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O CORVO EM FOREGATE / Ellis Peters
O CORVO EM FOREGATE / Ellis Peters

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CORVO EM FOREGATE

 

O abade Radulfus compareceu ao capítulo, neste primeiro dia de Dezembro, apreensivo e de sobrolho carregado e livrou-se rapidamente das várias questiúnculas expostas pelos seus obedienciais. Embora fosse um homem de poucas palavras, estava disposto, regra geral, a conceder bastante liberdade de acção àqueles que perambulavam e eram loquazes nos seus pedidos e sugestões, mas hoje tinha, sem dúvida, assuntos de maior urgência em mente.

 

- Devo dizer-vos - anunciou após se ter descartado satisfatoriamente da última ninharia - que irei deixar-vos, durante alguns dias, ao cuidado do prior, para com quem, assim o espero e exijo, devereis ser tão obedientes e cooperantes como o sois para comigo. Fui convocado para um concílio a realizar-se em Westminster, no sétimo dia deste mês, pelo legado do Santo Padre, Henry de Blois, bispo de Winchester. Regressarei mal possa, mas, durante a minha ausência, desejo que façais as vossas orações para que reine um espírito de sabedoria e reconciliação nesta assembleia de prelados para bem da paz nesta terra.

 

A sua voz era seca e calma, quase resignada. Durante os quatro últimos anos, tinha havido em Inglaterra muito pouca tendência para a reconciliação entre os aguerridos rivais da Coroa e praticamente nenhuma sabedoria em ambas as facções. Mas competia à Igreja continuar a lutar e, se possível, a ter esperança, mesmo quando os assuntos do país pareciam ter regredido, exactamente, até ao ponto de partida da guerra civil para repetir, de novo, todo o ciclo estéril.

 

- Estou bem ciente de que há aqui assuntos prementes disse o abade - a requererem igualmente a nossa atenção, mas esses terão de esperar pelo meu regresso. Em especial, temos
a questão de um sucessor para o padre Adam, até há pouco vigário nesta paróquia de Holy Cross e cuja perda ainda lamentamos. O padre Adam foi durante muitos anos um estimadíssimo companheiro aqui, entre nós, na adoração a Deus e na cura das almas, e a sua substituição é matéria que exige ponderação e oração. Até ao meu regresso, o prior orientará o culto paroquiano como bem o entender e vós estareis todos à sua disposição.

 

Lançou um olhar demorado e sombrio em redor da sala capitular, aceitou o silêncio geral como prova de compreensão e consentimento e ergueu-se.

 

- Este capítulo está encerrado.

 

- Bem, se ele partir amanhã, terá ao menos bom tempo para a cavalgada - disse Hugh Beringar, olhando para lá da porta aberta da oficina do irmão Cadfael, no horto medicinal, que dava para a erva ainda verde e para umas poucas de rosas sobreviventes, agora altas e espigadas, mas desabrochando ainda corajosamente. O Dezembro deste ano do Nosso Senhor de 1141 tinha vindo sub-repticiamente, com pezinhos de lã, ventos suaves e céus ligeiramente encobertos.

 

- Como todas aquelas almas inconstantes, que se mudaram para a imperatriz quando ela atravessava momentos de glória

- continuou Hugh com um sorriso forçado - e que agora se vêem obrigadas a ficar longe da vista, enquanto viram novamente a casaca. Neste preciso momento, muitas delas devem estar a suspender a respiração e a tentar encolher-se.

 

- Má sorte para sua reverência, o legado papal - ironizou Cadfael -, que, faça ele o que fizer, não consegue encolher-se nem passar despercebido. A sua viragem terá de se dar em plena luz do dia, à vista de todos. E duas vezes num só ano torna-se demasiado evidente para qualquer um.

 

- Ah, mas é em nome da Igreja, Cadfael, em nome da Igreja! Não é o homem que vira a casaca, é o representante do papa e da Igreja, que deve preservar a infalibilidade de ambos a todo o custo.

 

Duas vezes num só ano tinha, na realidade, Henry de Blois convocado os seus bispos e abades para um concílio de legados, uma vez, em Winchester, a 7 de Abril, para justificar o seu apoio à imperatriz como governante, quando ela estava em boas graças e tinha o seu rival, o rei Stephen, bem guardado na prisão em Bristol, e, presentemente, em Westminster, a 7 de Dezembro, para justificar a Stephen o seu volte-face, agora que o rei estava de novo em liberdade e que Londres tinha metido um peremptório ponto final à decisão de Maud, que visava estabelecer-se na capital e apoderar-se finalmente da Coroa.

 

- Se ele ainda não está tonto, deveria estar - disse Cadfael, abanando a sua tonsura castanha, encanecida, com um misto de admiração e desaprovação. - Quantas vezes é que ele já virou a casaca? Primeiro, jurou vassalagem à dama quando lhe morreu o pai sem deixar um herdeiro varão, depois, na ausência dela, aceitou a tomada do poder pelo seu irmão Stephen, terceiro, quando a estrela da sorte de Stephen desapareceu, fez as pazes, pazes sem valor, diga-se de passagem! com a dama e justificou-se dizendo que Stephen escarneceu e lesou a Santa Igreja... Irá ele agora apresentar o mesmo argumento e acusar a imperatriz ou esconderá alguma novidade na manga?

 

- Que poderá haver de novo para ser dito? - perguntou Hugh, encolhendo os ombros. - Não, ele irá tirar o máximo partido da sua mordomia na Santa Igreja e aproveitar-se-á de todos já terem ouvido esta história antes, em Abril passado. E não conseguirá convencer Stephen, tal como não conseguiu convencer Maud, o qual, no entanto, deixará passar tudo em branco, com apenas uma ou duas moderadas rosnadelas, visto que à semelhança de Maud não se pode dar ao luxo de rejeitar o apoio de Henry de Blois. E o bispo rangerá os dentes, fitará os clérigos nos olhos e engolirá o seu fel com uma cara imperturbável.

 

- É muito provável que seja esta a última oportunidade que ele tem para virar a casaca - disse Cadfael, alimentando o braseiro com turfa criteriosamente disposta para que continuasse a arder a uma temperatura baixa e constante. - Ela deitou fora aquilo que parece ter sido a sua última oportunidade.

 

Tinha-se revelado uma mulher estranha, a filha do rei Henry. Casada na infância com o imperador sacro-romano Henrique quinto, tinha de tal maneira caído nas boas graças do povo alemão que quando, após a morte do seu marido, a chamaram para regressar a Inglaterra, a populaça se ergueu consternada e pesarosa para lhe suplicar que ficasse. Porém, aqui no país, quando o destino lhe atirou o inimigo para os braços e lhe susteve a coroa na cabeça, ela comportou-se com uma tal arrogância vingativa e exigiu tais multas por afrontas passadas que os homens da capital se ergueram igualmente indignados, não para lhe pedirem que ficasse, mas para a expulsarem e para lhe tirarem violentamente a esperança de, algum dia, os vir a governar. E era do conhecimento público que, embora ela fosse capaz de se virar com veneno até contra os seus melhores aliados, conseguia também conservar o amor e a lealdade do melhor baronato. Não havia um único homem da mais nobre linhagem na facção de Stephen que conseguisse igualar o nível do seu meio-irmão, o conde Robert de Gloucester, ou o do seu defensor e famoso amante, Brian FitzCount, o seu paladino mais a Ocidente, na fortaleza de Wallingford. Contudo, neste momento, seria necessário mais de um par de heróis para resgatar a sua causa. Tinha sido obrigada a entregar o prisioneiro real em troca do seu meio-irmão, sem o qual não poderia alimentar quaisquer ambições. E aqui estava Inglaterra, de volta ao ponto de partida, com tudo para ser feito de novo, pois, se ela não conseguia ganhar, também não era capaz de desistir.

 

- Daqui, de onde estou agora - proferiu Cadfael meditando -, estas coisas parecem-me estranhamente distantes e irreais. Se eu não tivesse estado no mundo durante quarenta anos, e entre os exércitos, duvido se seria capaz de acreditar nos tempos que correm, a não ser como num sonho perturbado.

 

- As coisas não são assim para o abade Radulfus - retorquiu Hugh com uma gravidade inusitada. Voltou as costas ao jardim harmonioso e orvalhado, que se afundava suavemente no seu sono invernal, e sentou-se no banco encostado à parede de madeira.

 

O reluzir do braseiro, amortecido sob a turfa, iluminava-lhe os ossos salientes e esguios das maçãs-do-rosto, maxilares e testa, esconjurando-os de sombras carregadas, cintilando, por breves momentos, nos seus olhos negros, antes que as pálpebras e as pestanas escuras lhes extinguissem as faíscas.

 

- Aquele homem daria um melhor conselheiro de reis do que a maioria daqueles que se agrupam em redor de Stephen, agora de novo em liberdade. Porém, não lhes iria dizer o que queriam ouvir e tapariam os ouvidos.

 

- Que novidades há acerca de Stephen? Que tal é que ele suportou este ano de cativeiro? Terá saído com vontade de lutar ou com o ardor enfraquecido? Que irá ele fazer a seguir?

 

- Talvez eu esteja em melhor posição para lhe dar uma resposta depois do Natal - replicou Hugh. - Dizem que está de boa saúde, mas ela acorrentou-o e é provável que ele não lho perdoe facilmente. Saiu mais magro e esfomeado do que entrou. Um buraco no estômago pode ser que sirva para lhe concentrar a mente. Foi sempre um homem para começar uma campanha ou um cerco com um furor apaixonado, no primeiro dia, ficar cansado, se com isso nada lucrava, ao terceiro dia, partindo, então, atrás de outra presa, antes do quinto dia. Talvez já tenha aprendido a fixar os olhos insistentemente num alvo até o derrubar. Às vezes pergunto-me por que é que o apoiamos incondicionalmente, então vejo-o a envolver-se numa batalha pessoal, como aconteceu em Lincoln, e fico suficientemente esclarecido. Mesmo quando tem a imperatriz ali à mão, como foi o caso na altura em que ela aportou a Arundel, e a mandou escoltar até à fortaleza do irmão em vez de a deter, eu amaldiçoo-o por ser um tonto e, no entanto, adoro-o no mesmo instante em que o estou a amaldiçoar. Só Deus sabe qual irá ser o seu próximo erro colossal cometido em nome do cavalheirismo. Contudo, estou ansioso por me voltar a encontrar com ele e tentar ler-lhe os pensamentos, pois fui convocado, Cadfael, tal como o abade. O rei Stephen tenciona passar o Natal em Canterbury este ano e usar outra vez a coroa para que todos vejam qual das duas cabeças é a do monarca consagrado. E chamou a si todos os xerifes para o apoiarem e lhe prestarem contas dos condados. Estarei entre os outros, visto que nós, aqui, não temos nenhum xerife devidamente nomeado para lhe prestar contas.

 

Olhou com um sorriso sombrio e oblíquo para o rosto atento e pensativo de Cadfael.

 

- É uma cartada segura. Ele precisa de saber com que tipo de lealdade pode contar, depois de ter passado um ano na prisão, ou quase um ano. Mas não há dúvida de que isto pode significar a minha desgraça.

 

Para Cadfael, este era um pensamento novo e inquietante. Hugh assumira o cargo de xerife, por força das circunstâncias, quando o seu superior, Gilbert Prescote, morrera em batalha, às mãos de um homem em desespero, numa altura em que o rei já se encontrava preso no castelo de Bristol, sem qualquer poder para nomear ou demitir oficiais nos condados. Hugh servira-o, preservara a paz na região, sem uma autorização oficial, e merecia o seu reconhecimento. Porém, agora, que tinha outra vez liberdade para refazer ou quebrar compromissos, iria Stephen reconhecer um tão jovem e insignificante nobre no seu ofício ou iria aproveitar o encontro para lisonjear e contratar um qualquer barão do progresso?

 

- Que disparate! - exclamou Cadfael com firmeza. - O homem só é tonto naquilo que a si próprio diz respeito. Fê-lo representante do seu homem, inesperadamente, quando se apercebeu da sua têmpera. Que é que Aline diz acerca disto?

 

Hugh não podia escutar o nome da sua mulher sem que o seu rosto astuto e penetrante se suavizasse, nem Cadfael podia pronunciá-lo sem desoprimir as suas tensões num sorriso. Acompanhara-lhes o namoro e o casamento e era o padrinho do seu filho, que faria dois anos neste próximo Natal. A Aline de outrora, pueril e delicada como o linho, transformara-se numa mulher radiosa, madura e calma, a quem ambos recorriam sempre que necessitavam.

 

- Aline diz que não tem grande fé na gratidão dos príncipes, embora reconheça a Stephen o direito de escolher, acertada ou erradamente, os seus próprios oficiais.

 

- E você? - disse Cadfael.

 

- Bem, se ele depositar em mim a sua confiança, continuarei a vigiar-lhe todas as fronteiras, se não regressarei a Maesbury e vigiarei, ao menos, o Norte contra Chester, não se vá dar caso de o conde voltar a querer alargar o seu palatinado. E aquele que for escolhido por Stephen terá de se encarregar do Oeste, Leste e Sul. E você, meu velho amigo, fará uma ou outra visita a Aline, no Natal, para lhe fazer companhia, enquanto eu estiver por fora.

 

- De todos nós - disse Cadfael fervorosamente -, sou eu o mais abençoado nesta festa que se aproxima. Rezarei para que o meu abade seja feliz na sua missão, e você na sua. A minha felicidade está assegurada.

 

Enterraram o velho padre Adam, durante dezassete anos vigário da paróquia de Holy Cross, em Foregate de Shrewsbury, apenas uma semana antes de o abade Radulfus ter sido convocado para um concílio de núncios em Westminster. A ilustre igreja de Saint Peter e Saint Paul, que era também a igreja paroquiana de Holy Cross, tinha a nave franqueada às pessoas que viviam fora dos portões da cidade, neste crescente subúrbio que quase se considerava a si mesmo um burgo, como o burgo dentro de muros. O magistrado de Foregate, Erwald, o consertador de rodas, usava publicamente, embora não oficialmente, o título de preboste, e a abadia, a igreja e a cidade condescendiam nesta sua extravagância inofensiva, pois Monk’s Foregate era um distrito relativamente observador da lei, honrado, que praticamente não causava problemas às autoridades devidamente eleitas do município. De tempos a tempos, havia uma esporádica altercação entre os seculares e os da abadia, uma breve complicação entre os jovens fogosos de Foregate e os da cidade, no entanto, que havia de seriamente preocupante em tudo isto?

 

O padre Adam vivera lá durante tanto tempo que todos os jovens tinham crescido à sombra da sua serenidade, e os mais velhos consideravam-no como um deles. Vivera só na sua casita, ao cimo de uma travessa estreita do outro lado da igreja, cuidando de si, tendo apenas um homem-livre, já idoso, para lhe tratar do passal e das faixas de terreno na parte rural da paróquia, pois Holy Cross estendia-se para lá da rua principal de Foregate. Era uma grande paróquia, com uma população composta em partes iguais por artesãos e mercadores no subúrbio e por pequenos rendeiros e aldeões na zona rural. Era para todos um assunto de relevo saber que tipo de pároco iria suceder ao padre Adam. O próprio velhote, fosse qual fosse o ameno purgatório onde se encontrasse neste momento, deveria estar a seguir o desenrolar deste assunto com toda a atenção.

 

O abade Radulfus presidira ao funeral de Adam e o prior Robert proferira-lhe o panegírico, no seu mais digno, elegíaco, elevado, argênteo e intencionalmente patrício discurso, talvez com uma ligeira nota de condescendência, pois o padre Adam não fora letrado, mas, sim, um homem de origem humilde e sem pretensões. No entanto, fora Cynric, o sacristão de Holy Cross, que passara junto do padre a maior parte dos anos do seu ofício, quem melhor lhe fizera o epitáfio, dito em privado, enquanto arranjava as velas no altar, a Cadfael, que passara por ali para exprimir a sua solidariedade pessoal ao homem que, decerto, mais profundamente iria sentir a falta do morto.

 

- Um homem triste, amável - disse Cynric, fixando os olhos encovados no pavio que estava a arranjar, com a sua habitual voz baixa, rouca e relutante -, cansado, mas com um fraco para com os pecadores.

 

Era raríssimo Cynric proferir treze palavras de uma só vez, a não ser à laia de respostas aprendidas de cor no sagrado ofício. Treze palavras da sua autoria tinham a força de uma profecia. Um homem triste, porque durante dezassete anos escutara e suportara as eternas falhas humanas. Um homem cansado, porque consolar, admoestar e perdoar infindavelmente esgota um homem antes dos 60 anos, especialmente quando a maldade e a raiva não fazem parte da sua maneira de ser. Um homem amável, porque conseguira preservar a compaixão e a esperança mesmo contra a maré da falibilidade humana. Sim, Cynric conhecera-o melhor do que ninguém. Absorvera uma parte destas mesmas qualidades durante os seus anos de serviço, exceptuando a capacidade de exercer influência.

 

- Você vai sentir-lhe a falta - disse Cadfael. - E nós também.

 

- Ele não estará longe - contestou Cynric, arrancando o pavio usado com o polegar e o indicador.

 

O sacristão já passava dos 50 anos, mas ninguém sabia a sua idade ao certo, pois nem ele próprio sabia o ano exacto do seu nascimento, embora soubesse o dia e o mês. Tinha cabelos e olhos escuros, tez pálida, e usava um hábito preto-desbotado, algo roçado nas bainhas devido aos longos anos de uso. Vivia no cubículo do andar superior, por cima do pórtico norte, onde o padre Adam se costumava vestir e guardar os acessórios da igreja. Era um homem taciturno, sério, resistente, com ossos compridos e sólidos, mas muito magro de carnes, o que se ficava a dever tanto ao seu esquecimento de eremita como à falta de recursos. Era de uma família rural de homens-livres. Tinha algures, a norte do município, um irmão com uma numerosa prole e, ocasionalmente, pelas datas festivas ou nos feriados, visitava-os, o que agora acontecia raríssimas vezes, centrando-se toda a sua vida, aqui, na grande igreja e no cubículo do andar de cima. Uma tão magra, silenciosa e sombria figura poderia ter dado origem ao respeito e à distância, mas não deu, pois o que a escuridão e o silêncio cobriam era de todos conhecido, mesmo dos rapazes turbulentos de Foregate, e não inspirava nem medo nem repulsa. Era um bom homem, com as suas predilecções e peculiaridades próprias, indubitavelmente parco nas palavras, mas, se alguém necessitasse dele, ele ali estava e, tal como o seu mestre, não mandava ninguém embora de mãos a abanar.

 

Os que não se sentiam à vontade na sua companhia muda pelo menos respeitavam-no, e os que se sentiam bem contavam-se entre os mais inocentes e ingénuos. Crianças e cães sentavam-se a fazer-lhe companhia nos degraus do pórtico norte, em tempo de Verão, e, à sua maneira, diziam tudo o que era necessário à manutenção de tal amizade, enquanto ele os escutava. Muitas mães em Foregate, felizes por verem as suas filhas casadoiras em tão íntima convivência com um respeitável homem da igreja, admiravam-se por Cynric nunca se ter casado, nem nunca ter tido filhos, visto que havia uma evidente afinidade entre ele e as crianças. Não seria por causa de ser sacristão, pois ainda havia imensos padres casados, espalhados pelas paróquias do condado e ninguém pensava mal deles. A nova ordem de clérigos sem mulheres era uma novidade por estas bandas, e ninguém, nem sequer os bispos, começara ainda a desprezar os da velha escola, que rejeitavam o celibato. Os monges eram monges e tinham feito a sua escolha, no entanto, sem dúvida alguma, o clero secular podia continuar a ser secular sem reprovações.

 

- Não tinha nenhum familiar vivo? - perguntou Cadfael, pois, de entre todos os que ficaram, Cynric saberia.

 

- Nenhum.

 

- Era um padre recém-chegado... quando para aqui vim, de Woodstock, com o abade Heribert, nessa altura prior Heribert, visto que o abade Godefrid ainda era vivo. Você, se bem me lembro, chegou um ou dois anos mais tarde. É um homem mais jovem que eu. Você e eu, entre nós os dois, poderíamos compilar uma história de capuzes e sotainas aqui, em Foregate, abrangendo todo este tempo. Daria um bonito memorial em honra do padre Adam. Sem grandes desavenças nem rebeliões. Teve os seus eternos penitentes, mas foi uma proeza sua a de conseguir que voltassem sempre. Não podiam viver sem ele. Mantinha o fio condutor que os fazia voltar, quer o desejassem quer não.

 

- Assim foi - disse Cynric, e cortou o último pavio enegrecido com um estrépito das unhas e endireitou os castiçais no altar paroquiano, dando um passo atrás para verificar se estes se conservavam direitos, como soldados em vigia.

 

A sua garganta estalava ao forçar a vibração de cordas vocais relutantes, quando falava um pouco mais. As cordas protestavam agora.

 

- Haverá alguém em mente?

 

- Não - respondeu Cadfael -, se não o abade tê-lo-ia informado. Amanhã terá forçosamente de partir para o concílio de legados em Westminster e esta comunicação terá de aguardar pelo seu regresso. No entanto, prometeu celeridade. Volta e meia, pode recorrer ao irmão Jerome até que o abade regresse, mas nunca duvide de que Radulfus tem a paróquia no coração.

 

A isto Cynric acenou silenciosamente em sinal de consentimento, pois as relações entre o convento e a paróquia tinham sido harmoniosas sob a orientação de três abades sucessivos, ao longo dos anos de incumbência do padre Adam, enquanto nalgumas igrejas assim partilhadas, como era sabido de todos, havia fricção permanente, os monges ressentindo a inclusão da casa da comunidade no seu enclave e o acesso aos seus edifícios privados, enquanto o padre secular despoletava uma luta pelos seus direitos para evitar ser corrido. Aqui, não era assim. Foi, talvez, a bondade modesta do padre Adam que desempenhou a parte de leão na conservação da paz e do relacionamento harmonioso.

 

- Gostava de beber seu copo volta e meia - disse Cadfael pensativamente. - Ainda tenho algum do vinho de que ele gostava, destilado com ervas, bom para o sangue e para o coração. Venha tomar um copo comigo numa destas tardes, Cynric, e beberemos à sua saúde.

 

- Assim farei - disse Cynric, e descontraiu-se exibindo o seu sorriso único e indulgente, o mesmo que crianças e cães lhe descobriam, levando-os a aproximarem-se dele, confiantes.

 

Atravessaram juntos as lajes frias da nave. Cynric saiu pelo pórtico norte e subiu para o seu cubículo escuro. Cadfael seguiu-o com o olhar até a porta se fechar entre eles. Ao longo de todos estes anos, viveram lado a lado, no mais cordial dos relacionamentos, e, no entanto, nunca tinham sido íntimos. Quem é que alguma vez fora íntimo de Cynric? Desde que cortara os laços com a mãe e virara as costas à sua casa, o que é que e onde quer que essa casa tenha sido, fora talvez o padre Adam o único a aproximar-se verdadeiramente dele. Dois solitários juntos formam um par muito especial, duas almas gémeas. Sim, de todos os enlutados pelo padre Adam, e deviam ser muitos, Cynric deveria ser o mais afectado pela dolorosa perda.

 

Acenderam a lareira na sala de convívio pela primeira vez, quando Dezembro chegou, e na relaxante meia hora entre a Colação e as Completas, quando havia bastante liberdade para soltar as línguas, falava-se e especulava-se muito mais sobre o pároco do que sobre o concílio de núncios em Westminster, para o qual o abade Radulfus acabara de partir. O prior Robert retirara-se para os aposentos do abade, representando aquele dignitário na sua ausência, o que dava maior liberdade aos tagarelas, mas o seu capelão e sombra, por sua vez, chamou a si o dever e o privilégio de representar o prior, e o irmão Richard, auxiliar do prior, estava demasiado sereno, para não dizer indolente, para se impor com um mínimo de energia.

 

O irmão Jerome era magro de carnes, contudo, isso era contrabalançado pelo zelo, embora houvesse quem considerasse esse zelo de vistas curtas e algo desidratado no que respeita à tolerância humana, o que tornava, no entanto, compreensível o facto de ele achar que o padre Adam fizera um uso excessivo dessa comodidade.

 

- Sem dúvida, era um homem de virtude - disse Jerome -, nem por um segundo lhe retiraria isso, todos sabemos que serviu devotamente. Mas era bastante condescendente para com os que cometiam ofensas. A sua disciplina foi demasiado fraca e as suas penitências demasiado leves, conferidas com demasiada indulgência. Aquele que poupa o pecador, tolera o pecado.

 

- Houve ordem e boa vizinhança na paróquia ao longo da sua vida - disse o irmão Ambrose, o esmoler, cujo ofício o pusera em contacto com os mais pobres dos pobres de Foregate. Sei o que dizem dele. Deixou a paróquia preparada para que outro entrasse, com o coração de todos aberto para receber quem quer que viesse. Houve, também, generosidade para ajudar aquele que partiu.

 

- As crianças regozijar-se-ão sempre com o mestre fraco, que nunca faz uso da vara - disse Jerome sabiamente -, e com um tratante de um juiz, que os perdoe levianamente, mas o preço a pagar mais tarde será terrível. É melhor que sejam educados severamente contra as vagas do pecado, agora, para salvaguardar o futuro descanso das almas.

 

O irmão Paul, mestre dos noviços e dos rapazes, que só muito raramente batia nos seus alunos e, certamente, apenas quando o mereciam, sorriu e manteve a sua serenidade.

 

- Na piedade excessiva há muito pouca bondade - proferiu Jerome, consciente da sua eloquência e atento à sua reputação como pregador. - O próprio regulamento decreta que quando a criança ofende tem de ser castigada, e as pessoas de Foregate que são se não crianças?

 

O sino tocou a Completas naquele momento, mas, em todo o caso, era pouco provável que alguém se desse ao trabalho de argumentar com Jerome, que fazia muito barulho, mas surtia pouco efeito. Mal conseguia despertar as atenções. Decerto iria pregar sermões severos na missa, nestes dois dias que lhe tinham sido destinados, mas muito poucos dos frequentadores habituais iriam lá estar para o ouvirem e mesmo os que lá fossem deixariam a homilia entrar por um ouvido e sair pelo outro, sabendo de antemão que o seu ofício duraria apenas alguns dias.

 

Apesar de tudo isto, Cadfael foi para a cama muito pensativo naquela noite e, embora tivesse escutado alguns burburinhos vindos do dormitório, manteve-se silencioso, cumpridor do regulamento, segundo o qual as palavras de Completas, o término e o aperfeiçoamento do dia de adoração deveriam ser as últimas palavras pronunciadas antes de adormecer, para que a mente não se distraísse do Opus Dei. E não se distraía, pois as palavras permaneceram com ele durante a vigília, uma e outra vez, regressando languidamente. Por coincidência, o salmo era o sexto. Ficou-lhe na cabeça enquanto dormitava.

 

- Domine, ne in furore - Senhor, não me repreendais na vossa ira, nem me castigueis na vossa indignação... Tende piedade de mim, Senhor, pois eu sou fraco.

 

10 de Dezembro, o abade Radulfus regressou entrando a cavalo junto à casa do portão precisamente quando a luz do dia se começava a extinguir e a irmandade se encontrava recolhida em Vésperas. Assim, o porteiro foi a única testemunha da sua chegada com a ataviada comitiva que o acompanhara no regresso. E só no dia seguinte, no capítulo, é que os frades escutaram tudo o que ele tinha para contar, ou antes, apenas a parte que dizia respeito à própria abadia. Porém, o irmão porteiro, a discrição em pessoa quando necessário, era também para os seus amigos especiais o linguareiro mais bem informado do enclave, e Cadfael soube algo do que estava a ocorrer, nessa mesma noite, num dos pequenos recintos do claustro, logo após as Vésperas.

 

- Trouxe consigo um padre, um indivíduo alto e elegante, não terá mais de trinta e cinco anos, segundo creio. Está agora alojado na casa dos hóspedes. Hoje cavalgaram incessantemente para chegarem antes do escurecer. Nem uma palavra me dirigiu o abade, para além de me ter dado ordens para avisar o irmão Denis de que havia um hóspede esta noite e de que devia cuidar dos outros dois. Com o padre veio uma mulher, uma alma decente, de meia-idade, de maneiras muito despretenciosas, que eu julgo ser alguma tia ou governanta do padre, pois foi-me ordenado que mandasse um dos palafreneiros leigos mostrar-lhe o caminho para a casa do padre Adam, e assim fiz. E a mulher não veio só, há também um rapaz jovem que os serve e lhes faz recados. Poderiam bem ser uma viúva e o seu filho ao serviço do padre. Parte com o irmão Vitalis, como sempre, e regressa com mais três pessoas e dois cavalos extra. O rapazito trouxe a mulher consigo na sela, à retaguarda. Que me diz de tudo isto?

 

- Bem, só há uma maneira de interpretar- retorquiu Cadfael, depois de ter meditado seriamente no assunto. - O senhor abade trouxe um padre para Holy Cross das terras do Sul e com ele os seus criados. O homem está confortavelmente instalado para pernoitar na casa de hóspedes, enquanto os seus domésticos lhe irão abrir a casa vazia, acender uma boa lareira, armazenar comida, aquecer e preparar tudo. E amanhã no capítulo saberemos, sem dúvida, como é que o abade o conheceu e qual dos bispos reunidos no concílio o recomendou para o benefício.

 

- É o que eu próprio estava a pensar - concordou o porteiro -, embora fosse mais do agrado de todos, julgo eu, se um homem local tivesse sido proposto para a vaga. Ainda assim, o que conta é aquilo que uma pessoa é e não o seu nome nem de onde veio. Sem dúvida, o senhor abade sabe muito bem o que faz.

 

E foi-se embora num ápice, provavelmente para segredar as notícias a mais um ou dois pares de ouvidos discretos, antes de Completas. Decerto vários irmãos compareceram ao capítulo, na manhã seguinte, já de sobreaviso e expectantes, aguardando ansiosamente que o novo homem fosse primeiro anunciado e depois apresentado para inspecção. Pois, embora fosse muito pouco provável que alguém levantasse objecções ao homem escolhido pelo abade Radulfus, todos os cabidos tinham, apesar de tudo, direitos na nomeação para o benefício, e Radulfus não era homem para infringir este privilégio.

 

- Regressei para junto de vós tão depressa quanto me foi possível - começou o abade, depois de ter despachado os assuntos habituais da rotina. - Em suma, do concílio de núncios, realizado em Westminster, tenho a comunicar-vos que, em resultado dos debates e das decisões lá tomadas, a Igreja voltou a jurar total submissão ao rei Stephen. O próprio rei esteve presente para confïrmar o estabelecimento desta nova ordem e o legado para o abençoar em nome da Sé Apostólica e para proclamar os seguidores da imperatriz como inimigos do rei e da Igreja, caso continuem recalcitrantes. Não há nenhuma necessidade - disse o abade com alguma rispidez - de entrar em mais pormenores.

 

Nenhuma, pensou Cadfael, atento no cadeirão por ele seleccionado, convenientemente protegido atrás de uma coluna, não fosse dar-se o caso de cabecear com sono nos momentos em que os assuntos materiais se tornavam aborrecidos. Não temos nenhuma necessidade de ouvir falar nas sinuosas manipulações do legado a fim de se livrar de todos os seus apuros. Contudo, sem margem para dúvida, Hugh dar-lhe-ia um relato completo de tudo.

 

- O que diz mais respeito a esta casa - prosseguiu Radulfus - é uma certa conferência que tive, em privado, com o bispo Henry de Winchester. Sabendo do curato vago, aqui, em Holy Cross, recomendou-me um padre da sua própria comitiva que, presentemente, aguardava um benefício. Falei com o homem em questão e achei-o, em todos os aspectos, uma pessoa capaz, erudita e habilitada para a promoção. A sua vida pessoal é austera e simples. Quanto à sua erudição, eu próprio a testei.

 

Era uma qualidade de peso, em contraste com a falta de cultura do padre Adam, embora fosse mais relevante para os frades daqui do que para o povo de Foregate.

 

- O padre Ailnoth tem trinta e seis anos - acrescentou o abade - e vem demasiado tarde para uma paróquia por ter servido de escriturário ao bispo Henry, leal e eficientemente, durante quatro anos, e o bispo deseja recompensar a sua diligência agora, vendo-o estabelecido num curato. Pela minha parte, fico satisfeito por ver que é uma pessoa adequada e merecedora. Mas se mo permitirdes, irmãos, mandá-lo-ei entrar para que preste contas de si próprio e responda às questões que possais desejar colocar-lhe.

 

Um alvoroço despertado pelo interesse, aprovação e curiosidade percorreu a sala do capítulo, e o prior Robert, ao ver as cabeças acenarem em expectativa e obedecendo ao olhar do abade, saiu para chamar o candidato.

 

Ailnoth, pensou Cadfael, um nome saxónico, e fora descrito como sendo um indivíduo elegante e alto. Bem, sempre era melhor do que um qualquer sequaz normando vindo das franjas da corte. E formou um retrato mental de um jovem forte, de pele fresca e rosada, louro, que se desfez num segundo, mal o padre Ailnoth entrou seguindo os passos do prior Robert. Tomou o seu lugar com uma graciosidade serena, em pé, no meio da sala capitular, de onde podia ser observado por todos.

 

Era, de facto, um indivíduo elegante e alto, largo de ombros, musculoso, rápido e desembaraçado no andar. Direito e muito quieto, após ter tomado o seu lugar. Era também um homem muito atraente, à sua maneira, mas muito diferente da palidez saxónica, pois era mais escuro de cabelos e olhos do que o próprio Hugh Beringar. Tinha o rosto comprido e patrício, a pele morena, sem o mínimo vestígio de ter corado nas faces bem barbeadas. O cabelo negro, que circundava a sua tonsura, era grosso e liso como fios de arame e estava aparado com uma tal precisão que esta quase parecia ter sido aplicada com tinta preta. Fez uma vénia austera ao abade, cruzou as mãos, que eram grandes e fortes, à altura da cintura do seu hábito negro e esperou pelo interrogatório.

 

- Apresento a esta assembleia o padre Ailnoth - disse Radulfus -, que proponho para cura de Holy Cross. Examinai-o quanto aos seus desejos nesta matéria, quanto aos seus feitos e vida passada, e ele responder-vos-á livremente.

 

E, de facto, respondeu livremente, estimulado pelas primeiras palavras gentis de acolhimento dirigidas pelo prior Robert, que claramente gostou do seu aspecto. Respondeu às questões com a brevidade e fluência de alguém que nunca teve nem espera vir a ter falta de confiança ou tempo a perder. A sua voz, um pouco mais aguda do que Cadfael esperara de um homem tão grande e tão bem-constituído, soou com uma autoridade confiante. Falou energicamente de si, declarou a intenção de perseguir o seu dever com empenho e integridade e esperou pelo veredicto com uma confiança férrea. Dominava o latim com excelência, sabia algum grego e especializara-se em contabilidade, o que era promissor para a administração da igreja. A sua aceitação estava garantida.

 

- Se me dá licença para fazer um pedido, senhor abade disse por fim -, ficaria muitíssimo grato se alguém pudesse arranjar um trabalho, aqui entre os servos leigos, para o jovem que veio comigo. É o sobrinho e único parente da minha governanta, a viúva Hammet, que me rogou para que eu o deixasse vir, a fim de arranjar um emprego local. Não tem terras nem dinheiro. O meu abade já viu como ele é forte e saudável e não teme o trabalho pesado. Foi voluntarioso e prestável para todos nós durante a viagem. Tem, creio eu, alguma inclinação para a vida de clausura, embora ainda não se tenha decidido. Se lhe arranjasse trabalho por uns tempos, poderia ser que ele assentasse as ideias.

 

-Ah, sim, o jovem Benet - disse o abade. - Parece ter bom temperamento, concordo. Com certeza que pode vir, à experiência.

 

Sem dúvida, há-de-se arranjar-lhe trabalho. Deve haver muito que fazer na granja ou nos jardins...

 

- Há, de facto, abade - Cadfael ergueu a voz entusiasticamente. - Ser-me-ia muito útil um par de mãos mais jovens, ainda há muita terra para cavar no duro, este Inverno. Só agora é que o solo, junto à cozinha, foi limpo. E a poda no pomar é um trabalho pesado. Com a chegada do Inverno, dos dias curtos, e com o irmão Oswin ausente em Saint Giles, no hospício, vou necessitar de um ajudante. Dentro de poucos dias, estaria a pedir que me cedessem um irmão para me ajudar, como é costume, embora no Verão tenha conseguido desembaraçar-me bem sozinho.

 

- Verdade! Uma parte do terreno em Gaye ainda não foi lavrado. E por volta do Natal, ou pouco depois, começam a nascer os cordeiros nas granjas, se o jovem já cá não fizer falta. Sim, com certeza, Benet que venha ter connosco. Caso ele, mais tarde, venha a arranjar outro emprego mais a seu gosto, pode aceitá-lo com o nosso consentimento. Entretanto, o nosso trabalho duro não lhe fará mal.

 

- Dir-lho-ei - disse Ailnoth -, e ele ficar-vos-á tão grato quanto eu. A sua tia teria ficado triste se tivesse de se separar dele, visto ser o único parente jovem que tem e que a pode ajudar. Mando-o vir cá hoje?

 

- Sim, diga-lhe que pode perguntar pelo irmão Cadfael na casa do portão. Agora, deixe-nos para conferenciarmos, padre

- disse o abade -, mas pode esperar no claustro e o prior levar-lhe-á notícia da nossa decisão.

 

Ailnoth inclinou a cabeça com uma reverência calculada, recuou um ou dois passos, afastando-se respeitosamente do abade, e saiu da sala capitular com passadas largas, de cabeça erguida e confiante. O seu hábito agitou-se, como asas meio abertas, devído à rapidez do seu andar. Já tinha a certeza, tal como todos os presentes, de que o curato de Holy Cross era seu.

 

- Tudo se passou como você, provavelmente, supôs - disse o abade Radulfus, mais tarde nesse dia, na sala de estar dos seus aposentos, com uma lareira modesta a arder na chaminé de pedra, a Hugh Beringar, sentado do lado oposto. A cara do abade estava um pouco contraída e sombria devido ao cansaço e os olhos encovados um tanto vazios. Por esta altura, já os dois se conheciam muito bem e estavam habituados a partilhar com uma confiança total, para bem da ordem e de Inglaterra, tudo o que sabiam acerca dos novos acontecimentos ou tendências, sem sequer se questionarem se comungavam ou não das mesmas opiniões. Os seus cargos eram separados, muito diferentes, mas a aceitação de servir os outros era uma só e mutuamente reconhecida.

 

- O bispo praticamente não teve escolha - comentou Hugh com simplicidade. - Quase nenhuma, agora que o rei está outra vez em liberdade e que a imperatriz se vê de novo obrigada a retirar-se para oeste, tendo escasso apoio no resto de Inglaterra. Eu não queria estar nos sapatos dele nem sequer sei como teria lidado com as suas dificuldades. Quem estiver muito seguro do seu próprio valor, que lhe atire com culpas. Eu não consigo.

 

- Nem eu. Mas, apesar de tudo o que possa ser dito, o espectáculo não é nada edificante. Há, ainda assim, aqueles que nunca vacilaram quer a sorte os tivesse favorecido quer não. No entanto, a verdade é que o legado recebeu a carta do papa, que nos leu a todos em conferência, admoestando-o por não ter imposto a libertação do rei, incitando-o a insistir nesse ponto, acima de tudo. E quem se atreve a estranhar que ele tenha tirado o melhor partido possível da situação? Além disso, o próprio rei foi lá. Entrou na sala e apresentou queixa formal contra todos os que lhe juraram fidelidade, mas que depois não se importaram de o ver na prisão e quase o assassinaram.

 

- Contudo, a seguir sentou-se e deixou o seu irmão fazer uso da eloquência para, tortuosamente, se livrar de recriminações - acrescentou Hugh, e sorriu. - Ele tem uma vantagem sobre a sua prima e rival, sabe quando se deve conter e perdoar. Ela não esquece nem perdoa.

 

- Bem, é verdade. Porém, não foi nada agradável de se ouvir. O bispo Henry defendeu-se afirmando frontalmente que não tivera outra escolha, a não ser a de aceitar a sorte tal como esta se lhe apresentara, reconhecendo a imperatriz. Disse que fizera o que lhe parecera melhor, que não vira outra saída, mas que ela quebrara todas as promessas, ultrajara todos os seus súbditos e abrira guerra contra a sua própria vida. E, para concluir, penhorou novamente a igreja ao rei Stephen, instigando todos os homens importantes e de boa vontade a servi-lo. Afirmou acreditar - disse o abade, reflectindo tristemente - que o rei o libertaria. E baniu da igreja todos os que se lhe opusessem.

 

- E referiu-se à imperatriz, ou assim mo contaram - disse Hugh com igual amargura -, chamando-lhe condessa de Anjou.

 

Era um título que a imperatriz detestava, pois subestimava quer o seu nascimento quer a distinção obtida pelo seu primeiro casamento. Uma filha de rei e viúva de um imperador, reduzida agora a um título emprestado pelo seu nem muito amado nem grande amante segundo marido, Geoffrey de Anjou, seu inferior em tudo, menos no talento, sensatez e eficiência. Tudo o que ele fizera por Maud fora dar-lhe um filho. Do amor que ela nutria pelo rapaz, Henry, ninguém tinha quaisquer dúvidas.

 

- Ninguém ergueu a voz contra o que foi dito - mencionou o abade distraidamente -, excepto um enviado da dama, que não fez melhor figura do que aquele que falou da última vez, em nome da rainha, a mulher do rei Stephen. Mas, ao menos, este não foi atacado por assassinos na estrada.

 

Inevitavelmente, aqueles dois concílios de legados, um em Abril e outro em Dezembro, tinham funcionado como imagens em espelho, exactas e gélidas, da sorte a fazer um volte-face, ora a uma facção ora à outra, tirando com a mão esquerda o que dera com a direita. Ainda poderão ocorrer muito mais reversões, antes de ser chegado o dia em que se vislumbre um fim para tudo isto.

 

- Estamos de volta ao ponto de partida - disse o abade -, sem nada termos conseguido nestes meses de infortúnio. E que irá o rei fazer agora?

 

- Isso é o que eu irei descobrir no banquete de Natal - disse Hugh, levantando-se para se despedir. - Pois fui chamado à presença do meu senhor, abade, tal como você. O rei Stephen quer reunir todos os xerifes à sua volta na corte, em Canterbury, onde dará o banquete para que lhe prestemos contas dos nossos serviços. Estarei entre eles, como xerife daqui, à falta de melhor. O que tenciona fazer com a sua liberdade, ainda ninguém sabe. Dizem que se encontra de boa saúde e cheio de determinação, se é que isso quer dizer alguma coisa. Quanto ao que ele tenciona fazer comigo, bem, isso sem dúvida descobrirei a seu tempo.

 

- Meu filho, espero que ele tenha o bom senso de não implicar com nada, pois por aqui - disse Radulfus - preservámos tudo o que pudemos de positivo, e, avaliando pelo que se passa neste infeliz reino, tudo corre bem neste condado. Porém, duvido de que, faça ele o que fizer, isso não venha a significar mais lutas e desgraças para Inglaterra. E tanto você como eu nada poderemos fazer quer para as evitar quer para as melhorar.

 

- Bem, se não podemos dar a paz a Inglaterra - disse Hugh, sorrindo com uma careta -, vejamos, ao menos, o que você e eu, entre nós, podemos fazer por Shrewsbury.

 

Após o jantar no refeitório, o irmão Cadfael atravessou o pátio grande, rodeou a espessa e escura folhagem da sebe de buxos - já espigada, observou, pronta para ser aparada, antes que a chegada do frio lhe detivesse o crescimento-e entrou nos jardins de flores orvalhadas, onde rosas pernaltas balançavam à altura de um homem, nos seus caules desfolhados, brilhando ainda com uma luz e vida invencíveis. Mais ao fundo, ficava o seu horto medicinal, murado e silencioso, com todos os seus pequenos canteiros quadrados a mergulharem já no sono: hastes de hortelã despidas, em pé, esticadas como arame, almofadas de tomilho estendidas no chão, curvando-se para proteger as folhas que lhes restavam. No entanto, sentia-se no ar, um pouco por todo o lado, um leve aroma das especiarias de Verão. Eram em parte uma reminiscência, talvez, sendo a outra parte trazida pelo ar através da porta aberta da sua oficina, onde ramalhetes de ervas secas estavam suspensos dos beirais e vigas, mas certamente emanavam ainda, também, destas menores e sonolentas manifestações de Deus, envelhecidas e cansadas de momento, unicamente para rejuvenescerem e ganharem energia com a Primavera. Fénixes verdes, cada uma delas a prova visível, se necessário fosse, da vida eterna.

 

Dentro de muros havia suavidade e quietude, um santuário dentro de outro santuário. Cadfael sentou-se no banco de madeira em frente à porta aberta e pôs-se à vontade, preparando-se para empregar a sua meia hora de descanso permitido na meditação em vez de na sesta. A manhã fornecera-lhe bastante alimento para a reflexão, e ele pensava melhor sozinho, aqui, no seu pequeno reino.

 

”Então aquele”, pensou, ”é o novo padre de Holy Cross. Por que será que o bispo Henry se deu ao trabalho de nos conceder um dos seus escriturários pessoais e ainda por cima um que ele valorizava como tal? E logo um que já nasceu com, ou adquiriu através de uma imitação reverente, aquilo que julgo serem as notáveis qualidades do seu amo?” Seria possível que, sendo ambos homens autoritários, confiantes e orgulhosos, um deles considerasse que o outro estava a mais para que houvesse paz e que Henry tivesse ficado feliz por se ver livre dele? Ou dar-se-ia o caso de o legado, após a humilhação de ter de engolir publicamente as suas próprias palavras, duas vezes num só ano, e dos danos que essas atitudes podem ter implicado para o seu prestígio, dar-se-ia o caso de, após tudo isto, querer agora aproveitar a oportunidade para cortejar todos os seus bispos e abades, mostrando um interesse paternal para com todas as suas carências e necessidades? Lisonjeando-os com atenções para atenuar as embaraçosas juras de fidelidade? Também isso era possível, e ele sacrifïcaria de bom grado até mesmo um valioso escriturário para garantir o apoio de um homem como Radulfus. ”Mas uma coisa é certa”, concluiu Cadfael com firmeza, ”o nosso abade não se teria deixado envolver nisto se não estivesse convencido de estar a trazer um homem adequado para o cargo.”

 

Fechara os olhos para pensar melhor. Encostara-se confortavelmente à parede de madeira, os pés enfiados nas sandálias, cruzados e esticados para a frente, as mãos envoltas nas mangas do hábito, tão quieto que, ao jovem que se aproximava pelo carreiro de cascalho, parecera estar a dormir. Outros, não acostumados a uma tal imobilidade num homem acordado, tinham várias vezes cometido esse erro em relação ao irmão Cadfael. Apesar de cautelosos e leves, Cadfael ouviu os passos. Não era um irmão, e os serviçais leigos eram poucos e raras vezes tinham ocasião de vir para estes lados. Nem se aproximariam tão cautelosamente, caso viessem fazer um recado para estas bandas. Não eram sandálias, mas sapatos velhos, muito usados, e a pessoa que os usava devia imaginar que caminhava silenciosamente e, de facto, quase assim era, não fora o caso de Cadfael ter o ouvido de uma criatura selvagem. Junto à porta aberta, os passos detiveram-se e, durante um longo momento, o silêncio foi completo. ”Ele estâ a estudar-me. Bem, eu sei o que vê, mesmo não sabendo o que deduz: um homem com mais de sessenta anos, saudável, à excepção de uma esporádica rigidez nas articulações, própria da idade, quadrado de corpo, fisionomia grosseira, cabelo grosso, castanho-grisalho...” a precisar de um corte, agora que penso nisso! à volta de uma coroa rapada, exposta a toda a espécie de condições meteorológicas ao longo de muitos anos. Observa-me atentamente e fá-lo com toda a calma.”

 

Abriu os olhos.

 

- Eu posso parecer um mastim, mas jâ há muitos anos que não mordo em ninguém. Entre, não hesite.

 

Um acolhimento tão bem humorado e inesperado, em vez de atrair o visitante para o interior, fê-lo recuar um passo em sobressalto, de modo a ficar totalmente exposto à suave luz do meio-dia, podendo ser observado com toda a nitidez. Um indivíduo jovem, que não tinha certamente mais de 20 anos, de altura média, mas muito bem constituído, vestido com uns calções até ao joelho, amarrotados e de uma cor parda e indefinida, com sapatos de cabedal muito gastos e acalcanhados, uma capa castanho-escura, coçada, ligeiramente descolorida no sítio onde as mangas roçavam nos flancos, cingida por um cinto de corda puído e com um pequeno capucho na extremidade descaído sobre os ombros. Via-se no pescoço o linho grosseiro da sua camisa desabotoada, e as mangas da capa eram curtas, deixando ver um pulso mais pálido que as mãos morenas. Um forte, robusto e jovem exemplar de masculinidade ficou de pé, imperturbável, para se deixar avaliar, e, passado o momento do exame, parecia até que a prolongada e silenciosa avaliação lhe renovara a confiança em vez de o fazer sentir-se inseguro, pois um brilho inconfundível iluminava-lhe o olhar e um sorriso incontido era visível no rosto quando disse respeitosamente:

 

- Disseram-me, na casa do portão, para vir aqui. Estou à procura de um irmão chamado Cadfael.

 

Tinha uma voz aprazível, entoada num timbre agradavelmente baixo, mas com uma nota de alegria, ensaiando, neste momento, uma docilidade que parecia não condizer muito bem com o rapaz que falava. Cadfael continuou a estudá-lo com um interesse crescente. Uma trunfa desgrenhada, cheia de caracóis castanho-claros, coroava uma cabeça bem proporcionada que era sustentada por um pescoço elegante, e o rosto, que tanto se esforçara para se fazer passar pelo ingénuo campónio envergonhado perante os seus superiores, era jovialmente arredondado nas faces e no queixo mas também adequadamente provido de ossos, e estava bem barbeado como o de um rapazito de escola que pretendia parecer. Uma cara ingénua, não fora a malícia latente e reprimida nos olhos cor de avelã, mutáveis e fluidos como água acastanhada fluindo sobre seixos iluminados pelo sol de um deleitoso verde e castanho outonais. Nada podia fazer para anular aquele brilho folgazão. A dormir, o angélico simplório poderia eventualmente vir a ser convincente, mas de olhos abertos não.

 

- Então encontraste-o - disse Cadfael. - Esse nome pertence-me. E tu deves ser, deduzo eu, o jovem que veio com o padre e que quer trabalhar connosco durante uns tempos.

 

Ergueu-se, recobrando energias, sem pressa. Os olhos de ambos encontraram-se num frente-a-frente. Dançantes, como água de riacho, assim eram os olhos do rapaz, cintilando à luz do Sol de Inverno.

 

- Qual foi o nome que te deram, filho?

 

- N... nome? - A gaguez veio como uma surpresa e o súbito pestanejar nervoso das longas pestanas castanhas, que por breves instantes encobriram os olhos cheios de vivacidade, foi o primeiro sinal de inquietação que Cadfael lhe detectou.

 

- Benet... o meu nome é Benet. A minha tia Diota é a viúva de um homem decente, John Hammet, um panafreneiro ao serviço do senhor bispo, por isso, quando morreu o bispo, Henry arranjou à minha tia um lugar junto do padre Ailnoth. Foi assim que para cá viemos. Há mais de três anos que estão habituados um ao outro. E eu pedi-lhe para vir com eles, para ver se arranjava um trabalho perto dela. Não tenho prática, mas aquilo que não sei posso aprender.

 

Muito falador agora, repentinamente, sem gaguejar mais. Entrara, pondo-se à sombra, abrigando-se da luz do meio-dia, evitando deste modo alguma da sua luminosidade perigosa.

 

- Ele disse-me que você precisava de mim - disse a voz vibrante, docilmente abafada. - Diga-me que fazere eu fá-lo-ei.

- Uma atitude muito digna para quem quer trabalho - concedeu Cadfael. - Vais partilhar da vida aqui dentro, no enclave, assim mo informaram. Onde te alojaram? Entre os serviçais leigos?

 

- Em lado nenhum, por enquanto - disse o rapaz, recuperando cautelosamente a energia e a ressonância na voz. - Mas prometeram-me cama aqui dentro. Prefiro ficar fora da casa do padre. Há um indivíduo na paróquia que lhe cuida do passal, disseram-mo, portanto, não faço lá falta.

 

- Bem, fazes cá bastante falta - disse Cadfael cordialmente. - Por variadíssimas razões, estou bastante atrasado com a lavoura, que tem de ser feita antes da vinda das geadas, e tenho meia dúzia de árvores de fruto, aqui, no pequeno pomar, que precisam de ser podadas por volta do Natal. O irmão Bernard vai querer a tua ajuda para lhe revolveres a terra em Gaye, onde se situam os nossos principais jardins. Ainda não estás familiarizado com a situação, mas depressa te habituarás. Certificar-me-ei de que ninguém te levará enquanto me fizeres cá falta. Anda então ver o que te espera aqui, dentro de muros.

