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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CRÂNIO SOB A PELE - P.2 / P.D. James
O CRÂNIO SOB A PELE - P.2 / P.D. James

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

As luzes da sala do teatro estavam acesas. A porta da esquerda do proscenio conduzia aos vestuários. Através das portas abíertas dos dois camarins principais chegavam risadas e uma confusão de vozes. Quase todos os componentes da partilha se trocaram de roupa e agora se estavam maquiando em meio de risillas afogadas e conselhos mútuos. O ambiente era evocador de uma festa de fim de curso. Ambrose chamou as portas fechadas dos dois camarins reservados para os protagonistas e logo disse em voz bem alta:.
-Por favor, venham todos ao cenário imediatamente.
Saíram a tropicões, em alvoroçada turma, alguns sujeitando-a roupa ao corpo. Mas um sozinho olhar à cara do Ambrose os sossegou e todos se apinharam em
o cenário, reprimidos e espectadores. Parcialmente embelezados e maquiados pela metade com as caras brancas exceto pelos gritões emplastros de ruge, pareciam
-pensou Cordelia- os clientes e as pupilas de um lupanar vitoriano aos que a polícia tinha reunido para um interrogatório.
-Lamento ter que lhes transmitir más notícias -disse Ambrose-. A senhorita Lisle morreu. Por todos os indícios, assassinada. telefonei à polícia, que
chegará breve. Enquanto isso, pediram-me que todos permaneçam juntos aqui, no teatro. Munter e sua esposa lhes trarão chá, cafe e qualquer outra coisa que desejem.
Cottringham, se não ter inconveniente, rogo-lhe que se ocupe deste lugar. Há gente a que ainda devo informar da má nova.
Uma das mulheres, uma jovem loira de rosto vivaz, vestida de donzela, com avental com volante e touca frisada de largas cintas, perguntou:
-E a função?.
Era uma pergunta nascida da comoção e Cordelia pensou que provavelmente a moça a recordaria morta de calor toda sua vida. Alguém pigarreou e à loira se subiram-lhe as cores à cara. Ambrose replicou com voz apática


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X


-A função se suspendeu.
Deu meia volta e saiu. Cordelia lhe seguiu.
-O que tem que as partidas de registro?.
-Deixarei que isso resolvam Ralston e Cottringham. Hei dito aos atores que devem permanecer reunidos. Não posso tratar de impor as instruções da polícia contra a determinação do desconsolado marido de demonstrar sua eficácia. Onde acredita que estarão outros?
-Suponho que Simon estará nadando. Roma estava na biblioteca, mas é muito provável que agora se esteja vestindo. Imagino que Ivo estará em seu dormitório, descansando.
-Por favor, vá ver os e lhes dê a notícia. Eu procurarei o Simon. Depois devemos nos reunir até que chegue a polícia. Suponho que seria uma amostra de cortesia que fizesse companhia a meus convidados do    -Compreendo. Quer dizer que devemos guardar silêncio quanto à verdadeira causa da morte?
-Não conhecemos a verdadeira causa da morte. Mas sim acredito que deveríamos dizer o menos possível.
-Parece-me que a causa da morte é óbvia. Tinha a cara completamente esmagada.
-Isso podem haver-lhe fato depois de matá-la. Havia menos sangue da que cabia esperar.
-Para mim havia mais que suficiente. Você sabe muito destas coisas, para ser uma secretária-acompañante.
-Não sou uma secretária-acompañante. Sou detetive privada. Não tem sentido seguir fingindo. De todos os modos, sei que você já o tinha adivinhado. E se pensa me dizer que fui ineficaz, também sei.
-Minha querida Cordelia, que mais poderia ter feito você? Ninguém podia esperar este desenlace. Deixe de culpar-se. Teremos que permanecer aqui, entupidos, ao menos
até depois da indagação, e já será bastante fastidioso submeter-se ao interrogatório da polícia, sem necessidade de que você se afunde em lúgubres remorsos.
Não lhe sinta bem.
Tinha chegado à porta que da arcada conduzia até o castelo. Ao jogar uma olhada a seu redor, divisaram ao Simon a certa distância, com a toalha
pendurada dos ombros, andando pelo comprido declive herboso que levava da rosaleda, entre a avenida de haja, até o topo da ilha. Sem dizer uma palavra,
Ambrose foi a seu encontro. Cordelia permaneceu à sombra do vão da porta, observando-os. Ambrose não se deu pressa; seu ritmo era pouco mais que um pausado andar.
Os dois homens se reuniram e permaneceram sob o sol, as cabeças inclinadas, suas sombras tingindo a brilhante grama. Em nenhum momento se tocaram. Uns segundos
depois, ainda distanciados, começaram a caminhar lentamente em direção ao castelo. Cordelia entrou na grande sala. Nesse momento, Ivo e Roma baixavam a escada.
Ele ia de smoking, Roma não se tirou seu traje de calça.
-Onde estão todos? -gritou Roma a Cordelia-. Isto parece uma funerária. Acabo de lhe dizer ao Ivo que não tenho a menor intenção de me trocar de roupa e que não
assistirei
à função. Vós dois façam o que gostarem, mas que me crucifiquem se tiver que me pôr um vestido de noite no meio da tarde de um dia caloroso só para ir ver como
um punhado de aficionados fazem o ridículo e para agradar a megalomania da Clarissa. Todos vós consentem seus exabruptos como se lhe tivessem medo. Alguém
tem que lhe parar os pés.
-Alguém o tem feito -murmurou Cordelia. Os dois ficaram imóveis na escada, com a vista fixa nela-. Clarissa morreu -explicou-. foi assassinada.
Então Cordelia perdeu o domínio de si. Sentiu que um manancial de lágrimas quentes descia por suas bochechas. Ivo correu até ela e a rodeou com seus braços,
magros e fortes como varinhas de aço, atraindo-a para ele. Era o primeiro contato humano, o primeiro gesto pormenorizado que alguém tinha expresso depois do
transe de descobrir o cadáver da Clarissa, e lhe resultou quase irresistível a tentação de abandonar-se e chorar como uma menina sobre seu ombro. Mas se tragou as
lágrimas, lutou por recuperar a calma enquanto ele a abraçava meigamente e sem falar. Cordelia levantou a vista por cima do ombro do Ivo, e viu, através
das lágrimas, a cara de Roma como um amorfo desenho a raias brancas e rosas. Cordelia piscou e todos os rasgos ocuparam seu lugar; a boca -tão parecida com a
da Clarissa- pendurava frouxa, os olhos estavam fora de suas órbitas, todo o rosto resplandecia com uma emoção que poderia ter significado terror ou triunfo.
Não soube quanto tempo permaneceu envolta nos braços do Ivo, com Roma olhando-os de acima. Ouviu passos a suas costas. soltou-se, murmurando repetidas vozes:.
-Sinto muito. Sinto muito. Sinto muito ..... .
-Simon se retirou a seu dormitório -disse Ambrose-. Está muito impressionado e quer estar sozinho. Baixará assim que se sinta em condições de fazê-lo.
-O que ocorreu? -quis saber Ivo-. Como morreu?.
Ambrose vacilou e Roma chiou:.
-Tem que nos dizer o Insisto em que nos diga isso!.
Ambrose olhou a Cordelia e se encolheu de ombros em uma espécie de resignada desculpa:.
-Perdão, mas não estou disposto a fazer o trabalho da policia. Têm direito ou seja o -olhou a Roma-. Mataram-na a golpes. Amassaram-lhe o rosto até esmagar-lhe A
Roma le flaquearon las piernas; se aferró a la barandilla.
Parece que a arma utilizada foi o braço da princesa difunta. Não contei este último detalhe ao Simon, acredito preferível que siga sem inteirar-se.
A Roma fraquejaram as pernas; aferrou-se ao corrimão.
-Seu mármore? O assassino agarrou seu mármore? por que? Como sabia onde estava?.
-Ele... ou ela... Io agarrou da vitrine antes das sete desta manhã. E me temo que muito provavelmente a policia pensará que sabia onde estava, porque ontem,
antes de almoçar, eu mesmo o mostrei.
.
22.
Dez minutos mais tarde, Roma, Ivo e Cordelia estavam ante a janela do salão, olhando por cima da terraço em direção ao desembarcadouro. Agora os três se
viam extraordinariamente serenos. A primeira impressão tinha sido substituída por um desassossego, uma doentia exaltação quase lasciva, que cada um reconhecia
em si mesmo e em outros e que envergonhava tanto como surpreendia. Os três tinham resistido à tentação do álcool, possivelmente sentindo que seria pouco sensato
esperar à polícia com aroma de bebida no fôlego. Mas Munter tinha servido café carregado, que resultou quase igualmente eficaz.
Observaram as duas lanchas que com sua pesada carga se balançavam perigosamente no mole e cujos passageiros, vestidos de etiqucta, amontoaram-se em um
flanco como se fossem um carregamento llamativamente embelezado de aristocráticos fugitivos de um holocausto republicano. Ambrose conversava com eles e Munter permanecia
erguido à altura de seu ombro, a modo de segunda linha de defesa. Notaram uma série de gesticulações. Inclusive a aquela distância, a postura do Ambrose, a
cabeça levemente inclinada, as mãos estendidas transmitiam pesar, aflição e certo embaraço. Mas se manteve firme. O rumor das conversações chegava até
eles, fraco mas agudo como o grasnido de distantes estorninos. Cordelia disse ao Ivo:.
-Parecem inquietos. Suponho que querem estirar as pernas.
-Eu suspeito que querem fazer pis, pobrecillos.
-Há alguém tomando fotografias na dá de presente. Se não tomar cuidado cairá pela amurada.
-É Marcus Fleming. Estava previsto que tomasse as fotografias para ilustrar meu artigo. Agora poderá telefonar a Londres e transmitir uma primicia se não naufragarem
da emoção antes de chegar a terra firme.
-Aquela senhora gorda, a do vestido cor malva, parece muito decidida.
-Essa é lady Cottringham, a formidável viúva herdeira. Ambrose faria bem em vigiá-la. Se puser um pé no mole, não haverá quem a contenha. Precipitará-se
a jogar uma olhada a pobre Clarissa, submeterá a todos a um brutal interrogatório e resolverá o crime antes de que chegue a policia. Ah, bem pelo Ambrose!
As lanchas estão zarpando.
-E aí chega a polícia -anunciou Roma.
-Viram aparecer quatro brilhantes asas de espuma. Onde a ilha riscava uma curva, aproximavam-se duas esbeltas lanchas de cor azul marinho, e suas alargadas esteiras
acariciavam como plumas as opalinas águas.
-É estranho que alguém seja tão apreensiva -confessou Roma-. Além disso é estúpido. Sente-se devolvida a seus dias de colegiala. Sempre parecíamos e nos sentíamos
mais culpados
quando fomos totalmente inocentes.
-Totalmente? -perguntou Ivo-. Esse é um estado invejável. Eu nunca consegui alcançá-lo. Embora não deveria me preocupar. A polícia tem uma fórmula para abordar estes
casos. Situam aos suspeitos em estrita ordem de prioridade: primeiro o marido, a seguir os herdeiros, depois a família, por último os amigos íntimos
e os conhecidos.
-Como eu sou ao mesmo tempo herdeira e parente -disse Roma secamente-, o que diz não me resulta nada tranqüilizador.
Observaram em silêncio como as duas lanchas de engalanada carga se afastavam torpemente enquanto os esbeltos cascos azuis se aproximavam cada vez mais.
.
QUARTA PARTE
OS PROFISSIONAIS.
23.
O sargento Robert Buckley era jovem, arrumado e inteligente e tinha plena consciência desses atributos; o que era menos freqüente, também tinha plena consciência
de suas limitações. Tinha obtido as melhores qualificações em três disciplinas durante os dois últimos anos de estudo, lucro que teria justificado seu ingresso
na universidade em companhia de amigos igualmente preparados. Mas não teria sido a universidade sua eleição. Suspeitava que sua inteligência, embora aguda, era
superficial, que não podia competir com verdadeiros estudiosos, e não tinha a menor intenção de somar-se aos muito cultos desempregados depois de outros três anos
de
rotina acadêmica relativamente tediosa. Calculou que o êxito chegaria antes em um trabalho inferior a suas possibilidades, no que competisse com homens menos e
não mais preparados que ele. Reconhecia em si mesmo uma veia de sadismo que encontrava certa satisfação na dor de outros, sem necessidade de infligi-lo pessoalmente.
Era filho único de pais de certa idade que tinham começado por lhe adorar, logo o tinham admirado e concluíram por lhe temer um pouco. Também isso lhe resultava
agradável.
Sua eleição de carreira tinha sido natural e fácil; tomou a decisão enquanto percorria a passo comprido as colinas do Purbeck, contemplando como ondulava o chão
em
nervuras de cor ante e verde. Só tinha duas possibilidades, o exército ou a polícia, e tinha descartado em seguida a primeira. sabia-se possuidor de certa insegurança
social, e em torno do exército havia tradições, costumes e um caráter de escola privada pelos que sentia uma precavida desconfiança. Era um mundo estranho
e podia lhe pôr ao descoberto, inclusive lhe rechaçar, antes de que ele tivesse ocasião de dominá-lo. Por outro lado, a polícia, dado o que ele podia oferecer, tinha
que sentir-se contente de contá-lo em suas filas. E para falar a verdade, assim tinha ocorrido.
Sentado agora na proa da lancha, Buckley se sentia satisfeito com o mundo e consigo mesmo. Tinha convertido em prática a dissimulação de seu entusiasmo, o mesmo
que o de sua imaginação. Ambos eram como amigos fascinantes mas rebeldes, dos que podia desfrutar-se estranha vez e com cautela dado que despediam certo tufillo
a traição. Mas enquanto contemplava como Courcy Island adquiria forma e cor, teve consciência de uma embriagadora mescla de júbilo e medo. Júbilo pela promessa
de que ali encontraria por fim o caso com o que tinha sonhado desde que ganhasse os galões de sargento. Medo de que a promessa pudesse tornar-se a perder, de chegar
ao mole e encontrar-se com as conhecidas e deprimentes palavras: "Está-lhes esperando acima. Alguém lhe vigia. encontra-se em um estado lamentável. Diz que não
sabe o que ocorreu". Nunca sabiam o que lhes tinha ocorrido; os assassinos confesos eram tão patéticos na derrota como incompetentes no ato criminal. O homicídio,
esse delito incomparável e definitivo, estranha vez era o mais interessante do ponto de vista forense, ou o mais difícil de resolver. Mas quando dava com um bom,
não havia excitação comparável: a embriagadora combinação da caça de um homem mediante um quebra-cabeças, o aroma de medo que pesava no ar -penetrante como
o metálido aroma do sangue-, a sensação de voluptuoso bem-estar, a fascinante forma em que a confiança, a personalidade e a moral trocavam sutilmente e
deterioravam-se sob seu poluente impacto. O brilho do trabalho policial girava em torno de um bom crime..., e aquele prometia sê-lo.
Dirigiu o olhar a seu chefe, cuja vermelha cabeleira refulgia sob o sol. Grogan tinha o mesmo aspecto que sempre oferecia antes de iniciar um caso: calado e em atitude
introvertida, os olhos baixos mas atentos, os músculos tensos sob o tweed bem talhado, a totalidade de seu vigoroso corpo reunindo energias para a ação,
como o depredador que era. Quando Buckley o conheceu três anos atrás, instantaneamente tinha pensado nas fotos de suas historietas infantis, que representavam
a um guerreiro índio, e mentalmente tinha coroado sua corada cabeça com plumas ceromoniales. Mas em certo sentido sutil, a comparação era inexata. Grogan
era um homem muito corpulento, muito inglês e muito complexo para responder a uma imagem tão descomprometidamente simples. Buckley tinha sido convidado
uma só vez, e por breve prazo, ao chalé de pedra dos subúrbios do Speymouth onde Grogan vivia sozinho, separado de sua esposa. Se rumoreaba que tinha um filho e
que o menino tinha problemas, embora ninguém parecia saber exatamente quais. O chalé não tinha revelado nada. Não havia quadros nem lembranças de velhos casos nem
fotos de família ou colegas, e escassos livros, além do que parecia uma coleção completa da série "Julgamentos Famosos"; muito pouco salvo nuas paredes de pedra
e uma custosa equipe esteresfónico. Grogan poderia ter feita suas malas e saída da casa em meia hora sem deixar nada seu detrás. Buckley ainda não tinha chegado
a compreendê-lo , embora depois de dois anos de trabalhar a suas ordens sabia o que podia esperar dele: a alternância de melancolia e volubilidade durante a qual
usaria a seu sargento como caixa de rsonancia; o fortuito sarcasmo, a implacabilidad e a impaciência. Só parcialmente lhe incomodava ser utilizado como combinação
de  taquígrafo, discípulo e espectador. Grogan fazia por si mesmo grande parte do trabalho. Mas era possível aprender dele: obtinha resultados, não estava marcado
pelo fracasso e era justo. E estava próximo ao retiro; só faltavam dois anos. Buckley tirava dele o que lhe servia e esperava seu momento.
Três pessoas os aguardavam no embarcadero, imóveis como estátuas. Buckley adivinhou quem eram duas delas, antes de que as lanchas soprassem até frear:
sir George Ralston, quase em posição de firmes com seu antiquado jaquetão, e Ambrose Gorringe, menos tenso, embora incongruentemente emperiquitado com seu smoking.
Ambos observaram desembarcar aos recém chegados com precavida formalidade, como comandantes de um castelo sitiado que esperam aos negociadores do armistício e
vigiam com olhos de raposa velha o primeiro indício de traição. O terceiro homem, de traje escuro e mais alto que os outros dois, era todas luzes, uma espécie de
servente.
Permanecia um pouco mais atrás e mantinha a vista imperturbablemente fixa no mar. Sua postura indicava que certos convidados eram bem-vindos no Courcy, mas que
a polícia não se encontrava entre eles.
Grogan e Gorringe fizeram as apresentações. Buckley notou que seu chefe não expressava nenhuma condolência, não dizia nenhuma palavra de pesar ao viúvo. Claro que
nunca
o fazia. Uma vez lhe tinha explicado o motivo: "É ofensivamente falso e os parentes sabem. No trabalho policial existe suficiente duplicidade sem necessidade
de aumentá-la. Algumas mentiras são insultantes". Se Ralston ou Gorringe notaram a omissão, não se deram por inteirados.
Ambrose Gorringe levou todo o peso da conversação. Enquanto avançavam entre amplas extensões de grama para a entrada do castelo, disse:.
-Sir George organizou um registro do castelo e da ilha. O castelo foi registrado, mas os três grupos que cobrem a ilha ainda não tornaram.
-Meus homens se ocuparão agora disso, senhor.
-Supunha-o. O resto dos atores está no teatro. A sir Charles Cottringham gostaria de falar com você.
-Disse a respeito do que?.
-Não. Suponho que só é para lhe participar que está aqui.
-Isso já sabia. Agora verei o cadáver; agradecerei-lhe que me permita usar uma habitação pequena e tranqüila durante o resto do dia e possivelmente até na segunda-feira.
-pensei que meu escritório seria o lugar mais adequado. Se quando você esteja preparado chama da habitação do IA senhorita Lisle, acompanharei-lhe. Munter lhe proporcionará
tudo o que necessite. Minhas hóspedes e eu estaremos na biblioteca..
Atravessaram uma grande sala e subiram a escada. Buckley não reparou em nenhum detalhe do que lhe rodeava. Ia com sir George atrás do Grogan e Ambrose Gorringe,
e emprestou atenção enquanto este fazia a seu chefe um sucinto, embora muito completo, relato dos acontecimentos que conduziram à morte da senhorita Lisle: por
o que se encontrava na ilha, breves pormenores do resto dos hóspedes, as cartas ameaçadoras, o fato de que tivesse considerado levar consigo a uma detetive
privada, a senhorita Cordelia Gray, o desaparecimento do braço de mármore, o descobrimento do cadáver. Foi uma interpretação impressionante, tão esmeradamente impessoal
e objetiva como se a tivesse ensaiado. E provavelmente a tinha ensaiado, pensou Buckley.
Ao chegar à porta, o grupo interrompeu seus passos. Gorringe tendeu três chaves e disse:.
-Fechei as três portas depois do descobrimento do cadáver. Estas são as únicas chaves. Suponho que não quererá que entremos com vocês.
Sir George falou pela primeira vez desde que tinham chegado:.
-Se me necessitar, inspetor, estarei com o enteado de minha esposa, em seu dormitório. O moço está transtornado, o que é natural dadas as circunstâncias. Munter
sabe onde me encontrar. -voltou-se bruscamente e partiu.
Grogan respondeu à pergunta do Gorringe:.
-foi muito amável, senhor, mas acredito que aqui nos poderemos arrumar por nossa conta.
Era uma atriz, inclusive morta. A cena do dormitório resultava extraordinariamente dramática. Até o cenário habia sido engenhosamente desenhado para o melodrama
de grande estilo: os acessórios brilhantes e suntuosos, o vermelho como cor dominante. Yacia tombada sob o dossel carmesi, com uma de suas níveas pernas cuidadosamente
levantada para deixar à vista um fragmento de coxa, a cara lubrificada com sangue artificial, enquanto o diretor e o câmara davam voltas a seu redor calculando
os melhores ângulos, cuidando-se de não tocar nem alterar a pose tão astutamente provocadora. Grogan se instalou ao lado direito da cama e a observou carrancudo,
como
se se perguntasse se o diretor tinha feito bem em escolhê-la para representar aquele papel. Logo se inclinou e o olisqueó a pele do braço. A situação era estranha.
Buckley pensou: "É seu servente um cão para que faça isso?". Quase esperava que a mulher se sacudisse indignada, sentasse-se e estendesse as mãos pedindo uma
toalha para limpá-la cara.
A habitação estava cheia de gente, mas os peritos em mortes, os oficiais investigadores, os peritos em rastros digitais, o fotógrafo e os que exploravam
o cenário do crime eram hábeis em não estorvar-se mutuamente. Buckley sabia muito bem que Grogan nunca se acostumou à intervenção de civis no
cenário do crime, o que era estranho se se tiver em conta que ele procedia da Metropolitana, onde o emprego e a preparação de pessoal civil tinham progredido
quanto era possível. Mas aqueles dois sabiam o que faziam, moviam-se tão cautelosamente e com tanta segurança como um casal de gatos rondando por seu hábitat
natural. Tinha trabalhado com ambos anteriormente, mas não estava seguro de que pudesse reconhecê-los se os cruzasse na rua ou no bar. Permaneceu a um lado,
para não incomodar, e se dedicou a olhar como trabalhava o de mais idade. Em todo mómento observou suas mãos, embainhadas em luvas tão finas que pareciam uma segunda
pele. Agora aquelas mãos vertiam os restos do chá em um tubo de amostras, tampavam-no, atavam-no e lhe aderiam uma etiqueta; cuidadosamente guardaram a taça
e o pires em uma bolsa de plástico; rasparam uma amostra de sangue do braço de mármore e a introduziram no tubo preparado a esse efeito; levantaram o próprio
objeto, tocando-o apenas com as gemas dos dedos, e o depositaram em uma caixa esterilizada; com pinzas recolheram uma nota e brandamente a meteram em um sobre.
junto à cama, seu colega trabalhava com uma lupa e umas pinzas recolhendo cabelos do travesseiro, aparentemente alheio a aquela cara esmagada. Quando o patologista
do ministério do Interior tivesse concluído seu exame, a roupa de cama seria posta em uma bolsa de plástico, fechada hermeticamente e adicionada ao resto do material.
-O doutor Ellis-Jones está de visita na casa de sua sogra, no Wareham, o que é muito conveniente para nós -disse Grogan-.
enviaram uma escolta para lhe buscar. Teria que chegar na próxima meia hora, embora não é muito o que pode nos dizer que não tenhamos visto por nós mesmos.
De todos os modos, a hora da morte se pode precisar com bastante exatidão. Se calcularmos a perda do calor corporal em um dia como o de hoje em ao redor
de um grau e médio por hora durante as primeiras seis horas, não é provável que possa aproximá-la mais a que já conhecemos: em algum momento entre a uma e vinte,
quando a jovem a deixou viva, conforme nos há dito Ambrose Gorringe, e as duas e cuarente e três, quando a mesma jovem encontrou o cadáver. O fato de ter sido
a última pessoa que viu com vida à vítima e a primeira em encontrar o cadáver sugere que a senhorita Cordelia Gray é imprudente ou tem muito má sorte,
o que poderemos determinar quando a virmos.
-Pelo aspecto do sangue, senhor, eu diria que morreu mas bem cedo que tarde dentro desses limites -comentou Buckley.
-Sim. Em minha opinião, durante os primeiros trinta minutos posteriores à saída da jovem. Reconheceu a entrevista que estava debaixo do braço de mármore, sargento?.
-Não, senhor.
-Alivia-me ouvir o dizer. Pertence a "A duquesa do Malfi", conforme nos informou Ambrose Gorringe, a obra em que a senhorita Lisle interpretava o papel principal.
"O sangue flui para cima e umedece os céus". Aplaudo o conceito, embora seja incapaz de identificar a fonte. Entretanto, não é de tudo apropriada. A
sangue não fluiu para cima, ao menos com grande efusão. Esta sistemática destruição do rosto foi feita depois da morte. E conhecemos as possíveis raciocine
a que obedece algo semelhante.
É como um exame oral, pensou Buckley. Mas a pergunta era fácil:.
-Ocultar a identidade. Dissimular a verdadeira causa da morte. Assegurar-se plenamente. Um estalo de fúria, de ódio ou de pânico.
-E logo, depois desse ataque de violência, nosso literato assassino volta a acomodar serenamente os discos sobre os olhos da vítima. Quem o tenha feito
tem senso de humor, sargento.
Entraram juntos no quarto de banho, que era um término médio entre a opulência de época e o funcionalismo moderno. A grande banheira era de mármore e estava embutida
em um armação de mogno. O assento do inodoro também era de mogno, com a cisterna no alto. As paredes estavam cobertas de azulejos pintados de azul, com
ramalhetes de flores diferentes; havia um espelho de corpo inteiro, com o marco decorado com querubins. Mas o toallero tinha um dispositivo de calefação, havia
bidet, aparecia uma ducha no alto da banheira e a prateleira situada em cima do lavabo continha um formidável sortido de essências para o banho, pós e luxuosos
sabões em seus pacotes de origem.
Sobre o toallero penduravam desordenadamente quatro toalhas brancas. Grogan as cheirou uma por uma e as esfregou entre seus enormes manazas.
-É uma lástima que o toallero tenha calefação -disse-. Estão completamente secas, quão mesmo a banheira e o lavabo. Não há forma de saber se teve tempo de
banhar-se antes de que a matassem, a menos que o doutor Ellis-Jones possa isolar rastros de pó ou essência de banho na pele, mas nem sequer isso seria concludente.
Entretanto, as toalhas parecem ter sido usadas recentemente e estão levemente perfumadas. Tarnbién o está o corpo, e o aroma é o mesmo. Em minha opinião,
teve tempo de banhar-se. Bebeu o chá, tirou-se a maquiagem e se banhou. Se a senhorita Gray a deixou à uma e vinte, essas operações nos llevarian até as duas
menos vinte aproximadamente.
O principal examinador do cenário do crime esperava na porta. Grogan se fez a um lado para lhe deixar passo, voltou para dormitório e permaneceu ante a janela
contemplando o ponto em que uma muito fino linha púrpura separava as águas, cada vez mais escuras, do céu.
-ouviu falar alguma vez dos envenenamentos do Birdhurst?.
-Foi no Croydon, verdade, senhor? Arsênico.
-Três membros da mesma família da classe média foram envenenados com arsênico entre abril de 1928 e março de 1929: Edmund Duff, um funcionário colonial retirado,
sua cunhada e sua mãe viúva. Em cada um dos casos o veneno tinha que ter sido administrado na comida ou em medicamentos. O autor só podia ser uma pessoa
da casa, mas a polícia não praticou nenhuma detenção. É uma falácia supor que um pequeno círculo de suspeitos, todos conhecidos entre si, faz mais fácil
a solução de um caso. Não é assim: só faz injustificável o fracasso.
Fracasso não era uma palavra que Buckley recordasse ter ouvido antes em lábios do Grogan. Seu otimismo deu passo a certa ansiedade. Pensou em sir Charles Cottringham
de plantão no teatro, no chefe de policta, na publicidade da segunda-feira. "Esposa de baronet morta a golpes no castelo de uma ilha. Célebre atriz assassinada".
Aquele não era um caso que um oficial com ambições de futuro pudesse permitir o luxo de perder. perguntou-se o que havia em torno daquele aposento, a aquela vítima,
a aquela arma, possivelmente no ar mesmo da ilha do Courcy, que tinha provocado tão deprimente e cautelosa reflexão.
Por um momento, nenhum dos dois disse nada. Logo ouviram um repentino zumbido e uma lancha barco a motor rodeou a ponta leste da ilha arrastando uma ampla esteira
curva em direção ao mole.
-O doutor Ellis-Jones faz sua clássica aparição espetacular -anunciou Grogan-. Assim que nos haja dito o que já sabemos, que pertence ao sexo feminino e está
morta, e nos tenha explicado o que somos capazes de determinar por nós mesmos, que não foi acidente nem suicídio e que aconteceu entre a uma e vinte e as duas
quarenta e três, poderemos baixar e nos ocupar de averiguar o que têm que dizer nossos suspeitos, começando pelo baronet.
.
24.
Eram quase as quatro e meia; Ambrose, Ivo, Roma e Cordelia estavam no mole, olhando como a "Shearwater" -que levava a companhia de volta a Speymouth-ultrapassava
a ponta oriental da ilha e desaparecia da vista.
-Bem, possivelmente se tenham visto privados de seu momento de glória, mas não podem queixar-se de que o dia tenha sido aborrecido -disse Ambrose-. O assassinato
da Clarissa se
terá difundido por todo o condado para a hora do jantar, o qual significa que podemos esperar uma invasão da imprensa ao amanhecer.
-O que fará? -perguntou Ivo.
-Evitar todo desembarque, embora não com a brutal eficácia de o Courcy quando a peste. A ilha é de propriedade privada e darei instruções ao Munter para que remeta
toda chamada Telefónica à polícia do Speymouth. Provavelmente contem com um departamento de relações públicas, e deixarei que eles se façam cargo de tudo.
Cordelia, que ainda tinha posto seu vestido de algodão, estremeceu-se. O esplêndido dia começava a decair. Breve se presentaria o sublime momento de transição
em que o sol poente despede seus últimos e mais brilhantes raios, intensificando a cor da erva e das árvores de modo que até o ar mesmo se tinge
de verdor. Agora as sombras caíam largas e espessas sobre a terraço. Os navegantes sabatinos tinham empreendido a volta e o mar se estendia em deserta calma.
Só as duas lanchas da polícia se balançavam junto ao mole, e os lisos tijolos dos muros e torreões do castelo, que por um instante tinham cintilado
com um vermelho mais vivo, obscureceram-se e aumentaram no alto, imponentes.
Enquanto atravessavam a grande sala, o castelo os recebeu com um silêncio artificial. Vamos, a polícia transportava com sua secreta perícia da morte. Sir George
estava sendo interrogado, ou se encontrava com o Simon em sua habitação. Ninguém parecia sabê-lo e ninguém quis perguntá-lo. De comum acordo os quatro, que ainda
esperavam ser interrogados oficialmente, entraram na biblioteca. Possivelmente a estadia fosse menos cômoda que o salão, mas ao menos oferecia muito material a quem
decidissem fingir que queriam ler. Ivo ocupou a única poltrona e se apoiou no respaldo, com os olhos fixos no teto, as largas pernas estiradas. Cordelia se
sentou ante a mesa de mapas e voltou lentamente as páginas dos exemplares encadernados do "lllustrated London News" correspondentes a 1876. Ambrose permaneceu
de costas a eles, contemplando o jardim. Roma era a mais inquieta e se passeava constantemente entre as estanterías como um prisioneiro obrigado a fazer exercício.
Foi um alívio que entrassem os Munter com a pesada bule de prata, o hervidor de cobre com a mecha acesa debaixo, o serviço de chá Minton. Munter correu
as cortinas e aproximou um fósforo ao fogo, que começou a crepitar. Paradoxalmente, a biblioteca se voltou imediatamente mais acolhedora mas mais opressiva, encerrada
em sua hermética calma escurecida. Todos tinham sede. Ninguém sentia muito apetite, mas do momento do descobrimento do cadáver ansiavam confortar-se com o
estímulo do chá ou do café, e ter que transportar com taças e pires ao menos os mantinha ocupados. Ambrose se instalou ao lado da Cordelia e, enquanto removia
o chá, disse:.
-Ivo, você conhece todos os dimes e diretes de Londres. nos fale desse Grogan. Devo confessar que a primeira vista não gosta de nada.
-Ninguém conhece tudas as fofocas de Londres. Como você sabe muito bem, Londres é um conjunto de povos tão social como ocupacionalmente, além de geograficamente.
Entretanto, em ocasiões a fofoca teatral e o policial se sobrepõem. Existe uma afinidade entre os detetives e os atores, ast como entre estes últimos e
os médicos.
-nos economize a dissertação. O que sabe dele? Suponho que terá falado com alguém.
-Reconheço que telefonei a um de meus contatos, de fato desde esta biblioteca, enquanto você estava ocupado recebendo ao Grogan e seus secuaces. Conforme dizem,
se
despediu da Metropolitana porque lhe repugnava a corrupção lhe reinem no Departamento de Investigação Criminal. Isso ocorreu antes da última purgação, naturalmente.
Na aparência, é um homem do William Morris a carta cabal: "Nunca mais meu cavalheiro nem cavalheiro de Deus, sendo você muito mais honrado, muito mais puro, bom
e fiel
que eles". Isto, embora mais não fora, teria que te tranqüilizar, Roma.
-Nada concernente à polícia tranqüiliza.
-Suponho que será melhor que me cuide de lhe oferecer um gole -adicionou Ambrose-. Poderia interpretá-lo como um intento de suborno ou de corrupção. Pergunto-me
se o chefe
de polícia, ou quem quer que dita estas coisas, não o terá enviado aqui para que fracasse.
-por que faria ninguém semelhante costure? -perguntou Roma em tom áspero.
-Melhor que ocorra a um recém-chegado e não a um de seus próprios homens. Além disso, a possibilidade do fracasso é quase uma certeza. Este é um crime isolado e
convenientemente
separado de terra firme, "terminus a quo e terminus ad quem" conhecidos. Seria perfeitamente possível fechar o caso, como acredito que se diz no jargão do ofício,
no prazo de uma semana. Todo mundo espera que resolva logo. Mas se o criminoso.... e em um gesto de cavalheirismo demos por sentado que se trata de
um homem, mantém a cabeça clara e a boca fechada, duvido de que corra perigo. Tudo o que tem que fazer é ater-se a sua história, em nenhum momento justificar-se,
em nenhum momento embelezá-la, em nenhum momento dar explicações.
O importante não é o que a polícia sabe ou suspeita a não ser o que possa provar.
-Dá a impressão de que não quer que resolva -observou Roma.
-Embora meus desejos nesse sentido não são muito vivos, preferiria que resolvesse. Seria verdadeiramente tedioso passar o resto da vida como suspeito de assassinato.
-Mas atraeria a mais turistas, não? Às pessoas adora o sangue e o truculento. Poderia mostrar também o cenário do crime..., por um suplemento de vinte
peniques, naturalmente.
-Não consinto o sensacionalismo -replicou Ambrose tranqüilamente-. Por isso aos visitantes do verão não lhes mostra a cripta. Além disso, este é um assassinato de
mau gosto.
-Acaso não o são todos?.
-Não necessariamente. Acredito que poderia inventar um bom jogo de salão classificando os casos clássicos segundo seu nível de mau gosto. Este me parece particularmente
absurdo, extravagante e teatral.
Roma tinha terminado sua primeira taça de chá e se estava servindo a segunda:.
-Parece-me bastante apropriado. -Fez uma pausa e adicionou-: É estranho que nos tenham deixado sozinhos. Pensei que nos acompanharia um ajudante de patrício que
tomaria notas
de todas nossas indiscrições.
-A polícia conhece o limite de suas atribuições e de seu poder. Cedi-lhes meu escritório e enclausuraram as duas habitações de hóspedes. Mas estas seguem sendo
minha casa e minha biblioteca e só entrarão aqui se são convidados. Até que decidam acusar a alguém, temos direito a ser tratados como inocentes. Incluído Ralston,
embora como marido tem que ser elevado à condição de principal suspeito. Pobre George! Se realmente a amava, isto tem que ser um inferno para ele.
-Suspeito que deixou de amá-la seis meses depois das bodas
-comentou Roma-. Então já devia saber que Clarissa era  incapaz de ser fiel.
-Parece-me que jamais se deu por informado -amputou Ambrose.
-Não diante de mim, mas eu os freqüentava muito pouco. Por outro lado, o que podia fazer ante este tipo concreto de insubordinação?
Não pode tratar a uma esposa infiel como se fosse um subordinado recalcitranta. Entretanto, não acredito que essa situação gostasse. Se ele não a matou, e nem por
um
só instante acredito que o fizesse
provavelmente não está de tudo ingrato a quem o tenha feito. O dinheiro lhe virá bem para subvencionar essa organização fascista que dirige, a União de
Patriotas Britânicos. Não se deduz do nome que é um fascista?.
Ambrose sorriu.
-Bom, eu não esperaria encontrá-la cheia de trotskistas e de socialistas internacionais, mas é bastante inofensiva. Uma mentalidade adolescente e um exército
geriátrico.
Roma posou ruidosamente a taça e reatou seu inquieto passeio.
-Vá se forem bons para lhes enganar a vós mesmos! Se trtata de algo repulsivo, violento e, o que é mais imperdoável ainda, suas componentes se tomam a si mesmos
sério. Cren de verdade em seu perigoso disparate. De modo que riamos e possivelmente deixe de existir. Mas quando a sorte esteja arremesso, a quem criem que defenderá
esse exército geriátrico? Aos pobres proletários? Seguro que não!.
-Mas bem espero que me defendam .
-Farão-o, Ambrose, farão-o! A tí e às multinacionais, à classe dirigente, aos barões da imprensa. O dinheiro da Clarissa servirá para manter ao rico
em sua mansão e ao pobre ante sua grade.
-Mas não recebe seu uma parte do dinheiro? -Perguntou Ambrose, com uma inflexão de picardia na voz-. E não te será útil?.
-É obvio. O dinheiro sempre é útil. Mas não é importante. Suponho que me alegrarei quando o receber, mas não o necessito.
E por certo não é tão importante para matar. Se a isso vamos, ignoro o que pode ser o bastante importante para matar.
-Não seja ingênua, Roma! Uma rápida leitura dos jornais te informará do que considera a gente o bastante importante para matar. Em princípio, as emoções
perigosas e destrutivas. O amor, por exemplo.
Munter apareceu no vão da porta. Tossiu como um mordomo de repertório, pensou Cordelia.
-Acaba de chegar o patologista, senhor, o doutor Ellis-Jones -anunciou Munter.
Por um momento, Ambrose pareceu confundido, como se se perguntasse se devia receber protocolariamente ao recém-chegado.
-Será melhor que vá, suponho -disse-. Sabe a polícia que está aqui?.
-Ainda não, senhor. Pareceu-me correto lhe informar a você primeiro.
-Onde está?.
-Na grande sala, senhor.
-Não podemos lhe fazer esperar. lhe acompanhe aonde esteja o inspetor Grogan. Suponho que necessitará algumas costure. Água quente, por exemplo.
Gorringe passeou o olhar a seu redor, como se esperasse que se materializassem no ar uma jarra e uma bacia. Munter saiu.
-Apresenta-o como se se tratasse de um parto -murmurou Ivo.
Roma se voltou e disse em um tom que era mescla de queixa e assombro:.
-Não pensará fazer aqui a autópsia!.
Todos cravaram o olhar na Cordelia. Esta pensou que Ambrose devia conhecer o procedimento, mas também ele a contemplou com olhar inquisitivo.
-Não -disse Cordelia-. Limitará-se a um exame preliminar do que denominam cenário do crime. Tomará a temperatura do corpo, tratará de determinar o momento
da nuerte. Depois a levarão. Não gostam de mover o cadáver lasta que o patologista o examinou e certificou que a vida se extinguiu.
-Que curiosa quantidade de informação possui, para ser uma garota que se chama a si mesmo secretária-acompañante! -interveio Roma Lisle-. Ah, tinha-o esquecido!
Ambrose nos há dito que é detetive privada. Talvez possa nos explicar por que tomaram a todos os rastros digitais. Considero-o particularmente ofensivo,
sobre tudo a forma em que sujeitam os dedos e os apertam contra a almofadinha. Não seria tão repugnante se permitissem que cada um o fizesse por sua conta.
-Não expuseram seus motivos? -surpreendeu-se Cordelia-. Se descobrirem rastros digitais no dormitório da Clarissa, querem estar em condições de eliminar as
nossas.
-Ou as identificar. E que mais estão fazendo, além de interrogar ao George? A verdade é que trouxeram muitos homens consigo.
-Alguns deles são, provavelmente, pessoal técnico do laboratório forense. Também podem ser o que se denomina "peritos no cenário do crime". Reunirão
as provas científicas, amostras de sangue e de fluidos corporais. Retirarão a roupa de cama e a taça com seu pires. Analisarão os restos do chá, para averiguar
se estava envenenado. Poderiam havê-la drogado antes de matá-la. Estava tendida de barriga para cima, muito aprazível.
-Não se necessita nenhuma droga para conseguir que Clarissa se loja de barriga para cima e muito aprazível -a Roma lhe escaparam as palavras. Então viu as expressões
de seus interlocutores, ficou coloradísima e gritou-: Sinto muito! Não teria que haver dito isso. Mas é que não posso acreditá-lo, não me imagino ali tendida, com
a cabeça esmagada. Minha imaginação não é dessa índole. Estava viva e agora deixou que existir. Não me era simpática e eu não caía bem a ela. A morte não
pode alterar esse fato para nenhuma das duas. -dirigiu-se à porta quase cambaleando-se-. Irei dar um passeio. Tenho que sair deste lugar. Se Grogan me necessitar,
que me busque.
Ambrose voltou a encher a bule e se serve outra taça, logo se sentou sem pressas junto à Cordelia.
-Isso é o que me surpreende do compromisso político. Sua prima, a mulher com a que virtualmente se criou, foi assassinada, e breve a levarão para que seja
cientificamente esquartejada por um patologista do ministério do Interior. Está impressionada, isso é evidente. Mas no fundo lhe importa tão pouco como se lhe houvessem
dito que Clarissa se indisposto por causa de um leve ataque de fibrositis. Entretanto, a gente menciona a U.P.B. do pobre Ralston e fica histérica.
-Está assustada -assinalou Ivo.
-Isso é óbvio, mas do que tem medo? Não desse lastimoso punhado de guerreiros falso, suponho.
-Em ocasiões me assustam também . Suponho que tinha razão quanto ao dinheiro e a que Ralston receberá a maior parte. A quanto ascende?.
-Meu querido Ivo, não sei. Clarissa nunca me confiou os detalhes de suas finanças pessoais. Não fomos tão íntimos.
-Acreditava que o foram.
-Embora o tivéssemos sido, duvido que me houvesse isso dito. Isso é o surpreendente com respeito à Clarissa. Não acreditará, mas é a pura verdade. adorava os
fofocas, mas sabia guardar um segredo quando queria. Clarissa era feliz acumulando, acumulação que incluía sementes de informação útil.
-Que inesperado e quão perigoso! -concluiu Ivo.
Cordelia os observou: os faiscantes olhos maliciosos do Ambrose, o esqueleto apenas talher do Ivo, atravessado em seu assento, as largas mãos ossudas pendurando
de bonecas que pareciam muito magras e frágeis para as sustentar, a cara de cor massa com seus ossos salientes voltados para o teto de estuque. sentiu-se
afligida por uma confusão de sentimentos: ira, uma profunda piedade sem o destino e uma emoção menos familiar que reconheceu como inveja. Eles estavam tão seguros
em seu sardônico e quase humorístico desapego! Podia algo afetar realmente seus corações ou seus nervos, exceto a possibilidade de sua própria dor? E inclusive a
dor
físico -o grande nivelador universal- seria recebido por eles com irônico desgosto ou zombador desdém. Acaso Ivo não confrontava assim sua própria morte? por que
esperava
que se afligissem por causa de que uma mulher com a que nenhum dos dois simpatizava muito jazesse no piso de acima com a cara amassada? Entretanto, não era
necessário recorrer ao trilhado aforismo do Donne para sentir que algo lhe devia à morte, que algo em suas relações, no castelo mesmo, no ar que respiravam,
viu-se afetado e sutilmente alterado. Súbitamente se sentiu muito só e muito jovem. Percebeu que Ambrose a observava: como se tivesse lido seus pensamentos,
Gorringe disse:.
-Uma parte do horror do crime é que despoja de seus direitos aos mortos. Não acredito que nenhum dos aqui reunidos se sinta pessoalmente desolado pela morte
da Clarissa. Mas se tivesse morrido de morte natural, choraríamo-la no sentido de que pensaríamos nela com essa confusa mescla de pesar, sentimentalidad e
pormenorizado interesse que é o tributo normal a quem acaba de morrer. Tal como ocorreram as coisas, só pensamos em nós mesmos. Ou não? Ou não?.
-Não acredito que Cordelia esteja pensando em si mesmo -disse Ivo.
A biblioteca voltou a enclausurá-los em seu silêncio, mas seus ouvidos permaneciam anormalmente alerta a qualquer rangido, e três cabeças se levantaram o uníssono
para ouvir amortecidos passos no corredor e o som distante, fraco mas inconfundível, de uma porta ao fechar-se.
-Acredito que a estão levando -conjeturou Ivo em um sussurro.
Avançou em silencio até ficar detrás de uma das cortinas e Cordelia lhe seguiu. Entre as amplas extensões de grama cristalizadas pela luz da lua, quatro
silhuetas escuras e alargadas, sem sombras, como fantasmas, cumpriam sua tarefa inclinadas. Detrás ia sir George, com as pernas rígidas e erguido, como se a espada
estalasse ao flanco de seu corpo. Reduzida-a procissão semelhava um grupo de parentes que enterram subrepticiamente a seus mortos de acordo com um rito esotérico
e proibido. Cordelia, esgotada pela impressão e a fadiga, lamentou não experimentar alguma resposta de misericórdia pessoal e adequada às circunstâncias. Em
mudança ocupou sua mente um sussurro de atávico terror, imagens de pestes e crímenes secretos, os homens de o Courcy livrando-se de suas vítimas sob o manto de
a noite. Pareceu-lhe que Ivo tinha deixado de respirar. Embora ele não pronunciou palavra, Cordelia percebeu a intensidade de seu olhar através do contato de seu
ombro
rígido. Então as cortinas se abriram e apareceu Ambrose:.
-Chegou com o sol matinal e se vai à luz da lua. Eu teria que estar ali. Grogan deveria me haver avisado que a levavam. A conduta desse homem se
está voltando intolerável!.
E assim foi, pensou Cordelia, como partiu Clarissa em sua última viagem desde o Courcy Island, com aquela nota de queixa um tanto displicente.
Uma hora depois, abriu-se a porta e entrou sir George. Deveu perceber seus olhares inquisitivos, pergunta-a que ninguém queria fazer.
-Grogan se mostrou perfeitamente cortês, mas não acredito que tenha elaborado nenhuma teoria. Suponho que conhece seu trabalho. Esse arbusto de cabelo roio deve
representar uma
desvantagem.... na hora de passar inadvertido, quero dizer.
-Acredito que a seu nível a investigação é primordialmente trabalho de escritório -raciocinou Ambrose em tom grave, dominando a crispação de seus lábios-. Não acredito
que
dedique-se a espreitar nas sombras.
-Mas tem que fazer algum trabalho de campo para não perder a prática. Suponho que poderia tingir-lhe un abuso preguntarlo. Lo mismo debió de pensar Ivo, pues dijo:.
Sir George agarrou "The Spectator" e se instalou ante a mesa de mapas, tão cômodo como se se encontrasse em seu clube londrino. Outros o olharam em desconcertado
silêncio. Cordelia pensou: estamo-nos comportando como candidatos a um exame oral a quem gostaria de saber que perguntas lhes farão mas conslderan que séria
um abuso perguntá-lo. O mesmo deveu pensar Ivo, pois disse:.
-A polícia não está fazendo um concurso para escolher ao suspeito favorito do ano. Confesso que sinto certa curiosidade por sua estratégia e sua técnica. Fazer
críticas da Agatha Christie no Vaudeville não é uma boa preparação para enfrentar-se à realidade. Como foram as coisas, Ralston?.
Sir George levantou a vista do periódico e deu a impressão de concentrar-se reflexivamente.
-Como cabia esperar. Onde estive e o que fiz exatamente esta tarde? Respondi que me habia dedicado a observar pássaros nos escarpados ocidentais. Também
informei-lhes que através de meus prismáticos tinha visto o Simon chegar à praia durante o caminho de volta. Aparentemente a policia o considerou importante.
Interrogaram-me sobre a fortuna da Clarissa. A quanto ascende? Quem a herdará? Grogan perdeu vinte minutos me perguntando sobre a vida das aves no Courcy.
Suponho que tentava que me sentisse cômodo. Um tanto estranho, pensei.
-Ou tratava de te surpreender em uma mentira, mais provavelmente, com matreiras armadilhas a respeito dos hábitos de anidación de espécies inexistentes. E com respeito
a
a manhã? -interessou-se Ivo-. Esperam que apresentemos um detalhe de todos nossos movimentos desde que despertamos?.
Sua voz continha uma deliberada indiferença, mas os quatro sabiam o que era o que perguntava e conheciam a importância da resposta. Sir George voltou a agarrar
o periódico e, sem levantar a vista, respondeu:.
-Não disse mais do necessário. Falei-lhes da visita à igreja e à Caldeira do Diabo. Mencionei ao afogado mas não dava nomes. Não tem sentido confundir a
investigação com velhas histórias. Isso não lhes concerne.
-Tranqüiliza-me -declarou Ivo-. É a linha que me proponho seguir. Assim que se presente a oportunidade falarei com Roma, e você, Ambrose, poderia fazer o mesmo
com o moço. Como diz Ralston, não tem sentido confundi-los com velhas e desventuradas questões, com batalhas remotas.
Ninguém respondeu; de repente sir George levantou a vista do periódico e disse:.
-Sinto muito, tinha-o esquecido. Agora querem vê-la a você, Cordelia.
.
25.
Cordelia compreendeu por que razão Ambrose tinha devotado seu escritório à polícia. Tinha a equipe própria de um escritório, não era muito grande e ali os manteria
separado-se de seu caminho. Mas quando se sentou na cadeira de vime e mogno e se enfrentou ao inspetor Grogan, instalado ao outro lado do escritório, lamentou que
Ambrose não tivesse escolhido qualquer habitação salvo aquele museu privado do crime. As figuras do Staffordshire sobre a prateleira que ficava detrás da cabeça
do Grogan pareciam ter crescido, deixando de ser antiguidades pitorescamente expostas, para converter-se em pessoas reais cujas amáveis caras pintadas brilhavam
e cobravam vida. As gravuras vitorianas emolduradas, com seus cadafalsos de tosco desenho e suas celas para os condenados a morte, eram uma horrorosa intrusão, um
crua comemoração à crueldade do homem para com o homem. A estadia, por sua parte, era mais pequena do que recordava, e se sentiu encerrada com seus interrogadores
em tremenda e claustrofóbica proximidade. Só pela metade se deu conta de que havia uma agente de polícia uniformizada, sentada quase imóvel no rincão próximo à
janela, vigilante como uma carabina. Acreditavam que se deprimiria ou que acusaria ao Grogan de violá-la? Por um instante se perguntou se seria a mesma mulher anônima
que tinha ajudado a transladar suas roupas e pertences da habitação Do Morgan até seu novo dormitório. Teve a certeza de que tinham examinado tudo minuciosamente
antes de voltar a acomodá-lo sobre a cama.
