a rodeava com firmeza, um braço segurava sua cabeça e seus cabelos contra a árvore, deixando à outra mão em liberdade para vagar.
— O que quer você? — ofegou ela, observando os olhos depois da máscara. — A que veio? O que fez agora os ingleses?
— Só vim para ver-te — disse o Corsário, movendo o corpo até pô-lo em contato com o dela. Sua mão livre posou na sua cintura, acariciando suas costelas. — Te vigio, Jessie. Vejo-te. Penso em você.
— Eu não penso em você — assegurou ela, tratando inutilmente de soltar-se.
Ele se inclinou para beijá-la no pescoço, debaixo da orelha.
— Alguma vez pensa em mim? Não recorda o momento que passamos entre os arbustos de amoras?
— Não — mentiu ela, enquanto se sentia afundar na árvore e aqueles lábios quentes lhe percorriam todo o pescoço.
Os dedos largos e sensíveis viajaram do queixo para baixo, penetrando sob o xale que cobria o decote quadrado do vestido.
— Vejo que substituiu a roupa que rasguei — observou ele, acariciando com delicadeza a pele arredondada e branda do seio.
— Sim — respondeu Jess, com voz rouca, enquanto ele começava a massagear sua nuca.
— Quem lhe deu isso?
— Alexander. — Seus lábios estavam incursionando para baixo.
O Corsário levantou a cabeça para olhá-la.
— Os vi juntos na escuridão. O que é esse homem para você?
— Um amigo.
— Coloque seus braços no meu pescoço, Jessica — pediu ele, em voz baixa.
Jess estava muito fraca para desobedecer. Levantou os braços e os passou por seu pescoço, enquanto ele a estreitava contra si, sem necessidade de continuar imobilizando-a contra a árvore. Ela sentiu o contato de seu corpo, duro e quente. Começava a agitar-se.
— É minha, Jessica — sussurrou o Corsário. — É minha.
Ela sentiu que a seda da máscara lhe acariciava a pele, exatamente por cima dos lábios. Queria que a beijasse, queria seus lábios nos dela, mas ele lhe negava o contato.
— Eu não pertenço a nenhum homem — conseguiu dizer.
O Corsário a segurou outra vez pelos cabelos e puxou sua cabeça para trás para beijá-la.
Jessica respondeu ao contato, apesar de suas boas intenções. Esse homem não tinha o direito de tocá-la nem dizer que lhe pertencia, mas no momento em que seus lábios a beijaram, deixou de pensar no que estava certo e que estava errado. Abraçou-o com força e se estreitou contra ele, desejando uma proximidade cada vez mais íntima.
— Jessie, — sussurrou ele, apertando seu rosto dela contra seu ombro até deixá-la quase sem respiração — não suporto ver-te com outros.
— Quem é? — sussurrou ela. — Diga-me. Eu guardarei seu segredo.
— Não, querida minha. Não arriscarei sua vida.
— Não pode continuar aparecendo em minha vida para me expor ao ridículo, para me apertar contra as árvores e acariciar-me entre os sarçais, esperando que eu... que eu... Não sei que esperas de mim. Não sei quem é e nem quero sabê-lo. Só quero que vá e não retorne mais. Os ingleses poderiam prendê-lo e lhe enforcarão imediatamente.
— Importar-te-ia isso?
As mãos de Jessica ficaram tensas. Sua bochecha, apertada contra a camisa de seda, sentia o palpitar do coração masculino.
— Por quê? — mentiu. — Nem sequer sei quem é. Escolhe a outra mulher como objeto de seus cuidados.
Ele levantou seu rosto com um dedo sob seu queixo.
— Diz de verdade? Vim esta noite só para ver-te. Sei que está escondida por me haver ajudado e queria te agradecer.
— Humilhou-me diante de todos. Fez-me a boba da cidade.
Aquela boca finamente cinzelada se estirou em um sorriso lento, secreto, conhecedor.
— Considera que um beijo é uma humilhação? — Tocou-lhe os lábios com os seu por um momento fugaz, doce. — Não é uma recompensa? — Seus dentes mordiscaram seu lábio inferior, brincalhões; a ponta de sua língua o recorrendo-o totalmente. — Aquele dia não pude resistir a tentação de te beijar, apesar do perigo. Se não tivesse perdido tempo em beijá-la não teria precisado de sua ajuda.
— Nesse caso, se portou como um tolo. Arriscar-se à forca só para beijar uma moça...
Ele a beijou quatro vezes. De algum modo, aquilo era mais íntimo que um só beijo longo.
— Depende de quem seja a moça.
Ouviram que Eleanor a chamava:
— Jessica!
Jess, involuntariamente, abraçou-se ao Corsário. Como estava olhando para a casa não o viu sorrir.
— Deve ir.
Ele lhe rodeou o rosto com as mãos.
— Me prometa que se manterá afastada de tudo quanto eu faça. Não suportaria que voltassem a prendê-la. Não arrisque por mim seu lindo pescoço. Se me enforcarem, prefiro morrer sozinho.
As mãos da moça tocaram seu pescoço. Ela percebeu sua cautela e compreendeu que ele estava alerta, se por acaso tentava lhe tirar a máscara. Mas se conformou tocando-o no pescoço, tão quente e cheio de vida. A idéia de que jogassem um nó corrediço lhe pareceu muito insuportável.
— Jessica! — chamou Eleanor outra vez, mais de perto.
— Vai — sussurrou Jess. — Vai antes que alguém te veja.
Ele voltou a sorrir e a beijá-la brevemente. Um momento depois se foi. Por alguns instantes, a moça permaneceu imóvel, sentindo falta de seu calor. A mente dizia que devia alegrar-se de sua ausência, mas o corpo pedia mais dele. Arrumou o xale e estava tratando de arrumar o cabelo quando apareceu sua irmã.
— Onde estava? — perguntou Eleanor.
— Aqui — respondeu ela, sonhadora. — Não muito longe.
Pelo resto daquela noite, Jessica só esteve pela metade com sua família. Como era possível que um homem que há tão pouco conhecia representasse tanto para ela? Como podia ela representar algo para ele? Entretanto, o Corsário parecia interessar-se por sua sorte.
Claro que não se importava com nada dele. Só porque era mais corajoso que cem homens juntos, só porque arriscava a vida por ajudar a outros, só porque a beijara até deixá-la sem fôlego e a preferisse em detrimento de outras mulheres de Warbrooke... Não, todo isso não era motivo para pensar nele.
— Jessica, — advertiu Eleanor, severa — se não vai comer esses nabos, dê a alguém.
— Sim, — murmurou ela — estou comendo.
Mas não comia. Nathaniel passou o prato de sua irmã mais velha para Molly e Sara, sem que ela se desse conta sequer.
07
— Você tem que vir comigo – disse o jovem soldado inglês, olhando diretamente a Jessica.
— Ela não fez nada – protestou Eleanor, com três pequenos obstinados agarrados a suas saias. — Foi uma inocente espectadora das incursões.
— Isso decidirá John Pitman, o representante de Sua Majestade.
— Tudo bem, Eleanor – disse Jessica, decidida a não deixar transparecer o menor estremecimento na voz.
Bastava que Pitman a acusasse, isso equivalia à condenação. Olhou para sua família no intuito de dar ânimo e seguiu aos quatro soldados que vieram procurá-la.
Nathaniel pôs-se a andar a seu lado.
— Eu te protegerei, Jess – prometeu.
Seus olhos de meninos pareciam de ancião. Sorriu-lhe fracamente e manteve a cabeça erguida.
Os soldados a conduziram à extensa casa dos Montgomery, não pela porta que dava ao salão, mas sim, por uma porta lateral que ela não conhecia. Por ali ia ao escritório que durante anos pertencia aos homens da família, onde ela havia visto muitas vezes Adam, sentado junto de seu pai, aprendendo tranqüilamente a administrar as propriedades dos Montgomery.
John Pitman ocupava o escritório que tinha servido a tantas gerações do mesmo sobrenome. Um dos soldados empurrou Jessica pelo ombro, obrigando-a a se sentar pesadamente na cadeira posta diante do funcionário.
— Senhorita Jessica — começou Pitman, depois de dispensar os soldados com um gesto para ficar a sós com ela. — Disseram-me que você tem conhecimento deste delinqüente que se faz chamar Corsário.
— Nada sei dele: nem quem é, nem onde vive... Nada.
— Entretanto ele a beijou.
Jessica se moveu na cadeira, incômoda. Recordava com muita clareza a noite em que tropeçou com Pitman no bosque. Ele lhe havia dito que não dormia com sua esposa e tinha tratado de beijá-la.
— São muitos os homens que tratam de me beijar, — disse em voz baixa olhando-o aos olhos — mas não porque eu os provoque.
Ele entrecerrou os olhos, demonstrando que captava a insinuação, mas imediatamente cravou a vista no corpete do vestido.
Jessica notou de repente que esse homem nunca tinha lhe prestado a menor atenção, até o momento em que o Corsário reparasse nela.
— Não sei nada do Corsário — reafirmou, dessa vez com maior firmeza.
Pitman se levantou para dar a volta no escritório e deter-se junto a ela.
— Não sei se posso acreditar ou não. Você o salvou na última vez.
— Só joguei uma corda a George Greene. Como poderia saber que seus soldados ingleses eram tão torpes?
— Sim, isso é o que preferi acreditar.
Jessica se perguntou se Alex teria subornado seu cunhado para deixá-la em liberdade. Pitman se aproximou um pouco mais e apoiou uma mão no seu ombro.
— Até recentemente não tinha percebido do quanto você é bonita, senhorita Jessica.
— Foi preciso que o Corsário demonstrasse, senhor?
Ele afastou a mão.
— Você tem uma língua muito grande. Se continuar ajudando esse bandido...
— O que fará você? Castigar-me porque não pode apanhá-lo?
Pitman aspirou fôlego com brutalidade e Jessica se arrependeu de ter falado. No momento em que o funcionário abria a boca para responder, a porta se abriu bruscamente.
— O que significa isto? — acusou Alexander, batendo a porta contra a parede. Pesados cachos de sua peruca voavam detrás dele. — Me disseram que está prendendo mulheres.
Pitman voltou a instalar-se atrás da escrivaninha, com rosto aborrecido.
— Não as prendo. Simplesmente as tenho feito vir para interrogá-las.
— Pois não vou tolerar isso — disse Alex, com voz mais e mais aguda. — Quero que compreenda bem: não vou tolerar. Vamos, Jessica.
E estendeu a mão como se ela fosse uma criança.
Jessica a aceitou, sem voltar a vista para o funcionário, e seguiu seu amigo para fora do escritório.
— A quem mais deteve?
Alex, sem responder, levou-a a puxões pelos corredores da casa.
— Aonde vamos, Alex? A quem mais interrogou este homem?
Por fim ele abriu uma porta, fê-la entrar de um empurrão e fechou-a atrás deles, deixando escapar um grande suspiro de alívio.
— Alex — disse ela, outra vez.
Tratava-se de um quarto grande, cujos móveis estavam cobertos de musselina para protegê-los do pó.
O jovem se sentou em uma cadeira, despedindo uma nuvem de pó de sua peruca. Levantou a capa de suas costas, abriu uma gaveta e tirou dele um leque bordado que fazia jogo à perfeição com seu colete de cetim verde.
— Bem, Jessica, conta-me tudo.
— Não há muito que contar. Ele queria saber se eu sabia algo sobre o Corsário.
— E não sabe nada, é obvio.
"Só de seus beijos", pensou ela.
— Sabe algo? — insistiu Alex.
— Nada que pudesse ajudar Pitman a executá-lo. Em realidade, deveria me pôr a caminho de casa, para tranqüilizar minha irmã.
— Eleanor já está ciente. Enviei Nate com notícias. Diga-me o que sabe do Corsário. E sente-se, em vez de ficar dando tantas voltas.
Jessica tirou sua capa e se instalou em uma cadeira pequena, estofada de rosa.
— Não sei quem é e nem como estabelecer contato com ele. Não sei absolutamente nada. — "Só como correm suas mãos por meu corpo", pensou, mas era algo que não diria a Alex, nem a ninguém.
— Tornou a vê-lo? — perguntou ele, com suavidade. Seus olhos cobraram súbita intensidade.
— Eu... Está me interrogando você também?
— Como te disse, sinto-me responsável por você. Não quero que esse Corsário ande lhe rondando. Não confio nele. É muito prepotente.
— Nada disso — lhe respondeu ela. — Ao menos tenta fazer alguma coisa, o resto da cidade permaneceu de braços cruzado enquanto roubavam o navio de Josiah.
— Não dizia que esse Corsário era um covarde? E que tinha medo de mostrar o rosto sem máscara?
— Se protesta abertamente o matarão. — Mas Jessica preferia, mudar de assunto. — Esse retrato, é de sua mãe?
Alex queria fazer mais perguntas, mas se abanou por um momento mais. Por fim ficou de pé.
— Este era o quarto de minha mãe. Quero te mostrar algo.
Aproximou-se de uma grande arca pintada, instalada contra uma parede, e o abriu. Estava cheio de vestidos cuidadosamente dobrados.
— Eram de minha mãe e aqui estão apodrecendo-se sem que ninguém possa aproveitá-los. Ocorreu-me que você e Eleanor poderiam se interessar.
Ela se afastou por instinto.
— Esmolas para os Taggert! Só porque aceitei um vestido acha que aceitarei tudo isto. Não quero sua compaixão, Alexander Montgomery. Você sempre pensou que éramos pura escória.
— Não, Jess, nunca foi minha intenção...
— O que acontece aqui!
Ambos se voltaram. Mariana Montgomery Pitman estava de pé no vão da porta, e constituía um espetáculo formidável. A estrutura alta e corpulenta que parecia tão bem nos homens deixava muito a desejar em uma mulher. Mariana media um metro e oitenta, era larga de ombros e de peito, mas de quadris estreitos, qualquer moço teria invejado o físico. Com essa corpulência coexistia uma personalidade que parecia mistura de tufão e recém-nascido. Nunca se sabia quando ia se mostrar autoritária ou quando se refugiaria a um regaço.
— Te fiz uma pergunta, Alexander.
Pelo que parecia, esse dia estava violento e Alex se acovardou. Jess deu um passo adiante.
— Seu... seu marido mandou me trazer para interrogatório e Alexander teve a amabilidade de me conduzir até este quarto para me mostrar as encantadoras coisas de sua mãe. Já íamos sair.
— Ah... — Mariana se sentou pesadamente, como uma vela de barco caído. — Meu marido. Que desastre cometi! Quando me casei com ele não o conhecia. Não quero que ninguém se prejudique por minha culpa. Mandei chamar Adam e Kit, mas acredito que não receberam minhas cartas. Do contrário teriam vindo.
Jess lhe deu uns tapinhas no ombro. Mariana a fazia sentir muito pequena e leve.
— Virão assim que possam. Enquanto isso, aqui está o Corsário.
— Sim — reconheceu Mariana. — Foi de uma grande ajuda, mas John quer matá-lo.
— Mariana — pediu Jessica — se você souber de algo que o Corsário deva saber, diga-me, por favor. Talvez possa me colocar em contato com ele. Talvez me seja possível...
Alex, que tinha ficado quase no esquecimento, tomou-a pelo cotovelo e a puxou dali quase arrastando.
— Isso farei — prometeu Mariana, de dentro. — Te direi o que averiguar, Jess.
— Que tolice tão grande — protestou Alex, quando estiveram fora da casa. — Ela está casada com Pitman, não te dá conta? E se contasse a ele o que você disse? E se Pitman pensasse que pode te pôr em comunicação com o Corsário? A propósito, pode fazê-lo? Por que não me havia isso dito?
— Está me machucando o braço, Alex. Apertas bastante, apesar de ter os músculos debilitados. — Jess esfregou o braço dolorido. — Acredito que Mariana odeia Pitman mais que ninguém. E não tenho certeza de poder me comunicar com o Corsário, mas poderia... poderia voltar a vê-lo. Por que não caminhamos até o arroio, Alex? Tenho sede.
Ele voltou a tomá-la pelo braço, mas com menos energias.
— Quando viu outra vez o Corsário?
— Ontem à noite. Não sei por que lhe conto isso.
— O que desejava?
— Foi só uma visita de cortesia.
— De cortesia? — exclamou Alex, detendo-se junto ao arroio.
Jess colocou as mãos em concha e recolheu água para beber. Depois tirou os sapatos e afundou os pés na água fresca.
— De cortesia, sim. Não tem calor com tanta roupa, Alex? Aqui não há ninguém, poderia tirar essa peruca. Não me incomoda a careca.
— Mas preferiria ver a juba negra do Corsário, verdade?
Ela tinha levantado as saias até o joelho.
— O que te passa hoje? Voltaram a rechaçar alguma proposta matrimonial? Primeiro me trata com lástima. Depois me grita.
— Baixa essas saias. Embora não acredite, sou homem.
—Ah... — Jessica sorriu, alisando as dobras da roupa. — Muito tempo no mar, né? Será melhor que o casemos. Fez a prova com a Sally Bledman? Vive a uns quinze quilômetros para o sul de...
— Já sei onde vive Sally Bledman. Se tiver terminado, levar-te-ei a sua casa. Não acredito que seja capaz de se manter longe dos problemas quando a deixo sozinha.
Ela ficou de pé e pôs-se a andar a seu lado, divertida por esse ataque de irritação felina. Quando chegaram à estrada viram Ethan Ledbetter que se aproximava, com um saco de vinte e cinco quilos de cereal pendurando de cada ombro. O coração da moça começou a palpitar mais depressa. Seria esse homem o Corsário? Era ele quem a abraçava pelas noites?
— Espera — pediu a Alex, enquanto alisava o cabelo e acomodava seu xale. Era a mesma que o Corsário gostava de lhe tirar, e ao recordar tremeram suas mãos.
— Bom dia — saudou, quando Ethan cruzou com eles.
O moço diminuiu a marcha e sorriu, obviamente atônito ante essa desacostumada atenção. Esteve a ponto de deixar cair um de seus sacos.
— Bom dia, senhorita Jessica.
Caminhou para trás por um trecho, até que tropeçou com uma pedra e cambaleou. Então se deteve para olhá-la até que eles se perderam de vista.
Alex voltou a lhe apertar o cotovelo.
— Que conduta deplorável! Terei que te encarcerar em alguma parte.
— Quem te pediu que se fizesse de meu pai? — gritou-lhe ela.
— De pai? De pai! — O jovem a empurrou com tanta força que ela esteve por um tris de perder o equilíbrio. — Pode continuar sozinha até sua casa! E se se meter em problemas, que lhe salve seu Corsário!
— Oxalá — exclamou ela, seguindo-o com sua vista seu andar bamboleando em direção oposta. — Oxalá.
— Jessica! — disse Eleanor, pela quarta vez. — Está me escutando sequer um pouquinho?
— Está escutando lá fora — disse Nathaniel.
Isso tirou Jessica de sua letargia. Girou a cabeça para cravar um olhar agudo em seu irmão, mas este não lhe prestou atenção.
— O que significa isto, Jessica? Faz dois dias que age tão estranha, como se tivesse a mente em outra parte.
— Só trato de terminar com esses livros contábeis e de não me meter em dificuldades. Não se supõe que isso é o que devo fazer?
E fulminou com o olhar Nathaniel, que a olhava com rosto de adulto, como se adivinhasse os pensamentos.
Estava dois dias sem abandonar a pequena enseada onde estava à casa dos Taggert, mas seu enclausuramento era voluntário. Desde o dia que Pitman a tinha interrogado sentia a proximidade do Corsário. Às vezes, pelas noites, estendida em sua cama, tinha a segurança de que ele estava por perto. Até tinha ouvido algum discreto assovio lá fora. Sabia que se tratava dele, mas se negava a atender a sua chamada.
Conforme lhe havia dito Eleanor, o interesse pelo Corsário começava a diminuir. A opinião geral era que Pitman o tinha assustado e que o Corsário tinha voltado para o lugar de onde surgiu. As pessoas começavam a pensar que era marinheiro e que seu navio tinha zarpado.
Jessica não respondia a esses comentários, sabia bem demais que o Corsário ainda estava em Warbrooke. Como queria negar a atração que ele exercia sobre ela, fazia ouvidos surdos a suas chamadas e ignorava sua presença no bosque que estava detrás de sua casa. Nunca saía da moradia sem fazer-se acompanhar por um dos meninos, pelo menos, com a esperança de que o homem não se atrevesse a apresentar-se diante deles. Como demônios sabia Nathaniel que o Corsário a esperava lá fora? Jessica tinha desistido fazia muito tempo de adivinhar como funcionava a mente de seu irmãozinho.
— Jess, quer ir jogar estas águas sujas? – pediu Eleanor. — Te fará bem tomar um pouco de ar.
Jessica olhou pela janela do sul e viu o céu escuro, estrelado.
— Não, obrigado. Que a jogue um dos meninos.
— Preciso ir ao banheiro e a escuridão me dá medo — disse Sarah.
— Acompanha-a, Jess. — Eleonor cravou em sua irmã um olhar ameaçador. — O que está acontecendo, me diga?
— Nada. Eu te acompanharei, Sarah. — Mas Jess parecia dizê-lo a contra gosto. — Alguém mais quer ir?
Os outros meninos estavam mais interessados no que Nate desenhava nas cinzas da lareira, de modo que Jess tomou à menina pela mão e a levou até o banheiro.
Sarah pareceu demorar uma eternidade. Jessica olhava a seu redor, nervosa, mas não havia sinais do mascarado.
Quando ambas iniciaram a volta para casa, o coração da moça começava a aliviar-se. Naturalmente, se voltasse a ver o Corsário se limitaria a lhe dizer que se retirasse. Não tinha por que suportar suas caricias. Se voltasse a aparecer, ela se mostraria forte e decidida e ordenaria que se afastasse dela.
Quando chegou a casa seu passo era quase alegre. Fez entrar a menina e ia segui-la, mas no momento em que posava a mão no trinco da porta, algo... não, alguém a segurou. E não cabia dúvidas sobre quem era esse alguém.
— Feche, Jessica. Está fazendo com que a casa se esfrie —protestou Eleanor.
Jess tratou de libertar sua mão, mas ele a segurou com firmeza e... Oh, céus... começou a lhe beijar a palma e a parte interior do pulso.
— Jessica! O que acontece? — Na voz da Eleanor havia exasperação.
O Corsário estava mordiscando a ponta dos dedos.
— É que... Olhe... irei jogar fora a água suja. Passe-me isso?
Eleanor tinha o regaço cheio de roupas para cerzir. Levantou para sua irmã um rosto curioso.
De repente, Nathaniel se levantou de um salto e correu para entregar a Jessica à bacia com a água da cozinha. Quando tratou de olhar do outro lado da porta, Jess conseguiu obstruir seu campo de visão.
Um momento depois o Corsário a afastava e fechava a porta, e a estreitava contra si, tudo em um só movimento. A bacia caiu no chão. Ele a beijou como se estivesse faminto; como se sua vida dependesse desse beijo.
Que apesar de suas boas intenções, Jessica respondeu no mesmo instante.
— Vai — disse, sufocada, quando lhe permitiu falar.
O Corsário colocou um dedo nos seus lábios para sossegá-la e apontou a casa com a cabeça. Logo a puxou pela mão e começou a correr para o bosque, colina acima. Quando se deteve, Jessica estava sem fôlego, mas ele não perdeu tempo e começou a beijar seu pescoço e os ombros, afastando o vestido para um lado.
— Senti saudades de você, Jessie — sussurrou. — Te chamei noite após noite sem que viesse. Por quê?
Ela tratou de soltar-se, mas não tinha forças suficientes.
— Não quero ver-te. Oxalá não tivesse te conhecido. Na cidade todos acreditam que você se foi. Por que não o faz? Já ajudou Josiah. Agora vai.
— Quer que eu vá? Seriamente quer que eu vá?
— Sim, seriamente. Está arruinando minha vida. Primeiro me joga na água suja; depois me beija; detêm-me por sua culpa, prendem-me, interrogam-me. Oh, Ethan, por favor, vai.
Ele deixou de beijá-la.
— Ethan?
— Não era isso o que queria dizer, não — sussurrou ela. — Não me diga que estou equivocada ou não. Não quero saber quem é. Não sei por que me escolheu. — Levantou o rosto para olhá-lo nos olhos. — Ou não? A quantas outras mulheres visita em segredo, as arrancando de suas casas durante a noite? Assoviando quando tratam de dormir?
— Então me ouvia. Quanto a outras mulheres, não tenho tempo para cortejar a nenhuma mais. Qualquer homem tem mais que suficiente contigo. Claro que você não é tão leal. Você gosta de Ethan Ledbetter, passas a metade de sua vida com Alexander Montgomery e até incentiva o velho Clymer.
— Que direito tem de falar de outros? Abigail Wentworth disse que subiu no seu quarto pela janela.
— Quem te disse isso?
— Arrah! Então admite!
Ele a estreitou contra si, mas Jessica se negou a olhá-lo e manteve as mãos apertadas às coxas.
— Essa moça mente Jessie. Espreita-me atrás das árvores e aparece quando menos a espero. Gaba-se sem motivos. Se não fosse por ela, nesta cidade falaria bem menos de mim. Faz com que minha vida esteja sempre em perigo.
Jess se abrandou. Quando a beijou na cabeça e a abraçou com força, ela rodeou sua cintura com os braços.
— Saia de Warbrooke, por favor. Pitman e seus soldados o apanharão cedo ou tarde. Sua única possibilidade de escapar é abandonar a cidade agora mesmo.
— Não posso. Há muito que fazer.
— Não pensa em fazer outra incursão? — protestou ela, estreitando-o. — Não pode!
— Ah, Jessica... Para mim é muito importante saber que não quer que me detenham. Faria-te sofrer que me enforcassem?
— Por quê? — negou ela, furiosa. — O que é você para mim? Não sei quem é. Nunca mantivemos uma conversa. Não tem feito nada a não ser...
Ele levantou seu rosto com um dedo sob o queixo.
— Não tenho feito nada a não ser te amar. Nenhum outro pôde penetrar sob a carapaça da senhorita Jessica. Outros pensam que não precisa de ninguém, mas eu sei que não é assim. Precisa de um homem tão forte como você mesma.
— Odeio-te — murmurou ela, sepultando o rosto em seu ombro coberto de seda negra.
— Sim, já percebi. Agora me dê um beijo, pois tenho que ir.
Ela o beijou longamente.
— Amanhã não saia de sua casa ou vá pescar. Espero ver-te amanhã de noite.
— O que quer dizer com isso?
— Shhhh — sussurrou ele, sossegando-a com um beijo suave. —Eleanor sairá a qualquer momento.
Beijou-a pela última vez e se afastou, retendo suas mãos nas suas. No último instante beijou suas palmas e desapareceu.
Por um momento Jess permaneceu imóvel sob as árvores, esfregando os braços para tirar o frio da noite. Por fim entrou.
Eleanor não disse uma palavra, mas jogou uma olhada significativa a seu aspecto desalinhado. Jessica não ofereceu nenhuma explicação.
Essa noite, enquanto agasalhava os meninos, inclinou-se para Nathaniel.
— O que estão fazendo os ingleses que pudesse interessar ao Corsário?
— Pólvora — respondeu Nate, imediatamente, sem demostrar a menor surpresa diante daquela pergunta. — Amanhã chegarão duas carretas carregadas de pólvora de Nova Sussex.
Jessica fez um sinal de assentimento e abandonou o quarto. O Corsário tinha intenções de tirar essa pólvora dos ingleses. O que pensaria fazer com ela? Compreendeu imediatamente que desejava destrui-la para que os ingleses não pudessem usá-la contra os colonos. Mas bastava um só engano para que ele voasse junto com a pólvora.
Demorou um longo momento em conciliar o sono
08
À manhã seguinte, as cinco em ponto, as irmãs partiram para a casa dos Montgomery. Para Jessica foi um alívio que Eleanor não fizesse nenhuma pergunta; ela murmurou algo sobre que precisava falar com Mariana, mas a outra parecia preferir não estar inteirada do que sua irmã fizesse.
Jessica esperou que Eleanor tivesse atribuído uma tarefa a cada um dos meninos. Depois desapareceu nos corredores da casa.
— Jessica! — chamou-a Sayer Montgomery.
Contra sua vontade, a moça entrou no quarto. Sayer não perdeu tempo.
— Disse-me Nathaniel que você tem algo escondido entre as mangas; o menino está convencido de que se encontra a noite com o Corsário.
Jessica jurou silenciosamente que mataria a seu irmãozinho assim que o visse.
— Admito que seu caráter seja muito tentador como a sua pele, mas agradeceria que se aproximasse de me dissesse o que está acontecendo. E fecha essa porta.
Jessica, obediente, fez o que ele indicava e, em poucas frases, contou tudo quanto sabia, ignorando os comentários do ancião sobre as visitas noturnas do mascarado.
— Então que, em sua opinião, — disse Sayer — o Corsário tratará de tirar essa pólvora dos ingleses. — E adicionou, sem esperar que Jess respondesse: — Até a noite não acontecerá nada. Quero que hoje vá pescar. Passe todo o dia fora e volte ao entardecer. Até então terei averiguado algo. Agora vai. E esta noite me traga peixe fresco.
Jessica o deixou sozinho e decidiu cumprir com suas indicações, mas não seria fácil. Durante todo o dia custou concentrar-se em seu trabalho. Atirou e recolheu as redes até que lhe doeram os braços, sem que se importasse de retirá-las vazias. Ao entardecer estava muito disposta a retornar ao porto.
Ali a esperava Mariana Pitman.
Jessica arrojou uma corda a um dos peões do cais, enquanto Mariana abordava o pesqueiro.
— Preciso falar contigo.
Assim que o navio esteve amarrado, Jess seguiu Mariana à cabine.
— Como suporta este lugar, Jessica? Precisa de uma boa limpeza.
— Eu alguma vez tive um pai rico que me alimentasse — respondeu a moça, muito rígida. — No que posso ajudá-la, Mariana?
— Não sabia a quem recorrer. — Mariana olhou para Jess com os olhos muito abertos e se sentou. Pelo que parecia, esse dia devia mostrar-se feminina. — É a única pessoa com quem o Corsário mantém contato, descontando Abigail é obvio. Por isso vim.
— Continue — a instigou Jess.
— Por acaso descobri algo durante a tarde. Meu marido não tem idéia de que estou sabendo. Veja: a carga de pólvora é uma armadilha.
— Uma armadilha?
— Sim, como as dos caçadores. Não te pareceu estranho que sem duvidas todos soubessem da chegada dessa pólvora?
— Não. Faz alguns dias que não vou à cidade.
— Bom, mas todos sabiam, e isso é porque me... — tragou saliva. — Meu marido queria que todos soubessem. Pensa pôr a pólvora em um abrigo, com dois soldados de guarda, e afastar-se. Mas na verdade não há só pólvora no abrigo, a não ser em caixas escondidas entre os matagais que rodeiam esse depósito. Também terá soldados escondidos. Quando esses soldados vejam o Corsário colocarão fogo à pólvora.
Jessica se sentou.
— E o Corsário ficará preso em meio de um círculo de explosões.
— Sim, — confirmou Mariana — isso temo.
— De quanto tempo dispomos?
— Isso depende de quando será o ataque do Corsário, mas agora mesmo estão descarregando a pólvora.
— Agora mesmo — repetiu Jess. — Agora mesmo.
Em qualquer momento entre esse instante, e a manhã seguinte, o Corsário podia voar pelos ares em pedaços.
— Mariana, há alguma capa negra entre as roupas de sua mãe? Alguma roupa escura com capuz?
— Sim.
— Poderia me emprestar isso?
— É obvio. Como fará chegar à mensagem ao Corsário?
— Não acredito que seja possível. Só posso tratar de estar ali esta noite para advertir-lhe.
Mariana a olhou arqueando uma sobrancelha.
— Não cometa a tolice que eu cometi. Apaixonei-me por um homem por suas doces palavras e ele só queria o dinheiro de meu pai.
— Não duvido de que o Corsário ambicione este bote pesqueiro. Vamos procurar esse manto. Já tratarei de elaborar um plano.
Jess esperava, estendida no chão frio e úmido. Estava há horas no mesmo lugar, aguardando, observando tudo. Até então já tinha alguma idéia de onde estava cada um dos soldados britânicos, ocultos entre as árvores e dispostos a acender seus montões de pólvora assim que se desse o sinal.
Mas não havia rastros do Corsário. À medida que a noite se tornava mais escura, Jess redobrava sua atenção. Logo ocorreria algo. Doíam-lhe os músculos pela imobilidade de tantas horas e os olhos estavam irritado de tanto olhar o abrigo, no meio do círculo secreto.
Os dois soldados que montavam guarda no depósito puseram-se a rir. Um deles afastou-se um pouco, para urinar entre os arbustos. Passaram vários minutos sem que o guarda retornasse.
Jessica ficou tensa. Se algo ia ocorrer, esse era o momento. Tinha certeza de que o Corsário havia imobilizado o guarda. O segundo dos homens foi em busca do primeiro, mas tampouco retornou. Face à atenção com que escutava, Jessica não conseguia perceber um só ruído.
Não afastou a vista do abrigo. O Corsário apareceria ali. Mas não se via nada, não se ouvia nada. No momento em que começava a temer haver se equivocado, algo se moveu para a direita e se ouviu a reclamação de uma pomba. Era um sinal. O soldado estava a ponto de prender fogo ao rastro de pólvora que chegava até uma das caixas depositadas ao redor do abrigo. Ela não tinha visto nada, mas alguém sim.
Sem consciência do que fazia, levantou-se de um salto e pôs-se a correr em linha reta para o abrigo. Teve o senso comum de não gritar: se saía com vida disso, não queria que ninguém reconhecesse sua voz.
O Corsário saiu de entre as sombras que rodeavam o depósito.
— Jessica — exclamou.
— É uma armadilha. O deposito está rodeado de pólvora.
Ele não perdeu um segundo. Puxou-a pela mão e pôs-se a correr. Ao redor de ambos se ouvia o sibilar da pólvora que ardia rumo às ocultas caixas de explosivos.
Quando estavam quase no limite do bosque, ele a jogou no chão e se deitou sobre ela.
O estrondo das explosões foi ensurdecedor. Toldou todos os pensamentos da moça, sepultada sob a corpulência do Corsário.
Ainda ressoavam as explosões na cabeça quando o mascarado se levantou de um salto, puxou-a pela mão e a levou arrastando ao coração do bosque. Ela o seguia com dificuldade, tropeçando em raízes e pedras, pelo visto, ele tinha melhor vista na escuridão.
Meio a puxões, meio a empurrões, o Corsário a levou até uma ravina e a obrigou a esconder-se sob as raízes de uma árvore. Estreitou-a contra seu peito, onde seu coração palpitava de forma audível. Por sobre eles se ouviu ruído de passos e vários gritos. O mascarado a retinha contra si.
Jessica sentiu algo viscoso nas mãos. Embora não pudesse mover-se para ver do que se tratava, compreendeu que era sangue.
— Está ferido — sussurrou.
Como resposta ele a beijou com força. E em seu beijo havia agradecimento.
Os soldados tinham passado direto.
— Tenho que te levar para sua casa. Procurarão uma mulher. Assim que chegue, ponha a camisola quando chegar lá. Oh, Jess, Por Deus, não deveria ter feito isto. Pitman suspeitará de você. Vamos.
Sem lhe dar tempo para responder, conduziu-a pela borda de um arroio. Foram a bom passo, caminhando sob os ramos, entre arbustos espinhosos. Subiram por uma colina e voltaram a descer. Por um momento caminharam pela água, sem tratar de irem diretamente para a casa dos Taggert.
— Sairão com cães — explicou ele, em um sussurro.
E não disse mais. Ela tratava de ver se estava ferido; a escuridão a impedia.
Diante da casa dos Taggert se detiveram tempo suficiente para que lhe tirasse o manto.
— Procurarão por isto. Vai. — Ela girou em circulo quando ele tirou seu manto escuro, mas o Corsário a segurou por um braço. — Obrigado, Jessica.
Não a beijou, como ela teria querido. Simplesmente desapareceu na escuridão.
Eleanor a estava esperando.
— Jess, Oh, Jess, o que fez agora? — perguntou ao ver o aspecto desalinhado de sua irmã.
— Contar-lhe-ei isso amanhã. Deitei-me cedo e não me levantei. Não sabemos nada. Ajude-me a me despir.
— Tem os braços manchados de sangue. Jess, o que aconteceu.
— O sangue é dele. — Jessica tomou um pano para limpar-se, enquanto Eleanor passava sua camisola pela cabeça. — Feriu-se tentando me proteger.
Na porta ressonou um forte golpe.
— Não saí que casa — repetiu Jess. E adicionou em voz alta, em direção à porta: — Um momento!
Quando se aproximou para abrir a porta o fez bocejando e esfregando a cabeça. Os meninos se aproximaram um a um.
— Quem é?
— Abram em nome do rei.
Jess abriu a porta completamente. Oito soldados irromperam no interior, seguidos por John Pitman.
— Onde esteve durante toda a noite? – perguntou o funcionário, cravando em Jessica um olhar fulminante.
— Dormindo, até que me despertou com tanta brutalidade - respondeu a moça, com os olhos avermelhados. — O que aconteceu?
— Revistem a casa — ordenou Pitman. — Me tragam qualquer coisa suspeita, especialmente um manto negro.
— Temo que meu guarda-roupa não inclua nenhum manto negro — aduziu a moça. — Poderia me dizer a que se deve todo isto?
— Esta noite provocamos explosões de pólvora para cercar o Corsário, mas uma mulher o ajudou a escapar.
— E você pensa que fui eu? Depois do tratamento que recebi desse homem? Pois deveria ser a última suspeita.
— Eis aqui todas as roupas que há na casa, senhor — anunciou um dos soldados, arrojando na mesa um montão de roupas de menino e de ambas as moças.
Pitman olhou para Eleanor e os meninos, que pareciam desconcertados. Logo, a Jessica, que bocejava em sua cadeira, como se tanta comoção a aborrecesse até a morte e não visse a hora de voltar para a cama. Por fim pediu a baioneta a um soldado e, com a vista cravada em Jessica, sorridente, cortou as roupas até as reduzir a farrapos.
— Ela não saiu de casa! — chiou Nathaniel. — Eu tinha dor de dente e ela me cuidou.
Jessica abraçou seu irmãozinho, segurando suas mãos para impedir que atacasse Pitman.
— Daremos um exemplo para todos que se atrevam a ajudar o Corsário — resolveu Pitman. — Leve-os para fora.
As moças e os meninos foram tirados aos empurrões. Juntos, abraçados, escutaram os ruídos de destruição que provinham da casa. Os meninos ocultavam o rosto nas camisolas de suas irmãs mais velhas. Só Jessica e Nate observavam tudo pela porta aberta, com o rosto convertida em idênticas máscaras de fúria e ódio.
Por fim Pitman saiu com os soldados e ordenou:
— Coloquem fogo.
— Seria sua última ordem — disse uma voz, atrás deles.
Ali estava Alexander Montgomery, montado em uma mula cinza com sela para mulher, usava uma túnica de listas azuis e brancas sobre sua camisa de dormir e uma peruca torcida. Apontava duas pistolas de duelo para à cabeça de Pitman. Se não fosse pelas armas seria uma imagem ridícula.
Nathaniel correu para ele e sustentou suas rédeas.
— Este não é teu assunto, Montgomery, mas sim do rei — disse Pitman. — Se tocar em um funcionário do rei, te enforcará.
— Deixar sem moradia mulheres e meninos não tem nada que ver com o rei. Se quiser capturar seu Corsário, por que não o persegue em vez de descarregar sua cólera contra estas indefesas crianças?
Pitman apontou Jessica.
— Esta sabe de algo. O Corsário recebeu ajuda de uma mulher.
— Que provavelmente esteja ainda com ele, atendendo sua ferida. Inteirei-me de que havia sangue nas folhas. Por que não revista às casas para ver quem falta na sua?
O funcionário olhou para Alexander com os olhos entrecerrados.
— Isto não ficará assim, Montgomery. Veremo-nos amanhã.
Alex não deixou de apontar com suas pistolas até que ele e seus soldados tivessem abandonado a enseada.
Quando partiram, Eleanor correu para ele.
— Oh, Alexander, esteve maravilhoso!
— Me ajuda a descer deste imundo animal?
— Sim, é obvio. Verdade que esteve maravilhoso, Jessica? —Perguntou Eleanor, enquanto ajudava Alex a manobrar com seu ventre para desmontar.
Voltou-se para sua irmã, mas Jessica estava fazendo entrar os meninos. O jovem, descartando o agradecimento de Eleanor com um gesto, seguiu-a ao interior da casa. Aquilo era uma ruína, nada tinha escapado da destruição.
Jessica se deteve junto da lareira para levantar os restos de uma caixa de música, lembrança de sua mãe.
— Oh, Jess... — exclamou Eleanor, rodeando-a com um braço.
SalIy começou a chorar. Alex se adiantou um passo.
— Terá que tirar daqui aos meninos. Podem ficar em minha casa, por enquanto.
— Não! — Disse Jessica, quase aos gritos, interrompendo o pranto de sua irmãzinha. — Somos Taggert e na casa dos Taggert ficaremos. Até agora não aceitamos esmolas e não temos por que começar agora.
Alex a olhou-a por longo momento. Por fim disse, brandamente:
— Está bem. Eleanor, trata de preparar as camas para que possam passar a noite. Quando os meninos estiverem deitados veremos o que se deve fazer.
Jessica, sem dizer uma palavra, levantou Sam e o abraçou até que também ele começou a chorar.
— Dê-me — disse Alex, fazendo-se encargo do bebê. — Quem quer escutar um conto de piratas?
Os meninos, assustados e exaustos, só pediam que desse ao mundo a habitual aparência de segurança. Aceitaram encantados. Jessica, com aspecto aturdido, saiu ao exterior. Alex ordenou a Nathaniel:
— Fica com ela. Não deixe que se afaste muito.
Nate assentiu e seguiu a sua irmã.
Uma hora depois, Alex tinha todos os meninos deitados e adormecidos, ao menos, isso era o que esperava. Jessica havia retornado e ajudava Eleanor a preparar os colchões, a fim de poderem dormir pelas poucas horas restantes da noite.
— Jessica, — disse Eleanor — teremos que aceitar ajuda de alguém. Olhe como estamos. Não temos mais roupas que estas camisolas.
— Cerziremos.
— Não temos utensílios de cozinha, nem mesa, nem cadeiras. Jogaram nossa farinha fora. Não ficou nada.
— Já nos arrumaremos — disse Jessica. — Remendaremos a roupa e usaremos conchas como pratos.
Alex entrou no quarto.
— Eleanor, — disse em voz baixa — por que não se deita? E você, Jess, poderia dar um passeio comigo.
Sem lhe dar oportunidade de recusar, segurou-a pelo braço e a conduziu ao exterior. No céu aparecia a alvorada. Deteve-se na enseada, a beira da água.
— Era você que estava com o Corsário, verdade?
Alex se voltou para olhá-la nos olhos e lhe deu uma pequena sacudida.
— Como pôde cometer semelhante estupidez? Dá-se conta de que se arriscou, não só sua própria vida, mas também a de seus irmãos? E tudo para salvar a um homem que nem sequer conhece!
Pelas bochechas de Jessica começaram a rolar lágrimas, lentas no princípio. Ela sentiu o gosto salobre na boca, mas não as enxugou.
— Sei — disse, em um sussurro. — Os meninos poderiam terem ficado feridos.
— Pensa agir sempre assim, sem pensar a não ser quando já é tarde? Oh, por Deus, Jessica, poderiam te haver matado.
— Sinto-o — sussurrou ela, com a garganta fechada pelas lágrimas contidas. — Não podia deixar que o matassem. Mariana me disse que era uma armadilha e eu tinha que o advertir. Que outra coisa podia fazer? Mas não era minha intenção prejudicar aos meninos. Não queria...
— Shhhh — disse ele, tomando sua mão.
— Ele está ferido. — Jessica levantou as mangas da camisola para mostrar o sangue seco. Só tinha tido tempo de limpar as mãos quando Pitman rompeu na sua casa. — Estendeu-se sobre mim quando explodiu a pólvora e saiu ferido. Talvez esteja caído em alguma sarjeta, sangrando. Os soldados de Pitman o encontrarão e o matarão.
— Se Pitman revistar as casas, seu Corsário terá tempo de escapar. Não acredito que esteja sangrando.
— O que sabe você? — gritou-lhe ela.
— Isso eu gosto mais. — Alex, sorrindo, tirou um lenço do bolso. Sua voz tinha mudado. — Agora, Jess, devemos falar de negócios. Talvez você prefira se alimentar de orgulho e se vestir com ele, mas os meninos precisam de outra coisa. Em minha casa há três arcas de roupa que pertenceram a minha mãe; Deus sabe que Mariana não poderia colocar mais que a perna esquerda em qualquer desses vestidos. É hora de que meu pai deixe de guardar suas coisas como se fossem objetos de culto. E nos sótãos há baús inteiros com roupas de menino. As guardou para nossos filhos, mas não acredito que Mariana os tenha; Adam e Kit estão muito ocupados com suas façanhas para formar família e não me aceita nenhuma mulher. De forma que bem poderia aproveitá-las você. Não! Nenhuma palavra de protesto! De certo modo, isto foi culpa de uma Montgomery e as atrocidades de Pitman serão corrigidas, até onde se possa, por outro Montgomery. Amanhã procuraremos alguns móveis e provisões. Agora quero que se deite para dormir tudo o que possa.
Jessica conseguiu sorrir entre lágrimas.
— É verdade que esteve maravilhoso, Alex. Obrigado por impedir que queimassem nossa casa. — Levantou-se nas pontas dos pés para beijá-lo na bochecha. — Obrigada — repetiu, antes de entrar na casa.
Tratou de não olhar os escombros que a rodeavam, mas no momento em que se voltava para o colchão onde dormia Eleanor, ouviu o pranto de um dos meninos.
Subiu as escadas até o sótão. A primeira vista, todos os meninos pareciam dormir... mas Nathaniel tinha os olhos fechados com muita força. Tratava de comportar-se como um homem e dominar o pranto. Jess lhe esfregou a nuca e o balançou, o menino chorou então até acabar com suas lágrimas. Geralmente agia com tanta maturidade que alguém se esquecia de sua curta idade.
