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Series & Trilogias Literarias
Na carreira notável do detetive Philo Vance, o chamado Crime do Cassino constituiu, talvez, o problema mais diabólico e sutil, o desafio mais completo aos seus poderes de intuição e análise.
Digamos logo que se tratou de um crime de envenenamento, mas não um caso comum... Envolveu, da parte do criminoso, uma técnica tão eficaz que isso o colocou muitos furos acima dos mais famosos crimes do gênero.
Sem dúvida, de um ponto de vista puramente objetivo, o caso não foi tão espetacular assim e poderia até ser considerado comum. Mas o nosso amigo assassino procurou embaralhar cuidadosamente todas as pistas, desviando as suspeitas e dissimulando os verdadeiros motivos do crime.
I - CARTA ANÔNIMA
(Sábado, 15 de outubro — 10:00 horas)
Foi no frio outono que se seguiu ao espetacular crime do Dragão que Philo Vance teve de enfrentar o que foi, provavelmente, o mais sutil e diabólico problema criminal de sua carreira. Diferente de seus outros casos, esse mistério foi de envenenamento. Porém não um caso comum de envenenamento: incluía uma técnica avançada e muito elaborada, a ser equiparada à de crimes tão famosos como os casos de Cordelia Botkin, Molineux, Maybrick, Buchanan, Bowers e Carlyle Harris.
A designação que lhe foi dada pelos jornais — o crime do Cassino — estava tecnicamente errada, embora o famoso cassino de jogo de Kinkaid, na Rua 73, Oeste, haja desempenhado nele grande e importante parte. De fato, o primeiro episódio sinistro nesse notório crime ocorreu ao lado da mesa de roleta no Salão Dourado do cassino; e o episódio final da tragédia se desenrolou no escritório jacobiano, apainelado de nogueira, de Kinkaid, pertinho do principal salão de jogo.
Incidentalmente, posso dizer que aquela última e terrível cena me perseguirá até o fim dos meus dias. Acompanhei Vance através de muitas situações chocantes, no decorrer de suas investigações criminais, porém jamais passei por experiência que me afetasse tanto quanto aquele fatal e terrífico desfecho que veio tão súbita e inesperadamente, no espalhafatoso local de jogo.
E Markham também, eu sei, passou por uma deprimente metamorfose naqueles momentos agônicos, quando o assassino se ergueu diante de nós e gargalhou, triunfante. Até hoje, a só menção do incidente deixa Markham irritável e nervoso — fato que, a considerar-se sua calma habitual, claramente indica a profunda e duradoura impressão que lhe deixou o trágico acontecimento.
O crime do cassino, excetuando o evento fatal que vinha de terminar, não foi tão espetacular em seus detalhes como muitos outros casos solucionados por Vance. De um ponto de vista puramente objetivo, poderia até ser considerado comum, pois em seu mecanismo superficial houve muitos paralelos com bem conhecidos casos da história criminal. O que o distinguiu, porém, de seus muitos predecessores foi o sutil processo interior que o assassino achou para desviar suspeitas e criar novas e mais diabólicas situações em que se pudesse encontrar o real motivo do crime. Não era, apenas, uma roda dentro de outra roda, e sim uma elaborada é complicada peça de maquinismo psicológico, o mecanismo que arrastava mais e mais, quase indefinidamente, à mais surpreendente — e errônea — conclusão.
Realmente, o primeiro movimento do assassino foi talvez o mais astuto ato de todo o profundo esquema: uma carta endereçada a Vance trinta e seis horas antes que o mecanismo da peça fosse posto em operação. Porém, bem curiosamente, esta suprema sutileza é que, no fim, encaminhou ao reconhecimento do culpado. Talvez fosse por demais sutil o ato de escrever aquela carta; talvez derrotasse o próprio desígnio chamando muda atenção para os processos mentais do assassino, e assim deu a Vance uma chave intelectual que afortunadamente lhe desviou os esforços de mais insistentes e óbvias linhas de raciocínio. De qualquer modo, conseguiu seu objetivo superficial, pois Vance foi realmente espectador do primeiro ataque, por assim dizer, do florete do vilão.
E, como testemunha ocular do primeiro episódio desse famoso mistério de assassinato por veneno, Vance tornou-se diretamente envolvido no caso; de modo que, nas circunstâncias, levou o problema a John F. X. Markham, então procurador distrital de Nova York e o mais chegado amigo de Vance; ao passo que, em todas as demais investigações criminais foi Markham o responsável pela participação de Vance.
A carta a que me refiro chegou pelo correio da manhã, no sábado, 15 de outubro. Consistia de duas páginas datilografadas, e o envelope estava carimbado de Closter, Nova Jersey. O selo indicava haver sido postada ao meio-dia do dia antecedente. Vance trabalhara até tarde da noite na sexta-feira, rotulando e comparando desenhos estéticos da cerâmica sumeriana numa tentativa de estabelecer a influência cultural dessa antiga civilização{1}, e não se levantou senão às 10 horas no sábado. Eu estava morando no apartamento de Vance, na Rua 38, Leste, na ocasião; e, embora minha posição fosse a de conselheiro legal e administrador financeiro, eu me havia, durante os três últimos anos, tornado gradualmente uma espécie de secretário-geral a seu serviço. "Serviço" talvez não seja a expressão correta, pois Vance e eu havíamos sido amigos íntimos desde os tempos de Harvard; e essa relação é que me levara a romper minha conexão com a firma de advocacia de meu pai — Van Dine, Davis & Van Dine — e a devotar-me por inteiro à tarefa de zelar pelos negócios de Vance.
Nessa fria, quase hibernai manhã de outubro, como de costume eu abrira e separara sua correspondência, atentando para os assuntos de minha competência, e estava empenhado em preencher os formulários em branco para os julgamentos de campo do outono{2}, quando Vance entrou na biblioteca e, com uma saudação de cabeça, sentou em sua cadeira favorita — uma poltrona Rainha Ana — diante da lareira.
Ele usava um raro roupão de mandarim e sandálias chinesas; fiquei assombrado com essa vestimenta, pois ele raramente descia para o café da manhã (que invariavelmente consistia de uma xícara de café à moda turca e um dos seus queridos cigarros Régies vestido tão aprimoradamente.
— Olhe, Van, — observou ele, depois de tocar a campainha para chamar Currie, seu idoso camareiro e mordomo — não faça esse ar de espanto... Sentia-me deprimido ao acordar. Não consegui determinar os desenhos em algumas das linhas e antigas esteias e sinetes cilíndricos que cavaram em Ur, e em conseqüência tive uma noite insone. Portanto, enfeitei-me com estas roupas chinesas num esforço para neutralizar meus sentimentos e na esperança, devo acrescentar, de, que, por um processo de osmose psíquica, adquirisse um pouco daquela calma oriental, tão comentada pelos sinólogos.
Nesse momento Currie trouxe o café. Após acender um Régie e tomar alguns goles do líquido preto e espesso, olhou-me preguiçosamente, perguntando:
— Alguma correspondência interessante?
Tão interessado eu estivera na estranha carta anônima que acabara de chegar — embora ainda não tivesse idéia de seu trágico significado — que lha entreguei, sem uma palavra. Deu-lhe uma olhadela, sobrancelhas levemente erguidas, demorou o olhar na enigmática assinatura, e depois, colocando na mesa a xícara de café, leu-a vagarosamente. Enquanto isso, eu o observava, e notei uma curiosa expressão velada em seus olhos, que se aprofundaram e se tornaram invulgarmente sérios ao terminar a leitura.
. A carta ainda permanece nos arquivos de Vance, e vou reproduzi-la textualmente, pois nela Vance descobriu uma de suas "chaves" mais valiosas, chave que, embora não o levasse realmente ao assassino no começo, pelo menos desviou Vance da óbvia linha de pesquisa pretendida pelo maquinador. Como acabei de dizer, a carta era datilografada, porém o trabalho estava mal feito — isto é: era evidente a falta de familiaridade do datilografo com a máquina. Dizia a carta:
"CARO SR. VANCE:
Em minha aflição apelo para o senhor. Este apelo é também feito em nome da humanidade e da justiça. Conheço-o de reputação — e o senhor é o único homem em Nova York que pode evitar uma terrível catástrofe, ou pelo menos providenciar para que o castigo seja dado ao executante de um crime prestes a realizar-se. Horríveis nuvens negras pairam sobre certa família em Nova York — elas se vêm reunindo há anos — e sei que a tempestade está, prestes a explodir. Há perigo e tragédia no ar. Por favor, não me falho, embora eu admita ser um estranho para o senhor.
Não sei exatamente o que vai acontecer. Se o soubesse poderia ir à Polícia. Porém, qualquer interferência oficial agora poria o maquinador em guarda e apenas adiaria a tragédia. Gostaria de poder dizer-lhe mais — mas de nada mais sei. A coisa é assustadoramente vaga: é mais uma atmosfera do que uma situação específica. Mas vai acontecer — algo vai acontecer — e seja o que for que aconteça, será enganoso e errado. Assim, por favor, não permita que aparências o enganem. Olhe — olhe — por baixo das coisas, em busca da verdade. Todos os que estão envolvidos são anormais e trapaceiros. Não os subestime.
Eis tudo que posso contar-lhe:
O senhor conhece o jovem Lynn Llewellyn — pelo que sei — e provavelmente sabe de seu casamento há três anos com a linda estrela de comédia musical, Virgínia Vale. Ela desistiu de sua carreira e os dois têm morado com a família dele. Porém o casamento foi um engano terrível, e durante três anos a tragédia tem vindo fermentando. Agora a coisa atingiu o clímax. Vi os contornos irem tomando forma. E há outros além dos Llewellyns, no quadro.
Há perigo — tremendo perigo — para alguém mais: não sei exatamente quem. E a ocasião é amanhã à noite, sábado.
Lynn Llewellyn deve ser vigiado. E cuidadosamente!
Haverá um jantar na residência dos Llewellyns amanhã à noite, e estarão presentes todos os implicados nessa tragédia pendente: Richard Kinkaid, Morgan Bloodgood, o jovem Lynn e sua infeliz esposa, a irmã de Lynn, Amélia, bem como sua mãe. O motivo é o aniversário da mãe.
Embora saiba que haverá um distúrbio de qualquer espécie nesse jantar, calculo que o senhor nada poderá fazer a esse respeito. De toda maneira, isso não importará. O jantar será apenas o começo dos acontecimentos. Mas algo de grave acontecerá mais tarde. Sei que acontecerá. Ê chegada a ocasião.
Após o jantar, Lynn Llewellyn irá ao cassino de Kinkaid para jogar: faz isso todas as noites de sábado. Sei que o senhor mesmo visita freqüentemente o cassino. E o que lhe peço é que vá lá amanhã à noite. Deve ir. E deve vigiar Lynn Llewellyn em todos os minutos. Observe também Kinkaid e Bloodgood.
Há de estar cogitando por que não o faço eu mesmo: asseguro-lhe que minha posição e as circunstâncias tornam isso totalmente impossível.
Gostaria de ser mais explícito. Acontece que nada mais sei para dizer-lhe. O senhor deve descobrir.”
A assinatura, também datilografada, era: "Alguém Profundamente Interessado".
Ao esquadrinhar a carta pela segunda vez, Vance afundou na cadeira e espichou as pernas preguiçosamente.
— Um documento espantoso, Van! — comentou ele, após várias baforadas no cigarro. — E completamente falso, sabe... Um toque literário aqui e ali — uma pontinha de melodrama — algumas amostras de afetada retórica... e, ocasionalmente, uma preocupação profunda; embora vaga, a assinatura é genuína. Sim... sim... isso é óbvio: está batida mais pesadamente que o resto da carta... maior pressão nas teclas... Paixão no que fazia. E não uma paixão agradável: uma ponta de vingança, de par com ansiedade... — Sua voz diminuiu um pouco: — Ansiedade! — continuou, como para si próprio. — Isso é exatamente o que transpira entre linhas. Mas ansiedade por quê?... a respeito de quem?... O jogador Lynn? Pode ser, claro. Mas ainda assim... — Outra vez sua voz diminuiu, e de novo ele examinou a carta, ajustando cuidadosamente o monóculo e examinando ambos os lados do papel. — Papel comercial comum, que se pode comprar em qualquer papelaria... e envelope liso, de ponta virada. Meu ansioso e gárrulo correspondente foi extremamente cuidadoso no evitar a possibilidade de ser descoberto por meio do vendedor... Que pena!... Porém, eu gostaria que o autor houvesse freqüentado uma escola comercial. Sua datilografia é atroz: mal espacejada, batidas nas teclas erradas, nenhuma noção de margem — tudo indicando nenhuma familiaridade com os dispositivos tão simples da máquina de escrever.
Acendeu outro cigarro e terminou seu café. Depois recostou-se na poltrona e leu a carta pela terceira vez. Raramente eu o vira tão interessado. Por fim disse:
— Por que os detalhes domésticos dos Llewellyns, Van? Quem quer que leia jornais conhece a situação naquela casa. A linda e loura atriz casando na Coluna Social sob protestos da mamãe e acabando sob o teto dessa mamãe; Lynn Llewellyn, o jovem farrista e queridinho dos clubes noturnos; a séria irmãzinha, das frivolidades sociais virando-se para estudos de arte; quem, nesse campo de atividades, poderia deixar de ouvir falar dessas coisas? E a própria mamãe é uma ruidosa filantropa e membro dos comitês de todas as organizações sociais e econômicas que pode encontrar. E certamente Kinkaid, o irmão da velha senhora, não é nenhum inconnu... Há poucas personalidades na cidade mais desacreditadas que ele — para grande desgosto e humilhação da Sra. Llewellyn. Só a riqueza da família seria uma fonte de mexericos. Mas o meu correspondente teve de lembrar-me tudo isso. Por quê? Por que a carta, afinal? Por que fui escolhido para recebê-la? Por que a linguagem florida? Por que a abominável datilografia? Por que este papel e o sigilo? Por que tudo isso?... Calculo... calculo que...
Levantou-se e começou a andar abaixo e acima. Eu estava surpreso ante sua perturbação: isso era completamente incomum. A carta não me impressionara muito, a não ser por sua raridade; e minha primeira inclinação foi considerá-la o ato de um excêntrico ou de alguém com rancor contra os Llewellyns e que procurasse por tais meios indiretos causar-lhes aborrecimentos. Porém Vance, evidentemente, captara algo na carta que me escapara por completo.
Subitamente cessou seu contemplativo ir e vir e ele se dirigiu ao telefone. Momentos depois estava falando com Markham, instando com ele para que viesse ao apartamento naquela noite.
— É realmente muito importante — disse. — Tenho um documento fascinante para mostrar-lhe... Seja um bom menino e venha!
Depois de desligar o telefone, Vance sentou-se em silêncio. Finalmente ergueu-se e foi até o setor de sua biblioteca dedicado à Psicanálise e à Psicologia de Anormais. Percorreu os índices de várias obras de Freud, Jung, Stekel e Ferenezi; e, marcando algumas páginas, voltou a sentar-se para folhear os volumes. Após uma hora, mais ou menos, recolocou os volumes nas prateleiras e passou outros trinta minutos consultando vários livros de referências, tais como o Who's Who, o New York Social Register e o American Biographical Dictionary. Finalmente, deu de ombros levemente, bocejou e sentou-se à escrivaninha, na qual estavam espalhadas numerosas reproduções das obras de arte desenterradas nas escavações do Dr. Woolley, que duraram sete anos, em Ur.
Sábado, sendo dia de meio-expediente no gabinete do procurador distrital, Markham chegou pouco depois das 2 horas. Nesse ínterim, Vance se vestira e almoçara, e recebeu Markham na biblioteca.
— Um dia meio murcho... — queixou-se, conduzindo Markham para uma poltrona diante da lareira. — Nada bom para um homem estar só. A depressão me tiraniza como uma bruxa. Faltei ao concurso em Long Island hoje. Preferi ficar em casa e contemplar as brasas incandescentes. Talvez esteja envelhecendo e ficando cheio de sonhos... Angustiado... Mas estou imensamente grato por sua vinda. Que tal um traguinho de Napoléon de 1811, para contrabalançar suas melancolias outonais?
— Não tenho melancolias hoje, outonais ou de qualquer outro tipo — replicou Markham, observando Vance cuidadosamente. — E você, quanto mais fala, mais arduamente está pensando: sintoma inequívoco. (Ainda examinava Vance.) — Entretanto, tomarei o conhaque. Mas, por que o ar de mistério ao telefone?
— Querido Markham... oh, querido Markham! Parecia, mesmo, tão misterioso assim? Os dias melancólicos...
— Ora, vamos, Vance! Onde está o tal papel interessante *que desejava mostrar-me?
— Ah! sim... — Vance meteu a mão no bolso e, tirando a carta anônima que recebera naquela manhã, passou-a a Markham. — Realmente, esta carta não devia ter vindo num dia depressivo como este...
Markham leu a carta, sem lhe dar maior importância, e atirou-a na mesa, com um leve gesto de irritação.
— Bem, o que há, afinal? — perguntou, tentando esconder o aborrecimento. — Sinceramente, espero que não a leve a sério.
— Nem a sério, nem frivolamente — Vance suspirou — mas de mente alerta, meu velho. A epístola tem possibilidades, sabe...
— Pelo amor de Deus, Vance! Recebemos cartas assim todos os dias... Montes delas! Se fôssemos dar-lhes atenção, não teríamos tempo para mais nada! É hábito de autores profissionais de cartas anônimas... Mas não preciso explicar-lhe isso: você é muito bom psicólogo.
Vance acenou que sim, com uma seriedade invulgar:
— Sim, sim, claro: complexo de epistolografia. Combinação de fútil egomania, covardia e sadismo... Conheço bem a fórmula. Mas, realmente, sabe, não estou convencido de que esta carta se enquadre nessa categoria.
Markham olhou-o de relance:
— Realmente pensa que seja uma honesta expressão de preocupação baseada em conhecimento de algo?
— Oh! não... ao contrário! — Vance olhava o cigarro, meditativamente. — É mais profundo que isso. Se fosse uma carta sincera, seria menos prolixa e mais objetiva. Sua prolixidade e afetada fraseologia indicam um motivo ulterior: há muita maquinação por trás disso... E sinistras implicações, também: uma atmosfera de raciocínio anormal... uma genuína nota de tragédia cruel, como se um espírito maligno estivesse maquinando e rindo à socapa ao mesmo tempo... Não gosto disso, Markham... não gosto disso, absolutamente.
Markham olhava para Vance, surpreso. Começou a dizer algo, mas, em vez disso, pegou a carta e tornou a lê-la, mais cuidadosamente desta vez. Ao terminar, balançou a cabeça vagarosamente:
— Não, Vance: os dias mais tristes do ano afetaram sua imaginação. Esta carta não passa da explosão de alguma histérica, igualmente afetada.
— Há nela uns toques femininos, não? — Vance falava languidamente. — Notei isso. Mas o estilo geral da carta não indica alucinações.
Markham sacudiu a mão num gesto apologético e fumou em silêncio por alguns instantes. Depois, perguntou:
— Conhece os Llewellyns pessoalmente?
— Encontrei Lynn Llewellyn certa vez... simples apresentação... e o tenho visto no cassino muitas vezes. O comum tipo extravagante de menino mimado cuja mãe tem os cordões da bolsa. E, claro, conheço Kinkaid. Todo mundo conhece Richard Kinkaid, menos a polícia e o procurador distrital... Mas você faz muito bem em ignorar sua existência e em recusar fechar sua dourada caverna de pecado. A coisa vai realmente muito bem, e só quem pode gastar a rodo vai lá. Sim, senhor! Imagine a ingenuidade de quem pensa que jogo pode ser acabado por meio de leis e batidas da polícia!... O Cassino é um lugar delicioso, Markham, bonito e de aparência absolutamente correta. Você gostaria imensamente... se não fosse procurador...! Triste... muito triste...
Markham se mexeu pouco à vontade em sua poltrona, e lançou a Vance um olhar destruidor, seguido por um indulgente sorriso:
— Algum dia irei lá... talvez depois das próximas eleições — replicou. — Conhece alguns dos outros mencionados na carta?
— Só Morgan Bloodgood: é o crupiê-chefe de Kinkaid, seu braço-direito, por assim dizer. Porém conheço-o apenas profissionalmente, embora saiba que é amigo dos Llewellyns e conheceu a esposa de Lynn quando ela pertencia à comédia musical. É um universitário e um gênio para lidar com algarismos: doutorou-se em Matemática em Princeton, disse-me Kinkaid. Foi professor por um ano ou dois, e depois veio trabalhar com Kinkaid. Provavelmente gostava de excitação... qualquer coisa é preferível à teoria dos quanta... A outra pessoa em perspectiva para o drama me é desconhecida. Nunca sequer vi Virgínia Vale: estava no estrangeiro durante seu breve triunfo no palco. E o caminho da velha Sra. Llewellyn nunca cruzou o meu. Nem jamais encontrei a filha 'aspirante a artista, Amélia.
— Quais as relações entre Kinkaid e a velha senhora? Dão-se bem como o deveriam irmão e irmã?
Vance olhou languidamente para Markham:
— Pensei nesse ângulo, também. Claro, a velha senhora se envergonha de seu cabeçudo irmão: há de ser bem aborrecido para uma fanática assistente social acolher um irmão que não passa de um jogador profissional. E, embora publicamente sejam educados um com o outro, imagino que haja conflitos internamente, especialmente porque a residência de Park Avenue lhes pertence em conjunto e vivem ambos sob o mesmo teto. Porém não penso que a velha senhora leve sua animosidade a ponto de tramar contra Kinkaid... Não, não. Por esse lado não encontraremos uma explicação para a carta...
Nesse momento, Currie entrou na biblioteca:
— Perdão, senhor, mas há alguém ao telefone que deseja que eu lhe pergunte se o senhor pretende ir ao Cassino logo à noite...
— Homem ou mulher? — interrompeu Vance.
— Realmente, senhor... não poderia dizer. A voz era vaga e apagada... eu diria: disfarçada. Porém a pessoa me pediu que lhe dissesse que ele — ou ela — não diria mais uma palavra, mas esperaria no telefone pela sua resposta.
Vance não falou por vários momentos; finalmente, murmurou:
— Eu já esperava algo assim... Diga ao sujeito que me chamou que estarei lá pelas dez da noite.
Preocupado, Markham tirou o charuto da boca e olhou para Vance:
— Realmente pretende ir ao Cassino por causa dessa carta?
Vance respondeu seriamente:
— Claro que sim.
II - O CASSINO
(Sábado, 15 de outubro — 22:30 horas)
O famoso estabelecimento de jogo de Richard Kinkaid — o Cassino, na Rua 73, Oeste, perto da West End Avenue — em seu dias de apogeu tinha direitos às glórias do extinto Canfield. Floresceu durante pouco tempo, mas ainda assim sua memória se mantém viva para muita gente, e sua fama se espalhava por todos os cantos do país. Forma um ardente e indispensável elo na cadeia de locais de diversão da espetacular história da vida noturna de Nova York, Um alto prédio de apartamentos, com terraços e avarandados, se ergue, agora, onde antes fora o Cassino.
Para os passantes não-iniciados o Cassino era apenas outra imponente mansão, das que outrora faziam o orgulho do West Side superior. A casa fora construída na última década do século passado e era residência do pai de Richard, Amos Kinkaid (conhecido como "o Velho Amos"), um dos mais astutos e ricos corretores de imóveis da cidade. Essa propriedade foi o quinhão diretamente legado a Richard Kinkaid no testamento do Velho Amos: todas as demais propriedades haviam sido transmitidas juntamente a seus dois filhos, Kinkaid e a Sra. Anthony Llewellyn, que, por ocasião da herança, já era viúva com dois filhos, Lynn e Amélia, ambos pelos dez anos de idade.
Richard Kinkaid morara sozinho no casarão por vários anos após a morte do Velho Amos. Então, fechou portas e janelas e satisfez seu desejo de viagens e aventuras pelos mais remotos lugares do mundo. Sempre possuíra um irresistível pendor pelo jogo, talvez herdado do pai, e no decurso de suas viagens visitou muitos dos mais afamados locais de jogatina da Europa. As narrativas de seus espetaculares ganhos e perdas chegavam, muitas vezes, às manchetes dos jornais. Quando as perdas excediam de muito os ganhos, Kinkaid voltava à América, mais pobre, porém muito mais "sabido".
Contando com influência política e poderosas relações pessoais, decidiu fazer um esforço para recuperar suas perdas abrindo sua própria e luxuosa casa de jogo, pelos padrões de algumas das mais famosas casas da América dos velhos tempos.
— O que há de errado comigo — disse Kinkaid a um dos seus protetores ocultos — é que sempre joguei do lado errado da mesa.
Mandou remodelar e redecorar o casarão da Rua 73, foi pródigo em concessões, e iniciou sua notória empresa "no lado certo da mesa". Esse embelezamento da casa esgotou o resto de seu patrimônio. Chamou ao novo estabelecimento Cassino Kinkaid, lembrando-se, talvez, de Monte Cario. Porém o local se tornou tão conhecido entre os ricaços que o nome "Kinkaid" logo se tornou supérfluo: só havia um "Cassino" na América.
Como tantos outros estabelecimentos extralegais de sua espécie, e como os vários luxuosos clubes noturnos que surgiram durante a época da proibição, o Cassino era regido como um clube particular. Era essencial tornar-se membro, e todos os pretendentes eram prudentemente investigados. A jóia de admissão era suficientemente alta para desencorajar elementos indesejáveis; e a lista daqueles a quem era concedido o privilégio de pertencer ao "clube" parecia uma compilação de nomes dos social e profissionalmente preeminentes.
Para crupiê-chefe e supervisor dos jogos, Kinkaid escolhera Morgan Bloodgood, jovem e culto matemático que conheceu em casa de sua irmã. Bloodgood estivera na Universidade com Lynn Llewellyn e, incidentalmente, Bloodgood é que foi o causador do encontro de Virgínia Vale e o jovem Llewellyn. Enquanto na Universidade e durante o tempo em que lecionou Matemática, tivera Bloodgood um hobby: ocupava-se com a lei das probabilidades. Aplicava suas descobertas especialmente à relação dessas leis ao jogo numérico e calculara elaboradamente as porcentagens em todos os conhecidos jogos de azar. Suas estimativas de permutas, possibilidades de repetições e mudanças de seqüência em relação aos jogos de cartas são hoje oficialmente usadas no computar chances em esboços; e em certo tempo foi associado ao gabinete do Promotor, expondo as esmagadoras chances em favor dos donos em conexão com uma campanha de caráter amplo contra as máquinas caça-níqueis de todos os tipos.
Certa vez perguntaram a Kinkaid por que escolhera o jovem Bloodgood de preferência a um antigo e experiente crupiê, e ele respondeu:
— Sou como o velho Gobseck de Balzac, que entregou todos os seus negócios legais aos cuidados de um procurador bem jovem, Derville, pela teoria de que se pode confiar num homem abaixo de 30, mas depois dessa idade não se pode confiar plenamente em ninguém.
Os assistentes de crupiê e os carteadores no Cassino eram igualmente escolhidos nas fileiras dos bem-nascidos, profissionais jovens, de boa aparência e fina educação; e eram cuidadosamente treinados nos meandros de seus deveres{3}.
Cínica e céptica como poderia parecer a filosofia de Kinkaid, sua aplicação prática obteve o maior êxito. Seu jogo do "lado certo da mesa" prosperou. Estava satisfeito com a habitual porcentagem da casa, e o mais astuto dos jogadores e peritos jamais pôde acusá-lo de "preparar" quaisquer dos seus jogos{4}. Em todas as disputas entre jogador e crupiê, o jogador era pago sem discussão. Muitas pequenas fortunas foram perdidas e ganhas no Cassino durante sua existência relativamente breve; e o jogo sempre foi forte, especialmente nas noites de sextas-feiras e sábados.
Ao chegarmos ao Cassino, Vance e eu, nessa fatal noite de sábado, 15 de outubro, havia apenas uns poucos sócios esparsos. Ainda era muito cedo para a habitual quantidade de freqüentadores que, de costume, vinham após o teatro.
Ao galgarmos os largos degraus de entrada para o estreito vestíbulo cheio de espelhos e guarnecido de peças de ferro trabalhado, fomos cumprimentados pelo porteiro chinês que permanecia à esquerda da entrada. Por algum sinal secreto nossa identidade foi comunicada aos encarregados na parte interna; e quase simultaneamente à nossa chegada ao vestíbulo a grande porta de bronze (que o Velho Amos trouxera da Itália) foi aberta. No espaçoso vestíbulo com cortinas de brocado e quadros de mestres, mobiliado no luxuriante estilo italiano renascentista, nossos chapéus e sobretudos nos foram tomados por dois atendentes uniformizados, ambos altos e fortes{5}.
Ao fundo do vestíbulo, havia uma escadaria de mármore dividida em duas que levava, de cada lado de uma fonte luminosa, aos salões de jogo, em cima.
No segundo andar, Kinkaid combinara a antiga sala de visitas e a sala de recepção num imenso salão a que batizara de Salão Dourado. Abrangia toda a fachada da casa e tinha talvez uns vinte metros de comprimento. A um dos lados, uma alcova fora preparada como sala de descanso. O salão era decorado em estilo romano modificado, com ocasionais sugestões de ornamentação bizantina. As paredes eram cobertas de folhas douradas, e as pilastras de mármore liso eram enquadradas por grandes painéis retangulares, de um tom de marfim que se misturava ao dourado das paredes e ao colorido acastanhado do teto. As cortinas, nas altas janelas, eram de brocado de seda amarelo com desenhos em relevo dourado; e a forração do chão, de cor ocre neutro.
Havia três mesas de roleta ao centro do salão, duas de vinte-e-um, mesas ao meio das paredes dos dois lados do salão, quatro mesas de bacará nos quatro cantos da sala, e mesas de chemin-de-fer e uma elaborada mesa de dados no fim do salão, entre as janelas. Na parte traseira do Salão Dourado, a leste, uma sala para jogos privados de carta, com uma fileira de pequenas mesas individuais onde se poderia jogar qualquer tipo de solitário, e uma carteador para assistir e pagar ou receber, conforme a sorte ou a habilidade do jogador. Junto a esta sala havia um bar de cristal com uma larga arcada que levava ao salão principal. Ali, só as mais finas bebidas eram servidas. Evidentemente, essas duas salas haviam sido a principal sala de refeições e a saleta de desjejum da antiga mansão Kinkaid. Uma gaiola para o caixa fora arranjada onde outrora fora uma espécie de armário-rouparia, à esquerda do bar.
O escritório particular de Richard Kinkaid fora construído obstruindo a parte anterior do vestíbulo superior. Havia uma porta que dava para o bar e outra para o Salão Dourado. Tinha cerca de dez metros quadrados e era apainelado em nogueira — sombria, porém bela sala, com uma só e ampla janela de vidro abrindo para o pátio fronteiro.
(Menciono o escritório aqui porque representou parte importante no clímax final terrível da tragédia que, logo logo, começaria ante nossos olhos.)
Quando, nessa noite de sábado, chegamos ao estreito vestíbulo do segundo andar, que levava ao salão principal, Vance olhou casualmente para as duas salas de jogo e voltou-se para o bar:
— Penso, Van, que teremos muito tempo para um gole de champanha... Nosso jovem amigo está sentado na sala de descanso, sozinho, aparentemente absorto em computações. Lynn é um jogador de sistema; e são precisos muitos preliminares antes que ele comece. Se algo de adverso está por acontecer-lhe esta noite, ele está ou bem-aventuradamente inconsciente disso ou serenamente indiferente. Contudo, agora não há ninguém na sala que esteja razoavelmente interessado em sua existência — ou não-existência, quanto à questão — de modo que podemos aguardar um pouquinho por aqui.
Encomendou uma garrafa de Krug de 1904 e recostou-se, com a maior placidez, na ampla poltrona junto à pequena mesa em que o vinho foi servido. Porém, apesar de seus modos lânguidos, eu sabia que ele estava tenso: isso para mim era óbvio pela maneira lenta, deliberada por que tirou o cigarro da boca e pôs as cinzas exatamente no centro do cinzeiro.
Mal acabáramos nosso champanha quando Morgan Bloodgood, surgindo de uma porta traseira, passou pelo bar a caminho do salão principal. Era alto, esbelto, testa ampla, nariz aquilino, lábios moles, queixo pontudo e orelhas proeminentes de lóbulos recuados. Os olhos eram duros e de um particular cinza-esverdeado, e tão fundos que pareciam em perpétua sombra. Cabelos finos e cor de areia; e tez pálida, completamente descorada. Mas não era um homem sem atrativos. Havia calma e frieza no conjunto de suas feições — uma imobilidade que dava a impressão de força latente e pensamentos profundos. Embora eu soubesse que ele mal chegara aos trinta, poderia facilmente passar por um homem de quarenta ou mais.
Ao avistar Vance, parou e cumprimentou agradável mas reservadamente:
— Vai tentar a sorte esta noite, Sr. Vance?
— Absolutamente... — replicou Vance, sorrindo apenas com os lábios. E acrescentou: — Tenho um novo sistema, sabe.
— Isso é amedrontador para a casa... — sorriu Bloodgood. — Baseado em Laplace ou em von Kries? (Pensei ter percebido uma ponta de sarcasmo em sua voz.)
— Oh! meu caro! — respondeu Vance. — Realmente! Eu raramente me meto com matemáticas: deixo isso para os peritos. Prefiro a simples máxima de Napoleão: "Je m'engage et puis je vois!"
— Isso é tão bom — ou tão mau — como qualquer outro sistema. No fim, tudo vem a dar no mesmo... — E passou para o Salão Dourado.
Através dos reposteiros entreabertos nós o vimos assumir seu lugar à roda da mesa central de roleta.
Vance depositou o copo e, acendendo cuidadosamente outro Régie, ergueu-se vagarosamente.
— Acho que chegou a hora... — murmurou, ao adiantar-se para a arcada que levava ao Salão Dourado.
Ao entrarmos no salão, abriu-se a porta do escritório de Kinkaid e ele apareceu. Vendo Vance, sorriu profissionalmente e cumprimentou-o num tom de amabilidade estereotipada:
— Boa noite. O senhor é quase um estranho aqui...
— Encantado por não haver sido inteiramente esquecido aqui, sabe... — retrucou Vance, agradàvelmente, acrescentando: — Especialmente porque um dos meus objetivos ao vir aqui hoje era falar-lhe.
Kinkaid se retesou quase imperceptivelmente, e perguntou com um sorriso frio e simulado ar de bom humor:
— Bem, está falando comigo, não?
— Oh! sim! — Vance também se tornou cordial. — Mas eu preferiria mil vezes falar-lhe em seu escritório particular.
Kinkaid olhou para Vance, estreitando os olhos. Vance lhe devolveu o olhar, sem deixar que o sorriso lhe fugisse dos lábios.
Sem uma palavra Kinkaid se voltou e reabriu a porta do escritório, colocando-se a um lado para que Vance e eu o precedêssemos. Seguiu-nos e fechou a porta atrás de si. Ficou de pé, rígido, esperando, olhos fixos em Vance. Este levou o cigarro aos lábios, tomou uma funda inalação e mandou para o teto um anel de fumo azulado.
— Poderíamos sentar-nos? — perguntou, casualmente.
— Naturalmente, se está cansado. — falou Kinkaid em voz metálica, o rosto era uma máscara inexpressiva.
— Muitíssimo obrigado — Vance ignorou a atitude do outro e sentou-se numa das poltronas de couro perto da porta, cruzando as pernas numa posição confortável.
A despeito das maneiras glaciais de Kinkaid, senti que o homem não antagonizava o seu hóspede: como jogador, estava assumindo uma defesa para o possível caso de alguma ameaça de natureza ainda desconhecida para ele. Sabia, como qualquer outra pessoa na cidade, que Vance era estreitamente — embora não oficialmente — associado ao procurador distrital; e ocorreu-me que Kinkaid provavelmente pensou que Vance viera como representante em alguma desagradável missão oficial. Sua reação a tal suspeita teria, naturalmente, sido essa atitude reservadamente beligerante.
Richard Kinkaid, apesar de sua aparência superficial de jogador profissional, era um homem inteligente e culto. Fora universitário brilhante e possuía dois diplomas acadêmicos. Falava fluentemente vários idiomas e, quando jovem, fora um arqueólogo de certa notoriedade. Escrevera dois livros sobre suas viagens ao Oriente, ambos podendo ser encontrados nas melhores livrarias.
Era grandalhão e, a despeito de sua tendência para a corpulência, era óbvia sua poderosa constituição. O cabelo cinza-aço parecia muito leve em contraste com a pele rude. Rosto oval, mas de feições um tanto rudes. Sobrancelhas largas e baixas, nariz curto e irregular, boca apertada e dura — um longo e estreito traço. Os olhos, entretanto, eram a característica notável de seu rosto: eram pequenos, parecendo os de alguém com o mal de Bright, de modo que as pupilas pareciam sempre acima dos centros das órbitas, dando-lhe uma expressão sardônica, quase sinistra. Havia astúcia, perseverança, sutileza, crueldade e indiferença em seus olhos.
De pé diante de nós nessa noite, uma das mãos pousando na bela secretária trabalhada perto da janela, a outra no bolso interno do dinner jacket, mantinha o olhar fixo em Vance, sem demonstrar aborrecimento nem preocupação; um perfeito "cara-de-pau".
Por fim, Vance falou:
— Desejava vê-lo hoje, Sr. Kinkaid, porque recebi uma carta esta manhã e me ocorreu que poderia interessá-lo, porquanto o seu nome era nela citado não muito afetuosamente. De fato, ela se refere intimamente a vários membros de sua família.
Kinkaid continuava a fitar Vance, sem mudar de expressão. Nem falou ou fez o menor movimento.
Por um momento, Vance contemplou o fim de seu cigarro. Depois disse:
— Penso que será melhor que a veja, pessoalmente. Retirou do bolso as duas páginas datilografadas e as entregou a Kinkaid, que as tomou indiferentemente e as abriu.
Observei-o rigorosamente enquanto lia. Não lhe apareceu nos olhos nenhuma nova expressão, seus lábios não se moveram, mas a cor de suas faces mudou perceptivelmente e, ao chegar ao fim, os músculos de seu rosto estremeciam espasmodicamente. Seu pescoço forte estufou por cima do colarinho, e manchas vermelhas nele se espalharam.
A mão que segurava a carta estremecia convulsivamente, como se estivessem tensos os músculos do braço; e lentamente ergueu os olhos até encontrar os de Vance.
— Bem, que significa isso? — perguntou de dentes cerrados.
Vance fez com a mão um leve gesto de rejeição, dizendo placidamente:
— Ainda não fiz a menor aposta. Apenas, aguardo.
— Suponha que eu não queira apostar? — retorquiu Kinkaid.
— Oh! perfeitamente! É seu privilégio... — Vance sorria glacialmente.
Kinkaid hesitou um momento; depois pigarreou e sentou-se na poltrona diante da secretária, colocando a carta diante de si. Depois de um minuto ou dois de silêncio golpeou a carta com os nós dos dedos e deu de ombros:
— Eu diria que isto é trabalho de algum excêntrico. — Seu tom era leve e desdenhoso.
— Não, não. Realmente, não, Sr. Kinkaid — Vance protestou brandamente. — Não poderia ser... não poderia ser absolutamente. O senhor escolheu o número errado... Por que não escolher outro palpite?
— Para o diabo! — explodiu Kinkaid. Balançou-se na cadeira giratória e olhou Vance com fria e penetrante ameaça. — Não sou nenhum danado detetive... O que tem a carta a ver comigo, afinal?
Vance não replicou. Em vez disso, enfrentou o olhar de Kinkaid com uma calma glacial — uma calma impessoal e devastadora. Nunca invejei a ninguém a tarefa de enfrentar o olhar de Vance. Havia em seu olhar, quando ele queria, um sutil poder psicológico a que a mais forte natureza não podia resistir.
Kinkaid, com toda a sua força mental, encontrara o seu igual. Ele soube que o olhar de Vance não se abaixaria nem mudaria; e na comunicação silenciosa entre os dois fortes adversários quando se miraram profundamente nos olhos uni do outro, Kinkaid capitulou.
— Muito bem — disse, com um sorriso bem-humorado. — Farei uma outra aposta — se isso pode ajudá-lo... — Deu outra olhada à carta. — Há muita verdade aqui. Seja quem for que escreveu isto, conhece bem a respeito da situação da família.
— Você sabe usar uma máquina de escrever, não? — perguntou Vance.
Kinkaid forçou uma risada:
— Tão mal como quem escreveu isto. — E indicou a carta.
Vance abanou a cabeça, com simpatia, observando:
— Também não sou bom nisso... Desagradável invenção, a máquina de escrever... Mas acha que alguém pretende ferir o jovem Llewellyn?
— Não sei, mas espero que sim — estalou Kinkaid, com um mau sorriso. — Ele merece a morte.
— Por que não faz isso você mesmo? — perguntou Vance casualmente.
Kinkaid riu à socapa desagradàvelmente.
— Já pensei nisso muitas vezes. Porém, ele não vale o risco.
— Mas, em público, você parece mais ou menos tolerante com seu sobrinho...
—- Preconceito de família, penso... A maldição do nepotismo. Minha irmã é doida por ele.
— Ele gasta tempo demais aqui no Cassino... — A observação era meio pergunta, meio afirmativa.
Kinkaid acenou com a cabeça:
— Tentando arranjar algum dinheiro de Kinkaid, já que sua mãe não lhe dá o bastante. E eu o animo. Por que não? Ele tem um sistema... Gostaria de que todos tivessem um sistema. Os jogadores a esmo, que 'jogam ao acaso, é que reduzem os lucros.
Vance fez a conversa voltar à carta:
— Acredita que haja uma tragédia iminente sobre sua família?
— Não há sempre alguma iminente sobre todas as famílias? — respondeu Kinkaid. — Mas, se algo vai acontecer a Lynn, espero que aconteça aqui no Cassino.
— De qualquer modo — persistiu Vance — a carta insiste em que eu viesse aqui esta noite e ficasse de olho no garoto.
Kinkaid sacudiu a mão:
— Descontarei isso.
— Mas você acaba de admitir que há muito de verdade na carta.
Kinkaid sentou-se imóvel, por algum tempo, os olhos — como dois pequenos discos brilhantes — fixos na parede. Por fim, inclinou-se para a frente e olhou diretamente para Vance:
— Serei franco com o senhor, Vance: tenho uma idéia bem nítida de quem escreveu tal carta. Simplesmente um caso de mania e covardia. Esqueça!
— Sim senhor! — murmurou Vance. — Isso é interessantíssimo! — Esmagou o cigarro, pegou da carta, tornou a dobrá-la e a pôs de volta no bolso. — Desculpe-me tê-lo perturbado... Mas creio que me demorarei um pouco.
Kinkaid não disse uma palavra nem se levantou, quando passamos ao Salão Dourado.
III - A PRIMEIRA TRAGÉDIA
(Sábado, 15 de outubro — 23:15 horas)
O Cassino começava a encher-se. Havia pelo menos uns cem "membros" jogando nas várias mesas e conversando em pequenos grupos. No grande salão havia uma atmosfera colorida, de festa, juntamente com um matiz de excitamento e tensão. Os assistentes japoneses, em costumes nativos, moviam-se rápida e silenciosamente em suas várias incumbências; e de cada lado da arcada de entrada havia, rígidos, dois atendentes uniformizados. Nenhum movimento, por mais inocente, de qualquer pessoa escapava aos olhos vigilantes dessas senti -nelas. Era uma reunião elegante; e não tive dificuldade em identificar muitas pessoas preeminentes dos círculos sociais e financeiros.
Lynn Llewellyn ainda estava sentado a um canto da sala de repouso, muito ocupado com lápis e um caderno de notas, e aparentemente alheado a toda a atividade que se desenrolava à sua volta.
Vance percorreu o salão, cumprimentando de passagem vários conhecidos. Deteve-se junto a uma mesa perto da janela da fachada e comprou algumas fichas. Atirou-as no "um", de cada vez dobrando até cinco, e depois recomeçando. Incrível quantos "uns" apareceram nos dados na "gaiola"; e após quinze minutos Vance havia ganho perto de mil dólares. Todavia, parecia inquieto, e recolheu seus ganhos indiferentemente. Voltando novamente ao centro do salão, caminhou para a mesa de roleta operada por Bloodgood. Durante várias rodadas ficou só observando; depois, sentou-se e reuniu-se ao jogo. Estava de frente para a sala de descanso. Ao tomar seu lugar à mesa, olhou casualmente naquela direção: Llewellyn continuava mergulhado em seus pensamentos.
Haviam sido feitas as escolhas para a próxima rodada — eram apenas cinco ou seis apostadores, na ocasião — e Bloodgood estava com a bola parada contra seu dedo médio no buraco da roleta, pronto a projetá-la em suas indeterminadas circunvoluções. Mas, por alguma razão, não a arremessou de imediato.
— Faites votre jeu, monsieur — disse, graciosamente, olhando Vance diretamente.
Vance virou a cabeça rapidamente e encontrou o sorriso levemente cínico de Bloodgood.
— Muito obrigado pelo aviso pessoal — disse, com exagerada cortesia; e, inclinando-se mais sobre a mesa na direção da roleta, colocou uma nota de cem dólares na área verde marcada "O" ao cimo das três colunas de algarismos. — Meu sistema me aconselha a jogar, hoje, no "número da casa".
Desapareceu o fraco sorriso de Bloodgood e suas sobrancelhas se ergueram. Então girou a roda destramente.
Foi uma rodada longa, pois a bola, atirada com forte ímpeto, dançou para diante e para trás durante algum tempo por entre as ranhuras da roleta e os lados do bojo. Por fim, pareceu estabilizar-se num dos compartimentos numerados, embora a roda ainda rodasse rapidamente demais para permitir a leitura dos números; mas pulou outra vez, deu um ou dois giros, e finalmente parou no local verde — o "número da casa".
Houve um sussurro em torno da mesa, enquanto o rodo raspava todas as outras apostas; porém, enquanto eu observava cuidadosamente o rosto de Bloodgood, não pude notar a mais leve mudança de expressão: era o perfeito crupiê, sem emoções.
.— Seu sistema parece funcionar... — observou ele a Vance, enquanto retirava uma aposta de trinta e cinco fichas amarelas. — Vous vous engagez, et puis vous voyez... Mais, qu'est-ce que vous espérez voir, monsieur{6}?
— Não tenho a menor idéia — retrucou Vance, reunindo suas fichas. — Não estou esperando... Eu vou à deriva...
— De qualquer modo, está de sorte esta noite — sorriu Llewellyn.
— Acho que sim... — Vance pôs no bolso os seus ganhos e afastou-se da mesa.
Dirigiu-se lentamente para a sala de carteados, deteve-se à entrada, e então caminhou para o jogo do vinte-e-um, que se desenrolava numa mesa semicircular, a apenas alguns metros da sala de repouso. Havia duas cadeiras vagas de frente para o vestíbulo, mas Vance esperou. O carteador sentava numa pequena plataforma elevada, e quando o apostador a seu lado abandonou seu assento, Vance tomou a cadeira vaga. Notei que, dessa posição, ele podia perfeitamente observar Llewellyn.
Ele colocou uma ficha amarela na seção apainelada da mesa à sua frente e uma carta lhe foi distribuída. Deu-lhe uma olhadela: de pé atrás dele, vi que era um ás de paus. A carta que lhe foi distribuída a seguir foi outro ás.
— Interessante isso, Van — observou-me, por cima do ombro. — Os "uns" me estão perseguindo esta noite...
Virou seu primeiro ás e deixou o outro ao lado desse, colocando sobre ele outra ficha amarela. Ele foi o último a ser servido pelo carteador e, para meu espanto, ele tirou duas figuras: um valete e uma rainha. Esta combinação de um ás e uma figura constitui um sucesso absoluto, e Vance tirou duas delas numa só mão. Os pontos totalizavam dezenove.
Vance ia apostar a segunda mão, quando Llewellyn se levantou com determinação do canto em que estava sentado e aproximou-se de Bloodgood na mesa da roleta com o bloco de notas em mão. Em vez de continuar o jogo, Vance novamente pegou seus ganhos, escorregou de sua cadeira alta e caminhou ociosamente para o centro da sala, tomando lugar atrás da fila de cadeiras ao lado da mesa de roleta oposto àquele em que Llewellyn se sentara.
Lynn Llewellyn era de estatura média e esbelto. Olhos azuis e, embora se movessem com rapidez, não mostravam animação. Entretanto, sua boca era emotiva e móbil. Seu rosto fino dava a impressão de fraqueza e argúcia, porém era um rosto capaz — um rosto que certo tipo de mulher poderia considerar belo.
Ao sentar-se, olhou em volta vivamente, cumprimentou Bloodgood e os demais presentes, mas aparentemente não viu Vance, embora este estivesse de pé diretamente do outro lado da mesa. Observou o jogo por vários minutos, anotando os números vencedores no caderninho que colocara diante de si, na mesa. Após cinco ou seis rodadas, começou a mostrar desagrado e, virando-se na cadeira, chamou um dos serventes japoneses que ia passando:
— Scotch, e traga também um copo dágua.
Enquanto a bebida vinha, ele continuava suas anotações. Por fim, quando três números da mesma coluna apareceram sucessivamente, ele começou avidamente a jogar. Quando o rapaz trouxe o uísque, despachou-o bruscamente e se concentrou no jogo.
Na primeira meia hora em que o observamos, tentei determinar alguma seqüência matemática em sua escolha de números, porém, não tendo êxito, desisti. Soube mais tarde que Llewellyn estava jogando uma curiosa e, segundo Vance, inteiramente inconsistente e contraditória variação do sistema Labouchère — ou, como é popularmente chamado, Labby — que, durante muitos anos, fora meticulosamente testado em Monte Cario.
Contudo, ainda que o sistema haja sido considerado inadequado cientificamente, Llewellyn estava tirando vantagem dele. Realmente, se ele seguisse suas vantagens, como o costume do jogador amador, teria, como aconteceu, progredido mais rapidamente. Porém, cada vez que pegava um número (en plein) ou um meio número (à cheval) ou um quarto de número (en carré), retirava seus ganhos em proporção à sua duplicação, multiplicando apenas quando a sorte era contra ele. Após quase cada jogada, relanceava os olhos rapidamente às tabelas cuidadosamente alinhadas e colunas de algarismos do caderninho; e era óbvio que, a despeito da tentação de fazer de outra maneira, persistia rigidamente na fórmula que decidira seguir.
Pouco depois da meia-noite, quando uma de suas séries de dublagem alcançara o máximo, veio o número certo. O resultado foi um lucro enorme, e quando conferiu as seis pilhas de fichas amarelas, tomou fôlego tremulamente e recostou-se em sua cadeira. Calculei, assim por alto, de que tinha à sua frente aproximadamente dez mil dólares. Logo espalhou-se o boato de sua sorte, e os outros jogadores na sala se reuniram, curiosos, em redor dele e da mesa de Bloodgood.
Relanceei o olhar em volta e notei as várias expressões dos espectadores: algumas eram cínicas, outras invejosas, algumas apenas interessadas. Bloodgood não dava indicação, por um olhar ou uma inflexão de voz, de que algo de invulgar estivesse acontecendo: era o autômato infalível, desempenhando seus deveres com precisão mecânica.
Quando Llewellyn relaxou em seu assento após esse golpe, ele relanceou o olhar e, percebendo o olhar de Vance, inclinou a cabeça, abstrato. Ainda estava ocupado com seus cálculos e computações, anotando cada volta da roda e registrando em seu caderno o número vencedor. Seu rosto se tornara vermelho, e os lábios se moviam nervosamente enquanto anotava os algarismos. Suas mãos tremiam visivelmente, e de momento a momento respirava profundamente, como tentando acalmar os nervos. Uma ou duas vezes notei que jogava para frente o ombro esquerdo e curvava a cabeça para a esquerda, como um homem com angina do peito tentando aliviar a dor em seu coração.
Depois que passou a sexta jogada, Llewellyn se curvou para a frente e continuou seu cuidadoso sistema de selecionar e empilhar. Desta vez notei que introduzia algumas novas variações em seu método. Fez o que é conhecido como "cobrir" suas apostas, colocando o mesmo dinheiro no preto e no vermelho contra a cor do número que escolhera, e opondo a première, milieu, ou dernière douzaine contra o particular grupo de doze no qual fizera sua escolha numérica en plein, bem como utilizando tanto os pares como os ímpares (pair e impair), e o alto e o baixo (passe e manque), da mesma maneira. Essa mímica — murmurou-me Vance ao ouvido — não está nos livros. Ele está perdendo a ousadia e adotando tanto o sistema de d'Alembert como o Montant Belge. Porém, realmente ele não se importa a mínima. Se tem sorte, ganhará de qualquer maneira; e se não, perderá. Sistemas são para otimistas e sonhadores. Permanece o fato imutável de que a casa paga trinta e cinco a um contra trinta e seis possibilidades e um anexo "número da casa". Isso é destino... ninguém pode com ele.
Mas a sorte de Llewellyn na roleta estava evidentemente a seu favor nessa noite, pois pouco tempo depois ganhou outra vez num número em pirâmide. Quando puxou para si as fichas, suas mãos tremiam tanto que ele virou uma das apostas e teve dificuldade em reagrupá-la. Novamente recostou-se em sua cadeira e deixou passar os seguintes jogos. Escureceu-lhe a cor da pele, os olhos ficaram com um brilho fora do natural e os músculos da face começaram a repuxar-se. Esgazeou o olhar em torno, inexpressivamente, e sentiu falta de um dos números que aparecera na roda, de modo que teve de perguntar por ele a Bloodgood, a fim de manter completas suas anotações no caderninho.
A tensão se apossara dos espectadores. Uma estranha calmaria substituíra a conversa geral. Todos pareciam observar as conseqüências desse antiqüíssimo conflito entre um homem e as insondáveis leis da probabilidade. Llewellyn ali estava sentado com uma fortuna em fichas empilhada em sua frente. Alguns mil dólares a mais e a banca "quebraria"; pois Kinkaid destinara nessa noite um capital de quarenta mil dólares para essa mesa.
Durante o silêncio cheio de eletricidade que subitamente se instalara no salão, apenas quebrado pelo zumbido da bola giratória, o retinir das fichas e a monótona voz de Bloodgood, Kinkaid saiu do escritório e se aproximou da mesa. Parou ao lado de Vance, e indiferentemente observou o jogo por alguns momentos.
— Evidentemente, esta é a noite de Lynn — falou, casualmente.
— Sim, é mesmo... — Vance não tirou os olhos da nervosa e trêmula figura de Llewellyn.
Nesse momento Llewellyn apanhou outra en plein, porém tinha apenas uma ficha sobre o número. Contudo, isso marcava o fim de um ciclo matemático, segundo seu confuso sistema; e, retirando suas fichas, recostou-se na cadeira uma vez mais. Respirava pesadamente, como se não pudesse captar ar suficiente para seus pulmões; e novamente forçou o ombro esquerdo para diante.
Passava um servente japonês e Llewellyn o agarrou:
— Scotch — ordenou outra vez e, com aparente esforço,, anotou o número vencedor em seu caderno.
— Ele esteve bebendo muito esta noite? — Kinkaid perguntou a Vance.
— Há algum tempo atrás mandou vir um uísque, mas não o tomou — respondeu Vance. — Este será o primeiro, tanto quanto sei.
Poucos minutos depois o boy colocou ao lado de Llewellyn uma pequena bandeja de prata com um copo de uísque, um copo vazio e uma garrafinha de água tônica. Bloodgood acabara de pôr a roleta a girar, e relanceou o olhar para a bandeja. Chamou o boy:
— Mori! O Sr. Llewellyn toma água pura.
O japonês voltou, colocou o uísque na mesa diante de Llewellyn e, levando de volta a bandeja com a água tônica, afastou-se. Ao aproximar-se do fim da mesa, Kinkaid disse-lhe:
— Pode apanhar a água da garrafa em meu escritório. O rapaz acenou que sim e apressou-se.
— Lynn precisa de um gole e depressa... — Kinkaid observou a Vance. — Não adianta querer detê-lo... O maluco! Estará sem um dólar quando chegar a casa esta noite.
Como para dar razão à profecia de Kinkaid, Llewellyn fez uma grande aposta e perdeu. Enquanto consultava seu caderninho quanto ao número seguinte, o boy voltou e colocou perto dele um copo de água pura. Llewellyn esvaziou de um só gole seu copo de uísque e imediatamente bebeu a água. Empurrando para o lado os copos vazios, fez a jogada seguinte.
Perdeu novamente. Então, redobrou, e tornou a perder. Estava jogando Preto 20 e Vermelho 5, e no seguinte turno dividiu ao meio sua primeira aposta entre Vermelho 21 e Preto 4. Veio o "onze". Ele então dividiu em quatro, jogando 17, 18, 20 e 21 numa aposta, e 4, 5, 7 e 8 em outra. Repetiu-se o "onze".
Quando Bloodgood raspara as fichas, Llewellyn ficou sentado olhando o verde, sem se mover. Durante cinco minutos completos assim permaneceu, deixando os jogos se sucederem sem lhes dar a mínima atenção. Uma ou duas vezes esfregou as mãos nos olhos e sacudiu a cabeça violentamente, como se fosse presa de certa confusão mental.
Vance se adiantara um passo e o observava atentamente, e Kinkaid, também, parecia profundamente preocupado com o procedimento de Llewellyn. De tempos a tempos, Bloodgood lhe lançava um olhar, mas sem qualquer indicação de algo mais que um interesse casual.
Já então o rosto de Llewellyn estava escarlate, ele apertava as têmporas com as palmas das mãos e respirava fundo, como um homem a quem a cabeça pulsa de dor e que se sente sufocado.
Subitamente, como se fizesse um esforço enorme, ergueu-se, virando a cadeira e afastou-se da mesa. As mãos caíam ao longo do corpo. Deu dois ou três passos, cambaleou e caiu ao chão, num amontoado todo torcido.
Seguiu-se uma confusão, e vários dos jogadores que haviam estado ao lado de Llewellyn à mesa se aglomeraram sobre o homem prostrado. Porém dois dos serventes uniformizados à entrada adiantaram-se apressadamente e, abrindo caminho a cotoveladas por entre os espectadores, levantaram Llewellyn e o carregaram para o escritório de Kinkaid. Este já estava à porta, segurando-a para que pudessem entrar com o homem desmaiado.
Vance e eu os seguimos até o escritório antes que Kinkaid tivesse tempo de fechar a porta.
— Que desejam aqui? — estalou Kinkaid.
— Quero ficar aqui um pouco — replicou Vance em voz firme e gelada. — Ponha isso à conta de curiosidade, se deve ter uma razão.
Kinkaid bufou e fez sinal aos portadores para que saíssem.
— Venha cá, Van — pediu Vance. — Ajude-me a pôr o rapaz nesta cadeira.
Pusemos Llewellyn na cadeira, e Vance inclinou-lhe o corpo para diante de modo a que a cabeça ficasse entre os joelhos. Observei que o rosto de Llewellyn perdera toda a cor e estava agora mortalmente branco. Vance tomou-lhe a pulsação e virou-se para Kinkaid, que permanecia rígido junto à escrivaninha, com um sorriso escarninho.
— Você tem sais de cheirar? — perguntou Vance.
Kinkaid puxou uma das gavetas da secretária e entregou a Vance uma garrafinha verde que Vance pegou e pôs sob as narinas de Llewellyn.
Nesse momento, Bloodgood abriu a porta do escritório, entrou e a fechou rapidamente.
— Que aconteceu? — perguntou a Kinkaid. Havia uma nota de alarma em seu rosto.
— Volte ao seu posto — ordenou Kinkaid, zangado. — Não há nada... Um homem não pode desmaiar?
Bloodgood hesitou, olhou interrogativamente Vance, deu de ombros e se foi.
Vance tornou a tomar o pulso a Llewellyn, forçou-lhe a cabeça para baixo e, erguendo uma das pálpebras, examinou-lhe o olho. Então colocou Llewellyn no chão e pôs-lhe sob a cabeça uma almofada chata.
— Ele não desmaiou, Kinkaid — disse Vance, erguendo-se e olhando severamente o outro. — Foi envenenado...
— Bolas! — A palavra saiu guturalmente.
— Conhece algum médico nas vizinhanças? — O tom de Vance era significativamente calmo.
Kinkaid suspendeu a respiração:
— Há um aqui vizinho. Mas...
— Mande buscá-lo. — ordenou Vance. — E depressa!
Por um momento Kinkaid permaneceu rígido, ressentido com a ordem; depois virou-se para a secretária e discou um número. Após um momento, pigarreou e falou numa voz forçada:
— Dr. Rogers?... Aqui é Kinkaid. Houve um acidente. Venha imediatamente... Obrigado.
Recolocou o fone e voltou-se para Vance, com uma praga, e falou, furiosamente:
— Uma bela encrenca!
Dirigiu-se a uma pequena estante ao lado da mesa, onde havia um serviço de água, de prata, virando a garrafa em um dos copos de cristal. A garrafa estava vazia.
— Diabo! — rosnou. Apertou o botão da campainha. — Vou tomar um brandy. E você? — perguntou a Vance, olhar enviesado.
— Muitíssimo obrigado! — murmurou Vance.
Abriu-se a porta que dava para o bar e apareceu um servente.
— Courvoisier — ordenou Kinkaid. — E encha esta garrafa — acrescentou, apontando o serviço de água.
O homem pegou a garrafa e voltou ao bar. (À vista do corpo de Llewellyn no chão, teve um impulso para aproximar-se, mas não o fez: Kinkaid escolhia seu pessoal com astuta discriminação.)
Ao ser trazido o conhaque e servido, Kinkaid bebeu o dele de um só gole. Vance ainda bebericava o dele quando um dos homens uniformizados do vestíbulo de recepção bateu à porta e fez entrar o médico, um cavalheiro rotundo com um benevolente rosto de criança.
— Ali está seu paciente — falou Kinkaid desagradavelmente, apontando para Llewellyn. — Qual o veredicto?
O Dr. Rogers ajoelhou ao lado da figura deitada, resmungando enquanto o fazia:
— Sorte terem-me apanhado...
Fez um exame rápido: olhou as pupilas de Llewellyn, pôs-lhe o estetoscópio no coração, e sentiu-lhe os pulsos e a nuca. À medida que trabalhava fazia várias perguntas referentes aos antecedentes da atual condição de Llewellyn. Vance é que respondia, descrevendo o nervosismo de Llewellyn à mesa de roleta, sua cor vermelha e súbita prostração.
— Parece um caso de envenenamento — falou o Dr. Rogers a Kinkaid, abrindo seu estojo e preparando uma injeção hipodérmica. — Ainda não posso dizer do que se trata. Ele está em estado letárgico. Pulso curto, acelerado, respiração rápida, superficial; pupilas dilatadas... todos os sintomas de uma toxemia aguda. O que me disse a respeito da vermelhidão, dos cambaleios e do colapso; e agora a palidez... tudo indica certo tipo de veneno. Apliquei-lhe uma injeção de cafeína: é tudo que posso fazer aqui... — Ergueu-se pesadamente e pôs a seringa na maleta. — Devem levá-lo imediatamente para o hospital: precisa de tratamento heróico. Chamarei uma ambulância... — E dirigiu-se ao telefone.
Kinkaid adiantou-se: voltara a ser o jogador frio, impassível.
— Leve-o para o hospital mais próximo... o melhor que conheça — disse, em tom comercial. — Cuidarei de todos os detalhes.
