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O CORVO DE WOTAN / Mário Escoto
O CORVO DE WOTAN / Mário Escoto

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CORVO DE WOTAN

 

             BRUXOS DO AMANHECER

 

  1. XV Os alanos, os vândalos e os suevos entraram nas Espanhas no ano 447 da era. Uns historiadores apontam como data o dia 4 das calendas, outros o dia 3 dos Idos de Outubro. Calhou numa terça feira, no oitavo consulado de Honório e no terceiro de Teodósio, filho de Arcádio.

                           Crónica de Idácio

"a espada descrevia na maça do punho uma grossa circunferência de metal interrompida nas extremidades da mesma por dois dragões que se encaravam de frente. Magnífica espada, que já foi de seu pai. Este, uma vez, disse-Lhe que já fora de seu avô. Mas Malho duvidava, dado que a mesma não tinha tantos anos e seu pai, se a usou, foi somente numa batalha, talvez nos montes Nerbásios. Seu copo estava decorado com motivos rúnicos e sua lâmina de dois gumes começava por ser larga na base e ia-se estreitando, acabando numa extremidade letal e mortal. Resplandecia, a velha amiga, puro aço hispânico. Deu-lhe uma tricla, obrigando o puro metal prateado a tilintar. Lembrava-se agora do alano lhe ter dito: A espada é a tua amante, a tua mulher, a tua mãe na guerra.

Tomou-a nas mãos, apertando forte e admirando as intrincadas espirais gravadas na lâmina feitas por um imigrado artífice bretão.

- Tua mulher. Tua mulher deixada a sofrer enquanto tu partias em busca de oiro e glória. - Pareceu-lhe ver o reflexo de Nabia na lâmina prateada. Guardou-a no baú, juntamente com o espólio. Saiu da redonda cabana para o amanhecer, sua aldeia estava deserta, os poucos homens a apascentar o gado, as poucas mulheres a lavarem no ribeiro, mais abaixo. Homens em cima, mulheres em baixo. Riu-se com seu pensamento. Dirigiu-se a uma das verdes falésias para aí exercitar-se com a flauta. Enquanto caminhava na cerrada floresta, ouvia os risos das crianças, brincando às escondidas, ora à sua frente, ora detrás de si.

- Puta da canalha! Tenham cuidado com as falésias! - avisava Malho. Por fim, chegou à extremidade da falésia, lá ao fundo, oculto entre a urze e o musgo. O ribeiro corria, desde as alturas da serra até morrer no Catavo. Sentou-se na saliência de um penedo. Notas difusas saíam agora de sua flauta de pastor, tinha planos de, depois da guerra, formar uma banda de gaiteiros para casamentos e festas, mas já via que tinha que praticar muito, muito mesmo. O ar indiciava trovoada, era um calor opressivo. O vento uivava por entre os cedros, pinheiros, carvalhos, sobreiros.

A canção do vento, a doce canção do vento. Retornou à cabana, deixando a intempérie formar-se lá fora. Enquanto acendia a lareira central e ouvia uma forte chuvada desabar na terra, Deidre entrou de repente, cabelos cor de mel apanhados numa coifa, repas a direito, olhos esverdeados como os dele.

- Ufa! Que chuvada, e tão de repente! - Pôs-se como um cão a sacudir a chuva do seu sago verde musgo.

- Não atires água para o fogo, raios! - ralhou Malho.

- Sempre tão simpático, não mudaste nada - constata Deidre, atirando de propósito com as mãos salpicos de água para o semblante do búrio.

- Cuidado que apagas o fogo! - torna a ralhar Malho. Deidre agachou-se pondo-se ao nível dele, seu rosto era parcamente iluminado pela ainda fraca fogueira.

- Estás diferente - constata Deidre, pondo-lhe a cálida mão no duro semblante. Duas cicatrizes decoravam agora a cara do búrio. Uma, na face esquerda, da orelha até ao nariz, rasgava sua bochecha; outra, na face direita, ia desde a densa barba até à negra olheira. Sua terna mão acariciava-as, enquanto seus olhos perscrutavam uma enigmática falcata tatuada na sua testa.

- Estás mesmo diferente - remata a mulher. Seus dedos agora remexiam seus secos lábios, contemplando-o. Durante dois anos guardou sua imagem em seu áspero coração. Ele agora ali estava, com o noivado desfeito, era tudo o que ela queria. É agora ou nunca. Ofereceu a palma da mão aos lábios do búrio. Malho vacilou com a investida de Deidre. A chuva não parava e o vento uivava por entre as frinchas da porta de carvalho. Fechou os olhos e não resistiu a beijar a suave pele da palma da mão dela. Acariciavam-se um ao outro, tacteando os pescoços, revolvendo os cabelos. Os dentes de Deidre mordiam sua orelha, sua lânguida língua afagava seu tímpano, provocando-lhe aquela sensação que experimentou com as bailarinas de Cartago. Desviou o rosto e Nabia surgiu-lhe na mente como um relâmpago, desaparecendo em seguida. Ficou imóvel, não respondendo às carícias de Deidre.

- O que foi? Lembraste-te da outra? - Malho ficou mudo, quem cala consente, seu olhar vazio recaía sobre os toros mal encaixados. Deidre levanta-se furiosa, abre a velha porta de carvalho deixando entrar a chuvada da intempérie.

 

- POIS FICA A PENSAR NELA, PASPALHO! - Bate com violência a porta. Malho hesita em chamá-la. Por fim vai arrumar os toros. Era assim que procedia, preocupava-se com pequenas coisas para não ocupar a cabeça com as grandes decisões que teria que tomar, tais como procurar sua antiga noiva. Mas ainda não estava curado dos males da guerra, ainda ouvia gritos do fundo do seu inferno que não o deixavam dormir à noite. Tinha que procurar o feiticeiro, apesar de se ter convertido ao cristianismo depois da campanha. De facto, se não fosse o baptismo, ainda continuaria a andar nu e delirante nas poeirentas estradas da guerra. Foi Cristo que o livrou da loucura e estava-lhe grato por isso.

Um novo dia eclode, azul e calorento, diferente do de ontem. A trovoada limpou o tempo e a cabeça do búrio, afectada pela visita anterior. Pegou no machado e foi cortar lenha. Tinha que subir a escarpada encosta, dado que a inclinada floresta onde viviam era sagrada. Dantes, no tempo de seu pai, cavalos brancos viviam soltos nesta floresta e vinham feiticeiros de todo o lado só para interpretar os presságios que deixavam. Agora, com o rei cristão, já poucos feiticeiros existem e Abracax estava a ficar senil. Daí seu receio em consultá-lo. Evitou o habitual trilho das cabras, dado que não lhe apetecia falar com ninguém, e foi saltando de fraga em fraga, de penedo em penedo. Já cansado, escolheu um pequeno pinheiro tombado pelo vento. No sopé do monte vizinho um pastor acena-lhe com o cajado. Malho responde-lhe acenando com o machado. As cutiladas enterravam-se agora na lenha verde, de tronco nu, os poros abriam-se para que o suor do esforço saísse. As cutiladas tornavam-se familiares, enterrava o machado agora num recém- nascido. A pele imaculadamente branca e a tenra carne abriam-se perante o ferro impiedoso. O sangue virgem espirrava-lhe na cara. De repente, um grito obrigou-o a parar. O alano tentava controlar uma moçoila. O búrio deixou a criança inerte com o corpo aberto e tombou em cima da moçoila amarrando-lhe os braços. Ouviu o alano dizer, amarrado aos pés da virgem: Força, búrio! Ofereço-ta toda!

Os badalos das cabras despertam Malho do pesadelo, estava com suores frios olhando seu machado enterrado no tronco do jovem pinheiro. Raios! Precisava de Abracax, senão enlouqueceria outra vez. Pegou na pouca lenha que juntou e iniciou a descida da escarpa, sentindo o peso, em seus ombros, das duas vítimas que o atormentam.

Alta noite, uma coruja pia. Não deveria ligar, afinal era cristão e não mais pagão. "Que dia é hoje? Sexta, dia de Frigg? Que gelo! " O búrio aconchega seu manto listrado. "Onde estará Abracax? Está escuro como breu. Não vejo nada! " O búrio hesita. Não deve chamar alto pelo mago, pois ele não virá, nem deve fazer fogo para afastar os lobos. Por fim, desesperado e cansado, desenha uma estrela de cinco pontas no chão, com sinais rúnicos nas pontas, cospe na estrela e passa- lhe o cu por cima, ciente que Abracax estava a ser convocado. Aguardou uma hora e decidiu repetir o ritual.

- Pára! Que isso dá-me dores de cabeça! - ordena Abracax, surgindo do meio da negritude e apagando a estrela com os pés. Os dois mal se viam, a lua estava oculta. Ainda assim Malho sentiu o mago perscrutar-lhe o peito a ver se a cruz de Cristo balançava em seu pescoço. Malho, diplomaticamente, deixou o grosso crucifixo em casa, e envergava agora seu torque, seu amado torque.

- Devias ter vergonha de usar isso, depois de tudo que fizeste.

- Ele leva a mão ao torque, ressentido da observação do feiticeiro.

- Vamos lá, segue-me!

 

Malho seguiu Abracax. Só que era extremamente difícil caminhar na escuridão, no vazio escuro, como era no princípio dos tempos. Estavam a subir, Malho seguia o feiticeiro pelo som, esperando não cair numa fenda ou escorregar num penedo. Seria uma longa queda e uma morte certa no fundo. Cada vez subiam mais. Estavam a afastar-se do seu território e a entrar nas hirtas terras dos geresianos. Normalmente Abracax atendia seus seguidores no alto dum monte, para estar mais perto dos Deuses. A extenuante subida tornava-se abrupta. Abracax não se preocupava em dar a mão ao búrio, cantarolava entre os dentes uma arcaica canção ariana de amor.

O meu amado, levou o vento

O meu amado, levou a guerra

O meu amado, levou o mar

O meu amado, agora, quer voltar Para os meus braços outra vez.

Malho lembrava-se dessa canção, era a canção de Nabia, estava sempre a cantá-la, como prenunciasse o futuro, o futuro no qual ele a encarcerou agora.

- Sim, ela ainda canta a canção. Mas, antes, era com alegria melancólica; agora, é com revolta e lágrimas nos olhos. Bem feito!

- Bem feito? Que queres dizer com isso? - pergunta Malho, tentando agarrar o feiticeiro na escuridão. Falhou-lhe um pé, cambaleia e cai para o abismo, suas mãos procuram a rocha, os dedos rasgam-se e as unhas quebram procurando uma saliência de apoio. Encontra-a, em queda, embatendo com a massa corporal no duro granito.

- Aii! Abracax, ajuda-me. - Os gritos das suas vítimas de guerra irrompem agora, bloqueando a mente do búrio. Gritos lancinantes de dor e lamento. O búrio estremece, mas suas mãos, como garras de ferro, permanecem imóveis. Os seus fantasmas começam a pressionar os ombros, fazendo peso para a queda.

- Meus ombros estão a ficar pesados! Abracax! Que queres? Que me converta outra vez? - Abracax desembainhara uma espada e picava com a ponta letal do mortal metal o vazio à volta da cabeça e ombros do extenuado búrio. Malho reconheceu a espada, a lua desocultada reflectia raios prateados e silenciosos na brilhante lâmina. O peso em seus ombros desapareceu, recuperou a agilidade de um gato, e, num esforço valente, subiu para a base da rocha, sem a ajuda de Abracax.

- És um colosso, vê-se bem que és filho de quem és...

- Não sabia que eras ladrão - comenta, mordaz, Malho, apontando para a sua espada, que já foi de seu pai.

- Eu não roubei a espada, ela é que veio ter comigo. - Malho não se surpreendeu. O mago consegue transubstanciar a matéria. Abracax atira a espada para o vácuo, perante o olhar estupefacto do búrio.

- Não te preocupes, ela irá ter ao lugar donde saiu. - Voltou as costas e seguiu caminho. O búrio deteve-se a ouvir a queda da arma. Nenhum som, sinal que se tinha eclipsado no ar.

Os sopés dos agrestes montes recebiam, desolados, os estranhos caminhantes. Os vultos das cabras montesas movimentavam-se serenos, como donos de todo o tempo do mundo. Aqui, no alto, o tempo deixa de ter sentido. A noite eterna impera e o sol é apenas um engodo de que os homens se vangloriam. Oh! Triste vaidade humana, o sol que te alumia é apenas passageiro. A noite, com a lua e as estrelas como testemunhas, essa sim é a rainha do mundo, do mundo e do que está por cima e por baixo dele.

- Pára com essas conjecturas esotéricas, ó "Corax"! - O bruxo chamou-lhe corax, o bruxo é um desvelador.

- Bem, estou a ver que ainda não atingi o segundo grauconstata Malho, ciente de que o mago perscruta sem dificuldade o seu interior.

- No dia em que o atingires, deixarás de estar desvelado.

- Como o irei saber, se nenhum Pater me disser?

-Ah Ah - sorri, de escárnio, Abracax. -Afinal, sei mais dessa ordem estrangeira do que tu mesmo, ó "Corax"! Não é preciso a cerimónia, nem a sagração do Pater para saber se atingiste o segundo grau. - Abracax deteve-se e apontou a estrela polar. - Tu próprio o saberás quando chegar a altura.

Donde nos situávamos, conseguíamos discernir as altas montanhas geresianas com seus cumes cobertos de neve, mesmo coladas a nós. Do outro lado, a amada terra búria estava imersa na escuridão. Abracáx procurava a anta dos sacrificios: uma enorme pedra cilíndrica, deitada na horizontal, sob a qual existia um buraco onde só cabia um homem, também deitado. A subida abrupta tinha aquecido o búrio. Agora, na desolação campestre da altitude, o frio reclamava seu lugar no corpo de Malho, o que, aliado à tenebrosa visão da anta, fazia tremer o bravo suevo.

- Oh, minha linda! - Abracax cospe na pedra, espalhando a saliva sobre a dura superficie rugosa, como afagando um cão. Firme até aos finais do tempo.

- Abracax, meu bom Abracax. Julgava que só os monges cristãos é que tinham uma concepção linear do tempo. Estás a trair o germanismo e a circularidade? - ironiza Malho, descrevendo com o dedo uma espiral no ar e terminando a espiral em

seu torque.

- Estás a ficar muito erudito - responde-lhe o mago.

- Alguma coisa aprendi com os monges, nas longas noites de

campanha em redor das fogueiras.

- Eu disse até aos finais do tempo, não disse até ao final do tempo.

- Mero jogo de palavras.

- Não, as palavras representam a realidade. Assim como os gestos - diz Abracax, apontando para o estreito e escuro buraco debaixo da anta.

- Dentro - ordena Abracax. Malho, com receio, tenta evitar a entrada.

- Mas é mesmo preciso que eu me deite?

- Sim, para te purificares.

 

Malho não podia voltar atrás. Olhou o negro túnel. Os arrepios na pele eram sucessivos, nem sabia a quem pedir ajuda, a Zio ou a Cristo. Meteu cuidadosamente os pés a medo no sepulcro ancestral. A terra estava húmida e fértil, meteu-a entre os lábios, sujando a testa com a mesma. O sepulcro, a morada final, a triste espera de algo, que apenas podemos pressentir ou indagar mas de que não temos nenhuma certeza. Lembrou-se dos alanos. Não acreditam em nada, apenas numa espada enterrada na terra. É impossível não acreditar em nada, repugna à cabeça do búrio. O pensar que existe algo depois da morte mantém os homens plenos de ilusão. A terra, apenas a terra, os vermes, apenas os vermes, o descanso total, apenas isso, nada mais... nada mais...

Fechou os olhos e deixou-se inerte, as lágrimas saíam em torrentes pelas pálpebras cerradas. Seria isto uma forma de purificação?

Sentiu Abracax a afastar-se. Por momentos, e apesar de estar gelado, sem sentir as pontas dos pés, encontrava-se finalmente em paz. Uma corrente de energia invadia-lhe lentamente todo o corpo. Esse excesso de corrente obrigou-o a abrir os olhos. Seu coração batia violentamente quase pulando do peito, levantou a cabeça, batendo violentamente na dura rocha. Agoniou com uma dor aguda no estômago e depois na barriga, iria vomitar, libertar o corpo da excessiva carne que consumiu durante o dia e do doce hidromel que bebeu. Tentou sair do buraco, arrastando o corpo como uma cobra. Tarde de mais, as cochas da lebre e o

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peito de galinha esguichavam da sua boca juntamente com a espuma do mel fermentado.

- AAI Aaai Que mal me sinto. - Conseguiu pôr a cabeça de fora, estava tonto, e o vómito escoava agora lentamente pelo seu queixo.

- Fora! Já chega. Já estás limpo, e os Deuses que habitam as estrelas já libertaram as nuvens. - Abracax encontrava-se em cima da pedra com um bastão e um cálice de prata. O búrio, a custo, saiu do buraco, indo-se deitar na anta, virado para as estrelas.

- Despe-te - ordena Abracax.

- O quê? Queres-me matar? - replica Malho.

- Não te sentiste bem no sepulcro? - argumenta Abracax.

- Sim, como há muito tempo não me sentia.

O ar era gélido. Deixou cair o manto listrado de lã. Custou-lhe imenso tirar o colete de pele de ovelha e despir as bragas quadri culadas.

- As botas também!

- Também?

- Também.

O frio fustigava-lhe os ossos e o sangue corria lentamente nas suas veias, quase o paralisando. O feiticeiro, aconchegado pela sua capa de urso, não esboçava nenhuma reacção ao sofrimento do búrio. Na ponta do seu bastão pontificava um corvo embalsamado.

- Parece dia, olha como os espíritos encarnados nos vêm ver. As cabras agora formavam um imperfeito círculo em redor do duo. Estavam estáticas mirando o desenlace dos acontecimentos.

- Sede testemunhas, hélusios Que Hel me oiça, entrego este cálice a uma alma perdida! - Abracax ergue o cálice às estrelas. Depois debruça-se sobre o búrio deitado de braços abertos para o infinito. Obriga-o a beber a mistura de vinho e mandrágora. Deixou-se inerte, mirando o corvo embalsamado, até que o mesmo agora ganhava vida esvoaçando. Malho seguiu-o, esvoaçando também. Perseguiram o dia, e o Sol Invictus apresentava-se com toda a sua força. Ultrapassaram as montanhas cantábricas e asturianas e embrenharam-se numa cruel tempestade no mar vasco, sem nunca perder de vista as costas da Bretanha, onde focas, que os antigos gregos confundiam com sereias, refugiam-se nos penedos. O vento os embalava, obrigando-os a seguir para uma ilha verde, donde os filhos galaicos descendem. O negro corvo iniciou a descida, obrigando Malho a acompanhá-lo. Sentia-se nu, nunca tinha voado, mas não tinha medo. Desceram. Numa encosta verde, recortada por uma falésia que encontra o mar, encontrou Nabia, apascentando os rebanhos. Como são ricas e felpudas as ovelhas aqui! Levantou voo, o corvo o aguardava, seguiriam para o Norte, para a terra das brumas. Era noite, estava frio e a garganta do búrio começou a ressentir-se... Fogueiras ponteavam debaixo deles. Sofreu uma queda abrupta, gritava enquanto descia vertiginosamente, estacou violentamente frente a um manan pintado. O manan gritou e cantou, tal como seus guerreiros pintados, preparados para a guerra. O búrio dançou a dança do fogo, juntamente com os espectros e espíritos convocados, o fogo ganhava vida e o corvo de Wotan desapareceu. Será que Wotan é fogo? Será que o Deus da guerra, da magia e da poesia encarna no fogo?

A dança inebriava o espectro do búrio, o fogo de Wotan o obrigou a ascender aos ares, deixavam a terra das brumas e o mar gelado arrastava-se debaixo dos seus pés, quebrando de cada vez que os dedos do suevo raspavam nele, e o fogo tão quente, e o fogo tão reconfortante! Fechou os olhos, mas alguém lhos obrigou a abrir, a terra novamente passava diante dos seus olhos, montanhas e planícies geladas, vales e semivales ocultos no nevoeiro. Parecia que estavam a recuar no tempo à medida que avançavam no etéreo ar.

Por fim, planavam sobre as gélidas estepes, e era um tempo antigo, sob eles caravanas de rudes homens e austeras mulheres procuravam fugir das estepes geladas. Seria este o povo antigo, os árias? Os combatentes dos atlantes? Agora para o Leste se dirigiam, cada vez mais rápido, à medida que recuavam no tempo. O Oriente abria-se agora. A neve deixou de existir e o fogo conduzia-o pelas copas de verdes, e grandes árvores. O calor era aniquilador. Viram bizarros animais com caudas compridas, e as gens vestiam-se de branco e tinham a tez incrivelmente morena, tal como os fundibulários númidas, todavia seus traços eram como os do búrio.

Um desfile, numa cidade de templos, imensos e enormes guarda-sóis coloridos e música ensurdecedora, animais enormes e cinzentos comandados no dorso por homens de turbante. Frontificando a coluna, estava um príncipe moreno com brincos de esmeraldas, o fogo acerca o búrio dele, tinha a cara de Malho, quiçá seu antepassado distante, o príncipe dum reino indiano, com a sua amada, a princesa Ganga-Grama. Malho tentou tocá-lo, não conseguiu, o efeito da mandrágora estava a passar; tentou mais uma vez, mas sua mão aberta ia ganhando contornos realistas, estava a amanhecer, lentamente, muito lentamente. Há quantos dias estaria ele ali, nu perante os deuses, numa viagem intemporal, ao fundo de si? Não sentia frio, mas também não sentia o corpo. Recuperou as vestes, calçou as botas e, de virilidade à mostra, foi descendo o monte. Mais abaixo, Abracax o aguardava.

- Quantos dias? - inquire Malho.

- Três dias. Andaste a viajar três dias - responde o mago.

- Viajar sem sair do sítio, aberto aos deuses.

- Tiveste muita sorte, muitos não regressam. - O mago pegava agora no queixo do suevo, tentando descortinar o que quer que fosse que a cara revelasse. Nada, mesmo nada. Será que Malho já é um velado?

- Então, já estou livre dos demónios?

- Tu mesmo o saberás. - "Será que já está velado? Não consigo ver para dentro dele, está fechado como uma rocha" - pensa Abracax.

- Vai para casa e abifa-te e agasalha-te. Leva isto. - O mago dá a Malho uma sacolinha contendo o pó da flor de lótus. O pó da flor de lótus, a droga egípcia dos mercenários romanos.

- Usa só se precisares - aconselha Abracax, descontente por não abrir a mente de Malho.

Começa a descer a encosta, todavia não sentia o corpo. A inactividade dos últimos três dias obrigou o corpo a hibernar e o efeito da mandrágora ainda não tinha passado. Via tudo a andar à roda, envergou apenas o manto listrado de lã, deixando cair o colete e as bragas no meio da inclinada natureza. As nuvens cerradas e negras filtravam a luminosidade. O amanhecer é um espaço de fronteira, e todos os espaços de fronteiras estão abertos aos três mundos: o dos vivos, o dos mortos e o dos deuses. O resto da mandrágora persistia em seu estômago, e com o acordar lento dos órgãos vitais a mandrágora seria expulsa. Só que a mandrágora dá sempre luta, sua semente é o sémen do homem, e o sémen quer sempre voltar ao lugar onde foi criado.

Malho agoniou, curvado, a traqueia avisa- o que o pesado alucinogéneo sairia às torrentes. E ele saiu, e Malho caiu, estacando num carvalho. Lá, improvisou uma cama de folhas secas. O carvalho era aberto no meio e ele enfiou a cabeça e os ombros na árvore que sustenta o mundo. Depois começaram os calores e as tonturas e os suores. Seu manto asfixiava-o. Retirou-o, finalmente estava como veio ao mundo, só e nu. Só e nu. Só e nu. Enquanto repetia estas palavras finais em seu sepulcro improvisado, seu instinto de corvo sentiu alguém a aproximar-se. Ergueu a cabeça a custo para a esquerda. Um fantasma ou um humano lentamente se acercava. Era um vulto feminino, com um sago escuro, cabelos ondulados, parecia que vagueava perdido, ao amanhecer, nos pés da montanha. "Meu Deus, não pode ser! É Nabia! É Nabia que se aproxima". Nabia deteve-se, mirando o homem deitado nas folhas secas, encostado ao milenar carvalho. Desloca-se cautelosa e surpreendida, tentando perceber se aquilo era uma alucinação ou não. O búrio não conseguiu falar, apenas contemplava o paraíso diante de seus olhos. Nabia aproxima-se chorosa. Inclina-se e sonda os olhos imensos do búrio, percebe que ele não está em seu estado normal. Melhor, melhor assim. Assim ganha coragem para o que vai fazer. Pega em seu queixo e seus semblantes se encontram, seus lábios se tocam, trocando calor. A língua de Nabia explora o céu da sua boca, suas papilas gustativas sentiram o gosto a vinho e mandrágora. Retira os lábios, e confidencia a seu amado búrio, sussurrando-lhe ao ouvido:

- Jamais te esqueci, meu amor...

Duas fartas lágrimas irrompem das pálpebras pesadas do suevo. Nabia suga estes dois rios, levanta-se e retira-se como voltou, como um fantasma vagueando perdido, ao amanhecer, nos pés da montanha.

 

Entardece e Malho procura no velho baú uma prenda pelo reconhecimento de seus serviços na dura campanha que o votou à loucura e ao desespero.

Desdobrava uma enorme e felpuda capa, feita de pele de várias raposas castanhas. Poucos têm possibilidade de ostentar assim uma capa dessas. A guerra apenas lhe trouxe bens materiais, nada mais, nada mais...

Saía para a noite e seu crucifixo grosso de carvalho balançava com as largas passadas do búrio galgando caminho. Seu rebanho apresentava-se à sua frente liderado por Britae, um pastor seu.

- Amo, Amo, aonde vos dirigis? - inquire Britae.

- Vou subir ao castro de Nabia, a princesa dos geresianos e a rainha do meu coração - responde abruptamente Malho, sacando o bastão ao pastor. - Vou precisar disto para a abrupta subida.

Britae, preocupado, sugere: - Permiti, senhor, que vos acompanhe, já que vejo que não embainhais espada e minha falcata está sempre pronta para vos servir.

- Não antevejo problemas, meu bom Britae, apesar de tudo.

- Mesmo assim, eu insisto. - "Será que ele não sabe"interroga-se Britae.

Os dois vultos seguiram caminho, pelo escarpado breu.

- Ouço sons distantes que me chegam.

- Deve ser de um casamento, Amo.

- Os geresianos celebram um casamento?

- Sim, meu Amo.

- De quem?

Britae tosse e coça a cabeça nervosamente. - É de uma moçoila, não sei mais nada. - "Meu Deus, ele não sabe".

Os sons foram chegando à medida que o duo chega ao vetusto e altaneiro castro. Grandes fogueiras ponteavam o escuro, e o cheiro a deliciosos manjares enchia o ar. Foram penetrando na festa, Britae a medo, Malho imponente e destemido. Luzes, alegria, gaiteiros tocando melodias. Pares endiabrados dançando intrincados passos. Ele é levado, deixando cair o bastão. Uma hirta moçoila de cabelos cor de fogo o arrastou para a dança. Deixou-se levar e rodopiavam os dois, até a cabeça atordoar, a

moçoila estava eufórica, obrigando-o a acompanhá-la. A alegria extasiante contagia-o e um riso aflorou-lhe ao rosto, um riso rasgado de felicidade. AH! O rir, o velho rir que ele julgava morto e enterrado. Riui-se desalmadamente e bebeu desalmadamente. De repente os gaiteiros pararam, o centro da arena abriu-se. Malho e Britae misturam-se na multidão, observando. Abracax surgiu, envergando uma larga túnica branca aos folhos, tinha o cabelo espetado com bosta de vaca, o que era usual quando celebrava ocasiões festivas em dia de Nerthus, sábado.

Os convivas se apartaram para deixar passar a noiva para a velha pedra, no centro da arena onde Abracax a aguardava.

 

- A noiva, finalmente vou ver a noiva - Britae leva a mão ao ombro do búrio. A noiva surge, envolta em linho e ostentando uma coroa de flores silvestres. Seus cabelos escarlates desciam, em cascatas de ondas furiosas, estancando nas ancas. Britae leva a outra mão ao antebraço de Malho, tentando conter a fatal fúria. A princípio, seu pensamento era de que a casadoira era parecida com Nabia. Depois, seus olhos já não podiam alimentar essa vã esperança. A noiva escarlate avançava pela arena em direcção a Abracax, estarrecendo os convivas com tal simplicidade imaculada. O tempo parou na mente dele. Revia tudo, os três longos anos de espera. Como a podia censurar? Sem notícias, sem nada. Nem uma mensagem, somente uma mensagem. A noiva ocupa seu lugar à direita do mago. Seria uma cerimónia pagã, mas os geresianos são cristãos. Isso indica que o noivo deve ser suevo. Mas o beijo perdido, ao amanhecer, nos pés da montanha? Seria uma alucinação, fruto da mandrágora. "Jamais te esquecerei, meu amor! "

- JAMAIS TE ESQUECEREI, MEU AMOR! - gritou Malho aos quatro ventos, apontando em direcção à noiva. Nabia gelou e Abracax ficou sem fala. A cerimónia e os convivas que a compunham pararam no tempo. Todos se olhavam, todos sabiam a história: a loucura de Malho, a desgraça de Nabia, o aproveitar de Herm. Malho não retirava o olhar da noiva gelada, como reclamando algo que ele não podia reclamar, algo que ele deixou por vontade própria há muito tempo. Britae continuou segurando-o, receoso do que o búrio pudesse fazer. Nabia respirou fundo, tentando controlar as tremuras, depois continuou em direcção a Abracax, como se nada se tivesse passado. Como se a frase que ecoou pelo ar fosse proferida por um fantasma, um fantasma que teria que ser exorcizado e esquecido. Ele engoliu em seco, apoiado em Britae. Nabia ajoelhou-se perante Abracax, era o sinal de que o noivo poderia avançar. Malho procura-o desesperado. Ele surge, detrás da velha pedra. Mas não pode ser... é Herm, o maldito, o demónio loiro.

- Britae, tu sabias disto? - Britae não responde e olha para o chão.

- Mas ojuramento, Britae! Ojuramento! - Britae encara o amo.

- O juramento é para se cumprir, se não hoje, amanhã. Uma dor tremenda apossa-se dele. "Tudo menos ele! " Não, não podia ser o homem que iria levar Nabia, era o rato mais vil que alguma vez pisou a terra, o segredo, o juramento. Não, ele não casaria com Nabia. Mas como? Como? Oh! Como o destino nos proporciona estas partidas. Procurou Berulfo e Cardamiro, encontrou-os, os três cúmplices miraram-se. Sim, juntamente com Britae, já tinham quorum, faltava apenas um, masjá era suficiente. Britae adivinhou os pensamentos do amo.

- Ele é esguio como uma enguia, lembre-se disso, Amo.

- Faz o que tens a fazer, Britae... Nada temas.

Abracax, antecipando a situação, parou por momentos a cerimónia, Herm, já ajoelhado, estava esperando o mago. Abracax não tinha maneira de parar o rumo dos acontecimentos, o destino é assim, incontrolável, e o homem apenas pode assistir passivo ao desenrolar da misteriosa vida. Assim seja, pensa o mago. Enlaça as mãos aos noivos com hera e faz uma arcaica pergunta, seguindo uma antiga tradição perdida nas raízes da floresta negra da antiga Suábia.

- QUEM SE BATE PELA NOIVA DESAFIANDO O NOIVO? - Este ritual era mais propriamente cerimonial do que efectivo. Todavia, o direito suevo ainda o contemplava. Assim sendo, o mago abria as portas aos planos do búrio de acabar com o casamento.

 

- EU, BRITAE, FALO EM NOME DE MALHO DA TRIBO DOS ÚRIOS. MEU AMO DESAFIA CAUDILHO HERM DO CLÃ MARCOMANO, BATENDO-SE PELA NOIVA E RECLAMANDO-A COMO PRÉMIO. - Britae, colocado no centro da arena, empunhava sua brilhante e afiada falcata. Um brado de indignação ecoava entre todos. O pai da noiva opunha-se, dado que a noiva era cristã, e mais: não queria Malho por perto. Berulfo e Cardamiro acercaram-se de Malho, ajudando-o a tirar a pesada capa de pele de raposa. Britae continuava no centro, de falcata empunhada, aguardando a resposta de Herm. Abracax tentava pôr ordem nas exaltadas famílias suevo-galaicas, dizendo que o direito suevo prevalecia, dado que a cerimónia não era cristã, mas germana. Por fim, um homem de Herm empunha um machado de arremesso e responde em germano:

- ESTÁ ACEITE O REPTO, HOJE TUAS ENTRANHAS VÃO MISTURAR-SE COM A POEIRA, MALDITO BÚRIO!