 

Benet avançara mais alguns passos para o interior da cabana e olhava à sua volta com curiosidade e algum respeito à colecção de garrafas, potes e frascos que guarneciam as prateleiras do irmão Cadfael. Ouvia o sussurrar dos ramalhetes de ervas que se moviam em cima, ao sabor das correntes de ar vindas através da porta aberta. Observava as pequenas balanças de latão, os três almofarizes, as tijelinhas de madeira com raízes medicinais e o lote de pequenas pastilhas brancas losangulares a secar na pedra mármore. O olhar de espanto e a boca aberta falavam por ele. Cadfael ficou na expectativa de o ver a fazer o sinal da cruz para se defender de mistérios tão sinistros, mas Benet conteve-se mesmo a tempo. ”Ainda bem que aqui estou”, pensou Cadfael, admirado e divertido, ”pois, se não tivesse presenciado isto, não acreditaria.”

 

- Se quiseres também podes aprender desde que te apliques o suficiente - disse asperamente -, mas levará alguns anos. São simples remédios. Deus fez cada um dos ingredientes que os compõem, não há outra magia. Mas vamos ao essencial. Há um acre de horta para ser cavada e uma pequena montanha de estrume de cavalo para transportar e espalhar pelos principais morros e canteiros de rosas. Quanto mais depressa se começar, mais depressa ficará feito. Anda ver!

 

O rapaz seguiu-o de boa vontade. Os seus bonitos olhos claros perscrutavam tudo com interesse. Para lá dos lagos de peixes, nos dois ervilhais que se estendiam pela encosta abaixo até ao riacho Meole, a fronteira ocidental do enclave, os caules já há muito tinham sido cortados e secos para servirem de chão nos estábulos e as raízes enterradas de novo no solo. No entanto, havia ainda um trabalho duro e sujo para fazer ali, que consistia em espalhar o estrume dos estábulos e vacarias. Havia umas quantas árvores de fruto no pequeno pomar para serem podadas, mas toda a vegetação que ficara na erva, neste ameno começo do mês, fora já meticulosamente ceifada por dois cordeirinhos. Os canteiros de flores trajavam os seus habituais andrajos outonais, mas necessitavam de uma última limpeza, se o tempo o propiciasse, antes que todo o crescimento se suspendesse com o frio. A horta liberta das colheitas, estava espezinhada e cheia de ervas daninhas, à espera da pá. Um vasto cenário desencorajador. Porém, nada disto parecia intimidar Benet.

 

- Uma boa extensão - disse alegremente, observando o vasto morro principal sem mostrar sinais de desencorajamento.

 

- Onde poderei encontrar as ferramentas?

 

Cadfael levou-o ao local onde estas se encontravam e foi com interesse que reparou que o jovem olhava à volta, para aquele conjunto de utensílios, com um ar de hesitação, embora depressa seleccionasse uma pá de madeira com a lâmina em ferro adequada para o trabalho de mãos, e chegou mesmo a examinar a extensão de terreno à sua frente antes de iniciar o primeiro sulco, criteriosa e energicamente, apesar de a habilidade não ser muita.

 

- Espera! - exclamou Cadfael, reparando nos sapatos velhos e inadequados do rapaz. --- Com esses sapatos, se impulsionas assim a pá, vais ter um pé inchado não tarda nada. Tenho na minha cabana uns socos de madeira que podes calçar por cima dos sapatos e cavar com toda a força que quiseres. Mas não há pressas, ou ficarás alagado em suor antes de terminares uma dúzia de sulcos. O que deves fazer é arranjar um passo certo, marcar um ritmo com a pá, e poderás continuar pelo dia fora. Canta se tiveres fôlego suficiente ou então trauteia e poupa a respiração. Ficarás surpreendido quando vires como os sulcos se multiplicam.

 

Nesse momento, susteve a fala, tardiamente consciente de que estava a revelar demasiados pormenores sobre o que tinha observado.

 

-Trabalhaste sobretudo com cavalos, segundo ouvi dizerdisse brandamente. - Em cada ofício há uma arte.

 

E foi buscar os tamancos que ele próprio esculpira para proteger os seus pés quer da enxada quer do lamaçal, antes que Benet pudesse falar em sua própria defesa.

 

Assim calçado e aconselhado, Benet pôs-se a trabalhar circunspectamente e Cadfael ficou apenas o tempo suficiente para o ver lançado numa actividade constante, regressando depois à oficina para se dedicar às ocupações da rotina, pisando ervas para um unguento da sua autoria, bom para as mãos gretadas, que apareceriam, como habitualmente, em Janeiro, entre os copistas e os iluministas no scriptorium. Sem dúvida, mais tarde surgiriam também tosses e constipações, e era agora a altura certa para preparar esses remédios que se conservariam ao longo do Inverno.

 

Quando estava quase na hora de arrumar tudo e de se aprontar para Vésperas, saiu para ver como é que o seu acólito se estava a portar. Ninguém gosta de ser observado enquanto trabalha, especialmente quando se é inexperiente e, talvez, sensível à falta de habilidade e prática. Cadfael ficou impressionado com a enorme extensão de terra que o jovem revolveu. Os sulcos eram rectilíneos. Ele tinha, certamente, um bom golpe de vista. O corte parecia ser profundo, a avaliar pela cor fértil e negra do solo revolto. Era verdade que espalhara terra pelas bermas dos caminhos, mas fora à casa das ferramentas desencantar uma vassoura feita de ramos e estava agora a restituir o solo derramado ao seu devido lugar. Um pouco à defesa, enfrentou Cadfael, lançando um olhar de soslaio à pá que deixara tombada no chão.

 

-Estraguei a lâmina de ferro numa pedra-disse, baixando a vassoura de modo a levantar a pá, passando cuidadosamente os dedos pela borda metálica que fazia a junção à madeira. Antes de a arrumar, vou martelá-la. Há um martelo na casa das ferramentas e o bebedouro tem uma boa superfície de pedra. Eu queria ter feito mais duas fileiras antes do pôr do Sol.

 

-Filho-disse Cadfael cordialmente-, fizeste muito mais do que eu esperava. Quanto à pá, a lâmina já foi substituída pelo menos três vezes desde que foi feita e sei bem que em breve será revestida uma quarta vez. Se pensas que ela ainda pode servir durante algum tempo, pelo menos até acabares esta empreitada, então martela-a, mas depois arruma-a, lava-te e anda assistir às Vésperas.

 

Benet levantou os olhos da lâmina dentada, subitamente consciente do elogio prudente, e mostrou o sorriso mais rasgado e menos precavido que Cadfael se lembrava de ter visto. E luzinhas límpidas resplandeceram no seu olhar de água translúcida.

 

- Quer isto dizer então que eu sirvo? - perguntou com um misto de prazer e de impertinência subtil, corado e radiante, e acrescentou com frontalidade: - Raríssimas vezes peguei numa pá.

 

- Essa agora... - respondeu Cadfael com um ar sério, examinando atentamente o bom estado das mãos que ressaltavam das mangas demasiado curtas -, isso nunca me teria passado pela cabeça.

 

- Trabalhei acima de tudo com... - começou Benet apressado.

 

- ... com cavalos. Sim, eu sei! Bem, hás-de igualar os esforços de hoje, amanhã, e os de amanhã, depois de amanhã e, sim, tu serves.

 

Cadfael foi para Vésperas com a imagem recorrente do seu novo e vistoso trabalhador, afastando-se a passadas largas para ir martelar a lâmina dentada da pá, de modo a torná-la uniformemente afiada, e ainda tinha os ouvidos apurados à escuta da melodia assobiada, que não era certamente de índole litúrgica, ao som da qual os pés grandes e jovens de Benet, nos sapatos gastos e socos emprestados, marcavam o ritmo.

 

- O padre Ailnoth instalou-se esta manhã no curato comentou Cadfael, acabado de regressar da tomada de posse, no segundo dia. - Não quiseste ir assistir?

 

- Eu? - questionou Benet, endireitando-se ao lado da pá com genuína surpresa. - Não, por que haveria de querer? Estou aqui no meu trabalho, ele pode cuidar do dele sem qualquer ajuda minha. Mal o conhecia antes de vir para cá. Correu tudo bem?

 

- Sim... Oh, sim, tudo correu bem. O sermão foi talvez um pouco duro para os pobres pecadores - disse Cadfael, hesitando enquanto ponderava. - Sem dúvida, quis começar por mostrar o seu zelo logo à partida. É sempre possível afrouxar as rédeas mais tarde, quando o pároco e as pessoas começam a conhecer-se melhor e já sabem qual o lugar de cada um. Nunca é fácil para um homem novo e recém-chegado ir ocupar o lugar de outro idoso e já acostumado. O sapato velho dá conforto, o novo aperta. Mas, dando tempo ao tempo, o novo fica velho e adapta-se com a mesma suavidade.

 

Parecia que Benet desenvolvera muito depressa a habilidade de ler o pensamento do seu novo mestre nas entrelinhas. Estava de pé, fixando Cadfàel com seriedade, de sobrolho ligeiramente franzido, a cabeça cheia de caracóis inclinada, a fronte enrugada com uma gravidade fora do habitual, como se uma questão imprevista se lhe tivesse colocado sem qualquer aviso e ele tivesse tomado súbita consciência de que, já há muito tempo, se deveria ter debruçado sobre ela, não fora o caso de andar tão preocupado com um outro assunto secreto.

 

- A minha tia Diota trabalha para ele há mais de dois anos

- disse ponderadamente -, e, tanto quanto sei, nunca se queixou. Só convivi com ele na viagem para cá e fiquei-lhe agradecido por me ter trazido. É um homem com quem um criado, como eu, não se sente muito à vontade, mas tive cuidado com a língua e fiz o que me mandou e fui bem tratado.

 

A vivacidade de Benet voltou como uma rajada de vento ocidental, espantando as dúvidas para longe.

 

- Ah, aqui está ele tão inexperiente no seu novo trabalho quanto eu no meu, só que ele dá cacetadas para abrir caminho, ao passo que eu tenho o bom senso de me ir insinuando lentamente. Deixem-no estar, e ele há-de assentar os pés na terra.

 

Tinha razão, é claro. Um homem desconhecido surge imoderado e pouco à vontade num lugar ainda não adaptado a ele e é necessário dar-lhe tempo para respirar e escutar a respiração dos outros. Porém, Cadfael foi para o seu trabalho com a memória atormentada por uma homilia, eloquentemente proferida, que consistia metade num sonho frenético e a outra metade no dia do julgamento, começando pelo ar puro de um céu quase inatingível e terminando com a descrição anatómica de um inferno demasiado visível.

 

- ... esse inferno que é uma ilha, eternamente cercado por quatro mares, os dragões guardiães dos condenados. O mar da amargura, onde cada vaga queima com maior furor do que os fogos do inferno terrestre; o mar da rebelião, que a cada braçada do nadador ou remador o lança de novo ao fogo; o mar do desespero, onde cada veleiro e nadador se afundarão como uma pedra. E, por último, o mar da penitência, formado por todas as lágrimas de todos os condenados, através do qual somente para alguns, muito poucos, a fuga é possível, visto que uma simples lágrima de Nosso Senhor derramada pelos pecadores, uma vez caída no dilúvio incandescente e infiltrada, arrefece e acalma

o oceano inteiro para os que atingem a perfeição do remorso...

 

Uma piedade redutora e aterrante”, pensou Cadfael, mexendo com a colher o bálsamo para o peito dos idosos. Homens imperfeitos na enfermaria, humanos e falíveis, tal como ele, e já por pouco neste mundo. Nem se pode chamar a isto piedade!

 

A primeira pequena nuvem a insinuar-se no céu sereno de Foregate surgiu quando Aelgar, que desde sempre se ocupara dos terrenos do passal e do gado paroquiano, apresentou uma queixa a Erwald, o consertador de rodas, preboste de Foregate, fundamentada mais na ansiedade do que na revolta, lamentando-se por o seu novo senhor ter levantado suspeitas quanto à sua condição social, questionando se seria livre ou servo. Havia uma controversa faixa de terreno nos campos mais distantes que estava a ser disputada, sem grandes polémicas, por alturas da morte do padre Adam, e tanto o homem como o padre não tinham chegado a um acordo sobre o título de propriedade, quando Adam morreu. Caso ainda fosse vivo, teriam feito um pacto amigável, pois a ganância não fazia parte do temperamento de Adam e havia uma pretensão legítima por parte da mãe de Aelgar. No entanto, o padre Ailnoth, de escrúpulos inabaláveis, insistiu que o caso deveria ir a tribunal e, mais, disse frontalmente que, segundo a lei, Aelgar não teria qualquer direito, visto não ser um homem livre, mas um servo.

 

- E todos sabem - afirmou Aelgar irritado - que sou e sempre fui um homem livre, mas ele diz que tenho parentes servos, pois o meu tio e o meu primo têm um pequeno terreno na herdade de Worthin que ocupam em troca de serviços consuetudinários, e, segundo ele, é essa a prova. E isso até é verdade, pois o irmão mais novo do meu pai, não tendo terras, aceitou de bom grado aquele terreno, quando vagou, acordando na prestação gratuita de serviços, mas apesar de tudo nasceu livre, tal como toda a minha família. Nem sequer se dá o caso de eu cobiçar aquela faixa de terreno ao padre ou à igreja assim haja uma comprovação justa... mas como, se ele vai alegar que sou um servo e não um homem livre?

 

- Ele não fará isso - disse Aelgar -, pois nada conseguiria provar se o fizesse. E por que haveria de querer fazer-lhe mal? Verá que é apenas um escrupuloso seguidor da lei e nada mais. Ora essa, todos na paróquia dariam testemunho. Dir-lho-ei, e ele escutará a voz da razão.

 

Contudo, a história já se espalhara antes do cair da noite. A segunda pequena mancha a turvar o céu desanuviado foi a de um garoto com a cabeça partida que, entre fungadelas e soluços, admitiu ter atirado, juntamente com alguns amigos da mesma idade, uma bola algo ruidosa contra a parede da casa do padre, uma parede livre, sem janelas, apropriada para o efeito, e que, como era natural, tinham feito algum barulho. Mas quantas vezes não tinham feito o mesmo antes? E o máximo que o padre Adam fizera fora ameaçá-los com um punho tolerante e sorrir e por fim enxotá-los como se fossem galinhas. Desta vez, um vulto alto e negro surgira da casa, amaldiçoando-os aos berros, brandindo um enorme bastão, e nem mesmo o susto lhes deu a velocidade sufïciente para conseguirem escapar ilesos. Dois ou três ficaram com nódoas negras para recordação e este desgraçado levara com uma pancada na cabeça, que por pouco não o deixara aturdido, ficando com uma ferida aberta, a sangrar de forma alarmante durante algum tempo, como acontece normalmente quando se parte a cabeça.

 

- Sei que volta e meia se comportam como diabinhos de Satã

- disse Erwald ao irmão Cadfael, depois de a criança ter sido consolada, tratada e arrastada dali por uma mãe indignada e, muitas vezes, você e eu, já demos um bom açoite ou um puxão de orelhas, mas nunca usámos uma bengala tão grande como aquela com que ele anda.

 

- É capaz de ter sido uma pancada infeliz sem qualquer intenção de o atingir-contestou Cadfael. -Porém, julgo que ele nunca será tão indulgente para com os diabretes como foi o padre Adam. Seria bom se aprendessem a evitá-lo ou a ter cuidado com o que fazem quando ele está por perto.

 

Em breve se tornou evidente que também os rapazes partilhavam da mesma opinião, pois não houve mais jogos barulhentos junto à pequena casa ao fundo da travessa, e, quando a figura negra e alta era vista a passear-se ameaçadoramente por Foregate, a capa esvoaçando como asas de corvo ao ritmo das suas gigantescas passadas, as crianças sumiam-se para longe do seu alcance, mesmo quando não estavam a fazer nada de mal.

 

Decerto não se poderia afirmar que o padre Ailnoth negligenciava os seus deveres. Era disciplinado no cumprimento de horários, não deixava que nada lhe interrompesse a celebração do ofício, pregava sermões severos, cumpria reverentemente as suas obrigações, visitava os doentes, admoestava os reincidentes. O conforto que dava aos aflitos era austero, desalentador até, e a atribuição de penitências mais pesada do que aquelas a que o seu rebanho estava habituado, porém, executava todas as tarefas respeitantes ao curato. Olhava zelosamente, também, por todos os privilégios inerentes ao seu cargo, dízimo e terras, ao ponto de um vizinho se andar a queixar por lhe terem arado metade da sua faixa de terreno enquanto Algaer protestava, dizendo que o padre o tinha mandado lavrar para além dos limites, alegando que o desperdício de terra era condenável.

 

Os poucos rapazes que tinham andado a aprender os rudimentos das letras com o padre Adam, e que agora prosseguiam os estudos com o seu sucessor, mostravam cada vez menos vontade de assistir às aulas e, entre dentes, confessavam aos pais que eram espancados à mínima falha, para já nem falar de quando havia uma verdadeira ofensa.

 

- Foi um erro - proferiu o irmão Jerome com altivez tê-los deixado andar à solta, como fez o padre Adam. Agora encaram uma restrição normal como se fosse uma desgraça, em vez de a considerarem uma atitude justa. Que diz o Regulamento sobre este assunto? Que os rapazes ou jovens incapazes ainda de entenderem um castigo tão grande como o da excomunhão devem ser punidos pelas suas ofensas, quer através do jejum quer por meio de chicotadas, tendo em vista o seu próprio bem. O padre está a proceder como deve.

 

- Eu não posso encarar um simples engano na aprendizagem - retorquiu o irmão Paul, falando em defesa dos rapazes que tinham uma idade aproximada à dos seus pupilos - como uma ofensa. Uma ofensa implica vontade de ofender, e estas crianças respondem o melhor que sabem, querendo apenas colaborar.

 

- A ofensa - afirmou Jerome pomposamente está na negligência e na falta de atenção que faz que eles sejam imperfeitos nas respostas. Os que se aplicam são capazes de responder sem falhas.

 

- Não quando à partida já estão com medo - contestou asperamente o irmão Paul, e fugiu à discussão com receio de não se controlar. Jerome tinha uma maneira peculiar de expor a sua faceta religiosa para criticar os outros, e Paul, que, como a maioria dos homens grandes e fortes, era capaz de se mostrar dócil e terno para com os indefesos, tal como acontecia com os seus pupilos mais jovens, tinha plena consciência daquilo que os seus punhos podiam fazer a um adversário do seu tamanho, já para não falar de uma criatura mesquinha como Jerome.

 

Decorreu mais de uma semana antes que o assunto fosse levado ao conhecimento do abade, e, mesmo nessa altura, foi uma queixa relativamente menor que despoletou tudo. Pois o padre Ailnoth acusara publicamente John Achard, o padeiro de Foregate, de distribuir pães com peso a menos, e Jordan, legitimamente ofendido no seu brio profissional, tencionava refutar a acusação a todo o custo.

 

- É um homem cheio de sorte - comentou Erwald, o preboste, entusiasticamente - por ter sido acusado da única coisa que todo o povo de Foregate jurara ser falsa, pois dá e sempre deu o tamanho certo ao seu pão, mesmo que não faça mais nada de acertado na vida. Se tivesse sido acusado de ser o pai de um ou dois dos mais recentes bastardos desta região, teria uma boa razão para piar baixinho. No entanto, faz bom pão e nunca engana no peso. Como é que o padre cometeu este erro é um mistério, mas Jordan quer ver sangue a jorrar por isto e não tem papas na língua, fala por si e por outros menos corajosos.

 

E foi assim que o preboste de Foregate, seguído por Jordan, o padeiro, e por mais uma ou duas notabilidades da paróquia, vieram pedir uma audiência ao abade Radulfus, no capítulo, no décimo oitavo dia de Dezembro.

 

- Pedi-vos para me falarem aqui em privado - disse o abade depois de se terem retirado, a seu pedido, para a sala de estar dos seus aposentos -, de modo a que as obrigações diárias dos irmãos não sejam interrompidas. Pois já percebi que têm muito para me dizer e quero que o façam livremente. Agora temos bastante tempo. Senhor preboste, tem toda a minha atenção. Desejo a felicidade e prosperidade de Foregate, tal como todos vós.

 

O uso do título de cortesia, a que Erwald não tinha oficialmente direito, pretendia ser um convite, e como tal foi aceite.

- Senhor abade - começou Erwald, muito sério -, viemos ter consigo porque não estamos nada contentes com o procedimento do nosso novo padre. O padre Ailnoth tem deveres na igreja e cumpre-os fielmente, e quanto a isso não temos qualquer queixa a apresentar. Mas a forma como lida connosco não nos traz nada satisfeitos. Pôs em dúvida se Aelgar, que trabalha para ele, seria um servo ou um homem livre e nada nos perguntou, a nós, que sabemos perfeitamente que é um homem livre. Também mandou Aelgar lavrar uma parte do terreno do seu vizinho Eadwin, sem o seu conhecimento ou consentimento. Acusou o senhor Jordan, aqui presente, de roubar no peso do pão, quando todos nós sabemos como isso é falso. Jordan é conhecido pela boa qualidade e quantidade do seu pão.

 

- Essa é que é a verdade - disse Jordan enfaticamente. Alugo os meus fornos à abadia, é na vossa propriedade que eu trabalho, conhecem-me há anos, sabem o quanto me orgulho do meu pão.

 

- Tem esse direito - concordou Radulfus -, o pão é bom. Continue, senhor preboste, vejo que tem mais para me dizer.

- Tenho, meu senhor - assentiu Erwald com um ar muito

 

sério agora. - Se calhar, já ouviu falar na dureza com que o padre Ailnoth dirige a escola. Usa da mesma severidade para com os rapazes da paróquia, sempre que os vê em grupo ou dão um passo ao lado, e o senhor sabe como os jovens são insensatos. Ele tem a mão muito leve, e já foi violento quando não era necessário, pelo menos segundo a nossa perspectiva. As crianças têm medo dele. Isso não é bom, embora nem toda a gente tenha paciência para os miúdos. Mas também as mulheres andam assustadas. Prega sermões tão medonhos que andam com medo do Inferno.

 

- Não é preciso ter medo - disse o abade -, a não ser que se viva em pecado. Não penso que tenhamos aqui, na paróquia, tão grandes pecadores.

 

- Não, meu senhor, mas as mulheres são sensíveis e fáceis de assustar. Analisam-se em busca de pecados que, inconscientemente, possam ter cometido. Já não têm a certeza do que é ou não é pecado, por isso já nem se atrevem a respirar sem se questionarem se estarão a proceder mal. Mas há mais ainda.

- Estou a ouvir - disse o abade.

 

- Meu senhor, há um homem pobre e decente nesta paróquia, Centwin, cuja mulher, Elen, deu à luz uma criança muito fraca, um rapaz, há quatro dias. Foi mais ou menos por volta de sexta que o bebé nasceu, era tão pequeno e débil que tiveram a certeza de que iria morrer, por isso Centwin correu até casa do padre e implorou-lhe que fosse baptizar o rapaz, antes que morresse, para a salvação da sua alma. E o padre Ailnoth mandou dizer que estava ocupado com as suas devoções e que não poderia ir enquanto não terminasse o ofício. Centwin implorou-lhe, mas ele não interromperia as orações. E quando se decidiu a ir, abade, o bebé estava morto.

 

Naqueles instantes de silêncio gélido, pareceu que uma escuridão opressiva se abatera sobre a sala de painéis.

 

- Senhor abade, ele não quis dar à criança um enterro cristão, porque não era baptizada. Disse que não poderia ir para chão sagrado, embora se dispusesse a rezar todas as orações possíveis no seu enterro... que foi numa cova fora da cerca. Posso mostrar-lhe o local.

 

O abade Radulfus, infinitamente oprimido, comentou:

- Ele estava no seu direito.

 

- No seu direito! E então os direitos da criança? Podia ser uma alma baptizada se ele tivesse ido quando foi chamado.

- Ele estava no seu direito - repetiu Radulfus inexoravelmente, mas com profunda aversão. - O ofício é sagrado.

 

- Também a alma do recém-nascido - protestou Erwald, eloquente e sem remorsos.

 

- Diz bem. E Deus escuta-nos a ambos. Pode haver, e haverá, dispensação. Se têm mais alguma coisa a dizer-me, continuem, contem-me tudo.

 

- Meu senhor, havia uma rapariga nesta paróquia... Eluned... muito bonita. Não era como as outras, mas sim livre como uma lebre. Todos a conheciam. Deus sabe que ela nunca fez mal a ninguém a não ser a si própria, pobre criatura! Meu senhor, ela não conseguia dizer não aos homens. Várias vezes foi com um e com outro, mas regressava sempre, tão subitamente como tinha partido, lavada em lágrimas, e confessava-se e jurava emendar-se. E era sincera! Mas nunca conseguia cumprir com a palavra dada, bastava que um rapaz olhasse para ela e suspirasse... O padre Adam recebia-a sempre, confessava-a, dava-lhe a penitência, e por fim a absolvição. Sabia que ela não o conseguia evitar. Era a criatura mais bondosa que já alguma vez existiu, quer se tratasse de homens, crianças ou animais... demasiado bondosa!

 

O abade estava sentado, quieto e silencioso, tentando adivinhar o que se seguiria.

 

-No mês passado, deu à luz uma criança. Quando recuperou, veio, como vinha sempre, coberta de vergonha para se confessar. Ele recusou-lhe apoio. Disse-lhe que já quebrara todas as promessas de emenda, e era verdade, mas mesmo assim... Não lhe deu penitência, porque não acreditava na sua palavra e por isso recusou-lhe a absolvição. E, quando ela veio humildemente à igreja para ouvir a missa, pô-la fora e fechou-lhe a porta na cara. Fê-lo em público, alto e em bom som, à frente de todos.

 

Fez-se um grande e profundo silêncio antes de o abade formular a pergunta inevitável:

 

- Que lhe aconteceu? - Pois era evidente que ela já pertencia ao passado, era uma alma exilada.

 

- Tiraram-na do açude, meu senhor. Por sorte, a corrente levou-a até ao riacho e os que a tiraram de lá eram da cidade, não a conheciam e, por isso, levaram-na para a sua paróquia e o padre de Saint Chad enterrou-a. Não sabiam como se tinha afogado, julgaram ter sido um acidente.

 

Era evidente que todos os que se encontravam ali presentes sabiam que não tinha havido acidente nenhum. Saltava à vista. O desespero é um pecado mortal. Que se poderá então dizer daqueles que levam ao desespero?

 

- Deixem isto comigo - disse o abade Radulfus. - Falarei com o padre Ailnoth.

 

Não havia o mínimo vestígio de culpa, perturbação ou insegurança no bonito rosto austero, que enfrentava o abade Radulfus, do outro lado da secretária na sala de estar, depois da missa. O homem estava de pé, direito e quieto, com as mãos tranquilamente cruzadas e a cara de uma calma insuperável.

 

- Senhor abade, se me permite que me exprima livremente, as almas da minha paróquia foram há muito negligenciadas, abandonadas à sua desgraça. O jardim está cheio de ervas daninhas que fazem morrer à fome e estrangulam as boas sementes. Estou empenhado em fazer tudo o que seja necessário para que haja uma colheita imaculada, é minha obrigação esforçar-me, e assim farei. Não posso agir de outra forma. A criança poupada dará origem ao homem estragado. Quanto ao terreno de Eadwin, foi-me provado que lhe retirei o marco de fronteira. Fi-lo por equívoco. O assunto já está resolvido. Repus a pedra e recuei os limites do meu terreno. Eu não seria capaz de usurpar um punhado de terra que pertencesse a outro homem.

 

E isso era seguramente verdade. Quer se tratasse de um punhado de terra ou de uma simples moeda. Também não cederia nem uma coisa nem a outra, caso lhe pertencessem. A aguçada lâmina da justiça guiava-lhe os passos.

 

- Estou menos preocupado com um pedaço de terreno disse secamente o abade -- do que com os assuntos que tocam mais de perto a esséncia humana. O seu homem, Aelgar, nasceu livre e é livre, tal como o são o seu tio e primo, e, se já lho asseveraram, não admito que, daqui em diante, venha a pôr isso em dúvida. Assumiram a prestação de serviços consuetudinários como forma de pagamento pelo pedaço de terra, não há qualquer restrição nos privilégios, é como se fossem pagos em dinheiro.

 

- Descobri isso através de uma indagação - informou Ailnoth imperturbável -, e já lho comuniquei.

 

- Então procedeu correctamente. Porém, teria procedido melhor se tivesse indagado primeiro e o acusasse depois.

 

- Meu senhor, nenhum homem justo se deveria ressentir do apelo à justiça. Sou novo entre esta gente. Ouvi dizer que o terreno dos seus parentes era conservado à custa de trabalho servo. Era meu dever descobrir a verdade e foi honesto da minha parte falar primeiro com o homem.

 

O que até era verdade, mesmo não sendo agradável, e ao que parecia ele reconhecera a verdade e já a repusera com a mesma integridade férrea. Mas que fazer com um homem destes, a lidar com o povo cheio de falhas e humano? Radulfus prosseguiu abordando questões mais graves.

 

- A criança, filha de Centwin e da mulher, que sobreviveu uma escassa hora... O homem veio procurá-lo, suplicando-lhe pressa, visto que o bebé era muito fraco e seria provável que morresse. Não o acompanhou para dar ao recém-nascido um baptismo cristão e, como o seu auxílio chegou demasiado tarde, segundo me contaram, negou-lhe um enterro em solo sagrado. Por que não foi imediatamente e depressa, quando o chamaram?

 

- Porque eu ainda mal começara o ofício. Meu senhor, de acordo com os meus votos, nunca interrompi as minhas orações, nem as interromperei, seja qual for a razão, nem que esteja perante a minha própria morte. Antes de terminar o acto de adoração, eu não poderia ir. Assim que terminei, fui. Não poderia adivinhar que a criança morreria tão depressa. No entanto, mesmo que o tivesse sabido, não poderia ter encurtado o meu dever de adoração.

 

- Tem outras obrigações não menos importantes para cumprir-disse Radulfus rispidamente. -Há alturas em que é necessário escolher entre as vârias obrigações, e a sua, creio, é em primeiro lugar para com as almas que lhe estão confiadas. Preferiu o aperfeiçoamento da sua adoração pessoal e consignou a criança a um túmulo fora da cerca. Acha que foi um procedimento correcto?

 

-Meu senhor-respondeuAilnoth, inflexível e com um arrogante brilho de autojustificação nos olhos negros -, tal como eu vejo as coisas, foi. Não me desviarei nem um passo do meu culto, no que diz respeito ao sagrado ofício. A minha alma e a de todos os outros têm de se curvar perante isto.

 

- Mesmo a alma mais inocente, recém-chegada ao mundo, a mais indefesa criatura de Deus?

 

- Meu senhor, sabe bem que a palavra da lei divina não permite o enterro de criaturas por baptizar dentro da cerca. Cumpro as regras que aceitei. Não posso fazer outra coisa. Deus saberá encontrar o bebé de Centwin, se a sua misericórdia o abranger, esteja ele em chão sagrado ou não.

 

Tendo em conta a crueldade da sua maneira de ser, era uma boa resposta, ponderou o abade, olhando para a cara confiante e empedernida.

 

-A palavra da lei é muito, garanto-lhe, mas o espírito vale mais. Poderia ter posto em risco a sua alma para assegurar a de um recém-nascido. Um ofício interrompido pode ser retomado sem pecado, se a causa o justificar. E ainda há a questão da rapariga, Eluned, que foi ao encontro da morte depois... digo depois, repare, não digo por causa!... de a ter expulsado da igreja. É um assunto grave recusar confissões e penitências mesmo ao maior pecador.

 

- Senhor abade - contestou Ailnoth, inabalável na sua integridade, mas dando mostras do primeiro sinal de perturbação -, onde não há arrependimento não pode haver nem penitência nem absolvição. A mulher já tinha implorado penitência e jurado emendar-se vezes sem conta e nunca cumpria com a sua palavra. Soube da sua reputação pelos outros. Ela já não tinha emenda. Não podia, em consciência, confessâ-la, pois deixei de acreditar na sua palavra. Quando não há verdade no acto de contrição, não há mérito na confissão, e absolvê-la seria um pecado mortal. Uma prostituta irrecuperável! Não me arrependo, independentemente de ela ter morrido ou não. Voltaria a fazer o que fiz. Não há transigências no compromisso que tomei.

 

- Não haverá transigências na resposta que terá de dar por estas duas mortes- disse solenemente Radulfus -, caso Deus tenha um ponto de vista diferente do seu. Peço-lhe que se lembre, padre Ailnoth, de que o seu dever não é o de apelar aos íntegros, mas aos pecadores para que se arrependam, aos fracos, aos falíveis, àqueles que agem sob o medo e a ignorância e não têm a sua grande vantagem. Modere as suas exigências segundo as capacidades deles e seja menos severo para com os que não conseguem igualar a sua perfeição. - Neste ponto, fez uma pausa, pois usara a ironia para o espicaçar, mas o rosto orgulhoso e impenetrável nem pestanejou, aceitando o louvor.

- E não tenha uma mão tão leve para com as crianças acrescentou -, a menos que elas ofendam com má intenção. Ao erro todos estamos sujeitos, até mesmo você.

 

- Eu tento proceder bem - respondeu Ailnoth -, como sempre tentei e continuarei a tentar.

 

E foi-se embora com o mesmo passo confiante, decidido e firme, as saias do seu hábito agitando-se como asas à medida que caminhava.

 

- Um abstémio, excessivamente vertical, inflexivelmente honesto, fanaticamente casto - disse Radulfus em privado ao prior Robert. - Um homem com todas as virtudes, menos a da humildade e a da compaixão humana. Foi isto que eu trouxe para Foregate, Robert. E agora, que havemos de fazer com ele?

A senhora Diota veio, a 22 de Dezembro, à casa do portão da abadia, com um cesto tapado, e perguntou humildemente pelo seu sobrinho Benet, a quem trouxera um bolo para o Natal e alguns pãezinhos de mel da fornada que fizera para as festas. O porteiro, reconhecendo-a como a governanta do padre, encaminhou-a para o jardim, onde Benet estava a aparar os últimos ramos espigados da sebe de buxos.

 

Ao escutar-lhes as vozes, Cadfael espreitou da sua oficina e, adivinhando quem deveria ser aquela senhora, preparava-se para regressar ao almofariz quando um pormenor subtil na forma como eles se cumprimentavam lhe prendeu a atenção. Uma amizade banal. serena e reservada seria natural entre tia e sobrinho, e o que ele observou pouco mais foi do que isso, no entanto, havia uma ternura velada, quase deferente na atitude da mulher face ao seu jovem parente e uma graciosidade inesperada e pueril na ternura com que ele a abraçou. A verdade é que ele já se tornara conhecido por ser um jovem que não fazia nada pela metade, mas eis aqui uma tia e um sobrinho com necessidade de reafirmarem os seus sentimentos.

 

Cadfael retirou-se para trabalhar, entregando-os à sua privacidade. Uma mulher bonita e bem conservada, a senhora Hammet, decentemente vestida de preto, como convinha a uma governanta de padre, com um xaile escuro a envolver-lhe o cabelo grisalho e bem penteado. A sua face oval, algo triste quando descontraída, iluminou-se intensamente ao cumprimentar o rapaz e, nesse momento, pareceu não ter mais de 40 anos, e talvez fosse, de facto, essa a sua idade. Seria a irmã da mãe de Benet? perguntou-se Cadfael. Se assim era, então ele saía ao pai, pois praticamente não havia parecenças entre eles. Bem, não tinha nada a ver com isso!

 

Benet foi à oficina todo contente para esvaziar o cesto cheio de coisas boas, espalhando-as sobre a bancada de madeira.

- Temos sorte, irmão Cadfael, pois ela é uma cozinheira, digna de uma cozinha de rei. Você e eu podemos banquetear-nos que nem príncipes.

 

E foi-se embora com igual alegrïa, para devolver o cesto vazio. Cadfael acompanhou-o com o olhar através da porta aberta, e, para além do cesto, viu-o entregar um objecto pequeno que tirou da parte de cima das suas vestes. Ela aceitou-o, inclinando a cabeça com gravidade, sem sorrir, e o rapaz inclinou-se para lhe beijar a face. Foi então que ela sorriu. Ele sabia levar a água ao seu moinho, isso era um dado adquirido. Ela voltou-se e foi-se embora, deixando-o a segui-la com o olhar durante algum tempo, até que também ele se virou e voltou para a oficina. O sorriso comprometedor regressou prontamente ao seu rosto.

 

- ”Seja qual for o pretexto” - citou Cadfael, muito sério -, ”nenhum monge pode aceitar qualquer tipo de presentes, venham eles de familiares ou outros, sem que haja uma autorização prévia do abade”. Isto, meu querido filho, está no Regulamento.

 

- Que sorte para si, então, e que sorte para mim - disse o rapaz jovialmente --, que eu não tenha feito os votos. Ela faz os melhores bolinhos de mel que eu já provei.

 

E enterrou os seus bonitos dentes brancos num deles, pegando noutro para oferecer a Cadfael.

 

- ”... nem é permitido aos irmãos trocá-los entre si” -- prosseguiu Cadfael, aceitando a oferta. - Que sorte, de facto! Embora eu transgrida ao aceitar, você continua imaculado ao oferecer. Quer dizer então que abandonou completamente a sua vocação para a vida de clausura?

 

- Eu? - questionou o jovem, boquiaberto, suspendendo subitamente a mastigação. - Alguma vez cheguei a manifestar vocação?

 

- Você não, mas declarou-o em seu nome o responsável por si, quando lhe tentou arranjar trabalho aqui.

 

- Afirmou isso de mim?

 

- Sim. Não chegou a prometer nada, repare, mas manifestou esperança de que um dia você viesse a decidir-se. Garanto-lhe, nunca vi em si grandes sinais que me levassem a creditar nisso.

 

Benet ficou pensativo durante algum tempo, enquanto acabava o bolo e lambia as migalhas pegajosas nos dedos.

 

- Sem dúvida, estava ansioso por se ver livre de mim e pensou que eu seria melhor aceite aqui. Nunca simpatizou muito com a minha cara, sou demasiado sorridente, talvez. Não, nem sequer você me conseguirá prender por aqui durante muito tempo, Cadfael. Quando for chegada a altura, partirei. Mas, enquanto estou por cá - disse, irrompendo num sorriso desmesurado que poderia muito bem ser considerado demasiado frívolo por um ascético -, cumprirei com a minha quota-parte do trabalho.

 

E foi outra vez para a sebe de buxos, brandindo a enorme tesoura na mão comprida e ágil, enquanto Cadfael o observava com uma expressão muito pensativa.

 

A senhora Diota Hammet foi mais tarde, nesse mesmo dia, a uma casa perto da igreja de Saint Chad e perguntou timidamente pelo senhor Ralph Giffard. O criado que lhe abriu a porta mirou-a de alto a baixo e, nunca a tendo visto antes, hesitou.

 

- Que assuntos tem a tratar com ele, senhora? Vem da parte de quem?

 

- Devo entregar-lhe esta carta - disse Diota submissamente e mostrou uma pequena folha enrolada e lacrada. - E esperar por uma resposta se o seu senhor tiver essa amabilidade.

 

Ficou indeciso, sem saber se lha haveria de tirar da mão. Era uma pequena tira de pergaminho de formato irregular, mas havia uma boa explicação, visto ser uma das partes rejeitadas de uma folha que o irmão Anselm cortara, dois dias antes, adaptando-a para um excerto musical. No entanto, o carimbo em lacre revelava a eventual premência do assunto, mesmo numa tão insignificante missiva. O criado ainda estava hesitante, quando uma rapariga surgiu, entrando pela arcada atrás dele. Era uma mulher desconhecida, mas claramente respeitável, que parou para indagar o que se passava. Aceitou prontamente o rolo e reconheceu o selo. Com um olhar surpreendido, de um azul-intenso, sondou o rosto de Diota e, abruptamente, devolveu-lhe o rolo.

 

- Entre e entregue isto pessoalmente. Levá-la-ei ao meu padrasto.

 

O dono da casa estava sentado junto de uma confortante lareira num pequeno quarto inundado pela luz solar, com uma garrafa de vinho à mão e um cão de caça enrolado aos pés. Um homem de 50 anos, grande, rijo, com boas cores, a ficar careca, mas bastante barbudo, muito bem vestido e que só agora começara a engordar um pouco, após uma vida de intensa actividade. Parecia ser o que era, o dono de duas ou três herdades rurais e desta casa de cidade, que escolhera passar o Natal em conforto. Ergueu o olhar na direcção de Diota, espelhando total perplexidade, quando a rapariga a anunciou, mas depressa entendeu tudo mal viu o lacre que selava o pergaminho. Não fez perguntas, porém mandou a rapariga ir chamar o secretário e escutou atentamente à medida que o conteúdo lhe era lido, numa voz tão baixa que se tornou evidente que também o secretário entendia quão perigosas podiam ser as implicações. Era um homem baixo e murcho, tendo envelhecido ao serviço de Giffard e merecedor de toda confiança. Chegou ao fim e perscrutou ansiosamente a cara do seu amo.

 

- Meu senhor, não envie nada por escrito! Se quiser responder, faça-o verbalmente, que é mais seguro. As palavras ditas podem ser negadas em qualquer altura, escrevê-las seria uma loucura.

 

Ralph ficou sentado a meditar durante algum tempo, em silêncio, enquanto fitava a inauspiciosa mensageira, que se mantinha de pé aguardando paciente e constrangidamente.

 

- Diga-lhe - disse por fim - que recebi e compreendi a mensagem.

 

Ela hesitou e finalmente ousou perguntar:

- É tudo, meu senhor?

 

- É quanto basta! Quanto menos for dito, tanto melhor, para mim e para ele.

 

A rapariga, que permanecera, discretamente mas atenta, a um canto da sala, seguiu Diota até à sombra da arcada, fechando as portas atrás delas.

 

- Senhora - murmurou suavemente ao ouvido de Diota, onde é que ele se encontra... este homem que a enviou? Pelo breve momento de pesado silêncio e pela expressão de dúvida no rosto da mulher mais velha, percebeu-lhe os medos e apressou-se a apaziguar-lhos em voz baixa e veemente.

 

- Não tenho más intenções, Deus é testemunha! O meu pai pertencia à mesma facção... não reparou como eu reconheci logo o sinete? Pode confiar em mim, não direi uma única palavra a ninguém, nem sequer ao próprio, mas quero saber como posso conhecê-lo ou onde o encontrar em caso de necessidade.

 

- Na abadia - respondeu Diota com igual delicadeza, embora cheia de pressa, acabando por se decidir. - Está a trabalhar no horto, sob o nome de Benet, obedecendo às ordens do irmão ervanário.

 

- Oh, o irmão Cadfael... eu conheço-o! - disse a rapariga suspirando de alegria. - Uma vez tratou-me de uma febre maligna, tinha eu dez anos, e socorreu a minha mãe, há três Natais, quando ela adoeceu pela última vez. Ainda bem, eu sei onde se situa o herbário. Vá agora, rapidamente!

 

Ficou a vê-la correr até sair do pequeno pátio, depois fechou a porta e regressou ao quarto, onde Giffard se encontrava sentado, afundado numa ansiosa meditação, de cenho carregado e sombrio.

 

- Vai a este encontro?

 

Tinha a carta suspensa na sua mão. Uma vez, chegara mesmo a fazer um movimento impulsivo na direcção da lareira para atirar fora o pergaminho e livrar-se dele, mas depois recuara, enrolara-o cuidadosamente e escondera-o na parte de cima das suas vestes. Ela interpretou isto como um sinal favorável para o remetente e ficou feliz. Não foi surpresa o facto de ele não lhe ter dado uma resposta directa. Isto era um assunto sério, que exigia ponderação, e, de qualquer modo, ele nunca prestara grande atenção à sua enteada, quer para lhe fazer confidências quer para lhe ditar o procedimento. Era indulgente, mais por causa de uma indiferença tolerante do que por afecto.

 

- Não comentes isto com ninguém - pediu. - Que tenho a ganhar se comparecer ao encontro? E tenho tudo a perder! Será que a tua família e a minha não perderam já o suficiente com a lealdade à causa? E se ele for seguido até ao moinho?

 

- Por que haveria de o ser? Ninguém suspeita dele. Foi aceite na abadia como jardineiro, sob o nome de Benet. Conquistou a confiança das pessoas. Na véspera de Natal, à noite, não haverá ninguém fora de portas, exceptuando os que já se encontrarem na igreja. Onde está o risco? A altura foi bem eacolhida, e ele precisa de ajuda.

 

- Bem... - começou Ralph e, irresoluto, tamborilou com os dedos no pequeno cilindro na parte superior da sua cota. Ainda temos dois dias, vamos estar atentos e aguardar até ser chegada a hora.

 

Benet estava a varrer os galhos caídos da sebe assobiando jovialmente, enquanto trabalhava, quando ouviu passos apressados e leves que revolviam o cascalho molhado atrás de si. Virou-se e viu uma jovem envolta numa capa escura com capucho, a avançar na sua direcção, vinda do pátio grande. Tratava-se de uma rapariga baixa e delgada, com um porte vertical e confiante, o contorno da sua forma embuçada suavizado e esbatido pela suave neblina e pela proximidade da noite. Só depois de ela se ter aproximado bastante e de ele, em sinal de respeito, ter dado um passo ao lado para lhe ceder a passagem é que pôde observar nitidamente o rosto jovial e rosado à sombra do capucho. Tinha uma cara redonda com pele macia, queixo resoluto e lábios carnudos e firmes, com linhas generosas, coloridos como botões de rosas semiabertos. Então, a pouca luz que restava confluiu para os seus grandes olhos azuis, como flores campestres, simultaneamente suaves e brilhantes e, para ele, tudo o mais deixou de existir. Embora se tivesse afastado para lhe dar passagem e tivesse inclinado a cabeça numa reverência própria de um servidor, ela não passou, tendo-se demorado a examiná-lo de perto, candidamente, com

o olhar fixo de um gato inocente e sem medo. De facto, havia algo de felino naquele rosto, sendo mais largo junto à testa e olhos do que comprido, da testa até ao queixo, imperiosamente esguio e afunilado, como se fosse um gatinho a enfrentar o mundo sem nunca ter experimentado o medo. Olhou-o com gravidade, da cabeça aos pés, sem pressa, numa inspecção solene que poderia ter sido insolente se não houvesse um propósito sério. Embora pretender adivinhar qual o interesse que uma jovem fidalga do condado ou uma filha dum mercador abastado da cidade podia ter nele fosse algo que transcendesse a imaginação de Benet.

 

Só depois de satisfazer a curiosidade que tinha em si perguntou numa voz clara e firme:

 

- É o novo ajudante do irmão Cadfael?

 

- Sim, minha senhora - respondeu timidamente o submisso trabalhador, trocando de pés atrapalhado e chegando mesmo a corar, o que destoava singularmente com aquela fisionomia tão optimista e alegre.

 

Ela olhou para a sebe aparada e para os canteiros de flores recentemente mondados e adubados, e durante alguns segundos de encantamento ele chegou mesmo a pensar que ela lhe sorrira, porém, num piscar de olhos, recuperou toda a solenidade.

 

- Vim pedir algumas ervas ao irmão Cadfael para os meus cozinhados. Sabe onde o poderei encontrar?

 

- Está na oficina - retorquiu Benet. - Faça o favor de ir até àquele horto murado acolá.

 

- Recordo-me do caminho - respondeu ela, e fez-lhe uma graciosa vénia com a cabeça, como a que os nobres fazem aos humildes, e afastou-se, atravessando o portão aberto que dava acesso ao recinto murado do herbário.

 

Estava quase na hora de Vésperas, e Benet podia muito bem ter largado o trabalho para se ir aprontar, porém, continuou a varrer desnecessariamente, reunindo os galhos num montinho impecavelmente empilhado, depois espalhava-os um pouco e juntava-os de novo, de modo a queimar tempo para a ver outra vez, quando saiu com um ramo de ervas soltas e secas embrulhadas num pano cuidadosamente transportado nas mãos. Desta vez, passou por ele sem sequer o olhar, ou pelo menos assim pareceu, apesar de ele ter ficado com a sensação de que aqueles enormes olhos de um azul magnífico o abrangeram à passagem. O capucho deslizara um pouco para trás, mostrando uma trança enlaçada com uma indefinível cor primaveril, de um castanho-claro, que na penumbra adquiria tonalidades de verde, como frondes de samambaias despontando. Ou de uma cor de avelã desmaiada, talvez! Os olhos cor de avelã não são nenhuma raridade, mas quantas mulheres se podem gabar de ter o cabelo dessa cor?

 

Já se fora embora, a bainha da sua capa roçando pela sebe até desaparecer de vista. Benet largou rapidamente a vassoura, deixou no chão o monte de galhos e foi atormentar o juízo ao irmão Cadfael.

 

- Quem era aquela senhora? - perguntou sem rodeios.

- Será uma pergunta adequada para ser feita por um postulante? - contrapôs Cadfael calmamente, e continuou com as arrumações, indo colocar o pilão e o almofariz nos respectivos lugares.

 

Benet emitiu uma risada trocista, interpondo o seu corpo robusto para confrontar Cadfael, olhos nos olhos, sem mostrar qualquer pretensão a uma vida de celibato.

 

- Vá lá, você conhece-a, ou pelo menos ela conhece-o a si. Quem é ela?

 

- Falou contigo? - surpreendeu-se Cadfael, muito interessado.

 

-Apenas para me perguntar onde o poderia encontrar a si. Sim, ela falou comigo! - exclamou exultante. - Sim, ela parou e inspeccionou-me dos pés à cabeça, aquela alma, como se estivesse a precisar de um pagem e pensasse que eu poderia servir, isto é, depois de limadas algumas arestas. Acha que eu daria um bom pagem, Cadfael?

 

- O que é certo - disse Cadfael com tolerância - é que nunca darás para monge. Mas, não, também não diria que o teu lugar é ao serviço de uma senhora.

 

Não chegou a acrescentar: ”A menos que isso aconteça em termos de igualdade!” Mas era nisso que estava a pensar. Por esta altura, o rapaz já deixara de fingir ser o parente de uma pobre viúva, sem um chavo, ignorante e inábil. Não era grande surpresa. Dispendera pouco esforço na impostura, aqui no jardim, de há uma semana para cá, embora fosse capaz de reassumir o disfarce de um momento para o outro, e ainda continuasse a ser o rústico simplório na presença do altivo prior Robert.

 

- Cadfael... - Benet agarrou-o lisonjeiramente pelos ombros e segurou-o, inclinando a cabeça encaracolada de forma persuasiva, num gesto de intimidade obstinada. Em havendo um motivo, era até capaz de enfeitiçar os pássaros das árvores. Também não tinha qualquer dificuldade em influenciar os antigos simpatizantes da causa, que partilharam outrora das mesmas tendências.

 

- Cadfael, pode ser que eu nunca mais lhe volte a falar, pode ser que eu nunca mais a veja... mas eu posso ao menos tentar! Quem é ela?

 

- O seu nome - disse Cadfael, rendendo-se mais por uma questão de prudência do que por coacção - é Sanan Bernières. O seu pai tinha uma herdade a noroeste do condado, que lhe foi confiscada quando lutou pelo senhor feudal, FitzAlan, e pela imperatriz, na altura do cerco, e morreu por isso. A sua mãe casou-se com outro vassalo de FitzAlan, que também sofrera as suas perdas... a facção mantém-se unida, apesar de terem agora passado à clandestinidade. Giffard geralmente passa os Invernos na sua casa em Shrewsbury e, desde que a mãe dela morreu, é a enteada quem preside à cabeceira da mesa. É esta a senhora que viste passar.

 

- E que seria mais sensato da minha parte se a deixasse passar sem fazer caso? - perguntou Benet, sorrindo pesaroso, acusando o toque perante o aviso inequívoco. - Não é para mim? - E irrompeu num enorme sorriso radioso, ao qual Cadfael já se estava a habituar e que por vezes o fazia temer pelo seu protegido, que era demasiado impetuoso nas suas bruscas mudanças de humor. Benet riu e lançou os braços à volta do seu mentor, num abraço apertado. - Quanto vale a aposta?

 

Cadfael soltou um dos braços sem grande alarido e afastou o turbulento agressor segurando-o por uma mão-cheia dos caracóis espessos.

 

- Quanto a ti, meu estouvado, não apostaria nem um único cabelo dos que ainda me restam. Mas vê lá como te comportas. Deixaste de representar o teu papel. Há pessoas perspicazes por aqui.

 

- Eu sei - disse Benet, recompondo-se imediatamente. O seu sorriso deu lugar a uma expressão grave. - Tenho muito cuidado.

 

Como nascera este segredo entre ambos sem quase o expressarem? Cadfael foi para Vésperas a pensar nisso. Tinham chegado a uma espécie de acordo tácito, sem nunca terem pronunciado uma simples palavra de dúvida, de suspeição ou de imprudência. Porém, a mudança no relacionamento era uma realidade, um factor a ser levado em conta.

 

Hugh partira, cavalgando para sul em direcção a Canterbury, com uma pompa inusitada, bem escoltado e cheio de atavios. Ria-se da sua própria figura, mas não retiraria um alfinete que fosse à dignidade que lhe era devida.

 

- Se regressar deposto - esclareceu -, pelo menos farei uma retirada em grande, e se voltar xerífe farei as honras ao cargo.