O Dr. Rogers assentiu:
— O Park End... fica nas vizinhanças. — E pôs-se a discar, desajeitadamente.
Vance dirigiu-se à porta:
— Estarei por aí mesmo... — Sua expressão era severa; olhou Kinkaid, um longo, significativo olhar: — Interessante a carta que recebi, hem, Kinkaid?... Adeusinho!
Poucos minutos mais tarde estávamos na Rua 73. Era uma noite bem fria, e começava a cair um chuvisco gelado.
O carro de Vance estava estacionado a alguns metros do Cassino e, ao nos encaminharmos para ele, os detetives Snitkin e Hennessey{7} surgiram do portal de uma casa próxima.
— Tudo bem, Sr. Vance? — perguntou Snitkin, numa voz sepulcral.
— Santo Deus! — exclamou Vance. — Que estão vocês fazendo aqui numa noite como esta?
— O sargento Heath{8} nos mandou aqui para patrulhar em volta do Cassino, caso o senhor precisasse de nós — explicou Snitkin. — O sargento disse que o senhor esperava algo de "brabo" por aqui.
— Realmente! Disse, não? Muito engraçado! — Vance parecia embaraçado. — Inteligente garoto, o sargento!... Todavia, tudo já está sob controle. Estou gratíssimo pela sua vinda, mas não há razão para permanecerem por aqui. Eu mesmo já estou indo para a cama...
Porém, em vez de ir para casa, fomos ao apartamento de Markham.
Para minha surpresa, Markham ainda estava de pé e nos recebeu cordialmente no salão{9}. Depois de nos sentarmos confortàvelmente, Vance virou-se para ele, com ar interrogativo:
— Snitkin e Hennessey estavam-me guardando como bons meninos esta noite. Por acaso, pode dizer-me a razão para tão solícito devotamento?
Markham sorriu, ligeiramente encabulado, e explicou:
— A verdade é, Vance, que depois que você saiu de casa esta noite comecei a pensar que, afinal, devia haver algo de suspeito naquela carta; telefonei ao sargento Heath e lhe contei — tanto quanto me lembrava — o que havia nela. Disse-lhe também que você decidira ir ao Cassino esta noite para vigiar o jovem Llewellyn. Pensei que seria bom mandar um par de rapazes, para estar à mão caso houvesse alguma verdade na carta.
— Isso explica tudo — disse Vance. — Entretanto, não houve necessidade de guarda pessoal. Porém a carta provou ser espantosamente profética.
— Que foi que disse? — Markham deu uma volta completa na cadeira giratória.
— Sim, sim! Uma epístola que era um prognóstico! Lynn Llewellyn foi envenenado diante dos meus olhos.
Markham pulou:
— Morto?
— Não estava quando o deixei. Mas não fiquei esperando. — Vance estava pensativo. — Estava em más condições... Está sob os cuidados do Dr. Rogers, no Hospital Park End... Diabólica situação! Sinto-me confuso! — Também ele se levantou. — Espere um momento. — Foi à cabina, e eu o ouvi telefonando.
Daí a pouco voltou:
— Acabo de falar com o atarracado esculápio no hospital: Llewellyn está na mesma — só que sua respiração está mais lenta e mais superficial. A pressão baixou para setenta a cinqüenta, e está tendo movimentos convulsivos... Está sendo feito todo o possível: adrenalina, cafeína, digitális, e lavagem gástrica via nasal. Claro, não há ainda diagnóstico positivo. Uma verdadeira mistificação, Markham...
Justamente nesse momento o telefone tocou e Markham atendeu. Um minuto depois ele surgiu: pálido e com a fronte enrugada. Veio até a mesa do centro, como um homem estupidificado. Murmurou:
— Vance, por Deus! Algo diabólico está acontecendo! Era Heath ao telefone. Acabou de chegar um chamado à delegacia. Heath contou-me... por causa daquela carta, penso...
Deteve-se, olhar perdido no espaço. Vance olhou-o com curiosidade:
— E, por favor, o que disse o sargento?
Markham, como se o fizesse com esforço considerável, voltou os olhos para Vance:
— A jovem esposa de Llewellyn está morta... envenenada!
IV - O QUARTO DA MOÇA ASSASSINADA
(Domingo, 16 de outubro — 1:30 hora)
As sobrancelhas de Vance se ergueram.
— Céus! Por essa eu não esperava! Entretanto... há um padrão... Ouça, Markham por acaso o sargento disse a que hora a moça morreu?
— Não — Markham sacudiu a cabeça, abstratamente. — Ao que parece, primeiro chamaram um médico; depois, telefonaram para a polícia. Podemos supor que a morte ocorreu há cerca de meia hora...
— Meia hora! — Vance bateu no braço de sua poltrona, rufando os dedos. — Exatamente na ocasião em que Lynn caiu... Simultaneidade, hem?... Esquisito... diabòlicamente esquisito... Nenhuma outra informação?
— Não, nada mais. Heath estava apenas esperando um carro com alguns dos rapazes, para dirigir-se para a mansão dos Llewellyns. Provavelmente telefonará outra vez quando chegar lá.
Vance atirou o cigarro na lareira e levantou-se:
— Não devíamos estar aqui — falou, com entonação zangada, voltando-se para Markham. — Vamos para Park Avenue descobrir por nós mesmos. Não estou gostando disso, Markham... não estou gostando absolutamente. Há em andamento algo de diabólico e sinistro — e anormal... Senti isso ao ler aquela carta pela primeira vez. Algum terrível assassino está à solta: esses dois envenenamentos podem ser apenas o começo. O envenenador é o pior dos criminosos: nunca se sabe até onde pode ir... Vamos.
Raramente eu havia visto Vance tão perturbado e insistente; e Markham, sentindo a força de sua resolução e seus temores, permitiu, sem protesto, ser levado no carro de Vance à antiga mansão dos Llewellyns em Park Avenue.
O casarão, de arenito castanho-avermelhado, era alguns metros recuado da Avenida. Uma grade de ferro toda em arabescos, com um enorme portão, se estendia ao longo de todo o terreno, de cerca de 15 a 20 metros de comprimento; e a passagem entre os edifícios não era pavimentada, e sim cercada por uma sebe viva, duas ordens de ciprestes; e dois canteiros de flores, um de cada lado do passeio lajeado, levavam até a maciça porta de carvalho.
Ao chegarmos à casa dos Llewellyns, já a polícia estava lá. Dois policiais uniformizados, do distrito policial local, estavam de vigia na área externa. Ao reconhecerem o procurador distrital, cumprimentaram e se adiantaram:
— O sargento Heath e alguns dos rapazes da Divisão de Homicídios acabaram de chegar, Chefe — um deles explicou a Markham, apertando o botão da campainha da porta.
A porta da frente foi aberta imediatamente por um homem alto, magro e muito pálido, vestindo casaca e seus acessórios.
— Sou o procurador distrital — disse-lhe Markham — e desejo falar ao sargento Heath. Chegou há poucos momentos, creio.
O homem curvou-se tesamente, com exagerada dignidade:
— Certamente, senhor — falou, com acento levemente cockney.
— Tenha a bondade de entrar, senhor... Os policiais estão lá em cima... nos aposentos da Sra. Lyn Llewellyn, ao fim do vestíbulo. Sou o mordomo e recebi ordens de permanecer aqui, na porta. (A última observação era sua desculpa por não nos acompanhar.)
Passamos por ele e subimos a ampla escada circular, brilhantemente iluminada. Ao alcançarmos o primeiro patamar, o detetive Sullivan, de guarda no vestíbulo acima, cumprimentou Markham:
— Alô, Chefe! O sargento ficará satisfeito com a sua vinda. Parece um caso bem sujo... — E mostrou o caminho para o vestíbulo.
Na ala sul da casa, Sullivan abriu-nos uma porta. Entramos num quarto amplo, quase quadrado, teto alto e uma lareira esculpida à moda antiga; pesados reposteiros de uma era passada pendiam das altas janelas trancadas. O mobiliário — Império — parecia autêntico e caríssimo; nas paredes, quadros preciosos que poderiam honrar qualquer museu de arte.
Na alta cama de dossel, à nossa esquerda, jazia a figura imóvel de uma mulher de cerca de trinta anos. A colcha de seda fora parcialmente atirada para trás e ambos os braços estavam puxados por cima da sua cabeça. Seu cabelo fora escovado simplesmente para trás, cobertos por uma rede atada em sua nuca.
O rosto, sob uma camada de creme recentemente aplicada, estava azulado e manchado, como se tivesse morrido numa convulsão; os olhos, escancarados e fixos. Era uma visão de gelar o sangue.
O sargento Heath, dois membros da Divisão de Homicídios — detetives Burke e Guilfoyle — e o tenente Smalley, da estação local, estavam no quarto. O sargento sentara ante a mesa de mármore do centro, seu bloco de notas diante de si.
De frente para a mesa estava uma mulher alta e vigorosa de cerca de sessenta anos, rosto aquilino de feições fortes. Topava de leve os olhos com um lencinho de renda. Embora jamais a houvesse visto, reconheci-a de retratos de jornais, onde aparecia de tempos a tempos: era a Sra. Anthony Llewellyn.
Junto dela, uma jovem que se parecia singularmente com Lynn Llewellyn, e corretamente julguei fosse Amélia Llewellyn, a irmã de Lynn. Seu cabelo escuro era repartido ao meio e posto por trás das orelhas num coque baixo. O rosto, como o de sua mãe, era forte e aquilino, de marcante dureza e uma expressão quase desdenhosa. Olhou-nos de relance, ao entrarmos, com um olhar frio e indiferente. Ambas usavam roupões acolchoados, de seda, em f ei tio de quimonos.
Diante da lareira estava de pé um homem nervoso, esbelto, de uns trinta e cinco anos, em toalete de jantar, fumando um cigarro preso a uma longa piteira de marfim. Logo soubemos tratar-se do Dr. Allan Kane, um amigo da Srta. Llewellyn, que morava a um quarteirão de distância da casa dos Llewellyns, e fora chamado pela moça. O Dr. Kane é que informara a polícia a respeito da morte da jovem Sra. Llewellyn. Apesar de agitado, Kane tinha um aspecto de seriedade profissional. Tinha o rosto avermelhado e repousava o peso do corpo ora num pé ora noutro; mas seu olhar era direto e avaliativo enquanto nos media um a um.
O sargento Heath ergueu-se e nos cumprimentou, ao entrarmos.
— Estava esperando que viesse, sr. Markham — disse, com ar de alívio. — Mas não o Sr. Vance. Pensei que estivesse no Cassino.
— Eu estava no Cassino, sargento — afirmou Vance, em voz baixa e séria. — E obrigado por Snitkin e Hennessey, mas não precisei...
— Lynn! — O nome, como um gemido agônico, rompeu a triste atmosfera do quarto. Viera dos lábios da Sra. Llewellyn; voltou-se para Vance, apreensiva: — Viu meu filho lá? Ele está bem?
Vance olhou a senhora por vários minutos, como que a decidir o que responder. Então disse, com simpatia e determinação :
— Lamento, senhora, mas seu filho também foi envenenado...
— Meu filho está morto?... — A intensidade de suas palavras me fez correr um frio pela espinha.
Vance sacudiu negativamente a cabeça, olhando atentamente a angustiada mulher:
— Não até as últimas notícias. Está sob cuidados médicos, no Hospital Park End...
— Tenho de ir para junto dele! — gritou, querendo sair do quarto. Porém Vance a deteve gentilmente:
— Não; agora, não, por favor. Não lhe faria bem, e a senhora é necessária aqui agora. Daqui a pouco pedirei notícias ao hospital, para a senhora... Lamento ter de dar-lhe notícia tão triste, senhora; mas teria de saber, mais cedo ou mais tarde... Por favor, sente-se e nos ajude.
A mulher impertigou-se, numa atitude espartana:
— Nunca se dirá que nós, Llewellyns, não cumprimos nosso dever — anunciou, em voz austera; e sentou-se rigidamente numa cadeira aos pés da cama.
Amélia Llewellyn estivera observando a mãe, com céptica indiferença:
— Muito nobre... — comentou, dando de ombros. — Nós, Llewellyns... o habitual abracadabra. "Firmitas et fortitudo", o moto da família. Um grifo rampant ou sejant ou couchant — esqueci qual. De qualquer modo, o grifo é uma criatura quimérica. Completa característica de nossa família: capaz de tudo... e de nada.
— Talvez o grifo dos Llewellyns seja segreant — sugeriu Vance, olhando firme para a moça.
Ela susteve a respiração, devolveu o olhar a Vance por alguns segundos, e respondeu sèpticamente:
— Pode ser... Os Llewellyns são, antes de mais nada, excêntricos.
Vance continuou a olhá-la severamente, e após um momento ela caminhou até ele, com um sorriso meio torcido.
— Assim, o queridinho Lynn — filho modelar — também foi envenenado? — disse, e o sorriso lhe desapareceu da boca. — Alguém está evidentemente determinado a fazer um lindo trabalho conosco... Não ficaria surpresa se eu fosse a próxima... Há dinheiro demais, dinheiro podre, nesta família.
Lançou um olhar de sarcasmo à sua mãe, que a observava iradamente; depois, sentando-se à borda da mesa, acendeu um cigarro.
Markham estava impaciente e aborrecido:
— Continue com seu serviço, sargento — ordenou bruscamente. — Quem encontrou esta jovem mulher? — Sacudiu a mão, com desagrado, na direção da cama.
— Fui eu. — Amélia Llewellyn se tornara séria, e seu peito arfava com emoção.
— Ah! — Vance sentou-se e estudou a moça, zombeteiramente. — Suponhamos que nos conte as circunstâncias, senhorita.
— Todos fomos para a cama por volta das onze — ela começou. — Tio Dick e o Sr. Bloodgood tinham ido para o Cassino logo depois do jantar. Lynn os seguiu cerca de uma hora mais tarde. E Allan — o Dr. Kane, aqui — tinha de dar alguns telefonemas e saiu com Lynn...
— Um momento! — interrompeu Vance, erguendo a mão. — Pelo que sei, o jantar desta noite era mais ou menos um negócio de família. Estava presente o Dr. Kane?
— Sim, ele estava aqui. — A moça assentiu amargamente. — Eu sabia o que significava outro desses jantares de aniversário: disputas, recriminações, briga geral. E eu estava nervosa. Assim, no último minuto, pedi ao Dr. Kane que viesse jantar, na esperança de que sua presença acalmasse os ânimos. Claro, Morgan Bloodgood também estava aqui, porém ele é, realmente, como da família. Não hesitamos em ventilar nossas diferenças em sua presença.
— E adiantou alguma coisa a presença do Dr. Kane?
— Não — ela replicou. — Havia muita paixão reprimida a que se precisava dar vazão...
Vance hesitou, mas depois continuou seu interrogatório:
— Então Lynn e seu tio e os outros partiram; e a senhorita, sua cunhada e sua mãe se recolheram lá pelas onze. Que aconteceu então?
— Eu estava cansada e inquieta e não podia dormir. Levantei-me por volta de meia-noite e comecei a desenhar. Trabalhara por uma hora, mais ou menos, e acabava de resolver deitar-me novamente quando ouvi Virgínia gritar, numa voz histérica. Meu quarto é nesta ala da casa, e os dois apartamentos são separados apenas por um estreito corredor que uso como armário de roupas. — Com um movimento de cabeça indicou uma porta ao fundo do quarto.
— Poderia ouvir sua cunhada com as duas portas e o guarda-roupa entre vocês? — perguntou Vance.
— Comumente, não; porém eu havia acabado de entrar no armário para pendurar meu roupão.
— E o que fez então?
— Parei na porta para ouvir, e Virgínia gritava como se estivesse asfixiada. Tentei o trinco. A porta não estava trancada...
— Era raro que essa porta não estivesse trancada? — interrompeu Vance.
— Não. De fato, raramente era trancada. — Continue, por favor!
— Bem, Virgínia estava na cama, como está agora. Os olhos, arregalados; o rosto, terrivelmente vermelho; e estava numa horrível convulsão. Corri para o patamar e chamei mamãe. Mamãe acorreu e olhou-a. "Chame um médico, Amélia", disse; e imediatamente telefonei ao Dr. Kane. Mora aqui pertinho e veio imediatamente. Enquanto eu telefonava, Virgínia pareceu desmaiar. Tornou-se dura... dura demais. Eu... eu soube que ela havia morrido... A moça estremeceu involuntariamente e sua voz diminuiu lentamente.
— E depois, Dr. Kane? — Vance se voltara para o homem apoiado à lareira.
Kane adiantou-se, nervosamente: sua mão tremia ao tirar a piteira da boca.
— Quando cheguei, senhor, poucos minutos depois — começou, com estudado ar de dignidade profissional — a Sra. Llewellyn — Sra. Lynn Llewellyn, quero dizer, naturalmente — estava morta. Os olhos estavam esbugalhados; as pupilas tão dilatadas que dificilmente se distinguiria a retina; e estava coberta com uma erupção de pele semelhante à escarlatina. Pareceu ter uma alta de temperatura post mortem, e a posição de seus braços e a distorção dos músculos faciais e cervicais indicavam que tivera uma convulsão e morreu de asfixia. Os sintomas são de algum veneno do grupo da beladona — hioscina, atropina, ou escopolamina. Não mexi no corpo e preveni a Sra. Llewellyn e sua filha que não o tocassem. Telefonei imediatamente para a polícia.
— Correto! — murmurou Vance. — E então o senhor esperou pela nossa chegada?
— Naturalmente! — Kane recuperara muito do seu autocontrole, embora ainda estivesse vermelho e respirasse pesadamente.
— E nada no quarto foi tocado?
— Nada. Estive aqui todo o tempo, e a Sra. e a Srta. Llewellyn esperaram aqui comigo.
Vance assentiu lentamente:
— A propósito, doutor: usa uma máquina de escrever? Kane teve um movimento de surpresa, e gaguejou:
—... Sim! Costumava datilografar meus pontos na escola de medicina. Não sou lá muito bom nisso... Mas... não compreendo... Mas se a minha datilografia pode ser de alguma ajuda no caso...
— Apenas uma pergunta ociosa — retorquiu Vance casualmente, e voltou-se para Heath. — O médico legista foi avisado?
— Claro. — O sargento estava calado, aborrecido, mastigando seu charuto. — O chamado foi através do escritório, como de costume, porém eu telefonei para Doremus, em sua casa... Não gostei da organização das coisas, esta noite... {10}
— E ele ficou provavelmente muito aborrecido... — sugeriu Vance.
O sargento grunhiu:
— Eu diria que ficou mesmo. Porém disse-lhe que o Sr. Markham estaria aqui, e ele afirmou que também viria. Deve chegar a qualquer momento...
Vance levantou-se e encarou Kane:
— Penso que isto é tudo, por agora, doutor. Mas devo pedir-lhe que permaneça aqui até que chegue o legista. O senhor poderá ajudá-lo... O senhor se importaria de esperar no salão, embaixo?
— Certamente que não! Terei satisfação em ajudar do modo que possa.
Quando ele saiu, Vance voltou-se para as duas mulheres:
— Sinto ter de pedir-lhes para ficar aqui em cima, porém é necessário. Tenham a bondade de aguardar em seus quartos.
Embora macia, sua voz tinha um inconfundível tom de ' comando.
A Sra. Llewellyn ergueu-se: seus olhos fulguravam.
— Por que não posso ir ver meu filho? Aqui não há nada mais que eu possa fazer. Nada sei de toda essa questão.
— A senhora não pode ajudar seu filho — replicou Vance, com firmeza; — e pode ser capaz de ajudar-nos aqui. Todavia, terei satisfação em saber como ele vai passando.
Foi ao telefone na mesinha de cabeceira; um minuto depois falava ao Dr. Rogers. Ao desligar, voltou-se encorajadoramente para a Sra. Llewellyn:
— Seu filho já saiu do estado de coma, senhora; respira mais normalmente, o pulso está mais forte, enfim, parece fora de perigo. A senhora será notificada imediatamente se houver alguma piora.
Segurando o lencinho nos olhos, a Sra. Llewellyn saiu soluçando.
Amélia Llewellyn não saiu logo. Esperou que a porta se fechasse e então olhou para Vance interrogativamente, perguntando numa voz metálica:
— Por que perguntou se o Dr. Kane usava uma máquina de escrever?
Vance tirou do bolso a carta que o metera na questão e a entregou à moça, sem uma palavra. Observou-a atentamente, olhos semicerrados, enquanto a lia. Notou-lhe certa perturbação, mas não surpresa. Chegando ao fim, ela deliberada-mente tornou a dobrar a carta e a devolveu a Vance.
— Obrigada — disse e, voltando-se, saiu do quarto.
— Um momento. A senhorita também usa uma máquina de escrever?
A moça, apàticamente, assentiu:
— Oh! Sim. Faço toda a minha correspondência numa pequena máquina que tenho... Entretanto — acrescentou, com um fraco sorriso — sou muito mais competente que a pessoa que datilografou essa carta.
— E os demais membros da casa também usam a máquina? — perguntou Vance.
— Sim... todos somos muito modernos. — A moça falava indiferentemente. Mesmo mamãe datilografa suas conferências. E tio Dick, tendo sido escritor há tempos, aperfeiçoou um rápido, porém superficial, sistema de dois dedos.
— E sua cunhada: usava uma?
Os olhos da moça se voltaram para a cama e ela estremeceu:
— Sim. Virgínia se divertia com a máquina enquanto Lynn estava fora, jogando... O próprio Lynn é ótimo datilografo. Freqüentou uma escola de comércio... provavelmente pensando em ser um dia chamado a cuidar dos negócios dos Llewellyns. Mas mamãe não pensava assim, de modo que ele se voltou para os night-clubs. (Havia um curioso desinteresse na sua maneira de falar que, no momento, não pude aprofundar.)
— Isso deixa apenas o Sr. Bloodgood... — começou Vance; mas a moça o interrompeu rapidamente:
— Ele também datilografa — seus olhos escureceram, e senti que sua atitude para com Bloodgood não era das mais amigáveis. — Ele datilografa a maioria de seus relatórios sobre esse negócio de máquinas caça-níqueis com que se meteu, em nossa máquina de escrever que está lá embaixo.
Vance ergueu as sobrancelhas levemente, interessado:
— Ainda há outra máquina lá embaixo?
Outra vez a moça afirmou, e deu de ombros como se isso fosse coisa que não a interessasse.
— Sempre houve uma lá... na pequena biblioteca da sala.
— Acha — perguntou Vance — que a carta pode haver sido escrita naquela máquina?
— Pode ter sido... É o mesmo tipo de letra e a mesma cor de fita... Mas há tantas parecidas...
— E talvez — prosseguiu Vance — você possa sugerir quem foi o autor da comunicação.
Tornou-se nublada a expressão de Amélia Llewellyn e o olhar duro lhe voltou.
— Eu poderia fazer várias sugestões — disse, num tom áspero. — Porém não tenho intenção de fazer nada disso. — E abrindo a porta com decisiva rapidez, saiu do quarto.
— Aprende-se muito! — rosnou Heath, sarcàsticamente. — Esta casa é um punhado de datilógrafos...
Vance olhou indulgentemente para o sargento:
— Aprendi muito hoje, sabe!
Heath mudou de um lado para o outro o charuto entre os dentes e fez uma careta:
— Talvez sim, talvez não... — murmurou. — O caso é meio torto, se quer saber... Llewellyn sendo envenenado no Cassino, e sua esposa tendo a mesma dose aqui, ao mesmo tempo. Parece-me haver um bando trabalhando...
— A mesma pessoa poderia realizar ambos os atos, sargento — retrucou Vance indulgentemente. — Na verdade, estou certo de que foi a mesma pessoa. Além disso, acho que a mesma pessoa me enviou a carta... Espere um minuto!
Caminhou para a mesinha de cabeceira e, pondo de lado o telefone, apanhou um pequeno papel dobrado:
— Vi isso quando telefonei ao hospital. Mas propositadamente não o examinei até que as senhoras se houvessem retirado.
Desdobrou o papel e o segurou sob a luz do abajur. De onde eu estava podia ver tratar-se de uma simples folha de bloco, azul, e estava datilografado.
— Santos Céus! — murmurou Vance, ao lê-lo. — Espantoso!...
Depois entregou o papel a Markham, que o segurou de modo a que eu e Heath, de pé a seu lado, pudéssemos vê-lo. Era uma nota mal datilografada e dizia:
"Caro Lynn — Não posso fazê-lo feliz, e Deus sabe que nesta casa ninguém tentou fazer-me feliz. Tio Dick é a única pessoa aqui a tratar-me com delicadeza e consideração. Não me querem aqui, e me sinto miserável. Vou envenenar-me. Adeus... e possa o seu novo sistema de roleta trazer-lhe a fortuna que você parece querer mais que tudo." A assinatura, "Virgínia", também estava datilografada. Markham dobrou a nota e franziu os lábios. Olhou para Vance durante muito tempo e depois observou:
— Isso parece simplificar as coisas.
— Oh! meu caro amigo! — protestou Vance. — Esta nota complicou abominàvelmente a situação!
V - VENENO!
(Domingo, 16 de outubro — 2:15 horas)
Nesse momento, Sullivan abriu a porta e fez entrar o Dr. Doremus, pessoa elegante, com um ar mordaz. Usava um casacão de tweed, e a aba do seu chapéu de feltro cinza-pérola estava caída faceiramente para um lado.
Cumprimentou-nos com dramática consternação, e relanceou um olhar petulante para o sargento Heath.
— Quando vocês não me chamam para ver seus cadáveres à hora do jantar, esperam que eu esteja dormindo e me confundem completamente... Isso não é direito... não é direito... É uma conspiração para roubar-me a alimentação e o repouso. Envelheci vinte anos desde que comecei com este serviço três anos atrás.
— Pois você parece bastante jovem e esperto... — sorriu Heath. (Há muito se acostumara com os resmungos do médico legista.)
— Bem, não há que esperar muita consideração de vocês, meninos da Divisão de Homicídios. Onde está o corpo? — Os olhos percorreram o quarto e chegaram a rígida figura de Virgínia Llewellyn. — Uma senhora, hem? De que morreu?
— Você vai-nos dizer. — De súbito, Heath tornara-se agressivo.
Doremus resmungou; então, tirando o chapéu e o casaco pô-los numa cadeira, e aproximou-se da cama. Durante dez minutos examinou a moça morta e, uma vez mais, impressionou-me sua competência e minuciosidade. Com todos os seus maneirismos e atitudes cépticas, era um astuto e eficiente médico — um dos melhores e mais conscienciosos legistas que Nova York já teve.
Enquanto Doremus estava ocupado com sua repulsiva tarefa, Vance fez uma breve inspeção do quarto. Foi primeiro até a mesinha de cabeceira onde repousava um pequeno serviço de prata parecido com o do escritório de Kinkaid no Cassino. Apanhou os dois copos e os examinou: ambos pareciam enxutos. Depois tirou a rolha da garrafa e a virou num dos copos: vazia. Vance estava carrancudo ao depositá-la na bandeja. Após inspecionar a gavetinha da mesa, caminhou para o banheiro, que estava entreaberto, nos fundos do quarto.
Ao passar por Markham, comentou a meia voz:
— O serviço para noite é abominável. A garrafa dágua de Kinkaid, vazia; e também a de Lynn Llewellyn. Esquisito, não lhe parece? Incidentalmente, a gaveta da mesinha de cabeceira só contém um lenço, um baralho de cartas — para solitários, sem dúvida — um lápis e um bloco de notas, um bastão de pomada para lábios e um par de óculos de leitura... Nada de letal...
Segui Vance ao banheiro, pois sabia que tinha algo de definido em mente ao começar sua inspeção: esse fato era claramente indicado por seus modos descansados e casuais, que ele invariavelmente assumia em momentos de alta tensão.
O banheiro era grande, completamente modernizado, e tinha duas janelinhas que davam para o pátio interno. Estava muito bem arrumado, tudo em ordem. Após acender a luz. Vance olhou-o pesquisadoramente. Havia um pequeno pulverizador e um tudo de tabletes para banho no peitoril de uma das janelas.
Vance pressionou o pulverizador e sentiu o cheiro do spray.
— Fleur-de-lis, de Derline, Van — observou. — Ideal para louras. — Leu o rótulo pregado no tubo de pastilhas para banho. — Também Fleur-de-lis, de Derline. Consistente e correto. Ah! a maioria das mulheres comete o erro fatal de opor seu perfume de banho ao perfume pessoal do corpo...
Abriu a porta do armarinho de remédios e o examinou. Continha apenas os artigos habituais: cremes de limpeza de pele e de hidratação, um frasco de loção para mãos, águas de toalete, talco e pós para banho, um desodorizante, um tubo de pasta de dentes, fio dental, um termômetro e os medicamentos convencionais: iodo, aspirina, bicarbonato de sódio, cânfora, desinfetantes bucais e para embrocações, glicerina, argirol, amônia, benjoim, leite de magnésia, tabletes de brometo, um colírio, etc.
Vance levou um tempo considerável examinando minuciosamente cada artigo. Por fim, retirou uma garrafinha de cor castanha com um rótulo impresso e, cuidadosamente ajustando o monóculo, leu o tipo fino da fórmula. Então escorregou a garrafinha em seu bolso, fechou a portinhola do armariozinho e voltou ao quarto de dormir.
O Dr. Doremus estava justamente cobrindo com um lençol a rígida forma estirada na cama. Voltou-se para Heath com simulada truculência:
— Bem, e quanto a isso? — perguntou, irritado, espalhando as mãos num gesto de inquirição: — Ela está morta... se é isso que querem saber. E tive de ser tirado à força dos lençóis, às duas da madrugada, para dizer-lhes isso!
Heath lentamente tirou o charuto dos dentes e olhou furiosamente para o Legista:
— Muito bem, doe! Ela está morta, diz o senhor! Mas há quanto tempo o está, e o que a matou?
— Eu sabia o que vinha vindo por aí... — suspirou Doremus; e então tornou-se profissionalmente sério. — Bem, sargento, ela está morta há umas duas horas, e foi envenenada... Agora, suponho que vai querer que lhe diga onde ela apanhou o veneno. — E olhou de esguelha para Heath.
Vance meteu-se entre os dois homens:
— Um médico chamado aqui — disse gravemente a Doremus — sugeriu que ela pode haver morrido devido a um dos venenos do grupo da beladona.
— Qualquer estudante de medicina, terceiranista, saberia disso — Doremus retrucou. — Claro, é envenenamento por beladona... Esse serra-ossos esteve aqui a tempo de tomar a temperatura post mortem dela?
— Dez minutos após sua morte já ele estava aqui — disse Vance.
— Bem, bem. — Doremus pôs o casaco e cuidadosamente ajeitou a aba do chapéu. — Todas as indicações: olhos esbugalhados, pupilas largamente dilatadas, manchas na pele, um salto na temperatura, sinais de convulsões e asfixia... Simples.
— Sim, sim... totalmente — Vance puxou do bolso o frasquinho que retirara do armarinho de remédios e entregou-o ao legista: — Poderiam esses tabletes ser a causa da morte?
Doremus olhou atentamente o rótulo e a fórmula impressa:
— Tabletes para regulagem de rinite... remedinho caseiro... — Pôs o frasco sob a luz do abajur e examinou-o de olhos semicerrados. — Cânfora em pó! — Leu em voz alta: — Extrato fluído de raiz de beladona... um quarto de mínimo, e sulfato de quinino... Certamente isso poderia ter causado a coisa... se fossem tomadas muitas delas.
— O frasco está vazio; e continha cem tabletes, está no rótulo.
O Dr. Doremus, ainda examinando o rótulo, balançou a cabeça:
— Cem vezes um quarto de mínimo seriam vinte e cinco mínimos... Beladona bastante para nocautear qualquer resfriado. — Devolveu a garrafinha a Vance: — Esta é a resposta. Por que fazer-me levantar no meio da noite, se você tinha todo o narcótico?
— Na realidade, doutor, estávamos apenas experimentando. Acabei de encontrar esta garrafinha vazia, sabe, e pensei nisso como uma possibilidade.
— Parece-me muito boa. — Doremus encaminhou-se para a porta. — Só um post mortem responderá exatamente suas perguntas.
Markham falou bruscamente:
— Isso é justamente o que queremos, doutor. Quando, o mais cedo possível, poderemos ter um relatório da autópsia?
— Oh! Deus! — Doremus apertou os dentes. — E amanhã é domingo... Essa pressa moderna me acabará matando... Que tal amanhã às onze da manhã?
— Eminentemente satisfatório — respondeu-lhe Markham.
O Dr. Doremus tirou do bolso um pequeno bloco e, nele escrevendo algo, rasgou o pedaço de papel e deu-o ao sargento:
— Aqui está a ordem para a remoção do cadáver.
O sargento pôs no bolso o pedaço de papel, murmurando:
— O corpo estará no necrotério antes do senhor.
— Excelente! — Doremus olhou de esguelha desagradavelmente para Heath e abriu a porta. — E agora vou voltar a dormir. Vocês poderão ter um massacre hoje à noite, se quiserem, mas não me verão até amanhã às nove horas...
Abanou a mão num gesto de adeus para todos nós e saiu rapidamente.
Quando o legista bateu a porta ao sair, Markham voltou-se gravemente para Vance:
— Onde encontrou esse frasco, Vance?
— No lavatório. Foi a única coisa que vi ali que parecia oferecer alguma possibilidade.
— Considerado em conexão com a nota de suicídio que você descobriu — observou Markham — parece fornecer uma explicação simples para esse caso terrível.
Por vários momentos Vance ficou olhando Markham, pensativamente; depois, inalando profundamente o seu cigarro, caminhou todo o comprimento do quarto e voltou, cabeça abaixada em contemplação.
— Não estou tão certo, Markham — murmurou, quase para si mesmo. — Afirmo-lhe que essa é uma solução muito bem preparada para a morte daquela moça ali na cama. Mas, e quanto ao pobre rapaz que está no hospital? Ali não havia beladona que lhe fizesse mal; e certamente em sua mente não havia nenhuma pressa de suicidar-se. Estava jogando para ganhar, esta noite; e seu tolo sistema aparentemente funcionava bem. Mesmo assim, no meio do jogo ele desmaia... Não, não... Essa garrafinha vazia é demasiado simples... e este caso não é simples absolutamente: está cheio de sombras e de pistas falsas... esconde sutilezas e circunvoluções cerebrais...
— Afinal, você encontrou o frasco... — começou Markham. Porém Vance o interrompeu:
— Isso pode haver sido arranjado para nós. Ajusta-se bem demais ao esquema... Saberemos mais — ou menos — amanhã de manhã quando Doremus enviar seu relatório.
Markham estava aborrecido:
— Por que forjar todos esses mistérios?
— Meu caro Markham! — reprovou-o Vance, e ficou durante vários minutos aparentemente absorto numas gravuras do século dezoito, penduradas sobre a lareira.
Nesse ínterim, Heath telefonara à Assistência Pública para que mandassem uma ambulância para retirar o corpo. Depois desse telefonema, falou ao tenente Smalley do distrito policial local, que silenciosamente observara tudo de um canto do quarto:
— Não há mais nada, tenente. O Sr. Markham está aqui, e tudo não passará de rotina até que o Dr. Doremus faça a autópsia. Mas pode deixar aí fora um par de rapazes.
— Como queira, sargento. — O tenente Smalley apertou as mãos de todos os presentes, depois saiu com um ar de óbvio alívio.
— Penso que também podemos ir — falou Markham,
— Você fica encarregado do caso aqui, naturalmente, sargento... Tratarei disso com o inspetor logo de manhã.
— Ora, Markham — disse Vance — não vamos todos embora precipitadamente. Eu gostaria de conhecer alguns fatos, e já que estamos aqui...
— O que, por exemplo, você gostaria de saber? — Markham estava impaciente.
Vance afastou os olhos da gravura e olhou tristemente para a moça morta.
— Gostaria de falar mais um pouco com o Dr. Kane antes de nos retirarmos.
Markham fez uma expressão estranha, mas finalmente assentiu relutante:
— Ele está lá embaixo. — E foi à frente, para o vestíbulo.
O Dr. Kane andava nervosamente acima e abaixo, ao entrarmos no salão de estar.
— Qual é o relatório? — perguntou antes que Vance tivesse tempo de falar.
— O legista apenas corroborou o seu diagnóstico, doutor — disse-lhe Vance. — O post mortem será a primeira coisa a ser realizada pela manhã... A propósito, doutor, o senhor é o médico de família dos Llewellyns?
— Eu mal poderia afirmar isso — respondeu o outro.
— Duvido que tenham alguém que os atenda com regularidade. Não precisam de muita supervisão médica: é uma família saudável. Ocasionalmente prescrevo, entretanto, para coisinhas de menor importância, mais como amigo do que como profissional.
— E receitou para algum deles ultimamente? — perguntou Vance.
Kane pensou por um momento, e respondeu, lentamente:
— Nada de importância... Sugeri um fortificante à base de ferro — Blaud's Mass — e estriquinina para a Srta. Llewellyn há uns dias passados...
— Lynn Llewellyn tem qualquer doença — interrompeu Vance — que o faça desmaiar sob forte excitação?
— Não! Tem o coração hipertrofiado, com tendência a pressão alta... resultado de atletismo no ginásio...
— Angina?
Kane sacudiu a cabeça:
— Nada tão sério assim, embora sua condição possa caminhar para isso, algum dia.
— Nunca receitou para ele?
— Há um ano, mais ou menos, fiz-lhe uma receita para tabletes de nitroglicerina — dois cêntimos de grão. Foi tudo.
— Nitroglicerina, hem? — Havia um brilho de interesse nos olhos de Vance. — Muito revelador... E sua esposa: nunca foi chamado para atendê-la?
— Oh! uma ou duas. vezes... Tinha olhos fracos, e recomendei um colírio comum... É experiência minha — acrescentou, meio pomposo — que as louras muito claras com pálidos olhos azuis — falta de pigmentação, entende... — têm olhos mais fracos que as morenas...
— Não vamos entrar em teorias oftalmológicas — cortou Vance, com um sorriso insinuante. — Está ficando muito tarde... Que mais receitou para a jovem Sra. Llewellyn?
— Isso é, realmente, tudo. — Kane, apesar de tentar fazer pose, estava ficando nervoso. — Recomendei um ungüento para uma leve inflamação em uma de suas mãos, há já muitos meses; e na semana passada, quando ela teve um incomodativo resfriado na cabeça, sugeri comprimidos para rinite. Não me recordo de nada mais... — Comprimidos para rinite? — O olhar penetrante de Vance não o deixava. — Quantos mandou que ela tomasse?
— Oh! A dose usual: um ou dois comprimidos de duas em duas horas.
— A maioria dos comprimidos para rinite contém bela-dona, não? — observou Vance num tom áspero.
— Ora, sim... claro... — Os olhos de Kane subitamente se arregalaram, e olhou para Vance com terror intenso.
— Mas... mas... realmente... — gaguejou e calou-se.
— Encontramos um frasco vazio, para cem comprimidos, em seu armarinho de remédios — informou Vance, sem mover o olhar. — E, de acordo com seu diagnóstico, a Sra. Llewellyn morreu envenenada por beladona.
Kane ficou boquiaberto e totalmente pálido:
— Meu Deus! — murmurou. — Ela... ela não pode ter feito isso! — O homem tremia visivelmente. — Ela devia saber... e fui bastante explícito...
— Ninguém pensaria em culpá-lo nas atuais circunstâncias, doutor — falou Vance, consoladoramente. — Diga-me, a Sra. Llewellyn era uma paciente inteligente e conscienciosa?
— Sim, muito. — Kane umedeceu os lábios, fazendo um valente esforço para controlar-se. — Era sempre extremamente cuidadosa no seguir implicitamente minhas instruções. Lembro-me agora de que me telefonou, no outro dia, para perguntar se poderia tomar um comprimido extra antes de passadas as duas horas do intervalo.
— E a loção para os olhos? — perguntou Vance, muito casualmente.
— Estou certo de que seguiu minhas instruções — respondeu Kane, sinceramente. — Embora, naturalmente, fosse uma solução absolutamente inocente...
— E qual foi sua determinação quanto a isso?
— Disse-lhe que deveria banhar os olhos todas as noites antes de dormir.
— Quais eram os ingredientes do ungüento que lhe receitou para a mão?
Kane pareceu surpreso:
— Tenho certeza de que não sei! — retrucou, inseguro.
— Os habituais emolientes, suponho. Era um preparado já pronto, à venda em qualquer drogaria... provavelmente continha oxido de zinco ou lanolina. Não poderia haver nele nada de perigoso.
Vance caminhou para a janela da frente e olhou para fora: estava confuso e perturbado.
— Esses foram todos os seus serviços médicos para Lynn Llewellyn e sua esposa? — perguntou, voltando lentamente ao centro da sala.
— Sim! — Embora estivesse trêmula a voz de Kane, nela havia um tom de inegável ênfase.
Por um breve período, Vance olhou fixamente para o jovem doutor.
— Penso que isso é tudo. Não há nada mais que o senhor possa fazer aqui hoje.
Kane deu um fundo suspiro de alívio e caminhou para a porta.
— Boa noite, senhores! — falou, com um olhar interrogativo para Vance. — Por favor, chamem-me se eu puder ajudar em algo. Ficaria muito grato se me deixassem saber o resultado da autópsia.
Vance curvou-se, distraidamente:
— Teremos satisfação nisso, doutor. E nossas desculpas por retê-lo até tão tarde.
Por um momento Kane ficou imóvel, e pensei que fosse dizer algo; porém subitamente saiu, e um momento depois pudemos ouvir o mordomo ajudando-o a vestir o sobretudo.
Vance ficou de pé junto à mesa por alguns momentos, olhando direto em frente e os dedos distraidamente seguindo os desenhos da madeira. Depois, sem mover os olhos, sentou-se e muito devagar e deliberadamente apanhou a cigarreira.
Nesse ínterim, Markham estivera de pé junto à porta, observando atentamente o doutor e Vance. Dirigiu-se então até a lareira e nela se recostou, comentando gravemente:
— Vance, estou começando a entender o que se passa em sua mente.
Vance ergueu o olhar e suspirou fundamente:
— Realmente, Markham? — Sacudiu a cabeça, ar desencorajado. — Você é muito mais arguto que eu... Daria meu vaso ting-yao para saber o que está em minha mente. Tudo é muito confuso... Tudo se encaixa... é um perfeito mosaico. E isso é que me assusta.
Sacudiu-se gentilmente, como para afastar algum pensamento intruso, e, indo até à porta, chamou o mordomo:
— Por favor, diga à Srta. Llewellyn — penso que está em seu quarto — que apreciaria se viesse até o salão.
Quando o criado se dirigiu para as escadas, Vance caminhou até a lareira e ficou de pé ao lado de Markham:
— Há algumas outras coisinhas que eu gostaria de saber antes de nos despedirmos — explicou. Estava perturbado e inquieto; eu raramente o vira assim. — Nenhum dos casos em que o tenho ajudado, Markham, fez-me sentir tão fortemente a presença de uma personalidade tão sutil e devastadora. Nem uma só vez essa personalidade se manifestou em todos os trágicos acontecimentos desta noite; porém sei que está aqui, sorrindo de nós e nos desafiando a penetrar até o fundo de seu diabólico esquema. E todos os ingredientes da trama são, aparentemente, comuns e óbvios — mas sinto que há marcos indicando para longe da verdade. — Fumou um momento em silêncio; depois disse: — A diabólica parte da coisa é que nem sequer compreendemos ou podemos seguir essas indicações...
Ouvimos os passos leves a descer a escadaria: um momento depois Amélia Llewellyn estava de pé à porta do salão.
VI - UM GRITO NA NOITE
(Domingo, 16 de outubro — 3:00 horas)
Ela mudara seu roupão acolchoado por pijama de cetim negro, e reparei que se pintara recentemente. Fumava um cigarro numa piteira de ébano em relevo, e sua presença, emoldurada pelo mármore do batente da porta, era marcante e me lembrava uma gravura espetacular de Zuloaga.
— Recebi sua intimação verbal através do trêmulo e elegante Crichton — o nome de nosso mordomo é na verdade Smith — e eis-me aqui. — Falava com ar mundano jocoso. — Bem, em que ficamos?
— Permita-me sentar-me, Srta. Llewellyn — respondeu Vance, pegando uma cadeira com imponência.
— À vontade. — Ela se acomodou na cadeira e cruzou as pernas. — Estou exausta, com toda essa agitação incomum.
Vance sentou-se de frente para ela.
— Por acaso já lhe ocorreu, Srta. Llewellyn — perguntou — que a mulher de seu irmão se possa ter suicidado?
— Pelo amor de Deus, não! — A moça inclinou-se para a frente, indubitavelmente surpresa. Subitamente, perdera o modo cínico.
— Então, a senhorita não sabe de nenhuma razão que pudesse ter ocasionado o suicídio? — Vance prosseguiu calmamente.
— As razões que ela pudesse ter eram iguais às de todo mundo. — Amélia Llewellyn fixou o vácuo, sem olhar para Vance. — Nós todos podemos pensar em algum bom motivo para nos matar, mas Virgínia nada tinha com que se preocupar. Tinha tudo o que queria, e estava vivendo mais confortavelmente, materialmente falando, do que nunca antes. — (Esta observação foi feita com um tom de amargura). — Ela conheceu Lynn muito bem, antes de casar com ele, e deve ter previsto todas as vantagens e desvantagens que o casamento lhe traria. Considerando que não gostávamos especialmente dela, nós a tratávamos bem demais... especialmente mamãe. Aliás, ela sempre foi a favorita de mamãe, e qualquer pessoa que Lynn trouxesse aqui em casa seria tratada com gentileza e consideração.
— Mesmo assim — comentou Vance — as pessoas ocasionalmente se suicidam sob essas circunstâncias.
— Isto é verdade. — A moça deu de ombros. — Mas Virgínia era covarde demais para tirar a própria vida, mesmo que fosse terrivelmente infeliz. (Certa animosidade tomou conta de sua voz). — Além disso, ela era egoísta e vaidosa...
— Vaidosa em relação a quê, por exemplo? — perguntou Vance.
— Em relação a tudo. — Ela jogou as cinzas do cigarro no chão. — Ela era especialmente vaidosa em relação à aparência. Sentia-se o tempo todo no palco e maquilada, por assim dizer.
— Não lhe parece possível — Vance insistiu — que se ela se tivesse sentido muito infeliz... ?
— Não. — A moça antecipou-se ao resto da pergunta com uma negativa enfática. — Se Virgínia se tivesse sentido infeliz demais para agüentar a vida aqui, ela não se mataria. Ela teria fugido com um homem, ou talvez tivesse voltado ao palco — o que é uma forma indireta de fazer a mesma coisa.
— A senhorita não está sendo bondosa — murmurou Vance.
— Bondosa? — Ela riu de modo desagradável. — Talvez não. Mas, de qualquer maneira, não sou inteiramente imbecil.
— Suponha — retrucou suavemente Vance — que eu lhe dissesse que achamos um bilhete de suicídio?
Os olhos da moça se arregalaram, e ela fixou Vance com pesar.
— Não acredito! — disse veementemente.
— Contudo, Srta. Llewellyn, é verdade — disse-lhe Vance gravemente.
Por vários instantes ninguém falou. Amélia Llewellyn desviou os olhos de Vance e os fixou no vácuo; seus lábios se apertaram, e uma expressão arguta e dura surgiu-lhe no rosto. Vance a observava atentamente, sem deixar perceber. Após certo tempo, ela se moveu na cadeira e disse, com simplicidade artificial:
— Nunca se sabe, não é? Acho que não sou muito boa psicóloga. Não posso imaginar Virginia se matando. É, porém, um gesto muito teatral, bem ao seu feitio. Lynn tentou uma auto-aniquilação, também? Um pacto suicida, ou algo semelhante?
— Se tentou — replicou Vance de modo casual — evidentemente falhou... segundo o último relatório.
— Isto seria bem de acordo com seu caráter — observou a moça em tom surdo. — Lynn não é exatamente a imagem da eficiência. Ele sempre perde por um triz. Supervisão materna excessiva, talvez.
Vance se aborreceu com a atitude dela.
— Vamos esquecer um pouco essa fase do assunto — disse asperamente. — Estamos agora interessados apenas nos fatos. A senhorita nos poderia contar alguma coisa da atitude de seu tio — isto é, do Sr. Kinkaid — em relação à sua cunhada? O bilhete que achamos dizia que ele havia sido especialmente bondoso para com ela.
— É verdade. — A moça assumiu ar menos arrogante. — O tio Dick "tinha um fraco" por Virginia. Talvez ele achasse que, na condição de mulher de Lynn, ela merecesse piedade. Ou talvez ele a considerasse uma aventureira como ele mesmo. De qualquer modo, parecia haver uma união entre eles. De quando em vez tenho pensado que o tio Dick deixou que Lynn ganhasse algumas vezes no cassino para que Virginia tivesse mais dinheiro para gastar.
— Isto é muito interessante. — Vance acendeu outro cigarro e continuou. — E isto me leva a outra, questão. Espero que a senhorita não se incomode, é algo pessoal, mas a resposta nos poderá ajudar grandemente.
— Não se desculpe — disse a moça. — Não tenho segredos. Pergunte-me o que quiser.
— Muita gentileza sua — murmurou Vance. — A verdade é que gostaríamos de saber a real situação financeira dos membros de sua família.
— Só isto? — Ela pareceu sinceramente surpresa, talvez até desapontada. — A resposta é muito simples. Quando meu avô, Amos Kinkaid, morreu, deixou o grosso da fortuna para minha mãe. Ele confiava muito no tino comercial que ela possuía, mas não achava o mesmo de tio Dick e só lhe legou uma pequena parcela do patrimônio. As crianças — Lynn e eu — eram pequenas demais para merecer consideração e, de qualquer forma, ele provavelmente contava com mamãe para tratar de nosso bem-estar. O resultado é que o tio Dick teve mais ou menos de se cuidar sozinho, e que mamãe é a administradora do dinheiro do velho Amos. Lynn e eu dependemos totalmente da generosidade dela, que nos dá uma mesada bem razoável. E isto é tudo sobre o assunto.
— Mas como — perguntou Vance — será distribuído o patrimônio caso morra sua mãe?
— Só mamãe lhe poderá responder — replicou a moça. — Mas imagino que será dividido entre Lynn e eu — indo a maior parte, evidentemente, para Lynn.
— E seu tio?
— Bem, mamãe não o aprova. Duvido que ela o tenha contemplado no seu testamento.
— Caso sua mãe esteja viva depois que a senhorita e seu irmão morrerem, para quem iria o dinheiro?
— Para o tio Dick, acho — se estivesse vivo. Mamãe tem um sentimento de família muito pronunciado. Acho que ela preferiria que tio Dick herdasse a fortuna, para que o dinheiro não caísse em mãos de estranhos.
— Mas suponhamos que a senhorita ou seu irmão morresse e antes de sua mãe, a senhorita acha que o filho que ficasse herdaria tudo?
Amélia Llewellyn acenou com a cabeça.
— É o que acho — respondeu, com tranqüila sinceridade. — Mas ninguém pode saber ao certo os planos e idéias de mamãe. E, naturalmente, não discutimos jamais o assunto.
— Sim, claro, claro. — Vance deu uma tragada e se ergueu um pouco da cadeira. — Há uma outra pergunta a lhe fazer. A senhorita tem sido gentilíssima. A situação é muito grave, e não se pode saber que fatos ou sugestões nos poderão ser de auxílio.
— Acho que entendo. — A moça falava com suavidade aparente, do que até agora eu a julgara incapaz. — Por favor, não hesite em entrar em contato comigo para me perguntar qualquer coisa que possa ajudá-lo. Estou muito desgostosa com tudo... sinceramente. Eu não me importava com Virgínia, mas — afinal de contas — uma morte como a dela é... bem, uma coisa que eu não desejaria a meu pior inimigo.
Vance desviou os olhos da moça e mirou a ponta do cigarro. Tentei perceber sua reação mental, mas o rosto nada demonstrava do que lhe passava pela cabeça.
— Minha pergunta diz respeito à Sra. Lynn Llewellyn — disse ele. — E simplesmente isto: se ela tivesse sobrevivido à senhorita e a seu irmão, qual o efeito sobre o testamento de sua mãe?
Amélia Llewellyn ponderou sobre a pergunta.
— Não sei — respondeu depois de algum tempo. — Nunca pensei na situação sob esse aspecto. Mas inclino-me a pensar que mamãe teria feito de Virgínia a principal beneficiada. Ela provavelmente recorreria a qualquer coisa para evitar que tio Dick recebesse o legado. Ademais, a afeição quase patológica que tinha por Lynn afetaria sua decisão. Afinal, Virgínia era mulher de Lynn, e ele e tudo que lhe pertencesse sempre vieram em primeiro lugar para mamãe. — Ela encarou Vance suplicantemente. — Gostaria de poder ajudá-lo mais.
Vance se levantou.
— A senhorita nos ajudou imensamente — mesmo. Estamos todos tateando no escuro, e não vamos mais tomar seu tempo. Mas gostaríamos de falar com sua mãe. A senhorita poderia pedir-lhe que viesse ao salão?
— Claro. — A moça se levantou devagar e dirigiu-se à porta. — Estou certa de que ela terá o maior prazer. Sua única ambição na vida é participar dos assuntos de todos e ser o centro de toda agitação — Ela saiu lentamente da sala, e a escutamos subindo as escadas.
— Uma criatura estranha — comentou Vance, como se estivesse pensando em voz alta. — Uma combinação de extremos: fria como o aço, mas altamente emotiva. Há nela um antagonismo cerebral constante, ela não se decide. Está vivendo num limite psíquico — coração e cabeça em debate. Curiosamente simbólico este complexo caos. Não há orientação alguma para nós. — Ele nos olhou ansiosamente. — Não acha, Markham? Há uma dúzia de caminhos para se tomar — e todos nos podem desviar do certo. Mas há uma ruela escondida em algum lugar, e esse será o caminho a tomar.
Dirigiu-se para os fundos do salão.
— No meio tempo — disse, em tom mais leve — exercitarei minha mania pelos detalhes.
Atrás de cortinas pesadas de veludo no meio da parede dos fundos havia portas maciças de correr: Vance abriu uma delas. Tateou ao longo da parede da outra sala, e em alguns segundos um jato de luz revelou uma pequena biblioteca. Víamos Vance examinando rapidamente o que o cercava, e depois dirigiu-se à escrivaninha em forma de rim e se sentou. Na mesa estava uma máquina de escrever, e depois de lhe colocar um pedaço de papel, começou a datilografar. Logo retirou o papel da máquina, observou-o atentamente, dobrou-o e o pôs no bolso de dentro do colete.
Ao voltar para o salão, deteve-se junto a umas estantes e percorreu com os olhos os livros que elas continham. Ainda inspecionava os livros quando a Sra. Llewellyn entrou, com um ar de majestade dominadora. Vance deve tê-la escutado entrar, pois se voltou imediatamente, e se reuniu a nós no salão.
Ele se inclinou e, apontando uma das amplas poltronas cobertas de seda que rodeavam uma mesinha de centro, pediu-lhe que se sentasse.
— Qual o assunto que os senhores desejam discutir comigo? — indagou a Sra. Llewellyn, sem fazer qualquer tentativa de se sentar.
— Observo — disse Vance, ignorando-lhe a maneira e a pergunta — que a senhora tem uma interessantíssima coleção de livros de medicina na outra sala. — Ele fez um gesto com a mão, indicando as portas de correr.
A Sra. Llewellyn hesitou e disse:
— Eu não me surpreenderia com o fato. Meu falecido marido, embora não fosse médico, se interessava enormemente por pesquisa médica. Até escrevia de vez em quando para revistas médicas.
— Há — continuou Vance, sem mudar o tom — várias obras-padrão sobre toxicologia entre os tratados gerais.
A mulher moveu o queixo agressivamente e, com um dar de ombros imperceptível, sentou-se com rígida dignidade. na beira de uma cadeira perto da porta.
— Ê bem provável — disse. — O senhor acha que eles têm algo a ver com a tragédia desta noite? — Havia certo tom de desprezo na pergunta.
Vance não continuou com o tema. Ao invés, ele lhe perguntou:
— A senhora sabe de alguma razão que levasse sua nora a suicidar-se?
A mulher não mexeu nenhum músculo facial por alguns instantes, mas seus olhos subitamente se nublaram, como se estivessem pensando. Logo levantou a cabeça.
— Suicídio? — Havia uma animação contida em sua voz. — Não havia pensado em sua morte sob tal aspecto, mas sua sugestão de agora me faz ver que haveria uma explicação lógica. — Ela acenou com a cabeça lentamente. — Virgínia era muito infeliz aqui. Ela não se adaptou ao novo ambiente, e várias vezes me disse querer estar morta. Não dei qualquer importância à observação — é uma figura retórica por demais usada. Contudo, fiz o que podia para tornar a pobre criatura feliz.
— Uma situação delicada — murmurou Vance cordialmente. — Por alto, senhora, poderia dizer-nos — em estrito sigilo, claro — quais serão os termos gerais de seu testamento?
A mulher olhou Vance fixamente, e de modo irado.
— Certamente que não! Para lhe ser franca, não gostei da pergunta. Meu testamento é um assunto que só a mim diz respeito. Não teria qualquer conotação com a horrível situação de que estamos tratando.
— Não estou inteiramente convencido disto — replicou mansamente Vance. — Há uma linha de raciocínio, por exemplo, que nos poderia levar a especular da possibilidade que um dos beneficiários em potencial ganharia pela — digamos, ausência? — de certos outros herdeiros.
A mulher pôs-se em pé abruptamente e ficou rigidamente tensa, e os olhos brilhavam ferozmente para Vance.
— O senhor está insinuando — sua voz era fria e cortante — que meu irmão... ?
— Cara Sra. Llewellyn! — Vance retrucou asperamente. — Não estava pensando em ninguém. Mas a senhora parece não avaliar a importância do fato de que dois membros de sua família foram envenenados hoje, e que é nosso dever determinar todos os fatores possíveis que possam, mesmo remotamente, ter algo a ver com o caso.
— Mas o senhor mesmo — protestou a mulher em voz branda, sentando-se. novamente — adiantou a possibilidade de Virgínia se ter suicidado.
— Não foi bem assim, senhora — corrigiu Vance. — Eu apenas lhe perguntei se achava plausível essa teoria. Por outro lado, a senhora acha possível que seu filho tenha tentado matar-se?
— Não — claro que não! — replicou dogmaticamente. Veio-lhe um olhar abstraído. — Porém... não sei. Ele sempre foi muito emotivo — muito temperamental. A menor coisa o aborrecia. Ele ficava pensativo, e exagerava...
— Pessoalmente — disse Vance — não posso crer que seu filho tenha tentado acabar com a vida. Eu o estava observando quando ele foi atacado. Ele estava ganhando bem, e tinha total domínio da máquina.
A mulher parecia ter perdido o interesse em tudo, exceto no bem-estar do filho.
— O senhor acha que ele está bem? — perguntou suplicantemente. — O senhor me deveria ter deixado ficar com ele. O senhor pode perguntar novamente como está ele?
Vance se levantou imediatamente e se dirigiu à porta:
— Com prazer, senhora.
Alguns momentos depois nós o escutamos falando ao telefone no vestíbulo. Depois voltou ao salão.
— Parece que o Sr. Llewellyn — disse ele — está fora de perigo, o Dr. Rogers já saiu do hospital, mas o médico-residente que está de plantão me disse que seu filho está repousando tranqüilamente, e que seu pulso está praticamente normal agora. Ele acredita que o Sr. Llewellyn possa voltar para casa amanhã de manhã.
— Graças a Deus! — A mulher soltou um suspiro de alívio. — Poderei dormir agora. O senhor quer-me perguntar mais alguma coisa?
Vance inclinou a cabeça.
— A pergunta sem dúvida parecerá irrelevante agora, mas sua resposta poderá esclarecer certa fase dessa situação constrangedora. — Ele olhou diretamente para a Sra. Llewellyn. — Qual a situação exata do Sr. Bloodgood nesta casa?
A mulher levantou as sobrancelhas e contemplou Vance um meio minuto antes de responder, depois falou em tom curiosamente convencional e distante.
— O Sr. Bloodgood é íntimo amigo de meu filho. Foram colegas de Universidade. Acredito que ele conheceu Virgínia muitos anos antes que ela entrasse para nossa família. Meu irmão — o Sr. Kinkaid — sempre admirou o Sr. Bloodgood. Ele via possibilidades no rapaz, e o treinou para sua posição atual. O Sr. Bloodgood vem muito à minha casa, seja socialmente, seja a negócios. O senhor compreende — acrescentou à guisa de explicação — meu irmão mora aqui. Na verdade, metade da casa lhe pertence.
— Onde são os aposentos do Sr. Kinkaid? — perguntou Vance.
— Ele ocupa todo o terceiro andar.
— Posso saber — continuou Vance — quais as relações entre o Sr. Bloodgood e sua filha?
A mulher deu um rápido olhar para Vance, mas não hesitou em responder à pergunta com aparente franqueza.
— O Sr. Bloodgood está profundamente interessado em Amélia. Ele já a pediu em casamento, creio; ela ainda não se decidiu, pelo que eu saiba. Às vezes acho que gosta dele, mas outras vezes Amélia o trata abominàvelmente. Acho que não confia totalmente nele. Acontece que ela pensa muito em sua arte, e pode achar que o casamento venha a interferir com sua carreira.
— A senhora aprovaria o casamento? — perguntou Vance de modo casual.
— Não aprovaria nem desaprovaria — disse ela, e calou a boca.
Vance a olhou ligeiramente intrigado.
— O Dr. Kane está também interessado na sua filha?
— Oh, sim, acho que bastante... como quem não quer nada. Mas lhe asseguro que Amélia não tem intenções sentimentais a respeito dele. Apesar disso, utiliza-o constantemente — não tem escrúpulos a tal respeito. Às vezes, Allan Kane lhe é muito conveniente, e ele descende de ótima família.
Vance levantou-se lentamente da cadeira e inclinou-se:
— Não a deteremos mais — disse, com ar de fria cortesia. — Apreciamos seu auxílio e desejamos que a senhora saiba que trataremos de tudo sem a incomodar mais.
A Sra. Llewellyn ergueu-se àgilmente e saiu do salão sem mais uma palavra.
Quando ela já não o podia ouvir, Markham se levantou agressivamente e encarou Vance:
— Já aturei o bastante. Toda essa fofoca de família não nos está levando a parte alguma. Você está simplesmente fabricando fantasmas.
Vance suspirou resignadamente:
— Bem, vamos indo! A hora da bruxa passou há muito tempo...
Quando saía para o vestíbulo, o detetive Sullivan descia as escadas.
— O sargento vai esperar pelo carro e pôs todos para dormir — disse a Markham. — Vou para casa dormir. Boa noite, Chefe; até logo, Sr. Vance. — E partiu.
O mordomo cavernoso, parecendo cansado e sonolento, ajudou-nos a vestir os sobretudos.
— Você receberá instruções do sargento Heath — disse Markham.
O homem inclinou-se e se dirigiu à porta, para abri-la. Antes que o fizesse, porém, ouviu-se o barulho de uma chave na fechadura e logo Kinkaid irrompia no vestíbulo. Parou logo que nos viu:
— Que significa isto? — perguntou agressivamente. — Que fazem aqueles guardas lá fora?
— Estamos aqui a serviço — informou Markham. — Houve uma tragédia aqui esta noite.
Os músculos do rosto de Kinkaid subitamente se relaxaram e sua expressão se tornou calma e fria: em fração de segundo ele voltara a ser o jogador inescrutável.