Nabia foge, a chorar, suas aias correm atrás dela, finalmente alcançam-na, tentando confortá-la; entre choros e lamentos Nabia só diz:

- Malditos homens, só pensam em si!

O clima era tenso, búrios e marcomanos olhavam-se de lado acariciando o cabo de seus punhais e adagas. Os geresianos, nunca grandes amigos dos germanos, apesar dos casamentos mistos, estavam em polvorosa, dado que a sua noiva parecia umjoguete nas mãos das poderosas famílias suevas. Archotes e tochas eram trazidos para o centro da arena para iluminar o duelo. Os mais velhos recordavam-se do tempo em que estes duelos ou justas aconteciam frequentemente. Velhos tempos, diziam eles...

Herm, todo de negro, sorria para Malho, como o carniceiro sorri para o vitelo.

- Sua confiança está em alta - alerta Cardamiro, esfregando as costas a Malho.

- Melhor assim - responde serenamente.

- Já alguma vez travaste umajusta? É muito diferente duma batalha, aqui o inimigo é um só - alerta Berulfo, molhando a cabeça ao búrio. - Depois, se não conseguires matá-lo, nós cumpriremos o juramento, se não hoje, amanhã.

- Obrigado pelas palavras de ânimo - agradece-lhe. Entretanto, chega Britae, vindo de parlamentar com os homens do marcomano.

- As armas vão ser pares.

- O quê, não haverá escudo? - pergunta Malho, habituado à segurança do mesmo. "Merda! Não sei combater sem escudo! ", cogita, avaliando, com os dedos no queixo, os saltos que Herm executava, munido de machado e espada curta.

- Então, Adaga Negra, faz jus ao teu nome e defende o bom nome da nossa grei - alenta Cardamiro, abraçando fortemente o búrio, como num abraço de despedida.

- Pois bem, sigamos o destino. Que o Corvo de Wotan me guie e proteja! - pede Malho, sacudindo da cabeça a água com que Berulfo o regou. Saca, num movimento repentino, seu nome de guerra do cinto de couro. A adaga negra provoca certo assombro entre os veteranos guerreiros. O Adaga Negra, o terror dos cavaleiros godos. Herm também ficou constrangido com a tenebrosa visão do metal negro balançando em sua direcção. Por fim, ficaram frente a frente, num silêncio de morte. Começaram às voltas, estudando-se mutuamente, os olhos de falcão de Herm perscrutam Malho de cima a baixo, dissecando cada movimento, cada lesão anterior de que pudesse tirar vantagem. Sem dúvida que ele era mais lento, havia que testá-lo. Num movimento rápido, Herm atacou, com uma "foiçada" de machado no ar, procurando com o gládio atingir os rins de Malho. Malho consegue aparar o golpe do machado com a falcata, provocando um violento chocalhar da arma do meio-dia com a arma do nórte. Todavia, ao contrapor-se ao ataque nos rins seu braço herda o golpe baixo, e o primeiro esguicho de sangue alimenta a terra. Herm recua... verificando os estragos que causou. "Sem dúvida que apara bem os golpes. Vai-me dar algum trabalho. "

"Raios, devia ter vindo de braçais, o demónio é rápido, quiçá demasiado rápido para mim. Espíritos dos gascões atraiçoados, dai-me força da penumbra a que fostes votados! Permiti que eu conheça de antemão todos os seus futuros movimentos! "

O marcomano ataca, com uma série de golpes sucessivos, tentando abrir a guarda ao búrio. Malho, com seu instinto de corvo, detém cada golpe, mas não dá resposta. A fúria do noivo era um suceder automático de estocadas, cutiladas e punhaladas em catapulta, ininterruptas e sequenciais. Malho optou por evitá-las, tentando assim poupar-se à dureza do embate.

- O QUÊ! ESTÁS A FUGIR AO COMBATE! COVARDE MEDROSO! - grita Herm, cuspindo em direcção ao búrio.

- POUPA A SALIVA, MARCOMANO! QUE AINDA VAIS PRECISAR DE MUITA! - responde Malho, atirando-se com a falcata em riste ao marcomano. Herm roda sobre si mesmo, evitando a falcata com o gládio e desferindo-lhe um rude golpe no peito com o machado. O búrio cambaleia e cai. Herm iria iniciar o contra-ataque, mas uma dor lancinante na perna esquerda obriga-o a parar. Sua coxa estava totalmente aberta. Herm tinha-se esquecido do segundo golpe da adaga. As armas pares são assim: golpe, contragolpe, visível, invisível, um golpe certeiro esconde um golpe traiçoeiro. Herm estaca, o búrio levanta-se e fica imóvel de costas para seu oponente. O golpe no peito fora profundo e sua túnica bege estava agora rubra. Esperou a reacção do marcomano, e ela veio. Vira-se de repente. Herm não conta com a armadilha, sua mão é cortada e a faringe é atravessada pela arma do meio-dia, sente a mão negra de Hel arrastando-o para a morte. Tomba no chão imóvel. Ouvem-se uivos de assombro ao truque de gladiador. O búrio é rodeado por Britae, Cardamiro e Berulfo. Os marcomanos acercam-se ao quarteto, os poucos búrios também, grei é grei. Abracax impõe-se, é assim o direito suevo, nada há a fazer. Malho, sangrando, procura Nabia. Alguma geresiana enfurecida e com os punhos cerrados o avisa:

- Ela não quer saber de ti! Há três anos que tu morreste, maldito germano!

"Há três anos que morri! Há três anos que estou morto! " Estava quase a desfalecer, sacode o braço de Berulfo e, esvaindo-se em sangue, começa a descer a inclinada encosta, sendo seguido por alguns marcomanos. Berulfo iria segui-lo, mas Cardamiro diz:

- Não adianta, deixemos correr as rédeas do destino.

A correria desenfreada, encetada pelo búrio em direcção ao vácuo negro, tornou impossível a perseguição dos marcomanos. Era uma correria de suicídio, à espera de encontrar alguma falésia traiçoeira. As passadas incontroláveis encontram por fim solo estável. A lua iluminava o último cavalo branco da ainda floresta sagrada dos búrios. Malho, a arfar, detém-se a olhar o sagrado Sleipnir. O corcel dos deuses cheira o sangue do peito de Malho. Cheira a caçador, relincha, coiceia e foge. No momento da retirada do fogoso corcel, o búrio reúne todas as suas últimas forças e, rápido como um raio, monta o dorso do cavalo amarrando-se forte à sua longa crina. O robusto corcel desata a cavalgar pela noite mágica, enquanto o Adaga Negra, o Corvo de Wotan, lhe berra aos ouvidos:

"LEVA-ME, FOGOSO SLEIPNIR, LEVA-ME AO REINO DAS SOMBRAS, TAL COMO LEVASTE HERMOD! " O sangue do peito aberto tingia o dorso do último corcel dos deuses, o sangue do último corvo de Wotan alimentava a fuga do cavalo, entre sombrios montes, mais além, para a Terra dos Ursos. Cavalgaram durante horas, nuvens negras se formavam nas esferas superiores. Encontravam-se numa desolada encosta. Malho encontrava-se semidesmaiado, o cavalo levou-o aonde tinha que o levar. Com esforço, ergue as pálpebras, nota que ainda está vivo, leva a mão a seu ferimento, encontra-o, juntamente com a cruz de Cristo que em seu peito balança. "A cruz de Cristo misturada com meu sangue. Aceita este meu sacrificio, meu derradeiro sacrificio. " Num vale de sombras entram, o amanhecer estava próximo, chovia e trovejava, ergue os braços e, com os punhos fechados, clama aos ventos e aos gigantes da montanha:

- A CRISTO E A WOTAN DEDICO ESTE CORPO QUE CAÍRA NAS ÁGUAS DO ESQUECIMENTO - Relembra o alano: "É agora a verdade". À sua frente uma vigorosa cascata brotava das alturas absorvendo a chuva torrencial. Onde caía formava um tortuoso lago. Ele mergulha os joelhos no lago, recebendo as águas, tal como recebeu Cristo num longínquo rio cálido ao sul, o seu segundo baptismo, o seu segundo nascimento, o despertar da vida, o acordar da morte. Mergulha de cabeça, de braços abertos para o infinito, a força da cascata imergia-o para baixo, para o musgo, abriu os olhos e reteve a respiração, a água tingia-se de sangue. "Que fácil é reter a respiração, sinto-me levar, lentamente. " Alguém o puxa da morte. Berulfo e Britae amarravam Malho, já desmaiado. Tiram- no da água e deitam-no na urze.

- É um eleito, montou um cavalo dos deuses! - exclama espantado Berulfo, olhando para Abracax.

- Julgava que eras cristão, Berulfo!

- Nunca podemos apagar o que fomos ou o que somos.

O elmo de Minerva, de olhos vazios, de olhos escuros, mirava-o. Acordou, cheirava a sopa de couves e alho. Quando respirava, sentia o peito a abrir-se, procurou não recordar-se, tornou a dormir...

O elmo movimentava-se, o corpo do elmo vestia-se de branco, era um corpo feminino, seios de veludo na seda. Acordou novamente, era noite e chovia, estava um frio de rachar... tinha que tossir, mas se tossisse os pontos no peito rebentavam, alguém lhe deu mel, não conseguiu abrir os olhos. O mel acalma o bichinho da garganta que quer sair. Adormeceu, desta vez conseguiu entrar no elmo de Minerva. Lá dentro, só viu vazio, aquele vazio opaco, consistente e real, quase palpável, como é oco o elmo de Minerva.

 

Abre os olhos, já mais consciente, era manhã, e os sonhos com a morte acabaram. Olha o tecto de colmo, custava-lhe a respirar, mas isso era devido à falta de ar que circunda este sítio. Devia estar no sopé de alguma agreste montanha. Numa das vigas que sustenta o tecto um corvo oleado e irrequieto saltitava. Olhou para o lado, um vaso de madeira continha Usqua, a magia dos bretões. "Não admira que sentisse a garganta tão áspera! " Senta-se, a custo, tomou coragem para olhar para o peito, só que as rápidas recordações doridas a ser cozido pelo mago e amarrado pelos seus camaradas tiram-lhe a vontade. Um vulto delicado assistiu a isso, quem seria?

Reteve na boca a intragável bebida que acorda os mortos e gorgolejou para o corvo. O corvo domesticado esvoaça para a boca do búrio, usando as mãos de Malho como base de aterragem. Leva o corvo à boca, o mensageiro alado bebica a alcoólica bebida, deixando-a escorregar pela goela. Quando os graus começam a fazer efeito, o corvo apavorado voa, tentando escapar pela porta semi-aberta, para encontrar rapidamente água. Malho ri-se controladamente, devido aos pontos. Levanta-se com cuidado e vai espreitar o exterior. Onde estaríamos? Só fragas, penedos e mato rasteiro.

- Olha! Dois melros namoriscam, não tarda e a Primavera eclode. O soljá vai alto. - Um garrano e seu cavaleiro encetam o caminho de casa, galgando o perigoso terreno. Os garranos estão habituados a este terreno, quem será seu cavaleiro, parece que está ébrio.

- Analkon, é Analkon, o velho brido. - Analkon trauteava uma música imperceptível, vestia-se de farrapos negros que esvoaçavam ao vento e envergava uma couraça de couro. Tinha longos cabelos grisalhos, fhinos e incontroláveis, era forte e gordo, com uma pança de respeito. Malho cheira o forte hálito a cerveja de cevada: "Sempre é verdade, depois da guerra ele passa os dias ébrio. "

- Então, Adaga Negra, venham esses ossos! - Tenta desmontar do garrano e cai redondo no penedo. O garrano, habituado a estas frequentes quedas, vai procurar erva seca. Malho queria ajudá-lo, mas a sua condição fisica não permite ajudar, nem a si próprio. Analkon levanta-se dorido e cambaleia em direcção a Malho, não sem antes vomitar um valente esguicho de espuma fermentada. A cerveja é assim, o organismo aproveita o que pode, o excesso ou sai para baixo ou sai para cima.

- Cuidado, Analkon! Vem devagar! - aconselha ele.

- OH! Rijo búrio, por Endovellicus e por Cristo, já estás bom?

- Aperta-lhe forte os ossos.

- AAH! Calma, forte brido, meu peito! - Analkon desperta para a realidade.

- Deixa ver, deixa ver! - Puxa o búrio para o sol, para examinar a ferida cicatrizada.

- Ainda cheira a carne podre, mas o bruxo fez um bom trabalho. - Malho ainda sentia na mente a agulha sem pico a entranhar-se na pele.

- Como deixaste o bruxo entrar na tua casa? - pergunta Malho, pegando na cruz dependurada no pescoço de Analkon. - Tiveste que sair enquanto me cosiam?

- Sim, e levei isto comigo! - O brido saca, de sua bolsinha de pele de cabra anexa ao cinto, seu grosso crucifixo de carvalho. Malho toma-o repentinamente, como se recuperasse algo muito querido que lhe tivessem tirado.

- Meu bom Deus! - Beija a cruz. Entraram os dois na mísera cabana de Analkon. Malho agradeceu a guarida e protecção, falaram de tudo o que aconteceu, da perseguição dos marcomanos.

 

- Eles exigiram resgate material - informa Analkon.

- E levaram alguma coisa? - pergunta.

- Veio um caudilho do rei e ordenou que levassem as trinta cabras que possuías. Depois, queimaram a tua cabana e não fizeram mais nada.

- Não percebo. Fiz tudo por direito.

- É o que pensas, esqueceste-te que agora até o rei é católico e abomina as arcaicas tradições pagãs que só trazem rixas e desordens. Todavia, o rei ordenou que não te tocassem, afinal és um herói suevo, isso nem os marcomanos te podem tirar.

Malho bebeu a cerveja adocicada com mel. Tiraram-lhe o gado, é certo, mas não lhe tiraram o tesouro, esse continua bem escondido, melhor escondido que o tesouro dos nibelungos.

- E Britae?

- Continua a apascentar as cabras, agora as dos outros. Ele tem vindo visitar-te. - Analkon olha repentinamente para a parede, como se visse através dela. De facto, foi ele que os conduziu naquela escura noite. Levanta-se como se viesse alguém, dirige-se à porta mancando e diz adeus a Malho.

- Onde vais?

- Vou para onde me sinto melhor!

"Não vásjá! Analkon, ainda não sei quem era o vulto delicado que assistiu à minha agonia dos pontos. Seria Deidre, ela não estava na boda. Minha antiga escrava? Cheira a água de rosas. " Seu nariz contraía- se e abria-se sentindo o cheiro que vinha do exterior, apenas sua amada é que cheira a água de rosas. Um arrepio subiu-lhe pela espinha. Seus olhos detiveram-se na porta e começou a respirar violentamente. Raios, não podia respirar assim, seu peito explodia. A porta abriu-se. Malho fechou os olhos para controlar a emoção, tentando manter uma respiração cadenciada e ritmada, de modo a controlar o coração. Não abriu os olhos, não os queria abrir. Não tinha coragem. Estava a ser observado. A pessoa pousou qualquer coisa, ficou parada, Malho tremia. Não! Não podia chorar! Por fim, a fragilidade venceu, acocorou-se e um agudo lamento começou a tentar sair-lhe pelos lábios cerrados, o peito começou a doer- lhe, não resistiu, um uivar choroso pô-lo de rastos. Não sentiu o aproximar-se do vulto feminino. Apenas sentiu uma terna mão no seu gorduroso cabelo. Amarrou- a, primeiro fortemente, depois delicadamente. Não a encarou, como podia? Ouviu-a chorar também. Custava-lhe a respirar, a outra mão acerca-se do seu peito. Malho não abriu os olhos. O vulto feminino obriga-o a deitar- se, Malho levou-o com ele. Deitaram-se os dois. Nabia fazia festas a seu cabelo. Malho tinha a mão junto ao peito. Passaram assim horas, em silêncio, a noite descia. Analkon entrou com lenha, acendeu a fogueira e saiu. Todavia, o silêncio e as acções não bastam para sarar as feridas, as palavras continuam a ser necessárias. Enganem-se aqueles que pregam que uma acção vale mil palavras, não é verdade. Uma palavra tem uma força demolidora e reparadora, semelhante a uma acção. Malho tinha que começar:

 

- Tornei-me numa besta de morte, doce Nabia. Anulei o homem que havia em mim para poder sobreviver ao inferno. Essa besta negra, ao enterrar esse homem, enterrou-te com ele. Agora esse homem procura despertar, mas é um despertar difícil, violento, desastroso. Esse homem tenta despertar para ser o que era. - Volta-se lentamente, encarando-a, a fogueira semi-acesa iluminava-lhe as feições marcadas pelo sofrimento.

- De peito aberto me entrego a ti. Nunca te esqueci, mesmo quando de mim me esqueci e não possuía vida e era um farrapo, estavas tão entranhada em mim que creio que foste a causa da minha sobrevivência! De peito aberto me entrego a ti, sou todo teu, plenamente teu, infinitamente teu, adoro-te, venero-te, para sempre, para todo o sempre, além da morte e das estrelas, além dos deuses e da terra, além do céu e da lua, além do cosmos e do universo, o meu amor rompe todas as barreiras, princesa Ganda-Grama!

- Que me chamaste? - pergunta Nabia, emocionada e com o rosto mergulhado na obscuridade.

- Não sei - responde Malho honestamente.

Nabia, a tremer, leva a mão à testa. Um bocado de febre, nada grave.

- Descansa, meu amor, amanhã falamos.

- Não, tem que ser agora. - Parou, é sempre dificil reconhecer os erros. É preciso muita coragem para pedir perdão. Todavia, Deus concedeu-lhe uma oportunidade de remediar tudo. Remediar tudo, como se isso fosse possível.

- Está a custar-te, não está? - pergunta a carinhosa Nabia, afagando-lhe o rosto, sua boca procurou seus delicados dedos, mordiscando-os e beijando-os, enchendo-os de saliva.

- Perdoa, meu amor, perdoa estes três anos de espera. - Miravam-se no crepúsculo. Nabia viveu desesperada estes três anos, o casamento com o marcomano seria uma forma de deixar tudo para trás, de cortar as rédeas do passado. Uma espécie de tónico para revigorar forças, uma espécie de vingança. Uma vingança que acabou com a morte do noivo, de laringe aberta e decepado numajusta. Mas o retorno do búrio trouxe-lhe a certeza de que nada ainda estava acabado e que eram parte um do outro, para todo o sempre.

- Eu perdoo-te, mas jamais esquecerei o que me fizeste. Não conseguirei esquecer o que me fizeste passar. Quem mal faz, recebe-o três vezes, creio que vejo felicidade e tristeza no nosso futuro. "As mulheres gallaicas são assim, nunca esquecem, as abaixo do Minus são piores, rogam uma praga de morte. "

- Rogaste-me uma praga de morte enquanto estive fora, meu doce? - inquire Malho, beijando seu delgado pescoço e enrolando seu emaranhado cabelo cor de fogo.

- Sim, meu mel - responde-lhe, lambendo-lhe a orelha. "DEUS Como te amo! " - Fui a uma bruxa, dei-lhe uma mecha do teu cabelo e ela lançou-te numa terra de ninguém.

- Numa terra de ninguém?

- Sim, sem deuses! No fim do feitiço, ela disse-me isso. Foi horrível, com galinhas negras mortas e um pentagrama. Chorei no fim, arrependida do que tinha feito. Sentia-te vivo e queria que tu pagasses por tudo, por tudo. A bruxa, no fim, disse que tu eras um corvo dum deus moribundo, a voar numa terra de ninguém, foi essa maldição a que eu te votei.

Malho parou de beijá-la, preocupado.

- Os vossos deuses morrem, não é verdade? - pergunta Nabia.

- Sim, é o chamado crepúsculo dos Deuses. Mas eu converti-me.

- Cala-te, corvo de Wotan, estás encarcerado, o teu verdadeiro Deus não quer morrer. Wotan ainda vive em ti, fraco, moribundo.

- Malho relembra a viagem com o fogo pelas estepes, olha o tecto de colmo, onde os olhos negros do corvo reflectiam a exígua luz da terminal fogueira.

- Depois do crepúsculo dos deuses, estes ressuscitarão numa nova era de paz e de luz. Aquando da conversão de quase todo o exército, correu o rumor que Cristo era Wotan ressuscitado num mundo novo livre de guerras.

- Isso não nos trará paz - remata Nabia, sentando-se. - A bruxa encarcerou-te no animal, nem Wotan poderá morrer, nem Cristo poderá nascer em ti.

- Que dizes? Já nasceu! Recebi-o três vezes pela água. - Nabia irrompe a chorar e encosta seu rosto ao de Malho, abraçando-o fortemente e comprimindo os pontos.

- A bruxa disse-me que não terás descanso, nem eu nem tu. Malho não disse nada, ficaram assim, abraçados, vivendo seu pequeno paraíso, tão fugazes são os momentos, tão vã é a felicidade. Aproveitaram o momento, trocaram carícias, fizeram-se parte um do outro. A semente da vida regou o ventre de Nabia. No momento da explosão da vida, ele ouviu um choro de menina. "Será menina", sussurra ao ouvido de Nabia. O "corax" exercera seu dom mitral, num lampejo intuitivo. No fim da concepção, o corvo beija a palma da mão a Nabia.

 

IRMÃOS DE GUERRA

Conimbriga ficara para trás, e a trezentas milhas para leste ficava Egitânia. Todavia, não seguiriam para aí. Nas fileiras do interminável exército constava que o rei queria atacar os godo-romanos pelo sul, dirigindo-se à Bética para cortar os abastecimentos de alimentos ao invasor. O Sol ia alto e o suor não parava de escorrer testa abaixo de Malho. Ainda faltava um dia de caminho para Elbora, onde acampariam às portas da cidade. Um dia inteiro torrando ao sol. Tinham-lhe dito: "O Sul hispânico é quente, traz o diabo no ventre! " e ainda em seus inícios entrávamos. Tinha que gerir a água, com a secura que sentia iria ser difícil. Porra! Já sentia saudades das frescas fontes brotando do céu das verdes fragas encravadas na húmida terra búria. Já sentia saudades da sua amada, e há apenas cinco dias separado dela estava. Levou a mão ao torque e tentou não pensar mais nisso, ciente de que, com o passar do tempo, as lembranças surgiriam com uma força desoladora e irreparável. Sentia os cascos dos pés doridos, nunca tinha caminhado tanto na vida, e o astro rei em plena força no alto, incidindo rectamente no quente chapéu de feltro preto. Tinha-o adquirido, perto do Duero, a um cita vendedor ambulante à face da estrada. Claro que o negro atraía mais o calor, mas era isso ou andar com a fronte ao sol, o que era perigoso. Sentiu, no tendão de Aquiles, o desastrado pé de Berulfo tocar-lhe.

- Hei, malfadado filho de uma cadela com cio! Vê por onde andas! - grita enervado, olhando para trás. Era a terceira vez que Berulfo lhe tocava nos tendões.

- Acalma-te, búrio, que vives mais tempo!

- Hei Que se passa aí? - O comandante da centena dos búrios apaziguava a refrega.

- Nada, capitão - respondem os dois. Malho, para evitar confusões, vai para a frente da centena onde frontifica o estandarte dos búrios. Um crânio de bode encimava um vexillum onde uma cabra montesa desenhada estava. Um rapaz em idade de guerra mostrava sinais de cansaço de carregar tão pesado estandarte.

- Ei, rapaz, és filho de Belesende?

- Schim, filho o schou - responde o mancebo com uma estranha pronúncia. "Este só convive com as cabras", cogita Malho.

- Estás cansado de carregar o estandarte, queres ajuda?

- Pois bem, scim schinhor. - Malho passou assim toda a tarde a carregar o pesado estandarte. Entardeceu e a marcha continuava. O búrio já se livrara do estandarte, todavia continuava na frente da centena, ao lado do capitão. Entardecia, e todos iam petiscando o que encontravam na sacola: um pedacinho de carne seca, um naco de pão duro, um ovo, retirado apressadamente do galho de alguma árvore à margem da estrada. Continuaram a marchar noite dentro, não suportando mais a dor nas plantas dos pés. A antiga via romana agora estreitava-se, o exército entrava num vale mediano, dum lado e de outro uma elevação contínua de cerrada mata os rodeava. Mas nada deviam temer, ainda se encontravam dentro das tradicionais sebes dos suevos, em solo amigo lusitano havia segurança. Todavia, o olhar de canto para a oculta mata mostrava sinais de nervosismo, que mais se acentuaram com uma ordem da cabeça do exército para parar. Estancaram todos violentamente, chocalhando com as lanças, broquéis e dardos uns nos outros. O capitão ordenou silêncio, gritando. Todos olhavam, tentando decifrar a escuridade a 300 metros. Um silêncio de morte. Depois, começou a ouvir- se um zumbido e outro e outro. "Mas... são dardos! Dardos! "

Os impiedosos ferrões caíam em catapulta, ele recebeu um que lhe fez colar a sandália ao chão, falhando o pé por milímetros. Aproveita o dardo arremessado, abaixando-se ao mesmo tempo, levantando o broquel para proteger as costas e a cabeça. Sente ao seu lado a cabeça do mancebo ser desfeita por um fenão.

Nem teve tempo para gritar. Um zumbido aproxima-se do seu broquel, rompendo o ar. Malho abaixa-se mais, tremendo com a sua protecção a aguardar a besta. O impacto foi duro e fálico, mas apenas ricocheteou, provocando uma tremida geral em seu corpo, mas de seguida um dardo, silvando, fura a sua protecção, desbravando seu semblante, roçando seu membro e alojando-se no exíguo espaço deixado entre os dois pés. "Vou morrer, vou morrer! ", pensa ele, desesperado, com a cara marcada espirrando sangue. As abelhas deixaram de zunir. A medo, Malho olha à sua volta, tentando desocultar a negritude, seu capitãojá lá não estava.

Silêncio, silêncio para a mata cerrada. Gritos, gritos rompiam das sombras, as sombras movimentavam-se para nós, cavalgando, sombras cavalgantes, Berkersers do nosso medo. Ele leva a mão ao torque: "Adeus, meu amor, vou partir pela ponte das espadas. "

- CERRAR FILEIRAS! - alguém grita, Malho corre de costas até encontrar os costados dum companheiro, e mais outro, e mais outro. Recebe um de frente e outro de lado. Compactos e herméticos, esperam a massa de homens em pele de urso cavalgando sobre si, agitando os machados e bradando uivos

aterradores, Malho sente alguém mijar-se na sua perna.

- Vou despedir um dardo, dêem-me espaço. - Mete a correia na extremidade do dardo e espera que forcem um bocado de espaço para ganhar ângulo de tiro.

- Não demores muito, eles já estão em cima - algum companheiro adverte.

- RAIOS! Por Ísis! Não tenho espaço, apartem, apartem. Tarde de mais, a massa compacta voltou a unir-se cimentada com os broquéis e escudos de vime. Malho ficou com o braço preso segurando o dardo. Passível quanto o possível, assistia a centenas de sombras nas suas montadas, para trás e para diante, tentando achar uma fissura nas fileiras. Algum superior avaliou a situação e gritou:

- DIAMANTEEEEE!

A massa dispersou-se e os homens cortantes como diamantes atacavam o peito e a barriga das montadas tentando causar o caos e a confusão aos treinados cavaleiros godos. Malho sente a pressão exercida pelos seus companheiros a aliviar-se, toma o dardo entre o antebraço e a mão e investe-o, seguindo seus camaradas. Um enorme cavalo negro voa sobre eles, dirigindo-se a si. Seu cavaleiro estava descontrolado. Malho só tem tempo de baixar a cabeça, ciente que o dardo estava pronto para receber a massa corporal do cavalo. É empurrado para a terra firme, recebendo 700 quilos em cima, não tem tempo de sentir a dor nos ossos. O cavalo tenta levantar-se, triturando-o. Não sentiu dor. Ainda não sentiu dor. Por fim, o cavalo liberta Malho, debatendo-se com um dardo entranhado na barriga. Vê em voo outra montada voar, roçando- lhe com um casco traseiro no nariz. Zoltan, o alano, levanta-o e brada- lhe aos ouvidos:

- REAGE! - Malho, em estado de choque, está catatónico. As tíbias, as rótulas, os fémures, a anca, despertavam violentamente do impacto da queda do cavalo. Mas há males que chegam por bem. A irrupção da lancinante dor colossal leva-o a evocar Wotan e a investir contra os peitos e as espáduas dos cavalos, sem se importar muito com os cortantes francisques que decepavam os bravos e temíveis suevos. Malho ainda hoje não se lembra do que aconteceu nessa primeira batalha da sua vida, apenas se lembra de, ensanguentado até à medula, sua adaga se ter tornado negra do sangue das dezenas de cavalos que chacinou, obrigando seus cavaleiros a cair e a não escaparem às lanças dos peões. Lembra-se das palavras graves de Falcon, seu capitão, que o baptizou com o seu maldito nome de guerra: "Olhai o Adaga Negra, o terror dos cavaleiros godos! "

 

Os cavaleiros godos tinham abalado e agora uma vintena de búrios e gascões pesquisavam, entre os arbustos, resquícios moribundos dos inimigos que talvez tivessem tombado com o arremesso tardio das pedras dos fundibulários lusos, que só os socorreram aquando da retirada do inimigo. Malho vê um cavaleiro godo, indefeso e ferido no chão, ser cutilado até à morte por Berulfo e Axilde. Tropeça num corpo em agonia, alumia a face do exangue inimigo com o archote. É um vândalo! Um arqueiro vândalo com a face recortada milimetricamente com alinhados cortes para evitar o crescimento da barba. Usava um elmo metálico ponteado por um ferrão. Pensou em tirá-lo para si, retirou-o lentamente da cabeça do arqueiro. À medida que fazia isso, sentiu o pescoço do vândalo partido e uma luta tremenda para respirar. Levou a mão à sua ensanguentada adaga negra, para acabar com a agonia do ferido com um golpe certeiro e profundo na traqueia. Quando ia executar o golpe de misericórdia, perante o olhar piedoso e agradecido do ferido, o alano entrepôs-se, amarrando e premindo a adaga entre os dois gumes e não se importando com a dor que crescia enquanto o caudal de sangue ia aumentando na palma da sua mão fechada e saindo entre seus dedos. Malho ficou abismado com o filho das estepes.

- Corta a sua mão direita e espeta-a no elmo, e o mal de pereceres ferido vais afastar. Seu espírito maldito irá proteger-te! Dizendo isto, pôs-se de pé.

- Quê? - pergunta o búrio surpreso.

Zoltan continuou, pesquisando com o olhar em redor:

- Enterra-lhe a adaga no estômago para perecer lentamente, para ficar ligado a ti enquanto não o libertares. - O alano abaixa-se e sussurra-lhe algo ao ouvido.

O vândalo moribundo, desesperado, mas sem poder falar, gesticulava para que o suevo lhe poupasse tamanha pena. Dois rios corriam agora pelas alinhadas cicatrizes do eslavo.

- Que Wotan me dê força do alto do Vahala e que as valquírias me protejam! - Pega violentamente na dextra do moribundo, sentindo o pulsar frenético das veias nas costas da mão, e investe a adaga pela juntura do rádio com o carpo. Mas o pulso não cedeu. Desesperado por não conseguir levar a atrocidade por diante, procura desesperadamente um machado caído no solo. Encontra-o. Amarra a dextra e cola-a à terra. O vândalo uivava entre os dentes. "Coragem, filho de Fanoi! Coragem! ", incitava-se o suevo. Um golpe seco seguiu-se, espirrando sangue em seu rubro semblante. Rapidamente procura a adaga, que fica presa na correia, não se desembaraçando da mesma, corre para Berulfo, que escavacava os dentes de oiro de um cavaleiro, e saca-lhe o gládio. Investe novamente contra o exangue filho das estepes, caindo em voo sobre o moribundo, desferindo-lhe um cirúrgico golpe no estômago, de modo que agonie horas antes de morrer. Depois, perante tal monstruosidade, desata a correr mata fora levando instintivamente a mão morta, ciente que o espírito o seguiria depois, deslizando nas águas do esquecimento.

Sentado nas pedras aguardou seus companheiros, a claridade estava a aumentar e eles teriam que partir. Os companheiros foram chegando com o saque dos poucos cavaleiros godos tombados pelas fundas. Falcon, seu capitão, atira-lhe com um bracelete de oiro.

- Toma, bem o mereces. -Ainda a mão do moribundo segurava e já o capacete do exangue ostentava.

- Enterra-a no elmo, montanhês - aconselha Zoltan, coçando os bigodes entrançados e a cabeleira nervosamente. Depois põe a mão no ombro do suevo, perscrutando seu rosto amargo e doloroso. Uma espécie de baptismo e deslumbramento tétrico assumia-se nas feições malévolas de Malho.

