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O CRIME DE PARAGON WALK / Anne Perry
O CRIME DE PARAGON WALK / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Em uma elegante rua londrina se perpétua um horrendo crime: Fanny, uma jovem de dezessete anos, é violada e assassinada brutalmente. O caso se atribui ao inspetor Pitt quem, como em outras ocasiões, serve-se de sua perspicaz e aristocrática esposa Charlotte para penetrar no hermético mundo da alta sociedade, onde atrás da fachada de respeitabilidade acharão um rarefeito ambiente: superstições, vampirescas insaciáveis, alcoólicos, presumidos suicídios... e até ritos satânicos. Um excelente caldo de cultivo para os perversos planos de um sanguinário assassino.

 

 

 

 

       O inspetor Pitt olhou à moça e lhe embargou uma entristecedora sensação de perda. Não a tinha conhecido em vida, mas imaginou e valorizou todas as coisas que tinha perdido.

       Com apenas dezessete anos, era delicada e possuía uma formosa cabeleira castanha. Estendida sobre a mesa branca do depósito de cadáveres, parecia tão frágil que Pitt supôs que podia quebrar-se só tocando-a. Em seus braços se apreciavam os machucados sofridos durante a resistência.

Estava vestida com um elegante traje de seda azul, e uma cadeia de ouro e pérolas adornava seu pescoço. Coisas que ele jamais poderia permitir-se. Coisas bonitas mas banais ante a morte, que entretanto desejaria poder oferecer à Charlotte.

A lembrança de Charlotte, segura e confortável em casa, provocou-lhe um nó no estômago. Amava algum homem essa moça como ele amava Charlotte?

Alguém nesse momento sentia que tinha perdido tudo aquilo que representava a inocência, a luz, a doçura? Sentia alguém que com a aniquilação daquele frágil corpo lhe tinham arrebatado a risada?

Obrigou-se a olhá-la de novo, mas seus olhos evitaram a ferida no peito, a corrente de sangue agora coagulado e espesso. O rosto, pálido, carecia de expressão, já não havia nela surpresa nem horror. Estava algo gasta.

A moça tinha vivido no Paragon Walk, um bairro rico e elegante e indubitavelmente ocioso. Pitt não tinha nada em comum com ela. Ele tinha trabalhado desde o dia que abandonara a propriedade onde estava empregado seu pai, sem mais bagagem que uma caixa de cartão com um pente e uma camisa limpa, e uma educação compartilhada com o filho da casa. Tinha conhecido a pobreza e o desespero que ferviam justamente atrás das ruas e lugares elegantes de Londres, coisas que aquela moça jamais teria imaginado.

Com uma careta de desgosto, recordou o semblante horrorizado de Charlotte a primeira vez que as descreveu, quando ele não era mais que o policial que investigava os assassinatos do Cater Street, e ela uma das filhas da casa Ellison. Os pais de Charlotte tinham se apavorado o mero fato de recebê-lo na casa, e já não digamos dirigir-se a ele socialmente. Charlotte tinha demonstrado uma grande coragem casando-se com ele, e ao recordá-lo o carinho embargou de novo ao Pitt e seus dedos se aferraram ao canto da mesa.

Contemplou uma vez mais o rosto da jovem, furioso pela perda, pelas experiências que nunca teria, pelas oportunidades desvanecidas.

Desviou o olhar.

― Ontem à noite, uma vez que escureceu ― explicou sombriamente o agente que estava a seu lado. ― Um caso horripilante. Conhece Paragon Walk, senhor? Um bairro de classe muito alta, asseguro. Toda essa zona o é.

― Sim ― respondeu Pitt.

É claro que o conhecia. Era parte de seu distrito. Não acrescentou que conhecia especialmente Paragon Walk porque ali residia a irmã do Charlotte. Esta se tinha casado com um homem de classe inferior à sua, enquanto que Emily o tinha feito com um de classe superior e era agora lady Ashworth.

― Não é o tipo de crime que caberia esperar em um bairro como esse ― prosseguiu o agente, e expressou sua desaprovação com um leve estalo da língua. ― Não sei aonde iremos parar. Primeiro o general Gordon, morto nas mãos daquele bruto em janeiro, e agora temos violadores em um lugar como Paragon Walk. É horripilante. Pobre moça. Parece inocente como um cordeirinho, não acha? ― Olhou― a com tristeza.

Pitt se voltou para o agente.

― Disse violada?

― Sim, senhor. Não o disseram na delegacia de polícia?

― Não, Forbes, não o fizeram ― respondeu Pitt com uma brutalidade involuntária, como se tentasse ocultar a nova desgraça. ― Só me falaram de assassinato.

― OH, também a assassinaram ― observou razoavelmente Forbes. ― Pobre criatura. ― Sorveu. — Suponho, inspetor, que quererá visitar Paragon Walk e falar com toda essa gente.

― Sim ― disse Pitt, dispondo-se a partir.

Aí já não podia fazer nada. A arma do crime era óbvia: uma faca de folha longa e afiada, de dois centímetros e meio de largura no mínimo. Só havia uma ferida.

― Bem. ― Forbes seguiu ao Pitt escada acima com passos pesados e sonoros.

Uma vez fora, Pitt respirou o ar estival. As árvores tinham jogado todas suas folhas e às oito da manhã já fazia calor. Uma carruagem aberta puxada por cavalos sacolejou ao final da rua e um jovem mensageiro se dirigia assobiando para seu destino.

― Iremos a pé ― disse Pitt, empreendendo a marcha em grandes passadas, com o chapéu encasquetado e a capa ondeando ao vento.

Forbes se viu obrigado a apertar o passo para não atrasar-se, e muito antes que chegassem ao Paragon Walk já resfolegava e se lamentava de que lhe houvesse tocado trabalhar justamente sob as ordens do Pitt.

Paragon Walk, um passeio extremamente elegante construído em tempos da Regência, erigia-se frente a um parque de maciças florais e árvores decorativas, formando uma suave curva de uns mil metros. Envolvida pelo sol, era uma manhã esbranquiçada e silenciosa, e não se via ninguém na rua, nem sequer um mordomo ou um ajudante de jardineiro. Claro, a voz sobre a tragédia tinha se espalhado. Nas cozinhas e despensas se formariam carriolas e nos pisos de cima se fariam observações incômodas nas mesas do café da manhã.

― Fanny Nash ― disse Forbes quando seu superior se deteve e pôde recuperar o fôlego.

― Como?

― Fanny Nash, senhor ― repetiu Forbes ― Assim se chamava a moça.

― Ah, compreendo.

Por um instante, a sensação de perda o invadiu de novo. Ontem, a essa mesma hora, a moça estava viva atrás de uma daquelas janelas, provavelmente decidindo que vestido colocar, indicando a sua criada que complementos estender para ela, planejando o dia, a quem visitar, que fofocas contar, que segredos guardar. Era o começo da temporada social londrina. Que sonhos, tão somente fazia umas horas, tinham repleto suas expectativas?

― Número quatro ― disse Forbes a suas costas.

Pitt amaldiçoou em silêncio o espírito prático do Forbes, embora soubesse que estava sendo injusto achavam-se em um mundo desconhecido para o agente, mais estranho que os bairros pobres de Paris ou Bordéus. Forbes estava acostumado a mulheres simples que trabalhavam da manhã até a noite, a famílias numerosas que viviam amontoadas em aposentos minúsculos impregnados de aroma de comida, à prática íntima de pecados e prazeres. Não podia ver essas pessoas como seus iguais, debaixo daqueles objetos caros e daquelas maneiras rígidas e afetadas. Alheias à disciplina do trabalho, tinham inventado a disciplina da etiqueta até convertê-la em um patrão igualmente implacável. Mas Forbes não podia entender isso.

Pitt sabia que, como policial, esperava-se dele que entrasse pela porta de serviço, mas não ia começar agora um hábito que tinha rechaçado toda sua vida.

O mordomo que lhe abriu a porta se mostrou severo e orgulhoso. Contemplou ao Pitt com antipatia distante, embora a arrogância de seu olhar ficava ligeiramente diminuída pelo fato de que Pitt era vários centímetros mais alto.

― Sou o inspetor Pitt da polícia ― disse com seriedade― Posso falar com o senhor e a senhora Nash? ― Pitt deu por assentado que assim era e se dispôs a entrar, mas o mordomo não se moveu.

— O senhor Nash não está em casa. Verei se a senhora Nash pode recebê-lo ― respondeu secamente, e retrocedeu meio passo ― Pode esperar no vestíbulo.

Pitt olhou em redor. A casa era maior do que aparentava. Uma ampla escada desembocava em seus patamares, um de cada lado, e o vestíbulo abrigava meia dúzia de portas. Tinha aprendido um pouco de arte quando trabalhava na seção de resgate de objetos roubados, e estimou que os quadros das paredes eram de considerável valor embora muito convencionais para seu gosto. Ele preferia a escola moderna, mais impressionista, de linhas imprecisas, de céus e águas fundidas em uma luz nebulosa. Mas havia um retrato, do estilo do Burne - Jones, que atraiu sua atenção não pelo autor mas sim pelo personagem, uma mulher de excepcional beleza, orgulhosa, sensual e deslumbrante.

― Caramba! ― exclamou surpreso Forbes, e Pitt compreendeu que o agente jamais tinha estado em uma casa como essa, excetuando, possivelmente, a sala de refeições da criadagem. Temeu que a rudeza do Forbes pusesse a ambos em evidência ou inclusive entorpecesse o interrogatório.

― Forbes, por que não visita a criadagem e tenta averiguar algo? ― sugeriu― Talvez algum mordomo ou uma criada esteve fora ontem à noite. A pessoa não se dá conta do muito que é capaz de perceber.

Forbes titubeou. Uma parte dele desejava ficar e examinar esse novo mundo, não ver-se excluído do mesmo, mas outra parte queria dirigir-se a um entorno mais familiar e fazer um trabalho no que se sentisse seguro. A dúvida foi breve e terminou com naturalidade.

― Muito bem, senhor, assim o farei! E possivelmente visite outras casas. Como bem diz, a pessoa ignora o que viu até que a obriga a pensar, não é?

Quando o mordomo retornou, conduziu ao Pitt até a sala de estar e partiu. Jessamyn Nash demorou cinco minutos em aparecer. Pitt a reconheceu imediatamente. Era a mulher do retrato, aqueles olhos grandes e diretos, aquela boca, o brilho daquele cabelo suave e espesso como os campos no verão. Agora se vestia de negro, fato que não diminuía seu esplendor. Caminhava com porte erguido e o queixo elevado.

― Bom dia, senhor Pitt. Que deseja me perguntar?

― Bom dia, senhora. Sinto incomodá-la em circunstâncias tão desgraçadas...

— Sei que é necessário, não tem que desculpar-se. ― A mulher cruzou a sala com graça deliciosa. Não se sentou, e tampouco ofereceu assento ao inspetor― Naturalmente, tem que averiguar o que ocorreu a pobre Fanny. -seu rosto empalideceu por um instante― Não era mais que uma menina, muito inocente... muito jovem.

A mesma impressão que ele tinha tido, a de uma juventude extrema.

— Lamento-o ― disse Pitt com voz baixa.

― Obrigado.

Pela voz, ignorava se a mulher realmente sabia que o dizia de coração ou se interpretava sua condolência como um cumprimento, como uma frase que se pronuncia por mero formalismo. Gostaria de reafirmá-la primeiro, mas em qualquer caso pouco podiam lhe importar os sentimentos de um policial.

— Me conte o que ocorreu.

Pitt examinou as costas da mulher, que havia se voltado para a janela. De figura esbelta e ombros delicadamente suaves sob a seda, sua voz era impávida, como se estivesse repetindo um texto ensaiado.

― Ontem à noite eu estava em casa. Fanny era meio-irmã de meu marido e vivia conosco, como imagino que já sabe. Só tinha dezessete anos. Estava comprometida com o Algernon Burnon, mas o matrimônio não ia celebrar se até dentro de três anos, quando ela completasse os vinte.

Pitt guardou silêncio. Poucas vezes interrompia. A mais corriqueira observação podia, com o tempo, significar algo, embora só fosse à revelação involuntária de um sentimento. E queria saber tudo sobre a Fanny Nash. Queria saber como a viam os outros, o que tinha significado para eles.

—... possivelmente lhe pareça um noivado muito longo ― estava dizendo Jessamyn, mas Fanny era muito jovem. Cresceu sozinha, compreende? Meu sogro se casou pela segunda vez. Fanny é... era vinte anos mais nova que meu marido. Parecia que nunca ia crescer, e não porque fosse tola. ― Jessamyn vacilou e ele observou que seus longos dedos acariciavam nervosamente uma figurinha de porcelana que havia sobre a mesa ― Simplesmente era... ― titubeou, procurando a palavra ― ingênua... inocente.

― Tinha previsto viver aqui, com você e seu marido, até o dia de suas bodas?

― Sim.

― Por quê?

Jessamyn se voltou e olhou com assombro ao inspetor. Seus olhos azuis eram incrivelmente frios e estavam secos.

― Sua mãe morreu. Como é natural, oferecemo-lhe nossa casa. ― Esboçou um sorriso breve e gelado ― As moças de boa família não vivem sozinhas, senhor... sinto muito... esqueci seu nome.

― Pitt, senhora ― respondeu ele com igual frieza. Surpreendia-lhe que depois de tantos anos ainda fosse capaz de ofender-se. Tentou ocultá-lo e sorriu para si mesmo. Charlotte teria ficado furiosa, sua língua teria falado com a mesma rapidez com que as palavras surgiam em sua mente assim, a garota podia ficar vivendo com seu pai.

Sua tênue ironia deveu lhe suavizar o semblante, mas ela o interpretou como um sorriso arrogante e suas deliciosas faces coraram.

― Preferia viver conosco ― respondeu ela asperamente― É compreensível. Uma moça não pode ingressar na temporada social de Londres sem uma dama, se for possível da família, que a aconselhe e acompanhe. Eu me alegrava de poder ajudá-la. Tem certeza de que isso é importante, senhor... Pitt? Não estará dando rédea solta a sua curiosidade? Consta-me que nosso estilo de vida é desconhecido para você.

Pitt pensou em uma resposta ácida, mas a ira era uma reação irrevogável, e por agora não lhe convinha inimizar-se com aquela mulher.

Fez uma careta.

― É possível que não tenha relação com o caso. Por favor, prossiga com seu relato do ocorrido ontem à noite.

Jessamyn se dispôs a falar, mas de repente vacilou. Dirigiu-se ao suporte da lareira, abarrotada de fotografias, e então prosseguiu com o mesmo tom inexpressivo.

― Fanny passou um dia absolutamente normal. Não tinha assuntos domésticos que atender, pois eu me encarrego disso. Pela manhã escreveu várias cartas, consultou sua agenda e foi a um encontro com a costureira. Comeu em casa e à tarde pegou a carruagem e foi visitar umas amigas. Mencionou seus nomes, mas os esqueci. Trata-se sempre da mesma gente, e em qualquer caso o que verdadeiramente importa é não esquecer-se da identidade da gente mesmo. Possivelmente o cocheiro possa dizer-lhe. Jantamos em casa com lady Pomeroy, uma mulher desagradável, mas uma obrigação familiar... você possivelmente não pode entender.

Pitt controlou a expressão de seu rosto e observou ao Jessamyn com formal interesse.

― Fanny partiu logo ― prosseguiu ela — Ainda lhe falta habilidade para as relações sociais. Às vezes penso que é muito jovem para a temporada social! Tentei formá-la, mas é muito torpe. Carece do talento natural da criatividade. A mais simples das evasivas supõe uma tortura para ela. Foi devolver um livro para lady Cumming-Gould, ou ao menos isso disse.

― E você não acredita? ― perguntou Pitt.

Jessamyn piscou ligeiramente, mas Pitt não soube interpretar. Charlotte o teria feito por ele, mas não estava ali.

― De fato, acredito que isso é exatamente o que fez ― respondeu Jessamyn ― Como já tentei lhe explicar, senhor... senhor... ― Agitou uma mão com impaciência ― A pobre Fanny não sabia enganar. Era inocente como uma menina.

Pitt não teria descrito as crianças como seres inocentes. Indiscretos, talvez, mas em sua opinião a maioria possuía a astúcia natural de um arminho e a teimosia de um prestamista, embora certamente alguns eram abençoados com o mais doce dos rostos. Era a terceira vez que Jessamyn fazia referência à imaturidade da Fanny.

― Enfim, sempre posso perguntar a lady Cumming-Gould ― respondeu Pitt com um sorriso que esperava fosse tão ingênuo como o da Fanny.

Jessamyn se voltou bruscamente erguendo um de seus delicados ombros, como se o rosto do inspetor lhe tivesse recordado a que categoria social pertencia.

― Finalmente lady Pomeroy partiu e eu estava sozinha... ― A voz de Jessamyn fraquejou e pela primeira vez aparentou que ia perder a serenidade. ― quando Fanny retornou. ― Tratou de não engolir em seco, mas não o conseguiu ― Fanny chegou e se derrubou em meus braços. Ignoro de onde tirou forças a pobre criatura para chegar até aqui. Foi assombroso. Morreu instantes depois.

― Sinto muito.

Jessamyn olhou ao inspetor com semblante inexpressivo, como se estivesse adormecida. Então percorreu com uma mão a saia de tafetá grosso, levada talvez pela lembrança do sangue da garota.

― Disse algo? ― perguntou ele com suavidade.

― Não, senhor Pitt. Estava quase morta quando chegou a casa.

O inspetor se voltou ligeiramente para contemplar as portas― janelas.

― Entrou por aí? ― Era a única entrada possível se o mordomo não tivesse reparado na Fanny, e, apesar de tudo, parecia natural perguntar isso.

Jessamyn experimentou um breve estremecimento.

― Sim.

Pitt se aproximou e olhou pelo vidro. A grama era apenas uma franja rodeada de arbustos de louro, com um caminho herbáceo ao fundo. Um muro afastava o jardim do seguinte. Sabia que quando houvesse resolvido o caso, conheceria cada vista e cada espaço de todas aquelas casas. A menos que existisse uma resposta simples, patética, mas por agora não o parecia. Voltou-se para sua anfitriã.

― Está o jardim conectado de algum modo com outros jardins da avenida? Talvez haja uma grade ou uma porta no muro?

Jessamyn olhou ao Pitt sem compreender.

― Sim, mas duvido que Fanny tenha escolhido esse caminho para retornar. Estava em casa de lady Cumming-Gould.

Ordenaria ao Forbes que rastreasse todos os jardins em busca de rastros de sangue. Uma ferida dessa envergadura tinha que deixar alguma mancha. Talvez achasse ramos quebrados ou rastros na terra ou na grama.

― Onde vive lady Cumming-Gould?

― Com lorde e lady Ashworth. Acho que é tia dele. Veio para a temporada social.

Com lorde e lady Ashworth. De modo que Fanny Nash tinha estado em casa de Emily na noite que foi assassinada. Pitt recordou com um calafrio a primeira vez que viu Charlotte e Emily, no Cater Street, quando investigava os assassinatos do verdugo. As pessoas estavam atemorizadas e olhavam com receio aos amigos, e inclusive à família. Despertaram suspeitas que, de outro modo, teriam permanecido adormecidas toda a vida. Velhas relações cambalearam e quebraram por causa da tensão. Agora, a violência e os segredos obscenos e desagradáveis rondavam de novo, possivelmente dentro da própria casa. Voltariam os mesmos pesadelos, as frias perguntas que temiam inclusive pensar, mas que não se podiam sossegar.

― Estão conectados os jardins entre si? ― perguntou Pitt com cautela, desterrando de sua mente a bruma e o medo do Cater Street. Pôde Fanny retornar por esse caminho? Fazia uma noite agradável.

Jessamyn lhe olhou ligeiramente surpreendida.

― Não acredito provável, senhor Pitt. Levava um vestido de noite, não malhas. Foi e retornou pela rua. E ali deve ter sido abordada por algum demente.    

   Pitt foi assaltado pela absurda idéia de lhe perguntar quantos dementes viviam no Paragon Walk, mas possivelmente Jessamyn ignorava que na noite da tragédia, em um extremo da avenida, incontáveis cocheiros aguardavam que seus senhores saíssem de uma festa, enquanto um policial de serviço perambulava pelo outro extremo.

Pitt transladou o peso de seu corpo de um pé a outro e se endireitou.

― Nesse caso, será melhor que vá à casa de lady Cumming-Gould. Obrigado, senhora Nash. Espero que possamos resolver logo o caso e não tenhamos que importuná-la muito.

― Eu também o espero ― concordou ela com fria formalidade. ― Bom dia.

Em casa dos Ashworth, Pitt foi conduzido até o gabinete por um mordomo cujo rosto era o reflexo de um difícil dilema. Tinha ante ele um homem que dizia pertencer à polícia, por conseguinte um indesejável, e que não se achava ali só por uma questão de tolerância, por uma desagradável necessidade derivada da recente tragédia. Mas esse mesmo homem, por insólito que parecesse, também era o cunhado de lady Ashworth. Isso era exatamente o que ocorria quando a pessoa se casava com alguém de inferior condição social. O mordomo optou finalmente por uma conduta educada mas altiva e partiu em busca de lorde Ashworth. Pitt estava muito divertido com o apuro do homem para incomodar-se. Mas quando a porta se abriu, não foi George quem apareceu mas Emily.

Tinha esquecido como podia ser encantadora sua cunhada e ao mesmo tempo como diferente de Charlotte. Emily era formosa, esbelta e se vestia na última moda e com elegância. Enquanto que Charlotte era desastrosamente franca, Emily era muito prática para falar sem deter-se pensar primeiro, e podia ser deliciosamente matreira quando se propunha, desde que existisse uma boa causa. E geralmente via na alta sociedade uma causa irreprochável. Era capaz de mentir sem experimentar o mínimo tremor.

Entrou e fechou a porta atrás de si, olhando fixamente ao Pitt.

― Olá, Thomas ― saudou com tristeza. — Veio pelo assunto da pobre Fanny, não é assim? Alegro-me de que lhe tenham atribuído o caso. Estive dando voltas ao assunto, tratando de achar algo que possa ser de ajuda, como fizemos no Callander Square. ― Emily ergueu o tom de voz. ― Charlotte e eu fomos muito hábeis então. ― Baixou novamente o tom e seu rosto se entristeceu. — Mas aquilo era diferente. Não conhecíamos às pessoas nem às vítimas. Quando não se conhece a vítima, sofre-se menos. ― Suspirou. — Por favor, Thomas, sente-se. Sua estatura me põe nervosa. Quando trocará de casaco? Terei que falar com Charlotte a respeito. Deixa-o sair à rua sem... ― Examinou a seu cunhado de cima abaixo e decidiu não insistir.

Pitt mexeu no cabelo, piorando as coisas.

― Conhecia bem a Fanny Nash? ― perguntou, abrangendo todo o sofá com as abas de seu casaco e seus longos braços.

― Não. E embora me dê apuro dizê-lo, não me agradava especialmente. ― Emily fez expressão de desculpa. ― Era bem... insípida. Jessamyn, em troca, é divertidíssima. Uma parte de mim não a suporta e está sempre pensando o que fazer para chateá-la.

Pitt sorriu. Havia tantas reminiscências do Charlotte em sua cunhada que não podia evitar simpatizar com ela.

― Mas Fanny era muito jovem ― concluiu ele. — Muito ingênua.

― Certamente. Quase era insípida. — o semblante de Emily se encheu de compaixão e sobressalto, pois por um momento se esqueceu das circunstâncias de sua morte. — Fanny era a última criatura no mundo que teria induzido a um ato tão abominável. Quem quer que o tenha feito é um doente. Deve capturá-lo, Thomas, pela Fanny... e por todos nós.

Muitas respostas se amontoaram na mente do Pitt, respostas tranquilizadoras sobre gente estranha e vagabundos que já tinham fugido, mas todas se dissipavam antes de ser articuladas. Era muito provável que o assassino vivesse ou trabalhasse no Paragon Walk. Nem o policial de serviço que fazia a ronda por um extremo da avenida nem os criados que aguardavam seus senhores do outro lado tinham visto passar alguém. Não era o tipo de bairro onde a pessoa passava inadvertida. O mais provável é que se tratasse de um cocheiro ou um mordomo ébrio que se deixara levar por um impulso absurdo, possivelmente quando ela ameaçou gritar, e provocado um crime espantoso.

Mas não era o crime em si o que atemorizava à vizinhança, mas a iminente investigação e a suspeita de que talvez não tinha sido um mordomo, sim algum cavalheiro da avenida, um cavalheiro de natureza violenta e obscena sob a impecável superfície que todos conheciam. E as investigações policiais desvelavam não só os grandes crimes, mas também pequenos pecados, as baixezas e os enganos que tanto feriam.

Mas não havia necessidade de mencioná-lo, pois Emily, apesar de seu título e ao aprumo de que fazia ornamento, seguia sendo a moça que se mostrara tão vulnerável no Cater Street quando viu seu pai aterrorizado e destroçado.

― Fará isso, verdade? ― A voz do Emily interrompeu os pensamentos do Pitt, exigindo uma resposta. achava-se em meio da sala, com o olhar cravado em seu cunhado.

― Habitualmente o fazemos.

Era o melhor que podia dizer com franqueza. E embora tivesse querido, de pouco lhe teria servido mentir à Emily. Como tantas pessoas práticas e ambiciosas, sua cunhada era agudamente perceptiva. Dominava a arte das mentiras piedosas e as lia em outros como se fossem um livro aberto.

Pitt retornou ao motivo de sua visita.

― Veio vê-la de noite, não é verdade?

― Fanny? ― Emily abriu ligeiramente os olhos. — Sim. Devia devolver um livro ou algo parecido a tia Vespasia. Quer falar com ela?

O inspetor não deixou escapar a oportunidade.

― Sim, por favor. E quero que esteja presente. Se sua tia se angustiar, poderá consolá-la. ― Pitt se imaginava uma anciã de bom berço com tendência às vertigens.

Emily riu pela primeira vez.

― Querido Thomas! ― exclamou, cobrindo― a boca com uma mão. — Você não conhece tia Vespasia! ― E recolhendo as abas caminhou até a porta. — Mas tenha certeza que estarei presente. É justamente o que necessito!

George Ashworth era um homem atraente, de olhos audazes e escuros e cabelo espesso, mas sua tia o superava com acréscimo. Vespasia tinha mais de setenta anos, mas seu rosto ainda exibia os traços de uma beleza deslumbrante: ossos fortes, faces altas e alongadas, nariz reto. Levava o cabelo branco azulado recolhido sobre a cabeça e tinha um vestido de seda vinho. Deteve-se na soleira e observou ao Pitt durante uns segundos. Depois entrou na sala e, erguendo seus óculos, examinou-o de mais perto.

― Não vejo nada sem estas malditas lentes ― resmungou, e grunhiu muito suavemente, como um cavalo da melhor raça. — Extraordinário ― soprou. — De modo que você é policial?

― Sim, senhora. ― Por um instante, nem o próprio Pitt soube o que dizer. por cima de seu ombro divisou o semblante divertido de Emily.

— O que está olhando? ― perguntou secamente Vespasia. — Nunca visto-me de negro, não me favorece. Leve sempre a cor que lhe favoreça, independentemente das circunstâncias. Não cesso de repetir à Emily, mas se nega a me escutar. Paragon Walk espera dela que vá de luto, por isso o faz. Grande estupidez. Não permita que outros esperem que faça algo que você não deseja fazer. — Sentou-se em um sofá e olhou fixamente ao Pitt, com suas sobrancelhas magras e cinzas levemente arqueadas. — Fanny veio ver-me a noite que foi assassinada.

Suponho que sabe e por isso veio.

Pitt engoliu e seco e tratou de recuperar o aprumo.

― Assim é, senhora. A que hora veio?

― Não tenho idéia.

― Pelo menos terá uma idéia aproximada, tia Vespasia ― interveio Emily. — Foi depois do jantar.

— Se disser que não tenho idéia, Emily, quero dizer que não tenho idéia. Jamais olho os relógios. Trazem-me sem cuidado. Quando se chega a minha idade, o tempo perde importância. Tinha escurecido, se isso lhe servir de algo.

― De muito, obrigado. ― Pitt calculou com rapidez. Devia ter ocorrido depois das dez, dada à época do ano. E Jessamyn Nash tinha ordenado ao mordomo que avisasse à polícia pouco antes das onze menos quarto. — por que veio Fanny vê-la , senhora?

― Para fugir de uma convidada que tinham para jantar, uma pessoa extremamente aborrecida ― respondeu Vespasia. — Eliza Pomeroy. Conheço-a desde que era menina, e já então era aborrecida. Gosta de falar dos achaques de outros. A quem lhe importa isso? Cada um já tem bastante com os seus!

Pitt conteve um sorriso e não se atreveu a olhar ao Emily.

― Ela disse isso? ― inquiriu.

Vespasia considerou a possibilidade de mostrar-se paciente com o inspetor ― porque era um pobre tolo― , mas em seguida a rechaçou, fato que se refletiu claramente em seu rosto.

― Não seja absurdo! ― respondeu com brutalidade. — Fanny era uma criatura de educação medíocre, nem bastante boa nem bastante má para ser franca. Disse que devia devolver um livro ou algo parecido.

― Tem o livro? ― Pitt ignorava o que lhe tinha impulsionado a formular essa pergunta, salvo o costume de comprovar cada detalhe. Estava quase certo de que o livro carecia de importância.

― Acho que sim ― respondeu ela ligeiramente surpreendida― , embora nunca espere recuperar os livros que empresto, de modo que não tenho certeza. Fanny era uma moça sincera. Carecia da imaginação necessária para mentir com convicção, e era uma dessas criaturas sossegadas que conhecem suas próprias limitações. Teria ido bem na vida, a salvo de pretensões ou rancores.

O humor e a afabilidade se desvaneceram tão improvisadamente como o sol no inverno.

Pitt se viu na obrigação de falar, mas sua voz soou longínqua e vácua.

― Disse se pensava visitar alguém mais?

― Não ― respondeu solenemente. — Esteve aqui o tempo justo para conseguir seu propósito. Se Eliza Pomeroy continuasse em casa dos Nash, Fanny poderia desculpar-se e retirar-se a seu quarto sem ser descortês. Por sua conversa antes de partir, deduzi que sua intenção era ir diretamente a casa.

― Partiu depois das dez ― confirmou Pitt. — Quanto tempo estima que esteve aqui?

― Algo mais de meia hora. Chegou quando escurecia e partiu quando já era noite fechada.

Portanto, aproximadamente das dez menos quarto até as dez e quinze, pensou Pitt. Fanny devia ter sido agredida durante o curto trajeto de volta a casa. Paragon Walk estava formado por grandes residências de amplas fachadas, calçadas para as carruagens e arbustos frondosos capazes de ocultar a uma pessoa.

Contudo, só havia três casas entre a do Emily e a dos Nash. Fanny não podia ter estado na rua mais de uns minutos, a menos que tivesse batido a outra porta.

― Estava noiva de Algernon Burnon? ― A mente do Pitt procurava possibilidades.

― Uma escolha adequada ― opinou Vespasia. — Um jovem agradável e de meios bastante aceitáveis. Seus costumes são sóbrios e suas maneiras boas, embora seja um pouco aborrecido.

Pitt se perguntou até que ponto a sobriedade podia atrair a uma Fanny de dezessete anos.

― Sabe se alguém mais a admirava em especial? ― Pitt esperou deixar transparente o significado real daquele eufemismo.

Vespasia olhou ao inspetor com leve cenho e Pitt percebeu em Emily uma careta de dor.

― Não sei de ninguém, senhor Pitt, que sentisse pela Fanny emoção capaz de provocar a tragédia de ontem à noite, se trata de insinuar isso.

Emily fechou os olhos e mordeu o lábio para reprimir a risada.

Pitt compreendeu que tinha incorrido justamente no tipo de linguagem que a anciã desprezava, e ambas as mulheres sabiam. Agora devia evitar ressarcir-se em excesso.

― Obrigado, lady Cumming-Gould ― disse, levantando-se. — tenho certeza de que se recordar algo que possa nos ser de ajuda, nos fará saber isso. Obrigado, lady Ashworth.

Vespasia assentiu ligeiramente com a cabeça e se permitiu um tênue sorriso. Emily abandonou seu posto detrás do sofá e rodeou a mesa para estender ambas as mãos a seu cunhado.

― Dê um abraço à Charlotte de minha parte. Irei vê-la logo que o pior deste assunto tenha passado. Possivelmente não dure muito.

― Espero que não. ― Pitt acariciou suavemente a mão de sua cunhada, mas não achava que o caso fosse ser breve ou fácil. As investigações não eram agradáveis, e muito poucas vezes as coisas tornavam a ser como antes. Sempre havia sofrimento.

Pitt visitou várias residências do Paragon Walk e achou em casa ao Algernon Burnon, lorde e lady Dilbridge, os anfitriões da festa, à senhora Selena Montague, uma viúva muito atraente, e às senhoritas Horbury. Às cinco e meia abandonou o tranqüilo e senhorial bairro e retornou à desmantelada delegacia de polícia. As sete estava frente ao portal de sua casa. A fachada era estreita e estava em bom estado, mas não tinha meio― fio para as carruagens de cavalos nem árvores, só um degrau impoluto e uma grade de madeira que conduzia ao jardim traseiro.

Abriu a porta com sua chave e, na hora, a borbulha de prazer que lhe subia cada vez que entrava em casa estalou calidamente em seu interior, e se deu conta de que estava sorrindo. A violência e o perigo se desvaneceram.

― Charlotte?

Ouviu ruído de vasilhas e seu sorriso se ampliou. Avançou pelo corredor e se deteve na soleira da cozinha. Charlotte estava de joelhos sobre o impecável chão, vendo como as tampas de duas caçarolas se afastavam rodando por debaixo da mesa. Vestia um traje simples e um avental branco, e seu brilhante cabelo mogno escapava do coque em largos fios. Ergueu a vista e fez uma careta enquanto se jogava inutilmente sobre as tampas. Pitt se inclinou e as recolheu com uma mão ao mesmo tempo em que estendia a outra. Charlotte a pegou e Pitt a atraiu para si. Enquanto ela relaxava em seus braços, deixou as tampas sobre a mesa. Era agradável senti-la, perceber o calor de sua pele e de sua boca.

― A quem esteve seguindo hoje? ― perguntou Charlotte instantes depois.

Pitt lhe afastou o cabelo do rosto.

― Assassinato ― disse suavemente ― e violação.

― OH. — O rosto de Charlotte se retesou, possivelmente por causa da lembrança. — Sinto muito.

O melhor seria parar aí, ocultar-lhe que se tratava de alguém a quem Emily conhecia, que vivia na mesma rua, mas cedo ou tarde devia averiguar isso. Sem dúvida Emily o teria contado. Além de tudo, era possível que dessem logo com o assassino... possivelmente um mordomo ébrio.

Contudo, Charlotte já tinha reparado na hesitação de seu marido.

― Quem era? ― perguntou. Sua primeira hipótese foi errônea. — Tinha filhos?

Pitt pensou na pequena Jemima, que dormia no quart de cima.

Ela notou uma sensação de alívio no rosto de seu marido.

― Quem, Thomas? ― insistiu.

― Uma moça, uma moça...

Charlotte sabia que isso não era tudo.

― Quer dizer uma menina?

― Não... tinha dezessete anos. Sinto muito, querida, mas vivia no Paragon Walk, muito perto da casa do Emily. Vi sua irmã esta tarde. Envia-lhe um abraço.

Lembranças do Cater Street, do medo que finalmente envolveu tudo, tocando e manchando a todos, afloraram à consciência do Charlotte. Mencionou o primeiro temor que a embargou.

― Não acreditará que George... tem algo que ver com isto, não é verdade?

Pitt a olhou surpreso.

― Por Deus, claro que não!

Charlotte retornou a pia. Cravou bruscamente as batatas para ver se estavam cozidas e duas delas se partiram. Teria desejado blasfemar, mas não podia fazê-lo diante do Pitt. Se ainda a considerava uma dama, manteria sua ilusão. Sua forma de cozinhar era suficiente obstáculo que superar. Ainda estava bastante apaixonada por seu marido para desejar sua admiração. Sua mãe lhe tinha ensinado a governar competentemente a casa e a procurar que todas as tarefas se realizassem à perfeição, mas jamais previu que Charlotte se casaria com alguém de classe tão inferior que se veria obrigada a encarregar-se pessoalmente da cozinha.

Tinha sido uma experiência não isenta de dificuldades. Pitt, dito seja em sua honra, poucas vezes se riu dela e só em uma ocasião perdeu os estribos.

— O jantar está quase pronto ― disse, transladando a caçarola a pia. — Emily está bem?

― Isso parece. ― Pitt se sentou na borda da mesa. — Apresentou a sua tia Vespasia. Conhece― a?

― Não. Nós não temos nenhuma tia Vespasia. Será tia do George.

― Pois deveria ser tua tia ― disse ele com um sorriso. — É exatamente como você será quando tiver setenta ou oitenta anos.

Atônita, Charlotte soltou a caçarola e se voltou para o Pitt. O corpo de seu marido recordava a um pássaro enorme incapaz de voar, com as abas da capa pendendo em qualquer parte.

― E não o aterrou a idéia? ― perguntou. — Me surpreende que tenha voltado para casa!

― É uma mulher maravilhosa― riu Pitt. — Me fez sentir como um completo idiota. Dizia exatamente o que pensava sem pestanejar.

― Eu não o faço sem pestanejar! ― defendeu-se Charlotte. — Não posso evitar, mas depois sinto remorsos.

― Não os sentirá quando tiver setenta anos.

― Desça da mesa. Necessito de espaço para pôr a verdura.

Pitt obedeceu.

― A quem mais viu? ― continuou Charlotte na sala de jantar, quando já tinham começado a jantar. — Emily costuma me contar coisas da gente do Paragon Walk, mas nunca estive ali.

― Realmente quer que lhe fale do assunto?

― É claro que sim! ― Que necessidade tinha de perguntar. — Se uma moça foi violada e assassinada perto de casa do Emily, tenho que saber tudo. Não será Jessamyn... não sei o que?

― Não. Por quê?

― Emily não a suporta, mas sentiria falta dela se não existisse. Acredito que sua aversão por o Jessamyn constitui um de seus principais entretenimentos.

Embora não deveria falar assim de uma pessoa que pôde ser assassinada.

Pitt estava rindo para si mesmo, e ela sabia.

― Por que não? ― perguntou ele.

Charlotte não sabia, mas tinha certeza de que sua mãe diria o mesmo. Optou por não responder. O ataque era a melhor defesa.

― Então quem era? Por que me tenta ocultar isso?

― Era a cunhada de Jessamyn Nash, uma moça chamada Fanny.

De repente, a polidez parecia deslocada.

― Pobre criatura ― respondeu quedamente. — Espero que não tenha sofrido e que tudo tenha acontecido com rapidez.

― Equivoca-se. Temo que foi violada e depois apunhalada. Conseguiu chegar até sua casa e morreu nos braços de Jessamyn.

Presa de um súbito enjôo, Charlotte deteve o garfo cheio de carne à altura da boca.

Pitt o viu.

― Por que demônio tem que perguntar quando estamos jantando? ― replicou irritado. — Todo dia morre gente. Não pode fazer nada a respeito. Come.

Charlotte ia dizer que isso não arrumava as coisas, mas percebeu que Pitt estava afetado. Provavelmente seu marido tinha visto o corpo da moça ― era parte de seu trabalho ― e falado com as pessoas que a queriam. Para Charlotte não era mais que um ser imaginário, e a imaginação podia rechaçar-se, mas a lembrança não.

Levou o garfo à boca enquanto observava o seu marido. Seu rosto estava sereno e o aborrecimento lhe tinha passado, mas tinha os ombros tensos e tinha esquecido de servir-se do molho que ela tinha preparado com tanto esmero. Tão afetado estava pela morte da moça? Ou se tratava de algo pior, o temor de que a investigação desvelasse coisas ainda mais inquietantes, próximas a ele, algo sobre George?

 

No dia seguinte, Pitt foi primeiro à delegacia de polícia, onde Forbes o aguardava com semblante lúgubre.

— Bom dia, Forbes ― saudou Pitt animadamente. — O que acontece?

— O médico forense perguntou por você ― respondeu Forbes. — Tem algo que lhe dizer sobre o cadáver de ontem.

Pitt se deteve.

― Sobre Fanny Nash? Do que se trata?

― Ignoro― o. Não me quis dizer.

― Onde está? ― perguntou Pitt.

Que outra coisa tinha que dizer o médico forense além do que já era evidente? Estava a garota grávida? Era tudo quanto Pitt podia imaginar.

― Saiu para tomar uma xícara de chá. ― Forbes sacudiu a cabeça. — Suponho que hoje retornaremos ao Paragon Walk.

― É claro! ― Pitt sorriu e Forbes olhou-o com tristeza. — Assim poderá dar outra olhada ao estilo de vida da alta sociedade. Interrogaremos a todo o pessoal da festa.

— Lorde e lady Dilbridge?

― Justamente. Mas primeiro irei ver esse médico.

Saiu do escritório e caminhou até o pequeno restaurante da esquina, onde o médico forense, vestido com um elegante traje, achava-se sentado frente a uma xícara de chá. O homem ergueu a vista quando Pitt entrou.

― Chá? ― ofereceu-lhe.

O inspetor tomou assento.

― Nunca tomo o café da manhã. O que tem sobre Fanny Nash?

― Ah. — O médico bebeu um longo gole de chá. — Se trata de um detalhe estranho. Possivelmente não signifique nada, mas achei que devia sabê-lo. A moça tem uma cicatriz na parte inferior da nádega esquerda. Parece bastante recente.

Pitt franziu o sobrecenho.

― Uma cicatriz? E que importância tem isso?

― Provavelmente nenhuma ― respondeu o médico dando de ombros. — Mas tem forma de cruz. Uma linha alongada e outra mais curta que o cruzamento perto do extremo inferior. Muito uniforme, mas não se trata de um corte. ― Levantou a vista. Seus olhos brilhavam. — É uma queimadura.

Pitt permaneceu imóvel.

― Uma queimadura? ― perguntou desconfiado. — Que demônios pôde provocá-la?

― Não sei ― replicou o médico― , assim me ajude. Não tenho vontade nem de pensar.

Pitt abandonou o restaurante perplexo, ignorando se esse novo dado significava algo. Talvez não fosse mais que um acidente perverso e ridículo.

Enquanto isso, devia prosseguir com a penosa tarefa de determinar onde tinham estado todos no momento em que se produziu o assassinato. Já tinha visitado Algernon Burnon, o noivo da Fanny, e o encontrou pálido mas, dadas as circunstâncias, bastante sereno.

Declarou que tinha passado toda a noite em companhia de outra pessoa, mas se negou a desvelar seu nome. Insinuou que era uma questão de honra que Pitt não podia compreender, embora tivesse a delicadeza de não expressar-se com termos tão claros. Pitt não pôde obter nada mais dele e de momento preferiu deixá-lo assim. Se o pobre homem tinha estado desfrutando de uma aventura enquanto violavam a sua noiva, duvidava que estivesse disposto a reconhecê-lo .

Lorde e lady Dilbridge estiveram acompanhados das sete, de modo que ficavam descartados. Em casa das senhoritas Horbury não vivia nenhum homem.

O único criado varão da Selena Montague esteve durante todo esse tempo no refeitório da criadagem ou no aposento auxiliar da cozinha. Isso deixava ao Pitt com três casas mais a visitar e a penosa obrigação de bater à porta dos Nash para falar com o marido do Jessamyn, o meio-irmão da moça assassinada.

Por último, havia a necessidade, pessoalmente desagradável, de pedir ao George Ashworth que explicasse seus movimentos durante o tempo em que se produziu a tragédia. Pitt desejava que George pudesse fazê-lo.

Teria preferido levar a cabo este último interrogatório em primeiro lugar, mas sabia que George não estava disponível a essas horas da manhã. Ainda mais. Pitt abrigava a absurda esperança de descobrir uma pista firme antes desse momento fatídico, algo tão urgente e decisivo que lhe evitasse a necessidade de interrogar George.

Começou pela segunda casa da avenida, o edifício imediatamente contíguo à residência dos Dilbridge. Pelo menos, esta tarefa não lhe era tão desagradável. Os Nash eram três irmãos e se achavam em casa do mais velho, o senhor Afton Nash, que vivia com sua esposa e seu irmão menor, o senhor Fulbert Nash, ainda solteiro.

O mordomo o deixou passar com aborrecimento e resignação, advertindo-o que a família estava tomando o café da manhã e teria que esperar. Pitt lhe agradeceu e quando a porta se fechou, começou a passear pela sala.

Era de estilo tradicional, empolado, e o fazia sentir-se desconfortável. A biblioteca estava repleta de volumes encadernados em couro, colocados em uma ordem tão escrupulosa que parecia que nunca tinham sido abertos. Passou um dedo por cima dos livros para comprovar se havia pó, mas estavam imaculados, mais por obra da criada, pensou, que de um improvável leitor. A escrivaninha continha a coleção habitual de retratos familiares. Nenhum dos retratados sorria, mas era normal. Depois de longo tempo posando, era impossível sorrir. Uma expressão doce era quanto podia obter-se, e neste caso ninguém o tinha conseguido.

Sobre o suporte da lareira pendia um bordado: um olho sinistro totalmente aberto e debaixo, escrito em ponto de cruz, "Deus vê tudo".

Pitt estremeceu e se sentou de costas ao bordado.

Afton Nash entrou e fechou a porta. Alto, próximo à gordura, possuía um rosto de feições fortes e retas. Se não fosse por um leve peso e tensão na boca, teria sido um rosto atraente. Curiosamente, nem sequer era agradável.

― Ignoro o que podemos fazer por você, senhor Pitt ― disse friamente. — A pobre moça vivia com meu irmão Diggory e sua esposa. O bem-estar moral da Fanny era a principal preocupação de ambos. Possivelmente teria sido melhor que a tivéssemos acolhido nós, mas naquele momento nos pareceu uma medida adequada. Jessamyn gosta da alta sociedade mais que nós, e portanto era mais indicada para introduzir Fanny.

Pitt estava acostumado às atitudes defensivas, às declarações de inocência e inclusive de desentendimento. Sempre acabavam aparecendo de uma forma ou outra. Não obstante, esta lhe era particularmente repugnante. Recordou o rosto da moça, tão pouco marcado pela vida; mal tinha começado a viver e já tinha sido sacrificada. Aqui, no desconfortável salão, seu irmão falava de "bem― estar moral" e tratava de exonerar-se de qualquer acusação que pudesse surgir.

― Não se podem "tomar medidas contra o assassinato". ― Pitt ouviu o fio cortante de sua própria voz.

― Mas podem tomar-se medidas contra a violação ― respondeu asperamente Afton. — As jovens de costumes virtuosos não induzem a semelhante final.

― Tem motivos para supor que sua irmã não era de costumes virtuosos? ― viu-se obrigado a perguntar Pitt, embora conhecesse a resposta.

Afton se voltou e olhou ao inspetor com aversão.

― Violaram-na antes de assassiná-la, inspetor. Você sabe tão bem como eu. Rogo-lhe que não me venha com evasivas, repugna-me. Empregaria melhor seu tempo se falasse com meu irmão Diggory. Tem gostos curiosos. Nunca achei que poderia infectar a sua irmã. Mas também é possível que me equivoque. Possivelmente algum de seus mais insanos amigos perambulava pelo Paragon Walk aquela noite. Posso ter a certeza, inspetor, de que fará todo o possível por averiguar quem esteve exatamente nesta rua aquela noite?

― Certamente ― afirmou Pitt com análoga frieza. — Determinaremos, dentro do possível, o paradeiro de toda a gente da avenida.

Afton arqueou ligeiramente as sobrancelhas.

― Duvido que os residentes do Paragon Walk sejam de interesse. A criadagem talvez sim, embora o duvide. Eu, por exemplo, sou muito exigente na hora de escolher a meus criados varões, e não permito que minhas criadas tenham pretendentes.

Pitt sentiu pena pelos criados e pelas vidas tristes e apagadas que deviam levar.

― Uma pessoa pode não estar implicada, e entretanto ter visto algo importante ― indicou. — Qualquer observação, por pequena que seja, pode ser útil.

Afton assegurou, grunhindo, que esse não era seu caso, e tirou da manga um miolo inexistente.

― Aquela noite estive em casa. Passei quase todo o serão na sala de bilhar com meu irmão Fulbert. Não vi nem ouvi nada.

Pitt não podia dar-se por vencido tão facilmente. Não devia permitir que sua antipatia pelo o homem o fizesse desistir. Tinha que tentar.

― Talvez percebesse algo com antecedência, durante as últimas semanas... ― começou de novo.

— Se tivesse percebido, inspetor, não acredita que teria feito algo a respeito? — o grosso nariz do Afton se contraiu bruscamente. — Apesar de como é desagradável para todos que semelhante acontecimento tenha ocorrido em nosso bairro, Fanny era minha irmã.

― Compreendo, senhor... mas talvez, se olhe para trás, consiga recordar algo.

Afton meditou um instante.

― Não me ocorre nada ― respondeu com cautela. — Mas se de agora em diante acontecer algo, tenha a certeza de que o farei saber. Algo mais?

― Sim. Desejaria falar com o resto de sua família.

— Se os membros de minha família tivessem percebido algo estranho, me teriam contado ― replicou Afton com impaciência.

― Em qualquer caso, eu gostaria de falar com eles ― insistiu Pitt.

Afton cravou os olhos no inspetor. Era um homem alto e seus olhares se encontraram. Pitt tratou de não fraquejar.

― Suponho que é necessário ― cedeu finalmente Afton, com semblante azedo. — Não desejo dar um mau exemplo. Cada qual tem que saber reconhecer seus deveres. Rogo-lhe que trate a minha esposa com a máxima delicadeza.

― Obrigado, senhor. Farei quanto esteja em minha mão para não angustiá-la.

Phoebe Nash era o extremo oposto do Jessamyn. Se alguma vez houve fogo nela, estava há muito tempo extinto. Vestia-se de negro e nenhuma maquiagem cobria seu pálido rosto. Em outro tempo talvez houvesse possuído um aspecto agradável, mas agora era a viva imagem da aflição. Tinha os olhos ligeiramente avermelhados, o nariz torcido e o cabelo penteado com certo desalinho.

Negando-se a tomar assento, permaneceu de pé, olhando ao Pitt com as mãos fortemente entrelaçadas.

― Temo que não poderei ajudá-lo , inspetor. Nem sequer estava em casa aquela noite. Fui visitar uma parenta anciã que se sentia indisposta. Se o desejar, posso lhe dar seu nome.

― Não duvido de sua palavra, senhora ― disse Pitt, sorrindo. Sentia pena daquela mulher. Desejava aliviá-la, mas não sabia como. Pertencia a essa classe de mulheres que Pitt não compreendia. Guardava os sentimentos em seu interior, sob controle. As boas maneiras eram tudo. — Me perguntava se talvez a senhorita Nash ― começou― , pois era sua cunhada, confiou-lhe em alguma ocasião que alguém lhe tinha prestado uma atenção indevida ou feito insinuações ofensivas, ou inclusive que tinha visto um estranho rondando pelo bairro. Ou talvez você viu alguém.

Phoebe fez um nó com suas mãos e olhou horrorizada ao inspetor.

― Céu santo! Não pensará que esse homem ainda anda por aqui?

Pitt vacilou. Desejava aliviar o temor da mulher, emoção que conhecia bem, mas sabia que era absurdo mentir.

— Se se tratar de um vagabundo, tenho certeza de que já teria fugido ― disse, optando por uma verdade pouco comprometedora. — Só um louco permaneceria pelos arredores do Paragon Walk sabendo que a polícia o busca.

A mulher relaxou visivelmente, permitindo-se inclusive sentar-se na beira de uma volumosa poltrona.

― Tranquiliza-me. Não entendo como não me ocorreu antes. ― Depois, Phoebe enrugou suas finas sobrancelhas. — Mas não recordo ter visto nenhum estranho rondando pela avenida, pelo menos não desse tipo de que você fala, pois do contrário teria ordenado ao lacaio que o expulsasse.

Pitt só conseguiria aterrorizá-la e confundi-la se tentasse explicar que o aspecto dos violadores não diferia necessariamente do das demais pessoas. Os crimes tinham o dom de surpreender às pessoas, como se não se tratasse de meros atos nascidos do egoísmo, avareza ou ódio levados a proporções exageradas, infâmias repentinamente desbocadas. Phoebe esperava que o criminoso fora um ser facilmente reconhecível, diferente, diferente da gente que conhecia.

Teria sido absurdo e doloroso tratar de mudar esse parecer. Pitt se perguntou por que depois de tantos anos seguia tendo essa sensação, embora cada vez lhe afetasse menos.

― Talvez a senhorita Nash ― sugeriu Pitt — lhe contou que alguém a tinha incomodado ou feito insinuações indecorosas.

Phoebe nem sequer teve o trabalho de pensar.

― Absolutamente! Se me tivesse contado algo assim, teria informado a meu marido e ele teria tomado medidas pertinentes. — seus dedos giravam sobre o regaço ao redor de um lenço e já tinham esmigalhado a renda.

Pitt podia imaginar as medidas que Afton Nash teria tomado. Contudo, não podia render-se.

― Não expressou nenhuma inquietação? Não mencionou uma nova amizade?

― Não ― respondeu Phoebe, sacudindo a cabeça.

Pitt suspirou e se levantou. Não obteria nada mais dela. Pressentia que se a atemorizava com a verdade, ela, cegada pelo medo, limitar-se-ia a desterrar a de sua mente e a destruir todo raciocínio ou lembrança.

― Obrigado, senhora. Sinto havê-la alterado com este desagradável assunto.

Phoebe esboçou um sorriso um pouco forçado.

― Tenho certeza de que era necessário, do contrário não o teria feito, inspetor. Imagino que quererá ver meu cunhado, o senhor Fulbert Nash, mas receio que ontem à noite não veio a casa. Se voltar esta tarde, possivelmente já tenha retornado.

― Obrigado, assim o farei. Por certo ― acabava de recordar a peculiar queimadura mencionada pelo médico forense― , sabe se a senhorita Nash tinha sofrido uma queimadura recentemente? ― Não queria descrever a localização da ferida, se pudesse evitá-lo , pois esse detalhe perturbaria à senhora Nash.

― Uma queimadura? ― disse ela, enrugando a testa.

― Uma queimadura pequena. ― Pitt descreveu a forma tal como o tinha feito o médico forense. — Mas bastante profunda, e recente.

Para surpresa do Pitt, o rosto do Phoebe perdeu toda sua cor.

― Uma queimadura? ― repetiu com voz afogada. — Não, não sei.

—Possivelmente... possivelmente... ― tossiu― se tinha interessado pela cozinha?

— Será melhor que pergunte a minha cunhada. Não... não tenho nem idéia, seriamente.

Pitt estava perplexo. Phoebe Nash se mostrou simplesmente horrorizada. Acaso conhecia o lugar da ferida e sentia sobressalto porque ele era homem e, além disso, um ser imensamente inferior dentro de sua escala social?

Pitt não a compreendia o suficiente para saber.

― Obrigado, senhora ― disse com voz baixa. — Provavelmente seja um detalhe sem importância. ― E com corteses murmúrios, o mordomo o conduziu até a saída, devolvendo-o à luz e ao sol da manhã.

Pitt permaneceu imóvel uns minutos antes de decidir a quem visitar a seguir. Forbes se achava em algum lugar da avenida falando com os criados, saboreando a importância que lhe conferia a investigação de um assassinato e dando rédea solta a sua curiosidade sobre o funcionamento das casas de uma classe social que superava todas suas experiências anteriores. Essa noite seria uma mina de informação, a maioria inútil, mas mesmo assim possivelmente achariam uma observação que conduzisse a outra... e a outra. Sorriu enquanto pensava nisso, e um ajudante de jardineiro que passava frente a ele o olhou com assombro, mas também com certo respeito, pois tinha diante a alguém que obviamente não era um cavalheiro e que, não obstante, podia permanecer ocioso em meio da rua e sorrir para si mesmo.