Olhou ao Grogan pela primeira vez. Teve a impressão de que
era mais corpulento ainda que o hombretón que tinha visto descer da lancha policial. Sua povoada cabeleira avermelhada era mais larga do que cabe esperar em um oficial
de polícia; sobre a frente lhe caía uma mecha que de vez em quando jogava para trás com seu manaza. A pesar do tamanho, seu rosto -com maçãs do rosto salientes e
seus olhos
afundados- dava uma impressão de magreza extrema. debaixo de cada maçã do rosto, uma pincelada de pêlo incrementava a sensação de arruda animalidad, impressão extremamente
contraditória com o excelente corte de seu sóbrio traje de tweed. Sua cútis era tão corada que todo seu aspecto ss voltava avermelhado; até o branco dos olhos pareciva
sanguinolento., Quando moveu a cabeça, Cordelia vislumbrou, sob sua imaculada camisa, a clara líinea divisória entre a cara bronzeada pelo sol e o branco pescoço.
A diferença era tão marcada que parecia alguém a quem decapitaram e voltado a unir a cabeça. Tratou de imaginá-lo barbirroio, como um aventureiro isabelino,
mas a imagem resultou sutilmente falsa. Apesar de toda sua força não lhe teria encontrado entre os homens de ação a não ser maquinando secretamente nas trastiendas
do poder. Podria ter sido descoberto na temível cela da torre dirigindo as alavancas do potro? Mas isso era injusto. Separou-se de sua mente as doentias
imagens e se obrigou a recordar o que era Grogan em realidade: um importante oficial de polícia do século vinte, sujeito às normas da força pública, limitado
pelos regulamentos judiciais, que realizava um trabalho vital embora desagradável e que tinha direito a contar com sua colaboração. Não obstante, lamentou estar
tão
assustada. Esperava sentir certa ansiedade, mas não aquele acesso de humilhante pânico. Conseguiu dominá-lo, mas foi consciente de que Grogan, experiente como era,
tinha-o detectado e lhe tinha sentado mau.
Escutou-a em silêncio enquanto relatava, em resposta a sua solicitude, a seqüência de acontecimentos que tinham meio entre a chegada de sir George ao Kingly
Street e seu descobrimento do cadáver da Clarissa. Tinha-lhe entregue a série de mensagens, que agora estavam esparramados sobre o escritório. de vez em quando,
à medida que a voz da Cordelia subia e baixava, Grogan os trocava de sítio como se procurasse uma pauta significativa. Cordelia se alegrou de não estar conectada
a
um detector de mentiras. Sem dúvida alguma a agulha teria saltado cada vez que se aproximava daqueles momentos em que, sem dizer nenhuma falsidade manifesta, omitia
com toda deliberação quão feitos tinha decidido manter em reserva: a morte da filha do Tolly, a revelação da Clarissa na Caldeira do Diabo, faltada-a
petição de dinheiro por parte de Roma. Cordelia não tentou justificar essas supressões fingindo ante si mesmo que não lhe interessariam. Naquele momento estava
muito cansada para decidir a respeito da moralidade de sua atitude. Só sabia que nem sequer evocando o rosto esmagado da Clarissa tiraria luz certas questões.
Grogan lhe fez repetir o relato uma e outra vez, pressionando-a especialmente com respeito às portas do dormitório. Estava absolutamente segura de ter ouvido
que Clarissa jogava a chave? Como podia estar tão certa de ter fechado com chave sua própria quarto? Em alguns momentos, Cordelia se perguntou se o homem tentava
confundi-la deliberadamente, à maneira de um advogado defensor que simula ser obtuso, que aparenta não ter compreendido bem. Cordelia foi progressivamente mais consciente
de sua própria fadiga, da manaza do Grogan apoiada no abajur do escritório, do pêlo vermelho que brilhava em seus dedos, do suave rangido das páginas quando
o sargento Buckley as voltava. Devia ter falado bastante mais de uma hora quando Grogan concluiu o prolongado interrogatório e ambos guardaram silêncio. Logo
o homem disse a bocajarro, como se despertasse de seu aborrecimento:.
-Assim que você se chama a si mesmo detetive, senhorita Gray?.
-Eu não me chamo nada mesma. Sou proprietária de uma agência de detetives e a dirijo.
-Correta distinção. Mas agora não temos tempo de nos deter nisso. Há-me dito você que sir George Ralston a contratou como detetive. Por isso estava aqui
com sua esposa quando esta morreu. O que lhe parece se me diz o que tem descoberto até agora?.
-Empregou-me para que protegesse a sua esposa e eu deixei que a matassem.
-Esclareçamos isto. Quer dizer que esteve presente e permitiu que alguém a matasse?.
-Não.
-Ou que a matou você?.
-Não.
-Ou que estimulou, ajudou ou pagou a alguém para que a matasse?.
-Não.
-Então deixe de compadecer-se de si mesmo. Provavelmente você não acreditou que corresse verdadeiro perigo. Tampouco seu marido. Evidentemente, tampouco acreditou
assim a
polícia metropolitana.
-Pensei que podiam ter suas razões para ser céticos -disse Cordelia.
de repente os olhos do Grogan se voltaram penetrantes:.
--Me ocorreu que possivelmente a senhorita Lisle se enviou a si mesmo uma das notas, a que foi datilografada na máquina de escrever do marido. Nesses
dias ele estava nos Estados Unidos e não podia haver a enviado.
-E por que teria feito isso a senhorita Lisle?.
-Com o propósito de eximir a sir George. Acredito que temia que a polícia suspeitasse dele. Acaso não revistam pensar no marido em primeiro lugar? Clarissa desejava
deixar bem sentado que ele estava fora de toda suspeita, possivelmente porque não queria que a polícia perdesse o tempo com ele, possivelmente porque sabia que ele
não era culpado.
Penso que a polícia metropolitana pode ter suspeitado que ela mesma se enviou a mensagem.
-Fizeram algo mais que suspeitá-lo -explicou Grogan-. Analisaram a saliva da lapela do sobre. A secreção correspondia a alguém do mesmo grupo sangüíneo que
a senhorita Lisle e esse grupo é muito estranho. Pediram-lhe que datilografasse uma nota inofensiva, uma mensagem que continha algumas letras dispostas na mesma
ordem
que a entrevista. Com essas provas insinuaram, diplomáticamente, que ela podia ter enviado a nota. Negou-o. Mas não se pode esperar que depois disso se tomassem
muito a sério as ameaças.
Então tinha acertado: Clarissa se tinha versado a si mesmo aquela mensagem. Mas podia estar equivocada quanto aos motivos. Ao fim e ao cabo o tinha feito
chapuceramente e com toda probabilidade não tinha deixado fora de suspeita a sir George. Em troca tinha conseguido que a polícia não se tomasse mais interesse pelo
que debia de considerar a travessura de uma mulher, provavelmente neurótica, que queria chamar a atenção. E isso teria servido de maravilha ao verdadeiro culpado.
Alguém lhe teria sugerido a Clarissa que se enviasse aquela nota a si mesmo? Tinha sido a única de que era autora? A sucessão de mensagens, não seria uma elaborada
cumplicidade entre ela mesma e outra pessoa? Mas Cordelia rechaçou essa hipótese logo que concebê-la. De algo estava segura: Clarissa temia a chegada das mensagens.
Nenhuma atriz podia ter fingido esse temor. Estava convencida de que morreria. E tinha morrido.
Cordelia se deu conta de que os dois homens a observavam atentamente. Habia permanecido em silêncio, com as mãos cruzadas sobre o regaço e os oios baixos,
sumida em seus pensamentos. Aguardou a que eles rompessem o silêncio, e quando o inspetor falou, Cordelia acreditou detectar em sua voz um tom distinto, que podia
ser de respeito.
-Deduziu algo mais sobre essas notas?.
-Pensei que podian ter sido enviadas por pessoas diferentes, além da senhorita Lisle, refiro-me. Não vi a primeira meia dúzia que recebeu. Crei possível que
fossem distintas das últimas. Por outro lado, a maioria das que li, as que lhe entreguei, podem encontrar-se no "Dicionário Penguin de Entrevistas". Acredito
que quem as datilografou tênia o livro diante ao as copiar.
-Em distintas máquinas de escrever?.
-Isso não é difícil. Não são máquinas novas e as marcas são diferentes. Em Londres e nos subúrbios existem numerosas lojas que vendem máquinas novas e reajustadas,
e deixam uma ou dois para que o público as prove. Seria quase impossível rastrear uma máquina se alguém fosse de loja em loja e datilografasse umas poucas linhas
em cada uma.
-E quem sugere você que o fez?.
-Ignoro-o.
-E o que me diz do correspondente anônimo inicial, que poderíamos dizer, concebeu a brilhante ideia?.
-Tampouco conheço a resposta.
Cordelia não pensava chegar mais longe. Havia-lhes dito bastante, talvez muito. Se necessitavam móveis que os descobrissem por sua conta. E existia um motivo
para as ameaçadoras mensagens, que jamais divulgaria. Se Ivo Whittingham tinha guardado o segredo sobre a tragédia do Tolly, ela seguiria seus passos.
Então voltou a falar Grogan, inclinado sobre o escritório de modo que seu poderoso corpo e a potente voz rouca surgissem para ela, evidentes como uma força.
-Ponhamos algo em claro. Golpearam à senhorita Lisle até matá-la. Você sabe o que lhe ocorreu. Viu o cadáver. Agora bem, possivelmente não tenha sido uma mulher
boa nem
agradável, mas isso não tem nada que ver. Tinha tanto direito a viver sua vida como você, ou como eu, ou como qualquer criatura deste mundo.
-Naturalmente. Não vejo a necessidade de dizê-lo.
por que sua voz soou tão débil, quase quejumbrosa?.
-Surpreenderia-lhe tudo o que é necessário dizer na investigação de um homicídio. O sindicato dos vivos é a associação de amparo mútuo mais poderoso
do mundo. Você está pensando nos vivos, é aos vivos a quem quer proteger, a você mesma sobre tudo, é obvio. Meu trabalho consiste em pensar nela.
-Não posso lhe devolver a vida. -As palavras saíram disparadas de sua garganta e caíram em toda sua deplorável vulgaridade.
-Não, mas pode evitar que outro siga o mesmo caminho. Ninguém é mais perigoso que um assassino que obtém seu objetivo. Permito-me insistir nesses tópicos porque
quero
que entenda bem uma coisa: é possível que você seja mais lista do que convém, senhorita Gray. Você não está aqui para resolver este caso. Essa é minha tarefa. Não
está aqui para proteger aos vivos. Deixe isso em mãos de seus advogados. Nem sequer está aqui para proteger aos mortos. Eles estão muito longe de necessitar seu
condescendência. "On doit dê égards aux vivants; on NE doit aux morts que a vérité". Você é uma jovem culta e compreende o que significa isso.
-"Devemos respeito aos vivos; aos mortos só devemos a verdade". Voltaire, verdade? Embora me ensinaram isso com outra pronúncia. -Assim que disse
essas palavras se envergonhou.
Mas para surpresa da Cordelia, a resposta do Grogan foi uma sonora gargalhada:.
-Não me cabe a menor duvida, senhorita Gray. Eu aprendi o francês por minha conta, com um manual e uma chave fonética. Mas medite-o. Não existe melhor consigna para
um
detetive, e nessa categoria incluo as detetives privadas a quem gostaria de ajudar à polícia mas são capazes de mentir sem remorsos. Isso não
é possível, senhorita Gray. Não o é. -Cordelia não respondeu. depois de uma breve pausa, Grogan adicionou-: O que me surpreende um pouco, senhorita Gray, é o muito
que observou, e com quanto detalhe, quando descobriu o cadáver. A maioria das pessoas, e não só uma moça, teriam se sentido conmocionadas.
Cordelia pensou que o homem tinha direito a conhecer a verdade, ou ao menos até o ponto em que ela mesma a compreendesse.
-Sei, e eu também me surpreendi. Acredito saber o que ocorreu. Foi que não suportava sentir muitas emoções. Era algo tão horrível, que parecia irreal. Meu intelecto
tomou tudo a seu cargo e o converteu em uma espécie de quebra-cabeças detectivesco porque me teria resultado insuportável se não me tivesse concentrado em me isolar
do horror examinando a habitação, notando pequenezes, como a mancha de lápis labial na taça. Possivelmente seja isso o que sentem os médicos no cenário de um
acidente. Alguém tem que concentrar-se em procedimentos e técnicas, porque do contrário poderia compreender que o que jaz alli é um ser humano.
-Assim é como um policial se acostuma a si mesmo a comportar-se ante um acidente -interveio o sargento Buckley-. Ou ante um assassinato.
Sem apartar os olhos da Cordelia, Grogan disse:.
-Então o considera verossímil, sargento?.
-Sim, senhor.
O medo agudiza a percepção e também os sentidos. Observando a agraciada e mas bem pesada cara do sargento Buckley, seu mesurada sorriso de suficiência, Cordelia
duvidou de que nunca em sua vida tivesse necessitado aquele homem apelar a esse instaure contra a dor, e se perguntou se estaria tentando pôr de seu manifesto
capacidade de compreensão ou se estava em conivência com seu superior para levar a cabo um interrogatório preestabelecido.
-E o que deduziu exatamente sua inteligência quando tão oportunamente se fez cargo de todas suas emoções? -perguntou o inspetor.
-O óbvio: que as cortinas habian sido jogadas embora não estavam assim quando saí, que faltava o joalheiro, que tinham bebido o chá. Pareceu-me estranho que a senhorita
Lisle se tivesse tirado a maquiagem e que houvesse uma mancha de carmim na taça. Isso me surpreendeu. Acredito que tem..., que tinha lábios sensíveis e usava um
carmim cremoso que se corre um pouco. Então por que não lhe correu enquanto almoçava? A parte superior da mesita estava cheia de bolas de algodão sujas.
Notei que não havia tanto sangue como cabe esperar de uma ferida na cabeça. Pareceu-me possível que a tivessem matado com outra maneira e que as lesões na cara
tivessem-nas provocado com posterioridad. Deixaram-me perplexas os discos sobre os olhos. Têm-nos que ter posto em seu lugar depois da morte. Quero dizer
que é impossível que tenham permanecido tão bem colocados enquanto lhe destruíam o rosto.
produziu-se um prolongado silêncio. Logo Grogan afirmou com voz inexpressiva.
-Está sentada do lado do escritório que não lhe corresponde, senhorita Gray.
Cordelia esperou um instante e declarou, com a esperança de não estar fazendo mais mal que bem.
-Devo lhe dizer algo mais. Sei que sir George não pode ter matado a sua mulher. De qualquer modo, estou segura de que você não suspeitaria dele, mas há algo que
deve saber. Quando entrou no dormitório e resmunguei quanto o sentia, olhou-me com uma espécie de assombrado horror. Compreendi que por um momento pensou que eu
a havia
matado e que o estava confessando.
-E não era assim?.
-Não com respeito ao crime. Só em relação com o fracasso da missão que me encomendou.
O inspetor Grogan voltou a trocar de tática.
-Voltemos para sexta-feira de noite, quando você estava com a senhorita Lisle em seu dormitório e lhe mostrou a gaveta secreta de seu joalheiro. A crítica da representação
do Rettigan. você tem a certeza de que não era outra coisa?.
-Absolutamente.
-Não era um documento nenhuma carta.
-Era um recorte de periódico, e li o titular.
-E em nenhum momento seu cliente, recordo-lhe que era seu cliente, deu a menor indicação de saber ou suspeitar quem a ameaçava?.
-Não, nunca.
-E pelo que você sabe, não tinha inimigos ..... .
-Não mencionou nenhum.
-E você mesma não pode arrojar nenhuma luz sobre quem a matou e por que?.
-Não.
Isto deve ser igual a estar no banquinho dos acusados, pensou Cordelia: as perguntas medidas, as respostas mais prudentes ainda, o anseia de largar-se.
-Obrigado, senhorita Gray -concluiu Grogan-. foi muito útil. Não tanto como eu esperava, mas, de todos os modos, útil. Ainda é muito logo. Voltaremos a falar.
***********
26.
Quando Cordelia saiu e fechou a porta, Grogan se arrellanó na cadeira e disse:.
-O que pensa dela?.
Buckley vacilou, pois não estava seguro de se seu chefe queria uma avaliação da última entrevistada como mulher ou como suspeita. Logo disse cautamente:.
-É atrativa. Com algo felino. -Como suas palavras não provocaram uma resposta imediata, adicionou-: Digna e segura de si mesmo.
sentiu-se bastante agradado com sua própria descrição: evidenciava certa inteligência e não o comprometia a nada. Grogan começou a rabiscar na folha em branco
que tinha diante um complicado desenho de triângulos, quadrados e círculos precisamente entrelaçados que se estenderam na página lhe recordando ao Buckley os mais
confusos problemas escolar de geometria. Resultou-lhe difícil não fixar obsessivamente a vista em triângulos isósceles e bissetrizes.
-Acredita que o fez ela, senhor? -perguntou.
Então Grogan começou a engrossar os perímetros:.
-Se o fez, foi durante esses cinqüenta e cinco minutos e pico em que afirma ter tomado o sol no degrau inferior da terraço, convenientemente longe de
a vista e o ouvido de outros, Teve o tempo e a oportunidade. Só contamos com sua palavra no sentido de que fechou com chave a porta de seu dormitório e
que a senhorita Lisle fez o mesmo com sua porta. E inclusive embora ambas as portas, além da comunicação, estivessem fechadas, provavelmente Gray era a única
pessoa a que Clarissa Lisle teria permitido a entrada. Cordelia Gray sabia onde se encontrava o mármore. Estava levantada esta manhã quando Gorringe descobriu
que faltava. Em seu dormitório tem um armário com chave no que poderia havê-lo
oculto. Sabemos que a última mensagem, quão mesmo o que se fez no dorso da gravura em madeira, foi datilografado na máquina do Gorringe. Gray sabe escrever
a máquina e teve acesso ao despacho. É inteligente e não perde a cabeça nem sequer quando a aguilhôo para que a perca. Se teve algo que ver nisto, a meu
julgamento foi como cúmplice do Ralston. A explícación que nos deu este sobre seus motivos para me contratá-la pareceu artificial. Notou que ela e Raiston deram
versões
quase idênticas da visita do homem ao Kingly Street e o que cada um deles disse? Tudo tão perfeito como se o tivessem ensaiado. Provavelmente assim foi.
Mas Buckley expôs uma objeção em voz alta:.
-Sir George foi militar. Está acostumado a expressar as coisas metodicamente. Ela, por sua parte, tem boa memória, sobre tudo para os acontecimentos importantes.
E essa visita foi importante para o Gray. Provavelmente Ralston lhe pagou bem, e além disso podia recomendá-la a outras pessoas. O fato de que seus relatos sejam
quase idênticos
é tão indicativo de culpa como de inocência.
-Segundo os dois, era a primeira vez que se viam. Se forem cúmplices tinham que conhecer-se de antes. Mas o que possa haver entre eles, não será muito difícil de
averiguar.
-Não imagino como casal. Quero dizer que é muito difícil ver o que têm em comum.
-A política mais que a cama, suponho. Embora quando se trata do sexo, nada é muito extravagante para descartá-lo.     Embora o trabalho policial não
ensine outra coisa, isso se aprende. Gray poderia haver-se encaprichado chegando a ser lady Ralston. Deve haver formas mais fáceis de conseguir dinheiro que dirigindo
uma agência de detetives. E recorde que Ralston terá dinheiro. o de sua esposa, concretamente. Não acredito que chegue a fora de tempo. Sir George deve estar gastando
uma dinheirama em sua organização.... a U.P.B. ou como se chamo. Um assunto estranho, se você quiser. Suponho que me dirá que é uma força de aficionados, treinada
e disposta a apoiar ao poder civil em uma emergência; mas não é isso o que faz o general Walker? Então, no que andam colocados exatamente George Ralston
e seus vetustos conspiradores?.
Como Buckley não conhecia a resposta e em realidade logo que tinha ouvido falar da União de Patriotas Britânicos, optou por guardar silêncio a respeito e, em troca,
perguntou:.
-Acreditou no Gray quando disse que sir Geotge pensou que ela estava confessando?.
-O que a senhorita Gray acreditou ver na expressão de sir George não é uma prova. E não me cabe a menor duvida de que se assombrou se acreditava ouvi-la confessar
um crime
que tinha cometido ele mesmo.
Buckley pensou na moça que acabava de deixá-los; voltou a ver o rosto amável e aberto, os ojazos resolvidos, as delicadas mãos unidas sobre seu regaço,
como as de uma menina. Ocultava algo, é obvio, mas acaso não faziam todos o mesmo? Isso não a convertia em uma assassina. Por outro lado, a idéia de um conluio
entre ela e Ralston lhe parecia grotesca e repugnante. Talvez o chefe tinha alcançado a idade em que precisava começar a acreditar a velha e lastimosa mentira com
que se enganam a si mesmos os homens amadurecidos e os anciões: que as jovens os encontram fisicamente atrativos. O que podem fazer os velhos machos caibros,
disse-se a si mesmo, é comprar juventude e prazer sexual com dinheiro, poder e prestígio. Mas não acreditava que sir George Ralston estuvíese nesse mercado nem que
Cordelia
Gray pudesse comprar. Disse em tom impassível:.
-Não me ímagíno à senhorita Gray como assassina.
-Asseguro-lhe que exige um esforço de imaginação. Embora provavelmente isso era o que pensava o senhor Blandy da senhorita Blandy. 0 L'Angelier do Madeleine Smith,
se a isso vamos, antes de que lhe enviasse tão pouco amavelmente seu cacau e o arsênico pelo elevador de serviço.
-Nesse caso não se desistiu a causa por falta de provas, senhor?.
-Um pusilânime jurado do Glasgow que teria que ter sabido como eram as coisas e que provavelmente sabia. Mas nos estamos antecipando aos fatos. Necessitamos
o resultado da autópsia e temos que saber o que havia, se é que havia algo, no chá. Provavelmente o doutor Ellis-Jones a tenderá amanhã sobre a laje, seja
ou não domingo. Uma vez que ponha mãos à obra, será rápido na carniceria. Ao menos isso devo reconhecer-lhe Podemos obtener alguna pista de la autopsia, por supuesto.
Entretanto seguiremos con Londres. ¿Hasta qué punto se conocía esta gente entre sí antes de llegar a la
-Quanto tempo se tomará o laboratório, senhor?.
-Só Deus sabe. Tudo seria distinto se tivéssemos idéia do que é o que estamos procurando. Não existe um número ilimitado de drogas capazes de anular ou matar em
breve prazo e sem deixar rastros evidentes no organismo. Mas há suficientes para mantê-los ocupados uns quantos dias, se é que não há outros casos pendentes.
Podemos obter alguma pista da autópsia, é obvio. Enquanto isso seguiremos com Londres. até que ponto se conhecia esta gente entre si antes de chegar à
ilha para passar o fim de semana? O que sabe a Metropolitana da Cordelia Gray e sua agência? O que sentia realmente Simon Lessing por sua benfeitora, e como morreu,
exatamente, seu pai? A senhorita Tolgarth é a devota ajuda de camara e servidora da família que nos apresenta? Quanto investe sir George em seus soldaditos
de brinquedo? Quanto receberá exatamente Roma Lisle segundo o testamento, e com quanta urgência o necessita? Isso é tudo, para começar.
E nada de todo isso, pensou Buckley, encaixava no tipo de informação que a gente corre a te contar, sorridente. Significava que terei que falar com diretores
de banco, advogados, amigos, conhecidos e colegas dos suspeitos, a maioria dos quais saberiam até onde deviam chegar. Em teoria todo mundo quer que
descubram aos assassinos, assim como em teoria todo mundo aprova as residências para doentes mentais da comunidade, sempre que não as construam detrás de
seu jardim. Seria mais singelo para a polícia e tranqüilizador para os hóspedes do castelo que achassem a essas convenientes trombadinhas escondidas e amedrontados
em algum lugar da ilha. Mas não acreditava que existissem e suspeitava que ninguém acreditava. Ao mesmo tempo, seria um desenlace insípido e decepcionante. Que glória
havia em apanhar a um par de aterrados vândalos aldeãos que tinham matado por impulso e que nem sequer teriam guelra para manter a boca fechada até receber
uma citação? Mas ali havia uma inteligência em ação. O caso era exatamente o tipo de desafio com o que gozava Buckley e que o trabalho policial estranha vez
proporcionava.
-Fez. Há hipóteses. Há crenças. Aprenda a diferenciá-los, sargento. Todos os seres humanos morrem: é um fato. A morte pode não ser o fim: é
uma hipótese. Os mortos se vão recue-o: é uma crença. Lisle foi asesínada: é um fato. Recebia comunicações anônimas. Feito: outras pessoas estavam pressentem
quando chegavam. Ameaçavam sua vida: é uma hipótese. É muito mais provável que procurassem danificar sua carreira de atriz. Aterravam-na: hipótese. Isso é o que
disse-nos seu marido e o que lhe disse à senhorita Gray. Mas recorde que era atriz. O que ocorre com as atrizes é que atuam. Suponhamos por um momento
que ela e seu marido forjaram a totalidade do plano: as mensagens ameaçadoras, o terror e o perigo aparente, o ataque de nervos em metade de uma obra, a contratação
de uma detetive privada, tudo.
-Não entendo para que, senhor.
-Tampouco eu, ainda. Uma atriz se humilharia por vontade própria no cenário? Quem pode sabê-lo? Para mim os atores pertencem a uma raça estranha.
-Se sabia que estava acabada como atriz, ela e seu marido poderiam ter tramado o das mensagens com o propósito de ter uma desculpa pública para o fracasso.
-Excessivamente engenhoso e desnecessário. por que não fingir que sua saúde estava falhando? Além disso, não deu publicidade às mensagens. Pelo contrário, parece
haver-se
tomado o trabalho de evitar que a notícia se difundisse. Pode uma atriz permitir que seu público saiba que alguém a odeia tanto?Não se consomem por que todo o
mundo as adore? Não, eu estava pensando em um pouco mais sutil. De algum modo, Ralston a persuade de que dissimule que sua esta vida ameaçada e logo o arbusto havendo-a
miserável, por assim dizê-lo, a tramar sua própria morte.  Vá se seria engenhoso! Muito talvez.
-Mas, para que correr o risco de fazer intervir à senhorita Gray?.
-Que riesgo?Ella não podia descobrir que as cartas eram falsas, ao menos durante um breve fim de semana. Muito breve, no que à senhorita Lisle se refere. Empregar
ao Gray era o toque artístico de todo o plano.
-Ainda acredito que sir George teria deslocado um risco.
-Diz isso porque entrevistamos a muchaha. É inteligente e conhece seu trabalho. Mas Ralston  ou sabia. Quem era ela, a fim de contas? A proprietária
de uma agência de detetives que só contava com uma mulher. depois de que Lisle a conheceu em casa de seu amiga,creo ... recordar que era a senhora Fortescue, provavelmente
sugeriu ao Ralston que a contratassem. Daí que não se incomodasse em entrevistá-la peronalmente. Para que, se tudo era um engano?.
-Seu hipóteiss é engenhosa, senhor, mas ainda falta saber por que teria aceito todo isso a senhorita Lisle. Que razão pode lhe haver dado Ralston para convencê-la
de que fingisse que sua vida estava ameaçada?.
-Tem razão, sargento. Ao igual à senhorita Gray, roda de pessoas o perigo de ser mais preparado do que me convém. Mas de algo estou seguro: o  homicida passou a
noite
baixo este teto. Tenho um grupo seleto de suspeitos. sir George Ralston, baronet, uma espécie de herói de guerra e menino mimado da direita geriátrica. Um distinto
crítico teatral do que até eu ouvi falar. Gravemente doente, ao que parece, o que significa que com toda probabilidade morrerá em minhas mãos sob o mais
delicado dos interrogatórios. Interrogatório. É estranho quanto desgosta essa palavra. Muitos ecos da Gestapo e do K.G.B., suponho. Um novelista com um
bestse ller em seu haver, que não só é o proprietário da ilha mas também é amigo dos Cottringham, quem tem influência sobre o governador, o chefe de
polícia, o membro do parlamento e qualquer que apesar no condado. Uma respeitável livreira e ex-professora, provavelmente membro da Associação pelos Direitos
Civis e de grupos feministas, que se queixará a seu deputado de perseguição policial se chegar a lhe levantar a voz. E um estudante ..., para cúmulo, sensível. Suponho
que
devo agradecer que não seja menor de idade.
-E um mordomo, senhor.
-Obrigado por me recordar isso sargento. Não devemos esquecer ao
mordomo, a quem considero uma ofensa gratuita por parte do destino. Então, demos uma pausa à burguesia e emprestemos ouvidos o Munter.
.
27.
Buckley notou irritado que Munter, convidado pelo Grogan a sentar-se, com o mero ato de apoiar sua nádegas na cadeira conseguiu sugerir que era impróprio que ele
se sentasse
no despacho e, ao mesmo tiernpo, que Grogan tinha cometido uma incorreção social ao lhe convidar a isso. Não recordava ter visto o homem no Speymouth, e seu
aspecto não era dos que passam inadvertidos. Ao observar o severo e lúgubre rosto do Munter, no que a inquietação adequada a sua situação presente estava notoriamente
ausente, sentiu-se inclinado a não acreditar uma só palavra do que dissesse. Pareceu-lhe suspeito que alguém queria voltar-se mais grotesco do que tinha disposto
a natureza, e se essa era a forma que Munter tinha de burlar-se da gente, faria melhor em não tentá-lo com a polícia. Basicamente acessível e ambicioso,
Buckley não experimentava nenhum ressentimento por quem era mais ricos que ele: sua intenção consistia, em última instância, em unir-se a eles. Mas desprezava
e desconfiava daqueles que escolhiam ganhá-la vida esforçando-se por agradar aos ricos, e suspeitava que Grogan compartilhava esse prejuízo. Observou-os a ambos
com olho crítico e cauteloso, e lamentou não tomar parte mais ativa no interrogatório. Nunca lhe tinha parecido mais restritiva e degradante a insistência de seu
chefe em que guardasse silêncio até que lhe convidasse a falar, e em que observasse atentamente e tomasse notas taquigráficas. Enfermizamente sensível a qualquer
matiz
de condescendência, sentiu que o olhar indiferente do Munter expressava surpresa por sua presença no castelo.
Grogan, sentado ante o escritório, apoiou-se na cadeira com tanta força que o respaldo rangeu; girou então para encarar ao Munter e estirou as pernas como se
queria afirmar seu direito a sentir-se tão cômodo como em sua casa.
-Que tal se começasse por nos dizer quem é, de onde vem, qual é exatamente o trabalho que realiza aqui?.
-Minhas obrigações nunca foram concretizadas com precisão, senhor. Esta não é uma casa corrente. Mas estou a cargo de todos os assuntos domésticos e dirijo aos
outros membros do pessoal, minha mulher e Oldfield, que é jardineiro, factótum e barqueiro. Se se necessitar pessoal extra, quando o senhor Gorringe dá  uma comida
ou
tem hóspedes, contrata-se temporalmente em terra firme. Eu me ocupo da prata, do vinho e de servir a mesa. Cozinhar é uma tarefa pelo general compartilhada.
Minha mulher é a confeiteira e em ocasiões cozinha pessoalmente o senhor Ambrose. adora preparar peças.
-Muito saborosos, sem dúvida. Quanto faz que forma parte desta casa pouco corrente?.
-Minha mulher e eu entramos em serviço do senhor Gorringe em julho de 1978, três meses depois de uma viagem ao estrangeiro. Em 1977 tinha herdado o castelo de seu
tio.
Possivelmente lhe interesse um breve "curriculum vitae". Nasci em Londres em 1940 e estudei nas escolas primária e secundária do Pimlico. Depois fiz um curso de
hotelaria
e durante sete anos trabalhei em hotéis nacionais e estrangeiros. Mas decidi que a vida dos estabIecimientos públicos não se adequava a meu temperamento e ngresé
no serviço privado, primeiro com um cavalheiro de negócios norte-americano que vivia em Londres e logo, quando retornei a minha terra, servi no Dorset, com sua senhoria,
no Bossington House. Estou seguro de que meus senhores anteriores darão minhas referências se for necessário.
-Sem dúvida. Se eu estivesse procurando um criado, acredito que você o faria muito bem. Mas consultarei uma fonte de caráter mais objetivo, o escritório de antecedentes
penais. Preocupa-lhe?.
-Ofende-me, senhor, não me preocupa.
Buckley se perguntou em que momento deixaria Grogan os circunlóquios para passar ao importante: o que tinha feito Munter entre o final do almoço e o momento
do descobrimento do cadáver? Se os preliminares tinham a intenção de provocar à testemunha, não deram no branco. Entretanto, Grogan conhecia seu trabalho, ou
ao menos isso pareciam pensar os da Metropolitana: tinha chegado ao Dorset rodeado de certa farna. de repente deixou de olhar fixamente ao Munter e seu tom se tornou
coloquial:.
-A representação se converteria em um acontecimento anual, verdade? Algo assim como um festival de teatro, possivelmente?.
-Não posso dizer-lhe O senhor Gorringe não me confiou seus projetos.
-Eu diria que uma vez era suficiente. Deveu significar muito trabalho suplementar para você e sua esposa.
A lenta e desaprobadora olhar do Munter ao redor do despacho foi um inventário das desagradáveis mudanças operadas: a leve reacomodación dos móveis; a
jaqueta do Buckley, pendurada do respaldo de sua cadeira; a bandeja do cafe com as duas taças sujas, rodeadas de migalhas de bolachas ao meio comer.
-Os inconvenientes domésticos ocasionados por lady Ralston viva
-respondeu o mordomo- eram insignificantes em comparação com os inconvenientes ocasionados por lady Ralston assassinada.
Grogan manteve a pluma diante de sua cara e escrutinou a ponta, movendo-a para trás, e para diante como se queria comprovar sua boa vista.
-Considerava-a uma convidada agradável, simpática, com a que era fácil combinar?.
-Nunca me fiz semelhante pergunta.
-Pois faça-lhe agora.
-Lady Ralston me parecia uma dama muito agradável.
-Nenhum problema? Nenhum desacordo? Nenhuma bronca que você recorde?.
-Nada disso, senhor. Uma grande perda para o teatro inglês. -Fez uma pausa e adicionou com cara inexpressiva-: E para sir George Ralston, naturalmente.
Era impossível saber se a declaração era irônica, mas Buckley se perguntou se também Grogan tinha captado o evidente toque de desdém. Grogan se balançou no
assento, com as piemas estiradas, e cravou um olhar analítico em sua testemunha. Munter fixou a vista ante si com aspecto de paciente resignação e, depois de um
minuto de silêncio, permitiu-se jogar uma olhada a seu relógio.
-Muito bem! Adiante. Já sabe o que queremos: uma relação completa de onde esteve, o que fez e a quem viu entre a uma da tarde, quando concluiu o almoço,
e as duas e quarenta e três, momento em que a senhorita Gray descobriu o cadáver.
Segundo seu relato, Munter tinha passado todo o tempo na pIanta baixa do castelo, movendo-se principalmente entre o comilão, sua despensa e o teatro. Como havia
estado constantemente ocupado com os preparativos para a obra e o jantar, resultava-lhe impossível dizer onde ou com quem tinha estado em um momento determinado,
embora não crría ter estado sozinho mais de uns minutos em todo esse tempo. Com voz que não refletia o menor pesar, disse que lamentava imensamente não poder ser
mais preciso mas que não podia saber, é obvio, que com posterioridad lhe pediriam uma narração tão detalhada de todos seus movimentos. Primeiro tinha ajudado
a sua mulher a limpar e guardar as coisas utilizadas durante o almoço, e logo tinha ido inspecionar os vinhos. Deveu atender três chamadas telefônicas,
uma de um convidado ao que um mal-estar lhe impedia de assistir à representação, outra de alguém que perguntava a que hora sairia a lancha do Speymouth, e a última
do ama de chaves de lady Cottringham, que queria saber se necessitavam mais taças. Estava ordenando o vestuário dos homens quando
apareceu sua mulher entre decorações para lhe pedir que olhasse uma das enormes bules, pois lhe parecia que não funcionava. Era uma desgraça ter que alugar bules;
ao senhor Gorringe lhe desgostava profundamente e se queixava de que davam a grande sala o aspecto de um salão de reuniões do Instituto Feminino, mas com um público
composto por oitenta pessoas, sem contar aos membros da companhia, seu uso era indispensável.
Em algum momento, não sabia exatamente quando, recordou que o senhor Gorringe lhe tinha pedido que procurasse outra caixa de música para o terceiro ato, porque a
senhorita
Lisle tinha expresso sua insatisfação com a apresentada no ensaio geral. Tinha entrado em procurá-la naquele mesmo despacho, no "chiffonnier" de nogueira. Em
esse momento dirigiu o olhar ao que Buckley pensou agriamente que muito bem podia chamar-se aparador. Sua tia Sadie tinha um muito parecido, não tão delicadamente
trabalhado
nas portas e nos borde das prateleiras, mas virtualmente idêntico. Tia Sadie afirmava que levava gerações na família; tinha-o no recíbidor
interior e o chamava aparador. Usava-o para as ninharias que seus filhos lhe levavam quando saíam de férias, lembranças baratas da Costa del Sol, de Malte
e agora de Miami. Teria que lhe informar que o que tinha era um "chiffonnier", e lhe responderia que isso parecia o nome de um puñetero gelado.
Voltou a página da caderneta. Resignada-a voz do Munter seguiu zumbindo. Tinha levado a teatro a segunda caixa de música e a tinha deixado junto à primeira,
sobre a dos acessórios. Pouco depois, como muito às dois e quinze, tinha aparecido o senhor Gorringe e juntos tinham revisado o objeto de cenário. Então chegou a
hora de ir ao mole para receber à lancha que transladava ao resto dos atores desde o Speymouth. Acompanhou ao senhor Gorringe e ajudou  no desembarque. Logo
ambos acompanharam aos cavalheiros aos vestuários, enquanto sua esposa e a senhorita Tolgarth se ocupavam das senhoras. Permaneceu uns dez minutos atrás do
cenário e logo foi a sua despensa, onde a senhora Chambers e sua neta
abrilhantavam IA cristalería. Arreganhou à garota, Debbie, por causa de uma taça manchada, e deu ordem de que voltassem a lavar toda a cristalería. Depois foi ao
comilão,
com o propósito de recolher as cadeiras para o jantar, que se celebraria na grande sala, Ali se encontrava quando o senhor Gorringe apareceu a cabeça e o
informou da morte da senhorita Lisle.
Grogan permaneceu com a cabeça encurvada, como se lhe custasse assimilar o sucinto relato. Um instante depois disse, em voz baixa:.
-Você é incondicionalmente leal ao senhor Gorringe, é obvio.
-claro que sim, senhor. Quando o senhor Gorringe me deu a
notícia, disse-lhe: Em nossa casa?.
-Muito shakespeariano. Um toque Macbeth. O senhor Gorrin-
g lhe respondeu: "Algo atroz em qualquer casa"?.
-Podia havê-lo feito, senhor, mas em realidade me pediu que fora ao mole e impedisse que desembarcassem os convidados. Ele me seguiria o antes possível e expor
as lamentáveis circunstâncias que impunham cancelar a função.
-As lanchas já estavam no mole?.
-Ainda não. Calculei que se encontravam a três quartos de milha de alí.
-Quer dizer, que não havia nenhuma pressa?.
-Era algo que não podia deixar-se ao azar. O senhor Gorringe
não queria que a investigação policial se visse obstaculizada pela presença na ilha de outras oitenta pessoas em estado de
confusão ou de angústia.
-Em estado de gozosa excitação, mais provavelmente -comentou Grogan-. Nada como um bom crime como sensação
emocionante. 0 não sabia?.
-Não sabia, senhor.
-Foi muito considerado por parte de seu amo.... suponho que assim lhe chama você, pensar em primeiro lugar nos interesses da polícia. Uma atitude digna de elogio.
Sabe que fazia o senhor Gorringe enquanto você perdia certa quantidade de tempo no mole?.
-Suponho que telefonou à polícia e pôs à corrente a seus convidados e aos atores sobre a morte de lady Ralston. Não  me cabe a menor duvida de que lhe informará
se o pergunta.
-E como, exatamente como pôs a você à corrente
da morte de lady Ralston?.
-Disse-me que a tinham matado a golpes. Deu-me instruções de que informasse aos convidados, quando chegassem, de que tinha sido de um golpe na cabeça: não havia
por que atormentá-los innecesariamente. Tal como ocorreram as coisas, não tive que lhes informar de nada, pois o senhor Gorringe estava a meu lado quando chegaram
as
lanchas.
-Um golpe na cabeça. Viu você o cadáver?.
-Não. O senhor Gorringe fechou com chave o dormitório de lady
Ralston depois de que encontrasse o cadáver. Nenhum membro do  pessoal teve ocasião de vê-lo.
-Mas sem dúvida você se formou uma opinião sobre
a forma em que lhe infligiram esse golpe na cabeça. Suponho que se permitiu elaborar alguma hipótese, que experimentou uma curiosidade natural... Possivelmente chegou
inclusive
a discuti-lo com sua esposa.
-Me ocorreu pensar que possivelmente o fato estava relacionado com o desaparecimento do braço de mármore. O senhor Gortringe lhe terá informado que a vitrine foi
forçada
a primeira hora desta manhã.
-Então nos diga o que saiba a respeito.
-O objeto foi gasto ao castelo pelo senhor Gorringe a sua volta de Londres na quinta-feira de noite. Ele mesmo o guardou na vitrine. Esta se mantém fechada
com chave porque nos meses do verão o castelo recebe visitantes, em datas que se anunciam adiantado, e a companhia asseguradora do senhor Gorringe há
insistido em que se tomem certas medidas de segurança. O senhor Gorringe colocou petsonalmente o braço em seu sítio, em minha presença, e mantivemos uma breve conversação
sobre sua possível procedência. Depois fechou a vitrine. As chaves das vitrines expositoras não se guardam no tabuleiro, junto com as da casa, a não ser no
gaveta inferior esquerda do escritório ante o qual está você sentado. A vitrine estava intacta e o braço de mármore em seu lugar quando a inspecionei, pouco
depois de meia-noite. O senhor Gorringe a encontrou em seu estado atual quando se dirigia à cozinha antes das sete. É muito madrugador e prefere preparar-se
o chá da manhã; está acostumado a levar a bandeja a terraço ou à biblioteca, segundo o estado do tíempo. Examinamos juntos os danos.
-Você não viu ninguém, não ouviu nada?.
-Não, senhor. Estava ocupado na cozinha, preparando as bandejas.
-E encontrou a todos quando subiu as bandejas?.
-A todos os cavalheiros. Minha esposa me há dito que as senhoras também estavam deitadas. A bandeja de lady Ralston a subiu mais tarde sua garçonete, a senhorita
Tolgarth. Aproximadamente às sete e meia entrou o senhor Gorringe para me dizer que acabava de chegar sir George inesperadamente, que uma barco pesqueira o havia
deixado na pequena baía, ao oeste do cabo. Eu não o vi até que deixei o café da manhã no calientaplatos do quarto de cafés da manhã, às oito em ponto.
-Mas, você crie que qualquer poderia ter penetrado na casa depois das seis e cinco, quando você abriu as portas do castelo?.
-A porta traseira, que leva a grande sala, foi aberta por mim às seis e quinze. Nesse momento olhei para o jardim e o atalho que leva a praia e ao
caminho costeiro. Não vi ninguém. Mas qualquer poderia ter entrado e forçado essa fechadura entre as seis e quinze e as sete.
O resto da entrevista não deu frutos. Munter pareceu arrepender-se de sua loquacidade e abreviou suas respostas. Ignorava que lady Ralston estivesse recebendo mensagens
anônimos e não podia fazer nenhuma sugestão quanto a sua origem. Quando lhe mostraram uma das mensagens toqueteó o papel com certa repugnância e disse que era
do mesmo tipo que o que compravam normalmente ele e sua esposa, embora em cor nata e não branco. O papel de cartas do castelo levava os gestos gravados e era
de distinta qualidade, como podia verificar o senhor inspetor abrindo a gaveta superiora esquerda do escritório. Não sabia que o senhor Gorringe tivesse agradável
a lady Ralston um de seus cofres vitorianos, nem lhe haviam dito que faltava de seu lugar. Entretanto, podia descrevê-lo, pois no castelo só existiam dois.
Tinha-o feito um ourives do Hunt & Rosken em 1850 e conforme diziam figurou entre as peças exibidas na Grande Exposição de 1851. Tinham pensado usá-lo como acessório
no terceiro ato, mas finalmente a eleição recaiu no joalheiro maior e menos valioso, embora mais vistoso.
Grogan enrugou a frente, irritado ante tal desdobramento de dados alheios ao tema.
-Aqui se cometeu um crime, um sanguinário crime contra uma mulher indefesa -disse-. Se você souber algo, se suspeita algo, se mais tarde lhe ocorre qualquer
coisa que tenha que ver com este assassinato, espero que me faça saber isso. A polícia está aqui e aqui ficará. Possivelmente não estejamos fisicamente presentes
em todo momento,
mas nos encontraremos nos arredores; ocuparemo-nos desta ilha, ocuparemo-nos de tudo o que ocorra aqui, o que significa que nos ocuparemos de você até
que o assassino seja entregue à justiça. fui o suficientemente claro?.
Munter ficou em pé. Seu rosto seguia impertérrito quando disse:.
-Perfeitamente claro, senhor. me permita lhe dizer que Courcy Island está acostumada aos crímenes e que normalmente os assassinos não foram entregues à justiça.
Possivelmente você e seus colegas tenham melhor sorte.
Quando partiu, produziu-se um prolongado silêncio. Buckley sabia que não devia interrompê-lo.
-Pensa que o fez o marido, ou quer que nós pensemos que o fez o marido -disse Grogan um momento depois-. Não deu provas de originalidade. É o que
estamos obrigados a pensar, de qualquer maneira. Conhece o caso Wallace?.
-Não, senhor.
Buckley se disse que se tinha que continuar trabalhando com o Grogan, convinha-lhe conseguir um exemplar do "Quem é quem dos assassinos".
-Liverpool, janeiro de 1931. Wallace, William Herbert. Inofensivo agente de seguros trota de porta em porta arrecadando uns peniques semanais em casa de pobres
diabos morto de medos ao pensar que não poderão pagar seus próprios funerais. Aficionado ao xadrez e o violino. Casado um pouco por cima de seus meios. Ele e seu
algema Julia viviam em fina pobreza, que é a pior pobreza de todas, se por acaso não sabia, separado-se do mundo. Em 19 de janeiro, enquanto ele procurava o domicílio
de
um cliente em florações, que podia existir ou não, a Julia golpeiam grosseiramente a cabeça no salão de sua casa. Wallace foi processado por homicídio, e um resolvido
jurado do Liverpool, que provavelmente não foi de tudo imparcial, declarou-o culpado. Posteriormente o tribunal de apelações passou à história jurídica anulando
a sentença em razão de que era arriscado condená-lo ante a insuficiência de provas. Soltaram-lhe e dois anos mais tarde morreu de uma enfermidade renal, muito mais
lenta e dolorosamente que se lhe tivessem enforcado. É um caso fascinante. As provas sempre podem apontar em qualquer direção, segundo a forma em que um as
interprete. Às vezes permaneço acordado toda a noite pensando nisto. O perigo de como pode orientar-se mal um caso se à polícia lhe mete na cabeça
que tem que ser o marido, deveria ser disciplina obrigatória nos estudos que capacitam para uma pesquisa policial.
Todo isso está muito bem, pensou Buckley, mas se tinha que acreditar-se nas estatísticas criminais, pelo general era o marido. Grogan podia ser de miras muito amplas,
mas Buckley não tinha a menor duvida de qual era o nome que figurava na cabeceira de sua lista.
-Os Munter o organizaram muito bem, não? -disse o sargento.
-Verdade que sim? Nada que fazer salvo revoar ao redor do Gorringe enquanto ele condimenta suas diminutas peças, lustrar a prata antiga e atender-se mutuamerite.
Mas o homem mentiu ao menos em um ponto. Volte para a entrevista com a senhora Chambers.
Buckley voltou para trás as páginas da caderneta. A senhora Chambers e sua neta tinham sido as duas primeiras entrevistadas porque a mulher exigiu que a devolvessem
a terra firme com tiernpo para lhe fazer o jantar a seu marido. mostrou-se charlatana, ofendida e belicosa, considerando a tragédia como um novo ardil
do destino, cujo malefício consistia em lhe criar problemas domésticos. O que mais a preocupava era o desperdício de comida: quem se comeria um jantar preparado
para mais de cem pessoas? Meia hora mais tarde, Buckley a observou quando baixou rebolando à lancha com sua neta, cada uma delas com um par de cestas
cobertas. Ao menos uma parte da comida desceria pelos gogós da família Chambers. Ela e sua neta -uma vivaz jovem de dezessete anos, inclinada a
rir nos momentos de emoção- tinham estado ocupadas, quase sempre juntas ou com a senhora Munter, durante todo o período crítico. Pessoalmente, Buckley opinava
que Grogan tinha perdido muito tempo com elas e lhe tinha incomodado ter que anotar a corrente de observações impertinentes vertidas pela avó. Por
fim encontrou a página e começou a ler, dizendo para seu colete que possivelmente o velho queria comprovar a correção de sua taquigrafia: "Um asco, isso é o que
é!
Eu sempre digo que não há nada pior que ser assassinada por estranhos e longe de casa. Quando eu era pequena estas coisas não ocorriam. São esses jovencitos modernos,
com suas motocicletas. na sábado passada chegaram ao Speymouth em emanadas, com seus rugientes e pestilentas máquinas. Eu gostaria de saber por que a polícia não
toma cartas
no assunto. por que não lhes tiram as motos e as jogam pelo mole junto com eles, agarrando-os pelo fondillo das calças? Com isso se seus acabarlan
desmandos. Não percam o tempo interrogando a mulheres decentes e cumpridoras da lei. Persigam a esses vândalos".
Buckley interrompeu a leitura:.
-Nesse ponto você assinalou que nem sequer os jovens vândalos podiam chegar de moto ao Courcy Island, e a mulher respondeu que sabiam como fazê-lo, que eram ardilosos.
-Não refiro a essa parte -disse Grogan-. um pouco antes, quando ela rabiava pelos problemas domésticos.
Buckley retrocedeu um par de páginas: "Sempre me alegra lhe fazer um favor ao senhor Munter. Não me incomoda vir um dia à ilha e trazer comigo ao Debbie se a necessitarem.