— Vão queimar nossa casa?
— Não sei — respondeu Jess, francamente.
Por essa vez, Pitman tinha sido frustrado, mas ninguém podia assegurar o que faria o homem quando não estivesse ali Alex ou alguma outra pessoa para detê-lo.
— Tenho medo, Jessie. O senhor Pitman nos odeia. Por quê?
— Não tenho certeza. Acredito que odeia o Corsário e acha que estamos relacionados com ele.
— Mas você está relacionada com ele, Jessie. Encontra-se com ele de noite e o salvou das explosões, verdade? É a única mulher capaz de caminhar entre pólvora. O senhor Pitman tem que sabê-lo.
— Não sei se foi coragem ou estupidez, mas alguém tinha que salvá-lo quando Mariana me disse...
Nate se afastou dela.
— Por que não salvou ela o Corsário? Veio te buscar porque você é corajosa e ela não. Lorde Alex também é corajoso.
— Isso é verdade, sim. Agora durma. Logo será dia e temos muitíssimo trabalho por diante.
Como o menino abriu a boca para replicar, ela acariciou seu cabelo.
— Não tenho respostas para suas perguntas. Talvez algum dia será como eu e agirá sem pensar. Mas a partir de agora em adiante eu pensarei primeiro em minha família. Concorda?
— Sim, Jess. Boa noite.
— Boa noite, Nate.
Quando Alex chegou da casa dos Taggert, Nick estava acordado... como todos os ocupantes da mansão.
— O que fez agora? — grunhiu Nick. — Não pode dormir tranqüilo sem que se dedique a devastar o país. Seu pai quer falar contigo.
— Pois que espere — disse Alex. Já que estava em sua casa e com alguém que conhecia seu segredo, não precisava continuar dissimulando a dor. — Ajude-me a me despir. O sangue pregou a roupa no corpo.
— Ah, ouvi dizer que o Corsário estava ferido. Seu cunhado está te procurando com cães. E também a essa mulher.
Nick o ajudou a tirar a túnica e a camisa. Debaixo das roupas desatou os almofadões. Debaixo destes tinha ainda o esmigalhado traje do Corsário.
— Parece que a pólvora te alcançou.
— Não, só o pedregulho. Esfolou-me as costas.
Nick emitiu um leve assobio enquanto retirava o tecido empapado de sangue. Alex tinha nas costas grandes sulcos sanguinolentos, que se aderiram a pedaços de seda negra.
— Vou lavar isto com água, para que o sangue saia. Suponho que a mulher era a senhorita Jessica.
— É obvio. É a única tola capaz de caminhar por um círculo de pólvora pronta para explodir.
— Mas salvou essa miserável de tua vida, verdade? Terei que retirar essas partes de tecido com uma faca. Se meu pai me visse oficiando a arte de enfermaria, deserdar-me-ia.
— Deixa de arrogância e ponha mãos à obra.
— Aonde foi depois da explosão?
— Salvar Jessica. Pitman foi diretamente para sua casa, tal como eu esperava.
— Então agora o senhor Pitman tem outro inimigo: Alexander Montgomery. Como vai arrumar isto?
Alex apertou os dentes para suportar a dor, enquanto Nick retirava fiapos de seda de suas esfoladas costas. O tratamento não teria sido tão doloroso se fosse feito imediatamente, depois da explosão, mas o sangue tinha tido tempo de secar, aderindo partes de tecidos às feridas. De qualquer modo, não lamentava ter agido assim. Fizera bem em ir à casa de Jessica antes de ter cuidado das feridas. Em realidade, apenas tinha chegado a tempo.
— Não sei. Só quero dormir vários dias seguidos. Diga a Pitman que a cena na casa dos Taggert me deixou indisposto.
— Não suspeitaria que esteja ferido, além de esgotado?
— Nesse caso, diga que estou apaixonado por Jessica e que me fez mal vê-la sofrer assim.
— Está apaixonado por ela? Ou é o Corsário quem a ama?
Alex guardou silêncio por um momento.
— Arriscou a vida para salvar um homem que diz odiar. É igual à Abigail, apaixonada por um deslumbrante cavaleiro mascarado.
— Sente-se para que possa enfaixar seu torso.
Alex se esforçou por levantar-se.
— Alexander apareceu montado em uma mula, com duas pistolas apontadas para a cabeça do representante real, e só recebe um beijo na bochecha. Mas o Corsário cai estupidamente em uma armadilha e derramam lágrimas por ele. A moça tinha muito medo de que o maior dos idiotas estivesse sangrando em uma sarjeta. E quando eu, Alexander, assegurei que estava a salvo, tratou-me como a um cão. Que mulher estúpida! Não se dá conta de quem é o verdadeiro herói de sua vida? É possível que todas as mulheres se apaixonem por um rosto bonito e ombros largos?
Nick lhe serviu um copo inteiro de rum.
— Me diga: se Nelba Mason tivesse estado naquela varanda, no dia de sua primeira aventura, teria tentado beijá-la? Teria a arrojado na água suja se ela tivesse resistido?
Alex bebeu todo o rum e se estremeceu de só pensá-lo.
— Teria dado obrigado por seu rechaço — disse, um momento depois. — Mas não é o mesmo, não. Nelba não pode tirar o narigão. Além disso, não arriscou a vida para salvar o Corsário.
— Talvez tivesse feito se o Corsário a cortejasse na noite.
Alex se negou a fazer comentários a respeito.
— Vai, saia daqui e me deixa dormir. Leve esses farrapos ensangüentados e queima-os.
— Sim, amo — zombou Nick, antes de sair.
09
— E agora os Montgomery parecem ter adotado os Taggert — disse a senhora Wentworth. — Acredito que querem praticar a caridade cristã, poderiam haver escolhido uma causa mais digna.
O senhor Wentworth estava tomando o café da manhã com Abigail, sua única filha. Na mesa, na sala ou nas pessoas presentes, não havia nada que não fosse da melhor qualidade, tudo importado da Inglaterra. Não queriam saber nada com os toscos produtos americanos.
— Eleanor tem anos trabalhando para os Montgomery — aduziu o senhor Wentworth. — Virtualmente dirige sozinha essa casa. E, além disso, se Mariana não se casou com o senhor Pitman, os Taggert ainda teriam todos seus pertences. Pitman os atacou como represália contra o Corsário.
— O Corsário! — Bufou sua esposa. — Não me fale desse bandoleiro! Por culpa de pessoas como essa nos meteremos em problemas com a Inglaterra e se perdermos o apoio dos ingleses, o que será de nós? Que espécie de governo teremos sem nos guiar a Inglaterra?
Abigail só prestava atenção a seu pão com manteiga.
— O que se sabe da explosão de ontem à noite?
— Todo mundo pensa que Jessica Taggert teve muito que ver. O senhor Pitman tinha direito de revistar sua casa, embora eu não tenha gostado que nos despertassem a todos no meio da noite para ver se faltava alguém. Como se nós nos misturássemos com rufiões como esse Corsário! — A senhora Wentworth olhou para sua filha com ferocidade. — Em minha família ninguém se envolverá nunca com alguém assim.
— Acha que Jessica Taggert poderia ser tão corajosa? —Perguntou Abigail. — O Corsário estará apaixonado por ela?
— Apaixonado? Ahahah! — Gargalhou sua mãe.
— Na cidade se diz que é uma heroína – interveio o pai. — Quando saí, esta manhã, não se falava mais nada que isso: que Jessica salvou sua vida e que a cidade está em dívida com essa moça. Para não mencionar o Corsário, que estaria morto se não fosse por ela.
Abby se levantou tão depressa que esteve a ponto de derrubar sua cadeira.
— Ninguém sabe com segurança que foi Jessica Taggert quem o salvou! — Protestou. — Os soldados disseram que abriu a porta de sua casa com cara sonolenta. E não há provas de que foi ela quem ajudou o Corsário. Se Alexander Montgomery não houvesse...
— Alexander Montgomery — interrompeu o senhor Wentworth: — eis aí um jovem que deveria tratar melhor. Alex tinha muitas qualidades quando era jovenzinho e tenho certeza que...
— Agora usa todas à vista — zombou Abigail. — É gordo, feio, preguiçoso... E segue Jessica Taggert como se fosse seu querido cãozinho.
— Sim, mas o pai é dono de...
— Não me importa as propriedades de seu pai. Preferiria mil vezes me casar com um homem de verdade, como o Corsário, que com um porco gordo e rico como Alexander Montgomery.
E fugiu da sala.
Acima, na intimidade de seu próprio quarto, deu rédea solta a sua irritação contra toda a cidade. Por que supunham que uma escória como Jessica Taggert era capaz de arriscar a vida para salvar a do Corsário? Depois de tudo, não tinha sido ela, Abigail, quem recebeu o primeiro beijo? Ele tinha demonstrado que desprezava Jessica; já que a tinha arrojado na água suja de roupas lavadas. Em troca era óbvio que de Abigail gostava muito. Por que pensavam todos que sua salvadora era Jessica? Por que não Abigail?
Inclinou-se para o espelho para olhar-se melhor. Esse espelho tinha vindo da França, especialmente para ela. Sem dúvida, um homem tão bravo e cavalheiresco como o Corsário preferiria a uma mulher cuja família pudesse importar espelhos do França. Como ia preferir uma das Taggert?
Nesse momento ouviu o ruído da porta de rua ao abrir-se e fechar-se outra vez. Eram seus pais, que saíam: ele, para ir a sua grande fabrica de velas e a mãe, rumo ao mercado. Em realidade, sua mãe não tinha necessidade de fazer pessoalmente as compras, mas pensava que nunca poderia confiar nos servos.
Abigail continuava olhando-se no espelho. Perguntava-se o que pensariam os habitantes da cidade se soubessem que tinha sido outra pessoa que tinha salvado o Corsário. Saberia o mascarado quem tinha sido essa mulher? Depois de tudo, o episódio se desenvolveu na escuridão e se dizia que ela ia coberta dos pés a cabeça com uma capa negra de capuz.
Ergueu-se um pouco mais, admirando suas formas no espelho. Se o Corsário não tinha reconhecido à mulher e pensasse que tinha sido Abigail, não se mostraria... agradecido?
Claro que teria que ter alguma prova... se por acaso as pessoas não lhe acreditassem. Sorridente, pensou nas chamas da lareira, no térreo.
Quando Mary Catherine entrou no porto, o primeiro que Jessica viu foi à silhueta de Alex, cintilante sob o sol como um pequeno farol de forma estranha. Se estava esperando-a, sem dúvida trazia notícias importantes.
— Permissão para subir a bordo, capitão? — inquiriu ele, sorrindo.
Jess franziu o cenho. Era de esperar, a julgar por esse sorriso, que não houvesse notícias trágicas.
— Sim, marinheiro — concedeu, instalando a prancha. — Trouxe você seu lenço perfumado?
— Em efeito. E também um incenso.
Na mão trazia uma laranja com vários pauzinhos aromáticos enfiados na casca. Pôs-se a andar pela prancha, mas no meio do caminho pareceu sofrer uma espécie de ataque. Levou uma mão à cabeça e começou a cambalear como se estivesse a ponto de cair. Jessica correu até ele e rodeou sua cintura com os braços para sustentá-lo.
— Sente-se bem, Alex?
— Muito melhor, obrigado. Só preciso esperar um momento até recuperar o equilíbrio. Não, não retire os braços. Preciso de sua força. — Por um momento apoiou a bochecha contra a cabeça da moça. — Ah, acredito que já posso caminhar. Ajuda-me a chegar à cabine?
— É obvio, Alex.
Ele se apoiou pesadamente em seus ombros. Jessica teve que ajudá-lo passo a passo até a cabine do navio e o sentou em uma cadeira.
— Quer um pouco de rum?
Alex se reclinou no assento, com um suspiro.
— Não: assaltei a despensa de casa. Aqui tem. Lentamente começou a tirar coisas de seus bolsos: uma garrafa de conhaque francês, meia fogaça de pão, uma parte de queijo e um frasco de mostarda. Jess se pôs a rir.
— E eu, temendo que trouxesse más notícias!
Já que Alex parecia muito débil, cortou o pão e o queijo, lubrificou-os generosamente com mostarda e lhe entregou as rodelas.
— E assim é — confirmou ele. — Abigail Wentworth foi presa por ajudar o Corsário a escapar da armadilha.
— O que? — exclamou a moça, engasgando-se com um bocado de pão. — Mas não é possível! Quando Pitman revisou as casas, não estava ela dormindo?
— Você também, Jessica — observou ele, enquanto sorvia tranqüilamente seu conhaque.
— Está bem. Dê-me os detalhes. O que fez essa pequena idiota para que a encarcerassem?
— Disse a todo mundo que era ela quem havia salvado o Corsário. E como prova mostrou seus cabelos chamuscados pela explosão.
— Não se deu conta de que Pitman a prenderia assim que se inteirasse?
— Não acredito que sua mente tenha chegado tão longe.
— Certamente não — confirmou Jess. — Só quis chamar a atenção do Corsário. Mas deveria ter imaginado que o Corsário teria reconhecido à mulher que o ajudou.
Alex encolheu os ombros.
— Quem pode saber o que pensou? Você mesma não disse muito sobre essa noite. O Corsário se mostrou muito agradecido?
Ela ignorou a pergunta.
— Bom, e o que faremos por Abigail? Não podemos permitir que apodreça no cárcere. O que fará Pitman com ela?
— Poderíamos deixar que o Corsário se encarregasse de salvá-la, já que tanto o ama.
— Alex, não comece outra vez com seus ciúmes. Lamento muito que Abby esteja apaixonada pelo Corsário e sei que você a cortejou, mas ela não te convém, me acredite. Não tem uma grama de miolo, como demonstra este episódio. E bem o que vamos fazer?
— Acredito que não devemos fazer nada, você e eu — replicou ele, severamente. — Ainda não aprendeu sua lição, Jess? Esteve quase ao ponto de deixar sua família sem teto por correr em ajuda ao Corsário. Abby se colocou sozinha neste embrulho e não é teu assunto tirá-la dele.
— Só a libertariam se eu me apresentasse para confessar que fui eu quem ajudou o Corsário.
— Só passando por cima de meu cadáver — assegurou Alex, com sentimento. — E também sobre o teu, se se importar saber.
— Farei o que me pareça certo! — protestou ela.
— Nada disso — disse Alex, com calma. — Te livrarei disto como sempre.
—Você? Do que você me livrou?
Alex olhou para seu conhaque.
— Que má memória tem as mulheres... Da forca, quando você e George detiveram os soldados perseguindo o Corsário, por sua vez roubou o dinheiro de Pitman. Depois impedi que queimassem sua casa, quando você salvou o Corsário da pólvora. Não te ocorreu pensar, Jess, que esse Corsário pelo qual você tanto se preocupa é um tipo incompetente como muitos poucos?
— Como pode dizer isso depois do que ele tem feito para ajudar à cidade? Ao menos ele faz algo por se opor a Pitman. Tomou uma posição, a diferença de outros.
— Pois essa oposição parece incendiar alguma coisa com muita frequência... e você sempre está ali, com um cubo de água preparada para apagar as chamas.
Jess tratou de dominar sua irritação.
— Eu não gosto que diga essas coisas, Alex. Tenho certeza de que o Corsário tinha boas intensões quando foi em busca da pólvora. Só que era uma armadilha. Dá-te conta de que neste momento poderia está agonizando em alguma parte? Não sei se está ferido com gravidade. E não pode procurar ajuda médica para não se delatar. Esse homem merece mais respeito do que você lhe concede.
— Ou nem tanto quanto concede você, Jess se meter em confusão. Mas não discutamos. Aqui se trata de Abigail. Tenho certa idéia de como salvá-la da forca.
Ela ainda estava ofendida por suas críticas ao Corsário.
— Vejamo-la — disse.
— Se conseguíssemos que alguém, um homem, declarasse ter passado a noite com Abby, poderíamos...
— Refere-se ao Corsário? — exclamou ela. — Quer dizer que o Corsário deveria apresentar-se e declarar que passou a noite com ela? Essa noite esteve comigo.
Os olhos do jovem se encheram de fúria.
— Não pode tirar esse homem da cabeça, sequer por uns minutos? Refiro a um homem qualquer: um marinheiro, um empregado, um pelicano macho, pouco isso me importa, desde que saiba falar. Se alguém se apresentar diante da corte e declarar que esteve essa noite com Abby, sem que se inteirassem seus pais talvez a absolvessem.
— Mas e seus cabelos? Que moça estúpida! O Corsário me protegeu com seu próprio corpo. Não tenho um só cabelo chamuscado. Ele, é obvio...
— Jess! — interrompeu-a ele. — Abby queimou os cabelos quando rolavam pelo chão, muito perto do fogo.
Jess sorriu.
— Isso é horrível, Alex. Abby jamais poderá levantar a cabeça nesta cidade.
— Com a fúria que alberga Pitman, poderá dar-se por satisfeita em poder levar a cabeça sobre os ombros, como deve ser.
A moça bebeu um gole de conhaque.
— Mas onde achará um tolo capaz de apresentar-se enfrente a toda a cidade e aceitar a culpa de algo assim? Sobre tudo, considerando que não é verdade. — Levantou a cabeça. — Qual seria o castigo? Porque castigarão aos dois, é obvio.
Alex observou seu último pedaço de queijo.
— Oh, nada mais grave que o tronco, suponho. Mas pensei no homem perfeito.
— Quem?
— Prefiro que seja uma surpresa para você. Deixa o assunto por minha conta. Arrumarei isto como já o fiz com seus outros problemas.
— Eu posso arrumar sozinha meus problemas, mas se por acaso consegue que libertem Abigail, farei algo por você: ajudarei que consiga uma esposa. O ano que vem, a esta altura, haverá um bebê engatinhando na casa dos Montgomery... — Deixou seu copo. — Oh, Alex, acaba de me ocorrer... A debilidade de seus músculos não chegam a... — ficou vermelha. — Quero dizer... Pode ter filhos? Filhos próprios, claro.
Ele a olhou longamente, depois afastou o rosto e suspirou.
— Não me aproximei de uma mulher desde que caí com a febre, mas suponho que poderia, se me mantivesse levantado com algum suporte e ela me desse muita ajuda. — Voltou-se para ela com um sorriso sem cor.
— Oh... — murmurou ela, acabando com o conhaque. — Será melhor que não digamos a ninguém, do contrário jamais conseguiremos uma esposa. Não imagino uma mulher... — Interrompeu-se para não ofender de novo seu amigo, mas pensou no Corsário e sorriu amplamente ante a idéia de que um homem pudesse precisar de ajuda. Por fim se recuperou.
— Você consegue um homem para Abigail e eu farei o possível por te conseguir uma noiva. Pelo que parece, fiquei com o trabalho mais fácil.
— Toma — adicionou Alex, lhe jogando uma laranja. — Come isto. Depois mãos à obra.
Ethan Ledbetter estava no estrado das testemunhas, diante dos jurados. Todas as mulheres presentes se inclinavam para frente, ansiosas por escutar tudo que esse belo jovem tivesse para dizer.
O juiz, com sua peruca longa, pediu ao Ethan que repetisse sua declaração.
— Como a senhorita Abigail não queria que ninguém soubesse de nosso amor, disse que estava com o Corsário. Apenas conseguiu chegar a sua casa antes que os soldados se apresentassem para revistá-la. Se se tivesse demorado alguns minutos mais a teriam detido.
— É mentira! — Gritou Abigail. — Nem sequer conheço esse homem. Disse a verdade: inventei tudo e chamusquei meu cabelo na lareira. Nunca es...
— Oficial: faça calar essa mulher ou a obrigarei a abandonar a sala. Bem, senhor Ledbetter, como explica o cabelo dela?
— Ao rolarmos pelo chão nos aproximamos muito da fogueira — respondeu ele, com certo orgulho.
Por um momento os presentes ficaram muito estupefatos para reagirem. Por fim se ouviu algo que parecia mistura de gargalhada com rugido de indignação.
O oficial impôs a ordem enquanto os juízes conferenciavam.
— Chegamos a uma decisão — disse um deles. — A acusada, Abigail Wentworth, e a testemunha Ethan Ledbetter deverão ser retirados desta sala e... — O público esperava. — ...e se casarão antes do pôr do sol.
Abigail desmaiou. Ethan parecia a ponto de sofrer um desmaio.
— Menti — gritou o jovem. — Só queria ajudar o Corsário. Menti.
Mas os juízes, com cara de experimentarem um profundo desgosto ignorando esse assunto, dispensaram-no com um gesto de mão.
Alex tomou Jessica pelo cotovelo e a acompanhou para fora, mas a moça se afastou dele e esperou a saída dos prisioneiros. Abigail chorava, igual que sua mãe, mas Ethan mantinha a cabeça erguida e os dentes apertados. Ele parecia orgulhoso, apesar de que todos o olhavam boquiaberto. Quando passou junto de Alex se deteve para olhá-lo com ódio e cuspiu em seu rosto.
Alex, com muita calma, tirou o lenço e limpou a saliva, enquanto os oficiais empurravam o prisioneiro.
— Vamos, Jess? — foi tudo quanto disse ofendido.
Jessica o acompanhou, mas sem deixar que a tocasse. Tampouco lhe dirigiu a palavra até que ambos estiveram longe da multidão.
— Que coisa horrível para se fazer a uma pessoa! — Exclamou, tão furiosa que mal podia falar. — Sabia perfeitamente que o tribunal os obrigaria a casar-se, verdade?
— Me tinha ocorrido, sim.
— Como convenceu Ethan para que declarasse ter estado com Abigail?
— Não sei por que está tão zangada. Simplesmente apelei a seu patriotismo. Disse-lhe que assim ajudaria a seu país e sobre tudo a sua cidade.
— E ele acreditou — adivinhou a jovem, apertando os punhos. —Só porque se chama Montgomery todos acreditam que podem confiar em você. Fez algo espantoso, Alexander Montgomery. Jogou vergonha sobre seu sobrenome.
Girou sobre seus calcanhares e partiu tempestuosamente.
— Espere um momento, jovem — protestou ele, detendo-a por um braço à beira do caminho. — Disse o que planejava fazer e não pôs objeções. Por que está tão zangada agora? Porque enrolei o Ethan Ledbetter e não a outro? Ou porque seu jovem galã se deixou convencer com tanta facilidade?
— Não é meu galã! E me solte!
Alex seguiu retendo-a com força.
— Por que se zanga assim comigo? Fiz libertarem Abigail, embora não merecesse por ser mentirosa. Quanto a Ethan, é um simples ferreiro e vai casar-se com a herdeira de uma das maiores fortunas de Warbrooke. Não sei que mal fiz.
— Mas Ethan terá que passar o resto de sua vida com a idiota da Abigail!
Alex lhe soltou os braços.
— Faz alguns dias sugeriu que Abigail podia casar-se comigo. Agora não se parece boa consorte para seu precioso Ethan.
— Não compreende? — Exclamou ela, com suavidade. — Ethan poderia ser o Corsário!
— Compreendo — disse ele, seco e frio. — E você queria o Corsário para você somente, não é assim? Pensava apanhar Ethan em suas redes.
— Não! — Ela se tampou os ouvidos com as mãos. — Está me confundindo. Mas detesto ver às pessoas tão infelizes. Deveria ter advertido a Ethan que talvez o obrigassem a casar-se com ela.
— Se ele não teve a inteligência necessária para perceber que era a solução lógica, depois de ter admitido diante de toda a cidade que se deitava com Abigail, merece o que tem tido de sorte. E pode alegrar-se por essa armação que saiu barato. Se a cidade não estivesse alvoroçada pelo Corsário teria sido muito pior. E Abigail! Me espanto que não a tenham apedrejado.
— Arriscou a vida dos dois! Não tinha certeza de que o juiz não os sentenciasse ambos a morte.
— O juiz deve muito dinheiro aos Montgomery. Antes do julgamento mantivemos uma interessante conversa. Naturalmente, não sabia como iam reagir as pessoas da cidade. Temi que Abigail sofresse alguns abusos.
— As mães estão muito contentes de vê-la casada. Desse modo suas filhas têm uma oportunidade.
Alex sorriu.
— Assim eu gosto mais, Jess. Tanto se interessa por esse Corsário?
Ela lhe deu as costas.
— Não sei o que sinto, em realidade. Preocupa-me sabê-lo ferido. Com tanto sangue como perdeu ontem à noite...
— Compreendo. Preocupa-se com a possibilidade de que tenha morrido: Talvez agora tenha o senso comum de compreender que não se desempenha muito bem como Corsário e renuncie ao jogo.
Ela o olhou com dureza.
— Realmente espero que Nelba Mason aceite casar-se contigo, seu caráter é tão agradável como seu rosto. Agora se incomodaria em se manter longe dos Taggert por um tempo, incluindo a mim, para nos deixarem um pouco em paz?
Assim dizendo, girou em circulo e o deixou sozinho.
— Maldição, maldição — resmungou Alex, que tinha acreditado ter sido muito ardiloso em convencer Ethan que se declarasse por Abigail. — Esse Corsário não é tão inteligente como pensa, moça — adicionou, em voz bem alta, antes de começar a andar rumo a sua casa. Até onde ele podia julgar, o Corsário tinha feito mais mal que bem.
10
A chegada do almirante inglês em Warbrooke imobilizou a cidade quase por completo.
Westmoreland era um homem corpulento. Seu colorido uniforme, suas rígidas costas, aquela voz que se deixava ouvir por sobre as tempestades de alto mar e seu cortejo de oficiais, que o rodeavam constantemente, davam-lhe uma aparência formidável. Levaram-no em bote para a terra e a multidão reunida se abriu para dar caminho ao desfile. O almirante caminhava na vanguarda e sua cabeça se sobressaía por sobre todas as demais pessoas. Subiu a colina em linha reta para a casa dos Montgomery, como se soubesse exatamente onde estava. John Pitman, esperava-o a cem metros da mansão, arrumando a peruca que colocou para a ocasião. Atrás dele estava Alexander, lânguido e bocejando como se tudo aquilo o aborrecesse muito.
— Senhor — saudou Pitman, com uma espécie de reverência. O almirante olhou Pitman de cima abaixo, jogou uma olhada em Alex e logo partiu para a casa.
— Suponho que você é Pitman. É este seu quartel? — Trovejou, enquanto um de seus homens lhe abria a porta.
Assim que entrou no salão, todos ficaram petrificados. Os meninos interromperam suas tarefas. Eleanor deteve a colher sobre o guisado.
O almirante, sem incomodar-se em formular perguntas, esperava com óbvia impaciência.
— Por aqui, senhor — indicou Pitman, apressando-se em abrir a caminhada pelo corredor que levava ao escritório dos Montgomery.
Alexander, que seguia o cortejo, passou junto à Eleanor com um encolhimento de ombros, dando a entender que não tinha idéia do que estava ocorrendo.
No escritório o almirante se deteve e olhou a seu redor. Ao ver Alex se deteve.
— Saia — ordenou, lacônico.
Dois homens se adiantaram para retirar Alexander, mas ele se recompôs para evitá-los.
— Temo que deva aceitar minha presença, senhor. Sou o proprietário da casa — disse, olhando as unhas, enquanto se recostava contra a parede.
O vozeirão de Westmoreland fez ranger as vigas.
— Não tolero insolências em meus subordinados. Muito menos em passarinhos como você. Tirem-no daqui.
Enquanto Alex se deixava levar fora do escritório, amaldiçoava para seus adentros, ao ver-se impossibilitado de defender-se sem despertar suspeitas. Portanto, esperou fora, sem deixar de amaldiçoar às grossas paredes construídas por seus antepassados, pois não lhe permitiam ouvir grande coisa. Uma das frases que lhe chegou, graças à voz de trovão do almirante, foi que era preciso aplicar mão firme para que o menino não se malcriasse. Não lhe custou compreender que o menino era a América.
Seus piores medos começavam a se tornar realidade: o almirante estava ali para fazer vingança pelos atos do Corsário. Assim que ouviu na conversa o sobrenome Taggert, Alex entrou em ação. Foi ao salão, onde todos se moviam em câmara lenta, com o ouvido apontando para o corredor que conduzia ao escritório.
— Não deixe que os meninos se separem de você — recomendou a Eleanor. — Aconteça o que acontecer, que os meninos estejam sempre contigo.
Sem perder tempo em mais explicações, saiu da casa e caminhou para o cais, tão depressa como permitia seu disfarce.
Jessica estava na cobertura de seu navio, limpando com uma bucha e água de mar.
— Tenho que te falar, Jess — chamou Alex, tratando de dissimular a urgência de sua voz.
— Não tenho nada que te dizer — disse ela, afastando-se de seu campo visual.
Alex jogou uma olhada por sobre o ombro se por acaso o almirante e seus homens estivessem já à vista.
— Desce, Jess! Preciso falar contigo.
— O que acontece, Montgomery? — perguntou alguém. — Sua moça retirou a palavra?
Alex decidiu subir pela prancha.
— Jess, — gritou, dando deliberadamente a sua voz um tom lamentoso — se cair daqui por sua culpa...
Com cara de desgosto, ela desceu pela prancha para vir ao seu encontro.
— Seria um castigo merecido — assegurou.
Somente ia ajudá-lo a entrar na cabine, mas ele tomou-a pela cintura e, aplicando um pouco de força, conduziu-a ao cais.
— Tenho o que fazer Alex. Nem todos podem passar a vida vadiando como você. Tenho que alimentar minha família.
Alex viu que o almirante e seus homens se encaminhavam para eles.
— Disse-te que precisava te falar. — Segurou-a pelo braço e puxou-a para o outro lado.
— Mas o que você tem? Não quero conversar contigo. Nem sequer desejo ver-te. E agora me solte. — A moça girou a cabeça. — Quem são essas pessoas?
Alex a segurou pelos antebraços para obrigá-la a olhá-lo de frente.
— Me escute bem, Jess. O que eu vou dizer pode salvar sua vida. Somos súditos ingleses. Os ingleses nos consideram filhos deles. Os direitos legais são deles. Talvez, algum dia, possamos mudar isso, mas no momento eles têm todos os direitos.
— Está louco, Alex. E não tenho tempo para lições de política. Te disse que estou atarefada.
Sem soltá-la, ele a manteve frente a si.
Atrás deles, um homem começou a pronunciar um anúncio diante da multidão que se reuniu em redor do almirante.
— Por ordem de Sua Majestade, o rei Jorge III, o almirante Westmoreland, aqui presente, foi enviado para pôr fim às atividades do homem que se faz chamar de O Corsário. O almirante permanecerá nas Colônias até que esse homem tenha morrido. A quem descubra dando amparo ao Corsário se executará no ato, sem julgamento prévio. É de conhecimento do almirante que uma certa Jessica Taggert deu ajuda ao inimigo.
Jess deixou de debater-se entre os braços de Alex e ficou imóvel.
— Por decreto do almirante e do rei, o navio de propriedade da Taggert, chamado Mary Catherine, será retirado deste cais e queimado no mar.
— Não! — Conseguiu uivar Jess, antes que Alex cobrisse sua boca para sossegá-la.
Rodeou-a com seus grandes braços acolchoados e a estreitou contra sua barriga.
— Agora te levarei para casa, Jess — sussurrou. — Não quero que veja isto.
Ela se debateu a cada passo do trajeto, lutando contra suas mãos, chutou-o, tratou de morder seus dedos e fez todo o possível para recuperar sua liberdade, mas sem consegui-lo. Alex conseguiu levá-la até o salão dos Montgomery. Excetuando Eleanor e os meninos, o salão estava deserto.
— O que aconteceu? – sussurrou a moça, ao ver sua agitada irmã quase amordaçada por Alex.
— O almirante foi enviado para acabar com a vida do Corsário. Pitman disse que Jess mantinha algum tipo de relação com ele e, portanto, Westmoreland decidiu dar um exemplo incendiando Mary Catherine.
Eleanor ficou muito aturdida para reagir.
— Me consiga uma garrafa de whisky — ordenou Alex. — A levarei para meu quarto.
Enquanto ele a levava pelo corredor, Jess renovou suas resistências. Quando passaram junto à porta de Sayer, os homens intercambiaram um olhar sem dizer uma palavra. Quando Alex chegou a seu dormitório, arrastando Jess, Eleanor já estava ali com o whisky.
— Não quero ver ninguém — indicou ele.
Tomou a garrafa e fechou a porta com o pé. Quando o ferrolho esteve em seu lugar, soltou à moça.
— Maldito covarde — uivou ela. — Deixe-me sair daqui. Eu posso impedir isto.
Alex se recostou contra a porta para que ela não pudesse abrir.
—Não, não pode. Esse homem traz o ódio no olhar. Pensa matar o seu Corsário... e se não puder fazê-lo agora mesmo, se desforrará com qualquer um que tenha relação com ele. Tem intenções de te usar como exemplo.
— Pois pode usar como exemplo a outra pessoa. Tira seu gordo corpanzil dessa porta e me deixe sair.
— Me diga o que queira, mas não sairá daqui. Esse inglês adoraria ter qualquer motivo para enforcar a alguém. Conheço seu tipo. Estaria feliz se pudesse pendurá-la no mastro antes de colocar fogo no navio. Só quero manter-te com vida, embora incendeiem seu navio.
— Isto não te concerne. É meu navio o que esse homem quer queimar. Abre essa porta.
Jess começou a empurrá-lo com todas suas forças, cravando os calcanhares no chão e aplicando suas costas contra o lado dele, mas não conseguiu movê-lo.
— Jessica — observou ele, com voz mais suave. — Se sair e tenta objetar a esse homem, acabará executada. Não vou permití-lo.
— O que não vai permitir! — bramou ela. — Quem é você para permitir ou não algo?
Empurrou-o e seguiu empurrando até ficar sem forças. Então começou a recordar o que havia dito o pregoeiro do almirante: iriam incendiar seu navio. Caiu escorregando, lentamente, enfrente de Alex e bateu com seus ossos contra o chão.
— Esse navio foi herança de meu pai — sussurrou. — Foi o único que me deixou, além de irmãos para criar. Nenhum dos moços o quis. Eles queriam singrar o oceano em grandes navios; não quiseram se aproximar sequer da fedorenta Mary Catherine. Mas Eleanor e eu compreendemos que era um meio para alimentar a mamãe e os meninos. Sabe o quanto me custou conseguir que alguém me ensinasse a pilotá-lo, só por ser mulher?
Assim sentada, apoiada contra as pernas de Alex, começou a imaginar o que seria a vida sem seu navio.
— Kit me ajudou um pouco. E Adam sempre esteve perto para me ensinar a atar nós. Mas quem mais me ajudou foi o velho Samuel Hutchins. Recorda-o? Morreu faz alguns anos.
Alex também deslizou até o chão, para apoiá-la contra seu ombro, e entregou a garrafa de whisky.
— Eu ria de você. Dava-me inveja que fosse mais jovem que eu e tivesse um navio próprio.
Jess tomou um respeitável gole da bebida.
— Dizia que uma mulher não devia pisar sequer na cobertura de um navio, muito menos possui-lo. Dizia que Mary Catherine não merecia o título de navio.
— Disse-o, é verdade. Mas teria dado tudo quanto possuía por seu navio ou qualquer outro. Minha mãe não queria que eu embarcasse. Já tinha entregado ao mar seus dois filhos mais velhos e não estava disposta a renunciar de seu filho pequeno.
Jess virou outro gole na garganta.
— E tinha razão. Olhe no que terminou. Perdeu sua virilidade e ela morreu antes de voltar a ver seus melhores filhos.
Sem ver a expressão de seu companheiro, prosseguiu:
— Mary Catherine tinha problemas, sim, mas me servia. Oh, Alex, por Deus. Como vou alimentar os meninos sem ele?
Alex a rodeou com um braço para que apoiasse a cabeça em seu ombro.
— Eu te ajudarei, Jess. Eu estarei sempre a seu lado para ajudá-la.
Ela se afastou abruptamente.
— Como o fez hoje? Para você, ajudar é fugir do perigo?
— Tenho o senso comum de fugir quando todas as possibilidades estão contra mim — replicou ele, muito rígido. — O que teria podido fazer contra o almirante e seus soldados? Repito que esse homem tem muita vontade de enforcar alguém. E conta com todo o direito de fazê-lo.
— O Corsário, pelo menos, não tem medo de sua própria sombra, como o resto desta cidade.
Alexander se levantou abruptamente, com fogo nos olhos.
— Você e seu Corsário! É por culpa desse idiota que a cidade está neste aperto! Se ele não tivesse metido o nariz procurando glória, seu navio estaria inteiro e não haveria varias vidas em perigo, incluindo a tua. Em todo caso deveria odiar esse homem em vez de elogiá-lo.
Jess também se levantou, com os braços na cintura.
— Não percebe que é preciso fazer alguma coisa para impedir que os ingleses nos tratem assim? O Corsário, sim, sabe. Não temos os mesmos direitos que os ingleses. Como é possível que esse homem incendeie meu navio só porque deseja muito? Que defesa me cabe?
Não lhe deu tempo para responder.
— Quero te dizer algo, Alexander: não é porque você seja covarde que seremos todos nós.
— O que quer dizer?
— Ouvi que no sul estão acontecendo coisas. Escrevem-se panfletos, pronunciaram-se discursos. Talvez possa se fazer um pouco parecido em Warbrooke.
Alex se recostou contra a porta.
— Está falando de traição, Jess — sussurrou, observando seu bonito pescoço.
— Se nos libertarmos da Inglaterra e refazermos nossa pátria, não será traição, a não ser patriotismo.
Ele lhe ofereceu a garrafa de whisky.
— Bebe isto e conversemos.
— Ahahah! Pretende que confie em um covarde como você?
Ele se inclinou até tocar quase no nariz da moça com o seu.
— Eu gostaria de te recordar que fui eu quem te salvou de Pitman, quem salvou Abigail e quem hoje, provavelmente, voltei a te salvar da forca. Não acho que tudo isso seja covardia.
Ela esfregou os braços arroxeados.
— E eu não gosto de seus métodos.
— Nem todos podem ser românticos como seu Corsário. Além disso, não estava convencida de que ele tinha morrido?
— Não diga isso! Vamos a minha casa e...
— Nem pense. Por hoje não porá um pé fora desta casa. Seria capaz de ir diretamente aonde esteja o almirante para desafiá-lo a um duelo e, a murros. Penso te manter com vida dia a dia. Agora me conte a que se referia quando falava de patriotismo.
Mas Jessica, apesar a todas as suas insistências, não quis dizer uma palavra.
Jessica despertou com o estômago irritado, dor de cabeça e gosto de cola na boca. Seu primeiro pensamento foi que nunca voltaria a confiar em Alexander. Ele não tinha querido falar de patriotismo, a não ser embriagá-la para impedir toda sua resistência.
Pouco a pouco, tratando de não mover a cabeça, jogou de um lado os cobertores. "Não estranhava que ele dormisse sob lençóis de cetim rosado", pensou.
— Bom dia — saudou Alex, da porta.
— Não têm nada de bom — assegurou ela, gemendo. — Essa jaqueta é horrível, Alex.
Ele sorriu.
— São abacaxis e fitas. Eu adoro. Quer comer algo?
— Onde estão minhas botas?
— Aqui. Acredito que conviria descansar todo o dia, Jess.
— É obvio, a tarde toda, claro. Como estão os meninos?
— Eleanor cuidou-os bem. Esta tarde, ela e eu atacamos a despensa. Têm comida mais que suficiente.
— Os Taggert não...
— Não aceitam esmolas, já sei. Quer que te ajude?
Jess colocou a segunda bota.
— Tenho que ir pescar. Tenho que... — interrompeu-se subitamente, recordando que já não tinha navio. — Incendiaram-no?
Alex se sentou na cama para tomar sua mão.
— Sim, Jess. Vi o almirante Westmoreland, que se instalou com dez de seus homens na casa dos Wentworth. Acredito que o convenceu de que, em realidade, nunca participou de nada.
Ela se afastou de um puxão.
— Com isso não recuperarei meu navio.
— Não, mas chá agora seria de ajuda se você se mantiver longe do Corsário.
Ela ficou de pé, apertando-a cabeça e o estômago, mas o fulminou com o olhar.
— O que sabe você? Você só sabe de... de abacaxis e fitas. O Corsário bem poderia estar morto. Morreu, meu navio está incendiado e eu...
Interrompeu-se para afastar o rosto. Preferia morrer a chorar diante desse homem, esse punhado de pirilampos.
— Jess... — começou ele, tentando de aproximar-se.
— Não me toque.
Ela se afastou para aproximar-se da porta e abandonou o quarto. Ao chegar ao salão chamou, sem deter-se:
— Me acompanhe, Nathaniel.
E continuou a caminhar sem olhar sequer os vizinhos, que a olhavam boquiabertos. Agora a temiam; tinham medo de ver-se no mesmo problema que ela.
Deteve-se por um momento na oficina do ferreiro. Ethan Ledbetter, com os braços nus reluzentes de suor e a camisa colada aos músculos das costas, martelava uma ferradura em vermelho vivo... e Abigail estava de pé nas sombras, olhando-o como se fosse uma menina faminta diante do festim de Natal.
Os olhos da Jessica se encheram de ardorosas lágrimas. Se o Corsário não tinha reaparecido, seria porque Ethan tinha agora Abigail?
— Jessie... — reclamou Nate. — Vem ai o senhor Alexander.
— Vamos, então — falou Jess, furiosa. E pôs-se a andar a passo rápido.
Trabalhou sem pausa durante quatro dias. Ao terminar o primeiro dia Eleanor falou firme:
— Pode tratar de se matar, se isso deseja, mas não permitirei que mate também Nathaniel.
Tinha tido que levar o exausto menino nos braços até a cama.
Portanto, Jess saía sozinha. Arrojava a rede ao mar e as retirava. Consertou um velho carrinho para vender peixe pelas ruas da cidade, mas muitos temiam comprar. Agora seu nome parecia poluído. Todo mundo tinha medo do almirante e de seus soldados.
Westmoreland percorria as ruas de Warbrooke desde a primeira hora até a última. Seus soldados saltavam ao menor ruído. Um deles disparou contra o cachorrinho de uma garotinha, que cruzou inesperadamente diante dele. Fecharam as tabernas do cais.
Warbrooke estava sob a lei militar.
Jess fez três intentos de falar com os homens sobre liberdade, sugerindo que deviam protestar pelo que ocorria, mas ninguém a escutava.
Ao terminar o quarto dia se atrasou na pequena enseada, ao norte de sua casa. Tinha as mãos cobertas de bolhas e em carne viva; sentia frio e fome. Mas pensou nos meninos que esperavam em sua casa e recolheu a rede para arrojá-la pela última vez.
— Jessie.
No princípio pensou que era só o vento.
— Jessie.
Girou sobre seus calcanhares para olhar para a escuridão, ali onde a terra formava um pequeno escarpado em um lado da enseada. No começo não viu nada. No meio da escuridão surgiu uma mão, uma mão que se estendia para ela, com a palma para cima. Jessica correu para ele.
O Corsário a estreitou tanto em seus braços que esteve a ponto de fazer ranger suas costelas.
— Jessie, Jessie, Jessie — sussurrava, abraçando-a, afundando o rosto em seu cabelo.
— Está aqui. Está bem — exclamou Jess, com lágrimas nos olhos e na voz. — Deixa que te veja. Deixe-me ver a ferida.
E começou freneticamente tentando puxar a bainha de sua camisa, ansiosa por ver se, em realidade, estava ileso.
— Deixa que te ajude — riu ele, enquanto desabotoava a camisa.
— Não vejo nada. Está muito escuro.
Jess estava a ponto de explodir em lágrimas. Não tinha chorado pelo incêndio de seu navio, nem pelo rechaço de seus vizinhos, mas já não se acreditava capaz de conter-se mais.
— Apalpa com as mãos — sugeriu ele, brandamente. — Anda, Jessie, não sou digno de que chore. — Afastou-se dela para lhe mostrar as costas. — A explosão da pólvora fez voar algumas pedras. Sente as crostas? Já estou curado.
Ela deslizou as mãos por aquelas costas forte, apalpando as cicatrizes. Recordava muito bem que ele as tinha recebido por protegê-la. E a corrente de lágrimas foi incontrolável. Sepultou o rosto nas costas do Corsário, apertando o nariz contra sua coluna, abriu a boca, e as deixou correr, cravando as mãos na cintura do homem.
— Jessie, minha querida — sussurrou ele, girando para abraçá-la. — Tem mais motivos que ninguém para chorar. Anda, chora.
— Acreditava-te morto. Ou casado.
— Nenhuma coisa nem a outra. — Levantou-a nos braços para estreitá-la contra si. Suas lágrimas molhavam seu pescoço, o peito e as costas. — Não me casaria com uma tola como Abigail. Só me conformo com a melhor.
Jessica redobrou seu pranto.
Ele acariciou seus cabelo e as costas. Suas mãos desceram até os quadris e as coxas.
— E não cometeria a estupidez de declarar ter dormido com ela se não fosse verdade, mesmo que tratassem de me convencer.
— Ela o ama — sussurrou Jess. — O vi.
— Viu Abigail com Ethan, não comigo — esclareceu o Corsário, enquanto desabotoava a camisa.
— Eu cheguei em casa com sangue nas mãos. Todos disseram que tinha morrido. Alex disse que era verdade.
— O que sabe ele? — Tirou a bainha da camisa dela das calças e desabotoou seu cinto. — Por que dedica tanto tempo a esse homem? A roupa que usa fará mal a seus olhos. Acabará estrábica.
— São fitas — soluçou ela. — Sabe que incendiaram meu navio?
— Ah, sim, querida. — Levantou-a um pouco contra seu corpo para deslizar suas calças soltas quadris abaixo. — Mas não pude fazer nada para impedir. Tudo foi muito precipitado. Dizem que passou a noite com Montgomery.
Ela se afastou para o olhar nos olhos, que refletiam sob a máscara.
— Mas não desse modo. O que está fazendo? — exclamou, horrorizada ao encontrar-se só de camisa, com as calças ao redor dos tornozelos e as botas colocadas.