- Agora não tem volta - declara, sabedor, o veterano guerreiro.

- Agora és um dos nossos. Ultrapassaste o portal. A partir daqui, deixaste de ser o homem que foste e tornas-te num animal, como nós. A partir de hoje sobrevives, apenas isso, sobrevives!

Resignado, Malho leva a mão do espírito protector do vândalo ao seu recente elmo. Enterra-a no ferrão ouvindo os ossos a cederem, um fio de sangue escuro e fresco caía-lhe pela testa, nariz, bigode e lábios. Bebe-o, endoidecendo lentamente. "Estou a beber sangue humano, estou a ficar demente! " Os gascões e os búrios alinhados marchavam para apanhar a retaguarda do exército. "Doce Nabia, doce Nabia, não te mereço, não me mereço, não mereço o nosso amor.

Seis longos meses volveram.

A uma cidade branca do sul chegaram; um rio, o Guadalquivir, a banhava, delineando-a sobre uma extensa e infindável curva.

Ele ainda não se habituara ao calor, seu gasto chapéu de feltro preto há muito que tinha ido à vida. Agora, todos os suevos usavam húmidos panos de linho branco ou bege na cabeça, imitando os mercenários romanos. Era no rio que os restos da centena dos búrios humedeciam os panos que lhes refrescariam a cabeça do sol matador.

- Nunca vi uma cidade assim - dizia, espantado, Axilde, calculando a largura do rio e deitando o olhar sobre o interminável muro que encontra as águas e que cerca a plana cidade.

- Sim - concorda ele. - Nunca vi nada assim.

- Todas as cidades da Bética são maiores do que esta – informa o novo capitão da centenas dos búrios. Era um mercenário palentino de nome Aurélio Caio Frontolo. Apesar de nenhum dos suevos gostar dele, dado que é de outra raça, sua perspicácia e sentido prático no combate e comando de homens tinham- lhe granjeado, mesmo entre os mais sisudos e conservadores germanos, uma fidelidade quase cega. O verdadeiro chefe é o que combate ao lado dos homens. Herm, o comandante geral das centenas dos búrios, raras vezes aparecia, combatendo sempre ao lado dos esquadrões de cavalaria do delfim Requiário. Todos desconfiavam do comandante Herm, dizia-se que estava sempre a beijar o cu ao rei, em vez de tratar dos seus homens. De vez em quando, ao olhar o bracelete de ouro, Malho sente saudades do paternal capitão Falcon, tristemente atravessado por uma frecha, numa fatal emboscada há sessenta noites.

Aurélio bebe às golfadas a água fluvial e depois introduz na boca uma misteriosa droga. Olha para ambas as margens do rio, vendo o acabar das tarefas de relaxamento e asseio, e ordena:

- FORMAR A 500JARDAS DO FORTE DA PONTE! - A

ordem passa rapidamente de homem para homem, como uma onda que se estende pelas margens, interrompendo os banhos das côdeas. Apressadamente, toda a centena sobe pela inclinada margem, juntando-se às outras duas, formadas pelos harudes e marcolinos. Os búrios fizeram grande alarido e provocação ao enfaixar-se nas outras duas centenas, como já vem sendo hábito entre germanos. Todavia, a tentativa da centena de se colocar na linha da frente foi frustrada pelos dois já bem enraizados grupos. Aurélio Caio perguntava aos seus homens:

- Pelo Sagrado Lábaro, alguém vê o que se passa na cabeça?

- Não, capitão, não vemos nada.

- Abram alas, tenho que ir à frente! Não se mexam daqui. Mas parem de se movimentar. - A custo, Aurélio Caio desbrava terreno pelas traseiras da compacta mas movimentada centena. A centena fica só, sem a sua cabeça, com um corpo desgovernado e impetuoso. As notícias da frente iam chegando a Malho pelos harudes. Censório, o comte, enviara um embaixador à cidade para negociar com os sitiados a rendição de Córduba. Mas a antiga colónia imperial despediu o embaixador sem sequer lhe oferecer um bom vinho. Emjeito irónico, os suevos ofendidos começavam a entoar um grito frente aos alinhados clípeos vermelhos que defronte do portão do forte que guarda a ponte os esperavam.

- QUEREMOS O VINHO! QUEREMOS O VINHO! QUEREMOS O VINHO! -reclamavam as três apinhadas centenas, batendo com as armas nos escudos no final de cada frase. Malho tenta descortinar seu capitão à cabeça. Não o vê, olha para trás, onde um esquadrão misto de cavalaria suevo-alana e três decúrias de galo-romanos com os seus aprumados ginetes, atarefados estavam controlando as cavalgaduras perante o improvisado grito suevo. O dux cavaleiro de nome Frantano aguardava ordens de Censório. Malho apenas se lembra de ver o comte dirigir-se à frente dos marcolinos para impedir o assalto sem ordem. Tarde de mais. Os homens começaram a correr, investindo contra os clípeos e gritando. Malho, Analkon, Axilde, Berulfo e Cardamiro foram levados pela torrente moralizada e vitoriosa, mas ainda tinham que correr muito até atingir as três tartarugas gigantes com que os béticos os aguardavam à frente do forte. Aquele forte era tudo, aquele forte significava a ponte, e a ponte significava as muralhas e as muralhas significavam a cidade entulhada de cereais com que podiam passar mais um ano de campanha. Malho bradou o Bardit, juntamente com os companheiros:

- WOTAN COND UTOR ZIO SAL UADOR WOTAN CON UTOR ZIO SAL UADOR!

Trezentas jardas apenas os separavam das tartarugas béticas.

Ele optou por refrear a correria, de modo a poupar-se para o embate com os escudos. À frente, os marcolinos descontrolados estavam investindo à germana. Malho observa-os a acercarem-se da muralha de águias douradas vermelhas e começam a ouvir os zumbidos. Analkon, o velho brido, grita:

- DDAAARRRDDDDOOOSSSSS! - Um ferrão estaca-lhe na perna. O geresiano agonia:

- AAAAAAAHHHHHH "

Malho trava com os pés, varrendo o solo barrento. Seu recente clípeo de vime guarnecido de couro, e com um bro uel de chumbo no meio, mostra-se eficaz a aparar os pila lastrados, os dardos mais pesados dos romanos. Protegendo o brido, ouve o embate mais à frente, olha para trás onde a cavalaria imóvel estava e onde, à frente dela, Censório e Frantano o bastardo davam ordens de retirada à descontrolada infantaria sueva.

- Abre as pernas, meu amor! - O búrio conseguia brincar mesmo em momentos de morte. O brido não lhe fica atrás. Leva-me para o nosso ninho, meu doce! - diz o ferido Analkon besuntando as faces do búrio. Analkon enlaçou-se nele cruzando as pernas e pondo os braços nos seus ombros. Começaram a retirar, Analkon protegia as costas de Malho com o longo e esférico clípeo. Malho sente certa dificuldade em movimentar o gordo e pesado brido, mas os pila lastrados a espetarem-se no vime e a entranharem-se na couraça de couro obrigam-no a ser capaz de correr como o vento e a ultrapassar a cavalaria, que por esta altura já batia em retirada perante o longo arremessar das bestas despedidas pelos córdubos. Analkon, com o dardo estacado no fémur, via, impotente, a frente dos marcolinos ser passada a fio de espada e os harudes a atropelarem-se uns aos outros, perante o ataque dos ferrões, pedras e flechas que das ameias do forte da ponte eram arremessados. Vê, triste e em pânico, Axilde a ser trespassado no pescoço por um pilum, ainda conseguindo dar alguns passos até seu corpo-sombra abandonar seu receptáculo e ascender aos ares. Outros tiveram igual sorte. Malho infiltra-se nos arbustos procurando protecção a uma distância segura, a cavalaria os segue. Agora, longe dos dardos e agachados nos arbustos, socorriam os feridos. Malho, carregando Analkon, procura os monges cristãos que tratam dos feridos, procura um monge de nome Vespertino, o que lhe suturou o primeiro golpe na cara provocado por um dardo imerso na negritude. Encontra-os nas ruínas de uma enorme azenha abandonada. Lá, um luso-romano, em agonia e com as tripas de fora, era controlado por cinco monges.

- Mais valia matarem-no, não aguentará muito mais - diz Malho ao agastado e dorido Analkon.

- Hei, búrio! Deita-o aqui! - ordena Vespertino, apontando para o chão. Malho, ajoelhado e ajudado por Vespertino, deita o pesado brido, com dificuldade, causando-lhe imensas dores na perna.

- Vou precisar de ajuda - pede Vespertino a Malho, avaliando o pilum enterrado na tíbia.

- Não posso, tenho que voltar! - contrapõe Malho, pensando na centena. Vespertino olha para a cicatriz que suturou, haviajá seis meses, da orelha até ao nariz rasgando sua bochecha.

- Belo trabalho - declara Vespertino.

- Que quereis? - pergunta ele.

- Gente, precisamos de gente - aponta a lotada azenha. Malho vê todos os monges atarefados, não dando vazão à procura crescente dos feridos que chegavam às torrentes, despedaçados pelos dardos. Muitos teriam que esperar, aninhados ou deitados no solo barrento e ensanguentado. Moscas, montes de moscas. Repara, mais ao longe, numa amputação que começava a ser realizada. Um médico grego pincelava um risco sobre uma rótula, com a minúcia de um perfeccionista artista. Um homem de raça gallaica era segurado por cinco monges e mordia violentamente um cinto de couro depois de esvaziar uma tina de usqua. Malho, apressado, sossega Vespertino, tentando sair antes da amputação do gallaico.

 

- Eu vou arranjar-te gente. Gente e toldos. - Sim. Os toldos eram necessários para tentar improvisar um tecto para a azenha arruinada. Malho beija a mão do monge instintivamente. Sai a correr, vê Cardamiro e outro suevo a carregarem um companheiro ferido, com a órbita dum olho de fora, prostra-se de joelhos na terra perante tal cena, sentindo-se mal do estômago. De dentro da azenha ouve-se o gallaico a gritar enquanto lhe serravam a perna. Malho desata a correr chorando, uivando e lamentando-se.

- Vou-me suicidar, que Wotan me ajude! De peito descoberto irei receber o primeiro dardo! - Embrenha-se nos arbustos, onde a alinhada centena agachada estava. Malho agacha-se também, ao lado de Berulfo e Zoltan. O capitão Aurélio Caio estava de pé defronte da centena e o sol abrasador reflectia-se-lhe nas frontes queimadas. Estava de braços cruzados e visivelmente aborrecido. Extremamente aborrecido. Pudera, nenhuma ordem foi dada para atacarem. Agora, cinquenta homens estavam feridos e dez marcolinos mortos. Em circunstâncias normais cada centena teria que sacrificar um membro por tamanha desobediência. Mas a pagajá foi feita, e nem Aurélio e os capitães das outras centenas, nem Frantano e Censório podiam duvidar que as centenas já tiveram o devido castigo por atacarem impetuosamente e sem ordem. A paga foi cinquenta feridos e dez mortos.

- Que vos sirva de lição e hoje não haverá rancho para ninguém - diz, de braços cruzados, o palentino capitão. Três horas se passaram, o extenuante sol dava lugar a uma brisa fresca prenunciadora da noite gelada com que o Inverno bético brinda os homens. O Verão impera toda a tarde e à noite está um frio de rachar. Nas nonas de Fevereiro entrávamos e a brisa fresca tornar-se-á fria e agreste. Seu colete de pele de lobo e seu sago de lã hirta guardados ficaram na impedimenta. Decerto teriam que ficar ali toda a noite, enregelados e sem rancho, longe das tendas e das reconfortantes fogueiras da impedimenta. Longe do cerro do gado e de Britae, o seu servo. Aqui e agora, proibidos de falar, sem acólito nem meimendro, sem beladona nem estramónio, como é que iria passar a noite? As drogas ajudavam-no a adormecer e a não pensar em Nabia. Ali, com a barriga a dar horas e o desconfortável frio a entranhar-se nos braços, a amante com certeza iria aparecer em forma de dolorosa recordação. Tinha-se anulado, tinha enterrado o homem que foi e deixado emergir a besta em seu baptismo de fogo, há seis meses atrás. Não enviara notícias pelos amputados que à terra entre o Catavo e o Minus regressavam. Lembra-se de, há três meses, Belesende, sem uma perna, lhe perguntar, enquanto preparava a mochila do regresso:

- Então, búrio? Queres que leve notícias para casa? Para a tua amada? Para teu tio?

O búrio, sem emoção no rosto e frio como gelo, apenas respondeu:

- Notícias! Como podes levar notícias de alguém quejá não existe? - Nessa altura, o búrio imerso no meimendro e no hidromel andava, tentando esquecer quem era. E hoje, livre dos alucinogéneos e da labuta diária que lhe ocupava a mente, o homem problemático e responsável surgiria e o farrapo ambulante submergiria. A agonia, a culpa, o remorso afloravam-lhe violentamente e sem aviso. Nabia surgia-lhe como juíza no tribunal dos amantes, quase a podendo ouvir falar: "Como me fizeste isto? És um monstro sem coração. " "Sim, sou um monstro sem coração. Por Lorelai, julgava que já tinha esquecido o meu amor escarlate, mas agora, com o assumir da lucidez tudo volta. Oh! Como ela deve estar a sofrer. Que maldoso sou, apetece-me voltar, para teus cabelos enrolar, para te abraçar fortemente e sem medida. Meu amor! Meu mel! Minha doce tâmara. Não consigo chorar! " Não consegue chorar, apenas penar com as lembranças do verde da floresta inclinada, apenas relembra os longos caracóis cor de fogo ao cair do sol numa musguenta fraga. Começou a entoar baixinho uma canção:

Dentro da floresta embrenhados

Dentro da mesma, rompendo os dias Sempre o mesmo, quando te olho

Agora foste-te, deixando-me em dor.

Nabia deverá estar a cantar esta canção. Será noite lá, à sombra dos montes, rodeadas de fogueira, gemendo em tal triste pranto.

Woltan olha o búrio e torna a fechar os olhos. Em que estará a pensar Woltan, o carrasco dos deuses, o descrente dos homens? Que buscará ele neste mundo perdido? Os monges, Vespertino! Espera lá, gente, gente para o ajudar, gente e toldos. Malho levanta-se de peito nu e dirige-se a Aurélio Caio Frontolo. O capitão, sentado, tentava dormitar frente à centena de castigo. Tinha a capa púrpura enrolada em seu pescoço e tiritava de frio.

- Meu capitão!

- Não me chames isso!

- Centurião!

Que demandas?

- Autorização para retirar e cumprir uma promessa.

- Que promessa?

- Hoje, quando levei Analkon para ser socorrido, prometi ao clérigo Vespertino que iria arranjar gente para o ajudar e toldos - explica Malho de tronco nu e enregelado.

- Não posso dispensar gente, estão todos castigados.

- Então, pela minha honra, terei que prosseguir sozinho, com a sua permissão. - Seguiu-se o silêncio, os clérigos prestavam auxílio médico, desde que pudessem pregar o evangelho do Senhor às hordas bárbaras. Deveria deixar o búrio ir e rezar para que fosse bem sucedido a servir os monges caridosos.

- Vai, leva Vitorino que é cristão e proíbo-te de te agasalhares.

- Ele retirou-se, agradecido, e procura Vitorino, algures agachado na centena. De tronco nu sentiu a brisa gelada a cair-lhe nas costas afectando-lhe os pulmões, de tronco nu tenta não pisar os homens encostados uns aos outros para combater o desolado frio.

 

Começa a chamar por Vitorino, um augustano. A centena começava a não ter só búrios. Conforme iam morrendo ou desertando ou retornado a casa feridos, a centena teria que ser completada por homens de outras raças, mas normalmente da mesma área geográfica. Vitorino, antes de vir para a centena dos búrios, fazia parte da destroçada centúria augustana que pereceu num cerco a Hispalis. O cristão o ajudaria a arranjar gente, gente e toldos. Encontrou-o e explicou-lhe o problema.

55

- Ouvi dizer que existe uma aldeia a três milhas daqui. Talvez por caridade ajudem os clérigos - sugere Vitorino.

- Sim, mas não é seguro andarmos de noite. As sentinelas ainda nos matam sem perguntarem nada - contrapõe ele.

- Vem comigo, tenho a solução. - Foram os dois, imersos na negritude e nos arbustos. Por sorte, Vitorino combate sempre de sago enlaçado às costas. Compartilharam o mesmo, Malho sentiu-se aliviado, encostando o frio corpo à lã aveludada do manto. Dirigiam-se às tendas da impedimenta. Falaram, enquanto caminhavam, da desastrada investida contra os clípeos vermelhos, da sorte dos marcolinos e da teimosia dos córdubos em não capitularem. Entraram na impedimenta perante o olhar desconfiado e atento dos sentinelas, os homens nas fogueiras estavam cabisbaixos. Pudera, foi uma derrota desmoralizadora. Vitorino regressou trazendo consigo um ex-centurião do exército romano de nome Quinto Rufino Celsus.

- Por Santiago, ajudar-vos-ei. Trarei uma carroça. - A atitude do bárbaro búrio começava a causar admiração entre a soldadesca cristã luso-romana. Embrenharam-se na noite, o duo conduzindo a carroça e o centurião montando um ginete africano e empunhando uma tocha.

- As aldeias à volta da cidade foram poupadas, o que é estranho. Se os córdubos não cederem, não sei onde Censório vai arranjar mantimentos para o Inverno. Seiscentas bocas é muita boca para alimentar.

- Então, meu centurião, se eles não se renderem, teremos que pilhar as aldeias tal como esta a quem vamos pedir auxílio? pergunta, incomodado, Vitorino, arreando o cavalo. Centurião Quinto Rufino puxa também os arreios do cavalo, encarando os dois homens de frente. O fogo da tocha reluzia em seu gasto elmo, iluminando uma cara grotesca e dura.

- Se só pilharmos as aldeias, os habitantes podem dar-se por contentes. - Volteou o cavalo esporeando a barriga e desatou a cavalgar estrada fora para as luzes da cada vez mais próxima aldeia. Vitorino dá rédea solta ao cavalo. O búrio retém a frase: "Se só pilharmos as aldeias... os habitantes podem dar-se por contentes... "

Na aldeia, apesar de alguma desconfiança e medo do invasor, os habitantes cederam, com a promessa de que Quinto Rufino iria falar com Censório para que a aldeia fosse sempre poupada ao saque e à destruição.

- De manhã estaremos lá - garantiu o chefe da aldeia. Só que havia um problema com os toldos, na aldeia não dispunham deles, e as tendas do exército eram preciosas e não podiam ser dispensadas. O chefe da aldeia então sugeriu que trocassem os toldos com os sitiados, em troca dariam o que eles pedissem. Era complicado, opinou Quinto Rufino, mas poderá ser possível, os clérigos merecem. No final das negociações, depois de cearem, todos entoaram uma reza de joelhos. Malho retirou-se e foi observar as estrelas.

Os toldos recém-negociados chegavam, transportados pelos marcolinos, sob a supervisão directa de Censório. Seriam eles também que montariam os toldos, como continuação do castigo. Ah! Também ficaram proibidos de beberem cerveja, hidromel e vinho durante trinta luas, o que iria ser dificil. Os marcolinos agradecidos ficaram aos clérigos por tratarem dos feridos, tendo-se verificado a conversão de um marcolino, baptizado no Guadalquivir, perante o olhar dos béticos, nas muralhas, e perante as centenas que montavam o cerco. Censório pergunta a Frantano quem era o búrio que auxiliava os clérigos. Berulfo, em jeito de brincadeira, comenta:

- Qualquer dia promovem-te a caudilho.

- Porra! Eu bem vejo a trabalheira que têm os capitães das centenas. Quero ser um lanceiro, apenas isso - diz Malho, beijando a lâmina da sua pesada lança de dois metros.

Vinte dias passaram, os víveres escasseavam, Censório andava nervoso, e os lanceiros já olhavam com apetite para os bois que carregavam as carroças da impedimenta. Até que, numa manhã gélida de Março, um alano da guarda real do rei Réquila, escoltado a cavalo por Censório e Frantano e seguido a pé pelos capitães das seis centenas, dirige-se à Porta Quirina, do outro lado da cidade sem rio. Amarrava, pelos cabelos, a cabeça decapitada de uma criança de dez primaveras. Deu três voltas rituais com o cavalo, cuspiu para os portões e, empunhando a cabeça da criança bem alto, bradou para os teimosos sitiados:

- OLHAI BEM O QUE PROVOCA A VOSSA CASMURRICE! A PARTIR DE HOJE, SE NÃO CAPITULARDES E ABRIRDES OS VOSSOS ARMAZÉNS, NOSSO REX RÉQUILA ORDENA QUE DEPREDEMOS TUDO EM REDOR DA VOSSA CIDADE! O CHEIRO DAS FOGUEIRAS DA MORTE CHEGAR-VOS-Á A VOSSOS IMUNDOS NARIZES TODOS OS DIAS, ENQUANTO CEAIS DESCANSADOS E ACONCHEGADOS DO FRIO DENTRO DA SEGURANÇA DAS VOSSAS MURALHAS! - Posto isto, atirou com a cabeça da menina para a porta, retirando-se. Os suevos exultaram todos: alamanos, hermonduros e cuados, guardiões da Porta Quirina, davam cambalhotas no ar, como tentativa de mostrar aos sitiados que não estavam a brincar. Aurélio Caio regressou e pôs-nos a par da decisão do rei. O grosso do exército suevo andava mais a norte, na fronteira com a cartaginense, a nós só nos restava esperar e cumprir o estipulado ditado pelo rei Réquila, doente em Mérida, comandando à distância seu filho, Requiário.

Aurélio Caio voltou incomodado e constrangido e ordenou:

- Terra queimada! A partir de amanhã, uma centena por dia fará razias. Têm que voltar com alimento! E lembrem-se, terra queimada!

Terra queimada. O búrio sabia bem o que era terra queimada, seu pai praticou-a aquando das guerras suevo-gallaicas, há 15 anos. "Filho! Na terra queimada não deixes nada de pé, matas os homens, violas e esquartejas as mulheres, empalas as crianças, saqueias e aniquilas pelo ferro e fogo como forma de forçar a paz. "

- Como forma de forçar a paz, pai?

- Sim filho, como forma de forçar qualquer coisa. O exército romano nunca deixou de praticar isso e os germanos não lhe ficam atrás. - Terra queimada! Terra queimada...

Se só pilharmos as aldeias os habitantes podem dar-se por contentes... O búrio, em estado alterado, repetia as mesmas frases vezes sem conta. Perdido em si mesmo, olhava o vazio, enquanto tirava o farrapo de seda que lhe enformava a cabeça e soltava o longo cabelo castanho claro para untá-lo com uma mistura de cinzas, terra barrenta e henna, para ganhar um tom avermelhado, como os seus antepassados teutões faziam. Uma mocinha o observava timidamente à beira-rio, Malho não lhe prestou atenção, mergulhando o turfo de cabelos na água corrente. A mocinha aproximou-se, corando das faces. Malho mirou-a observando seus pequenos seios querendo rebentar dajusta túnica e seu corpo delgado movimentando-se cautelosamente para ele.

"Terra queimada, terra queimada. " A frase ecoava pelos intrincados labirintos da loucura, enquanto se deliciava com a visão dos pontiagudos e duros mamilos da menina que para ele a medo se dirigia. Havia já algum tempo que ela o observava.

Lembrou-se que ainda era bem parecido, de peito ao vento, com as gadelhas soltas e uma estatura invejável. "É, talvez seja por isso. " A mocinha ofereceu-lhe uma pequena tina com azeite, dizendo:

- Toma, é para untares as pontas dos cabelos, para não quebrarem. - Realmente, as gadelhas estavam secas e ásperas. Malho, agradecido, tentou esboçar um sorriso. Não conseguiu. As faces do rir lá ficaram, na terra búria. Tentou novamente, a pele tem memória, as faces recordaram-se dum sorriso e iluminou-se perante a faceira mocinha. Molhou os dedos no azeite e começou a olear as pontas do cabelo. Era natural que os rijos bárbaros exercessem alguma fascinação nas hispânicas.

- Queres-me untar o cabelo? - pergunta o búrio. A rapariguinha, envergonhada, desata a correr. Ele vê suas magras pernas sustentarem um redondo e forte rabo. A besta assume- se: "Quero violá-la! OH, HEL! Como quero violá-la! "

Malho desata a correr e apanha umas papoilas da terra, chamando pela mocinha. Ela aguarda-o, oferece o improvisado ramo à mesma, ela aceita-o olhando à volta com medo da corte do bárbaro, depois enfia-se na azenha hospitalar. Ela é da aldeia que está a ajudar os clérigos, a única aldeia que irá ser poupada à terra queimada. Ele sente dó da aldeia, da rapariga, dos clérigos e dele mesmo por a besta estar a ganhar terreno dentro de si.

Um ano volveu, o cerco continuava...

Afastados trinta estádios estavam da cidade. Discerniram uma cerca paliçada ao longe. Britae fazia as vezes de batedor, chegou arfando e informando:

- Um cerro de gado, bastante gado e as gens escondidas nas casas! - Aurélio Caio tomou a dianteira e mandou marchar a dois. Entrariam no redil tomando o gado. Malho dirige-se a Britae:

- Não tens que tomar parte disto, não és lanceiro.

- Mas sou vosso servo, para o bem e para o mal.

Entraram, rebentando com o portal e bradando gritos de terror.

- Vocês! Rebentem com os portais e reunam o gado lá fora!

Vocês aqui queimem tudo e matem quem estiver dentro das casas - ordenava Centurião Frontolo. O búrio, Zoltan, o manco Analkon e Cardamiro dirigem-se a uma das casas, à entrada da qual uma enorme cesta continha uns quinhentos quilos de painço. Ele mete uma mãozada à boca logo empurrada pela água do cantil.

- Vamos levá-la - diz Zoltan, calculando o peso da mesma. Temos que arranjar uma carroça. - Berulfo e Donelle já traziam a mesma atrelada a uma mula, mas a mula estava incontrolável com a algazarra, os gritos dos assaltados e o atear do fogo às casas. De repente, ouve-se algo de dentro. Malho e Zoltan param de mexer com a cesta.

- Está alguém lá dentro - diz Berulfo, controlando pelos arreios a excitada mula. Cardamiro foi o primeiro a desembainhar a espada.

- Temos que entrar! - diz o mesmo. Malho desembainhou a lua desocultada, a espada de seu pai. Esperaram, de armas enristadas, o valente pontapé com que o alano derrubou a caduca porta. Entraram de rompante os três. Lá dentro, uma moçoila deixa cair seu rebento redondo no chão, Zoltan amarra-a e deita-a na mesa.

- Anda cá, minha linda!

O bebé, no chão, bradava um choro lancinante. Cardamiro corre atrás de uma velha pela cozinha adentro, quando a alcança espeta-lhe o gládio nas costas e depois continua impassível a pesquisar a cozinha. Zoltan não consegue controlar a moça. A criança não parava de chorar. Malho leva as mãos à cabeça gritando: "Cala-te, cala-te! ". O bebé não pára, roxo de esforço.

- Cala-te! Cala-te! Não aguento mais! - gritava Malho, volteando violentamente com a cabeça. Berulfo entra, e, juntamente com Cardamiro, perseguem mais alguém na outra divisão. Gritos de pânico se ouviam. O bebé não parava.

- Cala-te, cala-te, já disse para te calares! - Enterrava agora sua espada no recém-nascido, sua pele imaculadamente branca e sua tenra carne abriam-se perante o ferro impiedoso. O sangue virgem espirrava-lhe na cara. De repente, um grito obrigou-o a parar, o alano ainda estava tentando controlar a moçoila. O búrio, com a testa manchada de sangue virgem, deixa a criança inerte com o corpo aberto e tomba em cima da moça amarrando-lhe os pulsos. A moça era parecida com Flausina, a rapariga a quem ele dá as papoilas e fala, ao cair da tarde, à beira-rio. Tanto melhor! Ouve o alano dizer, amarrado aos pés da virgem:

- Força, búrio! Ofereço-ta toda! - O búrio tentava beijá-la na boca, ela morde sua língua, Malho cospe sangue e dá-lhe uma violenta cabeçada a ver se a moça acalma; ela fica tonta, mas não desmaia. Só consegue pedir:

- Não! Não, por Maria! Não! Piedade. - O búrio não ouve, de membro enristado força a entrada em seu tesouro, não consegue. Pede ao alano: "Abre-lhe as pernas! ". Zoltan pede ajuda a Cardamiro, que vem a petiscar uma coxa de galinha. De imediato pega numa perna da moça. O búrio já tem espaço para saciar a sua demência.

- OH! Flausina, minha inocente Flausina! - No fim da desfloração retira-se da habitação, olha de relance o corpo aberto da criança a servir de pasto para as moscas. Donnelle pede ajuda para pôr o painço na carroça, o búrio vomita com a lembrança do corpo aberto da criança, prostra-se dejoelhos a vomitar e a chorar. Aurélio obriga-o a pôr-se de pé com uma vergastada nas costas.

- Ei, tu, recolhe as galinhas e os mortos para os empalarmos defronte dos portões da cidade. Malho olha as casas a arder em redor, saca da adaga e encosta-a à barriga. "Não! Não vou fazê-lo aqui, vou fazê-lo sozinho, à luz do luar! "

As carroças que recolheram estavam atulhadas de gaiolas com galinhas e mortos para serem empalados defronte dos portões da cidade. Passaram por Flausina e os clérigos na azenha abandonada. Vespertino e seus irmãos puseram-se de joelhos a rezar pelas vítimas. Flausina só olhava seu amor suevo, coberto de sangue sem a conseguir encarar. Aurélio Caio ordena que empalem os mortos, dirigem-se às estacas, aves necrófagas pairam no ar ao entardecer, ao cair da noite. Ele pega no corpo rijo da sósia de Flausina, os rios que brotavam dos sacos lacrimais enlameavam-se na imundície da pele, formando veios no pescoço.

Antes de deixar cair o corpo de Flausina pela estaca adentro, beija-a nos lábios azuis.

-Adeus, doce Nabia, mais tarde te seguirei. - Depois, dirigem-se às carroças, para retirarem as galinhas e distribuírem pelas dezenas. Cada centena estava dividida em dezenas, dez homens que dormiam à volta da mesma fogueira e combatiam lado a lado, compartindo tudo. Em cima duma gaiola de galinhas estava o corpo do recém-nascido que ele matou às cutiladas. "Não, ele não seria devorado pelas aves! Iria ser sepultado à maneira cristã, debaixo da terra, para ser devorado pelos vermes, aguardando a ressurreição do messias deles. "Pega no corpo da criancinha, embalando-a no peito para não a acordar. Dirige-se a Vespertino, os outros monges viram-lhe as costas e recolhem à azenha hospitalar. Apenas Vespertino ficou, e Flausina ao longe, assistindo.

Vespertino, com uma veste branca, proferia, num latim vernáculo entendedor para o suevo, a história da ressurreição de Jesus após seu martírio em Jerusalém. Malho, inconsolável, enterrava com as mãos o rebento, ouvindo o lamento de Flausina, também de joelhos. Vespertino falava da morte de Jesus, pela hora nona. "Não admira que eles tenham tanto cuidado com as trindades. "

- Pai, nas Tuas mãos entrego o meu espírito. Dito isto expirou... "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! " Estava quase a amarrar-se a Vespertino a pedir para baptizá-lo, para que a sua vida começasse de novo. Mas um deus anterior e temível emergia do fundo da floresta negra que é o seu íntimo pedindo contas, um deus barbudo, alvo e escamado impedia-lhe de cometer tamanha traição com os seus arianos antepassados. Vários corvos se acercavam a si, mirando- o. Enformou o montículo de terra que constitui o sepulcro do inocente e cimentou-o com pedras para que os corvos de Wotan não desbravassem a terra à procura do repasto. Vespertino conclui a ascensão do Senhor em presença dos onze apóstolos. Depois abençoa o túmulo, e abençoa Malho. A conversão iria esperar, Wotan, Zio e as valquírias ainda reclamavam o seu servo. Vespertino retirou-se com a papoila. Malho voltou aos seus, sentindo a garganta espremida por mãos invisíveis e um enorme peso nos ombros. Ele sabia bem o que aquilo era, só que deixou de tomar precauções ou consultar feiticeiros, deixou de se importar, era apenas um farrapo ambulante ao sabor do vento, entregue às feras da noite, era um maldito que deambulava no escuro penando com o espectro de Nabia enraizado no seu interior.