— A mulher de seu sobrinho está morta — disse Vance.
— Envenenada. E, como o senhor sabe, Lynn Llewellyn também foi envenenado esta noite...
— Lynn que vá pro inferno! — falou Kinkaid entre dentes. — Qual o resto da história?
— É tudo que sabemos no momento, exceto que a Sra. Llewellyn morreu aproximadamente à mesma hora em que o marido passou mal no seu Cassino. Afirmou o legista que o envenenamento foi por beladona. O sargento Heath, da Divisão de Homicídios, está esperando lá em cima pelo carro que levará o corpo para o necrotério. Saberemos mais amanhã, após o post mortem. Segundo o último relatório, seu sobrinho está fora de perigo.
Nesse momento houve uma interrupção chocante. Ouviu-se um grito de mulher vindo da parte de cima da casa. Abriu-se uma porta que, após, se fechou com estrondo, e escutamos um gemido fraco. Houve então o ruído de fortes passadas no corredor acima de nós. Meu sangue pareceu congelar nas veias
— não sei por quê — e todos nos dirigimos à escada.
De súbito, Heath apareceu no patamar superior. Sob a forte luz do vestíbulo, pude ver seus olhos cheios de excitação. Chamou-nos com um gesto brusco do braço:
— Venha cá, Sr. Markham! — disse, com voz rouca. — Aconteceu algo!
VII - MAIS VENENO!
(Domingo, 16 de outubro — 3:30 horas)
Quando chegávamos ao patamar superior já Heath ia longe no vestíbulo, pesadamente, em direção à porta aberta de um quarto do lado norte. Nós o seguimos rapidamente, porém as largas costas do sargento nos obstruíam a visão, e só quando realmente entramos no quarto vimos a causa do súbito chamado. Esse quarto, tal como o vestíbulo, estava brilhantemente iluminado. Era, obviamente, o quarto da Sra. Anthony Llewellyn. Embora maior que o de Virgínia, continha menos móveis, todos de uma rigorosa severidade, que refletia o caráter e a personalidade de sua ocupante.
A Sra. Llewellyn estava de pé se escorando à parede do lado interno da porta, seu lenço de rendas apertado contra o rosto, olhos arregalados de horror para algo que jazia no chão. Gemia e tremia, e não ergueu os olhos ao entrarmos. O que olhava a deixava fascinada e sem fala.
Ali, a poucos passos dela, toda dobrada no alto tapete azul, jazia a forma rígida de Amélia Llewellyn.
A princípio a Sra. Llewellyn apenas apontou. Depois, com grande esforço, falou roucamente:
— Ela se encaminhava para o seu quarto: subitamente parou, pôs as mãos na cabeça, e caiu... — Tornou a apontar para a filha, quase como se imaginasse que não víamos a figura prostrada.
Vance já estava ajoelhado ao lado da moça. Sentiu-lhe o pulso, auscultou-lhe o coração, viu-lhe os olhos. Então acenou a Heath e se moveu para o lado oposto do leito. Eles levantaram a moça e a colocaram atravessada na cama, deixando sua cabeça caída para o lado.
— Sais voláteis — ordenou Vance. — E, sargento, chame o mordomo.
A Sra. Llewellyn pôs-se em atividade, foi até sua penteadeira e apanhou um vidrinho verde como o que Kinkaid dera a Vance no Cassino no começo dessa noite.
— Segure-o perto do nariz dela, mas não tão perto que dê para queimar — falou à senhora e voltou-se para a porta.
Apareceu o mordomo. Sua debilidade parecia haver desaparecido; estava nervosamente alerta.
— Chame o Dr. Kane ao telefone — ordenou Vance peremptoriamente.
O homem dirigiu-se apressadamente para uma mesinha de telefone e principiou a discar um número.
Kinkaid permanecia no umbral da porta, observando, expressão dura, rigidamente imóvel. Só os olhos se moviam, tomando nota de todos os aspectos da situação. Olhou na direção da cama, porém seu olhar não pousava na quieta forma de sua irmã.
— Qual é a resposta, Sr. Vance? — perguntou obstinadamente.
— Veneno... — murmurou Vance, acendendo um cigarro. — Sim... exatamente. Tal como Lynn Llewellyn. Um caso repulsivo... Isso o surpreende?
Os olhos de Kinkaid se abaixaram ameaçadoramente:
— Que diabo quer dizer com essa pergunta? Porém o Dr. Kane estava na linha e Vance lhe falou:
— Amélia Llewellyn está seriamente doente. Venha imediatamente! E traga suas injeções — cafeína, digitalina e adrenalina. Compreende?... Muito bem. — Recolocou o fone e se voltou para o interior do quarto. — Felizmente, Kane ainda estava acordado... estará aqui em poucos minutos. — Então ajustou o monóculo e examinou Kinkaid. — Qual é sua resposta à minha pergunta?
Kinkaid começou a vociferar, depois pareceu pensar melhor:
— Sim — estalou, enfrentando o olhar de Vance. — Estou tão surpreso quanto você!
— Você ficaria surpreso se soubesse quão longe estou de surpreender-me — murmurou Vance, e se encaminhou para as duas mulheres. Pegou os sais com a Sra. Llewellyn, e tornou a sentir o pulso da moça. Depois, sentou-se na beira da cama e fez sinal à Sra. Llewellyn para falar-lhe à parte:
— Qual é a história toda? — perguntou-lhe, sem benevolência. — Falemos disso antes que o doutor chegue.
A senhora tropeçou numa cadeira, sentou-se ereta, e arrumou o roupão em torno de si. Quando falou já estava completamente dona de si:
— Amélia veio ao meu quarto e me disse que o senhor queria falar-me. Sentou-se na cadeira onde estou agora. Falou que me esperaria aqui... precisava falar-me...
— Isso é tudo? — perguntou Vance. — A senhora não desceu imediatamente, não foi? Ainda me deu tempo de datilografar um bocado...
A Sra. Llewellyn apertou os lábios e acrescentou glacial-mente:
— Se lhe é essencial saber: empoei o rosto, escovei os cabelos ao espelho de minha penteadeira. Atrasei-me... para compor-me um pouco... eu sabia que ia ser uma provação.
— E durante essa preparação espiritual, o que fazia ou dizia sua filha?
— Não dizia nada. Acendeu um cigarro e fumava...
— Nada mais? Nenhuma outra indicação de atividade?
— Deve haver cruzado as pernas ou dobrado as mãos... não prestei atenção. — A mulher falou, com um sarcasmo desmoralizador: — Oh! sim. Foi até a mesinha de cabeceira e serviu-se de um copo de água do jarro.
Vance inclinou a cabeça.
— Impulso natural. Nervoso, perturbação. Cigarros demais. Garganta seca. Sim. Tudo em ordem... — Levantou-se e inspecionou o jarro na mesinha de cabeceira entre a cama e a cadeira em que sentava a Sra. Llewellyn.
— Vazio — observou. — Estava sedenta. Sim. Ou talvez... — Ele voltou a sentar na beira do leito e pareceu meditar. — Vazio — repetiu, e balançou a cabeça pensativa-mente. — Tremendamente engraçado! Todas as garrafas de água vazias esta noite. No Cassino. No quarto da Sra. Lynn Llewellyn. E agora, aqui. Grande pobreza de água... — Olhou para cima rapidamente: — Onde, Sra. Llewellyn, é a entrada para o quarto de sua filha?
— A porta ao fim do pequeno corredor que leva do vestíbulo ao começo das escadas. — Ela inspecionava Vance com uma curiosa preocupação onde se patenteava um forte antagonismo.
Vance se dirigiu a Heath:
— Sargento, dê uma olhadela no serviço de água do quarto da Srta. Llewellyn.
Heath saiu com alacridade. Poucos minutos depois, voltou.
— Está vazia... — informou, espantado.
Vance levantou-se e, caminhando para um cinzeiro na mesinha do telefone, ali pôs o cigarro. Demorou-se, pensativamente, no fazer isso:
— Sim... sim... claro. Tinha de ser. Como eu dizia. Água, não há água em lugar algum... apenas algumas gotas para beber — o quê? O inverso do Antigo Marinheiro... — Ergueu a cabeça e novamente encarou a Sra. Llewellyn: — Quem enche os jarros?
— A criada, naturalmente.
— Quando?
— Depois do jantar, quando vai preparar as camas para a noite.
— Costuma esquecer-se?
— Nunca. Annie é muito competente.
— Bem, bem. Falarei com Annie amanhã de manhã. Questão de rotina. Agora, continue, Sra. Llewellyn: sua filha acendeu um cigarro, serviu-se de um copo dágua, e a senhora gentilmente atendeu ao nosso chamado. Depois, quando voltou...?
— Amélia continuava sentada nesta cadeira. — A mulher não movera os olhos de Vance. — Ela ainda estava fumando. Queixou-se, porém, de uma tremenda dor de cabeça acima dos olhos, e o rosto estava congestionado. Disse que toda a cabeça latejava e havia um zumbido em seus ouvidos.
Disse também que se sentia tonta e fraca. Não dei a isso maior importância, levei à conta da excitação nervosa, e disse-lhe que se metesse na cama. Disse que assim o faria — que se sentia muito mal — e então falou incoerentemente a respeito de Virgínia, e levantou-se. Apertou as têmporas com as mãos e se encaminhou para fora. Estava chegando à porta quando oscilou de um para outro lado e caiu ao chão. Sacudi-a, falei-lhe. Penso que então gritei — coisas horríveis estavam acontecendo nesta noite e eu estava esgotada. Esse cavalheiro — e indicava Heath — veio e imediatamente chamou todos vocês. Isso é tudo que tenho para dizer-lhe.
— E foi bastante... — murmurou Vance. — Muito obrigado. A senhora explicou muito bem. Perfeita descrição do desmaio de seu filho, também. Exatamente. Paralelo. Só que ele aconteceu no lado oeste da cidade... e sua filha no lado leste. Foi assim mesmo. Respiração pesada, pulso rápido demais. Porém os mesmos sintomas. Ele conseguiu safar-se bem. Sua filha o fará ainda melhor, pois teve socorros médicos imediatos...
Vagarosamente puxou a cigarreira e cuidadosamente escolheu um Régie. Acendeu-o e enviou ao teto um azul anel de fumaça.
— Imagino quem ficará desapontado com a recuperação! Imagino... Situação interessantíssima. Interessante porém trágica. Trágica mesmo... — Mergulhou nos seus sombrios pensamentos.
Kinkaid entrara no quarto e agora sentava na beira de uma mesa para fumantes.
— Está certo de que é veneno? — perguntou, com aqueles olhos de peixe fixos em Vance.
— Veneno? Sim, sim. Sintomas de excitação, naturalmente. Quando ocorre colapso, ou desmaio, por causas naturais, a pessoa reage ao ter a cabeça abaixada e cheirar sais. Isto é diferente. A mesma coisa aqui como com seu sobrinho. Com uma diferença, contudo: Lynn teve a dose maior.
O rosto de Kinkaid parecia uma máscara; quando falou novamente mal movia os lábios:
— E como um danado de um louco ainda lhe dei a beber da minha garrafa.
Vance acenou com a cabeça:
— Sim. Observei isso. Grave asneira de sua parte... falando "ex post jacto".
O mordomo tornou a aparecer na porta; falava diretamente a Vance: — Perdão, senhor. Penso que não me julgará um intrometido. Ouvi-o perguntar a respeito dos jarros dágua, e tomei a iniciativa de acordar Annie e perguntar-lhe sobre isso. Assegurou-me, senhor, que encheu todos eles ontem à noite, como de costume, quando preparara os quartos logo depois do jantar.
Vance olhou admirativamente para o pálido homem:
— Excelente, Smith! — exclamou. — Fico-lhe muito grato!
— Obrigado, senhor!
Chegou-nos o som da campainha da porta. O mordomo apressou-se a atender. Poucos momentos depois o Dr. Kane, ainda em traje de cerimônia e carregando uma valise, entrou às pressas. Estava mais pálido que da última vez que o vira, e havia sombras sob os seus olhos. Foi diretamente ao leito onde jazia Amélia inconsciente. Havia em sua expressão uma angústia muito mais pessoal que profissional.
— Sintomas de colapso — disse-lhe Vance, de pé a seu lado. — Pulso irregular, respiração arfante, palidez, etc. Estimulantes drásticos são o indicado. Primeiro cafeína — três grãos — depois digitális. Talvez a adrenalina não seja necessária... Não faça perguntas, doutor. Trabalhe rápido. Minha responsabilidade. Já passei por isso esta noite.
Kane seguiu as instruções de Vance. Senti-me deprimido, por ele, embora, na ocasião, não pudesse explicar minha atitude. Ele me impressionava como um personagem patético, um fraco dominado pela forte personalidade de Vance.
Enquanto Kane estava no banheiro preparando a injeção, Vance preparava o braço de Amélia para recebê-la. Depois que a cafeína foi administrada, Vance virou-se para nós:
— Melhor que nos retiremos todos.
— Está-me incluindo? — perguntou a Sra. Llewellyn altivamente.
— Será o melhor — disse Vance.
A mulher aquiesceu raivosamente, precedendo-nos à porta.
Pouco depois o Dr. Kane se reuniu a nós no salão.
— Ela está reagindo — falou a Vance, em voz trêmula de emoção. — O pulso está melhor e sua cor mais normal, está-se movendo um pouco e tentando falar.
Vance se levantou.
— Excelente. Ponha-a na cama, Sra. Llewellyn. E o senhor, doutor, por favor fique um pouco e dê uma olhada nas coisas. — Ele se dirigiu para a porta. — Voltaremos de manhã.
Quando saíamos, chegou o coche para levar o cadáver de Virgínia Llewellyn. A garoa acabara, mas a noite ainda estava úmida e fria.
— Caso angustiante — comentou Vance para Markham, quando deu a partida no carro, dirigindo-se à cidade. — Há algo de infernal acontecendo. Três pessoas envenenadas — uma está morta; as outras duas estão sob cuidados médicos. Quem será o próximo? Por que estamos aqui, Markham? Qual a razão de tudo? E há toda uma eternidade para se vadiar. Pensamento deprimente. Contudo... Ele suspirou. — Há uma grande escuridão. Não consigo encontrar o caminho. Há muitos obstáculos que impedem nosso trilhar. Mentiras e realidades misturadas — e apenas um caminho aberto para nós — o da fantasia, que leva ao pior crime de todos...
— Não compreendo. — Markham estava sombrio e perturbado. — Naturalmente sinto alguma influência estranha...
— Oh, é muito pior que isso — interrompeu Vance. — Estava tentando dizer que este caso é de um crime dentro de outro: espera-se que nós efetuemos o horror final. O tom básico desta macabra sinfonia deve ser que prendamos uma pessoa inocente. Toda a técnica se fundamenta numa decepção enorme. Espera-se que sigamos a aparente verdade — e não será absolutamente a verdade, mas a mentira pior e mais diabólica de uma trama muito sutil,
— Você está exagerando. — Markham tentou ser realista. — Afinal de contas, Lynn Llewellyn e sua irmã estão-se recuperando.
— Sim, sim. — Vance concordou soturnamente, sem tirar os olhos da estrada. — Houve um erro de cálculo, o que torna a história bem mais difícil de apurar.
— Acontece, porém... começou Markham, mas Vance o interrompeu impacientemente.
— Meu caro amigo! Essa é a pior parte da história. —
Acontece. Tudo acontece. Não há um esboço. O caos é geral. Acontece que Kane receitou drágeas para rinite que continham a droga que provoca os mesmos sintomas horríveis da morte de Virgínia. Acontece que Amélia estava no guarda-roupa no momento exato em que escutou o grito de Virgínia e pôde testemunhar sua morte. Acontece que Lynn e sua mulher foram envenenados praticamente ao mesmo tempo, embora estivessem em lugares opostos da cidade. Acontece que Amélia bebeu a água do jarro de sua mãe. Acontece que estavam todos em casa hoje à noite na hora do jantar e portanto tinham acesso a todos os banheiros e serviços de água. Acontece que não havia água em qualquer das garrafas, quando nós as examinamos. Acontece que Kinkaid deu a Lynn um gole de sua garrafa dez minutos antes que este desfalecesse. Acontece que eu recebi uma carta e estava presente para testemunhar o desmaio de Lynn. Acontece que o Dr. Kane foi convidado para jantar à última hora. Acontece que nós estávamos na casa quando Amélia foi envenenada. Acontece que Kinkaid chegou a casa naquele exato instante. Acontece que a carta que eu recebi estava com carimbo de Closter, Nova Jersey. Acontece...
— Um momento, Vance. Por que fez esta última observação sobre Closter?
— Acontece que Kinkaid tem uma cabana de caça nos arredores de Closter e passa muito tempo lá, embora eu ache que ele a feche fora das temporadas, como agora — esperando chegar setembro.
— Pelo amor de Deus, Vance! — Markham sentou-se ereto e inclinou-se para a frente. — Você não está insinuando...
— Meu caro amigo! — fez Vance, de modo reprovativo. — Não estou insinuando nada: apenas conjeturando, fazendo o que os psicanalistas chamam associação livre... O único ponto que estou tentando sustentar é que a vida é real, e nada há de real neste caso. É trágico — diabòlicamente trágico — mas é um drama de marionetes, e elas estão sendo cuidadosamente preparadas no cenário... com o único fito de decepcionar.
— É obra do demônio — murmurou Markham desesperançadamente.
— Sem dúvida. Um caso definido de culpa luciferiana. Uma idéia suavizante, mas fútil.
— Pelo menos — argumentou Markham — você pode eliminar a mulher de Lynn do enredo. Seu suicídio...
— Oh, meu Deus! — Vance sacudiu a cabeça. — A morte dela é a parte mais sutil e incalculável do argumento. Na verdade, Markham, não foi suicídio. Nenhuma mulher, nas circunstâncias, comete autodestruição daquela forma. Ela era atriz e vaidosa. Amélia nos explicou isso de maneira definida. Você acha que ela se teria dado uma aparência desagradável, com uma aplicação generosa de base e uma rede de cabelos, para sua última grande cena dramática na terra? Oh, não, Markham. Não. Ela fora para a cama do modo convencionalmente mais aprovado e desleixadamente doméstico, com todas as indicações de ter esperado o amanhã — por mais desagradável que pudesse ser... E por que teria gritado em desespero quando o veneno começou a agir?
— Mas o bilhete que ela deixou — protestou Markham. — Certamente isto é bastante indicador.
— Esse bilhete teria sido mais convincente — replicou Vance — se tivesse estado mais em evidência. Mas estava escondido, por assim dizer — dobrado e colocado debaixo do telefone. Esperava-se que nós o encontrássemos. Ela deveria morrer sem saber da existência dele.
Markham estava calado, e Vance continuou a falar, após um momento.
— Mas nós não deveríamos acreditar nele. É esta a parte incrível. Nós deveríamos suspeitar dele — procurar a pessoa que pudesse tê-lo escrito e colocado sob o telefone.
— Puxa, Vance! — A voz de Markham mal se fazia ouvir, devido ao ruído do motor. — Que idéia extravagante!
— Você não entende, Markham? — (Vance parará bruscamente em frente à casa de Markham). — O bilhete e a carta que recebi foram datilografados exatamente da mesma forma deficiente. Obviamente, ambos foram redigidos pela mesma pessoa: mesmo a pontuação e a margem são idênticas. Você realmente acha que uma mulher desesperada, à beira do suicídio, ter-me-ia mandado a carta que recebi?... E isto me lembra..."
Pôs a mão no bolso e, tirando a carta, o bilhete da suicida e a folha de papel em que datilografara algumas linhas na casa dos Llewellyns, passou-os a Markham.
— Você mandaria verificar isto aqui para mim? Faça com que um de seus brilhantes subordinados use lente e faça testes científicos. Apreciaria muitíssimo uma verificação oficial de que as três peças foram feitas na mesma máquina.
Markham pegou os papéis.
— Isto é fácil — disse ele, e encarou Vance com incerteza indagadora. Depois saltou do carro e parou na calçada.
— Você já pensou no que fazer amanhã?
— Oh, sim — suspirou Vance. — A vida tem um jeito de prosseguir, haja o que houver. Tudo volta a seus lugares. Uma geração vai embora, mas o sol continua surgindo. É tudo vaidade e inquietação espiritual.
— Por favor, deixe de lado o Eclesiastes por um momento — pediu Markham. — Que vai fazer amanhã?
— Telefonarei às dez, e iremos à casa dos Llewellyns. Você deve estar lá, sob a alegação do dever, etc. É triste. — Ele falava vivamente, mas a expressão do rosto não condizia com a da voz. Markham deve ter percebido sua importância.
— Acho que suportaria ter contato mais cordial com Lynn e Amélia quando eles se recuperarem. Será por conta de pesquisa. Eles serão os únicos sobreviventes, heroicamente salvos por este seu amigo.
— Muito bem — concordou Markham com acentuado desânimo. — Às dez horas, então. Mas não vejo o que você poderá conseguir interrogando Lynn e Amélia.
— Não digo que isso me levará muito longe...
— Oh, sim — resmungou Markham. — Um passo lhe basta. Eu sei. Sua piedade cristã prevê o mal que as pessoas enfrentarão... Boa noite. Vá para casa. Eu o detesto.
— Sonhe com os anjos.
O carro saiu perigosamente pela rua escorregadia, em direção à Sexta Avenida.
VIII - O ARMÁRIO DE REMÉDIOS
(Domingo, 16 de outubro — 10:00 horas)
Exatamente às dez da manhã Vance parou o carro em frente ao apartamento de Markham. O tempo tinha clareado um pouco, mas o ar ainda estava frio, e o céu encoberto. Markham estava esperando por Vance no vestíbulo. Ele estava carrancudo e impaciente, e seu olhar era perturbado. Os jornais da manhã traziam breves relatos da morte de Virgínia Llewellyn, e as manchetes eram lúgubres. Havia uma afirmação breve e sem compromisso de Heath, e meia coluna com a história da família. Não foram citados o envenenamento de Lynn Llewellyn no Cassino nem o desfalecimento de Amélia Llewellyn em casa. O sargento deve ter cuidadosamente evitado qualquer citação das duas ocorrências. Mas a história era suficientemente estranha: a própria ausência de detalhes lhe acrescentava mistério e incentivava a especulação pública. A explicação dada era de suicídio e o bilhete suicida era acentuado — embora, segundo os relatos, a polícia não tivesse divulgado seu teor. Muitas fotografias — de Virgínia, da Sra. Llewellyn e Kinkaid — acompanhavam o texto. Markham carregava os jornais amassados debaixo do braço quando saiu para a calçada.
— Caro Justiniano! — cumprimentou-o Vance. — Estou surpreso e deliciado. Você está pronto na hora. E já tomou café? Que devoção comovente aos seus deveres cívicos!
— Ademais — rosnou Markham com evidente mau humor — fiz com que um de nossos técnicos trabalhasse neste domingo e o mandei com todos os papéis datilografados para o laboratório. Tirei também Swacker{11} da cama e disse-lhe que fosse para o escritório.
Vance balançou a cabeça admirativamente.
— Estou positivamente desnorteado por suas atividades matinais.
Quando chegamos à casa dos Llewellyns, o mordomo nos abriu a porta. Heath estava no vestíbulo, parecendo sério e empertigado. Snitkin e Sullivan também estavam, fumando pausadamente e parecendo entediados.
— Alguma novidade, sargento? — perguntou Markham.
— Se o senhor quiser usar esse nome... — O sargento estava irritadiço. — Dormi três horas, e já enfrentei os repórteres. Não há qualquer pista. Estava esperando pelos senhores. — Mudou o charuto para o outro lado da boca. — Estão todos na casa. A velha desceu às oito e meia e se trancou na biblioteca.
Vance virou-se para ele.
— É mesmo? E quanto tempo ficou lá?
— Cerca de meia hora. Depois subiu de novo.
— Alguma notícia sobre a jovem?
— Acho que está bem. Eu a ouvi andando por aí e falando. O Dr. Kane chegou há meia hora. Está lá em cima com ela.
— Você já viu Kinkaid esta manhã? Heath bufou:
— Sim, eu o vi. Desceu cedo e contente. Ofereceu-me um drinque, e disse que ia sair. Eu o avisei, porém, que deveria ficar, até que eu recebesse instruções do procurador distrital.
— Ele objetou? — perguntou Vance.
— Não. Disse que não havia problema. Parecia até satisfeito. Falou que tomaria todas as providências por telefone, pediu um gim e voltou para cima.
— Gostaria de ter escutado seus telefonemas — murmurou Vance.
— Não lhe teria servido de nada — disse-lhe Heath, com um gesto de desprezo desgostoso. — Escutei no telefone daqui de baixo. Ele falou com o irmão em casa, e com o camarada chamado Bloodgood e o caixa do Cassino. Só assuntos comerciais. Não falou com nenhuma mulher.
— Nenhum chamado interurbano? — perguntou Vance de modo casual.
Heath tirou o charuto da boca e olhou-o astutamente:
— Sim... um. Ele ligou para um telefone de Closter.
— Ah!
— Mas não houve resposta, e ele desligou.
— Isto me decepciona muito — comentou Vance. — Você se lembra do número?
Heath deu um sorriso triunfante.
— Claro. E descobri tudo sobre ele. É da velha cabana de caça que ele tem nos arredores de Closter.
— Ótimo! — Vance fez um sinal de aprovação. — Houve algo mais, sargento?
— O rapaz chegou há mais ou menos vinte minutos.
— Lynn?
Heath confirmou com a cabeça, indiferentemente.
— Parecia bem tonto, mas está longe de ter outra coisa mais séria. Quis até brigar comigo e Snitkin. — O sargento sorriu amargamente. — Acho que ele não sabia das notícias; embora, julgando pelo que andei escutando, ele não se fosse mesmo importar. Não lhe contei nada — disse-lhe simplesmente que era melhor que ele subisse para falar com a mãe. Isto é tudo que houve.
Vance sacudiu tristemente a cabeça:
— Você não me está ajudando muito, sargento. E eu tinha esperanças. Porém... — Ele olhou para Markham e suspirou pensativamente. — Estamos condenados ao papel do castor — trabalho e mais trabalho. Vamos falar com Lynn e Amélia, mas primeiro acho que vou dar mais uma olhada no quarto de Virgínia. Talvez algo tenha passado despercebido. — Subiu as escadas, e Markham e eu o seguimos.
Quando nos aproximamos do lance superior, chegou-nos o som histérico de uma voz, vindo do quarto de Virgínia, embora não pudéssemos distinguir as palavras. Quando chegamos ao vestíbulo de cima, deparamos com a cena trágica. Pela porta aberta no fim do corredor pudemos ver a Sra. Llewellyn sentada em uma cadeira perto da cama e Lynn ajoelhado à sua frente. Olhava excitadamente para a mãe e lhe agarrava os braços. A cabeça da mulher pendia para a frente e a mão estava no ombro do filho. Ambos estavam de lado, e parece que não deram conta de nossa presença próxima.
A voz alta e soluçante de Lynn nos chegava agora distintamente:
— Querida! — gritava ele. — Diga-me que não foi você! Por Deus, diga que não foi você! Você sabe que eu a amo... mas não queria isso! Você não é culpada, é? — A agonia em sua voz me deu um arrepio.
Vance pigarreou para que eles notassem nossa presença, e ambos voltaram as cabeças rapidamente para nós. Lynn ergueu-se e saiu do nosso alcance. Quando entramos no quarto, ele estava perto da janela da frente, com as costas para nós. A Sra. Llewellyn não havia deixado a cadeira, mas se sentara eretamente, e acenou formalmente quando entramos.
— Sentimos intrometer-nos, senhora — disse Vance, com uma reverência, — Mas, segundo o que nos contou o sargento Heath, esperávamos que este quarto estivesse desocupado. De outra forma, teríamos pedido que nos anunciassem.
— Não importa — replicou a mulher. — Meu filho quis vir aqui, por alguma razão mórbida. Acaba de saber que sua mulher morreu.
Lynn estava agora de frente para nós. Os olhos, convulsos e vermelhos; e ele tentou limpar a evidência de lágrimas recentes.
— Perdoem-me, senhores — desculpou-se, com uma inclinação para Vance. — A notícia foi um choque terrível. Estou muito... muito nervoso, e fora de mim.
— Sim, claro. Nós entendemos — disse Vance. — Um assunto trágico. E eu estava no Cassino a noite passada. O senhor recebeu um grande choque. Sua irmã teve experiência semelhante aqui, a noite passada. Ainda bem que estão ambos salvos.
Lynn fez um gesto vago com a cabeça e olhou em volta, com olhos esgazeados.
— Não... não posso entender — murmurou.
— Estamos aqui para fazer o possível — disse-lhe Vance. — Vamos querer conversar com o senhor mais tarde. Nesse meio tempo, o senhor se importaria em esperar em outro lugar? Temos de examinar umas coisas antes.
— Esperarei no salão. — Dirigiu-se pesadamente para a porta, e, quando passou pela mãe, deu-lhe um olhar patético, que ela devolveu inexpressivamente.
Quando ele deixou o quarto, a Sra. Llewellyn se virou para Vance.
— Lynn — disse, com um sorriso triste — praticamente me acusou de responsável pelos acontecimentos trágicos da noite passada.
Vance fez um gesto de compreensão.
— Lamento que sem querer tenhamos ouvido algumas das coisas que ele lhe disse. Mas a senhora não se deve esquecer que ele está fora de si hoje.
A mulher não pareceu ter ouvido o que Vance dissera.
— Claro — explicou ela — que Lynn não acredita nas terríveis insinuações que fez. O pobre está sofrendo muito. Tudo foi um grande choque para ele, que busca cegamente uma explicação. Ele teme vagamente que eu seja responsável. Queria poder ajudá-lo; ele está mesmo sofrendo. — Apesar da profunda preocupação que suas palavras indicavam, a voz era áspera e artificial.
Vance a contemplou um instante. As pálpebras lhe caíram sobre os olhos, emprestando-lhe uma expressão lânguida.
— Compreendo perfeitamente o que sente — disse — mas por que seu filho suspeitaria da senhora?
A Sra. Llewellyn hesitou antes de responder, depois os músculos faciais enrijeceram, como se afetados por uma decisão súbita e angustiante.
— Acho que devo dizer-lhe que fiz cerrada oposição a que se casasse com Virgínia. Não gostava dela — ela não o merecia. Talvez eu tenha sido franca demais em minhas observações a ele; temo que ainda não tenha dominado meus sentimentos a esse respeito. Contudo, não podia disfarçar, em assunto tão vital para a felicidade de meu filho. — Apertou os lábios e continuou. — Pode ser que ele tenha interpretado mal minha atitude, e levado meus comentários mais a sério do que eu intencionava.
Vance fez um gesto discreto com a cabeça.
— Entendo o que quer dizer — murmurou. Depois acrescentou, sem deixar de encarar a mulher: — A senhora e seu filho são excepcionalmente unidos.
— Sim. — Ela concordou, com um olhar abstraído. — Ele sempre dependeu de mim.
— Um caso de fixação materna, talvez — sugeriu Vance.
— Pode ser. — Ela olhou para o chão e disse, após um momento: — Isto justificaria seus temores e desconfianças em relação a mim.
Vance dirigiu-se à lareira:
— Sim, esta poderia ser uma explicação, mas não vamos entrar agora nessa possibilidade. Mais tarde, talvez. Entretanto...
A mulher ergueu-se vigorosamente.
— Estarei no meu quarto, se o senhor quiser falar comigo novamente. — Deu largas passadas em direção à porta e a fechou, após sair.
Vance contemplou a ponta do cigarro meditativamente:
— Qual o significado de todos os detalhes íntimos? Ela não estava nada preocupada consigo mesmo, e na verdade parecia até contente que tivéssemos surpreendido Lynn histérico e de joelhos. Será... Doloroso e intrigante, Markham. — Levantou a cabeça e examinou o quarto. — Vejamos se encontramos algo novo. Qualquer coisa. A mais leve sugestão. Os antecedentes do caso são, todos, nebulosos. Para dizer a verdade, Markham, não sei nada. Minha mente está totalmente desorientada. Tenho certas suspeitas, porém...
Encaminhou-se para a penteadeira e estudou os inúmeros cosméticos.
— Os artigos comuns — murmurou, abrindo a gaveta e olhando-a. — Sim, tudo normal. Sombras de olho, máscara, lápis de sobrancelha — todos os acessórios da vaidade. Que não foram usados a noite passada. Isto indica, como disse, morte inesperada e não premeditada. Fechou a gaveta e foi para a lareira, parando em frente de uma prateleira com livros. — Novelas francesas de variedade barata. A senhora tinha horrível gosto literário. — Pegou o antiquado relógio de porcelana que estava em cima da lareira. — Com corda — e certo. — Inclinou-se para dentro da lareira. — Nada — queixou-se. — Nem uma ponta de cigarro. — Moveu-se pelo quarto, observando cuidadosamente todos os itens de mobiliário e decoração, e finalmente parou ao pé da cama. — Acho que nada aqui nos ajudará, Markham. — Fumou por um segundo, e virou-se para o fundo do quarto, sem entusiasmo. — O banheiro, uma vez mais — suspirou. — Só por precaução...
Foi até o banheiro e lá passou algum tempo, reinspecionando o armário de remédios. Quando voltou ao quarto, seu olhar estava perturbado.
— Que estranho! — murmurou para ninguém em especial. Depois levantou a vista para Markham. — Juraria que alguém andou mexendo nos vidros de remédio desde que eu os examinei a noite passada.
Markham não se impressionou.
— Por quê? — perguntou impacientemente. — E, mesmo se fosse verdade, que importância teria?
— Não sei responder a nenhuma de suas perguntas — replicou Vance. — Mas a noite passada gravei uma imagem nítida dos — como direi? — esboços dos vidros, caixas e tubos do armário — certo equilíbrio de disposição dos ângulos e planos, tal como num quadro de Picasso. E agora as proporções e relacionamentos das linhas e quadrados não são os mesmos. Há uma leve distorção dos valores da noite passada: é como se alguma força tivesse sido removida ou alguma forma linear acentuada — o quadro foi modificado de alguma forma. Mas aparentemente não falta nada no armário — chequei cada item. — Deu uma tragada funda no cigarro. — Contudo, há diferença — uma marca de creiom ou uma rasura em algum lugar.
— Parece oculto — murmurou Markham.
— Ouso dizer que sim — concordou Vance. — Provavelmente. De qualquer forma, não gosto disso. Perturba minha sensibilidade estética. — Deu de ombros e voltou à cabeceira da cama.
Ficou algum tempo examinando a mesinha de cabeceira, com um cinzeiro, telefone e abajur de seda. Puxou, então, lentamente a gavetinha.
— Que é isto? — Subitamente tirou de lá um revólver de aço. — Ele não estava aí a noite passada, Markham. Surpreendente! — Estudou o revólver e o devolveu cuidadosamente ao mesmo lugar.
Markham estava mais animado.
— Tem certeza de que não estava aí ontem, Vance?
— Claro. Não é miragem.
— Mesmo assim — disse Markham, com jeito impaciente — que ligação poderá ter com os envenenamentos?
— Não tenho a mínima idéia — reconheceu Vance calmamente. — Contudo, tem interesse acadêmico. Vamos descer e conversar com o infeliz Lynn.
IX - ENTREVISTA PENOSA
(Domingo, 16 de outubro — 10:30 horas)
Ao entrarmos no salão, Lynn estava estirado numa confortável poltrona, fumando cachimbo. Ao nos ver, levantou-se com aparente esforço e caminhou pesadamente para a mesa de centro.
— Que fizeram, afinal? — perguntou roucamente, os olhos turvos indo de um a outro de nós.
— Por enquanto, nada — Vance mal dava atenção ao homem e se encaminhou para a janela da frente. — Esperamos que possa ajudar-nos.
— Tudo que quiserem... — Llewellyn moveu o braço num gesto de dócil complacência. — Mas não vejo em que lhes possa ser útil... Nem sequer sei o que me aconteceu na noite passada. Aposto que estava ganhando muito. — Seu tom se tornara amargo, e havia um ricto sarcástico em seus lábios.
— Quanto ganhou? — perguntou Vance com naturalidade, e sem se voltar.
— Mais de trinta mil. Meu tio me disse, esta manhã, que os guardara no cofre para mim. — Os músculos da mandíbula tremeram: — Mas quero quebrar aquela danada banca.
— A propósito — Vance voltou para o centro da sala e sentou-se junto à mesa — notou algum sabor peculiar no uísque ou na água que bebeu ontem à noite?
— Não, não senti. — A resposta veio sem hesitação. i— Pensei nisso esta manhã... tentei recordar... mas nada havia de errado, tanto quanto me lembro... embora, na ocasião, eu estivesse muito excitado — acrescentou.
— Sua irmã bebeu um copo dágua no quarto de sua mãe, na noite passada — continuou Vance — e teve um colapso com os mesmos sintomas que você mostrou.
Lynn acenou que sim:
— Sei. Mas não posso imaginar a coisa. Tudo é um pesadelo...
— Exatamente isso — concordou Vance. Então, após uma pausa, relanceou o olhar para cima: — Ouça, Sr. Llewellyn, ocorreu-lhe que sua esposa possa haver cometido suicídio?
O rapaz parou de repente e, dando uma volta, fixou Vance, espantado:
— Suicídio?... não... não... não tinha razão para isso... — Interrompeu-se de súbito. — Mas nunca se pode saber — resumiu numa voz forçada, reprimida. — Pode ser, claro. Não havia pensado nisso... Realmente pensa que foi suicídio?
— Achamos uma nota a respeito — respondeu Vance, calmamente.
Por um momento, Llewellyn nada disse. Deu alguns passos para a frente: depois voltou e sentou na mesma poltrona em que o havíamos encontrado.
— Posso ver essa nota? — perguntou, lentamente.
— Não a temos conosco agora. — Vance falou de modo simples. — Eu a mostrarei mais tarde. Está datilografada — dirigida a você — e fala de sua infelicidade aqui, e da bondade de seu tio para com ela. E lhe deseja a melhor sorte na roleta. Isso foi tudo. Cuidadosamente dobrada debaixo do telefone.
Llewellyn não fez um só movimento. Olhava em frente, sem qualquer comentário ou indicação facial sobre o que pensava. Finalmente Vance tornou a falar:
— O senhor possui um revólver, Sr. Llewellyn? — perguntou.
O homem ficou rígido na cadeira e olhou para Vance interrogativamente:
— Sim, tenho, mas não vejo a relação...
— E onde costuma guardá-lo?
— Na gaveta da mesa de cabeceira, perto da cama. Já tivemos uns dois sustos com ladrão.
— Não estava na gaveta a noite passada.
— Naturalmente. Eu o tinha comigo. — Llewellyn examinava Vance, com o cenho carregado.
— O senhor sempre o leva quando sai? — perguntou Vance.
— Não — raramente. — Mas geralmente o carrego quando vou ao Cassino.
— Por que o senhor ressalta o Cassino especialmente?
Llewellyn parou antes de responder, e subitamente lhe veio um olhar de animosidade.
— Nunca sei o que me pode acontecer lá — disse finalmente, entre dentes cerrados. — Meu tio e eu não nos adoramos exatamente. Eu gostaria de ficar com o dinheiro dele, e ele com o meu. Para lhe ser franco: não confio nele. E os acontecimentos da noite passada podem ou não justificar minha desconfiança. De qualquer modo, tenho minha teoria sobre o acontecido.
— Não lhe pediremos que a exponha agora, Sr. Llewellyn — replicou friamente Vance. — Também tenho idéias. Não adianta confundir o assunto com especulações. Então o senhor levou o revólver para o Cassino e depois o recolocou na gaveta da mesinha de cabeceira hoje de manhã: é isto?
— Sim. Foi exatamente o que fiz. — Llewellyn tinha um tom agressivo.
Markham fez uma pergunta:
— O senhor tem licença de arma?
— Naturalmente. — Llewellyn sentou no fundo da cadeira.
Vance levantou-se novamente e o encarou.
— E o Sr. Bloodgood? — perguntou. — Ele representa outra razão para seus temores?
— Confio nele tanto quanto em Kinkaid... se é isso que o senhor quer saber — retrucou o homem firmemente. — Ele é dominado por Kinkaid. Faria qualquer coisa que meu tio lhe mandasse. É frio como um peixe, e ganharia muito se pudesse jogar as cartas como deseja.
Vance fez um gesto de entendimento.
— Sim... certo. Vejo o que quer dizer. Sua mãe praticamente nos disse que ele quer casar com sua irmã.
— É verdade. E por que não? Seria um grande "golpe do baú".
— Sua mãe nos disse também que sua irmã repetidamente recusou-lhe os pedidos de casamento.
— Isto não quer dizer nada. — Havia certo tom de amargura na voz. — O entusiasmo de Amélia pela arte não é muito grande. Ela está apenas temporariamente entediada com a vida. Vencerá a face e se casará com Bloodgood com o tempo. Em sua maneira superficial e fria, ela gosta dele. Lynn fez uma pausa e acrescentou com desdém: — Esses dois fariam uma ótima combinação.
— Comentários esclarecedores — murmurou Vance. — E o jovem Dr. Kane?...
— Oh, ele não conta. Tem sérias intenções para com Amélia, e sempre será seu escravo. Ela acha isso ótimo e ocasionalmente o encoraja.
— Uma família patética — comentou Vance. Llewellyn não se ofendeu. Deu um ligeiro sorriso e disse:
— Exatamente. Como todas as famílias antigas com dinheiro demais e sem objetivos, a não ser instilar ódio e armar tramas.
Vance olhou para Lynn com curiosidade vaga, quase patética:
— O senhor conhece alguma coisa sobre veneno? — perguntou inesperadamente.
O homem deu um sorriso sem graça: a pergunta não o impressionou muito.
— Não — disse, rapidamente. — Mas evidentemente alguém por aqui sabe muito sobre veneno.
— Há muitos volumes extensos sobre o assunto na pequena biblioteca — fez Vance, com um gesto de mãos.
— O quê? — Lynn parecia surpreso. — Livros sobre veneno... aqui? — Encarou Vance alguns instantes, depois se afundou ainda mais na cadeira e começou a mexer o cachimbo.
— O fato o surpreende? — A voz de Vance era suave.
— Não, não, claro que não — respondeu Lynn, quase inaudivelmente. — Só por um instante, mas depois me lembrei do interesse científico de meu pai... provavelmente alguns de seus livros velhos...
A testa de Lynn estava franzida: os olhos se estreitaram, em intensa especulação. Dava a impressão de estar tendo suspeitas desagradáveis, e se manteve quase rígido.
Sem parecer fazê-lo, Vance o observou por vários instantes antes de falar.
— Isso é tudo agora, Sr. Llewellyn — disse polidamente. — O senhor pode subir. Se precisarmos falar-lhe de novo, o avisaremos. É melhor que o senhor hoje repouse. Perdoe-me por havê-lo aborrecido com a citação dos tratados de toxicologia.
O homem se erguera e já estava à porta.
— O senhor não me aborreceu — disse, parando. — Kane é médico, Bloodgood formou-se em química na Universidade, e Kinkaid escreveu um capítulo inteiro sobre venenos orientais em um de seus livros de viagem...
— Sim, entendo perfeitamente — interrompeu Vance impacientemente. — Eles não precisariam recorrer aos livros, claro. E se os livros foram usados como fonte de informação para o que aconteceu aqui ontem, isto poderia limitar as coisas ao senhor, sua mãe e sua irmã. E o senhor e sua irmã foram vítimas do enredo, de modo que resta sua mãe como a pessoa que poderia ter usado os livros. Foi isto o que o senhor pensou?
Lynn fez um movimento agressivo.
— Não, nada disso! — protestou vigorosamente.
— Enganei-me — murmurou Vance, com uma nota curiosa de solidariedade na voz. — Eu quis dizer o seguinte, Sr. Llewellyn: por alguma razão, o senhor mexeu no armário de remédios esta manhã?
O homem balançou a cabeça.
— Não, tenho certeza que não.
— Não importa. Alguém mexeu. — Vance voltou à cadeira, e Lynn, com um encolher de ombros, saiu do aposento.
— O que é que você acha dele, Vance? — perguntou Markham.
— Ele está sofrendo. — Vance suspirou pensativamente. — Cheio de idéias mórbidas, e se preocupando abominavelmente com a "mama". Caso triste...
— Ele disse ter uma teoria sobre o ocorrido a noite passada. Por que você não quis que ele a expusesse?
— Teria sido muito cruel, revelar seu estado de espírito. Já não agüento a situação como está, e não vou suportar muito mais, Markham. Quero ir embora, ver o sol, Papai Noel, comer linguado, escutar Beethoven...
X - O RELATÓRIO POST-MORTEM
(Domingo, 16 de outubro — 11:15 horas)
O sargento Heath surgiu à porta.
— O jovem doutor está descendo. O senhor quer vê-lo? Vance hesitou, depois fez que sim.
— Sim, peça-lhe que entre, sargento.
Heath desapareceu, e um momento mais tarde o Dr. Kane entrou no salão. O rosto estava abatido e perturbado, como se ele não tivesse descansado, mas não havia apreensão em seu olhar. Seus modos eram quase cordiais quando nos cumprimentou.
— Como está sua paciente? — perguntou-lhe Vance.
— Praticamente normal, senhor. Fiquei aqui umas duas horas depois que os senhores saíram a noite passada, e a Srta. Llewellyn repousava calmamente quando fui embora. Naturalmente, ela está fraca e muito nervosa, mas o pulso, respiração e pressão estão normais.
— O senhor tem idéia, doutor, — perguntou Vance — da droga que causou o problema à Srta. Llewellyn?
O Dr. Kane apertou os lábios e olhou para o vácuo.
— Não — ele replicou afinal — embora seja lógico que eu tenha pensado muito sobre o assunto. Ela estava com os sintomas normais de colapso — nada há de diferente sobre eles — e há, evidentemente, muitas drogas que, terapeuticamente falando, poderiam tê-los produzido. Uma dose excessiva de qualquer soporífero com barbitúricos poderia tê-los motivado. Mas, o senhor deve entender que não posso afirmar uma opinião. Tenciono pesquisar um pouco sobre o assunto assim que voltar ao consultório.
Vance não insistiu. Deixou que o médico se fosse e mandou chamar o mordomo.
Smith estava imperturbável como sempre e o rosto pálido.
— Diga, por favor, à Srta. Llewellyn — falou Vance — que gostaríamos de falar-lhe, no seu quarto ou no salão — como lhe for mais conveniente.
O mordomo se inclinou e saiu. Quando voltou, informou que a Srta. Llewellyn nos receberia no quarto, e subimos.
A moça estava numa espreguiçadeira, vestida com pijamas japoneses cuidadosamente bordados. A seu lado havia um pequeno tamborete de laça vermelho, no qual se viam um estojo de cigarros, algumas revistas de arte e uma cigarreira de prata, cujo desenho imitava Mercúrio. Ela nos cumprimentou e fez uma tentativa cínica de sorriso.
— Sua visita, segundo depreendi pelo Dr. Kane, por pouco não era feita no necrotério...
— Estamos encantados — disse Vance seriamente — de encontrá-la melhor.
— Mas alguém — disse amargamente — por certo não encarará minha recuperação sob luz tão favorável. — Ela deu
de ombros e fez uma careta. — Estou começando a sentir-me como uma visitante do castelo dos Bórgias. Hoje de manhã fiquei apavorada ao tomar café.
Vance fez um gesto de compreensão.
— Duvido que a senhorita precise temer mais. Algo andou totalmente errado a noite passada. O envenenador deve ter-se confundido com as coincidências imprevistas. E na ocasião em que ele se tiver reorganizado e planejado outra campanha, esperamos já ter a situação sob controle. Pelo menos sabemos onde buscar indícios.
Amélia Llewellyn fez um olhar inquisitivo e todo traço de cinismo desapareceu-lhe do rosto.
— Parece — observou — que o senhor sabe mais do que diz.
— Bem, é verdade. Bem mais, porém não o suficiente. Não perco as esperanças... Já viu seu irmão? Está totalmente recuperado, e ficou pior do que a senhorita.
— Sim — comentou a moça. — Somos dois fracassos. É bem nosso, isso. Estamos sempre desapontando alguém.
— Espero — disse Vance — não a desapontar neste caso. No meio tempo, a senhorita se importaria se eu olhasse no seu armário de roupas e fizesse uma pequena experiência lá?
— Claro que não! — Ela moveu o braço de forma engraçada, para uma porta à sua esquerda.
Vance foi até ela e a abriu. O espaço existente, conforme ela nos explicara a noite passada, era uma passagem antiga que ligara os dois quartos principais da ala sul da casa. Havia uma sapateira e um pequeno armário à direita, e à esquerda estavam pendurados vários vestidos e casacos. Na metade da passagem permanecia uma pia de tampo de mármore. Na outra extremidade do armário improvisado havia outra porta. Vance a abriu, e vimos o grande quarto onde Virginia Llewellyn havia sido assassinada.
Vance voltou até nós e me disse:
— Van, vá ao outro quarto, feche as portas e fique ao lado da cama. Então me chame em voz bastante alta. Quando você me escutar bater na porta mais afastada, chame-me novamente, no mesmo tom de voz.
Passei pelo guarda-roupas para o quarto mais longe e, de pé ao lado da cama onde morrera Virginia, dei um grito. Após instantes, escutei a batida de Vance na porta, e gritei novamente. Então Vance abriu a porta.
— É só, Van. Obrigado.
Quando voltamos ao quarto de Amélia, a moça olhou ironicamente para Vance.
— O que, Sr. Lecop, aprendeu? — perguntou ela.
— Só que a senhorita nos disse a verdade sobre as possibilidades acústicas entre os dois quartos — retrucou Vance. — Não pude escutar o Sr. Van Dine com ambas as portas fechadas, mas o ouvi perfeitamente quando estava no armário de roupas.
A moça deu um suspiro dramático.
— Que bom minha verdade ter sido comprovada uma vez. A principal crítica que minha mãe me faz é que eu prefiro mentir a dizer a verdade.
— Falando de sua mãe — Vance sentou-se e contemplou a moça com olhos graves — quero que a senhorita nos diga como veio beber o copo d'água no quarto de sua mãe a noite passada.
Amélia tornou-se séria rapidamente, à vista do tom de Vance.
— Como é que se toma um gole d'água? Só sei que tive sede e instintivamente peguei a garrafa que estava ao meu alcance. Ia esperar lá que mamãe voltasse. Estava naturalmente nervosa e queria falar com alguém...
— Notou gosto estranho na água?
— Não, parecia normal.
— Quanta água havia no jarro?
— Mal dava para encher um copo. Lembro-me vagamente de ter desejado que houvesse mais. Mas tive preguiça e não me levantei. Quando mamãe voltou, eu estava com uma enxaqueca tremenda, meus ouvidos zuniam, e me sentia terrivelmente fraca. Minha cabeça estava confusa, e me levantei para ir para meu quarto. É tudo de que me lembro.
— A senhorita se lembra perfeitamente de quando sua mãe voltou ao quarto?
— Oh, sim. Nós nos dissemos algo... não sei o quê. Provavelmente me queixei da dor da cabeça... mas tudo rodava à minha volta.
— Quando a senhorita teve sede, mencionou o fato à sua mãe?
A moça pensou um momento, depois respondeu:
— Não. Mamãe estava na penteadeira, embelezando-se para falar com os senhores. Acho que não nos falamos na ocasião. Eu apenas me servi da água do jarro, e mamãe saiu imponentemente do quarto.
— E a água da sua garrafa na noite passada? — perguntou Vance. — A empregada disse que a encheu, mas enquanto a senhorita estava inconsciente no quarto de sua mãe, inspecionamos sua garrafa e ela estava vazia.
— Sim, eu sei que estava. Bebi toda a água que ela continha enquanto desenhava, antes de passar mal. — Os olhos se arregalaram. — Minha água também estava envenenada?
Vance balançou a cabeça.
— Não, não seria possível. Passou muito tempo depois que a senhorita a bebeu. A senhorita teria sentido os efeitos do veneno no máximo em meia hora...
Vance virou-se rapidamente e dirigiu-se para a porta do vestíbulo. Torceu a maçaneta cuidadosamente e logo a abriu. No corredor, estava Richard Kinkaid.
Nem um músculo se moveu para demonstrar que a rápida ação de Vance o desconcertara. Tirou o cigarro rapidamente da boca e fez uma reverência formal.
— Bom dia, Sr. Vance — disse com voz fria. — Desci para saber de minha sobrinha, mas, quando ouvi vozes no quarto, achei que o senhor e o Sr. Markham poderiam estar aqui, e não quis perturbá-los. Mas evidentemente o senhor me escutou...
— Sim, escutei alguém se mexer do lado de fora da porta. — Vance ficou de lado. — Estávamos fazendo algumas perguntas à Srta. Llewellyn, mas já terminamos. Ela melhorou muito esta manhã.
Kinkaid entrou no quarto e, após cumprimentar a sobrinha com uma ou duas frases convencionais, sentou-se.
— Alguma novidade? — indagou, lançando a Vance um olhar calculista e arguto.
— Oh, uma porção — disse Vance. — Estamos juntando as peças, mas é cedo para nos alegrarmos. Contudo, estou satisfeito de que o senhor tenha chegado. Queria perguntar-lhe o endereço de Bloodgood. Estamos ansiosos para conversar com ele.
O queixo de Kinkaid endureceu, e o olhar era inamistoso. Mas não havia outra indicação de que ele estivesse surpreso pelas observações de Vance.
— Bloodgood mora no Hotel Astoria, na Rua 22 — disse, e lentamente sacudiu as cinzas do cigarro no cinzeiro. — Contudo — acrescentou, com ligeiro tom de desprezo — o senhor está batendo na porta errada. Mas prossiga e o interrogue, por favor. Ele ficará o dia todo no hotel — acabei de falar-lhe. Mas o senhor estará perdendo seu tempo... Bloodgood é uma pessoa digna.
— Realmente, não conheço o fulano muito bem — murmurou Vance. — Mas como foi ele que pediu água simples para Lynn ontem à noite no Cassino, talvez seja interessante saber suas opiniões sobre o assunto.
Amélia, que visivelmente enrijecera ao ouvir o nome de Bloodgood, levantou-se e olhou desafiadoramente para Vance.
— O que o senhor quer dizer? — perguntou. — O senhor acusa o Sr. Bloodgood de haver dado o veneno a Lynn?
— Cara senhorita!
— Porque, se o senhor está tentando fazer isso, — prosseguiu a moça em tom zangado — posso dizer-lhe exatamente o responsável por tudo que aconteceu a esta família a noite passada.
Vance a olhou calmamente, e o tom de sua voz era igual ao dela — Quando a verdade for conhecida, Srta. Llewellyn — disse — seu testemunho não será necessário. — Inclinou-se formalmente para ela e para Kinkaid, e saímos.
Quando estávamos para descer ao andar principal, Vance hesitou e dirigiu-se ao quarto da Sra. Llewellyn.
— Há um pequeno assunto que quero mencionar à dona da casa antes de sairmos — explicou a Markham, quando bateu à porta.
A Sra. Llewellyn nos recebeu de mau grado, e seus modos eram de acentuado antagonismo.
Vance pediu desculpas por perturbá-la.
— Quero simplesmente informá-la, por ser de seu interesse, que seu filho pareceu muito perturbado quando lhe comuniquei sobre os volumes de toxicologia da biblioteca. Ele deu a impressão de não saber dessa existência.
— E por que isso me interessaria? — retrucou a mulher com desdém. — Meu filho não lê muito — suas necessidades literárias são inteiramente satisfeitas pelo teatro. Duvido que ele saiba qualquer dos títulos dos livros que o pai lia. Nada lhe interessaria menos que a pesquisa científica. Portanto, sua perturbação com a existência de livros sobre venenos nesta casa é, eu lhe afirmo, perfeitamente natural, dada a experiência por que passou a noite passada.
Vance fez um gesto como se estivesse satisfeito com a explanação.
— Isso é muito possível — ele murmurou. — E talvez a senhora nos possa dar explicação tão colorida para o fato de haver passado parte da manhã na biblioteca.
— Então estou sendo espionada! — A frase foi dita com indignação, mas a mulher mudou rapidamente de atitude. Os olhos se contraíram e um sorriso maroto apareceu-lhe nos lábios. — A insinuação de suas palavras é, suponho, que eu tenha estado consultando os livros sobre venenos.
Vance esperou, e a mulher continuou.
— Bem, foi isso mesmo que eu fiz. Se lhe puder ajudar: estive procurando uma droga comum que pudesse justificar o estado de meus filhos ontem à noite.
— A senhora encontrou essa referência?
— Não, não achei.
Vance deixou o assunto por aí. Despediu-se e acrescentou.
— Não haverá mais espionagem... por algum tempo, pelo menos. A polícia será retirada de sua casa, e a senhora e sua família estão livres para se locomover como desejarem.
Quando descemos, Markham levou Vance ao salão.
— Veja, Vance — perguntou com preocupação — você não está sendo um pouco apressado?
— Caro Markham — Vance repreendeu-o — eu nunca me apresso. Nunca me precipito, sou sempre cauteloso. Preciso ter razões para tudo. E tenho excelentes razões para temporariamente retirar a supervisão da casa dos Llewellyns.
— Ainda assim — resmungou Markham. — Não gosto da situação aqui, e acho que deveria ser vigiada.
— Uma grande idéia, mas que não será útil. — Vance olhou pensativamente para Markham. — Vigiar não nos adiantará. Fui convidado a assistir ao desfalecimento de Lynn. E todos nós estávamos na casa ontem à noite quando Amélia foi atacada. Acho que não se pode esperar que todos os membros da família Llewellyn tenham um guarda-costas indefinidamente.
Markham estudou Vance detidamente, como se tentando ler o pensamento do outro.
— Achei estranho Amélia haver dito que sabia quem era o responsável pelo caso todo. Você acredita nela?
— Oh, meu caro Markham! — Vance suspirou — É cedo demais para começar a acreditar em alguém. Nossa única esperança é o cepticismo total. A dúvida honesta é muito eficiente às vezes. Dá à mente uma oportunidade de agir livremente.
— Não obstante — observou Markham irritadamente, — você está pensando em algo definido, ao querer que a polícia se retire.
— Não, não — retrucou Vance e sorriu. — Estou apenas tateando. E quero ver o relatório post-mortem. Isto, pelo menos, será definido. Pode ser que nos revele algo.
Markham cedeu relutantemente.
— Muito bem. Instruirei Heath para que se retire temporariamente e mande os rapazes para casa.
— E diga-lhe para apanhar nosso crupiê no Astoria e o traga a nosso escritório — disse Vance. — Estou ansioso para "torrá-lo", como diriam vocês, promotores públicos. E acho que os arredores judiciais e deprimentes do edifício do Tribunal poderiam ter o efeito psicológico desejado.
— Que espera saber dele?
— Nada... positivamente, nada — replicou Vance, e acrescentou: — Porém, mesmo a negativa pode ser útil. Tenho uma sensação de que este caso será resolvido por uma pista insignificante.
Markham resmungou, e saímos para o vestíbulo onde o sargento esperava desanimadamente.
Dez minutos mais tarde Vance, Markham e eu seguíamos para a cidade, após Heath haver sido instruído sobre o que Vance solicitara.
Logo que entramos no velho mas espaçoso escritório do procurador distrital, Markham chamou Swacker e indagou-lhe sobre o laudo do Dr. Doremus e sobre o relatório referente aos espécimes de datilografia que haviam sido enviados ao laboratório científico.
— O relatório do laboratório chegou — disse-lhe Swacker, apontando um envelope fechado na escrivaninha — mas o Dr. Doremus telefonou às onze para dizer que o laudo da autópsia está atrasado. Telefonei há dez minutos, e um dos assistentes me informou que o laudo está a caminho. Eu o trarei logo que ele chegue.
Markham mexeu com a cabeça, e Swacker saiu.
— Atrasado, hem? Por quê? — reclamou Vance. — Não deve ter havido problema. Indicou-se que o envenenamento fora por beladona, o toxicologista sabia o que procurar. Será... No meio tempo, vejamos as informações do bravo rapaz da lente.
Markham já havia aberto o envelope. Colocou as três amostras da datilografia em um lado e examinou o relatório que as acompanhava. Depois de alguns momentos, ele também o largou.
— Exatamente o que você suspeitava — disse para Vance sem entusiasmo. — A datilografia foi feita na mesma máquina, e dentro de período razoável de tempo — isto é, a tinta da fita estava na mesma fase de desgaste, e não se pode dizer com certeza que papel foi escrito primeiro. Também o bilhete da suicida e a carta que você recebeu foram provavelmente datilografados pela mesma pessoa. Especificações de pressão e pontuação e as consistências dos erros quando as letras eram batidas são as mesmas em ambos. Há muitos detalhes técnicos, mas esses são os principais. — Ele apanhou o relatório e o entregou a Vance. — Você quer vê-lo?
Vance fez um gesto negativo com a mão.
— Não, só ansiava pela comprovação. Markham se inclinou para a frente.
— Olhe aqui, Vance, qual a importância desses dois documentos datilografados? Considerando que a moça não se matou, qual teria sido o objetivo da pessoa que a envenenou, ao lhe mandar a carta?
Vance ficou sério.
— Na verdade, Markham, não sei. — Andava para cima e para baixo enquanto falava. — Se a carta e o bilhete tivessem sido datilografados por duas pessoas diferentes, a coisa seria comparativamente fácil. Simplesmente significaria que alguém planejara envenenar a moça de modo a parecer um suicídio e que outra pessoa, com um palpite que fora assassinato, me mandara um bilhete dramático de socorro. Nessa circunstância, duas conclusões seriam obtidas: primeira, que o escritor da carta anônima temia que Lynn fosse a vítima; e segunda, que o escritor suspeitava que o próprio Lynn desejava assassinar a mulher e queria que eu o vigiasse...
— E ambos foram vitimados — interrompeu Markham sombriamente. — De modo que essa hipótese não nos leva a lugar algum. De qualquer forma, é só uma especulação, baseada na falsa premissa de que duas pessoas diferentes prepararam os dois documentos. Por que não chegar ao ponto?
— Oh, meu caro! — resmungou Vance. — Estou tentando desesperadamente chegar ao ponto, mas... não sei qual é! Como está o caso, o envenenador deliberadamente chamou minha atenção para a situação e até insinuou fortemente que a mulher de Lynn não se suicidaria, e sim seria assassinada.
— Isto não faz sentido.
— Contudo, Markham, você tem a consubstanciação de minha conclusão aparentemente insana lá na sua mesa. Há o bilhete suicida e a carta para mim; há também seu relatório de que a mesma mão datilografou ambos.
Parou.
— Qual o próximo passo inevitável em sua racionalização? Como sussurrei a seus ouvidos relutantes, acho que o assassino deseja que nos concentremos na direção errada. Ele está tentando o feito impossível de ganhar todas as rodadas da partida com só um curinga, e isso é o que faz tudo tão sutil e diabólico.
— Mas você está omitindo o fato de que foram envenenadas três pessoas. Se sua teoria está correta, por que não poderia o envenenador simplesmente ter envenenado a moça e então envenenado a vítima na qual supostamente nos deveríamos deter? Por que fazer-nos parte do plano, quando o assassino aparentemente está no negócio de envenenamento por atacado?