A garota não tinha a culpa de que as taças estivessem sujas. Não tem direito a fazer isso. O senhor Munter não tinha nenhum direito a tratá-la como o fez. Cada
vez que vem lady Ralston ocorre o mesmo. Lhe enrugam as calças quando a vê. O senhor Munter é um cagón. na terça-feira viemos para o ensaio geral e o
juro que nunca vi nada semelhante. Ela pedindo isto, pedindo o outro, nada era do gosto de sua senhoria. E quarenta atores para o almoço e para o chá. Tudo
tinha que ser como exigia, embora o senhor Gorringe não estava. O senhor Munter me disse que se foi a Londres, e lhe asseguro que o compreendo. Qualquer acreditaria
que era a proprietária e senhora. Disse-lhe ao senhor Munter que não me chateava ajudar esta vez, mas que se pensavam repetir essa animação o ano que vem, que não
contasse
comigo. O disse: me apague. Respondeu-me que não devia me preocupar. Calculava que esta seria a última obra em que atuaria lady Ralston no Courcy Island".
Buckley deixou de ler e observou ao Grogan. disse-se que teria que ter recordado esse indício de prova. Probablermente a havia taquigrafiado em uma fuga de aborrecimento.
Merecia uma má nota.
-Sim, isso -confirmou seu chefe-. Este é o parágrafo que queria. O pédiré uma explicação ao Munter quando chegar o momento, mas não ainda. É bom guardar-se alguns
agarra na manga. Suspeito que a senhora Munter será igualmente discreta quando confirmar complacente a história de seu marido. Mas de momento a faremos esperar.
Acredito que é hora de ouvir o que tiver que nos dizer o anfitrião da senhorita Lisle. Você é do lugar, sargento. O que sabe dele?.
-Muito pouco, senhor. Abre o castelo ao público para a temporada estival, e imagino que se trata de uma estratagema para pagar menos impostos defendendo-se na manutenção.
É reservado e evita a publicidade.
-Pois terá que dar uma panzada de publicidade até que se fechamento o caso. Por favor, apareça e lhe peça ao Rogers que o chame, com a acostumada amabilidade,
é obvio.
--
.
28.
Buckley pensou que nunca tinha visto um suspeito de homicídio tão cômodo como Ambrose Gorringe ante um interrogatório. Apoiou as costas no respaldo da cadeira,
frente a Grogan, imaculado com seu smoking, e fixou o olhar ao outro lado do escritório, com olhos brilhantes e interessados nos que Buckley -que de vez em quando
levantava a vista da caderneta- acreditou detectar um brilho de divertido desdém. Certo é que Gorringe estava em seu próprio terreno e sentado em sua própria cadeira.
Buckley pensou que era uma lástima que o chefe não lhe tivesse privado desta vantagem psicológica despachando a toda a turma à delegacia de polícia do Speymouth.
Não obstante,
Gorringe estava muito tranqüilo para seu próprio bem. Se não a tinha matado o marido, ele era, sem dúvida, o segundo favorito da prova.
Interrogado formalmente pela primeira vez, repetiu sem discrepâncias o que tinha sintetizado ante eles quando chegaram à ilha. Conhecia a senhorita Lisle desde
a infância -os pais de ambos pertenciam ao serviço diplomático e em muitas ocasiões tinham coincidido nas mesmas embaixadas-, mas em anos recentes haviam
perdido o contato, e se tinham visto muito pouco até que ele herdou a ilha de seu tio, em 1977. O ano seguinte se encontraram em uma estréia e ela foi convidada
à ilha. Ambrose não conseguia recordar se a proposição havia partido dele ou da senhorita Lisle. Como resultado dessa visita e do entusiasmo dela pelo teatro
vitoriano, habia surto a decisão de montar uma obra. Estava informado das mensagens ameaçadoras, pois se encontrava com ela quando chegou a suas mãos um
eles, mas Clarissa não lhe havia dito que seguiam chegando nem tampouco que a senhorita Gray era detetive privada, embora suspeitou que podia sê-lo quando lhe mostrou
a gravura em madeira que alguém tinha passado por debaixo da porta do
dormitório. Tinham tomado a decisão de não mortificar à senhorita Lisle com aquele anônimo nem com a notícia do desaparecimento do braço de mármore. Reconheceu,
sem inquietação evidente, que não tinha álibi para os cruciais noventa e tantos minutos transcorridos entre a uma e vinte e o descobrimento do cadáver. Se
tinha ficado tomando café com o Whittingham, tinha ido a sua habitação ao redor da uma e meia, deixando a aquele na terraço, tinha descansado um quarto de hora
até que chegou o momento de trocar-se, e saiu de sua habitação, pouco depois das duas, para dirigir-se ao teatro. Munter estava entre bastidores; juntos haviam
revisado os acessórios e discutido uma duas questões relativas ao jantar. ao redor das duas e vinte tinham saído ao encontro da lancha que transportava
ao IA companhia desde o Speymouth e logo tinha permanecido nos vestuários dos homens mais ou menos até as três menos quarto.
-E o braço de mármore? -perguntou Grogan-. Quando o viu você por última vez?.
-Não o hei dito, inspetor? Vi-o por última vez ontem à noite, ao redor das onze e meia, quando devi comprovar os horários das marés. Interessava-me calcular
quanto demorariam as lanchas na sábado pela tarde, e também de noite, em sua volta ao Speymouth. As águas podem ser muito rápidas entre a ilha e terra firme.
Munter o viu em seu lugar, na vitrine, pouco depois de meia-noite. Descobri que faltava e vi a fechadura forçada quando ia à cozinha esta manhã, às sete
menos cinco.
-Todos os hóspedes o tinham visto e sabiam onde estava guardado?.
-Todos, com exceção do Simon Lessing, que estava nadando enquanto outros percorreram o castelo. Que eu saiba, Simon não se aproximou em nenhum momento ao despacho.
-O que faz aqui o moço, pelo resto? -inquiriu Grogan-. Não teria que estar na escola? Acredito que lady Ralston lhe pagava uma educação privilegiada, que
não é aluno externo do instituto local.
Pergunta-a poderia ter divulgado ofensiva, pensou Buckley, se a voz, cuidadosamente contida, tivesse entranhado rastros de emoção. Gorringe respondeu com a mesma
serenidade.
-Estuda no Melhurst. A senhorita Lisle escreveu solicitando uma permissão especial para este fim de semana. Provavelmente pensou que Webster seria educativo. Infelizmente,
o fim de semana resultou educativo para o moço em formas que ela não podia prever.
-Uma verdadeira madraza para o menino, vamos ..... .
-Não acredito que possamos dizer tanto. Eu asseguraria que o sentido maternal da senhorita Lisle estava subdesenvolvido. Mas, dentro de suas limitações, interessava-lhe
sinceramente o moço. O que você deve compreender a respeito da vítima deste caso é que desfrutava sendo bondosa, como sem dúvida nos ocorre à maioria,
sempre que não nos custe muito.
-E quanto lhe custava Simon Lessing à senhorita Lisle?.
-Principalmente seus direitos de matrícula. Calculo que umas quatro mil libras anuais, um luxo que podia permitir-se. Suponho que tudo começou porque lhe remoía
a
conscientiza por ter desfeito o matrimônio dos pais do moço. Se assim era, acredito que se tratava de um sentimento supérfluo, pois suponho que o homem escolheu.
-Simon Lessing tem que haver-se levado a mal esse casamento, ao menos em nome de sua mãe se não no próprio. A não ser que considerasse que valia a pena ter
uma madrasta enriquecida.
-Ocorreu faz seis anos. Simon tinha apenas doze quando seu pai o abandonou. E se você sugerir, sem excessiva sutileza diria eu, que tomou tão a mal como para
lhe amassar a cara à madrasta, esperou muito para fazê-lo e escolheu um  momento singularmente inadequado. Sabe sir George Ralston que você suspeita do Simon?
É muito provável que se considere a si mesmo padrasto do menino. Quererá tomar medidas para proteger os interesses do Simon se você seguir adiante com essa absurda
idéia.
-Em nenhum momento hei dito que suspeitássemos dele. Por outro lado, e dada a juventude do menino, acordei com sir George que estará presente quando falar com
ele. Mas o senhor Lessing tem dezessete anos. Segundo a lei, já não é um menor. Resultam-me interessantes estas medidas consertadas para lhe proteger.
-Enquanto não as encontre sinistras... mostrou-se extremamente impressionado quando lhe dava a notícia. Seus pais morreram. Adorava a Clarissa. É natural que todos
desejemos atenuar sua pena. Ao fim e ao cabo, vocês não estão aqui como guardiães de menores.
Durante a conversação Grogan logo que tinha cuidadoso a sua testemunha. O bloco de papel de folhas brancas, que preferia à caderneta de uso corrente na polícia,
estava sobre
o secante do escritório, e para desenhos nele com a estilográfica. Sob a enorme manaza sardenta foi recuperando forma um pulcro retângulo com duas portas e dois
janelas. Buckley compreendeu que era uma representação do dormitório da Clarissa Lisle, algo entre um plano e um desenho. As dimensões da habitação eram
a escala, mas o inspetor começou a inserir pequenos objetos desproporcionados e atentamente detalhados, como poderia desenhá-los um menino: os potes de cosméticos,
uma caixa com bolas de algodão, a bandeja do chá, o despertador. de repente, e sem levantar a vista, perguntou:.
-O que lhe levou a habitação, senhor?.
-depois de que a senhorita Gray entrasse em chamá-la? Um mero impulso cavalheiresco. Pensei que, como anfítrión, o correto seria acompanhá-la a seu camarim. Além
disso
terei que transladar algumas costure. Sua caixa de maquiagem, por exemplo. Não nos sobra sítio nos camarins, e como Clarissa tinha que compartilhá-lo com a senhorita
Collingnvood, que faz o papel de Cario-a, esta se tinha comprometido a vestir-se e sair antes de que a estrela necessitasse o vestidor, mas Clarissa não ia a
correr o risco de que alguém tomasse emprestados seus cosméticos. Ou seja que fui ao dormitório para transladar a caixa e acompanhá-la ao teatro.
-Em ausência do marido, quem normalmente emprestaria esse serviço ..... .
-Sir George acabava de entrar para trocar-se. Como já lhe hei dito, encontramo-nos no alto da escada.
-Parece haver-se tomado você muitas moléstias pela senhorita Lisle -disse Grogan. E adicionou-: Em diversos sentidos.
-Caminhar com ela duzentos metros desde sua habitação até o teatro não pode considerar uma moléstia.
-Mas sim montar a obra para ela, restaurar o teatro e receber a seus convidados. Todo isso tem que ter saído caro.
-Felizmente, não sou pobre. Acreditei que você estava aqui para investigar um crime e não para misturar-se em minhas finanças pessoais. A propósito, restaurei o
teatro
para dar eu gosto , não à senhorita Lisle.
-Ela não abrigava a esperança de que você financiasse parcialmente sua próxima aparição profissional? Que fora seu anjo produtor, como acredito que dizem no jargão
teatral?.
-Suspeito que você escutou intrigas de más fontes. Esse concreto papel angélico nunca me atraiu. Existem maneiras mais divertidas de perder dinheiro. Mas se
você tenta sugerir diplomáticamente que possivelmente eu lhe devesse um favor à senhorita Lisle, tem razão. Foi ela quem me deu a idéia de "Autópsia", meu bestseller,
o que lhe esclareço se por acaso é você uma da meia dúzia de pessoas que não o ouviu nomear.
-Por acaso não o terá escrito ela também?.
-Não, não o escreveu. As aptidões da senhorita Lisle eram variadas e extraordinárias, mas não se estendiam à palavra escrita. O livro foi fabricado, mais que
escrito, por um profano triunvirato composto por meu editor, meu agente e eu mesmo. Logo foi convenientemente apresentado, promocionado e comercializado. Sem dúvida
podemos acusar a Clarissa de alguns pecados, mas "Autópsia" não é um deles.
Grogan deixou que a pluma lhe caísse da mão. apoiou-se no respaldo da cadeira e olhou ao Gorringe aos olhos.
-Você conhecia a senhorita Lisle da infância -disse tranqüilamente-. Durante os últimos seis meses esteve intimamente vinculado a essa posta em cena. Veio
aqui como hóspede da casa. Mataram-na sob seu teto. Prescindindo de como tenha morrido, coisa que não saberemos até depois da autópsia, o homicida usou, quase
com toda certeza, um objeto dele, de mármore, para lhe esmagar a cara. Está você seguro de que não há nada que saiba, nada que suspeite, nada que lhe haja dito,
que possa arrojar alguma luz sobre como morreu?.
Se for um pouco mais direto, pensou Buckley, verá-te respondendo a uma admoestação oficial. Quase esperava que Gorringe replicasse que não diria uma só palavra até
falar com seu advogado. Não obstante, o dono da casa respondeu com a serena despreocupação de um terceiro que, convidado a dar sua sincera opinião, não tem indigestão
em expressá-la.
-Minha primeira idéia, que de momento segue sendo minha hipótese, foi que de algum jeito um intruso tinha tido acesso à ilha, sabendo que meu pessoal e eu estaríamos
ocupados com os preparativos da obra, e que o castelo se encontraria indefeso, por assim dizê-lo. Subiu pela escada de incêndios, possivelmente como travessura ou
diversão e sem ter uma idéia clara do que pensava fazer. Poderia ter sido um homem jovem.
-Os jovens revistam sair de caçada em turma.
-Vários jovens, então. Ou um par, se o preferir. Um deles entra com a vaga idéia de bisbilhotar aproveitando que na casa não há movimento. Isso implica
um jovem aldeão que estivesse informado da função. Penetra às escondidas no dormitório da senhorita Lisle, que tinha esquecido fechar com chave a porta
de comunicação ou o considerou uma precaução desnecessária, e a vê aparentemente dormida na cama. Está a ponto de sair, com ou sem o joalheiro, quando ela se tira
os discos dos olhos e o vê. Presa do pânico, o moço o arbusto, agarra o cofre e foge por onde entrou.
Grogan lhe interrompeu:.
-Tendo pego com antecipação o braço de mármore, que segundo você mesmo tem que ter sido retirado da vitrine entre a meia-noite e as sete menos cinco
desta manhã.
-Não, não acredito que viesse armado com nada, salvo uma vaga intenção de travessura. Minha teoria consiste em que encontrou a arma à mão, na mesinha de noite, junto
com a entrevista da obra, é obvio.
-E quem sugere que a colocou ali? Recorde que a porta desse dormitório estava fechada.
-Acredito que neste sentido não há muito mistério. Fez-o a senhorita Lisle.
-Com o propósito de assustar-se a si mesmo até ficar histérica, ou simplesmente para proporcionar uma arma conveniente a um assassino em potência que desse em cair
por ali? -insistiu Grogan.
-Com o propósito de ter uma desculpa se fracassava no cenário, como suspeito que teria ocorrido. Ou possivelmente tenha tido razões mais tortuosas. A complexa personalidade
da senhorita Lisle era uma espécie de mistério para mim como o era, suponho, para seu marido.
-Sugere você que esse jovem, impulsivo e impremeditado assassino voltou a acomodar os discos sobre os olhos de sua vítima? Isso indicaria que temos que elucidar
duas personalidades complexas e não uma.
-Poderia ter ocorrido assim. O perito em homicídios é você, não eu. Mas se me apressa posso encontrar uma razão. Possivelmente o moço teve a impressão de que ela
cravava-lhe o olhar e perdeu a cabeça. Tinha que cobrir aqueles acusadores olhos mortos. Talvez minha sugestão seja muito imaginativa, mas não impossível. A
vezes os assassinos se comportam de maneira estranha. Recorde o caso do Gutteridge, inspetor.
A mão do Buckley saltou da caderneta. "Caray! Fará-o a propósito?", pensou. A pequena audácia deveu ser deliberada. Mas como conhecia Gorringe o hábito
do chefe de fazer referências a casos passados? Levantou a vista e não olhou ao Grogan a não ser ao Gorringe; só encontrou um olhar de tenra inocência. E foi precisamente
a ele a quem se dirigiu Gorringe:.
-Foi muito antes de que você entrasse no corpo, sargento. Gutteridge era o chefe de polícia ao que dois ladrões de carros dispararam em um caminho comarcal de
Essex em 1927. O ex-sentenciado Frederick Browne e seu cúmplice William Kennedy foram pendurados pelo crime. depois de matá-lo, um deles disparou a ambos os olhos.
pensou-se que eram supersticiosos. Acreditavam que os olhos mortos de uma vítima, fixos na cara do assassino, levam seu semblante impresso nas pupilas. Pessoalmente
não acredito que nenhum assassino olhe a sua vítima de bom grau aos olhos. É uma característica interessante de um caso pelo resto sórdido e aborrecido.
Grogan tinha concluído o desenho. O plano da habitação estava completo. Agora, enquanto o observava em silêncio, desenhou sobre a enorme cama uma pequena figura
desajeitada, com mechas de cabelo sobre o travesseiro. Por último e com grande cuidado, esboçou a cara. Logo apoiou a manaza sobre o desenho e arrancou a folha,
enrugando-a
no punho. Seu gesto foi inesperadamente violento, mas sua voz soou moderada, quase amável:.
-Obrigado, senhor. Foi-nos você de muita ajuda. Agora, se não ter nada mais que nos dizer, suponho que quererá voltar com seus convidados.
.
29.
Quando Ivo Whittingham entrou no despacho, Buckley baixou rapidamente a vista, perturbado, e começou a passar as folhas de sua caderneta, respirando a esperança
de que
o recém-chegado não tivesse captado seu primeiro olhar de espanto e estupor. Só uma vez em sua vida tinha visto um ser humano tão gasto: seu tio Gerry em seus
últimas semanas, antes de que o câncer acabasse com ele. Por seu tio havia sentido tanto afeto como era capaz de sentir, e os dores de sua prolongada agonia o
tinham levado a tomar uma decisão. Se isso era o que o corpo podia lhe fazer a um homem, lhe devia algo em troca. A partir desse momento viveria seus prazeres
sem culpa. Poderia haver-se convertido em um alegre hedonista se a ambição e a prudência que lhe acompanhavam não tivessem sido mais fortes. Mas não tinha esquecido
a amargura nem a dor. Além disso, Ivo Whittingham recordou a seu tio em outro sentido. Este o tinha cuidadoso com olhos igualmente reluzentes, como se ardessem com
tudo o que ficava de vida e inteligência. Levantou a vista e observou que Whittingham se sentava rigidamente, apertando os flancos da cadeira com suas esqueléticas
mãos. Mas quando falou, sua voz foi surpreendentemente  forte e sossegada:.
-Isto me traz a desagradável lembrança de quando, na escola, chamavam-nos o despacho do diretor. Estranha vez saía algo bom disso.
Era um princípio desrespeitoso, que Grogan provavelmente não respiraria. Em efeito, disse em tom seco:.
-Em tal caso lhe sugiro que o façamos o mais breve possível. Tenho entendido que você conhecia muito bem à senhorita Lisle.
-Pode dizer que a conocia intimamente.
-Trata de me dizer que era seu amante, senhor?.
-Não me parece a palavra mais adequada para uma relação tão intermitente. Amante sugere certa permanência, inclusive uma dose de respeitabilidade. Ao oir a palavra
amante um recorda à boa senhora Keppel e a seu rei. Seria mais exato dizer que mantivemos relações íntimas durante um período de ao redor de seis anos segundo
ditavam a oportunidade e seu capricho.
-Sabia o marido?.
-Os maridos. Nossa relação sobreviveu a mais de um período marital. Mas suponho que a você só interessa George Ralston. Eu nunca o disse e ignoro se
ela o fez. E se você está perguntando se ele se vingou, a idéia é absurda. por que tivesse esperado até o momento em que um poder superior, ou o destino ou
a sorte, ou o que você queira crcer, está a ponto de liberar o de mim em forma permanente? Ralston não é tolo. Se em troca quer me perguntar se enviei à senhora
a me esperar no outro mundo, a resposta é negativa. Clarissa Lisle e eu esgotamos nossas possibilidades recíprocas nesta borda. Mas podria havê-la matado.
Tive a oportunidade: estive a sós em minha habitação, convenientemente perto, toda a tarde. Se por acaso não sabe já, direi-lhe que meu dormitório está na mesma
planta
que o da Clarissa, a só quinze metros de distância, sobre a fachada leste do castelo. Tive acesso aos meios, dado que me tinham mostrado o braço de mármore.
Suponho que poderia ter reunido a força necessária. E acredito que me teria aberto a porta. Mas não a matei e não sei quem o fez. Terá que acreditar em meu
palavra. Não posso provar que não fui eu.
-me diga como era ela.
Era a primeira vez que Grogan fazia essa pergunta e, entretanto, pensou Buckley, era a medula de toda investigação de homicídio: se fosse possível encontrar a resposta,
quase todas as demais pergunta seriam supérfluas.
-Estava a ponto de dizer que já tinha visto você seu rosto, mas é obvio não o viu -disse Whittingham-. É uma lástima. Terei que conhecer a Clarissa
física para obter alguma pista sobre muitas outras coisas que podiam reconhecer-se nela. Vivia intensamente em e através de seu corpo. O resto é um catálogo
de palavras. Era egocêntrica, insegura, lista embora não inteligente, bondosa ou cruel segundo seu humor, inquieta, infeliz. Mas possuía certas habilidades que uma
cavalheiresca reserva me inibe de expor, e que não eram insignificantes. Provavelmente proporcionou mais agradar que infelicidade. Dado que isso não pode dizer-se
da
maioria das pessoas, eu não sou quem para criticá-la. Lembrança que uma vez lhe enviei as palavras do Thomas Malory, quando Lancelot fala com o Guinevere: "Senhora,
testemunho ante Deus que em você alcancei meu gozo terrestre". Não as retiro, à margem do que Clarissa faça.
-À margem do que tenha feito, senhor?.
-É meramente um dizer, inspetor.
-Então você a chora?.
-Não. Mas nunca a esquecerei.
depois de uma pausa, Grogan perguntou em voz muito baixa:.
-por que está você aqui?.
-Ela me pediu que viesse. Mas havia outra razão. Um periódico me encarregou que fizesse um artigo, para o suplemento do domingo, sobre a ilha e o teatro. O
que queriam era encanto de época, nostalgia e lendas carregadas de luxúria. Teriam que ter enviado a um cronista de policiais.
-E isso era suficiente para tentar a um crítico de sua categoria?.
-Deveu sê-lo, dado que estou aqui.
Quando Grogan lhe pediu, quão mesmo a outros suspeitos, que relatasse o ocorrido durante o dia, pela primeira vez deu amostras de cansaço. Seu corpo se afundou
na cadeira como uma boneco que se solta de sua corda.
-Não há muito que contar. Tomamos o café da manhã tarde e depois a senhorita Lisle sugeriu que víssemos a igreja. Ali há uma cripta com algumas caveiras antigas
e um
passagem secreta que dá ao mar.
Percorremos tudo e Gorringe nos entreteve com velhas lendas em torno das caveiras e a suposta morte por afogamento de um prisioneiro de guerra na cova
do extremo da passagem. Eu estava fatigado e não emprestei muita atenção. Voltamos para almoçar às doze. Imediatamente depois a senhorita Lisle se retirou a descansar.
Eu entrei em minha habitação à uma e quarto e fiquei repousando e lendo até a hora de me vestir. A senhorita Lisle tinha insistido em que nos trocássemos antes
da representação. Encontrei-me com Roma Lisle ao final da escada e baixávamos juntos quando apareceu Gorringe com a senhorita Gray e nos disseram que Clarissa
tinha morrido.
-Pela manhã, enquanto visitavam a igreja e a cova, que impressão lhe causou a senhorita Lisle?.
-Diria que a senhorita Lisle era a mesma de sempre, inspetor.
Por último Grogan tirou da pasta o maço de mensagens. Uma das folhas revoou até o chão. Grogan se agachou, recolheu-a e alcançou o conjunto ao Whittingham.
-O que pode nos dizer disto, senhor?.
-Só que sabia que os recebia. Não me disse isso, mas a gente está acostumado a ser receptáculo de alguns rumores do mundo do teatro. Mas não acredito que estivesse
muito divulgado.
Támbién com respeito a isto pareço um suspeito natural. Quem tem enviado estas mensagens, conhecia a senhorita Lisle e ao Shakespeare. Embora suspeite que eu
não teria agregado o ataúde e a caveira. Um toque de crueldade absolutamente desnecessário, não lhe parece?.
-Isso é tudo o que quer nos dizer, senhor?.
-Isso é tudo o que posso lhe dizer, inspetor.
.
30.
Eram quase as sete quando viram o moço. pôs-se um traje escuro. E dava a impressão de estar asistien ao funeral de sua madrasta e não a uma entrevista
com a polícia, pensou Buckley. Calculou que não lhe levava mais de oito anos, mas poderiam ter sido vinte. Lessing parecia tão composto e nervoso  como um pirralho.
Mas se dominava muito bem. Buckley percebeu em sua entrada um pouco vagamente familiar, o cuidado com que se sentou, o olhar sério e espectador que fixou no Grogan.
Então recordou. Esse era o aspecto que tinha ele, e a forma em que se comportou, na última entrevista para ingressar na polícia. Seu diretor de estudos o
tinha aconselhado: "Ponha seu melhor traje, mas cuida de que não se veja nenhuma estilográfica nem um lenço de fantasia aparecendo relamidamente pelo bolso da
jaqueta. Olhe aos olhos, mas não com tanta fixidez que resulte molesto. te mostre um pouco mais diferente do que realmente é: são eles os que oferecem trabalho.
Se não conhecer uma resposta, diga-o, não tente improvisar. Não se preocupe se estiver
nervoso, preferem isso à suficiência, mas ao mesmo tempo
demonstra que tem têmpera para dominar seu nervosismo. Dava
"senhor" ou "senhora", e dá as graças ao sair. E Por Deus, moço, sente-se direito!".
À medida que a entrevista progredia além das primeiras perguntas fáceis -destinadas, supunha Buckley, a sossegar ao candidato-, percebeu algo mais: Lessing
começava a sentir-se como se sentou ele: se seguia os conselhos, a prova não resultava tão dura. Só as mãos o traíam. Eram largas e desagradablemente
brancas, de dedos grossos e chatos, mas de unhas estreitas -quase femininas-, muito curtas; e tão rosadas, que pareciam pintadas. Tinha as mãos sobre os joelhos
e com freqüência se atirava dos dedos como se estivesse cumprindo rotineiramente um exercício de fortalecimento prescrito pelo médico.
Sir George Ralston permaneceu em pé, de costas a eles, olhando pela janela através das cortinas parcialmente jogadas. Buckley se perguntou se se propondía
demonstrar que não queria influir no moço de palavra nem por meio de um olhar. Mas sua postura parecia artificial, quanto mais quanto que em meio da escuridão
não havia nada que ver. Buckley nunca tinha conhecido tanto silêncio, um silêncio dotado de uma qualidade positiva: não a ausência de som, a não ser algo que agudizaba
a percepção e outorgava importância e dignidade a toda palavra e movimento. Lamentou, e não pela primeira vez, não estar no escritório ouvindo o eco de pegadas,
de portas
que se fechavam, de vozes distantes que chamavam, dos reconfortantes ruídos de fundo da vida cotidiana. No castelo não só os suspeitos se sentiam julgados.
Esta vez os ganchos de ferro do Grogan parecian inofensivos, inclusive simpáticos. Aparentemente estava voltando a desenhar sua horta. Sob sua mão cresceram fileiras
de
rechonchas couves, judias trepadeiras e cenouras rematadas de samambaias. Sem levantar a vista, disse:.
-De modo que depois da morte de sua mãe foi viver com o irmão dela e sua família, e ali se encontrava quando lady Ralston foi visitar o, no verão
de 1978, e decidiu lhe adotar?.
-Não houve uma adoção formal. Meu tio era meu tutor e acessou a que Clarissa fosse... uma espécie de mãe adotiva. Ela se fez responsável por mim.
-Você se alegrou desse acordo?.
-Muito, sefior. A vida de meus tios não era compatível comigo.
Uma palavra estranha naquele contexto, pensou Buckley. Deu toda a sensação de que seus tios compravam "The Mirror" em lugar de "The Teme" e que não lhe serviam seu
oporto de sobremesa.
-E era feliz com sir George e sua esposa? -Grogan não pôde sustraerse a uma pequena nota de sarcasmo e adicionou--: A vída era compatível com você?.
-Absolutamente, senhor.
-Sua madrasta... Assim pensava nela como em uma madrasta?.
O menino se ruborizou e olhou de soslaio à silenciosa figura de sir George. umedeceu-se os lábios e respondeu:.
-Sim, senhor. Isso acredito.
-Durante o último ano sua madrasta recebeu algumas comunicações O que sabe disso?.
-Nada, señot. Nunca me disse nada. Não.... não nos víamos muito. Eu estou interno na escola, e durante as férias ela estava acostumada estar no piso de Brighton.
Grogan agarrou uma das mensagens e o empurrou através do escritório.
-Aqui tem uma amostra. Reconhece-o?.
-Não, senhor. É uma entrevista, não? Shakespeare?.
-me pergunta isso? É você quem estuda no Melhurst. Alguma vez viu um destes papéis até agora?.
-Não, jamais.
-Muito bem. por que não nos diz o que fez exatamente entre a uma e as três menos quarto?.
Lessing se olhou as mãos, pareceu tomar concíencía de seu metódico tic nervoso, e se agarrou a ambos os lados da cadeira como se queria impedir de-se dar um salto.
Sem
embargo, expôs seu relato com lucidez e crescente confiança. Tinha decidido nadar antes da função; depois de almoçar foi diretamente a seu quarto, onde se
pôs o traje de banho debaixo dos texanos e a camisa. Agarrou um pulôver e uma toalha e cruzou o jardin para dirigir-se à praia. Caminhou aproximadamente uma hora
por
a borda porque Clarissa lhe tinha advertido que não lhe convinha nadar imediatamente depois de comer. A seguir retornou a pequeila impregna, à altura de
a terraço, e se meteu no mar ao redor das duas, deixando a roupa, a toalha e o relógio na praia. Durante a caminhada e enquanto nadava não viu ninguém, mas
sir George lhe tinha comentado que o tinha visto sair da água, pelos prismáticos, quando retornava ao castelo depois de haver-se dedicado a observar as aves.
Voltou a olhar em direção a seu padrasto como pedindo a corroboração de seus
palavras, mas este não se deu por aludido.
-Isso nos há dito sir George Ralston -confirmou Grogan-. E depois?.
-Em realidade nada, senhor. Retornava ao castelo quando o senhor Gorringe me viu e saiu a meu encontro. Disse-me o da Clarissa.
As últimas palavras foram quase um sussurro. Grogan inclinou para diante sua corada cara e perguntou em tom suave:.
-O que lhe disse exatamente?.
-Que estava morta, senhor. Assassinada.
-Explicou-lhe como?.
Outra vez o murmúrio:.
-Não, senhor.
-E você não o perguntou? Não deixou traslucir uma curiosidade natural?.
-Perguntei-lhe o que tinha ocorrido, como tinha morrido. Respondeu-me que ninguém podia estar seguro disso até depois de que lhe fizessem a autópsia.
-O senhor Gorringe tem razão. Você não precisa saber nada, exceto o fato de que morreu e que tem que ter sido um homicídio. Agora, senhor Lessing, o que
pode nos dizer do braço da princesa morta?.
Buckley acreditou perceber uma exclamação de protesto por parte de sir George, mas este não interrompeu o interrogatório. Simon passeou o olhar de um a outro, como
se o policia se tornou louco. Ninguém abriu a boca. Então disse:.
-Na igreja, refere-se? Visitamos a cripta esta manhã
para ver as caveiras. Mas o senhor Gorringe não disse uma só palavra sobre uma princesa morta.
-Não me refiro à igreja.
-Quer dizer que se trata de um braço mumificado? Não entendo.
-É uma mão de mármore, um braço, para ser exatos. O braço de um bebê. Alguém o tirou que a vitrine do senhor Gorringe, a que está ao outro lado desta
porta, e nós gostaríamos de saber quem o fez e quando.
-Não acredito havê-lo visto, senhor. Sinto muito.
Grogan tinha completado sua horta e nesse momento o separava do jardim por meio de uma grade e uma arcada. Olhou ao Lessing e disse:.
-Meus homens e eu voltaremos amanhã. Provavelmente estaremos por aqui um dia ou dois. Se lhe ocorre algo, algo que recorde como insólita ou que possa nos ajudar,
por nimia que lhe pareça, fique em contato conosco. Compreendido?.
-Sim, senhor. Obrigado, senhor.
Grogan fez uma saudação com a cabeça; o moço se levantou, olhou por última vez as costas imóvel de sir George e saiu. Buckley quase esperava que se voltasse
ao chegar à porta e perguntasse se lhe dariam trabalho. Depois sir George deu meia volta e falou pela primeira vez:.
-Deve voltar para a escola na segunda-feira pela manhã, antes de meio-dia. saiu com uma permissão especial. Espero que para então não o necessitem.
-Para nós seria útil que ficasse até na terça-feira pela manhã -disse Grogan-. É uma questão de conveniência. Se a ele lhe ocorre algo, ou se nos ocorre
a nós, o melhor seria poder esclarecê-lo em seguida. Mas pode ir-se a primeira hora da segunda-feira se você o considerar importante.
Sir George vacilou.
Não acredito que um dia signifique muito. Entretanto, parece-me que para ele é melhor estar longe daqui, dedicado a suas ocupações. Amanhã, ou na segunda-feira,
chamarei
à escola. Mais adiante necessitará uma permissão de saída para o funeral, embora suponha que ainda é prematuro pensar nisso.
-Isso me temo, senhor. -Sir George tinha chegado quase à
porta quando Grogan adicionou em voz mas baixa-: Há algo mais
que quero lhe perguntar, senhor, referente a sua relação com sua esposa. Diria que o seu era um matrimônio feliz?.
Esbelto e erguido, sír George Ralston se deteve um segundo
com a mão no pomo da porta e a seguir girou sobre
seus talões, a cara crispada violentamente, como a de alguém
afetado por uma contração nervosa. Em um instante obteve
dominar-se.
-Considero ofensiva sua pergunta, inspetor.
A voz do Grogan se manteve suave, perigosamente suave:.
-Nas pesquisas por homicídio, às vezes temos que fazer
perguntas que a gente considera ofensivas.
-A resposta carece de sentido, a menos que a pergunta
dirija-se a ambas as partes. E já é muito tarde para isso. Não estou seguro de que minha esposa tivesse a faculdade de ser feliz.
-E você, senhor?.
Sir George respondeu com grande simplicidade:.
-Eu a amava.
.
31.
Quando sir George teve saído, Grogan disse com repentina vehe-
mencia:.
-Recolhamos nossas coisas e saiamos daqui. Este lugar se está voltando cansativo. A que hora se espera que chegue a lancha com o Roper e Badgett?.
Bucklev consultou seu relógio.
-Teria que estar aqui nos próximos quinze minutos.
Os detetives Roper e Badgett montariam guarda no despacho, embora só por uma noite. Sua presença era quase uma formalidade. Ninguém no castelo tinha pedido
amparo policial nem Grogan acreditava que a necessitassem. Não tinha suficientes homens e lhe desgostava que perdessem o tempo onde não faziam falta. A totalidade
da ilha tinha sido registrada, incluído a passagem secreta que conduzia à Caldeira do Diabo; se ainda alguém acreditava na hipótese do intruso, era evidente
que este já não se encontrava no Courcy. Ao dia seguinte as pesquisas policiais na ilha teriam concluído e a investigação se transladaria a uma sala acessória
da delegacia de polícia do Speymouth. É provável que a vigília seja tediosa e menos que cômoda para o Roper e Badgett, pensou Buckley. Ambrose Gorringe tinha devotado
um dormitório
e rogado aos dois oficiais que chamassem o Munter se necessitavam algo. Mas as instruções do Grogan tinham sido precisas: "Trarão-lhes seus recipientes térmicos
e seus
sandwiches, moços, e não chamarão a ninguém. Não terão nada que lhe agradecer ao senhor Gorringe salvo a luz e a calefação, e a água de sua privada".
Atirou da aldrava. Buckley teve a impressão de que Munter se tomava bastante tempo em acudir.
-Quer lhe dizer ao senhor Gorringe que vamos, por favor? -pediu Grogan.
-Sim, senhor. A lancha da polícia ainda não está à vista, senhor.
-Sei. Esperaremo-la no mole. -Quando Munter saiu, Grogan prosseguiu irritado-: O que acredita que nos propomos fazer? Caminhar sobre a água?.
Ambrose Gorringe se apresentou poucos minutos depois, para
despedir-se deles com protocolar cortesia. Buckley pensou que
podiam ter sido um par de convidados para jantar, embora não
especialmente bem recebidos nem gratos. Gorringe não disse uma palavra sobre o acontecimento que os tinha levado ao Courcy e não fez perguntas sobre o progresso
da investigação. Como
se o assassinato da Clarissa Lisle fora um molesto contratempo
em um dia não de tudo malogrado.
Resultava um alívio sair outra vez ao ar. A noite era
extraordinariamente temperada, para ser de meados de setembro, e as pedras da terraço todavia pareciam emanar um lhe vivifiquem calor, como o último fôlego
de um dia estival. Com as carteiras na mão, caminharam juntos pelo braço leste do mole. Ao retroceder seus passos, viram ao longe uma torrente de luz nas janelas
do comilão e escuras silhuetas que foram de um lado a outro na terraço, reunindo-se e logo separando-se, detendo-se e logo caminhando , como se participassem de
uma majestosa pavana. Ao Buckley pareceu que cada um levava um prato na mão. Provavelmente estão dando cuent do jantar frio restante, pensou, e atravessou
sua mente uma entrevista impertinente em torno de carnes de funeral assadas. Não os
censurava por não querer sentar-se ao redor de uma mesa enfrentados a uma cadeira vazia.
instalaram-se debaixo do toldo do quiosque de música a esperar as primeiras luzes da lancha. A paz noturna era sedutora. Ali. na borda meridional, desde
onde não se via a terra
firme, era fácil imaginar que Courcy estava totalmente isolada em um mar imenso, que aguardavam e vigiavam a chegada dos mastros de um casco de navio de socorro
longamente
esperado, e que as figuras que se deslizavam na terraço eram os fantasmas de habitantes mortos tempo atrás, que o castelo mesmo era o esqueleto de um edifício
com a sala, a biblioteca e o salão abertos ao céu, a grande escada subindo para um nada, as samambaias e as más ervas abrindo-se passo entre as telhas
rotas. Não estava acostumado a ser imaginativo, mas agora deu rédea solta deliberadamente a sua fadiga, deixando que sua mente elaborasse a fantasia enquanto se
dava uma suave massagem
na boneca direita.
A voz do Grogan irrompeu discordante em seu sonho. Nem a paz nem a beleza o tinham emocionado. Seus pensamentos seguiam no caso. Buckley se disse a si mesmo
que deveu saber que não haveria trégua. Recordou um comentário ouvido por acaso em boca de outro inspetor: "O ruivo tráfico as investigações criminais
como se fossem aventuras amorosas. obceca-se com seus suspeitos. introduz-se em suas vidas. Vive e respira com o caso, nervoso, inquieto e frustrado, até
que alcança o clímax no momento da detenção". Buckley se perguntou se aquela seria uma das causas do fracasso de seu matrimônio. Devia ser desconcertante
viver com um homem que estava ausente a maior parte dos dias e das noites. Efetivamente: quando falou, sua voz soou tão vigorosa como se as pesquisas acabassem
de começar.
-Roma Lisle, prima da difunta, quarenta e cinco anos de idade, livreira, ex-professora, solteira. O que é o que mais lhe chocou dela, sargento?.
Buckley retrotrajo seus pensamentos à entrevista com Roma Aleije.
-Que estava assustada, senhor.
-Assustada, à defensiva, incômoda e pouco convincente.
Reflitamos em seu relato. Reconhece que a gravura em madeira é dele e diz que o levou ao Courcy porque acreditou que podia
interesarale ao Ambrose Gorringe e que este saberia aconselhá-la em
quanto a sua antigüidade e valor. Como ele afirma não ser uma autoridade em manuscritos de princípios do século dezessete, a expectativa  de Roma Lisle era muito
otimista. Mas não devemos nos deter muito na interpretação desse dado. Encontrou-o, pareceu-lhe interessante e o trouxe. Agora, o dia de hoje. Diz-nos
que saiu do dormitório de sua prima mais ou menos à uma e cinco, que foi diretamente à biblioteca e permaneceu ali até as duas e meia, momento em que subiu
a seu dormitório, que se encontra no piso inmediatarnente superior à galeria, e não precisava passar pelo da senhorita Lisle. Não viu nem ouviu ninguém. Durante
a hora e vinte minutos que passou na biblioteca, esteve sozinha. A senhorita Gray apareceu a cabeça à porta à uma e vinte, mas não entrou. A senhorita Roma
Lisle permaneceu na biblioteca à espera de uma chamada de negócios de seu sócio, chamada que não se produziu. Há-nos dito que escreveu uma carta. Quando o pedi
que a mostrasse como pequeno indicativo de veracidade, embora de fato não significa
nada, ruborizou-se, afirmou que tinha decidido não enviá-la e que a tinha quebrado. Quando assinalamos amavelmente que no cesto de papéis da biblioteca não havia
fragmentos
de papéis, ruborizou-se ainda mais e nos confessou que os tinha levado a sua habitação e os tinha jogado ao inodoro. Muito curioso. Mas consideremos algo mais curioso
ainda. Foi uma das últimas pessoas que viu viva a lady Ralston; não a última, mas sim uma das últimas. Disse-nos que a seguiu a seu dormitório porque queria
lhe desejar boa sorte. Tudo muito correto e muito de primas. Mas quando lhe fizemos notar que tinha esperado ao último momento para trocar-se, disse-nos que havia
resolvido
não assistir à representação. Incomodaria-lhe propor uma teoria que explicasse estas misteriosas excentricidades de sua conduta?.
-Esperava uma chamada Telefónica de seu amante, senhor, não
necessariamente de seu sócio. Como este não chamou, decidiu lhe escrever.
Depois o pensou melhor e rompeu a carta. Recuperou os fragmentos do cesto de papéis porque não queria que os reuníssemos e lêssemos sua correspondência privada,
por
inofensiva que fora.
-E a última visita que fez a lady Ralston?.
-Suspeito que foi menos amistosa do que expressa.
-Mas, para que nos falar da carta, senhor? Não tinha nenhuma necessidade de mencioná-la. por que não nos dizer, simplesmente, que tinha passado todo o tempo lendo?.
-Porque é uma mulher que normalmente diz a verdade. Por exemplo, não fingiu que simpatizasse com sua prima nem que se sentisse especialmente afetada por sua morte.
Se tiver que lhe mentir à polícia, prefere mentir o menos possível. Assim tem que recordar menos falsidades e pode convencer-se a si mesmo de que, em essência, não
está
mentindo. Neste sentido é um princípio bastante válido. Mas tampouco devemos afundar muito nessa carta. Possivelmente quis economizar trabalho aos serventes
ou temeu que estes fossem o bastante curiosos para reconstrui-la. Mas se a histotia da senhorita Roma Lisle é menos que convincente, não é a única. Basta pensar
na curiosa relutância da donzela da senhora, frase que se parece com o cabeçalho de um capítulo de uma daquelas afetadas novelas arrepiantes de
os anos trinta.
Buckley pensou na entrevista com o Rose Tolgarth. antes de que entrasse, Grogan lhe havia dito:.
-você interrogue-a, sargento. Provavelmente prefere a juventude à experiência. Tratemo-la bem.
Surpreso, Buckley tinha perguntado:.
-No escritório, senhor?.
-Parece-me o lugar óbvio, a não ser que tenha intenção de rondar a seu redor como se fora um animal de rapina.
Grogan a tinha recebido e convidado a sentar-se com mais cortesia da que dedicou a Cordelia Gray ou a Roma Lisle. Se Rose Tolgarth se surpreendeu ao encontrar-se
frente
ao mais jovem dos dois oficiais, não deu amostras disso. Claro que não tinha dado amostras de nada. Tinha-o contemplado com seus formidáveis olhos de íris negra
rabiscado como se tentasse penetrar ..... penetrar o que?, Perguntou-se o sargento. Não sua alma, pois Buckley
não acreditava tê-la, mas sim alguma parte de sua mente que não estava destinada a ser de propriedade pública. A todas suas perguntas
tinha respondido amavelmente, embora economizando palavras ao máximo. Reconheceu que sabia da existência das mensagens ameaçadoras, mas se negou a especular aproxima
de quem os
enviava. Aquele trabalho, insinuou, correspondia à polícia. Era ela
quem tinha preparado e subido o chá à senhorita Lisle antes de que esta se acomodasse para seu habitual repouso prévio a toda função. A prática era sempre a
mesma. A senhorita Lisle bebia chá Lapsang Souchong, sem leite nem açúcar, com duas grosas rodelas de limão postas na bule antes de verter a água. Tinha preparado
o chá como de costume, na despensa do senhor Munter; a senhora Chambers e Debbie estiveram com ela todo o tempo. Subiu a bandeja no ato e em nenhum
momento a bule esteve fora de sua vista. Sir George estava no dormitório com sua esposa. Ela tinha deixado a bandeja sobre a mesinha e logo tinha entrado
no quarto de banho, onde tinha que ordenar algumas costure antes de que a senhorita Lisle se banhasse. Voltou para dormitório, para ajudar a sua senhora a despir-se,
e halbía encontrado ali à senhorita Gray. depois de que esta retornasse a sua habitação, sir George deixou a sua esposa e ela o tinha seguido quase imediatamente.
Tinha passado a tarde preparando os camarins das atrizes e ajudando ao senhor Munter com as tarefas do jantar. Às três menos quarto começou a
lhe preocupar que a senhorita Gray se esqueceu de despertar à senhora e tinha ido pessoalmente a fazê-lo. Na porta do dormitório se encontrou com sir
George, o senhor Gorrínge e a senhorita Gray, momento em que se inteirou da morte da senhorita Lisle.
Tinham-na levado a dormitório e pedido que olhasse atentamente a seu redor, sem tocar nada, e dissesse se tudo estava como esperava encontrá-lo, se havia algo
que lhe chamasse a atenção. Tolly tinha movido negativamente a cabeça. antes de sair tinha permanecido um instante contemplando a "chaise longue" e a cama, nua
e vazia, com um olhar que Buckley não conseguiu desentranhar. Tristeza? Concentração? Resignação? Buckley não encontrou a palavra exata. Nesse momento, Rose Tolgarth
tinha os olhos abertos, mas ele acreditou ver que seus lábios se moviam. Por um segundo lhe rondou a extraordinária idéia de que podia estar rezando.
Ao voltar para despacho, tinha-lhe perguntado:.
-Era feliz trabalhando para a senhorita Lisle? tinham-se simpatia?.
Era a maneira mais tática que conhecia de lhe perguntar se aborrecia o suficiente a sua senhora para lhe esmagar o crânio.
-Estávamos habituadas a uma à outra -tinha respondido a mulher serenamente-. Minha mãe foi babá dela e me pediu que cuidasse dela.
-E não lhe ocorre ningun motivo pelo que alguém queria matá-la, não? Formavam todos uma grande família ditosa, verdade?.
O intento de sarcasmo ao Grogan falhou. Tolly respondio com uma amostra do próprio:.
-Nunca existe um bom motivo para que a gente se mate, nem sequer nas famílias ditosas.
Logo que tinha tido um pouco mais de êxito com a senhora Munter. Também ela tinha sido uma testemunha amável mas pouco útil, havia dito o menos possível, tinha resistido
todas seus zalamerías para induzir a à loquacidade ou a indiscrição. Ambrose Gorringe ocultava seus segredos, se os tinha, em uma corrente de conjeturas aparentemente
cândidas. A senhorita Tolgarth e a senhora Munter tinham oculto os sua em uma sobriedade e uma obstinação que roçavam o limite da não cooperação. Buckley
pensou que Grogan não podia ter selecionado a duas testemunhas mais difíceis para lhe exercitar no interrogatório. E provavelmente o tinha feito de propósito. A
impressão
que, visivelmente, ambas queriam transmitir era a de que o assassinato, como a maior parte da violência do mundo, era uma conduta masculina da qual, em
sua condição de mulheres, alegravam-se de estar excluídas. de vez em quando, Buckley tirou o chapéu as contemplando com o que sabia, a consciência, que era evidente
frustração. Mas os seres humanos não eram problemas escolar de geometria. Se os analisava comprido tempo, não adquiriam
sentido súbitamente.
-A senhorita Tolgarth reconhece que não deixou à senhorita Lisle até depois de retirar-se sir George, e isso concorda com o que disse ele -comentou Buckley-. A senhorita
Gray estava em seu dormitório, de modo que ninguém viu sair à garçonete. Esta podria ter voltado para quarto de banho, fingindo que se ocupava dos preparativos
do banho de sua senhora, retornar ao dormitório depois da saída da senhorita Gray e matar a lady Ralston.
-A coordenação horaria é muito estrita. A senhora Munter a viu na despensa à uma e vinte -recordou-lhe Grogan.
-Isso diz ela. Tenho a sensação de que essas dois se puseram de acordo, senhor. É muito pouco o que pude lhes tirar, sobre tudo ao Rose Tolgarth.
-Exceto uma mentira muito interessante. A não ser, é obvio, que seja menos perspicaz do que eu acredito.
-O que?.
-No dormitório, sargento. Pense. Você lhe perguntou se
tudo estava como ela esperava encontrá-lo. Fez um gesto afirmativo a modo de resposta. Mas trate de recordar o penteadeira.O que faltava em meio daquela confusão
feminino? Algo que teríamos esperado ver dadas as coisas que de fato vimos.
Mas a lancha que levava ao Roper e ao Badgett tocou o mole antes de que Buckley encontrasse a resposta ao enigma.
.
32.
Por fim tinha acabado aquele desgraçado dia. Pouco depois das badaladas das dez e com breves "boa noite", um após o outro se tinham ido deitar em silêncio.
Os lugares comuns se tornaram impronunciáveis: "Estou morto de fadiga. foi um dia muito comprido. Que durma bem. Veremo-nos pela manhã", pois todos
continham uma carga de insinuação, de falta de tato ou de mau gosto. Duas mulheres policiais tinham transladado as pertences da Cordelia da habitação Do Morgan,
um rasgo de delicadeza que a teria divertido em condições normais. O novo dormitório estava na mesma galeria, mas ao outro lado do do Simon, e tinha vistas
a rosaleda e o lago. Quando fez girar a chave na fechadura e respirou o ar espesso e perfumado, Cordelia pensou que não se usava com freqüência. Era
uma habitação pequena, escura e abarrotada; parecia que Ambrose a tivesse mobiliado para satisfação dos visitantes do verão. Carecia da ligeireza e a
delicadeza que tinha obtido em quase todo o castelo. Cada centímetro de parede estava talher de quadros e adornos; o ornado mobiliário -de "papier-maché" e mogno-
era escuro e ameaçador. Até o âmbito mesmo parecia mofado, mas quando abriu a janela irrompeu o ruído do mar, já não soporífero e reconfortante, mas sim como
um rugido ameaçador.
perguntou-se se conseguiria reunir a energia suficiente para levantar-se da cama e entreabrir a janela. Mas esse foi seu último pensamento consciente antes de que
vencesse-a o cansaço; sentiu que se afundava irresistivelmente no sonho.
.
QUINTA PARTE
TERROR À luz DA LUA.
33.
