Fjällbacka, 1928
A vida na casa não foi tudo que ela esperava. Quem ela era agora ainda falava mais alto do que a pessoa que já tinha sido. A cada ano, sua amargura aumentava, e a vida que tinha vivido antes de se casar parecia mais com um sonho distante. Ela tinha realmente usado vestidos finos, tocado piano em festas elegantes, visto homens competindo para dançar com ela? Acima de tudo, houve um momento em que realmente podia comer toda a comida e todos os doces que quisesse?
Tinha pesquisado como andaria seu pai e, para sua satisfação, ouviu que ele estava muito mal. Vivia agora sozinho na mansão e só saía para ir trabalhar. Isso deixou Agnes satisfeita; ao mesmo tempo, ela alimentava uma pequena esperança de que poderia recuperar o amor dele se sua vida chegasse a um ponto extremo de tristeza. Mas os anos passavam, nada acontecia, e essa esperança ia desaparecendo cada vez mais.
Os garotos tinham agora quatro anos e eram completamente incorrigíveis. Corriam como selvagens pelo bairro, mesmo pequenos, e Agnes não tinha nem o desejo nem a energia para discipliná-los corretamente. E Anders trabalhava ainda mais horas, agora que precisava viajar da cidade até a pedreira. Saía antes de os garotos acordarem e chegava em casa depois que tinham ido para a cama. Só aos domingos, conseguia passar algum tempo com eles e, nesse dia, os meninos ficavam tão felizes por que o pai estava em casa que se comportavam como anjinhos.
Não tiveram outros filhos, Agnes se certificou disso. Anders tinha feito algumas tentativas estranhas de falar sobre o assunto, e sobre seu desejo de ter acesso à cama dela, mas não foi difícil falar não. O desejo que algum dia havia sentido por ele desaparecera completamente. Agora ela sentia apenas nojo e tremia com o pensamento de sentir seus dedos sujos e lacerados perto de sua pele. O fato de que não protestou contra o celibato forçado também aumentou seu desgosto com ele. O que algumas pessoas chamariam de consideração, ela chamava de covardia, e o fato de que ele ainda fazia a maior parte do trabalho da casa só reforçava essa imagem. Nenhum homem de verdade lavaria as roupas de seus filhos ou faria seu próprio almoço. Mas ela fechava os olhos ao fato de que o motivo para isso era porque ela se recusava a realizar essas tarefas.
– Mamãe, Johan me bateu! – Karl veio correndo até onde ela estava sentada, nos degraus da frente, fumando um cigarro, um péssimo hábito que tinha adquirido nos últimos anos. Ela pedia desafiadoramente dinheiro a Anders para comprar cigarros, sempre esperando que ele objetasse.
Agnes lançou um olhar frio para o menino que chorava diante dela e devagar soltou uma nuvem de fumaça no rosto dele. O menino começou a tossir e esfregou os olhos. Quis abraçá-la numa tentativa de conseguir consolo, mas como tantas vezes antes, ela se recusou a responder com afeto. Era tarefa de Anders distribuir carinho. Ele mimava tanto os meninos que ela não precisava fazer nada. Empurrou bruscamente Karl e deu um tapa em seu traseiro.
– Não chore, simplesmente acerte-o também – ela disse calmamente, soltando outra baforada de fumaça no límpido ar de primavera.
Karl olhou para ela com toda a tristeza de ser rejeitado mais uma vez. Depois, baixou a cabeça e caminhou na direção do irmão.
Pouco tempo antes, a vizinha tinha tido a coragem de vir falar que Agnes devia cuidar melhor de seus filhos. Ela tinha visto os dois brincando sozinhos no cais perto do porto. Agnes tinha simplesmente olhado feio para a velha megera e depois, com calma, mandou que fosse cuidar de seus próprios assuntos. Considerando que sua filha mais velha tinha ido para a cidade e, de acordo com os rumores, ganhava a vida se mostrando como Deus a tinha feito, não tinha nenhuma moral para falar como Agnes devia cuidar de seus filhos. A mulher fez uma expressão de ofendida e depois foi embora, murmurando algo sobre os “pobres garotos”, mas não ousou voltar a bater na porta dela, o que era exatamente a intenção de Agnes.
Ela se recostou sob o sol da primavera, lembrando-se de que não devia ficar por muito tempo sob os raios que criavam uma sensação tão boa no rosto. Queria manter a cor branca que era a marca de uma mulher de classe superior. A única coisa que tinha mantido de sua vida anterior era sua aparência, e isso era algo que explorava ao máximo, tentando colocar um pouco de cor em sua existência cinzenta. Era incrível o que podia conseguir do dono do mercado em troca de consentir com um abraço ou talvez mais, desde que houvesse o suficiente para ganhar. Dessa forma, ela podia trazer um pouco de doce e comida extra, apesar de não compartilhar nada com a família. Ela até conseguiu um pouco de tecido que escondeu cuidadosamente de Anders. Por enquanto, teria de ser contentar em tocá-lo ocasionalmente, esfregando-o no rosto para sentir sua delicadeza. O açougueiro tinha dado umas indiretas, mas havia limites para o que faria por apenas uns finos cortes de carne. O dono da venda era um homem relativamente jovem e bonito, e não era nada mal trocar uns beijos no quarto do fundo, mas o açougueiro era um sujeito gordo e ensebado, na casa dos sessenta. Agnes precisaria conseguir bem mais do que um pedaço de alcatra para permitir que seus dedos de linguiça com sangue seco debaixo das unhas escorregassem por baixo do vestido dela.
Ela sabia que as pessoas estavam falando pelas suas costas. Mas quando percebeu que nunca recuperaria seu status social anterior, não se importou mais. Que falassem. Se pudesse encontrar formas para conseguir algumas das coisas boas na vida, não tinha intenção de permitir que as visões de um bando de trabalhadores de mente fechada evitasse isso. E se isso também deixasse Anders bravo quando ouvisse o que as pessoas estavam falando de sua esposa, melhor ainda. Aos olhos de Agnes, era culpa do marido que ela tivesse terminado onde estava e ficava feliz por causar-lhe dor.
Mas nas últimas semanas algo a estava incomodando. Agnes sentia como se alguma coisa estivesse acontecendo, mas ela não fazia parte disso. Várias vezes, tinha pegado Anders perdido em seus pensamentos, olhando para o espaço como se estivesse contemplando algo importante. Numa ocasião, até tinha perguntado se estava pensando em algo em especial, mas ele negou, apesar de isso não a ter convencido. Estava envolvido em algo, ela tinha certeza. Algo que a afetaria, mas, por alguma razão, não tinha a permissão de saber o que era. A coisa toda a estava deixando louca, mas nessa situação, ela conhecia seu marido bem o bastante para perceber que não era bom pressioná-lo para que revelasse algo antes que estivesse pronto. Podia ser teimoso como uma mula se quisesse.
Pensativa, pegou o pacote de cigarros e levantou-se para entrar. Ficou imaginado para onde os garotos poderiam ter corrido, mas depois deu de ombros, que se cuidassem sozinhos. De sua parte, ela tinha a intenção de tirar uma soneca.
A tarde transcorreu lentamente. Patrik tinha passado muito tempo olhando os registros médicos de Albin. Estava imaginando se fizera a escolha correta quando decidiu esperar para entregá-los às autoridades do Serviço Social. Mas algo dizia que precisava saber mais antes de fazer isso. Depois que as rodas burocráticas começassem a girar, seria difícil parar o processo, e ele sabia que tanto a polícia quanto os médicos relutavam em informar suspeitas de abuso infantil. Havia sempre o risco de uma explicação natural, mas ninguém estaria disposto a considerar aquela possibilidade depois que o Serviço Social se envolvesse. Além disso, não havia ocorrido nenhum incidente desde que a família Klinga tinha se mudado para Fjällbacka. Aparentemente, a situação se estabilizara. Mas ele não podia ter certeza absoluta e, se Albin se machucasse de novo, a responsabilidade estaria em seus ombros.
O telefone tocou e interrompeu seus pensamentos sombrios.
– Patrik Hedström.
– Olá, aqui é Lars Kalfors da polícia de Göteborg.
– Sim? – disse Patrik. O homem soava como se ele devesse reconhecer seu nome, mas não podia se lembrar de tê-lo ouvido antes. E não tinha ideia de por que alguém de Göteborg ligaria.
– Acabamos de mandar algumas informações relativas a um caso atual para você. Foi enviada aos seus cuidados, acredito.
– Ah, é? – perguntou Patrik, ainda mais espantado. – Não me lembro de ter visto nenhuma mensagem de Göteborg em minha mesa. Quando foi enviado e sobre o que era?
– Eu entrei em contato com vocês há umas três semanas. Trabalho na divisão que lida com exploração sexual de crianças e estamos rastreando um grupo de pornografia infantil. Encontramos uma pessoa do seu distrito, e foi por isso que entrei em contato.
Patrik sentiu-se um idiota, mas não tinha ideia do que o homem estava falando.
– Com quem você conversou aqui?
– Bom, acho que você estava de licença paternidade naquele dia, então eu conversei com... deixe-me ver... – Parecia que o homem estava mexendo numas folhas. – Aqui está. Falei com um Ernst Lundgren.
Patrik sentiu a raiva enevoando seus olhos, fazendo-o enxergar tudo vermelho. Estava se imaginando com as mãos ao redor do pescoço de Ernst e começando a apertar aos poucos. Com uma calma forçada, ele disse:
– Devemos ter tido uma falha de comunicação aqui na delegacia. Talvez você possa me passar as informações. Depois eu vejo o que aconteceu.
– Claro, tudo bem.
Kalfors deu uma visão geral do que estavam investigando e como andava o caso de pornografia infantil que tinha agora a mais alta prioridade. Quando chegou à parte em que a delegacia de Tanumshede poderia contribuir com algo, Patrik respirou fundo. Ele se forçou a ouvir tudo, depois prometeu que dariam atenção imediata à questão. Depois disso, se despediu com as expressões educadas de sempre. Mas assim que desligou, já estava de pé. Atravessou a sala em duas passadas e gritou no corredor:
– ERNST!
Erica estava sentada no sofá, tentando organizar seus pensamentos, quando uma batida na porta a fez pular de novo. Ela adivinhava quem era e foi abrir a porta. Charlotte estava ali parada. Estava sem casaco e parecia que havia corrido até lá. O suor estava escorrendo por sua testa, e ela tremia descontroladamente.
– Meu Deus, você está horrível – disse Erica, mas instantaneamente se arrependeu de sua escolha de palavras e puxou Charlotte para o calor da casa.
– É um mau momento? – perguntou Charlotte, tímida, e Erica balançou a cabeça.
– Claro que não. Você é bem-vinda aqui a qualquer momento, sabe disso.
Charlotte só assentiu, ainda tremendo, com os braços em volta do corpo. Seus cabelos estavam colados na cabeça por causa do suor e do ar úmido, e um cacho caía sobre seus olhos. Ela parecia um cachorrinho molhado abandonado.
– Gostaria de tomar um pouco de chá? – perguntou Erica.
Charlotte tinha um olhar perdido, misturado com a expressão assombrada que estava ali desde que recebera a notícia sobre Sara. Mas assentiu com gratidão em resposta à oferta de Erica.
– Sente-se, eu já volto – disse Erica e foi até a cozinha. Ela deu uma olhada em Maja na sala, que parecia contente e estudava Charlotte como se estivesse interessada.
– Vou molhar seu sofá se me sentar – disse Charlotte, como se isso fosse o fim do mundo.
– Não se preocupe, depois seca – respondeu Erica. – Olha, eu só tenho chá de morango silvestre, tudo bem ou você acha muito doce?
– Tudo bem – disse Charlotte. Erica suspeitou que seria o mesmo se ela tivesse oferecido chá de cavalo.
Erica voltou logo, carregando uma bandeja com duas grandes xícaras de chá, uma jarra de mel e duas colheres. Colocou tudo na mesa em frente ao sofá e se sentou ao lado de Charlotte.
Cuidadosamente, a amiga levantou a xícara e bebeu um pouco de chá. Erica sentou-se quieta ao seu lado e fez o mesmo. Não queria forçá-la a falar, mas sentia a necessidade quase física de que a amiga confiasse nela. Talvez simplesmente não soubesse por onde começar. Erica imaginava se Niclas tinha dito a Charlotte que havia conversado com ela. Depois de outro longo silêncio em que os murmúrios de Maja eram o único som na sala, Charlotte respondeu à pergunta.
– Sei que esteve aqui. Ele me contou. Então você já sabe que está tendo um caso. De novo, eu deveria acrescentar. – Uma risada amarga escapou dos lábios de Charlotte, e as lágrimas que ela esteve segurando finalmente começaram a sair.
– Eu sei sim – disse Erica. Também sabia o que sua amiga queria dizer com o “de novo”. Charlotte tinha contado sobre os vários casos de Niclas. Mas também que acreditava que iriam acabar quando decidiram recomeçar em Fjällbacka. Ele tinha prometido que seria um recomeço nesse assunto também.
– Ele está tendo esse caso há vários meses. Pode imaginar? Há vários meses. Aqui, em Fjällbacka. E ninguém os pegou. Ele deve ter uma sorte incrível. – Sua risada agora tinha um pouco de histeria, e Erica colocou uma mão consoladora sobre o joelho da amiga.
– Quem é? – Erica perguntou, em voz baixa.
– Niclas não contou?
Erica balançou a cabeça, então Charlotte disse:
– Alguma vagabunda de vinte anos. Não sei quem é. Jeanette alguma coisa. – Charlotte balançou a mão. Isso não fazia diferença; era a traição de Niclas que importava.
– Não posso contar toda a merda que tenho aguentado nesses anos. Todas as vezes, eu o perdoei, esperando que mudasse, e disse que iria esquecer e prometia seguir em frente. E que dessa vez ia ser realmente diferente. Íamos nos afastar de todas as coisas que tinham acontecido, viver numa cidade diferente, mudar de vida, ou foi o que pensei. – Veio aquela risada horrível. Mas continuou chorando.
– Sinto muito mesmo, Charlotte. – Erica acariciou seu ombro.
– A gente está junto há tantos anos. Tivemos dois filhos, passamos por coisas que ninguém nem imagina. Perdemos uma criança e agora isso.
– Por que ele resolveu contar para você agora? – perguntou Erica, dando um gole no chá.
– Ele não disse? – Charlotte perguntou, surpresa. – Você não vai acreditar nisso. Mas ele me contou que foi porque a polícia o levou para ser interrogado hoje.
– É mesmo? – Não que Patrik contasse tudo que acontecia no trabalho, mas ela não tinha nem ideia de que estavam particularmente interessados em Niclas. – Por quê?
– Ele disse que não sabia de fato. Mas descobriram sobre seu caso com essa garota e que deveria ser por isso que eles queriam interrogá-lo. Mas está tudo esclarecido agora, ele disse. Sabem que nunca poderia machucar a própria filha; queriam apenas que ele respondesse algumas perguntas.
– Tem certeza de que esse é o único motivo? – Erica não conseguiu deixar de perguntar. Ela sabia o suficiente sobre o emprego de Patrik para perceber que parecia uma desculpa bem fraca para levar alguém para um interrogatório. Especialmente o pai da vítima. Ao mesmo tempo, começou a questionar o motivo de Niclas para visitá-la. Afinal, ela não era somente a amiga da esposa, também morava com o detetive encarregado da investigação.
Charlotte parecia confusa.
– Bom, foi o que ele falou, de qualquer forma. Mas houve algo...
– O quê?
– Oh, não sei, só que parece que ele não me contou tudo, agora que você mencionou. Mas eu estava tão focada no que ele disse sobre a amante que fiquei provavelmente surda e cega para todo o resto.
Charlotte parecia tão amarga que Erica teve vontade de pegá-la nos braços e cuidar dela como se fosse um bebê. Mas ela sempre se sentiu um pouco desconfortável com o contato físico, então só continuou acariciando as costas de Charlotte.
– E você não tem nenhuma ideia de que outras razões poderiam existir? – Ela estava imaginando coisas ou uma sombra cruzou, de repente, o rosto de Charlotte? A sombra desapareceu tão rapidamente que não teve certeza.
A resposta de Charlotte foi, pelo menos, rápida e confiante.
– Não tenho ideia do que poderia ser. – Então ficou em silêncio e bebeu um pouco de chá. Estava mais calma do que quando chegara e tinha parado de chorar. Mas a expressão em seu rosto estava sombria, e, se um coração machucado pudesse ser visível do lado de fora, então era como as pessoas veriam o coração de Charlotte naquele momento.
– Como você conheceu o Niclas? – perguntou Erica, mais por curiosidade do que por qualquer razão terapêutica.
– Bom, é uma história bem confusa, preciso dizer. – Pela primeira vez, sua risada parecia quase genuína. – Ele estava um ano à minha frente no ginásio. Eu nunca tinha prestado muita atenção nele, porque estava apaixonada por um dos seus amigos. Mas, por alguma razão, Niclas se interessou por mim e começou a demonstrar isso, então aos poucos comecei a gostar dele também. Acabamos saindo por um ou dois meses e depois fui eu que me cansei.
– Você terminou com ele?
– Não precisa soar tão surpresa, vou acabar ficando ofendida. – Ela riu, e Erica a acompanhou.
– Infelizmente, não mantive minha decisão por mais de uns dois meses. Depois, fui vê-lo uma noite, e o carrossel voltou a rodar. Dessa vez ficamos juntos todo o verão, até ele sair para beber com os amigos. Quando voltou, inventou uma história, caso eu ouvisse de outros como ele tinha desaparecido na noite anterior. Afirmava que tinha bebido muito e desmaiado atrás de um bar, mas a verdade apareceu logo, e nossa relação terminou pela segunda vez. Depois disso, fiquei aliviada por ter saído com apenas algumas lágrimas. Niclas começou a sair com todas as garotas de Uddevalla, como se todo dia fosse seu último, e não dava para acreditar em algumas das histórias que cheguei a ouvir. Preciso admitir que, em algumas ocasiões, fui mais fraca na carne do que no espírito, mas esses episódios me deixaram com um gosto amargo na boca. Olhando para trás, provavelmente teria sido melhor se a história tivesse terminado ali, e Niclas tivesse continuado um simples erro de adolescência. Mas apesar de detestar o que ele tinha se tornado, preciso dizer que não o esqueci. Uns dois anos depois, nos reencontramos por acaso, e o resto é história, como dizem. Acho que eu devia saber no que estava me metendo.
– As pessoas mudam. O fato de tê-la enganado quando era adolescente não significa que você deveria presumir automaticamente que ele ia fazer o mesmo adulto. A maioria das pessoas amadurece com o tempo.
– Niclas não, aparentemente – disse Charlotte, deixando a amargura tomar conta de novo. – Mas não consigo chegar a odiá-lo. Passamos por coisas demais juntos, e às vezes vejo momentos em que seu verdadeiro eu aparece. Em algumas ocasiões, consigo vê-lo vulnerável e aberto, e é por causa desses momentos que eu o amo. Também conheço sua história familiar, e o que aconteceu com seu pai quando ele tinha dezessete anos, então provavelmente vi tudo isso como algum tipo de circunstância atenuante. E, mesmo assim, é difícil compreender por que ele iria querer me machucar assim.
– O que você vai fazer agora? – perguntou Erica. Ela olhou para Maja e não conseguiu acreditar quando viu que sua filha tinha dormido sozinha na cadeirinha. Isso nunca tinha acontecido antes.
– Não sei. Não consigo lidar com isso agora. E, de alguma forma, parece que não importa. Sara está morta, e nada do que Niclas faça ou diga pode chegar a machucar tanto. Niclas quer que recomecemos, encontremos nosso próprio lar e nos mudemos da casa de mamãe e de Stig o mais rápido possível. Mas não tenho ideia do que fazer agora...
Ela abaixou a cabeça. Depois, levantou-se abruptamente.
– Preciso ir para casa. Mamãe já passou muito tempo cuidando do Albin hoje. Obrigada por me deixar desabafar tudo isso com você.
– Você é sempre bem-vinda aqui, sabe disso.
– Obrigada. – Charlotte deu um abraço rápido em Erica e depois desapareceu tão rapidamente quanto tinha chegado.
Erica voltou para a sala. Espantada, parou na frente da cadeirinha e olhou para sua filha dormindo. Talvez houvesse esperança para sua vida, afinal. Infelizmente, ela não sabia se Charlotte podia dizer o mesmo.
Morgan tinha chegado à sua parte favorita do jogo de computador em que estava trabalhando. A parte em que acontecia o primeiro golpe de espada. A cabeça do homem rolava e, de acordo com o roteiro, deveria haver muitos efeitos exagerados. Seus dedos corriam pelo teclado e, na tela, a cena surgia à velocidade da luz. Ele admirava e invejava as pessoas que podiam escrever as histórias, que depois o contratavam para transformá-la em realidade virtual. Se havia algo de que sentia falta na vida, era a imaginação que os outros tinham, que permitia romper todas as fronteiras para que as ideias fluíssem livremente. Claro que ele tinha tentado. Às vezes, até tinha se forçado a tentar. Escrever redações na escola, por exemplo. Tinha sido um pesadelo. Às vezes, os alunos recebiam um tema ou somente uma imagem, e a partir dela tinham de criar toda uma série de eventos e personagens. Ele nunca tinha passado da primeira frase. Depois sua mente parecia se fechar. Ficava em branco. O papel continuava vazio na frente dele, gritando para ser preenchido com palavras, mas nenhuma vinha. Os professores o repreendiam. Pelo menos até mamãe ir lá e conversar com eles, depois que seus pais tinham recebido o diagnóstico. Então, os professores só olhavam suas tentativas com curiosidade, observando-o como se fosse um alienígena. Não sabiam como estavam certos. Era assim que ele se sentia na sua carteira escolar, com o papel em branco diante dele e o som das canetas de seus colegas ao redor. Uma forma de vida alienígena.
Quando Morgan descobriu o mundo dos computadores, se sentiu em casa pela primeira vez. Isso era algo fácil para ele, algo que podia dominar. Se era uma peça estranha do quebra-cabeça, então tinha finalmente encontrado outra peça que se encaixava perfeitamente.
Quando era mais jovem, tinha se dedicado às linguagens de programação como um maníaco. Lera tudo que podia encontrar sobre o assunto e podia desenvolver o que tinha aprendido durante horas sem fim. Havia algo nos números e letras, usados em combinações engenhosas, que tinha captado sua atenção. Mas quando seu interesse por computadores tomou conta, do dia para a noite, ele perdeu o fascínio pelos códigos. O conhecimento ainda estava lá e, sempre que quisesse, podia usar tudo que tinha aprendido, mas simplesmente não o interessava mais.
O sangue escorrendo pela ponta da espada o fez pensar novamente na garota. Ele se perguntava se o sangue dela tinha congelado agora que estava morta. Se era somente uma massa densa enchendo suas veias. Talvez tivesse se tornado marrom como sangue coagulado; ele tinha visto isso uma vez quando tentou cortar os pulsos. Fascinado, olhou o sangue gotejando, vendo a forma como o fluxo gradualmente diminuía, coagulava e começava a mudar de cor.
Sua mãe tinha ficado chocada quando entrou no quarto. Ele tentou explicar que só queria ver como era morrer, mas sem nenhuma palavra, ela o enfiou no carro e o levou até o hospital. Mesmo que não fosse necessário. Doía se cortar, então ele não tinha feito um corte profundo, e o sangue já tinha coagulado. Mas sua mãe ficou histérica do mesmo jeito.
Morgan não entendia por que a morte parecia um conceito tão amedrontador para as pessoas normais. Era só um estado do ser, assim como viver. E, em certos momentos, a morte parecia muito mais tentadora para ele do que a vida. Por isso, às vezes, invejava a garota. Porque agora ela sabia. Sabia a solução do enigma.
Ele se forçou a se concentrar no jogo de computador de novo. Às vezes pensar sobre a morte fazia várias horas passarem antes que pudesse ver. E isso atrapalhava sua agenda.
Parecendo mal-humorado, Ernst se sentou na frente de Patrik, recusando-se a olhar para ele. Em vez disso, estudava seus sapatos sujos.
– Responda, droga! – gritou Patrik. – Você recebeu uma ligação de Göteborg sobre pornografia infantil?
– Recebi – Ernst respondeu irritado.
– E por que ninguém ficou sabendo disso?
Houve um longo silêncio.
– Vou repetir – disse Patrik numa voz baixa e ameaçadora –, por que você não nos informou?
– Não achei que fosse tão importante – disse Ernst, evasivo.
– Você achou que não era tão importante! – O tom de voz de Patrik era gelado, e ele bateu a mão na mesa com tanta força que seu teclado pulou.
– Não – respondeu Ernst.
– E por que não?
– Bom, havia tanta coisa acontecendo na época... E parecia um pouco improvável, quer dizer, esse é o tipo de coisa que acontece nas grandes cidades.
– Não fale besteira – disse Patrik, sem ser capaz de esconder sua raiva. Ele se levantou da cadeira e ficou parado atrás da mesa. Sua raiva o fazia parecer uns dez centímetros mais alto.
– Você sabe muito bem que pornografia infantil não tem nada a ver com geografia. Acontece em cidades pequenas também. Então pare de falar merda e me conte a verdadeira razão. E, acredite, se for o que estou pensando, você vai se meter em sérios problemas!
Ernst levantou os olhos e enfrentou Patrik, mas sabia que era hora de colocar as cartas na mesa.
– Só achei que não era plausível. Quer dizer, conheço o sujeito e não parecia algo em que ele fosse se envolver. Então pensei que os policiais de Göteborg pudessem ter cometido um erro, e uma pessoa inocente iria sofrer se eu divulgasse a informação. Você sabe como é – ele disse, olhando para Patrik. – Não mudaria nada se eles ligassem de novo, um tempo depois e dissessem: “Oh, perdão, mas ocorreu um erro aqui e vocês podem esquecer aquele nome que passamos...”. O nome dele já estaria na lama. Então pensei em esperar um pouco e ver o que acontecia.
– Esperar um pouco e ver o que acontecia! – Patrik estava tão furioso que precisou se forçar a enunciar cada sílaba, para não gaguejar.
– Bom, quer dizer, você precisa concordar que toda essa coisa é absurda. Ele é bem conhecido por todo o trabalho que faz com jovens. Faz muitas coisas boas, posso afirmar.
– Que se dane o tipo de coisa que ele faz. Se nossos colegas em Göteborg ligam e dizem que o nome dele surgiu numa investigação de pornografia infantil, então nós temos de dar uma olhada. Esse é o nosso trabalho, porra! E se vocês dois são colegas...
– Não somos colegas – murmurou Ernst.
– ... ou amigos ou a merda que seja, não faz nenhuma diferença, não vê isso? Não dá para ficar sentado e tomar decisões sobre o que vai ser e o que não vai ser investigado baseado no que você sabe ou não sabe!
– Depois de todos esses anos na força... – Ernst não conseguiu terminar a sentença antes de Patrik interrompê-lo.
– Depois de todos esses anos na força você deveria saber o que fazer! E você não pensou em dizer nada quando o nome dele apareceu numa investigação de assassinato? Isso não teria sido um bom momento para nos contar sobre a ligação?
Ernst tinha voltado a estudar seus sapatos e não sentiu vontade de discutir. Patrik se sentou e suspirou. Ele dobrou os braços e olhou para Ernst.
– Bem, não há muito que possamos fazer agora. Recebemos todos os dados de Göteborg e vamos trazê-lo aqui para interrogatório. Também conseguimos um mandado para fazer uma busca na casa dele. É melhor você rezar para que ele não tenha ficado sabendo disso e conseguido eliminar todas as provas. E Mellberg foi informado. Tenho certeza de que vai querer conversar com você.
Ernst não disse uma palavra quando se levantou da cadeira. Sabia que tinha cometido provavelmente a pior besteira de sua carreira. E, no seu caso, havia cometido muitas.
– Mamãe, se eu prometo manter um segredo, por quanto tempo devo mantê-lo?
– Não sei – respondeu Veronika. – Você não deveria contar os segredos dos outros, deveria?
– Hummm – disse Frida, desenhando círculos em seu iogurte com a colher.
– Não brinque com a comida – disse Veronika, limpando o escorredor brava. Depois, parou no meio do que estava fazendo e se virou para sua filha.
– Por que está perguntando?
– Não sei – disse Frida, dando de ombros.
– Sabe sim. Agora, me conte, por que está perguntando? – Veronika se sentou na cadeira ao lado da filha e olhou para ela, atenta.
– Se não se deve contar os segredos dos outros, então não posso contar nada, posso? Mas...
– Como assim? – Veronika tentava convencê-la, mas com cuidado.
– Mas se a pessoa para quem você prometeu algo está morta, ainda precisa manter o segredo? E se você contar algo e depois a pessoa que está morta voltar e ficar muito brava?
– Querida, foi para a Sara que você prometeu guardar um segredo? – Frida continuava fazendo círculos em seu iogurte. – Já conversamos sobre isso antes, e você precisa acreditar em mim quando digo que sinto muito, mas Sara nunca mais vai voltar. Sara está no céu e vai ficar lá para sempre.
– Para sempre, por toda a eternidade das eternidades? Mil milhão de milhão de anos?
– Isso, mil milhão de milhão de anos. E quanto ao segredo, não acho que Sara ficaria brava se você contasse só para mim.
– Tem certeza? – Frida olhava nervosa para o céu cinza que ela conseguia ver pela janela da cozinha.
– Certeza absoluta. – Veronika colocou uma mão sobre o braço da filha, para confortá-la.
Depois de um momento de silêncio, enquanto Frida aparentemente pensava no que sua mãe tinha dito, a garota falou hesitante.
– Sara estava com muito medo. Havia um velho nojento que a deixava com medo.
– Um velho nojento? Quando foi isso? – Veronika esperou tensa pela resposta da filha.
– Um dia antes de ela ter ido para o céu.
– Tem certeza de que foi nesse dia?
Brava por sua mãe duvidar dela, Frida fechou a cara.
– Si-i-im, certeza absoluta. Conheço todos os dias da semana. Não sou um bebê.
– Não, não, sei disso. Você já é grande e claro que sabe os dias – Veronika disse para tranquilizá-la.
Depois, com cuidado, tentou conseguir mais informações. Frida ainda estava brava por sua falta de confiança, mas a tentação de dividir seu segredo finalmente foi mais forte.
– Sara disse que o velho era realmente nojento. Veio falar com ela quando estava brincando perto da água e era malvado.
– Sara disse que ele era malvado?
– Hum-hum – disse Frida, achando que era uma resposta suficiente.
Paciente, Veronika continuou.
– O que ela disse exatamente? Como ele foi malvado?
– Ele a agarrou pelo braço até doer. Assim, ela contou. – Frida demonstrou agarrando forte o próprio braço. – E falou coisas tontas também.
– Que tipo de coisas tontas?
– Sara não entendeu tudo. Só disse que sabia que eram indecentes. Parecia como “ilha do remo” ou algo assim.
– Ilha do remo? – disse Veronika, espantada.
– Eu falei que era tonto, e Sara não entendeu. Mas era indecente, foi o que ela disse. E ele não falava normal com ela, gritava. Bem alto. E isso fez com que seus ouvidos doessem. – Agora Frida demonstrava colocando as mãos sobres os ouvidos.
Com cuidado, Veronika afastou as mãos da menina e disse:
– Sabe, esse pode ser um segredo que você terá de contar a outras pessoas além de mim.
– Mas você disse... – Frida parecia brava, e seus olhos procuraram, nervosos, o céu cinzento.
– Eu sei o que disse, mas sabe o que acontece? Realmente acho que a Sara iria querer que você contasse esse segredo para a polícia.
– Por quê? – perguntou Frida, ainda preocupada.
– Porque quando alguém morre e vai para o céu, a polícia quer saber todos os segredos que aquela pessoa tinha. E as pessoas normalmente querem que a polícia saiba todos seus segredos também. É o trabalho da polícia descobrir tudo.
– Então, eles precisam saber todos os segredos? – disse Frida, espantada. – Eu preciso contar sobre as vezes em que não quis comer todo o meu sanduíche e o escondia embaixo da almofada?
Veronika não pôde deixar de sorrir.
– Não, acho que a polícia não precisa saber esse segredo.
– Não estou falando enquanto estiver viva, mas, se eu morrer, você vai ter de contar?
O sorriso desapareceu do rosto de Veronika. Ela balançou a cabeça. A conversa tinha tomado um caminho desagradável. Gentilmente, acariciou os cabelos loiros da filha e sussurrou:
– Não precisa se preocupar com isso, porque você não vai morrer.
– Como sabe disso, mamãe? – perguntou Frida.
– Apenas sei. – Veronika levantou-se abruptamente de sua cadeira e, com o coração apertado, a ponto de ter dificuldades de respirar, saiu para o corredor. Sem se virar, para que sua filha não pudesse ver as lágrimas, falou com uma voz que saiu desnecessariamente brusca. – Coloque o casaco e os sapatos. Vamos conversar com a polícia agora.
Frida obedeceu. Mas quando caminharam até o carro, ela involuntariamente vacilou sob o pesado céu cinza. Esperava que mamãe estivesse certa. Esperava que Sara não ficasse brava.
Fjällbacka, 1928
Com amor, ele vestiu os garotos e penteou seus cabelos. Era domingo, e ele ia levá-los para passear. Era difícil vesti-los, porque estavam pulando de alegria por poderem sair com o pai, mas finalmente estavam prontos para ir. Agnes não respondeu quando os garotos se despediram. Anders ficou triste ao ver mais uma vez os olhos sedentos e desapontados dos dois quando olharam para a mãe. Ela parecia não entender, mas eles queriam sentir seu perfume e seus braços ao redor deles. A ideia de que pudesse saber disso, mas deliberadamente negasse esse gesto aos filhos, era uma possibilidade que Anders nem queria imaginar, mas algo em que pensava com cada vez mais frequência. Agora que os garotos tinham quatro anos, ele só podia deduzir que havia algo antinatural na forma como Agnes se relacionava com eles. No começo tinha pensado que era por causa do parto difícil, mas com o passar dos anos, ela parecia continuar sem se conectar aos filhos.
De sua parte não havia nada mais feliz para ele do que quando descia a colina de mãos dadas com as crianças. Os meninos ainda eram tão pequenos que preferiam correr do que caminhar. Às vezes, precisava acelerar o passo para acompanhá-los, ainda que suas pernas fossem muito mais longas. As pessoas sorriam e tiravam o chapéu quando os dois vinham correndo pela rua principal. Ele sabia que eram uma visão bonita – o pai, grande e alto usando a roupa de domingo, e os garotos, também, tão bem-vestidos quanto os filhos de um escultor podiam ser e com os cabelos loiros desgrenhados que eram uma cópia exata dos dele. Tinham até os mesmos olhos castanhos. Anders sempre ouvia que eram iguais ao pai e se enchia de orgulho. Às vezes, até se permitia um suspiro de gratidão por não terem puxado a Agnes na aparência ou nos modos. Durante esses anos, tinha percebido uma dureza nela, que sinceramente esperava que as crianças não herdassem.
Quando ele passava pelo mercado da vila, acelerava os passos e evitava olhar naquela direção. Naturalmente, precisava ir lá de vez em quando para comprar coisas, mas desde que tinha ouvido o que as pessoas estavam falando, tentava limitar suas visitas o máximo possível. Se pudesse acreditar que não havia nenhuma verdade no que os fofoqueiros estavam comentando, poderia ter entrado ali com a cabeça erguida. A pior coisa era que não duvidava dos rumores nem por um minuto. E mesmo se tivesse duvidado, o sorriso superior do dono do mercado e o ousado tom de voz teriam sido suficientes para convencê-lo. Muitas vezes, Anders se perguntava se devia impor algum limite. Se não fosse pelos meninos, teria resolvido isso há muito tempo. Mas os gêmeos o forçavam a procurar outra opção que não fosse abandonar a esposa, e ele acreditava que tinha encontrado. Anders tinha um plano. Havia levado um ano de trabalho duro para desenvolvê-lo, mas agora estava ficando mais concreto. Assim que algumas partes se encaixassem, ele seria capaz de oferecer um recomeço para sua família, uma chance de fazer tudo certo. Talvez pudesse então dar a Agnes mais do que ela ansiava para que a escuridão que parecia estar crescendo dentro de seu coração desaparecesse. Pensou que já podia ver como sua nova vida seria e como ela poderia oferecer a todos muito mais do que a atual.
Apertou a mão dos meninos mais forte e sorriu para eles, que se viraram para olhar para o pai.
– Papai, podemos tomar um refrigerante? – perguntou Johan, com a esperança de que o bom humor do pai significasse que concordaria com o pedido.
E ele concordou. Depois de pensar por um momento, Anders assentiu, e os garotos comemoraram e pularam de alegria. Comprar um par de refrigerantes significaria uma visita ao mercado, claro, mas valeria a pena. Logo, tudo aquilo acabaria.
Gösta se sentou em sua sala, desabando sobre a mesa. O clima estava tenso, para dizer o mínimo, desde que o erro de Ernst tinha sido revelado. Ele balançou a cabeça. Seu colega cometera uma série de erros nesses anos, mas dessa vez tinha ido longe demais ao ignorar os procedimentos de trabalho de um oficial de polícia. Pela primeira vez, Gösta achou que Ernst poderia realmente ser demitido por causa de suas ações. Nem mesmo Mellberg poderia defendê-lo depois dessa.
Desesperançado, olhou pela janela. Era a época do ano que mais odiava. Era ainda pior do que o inverno. Ele ainda tinha a lembrança do verão bem fresca em sua cabeça e conseguia recordar todos os pontos de todas as partidas de golfe que tinha jogado. Quando o inverno chegasse, pelo menos um esquecimento piedoso teria começado a dominar, e ele às vezes se perguntava se tinha realmente feito aquelas tacadas perfeitas no campo de golfe ou se tudo tinha sido apenas um lindo sonho.
O telefone interrompeu seus pensamentos.
– Gösta Flygare.
– Oi, Gösta, é a Annika. Olha, estou com Pedersen na linha, e ele está procurando o Patrik, mas não consigo encontrá-lo agora. Poderia conversar com o médico?
– Claro, pode passar. – Ele esperou uns segundos. Depois, ouviu o clique na linha e a voz do legista.
– Alô?
– Oi, estou aqui. É o Gösta Flygare.
– Ouvi que Patrik tinha saído. Mas você também está trabalhando na investigação do assassinato da garotinha, não?
– Todo mundo na delegacia está ajudando.
– Ótimo, então você pode anotar a informação que acabamos de receber, mas é importante que tudo seja passado para Hedström.
Gösta se perguntou por um segundo se Pedersen já tinha ouvido sobre o erro de Ernst, mas depois percebeu que era impossível. Ele provavelmente só queria enfatizar que o chefe das investigações deveria receber todas as informações. E Gösta não tinha nenhuma intenção de cometer os mesmos erros de Lundgren, com certeza. Hedström ia saber tudo, até mesmo a mais tênue limpada de garganta.
– Vou anotar, e depois você me manda por fax, como sempre, certo?
– Claro – disse Pedersen. – Recebemos as análises das cinzas agora. Quer dizer, as cinzas que a garota tinha no estômago e nos pulmões.
– Estou familiarizado com os detalhes – disse Gösta, que não pôde deixar de mostrar um pouco de irritação na resposta. Pedersen achava que ele era somente um garotinho de recados na delegacia ou o quê?
Se percebeu a irritação de Gösta, Pedersen a ignorou e continuou, calmamente:
– Bom, descobrimos algumas coisas interessantes. Primeiro, as cinzas não são exatamente frescas. Os resíduos, pelo menos certas porções, poderiam ser caracterizados como... – ele fez uma pausa – bem velhas.
– Velhas? – repetiu Gösta, ainda mal-humorado. Mas ele não podia negar que estava curioso. – O que exatamente significa “velho”? Estamos falando da Idade da Pedra ou dos Loucos Anos 1960?
– Bom, aí está o problema. De acordo com o laboratório, é incrivelmente difícil saber. A melhor estimativa que pude conseguir foi de que as cinzas têm entre cinquenta e cem anos.
– Cinzas de cem anos? – disse Gösta, espantado.
– É ou talvez cinquenta. Ou algo entre os dois. Mas essa não foi a única coisa incrível que eles encontraram. Havia também partículas finas de pedra nas cinzas. Granito, para ser preciso.
– Granito? De onde as cinzas poderiam ser então? Não poderia ser um pedaço de granito que queimou, poderia?
– Não, pedras não queimam, como sabemos. A pedra devia estar esmagada em finas partículas desde o começo. Ainda estão trabalhando no material para tentarem dizer algo mais definitivo. Mas...
Gösta pôde perceber que algo grande estava a caminho.
– Sim? – incentivou.
– O que podem dizer, neste ponto, é que parece ser uma mistura. Encontraram vestígios de madeira misturada com... – ele fez uma pausa, mas depois continuou – matéria orgânica.
– Matéria orgânica? Está dizendo o que eu acho que está? São cinzas de um corpo humano.
– Bom, é o que mostram as análises. Ainda não é possível determinar se são humanas ou de algum animal. E não estão certos de que irão conseguir determinar isso, mas o laboratório vai tentar. E como eu falei, de qualquer forma está misturado com outras substâncias: madeira e granito.
– Que coisa absurda – disse Gösta. – Então alguém guardou essas cinzas antigas.
– Isso, ou as encontrou em algum lugar.
– É verdade, poderia ser isso também.
– Então, isso pode dar algumas pistas – disse Pedersen, seco. – Espero que possamos descobrir mais coisas em alguns dias, por exemplo, se eram realmente restos humanos nas cinzas. Até lá, espero que isso ajude.
– Vai ajudar, sim – disse Gosta, já imaginando a cara de seus colegas quando ele contasse o que tinham descoberto. A pergunta era como essa informação poderia ser usada.
Ele desligou e foi até a máquina de fax. O que estava girando em sua cabeça era a informação sobre as partículas de granito que Pedersen tinha mencionado. Isso devia ser uma pista.
Mas o pensamento escapou.
Asta gemeu quando se levantou. O velho piso de madeira tinha sido colocado quando a casa foi construída e só podia ser limpo com sabão e água. Mesmo sabendo que seu corpo iria sobreviver por mais algum tempo, a cada ano que passava era mais difícil se ajoelhar para fazer a limpeza.
Olhou para a casa. Tinha vivido ali por quarenta anos. Ela e Arne. Antes, ele tinha vivido aqui com os pais, que continuaram morando com os recém-casados. Os dois morreram repentinamente num intervalo de poucos meses. Ela tinha vergonha de pensar naquilo, mas tinham sido anos difíceis. O pai de Arne era rude como um general, e sua mãe não era melhor. Arne nunca tinha discutido isso com ela, mas sabia por comentários aleatórios que tinha apanhado muito quando era pequeno. Talvez por isso era tão duro com Niclas. Um garoto que pensa que é amado com o chinelo vai distribuir amor com o chinelo quando for sua vez. Apesar de, no caso de Arne, ter sido um cinto, claro. O cinto marrom que ficava pendurado do lado de dentro da porta da despensa e que era usado sempre que seu filho tinha feito algo que não agradava ao pai. Mas quem era ela para questionar a forma como Arne criava o filho deles? Certamente ficava com o coração amargurado ao ouvir os gritos abafados de dor do menino e sempre limpava as lágrimas dele quando a surra terminava, mas Arne era quem sabia o que fazer.
Com dificuldade, subiu numa cadeira da cozinha e tirou as cortinas. Ainda não podia ver nenhuma sujeira, mas, como Arne sempre dizia, se alguma coisa ficava suja, era porque deveria ter sido limpa muito antes. Parou abruptamente, com as mãos acima da cabeça, bem no momento em que estava pronta para tirar o suporte da cortina. Não tinha feito a mesma coisa naquele dia horrível? Sim, acreditava que sim. Estava ali, mudando as cortinas, quando ouviu vozes altas vindas do jardim. Naturalmente estava acostumada a ouvir a voz brava de Arne, mas o que era incomum era que Niclas também tivesse levantado sua voz. Era tão inconcebível e as possíveis consequências, tão absurdas, que pulou correndo da cadeira e foi até o jardim.
Eles estavam ali, parados, se encarando, como dois combatentes. Suas vozes, que tinham parecido altas dentro da casa, agora machucavam os ouvidos. Incapaz de parar, tinha corrido até Arne e agarrado seu braço.
– O que está acontecendo aqui? – ainda podia ouvir como sua voz parecera desesperada. E assim que segurou o braço de Arne, percebeu que era a coisa errada a fazer. Ele ficou em silêncio e se virou para ela com olhos completamente vazios de qualquer emoção. Então, levantou a mão e deu um forte tapa nela. O silêncio que se seguiu foi horrível. Eles ficaram os três completamente parados, como uma estátua de pedra com três cabeças. Então ela viu, em câmera lenta, Niclas colocar seu braço para trás, fechar o punho e mirar na cabeça do pai. O som do primeiro soco no rosto de Arne quebrou o silêncio abruptamente e colocou tudo em movimento de novo. Sem acreditar, Arne levou a mão ao rosto e olhou para o filho. Depois Asta viu o braço de Niclas ir para trás novamente e voar até Arne. Depois disso, parecia que nunca ia parar. Niclas se movia como um autômato, batendo sem parar. Arne recebia os golpes sem parecer entender o que estava acontecendo. Finalmente, suas pernas não aguentaram, e ele caiu de joelhos. Niclas estava ofegante. Olhava para o pai de joelhos, com sangue escorrendo do nariz. Virou-se e saiu correndo.
Depois daquele dia, ela não teve permissão de voltar a mencionar o nome de Niclas. Ele tinha dezessete anos.
Asta desceu cuidadosamente da cadeira com as cortinas nos braços. Ultimamente, tinha começado a ter pensamentos inquietantes, e não era nenhum acidente que as lembranças daquele dia estivessem voltando justo agora. A morte da garota tinha liberado muitos sentimentos, tanta coisa que ela tinha tentado esquecer nesses anos. Uma percepção de quanto tinha perdido por causa da cabeça-dura de Arne a tinha dominado, despertando emoções que só tornariam a vida mais difícil para ela. Mas assim que foi visitar o filho na clínica, tinha começado a pensar no que aceitou sem questionar nesses anos todos. Talvez Arne não soubesse tudo, afinal. Talvez não fosse Arne quem deveria decidir como as coisas iam ser, até para ela. Talvez pudesse começar a tomar as próprias decisões sobre sua vida. Esses pensamentos a deixaram nervosa, e ela os afastou para mais tarde. No momento, tinha cortinas para lavar.
Patrik bateu na porta de forma autoritária. Já se esforçava para manter sua expressão neutra. Dentro dele, sentia a repugnância crescendo e deixando um gosto ruim na boca. Esse era o mais baixo de todos, o tipo mais repugnante de pessoa que podia imaginar. O único consolo, e isso não era algo que Patrik diria em voz alta, era que depois que esse tipo de pessoa ia para a cadeia, não tinha sossego na prisão. Pedófilos estavam na base da cadeia alimentar e eram tratados de acordo. Merecidamente.
Ele ouviu passos se aproximando e se afastou. Martin estava tenso atrás dele, e havia vários colegas de Uddevalla parados mais atrás, inclusive alguns que poderiam fornecer conhecimentos valiosos nesses casos – conhecimentos na área de computadores.
A porta se abriu, e Kaj apareceu. Como sempre, estava formalmente vestido, e Patrik se perguntou se ele tinha alguma roupa casual. Ele mesmo sempre enfiava um par de calças de agasalho velhas e uma camiseta confortável assim que chegava em casa.
– O que foi dessa vez? – Kaj enfiou a cabeça para fora e franziu a testa quando viu dois carros de polícia parados na sua porta. – É realmente necessário ficar mostrando a presença de vocês assim? A velha ao lado provavelmente deve estar esfregando as mãos de prazer. Se têm algo a me perguntar, era só ligar ou mandar uma só pessoa em vez de toda a tropa!
Patrik o observou por um momento, imaginando se Kaj realmente se sentia tão seguro com policiais uniformizados aparecendo na sua porta a ponto de isso não levantar nenhuma suspeita de que tinha sido descoberto. Ou talvez fosse simplesmente um ótimo ator. Bom, eles descobririam logo.
– Temos um mandado de busca na sua residência. E queremos que venha até a delegacia para interrogatório. – A voz de Patrik saiu extremamente formal e não revelou nenhuma das emoções que estava sentindo.
– Um mandado de busca na minha casa? Para quê? Foi aquela maldita mulher que inventou isso? Juro que vou... – Kaj deu um passo para fora e parecia estar pensando em ir até a casa dos Florin. Patrik levantou a mão, e Martin bloqueou o caminho.
– Isso não tem nada a ver com Lilian Florin. Temos informações que o envolvem com pornografia infantil.
Kaj ficou duro. Agora Patrik percebeu que não estava atuando antes. Realmente não tinha considerado aquela possibilidade. Gaguejando, tentou recuperar sua compostura.
– O qu... o que... o que você está falando? – Mas seus protestos pareceram impotentes, e o choque fez seus ombros caírem.
– Como disse, tenho um mandado de busca e pedimos que venha conosco até um dos carros, pois queremos continuar essa conversa em paz e tranquilidade na delegacia.