O Corsário a depositou na pedra rochosa e, com um movimento veloz, arrancou-lhe a um só tempo as botas e as calças.
Jessica, sorvendo pelo nariz, piscando para clarear a visão, tinha ficado imobilizada estupefata. O Corsário, com o torso nu, avançou para ela como uma pantera, sobre as mãos e joelhos, movendo sedosamente o corpo sobre sua pele.
— Mas...
E então Jessica o golpeou na mandíbula com o punho direito. Sem perda de tempo, escapou dele. Mas o Corsário a segurou pelo tornozelo e voltou a imobilizá-la.
— O que faz, mulher?
— Eu? — Protestou ela. — Acha que vou deixar que me toque? Está louco!
Ele a beijou.
— Se acha que...
Ele a beijou outra vez.
— Nem pense...
Mas a voz de Jessica soava mais suave, e ele voltou a beijá-la.
— Jessie, está me deixando louco. Penso em você sem cessar. Amo-te, não sabe? Amo-te há muito tempo e te proporia matrimônio se pudesse, mas não posso continuar sem te fazer amor.
— Não, eu...
Beijou-a outra vez.
— Pode escolher: faremos amor na areia suave e fresca ou te violarei nas rochas.
Ela dilatou os olhos, protestando:
— Não seria capaz de semelhante coisa!
O Corsário sorriu.
— Eu adoraria, uma coisa ou a outra. Você escolhe.
— Mas... mas isso não é escolher.
— Talvez comece com uma coisa e termine com a outra. Entretanto, diz-se que a violação é dolorosa, especialmente para as virgens, que talvez, você seja. Claro que a alguns homens o excita tanto esperneio e arranhão.
— É obvio que sou virgem! — Protestou ela.
— Já me parecia, — murmurou ele, enquanto começava a mordiscá-la — decidiu?
— A mulher só deve deitar-se com o homem com quem vai se casar — recordou-o ela, com os olhos fechados, deixando que ele começasse a percorrê-la com os lábios.
— Talvez se case comigo quando eu deixe de ser o Corsário.
— Para viver onde?
Ele, rindo entre dentes, escondeu o rosto em seu seio. Desatou os cordões com os dentes, já que tinha as mãos ocupadas em segurar as dela por sobre sua cabeça.
— Viverá em qualquer lugar eu esteja. Jessie, Jessie, que bela é. — Ia deslizando a língua pela redondeza dos seios. — Já se decidiu?
— Decidiu o quê? — A voz da Jessica soava muito longínqua. — Sim, viverei em qualquer lugar que esteja.
— Será violação ou ato de amor?
Ela não podia concentrar-se.
— A religião diz que devo me preservar.
— Ah, nesse caso se considere violada. — Ele soltou suas mãos. — Quanto te amo, Jessie.
Ela deixou de pensar, as mãos do Corsário deslizaram por debaixo de sua roupa interior e a estava tirando com destreza. O ar da noite sobre a pele foi uma carícia a mais. As mãos do mascarado pareciam estar em todas as partes, percorrendo seu corpo, o interior das coxas, as panturrilhas. Então ela começou a acariciar suas pernas nuas com a planta dos pés. A aspereza do pêlo lhe pareceu estupenda e excitante, por ser tão distinta do contato com seu próprio corpo.
Ele abrigou os seios entre as mãos, beijou-lhe o corpo e deslizou a língua para baixo, para o umbigo.
Jessica, com um gemido, recebeu o peso de seu corpo sobre o dela.
Com a penetração sentiu dor e começou a resistir. Ele a manteve imóvel e a beijou com lentidão, longamente, até sentir que relaxava debaixo dele e ao soltar o corpo suas pernas começaram a abrir-se.
— Não resista a mim, Jessie: me ame. — Mordiscou-lhe a orelha. Quando penetrou nela por completo já quase não houve dor.
— Jess... Jessie, preciso-te.
— Sim, — sussurrou ela — aqui estou.
Depois de alguns movimentos rápidos, com que tratou de não lhe fazer dano, ele se deixou cair sobre Jessica, suado, cansado, satisfeito.
— Amo-te, Jessica — sussurrou.
Ella acariciou os cabelos escuros, apalpando o nó da máscara. Por alguma razão não respondeu aquela frase. Limitou-se a estreitá-lo contra si, em silêncio, tensa.
Só quando começou a recuperar o senso comum pensou na enormidade do que tinham feito. Agora estava atada a esse desconhecido por toda a eternidade. Moveu a cabeça para olhá-lo, mas só viu a máscara. Nem sequer sabia como era o homem com quem acabava de fazer amor.
— Hummm — murmurou ele, estudando sua expressão. — Zangada por que fiz o que queria?
— Quem é você? — perguntou ela, com voz rouca.
— Isso não posso dizer, tesouro. Do contrário o faria. Fiz-te mal?
— Não, mas agora sim — respondeu ela, com os olhos cheios de lágrimas.
O Corsário se afastou de lado e tomou-a nos braços para embalá-la.
— Passou a semana falando com as pessoas. Do que?
As lágrimas de Jessica começavam a secar-se, substituído a irritação por outras emoções.
— Da covardia.
— A de quem? A deles, a tua, a minha?
— A deles, é obvio. Não me considero covarde. E você não o é, claro está.
Ele acariciava sua pele nua.
—Quero que se vista, Jessie. Se passarmos mais alguns minutos assim, voltarei a te possuir entre as rochas.
Ela vacilou.
— Não, não — protestou ele. — As virgens precisam de descanso entre uma relação e outra.
Ela se afastou para procurar suas roupas. Mesmo com a falta de luz e a máscara, notou que os olhos do Corsário a observavam, brilhantes. Seu primeiro impulso foi cobrir-se, mas logo começou a sentir-se poderosa, como se só ela pudesse fazer com que esse homem magnífico baixasse a cabeça. Enquanto colocava a roupa interior arqueou as costas.
— Jessie — advertiu ele.
A moça lhe dedicou um sorriso ardiloso, olhando-o com os olhos entrecerrados.
O Corsário saltou para ela, emitindo uma espécie de grunhido. "Oh, que espetáculo delicioso!", pensou Jess, "Este homem mascarado, musculoso e bronzeado pelo sol, movendo-se de noite para mim..." e abriu os braços para recebê-lo. Ele lhe beijou o pescoço, sedento.
— Talvez não reconheça seu rosto quando o vir, mas sim, outras partes de você. Será melhor que, quando caminhar pela cidade, mantenha-se vestido.
Ele riu contra seu pescoço.
— Se levante, pequena sedutora, e termina de se vestir. Depois me dirá de que covardia estava falando.
Ela desejava voltar ao tê-lo entre os braços, mas por mais que se esmerou em seus movimentos, o Corsário não voltou a tocá-la. Enquanto ele se vestia, sem deixar de observá-la, com toda segurança, a moça acreditou ouvir alguns gemidos, mas esse homem parecia ter um infinito autodomínio.
Quando ambos terminaram de se vestir, tomou-a outra vez em seus braços, então Jess pôde sentir o quanto estava suado. Sorridente, satisfeita, esfregou a bochecha contra a seda úmida da camisa negra.
— Me conte agora do que esteve fazendo.
Ela contou o que tinha ocorrido desde o último encontro. Ao falar de seu navio perdido estrangulou a voz, mas o Corsário lhe deu uma leve sacudida.
— Nada de autocompaixão — lhe ordenou.
Coisa surpreendente: essas duras palavras a fizeram sentir-se melhor e pôde continuar sem lágrimas. Por fim ele disse, lentamente:
— Então quer provocar mais distúrbios.
Ela se afastou para olhá-lo.
— Quero lutar. Esse homem não tinha direito de queimar minha nave. Que a Inglaterra seja nossa pátria mãe não a autoriza a nos tratar como a... como a...
— Crianças? — Sugeriu ele.
— Não somos crianças, como bem sabe — falou ela, em voz baixa. — Somos adultos e temos a inteligência necessária para governarmos sozinhos.
— O que está dizendo é traição, Jessie.
— Talvez, mas ouvi rumores sobre coisas que estão dizendo e escrevendo no sul. Pensei que talvez pudesse conseguir alguns panfletos. Desse modo as pessoas de Warbrooke compreenderia que não somos os únicos.
— E como obterá esses panfletos? Como os distribuirá sem que a peguem? Como protegerá a sua família enquanto salva o país?
— Não sei — reconheceu ela, furiosa. — É só uma idéia. Ainda não resolvi os detalhes.
— Talvez eu possa ajudar — sugeriu ele, brandamente.
Como de costume, Jess respondeu sem pensar:
— Não, obrigado. Meto-me em mais problemas quando te ajudo que quando ajo sozinha. Talvez alguns dos navios que zarpam daqui aceitem me levar ao sul. Poderia...
O Corsário tinha demorado um pouco em chegar ao ponto de ebulição, mas nesse momento explodiu. Aferrou-a pelos ombros e a amaldiçoou, primeiro em italiano, logo em espanhol. Por fim recuperou o fôlego e manifestou, entre dentes apertados:
— Serei eu quem conseguirá esses panfletos, eu que os distribuirei. Você ficará em sua casa, como deve toda mulher.
Os olhos da Jessica cintilaram de fúria.
— Se eu tivesse ficado em minha casa até agora, você não estaria com vida.
Por um momento se fulminaram com o olhar.
— Com quem falou? — perguntou ele.
— Com ninguém — respondeu a moça, retrocedendo. —. Alexander me assinalou alguns detalhes da realidade.
— Essa morsa presumida e gorda? Por que te ronda tanto? O que quer dele?
— Pretende me indicar a quem me dirigir e a quem não? —Jessica se levantou. — O que acabamos de fazer não te converte em meu dono. E ainda deverá me demonstrar que é capaz de fazer alguma coisa sem uma boa porção de ajuda alheia. Droga! Corsário é o que você é! Sua única abordagem efetiva é a que faz sob as saias das mulheres.
De repente levou a mão à boca, compreendendo que havia dito muito.
O Corsário se levantou também, ardendo de fúria.
— Escuta... disse sem pensar — balbuciou ela. — É que me zangou ao me ordenar que permanecesse em casa.
Sem dizer uma palavra a mais, o mascarado girou sobre seus calcanhares e desapareceu na noite.
Jess permaneceu ali por um momento, forçando a vista e aguçando o ouvido no intento de perceber sua proximidade.
Não se ouvia nada. Não se via nada.
Ao fim recolheu suas redes e sua pesca para iniciar a volta para casa.
11
Jessica, fatigada, deixou cair uma carga de peixe e lagostas na mesa grande do salão dos Montgomery. Eleanor reclamou secamente para Molly por não prestar atenção ao que fazia, colocou alguns pãezinhos de milho no forno, brigou com o cão que vigiava o assador e olhou com mau semblante para Nathaniel por já não estar limpando o peixe.
— O que acontece? — inquiriu Jess.
— Esse... — A palavra tinha saído dos lábios de Eleanor como espuma de uma panela com água fervendo.
Jess voltou seu olhar interrogante a Nate, que estava recolhendo uma lagosta do chão. O menino assinalou a porta com a cabeça e formou o nome com lábios silenciosos: Nick.
— O que fez agora o seu Nicholas? – perguntou Jessica, enquanto retirava um pãozinho quente da assadeira.
Eleanor girou para sua irmã com expressão furiosa.
—Não é meu, por certo. — Por fim se dominou. — Alexander está doente. Bem poderia estar morrendo, pelo que sei. Mas esse monstro bruto e briguento não me deixa entrar para vê-lo. Disse que Alex não quer receber a ninguém.
— Pode ser verdade — observou Jess, com a boca cheia. — Provavelmente não queira receber ninguém sem suas vistosas jaquetas. — Sacudiu os farelos de suas mãos. — Mas me receberá.
Caminhou pelo corredor até a porta de Alex. Já tinha a mão no trinco quando Nick saiu do outro quarto e a viu.
— O lorde não quer ver ninguém.
Jess bateu na porta.
— Sou eu, Alex. Jessica. Eleanor está preocupada com você. Abre e me deixe entrar.
Não houve resposta. Ela olhou para Nick. Aquele homem musculoso e moreno estava olhando-a com o nariz erguido, com um ar mais orgulhoso que nunca.
— Quero vê-lo — repetiu Jess, apertando os dentes.
— Ele não recebe visitas.
Jessica ia dizer algo mais, mas por fim encolheu os ombros com um sorriso.
— Bom, você cuide de que se alimente bem — recomendou alegremente.
Girou em circulo e voltou para o salão. Eleanor a olhou de soslaio. Ela sacudiu a cabeça e abandonou a casa.
Não estava disposta que esse homem lhe indicasse o que fazer e o que não. Deu a volta pela casa, cruzando entre ervas altas e matas, para aproximar-se do dormitório de Alex.
Ao passar junto à janela de Sayer se deteve em seco. O ancião, muito tranqüilo, levantou a vista de sua leitura.
Jess tragou saliva com dificuldade, mas como Sayer se limitasse a olhá-la, dedicou-lhe um sorriso débil e vacilante e continuou sua marcha. Cruzou diante da segunda janela sem que ele a chamasse para lhe perguntar que fazia por essa parte dos terrenos.
Ao chegar à janela de Alex teve o prazer de comprovar que as persianas estavam abertas. Já tinha um pé dentro do quarto quando alguém a segurou pela cintura e a tirou a puxões. Era Nicholas Ivanovitch.
— Senhorita Jessica, — disse, com voz recriminatória — não esperava isto de você. Vamos, corra, corra, e não volte a se introduzir nos quartos dos cavalheiros.
Jess apertou os punhos aos lados, mas girou em circulo e se retirou. O que lhe importava Alexander, depois de tudo? Não fazia mais que lhe causar dificuldades. Por culpa dele tinha ofendido demais o Corsário. Se Alex não tivesse exposto essas dúvidas horríveis sobre a utilidade de seus atos, nunca teria falado com o Corsário assim. Sentiu que os olhos se enchiam de lágrimas, mas as conteve. O Corsário havia dito que a amava e agora a odiava, provavelmente, mas era algo que ela podia sobreviver.
Voltou a fungar pelo nariz e se encaminhou para a enseada. Os Wentworth queriam vinte e cinco quilos de moluscos para preparar o jantar do almirante e seus oficiais. Ao recordar da última vez de como tinha visto a orgulhosa senhora Wentworth, Jess sorriu. A mulher tinha tido que fazer-se cargo em parte da cozinha, pois se esperava deles que albergassem e alimentassem aos ingleses. Por lhes encher a barriga estavam perdendo todos seus ganhos.
— Assim aprenderá — murmurou a moça, sorridente, enquanto cavava com sua pequena pá.
Nessa noite Eleanor estava chorosa. Os meninos estavam habituados às emoções e as raivas de Jessica, mas Eleanor era outra coisa. Habitualmente cumpria o papel de pedra fundamental, estável, incomovível.
— Está acontecendo algo de mal com o Alexander, tenho certeza — disse.
Estava sentada à mesa e parecia ter esquecido por completo sua habitual tarefa de servir a comida. Os meninos observavam os pratos vazios e estudaram a irmã mais velha, como se compreendessem a profundidade de sua preocupação.
Jess fez um gesto a Nick. Os dois se encarregaram de trazer o guisado e o pão de milho à mesa, repartindo-o em silêncio enquanto Eleanor expressava sua preocupação por Alex.
— Apenas provou a comida que lhe enviei e não se ouve nenhum ruído atrás da porta. As persianas estão com ferrolho. A porta, com chave. Acredito que algo lhe aconteceu.
— Por que se preocupa tanto? — perguntou Jess. — O homem está resfriado e, vaidoso como é, não suportará que o vejam com o nariz vermelho.
Eleanor se levantou, furiosa, assinalando Jessica com a colher de madeira.
— A esse homem devemos sua vida — chiou. — Está tão embevecida com seu famoso Corsário que não percebe o muito que esse pobre querido tem feito por nós. Impediu que nos queimasse a casa. Impediu que te enforcassem. Quando Pitman destroçou todos nossos pertences, Alex nos repôs isso. Quando incendiaram Mary Catherine, por culpa do Corsário, Alex te salvou a pele impedindo que fizesse loucuras. É Alexander, quem nos ajuda. As roupas que usamos, a baixela, os móveis, até a comida, tudo devemos a ele. E você nem sequer pode se referir a ele com amabilidade. Que Deus me perdoe, Jessica, mas se voltar a dizer uma palavra contra ele lhe... lhe...
Jessica estava horrorizada. Sua irmã estava acostumada a ser autoritária, mas era a primeira vez que lhe gritava assim.
— Me obrigará a usar jaquetas como as suas? — perguntou mansamente, tratando de tomar as coisas como brincadeira.
Um segundo depois tinha um prato de guisado quente jorrando pelo rosto. A porta se fechou violentamente por trás de Eleanor.
Jess colocou o prato de lado e afundou a cabeça em um balde de água potável. Quando a tirou, todos os meninos estavam a seu redor, com os olhos dilatados pelo medo.
— E se Eleanor também morre e nos deixa? – sussurrou Philip.
— Não o fará, a menos que eu a mate — murmurou Jessica. Logo observou seus irmãozinhos com um suspiro. — Não, só está zangada. O mesmo acontece comigo algumas vezes.
— A cada momento — corrigiu Nate.
Jessica lhe cravou um olhar fulminante.
— Vocês fiquem aqui e comam. Eu irei procurá-la.
Não foi fácil cumprir com sua promessa. Primeiro teve que perseguir Eleanor por quatrocentos metros de bosque. Por sorte, como a mais velha das irmãs não estava habituada a caminhar de noite, Jess a encontrou enrolada com um arbusto de amoras. Então teve que escutar outra contagem das múltiplas virtudes de Alexander Montgomery. Quando Eleanor ficou sem mais elogios, empreendeu-a contra o servo de Nicholas.
Jess se limitava a escutar, enquanto desprendia os cabelos de sua irmã de entre os espinhos. Preferia não fazer comentários sobre aquele convencimento de que alguém era um santo e o outro, um demônio.
Já em sua casa, Jessica jurou que ao dia seguinte conseguiria ver Alex, fosse como fosse, e que seria muito amável com ele. Agradecer-lhe-ia toda sua ajuda e não faria comentários sobre sua roupa.
— Embora os brilhos me deixem cega, não direi uma palavra — prometeu.
À manhã seguinte, Eleanor a despertou as quatro para chegar à casa dos Montgomery antes que Nicholas despertasse. Jessica, embora grunhindo, obedeceu. Não queria outro ataque de mau gênio de sua irmã. Saiu bocejando e subiu a colina rumo à casa grande.
Alex subiu pela janela de seu quarto às escuras e estirou os ombros, fazendo virar o pescoço para aliviar a tensão de seus músculos cansados. Ao fazê-lo tropeçou com um pilar da cama.
— Taggert! — exclamou a voz de Nick, da cama. Alex ficou imóvel.
— Jess está aqui — sussurrou.
Nick se levantou, esfregando os olhos.
— Ah, é você. Que horas são?
— Às três da manhã.
Alex se sentou na borda da cama para tirar as botas. Tinha sido maravilhoso poder caminhar por Boston com suas próprias roupas, sem que ninguém zombasse dele, desfrutando de todas as olhadas que as senhoras lhe arrojavam por cima de seus leques.
— O que faz em minha cama e por que gritou "Taggert"?
— Essas mulheres! — Grunhiu Nick, enquanto se levantava sem pressa. — Eleanor tem certeza de que agoniza e se empenha em ver-te. Depois enviou à outra, a sua Jessica, que espiasse pelas janelas. Segurei-a pelos fundilhos das calças.
— Se lhe fez mal te...
— Te o que? — desafiou-lhe seu amigo.
— Dir-te-ei obrigado, provavelmente — murmurou Alex.
— Conseguiu seus panfletos?
O jovem estirou as costas.
— Tenho três dias a cavalo, sem dormir e comendo muito pouco. Mas consegui esses malditos panfletos. Assim que tenha dormido um dia ou dois me dedicarei a distribui-los. — Sorriu. — Então que Jessica tratou de escalar pela minha janela. Percebeu que não havia ninguém no quarto?
— Não. Tirei-a em tempo. Se deite, que eu irei a minha própria cama. Amanhã poderão entrar essas mulheres.
— Mas não sem antes me avisar. Terei que pôr... — suspirou. — Uma peruca e meu traje de gordo.
— Esse é teu assunto. Amanhã irei deitar-me em meu navio para que meus servos me atendam. Você pode cuidar-se sozinho.
Alex estava muito cansado para protestar. Tirou o resto da roupa e deslizou na cama, nu. Antes que os lençóis terminassem de assentar-se sobre ele já estava adormecido. Despertaram umas mãos pequenas em seu pulso e em seu braço.
— Alex — disse a voz da Jessica — está bem?
Em algum canto de seu cansado cérebro, Alex percebeu o perigo... e sentiu a luxúria. Segurou a mão de Jess e a levava já aos lábios quando percebeu a sensação de perigo.
— Jess? — Murmurou, grogue.
— Sim — sussurrou ela. — Vim ver se estava bem. Eleanor está desesperada.
A mente de Alex começava a funcionar pouco a pouco. Nesse momento não era o gordo Alex nem o mascarado Corsário. Abriu os olhos. Graças a Deus, o quarto estava no escuro.
— Me dê uma dessas perucas — pediu, cobrindo-se com as mantas.
Algo que não precisava, era que Jess visse sua juba escura, pela qual tinha deslizado seus dedos aquela última vez.
— Te disse, Alex, que não me incomodam as cabeças calvas.
— Por favor, Jessica — gemeu ele.
Seus olhos começavam a adaptar-se à escuridão. Ela jogou a mais pequena das perucas. Então a olhou de baixo dos lençóis.
— Se volte.
A moça obedeceu, embora resmungando baixo.
Essa peruca requeria que ele recolhesse o cabelo, esmagando-o bem. Demorou bastante esconder suas grossas mechas sob os cachos falsos. Era de esperar que não aparecessem cachos negros à vista de Jess.
— Quer me dar uma jaqueta? — Perguntou, petulante.
O cetim colorido distrairia a atenção da moça.
Jess girou sobre seus calcanhares para olhá-lo.
— Prometi a Eleanor que não o criticaria por suas roupas, mas a única forma de respeitar essa promessa é que não ponha essas roupas. Agora sente-se para que possa te dar uma olhada. Eleanor o acha às portas da morte e, a julgar por sua voz, não está muito longe delas.
Alex seguia sob os lençóis. Depois de algumas muda maldições contra todas as mulheres intrometidas, olhou para sua amiga, explicando:
— Não posso me sentar. Não tenho nada posto.
Esteve quase a saltar ao ver que Jess se estremecia ante a perspectiva de ver seu corpo nu. Com demasiada prontidão para seu gosto, ela abriu uma arca posta aos pés da cama e retirou uma camisa limpa. Depois de arrojar-lhe voltou-lhe novamente as costas.
Alex se levantou e os lençóis caíram, descobrindo seu corpo forte e musculoso, enquanto colocava a camisa decidiu desforrar-se pelo que ela havia dito ao Corsário. Já novamente deitado, colocou um travesseiro no ventre e cobriu os braços, deixando descoberto só as mãos.
— Bom — disse, com voz cansada — já estou decente.
Jess acendeu uma vela para estudar seu rosto.
— Não se parece tão mal. O que se passa?
— Só um ressurgimento da minha velha doença. Contei-te que, segundo certo médico, talvez não viva muito tempo?
Ela baixou a vela, com o cenho franzido.
— Geralmente não parece doente. Seu aspecto é horrível, mas não se vê muito decrépito. — De repente dilatou os olhos. — Oh, desculpa. Prometi a Eleanor que não o insultaria. Bom, agora que te vi bem, vou embora. Tenho peixe que entregar. Coma algo e deixa de pôr nervosa minha irmã, que está intratável. Talvez nos vejamos em dois dias.
Girou para retirar-se, mas ele a segurou pelo pulso, com um movimento rápido.
— Poderia ficar um momento, Jess? Sinto-me muito sozinho.
Ela tratou de soltar-se, mas não pôde.
— É tua culpa, Alex. Colocou esse touro diante de sua porta, que não deixa entrar ninguém.
— Sei — respondeu ele, melancólico. — Mas não quero que ninguém me veja assim.
— Você parece muito melhor assim com essas... — se interrompeu. — Está bem, ficarei um minuto. De que prefere que conversemos?
Ia pegar uma cadeira, mas Alex a reteve e a obrigou a sentar-se na cama, a seu lado.
— O que fez desde que adoeci?
— Pescar.
— Nada mais?
— E que outra coisa posso fazer? Leva-me o triplo de tempo, agora que não tenho navio.
Ele continuava sem soltar sua mão.
— Não tem problema para vender sua pesca?
Diante disso Jessica sorriu.
— O almirante Westmoreland e seus homens estão comendo tudo quanto os Wentworth ganham na fábrica de vela. Ontem encontrei à senhora fritando moluscos.
— E Abigail, como vai?
Jessica torceu a boca em um gesto de desgosto.
— Dizem as más línguas que ela e Ethan se retiram assim que terminam de jantar.
Alex tossiu para dissimular a risada.
— E o seu Corsário, como vai?
— Enlouquecido.
—Pela irritação ou pela demência?
— Isso não é teu assunto. — Jess tratou de afastar-se, mas ele a segurou com firmeza.
— Rixa de apaixonados? — Provocou-a.
— Nós não somos... — Jess se interrompeu e baixou a vista.
— Pode me contar tudo — lhe assegurou ele. — Adivinho que tornou a vê-lo. Menos mal que não foi por uma de suas incursões. Estava muito doente para ajudar a te salvar.
Nessa oportunidade ela conseguiu escapar e, além disso, colocou-lhe um travesseiro sobre seu rosto. O ar se encheu de pó.
— Pedaço de porco! — gritou. — Porco pomposo e ocioso! O que aconteceu foi só por sua culpa. Você me fez duvidar dele, que é a esperança desta cidade. Você, em troca, é só o bobo da cidade, nada mais que...
Uma vez mais se interrompeu em seco. Ao levantar o travesseiro, Alex não se moveu. Tinha a cabeça voltada para um lado, em um ângulo estranho.
— Alex! — exclamou Jess, jogando-se sobre ele e se acercando da bochecha. — Oh, Alex, não quis te fazer dano. Sempre esqueço que é frágil. Escuta, não era minha intenção... Por favor, não morra. Estou realmente agradecida por toda a ajuda que nos deste. — Levantou-lhe a cabeça para apertar-lhe contra o seio, enquanto acariciava suas têmporas. — Sinto muito, Alex. Não voltarei a te sufocar.
Ele sorriu contra seu seio, desfrutando daqueles momentos. Depois levantou as mãos para as costas da moça, com um gemido.
Jessica quis afastar-se, mas ele o impediu.
— Que bem me faz sua força, Jess. Abrace-me um momento. Deixe-me sentir sua força, que emana para mim.
Ela o estreitou com mais energia.
— Não queria te fazer dano, mas diz coisas tão horríveis que me esqueço de sua pouca saúde.
— E você... sentiria falta de mim se partisse deste mundo?
Jess vacilou.
— Caramba, sim, acredito que sim. Causa-me um montão de problemas, mas é um grande amigo para mim e para minha família. Embora, quando queimaram meu navio fiquei furiosa, agora percebo que me salvou de fazer algo um pouco tolo.
— Um pouco, sim — murmurou ele, levantando-se sobre um cotovelo.
— Se sente mais forte?
— Muito melhor — suspirou ele. Refugiando-se em seu seio.
— Alex... em realidade... não tenho certeza de que isto fosse o que Eleanor pensava. Tenho que ir trabalhar.
— Sim, é obvio — murmurou ele, fracamente, deixando-a em liberdade. — Compreendo. Bem, aqui continuarei até que alguém se lembre de mim e me traga comida.
— Direi a Eleanor antes de ir — prometeu ela, arrumando a roupa.
— É muito cedo. Ainda não estará aqui.
— Acredito que não. Direi a ela em casa. Tenho que passar por lá e pegar minhas redes.
— E para quem está tão perto da morte o que importa uma hora a mais de fome? — Alex desviou a rosto para um lado.
Jessica suspirou.
— Irei ver se ficaram sobras na cozinha.
Voltou trazendo frango frio, pão e queijo, veio com água e ovos duros. Pôs a bandeja junto de Alex, com intenção de retirar-se imediatamente, mas ele parecia incapaz de não levar nada à boca. Minutos depois Jess se encontrava a seu lado, de pernas cruzada, comendo de bom grado, tanto quanto ele. Então começou a lhe contar suas idéias de distribuir panfletos entre as pessoas de Warbrooke.
— Não podemos permitir que esta opressão continue — disse, implacável.
— E o seu Corsário se nega a ajudar? Suponho que pediu que a ajudasse.
Foi assim que Jess contou tudo quase sem dar-se conta... exceto seus amores com ele.
— Disse que se zangou. Por quê?
Os olhos da moça lançavam brilhos.
— Porque te presto muita atenção. Disse-lhe que era incompetente.
— Com essas palavras?
— Mais ou menos — reconheceu ela, ruborizando-se ao recordar suas frases contextuais. — Nestes momentos não está satisfeito de mim. Talvez não volte a vê-lo.
Alex estreitou sua mão.
— Se for inteligente, voltará.
Ela sorriu, mas de repente viu que o sol já se filtrava pelas persianas.
— Tenho que ir ou perderei a pesca. — Pôs a bandeja coberta de farelos na escrivaninha de Alex e, seguindo um impulso, beijou-o na testa. — Obrigada por tudo que tem feito e obrigada por me escutar. Direi a Eleanor que o deixe descansar.
Ele lhe sorriu de tal maneira que a surpreendeu por um instante.
— Sabe, Alex? Assim não se apresenta tão mal. Quando acharmos uma noiva, faremos que o veja na cama. Agora descansa.
E saiu do quarto.
Alex se recostou nos travesseiros, rindo.
— Com ciúmes, Corsário? — Disse em voz alta. — Pois deveria estar. Nunca te disse estas coisas.
Deixou cair à peruca no chão e se acomodou para dormir, ainda com um sorriso nos lábios.
12
Como não houvesse sinais do Corsário depois da chegada do almirante e a cidade se mostrava acovardada com as tropas inglesas, Westmoreland começou a relaxar. Desfrutava vendo que os habitantes de Warbrooke passavam com a vista baixa e expressão furiosa, mas sem atreverem-se a contradizê-lo. Até começou a se gabar. Dizia a quem queria ouvi-lo que antes só fizera falta punhos de ferro.
Por isso não estava preparado quando o Corsário fez sua próxima aparição.
Os habitantes da cidade despertaram à alvorada com o retumbar do grande sino instalado na casa dos Montgomery. Em outros tempos o tinham usado para anunciar qualquer ataque dos índios, mas agora só advertia incêndios e outros desastres.
Homens e mulheres, cobertos com várias roupas, saíram de suas casas a toda carreira, perguntando-se uns aos outros:
— O que acontece? O que ocorreu?
Um a um começaram a descobrir os panfletos cravados a suas portas e os leram, dilatando os olhos mais e mais a cada palavra. Os panfletos diziam que os americanos tinham direitos e que o império inglês devia chegar a seu fim. Diziam que os ingleses não tinham direito em invadir casas sem ordem escrita e nem em alojar suas tropas no domicílio dos colonos. Falava contra as leis da legislação de aduana, assegurando que os americanos tinham direito a importar e exportar mercadorias sem passar pela Inglaterra.
— Prendam-no! — uivou o almirante Westmoreland, de pé no alpendre dos Wentworth, com a jaqueta do uniforme posta sobre a camisa de dormir. Depois de jogar um olhar de desgosto à proprietária de casa arrancou o papel das suas mãos. — Volte para a cozinha, que é o seu lugar, mulher.
Girou sobre seus calcanhares para entrar, mas nesse momento começou a soar o sino do farol, na ponta sul da península. Todos se voltaram nessa direção.
Precariamente altaneiro no alto do farol se via uma silhueta vestida de negro.
— É o Corsário — sussurrou alguém.
A palavra Corsário pareceu correr como um tufão por entre a multidão. À vista de toda a população, o personagem soltou uma pilha de panfletos e deixou que flutuassem até a terra. Um momento depois tinha desaparecido.
— Atrás dele! — gritou o almirante a seus soldados, meio nus.
Dois dos homens tinham o rosto coberto com espuma de barbear.
— E recolham esta porcaria — gritou Westmoreland, pisoteando os papeis feito um bolo. — Se enforcará a quem quer que tenha um destes em seu poder.
Assim dizendo, voltou para a casa. Por isso não viu que a senhora Wentworth apoiava o pé sobre o papel enrugado e o deslizava sob um vaso de flores.
Aquela tarde, ao levantar a vista da cerveja que estava tomando no salão dos Montgomery, Alex viu entrar Jessica, com um sorriso nos lábios. Arrojou a rede carregada e, ao encontrar-se frente a seu amigo, alargou seu sorriso.
— Viu-o? — Sussurrou. — Eu não. Não pude chegar a tempo, mas todos dizem que esteve estupendo.
— Suponho que se refere ao Corsário — comentou Alex, se voltando para seu livro de contabilidade. Estava tentando descobrir o que fazia Pitman com as contas dos Montgomery. — Se quiser que te dê minha opinião, foi uma perfeita tolice. Agora a cidade terá graves problemas com o almirante.
— Eu concordo — asseverou Eleanor, pondo a mão no forno para analisar sua temperatura. — Nos castigará a todos pelo que ele fez.
— Sim, mas leram os panfletos? Não vi nenhum — protestou Jessica, com o rosto risonho. — Ele não deixou nenhum em nossa porta.
— É a sua primeira amostra de sensatez, que eu saiba — comentou Alex. — E agora, Jess, quer deixar de interromper-me com seus contos de fadas sobre esse agitador presumido? Estou tentando somar estas cifras.
Jess cravou um olhar furioso em sua peruca coberta de pó. Logo fez virar bruscamente o livro para ela. Quase imediatamente, cantou:
— Duzentas e trinta e oito libras com vinte e nove xelins.
Olhou para Alex e lhe tirou a pluma, depois deslizou o dedo pelas outras cinco colunas e escreveu o total ao pé de cada uma. Por fim voltou a pôr o livro sob o nariz dele.
— Algumas pessoas sabem fazer estas coisas. Nem todos passam o dia esquentando cadeira.
Assim dizendo, girou em circulo e abandonou a casa, sem prestar nenhuma atenção à exigência de Eleanor de que voltasse para desculpar-se com Alex.
Por desgraça, as palavras de Alex acabaram sendo certas. O almirante Westmoreland se enfureceu com a aparição do Corsário em sua presença. Imediatamente confiscaram três cargas e as colocaram sob custódia. O almirante disse que os armadores eram suspeitos de contrabando, mas todos sabiam que aquilo era pura represália porque tinham visto os três lendo os panfletos do mascarado na rua, aquela manhã.
Dois homens foram encarcerados ao aparecer soldados ingleses em seus domicílios, em meio da noite, para efetuar uma invasão no qual encontraram documentos ilegais.
De qualquer modo, o almirante não se atreveu a enforcá-los. Até ele percebia como estava reagindo à população. O Corsário tinha feito exatamente o que Jessica desejava: tinha dado esperanças às pessoas.
Westmoreland não quis provocar à turba com uma dupla execução. Só queria fazer saber quem mandava ali. Portanto, fez açoitar a um jovem por impertinência após havê-lo ouvido murmurar algo sobre independência.
Ao entardecer, quando Jessica voltava de sua pesca, viu alguém no tronco da praça. Quase tropeçou em Abigail, que estava escondida entre as sombras, soluçando.
— O que faz aqui? — Perguntou Jess. — Quase tropecei contigo.
Abigail soluçou com mais energias. Jessica, suspirando, deixou seu saco de moluscos no chão.
— O que aconteceu, Abby? — Perguntou, tratando de dar a sua voz um sotaque solidário. — Discutiu com Ethan?
A moça soou o nariz e assinalou o tronco.
Nos últimos dias os troncos sempre estavam ocupados, mas aquela cena dilatou os olhos do Jess.
— Essa é... sua mãe? — Exclamou, horrorizada.
Abby, assentindo, voltou a chorar.
Jess apoiou a mão em uma árvore para não perder o equilíbrio. Tinha sido divertido ver a senhora Wentworth fritando moluscos, mas não era divertido a encontrar nessa situação a dama tão orgulhosa.
— O almirante? — Voltou a perguntar.
Abby assentiu outra vez.
— Disse que ela não se mostrava devidamente submissa com os ingleses — explicou a moça, levantando a voz. — Ele manchou de cinzas a cadeira de brocado de mamãe e ela se queixou. — O pranto redobrou.
— Quanto tempo sua mãe ali?
— Quatro horas. E deve ficar mais outras três, na escuridão.
— Sem água, suponho.
Abby se mostrou horrorizada.
— Oh, não... as ordens do almirante...
Jessica disse algo que dilatou os olhos da moça.
— Acredito que concordo contigo — sussurrou — mas disse que ninguém devia lhe dirigir uma palavra.
— Não direi uma palavra — assegurou Jessica.
Foi à fonte pública e encheu uma chaleira de água para levá-la a senhora Wentworth. A mulher tinha um aspecto patético: seus olhos estavam opacos e sem vida, seu cabelo, como era de seu costume estar arrumado, agora estava desalinhado. Quando Jessica aproximou a água de seus lábios levantou a vista, surpreendida.
— O mais provável é que a sua serva esteja roubando até seu apetite — disse a moça, com suavidade. — E dizem que o senhor Wentworth deixou entrar os cães na sala principal. Além disso, Abigail e Ethan brigam com freqüência.
A senhora Wentworth levantou a cabeça, tudo o que permitia a armadilha.
— Se essa menina acreditar que vou recebê-la em casa depois da vergonha que me fez passar, está muito equivocada. Quanto a James, vou esfolá-lo. E essa criada... — interrompeu-se. Em seus lábios começava a se formar um sorriso.
— Obrigada, Jessica — sussurrou. — Não mereço sua bondade depois de tudo o que...
— Shhhh — a acalmou Jess, alisando seu cabelo. — Você é minha melhor cliente. Levo-lhe uma carga de ostras para amanhã?
— Sim, e poderia pedir a Eleanor que amassasse seis tortas de ostras, desses que prepara tão gostosos? Se Sayer não se incomodar, claro. Também precisarei... — Seu pedido se cortou bruscamente. — Oh, Jess, corre!
As costas de Jessica, saindo de um beco, como se quisesse apanhar a qualquer infrator, acabava de aparecer o almirante, montado a cavalo. Puxou a espada e imobilizou Jessica com ela.
— Quem é? — bramou.
— Jessica Taggert, antes capitã do Mary Catherine — respondeu ela em voz alta.
Ele levantou a espada para obrigá-la o olhar de frente.
— Ah, sim — comentou, baixando a voz — a que queria o Corsário. E já percebo por que. — Baixou a espada. — Dei ordens de que ninguém falasse com esta mulher.
— Não me disse nada — assegurou à senhora Wentworth. — Ela só passava.
Westmoreland as olhou alternativamente, sem saber em quem acreditar. A prisioneira deu um tom de súplica a sua voz:
— É a senhorita Jessica quem entrega os moluscos que tanto você gosta, senhor.
Jessica se limitava a olhá-lo, com fogo nos olhos.
Ele a mediu com a vista.
— É uma mulher muito bonita para se vestir assim. Ponha roupas de senhora se não quiser acabar no tronco. — O homem sorriu. — Ou talvez deixe que meus soldados a vistam. Boa noite, senhoras.
Fez virar seu cavalo e se afastou.
— Vai! — rogou à senhora Wentworth. — Vai... e obrigado, Jessica.
Jess cruzou o lugar a toda carreira. Deixou para trás Abigail, que a olhava como se não soubesse se acreditava que ela era tola ou Santa, recolheu seus moluscos sem deter-se e continuou a caminhar para a casa dos Montgomery.
O salão estava deserto. Enquanto ela tratava de recuperar o fôlego entrou Alex.
— Vi-te correr — disse, preocupado. — Há algum problema?
— Eleanor já se foi?
— Um dos meninos estava doente e Mariana a enviou para sua casa.
— Qual dos meninos?
— Um dos menores. — Ele encolheu os ombros. — Por que corria?
Jess lhe contou então do almirante e da senhora Wentworth.
— Agora devo ir para casa. Estes moluscos são para amanhã.
Alex a segurou pelo ombro antes que pudesse mover-se.
— Eu gostaria que não se aproximasse do almirante, Jess. Não te ocorreu pensar que, se o Corsário não deixou panfleto em sua porta, deve ser porque a quer fora disto?
Ela se voltou para enfrentá-lo.
— Estou farta de sua covardia. Somos ovelhas para nos deixar levar mansamente ao matadouro? Temos que lutar!
— Deixa que lutem os homens — aduziu ele, zangado. — Essa não é tarefa de mulheres e meninos.
— A pobre senhora Wentworth está no tronco só por proteger seus móveis. E você diz que as mulheres não devem intrometer? Solte-me o braço. Quero ver minha família.
— Se segue provocando o almirante não terá família alguma — lhe advertiu ele. — Maldito seja esse Corsário!
Quando Mariana entrou no salão adicionou, para seus adentros: "E maldita seja esta, também, por haver-se casado com o Pitman e iniciado todo isto".
— Que cara, Alexander! — Observou Mariana. — Te fiz algo?
Ele engoliu o aborrecimento.
— Pode me ajudar a procurar alguns vestidos para Jessica Taggert.
A irmã abriu e fechou a boca duas vezes.
—Não quero perguntar no que se meteu essa moça desta vez. Vamos ao quarto de mamãe e me conte tudo enquanto procuro algo que ela possa usar.
Horas depois, quando Alex ia deitar se, ouviu o chamado de seu pai. Imediatamente ergueu as costas. Pelo que parecia, podia perdoar a qualquer um que se deixasse convencer por seu disfarce... mas a seu pai, não. A frieza com que o ancião o tinha recebido em seu retorno ainda lhe provocava irritação. O que havia dito Jessica, a propósito disso? Que Kit e Adam eram os "melhores" filhos.
— Pareceu-me ouvir que Jessica gritava como se estivesse zangada.
— Assim foi. — Alex bocejou, fazendo tremular a renda de sua manga. — Estava furiosa porque não reconheço o Corsário como nosso salvador.
— Não concorda em que está ajudando à cidade?
Alex flexionou os joelhos para olhar-se no espelho que estava do outro lado da cama e arrumou um cacho sobre o ombro.
— Acredito que esse homem não faz nada a não ser provocar mais problemas. Se não aparecesse, talvez o almirante voltasse para a Inglaterra.
— Disse isso a Jessica?
— É obvio. Fiz mal?
— Cada um pode pensar o que gostar. A propósito, te encontrou na tarde em que ia brincando de se esconder pelas ervas do pátio?
Alex dissimulou sua surpresa.
— Veio na manhã seguinte. Quer algo mais? Minha recente enfermidade me deixou fatigado.
— Vai — disse Sayer, com uma careta. — Vá dormir.
Alex seguiu caminhando pelo corredor para seu dormitório, com os punhos apertados contra as calças.
À manhã seguinte, quando Jessica recolheu suas redes e começou a andar para a cidade, ainda estava zangada com Eleanor. Tinha deixado sua pá de escavar moluscos na casa dos Montgomery e deveria ir procurá-la. Além disso, Eleanor tinha insistido em que deveria apresentar-se a Mariana para agradecer os quatro vestidos que tinha enviado na noite anterior.
— Esta mulher está ficando muito autoritária — murmurou Jess, referindo-se a sua irmã mais velha.
Eleanor tinha esbanjado preciosos minutos do amanhecer lhe arrumando os cabelos, lhe ajustando o espartilho e inspecionando seu aspecto.
— Como vou pescar com estas saias? — queixou-se ela.
— No cárcere não se pode pescar e ao cárcere irá se não obedecer ao almirante.
Por isso ia a caminho da casa dos Montgomery, vestida como um manequim de costureira. Estava tão furiosa que nem sequer reparou no que acontecia ao seu redor.
Um homem que ia a cavalo ficou tão assombrado com sua aparição que se chocou contra uma carruagem. Os cavalos da carruagem se espantaram, mas o condutor não pôde os dominar porque toda sua atenção estava concentrada na bela Jessica Taggert. Os cavalos se empinaram puxando-lhe as mãos e o condutor caiu para frente. Enquanto o homem aterrissava em uma gamela, os cavalos golpearam o chão e partiram a todo galope, com a velha senhora Duncan gritando como louca dentro da carruagem... mas ninguém lhe prestou atenção. Dois homens, que olhavam para Jessica, boquiabertos, atropelaram uma mulher que levava seis dúzias de ovos. Os ovos caíram ao chão, alguns se quebraram e outros se puseram a rolar. Um homem que carregava uma jaula com gansos, atento a passagem de Jess, escorregou em três dos ovos e deixou escapar os gansos, que se meteram entre as pernas do ferreiro. O ferreiro deixou cair uma ferradura quente, enquanto estava olhando para Jess, sem prestar atenção a seu trabalho, que roçou a pata de um cavalo. O animal descarregou um coice contra o lado da oficina e derrubou um poste, sobre o qual havia uma bigorna. A bigorna derrubou um segundo poste e toda a oficina veio abaixo, enquanto o ferreiro e o cavalo escapavam por milagre. Por desgraça, o almirante estava junto de Alexander, no topo da colina, e presenciou toda a cena.
Quando Jessica chegou até eles, Alex tinha os olhos cheios de lágrimas pelas risadas contidas.
— Vim te agradecer os vestidos — disse a moça, em tom belicoso, sem olhar o almirante. Westmoreland contemplou o caos que reinava ao pé da colina: homens e mulheres chiavam, os animais relinchavam e todo mundo corria de um lado para o outro. Logo olhou feroz para Jessica. Seu rosto estava vermelho. Então lhe apontou com um dedo.
— Quero-te casada! — Uivou. — Te quero casada dentro de quinze dias! E que Deus proteja ao pobre homem.
Passou junto a ela como uma tempestade, colina abaixo, para tratar de organizar o caos com suas estentóreas ordens.
Jessica o seguiu com a vista.
— Mas que demônios...? O que aconteceu lá abaixo? – Perguntou ela atônita.