Às nove e quinze, Cordelia entrou no despacho para chamar à senhorita Maudsley; ao levantar o receptor, perguntou-se se a polícia estaria escutando. Mas
interceptar chamadas telefônicas privadas, inclusive do cenário de um crime, era algo que sem dúvida exigia a autorização do ministério do Interior. Era
estranho o pouco que sabia com referência a uma investigação policial real, apesar dos ensinos do Bernie. Já lhe tinha surpreso descobrir que seus direitos
legais eram muito menos amplos do que sugeria a leitura de uma novela de detetives. Por outro lado, a presença física dos policiais era muito mais amedrentadora
e opressiva do que acreditava possível. Era o mesmo que ter ratos na casa. Durante um tempo podiam ser silenciosos e invisíveis, mas assim que uma se inteirava
de sua existência, era impossível fazer caso omisso de seu secreta e poluente invasão. Inclusive no despacho do Gorringe flutuava ainda a força da ingrata
personalidade do inspetor Grogan, embora tinha desaparecido tudo rastro de sua breve estadia. Cordelia teve a impressão de que a polícia tinha deixado o lugar
mais ordenado do que o tinha encontrado, o que era sinistro em si mesmo. Enquanto marcava o número de Londres, resultava-lhe difícil acreditar que não estivessem
gravando a chamada.
Era um chateio que a senhorita Maudsley não tivesse telefone particular em sua modesta habitação de aluguel. O único aparelho da residência estava no rincão
mais escuro e inacessível do vestíbulo e Cordelia sabia que teria que esperar largos minutos até que algum dos pensionistas, enlouquecido pelo insistente
toque de campainha, decidisse-se a silenciá-lo. Seria afortunada se o que respondia a chamada a entendia, e ainda mais afortunada se estava disposto a subir quatro
pisos
para chamar à senhorita Maudsley. Mas atenderam a chamada quase imediatamente. Logo que levantar o auricular, a senhorita Maudsley lhe disse que tinha comprado o
periódico dominical de costume enquanto voltava da missa de oito e que tinha permanecido encolhida no último degrau da escada perguntando-se se devia llarnar
ao castelo ou esperar a que lhe telefonasse. Suas palavras eram quase incoerentes por causa da ansiedade e a angústia que lhe embargava, e a brevidade do relatório
da imprensa não tinha contribuído a tranqüilizá-la. Cordelia pensou quão contrariada se teria sentido Clarissa de saber que sua fama, inclusive depois de uma morte
violenta, não justificava o estrelato um dia em que um espetacular escândalo parlamentario, o falecimento de um artista pop por causa de overdose de droga e
um atentado terrorista no norte da Itália tinham brindado ao diretor um excesso de candidatos para a primeira página.
Com voz quebrada, a senhorita Maudsley disse:.
-Diz que foi... bem... que a mataram a golpes. Não posso acreditá-lo. E que horrível para você! Também para o marido, é obvio. Pobre mulher! Claro que uma
tem que pensar nos vivos. Suponho que foi um intruso. O jornal diz que desapareceu o joalheiro. Espero que a polícia não se forme uma idéia equivocada.
Uma maneira tão diplomática como qualquer, pensou Cordelia, de dizer que abrigava a esperança de que ela mesma não fosse suspeita.
Cordelia lhe deu instruções lentamente e a senhorita Maudsley fez audíveis intentos por serenar-se e escutar.
-Sem dúvida a polícia fará averiguações sobre mim e sobre a agência. Não conheço o procedimento, ignoro se irá alguém ao departamento do Dorset ou se lhe pedirão
à Metropolitana que se ocupe disso. Não se inquiete. Limite-se a responder a suas perguntas.
-OH, claro, suponho que teremos que fazê-lo. Mas tudo isto é tão desagradável... Devo lhes mostrar tudo? E se querem ver as contas? na sexta-feira pela tarde
fiz o balanço da caixa pequena e me temo que as cifras não quadravam exatamente. O senhor Morgan, um homem encantador, deveu reparar a placa..., disse-me
que deixaria a conta até sua volta, mas enviei ao Bevis a comprar uns biscoitinhos para lhe oferecer com o café. O menino não se lembra de quanto lhe custaram e
jogamos
o pacote com a etiqueta ao lixo.
-É mais provável que lhe perguntem sobre a visita de sir George Ralston. Não acredito que a polícia se interesse pela caixa garota. Mas lhes permita ver tudo o que
queiram,
exceto os expedientes dos clientes, é obvio. São confidenciais. Ah, senhorita Maudsley, lhe diga ao Bevis que não se bancar esperto.
A senhorita Maudsley o prometeu com voz mais serena; evidentemente, esforçava-se em convencer a de que atuaria com a mais absoluta eficácia ante qualquer crise
que na segunda-feira pudesse lhe proporcionar. Cordelia se perguntou o que seria mais prejudicial, se as teatralizaciones do Bevis ou as apaixonados protestos da
senhorita Maudsley
no sentido de que sob nenhuma circunstância a queridísima Cordelia Gray seria capaz de assassinar. Provavelmente a presença física da polícia impediria a
Bevis cair nos piores excessos de seu talento histriônico, a não ser que por acaso tivesse visto recentemente um dos documentários televisivos dedicados
a denunciar a corrupção, a brutalidade e o racismo da força pública; em tal caso, algo era possível. Mas ao menos Cordelia podia ter a certeza
de que, quem quer que visitasse a agência, não seria Adam Dalgliesh. Nas rarefeitas e misteriosas alturas das hierarquias em que este morava agora, semelhantes
tarefas eram inimagináveis. perguntou-se se leria algo sobre o crime, se se inteiraria de que ela estava implicada.
Nada podia ter preparado a Cordelia para a singularidade do resto da manhã do domingo. Enquanto se servia os ovos mexidos do café da manhã, Ambrose interrompeu
de repente todo movimento, com a colher na mão:.
-meu deus, esqueci cancelar a visita do pai Hancock! Agora é muito tarde. Oldfield já deve estar em carnino. -voltou-se e explicou-: É um ancião sacerdote
anglicano que vive retirado no Speymouth. Quando tenho hóspedes estou acostumadas convidá-lo para que celebre o ofício dominical. Hoje em dia a gente sente a necessidade
de
esses ritos. Quando Clarissa passava aqui um fim de semana, adorava contar com ele. Divertia-a.
-Clarissa! -Ivo soltou uma rouca gargalhada que fez estremerer seu esquálido corpo-. Provavelmente chegasse à mesma hora que a polícia e teremos que lhe advertir
ao Grogan que não estaremos ao seu dispor durante aproximadamente uma hora porque assistiremos ao serviço religioso. Ardo em desejos de contemplar sua expressão
quando
inteire-se. Admite que não cancelou sua visita a propósito, Ambrose.
-Asseguro-te que não é assim. Me esqueceu por completo.
-Provavelmente não virá -disse Roma-. Já estará informado do crime, que no Speymouth terá deslocado de boca em boca, e suporá que não lhe espera.
-Não acredito. Se por causa de uma matança em massa nos víssemos reduzidos a só duas pessoas e Oldfield estivesse disponível para ir lhe buscar, viria. Está perto
de
os noventa e tem seu próprio sentido do prioritário. Além disso, desfruta com o xerez e o almoço. Será melhor que o recorde ao Munter.
Saiu, esboçando um discreto sorriso condescendente
-Não sei se teria que me pôr uma saia em lugar destas calças -disse Cordelia.
de repente, Ivo evidenciou um apetite voraz ao servir uma generosa ração de ovos mexidos.
-Parece-me desnecessário -respondeu-. Não acredito que haja trazido você luvas e o devocionario. Mas embora faltem os acessórios, podemos assistir à missa ao estilo
vitoriano. Possivelmente os Munter e Oldfield vão cumprir com seus deveres religiosos nos bancos da servidão. Sobre que demônios versará o sermão do ancião?.
Ambrose reapareceu.
-Tudo arrumado -comunicou-lhes-. Munter não o tinha esquecido. Assistirão todos ou contamos com algum impedimento de consciência?.
-Eu dissento, mas não me incomoda ir se o objetivo consiste em irritar ao Grogan -interveio Roma-. Suponho que não temos que cantar, verdade?.
-É obvio que sim. Está o "Você Deum" e as respostas. Além disso, terá que fazer coro um hino. Alguém quer escolhê-lo? -Ninguém se mostrou interessado, por isso
Ambrose prosseguiu-: Em tal caso, permito-me sugerir "Os intuitos do Senhor são inescrutáveis". Sairemos ao encontro da lancha às onze menos vinte.
Assim se iniciou aquela surpreendente manhã. A "Shearwater" bateu à lancha da polícia por cinco minutos, e Ambrose se aproximou de saudar uma frágil pessoa
com capa e barrete que saltou a terra com assombrosa agilidade e contemplou a todos benignamente com seus olhos azuis, úmidos e descoloridos. antes de que Ambrose
pudesse
fazer as apresentações, o pastor se voltou para ele e lhe disse:.
-Meus mais sentido pêsames pela morte de sua esposa.
-Foi um sucesso inesperado -respondeu Ambrose em tom grave-. Mas não fomos matrimônio, pai.
-Não? meu deus! Desculpe, não me tinha dado conta. Parece-me ter ouvido dizer que morreu afogada. Estas águas podem ser muito traiçoeiras.
-Não morreu afogada, pai. Sofreu uma grave comoção cerebral.
-Acreditei que minha ama de chaves me tinha assegurado que se afogou. Embora possa ocorrer que eu esteja pensando em outra pessoa. A guerra, possivelmente. De todos
os modos,
foi faz muito tempo. Temo-me que minha memória já não é o que era.
A lancha da polícia vibrou junto ao mole e todos observaram o desembarque do Grogan, Buckley e outros dois oficiais vestidos de patrício.
-me permita lhe apresentar ao pai Hancock, que veio a celebrar o ofício dominical de acordo com os ritos da igreja anglicana -disse Ambrose protocolariamente-.
Pelo general, o serviço dura uma hora e quarto. Como é natural, você e seus oficiais estão convidados a assistir.
Grogan respondeu secamente:.
-Obrigado, mas não pertenço a sua igreja e meus homens se ocupam destas coisas em suas horas livres. Agradecerei-lhe que volte a me permitir o acesso a todas as
habitações do castelo.
-É obvio. Munter está ao seu dispor. Eu o estarei depois do almoço.
A igreja os recebeu em seu arcaico e polícromo silencio. Persuadiram ao Simon de que se sentasse no banco do órgão, e outros desfilaram com recolhimento
até a fileira de bancos elevados, construída em seu dia pelo Herbert Gorringe. O órgão era antigo e terei que lhe injetar ire, tarefa para a que já estava preparado
Oldfield. O serviço se iniciou quando apareceu o pai Hancock com sobrepeliz. Evidentemente, Ambrose pensava que suas hóspedes eram dissidentes, se não algo pior,
necessitados de uma firme condução nos responsorios; por sua parte Ivo conservou todo o tempo uma atenta gravidade e evidenciou uma familiaridade com a liturgia
lhe sugiram de que aquela era sua atividade matinal normal de todos os domingos. Simon interpretou ao órgão com competência, embora Oldfield o deixou sem vento ao
final do "Você Deum" e o instrumento produziu um tardio, ruidoso e discordante amém. Roma esqueceu sua decisão de guardar silêncio e cantou com sua rica voz de contralto
logo que desafinada. O pai Hancock usou o livro de orações de 1662, sem supressões nem substituições, e os membros de sua congregação se declararam vis pecadores
que tinham atendido em excesso os impulsos e desejos do coração, mas prometeram emendar sua vida em um coro ligeiramente desafinado embora resolvido. Só ao final
das súplicas o pastor inseriu, inesperadamente, uma oração pelas almas dos defuntos, momento em que Cordelia percebeu uma aspiração consertada, e por
um instante o ar da igreja se esfriou. O sermão durou quinze minutos e foi uma douta dissertação sobre a teologia paulina a respeito da redenção. Quando se
levantaram para entoar o hino, Ivo sussurrou a Cordelia:.
-Isso é tudo o que alguém pede de um sermão. Que não faça concessões de nenhuma classe.
antes de almoçar, Munter serve na terraço xerez seco e muito frio. O pai Hancock apurou três taças sem que aparentemente sortissem nele nenhum efeito e falou
contente com sir George sobre ornitologia e com o Ivo a respeito da reforma litúrgica, tema no que este se mostrou surpreendentemente bem informado. Ninguém nomeou
a Clarissa, e Cordelia teve a impressão de que, pela primeira vez desde sua morte, dissipou-se seu espírito inquieto e ameaçador. Durante uns preciosos momentos
desapareceu de seu coração o peso da culpa e a desdita. Enquanto conversavam inocentemente sob o sol, resultava possível acreditar que a vida era tão segura,
tão bem ordenada, tão austeramente digna e razoável como o rito anglicano em que habian participado. E quando entraram para comer as costelas de vitela assadas
e o bolo de ruibarbo -um almoço dominical convencional e bastante pesado, servido sobre tudo, suspeitava Cordelia, em benefício do pai Hancock-, foi um alívio
a presença do pastor, oir sua voz débil, mas formosa, falando de temas tão inofensivos como os hábitos de anidación do astuto canoro e observar como gozava
francamente do vinho e a comida. Só Simon, com o rosto avermelhado, bebeu tão copiosamente, tomando o clarete como se fora água, procurando a garrafa com mão
tremente. Mas o pai Hancock se via tão afresco como de costume, depois de uma comida que teria reduzido a mais de um jovem à letargia, e se despediu de
eles com o mesmo sereno contente com que os tinha saudado quatro horas antes.
À medida que a "Shearwater" se afastava, Roma se voltou para a Cordelia e lhe disse, com brusca confusão:.
-Sairei meia hora a dar um pasco. Quer me acompanhar? Eu gostaria de falar contigo.
-Com muito prazer. Se Grogan nos precisa pode mandar para nos buscar.
Andaram sem falar pela larga extensão de grama do outro lado da  rosaleda, e logo sob a sombra das haja,  fazendo ranger a seu passado os brilhantes
montículos de folhas quedas, ouvindo por cima do som de suas pegadas a tonificante cadência do mar. Cinco minutos depois emergiram de entre as árvores e
encontraram-se no bordo do escarpado. A sua direita se elevava uma casamata de concreto, parte das defesas da ilha em 1939, com sua entrada baixa e quase
bloqueada pelas folhas. Rodearam-na e apoiaram as costas em seu áspero muro, olhando através das folhas de haja verde e ouro para a estreita franja de praia
e o resplendor dos calhaus banhados pelo mar.
Cordelia não disse nada. O passeio habia sido idéia de Roma e era ela quem devia dizer o que a tinha levado a procurar sua companhia. Não obstante, Cordelia se sentia
em
paz e cômoda a seu lado, como se nenhuma de suas diferenças importasse ante o fato de sua comum feminilidade. Viu que Roma levantava um ramo de haja e começava a
despojá-la
metodicamente de suas folhas.
-Teoricamente, é uma perita nestas questões -disse Roma sem olhar a Cordelia-. Quando poderemos nos largar? Tenho que cuidar de meu negócio e meu sócio não pode
arrumar-lhe solo indefinidamente. A polícia não tem direito a nos reter aqui, pois a investigação poderia levar meses.
-Não podem nos reter legalmente, a menos que nos prendam. Alguns teremos que assistir a indagatoria. Mas suponho que você poderá partir amanhã se quisesse.
-E o que fará George? Necessitará ajuda. Ordenará suas coisas, suas jóias, a roupa, os cosméticos, ou espera que o eu faça?.
-Não seria melhor que o perguntasse a ele?.
-Nem sequer podemos entrar em seu dormitório. A polícia ainda o mantém atado. E trouxe uma enormidade de coisas!.
Sempre para o mesmo, embora só fora por um fim de semana. Além disso terá que ocupar-se do que há no piso do Bayswater e no de Brighton, os trajes,
os vestidos, as peles. George não pode doar todo isso à sociedade de beneficência.
-surpreenderiam-se, indubitavelmente -opinou Cordelia-. Mas são capazes de lhe dar um bom fim. Podem vender a roupa em suas lojas de doações.
O bate-papo feminino sobre o guarda-roupa da Clarissa teria parecido ridícula a Cordelia se não se deu conta de que o interesse de Roma pelas coisas de seu
prima mascarava uma inquietação mais profunda: o dinheiro da Clarissa. Voltaram a guardar silêncio um momento, até que Roma disse carrancuda:.
-Sabia que pedi um empréstimo a Clarissa imediatamente antes de que a matassem e que me negou isso?.
-Sim. Estava ali quando o contou a sir George.
-E não o há dito à polícia?.
-Não.
-Muito considerado por sua parte, sobre tudo tendo em conta que não fui de tudo simpática contigo.
-O que tem que ver uma coisa com a outra? Se quiserem esse tipo de informação, podem obtê-la do interessado, quer dizer, você.
-Pois até agora não a obtiveram. Menti-lhes. Não me orgulho disso e nem sequer sei por que o fiz. Pânico, suponho, e a sensação de que lhes viria
bem me agüentar o crime e não ao George ou Ambrose. Um deles é baronet e herói de guerra, o outro é rico.
-Não acredito que queiram agüentar-lhe a ninguém exceto ao culpado. A verdade é que Grogan e Buckley não me caem nada bem. mas acredito que são equânimes.
-É estranho -refletiu Roma-. Nunca eu gostei da polícia nem jamais confiei nela, mas sempre dava por sentado que, ante um delito tão grave como um homicídio, cooperaria
com eles até as últimas conseqüências. Quero que apanhem ao assassino da Clarissa, certamente. Então por que estou à defensiva? por que atuo como se
Grogan e Buckley estivessem confabulados em meu contrário? É humilhante tirar o chapéu mentindo, mentindo e aterrada, além de envergonhada!.
-Sei. Eu sinto o mesmo.
-Parece que George tampouco lhes falou de nossa disputa. Tampouco o tem feito Tolly, aparentemente. Clarissa a enviou fora enquanto falávamos, mas tem que haver-se
dado conta. Crie que estivesse maquinando uma chantagem?.
-Estou segura de que não -tranqüilizou-a Cordelia , mas acredito que sabe, de todos os modos. Quando eu entrei, estava no quarto de banho e provavelmente o ouviu,
pois
Clarissa esteve bastante veemente.
-Esteve veemente consigo, veemente e ofensiva. Se eu fosse capaz de matar, a teria matado nesse mesmo instante.
Ao cabo de outra pausa, Roma voltou a tomar a palavra:.
-Ao que não consigo me acostumar é à forma em que todos evitamos falar sobre quem a matou. Nem sequer nos comportamos como estranhos, não dizemos nada, não perguntamos
nada. Não te parece estranho?.
-Não. Estamos entupidos aqui, todos juntos. A vida se volveria intolerável se começássemos a nos lançar acusações ou recriminações, ou se nos dividíssemos em camarilhas.
--Possivelmente tenha razão. Mas não acredito que possamos seguir assim, sem saber, sem sequer falar disso, fingindo manter amáveis conversações quando todos pensamos
no mesmo, evitando cuidadosamente os olhares de outros, duvidando, jogando chave a nossas portas de noite. Fechou a tua?.
-Sim, e nem sequer sei por que. Nem por um só instante me cruzou pela imaginação que possa haver um maníaco homicida na ilha. Clarissa era a vítima
escolhida, não a mataram por acaso. Mas fechei minha porta com chave.
-Contra quem? Quem crie que o fez?.
-Um de nós, um dos que dormiu no castelo na sexta-feira de noite -replicou Cordelia.
-Isso sei. Mas quem?.
-Ignoro-o. Sabe você?.
O ramo de haja era agora uma varinha nua nas mãos de Roma. Arrojou-a longe, procurou outra e reatou a metódica destruição.
-Eu gostaria que fora Ambrose, mas não posso acreditá-lo. Não foi George Orwell quem disse que o crime, esse delito singular, só podia nascer de uma forte emoção?
Ambrose não experimentou uma emoção forte em toda sua vida e carece da coragem e a impiedade necessários. É incapaz de tanto rancor. Gosta de jogar com os brinquedos
da violência: o cabo de uma corda de um verdugo, uma camisola ensangüentada, um par de algemas vitorianas. Com o Ambrose até o terror se volta de segunda mão,
esterilizado pelo tempo, o encanto e o pintoresquismo. E não pode ser Simon. Nem sequer tinha visto o braço de mármore, e de qualquer maneira, em caso de havê-lo
feito, já teria confessado. É um pusilânime sem caráter, como seu pai. Não teria fortaleza física para agüentar ao Grogan cinco minutos se o interrogatório se
voltasse duro. E Ivo? Bom, Ivo está agonizando. Virtualmente cumpriu já sua cadeia perpétua. É possível que se considere fora do alcance da lei. Mas
não tem motivos. Suponho que George é o principal suspeito, mas tampouco acredito que tenha sido ele. É um militar profissional, um assassino profissional se o preferir.
Mas não o faria assim, não lhe faria isso a uma mulher. Poderiam ser os Munter, ou um dos dois, ou inclusive Tolly, mas não vejo quais seriam seus móveis. Ficamos
você
e eu. Eu não fui. E se te serve de consolo, tampouco acredito que tenha sido você.
-me fale da Clarissa -exortou-a Cordelia-. De menina passou muitas férias com ela, verdade?.
-OH, aqueles horríveis agostos! Tinham uma casa junto ao rio, no Maidenhead, e ali passavam quase todo o verão. A mãe pensava que Clarissa devia contar com
companhia de sua idade, e meus pais se alegravam de que me alimentassem e me hospedassem grátis. É estranho, mas então nos levávamos bastante bem, suponho que
unidas pelo medo a seu pai. Assim que chegava de Londres, vivíamos aterrorizadas.
-Acreditava que ela o adorava, que foi um pai carinhoso e indulgente.
-Isso te contou? Típico da Clarissa! Não podia ser sincera nem sequer em relação a sua própria infância. Não, meu tio era um bruto, embora não quero dizer que nos
maltratasse
fisicamente. Mas em algum isto sentido teria sido mais suportável que o sarcasmo, a fria ira adulta, o desprezo. Então não o comprendia, agora acredito que sim.
Em realidade, não gostava das mulheres. casou-se para ter um filho varão, pois poseia esse egoísmo incapaz de imaginar um mundo no que não tivesse ao menos uma
imortalidade por substituição, e se encontrou com uma filha, uma mulher doentia que não tinha a menor intenção de voltar a engendrar e uma profissão que lhe impedia
divorciar-se. E de pequena, Clarissa nem sequer era bonita. A frieza do pai e seu próprio medo matavam toda espontaneidade, todo afeto, inclusive qualquer grau
de inteligência que pudesse ter mostrado. Não é estranho que passasse o resto de sua vida procurando amor obsessivamente. Embora possivelmente todos fazemos o mesmo.
-Ao me inteirar de uma coisa que se refere a ela, algo que fez, pensei que era um monstro -comentou Cordelia-. Mas talvez ninguém o seja, ao menos não de tudo, quando
a gente conhece a verdade de sua vida.
-Clarissa era um monstro, convenho nisso; mas quando me lembro do tio Roderick, compreendo por que. Não será melhor que voltemos? Grogan suspeitará que estamos
conspirando. Provavelmente daqui possamos baixar engatinhando até a borda e voltar andando junto ao mar.
Avançaram com dificuldade pelo bordo da escolho. Roma ia diante, com as mãos afundadas nos bolsos da jaqueta, chapinhando entre as pequenas ondas
que retrocediam, aparentemente ignorante de que os baixos da molhado calça golpeavam contra seus tornozelos, de seus sapatos empapados. A volta foi mais largo e
mais lento que o passeio pelo soto. mas por fim torceram o cabo de uma pequena enseada e o castelo se ergueu ante seus olhos. detiveram-se e levantaram a vista.
Um homem jovem em traje de banho, que levava uma caixa de madeira basta, baixava a escada de incêndios da janela do anterior dormitório da Cordelia. Descendia
com grande cuidado, enganchando os braços ao redor dos degraus, sem tocá-los com as mãos. Depois olhou em redor, caminhou até o bordo das rochas e com
um violento gesto repentino jogou a caixa ao mar. Permaneceu um momento em equilíbrio, com os braços levantados e se mergulhou. A uns trinta metros do extremo
da terraço se balançava um bote, um bote diferente da lancha da polícia. Um mergulhador, lustroso em seu traje negro, repousava apoiado na amurada. Assim que a caixa
deu na água, retrocedeu e desapareceu da vista.
-Então isso é o que pensa a polícia? -inquiriu Roma.
-Sim, isso é o que pensa a polícia.
-Estão procurando o joalheiro. O que ocorrerá se conseguem encontrá-lo?.
-Será uma má notícia para alguém -respondeu Cordelia-. Suspeito que descobrirão que ainda contém as jóias da Clarissa.
O que outra costure podia conter? Ainda estaria na gaveta secreta a nota sobre a atuação da Clarissa em "O profundo mar azul"? A polícia não se tomou
muito interesse por aquele recorte de imprensa, mas de repente Cordelia teve a sensação de que podia ser significativo. Existia a possibilidade de que guardasse
alguma
relação com a morte da Clarissa? Ao princípio lhe pareceu absurdo, mas a idéia persistiu. Sabia que não se sentiria satisfeita até ver uma cópia. O primeiro passo
consistia em visitar o escritório do periódico no Speymouth e revisar os arquivos. Recordava o ano: o ano aposentar de 1977. Não seria difícil, e ao menos teria
algo concreto que fazer.
Percebeu que Roma seguia absolutamente imóvel, com os olhos fixos no nadador solitário. Seu rosto era inexpressivo, mas um instante depois se sacudiu e disse:.
-Será melhor que entremos e façamos frente a outra ronda do que, com o inspetor Grogan, converte-se no terceiro grau. Se fosse abertamente impertinente ou
inclusive bestial, encontraria-o menos ofensivo que com sua velada insolência masculina.
Mas quando atravessaram a sala e entraram na biblioteca atraídas por um som de vozes, Ambrose lhes comunicou que Grogan e Buckley tinham partido. Deviam reunir-se
com o doutor Ellis-Jones no depósito de cadáveres do Speymouth. suspendiam-se os interrogatórios até a manhã da segunda-feira. O resto do dia lhes pertencia
e eram livres de passá-lo como melhor pudessem.
.
34.
Buckley pensou que a tarde de um domingo era um momento fatal para praticar uma autópsia. Nunca gozava quando se via obrigado a assistir a uma autópsia, mas os
domingos -inclusive quando estava de serviço- possuíam uma letárgica calma de sobremesa, que exigia uma cadeira cômoda no comilão dos sargentos e uma leitura de
relatórios feita ao azar, em lugar de uma hora em pé enquanto o doutor Ellis-Jones rasgava, serrava, cortava, sopesava e demonstrava com suas mãos enluvadas e sanguinolentas.
Não se tratava de que Buckley fosse afetado. Importavam-lhe um nada as indignidades que se praticassem em seu próprio corpo quando tivesse morrido, e não entendia
por que alguém podia sentir-se mais perturbado pelo desmembramiento ritual de um cadáver do que ele se habia sentido de menino, contemplando a seu tio Charlie em
a lhe apaixonem nave da trastienda da carniceria. Bem pensado, o doutor Ellis-Jones e o tio Charlie compartilhavam a mesma perícia e cumpriam seu trabalho de
maneira muito similar. Essa coincidência tinha surpreso ao Buckley quando, recém saído da escola preparatória, ingressou no corpo e assistiu a sua primeira autópsia.
Esperava que fosse mais científica, menos brutal e muito menos suja do que em realidade resultou ser. Então lhe tinha ocorrido que as principais diferencia
entre o doutor Ellis-Jones e o tio Charlie consistian em que este último se preocupava muito menos pela infecção, usava uma menor variedade de instrumentos não
tão refinados e tratava a carne com mais respeito. Claro que isso não era assombroso quando se pensava no que pedia por ela.
alegrou-se de sair por fim ao ar livre, e não porque o depósito cheirasse mau. Para ele teria sido menos desagradável em tal caso. Ao Buckley desagradava profundamente
o aroma de desinfetante que recubría, sem mascará-lo, o aroma de putrefação. O fedor era tênue mas persistente e estava acostumado a ficar pego ao nariz.
O depósito era um edifício moderno construído em terreno alto ao oeste da pequena cidade, e, enquanto se aproximavam do Rover, viram as luzes que avançavam como
vaga-lumes ao longo das ruas curvas e a escura forma do Courcy Island ao longe, tombada indolente, como um animal semisumergido. Era estranha, pensou
Buckley, a forma em que a ilha parecia aproximar-se ou retroceder segundo a luz e a hora do dia. Sob o morno sol outonal permanecia envolta em uma neblina azulada
e parecia tão próxima que imaginava possível nadar até aquela borda plácida e variopinta. Naquele momento, em troca, afastou-se para o canal, remota
e sinistra: uma ilha de mistério e horror. O castelo se elevava sobre sua borda meridional e não se viam luzes. perguntou-se o que estaria fazendo o grupúsculo
de suspeitos, como abordariam a prolongada noite que lhes esperava. Supôs que todos, salvo um, dormiriam sob chave.
Grogan se aproximou dele e, assinalando a ilha com a cabeça, disse:.
-Agora sabemos o que já sabia um deles: como morreu. Se deixarmos de lado o bate-papo técnica do Ellis-Jones sobre a mecânica da força e a absorção local
de energia cinética das feridas na cabeça, para não mencionar a forma interessante e característica em que se desintegra sob o peso do impacto, o que nos
fica? Tanto como esperávamos. Morreu de uma fratura deprimida na parte dianteira do crânio, praticada por nosso velho amigo o instrumento contundente. Provavelmente
nesse momento estava tendida de barriga para cima, tal como a encontrou a senhorita Gray. A hemorragia foi contínua mas quase totalmente interna e o efeito do golpe
se
viu intensificado pelo fato de que os ossos do crânio são mais magros do normal. A inconsciência sobreveio quase imediatamente e morreu em um prazo de cinco
a quinze minutos. O resto das lesões foram feitas depois do falecimento, mas infelizmente ignoramos quanto tempo depois. Ou seja que temos a um
criminal que se sinta a esperar a que sua vítima mora e logo ...o que? Decide assegurar-se? Decide encobrir a forma em que morreu lhe dando mais do mesmo? Não irá
a me dizer que aguardou dez minutos antes de resolver que já era hora de sentir pânico ..... .
--Poderia ter acontecido esse tempo procurando algo, ficou furioso porque não o encontrou -conjeturou Buckley- e descarregou sua frustração no cadáver.
--Procurando o que? Nós tampouco o encontramos, a não ser que siga na habitação e nos tenha passado PR alto seu significado. Tampouco há sinais de que
praticou-se um registro. Se a habitação foi registrada, fez-o com muito cuidado alguém que sabia o que procurava. E se procurava algo, estou seguro de que
encontrou-o.
-Ainda falta o relatório do laboratório, senhor. E o das vísceras estará dentro de uma hora.
-Duvido que descubram nada, O doutor Ellis-Jones não detectou indícios de veneno. Podem havê-la drogado..., embora não deveríamos teorizar adiantado, mas suspeito
que acordada quando morreu e que viu a cara de seu assassino.
Ao Buckley pareceu extraordinário o descida de temperatura que se produziu quando se ocultou o sol. Foi o mesmo que passar do verão ao inverno em um par de
horas. Saíram lentamente do estacionamento e giraram para a cidade. Ao princípio Grogan só se expressou com lacônicos lhes resmungue:.
--Sabe algo do juiz de primeira instância?.
--Sim, senhor. A indagatoria foi fixada para as dois em ponto da  terça-feira.
--O que tem que Londres? Burroughs segue com suas averiguações?.
-Chegará a primeira hora da manhã. Hei dito aos mergulhadores que os necessitaremos toda a semana
--O que tem que essa condenada conferência de imprensa?.
---Amanhã pela tarde, senhor. Às quatro e meia.
Voltou a envolvê-los o silêncio. Ao trocar de velocidade para subir levantada e te serpenteiem custa que conduzia ao Speymouth, Grogan disse repentinamente:.
-Significa algo para você o nome do comandant Adam Dalgliesh, sargento?.
Não era necessário perguntar a que força pertenecia. Só a Metropolitana tinha comandantes.
-ouvi falar dele, senhor -respondeu Buckley.
-Quem não? É a mão direita do delegado, a menina dos olhos da instituição. Quando a Metropolitana ou o ministério do Interior querem demonstrar que a
policia sabe como dirigir os talheres e o que veio deve pedir com o "canard a l'orange" e como  falar com um ministro ao nível de seu secretário permanente, se
tiram da manga ao Dalgliesh. Se não existisse, a polícia teria que inventá-lo.
A mofa soava pouco original, mas a aversão era de primeira categoria.
--Toda esta questão resulta um pouco antiquada, não lhe parece, senhor?.
-Não seja ingênuo, sargento. Só é antiquado falar assim, mas isso não significa que tenham trocado em seu pensamento nem em suas atitudes. Agora Dalgliesh poderia
contar
com sua própria força, provavelmente em condições de presidente da associação de delegados de polícia, se não tivesse querido limitar-se à investigação. Para
não falar de sua vaidade pessoal. O resto de nós pode derrubar-se na mierda para obter algo. Eu sou o gato que anda sozinho e todos os lugares me dão igual.
Kipling.
-Sim, senhor.  -Buckley fez uma pausa e logo perguntou-: O que acontece o comandante?.
-Conhece a Cordelia Gray. viram-se envoltos em um caso anterior. Cambridge. Não há detalhes e ninguém os pediu. Mas apresentou um relatório irreperochable sobre
ela e sua agência. Nós gostemos ou não, é um bom polícia, um dos melhores. Se ele disser que Gray não é uma assassina, estou disposto a aceitá-lo como prova. Mas
não
há dito que seja incapaz de mentir, e não lhe acreditaria se o houvesse dito.
Grogan manteve um taciturno silêncio, mas sua mente devia bulir com as entrevistas do dia anterior. depois de dez minutos durante os quais nenhum de ambos
abriu a boca, decidiu-se a dizer:.
-Há algo que me intriga. Provavelmente você também o notou. Todos fizeram uma descrição da visita do sábado pela manhã à igreja e a cripta. Todos
mencionaram ao prisioneiro que morreu afogado. Mas todos o fizeram com excessiva indiferença, como mera menção de uma pequenez insignificante, como uma breve excursão
que lhes ocorreu empreender antes de almoçar. Assim que os convidei a estender-se sobre o incidente, reagiram como um punhado de lhes vista que tivessem vivido
um interessante episódio nas covas do Marabar. Suspeito que não captou a alusão, sargento.
-Não, senhor.
-Não se preocupe. Não estou degenerando em um policial literato. Isso o deixo ao Dalgliesh. Quando ia à escola tínhamos como livro de leitura obrigatória "Passagem
à a Índia". Sempre pensei que se tratava de uma obra valorada em excesso. Mas nenhum conhecimento se desperdiça no trabalho policial, como estavam acostumados a
me dizer em
a escola preparatória, aparentemente nem sequer o do E. M. Forster. Na Caldeira do Diabo ocorreu algo do que nenhum deles está disposto a falar
e eu gostaria de saber o que é.
-A senhorita Gray encontrou ali uma das mensagens.
-Isso diz. Mas eu estou pensando em outra coisa. Provavelmente seja uma aposta arriscada, mas acredito que devemos afundar mais em torno desse afogado em 1940. Suponho
que o ponto de partida tem que ser o Comando Sul.
Os pensamentos do Buckley voltaram para aquele corpo branco cientificamente esquartejado, a aquela nudez carente de erotismo. E mais ainda. Por um instante, enquanto
observava aqueles dedos enluvados e exploratórios, sentiu que nenhum corpo de mulher voltaria a lhe excitar.
-Não houve violação nem contato sexual recente -disse.
-O que não nos surpreende no mais minimo. A seu marido faltava a inclinação, e ao Ivo Whittingham, a força. Quanto a seu assassino, tinha outras coisas no que
pensar. Daremos por terminado o dia, sargento. O chefe de polícia quer falar comigo com primeira hora da manhã, o que sem dúvida significa que sir Charles Cottringham
pôs-se em contato com ele. Esse homem é um chato. Me indigna que não se ata ao teatro para aficionados e deixe os dramas da vida real em mãos dos peritos.
Depois iremos ao Courcy Island e veremos se uma noite de descanso lhes refrescou a memória.
.
35.
As intermináveis horas levaram, muito lentos, ao momento do jantar. Cordelia entrou depois de uma última e solitária caminhada com tempo apenas para tomar banho
e
trocar-se; quando baixou, já estavam no comilão Ambrose, sir George e Ivo. Todos se tinham sentado antes da aparição do Simon, que levava um traje escuro.
Olhou a outros, lhe acenderam as bochechas e disse:.
-Sinto muito. Não pensei que devia me trocar. Não demorarei -voltou-se em direção à porta.
Ambrose lhe chamou, com um deixe de impaciência na voz:.
-O que importa? Se se sentir mais cômodo, pode jantar em traje de banho. A ninguém importa o que ponha.
Cordelia teve a impressão de que não era a forma mais afortunada de dizê-lo. As palavras subentendidas flutuavam no ar: a Clarissa teria importado, mas
já não estava ali. Os olhos do Simon giraram para a cadeira vazia da cabeceira da mesa. Depois se sentou ao lado da Cordelia.
Onde está Roma? -perguntou Ivo.
-Pediu que subissem a sua habitação ensopa e sanduíches de frango. Diz que lhe dói a cabeça.
A Cordelia pareceu que todos duvidavam simultaneamente da realidade daquela jaqucca, embora no fundo felicitavam a Roma por ter dado com um pretexto tão
singelo para evitar o primeiro jantar propriamente dito que se celebrava da morte da Clarissa. A mesa tinha sido reorganizada, possivelmente em uma tentativa de
subtrair patetismo ao trauma provocado por aquela cadeira vazia. As duas cabeceiras estavam livres; Cordelia e Simon ficaram sentados frente a Ambrose, Ivo e sir
George,
enquanto que um lance de mogno se estendia desocupado a ambos os lados. Cordelia pensou que aquela disposição lhes dava o aspecto de um par de candidatos que se
enfrentam
a uma comissão de examinadores não muito intimidadora, impressão reforçada pelo traje do Simon, com o qual, paradoxalmente, parecia menos cômodo e mais formalmente
vestido que os outros três com seus níveos peitilhos e seus smokings.
Não estavam pressentem Munter nem sua mulher. junto a cada prato havia uma terrina de "vichyssoise", e a fonte com o segundo prato estava tampada sobre o calientaplatos
do aparador. percebia-se um leve aroma de pescado, inverossímil ocorrência para um domingo. Evidentemente seria um jantar para convalescentes sobriamente inofensiva,
nada excitante para o paladar nem para a digestão. Uma verdadeira delicadeza de etiqueta culinária, pensou Cordelia, a eleição do menu para um grupo de suspeitos
de homicídio que jantam juntos o dia posterior ao crime. Os pensamentos do Ivo deveram ser paralelos aos seus, pois nesse momento disse:.
-Pergunto-me o que rechaçaria a senhora Beeton como comida mais inapropriada para esta ocasião. Eu diria que "borsch" seguido por filete à tártara. Não sei o que
dizer
sobre a sobremesa. Não pode ser muito grosseiro, mas é necessário que seja opíparamente indigesto.
-A você nada importa? -perguntou-lhe Cordelia em voz baixa.
Ivo fez uma pausa antes de responder, como se a pergunta da Cordelia merecesse uma atenta reflexão.
-Não queria saber que sofreu ou que sentiu medo nem sequer um instante. Mas se o que você quer averiguar é se me importa que já não esteja no mundo dos
vivos, devo lhe dizer que não, que em realidade não me importa.
Ambrose tinha terminado de servir o Graves.
-Teremos que nos servir por nossa conta -comunicou-lhes-. Hei-lhe dito à senhora Munter que se tome a noite livre e que descanse; por sua parte, Munter não há
aparecido do almoço. Se amanhã a polícia quer voltar a lhe entrevistar, não terão sorte. Ocorre aproximadamente cada quatro meses e invariavelmente se
recebi hóspedes. Não sei se se trata de uma reação por causa de tanto agitação ou se for sua maneira de me desalentar a receber convidados. Como pelo general é o
bastante considerado para esperar a que minhas hóspedes se foram, não posso me queixar. Possui qualidades compensatórias.
-embebeda-se? -perguntou sir George-. podia ser aficionado à bebida.
-Isso me temo. Está acostumado a durar três dias. Disse-me para meus adentros que possivelmente a morte violenta de um de suas hóspedes quebrantaria a pauta, mas
ostensiblemente não
foi assim. Suponho que é sua maneira de liberar-se de algum intolerável chateio interior. Em realidade, a ilha não é conveniente para ele. Sente uma repugnância
quase patológica pela água. Nem sequer sabe nadar.
Ambrose, Ivo e Cordelia se aproximaram do aparador. Ambrose levantou a coberta de prata e ficaram Á a vista uns magros filetes de linguado em um molho
cremosa.
-Então por que fica? -quis saber Ivo.
-Jamais o perguntei, por temor a que ele pudesse me fazer a mesma pergunta. Por dinheiro, suponho. Além disso gosta da solidão, embora preferiria que não estivesse
garantida por duas milhas de água. Só tem que me atender a mim, em conjunto uma tarefa fácil.
-E mais fácil agora que Clarissa morreu. Suponho que não seguirá adiante com a idéia do festival de teatro.
-Nem sequer como comemoração em sua honra, meu querido Ivo.
Então pareceram compreender que a conversação, embora sir George estava muito longe para ouvi-la, era de mau gosto. Os dois olharam a Cordelia, que estava
um pouco zangada com o Ambrose. Enquanto se servia as ervilhas disse impulsivamente:.
-Me ocorre que possivelmente tenha encontrado a forma de aumentar seus ganhos com um pouco de contrabando. A Caldeira do Diabo seria um ponto de descarga muito conveniente.
Notei que mantém o ferrolho da trampilla bem engordurado, e não é necessário que o faça se os visitantes do verão não pisam nesse lugar. Além disso, na sexta-feira
por
a noite vi piscar uma luz em alta mar e pensei que podia ser um sinal de reconhecimento.
Ambrose riu enquanto agarrava seu prato, mas quando falou havia um leve matiz de inconfundível despeito em sua voz:.
-A engenhosa Cordelia! Que pena que só seja uma aficionada! Grogan estaria encantado de poder alistá-la nas filas de seus bisbilhoteiros oficiais. É possível que
Munter tenha seus assuntos pessoais, mas não me confia isso e eu não tenho a menor intenção de averiguá-lo. Courcy é, tradicionalmente, um refúgio natural de contrabandistas,
e quase todos os marinheiros destas lareiras fazem seus pinitos no contrabando. Não deve ser muito, talvez algumas barricas de conhaque, de vez em quando alguns
frascos
de perfume. Nada tão espetacularmente ousado como as drogas, se é que está pensando nisso. À maioria da gente gosta de ter algum ingresso livre de impostos,
e um toque de risco intensifica o atrativo. Mas não lhe aconselho que transmita suas suspeitas ao Grogan. lhe deixemos seguir com a investigação que tem entre mãos.
-O que significariam as luzes que viu Cordelia? -interessou-se Ivo.
-Suponho que foi uma maneira de afastar a seus cupinchas. Certamente não queria que desembarcassem o material quando a ilha era um hervidero de policias.
-Cordelia viu o sinal na sexta-feira -disse Ivo em tom neutro-. Como podia saber Munter que a polícia estaria aqui ao dia seguinte?.
Ambrose se encolheu de ombros, despreocupado.
-Então não era a policia a quem temia. Talvez sabia ou adivinhou que uma detetive privada nos honrava com sua presença. Não me pergunte como soube. Clarissa
não me disse isso e, embora o tivesse feito, eu não o teria comunicado ao Munter. Mas de acordo com minha experiência, é muito pouco o que acontece sob o teto de
qualquer casa sem que um bom servente não seja o primeiro em inteirar-se.
Voltaram junto a sir George, que já se serviu o linguado e comia com impassível determinação, embora sem aparente prazer. Cordelia refletiu sobre o caso
Munter. Não lhe parecia provável que este tivesse adivinhado seu segredo nem que tivesse alterado seus planos em caso de conhecê-lo. Era mais possível que, com o
castelo
cheio de hóspedes, tivesse pensado que o momento não era propício para receber o bota de cano longo: muita gente ao redor, muito trabalho adicional, a possibilidade
de que lhe resultasse difícil escapulir-se sem que o notassem. Possivelmente não tinha podido fazer chegar a mensagem a seus companheiros, ou a mensagem se extraviou.
Ou
alguém tinha chegado à ilha inesperadamente, alguém a quem temia em particular, ou alguém que podia estar informado do que ocorria na Caldeira do Diabo,
que inclusive a tinha visitado? Uma só pessoa satisfazia todos esses requisitos: sir George.
O jantar parecia prolongar-se sem solução de continuidade. Cordelia notou que todos desejavam lhe pôr fim, mas ninguém queria dar a impressão de ter pressa nem ser
o
primeiro em retirar-se. Talvez por esse motivo pareciam comer com deliberada lentidão. perguntou-se se seria a ausência de criados o que voltava tão insólita a situação;
pareciam resistentes de uma guarnição abandonada, e breve assediada, que ingeriam estoicamente o último jantar com tradicional cerimônia, os ouvidos aguçados e
atentos aos primeiros gritos distantes dos bárbaros. Comiam e bebiam, mas o faziam em silêncio. As seis velas em seus bifurcados suportes entrelaçados pareciam
arder com menos fulgor que a primeira noite, de modo que seus rasgos, pela metade sombreados, acentuavam-se em caricaturas de suas personalidades diurnas. Mãos pálidas
e descoloridas se aproximavam do fruteiro, a pêssegos aveludados e vermelhos, ao curvo brilho dos plátanos, às maçãs brunidas que pareciam tão artificiais
como a cútis do Ambrose iluminado pelas velas.
As portas vidraças estavam fechadas para evitar a entrada do frio e um monticulo de lenha fina crepitava na enorme churrasqueira..., mas aquelas chamas que dançavam
a rajadas não podian explicar o opressivo calor da estadia. Cordelia teve a impressão de que a temperatura aumentava minuto a minuto, que o calor do dia, apanhado
alli, tornou-se mais denso, dificultando a respiração, intensificando o aroma da comida até fazê-la levemente nauseabunda. E em sua imaginação trocou
a habitação propriamente dita: os Orpen esbanjavam amorfas cores e as paredes parecian cobertas de toscas tapeçarias; o teto elegantemente estucado irradiava
faz defumados para um negro infinito, abrindo-se a um firmamento eternamente vazio de estrelas. estremeceu-se a pesar do calor e agarrou a taça de vinho como se
o contato fisico do frio cristal pudesse fortalecer seu sentido da realidade. Possivelmente o pleno horror da morte da Clarissa e a tensão do interrogatório
policial cobravam nesse momento seu preço.
Uma das velas tremeu como alcançada por um fôlego invisível, piscou e se apagou. Simon exalou um suspiro e a seguir um prolongado e urgente gemido.
As mãos de todos, a metade de caminho das respectivas bocas, ficaram paralisadas. As caras se voltaram para unisono, com a vista fixa no ventanal. Contra
a luz da lua se perfilou uma silhueta innensa que agitava seus negros braços e que por último se equilibrou sobre os cristais. Sua fúria chegou fracamente a seus
ouvidos entre um lamento e um bramido. De improviso a silhueta interrompeu seu frenético tamborilar e permaneceu por um instante imóvel, olhando-os. Boquiaberta,
os
lábios em carne viva, a aparição parecia dar chupadas à janela. Duas Palmas gigantescas, com os dedos estendidos, imprimiram-se nos cristais. As facções
apertadas e disformes se dissolveram contra o ventanal em uma confusão de carne quase murcha. Logo a aparição cobrou forças e empurrou. As portas cederam e
Munter, com os olhos extraviados, caiu virtualmente no interior. O ar noturno acariciou fresco e doce os rostos dos comensais, e o murmúrio das
ondas se converteu em uma encrespada maré de sons, como se a cambaleante silhueta tivesse sido arrastada para alli pela força de uma violenta borrasca, carregando
com todo o mar a suas costas.
Permaneceram mudos. Ambrose ficou em pé e se adiantou. Munter o empurrou a um lado e, arrastando os pés, aproximou-se de sir George até que suas caras quase se
tocaram. Sir George se manteve estático em seu assento. Não moveu um só músculo. Então falou Munter, jogando a cabeça para trás, quase em um uivo:.
-Assassino! Assassino! Assassino!.
Cordelia se perguntou quando se decidiria a mover-se sir George, ou se aguardaria até que os dedos do Munter se fechassem sobre sua garganta. Mas Ambrose se havia
situado detrás e lhe apertava os trementes braços. Ao princípio o contato pareceu apaziguar ao Munter, mas depois deu um violento puxão. Ambrose disse, sem fôlego:.
-Não poderia ajudar algum de vós?.
Ivo habia começado a podar um pêssego e parecia absolutamente indiferente.
-Suspeito que nesta emergência eu não serviria de nada.
Simon se levantou e lhe aferrou um braço ao intruso. Ao contato das mãos do moço, toda beligerância abandonou ao Munter. Lhe dobraram os joelhos; Ambrose
e Simon se aproximaram mais ainda, para sustentar entre ambos seu peso lhe bamboleiem. Munter fez um intento por centrar o olhar no Simon, articulou umas poucas
palavras
guturais e ininteligíveis, que soavam a uma língua estrangeira. Mas suas últimas palavras foram claras:.
-Pobre bode..., mas essa sim que era uma zorra.
Ambrose e Simon o levaram a porta. Munter não ofereceu a menor resistência e os acompanhou obediente como um pirralho disciplinado.
Quando saíram, os dois homens e Cordelia guardaram um momento de silêncio. Depois sir George se levantou e fechou a porta vidraça. O mar emudeceu e as trementes
velas se
aquietaram. Enquanto voltava para a mesa, sir George escolheu uma maçã e disse:.
-Que exemplar extraordinário! No Sandhurst tive um condiscípulo capaz de beber assim. Estava sóbrio vários meses e logo se passava uma semana bêbado como uma Cuba.
Torpedearam seu navio no Mediterrâneo no inverno do quarenta e dois, com um tempo espantoso. Resgataram-no de uma balsa três dias mais tarde. Foi o único
supervivente. Disse que devia agradecer-lhe a que estava conservado em uísque. Criem que Gorringe deixa em mãos do Munter a chave de sua adega?.
-Eu diria que não -respondeu Ivo em tom divertido.
-Não é fácil manter um acordo com um mordomo ao que não lhe podem confiar as chaves. Não obstante, suponho que serve para outras coisas. É um acérrimo defensor
do Gorringe, evidentemente.
-O que lhe ocorreu? A seu amigo refiro... -perguntou Ivo.
-caiu na piscina de sua casa e se afogou. No extremo pouco profundo. Durante o período alcoólico, naturalmente.
Pareceu transcorrer um bom momento até que apareceram Ambrose e Simon. A Cordelia chocou a palidez do jovem: reduzir a um bêbado não podia ser um lance tão
horripilante.
-Deitamo-lhe -disse Ambrose-. Esperemos que fique na cama. Peço-lhes desculpas pela cena. Munter nunca se comportou de maneira tão espetacular.