O gosto ruim na boca forçava Patrik a continuar engolindo. Ele queria se jogar sobre Kaj e enchê-lo de pancadas, perguntar como, por que, o que o atraía nas crianças, garotos, que ele não conseguia sentir numa relação adulta. Mas haveria muito tempo para essas perguntas. A coisa mais importante era garantir as provas.
Kaj pareceu ficar completamente paralisado e sem responder ou pegar sua jaqueta entrou, obediente, no banco traseiro de um dos carros da polícia.
Patrik virou para seus colegas de Uddevalla.
– Vamos levá-lo e começar o interrogatório. Façam o que tiverem de fazer aqui e liguem se encontrarem algo que pudermos usar. Sei que não preciso dizer, mas vou reforçar de todas as formas: levem todos os computadores e não se esqueçam que o mandado inclui a cabana na propriedade. Sei que há pelo menos um computador ali.
Seus colegas assentiram e entraram na casa com expressões determinadas.
Com uma sensação de júbilo, Lilian passou lentamente pelos carros da polícia enquanto ia para casa. Era como se seus sonhos tivessem se tornado realidade. Toda uma falange de policiais do lado de fora da casa do vizinho e, acima de tudo, Kaj com uma expressão abatida tinha sido forçado a entrar no banco traseiro de uma das viaturas. Um sentimento de alegria tomou conta dela. Depois de todos esses anos de problemas com ele e sua família, seu comportamento tinha finalmente chegado ao limite. Deus sabe como ela sempre tinha se comportado corretamente. Estava errada em querer fazer tudo com decoro? Era culpa dela que ele tivesse feito coisas que fugiam do espírito de comunidade, obrigando-a a responder com força? E as pessoas tinham a coragem de afirmar que ela era briguenta. Ah, sim, tinha ouvido a fofoca se espalhando pela cidade. Mas negava qualquer responsabilidade pelos problemas entre eles. Se Kaj não continuasse atrapalhando e fazendo coisas estúpidas, não teria arrumado nenhuma confusão. Em circunstâncias normais, ninguém era tão gentil e tranquila quanto ela. E não sentia nenhuma culpa por ter dito à polícia sobre o estranho filho deles. Todo mundo sabia que, cedo ou tarde, pessoas como ele, que tinham algo errado na cabeça, causavam problemas. Talvez tivesse exagerado um pouco o comportamento de Morgan em sua declaração à polícia, mas só fizera isso para evitar futuros problemas. Pessoas como ele podiam inventar qualquer coisa se tivessem permissão para continuar soltas e era de conhecimento comum que tinham um impulso sexual hiperativo.
Mas agora todo mundo ia ver como as coisas eram de verdade. Não era na porta da sua casa que a polícia estava. Ela parou na frente da porta da casa vizinha para assistir ao espetáculo com os braços cruzados e um sorriso malévolo nos lábios.
Quando o carro de polícia foi embora levando Kaj, ela entrou meio relutante. Pensou por um momento em ir até lá, como uma cidadã preocupada, e perguntar o que estava acontecendo. Mas a polícia tinha desaparecido dentro da casa vizinha antes de ter pensado nisso, e ela não queria parecer uma enxerida, a ponto de ir até lá e bater na porta.
Enquanto tirava os sapatos e pendurava o casaco, imaginou se Monica saberia o que estava acontecendo. Talvez devesse ligar para ela na biblioteca e contar, como boa vizinha, claro. Mas a voz de Stig, vinda do andar de cima, a interrompeu antes que pudesse decidir.
– Lilian, é você?
Ela subiu. Ele parecia fraco hoje.
– Sim, querido, sou eu.
– Onde você estava?
Ele parecia muito mal quando Lilian entrou no quarto. Que pobre alma tinha se tornado agora. Um sentimento de carinho cresceu dentro dela quando percebeu como o marido dependia de seus cuidados. Gostava de se sentir tão necessária. Era como quando Charlotte era criança. Que sentimento de poder tinha sido ser responsável por uma vida tão indefesa. Na verdade, era o período de que mais tinha gostado. Aos poucos, conforme Charlotte crescia, ia escapando cada vez mais das mãos de sua mãe. Se Lilian pudesse, teria congelado o tempo e impedido que continuasse a crescer. Mas quanto mais tentava se aproximar da filha, mais ela se afastava. Em vez disso, o pai de Charlotte tinha, mesmo sem merecer, recebido todo o amor e respeito de que Lilian achava ser merecedora. Era a mãe da Charlotte, afinal. O pai sempre devia estar abaixo da mãe. Era ela que tinha dado à luz e, durante os primeiros anos, quem tinha atendido todas as necessidades da filha. Então Lennart tinha tomado o controle, aproveitando os frutos de todo seu trabalho. Tinha transformado Charlotte na filhinha do papai. Depois que Charlotte se mudou, e os dois ficaram sozinhos, ele começou a falar em divórcio, como se Charlotte fosse a única que contasse em todos aqueles anos.
A lembrança fez sua raiva crescer até a garganta, e ela se forçou a sorrir para Stig. Pelo menos, ele precisava dela. Assim como Niclas, até certo ponto, apesar de o genro não saber. Charlotte não tinha ideia de quanta sorte tinha tido. Em vez disso, ficava sempre reclamando que seu marido nunca ajudava, que não fazia sua parte com as crianças. Ingrata, é o que ela era. Mas Lilian também tinha começado a se sentir profundamente desapontada com Niclas. Ele vinha para casa, a atacava e falava em se mudar. Mas Lilian sabia muito bem de onde vinham esses choramingos. Simplesmente não achava que ele seria tão facilmente influenciável.
– Você está tão séria – disse Stig, tentando segurar sua mão. Ela fingiu não perceber e começou a arrumar cuidadosamente a cama.
Stig sempre ficava do lado de Charlotte, então Lilian não podia contar nada do que estivera pensando. Então, disse:
– Tem algo estranho acontecendo no vizinho. Carros de polícia por todo lado. Não é nada bom, posso dizer, ter esse tipo de gente vivendo tão perto.
Stig se sentou. O movimento o fez sentir dor e segurar o estômago. Mas o rosto estava cheio de esperança.
– Deve ser por causa de Sara. Você acha que descobriram alguma coisa?
Lilian assentiu.
– Não me surpreenderia. Por que outro motivo eles mandariam todo um contingente?
– Seria uma bênção para Charlotte e Niclas se pudéssemos finalmente colocar um fim com isso.
– Verdade, e você sabe como isso me deixou arrasada também, Stig. Agora talvez eu possa recuperar a paz na minha alma novamente.
Ela deixou Stig dar uns tapinhas em sua mão, e sua voz estava adorável como sempre quando falou:
– Claro, querida. Você tem um bom coração, isso foi muito terrível para você. – Ele virou a mão dela e beijou sua palma.
Lilian deixou que segurasse sua mão por mais um segundo, mas depois a puxou. Disse, bruscamente:
– É bom ouvir alguém se preocupando comigo para variar. Vamos esperar que seja isso e eles prendam Kaj por Sara.
– O que mais você acha que poderia ser? – Stig pareceu surpreso.
– Bom, não sei. Realmente não pensei nisso. Mas eu, de todas as pessoas, sei do que ele é capaz...
– Quando é o funeral? – interrompeu Stig.
Lilian levantou da cama.
– Ainda estamos esperando o corpo voltar. Provavelmente na próxima semana.
– Por favor, não use a palavra “corpo”. Estamos falando de nossa Sara.
– Ela, na verdade, é a minha neta, não sua – atacou Lilian.
– Eu a amava também, e você sabe disso – disse Stig, gentil.
– Sim, querido, Eu sei. Perdoe-me. Tudo isso é muito duro para mim, e ninguém parece entender. – Ela enxugou uma lágrima, percebendo o remorso no rosto de Stig.
– Não, sou eu que devia pedir perdão. Foi estúpido da minha parte. Pode me perdoar, querida?
– Claro – disse Lilian, magnânima. – E agora acho que você deveria descansar e não pensar muito em tudo isso. Vou descer e fazer um pouco de chá para você. Depois, seria bom se você dormisse um pouco.
– O que eu fiz para merecer você? – disse Stig para a esposa, com um sorriso.
Não tinha sido fácil para Mellberg se concentrar no trabalho. Não porque ele tivesse alguma vez priorizado essa parte de sua vida, mas normalmente era capaz de fazer alguma coisa. E a situação que Ernst tinha provocado deveria tomar uma grande parte de seus pensamentos. Mas desde o último sábado, nada tinha sido igual. Em seu apartamento, o garoto estava jogando videogame. Os novos que ele tinha comprado ontem. Mellberg sempre tinha controlado bem seu bolso, mas mesmo assim sentiu uma necessidade repentina de ser generoso. E videogames estavam no topo da lista, então seriam videogames. Mellberg tinha comprado um Xbox e três jogos; apesar de ter ficado chocado com o preço, não mudou de ideia.
Porque o garoto era dele, afinal. Simon, seu filho. Se havia tido alguma dúvida antes, elas tinham sido varridas assim que o viu descer do trem. Era como ver a si mesmo quando jovem. O mesmo físico corpulento, os mesmos traços faciais fortes. As emoções que tinham despertado nele eram incríveis. Mellberg ainda estava chocado por ser capaz de ter sentimentos tão profundos. Sempre tinha sentido orgulho de não precisar de ninguém. Bom, com a possível exceção de sua mãe.
Ela sempre dizia que era um pecado e uma vergonha que genes tão excelentes como os dele não fossem transmitidos. E ela tinha razão, sem dúvida. Era uma das principais razões por que gostaria que sua mãe tivesse conhecido seu filho. Para mostrar que ela estava certa. Foi só dar uma olhada no garoto para ver que tinha herdado muitas das características de seu pai. Tal pai tal filho. A mãe do garoto tinha dito em sua carta que ele era preguiçoso, desmotivado, insubordinado e ia mal na escola. Mas isso falava mais sobre as habilidades para educá-lo do que sobre o garoto. Ele só precisava passar algum tempo com o pai, uma figura paterna. Era só uma questão de tempo até se transformar num homem de verdade.
Naturalmente, achava que Simon pelo menos poderia ter dito “obrigado” quando ganhou os videogames, mas o pobre garoto estava provavelmente tão chocado por ter ganhado aquele presente que nem tinha o que dizer. Sorte que Mellberg fosse tão bom em julgar pessoas. Não seria produtivo forçar nada nesse ponto, ele sabia pelo menos isso sobre como cuidar de uma criança. Apesar de não ter nenhuma experiência prática no assunto, precisava admitir, mas quão difícil poderia ser? Era provavelmente uma questão de usar o bom senso. O garoto era adolescente, afinal, e as pessoas diziam que era uma fase difícil, mas na opinião de Mellberg, era simplesmente uma questão de encontrar a linguagem apropriada: gírias para os camponeses e latim para os acadêmicos. E se havia alguém que sabia como conversar com as pessoas no nível delas, era Mellberg. Estava convencido de que não haveria nenhum problema.
Vozes no corredor anunciaram que Patrik e Martin estavam de volta. Com aquele maldito pedófilo. Esse era um interrogatório do qual ele tinha a intenção participar, para variar. E dessa vez, seria forçado a não ser condescendente.
Fjällbacka, 1928
Começou como outro dia qualquer. Os garotos correram para a casa dos vizinhos pela manhã, e ela teve a sorte de terem permanecido ali até a tarde. A velha até sentiu pena e alimentou os dois, então não precisou preparar o almoço, apesar de nunca fazer mais do que uns sanduíches. Essa mudança a deixara de bom humor, tanto que fez a concessão de limpar o chão. Assim, tinha certeza de que receberia um merecido elogio de seu marido à noite. Mesmo não se importando com o que ele pensava, ainda gostava de receber atenção e considerava os elogios como luxos.
Quando ouviu Anders subindo a escada, Karl e Johan já estavam dormindo, e ela lia uma revista feminina na mesa da cozinha. Olhou para ele distraidamente e fez um gesto com a cabeça, mas depois sentiu ansiedade. Ele não parecia tão cansado e triste como normalmente fazia quando chegava em casa; tinha um brilho nos olhos que fazia muito tempo ela não via. Uma vaga sensação de desconforto despertou dentro dela.
Ele sentou numa das cadeiras de madeira, cruzou as mãos e colocou-as sobre a mesa.
– Agnes – ele começou a falar e depois parou. O silêncio durou tempo suficiente para que a sensação ruim em seu estômago crescesse e se transformassse em um nó. Ele obviamente tinha algo em mente, e se havia algo que ela aprendera na vida, era que surpresas raramente eram boas.
– Agnes – ele falou de novo. – Estive pensando muito sobre nosso futuro e nossa família, e cheguei à conclusão de que precisamos mudar.
Certo, até agora ela estava entendendo. Simplesmente não conseguia visualizar o que ele poderia fazer para melhorar a vida dela.
Anders continuou com um orgulho óbvio.
– Então foi por isso que fiz horas extras o máximo que pude no ano passado e guardei todo o dinheiro para poder comprar passagens de ida.
– Passagens? Para onde? – perguntou Agnes, com a sensação estranha crescendo. Também ficou brava por descobrir que ele tinha escondido dinheiro dela.
– Para os Estados Unidos – disse Anders, que parecia esperar uma reação positiva. Em vez disso, Agnes sentiu o choque transformar seu rosto. O que aquele idiota tinha feito agora?
– Estados Unidos? – foi tudo que conseguiu dizer.
Ele assentiu, contente.
– Sim, vamos partir na próxima semana e você pode acreditar que tive muito trabalho para conseguir tudo. Estive em contato com alguns suecos de Fjällbacka que foram para lá, e eles me garantiram que há muito trabalho para alguém como eu. Alguém com talento pode conquistar um bom futuro “over there”. – Disse essas últimas palavras num inglês com forte sotaque, evidentemente orgulhoso de que já sabia duas palavras em sua nova língua.
Agnes queria se inclinar para a frente e dar um tapa bem no meio daquele rosto feliz. O que ele estava pensando? Era tão ingênuo a ponto de acreditar que ela ia entrar num barco e partir para uma terra estrangeira com ele e seus moleques? Para terminar numa posição ainda mais dependente, num país desconhecido, com língua e pessoas estranhas? Claro que ela odiava a vida naquele lugar, mas pelo menos havia a possibilidade de algum dia sair do inferno em que havia se metido. Apesar de, para ser honesta, ter contemplado a ideia de viajar para os Estados Unidos, mas sozinha, sem ele e as crianças agarradas em suas pernas.
Mas Anders não viu o horror no rosto dela. Cheio de felicidade, pegou as passagens e colocou-as sobre a mesa. Desesperada, Agnes olhou os quatro pedaços de papel, espalhados como um leque na frente dela. Queria se encolher e chorar.
Tinha uma semana. Uma miserável semana para conseguir sair daquela situação. Ela se forçou a sorrir para Anders.
Monica tinha ido de carro até Konsum para fazer compras, mas de repente deixou a cestinha de compras no chão e saiu pela porta sem levar nada. Algo dizia que tinha de ir para casa. Sua mãe e sua avó tinham o mesmo “poder”. Podiam sentir coisas, e Monica havia aprendido a ouvir sua intuição.
Ela pisou no acelerador de seu pequeno Fiat quando chegou na estrada que cruzava a montanha, passando o bairro de Kullen. Quando alcançou a curva da estrada que levava a Sälvik, viu o carro de polícia estacionado na frente de sua casa e soube que estava certa em seguir seus instintos. Estacionou bem atrás do carro da polícia e desceu aterrorizada com o que poderia encontrar. Toda as noites da semana anterior, tinha sonhado a mesma coisa. Policiais vinham até sua casa e descobriam a única coisa que tinha feito o máximo para apagar de sua mente. Agora era realidade, não um sonho, e ela se aproximou com relutância. Tentando adiar o inevitável. Foi então que ouviu Morgan chorando e começou a correr. Até o caminho do jardim, até a cabana dele. Ele estava parado na frente da porta da cabana gritando com dois policiais. Com os braços esticados, estava tentando bloquear a entrada.
– Ninguém pode entrar na minha casa! É minha!
– Temos um mandado – disse um policial, tentando convencê-lo. – Precisamos fazer nosso trabalho, então, por favor, nos deixe entrar.
– Não, vocês vão bagunçar tudo! – Morgan abriu os braços ainda mais.
– Prometemos que vamos ser cuidadosos e perturbar o mínimo possível. Por outro lado, podemos ter de levar algumas coisas conosco – se você tiver um computador aí dentro, por exemplo.
Morgan interrompeu o policial com um grito abafado. Seus olhos iam de um lado para o outro, e o corpo tinha começado a tremer incontrolavelmente.
– Não, não, não, não, não – ele repetia. Parecia pronto a defender seus computadores com a vida, e Monica acreditava que isso estava perto da verdade. Ela correu para o grupo.
– O que está acontecendo? Posso ajudar?
– Quem é você? – perguntou o policial mais próximo dela, mas sem tirar os olhos de Morgan enquanto falava.
– Sou a mãe de Morgan. Moro aqui. – Ela apontou para a casa principal.
– Poderia explicar para o seu filho que temos um mandado para entrar na cabana e fazer uma busca? Também temos permissão para levar qualquer computador que possa estar aí dentro.
À menção dos computadores, Morgan começou a balançar a cabeça violentamente e voltou a repetir:
– Não, não, não, não...
Com muita calma, Monica foi até ele. Com os olhos fixos nos policiais, colocou o braço ao redor do filho e acariciou as costas dele.
– Poderiam me contar primeiro por que estão aqui? Depois, tenho certeza de que poderei ajudá-los.
O policial mais jovem parecia embaraçado e abaixou os olhos. O mais velho, que certamente estava mais endurecido pelo trabalho, respondeu calmamente:
– Levamos seu marido para interrogatório e temos um mandado para fazer uma busca na residência.
– Posso perguntar por quê? – Ela podia sentir que isso havia soado desnecessariamente frio, mas ver os policiais parados ali, tentando passar por Morgan sem dar uma explicação razoável era algo que não iria aceitar.
– O nome de seu marido apareceu ligado à posse de pornografia infantil.
A mão que acariciava as costas de Morgan ficou parada no ar. Ela tentou falar, mas tudo que saiu foi um sussurro.
– Pornografia infantil? – Ela limpou a garganta para tentar retomar o controle da voz. – Vocês devem ter cometido um erro. Meu marido, envolvido com pornografia infantil?
Pensamentos começaram a girar em sua cabeça. Coisas que sempre questionou, sempre pensou. Mas a sensação de alívio era mais forte. Eles não tinham vindo pelo que ela mais temia.
Demorou uns segundos para se recuperar e depois se virou para Morgan.
– Agora me escute. Você precisa deixar que entrem na cabana. E precisa deixar que levem os computadores. Você não tem escolha, é a polícia. Eles têm direito.
– Mas e se eles bagunçarem tudo? E a minha agenda? – A voz aguda não era o tom normal, pois mostrava uma sensibilidade incomum.
– Tenho certeza de que serão cuidadosos, como disseram. E você não tem escolha. – Ela reforçou essa última sentença e pôde sentir que ele começava a se acalmar. Era sempre mais fácil para Morgan lidar com situações nas quais não tinha escolha.
– Vocês prometem não bagunçar tudo?
Os policiais assentiram, e Morgan começou a se afastar da porta.
– E vocês precisam ser cuidadosos com os arquivos nos computadores. Tenho muitos trabalhos guardados ali.
Eles concordaram mais uma vez, e então ele saiu do caminho, deixando que entrassem.
– Por que estão fazendo isso, mamãe?
– Não sei – mentiu Monica. Alívio ainda era a emoção dominante dentro dela. Mas aos poucos começou a compreender o que os policiais tinham dito. Um sentimento de desgosto começou a se formar em seu estômago e subir. Ela pegou Morgan pelo braço e o levou para a frente da casa. Olhava preocupada para a cabana enquanto se afastava.
– Não se preocupe, eles prometeram tomar cuidado.
– Vamos entrar na casa? – disse Morgan. – Eu não costumo entrar em casa a essa hora do dia.
– Não, eu sei disso – disse Monica. – Mas hoje teremos de fazer algo totalmente diferente. Não podemos atrapalhar os policiais. Então você precisa ir comigo até a casa da tia Gudrun.
Ele pareceu confuso.
– Mas só vamos lá no Natal. Ou quando um deles faz aniversário.
– Eu sei – disse Monica, paciente. – Mas hoje teremos de abrir uma exceção.
Ele pensou nisso por um momento e depois decidiu que havia lógica no que a mãe estava falando.
Enquanto caminhavam até o carro, Monica viu pelo canto do olho a cortina se mexer na cozinha dos Florin. Lilian estava na janela, olhando para eles. Estava sorrindo.
– Então, Kaj. Essa não é uma situação agradável. – Patrik se sentou encarando-o, com Martin ao seu lado e Mellberg sentado discretamente numa cadeira no canto. Para grande alívio de Patrik, ele tinha se oferecido voluntariamente para ter um papel passivo no interrogatório. Patrik teria preferido não tê-lo ali, mas ele era o chefe, afinal.
Kaj não respondeu. Abaixou a cabeça, dando a Patrik e Martin uma boa visão do alto de sua cabeça. Seus cabelos tinham ficado ralos com o passar dos anos, então a careca rosa brilhava entre os tufos de cabelo escuro.
– Você tem uma explicação de por que seu nome aparece numa lista de compradores de pornografia infantil? E não me venha com a velha história de que deve ser um erro. Seu nome e endereço estão na lista, então não há motivo para duvidar de que foi você que fez o pedido.
– Alguém deve estar tentando me incriminar – Kaj murmurou.
– Ah, verdade? – disse Patrik, a voz cheia de sarcasmo. – Então, talvez você possa nos explicar por que alguém se daria ao trabalho de tentar colocá-lo na cadeia. Que tipo de arqui-inimigos você fez nesses últimos anos?
Kaj não respondeu. Martin bateu a mão na mesa para que ele prestasse atenção, o que fez Kaj pular.
– Não ouviu minha pergunta? Quem estaria interessado em mandá-lo para a prisão?
Ainda nenhuma resposta, então Martin continuou.
– Não é algo fácil de responder, é? Porque não há ninguém.
Havia várias páginas impressas na frente dos dois policiais. Patrik as folheou por um momento, em silêncio, tirando algumas páginas e colocando-as sobre uma pilha.
– Você deve perceber que temos muito material sobre você. Temos o nome dos outros que... – procurou o termo correto – compartilham o mesmo interesse e com quem você esteve em contato. Temos informações de quando pediu material deles, sabemos que você mesmo já forneceu material e também temos registros das sessões de bate-papo que nossos colegas em Göteborg conseguiram capturar. Há muitos sujeitos talentosos no uso de computadores, acho que você entende. E eles não são enganados pelos elaborados firewalls que vocês montam para que ninguém possa hackear seu pequeno grupo e espiar os assuntos que discutem. Nada é completamente seguro, você sabe.
Então Kaj olhou para cima, e seus olhos iam sem parar de Patrik para os impressos na frente dele. Todo seu mundo estava desmoronando enquanto o ponteiro de segundos ia se movendo no relógio de parede atrás dele. Patrik viu que ele ficou abalado pela revelação de que alguém tinha sido capaz de acessar os arquivos que achava que estavam completamente protegidos. Agora Kaj estava se perguntando claramente o quanto eles sabiam. Era o momento certo de pressioná-lo um pouco mais.
– Neste exato momento, estamos fazendo uma busca em toda a sua casa. E nossos colegas não são amadores. Não há nenhum esconderijo que já não tenham encontrado. Nenhum cubículo secreto e genial que não possam encontrar. E seu computador será enviado a Uddevalla, para ser examinado por alguns caras que são verdadeiros hackers. Sabe, caras que poderiam entrar em bancos na internet e passar dinheiro de uma conta para outra se quisessem e se não estivessem do lado da lei.
Patrik achou que poderia estar exagerando um pouco as habilidades de seus colegas, mas Kaj não sabia disso. E dava para ver que a tática estava funcionando. Pequenas gotas de suor tinham começado a aparecer na testa de Kaj, e ele podia sentir, mesmo sem ver, que suas pernas tinham começado a tremer incontrolavelmente.
– E mesmo que você seja um amador quando se trata de computadores, talvez Morgan tenha dito que mesmo apagando um arquivo, isso não significa que ele tenha desaparecido. Nossos técnicos podem restaurar quase tudo, desde que o hard drive não tenha sido danificado.
Martin continuou de onde Patrik parou.
– Assim que tiverem a chance de examinar seu computador, vão nos contar. Depois, vamos saber exatamente o que você andou fazendo. Göteborg e nossa equipe estão trabalhando com força total para tentar identificar as crianças que aparecem no material que a polícia confiscou. A informação que temos até agora indica que suas vítimas favoritas são garotos. Isso está correto? Bom, é verdade, Kaj? Você prefere garotos sem pelos no peito – meninos jovens e inocentes?
O lábio inferior de Kaj estava tremendo, mas ele continuou sem dizer nada.
Patrik se inclinou e abaixou a voz. Agora tinha chegado o momento de entrar na questão real do interrogatório.
– Mas e as garotas? Funciona com garotinhas também? Pequenas tentações que vivem tão perto, bem ao lado, na casa da vizinha. Deve ter sido quase irresistível. Principalmente se era uma chance de se vingar de Lilian. Que sensação. Bem no nariz dela, para vingar todos aqueles anos de injustiça. Mas algo deu errado, não foi? Como aconteceu? A garota começou a lutar, disse que ia contar para a mãe, então você foi obrigado a afogá-la para que calasse a boca?
Boquiaberto, Kaj olhou primeiro para Patrik, depois para Martin. Seus olhos estavam grandes e brilhantes. Ele balançou a cabeça.
– Não, não tive nada a ver com isso. Nunca encostei nela, juro!
As últimas palavras saíram como um grito, e parecia que Kaj ia ter um ataque cardíaco a qualquer momento. Patrik pensou se deveria interromper o interrogatório, mas decidiu continuar um pouco mais.
– E por que deveríamos acreditar em você? Temos provas de que tem interesse sexual em crianças e logo saberemos se há alguma prova de que realmente atacou alguma. Uma garota de sete anos vivendo na casa ao lado da sua foi encontrada afogada. É uma estranha coincidência, não acha?
Ele não mencionou que nenhum traço de ataque sexual tinha sido encontrado em Sara. Mas como Pedersen havia dito, isso não necessariamente significava que não havia acontecido.
– Mas juro que não tive nada a ver com a morte da garota! Ela nunca entrou em nossa casa, juro!
– Isso ainda precisa ser confirmado – disse Martin, áspero, olhando para Patrik. Viu a mesma expressão “que droga” nos olhos dele. Patrik deu um leve aceno, e Martin se levantou para fazer uma ligação. Tinham se esquecido de pedir uma equipe de técnicos para verificar o banheiro. Quando aquele erro foi corrigido, e ele teve a resposta de que iriam cuidar disso imediatamente, voltou para a sala de interrogatório. Patrik ainda estava perguntando sobre Sara.
– Então, você realmente espera que acreditemos quando diz que nunca ficou tentado a... se interessar pela garota vizinha. Ela era uma menina muito doce, também.
– Não a toquei, estou falando. E não a chamaria de doce. Uma maldita filha de Satã era o que era. Enfiando-se em nosso jardim no verão e arrancando todas as flores de Monica. Sem dúvida, com ordens de sua maldita avó.
Patrik ficou chocado ao ver como o nervosismo de Kaj desapareceu rapidamente, e seu ódio por Lilian Florin tomou conta. Mesmo nessas circunstâncias, os sentimentos estavam tão arraigados que por um momento fizeram Kaj esquecer por que estava sentado ali. Foi então que Patrik percebeu que a realidade voltava à mente do homem, e os ombros dele caíram quando se encurvou sobre a mesa.
– Não matei a garotinha – disse Kaj em voz baixa. – E nunca a toquei, juro.
Patrik mais uma vez trocou um olhar com Martin e depois tomou uma decisão. Eles provavelmente não iam conseguir mais nada agora. Com sorte, teriam mais material depois que a busca fosse concluída na casa e no computador de Kaj. E, se tivessem realmente sorte, os técnicos encontrariam algo quando examinassem o banheiro.
Martin levou Kaj de volta para a cela, e Mellberg saiu logo em seguida. Patrik continuou onde estava. Olhou para o relógio. Já estava cansado. Queria ir para casa e beijar Erica, enterrar o nariz no pescocinho de Maja e se embebedar com o perfume dela. Era provavelmente a única coisa que poderia dissipar o horrível sentimento que tinha depois de se sentar na mesma sala que Kaj. Uma sensação de inadequação também o fazia buscar a segurança de seu lar. Pessoas como Kaj não deveriam ficar livres. Principalmente se tinham a morte de uma garotinha na consciência.
Estava a ponto de sair quando Annika o parou.
– Você tem visitas; estão esperando faz algum tempo. Gösta quer conversar urgentemente com você. E tenho uma pista que deveria olhar imediatamente.
Patrik deu um suspiro e deixou a porta se fechar. Parecia que teria de desistir do plano de ir para casa. Agora parecia que, em vez disso, teria de ligar para Erica e avisar que chegaria tarde. Era uma conversa que preferia evitar.
O dedo de Charlotte hesitou diante da campainha. Depois, ela se decidiu, respirou fundo e apertou o botão. Ouviu tocar. Por um segundo, pensou em se virar e fugir, mas ouviu passos do lado de dentro e se forçou a esperar.
Reconhecia vagamente a mulher que abriu a porta. A cidade era suficientemente pequena para que tivessem se cruzado, e ela viu que a outra mulher sabia exatamente quem ela era. Depois de um momento de hesitação, Jeanette abriu a porta.
Charlotte ficou surpresa ao ver como era jovem. Vinte e cinco, Niclas tinha dito quando ela o pressionou. Não sabia por que queria saber esses detalhes. Era como uma necessidade primitiva, um desejo de saber o máximo possível. Talvez fosse por que esperava entender, de alguma forma, o que ele estava procurando, algo que ela aparentemente não podia dar. E talvez fosse por isso que tivesse sido inexoravelmente arrastada até ali. Ela nunca havia confrontado nenhuma amante de Niclas antes. Teve vontade de vê-las, mas nunca ousara. Mas, depois da morte de Sara, tudo tinha mudado. Era como se ela fosse invulnerável. Todos os terrores tinham desaparecido. Já tinha sofrido o pior que poderia acontecer com uma pessoa. Tudo que antes a havia paralisado e aterrorizado, agora pareciam obstáculos insignificantes. Não que tivesse sido fácil vir ali, não diria isso. Mas tinha conseguido. Sara estava morta, então podia fazer o que quisesse.
– O que você quer? – Jeanette olhou para ela, cautelosa.
Charlotte sentiu-se grande em comparação com a outra mulher, que não passava de 1,60 m. Com 1,75 m, Charlotte se sentia uma gigante. Jeanette também não tinha perdido suas medidas com duas gestações. Charlotte não pôde deixar de perceber que os seios dela na blusa apertada não precisavam de sutiã para ficarem levantados. Na sua mente, imaginou Jeanette nua, na cama com Niclas, que acariciava seus seios perfeitos. Balançou a cabeça para se livrar da imagem. Já tinha passado tempo demais com esse tipo de autotormento durante os anos. Mas essas imagens não a incomodavam tanto. Ela tinha outras piores em sua cabeça – imagens de Sara, boiando na água.
Charlotte se forçou a voltar à realidade. Numa voz calma, disse:
– Só quero conversar com você um pouco. Poderíamos tomar uma xícara de café?
Ela não sabia se Jeanette esperava que aparecesse ou se achava a situação tão surreal que não conseguia entender. De qualquer forma, o rosto de Jeanette não mostrou nenhuma surpresa. Ela simplesmente concordou e foi até a cozinha, seguida por Charlotte.
Curiosa, ficou olhando o apartamento. Era mais ou menos o que imaginava. Era pequeno, com dois quartos, cheio de móveis de madeira, cortinas de babado e lembranças de viagens ao exterior como principal decoração. Jeanette aparentemente guardava cada öre que ganhava para fazer viagens para lugares ensolarados, e essas viagens eram, aparentemente, o ponto alto de sua vida. Exceto quando estava trepando com homens casados, quer dizer, Charlotte pensou amargamente enquanto se sentava na mesa da cozinha. Ela não se sentia tão segura quanto esperava que aparentasse. Seu coração batia forte, deixando-a nervosa. Mas tinha olhado bem o rosto da outra mulher, vendo pela primeira vez que tipo de pessoa poderia pesar mais do que votos de casamento, filhos e decência na balança de um homem.
Para sua surpresa, Charlotte ficou desapontada. Sempre imaginou que as amantes de Niclas fossem de uma classe totalmente diferente. Claro, Jeanette era bonita e curvilínea, não dava para ignorar isso, mas era tão – procurou a palavra certa – tão insípida. Não irradiava nenhum calor, nenhuma energia. Pelo que Charlotte podia ver dela e de sua casa, essa mulher não parecia ter a capacidade ou a ambição de fazer nada além de seguir o curso da vida.
– Aqui está – disse Jeanette irritada, colocando uma xícara diante de Charlotte. Depois se sentou do outro lado da mesa e, nervosa, começou a beber seu café. Charlotte percebeu que ela tinha unhas compridas e perfeitas. Outra coisa que não existia no mundo das mães de crianças pequenas.
– Está surpresa por eu ter vindo? – disse Charlotte, observando com calma ostensiva a mulher que estava na sua frente.
Jeanette deu de ombros.
– Não sei. Talvez. Não pensei muito nisso.
Pelo menos era honesta, pensou Charlotte. Se era ousadia ou somente estupidez, ainda não era possível saber.
– Você sabia que Niclas me contou sobre você?
Mais uma vez o mesmo movimento de ombros.
– Sabia que isso ia acontecer cedo ou tarde.
– Como você sabia disso?
– As pessoas falam muito nessa cidade. Sempre há alguém que viu alguém em algum lugar, e elas sentem a necessidade de contar para os outros.
– Parece que essa não é a primeira vez que você faz isso – disse Charlotte.
Um pequeno sorriso surgiu nos cantos da boca de Jeanette.
– Não posso fazer nada se os melhores já têm dona. Não que isso os incomode muito.
Charlotte fechou um pouco os olhos.
– Então Niclas não se preocupava com isso também? Que fosse casado e tivesse dois filhos? – A palavra “tivesse” ficou presa em sua garganta, e ela sentiu as emoções aflorarem de novo, ameaçando tomar conta. Com um esforço, conseguiu controlá-las.
Sua hesitação aparentemente fez Jeanette perceber que poderia ter certas obrigações humanas. Com a voz dura, falou:
– Sinto por sua filha. Pela Sara.
– Não mencione o nome da minha filha, obrigada – disse Charlotte com uma voz tão fria que fez Jeanette ter um arrepio. Abaixou os olhos e mexeu seu café.
– Mas responda a pergunta que eu fiz: Niclas se preocupava por dormir com você quando tinha uma família em casa?
– Ele não falava de você – disse Jeanette, evasiva.
– Nunca?
– Tínhamos outras coisas para fazer em vez de falar sobre você – soltou Jeanette, antes de perceber mais uma vez que, por certa decência, era melhor tomar cuidado com o que falava.
Charlotte olhou para ela enojada. Mas sentia ainda mais por Niclas, que claramente não tinha problemas em jogar fora tudo que compartilhavam por isto, uma garota estúpida e pouco inteligente que achava que o mundo estava a seus pés simplesmente porque tinha sido escolhida a mais bonita no colegial. Sim, Charlotte conhecia o tipo. Muita atenção durante seus anos mais impressionáveis tinham inflado o ego de Jeanette até chegar a proporções enormes. Machucar outras pessoas, tomar o que não pertencia a ela, essas coisas significavam nada para garotas assim.
Charlotte se levantou. Tinha se arrependido de vir. Teria preferido manter a imagem da amante de Niclas como uma mulher linda, inteligente e apaixonada. Alguém que pudesse ver como concorrência. Mas essa garota era barata. Pensar em Niclas com Jeanette fez seu estômago virar, e ela podia sentir o pouco respeito que tinha por ele desaparecer completamente.
– Não precisa me acompanhar – ela falou e deixou Jeanette sentada na mesa da cozinha. No caminho, acabou derrubando um asno de cerâmica, com a inscrição “Lanzarote 1998”, que estava em uma mesa no corredor. Ele caiu e se quebrou em mil pedaços. Um asno por outro, pensou Charlotte, olhando feliz os restos antes de fechar a porta atrás de si.
Fjällbacka, 1928
Foi num domingo que a catástrofe aconteceu. O barco para os Estados Unidos deveria partir de Göteborg na sexta, e eles já tinham empacotado a maioria das coisas. Anders enviara Agnes até a cidade para comprar os últimos itens que achava que precisariam over there e até tinha dado um pouco de dinheiro para ela, algo raro.
Ela tinha a cesta cheia de compras quando virou a esquina e começou a subir a colina. Podia ouvir as pessoas gritando ao longe e apertou o passo. Viu a fumaça algumas casas antes da sua e percebeu que estava mais forte no alto da colina. Agnes largou a cesta e correu. A primeira coisa que viu foi o fogo. Enormes labaredas saindo das janelas da casa, e as pessoas correndo de um lado para o outro como galinhas com a cabeça cortada. Os homens e algumas mulheres estavam carregando baldes de água. O resto das mulheres colocava as mãos na cabeça, gritando em pânico. O fogo tinha se espalhado por várias casas e parecia estar destruindo todo o bairro. Espalhou-se com uma velocidade incrível. Agnes observava a cena com a boca e os olhos abertos, chocada. Nada poderia tê-la preparado para essa visão.
Uma espessa fumaça preta começou a subir por cima das casas, deixando o ar cinzento e pesado, como uma neblina. Agnes ainda estava parada como se estivesse congelada quando uma das vizinhas veio até ela e a agarrou pelo braço.
– Agnes, venha comigo, não fique parada aí olhando. – Tentou puxá-la, mas Agnes não conseguia se mover. Os olhos cheios de lágrimas por causa da fumaça enquanto olhava as ruínas de sua casa. Parecia que era a que mais queimava.
– Anders... os garotos... – ela disse, sem forças. A vizinha agora a puxava desesperada pela blusa para afastá-la da cena.
– Não sabemos nada ainda – disse a mulher, que Agnes se lembrava vagamente se chamar Britt ou talvez Britta. Ela continuou: – Todo mundo recebeu a ordem de se juntar na praça do mercado. Talvez sua família já esteja ali – ela disse, mas Agnes podia sentir a dúvida em sua voz. A mulher sabia tão bem quanto ela que não encontraria nenhum deles ali.
Ela se virou lentamente e sentiu o calor do fogo esquentando suas costas. Apática, seguiu Britt ou Britta pela colina, permitindo ser levada até a praça, onde o choro das mulheres preenchia o ar. Mas todas ficaram em silêncio quando Agnes apareceu. O rumor já tinha se espalhado; enquanto estavam chorando por seus lares e posses perdidas, Agnes ia chorar por seu marido e seus dois meninos. Todas as mães olhavam para ela com o coração dolorido. Independentemente do que podiam ter dito ou pensado sobre ela antes, naquele momento era a mãe que tinha perdido seus filhos, e todas abraçaram seus pequenos com mais força.
Agnes não conseguia deixar de olhar o chão. E não chorou.
Elas se levantaram quando Patrik se aproximou. Veronika segurava a mão da filha com força e não a soltou nem quando Patrik as levou até sua sala. Apontou para as duas cadeiras, e elas se sentaram.
– Então, como posso ajudá-las? – perguntou Patrik, sorrindo para Frida quando notou sua expressão ansiosa. Ela olhou para sua mãe, que assentiu.
– Frida tem algo para lhe contar – disse Veronika, fazendo outro gesto para a filha.
– Na verdade, é um segredo – disse Frida, com a voz fraca.
– Oh, um segredo – disse Patrik. – Que emocionante. – Ele podia ver que a garota estava com muitas dúvidas se deveria ou não contar, então continuou: – Mas, sabe, o papel da polícia é ouvir os segredos de todo mundo, então realmente não tem nenhum problema se você contar.
Isso fez o rosto de Frida se iluminar.
– Então você sabe todos os segredos do mundo?
– Bom, talvez não todos – disse Patrik. – Mas quase todos. Então, que tipo de segredo você sabe?
– Havia um velho nojento que assustava Sara – ela disse, agora falando mais rápido. – Ele era muito ruim e disse que ela era uma “ilha do remo”, e Sara ficou com muito medo. Mas eu não devia contar a ninguém, porque ela tinha medo que o velho voltasse.
Ela respirou. Patrik sentiu as sobrancelhas arquearem. Ilha do remo?
– Como era o velho, Frida? Você consegue se lembrar?
Ela assentiu.
– Era supervelho. Uns cem anos, pelo menos. Como o vovô.
– O avô dela tem sessenta – disse Veronika e não pôde deixar de sorrir.
Frida continuou.
– Seu cabelo era todo grisalho e suas roupas, todas pretas – ela parecia que ia continuar, mas se afundou na cadeira. – É tudo que lembro – disse triste, e Patrik piscou para ela.
– Excelente. E é um bom segredo para contar para a polícia.
– Então, você não acha que Sara vai ficar brava comigo quando voltar do céu, porque eu contei o segredo dela?
Veronika respirou fundo, pronta para explicar novamente as realidades da morte para a filha, mas Patrik a interrompeu.
– Não, porque sabe o que eu acho? Que Sara está muito feliz no céu e não vai querer voltar, e tenho certeza de que ela não se importa se você contou o segredo dela.
– Tem certeza? – disse Frida cética.
– Certeza – assegurou Patrik.
Veronika se levantou.
– Bom, sabe onde vivemos se precisar perguntar mais alguma coisa. Mas realmente acho que a Frida não sabe mais do que isso – ela hesitou. – Você acha que poderia ser...?
Patrik balançou a cabeça e comentou:
– Impossível dizer, mas foi ótimo você ter vindo me contar isso. Toda informação é importante.
– Posso andar num carro de polícia? – perguntou Frida, dando um olhar de súplica para Patrik.
Ele riu:
– Hoje não, mas vou ver se podemos marcar para outro dia.
Ela pareceu contente com isso e seguiu a mãe pelo corredor.
– Obrigado por virem – disse Patrik, cumprimentando Veronika.
– Espero que peguem logo o homem que fez isso. Eu não consigo mais deixá-la sair sozinha – disse, acariciando os cabelos da filha.
– Estamos fazendo o melhor possível – disse Patrik, demonstrando mais confiança do que realmente estava sentindo, enquanto as acompanhava até a entrada.
Quando a porta se fechou atrás delas, pensou no que Frida tinha dito. Um velho nojento? A descrição que tinha dado não combinava com Kaj. Quem poderia ser?
Ele foi até Annika sentada em sua mesa. Depois de olhar para o relógio, perguntou:
– Você tinha alguma pista que eu deveria olhar?
– Sim, aqui estão – falou, entregando alguns papéis para ele. – E não se esqueça de que Gösta quer conversar com você também. Já deve estar se preparando para ir para casa, então é melhor falar com ele agora.
– Algumas pessoas têm sorte e conseguem ir para casa – suspirou. Erica não tinha ficado feliz quando ligou e ele agora se sentia com a consciência culpada.
– Ele provavelmente só vai para casa quando você deixar – disse Annika, olhando sobre os óculos para Patrik.
– Em teoria você está certa, mas, na prática, é melhor que Gösta vá para casa e descanse um pouco. Ele não contribui muito quando fica sentado aqui, resmungando.
Saiu mais bravo do que era sua intenção, mas às vezes ficava cansado de arrastar seus colegas. Dois deles, pelo menos. Oh, está bem, podia agradecer que a falta de iniciativa de Gösta causasse menos problemas que Ernst.
– Acho que é melhor descobrir o que ele quer.
Patrik pegou o pedaço de papel com a informação e foi até a sala de Gösta. Parou na porta, a tempo de ver o colega fechar o jogo de solitária no computador. O fato de seu colega estar ali perdendo tempo, enquanto Patrik trabalhava como um louco, deixou-o tão irritado que rangeu os dentes. Não poderia discutir com o colega agora, mas cedo ou tarde...
– Então, aí está você – disse Gösta, parecendo um pouco incomodado, e Patrik imaginou se “cedo” poderia ser a melhor opção.
– Eu tinha algo importante para resolver – disse Patrik, fazendo um esforço para não soar tão crítico quanto se sentia.
– Bom, tenho algumas coisas para contar também – disse Gosta, e Patrik ouviu, surpreso, certa ansiedade na voz do colega.
– Shoot – disse Patrik em inglês, percebendo depois, pelo olhar confuso de Gösta, que expressões em inglês provavelmente não eram o forte dele. A menos que estivessem relacionadas com golfe, claro.
Gösta contou sobre a conversa com Pedersen, e Patrik ouviu com grande interesse. Pegou as folhas de fax que o outro policial entregou e sentou-se para estudá-las.
– Sim, são inegavelmente interessantes – ele falou. – A pergunta é, como prosseguimos daqui em diante?
– Bem – disse Gösta. – Estive pensando na mesma coisa. A informação poderia nos ajudar a ligar alguém ao assassinato se encontrarmos a pessoa correta. Mas até lá, isso não nos dá muito para continuar.
– E eles não puderam dizer com certeza se os restos orgânicos eram animais ou humanos?
– Não – disse Gösta, balançando a cabeça. – Mas, em poucos dias, poderíamos conseguir a resposta para isso.
Patrik parecia pensativo.
– Conte-me novamente, Gösta, o que Pedersen disse sobre a pedra?
– Que era granito.
– Bastante comum aqui em Bohuslän, em outras palavras – disse Patrik irônico, passando a mão com desânimo pelos cabelos. – Se ao menos pudéssemos saber o que significam as cinzas, aposto que também saberíamos quem matou Sara.
Gösta assentiu.
– Bom, não vamos conseguir avançar agora – disse Patrik, levantando-se. – Mas é uma informação muito interessante. Por que você não vai para casa agora, Gösta, e continuamos amanhã cedo. – Ele até conseguiu dar um sorriso.
Não foi preciso falar duas vezes. Em dois minutos, Gösta tinha desligado seu computador, juntado suas coisas e estava a caminho da porta. Patrik não teria tanta sorte. Já eram quinze para as sete, mas ele se sentou em sua mesa para ler as notas que Annika tinha lhe entregado. Um momento depois, pegou o telefone.
Às vezes, Erica sentia como se estivesse fora do mundo real, encapsulada numa pequena bolha que continuava diminuindo. Agora estava tão pequena que sentia como se pudesse tocar as paredes se esticasse a mão.
Maja estava dormindo em seu colo. Mais uma vez, Erica tinha tentado deitá-la para que dormisse sozinha, mas a menina acordou poucos minutos depois, protestando em voz alta diante da enorme indignidade de se encontrar no berço. E justo quando estava dormindo tão bem no colo de sua mãe. Erica tinha pensado em tentar as sugestões no Livro do Bebê, mas até agora não tinha passado para a parte prática. Então, como sempre, desistiu e silenciou o choro do bebê colocando Maja em seu colo e deixando que dormisse ali. Geralmente dormia por uma ou duas horas, contanto que Erica não se mexesse muito e não fosse perturbada por barulhos altos do telefone ou da TV. Então Erica tinha, agora, que ficar sentada como uma pedra na poltrona por meia hora, com o telefone desligado e a TV no mudo. Claro, não havia nada de bom a essa hora, então ela estava assistindo a mais uma novela americana estúpida que a TV4 pelo jeito tinha comprado de baciada. Ela odiava sua vida.
Sentindo-se culpada, olhou para a bonequinha com a cabeça deitada sobre o travesseirinho. A boca do bebê estava meio aberta, e suas pálpebras se mexiam de vez em quando. O desespero de Erica não tinha nada a ver com falta de amor materno. Ela amava Maja intensa e sinceramente. Ao mesmo tempo, sentia como se tivesse sido invadida por um parasita alienígena que sugava todo o prazer de seu corpo e a forçava a uma existência menor que não tinha nada em comum com a vida de antes.
Às vezes, ela também sentia a mesma amargura com relação a Patrik. Ele podia fazer pequenas aparições em seu universo e depois escapar para o mundo real como uma pessoa normal, não entendia como era estar vivendo a vida dela. Mas em momentos mais lúcidos, percebia que não estava sendo justa. Afinal, como ele poderia entender? Não estava fisicamente ligado ao bebê da mesma forma que ela, nem emocionalmente, para dizer a verdade. Para o bem ou para o mal, o vínculo entre mãe e filha era tão forte no começo que funcionava como uma corrente e uma tábua de salvação.
Uma de suas pernas estava dormente, e Erica tentou mudar de posição com cautela. Era arriscado, sabia disso, mas a dor em sua perna era enorme. Maja começou a reclamar, abriu os olhos e imediatamente começou a procurar comida com a boca aberta. Com um suspiro, Erica deu o peito de novo. Até o momento, Maja só tinha dormido meia hora, e Erica sabia que não ia demorar para voltar a dormir. Sentada assim, sem se mexer, sua bunda ia fazer muito exercício. Não, droga, ela pensou no momento seguinte. Dessa vez, ia fazer Maja dormir sozinha!