Alexander, explodiu, por fim em uma gargalhada e a empurrou ao interior da casa.
— O que te atacou? — Estranhou ela, pensando que Alex tinha perdido o juízo.
Seu amigo ia explicar, mas nesse momento Amos Coffin se virou, viu Jess e espatifou seu jarro contra a lareira de pedra. O jarro se fez em pedacinhos. Amos ficou boquiaberto, com a asa do jarro na mão.
— Acaso viu um monstro marinho? — perguntou-lhe a moça, enquanto Alex voltava a rir. — Oh, os homens!
Recolheu sua pá de cavar moluscos e começou a andar para a porta. Alex a seguiu com uma recomendação, meio sufocada pela risada.
— Não volte a cruzar a cidade. Warbrooke não poderia suportar outro de seu trânsito pela cidade.
Ela lhe deu um olhar de desgosto e saiu batendo a porta. Não pensava voltar para a cidade, é obvio. Sempre tomava o caminho do bosque e ele sabia muito bem.
13
Jessica custou em descobrir o modo de pescar vestindo saias. Já que estava sozinha na pequena enseada que tinha chegado a considerar dela, - dela e do Corsário, pensou com um sorriso - tirou o xale do profundo decote quadrado e a usou para atar à cintura a bainha das saias. Ao retirar a xale tinha deixado seus seios bastante descobertos, mas estava muito atarefada para prestar atenção ao detalhe. Tirou os sapatos e as meias e, com as pernas descobertas até o joelho, arrojou suas redes.
Quando começava a se pôr o sol apareceu Eleanor, descendo com estupidez o escarpado para a enseada. Jessica sentiu uma imediata preocupação.
— Alguém se machucou — adivinhou, deixando cair às redes.
— Não, — disse Eleanor — mas supus que te encontraria aqui. Deixei os meninos com Alex para poder conversar contigo. — Olhou sua irmã dos pés a cabeça, apreciando a exposição de seus dois seios. — E rogo a Deus que não me tenha seguido nenhum desses homens.
— Que homens? — perguntou Jess, extraindo uma rede cheia de peixes e com lagostas pendurando pelas beiradas.
— Já havia dito a Alex que não teria idéia do que estava passando. Não ouviu o almirante, Jessica? Disse que devia se casar, com alguém em um prazo de quinze dias.
— Oh, isso. Preparou as tortas de ostras para a senhora Wentworth?
— Jessica! — Gritou Eleanor. — Faz o favor de me escutar! Tem que escolher marido.
— Não penso deixar que esse homem me acovarde, Eleanor. E não tenho intenções de me casar com ninguém... pelo menos por agora.
A irmã a enfrentou diretamente.
— A ordem do almirante, esta manhã, foi ouvida por muitas pessoas. Esse homem tem que fazê-la respeitar se não quiser ficar como tolo. Oh, Jessica, como faz para se colocar nestas confusões?
— Não sei nada disto. Deixe que Alex, encarregue-se de falar com esse homem. Parecem muito amigos – insinuou ela, com malicia.
Eleanor se sentou em uma árvore caída.
— Como vou obter que me escute? O almirante tem sua reputação em jogo. Diante de meus próprios ouvidos, vinte pessoas lhe disse que você não te casaria jamais. Em cada um desses casos o homem ficou mais e mais furioso. Agora disse que você se casará com um americano no prazo de duas semanas ou, ao décimo quinto dia, se casará com um inglês.
Por fim Jessica começava a captar as palavras de sua irmã.
— E tudo isto aconteceu em um só dia?
Eleanor arqueou uma sobrancelha. Jessica não tinha idéia dos desastres que tinha provocado essa manhã.
— Hoje vieram a casa dos Montgomery quatorze homens casadouros e dois não casadouros, quase todos com presentes para você.
Jess começou a sorrir.
— Que tipo de presentes? Viria bem um porco. Se alguém nos trouxer uma porca prenha, sua sou.
— Isto é grave, Jess.
A moça se sentou junto de sua irmã.
— O almirante foi enviado aqui para que procurasse o Corsário, nada mais. Não tem poderes para obrigar a ninguém a contrair matrimônio.
Eleanor tomou sua mão.
— Queimou seu navio. Bem pode nos queimamos a casa. Acredito que esta manhã falou sem pensar, mas agora tem que manter o que disse. Além disso, não acredito que os homens desta cidade lhe permitam voltar atrás. São muitos os que desejam a oportunidade de casar-se contigo.
— Seriamente? — estranhou Jess, sorridente. — Há algum interessante? O filho mais novo do senhor Lawrence, por exemplo?
— Tem dezessete anos!
— Quanto mais jovens, mais fáceis de domar. – Vendo que Eleanor começava a chiar outra vez, ficou séria. — Está bem, já arrumaremos isto. Acredito que Alexander é o mais adequado para se encarregar do assunto.
— Pois te resgata com bastante freqüência, sim.
— Porque é uma tia solteirona intrometida. Já que não sabe fazer outra coisa, que fale e convença. Venha, me ajude com este peixe e iremos para casa. Amanhã nos preocuparemos por isso.
— Amanhã ficarão só treze dias — advertiu Eleanor, sombria.
Jess, inclinada sobre as redes, olhou para sua irmã.
— Poderia me casar com esse gigante russo que trouxe Alex.
— Passando por sobre meu cadáver — gritou Eleanor. Imediatamente levou a mão à boca. — Quer dizer... é obvio...
Jessica começou a esvaziar as redes, assobiando.
Só depois, enquanto caminhavam para a pobre casinha, começou a entender o que sua irmã havia dito. Diante da porta de sua casa havia uma fila de homens; alguns, com flores murchas; outros, com guloseimas mofadas. Outros se limitavam a esperar, com a boina nas mãos.
— Possuo dois hectares e meia de terra boa para o cultivo, senhorita Jessica, e eu gostaria de tomá-la por esposa.
— Sou dono do Molly D e você poderia navegar comigo. Estender-lhe-ei uma corda para as roupas lavadas quando você goste.
— Tenho um estabelecimento a trinta quilômetros daqui. Poderia comprar uma mula para arar.
— Possuo seis mulas, três bois e oito caçarolas. Quero me casar com você, senhorita Jessica.
A moça os olhava, boquiaberta, enquanto Eleanor a obrigava a passar pela dupla fila. Quando Jessica se deteve frente a um homem que levava um gordo porco atado por uma corda, a irmã esteve a ponto de lhe arrancar o braço.
— Não tinha idéia de que fosse tão atrativa — comentou, sorridente.
— Poderia me colocar no cais e deixar que cada deles faça sua oferta. Mas esse homem do porco era muito belo.
Eleanor deixou cair um saco de cereal na mesa.
— Deveria se vender. Vender-te ao melhor pastor, como o ouviu. Desse modo os meninos e eu teríamos um pouco de paz.
— Comida não, mas sim paz — reconheceu Jess, complacente. — Não se altere, Eleanor. Isto passará. No momento não tenho intenções de me casar com ninguém. Já verá que Alex, com seu bico de ouro, convencerá ao velho almirante de que se esqueça de mim. Já verá.
Reclinou-se na cadeira, pensando que só tinha intenções de casar-se com o Corsário. Uma vez que ele pudesse lhe revelar sua identidade, ambos se apresentariam com muito orgulho ao sacerdote.
Jessica tentava se concentrar-se na pesca, mas sem deixar de jogar algumas olhadas por sobre o ombro: Os últimos dez dias só mereciam a definição de inferno. Pelo que parecia havia homens em qualquer parte: tratavam de retê-la, olhavam-na com a cabeça inclinada, ofereciam-lhe seus bens terrestres. Chegavam até de Boston. Houve um francês, mercador de peles, que chegou dos bosques do norte, tendo ouvido dizer que havia um navio cheio de mulheres bonitas para a venda. Pareceu bastante desiludido ao ver que se tratava só de uma. Jessica lhe pareceu muito bonita, mas com ela não bastava.
Jess tinha passado muito maus momentos para escapar de seus pretendentes e chegar a sua pequena enseada.
Eleanor e Alex tiveram que discutir com ela durante a maior parte da primeira semana para convencê-la de que o almirante tinha falado com toda seriedade ao lhe ordenar que se casasse. Havia certas ameaças pendentes: contra sua casa, sua família e seu modo de ganhar o sustento, para o caso de que não o obedecesse e o fizesse ficar como tolo. O almirante tinha chegado a lhe apresentar ao homem com quem a obrigaria a casar-se se não escolhia marido ela mesma: um idiota corpulento, cujo grosso lábio inferior babava sem cessar. Westmoreland tinha soltado uma gargalhada com o involuntário estremecimento da moça.
Mas a rotina familiar, como arrojar e recolher suas redes, fez com que Jess pensasse em quais seriam as mudanças de sua vida se contraía matrimônio. Até esse momento, nenhum de seus pretendentes tinha mencionado seus irmãos; alguns deles sentiam uma decidida antipatia por Nathaniel.
Jessica sorriu. Nate os provocava, é obvio. Adorava fazê-los ficarem mau. Perguntava aos velhos que idade tinham e ria estrondosamente com a resposta. Insistia em que os fracos mostrassem os bíceps e assegurava a sua irmã que ela precisava de um marido mais forte. Para um sacudiu a cabeça, assegurando ter visto piolhos em sua velha peruca. O menino se encarregava em se desfazer dos piores.
Mas nem sequer o melhor deles interessava a Jessica. Ela só sentia interesse por um homem: o Corsário. Bastava fechar os olhos para sentir suas mãos no seu corpo. Por que não se apresentava? Por que não lhe pedia que se casasse com ele? Por que não a resgatava desses libidinosos?
O ruído de uma pedra, ao cair, fez-lhe abrir os olhos e voltar-se precipitadamente. O velho Clymer estava a poucos centímetros dela, com as sujas mãos estendidas para suas carnes. Jess deu um passo atrás e esteve a ponto de tropeçar com sua rede.
O velho não tirava os olhos dos seus seios quase descobertos. Depois baixou a vista para suas panturrilhas. Aquelas pupilas subiam e desciam por ela sem descanso.
Jess cobriu o decote com as mãos, dizendo:
— Você não deveria estar aqui, senhor Clymer. — Enquanto isso continuava retrocedendo.
— Por que não? — ofegou ele, avançando sempre. — Vim por que está aqui. Amo-te há anos, Jessica. Se case comigo. Darei-te o que queira.
Ela olhou a seu redor, em busca de uma arma, mas só viu os peixes entre seus pés. Inclinou-se para recolher pela cauda um peixe de dez quilos e golpeou com ele o velho sobre a orelha.
Ele ficou aturdido só por um momento; imediatamente a segurou, atraiu-a para si e tratou de beijada na boca.
Jess empurrou seu rosto, afastando-se, mas Clymer tinha uma força assombrosa para sua idade.
— Jessica — murmurou ele, escondendo a rosto entre seus seios.
— Me solte, velho asqueroso, pedaço de isca de peixe! — chiou a moça.
Ele não lhe prestou atenção.
— Quero que seja minha esposa. Quero te ter sempre. Quero que seja minha, Jessica, minha por toda a eternidade.
Ela, ao voltar-se, viu Alexander de pé no escarpado, por cima da enseada.
— Venha me ajudar! — gritou. — Tire este polvo de cima de mim! — E suplicou: — Por favor, Senhor Clymer, domine-se.
Alexander, com uma lentidão endurecedora, desceu à enseada, enquanto Jess se debatia entre as mãos do velho, que babava nos seus seios com seus úmidos beijos. A jovem temeu se descompor.
Alex baixou a passos pequenos, entre as rochas, cuidando de não molhar os sapatos. Afastou um peixe com um delicado chute e se aproximou do senhor Clymer para lhe dar um tapinha no ombro.
O homem não reagiu imediatamente. Alex teve que repetir o gesto três vezes para que levantasse a cabeça. Seus olhos avermelhados e frágeis se dilataram ao vê-lo. Então ergueu as costas e se afastou da Jessica.
— Permita-me lhe sugerir que estará mais cômodo em sua casa?
— Pois sim... claro... é que eu... Sim, em seguida...
O senhor Clymer soltou Jessica e subiu pela ravina. Depois o ouviram cruzar o bosque a toda carreira.
— Bom! — Protestou Jess, endireitando o vestido, enquanto observava sua pesca pulverizada por toda a enseada. — Bonito salvador que achei!
— Te livrei dele, verdade?
— Não sem lhe dar tempo para... Deveria havê-lo golpeado. — Olhou os seios com uma careta zombadora. — Olhe como me babou.
Teve que aproximar-se da água para lavar-se, mas não reparo na forma que ruborizava o rosto de Alex ao contemplá-la. Por fim, seu amigo se afastou para sentar-se na árvore caída.
— Já se decidiu?
— Com respeito ao que? — Perguntou ela, deixando cair dois arenques em um saco. — Ah, refere-te ao matrimônio. Sim e não.
Ele tirou uma penugem imaginária da jaqueta.
— Vejamos se adivinho. Quer se casar com o Corsário, mas ele não se apresentou para pedir sua mão.
Jess deixou cair um peixe no chão e se agachou para recolhê-lo.
— O que sabe você disso?
— Todas as jovens casadouras da cidade querem casar-se com o Corsário. Parecem pensar que é um gigante, o belo príncipe dos contos de fadas.
— É de carne e osso. Isso posso assegurá-lo — afirmou ela, orgulhosa.
— Carne e osso que não está aqui. Como sabe que não é nenhum de seus muitos pretendentes?
— Reconhecê-lo-ia, pode está certo. Veja, Alex: pisa neste peixe pela cauda e segura-o assim.
Ele obedeceu com um suspiro.
— Tem quatro dias para se decidir, Jess. Deve resolver este problema.
Ela jogou na bolsa o último peixe e se sentou na árvore, junto de Alex.
— Posso ser franca contigo?
— É obvio — respondeu ele com suavidade.
— Eu não gosto de nenhum deles. — Jess olhou suas mãos. — Não quero que Eleanor saiba, mas estou um pouco preocupada. Sei que você adivinhou o que sinto pelo Corsário. Ele e eu somos... temos mais intimidade do que as pessoas imaginam. — Levantou a cabeça. — Não quero me casar com nenhum outro homem. Quero esperar que tudo isto acabe. Então o Corsário poderá me revelar sua identidade e me sentirei felicíssima de me casar com ele.
— Mas Jessica, nossos problemas com a Inglaterra não resolverão da noite para o dia. E se durassem anos inteiros? E se a Inglaterra enviar mais soldados para perseguir o Corsário? E se ele jamais puder te revelar sua identidade?
— Esperarei. Algum dia ele se apresentará para mim sem a máscara. E então estarei esperando.
— Mas não pode esperar até esse dia. Restam quatro dias. Depois terá que se casar com alguém.
— Esperarei.
Ele revirou os olhos, vexado.
— O que pensa fazer? Esperar que passe da meia noite do quarto dia? Se até então não chegar, fechará os olhos para escolher a qualquer um de seus candidatos?
— É que não quero a nenhum desses! — Exclamou ela, com paixão. — Eles só querem de mim... o mesmo o senhor Clymer. Não posso me casar e deixar os meninos. Quem alimentará Eleanor e os pequenos? Esses homens querem a mim, sem meus irmãos. Querem ter filhos próprios, não os de outro casal.
— Eu me encarregarei dos meninos — disse Alex, brandamente. — Em casa há lugar para todos eles.
Jess fez uma pausa. Logo sorriu, estreitando sua mão.
— Isso é muito amável de sua parte, mas não posso aceitar. E se o Corsário for capitão de um navio? Enquanto eu navegue com ele, você terá que se encarregar de todos esses meninos. Eu não poderia sequer ajudar a mantê-los.
Ele estreitou sua mão com força.
— Quero que você venha com seus irmãos.
Jess o olhou sem compreender.
— Quer que o Corsário, os meninos e eu vivamos contigo? É muito generoso, Alex, mas... — interrompeu-se, com os olhos muito abertos. — ou que quer dizer...?
— Poderia se casar comigo, Jess — disse ele, solene. — Eu cuidarei de você, da Eleanor e dos meninos.
Ela começou a sorrir, mas ao fim explodiu em gargalhada.
— Contigo! — Exclamou. — Oh, Alex, que brincadeira. Quero me casar com o corsário e você me oferece um pedaço de alga mole e colorida. Sim, sei que me tem feito rir. E o velho senhor Clymer que pensava... — interrompeu-se ao ver o rosto de seu amigo. Nunca, até então, tinha visto tanta fúria em um rosto humano.
Ele se levantou do tronco.
— Estava brincando, Alex, verdade?
Alexander lhe deu as costas e iniciou a subida da colina:
— Alex!
Mas ele não se voltou. Jess deu um chute em um pedregulho da praia e fez voar vários caracóis. Não tinha sido sua intenção ofender Alex... uma vez mais. Eleanor tinha razão, ele era todo bondade para com ela e sua família. Deviam-lhe muitíssimo. Sua obrigação teria sido rechaçá-lo com suavidade, ou ao menos sem tratar de o... Não gostou de recordar os qualificativos que lhe tinha aplicado.
Ajustou o xale no pescoço, recolheu suas redes e começou a andar para sua casa.
Logo que tinha cruzado a maré de pretendentes — aceitando presentes no trajeto, posto que não era tola —Eleanor começou com seu discurso.
— Veio o senhor Clymer, muito zangado.
— Parece-me que isto é presunto — disse Jess, inspecionando seus pacotes. — E aqui há guloseimas para todos vocês.
— Espero que sempre esteja cheia de pretendentes, Jessica — rezou Molly, levando a boca o bonequinho de açúcar.
— Pois não poderá ser para sempre — recordou Eleanor. — Oh, Jess, tem que te decidir.
— Eu sei a quem quero.
Eleanor ignorou esse comentário. Já tinham mantido uma larga discussão sobre o Corsário e ela opinava que sua irmã devia esquecer o romantismo e vivesse do pratico.
— Está aí esse que possui um navio, o Molly D — lhe recordou.
— A quantos dos meninos levará consigo quando for ao mar? —Apontou Jess, enquanto se sentava para comer uma guloseima. — Além disso, tem uma verruga no queixo.
Eleanor nomeou a vários outros, mas a todos Jessica encontrou um defeito.
A mais velha se sentou diante da mesa, com a cabeça entre a as mãos.
— E não há mais. Rechaçou a todos os homens que conheço.
— Incluído Alex — disse Jess, recordando a irritação de seu amigo.
— Alex? — Eleanor levantou a cabeça. — Alex te pediu que se casasse com ele?
— Acredito que sim. Ofereceu receber a todos os meninos em sua casa, mas queria que eu também fosse.
— E o que lhe disse, Jessica? — Perguntou Eleanor, com voz muito, mas muito serena.
Jess fez uma careta.
— Pensei que falava em brincadeira. Temo que ri dele. Amanhã pedirei desculpas. Penso rechaçá-lo de um modo mais cortês e...
Eleanor se levantou de um salto.
— O que fez? — chiou. — Rechaçou Alexander Montgomery? Riu de sua proposta matrimonial?
— Já lhe expliquei isso, pensei que brincava. Só percebi que falava a sério quando vi seu rosto.
Eleanor tomou sua irmã pelo braço e a levantou puxões.
— Cuida dos meninos, Nate — ordenou.
Levando arrastada Jess, que protestava sem cessar, cruzou por entre os homens que cercavam a casa, atravessou a cidade e subiu a colina dos Montgomery.
Alex estava em seu dormitório, com um livro aberto diante de si. Quando Eleanor irrompeu no quarto não se levantou e nem olhou para Jessica.
— Acabo de me inteirar de que minha irmã cometeu uma grande tolice — disse Eleanor, sem fôlego. — A pobrezinha estava tão desconcertada pela generosidade de seu oferecimento que se confundiu.
Alex deu uma olhada em seu livro.
— Não sei do que está falando, Eleanor. Limitei-me a salvar à senhorita Jessica de um de seus pretendentes. Lembro que falamos de matrimônio, de forma geral, mas sem dizer nada especifico.
— Saiamos daqui — pediu Jessica, voltando-se para a porta.
Eleanor tinha parado diante da saída.
— Sei que foi grosseira, Alexander, mas já sabe que está acostumado a ser assim. Apesar disso será uma boa esposa. É forte e às vezes demostra inteligência. Um pouco orgulhosa, admito-o. Também está acostumada a abrir a boca quando deveria tê-la fechada. Mas, sabe trabalhar duro e te ajudará a manter a casa. Além disso...
— Ehh! Não sou uma mula! Vou-me, Eleanor.
Alex se reclinou na cadeira, enquanto Eleanor arrojava seu corpo contra a porta. Jess procurava pelo trinco.
— Vejo-a iniciar o trabalho desde antes da alvorada e não se deter até cair rendida. E...
Alex afastou seu livro, cruzou os dedos e contemplou a Jessica.
— Com essa finalidade poderia comprar um par de bois. E os bois não respondem. Que mais obteria disto, além de um peão?
Jess fulminou a ambos com os olhos e lutou com sua irmã redobrando suas forças.
— Vem com seis pequenos trabalhadores gratuitos. Pensa em tudo o que poderia fazer com a ajuda desses seis pequenos bem dispostos. Poderia expandir a casa e...
— E quebraria tentando alimentá-los. Alguma outra vantagem que me tente? Um dote, talvez?
— Dote? — Jessica soprou. — Se está pensando que...
Eleanor lhe deu uma cotovelada nas costelas.
— Com o casamento obterá a metade do rendimento de certa bela enseada que está cheia de ostras e mil frutos de mar.
— Hummm... — Alex se levantou lentamente e se aproximou de Jessica para olhá-la de cima abaixo.
Jess, horrorizada, soltou a porta e o olhou com o cenho franzido. Ele a pegou pelo queixo para levantar seu rosto.
— Não é mal parecida.
— É a moça mais bonita da cidade e de toda a zona, e você sabe. Alguns marinheiros dizem que não viram moça mais bonita no mundo inteiro.
Alex deu um passo atrás.
— Não sei como me ocorreu pedir que se casasse comigo. Pura solidariedade, asseguro-lhe isso. Tive pena depois de ver como a manuseava esse velho gordo. — E arrumou a renda da manga.
— Sim, Alexander, é obvio. Mas pediu que se casasse contigo. E seria muito feio que se falasse da quebra de promessa, com relação a um dos ilustres Montgomery, não acha?
— Pois eu não me casaria contigo...
Eleanor aplicou uma mão à boca de sua irmã.
Alex ficou de costas, sufocando um bocejo.
— Qualquer mulher dá igual, suponho. E é mais conveniente ter uma esposa que um montão de servos entrando e saindo. Quando se consegue adestrar a um, parte. E você se casará logo, Eleanor, sem dúvida. O que será então de nós? Está bem. Acha bom anunciar as bodas para dentro de três dias? — Sentou-se para voltar para sua leitura. — Pode se instalar na casa esta mesma noite. Ponha os varões no quarto de Adam. Você e as meninas, no de Kit. E dê comida a todo mundo.
Jess se afastou de Eleanor.
— Os Taggert não aceitam esmolas.
— Não se trata de esmolas, minha querida. Tudo fica na família.
Eleanor já levava Jess arrastando.
— Obrigada, Alexander. Por este ato de generosidade, algum dia Deus o sentará a sua mão direita.
— E roupas para todos, Eleanor. Não quero meninos esfarrapados em minhas bodas.
— Sim, Alexander. Bendito seja.
Eleanor fechou a porta detrás delas.
14
Jessica, sentada no chão de sua própria casa, assava um peixe trespassado em uma larga varinha, sobre o fogo da lareira. A casa parecia extremamente silenciosa sem os meninos. Não havia risadas e nem prantos, ninguém que lhe saltasse às costas e pedisse uma cavalgada. E ela, em vez de desfrutar dessa calma, sentia falta dos meninos. Até sentia falta de Eleanor, pelo menos, à antiga Eleanor, a que não passava a vida lhe gritando.
Dois dias antes, ao anoitecer do dia em que Alexander lhe tinha proposto casamento, Eleanor tinha empacotado seus escassos pertences para mudar-se para a casa dos Montgomery. Jessica se negou a acompanhá-la, dizendo que, como não tinha intenções de casar-se com Alexander, não se instalaria na casa dos Montgomery. A irmã gritou algumas coisas que a assombraram; nem sequer suspeitava que a recatada Eleanor conhecesse esses vocábulos. Acabou dizendo que cedo ou tarde teria que recuperar o senso comum. E então ela e os meninos a estariam esperando junto de Alexander.
Desde então, Jessica estava sozinha. Alex, esse porco presunçoso, fez que um pregoeiro anunciasse seu compromisso com ela por toda a cidade. Como alguns dos pretendentes mais teimosos negavam a retirar-se, o arrogante russo que o servia fez alguns ardis com a ponta da espada e a roupa dos que a cortejavam sofreu estranhos efeitos. Jessica, que voltava da pesca, viu o homem do porco escapando a toda carreira e segurando as calças com as duas mãos. Jogou apenas uma olhada para Nicholas e fechou a porta de uma batida. Alexander, o muito covarde, não estava à vista.
E ali estava, passando sua segunda noite a sós, enquanto o vento assobiava nas frestas das paredes. Não tinha nada para comer, que não fosse peixe assado, pois só isso sabia cozinhar.
Um trovão e o inicio do dilúvio fizeram com que se sentisse ainda mais solitária e isolada. Não ouviu que abriam a porta.
— Jessica?
Ao levantar a vista viu Alexander. Sua jaqueta amarela, reluzente, brilhava na penumbrosa do quarto.
— Vai.
— Trouxe algo para comer — anunciou ele, mostrando um cesto. — Umas tortas, preparadas pela Eleanor. Com carne. Não há nada que tenha peixe.
Deixou o cesto no chão, tirou a jaqueta e a estendeu cuidadosamente para secar. Ela, sem responder, mantinha a vista fixa no peixe.
— Também há queijo, pão e uma garrafa de vinho. — Vacilou. — E uma barra de chocolate.
O chocolate a convenceu. Jess deixou cair o peixe no fogo e alargou a mão. Alex pôs em sua palma um pedaço de chocolate autêntico, que ela comeu de boa vontade.
— Com o que devo pagar por isso?
— Se casando comigo — replicou ele. Sentou-se a seu lado e a segurou pelo ombro para impedir que se afastasse de um salto. — Temos que discutir isto, Jessica. Não pode continuar nesta casa, entre pensamentos tristes e ressentidos. Dentro de dois dias, Westmoreland virá te buscar.
— Não me encontrará — afirmou ela, apertando os dentes.
Alex começou a tirar a comida do cesto, com os olhos baixos.
— Tanto detesta a idéia de se casar comigo? — perguntou, com suavidade.
Ela se voltou a olhá-lo. Sem a jaqueta não era tão ridículo. A ampla camisa branca, molhada pela chuva, aderia-se a seus ombros. Embora ela soubesse que ele era gordo, desde esse ângulo parecia quase magro.
— Eu não gosto que me obriguem a nada — explicou ela. — As mulheres não têm muitas alternativas nesta vida, mas pelo menos deveriam poder escolher o marido.
Ele desembrulhou uma torta de carne e verduras e lhe entregou.
— Acredito que para as situações desesperadas precisam medidas desesperadas. Deve ser prática, Jess. Ou se casa em um prazo de dois dias ou se verá entregue a um retardado mental. Eu não sou muito belo, mas pelo menos tenho um bom cérebro.
— Não é tão feio, Alex, sobre tudo quando não coloca essas jaquetas horríveis — comentou ela, gesticulando com a cabeça o reluzente montículo de cetim.
Alex se voltou para olhar com um sorriso.
— Toma um pouco de vinho, Jess — disse, jovial. — O roubei da adega privada de meu pai, que o trouxe da Espanha faz dez anos.
Ela devolveu o sorriso e aceitou a caneca de vinho. Aquele sabor limpo e áspero era muito agradável.
— Pelos negócios — propôs ele. Dedicou-se a assar um pedaço de queijo nas chamas e o retirou um instante antes que se fundisse.
— Não quer se casar comigo, mas seu Corsário não reapareceu e só ficam dois dias. O que pensa fazer?
— Não posso fugir deixando aos meninos – replicou ela. — Do contrário abandonaria a cidade. Mas alguém tem que mantê-los. Eleanor não pode fazê-lo sozinha. E os outros homens não oferecem me receber com os meninos.
— Compreendo. Você pode optar por abandono — comentou-o, lhe oferecendo uma parte de pão e queijo.
— Alex — rogou ela — não é por você. É que só quero me casar com ele.
— Com seu fugitivo Corsário.
— Sim. — Jessica terminou o vinho. — Além disso, há coisas que você ignora de mim. Do contrário não quereria se casar comigo.
— Conte — disse ele, voltando a lhe encher a caneca. — Estou preparado para o pior. Conte-me esses horríveis segredos que ignoro.
— Eu... não sou virgem — sussurrou ela, com a cabeça encurvada.
— Eu tampouco. Que mais?
— Alex! Não me ouviu? Disse que estive com outro homem. Só posso me casar com ele.
— Quer outro pouco de queijo? Deixa de me olhar como se me achasse idiota. Compreendo perfeitamente o que disse. Também sei que passou toda sua vida nesta pequena cidade. Em alguns lugares não é ignorado que uma mulher casada tenha dois ou três amantes ao mesmo tempo.
— Seriamente? — perguntou ela, interessada. — Conte me.
Ele sorriu.
— Não me parece bom falar de adultério com minha futura esposa. Bem, já me disse que não é donzela. Suponho que é graças a seu Corsário.
— Sim, ele e eu...
— Preferiria não conhecer os detalhes. Sem dúvida foi em uma noite de lua e sua máscara era muito fascinante. Toma, come isto. Eu não gosto de mulheres fracas.
Ela aceitou o queijo.
— Alex, — perguntou, brandamente — como perdeu... quero dizer, quem foi sua primeira... já me entendeu?
Ele se reclinou sobre um cotovelo. Por um jogo de luzes apenas se via o montículo de sua barriga, rodeada pelo cetim amarelo do colete.
— Lembra-se de SalIy Henderson?
— A costureira? — Ela levantou a cabeça. — Mas tinha a idade de minha mãe! Se foi da cidade quando éramos crianças. Está mentindo, Alex.
Ele se voltou com um sorriso que a tranqüilizou. Jess se estendeu no chão, a pouca distância de Alex.
— Com Sally Henderson — murmurou. — Era apenas um menino.
— Tinha idade suficiente, ao que parece
— E após, ninguém mais? — perguntou ela, observando-o.
Em realidade, essa luz o fazia diferente. Usava a peruca pequena, sem cachos largos, com uma fita negra à nuca. Jess notou pela primeira vez o contraste da peruca branca com o negro de suas sobrancelhas.
— Algumas, aqui e lá — corrigiu ele, sorrindo-lhe por sobre o ombro. Ficou de barriga para baixo para olhá-la. — Me comportei muito mal contigo quando veio a meu quarto com Eleanor, Jess. É que nunca conheci outra pessoa que me zangue tanto como você. A ninguém gosta que o comparem a um pedaço de alga quando acaba de propor casamento a uma mulher.
— Pelo bem dos meninos.
— Que meninos? — Estranhou ele.
— Propôs-me casamento pelos meninos, verdade? E porque seu pai quer que se case. Não é certo?
Ele demorou um momento em responder. Levantou-se e cravou a vista no fogo.
— É obvio. Faz-me muita falta ter a sete meninos pendurados em mim, colocando suas mãozinhas pegajosas em minhas finas jaquetas. Apenas ontem MolIy usou minha melhor peruca para aninhar um pássaro com a asa quebrada. Samuel se sentou no bordado de Mariana com as fraldas molhados. E esta manhã, às duas da madrugada, Philip se meteu em minha cama porque ouviu um ruído, como aos outros também deu medo dormir sozinhos, às três horas estavam todos em minha cama. Sim, não nego que é um verdadeiro prazer tê-los em casa. É o que sempre desejei.
Jess observava as chamas, temerosa de dizer uma palavra. Queria perguntar por que a tinha pedido em matrimônio, mas não se atrevia. Era possível que desejasse, na verdade, casar-se com ela? Observou-o discretamente, enquanto ele olhava para outro lado. Desde que Alex havia desembarcado não recebera um trato muito amável de sua parte, por certo, mas tinham passado muito tempo juntos e lhe tinha certo carinho. O primeiro homem que tinha chamado sua atenção era um Montgomery. Vendia peixe à família desde que tinha aprendido a usar uma rede. Lembrou-se da mãe de Alex, que estava acostumada a sentá-la junto de seu filho mais novo para lhes servir leite e bolachas.
— Alex, — perguntou, em voz baixa — e os meninos...?
— Ficarei com eles, — afirmou ele — faça o que fizer. Meu pai passa muito tempo com Nate. Mariana acabará por afeiçoar-se com ás meninas. Assim só ficam os outros varões. Sam me segue a todas as partes como um gordo ganso. Quanto a Philip...
— Não. Referia a nossos próprios meninos.
Ele continuava lhe dando as costas.
— Teremos que deixar isso para mais adiante, Jess — respondeu, com muita tristeza na voz. — Não posso... ainda não. Teremos que esperar.
Jess lhe teve muita lástima. Assim, recortado pela luz do fogo, só via dele seus ombros largos, sua mandíbula magra e sua bondade. Recordou todas as vezes que a tinha ajudado e todas as oportunidades em que ela o tinha feito alvo de seu mau gênio.
Por fim se levantou e apoiou uma mão no seu ombro, aproximando os lábios de sua bochecha. Ele cobriu uma mão com a sua.
— Obrigada por tudo o que tem feito por mim, Alex. Obrigada por suportar os meninos e por tolerar meu mau caráter.
Inclinou-se para frente até o olhar de frente. Na verdade tinha bonitas feições. Seguindo um impulso, beijou-o nos lábios.
Ele se moveu e o beijo posou no canto de sua boca. Essa reação fez com que Jess lamentasse profundamente. Sem dúvida, a cena o fazia pensar nos tempos anteriores a sua febre. Então lhe deu um tapinha na mão.
— Está bem, Alex, não importa. Casar-me-ei contigo. Se o Corsário não se apresentar para me reclamar até terça-feira a noite, na quarta-feira pela manhã me casarei contigo.
Alexander reagiu com celeridade, tendo em conta sua gordura. Em um abrir e fechar de olhos estava de pé.
— Se ele não se apresentar? — Gritou. — Tenho que esperar até a noite anterior a minhas bodas para saber se terei uma noiva ou não? Foi muito longe, Jessica! Talvez ache que é a mulher mais desejável do mundo, mas não é a única, sabe?
Ela também se levantou, com as mãos na cintura.
— Claro! Há outras mulheres, que estarão dispostas a casar-se contigo por dinheiro! Que outro motivo poderiam ter? Sua atitude? Seu modo de fazer amor? Nem sequer com sua fortuna pôde conseguir a outra. Nunca te menti. Quero o Corsário. Se ele vier me buscar, aceitá-lo-ei.
— E eu sou a segunda alternativa, não?
— Não me deram nenhuma alternativa, Alex — replicou ela, com mais suavidade, aproximando-se.
Mas ele já estava colocando-a jaqueta úmida.
— Como pode cometer a tolice de amar a um homem que só aparece de vez em quando? A um homem que nem sequer te mostra seu rosto nem diz seu nome?
— Eu não disse que o amava.
Alex se deteve para olhá-la.
— Se não é amor, o que sente por ele? Desejo?
— Não... não sei. Ele é como eu. Pensamos de modo parecido. Nunca antes conheci ninguém como ele. Acredito que poderia amá-lo.
Alex se voltou para ela da porta.
— Pois bem, poderia amar a mim também, demônios.
E saiu à chuva. Por um momento Jess manteve a vista cravada na porta, atônita.
— Amá-lo? —sussurrou.
Acaso Alexander estava apaixonado por ela? Por algum motivo, a idéia era prazerosa.
E subiu a escada, assobiando, para deitar-se em sua cama fria e solitária.
Alex estava jogando feno ao grande potro negro do Corsário.
— Tinha certeza que te encontraria aqui — comentou Nick, com voz risonha e uma careta zombeteira nos lábios. — Cada vez que se ouvem gritos, corre a sua ilha particular.
Alex mudou de assunto.
— Parece que Eleanor não te mantém de tudo ocupado.
— Esta manhã lhe dei algo em que pensar — disse o russo, orgulhoso. — A deixei tão atarefada que nem sequer recordava o nome de sua irmã. Então amanhã se casará com sua senhorita Jessica.
— Alguém se casará com ela — confirmou Alex, enquanto enchia a gamela do cavalo.
Como de costume, tinha o torso nu. Quando não se via obrigado a usar a roupa acolchoada tratava de usar muito poucas peças.
— A noite de bodas com essa gatinha tem que ser memorável.
Alex olhou seu amigo com ar malévolo.
— Não posso me deitar com ela. Sabe muito bem. Ao descobrir que não sou gordo adivinharia o motivo do disfarce em um segundo.
— Poderia lhe dizer a verdade.
— A Jessica? Dizer a verdade a Jessica? Essa mulher não tem prudência. Seria capaz de tomar minha máscara emprestada para desafiar em duelo o almirante. Além disso — adicionou, sorridente — é melhor que não goste de mim. Se passássemos algumas noites juntos começaria a me olhar com outros olhos. As pessoas perceberiam que não sou o fracote que finjo ser.
Nick grunhiu, aborrecido.
— Casar-se-á com ela, mas não lhe fará o amor?
— Claro que lhe farei amor... em meu papel de Corsário. Alex se encarregará de mantê-la e de suportar esses malditos pirralhos enquanto o Corsário esquenta sua cama.
— E Jessica pensará que é adúltera.
— Será só por um tempo, até que possa lhe confessar a verdade sem perigo. Também posso fazer uma viagem a Boston e voltar curado de minha enfermidade. Alex baixará de peso e o Corsário deixará de existir.
— Espero que seus planos deem resultados. Está preparado para retornar? Eu não gosto desta ilha a noite.
— O Corsário te protegerá — assegurou Alex, com uma voz grave que fez rir Nick. Juntos remaram até terra firme.
Alex passou toda a noite com a esperança de que Jessica se apresentasse a ele para se desculpar por seus comentários, mas não foi assim.
Eleanor entrou no salão.
— Por fim se deitaram todos. Ela ainda não veio?
— Não — respondeu Alex, com a vista cravada em sua taça vazia.
— Acredito que tudo está preparado para as bodas de amanhã.
O jovem assentiu, sombrio. Eleanor lhe deu uns tapinhas na mão.
— Tudo sairá bem, Alex. Em realidade, Jessica é inteligente e algum dia compreenderá que é um homem estupendo. Só tem que esperar que entre em razões.
— Não acredito viver tanto. Supõe que esta com o Corsário?
— Tem que estar em casa, triste e esperando que o Corsário vá resgatá-la.
Alex descarregou um murro na mesa.
— Pois não quero que o veja. Se esta noite se encontrar com ele jamais se casará comigo.
Eleanor estreitou sua mão.
— Eu não estaria tão segura. Na vida há coisas mais importantes que... fazer bebês – concluiu ruborizada.
Ele lhe sorriu amplamente.
— Mas não para uma moça saudável como Jessica.
— A mesma que me ajudou a vestir, alimentar e manter um teto sobre a cabeça destes sete meninos — lhe recordou Eleanor. — Não a subestime. — Jogou uma olhada a seu redor. — Não viu ao Nate? Já deveria estar deitado.
— Mandei-lhe ver se Jess precisava de algo.
— Oh, não! — Exclamou a moça. — Enviou Nate a casa? Não sabe que esse menino adora Jessica? Se a ver derramar uma lágrima... — Eleanor se interrompeu com a expressão desconcertada de Alex. — Se Jess decidir algo estúpido, como fugir, Nate a ajudará — ficou de pé. — Alex tem que ir em busca de Nathaniel para averiguar o que acontece.
Alex se levantou com um movimento abrupto. Imediatamente recordou seu papel.
— Oh, eu não gostaria de sair com este frio. E me parece que está por chover outra vez. Já viu como me molhei ontem à noite. Não pode enviar a outro? A alguém saudável, como Nick.
— Nicholas é muito saudável. Não, Alex, terá que ir você. Leve o cavalo de seu pai. Faz meses que ninguém o monta.
— Esse bruto?
— O potro de Adam, então. O que queira, mas vai.
Alex quis protestar, mas a urgência que expressava a voz de Eleanor era um incentivo. Por sorte, não havia ninguém nos estábulos que pudesse ver o inútil do Alex selar o cavalo de seu pai com a velocidade do relâmpago. Rodeou a cidade a todo galope, sob a chuva, até a casa dos Taggert.
Nathaniel dormia no chão, junto do fogo quase apagado, com uma maçã meio comida na mão.
— Onde está Jessica, Nate?
— Olá, senhor Alex — saudou o menino, piscando. Levantou-se e seguiu comendo sua maçã.
— Onde está Jessica? — repetiu o jovem.
— Como estava chorando pelo Corsário, eu contei.
— Que contou?
— Que o Corsário tem seu acampamento na Ilha Fantasma e que ali está seu cavalo.
Alex ficou mudo e boquiaberto.
— Oh, mas não disse que o Corsário é você.
O estupefato jovem se deixou cair em um banquinho.
— Quem mais sabe? — perguntou, em um sussurro.
Nate tragou saliva e cruzou os dedos às costas.
— Só eu. E Sam. Porque o seguimos. Quer dizer, eu o seguia e Sam dormia. Acredito que por isso quer tanto a você. Mas não se preocupe: ainda não sabe falar.
— Mas você sim, pequeno espião. — Alex atraiu Nate para si. — Deveria te dar umas palmadas no traseiro. Desde quando sabe?
— Desde a segunda incursão.
Alex se reclinou contra as pedras da lareira, perguntando:
— E em todo esse tempo não disse a ninguém?
— A Jessica — respondeu Nate, evitando a resposta direta.
Montgomery começava a olhá-lo com novo respeito.
— Então disse a Jessica que o Corsário acampava na Ilha Fantasma.
Os olhos de Nate delatavam seu dilema.
— É que estava muito triste. Ela queria ver você antes de se casar com você.
Era assombroso que o menino tivesse descoberto a dupla personagem e soube calar a tal ponto a informação.
— Bem, sua irmã verá esta noite o Corsário. Quero que volte para casa. Eleanor está preocupada com você. Diga-lhe que fui em busca da Jessica.
O menino assentiu, solene.
— E não mencione a Eleanor a Ilha Fantasma.
— Não, é obvio — respondeu o pequeno, com muita dignidade. — Se a notícia se divulgar você poderia ser capturado e enforcado.
A idéia de que sua vida dependia de um menino de nove anos infundiu certo temor em Alex. Mas Nate só tinha faltado a sua lealdade em bem de sua amada irmã.
— Anda, vá para casa — disse, com suavidade. — Diga a Eleanor que te dê um pedaço de torta de maçã. — E adicionou, sorrindo. — E um pouco de cerveja, das suaves. Merece um gole como o que queria.
Nate sorriu quase partindo o rosto em dois.
— Sim, sim, senhor — exclamou.
E saiu à chuva.
— Jessie...Jessie...
Ao ouvir o chamado, Jessica enxugou as lágrimas e começou a correr às cegas, sabendo só que corria para ele. De repente enganchou o pé em um ramo quebrado. Puxou-o do pé inutilmente, frenética.
— Não, Jessie, tome cuidado — lhe ouviu dizer.
Um momento depois estava em seus braços e ele a beijava com desespero. Ela se limitou a abraçá-lo com força, como se temesse deixá-lo ir. Seus dedos se cravaram no torso do Corsário.
— Sentiu saudades? — Perguntou ele, com a voz carregada de paixão e bom humor.
Jess estava muito feliz de voltar a vê-lo para zangar-se porque rira dela.
— Quando te disse aquilo não falava a sério. É um Corsário muito efetivo. Esteve estupendo ao distribuir os panfletos. Deu esperança a meu povo. E...
Ele a acalmou com um beijo. Quando a deixou sem fôlego, ajoelhou-se para lhe liberar o pé. Depois a levou nos braços até o abrigo onde dormia seu cavalo.
— Me prometa que não voltará aqui.
— Como soube que estava aqui? Disse-lhe Nate?
Ele pôs um dedo nos seus lábios.
— Não sabe que te vigio, que te sigo aonde vai?
— Nesse caso viu a todos esses homens. Sabe do casamento? Tem que...
Ele voltou a beijá-la. Enquanto o fazia foi desabotoando o corpete do vestido. Entre beijos e carícias a despiu até a cintura, deixando-a exposta a seus olhares e dedos.
Só nesse homem ela podia confiar. Só em seus braços se sentia segura, como se pudesse deixar em suas mãos o controle da situação. Começou a tocar seu corpo, puxando a camisa de seda até que pôde acariciar sua pele. O corsário tirou sua roupa com facilidade, como se a nudez fosse seu estado natural.
Logo a deitou no feno para deslizar para baixo suas saias, enquanto a percorria com a boca e as mãos, beliscando a curva suave das nádegas. Beijou-lhe os joelhos, as panturrilhas e o arco do pé. Quando voltou para seus lábios já não usava mais nada que a máscara negra.
Jessica afogou uma exclamação com o contato de sua pele, com o suave esfregar daquelas pernas largas contra as suas.
Essa vez não houve dor na penetração: só uma paixão jubilosa. Esperava-o com ânsias e estava disposta a demonstrá-lo.
Ele riu de prazer com sua exuberância e rolou com ela até tê-la sobre seu corpo, sorriu ao observar o prazer e a surpresa em seus olhos. Guiou-a por alguns momentos e voltou a rolar para tê-la por baixo, mas nessa oportunidade levantou suas pernas ao redor de sua cintura e pôs as mãos sob as nádegas de Jessica para elevá-la para si, enquanto empurrava mais e mais.
Esqueceu de observá-la, atento só ao prazer. Ela se aferrava a seu corpo, arqueando-se para receber seus últimos impulsos, já frenéticos.
No final ela deixou escapar um grito breve e seco, mas imediatamente apertou a boca aberta contra o ombro quente do Corsário.
— Jessie, meu amor — sussurrou ele, estreitando-a com força contra seu corpo suado.