Alcança-me o fruteiro?.
depois de jantar se reuniram no salão. A senhora Munter não tinha aparecido e eles mesmos se serviram o café da cafeteira de filtro que estava preparada
sobre o aparador. Ambrose abriu as portas vidraças e um após o outro saíram a terraço como se lhes chamasse o mar. A lua enche riscava uma larga banda chapeada
para o horizonte, e umas poucas estrelas salpicavam o negriazul do céu. A maré era poderosa. Ouviam-na lamber as pedras do mole e também perceberam o
longínquo murmúrio das acalmadas ondas siseantes sobre a praia de calhaus. Um só som se sobrepunha a estes: suas surdas pegadas. Nesta paz, pensou Cordelia,
seria fácil acreditar que nada importa, nem a morte nem a vida nem a violência humana nem o sofrimento. A imagem do manchón de carne esmagada e sangue coagulado
que tinha sido o rosto da Clarissa, gravado para sempre em sua mente, voltou-se irreal, algo que tinha imaginado em outra dimensão do tempo. A desorientação
era tão grande que teve que lutar contra ela recordando-se por que estava ali e o que era o que tinha que fazer. Saiu de seu transe ao oir a voz do Ambrose, que
falava-lhe com o Simon.
-Pode tocar o piano se quiser. Não acredito que meia hora de música fira a suscetibilidade de ninguém. Tem que haver um pouco adequado, entre uma composição de variedades
e a "Marcha fúnebre" do Saúl.
Sem responder Simon se aproximou do piano. Cordelia o seguiu ao salão e o viu sentar-se. cabisbaixo, contemplando em silêncio as teclas. De improviso, Simon colocou
a cabeça entre os ombros,  baixou as mãos para o teclado e começou a debulhar notas com serena intensldad; Cordelia reconheceu o movimento lento de "O imperador",
do Beethoven. Ambrose fez ouvir sua voz da terraço:.
-Trilhado mas oportuno.
Simon interpretou impecavelmente; as notas arrulhavam o ar. A Cordelia sentiu saudades que tocasse muito melhor agora que Clarissa estava morta. Quando terminou
o movimento,
perguntou-lhe:.
-O que ocorrerá com seus estudos?.
-Sir George me há dito que não me preocupe, que posso terminar o último ano no Melhurst e logo ir ao Colégio Real ou à Academia, se consigo ingressar.
-Quando lhe disse isso?.
-Quando foi a minha habitação depois de que encontrassem a Clarissa.
Uma decisão notavelmente veloz, pensou Cordelia, dadas as circunstâncias. Supunha que sir George tinha outras coisas em que pensar, mais urgentes que a carreira
de
Simon. O menino deveu lhe haver adivinhado o pensamento, pois levantou a vista e se apressou a esclarecer:.
-Perguntei-lhe o que passaria conmlgo e me respondeu que não devia me preocupar, que nada trocaria, que podia voltar para a escola e depois seguir minha carreira
no Colégio
Real. Eu estava assustado e impressionado e acredito que ele tratou de me tranqüilizar.
Mas não tão impressionado como para não pensar primeiro em si mesmo. Imediatamente, Cordelia se reprovou a injusta crítica e fez um esforço para apartar a de sua
mente.
Ao fim e ao cabo, a do Simon habia sido uma natural reação imatura ante a tragédia. O que será por mim? Como afetará isto minha vida? Acaso não era isso o que tudo
o mundo queria saber? Ao menos ele tinha tido a sinceridade de perguntá-lo em voz alta.
-Me alegro, se isso for o que quer.
-Isso é o que quero, mas acredito que não lhe entusiasmava. Não estou seguro de que deva seguir adiante com algo que Clarissa não passaria.
-Não pode apoiar sua vida nisso. Tem que tomar suas próprias decisões. Ela não poderia tomar por tí embora estivesse viva. É uma tolice esperar que o faça
agora que está morta.
-Mas é seu dinheiro.
-Suponho que agora será o de sir George. Se não lhe incomoda, não vejo por que tem que preocupar-se você.
Observando os ávidos olhos que contemplavam se desesperados os seus, Cordelia sentiu que lhe estava falhando, que Simon procurava nela compreensão, algum tipo de
segurança, no sentido de que podia tirar da vida o que necessitasse e tomá-lo sem remorsos. Mas não era isso o que todos desejavam? Uma parte dela
sentiu a tentação de dizer: já tomaste o bastante. por que resistir agora a tomar isto? Mas em troca, declarou:.
-Suponho que se tiver maior necessidade de tranqüilizar sua consciência que de ser um pianista profissional, o melhor será que renuncie agora mesmo.
-Não sou um grande intérprete e ela sabia -a voz do Simon
soou repentinamete humilde-. Não entendia de música, mas sabia. Clarissa sabia cheirar o fracasso.
-Que seja bom ou mau intérprete é outra questão. me parece que o faz muito bem, embora em realidade não posso te julgar. Tampouco acredito que Clarissa estivesse
em condições de fazê-lo. Mas os professores dos colégios de música sabem quem vale e quem não. Se considerarem que merece a pena te aceitar, devem pensar que
tem ao menos a possibilidade de fazer carreira na música. depois de tudo, eles sabem a que competência te enfrenta.
Simon percorreu a habitação com o olhar e logo disse:.
-Incomodaria-lhe falar um momento comigo? Quero lhe perguntar três coisas.
-Estamos falando.
-Aqui não, em privado.
-Estamos em privado. Não acredito que outros entrem. Levará-te muito tempo?.
-Quero que me diga o que lhe ocorreu, que aspecto tinha quando a encontrou morta. Eu não a vi, e fico em vela imaginando-a. Se soubesse não me resultaria tão
espantoso. Nada é tão espantoso como o que imagino.
-Não lhe disse isso a polícia? Nem sir George?.
-Não me há isso dito ninguém. O perguntei ao Ambrose, mas não quis me responder.
E a polícia teria motivos para guardar silêncio a respeito dos detalhes do crime, naturalmente. Mas já tinham entrevistado ao Simon. Cordelia pensou que já não
importava que soubesse. Compreendia o horror de suas fantasias noturnas, mas não havia forma de apresentar a brutal verdade com cores amáveis.
-Tinha a cara destroçada -disse. Simon guardou silêncio; não perguntou como nem com o que. Cordelia prosseguiu-: Estava pacificamente tombada na cama, quase como
se dormisse.
Estou segura de que não sofreu. Se o fez alguém a quem ela conhecia, em quem ela confiava, provavelmente nem sequer teve tempo de assustar-se.
-Seu rosto era irreconhecível?.
-Sim.
-A polícia me perguntou se tinha pego algo de uma vitrine, um braço de mármore., Isso significa que acreditam que foi a arma homicida?.
-Sim. -Já era muito tarde para lamentar ter entrado no tema, e acrescentou-: Encontraram-no junto à cama. Estava ..., parecia ter sido usado.
-Obrigado -Sussurrou Simon, mas tão baixo que Cordelia apenas o ouviu..
-Disse que eram três coisas -recordou-lhe Cordelia um instante depois.
Simon levantou a vista ansioso, quase agradecido pela interrupção de seus pensamentos.
-Sim, trata-se do Tolly. na sexta-feira, quando fui nadar enquanto outros percorriam o castelo, esperou-me na praia. Queria me convencer de que abandonasse a Clarissa
e me fora a viver com ela. Insistiu em que podia fazê-lo imediatamente, pois em seu piso havia uma habitação que podia ocupar até que encontrasse trabalho. Disse-me
que Clarissa podia morrer.
-Disse-te como ou por que?.
-Não. Só que Clarissa pensava que ia morrer e que a gente que o pensa está acostumado a morrer. -Olhou-a aos olhos-. E ao dia seguinte Clarissa perdia a vida. Não
sei
se devo informar à polícia do ocorrido, de que ela me esperou e que me isso diio.
-Se Tolly tinha pensado matar a Clarissa, não lhe teria antecipado isso. É provável que tentasse te comunicar que não podia confiar na Clarissa, que esta podia trocar
com respeito a ti, que possivelmente não sempre estivesse a seu lado.
-Acredito que sabia, que o adivinhou. Tenho que dizer-lhe ao inspetor? É uma prova? deu-se conta de que lhe estava ocultando algo?.
-O contaste a alguém?.
-Não. Só a você.
-Tem que fazer o que considerar correto.
-Eu não sei o que é correto! O que faria você se se encontrasse em meu lugar?.
-Não o diria. Mas eu tenho minhas razões. Se você crie que deve dizê-lo, diga-o. Se te servir de consolo, devo acrescentar que não acredito que a polícia prenda
o Tolly só
em virtude desse testemunho, e não têm nenhum outro, ao menos que eu saiba.
-Mas ela se inteiraria de que eu o hei dito a policia! Que pensaria de mim? Não acredito que depois de algo assim possa voltar a olhar a à cara.
-Possivelmente nunca mais tenha que fazê-lo. Não acredito que siga ao serviço de sir George agora que Clarissa morreu.
-Então, em meu lugar, o diria à polícia?.
A Cordelia lhe acabou a paciência. O dia tinha sido largo, com o broche de ouro da espetacular aparição do Munter, e estava fatigada, tanto fisica como psiquicamente.
Além disso, não era fácil assimilar a obsessiva preocupação do Simon por si mesmo.
-Já te respondi. Eu não diria nada. Mas não sou você. trata-se de tua responsabilidade, responsabilidade que não pode delegar em outro. Suponho que haverá algo
que seja capaz de decidir por sua conta. -Lamentou a acritud de suas palavras assim que as pronunciou. Apartou o olhar de seu semblante enrubescido e de seus caninos
olhos afligidos-. Desculpa. Não teria que haver dito isso. Acredito que todos estamos com os nervos de ponta. Não queria me fazer uma terceira pergunta?.
-Não -murmurou Simon com lábios trementes-. Nada mais. Muito obrigado. -levantou-se e fechou o piano. Adicionou serenamente, em um esforço por recuperar a dignidade-:Se
alguém pergunta por mim, estarei deitado.
Inesperadamente, Cordelia descobriu que também ela estava a ponto de tornar-se a chorar. Rasgada entre a irritação e a piedade, desprezando sua própria debilidade,
decidiu seguir o exemplo do Simon. O dia se prolongou em excesso. Saiu a terraço, para dar as boa noite. As três silhuetas vestidas de negro estavam
separadas, perfiladas contra a iridiscencia do mar, imóveis como estátuas de bronze. Ante sua chegada, voltaram-se simultaneamente e Cordelia sentiu o olhar
concentrada de três pares de olhos. Ninguém se aproximou nem falou. O silêncio daquele claro de lua lhe pareceu quase de mau agouro. Enquanto lhes dava as boa noite,
a idéia que tinha tentado sufocar as últimas vinte e quatro horas saiu à superfície com toda sua nua e aterradora lógica: "Nesta pequena e solitária ilha
estamos reunidas dez pessoas e uma delas é um assassino".
.
36.
Cordelia ficou dormida assim que fechou o livro e o deixou sobre a mesita de noite. O despertar foi repentino. Permaneceu um momento confundida e logo alargou
a mão para acender a luz. Seu relógio de pulso, que tinha deixado sobre a mesinha, indicou-lhe que eram pouco mais das três e meia, muito cedo, sem dúvida,
para ter despertado espontaneamente. Pensou que seu sonho tinha sido interrompido por algum som, talvez pelo ulular de um ave noturna. A luz da lua derramava
através das cortinas, jogadas pela metade, um feixe de luz sobre o teto e as paredes. O silêncio era absoluto exceto pelo pulso ressonante das águas, mais
forte agora que em meio da agitação diurna. Sua mente, ainda entorpecida, aferrou-se ao final de um sonho. Estava no Kingly Street e a senhorita Maudsley lhe havia
mostrado com orgulho um gatinho recém resgatado. Como está acostumado a ocorrer nos sonhos, não lhe surpreendeu que o animal estivesse dormindo em um berço esculpido
com dossel
roio e cortinas laterais, uma miniatura da cama da Clarissa, nem que ao aparecer ao berço e apartar a manta não visse um gato a não ser um bebê e soubesse que se
tratava
do filho ilegitimo da senhorita Maudsley, nem que tivesse que ser muito diplomática para não revelar que sabia. Sorriu ao recordá-lo, apagou a luz e tentou voltar
a conciliar o sonho.
Mas o sonho lhe escapou das mãos. Uma vez acordada, sentiu-se inquieta. Sua mente se viu ocupada de novo pelo mistério e o horror da morte da Clarissa.
Uma imagem acontecia a outra, espontânea mas insistente, desconectada no tempo mas horrorosamente clara; o corpo da Clarissa talher de raso, branca como a
cera sob o dossel carmesim; Clarissa contemplando o redemoinho de água na Caldeira do Diabo; a esbelta figura da Clarissa passeando-se pela terraço, branca como
um fantasma; Clarissa de pé, no mole, estendendo seus braços, como se fossem asas, a modo de bem-vinda; Clarissa tirando a maquiagem, voltando sobre
Cordelia um olho nu e diminuído em um monstruoso e estranho olhar discordante que agora parecia conter uma triste recriminação.
Sua mente reteve aquela última imagem como se não estivesse disposta a deixá-la escapar. Continha algo significativo, algo que teria que ter sabido ou recordado.
Então compreendeu. Voltou a ver o penteadeira, as bolas de algodão sujas de maquiagem, os fragmentos mais pequenos esparramados sobre a mogno enegrecidos de
rimel. Clarissa tinha usado uma loção especial para limpá-los olhos. Mas aqueles resíduos de algodão não estavam sobre o penteadeira quando descobriu o cadáver.
Possivelmente não se tinha incomodado em tirá-la sombra para pálpebras. Podia detectá-lo o patologista incluso debaixo daquela carne amassada e torcida? Mas, para
o que se teria tirado os pós e a base de maquiagem deixando os olhos sob o peso da sombra e o rimel, sobre tudo tendo em conta que se propunha fazê-los
repousar sob os discos umedecidos? Existia outra possibilidade: que se tivesse deixado toda a maquiagem porque esperava a alguém, e esse alguém lhe tinha limpo
a cara antes de convertê-la em polpa. Isto pressupunha um homem. Um homem era o visitante furtivo mais provável. Clarissa estava muito obcecada por seu aspecto
para receber sequer a uma mulher com a cara lavada. Mas, não era mais factível que uma mulher se desse conta de que tinha que usar os discos especiais para tirar-se
os cosméticos dos olhos? Sem dúvida alguma Tolly sabia. E Roma? Os olhos de Roma foram desprovidos de maquiagem, e na urgência e o terror do momento não
resultava verossímil que fizesse um minucioso inventário dos frascos que estavam sobre o penteadeira. O mais propenso a cometer semelhante engano seguia sendo um
homem,
salvo Ivo, possivelmente, por seu conhecimento da maquiagem teatral. Mas o mais estranho de tudo era, sem dúvida alguma, o silêncio do Tolly a respeito. A polícia
tinha
que havê-la interrogado a respeito dos cosméticos, devia lhe haver perguntado se tudo o que estava sobre o penteadeira parecia normal. Isso significava que Tolly
havia
guardado silêncio. por que e por quem?.
Já era impossível dormir. Mas deveu cabecear um pouco, embora a rajadas, pois eram as quatro quando voltou a despertar. Estava acalorada. A roupa de cama cobria
seu corpo como o peso de um fracasso, e compreendeu que devia renunciar ao sonho por essa noite. O mar trepidava mais estrondoso que nunca, o ar mesmo parecia
palpitar. Viu a maré crescendo inexoravelmente sobre a terraço, invadindo o comilão, fazendo flutuar a pesada mesa e as cadeiras esculpidas, cobrindo os Orpen
e o teto de estuque, subindo pelas escadas até que toda a ilha ficava coberta, exceto a magra torre que se elevava como um farol por cima das
ondas. Permaneceu rígida, aguardando ansiosa as primeiras vermelhidões do dia. Seria segunda-feira, dia hábil no Speymouth. Poderia sair da ilha embora só fora umas
horas
para ir aos escritórios do periódico local e tratar de rastrear o recorte referente à atuação da Clarissa. Tinha que fazer algo concreto, embora não resultasse
significativo. Estar ocupada a faria sentir-se livre, livre da irônica e semisecreta sorriso do Ambrose, da infelicidade do Simon, da séria integridade de
Ivo; livre, sobre tudo, do olhar da polícia. Sabia que voltariam. Mas a não ser que a prendessem, não podiam lhe impedir de acontecer um dia em terra firme.
Parecia-lhe que a manhã nunca chegaria. Renunciou a dormir e saltou da cama. depois de ficá-los texanos e o Guemsey se aproximou da janela e abriu as
cortinas. A seus pés se estendia a rosaleda; as últimas cabezuelas de rosas, muito abertas, penduravam dos espinhosos caules, desbotadas pela lua. A água
do lago se via tão sólida como a prata, e distinguiu perfeitamente os lunares de nenúfares, o brilho de  suas flores. Mas havia algo mais na superfície,
algo negro e peludo, uma imensa aranha que se arrastava semisumergida, estendendo e agitando suas inumeráveis patas felpudas sob as reluzentes águas. Fixou a
vista, incrédula, fascinada. Então compreendeu do que se tratava e lhe gelou o sangue.
Não se deu conta de que baixava à carreira até a grade que conduzia do corredor ao jardim. Deveu golpear às portas de todos os dormitórios, indiscriminadamente,
apenas consciente de que podia necessitar ajuda, sem aguardar resposta. Mas os outros deviam ter o sonho ligeiro. Quando chegou à grade do jardim e se elevou
para abrir o fecho alto, ouviu passos apagados no corredor e um confuso murmúrio de vozes. Logo se viu de pé no bordo do lago com o Simon, sir George
e Roma a seu lado; olhou pela primeira vez o que estava segura de ter visto: a peruca do Munter.
Foi Simon quem se tirou o batín e se meteu no lago. A água lhe chegava à altura dos braços. Respirou fundo e se mergulhou. Outros o observavam,
espectadores. A água apenas se estabilizou depois do impacto de sua imersão, quando levantou a cabeça, lustrosa como a de uma foca.
-Está aí -gritou do lago-. ficou apanhado no tecido metálico onde estão arraigados os nenúfares. Fiquem aí, acredito que poderei desenredá-lo.
Voltou a desaparecer. Quase imediatamente viram surgir duas formas negras na superfície. A cabeça calva do Munter, de barriga para cima, parecia tão torcida como
se levasse
semanas na água. Simon empurrou o corpo para o bordo do lago; Cordelia e Roma se inclinaram e puxaram das mangas empapadas. Cordelia sabia que seria
mais fácil agarrar o das mãos, mas os dedos inchados, amarelos como úberes, repeliam-lhe. inclinou-se sobre a cara e o sustentou pelos ombros. Tinha os olhos
abertos e frágeis, a pele tersa como o látex. Era o mesmo que extrair da água um boneco, um manequim descartado, com o corpo cheio de serrín, alagado e
inerte com sua ridícula levita. A máscara de palhaço, com sua mandíbula frouxa, parecia contemplá-la com um inquisitivo olhar de comiseração. Cordelia acreditou
perceber
seu fedido fôlego alcoólico. de repente se sentiu envergonhada pela repugnância com que rechaçava os dolorosos restos de sua humanidade e, em um arrebatamento de
misericórdia,
apertou-lhe a mão izqulerda, cujo contato a impressionou como uma bexiga tensa, descarnada e fria. Por esse contato soube que estava morto.
Atiraram dele até deitá-lo sobre a erva. Simon saiu da água. Dobrou seu batín e o acomodou sob a cabeça do Munter, jogou-lhe o pescoço para trás e introduziu
os dedos em sua boca aberta, para ver se levava dentadura postiça. Não encontrou prótese alguma. Então apertou sua boca contra os grossos lábios do homem e
tentou lhe praticar a respiração artificial. Todos o observavam em silêncio. Nem sequer disseram nada quando apareceram Ambrose e Ivo. Só se ouvia o som
da roupa empapada enquanto Simon cumpria sua tarefa, e o ofego regular de suas inspirações. Cordelia olhou de soslaio a sir George, sentida saudades por seu silêncio.
Sir
George contemplava o inchado rosto investido, os olhos entreabiertos e cegos, com grande intensidade, quase com um olhar de incrédulo reconhecimento. Nesse momento
a Cordelia deu um salto o coração. Seus olhos se cruzaram com os de sir George e acreditou perceber neles uma advertência. Nenhum dos dois disse nada, mas
Cordelia se perguntou se ele tinha compartilhado a revelação. Foi a sua mente uma velha imagem incongruente: a sala de música do convento, a irmã Hildegarde
abrindo muito a boca e os olhos em anticipatoria mímica enquanto levantava a batuta branca: "E agora, minhas meninas, Schumann. Alegres, alegres! As bocas bem
abertas. "Ein munteres Leiam".
Obrigou a seu cérebro a retornar à presente. Não havia tempo de pensar em seu descobrimento nem de analisar suas implicações. Fez um esforço por voltar a olhar
a parte de carne molhada sobre o que trabalhava Simon tão desesperadamente. Estava ao bordo do esgotamento quando Ambrose se inclinou e procurou o pulso na boneca
do Munter.
-É inútil -disse-. Está morto. Gelado. Provavelmente leva horas na água.
Simon não respondeu. Seguiu bombeando ar mecanicamente no corpo inerte, como se executasse algum rito obsceno e esotérico.
-Devemos abandonar? -interveio Roma-. Acreditei que era necessário insistir durante horas.
-Não quando já não há pulso e o corpo se esfriou.
Mas Simon não se deu por informado. O ritmo de suas violentas inspirações e as flexões de seu corpo agachado pareciam cada vez mais convulsos. Então todos
ouviram a voz da senhora Munter, baixa mas violenta:.
-Deixem-no em paz. Está morto. Não vêem que está morto?.
Simon a ouviu. ergueu-se e começou a tremer espasmodicamente. Cordelia agarrou o batín de sob a cabeça do Munter e o jogou sobre os ombros. Ambrose se voltou
em direção à senhora Munter:.
-Lamento-o. Sabe quando ocorreu?.
-Como posso sabê-lo? -Fez uma pausa e adicionou-: Como posso sabê-lo, senhor? Quando se embebeda não durmo com ele.
-Mas tem que havê-lo ouvido sair. Certamente não mantinha o equilíbrio nem caminhava sem fazer ruído.
-Saiu de sua habitação pouco antes das três e meia.
-É uma pena que não me tenha comunicado isso -disse Ambrose.
Cordelia pensou: O diz com a mesma acritud que se lhe tivesse proposto tomar uma semana de férias sem lhe consultar.
-Eu acreditava que nos pagava para lhe evitar problemas e inconvenientes. Munter já tinha provocado suficientes em uma só noite.
Não parecia haver nada que dizer. Então sir George se adiantou e fez um gesto ao Simon.
-Será melhor entrá-lo.
Na voz da senhora Munter apareceu uma nova nota: -Não o levem a apartamento do serviço, senhor.
-Certamente, se isso for o que você deseja -respondeu Ambrose tranquilizadoramente.
-Isso é o que desejo. -A senhora Munter girou sobre os talões e se afastou.
Todos a seguiram com o olhar, e uns segundos depois Cordelia correu e a alcançou:.
-me permita que a acompanhe. Parece-me que não deveria estar sozinha.
Cordelia se assombrou de que os olhos que a olharam contiveram tanta aversão.
-Quero estar sozinha. As pessoas como vocês não podem fazer nada por mim. Não se preocupe, não vou a suicidarme, se for isso o que pensa. -Assinalou ao Ambrose com
a
cabeça-. Pode dizer-lhe também a ele.
Cordelia retornou junto a outros.
-Não quer que ninguém lhe faça companhia. Pediu-me que lhes dissesse que não há nada que temer.
Ninguém respondeu. Seguiam formando um círculo ao redor do cadáver. Com suas batas e os pés embainhados em sapatilhas, inclinados sobre o cadáver, pareciam um grupo
de parentes grotescamente embelezados: sir George com um puído batín de lã a quadros; a seda verde escuro do Ivo cobria seus ombros descarnados como um cabide; o
apagado azul do Ambrose, forrado em raso; o nylon floreado e alcochado de Roma; o penhoar marrom do Simon. Enquanto observava o círculo de cabeças inclinadas,
Cordelia quase esperava que se elevassem e entoassem um canto fúnebre ao uníssono. Nesse momento sir George se incorporou e disse ao Simon:.
-Seguimos adiante?.
Ivo se tinha aproximado do bordo do lago e contemplava os restos dos nenúfares como se se tratasse de uma estranha vegetação marinha pela que experimentar
um interesse científico; mas levantou a vista e disse:.
-É correto que o movam? Acredito que o normal é não tocar o cadáver até a chegada da polícia.
-Só em caso de assassinato! -chiou Roma-. Agora nos encontramos ante um acidente. Estava bêbado, tropeçou e caiu. Ambrose nos disse que Munter não sabia nadar.
-Sim? Não o recordo. Mas é certo. Não sabia nadar.
-Disse-nos isso durante o jantar -recordou-lhe Ivo-, mas Roma não estava presente.
-Disse-me isso alguém, provavelmente a senhora Munter -voltou a gritar Roma-. Que importância tem? Tinha bebido mais da conta, caiu e se afogou. Ocorrido-o
é óbvio.
Ivo voltou para sua contemplação dos nenúfares:.
-Não acredito que nada seja óbvio para a polícia. Mas me atreveria a dizer que tem razão. Já estamos rodeados de suficiente mistério, sem necessidade de lhe somar
nada.
Há sinais de violência no corpo?.
-Por isso vejo, não -respondeu Cordelia.
-Não podemos deixá-lo aqui -insistiu Roma, obstinada-. Acredito que teríamos que levá-lo dentro. -Olhou a Cordelia com ar suplicante.
-Não acredito que importância que o movamos -disse Cordelia-. Não seria o mesmo se o tivéssemos encontrado nesta posição.
Todos olharam ao Ambrose, à espera de sua decisão.
-antes de transladá-lo, vos rogo que entrem comigo -disse o dono da casa-. Há algo que temos que decidir entre todos.
.
37.
Seguiram-no ao interior do castelo. Só Simon voltou a vista para o triste montão de carne fria e membros estendidos que tinha sido Munter. Seu olhar traduzia
um molesto pesar, quase uma desculpa por lhe abandonar em tão penosas condições.
Ambrose os conduziu ao despacho e acendeu o abajur do escritório. A atmosfera era de conspiração; pareciam uma turma de escolar projetando em bata uma
travessura noturna.
-Temos que tomar uma decisão -explicou Ambrose-. Dizemos ao Grogan o que ocorreu durante o jantar? Acredito que teríamos que nos pôr de acordo sobre esse ponto
antes de telefonar à polícia.
-Se referir a se devemos revelar ou não à polícia que Munter acusou de assassino ao Ralston, por que não o diz Lisa e sinceramente? -reprovou-lhe Ivo.
O cabelo do Simon, pego sobre a frente e jorrando sobre seus olhos, parecia artificialmente negro. Seu corpo se estremecia sob o batín. Passeou o olhar de um
a outro, atônito.
-Mas não acusou a sir George de..., bom, de nenhum crime concreto. E estava bêbado! Não sabia o que dizia. Todos o viram. Estava bêbado! Sua voz roçava
perigosamente a histerla.
-Aqui ninguém pensa que tenha a menor importância -interrompeu-o Ambrose com um deixe de impaciência-. Mas a polícia pode acreditar o contrário. Obviamente lhes
interessará
tudo o que Munter faça ou dito durante as últimas horas de sua vida. É muito o que terá que dizer para não dizer nada, para não complicar a investigação.
Mas temos que oferecer aproximadamente o mesmo relato. Se uns falarem e outros não, os que se inclinem pela reserva se encontrarão certamente em uma situação
difícil.
-Propõe fingir que não irrompeu pela porta vidraça do comilão, que não o vimos? -perguntou Simon.
-De maneira nenhuma. Estava bêbado e todos o vimos nesse estado. Diremos a verdade à polícia. Mas a verdade até que ponto?.
Interveio Cordelia, serena:.
-Não se trata unicamente da acusação que lançou Munter a sir George. Depois que você e Simon se levassem ao Munter, sir George nos falou de um amigo do exército
que bebia da mesma maneira incontenible ..... .
Ivo terminou a oração por ela:.
-E que se afogou exatamente da mesma forma. À polícia resultará interessante a coincidência. assim, e a menos que sir George lhes tenha contado a ambos
a mesma história em outra ocasião, o qual me parece difícil, Cordelia e eu nos encontramos já no que você chama uma situação difícil.
Ambrose assimilou a informação em silêncio, mas evidenciou certa satisfação.
-Em tal caso, a eleição parece centrar-se em se todos fizermos um relato veraz dos acontecimentos de esta noite, ou se omitirmos os gritos de "assassino" lançados
pelo Munter e a história sobre o malogrado amigo do Ralston -declarou um momento depois.
-Eu opino que devemos dizer a verdade -disse Cordelia-. Lhe mentir à polícia não é tão fácil como parece.
-Você deve falar por experiência -aguilhoou-a Roma.
Cordelia passou por cima o tom de malícia e prosseguiu:.
-Interrogarão-nos exaustivamente. O que disse Munter quando entrou pela porta vidraça? Do que falamos outros enquanto Ambrose e Simon o ajudavam a deitar-se?
Não só é questão de omitir dados embaraçosos. Temos que nos pôr de acordo em dizer as mesmas mentiras. Além de qualquer consideração moral.
Ambrose disse em tom desembaraçado:.
-Não me parece acertado complicar a decisão com considerações morais. Digam o que digam os teólogos, bem está o que bem acaba é uma opção perfeitamente
válida. Além disso, suspeito que todos temos feito alguma sensata adaptação em nossas entrevistas com o Grogan. Ao menos eu o fiz. O inspetor parecia crcer que
devia lhe dar explicações por ter montado a obra para a Clarissa; assim, disse-lhe que ela me tinha dado a idéia de "Autópsia". Uma mentirijilla engenhosa mas
de tudo desnecessária. Em conseqüência, nossa primeira decisão é fácil. Dizemos a verdade ou acordamos um embuste. Proponho que o decidamos por votação secreta
-sugeriu Ambrose.
-Aqui ou nos retiramos à cripta? -ironizou Ivo.
Ambrose fez caso omisso de sua graça. voltou-se para o Simon, que tinha a boca entreabierta e a cara pálida sob os olhos febris, mas o pensou melhor. Com formal
cortesia, pediu a Cordelia:.
-Faria-me o favor de me trazer duas taças da cozinha? Acredito que conhece o caminho.
O breve trajeto, o incongruente recado, pareceram- muito significativos a Cordelia. Avançou pelos corredores vazios, entrou na cozinha e agarrou do aparador dois
taças de café da manhã. Fez-o com solene lentidão, como se um público invisível estivesse observando a graça de cada um de seus movimentos. Quando voltou para despacho
teve a impressão de que ninguém se moveu de seu sítio.
Ambrose lhe deu as obrigado e colocou uma taça junto à outra sobre o escritório. Logo se aproximou da vitrine e voltou com o jogo de solitário da princesa
Vitória, com seus gudes de colorines.
-Cada um de nós agarrará um gude -indicou-. Depois fecharemos os olhos, e lhes imploro que não espiem..., e a deixará cair em uma das taças. Será fácil de
recordar: a taça esquerda para a opção mais indecorosa; a da direita, para a retidão. Como verão, alinhei adequadamente as asas, de modo que não há
desculpa para a confusão. Quando tivermos ouvido cair os cinco gudes, abriremos os olhos. É muito conveniente que Roma não estivesse presente durante o jantar, assim
não há possibilidade de empate.
Sir George foi o primeiro em reagir:.
-Está perdendo o tempo, Gorringe. o melhor que pode fazer é telefonar à polícia agora mesmo. Como é óbvio, diremos a verdade ao Grogan.
Ambrose escolheu seu gude com grande cuidado e estudou o jaspeado como se fora perito em chucherias.
-Se isso for o que você deseja, deve votar por essa opção.
-Tem a intenção de fazer uma segunda votação para decidir se lhe contamos à polícia a primeira? -inquiriu Ivo; mas agarrou um gude.
Sir George, Simon e Cordelia seguiram seu exemplo. Cordelia fechou os olhos. Houve um segundo de silêncio e logo se ouviu tilintar a primeira bola na taça. A segunda
seguiu quase imediatamente, e depois a terceira. Estendeu as mãos, que foram brevemente roçadas por uns dedos frios como o gelo. Mediu as taças e apoiou
uma mão em cada uma, para evitar qualquer engano. Deixou cair seu gude na taça da direita. Um segundo mais tarde ouviu cair o quinta gude, que soou muito forte,
como se tivesse cansado desde grande altura. Abriu os olhos. Outros piscavam, como se o período de escuridão tivesse durado horas, não segundos. Todos juntos olharam
o interior das taças. a da direita continha três bolinhas.
-Isto simplifica as coisas -comentou Ambrose-. Diremos a verdade, embora, é obvio, não mencionaremos esta pequena diversão. Entramos juntos no despacho e
todos permaneceram aqui, em correto silêncio, enquanto eu telefonava à polícia. Só investimos nisto uns minutos, de modo que não teremos que justificar
nenhum atraso importante.
Guardou os gudes depois de estudar atentamente cada uma delas, tendeu- as duas taças a Cordelia e levantou o auricular. Enquanto levava as taças à
cozinha, dois pensamentos ocupavam a mente da Cordelia: por que sir George tinha esperado a que a votação fora inevitável para anunciar que estava a favor de
a verdade, e os quais eram os dois que tinham jogado os gudes na taça da esquerda? Por um instante se perguntou se alguém teria trocado o gude de outro
ao deixar cair a sua, mas se deu conta de que para fazê-lo, inclusive com os olhos abertos, necessitavam-se certas dotes de prestidigitação. Seu ouvido era excepcionalmente
fino e só tinha detectado os quatro tinidos correspondentes à queda dos outros gudes.
Evidentemente, Ambrose estava praticando uma política de união. Tinha esperado seu retorno antes de chamar o cuartelillo do Speymouth.
-Sou Ambrose Gorringe e falo desde o Courcy Island. Por favor, lhe informe ao inspetor Grogan de que meu mordomo Munter morreu. Foi encontrado no lago,
aparentemente afogado.
Cordelia pensou que a declaração era notável, pelo breve, precisa e cuidadosamente objetiva. Por uma vez, Ambrose se mostrava equânime sobre as causas da
morte do Munter. O resto da conversação foi monosilábica. Ambrose pendurou e disse:.
-Era o sargento de guarda. O transmitirá ao Grogan. Diz que não movamos o cadáver, que intervenhamos o menos possível até a chegada da polícia.
produziu-se um silêncio com o que a Cordelia pareceu que todos reconheciam simultaneamente que tinham frio, que ainda não eram as seis e meia e que, por mais
insensível que parecesse expressar o desejo de voltar para a cama e impossível abrigar a esperança de dormir, era disparatadamente cedo para vestir-se e enfrentar-se
a uma nova jornada.
-Alguém quer chá ou café? -ofereceu Ambrose-. Não sei o que ocorrerá com nosso café da manhã. Possivelmente não o haja se eu não o preparo, mas lhes asseguro que
sou muito competente.
Alguém tem fome?.
Ninguém reconheceu tê-la. Roma se estremeceu e fechou com mais força sua bata de nylon acolchoada.
-Um chá me viria bem, quanto mais forte melhor -disse-. Depois, eu pelo menos, irei deitar me.
Houve um murmúrio geral de conformidade. Logo Simon declarou:.
-esqueci algo. Ali abaixo há uma caixa. Toquei-a ao tirar o Munter. Devo subi-la?.
-O cofre das jóias! -exclamou Roma animada, aparentemente esquecendo seu desejo de deitar-se-. Então a tinha ele!.
-Não acredito que seja o joalheiro -apontou Simon, ansioso-. Pareceu-me maior e de superfície mais Lisa. Deveu escapar das mãos ao cair.
Ambrose vacilou:.
-Suponho que deveríamos esperar a que chegue a polícia. Por outro lado, sinto curiosidade por saber do que se trata, se Simon não tiver nada que objetar a uma segunda
imersão.
longe de expor objeções, o moço, embora tiritava, parecia impaciente por voltar para lago. Cordelia se perguntou se teria esquecido o cadáver tendido
sobre a erva. Nunca o tinha visto tão exaltado, quase frenético. Possivelmente era o resultado de ser, por uma vez, o centro da ação.
-Eu acredito que posso reprimir minha curiosidade -comentou Ivo-. Volto-me para a cama. Se mais tarde alguém preparar um chá, agradecerei que me subam uma taça.
foi sozinho. Aparentemente, Roma se tinha reposto de sua dor de cabeça e de sua fadiga. Retornaram ao lago. A lua, que se apagava, via-se magra como um
papel, e o céu se veteaba com as primeiras luzes do alvorada. Uma tênue neblina se elevava da água, despedindo um úmido frio outonal. Desprovido do melancólico
encanto da luz da lua e da sensação de irrealidade que esta confere, o cadáver parecia de uma vez mais humano e mais grotesco. A carne da bochecha esquerda,
apoiada contra as pedras, deformava o olho de modo que parecia olhá-los de soslaio, irônico e sagaz. Da lhe babem boca pendurava um fio de saliva manchada de
sangue, que se tinha secado sobre a incipiente barba do queixo. As roupas empapadas pareciam ter encolhido, e um magro jorro de água gotejava das pernas das calças
da calça e gotejava lentamente no lago. Sob a enganosa luz do amanhecer, Cordelia teve a impressão de que o sangue do Munter se derramava, desatendida
e sem estancar.
-Não podemos cobri-lo, ao menos? -perguntou.
-É obvio. -Ambrose se mostrou instantaneamente solícito-. Pode ir dentro a procurar algo, Cordelia? Uma toalha, um lençol, uma toalha, até um casaco viria
bem. Estou seguro de que encontrará um pouco adequado.
Roma caiu violentamente sobre ele:.
-por que envias a Cordelia? por que se espera que ela faça todos os recados? Não lhe paga para que cumpra suas ordens. Munter era seu servente, não Cordelia.
Ambrose a olhou como se fora uma menina falta de inteligência que por uma única vez tinha feito uma observação sensata.
-Tem toda a razão -disse em tom abúlico-. Irei eu mesmo.
Mas Roma, em um acesso de ira, não se apaziguou.
-Munter era seu criado e nem sequer é capaz de dizer que lamenta sua morte. Não te importa, verdade? Não te importou nada a morte da Clarissa e tampouco a de
ele. Nada lhe afeta enquanto siga cômodo e a salvo do aborrecimento. Não há dito uma só palavra de pesar desde que encontramos o cadáver. E quem é você? Você
avô fez sua fortuna com pílulas para o fígado e água para os retortijones. Nem sequer tem a desculpa da casta para não te comportar como um ser humano.
Durante um segundo o corpo do Ambrose ficou paralisado e em seus tersas bochechas apareceram duas luas vermelhas que em seguida se esfumaram, deixando-o marmóreo.
Mas
sua voz apenas se alterou.
-O único ser humano como o qual sei me comportar sou eu mesmo. Chorarei ao Munter em seu momento e lugar. Estes não me parecem oportunos para as lamentações. Mas
se sua ausência te ofender, posso emular ao príncipe Hal: "Como? Velho conhecido! Não podia toda esta carne conservar um pouco de vida? Pobre Jack, adeus! Prescindiria
melhor de um homem honrado que de ti!". E se te serve de consolo, preferiria lhes ver todos vós mortos no fundo do lago, com uma possível exceção,
que perder ao Carl Munter. Mas no que respeita a Cordelia, tem razão. A gente sempre está disposto a aproveitar-se da eficácia e a bondade.
Quando saiu se produziu um embaraçoso silêncio. Roma, com a cara lívida e o queixo enrugado em instada cólera, permaneceu um pouco apartada. Tinha o truculento
ar ligeiramente defensivo de uma menina consciente de haver dito algo insustentável, embora se sente adulada pelo resultado. de repente se voltou e disse em tom
mal-humorado:.
-Bem, ao menos consegui provocar uma reação humana em nosso anfitrião. Agora sabemos onde estamos. Suspeito que Cordelia é, entre todos nós, a privilegiada
a quem Ambrose não quereria ver morta no fundo de seu lago. Evidentemente, nem sequer ele é imune a um rosto bonito.
Sir George tinha a vista fixa nos nenúfares.
-Está alterado e é natural. Este não é momento de brigar entre nós.
Cordelia tinha a sensação de que devia fazer algum comentário, mas, incapaz de discorrer um pouco apropriado, guardou silêncio. Estava desconcertada pelo estalo
de Roma, que não podia considerar uma amostra de preocupação ou afeto por ela. Supôs que podia ser um gesto de solidariedade feminina ou um estalo ante a arrogância
masculina. Mas suspeitava que muito provavelmente se tratava de uma espontânea expansão de sobressalto e terror reprimidos. Qualquer que fosse a causa, o resultado
tinha sido interessante. Ambrose se tinha mostrado curiosamente oportuno em sua entrevista de "Enrique IV". Devia-se a que era um admirador natural do Shakespeare
ou a que
nos últimos tempos se dedicou a ler a seção shakespeariana do "Dicionário Penguin de Entrevistas"?.
Ouviram as pisadas do Ambrose nas pedras. Levava na mão uma toalha a quadros vermelho, dobrado. Enquanto todos o observavam o estendeu e o deixou cair brandamente
sobre o cadáver. Cordelia pensou que como mortalha provisória não era o mais apropriado que podia ter encontrado. Ambrose se ajoelhou e envolveu meigamente o
toalha ao redor do cadáver, como se queria pô-lo cômodo. Uns segundos depois sir George se voltou para o Simon e vociferou:.
-Adiante, moço. Mãos à obra!.
Simon já conhecia a profundidade do lago e nesta ocasião se atirou de cabeça. Seu corpo fendeu a água em uma perfeita curva, evitando os nenúfares. Houve uma
agitação e uma breve comoção das águas. Logo sua lustrosa cabeça apareceu na superfície e levantou ambos os braços. Entre eles sustentava uma caixa de madeira escura,
de uns trinta centímetros por ventidós. Um instante depois tinha deixado a carga em mãos do Ambrose e subia pelo bordo do lago.
-Estava apanhada debaixo da malha -ofegou-. O que é?.
A modo de resposta, Ambrose levantou a tampa. A hermética caixa de música tinha emerso um tanto arranhada, mas intacta em qualquer outro sentido. O cilindro girou
lentamente e um tinido de doces nota desarticuladas deixou ouvir uma melodia familiar, que Cordelia tinha escutado por última vez durante o ensaio final: "As
campainhas de Escócia".
Guardaram silêncio até que concluiu a melodia. Houve uma pausa e ouviram os primeiros acordes do seguinte ar, que breve identificariam como "Meu amado está
no oceano". Ambrose fechou a caixa e disse:.
-A última vez que a vi estava junto à outra caixa de música na mesa dos acessórios. Munter deveu agarrar a para voltar a levá-la à habitação da
torre. Esta seria a rota direta do teatro até a torre.
-por que? Que pressa havia?.
Roma observou carrancuda a caixa, como se sua aparição tivesse frustrado suas expectativas.
-Não havia nenhuma pressa -disse Ambrose-, mas estava bêbado e suponho que atuava irracionalmente. Munter compartilhava minha ligeira obsessão pela ordem e lhe desgostava
profundamente que qualquer objeto do castelo se utilizasse como objeto de cenário teatral. Acredito que seu embrulhado cérebro considerou que esse era um momento
tão bom como
qualquer outro para começar a arrumar as coisas.
Cordelia pensou que sir George tinha permanecido excessivamente calado. Agora lhe ouviu falar pela primeira vez.
-Que mais transladou? O que tem que a outra caixa de música?.
-Essa se guardava no aparador de meu escritório. Por isso lembrança, ali havia uma caixa, e a outra estava entre os trastes da torre.
Sir George se dirigiu ao Simon:.
-Melhor que te vista, moço, está tiritando. Aqui já não há nada que fazer.
Era uma despedida, quase brutal pelo peremptória. Pela primeira vez Simon pareceu dar-se conta de que tinha frio. Começaram a lhe tocar castanholas os dentes. Vacilou,
inclinou
a cabeça e se afastou arrastando os pés.
-Esse menino tem mais habilidades das que eu lhe atribuía -confessou Roma-. A propósito, como sabia que aspecto tinha o joalheiro da Clarissa? Acreditava que o havia
agradável quando chegou na sexta-feira pela manhã.
-Suponho que como sabemos você e eu -interveio Cordelia-, porque estivemos em sua habitação e nos mostrou isso.
-Dava-me conta de que tinha que ter estado em sua habitação, é obvio. -Roma se voltou para ir-se-. Mas me estava perguntando exatamente em que momento. E
como sabia que Munter levava a caixa quando caiu? Podia levar meses no fundo do lago.
-Sua hipótese é acertada, sem dúvida, dada a posição do cadáver e o fato de que tanto este como a caixa estivessem apanhados pela rede -a voz do Ambrose continha
uma ligeireza e uma decidida indiferença que Cordelia considerou muito mesuradas, muito contidas-. por que não deixamos as perguntas para o inspetor Grogan?
Uma detetive privada na casa me parece mais que suficiente. E é mais apropriado que as acusações de homicídio provenham da polícia, não te parece?.
Roma se voltou e afundou os ombros mais profundamente no pescoço de sua bata.
-Bem, me vou deitar. Possivelmente também possa subir a mim um pouco de chá quando o fizer. E quando tiver terminado minhas obrigações com o Grogan, aliviarei-te
por mim
presença. Ou a maldição do Courcy segue vigente ou em seu paraíso a morte se está voltando contagiosa.
Ambrose a seguiu com o olhar até que desapareceu nas sombras das arcadas.
-Essa mulher pode ser perigosa -disse.
Sir George seguia com a vista fixa nas costas de Roma e comentou:.
-Só é desventurada.
-Com as mulheres deve significar o mesmo. Além disso, com esses fornidos ombros de nadadora não deveria usar uma bata acolchoada. Tampouco tendria que escolher esse
tom
de azul, nenhum azul melhor dizendo. Parece-me que o melhor será que vejamos se a outra caixa de música voltou para seu sítio.
Uma vez no despacho, Ambrose se ajoelhou e abriu as portas do "chiffonnier" de nogueira. Cordelia viu que no interior havia uma série de compartimentos com
estojos, dois pacotes cuidadosamente envoltos, que podiam conter adornos ainda não desembalados, e uma caixa de madeira escura, similar em tamanho à resgatada do
lago. Ambrose a pôs sobre a mesa e abriu a tampa. Ouviram os lembre de "Mangas verdes".
-Ou seja que a devolveu a seu lugar -disse sir George-. É estranho. Provavelmente não se sentia em condições de descansar até começar a pôr um pouco de ordem.
-Entretanto, trocou-as de sítio -particularizou Cordelia-. Esta pertencia à habitação da torre.
A voz do Ambrose soou inesperadamente irada:.
-Você como pode sabê-lo?.
-Porque a vi ali na sexta-feira pela tarde, enquanto Clarissa ensaiava. fui explorar a torre e entrei na habitação. Não posso estar equivocada.
-Parecem quase idênticas.
-Mas tocam ares distintos. Abri a caixa da torre, esta caixa. Escutei "Mangas verdes". A que usaram no ensaio dedilhava o popurrrí escocês. Você sabe.
Estava presente.
-Ou seja que ontem pela tarde foi procurar esta à torre e não ao despacho. -Sir George se voltou em direção ao Ambrose-: Sabia, Gorringe?.
-Certamente que não. Sábia que tínhamos duas caixas de música e que alguém se guardava aqui e a outra na torre. Ignorava qual era qual. As caixas de música não são
uma de minhas paixões pessoais. Quando Munter me relatou o mesmo que lhe disse à polícia, ou seja que não tinha saído dos apartamentos da planta baixa e que
tinha ido procurar uma caixa de música ao despacho, não vi nenhuma razão para duvidar de suas palavras.
-Quando Clarissa, ou o diretor, pediram pela primeira vez uma caixa de música, Munter atuou como cabia esperar -raciocinou Cordelia-. Procurou a que estava mais
perto e
era menos valiosa. Para que incomodar-se em ir até a torre se tinha uma caixa de música à mão aqui, no despacho? E não teria ido à torre se Clarissa não houvesse
rechaçado a primeira.
-À torre só se pode acessar da galeria -explicou Ambrose-. Munter mentiu à polícia. ao redor das duas de ontem se encontrava a poucos metros da
habitação da Clarissa, o que significa que pôde ter visto entrar ou sair a alguém. A polícia pode considerar que foi ele mesmo quem entrou, embora a porta
estivesse fechada com chave.
**************
Por isso tinha a obsessão de devolver as caixas, cada uma delas ao lugar de onde disse que a tinha pego. Não precisava tomar-se essa moléstia, pois ninguém tinha
por que saber a verdade. Foi o mero azar, Cordelia, que fez que você vagasse pela torre e achasse a segunda caixa. Que a polícia a cria ou não, é outro assunto.
--Não foi pura casualidade -replicou Cordelia-. Se Clarissa não me tivesse jogado do teatro, me teria ficado até o final do ensaio. E não vejo por que razão a
polícia não acreditaria em minha palavra. Provavelmente ao inspetor lhe resulte mais fácil acreditar que eu senti curiosidade por explorar a torre e não que você,
que tanto ama
seus objetos vitorianos, não soubesse exatamente onde guardava cada uma de suas caixas de música.
Assim que o disse, Cordelia duvidou de que sua sinceridade tivesse sido prudente; indubitavelmente, dirigidas a seu anfitrião, suas palavras não tinham sido corteses.
Mas
Ambrose aceitou o comentário sem ofender-se.
-Possivelmente tem razão -disse-. Duvido de que criam a nenhum de nós. A fim de contas, só nós dizemos que Munter mentiu. E para nós é conveniente
um suspeito morto, que não pode negar nada do que se diga a respeito dele, verdade? Foi o mordomo. Inclusive na literatura, conforme acredito, essa solução se considera
insatisfactoria.
Sir George levantou a cabeça:.
-Parece-me que chegam as lanchas da policia.
Para ser um homem de certa idade, pensou Cordelia, tem um ouvido muito fino. Ela não tinha ouvido nada. Depois sentiu, mais que ouviu, o palpitar dos motores. Todos
olharam-se. Pela primeira vez Cordelia viu nos olhos de outros o que sabia que estes estariam reconhecendo nos seus: o bato as asas do medo.
-Receberei-os no mole -disse Ambrose-. Será melhor que vós dois voltem junto ao cadáver.
Sir George e Cordelia ficaram sozinhos. Se terei que dizê-lo, terei que dizê-lo agora, antes de que começasse o interrogatório policial. Mas era difícil encontrar
as palavras, e quando por fim Cordelia as encontrou soaram duras, acusadoras.
-Você reconheceu a cara do afogado, não? Acredita que podia ser o filho do Blythe?
-Chocou-me, sim -disse sir George sem mostrar a menor surpresa-. Não me tinha ocorrido antes.
-Nunca tinha visto o Munter assim com antecedência, de barriga para cima, morto e afogado. Assim foi como você viu por última vez ao pai.
-O que a levou a pensá-lo?.
-Sua expressão quando o olhou. O monumento aos cansados, que Munter honrava todos os anos o Dia do Armistício. A acusação que lhe lançou: assassino, assassino! Se
referIa a seu pai, não a Clarissa. E acredito que ao Simon murmurou algo em alemão. Também me chamou a atenção seu nome. Não disse Ambrose que se chamava Carl? E
seu
estatura. Seu pai morreu lentamente poque era muito alto. Mas sobre tudo seu sobrenome. Em alemão, "Munter" significa "alegre" ( Alusão ao término virilhas "blithe"
(alegre), que se pronuncia como o sobrenome Blythe. (N. da T.). É um dos poucos términos que conheço nesse idioma.
Cordelia já tinha visto antes aquele olhar de tensa resistência no rosto de sir George, mas tudo o que este disse foi:.
-É possível. É possível.