— Pergunta razoável — concordou Vance — e que me está atormentando desde a noite passada. Esse procedimento teria sido o racional. Mas, Markham, nada há de racional nesse crime. Não há só um espantalho nos enfrentando, e sim uma série deles. Tenho a terrível suspeita de que eles estão dispostos em círculo, com o assassino fora da circunferência. Nossa única esperança é que algo saiu errado. Em qualquer mecanismo delicado e intrincado, uma pequena falha — um escorregão no funcionamento — faz ruir toda a estrutura e torna a máquina incapaz de trabalhar. Esse não é um crime plástico. Apesar de todas as suas hipersensibilidades, divagações e convoluções, é estático e fixo de concepção. E aí estão sua força e sua fraqueza...
Neste ponto, Swacker bateu na porta e empurrou-a. Nas mãos, um envelope grosso.
— O laudo da autópsia — disse, colocando-o na mesa de Markham e saindo novamente.
Markham abriu o envelope imediatamente e olhou para as páginas datilografadas unidas numa pasta azul. À medida que lia, o rosto se enevoava e uma expressão intrigada vinha-lhe aos olhos; quando chegou ao fim das páginas, havia uma ruga profunda na testa.
Ergueu lentamente a cabeça e olhou para Vance, que havia sentado em frente a ele na mesa, com um olhar de cálculo espantado.
— Caro Markham — queixou-se Vance — que segredo terrível você oculta?
— Não havia qualquer sinal de beladona no estômago de Virgínia! Tampouco quinino ou cânfora, o que elimina inteiramente as drágeas de rinite.
Vance acendeu um cigarro com deliberação lenta.
— Algum detalhe? Markham referiu-se ao laudo.
— As conclusões exatas são: congestão dos pulmões; muita cera nas cavidades da pleura; sangue principalmente no lado venoso da circulação; lado esquerdo do coração obstruído, lado direito, comparativamente, vazio; tecidos cerebrais e meninges congestionados, e a garganta, traquéia e esôfago hiperêmicos...
Todos os sintomas de morte por asfixia. — Vance olhou tristemente pela janela. — E nenhum veneno!... Doremus aventurou alguma opinião?
— Nada específico — informou-lhe Markham. — Ele não se compromete profissionalmente. Diz apenas que a causa da asfixia ainda é desconhecida.
— Sim, sim. Depende da análise do fígado, rins, intestinos e sangue. Isso levará uns dois dias. Mas algum veneno deve estar no estômago, se foi tomado oralmente.
— Mas Doremus diz aqui que a história que recebeu do caso e suas opiniões do exame imediato do corpo indicavam uma dose excessiva de beladona ou atropina.
— Soubemos disso a noite passada. — Vance se inclinou e, tomando o relatório, examinou-o detidamente. — Sim. É como você diz.
Sentou-se em sua cadeira, volveu lentamente o olhar para a expressão perturbada de Markham e tragou profundamente. Então atirou o relatório de volta à mesa de Markham com um gesto desanimado.
— É "duro", meu caro. Uma senhora é envenenada, presumivelmente por via oral, mas não se acham traços do veneno. Duas outras pessoas são envenenadas e se recuperam. Espera-se que imputemos a algum inocente a culpa do crime. Oh, meu Deus! Que situação!
XI - MEDO DE ÁGUA
(Domingo, 16 de outubro — 12:30 horas)
Swacker olhou na sala:
— O sargento Heath está aqui com um cavalheiro chamado Bloodgood.
Markham relanceou os olhos para Vance, que acedeu, e disse a Swacker que o fizesse entrar.
Bloodgood estava de mau humor. Um cigarro pendia-lhe dos lábios grossos, e as mãos estavam enfiadas nos bolsos das calças. Fez um aceno para Vance, sem falar, e jogou-se pesadamente na cadeira.
— Prossigam — disse indiferentemente. — Kinkaid me telefonou para avisar que os senhores viriam "tirar meu pêlo".
— É verdade? — Vance olhava pela janela. — Que interessante! Ele lhe disse para tomar cuidado, ou instruiu-o sobre o que contar?
Bloodgood irritou-se.
— Não. Por que deveria ele? Mas me disse que o senhor me ligara ao que aconteceu a Lynn ontem à noite.
— O senhor mesmo se ligou, Sr. Bloodgood — retrucou Vance suavemente, sem tirar os olhos do céu cinza. — Apenas pensamos que o senhor pudesse ter alguma explicação ou sugestão que nos ajudasse a desvendar toda essa trama demoníaca.
O tom de Vance, embora seguro e duro, não era inamistoso, e Bloodgood se impressionou evidentemente, pois se endireitou na cadeira e abandonou os modos agressivos. Na verdade, quando ele falou novamente, dei-me conta de sua urbanidade e postura.
— Não há nada que eu possa explicar, Sr. Vance. O senhor se refere, suponho, a minhas instruções ao criado japonês para levar água pura a Lynn... Coincidência infeliz, apenas isto. Estava somente sendo gentil com um convidado do Cassino... conforme exigido pelo dever. Kinkaid não é pessoa que tenha esse tipo de atenção. Sabia que Lynn não bebia água tônica, e o tinha escutado pedir água pura no início da noite. A maioria dos rapazes sabia de seus gestos, mas Mori está há pouco tempo conosco. Tenho de reconhecer que Lynn não bebe muito quando está no Cassino. Provavelmente leu em alguma parte que a pessoa se deve manter sóbria quando joga. Como se tivesse importância! — Bloodgood deu um riso de escárnio. — A sorte não investiga o estado mental de um homem antes de atacar.
— É verdade — murmurou Vance. — E a lei das probabilidades funciona igualmente para o sóbrio e o bêbado. É, a sorte é totalmente amoral. Pensamento confortador. Mas o único motivo atrás de sua gentileza para com Lynn era seu desejo de cumprir seu dever?
— Um motivo sinistro? — perguntou Bloodgood desconfiadamente, tornando-se rígido.
— Na verdade, eu não especifiquei — Vance fumava plàcidamente. — Por que emprestar a intenção menos caritativa a minhas palavras?
Bloodgood acalmou-se, e um quase sorriso apareceu-lhe.
— Eu talvez venha a me enforcar um dia. Faço uma gentileza, e o favorecido quase morre. O senhor me dá uma faca, e eu a apanho pela lâmina. — Deu de ombros. — A verdade é: normalmente eu não teria interferido com as bebidas de Lynn no cassino — não o estimo em demasia... — mas tive um pouco de pena dele ontem à noite. Kinkaid não gosta dele e quase sempre perde na roleta. Isto faz com que Kinkaid tripudie sobre ele. Ontem ele estava em maré de sorte: já tinha ganho muito do dinheiro perdido em outras noitadas. Então ele se descontrolou — reação psicológica, imagino — ficou nervoso e começou a fazer as coisas mais malucas — cobria as apostas, apostava contra ele próprio, etc. Ele não duraria muito mais. Precisava de um drinque, e quando vi a água tônica, tive vontade de ajudá-lo. Mandei, então, vir a água pura, pois ele não bebera a tônica. De certa forma, foi uma boa coisa: ele deixou de perder cerca de trinta mil, mas minha gentileza me encrencou.
— É, isso acontece. Nunca se sabe, não é? Este é um mundo maroto, sem dúvida. — Vance falava impessoalmente. — O senhor sabe de onde veio a água que tão gentilmente mandou vir?
— Do bar, suponho.
— Não, não. Não veio do bar. Mori foi desviado de sua tarefa. A água veio da garrafa particular de Kinkaid.
Bloodgood sentou-se reto, e os olhos se arregalaram. Vance concordou com a cabeça.
— Sim. Kinkaid disse a Mori para buscar a água no seu escritório. Havia gente demais no bar, foi o que ele me explicou. A água se atrasaria. Ele só estava pensando em Lynn. Todos estavam só pensando no bem-estar de Lynn ontem à noite. Anjos da guarda. Gente muito simpática. E então o ingrato do Lynn desfalece, envenenado.
Bloodgood começou a falar mas fechou rapidamente a boca e, afundando-se na cadeira, olhou reto para a frente, soturnamente.
Após pequena pausa, Vance apagou o cigarro e virou a cadeira de modo a encarar Bloodgood.
— O senhor sabe, claro — perguntou — que a mulher de Lynn morreu ontem à noite?
Bloodgood fez que sim, sem tirar os olhos do vácuo.
— Vi nos jornais da manhã.
— O senhor acredita ter sido suicídio? Bloodgood moveu a cabeça para trás e fixou Vance.
— Não foi? Os jornais disseram ter sido encontrado um bilhete suicida...
— É certo. Mas não inteiramente convincente.
— Mas Virgínia era capaz disso — afirmou Bloodgood. Vance não continuou com o tema.
— Suponho — disse — que Kinkaid lhe disse ao telefone que Amélia Llewellyn escapou por pouco também ontem à noite?
Bloodgood deu um pulo.
— O que? — exclamou. — Ele não me disse nada de Amélia. Que houve? — O homem parecia altamente perturbado.
— Ela tomou um copo dágua — no quarto da mãe — e desfaleceu igualzinho ao irmão. Não houve sérios danos, porém. Ela está muito bem hoje — acabamos de vir de lá. Não precisa se preocupar. Por favor, sente-se. Há mais um ou dois assuntos sobre os quais lhe quero falar.
Bloodgood sentou-se novamente, com relutância aparente.
— Tem certeza de que ela está bem?
— Tenho. O senhor poderá ir vê-la quando sair. Estou certo de que ela gostará de sua visita. Kinkaid também está lá. Falando nisso, quais suas relações com ele, Sr. Bloodgood?
O homem hesitou e então disse, indiferentemente:
— Puramente comerciais. — Vance não disse nada, e Bloodgood continuou. — Há certa amizade também, claro. Tenho muita gratidão por Kinkaid. Se não fosse por ele, eu provavelmente estaria ensinando química ou matemática, ganhando um terço do que recebo no Cassino, e me entediando de morte. Ele é severo, mas generoso. Não posso dizer que o admire inteiramente, porém tem muitas qualidades admiráveis, e sempre foi muito sincero comigo — Bloodgood parou um instante e acrescentou, com um leve sorriso: — Acho que ele gosta de mim — e isto, claro, faz com que eu seja parcial quanto a ele.
— O senhor dá alguma importância ao fato de que ele tenha mandado servir a Lynn a água de sua própria garrafa?
A pergunta perturbou Bloodgood enormemente. Moveu-se na cadeira e respirou fundo antes de responder.
— Não sei. Puxa, essa é difícil de dizer! Pode ter sido simples coincidência — é bem do feitio de Kinkaid fazer coisas espontaneamente: ele tem uma tendência a ser muito decente. Recebe as perdas como um cavalheiro e nunca se queixa quando vai tudo mal. Sei que ele joga lealmente e, para dizer a verdade, não consigo concebê-lo tentando derrubar um homem porque a casa está perdendo. Especialmente seu próprio sobrinho.
— Poderia ter havido outras razões que não fossem os ganhos de Lynn ontem à noite — sugeriu Vance.
Bloodgood pensou nisso por algum tempo.
— Compreendo o que quer dizer — replicou. — Com Amélia, Lynn e a mulher de Lynn fora do caminho... — Interrompeu-se e balançou a cabeça. — Não! Não condiz com o caráter de Kinkaid. Uma arma, talvez, numa emergência — sei que ele conseguiu, com sua perícia de atirador, livrar-se de algumas enrascadas sérias na África. Mas não veneno. Isso é arma de mulher.
— Ele é assim decidido?
— Sim, é. Ou faz ou fica inativo. Faz uma coisa ou não a faz. Não tem finura, no sentido psicológico. Isso o faz um grande jogador de pôquer, e medíocre de bridge. Uma vez me disse: "Qualquer mulher pode dominar o bridge, mas só um homem pode jogar bem pôquer." Ele é frio e não conhece o medo; é também tão astuto como Lúcifer. Não vê os meios, desde que atinja os fins, mas age sempre abertamente. Você pode confiar nele, mesmo que ele seja seu inimigo. Veneno? Não. Não faz sentido.
Vance fumou um pouco, abstraidamente.
— O senhor é químico — disse, finalmente — e íntimo de Kinkaid. Diga-me: por acaso ele também se interessa por química?
Pela primeira vez Bloodgood pareceu não se dominar. D"eu rápida olhada a Vance e pigarreou nervosamente.
— Acho que não. — O tom não convenceu totalmente. — É um assunto inteiramente fora de suas atividades e interesses. — Parou, e depois acrescentou: — Se a química desse dinheiro, é claro que Kinkaid talvez estivesse interessado, mas do ângulo puramente especulativo.
— Bem, bem — murmurou Vance. — Sempre alerta. Buscando uma oportunidade de lucro, por assim dizer. Sim. Combina com o instinto de jogador.
— Kinkaid sabe — complementou Bloodgood — que sua situação atual não pode durar indefinidamente. Um Cassino, na melhor hipótese, é uma fonte temporária de renda.
— Certo. Nossa civilização hipermoral. Triste... Mas deixemos Kinkaid de lado. Conte-nos o que sabe do jovem Dr. Kane. Ele foi jantar com os Llewellyns ontem à noite, e a Srta. Llewellyn o chamou quando a mulher de Lynn foi atacada.
O rosto de Bloodgood entristeceu.
— Vi-o muito pouco até hoje — replicou duramente — e apenas na casa dos Llewellyns. Acho que ele está interessado em Amélia. Vem de boa família, etc. É bastante agradável; tem uma personalidade congenial, mas me parece um fraco. Já que o senhor me perguntou sobre ele, devo ainda dizer-lhe: ele me impressionou como algo instável às vezes, como se estivesse somando números antes de responder a uma pergunta direta ou emitir uma opinião.
— O arrière-pensée em ação — sugeriu Vance. Bloodgood concordou.
— Sim. Muito efeminado mentalmente. Talvez, contudo, sejam apenas seu esnobismo e seu esforço constante de agradar — o modo insinuante que os jovens médicos cultivam.
— Que espécie de sujeito era Lynn quando o senhor o conheceu na Universidade?
— Normal. Medíocre, mas rebelde. Era um estudante sofrível, suas notas mal davam para passar. Dedicava-se excessivamente às diversões, e não tinha objetivo sério. Nunca, porém, o responsabilizei por isso: não era inteiramente sua culpa. A mãe sempre o mimou demais. Perdoava tudo que ele fizesse, e ainda facilitava a repetição das coisas erradas. Tinha, porém, o bom senso de não soltar o dinheiro. É por isso que ele joga — e o admite sinceramente.
— Ele acha — disse Vance, em tom casual — que a mãe possa ser a responsável pelos envenenamentos da noite passada.
— Será possível? — Bloodgood parecia espantadíssimo. Meditou por alguns momentos, depois disse: — Entendo a atitude dele de certa forma. Ele mesmo se referia a ela como "a mais nobre dama romana de todas". E não se enganava. Ela sempre foi o homem da casa. Não admitia interferência alguma em seus planos.
— O senhor está pensando em Agripina? — indagou Vance.
— Algo assim. — Bloodgood silenciou mais uma vez. Vance levantou-se, andou até o fim da sala, voltou e parou em frente a Bloodgood.
— Sr. Bloodgood — disse, com os olhos fixos no outro, — três pessoas foram envenenadas ontem à noite. Uma está morta, as outras duas se recuperaram. Não foi achado veneno no estômago de Virgínia Llewellyn. Duas das vítimas — Lynn e sua irmã — desfaleceram depois de beber um copo dágua. A garrafa de Amélia estava vazia quando chegamos ao seu quarto...
— Santo Deus! — A exclamação foi quase um sussurro, mas denotava horror. Bloodgood lutou para ficar de pé. O rosto empalidecera repentinamente e os olhos brilhavam como dois discos de metal polido. O cigarro caiu dos lábios, mas ele o ignorou. — Que me estão tentando dizer? Todos três foram envenenados por água...
— Por que isso o espanta tanto — mesmo se fosse verdade? — indagou Vance com voz firme, quase indiferente, olhando para o homem. — De fato, eu ia-lhe perguntar, após haver citado os detalhes das ocorrências de ontem, se o senhor teria alguma explicação a sugerir.
— Não... não. Nenhuma. — Havia um tremor na voz de Bloodgood e ele respirava com dificuldade. — Eu... eu fiquei nervoso com a repetição do fator água, pois fui eu que mandei que ela fosse servida a Lynn.
Vance sorriu friamente e deu um passo à frente:
— Esta desculpa foi fraca, Sr. Bloodgood. — Havia um tom cortante em sua voz. — O senhor terá de arranjar uma justificativa melhor para sua perturbação emocional.
— Mas como, se ela não existe? — protestou Bloodgood, procurando outro cigarro no bolso.
Vance continuou sem descanso:
— Item um: o senhor esteve presente ao jantar dos Llewellyns ontem à noite, e teve acesso às garrafas da casa. Item dois: só a garrafa da Srta. Amélia não foi envenenada. Item três: o senhor a pediu em casamento. Item quatro: o senhor é químico. Considere estes quatro itens à luz do fato de que foi também o senhor que ordenou água pura para Lynn no Cassino. O senhor tem algo a dizer?
Bloodgood se havia recomposto enquanto Vance falava. Engoliu várias vezes e umedeceu os lábios com a língua. Os braços estavam pendurados ao longo do corpo, e Bloodgood dava a impressão de que todos os músculos do corpo estavam tensos. Levantou a cabeça e olhou para Vance.
— Compreendo perfeitamente a situação — disse com voz rouca. — Apesar do fato de que nenhum veneno foi na verdade comprovado, acho que já percebo os acontecimentos. Não tenho explicação a dar, nem mais o que dizer. O senhor pode tomar a atitude que desejar. — Sorriu misteriosamente. — Faites votre jeu, monsieur.
Vance estudou o homem sem mudar a expressão.
— Acho que guardarei minhas fichas até a próxima volta da roda, Sr. Bloodgood — disse. — O jogo não acabou, como sabe. E tenho novo sistema de ação. — Fez um breve aceno com a cabeça e virou-se. — O senhor está livre para visitar a Srta. Amélia.
— Espero firmemente que seu novo sistema seja melhor do que a maioria — murmurou o homem, e saiu sem outra palavra.
Vance sentou-se novamente e, pegando outro cigarro, começou a fumar pensativamente.
— Sujeito estranho — disse. — Disse-me algo muito importante, mas — sei lá! — não tenho certeza do que seja. Ele foi racional e honesto, até que citei água. A idéia de veneno não o aborreceu, mas a idéia de água, sim. Uma espécie de hidrofobia psíquica. Muito misterioso. Ele está pensando algo — uma coisa vital para a nossa compreensão do caso. Mas não há modo de fazê-lo falar. Conheço o tipo. Ele praticamente ofereceu-se à prisão, mas não respondeu a minhas perguntas. Medo deve ter sido isto. Sabia-se encurralado, mas também tinha conhecimento de que não havia razão palpável para tal. Um jogador astuto. Um calculador mental rápido e um jogador de porcentagem.
Vance balançou a cabeça.
— Não é uma idéia confortadora. Estamos lidando com sutilezas, Markham, e nossos olhos estão vendados. Tateamos no escuro. Mas ele nos disse algo! E temos de descobrir o que é. É a chave. Esperemos. Chegará a hora. Spes fovet, et fore cras semper ait melius.
XII - VANCE FAZ UMA VIAGEM
(Domingo, 16 de outubro — 13:30 horas)
Vance levantou-se e dirigiu-se à mesa.
— Markham — disse, seriamente — só há um modo de atacar o problema. Precisamos manter os olhos fixos nos fatos físicos do caso e ignorar todo o resto que nos possa desviar. É por isso que quero que você me ponha imediatamente em contato com seu perito em tóxicos.
Markham enrugou a testa: • — Hoje?
— Sim. — Vance falava enfaticamente. — Hoje à tarde, se possível.
— Mas é domingo, Vance — resmungou Markham. — Pode ser impossível. Contudo, verei o que pode ser feito.
Tocou para chamar Swacker.
— Veja se consegue localizar o Dr. Adolph Hildebrandt — instruiu. — Já deve ter ido para casa; telefone para lá.
Swacker saiu.
— Hildebrandt é um bom homem — disse Markham a Vance. — Um dos melhores do país. Ê o tipo esforçado do alemão, cauteloso e altamente acadêmico, mas dá sempre uma solução. Se não fosse por ele, jamais teríamos conseguido condenar Waite e Sanford, lembra-se? Pode ser que não esteja em casa, sendo domingo. Porém...
Uma campainha tocou e Markham atendeu ao telefone. Depois de rápidas palavras, desligou e virou-se para Vance:
— Estamos com sorte. Ele está em casa — mora na Rua 84 — e nos espera à tarde.
— Pode ser que isso ajude — murmurou Vance. — Mas pode ser também que não. De qualquer modo, é nosso único ponto de partida. Puxa! Só queria saber o que Bloodgood está pensando. — Suspirou e deu uma tragada funda. — Bem, descansemos um pouco. Sei onde há uma ótima sopa de tartaruga e um grande filé. Vamos, amigo.
Entramos no carro e Vance nos levou a um pequeno restaurante francês na Rua 72, perto do Riverside Drive. Após a sobremesa de creme de menthe, fomos à casa do Dr. Hildebrandt.
O médico era um homem rotundo, completamente careca, com rosto de lua, orelhas salientes e olhos azuis desbotados. Vestia um paletó velho, calças largas e chinelos de feltro. A camisa era aberta na garganta, e as meias de lã, de desenhos fantásticos, caíam-lhe em dobras nos tornozelos. Fumava um enorme cachimbo curvado.
Ele_ mesmo atendeu à porta, e nos fez entrar em uma sala de estar estreita e entupida de mobília do século dezoito. Apesar da maneira algo distante e áspera, era agradável e gentil, e nos cumprimentou com grave cortesia.
Vance imediatamente entrou no assunto.
— Estamos aqui, doutor, — disse — para lhe fazer algumas perguntas sobre venenos e seus efeitos. Estamos enfrentando um problema sério e aparentemente obscuro, em relação à morte da Sra. Llewellyn ontem à noite...
— Ah, sim. — O Dr. Hildebrandt tirou lentamente o cachimbo da boca. — Doremus me telefonou hoje de manhã e eu presenciei a autópsia. Fiz uma análise do estômago para ver se achava beladona, mas não encontrei nada. Amanhã farei completa análise química dos órgãos...
— Estamos muito interessados em saber — disse Vance — se um veneno poderia ter causado a morte e não ser evidente na análise, e também como o veneno, nesse caso, poderia ter sido administrado.
O Dr. Hildebrandt acenou com a cabeça.
— Talvez possa ajudá-lo, não sei. A toxicologia é uma ciência complexa. Existem muitas fases sobre as quais ainda nada se sabe.
Voltou ao cachimbo e deu várias baforadas, como se estivesse arrumando as idéias. Depois falou de modo didático.
— O senhor deve saber que o veneno, no sentido biológico, não existe no corpo se a substância for inteiramente insolúvel, pois, neste caso, ele resiste à absorção da corrente sangüínea. O corolário é que, quanto mais solúvel a substância, mais rapidamente será absorvida pela corrente sangüínea e agirá sobre o corpo.
— E sobre a diluição de um veneno na água, doutor? — perguntou Vance.
— A água acelera a absorção de um veneno e aumenta sua atividade. Porém, no caso de um corrosivo, a água naturalmente reduz o efeito do tóxico. Por outro lado, o estado do estômago deve ser considerado no caso dos venenos tomados pela boca. Se há alimento no estômago na hora da ingestão, a absorção do veneno é mais lenta; se não há, a absorção e o efeito do veneno são mais rápidos.
— No caso Llewellyn o estômago deve ter estado relativamente vazio — disse Vance.
— Estava. E podemos supor que, se um veneno foi absorvido pelo estômago, o efeito foi rápido.
— Acho que sabemos a hora aproximada em que o veneno foi tomado — afirmou Vance — mas estamos interessados em estabelecê-la cientificamente.
O Dr. Hildebrandt concordou.
— Sim, a hora é muito importante quando há suspeita de crime. Mas sua determinação não é fácil porque, nesses casos, não há evidência real quanto ao modo e às condições em que o veneno foi ingerido. O tempo da administração depende inteiramente do tipo de veneno e dos sintomas observados. Quase todos os venenos comuns agem rapidamente, embora possa lembrar várias exceções psicológicas nas quais ação do veneno foi retardada por horas após a ingestão. Porém, falando geralmente, os sintomas de venenos tomados por via oral aparecem dentro de uma hora. Na maioria dos casos, se o estômago está vazio, os sintomas aparecem dez a quinze minutos após ser administrado o veneno. Isso é particularmente verdadeiro no caso da beladona, ou atropina.
— E quanto ao veneno — perguntou Vance — tomado oralmente e cuja presença, não obstante, não é descoberta no estômago mais tarde?
O Dr. Hildebrandt pigarreou, doutoralmente:
— Tal condição pode ser encontrada com certo número de venenos tomados via oral. Significa, simplesmente, que o organismo absorveu todo o veneno do estômago. Mas, naturalmente, haverá depósitos do veneno no sangue e nos tecidos. Infelizmente, em muitos e muitos casos de envenenamento criminoso, só o estômago é dado ao toxicólogo para exame químico. Descobertas só do estômago não são conclusivas, pois, como eu disse, a rápida absorção do veneno pode não deixar traços naquele órgão. Naturalmente, o toxicólogo a quem só dão o estômago para exame pode supor que qualquer veneno que lá encontre pode ser considerado um excesso do veneno realmente ingerido e absorvido pelo organismo. Porém, isso não é, certamente, uma prova direta. Por isso é que os outros órgãos de qualquer pessoa de quem suspeitam haja morrido de envenenamento deveriam ser quimicamente analisados: fígado, rins, intestinos, talvez mesmo o cérebro e a coluna espinal. Quando o veneno penetra no organismo oralmente, é inicialmente absorvido através do estômago. Depois, entra na circulação do sangue. E finalmente é depositado nos tecidos do fígado, rins e outros órgãos. O senhor compreende, naturalmente, que venenos podem penetrar no corpo por outros caminhos além da boca; e, em tais casos, claro que não haverá sinais do veneno no estômago.
— Ah! — Vance inclinou-se para a frente. — Esta é uma das coisas que eu gostaria de saber. Em vista do fato de a Sra. Llewellyn haver morrido muito pouco tempo após tomar o veneno, e de não haver traços dele em seu estômago, queria perguntar-lhe por que outros meios, além da ingestão, esse veneno — presumivelmente beladona — pode haver sido administrado.
. O Dr. Hildebrandt olhou pensativamente o espaço:
— Pode haver sido administrado parenteralmente, isto é: injeção direta na corrente sangüínea. Ou ser absorvido através das membranas mucosas do nariz ou através das conjuntivas. Em qualquer caso, naturalmente não seriam descobertos traços dele no estômago.
Por um momento Vance fumou meditativamente; finalmente, fez outra pergunta:
— Não existe caso em que o veneno pode ser tomado oralmente e produzir a morte, e ainda assim não deixar traços em qualquer órgão do corpo?
O doutor baixou os olhos e depois encarou Vance.
— Há venenos que, quando absorvidos pelo corpo, não têm ação química no sangue, e há outros que não se transformam em compostos insolúveis quando em contato com os tecidos. Esses venenos são rapidamente eliminados do sistema. Se uma vítima de envenenamento vive tempo suficientemente longo após tomar tal veneno, todos os vestígios da droga podem desaparecer do corpo. Mas não há indício de que isso tenha acontecido com a Sra. Llewellyn. Nela, os sintomas violentos de envenenamento surgiram logo após a indução e, segundo entendo, não houve processo de eliminação.
— Mas — continuou Vance — mesmo nos casos em que não se acha veneno em qualquer órgão, não haveria mudanças orgânicas no corpo que indicassem a natureza do veneno tomado?
— Em certos casos, sim. — O Dr. Hildebrandt olhou para o vácuo. — Essas indicações, contudo, não são muito dignas de crédito. Entenda, vários tipos de doenças podem produzir efeitos nos órgãos similares aos produzidos por certos venenos. Se, porém, as lesões encontradas forem idênticas às produzidas por um veneno que a pessoa supostamente recebeu, pode-se supor que elas são resultado do veneno. Por outro lado, alguns casos foram por mim observados, onde se sabia exatamente o veneno ingerido, e contudo os órgãos não mostravam qualquer das lesões que se deveria esperar. No famoso caso Heidelmeyer, por exemplo, sabia-se que a morte fora causada por arsênico, porém nem o estômago nem os intestinos estavam irritados, e a membrana mucosa estava ainda mais pálida do que o normal.
Vance sorriu desanimadamente e balançou a cabeça.
— Vejo que a toxicologia não é uma ciência que se possa chamar de matemática. Contudo, deve haver alguma forma de atingir uma conclusão definitiva, partindo de certas condições. Por exemplo, embora nenhum traço de veneno tivesse sido achado no sistema, não é possível determinar, da aparência post-mortem e dos sintomas de uma pessoa, qual o veneno tomado?
— Isso — retrucou o doutor — é um problema tão médico como toxicológico. Porém, direi isto: os sintomas de muitas doenças intimamente simulam os sintomas de certos tipos de envenenamento. Por exemplo, os sintomas de gastrenterite, da cólera, da úlcera do duodeno, uremia e acidose aguda são duplicados pelos sintomas de envenenamento por arsênico, acônito, digitalina, iodo, mercúrio, e os vários ácidos corrosivos e álcalis. As convulsões que acompanham o tétano, a eclampsia puerperal e a meningite são também causadas por cânfora, cianido e estriquinina. Pupilas dilatadas, que ocorrem nas doenças que produzem atrofia óptica, ou fraqueza do nervo óptico motor são também motivadas pelo grupo da beladona, cocaína e gelsemio, enquanto a contração da pupila pode ser também causada por ópio, morfina e heroína. Ópio, paraldeído, dióxido de carbono e os barbitais produzem coma, como também hemorragia cerebral, epilepsia e lesões cerebrais. O delírio encontrado em casos de doenças cerebrais orgânicas e nefrite pode ser freqüentemente duplicado pela administração de atropina, cocaína e vários outros venenos. Nitrobenzina, anilina, ópio e seus derivados produzem cianose, da mesma forma que as doenças dos sistemas cardíaco e respiratório. A paralisia decorre da ingestão de cianido e monóxido de carbono, mas é também produzida pelo tumor cerebral e apoplexia. Há ainda o problema de respiração. O ópio provoca respiração lenta, do mesmo modo que a uremia e a hemorragia cerebral. E o grupo de venenos da beladona produz respiração rápida, como a normalmente encontrada na histeria e lesões da medula.
— Puxa! — sorriu Vance. — Quanto mais nos aprofundamos, mais distante fica a solução.
O doutor sorriu largamente.
— O senhor conhece Goethe, não? Quanto mais o homem conhece, menos sabe...
— Isso não ajuda muito. Quero saber mais, não menos
— suspirou Vance.
— A toxicologia não é de todo uma ciência incorrigível
— disse o doutor, bem-humorado. — Se um veneno é achado nos órgãos de um morto, e a patologia do caso corresponde exatamente aos sintomas produzidos por aquele veneno, pode-se aceitar como certo que a pessoa morreu daquele veneno. Vance assentiu.
— Sim, compreendo. Mas, se bem o entendi, a ausência de qualquer veneno determinável nos órgãos não significa que a morte não foi devida à administração do veneno. É possível que o veneno possa realmente estar nos órgãos analisados e resistir à análise química?
— Oh, sim. Há várias substâncias tóxicas que a ciência ainda não sabe determinar. Além disso, o senhor não deve esquecer que há venenos que, quando em contato com certos elementos químicos do corpo humano, se convertem em substâncias inofensivas que normalmente se podem achar no corpo.
— Então é possível envenenar alguém deliberadamente, sem medo de deixar algum vestígio do método do assassínio?
O doutor inclinou levemente a cabeça.
— Sim, é possível. Se se puder introduzir vitoriosamente sódio comum no estômago...
— Sim, eu sei — interrompeu Vance. — Mas a perfuração das paredes estomacais pela combustão do sódio não é o tipo de coisa em que pensei. Queria perguntar o seguinte: há substâncias venenosas que podem produzir a morte e não deixar traços?
— Sim, há — replicou o doutor, lentamente, retirando novamente o cachimbo da boca, — Por exemplo, há muitos venenos vegetais que não produzem lesão específica nem são quimicamente identificáveis. E certos venenos orgânicos podem ser transformados em elementos normalmente existentes no corpo. Ademais, certos venenos voláteis podem estar inteiramente invisíveis quando o toxicólogo extrai os órgãos para exame. Não me refiro aos ácidos minerais que podem causar corrosão e serem eliminados do sistema antes que chegue a morte, pois acho que esse tipo de veneno não lhe interessa.
— Eu pensava especificamente — disse Vance — em algum veneno facilmente obtido, que pudesse ser dado em um copo dágua sem ser notado pela vítima.
O Dr. Hildebrandt pensou um instante, depois sacudiu a cabeça gravemente.
— Não. As drogas e elementos químicos que estou imaginando não satisfariam a todas as condições que o senhor impôs.
— Mas, doutor, — insistiu Vance — não é possível que um novo veneno possa ter sido descoberto recentemente, e então satisfizesse a minhas exigências?
— Claro que é possível — admitiu o médico. — Constantemente se descobrem venenos.
Vance calou-se um momento, e depois perguntou:
— Uma dose letal de atropina ou beladona em um copo dágua seria facilmente percebida por quem a bebesse?
— Oh, sim. A água teria um gosto amargo. — O médico olhou para Vance. — O senhor tem razões para crer que o veneno do caso Llewellyn foi dado com água?
Vance hesitou antes de responder.
— Ainda estamos especulando sobre esse ponto. O fato é que duas pessoas, além da Sra. Llewellyn, foram envenenadas ontem à noite, mas se recobraram. Ambas haviam bebido água antes de desfalecer. E a garrafa ao lado da cama da Sra. Llewellyn estava vazia quando chegamos.
— Entendo — murmurou o médico, fazendo um gesto com a cabeça. — Bem, talvez após minha análise química dos órgãos amanhã, eu lhe possa dizer mais.
Vance levantou-se.
— Estou profundamente agradecido ao senhor. É o único assunto em que penso agora. O caso parece bem confuso. Quando deverá estar pronto seu laudo?
O médico levantou-se e acompanhou-nos à porta.
— É difícil dizer. Começarei a trabalhar cedo de manhã, e se tiver sorte, poderei terminar o relatório amanhã à noite.
Partimos e Vance nos levou direto a seu apartamento. Estava calado e parecia pensar muito. Sua perturbação era visível, e Markham não tentou conversar até que nos instalamos na biblioteca. Currie entrou e acendeu a lareira, e Vance mandou servir conhaque Napoléon. Markham então lhe fez a primeira pergunta, desde que deixáramos a casa do médico.
— Você aprendeu alguma coisa; isto é, teve alguma idéia nova?
— Nada definido — respondeu Vance tristemente. — É estranho este caso. Às vezes sinto estar tocando em algo vital, que depois me escapa. Várias vezes esta tarde, à proporção que o médico falava, sentia que me dizia algo que eu deveria saber... mas não sabia o quê. Ah, Markham, se eu fosse psíquico!
Suspirou e aqueceu o conhaque entre as mãos, inspirando o aroma que ele exalava.
— Mas há um motivo sempre presente nos acontecimentos da noite passada — a água.
Markham o olhou pensativamente.
— Observei que várias perguntas suas focalizaram esse tema.
— Sim, claro. Era necessário. A água está presente em todos os atos desse drama diabólico. Lynn pede um uísque e insiste na água pura, mas não a bebe quando ela lhe é trazida. Mais tarde Bloodgood manda que ela lhe seja servida, e Kinkaid manda o criado buscar a água no seu escritório. Depois, o próprio Kinkaid quer um gole dágua, e a garrafa está vazia; ele a manda ao bar para encher. A garrafa de Virgínia está vazia quando chegamos à casa. Amélia toma o último copo dágua da garrafa da mãe e perde os sentidos. Sua própria garrafa é depois achada vazia — embora ela tenha explicado esse ponto. Depois Bloodgood fica nervoso e silencia, à simples menção de água. Em todo lado — água! Francamente, Markham, é como uma charada horrenda...
— Você acha que as vítimas foram todas envenenadas com água?
— Se eu achasse isso, o problema seria mais simples. — Vance fez um gesto desanimado com a mão. — Mas não há um fio principal que ligue essas várias repetições de água. Lynn bebeu uísque e água. Virgínia poderia, claro, ter sido envenenada com água, mas se o veneno que tomou fosse beladona ou atropina — como indicado pelos sinais post-mortem — teria provado o veneno e não esvaziaria toda a garrafa. A única das três vítimas que podemos afirmar ter sido envenenada por água é Amélia. Mas até ela não provou nada desviado, e tinha esvaziado a própria garrafa no início da noite, sem qualquer efeito desagradável. É tudo muito estranho. É como se a água tivesse sido deliberadamente introduzida no caso para nos levar a caminho errado. Qualquer assassínio planejado tão sutilmente como esse não apresenta um sinal repetido a toda hora, a não ser que propositadamente. Alguma porcentagem dele pode ser ocasional, mas não toda. Não pode ser. E a perturbação de Bloodgood quando citei água... Temos uma chave, Markham, mas... — inferno! — não conseguimos achar a porta...
Fez um gesto desesperançado.
— Água. Que idéia tola. Se houvesse algo além da água! Água não fere ninguém, a não ser quem se afoga. Por que água, Markham? Duas partes de hidrogênio e uma de oxigênio... fórmula simples, elementar...
Subitamente Vance parou de falar. Os olhos estavam estáticos, e ele automaticamente pôs o cálice de conhaque na mesa. Inclinou-se para a frente na cadeira, e ficou de pé.
— Meu Deus! — Foi até Markham. — Água não é necessariamente H2O. Estamos tratando do desconhecido. Sutilezas. Poderia ser, claro. Devem esperar que nos detenhamos na pista da água. Temos um químico, um médico, um jogador-financiador, livros de toxicologia, ódios, invejas, um complexo de Édipo, e três casos de envenenamento — e água por toda a parte. Ouça Markham, ocupe-se com alguma coisa algum tempo. Leia, pense, durma, jogue paciência — qualquer coisa. Só não fale.
Virou-se rapidamente a dirigiu-se a uma estante onde mantinha revistas e folhetos científicos. Por meia hora revirou-os, parando aqui e ali para ler algum parágrafo ou artigo. Depois, recolocou as revistas e os folhetos na estante e chamou Currie.
— Faça minha valise — pediu ao velho mordomo. — Coisa pouca e informal. Para uma noite. Depois, ponha-a no carro. Vou dirigir.
Markham levantou-se e olhou para Vance.
— Escute aqui! — Mostrava-se aborrecido. — Aonde vai você?
— Fazer uma pequena viagem — replicou Vance, com um sorriso enigmático. — Estou à procura da sabedoria. A pista da água me chama. Estarei de volta de manhã, mais sábio, mais triste — ou ambos.
Markham olhou-o um instante.
O que tem em mente? — perguntou.
— Talvez apenas um sonho fantástico, meu amigo — sorriu. Markham conhecia Vance bem demais para tentar extrair-lhe alguma informação adicional.
— Seu destino é também secreto? — perguntou, com irritação.
— Não, não. Vance foi até a mesa e encheu a cigarreira. — Não é secreto: vou a Princeton.
Markham o fixou espantado. Depois deu de ombros e brincou:
— Logo você, que estudou em Harvard!
XIII - UMA DESCOBERTA ESPANTOSA
(Segunda-feira, 17 de outubro — 12:00 horas)
Era quase meio-dia quando Vance voltou a Nova York. Eu estava ocupado com trabalho de rotina quando ele entrou na biblioteca, e mal me cumprimentou quando foi para a sala. Pude ver claramente, por seu modo concentrado e movimentos ansiosos, que algo urgente lhe passava pela mente. Alguns minutos depois ele voltou, com um paletó cinzento xadrez, um chapéu verde Homburg e pesadas botas de cano curto.
— Está um dia horrível, Van — observou. — O ar é de chuva, e nós vamos ao interior. Guarde sua contabilidade e venha. Mas preciso ver Markham primeiro. Telefone para o escritório e diga que estarei lá em vinte minutos — ele é um sujeito cem por cento.
Enquanto eu entrava em contato com o escritório do procurador distrital, Vance chamou Currie e deu-lhe instruções sobre o jantar.
Markham estava sozinho quando chegamos ao edifício do Tribunal.
— Sustive meu desapontamento esperando vocês — cumprimentou. — Qual é o relatório?
— Caro Markham! — protestou Vance, atirando-se numa cadeira. — Preciso fazer um relatório? — Ficou sério e olhou refletidamente para Markham. — A verdade é que nada tenho praticamente a relatar. Foi uma viagem frustrante.
— Por que você foi a Princeton? — perguntou Markham.
— Para visitar um velho conhecido — replicou Vance.
— O Dr. Hugh Scott Taylor — um dos grandes químicos de nossos dias. Ele é diretor do Departamento de Química da Universidade. Passei algumas horas ontem à noite com ele, inspecionando o Laboratório Químico Frick.
— Apenas uma visita de inspeção? — indagou Markham, observando Vance astutamente. — Ou algo específico?
— Não. Não geral. — Vance tragou. — Algo muito específico. Eu estava interessado em água pesada.
— Água pesada! — Markham sentou duro na cadeira.
— Encontrei em algum lugar uma referência à água pesada...
— Claro. Os jornais têm publicado muita coisa sobre o assunto. Descoberta fascinante. Um dos grandes acontecimentos da química moderna. Tema fascinante.
Sentou-se e esticou as pernas.
— A água pesada é um composto no qual o átomo de hidrogênio pesa duas vezes mais que o átomo de hidrogênio da água comum. É um líquido em que pelo menos noventa por cento das moléculas consistem de oxigênio combinado com o recentemente descoberto hidrogênio pesado. A fórmula é H2H2O, embora seja agora cientificamente conhecida como D2O. O que há de interessante nele é que tem a aparência e o gosto de água comum. Na verdade, há cerca de uma parte de água pesada em cinco mil partes de água comum, mas, devido à perda no processo de extração, exige quase dez mil partes de água pura para produzir uma parte de água pesada. Em certos laboratórios já trataram trezentos galões de água comum para produzir uns trinta gramas de água pesada. A descoberta da água pesada foi feita pelo Dr. Harold C. Urey, da Universidade de Columbia. Mas grande parte da pesquisa prática desse composto fantástico foi executada pelos cientistas da Universidade de Princeton. O aparelho do Laboratório Químico Frick é o primeiro projetado para a produção de água pesada em qualquer escala apreciável. Quando digo "escala apreciável" falo relativamente, pois o Dr. Taylor me disse ontem que a produção diária, mesmo lá, é menos de um centímetro cúbico. Eles esperam aumentar a produção para cerca de uma colher de chá por dia. Atualmente, Princeton possui menos de meio litro desse precioso fluido. O custo de produção é enorme e, devido à procura de amostras do líquido por cientistas do país todo, seu preço é de mais de cem dólares por centímetro cúbico. Uma colher de chá custaria mais de quatrocentos dólares, e um quarto, cerca de cem mil dólares... Olhou para Markham e continuou.
— Há grandes possibilidades comerciais desse novo artigo. O Dr. Taylor me disse que há uma firma comercial que já o está vendendo.
Markham estava profundamente interessado, e não retirava os olhos de Vance.
— Você então acha que a água pesada é a resposta para os envenenamentos de sábado à noite?
— Pode ser uma das respostas — retrucou Vance devagar — mas duvido que seja resposta definitiva. Há muitas coisas que impedem seja essa a fonte de toda a explicação. Para começar, o custo da água pesada é quase proibitivo, e há pouca disponibilidade do produto, o que não justifica a água presente a todo momento no caso Llewellyn.
— Mas e seu efeito tóxico no sistema humano? — perguntou Markham.
— Ah, exatamente! Infelizmente, não se sabe os efeitos que quantidades liberais da água pesada, tomadas internamente, teriam no ser humano. Na verdade, os pequenos volumes obtidos ainda não possibilitaram experimentos nesse sentido. Só se pode especular. O professor Swingle, de Princeton, provou que a água pesada é letal para pequenos peixes de água salgada; o crescimento de mudas na água pesada é retardado ou inteiramente interrompido, e esse efeito no funcionamento do protoplasma levou alguns pesquisadores de San Francisco à hipótese de que as indicações de velhice e senilidade são causadas pelo acúmulo normal de água pesada no corpo.
Vance fumou um instante e prosseguiu:
— Porém, não aceito que essas especulações tenham alguma conotação direta com nosso problema. Por outro lado, estou inclinado a pensar, Markham, que temos a intenção de trabalhar segundo essas linhas. De qualquer forma, elas nos podem levar à verdade.
— Que quer dizer com isso? — indagou Markham.
— Conversei com um dos brilhantes jovens assistentes do Dr. Taylor — o Sr. Martin Quayle — um químico excepcional, consciencioso e criativo, elemento de valor, enfim. Pessoalmente, porém, eu não confiaria demais nele. É de natureza incomumente ambiciosa...
— Que tem esse sujeito a ver com minha pergunta? — retrucou Markham.
— Quayle foi colega de classe de Bloodgood. Dois jovens químicos idealistas. Muito bons amigos.
Markham estudou Vance um momento, depois sacudiu a cabeça.
— Acho que há uma vaga conexão em algum lugar com o que você me disse agora — arriscou — mas ainda não vejo que ligação possa ter com o problema que estamos tentando resolver.
— Nem eu — admitiu Vance alegremente. — Simplesmente expus o fato, à falta de algo mais definido.
Markham subitamente se irritara. Deu um soco na mesa.
— Sendo assim, que ganhou você em ir a Princeton?
— Não sei — replicou Vance suavemente. — Reconheço estar desapontadíssimo. Esperava muito mais, porém não estou totalmente desconsolado. Há um tema ardiloso em relação à canção da água, e espero saber mais sobre ele hoje à noite. Vou fazer outra viagem à tarde — desta vez, ao interior. Estou contando com a idéia de Quayle para guiar minhas pegadas vacilantes.
Markham inspecionou Vance espertamente, depois sorriu-lhe cansadamente:
— A incoerência do oráculo de Delfos, o adivinhador da bola de cristal. Já me deveria ter acostumado... Então você vai ao interior?
— Sim — murmurou Vance docemente — lá para os lados de Closter...
Markham saltou.
— O quê? — gritou.
— Caro Markham, não me assuste assim. Você tem energia demais. — Vance suspirou. — Será que você pediria a Swacker para descobrir as companhias que fornecem água e energia elétrica às casas de Closter e seus arredores?
Markham apertou os lábios, depois chamou o secretário e lhe transmitiu o pedido de Vance.
Quando Swacker saiu, Vance virou-se para Markham e continuou:
— Quando tiver os nomes, você me escreveria uma carta bem amável de apresentação aos gerentes? Estou procurando informações...
— Que informações?
— Se quer mesmo saber — disse Vance tranqüilamente — vou pesquisar a quantidade de água e eletricidade consumida por certo cidadão importante dos arredores de Closter.
Markham sentou-se novamente.
— Meu Deus! Você acha que Kinkaid...?
— Meu amigo! — interrompeu Vance. — Não acho nada, é muito esforço... — Suspirou e nada mais disse.
Alguns minutos depois Swacker trouxe a informação que Closter e arredores eram supridos pela Cia. de Água Valley Stream e pela Cia. Englewood Power and Light, ambas com escritórios em Englewood.
Markham ditou as cartas solicitadas por Vance, e dez minutos depois nos dirigíamos a Englewood, a alguns quilômetros de Closter.
Englewood é perto de Nova York e, graças à técnica de motorista de Vance, lá chegamos em menos de meia hora. Vance perguntou o caminho para a Cia. de Água Valley Stream e, quando chegamos, mandou entregar a carta ao gerente. Fomos recebidos por um homem agradável e sério, que devia ter quarenta anos — um Sr. McCarty — em um pequeno escritório.
— Em que lhe posso ser útil, senhor? — perguntou, após os apertos de mão. — Teremos prazer em ajudar como for possível.
— Estou interessado — disse-lhe Vance — em saber o volume de água consumido pelo Sr. Richard Kinkaid, perto de Closter.
— Isso é fácil de saber. Dirigiu-se a um arquivo de aço e, após um momento, tirou de lá um pequeno cartão. Voltou à mesa, olhou para o registro e levantou as sobrancelhas com surpresa.
— Ah, sim — disse, um minuto após, como se de repente se lembrasse de algo. — Recordo-me das circunstâncias. O Sr. Kinkaid tem um registro de uma polegada e usa muita água. Sua taxa é baseada na tabela que varia entre 40 000 e 400 000 pés cúbicos de água anuais.
— E o Sr. Kinkaid tem apenas uma cabana de tamanho médio — ponderou Vance.
O Sr. McCarty assentiu.
— Sim, eu sei. A quantidade de água gasta pelo Sr. Kinkaid é suficiente para uma fábrica. O grande consumo foi observado por mim há mais de ano. Não podia entender o volume, e investiguei, mas descobri que o freguês estava satisfeito, e portanto não tivemos alternativa, senão continuar o serviço.
— Diga-me, Sr. McCarty — prosseguiu Vance — há alguma variação na quantidade de água consumida pelo Sr. Kinkaid segundo a época do ano? Isto é, ele gasta mais na primavera e no verão e menos no inverno, quando a cabana está fechada?
— Não — informou o gerente, olhando para os números.
— Não há praticamente variação. Segundo o cartão, o consumo de água é o mesmo no inverno e no verão.
Olhou para Vance:
— O senhor acha que devemos investigar mais o assunto?
— Não, não — respondeu Vance — Há quanto tempo esse consumo excessivo se verifica?
O gerente observou novamente o cartão, virou-o e examinou os números no verso.
— As ligações de água foram instaladas há mais de ano
— em agosto, exatamente — e o consumo excessivo começou quase imediatamente.
Vance levantou-se e estendeu a mão ao gerente.
— Muito grato, senhor. Era tudo que precisava saber. Aprecio sua gentileza.
Dos escritórios da Cia. de Água Valley Stream, fomos para os da Englewood Power and Light, alguns quarteirões adiante. Novamente Vance mandou entregar a carta ao gerente — Sr. Browning — e ele nos recebeu logo. Quando Vance lhe disse que queríamos verificar o consumo de Kinkaid de energia, ele olhou curiosamente.
— Não temos o hábito, o senhor compreende, de fornecer informações desta natureza — disse, de modo conservador. — Mas, dadas as circunstâncias, acho que devo avisá-lo de que o Sr. Kinkaid — pessoa muito conhecida aqui — combinou há mais de ano comigo o fornecimento de energia suficiente que atendesse a suas necessidades — as quais, devo acrescentar, excediam de muito o consumo normal de uma casa ou cabana de pesca daquele tamanho. Combinamos um suprimento de 500 kw, ao invés dos habituais 5 kw.
— Grato pela informação, senhor. — Vance ofereceu um cigarro ao Sr. Browning e ele mesmo tirou um. — Mas quando o Sr. Kinkaid combinou com o senhor esse grande suprimento de força, ele lhe disse como o usaria?
— Eu naturalmente lhe fiz essa pergunta — retrucou o gerente — e ele explicou que necessitava daquele volume para fazer experiências.
— O senhor não insistiu mais?
— O Sr. Kinkaid me informou que o trabalho experimental a ser feito era de natureza mais confidencial, e eu então tive de me satisfazer com isso. O senhor entende que nosso objetivo é dar o melhor serviço possível ao público.
— Sua atitude, senhor — disse Vance — é inteiramente certa. Gratíssimo pelas informações confidenciais.
O Sr. Browning levantou-se:
— Lamento não lhe poder dizer mais nada, exceto se o sr. quiser saber o montante exato de energia consumido.
— Não, obrigado — disse Vance, dirigindo-se à porta. — O senhor me falou tudo de que precisamos saber agora. — E saiu.
Quando entramos no carro, Vance sentou-se ao volante e ali ficou alguns instantes, abstraidamente. Depois tirou a cigarreira e, firmemente, acendeu outro Régie.
— Acho, Van, — disse lentamente — que vamos até a cabana de Kinkaid. Sei mais ou menos onde é. Se nos perdermos, poderemos perguntar.
Virou o carro e voltamos em direção ao rio Hudson. Quando atingimos a rodovia 9-W, Vance tomou o norte, ao longo das Palisades.
— Deve haver uma estradinha nos próximos quilômetros, e talvez uma seta para nos orientar — disse. — Vigie a estrada. Se perdermos essa seta, teremos de ir a Closter e indagar o rumo de lá.
Isso não foi preciso, pois cerca de quatro quilômetros depois chegamos a um poste rústico de orientação, à entrada de um caminho particular para carros afastado do rio, o que nos fez concluir que a cabana de caça de Kinkaid era em algum lugar além.
Virando nesse caminho, em instantes estávamos em um trecho intensamente coberto de árvores. Isso era Bergen County, um lugar entre o condado de Closter e a fronteira do Estado de Nova York, perto do lugar chamado Rockleigh, em Nova Jersey. Seguimos esse caminho particular talvez meio quilômetro, ei subitamente atingimos uma clareira, em cujo centro havia uma cabana de pedra de dois andares, que poderia ter sido construída originalmente para fins residenciais. A aparência era de total desolação. As janelas tinham sido cobertas de tábuas e havia um ar geral de desolação na pequena entrada e na porta maciça que era a entrada principal da cabana. Atrás da casa, à direita, uma garagem. Vance estacionou à esquerda, e saltamos.
— Parece um pouco abandonada, não, Van? — comentou, ao nos aproximarmos da porta da frente.
Puxou a antiquada maçaneta de latão várias vezes, mas, embora escutássemos a campainha lá dentro, ninguém respondeu.
— Acho que não há ninguém — disse ele. — E eu esperava tanto poder entrar. Vejamos o que nos reservam os fundos da casa.
Caminhamos pela trilha, mas, ao invés de ir diretamente aos fundos da cabana, Vance continuou para a garagem. A porta estava ligeiramente aberta, mas dela pendia pesado cadeado. Vance o contemplou e depois olhou para dentro da garagem.
— Sinais de vida recente — murmurou. — Não há carro, mas tampouco poeira ou ferrugem no cadeado. Ademais, há marcas de pneus no caminho e traços de óleo fresco no chão de cimento. Conclusão: o habitante ou habitantes da cabana foram embora há pouco. Qual o destino e a hora em que ele ou eles voltarão, não sabemos.
Fixou a elevação traseira da cabana e fumou silenciosamente.
— Será... — murmurou por fim. — Acho que pode ser feito. Van, que tal "bancarmos" os arrombadores?
Aproximou-se do pequeno pórtico de tela nos fundos da casa e subiu o pequeno lance de degraus de madeira que levava a ele. A porta não estava trancada e entramos no pórtico. Havia uma porta que levava à cabana, e, ao lado dela, uma pequena janela de copa. Ambas, porém, trancadas.
— Espere — mandou Vance, e desapareceu pelos degraus do pórtico. Momentos depois voltou com um formão da caixa de ferramentas do carro. — Sempre tive um desejo de ser arrombador... Vejamos!
Colocou a lâmina do formão entre as duas pequenas cavidades da janela da copa e, depois de alguns minutos de manipulação, conseguiu tirar o parafuso que as mantinha trancadas. Depois, pondo o formão debaixo da parte inferior da janela, pôde abri-la. Havia um caixote vazio no canto do pórtico, que Vance colocou sob a janela. Ficou de pé nele e conseguiu, com esforço, esgueirar-se pela estreita abertura. Um momento depois ouvi um baque surdo e ele desapareceu na escuridão da casa. Logo, porém, seu rosto veio à janela.
— Não houve nada, Van — anunciou. — Entre, eu ajudo.
Puxei o chapéu para cima das orelhas e coloquei o corpo na abertura da janela. Vance segurou-me os ombros e me puxou para a copa escura e estreita.
— Puxa! — suspirou. — Ser arrombador não é brincadeira... Ainda bem que renunciei à carreira... Procuremos a porta do porão... Duvido que haja algo que nos interesse nos andares principais.
Achamos logo a porta do porão. Saía diretamente da copa que era dividida da cozinha por uma porta de vaivém. Vance seguia na frente, com o isqueiro aceso.
— Epa! — Ouvi-lhe a voz na meia escuridão adiante. — Que porta curiosa para uma inocente cabana de caça!
Eu estava logo atrás dele e, olhando por cima de seus ombros, consegui distinguir, à luz bruxuleante do isqueiro, uma porta enorme de carvalho, sólida, comparativamente nova. Não havia maçaneta nem cadeado, mas, no lugar habitual da maçaneta, estava uma tranca de ferro. Vance levantou-a e empurrou a porta. Escutamos então um ruído contínuo e insistente, como o de um motor, e sentimos um cheiro acre de algum elemento químico. A alguma distância pude perceber várias pequenas chamas, como se produzidas por fogareiros Bunsen.
Vance entrou no vestíbulo e tateou na parede. Finalmente, achou o interruptor. Houve um clique e uma luz brilhante de cerca de doze lâmpadas substituiu a escuridão.
Vi algo de espantoso. O porão de pedra, cujo tamanho original deveria ter sido de quase 18 m2, fora ampliado dos dois lados, de modo que tinha agora a extensão de pelo menos 36 m2. Estava cheio de filas de enormes mesas nas quais havia milhares de pequenos vidros redondos. Ao fundo do porão estavam vários geradores elétricos e, em algumas das mesas e prateleiras nas paredes, viam-se coleções variadas de garrafas e intrincado aparelhamento químico.
Vance andava entre as mesas, observando tudo:
— Puxa! — murmurou. — O Dr. Taylor teria inveja se pudesse ver este laboratório! Espantoso!
Aproximou-se de algumas mesas cujo aparelhamento não era igual aos demais, e onde eu vira as chamas azuis:
— Água pesada, Van — explicou, apontando várias garrafas em forma de cone, ao fim de uma série de tubos, válvulas e pilhas. — Deve haver aqui mais de um quarto de litro. Produção em alta escala. Se for pura, Kinkaid tem uma fortuna nesses frascos. Vê como é feita, Van? É um processo fascinante.
Examinou detidamente os aparelhos:
— O método de produção usado aqui é o mesmo concebido pelos cientistas de Princeton — o primeiro que tem algum valor prático. O eletrólito das células eletrolíticas comerciais é primeiro destilado para que sejam separados o carbono e o hidróxido. Acrescenta-se hidróxido de sódio, e então a solução é eletrolisada naquelas células.
Apontou para várias mesas mais adiante, contendo inúmeras garrafas de hidrômetro que eram esfriadas por imersão em grandes tanques rasos de água corrente.
— Os elétrodos, como você pode ver, são torcidos duas vezes nos ângulos certos, para formar ânodos e catódios nas células vizinhas; o potencial da corrente direta é suprido por aqueles geradores de motor ali. Leva cerca de três dias para reduzir o eletrodo a aproximadamente doze por cento do volume original; o eletrodo concretado é então parcialmente neutralizado pelo dióxido de carbono em ebulição nele. Depois, então, isso é destilado e acrescentado a outro grupo de células — aquelas nas mesas dos fundos — contendo água do mesmo grau, porém com o teor primitivo de hidróxido de sódio. São feitas três eletrólises sucessivas, que resultam em água com cerca de dois e meio por cento do pesado isótopo de hidrogênio. Daí para a frente, o hidrogênio contém o isótopo pesado que é recuperado pelo aparelho daquelas mesas.
Fez um gesto com a mão para o complicado aparelhamento à nossa frente.
— O gás eletrolítico misturado passa daquelas células à direita através desse vaporizador e desse tubo em T, o qual, como vê, está mergulhado em mercúrio para formar uma válvula de segurança para liberar a pressão excessiva; finalmente, ele flui para fora através daquele bocal de vidro capilar, onde acende uma chama.
Vance jogou o cigarro ao chão e o esmagou.
— E esse é o último passo, Van, para produzir o líquido mais caro do mundo. A água formada pela combustão é condensada nesse tubo inclinado de quartzo...
Ouvimos então o barulho de rápidas pisadas na escada do porão. Vance virou-se subitamente e correu, mas era tarde. A grande porta de carvalho tinha sido violentamente fechada, e quase simultaneamente a pesada tranca foi encaixada na fechadura.
Sobre o ruído dos motores e o fluxo da água corrente nos tanques rasos, pudemos perfeitamente ouvir o riso irado mas triunfante de alguém na escada.
XIV - O RÓTULO BRANCO
(Segunda-feira, 17 de outubro — 15:00 horas)
Vance fixou a pesada porta, com um sorriso estranho.
— Essa não, Van! — murmurou. — Eu abomino melodrama. Ademais, ainda não almoçamos — e são três horas. Situação desagradável, mas divertida. — Puxou uma cadeira, sentou-se calmamente, e começou a fumar.
De repente, apagaram-se as luzes do porão, e fomos deixados na escuridão total. Vance suspirou.
— Bem, bem. Você agüenta, Van? Lamento muito tê-lo envolvido nessa história louca. Vejamos se nossos captores são comunicativos.
Foi até a porta e bateu nela várias vezes, com as costas da cadeira. Novamente escutamos pisadas na escada, e uma voz abafada e não identificável perguntou:
— Quem é você... e o que quer aqui?
— Lamento ser o Sr. Vance... e gostaria muito de um pouco de homard à la Turque e uma garrafa de Chauvenet suave.
— Você vai receber algo pior do que isso — fez a voz, que, embora sua debilidade, demonstrava azedume e raiva. — Quantos são aí?
— Só dois — disse-lhe Vance. — Gente inofensiva. Turistas. Estamos conhecendo as matas de Jersey.
— Arrombadores inofensivos... esta é boa! — E a voz sorriu maliciosamente. — De qualquer forma, vocês serão inofensivos quando eu acabar com vocês. Já volto a lhes falar — vou avisar à polícia. — Escutamos passos subindo a escada.
Vance bateu na porta novamente, com a cadeira.
— Espere um pouco! — gritou.
— O que é agora? — A voz estava mais longe.
— Antes que aborreça os guardas — falou Vance — é bom que saiba que a polícia de Nova York sabe quem sou eu e por que estou aqui. Tenho um encontro com o procurador distrital Markham às cinco horas, e se eu não aparecer, esta cabana será totalmente revistada. Mas não se preocupe. Tenho muito em que pensar nas próximas horas. — Escutei-o sentar-se. Depois, pela pequena chama do isqueiro, vi que acendia um Régie.
Houve um breve silêncio, seguido de passos na escada e por um sussurro. Em alguns momentos as luzes do porão se acenderam e os motores recomeçaram a funcionar. Logo depois escutamos o som da tranca sendo solta, e a pesada porta de carvalho se abriu.
No alto da escada estava Kinkaid. O rosto parecia, mais do que nunca, uma máscara.
— Não sabia que era o senhor — disse, com tom glacial e sem modulação. — Se soubesse, não teria agido de forma tão hostil. Vim até cá e notei que a janela da copa fora forçada. Deduzi que houvesse arrombadores na casa e, quando vi as luzes do porão acesas, mandei trancar a porta.
— Não tem importância — replicou Vance calmamente.
— Foi um engano social meu... não seu.
Kinkaid segurou a porta aberta e ficou de lado. Subimos a escada para a cozinha, e ele nos conduziu à sala de estar. Ao lado de uma mesa maciça, havia um homem forte, de mais ou menos trinta e cinco anos, cabelo ruivo e rosto carrancudo. Vestia calças folgadas, paletó de trabalho e uma camisa de flanela cinza.
— O Sr. Arnheim — anunciou Kinkaid de modo casual.
— Ele é o encarregado do laboratório que os senhores inspecionaram.
Vance inclinou-se ligeiramente para o homem.
— Ah! Colega de sala de Bloodgood e Quayle? Arnheim agitou-se, e os olhos se toldaram.