Terminou sendo uma batalha de vontades. De um canto, Erica, setenta e dois quilos. Do outro, Maja, seis quilos. Com um firme controle, Erica empurrava o carrinho entre a sala e o corredor. Um braço inteiro de distância, para a frente e para trás. Ela se perguntava como alguém poderia dormir num carrinho que balançava como se houvesse um terremoto, mas de acordo com o Livro do Bebê, isso era exatamente o necessário. Dar ao bebê instruções simples e claras de que “agora você vai dormir, mamãe tem a situação sob controle”. Mas, quinze minutos depois, Erica não poderia descrever exatamente sua situação como “sob controle”. Apesar de Maja, de acordo com todos os cálculos, dever estar extremamente cansada, ela gritava alto, furiosa por seu direito ao calor tranquilizador do corpo de sua mãe lhe ter sido negado. Por um momento, Erica ficou tentada a desistir e se sentar para amamentar a filha até que ela dormisse, mas depois pensou melhor. Não importa a raiva de Maja em relação ao novo regime, e quanto os gritos doíam no coração de Erica, ela estaria melhor com uma mãe feliz e com energia para cuidar dela. Então perseverou. Cada vez que Maja chorava em protesto, Erica empurrava firmemente o carrinho para a frente e para trás. Se Maja se aquietava e parecia a ponto de dormir, Erica parava com cuidado. De acordo com Anna Wahlgren, era importante parar o movimento do carrinho pouco antes de o bebê cair no sono. E aleluia! Meia hora mais tarde, Maja estava dormindo profundamente no carrinho. Com cuidado, Erica o levou até o estúdio, fechou a porta e se sentou no sofá com um sorriso satisfeito no rosto.
Seu bom humor continuou, mesmo já sendo oito e Patrik ainda não ter chegado em casa. Erica não tinha energia para se levantar e acender a luz, então, com o sol desaparecendo aos poucos, a casa tinha ficado totalmente escura. Agora a única luz vinha da tela da TV. Ela assistia, preguiçosamente, um dos muitos reality shows que passavam à noite, enquanto alimentava Maja mais uma vez. Para sua vergonha, precisava admitir que estava viciada em vários desses programas, e Patrik tinha chegado a murmurar que estava cansado de pequenas intrigas e pessoas loucas por atenção da mídia. Seu tempo para assistir a programas de esportes tinha diminuído consideravelmente, mas como não era ele que precisava se sentar e alimentar Maja a noite toda, concordava que Erica fosse a dona do controle remoto. Ela tinha aumentado o volume, espantada como um bando de lindas garotas estavam dispostas a se mostrar e se embonecar para um jovem tonto que tentava convencê-las de que era um bom partido. Era óbvio para todos os telespectadores que ele considerava sua participação no programa uma forma de aumentar seu sucesso nos clubes mais modernos de Estocolmo. Erica, na verdade, concordava com Patrik que o programa era uma zona de inteligência zero, mas quando começava a assistir, não conseguia parar.
Um som na porta da frente a fez diminuir o volume. Por um instante seu velho medo do escuro reapareceu, mas, depois, ela se recuperou e percebeu que deveria ser Patrik finalmente chegando em casa.
– Está bem escuro aqui – ele disse, acendendo algumas lâmpadas antes de chegar até Erica e Maja. Ele se inclinou e beijou o rosto de Erica, depois acariciou gentilmente a cabeça de Maja e caiu no sofá.
– Desculpe por ter chegado tão tarde – ele disse. Apesar da irritação infantil de antes, a raiva de Erica tinha desaparecido completamente.
– Não importa – disse. – A gente se virou bem, nós duas. – Ela ainda estava eufórica por conseguir alguns momentos para si quando Maja estava dormindo no carrinho dentro do estúdio.
– Será que posso assistir a um pouco de hóquei? – Patrik lançou um olhar esperançoso para a TV sem ter percebido o bom humor incomum de Erica.
Ela só bufou em resposta. Que pergunta tonta.
– Foi o que pensei – disse ele e se levantou. – Vou fazer uns sanduíches. Quer um?
Ela balançou a cabeça.
– Comi há pouco. Mas uma xícara de chá seria ótimo. Ela provavelmente vai ficar satisfeita logo. – Como se Maja entendesse o que Erica dissera, olhou contente para a mãe. Ela arrumou as roupas, colocou Maja no berço e foi ficar com Patrik na cozinha. Ele estava no fogão, colocando chocolate em pó numa panela cheia de leite. Erica parou atrás dele, abraçando-o forte. Era tão bom, e ela percebeu quão pouco contato físico eles tinham tido desde que Maja nascera. A maior parte da culpa era dela, precisava admitir.
– Como foi seu dia? – ela perguntou. Isso era outra coisa que havia tempos não fazia.
– Terrível – ele contou, pegando a manteiga, o queijo e o caviar da geladeira.
– Ouvi dizer que vocês levaram Kaj – comentou, com cuidado, sem saber quanto Patrik queria contar. Tinha decidido não falar nada sobre as visitas que tivera naquele dia.
– As fofocas se espalharam como fogo, presumo? – perguntou Patrik,
– Pode-se dizer isso.
– Então, o que as pessoas estão dizendo?
– Que ele deve ter tido algo a ver com a morte da Sara. É verdade?
– Não sei. – Patrik parecia tão cansado enquanto colocava o chocolate quente numa caneca e preparava dois sanduíches. Ele se sentou de frente para Erica e começou a molhar o sanduíche de queijo e caviar no chocolate quente. Depois de um tempo, continuou: – Mas não o levamos para a delegacia pelo assassinato de Sara. Há outra razão.
Ele ficou em silêncio. Erica sabia que não devia se intrometer, mas não conseguiu deixar de perguntar. Em sua mente, ficava se lembrando do olhar apático de Charlotte.
– Mas existe algo que indique que ele possa ter algo a ver com a morte da Sara?
Patrik molhou outro sanduíche no chocolate, e Erica tentou não olhar. Achava esse hábito no mínimo bárbaro.
– Sim, pode existir. Mas teremos de esperar para ver. Não podemos assumir o risco de diminuir muito nosso foco. Há algo mais que precisamos investigar também – ele disse, evitando os olhos dela.
Ela parou de fazer perguntas. Alguns murmúrios de protesto vindos da sala indicavam que Maja estava ficando cansada de ser deixada sozinha. Patrik se levantou e foi pegar o moisés com sua filha dentro. Ela riu, agradecida, e balançou as mãos e os pés quando Patrik a colocou na mesa da cozinha. A preocupação em seu rosto desapareceu, e seus olhos recuperaram aquele brilho especial reservado para sua filha.
– Quem é o docinho do papai? A queridinha do papai teve um bom dia? Ela é a menininha mais doce do mundo? – ele balbuciou com o rosto perto de Maja. Depois o rosto da menina se contorceu, ficou vermelho e um barulho veio das regiões mais baixas seguido de um forte cheiro que se espalhou pela mesa. Erica se levantou automaticamente para resolver a situação.
– Eu faço isso, pode ficar sentada – disse Patrik, e Erica voltou a se sentar, agradecida.
Quando Patrik voltou com Maja recém-trocada e de pijama, ela contou com grande entusiasmo sobre o bem-sucedido truque do carrinho e como tinha conseguido que Maja dormisse.
Patrik parecia cético.
– Ela chorou por quarenta e cinco minutos antes de dormir? É assim mesmo? Na TV, dizem que se eles choram, você deve dar o peito. Pode ser bom para ela chorar tanto assim?
Sua falta de entusiasmo e compreensão deixou Erica furiosa.
– Obviamente, o objetivo não é deixá-la chorar por quarenta e cinco minutos. Isso vai durar só alguns dias e, além disso, se você não acha que é uma boa ideia, pode ficar em casa e cuidar dela! Não é você que precisa ficar sentado aqui amamentando o dia todo. Deve ser por isso que não vê a necessidade de fazer mudanças!
Então, ela começou a chorar e subiu correndo. Patrik ficou sentado ali na mesa da cozinha, sentindo-se um idiota. Ele devia pensar antes de abrir a boca.
Fjällbacka, 1928
Dois dias depois, seu pai veio até Fjällbacka. Ela estava sentada no quartinho onde tinha encontrado um teto temporário, esperando com as mãos cruzadas no colo. Quando ele entrou, Agnes pensou que os rumores estavam certos. A aparência dele era terrível. Os cabelos tinham quase desaparecido do alto da cabeça. Poucos anos antes, ele era agradavelmente rechonchudo, mas agora estava à beira da obesidade, e sua respiração parecia irregular. Estava vermelho pelo esforço, mas, por baixo, havia um tom cinzento que se recusava a ceder ao vermelho. Ele não parecia nada bem.
Hesitou na porta, com uma expressão de descrença quando viu como o quarto era pequeno e escuro, mas ao ver Agnes, correu para abraçá-la. Ela não respondeu ao abraço, mantendo suas mãos no colo. Ele a traíra, e nada podia mudar esse fato.
August tentou fazê-la reagir, mas desistiu e a soltou. E, mesmo assim, não pôde deixar de acariciar seu rosto. Ela se afastou como se tivesse recebido um tapa.
– Agnes, Agnes, minha pobre Agnes. – Ele se sentou na cadeira ao lado dela, mas não tentou tocá-la novamente. A solidariedade em seu rosto dava náuseas. Era muito tarde para isso agora. Quatro anos atrás, ela tinha precisado dele, de seu carinho e conselhos paternais. Agora não fazia nenhuma diferença.
Ela deliberadamente evitava olhar para seu pai, que começou a falar com ela.
– Agnes, sei que errei e que nada do que possa dizer vai mudar isso. Mas deixe-me ajudá-la agora que está nessa situação. Volte para casa e deixe-me cuidar de você. As coisas podem voltar a ser como antes, tudo pode voltar ao que era. O que aconteceu foi horrível, mas juntos podemos deixar tudo para trás.
A voz ficou mais alta e afundou em ondas de perdão que batiam contra a dura casca do coração dela. Suas palavras pareciam uma repreensão.
– Querida Agnes, por favor, volte para casa. Você pode ter o que quiser.
Ela viu pelo canto do olho como as mãos dele tremiam, e seu tom suplicante lhe dava mais satisfação do que poderia ter imaginado. E ela tinha imaginado isso, tinha sonhado com esse momento muitas vezes durante os duros anos que havia enfrentado.
Lentamente, Agnes virou-se para olhar para ele. August tomou isso como um sinal de que tinha aceitado suas súplicas e tentou segurar as mãos da filha. Sem expressão, ela as afastou.
– Estou partindo para os Estados Unidos na sexta – contou, adorando a expressão desalentada no rosto de August.
– Es... Estados Unidos – gaguejou August, e Agnes viu como o suor começava a escorrer sobre os lábios dele. Ele teria esperado tudo, menos isso.
– Anders tinha comprado passagens para os quatro. Sonhava com um futuro para nós lá. Pretendo honrar o desejo dele e ir para lá sozinha – falou dramática, afastando os olhos do pai e voltando-se para a janela. Sabia que seu perfil era lindo na contraluz, e suas roupas negras enfatizavam a palidez que ela tinha mantido tão cuidadosamente.
As pessoas a estavam tratando com cuidado nos últimos dois dias. Um pequeno quarto havia sido colocado à sua disposição, com a promessa de que poderia ficar quanto quisesse. Todas as fofocas, todo o desprezo que havia sido dirigido a ela, tudo isso desaparecera com o vento. As mulheres traziam comida e roupas. Tudo que usava agora ou era emprestado ou doado. Ela não tinha nada.
Os colegas de trabalho de Anders na pedreira também tinham vindo. Vestidos com suas melhores roupas de domingo e recém-banhados, ficaram com os chapéus na mão olhando para o chão. Apertaram a mão dela e murmuraram algumas palavras sobre Anders.
Agnes mal podia esperar para se afastar dessa multidão gasta e remendada. Queria entrar logo no navio que a levaria para outro continente. Queria deixar o ar marítimo limpar a sujeira e a decadência que se infiltrara sob sua pele como uma membrana. Por mais alguns dias teria de tolerar a solidariedade e as patéticas tentativas de demonstrar boa vontade. Depois partiria e não olharia para trás. Mas, primeiro, precisava conseguir o que queria do homem inchado e com o rosto vermelho sentado perto dela, esse homem que a tinha abandonado de forma tão cruel quatro anos antes. Agora ela o faria pagar muito por cada um desses quatro anos.
Seu pai continuava a gaguejar, ainda em choque pelas notícias que ela tinha acabado de dar.
– Mas, mas, como você vai viver lá? – ele perguntou, preocupado, limpando o suor da testa com um pequeno lenço que tirou do bolso.
– Não sei – respondeu com um suspiro melodramático, permitindo que uma sombra de preocupação tomasse conta de seu rosto. Desapareceu num instante, mas houve tempo suficiente para seu pai perceber.
– Não vai mudar de ideia, minha querida? Venha ficar com seu velho pai.
Ela balançou a cabeça, esperando que oferecesse outra sugestão. A esse respeito, ele não a desapontou. Era tão fácil manipular os homens.
– Não vai me deixar ajudá-la, pelo menos? Algum dinheiro para começar e uma mesada para se virar? Não posso fazer isso por você? De outra forma, vou me preocupar demais com você sozinha e tão longe.
Agnes fingiu pensar na ideia por um momento, e August acrescentou:
– E claro que posso garantir um bilhete melhor para a travessia. Uma cabine particular na primeira classe. Isso é um pouco melhor do que viajar apertada com um monte de pessoas.
Ela assentiu graciosa e, depois de uma pausa, disse:
– Bom, sim, acho que poderia deixar que fizesse isso. Pode me dar o dinheiro amanhã. Depois do funeral – acrescentou, e August hesitou como se estivesse queimando por dentro.
Ele tentou encontrar as palavras corretas:
– Os garotos – começou com uma voz trêmula –, eles se pareciam com o nosso lado da família?
Eram a cara de Anders, mas, com uma voz de pedra, Agnes disse:
– Pareciam idênticos a fotos suas quando pequeno. Como se fossem pequenas cópias suas. E eles sempre perguntavam por que não tinham avô como as outras crianças. – Ela via como suas palavras o machucavam, como se uma faca estivesse sendo enfiada no peito do pai. Uma mentira depois da outra, mas quanto mais a consciência dele pesasse, mais dinheiro daria.
Com lágrimas nos olhos, seu pai se levantou para ir embora. Na porta, ele se virou para olhar para Agnes uma última vez. Ela decidiu dar algumas migalhas e sorriu graciosa. Como tinha previsto, aquele pequeno gesto o deixou feliz, e ele sorriu com os olhos brilhando.
Com ódio, Agnes o observou ir embora. Ela só permitia que alguém a traísse uma vez. Depois disso, não havia segunda chance.
Patrik sentou no carro e tentou se concentrar na primeira tarefa do dia. Pensou que era importante dar seguimento o mais rápido possível à ligação que tinha feito pouco antes de sair do trabalho na noite anterior. Mas ele estava tendo dificuldades para esquecer as palavras estúpidas que tinha dito a Erica. Não pensou que seria tão difícil. Ele sempre acreditou que criar uma criança era fácil. Bom, podia ser muito trabalho, mas não a alta ansiedade que tinham sido os últimos dois meses. Ele suspirou, sentindo-se abatido.
Foi só quando estacionou na porta dos prédios de apartamento marrons e brancos na estrada sul de Fjällbacka que conseguiu se concentrar no presente e esquecer seus problemas em casa. O apartamento para o qual se dirigia ficava no primeiro bloco, na segunda escada, e ele subiu até o primeiro andar. O aviso na porta dizia “Svensson & Kallin”. Ele bateu de leve. Sabia que o casal que morava no apartamento tinha uma criança e sabia como poderia ser ruim que um estranho a acordasse. Um jovem de uns vinte e cinco anos abriu a porta. Apesar de já ser nove e meia, ele parecia irritado, como se tivesse acabado de acordar.
– Mia, é para você.
Deixou Patrik entrar sem cumprimentá-lo e correu de volta para a sala. Patrik olhou dentro do cômodo que deveria ser um quarto de hóspedes, mas que agora mais parecia um salão de jogos, com computador, vários joysticks e pilhas de jogos sobre uma mesa. Um jogo de “atire para matar o maior número de inimigos possível” estava no computador. O jovem, que Patrik assumiu ser Svensson ou Kallin, começou a jogar como se tivesse entrado em outro mundo.
A cozinha estava à esquerda do corredor, e Patrik entrou ali depois de deixar os sapatos na porta da frente.
– Entre, estou alimentando Liam.
O pequeno estava sentado num cadeirão branco, comendo mingau e algum tipo de purê de frutas. Patrik acenou para ele e ganhou um sorriso.
– Sente-se – disse Mia, apontando para uma cadeira de frente para os dois.
Ele se sentou e pegou seu bloco de anotações.
– Poderia me dizer exatamente o que aconteceu ontem?
Um leve tremor na mão que segurava a colher mostrou como os eventos do dia anterior tinham sido pesados. Ela assentiu e relatou brevemente o que tinha acontecido. Patrik tomava notas, mas era a mesma informação que Annika tinha recebido, quando Mia ligou para fazer o relato.
– E você não viu ninguém perto do carrinho?
Mia balançou a cabeça. Liam, que aparentemente achou que sua mãe estava brincando, balançou a cabeça freneticamente também, o que tornou mais difícil alimentá-lo.
– Não vi ninguém. Nem antes, nem depois.
– Você parou o carrinho na parte de trás, foi o que disse?
– Sim, é mais escondido, e pensei que seria mais seguro deixá-lo ali. Queria levá-lo para dentro, mas ele estava dormindo e parecia um trabalho desnecessário arrastar o carrinho para dentro da loja. Eu só ia ficar uns poucos minutos.
– E depois, quando saiu, viu uma substância escura no carrinho e sobre Liam.
– Isso, ele estava gritando como um louco. Devem ter enchido a boca dele, mas Liam conseguiu cuspir a maior parte. A parte de dentro da boca estava preta.
– Você o levou para o médico?
Ela negou com a cabeça novamente, e Patrik viu que tinha tocado num assunto complicado.
– Não. Provavelmente deveria, mas estávamos com pressa para chegar em casa, e ele parecia estar bem, tirando o fato de estar com medo e bravo, então eu...
Sua voz falhou, e Patrik disse:
– Tenho certeza de que não é nada perigoso. Você fez a coisa certa. O garoto parece estar bem.
Liam balançou os braços, como se quisesse confirmar o que fora dito e depois abriu a boca para a próxima colher de mingau. Claro que não havia nada de errado com seu apetite, o que era evidenciado pelo gordo queixo.
– A roupa de que falei ontem, você...
Ela se levantou.
– Não lavei, não, como você me pediu. E está cheia daquela coisa preta. Parecem cinzas, acho.
Ela foi pegar a camisa. Liam olhou um bom tempo para a colher, que ela tinha deixado ao lado da tigela. Patrik hesitou por um segundo, depois se sentou na cadeira de Mia e continuou o trabalho da mulher. Duas colheres foram bem, mas depois Liam decidiu imitar sons de carro, sujando todo o rosto e os cabelos de Patrik com mingau. Foi exatamente quando Mia voltou com a camisa. Ela não pôde segurar a risada.
– Veja só. Deveria tê-lo avisado ou pelo menos oferecido uma capa de chuva. Desculpe.
– Sem problema – disse Patrik tirando um pouco de mingau da testa. – Minha filha tem só dois meses, então é bom que eu pratique um pouco.
– Pode praticar – disse Mia, que se sentou e deixou que Patrik continuasse a alimentá-lo. – Aqui está – ela falou, colocando-a sobre a mesa.
Patrik olhou para a peça. Toda a frente estava preta e suja.
– Gostaria de levá-la comigo. Você se importa?
– Claro que não. Leve. Eu ia jogá-la fora de qualquer forma. Vou colocá-la num saco plástico para você.
Patrik pegou o saco e se levantou.
– Se você se lembrar de mais alguma coisa, ligue para a delegacia – ele falou, entregando seu cartão.
– Pode ter certeza. Só não consigo entender por que alguém faria algo assim. O que você acha que a camisa poderia revelar?
Ele só balançou a cabeça como resposta. Patrik não podia contar nada sobre os motivos de seu interesse. Porque nada tinha vazado para a imprensa sobre as cinzas que tinham encontrado em conexão com o assassinato de Sara. Ele olhou para Liam. Graças a Deus não tinha ido tão longe no caso dele. A pergunta era se o assassinato havia sido a intenção; talvez algo tivesse interrompido a pessoa que fez isso. Mas até analisarem as cinzas na roupa, não poderiam dizer se estavam ligadas à morte de Sara. Se bem que podia apostar que achariam a conexão. Não podia ser coincidência.
Quando Patrik voltou para o carro, pegou o celular no bolso do casaco. Não tinha ouvido o resultado da busca na casa de Kaj no dia anterior e achou um pouco estranho. Tinha muita coisa na cabeça para se preocupar com aquilo, mas agora estava pensando por que ninguém falara nada. Xingando, viu que tinha desligado o celular enquanto interrogava Kaj e depois se esquecera de religá-lo. O ícone de mensagens estava piscando. Ele apertou 133 e ouviu, tenso. Com um brilho de triunfo nos olhos, desligou o celular e o recolocou no bolso.
Patrik tinha escolhido de novo a cozinha como o local de reunião. Era o maior cômodo na delegacia, e ele também achava que a proximidade de um café novo era uma vantagem, diante da situação. Annika fora até a padaria no fim da rua e comprara doces e pães. Patrik não precisava torcer o braço de ninguém, por isso estava tranquilo encostado na pia enquanto todos se deliciavam com as altas calorias dos doces.
Ele limpou a garganta:
– Como vocês sabem, ontem aconteceram muitas coisas.
Gösta assentiu e se esticou para pegar outro doce. Mas Mellberg foi mais rápido do que ele. O chefe já estava no terceiro bolinho e parecia que aceitaria um quarto. Ernst sentou-se sozinho e todos evitaram olhar para ele. Desde que seu desastroso erro fora descoberto, um tipo de sombra tenebrosa pairava sobre ele. Ninguém sabia quando o machado cairia. Todas essas questões tinham de ser adiadas enquanto estivessem envolvidos na fase mais intensa da investigação de homicídio. Mas todos sabiam que era só uma questão de tempo. Incluindo Ernst.
Todos os olhos estavam voltados para Patrik. Ele continuou.
– Acho que vou resumir o que temos até agora. A maioria vocês já sabe, mas pode ser bom ter uma visão geral de onde estamos.
Ele limpou a garganta mais uma vez, pegou uma caneta e começou a fazer anotações em uma grande lousa enquanto falava.
– Primeiro de tudo, trouxemos o pai, Niclas, para interrogá-lo e perguntamos sobre seu álibi. Ainda não sabemos onde ele estava na segunda de manhã, e a pergunta é: por que tentou criar um falso álibi? Também suspeitamos de abuso infantil, com base nas informações clínicas sobre os machucados que seu filho Albin sofreu. A pergunta é se Sara também era sujeitada ao abuso e se isso poderia ter avançado e se tornado um assassinato.
Ele desenhou um ponto na lousa, escreveu “Niclas” do lado e desenhou linhas para duas palavras: “álibi” e “suspeita de abuso”. Depois se virou para os colegas.
– Depois a amiguinha de Sara, Frida, veio ontem com sua mãe e contou que alguém que ela chamava de “velho nojento” tinha assustado muito Sara no dia anterior à sua morte. Ele se comportou de uma forma ameaçadora e também a chamou de “ilha do remo”. Alguém sabe o que isso significa?
Patrik olhou curioso para o grupo. No começo ninguém respondeu. Estavam sentados ali quietos e pareciam fazer um esforço para descobrir o que uma frase tão estranha poderia significar.
Annika olhou para eles, balançou a cabeça por causa da torpeza dos colegas e disse:
– Ele provavelmente disse “filha do Demo”.
Era tão óbvio que todos pareciam querer dar um tapa na própria testa.
– Claro – disse Patrik, também xingando sua própria estupidez. – Isso faz lembrar algum fanático religioso. E Frida descreveu o indivíduo como um velho com cabelos grisalhos. Martin, você poderia falar com a mãe da Sara e ver se isso combina com alguém que eles conhecem?
Martin assentiu.
– Depois recebemos uma informação importante ontem. Uma jovem mãe parou o carrinho com o filhinho adormecido na parte de trás de Järnboden. Depois entrou na loja para comprar algo. Quando saiu, começou a gritar, porque a parte interna do carrinho estava coberta por algum tipo de substância preta que também estava na boca do garoto. Parecia que alguém o forçou a engolir a coisa. Fui até lá e conversei com a mãe do garoto esta manhã, e ela me deu a roupa que o menino estava usando. Toda a frente está coberta com algo que poderia ser cinzas.
O silêncio caiu sobre a mesa. Ninguém mastigava nem bebia café. Patrik continuou:
– Já mandei para análise, e algo me diz que é o mesmo tipo de cinzas que encontramos no estômago de Sara. Temos o horário bastante preciso de quando esse... ataque ocorreu, então isso poderia ser ótimo para checar álibis. Gösta, vamos cuidar disso.
Gösta assentiu e pegou os últimos pedacinhos de coco de seu prato.
A lousa estava agora coberta de notas e flechas, e Patrik fez uma pausa por um segundo com a caneta no ar. Depois fez mais um ponto e escreveu “Kaj” perto dele. Era óbvio para todos que tinha alcançado a parte do resumo que julgava mais importante.
– Depois que falamos com nossos colegas em Göteborg, veio à nossa atenção que Kaj Wiberg está envolvido numa investigação de um grupo de pedófilos.
Todos fizeram um esforço ainda maior para não olhar para Ernst, e ele se contorceu um pouco em sua cadeira.
– Trouxemos Kaj para interrogá-lo ontem e também realizamos uma busca em sua casa, com a ajuda de nossos colegas de Uddevalla. O interrogatório não produziu nada de concreto, mas foi só um primeiro passo, e vamos continuar nossas conversas com Kaj. Usando o material que estamos recebendo de Göteborg queremos ver se podemos identificar alguma vítima local. Kaj, como sabem, trabalhou muitos anos com jovens em Fjällbacka, então não é muito absurdo acreditar que ataques ocorreram durante esses anos.
– Existe algo indicando que ele poderia estar ligado ao assassinato de Sara? – perguntou Gösta.
– Vou chegar a isso daqui a pouco – respondeu Patrik evasivo, e Martin olhou-o espantado. Eles não tinham tido nenhuma sorte tentando encontrar qualquer conexão durante o interrogatório.
– A busca na casa de Kaj pode ter levado a um bom avanço na investigação.
A tensão aumentou consideravelmente, e Patrik não podia resistir a usá-la em prol do efeito. Depois, disse:
– Quando fizeram uma busca na casa de Kaj ontem, os oficiais encontraram o casaco de Sara.
Todos eles prenderam a respiração.
– Onde? – perguntou Martin, um pouco zangado por Patrik não ter contado nada.
– Essa é a questão – disse Patrik. – Não estava na casa principal, mas na cabana onde vive seu filho Morgan.
– Jesus Cristo – disse Gösta. – Eu podia jurar que aquele doido estava envolvido. Pessoas assim...
Patrik o cortou.
– Concordo que parece ruim, mas não quero ficar preso a essa teoria ainda. Antes de tudo, não sabemos se foi o pai ou o filho que colocou o casaco ali; Kaj pode ter tentado escondê-lo. Segundo, há muitas outras questões sem respostas – por exemplo, a tentativa de Niclas de criar um álibi falso – então não podemos ignorá-las completamente. Temos de continuar trabalhando em todos os pontos que coloquei aqui na lousa. Alguma questão?
Mellberg falou.
– Excelente trabalho, Hedström. Parece bom. E, sem dúvida, deve checar todas as outras coisas que escreveu também. – Ele fez um gesto para a lousa. – Mas estou inclinado a concordar com Gösta. Aquele rapaz Morgan não parece muito bom, e se fosse você – falou, segurando sua mão teatralmente sobre seu peito –, eu seria mais duro com ele. Mas é claro que você é o responsável pela investigação, e a decisão é sua. – Mellberg falou de uma forma que tornava óbvio a todos que achava que Patrik deveria seguir seu conselho.
Patrik não respondeu, o que Mellberg interpretou como se sua mensagem tivesse sido entendida. Ele assentiu contente. Agora era só uma questão de tempo antes que o caso estivesse resolvido.
Resolutamente, Patrik voltou para sua sala e foi trabalhar nas tarefas do dia. O velho fedorento podia acreditar no que quisesse, mas Patrik não tinha intenção de dançar conforme a música dele. Naturalmente, o fato de que tinham encontrado o casaco na cabana de Morgan também o tinha feito tirar certas conclusões, mas algo – podia ser instinto, experiência ou somente um palpite – dizia que nem tudo era o que parecia.
Fjällbacka, 1928
De costas para o litoral sueco, ela fechou os olhos e sentiu a brisa em seu rosto. Esse era o gosto da liberdade.
O navio para os Estados Unidos tinha partido de Göteborg na hora certa, e o cais estava cheio de pessoas se despedindo de seus entes queridos tanto com esperança quanto com tristeza. Nenhum deles sabia se iriam voltar a se encontrar de novo. Os Estados Unidos estavam tão longe que a maioria das pessoas que ia para lá nunca voltava e só se comunicava por carta.
Mas ninguém tinha ido se despedir de Agnes. Era exatamente o que ela queria. Estava deixando sua velha vida para trás e partindo para uma nova terra. Com o cheque do seu pai no bolso e uma linda cabine na primeira classe, sentia pela primeira vez em anos que estava no caminho certo.
Por um momento, pensou em Anders e nos garotos. A igreja estava totalmente lotada para o funeral, e os choros altos tinham subido até o teto em um coro de tristeza. Mas ela não tinha chorado. Por trás de seu véu havia olhado para os três caixões perto do altar. Um grande e dois pequenos. Os caixões brancos estavam cobertos de flores e coroas. A maior era de seu pai. Ela havia proibido a presença dele.
Não que houvesse muito para colocar nos caixões. O fogo tinha sido tão violento, com um calor tão consumidor, que não sobrara quase nada. Então os caixões continham somente uns poucos vestígios. O pastor havia sugerido que usassem urnas, considerando o estado das reminiscências, mas Agnes quis dessa forma. Três caixões que pudessem ser enterrados.
Alguns dos colegas de Anders tinham feito uma lápide. Uma para os três, com os nomes gravados de forma elegante.
Tinham sido as únicas vítimas do incêndio. De resto, só propriedades haviam sido destruídas, mas a perda fora bastante extensa. Toda a parte baixa de Fjällbacka, a parte mais perto do mar, agora estava carbonizada e em ruínas. Muitas casas desapareceram, e pilhas de madeira queimada se juntavam perto da água onde antes ficava o cais. Mas poucos tinham reclamado pela perda de suas casas. Sempre que sentiam desejo de chorar sobre o que tinham perdido, pensavam em Agnes e no que ela havia perdido. Todos daquela parte da cidade tinham ido ao funeral, e seus corações ficavam apertados quando imaginavam os garotinhos loiros andando de mãos dadas com o pai.
Mas a mãe deles não derramou nenhuma lágrima. Quando o funeral terminou, ela voltou aos seus aposentos temporários e empacotou alguns poucos pertences que tinha ganhado. Caridade. Ser forçada a aceitar esmolas era tão horrível que a deixava enjoada, mas ela nunca estaria à mercê da gentileza de outras pessoas novamente.
Quando estava no convés superior do barco, ninguém adivinharia que até recentemente, tinha vivido na pobreza. Roupas novas tinham sido adquiridas, e sua bagagem era a mais elegante que o dinheiro podia comprar. Com prazer, passou a mão pelo tecido macio de seu vestido. Que diferença das roupas gastas e velhas que tinha usado nos últimos quatro anos.
Tudo que sobrara de sua velha vida era uma caixa de madeira azul que fora enfiada no fundo de sua bagagem. A caixa em si não era importante, mas sim seu conteúdo. Tinha escapado na noite anterior e a enchera para lembrá-la de que nunca mais deveria deixar algo impedir que tivesse a vida que merecia. Cometera o erro de confiar em um homem, e isso havia custado quatro longos anos de sua vida. Depois da forma como foi traída por seu pai, estava determinada a nunca deixar que outro homem fizesse o mesmo. E ela queria que seu pai pagasse caro por suas ações. A solidão era o preço mais alto, mas também queria garantir que o dinheiro dele viesse em sua direção. Merecia isso. E sabia precisamente que botões apertar para manter viva sua consciência culpada. Os homens eram tão fáceis de manipular.
Foi arrancada de seus pensamentos pelo barulho de alguém limpando a garganta. Ficou tão espantada que até deu um pulo.
– Ah, perdoe-me, espero não tê-la assustado, senhora.
Um homem elegantemente vestido sorriu suavemente e estendeu a mão para ela.
Agnes o olhou de forma rápida e prática antes de sorrir também e colocar sua mão enluvada na dele. O homem usava um terno caro, feito sob medida, e tinha mãos que nunca tinham visto o trabalho manual. Na casa dos trinta e com uma aparência agradável, sim, e até atraente. Nenhum anel na mão esquerda. A viagem poderia ser muito mais agradável do que tinha esperado.
– Agnes, Agnes Stjernkvist. E é senhorita, não senhora.
O amigo de Erica, Dan, viera visitá-la. Apesar de terem conversado por telefone algumas vezes, ele ainda não tinha ido conhecer Maja. Mas agora seu corpo enorme enchia todo o corredor e ele segurava o bebê de Erica com a facilidade de um pai experiente.
– Olá, minha garotinha. Que belezinha temos aqui – brincou, levantando-a na direção do teto. Erica teve de reprimir o impulso de agarrar sua filha, mas Maja não parecia se importar com a situação. E considerando que Dan tinha três filhas, provavelmente sabia o que estava fazendo.
– Então, como vai a mamãe? – ele perguntou, dando um de seus abraços de urso em Erica. Eles tinham namorado, havia muito tempo, mas já fazia vários anos que eram apenas bons amigos. A amizade tinha sofrido um revés dois anos antes, quando ambos se envolveram numa investigação de assassinato em circunstâncias desagradáveis, mas a passagem do tempo havia curado tudo. Depois que Dan se divorciou de sua esposa Pernilla, no entanto, não se viam com tanta frequência. Dan tinha iniciado uma vida de solteiro, com tudo que isso envolvia, enquanto Erica caminhou na direção oposta. Ele teve uma série de namoradas inadequadas, mas no momento estava solteiro. Erica achou que parecia estar mais feliz do que nunca. O divórcio havia feito algum estrago, e ele sempre lamentava não estar com as filhas mais do que uma vez a cada quinze dias, mas parecia ter se acostumado com a situação e seguido em frente.
– Você gostaria de dar uma volta conosco? – perguntou Erica. – Maja está começando a ficar cansada e, se dermos uma volta, ela provavelmente vai dormir no carrinho.
– Uma volta curta – murmurou Dan. – Está bastante frio lá fora e prefiro ficar aqui dentro, onde está quente.
– Só até ela dormir – Erica tentou convencer seu amigo, e ele recolocou os sapatos, mesmo relutante.
Ela manteve a promessa. Dez minutos depois, estavam de volta, e Maja dormia tranquila no carrinho.
– Você tem uma babá eletrônica? – perguntou Dan.
Erica balançou a cabeça.
– Não, preciso olhar como ela está de vez em quando.
– Você deveria ter falado. Eu poderia ter tentado encontrar alguma antiga.
– Espero que venha mais vezes agora – disse Erica –, para poder me trazer.
– Certo. Desculpe-me por demorar tanto para vir – ele explicou. – Mas sei como são os primeiros meses, então eu...
– Não precisa se desculpar – disse Erica. – Está certo. Só agora me sinto pronta para receber visitas.
Eles se sentaram no sofá. Erica tinha trazido café e pão doce quente. Dan se serviu.
– Hummm – ele falou. – Você que fez? – Não pôde esconder um tom de espanto em sua voz.
Erica olhou feio para ele.
– Se fosse o caso, você não deveria parecer tão surpreso. Mas não, não fui eu. Minha sogra fez quando esteve aqui – precisou admitir.
– Achei que devia ser algo assim. Não estão queimados o suficiente para serem seus – Dan a provocou.
Erica não conseguiu pensar em nenhuma resposta inteligente. Ele estava certo. Ela nunca tinha sido muito boa cozinheira.
Depois de uma conversa agradável que colocou em dia o que estava acontecendo na vida dos dois, Erica se levantou.
– Preciso olhar a Maja.
Ela abriu com cuidado a porta da frente e olhou para o carrinho. Engraçado, Maja devia ter escorregado para debaixo das cobertas. Abriu a cobertura do carrinho com o máximo de delicadeza que pôde e levantou o cobertor. O pânico tomou conta dela. Maja não estava lá!
A coluna de Martin estalou quando se sentou, e ele esticou os braços acima da cabeça para endireitar a vértebra. A mudança de caixas e móveis o tinha feito se sentir um velho. De repente, percebeu que umas poucas horas de academia poderiam ser uma boa ideia, mas era muito tarde para recuperar o tempo perdido agora. De todo jeito, Pia sempre disse que gostava de seu corpo magrelo, então não via nenhuma razão para mudar. Mas as costas doíam muito.
O novo lugar provou ser ótimo, ele precisava admitir. Pia era quem decidia onde colocar tudo, e o resultado era muito melhor do que qualquer coisa que já tinha conseguido em seus apartamentos de solteiro. Ele só gostaria de poder ter mantido um pouco mais de suas próprias coisas. Só seu estéreo, a TV e uma estante modelo Billy da IKEA tinham sido aprovados. O resto de suas posses tinha sido enviado para o lixo sem misericórdia. Ele se entristeceu por ter de se separar do velho sofá de couro que tinha na sala. Concordava que a peça provavelmente já tinha visto dias melhores, mas as lembranças... ah, quantas lembranças.
Esse segundo pensamento poderia ser precisamente a razão pela qual Pia tinha sido tão firme em favor de um modelo Tomelilla da IKEA. Ele recebera permissão para manter uma velha mesa de cozinha, mas Pia logo comprou uma toalha que a cobria inteira.
Bem, isso era apenas um pouco de areia na máquina. Até o momento não havia nada negativo em morar com ela. Ele adorava voltar para casa e se encontrar com Pia toda noite, se aninhar com ela no sofá e assistir a alguma porcaria na TV, com a namorada deitada em seu colo. E adorava deitar na nova cama de casal e dormir com ela. Tudo era tão maravilhoso quanto tinha sonhado. Sabia que provavelmente devia estar triste pelo fim das loucas festas de seus dias de solteiro, pelo menos era o que alguns de seus amigos diziam, mas sentia tanta falta disso quanto das ressacas no dia seguinte. E Pia, bem, era simplesmente perfeita.
Martin tirou o sorriso bobo apaixonado do rosto e procurou o número da família Florin para ligar. Esperava que não fosse aquela terrível harpia que atendesse. A mãe de Charlotte lembrava a velha caricatura de sogra.
Teve sorte. A própria Charlotte atendeu. Ele sentiu uma onda de compaixão quando percebeu como a voz dela parecia fraca.
– Sim, olá, é Martin Molin da delegacia de Tanumshede.
– Em que posso ajudá-lo? – perguntou Charlotte, cautelosa.
Martin sabia que uma ligação da polícia trazia tanto apreensão quanto esperança, então disse sem demora:
– Bom, só queria confirmar algo com você. Tivemos a informação de que alguém ameaçou Sara no dia anterior à... – ele gaguejou – sua morte.
– Ameaçou? – perguntou Charlotte, e ele quase pôde ver sua expressão espantada. – Quem falou isso? Sara não nos contou nada sobre isso.
– Sua amiguinha, Frida.
– Mas por que Frida não disse nada sobre isso antes?
– Sara a fez prometer não contar nada. Frida disse que era um segredo.
– Mas quem a ameaçaria? – Só agora Charlotte pensou em fazer a pergunta relevante.
– Frida não sabia quem era. Mas descreveu o homem como mais velho, com cabelos grisalhos e roupas pretas. E aparentemente a chamou de “filha do Demo”. Isso a faz lembrar de alguém?
– Certamente – disse Charlotte, por entre os dentes cerrados. – Certamente me faz lembrar alguém.
A dor tinha se intensificado nos últimos dias. Parecia que um animal faminto destroçava seu estômago com as garras.
Stig virou-se de lado com cuidado. Nenhuma posição era realmente confortável. Não importava como ele deitava, algum lugar doía. Mas doía principalmente no coração. Estava pensando em Sara com mais frequência. Sobre como tinham conversas longas e sérias sobre absolutamente tudo. Escola, amigos, as meditações precoces dela sobre tudo que acontecia ao seu redor. Ele não acreditava que outros tivessem dedicado algum tempo a conhecer esse outro lado dela. Focavam somente em seus traços estranhos, barulhentos e problemáticos. E Sara tinha reagido à imagem que tinham dela tornando-se ainda mais difícil, fazendo ainda mais barulho e quebrando coisas. Um círculo vicioso de frustração que nenhum deles sabia como quebrar.
Mas nas horas em que passava com ele, a menina tinha paz. Sentia muita saudades dela. Ele via muito de Lilian nela. A força e a determinação da mulher. Suas maneiras bruscas que mostravam tanto preocupação quanto amor enormes.
Como se pudesse ler a mente do marido, Lilian entrou no quarto. Stig estava imerso tão profundamente em seus pensamentos que nem ouviu os passos na escada.
– Fiz um pequeno almoço para você. Saí para comprar pão fresco – falou com um tom agudo, e ele sentiu o estômago se revirar só de olhar o que estava na bandeja.
– Não estou com muita fome agora – tentou convencê-la, ao mesmo tempo sabendo como os protestos seriam infrutíferos.
– Você precisa comer algo se quiser melhorar – disse Lilian em sua voz firme de enfermeira. – Aqui, eu ajudo.
Ela se sentou na beira da cama e pegou uma tigela de kefir da bandeja. Levantou a colher e a aproximou dos lábios dele. Stig abriu a boca relutante e deixou que ela o alimentasse. A sensação do kefir descendo por sua garganta o deixou nauseado, mas permitiu que ela continuasse. As intenções eram boas, e ele basicamente sabia que Lilian estava certa. Se não comesse, nunca ficaria bom.
– Como se sente agora? – ela perguntou, enquanto pegava um dos últimos pãezinhos com manteiga e queijo e o segurava perto da boca dele para que pudesse dar uma mordida.
Ele engoliu e respondeu com um sorriso forçado:
– Acho que um pouco melhor, realmente. Dormi bem na noite passada.
– Que bom – disse Lilian, dando um tapinha na mão dele. – Não se pode brincar com a saúde, e você prometeu que vai me contar se piorar. Lennart era exatamente como você, cabeça-dura, e se recusou a deixar que alguém o examinasse até ser tarde demais. Às vezes, eu me pergunto se ele ainda estaria vivo se eu tivesse insistido mais... – Com um olhar triste, ficou com a colher parada no ar.
Com gentileza, Stig segurou a outra mão dela e disse:
– Você não precisa se culpar, Lilian. Sei que fez tudo que podia por Lennart quando ele estava doente, porque você é assim. Não deve se culpar pela morte dele. E estou me sentindo melhor, acredite. Já melhorei sozinho antes. Se puder descansar, tenho certeza de que vai passar. Isso é provavelmente só um “esgotamento”, como dizem hoje em dia. Não se preocupe comigo. Você tem outras coisas piores para se preocupar.
Lilian suspirou e assentiu.
– É, provavelmente você está certo. É muita coisa para mim agora.
– Claro, pobrezinha. Gostaria de me sentir melhor para poder apoiá-la mais em seu processo de luto. Também estou sofrendo terrivelmente pela garota. Não posso nem imaginar como você deve estar se sentindo. E como está Charlotte, por falar nisso? Já faz uns dias que ela não sobe para me ver.
– Charlotte? – disse Lilian, e por um momento ele pensou que tinha visto um brilho mal-humorado em seus olhos. Mas desapareceu tão rápido que Stig se convenceu de que tinha imaginado. Charlotte era tudo para Lilian, afinal. Estava sempre falando como vivia para sua filha e sua família.
– Bom, Charlotte está se sentindo melhor do que antes, pelo menos. Se bem que acho que deveria continuar tomando aqueles sedativos. Não entendo por que as pessoas tentam enfrentar a confusão sozinhas, quando existem muitos remédios bons que podem tomar. E claro que Niclas poderia dar uma receita para ela, mas ele se recusou a dar uma para mim. Já ouviu algo mais estúpido? Estou sofrendo também e estou tão mal quanto Charlotte. Sara era minha neta, não era?
A voz de Lilian tinha subido novamente para aquele tom agudo e irritante. Mas justo quando Stig sentiu que seu cenho se franzia, ela mudou o tom e voltou a ser a esposa amorosa e atenciosa que cuidava dele. Queria muito que voltasse ao seu jeito natural, depois que tudo isso passasse. O estresse e a tristeza a tinham afetado também.
– Agora que você comeu algo, precisa descansar – disse Lilian, se levantando.
Stig a impediu com um movimento.
– Você ouviu mais alguma coisa sobre por que a polícia levou Kaj para interrogatório? Tem algo a ver com Sara?
– Não ouvimos mais nada ainda. Seremos, provavelmente, os últimos a saber – reclamou Lilian. – Mas espero que o prendam.
Ela se virou e saiu, mas ele ainda teve tempo de ver um sorriso em seu rosto.
Nova York, 1946
A vida over there não tinha saído como que ela esperava. Linhas amargas de desapontamento tinham surgido ao redor de sua boca e de seus olhos, mas Agnes ainda era uma mulher linda quando chegou aos quarenta e dois anos.
O começo de sua estadia tinha sido maravilhosa. O dinheiro de seu pai garantia um estilo de vida bastante confortável, e as contribuições que recebia de seus admiradores ajudavam significativamente. Não faltava nada. O elegante apartamento em Nova York era usado para festas deliciosas, e as pessoas lindas não tinham dificuldades para encontrar sua casa. Ofertas de casamento tinham sido numerosas, mas ela havia esperado o momento certo, à caça de alguém ainda mais rico, mais estiloso, mais sofisticado. Enquanto isso, não havia recusado nenhuma forma de diversão. Era como se tivesse de compensar os anos perdidos e viver duas vezes mais rápido e selvagem do que os demais. Havia uma ansiedade febril na forma como amava, festejava e gastava dinheiro em roupas, joias e móveis para o apartamento. Aqueles anos pareciam tão distantes agora.
Quando a quebra de Kreuger aconteceu em 1932, seu pai perdeu tudo. Uns poucos investimentos impensandos, e a fortuna que tinha juntado desapareceu. Quando o telegrama chegou, ela sentiu tanta raiva pelo comportamento idiota dele que rasgou o papel em pedacinhos e pisou neles. Como ele ousava perder tudo que um dia deveria ser dela? Tudo que deveria ser sua segurança, sua vida.
Ela enviou um longo telegrama como resposta, no qual dizia com exaustivos detalhes o que pensava do pai e como ele havia destruído sua vida.
Quando, uma semana depois, chegou um telegrama com a notícia de que ele tinha se matado com um tiro na cabeça, Agnes simplesmente o amassou e jogou no cesto de lixo. Ela não tinha ficado nem surpresa nem brava. Até onde sabia, era o que seu pai merecia.
Os anos que se seguiram foram duros. Não tão difíceis quanto os com Anders, mas uma luta para sobreviver da mesma forma. Agora, o único meio de conseguir isso era através da benevolência dos homens. Quando não teve mais recursos financeiros próprios, seus pretendentes finos e ricos foram aos poucos substituídos por namorados de status social inferior. As ofertas de casamento acabaram. Em vez disso, as propostas eram de natureza totalmente diferente, e enquanto os homens pagassem, ela não tinha nenhuma objeção. Também parecia que algo dentro dela tinha sido danificado pelo parto complicado dos filhos, então não podia engravidar, mas isso aumentava seu valor entre os parceiros ocasionais. Nenhum deles queria se ligar a ela por uma criança, e a própria Agnes preferia pular de um edifício do que passar novamente por aquela experiência atroz.
Agnes tinha sido forçada a desistir de seu lindo apartamento; o novo era muito menor, mais escuro e distante do centro da cidade. Ela não dava mais festas em sua casa e teve de vender ou penhorar a maioria de suas coisas.
Quando começou a Segunda Guerra Mundial, tudo o que estava ruim ficou ainda pior. E pela primeira vez desde que embarcara no navio em Göteborg, Agnes sentiu saudades de casa. Essas saudades aumentaram gradualmente e, quando a guerra finalmente acabou, decidiu voltar para a Suécia. Em Nova York, não tinha nenhum valor, mas em Fjällbacka havia algo que podia chamar de seu. Depois do grande incêndio, seu pai tinha comprado o terreno onde ficava a casa e construído uma nova no mesmo lugar – talvez com a esperança de que um dia ela voltasse. A casa estava em seu nome, então não fora perdida, apesar de todo o resto ter desaparecido. Estivera alugada durante todos esses anos, e a renda era depositada numa conta, caso ela voltasse. Várias vezes, durante esses anos, tinha tentado ter acesso a esse dinheiro, mas o administrador sempre dizia que seu pai tinha estipulado que ela só conseguiria o dinheiro se voltasse para seu país. Na época, Agnes tinha amaldiçoado o que via como uma injustiça, mas agora precisava admitir com relutância que talvez não fosse algo tão estúpido, afinal. Ela calculou que seria capaz de sobreviver com aquele dinheiro por pelo menos um ano e, durante esse tempo, teria de encontrar alguém que a sustentasse.