-O dirá ao Grogan? -quis saber Cordelia.
-Não. Não é assunto dele. Não é pertinente.
-Nem sequer se decidem lhe deter por homicídio?.
-Não o farão. Eu não matei a minha esposa. -Sir George fez uma pausa e logo adicionou, como se lhe arrancassem as palavras da boca-: Não acredito ter deixado que
o matassem
deliberadamente, mas possivelmente o fiz. É muito difícil compreender os próprios motivos. Eu estava acostumado a pensar que tudo era muito singelo.
-Não tem por que me dar explicações, não é meu assunto -apressou-se a dizer Cordelia-. E nnaquele tempo naquele tempo você era um oficial muito jovem, não podia
estar ao mando
deste lugar.
-Não, mas essa noite estava de guarda. Teria que me haver dado conta de que algo se estava tramando, e devi impedi-lo. Mas detestava tanto ao Blythe, que não podia
confiar em mim mesmo se me aproximava dele. Uma das coisas que nunca se esquecem nem se perdoam é a crueldade infligida quando a gente é pequeno e indefeso. Fechei
meu
mente e meus olhos a tudo o que concernia ao Blythe. Possivelmente os tenha fechado deliberadamente. Poderíamos dizer que foi negligência.
-Mas ninguém o disse. Não houve conselho de guerra. Ninguém lhe jogou a culpa.
-Eu me culpo. -depois de uns segundos de silêncio, sir George prosseguiu-: Ignorava que estivesse casado. Ninguém mencionou à esposa na indagação. falava-se
de uma garota do Speymouth, mas nunca se apresentou. Ninguém falou do filho.
-Provavelmente Munter ainda não tinha nascido. E podia ser filho ilegítimo. Não acredito que cheguemos ou seja o. Mas sua mãe devia estar amargurada pelo ocorrido,
e é quase seguro que Munter cresceu na convicção de que o exército tinha assassinado a seu pai. Pergunto-me por que aceitaria trabalhar na ilha. Curiosidade,
dever filial, a esperança de vingar-se? Mas não podia esperar que você aparecesse por aqui.
-Ou talvez sim. Entrou em trabalhar no verão de 1978. Esse verão eu me casei com a Clarissa e ela conhecia o Ambrose virtualmente de toda a vida. É muito provável
que Munter me tenha seguido o rastro. Não sou exatamente um desconhecido.
-A polícia cometeu enganos antes de agora -disse Cordelia-. Em caso de que o prendam, considerarei-me livre de dizer-lhe à polícia. Terei que dizer-lhe como un centinela,
con la mirada clavada en el vacío-. Si arrestan a quien no corresponde, será una doble injusticia, pues el culpable quedará libre. ¿Es eso lo
-Não, Cordelia -opôs-se sir George serenamente-. É meu assunto, é meu passado, minha vida.
-Mas você tem que compreender como verá as coisas a polícia! -gritou Cordelia-. Se me acreditarem com respeito à caixa de música, saberão que Munter estava em
a galeria, a poucos metros da habitação de sua esposa, aproximadamente à hora em que ela morreu. Se ele não a matou, pôde ter visto a pessoa que o fez.
Isso, vinculado a sua acusação de "assassino", é uma prova irrecusável, a não ser que você os relatório de quem era Munter. -Sir George não respondeu; permaneceu
rígido
como um sentinela, com o olhar cravado no vazio-. Se prenderem a quem não corresponde, será uma dobro injustiça, pois o culpado ficará livre. É isso o
que deseja?.
-Seria quem não corresponde? Se Clarissa não se casou comigo, seguiria viva.
-Isso não pode sabê-lo!.
-Intuo-o. Quem disse que todos lhe devemos uma morte a Deus?.
-Não recordo. Algum personagem do Enrique IV do Shakespeare. Mas isso o que tem que ver?.
-Espero que nada. É algo que me ocorreu.
Cordelia se deu conta de que não chegava a nenhuma parte. debaixo daquela personalidade aparentemente cândida e pouco eloqüente, sir George albergava a seu próprio
agente secreto, uma mente mais complexa e possivelmente mais implacável do que ela imaginava. E aquele soldado engañosamente simples não era nenhum parvo. Conhecia
a medida
exata do perigo que corria. Isso podia significar que tinha suas suspeitas, que queria proteger a alguém. Nem por um instante acreditou que fossem Ambrose ou Ivo.
Disse
sem esperanças:.
-Não sei o que é o que quer você de mim. Devo seguir adiante com o caso?.
-Parece-me que não tem sentido. Já nada pode assustá-la. Será melhor deixar isto em mãos profissionais. Pagarei-lhe, é obvio, cobrará o trabalho que realizou
-adicionou torpemente-. Não sou um ingrato.
Ingrato? Cordelia pensou que não tinha motivos para estar agradecido a ela. Sir George se voltou e olhou o cadáver do Munter.
--Que iniciativa extraordinária a de pôr uma coroa no monumento todos os anos -refletiu sir George-. Acredita que Gorringe manterá a tradição?.
-Não acredito.
-Pois deveria fazê-lo. Falarei com ele. Poderia ocupar-se Oldfield.
Giraram para atravessar a rosaleda e em seguida interromperam seus passos. Sob a pálida luz de cor damasco avançavam em sua direção, pisada-las sossegadas
pela suave erva, Grogan e seus homens. Agarraram a Cordelia despreparada. Ao notar seu silencioso e inexorável avanço, seus rostos sérios e pouco prometedores,
Cordelia teve que resistir a tentação de olhar a sir George. Não obstante, perguntou-se se ele compartilhava seu repentina e irracional ideia da impressão que deviam
de lhe haver dado à polícia: culpados e confusos como um par de caçadores furtivos surpreendidos pelos guarda-florestal com o bota de cano longo a seus pés.
.
SEXTA PARTE
UM CASO FECHADO.
38.
O cadáver do Munter foi retirado com uma presteza e uma eficácia que a Cordelia pareceram quase indecorosas. Às dez em ponto o recipiente metálico com seus
dois largos cabos laterais tinha sido deslizado do mole até a coberta da lancha da polícia com tão pouca cerimônia como se contivesse um cão.
Mas o que esperava? Munter tinha sido um ser humano. Agora era uma carga de putrefação latente, um caso ao que terei que atribuir uma ficha e um número, um problema
pendente de solução. disse-se a si mesmo que era irracional esperar que os homens -oficiais da polícia, empregados do depósito de cadáveres, pessoal de
a funerária?- o levassem com a solenidade digna de um funeral. Realizavam uma tarefa cotidiana, sem emoção e sem cumpridos.
Neste segundo caso os suspeitos puderam observar em ação à polícia. Fizeram-no discretamente, da janela do dormitório da Cordelia, enquanto Grogan
e Buckley se moviam devagar ao redor do cadáver, como um par de cientificos marinhos intrigados por um espécime manchado de barro que tinha arrojado a maré.
Seguiram observando enquanto o fotógrafo fazia seu trabalho, aparentemente alheio à presença dos policiais e sem lhes dirigir a palavra, ocupado em suas coisas.
O doutor Ellis-Jones não apareceu. Cordelia se perguntou se seria devido a que a causa da morte era evidente ou se estava ocupado em outra parte, com outro cadáver.
Em seu lugar se apresentou um médico da polícia, para estender o certificado de falecimento e praticar o exame preliminar. Era um homem volumoso e jovial, calçado
com botas impermeáveis e abrigado com um pulôver de lã com cotoveleiras, que saudou os policiais, como se fossem velhos companheiros de farra. Só quando se ajoelhou
para procurar o termômetro em sua maleta, os olheiros da janela se afastaram em silêncio e se refugiaram no salão, envergonhados do que repentinamente consideraram
uma indecorosa curiosidade. E foi das janelas do salão, menos de dez minutos mais tarde, de onde viram acontecer o cadáver do Munter, através da arcada
e do mole, para a lancha. Um dos portadores disse algo a seu companheiro e ambos riram. Provavelmente se tinha queixado do excesso de peso.
E nesse segundo caso nem sequer o interrogatório policial levou muito tempo. Ao fim e ao cabo, não era grande costure o que podiam dizer e Cordelia conjeturou que
o pouco que dissessem soaria sospechosamente unânime. Quando lhe tocou o turno, entrou no despacho afligida pela convicção de que não acreditariam nada do que dissesse.
Grogan a olhou fijarnente do outro lado do escritório, com seus olhos claros e pouco amistosos bordeados de vermelho, como se não tivesse dormido. As duas caixas
de
música estavam sobre a mesa, uma ao lado da outra.
Quando Cordelia concluiu seu relato da aparição do Munter ante a porta vidraça do comilão, do descobrimento do cadáver e da recuperação da caixa
de música, produziu-se um prolongado silêncio. Depois Grogan lhe perguntou:.
-Exatamente por que razão subiu você à habitação da torre na sexta-feira pela tarde?.
-Só por curiosidade. A senhorita Lisle não me necessitava durante o ensaio e o senhor Whittingham e eu tínhamos finalizado nosso passeio. Ele estava fatigado e se
foi descansar. Eu estava livre.
-E se entreteve explorando a torre?.
-Sim.
-E ficou a jogar com os brinquedos?.
Grogan fez que suas palavras soassem como se ela fora uma menina aborrecida incapaz de olhar, sem tocá-lo, o carro de brinquedo de outro pirralho. deu-se cucnta,
com uma
mescla de ira e desesperança, da impossibilidade de explicar, de lhe fazer compreender seu impulso de pôr em movimento aquele zoológico infantil, de afogar o abatimento
com uma cacofonia  orquestral. E embora tivesse confessado a causa de seu desgosto, a narração do Ivo a respeito da morte da filha do Tolly, teria resultado mais
convincente sua história? Como lhe explica um a um policial, a um juiz, a um jurado, esses pequenos impulsos aparentemente irracionais, os patéticos recursos contra
a dor que quase não tinham sentido para a gente mesmo? E se era difícil para ela, uma privilegiada, como as arrumavam os ignorantes, os incultos, os que não
sabiam expresars, enfrentados à esotérica e indiferente maquinaria legal?.
--Sim, joguei com os brinquedos -respondeu.
-Está absolutamente segura de que a caixa de musica que encontrou na torre deixava oir a melodia "Mangas Verdes"?.
Grogan apoiou seu manaza na caixa da esquerda e levantou a tampa. O cilindro começou a girar automaticamente e os delicados dentes do comprido penteie voltaram
a pulsar a nostálgica e quejumbrosa melodia.
--Estou absolutamente segura.
--Exteriormente são muito semelhantes. O mesmo tamanho, a mesma forma, a mesma madeira, quase o mesmo desenho nas tampas.
--Sei, mas a música é distinta.
Cordelia compreendia a frustração e a irritação que o homem dominava tão eficazmente. Se ela dizia a verdade, Munter tinha mentido. O mordomo tinha deixado
a planta baixa do castelo em algum momento durante aquela crítica hora e quarenta minutos. A única entrada à torre tinha seu acesso na galeria. Munter havia
estado a pcos passados da porta da Clarissa. E Munter estava morto. Embora Grogan acreditasse inocente, embora processassem a outro suspeito, o testemunho da Cordelia
sobre a caixa de música iria como anel ao dedo à defesa.
-Você não mencionou sua visita à torre no interrogatório anterior -recordou-lhe Grogan.
-Você não me perguntou isso. mostrou-se especialmente interessado no que havia dito e visto na sábado. Não o considerei importante.
-Há algo mais que não tenha considerado importante?.
-respondi a todas suas perguntas com toda a veracidade possível.
-Possivelmente. Mas isso não é exatamente o mesmo, verdade, senhorita Gray?.
E a vocecilla de sua própria consciência, em cumplicidade com ele, acusava-a.
Súbitamente, Grogan se inclinou sobre o escritório e aproximou sua cara a dela. Cordelia acreditou perceber seu fôlego acre e carregado de cerveja, e se esforçou
para
não retroceder.
-O que ocorreu exatamente na sábado pela manhã na Caldeira do Diabo?.
-Já o hei dito. O senhor Gorringe nos contou a história do jovem internato ao que deixaram afogar. Eu encontrei a mensagem ameaçadora com a entrevista.
-Isso é tudo o que ocorreu?.
-me parece o bastante. -Grogan se reclinou na poltrona e Cordelia permaneceu espectador, mas ele não disse nada-. Eu gostaria de ir ao Speymouth esta tarde. Necessito
sair da ilha.
-Quem não, senhorita Gray?.
-Não há inconveniente? Suponho que não tenho que pedir permissão. Não pode me impedir que vá aonde queira a menos que me prenda, verdade?.
-Sem dúvida isso é o que você diria a seus clientes, se os tivesse Tem razão. Não podemos impedir-lhe Mas lhe recordo que tem que estar no Speymouth amanhã às
dois em ponto, para a indagatoria. Não levará muito tempo, pois só é uma formalidade. Solicitaremos um adiamento. Mas você é a pessoa que encontrou o
cadáver. Você é a última pessoa que viu viva à senhorita Lisle. O juiz de primeira instância quererá vê-la.
Cordelia se perguntou se as palavras do Grogan pretendiam soar a ameaça.
-Estarei ali -replicou.
Grogan levantou a vista e disse, tão amavelmente que Cordelia quase acreditou sincero:.
-Espero que se divirta no Speymouth, senhorita Gray. Desejo-lhe que o passe bem.
.
39.
Eram mais das doze e meia quando deram por concluída a entrevista. reuniu-se com outros, que bebiam xerez na terraço, e se inteirou de que Oldfield já havia
ido a terra firme a procurar o correio e provisões. Ambrose esperava um pacote com livros que lhe enviaria a Biblioteca de Londres. Cordelia lhe perguntou se era
possível que a "Shearwater" a levasse ao Speymouth às dois e Ambrose acessou sem demonstrar curiosidade, limitando-se a perguntá-la a que hora queria que a recolhesse
para a viagem de volta. Cordelia respondeu que às seis.
Não tinha fome e teve a impressão de que aos outros ocorria o mesmo. A senhora Munter tinha servido uma comida fria no comilão, muita comida, em seu
maior parte restantes do preparado para a festa, mesclada e disposta em uma massa relatório capaz de lhe tirar o apetite a qualquer. O estranho era, pensou Cordelia,
que se tivesse tomado a moléstia de fazê-lo. Ninguéma a tinha renomado desde que encontraram o cadáver de seu marido. Também ela tinha sido entrevistada pela
polícia, mas tinha passado a maior parte da manhã encerrada em seu apartamento ou transitando, em silêncio e inadvertida, da despensa ao comilão. Cordelia não
acreditava que Ambrose estivesse muito preocupado por ela e a ninguém mais podia lhe importar. Decidiu ir ver como estava e lhe perguntar, antes de embarcar, se
podia fazer
algo por ela no Speymouth. Duvidou de que sua intrusão fosse bem recebida. Ao fim e ao cabo, o que podia fazer ela, ou qualquer outra pessoa? Mas ao menos podia
oferecer-se.
Cordelia não se sentou à mesa. Cortou umas fatias de carne
fria e as pôs entre umas rodelas de pão. Se exccusó ante o Ambrose, agarrou uma maçã e um plátano e se levou o lanche à praia. Sua mente já se afastava da
claustrofóbica ilha em direção a terra firme. sentia-se como uma refugiada que espera ser resgatada de uma colônia violenta e sitiada pela peste, que aguarda
com olhar de desespero a barco que a arrancará do aroma de cadáveres em decomposição, dos gritos e o tumulto dos corpos dispersos na borda, para
a segurança e a normalidade do hotar. A terra firme que tinha visto retroceder com tantas esperanças três dias atrás, agora resplandecia em sua imaginação com
todo o fulgor de uma terra prometida. Parecia-a que nunca chegariam as duas da tarde.
Pouco antes da uma e meia se encaminhou pelo ladrilhado corredor do outro lado do despacho até a porta que, sabia, tinha que levar às dependências do
serviço. Não havia timbre nem aldrava, mas enquanto se perguntava como anunciar sua presença, apareceu a suas costas a senhora Munter com uma cesta cheia de
roupa. Sem dizer nada, manteve aberta a porta para que passasse Cordelia antes que ela. Salvaram um breve corredor e entraram em uma salita. Como todos os arquitetos
vitorianos, Godwin se tinha assegurado de que a servidão não pudesse, desde nenhuma de suas habitações, espiar a seus amos, já estivessem estes no interior
ou ao ar livre; a única ventaba dava a um amplo pátio e mais à frente se elevava o bloco de estábulos com sua encantadora torre de relógio e a veleta. Através do
pátio
veria-se uma corda para a colada,de a que pendurava um enorme pijama do Munter, que a Cordelia resultou lhe angustie; desviou o olhar como se a tivessem pilhado
em um ato de lasciva curiosidade.
A salita estava escuetamente mobiliada e não era incômoda, apesar da artificial simplicidade do mobiliário "art nouveau", quase desprovido de caráter. Em um rincão
havia um televisor, mas não se viam livros, quadros, fotografias nem adornos sobre ao aparelho. Dava a impressão de que seus habitantes não tinham um passado que
recordar,
um presente que celebrar. Aparentemente, ali nunca chegavam visitas. Só havia duas poltronas, um a cada lado do lar, de ferro elegantemente gravado, e só
duas cadeiras ante a mesa, uma frente a outra.
A senhora Munter não a convidou a sentar-se.
-Não tenho a intenção de incomodá-la -disse Cordelia-. Só queria comprovar que está bem. dentro de um momento irei ao Speymouth. Posso fazer algo por você?.
A mulher deixou a cesta sobre a mesa e começou a dobrar a roupa.
-Nada. Provavelmente viajarei com você na lancha. Parto-me, senhorita. Vou da ilha.
-Sei como débito sentitse. Mas se tiver medo, posso compartilhar o dormitório com você esta noite.
-Não tenho medo. Do que poderia o ter? Parto-me, isso é tudo. Nunca eu gostei de estar aqui e agora que ele se foi não tenho por que ficar.
-É obvio, se isso for o que deseja. Mas estou segura de que o senhor Gorringe não quererá que você faça nada precipitado. Quererá falar com você. Haverá... algum
acerto.
-O senhor Gorringe e eu não temos nada que falar. foi um bom amo mas a quem precisava era ao Munter. Eu vim com ele. Agora estamos separados.
Separados, pensou Cordelia, para sempre. Teve a certeza de não haver-se equivocado ao perceber uma nota de satisfação, quase de triunfo, na voz da senhora Munter.
E pensar que tinha ido ali por compaixão, para tratar de proporcionar algum consolo! Aparentemente aquele consolo não era desejado nem necessário. Mas tinha que
haver salários pendentes, oferecimentos de ajuda, disposições para o funeral. Certamente Ambrose quereria tranqüilizá-la lhe dizendo que podia permanecer no
castelo tanto como quisesse. Para não falar da polícia, do Grogan e seus onipresentes peritos na morte, treinados na suspeita e a desconfiança. Se
ao Munter o tinham empurrado deliberadamente à morte, sua mulher podia havê-lo feito. Com um assassino solto na ilha, que melhor momento para livrar-se de um marido
não desejado? Cordelia não albergava nenhuma dúvida de que Grogan, ante essa viuvez não enfermo, poria-a em um dos primeiros lugares em sua lista de suspeitos.
E a polícia tinha que considerar extremamente aquela suspeita apressada partida. estava-se perguntando se devia pô-la sobre aviso, quando a senhora Munter disse:.
-Já falei com a polícia. Não têm motivos para me reter. Sabem onde me achar. O senhor Gorringe se ocupará das disposições para o funeral. Não é assunto
meu.
-Mas você era sua esposa!.
-Nunca fui sua esposa. Ele não estava feito para o matrimônio e eu tampouco. Irei na lancha assim que Oldfield esteja preparado.
-Tem dinheiro? Estou segura de que o senhor Gorringe ..... .
-Não necessito a ajuda do senhor Gorringe. Munter tinha dinheiro. Sabia como tirar-se algo extra e eu sei onde o guardava. Tomarei o que me corresponde. Não passarei
dificuldades.
Uma boa cozinheira nunca morre de fome.
Cordelia se sentiu absolutamente inútil e desconjurado.
-Não. claro -disse-. Mas,tem onde ir? Refiro a esta noite.
-Ela estará comigo.
Nesse momento entrava Tolly na sala, sem fazer ruído. Levava um casaco entalhado azul escuro, com ombreiras, e um pequeno chapéu atravessado por uma larga
pluma. O conjunto evocava os anos trinta e a dotava de uma elegância ligeiramente peripuesta e antiquada. Tinha na mão uma avultada mala atada com uma correia.
Séria, ficou ao lado da senhora Munter -a Cordelia resultava impossível pensar nela com outro nome-, e as duas mulheres se enfrentaram juntas.
Cordelia sentiu que pela primeira vez via claramente à senhora Munter. Até aquele momento apenas habta notado sua existência. A impressão mais intensa que produzia
era a de uma competência discreta. Tinha sido uma anexa do Munter e muito pouco mais. Até seu aspecto resultava anódino: o cabelo grosso, nem loiro nem moreno, com
suas rígidas fundas, o corpo desgracioso, as mãos rechonchas e alhadas. Mas agora a magra boca que tão pouco tinha expresso estava rígida, em obstinado triunfo.
Os olhos que com tanta deferência levava baixos, agora se cravavam descaradarnente nos seus, com um olhar de desafiante segurança, quase insolente. Pareciam
lhe dizer: "Nem sequer sabe como me chamo... e nunca saberá". A seu lado permanecia Tolly, imutável em sua emancipada serenidade.
Em uma palavra, partiriam juntas. aonde iriam viver?. Provavelmente Tolly tinha uma casa ou um piso em algum lugar de Londres, de que tinha feito um lar
para sua filha. Cordelia teve uma repentina e desconcertante visão das duas instaladas em uma pulcra casita suburbana -onde não estariam rodeadas de lembranças-,
a conveniente distancia do metro e da zona comercial, cortinas de malha, atadas com laços nas janelas salientes, para impedir de olhadas curiosas, um pequeno
jardim dianteiro cerca contra inoportunos intrusos, contra o passado. livraram-se de sua servidão. Mas, acaso aquela servidão não tinha sido voluntária?
Ambas eram adultas. Sem dúvida não era o medo ao desemprego o que lhes tinha subtraído liberdade. Podiam ter abandonado seus postos quando lhes viesse em vontade.
Por
que não o tinham feito? Qual era a misteriosa alquimia que mantinha unida às pessoas contra toda razão, contra suas próprias inclinações, contra seus próprios interesses?
Bem, agora a morte as tinha separado: a uma, da Clarissa; à outra, do Munter. Tinha-as separado muito convenientemente, podia pensar a polícia.
Estou-as vendo com toda claridade pela primeira vez e sigo sem saber nada delas, pensou Cordelia. Recordou as palavras do HenryJames: "Nunca cria que conhece 
fundo o coração humano". Mas ela, que se chamava a si mesmo detetive, conhecia embora só fora a superfície? Aquela preocupação pelos motivos, os cegos
impulsos, as fascinantes incongruências da personalidade alheia, não era uma das vaidades humanas mais correntes? Possivelmente, pensou, todos desfrutamos fazendo
de detetive, inclusive com aqueles a quem amo, sobre tudo com eles. Mas ela o assumia como um trabalho, o fazia por dinheiro. Nunca tinha negado sua fascinação,
mas pela primeira vez lhe ocorreu que também podia ser uma presunção. Jamais se havia sentido tão incapacitada para a tarefa e lamentou sua juventude, sua inexperiência,
sua magra reserva de sabiduria herdada em comparação com a complexidade do coração humano. voltou-se para a senhora Munter:.
-Queria falar umas palavras a sós com a senhorita Tolgarth. Permite-me?.
A mulher não formulou resposta alguma, mas olhou a seu amiga e esta assentiu. Deixou-as a sós.
Tolly aguardou paciente, séria, as mãos cruzadas sobre o ventre. Havia algo que a Cordelia teria gostado de lhe perguntar em primeiro lugar, mas não quis fazê-lo,
embora era menos arrogante agora que ao aceitar o caso. disse-se a si mesmo que havia perguntas que não tinha direito a fazer, questões que não tinha direito a expor.
Nenhuma curiosidade humana, nenhum desejo de pôr todas as peças do quebra-cabeças em seu lugar, como se suas próprias mãos pudessem impor a ordem na confusão
das vidas humanas, justificava lhe perguntar o que no fundo sabia que era certo: se Ivo era o pai de sua filha. Ivo, que tinha falado do Viccy com conhecimento
e amor, que sabia que Tolly se negou a aceitar ajuda do pai; Ivo, que se tinha tomado a moléstia de ficar em contato com o hospital para inteirar-se
da verdade a respeito daquela chamada Telefónica. Resultava-lhe insólito pensar em uma união do Ivo e Tolly. O que tinha desejado cada um do outro? Ivo tinha a
intenção de ferir a Clarissa ou de curar uma ferida própria mais profunda? Era Tolly uma dessas mulheres se desesperadas por ser mães que preferem não carregar com
um
marido? O nascimento do Viccy, se não o embaraço, tinha que ter sido desejado. Mas nada disso era assunto dele. De todas as coisas que os seres humanos fazem
juntos, o ato sexual é o que conta com maior diversidade de razões, pensou. O desejo podia ser o mais comum, mas isso não significava que fora o mais singelo.
Cordelia nem sequer pôde decidir-se a mencionar diretamente ao Viccy. Mas havia algo que não podia deixar de perguntar.
-Você estava com a Clarissa quando chegaram as primeiras mensagens, durante a representação do Macbeth. Quer me dizer que aspecto tinham? -Os olhos do Tolly lançaram
faíscas aos seu em um olhar reflexivo e sombrio, embora sem ressentimento nem desgosto-. Verá, suspeito que foi você quem os enviou e acredito que ela pôde adivinhar
e saber por que. Mas não podia prescindir de você. Era mais fácil fingir. Não quis lhe mostrar essas mensagens a ninguém mais. Clarissa sabia perfeitamente o que
lhe havia
feito a você. Sabia que havia coisas que nem seus próprios amigos o perdonarún. Logo ocorreu o que ela esperava que ocorresse. Possivelmente em sua vida houve uma
mudança,
Tolly, que lhe fez considerar impróprio o que fazia. Em conseqüência, as mensagens se interromperam. interromperam-se até que uma pessoa do reduzido grupo
que conhecia a existência dos anônimos, tomou a questão a seu cargo. Claro que eram mensagens diferentes. Tinham outro aspecto. O propósito era distinto, distinto
e terrível. -Tampouco houve resposta. Cordelia adicionou brandamente-: Sei que não tenho direito a perguntá-lo. Não me responda abertamente, se assim o preferir.
Só me diga
como eram aquelas primeiras mensagens e acredito que me bastará com isso.
-Estavam escritos à mão, em letras maiúsculas, em papel rajado -disse Tolly-. Papel arrancado de um caderno escolar.
-E as mensagens propriamente ditas... eram entrevistas?.
-A mensagem era sempre o mesmo. Um texto da Bíblia.
Cordelia compreendeu que era afortunada por ter acessado a tanto. Mas nem sequer aquela pequena amostra de confiança lhe teria sido outorgada se Tolly não houvesse
reconhecido alguma compreensão, alguma empatia entre ambas. Acreditou que podia aventurar outra pergunta.
-Tem idéia de quem continuou com as mensagens?.
O olhar que recebeu era implacável. Tolly já lhe tinha crédulo tudo o que tinha intenção de dizer.
-Não. Eu me ocupo de meus próprios pecados. Que outros se ocupem dos seus.
-Jamais direi a ninguém o que acaba de me contar -prometeu-lhe Cordelia.
-Se tivesse pensado que era capaz de fazê-lo, não o haveria dito. -Tolly fez uma pausa e logo perguntou, no mesmo tom lacônico-. O que ocorrerá com o moço?.
-Com o Simon? Disse-me que sir George lhe permitirá terminar o último ano no Melhurst e que logo tentará encontrar vacante em algum dos colégios de música.
-Estará melhor agora que ela se foi -disse Tolly-. Não era boa para os jovens. E agora, se me desculpar, senhorita quisesse avudar a meu amiga a fazer a bagagem.
.
40.
Já nada podia fazer nem dizer. Cordelia foi a seu dormitório a preparar-se para o traslado ao Speymouth. Como seu objetivo era procurar a crítica do periódico, não
necessitaria
toda sua equipe de investigação, mas guardou em sua bolsa de bandoleira uma lupa, uma lanterna e um caderno de notas; ficou o Guernsey sobre a camisa. Na viagem
de volta faria frio na lancha. Por último deu duas voltas a sua cintura com o cinturão de couro e o grampeou, bem apertado. como sempre, sentiu que levava
consigo um talismã, uma investidura de resolução. Enquanto cruzava a terraço da fachada oeste do castelo, viu que a senhora Munter e Tolly já se encaminhavam
para a lancha, as duas com uma mala em cada mão. Certamente Oldfield acabava de chegar, pois ainda estava descarregando as caixas de vinho e as provisões
no embarcadero, ajudado, surpreendentemente, pelo Simon. Cordelia pensou que muito provavelmente o moço se alegrava de poder ocupar-se em algo.
de repente apareceu Roma da porta vidraça do comilão e cruzou correndo a terraço. aproximou-se do Oldfield e intercambiou umas palavras com ele. A saca de lona
com a correspondência estava na vagoneta e o criado a abriu para extrair o maço de cartas. Ao aproximar-se deles, Cordelia percebeu a impaciência de Roma.
Parecia querer lhe arrebatar ao Oldfield os envelopes de entre os dedos. Mas o homem encontrou a carta que Roma esperava e a entregou. Ela se afastou quase correndo,
logo diminuiu o passo, e sem notar a proximidade da Cordelia, abriu o sobre e leu a carta. Por um instante permaneceu paralisada. Depois lançou um soluço que
era quase um gemido e, cambaleando-se, atravessou a terraço, transbordou precipitadamente a Cordelia e desapareceu pelos degraus em direção à praia.
Cordelia se deteve um momento, sem decidir-se a segui-la. Logo gritou ao Oldfield que a esperasse, que não demoraria muito, e correu em detrás de Roma. Qualquer
que fosse
a notícia, seu efeito tinha sido devastador. Tinha que fazer algo por ajudá-la. Embora não o obtivesse, resultava-lhe impossível partir na lancha como se não houvesse
ocorrido nada. Tentou silenciar a vocecilla ressentida que protestava dizendo que não podia ter ocorrido mais inoportunamente. Alguma vez conseguiria sair da ilha?
por que tinha que ser sempre ela a que atuava como assistente social universal? Não obstante, era impossível desentender-se de tanta angústia.
Roma se cambaleava e fazia esses pela borda, com as mãos estendidas diante do corpo, apalpando o ar. Cordelia acreditou ouvir um prolongado grito de dor. Mas
possivelmente fora o chiado das gaivotas. Estava a ponto de alcançá-la quando Roma deu um tropeção, e caiu quão larga era, sobre os calhaus, e permaneceu tombada,
com todo o corpo estremecido pelos soluços. Cordelia chegou a seu lado. Ver a orgulhosa e reservada Roma em tal abandono de pesar era tão entristecedor, fisicamente,
como um murro no estômago. Cordelia experimentou a mesma quebra de onda de impotente temor, a mesma desesperança. Tudo o que pôde fazer foi ajoelhar-se na areia
e rodear com seus braços os ombros de Roma, albergando a esperança de que o contato humano a ajudasse ao menos a apaziguar-se. encontrou-se embalando-a como podia
havê-lo feito com uma criatura ou com um animal. Aos poucos minutos cessaram os tremores. Roma permaneceu tão imóvel que por um segundo Cordelia temeu que houvesse
deixado de respirar. Mas em seguida se incorporou torpemente e rechaçou os braços da Cordelia. Com passo instável entrou na escolho, inclinou-se e começou a orvalhar-se
a cara com água. Logo permaneceu erguida um momento, com o olhar fixo no mar, antes de voltar-se e olhar a Cordelia.
Seu rosto resultava grotesco, inchado como o de um afogado; os olhos parecín fendas pegas com borracha; o nariz, um vulto bulboso. Quando falou, sua voz soou
dura e gutural, a modo de sons inarticulados que emitissem cordas vocais inflamadas.
--Sinto-o dei um espetáculo repugnante. Se te servir de consolo, me alegro de que você seja a única que me viu.
---Eu gostaria de te ajudar.
-Não pode. Ninguém pode. Como muito provavelmente terá adivinhado, trata-se da vulgar, sórdida e insignificante historia de sempre. Deixou-me plantada. Escreveu
a carta na sexta-feira de noite. Tínhamo-nos vista na quinta-feira, o que significa que já sabia o que pensava fazer... --Tirou a carga do bolso e a tendeu---.
Adiante, lê-a! Digo-te que às! Pergunto-me quantos rascunhos necessitou para produzir esta polida e atenuante peça de hipocrisia.
Cordelia não agarrou a carta.
--Se não teve a decência nem a coragem de lhe dizer isso na cara, não é digno de que chore por ele, não é digno de seu amor.
--O que tem que ver a dignidade com o amor? meu deus, por que não pôde esperar?.
Esperar o que?, pensou Cordelia. O dinheiro da Clarissa? A morte da Clarissa?.
--Se o tivesse feito, sempre te teria ficado a dúvida -opinou Cordelia.
--De seus motivos, quer dizer? Isso o que me importa? Não tenho esse tipo de orgulho. Mas agora é muito tarde. Escreveu com um dia de antecipação. por que
não terá esperado? Disse-lhe que conseguiria o dinheiro. O disse!.
Uma onda maior que as demais rompeu aos pés da Cordelia, e até as pedras banhadas pelo mar chegou uma sandália chapeada.
tirou o chapéu observando-a com artificial intensidade, perguntando-se que tipo de mulher a teria usado, como tinha chegado ao mar, do que desenfreada orgia e do
que
iate tinha cansado pela amurada. Ou sua proprietária seguia ali, com seu magro corpo semidesnudo balançando-se entre as ondas? Qualquer pensamento, inclusive aquele,
contribuía a sossegar a dura voz não natural que em qualquer momento podia dizer as fatais palavras que não era possível retirar e que nenhuma delas esqueceria.
-De pequena ia a uma escola mista. Todos os alunos se emparelhavam. Quando a amizade se esfriava estavam acostumados a enviar-se  mutuamente o que chamavam "nota
de cabaças".
Eu nunca recebi  nenhuma, porque nunca formei casal. Eu pensava que valeria a pena receber a nota se antes vivia essa espécie de noivado, embora só durasse um
trimestre. Oxalá pudesse sentir o mesmo agora. Ele foi o único homem que me desejou. Suspeito que sempre soube por que. Alguém pode enganar-se a si mesmo só
até certo ponto. A sua mulher não atrai o sexo e eu significava um pó grátis. Está bem, não ponha essa cara! Não espero que compreenda. Você pode ter amor
quando te vem em vontade.
--Isso não é verdade, nem com respeito a mim nem com respeito a ninguém! -gritou Cordelia.
-Não? Era verdade com respeito à Clarissa. Bastava-lhe olhar a um homem. Um sozinho olhar era suficiente. Toda minha vida vi como usava aqueles olhos. Mas já não
voltará a fazê-lo. Nunca. Nunca, nunca, nunca.
Sua angústia era como uma infecção, forte e febril, com aroma de suor. Cordelia a sentiu poluir seu próprio sangue. Permaneceu de pé nos calhaus, temerosa
de aproximar-se de Roma, pois sabia que esta rechaçaria todo consolo físico, mas ao mesmo tempo se via reacia a deixá-la, embora consciente de que Oldfield estaria
impacientando-se. Então Roma disse bruscamente:.
-Se quer alcançar a lancha, será melhor que vá.
-E você?
-Não se preocupe. Pode ir com boa consciências não farei nenhuma tolice. Esse é o eufemismo ao uso, não? Não é isso o que sempre dizem? Não faça nenhuma
tolice. Hei
aprendido a lição. Basta de tolices, Roma! Se por acaso te interessa, direi-te o que será de mim. Agarrarei o dinheiro da Clarissa e me comprarei um pisito em Londres.
Venderei a livraria e me buscarei um emprego de meia jornada. de vez em quando irei de férias ao estrangeiro com uma amiga. Nenhuma das duas desfrutará de muito
com a compañia da outra, mas será melhor que viajar sozinha. Ofereceremo-nos pequenas surpresas, uma função de teatro, uma exposição de arte, um jantar em um de
esses restaurantes onde não tratam como emparelha às mulheres sozinhas. Em outono me matricularei para tomar classes noturnas e fingirei interesse pelos cultivos
em vasos,
pela arquitetura georgiana em Londres, ou as religiões comparadas. E cada ano me voltarei um pouco mais maníaca em torno de minhas comodidades, um pouco mais censora
dos jovens, um pouco mais quejicosa com meu amiga, um pouco mais de direitas, um pouco mais amarga, um pouco mais solitária, um pouco mais morta.
A Cordelia teria gostado de adicionar: "Mas terá o suficiente para comer. Terá um teto sobre sua cabeça. Não morrerá de frio. Terá sua fortaleza e sua inteligência.
Não é isso mais do que têm três quartas partes da humanidade? Não é uma colecionadora de conchas vitoriana que espera a que um homem dê sentido e propósito
a sua vida. Nem sequer tem por que haver amor". Mas sabia que as palavras seriam tão fúteis e ofensivas como lhe dizer a um cego que o sol sempre fica.
voltou-se e deixou a Roma com a vista cravada nas águas. sentia-se como uma desertora. Pareceu-lhe descortês apressar-se e aguardou chegar a terraço para jogar
a correr.
.
41.
Ninguém falou durante o trajeto. Cordelia permaneceu na proa com o olhar fixo na borda que gradualmente se aproximava. A senhora Munter e Tolly se instalaram
a popa, com as malas a seus pés. Quando por fim a "Shearwater" atracou, Cordelia esperou a que desembarcassem antes de levantar-se. Viu-as avançar em silencio costa
vamos, em direção à estação.
A cidade se via menos concorrida e buliçosa que na sexta-feira pela manhã, mas mantinha seu ar ligeiramente arcaico de alegre domesticidade iluminada pelo sol.
Resultou-lhe extraordinário passar absolutamente inadvertida. Quase esperava que a gente se voltasse a olhá-la, ouvir que murmuravam a palavra "Courcy" a suas costas,
crcer que levava visível na frente a marca do Caín. Que maravilha sentir-se livre do Grogan e seus lacaios, ao menos durante umas poucas e benditas horas, alheia
ao círculo de apreensivos suspeitos carregados de amor próprio! Agora era uma garota corrente que caminhava por uma rua corrente, anônima entre os primeiros compradores
da tarde, os últimos turistas, os empregados de escritório que se apressavam a voltar para seus escritórios depois de um almoço tardio. Dedicou uns minutos a comprar
um
lápis de lábios que não necessitava, em uma farmácia com fachada de estilo Regência, tomando-se mais tempo do habitual para escolhê-lo. Era um pequeno ato de esperança
e confiança, uma saudação à normalidade. A única menção que viu ou ouviu sobre a morte da Clarissa era um par de pôsteres que anunciavam os jornais nacionais,
com as palavras "Atriz Assassinada No Courcy Island", escritas e não impressas, debaixo do nome do periódico. Comprou um em um quiosque e encontrou uma breve resenha
na terceira página. A polícia tinha proporcionado o mínimo de informação e a negativa do Ambrose a falar com os jornalistas evidentemente tinha frustrado
à imprensa em seu desejo de tirar proveito da história. Cordelia se perguntou se finalmente não teria sido o mais sensato. Pelo vendedor se inteirou de que agora
só tinham um periódico local, o "Speymouth Chronicle", que saía duas vezes por semana, as terças-feiras e as sextas-feiras. O escritório estava no extremo norte
do passeio
marítimo. Cordelia o localizou sem dificuldades. Era um edifício branco restaurado, com duas grandes janelas em uma das quais tinham pintado as palavras "Speymouth
Chronicle" e na outra exposto um desdobramento de fotografias de imprensa. O jardim dianteiro tinha sido pavimentado para dar estacionamento a meia dúzia de carros
e uma caminhonete de partilha. Entrou e no mostrador da recepção encontrou a uma loira mais ou menos de sua idade, que ao mesmo tempo atendia o posto telefônico.
Ante
uma mesa próxima, um ancião selecionava fotografias.
Teve sorte. Temia que os velhos exemplares do periódico se guardassem em outra parte ou não estivessem a disposição do público. Mas quando explicou a recepcionista
que estava investigando sobre o teatro de províncias e queria ver as críricas sobre a Clarissa Lisle em "O profundo mar azul", não lhe fizeram perguntas nem o
puseram obstáculos. A moça pediu a seu companheiro que atendesse a recepção, fez caso omisso de uma luz que se acendeu no posto telefônico, atravessou com a Cordelia
uma porta de batente e a guiou por um íngreme lance de escada mau iluminado, até o porão. Uma vez ali abriu a porta fechada com chave de uma pequena
habitação; o excitante aroma mofado de velhos papéis impressos se introduzia nos narizes como um miasma. Cordelia notou que os arquivos estavam classificados
em pastas de mola, dispostas em ordem cronológica sobre as prateleiras metálicas. No centro da sala havia uma larga tabela montada sobre cavaletes. A
recepcionista acendeu dois tubos fluorescentes, de crua luz.
-Aqui está tudo, até 1860 -disse-. Não pode levar-se nada e não deve escrever sobre os periódicos. Não se vá me avisar. Tenho que voltar a jogar a chave quando
saia. Até mais tarde.
Cordelia se aplicou a sua tarefa metodicamente. Speymouth era uma população pequena e certamente não contava com uma companhia de teatro estável. Em conseqüência,
era
quase seguro que Clarissa tinha ido com uma companhia de repertório durante a temporada estival, mais provavelmente entre maio e setembro. Iniciaria a busca
por esses cinco meses. Não encontrou nada sobre a obra do Rattigan em maio, mas notou que a companhia de repertório com apóie no velho teatro estreava sempre em
segunda-feira e a obra estava em pôster duas semanas. As críticas apareciam em uma página dedicada às artes na edição das terças-feiras: uma imediata resposta digna
de elogio, tratando-se de um pequeno periódico de províncias. Possivelmente o crítico transmitia por telefone seu artigo do teatro. A primeira menção de "O
profundo mar azul" tinha aparecido em um anúncio de princípios de junho; decia que Clarissa Lisle seria a estrela convidada durante a quinzena que começava o
18 de julho. Cordelia calculou que a resenha apareceria na página de arte -invariavelmente a novena- de 19 de julho. Arrastou até a mesa o pesado volume
que continha os números de julho a setembro e procurou o exemplar daquela data. Mais grosso que a edição normal, estava composto por dezoito páginas em
lugar das acostumadas dezesseis. A razão se fez evidente na primeira página. Reina-a e o duque do Edimburgo tinham visitado a cidade na sábado anterior,
como parte de sua excursão provincial no ano de jubileu, e o exemplar daquela terça-feira era o primeiro posterior à visita. Tinha sido um dia famoso para o Speymouth,
pois se tratava da primeira visita real desde 1843, e o "Chronicle" lhe tirou o máximo partido. No artigo da primeira página informavam que na página
dez apareciam mais fotos. Estas palavras pulsaram uma corda na memória da Cordelia. Agora estava quase segura de que o reverso
da resenha que tinha visto não era letra impressa, a não ser uma imagem.
Mas, com o éxlto já ao alcance da mão, sentiu uma repentina perda de confiança. Quão único podia descobrir era a crítica de um repórter de províncias
sobre uma reposição que já ninguém recordaria no Speymouth. Clarissa tinha afirmado que era importante para ela, o suficiente para guardá-la na gaveta secreta
de seu joalheiro. Claro que no caso disso Clarissa podia significar algo. Talvez lhe tinha gostado do comentário e tinha conhecido ao crítico, desfrutando
de uma breve mas satisfatória aventura amorosa. Podia ser algo tão sentimental e pouco importante como isso. E que importância podia ter com respeito a sua morte?.
Então comprovou que a folha que procurava não estava ali. Repetiu duas vezes a mesma operação. Por mais cuidadosamente que desse voltas às folhas do periódico,
faltavam as páginas nove e dez. Inclinou para trás a avultada coleção de periódicos no ponto em que estavam sujeitos pelo passador. Na margem da
página onze acreditou detectar uma magra impressão descendente, como se o papel tivesse um leve entalhe feito com uma navalha ou uma folha de barbear. Agarrou a
lupa
e a moveu lentamente por cima dos borde encadernados. Então viu com toda claridade a marca delatora; em alguns pontos o papel estava talhado, e mostrava
onde se tinha arrancado a folha. Também distinguiu diminutas tiras de papel onde o bordo da página nove seguia sujeito ao passador. Alguém lhe tinha antecipado.
A recepcionista estava atarefada com uma possível cliente que indagava -sem sinais visíveis de dor- a respeito do que devia fazer para inserir uma nota necrológica
e quanto lhe custaria adicionar uma bonita poesia. Abriu um caderno infantil e assinalou as letras arredondadas, laboriosamente desenhadas. Cordelia sempre curiosa
por
a idiossincrasia de sua próximo e esquecida por um instante de suas próprias inquietações, aproximou-se e desviou a vista para ler:.
As nacaradas paredes brilhavam,) São Pedro sussurrava), estava aberta a porta dourada,) para que Joe passasse)).
A peça de duvidosa teologia foi recebida pela moça com uma indiferença indicadora de que tinha lido muitas poesias semelhantes com antecedência. Passou os
três minutos seguintes tratando de explicar qual seria o custo provável, incluídos os extras se ficava quadro à nota e se rematava com cruz e coroa, consulta
que foi interrompida por prolongados silêncios meditabundos enquanto contemplavam amostras dos modelos em oferta. Dez minutos mais tarde todo ficou satisfatoriamente
resolvido e a recepcionista pôde emprestar atenção a Cordelia, que disse:.
-encontrei o número que procurava, mas falta a folha que necessito. Alguém a cortou.
-Não pode ser. Não está permitido. Esses são nossos arquivos.
-Pois o têm feito. Não há outra cópia?.
-Terei que dizer-lhe ao senhor Hasking. Não podem cortar os arquivos. O senhor Hasking ficará de muito mau humor quando se inteirar.
-Não me cabe a menor duvida. Mas necessito essa página urgentemente. É a página nove de 19 de julho de 1977. Não tem outros números atrasados que possa revisar?.
-Aqui não. Possivelmente o presidente tenha uma coleção em Londres. Cortar os arquivos! O senhor Hasking dá muito valor a esses exemplares antigos. São história,
diz.
-Recorda quem foi a última pessoa que visitou os arquivos?.
-O mês passado vinho uma senhora loira, de Londres. Estava escrevendo um livro sobre moles marítimos. Voaram o do Speymouth em 1939 para que os alemães não pudessem
desembarcar e depois a Prefeitura não teve dinheiro suficiente para reconstrui-lo. Por isso é tão tosco. Disse-me que quando ela era pequena havia um teatro de
variedades na ponta, e que em temporada atuavam artistas de Londres. Sábia muito sobre
embarcaderos.
Cordelia pensou que um detetive privado melhor equipado ou mais eficaz teria ido provido de fotografias da vítima e dos suspeitos para sua possível identificação.
Lhe teria resultado útil saber se a loira tão perita em moles se parecia com a Clarissa ou a Roma. Tolly, a não ser que se tivesse disfarçado em uma artimanha innecesariamente
espetacular, ficava descartada. perguntou-se se ao Bernie lhe teria ocorrido fotografar em segredo aos hóspedes, preparando-se para aquela eventualidade. Ela
não tinha pensado que tão complicado procedimento fosse útil ou possível. De todos os modos, tinha a Polaroid na ilha. Possivelmente valesse a pena provar. Podia
ir procurar a
e voltar para dia seguinte.
--E a dama dos moles é quão única solicitou os arquivos ultimamente? -perguntou.
--Desde que eu estou aqui, ao menos. Claro que só levo um par de meses. Sally poderia lhe haver falado de qualquer visitante anterior, mas deixou o trabalho, para
casar-se. Além disso, eu não estou sempre na recepção. Quero dizer que poderia ter vindo alguém  estando eu no escritório e Albert em meu escritório.
--Ele está aqui?.
A moça a olhou como se semelhante ignorância a deixasse atônita:.
--Albert? Não, é obvio. As segundas-feiras alguma vez vem . -de repente observou a Cordelia com expressão suspicaz-. por que quer saber quem mais esteve aqui? Acreditei
que só estava procurando essa crítica.
--E assim é, mas senti curiosidade por saber quem cortou essa página. Como você há dito, esses arquivos são muito importantes e eu não gostaria que ninguém penssara
que
fui eu. Está segura de que não há em toda a cidade outro exemplar?.
Sem levantar a vista, o ancião que seguia acomodando novas
fotos na cristaleira estudiadamente e com olho clínico para a busca do efeito artístico, além de uma parcimônia lhe sugiram de que o trabalho podia lhe ocupar
o resto do dia, disse:.
-Há dito em 19 de julho de 1977? Isso significa três dias depois da visita da rainha. Pode provar com o Lucy Costello. Guarda recortes de imprensa sobre a família
real há cinqüenta anos e não acredito que se perdesse a visita real ao Speymouth.
-Mas Lucy Costello morreu, senhor Lambert! Publicamos um artigo a respeito dela e seus recortes de imprensa o dia depois de seu enterro.
O senhor Lambert voltou a cara e elevou os braços ao céu em uma paródia de paciente resignação:.
-Sei muito bem que Lucy Costello morreu! Todos sabemos! Em nenhum momento hei dito que não estivesse morta. Mas tem uma irmã, não? Que eu saiba, a senhorita
Emmeline segue viva, e suponho que conserva os livros de recortes. Não acredito que os tenha arrojado ao lixo. Podem ter enterrado ao Lucy, mas a meu entender
não se levaram seus recortes à tumba. Disse a esta senhorita que provasse com ela, não que lhe falasse.
Cordelia perguntou como podia localizar à senhorita Emmeline. O senhor Lambert estava outra vez concentrado em suas fotografias e falou mal-humorado, como se lamentasse
ter sido tão linguarudo:.
-Windsor Cottage, Benison Row. Rua Maior acima, segunda à esquerda. Não tem perda.
-É longe? Quero dizer se devo agarrar um ônibus.
-Teria sorte se o obtivesse, mas enquanto o espera poderia morrer. Dez minutos andando, como máximo. Não é nenhuma distância para uma jovencita.
O senhor Lambert selecionou a foto de um corpulento cavalheiro com a cadeia distintiva de prefeito, cujo oblíquo olhar de procaz bonhomía sugeria que o banquete
oficial tinha superado suas expectativas, e a situou cuidadosamente ao lado da imagem de uma banhista bem dotada e decididamente ligeira de roupas, de modo tal que
os olhos do cavalheiro pareciam contemplar a fenda de seu decote. Hei aqui a um homem que desfruta com seu trabalho, pensou Cordelia. Agradeceu a arnbos sua ajuda
e partiu para a busca da senhorita Emmeline Costello.
.
42.