Finalmente, Pitt bateu à casa do meio, onde vivia tal Paul Alaric, e lhe comunicaram cortesmente que monsieur Alaric não chegaria até a noite, mas que se o inspetor voltasse então, monsieur não teria inconveniente em recebê-lo .

Não tinha meditado ainda a respeito do que pensava dizer ao George, de modo que estacionou o assunto e caminhou até a casa contígua, onde vivia o senhor Hallam Cayley.

Cayley, apesar de estar ainda tomando o café da manhã, recebeu o inspetor e lhe ofereceu uma xícara de café carregado que Pitt rechaçou. Preferia chá, e, além disso, aquele café parecia tão espesso como a água oleosa dos moles de Londres.

Cayley sorriu amargamente e se serviu de outra xícara. Era um homem de aparência agradável de um pouco mais de trinta anos, mas suas excelentes feições, algo compridas e magras, viam-se malogradas por uma cútis extremamente picada de varíola, e uma sombra de mau gênio, certa frouxidão, começava a hospedar-se em torno de sua boca. Nessa manhã tinha os olhos inchados e um pouco sanguinolentos. Pitt o atribuiu a uma intensa entrevista com a garrafa a noite anterior, possivelmente com várias garrafas.

— O que posso fazer por você, inspetor? ― começou Cayley e, adiantando-se ao Pitt, acrescentou― : Não sei nada. Estive na festa dos Dilbridge quase toda a noite. Todos o dirão.

Pitt se derrubou. Todo mundo ia ser capaz de dar conta de si mesmo? Não, isso era absurdo. Não importava, certamente o culpado era um criado que, depois de ter bebido em excesso, avivou-se e depois, quando a garota começou a gritar, assustou-se e a apunhalou para fazê-la calar, talvez sem intenção de matá-la. Provavelmente Forbes acharia a resposta. Pitt se dedicava a interrogar aos senhores simplesmente porque alguém tinha que fazê-lo , por uma questão de forma, para que soubessem que a polícia estava fazendo seu trabalho. E melhor ele que Forbes, com sua torpe língua e sua desmedida curiosidade.

― Recorda com quem estava ao redor das dez da noite, senhor?

― De fato tive uma bronca com o Barham Stephens. ― Cayley se serviu de mais café e sacudiu irritado a jarra ao ver que só enchia meia xícara. Deixou-a bruscamente sobre a mesa, fazendo vibrar a tampa. — O estúpido se negou a reconhecer que tinha perdido nas cartas. Não suporto aos maus perdedores. Ninguém os suporta. ― Contemplou seu prato coberto de migalhas.

― Discutiram às dez? ― perguntou Pitt.

Cayley continuou olhando o prato.

― Não, um pouco antes, e foi algo mais que uma discussão. Foi uma verdadeira bronca. ― De repente levantou a vista. — Embora talvez você não o chamasse assim. Não houve gritos. Pode ser que Stephens não se comporte como um cavalheiro, mas ambos somos suficientemente corteses para não armar um escândalo em presença de senhoras. Saí a dar um passeio para me tranqüilizar.

― Pelo jardim?

Cayley desceu a vista até o prato.

― Sim. Não vi nada, se isso for o que quer saber. Havia gente por toda parte. Os Dilbridge têm uns gostos sociais algo peculiares. Mas imagino que tem a lista de convidados. Provavelmente acabará descobrindo que foi algum criado contratado para a festa. Sabe, há pessoas que costumam alugar o landó, sobre tudo se vier unicamente para a temporada social. ― De repente seu rosto se tornou grave e olhou ao Pitt sem pestanejar. — Francamente, não tenho nem idéia de quem pôde assassinar a pobre Fanny. ― Uma estranha dor, mais sutil que a mera compaixão, desencaixou levemente suas feições. — Conheço quase todos os homens do Paragon Walk. Não digo que todos sejam de meu agrado, mas resisto a acreditar que algum seja capaz de cravar uma faca a uma mulher, a uma criatura como Fanny. ― Cayley afastou o prato com asco. — Imagino que pôde fazê-lo o francês, um tipo estranho, e uma faca é uma coisa muito francesa. Mas tampouco me parece provável.

— O assassinato, geralmente, não o é ― observou suavemente Pitt.

Então sua mente se deslocou aos subúrbios superpovoados que se erigiam atrás das ruas augustas, onde o crime era o caminho para a sobrevivência, onde os meninos aprendiam a roubar assim que começavam a andar e onde só os ardilosos ou os fortes alcançavam a idade adulta. Mas esse mundo nada tinha que ver com o Paragon Walk. Para os residentes dali era um mundo estranho, alheio, e, naturalmente, comportavam-se como se não existisse.

Cayley permanecia imóvel, imerso em alguma barafunda de emoções íntimas.

Pitt aguardou. Fora, as rodas dos Carros rangiam sobre o cascalho até desaparecer.

Ao fim, Cayley levantou a vista.

― Quem demônios poderia querer fazer isso a uma criatura inofensiva como Fanny? ― perguntou sossegadamente. — Maldição, não tem sentido!

Pitt carecia de respostas. Endireitou-se.

― Ignoro-o, senhor Cayley. Provavelmente Fanny reconheceu ao violador e este percebeu. Mas por que decidiu atacá-la a princípio, só Deus sabe.

Cayley apoiou um punho tenso e duro sobre a mesa, surdo mas tremendamente potente.

― Ou o diabo! ― Agachou a cabeça e não voltou a levantá-la, nem sequer quando Pitt se dirigiu à porta e a fechou atrás de si.

Fora, o sol era quente e diáfano, os pássaros tagarelavam nos jardins de uma parte a outra da avenida, e em algum lugar além da curva os cascos de um cavalo se afastavam sacolejando.

Pitt acabava de presenciar a primeira amostra de dor pela Fanny, e embora lhe fosse pesaroso, como um aviso de que o mistério era superficial e a tragédia real ― que muito depois de que todos soubessem quem tinha matado à moça e por que, ela continuaria morta― , sentia-se aliviado.

Foi a casa do Diggory Nash. Era meio da tarde quando já não pôde adiar por mais tempo sua visita à Emily e George. Não tinha averiguado nada que lhe permitisse evitar a pergunta. Diggory Nash tampouco tinha sido de muita ajuda.

No dia da tragédia estava fora de casa, jogando, ou pelo menos isso disse, em uma festa privada, mas se negou a revelar os nomes de seus companheiros de jogo.

Pitt ainda não estava preparado para insistir.

Agora tinha que ver o George. Não fazê-lo seria tão revelador e, por conseguinte, tão ofensivo como qualquer pergunta que pudesse lhe formular.

Vespasia Cumming-Gould estava tomando o chá com Emily e George quando Pitt foi anunciado. Emily respirou fundo e pediu à criada que o fizesse entrar. Vespasia olhou severamente sua sobrinha. Certamente, a moça levava o espartilho muito ajustado para o avançado de sua gravidez. A vaidade era desejável em sua justa medida, mas em uma mulher grávida não cabia absolutamente. Quando surgisse a ocasião lhe diria o que, aparentemente, sua mãe tinha esquecido de lhe dizer. Ou acaso a pobre garota estava tão apaixonada pelo George, e tão insegura de seu afeto, que ainda lutava por atrair sua atenção? Se Emily tivesse gozado de uma melhor educação, teria aprendido a aceitar as debilidades dos homens e a estar à altura das circunstâncias. Então teria podido tratar o assunto com indiferença, atitude que sem dúvida seria mais satisfatória.

E agora aquela extraordinária criatura, o inspetor de polícia, entrava no salão, todo braços e pernas e abas, com o cabelo, ao igual à bucha da criada, caindo desordenadamente.

― Boa tarde, senhora ― saudou Pitt.

― Boa tarde, inspetor ― respondeu Vespasia, lhe estendendo a mão sem levantar-se.

Pitt se inclinou e a roçou com os lábios. Era um gesto ridículo vindo de um policial que, além de tudo, era comparável a um lojista, mas ele o fez sem o menor ápice de acanhamento e inclusive com certa finura. Não era tão torpe como parecia. Uma criatura realmente estranha, pensou Vespasia.

― Por favor, Thomas, sente-se ― disse Emily, e agitando a campainha acrescentou― : Pedirei que sirvam mais chá.

— O que quer saber desta vez? ― inquiriu Vespasia. Era claro que não se tratava de uma visita de cortesia.

Pitt se voltou ligeiramente para olhá-la. Embora possuísse uma simplicidade incomum, Vespasia não o achava desagradável. Seu rosto refletia uma grande inteligência e um maior senso de humor de que tinha observado na gente do Paragon Walk, salvo possivelmente aquele francês extremamente elegante pelo qual todas as mulheres perdiam a cabeça. Mas esse não podia ser o motivo pelo qual Emily ajustava tanto o espartilho. Ou sim?

A resposta do Pitt interrompeu as elucubrações da Vespasia.

― Não pude ver lorde Ashworth em minha primeira visita, senhora.

Claro. Aquele infeliz tinha que ver o George. Do contrário sua presença seria desconjurada.

― Compreendo ― concordou ela. — Imagino que quererá saber onde esteve.

― Sim, por favor.

Vespasia se voltou para o George, que estava sentado de lado sobre o braço de uma poltrona. Tomara se sentasse como era devido, mas nem de menino o tinha conseguido. Sempre inquieto, inclusive sobre o cavalo. Graças a Deus tinha boas mãos, herdadas de sua mãe. Seu pai era um idiota.

― Bem! ― exclamou bruscamente Vespasia, voltando-se para seu sobrinho. ― Onde estava, George? Aqui certamente não!

― Estava fora, tia Vespasia.

― Isso é evidente! ― replicou ela. — Onde?

― Em meu clube.

Algo no modo de sentar-se do George a incomodava e a fez desconfiar de sua resposta. Não mentia, mas a resposta parecia incompleta. Soube pela forma como seu sobrinho removeu ligeiramente o traseiro. Seu pai fazia exatamente o mesmo de menino quando descia à sala do mordomo para provar o Porto. O fato de que o mordomo bebesse a maior parte do licor pouco importava.

― Tem vários clubes ― replicou secamente Vespasia. — Em qual esteve nesse dia? Quer que o senhor Pitt percorra todos os clubes de cavalheiros de Londres perguntando por você?

George se ruborizou.

― Não, claro que não ― disse. — Estive no Whyte, acredito, a maior parte da noite. Teddy Aspinall estava comigo, embora duvide que se fixasse na hora mais que eu. Não obstante, pode perguntar-lhe se não houver outro remédio. ― Girou o torso para olhar ao Pitt. — Embora preferisse que não o fizesse. Estava bastante bêbado e duvido que possa recordar algo daquela noite. Colocar-lhe-ia em uma situação grave. Sua esposa é filha do duque do Carlisle e bastante afetada.

O velho duque do Carlisle tinha morrido e, em qualquer caso, Daisy Aspinall estava tão acostumada às bebedeiras de seu marido como antigamente o esteve às de seu pai. Contudo, Vespasia se absteve de mencioná-lo. Mas por que George não queria que Pitt falasse com o Teddy Aspinall? Inquietava-lhe que deixasse cair que era seu cunhado? Isso enfureceria ao George, mas no fim de contas uma pessoa não era responsável pelos gostos peculiares de seus familiares, desde que levasse o assunto com discrição. E até agora Emily tinha sido absolutamente discreta sem ser, não obstante, desleal a sua irmã. Vespasia admitiu sua crescente curiosidade por essa irmã que nunca tinha visto. Por que Emily não a convidava alguma vez? Se eram irmãs, com certeza a moça tinha recebido uma educação aceitável. Emily sabia comportar-se como uma dama. Só alguém com a vasta e sutil experiência da Vespasia seria capaz de perceber que no fundo não o era.

Perdeu parte da conversa. Tomara não estivesse ficando surda! Não suportaria estar surda. Não poder ouvir o que a gente dizia era pior que ser enterrada viva.

—... hora chegou a casa? ― concluiu Pitt.

George enrugou a frente. Vespasia tinha visto essa mesma expressão quando de menino resolvia os problemas de aritmética. Costumava mordiscar a ponta dos lápis. Um costume repugnante. Ela tinha aconselhado à mãe que as inundasse em aloé, mas a compassiva mulher se opôs.

― Receio que não olhei o relógio ― respondeu George depois de uma pausa. — Acredito que era bastante tarde. Não quis incomodar ao Emily.

― E seu valete? ― inquiriu Pitt.

― Ah... sim ― George parecia indeciso. — Duvido que o recorde. Dormiu em meu quarto de vestir e tive que despertá-lo. — seu rosto se iluminou. — Por conseguinte, devia ser bastante tarde. Lamento não poder ajudá-lo. Aparentemente, me achava a várias milhas de distância no momento chave. Não vi nada.

― Não foi convidado à festa dos Dilbridge? ― perguntou assombrado Pitt. — Ou acaso preferiu não ir?

Vespasia olhou ao inspetor. Certamente era uma pessoa muito imprevisível. Sentou-se no sofá, abrangendo mais da metade do espaço com todo seu desalinho e nenhuma de suas roupas parecia se encaixar adequadamente. Um problema de pobreza, sem dúvida. Em mãos de um bom alfaiate e um bom barbeiro aquele homem poderia adquirir um aspecto bastante aceitável. Contudo, havia nele uma energia contida pouco decorosa. Dava a impressão de que ia pôr-se a rir em qualquer momento inoportuno. De fato, e pensando-o bem, o homem era bastante interessante. Era uma lástima que tivesse sido preciso um assassinato para trazê-lo até ali. Em outra circunstância teria constituído um verdadeiro alívio frente aos tediosos achaques da Eliza Pomeroy, os excessos de lorde Dilbridge narrados pelo Grace Dilbridge, o último vestido do Jessamyn Nash, a atual confusão da Selena Montague ou a decadência da civilização observada pelas senhoritas Horbury e lady Tamworth. A única coisa divertida era a rivalidade entre o Jessamyn e Selena por atrair ao arrumado francês, mas até agora nenhuma tinha feito progressos, pelo menos que ela soubesse. E o teria sabido. Que sentido tinha fazer uma conquista se não podia contar-se às amigas, a ser possível uma por uma e na mais estrita confiança? O êxito sem inveja era como os caracois sem molho... e, como toda mulher culta sabe, o molho o é tudo!

― Preferi não ir ― disse George franzindo o sobrecenho. Tampouco ele reparou na importância da pergunta. ― Não era o tipo de festa que tivesse desejado levar Emily. Os Dilbridge têm alguns... alguns amigos de gostos decididamente vulgares.

— Seriamente? ― perguntou Emily surpreendida. — Grace Dilbridge parece uma mulher extremamente dócil.

― E o é ― disse Vespasia com impaciência. — Não é ela quem redige a lista de convidados, e não porque eu ache que poria reparos em fazê-la. Pertence a essa classe de mulheres a quem agrada sofrer. E ela tem feito desse sofrimento uma profissão. Se Frederick se comportasse corretamente, Grace não teria nada do que falar. É a única coisa que lhe confere importância, e a assumiu.

― Isso é terrível! ― protestou Emily.

― Não, não o é ― contradisse Vespasia. — Ela é absolutamente feliz, mas sua vida é muito tediosa. ― voltou-se para o Pitt. — Não me cabe a menor duvida de que achará seu assassino entre os convidados do Frederick Dilbridge ou entre os criados. Até as pessoas mais reprováveis podem conduzir um landau de dois cavalos com habilidade. ― Suspirou. — Lembro que meu pai tinha um cocheiro que bebia como um cossaco e ia com todas as garotas do povoado, mas era um gênio conduzindo. Tinha as melhores mãos do sul da Inglaterra. Ao final, um guarda-florestal o matou com um tiro. Jamais se soube se foi um acidente.

Emily olhou ao Pitt. A angústia tinha apagado o sorriso de seus olhos.

― Ali o achará, Thomas ― disse fartamente. — Ninguém do Paragon Walk faria uma coisa assim!

Pitt ainda dispunha de tempo para entrevistar ao Fulbert Nash, o último irmão, e teve a fortuna de encontrá-lo em casa pouco antes das cinco. A julgar por sua expressão, Fulbert lhe estava esperando.

― De modo que você é o policial? ― Olhou-lhe de cima abaixo com visível curiosidade, como alguém que observa um novo invento que não pretende adquirir.

― Boa tarde, senhor ― disse Pitt, com maior tensão do que a desejada.

― OH, boa tarde, inspetor ― respondeu Fulbert, imitando vagamente o tom. — Imagino que veio por causa de Fanny. Pobre criatura. Quer conhecer a história de sua vida? É pateticamente breve. Jamais fez nada digno de atenção e duvido que alguma vez o tenha feito. Nada em sua vida foi tão memorável como sua morte.

A ligeireza do moço irritou ao Pitt, quem sabia, não obstante, que a pessoa estava acostumada ocultar a dor que não podia suportar fingindo indiferença ou inclusive brincando.

― Ainda não tenho motivos, senhor, para supor que Fanny foi algo mais que uma vítima fortuita, de modo que por agora a história de sua vida não requer investigação. Preferiria que me contasse onde esteve você aquela noite, e se viu ou ouviu algo que pudesse nos ser de ajuda.

― Estive aqui ― respondeu Fulbert arqueando tenuemente as sobrancelhas.

O jovem se parecia mais com Afton que com Diggory, pois possuía algo da expressão vagamente arrogante do primeiro e traços que poderiam ser atraentes, mas que não o eram. Diggory, por sua parte, não estava tão bem conformado, mas possuía uma irregularidade agradável, umas sobrancelhas espessas e escuras que refletiam caráter, um ar, em geral, mais quente.

― Toda a noite ― acrescentou Fulbert.

― Só ou acompanhado? ― perguntou Pitt.

Fulbert sorriu.

― Não lhe disse Afton que estivemos jogando bilhar?

― É certo, senhor?

― Não, de fato não o é. Afton é vários centímetros mais alto que eu, como imagino terá observado. Irrita-lhe a idéia de não poder me derrotar, e Afton em um ataque de fúria é mais do que posso suportar.

― Por que não se deixa ganhar? ― A resposta parecia óbvia.

Fulbert abriu seus olhos azul pálido de par em par. Os dentes eram pequenos e regulares, muito pequenos para a boca de um homem.

― Porque faço armadilha, e meu irmão jamais averiguou como. É uma das poucas coisas que faço melhor que ele.

Pitt estava um pouco desconcertado. Não compreendia que prazer podia obter-se de uma competição consistente em ver quem enganava melhor. Mas, de qualquer modo, tampouco lhe agradavam os jogos. Em jovem nunca tinha tido tempo para praticá-lo s. E agora era muito tarde.

― Passou toda a noite na sala de bilhar, senhor?

― Não, já disse. Perambulei um pouco por toda a casa, a biblioteca, o piso de cima, a sala do mordomo, e bebi uma taça de Porto, ou duas. ― Sorriu de novo. — O tempo suficiente para que Afton escapasse e violasse a pobre Fanny. Como era sua irmã, poderá acrescentar incesto às acusações contra ele... ― Fulbert observou o semblante do Pitt. — OH, feri sua sensibilidade. Esqueci como são puritanas as classes humildes. Unicamente os aristocratas e os malandros são francos. Mas agora que o penso, possivelmente sejamos os únicos que podemos nos permitir isso. Nós, os aristocratas, somos tão arrogantes que nos acreditamos insubstituíveis, e os malandros, por sua vez, não têm nada a perder. Realmente imagina ao santarrão de meu irmão saindo nas pontas dos pés do bilhar para violar a sua irmã no jardim? Que eu saiba, não foi apunhalada com um pau de bilhar, ou sim?

― Não, senhor Nash ― respondeu fria e claramente Pitt. — A apunhalaram com uma faca longa e afiada.

Fulbert fechou os olhos e Pitt se alegrou de havê-lo ferido por fim.

― É repugnante ― murmurou― Não saí de casa, se for isso o que quer saber. Tampouco vi nem ouvi nada estranho. Mas lhe asseguro que a partir de agora estarei mais atento. Suponho que baralho a hipótese de que o assassino seja um demente. Sabe o que é uma hipótese?

― Sim, senhor, e por agora me limito a recolher provas. É muito cedo para hipótese.

Fulbert sorriu.

― Aposto dois a um que não foi um demente. Certamente que se trata de um de nós com algum segredo oculto, indecente, que finalmente rompeu a pátina civilizada... e a violou. Reconheceu-o e ele teve que matá-la. Examine de perto a avenida, inspetor, nos observe muito atentamente. Passe nos por um coador e nos passe por um pente fino... e verá que parasitas e piolhos que aparecem. ― Sorriu ligeiramente e procurou sem pestanejar o olhar aceso do Pitt. — Acredite-me, surpreender-se-ia do que poderia achar.

Charlotte esteve toda a tarde aguardando com ânsia a volta do Pitt. Uma vez que deitou Jemima para que dormisse a sesta, se descobriu olhando reiteradas vezes o velho relógio marrom da sala de jantar e aproximando-se dele para escutar seu leve tic tac e certificar-se de que ainda funcionava. Era perfeitamente consciente de que seu comportamento era ridículo, pois seu marido nunca retornava antes das cinco, e muitas vezes não antes das seis.

O motivo de sua inquietação era Emily, evidentemente. Emily estava grávida de seu primeiro filho e Charlotte sabia por experiência que os primeiros meses costumavam ser muito difíceis. Não só se sentia uma insegurança natural ante o novo estado, mas também havia as náuseas e as depressões irracionais.

Nunca tinha estado no Paragon Walk. Emily, como é natural, havia convidado-a, mas Charlotte duvidava que o convite fosse realmente sincero. Já de adolescentes, quando Sara ainda vivia e residiam no Cater Street com seus pais, a falta de tato de Charlotte constituía um lastro social. Mamãe lhe tinha encontrado numerosos jovens que lhe convinham, mas Charlotte, a diferença das demais garotas, tinha carecido de ambições que a obrigassem a refrear a língua e tentar impressionar. Emily, evidentemente, queria a sua irmã, mas sabia que não se sentiria cômoda no Paragon Walk. Não podia permitir-se vestimenta adequada e os trabalhos domésticos absorviam todo seu tempo. Não estava a par das fofocas, e as pessoas não demorariam para perceber que sua vida era inteiramente diferente.

Mas agora desejava ir, comprovar por si mesmo que Emily estava bem e que o horrível crime não a tinha atemorizado. Além disso, sua irmã sempre podia ficar em casa ou sair em pleno dia acompanhada de um criado. Mas aí não residia o verdadeiro temor. Charlotte resistia a recordar, a pensar.

Eram mais das seis quando finalmente ouviu a porta. Soltou as batatas que estava penetrando na pia e derrubou o sal e a pimenta sobre o canto da mesa em sua pressa por receber ao Pitt.

― Como está Emily? ― perguntou. — Viu-a? Descobriu quem matou essa garota?

Pitt a estreitou em um forte abraço.

― Não, claro que não. Mal comecei a investigação. E sim, vi ao Emily e está bem.

― Não descobriu nada? ― exclamou Charlotte, saindo do abraço. — Mas pelo menos saberá que George não teve nada que ver, não é verdade?

Pitt se dispôs a responder, mas ela viu a vacilação em seus olhos antes que ele pudesse achar as palavras.

― Não sabe! ― replicou Charlotte com tom acusatório. Foi consciente disso e o lamentou, mas não havia tempo para desculpas. — por que não lhe perguntou onde esteve?

Pitt afastou suavemente a sua mulher e se sentou à mesa.

― Fiz isso ― disse. — Mas ainda não tive tempo de comprovar sua declaração.

― Comprovar? ― Estava muito perto dele. — por quê? Acaso não acredita nele? ― Então compreendeu que estava sendo injusta. Pitt não podia permitir-se acreditar ou deixar de acreditar, e em qualquer caso a credibilidade não era o que ela necessitava, e tampouco Emily. — Sinto muito. ― Acariciou-lhe o ombro e sentiu sua dureza através da capa. Logo retornou a pia e recolheu as batatas. Procurou que sua voz soasse despreocupada, mas surgiu ridiculamente alta. ― Onde disse que esteve?

― Em seu clube. Não recorda quanto tempo esteve ali ou o que outros clubes visitou exatamente.

Com gesto mecânico, Charlotte procedeu a servir em um prato as batatas, a couve e o peixe que tão cuidadosamente tinha assado em molho de queijo, uma receita que tinha aprendido com êxito não fazia muito. Agora observava sua obra prima sem interesse. Era absurdo estar assustada. Talvez George pudesse demonstrar onde tinha estado exatamente todo esse tempo, mas ela tinha ouvido falar dos clubes masculinos, de seus jogos e suas conversas, da gente que bebia sem parar ou inclusive dormia. Que sócio era capaz de recordar quem tinha estado ali em um momento dado ou inclusive em uma noite dada? No que se diferenciava uma noite de outra para poder recordá-la sem hesitações?

Não pensava que George tivesse matado à moça, mas sabia por experiência quão daninha podia ser a suspeita. Se George dizia a verdade e Emily não lhe acreditasse sem hesitações, sentir-se-ia ofendido. Mas se tinha omitido parte da verdade, se tinha deixado algo fora, como um flerte, uma festa amalucada, um excesso na bebida, então se sentiria culpado. Uma mentira conduziria a outra, e Emily estaria cada vez mais confusa e possivelmente ao final acabaria suspeitando de seu marido. A verdade podia estar cheia de coisas desagradáveis. A revelação desses pequenos enganos que faziam à vida mais fácil e lhe permitiam não ver aquilo que preferia não saber podia causar uma dor imprevisível.

― Charlotte ― disse Pitt.

Arrancando o temor de sua mente, Charlotte acabou de encher o prato e o colocou sobre a mesa, diante dele.

― Sim? ― perguntou ela com ar inocente.

― Deixa-o já.

Era impossível enganar ao Pitt sequer com a mente. Pitt podia lhe ler o pensamento com facilidade. Charlotte se sentou à mesa com seu prato.

― Fará o possível por demonstrar que não foi George, não é verdade?

Pitt estendeu uma mão por cima da mesa e acariciou a de sua esposa.

― É claro. Farei todo o possível sem que pareça que suspeito dele.

Charlotte não tinha reparado nesse detalhe. Claro, se perseguisse George em primeiro lugar, só conseguiria piorar as coisas. Emily pensaria... OH, céus, só Deus sabia o que Emily pensaria.

― Irei ver Emily. ― Cravou o garfo em uma batata e a torceu mais do normal, como se já estivesse comendo no Paragon Walk. — Convidou-me várias vezes. ― Começou a pensar qual de seus vestidos era mais apropriado para a ocasião. Se fosse pela manhã, o cinza escuro seria suficiente. A musselina era de qualidade e o corte podia passar embora fosse do ano anterior. — Além de tudo, alguém de nós deve ir, e mamãe está muito ocupada com a enfermidade da avó. Acredito que é uma idéia excelente.

Pitt não respondeu. Sabia que Charlotte estava falando sozinha.

 

Charlotte já tinha decidido exatamente o que desejava fazer, e assim que Pitt se partiu, limpou a cozinha e vestiu Jemima com seu segundo melhor vestido, feito de tecido de algodão e adornado com uma renda que Charlotte tinha recuperado de uma de suas velhas anáguas. Quando ficou preparada, pegou a sua filha nos braços e cruzou a rua tórrida e poeirenta até a casa de frente. Os vidros de uma dúzia de janelas se entreabriram bruscamente, mas Charlotte resistiu a voltar à cabeça e demonstrar que sabia. Fazendo equilíbrios com a Jemima sobre um braço, bateu na porta.

Esta se abriu quase imediatamente e uma mulher miúda e enxuta, vestida com um simples avental de pano, apareceu na soleira.

― Bom dia, senhora Smith ― saudou Charlotte com um sorriso. — Ontem de noite me comunicaram que minha irmã não se encontra bem e achei oportuno lhe fazer uma visita. Possivelmente possa lhe ser de ajuda.

Não desejava mentir até o ponto de insinuar que Emily não tinha a ninguém que a cuidasse, como teria ocorrido em seu caso, mas queria dar a entender que havia certa urgência. Seus sentimentos se contradiziam. Por um lado envergonhava― a estar ante o portal dessa mulher, olhando o humilde vestíbulo e sabendo que Emily, quando caía doente, não tinha mais que tocar a campainha para que acudisse uma criada ou para enviar ao mordomo em busca de um médico. Mas, por outro lado, tinha que dar a impressão de que sua visita era indispensável.

― Importar-lhe-ia cuidar enquanto isso da Jemima?

A senhora Smith sorriu abertamente e estendeu os braços. Jemima duvidou por um instante e retrocedeu, mas Charlotte não tinha tempo para lágrimas nem mimos. Beijou-a fugazmente na face e a entregou à mulher.

― Muito obrigada. Não estarei fora muito tempo, mas se o estado de minha irmã for mais grave do previsto possivelmente não volte até a tarde.

― Não se preocupe, querida. ― A mulher levantou com soltura à pequena e a colocou sobre seu esquálido quadril, tal como tinha feito com tantos fardos e com seus oito filhos, excetuando aos dois que haviam falecido sendo bebês. — Cuidarei dela e lhe darei de comer. Vá ver sua irmã. Espero que não seja nada grave. A culpa de todo a tem este calor. Não é normal.

― Não, não o é ― concordou Charlotte. — Eu prefiro o outono.

― É melhor ir abrigada ― prosseguiu a senhora Smith ― , sobre tudo depois do que alguém ouça. Eu tinha um irmão marinheiro que esteve em lugares terríveis. Anda, vá ver sua irmã, querida. Eu cuidarei da Jemima até sua volta.

Charlotte lhe dedicou um sorriso deslumbrante. Havia-lhe custado muito chegar a sentir-se confortável entre aquela gente, tão diferente das pessoas com as quais se relacionava antes de casar-se. Obviamente, sempre houve gente trabalhadora, mas até então os únicos trabalhadores que Charlotte tinha conhecido pessoalmente eram os criados, tão familiares como o mobiliário ou os quadros da casa, totalmente adaptados aos costumes da família e fáceis de ter em conta ou ignorar. Jamais transladavam sua vida pessoal ao salão ou as quartos de cima. Naturalmente, sabia-se que tinham familiares pelas referências, mas estes não eram mais que nomes ou reputações. Não tinham rosto, e ainda menos ambição, problemas ou sentimentos.

Agora tinha que adaptar-se a eles, aprender a cozinhar, a limpar, a comprar economizando e, sobre tudo, a necessitar e ser necessitada. Os vizinhos o eram tudo durante as longas ausências do Pitt; eram a risada, as vozes, a ajuda quando não podia arrumar-se sozinha. Não tinha criadas a quem chamar, nem babás, só a senhora Smith com seus remédios de anciã e seus anos de experiência. Sua passiva resignação ante o árduo trabalho e as privações, sua submissão, enfureciam ao Charlotte. Entretanto, a paciência da mulher a acalmava, assim como seu bom fazer ante as pequenas crises cotidianas que Charlotte não sabia dirigir.

A princípio, a rua inteira a tinha qualificado de arrogante, de mulher reservada e inclusive fria, e não compreendiam que estava tão coibida como eles. Demoraram perto de dois anos para aceitá-la. Mas o que mais lhe irritava era que essa gente, a sua maneira, era tão afetada como sua mãe e seus amigos, igualmente dada às expressões discretas para disfarçar uma verdade ofensiva, e plenamente consciente das diferenças sociais em todos seus matizes. Charlotte, sem dar-se conta, tinha escandalizado-os com suas opiniões inocentemente vertidas.

O salão de sua mãe ficava muito longe de tudo aquilo. O chá da tarde, as visitas de cortesia, intercâmbio de fofocas, o tentar saber a respeito dos jovens casadouros, dos assuntos sociais e financistas de outros, sempre, é claro, na mais circunloquias das maneiras.

Agora tinha que esforçar-se por recuperar um mínimo de elegância para não envergonhar Emily.

Retornou apressadamente a casa e colocou o traje de musselina cinza com pintas brancas. No ano anterior tinha economizado nos gastos da casa para poder comprá-lo e o corte era tão simples que dificilmente passava de moda. Claro que por isso o tinha escolhido, por isso e para não parecer pretensiosa aos olhos dos vizinhos.

O calor já apertava às dez da manhã quando desceu do táxi no Paragon Walk.

Pagou ao cocheiro, agradeceu-lhe e caminhou lentamente sobre o cascalho até o portal de Emily. Estava decidida a não desviar o olhar, sempre havia alguém que podia vê-la, fosse uma criada que, farta de tirar o pó, sonhava acordada através de uma janela, ou um lacaio ou um cocheiro a caminho de algum recado, já ou ajudante de jardineiro.

A enorme casa parecia um palácio comparada com as de sua rua. Estava concebida para acolher a um regimento completo de criados além do senhor e da senhora, os filhos, e os familiares que iam para a temporada social.

Assim que bateu na porta lhe assaltou o temor de decepcionar ao Emily, de que suas vidas tivessem tomado roteiros tão diferentes desde o Cater Street que se sentissem como perfeitas desconhecidas. Já tinha passado um ano desde o assunto do Callander Square. Estiveram muito unidas então, compartilhando o perigo, o medo e inclusive emoções. Mas aquilo não tinha tido lugar em casa de Emily, entre seus amigos.

Equivocara-se ao acreditar que seu vestido de musselina cinza era adequado para a ocasião. Era insosso e tinha uma costura à altura da prega que indicava que o tinha corrigido. Não achava que suas mãos estivessem vermelhas, mas preferiu não tirar as luvas. Emily teria notado isso logo. Charlotte sempre tinha tido umas mãos impecáveis e estava orgulhosa delas.

A criada abriu a porta e se surpreendeu de ver uma estranha.

― Bom dia, senhora.

― Bom dia. ― Charlotte se manteve erguida e esboçou um sorriso forçado.

Tinha que falar pausadamente. Era absurdo estar nervosa por bater na porta de uma irmã, e ainda por cima uma irmã menor. — Bom dia ― repetiu. — Teria a amabilidade de comunicar lady Ashworth que sua irmã, a senhora Pitt, deseja vê-la?

― OH. ― A moça arregalou os olhos. — É claro, senhora. Entre, por favor. Sua senhoria estará encantada em recebê-la.

Charlotte a seguiu até a sala matutina. Minutos mais tarde, Emily irrompia nela como um torvelinho.

― Charlotte, que alegria voltar a vê-la! ― Jogou seus braços ao pescoço de Charlotte e a estreitou com força. Depois retrocedeu. Percorreu com o olhar o vestido de musselina cinza e olhou de novo ao Charlotte. — Tem bom aspecto. Desejava ir vê-la, mas já terá se informado da tragédia que nos angustia. Com certeza Thomas lhe contou isso tudo. Felizmente, desta vez o assunto não nos afeta. ― Tremeu e sacudiu a cabeça. — Pareço cruel? ― Olhou ao Charlotte com expressão ligeiramente culpada.

Charlotte foi sincera, como sempre.

― Suponho que sim, mas é a verdade e está bem reconhecê-la. As monstruosidades provocam certa emoção quando não nos afetam diretamente. As pessoas comentarão que é um acontecimento atroz e que só a sua menção lhes cria uma angústia inexprimível.

O rosto de Emily se distendeu em um sorriso.

— Me alegro de que esteja aqui. Imagino que é uma irresponsabilidade por minha parte, mas eu adoraria ouvir sua opinião sobre as pessoas da avenida, embora temo que depois já não poderei olhá-las com os mesmos olhos. São todos tão prudentes... Às vezes me aborrecem terrivelmente. Tenho a desagradável sensação de que já não sei pensar com franqueza!

Charlotte uniu seu braço ao do Emily e juntas cruzaram as portas-janelas que davam ao jardim traseiro. O sol esquentava seus rostos sob um céu impoluto.

― Duvido ― respondeu Charlotte. — Sempre foi capaz de pensar uma coisa e dizer outra. Eu, em troca, sou uma ruína social porque não sei fazê-lo.

Assaltada pelas lembranças, Emily riu sufocadamente. Falaram de alguns episódios do passado que naquela época as tinham ruborizado e que agora só constituíam vínculos de alegria e carinho compartilhado.

Entusiasmada, Charlotte quase não recordava o motivo de sua visita, mas a repentina menção de Sarah, sua irmã maior, vítima do verdugo do Cater Street, fez-lhe evocar o terror gerado por aqueles crimes e o corrosivo ar de suspeita que tinham deixado a sua passagem. Nunca tinha sido capaz de agir com sutileza, e ainda menos com Emily, que a conhecia na perfeição. Assim, perguntou sem rodeios como era Fanny Nash. Desejava a opinião de uma mulher. Thomas era ardiloso, mas os homens costumavam passar por cima detalhes sobre as mulheres que para outras mulheres eram evidentes. Quantos homens, tinha visto, enganados por moças que se mostravam vulneráveis, quando Charlotte sabia que no fundo eram tão fortes e duras como o aço!

Os lábios de Emily deixaram de sorrir.

― Pensa jogar de detetives outra vez? ― perguntou com reticência.

Charlotte recordou Callander Square. Naquela ocasião foi Emily quem tinha se feito de investigadora. Inclusive tinha insistido nisso, e houve momentos em que a investigação se converteu em uma espécie de aventura divertida... antes do terrível final.

― Não! ― respondeu Charlotte. — Bom, sim. Interessa-me, não posso evitá-lo. Mas não tenho intenção de ir por aí fazendo perguntas. Seria muito indecoroso e sabe que nunca lhe faria uma coisa assim. Reconheço que às vezes me falta diplomacia, mas não sou estúpida.

Emily se abrandou, provavelmente porque também ela sentia curiosidade por um mistério ainda muito alheio para ser perigoso.

— Sei, me perdoe. Ultimamente estou muito nervosa. ― A referência a seu novo estado a fez ruborizar-se. Ainda não se habituara a ele, mas era um assunto do qual não devia falar. — Fanny era uma moça comum. Para falar a verdade, era a última pessoa no mundo que teria acreditado capaz de provocar semelhante paixão. Imagino que o homem estava fora de si, pobrezinho. OH. ― Apertou os lábios, consciente de seu desacerto. Emily se orgulhava de que, desde que era uma mulher casada, sabia evitar os comentários imprudentes. A influência de Charlotte devia ser contagiosa. — Sei que não deveria me compadecer dele ― retificou. — Mas se realmente estiver louco, significa que não pode evitar. Acredita que Thomas o apanhará?

Charlotte não sabia o que responder. Dizer simplesmente que o ignorava não era uma resposta. O que Emily estava perguntando no fundo era: tinha encontrado Thomas alguma pista dentro ou fora do Paragon Walk?, podiam considerar a tragédia como algo alheio a suas vidas, como uma breve intrusão que pertencia ao passado, como algo na avenida mas que bem podia ocorrer em qualquer lugar pelo qual tivesse passado aquele perturbado?

― É muito cedo para sabê-lo ― contemporizou Charlotte. — Se realmente estiver louco, pode achar-se em qualquer lugar, e como aparentemente escolheu Fanny simplesmente porque ela passava por ali, será muito difícil reconhecê-lo... inclusive quando o acharmos.

Emily olhou fixamente a sua irmã.

― Insinua que é possível que não se trate de um louco?

Charlotte evitou o olhar de sua irmã.

― Como quer que saiba? Disse que Fanny era... comum e nada coquete...

― Certamente. Não era exatamente feia. Mas já sabe, Charlotte, que quanto mais velha me faço mais convencida estou de que a beleza de uma mulher não é tanto uma questão de traços ou cosméticos, como da forma como se comporta e da opinião que tem de si mesma. Fanny se comportava como se fosse feia. Jessamyn, se a olhar friamente, não é tão formosa, mas se comporta como se o fosse. Assim, todo mundo a vê desse modo. Ela acredita e, por conseguinte, nós também acreditamos.

Emily demonstrava uma grande perspicácia ao observar esse detalhe. Charlotte desejou tê-lo sabido quando era uma adolescente e tanto lhe preocupava seu aspecto. Recordou com dolorosa clareza quão desgraçada se sentia aos quinze anos. Sarah e Emily eram muito bonitas, em troca ela se achava feia, todo cotovelos e pés. Já então era a mais alta. Temia que se continuasse crescendo nenhum homem a quereria, a esse passo acabaria olhando por cima de suas cabeças! James Fortescue lhe parecia um jovem muito atraente, mas Charlotte era cinco centímetros mais alta e se via incapaz de dizer uma palavra em sua presença. Fortescue terminou por adorar Sarah.

― Não me escuta! ― protestou Emily.

― Sinto muito. O que dizia?

― Que Thomas esteve interrogando aos homens do Paragon Walk. Inclusive perguntou ao George onde esteve aquela noite.

― É lógico ― disse Charlotte. Acabavam de chegar ao ponto que mais tinha temido. — Tem que fazê-lo. Além de tudo, George pôde ver algo que naquele momento lhe pareceu normal, mas que agora julgue importante. ― felicitou-se de seu raciocínio; foi precipitado, mas totalmente lógico. Não parecia pensado para tranqüilizar Emily.

― Suponho que tem razão ― concedeu esta. — De fato, George nem sequer estava em casa aquela noite. achava-se em seu clube, de modo que não viu nada.

Charlotte se salvou da necessidade de responder graças à chegada de uma magnífica anciã de cabelo imaculadamente recolhido e costas tão erguidas como uma baqueta. De nariz um pingo largo e olhos um pouco saltados, o remanescente de sua beleza era, não obstante, inegável, assim como o poder que irradiava.

Emily se levantou com maior rapidez do que o necessário. Era a primeira vez em muito tempo que Charlotte a via perder a compostura. Confiou em que não se devesse ao temor de que ela não soubesse estar à altura das circunstâncias.

― Tia Vespasia ― disse rapidamente― , me permita que lhe apresente a minha irmã, Charlotte Pitt. ― Emily dirigiu ao Charlotte um olhar significativo. — Minha tia avó por afinidade, lady Cumming-Gould.

Não havia necessidade de acautelar Charlotte.

― É um prazer conhecê-la, senhora. ― Inclinou a cabeça, o bastante para cumprir com os cânones da cortesia, mas não o suficiente para denotar servilismo.

Vespasia estendeu uma mão e examinou ao Charlotte de cima abaixo. Finalmente, seus olhos idosos e brilhantes a olharam diretamente no rosto.

— O prazer é meu, senhora Pitt ― respondeu por sua vez Vespasia. — Emily falou freqüentemente de você. Alegro-me de conhecê-la. ― Não acrescentou "por fim", mas sua voz o denotou.

Charlotte duvidava de que Emily tivesse falado dela a tia Vespasia, e ainda menos "freqüentemente". Teria sido uma indiscrição e Emily nunca tinha sido indiscreta em sua vida, mas não podia dizê-lo. Tampouco lhe ocorria uma resposta adequada. "Obrigado" soava ridículo.

― É muito amável — se ouviu dizer Charlotte.

― Confio em que almoçará conosco? ― Era uma pergunta.

― OH, certamente ― interveio rapidamente Emily, antes que Charlotte pudesse titubear. — É claro que almoçará conosco. E pela tarde iremos de visita.

Charlotte respirou profundamente enquanto tratava de pensar em uma desculpa. Não podia passear pelo Paragon Walk pelo braço de Emily com um vestido de musselina cinza. Sentiu certo aborrecimento por sua irmã por havê-la posto em uma situação tão incômoda. Voltou-se para olhá-la.

Tia Vespasia se esclareceu bruscamente a garganta.

― E a quem exatamente tinha pensado visitar?

Emily olhou ao Charlotte e compreendeu seu engano, mas saiu do apuro com aprumo.

― Pensava na Selena Montague. Acredita que o rosa ameixa lhe assente maravilhosamente, e ao Charlotte favorece tanto essa cor que eu adoraria lhe pôr meu novo vestido de seda e obrigar a Selena a admirá-la. Não me é simpática ― acrescentou com ar confidencial ao Charlotte, que, a essas alturas, era desnecessário. — O vestido assentará estupendamente. Minha incompetente costureira me fez ele muito longo.

Tia Vespasia dedicou ao Emily um leve sorriso de admiração.

― Pensava que era ao Jessamyn Nash a quem detestava ― observou com mordacidade.

― Eu gosto de chateá-la. ― Emily agitou uma mão. — Mas seu caso é diferente. Nunca parei para pensar se eu gosto ou não.

― Quem você gosta então? ― perguntou Charlotte, desejosa de saber mais sobre o Paragon Walk. Agora que o problema do vestido estava solucionado, sua mente se concentrou de novo na Fanny Nash e na tragédia que outros pareciam ter esquecido.

― OH. ― Emily meditou uns instantes. — Eu gosto bastante de Phoebe Nash, a cunhada do Jessamyn, embora desejasse que fosse mais categórica. E eu gosto de Albertine Dilbridge, mas não suporto a sua mãe. E eu gosto de Diggory Nash, mas ignoro por que; não há nada nele que possa qualificar de bom.

O almoço foi anunciado e as três mulheres passaram à sala de jantar. Fazia muito que Charlotte não via uma comida de tão simples elegância. Todos os pratos eram frios, mas de uma delicadeza que devia requerer horas de preparação. No calor estival constituía uma delícia contemplar os cremes frios, o salmão fresco acompanhado de hortaliças diminutas, os sorvetes e a fruta. Charlotte estava comendo com elegância, como se desfrutasse desses aprimoramentos todo dia, quando recordou que Pitt provavelmente estaria mordiscando sanduíches de pão pesado e queijo seco e pastoso ou, com sorte, com uma fina fatia de carne.

Baixou o garfo e as ervilhas rodaram. Nem Emily nem Vespasia se deram conta.

Foi necessária meia hora, o exame escrupuloso do Emily e uma dúzia de alfinetes para que Charlotte se convencesse de que estava aceitável com o vestido de seda cor ameixa e de que podia sair de visita pela avenida. De fato, estava mais que convencida. A seda era de excelente qualidade e a cor a favorecia. A calidez do mesmo, junto com o tom meloso de sua pele e o brilho de seus cabelos, bastava para alimentar sua vaidade. Sabia que ao final da tarde lhe ia ser doloroso tirar o vestido para devolvê-lo à Emily. O traje de musselina cinza tinha perdido todo seu atrativo. Já não lhe parecia elegante, mas insosso e claramente antiquado.

Charlotte foi felicitada com humor por tia Vespasia enquanto descia as escadas, mas suportou o escrutínio da anciã sem pestanejar e com a esperança de que não reparasse nos numerosos alfinetes ou no muito que tinha tido que ajustar o espartilho para caber na antiga cintura do Emily.

Agradeceu e saiu com o Emily ao sol da tarde, com a cabeça bem alta e as costas muito retas. De fato, qualquer outra postura teria sido incômoda. Teria que sentar-se com cuidado.

Selena Montague vivia a só noventa metros de distância e Emily mal falou pelo caminho. Bateram na porta e uma criada vestida com um elegante uniforme negro com pontinhos as fez entrarem. A senhora Montague, pelo visto, achava-se no jardim detrás e convidava-as a reunir-se com ela. A casa era elegante, embora o olho perito do Charlotte percebesse pequenas economias, um remendo na orla da tela de um abajur, uma almofada cuja tapeçaria tinha sido virada e a nova peça do interior aparecia mais escura que os descoloridos protetores de orelhas. Ela tinha feito o mesmo.

Selena estava sentada em uma poltrona de vime com os braços caídos de ambos os lados e a cabeça erguida para o céu, protegida do forte sol com um chapéu de palha adornado de flores. Possuía excelentes feições, mas seu nariz era um pouco afilado. Seus olhos grandes e castanhos, de longas pestanas, abriram-se com interesse quando viram Charlotte.

― Minha querida Selena ― começou Emily com sua melhor voz― , está encantadora. Permita-me que lhe apresente minha irmã, Charlotte Pitt.

Selena não se levantou, mas esquadrinhou ao Charlotte com curiosidade. Charlotte teve a desagradável sensação de que não se deixava nada, desde suas melhores e gastas botas até cada alfinete de seu vestido.

― Encantada ― disse finalmente Selena. — Agradeço-lhe... ― olhou uma vez mais as botas do Charlotte― sua visita. Será um prazer desfrutar de sua companhia.

Charlotte ferveu de raiva por dentro. Se algo odiava neste mundo eram as atitudes condescendentes.

― Espero que a sua também o seja ― respondeu com um sorriso frio.

Selena compreendeu a indireta e Charlotte soube, pela pressão dos dedos de Emily em seu braço, que também ela a tinha captado.

― Tem que jantar algum dia conosco ― prosseguiu Selena. — As noites do verão são tão calorosas que geralmente comemos no jardim. Os morangos deste ano são deliciosos, não lhe parece?

Os morangos saíam totalmente do orçamento de Charlotte.

― Muito doces ― concordou. — Possivelmente se deva ao sol.

— Sem dúvida. ― A Selena não interessava a procedência dos morangos. Olhou ao Emily. — Sentem-se, por favor. permitam-me que lhes ofereça um refrigério, devem estar terrivelmente acaloradas... ― Charlotte observou que o rosto de Emily se retasava pela insinuação, e era certo que suas faces estavam ruborizadas. — Quer um sorvete? -selena sorriu. — E você, senhora Pitt, que deseja tomar?

― Tomarei o mesmo que você, senhora Montague ― disse Charlotte antes que Emily pudesse falar. — Não desejo causar trabalho.

― Asseguro-lhe que não é nenhum trabalho! ― replicou Selena com certa secura. Estendeu o braço e agitou a campainha que havia sobre a mesa. O agudo som foi atendido por uma criada vestida de branco engomado. Selena lhe deu ordens escrupulosas e depois se voltou para o Emily. — Viu a pobre Jessamyn?

Emily se sentou em uma cadeira branca de ferro forjado e Charlotte em outra, junto a sua irmã, cuidando que os alfinetes não saltassem.

― Não ― respondeu Emily. — Como é natural, deixei-lhe meu cartão e uma nota de pêsames.

Selena tentou ocultar sua decepção.

― Pobrezinha ― murmurou. — Deve sentir-se muito mal. Quem o ia dizer! Confiava que a tivesse visto e pudesse me contar algo.

Emily percebeu logo que Selena tampouco a tinha visto e morria de curiosidade.

― Nem sequer quis tentar ― disse Emily com um estremecimento. — Estou convencida de que conta com a simpatia de todo o mundo. Não duvido de que todas nós iremos vê-la nas próximas semanas. Seria desumano não fazê-lo.

Também os cavalheiros lhe farão uma visita, tenho certeza. É o mínimo que podem fazer para reconfortá-la.

As narinas do pequeno nariz afilado da Selena incharam.

― Não acredito que exista consolo quando sua própria cunhada foi violada virtualmente no portal de sua casa e apunhalada até morrer literalmente em seus braços. ― Havia um vago tom de recriminação em sua voz. — Acredito que eu me retiraria por completo se algo assim me acontecesse. De fato, é possível inclusive que acabasse transtornada. ― Disse-o com convencimento, como se não tivesse dúvida de que Jessamyn já o estava.

― Céu santo! ― exclamou Emily com fingido terror. — Não pensará que poderia ocorrer de novo? Nem sequer sabia que tinha uma cunhada.

― E não a tenho! ― replicou Selena. — Simplesmente estava dizendo o muito que me compadeço da pobre Jessamyn e que não devemos esperar muito dela. Temos que ser compreensivos se se mostrar um pouco estranha. Eu, pelo menos, serei.

― Tenha certeza disso, querida. ― Emily se inclinou para frente e arrulhou a voz. — Jamais faria mal a ninguém intencionalmente.

Charlotte se perguntou se Emily estava insinuando que Selena gozava de uma reputação infestada de "acidentes".

― É difícil saber o que dizer em uma situação assim ― interveio Charlotte. — Por um lado, se evitar o tema parece que seja indiferente à perda, mas se fala dele podem julgá-la curiosa, o que seria decididamente vulgar.

O semblante da Selena, sensível à indireta, endureceu-se.

― Que franqueza a sua! ― respondeu assombrada, com os olhos totalmente abertos, como se tivesse encontrado uma mosca na salada. — Sempre é você tão... aberta na hora de falar, senhora Pitt?

― Receio que sim. É minha maior desvantagem social. ― "Veremos se acha uma resposta cortês a isto!", pensou.

― OH! Enfim, suponho que não é grave ― replicou com frieza Selena. — Sua irmã nem sequer parece consciente disso.

― Estou acostumada. ― Emily sorriu abertamente. ― sofri tantos percalços, que agora só a levo a casas de amigos em quem posso confiar. ― Cravou o olhar nos olhos da Selena.

Charlotte quase se afogou ao tratar de conter a risada. Selena tinha sido vencida e sabia.

― Que amável ― murmurou absurdamente. Tomou a bandeja da criada. — Um sorvete?

Então se produziu um silêncio natural, durante o qual as colheres foram inundadas no frio manjar. Charlotte queria aproveitar a ocasião para averiguar mais coisas sobre a gente da avenida, coisas que acaso Pitt, como polícia, não podia observar, mas todas as perguntas que lhe ocorriam eram muito torpes.

Tampouco tinha decidido exatamente o que precisava saber. Permaneceu imóvel, com o prato de sorvete na mão, olhando fixamente a roseira do muro do fundo.

Recordava vagamente ao Cater Street e à casa de seus pais, só que este era mais augusto, mais exuberante. Parecia um lugar francamente inapropriado para um crime tão vil como uma violação. Teria compreendido um desfalque ou uma fraude financeira, e é claro um roubo. Mas acaso os homens que viviam em casas como essas violavam alguma vez a alguém? Independentemente de quão excêntricos ou pervertidos fossem seus gostos ― sabia que existiam esse tipo de coisas― , os homens do Paragon Walk podiam permitir-se o luxo de satisfazê-los com dinheiro. E sempre havia gente que oferecia tais serviços, desde os bairros pobres e superpovoados até os prostíbulos de luxo, inclusive moços e meninos.

A menos, claro está, que uma mulher em particular se dedicasse a atormentá-los, a desesperá-lo s pavoneando-se. Mas, segundo a descrição geral, Fanny Nash o era tudo menos coquete. De fato, era decididamente torpe. Thomas disse que Jessamyn tinha insistido nesse ponto até quase roçar a crueldade, e Emily tinha corroborado suas palavras.

Charlotte estava refletindo sobre o assunto, convencendo-se a si mesma de que o criminoso era algum cocheiro ébrio da festa dos Dilbridge que nada tinha que ver com Emily, quando vozes procedentes do outro lado do jardim a distraíram. Voltou-se e vislumbrou duas senhoras mais velhas trajando idênticos vestidos turquesa de renda e musselina, embora de corte diferente para ajustar-se a suas figuras surpreendentemente diferentes. Uma era alta e magra, de peito plano, e a outra baixa e gorda, de seios generosos e mãos e pés miúdos e roliços.

― A senhorita Lucinda Horbury ― disse Selena assinalando à mulher pequena ― e a senhorita Laetitia Horbury. ― voltou-se para esta. — me permitam que vos presente à irmã de lady Ashworth, a senhora Pitt.

Trocaram saudações com uma curiosidade cuidadosamente discreta e foi servido mais sorvete. Quando a criada partiu, a senhorita Lucinda se voltou para Charlotte.

― Minha querida senhora Pitt, é um prazer tê-la entre nós. Imagino que veio consolar a pobre Emily depois da tragédia. Não lhe parece espantoso?

Charlotte murmurou educadamente, procurando o que responder, mas em realidade a senhorita Lucinda não esperava uma resposta.