 

Após a sua partida, o Natal parecia estar mesmo à porta, e havia grandes preparativos a fazer para a longa noite de vigília e para a típica celebração da Natividade, e foi só depois de Vésperas, no dia anterior ao Natal, que Cadfael conseguiu arranjar tempo para fazer uma breve visita à cidade, a fim de passar pelo menos uma hora com Aline e entregar uma prenda ao seu afilhado de 2 anos - um cavalinho de madeira que Martin Bellecote, o mestre carpinteiro, lhe fizera e que fora adornado mais tarde com arreios alegremente coloridos e enfeites dignos de um cavaleiro, manufacturados com pedaços de feltro, pano e cabedal pelo próprio Cadfael.

 

Uma suave mistura de chuva e neve caíra durante o dia, e agora, àquela hora do anoitecer, estava a ficar muito frio e havia geada no ar. O céu baixo e húmido aclarara-se e parecia infinitamente longínquo. Nele, subitamente, despontaram estrelinhas, quase audíveis, minúsculas e brilhantes. Antes do romper do dia as estradas ficariam traiçoeiras e os trilhos dos veículos constituiriam uma ameaça para as entorses ou para os passos incautos. Em Foregate, ainda havia pessoas fora de portas, a maioria apressando-se agora para chegar a casa, quer para atiçar o lume e aquecer os pés quer para se aprontarem para a longa noite na igreja.

 

Cadfael atravessou a ponte em direcção ao portão da cidade. O rio, no seu auge, movia-se silencioso e escuro a seus pés. Havia apenas a luz suficiente para atribuir nomes àqueles com quem se cruzava, que regressavam sobrecarregados das compras, cheios de pressa para chegar a casa. À medida que passavam por ele, ia havendo troca de cumprimentos, pois ele era facilmente reconhecido pela sua silhueta e pelo andar gingado, mesmo com esta luz tão escassa. As vozes continham em si a ressonância da geada, ecoando como o tilintar do vidro.

 

E eis que, atravessando a ponte a passadas largas em direcção a Foregate, no espaço delimitado pelas tochas a arder no portão da cidade, vinha Ralph Giffard, a pé. Se não fosse a luz oblíqua da tocha, ele não teria sido reconhecido, mas, assim iluminado, era inconfundível. E para onde ia Giffard, a esta hora, ao cair da noite, e para mais saindo da cidade? A menos que tencionasse celebrar o Natal na igreja de Holy Cross, em vez de o fazer na sua própria paróquia em Saint Chad. Era possível, embora, assim sendo, estivesse muito adiantado. Muitas das pessoas mais ricas da cidade meter-se-iam, esta noite, a caminho da abadia.

 

Cadfael continuou a subir a longa curva de Wyle, entre a cintilante escuridão celestial e o vermelho-quente da tocha terrestre, em direcção à casa de Hugh, perto da igreja de Saint Mary, e atravessou o pátio até à porta da frente. Mal pusera um pé dentro da casa e já o excitado diabrete lhe tinha caído em cima, guinchava e abraçava-o de modo a paralisar-lhe as ancas, que era até onde o seu tamanho lhe permitia chegar. Desprendê-lo foi bastante fácil. Assim que baixou a prenda embrulhada em tecido à altura dos seus olhos, o pequeno, radiante, estendeu os braços para a agarrar e deixou-se cair pesadamente no chão do vestíbulo para a desembrulhar com gritinhos de alegria. Porém, não se esqueceu, uma vez passados os primeiros reptos de êxtase, de correr outra vez para o padrinho, junto à lareira, trepar-lhe para o colo e presenteá-lo com um fervoroso, apesar de húmido, beijo de agradecimento. Tinha a mesma natureza autoconfiante de Hugh, mas tinha também algo da doçura instintiva da mãe.

 

- Não me posso demorar mais de uma hora - disse Cadfael quando o rapaz lhe saltou do colo para ir ter com o seu novo brinquedo. - Tenho de regressar antes de Completas. Muito pouco tempo depois começam as Matinas e ficaremos toda a noite acordados até à Prima e à missa da madrugada.

 

- Então descanse ao menos uma hora, coma comigo e fïque até que Constance venha buscar o meu diabinho para o deitar. Acredita - disse Aline, sorrindo indulgentemente ao olhar para o seu rebento - no que ele diz desta casa sem Hugh? Embora tenha sido Hugh quem lho ensinou, diz que agora é o homem da casa e pergunta quanto tempo se vai demorar o pai. Sente-se demasiado orgulhoso de si próprio para sentir a falta de Hugh. Agrada a Sua Excelência estar a ocupar o lugar do pai.

 

- Veria como a cara lhe murcharia, caso lhe dissesse que a ausência seria maior do que dois ou três dias - comentou Cadfael perspicazmente. - Diga-lhe que se foi embora por uma semana e haverá lágrimas. Mas três dias...? Atrevo-me a afirmar que o seu orgulho resistirá a esse lapso de tempo.

 

Naquela altura, o rapaz não tinha vagar para dispender com a sua dignidade de senhor da casa ou com as responsabilidades da sua protecção na ausência do pai. Estava completamente absorvido pelo galopar do seu novo corcel, através da extensa planície de juncos, numa aventura heróica com um cavaleiro imaginário. Deixou Cadfael à vontade para fazer companhia a Aline, comer carne e beber vinho com ela, pensar e falar sobre Hugh, da maneira como teria sido acolhido em Canterbury, do seu futuro por ora suspenso numa balança.

 

- Ele merece a estima de Stephen - disse Cadfael com firmeza -, e Stephen não é nenhum pateta, já viu demasiadas pessoas virarem as casacas e revirarem-nas conforme a mudança do vento. Saberá valorizar alguém que se manteve sempre fiel.

 

Quando reparou na areia da ampulheta, levantou-se para se despedir e saiu pelo vestíbulo para o brilho ofuscante da geada. Havia uma abóbada de estrelas três vezes maior agora do que quando inicialmente despontaram, e crepitavam agora com o brilho. Era a primeira verdadeira geada do Inverno. À medida que descia cuidadosamente a curva de Wyle e saía pelo portão da cidade, Cadfael ia recordando o duro Inverno de há dois anos atrás, na altura em que nascera o rapaz, e ia fazendo votos para que este Inverno não fosse regido por tamanhas quedas de neve e ventos tão ferozes. Esta noite, véspera da Natividade, pairava sobre a cidade com uma total quietude e silêncio, sem uma pequena aragem que temperasse a acção corrosiva da geada. Mesmo os movimentos dos homens, que se encontravam fora de casa, pareciam abafados e quase furtivos, receosos de quebrar o encantamento.

 

A ponte ficara com um reflexo prateado, após a recente chuva miudinha. O rio corria escuro e sereno, sendo a corrente demasiado forte para que a geada se apoderasse dele. Algumas vozes deram-lhe as boas-noites à medida que passava. Na estrada cheia de sulcos de Foregate, começou a apressar o passo, receando ter-se demorado excessivamente. As árvores que abrigavam a longa margem do rio em Gaye agigantavam-se, como um enorme manto do Inverno terrestre, à sua esquerda, o reflexo pálido e liso do açude desdobrava-se, à sua direita, para lá das seis encantadoras casitas da abadia, três em cada margem da água, com um caminho estreito desviado da estrada para servir cada uma das modestas filas. O prateado e a escuridão ficaram para trás. Via agora, à sua frente, o brilho doirado da tocha, vindo da casa do portão.

 

Estando ainda a uns vinte passos do portão, vislumbrou uma figura alta e negra, que se movia de forma imponente na sua direcção, a passadas grandes, râpidas e violentas. A luz oblíqua da tocha incidiu momentaneamente sobre o vulto, quando este passou lá perto, e a escuridão voltou a apoderar-se dele quando se cruzou com Cadfael, sem se deter nem olhar, com a grande bengala a vibrar ao bater nos sulcos gelados, as vestes negras a esvoaçarem, a cabeça e os ombros avidamente impelidos para a frente, a cara comprida e pálida, severa e rígida. E, por um breve instante, uma luz errante, vinda da porta aberta da casa mais perto do açude, arrancou duas faíscas muito vermelhas às minas escuras dos seus olhos.

 

Cadfael dirigiu-lhe uma saudação que não foi nem correspondida nem escutada. O padre Ailnoth passou impetuosamente, gerando à sua volta a única turbulência perceptível no silêncio da noite, e logo a seguir perdeu-se no escuro. Como uma fúria vingativa, pensou Cadfael mais tarde, como um corvo predador precipitando-se sobre Foregate para caçar pequenos pecados veniais e condenar os pecadores à danação.

 

Na igreja de Saint Chad, Ralph Giffard ajoelhou-se com a apaziguante sensação de ter cumprido um dever e de se ter reabilitado dos erros passados. Perdera uma herdade por ter sido leal à causa do seu suserano, FitzAlan, e da sua soserana, a imperatriz Maud, e fora-lhe necessária uma boa dose de subtileza e de silenciosa submissão para conseguir reter o que ainda lhe restava. Apenas uma causa lhe interessava agora, que era preservar a sua situação para legar intactos os bens que

lhe restavam ao filho. A sua vida nunca correra perigo, pois o seu envolvimento nunca fora tão grande que convidasse a morte. No entanto, as posses sempre são posses, e estava a envelhecer. Não fazia tenções de abandonar as suas terras e fugir para o estrangeiro, para a Normandia ou para Anjou, onde não tinha estatuto social, ou ainda para Gloucester, a fim de pegar nas armas em defesa da sua suserana, que já lhe custara um preço tão elevado. Não, faria muito melhor se ficasse quieto, se evitasse os que o queriam desencaminhar e se esquecesse o antigo compromisso de fidelidade. Só assim poderia garantir que o ljovem Ralph, em casa neste Natal, tão alegremente ocupado a fazer de dono da herdade, sobrevivesse ao longo conflito pela Coroa sem sofrer perdas, independentemente de qual dos dois pretendentes viesse finalmente a triunfar.

 

Ralph acolheu a chegada da meia-noite com uma gratidão profunda e genuína pelas graças concedidas aos homens, especialmente a Ralph Giffard.

 

Benet entrou de mansinho na igreja da abadia pela porta da paróquia e avançou lentamente até um lugar de onde podia olhar para o coro e ver os monges nos seus cadeirões, fracamente iluminados pela luz amarela das velas e pelo brilho vermelho das lamparinas do altar. O cântico dos salmos chegava à nave já abafado e suave. Aqui a luz era escassa e a encasacada assembleia laica de Foregate mudava de posição e agitava-se, ajoelhava-se e erguia-se de novo, não se podendo distinguir quem era quem. Ainda faltava algum tempo para as Matinas, à meia-noite, com a celebração do Deus feito homem, filho da Virgem e maravilhoso. Por que é que o Espírito Santo não haveria de gerar o instrumento necessário à carne, assim como o fogo dava azo ao fogo e a luz à luz, tal como o azeite que oferece a sua essência para fornecer calor e luz? Aquele que levanta questões já se negou a si próprio qualquer resposta. Benet não levantou questões. Tinha a respiração ofegante por causa da pressa e da excitação e até mesmo da exaltação, pois o risco significava tudo para ele. Mas uma vez aqui dentro, na obscuridade simultaneamente povoada e isolada, deixou-se absorver pela admiração, como uma criança que nunca deixaria de o ser. Procurou uma coluna para se recompor e não para se esconder atrás dela, encostou uma mão à pedra fria e esperou ouvindo com atenção. As vozes combinadas e harmoniosas expandiam-se para encher a abóbada. As pedras do tecto, animadas pela música, contagiavam as restantes pedras através do esplendor das suas arcadas.

 

Via o irmão Cadfael no seu cadeirão e pôs-se noutra posição para o ver melhor. Talvez tivesse escolhido aquele lugar apenas com o intuito de poder observar a pessoa com quem tinha um relacionamento mais íntimo neste local, um homem religiosamente comprometido mas tolerante, não existindo em ambos a mais pequena intenção de invadir a privacidade um do outro. ”Já falta pouco”, pensou Benet, ”para ele se ver livre de mim. Será que, volta e meia, irá sentir pena por não saber mais nada de mim?” E perguntou-se se lhe deveria dizer algo de inequívoco, enquanto ainda havia tempo e oportunidade, algo que viesse a ser recordado mais tarde.

 

Uma voz suave, evitando por pouco o silvo de um murmúrio, segredou-lhe ao ouvido:

 

- Ele não apareceu?

 

Benet virou a cabeça muito devagarinho, enlevado e receoso, pois decerto não podia ser a mesma voz que escutara, apenas uma vez, noutra ocasião e por breves momentos. Mas, apesar de tudo, fez que todo o seu ser vibrasse. Ela estava ali, junto ao seu ombro direito, a verdadeira e inesquecível ela. Um ténue reflexo de luz iluminou-lhe as feições dentro do capucho escuro, tinha a testa larga e enormes olhos intensamente azuis.

 

- Não - prosseguiu ela. - Ele não apareceu! - E, tendo respondido à sua própria pergunta, deixou escapar um grande suspiro. - Nunca acreditei que ele fosse. Não se mexa... não olhe para mim.

 

Obedientemente, virou outra vez a cara para o altar. Sentiu a suave respiração soprar-lhe no rosto quando ela se inclinou.

- Não sabe quem eu sou, mas eu sei quem você é.

 

- Sei muito bem quem é - respondeu Benet. Nada mais acrescentou, e mesmo aquilo fora pronunciado como se estivesse num sonho.

 

Durante um momento, fez-se silêncio. Então ela perguntou:

- O irmão Cadfael contou-lhe?

 

- Fui eu que lhe pedi...

 

Fez-se silêncio de novo. Surgiu no rosto dela a leve insinuação de um sorriso, como se ele tivesse dito algo para lhe agradar, para a distrair até do motivo que a fizera vir a este encontro.

 

- Também sei quem é. Se Giffard tem medo, eu não tenho. Se ele não o ajuda, ajudo-o eu. Quando é que podemos falar os dois?

 

- Agora! - exclamou ele, com uma súbita vivacidade, agarrando-se a uma oportunidade que nunca se atrevera a imaginar. - Após as Matinas, algumas pessoas vão-se embora, poderemos fazer o mesmo. Todos os irmãos ficarão aqui até de madrugada. Temos uma boa oportunidade!

 

Sentiu o braço dela nas suas costas e soube quando ela tremeu por tentar conter o riso silenciado, mas irrequieto.

 

- Onde?

 

- Na of’icina do irmão Cadfael.

 

Era o melhor retiro que conhecia, enquanto o seu proprietário estivesse na vigília de Natal aqui na igreja. O braseiro na cabana tinha pouca turfa, de modo a possibilitar uma combustão lenta pela noite dentro. Poderia facilmente voltar a atiçá-lo para que ela se aquecesse. Era óbvio que não tinha o direito de pôr em perigo esta jovem, delicada e leal partidária da sua causa, mas, por uma vez ao menos, poderia conversar com ela a sós, deleitar os olhos naquele rosto grave e apaixonante, partilhar com ela segredos de aliados. Algo que recordaria pela vida fora, caso nunca mais a voltasse a ver.

 

- Saímos pela porta sul, pelos claustros - disse. - Nesta noite ninguém lá estará para nos ver.

 

Um sopro suave e quente segredou-lhe ao ouvido: -Temos de esperar? Eu podia escapulir-me agora pelo pórtico. As Matinas vão ser tão compridas hoje. Quer seguir-me?

 

E foi-se embora, sem esperar pela resposta, atravessando furtivamente as lajes da nave, detendo-se por alguns instantes num sítio, de onde poderia ser vista a olhar devotamente para o altar central atrás do coro, não fosse dar-se o caso de alguém estar a reparar nos seus movimentos. Ele tê-la-ia seguido para onde quer que ela o tivesse querido levar. Chegou a ser-lhe penoso aguardar pacientemente os longos instantes que ela levou até escolher o momento adequado para se retirar rumo à escuridão do pórtico, a sul. Quando a seguiu, por cautelosas etapas, e chegou ao vão escuro da porta fechada, encontrou-a à sua espera, com a tranca na mão, imóvel de encontro à porta. Aí esperaram, unidos e a tremer, pela exultante antífona de abertura às Matinas e pelo triunfante clamor da resposta:

 

- Cristo nasceu em nós!

- Oh, adoremo-lo!

 

Benet pousou a sua mão nas dela por cima da enorme tranca e levantou-a, devagarinho no preciso momento em que o hino começou. Lá fora, a escuridão nocturna condizia com a do interior. Quem iria reparar em duas jovens criaturas escapulindo-se para o frio da noite pela porta entreaberta, repondo cuidadosamente a tranca no seu devido lugar? Não havia vivalma nem no claustro nem no pátio grande quando o atravessaram. Quer tivesse sido Benet a procurar-lhe a mão ou ela a procurar a dele, o certo é que dobraram a esquina da espessa sebe de buxos, de mãos dadas, e de seguida atrasaram o passo, ofegantes e sorridentes, com as mãos muito apertadas e os dedos entrelaçados. A vasta abóbada celeste, de um azul-escuro quase negro, mas repleta de estrelas cintilantes, derramava uma luz fria que eles não sentiam.

 

A sólida cabana de madeira do irmão Cadfael, escondida no recinto abrigado, não chegou a arrefecer. Benet fechou cautelosamente a porta e no escuro tacteou a pequena prateleira, que por esta altura já conhecia quase tão bem como o próprio irmão Cadfael, onde se encontravam, prontas a usar, a caixinha com as mechas e a lamparina. Foram-lhe necessárias duas ou três tentativas até que o linho, algo queimado, cedesse à faísca, permitindo que ele o soprasse cuidadosamente até se incandescer. A mecha acendeu-se com uma luz minúscula e tremeluzente, transformando-se numa chama constante que se ergueu direita no ar. O fole em couro estava junto à braseira e bastou-lhe revolver um ou dois pedaços de turfa e dedicar um minuto a accioná-lo vigorosamente para que o carvão ficasse ao rubro e pudesse ser alimentado com lenha, de modo a dar uma boa lareira.

 

- Ele vai saber que esteve aqui gente - disse a rapariga muito tranquila.

 

- Saberá que eu estive aqui - respondeu Benet, levantando-se agilmente da sua posição ajoelhada. A sua cara juvenil e corajosa adquiriu um bronzeado de Verão devido à incandescência do braseiro.

 

- Duvido que teça algum comentário. No entanto, é natural que se questione porquê. Com quem!

 

- Já aqui trouxe outras mulheres? - Ao perguntar isto, inclinou a cabeça num gesto de desafio, repentinamente incomodada.

 

- Nenhuma, até à data. E nenhuma de agora em diante. A não ser que você me queira dar esse prazer uma segunda vez, respondeu, e olhou-a com uma seriedade fogosa.

 

Um nódulo de resina incendiou-se e estrepitou. interpondo-se momentaneamente entre os dois com uma grande chama esbranquiçada. Através daquela luminosidade pálida e doirada, os rostos dos jovens revelaram um súbito brilho misterioso, iluminados de baixo para cima, com os lábios entreabertos e os olhos arredondados num assombro genuíno. Era como se ambos estivessem a ver-se ao espelho, duas almas gémeas que não conseguiam afastar o olhar da inesperada imagem do amor.

 

A Prima foi celebrada muito cedo, depois de um pequeno intervalo para dormir, seguindo-se a primeira missa ao romper da aurora. Há muito que em Foregate, quase todos se tinham recolhido nas suas casas, e os frades, aturdidos pelo tempo que haviam permanecido de pé e fatigados pelas tensões da música e da meditação, formaram uma fila algo desordenada nas escadas de serviço nocturno para irem descansar por breves momentos, antes de se prepararem para as tarefas do dia.

 

O irmão Cadfael, entorpecido por estar quieto durante tanto tempo, sentiu que tinha mais necessidade de se movimentar do que de descansar. Sozinho nos lavabos, lavou-se com uma lentidão invulgar, barbeou-se cuidadosamente e saiu para o pátio grande mesmo a tempo de ver a Senhora Diota Hammet entrar apressadamente pelo portão, tropeçando e escorregando nas pedras vidradas pelo gelo, segurando nas mãos a capa que a envolvia e olhando à sua volta com evidente nervosismo. Uma leve camada de geada, resultante da sua expiração, revestia-lhe a gola da capa. Todos os contornos de muros, arbustos ou ramos se apresentavam prateados, com o mesmo brilho alvacento.

 

O porteiro saíra para a cumprimentar e perguntar ao que vinha, mas ela viu o prior Robert a sair dos claustros e dirigiu-se-lhe a toda a pressa, fazendo-lhe uma vénia tão baixa e desajeitada que por pouco não caiu de joelhos.

 

- Prior, o meu senhor... o padre Ailnoth... passou toda a noite consigo na igreja?

 

- Não o vi - respondeu Robert, surpreendido, e estendeu rapidamente uma mão para a ajudar a manter o equilíbrio, pois as pedras redondas eram muitíssimo traiçoeiras. Amparou-a pelo braço e, preocupado, perscrutou-lhe o rosto. - Que se passa? Com certeza, em breve ele irá celebrar a missa. Deve estar, neste momento, a paramentar-se. Se eu fosse a si, não o ia interromper agora, a não ser que haja alguma razão muito forte. De que precisa?

 

- Ele não está lá - contestou abruptamente. - Já subi para ir espreitar, e Cynric está à sua espera, já pronto, mas o meu amo ainda não apareceu.

 

O prior Robert começou a franzir a testa, certo de que esta pateta o estava a incomodar sem ter uma boa razão, e, contudo, ficou apreensivo com o nervosismo dela.

 

- Quando o viu pela última vez? Com certeza, sabe a que horas ele saiu de casa.

 

- Ontem, ao fim do dia, antes de Completas - retorquiu sombriamente.

 

- Quê? E não regressou desde então?

 

- Não, padre. Não apareceu em casa toda a noite. Pensei que ele pudesse ter vindo participar nos vossos ofícios nocturnos, mas ninguém o viu por aqui. E, tal como diz, a estas horas já deveria estar a paramentar-se para dizer a missa, mas não está lá!

 

Parado ao fundo das escadas de serviço diurno, Cadfael não teve outra hipótese se não a de ouvir, e ao fazê-lo recordou-se inevitavelmente do ominoso pássaro de asas negras precipitando-se por Foregate rumo à ponte, exactamente à mesma hora que, segundo Diota, Ailnoth saíra de casa. ”Com que missão punitiva?”, perguntou-se Cadfael. ”E até onde o teriam transportado aquelas asas de corvo para que não cumprisse com os seus

deveres num dia festivo como este?”

 

- Prior - disse, avançando apressada e descuidadamente, escorregando nas pedras cobertas de gelo -, encontrei o padre, ontem à noite, ao regressar da cidade para voltar a tempo de assistir às Completas. Estava a não mais de cinquenta passos daqui do portão, ia para a ponte e estava cheio de pressa.

 

O prior Robert olhou para esta testemunha não solicitada com um ar carrancudo e mordeu o lábio sem saber ao certo como prosseguir.

 

- Não falou consigo? Não sabe para onde ia com tanta pressa?

 

- Não. Eu falei-lhe - contestou Cadfael asperamente -, mas ele estava demasiado absorto para reparar em mim. Não, não faço a mínima ideia para onde ia. Mas era ele. Vi-o passar junto às luzes do portão. Não há hipótese de engano.

 

A rnulher fixava-o agora. Tinha um rosto tranquilo, com olheiras muito carregadas. O capucho escorregara sem que ela desse por isso e deixava ver uma enorme nódoa negra na têmpora direita, com uma crosta longa e irregular no meio.

 

- Está ferida! - exclamou Cadfael e, sem lhe pedir licença, destapou-lhe a cabeça e virou-lhe a cara para a luz do dia que estava a nascer. - Foi uma pancada forte, precisa de ser tratada. Como lhe aconteceu isto?

 

Contraiu-se um pouco quando ele lhe tocou, mas depois rendeu-se com um suspiro de resignação.

 

- Saí de noite, ansiosa por não saber dele, para ver se via alguém ou se havia algum sinal que me indicasse o seu paradeiro. O degrau da porta estava coberto de gelo, caí e bati com a cabeça. Já lavei bem a ferida, não é nada.

 

Cadfael pegou-lhe na mão, virou-a e viu uma palma esfolada com carne viva em três ou quatro sítios, pegou-lhe na outra e encontrou-a marcada com uma brutalidade quase idêntica.

 

- Bem, talvez se tenha livrado de pior ao cair sobre as mãos. Mas tem de me deixar tratá-las, e à testa também.

 

O prior Robert estava de pé a olhar para o vazio, a pensar no que haveria de fazer.

 

- Em boa verdade pergunto... Se o padre Ailnoth saiu àquela hora, e com tanta pressa, não será possível que também ele tenha dado alguma queda e que se tenha magoado de tal forma que esteja por aí caído a precisar de auxílio? A geada já se estava a formar...

 

- Pois estava - confirmou Cadfael, lembrando-se da superfície vítrea na encosta íngreme de Wyle e da sonoridade dos seus passos no gelo ao atravessar a ponte. -- E de que maneira! E, quando eu o vi, acho que não estava a prestar muita atenção ao sítio onde punha os pés.

 

- Ia nalguma missão de caridade... - murmurou Robert, ansioso. - Não se poupava...

 

- Não, nem a si próprio nem a ninguém! Mas o certo é que aqueles passos apressados podem muito bem tê-lo levado para lugares escorregadios.

 

- Se ele ficou caído, desamparado, toda a noite ao frio disse Robert-, é bem possível que já esteja morto. Irmão Cadfael, trate desta senhora, faça tudo o que for necessário, e eu irei falar com o abade. Pois parece-me melhor chamar toda a irmandade e reunir também todos os irmãos leigos, a fim de se estabelecer um plano para procurar o padre Ailnoth, onde quer que ele se encontre.

 

No abrigo mal iluminado e tranquilo, na oficina no horto, Cadfael mandou a sua protegida sentar-se no banco encostado à parede e depois virou-se para o braseiro e destapou-o. Ao longo de todo o Inverno, mantinha-o assim com turfa, para se aguentar pela noite fora, de modo a estar pronto de um momento para o outro, se necessário, mas apagava-o durante o resto do ano, visto que facilmente o podia voltar a atiçar. Nenhum dos seus preparados, aqui, exigia uma temperatura positiva, embora muitos deles não se dessem nada bem com a geada.

 

Os espessos pedaços de turfa, que de momento abafavam o braseiro, pareciam ter sido recém-colocados e o lume por debaixo vivo e confortante. Alguém tinha vindo aqui de noite e fora alguém que sabia onde procurar a lamparina e a caixa de mechas sem ter necessidade mexer em mais nada e que sabia também tratar do braseiro, deixando-o tal como o encontrara. O jovem Benet deixara muito poucas pistas, mas foram as suficientes para deixar a sua assinatura na invasão nocturna. Até durante a noite parecia não fazer grande esforço para enganar Cadfael. A sua intenção fora a de deixar tudo em ordem e não a de esconder a sua intromissão.

 

Cadfael pôs um pote de água a aquecer e diluiu uma loção de betônia, sínfito e margarida-dos-prados para lhe limpar a ferida da testa e as palmas das mãos escoriadas com arranhões oblíquos, que iam desde o pulso até às pontas do indicador e polegar, feitos pelo chão sulcado e gelado. Ela submeteu-se aos tratamentos com os olhos turvos e uma dignidade resignada.

 

- Foi uma grande queda -- comentou Cadfael, limpando-lhe o sangue seco da testa.

 

- Não tive cuidado comigo - respondeu com tanta sinceridade que ele sentiu que ela lhe estava a dizer a verdade. - Eu não tenho importância.

 

A sua cara, vista assim, de cima para baixo, enquanto lhe mexia na testa, era oval e tinha traços longos e bonitos. Grandes pálpebras arqueadas escondiam-lhe os olhos, a boca era bem delineada e generosa, embora estivesse descaída devido ao cansaço. Trazia o cabelo grisalho impecavelmente apanhado e enrolado na nuca. Agora, que já dissera o que tinha a dizer e que entregara o assunto noutras mãos, mostrava-se serena e tranquila, enquanto ele a tratava.

 

-Precisa de descansar agora-aconselhou Cadfael. -Passou a noite toda numa grande aflição, e ainda para mais depois de ter caído... O senhor abade fará tudo o que for necessário. Já está! Não a vou tapar, é melhor que fique ao ar. Mal esteja despachada, vá para casa, proteja-se da geada. A geada pode dar origem a uma infecção.

 

Com todo o vagar, arrumou tudo o que usara de modo a ter tempo para respirar e pensar.

 

- O seu sobrinho trabalha aqui comigo, mas, é claro, você sabe disso. Lembro-me de que veio visitá-lo aqui ao horto, há poucos dias. É um bom rapaz, o seu Benet.

 

Depois de um curto e profundo silêncio, ela disse:

 

- Sempre achei isso. - E, pela primeira vez, embora breve e timidamente, sorriu.

 

- Trabalhador e voluntarioso! vou sentir-lhe a falta, se ele se for embora, mas merece um emprego melhor.

 

Ela não respondeu. O seu silêncio tinha um cunho especial, como se houvesse uma série de palavras pairando no ar e prontas para o romper, mas contidas à custa de um enorme esforço. Nada mais disse, a não ser uma sóbria palavra de agradecimento, enquanto ele a acompanhava até ao pátio grande, onde um burburinho de vozes, como o zumbido de um enxame alvoroçado, lhes chegou aos ouvidos muito antes de terem contornado a sebe. O abade Radulfus estava lá com os frades já reunidos à sua volta, despertos e excitados pela curiosidade, quase esquecidos da sonolência.

 

- Temos razões para recear - disse Radulfus, indo direito ao assunto - que o padre Ailnoth tenha sofrido algum acidente. Saiu ontem à noite de sua casa em direcção à cidade, antes de Completas, e desde então ninguém sabe nada dele. Não foi a casa nem passou a noite connosco na igreja. Pode ter dado uma queda no gelo e ter passado a noite desmaiado ou incapaz de andar. Ordeno aos que não participaram no coro durante a noite que comam algo rapidamente e partam à sua procura. As últimas notícias que temos dele é que atravessou o portão antes de Completas e ia cheio de pressa em direcção à cidade. A partir desse ponto, temos de considerar todas as hipóteses e experimentar todos os caminhos por onde possa ter ido, pois quem consegue adivinhar qual a missão paroquiana que foi cumprir? Aqueles de vós que passaram a noite inteira acordada vão alimentar-se e dormir, estão dispensados de assistir ao ofício para que fiquem aptos a substituir os vossos companheiros quando eles regressarem da busca. Robert, trate de tudo! O irmão Cadfael irá mostrar-lhes o local onde o padre Ailnoth foi visto pela última vez. É melhor partirem a dois e dois, ou mais até, pois serão necessárias pelo menos duas pessoas para o caso de ele ser encontrado ferido. Porém, rezo para que seja encontrado bem de saúde e o mais breve possível.

 

O irmão Cadfael interceptou um Benet sobressaltado e sério no meio da multidão que dispersava. O rapaz tinha uma expressão perturbada, um misto entre uma ligeira culpa e uma profunda perplexidade. Olhou para Cadfael e sobrepôs o lábio inferior ao superior, abanando a cabeça veementemente, como se quisesse afugentar uma ideia persistente que, embora não fizesse sentido, continuava a insinuar-se.

 

- Hoje já não vai precisar mais de mim. É melhor eu ir com eles.

 

- Não - opôs-se Cadfael com determinação. - Ficas aqui a cuidar da Senhora Hammet. Leva-a para casa, se ela quiser ir, ou então arranja-lhe um lugar quente na casa do portão e faz-lhe companhia. Eu sei o sítio onde me cruzei com o padre e vou dar início às buscas. Se alguém vier procurar-me, diz que regressarei tão depressa quanto me for possível.

 

- Mas passou quase toda a noite acordado... - protestou Benet, hesitando.

 

- E tu? - perguntou Cadfael, dirigindo-se para o portão antes que Benet lhe pudesse responder.

 

Ailnoth passara ao anoitecer, como uma flecha negra disparada por um arco de guerra, tão cego, tão surdo, que nem vira o irmão Cadfael nem escutara a saudação, claramente proferida no seio de uma geada de bronze que repicava como sinos. Deste local de Foregate, ele poderia ter-se dirigido para a ponte, e nesse caso o seu assunto urgente estaria relacionado com alguém da cidade, ou então para qualquer um dos caminhos que, a partir dali, divergiam de Foregate. Havia quatro, um à direita que descia até à margem do rio em Gaye, onde os principais jardins da abadia se estendiam por quase meia milha de lotes, campos e pomares, desembocando num bosque e nalgumas propriedades rurais dispersas; e três à esquerda, um primeiro caminho que serpenteava junto à margem do açude e tinha como finalidade servir o moinho e as três casitas que ladeavam a água daquele lado, o segundo desempenhava a mesma função para as outras três casas na margem oposta. Cada um destes caminhos prolongava-se paralelamente à água, terminando de forma abrupta na barreira formada peio riacho Meole. O terceiro consistia numa estrada estreita, mas muito usada, que curvava à esquerda um pouco antes da ponte do rio Severn e que passava por cima do riacho Meole, no ponto onde este desaguava para o rio, através de uma ponte de madeira para peões, e prosseguia, depois, para sudoeste até à fronteira galesa.

 

E por que é que o padre Ailnoth haveria de se precipitar, como a ira de Deus, por um destes caminhos? A cidade parecera oferecer um destino mais provável. Por isso, alguns deles encarregaram-se de ir até lá fazer inquéritos, se o guarda do portão o vira, se ele parara para perguntar por alguém, se uma sombra negra e ameaçadora fora vista a passar pelas tochas da casa de vigia. Cadfael dedicou a sua atenção aos caminhos mais desviados e deteve-se para ponderar no local exacto onde, segundo a sua memória, Ailnoth se cruzara com ele.

 

A paróquia de Holy Cross de Foregate abrangia ambos os lados da estrada, à direita estendendo-se até aos pequenos povoados dispersos para lá do subúrbio, à direita até ao riacho. Se Ailnoth tivesse a intenção de visitar alguém numa propriedade rural, ter-se-ia dirigido para leste de sua casa, pela travessa oposta ao portão da abadia, não chegando sequer a entrar na estrada principal de Foregate, a não ser que o seu objectivo fosse uma das pequenas habitações para lá de Gaye. O percurso não era grande até lá. Cadfael destacou dois grupos para seguirem nessa direcção e virou a sua atenção para oeste. Havia três caminhos, um que se transformava numa estrada normal e que levaria o seu tempo a percorrer e outros dois que estavam perto e eram curtos, podendo decerto ser batidos sem mais demoras. De qualquer modo, que poderia ter levado Ailnoth a partir para uma longa caminhada àquela hora tardia? Não, ele fora encontrar-se com alguma pessoa perto dali, com que propósito... só o próprio saberia.

 

O caminho junto ao açude desviava-se da estrada transformando-se num decente caminho de carroças, visto servir o transporte do milho local até ao moinho e o regresso da farinha às respectivas casas. Passava” pelas três casitas agrupadas perto da estrada principal, entre as suas portas e o muro que delïrnitava a abadia, e ia até ao pequeno planalto do moinho, depois daí em diante serpeava, como uma mera vereda para transeuntes, por entre as ervas agrestes do prado à beira da água, onde vários salgueiros podados se recurvavam junto à margem superior. As duas primeiras casas eram ocupadas por pessoas idosas que tinham cama e mesa vitalícias, cedendo em troca as suas propriedades à abadia. A terceira pertencia ao moleiro, que passara toda a noite na igreja a assistir aos ofícios, como era do conhecimento de Cadfael, e que se encontrava agora ali, a meio da manhã, entre os batedores. Era um homem devoto, empenhado em preservar o privilégio de que gozava junto dos beneditinos e a segurança do seu emprego.

 

- Não vi ninguém à beira da água - asseverou o moleiro abanando a cabeça - quando saí ontem à noite para ir à igreja, o que deve ter sido mais ou menos à mesma hora em que o irmão Cadfael se cruzou na estrada com o padre Ailnoth. Mas eu fui directamente para o pátio grande, através da cancela, e não pelo caminho das carroças, por isso, tanto quanto sei, é bem possível que ele tenha vindo para estes lados alguns minutos mais tarde. A idosa, que mora na casa ao lado da minha, fica confïnada ao espaço da casa mal começam as geadas, portanto, devia estar em casa.

 

- é surda que nem uma porta - comentou insipidamente o irmão Ambrose. - Se alguém tivesse gritado por socorro à sua porta, mesmo que berrasse bem alto, fá-lo-ia em vão.

 

- O que eu queria dizer era - explicou o moleiro - que o padre Ailnoth pode ter ido visitá-la, sabendo que ela não se atrevia a meter o nariz fora da porta nem sequer para ir à igreja. É seu dever visitar os idosos e os enfermos para lhes levar conforto...

 

A cara que Cadfael vislumbrara na noite gelada, aparecendo e desaparecendo ao passar pelas tochas, não lhe parecera ter o ar de ir cumprir uma missão de conforto, porém, nada disse. Até mesmo o moleiro hesitara, no momento em que caridosamente avançara com essa hipótese.

 

- Mas, mesmo que não tenha ido - disse, retomando o assunto resolutamente -, a criada, que cuida da idosa, tem o ouvido suficientemente apurado e pode tê-lo escutado ou visto, caso ele tenha vindo para estes lados.

 

Separaram-se em dois grupos para passarem a pente fino ambas as margens da água. O irmão Ambrose tomou a seu cargo o lado mais distante, onde havia apenas um carreiro estreito e muito batido, que servia as três casitas e se prolongava pela borda da água e pelos jardins em declive. Cadfael encarregou-se do caminho de carroças que ia até ao moinho, estreitando-se aí num carreiro para transeuntes. Em ambos, a luminosidade branca da geada estava encrespada e escurecida por meia dúzia de pegadas, deixadas da parte da manhã. O manto de geada já havia prateado e escondido as que pudessem eventualmente ter sido deixadas durante a noite.

 

O casal de idosos que vivia na primeira casa não tinha estado fora de portas desde o dia anterior, e nada sabiam acerca do desaparecimento do padre. Esta notícia tão sensacional deixou-os boquiabertos e, em certa medida, agradavelmente excitados. Fê-los soltar as línguas com exclamações e lamentos, no entanto, não forneceram a mínima informação. Cedo haviam fechado os taipais das janelas e trancado a porta, acendido uma boa lareira e dormido imperturbados. O homem, em tempos guarda-florestal de uma parte da floresta de Eyton, pertencente à abadia, foi à pressa calçar as botas e embrulhar-se numa capa para participar na busca.

 

Na segunda casa, a porta foi aberta por uma rapariga de 18 anos, bonita e desmazelada, de cabelos compridos e escuros, com olhos atrevidos e perspicazes. A proprietária fez-se representar por uma voz esganiçada e rabugenta, vinda de um quarto interior, perguntando por que razão a porta estava aberta, a permitir a entrada do frio. A rapariga sumiu-se por uns instantes para a tranquilizar e deu uns guinchos agudos, provavelmente acompanhados por muitos gestos, pois a queixa baixou de tom para um murmúrio esclarecido. A rapariga voltou para ao pé deles, envolveu-se num xaile e fechou a porta atrás de si para evitar mais lamúrias.

 

- Não - afïrmou, abanando vigorosamente a grande cabeleira escura -, que eu saiba, ninguém veio aqui de noite, e por que haveria de vir? Não ouvi nem um único som depois do escurecer. E a minha patroa foi para a cama mal desapareceu a luz do dia e dormiu que nem uma pedra. Mas eu estive acordada até tarde e não vi nem ouvi nada.

 

Deixaram-na especada no degrau da entrada, morta de curiosidade, a vê-los afastarem-se, passando pela terceira casa até chegarem à parte principal do moinho. Aqui já não havia casas e a superfície parada do açude desdobrava-se à direita, de um prateado-baço, ganhando largura e perdendo profundidade, formando uma lagoa arredondada, vista da estrada por onde eles caminhavam, adelgaçando-se gradualmente antes de chegar ao regato que transportava a água para o riacho Meole e para o rio. A erva coberta de geada sobressaía na margem superior, embora neste local fosse rasteira devido à força da descarga.

 

E ainda não havia qualquer sinal de uma forma negra no meio da palidez invernal. A geada mais não tinha feito do que formar umas finas pregas de gelo junto à parte superficial, onde os juncos eram mais compactos e ajudavam a reter aquela brancura. O caminho de carroças, ao chegar ao moinho, transformava-se numa estreita vereda, serpenteando por entre o edifício de telhado inclinado e o recinto murado, passando por cima do canal adutor através de uma pequena ponte de madeira com um único corrimão lateral. A roda estava parada, a represa, mais acima, fechada, e a água excedente despejava o seu fluxo constante para o canal de descarga muito mais abaixo. E, assim, por toda a lagoa se fazia sentir uma força silenciosa, perceptível apenas como um leve tremor que lhe percorria a superfície que de outro modo estaria numa imobilidade total.

 

- Mesmo que tenha vindo até aqui - disse o moleiro abanando a cabeça -, não iria mais longe. Lá para o fundo, já não há mais nada.

 

Não, nada mais havia a não ser um caminho sinuoso por entre as ervas do prado, terminando no ponto em que a descarga se unia ao riacho. Os pescadores, por vezes, iam até lá, quando era chegada a época, as crianças brincavam ali no Verão, os amantes passeavam-se por lá ao crepúsculo, talvez, mas quem iria passear-se para aqueles lados numa noite de geada? Todavia, Cadfael avançou um pouco mais. Aqui, cresciam alguns salgueiros, inclinando-se fortemente para a água, devido à força da corrente que corroía a margem. Os mais recentes nunca tinham sido aparados, mas havia dois ou três com os troncos podados e um deles fora decepado, encrespando-se num círculo de novos rebentos, finos e abundantes, como os cabelos de uma cabeça gigante tonsurada. Cadfael passou pelas primeiras árvores e parou junto às moitas maciças e invernosas, mesmo à beira da margem superior.

 

A agitação causada pelo canal de descarga, fluindo para o centro da lagoa, continuava a abrir um caminho de pequenas ondas, através da quietude opressiva. A sua influência reduzída, mas presente, causava um ligeiríssimo tremor sob ambas as margens, numa extensão que abrangia talvez uns dez passos, extinguindo-se lentamente naquele brilho metálico aos pés de Cadfael. Foi a última ondulação, quase imperceptível, que fez que ele olhasse para baixo, mas foi a prega submersa, indefinida e escura, quase imóvel, que lhe captou a atenção. Uma ponta de um tecido escuro oscilava. sem energia, por debaixo das moitas na margem. Ajoelhou-se na geada persistente, afastando a erva para se curvar e examinar a água. Um tecido negro, empilhado sobre a nudez do fundo e encostado às raízes corroídas dos salgueiros, fora empurrado para onde o canal de descarga o levara. Ficara fora do seu curso e por pouco fora de vista. Duas imagens gémeas e lívidas agitavam-se suavemente, articuladas como os peixes estranhos que o irmão Cadfael vira uma vez numa ilustração no livro de um viajante. Abertas e vazias, as mãos do padre Ailnoth apelavam a um céu em vias de serenar, enquanto uma dobra da sua capa lhe ocultava metade do rosto.

 

Cadf’ael ergueu-se e mostrou uma cara sombria aos companheiros que estavam de pé, junto à ponte de madeira, a olhar para o sítio de onde acabara de surgir o outro grupo, ao fundo dos jardins das casas. do lado da cidade.

 

- Está aqui - disse Cadfael. - Encontrámo-lo.

 

Não foi trabalho fácil tirá-lo de lá, mesmo quando o irmão Ambrose e os seus companheiros, que regressavam da busca infrutífera, foram chamados pelo grito e aceno agitado do moleiro e se apressaram, estrada fora, para prestarem o seu auxílio. Junto à margem a água era profunda, o que tornava impossível estender um braço e agarrar nas vestes. O mais magro de todos ainda fez uma tentativa, estendeu-se de cara encostada ao chão e esticou ao máximo os braços compridos, mas foi apenas para tentar agarrá-lo em vão, ficando ainda a uma pequena distáncia da superfície. O moleiro trouxe um croque de barqueiro que tinha de reserva no meio das suas ferramentas, e cuidadosamente conduziu o corpo enrijecido até à beira do canal de descarga, onde eles já podiam descer ao nível da água e pegar-lhe pelas dobras do vestuário.

 

O ominoso pássaro negro transformara-se num peixe improvável. Jazia na erva, depois de o terem transportado para solo nivelado, escorrendo água do cabelo e das roupas negras, ensopadas. A cara descoberta virada para a luz fria do Inverno tinha a cor de um mármore azul-acinzentado, com os lábios separados e os olhos semiabertos, os músculos das faces, maxilares e pescoço muito esticados numa dolorosa sugestão de luta e terror. Uma morte no escuro, fria, muito fria e solitária, e misteriosament, e o cadáver trazia essas marcas consigo, mesmo depois de terminada a luta. Olharam-no impressionados e ninguém falou. Fizeram o que tinham a fazer, sem espalhafato, num silêncio quase total.

 

Do moinho tiraram uma porta das dobradiças, estenderam-no ali e transportaram-no, passando pela cancela do muro, que dava para o pátio grande e daí para a capela mortuária. Dispersaram então, retomando os seus afazeres, depois de informarem o abade Radulfus e o prior Robert do seu regresso e do seu o achado. Sentiram-se aliviados por irem ter com os vivos, por se poderem agora dedicar às festas que os vivos estavam a celebrar, por terem a canção da época natalícia para se sentirem felizes e haver algo de grandioso a festejar.

 

As notícias espalharam-se, quase clandestinamente, segredadas de ouvido em ouvido, sem alarido, sem muitas palavras, levando o seu tempo a chegar aos limites externos da paróquia, mas ao cair da noite já eram do conhecimento geral. O sentimento de alívio foi silencioso, ninguém o admitiu ou mencionou, ninguém se regozijou. No entanto, os paroquianos de Foregate festejaram o Natal com o profundo fervor de um povo a quem, do dia para a noite, haviam tirado um peso opressivo dos ombros. Na capela mortuária, que não podia ser aquecida, nem mesmo neste final de ano, os que estavam reunidos à volta do caixão tremiam e sopravam os dedos inchados, retorciam as luvas ásperas e sem dedos para fazerem circular o sangue enregelado e desentorpecerem as mãos. O padre Ailnoth, o mais frio de todos, jazia, no entanto, indiferente ao amontoar da geada, apesar da sua nudez e da cama de pedra.

 

-Devemos então concluir-disse o abade Radulfus pesarosamente - que caiu ao açude e se afogou. Mas por que estaria ele ali, àquela hora, na véspera da Natividade?

 

Ninguém tinha resposta para isto. Para chegar ao local onde fora encontrado, ele tivera de passar por cada uma daquelas habitações sem dar sinal de vida, indo acabar, afinal, numa solidão árida e despovoada.

 

- Afogou-se, não há dúvida - disse Cadfael.

 

- Alguém sabe - perguntou o prior Robert - se ele sabia nadar?

 

Cadfael abanou a cabeça.

 

- Não sei, e duvido de que algum dos presentes o saiba. No entanto, o facto de ele saber ou não saber nadar parece ser irrelevante. Afogou-se, certamente. Já não é tão certo, temo, que tenha simplesmente caído à água. Vejam aqui... a parte de trás da cabeça...

 

Com uma mão, ergueu a cabeça do morto e sustentou-lhe os ombros com o braço direito, e o irmão Edmund, que já examinara o cadáver com ele antes de o abade Radulfus e o prior Robert terem sido convocados, segurou numa vela para mostrar a nuca e o espesso círculo de cabelo grosso e negro. Uma ferida aberta, com pele esfolada à volta, esbranquiçada e supurada no centro com algum sangue agora descorado por causa da imersão no açude. Começava na borda da tonsura, desbastava-lhe o círculo de cabelo e terminava onde começava a concavidade da nuca.

 

- Levou uma pancada na cabeça, aqui, antes de ter entrado na água - disse Cadfael

 

- Desferida pelas costas - acrescentou o abade sem desdém, examinando-a de mais perto. - Tem a certeza de que ele se afogou? Esta pancada não o poderá ter matado? Porque o que você me está a dizer é que isto não foi nenhum acidente, mas, sim, um ataque deliberado. Ou será possível ter-lhe acontecido isto sem que haja um culpado? Será possível? O caminho de carroças está sulcado e com gelo. Será possível que ele tenha caído e se tenha magoado assim?

 

- Duvido. Se um homem escorrega, pode cair sentado com toda a força, pode até estatelar-se de costas, mas é muito raro que se estenda ao comprido com tanta violência que a sua cabeça bata desprotegida no chão duro. E, reparem! isto não aconteceu na parte mais saliente da cabeça, que seria a primeira a bater, mas na parte inferior, descendo mesmo até à curvatura do pescoço, está lacerada como se o tivessem atingido com algum objecto rijo e cortante. E vocês viram os sapatos que ele usava, tinham feltro nas solas. Penso que, ontem à noite, ele correu menos riscos de dar uma queda do que a maioria dos outros homens.

 

- Deram-lhe, certamente, uma pancada, então - concluiu Radulfus. - Será possível que tenha sido mortal?

 

- Não, impossível! O crânio não está partido. Não foi o suficiente para o matar, nem sequer para lhe fazer mal durante muito tempo. Mas é provável que tenha ficado desorientado durante alguns momentos ou de tal forma aturdido que estava indefeso quando caiu à água. Caiu - repetiu Cadfael deliberadamente, mas com pesar - ... ou foi empurrado.

 

- E, das duas hipóteses - perguntou o abade com uma postura desapaixonada -, qual é a mais provável?

 

- No escuro - respondeu Cadfael -, qualquer pessoa se pode aproximar demasiado de um declive e colocar um pé em falso à beira da água. Porém, seja qual for a razão que o levou a escolher aquele caminho, por que razão haveria de prosseguir para lá da última habitação? No entanto, não creio que a cabeça partida tenha resultado de uma queda natural, e não há dúvida de que aconteceu antes de ele ter entrado na água. Uma outra mão, uma outra pessoa esteve lá e desempenhou um papel activo na sua morte.

 

- Não há nada na ferida, nenhum fragmento que indique - qual o tipo de arma que o atingiu? - arriscou o irmão Edmund, que já participara na resolução de casos semelhantes com o irmão Cadfael e tinha boas razões para lhe pedir a opinião mesmo sobre os mais minuciosos pormenores. Contudo, parecia não alimentar grandes esperanças.

 

- Como poderia haver? - respondeu Cadfael com simplicidade. - Passou toda a noite dentro de água, ficou tudo descorado e ensopado. Se chegou a haver alguma terra ou ervas nas suas escoriações, já se dissolveram na água há muito tempo. No entanto, não creio que tenha havido. Não pode ter cambaleado até muito longe, depois de aquela pancada lhe ter sido desferida, e ele estava um pouco para além do canal de descarga, se não teria sido levado pela corrente na direcção oposta. Não tendo a pancada sido mortífera, mas tendo-o deixado temporariamente incapacitado, não é possível que alguém o tenha transportado ou arrastado para muito longe, pois é grande e pesado. Caiu à lagoa, creio eu, a não mais de dez passos do sítio onde o encontrámos. Levou a pancada perto dali. Ainda para mais, estando para lá do moinho, encontrava-se num terreno não sulcado pelas rodas... apenas moitas e ervas rasteiras, a vegetação normal do Inverno. Se ele tivesse escorregado e caído, poderia ter ficado meio estonteado, mas não teria partido a cabeça nem sangrado. Já disse tudo o que tinha para dizer acerca disto - disse, já cansado. - Agora pensem o que muito bem entenderem.

 

- Assassínio - exclamou o prior Robert, hirto devido à indignação e ao terror. - Assassínio é o que eu concluo. Senhor abade, que vamos fazer agora?

 

Radulfus ponderou durante alguns minutos à beira do indiferente cadáver, que pertencera ao padre Ailnoth e que nunca antes fora tão tranquilo e sereno, tão tolerante para com as opiniões dos outros. Depois, disse com comedido pesar:

 

- Receio, Robert, que não tenhamos outra escolha a não ser informar o delegado do xerife, visto que Hugh Beringar se encontra ausente a cuidar das suas obrigações. - E, com os olhos ainda postos no rosto lívido, em cima da pedra, disse com uma admiração desolada: - Eu já sabia que ele não tinha conquistado o carinho das pessoas. O que não me passou pela cabeça foi que em tão pouco tempo se tivesse tornado tão odiado.

 

O jovem Alan Herbard, o delegado de Hugh durante a sua ausência, veio à pressa do castelo, trazendo consigo os mais experientes sargentos, William Warden e outros dois oficiais da sua comitiva. Mesmo que Herbard não conhecesse muito bem Foregate e os seus moradores, Will Warden conhecia-os e não estava equivocado quanto ao grau de amor que a congregação de Holy Cross nutria pelo seu novo padre.

 

- Ele não irá ser muito chorado por estas bandas - disse bruscamente, olhando o morto sem emoção. - Conseguiu virar todos os paroquianos contra ele. É, um fim triste para um homem, seja ele quem for. Um fim triste e frio!

 

Examinaram--lhe a ferida da cabeça, anotaram o relato de cada um dos que participaram na busca e escutaram as meticulosas opiniões avançadas pelos irmãos Edmund e Cadfael e também tudo o que a Senhora Diota tinha para dizer sobre a saída do seu amo ao anoitecer e acerca da noite de ansiedade que passara, preocupada por ele não regressar.