O senhor Lambert a tinha informado bem quanto à distância. Foram quase dez minutos exatos de caminhada, certo é que a passo vivo, até o Benison Row. Cordelia
encontrou-se em uma estreita rua de casas vitorianas que discorria sinuosamente na parte elevada da cidade. Embora se notava uma agradável uniformidade em
o referente a época, arquitetura e altura das casitas em fileira, cada uma delas possuía seu encanto peculiar. Umas tinham mirantes, outras jardineiras de madeira
embutidas, das que uma profusão de matizadas heras e gerânios subiam perfilando seu desenho sobre o estuque, enquanto as duas do extremo exibiam louros
em tinajas pintadas a cada lado das lustrosas portas de entrada. Todas as casitas tinham um estreito jardim dianteiro detrás das grades de ferro foriado
que, possivelmente a causa de.su delicada ornamentação, salvaram-se de ser convertidas em sucata durante a última guerra. Cordelia se deu conta de que nunca
tinha visto uma fileira de casas com suas grades completas e de que estas davam à rua -exteriormente tão inglesa em seu preciosismo em pequena escala- um toque
de encantada embora exótica extravagância. Os pequenos jardins de exuberante colorido e os quentes vermelhos do outono pareciam estalar contra as grades. Embora
a temporada tocava a seu fim, o ar era uma sinfonia de lavanda e romeira. Não havia carros estacionados junto ao meio-fio nem vapores de gasolina. Depois do bulício
e os penetrantes aromas da Rua Maior, entrar no Benison Row foi para ela o mesmo que retroceder à acolhedora simplicidade de uma era legendária.
Windsor Cottage era a quarta casa a emano esquerda. Seu jardim era mais singelo que outros, um pulcro quadrado de imaculada grama com arriates de rosas. Todas
as escamas da aldaba, de bronze e em forma de peixe; cintilavam. Cordelia chamou o timbre e esperou. Não ouviu pisadas em pressurosas. Voltou a chamar, esta vez
com mais
insistência. Só lhe respondeu o silêncio. Compreendeu, com certo desencanto, que a proprietária tinha saído. Possivelmente tinha sido estupidamente otimista por
seu
parte esperar que a senhorita Costello a estivesse aguardando em sua casa só porque ela, Cordelia Gray, precisava vê-la. Mas a desilusão embargou seu ânimo
e lhe comunicou uma inquieta impaciência. Agora estava convencida de que o recorte te faltem era vital e de que só naquela casita lhe oferecia a possibilidade
de encontrá-lo. A perspectiva de ter que voltar para a ilha sem explorar esta pista e com a curiosidade insatisfeita a deixou aturdida. Começou a passear-se de um
lado a outro perguntando-se quanto valia a pena esperar, se a senhorita Costello retornaria -talvez da compra-o se tinha fechado a casa e partido de férias.
Então descobriu que as duas janelas da planta alta estavam abertas e se reanimou. Da casa do lado saiu uma mulher de idade amadurecida e olhou para a rua,
como se esperasse a alguém, e estava a ponto de fechar a porta quando Cordelia correu para ela e lhe disse:.
-Desculpe, vim a ver a senhorita Costello. Sabe se voltará esta tarde?.
-Suponho que está na lavanderia -respondeu a vizinha amavelmente-. Sempre faz sua penetrada as segundas-feiras pela tarde. Não pode demorar muito, a menos que tenha
decidido
tomar o chá no centro.
Cordelia lhe deu as obrigado e a mulher fechou a porta. A ruela  voltou a sumir-se no silêncio. Cordelia apoiou as costas na grade e se dispôs a esperar
fazendo provisão de paciência.
A espera não se prolongou. menos de dez minutos mais tarde, viu torcer a esquina e entrar no Benison Row a uma personilla extraordinária; instantaneamente soube
que
tinha que ser Emmeline Costello: uma viejecita que arrastava um carro da compra forrado  em lona de que aparecia um volumoso vulto coberto de plástico. Andava
a passo lento mas erguida; sua magra figura se perdia em um capote do exército, cor cáqui, tão comprido que a prega quase varria a calçada. Seu carita estava
tão sulcada de rugas como um pergaminho e parecia mais pequena ainda por causa de um lenço a raias vermelhas e brancas que lhe rodeava a cabeça, atado sob o queixo.
Em cima lucia um gorro de ponto cor púrpura, rematado com um pompom. Se necessitava tamaña abundância de casaco em um quente dia de setembro, Cordelia se perguntou
como se vestia no inverno. Quando a senhorita Costello chegou à cancela, Cordelia se adiantou para abrir-lhe e se apresentou.
-O senhor Lambert do "Speymouth Chronicle" sugeriu-me que possivelmente você poderia me ajudar -disse-. Estou procurando um recorte de um velho número do periódico,
concretamente
de 19 de julho de 1977. Resultaria-lhe muita moléstia que revisasse a coleção de sua irmã? Não me permitiria importuná-la se não fosse realmente importante.
procurei nos arquivos do periódico, mas a página que necessito não está ali.
A senhorita Costello podia apresentar ao mundo um aspecto de excentricidade quase lhe intimidem, mas os olhos que olharam os da Cordelia eram penetrantes, brilhantes
como miçangas e acostumados a fazer apreciações; quando falou o fez com voz clara, educada e autoritária, uma voz que definiu imediata e inconfundiblemente
o lugar preciso que ocupava na complicada hierarquia do sistema de classes britânico.
-Quando tiver oitenta e cinco anos, minha filha, não lhe ocorra rivir no alto de uma costa. Passe, que tomaremos o chá.
Com essa mesma voz a tinha recebido a reverenda mãe quando chegou pela primeira vez, cansada e assustada, ao Convento do Menino Deus.
Seguiu à senhorita Costello ao interior da casa. Era evidente que nada se faria depressa e, em sua condição de solicitante, não podia dizer que dispunha de pouco
tempo. Sua anfitriã a deixou no salão enquanto ia tirar se várias caia de roupa e a preparar o chá. A estadia era encantadora. O mobiliário antigo, provavelmente
transladado de uma casa familiar maior, tinha sido selecionado de modo que se adaptasse ao espaço disponível. As paredes estavam virtualmente cobertas
de pequenos retratos de família, aquarelas e miniaturas que produziam um efeito de ordenada vida caseira e não de amontoamento. Um aparador de mogno embutido em
a parede, com adornos de palisandro, continha poucas e escolhidas porcelanas, e o relógio situado no suporte da chaminé escandía o tempo com seu tictac. Quando
a senhorita Costello reapareceu empurrando uma mesita de rodas, Cordelia notou que o serviço de chá era de verde porcelana Worcester decorada, e a bule, de prata.
Uma ocasião, pensou, em que a senhorita Maudsley se haveria sentido como em sua casa.
O chá era Earl Grei. Enquanto o bebia na elegante taça pouco profunda, Cordelia experimentou o repentino e irresistível impulso de abrir seu coração à anciã.
É obvio, não podia lhe dizer à senhorita Costello quem era nem o que procurava em realidade, mas a paz do lugar parecia rodear a de uma morna segurança, um reconfortante
suspiro em relação ao horror da morte da Clarissa, de seus próprios temores, inclusive da solidão. Queria lhe contar à senhorita Costello que vinha da ilha,
otr uma voz humana pormenorizada manifestando quão horrível habia sido todo aquilo, uma consoladora voz anciã que a tranqüilizasse com os recordados tons de
a reverenda mãe.
-cometeu-se um crime no Courcy Island -disse-. A atriz Clarissa Lisle foi assassinada, embora suponha que já estará você à corrente. Além disso, afogou-se
o criado do senhor Gorringe.
-Inteirei-me do ocorrido à senhorita Lisle. Essa ilha tem uma história violenta. Não acredito que sejam essas as últimas mortes -sentenciou a encantadora viejecita-.
Mas não tenho lido o relatório do periódico e, como pode ver, não temos televisor. Como estava acostumado a dizer minha irmã. em nossos dias há muita fealdade e
muito ódio,
mas ao menos não temos por que trazê-lo para nosso saloncito. E aos oitenta e cinco anos, querida minha, alguém tem direito a rechaçar o que considera desagradável.
Não, não acharia consolo naquela paz sedutora mas falsa. Cordelia se envergonhou pela momentânea debilidade com que a tinha procurado. Ao igual a Ambrose, a
senhorita Costello tinha construído primorosamente sua cidadela privada, menos formosa, menos romota, menos dispendiosamente grata, mas muito semelhante em sua suficiência,
em sua inviolabilidade.
Nem o entusiasmo nem a impaciência tinham tirado o apetite a Cordelia. Tinha aceito agradecida algo mais que as duas magras rodelas de pão com manteiga,
sobre tudo porque a exigüidade da comida não guardou nenhuma relação com sua duração. Surpreendeu-lhe que à senhorita Costello levasse tanto tempo beber dois
taças de chá e bicar sua ração de mantimentos. Mas por fim terminaram.
-Os recortes de imprensa de meu difunta irmana estão em sua habitação, vamos -disse a senhorita Costello-. Era uma monárquica devota -nesse ponto Cordelia acreditou
detectar um matiz de indulgente desprezo- e durante os últimos cinqüenta anos não pode dizer-se que se produziu na realeza um acontecimento que escapasse
a sua atenção. Embora seu principal interesse recaía, naturalmente, na casa da Sajonia-Coburgo-Gotha. Deixarei-a procurar por sua conta, pois não é provável que
eu
possa lhe ser útil. De todos os modos, não vacile em me chamar se acreditar que posso lhe emprestar alguma ajuda.
Era interessante, embora não de tudo assombroso, pensou Cordelia, que a senhorita Costello não se tomou a moléstia de lhe perguntar o que procurava. Talvez considerava
que essa pergunta era indicativa de uma vulgar curiosidade ou, mais provavelmente, temia que provocasse outra intrusão do desagradável em sua ordenada vida.
Acompanhou a Cordelia ao dormitório principal, onde a obsessão do Lucy resultava imediatamente manifesta. As paredes estavam quase totalmente cobertas de fotografias
da realeza, algumas delas médio apagadas por assinaturas rabiscadas. Em cima de um comprido prateleira colocada sobre a cabeceira havia, densamente alinhada,
uma coleção de jarras comemorativas da coroação, em tanto uma vitrine com porta de cristal luzia outros objetos que recordavam acontecimentos memoráveis,
como bules com coroas, taças e pratos igualmente adornados, além de peças de cristal gravado. Toda a parede que dava frente à janela mostrava prateleiras
embutidos que continham uma série de álbuns de recortes: a famosa coleção.
Cada álbum tinha marcado no lombo as datas que abrangia e Cordelia encontrou sem a menor dificuldade o correspondente a julho de 1977. Os fotógrafos da
imprensa local tinham feito justiça a grande jornada do Speymouth. Não havia um só aspecto da visita real que não tivesse ficado registrado. Viu fotos da
régia chegada, do prefeito com sua cadeia, da prefeita fazendo uma reverência, dos meninos com suas bandeiras do Reino Unido em miniatura, da rainha sonriendo
da carruagem real, com a mão levantada no gesto característico dos de sua linhagem, e o duque a seu lado. Mas nenhum recorte encaixava exatamente em
a lembrança que tinha Cordelia da forma e o tamanho da peça lhe faltem. sentou-se sobre os talões, com o álbum aberto ante si, e por um momento se sentiu
quase enjoada pela decepção. Os grânulos dos rostos sorridentes e satisfeitos se burlavam de seu fracasso. A possibilidade de êxito tinha sido escassa, mas o
mortificou compreender quantas esperanças tinha depositado na busca. Então se deu conta de que não toda esperança estava perdida. Na prateleira inferior havia
uma pilha de grossos envelopes de papel manila, cada um deles com o ano escrito com a caligrafia vertical da senhorita Lucy. Abriu o de acima e viu que também
continha recortes de imprensa, provavelmente duplicados que lhe tinham enviado amigos ansiosos de contribuir a sua coleção, ou recorte que tinha rechaçado como indignos
de ser incluídos mas que não tinha querido atirar. O sobre de 1977 era mais volumoso que outros, como correspondia a um ano de jubileu. Esvaziou a miscelânea de
recortes, em sua maioria descoloridos pelo passado do tempo, e os pulverizou ante si.
Encontrou-o quase imediatamente: recordada-a forma retangular, o titular "Clarissa Lisle triunfa na reposição do Rattigan", a terceira coluna atalho por
a metade. Olhou o dorso. Ignorava o que esperava ver, mas sua primeira reação foi de desilusão. Todo o reverso estava ocupado por uma foto de imprensa perfeitamente
ordinária. Tinha sido tomada no passeio e mostrava a calçada de em frente lotada de rostos sorridentes, de uma fila de meninos em cuclillas sobre o meio-fio com
seus banderitas preparadas, enquanto que suas majores mais aventurados se encarapitaram a parapeitos de janelas ou permaneciam agarrados a postes do sistema de iluminação.
No fundo da multidão. duas roliças mulheres com reproduções do estandarte pátrio ao redor do chapéu, permaneciam nos degraus de uma casa sustentando
uma pancarta em que se liam as palavras "Bem-vindos ao Speymouth". Suas majestades não tinham chegado ainda, mas a imagem transmitia uma sensação de feliz
expectativa. O primeiro pensamento impertinente da Cordelia foi perguntar-se por que a senhorita Costello a tinha rechaçado. Claro que tinha tido grande número de
fotos entre as quais escolher, e em muitas delas aparecia a rainha. Mas que interesse podia ter para a Clarissa Lisle aquela foto nada especial, aquele testemunho
de patriotismo local? Observou-a mais atentamente. Então lhe deu um tombo o coração. À direita da fotografia aparecia a figura ligeiramente difusa de um
homem. Um homem que naquele momento baixava ao meio-fio obviamente interessado em seus próprios assuntos, alheio à exaltação que lhe rodeava, com o rosto preocupado
e o olhar fixo além da câmara. Não havia nenhuma dúvida: era Ambrose Gorringe.
Ambrose no Speymouth em julho de 1977. Aquele tinha sido o ano de seu exílio fiscal. Teria que ter permanecido no estrangeiro durante todo o ano financeiro,
pois Cordelia recordava ter lido que o mero feito de pisar em chão britânico invalidava a condição de não residente. Mas suponhamos que entrou subrepticiamente
no pais, como demonstrava aquela fotografia. Esse fato não lhe teria obrigado a pagar todos os impostos que tinha evitado, todo o dinheiro que deveu gastar em
restaurar o castelo, adquirir seus quadros e porcelanas, embelezar sua ilha privada? Teria que consultar a um perito, averiguar qual era a situação legal.
Certamente havia escritórios notariales no Speymouth. Podia dirigir-se a um advogado, expor uma questão geral sobre leis impositivas, não tinha por que mencionar
nada específico. Mas tinha que averiguá-lo e não ficava muito tempo. Olhou a hora: as cinco menos dez. A lancha iria a procurá-la às seis em ponto. Era
essencial obter algum tipo de confirmação antes de retornar à ilha.
Enquanto reuniu os recortes, voltou a guardá-los no sobre e baixou para falar com a senhorita Costello, sua mente hervia com a novidade. Se Clarissa habia compreendido
a significação daquela foto, por que não a habia compreendido ninguém mais? Entretanto, a quem podia lhe importar? Ambrose não vivia na ilha em 1977. Provavelmente
tinha-a visitado estranha vez e não era factível que conhecessem seu rosto na localidade. Quem lhe conhecia viviam em Londres e, com toda segurança, jamais haviam
lido o "Speymouth Chronicle". Tinha assinado seu êxito literário com pseudônimo. Embora alguém que vivesse ali reconhecesse a fotografa, provavelmente não se daria
conta de que aquele era A. K. Ambrose, o autor de "Autópsia", que oficialmente estava passando um ano de exílio tributário. Não é esse o tipo de coisas que a um
interessa-lhe dar à publicidade. Não, tinha sido pura má sorte para ele que aquela semana estivesse Clarissa atuando no Speymouth e tivesse lido a crítica em
o periódico local. E Clarissa se cobrou o preço de seu silêncio, sem dúvida sutilmente, sem que aparecesse nada grosseiro nem estridente na extorsão. Clarissa
teria exposto seus próprios términos com encanto, inclusive com um matiz de divertido pesar. Mas o preço tinha sido exigido e tinha sido pago. Agora o via
claramente: por que Ambrose tinha tolerado que os cômicos desbaratassem sua vida, por que Clarissa tinha usado o castelo como ama e  senhora.
Cordelia se recordou que nada disso demonstrava que Ambrose fora um criminoso, mas sim que tinha motivos para matar. Ela tinha a prova na mão.
Mais adiante se sentiu saudades de que em nenhum momento lhe ocorresse a idéia de levar imediatamente o recorte à polícia. Primeiro tinha que obter a confirmação
do delito fiscal e logo se enfrentaria ao Ambrose. Era como se aquela investigação não tivesse nada que ver com a polícia. Era uma questão entre ela e sir George,
que a tinha empregado, ou possivelmente entre ela e a mulher a que não tinha sabido proteger. A arrogante voz masculina do inspetor Grogan soou em seus ouvidos:
"É possível
que você seja mais lista do que lhe convém, senhorita Gray. Não está aqui para resolver este caso. Isso é minha tarefa".
Encontrou à senhorita Costello na pequena cozinha traseira, pregando roupa de cama lista para engomar. Pareceu-lhe normal que Cordelia se levasse o recorte e o
disse sem incomodar-se em olhá-lo nem apartar a atenção de suas capas de travesseiro. Cordelia lhe perguntou se podia lhe recomendar um cartório no Speymouth. Esta
petição
sim provocou um olhar naqueles olhos ardilosos, mas a senhorita Costello tampouco lhe fez nenhuma pergunta. Enquanto a acompanhava à porta, limitou-se a dizer:.
-Meus assessores legais estão em Londres, mas ouvi dizer que Blake, Franton e Fairbrother são sérios. Encontrará-os no passeio, a uns cinqüenta metros ao este
da estátua de Vitória. Aconselho-lhe que se dê pressa. depois das cinco no Speymouth se desdobra muito pouca atividade útil, profissional ou de qualquer tipo.
.
43.
A senhorita Costello tênia razão. Quando Cordelia chegou ofegante à polida porta de estilo georgiano do Blake, Franton e Fairbrother, encontrou-a firmemente fechada,
para que esse dia não entrassem mais clientes. As habitações de abaixo estavam às escuras e, embora havia luz no segundo piso, uma placa, a um flanco da porta,
indicava que essa parte do edifício era um apartamento independente. Embora não o tivesse sido, não se teria atrevido a incomodar a um notário desconhecido em seu
domicílio particular para lhe pedir um conselho que, por suas aparências, não parecia uma questão urgente. Talvez alguma cartório estivesse aberto até as seis,
mas como encontrá-la? Podia apelar às páginas amarelas se a agência de correios contava com esse tipo de agendinha de telefones em províncias. sentiu-se envergonhada
ao descobrir
que, por ser londrino, desconhecia esse dado. E mesmo que encontrasse uma guia com os nomes dos cartórios locais, toparia-se com a dificuldade de localizar
os escritórios sem um mapa urbano. Pensou que tinha saído mal equipada para realizar suas investigações. Enquanto permanecia indecisa, viu chegar a um jovem, carregado
com uma caixa de verduras, que tocou o timbre.
-Está fechado, não? -perguntou-lhe o moço.
-Sim. Necessitava com urgência um notário.
--Sim, isso é o mau dos notários. Se um os necessitar, está acostumado a ser com urgência. Poderia provar com o Beswick, que tem o escritório no Gentleman's Walk.
Uns trinta
metros rua abaixo, torça à esquerda. Está mais ou menos em metade da maçã, à mão
direita.
Cordelia lhe deu as obrigado e saiu correndo. Encontrou facilmente Gentleman's Walk, uma estreita ruela empedrada, de elegantes casa de princípios do século
dezoito. Uma placa de latão, lustrada até o ponto de ser quase indecifrável, identificava ao James Beswick, notário. Cordelia se sentiu aliviada ao ver acesa
uma luz atrás do cristal translúcido e notar que a porta se abriu ao empurrá-la.
Sentada ante o escritório viu uma mulher gorda e mas bem desalinhada, com imensos óculos de arreios escarlate, que levava um apertado traje de cretone com brilhante
estampado de rosas e folhas de parra entrelaçadas, o que lhe dava o aspecto de um sofá recém estofado.
-Sinto muito, está fechado -disse-. Venha ou telefone amanhã a partir das dez.
-Mas a porta estava aberta ..... .
-Literal mas não figurativamente. Teria que lhe haver jogado chave faz cinco minutos.
-Mas já estou aqui... e é tão urgente. Não me levará mais de uns minutos, o asseguro.
Da habitação de acima, uma voz gritou:.
-Quem é, senhorita Magnus?.
-Uma cliente. Uma garota. Diz que é muito urgente.
-É atrativa?.
A senhorita Magnus se baixou os óculos até a ponta do nariz e observou a Cordelia por cima da arreios. Logo gritou em direção à planta superior:.
-Isso o que tem que ver? A vê poda, sóbria e diz que é urgente. E está aqui.
-Faça-a subir.
Cordelia ouviu pisadas que retrocediam e, repentinamente assaltada pela dúvida, perguntou:.
-É advogado, não? É um bom advogado?.
-OH, sim, nesse sentido funciona muito bem. Ninguém há dito jamais que não fosse um bom advogado. -A ênfase sobre a última palavra soou a mau presságio. A senhorita
Magnus fez um gesto em direcclón à escada-. Já o ouviu. Primeiro piso, à esquerda. Está alimentando a seus peixes tropicais.
O homem que se voltou para ela da janela era larguirucho, de cara enxuta, enrugada e jocosa, com óculos de meia lua apoiadas quase na ponta de sua larga
nariz. Retirava alimento de um pacote e o pulverizava em um imenso aquário, não diretamente a não ser esmiuçando, entre o polegar e o índice, minúsculas porções
que deixava cair em um elaborado desenho sobre a superfície da água. produziu-se um torvelinho de vermelhos e azuis quando os pececillos se reuniram em um redemoinho
para arrebatar a comida. O advogado assinalou a um que veteó a superfície em uma chamada de brilhante bronze.
-Olhe-o. Não é uma beleza? trata-se do tetra do alvorada, um exemplar da Guayana Britânica. Entretanto, possivelmente goste mais do tetra incandescente que está
ali,
espreitando debaixo das conchas.
-É muito formoso, mas eu não gosto de muito os peixes tropicais em cativeiro -comentou Cordelia.
-opõe-se você aos peixes, aos aquários, ou à conjunção de ambos? Asseguro-lhe que são absolutamente felizes, ou ao menos isso cabe supor. Seu pequeno mundo
foi artística e cientificamente concebido para sua comodidade, e recebem alimento em forma regular. Não têm que semear nem colher. Veja essa formosura! Observe
esse brilho de ouro e verde.
-Necessito certa informação com urgência. Não se trata de uma questão pessoal, mas sim de uma pergunta de caráter geral. Proporciona você esse tipo de assessoramento?.
-Não é o habitual e não estou seguro de que seja prudente. Os advogados são como os médicos. Não se pode generalizar nem postular hipótese, pois cada caso é singular.
É necessário conhecer todas as circunstâncias se a gente quer ser de autêntico serviço. Uma interessante analogia, agora que o penso. Direi-lhe mais ainda. Se seu
médico
aconselha-lhe que se translade imediatamente ao estrangeiro, você pode conformar-se instalando-se na ensolarada Torquay. Se seu advogado lhe sugerir que viaje ao
estrangeiro,
o mais sensato será que se dirija imediatamente ao aeroporto do Heathrow. Espero que não se encontre em tão comprometida situação.
-Não, não vim a lhe consultar sobre uma viagem ao exterior. Quero averiguar algo sobre a forma de evitar impostos.
-refere-se a evitar impostos, o qual é legal, ou evadir impostos, que não o é?.
-Ao primeiro. Suponhamos que me fizesse de uma enorme soma de dinheiro, toda no mesmo ano fiscal. Poderia evitar o pagamento  de impostos se ficasse doze meses
fora do país?.
-Isso depende do que queira dizer com "fizesse-me de uma enorme soma de dinheiro". Refere-se a uma herança, um presente, um bolão de aposta de futebol, a venda de
uma
propriedade ou de ações, ou o que? Suponho que não estará pensando no assalto um banco.
-Refiro a dinheiro recebido por atividades profissionais. Dinheiro que recebesse por escrever uma peça de teatro ou uma novela de êxito, ou por pintar um quadro,
ou por atuar em um filme.
-Se fosse você sensata arrumaria seus contratos de maneira que não recebesse todo o dinheiro durante um só ano fiscal. Mas isto compete mais a seu contável que a
mim.
-E se eu não esperava ter tanto êxito?.
-Então poderia evitar o pagamento de impostos fazendo-se não
residente a totalidade do seguinte ano financeiro. O dinheiro ganho assim, sobrecarrega-se retrospectivamente, como sem dúvida já sabe.
-Poderia voltar para país a passar umas férias ou um fim de semana?.
-Não. Nem sequer um dia.
-E se precisava fazê-lo? Poderia sentir nostalgia, por exemplo.
-Aconselho-lhe que não o faça. Os exilados fiscais não podem permitir o luxo de sentir nostalgia.
-E se voltasse?.
O advogado Beswick suspirou.
-Se de verdade quiser uma resposta autorizada, terei que fazer algumas averiguações, para saber se existir algum
antecedente. Como já lhe hei dito, esta questão corresponde a um contável fiscal, e não a mim. No meu entender, se retornasse se veria
automaticamente sujeita a gravámenes sobre os ganhos percebidos durante tudo no ano anterior.
-E se ocultasse ao fisco o fato de minha volta?.
-Em tal caso poderia ser processada por intento de fraude. Provavelmente Fazenda não se incomodaria se a soma fora pouco importante, mas se ocupariam de cobrar os
impostos devidos..Quero dizer que o deles é recuperar tudo o que lhes deve.
-Quanto significaria isso?.
-O imposto máximo atual sobre os ganhos profissionais é de sessenta por cento.
-E em 1977?.
-Naqueles tempos era bastante mais. Oitenta por cento ou  mais, sobre um ingresso superior a vinte e quatro mil de renda tributável. Ou um pouco parecido.
-Ou seja que poderiam me arruinar?.
-Deixá-la em bancarrota. Poderiam fazê-lo se você estivesse tão mal aconselhada para gastar adiantado todos seus ganhos do ano anterior confiando em que
não seriam tributáveis. A morte e os impostos alcançam a todos.
-Muito obrigado. foi muito amável. Posso lhe pagar agora? Temo-me que se forem mais de duas libras terei que lhe dar um cheque.
-Bom, não me entreteve muito tempo. E acredito que a senhorita Magnus fechou a pequena caixa e a guardou. O que lhe parece se deixarmos que esta consulta
corra de minha conta?.
-Não me parece correto. Tenho que lhe pagar seu tempo.
-Então ponha uma libra no porquinho canino e ficaremos em paz. Quando tiver escrito seu bestseller, pode voltar; nesse momento lhe darei um conselho acertado
e o cobrarei muito caro. ra
O porquinho canino estava sobre o escritório e era o brilhante modelo de um lânguido cão de águas que sustentava entre suas patas um bote para coletas no que
lia-se o nome de uma famosa sociedade protetora de animais. Cordelia dobrou um par de bilhetes de uma libra, prometendo-se interiormente que só carregaria uma
na conta de sir George.
Então recordou. Provavelmente não haveria nenhuma fatura para sir George. Possivelmente voltasse para a agência mais pobre do que tinha saído. Sir George a tinha
tranqüilizado
quanto ao pagamento, mas ela seria incapaz de lhe cobrar tão trágico fracasso, o que seria o mesmo que cobrar o preço do sangue. E como demônios redigiria
a fatura? Era estranho o grau de pequenas complicações que gerava a enorme complicação do crime. Inclusive em meio da morte estamos vivos e não desaparecem
as pequenas inquietações da vida, pensou.
Chegou ao porto com dois minutos de adiantamento. Surpreendeu-lhe e se sentiu um pouco desconcertada ao descobrir que a lancha não a estava esperando, mas se disse
a si mesmo
que ao Oldfield devia lhe haver retido na ilha alguma tarefa; depois de tudo, tinha chegado antes da hora prevista. sentou-se a esperar no noray, contente
da possibilidade de descansar, embora sua mente, estimulada pela excitação da jornada, logo a impulsionou à ação. levantou-se e começou a passear-se inquieta
pelo muro do mole. A seus pés, uma lenta maré molhava as pedras cobertas de verdin e um festão de algas estendia suas nodosas e alagadas mãos sob a ensombrecedora
superfície. A luz diurna se apagava e o calor agonizava com a luz. Uma a una as casitas da colina iluminaram seus retângulos detrás das cortinas jogadas
e as serpenteantes ruelas se vestiram de festa com destellantes colares de luz. Os compradores atrasados e os turistas tinham voltado para suas casas e Cordelia
só ouviu o eco de esporádicas pegadas solitárias no muro. A pequena população, como se lamentasse suas horas de imprópria frivolidade, se recogia em uma fresca
calma outonal. Os aromas estivais ficaram esquecidos e do porto se elevou um fétido aroma aquoso.
Consultou seu relógio. Viu que eram as seis e meia, hora que foi inrriediatamente confirmada pelo tangido do relógio de uma igreja distante. aproximou-se da embocadura
do porto e fixou a vista em direção à ilha. Não distinguiu indícios da lancha, e o mar estava deserto à exceção de duas ou três barcos que retornavam
tarde, deslizando-se, com as velas pregadas, para seus ancoradouros.
Seguiu à espera, passeando-se. As sete em ponto. As sete e quinze. O céu noturno flamejava em capas malva e púrpura; a lua, pálida como um papel, derramava
um tremente espejeo de luz sobre as águas. Na distância, Courcy Island permanecia escondida corno um animal ante tinturas mais claros do firmamento. A noite
tinha-a afastado: agora lhe resultava difícil acreditar que só duas milhas de água separavam aquela negra e sinistra borda das luzes, do recolhimento domesticidade
da cidade. Cordelia se estremeceu. A história do Ambrose voltou a ocupar sua mente com a primitiva força atávica de um pesadelo infantil. Compreendeu por que
razão tantos pescadores aldeãos tinham considerado maldita a ilha através do tempo. Imaginou quase com nitidez ao desesperado marinheiro que desafiou a chegada
da peste e a fúria do mar, com os olhos exagerados e exultante, caminho de sua horrível vingança.
Eram mais das sete e meia. Já fosse por um motivo acidental ou intencionado, Oldfield não iria procurar a. Mas ao menos agora podia deixar o mole para telefonar
à ilha sem temor a que chegasse e não a encontrasse. Recordou ter visto duas cabines telefônicas perto da estátua de Vitória. Ambas estavam desocupadas, e quando
encerrou-se em uma delas, alegrou-se ao não encontrá-la destroçada. irritou-se consigo mesma por não ter tomado nota do número do castelo e por um instante temeu
que a obsessão do Ambrose pelo isolamento lhe tivesse levado a não figurar no agendinha de telefones. Entretanto, encontrou-o, embora pelo Courcy Island e não por
seu nome.
Marcou o número e ouviu o tom de chamada. Logo levantaram o receptor mas ninguém respondeu. Acreditou detectar o som de uma respiração mas se convenceu de que
devia ser sua imaginação.
-Sou Cordelia Gray -repetiu-. Telefono desde o Speymouth. Esperava a lancha às seis em ponto.
Tampouco esta vez obteve resposta. Voltou a falar em voz mais alta, mas só lhe respondeu o silêncio e teve a impressão, misteriosa embora inconfundível, de que
habIa alguém ao outro lado da linha, alguém que tinha levantado o receptor com a intenção de não falar. Pendurou e voltou a marcar. Esta vez ouviu o sinal de
comunicando: evidentemente, habian deixado desprendido o receptor.
Voltou para porto, embora agora com poucas esperanças de que aparecesse a lancha. Então notou que havia luzes e sinais de atividade em uma das barcos amarradas.
Do bordo do mole viu uma barco de madeira de aspecto lamentável embora sólida, com uma cabine grosseiramente construída no meio, vela parduscas e um motor
fora de amurada. Os abajures de bombordo e de estribor estavam acesas e se via uma rede máquina de lavar ruas amontoada na popa. Teve a impressão de que um marinheiro
se
preparava para sair de pesca noturna. E devia ter um fogareiro, pensou. O aroma salgado do toucinho frito -que lhe fez água a boca- elevou-se da cabine
tampando o penetrante aroma de breu e pescado. Um jovem fornido e barbudo saiu com dificuldade da cabine e levantou a vista, primeiro ao céu e logo para ela.
Levava um pulôver remendado e botas de borracha; mordia um volumoso sandwich. Com sua alegre cara corada e seu arbusto de cabelo negro, parecia um amistoso bucanero.
Em
um impulso, Cordelia lhe gritou:.
-Se pensa zarpar, podria me deixar no Courcy Island? Alojo-me ali e a lancha não veio a me buscar. É extremamente importante que volte esta noite.
O moço avançou pela coberta, mascando ainda a parte de pão gordurento, e a olhou com oios suspicazes embora não hostis.
-ouvi dizer que assassinaram a alguém ali. Uma mulher, verdade? -perguntou-lhe.
-Sim, a atriz Clarissa Lisle. Encontrava-me na ilha quando ocorreu. Ainda me alojo ali; teriam que ter enviado a lancha para me buscar às seis. Devo voltar
esta noite.
-Uma mulher assassinada. Nenhuma novidade, tratando-se do Courcy Island. vou pescar à altura do cabo do sudeste. Se estiver segura de que quer ir, levarei-a. -Nem
sua voz nem sua expressão punham de relevo uma curiosidade concreta.
-Estou completamente segura -apressou-se a responder Cordelia-. Pagarei-lhe a gasolina, é obvio. Parece-me justo.
-Não é necessário. O vento é grátis e haverá suficiente na baía. Se quer pode me ajudar a tripular.
-Não sei se saberei fazê-lo, mas atirarei do cabo que corresponda quando me indicar isso.
O pescador transladou o sandwich à mão esquerda, limpou-se a direita no pulôver e a estendeu para ajudá-la a embarcar.
-Quanto acredita que demoraremos? -quis saber Cordelia.
-Temos a maré em contra. Uns bons quarenta minutos. Talvez mais.
Desapareceu na cabine e Cordelia esperou sentada a proa, armando-se de paciência. Um minuto depois o moço reapareceu e lhe deu um sandwich: duas fatias de
bacon gordurento e muito cheiroso, encaixadas entre duas grosas rodelas de pão de dura casca. Até que lhe fincou o dente, desencaixando-se quase a mandíbula na operação,
Cordelia não compreendeu quão faminta estava. O agradeceu. Com amostras de infantil satisfação pelo evidente êxito de seu abastecimento culinário, o
pescador anunciou:.
--Quando estivermos em marcha, servirei cacau.
Subiu engatinhando pelo lado exterior da cabine, para a popa. Um instante depois o motor vibrou e a pequena embarcação começou a afastar do mole.
.
44.
Resultou-lhe quase impossível acreditar que tinha visto Courcy Island pela primeira vez só três dias atrás. Tinha a sensação de ter vivido, nesse breve lapso, compridos
anos cheios de ação, de haver-se convertido em outra pessoa. Sem dúvida era uma moça excitável e ansiosa a que se assombrou ao ver pela primeira aquelas vez
paredes banhadas de sol, aquelas almenas ornamentadas, aquela torre alta e luminosa. Mas agora, à medida que a barco rodeava o cabo, esteve em um tris de voltar
a ofegar, maravilhada. Brilhavam todas as luzes do castelo. Todas as janelas estavam iluminadas e da torre, estriada com muito magros linhas de luz, as
janelas altas jogavam sobre as águas um capitalista faz semelhante ao de um farol na noite. O castelo parecia suspenso em meio das luzes, elevado por cima
das rochas e flutuando em imóvel serenidade sob um céu índigo, apagando as estrelas com seu resplendor. Só a lua conservava seu lugar, macilenta como um
círculo de papel de arroz, detrás de um magro véu de nuvens.
Permaneceu no embarcadero até que o bote se afastou. Por um segundo, sentiu-se tentada de lhe gritar ao jovem marinheiro que ficasse, ao menos ao alcance de seu
voz. Mas se disse a si mesmo que se estava comportando ridícula e caprichosamente. Não estaria a sós com o Ambrose. Embora Ivo se encontrasse muito doente para
lhe ser útil, estariam ali Roma, Simon e sir George. E embora não estivessem, por que devia ter medo? ia enfrentar se a alguém que tinha motivos para matar,
mas os motivos não convertem a ninguém em um assassino. E no mais recôndito de seu coração coincidia com Roma: Ambrose carecia da coragem, da implacabilidad, de
a capacidade de ódio que levam a um homem a cometer um crime.
A luz cobria a terraço com um filme de prata. Atravessou-a como se caminhasse pelo ar, como se também ela flutuasse, avançando em silencio para as portas
vidraças abertas do salão. Então apareceu Ambrose, uma escura silhueta esboçada ante a luz, e se deteve observar sua chegada. Ia de smoking e tinha uma
monopoliza com vinho na mão esquerda. A imagem possuía a qualidade e a distinção de um quadro. Cordelia tirou o chapéu admirando a técnica do artista, cuidada-a
postura do corpo, o manchón vermelho no cristal, artística e diestramente pintado para acentuar as escuras linhas verticais da figura, o esbanjamento de branco
no peitilho da camisa, os olhos dominantes que outorgavam um centro e um significado à composição. Aquele era seu reino, seu castelo. Estava ao mando. Havia-o
iluminado como se queria exultar e celebrar sua mestria. Não obstante, quando Cordelia chegou até ele, sua voz soou ligeira e indiferente, como se lhe desse a bem-vinda
a casa depois de uma tarde de compras em terra firme. Mas acaso não era exatamente isso o que acreditava estar fazendo?.
-boa noite, Cordelia. comeu? Não servi jantar. Preparei-me um pouco de sopa e uma omelete de finas ervas. Gosta de uma?.
Cordelia entrou no salão, onde só estavam acesos os spots e um abajur de sobremesa, o que criava um círculo íntimo de luz junto ao fogo. Os rincões
ficavam às escuras, e largas sombras se moviam como dedos sobre o tapete e as paredes. A chaminé devia levar um bom momento acesa. Em seu interior só ardia
um grande tronco. Cordelia descarregou a bolsa e perguntou:.
-Onde estão outros?.
--Ivo se deitou, não se sente nada bem. Voltará para sua casa amanhã se estiver em condições de viajar. Roma se foi. Estava ansiosa por voltar para Londres. Sir
George recebeu uma de suas misteriosas chamadas para que assistisse a uma reunião no Southampton e Roma se foi com ele. Não voltarão, embora ambos estarão amanhã
em
Speymouth para a indagatoria. Simon me disse que não tinha fome e se retirou a sua habitação.
Ou seja que ao fim e ao cabo estavam sozinhos, solos exceto o doente Ivo e um menino. Inquiriu, com a esperança de que sua voz não delatasse sua consternação:.
-por que não estava a lancha no Speymouth? Oldfield tinha que ir me buscar às seis.
-Ou ele ou eu entendemos mau. Voltará com a "Shearwater", mas amanhã pela manhã. foi a passar a noite com sua filha, no Bournemouth.
-Telefonei, mas a pessoa que atendeu a chamada deixou desprendido o receptor.
-Infelizmente, essa foi minha única resposta a todas as chamadas telefônicas do dia de hoje. Muitas chamadas, muitos jornalistas.
Permaneceram juntos diante do fogo. Cordelia tirou a fotografia de sua bolsa e a entregou:.
-Fui ao Speymouth a procurar isto.
Ambrose não tocou a foto, nem sequer a olhou.
-Suspeitava-o. Felicito-a. Não acreditava que a encontrasse.
-Porque você já a tinha arrancado dos arquivos do periódico?.
-Sim, destruí-a faz aproximadamente um ano -respondeu Ambrose com plena serenidade-. Pareceu-me uma precaução sensata.
-Encontrei outra.
-Já o vejo. -de repente, adicionou em voz muito baixa-: Noto-a cansada, Cordelia, não prefere sentar-se? Permite-me lhe trazer um pouco de clarete ou de conhaque?.
-Uma taça de clarete, por favor.
Sabia que tinha que manter a mente limpa, mas a tentação de beber uma taça de vinho foi irresistível. Tinha a boca tão seca que logo que podia articular
as palavras. Ambrose voltou do comilão com uma taça para ela, serve-lhe o vinho, voltou a encher sua taça e se sentou com a jarra ao alcance da mão. Cordelia
teve a impressão de que nenhuma poltrona tinha sido nunca tão cômodo nem acolhedor, nenhum veio tão delicioso. Ambrose começou a falar tão aprazível e pouco emotivamente
como se se tivessem reunido depois do jantar para conversar sobre os fatos ordinários de um dia qualquer.
-Voltei para ver meu tio. Era seu herdeiro e ele queria lombriga. Não acredito que tivesse compreendido que eu não podia retornar sem perder meu ano livre de impostos.
Sua mente
não funcionava dessa maneira. Jamais se o habria passado pela imaginação que um homem pudesse passar um ano de sua vida fazendo o que não queria fazer e vivendo
onde não queria viver, por questões de dinheiro. Lamento que não chegasse você a lhe conhecer, teriam simpatizado. Não foi difícil me apresentar aqui sem que advertissem
minha presença. Viajei de avião de Paris ao Dublin e agarrei um vôo do Aer Lingus ao Heathrow. Viajei de trem até o Speymouth e telefonei ao castelo para que o criado
de meu tio, William Mogg, fora para me buscar com a lancha ao anoitecer. Viveram juntos aqui durante perto de quarenta anos. O pedi ao Mogg que não dissesse a ninguém
que me tinha visto, mas era desnecessário. Nunca falava sobre os assuntos de seu amo. Três meses depois da morte de meu tio, Mogg fechou os olhos e lhe seguiu.
Como vê, em realidade não corri nenhum risco. Ele me pediu que viesse e vim.
-E em caso contrário, possivelmente seu tio teria alterado seu testamento.
-Que desumana é, Cordelia! provavelmente não me acreditará, mas não me senti influenciado por tão sórdida possibilidade. Nem sequer pensei que fosse uma possibilidade.
Me
caía bem meu tio. Via-lhe muito pouco, pois ele não respirava as visitas, nem sequer as de seu herdeiro, mas quando lhe rendia minha comemoração anual, entre nós
havia
algo que os dois reconhecíamos. Não era carinho. Acredito que ele só quis ao William Mogg, e eu não estou seguro de saber o que significa essa palavra. Mas fora
qual fosse
o sentimento, eu o apreciava. E estimava a meu tio, um homem resistente, obstinado, valoroso. Era dono de sua pessoa e fazia o que queria. Estava neste formidável
refúgio como um antigo suserano, com a vista fixa no mar, sem medo a nada, a nada, a nada. Então me pediu que fora a procurar algo que lhe desejou muito,
um último sorvo do Blue Stilton. Acredito que não o tinha saboreado em trinta anos. Ele e William Mogg viviam virtualmente do que dava a ilha, faziam inclusive a
manteiga e o queijo. Deus saberá por que lhe ocorreu bebê-lo naquele momento. Poderia haver pedido ao Mogg que fosse buscá-lo, mas me pediu isso .
-Por isso foi ao Speymouth?.
-Por isso. Se não tivesse completo esse singelo ato de bondade filial, Clarissa não teria visto essa fotografia, não me teria obrigado a pôr em cena "A duquesa
do Malfi", ainda estaria viva. É estranho, não lhe parece? Isto volta desatinada qualquer teoria sobre a conduta caridosa do ser humano. Claro que aprendi esta
lição aos oito anos, quando minha mãe morreu porque chegou um minuto tarde para alcançar o avião que a levaria a casa e o que agarrou se estrelou. Como vê, dependeu
de que os semáforos de Paris estivessem vermelhos ou verdes. Vivemos ou morremos por azar. No caso da Clarissa, se se retroagir o suficiente, foi questão de uns
centilitros do Blue Stilton. O bem que determina o mal, se é que esses dois términos significam algo para você.
Ivo lhe tinha exposto a mesma questão, mas neste caso era pura retórica. Ambrose prosseguiu:.
-O homem deve ter a coragem de viver de acordo com suas convicções. Se você aceitar, como aceito eu absolutamente, que esta vida é tudo o que temos, que
morremos como animais, que tudo o que nos rodeia se perde irrevocablemente, que nos afundamos nas trevas sem esperança, essa convicção tem que influir em
a forma em que alguém vive sua vida.
-Milhões de pessoas vivem com esse conhecimento, mas sua vida é bondosa e útil.
-Porque a bondade e a utilidade resultam convenientes. Eu tenho algo das duas. É necessário, para o bem-estar, que a um queiram ao menos um pouco. E possivelmente
alguns descrentes virtuosos ainda mantêm uma esperança vaga, ou o medo a que possa existir um mais à frente, uma medida de recompensa ou castigo, um renascimento.
Não
há-o, Cordelia. Não existe. Não há nada salvo a oscutidad, e nos afundamos nela sem esperança.
Ao recordar como tinha enviado a Clarissa a sua escuridão, Cordelia contemplou escandalizada aquele rosto sorridente, com seu olhar de falso pesar, como se o conhecimento
pleno do que Ambrose habia feito só nesse instante penetrasse em sua mente.
-Golpeou-lhe a cara! Não uma vez, a não ser várias! Foi capaz de fazer isso!.
-Asseguro-lhe que não foi agradável. Se lhe servir de consolo, direi-lhe que tive que fechar os olhos. Pareceu durar uma eternidade. A sensação era horrivelmente
concreta:
a brandura da carne protegia a fragilidade dos ossos. E quantos ossos! Ouvia-os quebrar-se, como quando de pequeno golpeava uma lata de caramelos caseiros.
Nossa velha cozinheira nos dava permissão. O melhor era golpeá-la quando se esfriou. Quando abri os olhos e me decidi a olhar, Clarissa não estava ali. Por
suposto, tampouco tinha estado antes, mas, uma vez desaparecido seu rosto, nem sequer pude recordar que aspecto tinha. Clarissa, mais que nenhuma outra pessoa,
era sua cara. Uma vez que a tive destruído, soube de novo o que sempre tinha sabido: o ridículo que era supor que tivesse alma.
Cordelia disse para seus adentros: não vomitarei, não me deprimirei. Devo conservar a calma. Não posso permitir que me domine o pânico. A voz do Ambrose chegou a
seus
ouvidos fraco mas clara:.
-Quando vim pela primeira vez a esta ilha, aos dezesseis anos, compreendi o que queria da vida. Nem o poder, nem o êxito, nem o sexo com homens nem mulheres,
que para mim sempre foi um gasto do espírito em um esbanjamento de oprobio. Nem sequer o dinheiro, exceto na medida em que contribuíra a minha paixão. Queria
um lugar. Este lugar. Queria uma casa. Esta casa. Queria esta paisagem, este mar, esta ilha. Meu tio quis morrer nela. Eu queria viver na ilha. É a única paixão
autêntica que conheci. E não ia permitir que uma atriz ninfomaníaca de segunda categoria me arrebatasse isso.
-E por isso a matou?.
Ambrose voltou a encher as duas taças e logo a olhou. Cordelia teve a sensação de que estava medindo algo, a provável resposta dela, a necessidade que ele
tinha de confiar-se, possivelmente quanto tempo ficava. Ambrose esboçou um sorriso genuinamente divertido que quase estalou em uma gargalhada.
-Minha querida Cordelia! De verdade acredita que está aqui sorvendo um Chateau Margaux com um assassino? Felicito-a por seu sangue-frio. Não, eu não a matei. Acreditei
que você
tinha-o compreendido. Não possuo esse tipo de valor nem de crueldade. Quando lhe esmaguei a cara, já estava morta. Alguém tinha estado em seu dormitório antes que
eu.
Não sentiu nada, compreende? Nada importa, nada existe se a gente não pode senti-lo. Não converti em polpa uma parte de carne palpitante. Não era Clarissa.
Naturalmente. por que tinha sido tão cega? Já tinha raciocinado todo aquilo com antecedência. Clarissa tinha que ter estado morta quando ele levantou o braço de
mármore e a golpeou, o braço de uma princesa morta que, por mera casualidade, levava o mesmo nome que a menina que, mais de um século depois, tinha morrido sem
o consolo de ter à mãe a seu lado na cama de um hospital londrino.
-Não houve fluir de sangre para cima -continuou Ambrose-. Não podia havê-lo. Já estava morta. Em realidade não é tão difícil golpear, uma vez produzida a morte.
Não há sangue nem dor nem culpa. Eu não fiz mais que encobrir ao assassino embora certo é que o fiz sobre tudo em próprio interesse. Precisava encontrar e destruir
aquele fragmento vital de letra impressa. Sabia que tinha que estar na habitação. Esses era um de seus ardis, o ter perto, tirá-lo ocasionalmente de seu
bolsa e fingir que lia a crítica. Mas deve me reconhecer. Cordelia, certa preocupação desinteressada pelo criminoso. Foi um prazer para mim lhe abrir uma via de
escapamento se tinha a coragem de segui-la. A fim de contas, devia-lhe algo.
-Clarissa pôde ter feito copia da fotografia.
-Possível mas não provável. E em caso de que o tivesse feito, que importância tinha? A teriam encontrado com seus efeitos, em sua casa, trivialidades para atirar
ao lixo junto com outros resíduos de sua vida essencialmente corriqueira: os potes de nata facial ao meio usar, as cartas de amor, os programas de teatro acumulados.
E até no caso de que George Ralston o tivesse encontrado e compreendido seu significado, uma eventualidade muito improvável, não teria feito nada. George não haveria
considerado seu assunto fazer o trabalho do fisco. Voltei aqui para passar um dia e uma noite para acompanhar a um ancião agonizante. Você ou alguém que você conheça
recorreria a esse conhecimento para me delatar?.
-Não.
-E o fará agora?.
-Devo fazê-lo. Agora é diferente. Tenho que dizer-lhe à polícia. Não aos funcionários de Fazenda. É minha obrigação.
-Não, Cordelia, não o fará. Não o fará! Não trate de enganar-se a si mesmo dizendo que já não tem a responsabilidade de uma eleição. -Cordelia não respondeu. Ambrose
inclinou-se e voltou a lhe encher a taça-. O que me preocupava não era a possibilidade de que se fizessem cópias. O que indubitavelmente não podia fazer era me arriscar
a que a polícia descobrisse aquele recorte de periódico em seu dormitório da ilha, e sabia que se estava ali o encontrariam. Procurariam um motivo. Tudo o que
encontrassem nessa habitação seria reunido, rotulado, examinado a fundo e analisado. Existia a possibilidade, é obvio, de que vissem no recorte o que parecia:
um comentário crítico sobre uma atuação teatral que Clarissa guardava somente por razões sentimentais. Mas por que essa resenha de uma obra pouco importante
em um teatro de províncias? Nunca convém confiar na estupidez da polícia.
-Então foi Simon -declarou Cordoiia com grande tristeza-. Pobre Simon! Onde está?.
-Em sua habitação. Perfeitamente são e salvo, o asseguro. Não quer saber o que ocorreu?.
-Mas Simon não pode havê-lo planejado. É impossível. Não pode havê-lo feito com intenção.
-Não, planejado não. A intenção? Quem pode saber qual era sua intenção? Ela está morta de todas formas, qualquer que fosse sua intenção. O que Simon me disse
foi que Clarissa lhe convidou a ir a seu dormitório. Devia dizer que iria nadar, ficar um traje de banho debaixo dos texanos, esperar a que passasse meia hora depois
de que ela se retirasse a descansar e logo chamar três vezes à porta. Lhe faria passar. Disse-lhe que queria falar com ele sobre uma questão. A questão
era ela mesma. Do que outra coisa quis falar alguma vez Clarissa? O pobre tolo iludido pensou que lhe diria que podia ir ao Royal College, que ela pagaria
sua formação musical.
-Mas para que citar ao Simon? por que a ele?.