― Não sei aonde iremos parar! ― prosseguiu, entusiasmando-se com o assunto. ― Quando eu era jovem estas coisas não ocorriam na boa sociedade. Claro que ― olhou a sua irmã ― sempre havia entre nós gente de costumes não precisamente irrepreensíveis.

— Seriamente? ― perguntou a senhorita Laetitia, erguendo ligeiramente as sobrancelhas. — Não recordo a ninguém assim, mas provavelmente seu círculo era mais amplo que o meu.

A senhorita Lucinda esticou seu roliço rosto mas ignorou a observação e levantou levemente os ombros, olhando para Charlotte.

― Suponho que terá ouvido falar do terrível caso, senhora Pitt? A pobre Fanny Nash foi vilmente forçada e assassinada. Certamente estamos aflitos. Os Nash vivem no Paragon Walk há anos, gerações me atreveria a dizer. Muito boa família, sem dúvida. Ontem mesmo falei com o senhor Afton, o irmão mais velho. Um homem com muita classe, não lhes parece? ― ruborizou-se e olhou a Selena, depois à Emily, e ajustou de novo em Charlotte. — E muito sério ― prosseguiu. — Custa acreditar que tivesse uma irmã capaz de achar semelhante final. O senhor Diggory, é claro, é muito mais... liberal ― quase soletrou a palavra ― em seus gostos. Mas ao homem tem se permitido fazer coisas nem sempre agradáveis que seriam impensáveis em uma mulher, inclusive na mais permissiva das sociedades. ― Uma vez mais, levantou ligeiramente o ombro e olhou por um instante a sua irmã.

― Insinua que Fanny, de certo modo, provocou o ataque? ― perguntou Charlotte. Ouviu um murmúrio de assombro, mas o ignorou e manteve o olhar cravado no rosto ruborizado da senhorita Lucinda.

A senhorita Lucinda respirou.

― Bom, em realidade, senhora Pitt, é difícil acreditar que um fato como esse possa ocorrer a uma mulher... casta. Uma mulher casta não se deixaria arrastar até semelhante situação. Com certeza a você jamais a incomodaram! E tampouco a nós!

― Possivelmente deveríamos atribuí-lo a nossa boa fortuna ― sugeriu Charlotte. Em seguida, para não sobressaltar ao Emily em excesso, acrescentou― : Se se tratasse de um louco, este poderia imaginar toda classe de coisas sem fundamento algum, coisas inteiramente falsas.

― Não conheço nenhum louco ― respondeu severamente a senhorita Lucinda.

Charlotte sorriu.

― Nem eu conheço nenhum violador, senhorita Horbury. Tudo o que digo são conjeturas.

A senhorita Laetitia dedicou ao Charlotte um sorriso tão fugaz que se desvaneceu quase antes de aparecer.

A senhorita Lucinda respirou ainda com mais força.

― Espero, senhora Pitt, que nem por um momento pense que o que disse se apóia em fatos provados. Asseguro-lhe que simplesmente estava me compadecendo da pobre senhora Nash... pela desonra que caiu sobre sua família.

― Desonra? ― Charlotte estava muito zangada para tratar de dominar sua língua. — Eu o vejo como uma tragédia, senhorita Horbury, um fato espantoso se o preferir, mas nunca uma desonra.

― Mas bem! ― exclamou ofendida a senhorita Lucinda. — Verá, em realidade...

― Foi isso o que lhe disse o senhor Nash? ― insistiu Charlotte, ignorando o forte chute do Emily. — Disse que era uma desonra?

― Em realidade não recordo suas palavras, mas certamente o homem era totalmente consciente de... da obscenidade do fato. ― A senhorita Lucinda estremeceu e soprou. — Tenho calafrios só de pensar nisso. Acredito, senhora Pitt, que se você vivesse na avenida sentiria como nós. Sem ir mais longe, nossa criada, pobre criatura, desmaiou esta manhã quando o engraxate de nosso vizinho se aproximou para lhe falar. Já é a terceira taça de nossa melhor baixela que quebra!

― Por que não a tranqüiliza lhe dizendo que provavelmente o criminoso se acha a vários quilômetros daqui? ― sugeriu Charlotte. — depois de tudo, com a polícia investigando e todo mundo buscando-o, este é o último lugar que escolheria para ficar.

― Não está bem mentir, senhora Pitt, nem sequer aos criados ― respondeu a senhorita Lucinda com secura.

― Não vejo por que não ― atravessou passivamente a senhorita Laetitia ― , se for para seu bem.

— Sempre disse que carece de moralidade. ― A senhorita Lucinda olhou a sua irmã. — Quem pode dizer onde se encontra agora esse perturbado? Tenho certeza de que a senhora Pitt não sabe. É evidente que está possuído por paixões incontroláveis, desejos anormais e muito espantosos para que uma mulher decente pense sequer neles.

Charlotte sentiu desejo de indicar que a senhorita Lucinda não tinha feito mais que pensar neles desde sua chegada, mas se conteve por respeito à Emily.

Selena experimentou um calafrio.

― Talvez se trate de um relaxado de mal viver que se sente atraído pelas mulheres de categoria, pelos cetins e rendas, pelo esmero ― disse.

― Ou possivelmente vive na avenida e, como é natural, escolhe a sua presa entre as de sua classe. ― Era uma voz aprazível e doce, mas indubitavelmente masculina.

Todas se viraram ao uníssono. Fulbert Nash estava a só dois metros delas, de pé sobre a erva, com um prato de sorvete na mão.

― Boa tarde Selena, lady Ashworth, senhorita Lucinda, senhorita Laetitia. ― Olhou para Charlotte arqueando as sobrancelhas.

― Minha irmã, a senhora Pitt ― informou secamente Emily. — E isso que acaba de dizer é horrível, senhor Nash!

― Trata-se de um crime horrível, senhora. E a vida pode ser horrível, não lhe parece?

― A minha certamente não, senhor Nash.

― É encantadora. ― Fulbert sentou-se em frente às damas.

Emily piscou.

― Encantadora?

― Uma das qualidades mais aprazíveis das mulheres é a capacidade de ver unicamente as coisas agradáveis ― respondeu Fulbert. — Por isso os homens nos sentimos tão a gosto com elas. Não está de acordo, senhora Pitt?

― Acredito que semelhante qualidade conduziria a uma enorme insegurança ― replicou Charlotte com franqueza. — Uma pessoa nunca saberia se está tratando ou não com a verdade. Pessoalmente, sempre me estaria perguntando que coisas não sei.

― E, como Pandora, abriria a caixa e deixaria que o desastre caísse sobre o mundo. ― Fulbert olhou ao Charlotte por cima do sorvete. Tinha umas mãos muito bonitas. — Uma imprudência por sua parte. Há tantas coisas que é melhor não saber! Todos conhecemos nossos segredos. — seus olhos piscaram em torno do pequeno grupo. — Inclusive no Paragon Walk "se um homem disser que está livre de pecado, engana-se". Não esperava um encontro da Bíblia, não é lady Ashworth? Se passear pela avenida, senhora Pitt, seu olho normal verá casas perfeitamente construídas pedra sobre pedra, mas seu olho espiritual, se o tiver, verá uma fileira de sepulcros caiados. Não é assim, Selena?

Antes que Selena pudesse responder, uma criada apareceu com outra bandeja de sorvetes e todos se voltaram para ver uma mulher muito formosa que cruzava o jardim e quase parecia saborear a cálida brisa que balançava a seda branca e verde de seu vestido. O rosto da Selena se endureceu.

― Jessamyn, que alegria vê-la. Nunca pensei que reuniria forças para sair. É admirável, querida. Por favor, se una a nós e conheça a senhora Pitt, irmã de Emily, procedente de... ― Elevou as sobrancelhas, mas ninguém respondeu.

Fizeram-se as apresentações pertinentes.

— Leva um vestido lindo ― prosseguiu Selena, olhando de novo ao Jessamyn. — Só você poderia sair graciosa com uma cor tão... insípida. Juro que me assentaria fatal, como se estivesse desbotado.

Charlotte se voltou para o Jessamyn e pela expressão de seu rosto percebeu que compreendia perfeitamente a intenção da Selena. Seu saber estar era delicioso.

― Não se deprima, minha querida Selena. Nem todas podemos vestir do mesmo modo, mas tenho certeza de que há outras cores que a favorecem. ― Contemplou o formoso vestido da Selena, de cor lavanda com rendas em tons rosa ameixa. — Possivelmente não este exatamente ― disse com lentidão. — Alguma vez pensou em pôr cores um pouco mais frescas, por exemplo, o azul? Favorece muito às cútis com o tom aumentado por causa deste aborrecido clima.

Selena estava furiosa. Seus olhos cuspiram algo que parecia tão profundo como o ódio. Charlotte a observou desconcertada e atônita.

― Encontramo-nos em muitos lugares ― respondeu Selena entre dentes ― , e me desgostaria que as pessoas pensassem que tento imitar seus gostos... sejam quais forem. Acima de tudo terá que ser original, não lhe parece, senhora Pitt? ― voltou-se para a Charlotte.

Esta, plenamente consciente do vestido cedido pelo Emily repleto de alfinetes, não pôde pensar em uma resposta. Ainda tremia pelo ódio que tinha visto nos olhos da Selena e pelo desagradável comentário do Fulbert Nash sobre os sepulcros caiados.

Curiosamente, foi Fulbert quem a salvou.

― Até certo ponto ― disse despreocupadamente. — A originalidade pode derivar facilmente para a extravagância, e se pode terminar sendo um autêntico excêntrico, não está de acordo, Lucinda?

A senhorita Lucinda se limitou a soprar.

Pouco depois, Emily e Charlotte se retiraram e como Emily não queria fazer mais visitas, foram para casa.

― Fulbert Nash é um homem excepcional ― comentou Charlotte enquanto subiam as escadas. — O que queria dizer com isso dos "sepulcros caiados"?

― Como quer que saiba? ― replicou Emily. — Possivelmente lhe remói a consciência.

― Por que motivo? Pela Fanny?

― Ignoro-o. É um ser horrível, todos os Nash o são, exceto Diggory. Afton é abominável. E a gente horrível tende a pensar que outros também o são.

Charlotte não podia abandonar o assunto.

― Acha que realmente sabe algo sobre a gente da avenida? Não disse a senhorita Lucinda que os Nash tinham vivido aqui durante gerações?

― A senhorita Lucinda é uma velha fofoqueira! ― Emily cruzou o patamar e entrou no quarto de vestir. Desprendeu do cabide o velho vestido de musselina de Charlotte. — Não deve lhe prestar atenção.

Charlotte começou a medir os alfinetes do vestido e a extraí-los com cuidado.

― Mas se os Nash vivem aqui durante anos, é provável que o senhor Nash conheça bem às pessoas da avenida. As pessoas, quando vivem tão perto umas das outras, inteiram-se de coisas que não esquecem.

― Pois ele não sabe nada de mim. Porque não há nada que saber!

Charlotte guardou silêncio. O verdadeiro temor acabava de emergir à superfície. Naturalmente que o senhor Nash não sabia nada de Emily, mas por fim de contas ninguém suspeitaria de Emily como autora da violação e o assassinato.

Mas o que sabia do George? George tinha passado no Paragon Walk cada verão de sua vida.

― Não estava pensando em você. ― Deixou que o vestido rosa ameixa se deslizasse até o chão.

― Naturalmente que não. ― Emily o recolheu e entregou a sua irmã o traje de musselina cinza. — Estava pensando no George. Só porque estou grávida e George é um cavalheiro e não tem que trabalhar como Thomas, pensa que passa a vida jogando e bebendo em seu clube e tendo aventuras, e que pôde engraçar-se por Fanny Nash e não aceitou que o recusasse.

― Não penso nada disso! ― Charlotte pegou seu traje e se vestiu pausadamente. Era mais cômodo que o de seda, e tinha afrouxado o espartilho dois centímetros, mas continuava lhe parecendo abominável. — Se diria que tem medo.

Emily se voltou com o rosto aceso.

― Tolices! Conheço o George e acredito nele.

Charlotte preferiu não discutir. O medo que desprendia a voz do Emily era muito claro, o veneno corrosivo da angústia começava a lhe carcomer. Em poucas semanas, possivelmente em dias, essa angústia se transformaria em pergunta, dúvida ou inclusive suspeita. E não havia dúvida de que George tinha cometido enganos em sua vida, dito ou feito alguma imprudência que mais valia esquecer.

― É claro ― disse suavemente Charlotte. — E com sorte, Thomas apanhará logo ao criminoso e poderemos esquecer todo este assunto. Obrigada por me emprestar o vestido.

 

Emily passou uma noite atroz. George estava em casa, mas não lhe ocorria nada que lhe dizer. Desejava lhe fazer toda classe de perguntas, mas com isso teria delatado abertamente suas dúvidas, de modo que preferiu calar. Além disso, temia as respostas, mesmo que George fosse paciente com ela e não se mostrasse doído ou zangado. Se lhe contasse a verdade, haveria algo nela que Emily tivesse desejado não ter sabido alguma vez?

Não era tão ingênua para acreditar que George era perfeito. Quando decidiu casar-se com ele, aceitara o fato de que jogasse e às vezes bebesse mais da conta. Inclusive tolerava que de vez em quando paquerasse com outras mulheres, coisa que em geral via como inofensiva, o mesmo jogo que ela se permitia praticar para limar suas habilidades nesse campo e não ficar muito caseira e pacata. Às vezes era duro, inclusive desconcertante, mas ela se adaptou ao estilo de vida de seu marido com bastante habilidade.

Entretanto, ultimamente Emily parecia mudada. Alterava-se por ninharias e inclusive chorava com facilidade, fato que a horrorizava. Jamais tinha suportado às mulheres choronas ou dadas aos desmaios, e durante o último mês tinha feito ambas as coisas.

Retirou-se a seu quarto cedo, e embora não demorasse a conciliar o sono, ao longo da noite despertou várias vezes e pela manhã sofreu terríveis náuseas durante uma hora.

Tinha sido extremamente injusta com a Charlotte e sabia. Charlotte queria averiguar quanto fora possível sobre o Paragon Walk porque desejava proteger a sua irmã das mesmas coisas que agora atormentavam a mente do Emily. Uma parte de seu ser amava Charlotte por esse motivo e por muitos outros, mas um eco de ódio lhe pulsava por dentro, porque inclusive com seu antiquado e insosso vestido de musselina cinza Charlotte era uma mulher segura de si mesma, relaxada, e sua mente estava livre de temores. Emily tinha a certeza de que Thomas não flertava com outras mulheres. Nada na conduta social do Charlotte levaria ao Thomas a perguntar-se se tinha feito bem se casando com uma mulher de classe inferior ou se Charlotte era digna dele ou estava à altura de sua posição social. Não sentiam a premente necessidade de gerar um filho que ostentasse o título.

Certo que Thomas era, de todas as profissões, policial e um ser realmente estranho, simples como um vasilhame de cozinha e incorrigivelmente desalinhado. Mas sabia rir, e em seu foro interno Emily estava convencida de que era mais inteligente que George. Possivelmente o bastante para descobrir quem tinha matado Fanny Nash antes que as suspeitas revelassem toda classe de pecados e feridas da gente do Paragon Walk, para que assim pudessem conservar essas pequenas máscaras rigorosamente escolhidas atrás das quais ninguém, em realidade, queria olhar.

Não pôde tomar o café da manhã e já era a hora do almoço quando viu tia Vespasia.

― Está abatida, Emily ― disse Vespasia enrugando a testa. — Confio que esteja comendo o suficiente. Em seu estado é muito importante.

― Sim, obrigada tia Vespasia. ― De fato, lhe tinha aberto o apetite e se serviu de uma ração abundante.

― Mmmm ― Vespasia pegou as tenazes e se serviu a metade de sua sobrinha. — Então está preocupada. Não permita que Selena Montague a inquiete.

Emily olhou a sua tia.

— Selena? O que a faz pensar que me preocupa?

― É uma mulher ociosa que não tem marido nem filhos dos que preocupar-se ― replicou secamente Vespasia. — Se propôs, até agora sem êxito, conquistar a esse francês. A Selena não gosta de perder. Era a filha favorita de seu pai e ainda não o superou.

— Se quiser ao senhor Alaric, pelo que a mim respeita é todo seu ― respondeu Emily. — Não tenho nenhum interesse nele.

Vespasia a olhou incisivamente.

― Tolices, menina. Toda mulher em seu são julgamento estaria interessada em um homem como esse. Inclusive a mim, quando o olhou, traz-me lembranças de minha juventude. Eu teria conseguido que se fixasse em mim.

Emily sorriu para si mesma.

― Tenho certeza disso, tia Vespasia. Não estranharia que preferisse sua companhia inclusive agora.

― Não empregue lisonjas comigo, pequena. Estou velha mas ainda conservo o juízo.

Emily continuou sorrindo.

― Por que nunca me falou de sua irmã? ― perguntou Vespasia.

― Fiz isso. Falei-lhe dela no dia seguinte de sua chegada, e mais tarde lhe contei que estava casada com um policial.

― Disse que não era uma mulher convencional, isso o recordo. Sua língua é um desastre e caminha qual duquesa. Mas não mencionou que fosse tão distinta.

Emily conteve o desejo de sorrir. Seria uma injustiça mencionar os alfinetes e o espartilho.

― OH, sim ― concordou. — Charlotte sempre foi uma mulher surpreendente, para bem ou para mau. Mas muitas pessoas a acham muito surpreendente para sentir-se confortáveis a seu lado. A maioria das pessoas só admiram a beleza tradicional, e minha irmã não sabe flertar.

― Uma lástima ― opinou Vespasia. — O flerte é uma habilidade que não se aprende. Ou a tem ou não a tem.

― Pois Charlotte não a tem. ― Espero que volte a nos visitar logo. A gente de por aqui cada dia me aborrece mais. Se Jessamyn e Selena não melhoram sua batalha pelo cavalheiro francês, ver-nos-emos obrigadas a criar alguma diversão nós mesmas ou do contrário o verão se fará insuportável. Acha que poderá assistir ao enterro dessa pobre menina? Recorda que se celebra depois de amanhã. Emily o tinha esquecido.

― Espero estar bem então, mas acredito que pedirei ao Charlotte que me acompanhe. Sem dúvida será penoso e eu gostaria de tê-la a meu lado. ― Também era uma oportunidade para desculpar-se por seu comportamento do dia anterior. — Lhe enviarei uma nota em seguida para perguntar-lhe.

― Terá que lhe emprestar algo negro lhe advertiu Vespasia. — Ou possivelmente será melhor lhe deixar algo meu. Acredito que temos a mesma estatura. Ordena a Agnes que lhe retoque meu vestido de cor lavanda. Se começar agora, tê-lo-emos preparado para então.

― Obrigada, é muito amável.

― Tolices. Sempre posso me fazer outro se gostar. Também terá que lhe conseguir um chapéu e um xale negros. Eu não tenho nenhuma coisa nem outra. Odeio essa cor.

― Não pensa ir de negro ao enterro?

― Não tenho nada negro. Vestirei de cor lavanda, assim sua irmã não será a única. Ninguém ousará criticá-la se eu também for de lavanda.

Charlotte levou uma surpresa ao receber a carta de Emily, mas ao abri-la sentiu um enorme alívio. A desculpa era simples, uma expressão de pesar genuíno, não uma questão de cumprimento. Estava tão feliz que quase saltou a parte relativa ao enterro. Não tinha que se preocupar pelo vestido e Emily apreciaria enormemente sua presença em um momento como esse. Uma carruagem iria recolhê-la pela manhã, de modo que devia procurar a alguém que cuidasse da Jemima.

Estava disposta a ir, não só porque Emily o pedia, mas também porque todas as pessoas do Paragon Walk ia estar ali e não podia desperdiçar a oportunidade de vê-la. Essa mesma noite o contou ao Pitt assim que este cruzou a porta.

― Emily me pediu que a acompanhasse ao enterro ― disse, com os braços ainda em torno do pescoço de seu marido. — Se celebra depois de amanhã. Deixarei a Jemima com a senhora Smith, com certeza não se importará. Emily me enviará uma carruagem. E organizou um vestido para mim!

Pitt se absteve de perguntar como se "organizava" um vestido, e ao ver que Charlotte tentava afastar-se dele a fim de expressar-se melhor, deixou-a com um sorriso irônico.

― Tem certeza de que quer ir? ― perguntou. — Não será um assunto agradável.

― Emily quer que vá. ― Disse-o como se fora a resposta perfeita.

Thomas adivinhou em seguida, pelo brilho refletido em seus olhos, que Charlotte estava omitindo algo: queria ir satisfazer sua curiosidade.

Charlotte observou o amplo sorriso de seu marido e compreendeu que não tinha conseguido enganá-lo.

― De acordo, quero ver essa gente. Mas prometo que só me limitarei a olhar. O que descobriu? Tenho direito a lhe perguntar isso porque o caso afeta Emily.

O rosto do Pitt se escureceu. Tomou assento e apoiou os cotovelos sobre a mesa. Parecia cansado. Charlotte se deu conta então de seu egoísmo ao ter ignorado os sentimentos de seu marido e pensado unicamente em Emily. Não fazia muito tinha aprendido a fazer limonada com bastante menos fruta fresca da que teria empregado quando era solteira. Guardava― a em um cubo de água fria, sobre as pedras próximas à porta detrás. Correu a encher um copo e o serviu ao Pitt. Não repetiu a pergunta.

Pitt bebeu a limonada e logo respondeu.

― Estive comprovando onde esteve todo mundo. Infelizmente, ninguém recorda se George se achava em seu clube aquela noite. Insisti tanto como me pareceu prudente, mas essa gente não diferencia uma noite de outra. De fato, duvido inclusive que distingam a uma pessoa de outra. A mim, muitos deles me parecem iguais tanto de aspecto como de forma de falar. ― Sorriu. — Absurdo, não acha? Imagino que também nós lhes parecemos iguais.

Charlotte guardou silêncio. Aquela era uma das razões pelas quais tinha rogado que George ficasse logo livre de toda suspeita.

― Sinto muito. ― Pitt estendeu um braço e lhe acariciou a mão.

Ela envolveu com seus dedos a mão de seu marido.

— Sei que o tentou. Conseguiste demonstrar a inocência de alguém?

― Não. Todos podem explicar onde estiveram aquela noite, mas ninguém pode provar.

― Tem que haver alguém que possa fazê-lo!

― Provar, não. ― Pitt ergueu a vista e seus olhos se entrecerraram. — Afton e Fulbert Nash estiveram juntos em casa quase todo o tempo, mas não todos...

― Mas eram seus irmãos ― replicou Charlotte com um calafrio. — Não acreditará capazes de semelhante atrocidade?

― Não, mas tampouco é impossível. Diggory Nash esteve jogando, mas seus amigos se mostraram resistentes a precisar exatamente quem estava onde e quando. Algernon Burnon assegura que o sua é uma questão de honra que não deseja divulgar. Imagino que estava com uma mulher e, dadas às circunstâncias, não se atreve a confessar. Acham Cayley se achava na festa dos Dilbridge quando se encetou em uma briga e saiu para dar um passeio para acalmar-se. Duvido que saísse e tropeçasse com Fanny, mas tampouco é impossível. O francês, Paul Alaric, declarou que estava só em casa, e provavelmente seja verdade, mas não podemos prová-lo.

― E os criados? É mais provável que tenha sido um deles. ― Tinha que ser objetiva, impedir que as palavras do Fulbert empanassem seu entendimento. — O que tem os lacaios e cocheiros da festa? ― acrescentou.

Pitt sorriu levemente, compreendendo os pensamentos de sua esposa.

― Também estão sendo investigados. Mas quase todos, quando não se achavam reunidos em pequenos grupos trocando fofocas e fanfarronando, estavam dentro da casa comendo. E os criados, por sua vez, têm muito trabalho para dedicar-se a outras coisas.

Charlotte sabia que era certo. Quando vivia no Cater Street os mordomos e lacaios não dispunham de tempo livre de noite para sair. Uma campainha podia requerer sua presença em qualquer momento, fosse para abrir uma porta ou levar uma bandeja de Porto ou realizar qualquer de suas inumeráveis tarefas.

― Tem que haver algo que possa demonstrar-se! ― protestou Charlotte erguendo a voz. — É tudo tão... nebuloso. Ninguém é culpado, mas ninguém é realmente inocente. Tem que haver algo que possa provar-se!

― Ainda não, salvo no que diz respeito aos criados. Eles sim podem demonstrar seus movimentos daquela noite.

Charlotte deixou de discutir. Levantou-se e serviu em um prato o jantar do Pitt, colocando-o com esmero para lhe dar um toque diferente e elegante. Não tinha nada que ver com os manjares servidos em casa do Emily, mas lhe havia custado vinte vezes menos, salvo pela fruta. Hoje se tinha permitido esse pequeno luxo.

O enterro foi o acontecimento mais sombrio que Charlotte tinha visto em sua vida. O dia amanheceu nublado e sufocante. A carruagem de Emily a recolheu antes das nove da manhã e a levou diretamente ao Paragon Walk. Emily a recebeu com um olhar cálido de alívio ao compreender que o arranque do outro dia estava esquecido.

Não havia tempo para refrigérios nem fofocas. Emily levou a sua irmã ao primeiro piso e lhe pôs diante um delicioso vestido lavanda escuro, mais elaborado e formal que todos os trajes que Charlotte tinha visto trazer Emily.

Possuía um ligeiro toque de grande dama que não conseguia relacionar com sua irmã. Ergueu-o e olhou por cima do régio decote.

― OH... ― suspirou Emily com um tênue sorriso. — É de tia Vespasia, mas acho que lhe assentará divinamente. ― Ampliou o sorriso, mas em seguida corou de remorso ao recordar a ocasião. ― Acho que em algumas coisas se parece muito com tia Vespasia... ou se parecerá, dentro de cinqüenta anos.

Charlotte recordou que Pitt havia dito o mesmo e se sentiu adulada.

― Obrigada.

Deixou o vestido e se voltou para que Emily lhe desabotoasse o traje. Estava preparada para mais alfinetes, mas a surpreendeu comprovar que não eram necessários. O vestido parecia feito a sua medida. Talvez tivesse necessitado dois centímetros mais nos ombros, mas de resto era perfeito. Olhou-se no espelho móvel. O efeito era bastante assombroso e decididamente diferente.

― Acorde! ― exclamou Emily. — Deixa de se admirar ou chegaremos tarde. Deve cobri-lo com algo negro. Sei que o lavanda também é cor de luto, mas parece uma duquesa a ponto de receber visitas. Ponha este xale negro. Fique quieta! Não dá nenhum calor e obscurece o conjunto. E luvas negras, é claro. Também lhe consegui um chapéu negro.

Charlotte não se atreveu a perguntar onde o tinha "conseguido". Possivelmente era melhor não saber. Contudo, tratava-se de um ofício fúnebre e era preciso levar chapéu, deixando à parte as exigências da moda.

Era um chapéu extravagante, de aba longa com penas e véu. O encasquetou ligeiramente inclinado, e Emily pôs-se a rir.

― OH, é terrível! Por favor, Charlotte, cuidado com o que diz. Estou tão nervosa que me faz rir quando menos o pretendo. Estou fazendo o possível para não pensar nessa pobre moça. Ocupo a cabeça com toda classe de coisas, inclusive com tolices, simplesmente para afastar sua imagem de minha mente.

Charlotte a rodeou com um braço.

— Sei. Sei que não é cruel. Todos rimos às vezes quando em realidade queremos chorar. Agora me diga, estou ridícula com este chapéu?

Emily estendeu ambas as mãos e alterou ligeiramente o ângulo. Ela ia vestida com o mais sóbrio dos lutos.

― Não, não; assenta-lhe muito bem. Jessamyn ficará furiosa, porque depois do funeral todo mundo a olhará e se perguntará quem é. Baixa um pouco o véu, assim terão que aproximar-se para vê-la. Isso, perfeito. Não brinque com ele!

O cortejo, inteiramente vestido de negro, era extremamente severo: cavalos negros puxando uma carruagem fúnebre negra, cocheiros com galões de braçadeira de luto negro e arreios com penachos negros. Imediatamente atrás, em outra carruagem negra, viajavam os familiares mais próximos e, em seguida, o resto dos assistentes. A procissão avançava ao ritmo mais augusto.

Charlotte ia em uma carruagem com Emily, George e tia Vespasia, perguntando-se por que as pessoas que acreditavam cegamente na ressurreição faziam da morte um melodrama. Parecia uma peça de teatro de três ao quarto. Era uma pergunta que se expunha freqüentemente, mas jamais tinha tropeçado com a pessoa indicada para formular. Tinha confiança em que algum dia conheceria um bispo, mas agora essa possibilidade era mais que remota. Em uma ocasião expôs o tema a seu pai e recebeu uma resposta cortante que a silenciou por completo, embora a única coisa que tirou claro foi que seu pai tampouco sabia e o tema lhe desagradava em extremo.

Desceu da carruagem com elegância, aceitando a mão do George e sem inclinar mais seu chapéu negro. Ao lado de tia Vespasia, seguindo Emily e George, cruzou a grade do cemitério e caminhou pelo atalho que conduzia à igreja. Dentro, o órgão entoava uma marcha fúnebre com mais exuberância do que a devida e com algumas notas tão dissonantes que inclusive Charlotte fez uma careta ao ouvi-las. Perguntou-se se o organista era o habitual ou um aficionado entusiasta contratado com pressa para a ocasião.

O serviço em si foi insípido mas, por sorte, breve. Provavelmente o pároco não desejava entrar em detalhes sobre a causa da morte naquele lugar de recolhimento espiritual. A violação e o assassinato não concordavam com os vitrais, a música de órgão e os surdos soluços sobre lenços de renda. A morte era sinônimo de dor, enfermidade e medo pelo longo e escuro passo final. E não houve nada enobrecedor nesse passo para a Fanny. Não era porque Charlotte não acreditasse em Deus ou na ressurreição, mas detestava essa tendência a ignorar as verdades desagradáveis. Toda essa cerimônia elaborada e pomposa ia destinada à consciência dos vivos para que pudessem sentir que tinham rendido a devida homenagem e que agora já podiam esquecer-se tranqüilamente da Fanny e prosseguir com a temporada social. Pouco tinha que ver com a moça ou com o fato de se a queriam ou não.

Finalizado o ofício, os assistentes se dirigiram ao cemitério para o enterro. O ar era tórrido e pesado, e tinha um aroma ligeiramente rançoso. A terra estava seca de tantas semanas sem chuva, e os coveiros tinham tido que utilizar picaretas para levantá-la. O único lugar úmido se achava sob os ciprestes, cada vez mais próximos à terra, e desprendia um aroma azedo, podre, como se as raízes se alimentassem de muitos cadáveres.

― Os funerais são uma estupidez ― sussurrou severamente tia Vespasia ao ouvido do Charlotte. — O pior arranque de autoindulgência da sociedade. Pior inclusive que Ascot. Todo mundo põem-se a sentir-se aflito. A algumas mulheres favorece o negro e sabem, e as verá em todos os enterros importantes, conheçam ou não ao finado. Maria Clerkenwell tinha esse costume. Conheceu seu primeiro marido no funeral de um parente deste. Era o principal parente porque tinha que herdar o título. Maria jamais tinha ouvido falar do finado, até que leu seu nome nas páginas de sociedade e decidiu assistir a seu enterro.

Em seu foro interno, Charlotte admirava o impulso daquela mulher. Era algo que Emily poderia ter feito. Seus olhos deslizaram por cima da tumba aberta e os rostos avermelhados e suarentos dos portadores do féretro para posar-se na figura erguida e pálida de Jessamyn Nash. O homem que estava a seu lado era tudo menos de aparência agradável, mas havia algo agradável em seu rosto, uma boa disposição a sorrir.

― É seu marido? ― perguntou quedamente Charlotte.

Vespasia seguiu a direção de seu olhar.

― Diggory. Um pouco libertino, mas sem dúvida o melhor dos Nash. Embora neste caso não queira dizer muito.

Pelo que Charlotte tinha ouvido do Afton e visto do Fulbert, não podia discrepar. Seguiu observando, confiando em que o véu ocultasse o fato. Tinha que reconhecer que os véus eram muito práticos. Nunca antes tinha usado semelhante objeto, mas não devia esquecê-lo no futuro. Diggory e Jessamyn estavam um pouco separados. Ele não se esforçava por acariciar ou apoiar a sua mulher. De fato, sua atenção parecia concentrada em Phoebe, a esposa do Afton, que tinha um aspecto calamitoso. Dava a impressão de que seu cabelo tinha escorregado para um lado e seu chapéu para o outro, e embora fizesse algum ou outro gesto para reajustá-lo, só conseguia piorar as coisas. Como outros, ia de negro, mas nela parecia um negro poeirento, de limpador de chaminé, muito diferente do negro lustroso e asa de corvo do vestido de Jessamyn. Afton permanecia firme a seu lado com semblante impassível. Quaisquer fossem seus sentimentos, sua posição não lhe permitia dar mostra deles em público.

O pároco ergueu a mão para reclamar a atenção dos pressentes. Os suaves murmúrios cessaram. Salmodiou as palavras habituais. Charlotte se perguntou por que os padres salmodiavam. As palavras soavam menos sinceras que quando se pronunciavam com tom normal. As pessoas verdadeiramente afetadas não falavam desse modo, muito absortas no conteúdo para preocupar-se com a forma. Deus era a última pessoa que se deixaria influir pela pompa e os ares comovedores.

Ergueu a vista através do véu, perguntando-se se alguém mais estava pensando o mesmo que ela, ou acaso estavam todos devidamente impressionados? Jessamyn mantinha a cabeça encurvada. Estava erguida, pálida e formosa como um lírio, algo rígida mas muito acertada. Phoebe soluçava. Selena Montague estava favorecedoramente lívida, embora, a julgar pela cor de seus lábios, não se havia despreocupado de seu aspecto e seus olhos brilhavam como o fogo. Achava-se se junto ao homem mais diferente que jamais Charlotte tinha visto. Embora alto e magro, desprendia uma agilidade que revelava um corpo forte, longe da elegância descarada, efeminada, que caracterizava aos de sua classe. Levava a cabeça descoberta, como outros homens, revelando uma abundante e suave cabeleira negra. Ao virar-se, Charlotte apreciou o perfeito corte do cabelo na nuca. Não precisava perguntar a Vespasia quem era. Com um ligeiro formigamento de emoção, deduziu que se tratava do belo francês, o homem que disputavam Selena e Jessamyn.

No momento ignorava quem estava ganhando, mas o francês estava ao lado da Selena. Ou era ela quem estava ao lado dele? Mas o centro de atenção era Jessamyn. A metade das cabeças congregadas olhavam em sua direção. O francês era um dos poucos que contemplava a torpe descida do féretro na cova. Dois homens que levavam pás permaneciam receosos e discretamente apartados, atitude que adotavam por inércia, tão habituados estavam a esses rituais.

Outra das poucas pessoas que pareciam genuinamente emocionadas era um homem que se achava no mesmo lado da sepultura que Charlotte e Vespasia. A princípio, Charlotte reparou nele pela tensão que desprendiam seus ombros, como se todos seus músculos se achassem comprimidos. Sem pensar, avançou um passo para ver seu rosto, em caso de que o virasse quando se arrojasse a terra sobre o féretro.

A voz cantante do pároco pronunciou as velhas palavras de terra a terra e pó ao pó. O homem se voltou para observar a pesada argila golpear a tampa do ataúde. Charlotte conseguiu lhe ver o perfil e logo as feições. O rosto, forte e salpicado de varíola, destilava nesse momento uma dor profunda. Era pela Fanny? Pela morte em geral? Acaso pelos vivos, porque sabia algo a respeito dos "sepulcros caiados" mencionados pelo Fulbert? Ou era simplesmente medo?

Charlotte retrocedeu e tocou o braço de Vespasia.

― Quem é?

― Hallam Cayley ― respondeu Vespasia. — Viúvo. Sua esposa era uma Cardew. Faleceu faz dois anos. Uma mulher bonita com muito dinheiro, mas escasso juízo.

― OH.

Isso explicava a tensão do corpo e a confusa dor refletida no rosto do homem. Pode ser que inclusive ela mesma estivesse observando a aquela gente, ocupando a mente com conjeturas, para manter afastada a imagem de outros enterros pessoais, muito dolorosos para suportar sua lembrança.

A cerimônia chegou a seu fim. Pausadamente e com decoro, os assistentes se voltaram ao mesmo tempo e se encaminharam para a saída. Foram achar se de novo em casa do Afton Nash para a obrigada recepção. Depois, a cerimônia poderia dar-se por concluída.

― Vejo que reparou no francês ― observou Vespasia em voz baixa.

Charlotte considerou a possibilidade de fingir que não sabia do que lhe falava, mas decidiu que não funcionaria.

― Junto à Selena?

― Naturalmente.

Caminharam, ou melhor, desfilaram, pelo estreito atalho, cruzaram a grade e saíram à estrada. Afton, por ser o irmão maior, foi o primeiro em subir à carruagem, seguido de Jessamyn e Diggory, que ia um pouco atrasado. Tinha estado falando com George, e Jessamyn se viu obrigada a esperá-lo. Charlotte percebeu um matiz de irritação em seu rosto. Fulbert tinha vindo em outra carruagem e se ofereceu para acompanhar às senhoritas Horbury, que, com vestidos negros, antigos e muito ornados, necessitaram um momento para acomodar-se satisfatoriamente.

George e Emily os seguiram, e Charlotte se viu avançando antes de estar realmente preparada para partir. Olhou para Emily, que lhe brindou um sorriso lento. Charlotte se alegrou de comprovar que tinha deslizado sua mão na do George e que ele a segurava com ar protetor.

O café da manhã funerário, tal como Charlotte tinha imaginado, era esplêndido. Isento de ostentação ― não devia concentrar a atenção em uma morte acontecida de forma tão espantosa― , a enorme mesa, não obstante, continha suficiente comida para alimentar a metade da alta sociedade, e depois de um rápido cálculo Charlotte chegou à conclusão de que os homens, mulheres e meninos de sua rua teriam vivido dela durante um mês.

Os assistentes se dividiram em pequenos grupos, trocando breves palavras, resistentes a ser os primeiros em começar.

― Por que sempre comemos depois dos funerais? ― perguntou Charlotte franzindo o sobrecenho. — É justamente quando menos apetite tenho.

― Por convenção ― respondeu George olhando a sua cunhada. Tinha os olhos mais bonitos que Charlotte tinha visto em sua vida. — É o único tipo de hospitalidade que todo mundo compreende. Além disso, que outra coisa se pode fazer? Não podemos ficar aqui de pé sem fazer nada, e tampouco podemos dançar.

Charlotte reprimiu o desejo de sorrir. A situação era tão formal e ridícula como um baile passado de moda.

Olhou em redor. George tinha razão, todo mundo parecia desconfortável e a comida aliviava a tensão. Seria uma vulgaridade mostrar as emoções, ao menos pelo que respeitava aos homens. As mulheres eram seres previsivelmente fracas, mas os soluços eram mal vistos porque violentavam e não se sabia como reagir. Mas a mulher sempre tinha o recurso do desmaio, o qual era bastante aceitável e dava a desculpa perfeita para retirar-se. A comida era uma ocupação que enchia o vazio entre o enterro e o momento em que os assistentes podiam permitir-se partir respeitavelmente e deixar atrás o desagradável tema da morte.

Emily estendeu uma mão para reclamar a atenção de sua irmã. Charlotte se voltou e se encontrou com uma mulher elegantemente vestida de negro, acompanhada de um homem bem gordo.

— Me permitam que lhes apresente minha irmã, a senhora Pitt. Lorde e lady Dilbridge.

Charlotte respondeu com os cumprimentos habituais.

― Que tragédia tão espantosa! ― disse Grace Dilbridge com um suspiro. — Ninguém o teria esperado dos Nash.

― Ninguém pode esperar semelhante coisa de ninguém ― replicou Charlotte ― , salvo da gente pobre e se desesperada. ― Estava pensando nos subúrbios dos que Pitt lhe tinha falado, mas inclusive lhe tinha contado pouco da horrível realidade desses lugares. Não obstante, ela a tinha percebido em seu rosto escurecido e nos longos silêncios que aconteciam a seus relatos.

— Sempre considerei a pobre Fanny uma criatura inocente ― observou Frederick Dilbridge a modo de resposta. — Pobre Jessamyn. Demorará muito tempo em superar esta tragédia.

― Também Algernon ― acrescentou Grace, olhando com a extremidade do olho ao Algernon Burnon, que nesse momento recusava um pastelzinho e aceitava outra taça de Porto. — Pobre moço. Graças a Deus que ainda não estavam casados.

Charlotte duvidou da pertinência do comentário.

― Deve estar muito aflito ― disse. — Não imagino pior forma de perder a uma noiva.

― Melhor perder uma noiva que uma esposa ― insistiu Grace. — Pelo menos agora poderá procurar uma jovem que lhe convenha mais, uma vez transcorrido um período prudente, é claro.

― Os Nash não tinham mais filhas. ― Frederick aceitou uma taça do criado. — O que é para agradecer.

― Para agradecer? ― Charlotte não dava crédito a seus ouvidos.

― Naturalmente. ― Grace olhou ao Charlotte com as sobrancelhas levantadas. — Sem dúvida saberá como é difícil casar às filhas. Semelhante escândalo na família o converteria em uma empresa virtualmente impossível! Eu não desejaria que um filho meu se casasse com uma moça cuja irmã era... enfim... ― Tossiu delicadamente e olhou ao Charlotte com ferocidade por obrigá-la a expressar com palavras algo tão claro. — Tudo o que posso dizer é que me tranquiliza muito que meu filho já esteja casado. Ela é filha da marquesa do Weybridge, uma jovem encantadora. Conhece os Weybridge?

― Não. ― Charlotte negou com a cabeça e o criado, interpretando mal o gesto, afastou-se com a bandeja, deixando-a com a mão suspensa no ar. Ninguém reparou no ocorrido e Charlotte baixou a mão. — Não, não os conheço.

Ninguém fez um comentário cortês a respeito, de modo que Grace retornou ao tema original.

― As filhas são uma preocupação até que se casam. ― Estendendo uma mão, voltou-se para Emily. — Espero, querida, que só tenha varões. São menos vulneráveis. O mundo aceita as debilidades dos homens e nós aprendemos tolerá-las. Mas quando uma mulher é fraca, a sociedade inteira a rechaça. Pobre Fanny, descanse em paz. Agora, querida, devo ir ver Phoebe. Parece muito afetada. Tentarei consolá-la.

― É monstruoso! ― exclamou Charlotte quando o casal partiu. — Pela forma de falar dessa mulher, qualquer um diria que Fanny era uma mulher licenciosa.

― Charlotte! ― repreendeu-a Emily. — Pelo que mais queira, não empregue esse tipo de vocabulário aqui. Além disso, só os homens são licenciosos.

― Sabe perfeitamente o que quero dizer. É imperdoável! Essa moça está morta, foi maltratada e assassinada em sua própria rua, e as pessoas se dedicam a falar das oportunidades de matrimônio e do que a sociedade pensará. É repugnante!

― Shhh! ― Emily pegou a mão de sua irmã com firmeza. — A pessoa pode ouvi-la, e não a compreenderia. ― Com mais apuro que simpatia, sorriu ao ver que Selena se aproximava. George respirou fundo e suspirou.

― Olá, Emily ― saudou radiantemente Selena. — me permita que a felicite. Sei que é uma experiência penosa, mas ninguém o diria por seu aspecto. Admiro sua fortaleza.

Era mais baixa do que Charlotte tinha suposto a princípio, pelo menos vinte centímetros menos que seu cunhado. Selena olhou ao George com suas pestanas semicerradas.

George fez uma observação corriqueira. Havia um tênue rubor em suas faces.

Charlotte olhou ao Emily e viu que seu rosto se enrijecia. Por uma vez, Emily não sabia o que dizer.

― Também você é admirável ― interveio Charlotte, olhando a Selena com sarcasmo. — Está levando isso maravilhosamente. De fato, se não soubesse que a dor a embarga, teria jurado que está decididamente alegre.

Emily conteve o fôlego, mas Charlotte a ignorou. George passou o peso do corpo de um pé a outro.

Selena corou, mas escolheu suas palavras cuidadosamente.

— Senhora Pitt, se me conhecesse melhor jamais me teria qualificado de insensível. Sou uma pessoa em extremo afetuosa. Não é verdade, George? ― Olhou-o de novo com seus grandes olhos. — Lhe rogo isso, não permita que a senhora Pitt me considere uma mulher fria. Você sabe que não o sou!

― Estou... estou certo de que não pensa isso. ― George estava visivelmente desconfortável. ― Só queria dizer que... que seu comportamento é admirável.

Selena sorriu ao Emily, que permanecia imóvel.

― A pessoa que me considera insensível não merece minha simpatia ― foi sua última frase.

Charlotte se aproximou ainda mais ao Emily para protegê-la, adivinhando subitamente onde estava a ameaça: nos olhos deslumbrantes da Selena.

― Adula-me que lhe importe tanto o que possa pensar de você ― disse friamente Charlotte. Gostaria de sorrir, mas nunca tinha sido uma boa atriz. — Prometo que não farei mais julgamentos precipitados. Estou convencida de que você é muito... ― olhou diretamente a Selena para assegurar-se de que captava a palavra em todo seu significado― generosa.

― Vejo que seu marido não veio com você. ― A resposta da Selena foi rápida e virulenta.

Desta vez Charlotte foi capaz de sorrir. Estava orgulhosa do trabalho do Thomas, até sabendo que essa gente o teria olhado com desdém.

― Está ocupado. Tem muito que fazer.

― É uma lástima ― murmurou Selena sem convicção. Seu rosto já não refletia satisfação.

Em pouco tempo Charlotte teve a oportunidade de conhecer o Algernon Burnon. Foram apresentados por Phoebe Nash, cujo chapéu aparecia agora direito, embora o cabelo ainda parecesse incomodá-la.

Charlotte conhecia muito bem essa sensação: um alfinete ou dois no lugar errôneo podiam te fazer sentir como se todo seu cabelo estivesse preso à cabeça com pregos.

Algernon se inclinou levemente, um gesto cortês que ao Charlotte pareceu algo desconcertante. O homem parecia mais preocupado pelo bem-estar dela que pelo seu próprio. Ela se tinha preparado para lhe expressar sua dor e ele estava lhe perguntando por sua saúde e se o calor o incomodava.

Charlotte engoliu os pêsames que tinha na ponta da língua e ofereceu a resposta que considerou mais sensata. Possivelmente Algernon considerava o acontecimento muito doloroso para espraiar-se nele e agradecia a oportunidade de falar com alguém que não tinha conhecido Fanny. Quanto podiam enganar as aparências.

Charlotte estava confusa. Por um lado era muito consciente de que Algernon tinha estado unido a Fanny, e por outro não cessava de perguntar-se se o jovem tinha amado a Fanny, se se tratava de um compromisso consertado ou se em realidade se alegrava de haver-se liberado dela. Mal prestava atenção à conversa, embora uma parte dela lhe dissesse que era cultivada e relaxada.

― Sinto muito — se desculpou Charlotte. Não tinha a menor ideia do que Algernon acabava de dizer.

― Possivelmente a senhora Pitt, como eu, acha nossas recepções um pouco diferentes...?

Charlotte se voltou bruscamente e viu o francês a menos de um metro dela. Seus olhos, belos e inteligentes, escondiam um sorriso.

Não estava totalmente certa do significado da pergunta. Acaso esse homem estava pensando o mesmo que ela? A franqueza era o único refúgio seguro.

― Conheço-as pouco ― respondeu. — Ignoro como são normalmente.

Se Algernon compreendeu a ambigüidade das palavras do Charlotte, não deu amostra disso.

— Senhora Pitt, apresento-lhe ao senhor Paul Alaric ― disse despreocupadamente. — Acredito que ainda não o tinham apresentado. A senhora Pitt é irmã de lady Ashworth ― acrescentou.

Alaric se inclinou ligeiramente.

— Sei perfeitamente quem é a senhora Pitt. — seu sorriso compensou a descortesia de suas palavras. — Acha que uma pessoa como ela pode visitar Paragon Walk sem que as pessoas falem? Lamento que nos conheçamos em uma ocasião tão trágica.

Charlotte se dominou imediatamente. Devia estar esgotada pelo calor e o funeral para comportar-se de forma tão estúpida.

― Como vai, senhor Alaric? ― disse friamente. E logo, como não parecia suficiente, acrescentou― : Sim, é uma lástima que muitas vezes necessitemos de uma tragédia para reordenar nossas vidas.

O homem esboçou um sorriso tênue e delicado.

― Pensa reordenar minha vida, senhora Pitt?

O rubor subiu ao rosto de Charlotte. Confiava em que o véu o ocultasse.

― Interpretou mal minhas palavras, senhor. Referia-me à tragédia. Nosso encontro dificilmente pode ter importância.

― É muito modesta, senhora Pitt ― interveio intencionalmente Selena com o rosto iluminado, balançando atrás de si a gaze negra de seu vestido. — Nunca haveria dito, a julgar por seu maravilhoso vestido. Onde você vive todo mundo vai de cor lavanda nos funerais? Não há dúvida de que assenta melhor que o negro.

― Obrigada. ― Charlotte se esforçou por sorrir e olhou a Selena de cima abaixo. — Suponho que tem razão. Tenho certeza de que também lhe seria muito favorecedor.

― Eu não vou por aí saltando de funeral em funeral, senhora Pitt, só vou aos da gente que conheço ― replicou acidamente Selena. — Duvido que volte a necessitar deste vestido antes que tenha ficado totalmente antiquado.

― Ah, algo como "um funeral por temporada" ― murmurou Charlotte. Por que a desgostava tanto essa mulher? Era só porque a relacionava com os temores de Emily, ou se devia a um instinto próprio?

Jessamyn se aproximou, com o semblante pálido, mas sereno. Alaric se voltou para ela e do rosto da Selena brotou uma virulência que não teve tempo de controlar. Então falou, adiantando-se ao Alaric.

― Querida Jessamyn, que terrível experiência para você. Deve estar destroçada, mas se comportou elegantemente. Tudo foi muito digno.

― Obrigada. ― Jessamyn aceitou a taça que Alaric tinha tomado para ela da bandeja de um lacaio e bebeu delicadamente. — A pobre Fanny descansa em paz, mas me é difícil aceitar. É injusto. Não era mais que uma menina inocente. Nem sequer sabia flertar! Por que precisamente ela? ― Baixou suavemente as pálpebras de seus grandes olhos frios sem olhar a Selena. Não obstante, o leve gesto de seu ombro e o ângulo de seu corpo pareceram ir dirigidos a ela. — Há outras mulheres mais... idôneas.

Charlotte olhou para Jessamyn. O ódio entre ambas era tão tangível que lhe custava acreditar que Paul Alaric fora alheio a ele. Sem perder a elegância, com um suave sorriso, Alaric fez um comentário inofensivo, mas era indubitável que estava tão desconfortável como Charlotte. Ou acaso desfrutava?

     Adulava-o, excitava-o o fato de que duas mulheres o disputassem? A idéia a feriu. Queria que ele estivesse acima de uma vaidade tão degradante, que se envergonhasse dela.

De repente, enquanto assimilava as palavras do Jessamyn ("mulheres mais idôneas"), assaltou-lhe outra idéia. O comentário indubitavelmente ia dirigido a Selena. Não obstante, não poderia ser justamente a inocência da Fanny o que tinha atraído ao violador? Possivelmente estava cansado e aborrecido das mulheres mundanas e sempre dispostas. Desejava uma virgem assustada e resistente para poder dominar. Talvez o que o excitava, o que acelerava seu pulso, era isso: o contato com o medo, seu aroma.

Era uma idéia repugnante, mas a violência na escuridão, a humilhação, a faca dilaceradora, o sangue, a dor, a vida que se apaga... tudo isso era repugnante. Fechou os olhos. Senhor, que não tenha nada que ver com o Emily! Não permita que George seja algo pior que um homem indolente, um pouco imprudente e vaidoso!

Falavam mas ela não os ouvia. Só era consciente da espinhosa hostilidade entre a Selena e Jessamyn e da cabeça elegante do Alaric que escutava distraidamente a uma e outra. De certo modo, Charlotte tinha a impressão de que os olhos dele estavam postos nela e encerravam uma compreensão incômoda e ao mesmo tempo emocionante.

Emily se aproximou dela. Parecia muito cansada e Charlotte achou que estava há muito tempo de pé. Dispunha-se a sugerir que retornassem a casa quando, atrás de Emily, viu o Hallam Cayley, o único homem que tinha mostrado pesar pela morte da Fanny. Estava olhando para Jessamyn com expressão vazia, como se não reparasse nela. De fato, o salão em geral, os raios de luz que se filtravam por debaixo das persianas entrecerradas, a mesa reluzente coberta de restos de comida, as figuras vestidas de negro murmurando em pequenos grupos, pareciam não exercer efeito algum em seus sentidos.

Jessamyn reparou em sua presença e seu semblante mudou, adiantou o lábio inferior e suas faces se retesaram. Ficou paralisada por um instante, até que Selena se dirigiu ao Alaric sorrindo e Jessamyn se voltou de novo.

Charlotte olhou para Emily.

― Não acha que já cumprimos? Agradar-me-ia que partíssemos. Aqui faz um mormaço e deve estar cansada.

― Pareço cansada? ― perguntou Emily.

Charlotte se apressou a mentir:

― Absolutamente, mas será melhor que vamos antes que o pareçamos. Começo a me sentir fatigada.

― Pensava que estaria se divertindo tratando de resolver o mistério. ― Havia um tom vagamente mordaz na voz de Emily. Realmente estava cansada. A pele debaixo de seus olhos parecia fina como o papel.

Charlotte fingiu não reparar nisso.

― Receio que só averiguei coisas que já conhecia por você: que Jessamyn e Selena se odeiam por causa do senhor Alaric, que lorde Dilbridge tem gostos muito liberais e que lady Dilbridge gosta de sofrer. E que nenhum dos Nash é muito agradável. OH, e que Algernon se está comportando com grande decoro.

― Contei-lhe tudo isso? ― Emily sorriu vagamente. — Pensei que tinha sido tia Vespasia. Mas tem razão, já podemos ir. Reconheço que tive suficiente. Estou mais afetada do que esperava. Não sentia especial carinho pela Fanny, mas agora que morreu não deixo de pensar nela. Estamos em seu funeral e, sabe uma coisa? Ninguém falou realmente da pobre moça.

Era uma observação triste e patética, mas certa. As pessoas tinham falado do efeito de sua morte, do modo em que se produziu e de seus sentimentos a respeito, mas ninguém tinha falado da Fanny. Um pouco irritada, Charlotte seguiu Emily até o lugar onde George as aguardava. Também ele parecia desejoso de partir. Tia Vespasia estava absorta em uma conversa com um homem de sua idade, e como só se achavam a umas centenas de metros de casa, deixaram que retornasse quando quisesse.

Encontraram ao Afton e Phoebe trocando esporádicas expressões de condolência com o Algernon. Os três calaram quando George se aproximou.

― Vão? ― perguntou Afton. Seus olhos posaram em Emily e depois em Charlotte.

Charlotte sentiu um nó no estômago e o desejo imperioso de partir imediatamente. Mas tinha que dominar-se e abandonar a casa com educação. Além de tudo, Afton devia estar sob uma forte tensão.

     George estava agradecendo cortesmente ao Phoebe sua hospitalidade.

― É muito amável ― respondeu ela mecanicamente com tom afetado. Charlotte observou que a mulher tinha as mãos presas às dobras de sua saia.

― Não seja ridícula ― replicou Afton. — Alguns dos pressentes vieram por cortesia, mas a maioria está aqui por curiosidade. A violação é um escândalo muito mais suculento que o adultério. Além disso, o adultério se converteu em um fato tão comum que, a menos que contenha algo risível, nem sequer vale a pena mencioná-lo.

Phoebe se ruborizou e pareceu incapaz de achar uma resposta adequada.