 

Recusara-se a partir e esperara todo este tempo para repetir a sua versão, fazendo-o com uma compostura extenuada, mas firme, agora que este assunto e mistério já não estavam unicamente nas suas mãos. Benet estava a seu lado, atento e solícito, de semblante enrugado e com os olhos cor de avelã toldados por uma mistura de ansiedade em relação a ela e pura perplexidade no que tocava a ele.

 

- Se me dão licença - disse o rapaz, mal os oficiais se retiraram do recinto para irem ter com o preboste de Foregate, que conhecia aquela gente melhor do que ninguém -, vou agora levar a minha tia para casa e acomodá-la junto a uma boa lareira. Precisa de descansar. - E, apelando a Cadfael, acrescentou: - Não me demorarei. Posso fazer aqui falta.

 

- Demora o tempo que for necessário - respondeu Cadfael prontamente. - Responderei por ti, se for caso disso. Mas que poderás ter para dizer? Sei que estiveste na igreja muito antes de começarem as Matinas.

 

E, para além disso, sabia onde o rapaz estivera mais tarde, provavelmente acompanhado, mas acerca disso nada comentou.

 

- Já alguém tomou providências acerca do futuro da Senhora Hammet? Tudo isto a deixa muito só, apenas te tem a ti, e ainda é praticamente uma estranha por estes lados. No entanto, estou certo de que o abade Radulfus vai providenciar para que ela não fique sem amigos.

 

- Foi falar com ela pessoalmente - disse Benet, corando ligeiramente e iluminando-se-lhe o rosto, recuperando temporariamente a sua vivacidade habitual, em sinal de aprovação por este gesto tão atencioso. - Diz que ela não precisa de se preocupar, pois veio para cá de boa-fé, cumprir uma tarefa ao serviço da igreja, e compete agora à igreja zelar pela sua subsistência. ”Fique em casa e cuide dela”, disse-me ele, ”até que um novo padre seja designado para o benefício, e então se verá. Mas, em nenhuma circunstância será abandonada.”

 

- Ainda bem! Então tu e ela podem ficar tranquilos. Por muito horrível que tudo isto seja, a culpa não é tua nem dela e não deviam ficar a cismar nisto. - Ambos o olhavam com uma expressão parada e chocada, que não exprimia pesar nem tranquilidade, mas apenas uma aceitação atordoada. - Fica e dorme lá, se achares conveniente - disse a Benet. - É capaz de ficar contente por permaneceres junto dela hoje à noite.

 

Benet não disse nem que sim nem que não, e a mulher também nada disse.

 

Saíram silenciosamente da antecâmara da casa do portão, onde haviam permanecido sentados durante as incertezas da manhã, e, percorrendo a larga estrada principal de Foregate, desapareceram à entrada da estreita travessa do lado oposto, ainda prateada pela geada contida entre os seus muros.

 

Cadfael não ficou muito surpreendido quando Benet regressou, passado uma hora, em vez de aproveitar a licença para se ausentar durante toda a noite. Veio procurar Cadfael ao horto e encontrou-o, excepcionalmente ocioso, na sua oficina, sentado junto ao braseiro incandescente. O rapaz sentou-se silenciosamente a seu lado e soltou um suspiro deprimido.

 

- Concordo! - exclamou Cadfael, afastando os seus pensamentos ao escutar aquele som. - Hoje nenhum de nós está em si, não é para admirar. Mas decerto não tens necessidade de atormentar a consciência. Deixaste a tua tia completamente só?

 

- Não - respondeu Benet. - Ficou com uma vizinha, embora eu duvide de que ela se sinta bem com este género de atenções. Atrevo-me a afirmar que, em breve, mais pessoas irão, a arder de curiosidade, querendo extorquir-lhe toda a história. E nem sequer é por sentirem dor, a julgar pela pessoa que ficou com ela. Hão-de falar pelos cotovelos por toda a paróquia, até ao cair da noite.

 

- Verás que não hão-de tardar muito a calar-se - asseverou Cadfael secamente. - Basta que Alan Herbard ou um dos seus sargentos lhes dirija a palavra. Espera até que um oficial mostre a cara, e far-se-á silêncio. Ninguém em Foregate admitirá saber algo acerca do que quer que seja, uma vez que seja dado início aos interrogatórios.

 

Benet mudou irrequietamente de posição no banco de madeira, como se sentisse desconforto nos ossos e não na consciência.

- Nunca imaginei que ele fosse tão cegamente odiado. Acredita sinceramente que eles se unirão de tal forma que nunca se traiam, mesmo se souberem quem lhe provocou a morte?

 

- Sim, assim creio, pois poucos serão aqueles que não sentem que, se não fora a graça de Deus, este acto poderia ter sido cometido por eles. Porém, não te atormentes. A menos que tenhas sido tu a partir-lhe a cabeça!? - perguntou-lhe brandamente. - Foste?

 

- Não - respondeu Benet com simplicidade, baixando os olhos para as mãos entrelaçadas, mas logo de seguida ergueu

o olhar cheio de uma curiosidade penetrante: - Mas que é que o faz ter tanta certeza?

 

- Bem, em primeiro lugar, vi-te na igreja bastante antes de Matinas, e, embora não se saiba ao certo o momento exacto em que Ailnoth caiu à água, julgo que provavelmente foi depois disso. Em segundo lugar, não tenho conhecimento de que lhe pudesses ter alguma raiva, e tu próprio disseste que foi uma surpresa para ti o facto de ele ser tão odiado. Em terceiro lugar, e mais importante, pelo que conheço de ti, rapaz, se tivesses ficado tão terrivelmente ofendido a ponto de agredires um homem, não o farias pelas costas, mas num frente-a-frente.

 

- Bem, obrigado pelo elogio! - exclamou Benet, recuperando por instantes o seu radioso sorriso. - No entanto, Cadfael, que é que você pensa que aconteceu? Foi o último a vê-lo com vida, pelo menos, tanto quanto se sabe. Estava mais alguém por aqueles lados? Viu mais alguém? Alguém que pudesse eventualmente estar a segui-lo?

 

- Não havia vivalma para além da casa do portão. Havia gente de Foregate a chegar para a missa, mas ninguém a ir na direcção da cidade. Quaisquer outras pessoas que possam ter visto Ailnoth só o puderam fazer antes de mim e sem que nada lhes indicasse para onde se dirigia. A menos que alguém tenha travado conversa com ele. Mas, a julgar pela velocidade com que passou por mim, duvido de que tenha parado para falar com qualquer outra pessoa.

 

Benet ponderou em silêncio, demoradamente, e depois disse mais para si próprio do que para Cadfael:

 

- E fica a uma tão curta distância da sua casa. Se quisesse ir para Foregate, iria exactamente pelo lado oposto à casa do portão. Há muito poucas hipóteses de ter sido visto ou retido nesse curto espaço.

 

- Deixa que sejam os oficiais do rei a matar a cabeça sobre, o como e o porquê - aconselhou Cadfael. - Não faltará gente para mostrar que não sente a mínima falta de Ailnoth, mas duvido muito de que consigam extorquir informações seja a quem for, quer se trate de homem, mulher ou criança. Não vale a pena esconder a verdade, o homem despertou raivas por toda a parte. É perfeitamente possível que tenha sido o melhor dos escriturários, no que respeita a lidar com documentos, decretos e contabilidade, mas não fazia a menor ideia de como persuadir, aconselhar e confortar os simples e humanos pecadores. E para que mais serve um padre paroquiano?

 

A geada prolongou-se pela noite fora, mais inclemente do que nunca, congelando os baixios de juncos no açude, orlando a margem do lado da cidade com uma camada de gelo, mas não chegou a cobrir a parte onde a água era mais funda nem a corrente trémula do canal de descarga, e, assim, os rapazinhos, que foram logo muito cedo pela manhã inspeccionar o gelo, regressaram desapontados. De momento, nem valia a pena tentar fender o solo férreo para a sepultura do padre Ailnoth, mesmo que Herbard tivesse assentido num enterro precoce, contudo, o frio de rachar fazia do atraso um facto aceitável.

 

Em Foregate alastrava-se uma espécie de burburinho abafado. Havia grande falatório, mas em voz baixa e somente entre os amigos de confiança, e reinava, no entanto, por toda a parte, um sentimento de alegria reprimido e supersticioso, como se uma enorme nuvem por cima da paróquia se tivesse dissipado. Mesmo aqueles que nada confiavam aos outros por palavras faziam-no através de olhares silenciosos. O alívio sentia-se um pouco por todo o lado, era palpável.

 

Porém, o medo também o era, pois alguém, ao que parecia, livrara Foregate de uma praga, e todos os que haviam desejado ver-lhe o fim sentiam nas mãos uma quota-parte da culpa. Podiam apenas limitar-se a especular sobre a identidade do libertador, mesmo quando fechavam a boca e os olhos, pondo de lado tudo o que pensavam acerca de suspeições pessoais com medo de trair à lei.

 

Ao longo de todo o dia de rotina, Cadfael seguiu o fio dos seus pensamentos, que inevitavelmente se centravam na morte de Ailnoth. Ninguém contava nada a Alan Herbard acerca do terreno de Eadwin, ou do ressentimento de Aelgar, do túmulo do bebé de Centwin em chão não sagrado, ou da dúzia de feridas, ou mais, que fizeram de Ailnoth um homem odiado, mas também não havia necessidade. Will Warden já devia ter tomado conhecimento dessas e talvez até de outras ofensas menores, das quais nem sequer o abade havia sido informado. Cada um dos injustiçados seria interrogado sobre os seus movimentos na véspera da Natividade, e Will haveria de saber como procurar provas. E, por muito que Foregate pudesse simpatizar com quem quer que tivesse matado Ailnoth, e por mais que o protegessem e encobrissem, era, no entanto, vital que a verdade viesse ao de cima, pois não haveria verdadeira paz nas consciências enquanto não ficasse tudo esclarecido. Era esta a razão fundamental para que Cadfael, quase contra a sua vontade, desejasse encontrar uma solução. A segunda era por causa do abade Radulfus, que carregava com uma dupla culpa na sua consciência, por haver trazido aos fiéis um pastor tão desajustado e por haver permitido que ele fosse morto por alguma ovelha enraivecida do rebanho. ”Doa a quem doer”, concluiu Cadfael, ”não há substitutos para a verdade, nem neste nem noutro caso.”

 

Entretanto, devido à temporária suspensão das jornadas de trabalho, ficou contente por Benet ter acabado de cavar a terra mesmo a tempo, antes das geadas intensas, tendo arrancado as últimas ervas daninhas de todos os canteiros com tanto empenho que agora a terra podia dormir confortavelmente sob o manto branco e todo o recinto do horto tinha uma aparência ordenada, asseada e agradável, como se fosse um ouriço-cacheiro enrolado sobre si próprio e coberto por folhas e ervas secas a aguardarem a chegada da Primavera.

 

Era um bom trabalhador, o jovem Benet, alegre, sempre prestável e boa companhia. Algo perturbado pela morte deste homem que o trouxera para ca e que pelo menos a ele nunca fizera mal, apesar de a sua vivacidade natural continuar a manifestar-se. Agora, já pouco restava do candidato à clausura. Teria sido este o único sinal de fragilidade humana no padre Ailnoth, o facto de ter deliberadamente alegado que o seu palafreneiro ambicionava seguir uma vida monástica, embora ainda estivesse hesitante quanto ao passo final? Uma mentira para se livrar do rapaz? Benet afirmava peremptoriamente que nunca expressara tal desejo, e o rapaz, segundo a respeitável opinião de Cadfael, não daria um bom mentiroso. Pensando bem, pouco restava já do jovem rústico, de olhos muito abertos, inocente e iletrado, que Benet inicialmente fingira ser, pelo menos, aqui no isolamento do horto. Ainda continuava a desempenhar o seu papel na perfeição, se por uma qualquer razão o prior o abordasse. ”Ou mejulga cego”, pensou Cadfael para com os seus botões, ”ou não lhe interessa fingir à minha frente. E tenho a certeza absoluta de que ele não me julga cego!”

 

Bem, mais um ou dois dias e Hugh regressaria. Mal fosse dispensado da presença do rei, meter-se-ia a caminho de casa numa marcha forçada. Aline e Giles, entre os dois, dividiriam os louros dessa façanha. ”Deus há-de permitir que traga para casa a resposta certa!”

 

E parecia que, na verdade, Hugh se apressara o mais possível para regressar a casa, parajunto da sua mulher e filho, pois chegou a Slirewsbury a cavalo, muito tarde na noite do dia 27, para escutar de um aliviado Alan Herbard a grande desordem a aguardar uma solução, a morte que viera mais como uma bênção do que como uma catástrofe para o povo de Foregate, mas que, apesar de tudo, tinha de ser encarada com seriedade pelos oficiais do rei. Foi na manhã seguinte, logo após a Prima, ouvir o mais idóneo relato, o do abade, e conferenciar com ele sobre o problemático relacionamento do padre com o seu rebanho. Também tinha um outro assunto pessoal e muito sério a transmitir.

 

Cadfael nada soube do regresso de Hugh até ao meio da manhã, quando o seu amigo o foi procurar à oficina. O ruído de vidro estilhaçado, que as botas faziam ao pisar o cascalho, fez que Cadfael desviasse o olhar do almofariz, reconhecendo os passos mas mal conseguindo acreditar.

 

- Bem, bem! - disse radiante. - Nunca pensei vê-lo antes de amanhã ou de depois de amanhã. Fico muito feliz e espero estar a interpretar correctamente os sinais!? - Soltou-se do abraço de Hugh para o agarrar de frente, com os braços esticados, e lhe perscrutar ansiosamente o rosto. - Sim, vem com um ar de sucesso. Estarei a ler a confirmação do posto?

 

- É verdade, meu velho amigo, é verdade! E fui remetido a toda a pressa para o meu condado, a fim de cuidar dos assuntos do meu amo. Acredite em mim, Cadfael, ele regressou para junto de nós magro e esfomeado, com as marcas dos grilhões e quer ver acção, vingança e sangue. Se ele fosse capaz de conservar a energia da revolta, acabaria com esta contenda antes de decorrido um ano. Porém, isso não vai acontecer - afirmou Hugh filosoficamente -, nunca acontece. Meu Deus, ainda tenho o corpo moído por causa da longa cavalgada. Tem uma caneca de vinho e uma meia hora para desperdiçar comigo na cavaqueira?

 

Refastelou-se, agradecido, no banco de madeira e esticou as pernas em direcção ao calor do braseiro, e Cadfael trouxe canecas e um garrafão, sentou-se a seu lado, feliz por observar aquela figura frágil, de rosto magro e eloquente, que trazia consigo todo o aroma do mundo exterior, acabado de chegar da corte, ratificado no seu ofício, um homem a quem a energia não murchava, ao contrário do que sucedia com Steplien, e que não abandonava uma iniciativa para ir no encalço de outra. Ou teriam esses dias chegado agora ao fim? Podia ser que as privações e injustiças por que o rei passara na prisão, em Brístol, viessem, de futuro, a pôr um ponto final a todos os procedimentos inconsequentes. No entanto, era evidente que Hugh não o julgava capaz de sustentar uma tão grande mudança.

 

- Usou a coroa durante o banquete de Natal e foi algo digno de ser visto. Justiça lhe seja feita, nenhum homem vivo poderia parecer mais adequado no papel de rei do que Steplien. Interrogou-me exaustivamente quanto ao rumo que as coisas têm tomado por estas bandas e eu fiz-lhe um relato completo da nossa posição face ao conde de Chester e falei-lhe do fiel aliado que Owain Gwynedd tem sido para nós, no Norte do condado. Pareceu estar bastante satisfeito comigo... pelo menos, deu-me fortes pancadas nas costas... tem uma mão que mais parece uma pá, Cadfael!... e deu-me toda a autoridade para continuar com o meu trabalho como xerife já legitimado. Até recordou como obtive a sua aprovação para ser delegado de Prescote. Suponho que este é um gesto invulgar num rei e justifica, em parte, a nossa adesão a Steplien, mesmo quando nos enfurece. Assim, não obtive apenas a sua sanção mas também um grande empurrão para que me metesse a caminho e regressasse ao cumprimento das minhas obrigações. Penso que tenciona visitar o Norte, quando o rigor do Inverno passar, a fim de conquistar de novo a confiança de mais alguns dos indecisos. Tive sorte por me ter lembrado de mudar de cavalo quatro vezes a caminho do Sul - disse Hugh satisfeito -, prevendo que poderia ter pressa de voltar para casa. A ida, deixei o meu cavalo cinzento em Oxford. E agora aqui estou, feliz por ter regressado.

 

- Alan Herbard há-de estar muito feliz por o saber de volta

- afirmou Cadfaiel -, pois sentiu-se muito perdido durante a sua ausência. Não é que se queira livrar de problemas, embora também não os tenha procurado. Já lhe falou do que aconteceu por aqui? Em plena Natividade! Foi tremendo!

 

- Ele contou-me. Acabei de estar com o abade para me inteirar da sua versão sobre os acontecimentos. Pouco vi desse homem, mas já sei muito acerca dele pelos outros. Um homem bastante odiado... e em tão pouco tempo. Justifica-se a opinião que fazem acerca dele? Não me competia pedir ao abade que menosprezasse o seu candidato, mas penso que ele não o tinha em grande conta.

 

- Um homem sem caridade nem humildade - afirmou Cadfael com simplicidade. - Temperado com essas qualidades, poderia ter sido um homem decente, mas ambas pecavam pela ausência. Desceu, repentinamente, sobre a paróquia como uma nuvem de desgraça.

 

- E tem a certeza de que se trata de um assassínio? Já vi o corpo e sei da ferida na cabeça. É difícil imaginar, garanto-lhe, como aquilo lhe pode ter acontecido por mero acidente ou estando sozinho.

 

- Tem de seguir as pegadas - disse Cadfael - de seja qual for a pobre alma enraivecida que lhe desferiu a pancada. No entanto, não receberá qualquer ajuda do povo de Foregate. Os seus corações estarão do lado de quem quer que seja que os tenha libertado daquela sombra.

 

- Isso é o que Alan também diz - retorquiu Hugh sorrindo por breves instantes. - Apesar de ser tão novo, conhece esta gente como a palma das suas mãos. Prefere que seja eu a molestá-los em vez de ser ele. E, visto que isso terá de ser feito, assim o farei. Eu próprio fui avisado para não usar caridade nem humildade - continuou Hugh pesaroso - no que respeita aos assuntos régios. Stephen quer ver os seus inimigos perseguidos sem piedade e tem dado ordens a torto e a direito nesse sentido. E fui incumbido de ser o perseguidor de um deles, aqui, no meu condado.

 

- Já uma vez antes - disse Cadfael, voltando a encher a caneca do seu amigo - ele lhe atribuiu uma tarefa que você cumpriu como bem entendeu e que, seguramente, nada tinha a ver com o que ele pretendia quando lhe deu a ordem. Porém, depois, ele nunca veio pedir-lhe contas. É muito bem capaz de se arrepender das suas ordens mais tarde e ficar contente por você lhe trocar as voltas no que respeita à perseguição. Nem é preciso eu estar a dizer-lhe isto, você já o sabe há muito tempo.

 

- Posso representar um papel espectacular - concordou Hugh sorrindo -, tendo em mente a probabilidade de ele não me agradecer o excesso de zelo, uma vez ultrapassados os seus ressentimentos. Nunca o vi guardar rancores durante muito tempo. O seu pior procedimento foi, aqui, em Shrewsbury, e, actualmente, não gosta que lho recordem. Passa-se o seguinte, Cadfael, no Verão passado, quando parecia que a imperatriz tinha a coroa, o ceptro e tudo o mais nas suas mãos, é sabido que FitzAlan, na Normandia, enviou dois espiões da sua facção para sondarem o apoio dado à imperatriz e verificarem se era chegada a altura de trazerem reforços para aumentar o seu poder. Nunca cheguei a saber como foram descobertos, mas, quando a sorte mudou e a rainha mandou um exército para Londres e arredores, estes dois aventureiros foram impedidos de regressar e desde então correm o grande risco de serem capturados. Julga-se que um deles conseguiu escapar de Dunwich, mas que o outro ainda está por aí a monte e, visto que tem sido perseguido sem resultado no Sul, consta agora que ele se pôs a caminho do Norte, não só para fugir mas também para tentar estabelecer contacto com os simpatizantes de Anjou, a fim de obter auxílio. Assim, todos os xerifes do rei têm ordens para fazer uma rigorosa vigilância. Depois de ter sido tão maltratado, Steplien não está disposto a esquecer ou a perdoar. Vejo-me obrigado a montar um espectáculo de zelo, o que implica tornar este assunto público, através de uma proclamação, e é o que farei. Pela parte que me toca, sinto-me feliz por saber que um deles conseguiu escapar, ileso, para além-mar, indo ter com a sua mulher. Também não ficaria nada triste se soubesse que o segundo lhe tinha seguido o rasto. Dois rapazes corajosos aventurando-se por cá sozinhos, arriscando a vida por uma causa... por que haveria de ter algo contra eles? Também Steplien sentirá o mesmo quando cair em si.

 

- Você usa expressões de grande rigor - comentou Cadfael curioso. - Como sabe que se trata apenas de rapazes? E como sabe que aquele que fugiu para a Normandia era casado?

 

- Porque, meu Cadfael, é sabido quem são estes dois jovens apolantes muito íntimos de FitzAlan. A presa que ainda perseguimos é Ninian Bachiler. E o rapaz que nos escapou é um tal jovem de seu nome Torold Blund, de quem você e eu temos muito boas razões para nos lembrarmos. - Riu-se ao ver a cara de Cadfael iluminar-se com a agradável surpresa.

 

- Sim, trata-se do mesmíssimo rapaz que você escondeu no velho moinho perto de Gaye, há alguns anos atrás. Sabe-se agora que é o genro do aliado e maior amigo de FitzAlan, Fulke Adeney. Sim, Godith conseguiu o que ela queria!

 

Havia boas razões para se lembrar, sem dúvida! Cadfael sentou-se, animado pela recordação de Godith Adeney, que fora, para todos os outros, durante um curto espaço de tempo, o seu jardineiro Godric, e do jovem que ela o ajudara a socorrer e a enviar em segurança para o país de Gales. Ao que parecia, eram agora marido e mulher. Sim, Godith tinha levado a melhor!

 

- Só de pensar - disse Hugh - que eu podia ter casado com ela! Caso o meu pai tivesse vivido mais tempo, eu não teria vindo para Shrewsbury, a fim de pôr as recém-herdadas propriedades rurais à disposição de Steplien, e nunca teria visto Aline, seria muito provável que me tivesse casado com Godith. Nenhum de nós, creio, tem algo a lamentar. Ela ficou com um bom rapaz e eu com Aline.

 

- E tem a certeza de que ele se escapou, são e salvo, de Inglaterra e foi ter com ela?

 

- Assim rezam as notícias. E que o mesmo possa acontecer ao seu parceiro, com a minha bênção - afirmou Hugh fervorosamente -, se é que se trata do companheiro de Torold e me fizer o favor de se conservar bem longe da minha vista. Na eventualidade de se cruzar com ele, Cadfael... você tem uma tendência especial para ir ao encontro do inesperado... mantenha-o fora do alcance. Não faço tenções de atirar um bom rapaz para prisão só por ser leal a uma causa que não é a minha.

 

- Tem uma boa desculpa para pôr este assunto de lado sugeriu Cadfael pensativamente -, visto que ao regressar encontrou um homem assassinado à porta de casa, e ainda por cima um padre.

 

- É verdade, posso argumentar que é esse o meu caso principal - concordou Hugh, pondo de parte a caneca vazia e levantando-se para se ir embora. - Ainda para mais esse assunto foi, na realidade, depositado mesmo à minha porta, e, tanto quanto sei, o jovem Bachiler poderá estar a uma centena de milhas ou mais daqui. Contudo, uma pequena prova de zelo não será descabida nem fará mal a ninguém.

 

Cadfael saiu com ele até ao horto. Benet vinha para cima, caminhando junto ao extremo mais longínquo dojardim de rosas, onde o solo declinava para os ervilhais e para o riacho. À medida que subia, assobiava cheio de vivacidade, balançando com ligeireza um machado numa das mãos, pois um pouco antes estivera a quebrar o gelo nos tanques dos peixes, a fim de permitir a entrada do ar necessária aos residentes das profundezas.

 

- Hugh, qual foi o primeiro nome que me disse ser o desse jovem Bachiler, que você deve perseguir?

 

- Ninian. pelo menos é o que consta.

 

- Ah, sim! - exclamou Cadfael. - Era isso mesmo... Ninian.

 

Benet voltou para o horto depois de jantar com os serventes leigos e olhou à sua volta com uma expressão algo céptica, dando pontapés no solo completamente gelado, que recentemente escavara, e observou as sebes aparadas, cobertas agora por uma geada que perdurava pelo dia fora e acrescentava de noite uma nova camada de tufos brancos. Cada ramo que se movia tilintava como vidro. Cada pedaço de terra estava rijo como a pedra.

 

- Que há para eu fazer? - perguntou, entrando como um mendigo na oficina de Cadfael. -- Esta geada faz parar tudo. Ninguém pode arar ou cavar num dia como este. Ainda menos copiar cartas - acrescentou, arregalando os olhos só de pensar nos dedos entorpecidos, no scriptorium, tentando revestir uma maiúscula a folha dourada ou até escrever uma simples linha direita, - E eles lá continuam, coitados. Ao menos, manejar uma pá ou um machado sempre aquece um pouco. Posso ir rachar lenha para o braseiro? Temos muita sorte por voce precisar do lume para os seus preparados, se não estaríamos tão enregelados como os copistas.

 

- Cedo terão acendido a lareira na sala de convívio, num dia como este - contestou Cadfael placidamente -, e, quando já não aguentarem segurar com firmeza na pena ou no pincel, têm licença para largar o trabalho. Escavaste tudo o que havia para ser escavado aqui dentro de muros, a poda também já está terminada, não tens necessidade de te sentires culpado, se desta vez ficares ocioso. Ou então, se quiseres, podes partilhar destes meus mistérios.

 

Benet sentia-se preparado para experimentar fosse o que fosse, desde que fizesse uso das suas mãos. Aproximou-se para examinar, cheio de curiosidade, aquilo que Cadfael estava a mexer num recipiente de pedra em cima de uma grelha, ao lado do braseiro. Aqui, na solidão partilhada, sentía-se à vontade, e perdera o desalento e consternação temporários, que lhe haviam turvado a alegria no dia de Natal. Os homens morrem e aqueles que são dados à meditação sentem um pouco da sua própria morte em cada um, dos que lhes são mais chegados, porém os jovens depressa recuperam. E, ao fim e ao cabo, que representaria o padre Ailnoth para Benet? Se fora amável para com ele ao deixá-lo vir para cá com a sua tia, também o padre colhera benefícios ao ser prestavelmente servido pelo rapaz durante a viagem. Fora uma troca justa.

 

- Visitaste a Senhora Hammet ontem à noite? - perguntou Cadfael, lembrando-se de outra possível fonte de preocupações. - Como está ela?

 

- Ainda está ferida e abalada - retorquiu Benet -, mas tem muita força interior e recuperará.

 

-      Não tem sido demasiado molestada pelos oficiais? Agora, Hugh Beringar regressou e quererá saber tudo pela boca dela, no entanto, ela não precisa de se preocupar com isso. Já contaram a Hugh como tudo se passou, ela só tem de lho repetir.

-     

- Têm agido com ela como se fossem o próprio civismo personificado - respondeu Benet. - Que é isto que está a fazer? Era um enorme recipiente com uma enorme quantidade de um melaço castanho aromático, borbulhando ligeiramente.

- É um preparado para a tosse e as constipações - contestou Cadfael. - Iremos necessitar dele, agora, a qualquer momento, e em grande quantidade.

 

- Que entra na sua composição?

 

- Uma enorme quantidade de coisas. Louro e menta, tussilagem, marroio-branco, verbasco, mostarda, papoila... bons para a garganta e para o peito... e um pouco do licor forte, que eu próprio destilo, também não faz mal nenhum nestes casos. Mas, se queres trabalhar, anda, levanta aquele almofariz grande... sim, ali! Ainda há pouco te condoías por causa daquelas mãos corroídas pelo frio, vamos fazer algo por elas.

 

As frieiras de Inverno foram desde sempre um inimigo sazonal, e uma porção extra de unguento não viria nada a despropósito. Começou a emitir ordens animadamente, indicando as ervas que queria, obrigando Benet a trepar para ir buscar algumas delas e a mexer-se incessantemente para cá e para lá dos ramos pendurados para ir buscar as outras. O rapaz gostou deste novo entretenimento e apressou-se a obedecer a cada uma das ordens enérgicas.

 

- A pequena balança, acolá, na parte de trás da prateleira... vai lá buscá-la, e, já que estás aí no canto, os pesos estão na caixa ao lado.

 

- Oh, e... Ninian... - disse Cadfael com a mesma doçura, calma e ingenuidade de sempre.

 

O rapaz, empenhado e desprevenido, parou e virou-se em resposta ao seu nome, esperando com um sorriso prestável para escutar o que deveria trazer em seguida. E, nesse mesmo instante, ficou petrificado, no sítio onde se encontrava, a vivacidade serena ainda visível no rosto, que se transformara em mármore com um sorriso fixo e vazio. Durante um longo momento, contemplaram-se mutuamente, olhos nos olhos. Cadfael sorria. Então o sangue quente afluiu à cara de Benet, que ficou inquieto e comum sorriso desconfiado. No entanto, depressa recuperou a vivacidade e a juventude. O silêncio prolongou-se um pouco mais, porém, foi o rapaz quem por fim o quebrou.

 

- Que deve acontecer agora? Devo virar o braseiro de pernas para o ar, lançar fogo a esta cabana, correr lá para fora, trancá-lo cá dentro e salvar a minha pele?

 

- Duvido - contestou Cadfael -, a menos que seja isso que queiras fazer. A mim, não me conviria lá muito. Ficar-te-ia melhor se pousasses a balança ali na pedra mármore e prestasses atenção ao que, tu e eu, temos entre mãos. E, entretanto, esse frasco junto ao postigo, contém banha de porco, tira-o também.

 

Benet assim fez, com uma calma admirável, e virou a cara sorrindo obliquamente.

 

- Como soube? Como chegou a descobrir o meu nome? - Já não fazia o mínimo esforço para simular um segredo, descontraíra-se até ao ponto de conseguir divertir-se perversamente.

 

- Filho, a história da tua invasão a este reino, juntamente com outro estouvado tão imprudente como tu, parece já ser do conhecimento geral por esta altura, e todo o país pensa que fugiste para norte, a fim de escapares das regiões onde te perseguiam incansavelmente para poderes encontrar algum sossego. Hugh Beringar, na festa em Canterbury, recebeu ordens para te procurar sem descanso. O rei Stephen está de cabeça quente, e, até que arrefeça, a tua liberdade não vale um chavo, caso os seus oficiais te apanhem. Pois, creio - acrescentou com brandura - que és Ninian Bachiler?

 

- Sou. Mas como soube?

 

- Bem, depois de ouvir falar na existência de um tal Ninian, perdido por estes condados do interior, não foi muito difícil. Uma vez que quase foste tu próprio a dizer-mo. ”Qual é o teu nome?”, perguntei-te, e tu começaste a responder ”Ninian?”, mas, depois, contiveste-te e, atabalhoadamente, quàse ecoaste a pergunta, antes de conseguires pronunciar ”Benet”. E, oh, meu filho, quão depressa deixaste de representar, perante mim, o papel de um simples e provinciano palafreneiro. Afirmaste que nunca antes tinhas pegado numa pá! Não, juraria que falaste verdade, embora confesse que aprendes com muita facilidade. E o teu modo de falar, e as tuas mãos... Não, não cores nem fiques com um ar tão mortificado, não foi assim tão óbvio, mas, simplesmente, todas as peças se foram juntando a pouco e pouco. Para além disso, deixaste de me considerar como alguém a ser enganado. Já agora, também o podes admitir.

 

- Parecia não valer a pena - confirmou o rapaz, e fez uma pequena careta, fixando o chão de terra batida. - Ou talvez inútil! Não sei! Que pensa fazer comigo? Se tenciona entregar-me, aviso-o já de que farei tudo ao meu alcance para fugir. Porém, evitarei agredi-lo. Temos sido bons amigos.

 

- Ainda bem para ti e para mim - disse Cadfael sorrindo -, talvez venhas a descobrir que encontraste um semelhante. E quem te disse que eu fazia tenções de te denunciar? Não sou partidário nem do rei Steplien nem da imperatriz Maud e, por mim, seja quem for que sirva qualquer um deles honestamente, arriscando a própria vida, pode continuar a fazê-lo livremente. Mas, já agora, podias pôr-me ao corrente do que se passa. Sem implicares ninguém, é claro. Suponho, por exemplo, que a Senhora Hammet não é tua tia!?

 

- Não - assentiu lentamente Ninian, fixando os olhos atentos e sérios no rosto de Cadfael. - Vai respeitar o papel dela no meio de tudo isto? Estava ao serviço da minha mãe, antes de se casar com um funcionário do bispo. Era minha ama quando eu era pequeno. Quando me pus em fuga, fui pedir-lhe auxílio. Fui irresponsável, desejaria poder voltar atrás, mas acredite, tudo o que ela fez foi pelo mais puro amor por mim, os meus assuntos nada têm a ver com ela. Foi de sua livre vontade que pediu licença para me trazer para cá, como seu sobrinho, quando o padre Ailnoth foi promovido. Queria pôr-me fora do alcance dos perseguidores. Pediu e obteve a permissão muito antes de eu o saber, não o pude evitar. E foi uma espécie de bênção para mim, devo confessá-lo.

 

- Com que propósito vieste da Normandia? - perguntou Cadfael.

 

- Bem, para estabelecer contactos com os amigos da imperatriz que pudessem estar a atravessar momentos difíceis, no sul e a leste, onde ela é menos popular e para os incitar à sublevação, caso FitzAlan achasse que era chegada a altura de regressar. Naquele momento, parecia que a imperatriz tinha boas hipóteses. Porém, os ventos mudaram e alguém... sabe Deus qual dos que contactei... acobardou-se e protegeu-se traindo-nos. Sabe que éramos dois?

 

- Sei - respondeu Cadfael. - De facto, até conheço o segundo. Pertencia à casa de FitzAlan, aqui em Shrewsbury, antes de a cidade se ter rendido ao rei. Segundo ouvi dizer, escapou-se por um porto a leste. Não tiveste a mesma sorte.

 

- Torold está são e salvo? Oh, nem imagina o bem que me faz! - gritou Ninian, corando de felicidade. - Separámo-nos quando estávamos praticamente cercados perto de Bury. Temi por ele! Oh, se ele está em casa, são e salvo... - Neste ponto, deteve-se, estremecendo só com a simples ideia de chamar casa à Normandia. -- Por mim, cá me arranjarei! Mesmo que venha a acabar os meus dias na masmorra do rei... mas isso não há-de acontecer! Defender-me sozinho não é tão difícil como tem sido afligir-me pelos dois. E Torold é um homem casado!

 

- E, segundo consta, foi ter com a mulher. Qual - perguntou Cadfael - é o teu plano agora? É óbvio que o projecto que te trouxe até cá é uma causa perdida. E agora?

 

- Agora - começou o rapaz com uma seriedade expressiva

- tenciono atravessar a fronteira para o país de Gales e ir para sul, a fim de integrar o exército da imperatriz em Gloucester. Não lhe posso levar o exército de FitzAlan, mas levo-lhe um homem robusto para defender a sua causa... e, por sinal, um que não se ajeita nada mal com a espada e a lança, embora seja o próprio a afirmá-lo.

 

Pela elevação da voz e pelo brilho do olhar, via-se que acreditava fervorosamente no que dizia, e este era um gesto muito mais a seu jeito do que actuar como agente junto de aliados relutantes. E por que não haveria de o conseguir? A fronteira com o país de Gales não ficava longe, embora o trajecto até Gloucester pelas florestas não vigiadas de Powys pudesse ser longo e perigoso. Cadfael observou pensativamente o seu companheiro e viu um jovem mal agasalhado para aquele tempo invernoso, deslocando-se a pé, sem armas, sem cavalo, sem dinheiro, para lhe facilitar a viagem. No entanto, nada disto parecia desencorajar Ninian.

 

- É um objectivo bastante honesto - assentiu Cadfael -, e nada tenho a contrapor. Há alguns aderentes à tua facção por estes lados, embora, nesta altura, não se manifestem. Será que algum deles te poderia ser útil neste momento?

 

Não mordeu a isca. O rapaz uniu os lábios com toda a firmeza e enfrentou Cadfael com uma tranquilidade inexpugnável. Se, na realidade, tentara estabelecer contacto com algum partidário da imperatriz naquela área, nunca admitiria. Podia privilegiar o seu arguto mentor com as suas confidências pessoais, mas não iria comprometer nem um único homem.

 

- Bem - disse Cadfael calmamente -, ao que parece, nesta zona, não estás a ser perseguido com grande entusiasmo e tens um cargo bem definido junto de nós, não vejo qualquer razão para que Benet deixe de trabalhar aqui, serena e modestamente, fazendo-se passar despercebido. E, se esta geada intensa continuar, com a mesma força com que começou, o teu trabalho será aqui, no meio dos medicamentos, por isso talvez seja melhor continuarmos com a lição. Alegra-te agora e presta atenção ao que te vou mostrar.

 

O rapaz deu uma gargalhada semicontida de puro prazer e alívio, que nem uma criança, e foi encostar-se ao cotovelo de Cadfael, como se fosse um cachorro fascinado por um novo odor.

 

- Bom, diga-me então o que há para fazer, e eu fá-lo-ei. Antes de partir, hei-de ser quase um boticário. Nada do que se aprende - disse Ninian, imitando o estilo didáctico de Cadfael na perfeição e com todo o atrevimento - é desperdiçado.

 

- É verdade, é verdade! - concordou Cadfael sentenciosamente -, e o mesmo se aplica àquilo que se observa. Nunca se sabe em que altura se pode encaixar tudo num quadro mais amplo.

 

Fora exactamente a sua capacidade de observação que lhe permitira dar sentido a certos pormenores que se começavam agora a encaixar e a elaborar-lhe o quadro de um jovem aventureiro, alegre e simpático. Um jovem sem posses, a necessitar urgentemente de recursos para ir até Gloucester e que, sem dúvida, se deslocara a Inglaterra com uma lista de nomes memorizados dos simpatizantes da causa da imperatriz, alguns deles, aqui mesmo, em Shropshire. Uma mulher dedicada e cheia de ansiedade pelo seu filho de leite, vindo trazer bolinhos de mel e levando consigo uma pequena oferta, que escondera desembaraçadamente no vestido junto ao peito, saída das vestes de Benet. E, pouco tempo depois, a Menina Sanan Bernières, filha de um pai espoliado por ter aderido a Maud e enteada de um nobre da mesma facção, fizera-lhe uma breve visita, vindo da casa de Giffard, perto de Saint Chad, a fim de comprar ervas aromáticas para os cozinhados de Natal, parando no jardim para falar com o rapaz e olhá-lo de cima a baixo, como se, segundo lhe relatara o rapaz, tivesse necessidade de um pagem - ”e pensasse que eu poderia servir, depois de limadas algumas arestas”.

 

Bem, bem! Até agora, tudo fazia sentido. Contudo, por que razão o rapaz ainda continuava aqui, se pedira ajuda e esta lhe fora oferecida?

 

Neste quadro incompleto, a morte súbita do padre Ailnoth intrometeu-se, como uma mancha negra numa página meio escrita, complicando tudo, aparentemente não relacionada com coisa alguma. Um pássaro tão agoirento em vida como depois de morto.

 

A perseguição de Nínian Bachiler, como proscrito por ser um agente da imperatriz Maud, a monte no território de Stephen, foi devidamente anunciada em Shrewsbury, e a notícia espalhou-se com uma verbosidade mexeriqueira, ainda mais profusa por servir de escape à opressão anterior,

 

originada pela morte do padre Ailnoth, a respeito da qual ninguém fora loquaz a não ser em privado. Era bom ter um tópico de conversa que tanto se afastava daquilo que na realidade preocupava os paroquianos de Holy Cross, visto que nenhum dos linguareiros se ralava minimamente com o número de dissidentes à solta no condado e a tagarelice não representava qualquer ameaça para os fugitivos e ainda menos para Benet, o respeitoso sobrinho da Senhora Hammet, que se deslocava com todo o à-vontade entre a abadia e a residência paroquial.

 

Na tarde do dia 29 de Dezembro, Cadfael foi chamado pelas primeiras vítimas da tosse e dos resfriamentos em Foregate e estendeu as suas visitas até à cidade para acudir a um mercador idoso, um doente crónico que sofria do peito no Inverno. Deixara Ninian a serrar e a partir a lenha que sobrara da poda das árvores, enquanto, cautelosamente, vigiava também um recipiente à beira do braseiro com ervas em óleo de amêndoas, que devia aquecer sem levantar fervura, a fim de preparar uma loção para as mãos ulceradas pelo frio, demasiado sensíveis para aguentar o unguento à base de banha de porco. Confiava que o rapaz seguiria as instruções à risca, pois tudo o que fazia era com o máximo empenho.

 

As incumbências de Cadfael levaram-no a despachar-se mais cedo do que esperara, e o mau tempo não o convidava a demorar-se mais. Entrou pela casa do portão quando ainda faltava mais de uma hora para Vésperas. Atravessou o pátio grande em direcção ao jardim e contornou a sebe de buxos até ao caminho que dava acesso ao seu herbário. Por causa da geada, envolvera as botas com panos de lã para não escorregar nas estradas cobertas de gelo e esta mesma precaução sensata fez que os seus passos se tornassem silenciosos durante o trajecto. Assim aconteceu que ouviu vozes, antes de a sua presença ser notada, apressadas, suaves e veementes vindas da sua oficina. Uma das vozes era a de Ninian, um tom acima do habitual devido a uma violenta exaltação reprimida. A outra, insistente e agitada, pertencia a uma rapariga. Era curioso notar que também a voz dela transmitia a mesma imprudente sensação de prazer ao experimentar o perigo e o medo. Uma combinação perfeita! E que outra rapariga estivera relacionada com aquele lugar e com aquelejovem a não ser Sanan Bernières?

 

- Oh, mas capaz disso é ele! - exclamava ela convincentemente. - Já lá deve estar agora, e dir-lhes-á tudo, onde o encontrar, como você o convocou... tudo! Tem de vir agora, depressa, antes que o venham buscar.

 

- É impossível sairmos pela casa do portão - disse Ninian -, iríamos ao encontro deles. Mas não consigo acreditar... por que razão havia de me trair? Decerto sabe que eu nunca mencionaria o nome dele!?

 

- Tem estado aterrado - contestou impacientemente a rapariga - desde que recebeu a sua mensagem, mas agora, que foi tornado público que você é um homem procurado, fará tudo para se livrar do perigo que ele próprio corre. Ele não é mau... procede como os outros, protege a sua vida, as suas terras e o seu filho... há algum tempo atrás, perdeu bastante...

 

- É verdade - reconheceu Ninian, arrependido. - Eu nunca o deveria ter metido nisto. Espere, tenho de tirar isto daqui, não posso deixar que levante fervura, Cadfael...

 

O despudorado espia, que ouvira algumas palavras de consideração respeitantes à sua pessoa e à sua arte, caiu subitamente em si e apercebeu-se de que, numa questão de segundos, aqueles dois sairiam da cabana, fugindo por um qualquer caminho que esta engenhosa rapariga já planeara. Demoraria apenas o tempo necessário para que o rapaz retirasse o óleo calmante da fonte de calor e o colocasse cuidadosamente num local seguro. Abençoado fosse o rapaz, merecia chegar, em segurança, a Gloucester! Cadfael rapidamente se arremessou para detrás da barreira formada pela sebe de buxos e ali ficou quieto e enregelado. Não teve tempo de se esconder completamente, no entanto, nada garante que, se pudesse, o tivesse feito. Precipitaram-se para fora da oficina de mãos dadas. Era ela quem chefiava, pois sabia qual o percurso que fizera para entrar ali despercebidamente. Levou-o pelo jardim até à beira do declive e desceram em direcção ao riacho Meole. Ela desapareceu primeiro, uma pequena figura escura envolta numa capa, diminuindo rapidamente de tamanho até desaparecer de vista, ao longe, no campo. Ninian seguia-a. Caminharam pela berma dos ervilhais, há pouco arados e adubados, e sumiram-se. O riacho estava congelado e o açude devia estar no mesmo estado. Ela fizera esse percurso, indo direita ao sítio onde sabia que o iria encontrar. Contudo, também poderia facilmente ter lá encontrado Cadfael. O que, decerto, significava que conversara com Ninian já depois de este ter conversado com Cadfael e, portanto, não via razão para temer o encontro quando a urgência era tão grande.

 

Bom, já se tinham ido embora. Nenhum som chegava, vindo do vale do riacho, e havia árvores bastante juntas na outra margem, onde se podiam camuflar, atravessar de novo o riacho pela ponte, que fazia ligação com a estrada a oeste, e dirigir-se discretamente para o esconderijo que ela arquitectara para o seu refém, dentro ou fora da cidade. Se fosse fora da cidade, seria seguramente para oeste, visto que era esse o destino que, por último, ele pretendia tomar. Porém, iria Ninian concordar em partir, sem saber se Diota se encontrava em segurança e livre de quaisquer suspeitas relacionadas com a sua expedição? Se a sua identidade fosse descoberta, também ela ficaria sujeita a um interrogatório. Não a podia abandonar sem mais nem menos. Cadfael já conhecia este jovem suficientemente bem para ter a certeza disto.

 

Fizera-se um silêncio profundo, como se o próprio ar aguardasse o inevitável alarme que se seguiria. Cadfael arranjou tempo para ir espreitar a oficina e viu o recipiente com o óleo cuidadosamente colocado em cima da pedra a arrefecer, junto ao braseiro, e de novo se retirou apressadamente rumo ao pátio grande, percorrendo-o em direcção ao claustro, tendo cuidado para que a sua presença não se fizesse notada, mas sempre na ansiosa expectativa de poder testemunhar a qualquer instante uma invasão junto à casa do portão.

 

Demoraram mais a aparecer do que esperara e sentiu-se grato por isso. Ainda por cima, levantou-se um súbito nevão, que encobriria as pegadas no riacho, e o aumento das rajadas de vento naquele fim de tarde ocultaria quaisquer pistas deixadas no horto. Até àquele momento, não tivera tempo de ponderar nas implicações daquilo que escutara. Era óbvio que Ninian apelara a Ralph Giffard, que por sua vez fizera orelhas moucas, consciente do perigo que correria caso respondesse. No entanto, a rapariga nascida noutra família não menos dedicada à causa da imperatriz encarregara-se do assunto, assumindo-o como seu. E, agora, amedrontado pela proclamação pública de um inimigo, Giffard pensara que o melhor a fazer seria garantir o seu estatuto, relatando a história completa a Hugh Beringar, que, apesar de não ficar grato pela atenção prestada, se viu obrigado a actuar ou pelo menos a representar um papel verosímil de quem está a agir. Tudo isto levantava uma questão curiosa: onde teria ido Ralph Giffard tão decidido e apressado, na véspera de Natal, atravessando a ponte a passadas largas, dirigindo-se para Foregate, com uma pressa quase tão impetuosa como a do padre Ailnoth cerca de uma hora mais tarde na direcção oposta? Aquelas duas figuras absortas pareciam, agora, imagens em espelho de um mesmo homem. Giffard mais medroso, talvez, e Ailnoth mais malévolo. Havia uma ligação entre eles, mas faltava a peça articulatória.

 

E lá vinham eles, a passar pela arcada da casa do portão, a pé, Hugh com Ralph Giffard severo e empertigado a seu lado, Will Warden e dois jovens oficiais do Exército logo atrás. Neste caso, a cavalaria era desnecessária, visto estarem à procura de um jovem sem cavalo e sem um chavo, a trabalhar nos jardins da abadia. Fora isso, a prisão que o aguardava situava-se a uma distância que podia ser facilmente percorrida a pé.

 

Cadfael demorou a mostrar-se. Outros foram ter com eles primeiro, e ainda bem. O irmão Jerome não gostava de se expor ao frio, mas tinha o hábito de vigiar atentamente o mundo exterior sempre que se encontrava na sala de convívio nestes dias invernosos, pronto a apresentar-se, de um momento para o outro, cumpridor e devoto. Ainda por cima, sabia sempre onde encontrar o prior, em caso de necessidade. Na altura em que Cadfael apareceu, do lado do claustro, ambos já lá estavam, enfrentando os visitantes do mundo secular. Mais alguns irmãos haviam reparado no ajuntamento e detiveram-se, a uma distância que lhes permitisse ouvir, por mera curiosidade humana, esquecendo-se dos pés e das mãos enregelados.

 

- O jovem Benet? - dizia o prior Robert num tom espantado e desdenhoso, quando Cadfael se aproximou. - O palafreneiro do padre Ailnoth? Foi o bom padre que pediu emprego para este jovem. Que tipo de absurdo é este? O rapaz não passa de um simplório, um simples campónio! Falei muitas vezes com ele, sei que está inocente. Senhor xerife, acho que este cavalheiro lhe está a tomar o seu tempo com um engano. Isso não pode ser verdade.

 

- Senhor prior, se me permite - contestou firmemente Ralph Giffard -, é mesmo verdade, ele não é quem parece ser. Recebi uma mensagem, muito bem escrita por esse mesmo simplório, lacrada com o símbolo do traidor e fora da lei, FitzAlan, o homem da imperatriz que se encontra presentemente em França, em que me era pedido auxílio em nome de FitzAlan... um apelo que, como era meu dever, deixei sem resposta. Guardei o pergaminho que o senhor xerife já teve oportunidade de verificar. Dizia que viera para cá com o novo padre e que necessitava de ajuda, de notícias e de um cavalo. Pretendia o meu auxílio para obter o que queria. Pediu-me que me encontrasse com ele no moinho, uma hora antes da meia-noite na véspera de Natal, quando toda a gente se estivesse a preparar para ir à igreja. Não fui, não me atreveria a cometer uma tal traição contra o nosso rei. Porém, a prova entreguei-a eu ao xerife, aqui presente, e não há nem pode haver qualquer engano. O seu trabalhador, Benet, é Ninian Bachiler, o agente de FitzAlan, pois foi assim que assinou com a sua própria mão.

 

- Temo que seja esta a verdade, senhor prior - disse prontamente Hugh. Mais tarde, haverá perguntas a fazer, mas agora, se me dão licença, tenho de ir, imediatamente, procurar esse tal Benet, e ele terá de prestar contas. Os irmãos não vão ser incomodados, peço apenas o acesso ao jardim.

 

Foi nesse momento que Cadfael avançou, saindo do claustro a passos firmes pelo cascalho cheio de gelo, pois os seus pés ainda estavam envoltos em lã. Apareceu, todo ouvidos e com uma expressão inocente. A neve continuava a cair, ociosa e indiferente, mas cada floco que caía ficava congelado no sítio onde pousava.

 

- Benet? - inquiriu ingenuamente Cadfael. - Estão à procura do meu trabalhador? Deixei-o há não mais de um quarto de hora na minha oficina. Que lhe querem?

 

Acompanhou-os, mostrando grande preocupação e espanto, enquanto avançavam para o horto. Escancarou a porta da oficina, expondo perante os olhares a incandescência suave do braseiro, o recipiente contendo óleo e ervas, que fora retirado para a pedra mármore, e o vazio aromático. Dali foram passar a pente fino todo o horto e os campos que conduziam ao riacho, onde a neve prestável já havia obliterado todas as pegadas. Mostrava-se tão confuso como o mais ingénuo de todos eles. E, se Hugh evitou olhá-lo uma única vez que fosse, isso não significava que não tivesse observado todos os aspectos desta perseguição vã, antes pelo contrário, e nutria poucas dúvidas acerca de quem era o responsável por esta confusão. Regra geral, havia uma boa razão para que o irmão Cadfael não se mostrasse cooperante. Além disso, havia outras questões que precisavam de ser analisadas, antes de se prosseguir com a busca.

 

- Diz-me - perguntou Hugh, virando-se para Giffard -- que recebeu este pedido de ajuda um dia antes da véspera de Natal, tendo-lhe sido solicitado um encontro no moinho, um pouco antes da meia-noite. Por que não foi logo transmitir essa informação ao meu delegado? Poderia ter-se agido nessa altura. É evidente que alguém já o informou da nossa presença aqui, visto que fugiu.

 

Se Giffard ficou incomodado pela negligência dos deveres de um súbdito leal, não o deixou transparecer, e em vez disso olhou frontal e firmemente para a cara de Hugh.

 

- Porque só cá estava o seu delegado, senhor. Caso você cá estivesse... Assumiu o seu cargo imediatamente após o cerco de Shrewsbury e sabe muito bem o que nos aconteceu, a nós, que jurámos vassalagem à imperatriz, sabe das minhas perdas. Desde então, submeti-me ao rei Stephen e mantive-me fiel. Porém, um jovem como Herbard, novo por estes lados, a ocupar este cargo é passível de o querer assumir com dignidade... mas ignorando o passado e o preço que paguei... Tive medo de ser detido como um dos implicados, mesmo que confessasse honestamente a verdade sobre tudo o que sabia. E, se bem se lembra, ainda nada sabíamos acerca de este Bachiler estar a ser procurado no Sul, o seu nome nada significava para mim. Pensei que se tratasse de alguém sem importância e sem perspectivas de conseguir juntar apoiantes para uma causa perdida. Por isso, mantive-me calmo, apesar do selo lacrado de FitzAlan. Vários dos seus cavaleiros já apresentaram tais símbolos em nome dele. Faça-me justiça, mal o pregão foi tornado público e me apercebi do que estava a acontecer, vim ter consigo e contei-lhe a verdade.