Gritos vitoriosos se ouviam no campo suevo. Os córdubos tinham capitulado e aberto os portões da cidade. Os alamanos preparavam uma enorme cuba de cerveja, e trinta bois eram preparados para o festim da amarga mas decisiva vitória. O ambiente fez lembrar ao búrio um episódio da triste balada dos nibelungos: o festim com que os hunos recebiam Hagen, Gunter e seus burúngios, antes da cilada, devia ter sido igual a este, enormes bois rebolando no espeto e uma enorme cuba sendo construída no meio do campo, iluminada por gigantes fogueiras.

- Hei, búrio! - O ébrio Analkon, o brido geresiano, amarrava-se a Malho, contente. - O dia é nosso. O cerco acabou!

- O dia é nosso - repete Malho. "Mas à custa de quê? De trezentos aldeões empalados? " Afasta-se das fogueiras e dirige-se ao rio que reflectia as mesmas. Encontra uma ilhota de areia e deita-se, de braços estendidos para o infinito, prestando homenagem às constelações que no alto, serenas e impassíveis; continuavam indiferentes aos acontecimentos terrenos. Seu avô dizia-lhe que eram nómadas das estepes, que com as suas fogueiras iluminavam o tecto do mundo. Os cristãos geresianos diziam que eram hunos que vinham comer os seguidores de Pedro. Velhos tempos esses, velhos tempos na montanha. Os sons dos gaiteiros chegavam distantes, tais como os dos homens a encherem a cuba com tudo o que encontram à mão. Sentiu-se enlaçado. Porra! Além de ter os dois espíritos das vítimas às costas e um espectro vândalo, alguém o está a enlaçar. Ergue-se, a custo, com os braços encolhidos e cordeados por uma corda invisível. Seus olhos sondaram o Noroeste. Alguém do Noroeste, um feitiço feminino! Sim, os bruxos-guerreiros não fazem feitiços assim. Desfaleceu, enlaçado. Todavia, imerso no desfalecimento, permanecia consciente movendo-se nas areias do inconsciente. As mãos continuavam amarradas ao seu pescoço, como bandeiras sustentadas pela haste. Evoca o espectro do arqueiro vândalo, segundo uma fórmula ensinada pela sua mãe, uma feiticeira geresiana:

Era cum, dras rum Tan mordoch ein hum

Mentalizou a saída do seu corpo-receptáculo, conseguiu-a. O hediondo arqueiro de mão decepada afastou, com uma cimitarra, os espíritos das vítimas das costas do fantasma Malho. Imersos nas águas permaneciam. Malho vê os espectros das duas vítimas afastarem-se nas águas do esquecimento, sente-se mais leve, já podiam iniciar a viagem astral. Enlaçam as mãos e dirigem-se para Noroeste, para a mais antiga terra ibérica. Viu seu corpo, deixado de braços estendidos para o infinito, no meio da ilhota de areia, as distantes fogueiras retinham-se fugidias na retina. Na retina? Já não era corpo, era apenas luz e velocidade, movendo-se em ondas. Chegaram pairando, o fantasma Malho reconheceu o mítico altar dos cabrões, a altura assustava-o. O vândalo serenou-o e deixou-o a planar, a planar sobre um pentagrama gravado no chão, com estranhas cruzes rodeando-o. Uma taça, uma espada, um garnisé preto degolado, um livro e um estilete nas pontas da estrela estavam colocados. No centro da estrela estava o anel de prata que lhe ofereceu, por cima de uma mecha de cabelos seus, e à volta da mecha e do anel estavam símbolos célticos ocultos. Em seu estado espectral, Malho é apenas luz e velocidade, daí que o pensar racional tenha ficado em seu corpo, a 600 milhas de distância. Aqui e agora só pode visualizar e reter, visualizar e reter... Retinha Nabia a aparar-lhe os cabelos com uma tesoura de poda das ovelhas. "Meu carneirinho, mééé, mééé! É tudo tão fugidio quando somos espectros, espero que a bruxa não me acosse com a espada, dizem que a dor é terrível! " Nabia estava chorando de cócoras, e perguntando: "Porquê? Porquê? ".

O fantasma Malho tenta tocá-la, o garnisé degolado levanta-se e deambula sem eira nem beira. A bruxa, apercebendo-se da presença do espectro, toma a espada e sacode o ar. Malho sente seu pé a ser puxado pelo vândalo, teriam que partir, evitando o aguilhão do metal. Malho só pergunta: "Porquê, porquê? ". De volta ao festim córdubo regressaram. O vândalo, de propósito, atira-o das alturas para a ilhota. Seu corpo desperta violentamente, recebendo seu espírito. A união dos dois é dolorosa.

- Aiiihh! - Um arrepio percorre-lhe toda a espinha, e uma enorme dor de cabeça assume-se nas têmporas. Levanta-se a custo, depois da desastrada viagem astral. Enlaçado, retorna à festa, parece-lhe que vê nas labaredas a forma do arqueiro vândalo pedindo-lhe a mão. "Vai-te embora, maldito filho da estepe! A hedionda guerra ainda não acabou? "

Um ano passou.

 

Avito e os seus gotões tinham sido empurrados para o norte. Era intenção de Requiário expulsá-los além Pirenéus. O delfim apostava agora tudo numa grande final batalha contra os quinze mil cavaleiros gótico- romanos. Todo o exército disperso estava assim a ser reunido e encaminhado pelo interior profundo da meseta ibérica, para sejuntar aos cavaleiros de Requiário, algures nos campos segovianos, à sombra da grande serra.

A noite ia alta, e o exército marchava a bom ritmo, imerso na escuridão. Herm, o comandante das centenas dos búrios, acompanhava-os, o que era estranho, cavalgando dum lado ou de outro, ou atrás, na retaguarda, atrás dos gascões. Herm não gostava dos gascões, dizia-se que ele violou uma filha dum chefe gascão e não quis assumir responsabilidades; dizem que os gascões juraram-lhe morte. Malho não se sentia bem com Herm rodeando a centena, lá fora, como um predador, à espera de algo.

Alta madrugada. Era dificil manter a coesão dum exército em andamento, muitas vezes as centenas isolavam-se umas das outras, na cerrada noite.

- Capitão, capitão! - chamava Donnelle, vindo da retaguarda búria.

- Os gascões! Desapareceram!

- Não pode ser. Apenas se atrasaram, só isso... - contrapõe Aurélio, habituado ao andamento atabalhoado das centenas.

- Mas, capitão! Há três horas que não aparecem atrás de nós!

- informa Donelle, apontando para a retaguarda.

Aurélio ordenou então o cessar da marcha, destacou um homem para informar o caudilho de que os búrios parariam à espera da vintena dos gascões. Esperando ficaram, ouvindo à volta o esbracejar dos morcegos à procura dos insectos. Ouvindo o piar das corujas ou algum imaginário som de cavalos ocultos a relinchar prontos para uma traiçoeira emboscada. Estavam todos nervosos no meio de terra hostil afastados da segurança do grosso do exército.

- Capitão, não é seguro ficarmos aqui expostos, já passou uma hora - avisa Malho.

Realmente, os gascões não se podiam ter atrasado tanto, algo maléfico aconteceu com eles.

- Malho! Leva Britae, que é um bom batedor, escolhe mais três homens e vê o que aconteceu aos gascões. Nós teremos que continuar, não é seguro estarmos aqui como cervos entre lobos.

- Muito bem, capitão. - Aurélio já se habituara a que lhe chamassem capitão, à medida que deixava crescer as gadelhas e as barbas.

- Berulfo, Cardamiro, venham comigo - chama Malho. Faltava-lhe mais um. "Mas quem? Quem? Donnelle. Não, é muito novo. Eiron, Esdulfe? O manco Analkon? Sim, ele. "

-Analkon! -Apesar de coxo, corre melhor que muitos. Malho ainda sentia dores na anca de ter recebido com um cavalo em cima faziajá dois anos.

Malho e seus quatro companheiros vêem a centena a retomar caminho com desejos de boa sorte de seus irmãos de guerra. Malho abraça Britae, e pede-lhe:

- Conduz-nos, Britae, mas sem tochas.

- Mas senhor? Como quereis que eu bata o terreno se não posso ver? - contrapõe Britae. O gallaico decidiu ficar sempre ao lado do amo depois da violação da sósia de Flausina. O amo apresentava sinais de demência e suicídio, e Britae estava disposto a zelar pela vida do amo, assim sendo deixou as cabras que sustentavam o exército para tomar conta do seu gado mais precioso.

- Eu irei conduzir-vos! - declara Analkon, o obscuro geresiano, tomando o bastão de pastor a Britae.

- Mas como, no meio das trevas? - pergunta, preocupado, Cardamiro.

- Eu sou o sétimo filho de um sétimo filho. - Dizendo isto, inicia a caminhada cega. Ficaram todos a olhar à espera da ordem de Malho, que instintivamente manda seguir Analkon. A Lua, apesar de oculta por nuvens compactas, proporcionava uma difusa claridade que permitia discernir a forma coxa de Analkon galgando caminho com o bastão. Andaram bastante tempo, com a névoa como testemunha. Analkon pára, Malho levanta a sinistra, mas, no meio da escuridade, isso não é suficiente para no cego grupo não se atropelarem uns aos outros, provocando grande alarido.

- Chuiii! Pouco barulho, raios! Meu pé, Berulfo! - Malho dá uma estalada a Berulfo, só que não foi Berulfo que a recebeu, mas sim Cardamiro, que se atira ao seu pescoço, descontente com a chapada. Berulfo tenta apartá-los. Enquanto Britae e Analkon, indiferentes à peleja, tentam decifrar o solo não visível.

- Tenho que acender uma tocha - constata Britae.

- Malho! Temos que acender uma tocha. Malho! Malho! Que se passa aí? Façam pouco barulho, por Endovellicus! - alerta Analkon, tentando ver Malho, no meio dos três beligerantes suevos. Por fim, os três acalmam.

- Não consegues decifrar o solo? - pergunta Malho a Analkon.

- Não sou batedor - responde o brido.

- Pois bem, faça-se luz! - As pedras brancas que Britae guardava na sacola roçavam-se uma na outra, obrigando as faíscas a inflamarem o pedaço de túnica embebida em azeite que envolvia a cabeça de uma lança. Já com luz, Britae deduz:

- Marcas de cavalo e sangue, houve aqui peleja. - Sonda o terreno mais à frente. - Corpos a serem arrastados, muitos homens. Britae aponta para a saída do caminho: - Muitos homens mesmo!

Os sinais não eram favoráveis a que continuassem a procurar os gascões, com certeza caídos nalguma tocaia. Decerto todos pensavam o mesmo que Malho: desistir e apanhar o exército; afinal, eram só uma vintena de gascões. Mas ninguém disse nada, rezando todos para que ele, o chefe da expedição, desse a ordem de retirada. Ele cogitava, olhando, ora para o vazio assinalado por Britae, ora para a luz da cada vez mais fraca tocha.

- Britae! Apaga a tocha e assinala o caminho a Analkon! Brido, toma a dianteira e segue as pistas! Vamos às escuras, formem uma fila e amarrem-se à haste da lança do companheiro da frente. Sempre que alguém romper a cadeia, pararemos!

Britae apontou uma acentuada subida salpicada de oliveiras e pedregulhos. A perigosa caminhada às escuras começou, perigosa porque cada companheiro estava com as mãos ocupadas, porque além de uma mão estar amarrada à haste da lança da frente, a sua própria lança era limitada no movimento pelo companheiro de trás que a amarrava na ponta. Era pior que andar algemado, várias quedas se deram, Cardamiro feriu a face e Berulfo esfacelou um braço numa lâmina cortante. Todavia, gritaram em silêncio. O sétimo filho avisava como podia para evitarem as silvas, ou um mortal buraco. Começaram a ouvir-se vozes, vozes e cavalos. Analkon desfez o comboio, foram-se agachando e subindo lentamente a tenebrosa escarpa, aninhados feito pumas, que, ocultos, observam a caça. A princípio não distinguiram nada. Depois, os olhos começaram a habituar-se à luz dos archotes e da fogueira. Os cavalos góticos estavam alinhados e amarrados pelas rédeas numa grossa corda. Várias pessoas parlamentavam. Foi então que se foram apercebendo do incontável, do inaudito, da tamanha desonra e vergonha que um irmão de raça pode fazer a outro. Malho nem queria acreditar, faltava-lhe o ar. "Tudo menos isso, tudo menos isso. Como se pode cometer tamanha traição? Em troca do quê? Do ouro? "

A princípio não quiseram reconhecer o demónio loiro regateando com os ursos, mas depois sim. Era Herm, encoberto pelo medonho estandarte do urso. A dez passos deles, dez gascões estavam amarrados, seus olhos vendados, mais atrás os ursos cavavam uma vala comum para os gascões que pereceram na emboscada, pareceu-lhes que enterravam alguém vivo. Nem puderam raciocinar. O marcomano, caudilho dos búrios e confidente de Requiário, estava a vender como escravos membros da mais antiga estirpe suávica. Não podiam fazer nada, os ursos deviam ser mais de cinquenta, a julgar pelos cavalos, e quem sabe se estariam mais escondidos? Apenas podiam ouvir a agonia de alguém ferido a ser enterrado vivo. Malho, hoje em dia, ainda o ouve. Com as lágrimas nos olhos ordenou a retirada, suave e silenciosa. Com as lágrimas nos olhos, e em segurança, fizeram um juramento de sangue num perfeito círculo, os juramentos devem ser feitos num perfeito círculo sem mácula. "Nosso comandante traidor veria o fio cruel da nossa navalha. " Regressaram, cabisbaixos e tristes, resolveram não dizer nada ao capitão Aurélio nem ao caudilho Odro. Isso iria semear a confusão e a desconfiança entre as altas esferas do poder, ainda por cima numa altura tão essencial como esta. De regresso ao improvisado acampamento, às portas de Toletum, não comeram, nem beberam.

- Que foi? Parece que viram um fantasma! - comenta, em jeito irónico, centurião Frontolo.

- Antes fosse, antes fosse - repete Analkon.

  1. " Olimpíada

Ano de 446

  1. XXII. Iiito, eleito mestre de ambas as milicias, foi enviado às Espanhas apoiado por um não despiciendo corpo de tropas auxiliares. Tratava duramente a provincia cartaginense e a Bética; porém, aproximando-se dessasprovincias os suevos com o seu rei, derrotados também em combate os godos, que tinham vindo em auxilio de ito, que procedia a depredações, Uito, tomado dum terror e dum pânico digno de lástima, esgueira-se. A partir daí, os suevos entregam-se à vasta pilhagem e à subversão dessas provincias.

Crónica de Idácio

 

A grande serra estava exposta ao longe, como um pano de fundo irreal onde se desenrolaria uma grande batalha; seus picos desolados estavam cobertos de neve. À frente dos dez mil homens, os enormes campos segovianos iam lentamente subindo, até, longinquamente, tornarem lentamente a descer. Corriam os boatos que cinco mil cavaleiros estavam além da nossa vista, lá longe, na suave descida oculta dos campos.

Todos os homens, que combatiam a pé, estavam finalmente reunidos. Dez mil homens, entre peões e lanceiros, arqueiros e fundibulários, alinhados segundo estirpes e nações, numa manhã fria de Março, esperando a morte montada a cavalo. Era grande a algazarra, os gaiteiros não paravam de tocar, e cada estirpe iria entoando seus hinos como forma de passar o tempo e enganar a fome. A estirpe búria estava finalmente reunida, como há muito tempo não estava desde que deixaram Bracara Augusta. "Quantos búrios teriam perecido em solo hispânico? ", perguntava Malho entoando uma canção beligerante com seus búrios.

Arautos cavaleiros surgem da esquerda procurando o caudilho Odro, os búrios vêem-nos, juntamente com os outros suevos, cavalgando velozmente para o lado dos luso-romanos. As notícias que eles trariam ainda demorariam a chegar, o caudilho Odro ainda teria que comunicar ao dux Malbras, o supremo comandante dos 10 mil homens, e só depois é que chamaria os restantes capitães. Mas como as notícias correm como fogo, decerto saberíamos mais depressa pelos luso-romanos do que pelo nosso palentino capitão, Aurélio Caio Frontolo.

Agora, uma leve névoa de poeira ia-se formando do lado dos gallaicos, conseguia-se ouvir cascos martelando o solo e provocando mil vibrações na terra. Os gallaicos bradaram:

- A CAVALARIA ESTÁ A RETIRAR, ESTAMOS COM OS FLANCOS DESPROTEGIDOS. - Não era agradável estar sem cavalaria por perto. Centurião Caio chegou a arfar juntamente com caudilho Odro a cavalo. O caudilho cavalga apressadamente para a ala dos gallaicos, para apaziguar a confusão que alastrava por todo o exército, devido à retirada da cavalaria. Aurélio Caio chegou com a notícia.

- A BATALHA TERÁ DUAS FRENTES! A CAVALARIA DO DELFIM VAI ATACAR OS ROMANOS DE AVITO A 10 MILHAS DAQUI, NÓS FICAREMOS COM OS GODOS!

Nós ficaríamos com os ursos de Teodorico. Sem a segurança da cavalaria, apenas peão contra cavaleiro, centauro contra homem. Malho ficou a detestar os cavalos, talvez por ter que os chacinar. Era lanceiro, não podia fazer outra coisa. Os cavaleiros detestam os lanceiros, chamam-lhes carniceiros e caçoam deles. Cavaleiros e lanceiros nunca se deram bem. Uns são ricos, outros pobres.

Dux Malbras, caudilho Odro e mais dez cavaleiros posicionavam-se a cerca de 500 metros das linhas, corrigindo o alinhamento das estirpes, preenchendo as fissuras. Não podia haver espaços vazios, isso era fatal; destroçando as fileiras o pânico era facilmente semeado. Malho olha pelo ombro para trás. "É, estamos compactos como porcos aguardando o matador. " Os campos segovianos eram ocres, um ocre suave que condizia com o branco acinzentado da serra-mãe.

- Os gigantes devem estar constipados - dizia Berulfo, olhando os narizes gélidos das montanhas. "Ocre, os olhos de Nabia eram ocres, imensamente ocres, suavemente ocres. Eram bons campos, rasteiros, com o centeio e o trigo em fase de crescimento. OH! Como a Hispânia é rica e vale a pena lutar por ela. " Lutar por ela. É o que iria fazer à medida que via uma abissal onda de poeira formar-se ao longe, no topo dos campos. As milhentas gralhas esvoaçavam para nós, acossadas pelas ondas; vimos chegar as gralhas, e vimo-las desaparecer atrás das nossas cabeças. O rapaz Donelle estava nervoso, demasiado nervoso, olha para o veterano Malho, ele sorri tentando incutir-lhe con fiança. Donelle tornou a olhar para a onda engolindo em seco. Malho pôs seu elmo na cabeça, acariciando a mão morta que o decorava e prometendo:

- Depois disto ficas livre! - Depois apertou a correia ao queixo e apartou as incómodas e longas barbas, para não ficarem presas na correia do elmo e não provocarem dor. Desembainhou a adaga negra e segurou-a pelos dentes, mordendo o seu cabo. Empunhou seu clípeo e ordenou a seus companheiros, com a cabeça, colocados à direita e à esquerda, que encaixassem os escudos de modo a formarem uma compacta barreira de vime, couro e bronze. Encostaram os ombros, enquanto a onda se aproximava, enristaram as lanças de dois metros com que receberiam os cavalos. De repente, alguém a cavalo ordena:

- Fundibulários, arqueiros e dardos, cheguem-se atrás.

- Vamos lá! Porque esperam? Rápido! Eles estão em cima de nós! - avisa o escamado centurião Frontolo, batendo com o gládio em seu clípeo encarnado. Malho desenvencilha-se de seus herméticos companheiros, descontente com a decisão do superior de deixá-los. Mas ordens são ordens, e o búrio lá se alinhou na retaguarda da linha com os fundibulários lusos e os archeiros gallaicos, preparando seu pontiagudo dardo e evocando Watz, o espírito da montanha, que de longe assistia à sua triste balada. Dispararia dois dardos e depois tentaria chegar-se à frente da linha, onde agora se ouviam gritos de encorajamento. Começa a sentir a trepidação do solo provocada pelo aproximar dos cinco mil cavalos, começou a tremer e trincou o lábio inferior para controlar o nervosismo. Os perfeccionistas archeiros gallaicos atirariam rasando as cabeças das lanças dos peões, para assim atingirem os primeiros cavaleiros a aparecerem, poupando a linha da frente ao duro embate, mas seu dardo oscilava devido às tremuras, decidiu então elevar o ângulo de tiro. Assim conseguiria sempre despedir o dardo com sucesso e apanharia alguém, decerto. Os gritos de encorajamento eram abafados pelos cascos dos godos que chegariam em massa às nossas linhas, o clamor aumentava, aumentava. Ele olhou para um superior a cavalo. "Mal ele descesse a dextra, dispararia. " Seu dardo estava irrequieto, ele continuou a premir os lábios com os dentes, sua barba ficava agora rubra na zona do queixo. Os gritos dos godos misturavam-se agora com os nossos, a poeira além peões era tanta, tanta. O superior baixou violentamente a dextra, suevos, gallaicos e luso-romanos despediram as bestas, ele despede o dardo e saca das costas o segundo, mas mal mete a correia do dardo na extremidade da haste o espectro do arqueiro vândalo empurra-o para baixo, evitando que seja atingido por um machado de arremesso com que os godos os brindam. Agachado dejoelhos, prepara o segundo dardo, enquanto que os machados góticos iam despedaçando a frente dos archeiros.

 

- POR WATZ! - grita, dedicando o tiro ao grandioso espírito da montanha que, da sua morada gelada, assistia, superior, à carnificina.

A onda encontrou o paredão, alguns cavalos voavam ultrapassando os primeiros lanceiros e caindo descontrolados, esmagando outros. Malho lembra-se do cavalo que apanhou em cima, doem-lhe as pernas, encostado está, de lança enristada, aos "velhinhos". Os mais idosos ficam no fim da linha, os mais novos no meio, para evitar as fugas, e os veteranos no princípio. O estandarte dos búrios foi arremessado. Atrás de si, encostam-se agora os archeiros gallaicos e os fundibulários lusos desembainhando as suas falcatas. A linha está compacta. À frente a peleja era abominável, nossos suevos batiam-se com ardor e fulgor, os cavaleiros góticos não lhes ficam atrás. Donde estava Malho, apenas podiam assistir e esperar a sua vez. Tinham que aguentar as linhas, aguentar as linhas era essencial. Os gotões

começaram a fazer pressão empurrando os lanceiros para a cerrada linha de Malho, os velhinhos, arqueiros e fundibulários eram agora pressionados para trás, os gotões obrigavam os cavalos a darem coices com as patas da frente, um caudilho qualquer grita:

- FINCAR PÉ! POR ZIO, NÃO ABALEM DO LUGAR! Malho empurrava o companheiro da frente e era empurrado por trás, o jogo do empurra devia ter durado horas, só que o nosso lado estava a perder, os lanceiros mais à frente estavam a ser trucidados. Caudilho Odro, vindo da retaguarda com reforços hispalicos, recorre à ultima hipótese antes de ver a linha desfeita:

- DIAMANNTEEEE! -A linha tentou fragmentar-se, só que para a frente era impossível. Assim, recuamos todos, para podermos contra-atacar, só que os godos não davam espaços, estávamos lentamente a recuar, a perder consistência, e Odro o empalador estava apanhado na confusão de cavalos e homens entalados entre si, tentando lutar pela vida.

- Empurrem! Empurrem! - alentava Malho à grei combatente.

- Estamos a ceder! Estamos a ceder! - gritavam alguns. Malho olha para trás, vê as centúrias de Hispalis inactivas aguardando ordens de Odro. Malho deixa a pressionada linha e dirige-se ao comandante das centúrias, que, nervosamente, tentava controlar sua montada. Era muito novo, demasiado inexperiente. Malho, com a armadura de escamas de sangue coagulado e ostentando um elmo com uma mão morta e enormes barbas, devia provocar no jovem comandante dos hispálicos medo e respeito. Malho só lhe disse:

- Desmonta do cavalo rapazinho, eu sou caudilho Odro! Posto isto, cuspiu para o chão o sangue do lábio rebentado. O rapaz desmonta do cavalo a tremer; aquela deve ser a sua primeira batalha. Malho, montado a cavalo, procura os veteranos centuriões, acena-lhes sem nunca tirar os olhos da linha que estava prestes a ceder. Os veteranos centuriões acercam-se do falso caudilho. Malho sabe bem o que há a fazer.

- AS LINHAS VÃO CEDER, QUERO QUE FORMEM COLUNAS COM ESPAÇOS AMPLOS PARA OS HOMENS RETIRAREM E FORMAREM ATRÁS DE NÓS. QUERO QUE PONHAIS HOMENS DA VOSSA CONFIANÇA A OBRIGAR OS RETIRADOS A CONTRA-ATACAR, NEM QUE PARA ISSO TENHAIS QUE USAR A ESPADA! COMPREENDERAM?

- SIM! CAUDILHO ODRO! - responderam os centuriões em uníssono. "Afinal, não é assim tão difícil comandar! ", cogita ele.

- À MINHA ORDEM, ATACAREMOS OS CAVALEIROS EM COLUNAS, COMO FACAS CORTANDO A CARNE! IDE! PORQUE ESPERAM? - Os centuriões foram, a linha estava quase a ceder, o que se passaria nas outras? A batalha devia ter umas cinco milhas de comprimento, era grandiosa. Os disciplinados hispálicos executaram o intrincado movimento sem dificuldade. Malho olhou para baixo para o destituído comandante empoeirado: "Tu, rapaz, monta no ginete e aprende". Dá-lhe a mão para montar e agarrar-se às suas espáduas. Depois, com o comandante hispálico às suas costas, dirige-se aos hispálicos:

- Nobres colonos imperiais! Esta é a batalha da vossa vida, se Avito e os ursos Gotões ganharem, vossa cidade será saqueada e vossas mulheres violadas. Se nós ganharmos, Hispális será a capital de um novo mundo, livre dos pesados impostos de Roma, vocês serão donos dos vossos destinos, é isto que os suevos vos darão! - Dito isto, ordena ao comandante:

- Brada o vosso grito - O rapaz comandante juntou todas as forças dos pulmões e bradou um grito de guerra latino, uma reminiscência da velha Gemina. Os hispálicos, moralizados, continuaram entoando o interminável grito, enquanto a linha cedia e os atropelados suevos, lusos e gallaicos passavam a correr pelos espaços das cerradas colunas hispálicas. Malho viu passar seus companheiros. Aurélio deteve-se, espantado, reconhecendo o elmo com a mão encimada. Malho riu-se para ele, depois desembainhou a lua desocultada, avaliou os ursos que para eles se dirigiam e ordenou:

- DIAMAANNNTEEEE! - Em seguida, esporeou o cavalo, o rapaz não se segurou e caiu redondo no chão, sendo ajudado pelo surpreendido e abismado centurião Frontolo. Os hispálicos e Malho investiam em força, os góticos não estavam à espera dos reforços de Hispalis. Malho encontrou-se com um cavaleiro, pelejaram ferozmente, só que nenhum abria a guarda. Outro cavaleiro acossa-o pelas costas, sua armadura escamada de sangue recebe os golpes que não lhe causam dano. Ele não pode combater a cavalo, está muito desamparado, combater no solo é a sua especialidade; entre os seus. Retira=se para o meio dos hispálicos, uma lança resvala-lhe no elmo, desmonta e assiste Odro. O agastado caudilho está sem uma mão, pede a alguém que o leve para longe das linhas. Repara no sol, que está quente e alto, consegue cheirar a futura Primavera, como é doce a loucura. Rodeado dos seus velhos companheiros está, pelejando, rompendo a lâmina da espada do seu pai. Vê Donelle ser trespassado por uma afiada lança. "Pobre rapaz, gostava de ter a tua sorte! " Ri-se e chega-se à frente. Analkon avisa: "Resguarda- te Adaga Negra, não te chegues à frente". Vê um urso decapitando Eiron, aborda o seu cavalo, montando-o, e rasga-lhe o pescoço com a adaga negra. De novo montando um corcel dos deuses está. Grita para a sua grei:

- COMBATAMOS, SUEVOS O DIA É NOSSO - Embrenha-se nos gotões procurando a morte, com a adaga negra e a lua desocultada. O suor toldava-lhe os olhos, havia cinco horas que combatiam. Rodeado de ursos estava, picando-lhes os lados. Os companheiros, Berulfo, Cardamiro, Britae e Analkon, perseguem Malho. Algures escondido, rodeado de gépidos, o capitão Aurélio, vendo o sair dos companheiros para salvar Malho, ordena aos búrios que avancem para a frente. Trinta búrios seguiam agora Aurélio, que perseguia por sua vez os companheiros de Malho. Os marcolinos, vendo os búrios rompendo as linhas, bradam aos céus:

 

- POR WOTAN, VAMOS AJUDAR OS BÚRIOS! Harudes, cuados e hermonduros, vendo as duas estirpes embrenhando-se nos francisques godos, decidem embrenhar-se também. Num ápice, toda a nação sueva abria valentes frechas e fissuras na destroçada cavalaria gépida-goda. Os hispálicos, luso-romanos e gallaicos não lhe ficaram atrás. Uma enorme clava humana semeava o terror nas montarias. Malho, rodeado portrês ursos, desmaiou, caindo da montada. Seus companheiros assistiam-no, acossando com as lanças os ursos. Malho é levantado, os cavaleiros góticos recuam, retirando-se uma milha para reagruparem. Era altura de, rapidamente, recolherem os corpos e organizarem as linhas. Malho, desperto com uma lapada, recolheu-osjuntamente com os seus companheiros, amontoando-os detrás das linhas. "Olha! Outro filho de Belesende morto! Coitado, já são quatro! " As trompas avisavam que gépidos, sidénios e turcelingos, que constituíam a nação goda, se estavam a formar para atacar. Malho foi empurrado para a frente por seus companheiros. "Raios! Perdi o elmo! " As três tribos góticas alinhadas estavam a meia milha. Cada cavalo era agora montado por dois homens. Nós conhecíamos aquela táctica, Ariovistus usou-a contra César. Todos alinhados, insultavam as três tribos góticas, batendo com as armas nos escudos, mostrando o rabo e fazendo sinais obscenos. A trompa medonha dos godos ecoou e eles investiram, nós ficamos quietos aguardando-os. Aproximaram-se, arrearam as montadas, a vinte metros de nós, e desmontaram. Dois cavaleiros em cada montada se tornaram peões e eram tantos que pareciam formigas, multiplicando-se à medida que desmon tavam. Depois, lentamente, foram aproximando-se, insultando-nos também. A dez metros, amaldiçoavam-nos na língua esquisita deles. Depois, na ala esquerda, começaram os primeiros reencontros. A dois metros deles estávamos, ninguém dava o primeiro passo, eram corpulentos e mais andrajosos que nós, as suas lançasjá acariciavam o clípeo de Malho. O exaltado Esdulfe investe, obrigando todos os suevos a segui-lo. Escudo contra escudo, espada contra espada, machado contra lança. Malho e seus companheiros estavam apenas habituados a combater cavaleiros, a luta entre lanceiros iguais é bem mais dificil. Dava resposta a três ataques, seu clípeo rompia-se lentamente, enquanto ele cutilava os broquéis góticos; numa dessas cutiladelas, a lua desocultada fica presa num broquel, Malho tenta desencaixar a lua, o inimigo aproveita para ceifar a sua cabeça desprotegida.

- A MIM SUEVOS, VOU SER MORTO! - grita, pedindo ajuda a seus camaradas. Instintivamente, eleva o clípeo, deixando a lua desocultada presa no inimigo. Mas a protecção não foi suficiente, a espada inimiga galga sua face rompendo o osso do maxilar e estacando violentamente na borda do clípeo. O inimigo cospe-lhe e empurra-o, ele cai de costas no solo lamacento. Esdulfe afasta o inimigo, brandindo uma lança, Malho põe-se de pé. Como o sangue continuava quente, não sentia a dor da face aberta, recuperou um francisque e voltou à peleja. Havia dez horas que combatiam. Ele apercebe-se da mudança da tonalidade solar, deviam estar no final da tarde. Os braços doíam-lhe e as pernas estavam cansadas, demasiado cansadas. Esdulfe recebe um mortal golpe no peito, a valquíria Brunilda acolhe-o, elevando-o no ar para o transportar à sala dos deuses. Malho está extenuado, retira-se da frente desguarnecendo as costas, defronte de si vê os monges a tratar os feridos, põe-se de joelhos ao lado de Analkon e Cardamiro, que descansavam para voltarem ao combate.

- Eles não cedem e nós também não - constata Analkon.

- Precisamos de reforços! - diz Cardamiro, arfando e observando a contínua e incessante luta. Analkon olha para Malho.