Para que esse plano fosse bem-sucedido, seria forçada a manter a história que tinha criado sobre sua vida nos Estados Unidos. Vendeu tudo que tinha e gastou cada dólar num vestido de qualidade e num conjunto de malas finas. As malas estavam vazias – ela não tinha dinheiro suficiente para colocar nada dentro – mas ninguém perceberia isso quando desembarcasse. Parecia uma mulher de sucesso e também tinha elevado sua posição dizendo que era a viúva de um homem rico com empresas de natureza indefinida. “Algo na área de finanças”, era o que intencionava falar, com um dar de ombros blasé. Tinha certeza de que funcionaria. As pessoas na Suécia eram tão inocentes e tão facilmente impressionáveis por gente que tinha ido para a terra prometida. Ninguém acharia estranho que Agnes voltasse para casa com tantos triunfos. Ninguém suspeitaria de nada.
O cais estava cheio de gente. Agnes era empurrada de um lado para o outro enquanto levava uma mala em cada mão. O dinheiro não tinha sido suficiente para uma passagem nem de primeira nem de segunda classe, então ela parecia um pavão no meio das massas cinzentas da terceira classe. Em outras palavras, não precisou enganar ninguém no barco fingindo que era uma dama. Contanto que desembarcasse em Göteborg, ninguém saberia como tinha feito a viagem.
Sentiu algo macio roçando sua mão. Agnes olhou para baixo e viu uma garotinha com um vestido branco olhando para ela com lágrimas escorrendo pelo rosto. A multidão aumentava ao seu redor, indo de um lado para o outro, e ninguém prestava atenção na garotinha que devia ter se perdido dos pais.
– Onde está sua mamãe? – perguntou Agnes no idioma que agora dominava quase perfeitamente.
A garota chorou ainda mais forte, e Agnes lembrou-se vagamente que crianças naquela idade podiam não ter começado a falar ainda. Na verdade, parecia que nem tinha aprendido a caminhar direito ainda e que ia cair no meio de tantos pés ao seu redor.
Agnes pegou-a pela mão e olhou ao redor. Ninguém parecia estar procurando por ela. Nada mais do que roupas feias para onde olhasse e, julgando pela maneira como a criança estava vestida, definitivamente parecia pertencer a uma classe social diferente. Agnes estava a ponto de pedir ajuda quando teve uma ideia. Era ousada, incrivelmente ousada, mas brilhante. Sua história sobre o marido rico que tinha morrido e a deixado viúva pela segunda vez não ganharia mais veracidade se também tivesse uma filha? E, apesar de se lembrar quantos problemas os garotos tinham causado, provavelmente seria totalmente diferente com uma garotinha. Era doce como açúcar, aquela garota. Agnes podia vesti-la com lindas roupas e amarrar laços naqueles adoráveis cachos. Era uma bonequinha. O pensamento pareceu cada vez melhor para Agnes e, num piscar de olhos, ela se decidiu. Pegou as duas malas numa mão e a garota na outra e caminhou na direção do navio. Ninguém reagiu quando embarcou, e ela resistiu à tentação de olhar por sobre o ombro. O truque era fazer parecer que a criança era dela, e a menina tinha até parado de chorar, espantada, e a seguiu sem protestar. Agnes viu aquilo como um sinal de que estava fazendo a coisa certa. Parecia que seus pais não eram bons para ela, já que tinha ido tão facilmente com uma estranha. Em pouco tempo, Agnes seria capaz de dar tudo que a garota quisesse e sabia que seria uma excelente mãe. Os garotos tinham sido muito difíceis. Essa garotinha era diferente. Ela podia sentir. Tudo seria diferente.
Niclas veio para casa assim que ela ligou. Como não quis dizer o assunto, ele chegou à porta da frente com o coração saindo pela boca. Lilian estava descendo pela escada com uma bandeja na mão e pareceu surpresa.
– Por que você está em casa?
– Charlotte me ligou. Você não sabe o que é?
– Não, ela nunca me conta nada – reclamou Lilian. Depois deu um sorriso adulador. – Eu saí para comprar pães doces frescos, estão num saco na cozinha.
Ele a ignorou e desceu correndo as escadas para o porão. Não o surpreenderia se, naquele momento, Lilian estivesse escutando atrás da porta, tentando ouvir o que falavam.
– Charlotte?
– Estou aqui, trocando o Albin.
Ele entrou no banheiro e a viu de pé, ao lado do trocador e de costas para ele. Mesmo assim, pôde perceber que ela estava brava e tentou adivinhar o que teria acontecido daquela vez.
– O que é tão importante? Tenho pacientes esperando. – A melhor defesa era um bom ataque.
– Martin Molin ligou.
Ele tentou se lembrar do nome.
– O policial em Tanumshede – ela esclareceu, e Niclas se lembrou. O sujeito jovem e cheio de sardas.
– O que ele queria? – perguntou.
Charlotte, que tinha terminado de trocar e vestir Albin, se virou para o marido com o menino no colo.
– Eles descobriram que alguém tinha ameaçado a Sara. No dia anterior à sua morte. – Sua voz estava gelada, e Niclas esperou nervoso que a esposa continuasse.
– E?
– O homem que a ameaçou foi descrito como um velho com cabelos grisalhos e roupas pretas. Ele a chamou de “filha do Demo”. Isso se parece com alguém que você conhece?
A raiva correu por suas veias numa fração de segundo.
– Maldição – Niclas gritou e subiu as escadas correndo. Quando abriu a porta, quase derubou Lilian. Estava certo: a velha fofoqueira estava parada ali, ouvindo. Mas não valia a pena pensar nisso agora. Colocou os sapatos sem se preocupar em amarrá-los, pegou seu casaco e correu até o carro.
Dez minutos depois, brecou bruscamente na casa de seus pais depois de cruzar muito rápido a cidade. A casa ficava ao lado da colina, bem acima do campo de minigolfe, e parecia exatamente igual aos dias de sua juventude. Abriu a porta do carro e saiu sem se importar em fechá-la. Depois correu para a entrada. Parou por um segundo, respirou fundo e bateu forte na porta. Niclas esperava que seu pai estivesse em casa. Não importava quão pouco cristão ele fosse, não era apropriado fazer o que tinha a intenção de fazer numa igreja.
– Quem é? – perguntou a voz familiar e ríspida de dentro da casa. Niclas testou o trinco. Como sempre, a porta não estava trancada. Sem hesitar, entrou gritando.
– Onde está você, seu demônio covarde?
– O que está acontecendo? – Sua mãe veio da cozinha até o corredor com uma toalha e um prato na mão. Depois ele viu a figura austera de seu pai surgir da sala.
– Pergunte a ele. – Niclas apontou um dedo trêmulo para seu pai, de quem não se aproximava desde que tinha dezessete anos.
– Não sei do que ele está falando – disse Arne, recusando-se a falar diretamente com o filho. – Que coragem, vir aqui e ficar me xingando e gritando comigo. Já chega. Vá embora.
– Você sabe muito bem do que estou falando, seu velho maldito. – Niclas viu com satisfação como seu pai hesitava diante de suas palavras. – E como você pode ser covarde, ameaçando uma garotinha! Se foi você quem a matou, pode ter certeza de que nunca mais vai andar, seu maldito filho...
Sua mãe, que olhava para os dois homens, deu um grito. Isso era tão incomum que Niclas ficou quieto abruptamente, e até seu pai fechou a boca sem responder.
– Agora um de vocês pode ser razoável e me contar o que está acontecendo? Niclas, você não pode entrar aqui gritando e, se tem algo a ver com Sara, então eu tenho o direito de saber.
Depois de respirar fundo algumas vezes, Niclas falou com os dentes cerrados de raiva:
– A polícia descobriu – ele quase não conseguia olhar para o pai – que ele gritou e ameaçou Sara. No dia anterior à sua morte. – A fúria tomou conta dele novamente, fazendo-o gritar: – Que diabos você tem na cabeça? Assustar uma menina de sete anos e chamá-la de “filha do Demo” ou alguma besteira assim. Ela tinha sete anos, não entende, sete anos! E devo acreditar que foi só coincidência que você a ameaçou no dia anterior à sua morte! Não é?
Ele deu uns passos na direção de seu pai, que se afastou rápido.
Asta agora olhava para o marido.
– O garoto está falando a verdade?
– Não preciso responder a ninguém. Eu só respondo ao Senhor – disse Arne bombástico, virando-se de costas para a esposa e o filho.
– Nem tente isso. Você vai me responder agora!
Niclas olhava espantado enquanto sua mãe seguia Arne até a sala com as mãos na cintura, pronta para brigar. Arne também parecia chocado que a esposa o desafiasse assim. Estava abrindo e fechando a boca sem que qualquer som saísse.
– Me responda – continuou Asta, encurralando Arne no canto da sala conforme se aproximava. – Você viu a Sara?
– Sim, eu vi – disse Arne, desafiador, numa última tentativa de afirmar a autoridade que achava que possuía nos últimos quarenta anos.
– E o que você disse para ela? – Asta parecia ter ficado um metro mais alta. Niclas achou seu aspecto aterrador e, pelo olhar de seu pai, podia ver que o velho achava a mesma coisa.
– Tinha de ver se ela era mais séria do que seu pai. Se ela tinha puxado o meu lado da família.
– Seu lado – falou Asta. – Ah, sim, isso seria ótimo. Bajuladores beatos e mulheres esnobes, é o que você tem do seu lado da família. Isso é algo que vale a pena copiar? Então, qual foi a sua conclusão?
Com uma expressão dolorida, Arne disse:
– Silêncio, mulher, venho de gente temente a Deus. E não demorou muito para descobrir que a garota não era feita de bom material. Impudente, obstinada e barulhenta, nada do que as garotas devem ser. Tentei falar sobre Deus, mesmo, e ela me mostrou a língua. Então falei algumas verdades a ela. Ainda acredito que era meu direito fazer isso. Obviamente ninguém se importou em criar a criança de forma apropriada; era o momento de que alguém a guiasse.
– Então você a amedrontou – disse Niclas, fechando os punhos.
– Eu vi o Demônio na reação dela – disse Arne, orgulhoso.
– Seu maldito... – Niclas deu um passo na direção dele, mas parou quando alguém bateu na porta.
O tempo parou por um segundo e depois o momento passou. Niclas sabia que tinha estado na beira do abismo, mas havia recuado. Se tivesse atacado seu pai, não teria sido capaz de parar. Não dessa vez.
Deixou a sala sem olhar para nenhum dos dois e abriu a porta da frente. O homem do lado de fora parecia surpreso por vê-lo ali.
– Oh, olá. Martin Molin. Já nos encontramos. Sou da polícia. Gostaria de conversar com seu pai.
Niclas deixou que entrasse sem uma palavra. Sentiu que o policial olhava para ele enquanto caminhava até seu carro.
– Onde está o Martin? – perguntou Patrik.
– Foi até Fjällbacka – disse Annika. – Charlotte identificou nosso velho nojento sem muita dificuldade. É o avô de Sara, Arne Antonsson. Um doido de acordo com Charlotte. Ele e o filho não se falam há vários anos.
– Espero que Martin se lembre de confirmar o álibi dele, tanto na manhã em que Sara foi assassinada quanto no incidente de ontem, com o menininho.
– A última coisa que fez foi revisar o horário de ontem. Entre uma e uma e trinta, não foi?
– Exato. Estou feliz por ter pelo menos uma pessoa com quem posso contar.
Os olhos de Annika se entrecerraram.
– Mellberg já conversou com Ernst? Quero dizer, fiquei surpresa quando ele apareceu hoje de manhã. Achei que ele já teria sido suspenso pelo menos, se não fosse demitido.
– É, eu sei, achei que era o que havia acontecido quando ele foi para casa ontem. Fiquei tão surpreso quanto você de encontrá-lo sentado ali, como se nada tivesse acontecido. Vou falar com Mellberg. Ele não pode deixar a coisa assim dessa vez. Se não fizer nada, eu peço demissão! – Patrik disse, franzindo o cenho.
– Não fale assim – disse Annika alarmada. – Converse com Mellberg. Tenho certeza de que ele tem um plano para lidar com Ernst.
– Nem você acredita nisso – disse Patrik, e Annika olhou para o outro lado. Ele estava certo. Ela duvidava disso.
Annika mudou de assunto.
– Quando vamos interrogar o Kaj novamente?
– Estava pensando em fazer isso agora. Mas prefiro que Martin esteja presente.
– Ele saiu há pouco, então pode demorar a voltar. Tentou avisá-lo, mas você estava no telefone.
– É, eu estava ocupado verificando o álibi de Niclas ontem. Que é bom, por falar nisso. Consultas com pacientes das doze às três horas. E não fiquei só na sua agenda; confirmei com cada paciente que ele viu.
– Então, o que isso quer dizer?
– Se eu soubesse – disse Patrik, massageando o nariz com os dedos. – Não muda o fato de que ele não tem um álibi para a manhã de segunda, e ainda é estranha a maneira como quis esconder sua localização. Seja como for, não estava envolvido no que aconteceu ontem. Gösta vai telefonar para o resto da família e ver onde estavam naquele horário.
– Assumo que Kaj também terá de responder isso com detalhes – disse Annika.
Patrik assentiu.
– É, pode apostar. E a esposa. E o filho. Acho que é melhor conversar com eles depois de interrogar Kaj de novo.
– E, apesar de tudo, o assassino ainda poderia ser outra pessoa, alguém que ainda não consideramos – disse Annika.
– É a pior parte. Enquanto corremos atrás do próprio rabo, o assassino provavelmente está sentado em casa, rindo da gente. Mas depois de ontem, pelo menos tenho certeza de que ele, ou ela, ainda está na vizinhança. E que é provavelmente alguém de Fjällbacka.
– Ou já temos o assassino preso – disse Annika, apontando para a cela.
Patrik sorriu.
– Ou já temos o assassino preso. Bom, não tenho tempo a perder, preciso conversar com alguém sobre um casaco...
– Boa sorte – gritou Annika para ele.
– Dan! Dan! – gritou Erica. Ela conseguia ouvir o pânico em sua voz e isso a deixava ainda mais brava. Mexia freneticamente no cobertor dentro do carrinho, como se a filha fosse capaz de se esconder num canto. Mas o carrinho estava vazio.
– O que foi? – perguntou Dan, que veio correndo, com um olhar ansioso no rosto. – O que aconteceu? Por que está gritando?
Erica tentou falar, mas sua língua parecia grudada e inchada, as palavras não saíam. Em vez disso, ela apontou com a mão trêmula para o carrinho, e Dan correu para olhar.
Ele fitou o espaço vazio, e Erica viu como ele entendeu o que havia acontecido.
– Onde está Maja? Ela desapareceu? Onde...? – Não terminou a frase, e começou a olhar para todos os lados. Erica se apoiava nele, tomada pelo pânico. Agora as palavras conseguiram sair de dentro dela.
– Precisamos encontrá-la! Onde está minha filha? Onde está Maja? Onde está?
– Shhh, calma, calma. Vamos encontrá-la. Não se preocupe, vamos encontrá-la. – Dan escondeu seu pânico para poder tranquilizar Erica. Colocou as mãos nos ombros dela e olhou bem para a amiga.
– Agora, precisamos ficar calmos. Vou sair e procurá-la. Você liga para a polícia. Vai ficar tudo bem.
Erica sentiu seu peito se mexer com espasmos, numa estranha imitação do ato de respirar, mas obedeceu. Dan deixou a porta da frente aberta, e um vento frio entrou na casa. Mas isso não a incomodou. Não sentia nada mais do que o pânico paralisante que fazia seu cérebro parar de funcionar. Simplesmente não conseguia se lembrar onde tinha deixado o telefone. Finalmente saiu correndo pela sala olhando embaixo das almofadas e jogando as coisas para o alto. Finalmente se lembrou de que estava embaixo da mesinha de café da sala. Ela se jogou na direção dele e com dedos tensos discou o número da delegacia. Foi quando ouviu a voz de Dan do lado de fora.
– Erica, Erica, eu a encontrei!
Ela largou o telefone e correu para a porta da frente, seguindo a voz do amigo. Só de meias, ela desceu os degraus da frente e chegou à calçada. O frio molhado penetrava em sua pele, mas não se importava. Viu Dan correndo em sua direção com algo vermelho nos braços. Um choro terrível começou, e Erica sentiu o alívio tomar conta de si. Maja estava gritando, ela estava viva.
Erica atravessou os poucos metros que a separavam de Dan e agarrou Maja. Chorando, abraçou a filha por um segundo, antes de se ajoelhar, colocar Maja no chão e abrir o macacão vermelho para examiná-la. Ela parecia bem e agora estava gritando o máximo que podia, agitando os braços e as pernas. Ainda de joelhos, Erica levantou sua filha e apertou-a forte mais uma vez, enquanto deixava que as lágrimas de alívio se juntassem às gotas de chuva.
– Vamos, vamos entrar. Vocês duas vão ficar ensopadas – disse Dan gentilmente, enquanto ajudava Erica a se levantar. Sem soltar o bebê, ela o seguiu até a casa. O alívio que sentia era algo físico, de uma maneira que nunca poderia ter imaginado. Era como se tivesse perdido uma parte do corpo, que agora estava sendo reimplantada. Ela ainda estava chorando, e Dan tentava consolá-la com tapinhas no ombro.
– Onde você a encontrou? – ela conseguiu perguntar.
– Estava deitada no chão, na frente da casa.
Só agora os dois pareciam entender que alguém devia ter colocado Maja ali. Por alguma razão, essa pessoa deve tê-la tirado do carrinho, saído da casa e deixado a garota dormindo no chão. O pânico de pensar nisso fez Erica voltar a chorar.
– Shhhh... já passou. – disse Dan. – A gente a encontrou, e ela parece estar bem. Mas é melhor ligar para a polícia. Não deu tempo de ligar para eles, não é?
Erica negou com a cabeça.
– Precisamos ligar para Patrik – ela disse. – Você pode fazer isso? Não quero nunca mais me separar dela. – Ela abraçou Maja ainda mais forte. Mas então percebeu algo que não tinha visto antes. Olhou para a blusa de Dan e afastou um pouco a menina para examiná-la também.
– O que é isso? – perguntou. – Que coisa preta é essa?
Dan olhou para o macacão sujo, mas só perguntou:
– Qual é o número do Patrik?
Com a voz trêmula, Erica disse o número do celular de Patrik e ficou olhando enquanto Dan discava. O medo crescia em seu estômago.
Os dias passavam devagar. A sensação de impotência de Anna era paralisante. Nada do que a irmã de Erica falasse ou fizesse escapava dele. Lucas observava cada passo, ouvia cada palavra.
A violência tinha aumentado também. Agora ele se deleitava abertamente com a dor e a humilhação dela. Ele fazia o que queria, quando queria, e Deus a ajudasse se protestasse ou resistisse. Não que ela pensasse em fazer isso agora. Era tão óbvio que havia algo de errado com a cabeça dele. Todas as barreiras tinham desaparecido e havia algo maligno em seus olhos que acionava o instinto de sobrevivência dela e lhe dizia para atender suas exigências. Pelo menos isso permitiria que sobrevivesse.
Ela mesma tinha se desconectado completamente. Era a visão de seus filhos que mais doía. Eles não tinham mais permissão de ir à creche e passavam os dias na mesma existência sombria que ela. Sem entusiasmo e submissos, eles a observavam com olhos mortiços, e isso parecia uma acusação. Ela assumia toda a culpa pelo que estava acontecendo. Devia tê-los protegido. Deveria ter mantido Lucas longe da vida deles, precisamente como tinha sido sua intenção. Mas um único instante de medo a fez desistir. Ela se convenceu de que estava fazendo isso pelo bem das crianças, por sua segurança. Em vez disso, entregou-se à própria covardia. Era seu hábito sempre tomar o caminho de menor resistência, pelo menos à primeira vista. Mas dessa vez tinha julgado muito mal suas opções. Escolhera o caminho mais estreito, complicado e perigoso, e trouxera seus filhos junto.
Às vezes sonhava que o matava. Antecipando o que agora sabia ser a conclusão inevitável. Ocasionalmente, observava como ele dormia perto dela, durante as longas horas em que ficava acordada durante a noite, incapaz de relaxar o suficiente para fugir para os sonhos. Depois, imaginava com prazer como uma das facas da cozinha entrava em sua carne e cortava a frágil linha que o conectava à vida. Ou sentia a corda cortando suas mãos enquanto a enrolava no pescoço dele e apertava forte.
Mas não passavam de maravilhosos sonhos. Algo dentro dela, talvez uma covardia inerente, a fazia ficar deitada na cama enquanto esses pensamentos sombrios ricocheteavam dentro de seu crânio.
Às vezes imaginava o bebê de Erica. A garotinha que ainda não tinha visto. Invejava a criança. Estaria recebendo o mesmo calor, o mesmo cuidado que a própria Anna tinha recebido de Erica quando eram crianças, algo mais parecido com mãe e filha do que com irmãs? Mas na época não dava valor ao que Erica fazia por ela. Sentia-se sufocada e inferior. A amargura que sentia pela falta de amor de sua mãe tinha, aparentemente, feito seu coração endurecer tanto que não era receptivo ao que sua irmã tentara lhe oferecer. Anna sinceramente esperava que Maja fosse mais capaz de aceitar o enorme oceano de amor que sabia que Erica era capaz de dar. Principalmente pelo bem da irmã. Apesar da diferença de idade e da distância que as separavam, Anna a conhecia muito bem. Sabia que se havia alguém que precisava desesperadamente receber amor de volta, era Erica. A coisa estranha era que Anna sempre a vira como sendo tão forte, e sua própria amargura fora diluída por esse sentimento. Agora que se sentia mais fraca do que antes, via sua irmã como era de verdade. Alguém que morria de medo de que todos vissem o que a mãe delas tinha visto, o que a tinha feito sentir que as duas irmãs não mereciam amor. Se Anna tivesse mais uma chance, abraçaria Erica com força e agradeceria por todos aqueles anos de amor incondicional. Agradecer pela preocupação, pelas broncas, pelo olhar preocupado quando pensou que Anna estava indo pelo caminho errado. Agradecer por tudo que antes fazia Anna se sentir sufocada e pressionada. Que irônico. Ela não sabia exatamente como era se sentir realmente sufocada e pressionada. Até agora.
O som da chave na porta a fez dar um salto. As crianças também pararam, alarmadas, suas brincadeiras desanimadas.
Anna se levantou e foi esperá-lo.
Schwarzenegger olhou preocupado para ele por trás dos óculos escuros. O Exterminador do Futuro. Se Sebastian fosse como ele. Cool. Forte. Uma máquina sem a capacidade de sentir.
Sebastian olhou para o pôster quando se deitou na cama. Ele ainda conseguia ouvir a voz de Rune, sua falsa voz de preocupação. Aquele tom pouco sincero, de carinho fingido. A única coisa que o preocupava realmente era o que as pessoas falariam sobre ele. O que foi que o padrasto disse mesmo?
– Ouvi que foram feitas acusações terríveis contra Kaj. Tive dificuldades em acreditar que fossem verdade, mas ainda preciso fazer a pergunta: ele em alguma ocasião se comportou de maneira imprópria com você ou algum dos outros garotos? Ficou espiando no chuveiro ou algo assim?
Sebastian rira por dentro com a ingenuidade de Rune.
– Ficou espiando no chuveiro... – Isso não teria sido tão ruim. Era a outra coisa que ele não podia aguentar. Não agora, quando tudo estava começando a aparecer. Ele tinha uma ideia de como essas coisas funcionavam. Tiravam fotos, guardavam e trocavam, mas não importava quão bem a guardassem, todas iriam aparecer agora.
Não demoraria mais de uma manhã, depois a escola toda saberia. As garotas olhariam para ele, apontando e rindo. Os garotos fariam piadas sobre bichas e gestos estúpidos quando ele passasse. Ninguém teria a menor compaixão por ele. Ninguém veria o tamanho do buraco em seu peito.
Ele virou a cabeça um pouco para a esquerda e olhou para o pôster de Clint como Dirty Harry. Queria ter uma pistola como aquela. Ou até melhor, uma metralhadora. Poderia fazer como aqueles caras nos Estados Unidos. Entrar na escola com um casaco preto comprido e matar todo mundo que estivesse no caminho. Especialmente os mais populares, que iam tratá-lo pior. Mas sabia que isso era apenas uma ideia louca. Não queria machucar ninguém. Não era culpa deles, na verdade. Ele era o único culpado e só queria machucar a si mesmo. Poderia ter parado aquilo, claro. Alguma vez já tinha dito não? Não com todas as palavras. De alguma forma, ele tinha esperado que Kaj visse como aquilo o perturbava, quanto o machucava, e parasse.
Tudo tinha sido tão complicado. Porque uma parte dele gostava de Kaj. Ele tinha sido ótimo, e no começo Sebastian recebia aquele sentimento paternal dele. O sentimento que nunca recebeu de Rune. Conseguia conversar com Kaj. Sobre a escola, sobre garotas, sobre mamãe e sobre Rune, e Kaj colocava o braço em seu ombro e escutava. Foi só depois de um tempo que as coisas começaram a dar errado.
A casa estava silenciosa. Rune tinha saído para trabalhar, feliz por ter confirmado o que achava que já sabia, que todas as acusações contra Kaj eram completamente infundadas. Ele provavelmente se sentaria no restaurante e reclamaria em voz alta como a polícia tinha feito acusações infundadas.
Sebastian levantou da cama e se preparou para sair. Parou na porta e se virou. Olhou cada um deles e fez um movimento com a cabeça, como se os cumprimentasse. Clint, Sly, Arnold, Jean-Claude e Dolph. Os que eram tudo que ele não era.
Por um momento, achou que eles tinham respondido.
A adrenalina ainda estava alta depois do encontro com seu pai, e Niclas sentia-se suficientemente beligerante para enfrentar a próxima pessoa com quem tinha contas a acertar.
Dirigiu por Galärbacken e parou quando viu que Jeanette estava em sua loja, preparando-se para abrir no Dia de Todos os Santos. Estacionou o carro e entrou. Pela primeira vez desde que tinham se conhecido, ele não sentiu nada quando a viu. Só um desgosto ácido e metálico, tanto por si mesmo quanto por ela.
– Que merda você acha que está fazendo?
Jeanette se virou e lançou um olhar frio quando ele bateu a porta atrás de si, fazendo o sinal de “Aberto” voar.
– Não sei do que você está falando. – Ela ficou de costas para ele e continuou a desempacotar uma caixa de suvenires, colocar preços e guardá-los nas estantes.
– Você sabe muito bem. Sabe exatamente do que estou falando. Você foi até a polícia e disse algumas besteiras sobre como eu a forcei a mentir e me dar um álibi. Quão baixo você pode descer? É vingança que está querendo ou só se diverte criando problemas? Que merda estava pensando? Eu perdi minha filha há uma semana. Não pode entender que não quero continuar enganando minha esposa?
– Você me prometeu – disse Jeanette, com os olhos brilhando. – Prometeu que ficaríamos juntos, que você se divorciaria de Charlotte, que teríamos nossos filhos. Me prometeu um monte de coisas, Niclas.
– Então, por que merda você acha que eu falei isso? Porque você adorava ouvir. Porque logo abria as pernas quando ouvia essas promessas sobre um anel e um futuro. Porque queria ter um pouco de prazer com você na cama de vez em quando. Não posso acreditar que seja tão estúpida a ponto de acreditar em mim. Conhece o jogo tão bem quanto eu. Não fui seu primeiro homem casado, tenho certeza – ele disse, rude, vendo como o rosto dela se contorcia como se tivesse levado um tapa. Mas ele não se importava. Já tinha cruzado a linha e não queria mostrar nenhum lado sensível ou evitar que se sentisse mal. Agora somente a verdade pura e não adulterada era apropriada e, depois do que ela tinha feito, ela merecia ouvir.
– Seu porco filho da puta – disse Jeanette, tentado pegar um dos objetos que estava desempacotando. No momento seguinte, um farol de porcelana voou na direção da cabeça de Niclas, mas ela errou e acertou a vitrine. Com um barulho ensurdecedor, o vidro se quebrou, e grandes estilhaços caíram no chão. O silêncio que se seguiu foi tão completo que ecoou pelas paredes. Como dois combatentes, eles se encararam com raiva mútua. Depois Niclas se virou e caminhou tranquilamente para fora. O único som era o vidro sendo esmagado embaixo de seus sapatos.
Arne olhava em silêncio enquanto ela fazia as malas. Se Asta não estivesse tão determinada, a visão dele a teria surpreendido tanto que teria parado o que estava fazendo. Arne nunca parecera tão indefeso. Mas sua fúria mantinha as mãos trabalhando, dobrando roupas e colocando-as na maior mala que tinham. Ela ainda não sabia como ia carregar tudo ou para onde iria. Não importava. Ela não queria ficar nem mais um minuto na mesma casa que ele. Finalmente, a venda tinha caído de seus olhos. Aquela sensação de dissonância que sempre teve, a sensação de que as coisas podiam não ser como Arne dizia, tinha finalmente tomado conta. Ele não era todo-poderoso. Ele não era perfeito. Era somente um homem fraco e patético, que adorava acossar as outras pessoas. E também havia sua crença em Deus. Provavelmente não era muito profunda. Asta via claramente agora como ele usava a palavra de Deus de uma maneira que, estranhamente, sempre combinava com suas próprias visões. Se Deus era como o Deus de Arne, então ela não queria ter a mesma fé que ele.
– Mas Asta, não entendo. Por que está fazendo isso?
A voz dele estava chorosa como a de um garotinho, e ela nem queria responder. Arne ficou ali na porta, apertando as mãos enquanto via a esposa remover um item de roupa atrás do outro das gavetas e dos armários. Não queria voltar, então era melhor que levasse tudo de uma vez.
– Aonde você vai? Você não tem para onde ir!
Agora ele estava implorando, mas a natureza extraordinária da situação só a fez sentir um arrepio. Ela tentou não pensar em todos os anos que tinha perdido; felizmente era bastante pragmática. O que estava feito estava feito. Mas não queria perder nem mais um dia de sua vida.
Consciente de que estava a ponto de perder o controle da situação, Arne agora tentava um método mais conhecido. Pensou que poderia ganhar controle levantando a voz.
– Asta, você precisa parar com toda essa besteira! Desfaça as malas imediatamente!
Por um instante, ela parou de fazer as malas, mas só o suficiente para olhar de uma maneira que resumia os quarenta anos de opressão. Ela juntou toda a sua raiva, todo o seu ódio e os mandou para ele. Para sua satisfação, percebeu como ele se encolheu e diminuiu diante de seu olhar. Quando voltou a falar, foi numa voz quieta e tímida. A voz de um homem que percebeu que havia perdido o controle para sempre.
– Eu não quis... Quer dizer, claro que não deveria ter falado com a garota daquela forma, entendo isso agora. Mas ela não tinha nenhum respeito e, quando se comportou de maneira tão teimosa em relação a mim, pude ouvir a voz de Deus me falando que deveria intervir e...
Asta o cortou.
– Arne Antonsson. Deus nunca falou com você. Nunca vai falar. Você é muito estúpido e surdo para isso. E quanto a toda a besteira que ouvi nesses quarenta anos sobre como você nunca teve a chance de se tornar pastor porque seu pai bebeu todo o dinheiro – você deveria saber que não era dinheiro que estava faltando. Sua mãe cuidava muito bem da bolsa e não deixava seu pai beber mais do que o necessário. Mas ela me contou antes de morrer que não tinha nenhuma intenção de jogar seu dinheiro fora mandando-o para o seminário. Ela pode ter sido uma mulher rude, mas tinha uma boa cabeça e podia ver que você não servia para pastor.
Olhando para ela, Arne estava tentando respirar enquanto ficava cada vez mais pálido. Por um momento, Asta pensou que ele estava tendo um ataque do coração e sentiu que hesitava contra sua vontade. Mas depois, se virou e saiu da casa. Deixou aos poucos o ar fluir entre seus lábios. Não sentia prazer em destruí-lo, mas no fim ele não deixou nenhuma alternativa.
Göteborg, 1954
Ela não entendia como podia fazer tantas coisas erradas. Mais uma vez havia terminado ali no porão, e o escuro parecia fazer o machucado em seu bumbum doer mais do que antes. Era a fivela do cinto que havia feito a ferida. A mamãe só usava a fivela quando ela tinha sido realmente má. Se conseguisse pelo menos entender o que havia de tão horrível em pegar uns biscoitos. Eles pareciam tão gostosos, e a cozinheira tinha feito tantos que ninguém iria perceber se um desaparecesse. Mas às vezes se perguntava se sua mãe percebia quando ela estava a ponto de colocar algo gostoso na boca. A mamãe aparecia atrás dela, sem fazer nenhum barulho, justo quando sua mão estava se aproximando de algo delicioso. Depois, tudo que podia fazer era ser forte e esperar que a mamãe estivesse num bom dia, assim a punição seria menor.
No começo, tentara lançar um olhar de piedade ao papai, mas ele sempre olhava para o outro lado. Pegava o jornal e ia se sentar na varanda, enquanto mamãe a punia como queria. Ela nem tentava mais conseguir alguma ajuda dele.
Tremia por causa do frio. Alguns poucos sons cresciam em sua cabeça enquanto imaginava ratos gigantes e aranhas enormes, e ela podia ouvi-los se aproximando. Era tão difícil sentir a passagem do tempo. Ela não sabia havia quanto tempo estava sentada ali no escuro, mas a julgar pelo barulho em seu estômago, tinham se passado algumas horas. Estava quase sempre faminta, e era por isso que a mamãe a reprimia. Parecia haver algo dentro dela que sempre pedia comida, bolos e doces, algo que gritava para ser preenchido com açúcar. No momento, ela sentia o gosto da substância dura, seca e ruim que a mamãe sempre a obrigava a comer. Uma colherada forçada em sua garganta quando os golpes tinham sido dados, e era hora de se sentar no porão. A mamãe dizia que a estava alimentando com humildade. Mamãe também falava que a estava punindo para seu bem. Que uma garota não podia ser gorda, porque nenhum homem olharia para ela, e teria de passar toda a sua vida sozinha.
Na verdade, ela não entendia o que tinha de terrível nisso. Mamãe nunca parecia olhar para o papai com alegria nos olhos, e nenhum dos homens que ficavam ao redor da figura magra de mamãe, enchendo-a de elogios e babando parecia dar-lhe alguma satisfação. Não, ela preferia ficar sozinha do que viver na atmosfera gelada que existia entre seus pais. Talvez fosse por isso que a comida e os doces a tentavam tanto. Talvez fosse assim que pudesse adquirir uma camada protetora sobre sua pele tão sensível, tanto em relação às constantes reprimendas de sua mãe quanto às surras. Mesmo sendo tão jovem, já sabia que nunca atingiriam as expectativas de sua mãe. Ela tinha deixado isso bem claro. Mesmo assim, a menina realmente tentara. Tinha feito tudo que sua mãe dizia, tentando com bastante força diminuir a gordura que continuava a crescer sob sua pele. Mas nada parecia ajudar.
No entanto, ela tinha começado a descobrir quem na verdade era o culpado por tudo. Mamãe tinha explicado que era o papai que exigia muito delas e por isso a mamãe precisava ser tão rígida. No começo, isso pareceu um pouco estranho. Papai nunca levantava a voz e parecia fraco demais para exigir qualquer coisa da mamãe, mas quanto mais a afirmação era repetida, mais começava a parecer verdade.
Ela tinha começado a odiar o pai. Se ele pudesse parar de ser tão malvado e pouco razoável, mamãe seria mais legal, e as surras parariam, e tudo seria melhor. Depois ela seria capaz de parar de comer e tornar-se tão magra e linda quanto a mamãe, e o papai sentiria orgulho das duas. Em vez disso, ele fazia a mamãe entrar escondida em seu quarto à noite e, chorando e sussurrando, descrever as várias formas como ele a atormentava. Nessas ocasiões, sempre dizia como era doloroso ser quem precisava cuidar das punições. Ela a chamava de querida, exatamente como quando era pequena e prometia que as coisas seriam diferentes. Uma pessoa fazia o que precisava fazer, dizia a mamãe, e depois a abraçava, o que era tão estranho e inesperado que, no começo, ela ficava dura, incapaz de responder ao abraço. Gradualmente, começou a desejar as ocasiões em que sua mãe colocava os braços finos ao redor de seu pescoço e sentia o rosto dela molhado pelas lágrimas. Nesse momento, sentia-se necessária.
Sentada ali no escuro, sentia o ódio contra seu pai crescer como um monstro dentro dela. Durante o dia, na luz, precisava esconder esse ódio atrás de sorrisos e reverências, fingindo que tudo estava bem. Mas ali no escuro, ela podia deixar que o monstro saísse, permitindo que crescesse em paz e silêncio. Ela na verdade se dava bem com o monstro. Tinha se tornado um velho e querido amigo, o único que ela tinha.
– Pode subir agora.
A voz que vinha de cima era clara e fria. Ela se abriu e escondeu novamente o monstro. Ele ficaria ali até ela voltar ao porão. Então poderia sair e voltar a crescer.
Patrik recebeu a ligação quando se preparava para acompanhar Kaj até a sala de interrogatório. Ouviu em silêncio e depois foi até a sala de Martin. Quando estava prestes a bater em sua porta, lembrou que Annika lhe dissera que Martin tinha ido até Fjällbacka e xingou a si mesmo quando percebeu que teria de ir com Gösta. Nem considerou Ernst. A raiva aumentou só de pensar nele. Se o sujeito soubesse o que era bom, ficaria o mais longe possível de Patrik.
Mas estava com sorte. Enquanto caminhava com passos duros até a sala de Gösta, ouviu a voz de Martin na recepção e correu para encontrá-lo.
– Aí está você. Droga, isso é ótimo. Pensei que não ia voltar a tempo. Precisa vir comigo imediatamente.
– O que aconteceu? – disse Martin, seguindo Patrik, que correu até a entrada principal depois de acenar para Annika por trás do vidro.
– Um jovem se enforcou. Deixou uma nota que menciona Kaj.
– Oh, merda.
Patrik se sentou no assento do motorista e ligou a sirene. Martin se sentiu uma velha senhora quando se segurou no apoio sobre a porta do lado do passageiro, mas com Patrik dirigindo, era uma questão de instinto de sobrevivência.
Meros quinze minutos depois, eles pararam diante da residência da família Rydén, na parte de Fjällbacka que, por alguma razão, era chamada de “O Pântano”. Uma ambulância estava estacionada na frente da casa baixa de tijolos, e os paramédicos se esforçavam para tirar uma maca da parte de trás. Um homenzinho com cabelos ralos e uns quarenta anos corria de um lado para o outro na rua e parecia em estado de choque. Quando Patrik e Martin estacionaram e saíram da viatura, um dos médicos foi até o homem, colocou um cobertor amarelo sobre seus ombros e pareceu tentar convencê-lo a se sentar. O homem finalmente obedeceu. Com o cobertor bem enrolado, ele se afundou na calçada, entre a rua e um jardim de flores.
Já conheciam o pessoal da ambulância e não precisaram se apresentar. Em vez disso, só trocaram cumprimentos com um movimento de cabeça.
– Então, o que aconteceu? – perguntou Patrik.
– O padrasto chegou em casa e encontrou o enteado na garagem. Ele se enforcou. – Um dos paramédicos apontou para a porta da garagem, que alguém tinha fechado para que nada pudesse ser visto da rua.
Patrik olhou para o homenzinho sentado a alguns metros de distância. O que aquele homem tinha acabado de ver era algo que ninguém nunca deveria ver. Agora ele tremia, como se sentisse frio, e Patrik reconheceu aquilo como um sinal de choque. Mas era algo que os paramédicos deviam tratar.
– Podemos entrar?
– Sim, pensamos que deveríamos esperá-los antes de descer o garoto. Ele está pendurado há umas duas horas, então não tem pressa. Fomos nós que fechamos a porta da garagem, por falar nisso. Pareceu desnecessário deixá-lo pendurado em público.
Patrik deu um tapinha no ombro dele.
– Muito bem pensado. Pode ser que haja alguma conexão com nossa atual investigação de homicídio, então chamei os técnicos também. E foi bom vocês não o terem tirado dali. Eles devem chegar a qualquer minuto e sem dúvida vão querer a menor quantidade de pessoas por aqui. Sugiro que Martin e eu entremos e que vocês esperem aqui fora. Têm a situação sob controle? – ele apontou na direção do padrasto.
– Johnny vai cuidar dele. Está em choque. Mas tenho certeza de que poderão conversar um pouco com ele. Contou-nos que encontrou um bilhete no quarto do garoto. Não nos mostrou, então provavelmente ainda deve estar lá.
– Ótimo – disse Patrik e caminhou lentamente até a porta da garagem. Fez uma careta, tomando coragem enquanto se agachava para levantar a porta.
A visão era tão horrível quanto tinha esperado. Pôde ouvir Martin tossir atrás dele.
Por um momento, Patrik achou que o garoto estivesse olhando para ele, e precisou se segurar para não sair correndo. Um ruído de alguém se afogando o fez se lembrar de que deveria ter avisado Martin como proceder nesses casos. Mas agora era tarde demais. Ele se virou a tempo de ver Martin sair correndo da garagem até um arbusto, onde esvaziou o estômago.
Ouviu outro veículo parando perto do carro da polícia e da ambulância e presumiu que era a equipe técnica chegando. Tentou se mover com cuidado para não despertar a ira da equipe. Acima de tudo, não queria estragar nenhuma prova, se nem tudo fosse o que parecia. Mas nada do que viu contradizia sua conclusão de suicídio. Uma grossa corda pendurada de um gancho no teto. O laço estava ao redor do pescoço do garoto, e uma cadeira tinha sido chutada e estava caída no chão. Parecia uma cadeira de cozinha trazida de dentro da casa. A cadeira tinha um forro brilhante, que contrastava muito com a cena macabra.
Patrik ouviu uma voz conhecida atrás dele.
– Pobre diabo, não era muito velho, não? – Torbjörn Ruud, chefe da equipe técnica de Uddevalla, entrou na garagem e olhou para Sebastian.
– Catorze – disse Patrik, e ficaram em silêncio por um instante, encarando o incompreensível fato de que um garoto de catorze anos pudesse achar a vida tão insuportável que a morte era a única saída.
– Existe alguma razão para acreditar que não foi suicídio? – perguntou Torbjörn, enquanto preparava a câmera que trazia na mão.
– Não, nenhuma – disse Patrik. – Há até um bilhete, que ainda não vi. Mas esse bilhete cita uma pessoa envolvida numa investigação de homicídio, então não quero dar chance ao azar.
– A garota? – disse Torbjörn, e Patrik assentiu.
– Certo, então, em outras palavras, vamos tratar isso como morte suspeita. Peça a um dos outros para cuidar do bilhete, assim ele não será manuseado antes de tirarmos as impressões.
– Vou fazer isso agora – disse Patrik, aliviado por ter uma desculpa para sair da garagem. Foi até Martin, que limpava a boca com um guardanapo de papel.
– Desculpe – falou, olhando com tristeza para seus sapatos, manchados com o almoço.
– Não importa. Isso já aconteceu comigo – disse Patrik. – Agora os técnicos e depois os caras da ambulância vão cuidar do corpo. Vou dar uma olhada no bilhete, e você pode tentar falar com o padrasto.
Martin assentiu e se inclinou para limpar os sapatos. Patrik acenou para uma das técnicas de Uddevalla. Ela trouxe sua maleta de equipamentos e o seguiu, sem falar nada.
A casa estava estranhamente quieta quando entraram. O padrasto do menino ficou olhando os dois entrarem.
Patrik olhou em volta.
– Acho que está no andar de cima – disse a técnica. Ele achava que o nome dela era Eva. Fazia parte da equipe que tinha examinado o banheiro dos Florin.
– É, não estou vendo nada aqui embaixo que pareça o quarto de um adolescente, você deve estar certa.
Eles subiram as escadas, e Patrik de repente teve um flashback de seu próprio quarto de infância. Todas as casas pareciam ter sido construídas mais ou menos na mesma época, e ele conhecia bem o estilo, com papel de parede e escadas de pinho claro com um amplo corrimão.
Eva estava certa. No alto da escada havia uma porta aberta que dava para um quarto inegavelmente típico de adolescente. A porta, as paredes e até o teto estavam cobertos com pôsteres e não era preciso ser um gênio para descobrir o tema comum. O garoto adorava heróis de filmes de ação. Qualquer um que atirasse primeiro e perguntasse depois; estavam todos ali. Os homens eram maioria, claro, mas uma única mulher tinha conquistado um lugar na coleção – Angelina Jolie, como Lara Croft. Apesar de Patrik suspeitar que a violência dela não era o único motivo pelo qual Sebastian tinha colocado sua fotografia na parede – ela tinha um belo par de peitos, para ser mais exato. E ele não podia culpar o garoto.
Uma folha de papel no meio da mesa trouxe Patrik de volta à realidade. Eles foram dar uma olhada no bilhete. Eva colocou um par de luvas finas e tirou um saco plástico da maleta. Cuidadosa, segurando com o dedão e o indicador um canto da carta, ela a colocou no saco plástico e o entregou para Patrik. Agora ele poderia lê-la sem destruir qualquer impressão digital que poderia estar no papel.
Patrik leu a carta em silêncio. As palavras estavam tão cheias de dor que ele quase perdeu o equilíbrio. Mas limpou a garganta para manter a compostura e, quando terminou, entregou-a a Eva. Não tinha dúvida de que a carta era verdadeira.
Patrik sentiu-se tomado por raiva e determinação. Não podia oferecer a Sebastian um Schwarzenegger que faria justiça usando óculos escuros legais, mas podia oferecer a ajuda de Patrik Hedström. Tinha a esperança de que isso fosse suficiente.
Seu celular tocou, e ele atendeu distraído, ainda absorto na raiva que sentia por causa da morte sem sentido do garoto. Ficou um pouco surpreso por ouvir a voz de Dan no telefone. O amigo de Erica quase nunca ligava direto para ele. A expressão espantada de Patrik logo foi substituída por consternação.
Como a adrenalina ainda estava correndo por suas veias, Niclas achou que poderia resolver todos os seus problemas de uma vez, antes que seu instinto natural de fuga tomasse conta. Muitas das coisas que tinham dado errado em sua vida podiam ter como base o fato de que ele tinha medo de conflitos e enfraquecia quando era necessário ter muita força. Estava começando a perceber que devia agradecer a Charlotte pelas coisas que ainda eram boas em sua vida.
Quando parou na calçada em frente à sua casa, ficou sentado no carro por um minuto, apenas respirando. Precisava pensar no que ia dizer a Charlotte. Era essencial que encontrasse as palavras certas. Desde que tinha sido forçado a confessar que tivera um caso com Jeanette, ele sentia o abismo entre eles aumentando mais a cada minuto. As rachaduras na relação entre os dois já existiam, antes da revelação e da morte de Sara, então não era difícil que aumentassem. Logo seria tarde demais. O segredo que compartilhavam não os aproximou; ao contrário, tinha acelerado o processo que os afastava. Era onde ele achava que tinham de começar. Se não fossem honestos sobre tudo a partir de agora, nada seria capaz de salvar o casamento. E pela primeira vez em muito tempo, talvez a primeira vez na vida, ele teve certeza do que queria.
Hesitante, saiu do carro. Algo dentro dele lhe dizia para correr, entrar no carro e voltar para a clínica, enterrar-se no trabalho, encontrar uma nova mulher para abraçar, voltar ao território conhecido. Mas ele sufocou essa necessidade, acelerou os passos e entrou em casa.
Ele conseguia ouvir vozes murmurando no andar de cima e sabia que Lilian deveria estar no quarto de Stig. Ainda bem. Ele não queria ter de enfrentar seu bombardeio de perguntas de novo e fechou a porta fazendo o mínimo de barulho possível.
Charlotte olhou espantada quando ele desceu ao porão.
– Você chegou cedo.
– Cheguei porque queria falar com você.
– Já não conversamos o suficiente? – ela disse, indiferente, e continuou a dobrar a roupa. Albin estava sentado no chão perto dela, brincando. Charlotte parecia esgotada. Niclas sabia que ela não conseguia dormir muito à noite; ficava deitada se mexendo, enquanto ele fingia não perceber. Não tinha conversado sobre isso com ela, não acariciou seu rosto nem a abraçou. A pele embaixo de seus olhos tinha manchas escuras, e ele conseguia ver como a esposa estava mais magra. Quantas vezes falara, bravo, que ela devia se cuidar e perder peso. Agora daria qualquer coisa para que ela voltasse a sua antiga forma.