― Eu vim pela Fanny. ― Emily olhou com frieza ao Afton. — E por Phoebe.

Afton inclinou ligeiramente a cabeça.

― Tenho certeza de que minha esposa o agradece. Se achar tempo para visitá-la alguma tarde, não duvidará em lhe comentar suas opiniões. Está convencida de que há um perturbado rondando pelo Paragon Walk, esperando a oportunidade de jogar-se sobre ela e violá-la.

― Afton! ― Phoebe, dolorosamente ruborizada, puxou a manga de seu marido. — Jamais achei semelhante coisa.

― Acaso a interpretei mal? ― perguntou Afton sem baixar a voz e olhando fixamente ao George. — Pensava, pela forma em que pulava ontem à noite, que suspeitava de sua presença no patamar de cima. Levava a camisola tão apertada ao corpo que temi que a impedisse de caminhar. Para que demônios chamou o criado, querida? Ou não deveria perguntar diante de estranhos?

― Não chamei o criado. É só que... enfim, o vento agitou a cortina. Assustei-me e suponho que... — o rosto do Phoebe adquiriu um tom escarlate.

Charlotte podia imaginar o ridículo que estava sofrendo, como se todos os pressentes pudessem vê-la atemorizada e despenteada, metida em sua camisola. Tratou de achar algo esmagador que dizer para cortar ao Afton com palavras lacerantes, mas não lhe ocorreu nada.

Foi Fulbert quem falou, indolentemente, esboçando um lento sorriso. Rodeou ao Phoebe com um braço, mas seus olhos se cravaram no Afton.

― Fique tranquila, querida. O que esteve fazendo é só seu assunto. ― Seu rosto traduziu um ar de diversão, como se uma risada secreta o percorresse. — Duvido que fosse um de seus criados, e embora assim fosse não cometeria a imprudência de atacá-la em sua própria casa. E é mais afortunada que as demais mulheres da avenida. Pelo menos tem a certeza de que não foi Afton. Todos a temos! ― Sorriu ao George. — Poderia algum de nós achar-se tão livre de suspeita?

George pestanejou, sem compreender de todo o significado daquelas palavras, mas convencido de que entranhavam crueldade.

Charlotte se voltou para o Afton. Ignorava o que o tinha provocado, mas um ódio frio e irrevogável brotou dos olhos do homem, e ela estremeceu. Desejou aferrar-se ao braço de Emily, tocar algo quente, humano, fugir daquela sala de braçadeira de luto negro e respirar o ar estival, e não deixar de correr até chegar a sua casa de degraus branqueados, a sua rua estreita e poeirenta de moradias encostadas e mulheres que trabalhavam todo o dia.

 

Charlotte esperou com impaciência a volta do Pitt. Uma dúzia de vezes ensaiou mentalmente o que queria lhe dizer, e em cada ocasião lhe surgia de forma diferente. Esqueceu de irar o pó das prateleiras dos livros e salgar as verduras.

Deu a Jemima duas porções de pudim, para deleite da menina, e já a tinha trocada e adormecida quando Pitt chegou.

Ele parecia cansado e o primeiro que fez foi descalçar as botas e esvaziar os bolsos dos incontáveis objetos que tinha metido neles com o passar do dia. Charlotte lhe serviu um refresco, decidida a não cometer o mesmo engano do dia anterior.

― Como está Emily? ― perguntou Pitt ao cabo de uns minutos.

― Bem ― respondeu ela, contendo a respiração para não precipitar-se em seu relato. — O funeral foi, em geral, bastante penoso. Imagino que todos sentiam mesmo que nós, mas ninguém deu mostras disso. O ambiente estava como... vazio.

― Falaram de... Fanny?

― Não! ― Charlotte negou com a cabeça. — Não, não o fizeram. Dificilmente teria sabido por quem era o funeral. Espero que quando eu morra, as pessoas falem de mim todo o tempo.

Pitt sorriu abertamente, como um menino.

― Embora o fizessem, querida― replicou― , seria um aborrecimento sem você.

Charlotte procurou algo que lançar em seu marido, mas o único que tinha à mão era a jarra de limonada, o que seria desmedido, para não mencionar que sua quebra teria constituído um esbanjamento que não podiam permitir-se. Teve que conformar-se fazendo uma careta.

― Averiguou algo? ― perguntou Pitt.

― Receio que não, só coisas que Emily já me tinha contado. Tive um montão de intuições estranhas, mas ignoro seu significado ou inclusive se significam algo. Tinha muitíssimas coisas que lhe contar antes que chegasse a casa, mas agora parecem haver-se esfumado. Todos os irmãos Nash são desagradáveis, salvo, possivelmente, Diggory. Não cheguei a conhecê-lo, mas possui uma má reputação. Selena e Jessamyn se detestam, mas todo seu ódio se deve a um encantador cavalheiro francês. As únicas pessoas que pareciam realmente aflitas eram Phoebe, que estava terrivelmente lívida e trêmula, e um homem chamado Hallam Cayley, de quem ignoro se estava triste pela Fanny ou pela lembrança de sua esposa, falecida não faz muito.

Tinha-lhe parecido que tinha infinitas coisas que contar quando estas conformavam um tumulto de sensações em sua mente, mas agora que queria as expressar com palavras tinham perdido sua importância. Tudo soava muito idiota e comum, e sentiu vergonha. Era a esposa de um policial, deveria ter algo concreto que dizer. Como podia Pitt resolver seus casos se todas as testemunhas eram tão imprecisas como ela?

Pitt suspirou, levantou-se e caminhou em meias três - quartos até a pia da cozinha. Abriu a torneira da água fria, colocou as mãos debaixo do jorro e se refrescou o rosto. Estendeu as mãos e Charlotte lhe estendeu uma toalha.

― Não se preocupe. ― Pitt pegou a toalha. — Não esperava averiguar nada ali.

― Não esperava averiguar nada? ― repetiu ela desconcertada. — Insinua que esteve no enterro?

Pitt secou o rosto e olhou a sua esposa por cima da toalha.

― Assim é, mas não para fazer averiguações, mas simplesmente porque desejava assistir.

Charlotte sentiu que as lágrimas lhe queimavam os olhos e a garganta lhe ardia. Nem sequer tinha visto o Pitt. Tinha estado muito ocupada observando os demais e pensando no muito que lhe favorecia o vestido de tia Vespasia.

Pelo menos Fanny tinha tido alguém que sofrera verdadeiramente por ela, alguém que, simplesmente, lamentava sua morte.

Emily não tinha a ninguém com quem falar de seus sentimentos. Tia Vespasia julgava que não lhe convinha insistir nessas coisas. Geraria um bebê melancólico, dizia. E George se mostrava resistente a falar. De fato, muitas vezes se afastava para evitá-la.

Outros residentes do Paragon Walk pareciam dispostos a esquecer o assunto, como se Fanny houvesse partido de férias e fosse retornar a qualquer momento. Reataram suas vidas, na medida em que o permitia o decoro. Ainda vestiam sobriamente, é claro, pois o contrário teria sido de mau gosto. Mas parecia existir o consenso tácito de que a própria indecência da causa da morte convertia as regras do luto em um aviso da mesma e, portanto, em uma prática vulgar e inclusive ofensiva para todos.

A única exceção era Fulbert Nash, quem mostrava uma grande facilidade para ofender. De fato, às vezes se diria que desfrutava com isso. Emitia engenhosas e mordazes insinuações a respeito de quase todo mundo. Em suas observações não havia nada concludente, nada que permitisse se aprofundar no tema, mas o súbito rubor que subia pelas faces das pessoas demonstrava que tinha acertado no alvo Possivelmente se referia a velhos segredos; todo mundo tinha algo do que envergonhar-se ou pelo menos algo que preferia ocultar de seus vizinhos. Possivelmente os segredos mais interessantes eram simplesmente ridículos. Mas ninguém gostava de ser o bobo e alguns chegariam muito longe para impedi-lo. O ridículo podia ser tão devastador para as aspirações sociais como a divulgação de um pecado ordinário.

Tinha passado uma semana desde o funeral e o calor continuava apertando quando Emily decidiu visitar Charlotte para lhe perguntar sobre os progressos da polícia. Formularam-se inumeráveis perguntas, principalmente aos criados, mas Emily ignorava se já havia suspeitos ou inocentes.

Tendo enviado uma carta à Charlotte no dia antes anunciando sua visita, Emily colocou um vestido de musselina da temporada anterior e ordenou que preparassem a carruagem. Quando chegou a casa de sua irmã, indicou ao cocheiro que dobrasse a esquina e aguardasse exatamente duas horas antes de ir recolhê-la.

Encontrou ao Charlotte esperando-a e preparando chá. A casa era menor do que a recordava, os tapetes mais velhos, mas emanava uma calidez que, junto com o aroma das rosas e da cera para lustrar, a fazia agradável. Não lhe ocorreu perguntar-se se as rosas tinham sido compradas especialmente para ela.

Jemima estava sentada no chão, cantarolando enquanto construía uma precária torre de tijolos de cores. Graças ao céu começava a parecer-se com a Charlotte e não com Pitt!

Depois de trocar as habituais saudações, que Emily expressou com toda sinceridade ― de fato ultimamente valorizava mais a amizade de Charlotte ― , lançou-se a comunicar as novidades do Paragon Walk.

― Ninguém fala já do assunto ― disse indignada. — Ao menos comigo. É como se nunca tivesse ocorrido. Recorda a esses jantares em que a um comensal lhe escapa um ruído desagradável e, depois de um silêncio breve e grave, as pessoas reatam a conversa com um tom mais elevado para demonstrar que não se deu conta.

― E os criados? ― Charlotte estava vigiando a fervura da água. — Costumam falar entre eles, salvo o mordomo. Maddock nunca falava. ― Por um instante, evocou vividamente a casa paterna do Cater Street. — Pergunta às criadas e elas lhe contarão tudo.

― Não me tinha ocorrido ― admitiu Emily. Era um descuido estúpido. No Cater Street o teria feito sem necessidade de que Charlotte o recordasse. — Pode ser que me esteja ficando velha. Mamãe nunca se inteirava da metade das coisas que nós sabíamos. A criadagem a temia. Talvez minhas criadas me temam. E não há dúvida de que tia Vespasia as aterroriza!

Charlotte não se surpreendia este último. Deixando à parte a personalidade da anciã, ninguém se deixava impressionar tanto por um título como uma criada. Havia exceções, certamente, criados que percebiam as frivolidades e os defeitos ocultos atrás da brilhante fachada. Mas esses criados, além de perceptivos, costumavam ser bastante ardilosos para impedir que sua percepção se deixasse ver. E depois havia a lealdade. Um bom criado considerava a seu senhor ou senhora quase como uma prolongação de si mesmo, uma propriedade, o selo de sua própria categoria dentro da hierarquia social.

― Sim ― afirmou Charlotte. — Prova com sua criada. Ela a viu sem espartilho e sem caracois. Provavelmente é a pessoa que menos a teme.

― Charlotte! Diz umas coisas horríveis! ― Tinha sido uma observação indecorosa e incômoda, sobre tudo tendo em conta seu crescente peso. — A sua maneira, às vezes é pior que Fulbert. ― Respirou entrecortadamente e Jemima começou a choramingar. Emily se voltou e a recolheu nos braços, sacudindo-a suavemente até fazê-la sorrir de novo. — Charlotte, Fulbert está comportando-se de uma forma espantosa. Deixa escapar pequenas insinuações, nada que possa considerar-se uma acusação, mas pelas caras das pessoas se adivinha que sabem do que está falando. E isso lhe provoca uma satisfação insalubre.

Charlotte verteu a água no bule e colocou a tampa. A comida já estava na mesa.

― Pode deixá-la no chão ― disse, assinalando a Jemima. — Não deve acostumá-la ou quererá que a tenham nos braços todo o tempo. De quem fala Fulbert?

― De todo o mundo. ― Emily devolveu a Jemima a seus brinquedos. Charlotte lhe estendeu uma fatia de pão com manteiga, que a menina aceitou contente.

— Sempre sobre o mesmo? ― perguntou surpreendida Charlotte. — Não tem sentido.

― Não, de coisas diferentes ― respondeu Emily. — Fala inclusive de Phoebe! Imagina? Insinuou que sua cunhada guardava um secreto vergonhoso e que um dia toda a avenida se inteiraria. Pode imaginar uma pessoa mais inocente que Phoebe? Às vezes chega a ser genuinamente boba. Muitas vezes me pergunto por que não se rebela contra Afton. Deve poder fazer algo! Às vezes Afton a trata brutalmente. Não quero dizer que bata nela nem nada disso. — seu rosto empalideceu. — Ou pelo menos assim espero.

Charlotte estremeceu ao recordar o olhar frio e escrutinador do Afton, a impressão que dava de possuir um aspecto amargo e depreciativo.

— Se for alguém do Paragon Walk ― disse com ênfase― , espero que ele seja... e que o detenham.

― E eu ― concordou Emily. — Mas duvido que seja Afton. Fulbert está convencido de que não o é. Não cessa de repeti-lo, e com grande deleite, como se soubesse algo abominável que o diverte.

― Talvez seja assim. ― Charlotte franziu o sobrecenho, tratando em vão de ocultar seus pensamentos. Tinha que expressá-los com palavras. — Possivelmente sabe quem é.

― Que idéia tão horrível! ― Emily negou com a cabeça. — Será um criado ou alguém contratado para a festa dos Dilbridge. Havia muitos cocheiros desconhecidos rondando por aí sem nada que fazer além de esperar. Algum deles deve ter bebido mais da conta e logo perdeu o controle. Possivelmente na escuridão confundiu a Fanny com uma criada e quando descobriu seu engano se viu obrigado a matá-la para que não o delatasse. Os cocheiros costumam levar facas, já sabe, para cortar arreios entupidos, tirar pedras das ferraduras dos cavalos e outras coisas. ― felicitou-se por seu agudo raciocínio. — Além disso, nenhum dos homens que vivem no Paragon Walk, quero dizer nenhum de nós, iria armado com uma faca, não lhe parece?

Charlotte olhou fixamente a sua irmã enquanto segurava em uma mão um de seus sanduíches cuidadosamente preparados.

― Não; a menos que pretendesse matar Fanny.

Emily sentiu um repentino enjôo que nada tinha que ver com seu estado.

― Quem ia querer fazer uma coisa assim? Se a vítima fosse Jessamyn, entendê-lo-ia. Todas as mulheres estão ciumentas de sua beleza. Jamais se mostra alterada ou nervosa. Mas ninguém podia odiar a Fanny... quero dizer... que nela não havia nada que odiar.

Charlotte contemplou seu prato.

― Não sei.

Emily se inclinou para frente.

— O que diz Thomas? O que sabe? Com certeza lhe contou algo.

― Receio que ainda não sabe nada ― respondeu tristemente Charlotte― , salvo que não parece que tenha sido um dos criados habituais. Todos podem demonstrar onde estiveram aquela noite e, aparentemente, nenhum deles possui um passado escuro. Do contrário, não estariam trabalhando no Paragon Walk, não acha?

Quando Emily retornou a casa tentou falar com George, mas não sabia por onde começar. Tia Vespasia tinha saído e ele estava sentado na biblioteca, com os pés no alto, as portas abertas ao jardim e um livro aberto sobre o estômago.

Quando Emily entrou, levantou a vista e deixou o livro a um lado.

― Como está Charlotte? ― perguntou.

― Bem ― respondeu ela, um pouco surpreendida. A George sempre tinha agradado Charlotte, mas de uma forma bem distante, distraída. No fim de contas, apenas a via. A que se devia esse repentino interesse?

― Disse algo a respeito do Pitt? ― prosseguiu ao mesmo tempo que se levantava, olhando fixamente a sua esposa.

Assim, não estava pensando no Charlotte, mas no assassinato e Paragon Walk. Emily notou esse intenso momento de realidade em que sabe que se avizinha um golpe que não acaba de cair. A dor não está aí, mas o percebe como se estivesse e o cérebro já o aceitou. George tinha medo.

Emily não achava que seu marido tivesse matado a Fanny. Nem em seus piores momentos o teria acreditado. George carecia da capacidade de gerar tanta violência e inclusive da intensidade emocional necessária para isso. Em realidade, seus piores pecados eram a indolência e o egoísmo inconsciente de um menino. Homem de temperamento tranqüilo, agradava-lhe dar prazer a outros. A dor o aterrorizava. Era capaz de algo, na medida em que sua energia o permitisse, para evitar seu próprio sofrimento e o de outros. Sempre tinha desfrutado das alegrias mundanas sem necessidade de lutar por elas e sua generosidade raiava muitas vezes a prodigalidade. Dava a Emily quanto ela desejava, e desfrutava fazendo-o.

Não, George jamais teria matado a Fanny... a menos que tivesse ocorrido em um arrebatamento de pânico, em cujo caso se teria entregue à polícia imediatamente, como um menino assustado.

O golpe imaginário que pressentia era a possibilidade de que George fizesse algo que Pitt pudesse descobrir durante a investigação, algo irrefletido que não pretendia ferir Emily, um regalo que tinha aceito porque se lhe oferecia e gostava. Selena... ou outra mulher. Pouco importava quem.

Curiosamente, antes de casar-se Emily tinha intuído essa possibilidade e a tinha aceitado. Por que a importava agora? Devia-se a seu estado? Tinham-lhe advertido que a gravidez podia torná-la sensível e chorona. Ou acaso tinha terminado por amar ao George mais do que esperava?

Ele continuava olhando-a fixamente, esperando uma resposta.

― Não. ― Emily evitou seu olhar. — Pelo visto, todos os criados podem provar seus movimentos daquela noite, mas isso é tudo.

― Então, a que demônios se dedica Pitt? ― explodiu George com um tom elevado e cortante. — Passaram perto de duas semanas! Por que não o apanhou já? Embora não possa prender o homem que o fez e demonstrar sua culpa, a estas alturas pelo menos deveria saber quem é.

Emily se compadeceu de seu marido porque estava assustado, e se compadeceu de si mesma: estava zangada porque tinha sido a própria ligeireza do George a que lhe tinha dado motivos para temer ao Pitt, para temer que descobrissem excessos que não tinha necessitado cometer.

― Só vi Charlotte ― disse ela com certa frieza. — E ainda que tivesse visto Thomas, dificilmente teria podido lhe perguntar sobre seus progressos. Imagino que não é fácil achar a um assassino quando não sabe por onde começar, e ninguém do Paragon Walk pode provar onde esteve aquela noite, além dos criados.

― Maldição!― exclamou desamparadamente George. — Eu estava a vários quilômetros daqui! Cheguei a casa quando já tudo tinha ocorrido. Não pude fazer nem ver nada.

― Então, por que se preocupa? ― Emily continuava sem olhá-lo.

Houve um breve silêncio. Quando George retomou a palavra, sua voz soou mais serena e cansada.

― Eu não gosto que me investiguem. Eu não gosto que perguntem a meia Londres sobre mim quando todo mundo sabe que há um assassino violador em minha rua. Eu não gosto da idéia de que ainda ande solto, quem quer que seja. E, sobre tudo, eu não gosto de pensar que poderia ser um de meus vizinhos, alguém a quem conheço há anos e que provavelmente eu goste.

Tinha sentido. Claro, estava doído. Seria insensível, inclusive estúpido, não estar. Finalmente, Emily se voltou para seu marido e sorriu.

― Todos padecemos com este assunto ― disse com suavidade. — E estamos todos assustados. Mas é provável que tarde muito em resolver. Se se tratar de um cocheiro ou um lacaio, não será fácil dar com ele, e se for um de nós... terá infinitas formas de manter-se a salvo. Além disso, se tivermos vivido com ele durante tantos anos sem saber, como quer que Thomas o encontre em uns dias?

George não replicou. De fato não havia réplica possível.

Apesar da tragédia, havia obrigações sociais que atender. Não podiam abandonar-se só porque alguém havia falecido, e ainda menos se as circunstâncias que rodeavam a morte eram tão escandalosas. Seria uma falta de decoro ir a uma festa tão logo, mas as discretas visitas vespertinas eram outra coisa. Vespasia, levada pela curiosidade e justificada pelo sentido do dever, visitou Phoebe Nash.

Havia se proposto lhe transmitir seus pêsames. Lamentava de coração o falecimento da Fanny, apesar de que a idéia da morte não a aterrorizasse tanto como quando era jovem. Resignara-se a ela como quem se advém a retornar a casa ao termo de uma esplêndida festa. Cedo ou tarde tinha que chegar, e quando o fizesse talvez estaria preparada para recebê-la. Mas este, indubitavelmente, não era o caso da pobre Fanny.

Não obstante, Vespasia compadecia-se de Phoebe pela má fortuna que tinha tido ao casar-se com um homem exasperante. Toda mulher obrigada a viver sob o mesmo teto que Afton Nash merecia um mínimo de comiseração.

A visita pôs a prova sua paciência. A atitude do Phoebe era mais incoerente do que o normal. Parecia achar-se em todo momento ao bordo de uma confidência que nunca acabava de transformar em palavras. Vespasia alternava o vivo interesse com silêncios reflexivos, mas em cada ocasião, e no último momento, Phoebe saltava a outro tema, retorcendo nervosamente seu lenço sobre o regaço.

Vespasia partiu assim que completou sua obrigação social, mas uma vez fora, sob o sol abrasador, caminhou lentamente e começou a refletir sobre as razões que podiam provocar em Phoebe semelhante confusão mental. A pobrezinha parecia incapaz de conservar a compostura mais de dois minutos seguidos.

Tão afetada estava pela morte da Fanny? Nunca tinham dado mostras de estarem especialmente unidas. Vespasia recordava tê-las visto juntas só em uma dúzia de ocasiões, e Phoebe jamais acompanhava a Fanny aos bailes nem celebrava festas para ela, apesar de ser sua primeira temporada social.

Então lhe assaltou uma idéia repugnante, tão detestável que se deteve em meio da rua, ignorando que o ajudante do jardineiro a estava observando.

Phoebe sabia algo a respeito de quem tinha violado e assassinado a Fanny? Tinha visto ou ouvido algo? Ou acaso era um episódio do passado o que lhe tinha levado agora a compreender o ocorrido?

Ocorreria a grande idiota falar com a polícia? A discrição era um elemento importante. A sociedade se desmoronaria sem ela, e naturalmente as pessoas detestavam relacionar-se com algo tão desagradável como a polícia. Contudo, deveria aceitar-se o inevitável. Lutar contra isso só fazia mais dolorosa e mais óbvia a submissão final.

E por que ia estar disposta Phoebe a proteger a um homem culpado de um crime tão horrendo? Por medo? Não tinha sentido. O mais prudente era compartilhar o segredo, para que não pudesse morrer com ele.

Por amor? Pouco provável. Sem dúvida não por amor ao Afton.

Por compromisso? Compromisso com respeito a seu marido ou à família Nash ou inclusive a sua classe social, paralisia ante o escândalo. Ser a vítima era uma coisa ― podia esquecer-se com o tempo ― , mas o ofensor jamais seria perdoado.

Vespasia se pôs novamente a andar, cabisbaixa e com expressão carrancuda. O seu não eram mais que conjeturas. O motivo podia ser qualquer um, inclusive algo tão simples como o pânico à investigação. Possivelmente Phoebe tinha um amante.

Em qualquer caso, não lhe cabia dúvida de que Phoebe estava profundamente assustada.

A visita à Grace Dilbridge era uma missão obrigada, mas soporífera. Só se falava das habituais, quase rituais, lamentações do Grace pelos excêntricos amigos do Frederick, as constantes festas e os ultrajes que sofria porque a excluíam do jogo e de tudo que inexprimível tinha lugar no abrigo do jardim. Vespasia tendeu a exagerar a veemência de sua compaixão e optou por retirar-se no momento em que S elena Montague aparecia no salão, cheia de vida e com o olhar resplandecente. Vespasia ouviu o nome do Paul Alaric quando ainda não tinha cruzado a soleira e sorriu à evidência da juventude.

Agora não tinha mais remédio que visitar Jessamyn, que tinha deixado o luto. Encontrou-a tranquila. O sol se refletia em seu cabelo através das portas-janelas e sua pele desprendia o delicado viço da flor da macieira.

― Que agradável surpresa, lady Cumming-Gould ― disse cortesmente. — me permita que lhe ofereça um refrigério. Chá ou limonada?

― Chá, por favor ― aceitou Vespasia, tomando assento. — Ainda apesar do calor.

Jessamyn agitou a campainha e deu as ordens pertinentes à criada. Quando esta partiu, aproximou-se elegantemente a uma janela.

― Tomara refrescasse ― disse, contemplando a erva seca e as folhas poeirentas. — Este verão parece não ter fim.

Vespasia era perita na arte da conversa comum e tinha o comentário adequado para cada circunstância. Mas a serenidade e o corpo frágil e erguido do Jessamyn lhe diziam que ali havia uma emoção poderosa que, entretanto, não conseguia elucidar. Parecia mais complexa que a simples aflição. Ou talvez a complexidade residisse na própria Jessamyn.

Esta se voltou e sorriu.

― Uma profecia? ― perguntou

Vespasia compreendeu a que se referia. Não estava pensando no calor estival, mas na investigação policial. Era inútil mostrar-se evasiva com Jessamyn. Era muito inteligente e muito forte.

― Talvez não o dissesse com intenção ― Vespasia a olhou diretamente nos olhos― , mas me atrevo a afirmar que assim é. Por outro lado, o verão pode imperceptivelmente dar passo ao outono e é possível que mal apreciemos a diferença, até que uma manhã amanheça com geada e as primeiras folhas comecem a cair.

― E tudo fique esquecido. ― Jessamyn se afastou da janela e se sentou. — Simplesmente, uma tragédia do passado sem esclarecer. Por um tempo seremos prudentes na hora de contratar a nossos criados, mas também isso passará.

― Outras tempestades deverão ocupar seu lugar ― corrigiu Vespasia. — Sempre tem que haver algo do que se falar. Alguém fará ou perderá uma fortuna, celebrar-se-á um casamento por todo o alto, alguém achará ou perderá um amante...

A mão do Jessamyn aferrou o braço bordado do sofá.

― Provavelmente, mas prefiro não falar dos assuntos do coração de outros. Considero-o um tema privado que não me concerne.

Vespasia se surpreendeu, mas logo recordou que nunca tinha ouvido Jessamyn fofocar sobre amantes ou matrimônios. Só a recordava em conversas referentes à moda, festas e, em raras ocasiões, temas sérios como os negócios ou a política. O pai do Jessamyn tinha sido um homem de sólida fortuna, mas, ao morrer, todos seus bens passaram a seu filho menor por ser o varão. As pessoas comentavam que o moço tinha herdado o dinheiro e Jessamyn a inteligência. Por isso Vespasia entendeu que o jovem era bastante tolo. Jessamyn tinha levado a melhor parte.

O chá foi servido e trocaram impressões sobre a temporada social anterior e conjeturas sobre o próximo giro da moda.

Pouco depois, Vespasia partiu e encontrou-se com o Fulbert na grade da rua. O jovem se inclinou com divertida elegância e se saudaram, ela de forma decididamente fria. Farta de tanto bate-papo, dispunha-se a empreender o caminho a casa quando Fulbert disse:

― Esteve de visita em casa de Jessamyn.

― Evidentemente! ― respondeu Vespasia com aspereza. Certamente, aquele homem cultivava sua idiotice.

― E estava tudo bem? — o sorriso do Fulbert se alargou. — Todo mundo se ocupa de que seus pecados se achem a boa cobrança. Se sua polícia, Pitt, pinçasse um pouco debaixo da superfície acharia este bairro mais divertido que um espetáculo de cabaré. É como desfazer uma dessas caixas chinesas. Cada uma se desmonta de forma diferente e nada é o que parece.

― Ignoro do que me fala ― respondeu secamente Vespasia.

O semblante do Fulbert revelava sua certeza de que a anciã mentia. Vespasia sabia perfeitamente a que se referia, mesmo que suas conjeturas com respeito a esses pecados em questão eram só prováveis. Fulbert não se mostrou ofendido. Seguiu sorrindo, e havia ironia em seu rosto, inclusive no ângulo de seu corpo.

― Nesta avenida ocorrem coisas que jamais imaginaria ― sussurrou Fulbert. — Se rompesse a carcaça, achá-la-ia cheia de vermes. Incluída Phoebe, embora a pobre esteja muito assustada para falar. Um dia destes morrerá de puro medo, a menos que alguém a assassine primeiro.

― De que demônios está falando? ― Vespasia se debatia entre a raiva pelo prazer adolescente que Fulbert obtinha escandalizando as pessoas e o temor de que realmente soubesse algo que superasse sua pior conjetura.

Mas Fulbert se limitou a sorrir e pôs-se a andar para o portal. Vespasia teve que prosseguir seu caminho sem uma resposta.

Tinham transcorrido dezenove dias desde o assassinato. Nessa manhã Vespasia desceu para tomar o café da manhã com a fronte enrugada e uma mecha de cabelo atravessado na cabeça, completamente deslocado.

Emily a olhou surpreendida.

― Minha criada me contou uma história muito peculiar. ― Vespasia não sabia por onde começar. Costumava tomar o café da manhã pouco, e agora sua mão flutuava entre as torradas e a fruta, incapaz de decidir-se.

Emily jamais a tinha visto tão desconcertada. Era preocupante.

― Que história? ― perguntou. — Algo relacionado com a Fanny?

― Ignoro-o. ― Vespasia arqueou as sobrancelhas. — Aparentemente não.

― Então? ― Emily começou a impacientar-se. Não sabia se assustar-se ou não. George tinha abaixado o garfo e a estava olhando com o rosto tenso.

― Parece que Fulbert Nash desapareceu ― disse Vespasia como se não desse crédito a suas próprias palavras.

George deixou escapar um suspiro e o garfo caiu estrepitosamente sobre o prato.

― Que demônios significa "desaparecido"? ― perguntou. — Aonde foi?

— Se soubesse aonde foi, George, não diria que desapareceu ― respondeu Vespasia com uma secura incomum. — Ninguém sabe onde está, essa é a questão! Ontem não foi jantar em casa, apesar de não lhe conhecerem nenhum compromisso, e tampouco foi dormir. Seu valete assegura que não levou nada, que só ia com o fino traje que vestia na hora do almoço.

― Estão seus cocheiros e lacaios em casa? ― perguntou George. — Recebeu alguém a ordem de chamar uma carruagem?

― Ao que parece não.

― Bem, não pode ter se esvaído! Estará em alguma parte.

― É claro. ― Vespasia franziu ainda mais o sobrecenho e finalmente pegou uma torrada e passou manteiga e geléia de damasco. — Mas ninguém sabe onde. Ou se sabe, não quer dizer.

― Meu deus! ― ofegou George. — Não estará insinuando que o assassinaram, não é verdade?

Emily se engasgou com o chá.

― Não estou insinuando nada. ― Vespasia agitou o braço em direção à Emily para que George a ajudasse. — Diabo, lhe bata nas costas! ― Aguardou enquanto George o fazia, mas Emily, que já tinha recuperado o fôlego, rechaçou-lhe. — Ignoro o que aconteceu. Mas não há dúvida de que haverá insinuações desagradáveis, e esta será uma delas.

E assim ocorreu, embora Emily não foi testemunha até o dia seguinte. Tinha ido ver Jessamyn e achou Selena que já estava ali. A morte da Fanny era ainda muito recente, de modo que as pessoas se limitavam às visitas sociais a seu círculo mais estreito, provavelmente por uma questão de bom gosto, mas também porque assim podiam falar com maior liberdade.

― Alguma novidade? ― perguntou ansiosa Selena.

― Não ― respondeu Jessamyn. — É como se a terra o tivesse tragado. Phoebe veio ver-me esta manhã e Afton esteve indagando discretamente, mas Fulbert não está em nenhum de seus clubes da cidade e não se achou a ninguém que tenha falado com ele.

― Tem algum conhecido no campo a quem pudesse ir visitar? ― perguntou Emily.

Jessamyn franziu o sobrecenho.

― Nesta época do ano?

― Em plena temporada social? ― acrescentou Selena com um tom ligeiramente depreciativo. — Quem abandonaria Londres agora?

― Talvez Fulbert — se viu obrigada a responder Emily. — Parece evidente que abandonou a cidade sem dizer a ninguém. Se se achasse em Londres, estaria aqui, no Paragon Walk.

― Tem sentido ― reconheceu Jessamyn― , pois não está em nenhum de seus clubes e duvido que tenha ido ver algum amigo com motivo da temporada social.

― As opções que ficam são muito horríveis para pensá-las sequer. — Selena estremeceu para logo contradizer-se. — Mas devemos fazê-lo.

Jessamyn a olhou.

Selena já não podia voltar atrás.

― Admitamo-lo, querida. É possível que tenha ocorrido uma desgraça.

Jessamyn empalideceu.

― Insinua que o assassinaram? ― perguntou fracamente.

― Sim, receio que sim.

Fez-se o silêncio. A mente de Emily disparou. Quem podia querer matar Fulbert? E por quê? A outra possibilidade era ainda mais terrível, mas ao mesmo tempo, um grande alívio que, contudo, não ousava mencionar em voz alta: suicídio. Se Fulbert era o assassino da Fanny, podia ser que tivesse escolhido essa opção desesperada para escapar ao braço da lei e a reprovação de seus vizinhos.

Jessamyn estava atônita. Suas esbeltas mãos descansavam rígidas sobre o colo, como se não as sentisse nem pudesse movê-las.

― Por quê? ― sussurrou― Quem poderia querer matar ao Fulbert?

― Possivelmente se trata do mesmo homem que matou a pobre Fanny ― respondeu Selena.

Emily era incapaz de verbalizar a idéia que lhe rondava pela cabeça. Devia conduzir ao Jessamyn e Selena lentamente para ela e esperar a que alguma delas se visse obrigada a mencioná-la.

― Mas Fanny foi... acossada ― raciocinou Emily. — Seu agressor a assassinou depois, e provavelmente porque o tinha reconhecido. Quem ia querer matar ao Fulbert, caso esteja morto? De momento só está desaparecido.

Jessamyn sorriu fracamente e uma espécie de gratidão mitigou sua palidez.

― Tem razão. Carecemos de indícios para pensar que se trata da mesma pessoa. De fato, não há nada que demonstre que ambos os casos estejam relacionados.

― Têm que estar! ― explodiu Selena. — Não podemos ter no Paragon Walk dois crimes sem relação em menos de um mês. Isso seria abusar de nossa credulidade. Devemos confrontá-lo: ou Fulbert está morto ou fugiu.

Os olhos de Jessamyn cintilaram. Sua voz soou pausada, como distante.

― Está dizendo que Fulbert matou a Fanny e fugiu para que a polícia não o apanhe?

― Alguém teve que fazê-lo. — Selena não estava disposta a deixar-se amedrontar. — Pode ser que se tornou louco.

Emily teve outra idéia.

― Ou talvez não foi ele, mas sabe quem foi e está assustado ― disse, sem deter-se para pensar no possível efeito de suas palavras.

Jessamyn conservou a serenidade.

― Não acho provável ― respondeu com voz suave, quase sibilante. — Fulbert nunca soube guardar segredos. Duvido que a resposta esteja aí.

― É ridículo! — Selena se voltou para o Emily. — Se Fulbert tivesse sabido quem era o assassino, teria dito e desfrutado fazendo-o. Além disso, por que ia proteger ao assassino? No fim de contas, Fanny era sua irmã.

― Possivelmente não teve oportunidade de contá-lo. ― Emily começava a se irritar que lhe falassem como se fosse idiota. — Possivelmente o mataram quando se dispunha a fazê-lo.

Jessamyn respirou profundamente e deixou escapar o ar em um longo e silencioso suspiro.

― Acredito que tem razão, Emily. Detesto dizê-lo... ― Sua voz se apagou e pigarreou. — Mas só vejo duas possibilidades. Ou Fulbert matou a Fanny e fugiu, ou... ― estremeceu-se e pareceu encolher-se ― ou o homem que cometeu o atroz crime contra Fanny sabia que o pobre Fulbert sabia muito e decidiu acabar com ele antes de que pudesse falar.

— Se o que diz é certo, significa que há um assassino vivendo entre nós ― murmurou Emily. — Me alegro de não saber quem é. Temo que a partir de agora deveremos cuidar com quem falamos, o que dizemos e com quem ficamos a sós.

Selena emitiu um leve gemido. Tinha o rosto encarnado e perolado de suor. Os olhos lhe brilhavam.

O dia se fazia mais sombrio e o calor mais sufocante. Emily se levantou. A visita tinha deixado de ser agradável.

No dia seguinte foi impossível ocultar o fato à polícia. Pitt, depois de conhecer o ocorrido, retornou ao Paragon Walk com o ânimo abatido e triste. O desaparecimento do Fulbert carecia de uma explicação. Existiam infinitas teorias. Não tinha reparos em deixar que sua mente se inclinasse primeiro pelas mais evidentes e espantosas. Tinha visto tantos crimes que incluíam violações incestuosas, que já nada o surpreendia. Nos bairros pobres e marginais o incesto era uma prática corrente. As mulheres tinham muitos filhos e morriam jovens, freqüentemente deixando aos pais com filhas maiores que cuidavam dos pequenos. A solidão e a intimidade derivavam pouco a pouco para as necessidades sexuais.

Contudo, não tinha esperado achar semelhante crime no Paragon Walk.

Também havia a possibilidade de que não se tratasse de uma fuga nem de um suicídio, mas sim de outro assassinato. Talvez Fulbert soubesse muito e tinha cometido a estupidez de dizê-lo. Pode ser que inclusive tivesse tentado a chantagem e pago o máximo preço por ela.

Charlotte lhe tinha falado das observações do Fulbert, da matreira e afiada crueldade que entranhavam, dos "sepulcros caiados". Possivelmente tinha tropeçado com um segredo inconfessável e o tinham assassinado por isso, algo que não tinha nada que ver com a Fanny. Não era a primeira vez que um crime plantava a semente para a solução de algum problema pelo mesmo método expedito. Nada induz mais à imitação como o êxito aparente.

A única casa pela que podia começar era a do Afton Nash, a pessoa que tinha denunciado o desaparecimento do Fulbert, com quem vivia. Pitt já tinha enviado agentes a clubes e casas de outra índole, em busca de um homem que tivesse bebido muito ou desejasse permanecer no anonimato por um tempo.

Em casa dos Nash foi recebido com frieza e conduzido ao salão, onde instantes depois apareceu Afton. Parecia fatigado e profundas rugas sulcavam sua boca. Afligido de um resfriado do verão que lhe obrigava a soar-se constantemente, olhou ao Pitt com cenho.

― Imagino que esta vez sua visita se deve à suposto desaparecimento de meu irmão ― disse, e fungou. ― Ignoro onde está. Em nenhum momento comunicou sua intenção de partir ― fez uma careta ― ou o fato de que estivesse assustado.

― Assustado? ― Pitt queria oferecer ao Afton tempo para que se espraiasse livremente.

Afton o olhou com desprezo.

― Não penso ignorar a evidência, senhor Pitt. Tendo em conta o ocorrido recentemente com Fanny, não estranharia que Fulbert também estivesse morto.

Pitt se sentou de lado sobre o braço de uma poltrona.

― Por que acha, senhor Nash? É impossível que a pessoa que matou a sua irmã tenha tido, neste caso, o mesmo móvel.

― A pessoa que matou a Fanny o fez para silenciá-la. A pessoa que matou ao Fulbert, em caso de que esteja morto, fez isso pela mesma razão.

― Acredita que Fulbert sabia quem matou a Fanny?

― Não me trate como se fosse idiota, senhor Pitt! ― Afton levou o lenço ao nariz. — Se eu soubesse quem foi, haveria dito. Mas a possibilidade de que Fulbert soubesse e morresse por isso me parece razoável.

― Teríamos que achar o corpo ou um rastro de seu irmão para encetar a possibilidade de um assassinato, senhor Nash ― explicou Pitt. — Mas de momento nada indica que tenha desaparecido involuntariamente.

— Sem roupa, sem dinheiro e só? ― Os olhos claros do Afton se dilataram. — Pouco provável, senhor Pitt ― disse com voz suave, enfastiado pela estupidez daquele polícia.

― Pode ter feito muitas coisas que parecem improváveis ― respondeu Pitt.

Contudo, Pitt sabia que a pessoa, quando troca radicalmente de estilo de vida, não modifica as pequenas coisas. Continua conservando seus hábitos pessoais, seus gostos na comida, os prazeres que o entretêm ou aborrecem. E duvidava que Fulbert fosse tão descuidado, ou estivesse tão desesperado, para ir-se pensar na comodidade de sua pessoa. Estava acostumado à roupa impecável e a que seu valete a preparasse. E se tinha pensado abandonar Londres, sem dúvida necessitaria de dinheiro.

― Entretanto ― concordou Pitt― , é provável que você tenha razão. Quem foi a última pessoa que o viu?

― Price, seu valete. Pode falar com ele se o desejar, mas já o interroguei e não obtive nada de útil. Toda a vestimenta e os pertences pessoais do Fulbert continuam aqui, e na noite que desapareceu aparentemente não tinha nenhum compromisso.

― Pois se o tivesse, Price o teria sabido, já que se o senhor Fulbert tinha intenção de partir, ele se teria encarregado de lhe preparar a roupa ― raciocinou Pitt em voz alta.

Afton se mostrou surpreso de que Pitt soubesse semelhante coisa e isso o irritou. Soou o nariz irritado com uma careta de dor.

Pitt esboçou um leve sorriso que bastou para indicar ao Afton que compreendia seu problema.

― Assim é ― concordou Afton. — partiu de casa às seis da tarde dizendo que estaria de volta a hora de jantar.

― Não disse aonde ia?

— Se tivesse feito, inspetor, teria dito!

― E não retornou nem ninguém voltou a vê-lo?

Afton olhou ao Pitt com fúria.

― Alguém deve tê-lo visto ― replicou.

― Pode ser que caminhasse até o final da avenida e tomasse um táxi ― observou Pitt. — Por este bairro também circulam carruagens.

― Para ir aonde, maldito seja?

― Bem, se não saiu do Paragon Walk, senhor Nash, onde está?

Afton olhou ao Pitt e pouco a pouco o compreendeu. Não tinha tido em conta que não havia rios, poços, arvoredos ou jardins bastante grandes para cavar sem ser visto, e tampouco porões nem refúgios abandonados. Sempre havia jardineiros, lacaios, mordomos, cozinheiras ou engraxates rondando pelos arredores. Não existia nenhum lugar onde pudesse ocultar um corpo

― Averigue que carruagens abandonaram a avenida essa noite e a manhã do dia seguinte ― ordenou Afton irritado. — Fulbert não é muito corpulento. Qualquer um podia carregar seu corpo inconsciente ou morto, salvo possivelmente Algernon.

― Isso pretendo fazer, senhor Nash ― respondeu Pitt. — Também interrogarei aos taxistas e mensageiros. Enviarei instruções aos demais comissários e uma descrição do Fulbert a todas as estações ferroviárias e, em especial, á balsa do Canal. Mas duvido que sirva de algo. Já comecei a busca em hospitais e depósitos de cadáveres.

― Bem. Meu Deus, tem que estar em alguma parte! ― explodiu Afton. ― Não pode ter sido devorado por uma matilha de animais selvagens no meio de Londres. Faça o que tenha que fazer, mas obteria mais frutos se fizesse algumas pergunta incômodas por aqui, na própria avenida. O que ocorreu a meu irmão tem que ver com a Fanny. E se se obstina em acreditar que o culpado é um cocheiro bêbado da festa dos Dilbridge, é você um ingênuo, pois nesse caso Fulbert não saberia nada e, por conseguinte, não representaria nenhuma ameaça para o assassino.

― A menos que tenha visto algo ― indicou Pitt.

Afton o olhou com expressão divertida.

― Duvido-o, senhor Pitt. Fulbert passou toda a noite comigo jogando bilhar. Se não me equivoco, já o disse a primeira vez que falamos.

Pitt devolveu um olhar impassível ao Afton.

― Conforme soube, senhor, seu irmão saiu da sala de bilhar pelo menos em uma ocasião. Seria possível que ao passar frente a uma janela visse algo estranho cuja importância compreendeu depois.

A raiva cruzou o rosto do Afton. Não suportava equivocar-se.

― Os cocheiros não são importantes, inspetor. Estão sempre rondando as ruas. Se você tivesse um, saberia. Sugiro-lhe que, para começar, investigue ao francês. Disse que esteve em casa toda a noite, mas talvez não seja verdade. Possivelmente foi a ele a quem viu Fulbert. Uma mentira conduz a outra. Averigue o que fez realmente. Dá-se muito bem com o sexo feminino. Conseguiu seduzir as mentes de todas as mulheres do Paragon Walk. Acredito que é muito mais velho do que assegura. Sempre está em casa e só sai de noite, mas teria que lhe ver o rosto à luz do dia.

"As mulheres são fracas e não vêem mais à frente do aspecto físico ou maneiras de um homem. Pode ser que os gostos do senhor Alaric se inclinem por mulheres jovens e inocentes como Fanny. Mas minha irmã não se deixou enganar por seus encantos. Talvez as mulheres imorais e sofisticadas como Selena Montague o aborreciam. Se Fulbert o advertiu e cometeu a imprudência de dizer ao Alaric... ― Fungou violentamente e se engasgou. — Se fez tal coisa... ― acrescentou.

Pitt escutava. O discurso era despeitado, mas, mesmo assim, podia conter algum germe de verdade.

— Selena sempre foi uma... uma rameira ― acrescentou Afton. — Nem sequer quando seu marido vivia sabia comportar-se decentemente. Ultimamente perseguia o George Ashworth, e o grande estúpido se deixou seduzir. Parece-me repugnante. Não o estarei ofendendo? ― Olhou ao Pitt com os lábios apertados. — Em qualquer caso, é verdade.

Justamente o que Pitt temia. Tinha-o lido nas palavras do Charlotte, embora, é claro, não o havia dito. Possivelmente pudesse evitar que Emily se inteirasse. Não disse nada, simplesmente olhou ao Afton com atenção, esforçando-se por manter o semblante impassível.

― Também deveria se aprofundar na festa do Freddie Dilbridge ― prosseguiu Afton. — Não são só os cocheiros que bebem mais da conta. Freddie tem amigos muito estranhos. Não compreendo como Grace o suporta, mas claro, seu dever é obedecer a seu marido e, como boa mulher que é, age em conseqüência. Deus santo! Sabe que sua filha mantém relações com um judeu e que Freddie o permite porque tem dinheiro? O que faltava! Um desses judeus avaros e de pouco status saindo com Albertine Dilbridge! ― voltou-se bruscamente, os olhos entrecerrados. — É possível que você não o compreenda, embora as classes humildes tampouco mesclam seu sangue com a dos forasteiros. Fazer negócios com eles é uma coisa, inclusive convidá-los a casa, mas disso a permitir que um deles corteje a sua filha... ― Bufou e se viu obrigado a soar o nariz, dando um pulo de dor quando o lenço de linho esfregou a pele avermelhada.

"Sugiro-lhe que cumpra com seu dever com um pouco mais de eficácia, senhor Pitt. As pessoas do Paragon Walk estão sofrendo o inexprimível. Como se não tivéssemos bastante com o calor e a temporada social! Detesto a temporada social, o interminável desfile de jovenzinhas afetadas, vestidas por suas mães e formadas para brilhar como vacas em uma feira de gado, e os jovens jogando o dinheiro, indo com prostitutas e bebendo até embrutecer-se e esquecer as idiotices cometidas. Sabe que fui ver o Hallam Cayley às dez e meia da manhã do dia que Fulbert desapareceu para lhe perguntar se o tinha visto, e o homem continuava dormindo a embriagues da noite anterior? Só tem trinta e cinco anos, mas é um autêntico fracasso. É indecente!

Olhou ao Pitt com desgosto.

― E isso fala em favor dos de sua classe. Pelo menos, você está muito ocupado para embebedar-se e, além disso, tampouco pode permitir-se a isso.

Pitt se endireitou e colocou as mãos nos bolsos para ocultar os punhos. Tinha visto toda classe de fracassos morais e espirituais nos refugos dos bairros pobres de Londres, mas nenhum, a diferença do Afton Nash, que o ofendesse sem gerar um mínimo de compaixão. Hallam Cayley devia suportar uma terrível e profunda ferida que Pitt não conseguia sequer imaginar.

― Bebe muito o senhor Cayley? ― perguntou com voz suave.

― Como demônios quer que saiba? ― replicou Afton. — Não frequento essa classe de antros. Sei que estava bêbado na manhã que fui vê-lo, e sempre se comporta como um homem que se permitiu mais do que seu estômago pode suportar. ― Levantou a cabeça para olhar ao Pitt. — Mas vigie ao francês, inspetor. Há algo furtivo e secreto nele. Só Deus sabe que aberrações estrangeiras esconde. Vive totalmente só, salvo pelos criados. Poderia fazer algo em sua casa. As mulheres são incrivelmente imprudentes. Por Deus, nos proteja dessa... dessa obscenidade!

 

Emily não mencionou o desaparecimento de Fulbert à Charlotte, que se inteirou por boca do Pitt. Não podia fazer nada a essas horas da noite e tampouco no dia seguinte. Como Jemima estava tendo os dentes, Charlotte não achou justo pedir à senhora Smith que cuidasse dela. Contudo, no meio da tarde os choros da pequena a tinham tão aturdida que cruzou a rua para solicitar à senhora Smith um remédio que lhe acalmasse a dor e lhe permitisse descansar.

A senhora Smith cacarejou e se dirigiu à cozinha. Em pouco retornou com uma garrafa que continha um líquido transparente.

― Passe-o nas gengivas com um algodão e verá como em seguida lhe alivia.

Charlotte lhe agradeceu, mas não perguntou o que continha a mescla, temendo que provavelmente fosse melhor não sabê-lo, desde que não fosse genebra, pois tinha ouvido que algumas mulheres a administravam a seus pequenos quando já não suportavam seus prantos. Além disso, imaginou que em qualquer caso reconheceria o aroma.

― Como está sua pobre irmã? ― perguntou a senhora Smith, contente de desfrutar de um momento de companhia e disposta a prolongá-lo.

Charlotte aproveitou a oportunidade para preparar o terreno de sua próxima visita ao Emily.

― Não muito bem ― respondeu. — O irmão de seu amigo desapareceu sem deixar rastro e está muito preocupado.

― Oooh! ― A senhora Smith ficou fascinada. — Que horror! Não é incrível? Aonde acha que pode ter ido?

― Ninguém sabe. ― Charlotte pressentiu que tinha ganhado a batalha. — Mas amanhã, se você tivesse a amabilidade de cuidar da Jemima...

― Não se preocupe ― disse na hora a senhora Smith. — Cuidarei dela. Dentro de uma ou duas semanas a pobrezinha terá todos os dentes e se sentirá melhor. Vá ver sua irmã, querida, e averigua o que ocorreu.

― Tem certeza?

― Certamente!

Charlotte esboçou um sorriso deslumbrante.

Na realidade, ia mais por curiosidade que pelo fato de acreditar que realmente podia ajudar Emily. Entretanto, talvez pudesse ajudar ao Pitt, e possivelmente era essa sua verdadeira motivação. Além de tudo, o desaparecimento do Fulbert dificilmente podia piorar as coisas para o George. E desejava fervorosamente falar de novo com tia Vespasia. Como ela bem havia dito, conhecia quase todos os residentes do Paragon Walk desde que eram meninos e possuía uma memória prodigiosa. Muitas vezes as pequenas pistas, os fios do passado, conduziam a detalhes do presente que de outro modo passariam inadvertidos.

Chegou a casa do Emily à hora do chá da tarde e a criada, que a reconheceu em seguida, conduziu-a até o salão.

Emily estava acompanhada de Phoebe Nash e Grace Dilbridge. Tia Vespasia entrou pelo jardim para unir-se a elas quase ao mesmo tempo que Charlotte aparecia pelo outro lado. Depois de uma troca de educadas saudações, Emily pediu à criada que trouxesse o chá, que foi servido em poucos minutos: faqueiro de prata e baixela de porcelana, diminutos sanduíches de pepino, tortas de frutas e bolacha coberta de açúcar fino e creme montada. Emily encheu sua taça e a criada esperou para passá-lo ao redor.

― Pergunto-me o que está fazendo a polícia ― disse Grace Dilbridge com tom de censura. — por agora se diria que não acharam o mínimo rastro do pobre Fulbert.

Charlotte teve que recordar que Grace ignorava que a polícia em questão incluía Pitt, seu marido. A idéia de manter uma relação social com a polícia era impensável. Charlotte percebeu um intenso rubor na face de sua irmã, mas, surpreendentemente, foi Emily quem saiu em defesa da polícia.

— Se Fulbert não desejar que o encontrem, será muito difícil saber por onde começar ― opinou. — Eu não saberia por onde, e você?

― Certamente que não ― respondeu Grace, desconcertada pela pergunta. — Mas eu não sou polícia.

O rosto majestoso da Vespasia se manteve completamente sereno, salvo por uma vaga expressão de assombro. Seu olho infiltrou por um instante no Charlotte antes de retornar ao Grace.

― Insinua, querida, que a polícia é mais inteligente que nós? ― inquiriu.

Grace se sentiu momentaneamente esmagada. É claro que não pretendia insinuar semelhante coisa, mas soava como se o houvesse dito. Refugiou-se em seu chá e em seu sanduíche de pepino. A confusão cruzou seu semblante, seguida de uma determinação cortês.

― Nós estamos muito preocupadas ― murmurou Phoebe para romper o silêncio. — Ainda sinto falta da pobre Fanny. Toda a casa está angustiada. Cada vez que ouço um ruído estranho me sobressalto sem poder evitar.

Charlotte desejava ver tia Vespasia a sós para lhe formular algumas perguntas diretas, pois era absurdo andar-se com rodeios. Mas teria que esperar que o chá chegasse a seu fim e as visitas se retirassem. Agarrou um sanduíche de pepino e lhe deu uma mordida. Tinha um gosto desagradável, ligeiramente doce, como se o pepino, apesar de conservar-se rangente, estivesse passado. Olhou ao Emily.

Emily segurava um sanduíche em sua mão e olhou consternada para Charlotte.

― OH, querida!

― Acredito que deveria falar com sua cozinheira ― sugeriu Vespasia, devolvendo uma parte de bolacha ao prato. Ela mesma agitou a campainha. Quando a criada apareceu, recebeu a ordem de chamar à cozinheira.

A cozinheira era uma mulher roliça e ruborizada de aspecto normalmente agradável que hoje, não obstante, parecia acalorada e sujada apesar de que ainda ser cedo para começar a preparar o jantar.

— O que ocorreu, senhora Lowndes? ― começou Emily. — pôs açúcar nos sanduíches de pepino.

― E sal nos bolos. ― Vespasia tocou delicadamente a bolacha com o dedo.

— Se se acha indisposta talvez devesse deitar-se ― continuou Emily. — Uma das garotas pode preparar um pouco de verdura e tenho certeza de que haverá presunto ou frango para esta noite. Não posso permitir que também estrague o jantar.

A senhora Lowndes contemplou desolada a bandeja de bolos e emitiu um longo gemido. Phoebe parecia alarmada.

― É terrível! ― choramingou a senhora Lowndes. — Não imagina, senhora, quão assustados estamos lá embaixo sabendo que um maníaco anda solto pela avenida matando a gente decente e temerosa de Deus. Só nosso Senhor sabe quem será a próxima vítima! Hoje a criada desmaiou duas vezes e minha ajudante de cozinha ameaçou ir-se se se não o apanham logo. Sempre tivemos trabalhos decentes. Jamais vimos nada parecido. Já ninguém de nós voltará a ser o mesmo, ninguém! OH! ― gemeu com maior estridência e tirou um lenço do bolso de seu avental enquanto seu rosto se inundava em lágrimas.