 

- Concedo-lhe isso - retorquiu Hugh - e compreendo as suas hesitações, embora não seja tarefa minha a de perseguir um homem por acontecimentos que já lá vão.

 

- Mas, agora, senhor... - Giffard ainda não terminara, e era notório que se enchera de coragem com a sua própria retórica e devido à aquiescência de Hugh, pois subitamente ficou num estado de exaltação fervorosa. - Isto é mais sério do que pode parecer à primeira vista, pois eu ainda não disse tudo, praticamente não tenho tido tempo para pensar. Veja então, este jovem veio para cá sob a protecção do padre Ailnoth, enganou-o vilmente, fingiu ser um jovem inofensivo à procura de um emprego e parente da mulher que cuidava da casa dele. E não é o padre Ailnoth que o trouxe inocentemente para cá que está morto, neste momento, a aguardar o seu enterro? Quem poderá ser o principal suspeito do assassínio se não o homem que maldosamente se aproveitou da sua bondade e fez dele um cúmplice involuntário da traição?

 

Sabia perfeitamente o tipo de insinuação que estava a lançar para o círculo dos seus ouvintes, chegara até a recuar um ou dois passos para melhor observar o choque produzido e se distanciar dele. Não havia nada que ele não fizesse agora para provar a sua integridade e lealdade, para conservar o que ainda lhe restava, apesar de continuar, eternamente, a ressentir e a lamentar tudo o que perdera por causa da sua anterior jura de fidelidade. Talvez se sentisse até secretamente aliviado por o rapaz que ele denunciara se encontrar longe do alcance e nunca ter de vir a prestar contas, mas o que mais lhe interessava, neste momento, era a sua própria inviolabilidade.

 

- Está a acusá-lo de assassínio? - inquiriu Hugh, olhando-o intensamente. - Parece-me que está a ir longe de mais. Em que baseia a sua acusação?

 

- A sua própria fuga aponta para isso.

 

- Essa até podia ser uma razão válida, mas não... note bem o que digo!... Não, a menos que o padre tivesse sido informado da fraude de que fora vítima. Tanto quanto sabemos, não houve qualquer contenda entre eles, nada que os tenha tornado inimigos. A não ser que o padre tenha descoberto o logro, não vejo qualquer fundamento para que se gerasse hostilidade entre eles.

 

- O padre sabia - afirmou Giffard.

 

- Continue - disse Hugh, após um breve mas profundo silêncio. - Não pode calar-se agora. Como sabe que o padre descobriu?

 

- Pela mais fiável das razões. Fui eu quem lho disse. Eu já tinha dito que ainda havia coisas para vos contar. Na véspera da Natividade, fui até casa dele e contei-lhe que fora enganado e defraudado pelo jovem que ele ajudara. Meditei com grande ansiedade e, embora não me tenha dirigido ao seu delegado, considerei ser o meu dever avisar o padre Ailnoth de que havia dado asilo a um inimigo sem o saber. Os que pertencem ao partido da imperatriz estão agora ameaçados de excomunhão, como o senhor xerife testemunhou. O padre foi vítima de uma vergonhosa impostura, e, portanto, avisei-o.

 

Fora então assim que tudo se passara! Fora para lá que ele se dirigira, antes de Completas, tão resoluto e apressado. E fora essa a razão que levara o padre Ailnoth, por vingança, a sair disparado para ir ao local do encontro nocturno confrontar pessoalmente o jovem que o enganara. Faça-se-lhe justiça, não era cobarde, não foi a correr ter com os sargentos para arranjar um guarda-costas, avançou tempestuosamente em direcção ao açude, a fim de confrontar o seu opositor num frente-a-frente, desmascará-lo e possivelmente tentar até subjugá-lo com as suas próprias mãos. Decerto, iria denunciá-lo ao abade e às autoridades do castelo como sendo um fora-da-lei, caso não o conseguisse chamar à razão. Mas tudo se passara de modo muito diferente, pois Ninian aparecera na igreja ileso e Ailnoth acabara no açude com a cabeça partida. E quem conseguiria, agora, evitar estabelecer esta simples ligação? Quem, excepto Cadfael, que passara tantos dias na alegre companhia de Ninian e ficara a conhecê-lo tão bem?

 

- Depois de o ter deixado - perguntou Hugh, olhando para Giffard com determinação -, acha que ele resolveu comparecer em seu lugar, visto que sabia a hora e o local de encontro e que você recusara o convite? Mas, sem ter havido aceitação da sua parte, julga que Bachiler iria ao local de encontro?

 

- Não lhe dei resposta. Não houve da minha parte uma recusa inequívoca. Ele pedia ajuda, notícias e um cavalo. Iria! Não se podia dar ao luxo de não comparecer.

 

Nesse caso, ter-se-ia deparado com um inimigo terrível e enraivecido, disposto a denunciá-lo perante a lei, um homem que se considerava a si próprio um instrumento da ira divina. Sim, a morte podia sobrevir de um tal encontro.

 

- Will - disse Hugh, virando-se abruptamente para o seu sargento -, vá ao castelo e traga mais homens. Pediremos licença ao abade para fazer uma busca aos jardins, estábulos, celeiros, pátios, armazéns, tudo. Comecem pelo moinho e não se esqueçam da ponte nem da estrada principal. Se este jovem estava na cabana há menos de meia hora, como alega Cadfael, não poderá ter ido longe. Se foi ele quem matou ou não ainda é uma questão em aberto, o mais importante é apanhá-lo e tê-lo debaixo de olho.

 

- Não se esquecerá - questionou Cadfael, mais tarde, a sós com Hugh, na oficina - de que há outros, muitos outros, com tantas ou mais razões do que Ninian para desejar a morte de Ailnoth?

 

- Não me esqueço disso. O número é surpreendente - concordou Hugh, pesaroso. - E pelo que me diz deste rapaz... não sou assim tão pateta, note bem, para supor que me contou tudo o que sabe!... Penso que ele seria capaz de agredir frontalmente alguém em sua própria defesa, mas que nunca o faria pelas costas. Contudo, poderia fazê-lo debaixo de exaltação no meio do conflito. Quem sabe o que qualquer um de nós é capaz de fazer em momentos extremos? E, pelo que tenho ouvido dizer do padre, ele era capaz de atacar com todas as suas forças e com a arma que se encontrasse mais próxima. Neste momento, é o desaparecimento do rapaz que sugere o pior.

 

- Tinha boas razões para desaparecer - salientou Cadfael -, caso lhe tivessem dito que Giffard se pusera a caminho do castelo para o trair. Você teria de o meter na prisão independentemente de ele ser culpado ou inocente na morte do padre. Você tem ordens a cumprir. É óbvio que ele fugiria.

 

- Se alguém o tivesse avisado - acedeu Hugh com um sorriso irónico. - Você, por exemplo?

 

- Não, eu não - respondeu Cadfael virtuosamente. Nada sabia acerca dos propósitos de Giffard, se não seria bem capaz de deixar escapar uma palavrita aos ouvidos do rapaz. Mas não, não fui eu. Sei que Benet... suponho que lhe devemos chamar Ninian agora!... estava na igreja antes da meia-noite, na véspera de Natal. Se é que chegou a comparecer ao encontro no moinho, foi cedo e cedo regressou.

 

- Já mo disse e eu acredito. No entanto, de acordo com o que me contou, também Ailnoth foi cedo para o local de encontro, talvez para se esconder e apanhar Bachiler de surpresa. Houve tempo suficiente para lutarem e um deles morrer.

 

- O rapaz não apresentava quaisquer sinais de agitação ou de medo na igreja. Estava um pouco excitado, talvez, mas eu diria que era por algo mais aprazível. Conseguiu extrair alguma informação do povo paroquiano? Muitos deles tinham ressentimentos legítimos contra Ailnoth, que têm eles para dizer em sua defesa?

 

-      Regra geral, comojá era de esperar, tão pouco quanto possível. Um ou dois não guardam segredo da gratidão que sentem por o homem já não fazer parte dos vivos. Eadwin, aquele a quem retiraram a pedra de demarcação do terreno, não esqueceu nem perdoou, apesar de a pedra ter sido devidamente reposta. A mulher e os filhos juram que ele não saiu de casa naquela noite... mas todos dizem o mesmo, comojá seria de esperar. Jordan Achard, o padeiro, aí temos um homem capaz de matar debaixo de uma fúria. Ele sofreu uma verdadeira ofensa. O pão é o seu ponto de honra e, quanto a esse insulto, nunca chegou a haver uma reposição da verdade. Feriu-o muito mais do que se o padre o tivesse acusado de ser um famigerado devasso, o que teria, ao menos, a vantagem de ser verdade. Alguns atribuem-lhe a paternidade da bebé da pobre rapariga, daquela que se afogou, mas, segundo já me constou, podia igualmente ser filha de pelo menos metade dos homens da paróquia,

- pois ela não era capaz de dizer não a ninguém. O nosso Jordan diz que esteve em casa, sóbrio, durante toda a véspera de Natal, e a mulher corrobora tudo, mas ela é uma pobre criatura subjugada, que não se atreveria a enfurecê-lo. No entanto, pelo que tenho ouvido, poucas são as noites em que ele dorme na sua cama, e, a julgar pelos olhares de esguelha que a mulher lhe deitou e pelas respostas cautelosas que deu, é bem provável que tenha dormido fora nessa noite. Contudo, nunca conseguiremos levá-la a admitir isso. Ela não lhe tem só medo, é-lhe também fiel.

 

- O mesmo já não se poderá dizer das outras mulheres com quem ele anda - comentou Cadfael. - Porém, não consigo imaginar Jordan como um homem violento.

 

- Talvez não. Mas eu consigo imaginar o padre Ailnoth como uma pessoa violenta, tanto no que se refere ao corpo como ao espírito. E pense, Cadfael, no tipo de reacção que ele teria se por acaso apanhasse um membro do seu rebanho a meter-se sorrateiramente na cama errada. Mesmo que não seja um homem violento, Jordan é grande e forte e pouco dócil para se deixar atacar sem se defender. Podia ter posto fim a uma contenda iniciada por outro homem, sem ser essa a sua intenção. Mas Jordan é apenas um entre muitos e não é o mais suspeito.

 

- Os seus homens têm agido com muito zelo - disse Cadfael suspirando.

 

- Pois têm. Alan estava cheio de brio, devido a merecer o cargo que lhe fora confiado. Há uma pobre alma, que dá pelo nome de Centwin e mora em Foregate para os lados da feira de cavalos, provavelmente voce já ouviu esta história, mas foi novidade para mim até Alan ma ter contado. Trata-se de um bebé que morreu por baptizar, porque Ailnoth não estava para interromper as suas orações. Isso, mais do que tudo o resto, está atravessado na garganta de todos na paróquia.

 

- Será possível que você tenha encontrado algo que comprometa Centwin? - protestou Cadfael. - Não há criatura mais calma à face da Terra, nunca se meteu em sarilhos com ninguém.

 

- Nunca teve razões para isso até agora. Mas isto foi muito grave. E, por mais calmo que Centwin possa ser, ele tem sentimentos. Fecha-se sobre si próprio e cisma nas injustiças de que foi vítima. Falei com ele. Interrogámos o guarda do portão da cidade sobre o que viu na véspera de Natal - disse Hugh.

- Viram que você saiu, e você sabe melhor do que ninguém a que horas e em que sítio se cruzou com o padre. Também viram Centwin sair poucos minutos depois de si, ia a caminho de casa, segundo disse, regressando de uma visita a um amigo, na cidade, para com quem tinha uma pequena dívida. Até aqui é verdade, pois a quantia que ele afirmou ter pago foi confirmada. Queria, disse, ter as contas todas em dia, com tudo pago, antes de ir para Matinas, onde de facto esteve, e foi para casa antes de Laudas. Mas veja como o tempo se encaixa. Uma pessoa que vem poucos minutos depois de si pode ter encontrado Ailnoth e tê-lo visto a afastar-se de Foregate pelo caminho que vai até ao moinho. Não seria possível que ali, na escuridão e no isolamento, pense bem, até mesmo um homem calmo e submisso, mas com uma ferida aberta no coração, pudesse ter visto uma súbita oportunidade para saldar uma dívida mais amarga? E havia tempo entre aquela hora e as Matinas para que pudessem ter lutado e um deles morrer.

 

- Não - replicou Cadfael -, não o creio.

 

- Porque seria uma crueldade somada a outra? No entanto, estas coisas acontecem. Não, anime-se, Cadfael, também a mim me custa a crer, mas é possível. Há um número excessivo de pessoas que não são fiáveis e a cujos testemunhos não se pode dar ouvidos. Demasiada gente o odiava. E ainda temos Ninian Bachiler. Independentemente da verdade, compreende que tenho de fazer tudo ao meu alcance para o encontrar?

 

Olhou para o seu amigo com um sorriso sombrio e reservado que era mais eloquente que as palavras. Já não era a primeira vez que eles faziam uma espécie de acordo tácito, perseguindo cada um aquilo que considerava ser o seu dever, como duas espadas digladiando-se, sem no entanto criarem rancores caso os interesses colidissem.

 

- Oh, sim - assentiu Cadfael. - Sim, compreendo isso perfeitamente.

 

Cadfael voltou à igreja, depois de Prima, para reabastecer a lamparina no altar de Santa Winifred com azeite perfumado. A delicada arte, que seria eventualmente desprezada caso fosse empregue para fazer perfumes destinados à vaidade das mulheres, era admissível e até mesmo digna de louvor, quando usada num acto de adoração, e ele sentia prazer ao experimentar as múltiplas combinações de toda a espécie de ervas e flores fragrantes. Juntava as delícias da rosa e do lírio, da violeta e do trevo com o aroma rico e penetrante da arruda, salva e absinto. Agradava-lhe pensar que a Santa se deleitava por se ver assim servida, pois, apesar de ser virgem santa, era uma mulher e na sua juventude fora bela e desejável.

 

Cynric, o sacristão, entrou pelo pórtico setentrional com a vassoura de ramos na mão, tendo acabado de varrer da entrada e dos degraus os flocos de neve fina que haviam caído durante a noite. Foi abrir o missal que estava no suporte e aparar as velas no altar paroquiano, já pronto para a missa da comunidade. De seguida, foi colocar duas novas velas nos castiçais de ambos os lados da parede. Cadfael deu-lhe os bons-dias, ao vê-lo atravessar a nave, e obteve a habitual resposta serena, mas breve.

 

- Está um frio glacial - comentou Cadfael. - Hoje não se pode abrir a cova para Ailnoth.

 

Pois seria Cynric quem teria de cavar a sepultura, no recinto a leste da igreja, onde os padres, os abades e os irmãos eram depositados para o seu último descanso.

 

Cynric, com os olhos encovados e turvos, inspirou profundamente e deliberou.

 

- É provável que haja uma mudança antes do amanhecer. Sinto que se aproxima um degelo.

 

Era capaz de ser verdade. Ele vivia numa total intimidade, ainda que neutra, com os elementos da Natureza, tolerando-os na medida em que se abstinham de o maltratar, pois devia fazer um frio de morte no seu pequeno cubículo de pedra por cima do pórtico.

 

- Já foi escolhido o local? - perguntou Cadfael, agarrando no hábito sombrio.

 

- Junto à parede.

 

- Então, não vai ficar ao lado do padre Adam? Pensei que o prior Robert quereria pô-lo lá.

 

- Pois queria - respondeu Cynrie concisamente. - Eu disse-lhe que a terra ainda não tinha assentado e que precisa de tempo para acamar.

 

- É pena que tenha vindo esta geada tão intensa. Um morto, entre nós, à espera de ser enterrado faz que os jovens se sintam perturbados.

 

- Ai - suspirou Cynric. - Quanto mais depressa for para debaixo da terra melhor será para todos. Agora que já está morto.

 

Endireitou a segunda vela no suporte e afastou-se para se certificar de que ficara direita e nãogotejaria. Esfregou as mãos a fim de se livrar da sensação pegajosa causada pelo sebo. Então, pela primeira vez, levantou os seus olhos muito olheirentos para Cadfael, e a fisionomia iluminou-se-lhe com um sorriso singular, ainda que de uma docilidade triste, o mesmo que atraía as crianças com uma tão serena confiança parajunto de si.

 

- Vai, hoje de manhã, a Foregate? Ouvi dizer que há várias pessoas com problemas por causa do frio.

 

- Não admira nada! - exclamou Cadfael. - Irei ver uma ou duas crianças, mas por enquanto ainda não há doenças graves. Porquê, sabe de alguém que esteja a necessitar de mim? Estou de licença e não me importo de fazer mais uma visita. Quem está doente?

 

- Trata-se do pequeno casebre de madeira, que fica na viela por detrás da feira de cavalos, onde mora a viúva Nest. Está a cuidar da neta, pobre criatura, a bebé de Eluned, e está numa grande aflição. - Cynric, por força das circunstâncias, exprimia-se com uma loquacidade invulgar. - Rejeita o leite e chora com cólicas intestinais.

 

- A criança nasceu saudável? - inquiriu Cadfael. Pois não podia ter muitas semanas de idade, e sendo órfã de mãe, estava privada do melhor alimento. Não esquecera ainda o choque e a raiva que arrebatara Foregate em peso, ao perder a sua prostituta favorita. Se é que, de facto, Eluned era passível de ser considerada uma prostituta. Nunca pedira qualquer pagamento, e, se os homens lhe haviam dado algo, tinham-no feito de livre vontade. Ao que parecia, ela nada mais fizera do que dar, não obstante a insensatez.

 

- É uma menina robusta, grande e saudável, de acordo com as palavras de Nest.

 

- Então, tem na sua natureza, apesar de ser ainda tão pequena, a força para lutar pela vida - disse Cadfael tranquilamente. - Tenho de ir buscar o xarope adequado para o estômago de um bebé. Vou fazer um novo preparado. Quem diz a missa hoje?

 

- O irmão Anselm.

 

- Ainda bem para si! - exclamou o irmão Cadfael, encaminhando-se para o pórtico sul, de onde o percurso para o horto e oficina era mais rápido. - Podia ter calhado a vez ao irmão Jerome.

 

A casa era baixa e estreita, mas sólida, e estava encostada a outra mais alta. A viela escura onde se situava parecia fresca e limpa devido à intensa geada, embora em tempo húmido e ameno pudesse assemelhar-se a um buraco fedorento. Cadfael bateu à porta e, de imediato, para evitar qualquer sobressalto, bradou em voz alta:

 

- É o irmão Cadfael, da abadia, senhora. Cynric disse-me que precisava de mim por causa da criança.

 

Se foi o seu próprio nome ou o de Cynric que fez dele uma pessoa bem-vinda, não se sabe, porém, nesse mesmo instante, do interior chegou o som de uma grande agitação, era o choro agitado de um bebé, provavelmente por ter sido largado à pressa. De seguida, a porta escancarou-se e da semiobscuridade uma voz de mulher convidou-o a entrar e apressou-se logo a fechar a porta para impedir a entrada do frio.

 

Toda a casa se reduzia a este pequeno quarto e a única entrada de luz ou escape para os fumos era um respiradouro no telhado. Em havendo bom tempo, a porta ficava aberta desde a madrugada até ao anoitecer, mas a geada fechara-a, e a habitação estava iluminada pela única lamparina existente e pelo brilho ténue, mas constante, de uma lareira acesa num recipiente de ferro em cima de uma pedra, por debaixo do respiradouro. Abençoadamente, alguém fornecera carvão para suprir às necessidades da viúva, e, apesar de se sentir o cheiro da combustão, havia muito pouco fumo no ar. A mobília era escassa, um divã baixo a um canto, alguns tachos junto à pedra onde se cozinhava e uma pequena mesa grosseira. Cadfael levou algum tempo a habituar os olhos à obscuridade, contudo, o contorno dos objectos foi surgindo gradualmente. A mulher ficou de pé, a seu lado, à espera, e, à semelhança de tudo o mais naquele quarto, começou a ganhar contornos até se tornar um ser humano perceptível. O berço, o mais importante foco de interesse da casa, fora colocado no canto mais resguardado, num sítio onde recebia o calor do lume, mas fora do alcance das correntes de ar vindas da porta ou do respiradouro. A criança, lá dentro, gemia indignada, envolta numa manta, meio a dormir, mas incapaz de cair num apaziguante sono profundo devido ao mal-estar.

 

- Trouxe comigo um toco de vela - disse Cadfael, sem pressa, assimilando tudo o que estava à sua volta. - Pensei que poderíamos necessitar de mais luz. Se não se importa!

 

Tirou-o do saco, inclinou o pavio e acendeu-o na pequena chama da lamparina de barro e colocou depois o coto de vela a um canto da mesa, de modo a que irradiasse luz suficiente para iluminar o berço. Tinha uma base bastante larga e fora retirado de um dos castiçais da parede da igreja. Eram-lhe úteis nestas suas missões, porque se aguentavam na vertical em qualquer superfície plana e não havia o risco de tombarem. Nestes frágeis casebres de madeira, havia necessidade de tomar tais precauções. Esta habitação, apesar da sua pobreza, tinha uma construção mais sólida do que muitas outras.

 

- Têm-na abastecido de carvão? - inquiriu Cadfael, virando-se para a mulher, que estava muito quieta, fitando-o com um olhar parado e desiludido.

 

- O meu homem, que já morreu, era um guarda-florestal em Eyton. O homem da abadia, que ocupa agora esse lugar, não se esquece de mim. Traz-me lenha e também ramos e aparas de madeira para atear o lume.

 

- Assim está bem - disse Cadfael -, um bebé tão pequeno necessita de calor. Agora diga-me, que se passa com ela?

 

A própria criança estava a dizer-lho com os seus pequenos e agitados gemidos vindos do berço, no entanto, estava bem agasalhada e limpa e tinha uma voz saudável de uma bebé bem alimentada, que usava para se queixar.

 

- Há três dias que vomita o leite e berra com cólicas, mas tenho-a bem agasalhada, não apanhou frio. Se a minha pobre filha fosse viva, esta pequerrucha seria alimentada ao peito, em vez de andar a sorver por uma colher ou pelos meus dedos, mas está morta e deixou-me esta bebé, que é tudo o que eu tenho agora, e tudo farei para a manter saudável.

 

- Pelo aspecto, tem-se alimentado muito bem. - afirmou Cadfael, inclinando-se sobre a criança queixosa. - Que idade tem ela agora? Seis semanas ou sete? Está grande e robusta para a idade.

 

O pequeno rosto deformado pela boca de pranto e pelos olhos muito fechados, contorcido pela irritação, era redondo e de tez clara, embora estivesse vermelho neste momento por causa do esforço e da zanga. Tinha o cabelo fino e abundante, de um brilhante castanho outonal, com tendência para formar caracóis.

 

- Alimentava-se bem, sim, de facto é verdade, até acontecer este transtorno. Era mesmo uma grande comilona, eu orgulhava-me dela.

 

”E enchia-lhe demasiado o estômago” pensou Cadfael, ”e a pequena sem ter ainda capacidade para distinguir que já ingerira a dose adequada. Aqui não há grande mistério.”

 

- Uma boa parte do problema é isso mesmo, vai ver. Dê-lhe pequenas doses de cada vez e com frequência, juntando ao leite algumas gotas deste xarope que vou cá deixar. Arranje uma colher pequena para lhe darmos, agora, uma boa dose deste preparado. Vai acalmá-la.

 

A viúva trouxe-lhe uma colherzinha de osso. Ele destapou o frasco de vidro que trouxera, molhou a ponta do dedo e levou-o aos lábios do bebé irritado. Depressa a choradeira parou e as feições contorcidas retomaram uma forma humana, chegando mesmo a ficar com uma expressão de espanto e surpresa. A boca fechada, com os pequenos lábios dobrando-se sobre uma doçura inesperada, transformou-se miraculosamente numa boca demasiado bonita e delicada para um bebé com sete semanas apenas, deixando no ar uma longínqua promessa de beleza. O vermelho da fúria desvaneceu-se lentamente, as bochechas gorduchas adquiriram um tom rosado e a filha de Eluned abriu os grandes olhos, de um azul quase tão escuro como o céu à noite, e sorriu com um sorriso demasiado atento e comunicativo para as suas poucas semanas de vida. É verdade que, no momento seguinte, enrugou a cara e deixou sair um queixume, porém a imagem de beleza permaneceu.

 

- Olhem-me só para isto! - exclamou a avó com profundo carinho. - Ela gostou!

 

Cadfael encheu meia colher e levou-a aos lábios do bebé, que imediatamente abriu a boca para sugar a oferta. Engoliu bastante bem, restando apenas uma camada de brilho nos lábios descontraídos. Ficou algum tempo a olhar para cima, em silêncio, com aqueles olhos que lhe devoravam metade da cara, um pouco abaixo da testa larga e do tufo de cabelos castanhos. Depois, virou ligeiramente a cabeça na almofada rasa, deu um ressonante arroto e ficou em repouso, com as pálpebras semicerradas e os dedos infinitesimais dobrados nuns pequenos punhos tranquilos junto ao queixo.

 

- Ela não tem nada que suscite quaisquer preocupações assegurou Cadfael tapando o frasco. - Se acordar e chorar de noite com dores, pode dar-lhe um pouco disto numa colher, como eu fiz. Alimente-a dando-lhe quantidades menores do que lhe tem dado e deite três ou quatro gotas deste preparado no leite. Dentro de poucos dias veremos a evolução.

 

- Que contém? - perguntou a viúva, examinando o frasco na sua mão, cheia de curiosidade.

 

- Aneto, erva-doce, hortelã e uma pequena porção de extracto de papoila... e mel para lhe dar um sabor agradável. Ponha-o num lugar seguro e use-o como lhe ensinei. Se ela voltar a ficar nesta agitação, dê-lhe uma dose igual à que me viu dar-lhe. Se ela passar bem, então poupe o xarope, à excepção de uma ou duas gotas no leite. Os medicamentos fazem muito mais efeito se forem usados apenas quando necessário.

 

Soprou a vela que trouxera e esperou que a cera arrefecesse e solidificasse, pois ainda daria para mais ou menos uma hora de luz e podia voltar a desempenhar a mesma função. Nesse mesmo instante, arrependeu-se por ter reduzido, tão precipitadamente, a luz no quarto, pois só agora tinha oportunidade para observar a mulher. Esta era a viúva, a mãe da rapariga que fora impedida de entrar na igreja por ser uma pecadora irredimível, em cuja confissão e penitência não se podia confiar, e portanto susceptível de ser legitimamente rejeitada. Fora neste pequeno casebre escuro que aquela beldade desequilibrada florira, dera fruto e morrera.

 

Também a mãe, no seu tempo, devia ter sido bonita. Ainda tinha feições bonitas, embora fatigadas e com rugas de desilusão. O cabelo, que começava a ficar grisalho, estava apanhado e ainda era abundante, apresentando vestígios da cor de outrora, um intenso castanho-avermelhado. Não se conseguia ver se os olhos sombrios e encovados, que estudavam a neta com uma tão grande carga de amor amargurado, eram azul-escuros, mas era natural que fossem. Provavelmente, ainda não fizera 40 anos. Cadfael vira-a por Foregate, de vez em quando, mas nunca antes lhe prestara tanta atenção.

 

- Tem aqui um vistoso bebé - comentou Cadfael. - É capaz de vir a dar uma linda criança.

 

- Preferia que fosse feia - retorquiu a viuva incisivamente

- do que ser bonita como a mãe e seguir-lhe os passos. Sabe de quem ela é filha? Toda a gente sabe!

 

- A culpa não é da miúda que cá ficou - contestou Cadfael.

- Espero que o mundo a trate melhor do que tratou a mãe.

- Não foi o mundo que a repudiou - asseverou Nest -, mas a igreja. Ela conseguia lidar com a malevolência do mundo, só não aguentou quando o padre lhe impediu a entrada na igreja.

- O culto significava assim tanto para ela - perguntou Cadfael muito sério - que não conseguisse viver excomungada?

 

- Sinceramente, significava. Nunca a chegou a conhecer! Era tão extravagante e impetuosa quanto bonita, mas era uma criatura tão viva, amável e generosa que eu tinha aqui em casa, e, apesar de toda a sua impulsividade, deixava-se magoar muito facilmente. Ela, que não suportava magoar ninguém, estava constantemente a ser magoada. Exceptuando aquele defeito, que ela não conseguia evitar, ninguém poderia ter sido uma filha melhor ou mais meiga do que ela foi para mim. Não pode imaginar como era! Desde que estivesse ao seu alcance, não recusava a ninguém nada do que lhe pediam. Os homens descobriram-lhe o ponto fraco e não tiveram vergonha... porque o pecado era algo de que ela falava sem lhe conhecer o significado... não sabia dizer um não aos homens. Era capaz de ir com um homem por ele estar triste, ou porque fora injustamente acusado ou espancado e estava ressentido com o mundo. E depois ocorria-lhe que aquilo que fizera poderia ser, de facto, um pecado, como o padre Adam lhe dissera, embora não percebesse porquê. Então, ia a correr confessar-se, lavada em lágrimas, prometia emendar-se, e as suas intenções eram sinceras.

O padre Adam era bondoso para com ela, percebia que não era como as outras jovens. Tratou-a sempre com justiça e amabilidade, dava-lhe uma penitência leve e nunca lhe recusava a absolvição. Ela prometia sempre emendar-se, mas depois esquecia tudo, por causa da conversa fiada de algum rapaz ou pelos seus bonitos olhos, e pecava outra vez e outra vez se ia confessar e era absolvida. Não sabia evitar os homens, mas também não conseguia viver sem a bênção e o consolo da igreja. Quando a porta lhe foi fechada na cara, foi-se embora solitária e solitária morreu. E, apesar de em vida ela representar um tormento para mim, também me dava muitas alegrias, e agora só tenho tormentos e quanto a alegrias nada... a não ser esta criatura por quem tanto temo, aqui no berço. Olhe, adormeceu!

 

- Sabe - perguntou Cadfael pensativo - quem é o pai? Nest abanou a cabeça e esboçou um leve sorriso amargo.

- Não. Mal percebeu que ele poderia vir a ser acusado, guardou segredo e até de mim o escondeu. Se é que ela chegou a saber qual deles a engravidara! No entanto, penso que ela sabia. Não era nem louca nem estúpida. Era mais esperta do que a maioria, apesar da falta de sensatez. Era capaz de confrontar o homem cara a cara, mas nunca o trairia ao padre de negro. Oh, ele perguntou-lhe! Ameaçou-a, enfureceu-se, mas ela disse-lhe que responderia apenas pelos seus pecados e faria a penitência, mas que o pecado de um outro homem era da exclusiva responsabilidade deste e que o mesmo se deveria aplicar no que se referia à confissão.

 

- Uma boa resposta! - reconheceu Cadfael acenando com a cabeça e suspirando.

 

A vela já arrefecera e solidificara. Voltou a arrumá-la no saco e virou-se para se despedir.

 

- Bem, se ela voltar a ficar agitada, mande-me dizer por Cynric ou deixe recado na casa do portão e eu virei. Porém, acredito que o xarope vai desempenhar a sua função. - Durante um segundo, olhou para trás com a mão na tranca da porta. - Como lhe chamou? Eluned, como a mãe?

 

- Não - respondeu a viúva. - Foi Eluned quem lhe escolheu o nome. Deus seja louvado, foi o padre Adam quem a baptizou, antes de adoecer e morrer. Chama-se Winifred.

 

Cadfael regressou por Foregate com aquele nome a ecoar-lhe na mente. Ao que parecia, a filha de uma proscrita e excomungada fora baptizada com o nome da santa da própria cidade, testemunha da desordenada devoção de Eluned. E, sem dúvida, Santa Winifred saberia onde as encontrar e como olhar por ambas, pela filha viva e pela mãe morta, para com quem a paróquia de Saint Chad revelara uma piedade mais compassiva do que o padre Ailnoth, enterrando-a decentemente, de acordo com o generoso e cristão benefício da dúvida no que dizia respeito às circunstâncias obscuras que envolveram aquela morte por ninguém presenciada. Forte hereditariedade, a destas mulheres casadas com famílias de Shropshire. Nada sabia acerca do guarda-florestal que fora o marido da viúva Nest, mas decerto havia sido ela quem legara à sua filha, autocondenada, a intensa beleza que a conduziu à queda, e, profeticamente, a mesma cara estava reservada para a bebé no seu berço, Winifred. Talvez a escolha daquele nome venerado tivesse sido um gesto de coragem para proteger uma criatura que, de outro modo, seria uma órfã, desprotegida e desamparada num mundo estranho, onde uma união demasiado profícua em generosidade e beleza apenas gerava dor.

 

Agora, ali, no casebre de onde saíra, havia um ser que tinha uma razão fortíssima para odiar Ailnoth e que poderia tê-lo matado, se o pensamento pudesse matar, mas era muito pouco provável que se pusesse a segui-lo numa noite de Inverno para o agredir pelas costas e ainda menos verosímil que o tivesse arrastado, atordoado, para o açude. Tinha um fardo demasiado pesado que a mantinha vigilante e protectora em casa. Porém, o furor de vingança que sentia dentro de si era capaz de persuadir um homem a matá-lo, caso tivesse um amigo tão íntimo e resoluto. No meio de todos aqueles homens que procuraram consolo para os seus males em Eluned, não seria possível que houvesse mais de um disposto e pronto para o fazer? E um deles, em particular, se soubesse da semente semeada - o pai da bebé Winifred.

 

”Por este andar”, pensou Cadfael, um tanto irritado com suas apreensões, ”começarei a olhar de esguelha para todos os homens bonitos que vir, tentando ler-lhes na cara alguma parecença com um assassino. O melhor que tenho a fazer é debruçar-me sobre as minhas obrigações e deixar que seja Hugh a encarregar-se da justiça... não que ele venha a agradecer-me por isso!”

 

Aproximava-se da casa do portão e acabara de chegar a sinuosa travessa que levava à casa do padre. Deteve-se ali, subitamente consciente de que a pesada nuvem se dispersara, deixando-se atravessar por ténues raios de sol. Não de um modo ofuscante e gélido, vindos de um céu pálido e frio, mas perpassando, tímida e involuntariamente, compactas barreiras de nuvens irregulares e despedaçadas. O brilho fulgurante da neve solidificada, pendente ao longo dos beirais, adquirira uma luminosidade mais suave e orvalhada. Havia gotas espalhadas pelas beiras das empenas, onde os raios de sol pousavam timidamente. Era possível que Cynrie tivesse acertado na sua previsão sobre a vinda de um degelo antes do cair da noite. Assim, poderiam ao menos tirar Ailnoth da capela e enterrá-lo, embora a sua sombra funesta continuasse a acompanhá-los.

 

Não havia pressa em regressar à abadia ou à oficina, uma demora de meia hora não prejudicaria ninguém. Cadfael entrou na travessa e pôs-se a caminho da casa do padre. Não sabia ao certo quais os motivos que o levavam a fazer esta visita. Era sem dúvida legítimo querer certificar-se de que as feridas da Senhora Hammet tinham sarado devidamente e de que a pancada na cabeça não deixaria sequelas, mas em parte foi, também, impelido por mera curiosidade. Aqui estava outra mulher cuja atitude face ao padre Ailnoth podia ser considerada excessivamente ambígua, dividida entre a gratidão por um trabalho, que lhe conferira estatuto e segurança, e o desespero perante o ressentimento e a raiva dele ao ver-se enganado, caso tivesse sabido que ele descobrira tudo e que tinha a intenção de se encontrar com o seu filho de leite para o desmascarar e meter na prisão. A opinião que Cadfael tinha sobre Diota era que ela respeitava e temia bastante o seu patrão mas também que se arriscaria a muito pelo rapaz que amamentara. Porém, qualquer suspeita referente a ela era rapidamente contrabalançada pela evocação do seu estado de espírito na manhã do dia de Natal. Era quase certo que, apesar de todo o medo que pudesse ter sentido, após uma noite passada em claro e em vão, só soubera da morte de Ailnoth quando os homens regressaram com o seu cadáver. Por mais que Cadfael dissesse a si próprio que poderia estar a enganar-se ao acreditar nisto, a sua memória rejeitava esta dúvida.

 

Logo a seguir à casa do padre, a estreita travessa abria-se para um pequeno espaço relvado, agora uma área coberta de geada espezinhada, mas com indomáveis tufos de relva verde brotando aqui e ali. Neste recinto confinado, a casa exibia a sua parede sem janelas, a mesma que atraía os jogadores de bola e outros do gênero, levando-os a correr perigos. Neste momento, estavam lá meia dúzia de rapazitos de Foregate a brincar, a chutar bolas de neve ou então a lançá-las de um lugar ambiciosamente longínquo para um alvo colocado numa estaca a um canto do recinto. Um boné redondo e preto com uma ponta descosida a esvoaçar tremia com a suave aragem. Era um solidéu, igual ao que um padre ou um monge usariam, para proteger a tonsura do frio, quando não era conveniente usar capuz.

 

Um pequeno objecto pertencente a Ailnoth e que não fora recuperado com ele, ninguém havia dado pela sua falta. Cadfael ficou de pé a olhar, recordando-se nitidamente da cara do padre, obstinada e terrível, ao passar pelas tochas da casa do portão, sem a sombra de um capuz e com um solidéu, sim, com um solidéu preto, essa peça fina e circular, que não fez sombra e deixou bem à vista a sua raiva apocalíptica.

 

Um dos atiradores, com mais sorte ou mais destro, derrubou o alvo que caiu na relva. O vencedor, depois de triunfar, já não manifestou grande interesse, apanhou-o e fê-lo rodar numa mão, enquanto o resto do bando, caprichoso como é próprio das crianças, desatou numa animada discussão sobre o que iriam fazer a seguir e, como se estivessem debaixo de um tiroteio, desataram a correr pelo relvado para o campo aberto mais além.

 

O rapaz que acertou no alvo começou a segui-los, mas sem pressa, sabendo que parariam tão repentinamente quanto tinham desatado a correr e que os iria apanhar assim que quisesse. Cadfael deu alguns passos para lhe interceptar a passagem e o rapaz, reconhecendo-o, parou. Era um rapaz esperto, com 10 anos de idade, filho da irmã do magistrado de Foregate. Tinha um inescrutável sorriso charmoso.

 

- Que é isso que tens aí, Eddi? - perguntou Cadfael, indicando com a cabeça o solidéu. - Posso vê-lo?

 

Foi-lhe entregue prontamente e com indiferença. Sem dúvida, tinham-no usado para vários jogos, durante alguns dias, e já estavam saturados. Outro brinquedo efémero havia de substituir este sem que lhe dessem pela falta. Cadfael virou-o nas mãos e reparou como o entrançado que o orlava estava rasgado num dos lados, e mexeu na ponta solta. Quando a pôs no lugar, viu que faltava um pedaço do comprimento do seu dedo mindinho e o pespontado de dois dos segmentos que completavam o círculo estava descosido por causa do fragmento que faltava. Era de um tecido preto de boa qualidade, cuidadosamente cosido, com o entrançado feito de lã e à mão.

 

- Onde encontraste isto, Eddi?

 

- No açude - respondeu prontamente o rapaz. - Alguém o atirou fora por estar rasgado. Fomos lá, muito cedo pela manhã, para vermos se o açude estava congelado... e não estava. Mas encontrámos isto.

 

- Em que manhã se passou isso? - questionou Cadfael.

- No dia de Natal. Estava a romper o dia. - O rapaz estava sério, com uma expressão reservada e impenetrável, típica das crianças inteligentes.

 

- Em que parte do açude? Do lado do moinho?

 

- Não, nós fomos pelo outro caminho, onde a água é menos funda. Onde congela primeiro. O canal de descarga, do outro lado, não deixa a água parar.

 

Assim era. Havia uma corrente suficientemente forte na água para que o canal continuasse aberto até que tudo congelasse, e essa mesma corrente transportaria uma coisa leve como o solidéu para a parte menos funda.

 

- Apanharam isto ao pé dos juncos?

 

O rapaz respondeu tranquilamente que sim.

- Por acaso sabes a quem pertence, Eddi?

 

- Não, senhor - retorquiu Eddi com um sorriso ingénuo. Cadfael lembrou-se de que ele era uma daquelas infelizes crianças que tinham andado a aprender a escrever com o padre Adam, indo parar a mãos menos tolerantes após a sua morte. E as crianças injustamente maltratadas não sentem compaixão para com os seus tiranos.

 

- Não faz mal, filho. Já não precisas dele? Dás-mo? Levarei umas maçãs ao teu pai, não é uma má troca. E agora esquece.

 

- Sim, senhor - assentiu o rapaz. Virou costas e escapuliu-se sem olhar para trás, liberto do seu troféu.

 

Cadfael ficou a olhar para a pequena peça de roupa que tinha nas mãos, húmida e mais escura por causa do calor produzido ao ser manejada, mas ainda rija e com alguma geada. Como era estranho imaginar o padre Ailnoth a usar um solidéu com o debrum desfiado e com a costura a desfazer-se! Se é que, de facto, estava nesse estado quando o pôs. Tinha sido arremessado um pouco por todo o lado, desde o dia de Natal, e estes estragos poderiam ter acontecido em qualquer altura depois de ter sido retirado dos juncos, para onde a corrente do canal de descarga o impelira, enquanto o corpo de onde se libertara, sendo mais pesado, se fora afundando, gradualmente, na margem em declive.

 

E não haveria uma outra coisa que também fora esquecida, tal como este solidéu o tinha sido? Algo em que ninguém pensou, mas que deveriam ter procurado? Algo que importunava constantemente os pensamentos de Cadfael, mas que recusava dar-se a conhecer?

 

Pôs o solidéu dentro do saco e voltou atrás para bater à porta da casa do padre. Foi Diota quem lha abriu, cerimoniosa e composta, vestida de negro como habitualmente. Prontificou-se a dar-lhe a passagem, sem sorrir mas de forma acolhedora e, de imediato, indicou-lhe uma salinha aquecida e mal iluminada pela luz fraca que se infiltrava por duas pequenas janelas em cujas portinholas tinham sido colocados calços de osso. A lenha ardia e crepitava numa lareira de barro ao centro da sala, e muito perto uma mulher jovem estava sentada num banco almofadado, atenta e silenciosa, e quem vinha de fora, da ofuscante luz do dia, não conseguia distingui-la facilmente.

 

- Vim apenas para saber como tem passado - disse Cadfael quando a porta se fechou nas suas costas - e para ver se as escoriações necessitam de mais algum tratamento.

 

Diota pôs-se de frente e deixou que ele lhe observasse a cara, enquanto esboçava o mais ténue dos sorrisos naquele rosto normalmente sério e ansioso.

 

- Foi muito amável da sua parte, irmão Cadfael. Estou bem, obrigada, estou bastante bem. Como pode ver, a ferida já sarou.

- Virou docilmente a testa para onde a luz era mais forte, obedecendo à pressão da mão dele, deixando-o examinar aquilo que agora se transformara numa mancha amarelada e numa pequena cicatriz.

 

- Sim, está bem, não ficará com cicatriz. No entanto, seria melhor continuar a pôr o unguento durante mais alguns dias, pois com esta geada a pele seca e greta facilmente. E não tem tido dores de cabeça?

 

- Não, nenhumas.

 

- Ainda bem! Então vou voltar para o meu trabalho e não lhe tomo mais tempo, pois vejo que tem uma visita.

 

- Oh, não - contestou a visita levantando-se do banco bruscamente -, eu já estava de saída. - Deu uns passos em frente, mostrando à luz um rosto jovem e arredondado, largo na testa mas que se adelgaçava suavemente até ao queixo resoluto. Uns grandes olhos provocantes e de um azul-intenso confrontaram Cadfael penetrante e frontalmente. - Se tem mesmo de se ir embora tão cedo - disse Sanan Bernières com a segurança tranquila de uma criança autoritária -, acompanhá-lo-ei. Tenho estado à espera da altura certa para conversar consigo.

 

Não havia hipótese de contrariar esta rapariga. Diota não se atreveu a tentar detê-la e o irmão Cadfael, mesmo que o quisesse, hesitaria antes de recusar. ”A própria lei”, pensou ele, admirado e divertido, era capaz de sair derrotada, caso colidisse com a vontade de Sanan Bernières.” Pensando em tudo o que já tinha acontecido, esta era uma hipótese clara embora ainda remota, no entanto, ela não se deixaria deter por coisa alguma.

 

- Será um enorme prazer para mim - disse Cadfael. - A caminhada é curta... mas talvez esteja a necessitar de mais algumas ervas para os seus cozinhados?! Estou bem abastecido, por isso pode entrar e levar o que quiser.

 

A isto ela respondeu com um olhar extremamente astucioso, fazendo covinhas no rosto, e para esconder o riso virou-se para abraçar Diota beijando-a na face como se fosse uma filha.

Depois envolveu-se na capa e saiu para a travessa e fizeram a maior parte do percurso para Foregate em silêncio.

 

- Sabe - começou ela - por que é que fui visitar a Senhora Hammet?

 

- Por solidariedade feminina - respondeu Cadfael -, por causa da perda que ela sofreu. Perda e solidão... ela ainda é praticamente uma estranha por estes lados...

 

- Oh, vá lá! - disse Sanan bruscamente. - Ela trabalhava para o padre, suponho que era uma vida segura para uma viúva, mas perda... Quanto à solidão, isso é bem capaz de ser verdade.

 

- Nesse ponto, não me referia ao padre Ailnoth - retorquiu Cadfael.

 

Lançou-lhe outro dos seus olhares frontais com os seus surpreendentes olhos azuis e soltou um profundo suspiro.

 

- Sim, trabalhou com ele, conhece-o. Contou-lhe, não é verdade, que ela tinha sido a sua ama e que não tinham qualquer parentesco? Ela nunca teve filhos do seu casamento, ele é-lhe tão querido como um filho. Eu... também falei com ele... por acaso. Sabe que ele enviou uma mensagem ao meu padrasto. Agora já todos o sabem. Tive curiosidade de ver esse jovem, é tudo.

 

Tinham chegado à casa do portão da abadia. Ela hesitou fazendo uma careta para o chão.

 

-Agora estão todos a dizer que ele... este Ninian Bachiler... matou o padre Ailnoth, porque o padre o ia denunciar ao xerife. Calculei que isto devia ter chegado aos ouvidos dela. Sabia que ela estaria sozinha, a temer por ele, agora que fugiu e está com a vida em risco... pois, agora, trata-se de uma questão de vida!

 

- Portanto, foi fazer-lhe companhia - disse Cadfael - e confortá-la. Entre no horto, e, se já tiver todas as ervas de culinária de que necessita, acho que encontraremos outra boa razão. Não lhe fará mal nenhum ter algo para curar a tosse que pode aparecer daqui a uma ou duas semanas.

 

Ela ergueu a cabeça com um sorriso radioso.

 

- É o mesmo remédio que me deu há dez anos atrás? Mudei tanto que dificilmente me poderia reconhecer. Actualmente, gozo de tanta saúde que apenas necessitarei de si de sete em sete ou de oito em oito anos.

 

- Se precisar de mim agora - disse Cadfael com simplicidade, servindo de guia, atravessando o pátio grande rumo aos jardins -, já é suficiente.

 

Recatadamente, seguiu-o, baixando os olhos com modéstia nesta área de retiro masculino, e, no isolamento e segurança da oficina, instalou-se confortavelmente esticando os seus pés pequenos para o braseiro, antes de voltar a tomar fôlego e continuar a falar, agora com mais à-vontade, sabendo que já não havia outros ouvidos à escuta.

 

- Fui visitar a Senhora Hammet porque agora ela está aterrorizada e tive medo de que pudesse fazer algum disparate. Está muito afeiçoada a Ninian, e em desespero poderia fazer qualquer coisa... qualquer coisa!... para lhe assegurar a liberdade. Até poderia inventar alguma história louca onde a culpada seria ela. Por ele, tenho a certeza de que faria isso! Se pensasse que isso o limparia de todas as culpas, ela seria capaz de confessar ter cometido assassínio.

 

- Então, você foi lá - prosseguiu Cadfael, movimentando-se de mansinho pelo seu mundo privado para lhe deixar a impressão de que ela não estava a ser observada - para lhe pedir que ficasse em paz e aguardasse serenamente, pois ele ainda está em liberdade e não corre qualquer perigo imediato. Foi assim?

 

- Sim. E você se voltar a ir lá ou se ela vier ter consigo, por favor, peça-lhe o mesmo. Não permita que ela se prejudique a si própria.

 

- Foi ele que a mandou ir ter com ela para lhe dizer isso? perguntou Cadfael sem rodeios.

 

Ainda não estava preparada para abrir o jogo, embora esboçasse um sorriso fugaz.

 

- Muito simplesmente, eu sei, eu compreendo, como ele se deve sentir ansioso por causa dela. Ficaria feliz se soubesse que eu tinha falado com ela.

 

”Não hão-de decorrer muitas horas até que ele o saiba?”, pensou Cadfael. ”Agora pergunto-me onde é que ela o terá escondido? Era possível que houvesse velhos amigos do seu pai aqui em Slirewsbury ou nos arredores, homens que muito fariam pela filha de Bernières.?”

 

- Sei - disse Sanan, com uma solenidade calma, enquanto seguia os movimentos de Cadfael com o olhar atento - que você descobriu a verdade sobre Ninian muito antes de o meu padrasto o ter denunciado. Sei que lhe disse de livre vontade quem é e o que veio fazer e que você lhe respondeu que não tinha nada contra os homens honestos de ambos os partidos. Até à data, guardou-lhe o segredo, quando já nem sequer é segredo. Ele confia em si e também eu estou decidida a confiar em si.

 

- Não - interrompeu Cadfael apressadamente -, não me diga nada! Se eu não souber onde ele se encontra neste momento, ninguém mo pode arrancar, e eu posso declarar a minha ignorância com a consciência limpa. Gosto de rapazes atrevidos, mesmo que o ache demasiado imprudente. Disse-me que o seu objectivo era ir ter com a imperatriz, fosse qual fosse o preço, para lhe oferecer os seus serviços. Tem o direito de dispor da sua pessoa como melhor entender, só desejo que chegue em segurança e tenha uma longa vida. Um estouvado como ele merece ter sorte.

 

- Eu sei - respondeu ela, corando e sorrindo -, não é lá muito discreto...

 

- Discreto? Duvido de que ele saiba o significado dessa palavra! Escrever e enviar uma tal carta, em plena luz do dia, assinada com o seu próprio nome, a dizer sob que pretexto e onde pode ser encontrado! Não, não me diga onde ele está neste momento, mas, seja qual for o lugar em que o escondeu, vigie-o bem, pois não se pode adivinhar qual o tremendo disparate que vai fazer a seguir.

 

Tinha-se encarregado de encher um pequeno frasco para lhe dar uma boa razão para ter estado no seu herbário. Pôs-lhe uma tampa de madeira e atou-a ao gargalo do frasco com um pedaço de pergaminho, antes de o embrulhar em linho e de lho dar para as mãos.

 

- Aqui tem, minha senhora, é o seu álibi para aqui ter estado. Aconselho-a a levá-lo para longe, assim que seja possível.

- Mas ele não quer ir - contestou ela, suspirando mais pelo orgulho que sentia do que por desespero - enquanto este assunto estiver por resolver. Não arredará pé enquanto não souber que Diota está fora de suspeita. E ainda há preparativos a fazer... projectos a definir... - Abanou a cabeça, recompondo-se, agitou o cabelo castanho e, bruscamente, dirigiu-se para a porta.

 

- A principal urgência - disse-lhe Cadfael pensativamente - será a de arranjar um bom cavalo.

 

Virou-se bruscamente já à saída da porta e fez-lhe um sorriso radioso, esquecendo todas as reservas.

 

- Dois cavalos! - exclamou num murmúrio suave e triunfante. - Também sou do partido da imperatriz. Eu vou com ele!

 

Cadfael passou todo o dia apreensivo, atormentado. Por um lado, havia os receios despoletados pelas revelações de Sanan e, por outro, uma sensação indefinível que trazia no subconsciente dizendo-lhe insistentemente que se esquecera de algum artigo que deveria ter sido procurado em simultâneo com Ailnoth e que, fora esse, era capaz de ainda faltar outro. Havia, certamente, algo de que se deveria ter lembrado, algo elucidativo, se ao menos pudesse descobrir o que era e ir, tardiamente, à sua procura.

 

Entretanto, continuou a cumprir os seus afazeres rotineiros até às Vésperas e ao jantar no refeitório e tentou, em vão, concentrar-se nos Salmos deste trigésimo dia de Dezembro, o sexto dia da oitava natalícia.

 

Cynric tivera razão acerca do degelo. Surgiu subreptícia e relutantemente, mas já se fazia notar antes do meio da tarde. As árvores vertiam a sua filigrana de geada tilintante e agigantavam-se, inflexíveis e negras, indo ao encontro do céu carregado de nuvens. As gotas perfuravam a brancura por debaixo dos beirais com pequenas manchas escuras e o negrume da estrada e o verde da erva começavam a mostrar-se sob a cobertura de neve. Pela manhã poderia já ser possível escavar o solo, naquele local escolhido e abrigado junto à parede do recinto e abrir a sepultura para o padre Ailnoth.