Passou um longo momento antes que ela sentisse o intumescimento nas pernas e se movesse para estar mais cômoda.
O Corsário a reteve perto de si.
— Tem frio, amor? — perguntou.
— Não — respondeu ela, sorrindo. Beijou o braço que a rodeava como para não deixá-lo escapar. — Temia não te encontrar - murmurou, relaxada e sonolenta. — Não esperava isto. Alexander sofrerá, mas tratarei de tranqüilizá-lo.
— Alexander?
— Sim — respondeu ela, sorrindo na penumbra. — Terei que lhe dizer que não posso me casar com ele.
— Se casar? — O Corsário parecia estúpido.
— Não disse que me observa? Tem que conhecer o decreto do almirante. Amanhã devo me casar com alguém. Esperei-te por tanto tempo quanto pude, mas Alex pediu minha mão e pensei que já não ficava outro remédio. Você está disposto a receber aos meninos, verdade?
O Corsário não afrouxou seu abraço.
— Não posso me casar contigo, Jessie.
— Bom, compreendo que não pode se apresentar na igreja com essa máscara. Direi às pessoas que nos conhecemos enquanto eu pescava e que esteve longe, navegando. Desse modo ninguém suspeitará que é...
— Não posso me casar contigo, Jessie.
— Por causa de Alex? Ele sabe de nós. É muito pormenorizado. Explicar-lhe-ei...
— Jessie, por favor, não piore as coisas. Não posso me casar contigo.
O que ele tentava dizer chegou, por fim, ao cérebro de Jess. Tentou afastar-se, mas ele a retinha.
— Me solte — disse, entre dentes.
— Jessie, deve compreender que tenho motivos para não me casar contigo.
— Me dê um — pediu ela, sempre lutando por afastar. — Me conformo com um só motivo razoável.
— Tem que confiar em mim.
— Ahahah! — Ela afastou a cabeça o suficiente para olhá-lo nos olhos. — Agora compreendo por que me tomaste. Está casado? Tem filhos próprios? O que sei de você? Devo ter parecido ser muito fácil. Sem dúvida ri de mim com seus amigos. A quantas mulheres há...?
Ele a beijou na boca e seguiu fazendo-o até que Jess deixou de lutar.
— Tem todo o direito do mundo a se zangar, Jessie. Mereço tudo o que me diz. Mas me acredite, por favor: amo a você, só a você.
— Nesse caso, não deixe que me case com outro – sussurrou ela.
— Montgomery não pode te fazer amor.
Jess demorou um momento em compreender o que ele estava dizendo.
— Que porco! Deixa que me case com Alex porque ele não pode me dar o único você me dá.
— Não suportaria que outro homem te tocasse. Amo-te, Jessie.
Ela o empurrou com força, mas ele a reteve no feno, apesar de seus olhares fulminantes.
— Alexander tinha razão ao dizer que não era grande coisa como Corsário. Agora percebo que tampouco é grande coisa como homem.
— Faz um momento não duvidava de minha virilidade — apontou ele, indignado. — Não discutamos, Jessie.
E começou a beijá-la no pescoço.
— E amanhã deixará que me case com outro — disse ela, em voz baixa.
— Não tenho alternativa. Westmoreland fez disto um ultimato e eu não posso me casar contigo. Montgomery é a melhor alternativa. Pelo menos não te tocará.
Ela relaxou o corpo. Assim que ele deixou de segurá-la, rolou pelo chão para afastar-se.
— Você tampouco me tocará.
— Jessie — protestou ele, alargando as mãos.
Jessica recolheu sua roupa. Um raio de lua tocou o corpo nu do Corsário e ela esteve a ponto de fraquejar. Mas recordou o que acabava de ouvir e afirmou em sua irritação.
— Acreditava que me casaria com outro homem e viria às noites furtivamente, fazer amor com você? – perguntou enquanto se vestia.
— Você não ama Montgomery.
— Talvez não, mas ele teve para comigo bondades que você com toda sua bravura, jamais compreenderá. — Permaneceu muito quieta sob a claridade de lua, com a roupa interior. — Quero que algo fique muito em claro: esta é sua última oportunidade. Última: não haverá mais. Se amanhã me casar com outro, o desta noite não voltará a repetir-se.
Um momento depois o Corsário estava de pé, apertando seu corpo nu contra ela.
— Você, viver como uma monja? Como se sentirá dentro de uma semana, quando eu entrar furtivamente em seu quarto?
— Nosso quarto. Será também o de meu marido.
Ele sorriu.
—Quer apostar alguma coisa que Montgomery não vai querer dormir contigo? Poderia esmagá-la sem querer.
— Alexander é um homem bom. Não o meta nisto. Essa é sua decisão definitiva? Não se casará comigo?
— Não posso. Se houvesse algum meio de fazê-lo, fá-lo-ia. Visitar-te-ei, Jessica, e você pode me visitar aqui.
— Não. Amanhã farei uma promessa e tenho a intenção de cumpri-la. — Ela colocou o vestido, furiosa
Ele sorriu com ar perito.
— Não poderá.
— Não conhece os Taggert.
15
O dia das bodas amanheceu chuvoso, triste e cinza. O mundo parecia tão desventuroso como Jessica. Ela manteria a cabeça erguida, negando-se a pensar nas previsões do Corsário. Mas não pensava converter-se em uma heroína trágica, que se casava com um homem estando apaixonada por outro. Desse dia em adiante afastaria o Corsário de seus pensamentos.
Mas enquanto dizia mentalmente essas palavras, uma parte dela ria, incrédula.
Eleanor a ajudou a usar um vestido de seda azul marinho que tinha pertencido à mãe de Alex. Depois lhe ordenou que permanecesse bem quieta enquanto cuidava dos preparativos para o café da manhã dos esponsais.
Não tratou de falar com sua irmã sobre o iminente casamento. Jessica supôs que estava muito irritada com ela.
Enquanto esperava, só no quarto de Adam, sentiu-se inquieta e teve vontade de conversar com Alex. Apareceu à janela e comprovou que não havia ninguém à vista. Então cruzou o terreno do lado, entre ervas, até chegar no quarto de Alex. Ao passar pelo quarto de Sayer viu que Nate estava ajudando o ancião a vestir-se. O pequeno fez um gesto de aproximar-se de sua irmã, mas Sayer o segurou pelo braço e saudou com a cabeça à moça. Ela respondeu à saudação e continuou sua marcha.
Chamou à janela de Alex com toda a cortesia que as circunstâncias permitiam. Como ele não respondesse, entrou pela janela e chamou:
— Alex!
Não houve resposta. Portanto, sentou-se em uma cadeira e esperou. O jovem entrou por uma porta que se comunicava com o quarto contíguo. Usando uma jaqueta de cor escarlate brilhante, bordada com flores em um tom mais escuro. Essa roupa não condizia absolutamente com o singelo vestido da noiva.
Ao ver a moça, o rosto de Alex refletiu fugazmente prazer, imediatamente transformado em irritação.
— Não deveria estar aqui. Não ouviu dizer que traz má sorte ver a noiva antes das bodas?
— Queria te contar que ontem à noite estive com o Corsário.
Alex se dedicou a arrumar-se de frente ao espelho.
— Sem dúvida foi um encontro exaustivo. Não é de estranhar que esteja aqui a estas horas. Seqüestrou-a no lombo de seu cavalo negro, para te levar a seu castelo dourado?
— Vim conversar contigo, Alex, não brigar. Quero-te dizer que respeitarei meus votos matrimoniais. Não vou v... — Tragou saliva com dificuldade. — Não vou vê-lo nunca mais.
Alex a olhou fixamente por um momento, sem que Jess pudesse adivinhar o que pensava.
— Me acompanhe, Jess — pediu, abrindo uma porta. — Meu quarto era, em outros tempos, o quarto infantil. Meus irmãos mais velhos foram saindo um a um e eu fiquei nele. Minha mãe estava acostumada a dormir neste quarto quando um de nós estava doente. Fiz com que se mobilhasse para você. Desse modo terá seu próprio quarto.
Jessica contemplou aquele pequeno quarto, decorado com bom gosto: uma cama pequena, um roupeiro, cômoda e cadeira. Pela primeira vez em sua vida teria um espaço só dela.
— É muito bom comigo, Alex. Mais do que mereço. Juro-te que serei boa esposa.
— Peixe afresco todos os dias? — perguntou ele, com olhos rindo.
Ela sorriu.
— E um menino em cada quarto. Permite-me que prove sua jaqueta, Alex? Eu gosto de vermelho.
Ele, rindo, tirou a jaqueta.
Era muito grande para Jess, mas o vermelho dava ainda mais brilho a seu cabelo e mais cor a suas bochechas. Enquanto ela se observava no espelho, Alex se aproximou por atrás e lhe pôs as mãos nos ombros.
— Jess, — disse, brandamente — vou comprar-lhe um guarda-roupa digno de uma princesa. — Fez uma pausa. — Um guarda-roupa digno de minha esposa. Serei um bom marido para você, o melhor que possa.
Jess só podia ver seu rosto no espelho; uma sombra lhe obscurecia a peruca e não usava nenhuma jaqueta vistosa que distraísse a atenção de suas belas feições. Com toda naturalidade, virou para ele. Com a mesma naturalidade, Alex baixou o rosto para o dela.
No momento em que estavam por beijar-se, Nicholas os interrompeu com uma risadinha sufocada.
Alex se afastou de Jess como se ela fosse venenosa. Nick sorria com ares de superioridade protetora.
— Sua irmã acredita que fugiu — disse à moça.
Jess tirou a jaqueta. Como Alex não se aproximava o suficiente para tomá-la, depositou-a na cama, cuidadosamente estirada. Tinha estado a ponto de beijar Alexander Montgomery, nada menos. O Corsário havia dito que ela não poderia viver como as monjas. Mas com o Alexander... Sorrindo pelo absurdo de seus pensamentos, saiu da quarto.
Eleanor se encontrou com ela no corredor, pálida de fúria.
— Já temia que tivesse decidido não passar por tudo isto.
— Que alternativa tenho? Diga-me uma e a aceitarei.
— Hum! — bufou Eleanor. — Fez um negócio excelente, mas é tão teimosa que não se dá conta.
— Talvez, quando Alex durma, possa provar todas suas jaquetas.
Eleanor a puxou pelo braço para arrastá-la até o salão principal onde seria a cerimônia. As bodas acabaram muito rápido. Quando Jess aproximou a bochecha para que Alex a beijasse, sentiu o aroma de canela. “Esteve outra vez com algum dos meninos”, pensou.
Apesar de que as bodas se realizavam por ordem do odiado almirante Westmoreland, foi uma festa digna dos Montgomery, onde a comida e a bebida correram em abundância, para prazer dos convidados. Comentava-se entre sussurros que era horrível sacrificar à bela Jessica a um homem gordo, efeminado e decrépito como Alexander. Os homens murmuravam sobre o poder do dinheiro; as mulheres afirmavam que o ouro não dava felicidade na cama.
Dois ou três homens, com intenção de aliviar as angústias de Jess, sussurraram-lhe que de bom grado lhe proporcionariam o que obviamente não ia obter de Alexander.
O almirante Westmoreland se apresentou para felicitar aos noivos, como se não tivesse sido ele a causa desse casamento não desejado. Jessica abriu a boca para dizer algo a respeito, mas Alex apertou dolorosamente seu braço e se limitou a agradecer a visita.
— Covarde — sussurrou ela, enquanto lhe voltava às costas para sorrir a dois jovens uniformizados.
— Jess...
Mas ela se afastou de braços com os dois bonitos moços.
Ao chegar à noite, Eleanor afastou sua irmã de uma enérgica dança com um atrativo loiro e a levou para o dormitório de Alex.
— Mas eu estava aproveitando muito bem! — protestou Jess.
— Aproveitará muito bem, só, com seu marido.
— Contando o número de flores bordadas em sua nova jaqueta? Ai, Eleanor, isso dói. Ultimamente está muito irritável.
Eleanor não voltou a falar até que chegaram ao quarto de Alex.
— Isto é um presente de Mariana — disse, estendendo uma camisola de algodão branco, com largas bainhas volitivas.
— Precisará mais que isso para excitar Alexander — assegurou a moça, revirando os olhos.
— Vamos, basta já! — gritou-lhe Eleanor. — Alexander não tem nenhum problema. Desempenhar-se-ia muito melhor se o alentasse um pouco.
— Se o alentasse a que? — perguntou Jess, horrorizada. — Olhe; ele e eu resolvemos essa questão. Casamo-nos por conveniência: você mesma o ouviu. Ele precisa de alguém que ponha esta casa em ordem. Alguém que não seja esse russo enorme e intrometi... Ai! Eleanor, o que quero é tirar o espartilho, não ajustá-lo.
— As coisas seriam melhores se recordasse que Alexander é homem, Jess. Agora é seu marido e deveria tratá-lo como tal. Vejamos, levante os braços e ponha isto... Agora se sente na cama, que escovarei seu cabelo.
— Alex mandou pôr uma cama nesse outro quarto para mim.
— Mas não para esta noite. Escute-me, Jessica: Alex só precisa que o incentive um pouco. Terá que usar algumas artes femininas. —Olhou sua irmã com olhos muito duros. — Não lhe diga que é gordo, que é capaz de navegar melhor que ele, nem que detesta suas roupas. Seja amável com ele, que agora é seu marido.
Jessica estava bocejando.
— Está bem, dormirei aqui. De qualquer modo eu não gosto de dormir sozinha.
Eleanor lhe deu um beijo na bochecha.
— Não o lamentará — disse, e abandonou o quarto.
Jess adormeceu em poucos minutos, mas despertou assim que Alex entrou no quarto. Enquanto ele se movia de um móvel a outro, observou-o. Seu gordo ventre se recortava contra a luz escassa. Ele acendeu uma vela e suspirou fundo ao ver Jessica.
— O que faz aqui? — disse, com os olhos muito abertos.
Ela tinha decidido não zangar-se.
— Casamo-nos, recorda?
— Supus que estaria adormecida... em sua própria cama.
Ela cruzou as mãos com um doce sorriso. Não gostava de ser tratada como intrusa.
— Alexander, esta é nossa noite de bodas.
— Sei, — lhe respondeu ele — mas estou cansado, dói-me a cabeça e quero dormir.
Em realidade parecia cansado. Tinha os olhos avermelhados e seu rosto começava a suar. Ela jogou de um lado as mantas e ficou de pé na cama para apoiar as mãos nos seus ombros.
— Posso massagear sua cabeça até que se sinta melhor. Venha para cama e... — interrompeu-se, porque Alex a estava empurrando para sair.
— Vai para seu quarto — ordenou, furioso. — Te digo que quero dormir. Sozinho. Compreende?
— Sim — respondeu ela, tão desconcertada por sua irritação como por todo o resto. — Não era minha intenção recordar-te o passado. Quero dizer, te recordar os tempos em que ainda podia...
— Vai, Jessica. Vai — repetiu, com voz rouca.
Ela foi ao seu próprio quarto, com o cenho franzido, e se aconchegou sob os cobertores de sua cama. Dormiu imediatamente, mas algo a despertou.
— Alex? — perguntou, levantando-se.
— Sou eu — anunciou uma voz grave, de sotaque estranho, que ela conhecia muito bem.
O Corsário estava sobre ela imediatamente, tirando sua roupa, escondendo as mãos em seu cabelo e beijando-a. Era como um animal morto de fome: precisava-a, queria-a.
Por um momento Jessica se aferrou a ele, com a mesma ansiedade. Mas quando estava meio nua recuperou o bom senso.
— Não, não, não — cantarolou, afastando-o de si. — Agora sou uma mulher casada. Se afaste de mim.
— Jessie, — sussurrou ele, com a voz carregada de desejos — vim para que tenha sua noite de bodas.
Ela o empurrou com todas suas forças.
— Não participou da cerimônia e não pode participar agora. Já lhe disse isso. Não tinha acreditado? Vai daqui antes que eu desperte o Alex.
— Rouca tanto que não ouvirá nada. Por favor, Jessie.
— Vai daqui! — Ordenou ela, em voz muito alta, pois sabia que estava a ponto de ceder. — Vou gritar até que todos me ouçam. Se lhe apanham será a você quem enforcaram.
— Não diz a sério, Jessie. Esse tolo do Montgomery jamais se deitará contigo. Vai passar a vida só, nesta cama?
— Se for preciso. Mas não a passarei corneando meu marido. Se dentro de trinta segundos não sair daqui, gritarei.
Ele se ergueu em toda sua estatura. As roupas negras o faziam quase desaparecer entre as sombras.
— Veremos o que pensa dentro de uma semana ou duas. Poderá resistir a mim quando esse marido a rechace noite após noite?
— Mesmo que me rechace ano após ano.
Ele começou a rir e Jess percebeu de que em sua voz não tinha conseguido pôr muita convicção. Depois de acariciar apressadamente sua bochecha, ele deslizou pela janela e desapareceu.
Já amanhecia quando Jess deixou de dar voltas na cama e conciliou o sono.
Foi à mão de Nick, apoiada em seu ombro, o que despertou Alex.
— Seu pai me mandou chamá-lo. Quer que o leve ao salão. Sua irmã diz que pensa te visitar neste dormitório. Quer ver juntos aos recém-casados.
Alex assentiu, sonolento, e saiu da cama antes que Nick fechasse a porta a suas costas. Estirou o corpo nu até quase tocar o teto raso. Logo usou uma larga camisa de dormir e a maior e mais vistosa de suas perucas.
Deteve-se ao recordar a difícil experiência do dia anterior. Primeiro tinha estado por um tris de beijar Jess, com o risco de revelar tudo. Por sorte Nick os tinha interrompido. Depois das bodas só pôde pensar que Jessica era sua para sempre; nunca em sua vida tinha experimentado tal necessidade de posse. Queria levar-lhe longe da casa, envolvê-la em véus e reservá-la só para si. Não suportava que outros a vissem ou lhe dirigissem a palavra.
Como tinha medo de não suportar o impulso de seqüestrá-la, manteve-se a certa distância dela, onde não lhe chegasse sequer a fragrância de seu cabelo.
Mas teve que estar presente e vê-la dançar com um homem e com outro. Era sua esposa, mas não o era. Não podia abraçá-la, não podia tocá-la; estava obrigado a fingir que estava cansado e indiferente, embora desejava lhe demonstrar as energias que o alagavam.
Quando Eleanor a levou, ele deixou escapar um suspiro de alívio. Mas sua imaginação esteve a ponto de matá-lo ao imaginar a cena: estavam preparando Jessica para seu leito.
Quando a moça se retirou, ele permaneceu no salão até muito depois de que todos estivessem deitados. Não tinha tomado sequer um copo de cerveja suave por medo de perder o domínio sobre si. Repetia-se que tudo quanto estava fazendo era pelo bem da América e merecia um sacrifício pessoal.
Mas ao entrar em seu quarto e encontrar Jessica em sua cama, sonolenta e suave, esteve a ponto de tornar-se traidor. Compreendeu que devia afastá-la imediatamente se queria dominar-se.
Sua intenção era compensá-la, por sua brutalidade, quando se apresentasse com a máscara do Corsário, mas a condenada gatinha era muito teimosa. Expulsou-o de seus quarto sem muita angústia.
E agora devia enfrentar outra tortura. Seu pai queria ver os recém-casados no leito conjugal. Alex, com uma careta, acomodou a peruca. O pai queria assegurar-se de que seu filho fracote tivesse completado com seu dever marital. Alex cravou o punho na manga da camisa de dormir. O velho nunca teria feito isso com o Adam ou Kit, seus melhores filhos.
Furioso, abriu a porta de Jessica.
Ao ver aquela cabeça que apenas aparecia sob os cobertores esqueceu seu pai e a sua pátria.
Jess abriu os olhos.
— Alex, o que...? O que faz aqui?
O medo de sua voz apagou imensamente os ardores do jovem, que inclinou as costas e deu a sua voz um tom penoso.
— Nick acaba de me avisar que meu pai quer visitar os recém-casados no quarto. Quer netos próprios e eu não gostaria de lhe deixar entrever que talvez não os haja jamais. Faria-me o favor de vir para minha cama?
Assim dizendo, girou sobre os calcanhares nus e voltou para seu próprio quarto.
Jessica ficou piscando. Por um momento tinha temido que ele estivesse consciente da visita do Corsário. Foi um alívio comprovar que nada sabia.
Permaneceu imóvel, pensando em Alex como acabava de vê-lo. Sempre estava muito melhor quando não usava essas jaquetas absurdas. Em realidade, ao vê-lo caminhar com essa camisa larga não se notavam as pernas gordas nem o ventre enorme. A moça estranhou de nunca ter reparado na largura de seus ombros.
Levantou-se de um salto para ir ao quarto de seu marido, mas algo em si, insistiu a olhar-se no espelho. Recolheu o pente para arrumar os cabelos, mas não o fez. Assim, com o cabelo revolto ao redor da cabeça e os olhos brilhantes de expectativa, estava muito melhor.
Alex estava deitado na cama, olhando-a. Seu ventre formava uma montanha sob as mantas. Até então ela não tinha reparado em suas grossas pestanas.
— Não vai me convidar para seu leito? — perguntou em voz baixa, sorridente.
Ele pareceu vacilar um instante, mas afastou os cobertores para que ela se deitasse a seu lado. Permaneceu deitado, o mais longe que pôde. Ela se moveu um pouco no colchão.
— Acredito que sua cama é muito mais cômoda que a minha — comentou.
Voltou-se para ele, mas Alex permanecia rígido como um mastro, com os olhos fixos no teto raso.
— Deveríamos atuar como um casal apaixonado — sugeriu Jess, aproximando o corpo.
Alex ficou até mais rígido. Ela se levantou sobre um cotovelo.
—Ouça, não é nada feio. — Apoiou-lhe um dedo na bochecha. — Recorda aquela vez em que apontou para Pitman com duas pistolas para impedir que nos incendiasse a casa? Nessa noite foi muito corajoso.
Alex mantinha os braços presos a seus lados, sem a olhar. Ela se aproximou até espremê-lo com seu corpo.
— Alex, — disse com suavidade, deslizando um dedo pelo seu queixo — foi muito bom comigo e com minha família. Olhe, é assombroso, mas com esta luz fica quase tão belo como seus irmãos.
Ele a olhou pela extremidade do olho.
— Sabia que com isso te faria reagir um pouco – riu Jess.
Fora da porta, ouviram-se vozes. Alex não se moveu.
— Vamos, — exclamou ela —ponha seu braço ao redor dos meus ombros. Pelo menos finjamos que estamos casados.
Alex obedeceu, mas como se fosse de madeira. Jess se curvou contra seu corpo, apoiando um joelho no seu ventre, aconchegada contra ele. Pensou na solidez daquele corpo, na largura de seus ombros e a dureza de suas coxas contra a moleza do seu estômago. Suspirou, satisfeita.
Quando soaram os golpezinhos à porta ela não os ouviu. Foi Alex quem respondeu, com voz quebrada.
Nick entrou no quarto levando nos braços o enfraquecido Sayer. Tinha envelhecido muitos anos no breve tempo transcorrido do acidente.
— Pai — exclamou o jovem, com voz tensa.
Tratou de levantar-se, mas Jessica estava colada a ele como um marisco. Só abriu os olhos tempo suficiente para sorrir para seu sogro.
— Jess! — sussurrou Alex.
O ancião o acalmou com um gesto da mão.
— Deixa-a dormir. Não era minha intenção lhes incomodar, mas não supus que ainda estariam na cama — mentiu. — Nicholas, me leve para tomar o café da manhã.
Nick saiu com o ancião. Antes de fechar a porta dedicou uma piscada a seu amigo.
Alex, meio levantado, com Jessica meio enrolada a seu corpo, tinha a testa suada.
— Alex — sussurrou ela.
Levantou o rosto dando a entender com toda claridade que desejava um beijo. Ele se afastou.
— Jessica, parece-me que estaria disposta a copular e acredito que seria possível. Se me sussurrar palavras grosseiras ao ouvido e... ah, sim, também deve me contar contos sujos e dançar, nua, é obvio. Quanto mais sugestiva seja a dança, melhor. Desse modo, em uma ou duas horas me seria possível agir. Claro que você terá que estar por cima e ser muito, mas muito rápida. A procriação me parece bastante aborrecida... e embaraçosa. Mas se está decidida a usar meu corpo, pode fazê-lo.
Jessica demorou um momento em recuperar-se. Logo se pôs a rir.
— Oh, Alex, que imaginação tem. — Afastou-se dele para sair da cama. — Algum dia terei que te falar dos homens de verdade. Pobre SalIy Henderson.
Um ruído surdo depois dela, fê-la voltar-se. Pelo que parecia, Alex tinha caído da cama, como se tivesse tentado dar um tapa em algo fora de seu alcance.
Ela quis ajudá-lo, mas o jovem a olhou, furioso.
— Se me tocar o lamentará.
Jessica deu um passo atrás.
— Caramba, Alex, se coloca mais histérico que as mulheres — comentou antes de sair.
— O que fez a Alexander? — Sussurrou Eleanor, cortante, uma hora depois.
— Absolutamente nada. Está tão intacto como quando o encontrei — assegurou Jess, com a boca cheia, sentada diante de seu café da manhã.
— Pois tenho a sensação de que esteve chorando, mas não pode ser, verdade?
— Eu não fiz nada que o fizesse chorar. Onde estão as contas da casa, Eleanor? Quero dar uma olhada.
16
Por volta do meio-dia de trabalho no dia seguinte às bodas, na casa dos Montgomery todos tinham perfeita consciência de que havia ali uma nova ama. Jessica encarou à velha e desorganizada mansão como se fosse um navio e tratou aos servos, gordos e preguiçosos, como se fosse uma tripulação.
Lavaram chãos, tetos baixos e tudo que havia no meio. Nicholas recebeu ordens de tirar os tonéis do porão para que ela pudesse fazer o inventário de provisões e mandar dedetizar.
John Pitman se entrincheirou dentro de seu escritório; Mariana decidiu visitar os doentes de Warbrooke, Sayer, em troca, pediu para ser levado ao salão, para observar Jessica em plena ação. Segundo todo mundo, nunca o tinha visto tão feliz.
Alexander desapareceu logo que terminou o café da manhã, para o anoitecer ainda não tinha retornado. Nesta ocasião quase todos os homens de Warbrooke estavam se felicitando de não ter obtido a mão de Jessica. Em qualquer parte se expressava compaixão pelo pobre Alexander, que teve que fugir de sua própria casa pouco depois das bodas.
— Se essa mulher tivesse passado a noite comigo, esta manhã não teria tantas energias — dizia cada um dos pretendentes rechaçados. E todos riam entre dentes, orgulhosos.
— Sente-se! — ordenou Eleanor a sua irmã. — Já esgotou a todos. É hora de descansar. Onde está seu marido?
— Que marido? Ah, Alex.
— Alex, sim. Onde está?
— Não tenho idéia. — Ao olhar pela janela, Jess viu John Pitman que descia a colina para a cidade.
— Aonde vai?
— A uma reunião com o almirante. Voltará mais tarde.
— Isso significa que não estará durante o jantar?
— Jess!
Mas a moça já ia pelo corredor.
— Poderia me levar algo para comer no quarto de Alex? — pediu por sobre o ombro.
Uma hora depois Alex abriu a porta de seu dormitório, fazendo com que ela levantasse a vista. Estava sentada na cama, com as pernas cruzadas, rodeada pelos livros de contabilidade que Pitman guardava com tanto zelo. A cama estava semeada de farelos, uma porção de torta de maçã meio comida, um pedaço de queijo, três ameixas e uma caneca de cerveja suave.
— Olá, Alex. Onde esteve?
Ele tinha ficado imóvel na soleira da porta e a olhava com fixidez. A moça tinha o cabelo desalinhado e as roupas meio desprendidas, como se houvesse se interrompido no processo de despir-se; havia farelos em seu queixo. Estava linda... e Alex recordou tristemente que não devia tocá-la.
— Que demônios está fazendo? — perguntou, vexado.
— Me encarregando de sua casa. Ou não se nota? Quer comer algo? — Estendeu-lhe algo assim como um pedaço de queijo. — Sente-se e deixa de pôr cara de mal. Tire a jaqueta e a peruca. Os sapatos também. Ponha-se cômodo.
— O fato de que você circule por aí mais ou menos despida não significa que eu deva fazê-lo também — replicou ele, escrupuloso, enquanto entregava um espelho de mão.
— Bom, como goste — concedeu, voltando para seu livros. — Outra! Seu cunhado não sabe somar. Quase todas as colunas estão mal somadas.
Alex se sentou na borda da cama, tão longe dela como foi possível.
— Deixe ver... me deixe dar uma olhada nisso. Alex demorou apenas uns minutos em adivinhar o que Pitman estava fazendo. — Jess, quantos pares de sapatos comprou para você desde nosso compromisso?
— Nenhum, é obvio. Para que quero sapatos novos? Tenho um par que só foi remendado uma vez.
Alex fez uma careta.
— Amanhã nos encarregaremos disso. Entretanto, segundo estas contas você comprou três pares de sapatos de cetim, caros, na semana passada.
— De cetim? Isso sim que seria esbanjar dinheiro. Com um passo entre as rochas não serviriam para mais nada.
— Não leu estas colunas?
— Somo melhor do que leio. Olhe isto, Alex. Aqui diz que Eleanor comprou três pares de sapatos para cada um dos meninos. — Olhou a seu amigo. — Por que mente assim?
— Porque apresenta estas contas a meu pai, semana a semana, e meu pai autoriza a seu mordomo a entregar o dinheiro necessário. Os totais também estão maus?
— Os totais corretos não chegam a estas somas, embora a diferença não é muita. Ajustam-se depois de algumas páginas. Diria que seu cunhado está desviando recursos. — Afastou os livros de seu regaço e se levantou. — Alex, será melhor que coma algo. — Recolheu os restos da comida e os colocou em uma mesa, diante dele. — Se quiser irei procurar algo quente.
— Não, obrigado. Jess! O que faz?
— Dispo-me para me deitar.
— Mas não pode fazer isso.
— Prometo não te empurrar enquanto durma. Não rouco, não rinjo os dentes e nem sequer ocupo muito espaço. Tampouco penso dançar nua, de modo que não estará obrigado a cumprir com seus deveres maritais. Isso sim: esta noite penso dormir aqui, contigo. Não quero estar sozinha no outro quarto.
— Não pode dormir comigo, Jessica — afirmou Alex.
— Não acredito que tenha forças suficientes para me tirar daqui nos braços.
— O que tem de mal o outro quarto?
— Eu não gosto da janela.
Jessica empilhou os livros contábeis no chão. No momento em que começava a tirar o vestido, Alex lhe segurou a mão.
— É pelo Corsário, verdade? Entra pela varanda. E quer ficar comigo porque não pode resistir a ele.
Jessica grunhiu.
— Fico contigo para poder dormir toda a noite e porque não gosto de dormir sozinha. E agora se dispa, por favor. Se essa jaqueta segue brilhando jamais poderei dormir.
Alex se sentou para observá-la enquanto ela tirava o vestido. Quando a viu desatar os cordões de sua roupa interior, afastou o rosto.
Ela colocou uma mão fria à sua testa.
— Sente-se bem, querido? Está transpirando. Não será um sintoma dessa febre, não? Vamos, se dispa. Prometo não o olhar.
Para Alex, aquela noite foi longuíssima. Jazia na cama junto de Jessica, que dormia como uma menina aconchegada a seu lado, sem poder tocá-la. Sentia cada movimento de seus seios contra ele. A camisola se enroscou para cima e as largas pernas da moça o tocaram. Tinha ido ao outro quarto para despir-se e colocar a camisa de dormir. Ao retornar, com a peruca posta, ela já estava adormecida, mas o tinha procurado com as mãos para estreitado contra si, como a um ursinho de pelúcia.
Alexander tratava de se explicar o que estava acontecendo. Não podia revelar à moça que ele era o Corsário, bastava ver o que ela tinha feito com os livros contábeis, que Pitman considerava território exclusivamente dele.
Jamais se conformaria em deixar que Alex continuasse com suas incursões quando fosse necessário, sem entremeter-se nelas. Jessica não deixaria de colocar seu delicioso narizinho e de participar de tudo o que o Corsário fizesse. E assim se enredaria em problemas... ou em algo pior.
Jess apoiou o joelho no membro viril de Alex, fazendo-o reagir instantaneamente. "Para falar de contos sujos e danças nudistas", pensou. Amanheceu o dia sem que tivesse podido dormir. Tinha-a em seus braços, observava-a na escuridão; acariciou-lhe o cabelo e deslizou a mão ao longo de seu corpo até chegar ao limite de sua resistência. Começou a pensar nas coisas mais horríveis que tinha visto em seus anos de marinheiro, tentou o quanto pôde não se deixar tentar com o delicioso vulto que dormia entre seus braços.
Uma hora antes do amanhecer finalmente adormeceu, exausto pelas duas noites de vigília.
Na aurora, seis dos sete meninos Taggert lhe saltaram no estômago. Como de costume, a metade inferior de Samuel estava muito molhada.
Jessica ficou fora da linha de fogo, enquanto Alex pronunciava umas quantas palavras destinadas a disciplinar aos marinheiros.
— Deus! — balbuciou Philip, impressionado.
Sam, rindo, saltou sobre a barriga de Alex.
— Tire-o de cima de mim, Jessica. Molhou-me até a coluna vertebral. Não pode dominar a estes pirralhos?
Jess já tinha levantado Sam, mas com essas palavras o deixou cair. Suas fraldas emitiram um ruído de chapinhar, mas Alex não percebeu: ao inclinar-se, a camisola da moça a tinha deixado à vista em toda sua longitude.
— Ah, estão aqui — comentou Eleanor, abrindo a porta. E ordenou: — Fora todo mundo! Dêem-lhes um pouco de intimidade! Alex, não me diga que dormiu com essa peruca.
— Intimidade! — grunhiu ele. — Nesta casa ninguém sabe o que significa essa palavra.
Eleanor fechou a porta. Enquanto Alex observava a cena, boquiaberto de estupefação, Jess tirou a camisola para vestir-se.
— Que má cara tem, querido! Dormiu bem? Fique na cama e te trarei torradas com leite. Pensando bem, não cheira como é devido. Poderia te trazer um banho. Lavarei seu cabelo, as costas e os pés. Não acredito que possa se lavar bem os pés com essa barriga.
— Sai daqui, Jessica — murmurou ele, com os dentes apertados.
— Sempre desperta de mau humor?
— Fora! — foi tudo quanto ele pôde dizer.
Jessica recolheu os livros amontoados no chão e o deixou em paz.
Ao terminar o segundo dia de casados, a moça já estava disposta a dar-se por vencida. Estava fazendo o possível por ser boa esposa, tal como tinha prometido, mas não obtinha a não ser desgostá-lo.
Acima de tudo tinha lhe levado uma bandeja com comida, cuidadosamente escolhida para que ele não se visse obrigado a mastigar muito. Ante seu intento de alimentá-lo na boca, ele a tinha enviado ao meio do quarto com um só empurrão. Disse que não queria ser tratado como inválido. Jess expressou sua opinião de que era um inválido, posto que não pudesse caminhar mais de uns metros sem que ela se visse obrigada a lhe dar apóio. Afirmou que se casou com plena consciência de que deveria ser enfermeira e estava disposta a levar a sério. Ele, grunhindo, ordenou que lhe levasse um quilo de carne ou algo que pudesse mastigar.
Depois disso abandonou a casa. Ao voltar encontrou Jess esfregando Samuel em uma tina colocada diante do fogo de seu quarto. Sam tinha decidido brincar com os leitõezinhos, mas a porca o tinha perseguido pelo barro e o esterco até que Nick o tirou pela gola da camisa. Enquanto o russo consolava à chorosa Eleanor, Jess arrojou vários cântaros de água sobre o garotinho antes de levá-lo ao quarto conjugal, para lhe dar um banho completo.
Alex, de pé na soleira da porta, olhou-a boquiaberto por um instante. Logo voltou às costas, dizendo:
— Jessica, não está decente.
Ela lançou um olhar à úmida roupa interior, que se aderia ao corpo.
— Não queria molhar o vestido. Tem que superar esse acanhamento, Alex. Depois de tudo estamos casados, recorda? Fica quieto, Sam, para que o seque. Alex, me diga, faço-o pensar em quando era um homem?
Ele girou em circulo para enfrentá-la.
— Agora mesmo sou homem. Por Deus, Jess, parece...
Sam se jogou em seus braços e o abraçou com todas suas forças, apertando-o com seus bracinhos úmidos. Alex, sorrindo, estreitou aquele corpinho nu e afundou o nariz no pescoço molhado.
— Por uma vez na vida cheira bem, Sam. Quer que te leia?
Sam riu como resposta. Jess se encarregou do menino.
— Dê-me antes que sua fina jaqueta sofra um acidente.
— Jess, se cubra, por favor. Há homens em toda a casa.
— Ah, sim, desculpa. Não estou habituada a viver em uma casa cheia de homens.
Minutos depois estava de volta, agachada sobre a tina para limpá-la. Alex perguntou:
— Jess, o que faria se tivesse se casado com seu Corsário?
Ela fez uma pausa em sua tarefa.
— Ajudá-lo. Saberia onde estaria em um dado momento e estaria ali para cobrir suas costas. Cavalgaria a seu lado.
— E se ele se negasse a te dizer aonde deveria ir?
Ela sorriu.
— Oh, me diria. Eu poderia convencê-lo.
— Sim, acredito que poderia. E desse modo, quando disparassem contra ele também disparariam contra você, verdade?
— Teria que compartilhar o bom e o mau.
— Pois me alegro de que não tenha se casado com o Corsário.
Jessica não respondeu.
Três dias depois das bodas, quase todos os habitantes da cidade estavam de pé no cais, com os olhos voltados para o almirante e seus soldados, que se erguiam de pé na proa de um navio.
Por um completo minuto depois do anúncio, ninguém pôde pronunciar uma palavra. Todos permaneciam de pé, com a boca aberta, piscando como se não pudessem acreditar: o almirante acabava de anunciar que três dos jovens de Warbrooke seriam embarcados para que servissem a Sua Majestade. Os três eram moços fortes, saudáveis e bonitos; os três eram inteligentes e com certo ar de independência. Um deles era Ethan Ledbetter.
— Acha que estão embarcando o Corsário — disse Jessica, em voz baixa.
Um segundo depois o ar se quebrava com os gritos de Abigail. Todo mundo se voltou para Ethan, que abraçava sua esposa, rodeando-a com os braços. Jessica fez gesto de segui-los, mas Alex a reteve, dizendo:
— Deixe-os sozinhos.
E a afastou dali. Ela lutou para liberar-se, mas Alex a retinha com força, levando-a para o bosque.
— Alex, quer deixar de fazer o papel de mãe comigo? Quero acompanhar a Abigail.
— Com que motivo? Tem que se manter fora disto, Jessica. O almirante acha ter em suas mãos o Corsário ou está obrigando ao homem em resgatar a estes moços.
Ela se soltou com um movimento brusco.
— E o Corsário os resgatará. Toda a cidade sabe.
Alex revirou os olhos e apertou os punhos contra as coxas.
— O almirante terá esses três jovens vigiados por vinte soldados, Jess. Nem sequer seu Corsário pode atacar com tantos fatores contra.
Ela sorriu com ar protetor.
— Os covardes não sabem o que é pensar senão em covardia. O Corsário está obrigado a salvá-los por sua honra.
— Sua honra? E o que me diz de sangue? Essa coisa vermelha que se verte quando a pessoa recebe uma ferida.
A moça girou em circulo.
— Não tenho tempo para falar contigo. De qualquer modo não entenderia.
Ele a segurou pelo braço e a obrigou a olhá-lo.
— Entendo melhor que você. Está cega pelo aspecto romântico do Corsário e não pode apreciar as consequências. Quanto a minha covardia, me permita elucidar-te que fui eu quem salvou repetidas vezes sua pele.
Jessica se inclinou até que seu nariz ficou quase tocando a de Alex. Embora tivesse mais centímetros que ela, estava tão curvado, que ambos pareciam ter a mesma estatura.
— O Corsário virá. Tenho certeza. Não pode permitir semelhante injustiça. Vinte homens, cem, mil, para ele dá no mesmo. Não pensa em sua própria segurança, porque se antepõe a de outros. É capaz de dançar diante do inimigo porque sabe que tem a justiça do seu lado. Alex! Sente-se bem? Sente-se, sente-se. Está um pouco pálido.
Alex se sentou em um tronco de árvore, enquanto Jess lhe tocava a bochecha, preocupada. Atraiu-o para si e apoiou sua cabeça no peito.
— Tanto significa esse homem para você?
— Não só para mim, mas também para toda a cidade. Sem ele não temos esperança. Talvez algum dia todos nós tenhamos a coragem de enfrentar aos ingleses, mas hoje somos só uns poucos escolhidos.
Jess o sustentava contra seu peito, lhe acariciando as costas como a um menino.
— Nós? — repetiu Alex. — Eu acreditava que só seu Corsário desafiava as balas inglesas para defender a América.
— Alex, não comece outra vez com seus ciúmes.
— Ciúmes? Minha esposa se desfaz em elogios sobre outro homem, idealiza-o, pinta-o como superior aos deuses do Olimpo e, depois me diz que tenho ciúmes.
— Está-me fazendo mal.
— Me alegro! — Exclamou ele, sem lhe soltar os braços. — Isto não é nada com o que sentirá se continuar com seus "nós" e te envolver na libertação desses homens.
— Eu não disse que... Ai! Solte-me, Alex.
— Que Deus me perdoe, mas se cometer alguma estupidez te farei pôr um colar para te acorrentar.
Ela ia dizer que pensava agir como lhe desse vontade, mas a expressão de seus olhos a impediu.
— Às vezes se parece muito com Adam.
Imediatamente Alex encurvou outra vez os ombros e a estreitou contra si para ocultar o fulgor de seus olhos.
— Jure-me Jessica. Jure-me que não participará disto.
— Não posso, Alex, porque... — interrompeu-se. Ele estava apertando-a tanto que não lhe permitia respirar.
— Não suportaria que te acontecesse algo mau, Jessica.
Ela, completamente surpreendida, levantou o rosto para olhá-lo.
— Por que pediu que me casasse contigo, Alex?
— Porque te amo — respondeu ele, simplesmente.
— Oh!
Deixou que ele voltasse a apoiar a cabeça no seu seio. Dois homens a amavam; um deles era um demônio viril e belo, que se negara a desposá-la. Agora Alex dizia amá-la. E Alex era o oposto do Corsário: ali onde o Corsário usava a coragem, Alex empregava o cérebro.
— Não farei nenhuma tolice — prometeu com suavidade. — Não sairei danificada. O Corsário...
— Maldição! — protestou ele, fulminando-a novamente com o olhar. — Ele não poderá te ajudar. Morrerá com os disparos dos soldados que estão guardando aos recrutados. E quem salvará a sua preciosa cidade se o Corsário ficar cheio de buracos?
Ela se afastou um passo.
— Seu amor por mim não justifica esta desagradável exibição de ciúmes. Eu, pelo menos, posso pensar em algo maior que uma só vida. América precisa... me solte.
Alex já a levava a puxões pela rua.
— Não se separará de minha vista até que seu precioso Ethan tenha saído da cidade.
— Ethan! Também está com ciúmes dele? Ainda? Depois do que fez a esse pobre homem? Acredito que tem uma estranha idéia do que é o amor, Alex.
— E você não tem idéia alguma do que é a morte. Vou salvar-te, por muito que se esforce em me abrandar. Agora me acompanhe. Já procuraremos algo para te manter ocupada.
— Está-me escutando, Jessica? — Perguntou Abigail Wentworth, com voz colérica.
Tinha os olhos afundados e desfigurados pela preocupação.
Jess se ergueu na cadeira. Tinham se passado dois dias desde que o almirante anunciou o recrutamento. Nesse tempo ela tinha passado vinte horas diárias trabalhando. Alex tinha adoecido subitamente, com gravidade, obrigando-a a atendê-lo, além de dirigir a desorganizada casa dos Montgomery. Além disso, seu marido a tinha encarregado revistar as contas domésticas correspondentes aos anos que ele passara no mar. A pobre moça corria em busca de um livro, dava a uma criada instruções de esfregar o chão, subia no teto porque Alex acreditava ver uma goteira e tentava somar colunas de cinqüenta cifras enquanto ele falava.
O convite para tomar chá com a senhora Wentworth provocou uma disputa. Alex recuperou imediatamente a saúde, e de um modo tão vigoroso que Eleanor foi advertí-los, que os gritos de ambos estavam atraindo uma multidão.
Quando ela ameaçou fugir no meio da noite, Alex acessou permitir que visitasse a senhora Wentworth. Apesar de tudo, se tratava de uma dama muito respeitável, não? E em que problemas podia meter-se Jess por ir tomar chá em sua casa?
— Ali está outra vez — anunciou Abigail, olhando pela janela.
Jess jogou uma olhada e viu passar Alex... pela quarta vez em meia hora. Levantou a taça de chá e o saudou com a mão.
— Como suporta isso? — Exclamou a jovem, em tom melodramático. — Como faz para suportar esse homem presumido e preguiçoso, tão...?
—Não coloque o Alex nisto! — Gritou-lhe Jess. — Já sei que não é um Apolo, mas sim, é um bom homem. E agora só está preocupado com minha segurança. Ethan pode ter muitos músculos, mas Alex tem mais inteligência no dedo mindinho que...
— Vamos continuar perdendo tempo em comparar maridos? —Perguntou-lhe a senhora Wentworth. — Temos muito que fazer e terá que se apressar. Eu gosto de sua idéia das ciganas, Jess.
— As mulheres sempre podem distrair aos homens, sobre tudo se se trata de soldados que estão muito longe do lar.
— O Corsário os resgatará — assegurou Abigail.
— Só fazendo-se matar — aduziu Jessica. — Ethan e os outros estarão muito vigiados; os ingleses esperam o Corsário. Vocês terão que distrair aos soldados enquanto eu liberto os homens.
— Oh, posso distrai-los perfeitamente. Mamãe me fez um disfarce delicioso. Quando Ethan o veja...