Todo mundo estava estupefato. Emily se sentia horrorizada. Não sabia o que fazer com aquela enorme mulher à beira de um ataque de histeria. Por uma vez, inclusive tia Vespasia ficou sem fala.

― OH, não! ― gemeu a senhora Lowndes. — OH! ― Começou a tremer com violência e pareceu a ponto de desabar-se sobre o tapete.

Charlotte se levantou e alcançou o vaso que descansava sobre o aparador. Extraiu as flores e percebeu, satisfeita, que continha água. Com decisão, voltou-se e a jogou no rosto da cozinheira.

― Tranquilize-se! ― disse com firmeza.

Seus gemidos cessaram de súbito e se produziu um silêncio sepulcral.

― Agora, controle-se ― prosseguiu Charlotte. — A situação é sem dúvida desagradável. Acredita que outros não sentem o mesmo? Mas devemos nos comportar com dignidade. Deve dar exemplo às moças. Se perder o domínio de si mesma, o que será das criadas? Uma cozinheira não é só alguém que sabe fazer molhos, senhora Lowndes. É a chefa da cozinha, está para manter a ordem e assegurar-se de que outros se comportem como é devido. Assombra-me você!

A cozinheira olhou desconcertada à Charlotte. Seu rosto se iluminou e, depois de erguer os ombros, recuperou pouco a pouco a compostura.

― Sim, senhora.

― Bem ― disse friamente Charlotte. — Agora lady Ashworth conta com você para fazer que cessem os falatórios entre as garotas. Se conservar a serenidade e se comportar com a dignidade que corresponde ao membro superior do pessoal feminino, outros seguirão seu exemplo.

A senhora Lowndes ergueu o queixo e inchou o peito, recordando a importância de seu posto.

― Sim, senhora. Terei todo gosto em fazê-lo ― disse, e olhando ao Emily acrescentou― : Rogo que esqueça minha momentânea debilidade e não a mencione diante de outros criados, senhora.

― Não o farei, senhora Lowndes ― respondeu Emily seguindo o exemplo de Charlotte. — Compreendo que essas garotas supõem uma enorme responsabilidade para você. Quanto menos saibam, melhor. Importaria-se de ordenar à criada que nos traga outros bolos e sanduíches?

― Em seguida, senhora. ― Com alívio, a cozinheira recolheu as duas bandejas e abandonou o salão, empapada de água e ignorando ao Charlotte, que continuava de pé com as flores em uma mão e o vaso na outra.

Assim que Phoebe e Grace se partiram, Emily, contra os desejos da Vespasia, visitou a cozinha para assegurar-se de que o conselho do Charlotte era seguido ao pé da letra e o jantar não ia supor outro desastre. Charlotte se voltou para a Vespasia. Não havia tempo para sutilezas.

― Aparentemente, o desaparecimento do senhor Nash também transtornou aos criados ― disse sem rodeios. — Acredita que fugiu?

Assombrada, Vespasia arqueou as sobrancelhas.

― Absolutamente, querida. Em minha opinião, sua língua o conduziu ao final que tanto tempo estava procurando.

― Insinua que o assassinaram? ― Naturalmente, tinha-o pensado, mas lhe surpreendia ouvir o de uns lábios diferentes dos do Pitt.

― Isso acredito. ― Vespasia vacilou. — Mas não tenho idéia do que fizeram com seu corpo. ― Suas narinas se dilataram. — Um pensamento desagradável, reconheço-o, mas ignorá-lo não mudará as coisas. Imagino que o levaram em uma carruagem e o abandonaram em algum lugar, possivelmente no rio.

― Nesse caso nunca o acharemos. ― Era uma aceitação de derrota. Sem um corpo era impossível demonstrar que se tratava de um assassinato. — Mas isso é o de menos. O importante é quem o fez.

― Ah ― disse suavemente Vespasia, olhando para Charlotte. — estive dando voltas ao assunto. De fato não pude pensar em outra coisa, embora não quis mencionar o tema diante de Emily.

Charlotte se inclinou. Não sabia como expressar-se sem parecer descarada ou cruel, mas tinha que fazê-lo. A delicadeza, naquele momento, carecia de utilidade.

― Você conhece às pessoas do Paragon Walk desde que era menina. Provavelmente sabe coisas que a polícia jamais conseguiria averiguar ou, em qualquer caso, compreender. ― Não pretendia ser uma adulação, mas simplesmente um fato. Necessitavam a ajuda da Vespasia. Pitt a necessitava. — Com certeza tem suas próprias opiniões! Fulbert estava acostumado a dizer coisas terríveis sobre as pessoas. Em uma ocasião me comentou que os residentes da avenida eram sepulcros caiados. Não duvido de que o disse para me impressionar, mas a julgar pelas reações das pessoas, diria que suas palavras entranhavam algo de verdade.

Vespasia sorriu e seu rosto refletiu um humor e um pesar secos, ausentes, uma infinidade de lembranças.

― Minha querida menina, todas as pessoas têm segredos, a menos que não tenham vivido a vida. E inclusive estas, pobrezinhas, acreditam os ter. Carecer de segredos é quase como reconhecer a derrota.

― Phoebe?

― Duvido que seja capaz de matar. ― Vespasia negou pausadamente com a cabeça. — À pobre lhe está caindo o cabelo. Usa peruca.

Charlotte recordou a imagem do Phoebe no funeral. O cabelo lhe caía para um lado e o chapéu para o outro. Como podia lhe inspirar tanta lástima e tanta risada ao mesmo tempo? O assunto lhe parecia corriqueiro, e entretanto devia ser doloroso para o Phoebe. Involuntariamente tocou o cabelo, espesso e brilhante. Era seu melhor traço. Possivelmente se estivesse perdendo-o se preocuparia muito. Também ela se sentiria insegura, diminuída, de certo modo nua. O desejo de rir desvaneceu.

― OH. ― Havia compaixão nessa palavra, e Vespasia olhou ao Charlotte com avaliação. — Mas como bem disse ― prosseguiu Charlotte depois de sossegar-se ― , esse não é motivo para matar a uma pessoa, embora seja capaz disso.

― Phoebe não seria capaz ― respondeu Vespasia. — É muito estúpida para levar a cabo com êxito um ato de semelhante envergadura.

― Estava pensando no lado puramente físico ― esclareceu Charlotte. — Phoebe não poderia fazê-lo, embora sua mente o desejasse.

― OH, Phoebe é mais forte do que parece. ― Vespasia se reclinou no assento e olhou fixamente o teto. — Poderia matar ao Fulbert sem problemas, possivelmente com uma faca, se conseguisse atraí-lo até um lugar onde pudesse abandoná-lo. Entretanto, faltaria-lhe coragem para sair graciosa. Lembro que de jovem, não teria mais de quinze anos, pegou as anáguas e os calções de renda de sua irmã maior e os cortou a sua medida. Fez isso com toda a frieza do mundo, mas quando os vestiu acovardou-se tanto que colocou em cima suas próprias anáguas, temendo que alguém lhe levantasse a saia e descobrisse o que tinha feito. Como conseqüência disso, parecia cinco quilos mais gorda e tinha um aspecto horrível. Phoebe poderia fazê-lo, mas lhe faltaria coragem para chegar até o final.

Charlotte estava fascinada. O que pouco se adivinhava das pessoas em uns poucos dias ou semanas, como careciam da essência do passado. Pareciam quase planas, como o cartão, sem fundo.

― Que outros segredos conhece? ― perguntou. — Que mais sabia Fulbert?

Vespasia se ergueu e arregalou os olhos.

― Minha querida menina, prefiro não imaginar sequer. Fulbert era insuportavelmente curioso. Sua principal preocupação na vida era obter informação comprometedora sobre outros. Se finalmente averiguou algo que era muito grande, só posso dizer que o merecia com acréscimo.

― Mas que mais? ― Charlotte não pensava render-se tão facilmente. — Quem mais? Acredita que Fulbert sabia quem matou a Fanny?

― Ah! ― Vespasia exaltou lentamente. — Aí reside o verdadeiro mistério, e temo que o ignore. Como é natural, repassei uma e outra vez tudo o que sei. Para falar a verdade, esperava que me interrogasse. ― Olhou ao Charlotte com dureza. Seus olhos de anciã eram muito claros e inteligentes. — Aconselho-a, pequena, que retenha sua língua a partir de agora. Se Fulbert sabia quem matou a Fanny, não há dúvida de que pagou por isso. Pelo menos um dos segredos do Paragon Walk constitui um verdadeiro perigo. Ignoro qual desses segredos conduziu Fulbert Nash à morte, de modo que se esqueça deles.

Charlotte sentiu um calafrio, como se alguém tivesse aberto a porta do jardim em um dia de inverno. Não tinha pensado em sua integridade pessoal. Toda sua inquietação se concentrou em Emily, no temor a que descobrisse as debilidades, o egoísmo do George. Não tinha pensado na violência de que podia ser vítima Emily, para não falar dela mesma. Mas se existia no Paragon Walk um segredo tão espantoso para que Fulbert perdesse a vida só por conhecê-lo, uma curiosidade visível representava um perigo e o descobrimento da verdade podia ter conseqüências funestas. Indubitavelmente esse segredo não era outro que a identidade do violador. Tinha matado a Fanny para silenciá-la. Não podia haver dois assassinos no Paragon Walk, ou sim?

Era possível que Fulbert tivesse tropeçado com um segredo diferente e que a vítima, estimulada por esse assassinato até agora impune, limitasse-se a aplicar a mesma solução a seu problema? Thomas havia dito que o crime gerava crime. As pessoas tendiam a imitar, sobre tudo as fracas e de mente doente.

― Ouve-me, Charlotte? ― disse Vespasia com certa brutalidade.

― OH, sim, ouço-a! ― Charlotte retornou ao presente, ao salão ensolarado e à velha dama vestida com rendas de cor crua sentada frente a ela. — Unicamente falo do tema com o Thomas. Mas que mais? Quero dizer, que outros segredos conhece?

― Não penso contar-lhe — grunhiu Vespasia.

― Não deseja saber a verdade? ― Charlotte a olhou sem pestanejar.

― É claro que sim! ― replicou Vespasia. — E se morrer por isso, na minha idade pouco importa. De qualquer modo, logo terei que morrer. Se soubesse algo que pudesse ser de ajuda, acha que não o haveria dito já? Não a você, claro, mas a seu extraordinário policial. ― Tossiu. — George esteve paquerando com a Selena. Não tenho provas, mas conheço o George. De menino brincava com os brinquedos de outros meninos quando gostava, e comia os doces de outros meninos. Sempre devolvia os brinquedos e era muito desprendido com suas coisas. Cresceu acostumado a que tudo o que lhe rodeava lhe pertencia. Esse é o problema com os filhos únicos. Tem um filho, verdade? Bem, pois tenha outro!

Charlotte não achou uma resposta adequada. Estava disposta a ter outro filho quando o Senhor o decidisse. Mas em qualquer caso sua preocupação nesse momento era Emily.

Vespasia o adivinhou.

― George sabe que sei ― disse com suavidade. — Atualmente está muito assustado para cometer imprudências. De fato, empalidece cada vez que Selena se aproxima, o que só faz quando deseja pôr a prova ao francês e lhe demonstrar que tem outros pretendentes. Grande estúpida! Como se lhe importasse!

― Que outros segredos conhece? ― insistiu Charlotte.

― Nenhum de importância. Duvido que a senhorita Laetitia faça mal a alguém porque este tivesse descoberto que teve um idílio escandaloso faz trinta anos.

Charlotte ficou atônita.

― A senhorita Laetitia? Laetitia Horbury?

― Sim. Pouca gente sabe, mas naquela época foi um escândalo. Não notou que a senhorita Lucinda sempre está lhe lançando observações mordazes sobre moralidade? A pobre se corrói de inveja. Se Laetitia tivesse sido assassinada, o teria entendido. Sempre pensei que Lucinda não duvidaria em envenená-la se tivesse coragem. Embora sem ela estaria perdida. Seu principal entretenimento é conceber novas formas de demonstrar sua superioridade moral.

― Sabe Laetitia que o da Lucinda é só inveja?

― Deus santo, não! Jamais falaram do assunto. Cada uma pensa que a outra   não sabe. Onde estaria a graça se não houvesse nada que ocultar?

Charlotte se debatia de novo entre a pena e a risada. Mas como Vespasia bem havia dito, este último não constituía um segredo pelo que Fulbert tivesse perdido a vida. Mesmo que toda a alta sociedade o descobrisse, mal prejudicaria à senhorita Laetitia. De fato, pode ser que inclusive aumentasse seu atrativo. A senhorita Lucinda seria quem sofreria as comparações, em cujo caso é possível que seus ciúmes tornassem insuportáveis.

Antes que Charlotte pudesse se aprofundar no tema, Emily retornou da cozinha doída e zangada. Pelo visto, tinha tido uma briga com a criada. A moça estava terrivelmente assustada porque achava que o engraxate a perseguia e Emily lhe havia dito que isso era uma estupidez. A moça era tão insossa como uma caixa de cartão e o engraxate aspirava a algo melhor.

Vespasia lhe recordou que lhe tinha aconselhado que não fosse, o que só acrescentou lenha ao candente gênio do Emily.

Charlotte se desculpou logo que pôde e Emily solicitou mal-humorada uma carruagem para acompanhá-la a casa.

Charlotte se apressou a obsequiar ao Pitt com toda a informação que tinha recolhido, junto com uma avaliação pessoal da mesma, assim que apareceu pela porta. Pitt sabia que quase toda essa informação, embora transcendental para aqueles a quem concernisse, supunha meras trivialidades para o caso, mas mesmo assim a teve presente em sua mente quando, no dia seguinte, saiu de casa para prosseguir com suas indagações.

Ainda não havia rastro do Fulbert. A polícia tinha achado sete cadáveres no rio, entre eles duas mulheres, certamente prostitutas, e um menino que provavelmente tinha caído por acidente e não teve forças para pedir auxílio, certamente uma boca não desejada que alimentar, enviada a mendigar assim que teve idade para falar inteligivelmente. Os outros quatro eram homens mas, como o menino, vagabundos e proscritos esquálidos. Nenhum deles podia ser Fulbert.

A polícia tinha revistado todos os hospitais e depósitos de cadáveres, assim como os asilos para pobres. A seção da polícia especializada em fumantes de ópio e bordéis tinha recebido a ordem de manter os olhos e os ouvidos bem abertos ― fazer perguntas teria sido uma perda de tempo― , mas não tinha achado o mínimo indício do Fulbert. A revista dos bairros pobres constituía, evidentemente, uma tarefa impossível. A julgar pelos resultados das indagações efetuadas até o momento, Fulbert Nash tinha desaparecido da face de Londres.

Por conseguinte, ao Pitt somente ficava retornar ao Paragon Walk e voltar a empreender a investigação dali. De modo que as nove em ponto da manhã se achava na sala matutina de lorde Dilbridge, aguardando que sua senhoria se dignasse aparecer, o que fez um quarto de hora mais tarde. Tinha um aspecto extraordinariamente bonito ― por obra de seu valete ― , mas seu rosto mostrava um ar distraído e bem desalinhado. Ou estava indisposto ou tinha passado uma noite frenética. O homem olhou fixamente ao Pitt, como se não conseguisse recordar o nome que lhe tinha dado o lacaio.

― Sou o inspetor Pitt, da polícia — ajudou-o.

Freddie piscou e a irritação se concentrou em seus olhos.

― Por todos os Santos! Veio outra vez para falar da Fanny? A pobre menina se foi e a estas alturas o canalha que a matou estará muito longe daqui. Não sei que demônios espera que façamos a respeito. Os bairros pobres de Londres estão repletos de ladrões e malandros. Se vocês fizessem seu trabalho como é devido e detivessem algum deles em lugar de fazer perguntas estúpidas por aqui, já teriam o caso resolvido. ― Piscou e tirou algo do olho. — Embora reconheça que deveríamos ter mais cuidado na hora de contratar a nossos criados. Mas lhe asseguro que não posso fazer nada mais por você, e ainda menos a esta hora da manhã.

— Senhor ― Pitt tinha finalmente a oportunidade de falar sem necessidade de interromper― , não vim pela senhorita Nash, mas sim pelo senhor Fulbert Nash. Ainda não há rastro dele...

― Procure nos hospitais ou no depósito de cadáveres ― sugeriu Freddie.

― Já o fizemos, senhor ― respondeu pacientemente Pitt. — E nos asilos para pobres, nas salas de fumo de ópio, nos bordéis e no rio. E também nas estações ferroviárias e no porto. Perguntamos aos patrões das barcaças, de Greenwich até o Richmond, e à maioria dos taxistas, mas ninguém o viu.

― Isso é ridículo! ― replicou irritado Freddie. Tinha os olhos sanguinolentos e não cessava de piscar. Enrugou a fronte, tratando de pensar com clareza. — Tem que estar em alguma parte. Não pode ter desaparecido!

― Estou de acordo ― concordou Pitt. — E como não demos com ele, vi-me obrigado a retornar ao Paragon Walk para tratar de deduzir onde pode estar ou, pelo menos, por que se foi.

― Por quê? ― perguntou Freddie surpreso. — Bem, suponho que... enfim... já não sei o que suponho. Em realidade não dei muitas voltas ao tema. Não devia dinheiro, não é? Os Nash, conforme acredito, sempre foram gente abastada, mas dado que Fulbert é o irmão menor, possivelmente não tenha tanto dinheiro.

― Comprovamo-lo, senhor. O banco nos permitiu consultar suas contas e possui bons recursos. O senhor Afton Nash assegura que seu irmão não tinha problemas econômicos. Tampouco deve dinheiro em nenhum clube de jogo.

Freddie pareceu inquietar-se.

     ― Não sabia que poderia interferir nessas coisas! O que um homem joga é assunto dele.

― Certamente, senhor, mas quando se trata de um desaparecimento e, possivelmente, de um assassinato...

― Assassinato? Acredita que Fulbert foi assassinado? Enfim... ― Fez uma careta de desgosto e se sentou com brusquidão. Olhou ao Pitt. — Enfim, imagino que no fundo todos o suspeitávamos. Fulbert sabia muito e sempre foi muito ardiloso. Entretanto, não o bastante para fingir que não o era tanto.

― Explicou-se muito bem, senhor ― sorriu Pitt. — O que em realidade precisamos é saber qual de suas ardilosas observações foi a que acabou com sua vida. Sabia Fulbert quem tinha violado a Fanny? Ou se tratava de outro assunto, de algo que de fato ignorava mas que insinuou que sabia?

Freddie franziu o sobrecenho, mas sua tez empalideceu, deixando descoberto os capilares quebrados. Então falou sem olhar ao Pitt.

― Não o entendo! Se realmente não sabia nada, que sentido tinha matá-lo? Um pouco arriscado, não lhe parece?

— Se Fulbert Nash ― explicou pacientemente Pitt ― houvesse dito a alguém "conheço seu segredo" ou algo parecido, não teria necessitado contá-lo. Se o assunto era realmente perigoso, a pessoa não teria esperado a comprovar se Fulbert falava ou não.

― Ah. Quer dizer que o teria matado de qualquer modo, para assegurar-se.

― Assim é, senhor.

― Tolices! Possivelmente corram por aqui algumas história estranha, mas nada verdadeiramente perverso. Meu Deus! Vivi no Paragon Walk durante anos, sempre na temporada social, claro, alguma vez no inverno, compreende? ― O suor começou a aparecer pela testa e lábios. Freddie sacudiu a cabeça, como se quisesse limpá-la e expulsar as idéias desagradáveis. Instantes depois, seu rosto se iluminou. — Nunca imaginei que existisse alguém assim. Aconselho-lhe que vigie ao francês, é a única pessoa que não conheço. ― Agitou as mãos, como se Pitt fosse uma pequena moléstia que pudesse afastar. — Se diria que goza de muitos meios e boas maneiras, embora um pouco afetados para meu gosto. Mas ignoro de onde procede. Muito complacente com as mulheres. E agora que o penso, nunca nos disse de onde era sua família. Sempre se deve desconfiar de um homem cuja família não se conhece. Vigie-o, esse é meu conselho. Fale com a polícia francesa, talvez possa lhe ajudar.

Era algo no que Pitt não tinha pensado, e mentalmente se repreendeu pelo descuido, sobre tudo porque tinha sido preciso um idiota como Freddie Dilbridge para lhe fazer cair na conta.

― Assim o faremos, senhor.

― Tendo em conta o pouco que sabemos, bem poderia tratar-se de um violador francês. ― Freddie ergueu a voz à medida que se entusiasmava com a idéia, orgulhoso de sua sagacidade. — Possivelmente Fulbert o descobriu. Esse sim seria um bom motivo para acabar com ele, não lhe parece? Sim, averigue que fazia o senhor Alaric antes de vir ao Paragon Walk. Garanto-lhe que ali achará a resposta. Garanto! Agora, se não se importar, eu gostaria de tomar o café da manhã. Encontro-me com fome.

Grace Dilbridge tinha um ponto de vista muito diferente sobre o tema.

― OH, não! ― disse imediatamente. — Freddie não se encontra bem esta manhã, do contrário não lhe teria sugerido semelhante coisa. É muito leal. Resiste a acreditar que seus amigos sejam algo mais que uns... indecorosos. Mas lhe asseguro que o senhor Alaric é o mais civilizado e encantador dos homens. Fanny, a pobre, achava-o bastante irresistível, e também minha filha antes de apaixonar-se pelo senhor Isaac. Não sei o que vou fazer com ela! ― Grace Dilbridge corou ao perceber que tinha mencionado um assunto pessoal diante de um homem que, ao fim e ao cabo, não era mais que um empregado. — Mas com certeza lhe passará ― apressou-se a acrescentar. — É sua primeira temporada social e é natural que os homens a admirem.

Pitt sentiu que estava perdendo o fio e tentou recuperá-lo.

— O senhor Alaric...

― Absurdo! ― repetiu com firmeza a senhora Dilbridge. — Meu marido conhece os Nash há anos e, como é lógico, resiste a admitir que Fulbert tenha fugido porque abusasse da pobre Fanny. Em minha opinião, Fulbert a confundiu com uma criada na escuridão, e quando descobriu quem era e que o tinha reconhecido, não teve mais remédio que matá-la para que não falasse. É simplesmente horrível! Sua própria irmã! Mas os homens são às vezes horríveis, é sua natureza, e assim foi desde o Adão. Somos fruto do pecado, e alguns de nós não conseguimos superá-lo.

Pitt tratou em vão de procurar uma resposta apropriada, embora sua mente se achasse nesse momento concentrada em uma nova idéia: a possibilidade de que Fulbert tivesse confundido a Fanny com uma criada, uma ajudante de cozinha ou alguém que jamais teria ousado acusar de abusos a um cavalheiro ou que, de fato, não tivesse se importado e inclusive o tivesse animado a fazê-lo. Então Fulbert se deu conta de que era sua própria irmã. O horror e a desonra não só da violação mas também do incesto teriam induzido a muitos homens ao assassinato. E isso era aplicável aos três irmãos Nash. A mente do Pitt começou a dar voltas ante a enormidade dessa possibilidade, ante a nova dimensão que acabava de adquirir o caso. Uma atrás de outra, diferentes perspectivas vinham a sua imaginação, abandonando-se à deriva. Uma vez mais, era preciso abordar o problema desde o começo.

Grace continuava falando, mas ele já não a escutava. Necessitava tempo para pensar, sair ao sol da manhã e reordenar debaixo desse novo enfoque toda a informação que possuía. Levantou-se. Sabia que estava interrompendo à senhora Dilbridge, mas não havia outro modo de escapar.

― Foi de grande ajuda, lady Dilbridge, estou-lhe extremamente agradecido.

Esboçou um sorriso radiante enquanto a senhora Dilbridge o olhava atônita. Dirigiu-se pressuroso ao vestíbulo e saiu pela porta principal. A criada que estava limpando o degrau se viu obrigada a retroceder, levando a vassoura ao ombro como um soldado apresentando armas.

Depois de uma longa, calorosa e agitada semana, Charlotte anunciou a seu marido que Emily ia celebrar um serão. Pitt ignorava no que consistia um serão. Só sabia que se celebrava pela tarde e que Charlotte tinha sido convidada. Estava impaciente por receber notícias de Paris sobre o Paul Alaric e preocupado pelos inumeráveis detalhes que tinha averiguado ― ajuda de bom grado e o olho atento do Forbes ― sobre as vidas pessoais do Paragon Walk, desde que começara a investigar o caso do ponto de vista sugerido pelo Grace Dilbridge. Ao que parecia, se tinha que acreditar o que lhe contavam, existiam muitas mais relações, de diferentes naturezas, das que tinha suspeitado. Freddie Dilbridge era bastante célebre. Pelo visto, em uma de suas festas mais desenfreadas tinha ocorrido algo confidencial e emocionante para aqueles que tomaram parte nela. E Diggory Nash tinha cedido à tentação em mais de uma ocasião. Especulava-se muito sobre o Hallam Cayley, sobre tudo desde o falecimento de sua esposa, mas Pitt ainda não conseguia distinguir as mentiras das fantasias, e ainda tinha menos idéia de quanto havia de verdade em todo isso. George, pelo menos, tinha tido a prudência de manter seus caprichos afastados das dependências da criadagem, mas era indubitável que havia sentido uma atração pela Selena de tudo correspondida, fato que doeria profundamente em Emily se algum dia chegasse a descobri-lo. Quanto ao Paul Alaric, se havia algo mais que sonhos com respeito a ele ninguém estava disposto a confessar.

Pitt teria gostado de descobrir algo contra Afton Nash, pois o homem lhe era repulsivo. Embora não era do agrado das criadas, nenhuma insinuou que o senhor lhe tivesse dispensado um tratamento familiar.

Quanto ao Fulbert, corriam rumores, insinuações, mas desde seu desaparecimento a só menção de seu nome gerava um histerismo tão exacerbado que Pitt não sabia o que pensar. Paragon Walk ao completo fervia de imaginação. A abatida monotonia dos trabalhos diários, que abrangia da infância até a tumba, se fazia suportável graças aos romances e fofocas que geravam risinhos sufocados, trocados em minúsculas águas-furtadas quando o longo dia tocava a seu fim. Agora assassinos e sedutores doentes de luxúria se escondiam em cada sombra, e o medo, um vago desejo e a realidade formavam um matagal inescrutável.

Pitt não esperava que Charlotte averiguasse algo útil na festa do Emily. Estava convencido de que a resposta aos assassinatos jazia nas dependências da criadagem, longe de Charlotte ou de Emily, de modo que se limitou a lhe desejar que se divertisse e a lhe ordenar firmemente que não se misturasse em assuntos alheios e se abstivesse de fazer perguntas ou comentários que se desviassem da mais corriqueira das conversas.

Ela disse "De acordo, Thomas" com grande doçura, o que, se Pitt não tivesse estado tão absorto em seus pensamentos, lhe teria seria suspeito.

O sarau foi muito formal e Charlotte não cabia de gozo no vestido que Emily tinha mandado fazer para ela como presente. De seda amarela, ajustava-se perfeitamente a seu corpo e era de uma beleza arrebatadora. Quando cruzou a soleira com a cabeça bem alta e o rosto resplandecente, surpreendeu-se de que só meia dúzia de pessoas se voltassem para olhá-la. Tinha esperado que os convidados interrompessem suas conversas e a contemplassem atônitos. Contudo, reparou que Paul Alaric estava entre esses poucos. Tinha visto sua elegante cabeça desviar-se da Selena para olhar para onde ela estava. Percebeu que o rubor lhe queimava as faces e ergueu um pouco mais o queixo.

Emily se aproximou para recebê-la e Charlotte foi arrastada a uma multidão de mais de cinquenta comensais e introduzida em uma conversa. Era impossível manter um bate-papo em particular. Emily dirigiu a sua irmã um olhar largo e firme que a ameaçava para comportar-se com correção e a pensar antes de falar. Instantes depois, Emily foi requerida para receber a outro convidado.

― Emily convidou a um jovem poeta para que nos leia algumas de suas composições ― disse Phoebe com uma alegria quebradiça. — ouvi que sua obra é extremamente provocadora. Espero que sejamos capazes de compreendê-la, assim teremos um tema de que falar.

― Confio em que não seja vulgar — se apressou a acrescentar a senhorita Lucinda― , nem atrevida. Viram esses terríveis desenhos do senhor Beardsley?

Charlotte teria gostado de comentar a obra do senhor Beardsley, mas não tinha visto seus desenhos nem ouvido falar dele.

― Não imagino ao Emily convidando a alguém sem estar segura de antemão de que não é uma coisa nem outra ― respondeu com voz cortante. — Mesmo assim, não podemos controlar o que os convidados dizem ou fazem uma vez que vieram. O mais que podemos fazer é empregar nosso melhor julgamento na hora de escolhê-los.

― Certamente. ― Lucinda avermelhou levemente. — Só pretendia insinuar que é uma questão de sorte.

Charlotte se manteve imperturbável.

― Acredito que este poeta não é romântico, mas político.

— Será interessante ― disse esperançada a senhorita Laetitia. — Me pergunto se escreveu algo sobre os pobres ou a reforma social.

― Suponho que sim. ― Charlotte se alegrava de ter atraído a atenção da senhorita Laetitia. Gostava dessa mulher, sobre tudo depois de que Vespasia lhe falara de seu idílio escandaloso. — Os escritores são quem melhor conseguem mover a consciência da gente ― acrescentou.

― Em minha opinião, não temos nada de que nos envergonhar ― protestou a voz de uma fornida anciã de mandíbula longa e milagrosamente metida em um vestido azul pavão. A Charlotte recordou um pequinês, porém bastante maior, e imaginou que era lady Tamworth, a convidada permanente das senhoritas Horbury, mas ninguém a apresentou. — A pobre Fanny foi vítima dos tempos atuais ― prosseguiu com tom elevado. — Os valores morais começam a desmoronar-se em todas as partes, inclusive aqui!

― Não acredita que é dever da Igreja falar com as consciências dos homens? ― perguntou a senhorita Lucinda torcendo ligeiramente o nariz, embora não ficasse claro se sua repulsa ia dirigida à opinião política do Charlotte ou ao fato de que lady Tamworth tivesse trazido à baila o tema da Fanny.

Charlotte ignorou a observação a respeito da Fanny, ao menos de momento. Pitt não havia dito que devia evitar o debate político, embora seu pai o tivesse totalmente proibido. Mas ela, agora, não era problema para seu pai.

― Talvez fosse a própria Igreja a que fomentou o desejo deste poeta de falar do modo que melhor sabe ― sugeriu inocentemente.

― Não lhe parece que está usurpando o papel da Igreja? ― perguntou a senhorita Lucinda franzindo o sobrecenho. — E aqueles que são chamados por Deus para esse fim o fariam muito melhor?

― É possível. ― Charlotte estava decidida a mostrar-se razoável. — Mas isso não significa que outros não devam fazê-lo. Quanto mais vozes melhor, não acha? Há muitos lugares onde a voz da Igreja não se ouve. Possivelmente este poeta consiga chegar a eles.

― Então, o que está fazendo aqui? ― inquiriu a senhorita Lucinda. — É evidente que Paragon Walk não é um desses lugares! Seria mais útil em um subúrbio ou em um asilo para pobres.

Afton Nash se uniu ao grupo arqueando as sobrancelhas, assombrado pelo acalorado comentário da senhorita Lucinda.

― A quem pretende enviar ao asilo de pobres, senhorita Horbury? ― perguntou, olhando por um instante Charlotte.

― Tenho certeza de que as pessoas dos bairros pobres e os asilos para pobres já estão convencidos da necessidade de levar a cabo uma reforma social e de ajudar aos necessitados ― disse Charlotte com uma ligeira careta. — São os ricos quem devem dar. Os pobres receberiam de boa vontade. São os poderosos quem podem mudar as leis.

Lady Tamworth arqueou as sobrancelhas em um gesto de surpresa e leve desprezo.

― Insinua que a culpa a tem a aristocracia, a pedra angular deste país?

Charlotte não tinha intenção de bater-se em retirada por cortesia ou porque fosse impróprio de uma mulher criar polêmica.

― Digo que é inútil pregar aos pobres que deveriam receber ajuda ― respondeu ― , ou aos desempregados e analfabetos que as leis devem reformar-se. Só as pessoas poderosas e com dinheiro podem mudar as coisas. Se a Igreja tivesse chegado a elas, faz muito tempo que teríamos conseguido nossa reforma e os pobres teriam trabalho para cobrir suas necessidades.

Lady Tamworth olhou ferozmente ao Charlotte e lhe deu as costas, fingindo que a conversa lhe era muito desagradável para continuar nela, embora Charlotte soubesse que o fazia porque não lhe ocorria nenhuma resposta. O semblante da senhorita Laetitia se iluminou com um delicado brilho de satisfação, e olhou fugazmente ao Charlotte antes de afastar-se também.

― Minha querida senhora Pitt ― disse pausadamente Afton, como se falasse com alguém desconhecedor de seu idioma ou ligeiramente surdo. — Você não sabe de política nem de economia. As coisas não podem mudar da noite para o dia.

Phoebe se somou ao grupo, mas seu marido a ignorou por completo.

― Os pobres são pobres precisamente porque não têm os meios ou à vontade para não sê-lo ― prosseguiu Afton. — Não podemos despojar aos ricos de seus bens para alimentar aos pobres. Seria tão insensato como verter água na areia de um deserto. Há milhões de pobres! O que você sugere não tem sentido. ― Sorriu à Charlotte com condescendência.

Charlotte estava instigada e teve que fazer um esforço para controlar-se e fingir um ar de genuíno interesse.

― Mas se os ricos e poderosos são incapazes de mudar as coisas ― disse ― , para quem prega a Igreja e com que fim?

― Como diz? ― Afton não dava crédito a seus ouvidos.

Charlotte repetiu a pergunta, sem atrever-se a olhar ao Phoebe e à senhorita Lucinda.

Afton estava arranjando uma resposta a tão desatinada pergunta quando uma voz se adiantou, uma voz suave com um ligeiro acento estrangeiro.

― Aos ricos, porque é bom para nossas almas dar um pouco. Desse modo podemos desfrutar do que temos e dormir com a consciência tranquila, já que podemos nos dizer que o tentamos, que contribuímos nosso grão de areia. Mas, querida, nunca o fazemos com a esperança de que as coisas mudem realmente.

Charlotte notou que o rubor subia às faces. Ignorava que Paul Alaric estivesse tão perto e tivesse escutado sua discussão com o Afton e a senhorita Lucinda. Não se voltou para olhá-lo.

― É um cínico, senhor Alaric ― disse, e engoliu em seco. ― Realmente nos considera tão hipócritas?

― Nós? ― disse Alaric, erguendo levemente a voz. — Assiste aos ofícios e se sente melhor por isso, senhora Pitt?

Charlotte não sabia o que responder. Indubitavelmente não era assim. Os sermões, nas raras ocasiões em que ia à igreja, enfureciam-na e despertavam nela o desejo de polemizar. Mas não podia dizê-lo em presença do Afton Nash e esperar sua compreensão. Além disso, com isso só conseguiria ferir o Phoebe. Amaldiçoou ao Alaric por fazer dela uma hipócrita.

― É claro ― mentiu e viu, agradecida, que o rosto angustiado do Phoebe se suavizava.

Charlotte não tinha nada em comum com o Phoebe, e entretanto uma pontada de pena a assaltava cada vez que recordava seu semblante pálido e insosso, possivelmente porque podia imaginar todo o dano que Afton era capaz de infligir com sua língua cruel e afiada.

Voltou-se para encarar Alaric e se estremeceu de novo ao perceber em seus olhos que compreendia perfeitamente o motivo dessa mentira. Sabia que Charlotte não pertencia ao mundo dos ricos, que estava casada com um policial e mal conseguia chegar ao fim do mês, que seu precioso vestido era um presente de Emily? E que toda a discussão sobre a necessidade de dar aos pobres era pura teoria para ela?

O semblante do Alaric só mostrava um encantador sorriso.

― Desculpem ― disse friamente Afton, quase puxando Phoebe. A mulher o seguiu, caminhando como se tivesse as pernas doloridas e fracas.

― Uma mentira muito piedosa ― murmurou Alaric.

Charlotte não o escutava. Sua mente estava concentrada no Phoebe e em seu modo penoso, quase reservado de andar, como se tratasse de evitar o toque do Afton. Acaso esse distanciamento instintivo, como a mão abrasada que se separa do fogo, devia-se a incontáveis anos de dor? Ou tinha descoberto Phoebe algo novo, até agora apoiado unicamente na intuição? Existia alguma lembrança que a inquietava, uma mudança no Afton, uma mentira passada, possivelmente algo entre ele e Fanny? Não, constituía uma obscenidade muito atroz para sequer imaginar. Entretanto, não era impossível. Talvez na escuridão não tivesse distinguido à moça, só a uma mulher a quem ferir. E Afton desfrutava infligindo dor, estava tão certa disso como o animal que percebe com o olfato a seu predador. Sabia Phoebe? Por isso passeava assustada pelo patamar de sua casa e chamava o lacaio às noites?

Alaric aguardava sereno, mas com cenho inquisitivo. Charlotte tinha esquecido suas palavras,

― Como disse? ― viu-se obrigada a perguntar.

― Uma mentira muito piedosa ― repetiu Alaric.

― Mentira?

― Dizer que assistir ao ofício a faz sentir-se melhor. Resisto a acreditá-lo. Você é como um livro aberto, não possui o encanto do mistério. Todo seu atrativo reside, justamente, em que seu interlocutor nunca sabe que verdade devastadora dirá a seguir. Acredito que nem sequer seria capaz de enganar-se a si mesma.

O que queria dizer com isso? Charlotte preferiu não saber. A honestidade era sua única qualidade e sua única arma contra Alaric.

— O êxito da mentira depende em grande medida de que o ouvinte deseje acreditar ou não ― respondeu.

Alaric sorriu lenta e docemente.

― E é aí onde se apóiam os alicerces da alta sociedade ― concordou ele. — É você agudamente perceptiva. Aconselho-a: mantenha o segredo ou acabará lhes arruinando o jogo, e então a que se dedicarão?

Charlotte engoliu em seco e se negou a olhar ao Alaric nos olhos. Com cautela, devolveu a conversa ao ponto anterior.

― Às vezes minto muito bem.

— O que nos leva de novo aos sermões dos ofícios, a essas cômodas mentiras que repetimos uma e outra vez porque desejamos que sejam verdade. Estou impaciente por ouvir o que tem que dizer o poeta de lady Ashworth. Estejamos ou não de acordo com seus versos, acredito que os rostos da audiência serão todo um poema, não lhe parece?

― Provavelmente ― respondeu Charlotte― , e me atrevo a dizer que suas palavras proporcionarão um motivo de indignação durante semanas.

― OH, certamente. Teremos que fazer muito ruído para nos convencer uma vez mais de que temos razão e de que nada pode ou deveria mudar.

Charlotte ficou rígida.

― Não tente me qualificar de cínica, senhor Alaric, eu detesto o cinismo. Em minha opinião se trata mais de uma desculpa fácil. A pessoa finge que não pode fazer nada e isso lhe serve de justificação para não fazer nada. É outra forma de fraude, mas ainda mais detestável.

Alaric a surpreendeu com um sorriso aberto e franco.

― Nunca achei que uma mulher pudesse me desconcertar, mas você acaba de fazê-lo. É terrivelmente honesta. É impossível enredá-la.

― Era isso o que pretendia? ― por que demônios se sentia tão adulada? Era ridículo!    

   Antes que Alaric pudesse responder, Jessamyn se aproximou deles com o rosto imaculado como uma camélia e seus frios olhos arrasaram ao Alaric antes de posar-se em Charlotte. Eram grandes, de um azul brilhante, e inteligentes.

― Que prazer voltar a vê-la, senhora Pitt! Não esperava que nos visitasse tão freqüentemente. Não sentem sua falta em seu círculo?

Charlotte olhou ao Jessamyn sem pestanejar, sorrindo a seus olhos maravilhosos.

― Isso espero ― respondeu com naturalidade. — Mas desejo estar ao lado de Emily até que este trágico assunto se resolva.

Jessamyn exibia maior serenidade que Selena. As feições de seu rosto se suavizaram e seus lábios carnudos esboçaram um cálido sorriso.  

― É muito generosa. Contudo, tenho certeza de que desfruta da mudança.

Charlotte captou a indireta, mas manteve a expressão ingênua. Não tinha o dom da astúcia, mas sabia que se atraíam mais moscas com mel que com vinagre.

― OH, certamente. Em meu bairro não ocorrem fatos tão dramáticos como aqui. Acredito que faz anos que não se produz uma violação ou um assassinato. De fato, acredito que nunca os houve.

Paul Alaric extraiu um lenço e fingiu espirrar. Charlotte percebeu que os ombros lhe tremiam de risada e seu rosto se acendeu de júbilo.

Jessamyn estava lívida. Sua voz, quando finalmente respondeu, soou frágil:

― E imagino que tampouco terão saraus como este. Se me permitir um conselho de amiga, mova-se, fale com todo mundo. É uma norma de boa educação, sobre tudo se se é a anfitriã ou existe um parentesco com ela. Não deve mostrar abertamente sua preferência por um convidado em concreto... embora essa preferência exista.

O golpe tinha sido perfeito. Charlotte não tinha mais opção que partir. O calor lhe abrasou o decote e o pescoço ao pensar que Alaric podia imaginar que ela procurava sua companhia. Para cúmulo, com seu sobressalto não fazia mais que confirmá-lo. Estava furiosa e jurou que demonstraria ao Alaric que ela não era uma dessas estúpidas mulheres que se dedicavam a persegui-lo. Sorrindo com tensão, desculpou-se e se afastou com a cabeça tão alta que esteve aponto de tropeçar com o degrau que separava os dois salões, e ainda se achava recuperando o equilíbrio quando se chocou com lady Tamworth e a senhorita Lucinda.

― OH, quanto o sinto! ― balbuciou.

Lady Tamworth olhou ao Charlotte, consciente sem dúvida do rubor e a estupidez de seu porte. Em seu rosto se refletiu sua opinião sobre as mulheres que bebiam muito pela tarde.

A senhorita Lucinda, que tinha outras coisas na cabeça, pegou bruscamente Charlotte com sua mão pequena e roliça.

― Querida, posso lhe perguntar em confiança se lady Ashworth conhece o judeu?

Os olhos de Charlotte seguiram o olhar da senhorita Lucinda até um jovem magro de tez cítrica e traços morenos.

― Ignoro-o ― respondeu olhando lady Tamworth. — Se quiserem, posso perguntar-lhe.

As mulheres não pareciam desconcertadas.

― Faça-o, querida. Além de tudo, é possível que lady Ashworth não saiba quem é.

― É possível ― concordou Charlotte. — Quem é?

Lady Tamworth a olhou desconcertada.

― Como? É um judeu ― disse.

― Sim, isso já o disse.

Lady Tamworth grunhiu. A senhorita Lucinda fez uma careta de desgosto e franziu o sobrecenho.

― Agradam-lhe os judeus, senhora Pitt?

― Não era Cristo judeu?

— Senhora Pitt! — lady Tamworth tremeu de indignação. — Aceito que as jovens gerações tenham valores morais diferentes dos nossos ― olhou novamente o pescoço ainda aceso do Charlotte ― , mas se algo não tolero é a blasfêmia.

― Não é nenhuma blasfêmia, lady Tamworth ― disse Charlotte. — Cristo era judeu.

― Cristo era Deus, senhora Pitt! ― respondeu com aspereza lady Tamworth. — E Deus certamente não é judeu.

Charlotte não sabia se se zangava ou punha-se a rir. Alegrava-se de que Alaric não a ouvisse.

― Não o é? ― disse com um suave sorriso. — Em realidade, nunca parei para pensar nisso. O que é então?

― Um cientista louco ― disse Hallam Cayley por cima do ombro do Charlotte. Levava um copo na mão. — Um Frankenstein que não soube deter-se a tempo! O experimento foi saiu pouco das mãos, não lhes parece? ― Olhou em redor com expressão de profundo desgosto.

Lady Tamworth apertou os dentes, impotente. A raiva a tinha deixado sem fala.

Hallam a olhou com desprezo.

― Realmente acredita que era isto o que Deus pretendia? ― Apurou o copo e o agitou assinalando a sala. — Pertence este condenado grupo a algum Deus digno de adoração? Se descermos de Deus, realmente descendemos até o mais fundo. Acredito que prefiro a opinião do senhor Darwin. Segundo ele, pelo menos vamos melhorando. Dentro de um milhão de anos talvez sirvamos para algo.

Finalmente, a senhorita Lucinda recuperou a fala.

― Fale por você, senhor Cayley ― disse com dificuldade, como se também ela estivesse um pouco ébria. — Eu, por minha parte, sou cristã e não tenho dúvidas.

― Dúvidas? ― Hallam contemplou seu copo vazio e o voltou. Sobre o tapete caiu uma gota. — Tomara eu tivesse dúvidas. A dúvida pelo menos contém espaço para a esperança, não lhes parece?

 

O sarau foi um êxito. O poeta falou com brilhantismo. Sabia exatamente como provocar o entusiasmo, fazer insinuações atrevidas e gerar pensamentos de réplica feroz em outros, sem, por outro lado, perturbar desagradavelmente suas consciências. Oferecia a emoção do perigo intelectual sem nada de sua dor.

Foi acolhido com ardor, e estava claro que ia ser tema de conversa durante as semanas vindouras. Inclusive no verão seguinte o assunto teria que ser recordado como um dos acontecimentos mais interessantes da temporada social.

Mas quando o sarau chegou a seu fim e os últimos convidados partiram, Emily estava muito cansada para saborear sua vitória. Tinha sido mais exaustivo do que imaginara. Tinha as pernas fatigadas de ter passado tanto tempo de pé e as costas lhe doíam. Quando ao fim se sentou, deu-se conta de que tremia ligeiramente e apenas lhe importava que a festa tivesse sido um êxito sonoro. A realidade não tinha mudado. Fanny Nash continuava violada e assassinada, Fulbert continuava desaparecido, e nenhuma das possíveis respostas era fácil ou agradável de suportar. Estava muito cansada para acreditar ainda que o culpado fosse um estranho que nada tinha que ver com suas vidas. Era alguém do Paragon Walk. Todo mundo escondia pequenos segredos corriqueiros ou sórdidos, o lado desagradável da própria existência que a maioria da gente conseguiria continuar ocultando. Naturalmente, esses segredos se intuíam. Só um idiota acreditaria que nada se escondia atrás dos sorrisos superficiais. Mas a pessoa que ficava à margem do crime e da investigação podia permanecer silenciosamente em seus escuros esconderijos, segura de que ninguém a delataria. Existia um acordo tácito: o desejo de fazer vista grossa.

Mas com a polícia, em particular com alguém como Thomas Pitt, resolvesse ou não o verdadeiro crime, esses pequenos e incultos pecados seriam desentupidos cedo ou tarde. Não porque Thomas o desejasse mas sim porque Emily sabia, por sua experiência do Cater Street e Callander Square, que a pessoa tende a delatar-se, muitas vezes levada pela ansiedade de ocultar. Bastava uma palavra ou uma ação irrefletida ou motivada pelo pânico. Thomas era inteligente, semeava as sementes e esperava a que crescessem. Seus olhos ardilosos e divertidos viam muito... muito.

Emily se sentou em sua poltrona e estirou as costas, sentindo seu intumescimento. Era possível que a criatura que levava dentro começasse já a fazer-se notar? Percebia um obstáculo, uma perturbação. Possivelmente devesse seguir o conselho de tia Vespasia e afrouxar o espartilho, mas isso a faria parecer mais gorda e ela não era bastante alta para levar com graça o excesso de peso. Curiosamente, Charlotte tinha levado com bom porte o peso da Jemima. Mas Charlotte não se vestia na moda.

George estava sentado ao outro lado da sala, folheando nervosamente o jornal. Tinha felicitado a sua esposa pelo êxito do serão, mas agora evitava seu olhar. Não estava lendo, Emily sabia pelo ângulo de sua cabeça e pelo afetado empenho que punha em fixar a vista. Quando George lia de verdade se movia, alterava a expressão do rosto e de vez em quando sacudia as folhas, como se estivesse mantendo uma conversa com elas.

Desta vez empregava o jornal como amparo, para evitar falar. George era capaz de estar presente e ausente ao mesmo tempo.

Por quê? O que mais desejava Emily nesse momento era falar, embora fosse sobre trivialidades, simplesmente para sentir que ele desejava estar com ela. Não tinha certeza de que a resposta de George fosse terminar com sua angústia, mas não obstante queria que ele o dissesse, que pronunciasse as palavras tranquilizadoras. Então poderia repetir-las a si mesma uma e outra vez até assimilá-las.

George era seu marido, e seu filho quem a fazia sentir-se tão cansada e torpe e estranhamente excitada. Como podia continuar aí sentado, apenas a uns metros, e não adivinhar que ela desejava que falasse, que dissesse algo absurdo e otimista para sossegar o grito que a afogava?

― George!

Ele fingiu não ouvi-la.

― George! ― Desta vez a voz do Emily entranhava um ponto de histeria.

George levantou a vista. A princípio seus olhos castanhos expressaram inocência, como se sua mente seguisse concentrada no jornal. Depois se nublaram pouco a pouco, incapazes de evitar a evidência. Sabia que Emily lhe estava exigindo algo.

― Sim, querida?

Então Emily não soube o que dizer. A confiança, quando terá que pedi-la, deixa de ser tal. Teria preferido não dizer nada. O cérebro o dizia, mas a língua não lhe obedecia.

― Ainda não acharam ao Fulbert. ― Não era o que estava pensando, mas tinha que dizer algo.

Não ousava perguntar a seu marido do que tinha medo, o que era esse segredo que Pitt podia descobrir. Destruiria isso seu matrimônio? O divórcio era impensável, ninguém se divorciava, ao menos ninguém que se considerasse respeitável. Mas Emily tinha visto uma infinidade de matrimônios vazios, de civilizados acordos de compartilhar uma casa e um sobrenome. Quando tinha decidido casar-se com o George, pensou que a amizade e a aceitação do outro bastariam, mas não foi assim. acostumou-se ao carinho, à risada compartilhada, aos pequenos segredos, os silêncios prolongados e reconfortantes, inclusive a hábitos que tinham passado a formar parte da segurança e o ritmo de suas vidas.

Agora todo isso começava a desvanecer-se, como a maré que se afasta deixando a sua passagem extensões de areia e seixos.

— Sei ― respondeu ele, ligeiramente desconcertado.

Ela percebeu que George não compreendia o motivo de uma observação tão óbvia. Tinha que dizer algo mais para justificar-se.

― Acha que fugiu? ― perguntou. — A França, por exemplo?

― Por que ia fugir?

― Porque talvez foi ele quem matou Fanny!

George a olhou surpreso. Era evidente que não tinha considerado essa possibilidade.

― Fulbert não poderia matar Fanny ― disse com firmeza. — De fato, atrever-me-ia a dizer que também ele está morto. Talvez foi à cidade para jogar e sofreu um acidente. Essas coisas ocorrem.

― Não seja estúpido! ― exclamou Emily, perdendo finalmente a paciência. Era a primeira vez que ousava falar assim com seu marido.

George a olhou atônito e o jornal escorregou até o chão.

Emily se assustou. O que tinha feito? Ele a olhava agora fixamente, com os olhos bem abertos. Quis desculpar-se, mas tinha a boca seca e tinha perdido a voz. Aspirou profundamente.

― Talvez devesse subir e descansar um pouco ― disse ao fim ele, com serenidade. — Teve um dia muito duro. Estas festas são exaustivas. Pode ser que o calor tenha sido excessivo para você.

― Não estou doente! ― replicou Emily com fúria. Então, para seu aborrecimento, as lágrimas começaram a lhe escorregar pelas faces e se achou chorando como uma menina tola.

O semblante do George refletiu uma fugaz dor, que na hora deu passagem a um relaxamento absoluto. Claro, era a gravidez. Emily leu a resposta no rosto do George com a mesma clareza que se a tivesse pronunciado. Estava equivocado, mas não podia explicar-lhe. Deixou que George lhe ajudasse a levantar-se e a acompanhasse solicitamente até o primeiro piso. Emily seguia fervendo por dentro, as palavras formavam redemoinhos em seu interior e morriam antes de converter-se em frases. Mas era incapaz de controlar as lágrimas, e era agradável sentir o braço do George em torno de sua cintura, e certamente melhor que fazer o esforço por si só.

Mas quando Charlotte foi visitá-la na manhã seguinte, em grande parte para averiguar como se achava depois da festa, Emily se achava de um humor especialmente áspero. Não tinha dormido bem, e durante o tempo que tinha passado acordada na cama acreditou ouvir o George perambular pelo quarto contíguo. Em mais de uma ocasião pensou em levantar-se e ir perguntar lhe por que não dormia, o que o preocupava tanto.

Entretanto, pressentia que ainda não conhecia o bastante a seu marido para cometer o atrevimento de apresentar-se em seu quarto às duas da madrugada. Sabia que ele qualificaria o ato de ingênuo ou inclusive de impudico. E nem sequer tinha certeza de querer saber, possivelmente porque no fundo temia que lhe mentisse e ela pudesse ver além dos embustes e deixar-se assaltar por supostas verdades.

Assim, quando Charlotte apareceu esbelta e saudável, com o cabelo brilhante e aspecto juvenil apesar de seu vestido de algodão, Emily não estava de humor para recebê-la animadamente.

― Suponho que Thomas ainda não averiguou nada? ― disse com tom amargo.

Charlotte a olhou surpreendida. Emily sabia o que Pitt estava fazendo, mas ainda assim não podia refrear sua língua.

― Não achou ao Fulbert ― respondeu Charlotte― , se referir-se a isso.

― Não me importo se achar ou não ao Fulbert ― replicou Emily. — Se estiver morto, pouco importa seu paradeiro.

Charlotte manteve a serenidade, o que só conseguiu irritar ainda mais Emily. O fato de que Charlotte, curiosamente, contivesse sua língua era a gota que enchia o copo.

― Não sabemos se está morto ― indicou Charlotte. — E se o estiver, não podemos assegurar que não se tirasse a vida.

― E ele mesmo escondeu seu corpo? ― disse Emily com fulminante mordacidade.

― Thomas assegura que muitos dos corpos que caem ao rio nunca são encontrados. ― Charlotte tratava ainda de ser razoável. — E se os acharem, estão irreconhecíveis.

A imaginação do Emily evocou imagens repulsivas, cadáveres inchados com os rostos devorados olhando para cima entre as turvas águas. Sentiu náuseas.

― É repugnante! ― repreendeu Emily, olhando a furiosamente. — É possível que você e Thomas gostem de manter este tipo de conversas à hora do chá, mas eu não.

― Ainda não me ofereceu chá ― disse Charlotte com um leve sorriso.

— Se pensar que vou fazê-lo depois disto, equivoca-te ― replicou Emily.

― Não iria mal uma xícara de chá acompanhada de algo doce...

— Se alguém voltar a fazer referência a meu estado, juro que...! Não quero me sentar, nem beber nem fazer nada de nada.

Charlotte começava a perder a paciência.

— O que quer e o que necessita nem sempre é o mesmo ― disse. — E o mau gênio não a levará a nenhuma parte. De fato, fará você dizer coisas das quais logo se arrependerá. E quem melhor que eu para saber! Você sempre foi a que podia pensar antes de falar. Por mais que queira, Emily, não perca esse dom justo quando mais o necessita.

Emily olhou a sua irmã, sentindo um nó no estômago.

— O que quer dizer? ― inquiriu. — Explique-se!

Charlotte conservou a calma.

― Quero dizer que se deixar que seus medos fomentem suas suspeitas ou induzam ao George a acreditar que não confia nele, jamais poderá reparar o que destruiu, por muito que logo o lamente ou por muito insignificante que lhe pareça uma vez conheça a verdade. E tem que fazer à idéia de que possivelmente nunca descubramos quem matou Fanny. Nem todos os crimes se resolvem.