— E daí? — rosnou.
— Pode sair, Arnheim — disse Kinkaid, fazendo um sinal com a mão.
O homem voltou à cozinha e o escutamos descer para o porão. Kinkaid sentou-se e examinou Vance com seus olhos de peixe.
— O senhor parece estar bem familiarizado com minhas atividades — comentou.
— Oh, não. Só com os fatos óbvios — assegurou-lhe Vance. — Procurava mais informações quando o senhor chegou.
— Sorte sua — disse Kinkaid — que o caso acabou como acabou. Arnheim odeia visitantes não convidados do laboratório. Estou a caminho de Atlantic City por uns dias e Arnheim me pegou de carro em Closter e me trouxe aqui.
Vance ergueu as sobrancelhas.
— Caminho meio complicado para ir de Nova York a Atlantic City, não acha?
O rosto de Kinkaid endureceu, e os olhos se estreitaram.
— Não é tão complicado assim — retrucou. — Queria tratar de alguns assuntos com Arnheim antes de viajar, de modo que fui de trem a Closter e ele me encontrou lá. Mais tarde me levará a Newark, para que eu pegue o trem das sete para Atlantic City. Meu itinerário está satisfatoriamente explicado?
— De certa forma, sim. — Vance assentiu. — Pode ser. Muito lógico, quando explicado. Fugindo do tumulto da cidade por uns tempos, hem?
— Quem não o faria... depois do que passei? — Kinkaid mudara o tom de voz, e falava quase petulantemente. — Fechei o Cassino por uns dias, em respeito a Virgínia. — Sentou-se empertigado e olhou Vance de modo mau. — Acredite ou não, senhor, mas gostaria de agarrar o animal que a matou.
— Sentimento nobre — murmurou Vance. — Primitivo, mas nobre. Aliás, a garrafa de água dela estava vazia quando chegamos à casa sábado à noite.
— Meu sobrinho me disse. E daí? Qual o crime em beber um copo d'água?
— Nenhum — reconheceu Vance — nem em fabricar água pesada. Laboratório fantástico, o seu.
— O melhor do mundo — afirmou Kinkaid, com orgulho evidente. — Foi idéia de Bloodgood. Ele via as possibilidades de se comercializar água pesada, as expôs a mim, e eu lhe dei "sinal verde"... eu financiaria o empreendimento. Com mais um mês, estaremos prontos para comercializá-la.
— É, muito bem. Sujeito de iniciativa, esse Bloodgood. — Vance acenou com a cabeça e manteve os olhos fixos em Kinkaid. — Ele teve a idéia, foi com Quayle ao Laboratório Frick e obteve todos os dados e planos necessários; depois procurou Arnheim e o encarregou das operações. Três jovens químicos ambiciosos — todos bons amigos — tentando fazer a vida, por assim dizer. Muito bem.
Kinkaid sorriu astutamente.
— O senhor parece saber tanto sobre a minha empresa quanto eu. Bloodgood lhe contou?
— Não. — Vance sacudiu a cabeça. — Ele evitou jeitosamente o assunto. Esforçou-se demais, porém, e causou minhas desconfianças. Fui a Princeton ontem à noite. Juntei várias coisas. Sua cabana de caça era indicada, de modo que vim até cá.
— Por que seu interesse por meu laboratório? — perguntou Kinkaid.
— O motivo da água. Há água demais aqui e no caso do envenenamento.
Kinkaid deu um salto, e o rosto ficou vermelho.
— Explique-se! — exigiu. — Água pesada não é veneno.
— Não se sabe — disse Vance, tranqüilamente. — Pode ser. Ainda não se pode afirmar. Tema interessante. De qualquer forma, a água foi o indício. Tenho simplesmente seguido as pistas.
Kinkaid calou-se. Depois, disse cuidadosamente:
— Agora compreendo o que quer dizer. O senhor descobriu alguma coisa?
— Nada de que não tivesse suspeitado antes — respondeu Vance, evasivamente.
— Que pena que seu arrombamento não tivesse resultados compensadores.
— Arrombamento? Oh, sim. Claro. — Vance deu de ombros. — O senhor vai dar queixa?
Kinkaid riu.
—' Não, desta vez passa. — Falava quase cordialmente.
— Muito obrigado — disse Vance, levantando-se. — Nesse caso, o Sr. Van Dine e eu vamos indo. Desculpe a pressa, mas estou morto de fome. Ainda não almocei. — Foi até a porta e parou. — Onde o senhor vai ficar em Atlantic City?
Kinkaid mostrou-se interessado na pergunta.
— O senhor acha que precisará de mim? Vou ficar no Ritz.
— Divirta-se — fez Vance, e pegamos o carro.
Mal passava de quatro e meia quando chegamos a casa. Vance pediu chá e uma muda de roupas, depois ligou para Markham.
— Tive uma tarde maravilhosa — contou ao procurador distrital. — Banquei o arrombador. Van e eu ficamos presos num porão escuro, aí disse seu nome, e foi o "Abre-te, Sésamo!" Fomos cerimoniosamente — para não dizer apologeticamente — soltos. Conversei com Kinkaid. Ele está produzindo quartos de litro de água pesada na cabana de caça. Tem um laboratório grande, aparelhado. Idéia de Bloodgood, ajudado e incentivado por outro colega de classe, um sujeitinho hostil chamado Arnheim. Kinkaid não me pareceu aborrecido por eu haver descoberto seu segredo. Até me desculpou pela entrada forçada. Está indo para Atlantic City. O caminho da água continua. Estou levando um balde ou dois de água fria, falando figurativamente, à casa dos Llewellyns hoje à noitinha. Caso estranho, Markham, mas a luz começa a surgir. Não muita, mas suficiente para me mostrar o caminho. Que tal jantar aqui em casa, às oito e meia, e depois ir ouvir o Terceiro Concerto de Brahms no Carnegie Hall? Conto mais quando chegar aí... E escute, Markham, traga o relatório de Hildebrandt se estiver pronto. Tchau!
Mais ou menos às seis horas, Vance chegou à casa dos Llewellyns. O mordomo nos fez entrar, com frígida dignidade. Aparentemente não se surpreendeu com a visita.
— Quem deseja ver, senhor?
— Quem está aqui, Smith? — perguntou Vance.
— Todos, senhor, menos o Sr. Kinkaid — informou o> mordomo. — O Sr. Bloodgood e o Dr. Kane também estão. Os cavalheiros estão no salão com o Sr. Lynn, e as senhoras, estão em cima.
Lynn, que devia ter escutado nossa chegada, veio até a porta do salão e nos convidou a entrar.
— Que bom ter vindo, Sr. Vance! — Ele ainda parecia deprimido, mas seu modo era ansioso. — Descobriu algo?
Antes que Vance pudesse responder, Bloodgood e o Dr. Kane se adiantaram para cumprimentá-lo. Terminadas as amenidades, Vance sentou perto da mesinha de centro.
— Descobri algumas coisas — disse a Lynn. Virou-se então para Bloodgood. — Acabo de chegar de Closter. Visitei a cabana de caça e conversei com Kinkaid. Porão interessante tem ele.
Lynn dirigiu-se à mesa e ficou ao lado de Vance.
— Sempre desconfiei que o velho tivesse bons vinhos na cabana — queixou-se. — Mas nunca me deu nenhuma amostra.
Os olhos de Bloodgood estavam em Vance: ignorou as observações de Lynn.
— O senhor encontrou alguém mais lá? — indagou.
— Sim, um tal de Arnheim. Camarada vigoroso. Ele nos trancou no porão, seguindo ordens de Kinkaid, claro. Foi muito aborrecido. — Inclinou-se para trás e encontrou o olhar de Bloodgood. — Conheci outro colega de classe seu, ontem à noite — Martin Quayle. Estava visitando rapidamente o Dr. Hugh Taylor. Vi também o Laboratório Frick.
Bloodgood deu um passo, mas os olhos não se moveram. Depois de um instante, perguntou:
— Aprendeu alguma coisa?
— Aprendi muito sobre água — disse Vance, com um leve sorriso.
— E será que também soube — indagou Bloodgood, em voz fria — o nome do responsável pelos acontecimentos de sábado?
Vance inclinou a cabeça afirmativamente e deu uma profunda tragada no cigarro.
— Sim, acho que sim.
Bloodgood enrugou a testa e esfregou a mão no queixo.
— Que pretende fazer agora?
— Prezado amigo! — exclamou Vance. — O senhor sabe muito bem que não posso tomar qualquer providência. É muito difícil determinar certos fatos, e mais ainda prová-los... O senhor nos poderia ajudar, por acaso? Bloodgood inclinou-se raivosamente.
— Não senhor! — explodiu. — O problema é seu.
— É verdade, é verdade. — Vance fez um gesto desanimado. — Uma situação triste e complicada...
O Dr. Kane, que escutara atentamente, sacudiu-se e levantou-se.
— Preciso ir — anunciou, olhando o relógio. — Ainda tenho de ir ao consultório, e tenho dois casos uterinos para diatermia. — Apertou a mão de todos e saiu apressadamente.
Bloodgood mal notou que o médico fora embora. Seu interesse ainda estava focalizado em Vance.
— Se o senhor sabe quem é o culpado — disse tranqüilamente — e não pode provar, tenciona desistir do caso?
— Não, não — fez Vance — perseverança é meu lema. E persistência. "Deus está com os perseverantes." Idéia confortadora. E "as águas gastam as pedras", segundo Jó. Comentário interessante, esse. Água novamente, note. O fato é, Sr. Bloodgood, que terei provas suficientes em pouco tempo. Espero um relatório químico do toxicólogo oficial esta.noite. Ele é um homem inteligente. Terei mais informações amanhã.
— E se não acharem veneno? — indagou Bloodgood.
— Melhor ainda — comentou Vance. — Isso simplificará tudo. Mas estou certo de que haverá veneno — em algum lugar. Há sutilezas demais neste caso: esta a sua fraqueza. Mas eu gosto de decimais longos: é tão mais fácil escrever pi do que centenas de dígitos.
— Vejo o que quer dizer. — Bloodgood olhou para o relógio e levantou-se. — O senhor me perdoe. Tenho que pegar o trem das sete para Atlantic City. Kinkaid quer que eu vá lá. Ele vai pegar o trem em Newark. — Inclinou-se rigidamente para nós e dirigiu-se ao vestíbulo.
Parou na porta e voltou-se.
— Tem objeção — perguntou a Vance — que eu diga a Kinkaid que o senhor sabe quem envenenou Virgínia?
Vance hesitou antes de responder, depois falou:
— Não, nenhuma. Boa idéia. Kinkaid tem direito a saber. O senhor pode acrescentar que amanhã o caso estará encerrado.
Bloodgood susteve a respiração e fixou Vance.
— Tem certeza de que quer que eu lhe diga isso?
— Absoluta. — Vance soltou a fumaça do cigarro. — Suponho que o senhor também vá hospedar-se no Ritz?
Bloodgood não respondeu logo. Finalmente, disse:
— Sim, ficarei lá. — Virou-se e saiu rapidamente.
Ele apenas desaparecera quando Lynn levantou-se e segurou o braço de Vance excitadamente. Os olhos brilhavam e ele tremia dos pés à cabeça.
— Meu Deus! — exclamou. — O senhor acha mesmo...
Vance levantou-se rapidamente e tirou a mão de Lynn do braço.
— Não seja histérico — disse severamente. — Vá dizer à sua mãe e à sua irmã que quero vê-las um momento.
Lynn, envergonhado e abatido, murmurou uma desculpa, e saiu da sala. Quando voltou, minutos depois, informou a Vance que as duas mulheres estavam no quarto de Amélia e o veriam lá.
Vance subiu imediatamente, onde a Sra. Llewellyn e sua filha o esperavam.
— Acho justo, senhoras — disse Vance, após cumprimentá-las rapidamente — contar-lhes o que já informei às outras pessoas interessadas no caso. Acredito saber quem é o responsável por essa situação horrível. Sei quem envenenou seu filho, senhora; e quem pôs o veneno em sua garrafa, senhorita. Também sei quem envenenou Virgínia e escreveu o bilhete suicida. No momento nada posso fazer, pois me falta a necessária prova legal. Mas espero que amanhã eu já tenha fatos suficientes nas mãos que garantam providências definitivas de minha parte. Minhas conclusões lhes causarão muita dor, e quero que as senhoras estejam preparadas.
Ambas as mulheres ficaram silenciosas, e Vance, com leve reverência, saiu do quarto. Mas, ao invés de voltar diretamente ao andar principal, foi em direção ao quarto onde morrera Virgínia.
— Quero dar mais uma olhada, Van — disse-me ele, entrando no quarto. Eu o segui, e ele fechou a porta silenciosamente.
Andou pelo quarto uns cinco minutos, examinando pensativamente cada item da mobília. Demorou-se na penteadeira; inspecionou novamente os livros nas prateleiras; abriu a gaveta da mesa de cabeceira e inspecionou-lhe o interior; tentou a porta da passagem que levava ao quarto de Amélia, e finalmente foi até o banheiro. Olhou em volta, cheirou o perfume no atomizador, e então abriu a pequena porta espelhada do armário de remédios. Olhou dentro por algum tempo, sem tocar em nada. Finalmente, fechou a porta e voltou ao quarto.
— Nada mais há para se aprender aqui, Van — anunciou. — Vamos para casa.
Quando passamos pela porta do salão, vimos Lynn sentado numa poltrona ao lado da lareira, com a cabeça nas mãos. Não nos escutou, ou estava por demais chocado com as recentes afirmações de Vance para se preocupar com as amabilidades convencionais de cortesia, pois não demonstrou saber que estávamos indo embora.
Markham chegou ao apartamento de Vance às sete e meia.
— Preciso de alguns drinques antes do jantar — observou. — Esse caso me perturbou o dia inteiro. E seu telefonema enigmático não me ajudou exatamente a levantar o moral... Conte tudo, Vance. Por que e como você ficou preso num porão? Parece incrível.
— Pelo contrário, foi muito razoável — sorriu Vance.
— Van e eu arrombamos a entrada. Usamos um formão para que pudéssemos entrar na cabana de Kinkaid.
— Ainda bem que vocês se livraram. — Markham falava ligeiramente, mas havia expressão perturbada em seu rosto.
— Minha jurisdição não vai até Jersey, você sabe.
Vance chamou Currie e pediu martinis secos com canapés de caviar Beluga e um cálice de Dubonnet para ele mesmo.
— Se vocês vão tomar coquetéis... — suspirou, e deu de ombros — perdoem-me, mas não os acompanho.
Enquanto Markham e eu tomávamos nossos coquetéis, Vance, bebendo Dubonnet, contou em detalhes os acontecimentos do dia. Quando terminou, Markham sacudiu a cabeça desoladamente.
— O que — perguntou — você ganhou com tudo isso?
— O envenenador — disse Vance. — Mas conhecendo sua mente legalista, não lhe posso ainda apresentar o culpado. Você não poderia fazer nada. Um corpo de jurados talvez decidisse censurá-lo por ser ambicioso demais. — Ficou sério. — Alguma notícia de Hildebrandt?
Markham assentiu:
— Sim, mas não é final. Ele me telefonou antes que eu saísse do escritório e me disse estar trabalhando o dia todo, mas sem encontrar sinais de veneno. Parecia muito preocupado, e me informou que continuaria até a noite. Parece que ele já analisou o fígado, os rins e intestinos, sem quaisquer resultados; vai agora tentar o sangue, os pulmões e o cérebro. Aparenta extremo interesse pelo caso.
— Esperava algo mais palpável a esta altura — fez Vance, levantando-se e andando para cima e para baixo. — Não posso entender. Já deveria ter sido achado algum veneno. Toda a minha teoria está vacilando, Markham. Não tenho mais nenhuma idéia.
Sentou-se novamente e fumou em silêncio um pouco.
— Examinei o quarto de Virgínia hoje novamente, esperando achar algo, mas nada aconteceu, a não ser que o armário de remédios estava novamente arrumado artisticamente. Tem agora a mesma aparência de quando o vi pela primeira vez. Tudo no lugar, compondo um padrão equilibrado. Composição correta.
— Você achou o que lhe tinha perturbado a estética ontem? — perguntou Markham, sem muito interesse.
— Oh, sim. Havia um lugar faltando ontem — um quadrado branco. Apenas um rótulo de farmácia num vidro azul alto. Um vidro de colírio. Alguém evidentemente tirara o vidro, depois de minha primeira inspeção do armário, e o devolveu com a etiqueta no outro lado. Assim, ao invés de eu ontem ter visto um valor de composição de um vidro azul alto com um grande rótulo branco, só enxerguei o retângulo azul do vidro. Mas hoje o rótulo branco do vidro estava na frente como antes.
— Muito útil — comentou Markham ironicamente. — Isso, por acaso, pode ser considerado evidência legal?
Antes de Markham terminar de falar, Vance deu um pulo.
— Santo Deus! — Tentou manter a excitação ansiosa fora do tom de voz. — Esse rótulo ao contrário pode ser o que eu estava esperando quando lhe pedi que tirasse os guardas da casa dos Llewellyns. Não sabia o que poderia ocorrer se todos da casa estivessem livres de supervisão e restrições, mas achei que alguma coisa poderia haver. A mudança na posição do vidro é a única coisa que aconteceu. Será...
Deu meia volta e foi ao telefone. Momentos após, falava com o Dr. Hildebrandt no laboratório químico do necrotério da cidade.
— Antes de tentar alguma outra coisa, doutor, — disse — faça uma análise das conjuntivas, dos sacos lacrimais e da membrana mucosa do nariz. Teste com beladona. Pode evitar-lhe trabalho extra...
XV - O ENCONTRO ÀS DUAS HORAS
(Terça-feira, 18 de outubro — 9:30 horas)
Vance chegou ao escritório do procurador distrital às nove e meia da manhã seguinte. Depois do concerto de câmara da véspera, Markham fora direto para casa, e Vance ficara acordado até tarde, lendo trechos de vários livros médicos. Parecia nervoso e excitado, e depois de um uísque com soda, eu fui para a cama, deixando-o na biblioteca, mas eu ainda estava acordado quando ele foi deitar-se duas horas depois. Os acontecimentos do dia haviam estimulado meus processos mentais, e era quase de manhã quando adormeci. Às oito, Vance me acordou e perguntou se eu queria participar das atividades que ele planejara para o dia.
Levantei imediatamente e notei que Vance estava de ótimo humor, quando me reuni a ele para tomar café.
— Algo final e revelador deve acontecer hoje, Van — disse-me alegremente. — Estou contando com as conjuntivas e a psicologia do medo. Já contei a todos os relacionados com o caso tudo que sabia, à exceção de Kinkaid, mas confio em que Bloodgood lhe transmita tudo o que eu disse, em Atlantic City. Espero que algumas das sementes plantadas por meus comentários encontrem solo fértil e produzam fruto. Vamos ao escritório de Markham logo que você acabe com esses ovos quentes. Anseio por ver o relatório de Hildebrandt.
Quando chegamos, Markham estava há pouco no escritório. Estudava uma folha datilografada de papel, e não se levantou quando entramos.
— Você adivinhou — informou imediatamente a Vance.
— O relatório de Hildebrandt estava na minha mesa quando cheguei.
— Ah!
— Conjuntivas, sacos lacrimais e membrana mucosa do nariz saturados de beladona, que também havia no sangue. O médico diz agora não haver dúvida quanto à causa da morte.
— Muito interessante — observou Vance. — Ontem à noite li um caso de uma criança de quatro anos que morreu de instilação de beladona nos olhos.
— Mas sendo assim — objetou Markham — onde entra a sua água pesada?
— Oh, não há mistério. Não esperavam que soubéssemos da existência da beladona na membrana das pálpebras nem no interior do olho. Esperavam que mergulhássemos na água pesada, de cabeça, por assim dizer. A toxicologia do envenenador estava certíssima no sentido acadêmico, mas não pôde prever todas as eventualidades.
— Não vou fingir — disse Markham irritadamente — que entendo suas observações misteriosas. O relatório do Dr. Hildebrandt, porém, é suficientemente definitivo, mas não nos ajuda no sentido legal.
. — Não — concordou Vance. — Legalmente falando, torna o caso mais difícil. Poderia ter sido suicídio... mas não foi.
— E sua teoria — indagou Markham — é que a beladona também foi o veneno tomado por Lynn e Amélia?
— Oh, não. — Vance sacudiu a cabeça enfaticamente.
— Isso foi outra coisa. A parte angustiante da história toda é que não temos prova da intenção de matar em qualquer dos três envenenamentos. Mas pelo menos sabemos onde estamos agora, com o relatório de Hildebrandt. Alguma outra notícia, por acaso?
— Sim — fez Markham. — Uma novidade muito estranha. Não lhe atribuo qualquer importância maior, porém. Antes que eu chegasse ao escritório, Kinkaid telefonou de Atlantic City. Swacker falou com ele. O velho disse que foi chamado de volta a Nova York inesperadamente — um problema no Cassino — e que se eu queria encontrá-lo lá, junto com você. Diz ter mais informações sobre o caso...
Vance ficou agitado com isso.
— Ele marcou alguma hora?
— Disse a Swacker que estaria muito ocupado o dia todo, e que duas horas lhe seria conveniente.
— Você, por acaso, lhe telefonou de volta?
— Não. Ele disse a Swacker que ia tomar um trem em alguns minutos. De qualquer modo, eu não sabia onde ele iria parar. Além disso, não vi necessidade de lhe telefonar, e não lhe queria falar antes de conversar com você. Você parece ter algumas idéias sobre o caso que, reconheço, ainda não pude imaginar. O que acha do convite? Você julga que ele vá fornecer alguma informação vital?
— Não, acho que não. — Vance fechou os olhos e pensou alguns instantes. — Situação estranha. Pode ser que ele esteja preocupado com minha descoberta do laboratório de água pesada, e queira esclarecer sua situação, na hipótese de nós suspeitarmos dele. Não deve estar muito preocupado, porém; do contrário, viria aqui e não se arriscaria a que não comparecêssemos ao Cassino.
Vance sentou-se subitamente.
— Eta! Há outra forma de encarar o caso. Casual... sim, mas demais. Como o resto do problema. Ninguém está agindo racionalmente. Sempre algo de mais ou de menos. Não há equilíbrio.
Levantou-se e foi até a janela. O olhar era perturbado e a testa estava enrugada.
— Tenho esperado acontecer alguma coisa... mas ainda não é isso.
— Que achou que pudesse acontecer, Vance? — perguntou Markham, estudando-o com expressão preocupada.
— Não sei — suspirou Vance. — Quase tudo, menos isso.
— Pensei que fôssemos participar de algo emocionante, mas a perspectiva de um papo com Kinkaid às duas horas não me anima muito...
Vance virou-se de repente.
— Mas claro, Markham! Isso pode ser exatamente o que eu queria. — Seus olhos brilhavam. — Poderia ser, não sei. Estava buscando mais sutilezas, mas já é tarde para elas.
Deveria ter entendido isso. O caso atingiu a fase decisiva. Markham, vamos a essa entrevista.
— Mas, Vance... — o outro quis protestar, mas Vance o interrompeu.
— Não, não. Precisamos ir ao Cassino e saber a verdade. — Apanhou o chapéu e o paletó. — Apanhe-me à uma e meia.
Dirigiu-se à porta e Markham lhe perguntou:
— Tem certeza de que sabe onde está pisando? Vance parou, a mão na maçaneta.
— Tenho. Acho que tenho.
— E que vai fazer até à uma e meia? — indagou Markham, maliciosamente.
— Meu caro! Você é tão desconfiado... — A maneira de Vance mudou de repente e ele sorriu para Markham, bem-humorado. — Curioso, vou dar alguns telefonemas. Depois, vou à chefatura da Rua 240, para ter uma conversa muito franca com o sargento Heath. Vou fazer compras, e depois darei um pulo à casa dos Llewellyns. Depois vou almoçar no Scarpotti ovos à Eugénie, salada de alcachofra e...
— Adeus! — fez Markham. — Até à uma e meia!
Vance me deixou no edifício do Tribunal e fui direto a seu apartamento, onde me ocupei com certo trabalho de rotina que estava acumulado.
Pouco depois da uma, Vance voltou. Parecia distraído e, julguei, tenso mental e fisicamente. Falou pouco, e nem citou a situação que eu sabia o preocupava. Andou para cima e para baixo na biblioteca por uns dez minutos, fumando, e depois foi ao quarto, onde pude ouvi-lo telefonar. Não consegui distinguir o que dizia, mas quando voltou à biblioteca parecia de melhor humor.
— Tudo vai bem, Van — falou, e sentou-se em frente à sua aquarela favorita, de Cézanne. — Se conseguirmos resolver esse caso cinqüenta por cento tão bem quanto essa linda gravura...
Markham chegou exatamente à uma e meia.
— Aqui estou — anunciou agressivamente, denotando irritação — embora não veja por que não pudéssemos mandar Kinkaid ir ao escritório nos contar o que quer.
— Há uma boa razão — disse Vance, olhando-o afetuosamente. — Espero que haja. Não tenho certeza... francamente. Mas é nossa única oportunidade, e precisamos agarrá-la. Há um canalha à solta. Markham respirou fundo.
— Acho que sei como se sente. De qualquer modo, estou aqui. Não está na hora de sairmos?
Vance hesitou.
— E se houver perigo?
— Não se importe com isso — falou bruscamente Markham. — Estou aqui. Vamos embora.
— Há uma coisa que quero avisar a você e a Van — disse Vance. — Não bebam nada no Cassino — sob nenhum pretexto.
Descemos e entramos no carro; quinze minutos depois virávamos na Rua 73, Oeste, e nos dirigíamos para Riverside Drive. Vance estacionou na porta do Cassino, saltamos do carro e subimos os degraus até o vestíbulo envidraçado. Vance olhou o relógio.
— Exatamente um minuto depois das duas — observou. — Nas circunstâncias, estamos pontuais.
Apertou pequena campainha de mármore ao lado da porta de bronze e, tomando da cigarreira, tirou um Régie e o acendeu. Logo escutamos o cadeado abrindo, a porta girando, e entramos no vestíbulo semi-escuro.
Fiquei um pouco surpreso ao ver Lynn nos abrir a porta.
— Meu tio esperava que os senhores viessem — disse, cumprimentando-nos agradàvelmente. — Como está muito ocupado, pediu-me para ajudá-lo. Está esperando no escritório. Vamos subir?
Vance agradeceu, e Lynn mostrou o caminho para o fim do vestíbulo e até à escadaria. Atravessamos o Salão Dourado e, depois de bater gentilmente na porta do escritório de Kinkaid, Lynn a abriu e nos fez entrar.
Mal tinha percebido que Kinkaid não estava na sala, quando a porta bateu e a chave virou na fechadura. Virei-me apreensivamente, e lá estava Lynn, ligeiramente encurvado, com um revólver de aço na mão. Mexia a ponta do revólver para lá e para cá, e nos tinha os três sob mira. Uma transformação horrível ocorrera nele. Os olhos, entreabertos mas sinistros e frios, me deram um calafrio. Os lábios estavam contorcidos em um sorriso cruel. Havia uma confiança tensa no vaivém do corpo, do qual emanava a ameaça de um poder mortal.
— Grato por terem vindo — disse em voz baixa. — E agora, seus "patos", sentem-se naquelas poltronas contra a parede. Antes de "despachá-los", tenho algo a dizer-lhes. Mantenham as mãos no peito.
Vance olhou curiosamente para o homem e depois fixou o revólver.
— Não há nada a fazer, Markham — disse. — O Sr. Llewellyn é o mestre-de-cerimônias aqui.
Vance estava entre Markham e eu, e se sentou resignadamente na cadeira do meio. As três poltronas tinham sido colocadas em fila em uma extremidade do escritório. Markham e eu sentamos de cada lado de Vance e, seguindo-lhe o exemplo, colocamos as mãos na frente do corpo. Llewellyn moveu-se cautelosamente, como um gato, e ficou a cerca de 1,20 m de nós.
— Sinto, Markham, havê-lo metido nisto — desculpou-se Vance. — E você também, Van. Mas é tarde demais para arrependimentos.
— Jogue fora o cigarro — ordenou Lynn, olhando para Vance.
Vance obedeceu, e Lynn esmagou o cigarro com o pé, sem mesmo olhar para o chão.
— Não façam o menor movimento. Não quero matá-los antes de lhes contar umas coisinhas.
— Queremos ouvi-las — disse Vance, em voz curiosa. — Julguei ter percebido todo o seu jogo, mas você é mais esperto do que eu pensava.
Lynn deu um riso de mofa.
— Você não pensou o bastante. Achou que meu capital estava acabado, que eu teria de desistir, um perdedor. Mas ainda tenho seis fichas para jogar... estas seis aqui. — E bateu no cilindro do revólver com a mão esquerda. — E vou colocar duas delas em cada um de vocês. Acham que ganho a rodada?
Vance assentiu.
— Sim, pode ser que sim. Mas pelo menos você teve de desistir das sutilezas no fim e recorrer aos métodos diretos. Não foi, afinal de contas, um crime perfeito. Você teve de se tornar um pistoleiro para cobrir as apostas que perdeu. Não é um final muito satisfatório. Um pouco humilhante, na verdade, para quem se considera diabòlicamente astuto. Havia um desprezo enorme na voz de Vance.
— Sabe, Markham, — acrescentou — esse cavalheiro matou a esposa. Mas não foi bastante esperto e não atingiu a meta final. Seu sistema lindamente elaborado não deu certo em algum lugar.
— Oh, não — interrompeu Lynn. — Ele deu certo. Eu apenas tenho de jogar um pouco mais — a roleta vai dar mais uma volta.
— Mais uma volta. — Vance sorriu secamente. — Sim. Você vai precisar acrescer mais três assassinatos à sua tabela, para encobrir o primeiro.
— Não me importo com isso. Na verdade, até será um prazer — disse Lynn, rispidamente.
Parou, duro e alerta, sem o menor traço de nervoso. O revólver estava firme, o olhar era frio. Eu o observava, fascinado. Tudo nele parecia personificar morte rápida e inescapável. O homem tinha um poder que parecia duplamente terrível devido ao contorno suave, quase feminino dos traços. Havia uma propriedade nesse homem muito mais aterradora e sinistra do que os terrores conhecidos e compreensíveis da vida. Ele manteve os olhos em Vance e depois perguntou:
— Que sabe você? Eu irei preenchendo os claros. Levará menos tempo assim.
— Sim, você teria de satisfazer sua vaidade — retrucou Vance. — Eu contava com isso. Um fraco de coração.
Os lábios de Lynn se contorceram em um sorriso mau.
— Você acha que não terei coragem de matar os três?
— Tentou rir, mas sua garganta só emitiu um som gutural áspero.
— Não duvido — disse Vance. — Estou convencido de que você tenciona matar-nos. Mas isso só provará o desespero de sua fraqueza. É tão fácil atirar em pessoas. O bandido mais ignorante e covarde é muito eficiente a esse respeito. Precisa-se ter coragem e inteligência para se atingir um fim, sem a violência da ação física direta e, ao mesmo tempo, para se escapar da revelação do crime.
— Fui mais esperto que vocês todos — gabou-se Lynn.
— E este pequeno clímax aqui é mais sutil do que julgam.
Tenho um álibi perfeito para hoje à tarde. Se lhes interessar, estou agora dirigindo por Westchester com minha mãe.
— Sim, claro. Desconfiei de algo semelhante. Sua mãe não estava em casa quando fui lá de manhã...
— Você foi lá em casa hoje?
— Sim, dei uma passada. Infelizmente, sua mãe juraria em falso, por você. Desde o início ela desconfiou de você, e tem feito o possível para encobri-lo e jogar a culpa em outra pessoa. Sua irmã, também, teve um palpite da verdade.
— Pode ser que sim — rosnou o homem. — Desconfianças não fazem mal a ninguém. É a prova que conta — e ninguém pode provar nada.
Vance assentiu.
— Sim, é fato. A propósito, você foi a Atlantic City ontem à noite, não foi?
— Claro. Mas ninguém sabe que estive lá. Simplesmente foi telefonar para fazer um favor a meu tio. Simples, e deu certo, não?
— Sim, aparentemente. Estamos aqui, se é isso que quer dizer. Foi sorte sua que o secretário do Sr. Markham não conhecesse sua voz ou a do Sr. Kinkaid.
— Por isto tive o cuidado de ligar antes da chegada do eminente procurador distrital ao escritório. — Falava com infinito sarcasmo e sorria exultante.
. Vance fez um gesto de cabeça, os olhos fixos no revólver.
— É óbvio que você entendeu tudo o que lhe disse ontem à noite em sua casa.
— Foi fácil — disse Lynn. — Sabia, quando você fingia se estar dirigindo a Bloodgood, que estava na realidade falando para mim, tentando contar-me o quanto sabia. E você pensou que eu fosse tentar logo outra jogada para comprovar seu conhecimento, não? — Sorriu sarcàsticamente. — Bem, eu fiz a jogada, não é? Consegui reuni-los aqui... e vou matá-los. Mas não era exatamente a jogada que você esperava...
— Não — concordou Vance. — Não é. O telefonema e o encontro me intrigaram muito. Não compreendi por que Kinkaid se pudesse alarmar. Mas diga-me, Lynn: como sabe que esta sua festinha terá êxito? Alguém no edifício poderá ouvir os tiros...
— Não! — Lynn sorriu com auto-satisfação. — O Cassino está fechado indefinidamente, e não há ninguém aqui. Kinkaid e Bloodgood estão longe. Tirei uma chave dos aposentos de Kinkaid há algumas semanas, caso ele tentasse reter meus lucros em alguma ocasião. — Novamente fez um som gutural na garganta. — Estamos isolados aqui, Vance, sem perigo de interrupção. A festa será um êxito... para mim.
— Vejo que você planejou tudo detalhadamente — murmurou Vance desanimadamente. — Você parece ter controle total da situação. Que está esperando?
Lynn riu.
— Estou-me divertindo e tenho interesse em saber quanto do meu plano você conseguiu decifrar.
— Aborrece-lhe saber que uma pessoa pudesse ter deslindado seu plano, não é? — provocou Vance.
— Não — resmungou Lynn. — Apenas me interessa. Sei que você entendeu um pouco dele e lhe direi o resto antes de matá-lo.
— Isso, claro, se deve creditar à sua mania de gabar-se — fez Vance. — Seu ego terá prazer...
— Não importa! — O tom gélido da voz de Lynn interrompeu-o. — Conte sua história. Quero escutá-la. Enquanto a estiver contando, não morrerá; e todos gostam de se agarrar à vida, mesmo que por minutos... Mantenham as mãos em cima da poltrona — ou os matarei em um segundo.
XVI - A TRAGÉDIA FINAL
(Terça-feira, 18 de outubro — 14:15 horas)
Vance olhou para Lynn com tranqüilidade crítica por alguns momentos, depois disse:
— Sim, você tem razão. Enquanto eu continuar a falar, você me deixará viver, pois acha que posso alimentar sua vaidade...
— Vance! — Markham falou pela primeira vez desde que entramos no Cassino. — Por que servir de instrumento a esse assassino? Ele já resolveu, e não há o que fazer. — O tom era brusco e tenso, mas denotava coragem e resignação, o que aumentou minha admiração por ele.
— Pode ser que você esteja certo, Markham — disse Vance, olhando para Lynn. — Mas não pode haver mal em falar com nosso carrasco antes que ele puxe o gatilho.
— Ande, fale! — Lynn falou com calma exagerada. — Ou devo eu contar a história?
— Não, não é preciso, exceto por alguns detalhes. Eis minhas deduções: você se decidiu a livrar-se de sua mulher e culpar seu tio. Sua mulher era um estorvo: você e sua mãe não gostavam dela, e você teria mais certeza de uma herança total, se ela estivesse fora do caminho. Quanto a Kinkaid, você jamais o estimou, e, eliminando-o como possível herdeiro, estaria também anulando uma fonte de irritação. Você não gosta de seu tio porque ele lhe é muito superior e demonstra abertamente seu desprezo por você. É a reação natural de gente mesquinha como você. Então você concebeu um plano, com sua mente vaidosa e egoísta, para executar o crime perfeito, que eliminaria todos os fatores que se atravessassem no seu caminho. E planejou o golpe, segundo idealizou, para que o que acontecesse não indicasse você como responsável. Idéia inteligente, mas você não teve inteligência para aperfeiçoá-la.
Vance parou, fixando Lynn; depois prosseguiu:
— Você concebeu o veneno como o agente criminoso porque era indireto e, portanto, não precisava de coragem. Isso vai de acordo com sua natureza. Você sabia que Virgínia estava pingando colírio todas as noites e lera nos livros de seu pai sobre toxicologia — que você provavelmente consultou unicamente para servir a seu objetivo — que era possível haver morte através da absorção de beladona pelas membranas mucosas dos olhos e do nariz. Foi simples para você dissolver uma quantidade de beladona ou tabletes de atropina no colírio. Mas você não sabia o bastante sobre os modernos métodos toxicológicos — talvez porque os livros de seu pai fossem antigos — e ignorava que hoje o estômago não é o único órgão que o toxicólogo analisa. Havia uma noção errada que só uma análise do estômago era necessária para provar ou não um suposto envenenamento, mas atualmente os livros de toxicologia detalham mais a matéria. Você deveria ter lido Webster, Ross, Withaus e Becker, ou Auterrieth. Contudo, você nos deu bastante trabalho até que minha atenção foi atraída pelo vidro de colírio no armário de remédios de seu banheiro...
— O quê? — Os olhos de Lynn se abriram mais, porém não cessaram de vigiar os três prisioneiros. — Você me perguntou uma vez sobre esse armário.
— Sim. Na época, porém, eu ainda tateava. Depois que você tirou o vidro de colírio e o esvaziou, domingo de manhã, quando voltou do hospital, você o pôs de volta com a frente para trás, de modo que o rótulo não ficou visível. Notei algo errado, mas não sabia o quê. Por isso é que todos de sua casa tiveram perfeita liberdade de ação durante todo o domingo. Aliás, você foi à farmácia no domingo — não foi? — e encheu o vidro de colírio novamente, agora com a solução original inofensiva, temendo que um vidro vazio chamasse a atenção.
— Sim. Continue.
— Muito grato por ter colocado o vidro de volta com o rótulo para a frente. Isso me deu a pista... e a análise química do toxicólogo comprovou minha teoria. Soube então que sua mulher morrera da absorção de beladona pelos olhos e que alguém da casa estivera manipulando o vidro de colírio para encobrir as pistas.
— Muito bem, acertou. Suponho que pense que Amélia e eu fomos também envenenados com beladona.
— Não, claro que não. Até eu sei algo de toxicologia para não pensar assim. Você se envenenou com nitroglicerina.
A cabeça de Lynn bambeou um pouco.
— Como sabe? — perguntou, mal movendo os lábios.
— Simples dedução — respondeu Vance. — O Dr. Kane me disse que você sofria do coração e que lhe havia receitado drágeas de nitroglicerina. Você provavelmente tomou demais uma vez e ficou atordoado; então estudou a ação da nitroglicerina e descobriu que uma dose excessiva o derrubaria, sem causar nenhum mal duradouro. Então, depois de haver composto o cenário em casa, você tomou uma boa dose das drágeas e saiu um pouco de cena, com a casa lotada. Não havia forma de determinar o veneno tomado, evidente. Os sintomas eram de simples desfalecimento. Calculei que você deveria ter feito isso quando o Dr. Kane me falou das drágeas de nitroglicerina.
— E Amélia?
— A mesma coisa. Só que o tiro saiu pela culatra. Você não destinava o veneno a ela. Você planejara que sua mãe tomasse a água da garrafa na qual você dissolvera a nitroglicerina, mas sua irmã lhe atrapalhou os planos.
— Você acha que eu queria envenenar mamãe?
— Não, pelo contrário — disse Vance. — Você queria que ela fosse uma das vítimas do enredo — como você — para que fosse eliminada como provável suspeita.
— Sim! — Uma luz curiosa brilhava nos olhos de Lynn. — Minha mãe precisava ser protegida. Eu tinha de pensar nela e em mim. Muita gente sabia que ela não gostava de minha mulher, e ela é agressiva e rude de muitas formas. Ela poderia ter sido uma das suspeitas.
— Isso é óbvio — retrucou Vance. — E quando você soube que sua irmã tomara a nitroglicerina, tentou outro meio de eliminar sua mãe do rol dos suspeitos. Quando nos escutou subir a escada no domingo de manhã, encenou uma comovente cena de Édipo em nosso benefício, fingindo pensar que sua mãe pudesse ser culpada. Uma dupla sutileza. Objetivava também a eliminá-lo dos suspeitos e deu à sua mãe a oportunidade de nos convencer que era inocente. Foi um pouco covarde, pois podia, na verdade, tê-la envolvido. Mas foi uma cena eficaz — em sentido dramático, claro. Há mais alguma coisa que você queria saber sobre minhas conclusões?
Lynn sorriu maliciosamente um instante, depois perguntou:
— Que pensou você sobre as drágeas de rinita e o bilhete suicida?
— Exatamente o que você queria que eu pensasse — disse Vance. — Eles foram um dos principais elementos de seu enredo. Reconheço ter sido um golpe inteligente, mas fui um pouco mais longe do que você tencionava. Você queria que eu aceitasse Kinkaid como culpado, mas vi logo que ele era seu bode expiatório.
Lynn franziu a testa e os olhos se estreitaram perigosamente. Havia ódio na sua expressão. Depois sorriu astuciosamente.
— Então você logo percebeu o bilhete suicida, hem? Sim, eu queria enredar Kinkaid, mas você pensou logo nele?
— Mais ou menos — reconheceu Vance. — Muito óbvio, porém.
— E a água pesada?
— Oh, sim. Foi a decorrência natural, após um pouco de raciocínio. Como você pretendia. Todo seu plano ficou transparente logo que um ou dois dos fatores principais se resolveram. A estrutura foi bem concebida, mas alguns detalhes não convenceram. Falta de conhecimento e pesquisa de sua parte. Bastante infantil, sabe. Desde o início pensei em você como suspeito.
— Mentira! — rosnou Lynn. — Conte-me seu raciocínio.
Vance respirou profundamente e encolheu os ombros.
— Como você disse, enquanto eu continuar a falar permaneço vivo. A gente sempre aproveita uns instantes a mais de vida. E eu não suportaria deixar este mundo sem lhe tirar a ansiedade mental.
Sua voz se tornara tão fria e firme quanto a de Lynn.
— Sua carta a mim, implorando minha presença no Cassino sábado à noite, foi seu primeiro erro de cálculo. Foi inteligente, porém, mas não o bastante. Obviamente insincera — como premeditado — mas dizia muita coisa, revelando mais ou menos o caráter do escritor. Um cérebro astuto e efeminado o concebeu, o que indicou o tipo de pessoa a procurar. Sinceramente, não era preciso que eu testemunhasse seu desfalecimento no Cassino: qualquer um me poderia ter dado os detalhes. Você datilografou a carta e a nota do suicídio, aliás muito mal, de modo a indicar não ter familiaridade com a máquina. Depois pôs a carta em Closter, para incriminar Kinkaid e chamar a atenção para a cabana de caça de seu tio, lá perto. Mas isso, também, foi exagero: se seu tio tivesse escrito a carta, ele a mandaria de qualquer lugar, menos de Closter. É um pequeno detalhe, porém, e não o incrimina. O conteúdo do vidro de rinite foi esvaziado para dar uma espécie de substanciação da culpa de Kinkaid. Você sabia, claro, que não se acharia beladona no estômago, e isso indicaria um suicídio. Sua manipulação das garrafas dágua visou a dar a impressão de que foi através da água que os venenos foram administrados. Esse foi o segundo sinal — o primeiro foi o carimbo de Closter — que levou ao motivo da água pesada. Uma vez descoberta a teoria suicida e a fabricação de água pesa"da por Kinkaid, as suspeitas contra ele seriam bem fortes. E você e sua mãe estariam automaticamente eliminados — desde que ela tivesse tomado a nitroglicerina que você lhe preparara... Meu raciocínio está certo?
— Sim — admitiu Lynn raivosamente. — Continue.
— Ninguém, claro, — prosseguiu Vance — sabe o efeito que a água pesada tem no corpo humano, se tomada internamente em grandes quantidades, pois ainda não há disponibilidade suficiente para experimentos desse tipo, mesmo se fosse possível realizá-los. Mas tem havido especulação considerável sobre os possíveis efeitos tóxicos da água pesada e, embora não tivesse sido possível provar cientificamente que você, sua mulher e sua mãe a tivessem bebido — se ela tivesse tomado a água e não sua irmã — as suspeitas contra Kinkaid seriam fortíssimas. E essa suposição, junto com as demais evidências que você produziu, o teriam colocado em uma situação difícil de sair. Você sabia, claro, que a natureza do veneno supostamente dado a você e a sua mãe não seria determinada porque vocês escaparam aos efeitos fatais. De modo que seu querido tio Richard ia entrar bem... Aliás, como descobriu o laboratório secreto de Kinkaid na cabana? Os olhos de Lynn brilharam astutamente.
— Há uma lareira que vai do meu quarto ao dele, e várias vezes consegui escutá-lo conversar com Bloodgood.
— Ah! — sorriu Vance com desprezo. — Então você, além de tudo, escuta os assuntos alheios! Seu caráter é admirável, Lynn.
— Pelo menos atinjo meus fins — retrucou o homem, sem o menor sinal de vergonha.
— Parece assim. Talvez eu seja excessivamente crítico, mas há uma coisa que eu admito não ter entendido. Talvez você me faça o favor de esclarecê-la. Por que você simplesmente não envenenou sua mulher e seu tio, poupando-se o trabalho de todas as sutilezas intrincadas?
Lynn fez uma careta tolerante.
— Isso não teria sido tão fácil de arquitetar... Kinkaid está sempre alerta. Ademais, a morte dele e a de minha mulher poderiam encaminhar as suspeitas para mim. Por que me arriscar? De qualquer forma, prefiro sentar-me e vê-lo suar. Arruiná-lo primeiro e depois mandá-lo para a cadeira elétrica. — O fanatismo se expressava nos olhos.
— Sim — assentiu Vance — compreendo seu ponto de vista. Jogando no seguro e obtendo resultados mais satisfatórios. Muito inteligente e sutilmente concebido. Porém podíamos não perseguir a idéia da água pesada, sabe.
— Se não o tivesse feito, eu o teria ajudado. Porém eu contava com você. Por isso é que lhe mandei a carta: sabia que à polícia escaparia a idéia da água pesada; mas sempre admirei o modo por que sua mente trabalha em suas investigações. Você e eu realmente temos muitas qualidades em comum.
— Sinto-me abominàvelmente lisonjeado — murmurou Vance. — E você indicou o motivo da água pesada muito bem, sabe. Porém Bloodgood e Kinkaid desempenharam, em suas mãos, brilhantemente o primeiro ato do seu terrível drama aqui no Cassino.
Llewellyn riu à socapa:
— Não foi mesmo? Foi uma sorte danada. Mas poderia não haver acontecido. De modo que ordenei água pura para que você me ouvisse. E teria feito um barulhão dos diabos a respeito da água tônica, se Bloodgood não houvesse subitamente se tornado Chesterfieldian. Deve lembrar-se, também, que esperei até Kinkaid estar perto da mesa antes de ordenar minha segunda bebida.
— Sim, notei isso. Muito esperto. Você jogou bem suas cartas. Pena que não tivesse lido um pouco mais sobre toxicologia.
— Isso agora já não importa. — Llewellyn fungou depreciativamente. — Foi melhor assim. Kinkaid terá três cadáveres bem aqui no seu escritório para explicar... Não terá uma única chance no mundo, pois mesmo que tenha um álibi, não poderá provar que não mandou um de seus capangas matá-los. E isso é melhor do que tê-lo preso sob suspeita e julgado sob provas circunstanciais de um envenenamento em Park Avenue.
— De modo que também nós fomos joguetes em suas mãos — observou Vance desanimadamente.
— Isso mesmo... e lindamente! — Llewellyn olhou de esguelha para Vance, em triunfo. — As cartas têm trabalhado para mim, nestes últimos dias. Mas sorte e inteligência andam sempre juntas.
— Oh, é verdade... E quando você nos haja assassinado irá juntar-se à mamãe no campo para estabelecer um álibi indestrutível. O secretário de Markham testemunhará que Kinkaid nos marcou encontro aqui às duas horas. Você dará testemunho de minha conversa com Bloodgood na noite passada, e Kane confirmará isso. Você falará também tudo que sabe a respeito da água pesada, e Arnheim terá de admitir que eu estive na cabana de caça. Nossos corpos serão encontrados aqui; e desde que tudo apontará diretamente para Kinkaid, ele será preso. — Vance sacudia a cabeça admirativamente. — Sim. É como você diz. Ele não terá uma chance, mesmo que eventualmente prove que ele próprio o fez ou mandou que alguém fizesse por ele. Em qualquer caso, está perdido... Muito lindo. Não vejo uma só falha no raciocínio.
— Não. — Llewellyn sorriu. — Eu mesmo estou-me admirando!
Markham olhava-o, raivoso; e explodiu:
— Você é um demônio terrível!
— Palavras, Sr. Markham... apenas palavras! — retrucou-lhe o outro, maciamente.
— Sim, Markham — falou Vance. — Tais epítetos apenas lisonjeiam o cavalheiro.
Os lábios de Llewellyn se encurvaram de modo hediondo:
— Há mais alguma coisa que não compreende, Vance? Terei prazer em explicar.
— Não. — Vance sacudiu negativamente a cabeça. — Penso que o terreno está muito bem preparado.
Llewellyn deu um hediondo sorriso, com triunfante auto-satisfação:
— Bem, consegui; e prosseguirei com a coisa. Planejei tudo, do começo ao fim. Realizei uma morte de forma nunca antes realizada. Eu lhes forneci quatro suspeitos, mantendo-me ao fundo, ignorado. Não me incomodava até onde vocês fossem: quanto mais longe chegassem, mais afastados estariam da verdade...
— Você esquece que por fim o descobrimos... — falou Vance casualmente.
— Mas esse é o meu maior triunfo! — gabou-se Llewellyn. — Enganei-me em um ou dois pequenos detalhes em meu conhecimento sobre venenos, dando-lhe assim uma chave. Mas fui de encontro a suas suspeitas com um golpe ainda mais inteligente. O que você considera meu erro eu transformei no grande triunfo culminante... — Havia um brilho maníaco de egoísmo em seus olhos fixos. — E agora, fecharemos o livro!
Os músculos de seu rosto relaxaram numa fria máscara mortal. Havia uma cintilação quase hipnótica em seus desbotados olhos azuis. Deu um curto passo para nós e com marcada deliberação apontou o revólver. A ponta se dirigia diretamente ao estômago de Vance...
Em qualquer grande momento final dessa espécie, em que a vida que conhecemos está a ponto de ser varrida, c quando aquilo a que chamamos consciência está a ponto de desaparecer, é curioso como nossas mentes recebem e registram os simples sons comuns do mundo em torno de nós — sons que mal identificamos no curso comum dos acontecimentos. Enquanto estava ali sentado, naquele terrível momento, de algum modo estava cônscio de que, a distância, uma voz aguda de mulher estava chamando; podia ouvir o som do apito de um barco no Hudson; estava cônscio de que lá fora na rua, os freios de um automóvel tinham sido violentamente acionados; dava-me conta do ruído surdo do tráfego na avenida próxima...
Vance se ergueu a meio em sua cadeira e se inclinou para a frente. Seus olhos se estreitaram, mas havia um sorriso desdenhoso em seus lábios. Por um momento pensei que se preparava para lançar-se rapidamente sobre Llewellyn. Porém, se tal fora sua intenção, ele se atrasou: nesse momento, Llewellyn, o revólver ainda firmemente apontado para o estômago de Vance, deu ao gatilho duas vezes em rápida sucessão. Houve duas ensurdecedoras detonações no pequeno escritório e, acompanhando-as, duas faixas de fogo brilharam na ponta do revólver de Llewellyn. Uma onda de horror passou sobre mim e paralisou cada músculo de meu corpo...
Os olhos de Vance se fecharam lentamente. Levou uma das mãos à boca. Tossiu, sufocado. A mão descaiu em seu colo. Ele parecia vacilante, sua cabeça pendeu. Então escorregou lentamente para diante e ficou todo retorcido aos pés de Llewellyn. Meus olhos, que pareciam querer saltar das órbitas, estavam fixos em Vance, num horror selvagem.
Llewellyn relanceou-lhe o olhar rapidamente, sem mudar de expressão. Deu um passo para um lado, ao mesmo tempo que mirava para Markham, que parecia petrificado.
— Levante-se! — ordenou Llewellyn.
Markham tomou fôlego vigorosamente e se levantou. Os ombros estavam erguidos, desafiantes, e nem por um momento abaixou o olhar firme e agressivo.
— Você intimamente não passa de um policial — disse Llewellyn. — Acho que vou baleá-lo pelas costas. Vire-se.
Markham não se moveu.
— Não para você Llewellyn — retrucou, calmamente. — Receberei de frente tudo que queira dar-me.
Enquanto ele falava, ouvi um curioso ruído deslizante na outra extremidade do pequeno escritório, e instintivamente olhei nessa direção... e vi algo que me admirou: um dos painéis de madeira na parede oposta desapareceu e, na abertura, estava Kinkaid, uma grande automática na mão. Caminhava lentamente para diante; e tinha a arma apontada diretamente para Llewellyn.
Llewellyn também ouviu o ruído, pois virou-se parcialmente e relanceou os olhos por cima do ombro. Ouviram-se duas explosões. Porém, desta vez, da arma de Kinkaid. Llewellyn se deteve em meio ao movimento. Seus olhos se abriram desmesuradamente, num espanto, e o revólver que segurava caiu-lhe da mão. Ficou imóvel, como que gelado, por talvez dois segundos. Depois, todos os seus músculos amoleceram: a cabeça descaiu, e ele rolou para o chão. Ao ver o que acontecera, Markham e eu ficamos espantados demais para mover-nos ou falar.
No breve, terrível silêncio que se seguiu, aconteceu uma coisa extraordinária. Por um momento, senti como se estivesse testemunhando alguma cena mágica; parecia estar acontecendo um milagre fantástico: meu olhar fascinado acompanhara a queda de Llewellyn e depois se moveu para a forma imóvel de Vance... e então Vance se moveu e se levantou vagarosamente. Tirando o lenço do bolso interior do paletó, começou a espanar-se.
— Muitíssimo obrigado, Kinkaid — murmurou. — Você nos poupou uma grande quantidade de aborrecimentos. Ouvi seu carro e procurei manter o menino ocupado até que você chegasse aqui em cima. Tinha a esperança de que, ao ouvir os tiros, você fizesse o mesmo com ele. Por isso é que o deixei pensar que me matara.
Kinkaid apertou os olhos, zangado. Depois sua expressão mudou, e ele riu asperamente.
— Queria que eu atirasse nele, não? Por mim, está muito bem. Grato pela oportunidade... Desculpe não haver chegado antes... Mas o trem estava um pouco atrasado e o meu táxi ficou retido no tráfego.
— Por favor, não se desculpe — falou Vance. — Você chegou no momento exato. — Ajoelhou-se junto de Llewellyn e lhe suspendeu a mão: caiu mole. — Está morto e bem morto... Você lhe atravessou o coração. É um excelente atirador, Kinkaid.
— Sempre fui — replicou o outro, secamente.
Markham ainda estava, como um sonâmbulo: pálido e transpirando. Fez um esforço para falar.
— Você... tem certeza de que está bem, Vance?
— Ora, completamente! — Vance sorriu. — Nunca estive melhor. Terei de morrer um dia, mas, realmente, não gostaria que um degenerado patológico como Llewellyn escolhesse a data para o meu falecimento. — Seus olhos se viraram contritamente para Markham: — Estou terrivelmente triste por lhe haver causado, e a Van, toda essa agitação. Mas tinha de gravar a confissão de Llewellyn nos registros. Não tínhamos nenhuma evidência, nenhuma prova esmagadora contra ele, como vocês sabem.
— Mas... mas... — Markham estremeceu, aparentemente ainda incapaz de aceitar a surpreendente situação.
— Oh! O revólver de Llewellyn só tinha cartuchos de festim — explicou Vance. — Verifiquei e providenciei isso hoje pela manhã quando visitei o domicílio dele.
— Você sabia o que ele ia fazer? — Markham olhou incrèdulamente para Vance e esfregou vigorosamente o lenço no rosto.
— Suspeitei da coisa... — disse Vance, acendendo um cigarro.
Markham "arriou" na cadeira, como um homem exausto.
— Tomarei um conhaque — anunciou Kinkaid. — Acho que todos tomaríamos uma bebida. — E se dirigiu à porta que levava ao bar.
Os olhos de Markham ainda estavam pregados em Vance, mas já haviam perdido aquela expressão de espanto:
— O que quis dizer ainda agora quando falou que tinha de pegar a confissão de Llewellyn e gravá-la?
— Exatamente isso — retrucou Vance. — E isto me recorda. Preciso desligar o ditafone.
Encaminhou-se para um pequeno quadro acima da secretária de Kinkaid e o retirou da parede, mostrando um pequeno disco de metal.
— É isto, rapazes — disse, aparentemente falando com a parede. Depois cortou os dois arames atados ao disco.
— Vê, Markham, quando me falou esta manhã do suposto telefonema de Kinkaid, não pude entender a coisa. Porém, logo me acudiu que não fora absolutamente Kinkaid quem telefonara, e sim Llewellyn. Dele é que eu esperava alguma ação, após as observações que lhe pingara no ouvido indiretamente a noite passada. Admito que não esperava nada de tão conclusivo e final como esta pequena representação: por isso é que a princípio fiquei tão surpreso. Porém, desde que a luz brilhou em minha mente, percebi que a história era lógica e sutil. Premissa: você e eu estávamos no caminho certo. Conclusão: você e eu tínhamos de ser arredados do caminho. Assim, visto que estávamos sendo atraídos para o Cassino, não era particularmente difícil acompanhar o silogismo de Llewellyn. Eu estava certíssimo de que ele fora realmente a Atlantic City para dar o telefonema — é difícil, sabe, simular, de uma estação local, um chamado de longa distância. Portanto, eu sabia ter pela frente várias horas para fazer os meus preparativos. Imediatamente, telefonei a Kinkaid em Atlantic City, contei-lhe todas as circunstâncias e pedi-lhe que viesse de imediato para Nova York. Por ele, soube, também, como entrar no Cassino para instalar um ditafone. Por isso é que chamei o vigoroso sargento. Ele e alguns dos rapazes da Divisão de Homicídios e um estenógrafo estão no apartamento da casa vizinha, e anotaram tudo que foi dito aqui esta tarde.
Sentou-se na poltrona em frente a Markham e deu uma longa tragada em seu cigarro; e continuou:
— Admito que não estava muito certo sobre o método que Llewellyn usaria para afastar-nos de seu caminho e atirar as suspeitas sobre o tio. Por isso é que o preveni e a Van para que não bebessem nada aqui — havia a possibilidade de que ele tornasse a empregar veneno. Mas pensei que ele poderia usar seu revólver; de modo que comprei uma caixa de cartuchos de festim, fui à casa dele esta manhã sob um pretexto perfeitamente tolo e, quando fiquei sozinho no seu quarto, substituí os cartuchos do revólver pelos de festim. Havia a possibilidade de que ele notasse a substituição se examinasse o revólver de frente; mas soube que os de festim estavam em seu lugar antes de sentar-me a seu lado há pouco. De outra maneira eu teria aplicado, imediatamente, um pouco de judô no rapazinho...
Kinkaid voltou ao escritório com uma garrafa de conhaque e quatro copos. Descansando a bandeja na secretária, encheu os copos e nos convidou a servir-nos.
— Devo fazê-lo, Vance? — perguntou Markham, com um sorriso. — Você nos disse para não bebermos nada aqui...
— Agora está tudo bem. — Vance tomou um gole do seu Courvoisier. — Desde o princípio considerei o Sr. Kinkaid nosso mais valioso aliado.
— Ora, vá para o diabo! — resmungou Kinkaid, bem-humorado. — Afinal de contas você me venceu!
Nesse momento nos chegou o barulho de uma porta batendo, seguido por pesadas passadas na escada. Kinkaid foi até a porta do escritório que levava ao Salão Dourado e a abriu. No umbral estava Heath, um Colt na mão. Por trás dele, amontoados, estavam Snitkin, Hennessey e Burke. Os olhos de Heath, fixos em Vance, estavam arregalados num espanto infantil.
— O senhor não está morto! — quase gritou.
— Longe disso, sargento; mas, por favor, vire pra lá esse revólver: por hoje, chega de tiros!
A mão de Heath escorregou para o lado, porém seus olhos espantados não desfitavam Vance. Disse:
— Sabe, o senhor me disse para eu não me perturbar com coisa alguma que ouvisse pelo ditafone, e para permanecer na escuta até que me desse o sinal combinado. Mas quando ouvi o que esse garoto disse, e logo os tiros e o senhor caindo, dei a coisa por terminada.
— Muita bondade sua, sargento, mas desnecessária. — Mostrou a figura caída de Lynn Llewellyn. — Aí está o valentão. Nenhuma complicação. Um tiro no coração. Morto. Você terá de levá-lo para o necrotério, claro. Mas será tudo. A coisa saiu maravilhosamente bem. Nenhum distúrbio. Nada de julgamento. Nada de júri. Mas a Justiça triunfante. A vida continua. Mas por quê?
Duvido que Heath haja entendido ou sequer ouvido o que Vance dizia: continuava a olhá-lo, boquiaberto.
— O senhor está certo... de não estar ferido? — As palavras pareciam sair-lhe dos lábios numa automática expressão de sua apreensão.
Vance depositou na mesa o seu copo de conhaque e, caminhando para Heath, pôs-lhe afetuosamente a mão no ombro:
— Completamente certo — disse, com brandura. Balançou a cabeça, em comiseração. — Desculpe, sargento, desapontá-lo assim!...
* * *
O assassinato de Virgínia Llewellyn, como vocês talvez recordem, ocupou as primeiras páginas dos jornais do país durante vários dias, mas logo cedeu lugar a outros escândalos. A maioria dos fatos mais importantes do caso se tornou do conhecimento público. Porém não todos eles. Kinkaid foi, naturalmente, absolvido da morte de Llewellyn: Markham providenciou para que o caso nem sequer fosse a julgamento.
O Cassino foi fechado permanentemente após um ano, e a bela mansão de arenito acinzentado foi derrubada para dar lugar à construção de um moderno arranha-céu. A esse tempo já Kinkaid fizera uma pequena fortuna; e desde então o fabrico de água pesada era sua ocupação.
A Sra. Llewellyn se recuperou do choque da morte de seu filho em muito menos tempo do que eu julgara possível. Lançou-se mais energicamente que nunca em trabalhos de assistência social: freqüentemente vejo seu nome nos jornais, em conexão com atividades filantrópicas. Bloodgood e Amélia Llewellyn se casaram uma semana depois que Kinkaid fechou o Cassino para sempre e agora moram em Paris. (Incidentalmente: a Sra. Bloodgood desistiu de sua carreira artística.) Recentemente encontrei o Dr. Kane na Park Avenue. Ostentava uma aparência de grande importância e me informou que ia correndo para o seu gabinete para um tratamento de diatermia numa paciente.
{1} Os registros da Expedição Conjunta à Mesopotâmia, empreendida pela Universidade da Pensylvania e o Museu Britânico, sob a direção do Dr. C. Leonard Woolley, apareceram recentemente.