-Duvido de que alguma vez saibamos com certeza, mas posso aventurar uma hipótese. A Clarissa gostava de fazer o amor antes de sair a cena. Possivelmente lhe dava
confiança,
possivelmente era uma liberação necessária da tensão, possivelmente só conhecia uma forma de não pensar.
-Mas Simon! Esse menino! Não pode havê-lo desejado.
-Talvez não. É provável que esta vez só queria falar, ter companhia. E com todo o respeito que você me merece, Cordelia, devo lhe dizer que nunca procurou uma
mulher para isso. Mas é possível que tenha pensado que lhe estava fazendo um favor em mais de um sentido. Clarissa era absolutamente incapaz de acreditar que existisse
um homem, um homem normal ao menos, que não a possuísse se tinha a oportunidade de fazê-lo. E para ser justo com ela, meus congêneres não fizeram nada para lhe tirar
essa idéia da cabeça. E que melhor momento para que Simon iniciasse sua privilegiada educação que uma cálida tarde depois de um excelente almoço do que me orgulho
e quando  ela necessitava uma nova sensação, um entretenimento que me separasse de sua mente a representação que a esperava? E o que outro podia ser? George, o pobre
bobo cavalheiresco, mentiria até deixar-se matar para proteger a reputação da Clarissa, mas suspeito que não a há meio doido desde que descobriu que era cornudo.
Eu
não lhe servia. E Whittingham? Bom, o turno do Ivo estava esgotado. E pode você imaginar a Clarissa desejando-o até no caso de que ele conservasse seu vigor?
Seria o mesmo que tocar a seca pele da morte, que poluir a língua com o sabor da morte, que cheirar a corrupção da carne. Dadas as peculiares
necessidades da Clarissa, só ficava Simon.
-Mas é horroroso!.
-Só porque você é jovem, bonita e intolerante. Com outro menino e em outro momento, não teria significado nenhum dano. Inclusive o teria agradecido. Mas Simon
Lessing procurava outro tipo de educação. Além disso, é um romântico. O que ela viu em seu rosto não foi desejo a não ser asco. Posso me equivocar, é obvio. Possivelmente
Clarissa
não o planejou com tanta claridade, pois estranha vez planejava nada. Mas lhe pediu que fora a vê-la. E como ocorreu em meu caso com meu tio, ele acudiu.
-Como foi? -interessou-se Cordelia-. Como o descobriu?.
-O menti ao Grogan quanto à hora em que deixei minha habitação. Troquei-me depressa, de modo que pouco depois das duas menos vinte passei junto à porta do
dormitório da Clarissa. Nesse momento, Simon apareceu. Seu rosto era fantasmal: cinzento, com os olhos frágeis. Acreditei que estava a ponto de deprimir-se. Empurrei-o
para o interior do dormitório e fechei a porta com chave. Só tênia posto o traje de banho e vi sua camisa e os texanos aglomerados no chão. Clarissa estava
tendida sobre a cama. Morta.
-Como pode estar tão seguro? por que não pediu auxílio?.
-Minha querida Cordelia, posso ter levado uma vida retirada mas sei reconhecer a morte quando a vejo. Comprovei-o. Busquei-lhe o pulso, e não o encontrei. Passei-lhe
o bordo de meu lenço pelos globos oculares, um procedimento muito desagradável, o asseguro. Tampouco houve reação. Lhe tinha descarregado o joalheiro sobre a
cabeça e lhe tinha esmagado o crânio. ElI cofre seguia ali, sobre a frente. Extrañamente, houve muito pouca hemorragia, só um pequeno manchón no antebraço de
Simon, onde o sangue tinha fluido para cima e um magro fio que descia da fossa nasal esquerda da Clarissa. Cuano a vi estava quase seca e só levava
morta dez minutos. O hilillo parecia a cicatriz de uma navalhada retorcida, uma desfiuración por cima da boca aberta. Essa é uma humilhação última sobre
a que nenhum de nós pode fazer nada: ter aspecto ridículo uma vez cadáver. Quanto teria odiado Clarissa aquele efeito! Mas você já sabe, viu-a.
-Esquece que eu a vi depois -interrompeu-o Cordelia-. Vi-a quando você tinha acabado com ela. Então seu aspecto não era ridículo.
-Pobre Cordelia! Quanto o sinto! Lhe teria economizado o espetáculo se tivesse podido. Mas pensei que resultaria suspeito que eu fosse pessoalmente a chamá-la.
Isto é algo que aprendido da literatura popular: nunca seja o que encontre o cadáver.
-por que? Disse-lhe Simon por que?.
-Não muito coherentemente, e eu estava mais preocupado por afastá-lo que por discutir as complicações psicológicas do encontro. O fato é que nenhum dos dois
tinha obtido o que procurava. Ela deveu ver a vergonha e a repugnância nos olhos do Simon. Ele viu a perda de todas suas esperanças nos dela. Clarissa
jogou-lhe em cara seu fracasso sexual. Disse-lhe que para ela era tão inútil como tinha sido seu pai. Acredito foi nesse momento, quando ela se tendeu semidesnuda
na
cama sonriéndole, mofando-se dele e de seu pai morto, destruindo todas suas esperanças, quando ele perdeu a cabeça. Agarrou o cofre, a única arma que havia à mão,
e o deixou cair.
-E depois?.
-Não imagina? Disse-lhe exatamente o que devia fazer. O dí instruções sobre o que devia lhe dizer à polícia. depois de almoçar tinha ido nadar, tal como
havia-nos dito a todos. Tinha caminhado pela praia mais ou menos durante uma hora e se colocou na água. Iniciou o retorno ao castelo ao redor das três
menos quarto, com o propósito de vestir-se para assistir à representação. Assegurei-me de que o aprendesse de cor. Levei-o a quarto de banho da Clarissa e
lavei-lhe a pequena mancha de sangue. Depois sequei o lavabo com papel higiênico, joguei-o no inodoro e atirei da cadeia. Procurei o recorte. Não me levou muito
tempo. Os lugares óbvios eram sua bolsa ou o joalheiro. A seguir levei ao Simon ao dormitório contigüo e lhe indiquei como devia descer pela escada de incêndios
da janela de seu quarto de banho, Cordelia, cuidando-se de não tocar os degraus com as mãos. comportou-se como um menino submisso, obediente, extraordinariamente
sereno. Observei-o enquanto baixava a escada de incêndios com o cofre sob o braço, enquanto ia até o bordo do escarpado e o jogava no mar tal como
eu lhe tinha indicado. Se a polícia consegue recuperá-lo, encontrará-se com que faltam as jóias valiosas. Retirei-as e as joguei na água em outro ponto. Desculpe
se
não lhe outorgo toda minha confiança lhe dizendo exatamente onde. As coisas não funcionariam se a polícia descobrisse que tudo o que falta no cofre era um recorte
de periódico. Depois Simon se mergulhou e o segui com o olhar enquanto dava fortes braçadas em direção à baía oeste.
-Mas alguém mais estava olhando. Munter o viu tudo da janela da habitação da torre, a única com vista à escada de incêndios.
-Sei. nos conseguiu transmitir isso em suas divagações de bêbado quando Sirnon e eu o levamos a sua habitação. Mas isso não teria importado. Munter era de plena
confiança.
Disse ao Simon que não devia preocupar-se, que Munter era capaz de levar-se qualquer secreto minha à tumba.
-E o levou a tumba muito oportunamente -interveio
Cordelia-. A propósito, você podia confiar realmente em um bêbado?..
-Podia confiar no Munter, bêbado ou sóbrio. Eu não o matei. E que eu saiba, tampouco o fez Simon. Essa morte, ao menos, foi acidental.
-O que fez logo?.
-Tênia que atuar velozmente. Mas a pressa e o risco resultaram curiosamente estimulantes. A trama desta novela de intriga da vida real foi quase tão engenhosa
como a de "Autópsia". Tirei a maquiagem da cara da Clarissa para que a polícia não suspeitasse que tinha convidado a alguém a sua habitação. Logo me dediquei
a destruir todo indício de como morreu exatamente e a adicionar uma arma que Simon não podia ter levado consigo porque ignorava sua existência, uma arma que levaria
a policia a pensar que o assassino estava relacionado com as mensagens ameaçadoras. Não disse ao Simon o que me propunha nem toquei o corpo até que ele partiu.
Sua ignorância foi sua maior defesa. Não teve que atuar nem fingir, não sábia nada do mármore. Em nenhum momento viu o rosto destroçado da Clarissa.
-Suponho que você levava o braço no bolso interior de sua capa.
-Tinha preparadas ambas as coisas, o mármore e a nota. Minha intenção era pô-los no cofre que Clarissa abriria na segunda cena do terceiro ato. Teria que
havê-lo feito no último momento e com certa habilidade, mas acredito que o teria obtido. Asseguro-lhe que o resultado teria sido espetacular. Duvido de que houvesse
conseguido acabar a cena.
-Por isso aceitou o posto de ajudante de direção e se ocupou pessoalmente dos acessórios?.
-Assim é. Era o mais natural: todo mundo supunha que eu queria vigiar meus pertences.
-E depois de destruir o rosto da Clarissa, imagino que levou as roupas do Simon à baía, também ocultas sob sua capa.
-Cordelia, que bem compreende a duplicidade. Me teria gostado das deixar mais longe mas não havia tempo. A pequena impregna do outro lado da terraço foi o mais longe
que pude chegar. Logo entrei no teatro pela arcada e revisei o objeto de cenário com o Munter. Dito seja de passagem, não tive que me preocupar com não deixar rastros
digitais
quando estive na habitação da Clarissa. Esta é minha casa. O mobiliário e todos os objetos, incluído o braço de mármore, pertencem-me. Era perfeitamente razoável
que tivessem meus rastros. Mas sim me preocupava a impressão da palma de minha mão na porta de comunicação, o que teria demonstrado que eu tinha sido o último
em tocá-la. Por isso me cuidei de abri-la depois de que encontramos o cadáver.
-Também é o autor das entrevistas ameaçadoras? Você se fez cargo da tarefa quando Tolly a interrompeu?.
-Está inteirada do do Tolly? Acredito que a subestimei, Cordelia. Sim, isso não foi difícil. A pobre Tolly era viciada na religião como se fosse um opiáceo para
sua dor, e eu continuei sua boa obra, embora de forma mais artística. Só então Clarissa chamou a policia, feito que eu não gostei de nada, de modo que lhe sugeri
uma pequena estratagema que anulou eficazmente o interesse das forças da ordem. Em realidade, Clarissa era uma mulher extraordinariamente estúpida. Possuía instinto
mas carecia de inteligência. Meu êxito dependla de duas de suas características: sua estupidez e seu terror à morte. De modo que quando as notícias do Tolly, com
sua atinada referência bíblica a rodas de moinho ao redor do pescoço cessaram, iniciei minha série contando esporadicamente com a ajuda do Munter. O objetivo consistia
em destrui-la como atriz e recuperar minha intimidade, minha pacífica ilha. Só como atriz Clarissa tinha algum poder sobre mim. Jamais voltaria a pôr os pés no Courcy
se o teatro da ilha era cenário de sua humilhação definitiva. Assim que sua confiança e sua carreira ficassem eficaz e totalmente destruídas, eu seria livre.
Para ser justo com ela, devo lhe dizer que não era uma chantagista comum. Não tinha nenhuma necessidade de sê-lo. Primeiro viu o recorte do periódico em
1977. A Clarissa adorava mimar seu ego com segredos reprováveis a respeito de suas amizades, e embalou esse durante três anos antes de recorrer a ele. Minha má sorte
quis que a restauração do teatro e a crise de sua carreira coincidissem. de repente necessitava algo de mim e tinha os meios de obtê-lo. Asseguro-lhe que este
chantagem foi levado a cabo com a maior delicadeza e discrição. -Repentinamente se inclinou para ela e disse em tom peremptório-: Escute, Cordelia, não será possível
seguir protegendo ao Simon muito tempo. Está começando a levantar o cotovelo. Você mesma tem que haver-se dado conta. Comete enganos. O deslize que Roma percebeu,
por exemplo. Como podia saber ele como era o joalheiro se não o tinha visto nem meio doido? E haverá mais. Eu gosto desse menino e não carece de talento. Fiz quanto
estava
em minha mão para salvá-lo. Clarissa destruiu a seu pai e eu não via por que razão devia acrescentar ao filho à lista de suas vítimas. Mas me equivoquei com respeito
a ele. Não tem guelra para suportar isto. E Grogan não é tolo.
-Onde está agora?.
-Já o hei dito: que eu saiba, em sua habitação.
Cordelia observou seu rosto, a tersa tez efeminada e envernizada pelo resplendor dC as chamas, os olhos negros como o azeviche, os lábios em perpétuo esboço de
sorriso. Sentiu a persuasiva força que fluía para ela arraigando-a no conforto de seu assento e então, como se o clarete lhe tivesse espaçoso misteriosamente
o cérebro, compreendeu o que estava fazendo Ambrose exatamente. As atentas explicações, o vinho, o bate-papo quase sociável, a sedutora comodidade cruzada quase
como um xale ao redor de seu cansaço, não eram outra coisa que um truque para perder o tempo, para mantê-la a seu lado. Até o lugar tinha conspirado a favor
dele e contra ela: a alegre domesticidade do fogo, a sensação de irrealidade induzida pelas largas e inquietas sombras, as janelas abertas de par
em par às desorientadoras trevas da noite, o incessante e soporifero sussurro do mar.
Agarrou a bolsa e saiu correndo, atravessou o ressonante vestibulo, subiu a larga escalinata. Abriu de um golpe a porta do dormitório do Simon e acendeu a luz.
A cama parecia; a habitação, vazia. Correu como um animal selvagem de habitação em habitação. Todas vazias. Só em uma encontrou um rosto humano. Baixo
a suave luz do abajur de noite, estava Ivo tendido de barriga para cima com o olhar fixo no teto. Quando ela lhe aproximou, deveu perceber seu desespero
mas sontió tristemente e sacudiu pesaroso a cabeça: não podia ajudá-la.
Ainda faltava registrar a torre, sem contar o teatro. Mas possivelmente Simon já não estivesse no castelo. Tinha toda a ilha ao seu dispor, escarpados e mesetas,
prados e bosques, a negra ilha impenetrável que, à maneira de uma concha, continha em seus escuros labirintos o perene murmúrio do mar. Também estavam o despacho
e as habitações de serviço, por improvável que fosse que se refugiou ali. Saiu disparada pelo corredor ladrilhado, disposta a lançar-se sobre a
porta do despacho. Interrompeu seus passos, paralisada. A segunda vitrine, a que guardava pequenas lembranças do crime e do horror vitorianos, habIa sido forçada.
O cristal parecia migalhas. Cordelia baixou a vista e notou que faltavam as algemas. Então compreendeu onde encontraria ao Simon.
.
45.
Arrojou a bolsa sobre o escritório do despacho e só se levou a lanterna. Lamentou não contar com o único objeto que considerava importante: o cinturão de couro.
Mas já não estava ao redor de sua cintura. Devia havê-lo perdido enquanto ia de um lado a outro pelo Speymouth. Recordava haver o posto depressa nos serviços
de umas lojas de departamentos, onde se tinha detido caminho do Benison Row. Em sua ansiedade por encontrar à senhorita Costello, provavelmente o tinha grampeado
mau.
Enquanto corria pela grama e se internava na escuridão da arvoredo, sentiu falta da tranqüilizadora força de seu talismã pessoal ao redor da cintura.
A igreja se perfilou ante seus olhos, sinistra e secreta à luz da lua. Pela porta aberta não se filtrava nenhuma luz, mas o tênue brilho da janela
oriental foi suficiente para guiá-la até a cripta sem ajuda da lanterna. Também aquela porta estava aberta e tinha a chave na fechadura. Sem dúvida Ambrose
havia- dito ao Simon onde podia encontrá-la. O penetrante aroma de pó da cripta subiu até ela. Não se deteve procurar o interruptor; seguiu o oscilante
feixe de luz de sua lanterna, deixando atrás as fileiras de crânios arredondados, de bocas que ensinavam os dentes, até chegar à pesada porta de ferragens que
levava a passagem secreta. Tarnbién estava aberta.
Não se atreveu a correr: o passadiço era muito tortuoso, o chão muito irregular. Recordou que as luzes funcionavam com interruptor automático e os apertou
todos à medida que avançava, sabendo que em poucos minutos as luzes se apagariam a suas costas, que acontecia a claridade às trevas. O percurso lhe pareceu
interminável. Teve a impressão de que dois dias atrás era muito mais curto. Sentiu um instante de pânico, temerosa de ter seguido uma curva equivocada e de estar
perdida em um labirinto de túneis. Mas então viu o segundo lance de degraus e ante seus olhos apareceu a caverna de teto baixo situada sobre a Caldeira do Diabo.
A única lâmpada suspensa de sua grade protetora estava acesa. Encontrou levantada a trampilla, com a tampa apoiada na parede da cova. Cordelia se
ajoelhou e viu a cara do Simon levantada para ela, os olhos exagerados e fixos, como os de um cão apavorado. Tinha o braço esquerdo estendido por cima
da cabeça e a boneca algemada ao último barrote. Sua mão pendurava da argola da esposa, não a forte emano que ela recordava deslizando-se sobre as teclas
do piano, a não ser uma mão tenra e pálida como a de um bebê. As águas crescentes que estalavam como negro petróleo contra os muros da cova e se iluminavam
com a luz da caverna, já lhe chegavam à altura dos ombros.
Cordelia descendeu. O frio lhe feriu as nádegas como o fio de uma faca.
-Onde está a chave? -perguntou-lhe.
-caiu.
-caiu ou a arrojou? Simon, tenho que saber onde está.
-Deixei-a cair.
É obvio. Não tinha por que lançá-la longe. Algemado e impotente como estava, não poderia recuperá-la por perto que se encontrasse ou por tentado ou desesperado que
sentisse-se. Cordelia rogou que o leito da cova fosse de rocha e não de areia. Tinha que encontrar a chave. Não havia outra solução. Sua mente já tinha feito rápidos
cálculos. Cinco minutos para chegar ao castelo, outros cinco para voltar. E onde encontrar uma caixa de ferramentas, uma lima o suficientemente forte para cortar
metal? Embora no castelo houvesse alguém disposto a ajudá-la, não havia tempo. Se se ia, deixaria que Simon se afogasse.
-Ambrose me disse que aconteceria grades o resto de minha vida -sussurrou Simon-. Isso ou o manicômio.
-Mentiu.
-Não podia suportá-lo, Cordelia! Não podia!.
-Não terá que suportá-lo. O homicídio involuntário não é assassinato. Não tinha intenção de matá-la e não está louco. Mas Cordelia recordou com toda claridade as
palavras do Ambrose: "Quem pode saber qual era sua intenção? Ela está morta de todas formas, qualquer que fosse sua intenção".
Qualquer luz suplementar seria de utilidade. Acendeu a lanterna e a apoiou no último degrau. Aspirou uma baforada de ar e descendeu brandamente baixo a ondulada
superfície. Era importante não agitar o leito mais do indispensável. A água estava geada e tão negra que não via nada. Mas apalpou e roçou com as mãos, tocou
a granulosa areia, as arestas de afiadas rochas inquebráveis. Um molho de algas lhe enredou aldedor do braço como uma mão que queria detê-la. Mas seus
dedos se deslizaram sem encontrar nada que pudesse ser chave. Emergiu em busca de ar e ofegou:.
-me mostre exatamente onde a deixou cair.
Por entre seus lábios, exangues e trementes, quase sem fôlego, Simon murmurou:.
-por aqui. Movi assim a mão direita e a deixei cair.
Cordelia amaldiçoou sua própria estupidez. Poderia haver-se ocupado de averiguar qual era o lugar exato antes de mesclar a areia. Agora podia havê-la perdido para
sempre.
Tinha que mover-se com soma cautela. Tinha que conservar a calma e tomar-se todo o tempo necessário. Mas não havia tempo. A água lhes chegava ao pescoço.
Voltou a baixar e tratou de cobrir metodicamente a área indicada, deslizando os dedos, como caranguejos, sobre a superfície arenosa. Teve que sair a respirar por
duas vezes e contemplou brevemente o horror e o desespero daqueles olhos espavoridos. Mas no terceiro intento sua mão tropeçou com uma parte de metal e recuperou
a chave.
Tinha os dedos tão frios, que pareciam inertes. Logo que conseguia sustentar a chave e temeu que lhe caísse, ou não poder encaixá-la na fechadura. Ao notar suas
mãos
trementes, Simon lhe disse:.
-Não valho a pena. Também matei ao Munter. Não podia dormir e fiquei ali, na rosaleda. Vi-o cair. Poderia havê-lo salvado. Mas fugi para não ter que olhá-lo.
Fingi que não o tinha visto, que em nenhum momento me tinha encontrado perto.
-Não pense nisso agora. Temos que te tirar daqui, te dar calor.
Por fim a chave encaixou na fechadura. Cordelia temeu que não funcionasse, que não fora a que correspondia. Mas girou facilmente. A tenaz das algemas se soltou.
Simon estava a salvo.
Então ocorreu. A trampilla caiu com um estalo sonoro tão trepidante como uma chicotada que lhes fendesse o crânio. O ruído pareceu retumbar por toda a ilha,
sacudindo a escala de ferro sob suas rígidas mãos, elevando a água até suas bocas e se chocando contra as paredes da cova em uma maré de concentrada fúria.
Parecia que a cova mesma se cindiria para dar passo ao rugiente mar. A lanterna acesa, desalojada do último degrau, caiu em luminoso arco ante os horrorizados
olhos da Cordelia, brilhou uma segunda sob as águas formadas redemoinhas e se apagou. A escuridão era absoluta. Logo, antes de que o eco do estrépito retumbasse
até
converter-se em silêncio, os ouvidos da Cordelia captaram outro som, o horrível chiado do metal contra o metal, um som de implicações tão espantosas que
jogou para trás sua empapada cabeça e virtualmente uivou em meio das trevas:.
-OH, não! Por favor, não, Meu deus!.
Alguém -e ela sabia quem- tinha abatido de um chute a trampilla. Uma mão tinha deslocado os ferrolhos, um a um. O lugar da execução ficava, assim, fechado
a cal e canto. por cima deles havia um bloco de madeira inexpuguable; a seu redor, a cavidade rochosa; em suas gargantas, o mar.
Cordelia se elevou e apertou a portinhola com todas suas forças. Inclinou a cabeça e golpeou com os ombros. Mas não conseguiu movê-la.   Sabia que assim devia ser.
Notou
que Simon se arrastava até ficar a seu lado e golpeava a portinhola com as Palmas da mão, mas não o via. A escuridão era densa e pesada como uma manta,
uma carga quase evidente contra seu peito. Só percebia os aterrados gemidos do Simon, prolongados e trêmulos como as águas do mar, o aroma rançoso de seu medo,
suas discordantes inspirações, o palpitar de um coração que tanto podia ser o dele como o seu. Tendeu para ele as mãos em um movimento destinado a levar
consolo a sua cara úmida, sabendo unicamente pela temperatura que gotas eram de água e quais eram lágrimas. Tocou-lhe o nariz, os olhos, e a boca.
-vamos morrer? -quis saber Simon.
-Possivelmente. Mas ainda existe uma alternativa. Podemos nadar.
-Prefiro ficar aqui e tê-la perto. Não quero morrer sozinho.
-É melhor morrer tentando salvar-se. E não o tentarei sem ti.
-Eu também o tentarei -sussurrou Simon-. Quando?.
-Em seguida. Enquanto haja ar suficiente. Você irá adiante. Eu te seguirei.
Assim seria melhor para o Simon. que ocupasse a dianteira não veria obstaculizado o passo pelos pés em movimento do outro. E se ele se rendia, Cordelia tinha a
esperança de reunir forças suficientes para empurrá-lo. Durante um segundo se perguntou como as arrumaria se a passagem se estreitava e o inerte corpo do moço
bloqueava-lhe a saída. Mas separou de sua mente esses pensamentos. Agora ele, debilitado pelo frio e o terror, era menos forte que ela. Tinha que ir adiante.
A água tinha chegado a tal altura, que só uma frágil cinta de luz marcava a saída, em um feixe pálido como o leite sobre a escura superfície. Com a próxima
onda também desapareceria aquele fio de luz e ficariam apanhados na mais completa escuridão, sem nada que lhes indicasse o caminho. Atirou do pulôver empapado de
Simon. soltaram-se da escada de ferro, uniram suas mãos e chapinharam até o meio da cova, onde o teto era mais alto; ficaram de barriga para cima e tragaram
as últimas baforadas de ar. A parede rochosa raspou a frente da Cordelia. A água tocou sua língua como se fora o último gole de sua vida.
-Agora!-gritou.
Simon lhe soltou a mão sem vacilar e se deslizou sob a superfície. Cordelia voltou a inalar ar, deu-se a volta e se mergulhou.
Sabia que nadava para salvar a vida e essa era quase sua única certeza. Tinha sido um momento para a ação e não para a reflexão, por isso não estava preparada
para a escuridão, o sorvete terror, a força do fluxo da maré. Não ouvia nada salvo um martilleo nos oidos, não sentia nada salvo a dor em seu coração e
a negra maré contra a qual lutava como uma besta se desesperada e encurralada. O mar era a morte e lutou contra seu embate com tudo o que conseguiu reunir de seu
vida, juventude e esperança. O tempo era alheio à realidade. O trajeto através daquele inferno pôde lhe levar minutos, inclusive horas, embora também podia
contar-se em segundos. Não percebia o corpo que movia as pernas diante dela. Tinha esquecido ao Simon, tinha esquecido ao Ambrose, tinha esquecido inclusive o medo
à morte em sua luta por não morrer. Então, quando a dor foi muito intenso, quando seus pulmões estavam a ponto de estalar, viu que a água que o cubria
a cabeça se esclarecia, voltava-se translúcida, mais suave, cálida como o sangue; emergiu para o ar, o mar aberto e as estrelas.
Nascer era aquilo: a pressão, o impulso, a escuridão úmida, o terror e a morna fervura de sangue. Tudo se iluminou. Sentiu saudades que a lua pudesse derramar
uma luz tão morna, suave e balsâmica como a de um dia estival. E também o mar estava quente. voltou-se de barriga para cima e flutuou com os braços estendidos, deixando
que as águas a levassem onde quisessem. As estrelas lhe faziam companhia e se alegrou das ver. Riu quase estentóreamente, de prazer. E não lhe surpreendeu no
mais minimo ver a irmã Perpétua inclinada sobre ela com sua touca branca.
"Aqui estou, irmãs, disse-lhe. "Aqui estou".
Que estranho que a irmã sacudisse a cabeça suave mas firmemente, que a brancura da touca se esfumasse e que só estivessem ali a lua, as estrelas
e o largo mar! Então soube quem era e onde estava. O duelo não habia concluído. Tinha que tirar forças de fraqueza para combater aquela lassidão, aquela entristecedora
felicidade e aquela paz. A morte, que não tinha conseguido vencê-la pela força, aproximava-se agora sigilosamente.
Naquele momento viu a barco de vela que se deslizava para ela sob a torrente de luz lunar. Ao princípio acreditou que era um espectro marinho nascido de seu esgotamento,
não mais tangível que a cara da irmã Perpétua e sua touca branca. Mas cresceu em tamanho e solidez, reconheceu sua forma e a cabeleira desgrenhada do tripulante.
Era a barco que a habia levado a ilha. Ouviu o sussurro das ondas sob a quilha, o fraco rangido da madeira e o assobio do ar na vela. Agora a
robusta silhueta se destacava negra ante o céu enquanto dobrava a lona sobre os braços. Cordelia ouviu claramente o zumbido do motor. O tripulante manobrava
para ficar de flanco. Teve que arrastá-la para subi-la a bordo. A barco deu uns inclinações bruscas e se estabilizou. Cordelia sentiu que uma aguda dor lhe atirava
dos
braços. Depois se encontrou tendida na coberta, com ele ajoelhado a seu lado. Não parecia surpreso, não lhe fez nenhuma pergunta. tirou-se o pulôver e a tampou.
Quando Cordelia se encontrou em condições de falar, resfolegou:.
-Que sorte que ainda estivesse por aqui ..... .
O pescador assinalou o pau e Cordelia viu seu cinto de couro grampeado ao redor, como um gallardete.
-Vinha a lhe trazer isto -disse ele.
-Vinha a me devolver o cinturão?.
Cordelia não sabia por que a situação lhe resultava tão divertida, por que teve que dominar o impulso de estalar em uma gargalhada histérica.
-Atraía-me desembarcar na ilha à luz da lua, e Ambrose Gorringe não é nada cortês com os intrusos -explicou ele-. Tinha pensado deixar o cinturão no
embarcadero, calculando que você o encontraria pela manhã.
O momento de incipiente histeria tinha passado. Cordelia se incorporou e observou a ilha, a escura massa do castelo invulnerável como a rocha, com todas as luzes
apagadas. Por detrás de uma nuvem apareceu a lua, e sua mágica luz mostrou cada tijolo, visível embora inconsistente, a torre toda, em uma fantasia chapeada. Cordelia
contemplou fascinada sua beleza. Então seu intumescido cérebro recordou. Estaria-a vigiando ele desde sua cidadela, esquadrinhando o mar com os prismáticos à
espera de ver surgir sua cabeça na superfície? Cordelia imaginou como poderia ter sido tudo: seu corpo exausto derivando até a borda através do chapinho
dos calhaus e o arrasto das ondas, levantando seus olhos nublados só para encontrar os olhos implacáveis dele, a força do Ambrose contra sua debilidade.
perguntou-se se teria sido capaz de matá-la a sangue frio. Pensou que o habria resultado difícil, possivelmente impossível. Tinha sido muito mais fácil fechar de
uma patada
a trampilla, correr os ferrolhos e deixar que o mar cumprisse sua tarefa. Recordou as palavras de Roma: "Até seu horror é de segunda mão". Claro que ele não podia
deixá-la viva sabendo o que sabia.
-Salvou-me a vida -disse.
-Economizei-lhe nadar um momento mais, isso é tudo. O teria obtido. Estava muito perto da praia.
Não lhe perguntou por que nadava a essas horas, quase nua. Nada parecia lhe surpreender nem lhe desconcertar. Nesse momento, Cordelia recordou ao Simon e disse,
com tom
premente:.
-Fomos dois. Havia um menino comigo. Devemos lhe encontrar. Tem que estar perto. É muito bom nadador.
Mas o mar se estendia em um sereno deserto iluminado pela lua. Cordelia lhe obrigou a procurar durante uma hora, trocando lentamente de rumo com as velas pregadas,
o motor lhe ronronem. Ela permaneceu desabada junto à amurada, com olhar ansioso, à espera de distinguir um movimento sobre a serena superfície das
águas. Mas finalmente aceitou o que sabia desde o começo. Simon habia sido um excelente nadador mas, debilitado pelo frio e o terror, possivelmente por alguma desespero
que ia além deles, tinha perdido as forças. Nesse instante estava muito fatigada para sentir pesar. Logo que teve consciência de uma leve decepção.
deu-se conta de que se dirigiam para o embarcadero e se apressou a dizer:.
-Ao Speymouth, não à ilha.
-Quer ver um médico?.
-Não, à polícia.
Tampouco nessa ocasião a interrogou, mas sim fez virar a barco. Uns minutos depois, com os membros enfraquecidos e certa energia recuperada, Cordelia tratou
de levantar-se e lhe dar uma mão com os cabos. Aparentemente seus braços não encontraram a força necessária. Lhe disse:.
-Será melhor que entre na cabine e descanse.
-Se não ter inconveniente, prefiro ficar em coberta.
O pescador foi à cabine em busca de um travesseiro e um pesado capote; agasalhou-a junto ao mastro. Ao levantar a vista e ver as estrelas enquanto ouvia o estalo
da lona quando girava o botalón, narcotizada pelo sussurro das ondas sob a quilha, Cordelia lamentou que a viagem não durasse eternamente, que a trégua de
paz e beleza entre o horror passado e o trauma por vir tivessem que tocar a seu fim.
Em muda companhia navegaram para o porto, sentindo fluir a paz da noite entre ambos. Cordelia deveu dormitar. Logo que percebeu que a barco chocava brandamente
contra o mole, que a levavam a terra, as mãos dele sob seu peito, o forte aroma de mar de seu pulôver, um coração pulsando contra o seu.
.
46.
As doze horas seguintes se gravaram na memória da Cordelia como uma confusa impressão atemporal, um limbo no que imagens e pessoas sobressaíam com surpreendente
e artificial claridade, como se uma câmara as tivesse registrado instantaneamente e para sempre em toda sua caprichosa trivialidade.
Um descomunal urso de felpa sobre o escritório da delegacia de polícia, curvado contra a parede do extremo do mostrador, vesgo, com uma etiqueta ao redor do pescoço.
Uma taça de chá doce e forte que se derramava no prato. Duas bolachas molhadas desintegrando-se em papa. por que a imagem era tão clara? O inspetor Grogan,
com pulôver azul de punhos desfiados, limpando-as manchas de ovo dos lábios, olhando seu lenço como se compartilhasse a estranheza dela por comer tão
tarde. Ela mesma acurrucada no assento traseiro de um carro da polícia, sentindo o áspero comichão de uma manta na cara e os braços. A sala de entrada
de um hotelito com aroma de cera para móveis e a lavanda e, sobre a mesa, uma horripilante gravura da morte do Nelson. Uma mulher de cara alegre, a quem a polícia
parecia conhecer, ajudando-a a subir a escada. Um pequeno dormitório, a cabeceira de bronze e uma reprodução do Camundongo Mickey na tela da
abajur. Despertar pela manhã e encontrar os texanos e a camisa pulcramente dobrados sobre a cadeira, junto à cama, lhes dando voltas como se pertencessem
a outra pessoa, pensando que, se a polícia tinha voltado para a ilha a noite anterior, era muito estranho que não a tivessem levado a ela consigo. Um ancião que
compartilhou com ela em silêncio o saloncito de cafés da manhã -além de duas mulheres policiais-, com um guardanapo de papel sujeita ao pescoço da camisa e um desejo
purpúreo que lhe cobria a metade da cara. A lancha da polícia cruzando a inclinações bruscas a baía contra um vento refrescante e ela mesma, como um prisioneiro
com
escolta, apertada entre o sargento Buckley e uma agente de polícia uniformizada. Uma gaivota, flutuando acima com seu comprido pico curvo, que logo se instalou na
proa como um mascarón. Depois uma imagem que deu realidade a todas as irrealidades, que suportava todo o horror da véspera e se fechou em torno de seu coração
como uma tenaz: a solitária silhueta do Ambrose aguardando-os no embarcadero. Entre todas aquelas imagens desconexas, a lembrança de perguntas, de infinitas
perguntas reiteradas, de um círculo de rostos inquisitivos, de bocas que se abriam e fechavam como autômatos. Mais adiante conseguiu recordar cada palavra do diálogo,
embora o lugar tinha escapado para sempre de sua mente lhe impedindo de saber se tinha ocorrido na delegacia de polícia, no hotel, na lancha, na ilha. Possivelmente
havia
sido em todos aqueles lugares, e as perguntas, formuladas por mais de uma voz. Ela parecia descrever acontecimentos que lhe tinham ocorrido a outra pessoa, a alguém
que conhecia muito bem. Tudo estava diáfano na mente daquela outra garota, embora tinha ocorrido tanto tempo atrás, tantos anos atrás, na aparência: quando Simon
vivia.
-Está segura de que quando chegou a trampilla a encontrou levantada?.
-Sim.
-E a portinhola estava apoiada contra o muro do passadiço?.
-Tinha que ser assim, se a trampilla estava aberta.
-Se estava aberta? Você afirmou que o estava. Está segura de que não a abriu você mesma?.
-Absolutamente segura.
-Quanto tempo passou com o Simon Lessing na cova antes de ouvi-la cair?.
-Não o recordo. O suficiente para lhe perguntar pela chave das algemas, me mergulhar e encontrá-la, lhe liberar. Provavelmente menos de oito minutos.
-Está segura de que a portinhola tinha os fechos jogados? Os dois tentaram levantá-la?.
-Primeiro eu sozinha, e depois os dois. Mas eu sabia que era
inútil. Ouvi o chiado dos ferrolhos.
-Por isso não o tentou a fundo, porque sábia que era inútil?.
-Tentei-o a fundo. Pressionei com os ombros. Acredito que tentá-lo era a reação natural, embora soubesse que não serviria de nada. Ouvi o som dos ferrolhos
ao fechar-se.
-Ouviu esse leve som a pesar do ímpeto da maré?.
-Não havia muito ruído na cova. A maré entrava tão silenciosamente como água em uma marmita. Isso era o mais aterrador.
-Você estava assustada e tinha frio. Está segura de que teria tido a força suficiente para abrir a portinhola se esta tivesse cansado acidentalmente?.
-Não caiu acidentalmente. Isso é impossível. Além disso, ouvi os ferrolhos.
-Um ou dois?.
-Dois. O chiado do metal contra o metal. Duas vezes.
-Compreende o que isso significa? Compreende a importância do que está dizendo?.
-É obvio.
Levaram-na a Caldeira do Diabo. Não foi um ato cordial nem clemente, claro que eles não tinham por que ser o um nem o outro. Havia brilhantes luz ao redor
da porta caediza, um homem ajoelhado que jogava pó em busca de impressões digitais com as delicadas pinceladas de um artista. Depois levantaram a portinhola
e não a apoiaram contra a vertente rochosa, deixaram-na verticalmente equilibrada sobre suas próprias dobradiças. Retrocederam e, não mais de um par de segundos
mais tarde,
a portinhola caiu. Cordelia se estremeceu como um cachorrinho assustado, recordando outro estrépito semelhante. Pediram-lhe que a levantasse. Era mais pesada do
que
esperava. A seus pés estava a escala de ferro que conduzia à morte, o raio da brilhante luz diurna que penetrava de uma saída em forma de medialuna,
a escura e cheirosa bofetada da água contra a rocha. Até a fizeram baixar e abateram brandamente a porta a suas costas. Tal como a haviam instruído, empurrou-a
com os ombros e sem necessidade de apelar a todas suas forças a abriu. Um dos oficiais descendeu à cova e de acima fecharam a portinhola e correram
delicadamente os fechos. Ela sabia que estavam comprovando até que ponto podia ter percebido o som. Pediram-lhe que equilibrasse a portinhola sobre
suas dobradiças e Cordelia o tentou, em vão. Insistiram em que voltasse a tentá-lo e, ao ver que fracassava, não disseram nada. perguntou-se se acreditariam que
o fazia
de propósito. E em todo momento viu mentalmente o corpo afogado do Simon, com a boca aberta e os olhos frágeis, levado de um lado a outro como um peixe morto por
os vaivéns da maré.
Depois se encontrou sentada em um rincão da terraço, a sós exceto pela muda e séria agente de polícia, aguardando junto à lancha da polícia que a
afastaria da ilha para sempre. No estou acostumado a estavam sua máquina de escrever e sua bagagem. Ainda havia vento, mas aparecia o sol. Cordelia notou seu reconfortante
calor nas costas e se sentiu agradecida. depois da noite anterior acreditava que jamais voltaria a gozar de sua morna carícia.
Uma sombra caiu sobre as pedras. Ambrose se tinha aproximado em silêncio e estava de pé a seu lado. A mulher polícia, afastada, não podia lhe ouvir, mas de todos
os modos
ele falou como se não se encontrasse ali, como se eles dois estivessem sozinhos.
-Ontem à noite a senti falta de -disse-. Estava preocupado por você. A polícia me informou que a levaram a um hotel. Espero que fora cômodo.
-Bastante, embora não me lembro bem.
-O terá contado tudo, é obvio. Isso é óbvio se tivermos em conta a combinação de frieza, olhadas especulativos e leve desconcerto com que me tratam
desde que ontem à noite realizaram sua inoportuna embora não inesperada visita.
-Sim, hei-lhes dito tudo.
-Quase posso cheirar o regozijo da polícia. É compreensível. Se você não minta nem está equivocada ou louca, deram com uma pepita. As ascensões resplandecem
como o Santo Grial. Mas como vê, não me prenderam. A situação é inaudita e exige tato e cuidado. tomam seu tempo. No momento imagino que seguem provando
a armadilha caediza tratando de decidir se pôde fechar-se acidentalmente, se você, em realidade, pode ter ouvido como se corriam os fechos. Ao fim e ao cabo,
quando voltaram ontem à noite, em um estado que eu chamaria de certa exaltação, encontraram a portinhola fechada mas sem os ferrolhos jogados. E não acredito que
obtenham
rastros identificáveis nos fechos, você o que opina?.
De repente Cordelia experimentou uma cólera imensa e entristecedora, de intensidade quase cósmica, como se seu frágil corpo feminino pudesse conter o ultraje concentrado
de todas as vítimas do mundo despojadas de suas pouco apreciadas vistas.
-Você o matou e tentou me matar. A mim! Nem sequer em defesa própria. Nem sequer por ódio. Para você minha vida importava menos que sua comodidade, que suas posses,
que seu mundo pessoal. Minha vida!.
Ambrose respondeu com serenidade absoluta:.
--Se isso for o que crie, é razoável que experimente certo ressentimento. Mas como vê, Cordelia, o que lhe estou dizendo à polícia e a você é que as coisas
não ocorreram assim. Não é verdade. Ninguém tentou matá-la. Ninguém moveu esses ferrolhos. Quando você chegou a trampilla, encontrou-a fechada. Levantou-a apenas
o suficiente
para reunir-se com o Simon, mas não a assegurou. Fechou-a depois de passar; do contrário a levantou só parcialmente e, por acidente, fechou-se. Tinha frio, estava
aterrorizada e esgotada. Não tinha forças para levantá-la.
-E o que me diz do motivo, da fotografia do Chronicle?.
-O que fotografa? Foi uma imprudência de sua parte deixá-la na bolsa, sobre o escritório do despacho. Um descuido natural em sua ansiedade por socorrer ao Simon,
mas que resultou muito conveniente para mim. Não me diga que ainda não tem descoberto seu desaparecimento.
-A polícia está verificando-o tudo com a mulher que me deu isso. Inteirarão-se de que realmente tinha um recorte de imprensa. Depois começarão a procurar uma cópia.
-Terão muita sorte se a encontrarem. Até em tal caso e se depois de quatro anos a cópia é tão clara como a que você negligentemente perdeu, sei me defender.
Evidentemente tenho um dobro em algum lugar da Inglaterra. Inclusive poderia ser um turista estrangeiro. Digamos que tenho um dobro em algum lugar do mundo. Acaso
é algo estranho? Descobrir uma prova real de que estive no Reino Unido em 1977 será mais difícil à medida que passe o tempo. Mais ou menos dentro de um ano, poderei
me sentir a salvo, inclusive da Clarissa. E embora consigam demonstrar que estive aqui, isso não me converte em um assassino nem em cúmplice de um assassino. A morte
do Simon
Lessing foi um suicídio, e foi ele, não eu, quem matou a Clarissa. Confessou-me a verdade antes de desaparecer. Fraturou-lhe o crânio; em um acesso de ódio e repugnância,
golpeou-lhe a cara até transformá-la em polpa e depois fugiu pela janela do quarto de banho. Ontem à noite, incapaz de suportar a verdade do que tinha feito e seus
conseqüências, tentou matar-se. em que pese a seu heróico empenho por lhe salvar, Cordelia, obteve-o. Foi uma sorte que não a levasse consigo. Eu não tive nada que
ver em
esse assunto. Esta é minha versão e nada que a você lhe ocorra inventar pode refutá-la.
-por que quereria eu inventar algo? por que teria que mentir?.
-Isso mesmo me perguntou a polícia. Vi-me obrigado a responder que a imaginação de uma jovencita é muito fértil e que não devíamos esquecer que você tinha encarado
uma horrível impressão. Adicionei que é a proprietária de uma agência de detetives que, se me perdoar, já que eu julgo de fora, não é precisamente próspera.
Teria você que gastar uma fortuna para obter a
publicidade que lhe proporcionará este caso se alguma vez chegar aos tribunais.
-Não é o tipo de publicidade que alguém possa desejar. foi um fracasso.
-Em seu lugar não me sentiria tão deprimido. Demonstrou ser possuidora de uma admirável coragem e de uma grande inteligência. O pobre George Ralston diria que você
foi
além do que exigia o dever. Acredito que considerará bem empregados seus honorários. -depois de uma breve pausa acrescentou-: Se insistir em sua história, será minha
palavra
contra a sua. Simon está morto e já nada pode lhe afetar. Não será cômodo para nenhum dos dois.
Acreditaria Ambrose que não tinha pensado nisso, nos largos meses de espera, os interrogatórios, o trauma do julgamento, olhada-las suspicazes, o veredicto que
a catalogaria como mentirosa, ou, pior ainda, como uma histérica ansiosa de publicidade?.
-Sei -replicou-. Mas eu não estou tão acostumada à comodidade.
Quer dizer que Gorringe tinha intenção de lutar. Inclusive rnientras a noite anterior observava como a resgatavam, devia estar planejando, tramando, aperfeiçoando
suas mentiras. Recorreria a toda sua habilidade, sua reputação, seus conhecimentos, sua inteligência. aferraria-se a seu reino privado até o último fôlego. Cordelia
levantou a vista e observou a semisonrisa, a serena e quase jubilosa confiança em si mesmo. Já estava saboreando sua fuga do aborrecimento, já gozava com a euforia
do êxito. Compraria o melhor assessoramento jurídico, conseguiria os advogados mais prestigiosos. Aquela era, essencialmente, sua lide, e não cederia um milímetro,
agora
nem nunca.
Se saía bem sacado, como poderia viver com a lembrança do que tinha feito? Facilmente. Tão facilmente como tinha vivido Clarissa com a lembrança da morte
do Viccy, ou sir George com seus remorsos pela morte do Carl Blythe. Não é necessário acreditar no sacramento da penitência para encontrar recursos que mantenham
sossegada a consciência. Ela tinha os seus, ele idearia os próprios. Era tão notável o que lhe tinha ocorrido ao Ambrose? Em cada minuto de cada dia, em algum lugar
do planeta, um homem ou uma mulher se veian repentinamente enfrentados a uma tentação avassaladora. Ambrose Gorringe tinha sucumbido. Não tinha conseguido introduzir
no núcleo de seu ser nada que lhe desse forças para resistir à tentação. Talvez se se afastava o suficiente dos problemas humanos, da vida humana com
todo seu caos, também um terminaria por apartar-se da piedade humana.
-me deixe em paz, por favor -disse Cordelia-. Quero partir.
Ambrose não se moveu. Um momento depois lhe ouviu dizer, serena e brandamente.
-Sinto muito, Cordelia. Lamento-o. -Logo, como se pela primeira vez tivesse consciência da silenciosa observadora uniformizada, concluiu-: Sua primeira visita ao
Courcy
Island não foi para você tão feliz como eu tivesse desejado. Oxalá não tivesse sido assim. Rogo-lhe que me desculpe.
Cordelia compreendeu que aquilo era quão único jamais admitiria, e não tinha nenhum peso ante a lei. Não podia apresentar-se como prova. Mas quase apesar de si mesmo,
acreditou que tinha sido sincero.
Seguiu-o com o olhar enquanto se encaminhava a seu castelo a passo vivo. O inspetor Grogan apareceu no vão da porta e saiu a seu encontro. Entraram juntos
sem intercambiar uma só palavra.
Cordelia seguiu esperando. Depois um oficial uniformizado, lastimosamente jovem e com o rosto de um anjo de Donatello, aproximou-se dela ruborizado e lhe disse:.
-Chamam-na por telefone, senhorita Gray. Na biblioteca.
A senhorita Maudsley fez esforços por não parecer nervosa, mas sua voz descubria que estava próxima ao pânico:.
-OH, senhorita Gray, espero que não seja incorreto havê-la chamado. O jovem que atendeu o telefone me disse que estava bem. Foi muito serviçal. Quero saber quando
voltará. Acaba de apresentar um novo caso. É terrivelmente urgente, perdeu-se um siamês de pura raça. Pertence a uma menina que acaba de sair do hospital,
depois de um tratamento de leucemia, e faz apenas uma semana que o tem. Foi um presente de bem-vinda ao lar. Está desesperada. Bevis teve que assistir
a outra de suas provas. Se for me ocupar do caso, não ficará ninguém na agência. Para cúmulo, acaba de chamar a senhora Sutcliffe. tornou a perder-se seu
pequinesa, Nanki-Poo. Quer que alguém vá a sua casa imediatamente.
-Ponha um letreiro na porta, com a indicação de que abriremos amanhã às nove -respondeu Cordelia-. Depois fechamento todo e fique a procurar a esse gatinho.
Telefone à senhora Sutcliffe e lhe diga que eu passarei a vê-la esta tarde para me ocupar do Nanki-Poo. Agora vou apresentar me a indagatoria, mas o inspetor
Grogan pedirá um adiamento, de modo que não levará muito tempo. Agarrarei o trem de meia tarde.
Pendurou o auricular e pensou: por que não? IA polícia sabia onde localizá-la. Ainda não estava livre do Courcy Island e possivelmente nunca o estaria. Mas a esperava
um trabalho,
um trabalho necessário para o que estava capacitada. Sabia que não seria sempre satisfatório, mas não desprezava suas ingenuidades, mas bem lhes dava boa acolhida.
Os animais não se atormentam com o medo à morte nem lhe atormentam com o horror de sua agonia. Não lhe carregam com seus problemas psicológicos. Não se rodeiam de
posses nem vivem no passado. Não aúllan de dor pela perda do amor. Não lhe pedem que minta por eles. Não tratam de te assassinar.
Cruzou o salão e saiu a terraço. Grogan e Buckley a aguardavam de pé, o primeiro na proa da lancha da polícia e Buckley a popa. Em sua imóvel compostura
pareciam cavalheiros desarmados de guarda em uma legendária nave, esperando para levar a seu rei ao Avalón. Cordelia se deteve e os observou, percebendo o olhar concentrada de seus olhos fixos, consciente de que o momento tinha um significado que os três reconheciam mas que nenhum expressaria jamais com palavras. Eles lutavam com seu próprio dilema. até que ponto podiam confiar em sua prudência, em sua honradez, em sua memória, em sua coragem? até que ponto se atreveriam a confiar sua reputação à integridade dela quando as coisas ficassem difíceis? Como se absolveria ela a si mesmo se o caso ia a julgamento e se encontrava no mais solitário de os lugares, o banquinho das testemunhas do tribunal da Coroa? Mas se sentia distanciada da preocupação daqueles homens, como se nada do que pudessem fazer, pensar ou projetar lhe concernisse o mais mínimo. Tudo passaria, ao igual a eles, ao igual a ela. O tempo acolheria sua história e a guardaria entre as lendas semiolvidadas da ilha: a morte solitária do Carl Blythe, Lillie Langtry baixando majestosa a ampla escalinata, as caveiras rachadas de
Courcy. Repentinamente se sentiu invulnerável. A polícia teria que tomar suas próprias decisões. Ela já tinha tomado a sua, sem vacilação e sem debate: diria a verdade e sobreviveria. Nada podia lhe fazer trinca. sujeitou-se a bandoleira firmemente no ombro e avançou resolvida para a lancha. Durante um ensolarado instante teve a impressão de que Courcy Island e tudo o que tinha ocorrido durante aquele fatídico fim de semana eram tão alheios a sua vida e a seu futuro, a seu rítmico batimento do coração do coração, como o indiferente mar azul.

 

 

                                                                  P. D. James

 

 

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