- Tens um golpe na cara, o melhor é ires ter com os monges - aconselha o brido. Doía-lhe imensamente o maxilar do lado direito; decerto o godo levou algum pedacinho de osso. Deitou-se virado para o céu, observando a lua minguante esbranquiçada que timidamente prenunciava a noite.

- Hoje foi um bom dia! - declara, mirando o céu. Os camaradas miram-no. - Hoje não pensei em Nabia. - Depois, levanta-se e observa a ainda longa linha da frente da batalha, apontando.

- Tomara que todos os dias sejam assim, ocupados. - Os companheiros nem sabem se hão-de rir ou não. Entretanto, chega o centurião Aurélio Caio Frontolo, vindo do hospital ambulante com uma ligadura na cabeça e bebendo água por um cantil, água essa que é pedida por Cardamiro e Analkon.

- Grande batalha, não, Adaga Negra?

O Adaga Negra deteve-se a olhar a interminável linha viva e exaltada. O sol, em fase descendente, reflectia os seus exíguos e derradeiros raios nas luzidias espadas da peleja. A montanha ia perdendo seus contornos, submergindo lentamente ao fundo, ao fundo.

- Sim, é uma batalha digna dos deuses! - concorda Malho. Entretanto, os esquadrões de cavalaria do delfim Requiário iam chegando em catadupa, os brados de encorajamento e vitória se ouviam cada vez mais alto.

- Coragem, meus nobres irmãos! O dia é nosso! - bradou Frontolo, desembainhando o ensanguentado gládio e obrigando Analkon e Cardamiro a porem-se de pé. Regressaram à peleja, moralizados com o reforço da cavalaria.

Os abutres pairavam no ar, mas era ainda cedo para se regalarem no chão. Ainda havia muita movimentação na desolada campina. Ao longe, no topo dos campos segovianos, ainda se deslumbrava as derradeiras perseguições aos góticos. Aqui e agora, é só cheiro a morte. Cheiro a morte entrando pelas narinas de Malho e seus companheiros, enquanto iam pesquisando o solo, ora para aproveitar algum saque, ora para dar a machadada final em algum maldito, ora para ver quem morreu da grei sueva. "São tantos os que morreram da nossa estirpe", constata, triste, Malho, enquanto cantava uma canção. "Martul, Gudios, Mazoi, pobre Mazoi, costumávamos brincar às escondidas. Puricelo, o gordo Queizan... Olha! Ali jaz o esbelto Sande, as suas mulheres vão ficar inconsoláveis. Por Nerthus, meu primo! Meu primo Saamil atravessado por um dardo. Saamil... nunca nos demos bem... " Berulfo chegava da frente, suas duas mãos amarravam pelos cabelos duas cabeças de chefes godos, enquanto seu pescoço estava cheio de colares de oiro góticos.

- Tira um - oferece Berulfo, inclinando-se. Malho retira um, pensando oferecer a Nabia. - Raios! Como podia pensar ainda nela?

- Ei, Adaga Negra, isto é teu? - Analkon trazia seu elmo da mão morta. Malho tomou-o e quase visualizou o vândalo a rir-se por em breve ser libertado.

- Não te falta mais nada? - pergunta, brincalhão, o brido geresiano, retirando do esfarrapado saco a incansável e fatigada lua desocultada. Malho tomou-a agradecido, lembrando-se do seu pai.

- E a ti, não te falta nada? - pergunta, sorridente, Malho, abanando o perdido colar de corda do brido com um grosso crucifixo de carvalho. O brido abraça-o, contente, elevando-o no ar.

- Venham esses ossos, porra!

- O rei, o rei aproxima-se! - avisa Berulfo, prostrando-se de joelhos no chão. Quatro cavaleiros assumem-se contra o horizonte oferecendo suas sombras. Requiário montava um soberbo palafrém branco, que já necessitava de água ajulgar pela espuma branca que decorava seu pescoço. Analkon e Malho ajoelham-se e os guerreiros que pesquisavam em redor foram-se acercando do séquito real.

- Quem é o Adaga Negra? - pergunta o dux Malbras ao caudilho Odro. O empalador pergunta com a cabeça para Quinto Rufno Celsus, o suado capitão aponta para o cabisbaixo Adaga Negra. Malho julgou que o iam castigar por ter tomado a identidade de Odro no comando dos hispálicos. Ele sente o princeps a desmontar e a aproximar-se dele, juntamente com o seu porta-estandarte. Oprinceps ordena-lhe que o encare, Malho olha, pela primeira vez na sua vida, a cara de Requiário, sentiu uma emoção imensa ao estar cara a cara com o descendente directo de Ariovistus, o homem que presidirá aos destinos da grei sueva. Nunca pensou que ficasse tão emocionado, apenas o costumava vislumbrar ao longe, cavalgando...

- Adaga Negra?

- Sim, meu príncipe.

- Tua acção foi valorosa e decisiva nesta última e final batalha, a vossa ala aguentou devido à tua excelente ideia. - O Adaga Negra nem sabia o que dizer, tão embasbacado ficara com o elogio real. Seus companheiros coraram e risos de contentamento se ouviam dos búrios que os rodeavam ao entrar da noite. Depois, o príncipe pegou num felpuda capa de raposa que os capitães carregavam e ofereceu-a ao búrio. Malho agradeceu a valiosa prenda. Requiário pega no seu recente vexillum, que não era mais que um lábaro ostentando uma cruz escarlate, e diz:

- Esta é a minha nova bandeira. Representa também todo o meu povo, cristãos ou não cristãos, suevos ou não suevos. A cruz representa a unidade de todas as raças e credos. - Dito isto, ofereceu ao búrio o tecido debruado do vexillum para ser beijado por Malho. Ele não hesitou em beijar a escarlate cruz de Cristo do convertido Requiário. Sentindo- se mais perto de Nabia. Doce Nabia. Requiário retira-se, montando seu palafrém e ordenando a Malbras:

- Uma moeda de ouro a cada búrio. - Toda a gau bradou vivas, abraçando Malho e exultando o Rex. Malho apenas sentiu a fresca brisa descendo da montanha agreste à medida que entrávamos nas trevas da noite.

Hispalis estava em festa, o prefeito da cidade, recente aliado dos suevos, mandara abrir as adegas do vinho de Inverno. Numa viela escura, encontramos Malho e Zoltan deitados, com a parede como suporte para as cabeças, ébrios e ostentando diversos colares de ouro e braceletes godos. Malho, com a cabeça pesada do álcool, consegue ainda perguntar a Zoltan:

- Onde estão os caralhos dos nossos companheiros? - O alano, sem abrir os pesados olhos, responde:

- Acho que estão nas putas, merdosos de putanheiros!

- Só pensam nisso. Aii, que mal estou, Zoltan.

- Dorme que isso passa. - Mas Malho não conseguia dormir, com a má disposição que tinha e com as dores da face suturada do golpe da espada do godo que tinha recebido há dez dias no Norte. O vinho que bebera parecia vinagre e isso cobra o seu preço. Levanta-se a custo, apoiando-se na parede de estuque branco. Centurião Aurélio chama-o, empunhando um archote:

- Adaga Negra! Venha comigo! - ordena o seu superior, acenando com a cabeça.

- Mas, capitão, eu mal posso andar.

- Cale-se e venha comigo - Ordens são ordens e Aurélio e Malho lá se embrenharam pelas estreitas e lotadas ruas de Hispalis, onde artistas de rua cuspiam fogo e toda a gente dançava bebendo o vinagre. Entram numa tasca cheia de guerreiros a beberem e mulheres nuas, continuaram por um escuro quintal onde cães presos ladravam perante a invasão do seu território. Enveredaram por uma escura e mal-cheirosa adega, pararam frente a uma parede.

- E agora? - pergunta Malho.

Aurélio não responde e bate várias vezes com o cabo do archote num alçapão. O alçapão abre-se e o capitão manda Malho segui-lo pelo subsolo. Malho não gosta do subsolo nem de minas, diz-se que estão cheias de duendes maléficos. A medo lá vai metendo o pé pela frágil escada para o subsolo onde vivem os mais terríveis demónios germanos. Desceu, aterrando com os pés no mole solo de uma mina. Ninguém.

- Capitão Aurélio! Capitão Aurélio! - Aurélio desaparecera, apenas deixara o archote encaixado na parede. Olhou para a frágil escada, pensando se voltaria atrás ou não. Decidiu seguir em frente, aceitando o repto do palentino. Crânios estavam expostos pelas aberturas das paredes, alguns ostentavam elmos romanos antigos, Malho reconhecia- os devido à sua parecença com os elmos gregos. Por fim, o estreito e fedorento túnel acabara, e um pestilento cheiro a cera começara. Entrou, a medo, para uma galeria, onde vários encapuzados estavam e lâmpadas pendentes do tecto movimentavam-se obrigando as sombras a dançarem. Um desses encapuzados dirige-se a Malho.

- Livre de escolher, livre de seguir. - O encapuzado de sago era Aurélio. Reconheceu-o pela voz. Malho respondeu: - Livre de escolher, livre de seguir. - Ele sentiu Aurélio satisfeito. O encapuzado centurião acena delicadamente para o centro da escura e húmida galeria. Lá, conseguiu discernir uma estátua de umjovem de barrete frígio saindo da pedra e imolando um touro, enterrando uma faca no pescoço do animal ao mesmo tempo que o abraça. A estátua apresentava sinais de degradação, era muito velha... Abaixo da estátua e no centro da galeria estava um negro touro amarrado no dorso e peito por grossas cordas que estavam presas a argolas encrustradas nos dois lados da parede. "Curioso! Não amarraram a cabeça da besta. " Malho mirou os pontiagudos cornos soltos e sentiu-se mal dos rins. À frente do touro, estavam três espaços estanques. O primeiro, a meio metro de Malho, continha um cão raivoso preso por um coleira e instigado com ferrões pelos encapuçados a enervar-se espumando da boca. A seguir e antes do touro, dois espaços estanques estavam, um com um caranguejo e o outro com um escorpião, também acossados com ferrões. Estes três espaços estanques e o lugar do touro estavam delimitados por um muro de pedra em torno do qual se colocaria, encostada à parede, a assistência oculta. Malho apercebeu-se que aquilo era uma prova, não sabia que prova era, mas sim, era uma prova. Tinha chegado até ali de livre vontade, aquele aparato assustava- o, mas ao mesmo tempo excitava-o. O touro permanecia sereno, ao contrário dos outros animais, como esperando o inexorável destino trágico. Os encapuçados sondavam-no como a perguntar-se se Malho seria valoroso e mereceria tamanha honra. Um desses desconhecidos dirige-se a ele, abraçando-o.

- Tamanha prova de vida terás que dar. Oh! navegante da obscuridade, que as trevas cessem no teu coração e que a tua visão aguda e firme decifre a oferta do irmão de Varuna, o harmonizador e construtor da beleza e perfeição. - Aquelas palavras eram palavras ocultas, não desveladas, à procura de uma desvelação, era decerto uma seita oculta, iniciática. São as únicas que falam por meias palavras, por mistérios. O anónimo encapuçado torna a repetir a última frase:

que a tua visão aguda e firme decifre a oferta do irmão de Varuna, o harmonizador e construtor da beleza e perfeição...

- Que assim seja! - retorque Malho, recordando a iniciática cerimónia da entrega da lança, sob os auspícios de Wotan, quando completou quinze invernos, na inclinada floresta.

O ocultado saca das vestes uma adaga oriental curva. Sim, o deus era oriental, a julgar pelo barrete frígio. Oferece a adaga purificadora a Malho, dizendo:

- Sacrifica o touro, como o nosso Deus fez, e espalha o sangue do bem pela terra, regenerando-te e regenerando-nos, aceita esta oferenda de vida através de ti, sê o arquitecto da vida, o anjo da luz, o irmão guerreiro da justiça e da rectidão, sê o salvador do mundo. - Posto isto, o oculto ajoelha-se perante o búrio, baixando a cabeça, oferecendo a adaga e repetindo:

- Sê o salvador do mundo! - Todos os velados repetiram:

- Sê o salvador do mundo. Sê o salvador do mundo! Sê o salvador do mundo!

Malho fechou os olhos ouvindo estas estranhas e finais palavras. "Espalha o sangue do bem pela terra, regenerando-te, regenerando-te, regenerando-te. "

Abriu os olhos, os velados ocupavam seus lugares encostados à parede, protegidos pelo muro. Quantos iniciáticos teriam sido iniciados assim? Quantos pereceram? Na mordidela raivosa do cão. No veneno mortal do escorpião. Na cornada da cabeça liberta do negro touro. Era uma prova física, mas ao mesmo tempo mental. Todos os que a passassem seriam dignos de entrar em seus mistérios. Oferecendo a vida por algo mais elvado. "Regenerar, irei regenerar-me! " Prime a adaga, controlando o salto que teria que dar para evitar o cão raivoso e cair no estanque do caranguejo. Retira os colares de oiro góticos e os anéis do saque para não lhe atrapalharem os movimentos. Entretanto uma voz ecoava detrás da estátua contando a saga do Deus:

- Como o sol se ergue cada manhã, Mitra se ergue saindo do rochedo. Os pastores foram os primeiros a adorá-lo, a criança dirigiu-se à figueira sagrada para cobrir a sua nudez...

- Malho, nu, dá um aparatoso salto, mas quando seu calcanhar toca no chão ele escorrega, ficando à mercê do raivoso cão. Os malditos encapuzados untaram as tábuas de azeite. Nada é fácil nesta vida, tudo é conquistado. O cão morde-o na mão premindo seus dentes na sua carne. Malho, caído, afasta-o com a adaga, mas alguém grita.

- Não te defendas do símbolo do mal, não o podes erradicar, dado que todo o homem já nasce com ele. - Impotente para se defender do ataque do raivoso, Malho passa ao estanque do caranguejo. Tentando evitar a boca afiada do canino, não evita seu calcanhar de ser mordido. Aterra espalhafatosamente no antro do caranguejo, outro ser que rasteja, representando o mal sempre renovado. Seus pés tentam não se mexer para evitar que as manápulas do ser marinho fechem, só que Malho não via nada no estanque do caranguejo. A anca da queda começou a doer-lhe. Não podia saltar para o touro, dado que o abordaria de frente, arriscando-se a provar os fálicos cornos. Assim, manteve-se suspenso, sem iniciativa, com o cão atrás ganindo e a saga de Mitra ouvindo.

- O primeiro ser criado por Ahura Masha pasta tranquilo num prado, Mitra precipita-se sobre o animal, tomou-o pelos chifres e saem ambos em desabalada carreira...

"Mitra precipita-se sobre o animal. Mitra precipita-se sobre o animal... é agora ou nunca. Recriar a história é uma maneira de fazer reviver o Deus... " - O corvo de Wotan salta do estanque, o touro recebe- o, ele apara-se em seus cornos, só que era levado da esquerda para a direita, de cima para baixo, era imensa a força da cabeça do touro. Deixa-se cair, ao cair rebola para as pernas do touro tentando enfiar-se debaixo dele, a besta tenta-o atingir, mas, como estava preso no dorso e na barriga, apenas roça com o focinho na barriga de Malho. Ele em baixo do touro está, debatendo-se. Não pode enterrar a adaga na barriga do animal, tem que o imolar no pescoço, montando nele como Mitra fez, no início do mundo, algures na Índia. Com um esforço sobre-humano, esgueira-se pelo lado do animal. Como é enorme o touro, como o seu sangue pode regar tanta terra. Abraçado ao lado do touro, tenta montá-lo. Só que o touro foi untado com óleo, nada é fácil nesta vida, nada, mesmo nada. Espera aí, o corno Sim, o corno! Malho amarra-se ao corno, para usá-lo como alavanca para subir, enlaça a outra mão na corda do dorso e obriga os braços e pernas a romperem-se para subirem para o dorso. Por fim, consegue, descansando, com o animal aos saltos.

até que o animal, esgotado, caiu dejoelhos, por ordem do deus supremo que enviou o corvo, seu mensageiro, Mitra enterrou a faca no animal...

O corvo de Wotan retira a adaga dos dentes e cutila a besta enterrando a adaga de morte no pescoço, sente o impacto da furante adaga com a medula, o touro urra, agoniando com a dor.

- Da sua medula e do seu sangue germinarão todas asplantas úteis aos mortais, o trigo e a vinha...

O touro definhando-se lentamente se abaixa, a adaga do bem continua enterrada no sangue impuro do mal. "Que contradição, o sangue do mal gerar vida. "

- É um mistério, para ti ainda é um mistério... És um iniciático, Corax. - Alguém chama Corax a Malho, oferecendo-lhe a mão. Ele aceita-a como membro de uma nova ordem. De mão dada com o Pater dirigem-se para detrás da estátua, seguidos pelos ocultos. Descem umas mal alumiadas escadas. Cântaros de sangue se enchem com o fluído vital que esguichava da parede do sacrificio. Do outro lado cortavam-se as partes do animal para fluir o sangue. O pater pega num cálice e enche com um pouco de sangue que esguichava da parede. Em seguida, dirige-se a um barril e mistura-o com vinho mexendo com uma colher de prata:

Archotes eram trazidos para a galeria inferior. O Pater oferece o cálice ao extenuado Malho, dizendo:

- Oferece-te ao desconhecido, regenera-te bebendo o sangue renovado da vida do touro misterioso cuja gordura encherá de vida os fiéis de Mitra. - Malho estava confuso, o seu deus anterior chamava-o do valala. O Pater tranquiliza-o:

- Isto não é uma religião... - Dá o cálice a Malho, ele bebe-o totalmente. -... é uma norma de vida. - Malho esvazia o cálice, respirando fundo para recuperar o ar gasto no beber e limpa os lábios com a mão. Todos os encapuçados desvelam-se. "Vitorino, Quinto Rufino Celsus, Vespertino... Espera lá, Vespertino, como é que pode? "O promovido e desvelado diácono Vespertino aproxima-se de Malho, abraçando-o, e perante a estupefacção do búrio explica:

- Lembra-te, é como o pater diz, isto não é uma religião, é uma norma de vida.

- Temo não compreender estas palavras, nobre monge.

- Não me chames monge, monges são os que se exilam no Egipto e cessam o contacto com o mundo, ora eu sou um homem de Deus imerso no mundo.

- No mundo podre? - ironiza ele.

- Sim, no mundo podre, para tentar mudá-lo. - Diácono Vespertino põe a mão no ombro dele. Malho e o clérigo observam o desvelado pater, que não era mais que Censório, o ex-embaixador, preparando a mistura ajudado por mais irmãos mitrais e Malbras. Malbras! Os adoradores de Ísis suevos estavam cá, Malbras e Frantano.

- Surpreendido com a assistência? - pergunta Vespertino.

- Sim e não - responde. - Mas porque é que me escolheram a mim? Por causa da batalha?

- Sim, isso e outras coisas dignas de um irmão mitral.

- Não fiz coisas dignas do anjo salvador - responde honestamente. - Eu só matei, violei, incendiei...

- Pára! - ordena Vespertino, apontando a desvelada assistência que fazia fila para beber o sangue misturado com o vinho e o mel.

-Achas que estes nobres guerreiros são diferentes de ti? Todos eles cometeram atrocidades e todos eles procuram a luz e a ascensão mitral que lhes permitirá aperfeiçoar-se neste mundo.

- Neste mundo?

- Sim, neste mundo. Depois, tu és digno de entrares em nossos mistérios. Afinal, foste tu que, há dois anos, arranjaste gente para tratar dos feridos e toldos para o nosso hospital. Lembras-te?

- Sim, mas foi lá que matei uma criança e violei... Vespertino interrompe-o:

- Quem foi que evitou que uma aldeia inteira fosse chacinada pelos mercenários francos ao serviço do nosso ainda vivo Rex Réquila? - Malho calou-se olhando para o chão. - Quem salvou duas crianças das chamas, no fogo ateado por teus próprios companheiros? Negas isso, ó corax?

- Não, não nego. Mas será isso suficiente?

- Lembra-te, toda a pessoa tem direito a aperfeiçoar-se. A tua iniciação é o princípio de uma longa prova. - Malho olha, piedosamente, Vespertino.

- Haverá perdão para mim?

- Lembra-te, corax, só Cristo pode perdoar. O mitraísmo não é uma religião, são apenas preceitos éticos, dizem-te o que deves fazer e não o que acreditar... Mitra é apenas o vigilantejusticeiro que zela pela aplicação da lei, pela fidelidade do juramento e pela rectidão. O arcanjo Miguel não é mais do que uma encarnação de Mitra.

- Nobre Vespertino, cuidado com as heresias - aconselha o búrio. Malho sabia que a Igreja vivia tempos controversos com as cisões provocadas pelo arianismo e outras doutrinas ocultas ou não ocultas que tentavam modificar os dogmas do cristianismo.

- Sim, daí que conto com a tua discrição e o teu silêncio. Mas, corax, o que é que os suevos convertidos dizem de Cristo, nosso senhor?

- Que é Wotan renascido das cinzas do crepúsculo dos deuses e que reinará numa era de paz e riqueza.

- Vês, corvo de Wotan, a conversão não implica destruição do anterior, apenas reformulação. - Vespertino estava a aliciar o corvo para a conversão, oferecendo-lhe um cálice que Malbras, o adorador de Ísis, encheu. Malho tornou a beber o sangue do touro do mal que rega a terra fértil. Bebeu outro e outro, até a bebida começar a andar à volta no estômago, num vaivém agoniante. Saiu da cripta amarrado aos seus novos irmãos latino-mitrais. De volta às ruas estava, seguiu os irmãos até uma rica moradia. O prefeito dava uma tardia festa, entram no peristilo, desceram para uma iluminada e fresca cave, ainda amarrado a seus companheiros estava, totalmente ébrio, fora de si, mas isso andava há muito tempo. Lá, ouvia-se uma exótica música com estranhos instrumentos, eram africanos os músicos, notava-se pela tez. Malho começou a bailar levado pelo som dos batuques, ele e seus irmãos mitrais, ele e alguns dos seus companheiros suevos. Dançava com Berulfo, Analkon, e comia fruta, muita fruta, uvas e laranjas, tâmaras e maçãs. Cansado e com a cabeça a rodar, levaram-no a outra sala, outro peristilo mais amplo. Que moradia seria aquela? Era enorme. A assistência era mais restrita, alguns heróis suevos e nobres romanos, a música da cave ecoava no peristilo, deitado está em panos de seda, leves e fofos, de várias tonalidades de vermelho, os pés calosos enroscavam-se na suavidade do tecido, enquanto bebicava um fresco vinho com fragrância perfumada. Consegue ver a Lua e a forma de uma valquíria, mas não distinguiu qual delas era. Bailarinas de umbigo desnudado entravam agora no peristilo manobrando as ancas. Era escandaloso, nunca vira mulheres assim. Tinham o rosto oculto com seda branca e ostentavam diversas jóias, quinquilharia decerto. Movimentavam, de uma maneira despudorada, seus fartos seios ao sabor da música. Um ou dois suevos conservadores saíram do peristilo. Malho riu-se da hipocrisia. Preferem violar tímidas aldeãs cristãs do que assistir a isto. Uma dessas bailarinas de Cartago acerca-se e desprende-lhe o longo cabelo avermelhado que estava apanhado na nuca, diz-lhe qualquer coisa acerca do cabelo que ele não percebe e senta-se em cima dele abrindo as pernas. Sente-se excitado. Em resposta, ele acaricia-lhe também o cabelo, as outras bailarinas patrocinadas por Censório faziam o mesmo aos outros convivas, a mulher de olhos pintados de azul e tez morena diz-lhe algo, enquanto aproxima a boca à sua face. Ele só se ri, enquanto seu membro lentamente começa a enristar, julga que ela o vai beijar, mas seu rosto sonda a orelha, Malho estranha. Sua irrequieta língua afaga-lhe o tímpano, ele afasta a cabeça, a sensual mulher morena sossega-o, obrigando-o a imobilizar a cabeça e dizendo excitantes e suaves palavras em cartaginês. Depois, a sensação húmida no tímpano volta, provocando no suevo um misto de estranheza e prazer. Olha em seu redor, amarrando e balançando a sensual bailarina ao sabor da música, vê, estupefacto, uma dessas bailarinas de joelhos exercendo um torneoso felatio a um nobre romano. Nunca tinha visto tal coisa, ficou de boca aberta a olhar. A sua concubina reclama a sua boca, Malho pega nela, deixando a orgia e explorando o jardim, o fresco jardim. Deita a bailarina na fofa relva e explora os magníficos seios, mordendo os mamilos, a bailarina diz aii, rindo-se. Beijam-se sofregamente, quase asfixiando-se. A humidade da glande encontra os húmidos fluídos da vulva, relembrou o pilar escondido de Assúrnia, sentindo a mesma sensação molhada. O que mudava era a actividade frenética da bailarina em relação à passividade da sua amada. A cartaginesa premia violentamente as pernas à volta dos seus costados exigindo ao suevo maior velocidade. O filho de Fanoi dava a resposta pretendida, extenuando-se cada vez mais perante a exigência da profissional. Por fim, rebentado e com o élan vital saído, descansa na erva fofa, suando e adormecendo. A bailarina retorna à festa, procurando dança.

Malho acorda em plena manhã fresca e nebulada. Os criados indicam-lhe a saída da moradia, deambulando pela rua, em trajes menores procura seus companheiros. Alguém lhe diz que estão num campo extra-muros, dirige-se à saída da cidade com uma dor tremenda na testa, parecia que lhe tinham aberto a mesma. Não levou a mão a ela até estar entre os seus. Entrou no enevoado campo, a noite tinha sido longa e estavam todos a roncar dispersos pelo chão. Apenas Berulfo lavava a cara num balde dos cavalos.

- Berulfo! Berulfo! - Malho corre para o seu companheiro; cambaleando devido à noitada.

- Então Adaga, a noite foi forte, desapareceste ontem?

- Berulfo, Berulfo, o que é que eu tenho na testa? - pergunta desesperado, apontando para a mesma, onde as dores afloravam. Berulfo perscrutou a mesma e soltou um leve riso.

- Andaste metido com luso-romanos? Porque não tatuaste um machado como eu? - Berulfo indica a sua testa, onde, aquando da entrega da lança, um feiticeiro lhe tatuara um machado de dois gumes. "Não pode ser! Uma tatuagem na testa! " Mas ele não se lembra de nada. "Espera aí, um médico luso-romano, um patrício hispânico: Tatua-te búrio, afinal és um irmão mitral, a falcata é o nosso símbolo " - O búrio, ébrio, respondia amarrado na cabeça por duas bailarinas, entre a fruta e o vinho: "Porque não? Força, médico tatuador! " Nem sentiu a dor do pigmento azul entranhando-se na pele eternamente. "Que dirá meu tio? Eu, um búrio, com uma falcata tatuada na testa! ".

- Não sabia que eras luso-romano - pergunta, irónico, Caio Frontolo. O cristão centurião tinha também a tatuagem duma cruz na testa. Era a cruz de São Pedro, era o que ele dizia, dado que foi crucificado ao contrário. Malho pôs levemente a mão na sua marca, a carne à volta das linhas pigmentadas estava inflamada, tinha que a deixar e aceitar a herança. Bem, sempre foi melhor que ser enrabado e deitado ao rio. Havia casos desses a acontecerem, o vinho perde os homens. Foi-se deitar para a tenda, exausto, morto de cansaço de uma noite extenuante e reveladora, não aguentaria muitas noites assim. Aliás, não se aguentaria por muito mais tempo. Dentro da tenda, mira seu espólio, o saco carregado de anéis, torques e colares de ouro, a sacolinha de couro carregada de moedas de ouro de imperadores. Pega na lua desocultada, encosta-a na traqueia, tentando arranjar coragem para a enterrar. Começou a suar, tremendo com o braço que segura a besta, a mão direita é impura, é a mão mais impura de todas, com ela se mata. Zoltan entrou, impassível, recuperou seu sago e, antes de sair, dirige-se ao búrio:

- Tu não consegues, Malho! Afinal, tu acreditas nos deuses, não és senhor de ti mesmo.

- O ateu saiu, despreocupado e a cantarolar. Malho fecha os olhos, é só uma decisão, uma rápida decisão. É só um momento, um momento apenas e tudo acaba, e tudo começa e renasce e nada existe, e tudo passou, ao sabor do vento, ao sabor da loucura e do tempo. Tentou, tentou, mas o resto que impera de vida nele não o permitiu, a sua vontade não se impôs sobre o resto que ele ainda é. O que ainda é? Um farrapo ambulante sem eira nem beira, nem destino, apenas um amontoado de carne e ossos, sem sentido nenhum. Aguentou... A voz diz-lhe, repetindo: aguenta, aguenta, aguenta.

Onze meses volvidos

Cartagena, 448 d.

O sol que fere incidia-lhe nas quentes pálpebras, mas ele não as quer abrir, desobedecendo ao astro rei, que obriga a vida dos mortais a iniciar-se todos os dias.

- Maldito Sol Invictus, liberta-me, deixa-me dormir para sempre.

Por fim, não aguentou o calor nos olhos e predispôs-se a abri-los, lentamente, como se despertasse de uma longa letargia. A princípio só viu um azul desfocado e ouvia as ondas batendo incessantemente no paredão, depois o azul torna-se mais nítido com a focagem dos olhos. A fome obriga-o a pôr-se de pé, observa as gaivotas que sobrevoam o mercado de peixe e tenta ver uma galera no fundo do mar, só que o sol não o deixa. Constata que seus companheiros pedintes estão a dormir. Há quanto tempo estaria ali, na mais baixa condição humana, vagabundo e ébrio, dormindo encostado às estradas, em trajes imundos e andrajosos? Uma matrona de liteira passa por ele, Malho ajoelha-se e pede:

- Uma esmolinha para um pobrezinho que morre de fome.

- Preferia libertar meus escravos, ide trabalhar, malandros! responde a matrona, rispidamente. A liteira lá seguiu, sustentada por quatro escravos, ao longo do paredão.

- Grande vaca! - pensa Malho, fazendo um gesto obsceno. Há quanto tempo exerceria ele essa rotina? Pedir no mercado de peixe para comer, lutar com os cães e os pedintes por umas espinhas de sardinha. Há quanto tempo o sol assistiria à triste decadência do farrapo? Há quanto tempo as valquírias nas estrelas lamentavam a queda do seu bravo? Observou a liteira afastando-se, retirando-se lentamente com o passo cadenciado e domesticado dos quatro escravos. Começa a correr, seus pés descalços e imundos são autênticas botas com várias camadas de pele. Veloz e arfando, ultrapassa a liteira, os escravos espantados param e a matrona desvela-se sob o véu. De repente, pára.

- Berulfo! Não me posso esquecer de Berulfo! - Torna a correr para de onde tinha abalado. Os escravos julgam que ele vai atacar a liteira e cobardemente fogem, deixando cair o transporte da matrona, a mesma grita de dentro. Malho procura Berulfo entre os pedintes adormecidos, começa-os a revirar:

- Não é este. Nem este! Raios, onde é que ele está? Porra de bêbado - Por fim encontra-o, provocando grande resmunguice nos ébrios vagabundos repousados. Mas o decadente Berulfo estava adormecido, pesadamente adormecido, tentando recoser a malha rasgada da sua vida. O vagabundo Malho abana-o, deita-o ao chão e começa a dar-lhe violentos pontapés na barriga.

- Acorda, filho de uma égua ensebada! Acorda, fide puta! Acorda, maldito imbecil!

- Hei! Hei! A mim suevos, querem-me matar, por Heidrun, querem-me matar! - grita o aflito Berulfo, cheio de dores nos rins.

- Upa! Temos que abalar! - ordena Malho, pegando em Berulfo pelas orelhas.

- AiiiH! Estás louco, abalar para onde? Julgava que querias morrer aqui?

- Não, temos que partir e adiar nossa morte. Ainda não é a altura de desistir! - diz ele, mirando profundamente os olhos cinzentos de Berulfo, semi-ocultos pelas gadelhas engorduradas e pelas olheiras e pálpebras inflamadas do lixo.

- Ainda não? Tens a certeza, filho de Fanoi? - pergunta Berulfo, sondando os olhos imensos do corvo, tentando perceber o que vai lá dentro.

- Não, filho de Quintian. Nossos pais no Valala têm vergonha da nossa actual condição. Urge mudá-la. - O filho de Quintian, desalentado, retorque:

- Não sei se tenho forças, Malho. Estou desalentado e perdido, como uma cria de javali longe da mãe. - Malho abraça-o fortemente, relembra os momentos terríveis que passaram juntos na guerra, e emocionado confessa:

- Eu também não sei se terei forças para me erguer de novo no meio do mundo. Mas olha! -Aponta para os vagabundos deitados, esperando lentamente a morte em seus sepulcros ao ar livre.