{2} Vance possuía alguns cães de caça excepcionalmente bons, que lhe haviam conquistado alguns prêmios notáveis em vários concursos no este. Haviam sido treinados por um dos maiores peritos do país, tendo voltado para Vance perfeitamente domesticados para o trabalho de campo, vance tinha grande satisfação em cuidar pessoalmente dos cães.
{3} Interessante notar que o mesmo método de seleção e treinamento de carteadores foi adotado em Água Caliente.
{4} Kinkaid até empregava as rodas de roleta européias, com apenas um simples "O".
{5} Imagino que Kinkaid teve a idéia desses dois gigantescos atendentes inspirado nos impressionantes gigantes no hall de entrada do salão de jantar do Savoy, em Londres.
{6} Em francês: O senhor se compromete e depois vê... Mas o que espera ver, senhor? (N. do T.)
{7} Snitkin e Hennessey eram dois membros da Divisão de Homicídios que haviam participado em vários dos casos criminais de Vance.
{8} O sargento Ernest Heath, da Divisão de Homicídios, estivera oficialmente encarregado de todos os casos que Vance investigara.
{9} A mesma sala — passou-me pela memória — onde foi jogada a dramática partida de pôquer do caso da Canária.
{10} Dr. Emanuel Doremus, o Médico Legisla Chefe de Nova York.
{11} Secretário de Markham.
Na carreira notável do detetive Philo Vance, o chamado Crime do Cassino constituiu, talvez, o problema mais diabólico e sutil, o desafio mais completo aos seus poderes de intuição e análise.
Digamos logo que se tratou de um crime de envenenamento, mas não um caso comum... Envolveu, da parte do criminoso, uma técnica tão eficaz que isso o colocou muitos furos acima dos mais famosos crimes do gênero.
Sem dúvida, de um ponto de vista puramente objetivo, o caso não foi tão espetacular assim e poderia até ser considerado comum. Mas o nosso amigo assassino procurou embaralhar cuidadosamente todas as pistas, desviando as suspeitas e dissimulando os verdadeiros motivos do crime.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/8_O_CRIME_DO_CASSINO.jpg
I - CARTA ANÔNIMA
(Sábado, 15 de outubro — 10:00 horas)
Foi no frio outono que se seguiu ao espetacular crime do Dragão que Philo Vance teve de enfrentar o que foi, provavelmente, o mais sutil e diabólico problema criminal de sua carreira. Diferente de seus outros casos, esse mistério foi de envenenamento. Porém não um caso comum de envenenamento: incluía uma técnica avançada e muito elaborada, a ser equiparada à de crimes tão famosos como os casos de Cordelia Botkin, Molineux, Maybrick, Buchanan, Bowers e Carlyle Harris.
A designação que lhe foi dada pelos jornais — o crime do Cassino — estava tecnicamente errada, embora o famoso cassino de jogo de Kinkaid, na Rua 73, Oeste, haja desempenhado nele grande e importante parte. De fato, o primeiro episódio sinistro nesse notório crime ocorreu ao lado da mesa de roleta no Salão Dourado do cassino; e o episódio final da tragédia se desenrolou no escritório jacobiano, apainelado de nogueira, de Kinkaid, pertinho do principal salão de jogo.
Incidentalmente, posso dizer que aquela última e terrível cena me perseguirá até o fim dos meus dias. Acompanhei Vance através de muitas situações chocantes, no decorrer de suas investigações criminais, porém jamais passei por experiência que me afetasse tanto quanto aquele fatal e terrífico desfecho que veio tão súbita e inesperadamente, no espalhafatoso local de jogo.
E Markham também, eu sei, passou por uma deprimente metamorfose naqueles momentos agônicos, quando o assassino se ergueu diante de nós e gargalhou, triunfante. Até hoje, a só menção do incidente deixa Markham irritável e nervoso — fato que, a considerar-se sua calma habitual, claramente indica a profunda e duradoura impressão que lhe deixou o trágico acontecimento.
O crime do cassino, excetuando o evento fatal que vinha de terminar, não foi tão espetacular em seus detalhes como muitos outros casos solucionados por Vance. De um ponto de vista puramente objetivo, poderia até ser considerado comum, pois em seu mecanismo superficial houve muitos paralelos com bem conhecidos casos da história criminal. O que o distinguiu, porém, de seus muitos predecessores foi o sutil processo interior que o assassino achou para desviar suspeitas e criar novas e mais diabólicas situações em que se pudesse encontrar o real motivo do crime. Não era, apenas, uma roda dentro de outra roda, e sim uma elaborada é complicada peça de maquinismo psicológico, o mecanismo que arrastava mais e mais, quase indefinidamente, à mais surpreendente — e errônea — conclusão.
Realmente, o primeiro movimento do assassino foi talvez o mais astuto ato de todo o profundo esquema: uma carta endereçada a Vance trinta e seis horas antes que o mecanismo da peça fosse posto em operação. Porém, bem curiosamente, esta suprema sutileza é que, no fim, encaminhou ao reconhecimento do culpado. Talvez fosse por demais sutil o ato de escrever aquela carta; talvez derrotasse o próprio desígnio chamando muda atenção para os processos mentais do assassino, e assim deu a Vance uma chave intelectual que afortunadamente lhe desviou os esforços de mais insistentes e óbvias linhas de raciocínio. De qualquer modo, conseguiu seu objetivo superficial, pois Vance foi realmente espectador do primeiro ataque, por assim dizer, do florete do vilão.
E, como testemunha ocular do primeiro episódio desse famoso mistério de assassinato por veneno, Vance tornou-se diretamente envolvido no caso; de modo que, nas circunstâncias, levou o problema a John F. X. Markham, então procurador distrital de Nova York e o mais chegado amigo de Vance; ao passo que, em todas as demais investigações criminais foi Markham o responsável pela participação de Vance.
A carta a que me refiro chegou pelo correio da manhã, no sábado, 15 de outubro. Consistia de duas páginas datilografadas, e o envelope estava carimbado de Closter, Nova Jersey. O selo indicava haver sido postada ao meio-dia do dia antecedente. Vance trabalhara até tarde da noite na sexta-feira, rotulando e comparando desenhos estéticos da cerâmica sumeriana numa tentativa de estabelecer a influência cultural dessa antiga civilização{1}, e não se levantou senão às 10 horas no sábado. Eu estava morando no apartamento de Vance, na Rua 38, Leste, na ocasião; e, embora minha posição fosse a de conselheiro legal e administrador financeiro, eu me havia, durante os três últimos anos, tornado gradualmente uma espécie de secretário-geral a seu serviço. "Serviço" talvez não seja a expressão correta, pois Vance e eu havíamos sido amigos íntimos desde os tempos de Harvard; e essa relação é que me levara a romper minha conexão com a firma de advocacia de meu pai — Van Dine, Davis & Van Dine — e a devotar-me por inteiro à tarefa de zelar pelos negócios de Vance.
Nessa fria, quase hibernai manhã de outubro, como de costume eu abrira e separara sua correspondência, atentando para os assuntos de minha competência, e estava empenhado em preencher os formulários em branco para os julgamentos de campo do outono{2}, quando Vance entrou na biblioteca e, com uma saudação de cabeça, sentou em sua cadeira favorita — uma poltrona Rainha Ana — diante da lareira.
Ele usava um raro roupão de mandarim e sandálias chinesas; fiquei assombrado com essa vestimenta, pois ele raramente descia para o café da manhã (que invariavelmente consistia de uma xícara de café à moda turca e um dos seus queridos cigarros Régies vestido tão aprimoradamente.
— Olhe, Van, — observou ele, depois de tocar a campainha para chamar Currie, seu idoso camareiro e mordomo — não faça esse ar de espanto... Sentia-me deprimido ao acordar. Não consegui determinar os desenhos em algumas das linhas e antigas esteias e sinetes cilíndricos que cavaram em Ur, e em conseqüência tive uma noite insone. Portanto, enfeitei-me com estas roupas chinesas num esforço para neutralizar meus sentimentos e na esperança, devo acrescentar, de, que, por um processo de osmose psíquica, adquirisse um pouco daquela calma oriental, tão comentada pelos sinólogos.
Nesse momento Currie trouxe o café. Após acender um Régie e tomar alguns goles do líquido preto e espesso, olhou-me preguiçosamente, perguntando:
— Alguma correspondência interessante?
Tão interessado eu estivera na estranha carta anônima que acabara de chegar — embora ainda não tivesse idéia de seu trágico significado — que lha entreguei, sem uma palavra. Deu-lhe uma olhadela, sobrancelhas levemente erguidas, demorou o olhar na enigmática assinatura, e depois, colocando na mesa a xícara de café, leu-a vagarosamente. Enquanto isso, eu o observava, e notei uma curiosa expressão velada em seus olhos, que se aprofundaram e se tornaram invulgarmente sérios ao terminar a leitura.
. A carta ainda permanece nos arquivos de Vance, e vou reproduzi-la textualmente, pois nela Vance descobriu uma de suas "chaves" mais valiosas, chave que, embora não o levasse realmente ao assassino no começo, pelo menos desviou Vance da óbvia linha de pesquisa pretendida pelo maquinador. Como acabei de dizer, a carta era datilografada, porém o trabalho estava mal feito — isto é: era evidente a falta de familiaridade do datilografo com a máquina. Dizia a carta:
"CARO SR. VANCE:
Em minha aflição apelo para o senhor. Este apelo é também feito em nome da humanidade e da justiça. Conheço-o de reputação — e o senhor é o único homem em Nova York que pode evitar uma terrível catástrofe, ou pelo menos providenciar para que o castigo seja dado ao executante de um crime prestes a realizar-se. Horríveis nuvens negras pairam sobre certa família em Nova York — elas se vêm reunindo há anos — e sei que a tempestade está, prestes a explodir. Há perigo e tragédia no ar. Por favor, não me falho, embora eu admita ser um estranho para o senhor.
Não sei exatamente o que vai acontecer. Se o soubesse poderia ir à Polícia. Porém, qualquer interferência oficial agora poria o maquinador em guarda e apenas adiaria a tragédia. Gostaria de poder dizer-lhe mais — mas de nada mais sei. A coisa é assustadoramente vaga: é mais uma atmosfera do que uma situação específica. Mas vai acontecer — algo vai acontecer — e seja o que for que aconteça, será enganoso e errado. Assim, por favor, não permita que aparências o enganem. Olhe — olhe — por baixo das coisas, em busca da verdade. Todos os que estão envolvidos são anormais e trapaceiros. Não os subestime.
Eis tudo que posso contar-lhe:
O senhor conhece o jovem Lynn Llewellyn — pelo que sei — e provavelmente sabe de seu casamento há três anos com a linda estrela de comédia musical, Virgínia Vale. Ela desistiu de sua carreira e os dois têm morado com a família dele. Porém o casamento foi um engano terrível, e durante três anos a tragédia tem vindo fermentando. Agora a coisa atingiu o clímax. Vi os contornos irem tomando forma. E há outros além dos Llewellyns, no quadro.
Há perigo — tremendo perigo — para alguém mais: não sei exatamente quem. E a ocasião é amanhã à noite, sábado.
Lynn Llewellyn deve ser vigiado. E cuidadosamente!
Haverá um jantar na residência dos Llewellyns amanhã à noite, e estarão presentes todos os implicados nessa tragédia pendente: Richard Kinkaid, Morgan Bloodgood, o jovem Lynn e sua infeliz esposa, a irmã de Lynn, Amélia, bem como sua mãe. O motivo é o aniversário da mãe.
Embora saiba que haverá um distúrbio de qualquer espécie nesse jantar, calculo que o senhor nada poderá fazer a esse respeito. De toda maneira, isso não importará. O jantar será apenas o começo dos acontecimentos. Mas algo de grave acontecerá mais tarde. Sei que acontecerá. Ê chegada a ocasião.
Após o jantar, Lynn Llewellyn irá ao cassino de Kinkaid para jogar: faz isso todas as noites de sábado. Sei que o senhor mesmo visita freqüentemente o cassino. E o que lhe peço é que vá lá amanhã à noite. Deve ir. E deve vigiar Lynn Llewellyn em todos os minutos. Observe também Kinkaid e Bloodgood.
Há de estar cogitando por que não o faço eu mesmo: asseguro-lhe que minha posição e as circunstâncias tornam isso totalmente impossível.
Gostaria de ser mais explícito. Acontece que nada mais sei para dizer-lhe. O senhor deve descobrir.”
A assinatura, também datilografada, era: "Alguém Profundamente Interessado".
Ao esquadrinhar a carta pela segunda vez, Vance afundou na cadeira e espichou as pernas preguiçosamente.
— Um documento espantoso, Van! — comentou ele, após várias baforadas no cigarro. — E completamente falso, sabe... Um toque literário aqui e ali — uma pontinha de melodrama — algumas amostras de afetada retórica... e, ocasionalmente, uma preocupação profunda; embora vaga, a assinatura é genuína. Sim... sim... isso é óbvio: está batida mais pesadamente que o resto da carta... maior pressão nas teclas... Paixão no que fazia. E não uma paixão agradável: uma ponta de vingança, de par com ansiedade... — Sua voz diminuiu um pouco: — Ansiedade! — continuou, como para si próprio. — Isso é exatamente o que transpira entre linhas. Mas ansiedade por quê?... a respeito de quem?... O jogador Lynn? Pode ser, claro. Mas ainda assim... — Outra vez sua voz diminuiu, e de novo ele examinou a carta, ajustando cuidadosamente o monóculo e examinando ambos os lados do papel. — Papel comercial comum, que se pode comprar em qualquer papelaria... e envelope liso, de ponta virada. Meu ansioso e gárrulo correspondente foi extremamente cuidadoso no evitar a possibilidade de ser descoberto por meio do vendedor... Que pena!... Porém, eu gostaria que o autor houvesse freqüentado uma escola comercial. Sua datilografia é atroz: mal espacejada, batidas nas teclas erradas, nenhuma noção de margem — tudo indicando nenhuma familiaridade com os dispositivos tão simples da máquina de escrever.
Acendeu outro cigarro e terminou seu café. Depois recostou-se na poltrona e leu a carta pela terceira vez. Raramente eu o vira tão interessado. Por fim disse:
— Por que os detalhes domésticos dos Llewellyns, Van? Quem quer que leia jornais conhece a situação naquela casa. A linda e loura atriz casando na Coluna Social sob protestos da mamãe e acabando sob o teto dessa mamãe; Lynn Llewellyn, o jovem farrista e queridinho dos clubes noturnos; a séria irmãzinha, das frivolidades sociais virando-se para estudos de arte; quem, nesse campo de atividades, poderia deixar de ouvir falar dessas coisas? E a própria mamãe é uma ruidosa filantropa e membro dos comitês de todas as organizações sociais e econômicas que pode encontrar. E certamente Kinkaid, o irmão da velha senhora, não é nenhum inconnu... Há poucas personalidades na cidade mais desacreditadas que ele — para grande desgosto e humilhação da Sra. Llewellyn. Só a riqueza da família seria uma fonte de mexericos. Mas o meu correspondente teve de lembrar-me tudo isso. Por quê? Por que a carta, afinal? Por que fui escolhido para recebê-la? Por que a linguagem florida? Por que a abominável datilografia? Por que este papel e o sigilo? Por que tudo isso?... Calculo... calculo que...
Levantou-se e começou a andar abaixo e acima. Eu estava surpreso ante sua perturbação: isso era completamente incomum. A carta não me impressionara muito, a não ser por sua raridade; e minha primeira inclinação foi considerá-la o ato de um excêntrico ou de alguém com rancor contra os Llewellyns e que procurasse por tais meios indiretos causar-lhes aborrecimentos. Porém Vance, evidentemente, captara algo na carta que me escapara por completo.
Subitamente cessou seu contemplativo ir e vir e ele se dirigiu ao telefone. Momentos depois estava falando com Markham, instando com ele para que viesse ao apartamento naquela noite.
— É realmente muito importante — disse. — Tenho um documento fascinante para mostrar-lhe... Seja um bom menino e venha!
Depois de desligar o telefone, Vance sentou-se em silêncio. Finalmente ergueu-se e foi até o setor de sua biblioteca dedicado à Psicanálise e à Psicologia de Anormais. Percorreu os índices de várias obras de Freud, Jung, Stekel e Ferenezi; e, marcando algumas páginas, voltou a sentar-se para folhear os volumes. Após uma hora, mais ou menos, recolocou os volumes nas prateleiras e passou outros trinta minutos consultando vários livros de referências, tais como o Who's Who, o New York Social Register e o American Biographical Dictionary. Finalmente, deu de ombros levemente, bocejou e sentou-se à escrivaninha, na qual estavam espalhadas numerosas reproduções das obras de arte desenterradas nas escavações do Dr. Woolley, que duraram sete anos, em Ur.
Sábado, sendo dia de meio-expediente no gabinete do procurador distrital, Markham chegou pouco depois das 2 horas. Nesse ínterim, Vance se vestira e almoçara, e recebeu Markham na biblioteca.
— Um dia meio murcho... — queixou-se, conduzindo Markham para uma poltrona diante da lareira. — Nada bom para um homem estar só. A depressão me tiraniza como uma bruxa. Faltei ao concurso em Long Island hoje. Preferi ficar em casa e contemplar as brasas incandescentes. Talvez esteja envelhecendo e ficando cheio de sonhos... Angustiado... Mas estou imensamente grato por sua vinda. Que tal um traguinho de Napoléon de 1811, para contrabalançar suas melancolias outonais?
— Não tenho melancolias hoje, outonais ou de qualquer outro tipo — replicou Markham, observando Vance cuidadosamente. — E você, quanto mais fala, mais arduamente está pensando: sintoma inequívoco. (Ainda examinava Vance.) — Entretanto, tomarei o conhaque. Mas, por que o ar de mistério ao telefone?
— Querido Markham... oh, querido Markham! Parecia, mesmo, tão misterioso assim? Os dias melancólicos...
— Ora, vamos, Vance! Onde está o tal papel interessante *que desejava mostrar-me?
— Ah! sim... — Vance meteu a mão no bolso e, tirando a carta anônima que recebera naquela manhã, passou-a a Markham. — Realmente, esta carta não devia ter vindo num dia depressivo como este...
Markham leu a carta, sem lhe dar maior importância, e atirou-a na mesa, com um leve gesto de irritação.
— Bem, o que há, afinal? — perguntou, tentando esconder o aborrecimento. — Sinceramente, espero que não a leve a sério.
— Nem a sério, nem frivolamente — Vance suspirou — mas de mente alerta, meu velho. A epístola tem possibilidades, sabe...
— Pelo amor de Deus, Vance! Recebemos cartas assim todos os dias... Montes delas! Se fôssemos dar-lhes atenção, não teríamos tempo para mais nada! É hábito de autores profissionais de cartas anônimas... Mas não preciso explicar-lhe isso: você é muito bom psicólogo.
Vance acenou que sim, com uma seriedade invulgar:
— Sim, sim, claro: complexo de epistolografia. Combinação de fútil egomania, covardia e sadismo... Conheço bem a fórmula. Mas, realmente, sabe, não estou convencido de que esta carta se enquadre nessa categoria.
Markham olhou-o de relance:
— Realmente pensa que seja uma honesta expressão de preocupação baseada em conhecimento de algo?
— Oh! não... ao contrário! — Vance olhava o cigarro, meditativamente. — É mais profundo que isso. Se fosse uma carta sincera, seria menos prolixa e mais objetiva. Sua prolixidade e afetada fraseologia indicam um motivo ulterior: há muita maquinação por trás disso... E sinistras implicações, também: uma atmosfera de raciocínio anormal... uma genuína nota de tragédia cruel, como se um espírito maligno estivesse maquinando e rindo à socapa ao mesmo tempo... Não gosto disso, Markham... não gosto disso, absolutamente.
Markham olhava para Vance, surpreso. Começou a dizer algo, mas, em vez disso, pegou a carta e tornou a lê-la, mais cuidadosamente desta vez. Ao terminar, balançou a cabeça vagarosamente:
— Não, Vance: os dias mais tristes do ano afetaram sua imaginação. Esta carta não passa da explosão de alguma histérica, igualmente afetada.
— Há nela uns toques femininos, não? — Vance falava languidamente. — Notei isso. Mas o estilo geral da carta não indica alucinações.
Markham sacudiu a mão num gesto apologético e fumou em silêncio por alguns instantes. Depois, perguntou:
— Conhece os Llewellyns pessoalmente?
— Encontrei Lynn Llewellyn certa vez... simples apresentação... e o tenho visto no cassino muitas vezes. O comum tipo extravagante de menino mimado cuja mãe tem os cordões da bolsa. E, claro, conheço Kinkaid. Todo mundo conhece Richard Kinkaid, menos a polícia e o procurador distrital... Mas você faz muito bem em ignorar sua existência e em recusar fechar sua dourada caverna de pecado. A coisa vai realmente muito bem, e só quem pode gastar a rodo vai lá. Sim, senhor! Imagine a ingenuidade de quem pensa que jogo pode ser acabado por meio de leis e batidas da polícia!... O Cassino é um lugar delicioso, Markham, bonito e de aparência absolutamente correta. Você gostaria imensamente... se não fosse procurador...! Triste... muito triste...
Markham se mexeu pouco à vontade em sua poltrona, e lançou a Vance um olhar destruidor, seguido por um indulgente sorriso:
— Algum dia irei lá... talvez depois das próximas eleições — replicou. — Conhece alguns dos outros mencionados na carta?
— Só Morgan Bloodgood: é o crupiê-chefe de Kinkaid, seu braço-direito, por assim dizer. Porém conheço-o apenas profissionalmente, embora saiba que é amigo dos Llewellyns e conheceu a esposa de Lynn quando ela pertencia à comédia musical. É um universitário e um gênio para lidar com algarismos: doutorou-se em Matemática em Princeton, disse-me Kinkaid. Foi professor por um ano ou dois, e depois veio trabalhar com Kinkaid. Provavelmente gostava de excitação... qualquer coisa é preferível à teoria dos quanta... A outra pessoa em perspectiva para o drama me é desconhecida. Nunca sequer vi Virgínia Vale: estava no estrangeiro durante seu breve triunfo no palco. E o caminho da velha Sra. Llewellyn nunca cruzou o meu. Nem jamais encontrei a filha 'aspirante a artista, Amélia.
— Quais as relações entre Kinkaid e a velha senhora? Dão-se bem como o deveriam irmão e irmã?
Vance olhou languidamente para Markham:
— Pensei nesse ângulo, também. Claro, a velha senhora se envergonha de seu cabeçudo irmão: há de ser bem aborrecido para uma fanática assistente social acolher um irmão que não passa de um jogador profissional. E, embora publicamente sejam educados um com o outro, imagino que haja conflitos internamente, especialmente porque a residência de Park Avenue lhes pertence em conjunto e vivem ambos sob o mesmo teto. Porém não penso que a velha senhora leve sua animosidade a ponto de tramar contra Kinkaid... Não, não. Por esse lado não encontraremos uma explicação para a carta...
Nesse momento, Currie entrou na biblioteca:
— Perdão, senhor, mas há alguém ao telefone que deseja que eu lhe pergunte se o senhor pretende ir ao Cassino logo à noite...
— Homem ou mulher? — interrompeu Vance.
— Realmente, senhor... não poderia dizer. A voz era vaga e apagada... eu diria: disfarçada. Porém a pessoa me pediu que lhe dissesse que ele — ou ela — não diria mais uma palavra, mas esperaria no telefone pela sua resposta.
Vance não falou por vários momentos; finalmente, murmurou:
— Eu já esperava algo assim... Diga ao sujeito que me chamou que estarei lá pelas dez da noite.
Preocupado, Markham tirou o charuto da boca e olhou para Vance:
— Realmente pretende ir ao Cassino por causa dessa carta?
Vance respondeu seriamente:
— Claro que sim.
II - O CASSINO
(Sábado, 15 de outubro — 22:30 horas)
O famoso estabelecimento de jogo de Richard Kinkaid — o Cassino, na Rua 73, Oeste, perto da West End Avenue — em seu dias de apogeu tinha direitos às glórias do extinto Canfield. Floresceu durante pouco tempo, mas ainda assim sua memória se mantém viva para muita gente, e sua fama se espalhava por todos os cantos do país. Forma um ardente e indispensável elo na cadeia de locais de diversão da espetacular história da vida noturna de Nova York, Um alto prédio de apartamentos, com terraços e avarandados, se ergue, agora, onde antes fora o Cassino.
Para os passantes não-iniciados o Cassino era apenas outra imponente mansão, das que outrora faziam o orgulho do West Side superior. A casa fora construída na última década do século passado e era residência do pai de Richard, Amos Kinkaid (conhecido como "o Velho Amos"), um dos mais astutos e ricos corretores de imóveis da cidade. Essa propriedade foi o quinhão diretamente legado a Richard Kinkaid no testamento do Velho Amos: todas as demais propriedades haviam sido transmitidas juntamente a seus dois filhos, Kinkaid e a Sra. Anthony Llewellyn, que, por ocasião da herança, já era viúva com dois filhos, Lynn e Amélia, ambos pelos dez anos de idade.
Richard Kinkaid morara sozinho no casarão por vários anos após a morte do Velho Amos. Então, fechou portas e janelas e satisfez seu desejo de viagens e aventuras pelos mais remotos lugares do mundo. Sempre possuíra um irresistível pendor pelo jogo, talvez herdado do pai, e no decurso de suas viagens visitou muitos dos mais afamados locais de jogatina da Europa. As narrativas de seus espetaculares ganhos e perdas chegavam, muitas vezes, às manchetes dos jornais. Quando as perdas excediam de muito os ganhos, Kinkaid voltava à América, mais pobre, porém muito mais "sabido".
Contando com influência política e poderosas relações pessoais, decidiu fazer um esforço para recuperar suas perdas abrindo sua própria e luxuosa casa de jogo, pelos padrões de algumas das mais famosas casas da América dos velhos tempos.
— O que há de errado comigo — disse Kinkaid a um dos seus protetores ocultos — é que sempre joguei do lado errado da mesa.
Mandou remodelar e redecorar o casarão da Rua 73, foi pródigo em concessões, e iniciou sua notória empresa "no lado certo da mesa". Esse embelezamento da casa esgotou o resto de seu patrimônio. Chamou ao novo estabelecimento Cassino Kinkaid, lembrando-se, talvez, de Monte Cario. Porém o local se tornou tão conhecido entre os ricaços que o nome "Kinkaid" logo se tornou supérfluo: só havia um "Cassino" na América.
Como tantos outros estabelecimentos extralegais de sua espécie, e como os vários luxuosos clubes noturnos que surgiram durante a época da proibição, o Cassino era regido como um clube particular. Era essencial tornar-se membro, e todos os pretendentes eram prudentemente investigados. A jóia de admissão era suficientemente alta para desencorajar elementos indesejáveis; e a lista daqueles a quem era concedido o privilégio de pertencer ao "clube" parecia uma compilação de nomes dos social e profissionalmente preeminentes.
Para crupiê-chefe e supervisor dos jogos, Kinkaid escolhera Morgan Bloodgood, jovem e culto matemático que conheceu em casa de sua irmã. Bloodgood estivera na Universidade com Lynn Llewellyn e, incidentalmente, Bloodgood é que foi o causador do encontro de Virgínia Vale e o jovem Llewellyn. Enquanto na Universidade e durante o tempo em que lecionou Matemática, tivera Bloodgood um hobby: ocupava-se com a lei das probabilidades. Aplicava suas descobertas especialmente à relação dessas leis ao jogo numérico e calculara elaboradamente as porcentagens em todos os conhecidos jogos de azar. Suas estimativas de permutas, possibilidades de repetições e mudanças de seqüência em relação aos jogos de cartas são hoje oficialmente usadas no computar chances em esboços; e em certo tempo foi associado ao gabinete do Promotor, expondo as esmagadoras chances em favor dos donos em conexão com uma campanha de caráter amplo contra as máquinas caça-níqueis de todos os tipos.
Certa vez perguntaram a Kinkaid por que escolhera o jovem Bloodgood de preferência a um antigo e experiente crupiê, e ele respondeu:
— Sou como o velho Gobseck de Balzac, que entregou todos os seus negócios legais aos cuidados de um procurador bem jovem, Derville, pela teoria de que se pode confiar num homem abaixo de 30, mas depois dessa idade não se pode confiar plenamente em ninguém.
Os assistentes de crupiê e os carteadores no Cassino eram igualmente escolhidos nas fileiras dos bem-nascidos, profissionais jovens, de boa aparência e fina educação; e eram cuidadosamente treinados nos meandros de seus deveres{3}.
Cínica e céptica como poderia parecer a filosofia de Kinkaid, sua aplicação prática obteve o maior êxito. Seu jogo do "lado certo da mesa" prosperou. Estava satisfeito com a habitual porcentagem da casa, e o mais astuto dos jogadores e peritos jamais pôde acusá-lo de "preparar" quaisquer dos seus jogos{4}. Em todas as disputas entre jogador e crupiê, o jogador era pago sem discussão. Muitas pequenas fortunas foram perdidas e ganhas no Cassino durante sua existência relativamente breve; e o jogo sempre foi forte, especialmente nas noites de sextas-feiras e sábados.
Ao chegarmos ao Cassino, Vance e eu, nessa fatal noite de sábado, 15 de outubro, havia apenas uns poucos sócios esparsos. Ainda era muito cedo para a habitual quantidade de freqüentadores que, de costume, vinham após o teatro.
Ao galgarmos os largos degraus de entrada para o estreito vestíbulo cheio de espelhos e guarnecido de peças de ferro trabalhado, fomos cumprimentados pelo porteiro chinês que permanecia à esquerda da entrada. Por algum sinal secreto nossa identidade foi comunicada aos encarregados na parte interna; e quase simultaneamente à nossa chegada ao vestíbulo a grande porta de bronze (que o Velho Amos trouxera da Itália) foi aberta. No espaçoso vestíbulo com cortinas de brocado e quadros de mestres, mobiliado no luxuriante estilo italiano renascentista, nossos chapéus e sobretudos nos foram tomados por dois atendentes uniformizados, ambos altos e fortes{5}.
Ao fundo do vestíbulo, havia uma escadaria de mármore dividida em duas que levava, de cada lado de uma fonte luminosa, aos salões de jogo, em cima.
No segundo andar, Kinkaid combinara a antiga sala de visitas e a sala de recepção num imenso salão a que batizara de Salão Dourado. Abrangia toda a fachada da casa e tinha talvez uns vinte metros de comprimento. A um dos lados, uma alcova fora preparada como sala de descanso. O salão era decorado em estilo romano modificado, com ocasionais sugestões de ornamentação bizantina. As paredes eram cobertas de folhas douradas, e as pilastras de mármore liso eram enquadradas por grandes painéis retangulares, de um tom de marfim que se misturava ao dourado das paredes e ao colorido acastanhado do teto. As cortinas, nas altas janelas, eram de brocado de seda amarelo com desenhos em relevo dourado; e a forração do chão, de cor ocre neutro.
Havia três mesas de roleta ao centro do salão, duas de vinte-e-um, mesas ao meio das paredes dos dois lados do salão, quatro mesas de bacará nos quatro cantos da sala, e mesas de chemin-de-fer e uma elaborada mesa de dados no fim do salão, entre as janelas. Na parte traseira do Salão Dourado, a leste, uma sala para jogos privados de carta, com uma fileira de pequenas mesas individuais onde se poderia jogar qualquer tipo de solitário, e uma carteador para assistir e pagar ou receber, conforme a sorte ou a habilidade do jogador. Junto a esta sala havia um bar de cristal com uma larga arcada que levava ao salão principal. Ali, só as mais finas bebidas eram servidas. Evidentemente, essas duas salas haviam sido a principal sala de refeições e a saleta de desjejum da antiga mansão Kinkaid. Uma gaiola para o caixa fora arranjada onde outrora fora uma espécie de armário-rouparia, à esquerda do bar.
O escritório particular de Richard Kinkaid fora construído obstruindo a parte anterior do vestíbulo superior. Havia uma porta que dava para o bar e outra para o Salão Dourado. Tinha cerca de dez metros quadrados e era apainelado em nogueira — sombria, porém bela sala, com uma só e ampla janela de vidro abrindo para o pátio fronteiro.
(Menciono o escritório aqui porque representou parte importante no clímax final terrível da tragédia que, logo logo, começaria ante nossos olhos.)
Quando, nessa noite de sábado, chegamos ao estreito vestíbulo do segundo andar, que levava ao salão principal, Vance olhou casualmente para as duas salas de jogo e voltou-se para o bar:
— Penso, Van, que teremos muito tempo para um gole de champanha... Nosso jovem amigo está sentado na sala de descanso, sozinho, aparentemente absorto em computações. Lynn é um jogador de sistema; e são precisos muitos preliminares antes que ele comece. Se algo de adverso está por acontecer-lhe esta noite, ele está ou bem-aventuradamente inconsciente disso ou serenamente indiferente. Contudo, agora não há ninguém na sala que esteja razoavelmente interessado em sua existência — ou não-existência, quanto à questão — de modo que podemos aguardar um pouquinho por aqui.
Encomendou uma garrafa de Krug de 1904 e recostou-se, com a maior placidez, na ampla poltrona junto à pequena mesa em que o vinho foi servido. Porém, apesar de seus modos lânguidos, eu sabia que ele estava tenso: isso para mim era óbvio pela maneira lenta, deliberada por que tirou o cigarro da boca e pôs as cinzas exatamente no centro do cinzeiro.
Mal acabáramos nosso champanha quando Morgan Bloodgood, surgindo de uma porta traseira, passou pelo bar a caminho do salão principal. Era alto, esbelto, testa ampla, nariz aquilino, lábios moles, queixo pontudo e orelhas proeminentes de lóbulos recuados. Os olhos eram duros e de um particular cinza-esverdeado, e tão fundos que pareciam em perpétua sombra. Cabelos finos e cor de areia; e tez pálida, completamente descorada. Mas não era um homem sem atrativos. Havia calma e frieza no conjunto de suas feições — uma imobilidade que dava a impressão de força latente e pensamentos profundos. Embora eu soubesse que ele mal chegara aos trinta, poderia facilmente passar por um homem de quarenta ou mais.
Ao avistar Vance, parou e cumprimentou agradável mas reservadamente:
— Vai tentar a sorte esta noite, Sr. Vance?
— Absolutamente... — replicou Vance, sorrindo apenas com os lábios. E acrescentou: — Tenho um novo sistema, sabe.
— Isso é amedrontador para a casa... — sorriu Bloodgood. — Baseado em Laplace ou em von Kries? (Pensei ter percebido uma ponta de sarcasmo em sua voz.)
— Oh! meu caro! — respondeu Vance. — Realmente! Eu raramente me meto com matemáticas: deixo isso para os peritos. Prefiro a simples máxima de Napoleão: "Je m'engage et puis je vois!"
— Isso é tão bom — ou tão mau — como qualquer outro sistema. No fim, tudo vem a dar no mesmo... — E passou para o Salão Dourado.
Através dos reposteiros entreabertos nós o vimos assumir seu lugar à roda da mesa central de roleta.
Vance depositou o copo e, acendendo cuidadosamente outro Régie, ergueu-se vagarosamente.
— Acho que chegou a hora... — murmurou, ao adiantar-se para a arcada que levava ao Salão Dourado.
Ao entrarmos no salão, abriu-se a porta do escritório de Kinkaid e ele apareceu. Vendo Vance, sorriu profissionalmente e cumprimentou-o num tom de amabilidade estereotipada:
— Boa noite. O senhor é quase um estranho aqui...
— Encantado por não haver sido inteiramente esquecido aqui, sabe... — retrucou Vance, agradàvelmente, acrescentando: — Especialmente porque um dos meus objetivos ao vir aqui hoje era falar-lhe.
Kinkaid se retesou quase imperceptivelmente, e perguntou com um sorriso frio e simulado ar de bom humor:
— Bem, está falando comigo, não?
— Oh! sim! — Vance também se tornou cordial. — Mas eu preferiria mil vezes falar-lhe em seu escritório particular.
Kinkaid olhou para Vance, estreitando os olhos. Vance lhe devolveu o olhar, sem deixar que o sorriso lhe fugisse dos lábios.
Sem uma palavra Kinkaid se voltou e reabriu a porta do escritório, colocando-se a um lado para que Vance e eu o precedêssemos. Seguiu-nos e fechou a porta atrás de si. Ficou de pé, rígido, esperando, olhos fixos em Vance. Este levou o cigarro aos lábios, tomou uma funda inalação e mandou para o teto um anel de fumo azulado.
— Poderíamos sentar-nos? — perguntou, casualmente.
— Naturalmente, se está cansado. — falou Kinkaid em voz metálica, o rosto era uma máscara inexpressiva.
— Muitíssimo obrigado — Vance ignorou a atitude do outro e sentou-se numa das poltronas de couro perto da porta, cruzando as pernas numa posição confortável.
A despeito das maneiras glaciais de Kinkaid, senti que o homem não antagonizava o seu hóspede: como jogador, estava assumindo uma defesa para o possível caso de alguma ameaça de natureza ainda desconhecida para ele. Sabia, como qualquer outra pessoa na cidade, que Vance era estreitamente — embora não oficialmente — associado ao procurador distrital; e ocorreu-me que Kinkaid provavelmente pensou que Vance viera como representante em alguma desagradável missão oficial. Sua reação a tal suspeita teria, naturalmente, sido essa atitude reservadamente beligerante.
Richard Kinkaid, apesar de sua aparência superficial de jogador profissional, era um homem inteligente e culto. Fora universitário brilhante e possuía dois diplomas acadêmicos. Falava fluentemente vários idiomas e, quando jovem, fora um arqueólogo de certa notoriedade. Escrevera dois livros sobre suas viagens ao Oriente, ambos podendo ser encontrados nas melhores livrarias.
Era grandalhão e, a despeito de sua tendência para a corpulência, era óbvia sua poderosa constituição. O cabelo cinza-aço parecia muito leve em contraste com a pele rude. Rosto oval, mas de feições um tanto rudes. Sobrancelhas largas e baixas, nariz curto e irregular, boca apertada e dura — um longo e estreito traço. Os olhos, entretanto, eram a característica notável de seu rosto: eram pequenos, parecendo os de alguém com o mal de Bright, de modo que as pupilas pareciam sempre acima dos centros das órbitas, dando-lhe uma expressão sardônica, quase sinistra. Havia astúcia, perseverança, sutileza, crueldade e indiferença em seus olhos.
De pé diante de nós nessa noite, uma das mãos pousando na bela secretária trabalhada perto da janela, a outra no bolso interno do dinner jacket, mantinha o olhar fixo em Vance, sem demonstrar aborrecimento nem preocupação; um perfeito "cara-de-pau".
Por fim, Vance falou:
— Desejava vê-lo hoje, Sr. Kinkaid, porque recebi uma carta esta manhã e me ocorreu que poderia interessá-lo, porquanto o seu nome era nela citado não muito afetuosamente. De fato, ela se refere intimamente a vários membros de sua família.
Kinkaid continuava a fitar Vance, sem mudar de expressão. Nem falou ou fez o menor movimento.
Por um momento, Vance contemplou o fim de seu cigarro. Depois disse:
— Penso que será melhor que a veja, pessoalmente. Retirou do bolso as duas páginas datilografadas e as entregou a Kinkaid, que as tomou indiferentemente e as abriu.
Observei-o rigorosamente enquanto lia. Não lhe apareceu nos olhos nenhuma nova expressão, seus lábios não se moveram, mas a cor de suas faces mudou perceptivelmente e, ao chegar ao fim, os músculos de seu rosto estremeciam espasmodicamente. Seu pescoço forte estufou por cima do colarinho, e manchas vermelhas nele se espalharam.
A mão que segurava a carta estremecia convulsivamente, como se estivessem tensos os músculos do braço; e lentamente ergueu os olhos até encontrar os de Vance.
— Bem, que significa isso? — perguntou de dentes cerrados.
Vance fez com a mão um leve gesto de rejeição, dizendo placidamente:
— Ainda não fiz a menor aposta. Apenas, aguardo.
— Suponha que eu não queira apostar? — retorquiu Kinkaid.
— Oh! perfeitamente! É seu privilégio... — Vance sorria glacialmente.
Kinkaid hesitou um momento; depois pigarreou e sentou-se na poltrona diante da secretária, colocando a carta diante de si. Depois de um minuto ou dois de silêncio golpeou a carta com os nós dos dedos e deu de ombros:
— Eu diria que isto é trabalho de algum excêntrico. — Seu tom era leve e desdenhoso.
— Não, não. Realmente, não, Sr. Kinkaid — Vance protestou brandamente. — Não poderia ser... não poderia ser absolutamente. O senhor escolheu o número errado... Por que não escolher outro palpite?
— Para o diabo! — explodiu Kinkaid. Balançou-se na cadeira giratória e olhou Vance com fria e penetrante ameaça. — Não sou nenhum danado detetive... O que tem a carta a ver comigo, afinal?
Vance não replicou. Em vez disso, enfrentou o olhar de Kinkaid com uma calma glacial — uma calma impessoal e devastadora. Nunca invejei a ninguém a tarefa de enfrentar o olhar de Vance. Havia em seu olhar, quando ele queria, um sutil poder psicológico a que a mais forte natureza não podia resistir.
Kinkaid, com toda a sua força mental, encontrara o seu igual. Ele soube que o olhar de Vance não se abaixaria nem mudaria; e na comunicação silenciosa entre os dois fortes adversários quando se miraram profundamente nos olhos uni do outro, Kinkaid capitulou.
— Muito bem — disse, com um sorriso bem-humorado. — Farei uma outra aposta — se isso pode ajudá-lo... — Deu outra olhada à carta. — Há muita verdade aqui. Seja quem for que escreveu isto, conhece bem a respeito da situação da família.
— Você sabe usar uma máquina de escrever, não? — perguntou Vance.
Kinkaid forçou uma risada:
— Tão mal como quem escreveu isto. — E indicou a carta.
Vance abanou a cabeça, com simpatia, observando:
— Também não sou bom nisso... Desagradável invenção, a máquina de escrever... Mas acha que alguém pretende ferir o jovem Llewellyn?
— Não sei, mas espero que sim — estalou Kinkaid, com um mau sorriso. — Ele merece a morte.
— Por que não faz isso você mesmo? — perguntou Vance casualmente.
Kinkaid riu à socapa desagradàvelmente.
— Já pensei nisso muitas vezes. Porém, ele não vale o risco.
— Mas, em público, você parece mais ou menos tolerante com seu sobrinho...
—- Preconceito de família, penso... A maldição do nepotismo. Minha irmã é doida por ele.
— Ele gasta tempo demais aqui no Cassino... — A observação era meio pergunta, meio afirmativa.
Kinkaid acenou com a cabeça:
— Tentando arranjar algum dinheiro de Kinkaid, já que sua mãe não lhe dá o bastante. E eu o animo. Por que não? Ele tem um sistema... Gostaria de que todos tivessem um sistema. Os jogadores a esmo, que 'jogam ao acaso, é que reduzem os lucros.
Vance fez a conversa voltar à carta:
— Acredita que haja uma tragédia iminente sobre sua família?
— Não há sempre alguma iminente sobre todas as famílias? — respondeu Kinkaid. — Mas, se algo vai acontecer a Lynn, espero que aconteça aqui no Cassino.
— De qualquer modo — persistiu Vance — a carta insiste em que eu viesse aqui esta noite e ficasse de olho no garoto.
Kinkaid sacudiu a mão:
— Descontarei isso.
— Mas você acaba de admitir que há muito de verdade na carta.
Kinkaid sentou-se imóvel, por algum tempo, os olhos — como dois pequenos discos brilhantes — fixos na parede. Por fim, inclinou-se para a frente e olhou diretamente para Vance:
— Serei franco com o senhor, Vance: tenho uma idéia bem nítida de quem escreveu tal carta. Simplesmente um caso de mania e covardia. Esqueça!
— Sim senhor! — murmurou Vance. — Isso é interessantíssimo! — Esmagou o cigarro, pegou da carta, tornou a dobrá-la e a pôs de volta no bolso. — Desculpe-me tê-lo perturbado... Mas creio que me demorarei um pouco.
Kinkaid não disse uma palavra nem se levantou, quando passamos ao Salão Dourado.
III - A PRIMEIRA TRAGÉDIA
(Sábado, 15 de outubro — 23:15 horas)
O Cassino começava a encher-se. Havia pelo menos uns cem "membros" jogando nas várias mesas e conversando em pequenos grupos. No grande salão havia uma atmosfera colorida, de festa, juntamente com um matiz de excitamento e tensão. Os assistentes japoneses, em costumes nativos, moviam-se rápida e silenciosamente em suas várias incumbências; e de cada lado da arcada de entrada havia, rígidos, dois atendentes uniformizados. Nenhum movimento, por mais inocente, de qualquer pessoa escapava aos olhos vigilantes dessas senti -nelas. Era uma reunião elegante; e não tive dificuldade em identificar muitas pessoas preeminentes dos círculos sociais e financeiros.
Lynn Llewellyn ainda estava sentado a um canto da sala de repouso, muito ocupado com lápis e um caderno de notas, e aparentemente alheado a toda a atividade que se desenrolava à sua volta.
Vance percorreu o salão, cumprimentando de passagem vários conhecidos. Deteve-se junto a uma mesa perto da janela da fachada e comprou algumas fichas. Atirou-as no "um", de cada vez dobrando até cinco, e depois recomeçando. Incrível quantos "uns" apareceram nos dados na "gaiola"; e após quinze minutos Vance havia ganho perto de mil dólares. Todavia, parecia inquieto, e recolheu seus ganhos indiferentemente. Voltando novamente ao centro do salão, caminhou para a mesa de roleta operada por Bloodgood. Durante várias rodadas ficou só observando; depois, sentou-se e reuniu-se ao jogo. Estava de frente para a sala de descanso. Ao tomar seu lugar à mesa, olhou casualmente naquela direção: Llewellyn continuava mergulhado em seus pensamentos.
Haviam sido feitas as escolhas para a próxima rodada — eram apenas cinco ou seis apostadores, na ocasião — e Bloodgood estava com a bola parada contra seu dedo médio no buraco da roleta, pronto a projetá-la em suas indeterminadas circunvoluções. Mas, por alguma razão, não a arremessou de imediato.
— Faites votre jeu, monsieur — disse, graciosamente, olhando Vance diretamente.
Vance virou a cabeça rapidamente e encontrou o sorriso levemente cínico de Bloodgood.
— Muito obrigado pelo aviso pessoal — disse, com exagerada cortesia; e, inclinando-se mais sobre a mesa na direção da roleta, colocou uma nota de cem dólares na área verde marcada "O" ao cimo das três colunas de algarismos. — Meu sistema me aconselha a jogar, hoje, no "número da casa".
Desapareceu o fraco sorriso de Bloodgood e suas sobrancelhas se ergueram. Então girou a roda destramente.
Foi uma rodada longa, pois a bola, atirada com forte ímpeto, dançou para diante e para trás durante algum tempo por entre as ranhuras da roleta e os lados do bojo. Por fim, pareceu estabilizar-se num dos compartimentos numerados, embora a roda ainda rodasse rapidamente demais para permitir a leitura dos números; mas pulou outra vez, deu um ou dois giros, e finalmente parou no local verde — o "número da casa".
Houve um sussurro em torno da mesa, enquanto o rodo raspava todas as outras apostas; porém, enquanto eu observava cuidadosamente o rosto de Bloodgood, não pude notar a mais leve mudança de expressão: era o perfeito crupiê, sem emoções.
.— Seu sistema parece funcionar... — observou ele a Vance, enquanto retirava uma aposta de trinta e cinco fichas amarelas. — Vous vous engagez, et puis vous voyez... Mais, qu'est-ce que vous espérez voir, monsieur{6}?
— Não tenho a menor idéia — retrucou Vance, reunindo suas fichas. — Não estou esperando... Eu vou à deriva...
— De qualquer modo, está de sorte esta noite — sorriu Llewellyn.
— Acho que sim... — Vance pôs no bolso os seus ganhos e afastou-se da mesa.
Dirigiu-se lentamente para a sala de carteados, deteve-se à entrada, e então caminhou para o jogo do vinte-e-um, que se desenrolava numa mesa semicircular, a apenas alguns metros da sala de repouso. Havia duas cadeiras vagas de frente para o vestíbulo, mas Vance esperou. O carteador sentava numa pequena plataforma elevada, e quando o apostador a seu lado abandonou seu assento, Vance tomou a cadeira vaga. Notei que, dessa posição, ele podia perfeitamente observar Llewellyn.
Ele colocou uma ficha amarela na seção apainelada da mesa à sua frente e uma carta lhe foi distribuída. Deu-lhe uma olhadela: de pé atrás dele, vi que era um ás de paus. A carta que lhe foi distribuída a seguir foi outro ás.
— Interessante isso, Van — observou-me, por cima do ombro. — Os "uns" me estão perseguindo esta noite...
Virou seu primeiro ás e deixou o outro ao lado desse, colocando sobre ele outra ficha amarela. Ele foi o último a ser servido pelo carteador e, para meu espanto, ele tirou duas figuras: um valete e uma rainha. Esta combinação de um ás e uma figura constitui um sucesso absoluto, e Vance tirou duas delas numa só mão. Os pontos totalizavam dezenove.
Vance ia apostar a segunda mão, quando Llewellyn se levantou com determinação do canto em que estava sentado e aproximou-se de Bloodgood na mesa da roleta com o bloco de notas em mão. Em vez de continuar o jogo, Vance novamente pegou seus ganhos, escorregou de sua cadeira alta e caminhou ociosamente para o centro da sala, tomando lugar atrás da fila de cadeiras ao lado da mesa de roleta oposto àquele em que Llewellyn se sentara.
Lynn Llewellyn era de estatura média e esbelto. Olhos azuis e, embora se movessem com rapidez, não mostravam animação. Entretanto, sua boca era emotiva e móbil. Seu rosto fino dava a impressão de fraqueza e argúcia, porém era um rosto capaz — um rosto que certo tipo de mulher poderia considerar belo.
Ao sentar-se, olhou em volta vivamente, cumprimentou Bloodgood e os demais presentes, mas aparentemente não viu Vance, embora este estivesse de pé diretamente do outro lado da mesa. Observou o jogo por vários minutos, anotando os números vencedores no caderninho que colocara diante de si, na mesa. Após cinco ou seis rodadas, começou a mostrar desagrado e, virando-se na cadeira, chamou um dos serventes japoneses que ia passando:
— Scotch, e traga também um copo dágua.
Enquanto a bebida vinha, ele continuava suas anotações. Por fim, quando três números da mesma coluna apareceram sucessivamente, ele começou avidamente a jogar. Quando o rapaz trouxe o uísque, despachou-o bruscamente e se concentrou no jogo.
Na primeira meia hora em que o observamos, tentei determinar alguma seqüência matemática em sua escolha de números, porém, não tendo êxito, desisti. Soube mais tarde que Llewellyn estava jogando uma curiosa e, segundo Vance, inteiramente inconsistente e contraditória variação do sistema Labouchère — ou, como é popularmente chamado, Labby — que, durante muitos anos, fora meticulosamente testado em Monte Cario.
Contudo, ainda que o sistema haja sido considerado inadequado cientificamente, Llewellyn estava tirando vantagem dele. Realmente, se ele seguisse suas vantagens, como o costume do jogador amador, teria, como aconteceu, progredido mais rapidamente. Porém, cada vez que pegava um número (en plein) ou um meio número (à cheval) ou um quarto de número (en carré), retirava seus ganhos em proporção à sua duplicação, multiplicando apenas quando a sorte era contra ele. Após quase cada jogada, relanceava os olhos rapidamente às tabelas cuidadosamente alinhadas e colunas de algarismos do caderninho; e era óbvio que, a despeito da tentação de fazer de outra maneira, persistia rigidamente na fórmula que decidira seguir.
Pouco depois da meia-noite, quando uma de suas séries de dublagem alcançara o máximo, veio o número certo. O resultado foi um lucro enorme, e quando conferiu as seis pilhas de fichas amarelas, tomou fôlego tremulamente e recostou-se em sua cadeira. Calculei, assim por alto, de que tinha à sua frente aproximadamente dez mil dólares. Logo espalhou-se o boato de sua sorte, e os outros jogadores na sala se reuniram, curiosos, em redor dele e da mesa de Bloodgood.
Relanceei o olhar em volta e notei as várias expressões dos espectadores: algumas eram cínicas, outras invejosas, algumas apenas interessadas. Bloodgood não dava indicação, por um olhar ou uma inflexão de voz, de que algo de invulgar estivesse acontecendo: era o autômato infalível, desempenhando seus deveres com precisão mecânica.
Quando Llewellyn relaxou em seu assento após esse golpe, ele relanceou o olhar e, percebendo o olhar de Vance, inclinou a cabeça, abstrato. Ainda estava ocupado com seus cálculos e computações, anotando cada volta da roda e registrando em seu caderno o número vencedor. Seu rosto se tornara vermelho, e os lábios se moviam nervosamente enquanto anotava os algarismos. Suas mãos tremiam visivelmente, e de momento a momento respirava profundamente, como tentando acalmar os nervos. Uma ou duas vezes notei que jogava para frente o ombro esquerdo e curvava a cabeça para a esquerda, como um homem com angina do peito tentando aliviar a dor em seu coração.
Depois que passou a sexta jogada, Llewellyn se curvou para a frente e continuou seu cuidadoso sistema de selecionar e empilhar. Desta vez notei que introduzia algumas novas variações em seu método. Fez o que é conhecido como "cobrir" suas apostas, colocando o mesmo dinheiro no preto e no vermelho contra a cor do número que escolhera, e opondo a première, milieu, ou dernière douzaine contra o particular grupo de doze no qual fizera sua escolha numérica en plein, bem como utilizando tanto os pares como os ímpares (pair e impair), e o alto e o baixo (passe e manque), da mesma maneira. Essa mímica — murmurou-me Vance ao ouvido — não está nos livros. Ele está perdendo a ousadia e adotando tanto o sistema de d'Alembert como o Montant Belge. Porém, realmente ele não se importa a mínima. Se tem sorte, ganhará de qualquer maneira; e se não, perderá. Sistemas são para otimistas e sonhadores. Permanece o fato imutável de que a casa paga trinta e cinco a um contra trinta e seis possibilidades e um anexo "número da casa". Isso é destino... ninguém pode com ele.
Mas a sorte de Llewellyn na roleta estava evidentemente a seu favor nessa noite, pois pouco tempo depois ganhou outra vez num número em pirâmide. Quando puxou para si as fichas, suas mãos tremiam tanto que ele virou uma das apostas e teve dificuldade em reagrupá-la. Novamente recostou-se em sua cadeira e deixou passar os seguintes jogos. Escureceu-lhe a cor da pele, os olhos ficaram com um brilho fora do natural e os músculos da face começaram a repuxar-se. Esgazeou o olhar em torno, inexpressivamente, e sentiu falta de um dos números que aparecera na roda, de modo que teve de perguntar por ele a Bloodgood, a fim de manter completas suas anotações no caderninho.
A tensão se apossara dos espectadores. Uma estranha calmaria substituíra a conversa geral. Todos pareciam observar as conseqüências desse antiqüíssimo conflito entre um homem e as insondáveis leis da probabilidade. Llewellyn ali estava sentado com uma fortuna em fichas empilhada em sua frente. Alguns mil dólares a mais e a banca "quebraria"; pois Kinkaid destinara nessa noite um capital de quarenta mil dólares para essa mesa.
Durante o silêncio cheio de eletricidade que subitamente se instalara no salão, apenas quebrado pelo zumbido da bola giratória, o retinir das fichas e a monótona voz de Bloodgood, Kinkaid saiu do escritório e se aproximou da mesa. Parou ao lado de Vance, e indiferentemente observou o jogo por alguns momentos.
— Evidentemente, esta é a noite de Lynn — falou, casualmente.
— Sim, é mesmo... — Vance não tirou os olhos da nervosa e trêmula figura de Llewellyn.
Nesse momento Llewellyn apanhou outra en plein, porém tinha apenas uma ficha sobre o número. Contudo, isso marcava o fim de um ciclo matemático, segundo seu confuso sistema; e, retirando suas fichas, recostou-se na cadeira uma vez mais. Respirava pesadamente, como se não pudesse captar ar suficiente para seus pulmões; e novamente forçou o ombro esquerdo para diante.
Passava um servente japonês e Llewellyn o agarrou:
— Scotch — ordenou outra vez e, com aparente esforço,, anotou o número vencedor em seu caderno.
— Ele esteve bebendo muito esta noite? — Kinkaid perguntou a Vance.
— Há algum tempo atrás mandou vir um uísque, mas não o tomou — respondeu Vance. — Este será o primeiro, tanto quanto sei.
Poucos minutos depois o boy colocou ao lado de Llewellyn uma pequena bandeja de prata com um copo de uísque, um copo vazio e uma garrafinha de água tônica. Bloodgood acabara de pôr a roleta a girar, e relanceou o olhar para a bandeja. Chamou o boy:
— Mori! O Sr. Llewellyn toma água pura.
O japonês voltou, colocou o uísque na mesa diante de Llewellyn e, levando de volta a bandeja com a água tônica, afastou-se. Ao aproximar-se do fim da mesa, Kinkaid disse-lhe:
— Pode apanhar a água da garrafa em meu escritório. O rapaz acenou que sim e apressou-se.
— Lynn precisa de um gole e depressa... — Kinkaid observou a Vance. — Não adianta querer detê-lo... O maluco! Estará sem um dólar quando chegar a casa esta noite.
Como para dar razão à profecia de Kinkaid, Llewellyn fez uma grande aposta e perdeu. Enquanto consultava seu caderninho quanto ao número seguinte, o boy voltou e colocou perto dele um copo de água pura. Llewellyn esvaziou de um só gole seu copo de uísque e imediatamente bebeu a água. Empurrando para o lado os copos vazios, fez a jogada seguinte.
Perdeu novamente. Então, redobrou, e tornou a perder. Estava jogando Preto 20 e Vermelho 5, e no seguinte turno dividiu ao meio sua primeira aposta entre Vermelho 21 e Preto 4. Veio o "onze". Ele então dividiu em quatro, jogando 17, 18, 20 e 21 numa aposta, e 4, 5, 7 e 8 em outra. Repetiu-se o "onze".
Quando Bloodgood raspara as fichas, Llewellyn ficou sentado olhando o verde, sem se mover. Durante cinco minutos completos assim permaneceu, deixando os jogos se sucederem sem lhes dar a mínima atenção. Uma ou duas vezes esfregou as mãos nos olhos e sacudiu a cabeça violentamente, como se fosse presa de certa confusão mental.
Vance se adiantara um passo e o observava atentamente, e Kinkaid, também, parecia profundamente preocupado com o procedimento de Llewellyn. De tempos a tempos, Bloodgood lhe lançava um olhar, mas sem qualquer indicação de algo mais que um interesse casual.
Já então o rosto de Llewellyn estava escarlate, ele apertava as têmporas com as palmas das mãos e respirava fundo, como um homem a quem a cabeça pulsa de dor e que se sente sufocado.
Subitamente, como se fizesse um esforço enorme, ergueu-se, virando a cadeira e afastou-se da mesa. As mãos caíam ao longo do corpo. Deu dois ou três passos, cambaleou e caiu ao chão, num amontoado todo torcido.
Seguiu-se uma confusão, e vários dos jogadores que haviam estado ao lado de Llewellyn à mesa se aglomeraram sobre o homem prostrado. Porém dois dos serventes uniformizados à entrada adiantaram-se apressadamente e, abrindo caminho a cotoveladas por entre os espectadores, levantaram Llewellyn e o carregaram para o escritório de Kinkaid. Este já estava à porta, segurando-a para que pudessem entrar com o homem desmaiado.
Vance e eu os seguimos até o escritório antes que Kinkaid tivesse tempo de fechar a porta.
— Que desejam aqui? — estalou Kinkaid.
— Quero ficar aqui um pouco — replicou Vance em voz firme e gelada. — Ponha isso à conta de curiosidade, se deve ter uma razão.
Kinkaid bufou e fez sinal aos portadores para que saíssem.
— Venha cá, Van — pediu Vance. — Ajude-me a pôr o rapaz nesta cadeira.
Pusemos Llewellyn na cadeira, e Vance inclinou-lhe o corpo para diante de modo a que a cabeça ficasse entre os joelhos. Observei que o rosto de Llewellyn perdera toda a cor e estava agora mortalmente branco. Vance tomou-lhe a pulsação e virou-se para Kinkaid, que permanecia rígido junto à escrivaninha, com um sorriso escarninho.
— Você tem sais de cheirar? — perguntou Vance.
Kinkaid puxou uma das gavetas da secretária e entregou a Vance uma garrafinha verde que Vance pegou e pôs sob as narinas de Llewellyn.
Nesse momento, Bloodgood abriu a porta do escritório, entrou e a fechou rapidamente.
— Que aconteceu? — perguntou a Kinkaid. Havia uma nota de alarma em seu rosto.
— Volte ao seu posto — ordenou Kinkaid, zangado. — Não há nada... Um homem não pode desmaiar?
Bloodgood hesitou, olhou interrogativamente Vance, deu de ombros e se foi.
Vance tornou a tomar o pulso a Llewellyn, forçou-lhe a cabeça para baixo e, erguendo uma das pálpebras, examinou-lhe o olho. Então colocou Llewellyn no chão e pôs-lhe sob a cabeça uma almofada chata.
— Ele não desmaiou, Kinkaid — disse Vance, erguendo-se e olhando severamente o outro. — Foi envenenado...
— Bolas! — A palavra saiu guturalmente.
— Conhece algum médico nas vizinhanças? — O tom de Vance era significativamente calmo.
Kinkaid suspendeu a respiração:
— Há um aqui vizinho. Mas...
— Mande buscá-lo. — ordenou Vance. — E depressa!
Por um momento Kinkaid permaneceu rígido, ressentido com a ordem; depois virou-se para a secretária e discou um número. Após um momento, pigarreou e falou numa voz forçada:
— Dr. Rogers?... Aqui é Kinkaid. Houve um acidente. Venha imediatamente... Obrigado.
Recolocou o fone e voltou-se para Vance, com uma praga, e falou, furiosamente:
— Uma bela encrenca!
Dirigiu-se a uma pequena estante ao lado da mesa, onde havia um serviço de água, de prata, virando a garrafa em um dos copos de cristal. A garrafa estava vazia.
— Diabo! — rosnou. Apertou o botão da campainha. — Vou tomar um brandy. E você? — perguntou a Vance, olhar enviesado.
— Muitíssimo obrigado! — murmurou Vance.
Abriu-se a porta que dava para o bar e apareceu um servente.
— Courvoisier — ordenou Kinkaid. — E encha esta garrafa — acrescentou, apontando o serviço de água.
O homem pegou a garrafa e voltou ao bar. (À vista do corpo de Llewellyn no chão, teve um impulso para aproximar-se, mas não o fez: Kinkaid escolhia seu pessoal com astuta discriminação.)
Ao ser trazido o conhaque e servido, Kinkaid bebeu o dele de um só gole. Vance ainda bebericava o dele quando um dos homens uniformizados do vestíbulo de recepção bateu à porta e fez entrar o médico, um cavalheiro rotundo com um benevolente rosto de criança.
— Ali está seu paciente — falou Kinkaid desagradavelmente, apontando para Llewellyn. — Qual o veredicto?
O Dr. Rogers ajoelhou ao lado da figura deitada, resmungando enquanto o fazia:
— Sorte terem-me apanhado...