Emily se derrubou em seu assento. Espantava-lhe a idéia de que nunca se esclarecesse o mistério, de que pudessem passar o resto de suas vidas olhando-se e perguntando-se pela verdade. O carinho, os verões tranquilos, as conversas banais, a companhia ou a ajuda se estragariam pelo escuro estigma da dúvida, a idéia repentina de que podia ter sido George quem matasse a Fanny.

― Têm que averiguá-lo! ― insistiu Emily, negando-se a aceitar a advertência de sua irmã. — Se realmente foi um de nós, alguém o descobrirá. Alguma esposa ou algum irmão ou algum amigo achará uma pista.

― Não necessariamente. ― Charlotte olhou para Emily sacudindo ligeiramente a cabeça. — Se a identidade do criminoso tiver sido um segredo até agora, por que não pode sê-lo o resto de sua vida? Possivelmente alguém sabe, mas não precisa revelar, nem sequer a si mesmo. Nem sempre reconhecemos as coisas que não queremos reconhecer.

― Violação... ― Emily aspirou a palavra com incredulidade. — por que uma mulher ia querer proteger a um homem que há...?

― Por muitas razões ― respondeu Charlotte. — Quem quer admitir que seu marido ou seu irmão seja um violador ou um assassino? Pode se obrigar a esquecê-lo para sempre se realmente o desejar. Ou se convencer de que nunca voltará a ocorrer e que no fundo não foi culpa dela. Você mesma o viu com seus próprios olhos, muita gente do Paragon Walk se convenceu já de que Fanny era uma mulher fácil, que ela o buscou, que em certo modo o merecia...

― Basta! ― Emily se levantou de repente e olhou com zanga Charlotte. — Para que saiba, não é a única pessoa capaz de falar com franqueza. É tão presunçosa que às vezes me dá náuseas! Aqui no Paragon Walk nem todos somos hipócritas por ter tempo e dinheiro e vestir com elegância, não mais do que o são vocês em sua imunda rua, só porque trabalham todo o dia. Também vocês têm mentiras e conveniências!

Charlotte empalideceu e Emily se arrependeu imediatamente de suas palavras. Sentiu desejos de abraçar ao Charlotte, mas não se atreveu. Olhou-a fixamente, atemorizada. Charlotte era a única pessoa com quem podia falar, cujo afeto era incondicional, com quem compartilhava os temores e desejos mais íntimos de qualquer mulher.

― Charlotte?

Silêncio.

― Charlotte? ― insistiu Emily. — Charlotte, sinto muito!

— Sei ― disse sua irmã com voz muito suave. — Quer saber a verdade sobre o George e tem medo.

O tempo se deteve. Por uns segundos Emily vacilou. Logo fez a pergunta que tinha que fazer:

― Sabe? Disse-lhe Thomas?

Charlotte não sabia mentir. Embora fosse a mais velha, nunca tinha sido capaz de enganar Emily, a seu olho afiado e perito que sempre conseguia ver a relutância, a indecisão prévia à mentira.

― Sabe ― disse Emily, respondendo a sua própria pergunta. — Conte-me.

Charlotte franziu o sobrecenho.

― Terminou.

― Conte-me — repetiu Emily.

― Não seria melhor se...?

Emily esperou. Ambas sabiam que a verdade, fosse qual fosse, era preferível ao esgotamento que gerava o salto constante da esperança ao medo, ao elaborado esforço de enganar-se a gente mesmo, à imaginação desbocada.

— Selena? ― perguntou.

― Sim.

Agora que sabia não lhe era tão doloroso. Possivelmente sempre o tinha sabido mas se negava a reconhecê-lo. Realmente era isso de que George tinha medo? Que tolice. Que imensa tolice. Devia pôr freio ao assunto, certamente. Apagaria a petulância do rosto da Selena e a substituiria por algo menos agradável. Ainda não sabia como, ou sequer se ia deixar que George soubesse que ela sabia. Baralhou a possibilidade de deixar que seguisse preocupando-se e permitir que o medo o consumisse o bastante para que demorasse muito tempo em esquecer a dor. E se alguma vez chegava a lhe contar que sabia?

Charlotte a observava com inquietação, esperando uma reação. Emily saiu de seu ensimesmamento sorrindo.

― Obrigada ― disse quase com alegria. — Agora sei o que devo fazer.

― Emily...

― Não se preocupe. ― Estendeu uma mão e acariciou a sua irmã com suavidade. — Não armarei nenhum escândalo. De fato, acredito que não farei absolutamente nada, por agora.

Pitt prosseguiu com seus interrogatórios no Paragon Walk. Forbes tinha solicitado informação surpreendente sobre o Diggory Nash. Informação que, não obstante, não deveria assombrá-lo, e estava zangado consigo mesmo por permitir que seus preconceitos pessoais tivessem influenciado em sua opinião sobre o senhor Nash. Pitt tinha observado a elegância, a folga e o dinheiro do Paragon Walk e decidido que todos, pelo fato de viver do mesmo modo, de ir a Londres para a temporada social e frequentar os mesmos clubes e festas, eram iguais sob suas roupas identicamente distintas e atrás de suas maneiras identicamente afetados.

Diggory Nash era um jogador, possuidor de uma riqueza que não tinha ganhado em pulso e galã incorrigível com todas as mulheres atraentes e disponíveis. Mas também era generoso. Pitt se surpreendeu e envergonhou de seu ligeiro julgamento quando Forbes lhe contou que Diggory subvencionava um asilo para mulheres sem lar. Só Deus sabia quantas criadas grávidas eram despedidas cada ano de um emprego honrado para perambular pelas ruas e terminar em fábricas que as exploravam, asilos de pobres ou prostíbulos. Quem ia dizer que Diggory Nash, de entre toda essa gente, proporcionava um exíguo amparo a algumas delas. Uma velha ferida de consciência, possivelmente? Ou simplesmente compaixão?

Em qualquer caso, foi com um inevitável sobressalto que Pitt aguardou Jessamyn na sala. A mulher não podia saber que opiniões formou Pitt, mas ele sim as sabia e isso bastou para refrear sua língua ligeira e experimentar um estranho encolhimento. Não lhe proporcionava nenhum consolo a possibilidade de que Jessamyn desconhecesse as ações de seu marido.

Quando a senhora Nash entrou, Pitt se surpreendeu uma vez mais do impacto de sua beleza. Era muito mais que uma questão de tom ou a simetria de suas sobrancelhas e faces. Era algo na curva dos lábios, no azul desafiante de seus olhos, na frágil garganta. Não era de estranhar que Jessamyn sempre procurasse o que queria, pois sabia que não lhe seria negado. E não era de estranhar que Selena não pudesse aceitar a subordinação a esta mulher suprema.

Pitt se perguntou o que teria feito Charlotte com a Jessamyn se tivesse existido entre ambas uma verdadeira rivalidade, se Charlotte tivesse desejado também ao francês. Alguma dessas mulheres amava realmente ao francês, ou não era mais que o prêmio, o símbolo eleito da vitória?

― Bom dia, inspetor ― saudou friamente Jessamyn. Trazia um vestido de verão verde pálido e parecia tão fresca e forte como um narciso. ― Duvido que possa fazer mais por você, mas se ainda tem perguntas que me fazer, tratarei de respondê-las.

― Obrigado, senhora. ― Pitt esperou que Jessamyn se sentasse e depois se sentou ele, deixando, como sempre, que as abas de sua capa caíssem a seu livre-arbítrio. — Temo que seguimos sem achar rastro do senhor Fulbert.

Jessamyn retesou muito ligeiramente o rosto e baixou os olhos para contemplar suas mãos.

― Supunha-o, ou do contrário nos teriam comunicado isso. Imagino que não veio unicamente para me dizer isso.

― Não.

Pitt não desejava que Jessamyn o descobrisse observando-a, mas a obrigação e uma fascinação natural lhe impediam de desviar os olhos de seu rosto. Atraía-lhe como uma luz solitária em uma sala. Embora não se queira, esta se converte no centro de atenção.

Jessamyn levantou a cabeça, mostrando um semblante tranquilo e uns olhos diáfanos e francos.

― Que mais posso lhe dizer? Falou com todos os residentes da avenida. Sabe tanto como nós a respeito dos últimos dias que Fulbert passou aqui. Se não achou rastro dele na cidade, é que Fulbert burlou a polícia e partiu para o continente ou que está morto. Uma idéia dolorosa, mas provável.

Pitt tinha ordenado mentalmente as perguntas que desejava formular, mas agora lhe apareciam desordenadas, inclusive inúteis. Não podia mostrar-se impertinente, pois Jessamyn poderia ofender-se e negar-se a responder, e com o silêncio não averiguaria nada. Tampouco devia adular em excesso. Jessamyn estava acostumada às lisonjas, e a supôs muito inteligente, inclusive muito cínica, para deixar-se enganar por elas. Começou com cautela.

— Se estiver morto, senhora, o mais provável é que o matassem porque sabia algo que seu assassino não podia permitir que desvelasse.

― Essa é uma conclusão razoável ― concordou Jessamyn.

— O único segredo que poderia resultar perigoso até esse extremo é a identidade do violador e assassino da Fanny. ― por agora não devia mostrar-se condescendente nem deixar que ela suspeitasse que a estivesse dirigindo.

A boca do Jessamyn esboçou uma careta irônica.

― Todo mundo é ciumento de sua intimidade, senhor Pitt, mas poucos de nós vão ao extremo de matar a nossos vizinhos para conservá-la. Parece-me ridículo supor, sem provas, que no Paragon Walk existem dois segredos tão espantosos.

― Estou de acordo ― concordou Pitt.

Jessamyn exalou um suave suspiro.

― Portanto, isso nos devolve à pergunta de quem violou a pobre Fanny ― disse pausadamente. — Como é natural, todos demos voltas ao assunto. É inevitável.

― Compreendo-o, sobre tudo de alguém tão próximo a ela como você.

Jessamyn abriu muito os olhos.

― Naturalmente, se você soubesse algo ― prosseguiu Pitt, talvez com certa precipitação nos tivesse contado. Mas possivelmente teve pensamentos, não bastante sólidos para qualificá-los de suspeitas, mas, como você diz... ― Estava-a estudando, tratando de adivinhar até onde podia chegar, o que podia pôr em palavras, o que devia ficar como mera insinuação. — Bem, como você diz, não pode afastar o assunto de sua mente.

― Acredita que suspeito de algum de meus vizinhos? — seus olhos azuis eram quase hipnóticos. Pitt não podia desviar o olhar.

― Suspeita?

Jessamyn guardou silêncio durante um longo momento. Suas mãos se moviam lentamente sobre o regaço, desenredando um nó invisível.

Pitt aguardou.

Finalmente ela levantou os olhos.

― Sim, mas deve compreender que só se trata de uma sensação, uma série de impressões.

― Naturalmente. ― Pitt não queria interrompê-la. Se com isso não conseguisse averiguar nada de outros, pelo menos lhe diria algo sobre ela.

― É para mim impossível acreditar que alguém em seu são juízo possa fazer algo assim. ― Jessamyn falava medindo cada palavra, resistente a espraiar-se abertamente, e não obstante pressionada pelo sentido do dever. — Conheço às pessoas da avenida há muito tempo. Repassei uma e outra vez tudo o que sei e resisto a acreditar que alguém pudesse ocultar semelhante personalidade.

Pitt estava decepcionado. Jessamyn ia surgir com alguma insinuação incrível sobre gente alheia ao Paragon Walk.

Os dedos da mulher descansavam rígidos sobre o regaço, radiantemente brancos contra o verde do vestido.

― Certamente ― respondeu Pitt.

Jessamyn ergueu a cabeça, mostrando uma chama de cor em suas faces. Inspirou fundo e exaltou lentamente, sossegando-se.

— O que quero dizer, senhor Pitt, é que teve que ser alguém que agia sob a influência de uma emoção anormal, possivelmente do álcool. Às vezes a gente, quando bebe muito, faz coisas que em estado sóbrio jamais faria. E me contaram que depois nem sempre recordam o ocorrido... Tenho certeza que isso pode constituir uma espécie de inocência. Se a pessoa que matou a Fanny não recorda o que fez...

Pitt pensou na amnésia do George com respeito a aquela noite, a relutância do Algernon a mencionar o nome de seu acompanhante, a partida anônima do Diggory. Mas era Hallam Cayley quem ultimamente bebia tanto que dormia mais da conta.

De fato, Afton tinha declarado que Cayley continuava dormindo a bebedeira às dez da manhã do dia que descobriu o desaparecimento do Fulbert. A insinuação do Jessamyn não tinha nada de absurdo. Poderia explicar a ausência de mentiras, de qualquer tento de despistar ou encobrir. Nem sequer o assassino recordava seu próprio crime! Devia existir um vazio escuro e aterrador em sua mente. Provavelmente de noite o terror aparecia sigilosamente para encher o espaço com imagens violentas, com o aroma e o som do horror. Porém, mais bebida, maior era o esquecimento.

― Obrigado ― disse cortesmente Pitt.

Jessamyn respirou fundo uma vez mais.

― Deve culpar-se a um homem pelo que faz em estado de embriaguez? ― perguntou enrugando um pouco as sobrancelhas.

― Não sei se Deus o culpará ― respondeu com franqueza Pitt― , mas a lei sim.

O semblante de Jessamyn não se alterou. Estava seguindo o fio de um pensamento.

― Às vezes a pessoa bebe para ocultar uma dor. ― Continuava medindo suas palavras. — Uma dor, uma enfermidade mental ou talvez a perda de um ser querido.

Pitt pensou na esposa do Hallam Cayley. Era o que Jessamyn queria que pensasse? Pitt a olhou fixamente, mas seu semblante estava tão sereno como o cetim branco. Decidiu arriscar-se.

― Refere-se a alguém em particular, senhora Nash?

Jessamyn desviou o olhar por um instante e o brilho azulado de seus olhos se nublou.

― Prefiro não dizer mais, senhor Pitt. Em realidade não sei. Rogo-lhe que não me obrigue a indicar com o dedo. ― Olhou ao Pitt, de novo com uma sinceridade diáfana. — Prometo que se averiguar algo o farei saber.

Pitt se levantou. Não conseguiria nada mais de Jessamyn.

― Obrigado, senhora Nash. Foi que grande ajuda. Para falar a verdade, deu-me muito em que pensar. ― Absteve-se de fazer comentários vulgares sobre o fato de que logo teria uma resposta. Teria sido um insulto para ela.

Jessamyn sorriu levemente.

― Obrigado, senhor Pitt. Bom dia.

― Bom dia, senhora ― disse o inspetor, e deixou que o criado o acompanhasse até a saída.

Cruzou até a grama situada ao outro lado do Paragon Walk. Sabia que era proibido pisá-la ― havia um letreiro muito pequeno a respeito― , mas amava a sensação de vida sob a sola de suas botas. Os paralelepípedos eram um recurso feio que ocultava a terra, embora necessário se sobre ela tivesse que caminhar milhares de transeuntes.

O que tinha ocorrido nessa avenida elegante e bela aquela noite? Que repentino caos explodiu para logo cair em pedaços irreconhecíveis?

As emoções lhe escapavam das mãos. Quanto pegava se fazia em pedacinhos e desaparecia.

Tinha que aferrar-se de novo aos aspectos práticos, aos mecanismos do assassinato. Os cavalheiros como os do Paragon Walk não costumavam ir armados com facas. Por que o violador levava tão oportunamente uma faca aquela noite? Era possível que não se tratasse de um arranque de paixão, mas sim de um ato premeditado? Acaso o assassinato foi sempre sua primeira intenção, e a violação algo meramente fortuito, um impulso, um pretexto?

Mas que razão havia para matar a Fanny Nash? Jamais tinha conhecido pessoa mais inócua. Não era herdeira de nenhuma fortuna nem amante de ninguém, e nenhum homem, conforme tinha descoberto, tinha mostrado o mínimo interesse romântico por ela, com exceção do Algernon Burnon, e inclusive nesse caso o compromisso parecia bastante formal.

Pôde Fanny ter tropeçado inocentemente com algum segredo do Paragon Walk e morrido por isso? Possivelmente sem sequer compreendê-lo realmente?

E onde estava a faca? Ainda o conservava o assassino? Achava-se oculta em algum lugar, a estas alturas a vários quilômetros de distância, no fundo do rio?

E o outro aspecto prático: Fanny tinha sido apunhalada até morrer. Pitt ainda podia ver o espesso coágulo de sangue no corpo da moça. Por que não acharam sangue na estrada, algum rastro que conduzisse do gabinete até o lugar onde Fanny tinha sido atacada? Não tinha chovido depois. O assassino devia ter se desfeito de suas roupas, mas Forbes não tinha encontrado ― nem depois do mais diligente interrogatório ― nenhum valete que tivesse percebido uma míngua no roupeiro de seu senhor nem rastros de objetos carbonizados em algum caldeirão ou lareira.

Mas por que não havia sangue na rua?

Acaso tinha ocorrido ali, sobre aquela grama, ou em um canteiro de flores onde o sangue pôde filtrar-se? Ou nos matagais, onde não podia ver-se? Mas nem Pitt nem Forbes tinham encontrado sinais de luta, nem canteiros pisoteados, nem ramos que não pudesse ter quebrado um cão ou alguém que tropeçasse na escuridão, um ajudante de jardineiro desajeitado, ou inclusive uma criada e um lacaio encetados em uma briga romântica.

Se alguma vez houve algo, não tinham dado com isso e a essas alturas provavelmente já tinha sido apagado pelo assassino ou por outras pessoas.

Concentrou-se de novo nos motivos e nos personagens. Por quê? Por que Fanny?

Uma tosse discreta a uns metros dele, e o outro lado das rosas, interrompeu seus pensamentos. Pitt levantou a vista. Um mordomo mais velho, de aspecto triste, olhava-o desconfortável.

― Deseja algo? ― perguntou Pitt, fingindo não dar-se conta de que estava pisando na erva impoluta.

― Sim, senhor. A senhora Nash quer lhe ver, senhor.

― A senhora Nash? ― Sua mente retornou em seguida ao Jessamyn.

― Sim, senhor. – o mordomo limpou a garganta. — A senhora do Afton Nash.

Phoebe!

― Certamente ― respondeu rapidamente Pitt. — Está a senhora Nash em casa?

― Sim, senhor. Importar-se-ia de me acompanhar?

Pitt cruzou a rua e seguiu ao mordomo pelo atalho que conduzia à casa do Afton Nash. O portal se abriu antes que chegassem e foram convidados a entrar. Phoebe estava na saleta situada na parte traseira da casa, presidida por uma janela alongada que dava ao jardim.

— Senhor Pitt! ― A mulher parecia assustada, e presa do nervosismo. — Que alegria vê-lo ! Hobson, diga à Nellie que traga o chá. Tomará uma xícara comigo, não é? Certamente que sim. Sente-se, o rogo.

O mordomo se retirou e Pitt tomou assento obedientemente, ao mesmo tempo que agradecia.

― Faz um calor abafadiço! — lamentou-se Phoebe agitando as mãos. — Embora deteste o inverno, acho que neste momento o receberia com alegria.

— Se não me equivocar, logo choverá e o ar refrescará. ― Pitt não sabia o que fazer para relaxar à mulher. Em realidade, não a escutava, e não a tinha olhado uma só vez.

― Isso espero! ― Phoebe se sentou e voltou a levantar-se. — É um verdadeiro aborrecimento, não lhe parece?

― Desejava ver-me por algum motivo em particular, senhora Nash? ― Era evidente que para Phoebe custava expor a questão por sua própria vontade.

― Eu? Sim... ― Tossiu e tomou seu tempo. — Sabe algo do pobre Fulbert?

― Não, senhora.

― Meu deus!

― Sabe algo, senhora? ― Phoebe não ia falar se Pitt não a pressionasse.

― OH, não, claro que não! Se soubesse algo teria dito.

― Mas mandou me chamar para me contar algo ― indicou Pitt.

Phoebe parecia confusa.

― Sim, reconheço-o... mas não está relacionado com o paradeiro do Fulbert, asseguro.

― Então, do que queria me falar, senhora Nash? ― Pitt desejava mostrar-se amável, mas começava a impacientar-se. Se Phoebe sabia algo, precisava ouvi-lo. Atualmente se sentia tão perdido como no dia que viu o corpo da Fanny no necrotério. — Fale, por favor.

Phoebe se sobressaltou. Levou as mãos ao pescoço e rodeou o enorme crucifixo com os dedos, cravando as unhas nas palmas.

― Algo terrível e maligno está ocorrendo aqui, senhor Pitt, algo verdadeiramente espantoso.

Estava imaginando, era produto da histeria? Sabia realmente algo, ou não eram mais que vagos temores de uma mente aterrorizada? Pitt observou o rosto e as mãos da mulher.

― A que se refere, senhora Nash? ― perguntou calmamente. Pitt sabia que seu medo, independentemente de que sua causa fosse real ou imaginária, era autêntico. — Viu algo?

Phoebe se benzeu.

― Céu santo!

— O que viu? ― insistiu Pitt.

Acaso o assassino era Afton Nash e Phoebe sabia, mas não tinha coragem para delatá-lo porque era seu marido? Ou era Fulbert o violador incestuoso e suicida, e Phoebe também sabia?

Pitt se levantou e lhe estendeu uma mão, não para tocá-la, mas para lhe oferecer seu apoio.

— O que viu? ― repetiu.

Phoebe começou a tremer. Primeiro foi a cabeça, com pequenas contrações de um lado a outro, depois seguiram os ombros e finalmente todo o corpo, ao mesmo tempo em que emitia pequenos gemidos, como uma criança.

― Um disparate! ― resmungou entre dentes. — Um disparate que se converteu em realidade. Que Deus nos ajude!

― A que realidade se refere, senhora Nash? ― perguntou Pitt. — O que sabe?

― OH! ― Phoebe levantou a cabeça e olhou ao inspetor. — Nada! Acredito que perdi o juízo. Jamais conseguiremos vencê-lo. Estamos perdidos e a culpa é nossa. Vá-se e nos deixe sós. Você é um bom homem. Vá-se. Reze por nós se quiser, mas vá-se antes que se estenda e lhe dê alcance. Não diga que não o adverti!

― Não me advertiu que nada. Ainda não me disse do que devo me guardar! ― replicou impotente Pitt. — O que é?

— O diabo! — o rosto do Phoebe se nublou. Seu olhar era duro e tenebroso. — Uma terrível perversidade flutua no Paragon Walk. Fuja dela, agora que ainda é a tempo.

Pitt não sabia o que fazer. Seguia procurando algo que dizer quando a criada entrou com a bandeja do chá.

Phoebe a ignorou.

― Não posso abandonar Paragon Walk, senhora ― respondeu Pitt. — Devo ficar até dar com ele, mas serei precavido. Agradeço-lhe seu interesse. Boa tarde.

Phoebe não respondeu e se limitou a ficar olhando fixamente a bandeja.

Pobre mulher, pensou Pitt uma vez fora. Todo o acontecido, primeiro sua cunhada e agora seu cunhado, tinha sido muito para ela. Estava histérica. E era evidente que não sentia muita simpatia pelo Afton. Desgraçadamente, não tinha trabalho nem crianças que lhe ocupassem a mente e a impedissem de fantasiar. Havia momentos, surpreendentes e desconcertantes, em que Pitt sentia igual compaixão tanto pelos ricos como pelos pobres. Alguns eram igualmente patéticos, detentos da hierarquia, unidos em sua função, ou falta de função, dentro desta.

Era tarde quando as senhoritas Horbury bateram na porta do Emily. De fato, mais tarde que o conveniente para uma visita. Emily se mostrou zangada quando a criada as anunciou. Pensou em dizer que não estava apresentável, mas como eram vizinhas próximas e tinha que vê-las com regularidade, preferiu não ofendê-las apesar de seu insólito proceder.

Irromperam na sala em uma rajada de amarelo, cor que não as favorecia, embora por razões inteiramente diferentes. Na senhorita Laetitia era muito cítrico e dava a sua pele um tom azeitonado. Na senhorita Lucinda desafinava com seu cabelo dourado e o fazia parecer um passarinho selvagem em processo avançado de muda. Entrou na sala arrastando uma esteira de fogo, com o olhar fixo em Emily.

― Boa tarde, querida Emily ― disse com uma informalidade incomum, quase familiar.

― Boa tarde, senhorita Horbury ― saudou secamente Emily. — Que agradável surpresa ― acrescentou, insistindo na palavra "surpresa".

Sorriu com frieza à senhorita Laetitia, que tinha ficado ligeiramente atrasada.

A senhorita Lucinda tomou assento sem esperar a que o fosse oferecido.

Emily não tinha intenção de convidá-las para um lanche a essas horas da tarde. Não tinham sentido da decência?

― Parece que a polícia não está fazendo muitos progressos ― observou a senhorita Lucinda, acomodando-se ainda mais na poltrona. — Acredito que estão muito tensos.

— Se soubessem algo não nos diriam ― disse a senhorita Laetitia. — por que iriam fazê-lo?

Emily se sentou, decidida a ser amável por um momento.

― Ignoro-o― respondeu com tom de aborrecimento.

A senhorita Lucinda se inclinou para frente.

― Acredito que está ocorrendo algo!

― Não me diga? ― Emily não sabia se ria ou chorava.

― Sim! E penso averiguar o que é. Visitei esta avenida toda temporada desde que era uma moça!

Emily não sabia que resposta se esperava dela.

— Seriamente? ― disse com evasiva.

― E o que é pior ― prosseguiu a senhorita Lucinda― , acredito que se trata de um assunto escandaloso. É nosso dever lhe pôr freio.

― Sim ― respondeu confusa Emily― , é.

― Acho que tem que ver com esse francês ― disse com convicção a senhorita Lucinda.

A senhorita Laetitia negou com a cabeça.

— Lady Tamworth diz que é o judeu.

Emily piscou.

― Que judeu?

— O senhor Isaac, é claro! ― A senhorita Lucinda começava a perder a paciência. — Mas isso é absurdo. Ninguém se relaciona com ele a não ser por assuntos de negócios. Acredito que tem que ver com essas festas de lorde Dilbridge. Não compreendo como Grace o suporta.

— O que? ― perguntou Emily. Não tinha certeza de que houvesse algo que valesse a pena escutar.

― Tudo o que ali ocorre! A verdade, querida Emily, deveria se interessar mais pelo que acontece em sua vizinhança, não acha? Como se nós não controlamos? De nós depende a manutenção dos valores morais.

— Sempre lhe preocuparam muito os valores morais ― acrescentou a senhorita Laetitia.

― E assim deve ser! ― replicou a senhorita Lucinda. — Alguém tem que fazê-lo. Já há muita gente entre nós que traz isso sem cuidado.

― Ignoro o que está acontecendo. ― Emily estava ligeiramente sobressaltada pelo tácito entendimento entre as senhoritas Horbury. — Não costumo ir às festas dos Dilbridge e, sinceramente, não sabia que celebravam mais das que celebra a maioria da gente no verão.

― Querida, eu tampouco "vou" a essas festas. Mas não é a quantidade o que importa, mas sua natureza. Asseguro-lhe, Emily, que algo estranho está ocorrendo e penso averiguar o que é.

― Eu se fosse você iria com cuidado. ― Emily sentiu a obrigação de acautelá-la. — Recorda que se produziram acontecimentos muito trágicos. Não deveria correr riscos. ― Pensava mais na sensibilidade daqueles a quem a senhorita Lucinda podia pressionar com sua curiosidade que no perigo que esta pudesse correr.

A senhorita Lucinda se levantou com um golpe de peito.

― Sou de coragem intrépida quando o dever me chama. Se averiguar algo importante, confio que me conte isso.

― OH, certamente ― concordou Emily, consciente de que nada do que pudesse entrar no reino do "dever" da senhorita Lucinda podia ser qualificado de importante.

― Bem! Agora tenho que visitar a pobre Grace.

E antes que Emily pudesse lhe advertir do avançado da hora, a senhorita Lucinda puxou a senhorita Laetitia e desapareceu.

Emily se achava no jardim contemplando o crepúsculo com o rosto erguido para a suave brisa, enquanto o aroma doce e delicado das rosas e acácias flutuava sobre a erva seca. A primeira estrela tinha saído já, apesar de que o céu se mantinha azul cinzento e ainda se via cor pelo oeste.

Pensou em Charlotte, no fato de que não tinha jardim nem espaço para plantar flores, e se sentiu um pouco culpada porque o acaso lhe tivesse dado tanto sem nenhum esforço em troca. Decidiu pensar em uma forma elegante de compartilhá-lo mais com Charlotte e com Pitt sem que eles se dessem conta. Emily gostava de Pitt como pessoa, não só porque era o marido do Charlotte.

Seguia meditando de rosto à brisa quando um uivo agudo e dilacerador rompeu o silêncio do anoitecer. O som se aguçou e se ergueu de novo, nauseabundo e gutural.

Emily ficou imóvel, com a pele arrepiada. O silêncio voltou a apropriar-se do anoitecer.

Então se ouviu outro grito.

Emily recolheu a saia e correu até a casa. Atravessou o gabinete e o vestíbulo e abriu a porta principal enquanto chamava a gritos o mordomo e o lacaio.

Deteve-se no caminho. As luzes começavam a iluminar Paragon Walk e um homem vociferava a duzentos metros.

Então viu Selena. Corria pelo centro da rua com o cabelo despenteado sobre as costas e o peitilho do vestido rasgado, mostrando sua branca pele.

Emily foi para ela. Em seu foro interno sabia o que tinha ocorrido. Não precisava esperar às palavras entrecortadas e soluçantes da Selena.

Esta se derrubou em seus braços.

― Vio...-me... violaram-me!

― Shhh! ― Emily a segurou com força. — Shhh! ― dizia absurdamente, mas era o som de uma voz o que importava. — Já está a salvo. Vamos, entremos em casa. ― Conduziu-a suavemente pelo caminho e pelas escadas.

Uma vez dentro, Emily fechou a porta do gabinete e sentou a Selena em uma poltrona. Os criados estavam fora, procurando o homem, algum desconhecido, qualquer que não pudesse justificar sua presença no lugar... Emily, não obstante, logo compreendeu que o agressor não tinha mais que somar-se ao rastreamento para passar inadvertido.

Possivelmente quando tivesse tempo de pensar e de acalmar-se, Selena falaria menos, estaria envergonhada ou confusa.

Emily se ajoelhou frente a ela e lhe pegou as mãos.

— O que ocorreu? ― perguntou com firmeza. — Quem foi?

Selena ergueu a cabeça. Tinha o rosto aceso e os olhos grandes e brilhantes.

― Foi horrível! ― sussurrou. — O homem era violento e perverso! Jamais tinha visto nada igual! Sei que terei que senti-lo e cheirá-lo o resto de minha vida!

― Quem foi? ― repetiu Emily.

― Era alto... ― respondeu Selena― e magro. E muito forte!

― Quem?

― Emily, jura ante Deus que não o contará a ninguém. Jura-o!

― por quê?

― Por que... — selena engoliu em seco. Seu corpo tremia e seus olhos estavam esbugalhados... — Porque acredito que foi o senhor Alaric, mas não estou completamente certa. Jura que não dirá nada, Emily! Se o acusar e não foi ele, ambas estaremos em perigo. Recorda o que ocorreu a Fanny. Eu jurarei que não sei nada!

 

Avisaram Pitt e este partiu imediatamente no mesmo táxi que havia trazido a mensagem, mas quando chegou ao Paragon Walk, Selena já trazia um discreto vestido de Emily e estava sentada no grande sofá do gabinete. Tinha recuperado a serenidade. Tinha o rosto ruborizado, as mãos feitas um nó no regaço, mas relatou o ocorrido com admirável frieza.

Retornava a casa de uma breve visita o Grace Dilbridge, com passo ligeiro para chegar antes que escurecesse, quando um homem corpulento e de extraordinária força a atacou por detrás e a jogou sobre a grama, perto dos roseirais. A outra parte da história era muito espantosa, e provavelmente Pitt, homem delicado, não esperava que Selena a descrevesse. Dizendo que tinha sido violada era suficiente! Por quem? Ignorava-o. Não conseguiu lhe ver o rosto, nem podia descrever seu aspecto, só sua assombrosa força e a ferocidade de seus instintos animais.

Pitt interrogou a Selena sobre quanto pôde ter notado sem ser consciente disso: a qualidade da vestimenta de seu agressor, se levava camisa debaixo da jaqueta, branca ou escura? Eram ásperas suas mãos?

Selena somente refletiu um breve instante.

― Sim! ― disse com um ligeiro pestanejo de surpresa. — Tem razão! Vestia roupa boa. Devia ser um cavalheiro. Lembro uns punhos de camisa brancos. E suas mãos eram suaves, mas... ― baixou os olhos ― muito fortes.

Pitt insistiu, mas Selena não podia lhe contar mais. Estava cada vez mais angustiada e finalmente ficou sem fala.

Pitt se viu obrigado a desistir e voltou para a tarefa rotineira de procurar detalhes. Durante uma noite longa e exaustiva, ele e Forbes interrogaram a todos os homens da avenida, obrigando-os a sair da cama mal-humorados e assustados. Como nas ocasiões anteriores, todos deram conta de seu paradeiro de forma totalmente razoável, mas nenhum pôde demonstrar que não tivesse saído durante aqueles breves e decisivos minutos.

Durante o fato Afton Nash se achava em seu estúdio, mas a estadia dava ao jardim e bem podia sair à rua sem ser visto. Jessamyn Nash estava tocando o piano e não podia assegurar que Diggory não se moveu do salão em toda a noite. Freddie Dilbridge se achava só no abrigo de seu jardim. Disse que estava estudando algumas mudanças na decoração. Grace não estava com ele. Hallam Cayley e Paul Alaric viviam sós. O único realmente claro era que George se achava na cidade e era virtualmente impossível que tivesse retornado ao Paragon Walk sem ser visto.

Interrogaram a todos os criados e suas declarações se comprovaram. Alguns, durante o fato, estavam ocupados em atividades que preferiam não desvelar. Descobriram três aventuras amorosas e um jogo de cartas onde se jogavam somas nada desprezíveis. Provavelmente no dia seguinte se produziria mais de uma demissão. Contudo, a maioria dos criados pôde demonstrar onde estava, ou se achava justamente onde se esperava que estivesse.

Ao final da noite, em um amanhecer aprazível e quente, com os olhos avermelhados pelo sono e a garganta seca, Pitt sabia tanto como ao princípio.

Dois dias mais tarde, Pitt recebeu de Paris o informe referente ao Paul Alaric. ficou imóvel em meio da delegacia de polícia, com o papel na mão, mais desconcertado que nunca. A polícia de Paris não tinha encontrado informação alguma sobre o senhor Alaric e se desculpava pelo atraso da resposta, explicando que tinham solicitado ajuda às principais delegacias de polícia da França, mas nenhuma tinha obtido dados categóricos. Existiam, naturalmente, uma ou duas famílias com esse sobrenome, mas nenhum de seus membros encaixava-se na descrição quanto a idade, traços físicos e demais. Além disso, tinham comprovado o paradeiro de todos eles. E, a ciência certa que não havia expedientes que acusassem, e ainda menos condenassem, a esse homem por agressões desonestas a mulheres.

Pitt se perguntou por que Alaric tinha mentido sobre sua origem.

Então recordou que Alaric jamais tinha mencionado nada sobre sua origem. As pessoas comentavam que era francês, mas Alaric nunca havia dito nada a respeito e ao Pitt nunca lhe ocorreu perguntar. A acusação do Freddie Dilbridge se devia, provavelmente, ao que Grace havia dito: o desejo de desviar a atenção de seus próprios amigos. Que melhor forma que acusando ao único estrangeiro do Paragon Walk?

Pitt desprezou a resposta de Paris e retornou à investigação prática.

A investigação seguiu seu curso ao longo de dias intermináveis e calorosos, infestada de tediosos interrogatórios, e pouco a pouco Pitt teve que desviar sua atenção para outros crimes. O resto de Londres não tinha interrompido seus roubos, fraudes e atos violentos, e Pitt não podia investir todo seu tempo em um só caso, por muito trágico ou perigoso que fosse.

Paragon Walk recuperou pouco a pouco a normalidade. Naturalmente, ninguém esqueceu o trágico fato ocorrido a Selena. As reações das pessoas eram diversas. Curiosamente, Jessamyn foi a mais compreensiva. A velha inimizade entre ambas as mulheres parecia haver-se desvanecido. Emily estava fascinada, pois não só faziam demonstração de compartilhar uma nova amizade, mas também ambas desprendiam um ar de satisfação, como se cada uma sentisse, a sua maneira, que tinha obtido uma vitória.

Jessamyn se preocupava sobremaneira pela Selena e não perdia ocasião de enchê-la de cuidados e insistir com os outros a que a imitassem. Como é lógico, seu comportamento conseguiu que ninguém esquecesse o incidente, fato que Emily percebeu e transmitiu ao Charlotte quando foi vê-la.

Curiosamente, Selena não parecia lhe importar. Corava e seus olhos brilhavam sempre que se tocava o assunto, é claro indiretamente ― ninguém podia permitir a vulgaridade de empregar palavras desagradáveis ― , mas não parecia ofender-se.

Obviamente, havia outros que o viam de forma muito diferente. George evitou falar do assunto e Emily o permitiu durante um tempo. Tinha decidido esquecer a aventura de seu marido com a Selena desde que não se repetisse. Mas uma manhã lhe apresentou uma ocasião muito boa para deixá-la escapar, e quase sem dar-se conta a aproveitou.

George levantou a vista do café da manhã. Tia Vespasia tinha descido cedo essa manhã e se serviu compota de damasco com nozes e uma torrada muito fina.

― Que planos tem para hoje, tia Vespasia? ― perguntou George.

— Me esmerar em evitar ao Grace Dilbridge ― replicou ela ― , o que não será tarefa fácil, pois devo fazer algumas visita inadiáveis e estou tenho certeza que ela terá as mesmas. Terei que as planejar de modo que não cruzemos a cada passo.

― por que quer evitá-la? ― perguntou inocentemente George. — É uma mulher inofensiva.

― E terrivelmente tediosa ― respondeu tia Vespasia, terminando sua torrada. — Antes pensava que seus sofrimentos e a contínua expressão de resignação em seus olhos constituíam o cúmulo do aborrecimento. Mas isso não é nada comparado com suas opiniões sobre as mulheres acossadas, a brutalidade endêmica dos homens e certas mulheres que contribuem à desgraça de todos com suas incitações. É mais do que posso suportar.

Por uma vez, Emily falou um segundo antes de pensar. Seus sentimentos por a Selena eram mais fortes que sua prudência habitual.

― Esperava que estivesse de acordo com ela, pelo menos em alguns aspectos ― disse voltando-se para a Vespasia, com um tom ligeiramente afiado.

Os olhos cinzas da Vespasia aumentaram.

― Discrepar do Grace Dilbridge e entretanto ter que escutá-la com educação faz parte dos inconvenientes habituais da alta sociedade, querida ― respondeu. — Ser partidária da honestidade, estar de acordo com Grace e além disso dizê-lo é mais do que se pode pedir a uma pessoa. É a primeira vez que estamos de acordo em algo, e é intolerável. Selena é uma mulher com história! Até um idiota se daria conta. ― levantou-se e sacudiu um miolo inexistente da saia.

Emily manteve o olhar baixo durante um longo instante. Depois observou ao George, que desviou os olhos de tia Vespasia quando esta saía pela porta e os cravou no Emily.

― Pobre tia Vespasia ― disse esta. — Grace é uma santarrona, mas terá que reconhecer que desta vez tem razão. Eu não gosto de falar mal das mulheres, e ainda menos de uma amiga, mas Selena sempre se comportou de uma forma... não exatamente incitante ― vacilou― , mas dando a entender que... ― deteve-se, sustentando o olhar de seu marido.

O rosto do George estava pálido, rígido pelo receio.

— O que? ― perguntou.

― Enfim... ― Emily esboçou um sorriso significativo. — Enfim... foi muito tolerante consigo mesma, não acha, querido? E essa classe de pessoa atrai... ― O semblante de seu marido lhe indicou que a compreendia perfeitamente. Já não havia segredos.

― Emily ― começou George, golpeando sua taça com a manga.

Emily não queria falar do assunto. As desculpas eram dolorosas e não desejava ouvi-las de boca do George. Fingiu acreditar que seu marido se dispunha a criticá-la.

― OH, sei que pensa que não deveria falar assim da Selena depois da terrível experiência que sofreu. ― Pegou o bule para fazer algo, mas seu pulso não se mostrou tão firme como desejaria. ― Mas prometo que o que diz tia Vespasia é certo. Contudo, estou certa de que não se repetirá. As coisas mudaram muito para a Selena a partir de agora, pobrezinha! — serenou-se o bastante para sorrir e sustentar o bule virtualmente sem tremer. — Quer mais chá, querido?

George olhou a sua esposa com uma mescla de incredulidade e respeito reverencial.

Ela o percebeu, experimentando um quente e delicioso estremecimento de satisfação.

Ficaram imóveis uns instantes, deixando trabalhar o entendimento.

― Chá? ― repetiu ao fim Emily.

George estendeu sua xícara.

― Espero que tenha razão ― disse lentamente. — Em realidade tenho certeza de que a tem. Sem dúvida as coisas serão muito diferentes a partir de agora.

Emily se relaxou, olhou a seu marido com um sorriso deslumbrante e lhe serviu chá, deixando que a xícara se enchesse além do que aconselhava o bom gosto.

George olhou a xícara com certo assombro. Depois sorriu também, ampla e intensamente, como alguém que foi felizmente surpreendido.

A senhorita Laetitia se absteve de fazer comentários sobre o acontecido com Selena, mas a senhorita Lucinda falou pelas duas, vertendo opiniões multiformes que acrescentavam sua convicção de que algo absolutamente perverso estava acontecendo em Paragon Walk, e pensava investir todo sua coragem em descobri-lo . Lady Tamworth a animou energicamente, mas não fez nada.

Afton Nash também opinava que só as mulheres que incitam à perseguição a sofrem, e portanto não merecem a compaixão de ninguém. Enquanto isso, Phoebe seguia retorcendo― as mãos e cada vez parecia mais aterrada.

Hallam Cayley continuava bebendo.

Na manhã posterior ao novo acontecimento, Emily pediu sua carruagem e se apresentou sem avisar em casa do Charlotte com a notícia. Ao descer da carruagem quase se deu de bruços contra o meio― fio, sem prestar atenção à ajuda do lacaio por causa da emoção, e esqueceu de lhe dar instruções. Esmurrou a porta de Charlotte.

Charlotte, com um avental até o pescoço e a pá de lixo na mão, abriu a porta e olhou atônita a sua irmã.

Emily irrompeu na casa como uma ventania.

― Encontra-se bem? ― Charlotte fechou a porta e seguiu a sua irmã, que correu até a cozinha e se derrubou em uma cadeira.

― Encontro-me estupendamente! ― respondeu Emily. — Nunca adivinharia o que ocorreu. A senhorita Lucinda teve uma aparição!

― Uma o que? ― Charlotte olhou desconfiada a sua irmã.

— Sente-se e prepare chá — lhe ordenou Emily― , estou morta de sede. A senhorita Lucinda teve uma aparição ontem à noite! Ajeitou-se na poltrona de seu gabinete em estado de choque e todos os vizinhos correram para vê-la picados pela curiosidade.

Tem cortejo no momento. Teria me encantado ir, mas tinha que contar lhe o Não lhe parece ridículo?

Charlotte tinha posto a água a ferver. Os utensílios do chá já estavam preparados, pois tinha previsto tomar uma taça uma ou duas horas mais tarde.

Sentou-se do outro lado da mesa e observou o rosto aceso de Emily.

― Uma aparição? Que tipo de aparição? O fantasma da Fanny? Essa mulher está louca. Acha que bebe?

― A senhorita Lucinda? Deus santo, não! Teria que ouvir o que diz sobre a gente que bebe!

― Isso não significa que não o faça.

― Em qualquer caso, não bebe. E não viu nenhum fantasma, mas algo horrível e perverso, que a olhava através da janela com o rosto junto ao vidro. Disse que era de cor verde clara, de olhos vermelhos e com dois chifres na cabeça.

― OH, Emily! ― Charlotte explodiu em uma gargalhada. — Não posso acreditar! Essas coisas não existem!

Emily se inclinou.

― Mas isso não é tudo ― prosseguiu impaciente. — Uma das criadas viu algo que fugia a grandes passadas e saltava a sebe. E o cão do Hallam Cayley passou a noite uivando.

― Possivelmente o que viu foi o cão do Hallam Cayley ― sugeriu Charlotte. — E o pobre animal uivava porque haviam tornado a prendê-lo e pode ser que até o açoitassem por haver escapado.

― Tolices! Trata-se de um cão pequeno, e não é verde.

― Possivelmente confundiu as orelhas com uns chifres. ― Charlotte não estava disposta a render-se. De repente rompeu a rir. — Mas me teria encantado ver o rosto da senhorita Lucinda. Com certeza estava tão verde como o monstro da janela.

Emily também se pôs a rir. A água fervente estava orvalhando a cozinha de vapor, mas nenhuma delas o notou.

― Em realidade não tem graça ― disse finalmente Emily, enxugando as lágrimas.

Charlotte reparou em que a água fervia e se levantou para preparar o chá, sorvendo e esfregando― as faces com a ponta do avental.

-sei ― concordou― e o sinto, mas é tão absurdo que me é impossível escutá-la sem me alterar. Imagino que Phoebe estará ainda mais assustada.

― Não sei nada do Phoebe, mas não me surpreenderia que também ela tivesse decidido meter-se na cama. Sempre leva consigo um crucifixo tão grande como uma colher de chá. Duvido que um homem ousasse acossar a uma mulher que leva semelhante amparo.

― Pobrezinha. ― Charlotte colocou o bule na mesa e se sentou de novo. — Acha que avisarão ao Thomas?

― Por uma aparição? Antes chamariam o pároco.

― Para um exorcismo? ― disse Charlotte com deleite. — eu adoraria vê-lo! Acha que o farão?

Emily arqueou as sobrancelhas e soltou um risinho sufocado.

― De que outra forma é possível desfazer-se de um monstro verde com chifres?

― Com um pouco mais de água e um pouco menos de imaginação ― respondeu asperamente Charlotte. Mas na hora sua expressão se suavizou. — Pobre mulher. Suponho que tem poucas coisas que fazer. Os únicos acontecimentos importantes de sua vida são os que ela mesma inventa. Ninguém a necessita em realidade. Pelo menos, depois disto será famosa durante uns dias.

Emily estendeu o braço e serviu o chá, mas não respondeu. Era uma idéia triste e patética.

No fim de agosto, os Dilbridge ofereceram um jantar a que Emily e George estavam convidados junto com o resto de vizinhos do Paragon Walk. Surpreendentemente, o convite incluía Charlotte.

Só tinham transcorrido dez dias desde a aparição da senhorita Lucinda e o interesse do Charlotte permanecia muito vivo. Além disso, não tinha que preocupar-se de seu aspecto para a ocasião. Com certeza Emily tinha em mente algum vestido para ela. como sempre, a curiosidade foi mais forte que o orgulho e Charlotte aceitou sem vacilar outro vestido de tia Vespasia, adequadamente retocado pela criada do Emily. O traje era de rasa cor ostra com uma renda que foi substituída em sua maioria por gaze para lhe dar um ar mais juvenil. Charlotte virou lentamente frente ao espelho móvel e o que viu a satisfez em suma. Também lhe pareceu maravilhoso que outra pessoa a penteasse. Custava-lhe muito recolher o cabelo atrás da cabeça com elegância. Suas mãos sempre pareciam achar-se no ângulo equivocado.

― Deixa já de se admirar ― disse Emily com secura. — Está ficando vaidosa e não lhe assenta bem.

Charlotte sorriu.

― Pode ser, mas é maravilhoso! ― recolheu as saias, agitando― as ligeiramente, e desceu com o Emily até o vestíbulo, onde George as aguardava. Tia Vespasia tinha decidido não ir, embora o convite a incluísse a ela também.

Fazia muito que Charlotte não ia a uma festa e nunca a tinham divertido em excesso. Mas desta vez se sentia diferente. Desta vez sua mãe não a acompanhava para fazê-la desfilar frente a jovens casadouros de boa família, e sentia a segurança do amor do Pitt, já não lhe angustiava o que a sociedade pudesse pensar dela e não tinha necessidade de impressionar. Podia ser ela mesma e não tinha que fazer esforços, pois basicamente ia de espectadora. Os dramas do Paragon Walk não afetavam, porque a principal tragédia não tinha que ver com o Emily, e se Emily desejava envolver-se em farsas menores era seu problema.

O jantar foi pouco concorrido para o que era habitual nos Dilbridge. Charlotte mal divisou duas ou três caras novas. Simeón Isaac estava ali com Albertine Dilbridge, fato que, naturalmente, mereceu a desaprovação de lady Tamworth. As senhoritas Horbury foram de rosa, cor que favorecia assombrosamente à senhorita Laetitia.

Jessamyn Nash trazia um vestido cinza pérola. Estava deslumbrante. Só ela podia dar vida a essa cor deixando intacta, ao mesmo tempo, sua essência espectral. Por um momento Charlotte sentiu inveja.

Então viu o Paul Alaric, que estava junto à Selena, escutando― a com a cabeça ligeiramente inclinada, elegante e com expressão vagamente divertida.

Charlotte ergueu ainda mais o queixo e se aproximou deles com um sorriso radiante.

-senhora Montague ― saudou vivazmente― , alegra-me vê-la com tão bom aspecto. ― Não desejava ser muito clara e ainda menos diante do Alaric. A mordacidade podia divertir ao francês, mas com certeza não era digna de sua admiração.

Selena se surpreendeu. Aparentemente, não era o comentário que tinha esperado.

― Encontro-me estupendamente, obrigada ― respondeu, arqueando as sobrancelhas.

Trocaram trivialidades, mas à medida que observava a Selena, Charlotte percebeu o acertado de sua observação. Selena tinha um aspecto excelente. Nada indicava que não fazia muito tinha sofrido a violência e a obscenidade de uma violação. Tinha o olhar brilhante e suas faces desprendiam um rubor tão subido e delicado ao mesmo tempo, que Charlotte chegou à conclusão de que era natural. Movia-se com certa presteza, fazendo pequenos gestos com as mãos, percorrendo o salão com o olhar. Se sua atitude constituía uma exibição de coragem, um desafio ao consenso tácito de que uma mulher violada era, de certo modo, uma mulher justamente manchada cuja mancha devia recordar o resto de sua vida, então Charlotte, mesmo que a desgostasse, não podia menos que admirá-la.

Não fez novas alusões ao incidente e a conversa derivou para outros temas, pequenas notícias dos jornais, frivolidades do mundo da moda. Depois se retirou, deixando a Selena a sós com o Alaric.

― Tem um aspecto formidável, não lhe parece? ― observou Grace Dilbridge, sacudindo levemente a cabeça. — Pobrezinha, não compreendo como o aguenta.

― Deve ser muito valente ― respondeu Charlotte. Não era fácil elogiar a Selena, mas para ela a sinceridade estava acima de tudo. — É realmente admirável.

― Admirável? ― A senhorita Lucinda se voltou rapidamente com expressão contrariada. — Obviamente está em seu direito de escolher às pessoas que admira, senhora Pitt, mas em minha opinião Selena é uma desavergonhada e constitui uma desonra para o sexo feminino. Acredito que a próxima temporada mudarei de lugar. Será muito penoso para mim, mas Paragon Walk está adquirindo uma reputação intolerável.

Charlotte se sentiu muito surpreendida para responder imediatamente, e aparentemente Grace Dilbridge tampouco sabia o que dizer.

― Uma descarada ― repetiu a senhorita Lucinda, olhando a Selena, que agora caminhava pelo braço do Alaric em direção ao jardim.

Alaric sorria, mas havia algo na inclinação de sua cabeça que delatava cortesia mais que interesse. Parecia inclusive vagamente divertido.

A senhorita Lucinda grunhiu.

Por fim, Charlotte recuperou a fala.

― Sua observação me parece cruel, senhorita Lucinda, e muito injusta. A senhora Montague foi a vítima do crime, não a autora.

― Tolices! ― Era Afton Nash, com o rosto pálido e o olhar fulgurante. — Me custa acreditar que você seja tão ingênua, senhora Pitt. Os encantos femininos são irresistíveis... para alguns. ― Examinou ao Charlotte de cima abaixo com um desprezo que parecia despojá-la de seu precioso vestido de noite, deixando a exposta à curiosidade e as mofas de outros. — Mas se pensar que o são até o extremo de induzir aos homens a forçar às mulheres, superestima a seu próprio sexo. ― Esboçou um sorriso gelado. — Existem muitas mulheres facilmente excitáveis que até encontram um prazer perverso na violência e na submissão a ela. Nenhum homem precisa arriscar sua reputação forçando a uma mulher, independentemente do que esta resolva contar depois.

― Isso é intolerável! ― Algernon Burnon estava perto e tinha ouvido o comentário. Deu um passo adiante, com o rosto cinzento e o corpo trêmulo. —Exijo-lhe que retire o dito e se desculpe.

-o que fará se me nego? ― disse Afton sem alterar seu sorriso. — me Pedir que escolha entre espadas e pistolas? Não seja ridículo, jovem! Ofenda-se se quiser. É livre de acreditar quanto deseje a respeito das mulheres, mas não pretenda que eu compartilhe sua opinião!

― Um homem decente ― respondeu friamente Algernon― não falaria mal dos mortos nem insultaria a aflição de outro homem. E fossem quais forem suas debilidades ou vergonhas mais íntimas, não mofaria publicamente delas.

Para surpresa do Charlotte, Afton não respondeu. Com o rosto lívido, olhou ao Algernon como se não houvesse ninguém mais na sala. Os segundos passavam e até o Algernon pareceu assustar-se da intensidade do ódio do Afton. Ao cabo, Afton virou sobre seus calcanhares e se afastou com passo longo.

Charlotte respirou profundamente. Nem sequer sabia por que estava atemorizada. Não compreendia o que tinha ocorrido, e se diria que o próprio Algernon tampouco. O jovem piscou e se voltou para ela.

-lamento tê-la perturbado, senhora Pitt. São temas que não devem discutir― se diante de uma dama. Não obstante ― respirou fundo― , agradeço-lhe que tenha defendido a Selena, pela memória da Fanny...

Charlotte sorriu.

-sei. E tudo o que se aprecie de um amigo faria o mesmo.

Algernon relaxou o semblante.

― Obrigado ― murmurou.

Instantes depois, Emily se aproximou do Charlotte.

— O aconteceu? ― perguntou com preocupação. — Parecia uma cena horrível!

― Foi desagradável ― concordou Charlotte― , mas ignoro seu significado.

— O fez desta vez?

― Elogiei a valentia da Selena. ― Olhou diretamente ao Emily. Não tinha intenção de estender-se no ocorrido, e a sua irmã mais valia sabê-lo.

Emily franziu o sobrecenho, passando da irritação à perplexidade.

― É extraordinário, não é? Selena está eufórica. Dir-se-ia que obteve uma vitória secreta que só ela conhece. Inclusive se mostra amável com o Jessamyn. É ridículo!

― Tampouco eu gosto de Selena ― admitiu Charlotte― , mas devo admirar sua coragem. Desafia às pessoas intolerantes que asseguram de certo modo, tem a culpa do que lhe aconteceu. Todo o que tenha a coragem de fazer algo assim, merece meu respeito.