 

Cadfael examinou atentamente o solidéu sem lhe encontrar grande significado. No entanto, sentia-se bastante incomodado por se ter esquecido dele quando encontraram o corpo. Quanto aos estragos visíveis nele, sugeriam-lhe que estavam relacionados com a pancada na cabeça, e ao mesmo tempo, contudo, negava essa associação de ideias, visto que nesse caso o solidéu teria caído em terra na altura da pancada. É verdade que o agressor poderia tê-lo atirado à agua depois de ter atirado o padre, mas, no seio da escuridão, teria reparado ou pensado nisso, e, se tivesse pensado, tê-lo-ia necessariamente encontrado? Uma pequena peça preta nas moitas ainda não totalmente brancas com a geada... não seria fácil de ver, e era pouco provável que fosse encarado como algo muito perigoso para se deixar ficar, quando um assassínio tinha sido cometido. Quem iria andar às apalpadelas no escuro, no meio das moitas, quando acabara de matar um homem? O seu único pensamento seria o de se pôr a milhas daquele cenário, tão depressa quanto possível.

 

Bem, se Cadfael deixara escapar isto, era possível que tivesse deixado escapar... a sua consciência atormentava-o dizendo-lhe que realmente deixara escapar!... outra coisa igualmente importante. E, assim sendo, ainda estaria lá, junto ao moinho, quer ao pé da margem quer dentro de água, ou até mesmo dentro do próprio moinho. Não valia a pena procurar noutros locais.

 

Ainda faltava meia hora para Completas, e a maioria dos irmãos, muito sensatamente, estavam na sala de convívio, a aquecer os ossos. Era disparatado pensar em ir até ao moinho a esta hora, mas, apesar de tudo, Cadfael não o conseguiu evitar. Tinha os pensamentos tão fixos naquele lugar como se a própria atmosfera do açude, do moinho e a solidão nocturna fossem capazes de reproduzir os acontecimentos da véspera de Natal e lhe estimulassem a memória de modo a recordar o elemento perdido. Percorreu o pátio grande até à esquina isolada junto à enfermaria, onde a cancela do recinto dava acesso directo ao moinho.

 

Cá fora, na noite sem luar, com apenas a luz fraca e velada das estrelas, ficou parado até os seus olhos se habituarem, gradualmente, à escuridão e até que as coisas começassem a ganhar contornos. Distinguia agora as ervas do campo, a escura silhueta do moinho à sua direita, a pequena ponte de madeira ao lado do edifício mesmo à sua frente, que atravessava o canal adutor permitindo ir para o açude. Atravessou-a, os seus passos faziam um pequeno barulho oco, mas bastante audível nas tábuas, e caminhou pela estreita faixa de erva até à margem. A extensão da água desdobrava-se a seus pés, transparente e parada, como se de chumbo se tratasse, manchada por pequenas aberturas no gelo meio descongelado.

 

Aqui nada se movia a não ser ele próprio, nada se ouvia, nem sequer a brisa a abanar os rebentos flexíveis dos salgueiros podados, na margem esquerda. Um pouco mais à frente, a seguir ao cepo, serrado à altura da anca, encrespado com novas ramagens como se fossem cabelos na cabeça gigantesca de um homem aterrado, estava o local de onde laboriosamente haviam retirado o corpo de Ailnoth, da margem desgastada pela erosão, trazendo-o para onde o declive do prado era menos acentuado, junto ao canal de descarga.

 

Ao lembrar-se dessa manhã, todos os pormenores surgiam com uma enorme nitidez, e, no entanto, não esclareciam nada do que se havia passado durante a noite. Afastou-se da margem superior e voltou atrás pela ponte. Sem saber bem porquê, contornou o moinho e desceu pela margem até às grandes portas do armazém dos cereais. Uma trave exterior era tudo o que parecia haver para fechar a porta, e ele conseguia distingui-la devido ao ténue reflexo da madeira descorada. Estava deslocada do seu encaixe. Havia uma pequena porta, a um nível superior, que dava acesso directo para a cancela do recinto murado. A porta poderia estar fechada por dentro. Contudo, que outra razão levaria alguém a deslocar a pesada trave, a não ser para entrar lá dentro?

 

Cadfael pôs a mão na porta fechada, mas sem trave, abriu-a devagarinho e ficou hirto ao escutar o rangido. No interior reinava o silêncio absoluto. Abriu-a um pouco mais, entrou sem fazer barulho e voltou a fechá-la cuidadosamente. Inalou, delicado, os aromas quentes da farinha e dos cereais. Tinha o faro de um cão ou de uma raposa e, no escuro, guiava-se por ele. Havia um outro cheiro, muito leve, mas absolutamente familiar. Na oficina não se dava conta dele por causa da sua presença constante e prolongada, porém, em qualquer outro lugar alertava-lhe os sentidos com uma peculiar insistência, como se se tratasse de algo que lhe fora roubado e algo de valor que não se devia extraviar. Uma pessoa não pode entrar e sair de um herbanário saturado durante anos pelo cheiro das ervas aromáticas sem levar consigo esse aroma nas roupas. Cadfael ficou petrificado, com as costas encostadas à porta fechada, e esperou.

 

Um ruído quase imperceptível chegou-lhe aos ouvidos, como o de um pé pisando cautelosamente a palha do milho desfolhado e que não conseguira evitar aquele sussurro, algures no andar de cima. O alçapão estava aberto e alguém estava lá encostado, mudando cuidadosamente de posição, à espera do momento certo para saltar. Cadfael foi até lá para lhe dar essa oportunidade. No momento seguinte, alguém saltou para as suas costas, envolveu-lhe o pescoço com um braço, enquanto com o outro lhe prendia o peito e os braços, imobilizando-o. Preso desta maneira ficou sem se mexer, mas continuou a respirar com facilidade.

 

- Nada mal - disse num tom de aprovação. - Mas será que não tens faro, filho? De que serve ter quatro sentidos, se faltar o quinto?

 

- Falta-me? - murmurou-lhe Ninian ao ouvido, com a voz tremida por tentar reprimir o riso. - Entrou pela porta como se fosse uma brisa a passar pelos beirais. Eu estava lá para trás com aquele óleo que tive de largar. Espero que não lhe tenha acontecido nada.

 

Uns braços jovens, enérgicos e veementes abraçaram Cadfael com força, soltaram-no docilmente e depois viraram-no para poder olhá-lo de frente, embora não houvesse luz suficiente a não ser para ver formas e sombras.

 

- Preguei-lhe um susto. Fiquei aterrado quando escancarou a porta - comentou Ninian em tom de reprovação.

 

- Eu fiquei inquieto - explicou Cadfael - quando vi que a trave estava fora do encaixe. Tu arriscas muito, rapaz. Por amor de Deus e de Sanan, que fazes aqui?

 

- Eu podia fazer-lhe exactamente a mesma pergunta respondeu Ninian - e obter também a mesma resposta. Aventurei-me a vir até aqui para ver se conseguia encontrar alguma pista, embora fosse muito pouco provável que houvesse, porque já decorreram muitos dias. Mas como é que algum de nós pode ficar descansado enquanto não soubermos quem foi? Sei que nunca toquei no homem, mas que consolo posso sentir quando toda a gente pensa que fui eu? Não gostaria de me ir embora daqui enquanto não se provar que não sou nenhum assassino, mesmo que não houvesse mais nenhuma razão para além dessa, mas há. Diota! Querem prender-me. Quanto tempo levarão a virar-se contra ela? Se não for por assassínio, acusá-la-ão de traição por me ter ajudado a fugir da perseguição de que eu era alvo no sul e por me encobrir aqui.

 

- Se pensas que Hugh Beringar tem qualquer má vontade contra a Senhora Hammet ou que deixará alguém fazer dela uma vítima - disse Cadfael com firmeza-, podes, desde já, ficar descansado. Bem, já que nos encontramos os dois aqui, num bom lugar e a uma boa hora, podemos sentar-nos algures no canto mais resguardado que consigamos encontrar e trocar impressões. Duas cabeças a pensar sempre é melhor do que uma. Deve haver imensos sacos por aqui... sempre é melhor do que nada...

 

É evidente que Ninian já lá passara o tempo suficiente para conhecer os cantos à casa, pois agarrou num braço de Cadfael e guiou-o, cheio de confiança, até um canto onde uma pilha de sacas grosseiras estavam amontoadas de encontro à parede de madeira. Instalaram-se por ali, muito juntos por causa do frio, e Nínian. estendeu uma capa grossa, que certamente nunca pertencera a Benet, por cima de ambos.

 

- Bom - começou Cadfael animadamente -, primeiro quero dizer-te que falei com Sanan esta manhã e sei dos vossos planos. Provavelmente, já to contou. Estou meio dentro meio fora dos vossos segredos, e, se precisas da minha ajuda para te livrares deste assunto vexante, seria melhor que me pusesses ao corrente de tudo. Não acredito que sejas responsável pela morte do padre e nada neste mundo me leva a querer complicar-te a vida. Porém, creio que sabes mais acerca do que se passou naquela noite do que aquilo que já me contaste. Conta-me o resto, dá-me uma ideia do que se passou. Vieste aqui ao moinho, não foi?

 

Ninian soltou um suspiro triste e profundo que aqueceu momentaneamente a face de Cadfael.

 

- Sim. Tinha de ser. Não obtive qualquer resposta de Giffard, a não ser que tinha recebido e compreendido a mensagem. Não tinha maneira de saber se ele compareceria ou não. No entanto, vim bastante cedo para dar uma vista de olhos ao local e arranjar um esconderijo até ver no que as coisas davam. Fiquei ali, junto ao muro da abadia, com a cancela aberta, para poder ver em que é que as coisas iam dar. Tive de me esconder rapidamente na esquina da enfermaria, garanto-lhe, quando o moleiro apareceu todo apressado para ir à igreja, mas depois disso fiquei ali a observar o caminho.

 

- E foi Ailnoth quem apareceu? - perguntou Cadfael.

 

- Veio disparado como uma flecha de Deus. Apesar da escuridão, não houve margem para dúvidas, tinha uma maneira de andar muito característica. Não havia razão nenhuma para que estivesse ali àquela hora, a não ser que lhe tivesse chegado aos ouvidos o que eu ia fazer e me quisesse prejudicar. Andava para trás e para a frente, à volta do moinho e ao longo da margem, dando pancadas no chão, como se fosse um gato a abanar a cauda. E eu, que arrastara um outro homem para aquele sarilho, tinha de arranjar maneira de, pelo menos, o livrar a ele, mesmo que eu fosse apanhado.

 

- Então, que fizeste?

 

- Ainda era cedo. Não podia deixar que Giffard comparecesse no local sem suspeitar de nada, não é verdade? Nem sequer sabia se ele iria aparecer, mas era uma hipótese, e eu não podia correr esse risco. Corri que nem uma lebre até ao pátio, passei pela casa do portão e fui até ao pé da ponte. Se ele tencionasse aparecer, viria da cidade e teria de passar por ali. E eu nem sequer sabia qual era o seu aspecto, embora tivesse sabido, por terceiros, o seu nome e a sua lealdade à causa. Pensei que àquela hora deveria haver muito poucos homens a virem da cidade e que poderia arriscar abordar alguém que parecesse ter a sua idade e posição social.

 

- Ralph Giffard atravessara a ponte pelo menos uma hora mais cedo - informou Cadfael - para fazer uma visita ao padre e pô-lo a correr até ao moinho para te defrontar, mas tu não podias adivinhá-lo. Julgo que já devia ter regressado à sua casa quando ainda aguardavas por ele atrás dos arbustos. Viste mais alguém passar por ali?

 

- Só uma pessoa, e era demasiado nova e pobre e estava muito mal vestida para que pudesse ser Giffard. Foi directamente por Foregate e virou para a igreja.

 

Seria Centwin, talvez, ao voltar de pagar a sua dívida para sentir a consciência leve e em paz, a fim de ir celebrar o nascimento de Cristo sem dever nada a ninguém. Seria bom para ele se Ninian desse o seu testemunho e provasse que a outra dolorosa dívida não fora cobrada.

 

- E que fizeste?

- Esperei até ter a certeza de que ele não iria aparecer... já passava da hora. Por isso, apressei-me a voltar para assistir às Matinas.

 

- Onde encontraste Sanan. - O sorriso de Cadfael era invisível no escuro, mas perceptível na sua voz. - Ela não foi suficientemente tonta para ir até ao moinho, pois, tal como tu, não podia ter a certeza se o seu padrasto iria comparecer ao encontro marcado. Porém, sabia onde te encontrar e estava decidida a responder ao apelo que Giffard preferira rejeitar. De facto, segundo me recordo, ela já dera alguns passos no sentido de te conhecer, como tu próprio me contaste. Talvez, apesar de tudo, sirvas para pagem de uma donzela, depois de limadas algumas arestas!

 

Por debaixo da capa, chegou-lhe o som abafado da risada de Ninian.

 

- Naquele dia, nunca cheguei a acreditar que algo viesse a acontecer entre nós. E agora veja... devo-lhe tudo a ela. Não se deixa dissuadir... Já a viu, já falou com ela, sabe muito bem que é uma pessoa maravilhosa... Cadfael, tenho de lhe dizer isto... ela vem comigo até Gloucester, prometeu casar comigo.

 

Agora a sua voz era baixa e solene, como se ela estivesse no altar. Era a primeira vez que Cadfael o via reverenciar algo ou alguém.

 

- É uma rapariga muito valente - comentou Cadfael vagarosamente - e sabe muito bem o que quer, e eu, pela parte que me toca, nada tenho a dizer contra a escolha que ela fez. Mas, rapaz, estará certo deixá-la fazer isto por ti? Não vai abandonar bens, família, tudo? Já pensaste nisso?

 

- Sim, e também eu lhe pedi que pensasse bem. Cadfael, que sabe sobre a situação em que ela se encontra? Não tem terras para abandonar. A herdade do seu pai foi-lhe usurpada após o cerco, porque ele apoiou FitzAlan e a imperatriz. A mãe já morreu. Quanto ao padrasto... ela não se queixa dele, sempre cuidou dela assumindo o seu dever, embora algo contrariado. Tem um filho do primeiro casamento, que será o seu herdeiro, ficará muito feliz se vir que não terá de repartir os seus bens e que se pode livrar de lhe dar um dote. No entanto, ela herdou da mãe bastantes jóias, que são inquestionavelmente suas. Afirma que nada tem a perder por ir comigo e ganha aquilo que mais deseja no mundo. Amo-a de verdade! - exclamou Ninian com uma sinceridade e seriedade comoventes. - Dar-lhe-ei um lar digno. Eu posso! Assim farei!

 

”Sim”, pensou Cadfael reflectindo, ”bem vistas as coisas, talvez ela não tivesse muito a perder.” o próprio Giffard perdera algumas terras por ter aderido à causa da imperatriz, não admira que queira que tudo o que lhe resta vá para o seu filho. Fora, talvez, mais pelo seu filho do que por si próprio que ele se desvinculara de uma forma tão implacável do apoio à sua causa e que quisera mesmo comprar a sua segurança à custa da liberdade deste rapaz. Os homens fazem coisas contra a sua maneira de ser quando pressionados pelas circunstâncias. E a rapariga tinha escolhido um bom rapaz. Ela iria ser uma boa companheira.

 

- Bem, muito sinceramente, desejo-vos uma boa viagem através do país de Gales - disse - Vão precisar de cavalos, já trataram disso?

 

-Já os temos. Ela conseguiu arranjá-los. Estão no estábulo que me serve de esconderijo - informou Ninian candidamente e sem pensar -, perto de...

 

Cadfael rapidamente tapou a boca do rapaz com a mão, fê-lo desajeitadamente por causa do escuro, mas conseguiu silenciar Ninian, que ficou estupefacto.

 

- Não, cala-te, não me digas nada! É melhor que eu não saiba onde estás nem onde arranjaste os cavalos. Se eu nada souber, ninguém pode esperar que eu conte alguma coisa.

 

- Mas eu não posso partir - disse Ninian com firmeza enquanto pairar esta sombra sobre mim. Não quero que me evoquem, aqui ou em qualquer outro lugar, como um assassino em fuga. Ainda menos me posso ir embora enquanto houver esta ameaça a pairar sobre Diota. Devo-lhe muito mais do que aquilo que lhe posso retribuir, tenho de me certificar de que fica em segurança e protegida antes de eu partir.

 

- A tua atitude só reverte a teu favor. Temos de tentar todos os meios para encontrar uma solução. Foi o que nós os dois tentámos fazer aqui esta noite, embora com fraco sucesso. Mas, agora, não seria melhor voltares para o teu esconderijo? Que acontecerá se Sanan for à tua procura e não te encontrar?

 

- E você? - replicou Ninian. - Que acontecerá se o prior Robert resolver passear-se pelo dormitório e não o encontrar lá?

 

Ambos se levantaram retirando a capa de cima deles e inspiraram profundamente por causa do frio que os invadiu.

 

- Não me chegou a dizer - disse Ninian abrindo a porta pesada, deixando entrar a luz fraca do exterior - precisamente o que o trouxe aqui esta noite... embora eu esteja contente por ter vindo. Não andava feliz por o ter deixado sem lhe dizer nada. Acho que não veio cá à minha procura! Que esperava encontrar?

 

- Quem me dera saber. Hoje de manhã, encontrei um bando de miúdos a brincarem com um solidéu que decerto pertencia ao padre Ailnoth, pois os rapazes encontraram-no aqui, na parte menos funda do açude, no meio dos juncos. Eu vi que ele o trazia posto naquela noite e depois esqueci-me completamente disso. Desde então, tenho passado todo o dia incomodado com a sensação de que ele tinha mais alguma coisa com ele e que, de igual modo, me esqueci. Penso que não vim aqui com grandes expectativas, talvez tivesse simplesmente pensado que o facto de vir até cá seria uma boa ajuda para me lembrar. Já alguma vez te levantaste com o intuito de fazer uma coisa, mas depois esqueceres o que ias fazer? Não, claro que não, és demasiado novo, estás ainda na fase em que pensar em fazer algo equivale a fazê-lo. Mas pergunta aos idosos, como eu, e admiti-lo-ão.

 

- E ainda não se consegue lembrar? - perguntou Ninian, mostrando compreensão para com os velhos e os esquecidos.

- Não. Nem mesmo aqui. Tiveste mais êxito do que eu?

- Tinha poucas esperanças de encontrar aquilo que vim procurar - respondeu Niman com tristeza -, embora eu me tivesse arriscado a vir aqui antes do anoitecer. Mas, ao menos, sei o que vim procurar. Eu estava ao pé de Diota quando vocês o trouxeram no dia de Natal, e só mais tarde dei pela falta de algo. No fim de contas, trata-se de uma coisa que pode extraviar-se, não é como as roupas que ele usava. Contudo, eu sabia que ele a trazia consigo quando apareceu no caminho batendo insistentemente no chão. Viajou através de Inglaterra sempre com ela, fiquei a conhecê-la muito bem. A enorme bengala que ele tanto usava para bater... de ébano, pela altura do cotovelo, com o cabo em chifre de veado... foi isso que eu vim procurar. E ela ainda deve estar algures por aqui.

 

Tinham saído em direcção à margem inferior, manchada agora por tufos de ervas, escuros e húmidos, irrompendo da neve, como remendos. O monótono nível da água esbranquiçada estendia-se até ao declive escuro da outra margem. Cadfael tinha parado abruptamente, olhando para aquele manto de brancura como se se tivesse feito luz.

 

- Pois deve estar! - exclamou fervorosamente. - Pois deve estar! Filho, era essa a coisa misteriosa por que eu passei todo o dia à procura. Regressa ao teu refúgio, fica por lá confortavelmente instalado e deixa que seja eu a encarregar-me da busca agora. Decifraste o meu enigma.

 

De manhã, já metade da neve derretera, eclipsando-se, e Foregate parecia uma autêntica renda. As pedrinhas do pátio grande brilhavam escuras e molhadas e, no cemitério a leste da igreja, Cynrie estava a escavar a sepultura do padre Ailnoth.

 

Cadfael saiu do último capítulo do ano com uma forte sensação de que mais coisas estavam a chegar ao fim, para além do ano. Ainda nada se dissera acerca de quem sucederia ao benefício em Holy Cross e nada seria dito até que o padre Ailnoth fosse para debaixo de terra, seguindo-se à risca todos os rituais do costume e com todo o pesar que a irmandade e o povo paroquiano conseguissem reunir nos seus esforços conjuntos. No dia seguinte, o nascer do novo ano assistiria ao enterro de uma breve tirania, que de bom grado seria rapidamente esquecida. ”Que Deus nos envie”, pensou Cadfael, ”uma alma humilde que se considere tão falível quanto o seu rebanho e que se esforce modestamente no sentido de impedir a queda de ambos. Se duas pessoas se apoiarem uma na outra, ficarão ambas em pé, mas, se uma delas se soltar, a outra pode sentir que os pés a atraiçoam nos sítios mais escorregadios. É melhor um amparo vacilante do que uma rocha imóvel sempre fora do alcance da mão estendida.”

 

Cadfael dirigiu-se para a cancela do muro e prosseguiu até às margens do açude. Parou à beira da margem, junto aos salgueiros podados, no local onde encontrara o corpo de Ailnoth.

O açude estendia-se, tornando-se menos fundo, à sua direita, até aos juncos, a um nível inferior ao da estrada principal, e à sua esquerda estreitava-se gradualmente até à parte mais profunda, que jorrava a água para o riacho e a uma curta distância dali para o Severn. O corpo entrara para a água, provavelmente, alguns metros à direita e fora arrastado para o lado, aqui por debaixo da margem junto ao canal de descarga. O solidéu fora encontrado nos juncos, num local de fácil acesso, perto do carreiro, do outro lado. Um objecto pequeno e leve era susceptível de ser transportado pela corrente até que osjuncos ou os ramos ou o entulho o detivessem. Mas para onde teria sido levada uma pesada bengala de ébano, quer lhe tivesse caído da mão quando foi abatido, quer tivesse sido atirada à água depois dele, neste mesmo local? Poderia ter sido arrastada na mesma direcção do corpo, e nesse caso estaria algures bem no fundo do canal estreito, ou então, se caiu para lá da forte corrente do canal de descarga, poderia ter sido levada, como o solidéu, para a outra margem. Pelo menos, não haveria mal nenhum em procurá-la nas imediações.

 

Voltou a atravessar a ponte estreita por cima do canal adutor, circundou o moinho e foi até à beira da água. Aqui não existia um verdadeiro caminho, pois os jardins das três casitas vinham mesmo até à borda da água, onde uma estreita faixa de erva permitia uma passagem mesmo à justa. Durante uma parte do percurso, havia um desnível por cima da água, que se atenuava gradualmente nos primeiros juncos. Ele caminhou até aos tufos de ervas, salpicando tudo à sua volta a cada passo que dava. Passou pela casa e jardim do moleiro, pela casa da velhota surda, que vivia com a linda criada desmazelada, e depois foi-se afastando da última casa, pela beira do extenso baixio. A água prateada brilhava através dos descolorados juncos com a sua cor de Inverno, de um verde-pálido, mas, embora uma pilha de folhas, paus e ramos mortos se tivesse alojado aqui, ele não viu nenhum sinal de uma bengala de ébano. Outros detritos, contudo, eram bastante visíveis, pedaços de loiça em barro, diversos tipos de cacos e um recipiente com um buraco demasiado grande para que valesse a pena remendá-lo.

 

Prosseguiu à volta da extensa margem do açude até à conduta perto da estrada principal, que deixava escorrer um fio de água, passou para o outro lado e continuou junto ao segundo trio de casas da abadia. Algures, por estes lados, os rapazes tinham encontrado o solidéu, mas não acreditava muito que a bengala estivesse ali. Ou passara por ela sem a ver ou, caso tivesse sido atirada para o meio da corrente do canal de descarga, teria de a procurar no lado oposto e mais longínquo do canal, onde o corpo fora encontrado. A extensão da água ainda era grande naquele local, mas o objecto que caíra afastado do centro era capaz de ir desaguar àquele sítio mais remoto.

 

Parou para reflectir, satisfeito por ter calçado botas para andar no meio desta água lodosa. O seu amigo e colega galês, Madog de Dead Boat, que sabia tudo acerca da água e das suas propriedades, em se lhe dando uma ideia do objecto procurado, saberia indicar o local exacto onde este seria encontrado. Mas Madog não estava e o tempo era precioso, por isso tinha de se desenvencilhar sozinho. O ébano era pesado e compacto, mas, mesmo assim, era de madeira e flutuaria. No entanto, tendo o cabo em chifre de veado, não flutuaria horizontalmente e, onde quer que se encontrasse, uma ponta havia de surgir à superfície. Não acreditava que tivesse sido arrastada até ao riacho ou ao rio. Continuou persistentemente, e deste lado da água havia um carreiro trilhado, que se elevava acima do chão pantanoso, permitindo-lhe passar sem molhar as botas, um pouco acima da superfície do açude.

 

Ficou aproximadamente ao mesmo nível que o moinho do lado oposto e já passara pelas faixas inclinadas dos jardins deste lado. O cepo de salgueiro, que num desafio fazia brotar os seus rebentos, assemelhando-se a uma cabeça gigantesca com os cabelos desgrenhados, estava perto de si e prendeu-lhe a atenção. Um pouco mais à frente, estava o local onde o corpo se alojara junto à margem.

 

Deu mais três passos e encontrou aquilo que procurava. Mal se distinguia devido à cobertura de gelo e às ervas protuberantes. Apenas uma ponta era visível. A bengala de Ailnoth estava a seus pés. Pegou nela cuidadosamente pela parte mais delgada e puxou-a para fora da água. Agora, que fora encontrada, não havia engano possível, era inverosímil que houvesse duas exactamente iguais. Preta e comprida, com uma das extremidades revestida de metal e o cabo em chifre entalhado, ligado à madeira por uma faixa de prata com uma gravura quase lisa e desgastada pela passagem dos anos. Quer se tivesse desprendido da mão da vítima quer tivesse sido atirada à água mais tarde, deveria ter caído deste lado, onde a corrente tinha mais força, e por isso empurrada para reentrância formada pelas ervas invasoras.

 

A neve no cabo ia derretendo e as gotas iam escorrendo ao longo da bengala. Segurando-a pelo meio, Cadfael virou costas àquele local, circundou os baixios juncosos e regressou ao moinho. Ainda não se sentia preparado para partilhar o seu achado com ninguém, nem sequer com Hugh. Primeiro, tinha de a examinar minuciosamente e extrair-lhe tudo o que ela tinha para lhe revelar. Não nutria grandes expectativas, mas não se podia dar ao luxo de deixar que algum indício lhe escapasse por entre os dedos. Dirigiu-se apressadamente para a cancela do recinto murado, atravessou o pátio grande e foi refugiar-se na sua oficina. Deixou a porta aberta para que entrasse a luz, ateou o braseiro com madeira e acendeu a lamparina para poder observar escrupulosamente o seu troféu.

 

O cabo em chifre, com o comprimento de uma mão, de um castanho-claro com sulcos ondulantes, era pesado e reluzia por causa de tanto uso e a sua curvatura adaptava-se bem à mão. A faixa de prata tinha a largura de um dedo polegar e as desgastadas gravuras de parras reflectiam a luz amarelada da lamparina enquanto Cadfael a secava cautelosamente e a mantinha perto da chama. Devido ao uso excessivo, o revestimento de prata tinha a espessura da gaze e tornara-se tão flexível que, nalguns sítios, as bordas se soltaram, formando arestas tão afiadas como lâminas de facas. Cadfael, ao secar o metal, fez um arranhão num dedo e só então teve consciência do perigo.

 

Era esta a arma formidável com que o padre Ailnoth atacara os rapazes inconvenientes, que atiravam a bola contra a parede da sua casa e, sem dúvida, servira também para dar estocadas nas costelas e nos ombros daqueles infelizes alunos cuja aprendizagem era menos perfeita. Cadfael virou-a, devagar, junto à luz da lamparina e abanou a cabeça, pensando nos pecados dos virtuosos. Foi enquanto a estava a virar que se apercebeu do brilho passageiro de uma gota de água, rodopiando a pouca distância da faixa de prata. Foi verificar, de imediato, rodando a bengala no sentido contrário, e a gotinha brilhante voltou a aparecer. Tratava-se de uma única gota minúscula que não pendia da prata, mas de um fio muito fino preso ao metal, algo que aparecia e se eclipsava numa ondulação prateada. Esticou com as pontas dos dedos um longo cabelo grisalho, puxando-o até encontrar resistência por estar preso a uma aguçada aresta da prata. Não havia apenas um cabelo, pois um outro estava também parcialmente esticado e um terceiro formava um pequeno anel, entalados na mesma ranhura pequeníssima.

 

Levou algum tempo até conseguir desprendê-los da ranhura na orla inferior da faixa. Eram cinco, ao todo, sem contar com algumas pontinhas emaranhadas. Os cinco cabelos eram todos muito ralos, alguns castanhos, outros de uma cor grisalha a ficar prateada, e eram compridos, demasiado compridos para poderem pertencer a alguma tonsura, demasiado compridos para serem de homem, a menos que este se tivesse desleixado e não usasse o cabelo curto. Se tivessem existido mais vestígios, tais como sangue, pele esfolada ou fios de vestuário, a água já os teria levado, mas estes cabelos, bem presos ao metal, tinham-se mantido no seu lugar para, finalmente, poderem apresentar o seu testemunho.

 

Cadfael passou cuidadosamente a mão ao longo da bengala e sentiu as alfinetadas de três ou quatro das arestas pontiagudas da prata. Estes cinco cabelos preciosos tinham sido arrancados de uma cabeça pelo uso da violência. Da cabeça de uma mulher!

 

Diota abriu-lhe a porta e, ao reconhecer o visitante, pareceu hesitar se havia de a abrir mais e dar um passo ao lado para lhe permitir a passagem ou se havia de ficar onde estava e desencorajar uma longa conversa, obrigando-o a ficar na soleira da porta. A sua expressão era reservada e serena e a saudação não era de boas-vindas, mas de resignação. Contudo, a hesitação foi momentânea. Recuou submissamente para a sala e Cadfael seguiu-lhe os passos e fechou a porta ao mundo exterior. Era o princípio da tarde, a luz do dia não iria aumentar mais a sua intensidade e o fogo na lareira de barro ardia energicamente, quase sem fumo.

 

- Senhora - Hammet - começou Cadfael, a menos de um metro de distância da cara dela -, preciso de falar consigo, e o que tenho para lhe dizer também diz respeito ao bem-estar de Ninian Bachiler, a quem eu sei que muito estima, Tenho a confiança dele, se é que isso me pode ajudar a ganhar a sua. Agora sente-se, escute-me e acredite na minha boa-fé, pois na sua consciência só existe o afecto que Deus já reconheceu muito antes de eu o suspeitar.

 

Ela virou-lhe as costas abruptamente, sugerindo firmeza e resolução e não surpresa ou medo e sentou-se no banco onde, anteriormente, Sanan estivera sentada, quando ele lá tinha ido. Ficou direita e retraída, com os cotovelos junto ao corpo e os pés rigidamente assentes no chão.

 

- Sabe onde ele está? - perguntou em voz baixa.

 

- Não sei, embora ele quisesse dizer-mo. Fique tranquila, ainda ontem à noite falei com ele, sei que está bem. O que tenho a dizer-lhe tem a ver consigo e com aquilo que aconteceu na véspera da Natividade, quando morreu o padre Ailnoth e você... deu uma queda no gelo.

 

Percebeu que ele já sabia coisas que ela tentara ocultar, mas não sabia bem quais. Ficou em silêncio, fitando-lhe o rosto, e deixou-o prosseguir.

 

- Uma queda... sim! Você não se iria esquecer. Escorregou no gelo e bateu com a cabeça na pedra da porta. Nessa altura, tratei-lhe da ferida, voltei a observá-la ontem e está praticamente sarada, à excepção da nódoa negra e da crosta no sítio da ferida. Agora oiça o que eu descobri esta manhã no açude. A bengala do padre Ailnoth, que foi dar à margem. Na faixa de prata, onde as arestas afiadas se viraram para fora, estavam presos cinco cabelos compridos parecidos com os seus. Vi os seus cabelos de perto, quando lhe lavei a ferida, também reparei que tinha umas pontas de cabelo cortado. Tenho agora a oportunidade de os confrontar.

 

Ela afundara a cabeça nas mãos. Os dedos compridos e gastos pelo trabalho cingiam com força as faces e a testa.

 

- Por que é que esconde a cara? - perguntou Cadfael com brandura. - O pecado não foi seu.

 

Passado pouco tempo, ela ergueu a cara, sem lágrimas, lívida e cansada, e fitou-o.

 

- Estava aqui - disse devagar - quando o fidalgo o veio visitar. Reconheci-o e entendi a razão que o trouxera cá. Por que outra razão poderia ser?

 

- Sim, de facto! E quando se foi embora o padre virou-se contra si. Injuriou-a, amaldiçoou-a, talvez, por sercúmplice de uma traição, por ser mentirosa e impostora... Ficámos a conhecê-lo suficientemente bem para sabermos que ele não se compadeceria nem daria ouvidos a pedidos de desculpa ou a súplicas. Ameaçou-a? Disse-lhe como iria, primeiro, esmagar o seu filho de leite, para depois se livrar de si enchendo-a de ignomínia?

 

Ela endireitou as costas e disse com dignidade:

 

- Amamentei o meu menino neste peito depois do meu verdadeiro filho ter nascido morto. A sua mãe era muito doente, a minha querida e doce senhora. Quando mo mandaram, foi como se um filho meu a precisar de ajuda tivesse regressado a casa. Pensa que eu me importei com o que ele, o meu patrão, me pudesse fazer?

 

- Não, eu acredito em si - contestou Cadfael. - Só pensava em Ninian, quando saiu atrás do padre Ailnoth, naquela noite, para tentar dissuadi-lo dos seus propósitos de desafio e denúncia. Porque você seguiu-o, não é verdade? Deve tê-lo seguido. De que outro modo posso explicar que os seus cabelos estivessem agarrados à faixa da bengala? Seguiu-o e suplicou-lhe, e ele bateu-lhe. Deu-lhe pancadas com a bengala acertando-lhe na cabeça.

 

- Agarrei-me a ele - respondeu, agora com toda a calma -, ajoelhei-me na erva cheia de geada, lá, ao pé do moinho e peguei-lhe na batina para o deter, eu não o largava. Implorei-lhe, supliquei-lhe, pedi-lhe que tivesse piedade, mas ele não teve nenhuma. Não suportou ser agarrado daquela forma, enfureceu-o, podia muito bem ter-me matado. Pelo menos, cheguei a receá-lo naquela altura. Tentei rechaçar as pancadas, mas já sabia que ele iria continuar a bater-me se não se conseguisse livrar de mim. Por isso, acabei por o largar e levantei-me, só Deus sabe como, e fugi dele. E foi essa a última vez que o vi com vida.

 

- Não viu nem ouviu mais alguém por lá? Deixou-o de boa saúde e sozinho?

 

- Estou a dizer-lhe a verdade - retorquiu abanando a cabeça -, não vi nem ouvi ninguém, nem mesmo quando cheguei a Foregate. Contudo, nem os meus olhos nem os meus ouvidos estavam nas melhores condições, a minha cabeça parecia ir estoirar e eu estava completamente desesperada. A primeira coisa de que tive consciência foi que o sangue me escorria da testa e depois que estava nesta casa, agachada no chão junto à lareira, tremendo com o frio do medo, não fazendo a mínima ideia de como viera cá parar. Corri como um animal corre para a sua toca, e era tudo o que eu sabia. Tenho a certeza de que não me cruzei com ninguém no caminho, sei-o apenas porque, nesse caso, teria de me controlar e andar como uma mulher com juízo e até mesmo proferir uma saudação. Quando uma coisa tem mesmo de ser, nós somos capazes de a fazer. Não, depois de ter fugido, não sei de mais nada. Esperei toda a noite pelo seu regresso, cheia de medo, sabendo que ele não me iria poupar e temendo que ele já tivesse feito o pior a Ninian. Naquela altura, tinha a certeza de que estávamos ambos perdidos... que tudo estava perdido.

 

- Mas ele não apareceu - disse Cadfael.

 

- Não, ele não apareceu. Lavei a cabeça, estanquei o sangue e aguardei, desesperada, mas ele não veio. Não me ajudou nada. O medo dele transformou-se no medo por ele, pois que poderia estar a fazer toda a noite fora, na geada? Mesmo que tivesse subido até ao castelo para ir chamar os guardas, mesmo assim, isso não lhe tomaria tanto tempo. Porém, não voltou. Imagine só a noite que eu passei, nesta casa, à espera, sem sono nenhum.

 

- Pior do que tudo, havia também - acrescentou Cadfael suavemente - o medo de que ele pudesse, de facto, ter-se encontrado com Ninian no moinho, depois de você ter fugido, e que lhe tivesse acontecido algum mal por culpa de Ninian.

 

Respondeu com um fraco sussurro:

 

- Sim. - E tremeu. - Podia ter acontecido isso. Um rapaz tão impetuoso, desafiado, acusado, talvez atacado... Podia ter acontecido isso. Graças a Deus, nada disso se passou!

 

- E de manhã? Já não podia adiar mais, nem deixar que fossem os outros a dar o alarme. Portanto, foi à igreja.

 

- E contei metade da história - disse com um sorriso breve e oblíquo, como se estivesse com dores. - Que é que eu podia fazer?

 

- E, enquanto fomos à procura do padre, Ninian ficou consigo e sem dúvida contou-lhe como passara a noite, ignorando tudo o que aconteceu depois de ter saído do moinho. Assim como, decerto, você lhe contou o resto da sua história. Contudo, nenhum de vocês conseguiu esclarecer a morte do padre.

 

- Isso é verdade - afirmou Diota. - Juro. Nem então nem agora. Que tenciona fazer comigo?

 

- Quero, muito simplesmente, que faça aquilo que o abade Radulfus lhe mandou fazer, que continue aqui e mantenha a casa em ordem para a chegada de outro padre e que confie na sua palavra em como não irá ser abandonada, visto que foi a igreja quem a trouxe para cá. Tenho de ser livre para fazer uso daquilo que sei, mas fá-lo-ei com o mínimo prejuizo possível para si e apenas quando eu conseguir compreender melhor, do que neste momento, aquilo que se passou. Gostaria que tivesse podido ajudar-me a esclarecer mais coisas, mas não importa, a verdade anda por aí à espera de ser descoberta e tem de haver um caminho até ela. Para além de Ailnoth, houve pelo menos três pessoas que foram até ao moinho naquela noite, - disse Cadfael, detendo-se junto à porta. - Ninian foi a primeira, você foi a segunda. Pergunto-me... Pergunto-me!... quem terá sido a terceira?

 

Cadfael regressara à sua oficina há não mais de meia hora e a luz começava a enfraquecer com a aproximação de Vésperas quando Hugh o foi procurar, como era costume sempre que assuntos do condado o levavam a conferenciar com o abade. Com ele entrou uma rajada de ar frio e húmido e o prenúncio de uma tempestade de vento capaz de trazer mais neve, agora que a intensa geada acabara, ou então capaz de levar consigo a pesada nuvem e desanuviar o céu para o dia seguinte.

 

- Estive com o senhor abade - disse Hugh, sentando-se no seu já bem conhecido banco encostado à parede, e esticou, encarecidamente, os pés para o braseiro.

 

- Segundo me informaram, amanhã vocês vão enterrar o padre. Cynric cavou um buraco tão fundo que me fez pensar que ele tem medo de que o homem possa saltar de lá, se não tiver em cima uns dois metros de terra a empurrá-lo para baixo. Bem, ele vai a enterrar sem ter sido vingado, pois nada mais sabemos sobre quem o matou. Você avisou-me, logo de início, que Foregate em peso se tornaria cego, surdo e mudo. Uma pessoa julgaria que a paróquia inteira foi despovoada na véspera do Natal, ninguém admite ter estado fora de portas a não ser para ir apressadamente até à igreja, e, nessa noite, ninguém viu vivalma nas ruas. Foi preciso aparecer um estranho para dizer umas palavritas acerca das idas e vindas furtivas àquela hora tardia, e eu não lhe atribuo grande crédito. E como é que você tem passado?

 

Cadfael tinha andado a pensar no mesmo desde que saíra da casa de Diota e não tinha hipótese de esconder de Hugh o que descobrira. Não prometera guardar segredo, prometera apenas ser discreto, e era seu dever ajudá-lo assim como devia também prestar auxílio àquela mulher apanhada na armadilha do seu afecto.

 

- Melhor talvez do que aquilo que mereço - replicou sombriamente, pondo de lado o tabuleiro de comprimidos para que secassem, e foi sentar-se ao lado do seu amigo. - Hugh, se não tivesse vindo ter comigo, eu teria ido ter consigo. Ontem à noite, lembrei-me do objecto que vi com Ailnoth, naquela noite e que não descobri nem me ocorreu procurar no dia seguinte, quando o trouxemos, morto, para cá. Na verdade, havia duas coisas, embora a primeira não tivesse sido descoberta por mim. Obtive-a. dos rapazitos que, na manhã de Natal, foram até ao açude, na esperança de o encontrar congelado. Espere um momento, vou buscar as duas coisas e depois há-de ouvir-me.

 

Foi buscá-las e pôs a lamparina mais perto, para mostrar os pormenores que podiam ter tanto ou tão pouco significado.

- Este solidéu foi encontrado pelas crianças no meio dos

 

juncos dos baixios. Veja onde a costura começa e como a orla está rasgada. E esta bengala... somente esta manhã a encontrei, quase no sítio oposto àquele onde Ailnoth foi encontrado.

 

Contou a sua versão com simplicidade e verdade, omitindo, no entanto, qualquer referência a Ninian, embora talvez, também, tivesse de vir a falar nele.

 

- Veja como a faixa de prata está desgastada e virada para fora nas arestas, tornou-se fina como uma folha com a passagem do tempo. Esta ranhura aqui... - Pôs a ponta de um dedo naquelas bordas, afiadas como lâminas. - Daqui retirei isto!

 

Com cuidado, meteu um pedacito de gordura num dos pires de barro, onde costumava fazer a selecção das sementes, e fixou os cabelos resgatados à gordura solidificada, para que nenhuma corrente de ar os pudesse levar. Eram bem visíveis à luz da lamparina. Cadfael retirou um deles e esticou-o para que se visse todo o seu comprimento.

 

- Uma fissura no metal, como esta, pode agarrar cabelos em quase toda a parte - comentou Hugh, mas sem grande convicção - É verdade, mas estão aqui cinco, apanhados de uma só vez. O que, neste caso, marca toda a diferença. Então?

 

Do mesmo modo, Hugh tocou com um dedo nos cabelos brilhantes e disse deliberadamente:

 

- De uma mulher. Já não é jovem.

 

- Quer você o saiba quer não - explicou Cadfael -, há apenas duas mulheres metidas em toda esta embrulhada, e uma delas é jovem e, se Deus quiser, não há-de ficar grisalha durante muitos anos.

 

- Penso - disse Hugh, fitando-o com um leve sorriso - que seria melhor contar-me tudo. Você esteve aqui desde o princípio, eu vim mais tarde e trouxe um outro assunto oficial para se confundir com o primeiro. Se o jovem Bachiler não tiver na sua consciência algo que diga particular respeito ao desempenho do meu cargo, não estou nada interessado em impedi-lo de ir em paz para Gloucester lutar pela sua imperatriz. Mas estou muito interessado em enterrar este horrendo caso de assassínio, amanhã, juntamente com o padre Ailnoth, se me for possível. Quero que a cidade e Foregate continuem com os seus afazeres do dia-a-dia, de consciência tranquila e com o caminho livre para a vinda de outro padre. Resta-nos esperar que seja alguém de mais fácil convivência. Agora, aquilo que deduzo destes cabelos é que pertencem à Senhora Diota Hammet. Ainda não observei a senhora a uma boa luz para saber se esta cor corresponde à do seu cabelo, mas, mesmo lá, dentro de portas, a nódoa negra na testa estava bem à vista de todos. Caiu no degrau coberto de gelo... foi o que me disseram, foi o que ela me disse. Julgo que o que me está a tentar dizer é que aquela ferida foi feita de outro modo.

 

- Foi feita - retorquiu Cadfael -junto ao moinho naquela noite, quando, em desespero, seguiu o padre para lhe suplicar que não agisse, que fizesse vista grossa à fraude do rapaz, em vez de tentar confrontá-lo como se fosse um demónio vingador e de ir chamar os seus sargentos para o atirarem para a prisão. Foi a ama de Ninian, por ele arriscar-se-ia a tudo. Agarrou-se às saias de Ailnoth e implorou-lhe que nada fizesse, e, como ele não se conseguia livrar dela, bateu-lhe com esta bengala na cabeça e ter-lhe-ia voltado a bater se ela não o tivesse soltado, fugindo meio estonteada, correndo que nem uma possessa para casa.

 

Contou-lhe tudo tal como Diota lho contara e Hugh escutou-o com uma expressão séria, mas ainda com vestígios do sorriso nos seus olhos.

 

- Acredita nisso - disse-lhe, quando Cadfael terminou.

 

Não era uma pergunta, mas um facto, e com relevância para formar a sua opinião.

 

- Acredito. Completamente.

 

- E ela não sabe mais nada que nos dê uma pista sobre qualquer outra pessoa? E dá-la-ia, mesmo que soubesse? - perguntou Hugh. - É capaz de se sentir solidária com Foregate e preferir guardar segredo.

 

- É capaz disso, não o nego, mas, apesar de tudo, creio que ela não sabe de mais nada. Fugiu dele atordoada e cheia de terror. Acho que não obteremos mais informações dela.

 

- Nem do seu jovem Benet? - inquiriu Hugh com astúcia e riu-se ao ver o olhar penetrante que Cadfael lhe enviou, hesitando momentaneamente. - Oh, vá lá, aceito que não tenha sido você a avisar o rapaz para se eclipsar, quando Giffard o foi denunciar. Mas você já sabia muito bem que ele se fora embora, quando, cheio de boa vontade, nos orientou a busca no horto. Ainda consigo acreditar que você o tinha visto aqui menos de meia hora antes. Tem uma maneira muito peculiar de contar as simples verdades, que são tudo menos simples. E desde quando é que já se viu perto de si um jovem em apuros sem que lhe conquiste a confiança? É claro que ele confidenciou consigo. Aposto que sabe onde ele está neste preciso momento. Embora eu não esteja a perguntar! - apressou-se a acrescentar.

 

- Não - disse Cadfael, contente com o modo como a questão fora formulada -, não, isso não sei, portanto pode perguntar, que eu não lho sei dizer.

 

- Percebo que teve algum trabalho para não descobrir ou para que ninguém lho dissesse - anuiu Hugh, sorrindo. Bem, eu avisei-o para que o mantivesse bem escondido, caso ele lhe aparecesse à frente. Por mim, até podia fazer vista grossa desde que este assunto fique esclarecido.

 

- Quanto a isso - asseverou Cadfael candidamente -, ele partilha da mesma opinião que você, pois não arredará pé enquanto não estiver tudo explicado e não vir a Senhora Hammet livre de suspeitas e respeitada. Por muito que queira prestar um serviço respeitável em Gloucester, ficará aqui enquanto ela estiver em apuros. O que, aliás, é justo se tivermos em conta os riscos que ela correu por causa dele. Porém, uma vez terminado tudo isto, partirá, sairá do seu território. E não irá sozinho! exclamou Cadfael, fazendo um ar de complacência ao ver o ar irónico de Hugh. - Será possível eu saber mais alguma coisa que você ainda não saiba?

 

Hugh franziu o sobrolho e ponderou no enigma com toda a calma.

 

- Não foi Giffard, isso é certo! Não teria tido tempo. Disse-me que havia duas mulheres metidas nisto, sendo uma delas jovem... Quer com isso dizer-me que este jovem aventureiro arranjou uma noiva por estes lados? Tão depressa? Estes malandros de Anjou não perdem tempo, concedo-lhes isso! Vejamos, então...

 

Ponderou, tamborilando com os dedos na borda do pires de barro.

 

- Veio para um mosteiro onde as mulheres não abundam, e julgo que você lhe exigiu bastante trabalho. Teve, portanto, poucas oportunidades de ir namoriscar as mulheres da cidade. E, tanto quanto sei, não fez tentativas de aproximação com quaisquer outros fidalgos das redondezas. Resta-me, então, a casa de Giffard, onde a mensagem do rapaz pode não ter sido um segredo bem guardado e onde vive uma encantadora rapariga, ligada à facção da imperatriz por laços de sangue, com coragem e determinação suficientes Para fazer opções diferentes das do padrasto. Ora bem, a mera curiosidade pode tê-la impelido a ir ver de perto esse tal herói do romance, que atravessou os mares arriscando a sua liberdade e a sua vida. Sanan Bernières? Será que ele tenciona mesmo levá-la com ele?

 

-De facto, trata-se de Sanan. Porém, julgo que foi ela quem tomou essa decisão. Têm cavalos escondidos, prontos para a partida, e ela herdou algumas jóias da mãe, fáceis de transportar. Sem dúvida, ela também lhe arranjou uma espada e um punhal. Não iria permitir que ele se apresentasse à imperatriz ou a Robert de Gloucester como um maltrapilho, sem armas ou cavalos.

 

- As intenções deles são sérias? - perguntou Hugh, franzindo a testa por se lembrar de uma questão pessoal que podería ter modificado o curso da sua vida num caso semelhante a este.

 

- São sinceros. Ambos. Duvido de que Giffard se importe muito, embora tenha cumprido razoavelmente bem com as suas obrigações. Isto dispensa-o de lhe dar um dote. Ele sofreu perdas e é ambicioso em relação ao filho.

 

- E que é que - questionou Hugh - ela tem a ganhar com tudo isto?

 

- Ela satisfaz as suas vontades. Faz o que quer. Escolhe o homem que quer. Fica com Ninian. Julgo que pode não ser um mau negócio.

 

Hugh ficou sentado em silêncio, meditando durante algum tempo, pesando os prós e os contras de permitir esta fuga, lembrando-se, talvez, de quando, sem hesitações, seguiu Aline, e não fora assim há tanto tempo. Decorridos alguns instantes, a testa suavizou-se-lhe e nos seus olhos negros surgiu um brilho malicioso, enquanto os cantos da boca se contraíam. Piscou o olho a Cadfael.

 

- Bem, é tão fácil pôr um ponto final a tudo isto como atravessar este pátio, sim, e arrancar o rapaz do esconderijo para os meus braços, era só eu querer. Você ensinou-me a maneira de o tirar do refúgio. Basta-me prender a Senhora Hammet ou simplesmente mandar anunciar que o vou fazer, e ele virá a correr em sua defesa. Se eu a acusasse de assassínio, provavelmente, ele chegaria ao ponto de se confessar culpado por um acto que nunca cometeu, só para a ver em liberdade e demonstrar a sua inocência.

 

- Podia fazê-lo - admitiu Cadfael, não se mostrando muito preocupado -, mas não o fará. Está tão convicto quanto eu de que nem ele nem a Senhora Diota levantaram um dedo contra Ailnoth, e com certeza não vai fingir o contrário.

 

- Podia, no entanto - disse Hugh com um sorriso forçado -, tentar este truque com outra vítima e ver se o homem que realmente afogou Ailnoth será tão honesto e cavalheiresco quanto este seu rapaz. Pois, hoje, soube uma coisa que você ainda desconhece, a respeito de uma pessoa pertencente ao rebanho de Ailnoth e a quem não fará mal nenhum receber um salutar tratamento de choque. Nunca se sabe, há tanta gente bruta e pronta a matar levianamente, mas que não se acobarda nem deixa que outra pessoa seja enforcada no seu lugar. Vale a pena experimentar lançar um anzol a um assassino e, mesmo que a tentativa falhe, o engodo não sofrerá danos permanentes.

 

- Eu não faria isso nem a um cão! - comentou Cadfael.

- Nem eu, os cães são criaturas leais que lutam coinjustiça, sem guardarem rancores. Quando se atiram para matar, fazem-no em plena luz do dia, sem se importarem com o número de testemunhas que possam estar a assistir. Já não sinto tantos escrúpulos com alguns homens. Este... ah! não é assim tão mau, mas um susto não lhe fará nada mal, e até pode ser que traga algo muito bom à sua pobre e infeliz mulher.

 

- Estou completamente confuso - confessou Cadfael.

 

- Deixa-me esclarecer! Esta manhã, Alan Herbard trouxe à minha presença um homem que ele encontrou por mero acaso, um familiar de Erwald que veio passar o Natal com o preboste e a sua família, aqui, em Foregate. Esse homem é pastor, e no rebanho, abrigado para lá de Gaye, houve dois nascimentos prematuros e uma outra ovelha também estava em risco de dar à luz antes do tempo. Por isso o pastor, seu primo, foi até lá depois de Laudas e Matinas, na manhã de Natal, para dar uma olhadela e ajudar ao nascimento do cordeirinho ameaçado, e, ao amanhecer, já voltava de Gaye, percorrendo Foregate. E quem imagina que ele viu, a regressar a casa sorrateiramente, pelo carreiro do moinho, se não o próprio Jordan Achard, todo amarrotado e ensonado, com a esperança de não ser visto àquela hora? Por sorte, ele era um dos poucos que o nosso homem sabia reconhecer de vista e identificar pelo nome, pois era o padeiro a quem no dia anterior fora buscar o pão para o seu primo. Sabia da reputação de Jordan e achou ser inofensivo gracejar por o ter visto voltar para casa, vindo de alguma cama estranha.