Fez um exame rápido: olhou as pupilas de Llewellyn, pôs-lhe o estetoscópio no coração, e sentiu-lhe os pulsos e a nuca. À medida que trabalhava fazia várias perguntas referentes aos antecedentes da atual condição de Llewellyn. Vance é que respondia, descrevendo o nervosismo de Llewellyn à mesa de roleta, sua cor vermelha e súbita prostração.
— Parece um caso de envenenamento — falou o Dr. Rogers a Kinkaid, abrindo seu estojo e preparando uma injeção hipodérmica. — Ainda não posso dizer do que se trata. Ele está em estado letárgico. Pulso curto, acelerado, respiração rápida, superficial; pupilas dilatadas... todos os sintomas de uma toxemia aguda. O que me disse a respeito da vermelhidão, dos cambaleios e do colapso; e agora a palidez... tudo indica certo tipo de veneno. Apliquei-lhe uma injeção de cafeína: é tudo que posso fazer aqui... — Ergueu-se pesadamente e pôs a seringa na maleta. — Devem levá-lo imediatamente para o hospital: precisa de tratamento heróico. Chamarei uma ambulância... — E dirigiu-se ao telefone.
Kinkaid adiantou-se: voltara a ser o jogador frio, impassível.
— Leve-o para o hospital mais próximo... o melhor que conheça — disse, em tom comercial. — Cuidarei de todos os detalhes.
O Dr. Rogers assentiu:
— O Park End... fica nas vizinhanças. — E pôs-se a discar, desajeitadamente.
Vance dirigiu-se à porta:
— Estarei por aí mesmo... — Sua expressão era severa; olhou Kinkaid, um longo, significativo olhar: — Interessante a carta que recebi, hem, Kinkaid?... Adeusinho!
Poucos minutos mais tarde estávamos na Rua 73. Era uma noite bem fria, e começava a cair um chuvisco gelado.
O carro de Vance estava estacionado a alguns metros do Cassino e, ao nos encaminharmos para ele, os detetives Snitkin e Hennessey{7} surgiram do portal de uma casa próxima.
— Tudo bem, Sr. Vance? — perguntou Snitkin, numa voz sepulcral.
— Santo Deus! — exclamou Vance. — Que estão vocês fazendo aqui numa noite como esta?
— O sargento Heath{8} nos mandou aqui para patrulhar em volta do Cassino, caso o senhor precisasse de nós — explicou Snitkin. — O sargento disse que o senhor esperava algo de "brabo" por aqui.
— Realmente! Disse, não? Muito engraçado! — Vance parecia embaraçado. — Inteligente garoto, o sargento!... Todavia, tudo já está sob controle. Estou gratíssimo pela sua vinda, mas não há razão para permanecerem por aqui. Eu mesmo já estou indo para a cama...
Porém, em vez de ir para casa, fomos ao apartamento de Markham.
Para minha surpresa, Markham ainda estava de pé e nos recebeu cordialmente no salão{9}. Depois de nos sentarmos confortàvelmente, Vance virou-se para ele, com ar interrogativo:
— Snitkin e Hennessey estavam-me guardando como bons meninos esta noite. Por acaso, pode dizer-me a razão para tão solícito devotamento?
Markham sorriu, ligeiramente encabulado, e explicou:
— A verdade é, Vance, que depois que você saiu de casa esta noite comecei a pensar que, afinal, devia haver algo de suspeito naquela carta; telefonei ao sargento Heath e lhe contei — tanto quanto me lembrava — o que havia nela. Disse-lhe também que você decidira ir ao Cassino esta noite para vigiar o jovem Llewellyn. Pensei que seria bom mandar um par de rapazes, para estar à mão caso houvesse alguma verdade na carta.
— Isso explica tudo — disse Vance. — Entretanto, não houve necessidade de guarda pessoal. Porém a carta provou ser espantosamente profética.
— Que foi que disse? — Markham deu uma volta completa na cadeira giratória.
— Sim, sim! Uma epístola que era um prognóstico! Lynn Llewellyn foi envenenado diante dos meus olhos.
Markham pulou:
— Morto?
— Não estava quando o deixei. Mas não fiquei esperando. — Vance estava pensativo. — Estava em más condições... Está sob os cuidados do Dr. Rogers, no Hospital Park End... Diabólica situação! Sinto-me confuso! — Também ele se levantou. — Espere um momento. — Foi à cabina, e eu o ouvi telefonando.
Daí a pouco voltou:
— Acabo de falar com o atarracado esculápio no hospital: Llewellyn está na mesma — só que sua respiração está mais lenta e mais superficial. A pressão baixou para setenta a cinqüenta, e está tendo movimentos convulsivos... Está sendo feito todo o possível: adrenalina, cafeína, digitális, e lavagem gástrica via nasal. Claro, não há ainda diagnóstico positivo. Uma verdadeira mistificação, Markham...
Justamente nesse momento o telefone tocou e Markham atendeu. Um minuto depois ele surgiu: pálido e com a fronte enrugada. Veio até a mesa do centro, como um homem estupidificado. Murmurou:
— Vance, por Deus! Algo diabólico está acontecendo! Era Heath ao telefone. Acabou de chegar um chamado à delegacia. Heath contou-me... por causa daquela carta, penso...
Deteve-se, olhar perdido no espaço. Vance olhou-o com curiosidade:
— E, por favor, o que disse o sargento?
Markham, como se o fizesse com esforço considerável, voltou os olhos para Vance:
— A jovem esposa de Llewellyn está morta... envenenada!
IV - O QUARTO DA MOÇA ASSASSINADA
(Domingo, 16 de outubro — 1:30 hora)
As sobrancelhas de Vance se ergueram.
— Céus! Por essa eu não esperava! Entretanto... há um padrão... Ouça, Markham por acaso o sargento disse a que hora a moça morreu?
— Não — Markham sacudiu a cabeça, abstratamente. — Ao que parece, primeiro chamaram um médico; depois, telefonaram para a polícia. Podemos supor que a morte ocorreu há cerca de meia hora...
— Meia hora! — Vance bateu no braço de sua poltrona, rufando os dedos. — Exatamente na ocasião em que Lynn caiu... Simultaneidade, hem?... Esquisito... diabòlicamente esquisito... Nenhuma outra informação?
— Não, nada mais. Heath estava apenas esperando um carro com alguns dos rapazes, para dirigir-se para a mansão dos Llewellyns. Provavelmente telefonará outra vez quando chegar lá.
Vance atirou o cigarro na lareira e levantou-se:
— Não devíamos estar aqui — falou, com entonação zangada, voltando-se para Markham. — Vamos para Park Avenue descobrir por nós mesmos. Não estou gostando disso, Markham... não estou gostando absolutamente. Há em andamento algo de diabólico e sinistro — e anormal... Senti isso ao ler aquela carta pela primeira vez. Algum terrível assassino está à solta: esses dois envenenamentos podem ser apenas o começo. O envenenador é o pior dos criminosos: nunca se sabe até onde pode ir... Vamos.
Raramente eu havia visto Vance tão perturbado e insistente; e Markham, sentindo a força de sua resolução e seus temores, permitiu, sem protesto, ser levado no carro de Vance à antiga mansão dos Llewellyns em Park Avenue.
O casarão, de arenito castanho-avermelhado, era alguns metros recuado da Avenida. Uma grade de ferro toda em arabescos, com um enorme portão, se estendia ao longo de todo o terreno, de cerca de 15 a 20 metros de comprimento; e a passagem entre os edifícios não era pavimentada, e sim cercada por uma sebe viva, duas ordens de ciprestes; e dois canteiros de flores, um de cada lado do passeio lajeado, levavam até a maciça porta de carvalho.
Ao chegarmos à casa dos Llewellyns, já a polícia estava lá. Dois policiais uniformizados, do distrito policial local, estavam de vigia na área externa. Ao reconhecerem o procurador distrital, cumprimentaram e se adiantaram:
— O sargento Heath e alguns dos rapazes da Divisão de Homicídios acabaram de chegar, Chefe — um deles explicou a Markham, apertando o botão da campainha da porta.
A porta da frente foi aberta imediatamente por um homem alto, magro e muito pálido, vestindo casaca e seus acessórios.
— Sou o procurador distrital — disse-lhe Markham — e desejo falar ao sargento Heath. Chegou há poucos momentos, creio.
O homem curvou-se tesamente, com exagerada dignidade:
— Certamente, senhor — falou, com acento levemente cockney.
— Tenha a bondade de entrar, senhor... Os policiais estão lá em cima... nos aposentos da Sra. Lyn Llewellyn, ao fim do vestíbulo. Sou o mordomo e recebi ordens de permanecer aqui, na porta. (A última observação era sua desculpa por não nos acompanhar.)
Passamos por ele e subimos a ampla escada circular, brilhantemente iluminada. Ao alcançarmos o primeiro patamar, o detetive Sullivan, de guarda no vestíbulo acima, cumprimentou Markham:
— Alô, Chefe! O sargento ficará satisfeito com a sua vinda. Parece um caso bem sujo... — E mostrou o caminho para o vestíbulo.
Na ala sul da casa, Sullivan abriu-nos uma porta. Entramos num quarto amplo, quase quadrado, teto alto e uma lareira esculpida à moda antiga; pesados reposteiros de uma era passada pendiam das altas janelas trancadas. O mobiliário — Império — parecia autêntico e caríssimo; nas paredes, quadros preciosos que poderiam honrar qualquer museu de arte.
Na alta cama de dossel, à nossa esquerda, jazia a figura imóvel de uma mulher de cerca de trinta anos. A colcha de seda fora parcialmente atirada para trás e ambos os braços estavam puxados por cima da sua cabeça. Seu cabelo fora escovado simplesmente para trás, cobertos por uma rede atada em sua nuca.
O rosto, sob uma camada de creme recentemente aplicada, estava azulado e manchado, como se tivesse morrido numa convulsão; os olhos, escancarados e fixos. Era uma visão de gelar o sangue.
O sargento Heath, dois membros da Divisão de Homicídios — detetives Burke e Guilfoyle — e o tenente Smalley, da estação local, estavam no quarto. O sargento sentara ante a mesa de mármore do centro, seu bloco de notas diante de si.
De frente para a mesa estava uma mulher alta e vigorosa de cerca de sessenta anos, rosto aquilino de feições fortes. Topava de leve os olhos com um lencinho de renda. Embora jamais a houvesse visto, reconheci-a de retratos de jornais, onde aparecia de tempos a tempos: era a Sra. Anthony Llewellyn.
Junto dela, uma jovem que se parecia singularmente com Lynn Llewellyn, e corretamente julguei fosse Amélia Llewellyn, a irmã de Lynn. Seu cabelo escuro era repartido ao meio e posto por trás das orelhas num coque baixo. O rosto, como o de sua mãe, era forte e aquilino, de marcante dureza e uma expressão quase desdenhosa. Olhou-nos de relance, ao entrarmos, com um olhar frio e indiferente. Ambas usavam roupões acolchoados, de seda, em f ei tio de quimonos.
Diante da lareira estava de pé um homem nervoso, esbelto, de uns trinta e cinco anos, em toalete de jantar, fumando um cigarro preso a uma longa piteira de marfim. Logo soubemos tratar-se do Dr. Allan Kane, um amigo da Srta. Llewellyn, que morava a um quarteirão de distância da casa dos Llewellyns, e fora chamado pela moça. O Dr. Kane é que informara a polícia a respeito da morte da jovem Sra. Llewellyn. Apesar de agitado, Kane tinha um aspecto de seriedade profissional. Tinha o rosto avermelhado e repousava o peso do corpo ora num pé ora noutro; mas seu olhar era direto e avaliativo enquanto nos media um a um.
O sargento Heath ergueu-se e nos cumprimentou, ao entrarmos.
— Estava esperando que viesse, sr. Markham — disse, com ar de alívio. — Mas não o Sr. Vance. Pensei que estivesse no Cassino.
— Eu estava no Cassino, sargento — afirmou Vance, em voz baixa e séria. — E obrigado por Snitkin e Hennessey, mas não precisei...
— Lynn! — O nome, como um gemido agônico, rompeu a triste atmosfera do quarto. Viera dos lábios da Sra. Llewellyn; voltou-se para Vance, apreensiva: — Viu meu filho lá? Ele está bem?
Vance olhou a senhora por vários minutos, como que a decidir o que responder. Então disse, com simpatia e determinação :
— Lamento, senhora, mas seu filho também foi envenenado...
— Meu filho está morto?... — A intensidade de suas palavras me fez correr um frio pela espinha.
Vance sacudiu negativamente a cabeça, olhando atentamente a angustiada mulher:
— Não até as últimas notícias. Está sob cuidados médicos, no Hospital Park End...
— Tenho de ir para junto dele! — gritou, querendo sair do quarto. Porém Vance a deteve gentilmente:
— Não; agora, não, por favor. Não lhe faria bem, e a senhora é necessária aqui agora. Daqui a pouco pedirei notícias ao hospital, para a senhora... Lamento ter de dar-lhe notícia tão triste, senhora; mas teria de saber, mais cedo ou mais tarde... Por favor, sente-se e nos ajude.
A mulher impertigou-se, numa atitude espartana:
— Nunca se dirá que nós, Llewellyns, não cumprimos nosso dever — anunciou, em voz austera; e sentou-se rigidamente numa cadeira aos pés da cama.
Amélia Llewellyn estivera observando a mãe, com céptica indiferença:
— Muito nobre... — comentou, dando de ombros. — Nós, Llewellyns... o habitual abracadabra. "Firmitas et fortitudo", o moto da família. Um grifo rampant ou sejant ou couchant — esqueci qual. De qualquer modo, o grifo é uma criatura quimérica. Completa característica de nossa família: capaz de tudo... e de nada.
— Talvez o grifo dos Llewellyns seja segreant — sugeriu Vance, olhando firme para a moça.
Ela susteve a respiração, devolveu o olhar a Vance por alguns segundos, e respondeu sèpticamente:
— Pode ser... Os Llewellyns são, antes de mais nada, excêntricos.
Vance continuou a olhá-la severamente, e após um momento ela caminhou até ele, com um sorriso meio torcido.
— Assim, o queridinho Lynn — filho modelar — também foi envenenado? — disse, e o sorriso lhe desapareceu da boca. — Alguém está evidentemente determinado a fazer um lindo trabalho conosco... Não ficaria surpresa se eu fosse a próxima... Há dinheiro demais, dinheiro podre, nesta família.
Lançou um olhar de sarcasmo à sua mãe, que a observava iradamente; depois, sentando-se à borda da mesa, acendeu um cigarro.
Markham estava impaciente e aborrecido:
— Continue com seu serviço, sargento — ordenou bruscamente. — Quem encontrou esta jovem mulher? — Sacudiu a mão, com desagrado, na direção da cama.
— Fui eu. — Amélia Llewellyn se tornara séria, e seu peito arfava com emoção.
— Ah! — Vance sentou-se e estudou a moça, zombeteiramente. — Suponhamos que nos conte as circunstâncias, senhorita.
— Todos fomos para a cama por volta das onze — ela começou. — Tio Dick e o Sr. Bloodgood tinham ido para o Cassino logo depois do jantar. Lynn os seguiu cerca de uma hora mais tarde. E Allan — o Dr. Kane, aqui — tinha de dar alguns telefonemas e saiu com Lynn...
— Um momento! — interrompeu Vance, erguendo a mão. — Pelo que sei, o jantar desta noite era mais ou menos um negócio de família. Estava presente o Dr. Kane?
— Sim, ele estava aqui. — A moça assentiu amargamente. — Eu sabia o que significava outro desses jantares de aniversário: disputas, recriminações, briga geral. E eu estava nervosa. Assim, no último minuto, pedi ao Dr. Kane que viesse jantar, na esperança de que sua presença acalmasse os ânimos. Claro, Morgan Bloodgood também estava aqui, porém ele é, realmente, como da família. Não hesitamos em ventilar nossas diferenças em sua presença.
— E adiantou alguma coisa a presença do Dr. Kane?
— Não — ela replicou. — Havia muita paixão reprimida a que se precisava dar vazão...
Vance hesitou, mas depois continuou seu interrogatório:
— Então Lynn e seu tio e os outros partiram; e a senhorita, sua cunhada e sua mãe se recolheram lá pelas onze. Que aconteceu então?
— Eu estava cansada e inquieta e não podia dormir. Levantei-me por volta de meia-noite e comecei a desenhar. Trabalhara por uma hora, mais ou menos, e acabava de resolver deitar-me novamente quando ouvi Virgínia gritar, numa voz histérica. Meu quarto é nesta ala da casa, e os dois apartamentos são separados apenas por um estreito corredor que uso como armário de roupas. — Com um movimento de cabeça indicou uma porta ao fundo do quarto.
— Poderia ouvir sua cunhada com as duas portas e o guarda-roupa entre vocês? — perguntou Vance.
— Comumente, não; porém eu havia acabado de entrar no armário para pendurar meu roupão.
— E o que fez então?
— Parei na porta para ouvir, e Virgínia gritava como se estivesse asfixiada. Tentei o trinco. A porta não estava trancada...
— Era raro que essa porta não estivesse trancada? — interrompeu Vance.
— Não. De fato, raramente era trancada. — Continue, por favor!
— Bem, Virgínia estava na cama, como está agora. Os olhos, arregalados; o rosto, terrivelmente vermelho; e estava numa horrível convulsão. Corri para o patamar e chamei mamãe. Mamãe acorreu e olhou-a. "Chame um médico, Amélia", disse; e imediatamente telefonei ao Dr. Kane. Mora aqui pertinho e veio imediatamente. Enquanto eu telefonava, Virgínia pareceu desmaiar. Tornou-se dura... dura demais. Eu... eu soube que ela havia morrido... A moça estremeceu involuntariamente e sua voz diminuiu lentamente.
— E depois, Dr. Kane? — Vance se voltara para o homem apoiado à lareira.
Kane adiantou-se, nervosamente: sua mão tremia ao tirar a piteira da boca.
— Quando cheguei, senhor, poucos minutos depois — começou, com estudado ar de dignidade profissional — a Sra. Llewellyn — Sra. Lynn Llewellyn, quero dizer, naturalmente — estava morta. Os olhos estavam esbugalhados; as pupilas tão dilatadas que dificilmente se distinguiria a retina; e estava coberta com uma erupção de pele semelhante à escarlatina. Pareceu ter uma alta de temperatura post mortem, e a posição de seus braços e a distorção dos músculos faciais e cervicais indicavam que tivera uma convulsão e morreu de asfixia. Os sintomas são de algum veneno do grupo da beladona — hioscina, atropina, ou escopolamina. Não mexi no corpo e preveni a Sra. Llewellyn e sua filha que não o tocassem. Telefonei imediatamente para a polícia.
— Correto! — murmurou Vance. — E então o senhor esperou pela nossa chegada?
— Naturalmente! — Kane recuperara muito do seu autocontrole, embora ainda estivesse vermelho e respirasse pesadamente.
— E nada no quarto foi tocado?
— Nada. Estive aqui todo o tempo, e a Sra. e a Srta. Llewellyn esperaram aqui comigo.
Vance assentiu lentamente:
— A propósito, doutor: usa uma máquina de escrever? Kane teve um movimento de surpresa, e gaguejou:
—... Sim! Costumava datilografar meus pontos na escola de medicina. Não sou lá muito bom nisso... Mas... não compreendo... Mas se a minha datilografia pode ser de alguma ajuda no caso...
— Apenas uma pergunta ociosa — retorquiu Vance casualmente, e voltou-se para Heath. — O médico legista foi avisado?
— Claro. — O sargento estava calado, aborrecido, mastigando seu charuto. — O chamado foi através do escritório, como de costume, porém eu telefonei para Doremus, em sua casa... Não gostei da organização das coisas, esta noite... {10}
— E ele ficou provavelmente muito aborrecido... — sugeriu Vance.
O sargento grunhiu:
— Eu diria que ficou mesmo. Porém disse-lhe que o Sr. Markham estaria aqui, e ele afirmou que também viria. Deve chegar a qualquer momento...
Vance levantou-se e encarou Kane:
— Penso que isto é tudo, por agora, doutor. Mas devo pedir-lhe que permaneça aqui até que chegue o legista. O senhor poderá ajudá-lo... O senhor se importaria de esperar no salão, embaixo?
— Certamente que não! Terei satisfação em ajudar do modo que possa.
Quando ele saiu, Vance voltou-se para as duas mulheres:
— Sinto ter de pedir-lhes para ficar aqui em cima, porém é necessário. Tenham a bondade de aguardar em seus quartos.
Embora macia, sua voz tinha um inconfundível tom de ' comando.
A Sra. Llewellyn ergueu-se: seus olhos fulguravam.
— Por que não posso ir ver meu filho? Aqui não há nada mais que eu possa fazer. Nada sei de toda essa questão.
— A senhora não pode ajudar seu filho — replicou Vance, com firmeza; — e pode ser capaz de ajudar-nos aqui. Todavia, terei satisfação em saber como ele vai passando.
Foi ao telefone na mesinha de cabeceira; um minuto depois falava ao Dr. Rogers. Ao desligar, voltou-se encorajadoramente para a Sra. Llewellyn:
— Seu filho já saiu do estado de coma, senhora; respira mais normalmente, o pulso está mais forte, enfim, parece fora de perigo. A senhora será notificada imediatamente se houver alguma piora.
Segurando o lencinho nos olhos, a Sra. Llewellyn saiu soluçando.
Amélia Llewellyn não saiu logo. Esperou que a porta se fechasse e então olhou para Vance interrogativamente, perguntando numa voz metálica:
— Por que perguntou se o Dr. Kane usava uma máquina de escrever?
Vance tirou do bolso a carta que o metera na questão e a entregou à moça, sem uma palavra. Observou-a atentamente, olhos semicerrados, enquanto a lia. Notou-lhe certa perturbação, mas não surpresa. Chegando ao fim, ela deliberada-mente tornou a dobrar a carta e a devolveu a Vance.
— Obrigada — disse e, voltando-se, saiu do quarto.
— Um momento. A senhorita também usa uma máquina de escrever?
A moça, apàticamente, assentiu:
— Oh! Sim. Faço toda a minha correspondência numa pequena máquina que tenho... Entretanto — acrescentou, com um fraco sorriso — sou muito mais competente que a pessoa que datilografou essa carta.
— E os demais membros da casa também usam a máquina? — perguntou Vance.
— Sim... todos somos muito modernos. — A moça falava indiferentemente. Mesmo mamãe datilografa suas conferências. E tio Dick, tendo sido escritor há tempos, aperfeiçoou um rápido, porém superficial, sistema de dois dedos.
— E sua cunhada: usava uma?
Os olhos da moça se voltaram para a cama e ela estremeceu:
— Sim. Virgínia se divertia com a máquina enquanto Lynn estava fora, jogando... O próprio Lynn é ótimo datilografo. Freqüentou uma escola de comércio... provavelmente pensando em ser um dia chamado a cuidar dos negócios dos Llewellyns. Mas mamãe não pensava assim, de modo que ele se voltou para os night-clubs. (Havia um curioso desinteresse na sua maneira de falar que, no momento, não pude aprofundar.)
— Isso deixa apenas o Sr. Bloodgood... — começou Vance; mas a moça o interrompeu rapidamente:
— Ele também datilografa — seus olhos escureceram, e senti que sua atitude para com Bloodgood não era das mais amigáveis. — Ele datilografa a maioria de seus relatórios sobre esse negócio de máquinas caça-níqueis com que se meteu, em nossa máquina de escrever que está lá embaixo.
Vance ergueu as sobrancelhas levemente, interessado:
— Ainda há outra máquina lá embaixo?
Outra vez a moça afirmou, e deu de ombros como se isso fosse coisa que não a interessasse.
— Sempre houve uma lá... na pequena biblioteca da sala.
— Acha — perguntou Vance — que a carta pode haver sido escrita naquela máquina?
— Pode ter sido... É o mesmo tipo de letra e a mesma cor de fita... Mas há tantas parecidas...
— E talvez — prosseguiu Vance — você possa sugerir quem foi o autor da comunicação.
Tornou-se nublada a expressão de Amélia Llewellyn e o olhar duro lhe voltou.
— Eu poderia fazer várias sugestões — disse, num tom áspero. — Porém não tenho intenção de fazer nada disso. — E abrindo a porta com decisiva rapidez, saiu do quarto.
— Aprende-se muito! — rosnou Heath, sarcàsticamente. — Esta casa é um punhado de datilógrafos...
Vance olhou indulgentemente para o sargento:
— Aprendi muito hoje, sabe!
Heath mudou de um lado para o outro o charuto entre os dentes e fez uma careta:
— Talvez sim, talvez não... — murmurou. — O caso é meio torto, se quer saber... Llewellyn sendo envenenado no Cassino, e sua esposa tendo a mesma dose aqui, ao mesmo tempo. Parece-me haver um bando trabalhando...
— A mesma pessoa poderia realizar ambos os atos, sargento — retrucou Vance indulgentemente. — Na verdade, estou certo de que foi a mesma pessoa. Além disso, acho que a mesma pessoa me enviou a carta... Espere um minuto!
Caminhou para a mesinha de cabeceira e, pondo de lado o telefone, apanhou um pequeno papel dobrado:
— Vi isso quando telefonei ao hospital. Mas propositadamente não o examinei até que as senhoras se houvessem retirado.
Desdobrou o papel e o segurou sob a luz do abajur. De onde eu estava podia ver tratar-se de uma simples folha de bloco, azul, e estava datilografado.
— Santos Céus! — murmurou Vance, ao lê-lo. — Espantoso!...
Depois entregou o papel a Markham, que o segurou de modo a que eu e Heath, de pé a seu lado, pudéssemos vê-lo. Era uma nota mal datilografada e dizia:
"Caro Lynn — Não posso fazê-lo feliz, e Deus sabe que nesta casa ninguém tentou fazer-me feliz. Tio Dick é a única pessoa aqui a tratar-me com delicadeza e consideração. Não me querem aqui, e me sinto miserável. Vou envenenar-me. Adeus... e possa o seu novo sistema de roleta trazer-lhe a fortuna que você parece querer mais que tudo." A assinatura, "Virgínia", também estava datilografada. Markham dobrou a nota e franziu os lábios. Olhou para Vance durante muito tempo e depois observou:
— Isso parece simplificar as coisas.
— Oh! meu caro amigo! — protestou Vance. — Esta nota complicou abominàvelmente a situação!
V - VENENO!
(Domingo, 16 de outubro — 2:15 horas)
Nesse momento, Sullivan abriu a porta e fez entrar o Dr. Doremus, pessoa elegante, com um ar mordaz. Usava um casacão de tweed, e a aba do seu chapéu de feltro cinza-pérola estava caída faceiramente para um lado.
Cumprimentou-nos com dramática consternação, e relanceou um olhar petulante para o sargento Heath.
— Quando vocês não me chamam para ver seus cadáveres à hora do jantar, esperam que eu esteja dormindo e me confundem completamente... Isso não é direito... não é direito... É uma conspiração para roubar-me a alimentação e o repouso. Envelheci vinte anos desde que comecei com este serviço três anos atrás.
— Pois você parece bastante jovem e esperto... — sorriu Heath. (Há muito se acostumara com os resmungos do médico legista.)
— Bem, não há que esperar muita consideração de vocês, meninos da Divisão de Homicídios. Onde está o corpo? — Os olhos percorreram o quarto e chegaram a rígida figura de Virgínia Llewellyn. — Uma senhora, hem? De que morreu?
— Você vai-nos dizer. — De súbito, Heath tornara-se agressivo.
Doremus resmungou; então, tirando o chapéu e o casaco pô-los numa cadeira, e aproximou-se da cama. Durante dez minutos examinou a moça morta e, uma vez mais, impressionou-me sua competência e minuciosidade. Com todos os seus maneirismos e atitudes cépticas, era um astuto e eficiente médico — um dos melhores e mais conscienciosos legistas que Nova York já teve.
Enquanto Doremus estava ocupado com sua repulsiva tarefa, Vance fez uma breve inspeção do quarto. Foi primeiro até a mesinha de cabeceira onde repousava um pequeno serviço de prata parecido com o do escritório de Kinkaid no Cassino. Apanhou os dois copos e os examinou: ambos pareciam enxutos. Depois tirou a rolha da garrafa e a virou num dos copos: vazia. Vance estava carrancudo ao depositá-la na bandeja. Após inspecionar a gavetinha da mesa, caminhou para o banheiro, que estava entreaberto, nos fundos do quarto.
Ao passar por Markham, comentou a meia voz:
— O serviço para noite é abominável. A garrafa dágua de Kinkaid, vazia; e também a de Lynn Llewellyn. Esquisito, não lhe parece? Incidentalmente, a gaveta da mesinha de cabeceira só contém um lenço, um baralho de cartas — para solitários, sem dúvida — um lápis e um bloco de notas, um bastão de pomada para lábios e um par de óculos de leitura... Nada de letal...
Segui Vance ao banheiro, pois sabia que tinha algo de definido em mente ao começar sua inspeção: esse fato era claramente indicado por seus modos descansados e casuais, que ele invariavelmente assumia em momentos de alta tensão.
O banheiro era grande, completamente modernizado, e tinha duas janelinhas que davam para o pátio interno. Estava muito bem arrumado, tudo em ordem. Após acender a luz. Vance olhou-o pesquisadoramente. Havia um pequeno pulverizador e um tudo de tabletes para banho no peitoril de uma das janelas.
Vance pressionou o pulverizador e sentiu o cheiro do spray.
— Fleur-de-lis, de Derline, Van — observou. — Ideal para louras. — Leu o rótulo pregado no tubo de pastilhas para banho. — Também Fleur-de-lis, de Derline. Consistente e correto. Ah! a maioria das mulheres comete o erro fatal de opor seu perfume de banho ao perfume pessoal do corpo...
Abriu a porta do armarinho de remédios e o examinou. Continha apenas os artigos habituais: cremes de limpeza de pele e de hidratação, um frasco de loção para mãos, águas de toalete, talco e pós para banho, um desodorizante, um tubo de pasta de dentes, fio dental, um termômetro e os medicamentos convencionais: iodo, aspirina, bicarbonato de sódio, cânfora, desinfetantes bucais e para embrocações, glicerina, argirol, amônia, benjoim, leite de magnésia, tabletes de brometo, um colírio, etc.
Vance levou um tempo considerável examinando minuciosamente cada artigo. Por fim, retirou uma garrafinha de cor castanha com um rótulo impresso e, cuidadosamente ajustando o monóculo, leu o tipo fino da fórmula. Então escorregou a garrafinha em seu bolso, fechou a portinhola do armariozinho e voltou ao quarto de dormir.
O Dr. Doremus estava justamente cobrindo com um lençol a rígida forma estirada na cama. Voltou-se para Heath com simulada truculência:
— Bem, e quanto a isso? — perguntou, irritado, espalhando as mãos num gesto de inquirição: — Ela está morta... se é isso que querem saber. E tive de ser tirado à força dos lençóis, às duas da madrugada, para dizer-lhes isso!
Heath lentamente tirou o charuto dos dentes e olhou furiosamente para o Legista:
— Muito bem, doe! Ela está morta, diz o senhor! Mas há quanto tempo o está, e o que a matou?
— Eu sabia o que vinha vindo por aí... — suspirou Doremus; e então tornou-se profissionalmente sério. — Bem, sargento, ela está morta há umas duas horas, e foi envenenada... Agora, suponho que vai querer que lhe diga onde ela apanhou o veneno. — E olhou de esguelha para Heath.
Vance meteu-se entre os dois homens:
— Um médico chamado aqui — disse gravemente a Doremus — sugeriu que ela pode haver morrido devido a um dos venenos do grupo da beladona.
— Qualquer estudante de medicina, terceiranista, saberia disso — Doremus retrucou. — Claro, é envenenamento por beladona... Esse serra-ossos esteve aqui a tempo de tomar a temperatura post mortem dela?
— Dez minutos após sua morte já ele estava aqui — disse Vance.
— Bem, bem. — Doremus pôs o casaco e cuidadosamente ajeitou a aba do chapéu. — Todas as indicações: olhos esbugalhados, pupilas largamente dilatadas, manchas na pele, um salto na temperatura, sinais de convulsões e asfixia... Simples.
— Sim, sim... totalmente — Vance puxou do bolso o frasquinho que retirara do armarinho de remédios e entregou-o ao legista: — Poderiam esses tabletes ser a causa da morte?
Doremus olhou atentamente o rótulo e a fórmula impressa:
— Tabletes para regulagem de rinite... remedinho caseiro... — Pôs o frasco sob a luz do abajur e examinou-o de olhos semicerrados. — Cânfora em pó! — Leu em voz alta: — Extrato fluído de raiz de beladona... um quarto de mínimo, e sulfato de quinino... Certamente isso poderia ter causado a coisa... se fossem tomadas muitas delas.
— O frasco está vazio; e continha cem tabletes, está no rótulo.
O Dr. Doremus, ainda examinando o rótulo, balançou a cabeça:
— Cem vezes um quarto de mínimo seriam vinte e cinco mínimos... Beladona bastante para nocautear qualquer resfriado. — Devolveu a garrafinha a Vance: — Esta é a resposta. Por que fazer-me levantar no meio da noite, se você tinha todo o narcótico?
— Na realidade, doutor, estávamos apenas experimentando. Acabei de encontrar esta garrafinha vazia, sabe, e pensei nisso como uma possibilidade.
— Parece-me muito boa. — Doremus encaminhou-se para a porta. — Só um post mortem responderá exatamente suas perguntas.
Markham falou bruscamente:
— Isso é justamente o que queremos, doutor. Quando, o mais cedo possível, poderemos ter um relatório da autópsia?
— Oh! Deus! — Doremus apertou os dentes. — E amanhã é domingo... Essa pressa moderna me acabará matando... Que tal amanhã às onze da manhã?
— Eminentemente satisfatório — respondeu-lhe Markham.
O Dr. Doremus tirou do bolso um pequeno bloco e, nele escrevendo algo, rasgou o pedaço de papel e deu-o ao sargento:
— Aqui está a ordem para a remoção do cadáver.
O sargento pôs no bolso o pedaço de papel, murmurando:
— O corpo estará no necrotério antes do senhor.
— Excelente! — Doremus olhou de esguelha desagradavelmente para Heath e abriu a porta. — E agora vou voltar a dormir. Vocês poderão ter um massacre hoje à noite, se quiserem, mas não me verão até amanhã às nove horas...
Abanou a mão num gesto de adeus para todos nós e saiu rapidamente.
Quando o legista bateu a porta ao sair, Markham voltou-se gravemente para Vance:
— Onde encontrou esse frasco, Vance?
— No lavatório. Foi a única coisa que vi ali que parecia oferecer alguma possibilidade.
— Considerado em conexão com a nota de suicídio que você descobriu — observou Markham — parece fornecer uma explicação simples para esse caso terrível.
Por vários momentos Vance ficou olhando Markham, pensativamente; depois, inalando profundamente o seu cigarro, caminhou todo o comprimento do quarto e voltou, cabeça abaixada em contemplação.
— Não estou tão certo, Markham — murmurou, quase para si mesmo. — Afirmo-lhe que essa é uma solução muito bem preparada para a morte daquela moça ali na cama. Mas, e quanto ao pobre rapaz que está no hospital? Ali não havia beladona que lhe fizesse mal; e certamente em sua mente não havia nenhuma pressa de suicidar-se. Estava jogando para ganhar, esta noite; e seu tolo sistema aparentemente funcionava bem. Mesmo assim, no meio do jogo ele desmaia... Não, não... Essa garrafinha vazia é demasiado simples... e este caso não é simples absolutamente: está cheio de sombras e de pistas falsas... esconde sutilezas e circunvoluções cerebrais...
— Afinal, você encontrou o frasco... — começou Markham. Porém Vance o interrompeu:
— Isso pode haver sido arranjado para nós. Ajusta-se bem demais ao esquema... Saberemos mais — ou menos — amanhã de manhã quando Doremus enviar seu relatório.
Markham estava aborrecido:
— Por que forjar todos esses mistérios?
— Meu caro Markham! — reprovou-o Vance, e ficou durante vários minutos aparentemente absorto numas gravuras do século dezoito, penduradas sobre a lareira.
Nesse ínterim, Heath telefonara à Assistência Pública para que mandassem uma ambulância para retirar o corpo. Depois desse telefonema, falou ao tenente Smalley do distrito policial local, que silenciosamente observara tudo de um canto do quarto:
— Não há mais nada, tenente. O Sr. Markham está aqui, e tudo não passará de rotina até que o Dr. Doremus faça a autópsia. Mas pode deixar aí fora um par de rapazes.
— Como queira, sargento. — O tenente Smalley apertou as mãos de todos os presentes, depois saiu com um ar de óbvio alívio.
— Penso que também podemos ir — falou Markham,
— Você fica encarregado do caso aqui, naturalmente, sargento... Tratarei disso com o inspetor logo de manhã.
— Ora, Markham — disse Vance — não vamos todos embora precipitadamente. Eu gostaria de conhecer alguns fatos, e já que estamos aqui...
— O que, por exemplo, você gostaria de saber? — Markham estava impaciente.
Vance afastou os olhos da gravura e olhou tristemente para a moça morta.
— Gostaria de falar mais um pouco com o Dr. Kane antes de nos retirarmos.
Markham fez uma expressão estranha, mas finalmente assentiu relutante:
— Ele está lá embaixo. — E foi à frente, para o vestíbulo.
O Dr. Kane andava nervosamente acima e abaixo, ao entrarmos no salão de estar.
— Qual é o relatório? — perguntou antes que Vance tivesse tempo de falar.
— O legista apenas corroborou o seu diagnóstico, doutor — disse-lhe Vance. — O post mortem será a primeira coisa a ser realizada pela manhã... A propósito, doutor, o senhor é o médico de família dos Llewellyns?
— Eu mal poderia afirmar isso — respondeu o outro.
— Duvido que tenham alguém que os atenda com regularidade. Não precisam de muita supervisão médica: é uma família saudável. Ocasionalmente prescrevo, entretanto, para coisinhas de menor importância, mais como amigo do que como profissional.
— E receitou para algum deles ultimamente? — perguntou Vance.
Kane pensou por um momento, e respondeu, lentamente:
— Nada de importância... Sugeri um fortificante à base de ferro — Blaud's Mass — e estriquinina para a Srta. Llewellyn há uns dias passados...
— Lynn Llewellyn tem qualquer doença — interrompeu Vance — que o faça desmaiar sob forte excitação?
— Não! Tem o coração hipertrofiado, com tendência a pressão alta... resultado de atletismo no ginásio...
— Angina?
Kane sacudiu a cabeça:
— Nada tão sério assim, embora sua condição possa caminhar para isso, algum dia.
— Nunca receitou para ele?
— Há um ano, mais ou menos, fiz-lhe uma receita para tabletes de nitroglicerina — dois cêntimos de grão. Foi tudo.
— Nitroglicerina, hem? — Havia um brilho de interesse nos olhos de Vance. — Muito revelador... E sua esposa: nunca foi chamado para atendê-la?
— Oh! uma ou duas. vezes... Tinha olhos fracos, e recomendei um colírio comum... É experiência minha — acrescentou, meio pomposo — que as louras muito claras com pálidos olhos azuis — falta de pigmentação, entende... — têm olhos mais fracos que as morenas...
— Não vamos entrar em teorias oftalmológicas — cortou Vance, com um sorriso insinuante. — Está ficando muito tarde... Que mais receitou para a jovem Sra. Llewellyn?
— Isso é, realmente, tudo. — Kane, apesar de tentar fazer pose, estava ficando nervoso. — Recomendei um ungüento para uma leve inflamação em uma de suas mãos, há já muitos meses; e na semana passada, quando ela teve um incomodativo resfriado na cabeça, sugeri comprimidos para rinite. Não me recordo de nada mais... — Comprimidos para rinite? — O olhar penetrante de Vance não o deixava. — Quantos mandou que ela tomasse?
— Oh! A dose usual: um ou dois comprimidos de duas em duas horas.
— A maioria dos comprimidos para rinite contém bela-dona, não? — observou Vance num tom áspero.
— Ora, sim... claro... — Os olhos de Kane subitamente se arregalaram, e olhou para Vance com terror intenso.
— Mas... mas... realmente... — gaguejou e calou-se.
— Encontramos um frasco vazio, para cem comprimidos, em seu armarinho de remédios — informou Vance, sem mover o olhar. — E, de acordo com seu diagnóstico, a Sra. Llewellyn morreu envenenada por beladona.
Kane ficou boquiaberto e totalmente pálido:
— Meu Deus! — murmurou. — Ela... ela não pode ter feito isso! — O homem tremia visivelmente. — Ela devia saber... e fui bastante explícito...
— Ninguém pensaria em culpá-lo nas atuais circunstâncias, doutor — falou Vance, consoladoramente. — Diga-me, a Sra. Llewellyn era uma paciente inteligente e conscienciosa?
— Sim, muito. — Kane umedeceu os lábios, fazendo um valente esforço para controlar-se. — Era sempre extremamente cuidadosa no seguir implicitamente minhas instruções. Lembro-me agora de que me telefonou, no outro dia, para perguntar se poderia tomar um comprimido extra antes de passadas as duas horas do intervalo.
— E a loção para os olhos? — perguntou Vance, muito casualmente.
— Estou certo de que seguiu minhas instruções — respondeu Kane, sinceramente. — Embora, naturalmente, fosse uma solução absolutamente inocente...
— E qual foi sua determinação quanto a isso?
— Disse-lhe que deveria banhar os olhos todas as noites antes de dormir.
— Quais eram os ingredientes do ungüento que lhe receitou para a mão?
Kane pareceu surpreso:
— Tenho certeza de que não sei! — retrucou, inseguro.
— Os habituais emolientes, suponho. Era um preparado já pronto, à venda em qualquer drogaria... provavelmente continha oxido de zinco ou lanolina. Não poderia haver nele nada de perigoso.
Vance caminhou para a janela da frente e olhou para fora: estava confuso e perturbado.
— Esses foram todos os seus serviços médicos para Lynn Llewellyn e sua esposa? — perguntou, voltando lentamente ao centro da sala.
— Sim! — Embora estivesse trêmula a voz de Kane, nela havia um tom de inegável ênfase.
Por um breve período, Vance olhou fixamente para o jovem doutor.
— Penso que isso é tudo. Não há nada mais que o senhor possa fazer aqui hoje.
Kane deu um fundo suspiro de alívio e caminhou para a porta.
— Boa noite, senhores! — falou, com um olhar interrogativo para Vance. — Por favor, chamem-me se eu puder ajudar em algo. Ficaria muito grato se me deixassem saber o resultado da autópsia.
Vance curvou-se, distraidamente:
— Teremos satisfação nisso, doutor. E nossas desculpas por retê-lo até tão tarde.
Por um momento Kane ficou imóvel, e pensei que fosse dizer algo; porém subitamente saiu, e um momento depois pudemos ouvir o mordomo ajudando-o a vestir o sobretudo.
Vance ficou de pé junto à mesa por alguns momentos, olhando direto em frente e os dedos distraidamente seguindo os desenhos da madeira. Depois, sem mover os olhos, sentou-se e muito devagar e deliberadamente apanhou a cigarreira.
Nesse ínterim, Markham estivera de pé junto à porta, observando atentamente o doutor e Vance. Dirigiu-se então até a lareira e nela se recostou, comentando gravemente:
— Vance, estou começando a entender o que se passa em sua mente.
Vance ergueu o olhar e suspirou fundamente:
— Realmente, Markham? — Sacudiu a cabeça, ar desencorajado. — Você é muito mais arguto que eu... Daria meu vaso ting-yao para saber o que está em minha mente. Tudo é muito confuso... Tudo se encaixa... é um perfeito mosaico. E isso é que me assusta.
Sacudiu-se gentilmente, como para afastar algum pensamento intruso, e, indo até à porta, chamou o mordomo:
— Por favor, diga à Srta. Llewellyn — penso que está em seu quarto — que apreciaria se viesse até o salão.
Quando o criado se dirigiu para as escadas, Vance caminhou até a lareira e ficou de pé ao lado de Markham:
— Há algumas outras coisinhas que eu gostaria de saber antes de nos despedirmos — explicou. Estava perturbado e inquieto; eu raramente o vira assim. — Nenhum dos casos em que o tenho ajudado, Markham, fez-me sentir tão fortemente a presença de uma personalidade tão sutil e devastadora. Nem uma só vez essa personalidade se manifestou em todos os trágicos acontecimentos desta noite; porém sei que está aqui, sorrindo de nós e nos desafiando a penetrar até o fundo de seu diabólico esquema. E todos os ingredientes da trama são, aparentemente, comuns e óbvios — mas sinto que há marcos indicando para longe da verdade. — Fumou um momento em silêncio; depois disse: — A diabólica parte da coisa é que nem sequer compreendemos ou podemos seguir essas indicações...
Ouvimos os passos leves a descer a escadaria: um momento depois Amélia Llewellyn estava de pé à porta do salão.
VI - UM GRITO NA NOITE
(Domingo, 16 de outubro — 3:00 horas)
Ela mudara seu roupão acolchoado por pijama de cetim negro, e reparei que se pintara recentemente. Fumava um cigarro numa piteira de ébano em relevo, e sua presença, emoldurada pelo mármore do batente da porta, era marcante e me lembrava uma gravura espetacular de Zuloaga.
— Recebi sua intimação verbal através do trêmulo e elegante Crichton — o nome de nosso mordomo é na verdade Smith — e eis-me aqui. — Falava com ar mundano jocoso. — Bem, em que ficamos?
— Permita-me sentar-me, Srta. Llewellyn — respondeu Vance, pegando uma cadeira com imponência.
— À vontade. — Ela se acomodou na cadeira e cruzou as pernas. — Estou exausta, com toda essa agitação incomum.
Vance sentou-se de frente para ela.
— Por acaso já lhe ocorreu, Srta. Llewellyn — perguntou — que a mulher de seu irmão se possa ter suicidado?
— Pelo amor de Deus, não! — A moça inclinou-se para a frente, indubitavelmente surpresa. Subitamente, perdera o modo cínico.
— Então, a senhorita não sabe de nenhuma razão que pudesse ter ocasionado o suicídio? — Vance prosseguiu calmamente.
— As razões que ela pudesse ter eram iguais às de todo mundo. — Amélia Llewellyn fixou o vácuo, sem olhar para Vance. — Nós todos podemos pensar em algum bom motivo para nos matar, mas Virgínia nada tinha com que se preocupar. Tinha tudo o que queria, e estava vivendo mais confortavelmente, materialmente falando, do que nunca antes. — (Esta observação foi feita com um tom de amargura). — Ela conheceu Lynn muito bem, antes de casar com ele, e deve ter previsto todas as vantagens e desvantagens que o casamento lhe traria. Considerando que não gostávamos especialmente dela, nós a tratávamos bem demais... especialmente mamãe. Aliás, ela sempre foi a favorita de mamãe, e qualquer pessoa que Lynn trouxesse aqui em casa seria tratada com gentileza e consideração.
— Mesmo assim — comentou Vance — as pessoas ocasionalmente se suicidam sob essas circunstâncias.
— Isto é verdade. — A moça deu de ombros. — Mas Virgínia era covarde demais para tirar a própria vida, mesmo que fosse terrivelmente infeliz. (Certa animosidade tomou conta de sua voz). — Além disso, ela era egoísta e vaidosa...
— Vaidosa em relação a quê, por exemplo? — perguntou Vance.
— Em relação a tudo. — Ela jogou as cinzas do cigarro no chão. — Ela era especialmente vaidosa em relação à aparência. Sentia-se o tempo todo no palco e maquilada, por assim dizer.
— Não lhe parece possível — Vance insistiu — que se ela se tivesse sentido muito infeliz... ?
— Não. — A moça antecipou-se ao resto da pergunta com uma negativa enfática. — Se Virgínia se tivesse sentido infeliz demais para agüentar a vida aqui, ela não se mataria. Ela teria fugido com um homem, ou talvez tivesse voltado ao palco — o que é uma forma indireta de fazer a mesma coisa.
— A senhorita não está sendo bondosa — murmurou Vance.
— Bondosa? — Ela riu de modo desagradável. — Talvez não. Mas, de qualquer maneira, não sou inteiramente imbecil.
— Suponha — retrucou suavemente Vance — que eu lhe dissesse que achamos um bilhete de suicídio?
Os olhos da moça se arregalaram, e ela fixou Vance com pesar.
— Não acredito! — disse veementemente.
— Contudo, Srta. Llewellyn, é verdade — disse-lhe Vance gravemente.
Por vários instantes ninguém falou. Amélia Llewellyn desviou os olhos de Vance e os fixou no vácuo; seus lábios se apertaram, e uma expressão arguta e dura surgiu-lhe no rosto. Vance a observava atentamente, sem deixar perceber. Após certo tempo, ela se moveu na cadeira e disse, com simplicidade artificial:
— Nunca se sabe, não é? Acho que não sou muito boa psicóloga. Não posso imaginar Virginia se matando. É, porém, um gesto muito teatral, bem ao seu feitio. Lynn tentou uma auto-aniquilação, também? Um pacto suicida, ou algo semelhante?
— Se tentou — replicou Vance de modo casual — evidentemente falhou... segundo o último relatório.
— Isto seria bem de acordo com seu caráter — observou a moça em tom surdo. — Lynn não é exatamente a imagem da eficiência. Ele sempre perde por um triz. Supervisão materna excessiva, talvez.
Vance se aborreceu com a atitude dela.
— Vamos esquecer um pouco essa fase do assunto — disse asperamente. — Estamos agora interessados apenas nos fatos. A senhorita nos poderia contar alguma coisa da atitude de seu tio — isto é, do Sr. Kinkaid — em relação à sua cunhada? O bilhete que achamos dizia que ele havia sido especialmente bondoso para com ela.
— É verdade. — A moça assumiu ar menos arrogante. — O tio Dick "tinha um fraco" por Virginia. Talvez ele achasse que, na condição de mulher de Lynn, ela merecesse piedade. Ou talvez ele a considerasse uma aventureira como ele mesmo. De qualquer modo, parecia haver uma união entre eles. De quando em vez tenho pensado que o tio Dick deixou que Lynn ganhasse algumas vezes no cassino para que Virginia tivesse mais dinheiro para gastar.
— Isto é muito interessante. — Vance acendeu outro cigarro e continuou. — E isto me leva a outra, questão. Espero que a senhorita não se incomode, é algo pessoal, mas a resposta nos poderá ajudar grandemente.
— Não se desculpe — disse a moça. — Não tenho segredos. Pergunte-me o que quiser.
— Muita gentileza sua — murmurou Vance. — A verdade é que gostaríamos de saber a real situação financeira dos membros de sua família.
— Só isto? — Ela pareceu sinceramente surpresa, talvez até desapontada. — A resposta é muito simples. Quando meu avô, Amos Kinkaid, morreu, deixou o grosso da fortuna para minha mãe. Ele confiava muito no tino comercial que ela possuía, mas não achava o mesmo de tio Dick e só lhe legou uma pequena parcela do patrimônio. As crianças — Lynn e eu — eram pequenas demais para merecer consideração e, de qualquer forma, ele provavelmente contava com mamãe para tratar de nosso bem-estar. O resultado é que o tio Dick teve mais ou menos de se cuidar sozinho, e que mamãe é a administradora do dinheiro do velho Amos. Lynn e eu dependemos totalmente da generosidade dela, que nos dá uma mesada bem razoável. E isto é tudo sobre o assunto.
— Mas como — perguntou Vance — será distribuído o patrimônio caso morra sua mãe?
— Só mamãe lhe poderá responder — replicou a moça. — Mas imagino que será dividido entre Lynn e eu — indo a maior parte, evidentemente, para Lynn.
— E seu tio?
— Bem, mamãe não o aprova. Duvido que ela o tenha contemplado no seu testamento.
— Caso sua mãe esteja viva depois que a senhorita e seu irmão morrerem, para quem iria o dinheiro?
— Para o tio Dick, acho — se estivesse vivo. Mamãe tem um sentimento de família muito pronunciado. Acho que ela preferiria que tio Dick herdasse a fortuna, para que o dinheiro não caísse em mãos de estranhos.
— Mas suponhamos que a senhorita ou seu irmão morresse e antes de sua mãe, a senhorita acha que o filho que ficasse herdaria tudo?
Amélia Llewellyn acenou com a cabeça.
— É o que acho — respondeu, com tranqüila sinceridade. — Mas ninguém pode saber ao certo os planos e idéias de mamãe. E, naturalmente, não discutimos jamais o assunto.
— Sim, claro, claro. — Vance deu uma tragada e se ergueu um pouco da cadeira. — Há uma outra pergunta a lhe fazer. A senhorita tem sido gentilíssima. A situação é muito grave, e não se pode saber que fatos ou sugestões nos poderão ser de auxílio.
— Acho que entendo. — A moça falava com suavidade aparente, do que até agora eu a julgara incapaz. — Por favor, não hesite em entrar em contato comigo para me perguntar qualquer coisa que possa ajudá-lo. Estou muito desgostosa com tudo... sinceramente. Eu não me importava com Virgínia, mas — afinal de contas — uma morte como a dela é... bem, uma coisa que eu não desejaria a meu pior inimigo.
Vance desviou os olhos da moça e mirou a ponta do cigarro. Tentei perceber sua reação mental, mas o rosto nada demonstrava do que lhe passava pela cabeça.
— Minha pergunta diz respeito à Sra. Lynn Llewellyn — disse ele. — E simplesmente isto: se ela tivesse sobrevivido à senhorita e a seu irmão, qual o efeito sobre o testamento de sua mãe?
Amélia Llewellyn ponderou sobre a pergunta.
— Não sei — respondeu depois de algum tempo. — Nunca pensei na situação sob esse aspecto. Mas inclino-me a pensar que mamãe teria feito de Virgínia a principal beneficiada. Ela provavelmente recorreria a qualquer coisa para evitar que tio Dick recebesse o legado. Ademais, a afeição quase patológica que tinha por Lynn afetaria sua decisão. Afinal, Virgínia era mulher de Lynn, e ele e tudo que lhe pertencesse sempre vieram em primeiro lugar para mamãe. — Ela encarou Vance suplicantemente. — Gostaria de poder ajudá-lo mais.
Vance se levantou.
— A senhorita nos ajudou imensamente — mesmo. Estamos todos tateando no escuro, e não vamos mais tomar seu tempo. Mas gostaríamos de falar com sua mãe. A senhorita poderia pedir-lhe que viesse ao salão?
— Claro. — A moça se levantou devagar e dirigiu-se à porta. — Estou certa de que ela terá o maior prazer. Sua única ambição na vida é participar dos assuntos de todos e ser o centro de toda agitação — Ela saiu lentamente da sala, e a escutamos subindo as escadas.
— Uma criatura estranha — comentou Vance, como se estivesse pensando em voz alta. — Uma combinação de extremos: fria como o aço, mas altamente emotiva. Há nela um antagonismo cerebral constante, ela não se decide. Está vivendo num limite psíquico — coração e cabeça em debate. Curiosamente simbólico este complexo caos. Não há orientação alguma para nós. — Ele nos olhou ansiosamente. — Não acha, Markham? Há uma dúzia de caminhos para se tomar — e todos nos podem desviar do certo. Mas há uma ruela escondida em algum lugar, e esse será o caminho a tomar.
Dirigiu-se para os fundos do salão.
— No meio tempo — disse, em tom mais leve — exercitarei minha mania pelos detalhes.
Atrás de cortinas pesadas de veludo no meio da parede dos fundos havia portas maciças de correr: Vance abriu uma delas. Tateou ao longo da parede da outra sala, e em alguns segundos um jato de luz revelou uma pequena biblioteca. Víamos Vance examinando rapidamente o que o cercava, e depois dirigiu-se à escrivaninha em forma de rim e se sentou. Na mesa estava uma máquina de escrever, e depois de lhe colocar um pedaço de papel, começou a datilografar. Logo retirou o papel da máquina, observou-o atentamente, dobrou-o e o pôs no bolso de dentro do colete.
Ao voltar para o salão, deteve-se junto a umas estantes e percorreu com os olhos os livros que elas continham. Ainda inspecionava os livros quando a Sra. Llewellyn entrou, com um ar de majestade dominadora. Vance deve tê-la escutado entrar, pois se voltou imediatamente, e se reuniu a nós no salão.
Ele se inclinou e, apontando uma das amplas poltronas cobertas de seda que rodeavam uma mesinha de centro, pediu-lhe que se sentasse.
— Qual o assunto que os senhores desejam discutir comigo? — indagou a Sra. Llewellyn, sem fazer qualquer tentativa de se sentar.
— Observo — disse Vance, ignorando-lhe a maneira e a pergunta — que a senhora tem uma interessantíssima coleção de livros de medicina na outra sala. — Ele fez um gesto com a mão, indicando as portas de correr.
A Sra. Llewellyn hesitou e disse:
— Eu não me surpreenderia com o fato. Meu falecido marido, embora não fosse médico, se interessava enormemente por pesquisa médica. Até escrevia de vez em quando para revistas médicas.
— Há — continuou Vance, sem mudar o tom — várias obras-padrão sobre toxicologia entre os tratados gerais.
A mulher moveu o queixo agressivamente e, com um dar de ombros imperceptível, sentou-se com rígida dignidade. na beira de uma cadeira perto da porta.
— Ê bem provável — disse. — O senhor acha que eles têm algo a ver com a tragédia desta noite? — Havia certo tom de desprezo na pergunta.
Vance não continuou com o tema. Ao invés, ele lhe perguntou:
— A senhora sabe de alguma razão que levasse sua nora a suicidar-se?
A mulher não mexeu nenhum músculo facial por alguns instantes, mas seus olhos subitamente se nublaram, como se estivessem pensando. Logo levantou a cabeça.
— Suicídio? — Havia uma animação contida em sua voz. — Não havia pensado em sua morte sob tal aspecto, mas sua sugestão de agora me faz ver que haveria uma explicação lógica. — Ela acenou com a cabeça lentamente. — Virgínia era muito infeliz aqui. Ela não se adaptou ao novo ambiente, e várias vezes me disse querer estar morta. Não dei qualquer importância à observação — é uma figura retórica por demais usada. Contudo, fiz o que podia para tornar a pobre criatura feliz.
— Uma situação delicada — murmurou Vance cordialmente. — Por alto, senhora, poderia dizer-nos — em estrito sigilo, claro — quais serão os termos gerais de seu testamento?
A mulher olhou Vance fixamente, e de modo irado.
— Certamente que não! Para lhe ser franca, não gostei da pergunta. Meu testamento é um assunto que só a mim diz respeito. Não teria qualquer conotação com a horrível situação de que estamos tratando.
— Não estou inteiramente convencido disto — replicou mansamente Vance. — Há uma linha de raciocínio, por exemplo, que nos poderia levar a especular da possibilidade que um dos beneficiários em potencial ganharia pela — digamos, ausência? — de certos outros herdeiros.
A mulher pôs-se em pé abruptamente e ficou rigidamente tensa, e os olhos brilhavam ferozmente para Vance.
— O senhor está insinuando — sua voz era fria e cortante — que meu irmão... ?
— Cara Sra. Llewellyn! — Vance retrucou asperamente. — Não estava pensando em ninguém. Mas a senhora parece não avaliar a importância do fato de que dois membros de sua família foram envenenados hoje, e que é nosso dever determinar todos os fatores possíveis que possam, mesmo remotamente, ter algo a ver com o caso.
— Mas o senhor mesmo — protestou a mulher em voz branda, sentando-se. novamente — adiantou a possibilidade de Virgínia se ter suicidado.
— Não foi bem assim, senhora — corrigiu Vance. — Eu apenas lhe perguntei se achava plausível essa teoria. Por outro lado, a senhora acha possível que seu filho tenha tentado matar-se?
— Não — claro que não! — replicou dogmaticamente. Veio-lhe um olhar abstraído. — Porém... não sei. Ele sempre foi muito emotivo — muito temperamental. A menor coisa o aborrecia. Ele ficava pensativo, e exagerava...
— Pessoalmente — disse Vance — não posso crer que seu filho tenha tentado acabar com a vida. Eu o estava observando quando ele foi atacado. Ele estava ganhando bem, e tinha total domínio da máquina.
A mulher parecia ter perdido o interesse em tudo, exceto no bem-estar do filho.
— O senhor acha que ele está bem? — perguntou suplicantemente. — O senhor me deveria ter deixado ficar com ele. O senhor pode perguntar novamente como está ele?
Vance se levantou imediatamente e se dirigiu à porta:
— Com prazer, senhora.
Alguns momentos depois nós o escutamos falando ao telefone no vestíbulo. Depois voltou ao salão.
— Parece que o Sr. Llewellyn — disse ele — está fora de perigo, o Dr. Rogers já saiu do hospital, mas o médico-residente que está de plantão me disse que seu filho está repousando tranqüilamente, e que seu pulso está praticamente normal agora. Ele acredita que o Sr. Llewellyn possa voltar para casa amanhã de manhã.
— Graças a Deus! — A mulher soltou um suspiro de alívio. — Poderei dormir agora. O senhor quer-me perguntar mais alguma coisa?
Vance inclinou a cabeça.
— A pergunta sem dúvida parecerá irrelevante agora, mas sua resposta poderá esclarecer certa fase dessa situação constrangedora. — Ele olhou diretamente para a Sra. Llewellyn. — Qual a situação exata do Sr. Bloodgood nesta casa?
A mulher levantou as sobrancelhas e contemplou Vance um meio minuto antes de responder, depois falou em tom curiosamente convencional e distante.
— O Sr. Bloodgood é íntimo amigo de meu filho. Foram colegas de Universidade. Acredito que ele conheceu Virgínia muitos anos antes que ela entrasse para nossa família. Meu irmão — o Sr. Kinkaid — sempre admirou o Sr. Bloodgood. Ele via possibilidades no rapaz, e o treinou para sua posição atual. O Sr. Bloodgood vem muito à minha casa, seja socialmente, seja a negócios. O senhor compreende — acrescentou à guisa de explicação — meu irmão mora aqui. Na verdade, metade da casa lhe pertence.
— Onde são os aposentos do Sr. Kinkaid? — perguntou Vance.
— Ele ocupa todo o terceiro andar.
— Posso saber — continuou Vance — quais as relações entre o Sr. Bloodgood e sua filha?
A mulher deu um rápido olhar para Vance, mas não hesitou em responder à pergunta com aparente franqueza.
— O Sr. Bloodgood está profundamente interessado em Amélia. Ele já a pediu em casamento, creio; ela ainda não se decidiu, pelo que eu saiba. Às vezes acho que gosta dele, mas outras vezes Amélia o trata abominàvelmente. Acho que não confia totalmente nele. Acontece que ela pensa muito em sua arte, e pode achar que o casamento venha a interferir com sua carreira.
— A senhora aprovaria o casamento? — perguntou Vance de modo casual.
— Não aprovaria nem desaprovaria — disse ela, e calou a boca.
Vance a olhou ligeiramente intrigado.
— O Dr. Kane está também interessado na sua filha?
— Oh, sim, acho que bastante... como quem não quer nada. Mas lhe asseguro que Amélia não tem intenções sentimentais a respeito dele. Apesar disso, utiliza-o constantemente — não tem escrúpulos a tal respeito. Às vezes, Allan Kane lhe é muito conveniente, e ele descende de ótima família.
Vance levantou-se lentamente da cadeira e inclinou-se:
— Não a deteremos mais — disse, com ar de fria cortesia. — Apreciamos seu auxílio e desejamos que a senhora saiba que trataremos de tudo sem a incomodar mais.