Emily percorreu com o olhar o enorme salão até infiltrar na Selena, que estava falando com o Albertine Dilbridge e o senhor Isaac. Jessamyn se achava a apenas dois metros deles, com uma taça de champanha na mão e observando ao Hallam Cayley tomar o que devia ser seu terceiro ou quarto ponche de rum. A expressão do Jessamyn era indecifrável. Bem podia ser de lástima como de desprezo, ou talvez não tivesse nada que ver com o Hallam. Não obstante, quando seus olhos se desviaram para a Selena, neles não havia mais que regozijo puro e delicioso.

Emily sacudiu a cabeça.

― Tomara pudesse entender ― disse pensativa. — Talvez peque de suspicaz, mas duvido que seja só uma questão de coragem. Jamais tinha visto a Selena comportar-se desse modo. Possivelmente me equivoque, mas não o vejo como um desafio. Juraria que Selena está contente consigo mesma. Sabia que se propôs conquistar ao senhor Alaric?

Charlotte fulminou a sua irmã com o olhar.

― É claro que sei! Acha que também sou cega e surda?

Emily ignorou a observação.

— Me prometa que não o dirá ao Thomas ou não lhe o conto.

Charlotte se apressou a prometê-lo. Não podia renunciar ao segredo, por muito conflito que gerasse depois.

Emily torceu o gesto.

― Como sabe, aquela noite eu fui a primeira pessoa que viu a Selena...

Charlotte assentiu com a cabeça.

― Perguntei-lhe em seguida quem tinha sido. E sabe o que me respondeu?

― Como quer que saiba?

― Fez-me jurar que guardaria o segredo... Pois bem, disse que tinha sido Paul Alaric. ― Emily calou e esperou a reação do Charlotte.

Charlotte sentiu uma aversão instintiva, não por Selena por Alaric. Mas na hora a descartou.

― Isso é ridículo! Que necessidade tinha Alaric de acossá-la? Dada a insistência com que Selena o persegue, só teria que voltar-se para ela para fazê-la sua. ― Charlotte sabia que estava sendo intencionalmente cruel.

― Exato ― aprovou Emily― , o que só faz aumentar o mistério. Além disso, como é possível que Jessamyn não esteja afetada? Se o senhor Alaric sentir pela Selena uma paixão tão forte para violá-la no Paragon Walk, o lógico é que Jessamyn estivesse louca de raiva, não pensa assim? Mas em troca parece divertida. Posso vê-lo em seus olhos cada vez que olha Selena.

― Isso é porque não sabe que foi Alaric ― raciocinou Charlotte. Depois, refletiu com maior profundidade. — Mas a violação nada tem que ver com o amor, Emily. É violência, posse. Um homem forte capaz de querer não força a uma mulher. Aceita o amor tal como chega, consciente de que quando é necessário deve ser desnaturado. A verdadeira fortaleza não está em dominar a outros, mas no domínio da gente mesmo. O amor é dar e receber, e quem conheceu o amor vê a conquista como um ato fraco e egoísta, a satisfação momentânea de um apetite. E então já não é atraente, mas simplesmente triste.

Emily enrugou as sobrancelhas e seus olhos se nublaram.

― Você fala de amor, Charlotte. Eu só pensava no aspecto físico, que pode ser muito diferente sem amor. Possivelmente até encerre um pouco de ódio. Pode ser que Selena desfrutasse em segredo. Deitar-se com o senhor Alaric voluntariamente seria um pecado, e embora à sociedade trouxesse sem cuidado, afetaria aos amigos e familiares mais amealhados. Mas o fato de ser a vítima a desculpa, pelo menos em sua própria consciência. E se não foi tão espantoso, se desfrutou disso sabendo que em realidade devia repugná-la, conseguiu ambas as coisas: ser inocente de toda culpa e gozar do prazer.

Charlotte refletiu uns instantes para logo desprezar a idéia, possivelmente sem razão, só porque não desejava que fosse verdade.

― Resisto a acreditar que a violação possa ser prazenteira. Além disso, por que está tão contente Jessamyn?

― Ignoro-o― disse Emily, rendendo-se. — Mas não é tão simples como parece.

Emily foi em busca do George, que tratava em vão de tranqüilizar Phoebe murmurando, visivelmente sobressaltado, palavras doces. Phoebe se havia aficionado a falar de religião e nunca se afastava de seu crucifixo. George não sabia o que dizer e experimentou um grande alívio quando Emily tomou a substituição, disposta a desviar a conversa sobre a salvação a algo mais corriqueiro, como o método para formar uma boa criada. Charlotte observou admirada a habilidade com que o fazia. Emily tinha aprendido muito desde os tempos do Cater Street.

― Diverte-lhe a representação? ― disse uma voz suave e muito bela a suas costas.

Charlotte se voltou com mais rapidez do que a conveniente. Paul Alaric ergueu sutilmente as sobrancelhas.

― Oscila entre a farsa e a tragédia, não lhe parece? ― disse com um tênue sorriso. — Receio que o senhor Cayley está chamado para a tragédia; parece impregnado de algo lúgubre que não demorará para engoli-lo . E a pobre Phoebe está assustada sem motivo.

Charlotte se sentiu desconcertada. Não estava preparada para falar da realidade com o senhor Alaric. De fato, ignorava se lhe falava a sério ou simplesmente praticava um trocadilho. Procurou uma resposta que não a comprometesse.

Ele aguardou, olhando― a docemente com seus olhos negros de latino, mas sem a visível sensualidade que Charlotte relacionava com a Itália. Tinha a impressão de que esses olhos a penetravam sem esforço e liam em seu interior.

― Como sabe que não tem motivos? ― perguntou.

O sorriso do Alaric se ampliou.

― Minha querida Charlotte, sei do que tem medo Phoebe, mas esse medo carece de fundamento, pelo menos no Paragon Walk.

― Então, por que não o diz? ― Charlotte estava indignada, pois se compadecia do pânico do Phoebe.

Ele a olhou com paciência.

― Porque não me acreditaria. Convenceu-se a si mesmo, como a senhorita Lucinda.

― OH, refere-se à aparição da senhorita Lucinda? ― De repente, Charlotte experimentou um alívio que quase a debilitou.

Paul Alaric riu abertamente.

― OH, não duvido de que viu algo. Além de tudo, se tanto gosta de colocar seu virtuoso nariz nos assuntos dos outros, pôr algo diante para farejar constitui uma tentação irresistível. Acredito que o monstro verde foi muito real.

Charlotte queria protestar, mas sobre tudo desejava acreditar no Alaric.

― É uma irresponsabilidade ― disse, com uma voz que esperou soasse severa. ― A pobre mulher pôde sofrer um ataque de pânico.

Paul Alaric não se deixou enganar em nenhum momento.

― Duvido-o. Acredito que a senhorita Lucinda é uma dama particularmente resistente. Sua própria indignação a manterá viva, embora só seja para averiguar o que está ocorrendo.

― Você sabe quem foi? ― perguntou Charlotte.

Alaric a olhou surpreso.

― Nem sequer sei se ocorreu realmente. Só é uma hipótese.

Charlotte não soube o que responder. Sentia intensamente a proximidade do Alaric. Ele não precisava tocá-la nem pensar o para fazê-la consciente de sua presença acima de outros comensais. Tinha atacado a Fanny e logo a Selena?

Ou foi outro homem e Selena simplesmente desejava acreditar que tinha sido ele? Podia entendê-lo . Com isso a agressão passava da esfera do sórdido e humilhante a algo intolerável mas ao mesmo tempo emocionante.

Fingir que a companhia do Alaric não gerava nela uma excitação profunda e desconcertante, uma espécie de dominação, seria enganar-se a si mesma. Era a percepção inconsciente de uma faceta violenta naquele homem o que a fascinava? Era certo que as mulheres, em um primitivo foro interno que estavam obrigadas a rechaçar, ansiavam realmente ser violadas? Acaso todas, incluída ela mesma, desejavam secretamente ao Paul Alaric?

"A mulher gemendo por seu perverso amante..." O verso, inquietante e oportuno, irrompeu em sua mente. Charlotte o rechaçou e lutou por esboçar um sorriso que lhe pareceu artificial e grotesco.

― Não posso imaginar ninguém com um disfarce tão ridículo ― disse tentando mostrar-se jovial. — Em minha opinião é mais provável que se tratasse de um animal extraviado ou inclusive dos ramos de um arbusto.

― Possivelmente ― respondeu Alaric amavelmente. — Não penso discutir com você.

A chegada das senhoritas Horbury e lady Tamworth lhes impediu de seguir falando do tema.

― Boa noite, senhorita Horbury ― saudou Charlotte. — Lady Tamworth.

― Sua presença aqui demonstra uma grande valentia ― acrescentou Alaric, e Charlotte sentiu desejos de dar-lhe um chute.

A senhorita Lucinda se ruborizou. Desaprovava ao Alaric e, portanto, não lhe tinha simpatia, mas não podia rechaçar seus louvores.

― Era meu dever ― respondeu muito séria. — E em qualquer caso não tenho intenção de retornar sozinha a casa. ― Olhou fixamente ao Alaric com seus olhos azuis bem abertos. — Eu não cometeria a insensatez de caminhar sozinha pelo Paragon Walk.

Charlotte percebeu que Alaric arqueava suas finas sobrancelhas e soube o que estava pensando. Sentiu vontade de rir. A imagem de um homem qualquer, e não digamos do Paul Alaric, incomodando voluntariamente à senhorita Lucinda era descabelada.

― Uma medida muito judiciosa ― opinou Alaric, correspondendo diretamente ao olhar desafiante da senhorita Lucinda. — Duvido que alguma criatura deste mundo cometesse a temeridade de atacar às três juntas.

A senhorita Lucinda teve a ligeira impressão de que Paul Alaric se estava divertindo a sua custa, mas como não adivinhava a graça, julgou o comentário como uma brincadeira estrangeira que não merecia sua atenção.

― Certamente que não ― concordou com entusiasmo lady Tamworth. — Se nos unirmos, nossos lucros não conhecerão limites. Se desejarmos conservar nossa sociedade, temos que trabalhar duro. ― Olhou com aspereza ao Simeón Isaac, que tinha a cabeça inclinada para o Albertine Dilbridge e o rosto iluminado. — E para ter êxito devemos atuar com rapidez. Felizmente, esse abominável senhor Darwin está morto e já não pode fazer mais dano.

― Uma vez publicada uma idéia, lady Tamworth, seu autor não precisa continuar vivendo ― indicou Alaric. — Não mais do que a semente necessita ao semeador para florescer.

A mulher o olhou com antipatia.

― Nota-se que não é inglês, senhor Alaric. Não pode compreender aos ingleses. Nós não tomamos a sério semelhantes blasfêmias.

Alaric fingiu ingenuidade.

― Não era o senhor Darwin inglês?

Lady Tamworth encolheu bruscamente os ombros.

― Não sei nada dele nem quero saber. Esse tipo de homens não é assunto de interesse para a gente respeitável.

Alaric seguiu o olhar de lady Tamworth.

― Tenho certeza de que o senhor Isaacs estará de acordo com você ― disse com um vago sorriso. Charlotte tratou de afogar a risada com um falso espirro. — Sendo judeu ― prosseguiu Alaric― duvido que aprove as revolucionárias teorias evolucionistas do senhor Darwin.

Hallam Cayley se aproximou torpemente ao grupo com semblante grave e outra taça na mão.

― Certo ― disse olhando ao Alaric com expressão de desgosto. — O pobre idiota acredita que o homem é feito a imagem de Deus. parece-me que é feito a imagem do macaco.

― Não estará insinuando que o senhor Isaac é cristão? ― perguntou lady Tamworth com ar ofendido.

― Judeu ― respondeu lenta e claramente Hallam. Depois bebeu um gole de sua taça. — A criação pertence ao Velho Testamento. Ou acaso não o tem lido?

― Sou da Igreja da Inglaterra ― respondeu secamente lady Tamworth. — Não leio os ensinos estrangeiros. Esse é o principal mal da sociedade de nossos dias: muito sangue novo estrangeiro. Jamais ouvi esses nomes quando era menina. Carecem de linhagem. Ou seja de onde procedem!

― Não tão nova, senhora. ― Alaric se achava tão perto do Charlotte que esta acreditou sentir seu calor através do grosso tecido do vestido. — O senhor Isaacs pode remontar sua ascendência ao Abraham, e este ao Noé e, portanto, ao Adão.

― E portanto a Deus! ― Hallam bebeu a taça e a jogou no chão. — Brilhante! ― Olhou triunfalmente lady Tamworth. — Ao lado do senhor Isaacs, parecemos bastardos recém― nascidos, não acha assim? ― Sorriu zombeteiramente e se afastou.

Lady Tamworth se removia de raiva. Seus dentes estalaram e Charlotte sentiu pena dela, porque seu mundo estava mudando e não o compreendia. Não havia lugar para ela. Era como os dinossauros do senhor Darwin: perigosa e ridícula, anacrônica.

― Receio que o senhor Cayley bebeu muito ― disse Charlotte. — Deve desculpá-lo . Não acredito que pretendesse ser tão ofensivo.

Mas isso não tranqüilizou lady Tamworth. A mulher não podia perdoá-lo.

― É monstruoso! Certamente foi a relação com homens como esse a que gerou semelhantes ideias no senhor Darwin. Se ele não se for, irei eu.

― Quer que a acompanhe a casa? ― ofereceu-se Alaric. — Duvido que o senhor Cayley se vá.

Lady Tamworth olhou ao Alaric com ódio, mas se obrigou a recusar o convite com educação.

Charlotte riu sufocadamente, cobrindo― a boca com uma mão.

― É incorrigível! ― exclamou, incapaz de reprimir a risada. Sabia que ria não só pela comicidade da situação, mas também pela tensão gerada pelo medo e a excitação.

― Não é você a única com direito a escandalizar a outros, Charlotte ― respondeu calmamente Alaric. — Também a mim deve me permitir um pouco de diversão.

Dias mais tarde, Charlotte recebeu uma nota de Emily escrita precipitadamente e com certa emoção. Por algo que Phoebe havia dito, Emily estava convencida de que a senhorita Lucinda, apesar de sua curiosidade farisaica, tinha razão e algo estava acontecendo no Paragon Walk. Emily possuía idéias mais práticas sobre o modo de descobri-lo, sobre tudo se o assunto tinha relação com Fanny e com o desaparecimento do Fulbert. E custava acreditar que não fosse assim.

Charlotte solucionou imediatamente o cuidado da Jemima e às onze da manhã estava batendo na porta do Emily. Esta chegou ao mesmo tempo em que a criada e quase empurrou ao Charlotte até o gabinete.

― Lucinda tem razão ― disse quase sem fôlego. — É uma mulher horrível, certamente, e em realidade só deseja descobrir algum escândalo para ter algo que contar e sentir-se superior. Além disso, desse modo teria convites assegurados para o resto da temporada. Mas não averiguará nada, porque tomou o caminho equivocado!

― Emily! ― Charlotte a pegou pelo braço. Só podia pensar no Fulbert. — Por todos os Santos, esquece― o! Recorda o que ocorreu ao Fulbert!

― Não sabemos o que ocorreu ao Fulbert ― respondeu com lógica Emily, afastando o braço do Charlotte com impaciência. — Mas quero averiguá-lo , você não?

Charlotte vacilou.

― Como?

Emily cheirou a vitória. Em lugar de pressionar, recorreu a uma adulação sincera.

― Sua sugestão... De repente compreendi que esse era o modo. Thomas não pode fazê-lo . Tem que levar-se a cabo com dissimulação...

― Quem? ― perguntou Charlotte. — Explique-se, Emily, antes que explore!

― As criadas! ― Emily se tinha inclinado para frente e tinha o rosto aceso. — As criadas percebem tudo. Possivelmente não compreendam o significado de todas as peças, mas nós poderíamos deduzir.

― Mas Thomas... ― começou Charlotte, embora soubesse que Emily tinha razão.

― Tolices! ― replicou Emily. — Nenhuma criada falaria com a polícia.

― Mas não podemos ir por aí interrogando às criadas de outros.

Emily estava cada vez mais nervosa.

― Santo céu, não penso fazê-lo abertamente! Apresentar-me-ei com alguma desculpa, como o desejo de conhecer certa receita, ou poderia levar alguns de meus velhos vestidos à criada do Jessamyn...

― Não pode fazer isso! ― exclamou horrorizada Charlotte. — Provavelmente Jessamyn já lhe dá de presente seus vestidos velhos. Deve ter dúzias deles. Não poderia justificar...

― Sim, sim poderia. Jessamyn jamais dá de presente seus velhos vestidos. Nunca dá nada. Uma vez o vestido foi seu, guarda-o ou o queima. Não deixa que ninguém herde suas coisas. Além disso, sua criada tem aproximadamente minha manequim. pensei em um vestido de musselina do ano passado que iria perfeito. Pode usá-lo  em sua tarde livre. Iremos quando tivermos a certeza de que Jessamyn não está em casa.

Charlotte duvidava do plano e temia que resultasse perigoso para ambas, mas como Emily pensava ir de qualquer modo, a curiosidade a obrigou a acompanhá-la.

Tinha julgado mal ao Emily. Não averiguaram nada importante em casa do Jessamyn, mas a criada estava encantada com o vestido e a entrevista transcorreu com tanta naturalidade como uma conversa fortuita.

Passaram depois pela casa de Phoebe, usando à única hora do dia em que se supunha que estava ausente, e aprenderam uma excelente fórmula para elaborar cera de móveis com um aroma delicioso. Pelo visto, Phoebe se havia aficionado a visitar a igreja local a horas estranhas, e ultimamente ia quase a cada dois dias.

― Pobrezinha ― disse Emily uma vez que partiram. — Acredito que tanta tragédia a transtornou. Pergunto-me se rezar pela alma da Fanny.

Charlotte não entendia esse costume de rezar pelos mortos, mas sim a necessidade de procurar consolo em um lugar tranqüilo, onde a fé e a austeridade tinham achado refúgio durante tantas gerações. alegrava-se de que Phoebe o tivesse descoberto, e se lhe contribuía com serenidade, se a ajudava a manter sob controle seus medos, tanto melhor.

― Vou ver a cozinheira do Hallam Cayley ― anunciou Emily. — refrescou muito e tenho frio, apesar de que levo um vestido grosso. Confio em que o tempo melhore. Ainda fica muita temporada por diante!

Era certo que soprava um vento do este decididamente frio, mas Charlotte não estava interessada no tempo. apertou-se contra o xale e manteve o passo do Emily.

― Não pode entrar como se tal coisa fosse natural e perguntar pela cozinheira. Que desculpa tem? Só conseguirá que Hallam Cayley suspeite, ou pense que é uma mal educada.

― Hallam não estará em casa! ― explicou Emily com impaciência. — Já lhe disse que escolhi as horas com grande parada. Sua cozinheira é um desastre fazendo bolos. Poderia utilizá-lo s para ferrar cavalos, por isso Hallam come tantos doces fora de casa. Mas é um gênio com os molhos. Pedir-lhe-ei uma receita para impressionar a tia Vespasia. Isso a adulará, e depois a conduzirei a uma conversa mais geral. Estou segura de que Hallam sabe o que está ocorrendo. Durante o último mês se comportou como se lhe perseguisse um fantasma. Acredito que, a sua maneira, está tão assustado como Phoebe.

Quase tinham alcançado a porta. Emily se deteve para colocar o xale com um pouco mais de elegância, ajustou o chapéu e puxou a campainha.

O criado abriu a porta e se surpreendeu de ver duas mulheres sozinhas.

— Lady... lady Ashworth! Sinto muito, senhora, mas o senhor Cayley não está em casa. – o criado ignorou ao Charlotte. Não tinha certeza de quem era e já tinha bastante com lady Ashworth.

Emily sorriu encantadoramente.

― Que lástima! Perguntava-me se teria a amabilidade de me deixar falar com sua cozinheira. A senhora Heath, verdade?

— Senhora Heath? Assim é, lady...

Emily lhe dedicou um olhar radiante.

― Os molhos da senhora Heath são célebres, e agora que tenho à tia de meu marido, lady Cumming-Gould, alojada em casa para a temporada, queria impressioná-la com algo especial de tanto em tanto. Minha cozinheira é excelente, mas... Sei que pode parecer uma rabugice, mas me perguntava se a senhora Heath teria a amabilidade de me ensinar uma de suas receitas. Certamente, não será o mesmo se não a preparar ela, mas mesmo assim continuará sendo extraordinária. ― Emily sorriu.

O criado se abrandou. Esse era seu domínio e a compreendia perfeitamente.

— Se não lhe importa esperar no gabinete, lady, avisarei em seguida à senhora Heath.

― Obrigado, agradeço. ― Emily entrou na estadia seguida do Charlotte. — Viu? ― exclamou triunfalmente quando o criado partiu. — Só é questão de planejamento.

Quando a senhora Heath apareceu, em seguida ficou claro que vinha disposta saborear seu momento de glória. As negociações iriam ser longas e a cozinheira ia requerer infinitos elogios antes de desvelar os segredos de suas criações. Também estava claro que tinha intenção de compartilhá-lo s. A fama já faiscava em seus olhos.

Emily estava a ponto de alcançar seu objetivo quando uma criada miúda e coberta de fuligem desceu ruidosamente as escadas e irrompeu no gabinete, com a touca torcida e as mãos negras.

A senhora Heath a olhou indignada. Aspirou para soltar uma severa reprimenda, mas a moça se adiantou.

— Senhora Heath, a lareira do dormitório verde está ardendo! Acendi um fogo para fazer desaparecer o aroma, tal como você me ordenou, e agora há fumaça por toda parte.

A senhora Heath e Emily se olharam consternadas.

― Provavelmente haja um ninho de pássaros na lareira― disse Charlotte. Desde que era uma mulher casada tinha tido que aprender esse tipo de coisas. O limpador de chaminés tinha visitado sua casa em mais de uma ocasião. — Não abra as janelas ou a corrente avivará o fogo. vá procurar uma vassoura de cabo longo e trataremos de desentupir a chaminé.

A criada não se moveu, pois não sabia se devia obedecer a uma estranha.

— O que espera, moça? ― A senhora Heath decidiu que ela teria dado o mesmo conselho se o protocolo não lhe tivesse impedido de falar primeiro. — Não sei por que me pediu ajuda!

Emily aproveitou a ocasião para afiançar sua posição, antes de ver interrompido o verdadeiro propósito de sua visita por aquela inoportuna crise doméstica.

― Pode ser que o ninho esteja muito alto. Talvez necessite nossa ajuda. Se não agirmos corretamente, o fogo poderia estender-se. ― E sem mais saiu pela porta e seguiu à criada até o primeiro piso.

Charlotte a imitou, levada pelo desejo de conhecer o resto da casa e de ouvir possíveis comentários, mas não porque compartilhasse a esperança do Emily de obter informação útil sobre o Fulbert ou Fanny.

O dormitório verde estava certamente repleto de fumaça e os gases se aferraram a suas gargantas assim que abriram a porta.

― OH! ― Emily tossiu e deu um passo atrás. — Que horror! Deve tratar-se de um ninho muito grande.

— Será melhor que traga um balde de água para apagar o fogo ― ordenou Charlotte à criada. — Pegue uma jarra do banho. Rápido! Quando estiver extinto poderemos abrir as janelas.

― Sim, senhora. ― A moça saiu a toda pressa, presa do pânico, temerosa de que a culpassem do acontecido.

Emily e a senhora Heath tossiam, aliviadas de que Charlotte tivesse tomado o comando.

A moça retornou e estendeu a jarra ao Charlotte com os olhos abertos de espanto. A senhora Heath abriu a porta e ao ver que não havia chamas decidiu reafirmar-se. Agarrou a jarra, entrou na habitação a grandes passadas e arrojou a água à lareira. Houve um arroto de vapor, e uma rajada de fuligem lhe empanou o avental branco. Furiosa, deu um salto atrás. A moça tratou de reprimir a risada fingindo que se engasgara.

Mas o fogo se extinguiu e fios de água oleosa desceram pela lareira.

― Agora! ― disse a senhora Heath com determinação.

Tinha convertido o assunto em uma provocação pessoal e não estava disposta a deixar-se vencer, ainda menos diante das visitas e de sua própria criada. Arrebatou à moça a vassoura e se aproximou da lareira. Inseriu― a com um golpe seco no cano cavernoso e tropeçou com um obstáculo.

― É um ninho enorme! Não estranharia que o pássaro continuasse aí. Tinha razão, senhora. ― Empurrou novamente, desta vez com mais força, e foi recompensada com uma descarga de fuligem. Por um momento esqueceu as boas maneiras e soltou um impropério.

― Empurre por um lado para tentar desequilibrá-lo ― sugeriu Charlotte.

Emily observava de perto, enrugando o nariz.

― Que aroma tão desagradável ― disse com asco. — Ignorava que os fogos molhados cheirassem tão mal.

A senhora Heath introduziu a vassoura ligeiramente inclinada e golpeou com força. Houve outra cascata de fuligem, um ruído como um arranhão e logo, muito lentamente, o corpo do Fulbert escorregou pela lareira e caiu escarranchado sobre as cinzas empapadas. Estava negro por causa da fuligem, da fumaça, e coberto de vermes. A fetidez era indescritível.

 

Pitt não achou prazer algum no descobrimento do cadáver do Fulbert, nem sequer a satisfação de resolver o mistério. Suspeitava que Fulbert estivesse morto, mas a profunda punhalada achada em suas costas descartava o suicídio. Além disso, alguém tinha feito desaparecer o corpo embutindo-o no cano da lareira.

Contudo, não compreendia que motivos podiam levar a alguém inocente a fazer tal coisa, salvo possivelmente ao Afton Nash, para ocultar o pecado de seu irmão. Para outros, o suicídio era a resposta perfeita à violação e o assassinato da Fanny.

E Fulbert estava morto há muito tempo, provavelmente desde dia de seu desaparecimento. O corpo estava descomposto por causa do calor e cheio de buracos pelos vermes. Decididamente, Fulbert não estava vivo no dia em que atacaram a Selena.

Tratava-se de outro assassinato.

Trouxeram um ataúde e levaram o corpo. Em seguida, Pitt enfrentou ao inevitável. Hallam Cayley o aguardava. Tinha um aspecto horrível, a rosto cítrico e banhado em suor, e as mãos lhe tremiam com tanta violência que o copo tocava castanholas contra os dentes.

Pitt tinha visto cenas de comoção antes. Estava acostumado a observar enquanto a pessoa fazia frente ao medo ou a culpa ou a uma dor devastadora. Entretanto, ainda não sabia distinguir uma comoção de outra. Enquanto olhava ao Cayley, ignorava o que sentia o homem, só sabia que era algo imenso e horrível. Estava pensando nas perguntas a formular, quando um sentimento de compaixão se apoderou dele e deixou a um lado a razão.

Hallam deixou o copo.

― Não o entendo ― disse com desespero. — me ajude, Deus. Eu não o matei.

― Por que veio Fulbert vê-lo? ― perguntou Pitt.

― Não veio! ― A voz do Hallam soava cada vez mais elevada. Seu frágil autodomínio se desvanecia por momentos. — Não o vi! Ignoro o que ocorreu!

Pitt não esperava que Hallam admitisse seu crime, ao menos no momento. Possivelmente era uma dessas pessoas que negam tudo, inclusive diante de provas. Ou talvez fosse certo que não sabia nada. Pitt teria que falar com os criados. ia ser uma tarefa árdua e deprimente. A busca de um culpado sempre gerava tragédia. Quando tinha ingressado no corpo de polícia achava que a resolução de mistérios era um trabalho desapaixonado. Agora reconhecia seu engano.

― Quando foi a última vez que viu o senhor Nash? ― perguntou.

Hallam levantou a vista, surpreso. Tinha os olhos injetados de sangue.

― Meu deus, não sei! Faz várias semanas. Não recordo quando o vi por última vez, mas com certeza não foi no dia que o mataram.

Pitt ergueu ligeiramente as sobrancelhas.

― Acredita que o mataram quando desapareceu? ― inquiriu.

Hallam olhou fixamente ao inspetor. O rubor cobriu brevemente suas faces e logo desapareceu. Tinha o lábio suado.

― Não?

― Suponho que sim ― respondeu Pitt com tom lento. — É difícil saber. Imagino que poderia continuar escondido na lareira indefinidamente, desde que o aposento estivesse livre. Claro que o aroma teria piorado. Ordenou às criadas que limpassem o dormitório?

― Não tenho cuidado com os trabalhos domésticos! Meus criados limpam quando querem. Para isso os tenho, para não ter que pensar nessas coisas.

Era inútil lhe perguntar se algum de seus criados conhecia pessoalmente ao Fulbert. Já tinha investigado esse ponto e todos, como cabia esperar, tinham negado.

Foi Forbes quem obteve um novo dado surpreendente ou, pelo menos, uma declaração. O criado admitia agora que tinha aberto a porta ao Fulbert na tarde de seu desaparecimento, enquanto Hallam estava ausente. Fulbert subiu ao primeiro piso, dizendo que queria falar com o valete. O criado supôs depois que o valete tinha se despedido do senhor Nash, mas agora era claro que não o tinha feito. desculpou-se por ter mentido em sua primeira declaração, argumentando que não acreditara que esse detalhe tivesse importância e que não desejava comprometer a seu senhor por uma coincidência tão efêmera, pois temia que por isso pudesse perder o emprego.

O assunto desembocou em um beco sem saída. O valete negou ter visto o Fulbert, fato que não podia provar-se. Forbes afirmou que entre a criadagem existiam rivalidades e velhas rixas, e que não sabia em quem acreditar. De acordo com as declarações anteriores, qualquer dos criados podia ter matado Fanny, se um ou mais de um mentia, mas nenhum deles pôde atacar a Selena.

Depois de postar um agente frente à casa do Cayley para assegurar-se de que nenhum criado abandonava Paragon Walk, Pitt retornou à delegacia de polícia. O achado lhe tinha deixado um amargo sabor na boca, mas de momento nada podia obter com perguntas.

Fulbert foi enterrado sem demora e o funeral foi sombrio e reduzido, como se o espantoso cadáver estivesse à vista em lugar de descansar em um féretro de madeira escura e lustrosa.

Pitt assistiu ao funeral, desta vez não por respeito ao morto, mas sim porque precisava observar aos afligidos. Charlotte não estava, e tampouco Emily. Ainda sofriam a comoção pelo descobrimento do cadáver, e, para falar a verdade, Charlotte conhecia tão pouco ao Fulbert que sua presença teria sido interpretada como uma amostra de descortês curiosidade mais que de respeito. A gravidez deu à Emily a desculpa perfeita para ficar em casa. George, carrancudo e pálido, com o corpo rígido e o rosto ao vento, era o único representante da família.

Pitt pediu emprestada uma capa negra para cobrir sua vestimenta bem multicolorida e permaneceu discretamente afastado, sob os ciprestes, com a esperança de que ninguém reparasse nele ou como muito o confundissem com um empregado da funerária.

O cortejo chegou, ondeando sua negra braçadeira de luto ao vento. Ninguém falou salvo o pastor. Sua voz cantante flutuava sobre a argila ressecada e a erva murcha entre as lápides.

As únicas mulheres pressentes pertenciam à família direta do finado, Phoebe e Jessamyn Nash. Phoebe tinha um aspecto horrível, a pele cítrica e manchas escuras sob os olhos. De pé, com os ombros encurvados, parecia de costas uma anciã. Pitt tinha visto meninos maltratados com essa mesma expressão de resignação, aterrados mas muito certos do golpe para incomodar-se em fugir.

Jessamyn era o extremo oposto. Mantinha as costas retas como um soldado e o queixo alto, e nem sequer o véu negro conseguia ocultar a luminosidade de sua pele e o fulgor de seus olhos, fixos nos ramos dos ciprestes balançados pelo vento, ao longe, onde o caminho descia até a entrada do cemitério. A única mostra de emoção estava em suas mãos, tão fortemente fechadas que se não fosse pelas luvas, as unhas lhe teriam deixado marcas.

Todos os homens estavam ali. Pitt os estudou um a um, remontando-se a quanto sabia deles, procurando razões, incongruências, algo do que destilar uma resposta.

Fulbert tinha sido assassinado porque sabia quem violou a Fanny e depois a Selena. Podia existir no Paragon Walk outra causa, outro segredo pelo que valesse a pena matar?

Podia ter sido Algernon Burnon? Não era preciso muita força para dar uma única punhalada. Algernon se achava perto da tumba, com semblante sério e inexpressivo. Provavelmente não o sentia pelo Fulbert. Provavelmente estava pensando em Fanny. Tinha a amado? Sentia-se dor, esta devia manter-se oculta.

Assim tinha sido ao longo de várias gerações de esmerada compostura. Os cavalheiros não exteriorizavam seus sentimentos. Mostrar a dor se considerava impróprio, um afeminação. Um cavalheiro se arrumava inclusive para morrer com dignidade.

Quem tinha decretado tão longo compromisso? Se Algernon houvesse sentido um desejo tão veemente pela Fanny, teria insistido em adiantar as bodas.

Muitas mulheres se casavam na idade de Fanny ou inclusive antes. Não se considerava imprudente nem indecoroso. Enquanto contemplava o rosto sereno do Algernon, Pitt descartou que ocultasse qualquer classe de paixão ingovernável. Diggory Nash estava ao lado do Algernon e muito perto do Jessamyn, mas sem chegar a tocá-la. De fato, não parecia uma mulher que necessitasse um braço onde apoiar-se, e quase teria sido uma rabugice, uma intrusão, lhe oferecer um.

Estava imersa em seus próprios sentimentos, alheia ao resto das pessoas, inclusive a seu marido.

Sabia Jessamyn algo sobre Diggory Nash que outros ignoravam? Pitt contemplou ao homem do discreto refúgio dos ciprestes. Seu rosto, menos proporcionado que o do Afton, era entretanto mais quente. Não sorria, mas os sulcos estavam aí, e também essa bondade na boca, mas possivelmente não o poder do Afton. Era possível que um apetite desenfreado, anos de prazeres fáceis, tivessem o conduzido a confundir-se de pessoa na escuridão, à violação de sua própria irmã e ao assassinato para ocultar o fato?

Mas um personagem como Diggory se teria delatado faz tempo. O sentimento de culpa e o medo o teriam atormentado, rondado sua solidão, interrompido seu sono, concluído com alguma loucura se desesperada e a conseguinte queda. Nenhuma criada se queixou ao Forbes do comportamento do Diggory. Era certo que o homem fazia insinuações, mas nunca insistia se não fossem bem-vindas. Aceitava o rechaço, nas raras ocasiões em que ocorria, com humor e resignação.

Não, Pitt não podia acreditar que Diggory fosse mais do que parecia.

E George? Agora sabia por que George se mostrara tão evasivo a princípio. Simplesmente tinha estado muito ébrio para recordar onde tinha passado a noite, e muito envergonhado para reconhecê-lo . Talvez o medo lhe tivesse convencionado, pelo menos pelo bem do Emily.

Freddie Dilbridge. Estava de costas ao Pitt, mas este já lhe tinha observado enquanto caminhava atrás do féretro com semblante angustiado, desconcertado mais que aflito. Se havia medo nele era ao desconhecido, ao inexplicável. Não era o temor de que sabe exatamente o que está ocorrendo e qual será a vingança por sabê-lo .

Entretanto havia algo inquietante no Freddie. Pitt ainda não sabia o que era. As festas dissolutas não constituíam um fato excepcional. Sempre havia gente que se aborrecia, que não precisava ganhar o pão, nem sequer administrar suas propriedades, que carecia de ambições, que se divertia satisfazendo seus próprios apetites ou os apetites ainda mais estranhos de outros. O voyeurismo não era nenhuma novidade, inclusive permitia posteriormente um pouco de chantagem moral, um sentimento de superioridade.

Entretanto, esta imagem encaixava melhor com sua percepção do Afton Nash. Havia crueldade nele, um gosto pelas fraquezas de outros, em especial pela fraqueza sexual. Era um homem capaz de condescender aos gostos que desprezava, pelo prazer de deleitar-se ao mesmo tempo com sua própria superioridade. Pitt não recordava ninguém que lhe desagradasse tanto. Podia compadecer-se da gente que era vítima de seus próprios defeitos, por muito grotescos que fossem. Mas recrear-se com a debilidade de outros, alimentar-se dela, superava os limites de sua compaixão.

Afton se achava à cabeceira da tumba com o olhar fixo no pastor e com ar grave. Era compreensível. Em um mesmo e curto verão tinha enterrado a um irmão e tinham assassinado a sua irmã. Havia a possibilidade de que Afton fosse um consumado hipócrita, de que tivesse violado e assassinado a sua própria irmã e apunhalado a seu irmão para guardar o segredo? Era essa a razão pela que Phoebe se desintegrava de medo ante os olhos de todos, passando da excentricidade à loucura? meu deus, se assim fosse , Pitt tinha que apanhar ao Afton em falta, demonstrar sua culpa e prendê-lo . Pitt detestava a forca. Era um método comum, um dos mecanismos da sociedade para desfazer-se das marcas, mas, contudo, achava-o repulsivo. Sabia muito sobre assassinatos, sobre o temor ou a loucura que impulsionava a cometê-lo s. Tinha visto e cheirado a miséria, as inumeráveis mortes e enfermidades derivadas da fome nos bairros pobres, e sabia que existiam formas de matar que não sujavam as mãos, extermínios a longo prazo que a cega sociedade e o benefício econômico passavam por cima. A morte por fome ocorria a cem metros da morte por obesidade.

Não obstante, Pitt pressentia que se Afton era culpado, poderia enviá-lo à forca sem sentir o mínimo remorso.

O francês, caso que realmente fora francês, Paul Alaric, também estava ali. Possivelmente provinha de uma colônia africana. Era muito culto, muito irônico e sutil para pertencer às grandes planícies açoitadas pelo vento e a neve do Canadá.

Havia algo marcadamente velho nele. Pitt resistia a acreditar que pertencesse ao Novo Mundo. Tudo nele falava de séculos de civilização, de raízes suficientemente profundas para aferrar-se ao próprio coração das velhas culturas e a sua história complexa e escura.

Tinha a cabeça inclinada, o negro cabelo desordenado pela crescente brisa, belo e formoso inclusive naquele cemitério. Era o reflexo do respeito aos mortos, do cumprimento cortês do costume. Era essa a única razão pela qual estava ali? Pitt não tinha descoberto nenhuma relação entre ele e Fulbert, salvo que eram vizinhos.

Era Alaric um ator consumado? Existia algum desejo insatisfeito debaixo desse rosto inteligente, um desejo tão violento que o tinha levado a atacar a Fanny e, em seguida, a propensa Selena? Ou acaso Selena não se mostrou tão disposta quando chegou o momento?

Não queria descartar essa idéia, era seu dever acreditar que tudo era possível por muito improvável que parecesse. E ainda assim, custava-lhe acreditar que Alaric fosse tão diferente de sua aparência. Tantos anos estudando às pessoas tinham convertido ao Pitt em um juiz perito, e sabia por experiência que as pessoas não conseguem ocultar muito de si mesmas ante um observador cauteloso, alguém que escuta cada frase, que examina os olhos, as mãos, os pequenos enganos para alimentar a vaidade, as exibições de avareza ou ambição, a revelação do egoísmo mais descarnado, o olhar extraviado, as mesquinhas indiretas.

Alaric podia ser um sedutor, mas não um violador.

Isso deixava só ao Hallam Cayley. Estava ao outro lado da tumba, olhando fixamente ao Jessamyn enquanto os coveiros procediam a jogar a terra.

A dura argila golpeou a tampa com um som oco, como se o féretro estivesse vazio. Um a um, os assistentes viraram sobre seus calcanhares e se afastaram. Já tinham completado. Agora tocava aos coveiros concluir o trabalho, devolver a terra à cova e calcá-la. Uma fina garoa se aferrava ao vento, velando o caminho e fazendo― o escorregadio.

Hallam caminhava atrás do Freddie Dilbridge. Quando Pitt saiu de debaixo dos ciprestes para segui-lo s, vislumbrou o rosto do Hallam. Era como um homem saído de um pesadelo. As pústulas de seu rosto pareciam mais profundas e estava pálido e suarento. Tinha os olhos inchados e, apesar da distância, Pitt percebeu um tic nervoso em uma de suas pálpebras. Eram seus excessos com a bebida a causa de seu lamentável aspecto? E nesse caso, que tortura lhe tinha induzido a beber? A morte de uma esposa não podia destruir desse modo. Conforme tinham averiguado ele e Forbes através dos vizinhos e criados, os Cayley eram um matrimônio normal, apoiado no carinho mútuo mas carente de uma paixão tão esmagadora que pudesse deixar semelhante destruição a sua passagem quando faltasse um cônjuge.

De fato, quanto mais pensava Pitt nisso menos provável lhe parecia. Hallam tinha começado a dar amostras de excesso na bebida durante o último ano, não da morte de sua esposa. O que tinha acontecido um ano atrás?

Pitt estava agora à altura do cortejo. Hallam se voltou um instante e o viu. Seu rosto se mudou de medo e reconhecimento, como se a lápide frente à que assava nesse momento fosse a sua e tivesse lido seu nome nela. Olhou ao Pitt e titubeou. Jessamyn se aproximou dele com semblante tenso e inexpressivo.

― Continue andando, Hallam ― disse calmamente. ― Não faça conta, está aqui porque é seu dever. Não tem importância. ― Falava com tom cortante. Serenou-se até eliminar todo vestígio de emoção. Não tocou Hallam mas se manteve apartada, pelo menos a um metro de distância. — Vamos ― insistiu― , não fique aí parado. Está bloqueando a passagem.

Hallam reatou a marcha, não porque desejasse obedecer ao Jessamyn ou partir, mas sim porque não tinha sentido ficar.

Pitt observou as negras costas de braçadeira de luto afastar-se pelo caminho úmido para a entrada do cemitério.

Poderia Hallam Cayley ter violado a Fanny? Possivelmente. Emily havia dito que Fanny era aborrecida, medíocre, a classe de moça incapaz de despertar a excitação de um homem. Mas Pitt recordava o corpo miúdo e branco deitado sobre a mesa do depósito de cadáveres, delicado e virginal, quase infantil, de ossos pequenos e pele diáfana. Possivelmente era essa inocência o que atraía. Fanny não teria exigido nada, seus desejos ainda não teriam despertado, não teria esperado que a satisfizessem, nem feito comparações com outros amantes, nem sequer com sonhos vergonhosos.

Jessamyn havia dito que Fanny era muito inocente para despertar o interesse de um homem, muito jovem para ser mulher. Mas possivelmente Fanny se cansara de que a vissem como a uma menina e tinha começado a pensar secretamente como mulher, conservando ao mesmo tempo a imagem que todo mundo esperava dela. Talvez tivesse captado o atrativo do Jessamyn e decidido fazer-se com uma parte dele. Tinha praticado suas artes em florações com o Hallam Cayley, imaginando-o indefeso, até que uma noite fechada descobriu que não o era, que tinha ido muito longe, que seus intentos de sedução tinham tido êxito?

Era acreditável. Mais acreditável que a possibilidade de que Fanny tivesse despertado a lascívia de um criado.

A outra opção, certamente, era que a tivessem confundido com uma criada. Algumas ajudantes de cozinha e criadas possuíam uma figura e inclusive um rosto parecida com a da Fanny. Só as roupas eram radicalmente diferentes. Podiam os dedos de um homem obcecado perceber na escuridão a diferença entre a seda da Fanny e o algodão de uma criada?

Ignorava-o.

Mas o corpo do Fulbert tinha aparecido em casa do Hallam. Os criados o tinham deixado entrar, ninguém o negava. Mas por que tinha ido ali, se não para ver Hallam? Esperou que retornasse Hallam, como disse que faria, e depois morreu pelo que sabia? Ou acaso o matou um criado ou o valete, também pelo que sabia? Possivelmente um deles tinha assassinado Fanny. Era uma possibilidade mais.

Pitt não tinha esquecido que em casa do Hallam pôde entrar outra pessoa, mas duvidava de que um criado a tivesse convidado a entrar. Todos os criados confirmariam tal coisa, embora só fosse para ampliar o círculo de suspeitos e afastá-lo da criadagem. Mas os muros do jardim não eram altos. Um homem medianamente ágil podia subi-lo s sem dificuldade. As roupas teriam ficado marcadas com pó de tijolo e manchas de musgo, e teria tido que desfazer-se delas. Contudo, Pitt teria que interrogar os valetes. Faria com que Forbes comprovasse novamente esse detalhe.

Havia grades, certamente, mas sabia que as do Hallam se mantinham fechadas com chave.

Pitt seguiu aos últimos afligidos até a saída e logo pôs-se a andar para a delegacia de polícia. Tinha chegado à conclusão de que era Hallam. O medo se refletia no rosto do homem, mas não tinha suficientes prova para demonstrá-lo . Se Hallam o negasse, se declarasse que alguém seguiu ao Fulbert e aproveitou a oportunidade para matá-lo e deixar o corpo em sua casa, não poderia demonstrar que mentia. Não podia prender um homem da posição social do Hallam Cayley sem um bom argumento.

Se não era capaz de provar a culpa do Hallam, só ficava refutar as demais teorias, o que constituía um argumento pobre e insatisfatório.

     Na delegacia de polícia uma pequena dúvida tinha ficado esclarecida: por que Algernon Burnon resistia a revelar o nome da pessoa com quem dizia ter estado a noite em que Fanny foi assassinada. Forbes tinha dado finalmente com ela, uma moça bonita e alegre que em uma sociedade de classe mais alta se teria feito chamar cortesã, mas que dada sua clientela habitual não era mais que uma rameira.

Logicamente, Algernon tinha preferido ser objeto de uma vaga suspeita a desvelar que tinha estado pagando por semelhante capricho enquanto sua noiva lutava por sua vida.

No dia seguinte, Pitt e Forbes retornaram discretamente ao Paragon Walk, batendo as portas de serviço e perguntando pelos valetes. Não acharam objetos com manchas de musgo, umidade ou pó de tijolo, só o pó próprio de um verão seco. Encontraram um ou dois rasgões, mas havia desculpa para todos, pois a pessoa sempre podia dizer que se enganchou ao subir ou descer de uma carruagem, ou no jardim. Os espinhos das rosas rasgavam; inclinara-se sobre a erva a recolher uma moeda ou um lenço.

Pitt chegou inclusive a ir ao jardim do Hallam Cayley e solicitar permissão para examinar os muros que o flanqueavam. Um criado visivelmente perturbado o escoltou em todos seus passos, observando cada vez com maior nervosismo e inquietação como Pitt não achava marca alguma. Se alguém tinha subido ultimamente por essas paredes, tinha-o feito com uma escada acolchoada colocada com cuidado para não triturar o musgo nem arranhar o tijolo, e apagou as fendas do chão provocadas pelos pés da escada. Semelhante zelo era possível. Como pôde transladar a escada ao outro lado do muro sem deixar grandes sulcos no musgo do meio― fio superior? E de novo, o que tinha sido das marcas da escada no chão? O verão era seco, mas a terra do jardim se mantinha bastante macia para deixar rastros. Pitt provou com o peso de seu próprio pé e deixou uma marca inconfundível.

Havia uma porta no muro do fundo, onde terminava o atalho, além dos álamos agitados, mas estava fechada e o ajudante do jardineiro assegurou que sempre levava a chave.

Hallam tinha saído. Pitt iria ver vê-lo no dia seguinte, para lhe perguntar sobre a chave, em caso de que tivesse outra e a tivesse dado ou emprestado, mas era só uma formalidade. Duvidava que alguém tivesse entrado no jardim para ir a um encontro com o Fulbert em casa do Hallam, e ainda menos que se tratasse de um encontro fortuito.

Retornou a casa, mas não falou do assunto com Charlotte. Desejava esquecer e desfrutar de sua família, de sua paz e sua segurança. Embora Jemima dormisse, Pitt pediu ao Charlotte que despertasse e se sentou na sala com ela embalando-a nos braços, enquanto a menina piscava dormitada, perguntando-se por que a tinham levantado. Enquanto isso, Pitt lhe falava de sua própria infância na grande propriedade de campo, como se Jemima pudesse entendê-lo, e Charlotte, sentada frente a ele, sorria. Tinha uma costura entre as mãos. Pitt acreditou reconhecer uma de suas camisas. Ignorava se Charlotte compreendia que falava desse modo para esquecer Paragon Walk e a quanto devia enfrentar no dia seguinte. Se sabia, foi o bastante sábia para não mencioná-lo .

Não havia novidades na delegacia de polícia. Pitt solicitou ver seus superiores para lhes contar seu plano. Se não achava outra explicação, outra chave que abrisse a porta do jardim e alguém que tivesse visto entrar um estranho, então teria que supor que se tratava de um residente da casa do Cayley e interrogar desse ângulo não só aos criados, mas também ao próprio Hallam.

Os superiores não gostaram da idéia, em especial a de acusar ao Hallam, mas aceitaram a teoria de que, indevidamente, tinha que ter sido alguém da casa, provavelmente o valete ou o criado.

Pitt não discutiu nem explicou todas as razões pelas que achava que era Hallam. Além de tudo, suas deduções se apoiavam unicamente no sofrimento refletido no rosto do homem, em um medo interno que superava todas as aparências. Os superiores do Pitt teriam argumentado que não eram a não ser os temores próprios de um homem que bebia muito e não podia dominar-se. E Pitt não poderia contradizê-los.

Chegou à avenida no meio da manhã e foi diretamente a casa do Hallam. Bateu na porta e esperou. Surpreendentemente, ninguém foi abrir. Bateu de novo, mas tampouco obteve resposta. Acaso a crise doméstica tinha entretido ao criado até o ponto de lhe fazer desatender suas obrigações?

Decidiu aproximar-se pela porta da cozinha. Com certeza ali acharia alguém. Sempre havia criadas nas cozinhas, a qualquer hora do dia.

Ainda se achava a vários metros da porta quando viu a criada. A moça levantou a vista e deu um grito.

― Bom dia ― saudou Pitt, forçando um sorriso.

A garota ficou imóvel, sem fala.

― Bom dia ― repetiu Pitt. — bati na porta principal mas ninguém me ouviu. Posso entrar pela cozinha?

― Os criados têm o dia livre ― balbuciou a moça. — Só estamos eu e Polly, a cozinheira. E o senhor Cayley continua dormindo.

Pitt blasfemou para si mesmo. Tinha permitido esse toco de agente que os criados abandonassem Paragon Walk, incluído o assassino?

― Aonde foram?

― Bom, o valete Hoskins está em seu quarto, acredito. Não o vi mas Polly lhe levou uma bandeja com torradas e chá. E Albert, o criado, acredito que está rondando a casa dos Dilbridge porque se há engraçado com uma de suas criadas. Ocorre algo, senhor?

Pitt experimentou alívio. Desta vez o sorriso foi genuíno.

― Não, acredito que não. Mas de qualquer modo eu gostaria de entrar. Alguém poderia despertar ao senhor Cayley? Preciso lhe fazer umas perguntas.

― OH, não serei eu quem desperte. O senhor Cayley não gostaria. Não se levanta com bom pé pelas manhãs. ― A moça parecia inquieta, como se temesse que a culpassem da chegada do Pitt.

― Acredito. Mas se trata de um assunto oficial e não posso esperar. Me deixe entrar e, se o preferir, eu mesmo despertarei.

A jovem vacilou, mas reconhecia a autoridade só ouvindo e guiou obedientemente ao Pitt através da cozinha até a porta estofada de verde que conduzia ao resto da casa. A moça se deteve ali mesmo e Pitt compreendeu.

― Muito bem ― disse suavemente. — Direi ao senhor Cayley que não teve mais remédio que me deixar passar. ― Empurrou a porta e entrou no vestíbulo. Mal tinha alcançado o pé da escada quando um movimento quase imperceptível atraiu sua vista, só dois ou três centímetros, como um peso solto entre os pilares de madeira da escada.

Olhou para cima.

Era Hallam Cayley, balançando-se ligeiramente pelo cordão de seu roupão, que tinha amarrado ao pescoço e pendia do corrimão do patamar do primeiro piso.

Pitt ficou paralisado durante um segundo. Depois, tudo se revelou como algo terrível e tragicamente inevitável.

Subiu lentamente as escadas até alcançar o patamar. De perto, era evidente que Hallam estava morto. Tinha o rosto matizado mas não mostrava o tom púrpura que caracteriza a asfixia. Deve ter quebrado o pescoço ao saltar. Teve sorte. Um homem de seu peso poderia ter quebrado o cordão e terminado dois pisos mais abaixo com as costas fraturadas mas ainda vivo.

Pitt não podia levantá-lo só. Teria que enviar a um criado em busca do Forbes, do forense e de toda a equipe. Deu meia volta e desceu pausadamente a escadaria. Que final tão triste e previsível para uma história desventurada. Não sentia satisfação, nem achava estar perto da solução do caso. Cruzou a porta estofada e simplesmente disse à cozinheira e a moça que o senhor Cayley tinha morrido e que era preciso ir à casa vizinha para pedir a um criado que fosse em busca da polícia, do forense e de uma carruagem fúnebre.

Presenciou menos histerismo de que tinha previsto. Possivelmente o achado do cadáver do Fulbert tinha curado a ambas as mulheres de espanto. Possivelmente lhes tinha esgotado a capacidade de emocionar-se.

Retornou ao primeiro piso para examinar ao Hallam e comprovar se tinha deixado alguma carta de explicação ou confissão. Não demorou muito em encontrá-la. Estava no dormitório, sobre uma pequena escrivaninha. A pena e o tinteiro descansavam junto à carta. Estava aberta e não ia dirigida a ninguém:

"Eu violei a Fanny. Deixei a festa do Freddie, saí ao jardim e logo à rua. Tropecei com a Fanny por acaso.

"Tudo começou como um flerte, semanas antes disso. Fanny o estava procurando. Agora me dou conta de que ela não compreendia o que estava fazendo, mas naquele momento eu me achava fora de mim.

"Entretanto, juro que não a matei.

"Pelo menos, no dia seguinte o teria jurado. No dia seguinte estava tão impressionado como outros.

"Tampouco pus a mão em cima a Selena Montague. O teria jurado. Nem sequer recordo o que fiz aquela noite. Estava bebendo. Mas nunca gostei de Selena, nem estando bêbado a teria forçado.

"Meditei sobre o assunto até me obcecar. Despertei-me em meio da noite gelado de medo. Estarei me tornando louco? Apunhalei a Fanny sem me dar conta do que fazia?

"Não vi Fulbert vivo no dia que o mataram. Eu não estava em casa quando foi ver― me, e quando retornei o criado me comunicou que me esperava no piso de cima. Encontrei-o no dormitório verde, mas já estava morto, deitado de barriga para baixo com uma ferida nas costas. Mas não recordo havê-lo matado. Me ajude, Deus!

"Ocultei o corpo. Estava apavorado. Eu não o matei, mas sabia que me acusariam do crime. Meti-o na lareira. Havia muito espaço e eu sou maior que Fulbert. Quando o levantei, surpreendi-me de como era leve, apesar de tratar-se de um peso morto. Não foi fácil introduzi-lo pelo cano, mas este contém nichos para os limpadores de chaminé e finalmente o consegui. Pensei que podia deixá-lo ali para sempre se fechasse a habitação com chave. Esqueci que logo tocava a limpeza geral e que a senhora Heath tinha uma chave mestra.

"Talvez esteja louco. Talvez matei os dois e meu cérebro está tão ofuscado ou doente que não o recorda. Em mim há duas pessoas, uma que vive atormentada, solitária, cheia de remorsos, acossada pelo medo, e que ignora à outra metade, a qual só Deus ou o diabo conhecem. Um selvagem, um louco que assassina uma e outra vez.

"A morte é o melhor que pode me acontecer. Só vivo para afogar na bebida as atrocidades de meu outro ser.

"Lamento-o profundamente pela Fanny. Sei que a forcei. Mas se a matei, a ela ou ao Fulbert, foi meu outro eu quem o fez, uma criatura que desconheço mas que pelo menos morrerá comigo."