 

- Vinha desse caminho? - perguntou Cadfael, atónito.

- Desse mesmo caminho. Ao que parece, foi bastante percorrido naquela noite.

 

- Ninian foi o primeiro - disse Cadfael lentamente nunca cheguei a contar-lho, mas, como não tinha a certeza em relação a Giffard, foi cedo até lá. Inteligentemente, foi-se embora mal viu Ailnoth a ir à sua procura, enraivecido, e não soube de mais nada até à manhã seguinte, quando Diota apareceu para dar o alerta sobre a falta do padre. Ela esteve lá, tal como já lho contei. Afirmei que tinha de haver uma terceira pessoa. Mas Jordan? A regressar a casa ao nascer do dia? É difícil acreditar que ele guardasse tanto rancor. Acho que, para além de ser um excelente padeiro, é um bebé crescido, estragado com mimos.

 

- Também penso o mesmo. Mas ele esteve lá, isso é inquestionável. Quem fica fora de portas até ao amanhecer do dia de Natal, depois de uma longa noite de culto? Exceptuando, é claro, o pastor ansioso por causa de um cordeirinho aflito! Foi um grande azar para Jordan. Mas a história não acaba aqui, Cadfael. Fui falar com a mulher de Jordan pessoalmente, enquanto ele estava ocupado nos fornos. Contei-lhe que ele fora visto e dei-lhe a entender que estava provado, sem qualquer margem para dúvida, onde ele estivera. Pareceu-me que ela estava quase a quebrar, como um ramo sobrecarregado de fruta. Pobre alma, sabe quantos filhos deu à luz? Onze, e apenas dois são vivos. E como é que ele conseguiu engendrar tantos, tendo em consideração o raro que é deitar-se em casa, é um mistério a que só o anjo dos registos saberá responder. Se não estivesse tão desgastada e mortificada, não teria mau aspecto. E ainda gosta dele!

 

- E, perante isso - disse Cadfael, estupefacto -, contou-lhe a verdade.

 

- Claro que contou. Estava cheia de medo por ele. Sim, disse a verdade. Sim, passara toda a noite fora de casa, não era novidade nenhuma. Mas para assassinar, não! Não, nesse ponto ela insistiu, ele não seria capaz de fazer mal a uma mosca. Contudo, fizera muito mal à desgraçada da mulher. Tudo o que ele fez, disse ela, foi deitar-se com a sua última namorada, que era a atrevida e desavergonhada da criada da velhota, perto do moinho, junto ao açude.

 

- Ali, isso agora é muito mais provável - disse Cadfael esclarecido. - Isso soa a verdade! Falámos com ela - recordou encantado - na manhã seguinte, quando andávamos à procura de Ailnoth. - Uma rapariga matreira e bonita de dezoito anos, com um espesso cabelo escuro, de olhar atrevido e penetrante, que disse: ”Ninguém, que eu saiba, veio até cá de noite, e por que haveria de vir?”

 

Não, ela não mentira. Não contara com o seu amante clandestino como pertencendo ao número de visitantes furtivos ao moinho, durante a noite. Sabia ao que ele lá fora, e, não tendo sido inocente, pelo menos fora absolutamente natural e inofensivo. Ela falou de acordo com aquilo em que acreditava.

 

- E não disse uma única palavra sobre Jordan! Não, por que haveria de o fazer? Sabia o que ele fizera, não era sobre ele que vocês estavam a perguntar. Oh! não, nada tenho contra a rapariga. Mas poria as minhas mãos no fogo em como ela não é capaz de fazer uma estimativa do tempo, não tem uma noção exacta das horas a que ele chegou ou partiu, a não ser guiando-se pelo amanhecer do dia. Ele poderia ter matado um homem muito antes de sussurrar à porta da velhota, a ouvidos que já estavam de sobreaviso, à escuta.

 

- Duvido muito de que o tenha feito - afirmou Cadfael.

- Também eu. Mas veja só a linda acusação que posso levantar contra ele! A sua mulher admitiu que ele foi até lá. O pastor viu-o sair de lá. Sabemos que o padre Ailnoth percorreu aquele mesmo caminho. Depois de a Senhora Hammet ter fugido, ele ainda ficou à espera da sua presa. E que tal se ele tivesse visto um dos seus paroquianos, já envolvido numa contenda com ele, a esquivar-se furtivamente para uma casa alheia e que era uma rapariga nova quem lhe abria a porta? Que faria então? O seu faro era perito na detecção de pecadores, e era bem capaz de se distrair do seu objectivo principal para caçar um malfeitor no local do crime. A velhota é surda que nem uma porta. A rapariga, se tivesse testemunhado tal luta e lhe visse o fim, teria tento na língua e inventaria uma mentira. Nesse caso, Cadfael, meu velho amigo, o padre pode ter ido no encalço de uma lebre demasiado astuciosa, com o pior dos resultados, acabando no açude.

 

- A pancada na cabeça de Ailnoth - comentou Cadfael atingiu-o bastante atrás. Os homens brigam frente a frente.

- É verdade, mas uma pessoa pode voltar-se involuntariamente e virar as costas por um instante. De qualquer modo, tanto você como eu sabemos onde está a ferida. Mas será que os outros sabem?

 

- Está mesmo disposto a ir com o seu plano para a frente?

- admirou-se Cadfael.

 

- Tornarei isto público, meu amigo, fá-lo-ei. Amanhã, de manhã, no funeral de Ailnoth... mesmo aqueles que mais o odiavam estarão presentes, para se certificarem de que ele fica bem enterrado. Poderia haver uma ocasião melhor? Se der frutos, então obteremos a nossa resposta e, após a agitação, a cidade poderá ficar em paz. Se assim não acontecer, não fará mal nenhum a Jordan apanhar um susto de curta duração e, talvez, algumas noites - ponderou Hugh, irradiando malícia - numa cama mais dura e solitária do que é costume. Pode até aprender que, doravante, não há cama mais segura que a sua.

 

- Que acontecerá se ninguém falar em sua defesa - inquiriu Cadfael com alguma malícia - e se tudo se tiver passado como ainda agora me descreveu e Jordan for mesmo o nosso homem? Que acontecerá então? Se ele mantiver a cabeça fria e negar tudo, e se a rapariga testemunhar a seu favor, terá lançado o anzol em vão.

 

- Você conhece o homem melhor do que quer mostrar disse Hugh, imperturbável. - Robusto e entusiástico, mas incapaz de aguentar muito. Se foi ele, a princípio, quando for acusado pode tentar negá-lo alto e a bom som, mas basta que passe duas noites atrás das grades para que desate a falar, dizendo que nada fez para além de se defender, que foi um mero acidente e que não conseguiu tirar o padre de dentro de água, que teve medo e não se atreveu a falar por saber que a contenda entre ambos era do conhecimento geral. Umas duas noites passadas na cela não lhe fariam mal algum. E, se ele se aguentar estoicamente durante mais tempo - disse Hugh, levantando-se -, então merece safar-se. A paróquia pensa assim.

 

- Você é uma criatura tortuosa - disse Cadfael num tom que ficava a meio termo entre a desaprovação e a admiração. Pergunto-me por que é que eu o aturo.

 

Quando Hugh chegou à porta, virou-se, olhando-o por cima do ombro:

 

- Não nego que gosto de chamar as coisas pelos seus nomes!

- sugeriu e saiu a passadas largas, percorrendo o caminho de cascalho para desaparecer no crescente lusco-fusco.

 

Na celebração de Vésperas, os salmos adquiriram uma solenidade penitencial, e na Colação, depois do jantar, na sala capitular, as leituras também adquiriram um colorido funéreo. A sombra do padre Ailnoth pairava sobre a morte do ano, e parecia que o ano, de Nosso Senhor, de 1142 nasceria não à meia-noite mas somente após terminar o serviço fúnebre, com a cova completamente coberta de terra. De acordo com o calendário da Igreja, o dia seguinte completaria a oitava da Natividade com a celebração da Circuncisão de Nosso Senhor, mas, para o povo de Foregate, seria antes de mais o ofício propiciatório que lhes iria retirar este pesadelo de cima dos ombros. Era uma despedida deplorável para qualquer pessoa, quanto mais para um padre.

 

- Amanhã - informou o prior Robert antes de os dispensar para disfrutarem da última meia hora de descontracção na sala de convívio, antes de Completas -, o ofício fúnebre pelo padre Ailnoth será imediatamente após a missa paroquiana, e serei eu próprio a celebrá-lo. No entanto, a homilia ficará a cargo do abade Radulfus, de acordo com a sua vontade.

 

A voz incisiva e bem modulada do prior proferiu esta informação com uma ênfase algo ambígua, como se duvidasse se havia de aprovar a decisão do abade, entendendo-a como um elogio ao morto, ou se havia de a lamentar e ficar ressentido por se ver privado de exercer o seu inquestionável dom da eloquência.

 

- As Matinas e Laudas serão celebradas de acordo com o Ofício Fúnebre.

 

O que significava que seriam compridas. Os irmãos mais prudentes fariam bem se, após Completas, fossem imediatamente para a cama. Cadfael já dispusera a turfa no braseiro, de modo a que, durante a noite, a combustão se fizesse lentamente, evitando assim que as loções e os remédios congelassem nos frascos e que estes rebentassem, não se fosse dar o caso de, naquelas poucas horas, surgir outra vez uma geada intensa. Porém, a temperatura do ar ainda não era suficiente para a formação de geada, embora previsse que, pelo vento fraco e pelo céu praticamente desanuviado, não iria haver grande perigo. Sentiu-se grato por poder ir para a sala de convívio, juntar-se aos outros irmãos, para gozar de uma agradável meia hora de ócio.

 

Era este o momento em que mesmo os mais taciturnos se descontraíam através da conversa, e nem mesmo o prior franzia o sobrolho quando eram um pouco mais loquazes. Inevitavelmente, nesta noite, o tema da troca de impressões incidiu sobre a breve administração do padre Ailnoth, sobre a sua morte cruel e sobre o cerimonial fúnebre que se aproximava.

 

- Então o abade tenciona fazer o panegírico, não é? sussurrou o irmão Anselin ao ouvido de Cadfael. - Vai ser interessante escutá-lo.

 

Anselin encarregava-se da música do Ofício Divino, por isso não sentia a mesma consideração pela palavra, embora lhe admirasse o poder e a influência.

 

- Pensei que ele ficaria muito feliz por relegar essa tarefa a Robert. Ou pensa que ele encara isto como uma penitência justa por ter sido ele o responsável pela vinda do padre para cá.

 

- Pode haver algum fundamento nisso - admitiu Cadfael.

- Porém, penso que tem mais a ver com o facto de ter decidido que somente a verdade será dita. Robert deixar-se-ia transportar até aos píncaros do louvor. Radulfus quer ser claro e honesto.

 

- Não é uma tarefa fácil - disse Anselin. - Ainda bem para mim que ninguém espera ouvir palavras da minha boca. Ainda nada foi dito acerca de quem irá suceder ao cargo paroquiano. Devem estar todos a rezar para que seja alguém já conhecido, quer tenha conhecimento do latim quer não. Mesmo que fosse um homem por quem não sintam grande simpatia, seria bem-vindo, desde que pertencesse aqui e ja os conhecesse. Uma pessoa sabe lidar com um demónio que lhe é familiar

 

- Não é pecado ambicionarmos um pouco mais do que isso

- comentou Cadfael com um suspiro. - Um homem vulgar, que se considere bastante abaixo dos anjos e que esteja muito consciente das suas limitações, serviria perfeitamente para Foregate. É pena que tivéssemos passado estas últimas semanas a sentir essa lacuna.

 

Na lareira de pedra, os toros de madeira ardiam com um ritmo constante, e restavam agora umas achas incandescentes, criteriosamente calculadas para durarem até ao cair da noite e se extinguirem sem grandes desperdícios, quando o sino tocasse a Completas. Os rostos afectados pelo frio e pelo trabalho fora de portas adquiriam uma agradável tonalidade cor-de-rosa e as mãos gretadas suavizavam-se devido ao unguento distribuído das reservas de Cadfael. Os amigos reuniam-se em grupos por eles escolhidos e as vozes, num tom baixo e decoroso, fundiam-se num alegre murmúrio, como se de uma colmeia se tratasse. Alguns jovens sadios, que tinham passado a maior parte do dia a trabalhar ao ar livre, tinham bastante dificuldade em manterem-se de olhos abertos naquela sala aquecida. Hoje à noite, as Completas iriam ser convenientemente curtas, pois as Matinas iriam ser longas e sombrias.

 

- Amanhã começa um novo ano - disse o irmão Edmund, o enfermeiro - e uma vida nova.

 

Alguns responderam:

 

- Amen! - quer o tivessem feito pela força do hábito ou por convicção, mas Cadfael fixou-se na palavra. ”Ámén” adequa-se mais a um final, a uma resolução, a uma aceitação da paz, e, por enquanto, nenhuma destas coisas estava em vias de se concretizar.

 

A cerca de um quilómetro e meio de distância da cama de Cadfael, na estreita cela do dormitório, Ninian estava deitado na palha abundante de um bem abastecido palheiro, envolto na capa que Sanan lhe levara, sentindo ainda o agradável conforto da presença dela nos seus braços, apesar de já terem decorrido duas horas ou mais desde que ela se despedira, a tempo de deixar o pónei no estábulo da cidade, antes que o padrasto regressasse da missa da noite na igreja de Saint Chad. Ninian insistira com ela para que não se aventurasse sozinha à noite, mas por enquanto não conseguia ter ascendente sobre ela, que fazia o que muito bem lhe apetecia, tendo vindo ao mundo, ao que parecia, desconhecendo o medo. Este estábulo e palheiro na orla da floresta pertenciam aos Giffard, que tinham pastagens naquele grande prado cercado pelas árvores, mas o velhote que guardava o gado fizera parte dos domésticos da família de Sanan e por isso ele se considerava um seu fiel e dedicado servo. Os dois excelentes cavalos, que ela comprara e alojara aqui, faziam a alegria dele, e as confidências que Sanan lhe fizera acerca dos seus planos de casamento seriam um motivo de orgulho e felicidade até ao fim dos seus dias.

 

Ela viera e estendera-se na palha junto a Ninian, os dois embrulhados numa única capa, abraçados, por agora ainda não pelo prazer físico, mas por uma questão de sobrevivência e conforto. Aninhados como arganazes no seu sono de Inverno, suficientemente despertos para se darem conta de um imenso prazer, conversaram durante cerca de uma hora, e agora, que ela já partira, ele abraçava a sua recordação, obtendo energias para se conservar quente e feliz pela noite adiante. Num qualquer dia, numa qualquer noite, Deus permitisse que fosse para breve, ela já não teria de se levantar e abandoná-lo, e ele já não teria de abrir os braços relutantes para a deixar ir e a noite seria perfeita e linda. Contudo, agora estava sozinho, algo ansioso, preocupado com ela, com o amanhã, com as suas dívidas de honra, que lhe pareciam estar a ser inadequadamente retribuídas.

 

De cabelo solto encostado à cara dele, com a respiração quente a passar-lhe pelo pescoço, ela contara-lhe tudo o que se passara durante estes últimos dias do ano, que o irmão Cadfael encontrara a bengala de ébano, a visita que fizera a Diota e de como lhe extraíra a sua versão dos acontecimentos, que o funeral do padre Ailnoth se iria realizar no dia seguinte após a missa paroquiana. E, quando ele se mostrara muito ansioso por causa de Diota, ela puxara-o novamente para si e envolvera-lhe o pescoço com os braços, dizendo-lhe que não havia razões para se preocupar, pois prometera acompanhar Diota à missa de defuntos pelo padre e cuidar tão bem dela como se fosse ele próprio, e iria reagir a qualquer ameaça que pudesse surgir contra ela com a mesma coragem com que ele reagiria. E proibira-o de sair do esconderijo até ela voltar para junto dele. Contudo, tal como ela era uma mulher a quem não se desobedecia facilmente, também ele era um homem a quem não era fácil proibir fosse o que fosse.

 

Mesmo assim, ela conseguiu arrancar-lhe a promessa de que ficaria à espera, a menos que surgisse algo imprevisto que viesse tornar a acção imperativa. Com isto ela teve de se contentar e selaram tudo com um beijo, afastando as ansiedades do presente para cochicharem sobre o futuro. Quantos quilómetros seriam até à fronteira com o país de Gales? Dezasseis? Decerto não seriam mais. E Powys podia ser uma região tumultuosa, mas não tomava partido nem pela imperatriz nem pelo rei Steplien e, instintivamente, pôr-se-ia do lado do fugitivo, em vez de optar pelo cumprimento da lei inglesa. Ainda por cima, Sanan tinha um parente distante por aqueles lados, por via de uma avó galesa de quem herdara o seu nome tão invulgar em Inglaterra. E, caso se deparassem com salteadores nas florestas, Ninian era hábil e tinha uma boa espada e um punhal comprido escondidos no feno, armas que John Bernières usara durante o cerco de Shrewsbury, onde morreu. Serviriam perfeitamente para a viagem. Chegariam a Gloucester e aí casariam, à vista de todos e com dignidade.

 

Mas ainda não podiam ir, não podiam partir enquanto ele não tivesse a certeza de que Diota já não corria perigo e de que tinha a subsistência garantida sob a protecção do abade. E agora, que estava ali sozinho, Ninian não conseguia vislumbrar uma solução para esse problema. Mesmo que o dia decorresse sem qualquer ameaça para Diota, isso nada resolvia em relação aos dias que se sucederiam.

 

Ninian ficou acordado até depois da meia-noite, preocupado com aquela meada de problemas que não se deixava desemaranhar. Passada a barreira entre o velho e o novo ano, entregou-se, finalmente a um sono irrequieto e sonhou que desbravava intermináveis caminhos pela floresta, cheios de silvas e espinhos, para ir ter com uma Sanan que lhe fora para sempre retirada, deixando-lhe apenas um suave perfume de ervas aromáticas.

 

Por debaixo da abóbada do coro, mal iluminado para as Matinas, as palavras solenes do Ofício dos Defuntos ecoavam e voltavam a ecoar, com uma ressonância que os sons não pareciam ter de dia, e a voz grandiloquente do irmão Benedict, o sacristão, subiu de tom, parecendo encher toda a abóbada enquanto lia os ensinamentos entre os salmos, e, sempre que havia uma pausa, ouvia-se o persistente versículo com a respectiva resposta:

 

-Requieni aeternain dona eis, Doinine...

- Et lux perpetua luceat eis...

 

Ao que o irmão Benedict respondia com uma voz profunda e magnífica:

 

- ”Tenho a alma muito cansada da vida... Falarei em nome da amargura da minha alma, d’irei a Deus, não me condeneis, mostrai-me por que motivo não estais satisfeito comigo...”

 

Não era muito confortante o livro de Job, pensou Cadfael, escutando atentamente sentado no cadeirão, mas era um poema lindo... e, no fim de contas, isso não era já, por si só, uma espécie de conforto? Não fazia que o desconforto, a degradação e a morte, tudo aquilo de que Job se queixava, se tornassem um magnífico desafio?

 

”Oh, que possais conservar-me no túmulo, que possais manter-me afastado, enquanto a vossa ira não passar...

 

”A minha respiração está corrupta, os meus dias extintos, o túmulo pronto para me receber... Fiz a minha cama no seio da escuridão, não pequei verbalmente, Vós sois meu pai em todos os aspectos, Vós sois a minha mãe. E onde está a minha esperança agora?”

 

”Parai, então, e deixai-me em paz, para que eu possa encontrar um pouco de conforto, antes que eu parta para esse sítio de onde jamais regressarei, para a região das trevas e da sombra da morte... região caótica, onde a luz equivale às trevas...”

 

Porém, no final, a súplica, que era na sua essência uma busca de paz, subiu novamente de tom, um grau acima da esperança rumo à certeza:

 

”Concedei-lhes o descanso eterno, ó Senhor...” ”E deixai que a luz eterna os ilumine...”

 

Ao subir as escadas, vacilante, para se deitar depois de Laudas, na mente de Cadfael ainda ecoava este apelo persistente, que, pouco antes de adormecer já quase se transformara numa reivindicação triunfante, tentando alcançar aquilo que pedia. Descanso e luz eterna... mesmo para Ailnoth.

 

”Não apenas para Ailnoth, mas para a maioria de nós”, pensou Cadfael, deixando-se cair no sono. ”O percurso através do purgatório será longo, mas, sem dúvida, mesmo o caminho mais sinuoso vai lá dar, no fim.”

 

O primeiro dia do Novo Ano de 1142 nasceu cinzento e chuvoso, mas com uma luminosidade velada, sugerindo que o Sol poderia, lentamente, romper as nuvens e subsistir durante mais ou menos uma hora lá para o meio do dia, antes que o nevoeiro se cerrasse de novo com a aproximação do anoitecer. Cadfael, que, regra geral, costumava levantar-se bastante antes de Prima, nesta manhã só acordou ao som das badaladas e desceu as escadas, com os outros, ainda ensonado por causa de um tão curto descanso. Depois de Prima, foi até à sua oficina para se certificar de que estava tudo em ordem e no regresso trouxe consigo azeite para as lamparinas do altar. Cynric já aparara as velas e saíra para o cemitério pelo claustro, para ver se, no sítio onde a cova decorosamente coberta com tábuas junto ao muro aguardava o morto, tudo estava pronto.

O corpo, decentemente vestido, repousava num caixão de madeira em cima de um catafalco à frente do altar paroquiano. Depois da missa, seria transportado numa procissão que sairia pela porta setentrional, percorrendo Foregate, e entraria pelo enorme portão duplo, situado na esquina da feira dos cavalos, onde era permitida a entrada à população laica, evitando-se, assim, a passagem pelo pátio monástico. Era necessário preservar esta separação para benefício da tranquilidade necessária ao cumprimento da Regra.

 

No pátio grande, bastante antes da hora da missa, havia uma azáfama contida. Os irmãos apressavam-se para terminarem as tarefas do dia ou para acabarem pequenas coisas deixadas por fazer no dia anterior. E o povo de Foregate começou a concentrar-se junto ao portão ocidental da igreja, à espera dos amigos para entrar. Iam chegando com um ar reservado, adequadamente sério e cerimonioso, mas com o olhar cauteloso e alerta, como quem espera por uma emboscada, não sabendo ao certo se já se teriam livrado ou não do espectro, daquela presença ressentida. Talvez no dia seguinte respirassem fundo e saíssem dos seus refúgios, já sem medo de falarem abertamente com a vizinhança. Talvez! Mas que aconteceria se Hugh lançasse o seu anzol em vão?

 

Cadfael estava preocupado com todo esse plano, mas sentia-se ainda mais consternado só de pensar que esta incerteza se podia prolongar eternamente, até que a desconfiança e o medo acabassem por se extinguir por meio do desgaste e do esquecimento. Era melhor trazer este assunto à luz, lidar com ele e arrumá-lo. Nessa altura, então, todos menos um ficariam em paz. Não - esse também! Esse mais do que os outros!

 

As pessoas ilustres de Foregate tinham começado a chegar. Erwald, o magistrado, de rosto sombrio e ciente da sua dignidade, como aliás lhe convinha e quase justificava o uso do título de preboste. O ferreiro, vindo directamente da forja, Rhys ab Owain, o farrier galês - vários dos artesãos de Foregate eram galeses -, o pastor, parente de Erwald e Jordan Achard, o padeiro, grande e muito corpulento, com uma expressão muito séria, tal como os outros, mas, contudo, havia nele um certo ar de satisfação por ter vivido o suficiente para enterrar o seu difamador. Também a rala-miúda ia chegando. Aelgar, que trabalhara para o padre e que fora afrontado pela questão de ser um homem-livre ou um servo, Eadwin, cuja pedra de demarcação fora removida para Ailnoth poder arar as suas terras além dos limites, Centwin, cujo bebé fora enterrado em solo não sagrado e abandonado como sendo uma alma perdida, os pais dos rapazes, que aprenderam, da forma mais dura, a manter-se fora do alcance da bengala de ébano e que tremiam que nem varas verdes por terem de frequentar as aulas de Ailnoth. Os rapazes agruparam-se a alguma distância dos crescidos, segredando, mudando de lugar, tentando espreitar para o interior, mas sem chegarem a entrar, e, por vezes, nos seus rostos cansados surgiam súbitas risadas fugazes e reprimidas, num misto de fanfarronice e de respeito involuntário. Os cães de Foregate, sentindo a excitação e o constrangimento geral, corriam por entre a multidão, abocanhavam os cascos dos cavalos em movimento e soltavam uivos agudos a cada ruído inesperado.

 

As mulheres, na maioria dos casos, tinham sido deixadas em casa. A mulher de Jordan, sem dúvida, ficara a cuidar da padaria, a limpar as cinzas da fornada da manhã e a preparar tudo para a segunda leva de pães já enformados, já à espera da sua vez. Ainda bem que ela estava a uma boa distância daquilo que estava prestes a acontecer, embora Hugh não fosse certamente envolver a pobre mulher, quando ela se limitara apenas a admitir que o marido dormira fora de casa para o livrar de uma acusação pior. Bem, este assunto tinha de ser deixado nas mãos de Hugh, e ele era, regra geral, muito hábil a manipular as pessoas e os acontecimentos. Porém, havia algumas mulheres presentes, as idosas, as casadas, as viúvas de artesãos, com uma boa situação económica, aquelas que apoiavam a igreja mesmo quando outros lhe viravam as costas. As beatas, sempre presentes nos mais insignificantes serviços religiosos e que tanto iam assistir às Vésperas monásticas como à missa paroquiana, constituíam o grosso deste grupo laico de mulheres idosas e robustas, decorosamente vestidas de negro. Por nada deste mundo perderiam as cerimónias deste dia.

 

Cadfael estava observar as chegadas com um olhar meio atento, enquanto ia divagando, quando Diota Hammet entrou pelo portão com a solícita mão de Sanan apoiada no seu braço. Para ele, o impacte foi duplo, por um lado recordaram-lhe a ansiedade e por outro lado foi como uma lufada de ar fresco, duas mulheres bonitas, assim lado a lado, com compostura e dignidade, muito calmas e decididas. Era o Outono e a Primavera que, com elegância, se apoiavam mutuamente. Ninian, no seu exílio e solidão, iria exigir um relato completo e não teria um minuto de descanso enquanto não o obtivesse. Mais umas duas horas e o assunto ficaria arrumado, para bem ou para mal.

 

Elas entraram para o pátio pelo portão e estavam a olhar à sua volta, inequivocamente à procura de alguém. Foi Sanan a primeira a vê-lo, e o rosto iluminou-se-lhe quando se virou para segredar algo rapidamente ao ouvido de Diota. A viúva voltou-se para olhar e imediatamente avançou na sua direcção. Ele foi ao encontro delas, visto lhe ter parecido que era a ele quem procuravam.

 

- Estou contente por o ter encontrado antes da cerimônia disse a viúva. - O unguento que me deu... sobrou metade e agora já não me faz falta. Seria uma pena desperdiçar-se, deve estar a ser muito solicitado neste Inverno rigoroso.

 

Guardara-o num pequeno saco preso à cintura, e teve de remexer desajeitadamente por debaixo da capa para o conseguir tirar. Era um pequeno frasco de cerâmica com uma tampa de madeira atada ao gargalo para o vedar. Estendeu-lho com a palma da mão aberta, oferecendo-lhe também um sorriso, que, apesar de não ser rasgado, era resoluto.

 

- Já não tenho feridas, e isto pode vir a ser útil a alguém. Aceite-o, e muito obrigada.

 

- O último arranhãojá se tornara quase invisível. A cicatriz na testa reduzia-se a uma manchita de cor azulada e a nódoa negra desaparecera completamente.

 

- Podia tê-lo guardado, com o meu consentimento, para a eventualidade de vir a necessitar dele no futuro - disse Cadfael, aceitando a oferta.

 

- Bem, no caso de isso acontecer, espero ainda estar por aqui e poder mandar chamá-lo - respondeu Diota.

 

Fez-lhe uma pequena vénia de reverência e voltou-se com a intenção de ir para a igreja. Por cima do ombro dela, os olhos de Cadfael fixaram-se nos de Sanan, de um azul-intenso e brilhante, quase tão íntimos e secretos como um sinal entre dois conspiradores. Depois, também ela se virou, pegando no braço da mulher mais velha, e ambas se foram embora, percorrendo o pátio até ao portão, entrando pela porta ocidental da igreja.

 

Já a luz do dia era forte quando Ninian acordou. Sentia a cabeça pesada e teve dificuldade em organizar as suas ideias, por ter passado metade da noite acordado, caindo, depois, num sono demasiado profundo. Levantou-se e, em vez de usar o escadote, saltou da parte superior do palheiro, saindo para a manhã fria e húmida para desentorpecer as pernas. Os compartimentos dos cavalos estavam vazios. Sweyn, o trabalhador a cargo de Sanan, já ali estivera, vindo da sua casa perto da cidade, e deixara os cavalos saírem para-a pastagem cercada. Depois das intensas geadas, durante as quais tiveram de ficar no estábulo, precisavam de espaço para fazer exercício e estavam a disfrutar da sua liberdade, felizes por se encontrarem ao ar livre, em plena luz do dia. Sendo novos, enérgicos e não estando habituados a trabalhar, não seria tarefa fácil apanhá-los e pôr-lhes rédeas, mas era pouco provável que fizessem falta para este mesmo dia.

 

A vacaria ainda estava cheia, e as vacas não sairiam para as pastagens ao longo do rio enquanto Sweyn não estivesse por perto para as guardar. A vacaria e o estábulo estavam situadas numa grande clareira, entre as encostas da floresta, existindo apenas um único descampado, que se estendia até ao rio, agradavelmente resguardado, e por debaixo da última fileira de árvores, mais a ocidente, corria um regato que ia dar ao Severn. Ninian foi até lá ainda ensonado, despiu o casaco e a camisa, ficando a tremer, e mergulhou a cabeça e os braços na água, retraindo-se e inspirando ruidosamente por causa do frio, mas sentindo, depois, a agradável sensação de já estar desperto. Sacudiu a água da cabeça e, com as mãos, espremeu os caracóis espessos, desatando numa correria pelo descampado. Apanhou as roupas que despira e correu para o abrigo, a fim de se esfregar energicamente a uma saca limpa, vestindo-se, então, para enfrentar o dia. Dia esse que podia ser comprido, solitário e cheio de ansiedade; contudo, neste momento sentia-se preparado e esperançoso.

 

Penteou o cabelo tão bem quanto os seus dedos lho permitiram e estava sentado num fardo de palha a comer um naco de pão e uma maçã, das provisões que Sanan lhe trouxera, quando ouviu o guardador de gado aproximar-se. Ou seria outro homem em vez de Sweyn? Ninian ficou hirto, à escuta, com uma bochecha cheia de maçã e os maxilares parados. Não se ouvia assobiar, e Sweyn assobiava sempre, estes pés caminhavam com uma pressa invulgar e eram audíveis quer pisassem as ervas ou as pedrinhas. Ninian pôs-se de pé num salto e subiu para a parte superior do palheiro, ficando em silêncio, a espreitar pelo alçapão, pronto para o que desse e viesse.

 

- Meu jovem senhor... - chamou uma voz, vinda da porta aberta, sem dar sinal de ter tomado precauções. Afinal era Sweyn, mas um Sweyn que viera a correr, já com pouco fôlego, e que, nesta manhã, não tivera tempo a perder com assobios. Onde está? Desça!

 

- Ninian expirou profundamente, deixou-se escorregar pelo alçapão, ficando pendurado pelos braços, e foi cair perto do guardador de gado.

 

- Por amor de Deus, Sweyn, quase me fez empunhar uma faca! Nunca pensei que fosse você. Julguei que, por esta altura, já lhe conhecia de cor os passos, mas você veio como se fosse um estranho. Que se passa? Impetuosamente, pôs um braço à volta dos ombros do seu amigo e aliado, em sinal de alívio, e com a mesma rapidez afastou-o para o observar da cabeça aos pés.

 

- Deus meu, Deus meu, mas que bem vestido! A que se deve a honra?

 

Sweyn era um homem gordo, de meia-idade, a ficargrisalho, de barbas hirsutas e olhos pestanejantes. Se tinha vestido algumas peças de roupa adequadas ao Inverno, vestira-as por debaixo, pois só se via um par de meias grossas, e Ninian ainda nunca o vira usar nenhuma outra capa a não ser uma castanha muito remendada, no entanto, era evidente que possuía outra. pois, nesta manhã, usava uma capa verde com um capucho castanho a cobrir-lhe a cabeça e os ombros.

 

- Estive em Shrewsbury - disse concisamente -, fui buscar um par de sapatos que a minha mulher deixou a remendar na Provost Corvier’s. Estive aqui ao nascer do dia e soltei os cavalos, que ultimamente têm passado muito tempo encurralados. Depois, fui-me embora e preparei-me para ir à cidade e, entretanto, não tive tempo para voltar a mudar de roupa. Senhor, na cidade, corre o boato de que o xerife tenciona ir assistir ao funeral do padre em Foregate e prender o assassino. Pensei que lhe devia trazer esta informação tão depressa quanto possível, pois pode ser verdade.

 

Ninian ficou de pé, boquiaberto e consternado, durante alguns instantes, num silêncio total.

 

- Não! Ele vai prendê-la? É isso que consta? Oh, meu Deus, Diota não! E ela está lá, sem suspeitar de nada. E eu não estou lá. - Agarrou com firmeza no braço de Sweyn. - Isso é de fonte segura?

 

- É o que corre pela cidade. As pessoas estão muito ansiosas, uma multidão vai atravessar a ponte para ir assistir ao desfecho. Não dizem quem vai ser... tentam adivinhar, colocam duas ou três hipóteses, mas concordam que isto está a chegar ao fim, independentemente de quem quer que seja o pobre miserável.

 

Ninian deitou fora a maçã, que continuara a segurar, e bateu com os punhos um no outro, desvairado.

 

- Tenho de ir! A missa paroquiana não começará antes das dez, ainda tenho tempo...

 

- Não pode ir. A senhora disse...

 

- Eu sei o que ela disse, mas agora este assunto diz-me respeito a mim. Tenho de livrar Diota, e hei-de consegui-lo. Quem é que o xerife tenciona acusar se não ela? Mas não há-de prendê-la! Não o permitirei!

 

- Será reconhecido! Pode não ser ela a pessoa visada, e depois como é? É possível que ele já conheça a verdade e saiba muito bem o que vai fazer. E você irá entregar-se para nada insistiu sensatamente o guardador de gado.

 

- Não, não terei de me dar a conhecer. Serei um no meio de uma multidão... e somente os da abadia e alguns de Foregate me conhecem bem de vista. Em todo o caso - asseverou Ninian, implacável -, se alguém se atrever a tocar-lhe, eu dar-me-ei a conhecer e vingar-me-ei. Mas posso passar despercebido no meio da multidão, por que não? Empreste-me essa capa e capucho, Sweyn, quem me reconhecerá por debaixo de um capuz! E nunca me viram com esta roupa, a sua é demasiado boa para o Benet que eles se acostumaram a ver por aí...

 

- Leve o cavalo - disse Swen, tirando o capucho sem protestos, fazendo, depois, deslizar a capa folgada pela cabeça. Ninian lançou um olhar ao campo, onde os dois cavalos coiceavam, felizes por estarem ao ar livre.

 

- Não, não há tempo! A pé, faço o percurso com a mesma rapidez. Darei mais nas vistas se for montado. Quantos homens irão a cavalo ao funeral de Ailnoth?

 

Meteu-se naquelas roupas folgadíssimas, ainda quentes do corpo de Sweyn, e emergiu perturbado e corado.

 

- Não me atreverei a mostrar uma espada, porém, posso levar um punhal escondido.

 

Subiu ao piso superior para o ir buscar e escondeu-o debaixo da capa, prendendo-o ao cinto dos calções.

 

À porta, já pronto para desatar a correr, deteve-se apreensivo e voltou-se para segurar outra vez no braço do homem.

- Sweyn, se eu for preso... Sanan há-de recompensá-lo. As suas melhores roupas... eu não tenho o direito...

 

- Oh, vá-se embora! - exclamou Sweyn, meio ofendido, e deu-lhe um empurrão no sentido do campo e das árvores. - Eu posso vestir-me com sacas, se necessário for. Volte são e salvo, caso contrário, a minha jovem senhora porá a minha cabeça a prêmio. E ponha o capuz, seu imprudente, antes de chegar à estrada!

 

Ninian correu, atravessando o prado até à encosta arborizada, tomou o caminho que, num espaço de mais ou menos um quilómetro, o levaria ao riacho Meole e depois até Foregate, perto da ponte que dava acesso à cidade.

 

O grande boato que corria por Shrewsbury chegou aos ouvidos de Ralph Giffard algum tempo mais tarde. Nenhum dos seus domésticos tinha saído antes das nove, até que uma criada foi buscar leite e demorou muito tempo por causa dos mexericos que lhe contaram. Mesmo depois de ela regressar a casa, as notícias ainda levaram o seu tempo a passar da cozinha para os ouvidos do secretário, que entretanto aparecera para se inteirar do porquê de toda aquela tagarelice. Daí foram parar aos ouvidos do próprio Giffard, que estava nessa altura a reflectir se não seria chegada a hora de deixar a casa da cidade entregue nas mãos do caseiro e mudar-se para a sua herdade principal no Nordeste. Seria agradável prolongar a sua permanência aqui, e ficara satisfeito por ter concordado com o desejo do seu filho de ficar a gerir uma herdade sozinho, sem qualquer supervisão. O rapaz tinha 16 anos, dois anos mais novo do que a sua meia-Irmã, e tinha alguns ciúmes da maturidade e responsabilidade que ela demonstrava ao orientar o trabalho das criadas. Ele já estava noivo da filha de um vizinho, que era um bom partido, e naturalmente estava ansioso por experimentar os seus primeiros voos. E decerto estaria a sair-se bem, orgulhando-se das suas proezas. No entanto, seria prudente da parte de um pai vigiar-lhe os negócios. Não havia desaguisados entre o rapaz e a rapariga, mas, apesar de tudo, ojovem Ralph não sentiria pena alguma por ver Sanan bem casada e fora de casa. Se ao menos esse casamento não prenunciasse tantos gastos!

 

- Meu senhor - disse o velho secretário, a meio da manhã, interrompendo-lhe os pensamentos. - Penso que hoje, ou então muito em breve, se vai livrar do seu pesadelo. Corre pela cidade, espalha-se a todas as esquinas e portas, que Beringar já sabe e pode provar quem é o assassino e que tenciona apanhá-lo no funeral do padre. E quem poderá ser se não o jovem de FitzAlan? Pode já ter conseguido escapar noutra altura, mas desta vez parece que está encurralado.

 

Estas informações foram dadas como sendo boas notícias, e foi como tal que Giffard as encarou. Uma vez que o problemático jovem fosse preso e que o seu papel neste assunto fosse clarificado, como tendo agido com decoro e lealdade, podia ficar tranquilo. Enquanto o desordeiro andasse à solta, qualquer pessoa correria o risco de ver o seu nome ligado ao dele.

 

- Então, parece que fiz bem em denunciá-lo - afirmou respirando fundo. - Ainda poderia vir a ser acusado de outras coisas quando lhe pusessem as mãos em cima. Bem, Bem! Está tudo a chegar ao fim e não houve grandes estragos.

 

Este pensamento era bastante confortante, embora tivesse ficado mais satisfeito caso tivesse sido possível atingir os mesmos fins sem ter sido necessário traí-lo, pelo que ainda se recriminava, sentindo alguns escrúpulos na consciência. Porém, agora, se ficasse provado que o jovem tinha realmente matado o padre, não havia mais razões para se sentir apreensivo com o destino do rapaz, pois iria ter a sorte que merecia.

 

Foi uma derradeira superstição de que algo ainda podia vir a correr mal e também um desejo contraditório de querer assistir pessoalmente ao desfecho que o fizeram repensar e decidir-se já tardiamente a ir ao funeral. Para se certificar mas também para disfrutar ao máximo do facto de ele próprio ter sido preservado.

 

- Isso deve acontecer depois da missa paroquiana? Neste momento, devem estar a meio do sermão do abade. Acho que vou de cavalo até lá, para assistir ao final.

 

Saltou da cadeira e pôs-se aos berros pelo pátio, para que o palafreneiro lhe preparasse o cavalo.

 

O abade Radulfusjá estava a discursar há algum tempo, devagar, numa voz alta e retraída, típica de quem está em profunda meditação, medindo cada palavra que dizia. O coro estava sempre mal iluminado - uma parábola da vida humana -, porém, havia uma pequena área com luz rodeada pela penumbra e escuridão, pois mesmo na própria escuridão havia diferentes graus de sombras. A nave cheia de gente estava melhor iluminada, e com tantas pessoas a assistir o frio não era muito intenso. Quando os monges do coro e a congregação secular se encontravam para celebrarem o culto em comum, a separação existente entre ambos parecia acentuar-se em vez de se atenuar. ”Nós estamos aqui e vocês estão aí fora”, pensou o irmão Cadfael, e, no entanto, somos todos de carne e osso e as nossas almas estão sujeitas ao mesmo juízo final.

 

- A companhia dos santos - dizia o abade de cabeça erguida, de modo a que o seu olhar se elevasse para a abóbada em vez de incidir naqueles a quem se dirigia - não é para ser determinada por factores que abranjam a nossa compreensão. Não pode ser constituída pelos não pecadores, pois será que alguém de carne e osso, à excepção de um único, pode ter essa pretensão? Certamente, haverá lugar para aqueles que estabeleceram metas elevadas e fizeram os possíveis para as alcançar, e acreditamos que também este nosso irmão e pastor assim procedeu. Sim, mesmo aqueles que não conseguiram atingir os seus fins, e ainda aqueles cujos objectivos foram demasiado limitados, por terem a mente cega pelo orgulho e pelo preconceito, gananciosamente, canalizada para o aperfeiçoamento pessoal. A própria busca da perfeição pode ser pecaminosa se infringir os direitos e as necessidades de uma outra alma. É preferível fracassarmos um pouco, mas olharmos para o lado e ajudarmos alguém a levantar-se do que passarmos por esse alguém cheios de pressa a fim de atingirmos uma recompensa pessoal, abandonando-o à solidão e ao desespero. É preferível trabalharmos com imperfeição e falibilidade, mas ampararmos os que tropeçam, do que avançarmos, sozinhos, a passadas largas.

 

Repito, não basta abstermo-nos do mal, tem de haver também a caridade. A companhia dos santos pode alargar-se legitimamente para abranger mesmo os homens que foram grandes pecadores, mas abrange também os que amaram profundamente o seu próximo, nunca desviando os olhos das carências dos outros, fazendo todo o bem que podiam e evitando ao máximo praticar o mal. Pois, ao verem as necessidades do próximo, viram igualmente as necessidades de Deus, tal como Ele próprio nos mostrou, e, ao verem o rosto de um vizinho com maior nitidez do que o seu, viram também o rosto de Deus.

 

Mais ainda, quero mostrar-vos que todos aqueles que vêm ao mundo e morrem imaculados partilham da pureza e martírio dos Inocentes e morrem por Nosso Senhor, que os abraçará e fará renascer sem nunca mais virem a participar da morte. E, se morreram sem ter um nome, o seu nome estará, contudo, escrito no Seu livro e ninguém terá de saber qual é, até ser chegado o dia.

 

Mas a nós, aos que partilhamos o fardo do pecado, compete-nos não pormos em causa nem nos preocuparmos com a sorte que nos coube na vida, nem tentar fazer uma estimativa dos nossos méritos ou merecimentos, pois não temos os instrumentos necessários para medirmos os valores respeitantes à alma. Isso compete a Deus. Mas já é uma obrigação nossa, a de vivermos cada dia como se fosse o último, com o máximo de verdade e benevolência possível, e deitarmo-nos todas as noites como se o dia seguinte fosse o primeiro... um começo novo e puro. Chegará o dia em que tudo se esclarecerá. Então, ficaremos a saber, tal como por agora nos limitamos a confiar. E é por termos essa confiança que nós entregamos o nosso pastor, aqui presente, ao cuidado do pastor dos pastores, acreditando convictamente na ressurreição.

 

Disse a bênção com a cabeça baixa, olhando finalmente para a assistência. É provável que se tivesse questionado sobre qual o número de pessoas que tinham compreendido e qual o número dos que sentiam, de facto, necessidade de compreender.

 

Terminou aqui. As pessoas mexiam-se silenciosamente na nave, deslizando no sentido da porta setentrional para serem as primeiras a sair e assegurarem um bom lugar na vanguarda da procissão. No coro, os três padres que celebraram o culto, abade, prior e subprior desceram até ao catafalco, e depois deles os irmãos, em silêncio, formaram uma fila indiana de dois a dois. Um grupo encarregue de transportar o caixão levantou aquele fardo e dirigiu-se para Foregate, saindo pela porta setentrional. ”Como é que”, pensou Cadfael, que estava a observar e se sentiu contente por digressar um pouco, mesmo que, numa altura como esta, isso pudesse ser pecaminoso, ”como é que um deles arranja sempre maneira de andar desencontrado em relação aos passos dos outros? Será que isto acontece para que não cometamos o erro de levar a própria morte demasiado a sério?,”

 

Não foi uma grande surpresa verificar que Foregate estava apinhado de gente quando a procissão partiu do pórtico norte e curvou à direita, continuando ao longo do muro, mas o que realmente constituiu uma surpresa foi constatar que entre o povo paroquiano estava metade da população da cidade. Só então Cadfael percebeu o motivo. Hugh mandara discretamente espalhar pela cidade rumores dos seus planos, mas fê-lo tardiamente, de modo que não tivessem tempo de chegar a Foregate, aos ouvidos dos mais interessados, para que não houvesse alertas. No entanto, fê-lo com tempo suficiente para atrair as pessoas mais dignas de Slirewsbury - ou talvez, melhor dizendo, as pessoas menos dignas, aquelas que tinham tempo para perder com mexericos -, que se apressaram a comparecer para testemunharem o desfecho.

 

Cadfael ainda se questionava sobre qual seria esse desfecho.

O estratagema de Hugh poderia espicaçar a consciência de um homem, levando-o a erguer a voz para libertar um vizinho injustamente acusado, mas poderia igualmente funcionar como um alívio imenso e ser aceite como uma prenda - não de origem divina, é claro, mas de outro local! A cada passo que dava por Foregate, atormentava-se com o emaranhado de pormenores que se revolvia na sua mente e não lhe conseguia encontrar qualquer coerência, até que o pequeno frasco de unguento, que pusera dentro do hábito junto ao peito, deslizou até à cintura, quando um pé lhe escorregou num sulco enlameado. Este facto teve um efeito semelhante ao de uma beliscadura na sua mente. Viu novamente o frasco, imóvel na palma da mão bem proporcionada, mas estragada pelo trabalho, quando Diota lha estendeu. Uma mão cheia de vincos profundos, devido a uma longa vida de serviço, mas estes estavam atravessados por outras linhas de cor branca e que iam dos pulsos até aos dedos, apesar de agora já mal se verem e de não faltar muito para desaparecerem.

 

Fora, sem dúvida, uma noite de geada, também ele tivera muita cautela a ver onde punha os pés, sabia-o. Uma mulher que escorregava no degrau da porta e caía para a frente era natural que estendesse as mãos para se proteger e que fossem estas a amparar o embate mais forte da queda, mesmo que isso não tivesse sido o suficiente para evitar a pancada na cabeça. Só que Diota não caíra. A ferida na sua cabeça fora feita de um modo bastante diferente. Naquela noite, ela caíra de joelhos e as suas mãos não procuraram agarrar-se ao chão, mas sim às saias do hábito do padre Ailnoth. Assim sendo, então, como é que ela ficara com as mãos esfoladas?

 

Ela, ingenuamente, contara-lhe apenas metade da história, acreditando que já estava tudo dito. E agora aqui estava ele sem encontrar uma resposta, não podendo abandonar o seu lugar na procissão, nem ela o dela, e portanto não podia sondar aquela memória que falhara. Só poderia voltar a falar com Diota quando o ritual solene tivesse chegado ao fim. Não, mas havia outras testemunhas, silenciosas por natureza, mas provavelmente eloquentes naquilo que lhes fosse possível demonstrar. Continuou a andar, ao mesmo ritmo que o irmão Henry, percorrendo Foregate e virando na esquina que dava para o terreno da feira de cavalos, incapaz de romper com o decoro da cerimónia. Aqui não! Mas, quem sabe, lá dentro? Porque depois já não haveria procissão pela rua, pelo menos para os irmãos. Já estariam no enclave e dispersar-se-iam para as respectivas abluções, indo por fim jantar ao refeitório. Uma vez lá dentro, quem daria pela sua falta se desaparecesse furtivamente?

 

As enormes portas do recinto estavam abertas, de par em par, a fim de permitir a entrada a toda aquela gente enlutada para o enorme cemitério, que, à esquerda, dava acesso aos jardins da cozinha, vendo-se mais ao fundo o pontiagudo telhado dos alojamentos do abade e o pequeno jardim a toda a volta. Os irmãos estavam enterrados perto da ala leste da igreja e os padres paroquianos, embora estivessem algo distanciados, encontravam-se na mesma área. Por esta altura, o número de túmulos ainda não era muito grande, pois a fundação do mosteiro não tinha mais de cinquenta e oito anos e, embora a paróquia fosse mais antiga, a assistência à população fora prestada por uma pequena igreja de madeira que o conde Roger mandara mais tarde reconstruir em pedra, oferecendo-a à abadia recém-fundada. Havia aqui árvores e relva e, no Verão, flores campestres. Era um local bastante aprazível. Apenas o buraco recém-escavado, junto ao muro, desfigurava o recinto verde. Cynric pusera um suporte para receber o caixão antes de este ser depositado no túmulo, e estava agora debruçado sobre as tábuas de madeira que acabara de retirar, encostando-as ordenadamente ao muro.

 

Metade de Foregate e muitos dos habitantes da cidade afluíam pelo portão aberto, atrás dos irmãos, amontoando-se para verem o mais que pudessem. Cadfael saiu do seu lugar nas fileiras e conseguiu passar despercebido no meio da multidão. Decerto, o irmão Henry daria pela sua falta ali mesmo ao lado, mas, dadas as circunstâncias, nada diria. Na altura em que o prior Robert começara a discursar as primeiras frases sonoras, já Cadfael dobrara a esquina da sala capitular e corria disparado pelo pátio grande na direcção da cancela, junto à enfermaria, que dava acesso ao moinho.

 

Hugh trouxera do castelo dois sargentos e dois homens novatos na guarnição, todos a cavalo, embora os tivessem deixado amarrados na casa do portão da abadia, permitindo que a procissão continuasse por Foregate até ao cemitério, para só então se mostrarem. Enquanto todos tinham os olhos pregados no prior e no caixão, Hugh aproveitou para meter dois homens de guarda ao portão, com o intuito de evitar fugas, e entrou de seguida com os sargentos, abrindo caminho discretamente pelo meio da turba. A discrição com que avançaram e o silêncio respeitoso com que se aproximaram do ataúde devia tê-los feito passar despercebidos, mas, pelo contrário, teve o efeito perverso de atrair todas as atenções, e, deste modo, quando chegaram aos locais planeados de antemão - Hugh em frente ao prior do outro lado do caixão e os sargentos um ou dois passos atrás de Jordan Achard -já muitos olhares furtivos confluíam para eles, provocando, por todo o lado, um burburinho de inquietação. Porém, Hugh manteve-se tranquilo até tudo acabar.

 

Cynric e os seus ajudantes içaram o caixão e ajustaram as cordas para o fazerem descer à cova. A terra caiu monotonamente. Rezou-se a última oração. Fez-se uma inevitável pausa de quietude e silêncio antes de as pessoas começarem a suspirar ou a mexer-se, começando depois, muito lentamente, a dispersar-se. O alerta chegou como uma imprevisível rajada de vento, foi dado por muitas gargantas em conjunto. Seguiu-se um alvoroço semelhante ao esvoaçar de folhas na ventania. E Hugh disse, alto e a bom som, com uma voz calculada para suspender de imediato qualquer movimentação:

 

- Senhor abade, prior... devo apresentar as minhas desculpas por ter colocado guardas no vosso portão, fora de muros, mas mesmo assim peço que sejam indulgentes. Ninguém deve sair daqui até que eu acabe de vos informar sobre os meus propósitos.

 

Desculpem-me por eu ter vindo numa altura destas, mas não o pude evitar. Estou aqui em nome da lei, no encalço de um assassino. Estou aqui para acusar um criminoso suspeito de ter matado o padre Ailnoth.

 

Não havia muito por descobrir, no entanto, o que havia era o suficiente. Cadfael estava à beira da margem superior, onde o corpo de AiInoth se aloJara e permanecera, devido ao impulso das águas do canal de descarga do moinho. O cepo do salgueiro derrubado, cuja altura não era superior à das ancas, encrespava-se com os seus ramos de um verde-pálido, semelhantes a cabelos. Havia alguns rebentos quebrados ao lado da superfície morta, seca e rachada pelo machado e pela passagem do tempo. Uns fios pretos, com o comprimento de um dedo, esvoaçavam presos na aresta da madeira morta. Era um entranhado de lã desfeito, com o comprimento de um dedo, o tamanho exacto para completar a faixa de um solidéu preto. A geada e o degelo já pertenciam ao passado, já haviam branqueado e molhado, transformado e apagado todos os outros indícios, uma mancha de sangue, talvez, ou alguns fragmentos de pele. Nada mais restava a não ser uns fios pretos emaranhados, rasgados quando o solidéu voou e foi levado pela corrente até aos juncais.