Niclas se sentou na cama perto dela e pegou sua mão. A expressão chocada da esposa dizia que era algo que ele nunca fazia. Sentiu-se estranho e por um momento teve vontade de fugir de novo. Mas continuou segurando a mão dela e disse:
– Sinto muito mesmo, Charlotte. Por tudo. Por todos os anos em que fiquei distante, tanto física quanto emocionalmente; por tudo de que a culpei em minha mente, apesar de ser minha culpa; pelos casos que tive; pela proximidade física que neguei a você e dei a outras; por não encontrar uma forma de sair logo desta casa; por não ouvi-la; por não amá-la o suficiente. Perdoe-me por tudo isso e mais. Mas não posso mudar o passado, só prometo que tudo será diferente a partir de agora. Você acredita em mim? Por favor, Charlotte, preciso ouvir que acredita em mim!
Ela levantou os olhos e o encarou. As lágrimas começaram a escorrer pelo rosto dela.
– Sim, acredito em você. Por Sara, acredito em você.
Ele simplesmente assentiu, incapaz de continuar. Depois limpou a garganta e disse:
– Então, há uma coisa que precisamos fazer. Pensei muito nisso, e não podemos continuar vivendo com um segredo. Só monstros vivem no escuro.
Depois de uma breve pausa, ela assentiu. Com um suspiro, deitou a cabeça no ombro dele e sentiu como se estivesse voltando a se apaixonar.
Ficaram sentados assim por muito tempo.
Ele chegou em casa em cinco minutos. Abraçou Erica e Maja por um longo tempo e depois apertou a mão de Dan, grato.
– Que golpe de sorte você estar aqui – comentou, acrescentando Dan à lista de pessoas por quem devia ser grato.
– Certo. Mas eu não entendo. Quem seria louco o suficiente para fazer isso? E por quê?
Patrik sentou-se ao lado de Erica no sofá, segurando a mão dela. Depois de olhar hesitante para a mulher, falou:
– Isso provavelmente tem alguma conexão com o assassinato de Sara.
Erica se alarmou:
– O quê? Por que você acha isso? Por que teria...?
Patrik apontou para o macacão de Maja no chão.
– Parecem cinzas. – Sua voz falhou, e ele precisou limpar a garganta para continuar. – Sara tinha cinzas em seus pulmões e também ocorreu um... – ele procurou a palavra correta – ataque contra outro bebê. Cinzas também estavam envolvidas.
– Mas o que isso significa? – Erica parecia espantada. Nada do que estava ouvindo fazia sentido.
– Não sei – disse Patrik, cansado, enquanto passava a mão pelos olhos. – Nós também não entendemos. Enviamos as cinzas que encontramos na roupa da outra criança para o laboratório, para ver se possui a mesma composição química das cinzas encontradas em Sara, mas não recebemos os resultados ainda. E agora eu pretendo enviar as roupas de Maja também.
Erica assentiu sem falar nada. Seu pânico tinha se metamorfoseado em um estado de choque ou transe. Patrik a abraçou.
– Vou ligar e avisar que ficarei em casa o resto do dia. Só preciso levar as roupas da Maja para que comecem a fazer as análises o mais rápido possível. Precisamos pegar quem fez isso – ele disse. Era uma promessa que fazia a si mesmo e a Erica. Sua filha estava bem, é verdade, mas a crueldade mental por trás dessa ação criava uma sensação estranha de que a pessoa que estavam procurando era extremamente perturbada.
– Pode ficar aqui até eu voltar? – ele perguntou Dan, que assentiu.
– Claro. Fico aqui enquanto você precisar de mim.
Patrik beijou Erica no rosto e acariciou Maja. Depois, pegou o macacão da menina, colocou o casaco e saiu correndo. Ele queria voltar logo para casa.
Göteborg, 1954
A garota era impossível. Agnes suspirou. Tinha tantas esperanças, tantos sonhos. Ela era tão doce quando pequena e, com seus cabelos escuros, tinha passado por sua filha. Agnes decidira chamá-la de Mary. Em parte porque fazia todos se lembrarem de seus anos nos Estados Unidos e pelo status que tinha conseguido por viver no exterior e em parte porque era um nome adorável para uma garota charmosa.
Mas depois de um par de anos algo tinha acontecido. A garota tinha começado a engordar em todas as direções, e a gordura cobria seu lindo rosto como uma máscara. Isso enojava Agnes. Quando a garota tinha quatro anos, suas coxas tremiam e as bochechas estavam caídas como as de um São Bernardo, mas nada parecia fazê-la parar de comer. E Deus sabe como Agnes tinha tentado. Nada funcionava. Eles escondiam a comida e colocavam cadeados, mas Mary era como um rato que conseguia sentir o cheiro de algo comestível. Agora, com dez anos, era uma montanha de gordura. As horas no porão pareciam não ter nenhum efeito; ao contrário, ela sempre subia ainda mais faminta do que antes.
Agnes simplesmente não entendia. Sempre tinha dado enorme importância à própria aparência, porque isso possibilitava que conseguisse as coisas que queria na vida. Era inconcebível que uma garota quisesse destruir suas chances dessa maneira.
Às vezes, ela se arrependia de sua decisão de trazer a garota consigo de Nova York. Mas só de vez em quando. Tudo tinha saído exatamente como imaginara. Ninguém podia resistir à rica viúva com a linda filhinha, e ela só havia demorado três meses para encontrar o homem que podia lhe dar o estilo de vida que merecia. Åke viera a Fjällbacka por uma semana em julho, para se divertir um pouco; em vez disso, foi enrolado de forma tão eficiente por Agnes, que a pediu em casamento depois de apenas dois meses. Com uma modéstia cheia de decoro, ela aceitou e, depois de um casamento pouco divulgado, ela e sua filha se mudaram para Göteborg, onde Åke tinha um grande apartamento em Vasagatan. A casa em Fjällbacka foi novamente alugada, e ela sentiu alívio ao escapar do isolamento de uma pequena cidade.
Tampouco tinha ficado feliz com as pessoas insistindo em lembrar seu passado. Fora há tanto tempo, mas Anders e os garotos ainda pareciam continuar de forma vívida na memória de todos. Ela não conseguia entender a necessidade de continuarem falando sobre o que tinha acontecido. Uma senhora teve até a coragem de perguntar a Agnes como ela conseguia viver no mesmo lugar onde sua família tinha morrido. A essa altura, já tinha conseguido fisgar Åke, então se deu a liberdade de ignorar o comentário, simplesmente dando as costas e se afastando. Isso seria motivo de fofocas, mas não importava. Ela havia alcançado seu objetivo. Åke tinha um cargo de prestígio numa empresa de seguros e seria capaz de proporcionar uma vida confortável para ela. Infelizmente, não parecia muito interessado numa vida social, mas ela logo mudaria isso. Pela primeira vez em anos, Agnes seria o centro das atenções numa linda festa. Queria ter música, champanhe, lindas roupas e joias, e ninguém seria capaz de tirar essas coisas dela. Apagou da memória seu passado de forma tão efetiva que, no geral, parecia ter sido um sonho distante e desagradável.
Mas a vida tinha mais um truque na manga para ela. As festas não foram muitas, e ela não estava exatamente nadando em joias. Åke provou ser um notório mesquinho, e Agnes precisava lutar por cada öre. Ele também tinha exibido um desapontamento indecoroso quando, seis meses depois do casamento, chegou um telegrama dizendo que todos os bens que ela herdara de seu falecido marido tinham sido perdidos por causa de maus investimentos feitos pelo homem apontado para administrá-los em seu nome. Fora enviado por ela mesma, claro, mas Agnes ficou bastante orgulhosa da atuação teatral que realizou quando chegou a mensagem, inclusive a dramática cena do desmaio. Ela não havia contado com uma reação tão forte de Åke, e isso a fez suspeitar que a perspectiva de adquirir os bens dela tivera um papel maior na proposta de casamento do que ela imaginara. Mas o que estava feito estava feito para os dois, e agora precisariam se tolerar o melhor possível.
No começo, ela sentia apenas uma pequena irritação com a avareza dele e sua absoluta falta de iniciativa. O que mais gostava de fazer era ficar sentado em casa, toda noite, comendo o prato que era colocado à sua frente na mesa, lendo o jornal e talvez um par de capítulos de algum livro, depois colocava o pijama de velho e dormia pouco antes das nove. Quando eram recém-casados, ele tinha ocasionalmente se virado para seu lado da cama, mas agora, para alívio dela, suas necessidades tinham diminuído para duas vezes por mês, sempre com a luz apagada e sem nem se preocupar em tirar a parte de cima do pijama. Mas Agnes tinha percebido que na manhã seguinte era sempre mais fácil conseguir uma quantia modesta para seu uso pessoal, e ela nunca deixava passar uma oportunidade.
Só que, com o passar dos anos, sua irritação havia crescido até se transformar em ódio, e ela começara a procurar a arma certa para usar contra Åke. Quando percebeu que ele se aproximara da garota, entendeu que tinha descoberto a melhor forma de atacá-lo. Sabia que ele se opunha às punições dela, mas também que tinha medo do conflito e era muito fraco para defender a menina. E descobriu o grande prazer que sentia ao colocá-la, aos poucos, contra ele.
Agnes sabia bem quanto Mary precisava de um pouco de atenção e carinho. Se ela desse isso juntamente com o veneno nos ouvidos da menina, na forma de mentiras contra Åke, podia praticamente ver o ódio se espalhando e crescendo. Depois só precisava deixar que fizesse efeito em silêncio.
O pobre Åke não tinha nem ideia do que estava fazendo de errado. Via que a garota tornava-se cada vez mais distante e não podia deixar de ver o ódio em seus olhos. Ele provavelmente suspeitava que Agnes era a culpada, mas nunca conseguiu descobrir exatamente o que ela fazia para que a garota o detestasse tanto. Conversava com Mary sempre que podia e até tentava comprar seu perdão com os doces que sabia que ela gostava tanto. Mas nada parecia ajudar. Inexoravelmente, ela se afastava cada vez mais dele e, com essa distância, aumentava sua amargura em relação à esposa. Depois de oito anos de casados, Åke sabia que tinha cometido um grande erro, mas não conseguiu escapar dele. E, apesar de Mary se recusar a ter qualquer tipo de relação com ele, o homem ainda sentia que era a única pessoa capaz de garantir alguma segurança para ela. Se desaparecesse de sua vida, não podia imaginar o que sua esposa poderia fazer com a garota. Não tinha mais nenhuma ilusão sobre ela.
Agnes sabia bem disso. Às vezes, sua intuição era misteriosa, e ela podia ler as pessoas como um livro aberto.
Estava sentada em seu quarto, maquiando-se. Sem que Åke soubesse, nos últimos seis meses mantinha um caso com um dos melhores amigos dele. Ela prendeu seus cabelos escuros, que ainda não tinham nenhum fio grisalho, e passou um pouco de perfume atrás de suas orelhas, nos pulsos e no meio dos seios. Usava roupas íntimas pretas de seda decoradas com laços; ainda tinha um corpo que deixaria muitas jovens com inveja.
Estava ansiosa pelo encontro, que como sempre aconteceria no Hotel Eggers. Per-Erik era um homem de verdade, ao contrário de Åke, e ficara feliz por ele ter começado a falar em abandonar a esposa. Ela não era tão ingênua a ponto de acreditar nas promessas de um homem casado, mas sabia que ele apreciava seus conhecimentos na cama mais do que o normal. Sua esposinha gorda não tinha chance.
Mas ainda havia o problema de Åke. O cérebro de Agnes começou a trabalhar em alta velocidade. No espelho, via o rosto roliço da filha, e seus grandes olhos mirando-a famintos.
Apesar de ter tomado um longo banho e mudado de roupa, Martin achou que ainda conseguia sentir o cheiro de vômito do dia anterior. O suicídio e depois a ligação de Patrik contando que alguém tinha atacado Maja o deixara perturbado, e ele foi tomado por uma sensação de desamparo. Havia tantas coisas nesse caso, tantas coisas estranhas acontecendo ao mesmo tempo, que não tinha ideia como podiam encontrar sentido em tudo aquilo.
Na porta da sala de Patrik, ele hesitou. Por tudo que acontecera, não estava certo se o colega tinha vindo trabalhar hoje. Mas os sons dentro da sala mostravam que Patrik já tinha chegado. Bateu sem fazer muito barulho.
– Entre – disse Patrik.
– Não tinha certeza se você estaria aqui – disse Martin. – Achei que poderia estar em casa com Erica e Maja.
– Eu queria ficar em casa – disse Patrik. – Mas, acima de tudo, quero pegar o psicótico que está fazendo isso.
– Mas Erica ficará bem sozinha em casa? – perguntou Martin, inseguro se deveria falar daquilo.
– Eu queria que alguém fosse lá e ficasse com elas, mas Erica insistiu que ficariam bem. Eu liguei e falei com seu amigo Dan, o cara que estava em nossa casa ontem, quando tudo aconteceu, e ele prometeu que passaria para dar uma olhada nelas.
– Conseguiram alguma impressão? – perguntou Martin.
– Infelizmente, não. Estava chovendo, então todos os traços desapareceram. Mas enviei a roupa de Maja com as cinzas para o laboratório, veremos o que vai aparecer. Na minha opinião, é meramente uma formalidade; seria muita coincidência se as cinzas não fossem compatíveis com as outras amostras.
– Mas por que Maja?
– Quem sabe? – disse Patrik. – Provavelmente deve ser um aviso para mim. Algo que fiz ou não fiz, ao longo do caso. Oh, não sei – ele falou, frustrado. – Mas o melhor que podemos fazer agora é continuar trabalhando a toda velocidade, para conseguir resolver isso o mais rápido possível. Até lá, ninguém pode relaxar.
– O que fazemos primeiro, interrogamos Kaj?
– Isso – disse Patrik, mal-humorado. – Interrogamos Kaj.
– Você sabe que Kaj estava aqui ontem quando...
– Claro que sim – disse Patrik, um pouco aborrecido. – Mas isso não significa que não esteja envolvido no caso de alguma forma. Ou que não terá de responder por outros crimes.
– Certo, só estava me certificando – disse Martin, levantando as mãos na defensiva. – Vou pendurar meu casaco e o encontro lá – falou enquanto dirigia-se a seu escritório.
Patrik juntava suas coisas para ir à sala de interrogatório quando telefone tocou. Viu que era Annika e atendeu, esperando que não fosse nada importante. Estava louco para bater um papinho com o merda que estava preso. Mais do que nunca.
– Pois não? – ele sentiu que seu tom era brusco, mas Annika estava acostumada e não se ofenderia. Pelo menos era o que esperava.
Mas Patrik acabou ouvindo a ligação com interesse cada vez maior e depois disse:
– Certo, mande-os entrar.
Ele passou pela sala de Martin.
– Charlotte e Niclas estão aqui, me procurando. Teremos de esperar um pouco para fazer o interrogatório, primeiro vou ouvir o que eles querem.
Sem esperar por uma resposta, correu de volta para sua sala. Alguns segundos depois, ouviu passos e um murmúrio baixo no corredor. Quando os pais de Sara entraram, Patrik ficou chocado com a aparência de Charlotte. No curto período de tempo desde que a vira pela última vez, ela tinha envelhecido consideravelmente, e suas roupas estavam folgadas. Niclas também parecia esgotado, mas não tanto quanto sua esposa. Eles se sentaram nas cadeiras de visitante e, durante o silêncio que se seguiu, Patrik teve tempo de imaginar o que era tão importante para terem vindo sem avisar.
Foi Niclas que falou primeiro.
– Nós... Nós mentimos para você. Ou melhor, não contamos algumas coisas, e isso é provavelmente tão ruim quanto mentir. – Patrik sentiu seu interesse aumentando, mas decidiu esperar Niclas terminar de falar. Depois de um momento, ele continuou.
– Os machucados de Albin. Os que você pensou ou achou que eu tinha feito. Foi, foi... – Ele parecia estar procurando as palavras, e Charlotte assumiu seu lugar.
– Foi Sara. – Sua voz parecia mecânica e desprovida de emoções. Patrik se encolheu na cadeira. Não era o que esperava ouvir.
– Sara? – repetiu, espantado.
– Sim – disse Charlotte. – Você já sabe que Sara tinha problemas. Era difícil controlar seus impulsos, e ela podia ter os piores ataques de raiva. Antes de Albin nascer, ela direcionava sua raiva contra nós, mas éramos grandes o suficiente para nos defender e garantir que ela não nos machucaria e nem a si mesma. Mas, quando Albin chegou... – Sua voz falhou, e ela olhou para as mãos, que estavam tremendo no colo.
– Tudo ficou fora de controle depois que Albin nasceu – disse Niclas. – Achamos, e estávamos errados, que talvez fosse uma influência positiva para Sara ter um irmãozinho. Alguém por quem pudesse se sentir responsável e que quisesse proteger. Mas, vendo agora, foi provavelmente ingenuidade nossa. Ela o odiava por causa do tempo que ele exigia de nós. Aproveitava todas as oportunidades que podia para machucá-lo e, mesmo se tentássemos vigiá-los o tempo todo, era impossível. Ela era rápida... – Ele olhou para Charlotte, que assentiu timidamente.
Niclas continuou.
– Tentamos de tudo. Assistentes sociais, psicólogos, controle de agressividade, medicamentos. Não há nada que não tenhamos tentado. Experimentamos mudar sua dieta, tirar todo o açúcar e todos os carboidratos rápidos porque algumas descobertas sugeriam que isso poderia ter um efeito positivo. Mas nada, absolutamente nada, parecia funcionar. Finalmente chegamos ao limite. Cedo ou tarde ela iria machucar alguém seriamente. Não queríamos mandá-la embora. E para onde iríamos enviá-la? Então, quando essa vaga na clínica de Fjällbacka foi aberta, pensamos que poderia ser a solução. Uma mudança completa de paisagem, com a mãe de Charlotte e Stig por perto para ajudar a aliviar um pouco da pressão. Parecia perfeito.
Agora foi a voz de Niclas que falhou. Charlotte segurou a mão dele e a apertou. Juntos, tinham passado por um inferno e de alguma forma tinham sobrevivido.
– Sinto muito mesmo – disse Patrik. – Mas também preciso perguntar: vocês têm alguma prova do que estão me contando?
Niclas assentiu:
– Entendo que você precise perguntar. Trouxemos uma lista de todas as pessoas que consultamos com a Sara. Também falamos com elas e contamos que a polícia poderia telefonar e fazer perguntas. E dissemos que não precisavam preservar a confidencialidade do paciente e que contassem tudo para vocês.
Niclas entregou a lista para Patrik, que não duvidou por um momento na veracidade do que tinha acabado de ouvir. Mas ainda assim era necessário corroborar.
– Já fez algum progresso? Com Kaj, quero dizer? – Charlotte perguntou hesitante.
– Estamos no processo de interrogatório. Infelizmente, é tudo que posso revelar.
Charlotte só mexeu a cabeça.
Patrik viu que Niclas queria dizer algo mais, porém estava indeciso. Ele esperou pacientemente.
– Em relação ao álibi... – Olhou para Charlotte, que novamente assentiu de forma quase imperceptível. – Recomendo que tenha outra conversa com Jeanette. Ela mentiu quando disse que eu não estava lá, para se vingar de mim por haver terminado nossa relação. Tenho certeza de que se a pressionar um pouco, a verdade aparecerá.
Patrik não ficou surpreso. Tinha pensado que algo parecia falso na história de Jeanette. Bem, ele podia resolver isso quando chegasse a hora. Se fosse necessário. Com sorte, a questão de se Niclas tinha ou não um álibi seria supérflua depois do interrogatório dessa tarde.
Eles se levantaram e trocaram cumprimentos. Depois, o celular de Niclas tocou. Ele atendeu a ligação no corredor e uma expressão perplexa logo surgiu em seu rosto.
– Hospital? Agora? Fique calma, já estamos indo.
Ele se virou para Charlotte, que estava parada ao lado de Patrik.
– Stig piorou muito. Está a caminho do hospital.
Patrik olhou para os dois enquanto corriam pelo corredor. Já não tinham sofrido o suficiente?
Arne tinha se refugiado na igreja. As palavras de Asta ainda estavam girando em sua cabeça como um enxame de vespas raivosas. Todo o seu mundo estava desmoronando e as respostas que esperava encontrar na igreja ainda não tinham se materializado. Em vez disso, era como se as paredes de pedra se fechassem aos poucos ao seu redor, enquanto se sentava no primeiro banco. E agora percebia algo que nunca havia percebido antes: Jesus ali em cima na cruz tinha um sorriso nos lábios?
Um som atrás dele o fez se virar. Alguns turistas alemães entraram pela porta falando alto e tirando fotos sem parar. Ele sempre ficava incomodado com os turistas que vinham até ali em todas as estações do ano, e essa foi a gota d’água.
Arne se levantou e gritou, salivando.
– Saiam daqui! Agora! Fora!
Apesar de não entenderem uma palavra do que ele gritava, seu tom de voz não deixava espaço para dúvidas, e eles preferiram ir embora.
Feliz por ter finalmente retomado sua autoridade, Arne voltou a se sentar no banco, mas o sorriso desdenhoso de Jesus o levou novamente a um estado sombrio.
Um olhar no púlpito o fez voltar a sentir coragem. Era hora de fazer o que deveria ter feito havia muito tempo.
A vida era tão injusta. Não tinha sido forçado a lutar contra forças superiores a ele desde que tinha nascido? Ninguém nunca lhe deu nada. Ninguém via suas verdadeiras qualidades. Ernst simplesmente não entendia o que havia de errado com o resto das pessoas. Qual era o problema? Por que estavam sempre olhando de viés para ele, murmurando em suas costas, roubando as oportunidades que deveriam ter sido dele? Era assim que sempre tinha sido. Mesmo na escola, todos se juntavam contra ele. As garotas riam, e os meninos o maltratavam a caminho de casa. Nem mesmo quando seu pai caiu sobre uma forquilha, ele recebeu alguma solidariedade. Em vez disso, sabia o que as pessoas estavam falando com suas línguas acusadoras. Que sua pobre mãe provavelmente tinha algo a ver com isso. Elas simplesmente não tinham vergonha do que diziam.
Sempre acreditou que as coisas seriam melhores assim que saísse da escola. Quando entrasse no mundo real. Tinha escolhido se tornar policial porque teria a chance de mostrar a todos como era poderoso. Mas depois de vinte e cinco anos na força, precisava admitir que as coisas não tinham saído da forma como planejou. Mas nunca antes tinha feito tanta merda quanto agora. Nunca poderia ter imaginado que Kaj teria algo a ver com essas coisas. Eles jogavam cartas juntos, afinal de contas. Kaj era um cara legal, e um dos poucos que realmente queriam sua amizade. E havia histórias de como acusações infundadas tinham destruído a vida de homens inocentes. Por isso, quando Ernst teve a chance de fazer um favor ao amigo, claro que fez. Não tinha nada de errado nisso, tinha? Ele teve a melhor das intenções quando deixou de informar aquela chamada de Göteborg, mas ninguém parecia entender. E agora tudo tinha explodido na sua cara. Por que ele sempre teve tanto azar? Era esperto o suficiente para perceber que o suicídio do garoto no dia anterior ia piorar sua situação.
Mas quando se sentou em sua mesa, banido para a solidão como um prisioneiro na Sibéria, Ernst teve uma ideia de gênio. Sabia exatamente como poderia tornar aquela situação algo favorável. Sua intenção era se transformar no herói do dia, e mostrar de uma vez por todas àquele moleque do Hedström quem era o policial mais experiente da força. Hedström provavelmente havia percebido como ele havia virado os olhos na reunião, quando Mellberg apontou que eles provavelmente deveriam olhar mais de perto do idiota da vila. Mas o luxo de um é o lixo do outro. Se Hedström não conseguia somar dois e dois para resolver o assassinato, então Ernst teria de entrar e fazer isso por ele. Era óbvio para qualquer um que Morgan era o culpado, e o fato de que o casaco da garota tivesse sido encontrado em sua cabana eliminava todas as dúvidas.
O mais atraente para Ernst era a brilhante simplicidade de seu plano. Ele traria Morgan para ser interrogado, faria com que confessasse em pouco tempo e assim prenderia o assassino. Ao mesmo tempo, poderia mostrar a Mellberg que ele, Ernst, certamente ouvia o que seu superior dizia, enquanto Hedström não era só incompetente, mas também insubordinado. Depois disso, ele certamente reconquistaria as boas graças do chefe.
Levantou-se e foi até a porta, mostrando mais energia do que o normal. Agora dependia dele fazer o trabalho policial de alta qualidade. Olhou pelo corredor para garantir que ninguém espiava sua partida, mas a barra estava limpa.
Göteborg, 1957
Mary não sentia nada ali embaixo da chuva. Nem ódio, nem prazer. Só um vazio gelado que preenchia todo o seu corpo, da camada exterior da pele até os ossos de seu esqueleto.
Sua mãe estava chorando ao seu lado. Estava mais bonita do que o normal. O vestido preto de luto ficava bem nela. Ninguém podia ignorar o efeito dramático de sua beleza. Com uma mão trêmula, ela deixou uma única rosa vermelha cair sobre o caixão do marido e depois se jogou chorando nos braços de Per-Erik. Bem atrás dele estava sua esposa, a compaixão completa em seu rosto, graças à total ignorância de quantas vezes seu marido tinha dormido com a mulher que agora molhava a lapela dele com suas lágrimas.
Mary olhava com um coração dolorido, desejando que sua mãe tivesse encontrado consolo nos braços dela. Dispensada mais uma vez. Rejeitada mais uma vez. A dúvida desceu sobre ela com força total, mas se forçou a aguentar. Não podia começar a questionar tudo agora; se o fizesse, iria afundar.
A chuva fria batia em seu rosto, que não mostrava nenhuma emoção. Com as pernas duras, ela caminhou alguns poucos passos até o buraco no chão e tentou soltar a rosa que estava em sua mão. O monstro despertou dentro dela, persuadindo-a, fazendo-a levantar o braço e segurar a rosa sobre o caixão negro brilhante que estava no buraco. Depois, ela viu, em câmera lenta, seus dedos soltarem o talo espinhento e, com uma incrível lentidão, a flor flutuar até a superfície dura. Achou que tinha ouvido um eco quando ela bateu na madeira, mas ninguém mais pareceu reagir, então o som devia estar em sua cabeça.
Mary ficou ali pelo que pareceu uma eternidade antes de sentir um leve toque em seu ombro. A esposa de Per-Erik sorria gentilmente para ela e falou que era hora de ir. Na frente das duas, caminhava todo o cortejo do funeral, liderado por Agnes e Per-Erik. Ele tinha o braço ao redor do ombro de sua mãe, que apoiava a cabeça nele.
Mary olhou para a mulher ao seu lado e se perguntou desdenhosa como ela poderia ser tão estúpida e ingênua para não ver a aura de tensão sexual que cercava o casal na frente dela. Mary só tinha treze anos, mas conseguia ver tão claramente quanto a chuva. Bem, aquela mulher estúpida logo descobriria como era a realidade.
Às vezes, ela se sentia muito mais velha do que seus treze anos. Olhava a estupidez da humanidade com uma raiva que excedia em muito a de uma adolescente de sua idade – mas era porque tinha tido uma excelente professora. Sua mãe lhe ensinara que todo mundo só estava interessado em realizar seus próprios desejos e que uma pessoa precisava se virar para conseguir o que queria na vida. Nada deveria ficar no caminho, era o que sua mãe lhe havia explicado, e Mary fora uma aluna esplêndida. Agora ela se sentia esperta e experiente, pronta para receber o respeito que merecia de sua mãe. Afinal, ela tinha provado até onde ia o seu amor. Não tinha feito o maior sacrifício de todos por sua mãe? Agora ela receberia aquele amor com juros, sabia disso. Nunca mais teria de se sentar no porão escuro e ver o monstro crescer.
Com o canto do olho ela viu como Per-Erik a olhava com o rosto preocupado. Descobriu que tinha um amplo sorriso nos lábios e rapidamente o escondeu. Era importante manter as aparências. Era o que sua mãe sempre dizia. E sua mãe sempre estava certa.
O som das sirenes podia ser ouvido de longe. Stig queria se sentar e protestar, exigir que a ambulância fizesse uma curva e o levasse de volta para casa. Mas seus braços se recusavam a obedecer e, quando tentou falar, sua boca emitiu um som indistinto. O rosto preocupado de Lilian estava sobre ele.
– Shhhh, não tente falar. Guarde sua energia. Logo chegaremos a Uddevalla.
Relutantemente, ele desistiu de qualquer tentativa de lutar. Não tinha energia. A dor ainda estava ali e agora pior do que nunca.
Tinha acontecido tão rápido. De manhã, ele estava se sentindo muito bem e tinha até comido um pouco. Mas depois, o nível de dor tinha aumentado mais e mais e finalmente tornou-se insuportável. Quando Lilian subiu com o chá da manhã, ele não era mais capaz de falar, e ela derrubou a bandeja, apavorada. Depois começou todo o circo. O som das sirenes do lado de fora, o barulho na escada, mãos que o colocaram cuidadosamente sobre uma maca e dentro da ambulância. Seguido por uma corrida em alta velocidade, apesar de ele quase não ter sentirdo nada.
O medo de chegar ao hospital era ainda pior do que a dor que sentia. Em sua mente, via cada vez mais nítida a imagem de seu pai deitado na cama do hospital, tão pequeno e patético, tão diferente do homem feliz e barulhento que costumava levantá-lo no ar quando era pequeno e lutava afetuosamente quando era mais velho. Agora Stig sabia que ia morrer. Se fosse parar num hospital, era só questão de tempo.
Ele gostaria de levantar a mão e acariciar o rosto da Lilian. Ficaram juntos por tão pouco tempo. Claro, tiveram suas brigas e maus momentos, quando até pensou que acabariam se separando, mas conseguiram se reencontrar. Agora ela teria de encontrar outra pessoa com quem envelhecer.
Também sentiria saudades de Charlotte e das crianças. Da criança, ele se corrigiu e sentiu uma dor no coração que era mais do que física. Era a única coisa positiva que podia ver no que tinha acontecido. Estava firmemente convencido de que havia vida após a morte, um lugar melhor. Talvez pudesse encontrar a garota ali e descobrir o que realmente acontecera naquela manhã.
Ele sentiu a mão de Lilian em seu rosto. A inconsciência começou a dissolver a realidade, e ele fechou os olhos, grato. Pelo menos seria agradável escapar da dor.
O vento o machucava enquanto caminhava até a pequena cabana de Morgan. O entusiasmo de Ernst havia se dissipado um pouco no caminho, mas já estava novamente animado, agora que sua presa estava perto.
Uma batida autoritária abriria seu caminho para a vitória e foi recompensada alguns segundos depois com o som de passos do lado de dentro. O rosto magro de Morgan apareceu na porta e, com sua voz estranha e monótona, ele disse:
– O que você quer?
A pergunta direta pegou Ernst de surpresa, e ele precisou se recuperar mentalmente por um momento antes de falar.
– Você precisa vir comigo até a delegacia.
– Por quê? – perguntou Morgan, e Ernst sentiu a irritação crescendo dentro dele. Que figura bizarra!
– Porque precisamos conversar com você sobre algumas coisas.
– Vocês levaram meus computadores. Não tenho mais meus computadores. Vocês levaram – repetiu Morgan, e Ernst viu uma oportunidade surgir.
– Exatamente, é por isso que você precisa vir comigo. Assim poderemos devolver seus computadores. Já terminamos de examiná-los – Ernst estava muito feliz com sua genialidade.
– Por que não podem trazê-los? Vocês os tiraram daqui.
– Quer seus computadores ou não? – explodiu Ernst. Sua paciência seriamente começava a se esgotar.
Depois de um momento de hesitação e alguma deliberação interna, a perspectiva de conseguir seus computadores de volta conquistou a relutância de Morgan de sair de sua zona de conforto.
– Vou com você. Para poder pegar meus computadores.
– Ótimo. Bom rapaz – disse Ernst, sorrindo para si mesmo enquanto Morgan ia pegar seu casaco.
Eles se sentaram em silêncio durante toda a viagem até a delegacia. Morgan olhava para a janela do seu lado, e Ernst não via nenhum motivo para conversar. Estava guardando sua munição para o interrogatório oficial. E conseguiria fazer o idiota falar.
Quando chegaram à delegacia, um pequeno dilema permanecia. Como Ernst ia levar o suspeito para ser interrogado sem que os outros percebessem o que pretendia fazer? Se descobrissem, arruinariam seu plano brilhante; isso não poderia acontecer sob nenhuma circunstância. Finalmente teve uma ideia à prova de erros. De seu celular, ligou para a recepção e com uma voz disfarçada disse a Annika que tinha um pacote para ser entregue pela porta de trás. Esperou alguns segundos segurando Morgan e então, com o coração saindo pela boca, entrou pela porta principal, esperando que Annika tivesse corrido para o outro lado da delegacia. Tinha funcionado. Ela não estava em seu lugar de sempre. Ernst passou com Morgan pela recepção e entrou na primeira sala de interrogatório. Fechou a porta atrás de si e a trancou, depois se permitiu um pequeno sorriso triunfante antes de convidar Morgan a se sentar numa das cadeiras. Alguém tinha deixado uma janela meio aberta para arejar um pouco o ambiente. Estava solta e batia com a brisa. Ernst ignorou o barulho. Queria começar o mais rápido possível antes que alguém tentasse enfiar a cabeça ali.
– Então, meu amigo, aqui estamos nós. – Ernst fez uma grande encenação para tirar o gravador.
Os olhos de Morgan começaram a olhar em volta. Algo lhe dizia que as coisas não estavam certas.
– Você não é meu amigo – ele disse, determinado. – Não nos conhecemos, como poderia ser meu amigo? Amigos se conhecem. – Depois de uma pequena pausa, ele continuou: – Deveria pegar meus computadores. Vim aqui por isso. Você disse que meus computadores estavam prontos.
– Falei isso, sim – disse Ernst com um sorriso de escárnio. – Mas veja, eu menti. E você está certo sobre uma coisa: não sou seu amigo. Na verdade, agora sou seu pior inimigo. – Um pouco dramático talvez, mas Ernst ficou cruelmente feliz com essa frase. Lembrou que a ouvira num filme.
– Não quero mais ficar aqui – disse Morgan e começou a olhar para a porta. – Quero meus computadores de volta e quero voltar para casa.
– Pode esquecer isso. Vai demorar muito tempo antes de poder voltar para casa. – Maldição, ele era bom. Realmente deveria escrever roteiros para filmes de ação norte-americanos. Continuou: – Encontramos o casaco dela na sua cabana e temos muitas provas forenses que mostram que foi você quem a matou. – Pura mentira, a última parte, mas Morgan não sabia disso. E nesse jogo não havia regras.
– Mas eu não a matei. Apesar de querer algumas vezes – ele acrescentou, sem emoção.
Ernst sentiu o coração bater mais rápido. O interrogatório ia melhor do que ele imaginara.
– Não adianta tentar mentir para mim. Temos outras provas e temos o casaco, então não precisamos de mais nada. Mas, claro, seria melhor se me contasse como fez. Então, talvez não tenha de passar a vida na prisão. Não poderá ter nenhum computador lá.
Agora ele viu pela primeira vez uma emoção genuína no rosto do idiota. Ótimo, parece que o pânico estava começando a aparecer. Então, ele amoleceria logo. Mas, para melhorar a situação ainda mais, tentaria um velho truque que tinha aprendido em Nova York contra o crime e no outro programa de policiais de que era fã. Deixaria o cara transpirando sozinho por um tempo. Se tivesse tempo de pensar em sua situação, ele confessaria mais rápido que Ernst pudesse dizer “Andy Sipowicz”.
– Preciso ir ao banheiro. Continuamos essa conversa daqui a pouco. – Ficou de costas para Morgan e começou a andar até a porta.
Morgan agora estava balbuciando incessantemente num tom de súplica.
– Não fiz nada. Não posso ficar na prisão pelo resto da vida. Não a matei. Não sei como o casaco foi parar na minha casa. Ela estava usando quando voltou para casa. Por favor, não me deixe aqui. Traga minha mamãe, quero falar com minha mamãe. Mamãe pode resolver tudo isso, por favor...
Ernst fechou rapidamente a porta atrás de si para que os murmúrios do idiota não fossem ouvidos no corredor. Depois de uns passos, Annika olhou para ele com suspeitas.
– O que você estava fazendo ali?
– Oh, estava só verificando uma coisa. Achei que tinha deixado minha carteira numa das salas de interrogatório.
Ela não pareceu acreditar, mas deixou passar. Um segundo depois, olhou pela janela e gritou:
– O que é isso?
– O que foi? – disse Ernst, sentindo uma súbita inquietação no estômago.
– Um cara acabou de pular uma das janelas e agora está correndo na direção da autoestrada.
– Que merda! – Ernst quase deslocou o ombro quando se jogou contra a porta; em sua pressa esqueceu que estava sempre trancada.
– Abra a porta, pelo amor de Deus! – ele gritou para Annika, e ela obedeceu apavorada. Ele abriu a segunda porta e saiu correndo atrás de Morgan. Viu como ele olhava para trás e corria ainda mais rápido. Horrorizado, Ernst viu uma minivan preta se aproximando em alta velocidade.
– Não-o-o-o! – gritou, em pânico.
Então veio o barulho, e tudo ficou quieto.
Martin se perguntava o que Charlotte e Niclas queriam falar com Patrik. Esperava que fosse algo que permitisse que Niclas fosse retirado da lista de suspeitos. A ideia de que o assassino pudesse ser o próprio pai da garota era muito horrenda.
Ele não conseguia entender Niclas. Os relatórios médicos de Albin eram bastante sérios, e o pai não conseguira convencê-lo de que não provocara os ferimentos do menino. Mesmo assim havia alguma coisa que não encaixava. Niclas era um homem complexo, para dizer o mínimo. Dava a impressão de ser uma pessoa doce e estável quando o conhecia, mas parecia ter uma vida privada totalmente caótica. Apesar de Martin não ter sido nenhum anjo em seus dias de solteiro, agora que estava vivendo com outra pessoa, não podia entender como alguém podia trair sua cara-metade dessa forma. O que Niclas dizia a Charlotte quando chegava em casa depois de estar com Jeanette? Como poderia fazer seu tom de voz parecer natural? Como podia olhar para ela depois de rolar na cama com sua amante poucas horas antes? Martin simplesmente não conseguia entender.
Niclas mostrara um temperamento difícil de explicar. Martin tinha visto o olhar dele quando o encontrou na casa do pai. Parecia que queria matar o pai. Deus sabe o que poderia ter acontecido se ele não tivesse aparecido.
E mesmo assim. Apesar da natureza contraditória de Niclas, Martin não acreditava que ele tivesse conscientemente afogado a própria filha. E quais teriam sido os motivos para isso?
Seus pensamentos foram interrompidos quando ouviu passos no corredor e viu Charlotte e Niclas passarem correndo. Estava curioso para saber qual era a pressa.
Patrik apareceu na porta, e Martin levantou as sobrancelhas, questionando o colega.
– Era Sara que machucava o Albin – disse Patrik, sentando-se na cadeira em frente.
Martin esperava muitas coisas, mas não isso.
– Como sabemos que estão falando a verdade? Niclas não poderia estar tentando desviar a atenção de si mesmo?
– É, pode ser, claro – disse Patrik, com voz cansada. – Mas preciso dizer que acredito neles. Se bem que precisamos confirmar essa história. Eles me deram nomes e telefones de pessoas que podemos contatar. E o álibi de Niclas parece ser verdadeiro afinal. Ele afirma que Jeanette mentiu quando disse que não estava com ela, como uma forma de se vingar, depois que ele a deixou. E também estou inclinado a acreditar, apesar de precisarmos ter uma conversa séria com Jeanette, claro.
– Que confusão... – disse Martin e não precisou terminar sua frase antes de Patrik concordar.
– Sim, a humanidade não tem mostrado seu lado mais nobre nessa investigação – falou, balançando a cabeça. – E por falar nisso, vamos começar aquele interrogatório agora?
Martin assentiu, pegou seu caderno e se levantou para seguir Patrik, que já estava na porta.
– Por falar nisso, Pedersen falou alguma coisa? Sobre as cinzas na roupa do menino?
– Não – respondeu Patrik, sem se virar. – Mas eles iam analisar tanto a roupa dele quanto a de Maja o mais rápido possível. Aposto que vão descobrir que as cinzas vieram da mesma fonte.
– Seja ela qual for – disse Martin.
– Exato.
Eles entraram na sala de interrogatório e se sentaram em frente a Kaj. Ninguém disse nada no começo, enquanto Patrik calmamente olhava seus papéis. Via com satisfação que Kaj estava nervoso, apertando as mãos, e que pequenas gotas de suor tinham se formado em cima de seus lábios. Bom, ele estava com medo. Isso facilitaria o interrogatório. E considerando quantas provas tinham coletado na busca na casa, Patrik não se sentia nem um pouco preocupado. Se tivesse provas tão boas em todas as suas investigações, a vida seria muito mais fácil.
Foi quando seu humor mudou. Ele encontrou uma cópia do bilhete de suicídio do garoto e foi uma lembrança abrupta de por que faziam esse trabalho, e quem era o homem diante deles. Patrik fechou os punhos com determinação. Olhou para Kaj, que desviou o olhar.
– Na verdade não precisamos falar com você. Temos muitas provas da busca feita em sua casa para colocá-lo atrás das grades por muito tempo. Mas ainda queremos dar uma chance para você explicar seu lado da história. Porque somos assim: caras legais.
– Não sei do que estão falando – disse Kaj com uma voz trêmula. – Isso é um erro da justiça. Não podem me manter aqui. Sou inocente.
Patrik só assentiu, compreensivo.
– Sabe, quase acredito em você. E poderia até acreditar se não fosse por isto. – Ele pegou algumas fotos de sua pasta grossa e as empurrou para Kaj. Ficou agradecido por ver como o homem ficou primeiro pálido, depois vermelho. Olhou para Patrik com espanto no rosto.
– Falei que tínhamos gente boa com computadores, não falei? – disse Patrik. – E não falei que as coisas não desaparecem só porque você as apaga? Você foi bem eficiente em apagar coisas de seu computador, mas não o suficiente, para seu azar. Conseguimos recuperar tudo que você baixou e compartilhou com seus amigos pedófilos. Fotos, e-mails, vídeos. Tudo. Guardado e catalogado.
Kaj abriu e fechou a boca. Parecia que estava tentando encontrar as palavras, mas elas paravam em sua língua.
– Não tem muito a dizer agora, tem? Dois colegas de Göteborg estão vindo aqui amanhã e também querem conversar com você. Consideraram nossas descobertas extremamente interessantes.
Kaj não disse nada, então Patrik continuou, determinado a chocá-lo de alguma forma. Detestava o homem diante de si, detestava tudo que ele representava, tudo que tinha feito. Mas não demonstrava. Com calma e um tom determinado, continuou falando como se estivessem discutindo o clima, e não abuso infantil. Por um momento, pensou em tratar diretamente do casaco de Sara, mas decidiu que isso poderia esperar um pouco. Em vez disso, se inclinou sobre a mesa, olhou bem para Kaj e disse:
– Vocês alguma vez pensam nas crianças que são suas vítimas? Pensam por um segundo nelas ou estão totalmente envolvidos na satisfação de suas próprias necessidades?
Ele não esperava uma resposta, nem recebeu uma. No silêncio subsequente, continuou:
– Você sabe o que se passa na cabeça de um jovem quando precisa enfrentar alguém como você? Sabe o que você destrói, o que rouba dele?
Só um leve tremor no rosto de Kaj mostrava que ele tinha ouvido. Sem tirar os olhos do homem, Patrik pegou uma folha de papel e a deslizou pela mesa. No começo, Kaj se recusou a olhar, mas aos poucos foi baixando os olhos até a folha de papel e começou a ler. Com uma expressão incrédula no rosto, olhou para Patrik, que só assentiu, com o rosto triste.
– É exatamente o que parece. Uma nota de suicídio. Sebastian Rydén tirou a própria vida essa manhã. Seu padrasto o encontrou pendurado na garagem. Eu estava lá quando eles o tiraram da forca.
– Você está mentindo. – A mão de Kaj tremia enquanto segurava a carta. Mas Patrik podia ver que ele sabia que era verdade.
– Não seria melhor parar de mentir? – Patrik perguntou, com um jeito tranquilo. – Você devia gostar de Sebastian, tenho certeza disso, então faça isso pelo bem dele. Dá para ver o que ele escreveu. Ele queria que isso acabasse. Você pode fazer isso.
Seu tom era falsamente solidário. Patrik olhou rapidamente para Martin, que estava a postos, com a caneta parada sobre o caderno. O gravador, que fazia um zumbido na sala, também estava sendo usado, mas Martin tinha o hábito de sempre tomar nota.
Kaj alisou a carta com os dedos e abriu a boca para dizer algo. Martin segurou a caneta, pronto para começar a escrever.
Naquele mesmo instante, Annika abriu a porta.
– Houve um acidente lá fora, rápido!
Depois, saiu correndo pelo corredor. Houve um segundo de choque silencioso, depois Patrik e Martin correram atrás dela.
No último momento, Patrik se lembrou de trancar a porta. Teriam de voltar para falar com Kaj mais tarde. Ele só esperava que o momento não tivesse passado.
Mellberg não podia negar que estava um pouco preocupado. Só haviam se passado alguns dias, claro, mas não sentia que já existia alguma verdadeira conexão pai-filho. Claro, talvez devesse ser um pouco mais paciente, mas realmente não achava que estava recebendo a gratidão que merecia. O respeito que um pai merecia. O amor incondicional de que todos os pais falavam, talvez combinado com um pouco de temor saudável. O garoto parecia absolutamente indiferente. Ficava sentado no sofá de Mellberg o dia todo, comendo enormes quantidades de batata frita e jogando videogame. Mellberg não conseguia entender de onde vinha uma atitude tão indolente. Devia ser da mãe. Mellberg se lembrava de como tinha energia quando era jovem. Mesmo com os melhores esforços, não conseguia se lembrar das conquistas esportivas que devia ter tido – na verdade, não conseguia lembrar de si mesmo praticando esportes – mas devia ser por causa do tempo que havia passado. A imagem que tinha de si mesmo quando jovem era definitivamente a de um rapaz musculoso com asas nos pés.
Olhou para o relógio. Não era hora do almoço ainda. Os dedos bateram impacientes na mesa. Talvez devesse ir para casa passar um pouco de tempo com Simon. Isso deixaria o garoto feliz, provavelmente. Quando Mellberg teve essa ideia, percebeu que o filho devia ser tímido. Dentro de si, desejava contato com seu pai, que estivera ausente por tanto tempo, queria que ele o abraçasse e o tirasse de sua casca protetora. Devia ser isso. Mellberg suspirou de alívio. Tinha sorte por entender crianças, ou provavelmente já teria desistido e deixado o garoto ficar sentado no sofá sentindo-se infeliz. Mas Simon logo descobriria como tinha sorte de tê-lo como pai.
Com grande entusiasmo, Mellberg pegou seu casaco, pensando qual atividade poderia ser boa para os dois. Infelizmente não havia nada que dois homens de verdade pudessem fazer nesse buraco abandonado. Se estivessem em Göteborg, ele poderia levar o filho para a primeira visita a um bar de strip-tease ou ensiná-lo a jogar roleta. Naquele lugar, ele não sabia o que fazer. Oh, bem, pensaria em algo.
Quando passou pela porta de Hedström, pensou que era muito chato o que tinha acontecido com a filha dele. Era outro sinal de que nunca dava para saber o que poderia ocorrer, e era melhor aproveitar a companhia dos filhos enquanto havia tempo. Com isso em mente, ele se convenceu de que ninguém o culparia por ir mais cedo para casa.
Assobiando, caminhou até a recepção, mas parou assim que viu as portas abertas e seus homens correndo para fora. Algo estava acontecendo e, como sempre, ninguém tinha se importado de avisá-lo.
– O que está acontecendo? – gritou para Gösta, que não era tão rápido quanto os outros.
– Alguém foi atropelado bem aí na frente.
– Que merda – disse Mellberg e também começou a correr o mais rápido que podia.
Chegou até a frente da delegacia. Uma minivan preta estava parada no meio da rua.
Um homem, provavelmente, o motorista, estava dando voltas, segurando a cabeça. O air bag tinha funcionado no lado do motorista, e ele parecia bem, mas confuso. Na frente do veículo, uma pessoa estava caída na rua. Patrik e Annika estavam ajoelhados ao seu lado, enquanto Martin tentava acalmar o motorista. Ernst estava um pouco afastado, com os longos braços caídos e o rosto branco como uma folha de papel. Gösta o alcançou, e Mellberg viu que falavam baixinho entre si. A expressão preocupada de Gösta incomodou Mellberg. Ele tinha uma sensação desconfortável no estômago.
– Alguém chamou a ambulância? – perguntou, e Annika respondeu que sim. Sem saber o que fazer em seguida, ele se virou para Ernst e Gösta. – O que aconteceu? Vocês sabem?
O silêncio nefasto dos dois mostrou que ele não ia gostar da resposta. Viu que Ernst piscava nervosamente, então Mellberg o encarou.
– Bom, alguém vai responder ou terei de arrancar de vocês?
– Foi um acidente – disse Ernst com uma voz estridente.
– Poderia me dar alguns detalhes desse “acidente”? – perguntou Mellberg, ainda encarando seu subordinado.