Pitt deixou a carta sobre a escrivaninha. Estava acostumado a compadecer-se, à pontada de uma dor inalcançável para o que não havia bálsamo.

Voltou para o patamar. Nesse momento a polícia entrava pela porta principal. Agora teria lugar o longo ritual do exame forense, o registro dos pertences do Hallam, o informe de sua confissão. Pitt não tinha sensação de triunfo.

De noite, quando retornou a casa, contou o acontecido ao Charlotte, não porque falar lhe aliviasse mas sim porque o assunto afetava ao Emily.

Charlotte guardou silêncio durante uns instantes e depois se sentou lentamente.

― Pobre homem ― suspirou com suavidade. — Estava obcecado.

Pitt se sentou frente a ela, contemplando seu rosto, tratando de afastar de sua mente ao Hallam e todo o relacionado com o Paragon Walk. Houve um longo silencio e conseguiu seu propósito. Começou a pensar nas coisas que ele e sua mulher podiam fazer, agora que o caso estava fechado e ia gozar de tempo livre. Jemima já era muito grande para temer que o frio prejudicasse sua saúde. Poderiam ir rio acima em um desses navios de recreio, inclusive preparar um almoço e sentar-se a comer na margem, se o tempo se mantivesse agradável.

Charlotte gostaria. Podia imaginá-la rodeada pela saia estendida sobre a erva, o cabelo radiante como as castanhas sob o sol.

Ou talvez o ano que vem, se vigiassem cada penny que gastavam, poderiam passar uns dias no campo. Jemima já caminharia então. Poderia descobrir todas as coisas belas, remansos de água nas pedras, flores sob as sebes, possivelmente um ninho de pássaros, todas as coisas que ele tinha conhecido de menino.

― Acha que foi a morte de sua esposa que gerou sua loucura? ― A voz do Charlotte interrompeu seu ensimesmamento e lhe devolveu bruscamente à realidade.

— O que?

― A morte de sua esposa ― repetiu ela. — Acha que a dor e a solidão o atormentaram até o extremo de precipitá-lo à bebida e a loucura?

― Ignoro-o. ― Pitt não queria pensar nisso. — Talvez. Achei velhas cartas de amor entre suas coisas. dir-se-ia que as tinha lido várias vezes, pois tinham as margens dobradas e havia algum ou outro rasgão. Eram cartas muito íntimas, muito possessivas.

― Pergunto-me como era ela. Faleceu antes que Emily se mudasse ao Paragon Walk, de modo que nunca a conheceu. Como se chamava?

― Não sei, não se incomodou em assinar as cartas. Imagino que simplesmente as deixava pela casa para que ele as encontrasse.

Charlotte esboçou um sorriso triste.

― Deve ser terrível amar a uma pessoa com tanta intensidade e logo perdê-la. Dir-se-ia que a vida do Hallam começou a desmoronar-se depois. Espero que se morrer recorde sempre, mas não desse modo...

A idéia era espantosa e introduziu na sala a escuridão da noite, vazia e imensa, interminável, fria como a lonjura das estrelas. Pitt experimentou uma entristecedora compaixão pelo Hallam. Não havia palavras para explicá-lo , só dor.

Charlotte avançou e se ajoelhou no chão frente a Pitt, tomando suavemente as mãos. Sua expressão era serena e ele podia sentir o calor de seu corpo. Ela não tentou falar, não tentou procurar palavras reconfortantes, mas havia uma segurança em seu silêncio que ia além da compreensão do Pitt.

Passaram vários dias antes que Emily a visitasse, e quando entrou, como um redemoinho de musselina salpicada, resplandecia mais que nunca. Tinha ganhado bastante peso, mas sua pele continuava impecável e havia um novo brilho em seus olhos.

― Está radiante! ― exclamou Charlotte. — Deveria ter filhos todos os dias!

Emily a olhou com uma fingida careta de desgosto. Sentou-se na cadeira da cozinha e pediu uma xícara de chá.

― Tudo terminou ― disse com determinação. — Pelo menos uma parte do mistério.

Charlotte se voltou lentamente para a mesa ao mesmo tempo em que seus pensamentos cobravam forma.

― Insinua que você tampouco está contente? ― perguntou com cautela.

― Contente? ― inquiriu surpreendida Emily. — Como quer que o esteja, Charlotte? Não acha que foi Hallam? ― Falava com voz desconfiada e os olhos muito abertos.

― Suponho que sim ― respondeu pausadamente Charlotte, vertendo água na chaleira e fazendo― a transbordar sobre a pia sem dar-se conta. — Admitiu que forçou a Fanny, e não existia outro motivo para matar ao Fulbert...

― Mas? ― desafiou-a Emily.

― Não sei. ― Charlotte fechou a torneira e esvaziou o excesso de água. — De verdade não sei.

Emily se inclinou para frente.

― Pois eu lhe direi! Não descobrimos o que viu a senhorita Lucinda e o que está ocorrendo no Paragon Walk. E algo está ocorrendo! Não pretenda me fazer acreditar que todo o acontecido tinha relação com o Hallam, porque não é assim. Phoebe está mais atemorizada que nunca, como se a morte do Hallam fosse um fio mais dessa imagem terrível que não consegue vislumbrar. Ontem me disse algo muito estranho, e em parte por isso vim vê-la, para lhe contar isso.

— O que? ― Charlotte piscou. De repente, tudo lhe parecia irreal e entretanto inevitável. — O que lhe disse?

― Que os fatos acontecidos até agora concentraram o diabo na avenida e que já é tarde para exorcizá-lo. Não quer nem imaginar qual será a próxima desgraça.

― Acha que está louca?

― Não, absolutamente ― assegurou Emily. — Pelo menos, não a o tipo loucura que está pensando. Phoebe é tola, certamente, mas sabe o que se diz, embora resista a desvelá-lo .

― Bem, e como pensa averiguá-lo? ― perguntou Charlotte. A idéia de abster-se de descobrir algo jamais cruzava sua mente.

Emily também o tinha dado por sentado.

― Fiz algumas deduções a partir dos comentários da gente ― disse, concentrando-se no assunto. — Tenho quase certeza de que tem algo que ver com os Dilbridge, pelo menos com o Freddie Dilbridge. Ignoro quem mais está comprometido, mas Phoebe sabe e isso a tem aterrada. Os Dilbridge celebrarão uma festa ao ar livre dentro de dez dias. George não aprova que vá, mas eu penso ir e você virá comigo. Abandonaremos a festa sem ser vistas e exploraremos a casa. Se agirmos com astúcia, com certeza descobrimos algo. Se nesse lugar se produziram fatos perversos, tem que haver rastro deles. Possivelmente descubramos o que viu a senhorita Lucinda. Tem que estar ali.

Charlotte recordou o corpo chamuscado do Fulbert deslizando-se pelo cano da lareira. Demoraria muito tempo em recuperar o desejo de pinçar em casas alheias em busca de respostas, mas, mesmo assim, não podia deixar o assunto no ar.

― Bem ― disse com firmeza. — Que vestido porei?

 

Charlotte assistiu à recepção sentindo-se maravilhosa. Emily, exaltada pela onda de seu próprio bem― estar, tinha-lhe presenteado outro vestido, de musselina branca com rendas e diminutas dobras no corpete. sentia-se qual margarida ondeando ao vento em um campo estival, ou como a espuma branca de uma cascata diáfana.

Todos os habitantes do Paragon Walk estavam ali, incluídas as senhoritas Horbury, decididos a deixar atrás os acontecimentos sórdidos e trágicos do passado, a esquecê-lo s pelo menos durante uma tarde cálida e serena.

Emily levava um vestido verde pálido, sua cor preferida, e contemplá-la era uma delícia.

― vamos desvelar o mistério ― anunciou calmamente ao Charlotte, tomando― a do braço enquanto cruzavam a grama em direção ao Grace Dilbridge. — Ainda não estou certa se Grace sabe algo. Estes dias me dediquei a escutar os comentários das pessoas, e acredito que Grace, no fundo, não deseja saber o que está ocorrendo e está decidida a não correr o risco de descobrir.

Charlotte recordou as palavras de tia Vespasia a respeito de Grace, do prazer que obtinha sofrendo. Se descobria o segredo, talvez lhe fosse muito espantoso para seguir desfrutando de seu sofrimento. Além de tudo, se um marido pecava de forma moderada, só algo mais abertamente que outros, a esposa devia suportá-lo com dignidade e esperar a compaixão dos vizinhos. Sua posição social não sofria prejuízo algum. Mas se o pecado era inaceitável, então a esposa não tinha mais remédio que tomar uma determinação, inclusive partir de casa, e isso era algo muito diferente. O abandono de um homem por sua esposa, seja qual for o motivo, não só constituía um desastre financeiro, mas também uma medida socialmente intolerável. Simplesmente, os convites a serões e acontecimentos sociais cessariam.

Achavam-se agora frente à Grace Dilbridge, que parecia algo pálida, vestida em uma cor púrpura que não a favorecia. Fazia um calor um pouco exagerado para um dia tão sufocante. Moscas diminutas revoavam anunciando tormenta, e era difícil não esquecer-se das maneiras para não as espantar com violência, pois picavam e se enredavam no cabelo, causando uma desagradável sensação.

― É um prazer voltar a vê-la, senhora Pitt ― disse mecanicamente Grace. — Me alegra muito que tenha podido vir. Tem um aspecto estupendo, Emily.

― Obrigada ― responderam ambas ao uníssono. Depois, Emily prosseguiu― : Ignorava que tivesse um jardim tão extenso. É uma preciosidade. Chega mais à frente da sebe?

― OH, sim, certamente. Ao outro lado há um caminho de arbustos e um pequeno jardim de rosas. ― Grace agitou um braço. — Às vezes desejaria plantar pessegueiros junto ao muro que dá ao sul, mas Freddie não quer nem ouvir falar disso.

Emily deu uma ligeira cotovelada em Charlotte, e esta compreendeu que lhe indicava o abrigo. Tinha que estar atrás dessa sebe.

― Eu adoro os pêssegos ― opinou Emily com fingido interesse. — Com um jardim como este, acredito que deveria insistir. Não há nada como um pêssego fresco em plena estação.

― OH, não posso fazê-lo. ― Grace parecia incômoda. — Freddie se zangaria. Dá-me tantas coisas, que provavelmente me consideraria uma ingrata se convertesse um assunto tão efêmero em um problema.

Desta vez foi Charlotte quem deu um discreto chute ao Emily por debaixo da saia. Não queria que sua irmã insistisse muito no jardim e delatasse suas intenções. Já tinham averiguado suficiente. O abrigo estava atrás da sebe e Freddie não queria pessegueiros em torno dele.

Charlotte e Emily asseguraram que estavam encantadas com a festa e em seguida se retiraram.

— O abrigo! ― exclamou Emily quando estiveram bastante longe para não ser ouvidas. — Freddie não quer que Grace se aproxime pra recolher pêssegos em momentos inoportunos. Com certeza celebra festas privadas nesse abrigo.

Charlotte não aceitou a aposta.

― Mas as festas não significam nada ― disse pausadamente― , a menos que algo horrível aconteça nelas. O que precisamos saber é o que ocorre exatamente nas festas do Freddie. Acha que a senhorita Lucinda recorda com clareza sua aparição? Ou acha que sua imaginação a adornou tanto que já não pode nos ser de ajuda? Deve havê-lo contado centenas de vezes.

Emily mordeu o lábio, irritada.

― Devia perguntar-lhe quando ocorreu, mas estava tão aborrecida com ela e tão contente de que alguém lhe tivesse dado um bom susto, que a evitei deliberadamente. Além disso, não desejava alimentar sua vaidade. Segundo tia Vespasia, passava o dia recostada na poltrona sobre um almofadão com dragões chineses bordados, com as sai aromáticas a um lado e a jarra de limonada ao outro, recebendo às visitas como se fosse uma duquesa e insistindo em lhes contar a história desde o começo. Não teria podido me mostrar amável com ela. Me teria posto a rir. Como desejaria poder me controlar.

Charlotte não estava em condições de criticar e sabia. Olhou em torno do jardim de rosas, procurando à senhorita Lucinda. Tinha que estar com a senhorita Laetitia, e sempre se vestiam da mesma cor.

― Ali está! ― Emily tocou o braço de sua irmã e Charlotte se voltou. Esta vez levavam um vestido azul muito juvenil. Os detalhes em rosa só conseguiam piorá-lo , lhes dando o aspecto de um confeito requentado.

― Meu Deus! ― sussurrou Charlotte, sufocando a risada.

― Temos que fazê-lo ― respondeu Emily com determinação. — Vamos! aproximaram-se das senhoritas Horbury com fingida naturalidade, detendo-se pelo caminho para elogiar o vestido de Albertine Dilbridge e saudar a Selena.

― Como o tomou? ― perguntou Charlotte em quando se afastaram da Selena.

― A que te refere? ― Emily se mostrou por uma vez desconcertada.

― Ao Hallam ― respondeu impaciente Charlotte. — depois de tudo, é decepcionante, não lhe parece? Ser violada pelo Paul Alaric em um arranque de paixão é romântico, embora também repugnante, mas ser acossada por um Hallam Cayley muito ébrio e abatido para ser consciente de seus atos e recordá-los depois, parece-me terrível. ― deteve-se e sua expressão se tornou grave. — E muito trágico.

― OH! ― Era claro que Emily não tinha pensado nisso. — Não sei. ― A idéia começou a lhe interessar. Charlotte o viu em seu semblante. — Mas agora que o diz, Selena me esquiva após. Em algumas ocasiões tive a impressão de que ia falar-me, mas no último momento sempre achava algo mais urgente que fazer.

― Acha que sempre soube que era Hallam? ― perguntou Charlotte.

Emily enrugou a fronte.

― Estou tentando ser justa. ― Era evidente que não lhe era fácil. — Não sei o que pensar, mas suponho que já não importa.

Charlotte não estava satisfeita com a resposta do Emily. Uma pequena dúvida, uma pergunta sem resposta a roia por dentro, mas de momento decidiu deixar o tema. Estavam cada vez mais perto das senhoritas Horbury e precisava serenar-se para bisbilhotar com discrição e elegância. Esboçou um sorriso interessado em seu rosto e pôs-se a falar, adiantando-se ao Emily.

― Que prazer voltar a vê-la, senhorita Horbury! ― disse, olhando à senhorita Lucinda com respeito reverencial. — É muito valente, dada a espantosa experiência que sofreu. Só agora começo a apreciar realmente o que deve ter passado.

Muitos de nós levamos uma vida tão protegida que nem sequer imaginamos as coisas horríveis que nos espreitam. ― Charlotte se repreendeu por sua hipocrisia, sobre tudo porque estava desfrutando.

A senhorita Lucinda se achava muito imersa em suas próprias convicções para reconhecer a mudança de atitude de Charlotte. inchou-se de satisfação, e Charlotte se recordou de uma pomba barriguda de tons creme.

― É muito perceptiva, senhora Pitt ― respondeu. — Nem todo mundo é consciente das forças ocultas que nos rodeiam.

― Certamente. ― Por um momento o sangue― frio do Charlotte fraquejou. Desviou o olhar para os olhos claros da senhorita Laetitia e duvidou se ocultavam um sorriso ou era o reflexo da luz. Depois de respirar fundo, prosseguiu― : Naturalmente, você saberá melhor que ninguém. Eu tive sorte.

Nunca me encontrei cara a cara com o diabo.

― Muito poucos tivemos essa experiência, querida. ― A senhorita Lucinda começou a entusiasmar-se ante essa nova amostra de interesse. — E espero de todo coração que não corra a desgraça de ser um de nós.

― E eu! ― Charlotte pôs sentimento em suas palavras e enrugou o sobrecenho em gesto de preocupação. — Mas depois há a questão do dever ― disse lentamente. — O diabo não desaparecerá simplesmente porque decidamos não vê-lo . ― Respirou fundo e enfrentou à senhorita Lucinda, olhando― a nos olhos. — Não imagina quanto admiro sua coragem, sua determinação de chegar ao fundo deste assunto.

A senhorita Lucinda corou de satisfação.

― É muito amável e muito sábia. Não é fácil achar a mulheres tão sensatas como você, especialmente entre as jovens.

― Com efeito ― continuou Charlotte, ignorando uma cotovelada de Emily― , admiro que tenha tido a coragem de vir. ― E adotando um tom conspirador acrescentou― : Até sabendo o que se diz destas festas.

A senhorita Lucinda se ruborizou ao rememorar suas observações sobre as dissolutas reuniões do Freddie Dilbridge. Procurou uma desculpa que justificasse sua presença.

cada vez mais divertida, Charlotte a brindou.

― Deve supor um grande sacrifício para você ― disse com gravidade. — Sei que está decidida a descobrir o que foi essa coisa monstruosa que viu, sem pensar nos transtornos ou riscos que possa lhe conduzir, e a admiro por isso.

― Compreendo-o― respondeu emocionada a senhorita Lucinda. — É uma questão de dever cristão.

― Viu alguém mais? ― Finalmente, Emily conseguiu dizer algo.

― Ignoro-o― disse enigmática a senhorita Lucinda― , mas se o viram não o disseram.

― Possivelmente estão muito assustados ― insinuou Charlotte, tratando de chegar a seu verdadeiro objetivo. — Que aspecto tinha?

A senhorita Lucinda se surpreendeu. Tinha esquecido a realidade. Agora tratava de descrevê-la uma vez mais.

― Era o diabo em pessoa ― começou, enrugando a testa. ― Tinha o rosto verde e era metade homem e metade animal, com chifres na cabeça.

― Que horror! ― suspirou Charlotte, convenientemente impressionada. — Que tipo de chifres? De vaca, de cabra, O...

― OH, de cabra ― respondeu rapidamente a senhorita Lucinda. — Frisados na ponta.

― E como era o corpo? ― prosseguiu Charlotte. — Tinha duas pernas, como um homem, ou quatro como um animal?

― Duas. Saiu fugindo e saltou a sebe.

― Saltou a sebe? ― Charlotte tratou de não parecer desconfiada.

― OH, era uma sebe baixa, ornamental. ― A senhorita Lucinda era mais

prática do que parecia. — Eu mesma teria podido saltá-la quando jovem. O que ― se apressou a acrescentar― não significa que o tivesse feito, claro está.

― OH, é claro que não ― concordou Charlotte, lutando por manter o semblante sério. A imagem da senhorita Lucinda saltando uma sebe era risível. ― Para onde fugiu?

― Nesta direção ― assegurou a senhorita Lucinda. — Correu para este extremo da avenida.

Emily reparou no rosto de Charlotte e se apressou a resgatá-la com expressões de horror e solidariedade.

Necessitaram de certo tempo para retirar-se sem parecer descortês e quando finalmente o conseguiram, com a desculpa de que deviam falar com a Selena, Emily se voltou para Charlotte e puxou a manga de seu vestido para freá-la e poder falar a sós com ela antes de chegar até a Selena.

— O que lhe parece? ― perguntou. ― A princípio achei que estava inventando, mas agora penso que certamente viu algo. Juraria que não mente.

Charlotte já tinha tomado uma decisão.

― Alguém se disfarçou para assustá-la ― respondeu com um sussurro. Phoebe se achava a poucos metros, sorrindo tristemente enquanto escutava as desventuras de Grace Dilbridge.

― Com o que? ― Emily sorriu radiante ao Jessamyn quando passou frente a elas.

― Isso é justamente o que devemos descobrir. ― Charlotte saudou com a mão. — Me pergunto se Selena sabe algo.

— Logo o averiguaremos. ― Emily apertou o passo e sua irmã se viu obrigada a imitá-la.

Continuava sem gostar de Selena, apesar de admirar sua coragem. Aceitou a desagradável possibilidade de que sua aversão se devesse principalmente à afirmação da Selena de que Paul Alaric a tinha violado. Charlotte desejava que não fosse verdade. Alaric estava ali essa tarde. Ainda não tinha falado com ele, mas sabia exatamente onde se achava e que nesse momento Jessamyn se aproximava dele com fingida naturalidade, qual espuma de rendas azuladas.

― É um prazer voltar a vê-la, senhora Pitt ― saudou Selena com pouco entusiasmo. Se realmente se alegrava, não o demonstrava com sua voz, e seus olhos eram tão distantes e frios como um rio no inverno.

― E em circunstâncias muito mais afortunadas ― sorriu Charlotte. Realmente se estava convertendo em uma completa hipócrita. O que lhe estava ocorrendo?

O semblante da Selena esfriou ainda mais.

— Me alegro de que tudo tenha terminado ― prosseguiu Charlotte, incitada pela profunda animosidade que a carcomia. — Não há dúvida de que foi um assunto trágico, mas pelo menos o temor passou. acabou-se o mistério. ― Permitiu que sua voz soasse animada, mas mantendo o decoro. — A partir de agora já ninguém terá que desconfiar de ninguém. O mistério se resolveu e todos nos sentimos aliviados.

― Ignorava que também você estivesse assustada, senhora Pitt. — Selena a olhou com hostilidade, sugerindo que seu medo era infundado, pois ela não tinha passado nenhum risco.

Charlotte ficou à altura das circunstâncias.

― É claro que o estava, sobre tudo por Emily. Além de tudo, se uma mulher da posição e recato de você pôde ser acossada, quem pode sentir-se seguro?

Selena procurou uma resposta que não soasse descaradamente rude, mas não a achou.

― E que alívio para os cavalheiros! ― prosseguiu implacável Charlotte. — Finalmente todos estão livres de suspeita. Agora sabemos que nenhum deles é culpado. É triste e desconcertante suspeitar dos próprios amigos.

Emily aferrava o braço do Charlotte e tremia tanto, tratando de reprimir a risada, que teve que fingir um espirro.

― É o calor ― disse compreensiva Charlotte. — É realmente abafado. Não estranharia que logo estalasse uma tormenta. Adoro as tormentas, você não?

― Não ― respondeu secamente Selena. — Acho-as de muito mau gosto.

Emily voltou a espirrar ruidosamente e Selena retrocedeu um passo.

Algernon Burnon passava nesse momento com um sorvete na mão e Selena aproveitou a ocasião para escapar.

Emily levantou o rosto do lenço.

― É tremenda! ― exclamou com alegria. — Ninguém antes tinha conseguido aturdi-la desse modo.

Charlotte compreendeu ao fim que problema tinha com a Selena.

― Foi a primeira pessoa que viu a Selena depois de que a violassem, não é? ― inquiriu ao Emily.

― Assim é. por que o pergunta?

— O que ocorreu exatamente?

Emily se mostrou ligeiramente surpreendida.

― Ouvi-a gritar. Saí pela porta principal e ali estava. Como é natural, aproximei-me dela e a acompanhei ao interior da casa. O que ocorre, Charlotte?

― Que aspecto tinha?

― Que aspecto? Pois o de uma mulher que acaba de ser violada! Trazia o vestido rasgado na frente e a cabeleira lhe caía desordenadamente.

― Como era a rasgadura do vestido?

Emily tratou de vê-lo em sua mente. Levou a mão ao lado esquerdo de seu vestido e fingiu rasgá-lo.

― Estava manchado de barro? ― perguntou impaciente Charlotte.

― Não. Provavelmente tinha pó, mas não me fixei. Não era o momento.

― Mas você disse que tinha ocorrido sobre a grama ― indicou Charlotte― , junto aos roseirais.

― Tivemos um verão muito seco! ― Emily agitou as mãos. — E em qualquer caso, o que importa isso?

― Mas os roseirais se regam com assiduidade ― insistiu sua irmã. — Eu vi os jardineiros fazê-lo . Se Selena foi jogada no chão...

― Bom, talvez não aconteceu na grama. Possivelmente ocorreu no caminho. O que tenta me dizer? ― Emily começava a compreender.

— Se eu me rasgasse o vestido, soltasse-me o cabelo e pusesse-se a correr pela avenida gritando, seria meu aspecto muito diferente do da Selena aquela noite?

Os olhos de Emily se abriram.

― Não, absolutamente ― disse enquanto acabava de compreender.

― Acredito que não violaram Selena ― disse Charlotte com firmeza. — Inventou isso para chamar a atenção e chatear ao Jessamyn. Só Jessamyn suspeitou a verdade, por isso mostrou uma compaixão fingida sem que, no fundo, o assunto a inquietasse. Sabia que Paul Alaric não havia tocado Selena.

― E tampouco Hallam? ― Emily respondeu a sua própria pergunta com o tom de sua voz.

― Pobre homem. ― A tragédia superava uma vez mais a farsa, e Charlotte sentiu o frio do terror real e a morte real. — Agora entendo seu desconcerto. Jurou que não tinha violado a Selena e era certo. ― Charlotte experimentou uma tremenda indignação pelo mal que Selena tinha causado, embora em parte involuntariamente. Mesmo assim, foi um ato egoísta e cruel. Selena era uma mulher mimada e uma parte de Charlotte queria castigá-la, pelo menos para lhe fazer saber que alguém mais, além dela, sabia o ocorrido realmente.

Emily compreendeu imediatamente. Olharam-se e não precisaram explicações. Com o tempo, também Emily permitiria que Selena percebesse claramente sua indignação e desprezo.

― Temos que averiguar o que está ocorrendo aqui ― disse Emily depois de um breve silêncio. — Este é só um pequeno mistério resolvido. Ainda não sabemos o que viu a senhorita Lucinda.

― Teremos que perguntar ao Phoebe ― respondeu Charlotte.

― Acha que não o tentei? ― respondeu sua irmã, exasperada. — Se fosse tão fácil, há semanas que saberia a resposta.

― OH, certamente não nos dirá isso voluntariamente ― replicou Charlotte sem alterar-se. — Mas é possível que deixe escapar algo.

Sem fazer-se ilusões, Emily conduziu ao Charlotte até o Phoebe, que nesse momento bebia uma limonada e falava com alguém a quem não conheciam. Depois de dez minutos de ocorrências inócuas, puderam finalmente falar a sós com ela.

― OH, querida ― suspirou Emily― , que criatura tão tediosa. Se ouvir uma palavra mais sobre sua saúde, perderei a paciência.

Charlotte aproveitou a ocasião.

― Essa mulher não se dá conta de quão afortunada é ― disse olhando ao Phoebe. — Se ela tivesse tido que suportar a mesma tensão que você, não armaria tanta animação por umas noites de insônia. ― Titubeou sobre o modo de expor com dissimulação a pergunta que queria fazer. — Saber que algo espantoso ocorreu e que as suspeitas recaem na própria família deve ser terrível.

Por um momento a expressão do Phoebe foi de sincera inocência.

― OH, esse assunto não me preocupava em excesso. Estava segura de que Diggory era incapaz de cometer um ato tão cruel. É uma boa pessoa. E sabia que não podia ser Afton.

Charlotte estava atônita. Se alguma vez tinha existido um homem inatamente cruel, esse era Afton Nash. Teria suspeitado dele ante qualquer crime possível, mas a violação era o que mais encaixava com seu caráter.

― Como podia sabê-lo ? ― perguntou Charlotte sem refletir. — Seu marido esteve só parte daquela noite.

― Eu... ― Para surpresa do Charlotte, um intenso rubor percorreu dolorosamente o rosto de Phoebe. — Eu... ― Piscou e a seus olhos afloraram as lágrimas. Desviou o olhar. — Tinha a esperança de que não fosse ele, isso queria dizer.

― Mas sabe que algo está ocorrendo na avenida! ― disse Emily, aproveitando o momento e o silêncio repentino do Charlotte.

Phoebe olhou fixamente ao Emily e seus olhos se abriram pouco a pouco, à medida que sua mente se impregnava de uma grande pergunta.

― Sabe o que é? ― resfolegou.

Emily titubeou. Não sabia o que era melhor, se mentir ou admitir sua ignorância.

— Sei algo e é minha intenção combatê-lo. Ajudar-nos-á?

Foi uma atuação prodigiosa. Charlotte olhou ao Emily com admiração.

Phoebe a pegou pelo braço com força até que Emily fez uma careta de dor.

― Não o faça, Emily! Não sabe onde está se colocando. O perigo não desapareceu. Haverá mais e pior. me acredite!

― Nesse caso, devemos combatê-lo.

― Não podemos! É muito poderoso e terrível. Pendure um crucifixo no pescoço, reza cada noite e cada manhã e não saia depois do anoitecer. Nem sequer olhe pela janela. Simplesmente fica em casa e não faça perguntas. Se fizer o que lhe digo, é possível que o mal não a persiga.

Charlotte queria dizer algo, mas o medo do Phoebe a feriu por dentro. Agarrou Emily.

― Possivelmente seja um bom conselho ― disse, engolindo suas emoções. — Se nos desculpar, ainda não saudamos lady Tamworth.

― É claro ― murmurou Phoebe. — Cuide-se, Emily. Recorda minhas palavras.

Emily sorriu fracamente e caminhou a contra gosto para lady Tamworth.

Não foi senão meia hora mais tarde quando Emily e Charlotte tiveram ao fim a oportunidade de desaparecer atrás dos roseirais e tratar de acessar à zona privada do jardim. Estavam em um atalho de arbustos flanqueado por uma sebe alta e impenetrável.

― E agora o que? ― perguntou Charlotte.

― Atrás da sebe. Tem que haver alguma forma de rodeá-la, ou uma porta.

― Espero que não esteja fechada com chave. ― A idéia irritou ao Charlotte.

Isso as deteria por completo. Curiosamente, não tinha pensado nessa possibilidade porque ela nunca fechava as portas com chave.

Caminharam uma ao lado da outra, procurando entre a espessa folhagem, até que deram com uma porta coberta de vegetação.

― Dir-se-ia que está em desuso. ― Charlotte se aproximou e examinou as dobradiças. — Se abre para o outro lado. Tenta abri-la.

Emily empurrou, mas a porta não cedeu. Charlotte desanimou. Estava fechada com chave. Emily extraiu um alfinete de seu cabelo e o introduziu na fechadura.

― Não poderá abri-la com isso — lhe advertiu sua irmã com decepção na voz.

Emily a ignorou e seguiu pinçando. Recuperou o alfinete, endireitou-o, frisando-o por um extremo, e voltou a tentar.

― Já está ― anunciou satisfeita, e empurrou suavemente a porta. Esta se abriu sem fazer ruído.

Charlotte estava atônita.

― Onde aprendeu a fazer isso?

Emily sorriu.

― Minha governanta jamais se separa das chaves da casa, nem sequer quando dorme. Incomoda-me ter que lhe pedir que abra meu próprio armário de roupa branca, assim optei por esta pequena travessura. Vejamos o que há do outro lado da sebe.

Cruzaram a porta nas pontas dos pés e a fecharam atrás de si. Ao princípio o panorama foi decepcionante: tão somente um grande abrigo ereto no centro de uma série de corredores lajeados, separados por pequenas parcelas de erva. Os corredores rodeavam a construção por inteiro, mas isso era tudo.

Emily se deteve, desiludida.

― Por que se incomodam em fechar com chave uma porta como esta? ― murmurou. — Aqui não há nada!

Charlotte se ajoelhou para tocar as folhas de uma erva e as espremeu entre os dedos. Desprendiam um aroma amargo e aromático.

― Pergunto-me se se trata de alguma classe de droga ― disse pensativa.

― Tolices! ― respondeu Emily. — O ópio provém da papoula, que cresce na Turquia ou na China ou em algum outro lugar do estrangeiro.

― Há outras drogas. ― Charlotte não queria dar-se por vencida. — Este jardim tem uma forma muito peculiar, refiro-me ao traçado dos caminhos. Deve ter dado muito trabalho fazê-lo .

― Tem forma de estrela, isso é tudo ― replicou Emily. — Não o acho atraente. É irregular.

― Uma estrela!

― Sim, as demais pontas estão ali e atrás do abrigo. Por quê?

― Quantas pontas há em total? ― Algo começava a cobrar forma na mente de Charlotte, a lembrança de um caso no que Pitt tinha trabalhado no ano anterior e uma cicatriz da qual lhe tinha falado.

Emily as contou.

― Cinco. Por quê?

― Cinco! Então é um pentagrama.

— Se você o diz. ― Emily não parecia impressionada. — O que importa isso?

― Escuta. ― Charlotte se voltou para sua irmã, cada vez mais assustada pela idéia. — O pentagrama é a figura que se emprega para praticar a magia negra! Talvez seja isso o que fazem nas festas privadas do Freddie Dilbridge. ― Então recordou a cicatriz, mencionada pelo Pitt, no corpo da Fanny, na nádega, o lugar mais ofensivo.

― Por isso Phoebe está tão aterrada ― prosseguiu. — Acredita que o que começou como um jogo finalmente invocou ao verdadeiro diabo.

Emily enrugou a testa.

― Magia negra? ― perguntou desconfiada. — Não lhe parece um pouco ridículo? Eu não acredito na magia negra.

Mas tinha sentido, e quantas mais voltas lhe dava Charlotte, mais sentido adquiria.

― Não tem provas ― continuou Emily. — Não basta que o jardim tenha forma de estrela. Muita gente gosta das estrelas.

― Conhece alguém? ― perguntou Charlotte.

― Não... mas...

― Temos que entrar no abrigo. ― Charlotte avançou para ele. — Isso é o que

viu a senhorita Lucinda, alguém disfarçado com uma túnica negra e chifres verdes.

― Isso é ridículo!

― A gente que se aborrece está acostumado a fazer coisas ridículas. Deveria observar com mais freqüência a seus amigos da alta sociedade!

Emily olhou a sua irmã de soslaio.

― Você não crê na magia negra, não é verdade?

― Não sei. Não quero acreditar, mas isso não significa que outras pessoas não acreditem.

Emily se rendeu.

— Se acredita que o monstro da senhorita Lucinda se oculta no abrigo, devemos entrar.

Avançou por entre as ervas amargas e extraiu novamente o alfinete de cabelo, mas desta vez não o necessitou. A porta não estava trancada. Abriu-a com suavidade. Ante elas apareceu uma sala espaçosa e retangular, coberta no chão por um tapete negro e nas paredes por cortinas negras com desenhos verdes. O sol se filtrava através de um teto todo ele de vidro.

― Aqui não há nada. ― Emily parecia irritada, agora que tinha chegado tão longe e estava quase convencida.

Charlotte passou diante dela e entrou. Posou uma mão sobre as cortinas de veludo e as acariciou lentamente. Tinha percorrido mais de meio caminho quando reparou no espaço que as afastava da parede. Então viu os capuzes e as túnicas negras, bordadas com uma cruz invertida de cor escarlate, como a cicatriz da Fanny. Charlotte compreendeu em seguida o significado dessas túnicas e teve a impressão de que ainda estavam vivas. O diabo permanecia nelas depois que seus portadores partiam, reduzidos a seus rostos de sempre e a suas vidas de sempre, mesclando-se entre as pessoas. Quantos deles levavam a cicatriz na nádega?

— O que ocorre? ― perguntou Emily a suas costas. — O que encontrou?

― Túnicas ― disse quedamente Charlotte. — Disfarce.

― E o monstro da senhorita Lucinda?

― Não está aqui. Pode ser que se desfizeram dele.

Emily tinha o rosto lívido e o olhar sombrio.

― Pensa realmente que se trata de magia negra, do culto ao diabo e essas coisas? ― A própria Emily resistia a acreditar nisso, agora que tinha visto seu lado repulsivo e absurdo.

― Sim ― respondeu suavemente Charlotte. Estendeu uma mão e tocou um capucho. ― Ocorre-lhe outra finalidade para tudo isto? E o pentagrama e as ervas amargas? Provavelmente seja esta a razão pela que Phoebe leva uma cruz e freqüenta a igreja. Acredita que jamais poderemos nos desfazer do diabo agora que está aqui.

Emily ia dizer algo, mas as palavras morreram em sua garganta. Charlotte e ela se olharam.

— O que fazemos? ― disse finalmente Emily.

Antes que Charlotte pudesse conceber uma resposta, a porta soou e o medo as paralisou. Tinham esquecido que alguém podia descobri-las e não tinham desculpa. Tinham desobstruído a porta da sebe deliberadamente. Não podiam alegar que se perderam. E ninguém acreditaria que não compreendiam ou ignoravam a existência das coisas que tinham visto.

Voltaram-se lentamente para a porta.

A silhueta do Paul Alaric, perfilada contra a luz do sol, estava ali.

― Caramba! ― exclamou com voz suave, entrando sorridente no abrigo.

Ambas as irmãs estavam tão juntas que seus corpos se tocavam. Emily lhe apertava fortemente a mão, lhe cravando os dedos como se fossem garras.

― Pelo que vejo, descobriram ― observou Alaric. — Não lhes parece um pouco temerário bisbilhotar desse modo? — o homem parecia divertido.

Charlotte tinha sabido desde o princípio que era uma imprudência, mas a curiosidade tinha varrido de seu cérebro a consciência de perigo e silenciado o alarme. Olhou fixamente ao Alaric e procurou a mão do Emily. Era Alaric o chefe do grupo, o bruxo? Era essa a razão pela qual Selena julgava verossímil que fosse ele quem a tinha atacado... ou pela que Jessamyn sabia que não tinha sido ele? Ou acaso o chefe era uma mulher... a própria Jessamyn? Em sua mente se amontoavam toda classe de pensamentos inquietantes.

Alaric se aproximou pouco a pouco, sorridente mas com o sobrecenho ligeiramente franzido.

— Será melhor que saiamos daqui ― sussurrou. — Este lugar é extremamente rude, e eu não gostaria que um de seus membros se aproximasse por aqui e nos descobrisse.

― Mi... membros? ― gaguejou Charlotte.

O sorriso do Alaric se converteu em uma gargalhada.

― Santo Deus, pensa que sou um deles? Decepciona-me você, Charlotte.

Por um estúpido instante ela se ruborizou.

― Então, quais são? ― perguntou. — Afton Nash?

Alaric a pegou pelo braço e a conduziu até o jardim, seguidos do Emily a só uns centímetros de distância. Fechou a porta e seguiu o atalho flanqueado de ervas amargas.

― Não. Afton é muito anódino para fazer algo assim. Sua hipocrisia é mais discreta que tudo isso.

― Então, quem? ― Charlotte estava segura de que George não estava entre eles.

― OH, pois Freddie Dilbridge ― respondeu Alaric com tom confidencial. —

A pobre Grace se esmera em fazer vista grossa, fingindo que não é mais que uma extravagância.

― Quem mais?

-— Selena, e acredito que Algernon. E, se não me equivocar, a pobre Fanny antes de sua morte. Não há dúvida de que Phoebe sabe, não é tão inocente como a gente acredita, e certamente Hallam. Também Fulbert sabia, a julgar por seus comentários, embora nunca o convidassem.

Todas as peças encaixavam.

— O que fazem nessas reuniões? ― perguntou Charlotte.

Alaric apertou os lábios com tristeza e certo desdém.

― Não muito. Brincam de ser malvados, a imaginar que invocam ao diabo.

― Não acreditará que isso é... possível? – o calor e a quietude tinham aumentado e no céu, ao longe, apareciam algumas nuvens. As moscas estavam cada vez mais inquietas.

― Não, querida ― respondeu Alaric, olhando― a nos olhos. — Não acredito.

― Phoebe sim crie.

-— Sei. Imagina que se trata de um jogo absurdo e bem sórdido que desembocou na invocação de espíritos reais, que agora andam soltos pelo Paragon Walk para trazer a morte e a loucura das profundidades do inferno. ― Falava com expressão irônica, razoável, enquadrando ao Phoebe no reino da histeria.

Charlotte franziu o sobrecenho.

― Existe a magia negra?

― OH, certamente que existe. ― Alaric abriu a porta da sebe e a reteve para deixar passar às irmãs. — Mas este não é o caso.

Retornaram ao colorido e a normalidade da festa. Ninguém os tinha visto sair da sebe e cruzar o atalho de arbustos. A senhorita Laetitia escutava educadamente a exposição de lady Tamworth sobre os males de casar-se com alguém de posição social inferior, e Selena mantinha o que parecia uma conversa acalorada com Grace Dilbridge. Tudo seguia como antes. Dir-se-ia que só tinham estado ausentes uns instantes. Charlotte estremeceu ao recordar o que tinha visto. Freddie Dilbridge, de pé com uma taça na mão, perto das rosas, vestido com uma túnica e um capuz e celebrando rituais noturnos dentro de um pentagrama, invocando ao diabo, possivelmente celebrando uma missa negra, despindo à virgem Fanny e marcando― a com uma cicatriz indecente. Que pouco se sabia dos pensamentos que se ocultavam atrás das máscaras de outros. Agora Charlotte teria que fazer um grande esforço para mostrar-se cortês com ele.

― Não diga nada ― advertiu Emily.

― Não pensava fazê-lo! Não há nada que dizer.

― Temia que fosse falar da maldade de tudo isto.

― Acredito que é justamente isso o que os atrai! ― Charlotte recolheu as saias e se afastou em direção ao Phoebe e Diggory Nash. Afton estava diante deles, lhes dando as costas. Antes de alcançá-los, Charlotte percebeu que se achavam em meio de uma conversa violenta.

—... maldita histérica ― disse mordazmente Afton. — Deveria ficar em casa e procurar algo útil que fazer.

― Isso é fácil de dizer quando não se trata de você. ― Diggory apertou os lábios com desprezo.

― Dificilmente poderia tratar-se de mim! ― Afton arqueou as sobrancelhas com gesto sarcástico. — Tem que ser muito ardiloso o violador que ouse me assaltar.

Diggory lhe cravou um olhar de infinito rancor.

― Teria que estar muito desesperado! Pessoalmente, antes violaria a um cão.

― Nesse caso, se violarem a um cão já saberemos onde procurar ― respondeu friamente Afton. — Rodeia-se de amizades muito peculiares, Diggory. Seus gostos são cada vez mais relaxados.

― Pelo menos tenho gostos ― replicou Diggory. — Às vezes penso que está tão murcho que já não fica paixão por nada. Não estranharia que qualquer sinal de vida lhe seja repulsivo, e que quanto se recorda que tem um corpo, sua mente o considere sujo.

Afton retrocedeu ligeiramente.

― Não há nada sujo em minha mente, nada que me obrigue a olhar a outro lado.

― Então tem um estômago mais forte que o meu. O que ocorre em sua mente me aterra! Quando o olho, poderia acreditar nessas fantasias sobre "mortos viventes" que estão em voga estes dias, cadáveres que se negam a permanecer enterrados.

Afton estendeu as mãos com as Palmas para cima, como se pesasse o sol.

— Sempre pecou por irrefletido, Diggory. Se fosse um desses "mortos viventes" o sol me secaria. ― Sorriu com ironia. — Ou não tem lido até tão longe?

― Não seja ridículo ― repreendeu-o Diggory com voz cansada e irritada. — Falava de sua alma, não de seu corpo. Não sei se foi o sol ou a própria vida o que o secou, mas não há dúvida de que está murcho. ― afastou-se para uma bandeja de pêssegos e sorvetes.

Phoebe vacilou um instante e logo seguiu a seu cunhado, fazendo com que Afton reparasse finalmente em Charlotte. Seus frios olhos a atravessaram.

― Acaso sua atrevida língua tornou a deixá-la sozinha, senhora Pitt? ― perguntou.

― Provavelmente ― respondeu Charlotte com igual frieza. — Mas em qualquer caso, ninguém foi bastante franco para me dizer isso De qualquer modo, estar sozinha nem sempre é desagradável.

― Ultimamente visita Paragon Walk com muita freqüência. antes das violações não se preocupava tanto por nós. Ainda a fascina o tema? Acaso lhe provoca excitação, um estremecimento nas emoções dos sonhos de violência e submissão sem culpa? ― Os olhos do Afton a percorreram do peito até as coxas.

Charlotte estremeceu, como se as mãos do Afton a houvessem tocado. Olhou ao homem com repugnância.

― Ao que parece, acredita que as mulheres gostam de ser violadas, senhor Nash. Sua opinião me parece de uma arrogância monstruosa, um engano para alimentar sua vaidade e desculpar sua conduta, além de uma mentira. Os violadores não são homens esplêndidos. São seres patéticos que se vêem reduzidos a tomar pela força o que outros conseguem por seus próprios méritos. Se não fizessem tanto dano poderia me compadecer deles. Padecem... uma espécie de impotência!

O semblante do Afton se congelou, mas seus olhos destilaram um ódio tão primário como o nascimento e a morte. Charlotte teve a impressão de que se não estivesse nesse jardim elegante, entre as conversas habituais, o tinido de copos e as risadas corteses, Afton lhe teria enfiado uma faca até o punho e a teria rachado de cima abaixo.

Charlotte se voltou, doente de medo, mas não sem antes comunicar ao Afton com o olhar que o tinha compreendido. Por isso a pobre Phoebe nunca tinha acreditado que seu marido fosse o violador. E agora Charlotte também sabia, e isso era algo que Afton não lhe perdoaria enquanto vivesse.

Charlotte se afastou discretamente, absorta em seu descobrimento. Lânguidas sedas notavam-se no pesado ar. Peles impecáveis sofriam a perseguição de pequenas moscas e o calor aumentava sempre. A conversa revoava em torno dela e ouvia seu rumor mas não suas palavras.

― Deixou-se afetar muito. É uma loucura, e me atrevo a dizer que repugnante, mas não concerne a você nem a sua irmã.

Era Paul Alaric, que lhe estendia um copo de limonada com semblante preocupado mas com o mesmo brilho de humor no olhar.

Charlotte recordou o abrigo.

― Não tem nada que ver com isso ― disse negando com a cabeça. — Estava pensando em outra coisa, em algo real.

Alaric lhe entregou a limonada e, com a outra mão, retirou-lhe uma mosca da face.

Charlotte aceitou o copo agradecida e voltou ligeiramente a cabeça. Então reparou no Jessamyn Nash e em sua expressão hostil. Esta vez em seguida compreendeu o motivo, era simples: sentia ciúmes porque Paul Alaric a havia tocado, porque se interessava por Charlotte e Jessamyn sabia que era um interesse genuíno.

De repente, Charlotte sentiu um desejo irresistível de escapar dessa hipocrisia que ocultava invejas, daquele jardim cansativo, das conversas estúpidas e ódios subterrâneos.

― Onde está enterrado Hallam Cayley? ― perguntou.

Alaric a olhou surpreso.

― No mesmo cemitério que Fulbert e Fanny, a uma milha daqui. Ou, para ser exato, no limite do cemitério, em chão não bento para suicidas.

― Quero visitar sua tumba. Acredita que alguém me dirá algo se arrancar algumas flores da entrada?

― Duvido― o. Mas acaso lhe importaria?

― Não, absolutamente. ― Charlotte sorriu, agradecendo que Alaric não a criticasse.

Arrancou umas margaridas e um molho de lupinos que já começavam a amadurecer na base mas que ainda conservavam a frescura, e pôs-se a andar pela avenida em direção à estrada que conduzia à igreja. Estava mais perto do que imaginava, mas o calor era cada vez mais sufocante. As nuvens começaram a espessar-se e havia moscas em qualquer parte.

Não havia ninguém no cemitério. Charlotte cruzou a grade e caminhou pelo atalho, flanqueado de sepulturas lavradas com anjos e epitáfios, até além dos ciprestes, onde descansava a pequena parcela para os finados que não mereciam a bênção da Igreja. A tumba do Hallam era muito nova, o chão ainda mostrava as cicatrizes do enterro.

Contemplou a tumba uns minutos antes de depositar as flores. Tinha esquecido de levar consigo um recipiente e não havia nenhum nos arredores. Possivelmente pensavam que ninguém quereria levar flores a alguém como Hallam.

Charlotte cravou os olhos na terra, ainda seca e dura, e pensou no Paragon Walk, na estupidez e a dor desnecessária, na solidão.

Estava meditando quando ouviu uns passos e levantou a vista. Jessamyn Nash aparecia pela sombra dos ciprestes levando um ramo de lírios. Quando reconheceu ao Charlotte, vacilou. Tinha o rosto lívido e o olhar sombrio.

― A que veio? ― perguntou calmamente, caminhando em direção à Charlotte. Sustentava os lírios e as folhas erguidas, e de sua mão surgia o brilho prateado de umas tesouras.

Sem saber por que, Charlotte teve medo, como se a iminente tormenta e a eletricidade do ar a tivessem atravessado. Jessamyn estava frente a ela, do outro lado da tumba.

Charlotte indicou as flores que jaziam sobre a sepultura.

― vim... vim trazer estas flores.

Jessamyn as contemplou e, lentamente, levantou um pé e começou às pisotear, esmagando― as sobre a dura argila. Ergueu a cabeça, olhou ao Charlotte e arrojou seus lírios no mesmo lugar.

Por cima de suas cabeças soou o rangido de um trovão e as primeiras gotas de chuva começaram a cair, grosas e pesadas, sobre seus vestidos.

Charlotte queria lhe perguntar por que tinha feito isso. As palavras ressoavam em sua cabeça mas sua voz guardava silêncio.

― Nem sequer o conhecia! ― replicou Jessamyn entre dentes. — Como se atreve lhe trazer flores? É uma intrusa. Fora daqui!

Na mente do Charlotte começaram a virar pensamentos extraordinários e deslumbrantes como relâmpagos. Contemplou os lírios e recordou o dia que Emily lhe disse que Jessamyn nunca dava nada, embora já não o quisesse. Quando terminava com algo, destruía― o, mas nunca deixava que outro o desfrutasse. Emily falava de vestidos.

― Por que tem que lhe importar que ponha flores em sua tumba? ― perguntou com toda a serenidade que pôde reunir. — Hallam está morto.

― Isso não lhe dá direito. ― Jessamyn empalidecia cada vez mais e nem sequer notava as gotas de chuva. — Você não pertence ao Paragon Walk. Volte para seu ambiente, qualquer que este seja. Não tente fazer um lugar aqui.

Mas os pensamentos foram tomando solidez e transparência na mente de Charlotte. Todas as perguntas começavam a ordenar-se, encontrando uma resposta. A faca, por que Pitt não tinha achado sangue na rua, o desconcerto do Hallam, Fulbert, tudo finalmente formava um molde completo, inclusive as cartas de amor que conservava Hallam.

― Não eram de sua esposa, não é verdade? ― disse. — Não as assinou porque não foi ela quem as escreveu. Você o fez!

Jessamyn ergueu as sobrancelhas em dois arcos perfeitos.

― De que demônios está falando?

― As cartas de amor, as cartas dirigidas ao Hallam que achou a polícia. Eram suas! Você e Hallam eram amantes. Você tinha uma chave da porta do jardim. Assim era como ia a ele e assim foi como entrou no dia que morreu Fulbert. Naturalmente, ninguém a viu.

Jessamyn enrugou o lábio.

― Isso é absurdo! por que ia querer matar ao Fulbert? Era um pobre desgraçado, mas isso não é motivo para matá-lo .

― Hallam confessou que tinha violado a Fanny. ― Esboçou uma careta de dor, como se tivesse recebido um golpe físico.

Charlotte percebeu o gesto.

― Não pôde suportar que Hallam desejasse a outra mulher até o extremo de forçá-la, não é verdade?, e ainda menos que fosse uma moça tão inocente e vulgar como Fanny. ― Eram hipóteses, mas Charlotte acreditava nelas. — Lhe chupou o sangue com seu caráter possessivo e quando Hallam quis deixá-la se aferrou a ele, precipitando-o à bebida. ― Respirou fundo. — Naturalmente que não recordava ter matado a Fanny, e a polícia não achou a faca nem sangue na rua. Ele não a matou. Você o fez. Quando Fanny irrompeu a rastros no gabinete e lhe contou o ocorrido, a raiva e o ciúmes a enlouqueceram. Tinham-na abandonado, rechaçado por sua insípida cunhadinha. Agarrou a faca, possivelmente a faca do fruteiro que descansava sobre seu aparador, e a matou ali mesmo, no gabinete. O sangue lhe salpicou o vestido, mas isso tinha fácil explicação. Lavou a faca e a deixou novamente no fruteiro. Ninguém lhe prestou atenção. Assim simples.

"E quando Fulbert o descobriu, por causa de seu caráter intrometido, teve que desfazer-se também dele. Possivelmente a ameaçou e você lhe desafiou a que visitasse o Hallam, sabedora de que podia entrar pela porta do jardim e surpreendê-lo . Sabia que Hallam não estava em casa aquele dia? Provavelmente sim.

"Que surpresa deve ter levado quando ninguém achou o corpo do Fulbert! Suspeitou que Hallam o tinha ocultado e observou como este se desmoronava, atormentado pelo pânico de sua própria loucura.

O rosto do Jessamyn estava tão lívido como os lírios da tumba, ambos empapados, a água lhe escorregando como uma mortalha.

― É você muito ardilosa ― respondeu lentamente Jessamyn. — Mas não pode provar nada do que disse. Se contar essa historiar à polícia, direi que tem ciúmes de mim e do Paul Alaric. Você não pertence ao Paragon Walk, sei muito bem. Todos seus gestos, todos seus vestidos os tomou emprestados do Emily. Pretende fazer um lugar aqui e arquitetou essa historia para vingar-se de mim porque eu sei.

― OH, a polícia me acreditará. ― Charlotte sentiu uma corrente de poder em seu interior, e uma ira indômita contra Jessamyn por sua indiferença à dor. — O inspetor Pitt é meu marido. Não sabia? E depois existem as cartas de amor, com sua letra. E é muito difícil apagar por completo o sangue de uma faca. introduz-se na greta que há entre o punho e a folha. A polícia dará com essas provas assim que saiba onde procurar.

A expressão de Jessamyn mudou. Sua serenidade de alabastro se quebrou, dando passagem a um ódio depurado. Ergueu as tesouras e se precipitou sobre Charlotte, falhando só por uns centímetros porque seu pé escorregou na terra molhada.

Charlotte despertou de seu ensimesmamento e pôs-se a correr sobre a áspera erva e as enormes raízes dos ciprestes, sob seus ramos, até o cemitério, enquanto as saias empapadas lhe esbofeteavam as pernas. Sabia que Jessamyn a seguia. A chuva caía a torrentes, formando rios amarelos sobre o chão calejado. Saltou sobre as sepulturas, enredando-os pés entre as flores e tropeçando violentamente com o mármore molhado das lápides. Um anjo de gesso apareceu de repente e ela gritou involuntariamente ao mesmo tempo em que se precipitava sobre ele.

Só em uma ocasião se voltou para divisar ao Jessamyn uns metros mais atrás, sua cabeleira dourada e sedosa ondeando qual serpentinas. As tesouras lançavam brilhos luminosos.

Charlotte estava ferida, tinha as pernas salpicadas de sangue e as esquinas das lápides machucavam seus braços. Caiu ao chão, mas quando Jessamyn se dispôs a jogar-se sobre ela conseguiu levantar-se, ofegando e resfolegando com veemência. Se conseguisse chegar à estrada possivelmente acharia alguém, alguém sensato e normal que pudesse ajudá-la.

Quase tinha chegado. Ao voltar-se uma vez mais para comprovar a distância que a afastava do Jessamyn, de repente chocou contra um corpo e uns braços que a rodearam.

Gritou e em sua imaginação as tesouras lhe atravessaram a carne, como tinham feito com a Fanny e Fulbert. Começou a soltar golpes cegos com as pernas e os punhos.

― Basta!

Era Alaric. Por um segundo interminável, abafado, Charlotte não soube a quem temia mais.

― Charlotte ― disse ele suavemente― , tudo terminou. foi uma loucura que viesse sozinha, mas já tudo terminou.

Charlotte se voltou lentamente e olhou ao Jessamyn, empapada e coberta de barro.

Jessamyn deixou cair as tesouras. Não podia lutar contra os dois e tampouco podia ocultar-se.

― Vamos. ― Alaric rodeou com seu braço os ombros de Charlotte. — Tem um aspecto horrível! Será melhor que avisemos à polícia.

Charlotte sorriu... "Sim ― pensou― , avise à polícia, avise ao Pitt. Sobre tudo, avise ao Pitt!"  

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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