Jessica não tolerava uma só referência a mais da virilidade do ferreiro. Estava muito tempo sem estar a sós com o Corsário. Deixou a taça no pires, com um tinido.
— Esperemos que os soldados se interessem.
Não pôde deixar de jogar um olhar à cintura de Abby, que já estava engordando. Em tão pouco tempo de casada, já com uma gravidez... Jess se negou a pensar que provavelmente não teria filhos, jamais; pelo menos, não filhos de Alex. Não! Não queria pensar no modo com que ele a expulsava de seu leito, dizendo que não podia dormir junto a ela e que preferia tê-la tão longe quanto fosse possível. A idéia que Alex tinha do amor era muito diferente da sua.
— Será melhor que me vá — disse, ficando de pé. — Em dois minutos Alex virá me buscar. Terão tudo costurado para amanhã de noite?
A senhora Wentworth apoiou uma mão no seu braço.
— Tinha certeza de poder contar contigo, Jessica. O resto da cidade parece disposta a sentar-se e esperar que o Corsário os resgate, mas eu me sentia obrigada a fazer algo.
— Eu também supunha que odiasse o almirante tanto como nós, porque te obrigou a se casar com Alexander. — Adicionou Abigail.
Jessica apertou os dentes para não responder algo desagradável.
— Odeia Alex porque te obrigou a se casar com Ethan, de certo modo?
O rosto de Abigail tomou uma expressão apaixonada.
— Pelo contrário, acredito que lhe devo um favor.
— Poderá sair de sua casa? — Perguntou a senhora Wentworth a Jess.
— Isso será o mais difícil. Talvez tenha que pedir ajuda ao pai de Alex.
— A Sayer? Não fará nada nas costas de seu próprio filho, suponho.
Jessica franziu o cenho.
— O senhor Montgomery está muito... desiludido com seu filho mais novo e se interessa muito com o que nos estão fazendo os ingleses.
A senhora Wentworth assentiu.
— Agora vai, que já vem Alexander outra vez. Olhe, querida, em um matrimônio há muito mais do que ocorre de noite. Alex parece preocupar-se muito por seu bem-estar.
Jess olhou pela janela. Alex, carrancudo, estava subindo os degraus do alpendre.
— Sim, em efeito. Espero-lhes amanhã às dez da noite. Tenham tudo preparado.
Abriu a porta da casa no momento exato em que Alex tomava a aldrava.
— Do que falavam tanto? — inquiriu.
— Boa tarde, Jessica — zombou ela. — Se divertiu? A torta estava gostosa? —Cravou-lhe o olhar. — Estávamos planejando derrotar o governo inglês por nossa própria conta e nos instalar no poder. Do que acha que se pode falar com a senhora Wentworth? Mostrou-me algumas sedas que tinha comprado, queixou-se dos servos e ponderou ao almirante, dizendo que é um hóspede muito agradável.
A Jessica surpreendeu poder mentir com tanta facilidade, provavelmente porque o fazia por uma boa causa.
Alex a olhou de soslaio, como se não soubesse se acreditava ou não. Depois enlaçou seu braço com o dela.
— Venha, vamos para casa. Há muito que fazer.
Jessica grunhiu.
— Alex, não poderíamos dar um passeio? Até a enseada Farrier, por exemplo.
Ele estudou seu cabelo, o rosto e os dedos apoiados em seu braço. Pensou na pequena e discreta enseada.
— Não sobreviveria a semelhante experiência — assegurou, iniciando a volta para a casa.
Jessica o acompanhou, perguntando-se até que ponto estaria mal de saúde. Estava cobrando muito carinho desse homem. Na verdade, às vezes lhe parecia realmente atrativo.
Alex tirou a pesada jaqueta de cetim e a pendurou de um cabide, na parede do quarto. Depois de lançar uma olhada no seu relógio, guardou-o na arca, junto à janela. Tinham passado três minutos da meia-noite. Seu pai o tinha feito jogar xadrez até essa hora, apesar de suas repetidas indiretas sugerindo que desejava deitar-se. Os últimos dias, tinha passado seguindo Jessica, isso o tinham deixado exausto. Estava constantemente alerta, seguro de que ela estava por fazer alguma grande tolice, e não tinha podido escapar para a Ilha Fantasma para exercitar-se um pouco. Além disso, a proximidade de Jessica estava arruinando sua saúde, excitava-o com seu modo de inclinar-se e de mover-se, sem dar-se conta disso. Tinha tido que expulsá-la de sua cama para poder dormir um pouco.
Em contas resumidas: não sabia por quanto tempo mais poderia suportar essa tortura. Mas cada vez que decidia lhe revelar sua secreta identidade de Corsário ocorria algo, como o forçado recrutamento de Ethan. Então via nos olhos do Jess essa luz de façanha, essa luz cruzada, e compreendia que não poderia deixá-la entrever quanto poder tinha sobre o Corsário. Do contrário jamais poderia lhe negar nada. Adoecia-o imaginá-la cruzando o campo a cavalo, vestida de negro, com os cabelos soltos ao vento. Os ingleses a prenderiam em poucos minutos.
Por vários dias, depois do anúncio do recrutamento, não a tinha deixado afastar-se de si, salvo para consolar à senhora Wentworth e Abigail. Nem sequer isso teria querido lhe permitir, mas ela tinha pedido com muita gentileza, inclinando-se até perder a xale, e ele havia consentido sem saber o que ela dizia na verdade.
Fez uma careta ao recordar o quanto estava segura de convencer o Corsário de algo. Não gostava de pensar no que Jess trataria de fazer se se inteirasse de que seu marido era o Corsário. Tirou o colete e começou a desabotoar a camisa, mas de repente achou melhor dar uma olhada em Jessica. Ao responder ao chamado de seu pai a tinha deixado adormecida. Mas essa manhã, Jess havia passado duas horas encerrada com Sayer e em duas oportunidades ouviu o ancião levantar a voz em um protesto. Ao abandonar o quarto do inválido, Jessica tinha uma expressão submissa, mas também um brilho de triunfo nos olhos. Mais tarde Sayer mandou procurar seu filho para que jogasse xadrez com ele. Alex se irritou, certo de que a moça tinha esbanjado duas horas em convencer seu pai de que passasse mais tempo com seu próprio filho.
Ele teria preferido rechaçar o convite, mas colocou a maior das perucas, uma jaqueta de cetim rosado e um anel de esmeralda no dedo mindinho. Até pegou um falso sinal em forma de coração no dormitório de sua irmã para usar no queixo, exato à esquerda da boca. Mariana, ao vê-lo, esteve a ponto de romper a chorar.
Nas quatro horas passadas no quarto de seu pai, Alex não falou muito. Limitou-se a ganhar partida após partida, se Sayer duvidava de sua virilidade, agora pelo menos não duvidaria de sua inteligência.
Pôs a mão no trinco da porta que comunicava seu quarto com o de Jessica e descobriu que estava fechada com chave. Imediatamente compreendeu que algo estava mau. Um minuto depois saía pela janela de seu quarto, a da Jessica estava totalmente aberta. O quarto estava deserto.
Por um momento amaldiçoou seu pai por haver colaborado involuntariamente na fuga de Jess; amaldiçoou o Corsário; amaldiçoou Nick, por havê-lo levado de retorno a América; amaldiçoou Jessica; amaldiçoou-se a si mesmo e aos importadores de pano negro. Antes de terminar com as maldições já tinha começado a correr. Tinha que remar até a ilha, se vestir lá, com seu disfarce de Corsário, para salvar Jessica.
17
— Tire daqui essa relíquia! — Chiou o jovem soldado. Atrás dele, cinco ou seis homens começaram a despertar.
A velha, enrugada de rosto, fedorenta a peixe nada fresco e nada de esplendor de suas roupas, desceu da carreta, levando a mão às costas para acalmar a dor.
— Não negará um pouco de calor a uma velha, verdade?
— Não pode ficar aqui. Obedecemos ordens de Sua Majestade, o rei.
A anciã afastou o cano do fuzil que lhe apontava e caminhou para o fogo, estirando as mãos para seu calor.
O jovem abriu a boca para protestar, mas nesse momento apareceu da carreta uma criança celestial: uma beleza generosa, cujos seios apareciam caídos por uma blusa folgada.
— Meu Deus! — Disse a jovem, estreitando os braços contra o corpo, fazendo com que seus seios subissem um pouco mais.
De repente todos os homens do acampamento estavam acordados, quase todos eles, de pé.
A jovem tratou de descer da carreta, mas sua saia se enganchou em algo. Para libertar-se teve que subir a bainha acima dos joelhos. Quando teve condições de descer, todos os soldados estavam de pé diante dela, com os braços estendidos para ajudá-la, descontando os dois que montavam guarda.
— Que amáveis são — exclamou a jovem, com pudor. — Mas me pareceu ter ouvido dizer que minha mãe e eu devemos continuar viagem.
Os homens, com um agudo gemido de protesto, olharam ao jovem capitão que os comandava. Mas os olhos do oficial brilhavam tanto como os de seus homens.
— Temos pouco fogo e comida simples, — disse, adiantando-se — mas são seus.
Abigail deixou-se ajudar pelo jovem oficial, seus seios roçaram seu rosto quando deslizou o corpo para baixo, até tocar o chão.
Jessica, entre as sombras, observava a pequena cena, que se desenvolvia ao resplendor da fogueira. Por um momento, a atuação da moça a fascinou tanto como aos homens. Pelo visto, Abigail desfrutava sinceramente de seu papel.
Ante o olhar de Jessica, Abby se inclinou várias vezes para frente aproveitando a menor desculpa. Cada vez que a blusa folgada se abria pelo decote, os homens ficavam petrificados, sem poder mover um músculo. Até então, Jess não tinha suspeitado que uma mulher tivesse tanto poder sobre os homens.
Dissimulada entre as sombras pelas roupas escuras que tinha feito à senhora Wentworth, esperou até ouvir os primeiros compassos de música. A mãe de Abigail tinha carregado vários instrumentos musicais na velha carreta, pois seu plano consistia em distrair aos soldados tanto como fosse possível, para que Jessica pudesse liberar os prisioneiros.
— Eu vou matá-la — disse a voz de um homem, à esquerda de Jess.
Era a voz de Ethan, que observava as primeiras ondulações de sua esposa, no começo da dança.
— Silêncio! — ordenou-lhe um guarda.
Jess rezou para que Ethan não arruinasse os planos. Ainda era muito cedo para agir, pois a dança de Abby não concentrava ainda toda a atenção. De qualquer modo, ela deslizou pela escuridão, atrás dos três homens amarrados junto ao grande carvalho. Chegou sem problemas até a árvore e, por sorte, o primeiro homem cujas cordas tocou teve o bom tino de não afastar a vista da lasciva dança de Abigail. Quando se viu livre, seu único sinal foi uma breve inclinação de cabeça. O segundo resultou igualmente fácil de desatar.
Mas Ethan era outra coisa. As atitudes de sua mulher estavam fazendo com que ele desse solavancos fortes para se libertar, fazendo que os nós das cordas se apertaram muito. Jessica retirou uma adaga de sua bota e começou a cortá-los.
Algo, - talvez um movimento do moço, talvez seus próprios gestos precipitados - chamou a atenção do guarda, que girou a cabeça e viu o brilho da lua na folha da faca. Os dois homens que já estavam livres atuaram com celeridade, um deles golpeou ao soldado na cabeça com os punhos juntos, o outro o segurou antes que chegasse ao chão.
— Tinha certeza de que você viria — sussurrou um deles.
A música e os aplausos dos soldados eram cada vez mais ruidosos. Jessica continuava à sombra da árvore, cortando as cordas de Ethan. Pelo visto, esses homens a confundiam com o Corsário.
— Vão — disse, dando a sua voz o tom mais grave que pôde.
Os homens escaparam imediatamente para a escuridão.
— Jessica Taggert! — Sussurrou Ethan, por sobre o ombro. — Devia adivinhar que era você. É a instigadora de tudo isto, verdade?
Ela se deteve, surpreendida.
— Segue cortando! — Protestou ele. — Bem sei distinguir uma mulher de um homem.
E voltou o olhar para Abigail, que saltava por sobre dois paus em chamas, sustentados por dois soldados.
— Vou matá-la — repetiu.
— Está fazendo por você — sussurrou Jess. — Preparado!
Assim que ficou livre, Ethan deslizou pelas sombras. Jess permaneceu onde estava, pronta para impedir que o moço cometesse alguma tolice. Como estava atenta à atuação de Abigail, não viu que o soldado deitado no chão começava a se recuperar. O homem caiu sobre ela, imobilizando-a contra o chão. Jess conseguiu se esquivar da adaga que ele brandia, mas não antes que lhe roçasse no lado. No momento em que ela rolava para afastar-se, a mão do soldado tocou seu peito.
— Uma mulher! — Exclamou.
Um momento depois tinha suas pernas entre as dela e a buscava com sua boca úmida e quente.
Jessica lutou, mas o homem era muito forte e lhe imobilizou as mãos enquanto desabotoava as calças.
De repente, subitamente, ficou imóvel.
A moça ainda lutava quando sentiu que o homem se afastava dela, como que empurrado. Piscou na escuridão. Ali estava o Corsário, de pé diante dela, com a espada desembainhada.
Sem dizer uma palavra, ofereceu-lhe a mão e a ajudou a levantar-se. Os olhos tinham um brilho duro atrás da máscara.
— Eu... Quisemos... — balbuciou ela.
O mascarado a levantou pela mão e a levou a puxões para seu cavalo. Jess tocou seu lado e apalpou sangue, mas não quis se queixar.
Ele a subiu nos arreios, meio a empurrões. Logo, montou atrás dela e partiu a galope.
O vento fresco no rosto começou a reanimá-la. Aquele era uma cavalgada à luz da lua, com o homem a quem amava, encerrada em seus braços. Foi um momento de entusiasmo... mas também de estranha inquietação. Algo a preocupava, sem que ela pudesse determinar com segurança. A aventura só teria todo êxito... assim que Abby e a senhora Wentworth conseguissem chegar a sua casa. Mesmo assim, algo estava mau.
De repente girou na sela, afogando uma exclamação de dor diante da pontada em seu lado.
— Detenha-se! — exigiu. — Tem que se deter.
O Corsário a olhou à luz mortiça da lua e reprimiu o animal. Um momento depois seus lábios buscavam seu rosto e seus olhos.
— Não, por favor — sussurrou ela, sem deixar de arquear o pescoço para facilitar seus beijos. — Aonde me leva?
— Para casa. Para nossa casa. À Enseada Farrier, onde poderemos fazer amor toda à noite. E depois ajustaremos conta pela loucura que tem...
— Não, por favor, não quero discutir contigo.
— Discutir não entra em meus planos, meu amor.
—Deve me levar para casa.
— A levo para casa.
— Refiro-me à casa de Alexander.
O Corsário sentiu que uma folha de aço lhe atravessava a coluna. Sua voz teve a mesma rigidez que seu corpo.
— Alexander? Quer voltar para a companhia desse porco covarde, queixoso e cheio de rendas, quando acabo de te salvar a vida?
Jessica se sentia rasgada pela metade. Queria acompanhar o Corsário, até sabendo que ele trataria de seduzi-la, - e bem sabia Deus que ela desejava deixar-se seduzir - mas ao mesmo tempo precisava de Alex.
—Não está bem de saúde. Se descobrir que não estou em casa se afligirá.
Os olhos do Corsário se cravaram nos dela.
— Está apaixonada por esse homem, Jess?
— Do Alexander? Não, não acredito. É que ele se preocupa e não tem o coração muito forte. Por favor, me leve para casa.
Sentia que o sangue lhe gotejava pelo lado. Talvez fosse a ferida que a fizesse cometer essas coisas estranhas. Nesses momentos, o último que desejava era debater-se entre os braços do Corsário. O que precisava era que Alexander cuidasse dela.
O mascarado desmontou e a deixou no chão.
— Acredito que conhece o caminho — disse, muito frio. — Oxalá ninguém te descubra com esse disfarce.
Assim dizendo, girou com seu cavalo e a abandonou ali.
Jess aspirou fundo para conter a dor da ferida. Assustava-se com a perspectiva de caminhar três quilômetros até a casa dos Montgomery. Cada movimento voltava a abrir-se mais a ferida, que sangrava lentamente.
O Corsário a tinha deixado diante de um velho atalho índio que a levaria até a parte traseira da mansão. Caminhou a tropeções. Deteve-se para descansar contra uma árvore e andou um trecho mais.
Quando viu a casa dos Montgomery e sua janela aberta, os olhos se encheram de lágrimas. Teve dificuldade para entrar. Estava escarranchada sobre o marco da janela quando viu Alex sentado no quarto, com os olhos chamejantes de cólera.
— Não voltará a sair deste quarto — começou. — Que Deus me perdoe, mas vou te acorrentar, matar-te-ei de fome, lhe...
— Me ajude Alex, que estou ferida — foi tudo quanto ela pôde dizer.
E caiu no interior do quarto.
Ele a segurou antes que chegasse ao chão e a levou para a cama.
— Alex — sussurrou ela.
Alexander, sem responder, começou a despi-la rasgando a roupa.
— Como o Corsário... — murmurou ela, sorridente. Por fim se sentia a salvo.
Ele a deixou nua da cintura para cima, e foi a seu quarto em busca de um abajur, faixas limpas e uma vasilha com água. Tirou a jaqueta. Com muita suavidade, começou a limpar sua ferida.
— Está zangado comigo, Alex? — perguntou ela, com uma careta de dor.
Colocou-a de lado para limpar o sangue das costas e do quadril.
— Tínhamos que fazê-lo, compreende? Não podíamos permitir que levassem esses homens. O almirante teria começado levar a todos. Provavelmente o próximo teria sido Nathaniel.
Alex continuava limpando, sem responder.
— Compreende, verdade? Tudo saiu como tínhamos planejado. Não tivemos o menor problema. — Um ruído, lá fora, fê-la calar. — O que foi isso?
— Um disparo — respondeu ele, seco.
Depois a pôs de costas. Apesar de sua óbvia zanga agia com muita suavidade. Por fim a ajudou a levantar-se e começou a enfaixar suas costelas.
— Pelo menos poderia admirar nosso plano, Alex. A senhora Wentworth colocou... — interrompeu-se, pois Alex havia lhe dado às costas para procurar uma camisola limpa em sua arca. — Alex, pelo menos diga algo. Quando entrei parecia ter muito que comentar.
Ele passou sua camisola pela cabeça, deitou-a na cama e começou a despir a metade inferior do seu corpo.
— Não me parece muito amável que não me dirija à palavra. O Corsário apareceu quando já terminávamos a operação e quis que me fosse com ele, mas eu preferi voltar para casa, contigo.
Ele lhe cravou um olhar que Jessica não compreendeu. Logo a cobriu com a manta, recolheu o abajur e a vasilha com água sanguinolenta e saiu do quarto, fechando a porta atrás de si.
Jessica permaneceu um momento na escuridão, muito atônita para pensar com claridade. Seu primeiro pensamento foi: "O que importa que Alex esteja zangado comigo?" Graças a ela, toda a cidade estaria melhor.
Voltou a repassar o plano, felicitando-se por seus resultados. Mas então recordou como tinha mentido o Alex sobre sua conversa com Abby e sua mãe.
Pensou nos três homens capturados pela tirania dos ingleses e agora livres outra vez. Pensou em Alex, dizendo que a amava e que se preocupava com ela.
Pensou no Corsário, que a tinha salvado. Mas tinha sido Alexander quem atendeu sua ferida, tal como ela esperava. Havia homens cheios de paixão e entusiasmo, mas também outros que cuidavam de uma pessoa quando se sentia mal.
Aproximou-se da porta intermédia, segurando a ferida para que não voltasse a sangrar, e abriu com mão trêmula.
Alex estava sentado diante da janela, com as mangas recolhidas até os cotovelos, fumava um longo charuto, olhando fixamente para frente, e não se voltou com a entrada de Jess. Nem sequer a olhou quando ela se interpôs entre ele e a janela.
— Sinto-o de verdade, Alex — disse, brandamente. — Mas estava convencida de que era necessário fazer isto. Compreende este tipo de coisas? Às vezes uma pessoa não pode pensar a não ser no que é preciso fazer. Não queria sair ferida, nem te desobedecer e te causar preocupações. Seu pai tratou de me dissuadir, mas eu tinha que fazê-lo. Compreende?
Estava-lhe rogando que entendesse. Ele era como Eleanor, que se ofendia quando sua irmã não agia como ela queria.
— Por favor — sussurrou.
Quando Alex levantou a vista, por fim, Jessica viu nos seus olhos a dor que lhe tinha causado. Esse homem tinha sentimentos tão delicados como sua saúde.
— Alex — rogou, estendendo as mãos.
O jovem, com um olhar de resignação, que Jess reconheceu como perdão, abriu seus braços para ela. Jessica se instalou em seu regaço como uma garotinha. Em algum momento de seu relacionamento Alex se converteu em seu amigo. Não era seu amante, tampouco seu marido, mas sim seu amigo. Apesar de todos seus gritos e seus alvoroços, cuidava dela.
— Foi horrível, Alex. Tive tanto medo... As mãos me tremiam tanto que mal pude cortar as cordas de Ethan. Soube de algo? O que se sabe de Abigail e da senhora Wentworth? Se tivesse visto dançar Abby!
Alex a estreitou tanto quanto pôde sem lhe abrir a ferida.
— Eleanor foi para casa dos Wentworth. Quando o almirante golpeou a porta do dormitório da senhora, Eleanor respondeu por ela.
— Eleanor? — exclamou Jess. — Mas se não lhe disse o que pensava fazer! Não me atrevi, porque é mais autoritária que você.
— É inteligente e sensata, coisa que não posso dizer de você.
— Vim para casa, voltei para você, certo? Sabia que o Corsário não podia me ajudar e vim para você.
— Para que te remendasse — objetou Alex, brandamente.
— Oh, por favor, não se ofenda. O Corsário queria que o acompanhasse, mas me recusei.
— Recusou-se porque ele não tem ataduras disponíveis para quando comete estupidezes. Tem idéia de como reagiu o almirante?
— Não — vacilou ela.
— Como um dos soldados foi assassinado, suponho que por seu Corsário, ele está decidido a descobrir o assassino. Disse que o morto tinha uma adaga ensangüentada na mão. Está convencido de que o sangue é do Corsário, enquanto que eu, equivocadamente, atribuía o sangue a Ethan. Para descobrir o assassino está levando a todos os moços da cidade à prefeitura para obrigá-los a despir-se. E quando descobrir a qualquer um que tenha uma ferida recente, matá-lo-á.
— E as mulheres? — Perguntou Jess.
— Todos os soldados ingleses juram poder identificar às ciganas.
— Se descobrirem a Abigail e à senhora Wentworth...
— Deveria ter pensado nisso antes de coloca-las nestes apuros. Bem, eu adoro te ter abraçada, mas quero que durma.
— Aonde irá?
— Ver em que posso ser útil.
Jessica se levantou de seu regaço.
— Deveria descansar, Alex. Sua saúde...
Ele não lhe permitiu terminar. Inclinado para frente, nariz contra nariz, criticou-lhe entre dentes apertados:
— E agora se preocupa por minha saúde? Convence a meu próprio pai para que conspire contra mim, faz-me passar a angustia de Caim te esperando aqui sentado; vem para casa com uma ferida que sangra e agora se preocupa pelo que posso passar com minha saúde. O exército inglês não é nada comparado com o que me faz sofrer, Jessica Taggert.
— Jessica Montgomery — corrigiu ela, brandamente. — Recorda que me casei contigo.
Alex se afastou dela.
— Casei-me contigo, mas não te toquei. Agora quero que me escute. Vai se deitar na cama e dormir um pouco. Direi aos servos da casa que está doente e encarregarei Eleanor que te atenda.
— Espera, Alex. O almirante não vai querer falar comigo? Sem dúvida pensa que quem libertou os recrutas foi um homem, mas talvez suponha que eu era a bailarina.
Alex olhou significativamente o corpete de sua camisola.
— Há coisas que nenhuma mulher pode fingir. Não te interrogará.
Assim dizendo, abandonou o quarto.
Jess baixou a vista para seu seio e notou que, comparado com os de Abigail, era quase plano. Deitou-se na cama de Alex, com o cenho franzido. O que importava o que Alex pensasse de seu físico? De qualquer modo ele não podia fazer nada.
18
— Jessie...
Jessica se negava a escutar aqueles chamados. Tinha certeza de que só era produto de sua imaginação. E tinha certeza, porque ninguém lhe dirigia a palavra desde a aventura de dois dias atrás. Alex estava tão furioso que a olhava com as sobrancelhas negras reunidas em uma grossa dobra. Eleanor lhe dava intermináveis sermões. Nathaniel subia no seu regaço e lhe rogava que não se deixasse matar. Jess não conseguia averiguar como soube o menino de sua escapada.
Portanto, uma vez mais Eleanor a tinha enviado para cumprir com tarefas de menino... e a meditar sobre o que tinha feito a sua família. Por outra parte, Eleanor preferia que Jess não se inteirasse do quanto estavam zangados os habitantes de Warbrooke. O almirante estava desafogando sua cólera contra os armadores. Já tinha confiscado duas cargas.
Nesse dia Jessica tirou uns poucos minutos para visitar a senhora Wentworth. O almirante se negava a permitir que interrogassem a Abigail.
— Abby o convenceu de que se alegrava de ter perdido Ethan. Tem-lhe feito acreditar que se casou com ele por obrigação e que, em realidade, prefere aos homens mais velhos — explicou à senhora Wentworth. — Esse velho grotesco acredita em tudo o que ela diz. Enquanto Ethan permaneça oculto nos bosques, Abby poderá manter a comédia.
— Pelo menos assim salva a pele dele. Como está o senhor Wentworth?
A senhora empalideceu.
— Em casa ocorre o mesmo da tua. Oh, não... Aí vem Alex.
As duas mulheres se separaram apressadamente.
Jessica tinha ido à Enseada Farrier quase correndo, aconselhada por Eleanor, que era de opinião que um dia de pesca lhe limparia a mente e a impediria de meter-se em problemas.
— Jessie...
Girou sobre seus calcanhares. O Corsário estava de pé entre as sombras, perto da ravina do escarpado. Ela o ameaçou com a pá de extrair moluscos como se empunhasse uma espada.
— Não se aproxime de mim. Tudo isto é tua culpa. Se não tivesse vindo a Warbrooke nada disto teria acontecido.
— Ah, não? — Estranhou o mascarado, apoiando-se contra a parede da ravina. — Não acha que a esta altura John Pitman teria fugido com todo o capital da cidade?
— Aleluia! Substituiu Pitman pelo almirante Westmoreland. É como substituir a um menino travesso pelo demônio.
— Não pode me jogar toda a culpa, Jessie. Se você não tivesse intervindo, os ingleses teriam me enforcado faz várias semanas. E eu não tive nada que ver com o resgate de Ethan. Não era minha intenção salvar a esses homens.
— É o que Alex supôs — reconheceu ela, com certa amargura. — Disse que você não interviria.
— Agora sou covarde, não? — Sugeriu o Corsário, com um sorriso fino nos lábios.
Ela voltou sua atenção à praia, em procura de respiradouros de moluscos.
— Nunca disse que fosse covarde, mas era preciso resgatar ao Ethan com os outros.
— Acha? Porque Abigail não poderia passar alguns meses sem seu viril companheiro? Ethan não podia suportar uma temporada na marinha?
— Tínhamos que demonstrar ao almirante que não pode aproveitar-se de nós, que não somos filhos dos ingleses, a não ser...
— É que você não está usando o cérebro. Agora o almirante está furioso e disposto a castigar Warbrooke como seja possível.
— Cérebro! O que sabe você de cérebros? Alex disse...
— Maldito seja esse teu marido. — O Corsário se aproximou alguns passos e a estreitou entre seus braços. Depois a beijou até que a ela relaxou o corpo. — Sente-se assim com Alex? Faz-te gritar de paixão?
— Me deixe em paz, por favor — replicou ela, afastando a rosto. — Não me torture mais.
— Não te torturo mais do que você o faz comigo — assegurou ele, apaixonadamente. — Persegue-me a cada momento, enche toda mi...
Ela o afastou de um tranco.
— Mas deixou que me casasse com outro — criticou.
— Mas não com um homem de verdade, a não ser com...
— Não coloque ao Alex nisto.
Os olhos do Corsário, cintilantes depois da máscara, delataram surpresa.
— Quis que te levasse para sua casa. Estou te perdendo para um arco íris: colorido e nada de substância.
— Alexander tem muito mais substância da que imagina. Recebeu-nos em sua casa, a mim e aos meninos. Nunca perde paciência com eles: lê para eles, canta-lhes, enfaixa-lhes os machucados. E também a mim. Quando arrisco a vida, zanga-se comigo. E me...
— Faz-te amor?
— Não, por Deus! — Exclamou ela, sem pensar. — Alex é meu amigo.
O Corsário tomou-a pelos braços lhe acariciando a pele com os dedos.
— Mas se diria que você sim, quer fazer amor com ele.
— Me solte, por favor — rogou ela, insegura de poder continuar resistindo. — Sou uma mulher casada.
— Sim. — Os lábios do homem estavam a um suspiro dos seus. — Mas está casada com um homem que não pode te dar isto. Deixa que te faça amor, Jessica. Deixa que te faça se sentir mulher. Se esqueça dessa cacatua com quem casou.
Ela tratou de afastar-se.
— Está com ciúmes dele.
— É obvio. Ele a tem o dia inteiro. Eu, só por alguns minutos de vez em quando. Como são seus beijos, comparados com meus?
— Alexander não me beija — murmurou ela. — Só você o faz.
Ele se afastou, com os olhos dilatados pelo assombro.
— Não te beija? Mas você queria que o fizesse, verdade? Quer ir para a cama com ele, certo?
Jess arrumou o vestido.
— Está perdendo a cabeça. Alexander e eu somos amigos. Seria como fazer amor com Eleanor. Uma mulher me daria tanto prazer como Alexander — murmurou ela. — Por favor, vai e me deixe em paz. Não quero voltar a ver-te.
O Corsário ficou imóvel, com as mãos nas costas e a boca entreaberta, como se tivesse ouvido algo horrível.
Jess olhou para a ravina.
— Vai! Vem alguém. Talvez seja Alex.
O mascarado pareceu recuperar-se.
— Talvez seu marido saia com outra mulher.
— Agora sim, está louco. Se não conseguiu que nenhuma mulher quisesse casar-se com ele, quem quereria o ter como amante? Vai! Ou quer que o apanhem?
O Corsário desapareceu pela ravina em poucos segundos. Era só um veado que se aproximava pelo lado da enseada, mas Jessica se alegrou de que seu companheiro tivesse partido. Sabia que seria impossível resistir a ele por muito mais tempo. Bastava ver seu corpo para vibrar. E fazia muito tempo que não sentia os braços de um homem.
Cravou a pá junto a um respiradouro. Referia-se a um homem de verdade, é obvio, capaz de agradar tanto seu corpo como sua mente. Sentia-se um pouco culpada por haver dito ao Corsário do problema com Alex, mas estava dividida em duas por eles. Era-lhes fisicamente fiel a ambos. Não era adúltera, pois não traía Alex, e tampouco traia o Corsário fazendo amor com seu marido.
— Estou vazia — disse, em voz alta. — Vazia dos dois.
E cravou a pá com mais força na areia.
— Quer deixar de me gritar? — chiou Jessica com sua irmã. — Já disse que não fiz nada para ofender Alexander. Nada novo, pelo menos. Levei-lhe comida e até cortei em pedacinhos. Não posso ser mais amável com ele. Até disse que estava muito bonito, que a jaqueta dá mais cor às suas bochechas. Que mais se pode fazer?
— Por que está de mal-humorado, então?
— Não sei. Não quer me falar de sua saúde. Acha que está dolorido?
— Só pelas dores que você lhe causa.
— Eu? Não tenho feito nada...
Interrompeu-as Mariana, que entrou batendo a porta contra a parede, ruborizada e com os olhos brilhando.
— Souberam? Está atracando um navio italiano e alguém disse que Adam poderia estar a bordo.
— Adam? —exclamou Jessica.
— Oh, sim, — suspirou Mariana, fechando os olhos em êxtase — meu irmão mais velho. Adam, o lutador, o mais bonito. Adam veio nos salvar.
— Com um a mais que nos salve, os ingleses queimarão a cidade até os alicerces — grunhiu Eleanor.
Jessica baixou a vista para seu vestido velho e gasto.
— Não posso receber Adam com esta aparência. Oxalá tivesse um vestido novo, tão bonito como a jaqueta vermelha de Alex. Não fique ai, Mariana, que seu cabelo é um desastre.
— Sim, sim, é obvio — e a cunhada pôs-se a andar pelo corredor.
— Que Alex não saiba para quem se embeleza – aconselhou Eleanor, elevando a voz.
Mas Jessica tinha saído. Ela levou uma mão à cabeça e decidiu arrumar-se um pouco antes da chegada do famoso Adam.
Jessica abriu a porta de Alex com a ansiedade grafada no rosto.
Ele fechou seu livro.
— O que aconteceu?
— Nada. — A moça estava revolvendo um baú instalado no canto. — Oh, Alex, pena que não me comprou um vestido vermelho, como prometeu.
Alex abandonou a cadeira em questão de segundos e a segurou pelos braços.
— Vai encontrar com o Corsário? — perguntou, com um duro olhar.
— Agora não tenho tempo para ciúmes. Mariana disse que acaba de chegar um navio da Itália e que Adam poderia estar nele.
— Adam? Meu irmão?
— Sim, seu irmão, é obvio. Por que não vai dizer a seu pai?
— Dizer que Adam seu filho perfeito, estará logo na casa?
Ela fechou o baú.
— Alexander, quer me dizer o que você tem, por Deus? Faz vários dias que me persegue.
— Uma perseguição muito pouco efetiva, verdade, minha casta mulherzinha?
— Então é por isso. Lembra-se de quando era homem. Juro-te, Alex, que não me vou me deitar com o Corsário, nem com Adam, nem com ninguém. Não há motivos para que esteja com ciúmes. Não viu esse leque azul que era de sua mãe?
— Vai se vestir de cetim para receber meu irmão. Vai descer a esse cais sujo e fedorento vestida de cetim.
Ela contou até dez para serenar-se.
— Você se veste de cetim todos os dias da semana, Alex. Incomodar-te-ia me ajudar a vestir?
— Nem o pense — respondeu ele, enquanto saía tempestuosamente do quarto.
— Oh, os homens! — Exclamou Jessica, depreciativa. E saiu em busca de sua irmã para que a ajudasse com o vestido.
Quando o navio atracou, por fim, quase toda Warbrooke estava ali para saudar o mais velho dos filhos de Montgomery... mas ele não estava a bordo. O capitão nunca tinha ouvido seu nome, nem tinha notícias dele.
A multidão ficou decepcionada. Jessica se afastou três vezes de Alex, porque não suportava seus murmúrios de ciúmes. Sentia pena dele, naturalmente, pois o irmão receberia toda a atenção que Alex deveria ter desfrutado. De Adam ninguém riria. Jess, desiludida, viu que os marinheiros desciam pela prancha vinte e três baús de couro. Fechavam a caminhada três donzelas.
— Talvez deva voltar para casa, para que meu pai possa chorar sobre meu ombro — disse Alex, ao seu ouvido. — Ou talvez você também tenha vontade de chorar?
Jessica ia responder quando ouviu uma bonita voz de mulher que dizia:
— Alexander? É você?
Alex olhou por sobre o ombro de Jess e seus lábios se curvaram em um sorriso de prazer.
— Sophy — sussurrou.
— Então é você, Alexander.
Jess, ao voltar-se, encontrou-se diante de uma pequena e deliciosa morena, cujo chapéu esvoaçante rosado sombreava um rosto precioso. A jovem olhava para Alex com expectativa e a risada nos lábios.
— Homem, custei em te reconhecer. O que faz com essa peruca? E por que tem essa postura? E essa jaqueta...?
Não pôde terminar, porque Alex tomou-a em seus braços e a acalmou com um beijo.
A multidão ficou abobalhada.
— Que boas-vindas — murmurou a tal Sophy.
— Siga meu jogo — sussurrou Alex. — Aconteça o que acontecer, siga meu jogo.
E a afastou de si.
Jessica olhava para ambos com grande curiosidade. Por certo, Alex nunca a tinha beijado desse modo. Claro que ela não o buscava, mas tampouco o impedia.
— Jessica, — apresentou ele — essa senhora é a condessa Tatalini. Sophy, te apresento minha esposa. Sophy e eu nos conhecemos antes de minha febre.
— Que febre? Está doente, Alex? É por isso que veste....?
Alex lhe rodeou a cintura com um braço e a estreitou com força.
— Estive doente, mas já passou. Jess, poderia indicar a alguns destes curiosos que levem para casa a bagagem da condessa? Porque se hospedará em minha casa, verdade?
— Céus, não. Vou a caminho de...
— Nem pensar de que se negue. Verdade, Jess?
Jessica, sem dizer uma palavra, seguiu estudando o modo como à forasteira curvava seu corpo contra o do Alex. E ela não parecia se importar que ele fosse gordo, que estivesse curvado, que a cor de suas bochechas se devesse aos cosméticos.
— Jessica, — protestou Alex, com seu gemido familiar — terá que me ajudar. Sinto que me vão as forças. Pode se encarregar da bagagem enquanto a condessa me presta apoio? .
— É um prazer conhecê-la — disse a moça, por fim. — E na casa temos espaço de sobra. Vou encarregar-me da sua bagagem.
Alex se apoiou pesadamente em Sophy, que não disse uma palavra até que estiveram em um quarto da casa dos Montgomery. Então girou para ele.
— Exijo saber o que se passa aqui. — Inclinou-se para frente para arrebatar sua peruca. — Oh, por um momento pensei que tinha raspado a cabeça. No que você se meteu agora, Alex?
Ele sorriu, passando as mãos pelo cabelo, e sentando em uma cadeira.
— Não sabe quanto me alegra ouvir essa pergunta, Sophy. Nem imagina o maravilhoso que é ver-me acusado por uma mulher de não ser, o que aparento agora.
— Pois fico feliz que se alegre. — A condessa, impaciente, dava golpezinhos no chão com seu pequeno pé. — Mas eu não estou recebendo o mesmo prazer. Supõe-se que dentro de duas semanas estarei em Boston para ver meu marido e nossos filhos. Zangará-se muito se eu não chegar.
— Como da última vez, quando escalei de seu balcão?
Sophy sorriu.
— Sob a chuva, sem nada posto. Enquanto ele te procurava e não o achava por nenhuma parte. Fiquei frenética. Pensei que lhe tinham apanhado os cães. E em realidade...
— ... quem me tinha apanhado era uma criada. Como deixar de lhe agradecer que se compadecesse de mim? E já que eu estava nu, minha gratidão se demonstrou sozinha.
— Que homem! — Exclamou ela, rindo. — Meu marido jamais acreditará no que eu diga, se descobrir, que estive aqui contigo.
— Comigo, com minha esposa e com uma casa cheia de pessoas muito ruidosas.
— Sua esposa é uma beleza. Um pouco lenta de entender, talvez, mas que importância tem isso em uma mulher? O que conta é sua beleza. É por ela que se veste assim? Alex, não me diga que esse asco é uma barriga de verdade.
Alex acariciou com carinho a protuberância.
— Está composta de algodão, um pouco de corda, uma pistola, uma adaga e muito pouco de minha pessoa. — Deu uma olhada para a porta, pois tinha ouvido um ruído. — Vem ai Jess.
Tomou a peruca e a colocou na cabeça com um gesto prático. Imediatamente assumiu outra vez sua postura curvada.
— Aqui — indicou Jess aos homens que traziam os baús da condessa. — Já imaginava que lhe atribuísse o quarto de sua mãe.
E continuou de pé ali, ainda depois de que os baús estivessem empilhados.
Alex, com voz muito cansada, sugeriu:
— Poderia deixamos sozinhos, Jessica? Somos velhos amigos e temos muito que conversar. Talvez possa terminar com a contabilidade de quatro anos. Ou encarregar-se de que as donzelas de Sophy tenham o alojamento devido.
Jess olhou de um ao outro. Por fim, com um gesto de assentimento, saiu do quarto.
Sophy girou para ele.
— Mas...! Se meu marido me falasse desse modo lhe cortaria as orelhas e o...
Alex se inclinou para beijá-la.
— Não o duvido. E o mesmo faria Jess se me acreditasse homem.
— Homem? E que espera de um homem que você não possa cumprir?
Alex voltou a beijá-la.
— Faz que me sinta melhor a cada minuto, mulher. Viu como te olhava Jessica? Ouça, se não puder chegar a Boston até dentro de duas semanas, poderia me fazer um favor. Eu gostaria que passasse aqui alguns dias e deixasse com ciúmes minha mulher.
— Geralmente, uma mulher trata de não colocar com ciúmes à mulher de um amigo.
— É que não conhece a história completa.
Sophy se sentou em uma cadeira e acomodou suas saias ao redor.
— Eu adoro escutar.
— Que ardil vil e desprezível! Alexander Montgomery — disse apaixonadamente, quando ele terminou o relato. — Essa pobre mulher tem dois homens atrás de suas saias. Mas os dois não fazem um homem completo.
— Ela também tem seus ardis. Diz ao Corsário que não deveria ter chegado nunca a Warbrooke e depois fala para Alex que o Corsário é a única esperança da cidade. Ela mesma não sabe o que quer.
— Me parece que sabe muito bem. Como ama seu país, ajuda o Corsário; como ama sua família, casa-se com o homem que pode ajudá-los, embora não possa lhe fazer amor, jamais. A pobrezinha tem feito um voto de castidade para salvar a sua família. E você a condena por isto. Pobre moça!
— Foi ela que começou. Nunca tive a intenção de me apresentar aqui como o Corsário, mas Jessica riu de mim e fez com que minha aparência gorda e efeminada convencesse a todos.
— Não os culpo. Está horrível. Não me estranha que nenhuma mulher quisesse casar-se contigo.
— Mas você não se deixou convencer.
— É que não faz muito tempo você e eu... — Sophy se interrompeu para olhá-lo fixamente. — O que quer dessa moça, a final?
Alex tomou suas mãos.
— Estou apaixonado por ela, Sophy. Acredito que sempre a amei. Quando ela era menina, a via seguindo um de meus irmãos mais velhos e, eu lhe passava muitos truques. Quanto ela me recusava ficava furioso. Minha mãe dizia que Jessica era maravilhosa, que era à força dos Taggert. Eu queria lhes fazer ver que, em uma situação similar a deles, eu também seria a força de minha família, mas era somente o caçulinha, com meu pai e dois irmãos mais velhos por sobre mim. Jessica não me olhava por mais que eu fizesse para chamar sua atenção.
Sophy lhe tocou a bochecha.
— Não posso lhe dizer que sou o Corsário – prosseguiu ele. — Tenho certeza de que ela cometeria qualquer estupidez.
— Conforme me parece, já está cometendo – observou a condessa, olhando Alex de soslaio. — Qual é o verdadeiro motivo de que não lhe descubra seu segredo?
Alex, sorridente, beijou-lhe as mãos.
— Quero que me ame. A mim, ao Alexander. Que me ame como sou, não porque use uma máscara e monte um cavalo negro. O amor de Jessica é muito importante para mim e quero me assegurar disso Quero saber se continuará me amando mesmo que seja muito velho para montar um cavalo. Quero saber que, se acabar como meu pai, minha bela Jessica não fugirá com qualquer personagem deslumbrante que se apresente.
— Está lhe pedindo que ame só a meio homem, Alex.
— Acredito que sim. O certo é que abandonou o Corsário para vir para mim. Claro que estava sangrando e precisava ajuda, mas isso foi melhor que nada. Mesmo assim, disse ao Corsário que preferia deitar-se com uma mulher e não comigo.
— Pede muito das mulheres, Alex. Primeiro, de sua Jessica; agora, de mim. Se quiser que Jessica te ame além do atrativo físico, do que servirá o ciúme?
— Passe algum tempo comigo. Jess só se aproxima de mim quando um dos meninos precisa de atenção ou quando está sofrendo. Talvez se visse que uma mulher linda, inteligente e sábia gosta de passar um tempo em minha companhia, talvez despertasse sua curiosidade.
Sophy se pôs a rir.
— Acredito que eu poderia amar Alexander, se ela não o fizesse. Mas não te vi em seu papel de Corsário, claro. É muito arriscado e romântico?
— Intrépido. Para o Corsário não há perigos excessivos. Exceto Jessica, é obvio. Anda, diga que ficará para me ajudando.
— Concordo — suspirou ela. — Acredito que essa mulher deve também saber que seu marido é também seu amante. Ajudar-te-ei a fazer ciúmes.
19
— Jessica, — disse Eleanor, tratando de manter a calma — essa mulher está te fazendo passar por tola.
— Alex é feliz com ela.
— Muito feliz. Não se importa que passem horas trancados em seu quarto?
— É nosso quarto. Do Alexander e meu.
— Ah, então se importa.
— Me diga, Eleanor, o que faria se uma mulher paquerasse com esse teu russo?
— Arrancar-lhe-ia qualquer parte do corpo que me caísse à mão.
Jessica brincava com a comida.
— Mas a condessa é uma dama muito simpática. Ontem se encarregou de Samuel por toda à tarde.
— E assim deixou em liberdade Nathaniel para que fizesse travessuras. Sabe de onde tirou esse bote pesqueiro?
— Que bote pesqueiro? — inquiriu Jess, inquieta.
Eleanor se sentou com sua irmã, com a mesa no meio.
— Essa mulher te preocupa, verdade?
— Não, absolutamente. Já sabe que Alexander e eu não somos, realmente, marido e mulher. Ele disse que...
— O quê?
— Que me amava, mas talvez, isso foi antes de recordar seu amor pela condessa.
— Por que não luta por ele, Jess? Por que não se fixa diante de Alex e diz que o ama, que ateará fogo no cabelo dessa mulher se não sair de sua casa em trinta segundos?
— Eu, amar Alex? Que idéia ridícula. Queixa-se todo o dia e...
— Salva-te a vida, espera-te acordado, cuida-te e...