– Queria fazer apenas algumas perguntas, e ele ficou doido. Era um psicótico de merda, esse cara. Eu não podia evitar, podia? – Ernst levantou a voz, bravo, numa tentativa desesperada de controlar a situação que tinha, de repente, escapado por entre seus dedos.
O sentimento ruim no estômago de Mellberg cresceu. Olhou para o corpo caído na rua.
– Quem está caído embaixo daquele veículo, Ernst? Pode me contar – estava sussurrando, quase rosnando as palavras, e isso, mais do que qualquer outra coisa, mostrou a Ernst como ele estava afundado na merda.
Respirando fundo, Ernst falou em voz baixa:
– Morgan, Morgan Wiberg.
– Que merda você está falando? – gritou Mellberg tão alto que tanto Ernst quanto Gösta se encolheram, e Patrik e Annika se viraram.
– Você sabia disso, Hedström? – perguntou Mellberg.
Patrik balançou a cabeça, sombrio.
– Não e não dei nenhuma instrução para que Morgan fosse trazido para interrogatório.
– Entããão, você achou que devia se mostrar um pouco. – Mellberg tinha baixado a voz para um tom falsamente calmo.
– Você disse que deveríamos olhar para o idiota primeiro. E, ao contrário de certos colegas – Ernst apontou na direção de Patrik –, eu confio plenamente na sua opinião e sempre ouço o que diz.
Numa situação normal, a bajulação teria fucionado, mas dessa vez Ernst tinha feito uma bagunça tão completa que nem mesmo isso poderia trazer Mellberg para o seu lado.
– Eu disse especificamente que Morgan deveria ser trazido? Bem, eu disse isso?
Ernst pareceu hesitar por um momento e depois sussurrou.
– Não.
– Então está certo – gritou Mellberg. – Agora onde está a merda da ambulância? Os paramédicos decidiram tomar um café?
Sentia sua frustração voando para todos os lados e não ajudou quando Hedström disse, calmo.
– Não acho que precisem correr. Ele não reagiu desde que chegamos aqui. Acho que a morte foi instantânea.
Mellberg fechou os olhos. Em sua mente, viu toda a sua carreira desmoronar. Todos os anos de trabalho duro... talvez não com o trabalho policial diário, mas navegando no meio da selva política e conseguindo ficar bem com as figuras influentes enquanto pisava em quem pudesse colocar obstáculos em seu caminho. Tudo isso não significaria nada graças a um estúpido policial caipira.
Devagar, ele se virou para Ernst. Numa voz fria, disse:
– Você está suspenso até ser investigado. E se eu fosse você, não esperaria voltar.
– Mas, senhor... – disse Ernst, preparando-se para protestar. Ele ficou quieto repentinamente quando Mellberg levantou o dedo indicador no ar.
– Cale a boca – foi tudo que disse e, com isso, Ernst sabia que o jogo estava perdido. Não tinha nada mais a fazer, exceto ir para casa.
Göteborg 1957
Agnes se espreguiçou na grande cama. Havia algo no brilho que surgia logo depois de fazer amor com um homem que a fazia se sentir viva e vibrante. Olhou para as costas largas de Per-Erik enquanto ele se sentava na beira da cama e vestia sua calça bem passada.
– Bom, quando vai contar para Elisabeth? – ela perguntou, procurando imperfeições em suas unhas vermelhas. Não encontrou nenhuma. A falta de uma resposta dele a fez olhar para cima.
– Per-Erik?
Ele limpou a garganta.
– Acho que é um pouco cedo. Não passou nem um mês desde que Åke morreu, e o que as pessoas vão dizer se... – deixou o resto da sentença no ar.
– Achei que éramos mais importantes do que o que as “pessoas” podiam pensar – falou, com uma força que ele nunca tinha ouvido antes.
– Nós somos, minha querida, nós somos. Só acho que deveríamos... esperar um pouco – ele falou, virando-se para acariciar suas pernas nuas.
Agnes o olhou com suspeita. A expressão dele era inexpugnável. Ficou incomodada porque nunca conseguia entendê-lo completamente, não da forma como sempre pôde ler os outros homens. Mas era por isso que, pela primeira vez em sua vida, sentia ter encontrado um homem que podia satisfazer suas expectativas. E já estava na hora. Claro que ainda era muito bonita para seus cinquenta e três anos, mas a passagem do tempo trouxe mudanças indesejadas até para ela. Logo não poderia mais usar sua aparência. Esse pensamento a amedrontava e por isso era importante que Per-Erik mantivesse todas as promessas que tinha feito. Durante esses anos de relação, ela sempre mantivera o controle. Pelo menos era o que achava. Mas, pela primeira vez, Agnes foi tomada por dúvidas. Talvez tivesse se deixado enganar. Esperava, pelo bem dele, que não fosse o caso.
Harald Spjuth estava contente com sua vida como pastor. Mas, como ser humano, às vezes sentia-se um pouco sozinho. Apesar de ter quarenta anos, ainda não havia encontrado ninguém com quem compartilhar a vida, e isso era algo que o deixava muito mal. Talvez seu colarinho de pastor tivesse criado um obstáculo, porque nada em sua personalidade indicava que ele teria dificuldades em encontrar amor. Era uma pessoa verdadeiramente agradável e boa, mesmo se aqueles pudessem não ser os termos que usaria para se descrever, uma vez que também era humilde e tímido. Nem sua aparência podia ser culpada por sua solidão. Apesar de não poder ser classificado exatamente como um galã de cinema, tinha traços agradáveis e uma cabeça cheia de cabelos. Também havia conseguido manter o peso, apesar de gostar de boa comida e dos muitos cafezinhos que a vida de pastor numa cidade pequena exigia, o que era invejável. Mas as coisas pareciam não melhorar.
No entanto, Harald não estava desesperado. Imaginava o que sua congregação diria se soubessem como ele tinha se dedicado a colocar anúncios pessoais nos últimos tempos. Depois de tentar tanto os cursos de dança quanto os de culinária sem sucesso, no fim da primavera se sentou e escreveu seu primeiro anúncio pessoal. Desde então as coisas tinham começado a acontecer. Ele não tinha conhecido o amor de sua vida, mas tivera agradáveis almoços e adquirira um par de boas amigas de correspondência. Em casa, sobre a mesa da cozinha, estavam mais três cartas esperando ser lidas. Mas primeiro o dever.
Ele havia visitado alguns dos habitantes mais velhos da cidade que apreciavam a oportunidade de conversar por um tempo e geralmente passavam pela casa do pároco a caminho da igreja. Muitos de seus colegas mais ambiciosos provavelmente diriam que a congregação era pequena demais, mas Harald estava adorando. A casa amarela era linda, e ele sempre se maravilhava com a igreja, imponente no alto da colina, quando subia pelo caminho cercado de árvores. Quando passou pela velha escola paroquial, que ficava em frente à sua casa, refletiu por um momento sobre o debate virulento que havia se espalhado pela cidade. Um construtor queria derrubar o edifício extremamente dilapidado e construir um prédio de apartamentos. Mas o projeto imediatamente gerou uma série de artigos contrários no jornal, bem como cartas ao editor de pessoas que queriam que o prédio fosse preservado a qualquer custo. De alguma forma Harald conseguia entender os dois lados. No entanto, o mais espantoso era que a maioria dos opositores não eram moradores permanentes, mas visitantes de verão com residência em Fjällbacka. Naturalmente, eles queriam que seu retiro permanecesse o mais pitoresco e bonito possível. Adoravam caminhar pela cidade nos fins de semana e acreditar que eram afortunados por terem um refúgio tão agradável longe do trabalho e da cidade grande. O único problema é que uma cidade que não se desenvolve cedo ou tarde acaba morrendo; a imagem não podia ser congelada para sempre. Eram necessários apartamentos, e era impossível transformar Fjällbacka inteira num sítio protegido sem afetar a própria vida da cidade. O turismo era bom, claro, mas havia uma vida depois do verão também, refletia Harald enquanto subia a colina até a igreja.
Antes de entrar, tinha o hábito de parar para olhar a torre, com a cabeça o mais levantada possível. Com o vento que fazia hoje, tinha a ilusão de que a torre estava balançando, e a visão imponente de milhares de toneladas de granito prestes a cair sempre o fazia sentir respeito pelos homens que tinham construído tão majestosa igreja. Às vezes, gostaria de ter vivido naqueles tempos e ter sido um dos escultores de Bohuslän. Esses homens que viveram na obscuridade e usaram as mãos para criar tudo, das mais simples estradas às mais magníficas estátuas. Mas ele era sábio o suficiente para saber que tudo aquilo era um sonho romântico. A vida provavelmente não tinha sido muito divertida para eles, e o pastor apreciava demais os confortos da vida moderna para se enganar imaginando que poderia viver sem aquilo tudo.
Depois de se permitir um momento de devaneio, abriu a porta. Com culpa, ficou torcendo para que Arne não estivesse ali. Não havia nada de errado com o sujeito, e ele fazia um bom trabalho, mas Harald precisava admitir que tinha um problema com os velhos seguidores do luteranismo pietista de Schartau, e Arne era um dos piores. Era preciso procurar muito para encontrar alguém como esse homem sombrio. Parecia celebrar o sofrimento e sempre procurava o lado negativo de tudo. Às vezes, quando Arne estava parado ao seu lado, Harald podia sentir toda a sua alegria ser literalmente sugada por ele. Também não tinha muita paciência com a eterna falação sobre as pastoras. Se Harald ganhasse cinco coroas cada vez que Arne ofendia sua predecessora, seria rico hoje. Honestamente, não podia entender o que havia de tão terrível em uma mulher pregando a palavra de Deus em vez de um homem. Sempre que Arne lançava um de seus comentários, Harald tinha o desejo de dizer que não era necessário um pênis para pregar a palavra de Deus, mas sempre mordia a língua a tempo. O pobre Arne provavelmente cairia morto no ato se ouvisse um pastor dizer algo assim.
Dentro da sacristia, toda a esperança de que Arne estivesse em sua casa desapareceu. Harald ouviu sua voz e achou que estava provavelmente falando com algum pobre turista que havia conhecido o sacristão mais conservador de todo o reino da Suécia. Por um momento, Harald ficou tentado a sair às escondidas. Depois suspirou e achou que deveria ser um bom cristão e salvar as pobres criaturas.
Mas não havia nenhum turista. Em vez disso, Arne estava de pé no púlpito e pregava numa voz poderosa para os bancos vazios. Harald olhou para ele, sem acreditar, imaginando o que tinha possuído o sujeito.
Arne estava balançando os braços e se empenhando, como se estivesse proferindo o Sermão da Montanha; parou só por um momento quando viu Harald entrar. Mas depois continuou como se nada tivesse acontecido. Agora Harald também via todos os papéis caídos no chão embaixo do púlpito. Era porque Arne, com gestos dramáticos, arrancava páginas do Livro dos Salmos que tinha nas mãos e deixava que caíssem no chão.
– O que você pensa que está fazendo? – disse Harald indignado, caminhando resoluto pelo corredor central da igreja.
– Estou fazendo o que deveria ter sido feito há muito tempo – respondeu Arne, beligerante. – Estou eliminando essas horríveis novidades. Hereges é o que elas são – gritou e continuou a arrancar página por página. – Não entendo por que tudo o que é velho de repente precisa ser mudado. Antes tudo era melhor. Agora toda a moralidade foi negligenciada, e as pessoas dançam e cantam independentemente de ser terça ou domingo! Sem mencionar que estão copulando em todos os lugares, fora da santidade do casamento.
Seus cabelos estavam em pé, e Harald ficou imaginando se o pobre Arne tinha perdido completamente a cabeça. Ele não sabia o que havia iniciado esse súbito ataque. Arne sempre repetia as mesmas opiniões havia anos, mas nunca tivera a coragem de fazer nada tão ousado antes.
– Você precisa se acalmar, Arne. Por favor, desça do púlpito, e vamos conversar.
– Conversar? Ha! É o que todos fazem – Arne gritou de sua posição elevada. – É o que estou falando, está na hora de agir! E este lugar é tão bom quanto qualquer outro para começar – falou enquanto as páginas continuavam a cair no chão como grandes flocos de neve.
Então Harald perdeu a paciência. Não podia continuar parado enquanto vandalizavam sua magnífica igreja! Havia um limite para as besteiras desse homem.
– Desça daí, Arne, desça agora mesmo! – ele gritou, o que fez o sacristão parar. O pastor nunca tinha levantado a voz antes. Era normalmente tão gentil, então isso teve algum efeito.
– Você tem dez segundos para descer aqui ou vou subir para pegá-lo, não me importa o seu tamanho! – continuou Harald, agora com o rosto vermelho de raiva. Os olhos do pastor não deixavam dúvida de que falava sério.
A beligerância de Arne diminuiu tão rápido quanto tinha surgido, e ele obedeceu docilmente o comando.
– Está bem, então – disse Harald numa voz consideravelmente mais calma quando colocou um braço ao redor dos ombros de Arne. – Vamos até minha casa. Vou fazer um pouco de café e vamos comer um pedaço daquele bolo que Signe fez com tanto carinho. Depois vamos conversar, nós dois.
E caminharam pelo corredor central em direção à porta, o pequeno homem com a mão no ombro do homem grande. Como um estranho casal.
Monica se sentiu um pouco tonta quando saiu do carro. Ela não tinha dormido muito bem na noite anterior. Pensar nas coisas horríveis de que estavam acusando Kaj não a tinha deixado pregar os olhos.
A pior parte era, na verdade, a ausência de qualquer dúvida. Quando ouviu o policial contando as alegações, soube desde o primeiro momento que eram verdade. Tantas peças do quebra-cabeça tinham se encaixado. De repente, havia uma explicação para tudo o que havia acontecido durante esses anos juntos.
Um sentimento de desgosto tomou seu estômago, e ela se inclinou contra o carro e vomitou no asfalto. Tinha lutado contra a náusea a manhã toda. Quando chegou ao trabalho, seu chefe disse que não precisava trabalhar se não se estivesse se sentindo bem, considerando as circunstâncias. Mas ela se recusou a ir para casa. A ideia de ficar sentada ali o dia todo era repulsiva. Preferia aguentar os olhares das pessoas do que ficar em casa, sentada no sofá dele, fazendo comida na cozinha dele. A ideia de que ele a havia tocado, apesar de isso ter acontecido há muito tempo, a fazia sentir vontade de arrancar a pele do corpo.
Mas no final ela não teve escolha. Depois de tentar trabalhar por uma hora, o chefe a mandou para casa, e dessa vez ele se recusou a aceitar um não como resposta. Com uma sensação ruim no estômago, tinha ido devagar para casa. Quando chegou em Galärbacken estava praticamente se arrastando. O motorista do carro atrás dela tinha buzinado reclamando, mas Monica não dera a mínima.
Se não fosse por Morgan ela teria feito as malas e ido para a casa da irmã. Mas não podia abandoná-lo. Ele ficaria louco em qualquer outro lugar que não fosse sua cabana; o fato de terem levado seus computadores já era um caos em seu mundo. Ontem, tinha visto o filho andando incansavelmente entre suas pilhas de revistas. Estava perdido sem suas âncoras no mundo real. Esperava que a polícia devolvesse logo seus computadores.
Monica pegou a chave da porta da frente e estava a ponto de abrir quando parou. Não estava pronta para entrar ainda. Uma forte vontade de vê-lo a fez colocar a chave de volta no bolso, descer a escada da varanda e caminhar até a cabana de Morgan. Ele ficaria bravo por ela interromper a rotina e ir até lá, mas já não se importava. Lembrava como era o cheiro dele quando bebê, como aquele cheiro a fazia querer mover montanhas para o bem dele. Agora sentia a necessidade de sentir o cheiro de seu pescoço mais uma vez, mesmo que ele já estivesse grande, de abraçá-lo como se Morgan fosse a base dela, e não o contrário, como tinha sido durante todos esses anos.
Ela bateu na porta e esperou. Não havia nenhum som do lado de dentro, e Monica começou a sentir um desconforto. Bateu de novo, um pouco mais forte dessa vez e, tensa, esperou ouvir o som de passos do lado de dentro. Nada.
Tentou a porta, mas estava trancada. Procurou até encontrar a chave extra que ficava em cima da porta.
Onde ele poderia estar? Morgan dificilmente ia a qualquer lugar sem levá-la junto ou pelo menos avisar aonde estava indo. O medo começou a fechar sua garganta, e ela meio que esperou encontrá-lo morto dentro da cabana. Era o que sempre havia temido. O dia em que ele pararia de falar sobre a morte e decidisse tentar algo. Talvez a perda de seus computadores e a invasão de seu mundo o tivessem feito finalmente decidir partir para o lugar do qual não havia retorno.
Mas a cabana estava vazia. Ansiosa, olhou ao redor e logo viu um pedaço de papel em cima de uma pilha de revistas perto da porta. Reconheceu a letra de Morgan antes mesmo de ler o que estava escrito, e seu coração bateu mais rápido. Suspirou aliviada assim que leu o bilhete. Só percebeu quando seus ombros relaxaram como estava tensa.
“Computadores prontos. Fui com a polícia para pegá-los”, dizia o papel, e sua preocupação voltou. Não era o bilhete suicida que ela havia temido, mas algo não fazia sentido. Por que a polícia viria pegá-lo para que ele fosse buscar seus computadores? Eles mesmos não deveriam trazê-los e entregá-los?
Monica tomou uma decisão no ato. Voltou correndo para o carro e saiu cantando pneus. Durante todo o caminho até Tanumshede, acelerou ao máximo, e suas mãos apertaram o volante tão forte que começou a suar. Quando passou a intersecção na Tanum Tavern, ouviu sirenes atrás de si e foi ultrapassada por uma ambulância a toda velocidade. Inconscientemente, acelerou ainda mais e passou voando por Hedemyr. Perto da loja do sr. Li, precisou brecar subitamente, e o cinto de segurança machucou seu peito. A ambulância tinha parado bem na frente da delegacia, e uma fila de carros se formou nas duas direções porque a rua fora bloqueada por o que parecia ser um acidente. Quando colocou o pescoço para fora, pôde ver um corpo caído na rua. Não precisava ver mais nada, sabia quem era.
Como se estivesse em câmera lenta, ela soltou o cinto de segurança, abriu a porta do carro e a deixou aberta. Com uma sensação de tragédia iminente, caminhou devagar em direção ao local do acidente.
A primeira coisa que viu foi o sangue. O vermelho escorrendo da cabeça dele para o asfalto e espalhando-se num amplo círculo ao redor de seus cabelos. A segunda coisa que viu foram seus olhos. Abertos, mortos.
Um homem estava caminhando em sua direção. Os braços prontos para impedi-la. A boca dele se moveu, dizendo alguma coisa. Monica ignorou-o e continuou avançando. Caiu pesadamente de joelhos perto de Morgan. Colocou a cabeça dele em seu colo e a apertou, sem se preocupar com o sangue que ainda estava saindo e agora molhava suas calças. Foi então que escutou o choro. Ficou imaginando quem poderia estar tão triste, tão cheio de dor. Depois percebeu que era ela mesma.
Tinham dirigido acima do limite de velocidade por todo o caminho desde Uddevalla. Lilian havia se certificado de que Albin estava seguro com Veronika e Frida, para que pudessem ir direto para o hospital. Charlotte esperava que não chegasse tarde demais. Sua mãe havia falado como se a vida de Stig estivesse por um fio, e ela se pegou juntando as mãos como se estivesse rezando, apesar de não ser religiosa.
Stig era a pessoa mais amável que já tinha conhecido. Só agora percebia como passara a gostar dele durante esse tempo que tinham vivido juntos. Ela já o conhecia, claro, mas sempre em breves visitas. Foi só quando foram morar na mesma casa que ficaram amigos. Muito de seu sentimento estava baseado no fato de que ele e Sara eram tão próximos. Stig tinha sido capaz de fazer florescer o melhor de sua filha, características favoráveis que Charlotte sempre soubera que existiam, mas não conseguia alcançar. Sara nunca era insolente com Stig, nunca teve uma explosão de raiva na frente dele, não pulava ao redor dele como louca, incapaz de controlar sua energia. A menina se sentava calmamente na beira da cama e segurava a mão dele, contando como tinha sido o dia na escola. Charlotte sempre ficava espantada com a maneira como Sara se comportava quando estava com Stig e agora se arrependia sinceramente por não ter dito isso a ele. Percebia que quase não falara com ele desde a morte de Sara. Tinha ficado tão imersa em sua própria dor que nem pensou nele. Deve ter sido muito triste ficar ali em seu quarto, doente e com dores, tendo como única companhia seus próprios pensamentos. Ela deveria pelo menos ter ido vê-lo e conversado um pouco.
Assim que o carro parou no estacionamento, Charlotte desceu. Correu até a entrada e não esperou por Niclas. Ele conhecia bem o hospital e a encontraria.
– Charlotte! – Lilian veio em sua direção com os braços esticados quando ela entrou na sala de espera. Sua mãe estava chorando, e todo mundo se virou para olhar. Pessoas chorando tinham o mesmo efeito nos outros seres humanos que acidentes de carro. Ninguém conseguia deixar de olhar.
Charlotte acariciou as costas da mãe. Lilian nunca tinha sido muito emotiva, e o contato físico com ela era estranho.
– Oh, Charlotte, foi horrível! Eu subi para levar um pouco de chá, e ele estava completamente desmaiado! Chamei seu nome e tentei despertá-lo, mas ele não respondeu. E ninguém consegue me dizer o que ele tem. Está na UTI e não me deixam vê-lo. Eu não deveria poder ficar com ele? E se ele morrer?
Lilian falava tão alto que toda a sala ouvia, e por um momento Charlotte ficou embaraçada que todos estivessem olhando para elas. Depois se recuperou e se lembrou de que sua mãe sempre teve uma tendência ao drama, mas isso não tornava sua preocupação menos verdadeira.
– Sente-se e vou ver se arrumo um pouco de café. Niclas logo estará aqui e provavelmente vai conseguir descobrir algo. São todos colegas dele, afinal.
– Você acha? – perguntou Lilian, agarrando-se ao braço da filha.
– Claro – respondeu Charlotte, soltando com carinho a mão de Lilian. Estava realmente surpresa por estar tão calma e segura. A perda de Sara tinha anestesiado suas emoções, o que permitia que pensasse de maneira prática apesar de suas preocupações com a saúde de Stig.
Ficou grata ao ver Niclas entrar na sala de espera e foi encontrá-lo na porta.
– Mamãe está histérica. Vou tentar conseguir um pouco de café para nós. Prometi que você iria tentar descobrir mais sobre o que está acontecendo com Stig.
Niclas assentiu. Levantou a mão e acariciou o rosto de Charlotte. O gesto pouco comum a fez sentir um arrepio. Não conseguia se lembrar da última vez que ele a havia tocado com tanta ternura.
– Como você está? – ele perguntou com verdadeira preocupação e, apesar da tristeza da situação, Charlotte sentiu algo como alegria em seu coração.
– Estou bem – respondeu, sorrindo para ele como um sinal de que ia aguentar.
– Tem certeza?
– Certeza. Vá falar com seus colegas agora, assim podemos conseguir algumas respostas.
Ele obedeceu. Um pouco depois, quando ela e Lilian estavam sentadas juntas tomando café, Niclas voltou e se sentou ao lado delas.
– Então? Descobriu algo? – perguntou Charlotte, fazendo pensamento positivo para que ele tivesse algo bom para contar. Infelizmente, não funcionou.
O rosto de Niclas estava sombrio quando disse:
– Infelizmente temos de nos preparar para o pior. Estão fazendo o que podem, mas não têm certeza se Stig vai sobreviver. Temos de esperar para ver.
Lilian arfou e jogou os braços ao redor do pescoço de Niclas. Sentindo-se tão estranho quanto Charlotte, ele tentou consolá-la dando uns tapinhas em suas costas. Charlotte teve uma sensação de déjà vu. Lilian tinha ficado nesse mesmo estado quando o pai de Charlotte morreu, e os médicos terminaram dando um sedativo para que ela não desabasse totalmente. A coisa toda era tão injusta. Perder um marido já era ruim. Charlotte virou-se para Niclas.
– Eles não conseguem dizer o que há de errado com ele?
– Estão fazendo muitos testes e provavelmente vão descobrir o que é. Mas, no momento, a coisa mais importante é mantê-lo vivo tempo suficiente para conseguirem descobrir qual é o tratamento apropriado. Do jeito que as coisas estão agora, poderia ser qualquer coisa, de câncer a uma infecção viral. Tudo que dizem é que ele deveria ter vindo há muito tempo para o hospital.
Charlotte viu a culpa atravessar o rosto dele como uma sombra. Deitou a cabeça em seu ombro.
– Você é humano, Niclas. Stig não queria vir para o hospital e não parecia perigoso quando você o examinou, não é? Ele melhorava de vez em quando e parecia bastante bem, também dizia que não sentia muita dor.
– Eu não deveria ter dado atenção a ele. Droga, sou médico, eu deveria saber.
– Não se esqueça de que tínhamos outras coisas nos preocupando – disse Charlotte em voz baixa, mas Lilian conseguiu ouvi-la.
– Por que toda a tristeza do mundo cai sobre nós? Primeiro Sara, agora Stig – disse Lilian chorando, assoando o nariz no guardanapo de papel que Charlotte tinha dado para ela. As pessoas na sala de espera que tinham voltado a ler suas revistas olharam para eles. Charlotte sentiu a irritação tomar conta.
– Você precisa se controlar. Os médicos estão fazendo o que podem – falou, tentando atenuar o máximo possível sua voz, sem tirar a força do que falava. Lilian olhou para ela, magoada, mas obedeceu e parou de chorar.
Charlotte suspirou e virou-se para Niclas. Não duvidava que a tristeza de sua mãe fosse verdadeira, mas sua tendência a transformar cada situação num drama que ela própria estrelava era incrivelmente aborrecedora. Lilian sempre florescia quando era o centro das atenções e usava todo meio à sua disposição para conseguir essa posição, mesmo numa situação como aquela. Era o jeito dela, e Charlotte lutava para aceitar, escondendo sua reprovação. Dessa vez o sofrimento de sua mãe era real.
Seis horas depois eles ainda não tinham nenhuma notícia. Niclas tinha ido conversar com os médicos várias vezes, mas não havia nenhuma novidade. O prognóstico de Stig ainda era incerto.
– Alguém precisa ir para casa dar uma olhada no Albin – disse Charlotte, falando tanto com Lilian quanto com Niclas. Ela viu que a mãe abriu a boca para protestar, pois não queria deixar que sua filha ou genro fossem, mas Niclas se antecipou ao que ela ia dizer.
– Você está certa. Ele vai ficar com medo se Veronika tentar colocá-lo para dormir em sua casa. Eu vou, para você poder ficar.
Lilian parecia contrariada, mas sabia que eles estavam certos e, relutante, desistiu.
Niclas beijou Charlotte no rosto e depois deu um tapinha no ombro de Lilian.
– Tudo vai dar certo, você vai ver. Liguem se ficarem sabendo de alguma novidade.
Charlotte assentiu. Ficou olhando o marido desaparecer no corredor e depois se encostou na cadeira desconfortável e fechou os olhos. Seria uma longa espera.
Göteborg, 1958
O desapontamento consumia Mary por dentro. Nada tinha saído como ela imaginava. Nada tinha mudado, exceto que agora nem recebia as breves demonstrações de carinho e ternura que sua mãe tinha dado quando Åke estava por perto. Na verdade, Mary quase nem a via. Ou saía para se encontrar com Per-Erik ou para ir a alguma festa. Sua mãe também parecia ter abandonado todas as tentativas de controlar o peso de Mary, então a menina podia comer o que houvesse na casa. A essa altura, tinha superado em muito seu peso anterior. Às vezes, quando se olhava no espelho, via somente o monstro que crescia dentro dela há tanto tempo. Um monstro voraz, gordo, repugnante, constantemente cercado por um nauseante cheiro de suor. Sua mãe nem se incomodava em esconder o desgosto que sentia quando olhava para ela. Uma vez até tampou o nariz quando a menina passou. A humilhação ainda doía.
Não era assim que sua mãe tinha prometido que seriam as coisas. Per-Erik deveria ser um pai muito melhor do que Åke, sua mãe deveria estar feliz, e eles finalmente viveriam juntos como uma família de verdade. O monstro desapareceria, ela nunca mais voltaria a se sentar no porão e nunca mais sentiria aquele cheiro seco, horroroso de poeira na boca.
Enganada. Era como se sentia. Enganada. Tentou perguntar a sua mãe quando as coisas iam ser como ela havia prometido, mas só recebia respostas bruscas. Quando insistiu, foi trancada no porão, depois de ter sido alimentada com um pouco de Humildade. Ela chorou lágrimas amargas que continham muito mais desapontamento do que podia aguentar.
Sentada no escuro, sentia o monstro crescendo. Ele gostava da secura em sua boca. Alimentava-se dela e se deliciava.
A porta se fechou pesadamente atrás dele. Movendo-se devagar, Patrik foi até o corredor e largou seu casaco. Deixou-o cair no chão, exausto demais para se dar ao trabalho de pendurá-lo.
– O que aconteceu? – Erica, da sala, com uma voz preocupada, perguntou. – Descobriu algo novo?
Quando viu o rosto dela, Patrik sentiu uma onda de culpa por não ter ficado em casa cuidando das duas. Ele devia estar horrível. Tinha ligado para casa de vez em quando, claro, mas o caos na delegacia depois do que tinha acontecido tornou as conversas extremamente abruptas e estressantes. Assim que confirmava que tudo estava bem em casa, dava uma desculpa e desligava.
Arrastou-se até a sala. Como sempre, Erica estava sentada no escuro assistindo à TV, com Maja no colo.
– Desculpe não falar muito no telefone – ele disse, passando a mão pelo rosto cansado.
– Aconteceu alguma coisa?
Ele caiu no sofá e no começo nem conseguiu responder.
– Aconteceu – disse, depois de um momento. – Ernst teve a ideia de levar Morgan Wiberg para um interrogatório sem falar com ninguém. Conseguiu deixar o pobre rapaz tão estressado que ele acabou fugindo por uma janela, correndo para a rua e sendo atropelado.
– Meu Deus, que horrível! – disse Erica. – O que aconteceu com ele?
– Morreu.
Erica prendeu a respiração. Maja, que estava adormecida, reclamou, mas não chegou a acordar.
– Que coisa horrível, você não iria acreditar – disse Patrik, jogando a cabeça para trás e olhando para o teto. – Enquanto ele estava ali caído na rua, Monica chegou e o viu. Correu até o rapaz antes que pudéssemos segurá-la, colocou a cabeça dele no colo e depois se sentou chorando de uma forma que não parecia humana. Finalmente conseguimos afastá-la. Jesus Cristo, foi medonho.
– E o Ernst? – perguntou Erica. – O que aconteceu com ele?
– Pela primeira vez, acho que realmente vai ser demitido. Eu nunca tinha visto Mellberg tão bravo. Mandou-o para casa no ato, e depois disso não acho que vai voltar. O que seria uma bênção.
– Kaj sabe?
– Sabe, e isso é outra história. Martin e eu o estávamos interrogando quando o acidente aconteceu e tivemos de sair correndo. Se fosse uns minutos depois, acho que poderíamos tê-lo feito falar. Agora ele está totalmente fechado e se recusa a dizer qualquer coisa. Ele nos culpa pela morte de Morgan e, em certo grau, está certo. Alguns colegas de Göteborg viriam interrogar Kaj, mas tiveram de adiar indefinidamente. O advogado de Kaj conseguiu impedir todos os interrogatórios por enquanto, considerando as circunstâncias.
– Então vocês ainda não sabem se ele estava envolvido no assassinato da Sara? E no... no que aconteceu ontem?
– Não – disse Patrik, cansado. – A única coisa de que temos certeza é que não poderia ser o Kaj que tirou a Maja do carrinho. Ele estava preso na hora. Dan esteve aqui, por falar nisso? – perguntou, acariciando a filha e colocando-a no colo.
– Esteve. Ele é como um cão de guarda fiel – sorriu Erica, mas seu rosto ainda estava preocupado. – Finalmente precisei mandá-lo embora, mais ou menos. Saiu faz uma meia hora. Não ficaria surpresa se ele decidisse passar a noite no jardim, num saco de dormir.
Patrik riu.
– É, parece coisa dele. De qualquer forma, estou em dívida com o sujeito. É bom saber que vocês duas não ficaram sozinhas o dia todo.
– Sabe, estávamos a ponto de subir para ir dormir. Mas podemos ficar um pouco mais se você quiser companhia.
– Não se ofenda, mas eu prefiro ficar sozinho um pouco – respondeu Patrik. – Trouxe algum trabalho para fazer e depois queria assistir a um pouco de TV para relaxar.
– Faça o que quiser – disse Erica. Ela se levantou e pegou Maja do colo de Patrik depois de dar um beijo na boca dele.
– Por falar nisso, como foi seu dia? – ele perguntou quando Erica estava no meio da escada.
– Tudo bem – ela respondeu, e Patrik pôde ouvir que havia uma nova energia em sua voz. – Hoje, ela não precisou dormir no meu colo; dormiu no carrinho. E agora não chora por mais do que vinte minutos. Na verdade, da última vez foram só cinco.
– Ótimo – ele falou. – Parece que você está começando a controlar a situação.
– É, seria milagre se isso realmente funcionasse – disse sorrindo. Depois ficou séria. – Apesar de a Maja só poder dormir dentro de casa agora. Nunca mais vou deixá-la do lado de fora.
– Me desculpe por ter sido tão... estúpido aquela noite – disse Patrik hesitante. Ele não queria arriscar dizer algo errado novamente, o que o deixava todo atrapalhado, até para se desculpar.
– Tudo bem – ela falou. – Eu fui um pouco sensível demais também. Mas acho que a maré mudou agora. O medo que senti quando ela desapareceu teve pelo menos um efeito benéfico. Me fez perceber como adoro cada minuto que passo com ela.
– É, eu sei o que você quer dizer – ele falou e acenou enquanto ela continuava a subir.
Patrik deixou a TV no mudo, pegou o gravador e apertou “rewind” e depois “play”. Já tinha ouvido a fita várias vezes na delegacia. Eram os poucos minutos que estavam gravados do chamado “interrogatório” de Ernst com Morgan. Não havia muita coisa, mas ainda assim algo o incomodava, algo que não conseguia entender.
Depois de ouvir a fita três vezes, ele desistiu, deixou o gravador de lado e foi até a cozinha. Ficou olhando alguns minutos e acabou saindo com uma xícara de chocolate quente e três sanduíches de queijo e caviar num delicioso pão Skogaholm. Aumentou o volume da TV e mudou para Crime Night no Discovery Channel. Ver a reconstituição de crimes reais era, talvez, uma forma estranha de relaxar para um policial, mas ele sempre gostou daquilo. Os crimes eram sempre solucionados.
Enquanto assistia à série, um pensamento de natureza altamente particular começou a se formar. Uma ideia muito agradável e revigorante, que reprimiu com eficiência todas as imagens de crime e morte. Patrik sorriu sentado ali na escuridão. Teria de sair para fazer compras.
A luz estava piscando incansável na cela. Kaj sentia que penetrava em cada parte dele, cada recanto e ranhura. Tentou se esconder dela enterrando a cabeça nos braços, mas ainda sentia a luz pinicando sua nuca.
Em poucos dias todo o seu mundo tinha desmoronado. Parecia ingenuidade, olhando em retrospecto, mas ele havia se sentido tão seguro, tão intocável. Fazia parte de um grupo que parecia acima do mundo comum. Não eram como os outros. Eram melhores, mais iluminados do que todo o resto. O que o mundo não entendia era que tudo tinha a ver com amor. Somente amor. Sexo era uma pequena parte do todo. Sensualidade era a palavra mais próxima que ele podia encontrar para descrever aquilo. A pele jovem era tão pura, tão imaculada. A mente das crianças era inocente, não poluída por pensamentos feios como ficava a mente dos adultos, cedo ou tarde. O que estavam fazendo era ajudar esses jovens a se desenvolver para poderem alcançar todo o seu potencial. Ajudavam a entender o que era o amor. Sexo era a ferramenta, mas não o objetivo em si. O objetivo era alcançar um acordo, uma união das almas. Uma associação entre jovens e velhos, tão bela em sua pureza.
Mas ninguém entenderia. Tinham conversado tanto nas salas de bate-papo. Como a estupidez dos outros e a pobreza de espírito os tornava incapazes de imaginar ou tentar entender o que era tão óbvio para os membros do grupo. Em vez disso, os outros só queriam rotular como algo sujo o que estavam fazendo, até rotulavam as crianças da mesma maneira.
Com essa situação ele podia entender por que Sebastian tinha feito aquilo. O garoto tinha percebido que ninguém ia entender, que seria sempre visto com aversão e desdém. Mas o que Kaj não conseguia entender era por que tinha feito aquelas acusações contra ele em sua despedida para o mundo. Kaj sentia-se machucado. Tinha realmente acreditado que haviam alcançado uma profunda compreensão durante seus encontros e que a alma de Sebastian, depois da relutância inicial que sempre era preciso superar, tinha querido se fundir com a de Kaj. Ele via o ato físico como algo subordinado. Era o sentimento de literalmente beber da fonte da juventude que tinha sido a recompensa verdadeira. Será que Sebastian não tinha realmente entendido isso? Tinha fingido o tempo todo ou eram as normas da sociedade que o tinham feito repudiar a afinidade deles em sua última carta? Kaj sofria ao pensar que nunca saberia.
Tinha tentado não insistir na outra questão. Desde que haviam dado a notícia da morte de Morgan, ele havia tentado afastar todos os pensamentos de seu filho. Era como se seu cérebro não pudesse aceitar a verdade cruel, mas a luz impiedosa em sua cela forçava imagens que ele lutava para esquecer. Mas um pensamento tinha persistido dolorosamente, a ideia de que isso fosse talvez sua punição. Ele logo o descartou. Não tinha feito nada de errado. Durante anos havia amado outros garotos, e eles o amaram também. Assim tinha sido e assim devia ser. A outra alternativa era muito terrível para que pudesse imaginá-la. Devia ser amor.
Ele sabia que nunca tinha sido um pai para Morgan. Era tão difícil. Mesmo no começo era difícil amar seu filho, e ele admirava Monica porque ela era capaz de mostrar afeição por aquela criança intratável e estranha. Teve outro pensamento. Talvez afirmassem que ele tocara em Morgan. A ideia o deixou furioso. Morgan era seu filho, afinal, sua carne e seu sangue. Ele sabia que era o que diriam. Mas isso só provava como eram tacanhos e limitados. Não era a mesma coisa. O amor entre pai e filho era diferente do amor entre ele e os outros. Estava num nível completamente diferente.
E ele amava Morgan. Sabia que Monica não acreditava, mas era verdade. Simplesmente não sabia como se comunicar com ele. Todas as suas tentativas tinham sido rejeitadas, e às vezes ele se perguntava se Monica, de alguma maneira sutil, poderia ser a responsável por isso. Ela queria o menino só para si. Queria ser única para ele. Kaj foi eficazmente eliminado e, apesar de ela sempre censurá-lo e acusá-lo de não se relacionar com seu filho, sabia que secretamente era exatamente assim que ela queria. E agora era tarde demais para mudar qualquer coisa.
Com a luz fluorescente batendo forte contra ele, deitou-se de lado no chão e ficou em posição fetal.
Até então os detetives médicos na TV tinham resolvido três casos em quarenta e cinco minutos. Tinham feito parecer fácil, mas Patrik estava consciente de que não era tão simples. Ele esperava que Pedersen ligasse amanhã com notícias sobre as cinzas nas roupas de Liam e de Maja.
Foi quando começou um novo caso. Patrik assistia ao programa indiferente e sentia o sono tomando controle, por isso se reclinou no sofá. Mas aos poucos os detalhes do caso começaram a penetrar fundo em sua consciência. Ele se sentou e focou a atenção na tela da TV. Era um caso que havia acontecido nos Estados Unidos havia muitos anos, mas as circunstâncias pareciam estranhamente familiares. Correu para apertar o botão “record” no videocassete, esperando que não estivesse gravando por cima do último episódio de um dos reality shows de Erica. Se fizesse isso, suas partes inferiores estariam em risco. Era nessas situações que sua cara-metade normalmente ameaçava pegar a velha tesoura.
O legista encarregado das análises contou tudo com grandes detalhes. Mostrou diagramas e fotos para explicar o curso dos eventos o mais claramente possível, e Patrik não teve dificuldades em acompanhar. Uma ideia começou a se formar na sua mente, e ele voltou a confirmar se o símbolo de “record” estava visível na tela do videocassete. Teria de assistir ao programa mais um par de vezes.
Depois de repetir pela terceira vez, teve certeza. Mas ainda precisava de um pouco de ajuda para a memória. Animado e ciente da urgência da questão, subiu e encontrou Erica no quarto. Maja estava ao lado dela, então Patrik presumiu que a filha estava desfrutando de uma pequena recompensa por ter dormido tão bem no carrinho durante o dia.
– Erica – ele sussurrou e tocou gentilmente o ombro dela. Estava com medo de acordar Maja, mas precisava conversar com Erica.
– Hummm – foi a única resposta, e ela não fez nenhuma tentativa de se mexer.
– Erica, você precisa acordar.
Dessa vez conseguiu uma resposta. Ela olhou ao redor, confusa, e perguntou:
– O quê? O que foi? A Maja acordou? Está chorando? É melhor eu dar uma olhada. – Erica se sentou e estava a ponto de sair da cama.
– Não, não – disse Patrik, fazendo-a ficar na cama. – Shhhh, Maja está dormindo pesado. – Ele apontou para o pacotinho de roupas que agora se mexia um pouco.
– Então por que você me acordou? – disse Erica, com voz preguiçosa. – Se acordar a Maja, mato você.
– Porque preciso perguntar algo. E não pode esperar.
Ele rapidamente contou o que tinha descoberto e depois fez a pergunta que estava pesando em sua mente. Depois de um momento de silêncio espantado, ela respondeu. Patrik disse a ela para voltar a dormir, deu um beijo em seu rosto e desceu correndo. Com uma expressão sombria, discou o número que encontrou na lista telefônica. Cada minuto era importante.
Göteborg, 1958
Algo estava errado. Ela tinha deixado passar muito tempo. Um ano e meio tinha se passado desde a morte de Åke, e Per-Erik tinha respondido a seus pedidos de ação com desculpas que continuavam cada vez mais vagas. Atualmente, nem se dava ao trabalho de responder, e as ligações marcando encontros no Hotel Eggers eram poucas e espaçadas. Ela tinha começado a odiar aquele lugar. Os lençóis macios contra sua pele e os móveis impessoais agora a deixavam revoltada. Queria algo mais. Merecia algo melhor. Merecia se mudar para uma mansão, poder receber os convidados nas festas dele, ter respeito, status e ser mencionada nas colunas sociais. Quem ele achava que ela era?
Agnes tremia de raiva sentada atrás do volante. Pelo vidro, via a grande mansão branca de Per-Erik e, por trás das cortinas, percebeu uma sombra se movendo pelos cômodos. O Volvo dele não estava estacionado na entrada. Era terça de manhã, então ele sem dúvida estava no trabalho, e Elisabeth estava sozinha em casa, provavelmente devotando-se a ser a excelente dona de casa que era. Costurando as toalhas de mesa ou polindo a prata ou fazendo alguma outra tarefa chata que Agnes nunca se rebaixaria a fazer. Claro que Elisabeth não tinha ideia de que sua vida estava a ponto de ser esmagada.
Agnes não sentiu a menor hesitação. Nem lhe ocorreu o pensamento de que o comportamento cada vez mais evasivo de Per-Erik poderiam significar que ele estava perdendo o entusiasmo por ela. Não, devia ser culpa de Elisabeth que ele ainda não fosse um homem livre. Ela fingia ser tão desprotegida, tão pobrezinha e dependente, só para prendê-lo. Mas Agnes via esse fingimento, mesmo que Per-Erik não enxergasse. E se ele não era homem suficiente para enfrentar a esposa, Agnes não tinha tais escrúpulos. Saiu do carro com passos determinados, fechou o casaco de pele por causa do frio de novembro e atravessou rapidamente o caminho até a porta da frente.
Elisabeth abriu depois de apenas dois toques na campainha com um sorriso que fez Agnes contorcer-se de ódio. Ela queria tanto apagar esse sorriso daquele rosto.
– Ora, se não é a Agnes! Que ótima visita.
Agnes viu que Elisabeth estava sendo sincera, ao mesmo tempo que demonstrava curiosidade. Claro que Agnes tinha sido convidada à casa antes, mas somente em jantares e comemorações. Nunca tinha aparecido sem avisar.
– Entre – disse Elisabeth. – Terá de desculpar a bagunça. Se soubesse que você viria, teria arrumado melhor.
Agnes entrou no hall e olhou ao redor para ver a bagunça que Elisabeth mencionara. Podia ver que tudo estava no lugar, o que confirmava a imagem de Elisabeth como a dona de casa perfeita e patética.
– Sente-se, vou fazer um café – disse Elisabeth educada e, antes que Agnes pudesse impedi-la, já estava a caminho da cozinha.
Agnes não tinha a intenção de tomar um café com a mulher de Per-Erik. Tinha planejado fazer o que tinha vindo fazer e ir embora o mais rápido possível, mas tirou seu casaco de pele com relutância e sentou-se no sofá na sala. Assim que se sentou, Elisabeth apareceu trazendo uma bandeja com xícaras e pedaços finos de um bolo. Colocou a bandeja na mesinha escura e polida. O café já devia estar pronto, pois ela demorou poucos minutos.
Elisabeth sentou-se na poltrona perto do sofá.
– Por favor, coma um pouco de bolo. Eu fiz hoje.
Agnes olhou com desgosto para o bolo saturado de manteiga e açúcar e disse:
– Vou tomar só um pouco de café, obrigada. – Ela pegou uma das duas xícaras de porcelana que estavam na bandeja. Deu um gole no café, que estava forte e muito bom.
– É, posso ver que você ainda cuida do corpo – disse Elisabeth com uma risada, pegando um pedaço do bolo. – Perdi essa batalha depois que tive filhos – falou, apontando para uma foto de seus três filhos, que já eram adultos. Agnes pensou por um momento como eles receberiam a notícia do divórcio de seus pais e sua nova madrasta, mas sentiu-se segura de que com um pouco de esforço, seria capaz de conquistá-los. Com o tempo eles provavelmente veriam quanto ela tinha mais a oferecer a Per-Erik do que Elisabeth.
Viu o bolo se desmanchar na boca de Elisabeth e sua anfitriã pegar outro pedaço. A loucura por doces lembrou Agnes de sua filha, e ela precisou se esforçar para não arrancar o bolo da mão de Elisabeth, da mesma forma que costumava fazer com a garota. Em vez disso, sorriu educadamente e disse:
– Imagino que você deva estar achando um pouco estranho que eu tenha aparecido assim, sem avisar, mas infelizmente tenho algo desagradável para dizer.
– Algo desagradável? E o que seria? – disse Elisabeth num tom que deveria ter alertado Agnes se ela não estivesse tão decidida a fazer aquilo.
– Bom, é assim, veja – disse Agnes, colocando a xícara na bandeja. – Per-Erik e eu acabamos... bem, desenvolvemos um grande carinho um pelo outro. E nos sentimos assim faz um bom tempo.
– E agora querem construir uma vida juntos – completou Elisabeth. Agnes estava aliviada de que toda a coisa estivesse indo mais fácil do que imaginava. Foi então que olhou para Elisabeth e percebeu que algo estava errado. Algo estava terrivelmente errado. A mulher de Per-Erik estava olhando com um sorriso irônico, e seus olhos estavam duros e frios como Agnes nunca tinha visto antes.
– Entendo que isso possa ser um choque... – começou Agnes, agora insegura se seu discurso tão bem preparado ainda tinha validade.
– Minha querida Agnes, eu sei sobre esse pequeno relacionamento de vocês desde que ele começou. Temos um acordo, Per-Erik e eu, que funciona muito bem para nós dois. Você não achou que fosse a primeira, achou? Ou a última? – disse Elisabeth num tom de voz horrível que fez Agnes sentir vontade de levantar a mão e dar um tapa nela.
– Não sei do que você está falando – disse Agnes, desesperada, sentindo o chão se abrir sob seus pés.
– Não me diga que você não notou que Per-Erik estava começando a perder interesse. Ele não liga tão frequentemente para você, é difícil encontrá-lo e parece distraído quando se encontram. Oh, sim, conheço meu marido bem o suficiente depois de quarenta anos de casamento para saber como ele agiria nessas situações. E também sei que o novo objeto de seu desejo é uma morena de trinta anos que trabalha como secretária na empresa dele.
– Você está mentindo – disse Agnes, vendo o rosto de Elisabeth embaçado como se estivesse no meio de uma neblina.
– Pode acreditar no que quiser. É só perguntar para o próprio Per-Erik. Agora acho que você deveria ir.
Elisabeth se levantou, foi até o hall e ficou segurando, para deixar bem claro o que acabara de dizer, o casaco de pele cinza de Agnes. Ainda incapaz de entender o que Elisabeth tinha dito, Agnes seguiu em silêncio sua anfitriã. Em choque ela ficou parada nos degraus da frente e deixou o vento acariciá-la gentilmente de um lado a outro, sentindo a conhecida raiva crescendo dentro dela. Estava ainda mais forte porque sentia que deveria ter sabido. Nunca deveria ter pensado que podia confiar nos homens. Agora estava sendo punida, sendo traída mais uma vez.