- Vê as tumbas em que nós repousamos, gastando nosso corpo, consumindo nossa alma, cessando aos poucos nossa existência. Não, Berulfo, eu não quero este triste fim e sei que tu também não o queres. Mas se desalentas, eu desalentarei também, se quebras, eu quebrarei também. Juntos seremos mais fortes no meio da eterna tempestade. - Malho torna a abraçar Berulfo.

- Não me abandones, filho de Quintian. Por favor, não me abandones! - Berulfo tremia, olhou os sepulcros ao ar livre, ia pedir força a Wotan, mas deixou de acreditar nos deuses depois da guerra. Deixou de acreditar em tudo e passou a considerar os homens uns danados, a mais vil criação da terra. Mas Malho evocara seu pai, seu amado pai, e a ideia de Quintian alentava-o, transmitindo-lhe calor. Berulfo sentiu seu pai dentro de si, um calor reconfortante, vigoroso, forte e destemido, capaz de derrubar as barreiras e o mundo.

- Raios! Deixemos este desolado lugar, cheira à morte, o mundo não vencerá, nós somos os reis do mundo e o vergaremos à nossa vontade. - Malho abismou-se com a abrupta subida de moral de Berulfo. Enlaçaram as mãos e correram atrás da liteira, obrigando de novo os escravos a fugirem e a matrona a gritar.

- Malditos vagabundos, Deus no alto irá castigar-vos.

As colunas ainda conseguiam manter o tecto do teatro de Emerita. As comédias de Terêncio e as tragédias de Sófocles há muito tempo que deixaram de ser representadas pelos grupos de teatro itinerantes que deambulavam pelo império. Agora, o teatro foi convertido em templo do Senhor, e foi de lá que os andrajosos se iam aproximando, deambulando pela capital da Lusitânia, sempre à procura do norte. Comiam uns figos maduros que roubaram numa tenda de fruta e iam comentando, espantados, enquanto mastigavam, o facto do Rex Réquila ter morrido e de ter amaldiçoado seu filho Requiário por ele se ter convertido ao cristianismo. Os idólatras suevos diziam que foi isso que acelerou a morte do velho rei, o desgosto é a mais cruel e fatal das lâminas. À frente da espaçosa entrada do ex-teatro, um clérigo orava para a multidão circundante, constituída maioritariamente por homens, veteranos de guerra e mendigos.

- Ei! - chama a atenção Berulfo, olhando o orador, que vestia uma longa túnica branca, debaixo de uma dalmática com as bordas douradas, e trazia o cabelo impecavelmente desbastado e a barba impecavelmente desfeita, pelo menos três vezes.

- Aquele não é o Marcellus "dá-me outro"? - O búrio degolando um figo, relembra as imagens fugidias do passado recente, tentando recuperar o centurião mercenário, cuja fama residia nas vergastadas que dava aos seus soldados com o cepo da videira. Daí o nome "dá-me outro". Marcellus decerto passou-se para o exército do Senhor, e ajulgar pela luxuosa dalmática começou bem. O duo juntou-se à multidão que ia entrando no templo, cativada pelas vergastadas palavras de Marcellus "dá-me outro", agora diácono do Senhor. Marcellus subira para uma espécie de pedestal que dantes decerto ostentara a poderosa estátua de Marte, e que as gens de Mérida tinham, com um desmedido esforço, posto na entrada do teatro para os sermões da casa de Deus.

-Acercai-vos a mim, pagãos e cristãos! - Marcellus chamava com a mão a multidão curiosa.

- Que o nosso senhor Jesus Cristo permita que eu exale mel nas palavras para vos adocicar a mente e elevar-vos mais alto e mais alto para a casa do etéreo Pai. - "Dá-me outro" apontava o pujante céu matinal, e Malho quase podia adivinhar que Marcellus pertencera ou quiçá ainda pertence à sagrada ordem mitral. "O velado, o velado. "

Toda a multidão se começou a sentar. Berulfo e Malho seguiram-na, sentando-se também no desconfortável, duro e poeirento solo. Algum soldado anónimo da multidão grita, logo sendo admoestado por parte de alguma assistência:

- Dá-lhes com força, Marcellus "dá-me outro" - Malho e Berulfo cochicharam, rindo-se.

O diácono estava imperturbável, no alto do pedestal, com a pesada dalmática e a imaculada túnica querendo esvoaçar ao forte vento quente dos inícios do Verão. Após um discurso introdutório, confuso e complexo sobre a trindade santa, que deixou a insapiente audiência ainda mais baralhada, Berulfo e Malho, apoiando-se um ao outro, foram despertando, lentamente, para as hábeis palavras do representante de Deus.

- Olho por olho, dente por dente, é isso que vós compreendeis, não é? Olho vossos rostos e que vejo eu? Vejo morte! - O duo e muitos outros deitaram os olhos ao chão.

- Sondo os vossos olhos e que descubro? Trevas e dor! - Os dois deixaram cair as lágrimas. "Maldito nymphus! Estás a despertar nosso inferno adormecido. " Malho quis levantar-se e sair, só que Berulfo amarra-lhe a dextra, implorando:

-Fiquemos, filho de Fanoi! Não fujamos de novo, enfrentemo-nos de uma vez por todas! - "Enfrentemo-nos de uma vez por todas."

- Entro em vocês todos e o antigo mandamento de morte ecoa: OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE! - O diácono incita a multidão a gritar o mandamento, puxando a assistência com as mãos.

Todos bradavam ao ritmo do nymphus OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE! OLHO POR OLHO, DENTE POR DENTE! O duo também acompanhava a multidão com os punhos cerrados. Naquele momento seguiriam Marcellus até ao fim do mundo. O diácono ordenou a cessação do grito, com um movimento brusco e dextro.

- Ouviste o que foi dito? "Olho por olho e dente por dente. " POIS EU DIGO-VOS: não oponhais resistência ao mau. Se alguém vos bater na face direita, oferecei-lhe também a outra. Toda a assistência espantou-se e Malho e Berulfo miravam-se, encolhendo os ombros. Marcellus "dá-me outro" parou por momentos, relembrando a Lei de Talião ensinada pelo seu mestre.

- E se alguém quiser pelejar contigo para te tirar as bragas, dá-lhe também o sago!

- Ei, Malho, connosco não pelejam por nada - diz, gracejando, Berulfo, mostrando a virilidade por baixo do imundo farrapo que envergava. Malho ficou contente por ver que Berulfo estava a recuperar a boa disposição.

- Ouviste o que foi dito, pecadores? Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim... - Marcellus oferece a mão à assistência e seus olhos irradiam misericórdia infinita. -... tornar- vos-eis filhos do vosso Pai que está nos Céus!

- Parte da assistência quis dar a mão a Marcellus, tentando subir para o pedestal. Mas três soldados do prefeito, armados com escudos brancos, azuis e vermelhos contendo o símbolo de São Pedro, tentavam conter a sempre mais pressionante multidão.

- Não! Não sou eu que vos tenho que tocar, mas sim o Altíssimo. Eu sou apenas instrumento da sua vontade. - Marcellus acalmava a multidão, ajoelhando-se do seu pedestal e dando a mão a alguns.

- Quando orardes, entrai no vosso quarto. - O diácono aponta para o coração, Malho e Berulfo sentem-no aos pulos, tão emocionados que estão. - E fechada a porta - Marcellus tapa- se com o capucho - rezai em silêncio e em segredo ao Pai celeste que tudo alumia e que sabe o que necessitais antes de vós lho pedirdes. - Marcellus põe-se de pé, velado.

- Repeti comigo: Pai Nosso que estais no céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o vosso reino. - O diácono parava de modo a que a multidão, ainda pouco sabedora das homilias, o acompanhasse. Os dois germanos e tantos outros rezaram as palavras do Senhor pela primeira vez, sentindo-se finalmente sem medo nem receio.

- Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no céu. Malho rezava fervorosamente, lembrando-se de Flausina, do rebento esventrado, dos corpos empalados e de Nabia, de sua doce e amada Nabia. Rezava como se purgasse, com um bálsamo de azeite fervoroso, as feridas abertas e com pus. O azeite caía implacável, na carne putrefacta e viva, à medida que dizia a oração.

- Opão nosso de cada dia nos dai hoje, perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nósperdoamos a quem nos tem ofendido. Pensou em Herm e engoliu em seco.

- E não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal, amém... Marcelus respirou, Malho e Berulfo respiraram, concentrados em si mesmos.

- Nosso rei Requiário recebeu Cristo no rio cálido que banha Mírtilis, há um ano. Dirijamo-nos para lá agora todos os que querem iniciar uma vida nova com o Altíssimo. Pernoitaremos no templo e amanhã, os que se sentirem capazes, iniciaremos uma peregrinação dejejum, sofrimento e dor, para no fim receber Cristo três vezes pelas águas. - Marcellus contemplou calmamente a assistência.

- É esta a minha missão. Salvar as ovelhas do pecado. - Dito isto, desceu do pedestal, ajudado pelos soldados e seus irmãos e irmãs clérigos. Todos entraram no templo, subindo a escadaria. Berulfo pergunta:

- Sentes-te preparado? É muita légua para andar. E temos visto as peregrinações deles, é muito duro... - Malho amarra Berulfo:

- Não são as peregrinações deles, são as nossas. - Berulfo reflecte na oração, e encosta a cabeça ao peito de Malho, desabafando:

- Sim, são as nossas. - Subiram a escadaria abraçados como dois irmãos, iria ser uma longa noite, de manhã começariam uma grande prova, uma prova de redenção.

Seguiam ao longo do Guadiana. À frente da procissão de trinta homens e dez mulheres, seguia um peregrino que segurava uma enorme cruz. Agastado e sequioso estava, tentando não cambalear e aguentar a sua sina. Optaram por marchar durante o dia sob uma temperatura de quarenta graus, optaram por marchar descalços, sobre a dura gravilha, obrigando os pés a sangrarem, optaram por se chicotear nas costas uns dos outros, numa fila de agonia, sofrimento e abnegação, enquanto entoavam cânticos em latim.

A visão longínqua do preguiçoso e fresco Guadiana, deslizando planamente na planície sob longas curvas sinuosas, acicatava a sede e os desejos explosivos de um bom banho refrescador e retemperador de forças. Sendo assim, quase todos os azorragues de Deus miravam o distante rio com apetite. Marcellus, controlando a fila, gritou irónico:

- Querem beber água, minhas ovelhinhas? O Senhor aguentou quarenta dias sem água. Querem água, eu dou-vos água? Dirijamo-nos ao rio. Ei! Homem da frente! Vira para o rio ordena "dá-me outro", como se estivesse a falar para os seus soldados. Dirigiram-se, então, lentamente e agoniadamente para o rio, chicoteando- se sem dó nem piedade, purgando o mal à medida que as costas se abriam em chagas. Malho tinha a túnica de sangue colada à pele, e relembrava a via dolorosa.

A noite era passada ao relento, de costas para o ar, comendo azeitonas e tentando dormitar. À noite, Marcellus e os outros peregrinos falavam da vida de Cristo e dos patriarcas do deserto. Atrás de si, Berulfo chibateava Malho, docemente. À frente dele, o suevo era o algoz de um nobre de nome Quiruniodado. Quando, por algum motivo, as chibatadas aumentavam e Malho sentia o azorrague de tiras de couro incrustadas com pedaços de chumbo a não poupar as suas costas, aumentava as vergastadas em Quiruniodado, e as chicotadas, naquele momento, eram dadas com mais força, incentivadas por Marcellus.

- Arrependei-vos, pecadores, purificai a carne! E ele sentia purificar bem fundo a carne, abrindo-se as veias em rubra dor, repartindo a fúria dolorosa em Quirunio:

-Arrepende-te pecador! Fide puta asqueroso! - Berulfo não o poupava, gritando também. Uma tira fere-lhe o ouvido. O búrio não poupa seu companheiro da frente, arreando-lhe no rabo até que as salpicadelas de sangue lhe saltem para o pescoço.

"Então o sumo-sacerdote rasgou as vestes dizendo: blasfemou, cuspiram-lhe no rosto e deram-lhe socos. " - O búrio estava febril relembrando Cristo com os judeus. Berulfo não parava, Quiruniodado cambaleia e cai no chão barrento, irrompendo em chagas. Malho não pára, chicoteando-o fortemente, abrindo-lhe rios nas pernas, Quirunio só grita, mas não pede para pararem, imóvel no solo, com riscos de carne viva. - "Açoitaram-no, despiram-no, envolveram-no com uma clâmide escarlate e puseram-lhe sobre a cabeça uma coroa de espinhos. " Malho pára, ofegante, e mira as tiras de couro ensanguentadas do chicote. "Há um certo prazer macabro nisto. "

Marcellus ordenara a cessação das flagelações, foram-se aproximando do rio, salpicando lentamente as chagas com água tépida. Malho e Berulfo auxiliam o chagado Quirunio.

- Obrigado irmãos - Eram todos irmãos. Marcellus avaliava o estado das mulheres. A trinta milhas de Emerita, elas tiveram que voltar a calçar as sandálias e eram poupadas às flagelações, mas mesmo assim não aguentariam muito mais. O diácono temia que alguma perdesse a vida devido ao excessivo calor ou ao desmesurado esforço. Malho aproximou-se de Marcellus, mirando as mulheres. Quando as mirava, só via a cara de Nabia em cada uma delas.

- Teremos que fazer um pequeno desvio em Odearce, teremos que deixar algumas lá, recompondo-se - declara Marcellus avaliando o estado das mulheres agastadas.

- Em alguma villa? - pergunta Malho, salpicado com o sangue de Quirunio.

- Não, em terra dos da tua raça - informa Marcellus, limpando com o dedo a face esquerda de Malho. - Em terra de Cima de Atan.

"Terra de Atan, Atan conheceu meu pai, Fanoi. Estiveram nos montes Nerbásios. Raios, não quero que ele me veja neste estado! Por Zio! Mas que estou a dizer eu, tanta chibatada para nada.

Continuo a ser o mesmo arrogante germano de merda! " Malho reflecte. Marcellus tinha molhado a cabeça e aconselha o búrio a molhar docemente as costas. Malho mergulha os lombares e as omoplatas devagarinho, sentindo tudo a arder. Ia recuperar a via dolorosa, quando é interrompido por Marcellus.

- Terra de suevos, Atan! Ele é quê? Marcolino?

- Não, é o antigo senhor da tribo dos quados - responde Malho, relembrando o pai a cavalo envergando um manto de xadrez vermelho e dizendo-lhe adeus, devia ter uns dez anos.

- Os marcomanos não são tribo, pois não, filho de Fanoi? pergunta, com um riso irónico, Marcellus, levantando-se da água e tapando a cabeça com o capucho molhado. As gotas caíam-lhe na lisa pele, provocando uma agradável sensação de frescura.

- O que é isso agora de chamares os marcomanos? Não são tribo, são uma estirpe de elite. Vocês tinham os quirinos, não?

- Estranhas que eu evoque os marcomanos, Corax? Porquê? Algo se passa com eles?

- Não sei, nymphus, julgava que saberias melhor do que eu - responde rispidamente Malho, fazendo o sinal do touro com o mindinho e o indicador.

- Sobrevalorizas os nossos poderes, mas de qualquer maneira eu sou cristão! Deixei a idolatria. - Marcellus, velado, aproxima os lábios da orelha de Malho, segredando- lhe:

- No exército sabe-se tudo, os soldados são uns linguarudos.

- Depois afasta-se, dizendo:

- Vocês não são diferentes de nós, os hispânicos, vocês também nunca esquecem. Já estou a ver Herm, já velho e de muletas, a ser apunhalado pelas costas por quatro velhadas búrios.

- Cinco! - contrapõe Malho. - Cinco velhadas búrios. - O diácono vai prestar assistência às mulheres. Malho mergulha totalmente na água, concentrando-se. "Não! Não posso deixar que as rédeas do mundo tomem conta do meu ser. Tenho que voltar a meditar em Cristo, em Cristo e nas águas. Malho, extenuado, fecha os olhos e retém a respiração. Vê, de olhos fechados, o vândalo a pairar fora das águas, maneta e esguichando sangue. Ele lembra que já não sabe do elmo, nem da mão, nem do seu espólio, espada armadura, nem da sua adaga. "Meu Deus, como vou poder libertá-lo? É um espírito teimoso, obediente a rituais tão antigos quanto o próprio mundo, permanece lá, à espera que eu lhe dê a mão. " A mão calosa de Berulfo puxa Malho para a realidade.

- Curioso - diz Berulfo. - Parece-me que já fiz isto, ou sonhei com isto.

- Com o quê? - inquire Malho, pondo-se de pé.

- Com o facto de eu te ter salvado das águas.

- Os sonhos antecipam o futuro, meu bom Berulfo - diz Malho, pondo a mão no pescoço de Berulfo. Ele ressente-se, com a dor de uma chaga no pescoço.

- Aii! Mas então, no futuro, eu vou-te puxar das águas?

- Sem dúvida, sem dúvida - diz Malho, enlaçando a mão no seu fraterno companheiro, enquanto se dirigiam às bordas, talvez para pernoitar.

Era alto dia e Mírtilis imponente estava, subindo a colina xistosa desde as brancas muralhas do rio até ao alto da mesma, onde um imponente e vigilante forte romano se erguia. O casario, compacto e aglomerado entre o cais amuralhado e o forte, resplandecia alvo de sol. Os peregrinos pararam na encosta para admirar a velha Mírtilis, ainda imponente, ainda importante. O rio, em baixo, preguiçoso continuava, sem muita pressa para atingir o mar. Não tinham sido os primeiros a chegar, mas chegaram a tempo. Lá em baixo, entre o cais e ao largo do rio, centenas de pessoas recostadas pairavam, em pequenos grupos, banhando- se. Uma visão repentina aflorou-se na mente do cansado e delirante Malho, discerniu umas imaginárias escadas, um sujo rio de lama com flores a flutuar, pessoas de tez morena banhando-se e incenso, um forte cheiro a incenso. Berulfo obrigou-o a acordar do desmaio.

- Malho, aguenta, estamos quase, não desfaleças agora. - Ele recupera os sentidos amarrado a Berulfo. Foram descendo lentamente, com as costas tentando-se recoser. Instalaram-se à beira-rio. Marcellus foi ter com os irmãos. Os dois suevos travaram conhecimento com uma das duas únicas mulheres que não ficaram em Odearce. Chamava-se Tarquínia e era sobrinha do bispo Antonino, o bispo que iria presidir aos baptismos.

- Já foste baptizada, não foste? - pergunta, a medo, Berulfo, tentando entrelaçar a longa, negra, suja e oleada pera numa fina tira de couro. A moçoila, talvez com quinze primaveras, deixou de massajar os calos, para responder ao germano.

- Já! Tinha três anos. - Depois continua a massajar os calinhos de seus delicados pés. Berulfo, apesar de ser casado e com duas filhas, e Malho, lentamente, enquanto iam despertando novamente para a vida, começaram a admirar o corpo e a alma da pequena.

- Se já foste baptizada, então porque é que te continuas a auto-sacrificar? - pergunta Malho, admirado e extasiado pela sobrinha do bispo, desviando umas repas dos olhos.

- Não aprenderam nada nestes dez dias de marcha forçada? O baptismo é apenas o começo da provação, o baptismo é o início de uma longa e dura caminhada para a santidade. - A moçoila levanta-se com intenções de procurar seu tio e o diácono Marcellus.

- Até já irmãos! - diz a mocinha, revelando um refeitinho corpo em idade casadoira. Malho e Berulfo observam-na galgando o rio e olhando para todos os lados.

- As duas mulheres que acompanhavam o Nazareno deviam ser desta estirpe: duras, de têmpera rija e coração grande - opina Berulfo.

- Sim - concorda o búrio, massajando as pernas e sentindo algo a crescer. Ri-se. "Sou um homem, não sou um santo. "

Grande confusão se começou a gerar à frente. O bispo, tapado com um pallium devido ao sol, aproximava-se do cais. Todos se puseram de pé, tentando alcançá-lo. Os irmãos formaram então uma corda para evitar que os peregrinos atropelassem o bispo. Quiruniodado, Berulfo, Malho e os trinta peregrinos do grupo de Marcellus, levantam-se e começam a galgar o baixo rio em direcção ao bispo. Todos gritavam: "Perdão! Perdão! " O bispo e seus acompanhantes começaram a ver-se aflitos, os irmãos não conseguiriam aguentar muito mais a corda. Então Marcellus gritou:

- DIAMAANNTEEE! - E os clérigos sacaram das suas casulas paus e toca a arrear nos exaltados peregrinos. O grupo de Malho foi obrigado a recuar e apanharam em cima a desesperada e fugitiva Tarquínia. Recolheram novamente para as bordas do cálido rio. Tarquínia estava furiosa:

- Estúpidos, estavam lá mulheres grávidas - Malho e Berulfo tentaram consolá-la, abraçando-a. Ela evitou-os gritando: "Larguem-me, malditos bárbaros! ".

Por fim, todos se acalmaram. O bispo, enorme e gordo, com umas bochechas a descaírem-lhe para o pescoço, dirigiu-se, juntamente com o enorme pallium sustentado por quatro serviçais, para o meio do baixo rio. Lá, havia um penedo saliente, onde ele decerto oraria, e onde, segundo o que os habitantes locais lhe tinham dito, o Rex Requiário tinha sido baptizado, não por um alto membro do clero, como Balcónio, seu mais fiel aliado, mas sim por um monge de nome Eustógio, o monge mais ignorante do clero bracarense. Juntamente com Requiário, todos os homens del Rei se baptizaram nessa mesma tarde, faziajá um ano. E deveria estar calor, como estava agora. Os clérigos começaram a distribuir vinho misturado com uma infusão de mandrágora e meimendro para atenuar as dores das lesões dos peregrinos. "Isto vai provocar visões ", cogita Malho, bebendo a infusão. Quirunio preferiu a água do rio, Tarquínia também e Malho bebeu a parte deles.

Antonino subiu para o penedo e as centenas de populares, ordeiramente, foram-se aproximando para o poderem ouvir melhor. Malho julga ver Vespertino, algures na multidão.

Marcellus e outros diáconos e presbíteros tentavam enfileirar a multidão, obrigando-a a descrever uma espiral à volta do orador. Antonino começou recitando São Mateus, e a mão de Turbio, auxiliado por dois irmãos, procederia aos baptismos, abaixo de Antonino. Malho; enfileirado na fila permaneceu, envergando apenas uma tanga. A mão de Tarquínia toca-lhe nas chagas, ele enlaça-lhe as mãos e juntos ouvem São Mateus. O vinho e a infusão começam a fazer efeito e o tempo, lentamente, deixa de existir, esvaindo-se na ampulheta da mente. A espiral não parava. Todavia, ainda sente os peitos de Tarquínia nas suas costas chagadas. Prostra-se de joelhos, cheio de febre, mas os outros e Tarquínia obrigam-no a andar na espiral. Antonino começa a recitar o Novo Testamento: "Naqueles dias, apareceu João, o Baptista, a pregar no deserto da Judeia. Arrependei-vos, dizia, porque está próximo o reino dos Céus " "Arrependei-vos! Está próximo o reino dos Céus! Ai, meu estômago! Está tudo a andar à roda, Tarquínia, Querunio, Berulfo! Onde estás, Berulfo? " Um violento vómito sai-lhe da boca e milhões de corvos batem-lhe na cabeça e nos olhos. Ele abre-os, mas está tudo a andar à roda e os corvos não o largam, picando-o na cabeça, e a dor é tão real... "Wotan, não! Deixa-me! Deixa-me sobreviver! " Tarquínia e Querunio ajudam-no, amparando-lhe a cabeça, obrigam-no a vomitar tudo e a continuar a espiral. O bispo não parava e os primeiros crentes já recebiam três vezes o Pai Celeste pelas águas. "Uma voz grita no deserto: preparai o caminho do Senhor, " endireitai as suas veredas. Malho foi-se aproximando, rastejando nas águas, Tarquínia a custo puxa por ele. "Eu baptizo-vos em água para vos mover ao arrependimento; mas aquele que vem depois de mim é mais poderoso do que eu e eu não sou digno de lhe levar as sandálias. Ele baptizar-vos-á com o fogo do Espírito Santo. " "O fogo! O fogo! " O tempo deixa de ter consistência. Tarquínia beija-lhe as faces.

- É agora, suevo, aproxima-te do bispo Turíbio! Tarquínia deixa-o deslizar, os corvos tinham cessado. Turíbio pega na sua cabeça e unta-lhe uma cruz de cinza por cima da sua falcata tatuada. A seu lado, Vespertino o auxiliava. Malho olha-o e sorri. Vespertino reconhece-o e os dois abraçam-se e choram. Vespertino amarra-lhe o pescoço e Turíbio põe-lhe a mão na testa, mergulham os três numa água profunda e abismal, negra como a noite. Emergem à tona. Tornam a repetir o ritual. As águas fundas lá estavam, imperscrutáveis, negras, obscuras e infinitamente fundas. Emergem de novo à tona. Tornam a repetir o ritual, imersos. Malho, com medo, amarra o braço de Vespertino, a voz tranquilizadora de Vespertino ecoa-lhe no cérebro: - Acalma-te, não temas as águas. Estão lá desde o início e estarão no fim.

"Uma vez baptizado, Jesus saiu da água e e eis que os céus lhe abriram e viu o espírito de Deus descer como uma pomba vir sobre ele... "

Malho, fora das águas, mira Antonino, uma luz acerca-se dele. Malho dá a mão a algo, ultrapassam Antonino planando nas águas. Enlaçado com um entidade estava, toda luz. Sentiu um ardor, um ardor por todo o corpo, invadindo-lhe a alma, a mão que o segurava acalenta-o, distingue- lhe a cara, e pela primeira vez compreende o sentido da mensagem. O amor, o amor altruísta e desinteressado pelo outro, o puro amor, apenas amor, apenas Cristo. Desfaleceu. Tarquínia acordava-o lentamente com óleo de amêndoa, Malho, "o corvo", começou lentamente a abrir os olhos. Era noite, estava quente, e Tarquínia fez-lhe esquecer Nabia por alguns momentos.

- Estás melhor, Malho, filho de Fanoi? - Tarquínia nunca o tinha tratado por esse nome, continuando a olear-lhe a testa e as faces.

- Tens que comer, arranjei-te alguma carne. - Malho pega-lhe na mão e beija-a. Tarquínia resiste.

- Berulfo, onde está?

- Ele está bem, não te preocupes, está com os irmãos. - Malho tenta sondar os olhos da moçoila.

- Vais-te dedicar à santidade e à vida casta?

- É essa a minha missão cá na terra - responde a bela Tarquínia, segura de si.

Malho desvia a cabeça, continuando a segurar a delicada e branca mão da moça.

- Amanhã, Berulfo e eu partiremos, tentando encontrar o nosso norte. Creio que eu e ele recuperamos a fé em nós mesmos e nos homens, depois de hoje. - Tarquínia alegra-se, Malho também, trocam um fraternal olhar.

- Sei que não nos iremos ver mais, Tarquínia, e é por isso que te peço para me alentares na viagem. Queria um beijo teu.

- Mas claro! - responde Tarquínia, dando-lhe um beijo na testa e sentindo o sabor da cinza na testa dele.

- Não, Tarquínia. O que eu quero é um simples beijo dos teus lábios ternos nos meus, para que eu leve de recordação para a terra das brumas. - Tarquínia fica sem fala. Malho, descontente e com a certeza de que seu pedido não vai ser satisfeito, desiste da mão de Tarquínia. Ela fica séria. Malho sente-a a mover, convencido que ela vai embora. Fica triste, precisava dum carinho de mulher.

Uns húmidos e quentes lábios roçam a boca do búrio. Tarquínia, corada, retira-se. Malho fica satisfeito, mas soube tanto a pouco.

Amanhece e os dois búrios despedem-se de Marcellus, de Quirunio, de Deodado, de Quintiliano e de tantos outros que passaram por estes trinta dias de provação. Tarquínia, ao longe, do outro lado do rio, disse-lhes adeus. Envergam túnicas lavadas e Vespertino aparou-lhes o cabelo em forma de malga e desfez-lhes a barba. Continuariam a andar descalços, as sandálias eram caras e não possuíam dinheiro algum.

- Não faz mal, o Pai Celeste não nos desamparará! - declara, confiante, Berulfo.

Seguiram o caminho longo para casa, comendo azeitonas e maçãs pelo caminho e bebendo água das fontes, evitando as passagens dos esquadrões de cavalaria ainda activos por estes lados.

Afastados quinze milhas de Pax Julia se encontravam, numa ponte com 26 arcos. Tinham perdido a via principal, aquela que os levaria por Scalabis. Malho insistia em seguir sempre pelo norte, continuando a via secundária e vendo aonde ela ia dar; preferia tomar o longo caminho para casa. Berulfo não concordava, preferiria encontrar novamente a via principal, e essa estava algures para oeste. A ruptura entre os dois era iminente, logo após Berulfo ter dito a Malho que também conseguira um beijo de Tarquínia. Um grupo de crianças ruivas, assolapadas, estavam assistindo à gritaria dos dois búrios no meio da ponte. Malho, enervado, atira pedras à canalha.

- Ide imbora. Que quereis, merdosos putos de merda?

- Ei, não lhes atires pedras, estamos em terra de suevos, tem cuidado - adverte o filho de Quintian, amarrando fortemente a dextra de Malho, que se preparava para despedir outra pedrada. Os dois miram-se, enervados, e com seus grossos crucifixos de carvalho balançando em fúria. A canalha desata a correr, perante os tiros certeiros do às do dardo.

- Está bem - diz Malho. - Não vale a pena, tomaremos o oeste, tentando encontrar a XVI via.

- Não, Malho! Nossos caminhos acabam aqui - declara, peremptório, Berulfo, apontando a encruzilhada além da ponte, por onde a ruiva canalha agora se escondia.

Malho reflectiu: "Realmente, cada homem deve tomar o seu destino".

- Eu não conheço o Atlântico, nunca vi o mar... - justifica Berulfo, apontando o Oeste.

- Mas, e então em Cartagena? - contrapôs Malho, recordando os tempos de mendigo.

- Um mar parado e a cheirar a podre? Não, Malho, dizem que o Atlântico é revolto e enormes ondas não cessam de chegar à praia, eu quero ver esse mar de perto. Lembras-te quando víamos o sol reflectido nele do alto da montanha?

- Sim, e lembro-me de Cardamiro ter conseguido distinguir três galés pequeninas, minúsculas.

- Velhos tempos esses!

- Velhos tempos esses! - Os dois abraçam-se, como num abraço de despedida.

- Esses tempos voltarão, tenho a certeza disso, meu valoroso companheiro - alenta Berulfo.

Os dois seguem os seus caminhos na encruzilhada da vida. Malho, pela desolada campina interior, Berulfo pelo litoral verde e cultivado.

- Adeus, filho de Quintian. Em terra búria sacrificaremos um bezerro no altar dos cabrões - despede-se Malho, vendo ao longe Berulfo galgando caminho entre a calçada ladeada de mato.

- A quem sacrificaremos o bezerro, corax? A Wotan ou a Cristo? - acena Berulfo, em andamento, emjeito de ironia. "A quem sacrificaremos o bezerro? " Que raio de pergunta. Malho continuou trilhando a via secundária. Via essa que agora se estreitava, dando início a um promontório. A estrada estava intransitável e o crepúsculo anunciava a sua hora. Acercou-se dum conjunto de oliveiras para pernoitar e orar. Não precisaria de fogo, as calendas de Agosto estavam quentes. O crepúsculo é diferente do dilúculo, o crepúsculo anuncia o final do entardecer e o início da própria noite, quando ela cobre todo o céu, e uma nesguinha de claridade difusa e amarelada retém-se no último horizonte fugidio solar. Esse tempo, esse espaço, é mágico, anuncia a morte dos deuses e um novo renascimento. A estrela polar começou seu reinado de doze horas. "Quando serei um velado, inquire Malho a si mesmo mirando e recordando que, apesar de cristão, ainda é um irmão mitral. Suas pálpebras fechavam-se, recostado no mato rasteiro, sentindo formigas subindo-lhe pelas pernas, e ouvindo os grilos. A estrela polar foi o que levou para o mundo dos sonhos. Estava nu, no meio dum milenar carvalho, com folhas secas debaixo dele, tinha frio, muito frio, e seus olhos eram dois rios correndo para a terra. Algo se aproxima. Nabia, cor de fogo, chorosa também se encontra em estado interessante, os dois beijam-se, um choro de menina eclode. Malho acorda abruptamente com o longínquo uivar dum lobo serrano. Lembra-se que está numa serra no interior sul da Lusitânia. Lembra-se que está longe de casa. Muito longe de casa. Torna a fechar os olhos, retirando formigas e pequenas larvinhas noctívagas da cara.