 

Cadfael apressou-se a regressar com o minúsculo pedaço de lã na mão. A meio do pátio grande, ouviu o clamor de vozes gemendo em sinal de protesto, excitação e confusão e afrouxou os passos, pois já não havia razão para pressas. A armadilha já fora accionada e agora já segurava uma presa. Se já era demasiado tarde para evitar este alarido, podia, ao menos, reparar o mal que dali resultasse, e, se não houvesse nenhum mal a ser reparado, tanto melhor. Aquilo que ele tinha para dizer e para mostrar podia esperar.

 

Ninian chegou à ponte sobre o riacho Meole completamente afogueado por ter corrido durante a maior parte do percurso e lembrou-se de que devia abrandar a marcha antes de chegar à estrada principal, perto do fim da ponte, que dava para Shrewsbury, e puxar o capucho de Sweyn para lhe esconder a cara. Na curva para Foregate, deteve-se, algo alarmado, mas depois compreendeu a sua sorte e ganhou ânimo, pois ainda havia tanta gente a precipitar-se na direcção da abadia que era muito fácil misturar-se com elas e passar despercebido. Juntou-se ao grosso das pessoas e manteve-se de ouvidos à escuta para não perder uma palavra do que era dito à sua volta e, para seu prazer, várias vezes ouviu falar no seu nome. Era essa, então, a detenção esperada por algumas destas pessoas, embora não lhe parecesse muito plausível que fosse essa a intenção de Hugh Beringar, visto que já há alguns dias que lhe havia perdido o rasto e não havia razões para supor que o iria recuperar hoje. Contudo, outros falavam na mulher, na empregada do padre, por não lhe saberem o nome. Outros ainda especulavam acerca de dois ou três nomes desconhecidos para Ninian, mas que obviamente tinham sido vítimas da severidade inflexível do padre Ailnoth.

 

Parecia que se tinhajuntado, mesmo na altura certa, aos últimos grupos de pessoas vindas da cidade, àqueles que só mais tarde souberam dos rumores, pois Foregate, desde a casa do portão da abadia em diante, estava apinhado de gente. No momento em que Ninian chegou à casa do portão, os clérigos saíam pela porta setentrional, e logo a seguir a eles vinha o caixão e toda a irmandade numa procissão solene. Era precisamente este o perigo que ele queria evitar, pelo menos, até perceber se teria necessidade de enfrentar o pior e entregar-se de livre vontade. Cada um daqueles homens podia reconhecê-lo de vista, caso lhe vissem a cara de relance, de facto, podiam até identificá-lo pela sua constituição e maneira de andar. Retirou-se rapidamente, serpenteando por entre os mirones para o lado mais longínquo da estrada, e enfiou-se para dentro da travessa estreita até todos os monges já terem passado. Depois deles, vieram as notabilidades da paróquia, cuja dignidade os impedira de sair da igreja disparados para assegurar um bom lugar no pátio do cemitério. Depois deles, vinham, em grande número, os mirones de Foregate, atentos e ávidos como crianças atrás de um acrobata itinerante, embora sem a franqueza para falar em voz alta acerca das suas previsões.

 

Ser o último e ficar isolado seria tão mau como ter-se infiltrado na vanguarda. Ninian saiu do esconderijo mesmo a tempo de se juntar aos da retaguarda e deixou-se ficar entre os últimos, até o cortejo chegar à esquina da feira de cavalos e virar para o cemitério, cujos portões estavam escancarados.

 

Segundo parecia, havia mais pessoas, para além dele, a quererem ver tudo o que se estava a passar, sem darem nas vistas, e preferiam, do mesmo modo, ficar pelas franjas da multidão, fora de portões, a espreitar lá para dentro. Isto podia ficar a dever-se ao facto de dois homens da guarnição do castelo estarem de vigia, um de cada lado da entrada, com um ar muito despreocupado, sem interferirem com aqueles que entravam e, no entanto, observando-os com toda a cautela.

 

Ninian parou à entrada, não ficando nem dentro nem fora, e espreitou lá para dentro, esticando o pescoço para conseguir ver, por entre o aglomerado de cabeças, o grupo reunido à volta do túmulo. Tanto o abade como o prior estavam mais altos do que o habitual, conseguia vê-los bastante acima dos outros e escutava as preces fúnebres proferidas pelo prior num tom deliberadamente melífluo, para chamar a atenção de todos. O prior tinha uma voz esplêndida e adorava exercitá-la na liturgia com todas as possibilidades intensamente dramáticas que esta lhe proporcionava.

 

Ao afastar-se um ou dois passos para o lado, Ninian vislumbrou a cara de Diota, oval e pálida, dentro do capuz. Estava perto do ataúde, cumprindo com a sua obrigação, visto ser a única pessoa que habitara com o padre. Viu o contorno de um ombro encostado ao dela, estava de braço dado, só podia ser Sanan, e, por mais que ele esticasse o pescoço para a esquerda ou para a direita, outras cabeças interpunham-se sempre e não conseguia ver o rosto da amada.

 

Houve uma agitação na assistência quando os padres foram para junto do túmulo, com a multidão a acompanhar-lhes os movimentos. Estavam a baixar o caixão, diziam-se as últimas despedidas. Perto do grande muro do recinto, as primeiras pás de terra caíam por cima do caixão do padre Ailnoth. A cerimónia estava praticamente no fim e o decoro da ocasião em nada havia sido quebrado. Um grande alvoroço percorreu a assembleia em sinal de que tudo terminara. O coração de Ninian acalmou-se, batendo a um ritmo lento, mas, repentinamente, pareceu querer saltar-lhe do peito ao ouvir uma voz muito alta, vinda do lado do túmulo.

 

- Senhor abade, senhor prior... devo pedir desculpa por ter colocado guardas ao portão...

 

O latejar do sangue nos ouvidos de Ninian impediu-o de ouvir aquilo que foi dito a seguir, mas sabia que a voz devia ser a do xerife, pois quem mais podia ter tanta autoridade, num sítio como este, dentro do enclave? Porém, ouviu a parte final com toda a clareza:

 

- Estou aqui para prender um criminoso suspeito de assassinar o padre Ailnoth.

 

Ao fim e ao cabo, o pior acabara por chegar, tal como os rumores o haviam previsto. Subitamente, fez-se um pesado silêncio seguido por um enorme rebuliço, que sacudiu a multidão, como uma tempestade de vento. As palavras seguintes perderam-se, embora Ninian tivesse sustido a respiração e apurado os ouvidos. Alguns dos que tinham ficado com ele ao portão avançaram para nada perderem, e ninguém ouviu o enérgico bater de cascos, vindo da esquina da feira de cavalos e que se aproximava a trote. De dentro dos muros chegou um clamor selvagem. Vozes babélicas exclamavam, protestavam, bombardeavam com perguntas os que estavam à sua frente, que, provavelmente, davam respostas inexactas aos que estavam atrás. Ninian preparou-se para mergulhar na multidão e abrir caminho à cotovelada até ao sítio onde estavam as duas mulheres entrincheiradas e desprotegidas. Chegara o fim, a sua liberdade estava posta em causa, se não a sua vida. Inspirou profundamente e pousou a mão no ombro mais próximo que lhe barrava o caminho, pois os curiosos tinham-se deixado de cautelas e amontoaram-se à entrada do portão.

 

O brado de assombro e indignação que de repente se ergueu junto ao muro deteve-o e fê-lo recuar. Era a voz de um homem a protestar e a evocar o Céu como testemunha da sua ínocência. Não era Diota! Não era Diota, mas sim um homem!

 

- Meu senhor, juro que não sei de nada... Nesse dia ou nessa noite nem sequer o cheguei a ver. Estive sempre em casa, a minha mulher pode confirmá-lo! Nunca fiz mal a ninguém e muito menos a um padre... Alguém mentiu a meu respeito, mentiu! Senhor abade, Deus é testemunha...

 

O nome foi passando de fila em fila pela multidão até chegar aos ouvidos de Ninian.

 

- Jordan Achard... foi Jordan Achard... Estão a prender Jordan Achard...

 

Ninian estava a tremer, quase sem reacção, e esqueceu-se de si próprio a ponto de deixar o capuz de Sweyn escorregar-lhe para trás e ficar pendurado, cheio de pregas, nos ombros. Atrás de si o ruído de cascos já parara, ouvindo-se apenas uma leve movimentação na lama.

 

- Eia, tu, rapaz!

 

A extremidade de um chicote atingiu-o com violência nas costas e ele virou-se, assustado, vendo, mesmo à sua frente, a cara de um cavaleiro reclinado na sela de um cavalo ruão. Era um homem grande, forte, de cara rosada, talvez com uns 50 anos de idade, muito bem vestido, com o cavalo bem apetrechado, e tanto a voz como a cara pareciam ser as de um nobre. A cara era bonita, com uma barba forte e bem aparada, começando agora a acusar os efeitos da velhice, mas, ainda assim, tinha um aspecto notável. O breve momento que dispenderam a examinar-se mutuamente terminou com uma segunda chicotada, impaciente, mas dada com boa disposição, no ombro de Ninian e com uma ordem enérgica:

 

- Sim, tu, rapaz! Segura no meu cavalo enquanto eu vou lá dentro e verás que não ficas a perder. Que se está a passar, sabes? Alguém está a fazer um grande alarido.

 

O alívio do terror que sentiu em relação a Diota foi tão grande que Ninian se entregou a uma alegria desmesurada e, batendo com os nós dos dedos na testa, num sinal de subserviência, segurou nas rédeas, voltando, mais uma vez, a assumir o papel de Benet, o palafreneiro, simplório e sem um tostão.

 

- Não sei bem ao certo, senhor - respondeu -, mas está para ali alguém a dizer que prenderam um homem por ter matado o padre... - Passou a mão pela testa sedosa e pelas orelhas arrebitadas do cavalo, que sacudiu a cabeça e virou o focinho, mandando-lhe com um bafo quente, aceitando as festas com graciosidade. - É um lindo animal, meu senhor! Cuidarei bem dele.

 

- Então já apanharam o assassino, não é verdade? Pelo menos desta vez, os boatos tiveram fundamento.

 

O cavaleiro desmontou rapidamente e enfiou-se pela multidão consternada, como uma foice a segar erva, acotovelando toda a gente e usando um tom autoritário para pedir passagem. Ninian ficou com a cara encostada à espádua lustrosa do animal, arrebatado pelas emoções, sentia vontade de rir, gratidão e alegria por pensar que já podia partir sem remorsos ou reservas, mas também sentia alguma pena e tristeza pelo homem que morrera antes de tempo e por aquele que era agora acusado de o ter matado. Passou algum tempo antes de que ele se lembrasse de que devia voltar a enfiar o capuz na cabeça, e bastante para a frente, de modo a esconder-lhe a cara, mas por sorte todas as atenções se concentravam na algazarra, que havia dentro do cemitério e ninguém prestava atenção a um criado, que, na estrada, segurava nas rédeas do cavalo do seu senhor. O cavalo era um excelente disfarce, mas não o impediu de avançar novamente até à entrada. Porém, mesmo esforçando-se ao máximo por ouvir, não conseguia perceber os ruídos babélicos que lhe chegavam. O clamor de protestos aterrorizados continuou, durante mais algum tempo, disso não havia qualquer dúvida, e o comentário esganiçado dos espectadores gerava um vai-e-vem de sons em conflito. Se Hugh Beringar ou o abade tentassem falar, as suas vozes seriam abafadas pelo caos geral.

 

Ninian encostou-se ao seu escudo protector - que estremeceu um pouco com o toque - e agradeceu fervorosamente por ter sido salvo mesmo a tempo.

 

No auge do tumulto, o abade Radulfus levantou a voz. Uma voz que raras vezes tinha necessidade de se exaltar, mas, quando o fazia, o efeito era instantâneo.

 

- Silêncio! Tenham vergonha, estão a profanar este lugar sagrado. Silêncio, disse eu!

 

E fez-se um silêncio, súbito e profundo, embora fosse muito fácil voltar-se ao caos, caso as rédeas não fossem apertadas.

- Então, fiquem em silêncio, todos aqueles que nada têm a declarar ou a negar. Deixem falar e ouvir os que têm algo a dizer.

 

Bem, senhor xerife, acusa este homem, Jordan Achard, de assassínio. Com que provas?

 

- Com base numa testemunha - replicou Hugh - que diz e voltará a dizer que ele mente ao afirmar que passou aquela noite em casa. Por que é que tem necessidade de mentir, se nada tem a esconder? Com base numa testemunha que o viu sair do atalho do moinho e dirigir-se para casa ao alvorecer. É o suficiente para o deter sob suspeita - disse Hugh energicamente e fez um sinal aos dois sargentos, que agarraram nos braços do aterrado Jordan, quase com delicadeza.

 

- Que ele tinha um desaguisado com o padre Ailnoth, já é sabido de todos.

 

- Senhor abade - balbuciou Jordan a tremer -, juro pela minha alma que nunca toquei no padre. Não o cheguei a ver, não estive lá... é falso... eles mentem a meu respeito...

 

- Ao que parece - contestou Radulfus -, também há gente disposta a jurar que você esteve lá.

 

- Fui eu que contei que o tinha visto - disse o pastor, primo do magistrado, levantando a voz, preocupado e abalado com o resultado obtido. - Nem podia dizer outra coisa, pois de facto vi-o, ainda mal o dia tinha nascido, e tudo o que contei é verdade. Não o fiz com má intenção, nunca pensei que houvesse mal nisso, julguei apenas que tinha andado a fazer das dele, pois já sabia da reputação que tinha...

 

- E qual é a sua reputação, Jordan? - inquiriu Hugh num tom brando.

 

Jordan engoliu em seco e retraiu-se, dilacerado pela vergonha de ter de contar onde passara a noite e pelo terror de que se nada dissesse poderia arriscar-se a pior sorte. Contorcido e a transpirar, falou abruptamente:

 

- Não fiz mal nenhum, sou um homem respeitável... Se lá estive, não foi com má intenção. Eu... eu fui lá, cedo, tratar de um assunto, bastante cedo, para tratar de um assunto de caridade... com a idosa viúva Warren, que vive para aqueles lados...

 

- Ou tarde, para tratar de um assunto com a devassa da criada - gritou uma voz anónima do meio da multidão, e desatou tudo a rir às gargalhadas, rapidamente abafadas pelo olhar fulminante do abade.

 

- Foi essa a verdade? E por acaso não terá sido surpreendido pelo padre Ailnoth? - perguntou Hugh. Não haja dúvidas de que ele consideraria tal depravação como um acto de extrema gravidade. Apanhou-o a entrar sorrateiramente para a casa, Jordan? Segundo me consta, ele era pessoa para condenar o pecado em cima da ocasião e de forma implacável. Foi assim que você o matou e atirou para o açude?

 

- Nunca fiz tal coisa! - gemeu Jordan. - Juro que nunca lutei com ele. Se pequei com a rapariga, foi tudo o que fiz. Nunca passei para lá da casa. Pergunte-lhe, ela dir-lho-á! Estive lá toda a noite...

 

Durante todo este tempo, Cynric, paciente e perseverantemente, continuara a encher o túmulo, sem pressas e aparentemente sem prestar grande atenção ao tumulto que decorria atrás de si. Contudo, ao ouvir esta última troca de palavras, endireitou-se desajeitadamente e esticou-se até as articulações lhe estalarem. Então virou-se para abrir caminho até ao meio do círculo, com a pá de ferro ainda a baloiçar-lhe na mão.

 

Uma tão estranha intromissão, vinda de um homem tão solitário e reservado, teve o condão de silenciar todas as vozes e de atrair todos os olhares.

 

- Senhor, deixe-o em paz - disse Cynric -, Jordan nada teve a ver com a morte do homem. - Virou a cabeça grisalha, com o rosto comprido, sombrio e de os olhos encovados, alternadamente de Hugh para o abade. - Ninguém a não ser eu - asseverou com simplicidade - sabe como é que Ailnoth morreu.

 

Nesse momento, fez-se silêncio total, muito maior do que aquele que o abade, recorrendo à sua autoridade, conseguira impor, um silêncio tão profundo que dir-se-ia ser capaz de os asfixiar. O sacristão vestido de negro ficou de pé, com um ar digno, à espera de ser interrogado, sem medo nem remorsos, não achando que o que acabara de dizer fosse estranho ou que devesse ter continuado a falar ou ainda que devesse ter falado mais cedo, mas pronto para responder a todos os que lhe quisessem pedir explicações.

 

- Você sabe? - disse o abade estupefacto, depois de ter passado um longo momento a contemplar o homem que estava à sua frente. - E não disse nada?

 

- Não vi razão para isso. Ninguém estava em perigo, pelo menos até agora. O que aconteceu já não tinha remédio, pareceu-me melhor deixar as coisas como estavam.

 

- Está a dizer - interrogou o abade, não conseguindo acreditar no que ouvia - que você esteve lá e que assistiu a tudo?... Foi você... ?

 

- Não - respondeu Cynric abanando lentamente a cabeça grisalha. - Não lhe toquei. - A sua voz era paciente e dócil, como seria se estivesse a falar com crianças. - Estive lá, presenciei tudo. Mas, não lhe toquei.

 

- Então, diga-nos agora - disse calmamente Hugh quem foi que o matou?

 

- Ninguém o matou - respondeu Cynric. - Os que exercem a violência morrem às mãos dela. É justo que assim seja.

- Diga-nos - pediu Hugh com brandura. - Diga-nos como

 

é que aconteceu. Informe-nos a todos para que fiquemos de novo em paz. Você quer dizer que esta morte foi um acidente?

- Não foi acidente nenhum - afirmou Cynric, com os olhos a faiscar. - Foi um julgamento.

 

Humedeceu os lábios e ergueu a cabeça para olhar para a capela de Nossa Senhora, como se ele, que era iletrado, pudesse ler aí as palavras que tinha para dizer. Ele, que, por natureza, era um homem de poucas palavras.

 

-Naquela noite, fui até ao açude. Costumo ir lá, frequentemente, à noite, quando não há luar e quando ninguém está acordado para me poder ver. vou até aos salgueiros, para lá do moinho, onde ela se atirou à água... Eluned, a filha de Nest... por causa de AiInoth lhe ter negado a confissão e o culto religioso, denunciando-a perante toda a paróquia e fechando-lhe a porta na cara. Se ele a tivesse apunhalado no coração, teria sido mais caridoso. Toda aquela vivacidade e beleza nos foi roubada... Eu conhecia-a bem, ela aparecia repetidas vezes em busca de consolo, enquanto o padre Ailnoth foi vivo, e ele nunca a desiludiu. E, quando ela não estava atormentada pelos seus pecados, era como um pássaro, como uma flor, dava gosto vê-la. Não há assim tantas coisas belas no mundo para que um homem se possa dar ao luxo de destruir uma delas, e ainda por cima sem se arrepender. E quando ela se enchia de remorsos era como uma criança... era uma criança, foi a uma criança que ele expulsou...

 

Ficou calado durante algum tempo, como se as palavras se tivessem tornado difíceis de ler, devido à cegueira da dor, e franziu a testa para as decifrar melhor. Entretanto, ninguém se atreveu a falar.

 

- Ali estava eu, no local onde Eluned se atirou à água, quando o vi aproximar-se pelo caminho. Não sabia quem era, não chegou a ir até ao sítio onde eu me encontrava, mas era um homem que calcava o chão com força e resmungava perto do moinho. Um homem enraivecido, era essa a ideia que dava. Então, apareceu uma mulher que o seguia com um andar cambaleante, ouvi-a suplicar-lhe algo, ajoelhou-se, chorou, e ele tentava afastá-la, mas ela não o largava. Ele bateu-lhe, eu ouvi a pancada. Ela apenas se limitou a gemer, foi nessa altura que avancei na direcção deles, pensando que poderia ocorrer um assassínio, e por isso vi... a luz era fraca, mas os meus olhos já se haviam adaptado e eu vi muito bem... como ele a agrediu novamente com a bengala e como ela a agarrou com ambas as mãos para se proteger, e como ele a puxou com toda a força até lha arrancar das mãos... A mulher fugiu dele, ouvi-a a correr vacilante pelo caminho fora, mas duvido de que ela tenha chegado a ouvir aquilo que eu ouvi ou que saiba aquilo que eu sei. Ouvi-o desequilibrar-se para trás e bater contra o cepo de salgueiro. Ouvi os ramos zunirem e quebrarem. Ouvi o splash... não fez muito barulho... quando caiu à água.

 

Fez-se outra vez um silêncio longo e profundo enquanto ele pensava, esforçando-se por recordar tudo com precisão, visto que era isso que esperavam dele. O irmão Cadfael, tendo-se aproximado devagar das últimas filas de irmãos horrorizados, escutou apenas a última parte da história de Cynric, e, enquanto ouvia, segurava na mão a prova extraviada e suja daquilo que era dito. A armadilha montada por Hugh, em vez de apanhar alguém, veio livrá-los a todos. Olhou para o grupo de pessoas mudas, onde se encontrava Diota, cingida pelo braço de Sanan. Ambas as mulheres tinham Puxado os capuzes de forma a tapar-lhes a cara. Uma das mãos, que fora escoriada pelas arestas da faixa de prata, segurava nas pregas da capa.

 

- Dirigi-me ao local - prosseguiu Cynric - e olhei para a água. Só então fiquei com a certeza de que era Ailnoth. Estava a ser levado pela corrente, a meus pés, aturdido ou entorpecido... reconheci-lhe a cara. Tinha os olhos abertos... E eu virei-lhe as costas e afastei-me dele, tal como ele virou as costas e se afastou dela, ignorando-lhe as lágrimas, tal como espancou essa outra mulher lavada em lágrimas... Se Deus tivesse querido que ele vivesse, ele teria vivido. De que outro modo explicar que isto tivesse acontecido ali, naquele preciso local? E quem sou eu para usurpar o privilégio divino?

 

Proferiu tudo isto com o mesmo tom moderado que usaria para prestar contas do número de velas adquiridas para o altar paroquiano, embora as palavras lhe saíssem lentamente, com esforço e premeditação, estudando-as para tornar tudo claro, agora que a clareza era necessária. Contudo, para o abade Radulfus, elas traziam em si o eco distante da voz profética. Mesmo que ele o quisesse ter salvo, poderia tê-lo feito? Não se teria dado o caso de o padre já não estar em situação de ser socorrido? E ali, na escuridão, sozinho, sem tempo para pedir auxílio, visto que estavam todos a preparar-se para a celebração do ofício nocturno, e para mais junto àquela margem socavada e com o peso morto de um homem grande para manejar - seria possível que alguém, por si só, o pudesse ter salvo? O melhor seria supor que teria sido impossível e aceitar aquilo que, segundo Cynric, era a vontade de Deus!

 

- E agora, se me dá licença, senhor abade - concluiu Cynric, tendo esperado delicadamente, mas em vão, por algum comentário ou pergunta -, se já não faço mais falta, vou continuar a encher o túmulo, pois tenho de aproveitar ao máximo a luz do dia para fazer um bom trabalho.

 

- Vá - consentiu o abade e olhou-o durante alguns instantes, olhos nos olhos, sem qualquer vestígio de culpa, sem qualquer sombra de dúvida. -Vá e, quando tiver acabado, procure-me para fazermos contas.

 

Cynric retomou o seu trabalho com a mesma calma com que o largara, e aqueles que o observavam com espanto e em silêncio não notaram qualquer alteração no seu modo de andar ou na tranquilidade e ritmo constante com que manejava a pá.

 

Radulfus olhou para Hugh e depois para Jordan Achard, que, ladeado pelos guardas, estava mudo e ainda não se recompusera totalmente do susto. Durante um breve instante, a expressão austera do abade foi alterada pelo esboço de um sorriso.

 

- Senhor xerife, julgo que a acusação feita a este homem já obteve resposta. Quanto a outras ofensas que lhe possam pesar na consciência - disse o abade, fitando o desmoralizado Jordan Achard com severidade -, aconselho-o a ir confessar-se e a evitá-las daqui em diante! Far-lhe-ia bem reflectir nos perigos que este modo de vida lhe acarretam, passando a encarar este dia como um aviso.

 

- No que me diz respeito, fico satisfeito por saber a verdade e por descobrir que nenhum de nós carrega com a culpa de um assassínio na alma - disse Hugh. - Senhor Achard, vá para casa e considere-se feliz por ter uma mulher leal e submissa. Teve muita sorte por ter surgido aqui uma pessoa que falou em sua defesa, pois o caso teria sido bastante feio para si se não tivesse aparecido uma tal testemunha. Soltem-no! - ordenou aos seus sargentos. - Deixem-no ir à sua vida. Devia pôr uma oferta no altar paroquiano como agradecimento por ter escapado.

 

Jordan cambaleou quando os dois oficiais o largaram, e Will Warden, cheio de boa disposição, amparou-o, outra vez, pondo-lhe a mão debaixo do braço, até ele se segurar nas pernas. E agora o assunto estava finalmente encerrado, porém, estavam todos de tal modo petrificados de estupefacção que foi necessária outra bênção, à laia de despedida, para que se começassem a mexer.

 

- Vão-se embora em paz, minha boa gente - disse o abade com alguma brusquidão ao reconhecer esta necessidade. - Rezem as vossas orações pela alma do padre Ailnoth e lembrem-se de que as falhas do nosso próximo devem servir para termos maior consciência dos nossos próprios erros. Vão e confiem em nós, que temos de decidir sobre a concessão do benefício da paróquia, pois, seja qual for a nossa decisão, iremos, acima de tudo, ter em conta as vossas necessidades.

 

E à despedida abençoou-os com tal energia e brevidade que os pôs em marcha. A princípio, começaram por se dispersar silenciosamente, como se fosse neve a derreter, mas depressa recomeçaram a tagarelar.

 

A cidade e Foregate teceriam os mais contraditórios relatos sobre os acontecimentos da manhã para se tornarem, por fim, um mito, uma memória popular de testemunhos efémeros, passados há muito, muito tempo.

 

- E vocês, irmãos - disse Radulfus concisamente, virando-se para o seu rebanho -, regressem aos vossos afazeres habituais e preparem-se para o jantar.

 

Quase a medo, desfizeram as filas e separaram-se, como o resto das pessoas. A princípio, pareciam não ter um rumo definido, mas depois foram-se encaminhando para os locais onde deveriam estar se nada disto se tivesse passado. Espalharam-se como pó ao vento, ainda meio aturdidos pelas revelações. O único que se pôs a trabalhar com determinação e método foi Cynric, ocupado com a sua pá, junto ao muro.

 

O irmão Jerome, profundamente perturbado pelos acontecimentos, que em nada se ajustavam à regra e à rotina da ordem beneditina, fez uma ronda para encaminhar alguns dos monges dispersos e para enxotar alguns dos paroquianos para fora dos terrenos da abadia. Ao cumprir esta tarefa, aproximou-se dos portões abertos, que davam para Foregate, e apercebeu-se de um jovem, lá fora na estrada, a segurar nas rédeas de um cavalo e que olhava de soslaio para aqueles que iam saindo, mas encapuzado de tal forma que mal se lhe conseguia ver a cara. Porém, havia algo nele que atraiu o olhar penetrante de Jerome. Algo que ele não sabia bem definir, visto que a capa e o capuz lhe eram estranhos e o rosto teimava em não se mostrar, e, contudo, evocava-lhe um certo jovem conhecido dos irmãos e mais tarde desaparecido em circunstâncias estranhas. Se ao menos o rapaz mostrasse a cara!

 

Cadfael deixou-se ficar para ver Sanan e Diota saírem, mas, em vez disso, viu-as recuar para a sombra da parede da capela, a fim de esperarem que a maior parte da multidão se dirigisse para Foregate. O impulso partira de Sanan, ele viu-a exercer pressão no braço da mulher mais velha e questionou-se sobre a razão que a teria levado a querer atrasar-se. Teria visto alguém, no meio da multidão, com quem não desejava encontrar-se? Em busca dessa tal pessoa, ele perscrutou atentamente as costas dos que saíam e viu pelo menos uma pessoa, cuja presença ali não seria bem acolhida por ela. E não era verdade que durante a ausência de Cadfael, também ela, à semelhança de Diota, puxara o capucho para a frente de forma a tapar-lhe a cara, como se quisesse evitar ser vista ou reconhecida por alguém?

 

Neste momento, as duas mulheres começaram a seguir os outros, mas devagar e com cautela. Sanan fitava as costas de um homem alto, que estava quase a chegar ao portão. Deste modo, tanto Sanan como Cadfael viram em simultâneo o irmão Jerome, hesitante durante alguns segundos, mas depois avançando deliberadamente para a estrada. E, seguindo o rumo convergente destas duas figuras tão diferentes, uma aprumada e confiante, a outra magra e curvada, depararam-se, inevitavelmente, com o cavalo que aguardava, nos terrenos de Foregate, e com o jovem que lhe segurava nas rédeas.

 

O irmão Jerome ainda não tinha a certeza absoluta, embora a sua intenção fosse a de se certificar, mesmo que para isso tivesse de sair do recinto sem uma boa justificação e sem pedir licença. Seria, no entanto, considerada uma justificação de peso, caso ele conseguisse dar o alarme e entregar à justiça um fugitivo, inimigo do rei. Os guardas estavam fora dos portões, assim o afirmara o xerife. Bastava-lhe apenas gritar aos soldados para caçarem a presa que se encontrava ali mesmo ao lado, julgando-se livre de perigo. Se, é claro, se este fosse realmente o jovem conhecido pelo nome de Benet.

 

Mas, se Jerome ainda não tinha a certeza absoluta, Sanan tinha-a e Cadfael também. Quem, por aqueles lados, conhecera melhor aquela forma, postura e modos tão bem como eles? E ali estava Jerome preparado para se abater sobre ele com uma intenção claramente maldosa, tão perto deles que, no entanto, nada podiam fazer para evitar a desgraça.

 

Sanan largou o braço de Diota e avançou. Cadfael aproximou-se pelo outro lado e chamou peremptoriamente por Jerome:

 

- Irmão! - Num tom hipócrita e escandalizado com a vã esperança de lhe desviar a atenção. Quando Jerome seguia o rasto de um malfeitor, era quase tão inflexível como o próprio padre Ailnoth. Foi outra pessoa que salvou a situação.

 

O cavaleiro, que confiara o cavalo a Ninian, vinha a passadas largas, muito satisfeito por sair incólume daquele espaço, e chegou ao pé do portão apenas um ou dois passos à frente de Jerome. As coisas não haviam terminado como esperara, mas, de um modo geral, sentia-se contente. O importante era que ninguém suspeitasse da sua deslealdade ou o ameaçasse de ser expropriado ou ainda de perder o seu estatuto social. Agora já não sentia rancor pelo rapaz imprudente que tanta ansiedade lhe causara. Ele que escapasse ileso, desde que nunca mais voltasse para arranjar problemas aos outros.

 

Ninian olhou à volta e viu o seu cliente aproximar-se e, ao mesmo tempo, já tardiamente, a expressão investigadora do irmão Jerome, inequivocamente a avançar na sua direcção sem quaisquer boas intenções. Não havia tempo para fugir, restava-lhe, portanto, ficar onde estava. Por sorte, o cavaleiro chegou um pouco antes do carrasco e, felizmente, vinha bastante satisfeito com o que presenciara lá dentro, pois deu uma palmada no ombro do rapaz, quando este lhe devolveu as rédeas. Ninian baixou-se rapidamente e segurou no estribo para que o cavaleiro montasse.

 

Foi quanto bastou! Jerome parou tão abruptamente à entrada do portão que Erwald, que vinha atrás de si, chocou com ele e, com bons modos, afastou-o com a mão para passar. Por essa altura, já o cavaleiro dissera um indiferente obrigado a Ninian, pondo-lhe uma moeda de prata na mão, e iniciou a sua marcha por Foregate num trote ocioso, para desaparecer ao dobrar da esquina da feira de cavalos, sendo seguido a pé pelo seu pretenso palafreneiro.

”Foi por um triz”, pensou Ninian, afrouxando o passo mal dobrou a esquina e ficou fora de vista. E, encantado, fez rodopiar a moeda que um cliente satisfeito e generoso lhe lançara ao ir-se embora. ”Deus abençoe o homem, seja ele quem for, pois salvou-me a vida, ou, pelo menos, reforçou o meu disfarce! É um homem importante e obviamente bem conhecido na região. Que sorte a minha os seus palafreneiros não serem tão bem conhecidos ou todos com idades superiores a cinquenta anos e de barbas, caso contrário, eu seria um homem perdido.”

 

”Foi por um triz”, pensou Cadfael, dando um grande suspiro de alívio e voltando para junto de Hugh, que travava uma conversa séria com o abade debaixo da janela leste da capela de Nossa Senhora. ”A salvação ocorre em lugares estranhos e vem de amigos inesperados. Um final mesmo a calhar.”

 

”Foi por um triz”, pensou Sanan, a tremer de aflição e medo, que, de repente, se transformaram numa gargalhada triunfante. ”E ele não faz a menor ideia do que acabou de acontecer, Nenhum deles faz a menor ideia! Oh, só quero ver a cara dele quando eu lhe contar.”

 

”Foi por um triz”, pensou Jerome, regressando apressado e agradecidamente aos seus afazeres habituais. ”Teria feito uma figura triste se o tivesse confrontado. Afinal, tudo se resumiu a uma mera parecença quanto à forma e postura. Que sorte o seu patrão ter chegado mesmo a tempo de me mostrar o meu erro.”

 

Pois, como era óbvio, de entre todos, Ralph Giffard seria a pessoa menos suspeita de ter ao seu serviço precisamente o homem que ele tão prontamente denunciara.

 

Há uma pergunta – disse Radulfus – que não só não foi respondida como nem sequer foi formulada.

 

Esperara até que servissem a última caneca de vinho ao seu amigo e que levantassem a mesa. Radulfus nunca consentia que assuntos importantes fossem discutidos à mesa. Encarava o prazer da boa mesa com parcimónia, mas também com respeito.

 

- Qual é? - perguntou Hugh.

 

- Será que ele disse toda a verdade?

 

Hugh lançou um olhar penetrante para o outro lado da mesa.

- Cynric? Quem pode dizer de um outro homem que ele nunca mente? Porém, consta que Cynric nunca fala a não ser quando não o pode evitar e que, mesmo assim, vai logo direito ao assunto. Foi por isso que não disse nada até Jordan ser acusado. Cynric tem muita dificuldade em falar. Duvido de que, em toda a sua vida, tenha proferido tantas palavras num só dia como as que lhe ouvimos, em várias ocasiões, durante esta manhã. Assim como duvido de que tivesse feito todo este esforço só para mentir, sabendo que lhe dá tanto trabalho dizer a verdade, quando esta é imprescindível.

 

- Hoje foi bastante eloquente - comentou Radulfus com um sorriso esquisito. - Mas ficaria mais contente se tivéssemos uma prova segura que nos confirmasse aquilo que nos contou. É muito bem capaz de se ter limitado a virar as costas e ir-se embora, deixando a questão da vida e da morte entregue a Deus ou a qualquer outra entidade que, neste caso tão estranho, ele considere ser o árbitro da justiça. Ou pode ter sido ele a desferir-lhe a pancada. Ou pode ter assistido à ocorrência, tal como diz, mas ter ajudado o padre a entrar para a água, enquanto ainda estava atordoado. Parece-me, no entanto, que Cynric não é suficientemente engenhoso para inventar histórias plausíveis para esconder a verdade, e, contudo, não o podemos saber. Também não o considero um homem violento, mesmo que tivesse boas razões para tal, mas, mais uma vez, não o podemos saber. E, mesmo que nos tenha contado toda a verdade, que devemos fazer com um homem destes? Como devemos proceder com ele?

 

- Naquilo que me diz respeito - disse Hugh decidido nada pode ser feito e nada será feito. Não desobedeceu a nenhuma lei. Pode ser um pecado permitir que uma morte ocorra, mas não é um crime. O meu domínio é o da lei. Os pecadores pertencem ao seu território e não ao meu.

 

Não chegou a acrescentar que havia alguma responsabilidade por parte do homem que trouxera Ailnoth - praticamente um estranho - para assumir o cargo de cuidar de um rebanho, privado de voto na escolha do seu novo pastor. Porém, suspeitava de que o abade estava consciente disso, como aliás já estivera antes, quando as primeiras queixas lhe chegaram aos ouvidos. Não era homem para fechar os olhos aos seus próprios erros ou para se furtar às suas responsabilidades.

 

- Pelo menos, posso dizer que - continuou Hugh - aquilo que ele contou da mulher, que seguiu Ailnoth e que foi espancada por ele, é seguramente verdade. A Senhora Hanet asseverou na altura que caíra no gelo. Isso era mentira. Foi o padre que lhe fez aquilo, ela já o confessou ao irmão Cadfael, que lhe tratou das feridas. E já agora, que falei em Cadfael, penso que faria bem, meu senhor, se o mandasse chamar. Ainda não tive oportunidade de falar com ele desde o que se passou esta manhã e ocorre-me que ele possa ter algo a acrescentar no que diz respeito a este assunto. Quando cheguei, ele não estava nas filas, entre os irmãos, pois procurei-o e não o consegui encontrar. Chegou mais tarde e não entrou por Foregate, mas pelo pátio. Não se teria ausentado se não tivesse uma boa razão para o fazer. Se tem coisas para me dizer, não me posso dar ao luxo de as ignorar.

 

- E eu também não - concordou Radulfus, e estendeu a mão para agarrar no pequeno sino em cima da sua secretária. Em resposta ao toque metálico, apareceu o seu secretário, que estava na antecâmara. - Irmão Vitalis, não se importa de ir procurar o irmão Cadfael e dizer-lhe para vir ter connosco?

 

Quando a porta voltou a fechar-se, o abade permaneceu sentado, em silêncio, a reflectir.

 

- Agora sei, é claro - disse finalmente -, que o padre Ailnoth foi, de facto, imperdoavelmente enganado, e isso é uma atenuante para o seu comportamento. Mas a mulher... segundo creio, não é parente do jovem que protegia, aquele que conhecíamos pelo nome de Benet? Durante três anos, serviu de forma exemplar o seu patrão, sendo a sua única ofensa a de ter protegido o jovem, uma ofensa com origem no afecto. Não lhe será aplicado qualquer castigo, com o meu consentimento, nunca. Viverá aqui tranquilamente, visto que fui eu quem a trouxe para cá. Se arranjarmos um novo padre, que não tenha nem mãe nem irmã para lhe cuidar da casa, então ela pode servi-lo, como servia Ailnoth, e espero que ela nunca venha a ter razões para se ajoelhar a seus pés, a não ser no confessionário, e que ele nunca venha a ter razões para a espancar. E quanto ao rapaz... - Fez uma pausa, relembrando-o com um ar resignado e tolerante, e depois abanou ligeiramente a cabeça sorrindo. - Lembro-me de que o entregámos ao cuidado de Cadfael para que fizesse os trabalhos pesados, antes de virem as geadas. Vi-o uma vez no horto a escavar um grande sulco. Pelo menos, fez um bom trabalho. O escudeiro de FitzAlan não teve medo nem vergonha de cavar a terra. - Inclinou a cabeça e olhou para a cara de Hugh. - Por acaso, não sabe...?

 

- Tenho tido muito cuidado para não o saber - respondeu Hugh.

 

- Bem... fico feliz por ele nunca ter sujado as mãos com um assassínio. Já lhas vi suficientemente sujas, com terra, por ter estado a arrancar ervas demasiado fortes para serem tiradas com a pá - disse Radulfus e sorriu com um ar distante, olhando pela janela, para o céu cinzento, carregado de nuvens baixas. Suponho que ele vai ter sorte. Faz-me a maior das penas saber que há um rapaz tão jovem em pé de guerra com outros nesta terra, mas ao menos que a luta do aço se circunscreva ao campo aberto e não surja, secretamente, no seio da escuridão.

 

Cadfael pousou na secretária do abade as relíquias que tinham sobrado do padre Ailnoth, a bengala de ébano, o solidéu preto e amarrotado com a faixa rasgada e os restos do entrançado de lã que vinha completar o ciclo.

 

- Cynric disse a verdade pura e simples, e aqui estão as provas. Esta manhã, voltei a ver a mão da Senhora Hammet e lembrei-me das escoriações que lhe tratei e só então entendi como é que ela fez as feridas. Não foi numa queda... nãohouvequeda nenhuma. A ferida da cabeça foi provocada por esta bengala, pois encontrei vários dos seus cabelos grisalhos aqui, presos nestas arestas da faixa de prata. Como pode ver, está muito desgastada, com as arestas rachadas e dobradas.

 

Radulfus passou um dos seus dedos compridos e delgados pela borda enrugada e cortante como uma lâmina e acenou severamente.

 

- Sim, bem vejo. E foi nesta mesma faixa que ela feriu as mãos. Ele brandiu a bengala uma segunda vez, assim o afirmou Cynric, e ela agarrou-a para proteger a cabeça...

 

-... e ele puxou-a com brutalidade e arrancou-lha à força das mãos - continuou Hugh -, para sua própria desgraça.

- Não podiam estar muito longe do moinho - disse Cadfael -, pois Cynric estava um pouco mais à frente, ao pé dos salgueiros. Na borda do primeiro cepo, perto do açude, encontrei alguns ramos quebrados e este pedaço de lã preta presa numa fenda da madeira morta. O padre caiu à água atordoado, o solidéu voou-lhe da cabeça, mas este pedaço ficou preso à árvore, assim como os cabelos arrancados ficaram presos na faixa de prata. A bengala saltou-lhe da mão. Naquele local, há vegetação rasteira e não é para admirar que ele tenha perdido o equilíbrio quando ela o largou. Foi bater de encontro ao cepo. O machado que, há muito, cortou aquela árvore, deixou a marca de golpes irregulares, e ele bateu com a parte de trás da cabeça contra uma saliência. Tanto o senhor abade como o xerife viram a ferida.

 

- Eu vi - retorquiu o abade. - E a mulher, na altura em que fugiu dele, não se apercebeu de nada?

 

- Ela mal sabe como chegou a casa. Decerto, passou toda a noite acordada, cheia de medo, acreditando que ele concretizasse o que tencionava fazer com o rapaz e que voltasse para casa para a denunciar e expulsar. Mas nunca chegou a voltar.

 

- Poderia ter sido salvo? - questionou o abade, sentindo tanto pesar pelo rebanho revoltado e rancoroso como pelo pastor morto.

 

- No escuro - retorquiu Cadfael -, duvido de que alguém, por mais que tentasse, o conseguisse tirar daquela margem reclinada. Mesmo que houvesse gente, ali perto, pronta para o socorrer, creio que ele se teria afogado antes de o conseguirem tirar de lá.

 

- Sob pena de estar a cometer um Pecado - disse Radulfus, com um sorriso amargo que se transformou num sorriso resignado -, acho que essa conclusão é consoladora. Em todo o caso, não temos nenhum assassino entre nós.

 

- Por falar em cometer um pecado - disse Cadfael, um pouco mais tarde, quando Hugh e ele estavam confortavelmente sentados na oficina do horto -, isso obriga-me a examinar a minha consciência. Gozo de alguns privilégios por causa de ter de prestar auxílio a pessoas doentes fora do enclave e também por ter um afilhado. Contudo, não devo aproveitar essa licença para outros fins. O que fiz, descaradamente, em três ou quatro ocasiões desde o Natal. Na realidade, o abade deve saber muito bem que saí do recinto, esta manhã, sem ter pedido licença, mas não me disse nada.

 

- Sem dúvida acredita que você, amanhã, se confessará de livre vontade durante o capítulo - disse Hugh, impassível.

- Tenho sérias dúvidas! Essa atitude dificilmente seria acolhida por ele com prazer. Eu teria de lhe explicar porquê, e nesta altura já o conheço suficientemente bem. Aqui há velhos falcões como Radulfus e eu, que aguentam os vendavais, mas também há os inocentes que em nada beneficiam dos ventos demasiado tempestuosos.

 

Ele já se afligiu bastante com a influência que Ailnoth teve, agora quer ver o assunto encerrado e esquecido rapidamente. E eu profetizo, Hugh, que em breve Foregate terá um novo padre e que será alguém conhecido e bem recebido não apenas por nós, que outorgamos o benefício, mas também por aqueles que irão colher os frutos. Não há melhor maneira de enterrar Ailnoth.

 

- Para ser justo - começou Hugh pensativamente -, teria sido um caso muito delicado recusar um padre recomendado pelo legado do papa, mesmo para um homem com a importância do nosso abade. E ele causava boa impressão tanto à vista como ao ouvido, era erudito,,, Não me admira nada que o abade estivesse convencido de vos estar a trazer um tesouro. Que Deus vos envie um homem vulgar, decente e humilde da próxima vez.

 

- Ámen! Quer saiba latim quer não! E aqui estou eu a desejar o bem, se é que não estou a ser cúmplice de um inimigo do rei. Sou um criminoso e simultaneamente um pecador! Fui eu que disse que me sentia na obrigação de fazer um exame de consciência? Mas não muito zeloso... isso gera sempre muitos problemas.

 

- Pergunto - questionou-se Hugh, sorrindo com indulgência, olhando para o lume do braseiro - se eles já se terão posto ao caminho?

 

- Julgo que não devem partir antes do escurecer. Partirão a meio da noite. Espero que ela tenha arranjado maneira de enviar um recado a Ralph Giffard - disse Cadfael reflectindo. Não é um homem mau. Age debaixo de pressão, à semelhança de muitos outros, e fá-lo essencialmente pelo filho. Ela não tinha razões para se queixar dele, à excepção do facto de ele ter pactuado com a fortuna e de ter desistido da causa da imperatriz. Sendo trinta e tal anos mais nova do que ele, não consegue compreender essa atitude. Porém, você e eu, Hugh, conseguimos compreender isso muito bem. Deixemos que os jovens encontrem o seu ritmo e descubram o seu próprio caminho.

 

Sentou-se a sorrir, pensando naquele par, mas principalmente em Ninian, cheio de vida, corajoso e atrevido e muito hábil a cavar com a pá, embora anteriormente nunca tivesse pegado em nenhuma. No entanto, aprendera rapidamente o ofício. ”Desde a época do irmão Jolin, nunca mais tive um trabalhador tão aplicado sob a minha orientação... já lá vão cerca de cinco anos! Aquele que ficou em Gwytherin e casou com a filha do ferreiro. Agora, também ele já deve ser um robusto ferreiro. Benet fez que eu me lembrasse dele, de alguns comportamentos... o tudo ou o nada e o facto de estar sempre pronto para a aventura.”

 

- Ninian - corrigiu Hugh meio distraído.

 

- É verdade, devemos tratá-lo por Ninian agora, contudo, tenho tendência para me esquecer. Mas ainda não lhe contei o melhor - disse Cadfael com o rosto iluminado pela recordação -, aquilo que aconteceu no fim. No meio de tanta exasperação, desconfiança e morte, uma piada vem mesmo a calhar.

 

- Não nego isso - concordou Hugh, inclinando-se para a frente a fim de, criteriosamente, colocar mais alguns pedaços de carvão no braseiro, com o prazer de quem está habituado a que sejam os outros a fazer esse trabalho. - Mas, hoje, não me apercebi de nada que pudesse ter graça. Como foi?

 

- Bem, você estava ocupado a falar com o abade, perto do túmulo, enquanto os outros se dispersavam. Não teve oportunidade de ver. Mas eu estava desocupado e o irmão Jerome também, com o faro apurado em busca da discórdia, como é costume. Sanan viu tudo - disse Cadfael recordando-se com ternura. - Apanhou um enorme susto, que durou alguns instantes, mas depois tudo se resolveu. Sabe, Hugh, como aquele nosso portão duplo é grande, no muro...

 

- Entrei por lá - respondeu Hugh pacientemente e algo ensonado, devido ao alívio das tensões, ao fumo do braseiro e por se ter levantado muito cedo para começar um dia que agora se afundava no nevoeiro e na escuridão. - Eu sei!

 

- Estava um jovem a segurar num cavalo, lá fora em Foregate. Quem iria reparar nele até ao momento em que todos começaram a sair alvoroçadamente por ali? Jerome corria como um cão-pastor pelos cantos, obrigando-os a sair, e várias vezes teve de olhar para a estrada. Viu um homem que julgou reconhecer e aproximou-se para observar melhor. Até arquejava de dedicação e zelo... você conhece-o!

 

- Todos aqueles que denunciam o mal adquirem mérito comentou Hugh, divertindo-se com esta moderada sátira do irmão Jerome. - Que vantagem podia ele tirar dali, de um rapaz a segurar num cavalo?

 

- Bem, era um tal Benet, ou Ninian, perseguido por traição ao nosso rei Stephen e que foi denunciado ao nosso xerife... fazendo de conta que você não está aqui presente, Hugh... que acabou de ser reconhecido no desempenho do seu cargo. Você tem agora um significado para Jerome que nunca teve antes!... o mesmo se aplica a Ralph Giffard. Foi a ele que Jerome viu, mas parece que o malfeitor vestia roupas que nunca tinha usado antes.

 

- Você surpreende-me - disse Hugh olhando para o amigo com um ar animado e divertido. - E era realmente esse tal Benet ou Ninian?

 

- Era de facto. Reconheci-o, e, quando Sanan olhou em frente, para onde Jerome estava a olhar, também o reconheceu.

O rapaz mostrou-se muito corajoso, foi pôr a cabeça dentro da armadilha, Hugh. Foi lá ver para que lado iam as culpas e para se certificar de que estas não iriam cair em cima da sua ama. Só Deus sabe o que ele podia ter feito se você não tivesse apregoado, alto e a bom som, o nome de Jordan. Afinal, que é que ele sabia do que se passara, nessa noite, depois de ter ido para a igreja? Não há dúvida de que ele acreditou na história à volta da sua vítima.

 

- Eu tenho jeito para estas farsas - reconheceu Hugh sorridente. - Ainda bem que o abade me deteve à conversa e me convidou para ficar e jantar com ele, caso contrário, poderia ter dado de caras com esse seu rapaz estouvado e, tal como Jerome, tentar tirar-lhe o capucho. Afinal, como é que tudo acabou? Não ouvi qualquer alarido vindo de Foregate.

 

- Não houve alarido - assentiu Cadfael complacente. Ralph Giffard estava entre a multidão, chegou a vê-lo? Tem altura suficiente para sobressair no meio do povo de Foregate. Porém, você Ficou no meio sem tertempo para olhar à sua volta. Ele esteve lá. No final, virou-se para se ir embora, não estava nada descontente, segundo creio, por você não ter detido o rapaz que ele se sentiu obrigado a denunciar. Foi bonito de ver, Hugh! Como tem as pernas muito mais compridas, passou à frente de Jerome, dando-lhe uma cotovelada, precisamente no momento em que ele farejava um rastro prometedor. Tirou as rédeas da mão do rapaz e chegou mesmo a sorrir-lhe, olhos nos olhos, e o rapaz segurou-lhe no estribo e ajudou-o a montar. Um excelente palafreneiro. Perante isto, Jerome deteve-se como um cão que não sabe o que fazer e apressou-se a sair dali, consternado por ter estado à beira de lançar uma acusação contra o palafreneiro do próprio Giffard, honestamente, à espera do seu amo. Foi nessa altura que vi Sanan estremecer com uma vontade de rir quase irreprimível, mas ela tem uma enorme capacidade de contenção, aquela senhora! Giffard desapareceu a cavalo, percorrendo Foregate, e o palafreneiro, que não era nenhum dos seus palafreneiros, disparou a correr no seu encalço até desaparecer de vista.

 

- Isto foi mesmo assim? - inquiriu Hugh.

 

- Meu filho, eu vi. Hei-de recordar isto com carinho. Lá se foram embora, e Ralph Giffard atirou uma moeda de prata ao jovem Ninian, que a apanhou e se sumiu ao dobrar da esquina, onde deve ter parado para retomar o fôlego. Ainda não sabe, suponho eu - disse Cadfael espreitando pela porta a luz do fim da tarde, anunciando que faltava mais ou menos uma hora para as Vésperas -, ainda não sabe a quem ficou a dever a sua salvação. Como adorava estar presente, quando Sanan lhe contar quem lhe pagou um preço tão elevado em troca de ter ficado menos de uma hora a segurar num cavalo! Aposto que aquele rapaz nunca se irá desfazer daquela moeda, há-de mandá-la furar para a pôr ao seu pescoço ou ao dela.

 

- Há tantas lembranças destas para recordar - disse Cadfael presumidamente - pela vida fora.

 

- Você está a querer dizer-me - perguntou Hugh encantado - que aqueles dois se encontraram e separaram, fazendo mutuamente uma prestação de serviços, sem terem qualquer noção da identidade um do outro?

 

- Sem a mais pequena noção! Trocaram correspondência, foram aliados, adversários, amigos, inimigos e tudo o que quiser imaginar, num grau de grande intimidade - afirmou Cadfael com profunda alegria e gratidão -, mas nenhum deles fez a mínima ideia de quem era o outro. Nunca antes se tinham encontrado frente a frente.

 

                                                                                Ellis Peters  

 

                      

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