Como se estivesse caminhando sobre a água, foi até o carro que tinha estacionado um pouco longe e ficou sentada no banco de motorista sem se mexer por um bom tempo. Os pensamentos passavam por sua cabeça como formigas, cavando túneis profundos de ódio e desejo de vingança. Todos os eventos do passado que ela já tinha escondido nas profundezas de sua memória agora ressurgiam. Os dedos segurando o volante ficaram brancos. Ela encostou a cabeça no banco e fechou os olhos. Lembrou-se de imagens dos horríveis anos na casa do escultor e conseguiu sentir o cheiro de fumaça e suor dos homens que chegavam em casa depois de um dia de trabalho. Ela se lembrava das dores que sentiu quando os garotos nasceram. O cheiro de fumaça quando as casas em Fjällbacka pegaram fogo, a brisa que passava pelo navio a caminho de Nova York, o barulho das multidões e o som das champanhes se abrindo, o gemidos de prazer dos homens sem rosto que se deitaram com ela, o choro de Mary quando estava abandonada no cais, o som da respiração de Åke cada vez mais devagar até parar, a voz de Per-Erik quando tinha feito muitas promessas. Promessas que nunca teve a intenção de cumprir. Tudo isso e muitas outras imagens passavam por seus olhos fechados, e nada do que via conseguia diminuir sua fúria, que estava crescendo cada vez mais. Ela tinha feito tudo para ganhar a vida que merecia, recriar o luxo para o qual tinha nascido. Mas a vida, ou o destino, tinha brincado com ela. Todo mundo estava contra ela e tinha feito o máximo para tirar o que era dela por direito: primeiro seu pai, depois Anders, os pretendentes norte-americanos, Åke e agora Per-Erik. Uma longa série de homens cujo denominador comum era que a tinham explorado e traído de várias formas. Com o crepúsculo caindo, todas essas ofensas reais e imaginárias se fundiram num único ponto no cérebro de Agnes. Com um olhar vazio ela se virou para a entrada da casa de Per-Erik, e aos poucos uma grande calma desceu sobre ela, ali sentada no carro. Uma vez antes em sua vida tinha sentido a mesma sensação de calma e sabia que vinha da certeza de que agora só havia um curso de ação possível.
Quando as luzes do carro dele finalmente cortaram a escuridão, Agnes estava sentada ali fazia quase três horas, mas não havia percebido quanto tempo tinha passado. O tempo não tinha a menor importância. Todos os seus sentidos estavam focados na tarefa que tinha à frente, e não havia nenhuma dúvida em sua mente. Toda lógica e todo conhecimento das consequências tinham sido erradicados a favor do instinto e de um desejo de agir.
Com os olhos entrecerrados, viu quando ele estacionou o carro, pegou a maleta que sempre deixava no banco do passageiro e saiu. Enquanto trancava o carro, ela deu a partida e colocou o carro em marcha. Depois, tudo aconteceu muito rápido. Acelerou ao máximo, e o carro voou até seu alvo, que não suspeitava de nada. Subiu na calçada, mas só quando o carro estava a poucos metros Per-Erik sentiu que havia algo errado e se virou. Por uma fração de segundo seus olhos se encontraram e depois ele foi atingido no meio do corpo e jogado contra a lateral de seu próprio carro. Com os braços esticados, sucumbiu sobre o capô do carro de Agnes. Viu seu olhos tremerem e depois se fecharem aos poucos.
Atrás do volante, ela sorria. Ninguém a traía e saía ileso.
Anna acordou com o mesmo sentimento de desesperança de toda manhã. Não conseguia se lembrar da última vez que tinha dormido uma noite inteira. Em vez disso, devotava as horas na escuridão para pensar como podia escapar com as crianças dessa situação na qual ela mesma tinha colocado a todos.
Lucas dormia calmamente perto dela. Às vezes, se virava durante o sono e colocava seu braço sobre Anna, que precisava se controlar para não pular da cama de nojo. Não valia a pena o que se seguiria.
Nos últimos dias, tudo parecia ter se acelerado. As explosões dele tinham ficado mais frequentes, e ela sentia como se, juntos, estivessem presos a uma espiral que estava indo cada vez mais rápido, levando-os direto para o abismo. Só um deles retornaria desse precipício. Qual dos dois seria, ainda não dava para saber. Mas os dois não podiam existir ao mesmo tempo. Ela tinha lido em algum lugar sobre uma teoria de que havia um universo paralelo com um gêmeo paralelo de todo organismo vivo, e se você alguma vez encontrasse seu gêmeo, os dois seriam instantaneamente aniquilados. Era o que acontecia com ela e Lucas, mas a destruição deles era mais lenta e mais sofrida.
Havia vários dias que não saíam do apartamento.
Quando ouviu a voz de Adrian vindo do colchão no canto, ela se levantou lentamente para cuidar dele. Não seria bom acordar Lucas.
Juntos foram até a cozinha e começaram a preparar o café da manhã. Lucas comia quase nada ultimamente e ficara tão magro que suas roupas estavam folgadas. Mas ele ainda exigia ter três refeições diárias na mesa em horários específicos.
Adrian chorou e se recusou a se sentar no cadeirão. Ela tentava desesperadamente fazê-lo ficar quieto, mas o menino estava de mau humor porque tinha dormido mal à noite. Parecia ser sempre assombrado por pesadelos. Agora estava chorando cada vez mais alto, e nada do que Anna fizesse parecia ajudar. Cada vez mais desesperada, ela ouviu Lucas se mexer no quarto e, ao mesmo tempo, Emma começou a gritar. O instinto de Anna lhe dizia para fugir, mas ela sabia que era impossível. Tudo que podia fazer era se preparar e, no melhor dos casos, tentar proteger as crianças.
– What the fuck is going on here?1 – Lucas gritou em inglês. Ele estava parado na porta e o olhar tinha voltado. Era um olhar vazio, insano e frio, e ela sabia que acabaria significando o fim deles.
– Can’t you get your children to shut the fuck up?2 – Agora seu tom não era mais alto e amedrontador, estava quase gentil. Esse era o tom que ela mais temia.
– Estou fazendo o melhor que posso – ela respondeu em sueco e percebeu como sua voz parecia estridente.
Sentado no cadeirão, Adrian tinha agora passado a um ataque de histeria. Ele gritava e batia na mesinha com a colher.
– Não comer! Não comer! – ele repetia.
Desesperada, Anna tentou novamente fazê-lo ficar quieto, mas o garoto estava tão agitado que não conseguia parar.
– Você não precisa comer. Tudo bem. Não precisa – ela disse para acalmá-lo e começou a tirá-lo da cadeira.
– Ele vai comer a maldita comida – disse Lucas, a voz ainda calma. Anna sentiu-se congelar. Adrian agora lutava selvagemente porque ela não o colocara no chão como prometido, e ao contrário, estava tentando forçá-lo a voltar para o cadeirão.
– Não comer, não comer! – ele gritava o máximo que podia, e Anna precisou usar toda a sua força para mantê-lo na cadeira.
Com uma determinação fria, Lucas pegou um dos pedaços de pão que Anna tinha colocado na mesa. Colocou uma mão na cabeça de Adrian e segurou forte, com a outra, começou a forçar o pão em sua boca. O menino começou a bater os braços, primeiro com raiva depois com pânico crescente, já que o grande pedaço de pão tomava toda a sua boca, dificultando a respiração.
Anna ficou quase paralisada no começo, depois todo o seu instinto maternal tomou conta, e o medo que sentia de Lucas desapareceu por completo. O único pensamento em sua cabeça era que seus filhos precisavam de proteção, e a adrenalina se espalhou por sua corrente sanguínea. Com um grito primitivo, tirou a mão de Lucas e rapidamente puxou o pão da boca de Adrian, que agora estava chorando. Depois, virou-se para enfrentá-lo.
O vértice estava descendo cada vez mais rápido em direção ao abismo.
Mellberg também acordou sentindo-se estranho, mas por razões bem mais egoístas. Durante a noite, tinha acordado várias vezes por causa de um sonho, e a cena era sempre a mesma. Estava sendo demitido em circunstâncias vergonhosas. Isso simplesmente não devia acontecer. Deveria existir alguma forma de escapar da responsabilidade dos infelizes eventos de ontem. O primeiro passo era demitir Ernst. Dessa vez não havia alternativa. Mellberg estava consciente de que antes poderia ter sido muito indulgente com Lundgren, mas é porque até certo ponto sentia que eram almas parecidas. Pelo menos tinha mais coisas em comum com ele do que com as outras figuras insípidas da delegacia. Mas, ao contrário de Mellberg, Ernst agora havia demonstrado uma devastadora falta de bom senso, e isso tinha sido um erro fatal. Ele realmente achava que Lundgren fosse mais esperto.
Suspirou e sentou-se na cama. Sempre dormia só de cueca, e então mexeu no saco para se coçar e arrumar seu equipamento. Mellberg olhou para o relógio. Faltava pouco para as nove. Quase atrasado para o trabalho, mas ninguém tinha saído de lá antes das oito na noite passada, porque tiveram de cuidar de todos os detalhes do que tinha acontecido. Ele já tinha começado a embelezar o relatório para seus superiores. A coisa mais importante era manter os fatos bem esclarecidos e não fazer muita besteira. Controle de danos era o jogo agora.
Foi até a sala e parou por um momento para olhar para Simon. Estava deitado no sofá, roncando com a boca aberta e uma perna no chão. As cobertas tinham caído, e Mellberg não pôde deixar de pensar que tinha transmitido seu físico para o filho. Simon não era um magrelo, mas um jovem forte que certamente seguiria os passos do pai se quisesse.
Ele chacoalhou o garoto.
– Ei, Simon, hora de acordar.
O garoto o ignorou e virou de lado, com o rosto para o sofá.
Mellberg continuou cutucando o garoto. Naturalmente, também apreciava a chance de dormir um pouco mais, mas aquilo não era um acampamento de férias.
– Você me ouviu? Hora de levantar, eu falei.
Ainda nenhuma reação e Mellberg suspirou. Bem, teria de usar artilharia pesada.
Foi até a cozinha, deixou a água correr até ficar gelada, encheu um jarro e caminhou tranquilamente até a sala. Com um sorriso maldoso nos lábios, jogou a água gelada no corpo descoberto do filho e conseguiu o que queria.
– Que porra! – gritou Simon levantando correndo do sofá. Tremendo, ele agarrou uma toalha do chão para se secar.
– Que merda você acha que está fazendo? – disse bravo e colocou uma camiseta com uma caveira e o nome de uma banda de heavy metal.
– O café será servido em cinco minutos – disse Mellberg, que foi assobiando para a cozinha. Por um breve momento, tinha esquecido as preocupações relacionadas com a carreira e estava extremamente feliz com o plano que havia desenvolvido para as futuras atividades de pai e filho. Como não havia clubes pornôs nem cassinos, eles tinham de se conformar com o que existia, e em Tanumshede isso significava o museu petróglifo. Não porque estivesse especialmente interessado em rabiscos gravados na pedra, mas ao menos era algo que podiam fazer juntos. Porque tinha decidido que esse seria o novo tema do relacionamento deles – coisas para fazer juntos. Chega de ficar jogando videogame horas a fio, chega de assistir à TV até tarde da noite, já que isso conseguia matar toda a comunicação. Em vez disso, iam jantar juntos e ter ótimas conversas e depois talvez jogassem Banco Imobiliário.
Entusiasmado, ele apresentou seus planos para Simon durante o café da manhã, mas teve de admitir que ficou um pouco desapontado com a reação do garoto. Lá estava ele tentando fazer tudo para que pudessem se conhecer melhor. Estava renunciando às atividades de que mais gostava e se sacrificando para ir ao museu com o filho. A resposta de Simon foi ficar sentado ali, olhando taciturno para sua tigela de Rice Krispies. Mimado, era o problema dele. Sua mãe tinha enviado o menino no momento certo. O garoto precisava de disciplina e orientação.
Mellberg suspirou ao sair para o trabalho. Ser pai era muita responsabilidade.
Patrik estava no trabalho às oito. Também tinha dormido mal, meio que esperando que a manhã chegasse e ele pudesse fazer o que tinha de ser feito. A primeira coisa era verificar se a conversa da noite passada tinha feito alguma diferença. Com o dedo um pouco trêmulo, discou o número que agora sabia de cor.
– Hospital Uddevalla.
Ele deu o nome do médico com quem queria falar e esperou impaciente enquanto era transferido. Depois do que pareceu uma eternidade, alguém atendeu.
– Isso, olá, aqui é Patrik Hedström. Conversamos na noite passada. Queria saber se minha informação foi útil.
Ele ouviu tenso e depois fez um gesto de vitória com o punho fechado. Sim! Ele estava certo!
Depois de desligar, começou a assobiar enquanto pesava as consequências, agora que seu palpite estava certo. Eles teriam muito a fazer hoje.
A segunda ligação foi para o promotor. Ele tinha ligado com um pedido idêntico menos de um ano antes e, como o que pedia era tão incomum, esperava que o promotor não tivesse um ataque.
– É, o senhor ouviu corretamente. Preciso de permissão para fazer uma exumação. Isso, de novo. Não, não é a mesma sepultura. Já abrimos aquela, não foi? – ele falava de forma tranquila e clara, e tentava não parecer impaciente. – Sim, é urgente dessa vez também, e eu ficaria muito grato se o pedido pudesse ser processado imediatamente. Todos os documentos necessários estão sendo enviados por fax. Você provavelmente já os recebeu. E os documentos se referem a dois pedidos, tanto a ordem de exumação quanto a ordem de busca e apreensão.
O promotor ainda parecia duvidar, e Patrik sentiu a irritação crescer. Com a voz um pouco dura, falou:
– Estamos investigando o homicídio de uma criança, e a vida de outra pessoa pode estar em risco. Não é um pedido que faço de forma vã. Estou fazendo depois de pensar muito e só porque o progresso da investigação exige. Então, estou contando com o seu escritório para superar as barreiras do processo o mais rápido possível. Gostaria de receber uma resposta antes do almoço. Em relação aos dois assuntos.
Depois desligou e esperou que essa pequena explosão não tivesse o efeito oposto e atrapalhasse a coisa toda. Mas era um risco que precisava correr.
Com a pior tarefa resolvida, fez uma terceira ligação. Pedersen parecia cansado quando atendeu.
– Alô, Hedström – disse.
– Bom dia, bom dia. Parece que você precisou trabalhar a noite passada.
– Sim, aconteceram muitas coisas nas últimas horas. Mas estamos prestes a ver o fim de tudo, só preciso terminar uma papelada e vou embora.
– Parece que foi uma noite difícil – disse Patrik e sentiu-se um pouco culpado porque tinha ligado para o legista para reclamar depois do que tinha sido uma jornada realmente difícil.
– Presumo que você quer os resultados dos testes das cinzas nas roupas. Na verdade, eu os recebi ontem à tarde, mas depois as coisas ficaram loucas por aqui. – Deu um suspiro exausto. – É verdade que o macacão é da sua filha?
– Isso mesmo – disse Patrik. – Tivemos um horrível incidente em casa outro dia, mas ainda bem que ela não se machucou.
– Bom ouvir isso – disse Pedersen. – Entendo por que está tão interessado no resultado.
– Não vou negar isso. Mas na verdade, não achei que você já os tivesse. Então, o que descobriu?
Pedersen limpou a garganta.
– Vejamos... Sim, não parece haver nenhuma dúvida. A composição das cinzas é idêntica àquelas encontradas no pulmão da garota.
Ao expirar, Patrik percebeu como estava tenso.
– Então é isso.
– É isso – disse Pedersen.
– Você foi capaz de confirmar a origem das cinzas? São de um animal ou de um ser humano?
– Infelizmente, não fomos capazes de determinar isso. Os restos estavam muito deteriorados, e as cinzas são muito finas. Com mais amostras talvez conseguíssemos, mas...
– Vou esperar as informações de uma busca e apreensão que vamos fazer. Procurar as cinzas está no topo de nossa lista. Se encontrarmos, mando diretamente para análise. Talvez você possa encontrar algumas partículas maiores – disse Patrik, esperançoso.
– Claro, mas não conte muito com isso – disse Pedersen.
– Não conto mais com nada. Mas sempre posso ter esperanças.
Com as formalidades resolvidas, Patrik batia o pé impaciente no chão. Antes da chegada da decisão do promotor não havia muitas coisas práticas que pudesse fazer. Mas sabia que não seria capaz de ficar sentado em sua mesa por algumas horas sem fazer nada.
Tinha ouvido os outros chegando para trabalhar, então decidiu convocar uma reunião. Todos precisavam ser atualizados, e ele percebeu que vários de seus colegas se espantariam com o que ele começara a fazer na noite anterior e naquela manhã.
Ele estava certo. Fizeram muitas perguntas. Patrik respondeu da melhor maneira possível, mas ainda havia muitas coisas que não conseguia explicar. Muitas coisas.
Charlotte esfregou os olhos tentando acordar. Ela e Lilian conseguiram descansar num pequeno quarto perto da UTI, mas nenhuma delas conseguiu dormir direito. Como Charlotte não tinha trazido nada de casa, dormiu vestida e se sentiu toda amarrotada e suja quando se sentou e começou a se espreguiçar.
– Tem um pente? – perguntou à mãe, que também estava sentada na cama.
– Acho que sim – disse Lilian, procurando em sua bolsa velha. Encontrou um lá no fundo e o entregou para Charlotte.
No banheiro, Charlotte parou diante do espelho e se observou, criticamente. A luz era exageradamente brilhante, mostrando claramente os círculos escuros embaixo de seus olhos e os cabelos estranhos, com um penteado meio psicodélico. Ela penteou cuidadosamente os fios emaranhados, até seu cabelo recuperar, mais ou menos, seu estilo normal. Ao mesmo tempo, tudo relacionado a sua aparência parecia tão sem sentido agora. Sara continuava rondando sua cabeça, deixando seu coração apertado.
Seu estômago fez barulho, mas antes de descer até a cafeteria, queria encontrar um médico que pudesse lhe dizer como estava Stig. Ela havia acordado e se preparado para ver um médico com expressão séria no rosto todas as vezes que ouviu passos do lado de fora durante a noite. Ninguém as incomodou, então ela supôs que nenhuma notícia era o melhor que podiam ter nesse caso. Mas ainda queria ouvir algo, então saiu para o corredor, sem saber muito bem para onde devia ir. Uma enfermeira que passava mostrou o caminho até a sala dos médicos.
Ela pensou se devia ligar para casa antes, mas decidiu esperar até depois da conversa com o médico. Niclas e Albin ainda deveriam estar dormindo, e ela não queria arriscar acordá-los cedo demais. Albin acabaria ficando de mau humor o resto do dia.
Ela enfiou a cabeça na sala que a enfermeira tinha apontado e limpou a garganta baixinho. Um homem alto bebia café e folheava uma revista. Pelo que Niclas tinha contado, era incomum que um médico tivesse tempo de se sentar, e ela sentia-se quase embaraçada por incomodá-lo. Mas lembrou por que estava ali e pigarreou um pouco mais alto. Dessa vez ele ouviu e virou-se com um olhar inquisidor.
– Pois não?
– Desculpe, mas meu padrasto, Stig Florin, foi internado ontem, e não tivemos notícias desde a noite passada. Você sabe como ele está?
Estava imaginando coisas ou o médico a olhou de uma forma estranha? Se foi o caso, ele recuperou a normalidade rapidamente.
– Stig Florin? Oh, sim, nós estabilizamos seus sinais vitais durante a noite, e ele está acordado agora.
– Está? – disse Charlotte, alegre. – Podemos vê-lo? Minha mãe está aqui também.
Mais uma vez a expressão. Charlotte estava começando a sentir-se desconfortável, apesar das boas notícias. Havia algo que ele não estava contando?
A resposta foi hesitante:
– Eu... eu acho que não é uma boa ideia ainda. Ele continua fraco e precisa descansar.
– É, mas você poderia deixar minha mãe entrar por um momento, não? Não seria ruim e poderia até ajudar. Eles são muito próximos.
– Posso imaginar – disse o médico. – Mas infelizmente vai ter de esperar. No momento, ninguém pode ver o sr. Florin.
– Mas por quê...?
– Você terá de esperar – disse o médico, de forma brusca, e ela começou a ficar brava com ele. Não havia algum tipo de treinamento para ensinar como os médicos deviam tratar os parentes? Ele estava à beira de ser rude. Podia agradecer a sorte por ter conversado com ela e não com Lilian. Se tivesse tratado sua mãe assim, ouviria tanto que suas orelhas cairiam no chão. Charlotte sabia que era muito complacente nesse tipo de situação, então simplesmente murmurou algo e depois voltou ao corredor.
Pensou no que ia falar para a mãe. Algo parecia estranho. As coisas não estavam bem, mas ela não conseguia entender o que estava errado. Talvez Niclas pudesse explicar. Decidiu assumir o risco e acordá-los em casa. Discou o número no celular. Quem sabe ele não poderia acalmá-la. Ela já sentia que provavelmente estava imaginando coisas.
Depois da reunião, Patrik pegou o carro e foi até Uddevalla. Era impossível ficar sentado e esperar; tinha de fazer algo. Durante todo o caminho ficou repassando suas opções. Todas eram igualmente desagradáveis.
Falaram onde era a UTI, mas ainda assim ele se perdeu algumas vezes antes de encontrá-la. Por que era tão difícil encontrar o caminho num hospital? Deve ter a ver com seu péssimo senso de direção. Erica era a navegadora da família. Às vezes, pensava que ela tinha algum tipo de sexto sentido para conseguir encontrar a direção certa.
Ele parou uma enfermeira.
– Estou procurando Rolf Wiesel. Onde posso encontrá-lo?
Ela apontou para o fim do corredor. Um homem alto num jaleco branco caminhava ao fundo, e Patrik o chamou:
– Doutor Wiesel?
O homem se virou.
– Sim?
Patrik foi até ele e estendeu a mão.
– Patrik Hedström, polícia de Tanumshede. Conversamos ontem à noite.
– Ah, sim – disse o médico, apertando a mão de Patrik. – Você ligou no momento exato, tenho de dizer. Não saberíamos que tipo de tratamento realizar, se não fosse por sua informação e, sem o tratamento certo, provavelmente ele estaria morto.
– Fico feliz por ter ajudado – disse Patrik, sentindo-se embaraçado pelo entusiasmo do homem. Mas um pouco orgulhoso também. Não era todo dia que salvava a vida de alguém.
– Venha comigo – disse o dr. Wiesel, apontando para a porta que levava à sala dos médicos. Patrik o seguiu.
– Gostaria de um pouco de café?
– Sim, obrigado – disse Patrik, percebendo que tinha se esquecido de tomar café na delegacia. Havia tantos pensamentos em sua cabeça que se esquecera até dessa parte tão importante de sua rotina matinal.
Eles se sentaram em uma mesa grudenta e deram uns goles no café, que tinha um sabor tão ruim quanto o da delegacia.
– Desculpe, acho que foi feito há muito tempo – disse o dr. Wiesel, mas Patrik levantou a mão como um sinal de que não se importava.
– Então, como chegou à conclusão de que nosso paciente tinha sido envenenado por arsênico? – perguntou o médico com curiosidade.
Patrik contou que estava assistindo ao programa do Discovery Channel e tivera a ideia de juntar certas informações que tinha recebido anteriormente.
– Bom, não é uma toxina comum, e por isso foi difícil identificá-la – disse o dr. Wiesel, balançando a cabeça.
– Qual é o prognóstico agora?
– Ele vai sobreviver. Mas vai sofrer os efeitos pelo resto da vida. Provavelmente está ingerindo arsênico há muito tempo, e parece que a última dose foi enorme. Mas só vamos conseguir determinar isso mais tarde.
– Analisando o cabelo e as unhas? – perguntou Patrik, que tinha tirado isso do programa da noite passada.
– Isso, exatamente. O arsênico permanece no cabelo e nas unhas. Analisando a quantidade e comparando com a velocidade de crescimento do cabelo e das unhas, podemos determinar exatamente quando ele recebeu as doses de arsênico e até quanto recebeu.
– E tomaram medidas para que ele não receba visitas?
– Sim, demos a ordem ontem à noite, quando confirmamos que era realmente envenenamento por arsênico. Nenhum visitante foi autorizado, exceto a equipe médica. A enteada acabou de vir aqui perguntar sobre ele. Falei somente que sua condição era estável e que ainda não podiam vê-lo.
– Ótimo – disse Patrik.
– Sabe quem é o responsável? – perguntou o médico cauteloso.
Patrik pensou por um momento antes de responder.
– Temos nossas suspeitas. Espero que possamos confirmá-las hoje.
– Espero que sim. Qualquer pessoa capaz de fazer algo assim não deveria ficar livre. O envenenamento por arsênico desencadeia sintomas bastante dolorosos antes da morte. A vítima passa por terríveis sofrimentos.
– Entendo – disse Patrik, com a cara fechada. – Ouvi dizer que há uma doença que pode ser confundida com envenenamento por arsênico.
O médico assentiu.
– Guillain-Barré. O próprio sistema imunológico do corpo começa a atacar os nervos e destruir a bainha de mielina. Isso produz sintomas muito parecidos com o envenenamento por arsênico. Se você não tivesse nos ligado, não é difícil imaginar que teríamos chegado a esse diagnóstico.
Patrik sorriu.
– É bom ter sorte de vez em quando. – Mas voltou a ficar sério. – Mas, como eu disse, não deixe ninguém entrar no quarto. Vamos tentar fazer nosso trabalho essa tarde.
Eles se cumprimentaram, e Patrik voltou ao corredor. Pensou por um momento ter visto Charlotte a distância. Foi antes de a porta se fechar atrás dele.
1* Que merda está acontecendo aqui?
2** Você não consegue fazer seus filhos calarem a boca, porra?
Göteborg 1958
Foi numa terça que sua vida chegou ao ponto mais baixo. Uma terça fria, cinzenta, enevoada em novembro que ficaria gravada para sempre em sua memória. Apesar de não se lembrar de muitos detalhes, para falar a verdade. Ela se lembrava principalmente que os amigos de seu pai tinham vindo e contado que sua mãe fizera algo terrível e que Mary teria de acompanhar a senhora do Serviço Social. Tinha visto no rosto dele que sentiam o peso na consciência por não quererem levá-la por pelo menos alguns dias. Mas nenhum dos amigos esnobes de seu pai queria, provavelmente, ter uma garota tão horrivelmente gorda como ela em casa. Então, na falta de qualquer outro parente, ela tinha de fazer uma mala com seus pertences mais importantes e ir com a velha senhora que veio pegá-la.
Só se lembraria dos anos seguintes em seus sonhos. Não eram bem pesadelos; ela na verdade não tinha motivos para reclamar das três casas pelas quais passou até completar dezoito anos. Mas elas deixaram uma sensação de que não significava nada para ninguém, a não ser motivo de curiosidade. Pois era isso o que se tornava uma garota de catorze anos obscenamente gorda e filha de uma assassina. Suas várias famílias adotivas não tinham nem o desejo nem a energia para conhecer a garota que lhes tinha sido designada pelo Serviço Social. Por outro lado, não tinha nada melhor a fazer do que fofocar sobre sua mãe, quando os amigos curiosos vinham visitar só para espiá-la. Odiava todos eles.
Acima de tudo, odiava sua mãe. Porque tinha abandonado sua única filha. Odiava porque Mary tinha significado tão pouco em comparação com um homem; estava preparada para sacrificar tudo por ele, mas nada por sua filha. Quando pensava no que tinha sacrificado por sua mãe, a humilhação parecia ainda maior. Sua mãe a usou, agora podia ver isso. Aos catorze anos, ela também entendeu o que deveria ter visto havia muito tempo. Que sua mãe nunca a amou. Tinha tentado se convencer de que aquilo que sua mãe tinha dito era verdade. Que fazia tudo aquilo porque a amava. As surras, o porão e as colheradas de Humildade. Mas não era verdade. Sua mãe se divertia machucando Mary, porque realmente a desprezava e ria dela.
Foi por isso que Mary decidiu levar somente uma coisa de casa consigo. Tinham deixado que voltasse ao apartamento por uma hora para escolher algumas coisas; o resto seria vendido, juntamente com o apartamento. Ela caminhou pelos aposentos enquanto as memórias voltavam a sua mente: seu pai na poltrona, com os óculos na ponta do nariz, absorto no jornal; sua mãe em frente ao espelho, ocupada preparando-se para uma festa; ela mesma, entrando escondida na cozinha para tentar encontrar algo para comer. Todas as imagens apareceram para Mary como se fosse um caleidoscópio louco, e ela sentiu seu estômago revirar. No segundo seguinte, correu para o banheiro e vomitou uma massa tão fedida que seus olhos se encheram de lágrimas. Limpou a boca com a mão, sentou-se apoiando as costas na parede e chorou com a cabeça apoiada nos joelhos.
Quando deixou o apartamento, só levava consigo uma única coisa. A colher de madeira azul. Cheia de Humildade.
Ninguém fez objeções quando Niclas tirou o dia de folga. Aina tinha até murmurado algo sobre já estar na hora e depois cancelou todas as consultas do dia.
Niclas estava ajoelhado no chão atrás de Albin, que corria como louco ao redor de todas as coisas espalhadas no chão. Ainda estava de pijama apesar de já ser tarde. Mas não importava. Ia ser um dia daqueles; até Niclas ainda estava usando a mesma camiseta e o moletom com que tinha dormido. Albin ria de uma maneira que Niclas nunca tinha ouvido antes, o que o fez perseguir o filho ainda mais rápido.
Com uma pontada no peito, percebeu que não tinha lembranças de brincar com Sara da mesma maneira. Sempre estava tão ocupado. Tão cheio de sua própria importância e tudo que queria fazer e conseguir. Sentindo-se um pouco superior, tinha deixado toda a parte da brincadeira com as crianças para Charlotte, que era boa naquilo. Mas pela primeira vez se questionava se não tinha sido ele quem havia criado aquele espaço vazio. De repente, pensou em algo que o fez parar e respirar rápido. Não sabia qual era a brincadeira favorita de Sara. Ou qual programa de TV ela mais gostava de assistir, ou se ela preferia pintar com o giz de cera azul ou vermelho. Ou qual era sua matéria favorita na escola ou qual livro ela gostava que Charlotte lesse antes de dormir. Não sabia nada de importante sobre a filha. Absolutamente nada. Podia ter sido a filha do vizinho, a julgar pelo pouco que sabia sobre ela. Achava que a menina era difícil, teimosa e agressiva. Que ela machucava o irmão menor, destruía as coisas em casa e atacava os colegas na escola. Mas nenhuma dessas coisas era Sara – eram só coisas que ela fazia. A percepção o fez se encolher no chão atormentado. Agora era tarde demais para conhecê-la. Estava morta.
Albin pareceu sentir que algo estava errado. Parou de correr como um louco, aproximou-se de Niclas e se aninhou como um pequeno animal contra seu corpo. Os dois ficaram ali parados, juntos.
Vários minutos depois, a campainha tocou. Niclas levantou-se e Albin olhou ao redor, nervoso.
– Não se preocupe – disse Niclas. – Deve ser algum estranho vendendo alguma coisa.
Ele pegou o menino no colo e foi abrir a porta. Do lado de fora, estava Patrik com alguns desconhecidos atrás dele.
– O que foi agora? – disse Niclas, cansado.
– Temos um mandado para fazer uma busca na casa – disse Patrik, levantando o documento como prova.
– Mas vocês já estiveram aqui uma vez – disse Niclas, atônito, enquanto olhava o documento. Quando estava na metade, seus olhos se abriram, e ele olhou confuso para Patrik.
– Que merda é essa? Tentativa de assassinato de Stig Florin? Você deve estar brincando.
Mas Patrik não estava rindo.
– Infelizmente, não. Ele está sendo tratado agora mesmo por envenenamento por arsênico. Quase não sobreviveu à noite passada.
– Envenenamento por arsênico? – disse Niclas, surpreso. – Mas como...? – Ele ainda não conseguia entender o que estava acontecendo e por isso não saía do caminho.
– É o que queremos descobrir. Então, se nos der licença...
Sem falar nada, Niclas abriu passagem. Os homens atrás de Patrik pegaram as maletas e o equipamento e entraram com um olhar determinado.
Patrik ficou para trás com Niclas no corredor e pareceu hesitar um momento antes de dizer:
– Também conseguimos uma permissão para exumar o corpo de Lennart. Isso também já deve estar acontecendo.
Niclas sentiu o queixo cair. O que estava acontecendo era simplesmente irreal demais para que compreendesse.
– Mas por quê? O quê... quem...? – ele gaguejou.
– Não podemos explicar tudo agora, mas temos boas razões para acreditar que ele também foi envenenado por arsênico. Apesar de não ter tido tanta sorte quando Stig – acrescentou Patrik, com tristeza. – Mas agora eu apreciaria se você ficasse fora do caminho e deixasse meus homens trabalharem.
Patrik não esperou a resposta e foi entrando na casa.
Sem saber o que fazer, Niclas foi para a cozinha e se sentou, ainda com Albin nos braços. Colocou-o no cadeirão e o subornou com um biscoito para que ficasse quieto. Em sua mente, as perguntas voavam.
Martin tremia por causa do vento. Seu casaco não oferecia muita proteção contra os ventos que sopravam no cemitério. Assim que chegaram havia começado a garoar também.
Toda a operação o deixava mal. Ele tinha participado de poucos funerais e ficar ali, parado, olhando um caixão ser tirado da terra, em vez de enterrado, parecia tão errado quanto ver um filme de trás para a frente. Entendeu por que Patrik tinha pedido que acompanhasse o trabalho. O colega já tinha passado por essa experiência uma vez, alguns poucos meses antes, e uma vez na vida era suficiente. Confirmando essa ideia, pensou ter ouvido um dos coveiros murmurar:
– Vocês devem ficar apostando na delegacia para ver quantos presuntos a gente consegue desenterrar em menos tempo.
Martin não respondeu, pensando que provavelmente não valia a pena fazer mais pedidos ao promotor por algum tempo.
Torbjörn Ruud parou ao lado dele. Não pôde evitar o comentário:
– Suponho que seria melhor começar a enterrar os caixões aqui em Fjällbacka com elásticos. Então só seria preciso puxá-los quando vocês quisessem.
Martin não resistiu a dar um sorriso fraco, apesar de não ser o melhor momento, e os dois estavam lutando para não rir quando o celular de Torbjörn tocou.
– Sim, é o Ruud. – Ele ouviu, depois desligou e disse para Martin: – Estão indo para a casa dos Florin agora. Mandamos três homens para lá e dois para cá, depois veremos se será necessário nos reorganizarmos.
– O que exatamente vocês precisam fazer aqui. Agora, quero dizer? – disse Martin curioso.
– Não há muito a fazer. No momento, estamos apenas olhando para garantir que tudo seja removido com o mínimo de contaminação possível. Depois vamos tirar um pouco de amostras do solo também. Mas o mais importante é levar o corpo para o legista, para que ele possa começar a recolher as amostras de que precisa. Assim que o caixão tiver sido despachado, vamos para a casa dos Florin ajudar na busca. Você vem também, não?
Martin assentiu.
– Sim, acho que deveria – ele fez uma pausa. – Que maldita bagunça, isso tudo.
Ruud assentiu.
– Bagunça é pouco.
A conversa terminou ali, e eles ficaram em silêncio enquanto esperavam os homens terminarem o trabalho. Um pouco depois apareceu o caixão. Lennart Klinga voltava à superfície.
Todo o seu corpo doía. Stig vislumbrava sombras borradas ao seu redor que desapareciam repentinamente. Tentou abrir a boca para falar, mas nenhuma parte de seu corpo parecia obedecê-lo. Era como se tivesse lutado um round contra Mike Tyson e perdido feio. Por um momento ele se perguntou se estava morto. Ninguém podia se sentir assim e ainda estar vivo.
O pensamento o deixou em pânico, e ele usou toda a energia que tinha para tentar fazer suas cordas vocais funcionarem. Em algum lugar muito longe pensou ter ouvido um som estranho que poderia ser sua própria voz.
Era. Uma das sombras se aproximou e ganhou contornos mais nítidos. Um rosto feminino apareceu, e ele apertou os olhos para tentar focar.
– Onde? – conseguiu falar e esperava que ela tivesse entendido o que queria dizer. Ela entendeu.
– Você está no Hospital Uddevalla, Stig. Está aqui desde ontem.
– Vivo? – perguntou.
– Está vivo, sim – disse a enfermeira com um sorriso. Ela tinha um rosto redondo e aberto. – Foi por pouco, preciso dizer, mas agora o pior já passou.
Se pudesse rir, ele teria rido. “O pior já passou”. Claro, claro, fácil para ela dizer. Não sabia como cada fibra de seu corpo queimava e como tudo doía, até os ossos. Mas estava realmente vivo, de qualquer forma. Com esforço, tentou formar mais algumas palavras com os lábios.
– Senhora? – não conseguiu falar o nome dela. Por um momento, pensou que uma estranha expressão passou pelo rosto da enfermeira, mas depois desapareceu. Sem dúvida era a dor brincando com ele.
– Agora você precisa descansar – disse a enfermeira. – Logo poderá receber visitas.
Ficou contente com isso. A exaustão caiu sobre ele, e Stig estava disposto a se deixar levar. Não estava morto, isso era o mais importante. Estava num hospital, mas não estava morto.
Com grande cuidado, vasculhavam todos os cantos da casa. Não podiam correr o risco de deixar escapar nada, mas não tinham o dia todo também. Quando terminassem ia parecer que um furacão tinha passado pela casa, mas Patrik sabia o que precisavam encontrar, e tinha certeza de que estava ali em algum lugar. Não pretendia ir embora até encontrar.
– Como está indo? – era a voz de Martin na porta.
Patrik se virou.
– Estamos na metade do primeiro andar. Nada ainda. E você?
– Bom, o caixão está a caminho. Uma experiência completamente surreal, devo dizer.
– Pode apostar que aquela cena vai aparecer em algum pesadelo, cedo ou tarde. Tive uns dois deles, com mãos de esqueleto saindo do caixão e coisas assim.
– Pare com isso – disse Martin com uma careta. – Ainda não encontraram nada? – ele perguntou, principalmente como uma forma de se livrar das imagens que Patrik tinha colocado em sua cabeça.
– Não, nada – respondeu Patrik, frustrado. – Mas deve estar aqui, eu sinto isso.
– Sempre achei que você tinha um lado feminino forte, então deve ser intuição feminina – disse Martin, com um sorriso no rosto.
– Vá encontrar algo útil para fazer em vez de ficar aqui, parado, insultando minha masculinidade.
Martin obedeceu e foi encontrar um canto para ajudar nas buscas.
Um sorriso surgiu nos lábios de Patrik, mas logo desapareceu. Imaginava diante de si o pequeno corpo de Maja nas mãos de um assassino, e a fúria que sentia era tão forte que via tudo vermelho.
Duas horas depois, ele começou perder o ânimo. Todo o primeiro andar e o porão tinham sido revirados e nada fora encontrado. Mas podiam confirmar que Lilian era uma dona de casa muito zelosa. Os técnicos tinham juntado alguns recipientes no porão, mas seria preciso levar ao laboratório para analisar. Talvez ele estivesse errado, afinal de contas. Mas depois se lembrou do conteúdo da fita de vídeo que havia assistido muitas vezes na noite anterior e sentiu sua determinação voltar. Ele não estava errado. Não podia estar. Estava aqui. A única pergunta era: “Onde?”.
– Vamos continuar no andar de cima? – perguntou Martin, apontando para as escadas.
– Exato. Não acho que deixamos escapar algo aqui. A gente olhou cada milímetro.
Toda a equipe subiu. Niclas saíra para passear com Albin, a fim de deixá-los trabalhar.
– Vou começar pelo quarto de Lilian – avisou Patrik.
Ele entrou no quarto à direita da escada e olhou ao redor. O quarto de Lilian estava bem arrumado, como o resto da casa, e a cama tinha sido feita de forma tão perfeita que seria aprovada numa inspeção do exército. Por outro lado, o quarto era bem feminino. Stig não devia se sentir muito confortável ali antes de ser acomodado no quarto de hóspedes. As cortinas e a roupa de cama tinham babados, e havia toalhinhas de crochê no criado-mundo e na cômoda. Havia pequenos bibelôs de porcelana por todo lado, e as paredes estavam cobertas de anjos de cerâmica e desenhos de anjos. O esquema de cores era predominantemente rosa. Era tão doce que Patrik sentiu-se mal. Achou que parecia o quarto de uma garotinha em uma casa de bonecas. Era exatamente como uma menina de cinco anos decoraria o quarto de sua mãe, se deixassem.
– Argh – disse Martin quando enfiou a cabeça no quarto. – Parece que um flamingo vomitou aqui.
– É, esse quarto nunca estaria na revista House Beautiful.
– Se estivesse, seria na foto de “antes”. Esse lugar precisa de um make-over – disse Martin. – Diga, você precisa de alguma ajuda aqui? Parece que há muitas coisas para olhar.
– Claro que sim. Não quero ficar aqui mais tempo do que o necessário.
Eles começaram a trabalhar em lados opostos do quarto. Patrik se sentou no chão para espiar o criado-mudo enquanto Martin trabalhava no guarda-roupa que cobria uma parede inteira.
Eles trabalhavam em silêncio. As costas de Martin fizeram um barulho quando ele foi pegar algumas caixas de sapato na prateleira do alto. Ele as colocou com cuidado na cama e depois parou por um momento para massagear as costas. Todo aquele esforço da mudança ainda o estava incomodando, e ele percebeu que deveria ir a um quiroprático.
– O que você tem aí? – perguntou Patrik de onde estava, sentado no chão.
– Algumas caixas de sapato.
Tirou a tampa da primeira caixa, inspecionando com cuidado o conteúdo, e depois a deixou de lado, tampando-a de novo.
– Só um punhado de fotos velhas. – Levantou a tampa da caixa seguinte e tirou uma caixinha azul de madeira. A tampa estava presa, por isso ele precisou usar um pouco de força para abri-la. Quando Patrik ouviu-o assobiar, virou-se para ele no ato.
– Bingo – disse Martin.
Patrik sorriu.
– Bingo – repetiu, triunfante.
Charlotte tinha passado algumas vezes pela máquina de doces até finalmente ceder. Se não podia se permitir um pedaço de chocolate num momento como esse, quando poderia?
Inseriu algumas moedas e apertou o botão para que uma barra de Snickers caísse pela portinha. Um “king size” estaria de bom tamanho.
Pensou em engolir tudo de uma vez antes de voltar, mas sabia que passaria mal se comesse muito rápido. Então se controlou e voltou à sala de espera onde Lilian estava sentada. E foi tiro e queda. Os olhos da mãe foram direto para o chocolate em sua mão, e ela olhou de maneira acusatória para Charlotte.
– Sabe quantas calorias há num desses? Você precisa perder peso, não ganhar. Essa coisa vai direto para sua bunda. Agora que você finalmente conseguiu perder alguns quilos...
Charlotte suspirou. Tinha ouvido a velha canção sua vida toda. Lilian nunca tinha permitido doces na casa, era uma daquelas mulheres que sempre pesava o mesmo e nunca tinha nenhuma grama a mais do que o necessário. Talvez exatamente por isso os doces fossem tão tentadores para Charlotte, que os comia em segredo. Ela roubava trocados dos bolsos dos pais e depois ia escondida até a Central Kiosk para comprar chocolates e balas sortidas, que devorava vorazmente antes de ir para casa. No ensino médio, ela já era gorda, e Lilian ficara furiosa. Às vezes obrigava Charlotte tirar as roupas e ficar na frente do espelho de corpo inteiro para que pudesse apertar sem perdão o excesso de carne.
– Olhe para você. Parece uma porca gorda! Não quer se parecer com uma porca, quer?
Charlotte odiava sua mãe naqueles momentos. Mas Lilian só ousava fazer isso quando Lennart não estava em casa. Ele nunca teria permitido isso. Papai tinha sido a salvação de Charlotte. Ela já era adulta quando ele morreu, mas sem o pai sentia-se uma garotinha indefesa.
Ela olhou para sua mãe sentada na sua frente. Como sempre, estava impecavelmente vestida, um contraste total com Charlotte, que não tinha trazido nenhuma roupa para trocar. Lilian, por outro lado, tinha conseguido fazer uma pequena mala e trocado de roupa, retocando também a maquiagem.
Charlotte enfiou, desafiadora, o último pedaço da grande barra de chocolate na boca, ignorando o olhar desafiador de Lilian. Não imaginava que ela se importaria com seus hábitos alimentares enquanto Stig lutava pela vida. Sua mãe nunca deixou de impressioná-la. Mas considerando que era sua avó, talvez não fosse tão estranho.
– Quando vamos poder ver Stig? – disse Lilian, frustrada. – Não entendo. Como eles podem deixar os parentes de fora assim?
– Tenho certeza de que têm seus motivos – disse Charlotte, tentando soar reconfortante, mas por um instante, se lembrou do jeito estranho do médico. – A gente provavelmente só atrapalharia.
Lilian bufou e se levantou da cadeira para ficar andando de um lado para o outro.
Charlotte suspirou. Estava realmente tentando manter a compaixão que sentiu por sua mãe na noite anterior, mas Lilian estava tornando tudo muito difícil. Charlotte pegou seu celular para ver se estava funcionando. Era um pouco estranho que Niclas não tivesse ligado. A tela estava apagada, e ela percebeu que a bateria tinha acabado. Droga. Levantou-se para ligar do telefone público no corredor, mas foi quase derrubada por dois homens. Ficou surpresa ao ver que eram Patrik Hedström e seu colega ruivo olhavam por cima do ombro dela na sala de espera.
– Olá, o que estão fazendo aqui? – ela perguntou, mas depois foi tomada por um pensamento. – Encontraram algo? Alguma coisa sobre Sara? Descobriram, não foi? O que foi? O quê...? – Estava ansiosa e, com uma sensação de medo, olhava de Patrik para Martin, mas não recebia nenhuma resposta.
Finalmente Patrik disse:
– No momento não temos nada concreto para contar sobre Sara.
– Mas por quê...? – ela perguntou perplexa, sem terminar a sentença.
Espantada, Charlotte saiu do caminho quando eles indicaram que queriam passar. Como se estivesse distante, viu as outras pessoas na sala de espera olhando tensas o drama enquanto os policiais se posicionavam na frente de Lilian, que estava parada com os braços cruzados e olhava para eles com as sobrancelhas levantadas.
– Gostaríamos que viesse conosco.
– Não posso fazer isso, tenho certeza de que vocês vão entender – disse Lilian beligerante. – Meu marido está lutando pela vida e não posso deixá-lo. – Ela bateu o pé para enfatizar seu ponto, mas os detetives não pareciam prestar atenção nisso.
– Stig vai melhorar, e infelizmente você não tem escolha. Só vou pedir de forma polida mais uma vez – disse Patrik.
Charlotte não conseguia acreditar em seus ouvidos. Toda a coisa devia ser um enorme mal-entendido. Se Niclas estivesse ali, certamente ele poderia acalmar todo mundo e esclarecer a situação no ato. Ela não sabia o que fazer. Toda a situação era tão absurda.
– E do que se trata? – gritou Lilian. Ela disse em voz alta o que Charlotte estava pensando. – Deve ser algum tipo de confusão.
– Esta manhã, nós exumamos o corpo de seu marido Lennart. Os legistas estão tirando amostras dos restos mortais. Amostras de Stig já foram analisadas. Também realizamos uma busca na sua casa hoje e... – Patrik olhou para Charlotte, mas voltou-se para Lilian – fizemos algumas outras descobertas. Podemos discutir aqui se você quiser, na frente de sua filha e de todo mundo, ou você pode vir conosco para a delegacia. – A voz dele não tinha nenhuma emoção, e os olhos continham uma frieza que ela não podia imaginar que existisse dentro do policial.
Os olhos de Lilian encontraram os de Charlotte por um momento. Esta não entendeu nada do que Patrik dissera. Uma breve visão da expressão de Lilian aumentou sua confusão e fez um arrepio subir por sua espinha. Algo estava errado, com certeza.
– Mas papai tinha síndrome de Guillain-Barré. Ele morreu de uma doença nervosa – ela falou, tanto explicando quanto perguntando, para Patrik.
Ele não respondeu. Logo Charlotte descobriria mais do que queria saber.
Lilian não quis olhar para a filha e parecia ter tomado uma decisão. Disse calmamente para Patrik:
– Está certo. Vou com vocês.
Espantada, Charlotte ficou ali, insegura se deveria ficar ou ir com eles. No final, sua indecisão foi quem decidiu. Ela ficou olhando os policiais e sua mãe desaparecerem no corredor.
Hinseberg 1962
Era a única visita a Agnes que pretendia fazer. Não pensava mais nela como sua mãe. Somente como Agnes.
Mary tinha acabado de completar dezoito anos e deixado sua última família adotiva sem olhar para trás. Não sentia falta deles, nem eles dela.