 

O dilúculo anuncia-se, será um dia quente. Levanta-se e vai mijar, virado para a planície ainda obscura, lá em baixo. Despe a túnica e põe-se nu. Coloca a túnica debaixo de si e senta-se nela. Precisava de água para lavar a cara e o corpo, tenta tirar as remelas dos olhos. Decide fazer um jejum como Jesus fez, não antes de inspeccionar a área e comer algumas amoras e gafanhotos. "É! Não são assim tão maus! "

Por fim, inicia ojejum, à espera de encontrar alguma elevação espiritual no meio da serrania.

Quinto dia dejejum, décima hora

Seu estômago roncava e sua barriga contraía-se perante o vazio causado pelos cinco dias sem comer; pior que tudo era a obsessiva ideia de Nabia, dia após dia, hora após hora, minuto após minuto, segundo após segundo. Mesmo quando meditava no jejum de Cristo e nas tentações do demónio, Nabia estava presente. Estava presente nas pedras que se convertem em pão, estava presente no pináculo do templo, estava presente com a clâmide e o cabelo cor de fogo, estava presente na montanha mais alta onde se vislumbravam todos os reinos do mundo. "Vai-te satanás, pois está escrito: ao Senhor, teu Deus, adorarás e só a ele prestarás culto. " Pior que isso era a falta de água, mas ele fizera já batidas nas cercanias e água nem vê-la. De facto, já estava sem forças para andar. "É impossível alguém aguentar quarenta dias! Mas também Jesus não é homem, ele é o filho de Deus tornado carne. " Coisa que ao suevo ainda fazia confusão. O calor era insuportável e as oliveiras forneciam apenas uma parca e difusa sombra. Sentia fome, muita fome, imensa fome, mais um dia assim e morria desidratado e a elevação espiritual nem vê-la, apenas sonhos com a amada que o enlaçou e correrias a fugir do vândalo maneta, e negras mãos que lhe apertam o pescoço, fantasmas da guerra, decerto.

Adormece pesadamente, tentando esquecer o pesado calor. Cheio de comichão por todo o corpo permanecia, e sua cara estava agora decorada com milhentos picões de mosquitos e trompeteiros que lhe inflamavam a mesma.

Acordou ao final da tarde. A seu lado, numa cesta, pernas de rã cozidas, maçãs, cerejas, laranjas e uvas estavam ao seu dispor, mas mais importante que isso era o fresco cântaro de água que lhe estava dizendo bebe-me. Sorveu-o completamente e olhou em redor, discerne ao longe a canalha ruiva fugindo e rindo e pensa para ele: "O Pai Celeste ajuda-me, ele não deixa que me falte nada. Ele enviou as crianças, as mesmas que eu tratei à pedrada, há cinco dias, na ponte dos 26 arcos". Come as perninhas todas, deliciando-se. Sacode a túnica e alanca dali, agradecendo ao Pai Celeste com uma oração.

Retornou à encruzilhada da ponte dos 26 arcos, perscrutando o caminho que tomou Berulfo. Um relinchar de cavalo faz-lhe voltear as costas. A princípio não reconheceu o entroncado cavaleiro, que trazia duas mulas carregadas. Mas, depois, o elmo decorado com duas asas de águia e o longo bigode caindo pelos ombros fez-lhe gritar um nome:

- ZOLTAN! Fantasma que retornaste das cinzas da morte - aponta Malho, exorcizando a aparição.

- Qual cinzas da morte, qual quê? Eu não morri, Eu sou imortal, eu sou um filho da estepe, ficarei eternamente neste mundo como espectro, penando os outros amarrado a seus ombros. "Sim, essa é a sina dos que não acreditam em nada. "

Zoltan arreia o fogoso cavalo, Malho passa a mão na ganacha do animal; acalmando-o.

- É muito nervosa, a montada.

- Sim, é como eu.

- Que te aconteceu, corax? Deixei-te nas ruas de Cartagena e quando volto lá desapareces? - Malho fica surpreendido.

- Não me lembro de nada, apenas me lembro de minha espada estar encostada à minha traqueia e tu dizeres: Tu não consegues, Malho! Afinal, tu acreditas nos deuses, não és senhor de ti mesmo.

- Mais valia teres-te matado ali, à minha frente - dizia Zoltan, retirando a coxa de lebre da fogueira e dando-a a Malho. Os dois já se tinham instalado na campina para passar a noite. Malho, trincando a fibrosa cocha, pergunta, curioso:

- O que se passou depois, Zoltan? Só me lembro de ser mendigo em Cartagena, eu e Berulfo.

- De Berulfo não sei. Sei que te tornaste um morto-vivo depois de Palência, não falavas, não comias, apenas olhavas o infinito, mijavas-te e cagavas-te todo e nem davas conta. Levei-te para Cartagena, queria embarcar para África e servir os asdingos. Julgava que o sol e as mulheres morenas te fizessem bem. Mas cada vez pioravas mais. De repente tive que fazer uns "serviços", informa Zoltan, cortando a cabeça à lebre no espeto. Tive que te deixar abandonado.

- Levaste o meu tesouro? - pergunta Malho, apontando para uma das mulas carregadas, chuchando os dedos da parca gordura da lebre e atirando o osso à natureza.

- Sim, está lá todo - responde o alano, chuchando a cabeça da lebre.

- Todo mesmo?

- Todo mesmo! - confirma Zoltan, sabedor do que Malho afinal queria.

O Corax levanta-se, dirige-se a uma das mulas e rebusca, nas fartas sacolas laterais da sela, os anéis, os torques, os colares, as moedas. Sente o cabo da lua desocultada, sente-se aliviado, sente o elmo e a mão fibrosa do vândalo, um arrepio percorre-lhe a espinha, por fim acha o que procura: seu amado torque, o torque que Nabia lhe deu na despedida. "Está aqui. "

- Está aqui, Zoltan! - O alano ri-se, dizendo:

- Julgas que vais recuperar a tua noiva assim, como recuperas um objecto perdido na noite escura da tormenta?

Malho baixa os olhos.

- Deita-te, búrio. Amanhã regressarás como um guerreiro a casa. Com um rico espólio e com a vida destroçada. Hé! hé! hé!

Malho deita-se, acercando-se do fogo, mirando seu amado torque, relembrando Nabia e perguntando o que se estará a passar com ela, lá longe, nos montes encravada.

O vândalo abanava-lhe os ombros!

- DÁ-ME O QUE É MEU! DÁ-ME O QUE É MEU! - Quatro mãos auxiliavam o hediondo filho da estepe, asfixiando Malho. Tinham-sejuntado os três. A rapariguinha que ele violou e empalou e o rebento que ele cutilou. O vândalo deixara, no reino das sombras, de cumprir a sua função: a de protecção. Malho tenta despertar da asfixia. Consegue, com o nariz completamente tapado e respirando pesadamente. A garganta estava áspera, mas as mãos não o largavam. Pegou na adaga e no crucifixo, sentindo-se mais leve e calmo; as mãos deixaram de o pressionar. Apressada e desesperadamente, procura o elmo na aurora matinal. Revira a cabana toda. Por fim, encontra-o debaixo da armadura de escamas ensanguentada.

O elmo! O elmo e a mão. Põe-no na cabeça e sai para o sol, detém-se perante o Sol Invictus nas alturas, que invade todo o azul. Ali, de elmo e braços abertos, repete um ritual esquecido: "Salve a ti, ó eterno e espiritual Sol, cujo símbolo visível se levanta agora nos céus. Salve a ti, desde as abóbadas da manhã! " Sente o calor do sol. Depois, apressadamente, junta lenha para fazer uma fogueira, bastante lenha, bastante lenha, o suor escorre-lhe pela testa, costas, braços, pernas. Finalmente, ateia o fogo e deixa a fogueira tomar seu rumo. Tenta retirar a mão do elmo. Mas ela não quer sair. Malho não quer deitar o elmo ao fogo, é um bom elmo, de puro ferro e com um bom pontilhão para dar cabeçadas.

- Ajuda-me! Afinal, a mão é túa, não queres partir? - grita Malho para o ar invisível. - Um rafeiro ladra a trinta metros. Por fim, a mão cedeu de seu amo. Malho segura-a, esperando que a fogueira aumente. Depois atira-a para as chamas primordiais.

- Terra, Ar, Água e Fogo, eu te liberto da servidão a que foste votado, adeus! Até às eternas sombras. - A mão fibrosa decompunha-se até ao osso. As chamas voltearam em circular, a forma do arqueiro ascendia aos ares, um rodopio incessante e rápido apoderava-se da fogueira. Por fim, o fumo levou o vândalo e Malho sentiu-se com os ombros mais leves, mas ainda com a garganta apertada. "Uma batalha de cada vez", cogita o filho da bruma. Entra em sua cabana, dirigindo-se à sua armadura de escamas, retira do coldre de pele de ovelha a lua. Sua espada descrevia, na maça do punho, uma grossa circunferência de metal interrompida nas extremidades por dois dragões que se encaravam de frente, magnífica espada que já foi de seu pai. Seu pai uma vez disse-lhe que já fora de seu avô...

 

O TORQUE

Belo dia que está hoje, sem mácula que o manche. Dias perfeitos. Sol que enche todo o ar, todo o espaço. Azul claro, claríssimo, quase branco, quase branco, quase...

A figura galante do inexperiente búrio desce o tortuoso trilho das cabras, evitando calcar, com suas sandálias novas, algum excremento do gado equino. Mas o olhar para detrás do ombro, a ver se Deidre não o perseguia, e a cabeça sempre nas nuvens a pensar em Nabia, sua secreta namorada, levam-no a resvalar na merda de cabra e a dar um valente tombo nos duros penedos. Ouve-se o rir de Britae, lá em cima, apascentando gado nalguma falésia.

- Maldito narbasso! Não perdes pela demora - brada o búrio, enervado, sentindo a bosta na sua anca. Que fazer? Não podia ir ter com a sua donzela com aquele cheiro colado a si. Tirou as bragas quadriculadas, retirou o cinto e adaptou seu sago transformando-o num saio. "Pareço um abelhudo irlandês! " Todo airoso e pimpão de túnica e saio, lá foi ele, deixando as bragas cheirosas no meio da inclinada natureza. Sua amada escondida nas árvores permanecia, vigiando todos os lados. A princesa dos narbassos geresianos não podia ser vista com um búrio: a escumalha sueva. Ela deve aspirar a um senhor poderoso.

- Nabiazinha! - surpreende o galante búrio, amarrando-lhe a cinta por detrás dela e tentando beijar o delicado pescoço alvo.

- Ai, parvo, larga-me!

- Não largo não! Minha doce flor, meu mel, minha abelhinha, zzzzzz - O búrio zumbia agora no ouvido da amada provocando-lhe uma irritação auricular.

- Ai, parvo, larga-me!

Os dois beijam-se intensamente, parados, sem tempo, no meio dos bravios pinheiros, rodeados de fetos e verduras, ouvindo os balados das cabras ao longe. Malho começa a levantar-lhe o estreito vestido, tentando apalpar seu rabiosque.

- Não, pára - ordena Nabia, empurrando o búrio, pegando numa cesta e saindo de seu esconderijo. Sem se preocupar com os olhares indiscretos, começa a descer o trilho que leva ao vale do Catavo. De repente, olha para cima. Deidre, surpreendida, desvia o olhar e foge. Malho pergunta, seguindo Nabia:

- Quem era?

- Era a tua prometidinha.

- Deidre?

- Sim, agora toda a gente vai saber - diz, aborrecida, Nabia.

- Toda a gente já sabe, a minha tribo, a tua tribo, toda a gente já sabe - informa-a, encolhendo os ombros e pegando numa vara, para a descida até às videiras do Catavo. Nabia repara no estranho sago e puxa-lhe pelo mesmo violentamente.

- Ei, que fazes? Vou ficar em pelota! - adverte-a, tentando apanhar o fugidio saio, mal seguro pelo cinto. Nabia cai, o burio vai auxiliá-la com a virtude à mostra. Nabia vê o mostrengo pela primeira vez, asqueroso, enorme e cheio de pelo. Grita.

- Que horror! Tapa isso! Tou enjoada. - Nabia fecha os olhos, batendo violentamente com os punhos na terra. Malho, vendo o desespero de Nabia, pede calmamente, achando piada:

- Dá-me o sago - Ela dá-lho, de olhos fechados. Ele torna a envergá-lo. Juntos começam seu matinal passeio.

A tarde é prazenteira entre as videiras. De onde estão sentados, consegue-se discernir uma ou duas crianças atirando-se dos penedos para o rio Catavo. Todavia, nuvens negras iam-se aproximando do Noroeste.

- Indicia trovoada. Se não formos para cima, vamos apanhar uma chuvada - adverte Malho, recostado no colo de Nabia.

- Não vai chover - contrapõe Nabia, brincando com um malmequer no nariz do suevo, fazendo-lhe cócegas. Ele tira-lhe

o malmequer e levanta-se, olhando-a, desafiador, e deixando cair o improvisado saio onde seu membro pontificava, balançando meio duro:

- Mal-me-quer, bem-me-quer, mal-me-quer, bem-me-quer...

- dizia o suevo, deixando cair as pétalas arrancadas em cima de seu andarilho membro. Nabia não se constrangeu e evitou que suas faces ruborizassem, nem olhou para a sua virilidade despudorada e desnuda. Adoptou um controle interior e fez uma predição:

- Vai chover, vai! Quando acabares de contar três vezes dez, irá chover! - Dito isto, trovejou ao longe. Malho não acreditou.

- Experimenta, ou não tens tomates? - Riu-se, sem nunca olhar para os seus. O suevo começou a contar calmamente:

- Um, dois, três quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez! Um, dois, três... - Deixara cair o malmequer e as pétalas, sua virilidade diminuíra e relaxara. Sentiu, à medida que contava, um ar frio resvalando-lhe no peito e revolvendo seus vermelhos cabelos. O ar tornara-se escuro e húmido. Nabia não tirava os olhos dele, da sua face, ele encarou-a também, seus olhares desafiadores entrecruzavam-se. Ele ia na segunda repetição do dez, Nabia estava concentrada nele, demasiadamente concentrada nele. Os cabelos vermelhos de Malho revolviam-se para a frente e para trás, sentiu ao longe a chuva a chegar, mas continuava sereno e automático a repetir os números. Não faria batota, senão Nabia o acusaria. No último e terceiro lanço de números estavam, Nabia deitada e vestida, de joelhos à mostra, com os cabelos escarlates em remoinho.

Cinco, seis... - o membro de Malho rapidamente se enrista sete, oito... - a chuva está a chegar -... nove... - ouve-se fugir a canalha à beira-rio, Nabia pousa a cabeça, abre os braços e mira o pilar escondido de Assúmia -. dez - A chuva violentamente atinge o duo, Malho cai em cima de Nabia, ela não oferece resistência, mas ele é tão inexperiente... Seu pai e tio já lhe tinham falado, mas isto é diferente, não são patas nem ovelhas. "Raios, por Freya, são tantos os buracos " Malho, embaraçado, fica passivo em cima de Nabia, ela toca o pilar de Assúrnia, diz coisas em gaélico, seus seios irrompem do apertado vestido. Nabia a suar guia o membro impaciente de Malho com a mão, ele entra em seu tesouro, ela estremece e guincha e grita palavras ocultas e ordena a Malho que se mexa, ele abana-se, recordando a pata com Cardamiro e Gudios, e faz o mesmo movimento, está em transe, estavam em transe. "Que diferente que isto é! " Chove torrencialmente. Nabia vê o paraíso três vezes e ordena a Malho para parar, ele não cede, agora não quer parar, ela morde-lhe o pescoço violentamente, arrancando-lhe a pele e alguma carne. Malho pára com a dor, desmonta-a e cai de cu na lama levando a mão a seu pescoço. Nabia cospe-lhe a pele e carne que trincara e insulta-o, lançando-lhe pragas:

- Queres que eu engravide? Não posso! Não podemos! - grita Nabia, de pernas abertas, sentindo um fio de esperma caindo-lhe lentamente ao longo dos lábios vaginais. Depois, põe-se de cócoras, com a mão no estômago agoniando. Os fios de chuva ininterrupta não os largavam, sangue começa a esguichar da sua virtude para a lama.

- Sai daqui! Não me vejas assim. - Malho, assustado, tenta levantar-se da lama, escorrega, uma e outra vez, Nabia grita esguichando sangue e cantando em gaélico. Finalmente, ele oculta-se nas videiras, seu pénis inchado de sangue livra-se agora do excesso de esperma. Começa a tossir e a tremer, a chuva não parava e não tardava a escurecer. Toma coragem e resolve procurar Nabia, procura o pilar sob a neblina húmida que provoca a chuva. Nabia desaparecera, seu pescoço dói-lhe. "Ui! Está em carne viva! Esta mulher vai acabar comigo! Deidre bem me avisara. Merda, grande puta! Ai meu pescocinho! " Malho procura sua roupa, não a encontra, chama por Nabia, várias vezes. "Maldita bruxa! Vou-te queimar! A ti e às tuas secretas amiguinhas. Julgas que eu não sei o que andam a fazer! Malditas wiccas! Malditas, malditas". Nu, molhado e a sangrar, resolve galgar caminho para a sua terra búria. Ainda lhe faltavam quinze léguas de abrupta subida, com os trovões por companhia e um vento gélido do norte.

Três dias ficou Malho doente, em altas febres e delírios, Deidre o tratou sempre bem, entre efusões a ferver de loios e brunelas: Deidre nunca o deixou, perante o olhar atento do tio. Tio esse que ao fim do terceiro dia o enxota da cama.

- Levanta esse cu, rapaz, o rei chama-te - diz seu tio puxando-o do leito rasteiro.

- Ele não pode! - acode Deidre, amarrando o tio pelos ombros. - O tio brutamente afasta Deidre com um braço, ela cai redonda no chão. Malho não tem força para reagir.

- Não te metas, está na altura dele partir. O nosso velho rei chama toda a grei! Os godos estão às portas - Malho é empurrado para o exterior. No velho caminho esburacado da XVIII via que ia dar a Saliana e que passava no povoado, uma fila interminável de homens a pé aguardava que os búrios se armassem e reunissem o gado, para seguir viagem para baixo, para Bracara Augusta. Um enorme caudilho aborrecido estava encostado a uma coluna, sacudindo as moscas com um chicote de cavalos. Vendo o tio puxando pelo adoentado Malho, acena-lhe com a cabeça para rapidamente aprontar o rapaz. O tio responde-lhe, acenando também com a cabeça. Depois, o enorme caudilho, com conhecimentos rudimentares de latim, tenta decifrar os escritos na coluna que Trajano edificou, tendo ficado muito desalentado quando decifra que estão a vinte e sete mil passos de Bracara Augusta. "Porra! É muita légua para andar! " Malho tenta habituar seus olhos à aspereza do sol, vê o narbasso Britae, seu servo por herança, juntando suas trinta cabeças de gado.

- Depressa! - ordena o tio. -Arma-te! - diz o mesmo, retirando a suja túnica do corpo de Malho. Deidre, impotente, tenta ajudar, metendo as bragas em suas desnudas e empoeiradas pernas.

- Calma, calma - pede Malho, tonto e tentando vestir a couraça de estopa rija, antes de envergar a pesada armadura de escamas cinzeladas de seu pai. Malho sabia que iria partir pela ponte das espadas algum dia, mas assim, tão de repente... E Nabia? Que é feito dela? Seu pescoço envolto numa ligadura estava, cheio de pus da sua última marca. "Minha bruxinha, onde te escondes? "

- Hei, búrio! Tamos à tua espera! - grita Sande, rodeado de mulheres, provocando uma gargalhada geral em todo o grupo alinhado, entre os quais estava Saamil, seu primo, Purcelo, o gordo, Esdulfe, Berulfo, Martul, Eiron e tantos outros amigos de infância e de píveas, agora homens em face da guerra. Seu tio ata-lhe o robusto cinto de couro, enlaça-lhe os dardos às espaldas, perguntando:

- Lembras-te do que eu te ensinei para atirá-los?

- Sim, tio! - responde Malho, emocionado, abraçando

fortemente o irmão de seu pai. Depois, ajusta seu broquel ao braço esquerdo e põe no ombro uma temível lança, em cuja haste Deidre carinhosamente lhe atara uma trouxa com comida. Mira Deidre e deixa-a dar-lhe um beijo na boca, depois dirige-se a seus armados e amados companheiros, fazendo-lhes uma careta com a língua. Sua cabeça estava pesada da febre e deu vários espirros. O enorme caudilho desperta do seu letárgico sono e manda Malho encaixar-se à beira de Belesende e seus cinco filhos.

O caudilho monta seu palafrém manchado e ordena à grei búria que comece a marchar, acenando ao mesmo tempo com a sinistra na direcção da ponte sobre o Catavo. Malho só pensa em Nabia.

Iniciam a longa marcha.

Passadas três horas, Malho distingue o Catavo e as videiras da sua iniciação. Britae, fora da linha, chama-o.

" - Senhor SENHOR!

- QUE QUERES BRITAE? Não estás a conduzir o gado na retaguarda?

- Senhor, senhor! Apartai-vos um bocado, a princesa dos narbassos quer falar-vos. "Nabia, Nabia, quer-me falar". Malho ficou sem respiração e mudo. Naquele momento, ele não contava com aquilo. Belesende, já maduro e com milhentas brancas decorando-lhe o cabelo apanhado, aconselha Malho, piscando-lhe o olho:

- Vai e não te demores, nós te encobriremos. Apanha-nos mais à frente!

Malho lá foi, puxado por Britae. Embrenharam-se nas videiras.

O pastor deixa-o a sós. De broquel em riste e lança na mão, vê a sombra da feiticeira acercando-se, ela sonda-o chorosa, olheiras fundas. Estivera em triste pranto toda a noite, ela decidira o futuro. Malho, receoso de seu pescoço, encolhe-se na armadura como uma tartaruga na sua casca.

Ela metia-lhe medo, ao contrário de Deidre. Ela dedilha o rude objecto que é seu escudo, provocando sons tamborescos, e lentamente baixa a sua guarda indo acariciar o pus da trincadela no pescoço.

- Amo-te, meu filho da floresta negra, adoro-te, venero-te e tenho medo de perder-te no fim do mundo - Malho engole em seco. Ela continua:

- Meus pais mandaram forjar este torque no melhor ferreiro da Gallaecia, estava destinado ao senhor poderoso com quem eu me deveria casar. - Nabia desvela um magnífico torque de oiro maciço, gravado com estranhas espirais, e enlaça Malho no mesmo, cuidadosamente, para não afectar a ferida do amor.

- Tu és o meu senhor poderoso, o meu único e eterno senhor poderoso, para todo o sempre. - Um arrepio na espinha percorre Malho, desde a base dos quadris até à nuca.

- Eu sou o teu senhor poderoso para todo o sempre, o teu único senhor poderoso. - Dito isto, Malho desencolhe-se da sua armadura e beija Nabia. Subitamente, o cavalo do caudilho relincha, ao longe. Não têm muito tempo, Malho pousa a lança e retira da sua sacola um anel de sua mãe, pega na delicada, frágil e alva mão de Nabiazinha e coloca no anelar o anel de prata contendo símbolos rúnicos de protecção.

- Este foi o anel de minha mãe, a que me gerou, dou-o a minha mulher, à minha eterna mulher. - Nabia corou e abraçou-o, sentindo as frias escamas do metal, fica subitamente nervosa e empurra-o para trás, gritando e acusando-o:

- Deixarás de ser homem! Maldita besta! - E desata a correr. Malho fica embasbacado, olhando-a e perguntando-se: "Estará louca a minha amada? ".

Britae chama-o, a guerra chama-o. Ele medita na frase: "Deixarás de ser homem! Serás besta! Deixarás de ser homem! Serás besta! " Seguiram para Bracara Augusta, juntando reforços, e depois para Portucale, juntando mantimentos, depois para Conímbriga, juntando gente e mais gente.

Mas Conímbriga ficara para trás, e a trezentas milhas para leste ficava Egitânia. Todavia, não seguiriam por aí. Nas fileiras do interminável exército constava que o rei queria atacar os godo-romanos pelo sul, dirigindo-se à Bética para cortar os abastecimentos ao invasor.

 

A NECROMANCIA

Tens que parar de reviver o passado, isso não leva a nada - aconselha Berulfo, admirando o portentoso cavalo branco que Malho adquiriu numa feira do sul.

- Sim, reviver o passado não leva a nada, mas não consigo deixar de pensar nele, ele não me larga. Podemos romper com o passado, mas ele não rompe connosco.

- Mas tu tens estado bem. Abracax fez um bom trabalho ao livrar-te daqueles dois fantasmas que te pesavam nos ombros - constata Berulfo, pegando numa pedra e atirando-a a uns rafeiros que circundavam excitados o cavalo do corvo. O cavalo estava inquieto. Malho mira os cães, antevendo perigo.

- Sim, ele livrou-me de uns, mas agora tenho tido estranhos sonhos com o gordo Puricello.

- Arre - diz Berulfo, fazendo o sinal da cruz, logo acompanhado por Malho.

- Na última noite, sonhei que Puricello me abria as cortinas, lá havia uma arena com carvalhos, meu ginete branco cavalga veloz por entre eles, os cães vadios do nosso castro o perseguem, enquanto romanos de toga aplaudem nas tribunas. Miro-me de repente a um espelho de estanho, uma medalha em meu peito dança, gravada está com um santo cujo nome desconheço, ao lado dum leão, empunhando uma espada...

- Será São Marcos? - inquire Berulfo.

não sei. O cavalo relincha, o cavalo cai, é Nabia que cai. Falésia abaixo observo, gatos pretos, prenhos e molhados estão no fundo, à beira do ribeiro. Que me dizes?

- Sei lá! - diz Berulfo, coçando a cabeça. - É mau sonhar com gatos pretos. Ainda mais com Nabia em estado interessante.

- Malho sorri, pensando na sua menina.

- Quando será o nascimento?

- Não sei! Lá para as calendas de Agosto - responde Malho, puxando os freios ao cavalo.

- Nunca julguei que passasses para o lado dos ricos - ironiza Berulfo, olhando o cavalo. Se formos de campanha outra vez, vou ter que te beijar a espada.

- Estúpido - diz Malho, tentando dar um pontapé no traseiro de Berulfo.

- Mil perdões, meu nobre senhor! - diz Berulfo, tentando imitar Britae.

O filho de Berulfo irrompe porta adentro. Era mudo, mas via longe.

- Calma rapaz, que se passa? - pergunta Berulfo, amparando os peitos do mancebo com as mãos. Nabia, com uma rodilha, limpa-lhe o suor da testa. O mancebo gesticula com as mãos e os braços gestos imperceptíveis para Analkon, Malho e Nabia. Somente o pai dele e sua mulher, Rosmerta, é que o entendem.

- Calma! Calma! Mais devagar. Correrias! Sim, um cavalo? Cães! Um cavalo de quem?

De Malho - complementa Rosmerta. Malho estremece. O sonho! E desata a correr pelo castro abaixo, ultrapassando a via saliana e embrenhando- se na pequena floresta de carvalhos que antecede a fatal falésia, a falésia em que ele costumava exercitar-se com a flauta do pastor. Ouve os cães a ladrar. "Malditos rafeiros! Malditos ". Chega a arfar à falésia, vê alguns putos a perseguirem os cães com paus, ao longo da falésia, vê Cardamiro, o perneta Belesende e seu quinto filho a perscrutarem o abismo. "Não não! O cavalo custou-me muito ouro! Ainda nem tinha nome! " Malho abrandou a corrida, Cardamiro abraça-o, Belesende acena não com a cabeça e o quinto filho mira embasbacado o chão. Chegam- se os dois ao abismo. "O cavalo está a dois passos do ribeiro, de barriga para cima, duas pernas traseiras deslocadas, pescoço partido e dentes arreganhados. "O cavalo relincha, o cavalo cai, é Nabia que cai, falésia abaixo observo... "

- Ele não sofreu, foi rápido, não o ouvi relinchar! - assegura Cardamiro, abraçando Malho, que observa Nabia, Berulfo, o único sabedor do sonho, Analkon, Rosmerta e filho chegando. Berulfo engole em seco, os olhos do Adaga Negra sondam Nabia e depois detêm-se a olhar os longínquos rafeiros que ainda ladram...

- Filho, vai buscar o arco - diz Belesende ao seu quinto. Hoje vamos caçar cães.

Os cães rolavam em vários espetos improvisados no sítio da falésia da queda do cavalo. Era alta noite estrelada, tinham sido cinco rafeiros apanhados e uma cria que foi jogada do alto com um pontapé por Malho. Uma fêmea enorme e prenha rolava no espeto, dez crias dentro dela rolavam também e deveriam estar apetitosas.

A canalha, o filho de Belesende e os dois filhos de Berulfo tratavam de alimentar as fogueiras, enquanto Malho, Britae, Analkon, Berulfo, Cardamiro, o tio de Malho, Belesende, o irmão de Puricello e o primo de Axilde recostados estavam à espera do manjar, bebendo um bom tinto pago e oferecido pelo Adaga Negra, como agradecimento de terem caçado os cães, ao longo da tarde. Rodeando a fêmea, estavam já ébrios e faladores Malho, Belesende, Berulfo e Cardamiro. Belesende, com cuidado para não se queimar, retira com um cutelo e espeto uma das tenras crias.

- Que maravilha, está tenrinha! Vai uma trinca? - Malho dispensou, dado que estava à espera de uma coxa da fêmea. Berulfo admira as formas gordurosas ejá diluídas pelo calor da cria, pega em seu sago para não se queimar. Belesende deposita-a no seu manto, dizendo:

- Podes comê-la toda, ainda há mais nove. Filho! Põe a barriga da cadela para cima, senão as crias caem na fogueira. - Malho olha a cria no sago de Belesende. Cardamiro, já sabedor do sonho de Malho, põe-se a especular:

- Ora, sonhar com gatos pretos prenhos significa mal em potência. - Dá um gole no forte vinho tinto e limpa a boca com uma manga.

- Tal como estes cães que estamos a comer, estão impregnados de mal. - O filho de Berulfo dá uma pata a Cardamiro, Cardamiro continua a sua especulação, pegando com cuidado na coxa quente:

- Ora, os cães mataram um cavalo branco, símbolo do bem e da inocência, logo o mal despontará. - Dá uma valente trinca à pata da cadela, observando Berulfo devorando avidamente a cria.

- Berulfo! Estás-te a apoderar do mal multiplicado, a cria do mal, a assassina do cavalo branco. - Berulfo cospe a carne da cria, levanta-se, sentindo-se mal. Diz que está indisposto e que se irá retirar para o leito. Foi a última vez que o viram.

No dia seguinte, Berulfo acorda morto. Malho meteu-se em casa durante dois dias, sem comer, sem beber, sem chorar. Nos inícios da noite do terceiro dia, Cardamiro bate-lhe à porta:

- Malho, Adaga, aparece - chama Cardamiro, batendo com as mãos.

- Cala-te, que acordas Nabia! - adverte Malho, em pelota, sentindo o desolado frio cá fora.

- Vai buscar teu sago, eu tenho a resposta para os nossos problemas.

- Problemas! Que problemas? - Mas Malho sabia que problemas eram, Analkon passava os dias bêbado, ele não parava de recordar o passado, quase entrando em estado de transe. Cardamiro parecia um louco correndo várias vezes ao dia duma ponta a outra do castro e gritando. Britae estava sisudo e triste sempre em estado melancólico. Depois ninguém queria voltar a combater, caso o novo Rex Requiário os chamasse, e essa hora sentia-se chegar nas árvores, no som das folhas, nos uivares dos lobos.

- Anda lá, e traz um machado para cortar lenha. Espero-te lá em baixo.

Malho fechou a porta sem responder nada, voltou ao leito de Nabia, deitando-se. "Não, não irei, Cardamiro anda louco! " Fechou os olhos, pensando em Berulfo, o amado Berulfo, e abriu os olhos pensando nele também. "Será que Berulfo morreu por comer o mal multiplicado na cria? Todos comemos os cães, mas só ele comeu a cria. " Virou-se e virou-se de novo, Cardamiro e Berulfo não lhe saíam da ideia. Levanta-se, enervado, e decide aceitar o repto de Cardamiro, apesar de hoje ser sexta, dia de Frigg, precisamente o dia em que procurou Abracax. Pegou num colete de negro urso, enlaçou-se no sago, empunhou um machado e uma tocha e saiu para a negra noite, ciente que Nabia se aperceberá da sua ausência repentina. "Protegei-o, espíritos da floresta! ", reza Nabia, ensonada e de pálpebras descidas.