— E me grita com freqüência. Aonde está agora a condessa? Talvez possa me desfazer dela de outro modo.
— Faz um momento estava sentada no pomar. O que pensa fazer, Jessica?
— Ajudar a meu país — respondeu a moça, antes de abandonar a casa.
Jessica não estava disposta a permitir que Eleanor e nem ninguém soubesse quanto a preocupava a presença da condessa. Quando tinha se apaixonado por Alexander? O amor, sem dúvida, era esse palpitar enlouquecido do seu coração. O amor era, o que ela experimentara pelo Corsário... ou pelo menos, isso tinha acreditado até pouco tempo. Mas nos últimos tempos se sentia mais feliz em estar com Alex que com o Corsário.
O mascarado tinha ido a sua janela em duas ocasiões desde que ela recebeu a ferida, mas Jessica se sentia cada vez menos inclinada em acompanhá-lo. Sabia que em seus braços passaria uma noite estupenda, mas nada mais. Pela manhã certamente, se perguntaria, que demônios, lhe tinha dado e procuraria a proximidade de Alex.
Desde a volta do jovem a Warbrooke, ambos tinham passado muito tempo juntos. No princípio, Jess tinha se incomodado que ele quisesse tê-la sempre perto; pouco a pouco tinha gostado de sua companhia. E agora, quando desejava tê-lo com ela, ele não estava.
Não podia culpar à condessa por ansiar o diálogo com Alex. Depois de tudo, ele sabia ser encantador. Lia contos de marinhos com tanta expressividade que qualquer uma sentiria o vento no rosto. E quando lia livros românticos qualquer uma chegava a ruborizar-se.
Pouco a pouco ia reparando os prejuízos que Pitman tinha causado aos bens dos Montgomery. Nas poucas semanas transcorridas do casamento, ela e Alex tinham conseguido pôr a casa em ordem. Formavam uma boa equipe.
Mas ali, estava agora, a condessa, pendente das palavras de Alex, olhando-o como se fosse o mais viril e maravilhoso dos homens. E ele agia como se os Taggert não existissem. Só dedicava sua atenção à linda italiana.
Jess, de pé em uma ponta do pomar, observava à condessa. Estava sentada sob uma árvore, com um grosso xale sobre os ombros e um livro aberto na saia. Jess queria lhe ordenar que abandonasse a cidade e deixasse em paz seu marido, mas não podia. Em primeiro lugar, Alex riria até a morte se ela fizesse semelhante estupidez. Por outra parte, não a deixaria esquecer seu ciúmes. Gabaria-se do fato como o fazem os homens quando acreditam ter ganhado a partida.
Não: terei que ser mais ardilosa. Devia haver um modo melhor para livrar-se da condessa.
— Olá — saudou.
A italiana levantou seu bonito rosto.
— Espero que esteja desfrutando de sua estadia em Warbrooke. Eu não tive muito tempo para atendê-la, mas acredito que Alex se encarrega de você.
— Sim — reconheceu a condessa, cautelosa. — Me atende muito bem, obrigada.
Jess, sorrindo, sentou-se em uma cerca baixa, diante da cadeira da condessa.
— Contou-lhe algo do que acontece em Warbrooke? Você sabe as opressões que estamos suportando?
Sophy dilatou os olhos.
— Não, acredito que não. Parece-me que mencionou algo, mas...
Jess se inclinou para frente. A forasteira se inclinou bruscamente para trás, como se temesse receber um golpe.
— Talvez você possa me ajudar — disse a moça. — Porque é muito linda. E preciso da ajuda de uma mulher linda.
— Sim? — Exclamou a condessa, obviamente interessada. — Para quê?
— Ouviu você falar do almirante Westmoreland? Os ingleses o enviaram para que acabasse com o Corsário, mas até agora não conseguiu. — Jess sorriu. — O Corsário recebeu alguma ajuda de nossa parte.
— Alexander me falou de sua participação em uma operação, Jessica. Os soldados ingleses... — interrompeu-se ante a expressão de sua interlocutora. — Em realidade, não me disse grande coisa.
"Ah!", pensou Jess. "Então que Alex lhe falou daquela noite." E não deixou de sorrir.
— Sim, fazemos o quanto podemos para ajudar ao Corsário. Após o almirante castiga a cidade apoderando-se dos carregamentos. Em certa oportunidade confiscaram um navio E acredito que está por voltar a ocorrer. Preciso de sua ajuda para averiguá-lo.
— Minha ajuda? E o que poderia fazer?
— O almirante se hospeda na casa da senhora Wentworth, que me convidou para tomar chá. Esse homem recebeu ontem um documento selado da Inglaterra. Eu gostaria de saber o que diz.
— Mas qual seria meu papel?
— O almirante gosta de mulheres bonitas. Você é muito bonita. Quero que o distraia enquanto eu revisto seu escritório.
Sophy sorriu ante a adulação, mas sua expressão mudou imediatamente.
— E se a apanham? E se esse homem descobre que te ajudei?
— Enforcar-nos-iam.
— Oh... — Sophy demorou algum tempo em digerir isso.
— Sophy... Chamar-te-ei assim, já que me chama pelo meu nome... Você é capaz de fazê-lo. Basta ver o que conseguiu com o Alex.
— A que se refere? Alex e eu somos velhos amigos.
— Sim, e fico contente de que assim seja. Também é meu amigo. E eu gosto que meus amigos sejam felizes.
— Não está um pouco com ciúmes?
— Absolutamente. Ele merece ser feliz, e tem tão pouco do que se alegrar...
— Talvez, porque você alegre a algum outro homem — sugeriu a condessa, inclinando-se para frente.
— Estou casada com Alex.
Sophy sorriu.
— E o que me diz desse Corsário tão famoso? É tão viril e belo como dizem?
— Mais — assegurou Jessica, muito sorridente. — Estaria disposta a nos ajudar com o almirante?
— O Corsário não se parece em nada com Alexander, verdade?
— Nem remotamente. Se isto te der medo, diga-o e compreenderei. Se me detiverem não vou denunciá-la.
— Hummm, que agradável seria combinar a inteligência de Alex com a virilidade do Corsário, verdade? Teria a um homem como poucos.
— Homens assim não existem. Há os com miolos e os com beleza, mas não com ambas as coisas de uma vez. Quer me ajudar ou não?
Sophy olhou para Jess com ar crítico.
— Com uma condição: que façamos costurar para você um vestido adequado. No que pensa seu marido, que não tem um só vestido decente?
— Alex me deu todas as roupas de sua mãe.
A condessa disse algo muito enfático, mas em italiano.
— E uma vez me prometeu um vestido vermelho.
— Sim? E ainda não o tem? Acompanhe-me, Jessica. Temos muito que fazer. Vamos procurar às seis melhores costureiras da cidade.
— Para que seis?
— Para que o trabalho esteja terminado o quanto antes. Quando iremos a esse chá?
— Amanhã às quatro da tarde.
— Será difícil, mas não impossível.
Jessica e Sophy passaram pelo salão. A condessa ia tagarelando mil palavras por minuto. Jess olhou para sua irmã com uma piscada.
— O que fez com Sophy? — Acusou Alexander.
— Não sei de que fala, Alex — replicou Jessica, inocente. — Só a convidei para tomar chá na casa da senhora Wentworth. Como não confia em mim me ocorreu que sua bela amiga poderia servir de dama de companhia.
— Não, não confio em você, e tenho bons motivos. Tampouco acredito que Sophy deveria sair contigo. Não se pode calcular o que poderia ocorrer.
Jessica dilatou os olhos.
— Não sei a que se refere. Só convidei sua amiga a uma reunião social. Nada mais.
Alex a olhou de soslaio.
— Desconfio de você.
— Olhe que diz isso de sua própria esposa! Viu o vestido que mandou costurar para mim? É de seda vermelha.
Alex esfregou a parte posterior do pescoço, onde o suor e o pó, como sempre estavam compondo uma massa irritante.
— Irei com vocês.
— O quê? — Exclamou Jessica. — Quero dizer, que bom!
— Traz algo escondido entre as mãos, Jess, e quero estar lá para impedir que participe.
Trinta minutos depois Jess perguntava a sua nova cúmplice:
— Poderá manter distraído o almirante e Alex?
— É obvio — afirmou a condessa, muito segura de si. — Posso concentrar a atenção de todos os homens presentes em um salão.
— Menos mal. — Jessica soltou um suspiro de alívio.
Mas a condessa não tinha tido em conta sua companheira. Quando suas donzelas acabaram de pentear os espessos cabelos de Jessica e colocaram o decotado vestido vermelho, apresentou-se a possibilidade de que os homens presentes não reparassem em ninguém mais.
Ela foi exibir se com Alex.
— Você gosta?
Ele não disse uma palavra.
— Alexander, sente-se bem?
Alex caiu sentado em uma cadeira.
— Vamos, mulher, que se faz tarde — protestou Sophy, empurrando-a para a porta. Logo se voltou para sussurrar para Alex: — Se domine e não se faça de tolo. É sua aborrecida esposa: não o esqueça. — E jogou um olhar ao perfil de Jess, que esperava diante da porta. — Uma beleza como a dela poderia inspirar ódio. Não permitirei jamais que meu marido conheça sua esposa. Vamos, vamos, se domine. Escolheu o celibato, lembre-se. Não me estranha que te falhem os joelhos.
Jess teve algumas dificuldades no chá da senhora Wentworth. Alex, que tinha passado vários dias pendente de Sophy, agora parecia ignorar sua existência. Não deixava de observar sua esposa, com olhos frágeis, de uma maneira que chateava a moça. Sophy alinhavava relatos divertidos, mas Alex não prestava atenção. Em realidade, não prestava atenção a não ser em Jess.
A moça dirigiu a Sophy um olhar de exasperação e o assinalou com a cabeça.
— Alexander! — Exclamou a italiana, prestativa. — Por que não conta aquela anedota da pesca nos canais de Veneza?
Alex não se mostrava muito bem disposto, mas ela se inclinou para o almirante, exibindo seus seios, e o inglês pediu para conhecer a anedota em questão. Assim que Alex começou o relato, Jess se desculpou com a proprietária de casa e se encaminhou para a parte traseira.
Quando esteve fora da vista dos convidados, subiu a escada e procurou o quarto do almirante. Sabia que só contava com poucos minutos para procurar, por isso tratou de atuar com rápida minuciosidade. Quando estava por abandonar a busca viu um papel branco que aparecia entre dois livros. Puxou-o, deu-lhe uma olhada e ia abrí-lo quando ouviu uma voz a suas costas.
— Tinha certeza de te encontraria aqui.
Jess girou em circulo. Um dos tenentes do almirante estava de pé na soleira.
— Como demorava tanto em retornar, supus que estaria me esperando.
Jess ocultou o papel entre as dobras de seu vestido. Não recordava ter visto antes esse homem, mas ele parecia muito convencido de seu próprio atrativo. Jess mordeu a língua para não fazer um comentário agudo sobre a vaidade masculina. Em troca lhe sorriu.
— Ia para o banheiro quando vi esta janela aberta. E como acredito que ameaça chuva, entrei para fechá-la.
O tenente cruzou o quarto em segundos.
— Entre nós não deve haver segredos. Faz tempo que me deseja. Notei como me olha quando nos cruzamos pela rua. Vi o desejo em seus olhos. Faz tempo que precisa de um homem, estando casada com esse fracote!
Jessica se afastou dele, retrocedendo ao redor da escrivaninha, mas o oficial se aproximava segundo a segundo.
— Me diga onde podemos nos ver.
Jess procurou algo tateando na mesa e achou um cortador de papel. Não deixaria que esse homem pusesse uma mão em cima dela.
— Farei de você a mulher mais feliz da terra. Darei-te o que seu marido não pode te dar.
— Eu me encarrego de lhe dar o que necessita, obrigado – disse uma voz, da porta.
Alex estava apoiado contra o marco da porta, com sua jaqueta rosada e uma peruca até os ombros. Apesar a seu aspecto brando, seus olhos estavam muito duros. O tenente se afastou de Jessica.
— Não tinha intenção de faltar o respeito com senhora, cavalheiro.
A expressão de Alex não mudou. Jess notou que o tenente começava a suar profusamente.
— O almirante precisa de mim — murmurou, fugindo para a porta.
Alex se colocou de lado para lhe deixar passar, sem tirar os olhos dele.
Jess cruzou o quarto em dois ou três segundos.
— Como o assustou, Alex! — elogiou.
Tratou de sair para o corredor, mas ele alargou o braço para detê-la.
— O que fazia aqui? — Perguntou, sem humor.
— A janela estava aberta e...
Alex levantou sua mão e tomou o cortador de papel que ela ainda tinha entre os dedos.
— Não minta, Jessica. Entrou para se encontrar com esse homem?
Uma parte dela se surpreendeu. Na outra parte houve alívio.
— É atrativo, verdade?
Alex apertou com força seu antebraço.
— Se chegar a se encontrar com outro homem vou...
— O que vai fazer? Passar mais tempo com a condessa? — Jess baixou a vista ao ventre que bloqueava seu caminho, indignada pelo fato de que ele a acusasse do mesmo que tinha estado fazendo durante toda a semana. — Quer tirar essa barriga do meu caminho?
— Jessica...
Mas ela o afastou de um empurrão e saiu do quarto.
Quando chegou ao pé da escada guardou no decote o enrugado documento e voltou para a reunião.
Nesta noite, na casa dos Montgomery, Sophy encurralou Jessica, que estava revisando a contabilidade.
— O que disse a Alex, que se tornou um verdadeiro urso toda à tarde?
— Enquanto eu estava no escritório do almirante, um de seus tenentes, um jovem muito atrevido, quis que eu me encontrasse com ele. Alex chegou antes que as coisas fossem muito longe, mas me acusou de ter provocado esse homem. Como se eu não tivesse nada que fazer! Eu, andar tonteando com os ingleses!
— O ciúme faz bem — assegurou à italiana. — Deveria se vestir assim todos os dias.
— Para escavar na praia? Até as moluscos ririam de mim!
— Uma senhora pode fazer outras coisas, além de juntar moluscos.
— Costurar, paquerar com os moços belos e conspirar as costas de seu marido?
— Menos mal que você não conspira — comentou Sophy, sarcástica. — Me empresta seu manto negro, Jess? Devo sair.
— É obvio — disse Jess, sem afastar a vista de suas contas.
A condessa jogou o manto sobre os ombros e subiu o capuz. Ia a meio caminho para o banheiro quando, na escuridão, surgiu uma silhueta escura. Uma voz de sotaque estranho, que ela não reconheceu disse:
— Estava te esperando.
Sophy compreendeu imediatamente que se tratava do famoso Corsário. Sem dúvida a tinha tomado por Jessica. Ainda sabendo quem esse homem era, em realidade, era difícil recordar que era Alexander disfarçado. Seus olhos, ocultos depois da máscara negra, chispavam de um modo perigoso. Ela abriu a boca para explicar o engano, mas imediatamente sentiu a ponta de uma espada contra o pescoço.
— Nenhuma palavra — murmurou ele, com uma voz grave que fez correr um tremor pelo seu corpo. — Tire a roupa.
A italiana ia protestar, mas ele apertou um pouco mais a ponta da folha contra a pele.
— Não quero discutir, Jessica. Esta noite tomarei o que é meu.
O modo como ele disse fez com que Sophy obedecesse imediatamente. Olhou-o aos olhos e sentiu desejo por esse homem. Com mãos tremulas, começou a desatar as fitas de seu vestido. Tinha esquecido que não era ela a mulher que esse mascarado procurava. Seu vestido estava já aberto até a cintura quando Alex compreendeu seu engano.
— Sophy! — Exclamou, afastando a espada.
A condessa não recordava, nunca haver se deixado levar, por uma irritação tão incontrolável. Diante si tinha um homem encantador, que depois de lhe fazer exigências deliciosas se apresentava, um momento depois, como se fosse um menino travesso surpreso por sua mãe.
— Alexander! — Exclamou ela, no mesmo tom. — Que diabos estava fazendo aqui, espreitando na escuridão?
Ele sorriu com todo o rosto e esteve a ponto de fazê-la sucumbir a seu encanto. Aquela máscara negra o deixava assombrosamente atrativo.
— Esperava Jessica.
— Tire essa máscara, homem — ordenou ela — penso que poderia dirigir melhor as coisas se ela voltasse a vê-lo com seu aspecto familiar.
— Não — recusou ele, sempre sorridente. — Jess está lá dentro?
—O que pensa fazer com ela? O mesmo que acaba de fazer comigo? Isto deve terminar, Alex. Primeiro lhe faz ciúmes, agora a ataca com este disfarce. Tem que lhe dizer a verdade.
— Tem simpatia por ela, verdade?
— Sim, certamente, e me arrependo de ter conspirado contigo contra ela. Depois de amanhã terei que continuar a viagem. Se até então não lhe tiver dito a verdade, eu o farei.
O Corsário baixou a espada e se apoiou contra uma árvore.
— Zangará-se comigo.
— Com todo direito.
Ele ergueu um pouco as costas.
— Mas que recompensa terei, quando já não deverei ocultar o segredo! — Murmurou com voz longínqua, como se estudasse a possibilidade. — Poderei ser Alex durante o dia e o Corsário de noite, quando estivermos sozinhos os dois.
— Invejo-a — suspirou a italiana. Logo voltou para a questão. — O dirá?
— Sim, acredito que é hora de dizer-lhe. Amanhã a levarei para passear e mostrarei quem é o Corsário.
— Bem — aprovou Sophy. — Agora vai antes que alguém te veja.
Ele a beijou docemente na boca e se perdeu no bosque.
Quando Sophy voltou para a pequena sala onde Jessica tinha ficado trabalhando em seus livros, a sala estava deserta. Encontrou à moça na pequena sala, contigua a de Alex. A seu redor tudo estava revolto.
— Desapareceu — foi seu único comentário.
— Que desapareceu?
— O papel que achei no quarto do almirante. Quis esperar que Alex saísse para lê-lo, mas já não está aqui.
—Perdeu-o por alguma parte?
Jessica levantou a vista, com os olhos muito abertos.
— Não. Escondi-o.
Sophy demorou um momento em compreender.
— Nesse caso, alguém o roubou. Alguém sabe o que o almirante planeja fazer. Suponho que não teve tempo de lê-lo.
— Alex me rondava. Se Pitman o encontrou e sabe que fui eu quem se apoderou dele...
— Logo saberemos. Sente-se e faremos planos. Bem pôde ser que pegou um dos meninos para fazer bonecos de papel, mas se o tiver senhor Pitman terá que sair de Warbrooke antes que a enforquem.
— Sim — sussurrou Jess, E se deixou cair em uma cadeira.
20
—Alex, não é muito tarde para estar fora? Parece-me que, pelo bem de sua saúde, deveria estar em casa, descansando. Sophy disse que...
— Não me interessa o que Sophy diga.
Jess sorriu na escuridão, enquanto se aferrava ao assento da carroça aberta. Alex tinha tido à bonita condessa para si durante vários dias, mas agora Sophy passava mais tempo com Jessica e os meninos que com ele. Embora tivesse falado de partir, essa mesma manhã tinha anunciado sua intenção de ficar por dois dias a mais. "Só até ver o que acontece", disse, sem explicar o sentido de suas palavras.
— Está bem abrigada? — perguntou Alex.
Jess rodeou, ao corpo seu longo manto negro de capuz.
— Não sou eu a doente, Alex. Acredito que deveríamos voltar.
— Ôhoo! — ordenou Alex aos dois cavalos, puxando das rédeas. — Já chegamos. — Desceu e se aproximou de Jess para ajudá-la, mas a moça já estava no chão. — Daqui se vê todo Warbrooke —adicionou, enquanto tirava a brida dos animais.
— São dez da noite, Alex. Parece-me que deveríamos voltar para casa. Não os desatrele da carruagem.
Ele, sem lhe prestar atenção, continuou com sua tarefa. Temia que Jess se zangasse um pouco ao inteirar-se de que seu marido e o Corsário eram a mesma pessoa. Não havia motivos para zangar-se, é obvio, mas com as mulheres nunca se sabia. Existia a possibilidade de que se mostrasse sensata e compreendesse que ele só tinha atuado assim por seu país e por protegê-la.
Conduziu a cada um dos cavalos. Não, não existia a menor possibilidade de que agisse com sensatez. O mais provável era que se mostrasse tão irracional e difícil como sempre. Alex sorriu à luz da lua. Saberia acalmá-la, é obvio. Acariciá-la-ia e...
— Que sorriso estranho, Alex! Quer me dizer para que me trouxe aqui? O que deseja me dizer? Assim poderemos voltar para casa quanto antes. Arruinará seus sapatos novos nesta erva úmida.
Ele deslizou um braço pelos seus ombros.
— Se aproxime da ravina para que possamos observar a paisagem.
Jess estava impaciente.
— Passei a vida vendo Warbrooke de noite. Vi-a daqui centenas de vezes. Espera! Comprou um navio novo? Era isso o que desejava me dizer?
Ela se virou de frente para ele, de costas à aldeia.
— Queria te falar de algo muito mais importante que um navio.
— Há um lugre em venda que poderíamos usar para...
Ele apoiou um dedo nos lábios dela.
— Me escute, Jessica. Sentemos-nos aqui e falemos de homens e mulheres, confiança, dever e honra.
— Está bem, mas se te gelam os pés ou algo assim...
— Às vezes as pessoas fazem algo porque consideram sua obrigação. Talvez para outra pessoa não pareça uma obrigação, mas...
A mente de Jessica começou a divagar. Enquanto escutava pela metade o que dizia seu marido, observava a cena da cidade, lá abaixo. Ante ela desfilavam tochas inquietas. Alguém devia está descarregando um navio à noite.
— ... e aprendemos a nos perdoar e a nos aceitar, face ao que nos parecem defeitos. Desse modo...
Jess continuava observando a cena lá embaixo. O grupo de tochas se movia agora mais depressa, afastando-se do cais. Com o cenho franzido, a moça começou a estudar o grupo com mais atenção. Cada vez chegavam mais tochas rua abaixo.
— ...claro que você iniciou tudo isto, Jessica. Se não tivesse sido por você, muitas coisas não teriam acontecido. Não é que esteja zangado contigo, mas deve recordar que quando te digo...
À luz da lua Jessica começava a distinguir uma silhueta móvel. Ao princípio não pôde saber de quem se tratava, mas o personagem avançava em direção as tochas, tornando-se mais nítido.
De repente a moça ficou de pé.
— É ele — exclamou.
Alex, ainda sentado, levantou o rosto para ela.
— Quem?
— O Corsário. Essa multidão está perseguindo o Corsário.
Alex se levantou, com um sorriso de suficiência.
— Posso te assegurar Jess, que essa pessoa não pode ser o Corsário. Provavelmente se trate de algum vagabundo que acaba de desembarcar ou de...
— Ali! — Gritou Jessica, assinalando para as árvores. — Junto aos tribunais! Digo-te que é ele e... Oh, Deus, têm-no cercado... —recolheu as saias e começou a correr para os cavalos. — Tenho que ajudá-lo.
Nunca tinha visto que Alex se movesse com tanta celeridade; nem sequer sonhava que ele pudesse fazê-lo. O jovem correu atrás dela, arrancou-lhe a capa negra do corpo e a jogou sobre os ombros. Logo se aproximou dos cavalos, tirou as ataduras uma a uma e, montou o cavalo sem sela, tudo em uma fração de segundo, enquanto Jess o olhava, petrificada.
— Volte para casa — Gritou, afastando-se a galope.
O cavalo de puxar carruagem nunca tinha galopado.
Jessica estava emudecida. Por um momento não pôde compreender o que estava acontecendo. Alex, dedicado a reclamar sobre o amor e o patriotismo, tinha partido a todo galope com uma capa negra.
Jess voltou lentamente para a ravina, como se caminhasse em sonhos, para observar o que ocorria. Viu Alex descer a colina tão rápido como o permitia o cavalo, encaminhando-se em linha reta para a multidão com tochas. Logo o perdeu na escuridão. A sua esquerda apenas obtinha distinguir os movimentos do Corsário.
— Meus dois homens — sussurrou, com um suspiro. Seus dois homens, perseguidos por todo um batalhão de soldados ingleses.
Distinguiu outra vez Alex quando o alcançou a luz das tochas. Houve um momento de confusão em que os homens se voltaram para correr atrás de Alex, deixando ao Corsário uma oportunidade para escapar do segundo grupo de soldados.
Depois todos desapareceram de sua vista.
Jess se sentou no chão, com o rosto entre as mãos.
Por que Alex se fazia um pouco de tolo? Por que arriscava sua saúde para ajudar a um homem a quem o tinha por idiota?
Permaneceu uma hora na ravina, enquanto as tochas apareciam e voltavam a desaparecer no bosque. Viu que as luzes se afastavam de dois em dois pelas ruas, pelos becos, rumo ao cais.
— Perderam-no de vista — sussurrou, enquanto empreendia a volta para sua casa.
Tinha que chegar a tempo para ajudar Alex. O Corsário se evaporaria em seu esconderijo, talvez entre os braços de sua amante ou esposa, mas Alex precisava dela.
Não foi fácil conduzir a carreta com um só cavalo atrelado com arreios para dois cavalos, colina abaixo, mas Jessica não prestou atenção às dificuldades. Só se preocupava em estar na casa quando Alex voltasse.
Como tinha estado observando aos grupos de busca do alto, tinha certa idéia de onde estavam e evitou esses lugares. Não desejava encontrar-se com os soldados e ter que explicar por que seu marido levou o outro cavalo.
Chegou à casa dos Montgomery sem cruzar com muitas pessoas. Depois de deixar a carreta com o criado que trabalhava no estábulo, começou a andar para seu dormitório.
Mas Sayer a chamou antes que pudesse dar-se conta do que ocorria, Jess se encontrou chorando contra o ombro do ancião e lhe contando todo o ocorrido.
— Ama-o, verdade? — Disse Sayer, acariciando seu cabelo. — Ama mais a meu filho do que a seu belo e viril Corsário.
— Sim — soluçou a moça. — Alex se queixa, choraminga e dá muitíssimo trabalho, mas é realmente um bom homem. Disposto a ajudar como pode, tendo em conta o ruim que está de saúde. Mas o desta noite foi muito. Não pode cavalgar assim. Seu corpo não resistirá.
Sayer a estreitou com força.
— É sua própria saúde o que me preocupa. Acredito que chegou o momento de acabar com esta comédia. — Afastou-a de si. — Vá a seu quarto e espere por Alex. Amanhã virá com ele as quatro em ponto, para tomar o chá comigo. Não permita que ele se desculpe. Traga-o.
— Sempre que se sinta bem — argüiu ela, soluçando. — Será melhor que esquente um pouco de água para seus pés frios.
Sayer acariciou o cabelo de sua nora.
— Mime-o esta noite, sim. Talvez amanhã não se sinta tão bem disposta a fazê-lo.
— A que você se refere?
— Direi-lhe isso amanhã. Agora vá cuidar de seu marido. Veremo-nos a hora do chá.
— Sim, senhor.
Jessica lhe deu um beijo na bochecha e se retirou.
— Quem era? — Perguntou Alex a Nick.
Tinha obtido com muita dificuldade escapar dos soldados do rei para voltar para casa dos Montgomery. Agora estava com Nick na escuridão, atrás dos estábulos.
— Não tenho idéia — respondeu Nick, bocejando. — Me disseram que seu almirante estava informado da chegada de um navio com contrabando e pensava inspecionar o navio esta noite.
— Mas alguém disfarçado de Corsário distraiu aos soldados - manifestou Alex, dissimulando seu aborrecimento. — Alguém se fez passar por mim.
— Onde está sua Jessica? Ela está acostumada...
— Estava comigo — respondeu Alex. — A levei a Colina McGammon para lhe dizer que eu sou o Corsário, mas olhou para baixo e lá estava o Corsário, cruzando a cidade a cavalo, rodeado de soldados. Apenas cheguei a tempo, antes que o apanhassem. Eu jamais teria feito nada tão estúpido.
— Então vai dizer a Jessica que é o Corsário, né? — Nick sorriu de lado. — Essa pequena dirá bem claro o que pensa de você.
— Por que acha que a levei tão longe da cidade para dizer-lhe? Não quero que Pitman ouça o que me diga. — Alex sorria apesar de suas palavras. — Na verdade, será um alívio que saiba. Assim não haverá mais segredos entre nós. — Nem mais camas separadas.
— Vamos para casa — indicou Alex, arrumando a peruca. — Amanhã levarei Jess de passeio para dizer-lhe. Enquanto isso, tentarei averiguar quem era esse impostor.
Jessica teve que esperar por duas horas antes que Alex entrasse pela janela. Seu aspecto era horrível. Trazia a roupa molhada e lamacenta, a peruca torcida e muito carrancudo.
— Jess! — Exclamou ao vê-la. — Deveria estar deitada.
— Também você.
Ajudou-lhe a passar pela janela. Logo o conduziu à cama e o obrigou a sentar-se. Um instante depois estava a seus pés, lhe tirando os sapatos e os meias três-quartos para envolver seus pés frios em uma toalha quente.
— Jess — exclamou ele, com voz divertida — o que acontece? O que faz?
Ela levantou a vista com ar suplicante.
— Não deveria fugir desse modo, Alex. Poderia fazer mal a sua saúde. Seu coração não suporta escapadas como a desta noite.
Ele a observava com atenção.
— Se preocupa por mim?
— É obvio. Vamos, tire essa roupa. Está bem, não olharei. E se deite. Aqui tem uma peruca seca, se por acaso não quiser que te veja a careca. E tenho sopa quente para você. Darei-lhe assim que esteja deitado.
Alex tirou as roupas em um abrir e fechar de olhos. Ficou com a camisa de dormir, a peruca seca e se meteu sob os cobertores, adotando uma pose de inválido. Logo anunciou a Jess que estava preparado.
Ela se sentou na cama com um prato de sopa quente, colocou um guardanapo sob seu queixo e começou a lhe dar colheradas na boca.
— Por que galopou desse modo? — Repreendeu-o.
Ele a olhou por sobre a colher.
— Não queria que apanhassem seu Corsário. Tem muita importância para você.
Os olhos de Jess se encheram de lágrimas por um momento.
— Arriscou sua vida só para salvar ao homem que eu gosto?
Alex encolheu os ombros, como dizendo que não teria podido fazer outra coisa. Ela se inclinou para frente, com um sorriso, e o beijou na testa. Logo continuou lhe dando a sopa.
— Foi uma grande bondade de sua parte, mas dou mais importância a sua saúde que a do Corsário. Ele pode arrumar-se sozinho e não precisa... Alex! Sente-se bem?
Ele a puxou pelo braço e a obrigou a sentar-se outra vez na cama.
— Repita o que acaba de dizer.
— Disse que o Corsário me parece muito capaz de sair dos problemas em que se mete. Não quero que arrisque...
— Não. Repita-me que minha saúde te importa muito mais.
Retinha-lhe as mãos. Seus olhos eram como os de um falcão. Jess baixou a vista, ruborizada.
— Bom, Alex, talvez tenha dito algumas coisas sobre sua maneira de vestir, sua preguiça... mas eu gosto muito de você, de verdade.
— Quanto?
Ela não levantou a vista.
— Tanto como para me amar?
Jess se acomodou na cama para envolvê-lo com os braços e as pernas. Logo apoiou a cabeça no seu ombro.
— O Corsário não é real, Alex. É só algo físico. De você eu gosto mais e por isso estava tão assustada há um momento atrás. Talvez não possa te conservar por muito tempo, mas farei o possível para te manter com vida por tanto tempo como possa. Jure-me que não voltará a sair atrás do Corsário.
— Acredito que posso jurá-lo — disse Alex, aconchegando-a junto a si.
— O que era que pensava me dizer esta noite?
— Não acredito que este seja um bom momento. Não quero arruinar a ocasião. Direi-lhe isso amanhã.
— Depois de tomar o chá com seu pai – murmurou ela, sonolenta.
Alex acariciou seus cabelos e a reteve contra si. Permaneceu sentado na cama, sem dormir, observando a saída do sol e pensando o quanto agradável podia ser a vida. Nesse momento tinha o que mais desejava: o amor de Jessica. Tinha certeza de que ela o amaria como fosse: na enfermidade, através de enormes perucas e apesar de algumas mentiras inocentes sobre a verdadeira forma de seu corpo e suas atividades noturnas. Muitos homens não tinham a oportunidade de verificar o amor de suas esposas como ele o tinha feito.
Com um sorriso, estreitou-a contra seu corpo. Na noite seguinte lhe contaria tudo e ela compreenderia. Se era capaz de amá-lo apesar de seu físico pouco atrativo, seria também capaz de compreendê-lo.
Apenas no caso dela se irritar, disse-se com um sorriso, seria melhor esconder tudo o que se pudesse quebrar. Talvez Jess demorasse em compreender. Mas ele a domaria, claro que sim.
— Está encantadora, Jessica — ponderou Sayer Montgomery. — É esse o vestido vermelho que a condessa fez costurar? Verdade que está encantadora, Alex?
O jovem não respondeu. Ela começou a rir.
— Sim, acredito que gosta do vestido — comentou.
Sayer passeou a vista entre eles.
— Hoje parecem muito felizes. Ocorreu algo?
Jess deixou a taça de chá.
— Alegra-me que ontem à noite não apanhassem o Corsário. Você recebeu alguma notícia?
— Só que ele escapou e que o contrabando foi escondido a tempo.
Jessica encheu a taça de Alex, enquanto ele se remexia na cadeira. Ela sabia que gostava de chatear seu pai.
— Eu gostaria de saber como soube o Corsário do navio - murmurou Sayer.
— A mim também. Suponho que soube pela mensagem que recebeu o almirante, mas eu não o entreguei. Roubaram-me antes que tivesse podido lê-lo sequer.
— Acha que foi o Corsário quem o roubou de seu quarto? —perguntou o ancião.
— A plena luz do dia? Duvido-o.
— O quê? — Gritou Alex, saindo de seu relaxamento. — Você tomou uma mensagem do escritório do almirante? Era isso o que estava fazendo em seu quarto?
— Te tranqüilize, por favor.
O jovem se levantou de um salto, derrubou sua cadeira e esteve a ponto de derrubar o chá.
— Sophy sabia? Ajudou-te? Torcerei o pescoço de ambas. Você e esse maldito vestido vermelho! Se não tivesse sido por isso teria percebido o que planejavam. Que Deus me perdoe, Jessica, mas...
— Sente-se! — bramou Sayer, interrompendo eficazmente a argumentação de seu filho. — Não vou permitir que fale desse modo com uma dama em minha presença.
Alex se afundou na cadeira, triste. Seus olhos disseram a Jess que já arrumaria as contas com ela mais tarde.
— Quero que beije sua mulher e peça desculpas por seu mau gênio. Herdou-o que sua mãe, Jessica. Os Montgomery jamais gritaram a uma mulher.
Alex continuava sentado, apertando os dentes.
— Eu gosto da idéia — celebrou Jess, absolutamente preocupada com o arrebatamento de seu marido. Sua única preocupação era que a irritação pudesse lhe alterar o coração.
Sayer manteve a vista cravada em seu filho até que Alex tomou a mão de Jess, beijou-lhe o dorso e murmurou algumas palavras incoerentes.
— Oh... — murmurou a moça, obviamente desiludida.
— Maldito seja! — Uivou Sayer, sem lhe prestar atenção. — Não pode ser meu filho! Vi-te beijar a essa coquete italiana, que não vale a metade de Jessica. Que classe de homem é que não sabe beijar sua própria esposa?
Alex intercambiou um olhar colérico com seu pai. Tomou Jessica e a abraçou com brutalidade. Embora tivessem a mesa de chá entre ambos e as taças saíssem rolando entre as tortas, beijou-a com toda a paixão que acumulava a várias semanas.
— Pronto! — Chiou para seu pai, enquanto sentava Jessica de um empurrão. — Embora não possa te agradar de outro modo, pelo menos verá que sei beijar minha esposa. — E se retirou do quarto, colérico.
Sayer observava Jessica, que permanecia em sua cadeira, totalmente aturdida.
— Vá, mulher, vai com ele — lhe disse, brandamente.
A moça se levantou para aproximar-se da porta. Percorreu o corredor com o olhar perdido e se deteve ali onde ouviu vozes.
Eleanor e Sophy estavam sentadas no quarto de hóspede. Jess fechou a porta, apoiou-se contra ela e assim que se repôs, disse com voz tensa:
— Alexander é o Corsário.
— Sim, querida. Com certeza — confirmou Eleanor.
Jess se sentou. Pela mente passavam muitos pensamentos. Estava casada com o Corsário. Alexander, o fraco, o lento, era o Corsário.
— Sou a última em me inteirar? — Perguntou.
— A última não, sem dúvida — disse Sophy.
Jess tomou fôlego.
—Quem mais sabe?
Sua irmã levantou a vista de sua costura.
— Vejamos: sabem Nicholas, Nathaniel, acredito que também Sayer, Sam e...
— Sam! Mas se só tem dois anos! Como é que sou a última em me inteirar?
— Provavelmente Alex pensou que você se arriscaria muito.
Jessica guardou silêncio por um instante, tratando de deixar que essa novidade se assentasse em seu interior. Como ele havia obtido guardar semelhante segredo? E como era possível que ela não percebeu?
— E você — perguntou a sua irmã — de que modo descobriu?
Eleanor sorriu.
— A quem lava roupa não pode lhe ocultar nada. Os homens parecem acreditar na existência de duendes verdes que lavam sua roupa e as guardam em seu lugar. Alex não percebeu que tirei duas vezes o traje de Corsário para lavá-lo e escondê-lo novamente em seu lugar. Tive que secar essas roupas penduradas dentro de minha camisola.
Jess, piscando, voltou-se para Sophy.
— E você?
— Conheci-o na Itália. Nunca adoeceu de febre.
— E Nate?
— Pelo que pude averiguar — respondeu Eleanor — Sayer pediu a Nate que averiguasse quem era o Corsário. O menino seguiu Alex. Já sabe que sempre faz de tudo para estar onde você menos imagina.
— Acredito que é por isso que Nate e Sam adoram Alex — comemorou Jess, que nunca em sua vida havia se sentido tão estúpida. — Mas Sayer sempre trata Alex com desprezo — adicionou, com a esperança de não ser a única enganada.
— Alex não sabe que seu pai está informado e o senhor Montgomery nunca disse nada. Talvez pense que, já que Alex não confia nele, ele não pode confiar em seu filho. Pelo menos os Montgomery sabem ocultar as coisas entre si, já que não ocultam bem a suas mulheres.
Eleanor se pôs a rir, enquanto sua irmã pensava: "Confiança. Tudo se reduz à confiança." Sua mente começava a funcionar outra vez. Começava a recordar coisas.
A noite de bodas: Alex lhe tinha ordenado que saísse de seu quarto e o Corsário tinha entrado por sua janela. Alex, lhe dizendo que o Corsário era incompetente; o Corsário, furioso contra ela por repetir o que Alex dizia. Ao explodir a pólvora, quando ela estava preocupada por ver nas mãos o sangue do Corsário, Alex tinha ido em seu resgate e, vendo seus temores, tinha preferido deixá-la sofrer em vez de dizer a verdade. Também tinha sido Alex quem arrumou o casamento entre Ethan e Abigail.
— Como começou isto? — Perguntou. Como era possível que Alex a tivesse feito passar por tantas coisas? O Corsário dizia que a amava; Alex dizia que a amava. Mas ambos... não, ele, o único... tinha-na feito viver no inferno.
Sophy e Eleanor contaram tudo quanto sabiam da transformação de Alex no Corsário e o modo em que ocultou de seus vizinhos.
— O Corsário não queria casar-se comigo, – sussurrou —supliquei, mas ele me rechaçou. Disse que Alex não podia me fazer amor.
— O quê? — Perguntou Eleanor. — Não ouvi bem.
— Quem era o Corsário ontem à noite, quando Alex e eu estávamos na colina?
E como era possível que ela não tivesse reparado na energia com que Alex montava a cavalo, quando ela só pensava em sua saúde?
— Eu me encarregarei de sua saúde — murmurou.
— Ninguém sabe quem era esse Corsário — respondeu Sophy. — Suponho que Alex estará ficando louco por saber.
— Pois eu me encarregarei de enlouquecê-lo por completo — assegurou. Jessica se levantou. E saiu do quarto.
21
Já era muito tarde, quando Jess irrompeu no quarto matrimonial, com o coração palpitante e falta de fôlego. Alex perdeu imediatamente a expressão presumida e sapiente que usava.
— O que te aconteceu?
— Não posso dizer. Seria muito para seu pobre coração.
— Ao demônio com meu coração! — Exclamou ele, tomando-a pelos braços. — O que aconteceu, Jessica?
Ela aspirou profundamente antes de responder.
— O Corsário.
O rosto do Alex tomou uma expressão orgulhosa.
— Sim, querida. Já sei que sabe de tudo.
Jess levou uma mão à testa. Era o epítome da mulher afligida.
— É possível que uma mulher ame a dois homens ao mesmo tempo? A você por sua inteligência e ao Corsário pelos beijos como de um momento atrás, no bosque?
Alex sorriu com ares se soubesse tudo.
— É obvio que sim, querida, se seus beijos forem... Beijos? No bosque? Um momento? Quando?
— Faz apenas um momento. Estive em seus braços. Oh, Alex, é tão bom amigo para mim... Posso contar meus pensamentos mais íntimos, verdade? Detesto andar com segredos. E você?
— Que segredos? Fala de nosso beijo, esta tarde? Posso te explicar tudo, Jess. Agi com bons motivos. — Olhava-a com olhos suplicantes.
— Não, não, refiro aos beijos dele — exclamou ela, abraçando o peito com os braços. — Falo de seus abraços, de seu corpo. Esta noite, quando me tocou...
— Quem te tocou?
Ela o olhou, surpreendida.
— Caramba, Alex, não é habitual que seja tão lerdo de entendimento. Estou te falando dos beijos do Corsário, é obvio. Faz um momento, quando me tocou...
— Diz que o Corsário te beijou faz um momento? Alguém te beijou além de mim, quando o fiz no quarto de meu pai?
— Já estranhava que não compreendesse. O que há entre o Corsário e eu vai além da simples paixão. É uma comunhão de mentes. Oh, Alex, queria poder esquecê-lo. Beijar-me-ia outra vez para me ajudar a esquecer?
Em um momento, Alex tomou-a em seus braços e a beijou com paixão.
Jessica permaneceu em seus braços por um instante, com os olhos fechados. Logo se ergueu com ar enérgico.
— Não poderia se esforçar um pouco mais, por favor? — Pediu, com certa exasperação. — É importante, Alex.
Ele piscou um pouco. Logo a beijou no rosto, no pescoço, nas orelhas, enquanto deixava correr as mãos febrilmente pelo corpo de sua mulher.
Jess se afastou com um suspiro.
— Não, não é o mesmo. Acredito que sou mulher de um só homem. Sempre seremos amigos, Alex, mas fisicamente não é igual.
Ele parecia incapaz de pronunciar uma palavra. Jess bocejou.
— Bom, irei para a cama — disse, voltando-lhe às costas.
Alex a puxou por um braço e a fez virar. Arrancou a peruca, deixando a descoberto uma espessa juba escura, e disse com toda solenidade:
— Jess, o Corsário sou eu.
Ela abriu os olhos, surpreendida.
— Caramba, Alex, tornou a crescer seu cabelo.
— Não é que tenha tornado a crescer. Sempre esteve aqui.
— Me deixe ver. — Ele inclinou a cabeça para que ela o inspecionasse. — Ainda está espaçado em algumas partes, mas não se preocupe. Provavelmente o recupere por completo em pouco tempo. Sem dúvida isso se deve a meus bons cuidados. Agora, se me desculpar, eu gostaria de descansar. — E girou novamente para seu quarto.
— Escutou-me, Jess? Disse-te que o Corsário sou eu.
— Claro, sim, é obvio, querido. Não sabe quanto me agrada seu ciúme. — Sorria-lhe com carinho.
— Como vou ter ciúmes de mim mesmo? Eu sou...
Ela pôs um dedo contra seus lábios.
— Recorde sua saúde, Alex. Não te exija muito. É muito amável ao tentar me agradar, mas recorde que não se pode enganar a mulher que beijou a ambos. Esta noite beijei ao Corsário e a você. E me acredite que há diferença entre os beijos de um e do outro.
Ele voltou a beijá-la com ardor:
— O Corsário beija melhor que isto?
Jess demorou um momento em recuperar-se. Por fim disse:
— Sim. Boa noite, Alex.
E lhe fechou a porta no rosto.
Dentro de seu quarto se serviu um copo de água. Ia tomar, mas pensou melhor e o jogou no rosto.
— Isto vai ser mais difícil do que eu pensava — murmurou.
Ainda estava trêmula quando se deitou. Depois de recitar suas preces, adicionou:
— Deus bendito, me perdoe por mentir, mas nunca ninguém mereceu tanto o que vai acontecer a Alexander Montgomery.
Demorou longo momento em conciliar o sono. Por duas vezes despertaram os passos de Alex, que andava pelo quarto vizinho. "Estou casada com o Corsário", pensou, sorridente, e voltou a dormir.
Ao chegar à manhã despertou, feliz, e refletiu sobre o que tinha descoberto no dia anterior. Não conseguia convencer-se por completo de que seus dois homens fossem, em realidade, o mesmo, mas a idéia era muito agradável de ter em conta.
Naturalmente, não permitiria que Alex compartilhasse sua felicidade, pelo menos por um tempo. Ele não tinha revelado sua identidade de Corsário por acreditá-la muito estúpida para guardar o segredo... ou muito maluca, talvez.
Ao recordar todas aquelas vezes em que Alex a tinha obrigado a defender o Corsário e as coisas terríveis que o mascarado dizia de Alex...
Ouviu que se movia o trinco da porta intermédia e se aquietou entre as mantas, fingindo que estava adormecida.
— Jessie...
Voltou-se para ele, sonolenta. Alex não tinha colocado a peruca, mas sim, os acolchoados. Tinha os olhos avermelhados pela falta de sono e uma expressão devastada. Nunca o demônio tinha brilhado tão angelical. Jessica lhe dedicou o mais doce de seus sorrisos.