Nesses anos, as cartas tinham chegado com frequência. Cartas grossas com o cheiro de Agnes. Ela não tinha aberto nenhuma. Mas tampouco as jogara fora. Estavam numa gaveta, esperando para serem lidas algum dia.
Foi também a primeira coisa que Agnes perguntou.
– Querida, você leu minhas cartas?
Mary olhou para Agnes sem responder. Não a via fazia quatro anos e precisava reaprender seus traços faciais novamente antes de poder dizer qualquer coisa.
Ficou surpresa como o tempo na prisão parecia ter afetado pouco sua mãe. Ela não tinha como resolver o problema das roupas, então os vestidos elegantes eram só uma lembrança, mas fora isso parecia ter se cuidado bem, e sua aparência era tão intensa quanto antes. Seus cabelos tinham sido arrumados recentemente, agora com um penteado que era a última moda. O delineador grosso também seguia as últimas tendências, e as unhas estavam tão longas quanto Mary se lembrava. Agora Agnes batia os dedos impacientemente enquanto esperava por uma resposta.
Demorou mais um momento para Mary falar.
– Não li nenhuma delas. E não me chame de “querida” – ela disse, depois esperou com curiosidade a resposta. Não tinha mais medo da mulher na frente dela. O monstro dentro de si tinha, gradualmente, devorado aquele medo enquanto o ódio crescia. Com tanto ódio, não havia espaço para o medo.
Agnes não conseguiu deixar passar a oportunidade para uma cena dramática.
– Você não as leu! – ela falou alto. – Aqui estou eu, trancada, enquanto você está livre e se divertindo e sabe Deus o que mais, e a única alegria que tenho é a de saber que minha querida filha está lendo as cartas que passo tantas horas escrevendo. E nunca recebi uma única carta sua nem uma única ligação em quatro anos! – Agnes agora estava chorando alto, mas não tinha lágrimas nos olhos. Elas estragariam o delineador perfeito.
– Por que você fez aquilo? – perguntou Mary, em voz baixa.
Agnes parou abruptamente de chorar. Com grande compostura, pegou e acendeu um cigarro. Depois de algumas tragadas profundas, respondeu com a mesma calma medonha.
– Porque ele me traiu. Pensou que podia me deixar.
– Não podia simplesmente esquecê-lo? – Mary se inclinou para a frente, para não perder nenhuma palavra. Ela tinha repassado esse tópico tantas vezes em sua mente que agora não queria se arriscar a perder nem uma sílaba.
– Nenhum homem pode me deixar – disse Agnes. – Fiz o que tinha de fazer. – Virou seu olhar gélido para Mary e acrescentou: – Você sabe como é, não sabe?
Mary evitou seus olhos. O monstro dentro dela se mexia inquieto. Ela disse, com rispidez:
– Quero que você passe a casa de Fjällbacka para o meu nome. Estou pensando em me mudar para lá.
Agnes parecia querer protestar, mas Mary logo acrescentou:
– Se quiser ter qualquer contato comigo no futuro, então é melhor fazer o que estou mandando. Se passar a casa para o meu nome, prometo que vou ler e responder suas cartas.
Agnes hesitou, então Mary logo continuou:
– Sou a única pessoa que você tem agora. Isso pode não ser muito, mas ainda sou a única.
Por uns segundos incrivelmente longos, Agnes pesou os prós e os contras, avaliando o que seria melhor para ela, e finalmente decidiu.
– Está bem, esse é o acordo então. Não porque eu entenda os motivos pelos quais você gostaria de viver naquele buraco, mas se quiser, então tudo bem... – Ela deu de ombros, e Mary sentiu o prazer crescer dentro de si.
Era um plano que tinha desenvolvido no ano anterior. Iria recomeçar sua vida. Tornar-se uma pessoa diferente. Eliminar o passado que se prendia a ela como uma manta velha. Seu pedido para mudança de nome já tinha sido feito. Ganhar acesso à casa em Fjällbacka era o passo seguinte, e ela já tinha começado a trabalhar na mudança de sua aparência. Nem uma única caloria desnecessária tinha entrado em sua boca no mês anterior, e a caminhada de uma hora a cada manhã também tinha ajudado. Tudo seria diferente. Tudo seria novo.
A última coisa que ouviu quando deixou Agnes sentada na sala de espera foi a exclamação espantada:
– Você perdeu peso?
Mary não se virou para responder. Estava a caminho de se tornar uma nova pessoa.
No dia seguinte, a tempestade diminuiu, e o outono estava mostrando seu melhor lado. As folhas que tinham sobrevivido à ventania eram vermelhas e amarelas e flutuavam na leve brisa. O sol não esquentava, mas ainda assim conseguia levantar o ânimo e espantar o frio no ar – o tipo que entrava por baixo das roupas e gelava o corpo.
Patrik suspirou ao se sentar na cozinha. Lilian ainda se recusava a falar, apesar de todas as provas que tinham contra ela. Pelo menos eram suficientes para deixá-la presa, e ainda tinham tempo para fazer as acusações.
– Como está indo? – disse Annika quando entrou para encher sua xícara de café.
– Nada de novo – disse Patrik com um suspiro profundo. – Ela é dura como uma rocha. Não quer dizer nada.
– Mas precisamos de uma confissão? As provas não são suficientes?
– Na verdade não precisamos – disse Patrik. – Mas falta o motivo. Com um pouco de imaginação poderia imaginar uma série de razões plausíveis para matar um marido e tentar matar o segundo. Mas Sara?
– Como você sabia que foi ela quem matou Sara?
– Eu não sabia – disse Patrik. – Não até agora. Mas tudo isso me fez ver que alguém mentiu sobre a manhã em que Sara desapareceu, e esse alguém tinha de ser Lilian.
Ele ligou o gravador que estava na mesa da cozinha. A voz de Morgan encheu a sala:
– Não fiz nada. Não posso ficar na prisão pelo resto da vida. Não a matei. Não sei como o casaco foi parar na minha cabana. Ela estava usando quando voltou para casa. Por favor, não me deixe aqui.
– Ouviu isso? – disse Patrik.
Annika balançou a cabeça.
– Não ouvi nada especial.
– Ouça mais uma vez, com atenção. – Ele voltou a fita e apertou o “play”.
– Não fiz nada. Não posso ficar na prisão pelo resto da vida. Não a matei. Não sei como o casaco foi parar na minha cabana. Ela estava usando quando voltou para casa. Por favor, não me deixe aqui.
– Ela estava usando quando voltou para casa – Annika falou, baixinho.
– Exatamente – disse Patrik. – Lilian afirmou que Sara saiu e não voltou, mas Morgan a viu voltar para casa. E a única pessoa que teria motivos para mentir sobre isso era Lilian. Por que outra razão ela não nos contou que Sara voltara para casa?
– Como alguém pode afogar a própria neta? E por que enfiou cinzas em sua boca? – perguntou Annika, balançando lentamente a cabeça.
– Sim, é exatamente o que eu quero saber – disse Patrik, frustrado. – Mas ela só fica sentada e sorri, recusando-se a dizer qualquer coisa, nem confessa, nem se defende.
– E o garotinho? – Annika continuou. – Por que ela o atacou? E Maja?
– Acho que Liam foi apenas uma decisão aleatória – disse Patrik, girando a xícara de café nas mãos. – Um crime de oportunidade. Foi uma forma de afastar a atenção de sua família – de Niclas principalmente, é o que parece. E atacar Maja foi uma forma de se vingar de mim por investigar sua família.
– Ouvi dizer que você também teve a ajuda da sorte para resolver o crime de Lennart e a tentativa de assassinato de Stig.
– Tive sim e infelizmente não posso dizer que o mérito foi meu. Se não tivesse assistido a Crime Night no Discovery Channel, nunca teríamos descoberto. Mas eles estavam mostrando o caso de uma mulher nos EUA que envenenava seus maridos, e um deles foi, primeiro, diagnosticado com Guillain-Barré. Foi quando tudo começou a se encaixar para mim. Erica tinha mencionado que o pai de Charlotte tinha morrido de uma doença nervosa e quando a doença de Stig foi somada a isso... dois maridos com os mesmos sintomas raros; isso me fez pensar. Então acordei a Erica, e ela confirmou que Charlotte tinha dito que seu pai morreu de Guillain-Barré. Mas preciso dizer que não tinha certeza absoluta até ligar para o hospital. Foi ótimo quando os resultados dos testes foram feitos e mostraram uma alta quantidade de arsênico. Mas só queria conseguir que ela me contasse os motivos. Ela se recusa a falar! – passou a mão pelos cabelos, frustrado.
– Bem, há um limite para o que se pode fazer – disse Annika, virando-se para sair. Antes, no entanto, ela se voltou para Patrik e disse: – Você ouviu as notícias, por falar nisso?
– Não, o que foi – disse Patrik cansado, mostrando pouco entusiasmo.
– Ernst foi realmente demitido. E Mellberg recrutou uma mulher para trabalhar aqui. Ele aparentemente recebeu pressão de cima quanto à distribuição de gênero na delegacia.
– Pobre sujeito – disse Patrik. – Espero que essa mulher tenha o couro duro.
– Não sei nada sobre ela, então veremos quando chegar. Evidentemente, ela virá daqui a um mês.
– Tenho certeza de que vai dar tudo certo – disse Patrik. – Qualquer coisa será um avanço em comparação com Ernst.
– Com certeza – concordou Annika. – E você devia se animar um pouquinho. A principal coisa é que a assassina está presa. O motivo talvez fique entre ela e o Criador.
– Ainda não desisti – murmurou Patrik e se levantou para tentar de novo.
Ele foi encontrar Gösta, e juntos levaram Lilian até a sala de interrogatório. Ela parecia um pouco amarrotada depois de alguns dias na cadeia, mas estava totalmente calma. Tirando a raiva que mostrou quando eles a tiraram da sala de espera do hospital, Lilian tinha exibido uma fachada de autocontrole excessivo. Nada que tinham dito até o momento a abalara, e Patrik começava a duvidar que fossem conseguir. Mas precisava tentar pelo menos uma última vez. Depois o promotor poderia cuidar do caso. Ele realmente queria ter uma resposta dela sobre Maja. Estava orgulhoso de si mesmo por ter conseguido controlar sua raiva; tinha feito isso tentando manter um objetivo claro na mente o tempo todo. O importante era que Lilian fosse condenada e, se possível, que fornecesse uma explicação. Usar seus sentimentos pessoais contra ela não ajudaria nesse objetivo. Ele também sabia que até mesmo uma pequena explosão significaria que seria excluído do julgamento. Todo mundo já estava de olho nele por causa de sua conexão pessoal com o caso.
Suspirou fundo e começou.
– Sara foi enterrada hoje. Sabia disso?
Ele e Gösta estavam sentados de um lado da mesa, de frente para Lilian. Ela balançou a cabeça.
– Gostaria de ter participado?
Ela só deu de ombros com um sorriso estranho, de esfinge.
– O que você acha que Charlotte sente em relação a você agora? – Patrik continuou mudando de assunto para encontrar algo que a fizesse reagir. Mas até agora Lilian tinha mostrado uma indiferença quase inumana.
– Sou a mãe dela – respondeu Lilian calmamente. – Ela nunca vai poder mudar isso.
– Você acha que iria querer?
– Talvez. Mas o que ela quer não muda nada.
– Você acha que Charlotte iria querer saber por que você fez isso? – perguntou Gösta. Estava olhando intensamente para Lilian, procurando uma rachadura no que parecia ser uma armadura impenetrável.
Lilian não respondeu, mas ficou estudando impassível suas unhas.
– Temos as provas, Lilian, você sabe disso. Repassamos tudo antes. Não duvidamos nem por um segundo que você não tenha assassinado duas pessoas e seja culpada pela tentativa de assassinato de uma terceira. O envenenamento com arsênico de Lennart e Stig já dará muitos anos de prisão. Então acho que não vai se importar de falar sobre o assassinato de Sara. Matar o marido não tem nada novo; posso imaginar mil razões para isso, mas por que sua neta? Por que Sara? Ela a provocou? Você ficou brava com ela e depois não conseguiu parar? Ela teve uma de suas explosões, você estava tentando acalmá-la com um banho, e as coisas saíram do controle? Conte-nos!
Mas assim como tinha sido nos interrogatórios anteriores, não conseguiram arrancar nenhuma resposta de Lilian. Ela simplesmente sorria, indulgente.
– Temos as provas! – repetiu Patrik, mais irritado. – As amostras de Lennart mostraram alto nível de arsênico, e com Stig foi a mesma coisa. Fomos capazes de demonstrar que o envenenamento por arsênico ocorreu durante os últimos seis meses e em doses cada vez maiores. Encontramos o arsênico num velho recipiente de veneno de rato que você guardava no porão. O pulmão de Sara tinha traços das cinzas que você mantinha em seu quarto. Você esfregou as mesmas cinzas numa criancinha para nos enganar e também colocou o casaco de Sara na cabana de Morgan para tentar incriminá-lo. O fato de Kaj ser pedófilo foi um golpe de sorte para você. Mas também temos o testemunho de Morgan em fita, dizendo que ele viu Sara voltar para casa. E isso contradiz o que você nos contou. Sabemos que foi você que matou Sara. Ajude-nos agora, ajude sua filha a se recuperar disso. Conte-nos o motivo! E a minha filha, que motivo você tinha para tirá-la do carrinho? Queria me atacar? Fale comigo!
Lilian estava desenhando pequenos círculos na mesa com o dedo indicador. Tinha ouvido os comentários de Patrik muitas vezes e eram simplesmente tão inúteis quanto antes.
Patrik sentiu que estava começando a perder a cabeça. Percebeu que seria melhor parar antes de fazer algo estúpido. Ficou de pé, repassou as informações necessárias para concluir o interrogatório e caminhou até a porta. Ali, ele se virou.
– O que você está fazendo agora é imperdoável. Você tem o poder de dar à sua filha um pouco de paz de espírito, mas prefere não fazer isso. Não é só imperdoável, é desumano.
Ele pediu para Gösta levar Lilian de volta para a cela. Não conseguia mais olhar para ela. Por um instante pensou que estava olhando diretamente para as profundezas do inferno.
– Malditos defensores da liberação feminina que ficam tentando mandar na gente – murmurou Mellberg. – Agora vamos ter de aguentá-las no trabalho também. Não entendo essa questão do maldito sistema de cotas. Talvez eu seja ingênuo, mas achei que ia poder escolher minha própria equipe. Mas não, em vez disso, vão me mandar uma dama que provavelmente nem aprendeu a abotoar seu uniforme. Não é mesmo?
Sem responder, Simon continuou com os olhos fixos no prato.
Era estranho almoçar em casa, mas era outra estratégia no projeto pai e filho que Mellberg tinha iniciado. Até fizera um esforço para comprar alguns vegetais, algo que antes nunca tinha nem entrado em sua geladeira. Mas percebeu com raiva que Simon não tinha tocado nem no pepino nem nos tomates. Em vez disso, estava concentrado no macarrão e nas almôndegas, que cobriu com uma enorme quantidade de ketchup. Oh, bem, ketchup também era tomate, pensou Mellberg, então deveria funcionar.
Decidiu mudar de assunto. Só pioraria sua pressão sanguínea continuar pensando na nova colega. Em vez disso, deveria focar nos planos futuros de seu filho.
– Então, pensou em que tipo de emprego você quer ter? Se não acha que fazer faculdade seja para você, posso ajudá-lo a encontrar algum tipo de trabalho. Nem todo mundo é do tipo estudioso e, se você for igual a seu pai, que prefere o lado prático... – Mellberg riu.
Um pai menos experiente poderia ter ficado preocupado com a falta de iniciativa do filho em relação ao próprio futuro, mas Mellberg estava cheio de confiança. Claro que Simon estava passando por uma depressão temporária; não havia nada com que se preocupar. Pensou se queria que o filho fosse advogado ou médico. Advogado, decidiu. Médicos não ganham tanto como antes. Mas até ele poder seguir essa carreira, o importante era pegar leve com o rapaz. Se sentisse o gosto das dificuldades da vida, acabaria ouvindo a voz da razão, no final. Claro que a mãe de Simon contou que o garoto tinha sido reprovado em tudo, e estava claro que isso poderia ser um obstáculo. Mas Mellberg estava pensando de forma positiva. O problema todo sem dúvida tinha a ver com falta de apoio em casa, porque a inteligência devia estar ali; de outra forma, a Mãe Natureza teria brincado pesado com eles.
Simon mastigava a almôndega e não parecia animado para responder à pergunta do pai.
– Então, o que você acha de um emprego? – repetiu Mellberg, um pouco mais zangado. Estava fazendo um esforço para criar uma ligação entre eles, e Simon não se dava ao trabalho de responder.
Ainda mastigando, Simon disse depois de uns segundos:
– Não, acho que não.
– Como assim, você acha que não? – disse Mellberg, indignado. – Então, o que você acha? Que pode viver aqui, embaixo do meu teto e comer minha comida e só ficar sentado sem fazer nada o dia todo? É isso que você acha?
Simon nem piscou.
– Não, provavelmente vou voltar e morar com minha mãe.
O anúncio pareceu um chute na cara de Mellberg. Em algum ponto do coração ele sentiu uma dor estranha, quase perfurante.
– De volta para sua mãe? – repetiu Mellberg, como se não pudesse acreditar em seus ouvidos. Era uma opção que não tinha nem considerado.
– Mas achei que você não gostava de viver lá! Disse que odiava “aquela vadia maldita ”, quando chegou.
– Oh, eu gosto da mamãe – disse Simon, olhando pela janela.
– E não gosta de mim? – perguntou Mellberg, mal-humorado. Ele não conseguia esconder o crescente desapontamento. Arrependeu-se de ser tão duro com o garoto. Talvez não fosse realmente necessário que o garoto começasse a trabalhar imediatamente. Haveria muito tempo para as chatices na vida; pegar leve por um tempo não arruinaria suas chances.
Mellberg quis logo mostrar esse novo ponto de vista, mas não teve o efeito que esperava.
– Oh, não é isso. A mamãe também vai me mandar arrumar um emprego. Mas são meus amigos, sabe? Tenho um monte de amigos em casa e aqui não conheço ninguém e... – Ele deixou a sentença morrer.
– Mas e todas as coisas legais que fizemos juntos? – quis saber Mellberg. – Pai e filho, sabe. Pensei que você estivesse aproveitando. Finalmente, estar com seu velho pai. Me conhecer.
Mellberg buscava algum argumento convincente. Não conseguia imaginar por que havia só duas semanas ele sentira tanto pânico, esperando que seu filho chegasse. Claro, zangara-se algumas vezes, mas mesmo assim. Pela primeira vez, realmente sentia ansiedade quando colocava a chave na fechadura depois do trabalho. E agora tudo isso ia desaparecer.
O garoto deu de ombros.
– Você tem sido ótimo. Não tem nada a ver com você. Mas eu nunca me mudaria para cá. É algo que a mamãe diz quando fica brava. Já me mandou para a casa da vovó antes, mas agora ela está doente, então a mamãe não sabia o que fazer comigo. Mas eu conversei com ela ontem. Já está mais calma e quer que eu volte para casa. Então vou pegar o trem das nove da manhã – ele disse, sem olhar para Mellberg. Depois levantou os olhos. – Mas foi muito legal. De verdade. E você foi superlegal e se esforçou de verdade e tudo. Então eu gostaria de poder voltar para visitá-lo de vez em quando, se não for nenhum problema... – fez uma pausa por um momento, depois acrescentou: – Pai?
Um calor se espalhou pelo peito de Mellberg. Era a primeira vez que o garoto o chamava de pai. Droga, era a primeira vez que o chamavam assim.
De repente, sentiu que era um pouco mais fácil aceitar a notícia de que o garoto partiria. Pelo menos ele o viria visitar de vez em quando. Pai.
Era a coisa mais difícil que tinham feito. Ao mesmo tempo, dava uma sensação de conclusão que permitiria construir uma base para o casamento no futuro. A visão do pequeno caixão descendo na terra os fez se abraçarem forte. Nada no mundo poderia ser mais difícil do que isso. Dar adeus a Sara.
Niclas e Charlotte preferiram ficar sozinhos. A cerimônia na igreja foi curta e simples. Eles quiseram dessa forma. Somente os dois e o pastor. E agora estavam sozinhos ao lado do túmulo. O pastor pronunciou as palavras que a ocasião exigia e depois se retirou em silêncio. Tinham jogado uma única rosa no caixão, e ela brilhava cor-de-rosa contra a madeira branca. Rosa era a cor favorita dela. Talvez porque se destacava contra os cabelos ruivos. Sara nunca escolhia os caminhos fáceis.
O ódio deles contra Lilian ainda era recente. Charlotte sentia-se envergonhada por estar dentro do cemitério, sentindo tanto ódio que escapava pelos poros de seu corpo. Talvez diminuísse com o tempo, mas pelo canto do olho via o monte de terra do túmulo de seu pai, formado quando ele foi colocado para descansar pela segunda vez. E se perguntou como seria capaz de sentir outra coisa que não fosse raiva e tristeza.
Lilian não tirara apenas a Sara deles, mas também seu pai, e ela nunca poderia perdoá-la por isso. Como pôde ter feito aquilo? O pastor tinha falado sobre perdão como uma forma de diminuir a dor, mas como alguém pode perdoar um monstro? Ela nem entendia por que sua mãe tinha cometido esses crimes horrorosos. A falta de sentido das ações só alimentava a fúria e a dor que sentia. Lilian estava completamente insana ou tinha agido de acordo com algum tipo de lógica demente? O fato de talvez nunca terem a possibilidade de descobrir aquilo tornava a perda ainda mais difícil de suportar; ela queria arrancar o motivo da boca da mãe.
Além das flores das pessoas da cidade que queriam mostrar solidariedade, duas pequenas coroas também tinham chegado à igreja. Uma era da avó paterna de Sara, Asta. Fora colocada perto do caixão e depois levada até o cemitério, para ser colocada ao lado do pequeno túmulo. Asta também tinha entrado em contato para perguntar se podia participar, mas eles não permitiram. Queriam ficar sozinhos. Em vez disso, pediram que tomasse conta de Albin enquanto estavam na igreja. E ela concordou com prazer.
A segunda coroa era da avó materna de Charlotte, Agnes. Sem saber muito bem por que, Charlotte se recusou a deixá-la perto do caixão e mandou que a jogassem fora. Sempre achou que Lilian havia puxado a mãe e, de alguma forma, sabia instintivamente que o mal vinha dela.
Eles ficaram parados em silêncio ao lado do túmulo por muito tempo, com os braços ao redor um do outro. Depois se afastaram lentamente. Por um segundo, Charlotte parou diante do túmulo do pai. Ela deu um breve adeus. Pela segunda vez.
Na pequena cela, Lilian sentia-se segura pela primeira vez em muitos anos, por mais estranho que isso pudesse parecer. Estava deitada de lado na cama estreita, respirando calma e profundamente. Não entendia a frustração das pessoas que ficavam repetindo todas aquelas perguntas. Que diferença fazia por que ela tinha feito aquilo? O resultado era o que importava. Era assim que sempre tinha sido. Mas, de repente, agora eles estavam interessados na razão por trás das ações, em alguma lógica que acharam que poderiam encontrar, em explicações e verdades.
Ela podia ter falado sobre o porão. Sobre o perfume pesado e doce da mãe. Sobre a voz tão sedutora quando dizia “querida”. E podia ter contado sobre o gosto ruim e seco em sua boca, sobre o monstro que vivia dentro dela, ainda vigilante, ainda pronto para agir. Sobretudo podia ter falado de suas próprias mãos, tremendo de ódio, não de medo, cuidadosamente colocando o veneno na xícara do papai e depois mexendo com força, vendo como se dissolvia e desaparecia no chá quente. Tinha sorte que ele sempre colocasse muito açúcar.
Essa tinha sido a primeira lição. Não acreditar em promessas. Mamãe tinha prometido que tudo ia ser diferente. Quando seu pai desaparecesse, elas teriam uma vida completamente diferente. Juntas, próximas. Sem porão, sem medo. Mamãe iria tocá-la, acariciá-la, chamá-la de “querida” e nunca deixaria que nada ficasse entre elas. Mas promessas eram quebradas tão facilmente quanto eram feitas. Tinha aprendido isso naquele momento e nunca esqueceria. Às vezes, deixava sua mente pensar que as coisas que sua mãe tinha contado sobre seu pai poderiam não ser verdade. Mas imediatamente descartava essa ideia, enterrando-a nas profundezas de sua alma. Não conseguia nem pensar nessa possibilidade.
Tinha aprendido outra lição importante também. Nunca se deixar abandonar novamente. Papai a abandonara. Mamãe a abandonara. Depois, tinha passado de uma família adotiva para outra, como uma mala, e todos a abandonaram também, ainda que apenas pela falta de interesse.
Quando ela visitou sua mãe na prisão em Hinseberg, já tinha tomado uma decisão. Ia criar uma vida nova, uma vida na qual tivesse controle de tudo. O primeiro passo tinha sido mudar seu nome. Nunca mais queria ouvir aquele nome que gotejava como veneno nos lábios de sua mãe. “Mary. Maaaryyy.” Quando ficava sentada no escuro de seu porão, aquele nome ecoava entre as paredes, fazendo-a se curvar e se enrolar como uma bola.
Escolheu o nome Lilian porque parecia bem diferente de Mary. E porque a fazia pensar numa flor, frágil e etérea, mas ao mesmo tempo forte e flexível.
Também tinha trabalhado duro para mudar sua aparência. Com disciplina militar, ela tinha se negado tudo que comia com voracidade antes, e com uma rapidez espantosa, os quilos desapareceram de seu corpo até que sua obesidade tornou-se apenas uma lembrança. E nunca mais tinha se permitido ser gorda. Cuidara escrupulosamente para que seu peso não aumentasse um único quilo e mostrava sua raiva por aqueles que não tivessem o mesmo cuidado, como Charlotte. O peso da filha a deixava desgostosa, trazendo de volta lembranças de uma época em que não queria pensar. Qualquer coisa balofa, solta e frouxa criava um sentimento de raiva, e às vezes era preciso lutar contra o desejo de arrancar a carne do corpo de Charlotte com as próprias mãos.
Eles tinham perguntado se ela ficou desapontada por Stig ter sobrevivido. Ela não respondeu. Para ser honesta, não sabia o que responder. Não era como se tivesse planejado o que tinha feito. Tudo tinha acontecido naturalmente, de alguma forma. E tudo tinha começado com Lennart. Com sua conversa sobre como poderia ser melhor para os dois se separarem. Ele tinha dito algo sobre o fato de, depois que Charlotte se mudou, ter descoberto que não havia mais tantas coisas em comum entre eles. Lilian não tinha certeza se foi naquele momento, com aquelas primeiras palavras, que tinha decidido que seu marido devia morrer. Sentia que era algo que estava destinada a fazer. Tinha encontrado a lata de veneno de rato quando compraram a casa. Não conseguia explicar por que nunca a jogara fora. Talvez porque soubesse que poderia ser usada algum dia.
Lennart nunca tinha feito nada com pressa em toda a sua vida, então sabia que demoraria para que se mudasse. Precisava começar com pequenas doses, suficientes para que não morresse imediatamente, mas grandes a ponto de deixá-lo seriamente doente. Gradualmente, sua saúde piorou. Ela gostava de cuidar dele. Não se falava mais em separação. Ao contrário, agora ele sentia gratidão quando ela o alimentava, trocava suas roupas e limpava o suor de sua testa.
Às vezes, sentia o monstro se mexendo novamente dentro dela. Perdendo a paciência.
Nunca havia pensado que poderia ser descoberta, por pior que fosse. Tudo aconteceu tão naturalmente, e um curso de eventos se sucederia ao outro. Quando Lennart recebeu o diagnóstico de síndrome de Guillain-Barré, ela tratou isso como um sinal de que tudo estava no caminho certo. Ela estava fazendo o que devia fazer.
No longo prazo, ele a deixaria de qualquer forma. Mas seria nos termos dela – com a morte. A promessa que fez para si mesma, de que ninguém nunca a abandonaria, ainda estava de pé.
E depois, conheceu Stig. Ele era tão leal, tão confiante por natureza que Lilian tinha certeza de que nunca pensaria em deixá-la. Fazia tudo que ela mandava, até aceitou ficar na casa onde tinha vivido com Lennart. Era importante para ela, tinha explicado. Era seu lar. Comprada com o dinheiro da venda da casa que tinha obrigado sua mãe a passar para o seu nome, a casa onde tinha vivido até se casar com Lennart. Depois, para sua grande tristeza, foi forçada a vendê-la. Não havia espaço suficiente. Mas ela sempre se arrependeu, e a casa em Sälvik tinha sido uma péssima substituta. Mas pelo menos era dela. E Stig tinha entendido isso.
No final, com o passar dos anos, começou a perceber sinais de descontentamento nele. Era como se ela não conseguisse ser suficiente para alguém. Estavam sempre querendo outra coisa, algo melhor. Mesmo Stig. Quando ele começou a falar sobre como estavam se afastando, sobre sentir que precisava recomeçar sozinho, ela não tomou nenhuma decisão consciente. Suas ações simplesmente seguiram suas palavras tão naturalmente como as terças seguem as segundas. E foi assim que ele, exatamente como Lennart, tinha sentido gratidão por ela, porque era quem cuidava dele e o amava. Dessa vez, também, ela sabia que a separação seria inevitável, mas isso não importava desde que controlasse o ritmo e determinasse o momento.
Lilian se virou para o outro lado e descansou a cabeça nas mãos. Olhou para a parede, enxergando apenas o passado. Não o presente. Não o futuro. A única coisa que contava era o tempo que tinha passado.
Ela percebeu o ódio em seu rosto quando perguntaram sobre a garota. Mas nunca entenderiam. A criança era tão impossível, tão intratável, tão desrespeitosa. Foi só depois que Charlotte e Niclas vieram morar com ela e Stig que Lilian percebeu como a situação era ruim. Como a garota era má. Ficara chocada no começo. Mas depois tinha visto a mão do destino nisso. A garota era como Agnes. Talvez não em aparência, mas Lilian tinha visto a mesma maldade nos olhos. Porque foi isso que percebeu em todos aqueles anos. Que mamãe era uma pessoa má. Ela gostou de ver como o tempo a destruiu aos poucos. Ela tinha colocado a mãe numa casa de repouso ali perto. Não porque podia visitá-la, mas pela sensação de controle que lhe dava negar as visitas que sua mãe tanto queria. Nada a deixava mais feliz do que saber que sua mãe vivia ali, tão perto e tão longe, apodrecendo por dentro.
Mamãe era má, e a garota também. Lilian tinha visto como Sara estava aos poucos destruindo a família e a frágil relação que mantinha o casamento de Niclas e Charlotte. Suas explosões constantes e pedidos de atenção estavam desgastando os dois e logo não veriam outra solução exceto a separação. Ela não deixaria que isso acontecesse. Sem Niclas, Charlotte não seria nada. Mãe solteira de crianças pequenas, sem educação, gorda, sem o respeito que acompanha um marido bem-sucedido. Algumas pessoas na geração de Charlotte provavelmente diriam que essa visão era obsoleta, que não fazia mais sentido obter status social através do casamento. Mas Lilian sabia o que estava fazendo. Na cidade onde vivia, status ainda era importante, e ela gostava que fosse assim. Sabia que as pessoas, quando falavam dela, geralmente acrescentavam:
– Lilian Florin? Oh, sim, o genro dela é médico, sabia?
Isso lhe dava um certo respeito. Mas a garota ia destruir tudo isso.
Então, ela fez o que devia. Percebeu quando Sara voltou, antes de ir para a casa de Frida, porque tinha esquecido seu boné. Na verdade, Lilian não sabia por que tinha voltado. Mas, de repente, a oportunidade se apresentou. Stig estava dormindo profundamente por causa dos remédios e não acordaria nem se uma bomba explodisse na casa; Charlotte estava deitada exausta no porão, e Lilian sabia que poucos sons chegavam ali; Albin estava dormindo também, e Niclas estava no trabalho.
Fora mais fácil do que ela esperava. A garota achou que era um jogo divertido, poder tomar banho de roupa. Claro que ela tinha lutado quando Lilian a fez comer Humildade, mas não era tão forte assim. E segurar a cabeça da garota embaixo da água não foi nenhum problema. A única parte complicada tinha sido levá-la até o mar sem ser vista. Mas Lilian sabia que tinha o destino a seu lado e que não podia fracassar. Ela envolveu Sara em um cobertor, carregou-a nos braços e depois a levou até a água e ficou vendo como afundava. Só demorou alguns minutos e, como ela havia pensado, a sorte estava a seu lado. Ninguém tinha visto nada.
O segundo incidente fora um mero impulso do momento. Quando a polícia começou a perseguir Niclas, ela sabia que era a única que podia salvá-lo. Tinha de criar um álibi para ele, e por acaso viu a criança dormindo do lado de fora da loja de Järnboden. Era terrivelmente irresponsável deixar uma criança assim. A mãe dela realmente merecia uma lição. E Niclas estava no trabalho, ela tinha verificado isso, então a polícia seria forçada a eliminá-lo da investigação.
Seu ataque contra a filha de Erica também tinha servido como uma lição. Quando Niclas mencionou que Erica tinha dito que estava na hora de ele e Charlotte conseguirem uma casa própria, a fúria que Lilian sentiu foi tão forte que ela viu tudo vermelho. Que direito Erica tinha de ficar dando conselhos? Que direito ela tinha de interferir na vida deles? Tinha sido fácil carregar a criança dormindo para o outro lado da casa. As cinzas tinham a intenção de ser um aviso. Ela não ousara ficar para ver a cara de Erica quando abrisse a porta da frente e descobrisse que o bebê tinha desaparecido. Mas ficou imaginando isso, e a imagem a deixou feliz.
Ficou com sono ali, deitada na cama, e fechou os olhos. Atrás das pálpebras, via uma dança surreal. Papai, Lennart e Sara dançando num círculo. Ao longe via o rosto de Stig, cansado e magro. Mas no centro do círculo estava mamãe. Ela dançava com o monstro num abraço íntimo, apertado, de rosto colado. E mamãe sussurrava: Mary, Mary, Maaaryyy...
Depois a escuridão tomou conta.
Agnes estava sentindo muita pena de si quando se sentou perto da janela na casa de repouso. Do lado de fora, a chuva batia na janela, e ela quase achava que podia senti-la em seu rosto.
Não entendia por que Mary não vinha visitá-la. De onde vinha todo aquele ódio, todo aquele rancor? Ela não tinha feito sempre tudo que podia pela filha? Não tinha sido a melhor mãe possível? Nem tudo que tinha dado errado era culpa dela, afinal de contas. Outras pessoas tinham responsabilidade. Se tivesse tido um pouco mais de sorte, as coisas teriam sido diferentes. Mas Mary não entendia isso. Acreditava que Agnes era a culpada por sua infelicidade, e não importava quanto tentasse explicar, a garota se recusava a ouvir. Tinha escrito longas cartas na prisão, explicando em detalhes por que não tinha sido culpa dela, mas a garota não quis entender de maneira nenhuma, como se tivesse se fechado a explicações.
A injustiça fazia os velhos olhos de Agnes se encherem de lágrimas. Ela nunca tinha recebido nada de sua filha, apesar de ela mesma ter dado tudo que podia. Tudo que Mary via como nojento e horrível era feito para seu próprio bem. Não era verdade que Agnes gostava de punir sua filha ou dizer que ela era gorda e feia. Ao contrário. Não, era doloroso ser tão dura, mas era seu dever como mãe. E produzira resultados. Mary não tinha finalmente tomado jeito e perdido toda aquela gordura? Tinha sim. E era tudo graças à sua mãe, apesar de nunca ter recebido nenhum crédito.
Uma forte rajada de vento do lado de fora fez a janela bater. Agnes pulou em sua cadeira de rodas, mas depois riu sozinha. Estava ficando com medo nessa idade? Ela, que nunca tinha sentido medo de nada. Exceto de ser pobre. Os anos como a esposa do escultor a tinham ensinado isso. O frio, a fome, a sujeira, a degradação. Tudo isso a deixara morrendo de medo de voltar a ser pobre. Ela acreditara que todos os homens nos Estados Unidos seriam uma passagem para longe da miséria, depois Åke, depois Per-Erik. Mas eles a traíram. Todos quebraram suas promessas, assim como seu pai. E todos tinham sido punidos.
No final, foi ela quem teve a última palavra. A caixa de madeira azul e seu conteúdo tinham servido como uma lembrança de que só ela controlava seu próprio destino. E que qualquer coisa era permitida.
Tinha guardado as cinzas na caixa na noite anterior à partida para os Estados Unidos. Protegida pela escuridão, foi até o local do incêndio e juntado as cinzas do lugar onde sabia que Anders e os garotos estavam dormindo. Na época, não sabia por que estava fazendo isso, mas com o passar dos anos, começou a entender sua ação impulsiva. A caixa de madeira com as cinzas serviam para lembrá-la como era fácil fazer algo para conseguir seus objetivos.
O plano tinha sido armado aos poucos em sua mente com a aproximação de sua partida para os Estados Unidos. Ela sabia que seu destino seria selado se partisse como uma vaca leiteira com a família presa a seus pés como um peso morto. Mas sozinha teria a chance de criar um futuro diferente para si. Um futuro no qual a pobreza seria somente uma memória distante e desagradável.
Anders nunca soube o que o acertou. A faca entrou em suas costas até o cabo, fundo em seu coração, e ele caiu como um pedaço morto de carne em cima da mesa da cozinha.
Os garotos estavam dormindo. Ela entrou em silêncio no quarto dos filhos, tirou o travesseiro com cuidado e colocou sobre a cabeça de Karl. Depois pressionou com todo o seu peso. Foi tão fácil. Ele chutou e lutou por um tempo, mas nenhum som escapou de sua boca, por isso Johan continuou dormindo tranquilamente enquanto o irmão gêmeo morria. Depois foi a vez dele. Ela repetiu o procedimento, e dessa vez foi um pouco mais difícil. Johan sempre fora mais forte do que Karl, mas nem ele conseguiu lutar por muito tempo. Logo estava deitado sem vida ao lado do irmão. Com olhos vidrados, os dois ficaram ali, olhando para o teto, e Agnes sentiu-se estranhamente vazia. Era como se estivesse colocando as coisas no lugar. Eles nunca deveriam ter nascido e agora tinham morrido.
Mas antes que pudesse seguir com sua própria vida, havia mais uma coisa que ela precisava fazer. No meio do quarto juntou uma grande pilha de roupas dos garotos e foi até a cozinha. Tirou a faca das costas de Anders e arrastou-o até o quarto dos garotos. Era tão grande e pesado que ela ficou totalmente suada quando finalmente o deixou no chão. Pegou um pouco de álcool que tinham na casa, jogou por cima da pilha de roupas e depois acendeu um cigarro. Com prazer, deu algumas baforadas antes de colocar com cuidado o cigarro aceso perto das roupas encharcadas com álcool. A esperança era que estivesse a uma boa distância antes que tudo se incendiasse completamente.
As vozes no corredor da casa de repouso tiraram Agnes de seus pensamentos. Ela esperou, tensa, até passarem, torcendo para que não viessem atrás dela, e não relaxou enquanto não percebeu que as vozes desapareciam no corredor.
Não foi preciso fingir que ficou chocada quando voltou de sua caminhada e viu o fogo. Nunca tinha imaginado que queimaria tão forte e tão rápido. Toda a casa tinha sido destruída, mas pelo menos tudo tinha funcionado de acordo com o plano. Ninguém, em nenhum momento, suspeitou que Anders e os garotos podiam ter morrido de outra forma que não fosse pelo incêndio.
Nos dias seguintes, Agnes sentiu-se tão maravilhosamente livre que às vezes precisava olhar para seus pés, a fim de ter certeza de que eles estavam tocando o chão. Por fora, tinha mantido o fingimento, dando uma de viúva e mãe sofredora, mas por dentro estava rindo de como era fácil enganar aquelas pessoas estúpidas e simples. E o mais idiota de todos era seu pai. Ela estava com muita vontade de contar o que tinha feito, mostrar o crime para ele como se fosse um escalpo sangrento e dizer:
– Está vendo o que você fez? Está vendo o que me levou a fazer quando me baniu como uma prostituta da Babilônia naquele dia?
Mas ela achou melhor não fazer nada. Não importava quanto quisesse compartilhar a culpa com ele, era melhor aceitar sua compaixão.
O plano todo tinha funcionado tão bem. Tinha saído exatamente como ela queria e esperava, e mesmo assim o azar estava sempre rondando. Os primeiros anos em Nova York tinham sido tudo que ela sonhava quando se sentava na casa do cortador de pedras, imaginando uma vida diferente para si. Mais tarde, tinha perdido de novo a vida que merecia. E uma injustiça se seguiu à outra.
Agnes sentia a raiva crescer em seu peito. Ela queria se livrar dessa velha pele repugnante. Sair dessa crisálida e surgir como a adorável borboleta que já tinha sido. Podia sentir o cheiro de velhice em seu nariz e teve vontade de vomitar.
Um pensamento consolador surgiu em sua mente: talvez pudesse pedir para sua filha mandar a caixa azul. Mary não tinha nenhum uso para ela, e Agnes gostaria de tocar em seu conteúdo mais uma vez, uma última vez. O pensamento a animou. Ela pediria que a filha lhe trouxesse a caixa. Se sua filha trouxesse pessoalmente, talvez até contaria o que havia ali dentro. Para sua filha, sempre tinha dito que era Humildade quando a obrigava a comer colheradas no porão. Mas era realmente Coragem que queria dar para a garota. A força de fazer o que fosse necessário para conseguir o que queria. Acreditava que tinha conseguido quando a garota obedeceu seus desejos de se livrar de Åke. Mas, depois disso, tudo havia desmoronado.
Agora Agnes queria muito recuperar suas cinzas. Ela esticou uma mão trêmula e enrugada para o telefone, mas parou no caminho. Então sua mão caiu de lado e sua cabeça, para a frente, com o queixo batendo no peito. Os olhos miravam vazios para a parede e a saliva começou a cair pelo canto da boca.
Uma semana se passara desde que Patrik e Martin haviam prendido Lilian no hospital. Tinha sido uma semana cheia de alívio e frustração. Alívio por terem encontrado a assassina de Sara, mas frustração por ela ainda se recusar a contar por que tinha feito aquilo.
Patrik colocou o pé em cima da mesa de café e se inclinou para trás com as mãos fechadas atrás da cabeça. Tinha conseguido passar mais tempo em casa essa semana, o que diminuiu um pouco seu sentimento de culpa. Além disso, as coisas estavam começando a ficar mais tranquilas também. Com um sorriso, observava como Erica embalava resoluta o carrinho com Maja por todo o corredor. Agora ela tinha aprendido a técnica e demorava menos de cinco minutos para que Maja dormisse.
Cuidadosamente, Erica empurrou o carrinho até o escritório e fechou a porta. Isso significava que Maja estava dormindo e que eles teriam pelo menos uns quarenta minutos de paz e silêncio juntos.
– Pronto, agora ela está dormindo – disse Erica, acomodando-se ao lado de Patrik no sofá. A maior parte de seu mau humor tinha desaparecido, apesar de ele ainda levar algumas pancadas se Maja estivesse num dia complicado. Mas eles estavam indo na direção certa como pais e ele queria fazer sua parte para melhorar a situação ainda mais. O plano que desenvolvera na semana anterior tinha funcionado e o último detalhe prático tinha sido feito ontem, com a gentil assistência de Annika.
Ele estava prestes a abrir a boca quando Erica disse:
– Oh, cometi o erro de me pesar hoje de manhã.
Ela ficou em silêncio e Patrik sentiu o pânico tomar conta. Deveria dizer algo? Não deveria? Discutir sobre o peso de uma mulher era como caminhar num campo minado emocional. Ele seria forçado a avaliar cuidadosamente cada lugar antes de escolher onde colocar os pés.
Erica não tinha dito nada mais, e ele achava que estava esperando algum comentário seu. Procurou ardentemente uma resposta correta e sentiu a boca ficar seca quando disse, com cuidado:
– É mesmo?
Ele queria dar um tapa na própria cabeça. Essa era a coisa mais inteligente que podia pensar para dizer? Mas até agora parecia ter evitado as minas, e Erica continuou com um suspiro:
– É, ainda estou pesando uns 10 quilos a mais do que antes de engravidar. Pensei que perderia esses quilos extras mais rápido.
Com muito cuidado, ele tentou encontrar um local mais seguro para pisar. Finalmente, disse:
– Maja ainda não está tão grande. É preciso ser paciente. Tenho certeza de que esses quilos vão desaparecer com a amamentação. Você vai ver, quando ela tiver seis meses, não vai ter nenhum quilo extra. – Patrik prendeu a respiração enquanto esperava a reação de Erica.
– É, acho que você está certo – disse Erica, e ele deu um suspiro de alívio. – Só me sinto muito pouco sexy. Minha barriga está caindo, meus peitos estão enormes e pingando leite, estou sempre suando, sem falar nessas malditas espinhas que comecei a ter por causa dos hormônios...
Ela riu como se tivesse contado uma piada, mas ele podia sentir como o tom subjacente era desesperado. Erica nunca se preocupara muito com sua aparência, mas ele entendia que deveria ser complicado lidar com isso quando seu corpo e sua aparência tivessem mudado tanto num intervalo relativamente curto. Ele estava tendo dificuldades em aceitar a barriga de meia-idade que se desenvolveu com a de Erica. Não tinha diminuído nem um pouco, mesmo depois que Maja nasceu.
Com o canto do olho, viu Erica enxugar uma lágrima e de repente soube que nunca teria uma oportunidade melhor.
– Fique sentada aqui, não se mova – ele disse excitado e levantou do sofá. Erica olhou curiosa, mas obedeceu. Sentia os olhos dela acompanhando-o enquanto procurava algo no bolso do casaco, que escondeu bem antes de voltar para perto dela.
Com um gesto galante, ele se ajoelhou diante dela e solenemente pegou sua mão. Viu que a ficha já tinha caído e esperava que fosse alegria o que via nos olhos dela. Pelo menos, tinha atraído toda a sua atenção. Ele limpou a garganta, já que tinha ficado repentinamente nervoso.
– Erica Sofia Magdalena Falck, você me concede a honra de me transformar num homem honesto e se casar comigo?
Ele não esperou pela resposta antes de, com dedos trêmulos, tirar a caixa que estava escondida no bolso. Com algum esforço, abriu a caixa de veludo azul, esperando que os esforços combinados com Annika tivessem encontrado um anel de que Erica gostasse.
Suas costas estavam começando a doer, ajoelhado ali, e ele começava a se sentir alarmado, porque o silêncio ainda não tinha sido quebrado. Percebeu que nem imaginara a possbilidade de ela dizer não, mas agora um sentimento de ansiedade tomava conta dele e desejava não ter sido tão convencido.
Então Erica abriu um enorme sorriso, e as lágrimas começaram a escorrer por seu rosto. Estava rindo e chorando ao mesmo tempo quando esticou a mão para que ele pudesse colocar o anel.
– Isso é um sim? – ele perguntou, sorrindo também. Ela simplesmente assentiu.
– E eu só pediria em casamento a mulher mais linda do mundo, sabe disso – ele completou, esperando que ela ouvisse a sinceridade em sua voz e não achasse que estava mentindo.
– Ah, seu... – ela disse, procurando o epíteto correto. – Sabe, às vezes você sabe exatamente o que deve falar. Não sempre, só às vezes. – Ela se inclinou e deu um longo e doce beijo nele, mas depois se afastou para admirar o anel.
– É fantástico. Duvido que você tenha escolhido sozinho.
Por um instante, ele se sentiu um pouco insultado por ela ter duvidado de seu gosto e estava prestes a dizer “claro que escolhi”. Mas depois pensou melhor e percebeu que ela estava certa.
– Annika foi minha conselheira. Então, tudo bem? Tem certeza? Não quer trocar? Esperei você ver para fazer a gravação, caso não gostasse.
– Adorei – disse Erica com emoção, ele conseguiu sentir que estava falando sério. Ela se inclinou e deu outro beijo, dessa vez mais longo e mais íntimo.
O terrível som do telefone interrompeu-os e Patrik sentiu sua irritação aumentar. Isso é o que chamo de mau momento! Ele se levantou e foi atender, soando um pouco mais ríspido do que o necessário.
– Sim, é o Patrik.
Ficou ouvindo por um momento antes de voltar-se para Erica. Ela ainda estava sentada, sorrindo, admirando a mão com o anel. Quando percebeu que Patrik a observava, abriu um sorriso, que desapareceu quando ele não sorriu de volta.
– Quem é? – perguntou, e havia um tom de ansiedade em sua voz.
A expressão de Patrik ficou mais séria quando respondeu:
– É a polícia de Estocolmo. Querem falar com você.
Ela se levantou lentamente e foi até o telefone.
– Sim, é Erica Falck. – Mil apreensões estavam contidas nessa simples declaração.
Patrik, tenso, ficou observando enquanto ela ouvia o que o homem do outro lado tinha para dizer. Com uma expressão incrédula no rosto, Erica se virou para Patrik e falou:
– Estão dizendo que Anna matou o Lucas.
E deixou cair o telefone. Patrik segurou-a a tempo, antes que caísse no chão.
Camilla Läckberg
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