Cardamiro, Britae, Analkon, o coxo Belesende, seu quinto filho e o filho mais velho de Berulfo aguardavam Malho, perto da XVIII via, todos munidos de machados de cortar lenha. O Adaga chegou, ninguém se falou, todos se encapuçaram com o sago e galgaram via acima, encobertos e olhando para todos os lados, como se fizessem tudo às escondidas. Apenas as corujas eram testemunhas destes sete homens que a algum lugar obscuro se dirigiam. Malho recordava-se da sua iniciação nos mistérios mitrais; também lá ele não sabia aonde se dirigia. Enveredaram por um tortuoso atalho e Cardamiro acendera uma tocha. "Raios!

Por Balder, é aos penedos de ninguém que se dirigem. Raios! É lá que está sepultado Berulfo. " Malho estancou, o filho mais novo de Berulfo, de nome Lusio, embate-lhe nas costas e alenta- o:

- Vamos lá, Adaga Negra, eu quero falar com o meu pai. - Malho estremece. "Então é isso. É isso que Cardamiro quer fazer: falar com o morto! " O coração quase que pára no búrio. Tenta voltar para trás. Mas Analkon e a muleta de Belesende impedem-no. - Pode ser que eu receba notícias de meus filhos mortos. Não

percebes, filho de Fanoi? E de teu pai!

- Vocês estão loucos, falar com mortos é perigoso, ainda nos votam maldições - grita Malho, assustado e amarrado por Analkon. - Malho, Berulfo é a solução para os nossos problemas, nada está igual desde o nosso regresso, a loucura e o desespero tomam conta de nossas cabeças, eu preciso de saber se voltaremos ao inferno ou não.

- Mas... mas Cardamiro é um curioso! Ao menos faríamos isto com Abracax.

Cardamiro enfrenta Malho, quase queimando-lhe as faces:

- E Abracax Onde está?

Todos deixam Malho estendido no chão seguindo caminho para os penedos de ninguém. Ele observa a tocha condutora de Cardamiro desaparecendo no negro arvoredo, fica momentos a meditar. A necromancia arrepia-o, ele tem certeza de que algo irá correr mal. Mas não quer deixar seus companheiros lá, sozinhos e desamparados, acordando as forças maléficas dos mortos. "Pode ser que nem resulte. Sim, Cardamiro é um charlatão! Pode ser que nem resulte. " Com este reconfortante pensamento Malho decide seguir os desastrados necromantes, algures por volta da meia-noite de uma tenebrosa sexta- feira.

Malho chegara e o grupo já estava a cortar caniços e a improvisar uma cerca à volta dum monte de terra onde decerto estaria debaixo o convertido Berulfo. Malho lembra-se que é um convertido e que não deveria estar ali, fazendo magia negra. Analkon pede ajuda:

- Ei, martela esta estaca aqui para enlaçarmos as paredes de caniço. - Malho, a custo, lá se põe a martelar a estaca terra adentro, a dois metros do monte de Berulfo, procura Cardamiro, que está muito atento a inspeccionar o local. O som da estaca a ser empurrada solo adentro faz-lhe recordar o cerco a Córduba e as estacas com que empalavam os aldeões e que o Adaga Negra ajudou a colocar. "Outra vez os suores. Por Cristo, não. Acalmai-me, meu bom Senhor, perdoai-me e protegei-me". O Adaga parou, não podia continuar, mas vendo os dois mancebos aflitos a carregar o caniço, resolve ajudá-los e continuar o macabro jogo. "Tomara que Abracax estivesse aqui, ele decerto saberia o que fazer". Por fim, e tendo a gélida lua como testemunha, o necromante Cardamiro ordena a todos os presentes e ausentes que entrem na baixa cerca de caniço, feita em redor da campa cristã de Berulfo. Duas tochas reluziam, iluminando parcamente as faces dos sete desvendadores do oculto, que encostados ao longo da cerca e em volta da campa permaneciam. Cardamiro ordena silêncio e começa a cavar com uma pequena pá. Estavam todos atónitos e nada se ouvia, nem um esbracejar de morcego, nem um piar de mocho, nem um uivar de lobo, nem um grunhir de javali, nada, mesmo nada, silêncio sepulcral e absoluto. Berulfo não estava enterrado muito fundo, nem a meio metro estava. A cabeça foi a primeira a ser desocultada, ainda estava em bom estado. Cardamiro suava por todos os poros e todos respiravam nervosa e irregularmente. A cabeça de Berulfo estava toda empoeirada e Cardamiro teve bastante cuidado com ela. Depois, põe-se a desenterrar cuidadosamente o resto do corpo, não antes de beber um gole do cantil e de o passar aos outros, dizendo: amanita muscari.

"Por Wotan Cardamiro estava a dar-nos uma efusão de vinho com cogumelo sagrado, o cogumelo dos feiticeiros. A amanita fazia parte do habitual rol de drogas com que os guerreiros germanos e não só passavam a guerra. Era forte, demasiadamente forte e perigosa, era uma viagem ao outro lado. " Todos beberam, incluindo os mancebos. Chegada a vez de Malho, ele hesitou. Só que estava a perder a coragem e se não bebesse fugiria decerto.

Deu um valente gole, ciente que os duendes estavam a ser convocados, e, para colmatar, retirou da sacolinha o pó da flor de lótus que Abracax lhe tinha dado aquando da viagem de três dias aberto aos deuses. Introduziu o pó entre as gengivas e deu o resto a Analkon.

"Que Deus me proteja e que o eterno fogo não me abandone. " Começam todos a ficar mocados, enquanto Cardamiro desvela os ombros e a cota de malha de Berulfo, seu escudo avermelhado e seu machado de dois gumes.

- Olha o machado de Berulfo, o sangrento sol! - diz Belesende, de olhos semi-cerrados e em estado hipnótico. Sim! o sangrento

sol. Berulfo era largo de ombros e rodava o machado só com um braço, decepando tudo o que encontrasse à frente. Uma vez atingiu três homens só de um golpe, era um valente guerreiro e companheiro. "Perdão Berulfo, perdão por te estarmos a fazer isto. " - Posso ficar com ele? - pergunta Lusio a Cardamiro. O

necromante, já alegre, retira da mão dura do morto o machado. Claro que teve que partir os dedos da mesma e todos se horripilaram ouvindo os dedos a estalar e a partir, mas lá o sangrento sol tomou o seu legítimo herdeiro.

- Sabes o que diz aí? - pergunta Malho, acariciando o cabelo rasteiro de Lusio e apontado para a haste do sangrento sol.

- Claro que sei - responde Lusio, de olhos bugalhudos, e a atropelar as palavras. - Trago a morte - diz o mancebo, conhecedor da escrita rúnica. Entretanto, Cardamiro desenterrara totalmente o corpo. Malho e restante comitiva estavam com a cabeça à roda, o cogumelo começava a fazer efeito.

- Hei, não estou a ouvir nada? - pergunta Analkon preocupado, acariciando seu punhal.

- Eu ouço qualquer coisa - diz Quinto. - São tambores, são tambores e trompas ao longe. Parece que estão a fazer uma caçada.

- Não pode ser - diz Britae. - Uma caçada a esta hora da noite?

- Eu ouço sons de uma festa... ali! - Analkon aponta algo. Não vêem luzes, cantares, risos e música...

Malho não via nem ouvia nada. Cardamiro adverte que esse é um dos efeitos da amanita, os sons do passado e do futuro convergem no agora presente, havia que ter cuidado.

- E tu, Malho, não ouves nada? - pergunta, medroso, o pastor Britae a seu amo.

Malho de início não responde, está tudo alterado, a realidade está completamente alterada. Mas começa a ouvir imperceptivelmente, ao longe, ao fundo, um som prolongado de gaitas de foles.

- E tu, Britae, que ouves?

Britae encolhe-se todo a gemer:

- Ouço badalos de cabras, estão-me a entrar pelos ouvidos. Acudam, acudam, vou morrer, meus ouvidos vão estoirar! - Britae estava espasmódico, incontrolável. Cardamiro cai em cima dele. Malho, apesar de mocado e de ouvir as gaitas cada vez mais perto, tenta controlar Britae, dando-lhe duas valentes lapadas na face. Britae acalma, a cerca foi deitada abaixo, tiveram que erguê-la de novo, rodeados de trompas, tambores e gritos de festa e música.

- E tu, Lusio, que ouves - pergunta, a cambalear, Cardamiro.

- Sons de guerra - diz Lusio, amarrado a seu machado.

- Amanhã seremos chamados para a guerra. - Todos se calaram. Todos rezaram para que a previsão de Lusio não acontecesse. Malho, entre os sons da gaita de foles ecoando-lhe no cérebro, só pensava em seu rebento que irá nascer e em Nabia. Não partiria, fugiria da guerra e esconder- se-ia nos montes.

Começaram a ouvir sininhos, risadas, borrifos de água e passinhos de seres pequeninos a aproximarem-se. Todos estavam em transe ou quase a desmaiar. Aparentemente, Cardamiro era o único que tinha mão na situação. Malho sentiu alguém pequenino a subir para cima da periclitante cerca, teve muito medo e ia gritar.

- Não os temais, são os espíritos elementais da água e da terra. - Malho nunca teve contacto com estes seres materializando-se à sua frente, o seu único contacto foi em sonhos com os espectros das vítimas ou em viagens astrais com o vândalo maneta. Nunca em estado acordado tomou contacto com estas entidades que povoam a floresta e o subsolo.

- Não os temais, eles não nos farão dano. - Mas Malho está nervoso, só que os braços e as pernas estão dormentes para fugir. Vê, à sua frente e em cima da cabeça de Belesende, um bracinho negro e depois outro bracinho negro, depois um ser de barrete com a cara muito enrugada, como um cachorrinho. Eram mais alguns que se dependuravam na cerca a espreitar cá para dentro, emitiam sons agudos, parecidos com guinchos. Uma vez, seu primo Saamil disse-lhe que acordou de repente e surpreendeu o duende do sono em cima dele e rápido como um raio surrupia- lhe o barrete. A partir de então pedia imensas coisas ao duende e ele dava- lhe tudo. Malho nunca acreditou nessa história, mas agora a amanita abria- lhe a visão dos duendes negros e pequeninos da noite. Era terrífico, mas abismal e revelador.

Cardamiro começa a evocar Wotan em velho germano. Recitava o Havamal fluentemente. Pudera, chegou a ser um iniciado de Abracax:

Com o sexto sei

Que se alguém me ferir Com a raiz de uma árvore verde

E se também um homem Me declarar o seu ódio, o mal destrui-los-á mais depressa que a mim!

"Espera lá, na décima segunda runa devemos estar doze". Malho começa a contá-los, apesar de sentir a cabeça pesada, extremamente pesada. espera lá, os duendes, à minha frente só estão três". Malho toma coragem, ergue a cabeça para trás, apoiado com uma mão no ombro de Lusio, e distingue a cauda de um e os pezinhos de cabra de outro. "Estão cinco. Porra, estamos doze! Nada falha no mundo da magia". Malho sentiu-se andar para trás, como se se enterrasse no solo. Muito rápida e violentamente, ampara-se no braço de Lusio. Lusio dá-lhe a mão, Malho recupera a ébria e alucinada consciência. "Os duendes cheiram mal. "

com o décimo primeiro sei

que, se tiver de conduzir amigos ao combate, gravo runas nos seus escudos

e com poder irão

sãos e salvos ao combate

sãos e salvos regressarão!

Cardamiro pára, pega numa varinha, na qual decerto estão inscritas poderosas runas, abre cuidadosamente a boca seca do morto e introduz a ponta da varinha sob a língua, de modo que o morto possa falar, deixa estar a varinha e dá a mão a Lusio. Normalmente, um familiar do defunto pode esperar uma certa benevolência. Cardamiro respira fundo, concentra- se e repete a décima segunda runa:

com o décimo segundo sei

que, se vir numa árvore

um cadáver balançando-se numa corda, gravo e pinto runas e o homem anda

e fala comigo.

Dito isto, Cardamiro rapidamente tira a varinha da boca do morto. Os duendes negros fogem. Estão assim meia hora. Cardamiro baixa os olhos, em sinal de desistência. Berulfo, como uma catapulta, levanta-se hirto e firme como uma tábua, de braços esticados, e paira em cima do nariz de Cardamiro. O necromante cai redondo no chão e quer fugir, só que Britae e Analkon não o deixam sair da cerca. Malho está sem fala, Lusio rasteja para ele com medo. Malho acolhe e abraça o rapaz, Belesende e Quinto não têm saída, entre a cerca e o morto têm que ficar ali, parados, à espera. Cardamiro toma coragem e fala:

- Ó Berulfo! tu que chegas do além, resolve e esclarece os nossos problemas, traz-nos as soluções para que a nossa vida continue sem sobressaltos, intercede por nós nos lares dos deuses! Para que de agora em diante a terra búria seja abençoada e todos nós sejamos felizes e possamos viver longas vidas de abundância e alegria! Concede-nos isto! Ó imortal Berulfo! bebedor do hidromel na sala dos deuses, intercede por nós no Valala! Cardamiro faz um complicado sinal com as mãos e aguarda que o morto, de pé, fale.

Outra meia hora passou, Quinto adormeceu, Britae cagou-se, Lusio e Belesende queriam perguntar-lhe coisas, mas Cardamiro não autorizou. Finalmente, o zombie Berulfo balbucia algo. - O quê? O que é que ele disse? - pergunta o despertado Malho.

- Não sei - diz Lusio.

- Chega-te mais a ele - ordena Cardamiro a Lusio, mas Lusio tem medo e não acede. Cardamiro toma coragem e acompanhado pelo manco Analkon chega seus ouvidos à boca larventa do morto-vivo, ouvindo a seguinte e importante revelação:

- Até me peido pela piça.

- O quê? - perguntam Cardamiro e Analkon, olhando um para o outro.

- O que é que ele disse? - pergunta Belesende, aproximando-se também. Berulfo não parava de repetir a frase:

- Até me peido pela piça.

- Até me peido pela piça.

Dito isto, dá um enorme e portentoso traque. Quinto desperta e nota que Berulfo se está a peidar e a falar, entra em pânico e desata a tombar a cerca e a correr encosta abaixo, tropeçando num penédo e pisando a cauda de um duende fugidio. Malho segue-o, em desabalada correria, sendo seguido pelo manco Analkon e pelo coxo Belesende, que tropeça em outro apavorado duende e racha a cabeça. Britae e Lusio também fogem. Curioso, todos levam instintivamente os machados da madeira, velhos hábitos de guerra, decerto. Cardamiro tenta retê-los, amarrando o sago de Britae e Lusio.

- Não fujam, ele é teu pai, ainda não acabamos, não pode acabar assim, poderá ter consequências nefastas!

- Aquilo não é o meu pai! - grita Lusio, sacudindo com o braço Cardamiro. - Meu pai já morreu. Nunca devia ter aceite isto, maldito necromante!

Sacodem as mãos do necromante, ameaçando-o com o machado. Cardamiro fica só e olha para trás, onde vê a sombra do morto parada como uma estátua. Tem receio de voltar para lá e decide convencer seus fugidios companheiros a não o abandonarem.

Mais abaixo, todos seguiam, já mais calmos, sob a lua desveladora, o inclinado trilho de volta à segurança do castro. Cardamiro não parava de falar, perante a indiferença forçada de seus camaradas.

- Temos que voltar lá, pelas nornes, ainda não fechei o ritual e preciso de vocês! - Ninguém ligava ao necromante, todos irritados e a tremelicar, com os machados prontos para enterrar em Cardamiro, se ele não se calasse.

- Ei, não me ouvem? Temos que voltar a enterrar o morto. Eu disse que temos que voltar a enterrar o morto!

- Tenho fome - Berulfo grita atrás das costas de Cardamiro todos estacam com suores frios. O morto-vivo, de braços levantados para a frente, cuspindo larvas e com escaravelhos a saírem-lhe pelos pés, repetia a frase, rindo-se no final da mesma. A lua ia alta!

- Tenho fooommmeeee Ah ah ahy!

- Tenhoooo fooommmiiinnnnhhhhaaaaaa Hi hi hi - Lusio atrás de Berulfo, cheio de larvas e minhocas na face, foi o primeiro a explodir. Pudera, são quinze anos de adolescência em potência.

- Cala-te, maldita criatura do reino das trevas, volta para o teu calabouço! - Atira-se ao morto-vivo, perante o olhar estupefacto do necromante, e desfere-lhe uma machadada no pescoço. Só que o pescoço não cede, é um pescoço rijinho e Berulfo continua a rir-se. Já por esta altura, Analkon amarrava as pernas do morto, tentando levá-lo ao chão. Só que o morto não saía do sítio. Cardamiro tentava pôr cobro à loucura, mas Malho dá-lhe uma valente pancada com a haste do machado na nuca, pondo-o fora de combate.

- Lusio, mira para os ombros, dá-lhe uma pancada seca como esta! - Dito isto, Malho desfere com o cutelo um golpe na omoplata esquerda de Berulfo, sai sangue seco e milhentos insectos. Malho engole alguns e cospe, enquanto vê o golpe do sangrento sol separar o braço do resto do corpo de Berulfo.

Entretanto, Analkon consegue derrubar as pernas do morto.

Finalmente, a criaturajá estava no chão. Belesende e seu Quinto caem em cima do tronco, pressionando com os joelhos a barriga e os peitorais de Berulfo, ouviam-se os ossos do morto a estalarem. Analkon dava machadadas nas rótulas para impedir o morto de andar, estavam a desfazê-lo, a desfazê-lo para o voltarem a enterrar, dado que a alma de Berulfo deveria estar longe e aquilo era apenas o seu invólucro. Lusio puxa os cabelos de seu pai e diz a Malho para decepar a cabeça do mesmo. Belesende e Quinto controlavam o corpo sem braços, perdão, e também sem pernas, dado que Analkon já as cortara. Os braços e pernas separados movimentavam-se freneticamente feitos cobras. Malho ordena ao atontado Cardamiro, ameaçando-o com o machado:

-Apanha os braços e as pernas que vão a fugir! - O estupefacto necromante lá tenta apanhar uma reboliça perna, que se vai a esconder nos arbustos. Malho prepara o machado, concentrando-se no golpe, dado que as mãos de Belesende e de Lusio estavam muito cerca. Pede ajuda, pela primeira vez desde há muito tempo, a Mitra. O machado mitral lá partiu, desbaratando a pele, sangue, veias, vértebras secas do morto. Finalmente, a cabeça foi separada, todos caíram para trás, e a cabeça de Berulfo gritava:

- Oooooooohhhhhhhhhhhh! Oooooooohhhhhhhh!

- Que horror! - diz Lusio. - Como fiz isto ao meu próprio

pai!

Malho contrapõe: - Como fizemos isto ao teu próprio pai!

- Não, isto não é o teu pai nem nosso camarada de armas, isto é uma coisa putrefacta e nojenta - diz Analkon, recuperando uma fugidia perna e cortando um pé com um machado. - Toca a recolher os pedaços do corpo, e é melhor separá-los em pedacinhos e enterrá-los, dado que estão cheios de vida e separados é melhor que juntos.

- Não seria melhor comê-lo? - opina Britae, recordando-se das velhas lendas da negra floresta teutónica.

- Não - diz Cardamiro, regressado das perseguições, e com uma mão de Berulfo mexendo-lhe no queixo. - Lembras-te dos cães vadios e da cadela? Berulfo foi o único que comeu a cria. Não vamos comer nada mais hoje.

Malho ficou encarregue da cabeça, Belesende do tronco, Quinto e Analkon dos braços e mãos, Cardamiro, Britae e Lusio das pernas e pés. Cardamiro, pegando num chulezento pé, exclama, arrependido:

- Porra, já sei o que correu mal.

- E o que foi, o que foi? - pergunta Lusio, perante o olhar atento do resto dos companheiros.

- A cerca, a maldita cerca de caniço! Devíamos ter ficado do lado de fora, como os duendes fizeram, e não do lado de dentro.

- Dito isto, o necromante abana a cabeça em sinal de comiseração.

- Então, estamos imbuídos das forças emanadas pelo morto - constata, triste, Malho, segurando pela trança da pera a cabeça de Berulfo, que abria a boca ensonada.

- Não tarda o dia a nascer - diz Analkon, apontado o Este com o braço tremelicante de Berulfo. - Apressemo-nos a enterrá-lo em diferentes locais. Não é bom que o corpo veja o sol. Poderá nunca mais dormir.

- Sim! Apressemo-nos. -Assentaram todos e cada um partiu com a sua parte, para de novo restituir o pó ao pó, a cinza à cinza. O corvo viu seus companheiros partirem cada um para o seu lado, enquanto pensava no sítio onde haveria de enterrar a cabeça falante. O efeito da amanita prolongava- se, ajudado pelo ópio e o vinho. Era uma viagem, mas jamais experimentara uma viagem assim, nem mesmo na guerra. Meditava sobre a junção das duas drogas, só que a língua de Berulfo, lambuzando seu joelho, desperta-o do seu hipnótico estado acordado. "Curioso, parece que estou a sonhar, mas estou acordado, é angustiante. Preciso de dormir, para me recuperar a mim mesmo. " Só que tinha um trabalho a fazer antes de regressar para o leito de Nabia. "Onde é que eu gostaria de ser enterrado? Bom, num sítio alto. É isso! Enterrarei a cabeça do meu camarada num sítio alto. " Malho começa a subir sem trilho, arduamente, imerso numa viagem alucinante. Via dragões saírem pelas tocas de coelho, mas como sabia que eram alucinações não ligava. Desesperado por ter perdido o controlo de si mesmo, pára e fecha os olhos, deitando-se e envolvendo a cabeça em seu sago. Estar de olhos fechados era pior. Pediu ajuda a Cristo e a Mitra. Mas foi um discípulo de Wotan que respondeu às suas preces. Abre os olhos e Abracax assumia-se na escuridão.

- Oh! Abracax, ajuda um cristão. Tomei cogumelos sagrados com vinho e ópio. Ajuda-me, nunca viajei assim - pede o alucinado corvo, oferecendo a penosa mão ao feiticeiro. O feiticeiro dá-a paternalmente, ajoelhando-se e oferecendo seu colo de guarida.

- Dorme, corvo. É a única maneira de recuperares, não tens arcaboiço para te perderes, só estão preparados para viajar assim os feiticeiros com longos anos de preparação.

- Isto é horrível, salva-me - pede, desesperado e em agonia, o corvo de Wotan. Abracax acaricia-lhe a nuca:

- Amarra uma ideia e fixa-a. - Malho amarrou Nabia, seus escarlates cabelos, suas sardas e seu sol. O feiticeiro faz com que Malho retenha essa ideia, levando-a imperceptivelmente para o mundo dos sonhos.

Passadas duas horas, Malho desperta, abruptamente, com uma ligeira dor de cabeça. "Que bom, já me controlo e a realidade já não é minha inimiga, o sono é o maior dos reparadores. " Malho já se encontrava no cimo do monte e a cabeça de Berulfo estava virada para o local onde nasceria o sol, atrás dos pontiagudos rochedos dos montes geresianos. Abracax decerto untara-a com um óleo qualquer, estava serena a cabeça, de pálpebras descidas e, aparentemente, cara satisfeita. O bruxo aparecia agora da esquerda, cantando. A aurora pressentia-se, mas a estrela do norte ainda imperava, o corvo notava que a viagem abria-lhe novas portas. Fixou a estrela do norte e a sombra do feiticeiro dirigindo-se a ela. Visualizou uma virgem do Senhor galgando caminho na suja lama, desesperada e com a semente maldita dum suevo dentro. Procurava refúgio decerto... Mas que é isto? Entrava agora num monastério um bispo de nome Balcónio. Como raios é que ele sabia os nomes? Que estranhas visões eram aquelas? Abracax aproximava-se. Balcónio proibia Idácio de Chaves de escrever no pergaminho enrodilhado que houve violações de virgens do Senhor na sua história. Malho amarra- se aos ombros de Abracax, perante a presença serena da cabeça de Berulfo. Calma, mais coisas, mais coisas, um rebento a nascer no castro de Nabia, os narbassos não o querem. Um guerreiro de manto axadrezado toma conta dele. "Pai, pai, como posso desvendar o passado? Sou filho de quem? Sou filho de uma narbassa, virgem do Senhor, violada num convento em Bracara? Sim, sou. " Malho suando mira a estrela do norte.

- O velado. O segundo grau! -Abracax, descontente, confirma.

- Sim, o velado, o segundo grau. - Malho põe-se de pé, ocultando-se com o capucho do sago.

- Já nada importa, sou filho de uma narbassa e não de uma búria. Tu, ó runamal, tu sabias disto?

- Não! - diz o runamal, mentindo.

- Já nada importa. Há que projectar o futuro enterrando o passado. - Malho aponta o nascer do sol. E depois aponta Berulfo.

- Eu trato dele e da asneira que Cardamiro fez, vocês nunca deviam ter deixado um curioso brincar com as forças do morto - ralha Abracax, pegando na cabeça oleada de Berulfo.

- Olha, além fica a anta dos sacrifícios - diz o velado mitral, apontando para o cume vizinho. Parece que estamos a reviver tudo. Não, Abracax?

- Sim, a vida é um contínuo reviver, e as sucessões não passam de repetições, como o crucifixo de carvalho que dependurado está ao lado do teu coração. - Abracax pega no colar de Malho. - Se o virares ao contrário, ficas com Wotan dependurado na árvore batida pelos ventos. - Dito isto, o runamal vira o crucifixo ao contrário e Cristo transforma-se em Wotan. Malho retém a frase: "As sucessões não passam de repetições. E Cristo não é mais do que Wotan dependurado em Ydrassil, auto- sacrificando-se com uma lança sagrada. E Mitra nasceu numa caverna rodeado de pastores e o seu dia é o dia do Senhor. " Mas o velado estava mais preocupado com coisas mais terrenas, o estado mitral revelava-lhe mais coisas, e o sol estava prestes a nascer.

- Homens atravessam o Catavo, armados e em campanha, irão parar por aqui?

- Sim, a previsão de Lusio estava correcta: amanhã seremos chamados para a guerra.

Malho estranha que Abracax saiba.

- Um duende contou-me tudo! - diz Abracax, rindo-se, mostrando uma boca desdentada e uma língua branca e exalando um forte cheiro a ervas aromáticas. Do outro lado do monte viam-se homens galgando o mesmo.

- Raios! Os nossos fogem à guerra, eu também quero fugir, não quero passar por tudo outra vez! - lamenta-se Malho pensando em seguir o mesmo caminho que Analkon e Britae.

- Não, Malho! Deves ficar e conduzir a tua grei - alenta o runamal, pondo-lhe a mão no ombro. A segunda geração irá toda para a guerra, Quinto, Lusio e tantos outros que não sabem o que é o inferno e, iludidos, querem experimentá-lo. Tu já passaste por ele e tens a estopa rija, não os podes abandonar, nem tu nem outros como tu.

Malho, desalentado e triste, ficou olhando os homens fugidios desaparecendo por entre os penedios declives. "Não os posso abandonar! Doce Nabia! Não os posso abandonar! " Abraçou o feiticeiro. Beijou a boca larventa de Berulfo, desejando-lhe sorte para a outra vida, e, em silêncio e ouvindo as aves matinais, galgou caminho para casa, para a sua doce Nabia. Está tudo tão confuso e o exército está a chegar...

Nabia esperava-o, abraçou-a e deitaram-se. Trocaram lágrimas, mais uma vez iria partir pela ponte das espadas, mais uma vez deixaria Nabia e seu rebento sem saber se voltaria, as sucessões não passam de repetições.

Sei que estou dependurado Numa árvore sobre um rochedo exposto ao vento Nove noites inteiras Com uma lançaferida

E que me ofereci a mim próprio Eu próprio a mim próprio

Sobre esta árvore Cuja raiz ninguém sabe donde provém.

 

GLOSSÁRIO

Adaga - Punhal de guerra.

Alamanos - Tribo da Alemanha

Alanos - Tribos bárbaras oriundas da região do mar Cáspio. Árias - Povo indo-europeu pré-histórico.

Ariovistus - Chefe suevo e combatente de Júlio César.

Atlantes - Habitantes da ilha mítica da Atlântida.

Azorragues - Carrascos.

Balder - Filho de Wotan e da deusa Frigg.

Bardit - Grito guerreiro.

Berkersers - Guerreiros cobertos com peles de urso.

Bética - Uma das três províncias em que o Império Romano dividiu a Península Ibérica, juntamente com a Lusitânia e a Tarraconense. Corresponde hoje ao território da Andaluzia, no sul de Espanha.

Bragas - Calças.

Bridos - Tribo imaginária do Gerez.

Broquel - Pequeno escudo redondo.

Burúngios - Tribo germânica.

Búrios - Ramo dos suevos que deu o nome a Terras de Bouro. Cartagena - Cidade mediterrânica espanhola.

Catavo - Rio Cávado.

Caudilho - Chefe militar.

Cita - Tribo que habitava a norte da Grécia.

Clâmide - Capa.

Clípeo - Escudo romano.

Conímbriga - Coimbra.

Corax - Corvo.

Dalmática - Veste clerical.

Dextra - Mão direita.

Duero - Rio Douro.

Dux - Duque.

Egitânia - Beja.

Elbora - Évora.

Emerita - Mérida.

Endovellicus - Deus dos infernos lusitano.

Estádio - Medida que corresponde a um campo de futebol.

Estilete - Punhal de lâmina fina utilizado em feitiçaria.

Falcata - Espada de lâmina curva usada pelos lusitanos.

Francisque - Machado franco.

Frigg - Esposa de Wotan e deusa principal do panteão germânico.

Fundibulários - Soldados cuja arma de arremesso era chamada de funda.

Gallaicos - Galegos.

Garrano - Pequeno cavalo do Gerez.

Gascões - Tribo franca.

Gau - Estirpe.

Gemina - Antiga legião romana peninsular.

Gens - Gentes.

Geresianos - Tribos do Gerez.

Ginete - Cavalo de raça.

Godos - Tribos bárbaras aliadas dos romanos e inimigas dos suevos aquando da sua intromissão na Península Ibérica.

Góticos - Godos.

Grei - Povo, gentes.

Havamal - Canção rúnica.

Heidrun - Cabra que paste à sombra da imensa árvore

Ydrassil; seu leite alimentava os guerreiros de Wotan.

Hel - Rainha dos infernos.

Helúsios - Animais míticos com rosto de homem.

Henna - Colorante.

Hispalis - Sevilha.

Hidromel - Bebida alcoólica de mel fermentado.

Impedimenta - Termo usado para designar, num exército em marcha, a parte composta pelos carros das provisões e das tendas.

Ísis - Deusa egípcia ligada aos cultos da fertilidade.

Lábaro - Estandarte.

Liteira - Transporte dos nobres romanos que era carregado por quatro escravos.

Manan - Homem santo.

Mandrágora - Planta medicinal.

Marcomanos - Tribo germana.

Minerva - Deusa romana da sabedoria e dos conselhos.

Minus - Rio Minho.

Mírtilis - Ménola.

Mitra -Antiga divindade persa associada ao sol ou à luz. Mais tarde seu culto tornou-se bastante popular no exército romano.

Montes Nerbásios - Montes de localização incerta, no Noroeste peninsular.

Narbassos - Tribo do Gerez.

Nenhus - Deusa-mãe germânica da fecundidade e da riqueza. Nibelungos - Lenda popular germânica que narra as aventuras de Sigurd.

Nornes - Senhoras do destino humano.

Númidas - Tribo do Norte de África conquistada pelos romanos. Nymphus - Segundo grau mitral.

Palafrém - Cavalo.

Pax Julia - Beja.

Peristilo - Pátio interior de uma casa romana.

Pilum - Dardo.

Portucale - Porto.

Runa - Pedras da sorte.

Sago - Espécie de túnica romana; aqui, o termo é usado no sentido de capa.

Scalabis - Santarém.

Sinistra - Mão esquerda.

Sleipnir - O cavalo de Wotan. Era o mais fiel e o melhor companheiro do deus cavaleiro. Tinha oito patas, era invencível na corrida e nenhum obstáculo o podia deter.

Sol Invictus - Sol invencível.

Suábia - Região da Alemanha do Sul.

Suevos - Povo germânico que se instalou em parte do território que é hoje Portugal.

Toletum - Toledo.

Torque - Colar céltico.

Usqua - Bebida utilizada pelos britânicos para fins medicinais; mais tarde transformou-se no whisky actual.

Valala - "Sala dos guerreiros mortos".

Valquírias - Espécie de ninfas germânicas.

Vândalos - Tribo bárbara oriunda da Polónia.

Varuna - Na mitologia indiana, é a imagem espiritual da infinidade.

Vexillum - Estandarte.

Watz - Espírito da montanha.

Wotan - O deus mais importante do panteão germânico. Era o mais sábio, o mais inteligente, o mais iniciado nos mistérios e o senhor da magia.

Wiccas - Bruxas.

Ydrassil - Árvore que sustenta o mundo.

Zio - Divindade do céu e da luz.

 

                                                                                Mário Escoto  

 

                      

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