— Dormiu bem, Alex?
Quase ronronava, sem deixar de pensar nas vezes que o Corsário a tinha feito chorar.
— Eu gostaria de falar contigo.
Ela se levantou na cama.
— Oh, quando quiser, Alex. Sempre estou disposta a te escutar, tudo quanto queira me dizer.
Ele se sentou em um banquinho junto à cama, com os braços apoiados no colchão, e estudou as mãos.
Jess disse com suavidade:
— Compreendo o que houve ontem à noite. Certamente o provocou a desilusão de seu pai. Mas já lhe falei de todo o bem que faz na cidade. Não se preocupe. Cedo ou tarde começará a compreender que tem certa coragem. Não precisa que finja ser o Corsário para que ele ou eu o amemos.
Alex não levantou a vista.
— Jess, o que pensaria se descobrisse que eu sou realmente, o Corsário?
Ela esperou que ele a olhasse. Então respondeu com toda a simplicidade e a inocência que pôde:
— Olhe, odiar-te-ia. Não poderia voltar a dirigir-te a palavra, muito menos continuar vivendo contigo. É uma possibilidade muito horrível. Significaria que você mesmo, me disse que o Corsário era incompetente e depois se zangou quando repeti essa opinião ao Corsário, quer dizer: a você, e me fez sofrer com sua irritação. Significaria que me humilhou quando roguei que se casasse comigo, sabendo que em realidade ia casar-me contigo. Não Alex, não posso acreditar que um homem fosse capaz de uma atitude tão abjeta, falsa, traidora, enganosa e covarde. Se um homem atuasse de um modo tão detestável, odiá-lo-ia com todo meu coração, porque teria jogado com meus sentimentos e com minha vida.
De repente se interrompeu com um sorriso.
—Não, Alex, você é um homem bom. Por isso te amo. Sei que em outras circunstâncias, em outro estado de saúde, teria sido tão viril como o Corsário, mas não posso acreditar que fosse tão falso para se apresentar no duplo papel de Alexander Montgomery e do Corsário. Responde isso a sua pergunta?
Alex assentiu, muito pálido.
— Pensa continuar usando sua peruca agora que tornou a crescer o cabelo?
— Não o... não o tinha pensado — respondeu ele, rouco. Sussurrou contra sua bochecha.
— Ainda está um pouco espaçado. Seria melhor que a mantenha coberto e reze pedindo que cresça mais. Em realidade, no momento fica melhor com a peruca.
Durante três dias, Jessica fez todo o possível para amargurar a vida de Alexander. E o fez de tal modo que ninguém - com exceção da Eleanor - pôde jogar-lhe isso no rosto. Atendia-o como se fosse um bebê, falava-lhe como a um menino retardado e fazia todo o possível para tentá-lo sexualmente.
Encomendou outro vestido, de cetim verde esmeralda, e cobriu o grande decote com uma parte de renda que tinha sido de sua sogra. Quando ficaram sozinhos no quarto, tirou a renda e se agachou diante dele várias vezes, aproveitando qualquer desculpa. Acabou com dor de costas, mas valia a pena por vê-lo suar.
Durante o jantar lhe cortava a carne, repreendia-o se não comesse as verduras, não permitia que os meninos subissem em sua saia e, em geralmente, demonstrava de mil modos que o considerava fracote. Eleanor a observava com fúria. Sophy, em troca, brilhava de prazer, até anunciou que ficaria alguns dias mais.
Nem Mariana, nem Pitman pareciam ver nada de extraordinário na conduta da moça.
E Jess não perdia oportunidade de manifestar a Alex sua alegria de que ele não fosse o Corsário. No minuto seguinte assegurava que, se ele fosse o Corsário, pedir-lhe-ia o traje negro e o acompanharia em suas cavalgadas. Criava longas fantasias sobre o romântico casal: O senhor e a senhora Corsário. Se os enforcassem, seria em forcas gêmeas.
Cada vez que ela falava assim, Alex empalidecia e Jess se enfurecia mais e mais. Era possível que acreditasse ela era tão estúpida?
Na tarde do terceiro dia disse a Alex, com toda intenção, que ia à Enseada Farrier. Seu marido estava tão deprimido que teve que repetir o aviso duas vezes para fazê-lo reagir. Logo Jess foi para o salão, onde Eleanor estava inclinada sobre o fogo.
— Já deveria acabar com isto — a repreendeu sua irmã. — Esse homem te adora e o está fazendo sofrer muito.
— Ele também me fez derramar muitas lágrimas. — Jess cravou uma raiz de sumagre em um espeto e se dedicou a torrá-la.
— O que está fazendo?
— Um pouco de "remédio" para meu marido.
Muito sorridente, deixou cair à raiz chamuscada em uma caneca de água fervente. Retirou os pedaços mais horríveis da superfície e levou a preparação para Alex.
— Aqui está, queridinho — disse, como se falasse com um ancião inválido. — Com isto se sentirá melhor.
Alex o farejou com uma careta.
— Vamos, vamos, deve tomar seu remédio. Toma tudo como bom menino. Faça-o por mamãe.
E lhe voltou às costas, embora nem tanto que não pudesse vigiá-lo pela extremidade do olho. Quando viu que arrojava o asqueroso líquido pela janela, fingiu se voltar distraidamente e recolheu a caneca.
— Assim eu gosto. Agora descanse, que mamãe tem um ou dois recados que fazer.
Não demorou em sair da casa dos Montgomery e correu à Enseada Farrier. Tinha certeza de que Alex mudaria de roupa, remaria até Ilha Fantasma e iria à enseada. O Corsário não deixaria de apresentar-se ali. E ela estava disposta a recebê-lo.
Alegrou-se tanto em vê-lo que duvidou poder levar a cabo o que tinha planejado. Enquanto o via correr para ela se maravilhou de não ter notado a aparência entre o Corsário e Alexander: tinham as mesmas mãos e os mesmos lábios. O mascarado caminhava majestosamente como todos os Montgomery, com os ombros para trás e pisando com ligeireza.
Abriu-lhe os braços. Como tinha desejado esses lábios e não os de Alex?
O Corsário a abraçou imediatamente e Jess compreendeu que devia pronunciar imediatamente o discurso preparado. Do contrário perderia sua decisão.
— Está crescendo outra vez seu cabelo, mas tão escasso que me dá pena. E tem um hálito horrível, como se se estivesse apodrecendo por dentro.
— O quê? — Murmurou o Corsário, mordiscando seu pescoço.
— Temo que meu marido esteja morrendo. Abrace-me, por favor. Que reconfortante é estar entre braços fortes... Alex é tão fraco que devo lhe sustentar pelos braços em torno de mim. Oh, por favor, me faça amor.
Ele estava desatando os laços do seu vestido, mas se deteve.
— Te fazer amor? Mas se é casada! Está casada com outro.
Afastou-a de si com um empurrão.
— Acredito que Alex compreenderia — sugeriu ela, aferrando-se a ele.
— Compreenderia que outro homem fizesse amor com sua esposa? Não há nenhum homem que compreenda semelhante coisa.
E se afastou um passo.
— Mas ele não é um homem de verdade. Quer dizer, não é de todo homem — aduziu Jess, voltando a abraçá-lo.
O Corsário a largou.
— Poderia vir te buscar.
— Não. Dei-lhe uma poção para dormir. Passará a noite roncando.
— Drogou-o? — Horrorizou-se o mascarado.
— Queria estar a sós contigo. Tinha certeza de que viria. Volta para mim, por favor. Dispomos de toda a noite para estarmos juntos.
— Jessica Taggert, acreditava-te honrável, mas já vejo que não o é.
— E quem fala agora de honra? Você, que insistiu que me casasse com outro. Você, que entrou por minha janela na noite de minhas bodas, quando meu pobre e débil marido estava a dois metros de distância.
— Para nós, os homens, é diferente.
— Diferente, um nada! — Chiou ela, espantando-o um pouco mais. — Anda, vai, vai. Prefiro mil vezes a meu marido fedorento e careca. Não sabe beijar, mas pelo menos tem miolos.
E abandonou a enseada.
Quando chegou na casa dos Montgomery se sentia culpada. Depois de tudo, Alex estava sofrendo porque a amava. Temia revelar sua identidade do Corsário por medo de seu ódio.
Mas voltou a recordar os jogos ruins que lhe tinha feito, em qualquer uma de suas duas identidades, e se endureceu.
Na manhã seguinte recebeu a perseguição de sua irmã.
— Jessica, deve terminar com esse jogo. Alexander está cada dia pior. Agora passa o dia soprando seu hálito na mão para cheirar se tem cheiro ruim. E esta manhã me perguntou se usar peruca prejudica o cabelo natural.
Jess sorriu.
— Não estou fazendo nada não ser o que merece. Quando penso nas coisas que me fez passar...
— Os dois estão jogando muito sujo. Agora deveria dizer-lhe tudo.
— Ainda não.
— Se não disser logo, Jessica, não ficará muito dele. Ultimamente se nega a comer as coisas que você toca.
Jessica se pôs a rir.
— Não haverá dito ao Corsário que estava envenenando Alex?
— Mais ou menos.
Ainda sorria quando a deteve John Pitman. Geralmente, fazia o possível por evitá-lo, agradecida porque a casa era ampla e lhe permitisse esquivar de sua presença.
— Jessica, quero comprar sua enseada.
— O que? — Perguntou Jess, acreditando ter ouvido mal, pois a enseada onde se elevava a arruinada casa dos Taggert não valia um prato de comida fria.
Pitman repetiu seu pedido, acompanhando de uma boa soma de ouro.
"Se tiver algo dentro dessa cabeça, chegou o momento de usá-lo", pensou. E concedeu com um sorriso:
— Trato feito. É tua.
“Já me encarregarei de averiguar para que a quer”, disse para si mesma.
22
Jessica observou furtivamente Pitman durante dois dias e duas noites antes de segui-lo. Cuidou bem de não dizer nada a Alex sobre o que planejava, para que ele não se sentisse na obrigação de "salvá-la".
Depois de sair pela janela, começou a seguir o homem, mantendo uma boa distância, já que sabia para onde ia.
Ele se deteve diante da velha casa dos Taggert. Olhou a seu redor e tirou de sob seu casaco uma rede leve, sem peso, que jogou na água da borda da enseada.
"Para que pesca de noite?", perguntou-se Jess, estranhando.
Um minuto depois, um grande peso aterrissou sobre ela.
Uma mão tapou sua boca.
— Quieta — sussurrou a voz de Alex, em seu ouvido.
Jess lutou um pouco. Quando se viu livre, exclamou:
— Quase me sufocou! O que faz aqui?
Ele se deitou a seu lado. Usava a peruca menor e uma simples jaqueta marrom.
— Ouvi que se movia muito em seu quarto e fui investigar.
— Não estava dormido?
Ele a olhou muito de perto, com tanto ardor que Jess sentiu certa queimação na pele.
— Ultimamente não durmo muito bem.
Jessica tratou de dominar-se.
— Esta umidade te fará mal, Alex. Deve...
— Silêncio! — Ordenou ele, sem deixar de observar Pitman entre as árvores. — Me conte o que está acontecendo. E não quero mentiras.
Ela sorriu na escuridão, novamente assombrada de não ter percebido que Alex e o Corsário eram uma mesma pessoa.
— Pitman me ofereceu um saco de ouro por minha terra.
— Por essa terra? — Exclamou Alex.
Ela lhe arrojou um olhar de desgosto.
— O que faz esse homem?
Jess se estirou para olhar.
— Acaba de tirar a rede cheia de ostras. Está as abrindo. Agora arroja outra vez ao mar.
Alex se levantou um pouco.
— Parece-me que está guardando uma ostra no bolso, não?
— Ostras com molho de pelúcia — comentou Jess, muito sorridente.
Ele fez uma careta.
Jess voltou a sentar-se, observando seu marido, que a rondava. O acolchoado de algodão nas calças dissimulava suas coxas fibrosas, mas suas grandes panturrilhas não tinham almofadas: eram puro músculo, adquirido durante anos em caminhar pelas coberturas ondulantes de navios.
— Se tivesse vindo o Corsário — suspirou Jess, melancólica. — Saberia o que fazer.
Alex se sentou junto a ela, sem perder Pitman de vista.
— Não disse que era mais corajoso que inteligente?
— Quando se trata de coragem, intui o que é preciso fazer. Como por instinto.
Alex entrecerrou os olhos.
— Tornou a vê-lo, Jess?
— Do modo que você pensa, não. Trata de convencer-me que vá a sua cama, mas resisto. Sou sua fiel esposa.
— Oh, maior...!
— Está indo — anunciou Jess, aconchegando-se contra o corpo de Alex para procurar seu calor. Uma coisa, pelo menos, sabia fazer muito bem: silenciar Alexander.
Alex, esquecido de Pitman, deitou-se junto a ela e começou a beijá-la. Jess ia perdendo as forças.
— Não deveríamos observar Pitman? — propôs.
— Sim, dentro de um momento — murmurou ele, buscando seus lábios.
— Alex! — Empurrou-o com todas suas forças. — Primeiro não podia conseguir que me beijasse. Agora não pode deixar de fazê-lo. Saiamos daqui, que tenho frio — mentiu.
Na verdade, estava transpirando na parte baixa das costas. Se não interrompia logo aquela atividade não poderia resistir.
Conseguiu ficar de pé, os seios palpitantes, o rosto arrebatado, o corpo faminto dele. Recolheu as saias, girou sobre seus calcanhares e correu para a água.
Longe de Alex pôde pensar com mais claridade. Sabia que na parte traseira da casa tinham ficado algumas redes podres e foi em busca da melhor. Quando voltou, Alex estava de pé na borda da água.
Ela evitou olhá-lo para que não recebesse suas olhadas ardentes, desejosos. Do contrário acabariam outra vez deitados na areia.
— Jessie.
— Fique ali, Alex, e busca uma pederneira. Vou recolher algumas ostras e você as abrirá. E não te atreva a me tocar. Anda!
Pederneira – Pedra muito dura formada principalmente de dióxido de silício (Química), que com atrito solta chispas de fogo.
Com um leve sorriso, Alex recolheu as primeiras duas ostras que ela lhe jogou.
— Não estou tão doente como você acha, Jess. Em realidade, sob a claridade da lua a vejo tão linda que bem poderia...
— O quê? — Inquiriu ela, impaciente.
Talvez já o tivesse castigado bastante. Talvez ela mesma tivesse recebido suficiente castigo. Talvez fosse hora de reconhecer que sabia tudo.
Alex se aproximou.
— Olhe isto.
Seus dedos mostravam, à luz da lua, uma pérola, gorda e perfeita.
— Pérolas nestas águas? — exclamou a moça. — Agora compreendo porque queria comprar minha enseada. Será rico, Alex.
Mas ele continuava estudando a pérola.
— Eu achava que tinha desaparecido.
— De que fala? Toma, abre estas ostras.
— Do colar de pérolas de minha mãe.
— Do colar... Quer dizer que estas pérolas foram postas aqui?
— Acha que Pitman verá os buracos abertos nas pérolas? Com tão pouca luz não o vejo, mas diria que o preencheram com uma massa.
— De que fala? — exclamou Jess. — Oh, Nathaniel!... Isto é obra dele. Já verá quando o apanhar.
Alex a puxou pelo braço antes que pudesse mover-se.
— Nathaniel fez, sem dúvida, mas o plano não é idéia dele. —Guardou a pérola no bolso. — Meu cunhado desvia recursos dos Montgomery e usou o dinheiro para comprar tuas terras. Desse modo, o dinheiro fica na família.
— Ideia de seu pai — adivinhou ela.
— Exatamente: de meu pai, esse demônio ardiloso. Pelo que parece, contra o que eu pensava, está informado do que faz seu genro.
— É capaz de qualquer coisa para proteger seus filhos — assegurou Jess, embora Alex parecesse não escutar. — Talvez não queria fazer sofrer a sua irmã.
Ele pôs-se a caminhar.
— Voltemos.
— Sim, tem que dormir.
Alex se limitou a apertar o passo e Jess teve que apressar-se para não ficar para trás. Já na casa, ele a deixou em seu quarto com ordens de não mover-se dali. Jess começou outra vez a falar de sua má saúde, mas bastou um só olhar para que ela se sentasse na cama, prometendo:
— Não me moverei daqui, prometo-o.
Alex foi ao dormitório dos varões, levantou Nathaniel e o levou nos braços, meio adormecido, ao quarto de seu pai. Ali o jogou no colchão, junto de Sayer.
— Que diabos...! — Exclamou o velho.
Alex acendeu um abajur.
Nate se levantou na cama, enquanto Sayer mexia nos cobertores, tratando de endireitar-se.
— Olá, senhor Alex — saudou o menino. — Aconteceu algo?
Alex tirou a pérola do bolso e a jogou no pai.
— Não parece ser conhecida?
O ancião olhou para Nate. Depois, a seu filho.
— Poderia ser.
— Quantas colocou nas ostras, Nate?
Nathaniel parecia ter vontade de fugir. Não gostava de ver-se apanhado entre os dois homens.
— Acredito que nos descobriu — disse Sayer. — Mas demorou muito, Alex.
O jovem demorou um momento em compreender.
— O que sabe você? — Inquiriu, em voz baixa.
O pai o olhou nos olhos, intensamente.
— Que eu não tenho filhos covardes.
Alex não soube se ria ou se enfurecia. Tinha passado semanas inteiras odiando seu pai, enquanto ele sabia de tudo.
— Parece que sabe guardar segredos — disse.
— De você não se pode dizer o mesmo. Se não tivesse sido porque alguns dos que vivem nesta casa lhe protegessem, faz tempo que estaria morto.
— Jess me ajudou várias vezes, mas não ajudava a seu marido, a não ser a outro homem. Não sabe que eu sou o Corsário.
— Claro que sabe! — Exclamou Nate. Mas caiu sob o olhar fulminante de Sayer.
— O quê? — chiou Alex. — Nathaniel, se não me disser a verdade vou te esfolar. Sabe Jessica que sou o Corsário?
O ancião estendeu uma mão.
— É obvio. Sabe desde que a beijou neste mesmo quarto. Pareceu-me que já a tinha atormentado de sobra e quis pôr fim ao assunto. Jess é uma boa moça; não merecia o que você estava fazendo.
— Mas disse que eu não beijava... E que meu cabelo... –interrompeu-se, meneando a cabeça. — Já ajustarei contas com ela.
— Estão saldadas de antemão — Soprou o ancião. — Não pode se esquecer de sua mulher por um momento e se concentrar nas pérolas? Teremos convencido Pitman de que a enseada está cheia de ostras perlíferas?
Alex contou o que tinha visto e concluiu:
— Ofereceu a Jess o quádruplo do que valem essas terras.
— É meu dinheiro — murmurou Sayer. — Diga a Jess que peça mais. Ainda recuperarei todo o dinheiro dos Montgomery.
— Pensei que não estivesse informado de suas fraudes.
O pai o olhou com frieza.
— O que poderia fazer? Acusar meu próprio genro? Arrastá-lo até os tribunais? Talvez você não seja leal a sua família, mas eu sim.
Alex se limitou a sorrir. Já que seu pai não acreditava que ele fosse covarde e efeminado, nada poderia fazê-lo se zangar. Enquanto brincava com a renda de sua manga, perguntou:
— Quantas pérolas puseram e quantas foram achadas?
— Descontando esta e a que Pitman encontrou, calculo que ficam três. Se Jess esperar, ele melhorará a oferta.
— E o que acontecerá se descobrir que está sendo enganando?
— É muito ambicioso. Não se dará conta de nada. Agora bem, vocês são jovens e podem ficar sem dormir, mas eu não. Para a cama, os dois. E você, filho, vá se encontrar com sua esposa e termine com esta comédia. Pode confiar nela.
— É provável — respondeu Alex, sem comprometer-se. — Para a cama, Nate. — Seguiu o menino até a porta, mas se voltou impulsivamente para abraçar seu pai e lhe dar um beijo na bochecha. — Obrigado por acreditar em mim.
— Hum! — pigarreou Sayer. — Quando eu faço um varão, segue sendo varão até a morte.
Alex sorriu.
—Sou comparável ao Adam e Kit?
Sayer o olhou como se o acreditasse louco.
— Quando vir a esses dois direi o que penso deles, por não ter vindo quando eu precisava. Eu não gosto nada que o tenham deixado sozinho para salvar toda a cidade. — Tomou sua mão, rindo entre dentes. — E direi que você está fazendo um bom trabalho. Até conquistou uma beleza como Jessica sem sequer tirar a peruca. É todo um Montgomery, meu filho, e um dos melhores.
Alex saiu daquele quarto como se medisse seis metros de estatura.
Eleanor ria de Jessica, que lutava com dois cântaros de água quente, olhando-a maldosamente.
— A culpa é tua — acusou a mais velha — pois se empenha em continuar com este jogo. Por que não diz a Alex que está sabendo de tudo?
Jess mudou de posição os cântaros.
— Ele acha que estou convencida de que está morrendo. Enquanto não confiar em mim o suficiente para me dizer a verdade, não posso lhe dizer que estou sabendo.
Eleanor levantou as mãos, exasperada.
— Não pode dizer a verdade porque o tem deixado quase impossível. Está bem, faça o que queira. Atende-o até que lhe caiam os dedos, pouco me importa...
— Obrigada — respondeu Jess, enquanto caminhava pelo corredor com a água quente.
— Ele sabe — disse Sophy. — Alexander sabe que ela sabe.
— É obvio! — disse Eleanor. — Mas vou deixá-los com seus jogos de apaixonados.
— A propósito, por falar de apaixonados, onde esteve ontem à noite com esse gentil russo?
Eleanor se ruborizou.
— Hummm — murmurou a condessa — acredito que vou adiar minha viagem por mais um dia. Não suporto ficar sem saber como termina tudo isto.
— Aqui está, Alex — disse Jess, com ternura, enquanto depositava as vasilhas com água quente aos pés de Alex.
Tinham passado dois dias desde que viram Pitman na enseada dos Taggert. Jessica começava a duvidar de que Alex fosse, na realidade, o Corsário. Tinha muito má aparência, parecia muito fraco para levantar-se e não comia. Limitava-se a permanecer na cama, com os olhos entrecerrados. A moça já temia haver se equivocado, pois como era possível que esse doente fosse o Corsário?
Pouco antes do anoitecer, Alex adormeceu e Jessica abandonou o quarto para sair e aproveitar um pouco do ar fresco. Sem dar-se conta da direção de seus passos, estava na Enseada Farrier.
Enquanto observava o pôr-do-sol, as lágrimas começaram a correr pelo seu rosto. Não podia deixar de ter autocompaixão. Tinha amado a dois homens e já não tinha a nenhum dos dois.
— Jessie...
O Corsário estava ali, na penumbra crescente. Jess deu um passo para ele, mas o viu retroceder e se deteve.
— Faz dias que te espero. Tenho algo importante que dizer.
Jess enxugou as lágrimas. Agora diria que Alexander e o Corsário eram a mesma pessoa. Apagaria todos seus temores de que isso não fosse verdade e a tranqüilizaria sobre a saúde de Alex. Por fim confiaria nela.
— Estive pensando no que ocorreu entre nós e agora compreendo que tem razão.
— Sim — disse Jess, sorrindo.
Estava certa. Era digna de confiança, não era uma tola como ele pensava e merecia conhecer a verdade.
O Corsário baixou a vista para o chão, como se custasse muito expressar o que tinha para dizer.
Jess teve compaixão.
— Não é fácil dizer isso, mas por fim te escutei. — Ele levantou a cabeça. — Depois de tudo, é certo que está casada e eu devo respeitar esse estado. Cynthia Coffin me deu a entender que adoraria receber minhas atenções. Portanto, de agora em adiante visitarei a ela e te deixarei em paz com seu marido.
Ele lhe deu as costas.
Pelas veias de Jessica correu a fúria. Deu um grande salto e se pendurou nas costas dele com uma mão, para golpeá-lo com a outra em qualquer parte que estivesse ao seu alcance.
— Vou te matar, Alexander Montgomery! Se tocar a outra mulher porei um molusco vivo na...!
Alex a pôs frente a si para beijá-la.
Ela arrancou sua máscara.
— É você — sussurrou.
— O de boca cruel — disse Alex. — Esse pedaço de alga que tomou por marido.
Tinha-a levantada no ar. Ela começou a espernear.
— Olhe o que me fez passar! Nossa noite de bodas! Passei chorando, enquanto você veio e foi pela janela.
— E o que me diz de Ethan Ledbetter? E aquilo de que nenhuma mulher me quereria, de que só procurariam meu dinheiro e de que os Montgomery “bons”, não haviam respondido à convocatória? E o modo com que me converteu no bobo de todos? Eu tinha uma ferida de bala e estava sangrando, mas você disse que eu estava ébrio.
Ela estava beijando seu rosto e entranhava os dedos em seu cabelo.
— Mas não diz que te salvei da pólvora e que morria de aflição, com as mãos cheias de sangue. E você, vivinho e abanando o rabo, via-me sofrer sem dizer nada.
— Mas recorda quando voltamos a nos ver, depois daquilo? Chorou contra minhas costas.
Ela o abraçou.
— Oh, Alex, como pôde se mostrar de dois modos tão diferentes? Alex é delicado e suave. O Corsário, em troca... — interrompeu para olhá-lo. — Menos mal que a máscara te cobria esse narigão. Do contrário todo o condado o teria reconhecido.
— Narigudo? — Protestou ele, ameaçador. — Já verá onde posso meter meu narigão.
Jessica chiou de prazer enquanto Alex começava a lhe desatar o vestido e a acariciava. A carregou no quadril como se fosse uma criança e seguiu despindo-a sem deixar de beijá-la.
— Não lamenta que não possa ficar com Adam? — Perguntou contra seus seios.
— Não amo a outro homem que não a você, Alex. Embora seja mil pessoas em uma, só amo a você.
Ele a depositou no chão, deixando pequenos círculos quentes de sua boca nos seios, no ventre e nas coxas. Jess o buscou com os dedos e fez um gesto impaciente ao tirar a roupa dele.
Alex se apressou a despir-se e se deitou junto a ela, mas Jess o afastou.
— Quero ver-te inteiro. Quero ver se é realmente Alexander.
Alex, rindo entre dentes, permaneceu imóvel e se deixou inspecionar a luz crepuscular.
Aquela era a primeira vez que Jess podia ver seu rosto e seu corpo ao mesmo tempo. Deslizou a mão por um ventre plano e suave e olhou suas feições. Eram, na verdade, as de Alex.
— Satisfeita? — Perguntou ele.
— Nem para indício — assegurou a moça, baixando a mão até capturar seu membro viril.
Alex a atraiu para si. Já não ria.
— O tempo foi muito longo, Jess.
— Sim — foi tudo quanto ela pôde responder.
O jovem acariciou suas coxas até senti-la impaciente.
— Alex...
A união foi tão suave como o chapinhar da água contra o casco de um navio.
Ele fez amor com suavidade, lentamente, até que a paixão chegou a seu ponto culminante. Jess abriu os olhos por um momento e sorriu, um pouco confundida. O único homem com quem tinha feito amor usava sempre máscara. Alexander tinha sido sempre um gordo inválido. Mas em seguida deixou de pensar.
Aferrou-se a ele por um longo instante, relutante em soltá-lo, temerosa de que ele voltasse a desaparecer.
Alex pareceu compreender o que ela sentia e se afastou para sorrir.
— Em quem me converto agora? No Corsário ou no Alexander?
Jessica ficou bruscamente séria.
— Em público terá que continuar sendo Alexander. Do contrário as pessoas se darão conta de que é o Corsário...
— Mas te incomodaria que me apresentasse de noite como Corsário? — Inquiriu ele, fazendo cocegas no seu pescoço.
— Pode abordar tudo o que encontre em sua cama.
— Ah, sim? — Riu ele. — Agora vai dormir comigo?
— Sempre quis dormir contigo — protestou ela. E começou a rir. — Oh, Alex, por isso não me queria em sua cama. Para que não descobrisse...
— Era inevitável que você percebesse. E descobriu tudo quando te beijei por ordem de meu pai, verdade?
— Hum, pode ser.
Alex começou a lhe fazer cócegas.
—"Caramba, te odiaria, Alexander" — repetiu, com voz de falsete. — Me chamou de mentiroso, falso e desprezível. Justamente você! E criticou meu cabelo!
— É certo que está meio espaçado, Alex.
Ele esfregou o rosto contra seu seio nu.
— Outra conta a ajustar contigo.
— Acredito que levarei toda a vida.
— Pelo menos — assegurou ele, com olhos cintilantes. — Voltemos para casa. Tenho que voltar a me vestir de Alex para o jantar. E esta noite a tomarei por abordagem.
Jessica riu entre dentes.
E um segundo depois explodiu o inferno. Concentrados no amor, não tinham escutado os seis homens que acabavam de rodear a enseada, com abajures cobertos por panos negros.
Alguém deu uma ordem e os panos foram retirados. Jess e Alex se encontraram em um atoleiro de luz, rodeados por seis homens lascivos.
Alex a cobriu com seu corpo o quanto pôde, enquanto recolhia o vestido para jogar-lhe em cima do corpo. Diante deles estava o almirante. Atrás, Pitman.
— O prendo em nome do rei, Alexander Montgomery — trovejou o almirante — pelo delito de traição.
Pitman avançou, veloz, e recolheu a máscara que Alex tinha deixado cair descuidadamente na praia.
— Isto te ensinará a não brincar comigo — disse, enfrentando-o. — Pensou que não perceberia a armação dessas pérolas?
— Mas se Alex... — começou Jess.
Ele a interrompeu.
— Afastem esses abajures e deixem que ela se vista — disse. — Os acompanharei.
— Não, Alex! — Gritou a moça.
O almirante indicou por sinais que afastassem os abajures. Alex se ergueu em toda sua estatura, orgulhosamente nu.
Ela se vestiu na escuridão, enquanto ele o fazia no círculo da luz. A seda negra, seu porte, a amplitude de seus ombros e o ventre plano, já sem acolchoados, proclamavam claramente quem era.
Afastou-se com os soldados sem olhar para trás.
— Achei-o e o perdi em uma só noite — sussurrou Jessica.
E começou a correr.
23
— Alex foi detido — disse Jessica, entrando com uma batida de porta na sala de jantar dos Montgomery.
— Oh, meu Deus!
Eleanor começou a chorar, estremecida.
— Por quê? — Inquiriu Mariana. — Por espantar o sol com suas jaquetas?
Jessica deu rédea solta a sua fúria e seu medo.
— Por ser o Corsário — gritou. — E quem o traiu foi seu marido!
Nicholas entrou na sala antes que Mariana pudesse falar. Imediatamente se aproximou de Eleanor para tomá-la nos braços.
— É por Alex?
A moça assentiu contra seu ombro.
— Isto é ridículo — afirmou Mariana. — Se Alexander for o Corsário, eu sou Cleópatra. Morreria de fome se Jessica não lhe cortasse a comida. Quando virem o tamanho de sua barriga o deixará em liberdade.
Pelo rosto da Jessica começaram a correr lágrimas ardentes.
— É que não tem barriga. Não tem nenhuma enfermidade, Mariana. É perfeito, é... — o pranto não a deixou terminar.
— Perfeito, Alexander? Mas se é gordo e...! — Mariana se interrompeu, com os olhos arregalados. — Isso significa que Alex é realmente o Corsário?
Ninguém se incomodou em responder.
— Devo dizer a seu pai — recordou Jess, tentando se dominar. Correu pelo corredor e irrompeu no quarto do Sayer.
O ancião mudou de rosto ao vê-la.
— Alex — exclamou, adivinhando.
E Jess respondeu como fazia cada vez que estava alterada: correu para seus braços.
— Pitman o denunciou. Descobriu a armadilha das pérolas e ficou furioso. Nesta casa deve ser fácil espionar. O almirante deteve a Alex.
Sayer lhe acariciou as costas e a deixou chorar por um momento. Por fim a afastou, dizendo.
— Devemos fazer um plano.
— Vão enforcá-lo. Pobre de meu Alex.
— Basta já! — ordenou Sayer. — Nenhum Montgomery morre na forca. Morremos por balaços, por feridas de espada ou esmagados por tonéis, mas nunca na forca. Entendeu? Agora deixa de choramingar e pensemos. Antes que nada, traga Eleanor e ao russo de Alex. Também a essa mulherzinha italiana e ao jovem Nathaniel. Dê a Mariana um copo de whisky e diga que se deite. Esta noite trataremos de idealizar um plano.
Foi Sophy quem pôde pensar com mais racionalidade. Eleanor, Jessica e Nathaniel estavam a cada instante a beira das lágrimas. Sayer e Nicholas, furiosos.
— Que provas há de que Alex seja o Corsário? — Perguntou a condessa.
— É meu filho — uivou Sayer. — E sendo meu filho...
Sophy lhe deu um beijo na testa e piscou o olho para Jess.
Logo o tentou outra vez.
— Eu acredito que temos tempo. Não acredito que o almirante pense em enforcar Alex amanhã. — Levantou uma mão para sossegar os protestos. — O almirante vai querer gabar-se. Mandará buscar mais ingleses para que venham vê-lo. Pelo menos, parece-me que é vaidoso.
— A senhora Wentworth teve que lhe dar seu espelho francês para que admirasse seu uniforme — recordou Eleanor.
— Sim, isso dizia — continuou Sophy. — Se houvesse outra pessoa que se fizesse passar pelo Corsário... Se se produzissem novas incursões enquanto Alex estivesse no cárcere...
E olhou para Nicholas.
— É mais alto que Alex — apontou Jess. — As pessoas perceberiam imediatamente.
— Ninguém percebeu nada quando me fingi de Corsário — corrigiu Eleanor.
Todos se voltaram para ela, que se movia na cadeira, inquieta.
— Encontrei a mensagem que Jess tinha tirado do almirante. Tinha caído no chão e as correntes de ar o deixaram sob o cais. Assim soube que os ingleses pensavam em inspecionar o Poinciana quando quase toda a tripulação estivesse em terra. Como Alex e Jess tinham saído, tomei emprestadas as roupas do Corsário e afastei os soldados do navio.
— E esteve a ponto de que te matassem — chiou Jess. — Se salvou porque eu vi do alto da colina e Alex correu para ajudar.
— Sim, mas se você...
Sophy se interpôs entre as irmãs.
— Acredito que tenho um plano. Acima de tudo devemos averiguar o que está acontecendo. Jess, acha que as senhoras Wentworth ajudariam Alex?
Jess se mostrou solene.
— Nesta cidade todos morreriam por salvá-lo. Fez muito para ajudá-las.
— Então tenho uma idéia.
—Tinha certeza de apanhá-lo — dizia o almirante, sentado à mesa dos Wentworth. — Nunca me enganou com essa peruca e esse falso ventre. Suspeitei dele desde o princípio.
A senhora Wentworth colocou a taça contra a mesa. Seu marido lhe aplicou um leve chute no tornozelo.
— Bom trabalho — murmurou a mulher.
Abigail estava muito aturdida pela notícia e não podia falar. Jessica Taggert tinha ganhado, depois de tudo. Casou-se com o mais rico da cidade e com o homem mais desejável dos últimos tempos. Enquanto, ela devia conformar-se com uma visita semanal ao esconderijo de Ethan, no bosque. Seu marido não estava no exército inglês, mas era fugitivo.
— Sim, e o enforcarei pelo que fez. Assim que cheguem os outros oficiais, o farei enforcar — continuou o almirante.
— Sirva-se de outro pãozinho, almirante — disse a proprietária de casa. — Os fiz especialmente para você. Sabe quando chegarão os oficiais?
— Ao terminar esta semana. E no sábado pela manhã enforcaremos ao traidor.
Abigail piscou para conter algumas lágrimas e desviou o rosto, para que Westmoreland não as visse. Se preguntava o que estaria fazendo Jessica nesse momento. De repente levantou a cabeça e olhou para sua mãe. Jessica estava planejando algo. Soube com toda segurança.
— Devemos consolar aos Montgomery — murmurou. — Têm que estarem devastados.
— E enforcarei também a qualquer que intervenha nisto — se vangloriou o almirante. — Dizem que era o velho Sayer Montgomery quem mandava nesta cidade. Agora Warbrooke tem um novo amo.
A senhora Wentworth baixou a vista para seu prato.
À uma da manhã, quando retornou o navio de Nick, Eleanor esperava no cais para ver Nicholas e Jessica.
— E bem? — Perguntou, assim que o russo desceu pela prancha. — Conseguiram?
— Não me dá um beijo? — Brincou ele.
Eleanor cravou um olhar significativo em Jessica, que os seguia com ar cansado.
— Não tiveram problemas com o capitão do navio?
— Todos trataram Nick como se fosse o amo – disse Jess.
— É que todos os russos se tratam com mútuo respeito.
— Só a nós, nos tratam como a escória, verdade? — Observou Eleanor.
— Toma isto — ordenou Jess a sua irmã, lhe entregando um saco de lona.
— Então o conseguiram.
— Compramos todos os frascos de tintura negra que havia em Boston. Estão todos preparados para distribuirmos? Não há muito tempo.
— Estamos preparados. — A moça pôs uma mão no braço de Jess. — O almirante adiantou o julgamento para amanhã. Os ventos foram favoráveis e seus oficiais chegaram um dia antes do esperado.
— Então os habitantes de Warbrooke terão que trabalharem durante a noite — decidiu Jess, com firmeza.
— É que as roupas não estarão secas — protestou a mais velha das irmãs. Imediatamente se interrompeu. — E bem, usaram molhadas. Dormiu um pouco, Jess?
— Não! — Respondeu Nick por ela, lamentando. — E como passou a noite caminhando pela coberta, em cima de minha cabeça, eu tampouco pude dormir.
— Pois parece muito saudável — assegurou Eleanor.
Nick tomou-a pela cintura e a atraiu para si.
— Vamos. Há muito que fazer.
Durante toda a noite, os meninos Taggert correram de uma casa à outra, deslizando-se entre as sombras, sussurrando indicações e planos.
Os Wentworth cumpriram com sua missão de manter entretidos o almirante e seus amigos, os oficiais, com uma ruidosa festa que os impediram de prestar atenção a tudo quanto se passasse lá fora.
Jessica tinha dado ordens a Mariana de manter ocupado seu marido.
— Mesmo que tenha que se deitar com ele — indicou.
— É o mínimo que posso fazer por Alex. Quanto lamento não ter acreditado nele.
— Eu também lamento — foi o murmúrio de Jess.
Eleanor tinha tentado visitar Alex na ausência de sua irmã, mas os guardas se negaram a permitir-lhe. O edifício estava rodeado pelas duplas filas de guardas, impossível de atravessar.
Ao amanhecer Eleanor deitou os meninos, que estavam exaustos. Seguindo um impulso, empurrou Jess também para a cama, completamente vestida.
— Fique com eles. E quieta. Não os desperte.
Jess estava muito fatigada para protestar. Adormeceu.
O julgamento de Alexander pelos juízes ingleses foi uma verdadeira farsa. Já o tinham declarado culpado antes mesmo que se houvesse dito uma palavra. Ele permanecia de pé no estrado de réu, com suas roupas de seda negra e as mãos atadas às costas.
Na sala havia muito poucos de seus vizinhos: só umas poucas jovens que exalavam audíveis suspiros diante daquele homem, de ombros erguidos, peito saliente, pernas separadas e barba crescida de poucos dias, nas bochechas lindamente esculpidas.
— As façam calar! — Ordenou um juiz.
Um oficial trouxe a máscara do Corsário e a colocou contra o rosto de Alex, enquanto ele permanecia impassível. As moças presentes emitiram um sonoro suspiro.
— Acho que é o Corsário — disse um dos juízes.
Os outros assentiram. O almirante fez um gesto satisfatório dirigido aos homens que o rodeava. Para o almirante era essencial impressionar a esses homens.
— Que o enforquem.
O oficial tomou Alex pelo braço. Iria levá-lo, mas um homem atravessou a janela como se estivesse em vôo, pulverizando pedaços de vidro quebrados por toda parte. Vestia-se inteiramente de negro e usava uma máscara como a do Corsário.
— Então acreditou ter me aprisionado! — Chiou, feliz.
— O que significa isto? — Rugiu um juiz, dirigindo-se para o almirante. — Você disse que tinha aprisionado o bandido!
— E o aprisionei! — Gritou o almirante. — Esse é um impostor!
Na sala reinava o caos. Em meio de uma verdadeira algazarra, os soldados ingleses iniciaram uma perseguição ao novo Corsário, que tinha subido à galeria. As bonitas moças, com seus vestidos cheios de fitas e babados, interpunham-se uma e outra vez na frente dos soldados, fazendo-os tropeçarem em seus pezinhos. Depois as consolavam pelos danos sofridos por suas saias.
— Detenham-no!
Pela janela oposta da sala surgiu outro Corsário.
— E acreditava ter me aprisionado! — Disse o novo Corsário.
Todos ficaram imóveis por um instante, até mesmo, os dois jovens ingleses que rolavam nesse momento pelo chão, enrolados nas saias de rendas das jovens.
— Apanhem-no!
— A qual, senhor?
— A qualquer um! Aos dois! — Uivou o almirante.
Um dos Corsários saiu pela janela quebrada, enquanto aprisionavam ao primeiro. Ou acaso era o segundo?
— Tirem sua máscara! — Ordenou Westmoreland.
Os juízes haviam tornado a sentarem-se, e também os oficiais convidados de Warbrooke com todos os gastos pagos por ele, para que presenciassem seu triunfo.
Os soldados arrancaram a máscara do Corsário detido.
— Abigail Wentworth! — Exclamou o almirante.
Nesse momento abriram bruscamente as portas da sala que davam para o norte.
— Detivemo-lo, senhor.
Quatro soldados seguravam o outro Corsário. Detiveram-se ao ver Alex, ainda com a máscara posta e de pé no estrado de réu, e a Abigail com suas calças de homem. Arrancaram a máscara do novo detido.
— Ezra Coffin — disse alguém.
Abriram as portas que davam para o sul.
— Apanhamo-lo, senhor.
A essa altura os oficiais se retorciam de risada, felizes de presenciar a humilhação do pomposo almirante. Os juízes, em troca, tentavam conservar a dignidade.
— Soltamo-los ou enforcamos a todos? — Perguntou um deles, solene.
— Olhem pela janela — indicou alguém.
Em poucos minutos só ficaram na sala do tribunal os juízes, o almirante e Alex. Todos os outros haviam se deslocado para fora para participarem da diversão.
Warbrooke estava alagada de Corsários. Havia Corsário nos telhados, na cúpula da igreja, montado a cavalos e um pouco molhados. Dois Corsários robustos batiam manteiga em um alpendre. Outro, que não superava um metro e meio de altura, levava pela mão um Corsário bebê, que tentava tirar a máscara. Quatro soldados ingleses iniciaram uma perseguição a um Corsário que delatava cinqüenta centímetros de cintura e noventa de quadris. Um mascarado rengo, de aspecto suspeitosamente senil, guiava uma vaca fantasiada de máscara negra.
Os juízes, depois de olharem pela janela durante alguns minutos, voltaram para suas cadeiras.
— Soltem-no — ordenaram, com ar cansado.
E já que não havia mais ninguém na sala para cumprir a ordem, o último da fila de juízes levantou sua túnica, tirou uma adaga e cortou as cordas do prisioneiro.
— Mas é o Corsário! — Disse o almirante. — Se o soltam voltará para me desafiar. Não podem deixá-lo em liberdade.
Alex tirou a máscara e saiu da sala. Jessica o esperava lá fora, com seu vestido vermelho.
Ele a abraçou pela cintura, sorrindo.
— Vamos para casa — propôs.
— Sim — disse ela, estreitando-o.
Epílogo
— Viram à senhora Farnsworth? — riu Jess. — Tem noventa anos, no mínimo. E todos seus gatos tinham máscaras.
Era o dia seguinte. Jessica, Alex e Eleanor estavam sentados a sós no salão dos Montgomery. A cidade tinha declarado feriado e Eleanor tinha apagado a lareira, dizendo que todos se dedicaram a beber as carretas de cerveja pedidas por Sayer, sem pensar na quantidade de comida.
Ao terminar o julgamento, o almirante tinha recebido ordens de voltar para a Inglaterra, com sua folha de serviços manchada para sempre. Westmoreland, que não era acostumado a carregar sozinho a culpa, atribuiu a birutice a John Pitman. Como resultado, Pitman tinha sido dispensado de seu posto como funcionário de alfândega e enviado novamente a Inglaterra. Mariana se negou a acompanhá-lo.
— Então tudo terminou — disse Jess, estreitando a mão de Alex.
Não podia deixar de observá-lo. Nada de perucas, nada de jaquetas ridículas, nada de arriscar a vida. Agora era todo dela.
— Te disse o que Jess? — perguntou Eleanor.
— Oh, irmã, desculpa. Esqueci-me.
— Nicholas pediu que me casasse com ele. E aceitei — informou Eleanor a seu cunhado. — Sei que é só um criado, mas nos arrumaremos. Talvez seu pai nos ajude... Alexander! Não sei do que está rindo!
Alex não podia conter-se. Ria a todo pulmão, apontando a janela aberta atrás de Eleanor.
— E agora o que acontece? — perguntou Jess.
Ouviu-se um som de trompetes e a porta se abriu completamente. Enquanto os três presenciavam a cena em silêncio, vários jovens bonitos, de belos uniformes militares, desenrolavam um grosso tapete vermelho. Um homem de uniforme escuro, de galões resplandecentes, deu um passo adiante e anunciou, com voz ensurdecedora:
— Sua Alteza Imperial, o duque Nicholas Ivanovitch, décimo segundo na linha de sucessão da czarina Catarina da Rússia!
— Outro funcionário de alfândegas! — queixou-se Jess.
Mas quem fez sua entrada triunfal foi Nicholas, com um uniforme vermelho tão cheio de medalhas de ouro que as jaquetas de Alex desapareceram de sua memória. O punho de sua espada resplandecia de pedras preciosas.
— Meu Deus, mas se é...! — começou Jessica.
Mas se interrompeu, porque Eleanor acabava de cair da cadeira, sem sentido.
Jude Deveraux
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