A Sra. Llewellyn ergueu-se àgilmente e saiu do salão sem mais uma palavra.
Quando ela já não o podia ouvir, Markham se levantou agressivamente e encarou Vance:
— Já aturei o bastante. Toda essa fofoca de família não nos está levando a parte alguma. Você está simplesmente fabricando fantasmas.
Vance suspirou resignadamente:
— Bem, vamos indo! A hora da bruxa passou há muito tempo...
Quando saía para o vestíbulo, o detetive Sullivan descia as escadas.
— O sargento vai esperar pelo carro e pôs todos para dormir — disse a Markham. — Vou para casa dormir. Boa noite, Chefe; até logo, Sr. Vance. — E partiu.
O mordomo cavernoso, parecendo cansado e sonolento, ajudou-nos a vestir os sobretudos.
— Você receberá instruções do sargento Heath — disse Markham.
O homem inclinou-se e se dirigiu à porta, para abri-la. Antes que o fizesse, porém, ouviu-se o barulho de uma chave na fechadura e logo Kinkaid irrompia no vestíbulo. Parou logo que nos viu:
— Que significa isto? — perguntou agressivamente. — Que fazem aqueles guardas lá fora?
— Estamos aqui a serviço — informou Markham. — Houve uma tragédia aqui esta noite.
Os músculos do rosto de Kinkaid subitamente se relaxaram e sua expressão se tornou calma e fria: em fração de segundo ele voltara a ser o jogador inescrutável.
— A mulher de seu sobrinho está morta — disse Vance.
— Envenenada. E, como o senhor sabe, Lynn Llewellyn também foi envenenado esta noite...
— Lynn que vá pro inferno! — falou Kinkaid entre dentes. — Qual o resto da história?
— É tudo que sabemos no momento, exceto que a Sra. Llewellyn morreu aproximadamente à mesma hora em que o marido passou mal no seu Cassino. Afirmou o legista que o envenenamento foi por beladona. O sargento Heath, da Divisão de Homicídios, está esperando lá em cima pelo carro que levará o corpo para o necrotério. Saberemos mais amanhã, após o post mortem. Segundo o último relatório, seu sobrinho está fora de perigo.
Nesse momento houve uma interrupção chocante. Ouviu-se um grito de mulher vindo da parte de cima da casa. Abriu-se uma porta que, após, se fechou com estrondo, e escutamos um gemido fraco. Houve então o ruído de fortes passadas no corredor acima de nós. Meu sangue pareceu congelar nas veias
— não sei por quê — e todos nos dirigimos à escada.
De súbito, Heath apareceu no patamar superior. Sob a forte luz do vestíbulo, pude ver seus olhos cheios de excitação. Chamou-nos com um gesto brusco do braço:
— Venha cá, Sr. Markham! — disse, com voz rouca. — Aconteceu algo!
VII - MAIS VENENO!
(Domingo, 16 de outubro — 3:30 horas)
Quando chegávamos ao patamar superior já Heath ia longe no vestíbulo, pesadamente, em direção à porta aberta de um quarto do lado norte. Nós o seguimos rapidamente, porém as largas costas do sargento nos obstruíam a visão, e só quando realmente entramos no quarto vimos a causa do súbito chamado. Esse quarto, tal como o vestíbulo, estava brilhantemente iluminado. Era, obviamente, o quarto da Sra. Anthony Llewellyn. Embora maior que o de Virgínia, continha menos móveis, todos de uma rigorosa severidade, que refletia o caráter e a personalidade de sua ocupante.
A Sra. Llewellyn estava de pé se escorando à parede do lado interno da porta, seu lenço de rendas apertado contra o rosto, olhos arregalados de horror para algo que jazia no chão. Gemia e tremia, e não ergueu os olhos ao entrarmos. O que olhava a deixava fascinada e sem fala.
Ali, a poucos passos dela, toda dobrada no alto tapete azul, jazia a forma rígida de Amélia Llewellyn.
A princípio a Sra. Llewellyn apenas apontou. Depois, com grande esforço, falou roucamente:
— Ela se encaminhava para o seu quarto: subitamente parou, pôs as mãos na cabeça, e caiu... — Tornou a apontar para a filha, quase como se imaginasse que não víamos a figura prostrada.
Vance já estava ajoelhado ao lado da moça. Sentiu-lhe o pulso, auscultou-lhe o coração, viu-lhe os olhos. Então acenou a Heath e se moveu para o lado oposto do leito. Eles levantaram a moça e a colocaram atravessada na cama, deixando sua cabeça caída para o lado.
— Sais voláteis — ordenou Vance. — E, sargento, chame o mordomo.
A Sra. Llewellyn pôs-se em atividade, foi até sua penteadeira e apanhou um vidrinho verde como o que Kinkaid dera a Vance no Cassino no começo dessa noite.
— Segure-o perto do nariz dela, mas não tão perto que dê para queimar — falou à senhora e voltou-se para a porta.
Apareceu o mordomo. Sua debilidade parecia haver desaparecido; estava nervosamente alerta.
— Chame o Dr. Kane ao telefone — ordenou Vance peremptoriamente.
O homem dirigiu-se apressadamente para uma mesinha de telefone e principiou a discar um número.
Kinkaid permanecia no umbral da porta, observando, expressão dura, rigidamente imóvel. Só os olhos se moviam, tomando nota de todos os aspectos da situação. Olhou na direção da cama, porém seu olhar não pousava na quieta forma de sua irmã.
— Qual é a resposta, Sr. Vance? — perguntou obstinadamente.
— Veneno... — murmurou Vance, acendendo um cigarro. — Sim... exatamente. Tal como Lynn Llewellyn. Um caso repulsivo... Isso o surpreende?
Os olhos de Kinkaid se abaixaram ameaçadoramente:
— Que diabo quer dizer com essa pergunta? Porém o Dr. Kane estava na linha e Vance lhe falou:
— Amélia Llewellyn está seriamente doente. Venha imediatamente! E traga suas injeções — cafeína, digitalina e adrenalina. Compreende?... Muito bem. — Recolocou o fone e se voltou para o interior do quarto. — Felizmente, Kane ainda estava acordado... estará aqui em poucos minutos. — Então ajustou o monóculo e examinou Kinkaid. — Qual é sua resposta à minha pergunta?
Kinkaid começou a vociferar, depois pareceu pensar melhor:
— Sim — estalou, enfrentando o olhar de Vance. — Estou tão surpreso quanto você!
— Você ficaria surpreso se soubesse quão longe estou de surpreender-me — murmurou Vance, e se encaminhou para as duas mulheres. Pegou os sais com a Sra. Llewellyn, e tornou a sentir o pulso da moça. Depois, sentou-se na beira da cama e fez sinal à Sra. Llewellyn para falar-lhe à parte:
— Qual é a história toda? — perguntou-lhe, sem benevolência. — Falemos disso antes que o doutor chegue.
A senhora tropeçou numa cadeira, sentou-se ereta, e arrumou o roupão em torno de si. Quando falou já estava completamente dona de si:
— Amélia veio ao meu quarto e me disse que o senhor queria falar-me. Sentou-se na cadeira onde estou agora. Falou que me esperaria aqui... precisava falar-me...
— Isso é tudo? — perguntou Vance. — A senhora não desceu imediatamente, não foi? Ainda me deu tempo de datilografar um bocado...
A Sra. Llewellyn apertou os lábios e acrescentou glacial-mente:
— Se lhe é essencial saber: empoei o rosto, escovei os cabelos ao espelho de minha penteadeira. Atrasei-me... para compor-me um pouco... eu sabia que ia ser uma provação.
— E durante essa preparação espiritual, o que fazia ou dizia sua filha?
— Não dizia nada. Acendeu um cigarro e fumava...
— Nada mais? Nenhuma outra indicação de atividade?
— Deve haver cruzado as pernas ou dobrado as mãos... não prestei atenção. — A mulher falou, com um sarcasmo desmoralizador: — Oh! sim. Foi até a mesinha de cabeceira e serviu-se de um copo de água do jarro.
Vance inclinou a cabeça.
— Impulso natural. Nervoso, perturbação. Cigarros demais. Garganta seca. Sim. Tudo em ordem... — Levantou-se e inspecionou o jarro na mesinha de cabeceira entre a cama e a cadeira em que sentava a Sra. Llewellyn.
— Vazio — observou. — Estava sedenta. Sim. Ou talvez... — Ele voltou a sentar na beira do leito e pareceu meditar. — Vazio — repetiu, e balançou a cabeça pensativa-mente. — Tremendamente engraçado! Todas as garrafas de água vazias esta noite. No Cassino. No quarto da Sra. Lynn Llewellyn. E agora, aqui. Grande pobreza de água... — Olhou para cima rapidamente: — Onde, Sra. Llewellyn, é a entrada para o quarto de sua filha?
— A porta ao fim do pequeno corredor que leva do vestíbulo ao começo das escadas. — Ela inspecionava Vance com uma curiosa preocupação onde se patenteava um forte antagonismo.
Vance se dirigiu a Heath:
— Sargento, dê uma olhadela no serviço de água do quarto da Srta. Llewellyn.
Heath saiu com alacridade. Poucos minutos depois, voltou.
— Está vazia... — informou, espantado.
Vance levantou-se e, caminhando para um cinzeiro na mesinha do telefone, ali pôs o cigarro. Demorou-se, pensativamente, no fazer isso:
— Sim... sim... claro. Tinha de ser. Como eu dizia. Água, não há água em lugar algum... apenas algumas gotas para beber — o quê? O inverso do Antigo Marinheiro... — Ergueu a cabeça e novamente encarou a Sra. Llewellyn: — Quem enche os jarros?
— A criada, naturalmente.
— Quando?
— Depois do jantar, quando vai preparar as camas para a noite.
— Costuma esquecer-se?
— Nunca. Annie é muito competente.
— Bem, bem. Falarei com Annie amanhã de manhã. Questão de rotina. Agora, continue, Sra. Llewellyn: sua filha acendeu um cigarro, serviu-se de um copo dágua, e a senhora gentilmente atendeu ao nosso chamado. Depois, quando voltou...?
— Amélia continuava sentada nesta cadeira. — A mulher não movera os olhos de Vance. — Ela ainda estava fumando. Queixou-se, porém, de uma tremenda dor de cabeça acima dos olhos, e o rosto estava congestionado. Disse que toda a cabeça latejava e havia um zumbido em seus ouvidos.
Disse também que se sentia tonta e fraca. Não dei a isso maior importância, levei à conta da excitação nervosa, e disse-lhe que se metesse na cama. Disse que assim o faria — que se sentia muito mal — e então falou incoerentemente a respeito de Virgínia, e levantou-se. Apertou as têmporas com as mãos e se encaminhou para fora. Estava chegando à porta quando oscilou de um para outro lado e caiu ao chão. Sacudi-a, falei-lhe. Penso que então gritei — coisas horríveis estavam acontecendo nesta noite e eu estava esgotada. Esse cavalheiro — e indicava Heath — veio e imediatamente chamou todos vocês. Isso é tudo que tenho para dizer-lhe.
— E foi bastante... — murmurou Vance. — Muito obrigado. A senhora explicou muito bem. Perfeita descrição do desmaio de seu filho, também. Exatamente. Paralelo. Só que ele aconteceu no lado oeste da cidade... e sua filha no lado leste. Foi assim mesmo. Respiração pesada, pulso rápido demais. Porém os mesmos sintomas. Ele conseguiu safar-se bem. Sua filha o fará ainda melhor, pois teve socorros médicos imediatos...
Vagarosamente puxou a cigarreira e cuidadosamente escolheu um Régie. Acendeu-o e enviou ao teto um azul anel de fumaça.
— Imagino quem ficará desapontado com a recuperação! Imagino... Situação interessantíssima. Interessante porém trágica. Trágica mesmo... — Mergulhou nos seus sombrios pensamentos.
Kinkaid entrara no quarto e agora sentava na beira de uma mesa para fumantes.
— Está certo de que é veneno? — perguntou, com aqueles olhos de peixe fixos em Vance.
— Veneno? Sim, sim. Sintomas de excitação, naturalmente. Quando ocorre colapso, ou desmaio, por causas naturais, a pessoa reage ao ter a cabeça abaixada e cheirar sais. Isto é diferente. A mesma coisa aqui como com seu sobrinho. Com uma diferença, contudo: Lynn teve a dose maior.
O rosto de Kinkaid parecia uma máscara; quando falou novamente mal movia os lábios:
— E como um danado de um louco ainda lhe dei a beber da minha garrafa.
Vance acenou com a cabeça:
— Sim. Observei isso. Grave asneira de sua parte... falando "ex post jacto".
O mordomo tornou a aparecer na porta; falava diretamente a Vance: — Perdão, senhor. Penso que não me julgará um intrometido. Ouvi-o perguntar a respeito dos jarros dágua, e tomei a iniciativa de acordar Annie e perguntar-lhe sobre isso. Assegurou-me, senhor, que encheu todos eles ontem à noite, como de costume, quando preparara os quartos logo depois do jantar.
Vance olhou admirativamente para o pálido homem:
— Excelente, Smith! — exclamou. — Fico-lhe muito grato!
— Obrigado, senhor!
Chegou-nos o som da campainha da porta. O mordomo apressou-se a atender. Poucos momentos depois o Dr. Kane, ainda em traje de cerimônia e carregando uma valise, entrou às pressas. Estava mais pálido que da última vez que o vira, e havia sombras sob os seus olhos. Foi diretamente ao leito onde jazia Amélia inconsciente. Havia em sua expressão uma angústia muito mais pessoal que profissional.
— Sintomas de colapso — disse-lhe Vance, de pé a seu lado. — Pulso irregular, respiração arfante, palidez, etc. Estimulantes drásticos são o indicado. Primeiro cafeína — três grãos — depois digitális. Talvez a adrenalina não seja necessária... Não faça perguntas, doutor. Trabalhe rápido. Minha responsabilidade. Já passei por isso esta noite.
Kane seguiu as instruções de Vance. Senti-me deprimido, por ele, embora, na ocasião, não pudesse explicar minha atitude. Ele me impressionava como um personagem patético, um fraco dominado pela forte personalidade de Vance.
Enquanto Kane estava no banheiro preparando a injeção, Vance preparava o braço de Amélia para recebê-la. Depois que a cafeína foi administrada, Vance virou-se para nós:
— Melhor que nos retiremos todos.
— Está-me incluindo? — perguntou a Sra. Llewellyn altivamente.
— Será o melhor — disse Vance.
A mulher aquiesceu raivosamente, precedendo-nos à porta.
Pouco depois o Dr. Kane se reuniu a nós no salão.
— Ela está reagindo — falou a Vance, em voz trêmula de emoção. — O pulso está melhor e sua cor mais normal, está-se movendo um pouco e tentando falar.
Vance se levantou.
— Excelente. Ponha-a na cama, Sra. Llewellyn. E o senhor, doutor, por favor fique um pouco e dê uma olhada nas coisas. — Ele se dirigiu para a porta. — Voltaremos de manhã.
Quando saíamos, chegou o coche para levar o cadáver de Virgínia Llewellyn. A garoa acabara, mas a noite ainda estava úmida e fria.
— Caso angustiante — comentou Vance para Markham, quando deu a partida no carro, dirigindo-se à cidade. — Há algo de infernal acontecendo. Três pessoas envenenadas — uma está morta; as outras duas estão sob cuidados médicos. Quem será o próximo? Por que estamos aqui, Markham? Qual a razão de tudo? E há toda uma eternidade para se vadiar. Pensamento deprimente. Contudo... Ele suspirou. — Há uma grande escuridão. Não consigo encontrar o caminho. Há muitos obstáculos que impedem nosso trilhar. Mentiras e realidades misturadas — e apenas um caminho aberto para nós — o da fantasia, que leva ao pior crime de todos...
— Não compreendo. — Markham estava sombrio e perturbado. — Naturalmente sinto alguma influência estranha...
— Oh, é muito pior que isso — interrompeu Vance. — Estava tentando dizer que este caso é de um crime dentro de outro: espera-se que nós efetuemos o horror final. O tom básico desta macabra sinfonia deve ser que prendamos uma pessoa inocente. Toda a técnica se fundamenta numa decepção enorme. Espera-se que sigamos a aparente verdade — e não será absolutamente a verdade, mas a mentira pior e mais diabólica de uma trama muito sutil,
— Você está exagerando. — Markham tentou ser realista. — Afinal de contas, Lynn Llewellyn e sua irmã estão-se recuperando.
— Sim, sim. — Vance concordou soturnamente, sem tirar os olhos da estrada. — Houve um erro de cálculo, o que torna a história bem mais difícil de apurar.
— Acontece, porém... começou Markham, mas Vance o interrompeu impacientemente.
— Meu caro amigo! Essa é a pior parte da história. —
Acontece. Tudo acontece. Não há um esboço. O caos é geral. Acontece que Kane receitou drágeas para rinite que continham a droga que provoca os mesmos sintomas horríveis da morte de Virgínia. Acontece que Amélia estava no guarda-roupa no momento exato em que escutou o grito de Virgínia e pôde testemunhar sua morte. Acontece que Lynn e sua mulher foram envenenados praticamente ao mesmo tempo, embora estivessem em lugares opostos da cidade. Acontece que Amélia bebeu a água do jarro de sua mãe. Acontece que estavam todos em casa hoje à noite na hora do jantar e portanto tinham acesso a todos os banheiros e serviços de água. Acontece que não havia água em qualquer das garrafas, quando nós as examinamos. Acontece que Kinkaid deu a Lynn um gole de sua garrafa dez minutos antes que este desfalecesse. Acontece que eu recebi uma carta e estava presente para testemunhar o desmaio de Lynn. Acontece que o Dr. Kane foi convidado para jantar à última hora. Acontece que nós estávamos na casa quando Amélia foi envenenada. Acontece que Kinkaid chegou a casa naquele exato instante. Acontece que a carta que eu recebi estava com carimbo de Closter, Nova Jersey. Acontece...
— Um momento, Vance. Por que fez esta última observação sobre Closter?
— Acontece que Kinkaid tem uma cabana de caça nos arredores de Closter e passa muito tempo lá, embora eu ache que ele a feche fora das temporadas, como agora — esperando chegar setembro.
— Pelo amor de Deus, Vance! — Markham sentou-se ereto e inclinou-se para a frente. — Você não está insinuando...
— Meu caro amigo! — fez Vance, de modo reprovativo. — Não estou insinuando nada: apenas conjeturando, fazendo o que os psicanalistas chamam associação livre... O único ponto que estou tentando sustentar é que a vida é real, e nada há de real neste caso. É trágico — diabòlicamente trágico — mas é um drama de marionetes, e elas estão sendo cuidadosamente preparadas no cenário... com o único fito de decepcionar.
— É obra do demônio — murmurou Markham desesperançadamente.
— Sem dúvida. Um caso definido de culpa luciferiana. Uma idéia suavizante, mas fútil.
— Pelo menos — argumentou Markham — você pode eliminar a mulher de Lynn do enredo. Seu suicídio...
— Oh, meu Deus! — Vance sacudiu a cabeça. — A morte dela é a parte mais sutil e incalculável do argumento. Na verdade, Markham, não foi suicídio. Nenhuma mulher, nas circunstâncias, comete autodestruição daquela forma. Ela era atriz e vaidosa. Amélia nos explicou isso de maneira definida. Você acha que ela se teria dado uma aparência desagradável, com uma aplicação generosa de base e uma rede de cabelos, para sua última grande cena dramática na terra? Oh, não, Markham. Não. Ela fora para a cama do modo convencionalmente mais aprovado e desleixadamente doméstico, com todas as indicações de ter esperado o amanhã — por mais desagradável que pudesse ser... E por que teria gritado em desespero quando o veneno começou a agir?
— Mas o bilhete que ela deixou — protestou Markham. — Certamente isto é bastante indicador.
— Esse bilhete teria sido mais convincente — replicou Vance — se tivesse estado mais em evidência. Mas estava escondido, por assim dizer — dobrado e colocado debaixo do telefone. Esperava-se que nós o encontrássemos. Ela deveria morrer sem saber da existência dele.
Markham estava calado, e Vance continuou a falar, após um momento.
— Mas nós não deveríamos acreditar nele. É esta a parte incrível. Nós deveríamos suspeitar dele — procurar a pessoa que pudesse tê-lo escrito e colocado sob o telefone.
— Puxa, Vance! — A voz de Markham mal se fazia ouvir, devido ao ruído do motor. — Que idéia extravagante!
— Você não entende, Markham? — (Vance parará bruscamente em frente à casa de Markham). — O bilhete e a carta que recebi foram datilografados exatamente da mesma forma deficiente. Obviamente, ambos foram redigidos pela mesma pessoa: mesmo a pontuação e a margem são idênticas. Você realmente acha que uma mulher desesperada, à beira do suicídio, ter-me-ia mandado a carta que recebi?... E isto me lembra..."
Pôs a mão no bolso e, tirando a carta, o bilhete da suicida e a folha de papel em que datilografara algumas linhas na casa dos Llewellyns, passou-os a Markham.
— Você mandaria verificar isto aqui para mim? Faça com que um de seus brilhantes subordinados use lente e faça testes científicos. Apreciaria muitíssimo uma verificação oficial de que as três peças foram feitas na mesma máquina.
Markham pegou os papéis.
— Isto é fácil — disse ele, e encarou Vance com incerteza indagadora. Depois saltou do carro e parou na calçada.
— Você já pensou no que fazer amanhã?
— Oh, sim — suspirou Vance. — A vida tem um jeito de prosseguir, haja o que houver. Tudo volta a seus lugares. Uma geração vai embora, mas o sol continua surgindo. É tudo vaidade e inquietação espiritual.
— Por favor, deixe de lado o Eclesiastes por um momento — pediu Markham. — Que vai fazer amanhã?
— Telefonarei às dez, e iremos à casa dos Llewellyns. Você deve estar lá, sob a alegação do dever, etc. É triste. — Ele falava vivamente, mas a expressão do rosto não condizia com a da voz. Markham deve ter percebido sua importância.
— Acho que suportaria ter contato mais cordial com Lynn e Amélia quando eles se recuperarem. Será por conta de pesquisa. Eles serão os únicos sobreviventes, heroicamente salvos por este seu amigo.
— Muito bem — concordou Markham com acentuado desânimo. — Às dez horas, então. Mas não vejo o que você poderá conseguir interrogando Lynn e Amélia.
— Não digo que isso me levará muito longe...
— Oh, sim — resmungou Markham. — Um passo lhe basta. Eu sei. Sua piedade cristã prevê o mal que as pessoas enfrentarão... Boa noite. Vá para casa. Eu o detesto.
— Sonhe com os anjos.
O carro saiu perigosamente pela rua escorregadia, em direção à Sexta Avenida.
VIII - O ARMÁRIO DE REMÉDIOS
(Domingo, 16 de outubro — 10:00 horas)
Exatamente às dez da manhã Vance parou o carro em frente ao apartamento de Markham. O tempo tinha clareado um pouco, mas o ar ainda estava frio, e o céu encoberto. Markham estava esperando por Vance no vestíbulo. Ele estava carrancudo e impaciente, e seu olhar era perturbado. Os jornais da manhã traziam breves relatos da morte de Virgínia Llewellyn, e as manchetes eram lúgubres. Havia uma afirmação breve e sem compromisso de Heath, e meia coluna com a história da família. Não foram citados o envenenamento de Lynn Llewellyn no Cassino nem o desfalecimento de Amélia Llewellyn em casa. O sargento deve ter cuidadosamente evitado qualquer citação das duas ocorrências. Mas a história era suficientemente estranha: a própria ausência de detalhes lhe acrescentava mistério e incentivava a especulação pública. A explicação dada era de suicídio e o bilhete suicida era acentuado — embora, segundo os relatos, a polícia não tivesse divulgado seu teor. Muitas fotografias — de Virgínia, da Sra. Llewellyn e Kinkaid — acompanhavam o texto. Markham carregava os jornais amassados debaixo do braço quando saiu para a calçada.
— Caro Justiniano! — cumprimentou-o Vance. — Estou surpreso e deliciado. Você está pronto na hora. E já tomou café? Que devoção comovente aos seus deveres cívicos!
— Ademais — rosnou Markham com evidente mau humor — fiz com que um de nossos técnicos trabalhasse neste domingo e o mandei com todos os papéis datilografados para o laboratório. Tirei também Swacker{11} da cama e disse-lhe que fosse para o escritório.
Vance balançou a cabeça admirativamente.
— Estou positivamente desnorteado por suas atividades matinais.
Quando chegamos à casa dos Llewellyns, o mordomo nos abriu a porta. Heath estava no vestíbulo, parecendo sério e empertigado. Snitkin e Sullivan também estavam, fumando pausadamente e parecendo entediados.
— Alguma novidade, sargento? — perguntou Markham.
— Se o senhor quiser usar esse nome... — O sargento estava irritadiço. — Dormi três horas, e já enfrentei os repórteres. Não há qualquer pista. Estava esperando pelos senhores. — Mudou o charuto para o outro lado da boca. — Estão todos na casa. A velha desceu às oito e meia e se trancou na biblioteca.
Vance virou-se para ele.
— É mesmo? E quanto tempo ficou lá?
— Cerca de meia hora. Depois subiu de novo.
— Alguma notícia sobre a jovem?
— Acho que está bem. Eu a ouvi andando por aí e falando. O Dr. Kane chegou há meia hora. Está lá em cima com ela.
— Você já viu Kinkaid esta manhã? Heath bufou:
— Sim, eu o vi. Desceu cedo e contente. Ofereceu-me um drinque, e disse que ia sair. Eu o avisei, porém, que deveria ficar, até que eu recebesse instruções do procurador distrital.
— Ele objetou? — perguntou Vance.
— Não. Disse que não havia problema. Parecia até satisfeito. Falou que tomaria todas as providências por telefone, pediu um gim e voltou para cima.
— Gostaria de ter escutado seus telefonemas — murmurou Vance.
— Não lhe teria servido de nada — disse-lhe Heath, com um gesto de desprezo desgostoso. — Escutei no telefone daqui de baixo. Ele falou com o irmão em casa, e com o camarada chamado Bloodgood e o caixa do Cassino. Só assuntos comerciais. Não falou com nenhuma mulher.
— Nenhum chamado interurbano? — perguntou Vance de modo casual.
Heath tirou o charuto da boca e olhou-o astutamente:
— Sim... um. Ele ligou para um telefone de Closter.
— Ah!
— Mas não houve resposta, e ele desligou.
— Isto me decepciona muito — comentou Vance. — Você se lembra do número?
Heath deu um sorriso triunfante.
— Claro. E descobri tudo sobre ele. É da velha cabana de caça que ele tem nos arredores de Closter.
— Ótimo! — Vance fez um sinal de aprovação. — Houve algo mais, sargento?
— O rapaz chegou há mais ou menos vinte minutos.
— Lynn?
Heath confirmou com a cabeça, indiferentemente.
— Parecia bem tonto, mas está longe de ter outra coisa mais séria. Quis até brigar comigo e Snitkin. — O sargento sorriu amargamente. — Acho que ele não sabia das notícias; embora, julgando pelo que andei escutando, ele não se fosse mesmo importar. Não lhe contei nada — disse-lhe simplesmente que era melhor que ele subisse para falar com a mãe. Isto é tudo que houve.
Vance sacudiu tristemente a cabeça:
— Você não me está ajudando muito, sargento. E eu tinha esperanças. Porém... — Ele olhou para Markham e suspirou pensativamente. — Estamos condenados ao papel do castor — trabalho e mais trabalho. Vamos falar com Lynn e Amélia, mas primeiro acho que vou dar mais uma olhada no quarto de Virgínia. Talvez algo tenha passado despercebido. — Subiu as escadas, e Markham e eu o seguimos.
Quando nos aproximamos do lance superior, chegou-nos o som histérico de uma voz, vindo do quarto de Virgínia, embora não pudéssemos distinguir as palavras. Quando chegamos ao vestíbulo de cima, deparamos com a cena trágica. Pela porta aberta no fim do corredor pudemos ver a Sra. Llewellyn sentada em uma cadeira perto da cama e Lynn ajoelhado à sua frente. Olhava excitadamente para a mãe e lhe agarrava os braços. A cabeça da mulher pendia para a frente e a mão estava no ombro do filho. Ambos estavam de lado, e parece que não deram conta de nossa presença próxima.
A voz alta e soluçante de Lynn nos chegava agora distintamente:
— Querida! — gritava ele. — Diga-me que não foi você! Por Deus, diga que não foi você! Você sabe que eu a amo... mas não queria isso! Você não é culpada, é? — A agonia em sua voz me deu um arrepio.
Vance pigarreou para que eles notassem nossa presença, e ambos voltaram as cabeças rapidamente para nós. Lynn ergueu-se e saiu do nosso alcance. Quando entramos no quarto, ele estava perto da janela da frente, com as costas para nós. A Sra. Llewellyn não havia deixado a cadeira, mas se sentara eretamente, e acenou formalmente quando entramos.
— Sentimos intrometer-nos, senhora — disse Vance, com uma reverência, — Mas, segundo o que nos contou o sargento Heath, esperávamos que este quarto estivesse desocupado. De outra forma, teríamos pedido que nos anunciassem.
— Não importa — replicou a mulher. — Meu filho quis vir aqui, por alguma razão mórbida. Acaba de saber que sua mulher morreu.
Lynn estava agora de frente para nós. Os olhos, convulsos e vermelhos; e ele tentou limpar a evidência de lágrimas recentes.
— Perdoem-me, senhores — desculpou-se, com uma inclinação para Vance. — A notícia foi um choque terrível. Estou muito... muito nervoso, e fora de mim.
— Sim, claro. Nós entendemos — disse Vance. — Um assunto trágico. E eu estava no Cassino a noite passada. O senhor recebeu um grande choque. Sua irmã teve experiência semelhante aqui, a noite passada. Ainda bem que estão ambos salvos.
Lynn fez um gesto vago com a cabeça e olhou em volta, com olhos esgazeados.
— Não... não posso entender — murmurou.
— Estamos aqui para fazer o possível — disse-lhe Vance. — Vamos querer conversar com o senhor mais tarde. Nesse meio tempo, o senhor se importaria em esperar em outro lugar? Temos de examinar umas coisas antes.
— Esperarei no salão. — Dirigiu-se pesadamente para a porta, e, quando passou pela mãe, deu-lhe um olhar patético, que ela devolveu inexpressivamente.
Quando ele deixou o quarto, a Sra. Llewellyn se virou para Vance.
— Lynn — disse, com um sorriso triste — praticamente me acusou de responsável pelos acontecimentos trágicos da noite passada.
Vance fez um gesto de compreensão.
— Lamento que sem querer tenhamos ouvido algumas das coisas que ele lhe disse. Mas a senhora não se deve esquecer que ele está fora de si hoje.
A mulher não pareceu ter ouvido o que Vance dissera.
— Claro — explicou ela — que Lynn não acredita nas terríveis insinuações que fez. O pobre está sofrendo muito. Tudo foi um grande choque para ele, que busca cegamente uma explicação. Ele teme vagamente que eu seja responsável. Queria poder ajudá-lo; ele está mesmo sofrendo. — Apesar da profunda preocupação que suas palavras indicavam, a voz era áspera e artificial.
Vance a contemplou um instante. As pálpebras lhe caíram sobre os olhos, emprestando-lhe uma expressão lânguida.
— Compreendo perfeitamente o que sente — disse — mas por que seu filho suspeitaria da senhora?
A Sra. Llewellyn hesitou antes de responder, depois os músculos faciais enrijeceram, como se afetados por uma decisão súbita e angustiante.
— Acho que devo dizer-lhe que fiz cerrada oposição a que se casasse com Virgínia. Não gostava dela — ela não o merecia. Talvez eu tenha sido franca demais em minhas observações a ele; temo que ainda não tenha dominado meus sentimentos a esse respeito. Contudo, não podia disfarçar, em assunto tão vital para a felicidade de meu filho. — Apertou os lábios e continuou. — Pode ser que ele tenha interpretado mal minha atitude, e levado meus comentários mais a sério do que eu intencionava.
Vance fez um gesto discreto com a cabeça.
— Entendo o que quer dizer — murmurou. Depois acrescentou, sem deixar de encarar a mulher: — A senhora e seu filho são excepcionalmente unidos.
— Sim. — Ela concordou, com um olhar abstraído. — Ele sempre dependeu de mim.
— Um caso de fixação materna, talvez — sugeriu Vance.
— Pode ser. — Ela olhou para o chão e disse, após um momento: — Isto justificaria seus temores e desconfianças em relação a mim.
Vance dirigiu-se à lareira:
— Sim, esta poderia ser uma explicação, mas não vamos entrar agora nessa possibilidade. Mais tarde, talvez. Entretanto...
A mulher ergueu-se vigorosamente.
— Estarei no meu quarto, se o senhor quiser falar comigo novamente. — Deu largas passadas em direção à porta e a fechou, após sair.
Vance contemplou a ponta do cigarro meditativamente:
— Qual o significado de todos os detalhes íntimos? Ela não estava nada preocupada consigo mesmo, e na verdade parecia até contente que tivéssemos surpreendido Lynn histérico e de joelhos. Será... Doloroso e intrigante, Markham. — Levantou a cabeça e examinou o quarto. — Vejamos se encontramos algo novo. Qualquer coisa. A mais leve sugestão. Os antecedentes do caso são, todos, nebulosos. Para dizer a verdade, Markham, não sei nada. Minha mente está totalmente desorientada. Tenho certas suspeitas, porém...
Encaminhou-se para a penteadeira e estudou os inúmeros cosméticos.
— Os artigos comuns — murmurou, abrindo a gaveta e olhando-a. — Sim, tudo normal. Sombras de olho, máscara, lápis de sobrancelha — todos os acessórios da vaidade. Que não foram usados a noite passada. Isto indica, como disse, morte inesperada e não premeditada. Fechou a gaveta e foi para a lareira, parando em frente de uma prateleira com livros. — Novelas francesas de variedade barata. A senhora tinha horrível gosto literário. — Pegou o antiquado relógio de porcelana que estava em cima da lareira. — Com corda — e certo. — Inclinou-se para dentro da lareira. — Nada — queixou-se. — Nem uma ponta de cigarro. — Moveu-se pelo quarto, observando cuidadosamente todos os itens de mobiliário e decoração, e finalmente parou ao pé da cama. — Acho que nada aqui nos ajudará, Markham. — Fumou por um segundo, e virou-se para o fundo do quarto, sem entusiasmo. — O banheiro, uma vez mais — suspirou. — Só por precaução...
Foi até o banheiro e lá passou algum tempo, reinspecionando o armário de remédios. Quando voltou ao quarto, seu olhar estava perturbado.
— Que estranho! — murmurou para ninguém em especial. Depois levantou a vista para Markham. — Juraria que alguém andou mexendo nos vidros de remédio desde que eu os examinei a noite passada.
Markham não se impressionou.
— Por quê? — perguntou impacientemente. — E, mesmo se fosse verdade, que importância teria?
— Não sei responder a nenhuma de suas perguntas — replicou Vance. — Mas a noite passada gravei uma imagem nítida dos — como direi? — esboços dos vidros, caixas e tubos do armário — certo equilíbrio de disposição dos ângulos e planos, tal como num quadro de Picasso. E agora as proporções e relacionamentos das linhas e quadrados não são os mesmos. Há uma leve distorção dos valores da noite passada: é como se alguma força tivesse sido removida ou alguma forma linear acentuada — o quadro foi modificado de alguma forma. Mas aparentemente não falta nada no armário — chequei cada item. — Deu uma tragada funda no cigarro. — Contudo, há diferença — uma marca de creiom ou uma rasura em algum lugar.
— Parece oculto — murmurou Markham.
— Ouso dizer que sim — concordou Vance. — Provavelmente. De qualquer forma, não gosto disso. Perturba minha sensibilidade estética. — Deu de ombros e voltou à cabeceira da cama.
Ficou algum tempo examinando a mesinha de cabeceira, com um cinzeiro, telefone e abajur de seda. Puxou, então, lentamente a gavetinha.
— Que é isto? — Subitamente tirou de lá um revólver de aço. — Ele não estava aí a noite passada, Markham. Surpreendente! — Estudou o revólver e o devolveu cuidadosamente ao mesmo lugar.
Markham estava mais animado.
— Tem certeza de que não estava aí ontem, Vance?
— Claro. Não é miragem.
— Mesmo assim — disse Markham, com jeito impaciente — que ligação poderá ter com os envenenamentos?
— Não tenho a mínima idéia — reconheceu Vance calmamente. — Contudo, tem interesse acadêmico. Vamos descer e conversar com o infeliz Lynn.
IX - ENTREVISTA PENOSA
(Domingo, 16 de outubro — 10:30 horas)
Ao entrarmos no salão, Lynn estava estirado numa confortável poltrona, fumando cachimbo. Ao nos ver, levantou-se com aparente esforço e caminhou pesadamente para a mesa de centro.
— Que fizeram, afinal? — perguntou roucamente, os olhos turvos indo de um a outro de nós.
— Por enquanto, nada — Vance mal dava atenção ao homem e se encaminhou para a janela da frente. — Esperamos que possa ajudar-nos.
— Tudo que quiserem... — Llewellyn moveu o braço num gesto de dócil complacência. — Mas não vejo em que lhes possa ser útil... Nem sequer sei o que me aconteceu na noite passada. Aposto que estava ganhando muito. — Seu tom se tornara amargo, e havia um ricto sarcástico em seus lábios.
— Quanto ganhou? — perguntou Vance com naturalidade, e sem se voltar.
— Mais de trinta mil. Meu tio me disse, esta manhã, que os guardara no cofre para mim. — Os músculos da mandíbula tremeram: — Mas quero quebrar aquela danada banca.
— A propósito — Vance voltou para o centro da sala e sentou-se junto à mesa — notou algum sabor peculiar no uísque ou na água que bebeu ontem à noite?
— Não, não senti. — A resposta veio sem hesitação. i— Pensei nisso esta manhã... tentei recordar... mas nada havia de errado, tanto quanto me lembro... embora, na ocasião, eu estivesse muito excitado — acrescentou.
— Sua irmã bebeu um copo dágua no quarto de sua mãe, na noite passada — continuou Vance — e teve um colapso com os mesmos sintomas que você mostrou.
Lynn acenou que sim:
— Sei. Mas não posso imaginar a coisa. Tudo é um pesadelo...
— Exatamente isso — concordou Vance. Então, após uma pausa, relanceou o olhar para cima: — Ouça, Sr. Llewellyn, ocorreu-lhe que sua esposa possa haver cometido suicídio?
O rapaz parou de repente e, dando uma volta, fixou Vance, espantado:
— Suicídio?... não... não... não tinha razão para isso... — Interrompeu-se de súbito. — Mas nunca se pode saber — resumiu numa voz forçada, reprimida. — Pode ser, claro. Não havia pensado nisso... Realmente pensa que foi suicídio?
— Achamos uma nota a respeito — respondeu Vance, calmamente.
Por um momento, Llewellyn nada disse. Deu alguns passos para a frente: depois voltou e sentou na mesma poltrona em que o havíamos encontrado.
— Posso ver essa nota? — perguntou, lentamente.
— Não a temos conosco agora. — Vance falou de modo simples. — Eu a mostrarei mais tarde. Está datilografada — dirigida a você — e fala de sua infelicidade aqui, e da bondade de seu tio para com ela. E lhe deseja a melhor sorte na roleta. Isso foi tudo. Cuidadosamente dobrada debaixo do telefone.
Llewellyn não fez um só movimento. Olhava em frente, sem qualquer comentário ou indicação facial sobre o que pensava. Finalmente Vance tornou a falar:
— O senhor possui um revólver, Sr. Llewellyn? — perguntou.
O homem ficou rígido na cadeira e olhou para Vance interrogativamente:
— Sim, tenho, mas não vejo a relação...
— E onde costuma guardá-lo?
— Na gaveta da mesa de cabeceira, perto da cama. Já tivemos uns dois sustos com ladrão.
— Não estava na gaveta a noite passada.
— Naturalmente. Eu o tinha comigo. — Llewellyn examinava Vance, com o cenho carregado.
— O senhor sempre o leva quando sai? — perguntou Vance.
— Não — raramente. — Mas geralmente o carrego quando vou ao Cassino.
— Por que o senhor ressalta o Cassino especialmente?
Llewellyn parou antes de responder, e subitamente lhe veio um olhar de animosidade.
— Nunca sei o que me pode acontecer lá — disse finalmente, entre dentes cerrados. — Meu tio e eu não nos adoramos exatamente. Eu gostaria de ficar com o dinheiro dele, e ele com o meu. Para lhe ser franco: não confio nele. E os acontecimentos da noite passada podem ou não justificar minha desconfiança. De qualquer modo, tenho minha teoria sobre o acontecido.
— Não lhe pediremos que a exponha agora, Sr. Llewellyn — replicou friamente Vance. — Também tenho idéias. Não adianta confundir o assunto com especulações. Então o senhor levou o revólver para o Cassino e depois o recolocou na gaveta da mesinha de cabeceira hoje de manhã: é isto?
— Sim. Foi exatamente o que fiz. — Llewellyn tinha um tom agressivo.
Markham fez uma pergunta:
— O senhor tem licença de arma?
— Naturalmente. — Llewellyn sentou no fundo da cadeira.
Vance levantou-se novamente e o encarou.
— E o Sr. Bloodgood? — perguntou. — Ele representa outra razão para seus temores?
— Confio nele tanto quanto em Kinkaid... se é isso que o senhor quer saber — retrucou o homem firmemente. — Ele é dominado por Kinkaid. Faria qualquer coisa que meu tio lhe mandasse. É frio como um peixe, e ganharia muito se pudesse jogar as cartas como deseja.
Vance fez um gesto de entendimento.
— Sim... certo. Vejo o que quer dizer. Sua mãe praticamente nos disse que ele quer casar com sua irmã.
— É verdade. E por que não? Seria um grande "golpe do baú".
— Sua mãe nos disse também que sua irmã repetidamente recusou-lhe os pedidos de casamento.
— Isto não quer dizer nada. — Havia certo tom de amargura na voz. — O entusiasmo de Amélia pela arte não é muito grande. Ela está apenas temporariamente entediada com a vida. Vencerá a face e se casará com Bloodgood com o tempo. Em sua maneira superficial e fria, ela gosta dele. Lynn fez uma pausa e acrescentou com desdém: — Esses dois fariam uma ótima combinação.
— Comentários esclarecedores — murmurou Vance. — E o jovem Dr. Kane?...
— Oh, ele não conta. Tem sérias intenções para com Amélia, e sempre será seu escravo. Ela acha isso ótimo e ocasionalmente o encoraja.
— Uma família patética — comentou Vance. Llewellyn não se ofendeu. Deu um ligeiro sorriso e disse:
— Exatamente. Como todas as famílias antigas com dinheiro demais e sem objetivos, a não ser instilar ódio e armar tramas.
Vance olhou para Lynn com curiosidade vaga, quase patética:
— O senhor conhece alguma coisa sobre veneno? — perguntou inesperadamente.
O homem deu um sorriso sem graça: a pergunta não o impressionou muito.
— Não — disse, rapidamente. — Mas evidentemente alguém por aqui sabe muito sobre veneno.
— Há muitos volumes extensos sobre o assunto na pequena biblioteca — fez Vance, com um gesto de mãos.
— O quê? — Lynn parecia surpreso. — Livros sobre veneno... aqui? — Encarou Vance alguns instantes, depois se afundou ainda mais na cadeira e começou a mexer o cachimbo.
— O fato o surpreende? — A voz de Vance era suave.
— Não, não, claro que não — respondeu Lynn, quase inaudivelmente. — Só por um instante, mas depois me lembrei do interesse científico de meu pai... provavelmente alguns de seus livros velhos...
A testa de Lynn estava franzida: os olhos se estreitaram, em intensa especulação. Dava a impressão de estar tendo suspeitas desagradáveis, e se manteve quase rígido.
Sem parecer fazê-lo, Vance o observou por vários instantes antes de falar.
— Isso é tudo agora, Sr. Llewellyn — disse polidamente. — O senhor pode subir. Se precisarmos falar-lhe de novo, o avisaremos. É melhor que o senhor hoje repouse. Perdoe-me por havê-lo aborrecido com a citação dos tratados de toxicologia.
O homem se erguera e já estava à porta.
— O senhor não me aborreceu — disse, parando. — Kane é médico, Bloodgood formou-se em química na Universidade, e Kinkaid escreveu um capítulo inteiro sobre venenos orientais em um de seus livros de viagem...
— Sim, entendo perfeitamente — interrompeu Vance impacientemente. — Eles não precisariam recorrer aos livros, claro. E se os livros foram usados como fonte de informação para o que aconteceu aqui ontem, isto poderia limitar as coisas ao senhor, sua mãe e sua irmã. E o senhor e sua irmã foram vítimas do enredo, de modo que resta sua mãe como a pessoa que poderia ter usado os livros. Foi isto o que o senhor pensou?
Lynn fez um movimento agressivo.
— Não, nada disso! — protestou vigorosamente.
— Enganei-me — murmurou Vance, com uma nota curiosa de solidariedade na voz. — Eu quis dizer o seguinte, Sr. Llewellyn: por alguma razão, o senhor mexeu no armário de remédios esta manhã?
O homem balançou a cabeça.
— Não, tenho certeza que não.
— Não importa. Alguém mexeu. — Vance voltou à cadeira, e Lynn, com um encolher de ombros, saiu do aposento.
— O que é que você acha dele, Vance? — perguntou Markham.
— Ele está sofrendo. — Vance suspirou pensativamente. — Cheio de idéias mórbidas, e se preocupando abominavelmente com a "mama". Caso triste...
— Ele disse ter uma teoria sobre o ocorrido a noite passada. Por que você não quis que ele a expusesse?
— Teria sido muito cruel, revelar seu estado de espírito. Já não agüento a situação como está, e não vou suportar muito mais, Markham. Quero ir embora, ver o sol, Papai Noel, comer linguado, escutar Beethoven...
X - O RELATÓRIO POST-MORTEM
(Domingo, 16 de outubro — 11:15 horas)
O sargento Heath surgiu à porta.
— O jovem doutor está descendo. O senhor quer vê-lo? Vance hesitou, depois fez que sim.
— Sim, peça-lhe que entre, sargento.
Heath desapareceu, e um momento mais tarde o Dr. Kane entrou no salão. O rosto estava abatido e perturbado, como se ele não tivesse descansado, mas não havia apreensão em seu olhar. Seus modos eram quase cordiais quando nos cumprimentou.
— Como está sua paciente? — perguntou-lhe Vance.
— Praticamente normal, senhor. Fiquei aqui umas duas horas depois que os senhores saíram a noite passada, e a Srta. Llewellyn repousava calmamente quando fui embora. Naturalmente, ela está fraca e muito nervosa, mas o pulso, respiração e pressão estão normais.
— O senhor tem idéia, doutor, — perguntou Vance — da droga que causou o problema à Srta. Llewellyn?
O Dr. Kane apertou os lábios e olhou para o vácuo.
— Não — ele replicou afinal — embora seja lógico que eu tenha pensado muito sobre o assunto. Ela estava com os sintomas normais de colapso — nada há de diferente sobre eles — e há, evidentemente, muitas drogas que, terapeuticamente falando, poderiam tê-los produzido. Uma dose excessiva de qualquer soporífero com barbitúricos poderia tê-los motivado. Mas, o senhor deve entender que não posso afirmar uma opinião. Tenciono pesquisar um pouco sobre o assunto assim que voltar ao consultório.
Vance não insistiu. Deixou que o médico se fosse e mandou chamar o mordomo.
Smith estava imperturbável como sempre e o rosto pálido.
— Diga, por favor, à Srta. Llewellyn — falou Vance — que gostaríamos de falar-lhe, no seu quarto ou no salão — como lhe for mais conveniente.
O mordomo se inclinou e saiu. Quando voltou, informou que a Srta. Llewellyn nos receberia no quarto, e subimos.
A moça estava numa espreguiçadeira, vestida com pijamas japoneses cuidadosamente bordados. A seu lado havia um pequeno tamborete de laça vermelho, no qual se viam um estojo de cigarros, algumas revistas de arte e uma cigarreira de prata, cujo desenho imitava Mercúrio. Ela nos cumprimentou e fez uma tentativa cínica de sorriso.
— Sua visita, segundo depreendi pelo Dr. Kane, por pouco não era feita no necrotério...
— Estamos encantados — disse Vance seriamente — de encontrá-la melhor.
— Mas alguém — disse amargamente — por certo não encarará minha recuperação sob luz tão favorável. — Ela deu
de ombros e fez uma careta. — Estou começando a sentir-me como uma visitante do castelo dos Bórgias. Hoje de manhã fiquei apavorada ao tomar café.
Vance fez um gesto de compreensão.
— Duvido que a senhorita precise temer mais. Algo andou totalmente errado a noite passada. O envenenador deve ter-se confundido com as coincidências imprevistas. E na ocasião em que ele se tiver reorganizado e planejado outra campanha, esperamos já ter a situação sob controle. Pelo menos sabemos onde buscar indícios.
Amélia Llewellyn fez um olhar inquisitivo e todo traço de cinismo desapareceu-lhe do rosto.
— Parece — observou — que o senhor sabe mais do que diz.
— Bem, é verdade. Bem mais, porém não o suficiente. Não perco as esperanças... Já viu seu irmão? Está totalmente recuperado, e ficou pior do que a senhorita.
— Sim — comentou a moça. — Somos dois fracassos. É bem nosso, isso. Estamos sempre desapontando alguém.
— Espero — disse Vance — não a desapontar neste caso. No meio tempo, a senhorita se importaria se eu olhasse no seu armário de roupas e fizesse uma pequena experiência lá?
— Claro que não! — Ela moveu o braço de forma engraçada, para uma porta à sua esquerda.
Vance foi até ela e a abriu. O espaço existente, conforme ela nos explicara a noite passada, era uma passagem antiga que ligara os dois quartos principais da ala sul da casa. Havia uma sapateira e um pequeno armário à direita, e à esquerda estavam pendurados vários vestidos e casacos. Na metade da passagem permanecia uma pia de tampo de mármore. Na outra extremidade do armário improvisado havia outra porta. Vance a abriu, e vimos o grande quarto onde Virginia Llewellyn havia sido assassinada.
Vance voltou até nós e me disse:
— Van, vá ao outro quarto, feche as portas e fique ao lado da cama. Então me chame em voz bastante alta. Quando você me escutar bater na porta mais afastada, chame-me novamente, no mesmo tom de voz.
Passei pelo guarda-roupas para o quarto mais longe e, de pé ao lado da cama onde morrera Virginia, dei um grito. Após instantes, escutei a batida de Vance na porta, e gritei novamente. Então Vance abriu a porta.
— É só, Van. Obrigado.
Quando voltamos ao quarto de Amélia, a moça olhou ironicamente para Vance.
— O que, Sr. Lecop, aprendeu? — perguntou ela.
— Só que a senhorita nos disse a verdade sobre as possibilidades acústicas entre os dois quartos — retrucou Vance. — Não pude escutar o Sr. Van Dine com ambas as portas fechadas, mas o ouvi perfeitamente quando estava no armário de roupas.
A moça deu um suspiro dramático.
— Que bom minha verdade ter sido comprovada uma vez. A principal crítica que minha mãe me faz é que eu prefiro mentir a dizer a verdade.
— Falando de sua mãe — Vance sentou-se e contemplou a moça com olhos graves — quero que a senhorita nos diga como veio beber o copo d'água no quarto de sua mãe a noite passada.
Amélia tornou-se séria rapidamente, à vista do tom de Vance.
— Como é que se toma um gole d'água? Só sei que tive sede e instintivamente peguei a garrafa que estava ao meu alcance. Ia esperar lá que mamãe voltasse. Estava naturalmente nervosa e queria falar com alguém...
— Notou gosto estranho na água?
— Não, parecia normal.
— Quanta água havia no jarro?
— Mal dava para encher um copo. Lembro-me vagamente de ter desejado que houvesse mais. Mas tive preguiça e não me levantei. Quando mamãe voltou, eu estava com uma enxaqueca tremenda, meus ouvidos zuniam, e me sentia terrivelmente fraca. Minha cabeça estava confusa, e me levantei para ir para meu quarto. É tudo de que me lembro.
— A senhorita se lembra perfeitamente de quando sua mãe voltou ao quarto?
— Oh, sim. Nós nos dissemos algo... não sei o quê. Provavelmente me queixei da dor da cabeça... mas tudo rodava à minha volta.
— Quando a senhorita teve sede, mencionou o fato à sua mãe?
A moça pensou um momento, depois respondeu:
— Não. Mamãe estava na penteadeira, embelezando-se para falar com os senhores. Acho que não nos falamos na ocasião. Eu apenas me servi da água do jarro, e mamãe saiu imponentemente do quarto.
— E a água da sua garrafa na noite passada? — perguntou Vance. — A empregada disse que a encheu, mas enquanto a senhorita estava inconsciente no quarto de sua mãe, inspecionamos sua garrafa e ela estava vazia.
— Sim, eu sei que estava. Bebi toda a água que ela continha enquanto desenhava, antes de passar mal. — Os olhos se arregalaram. — Minha água também estava envenenada?
Vance balançou a cabeça.
— Não, não seria possível. Passou muito tempo depois que a senhorita a bebeu. A senhorita teria sentido os efeitos do veneno no máximo em meia hora...
Vance virou-se rapidamente e dirigiu-se para a porta do vestíbulo. Torceu a maçaneta cuidadosamente e logo a abriu. No corredor, estava Richard Kinkaid.
Nem um músculo se moveu para demonstrar que a rápida ação de Vance o desconcertara. Tirou o cigarro rapidamente da boca e fez uma reverência formal.
— Bom dia, Sr. Vance — disse com voz fria. — Desci para saber de minha sobrinha, mas, quando ouvi vozes no quarto, achei que o senhor e o Sr. Markham poderiam estar aqui, e não quis perturbá-los. Mas evidentemente o senhor me escutou...
— Sim, escutei alguém se mexer do lado de fora da porta. — Vance ficou de lado. — Estávamos fazendo algumas perguntas à Srta. Llewellyn, mas já terminamos. Ela melhorou muito esta manhã.
Kinkaid entrou no quarto e, após cumprimentar a sobrinha com uma ou duas frases convencionais, sentou-se.
— Alguma novidade? — indagou, lançando a Vance um olhar calculista e arguto.
— Oh, uma porção — disse Vance. — Estamos juntando as peças, mas é cedo para nos alegrarmos. Contudo, estou satisfeito de que o senhor tenha chegado. Queria perguntar-lhe o endereço de Bloodgood. Estamos ansiosos para conversar com ele.
O queixo de Kinkaid endureceu, e o olhar era inamistoso. Mas não havia outra indicação de que ele estivesse surpreso pelas observações de Vance.
— Bloodgood mora no Hotel Astoria, na Rua 22 — disse, e lentamente sacudiu as cinzas do cigarro no cinzeiro. — Contudo — acrescentou, com ligeiro tom de desprezo — o senhor está batendo na porta errada. Mas prossiga e o interrogue, por favor. Ele ficará o dia todo no hotel — acabei de falar-lhe. Mas o senhor estará perdendo seu tempo... Bloodgood é uma pessoa digna.
— Realmente, não conheço o fulano muito bem — murmurou Vance. — Mas como foi ele que pediu água simples para Lynn ontem à noite no Cassino, talvez seja interessante saber suas opiniões sobre o assunto.
Amélia, que visivelmente enrijecera ao ouvir o nome de Bloodgood, levantou-se e olhou desafiadoramente para Vance.
— O que o senhor quer dizer? — perguntou. — O senhor acusa o Sr. Bloodgood de haver dado o veneno a Lynn?
— Cara senhorita!
— Porque, se o senhor está tentando fazer isso, — prosseguiu a moça em tom zangado — posso dizer-lhe exatamente o responsável por tudo que aconteceu a esta família a noite passada.
Vance a olhou calmamente, e o tom de sua voz era igual ao dela — Quando a verdade for conhecida, Srta. Llewellyn — disse — seu testemunho não será necessário. — Inclinou-se formalmente para ela e para Kinkaid, e saímos.
Quando estávamos para descer ao andar principal, Vance hesitou e dirigiu-se ao quarto da Sra. Llewellyn.
— Há um pequeno assunto que quero mencionar à dona da casa antes de sairmos — explicou a Markham, quando bateu à porta.
A Sra. Llewellyn nos recebeu de mau grado, e seus modos eram de acentuado antagonismo.
Vance pediu desculpas por perturbá-la.
— Quero simplesmente informá-la, por ser de seu interesse, que seu filho pareceu muito perturbado quando lhe comuniquei sobre os volumes de toxicologia da biblioteca. Ele deu a impressão de não saber dessa existência.
— E por que isso me interessaria? — retrucou a mulher com desdém. — Meu filho não lê muito — suas necessidades literárias são inteiramente satisfeitas pelo teatro. Duvido que ele saiba qualquer dos títulos dos livros que o pai lia. Nada lhe interessaria menos que a pesquisa científica. Portanto, sua perturbação com a existência de livros sobre venenos nesta casa é, eu lhe afirmo, perfeitamente natural, dada a experiência por que passou a noite passada.
Vance fez um gesto como se estivesse satisfeito com a explanação.
— Isso é muito possível — ele murmurou. — E talvez a senhora nos possa dar explicação tão colorida para o fato de haver passado parte da manhã na biblioteca.
— Então estou sendo espionada! — A frase foi dita com indignação, mas a mulher mudou rapidamente de atitude. Os olhos se contraíram e um sorriso maroto apareceu-lhe nos lábios. — A insinuação de suas palavras é, suponho, que eu tenha estado consultando os livros sobre venenos.
Vance esperou, e a mulher continuou.
— Bem, foi isso mesmo que eu fiz. Se lhe puder ajudar: estive procurando uma droga comum que pudesse justificar o estado de meus filhos ontem à noite.
— A senhora encontrou essa referência?
— Não, não achei.
Vance deixou o assunto por aí. Despediu-se e acrescentou.
— Não haverá mais espionagem... por algum tempo, pelo menos. A polícia será retirada de sua casa, e a senhora e sua família estão livres para se locomover como desejarem.
Quando descemos, Markham levou Vance ao salão.
— Veja, Vance — perguntou com preocupação — você não está sendo um pouco apressado?
— Caro Markham — Vance repreendeu-o — eu nunca me apresso. Nunca me precipito, sou sempre cauteloso. Preciso ter razões para tudo. E tenho excelentes razões para temporariamente retirar a supervisão da casa dos Llewellyns.
— Ainda assim — resmungou Markham. — Não gosto da situação aqui, e acho que deveria ser vigiada.
— Uma grande idéia, mas que não será útil. — Vance olhou pensativamente para Markham. — Vigiar não nos adiantará. Fui convidado a assistir ao desfalecimento de Lynn. E todos nós estávamos na casa ontem à noite quando Amélia foi atacada. Acho que não se pode esperar que todos os membros da família Llewellyn tenham um guarda-costas indefinidamente.
Markham estudou Vance detidamente, como se tentando ler o pensamento do outro.
— Achei estranho Amélia haver dito que sabia quem era o responsável pelo caso todo. Você acredita nela?
— Oh, meu caro Markham! — Vance suspirou — É cedo demais para começar a acreditar em alguém. Nossa única esperança é o cepticismo total. A dúvida honesta é muito eficiente às vezes. Dá à mente uma oportunidade de agir livremente.
— Não obstante — observou Markham irritadamente, — você está pensando em algo definido, ao querer que a polícia se retire.
— Não, não — retrucou Vance e sorriu. — Estou apenas tateando. E quero ver o relatório post-mortem. Isto, pelo menos, será definido. Pode ser que nos revele algo.
Markham cedeu relutantemente.
— Muito bem. Instruirei Heath para que se retire temporariamente e mande os rapazes para casa.
— E diga-lhe para apanhar nosso crupiê no Astoria e o traga a nosso escritório — disse Vance. — Estou ansioso para "torrá-lo", como diriam vocês, promotores públicos. E acho que os arredores judiciais e deprimentes do edifício do Tribunal poderiam ter o efeito psicológico desejado.
— Que espera saber dele?
— Nada... positivamente, nada — replicou Vance, e acrescentou: — Porém, mesmo a negativa pode ser útil. Tenho uma sensação de que este caso será resolvido por uma pista insignificante.
Markham resmungou, e saímos para o vestíbulo onde o sargento esperava desanimadamente.
Dez minutos mais tarde Vance, Markham e eu seguíamos para a cidade, após Heath haver sido instruído sobre o que Vance solicitara.
Logo que entramos no velho mas espaçoso escritório do procurador distrital, Markham chamou Swacker e indagou-lhe sobre o laudo do Dr. Doremus e sobre o relatório referente aos espécimes de datilografia que haviam sido enviados ao laboratório científico.
— O relatório do laboratório chegou — disse-lhe Swacker, apontando um envelope fechado na escrivaninha — mas o Dr. Doremus telefonou às onze para dizer que o laudo da autópsia está atrasado. Telefonei há dez minutos, e um dos assistentes me informou que o laudo está a caminho. Eu o trarei logo que ele chegue.
Markham mexeu com a cabeça, e Swacker saiu.
— Atrasado, hem? Por quê? — reclamou Vance. — Não deve ter havido problema. Indicou-se que o envenenamento fora por beladona, o toxicologista sabia o que procurar. Será... No meio tempo, vejamos as informações do bravo rapaz da lente.
Markham já havia aberto o envelope. Colocou as três amostras da datilografia em um lado e examinou o relatório que as acompanhava. Depois de alguns momentos, ele também o largou.
— Exatamente o que você suspeitava — disse para Vance sem entusiasmo. — A datilografia foi feita na mesma máquina, e dentro de período razoável de tempo — isto é, a tinta da fita estava na mesma fase de desgaste, e não se pode dizer com certeza que papel foi escrito primeiro. Também o bilhete da suicida e a carta que você recebeu foram provavelmente datilografados pela mesma pessoa. Especificações de pressão e pontuação e as consistências dos erros quando as letras eram batidas são as mesmas em ambos. Há muitos detalhes técnicos, mas esses são os principais. — Ele apanhou o relatório e o entregou a Vance. — Você quer vê-lo?
Vance fez um gesto negativo com a mão.
— Não, só ansiava pela comprovação. Markham se inclinou para a frente.
— Olhe aqui, Vance, qual a importância desses dois documentos datilografados? Considerando que a moça não se matou, qual teria sido o objetivo da pessoa que a envenenou, ao lhe mandar a carta?
Vance ficou sério.
— Na verdade, Markham, não sei. — Andava para cima e para baixo enquanto falava. — Se a carta e o bilhete tivessem sido datilografados por duas pessoas diferentes, a coisa seria comparativamente fácil. Simplesmente significaria que alguém planejara envenenar a moça de modo a parecer um suicídio e que outra pessoa, com um palpite que fora assassinato, me mandara um bilhete dramático de socorro. Nessa circunstância, duas conclusões seriam obtidas: primeira, que o escritor da carta anônima temia que Lynn fosse a vítima; e segunda, que o escritor suspeitava que o próprio Lynn desejava assassinar a mulher e queria que eu o vigiasse...
— E ambos foram vitimados — interrompeu Markham sombriamente. — De modo que essa hipótese não nos leva a lugar algum. De qualquer forma, é só uma especulação, baseada na falsa premissa de que duas pessoas diferentes prepararam os dois documentos. Por que não chegar ao ponto?
— Oh, meu caro! — resmungou Vance. — Estou tentando desesperadamente chegar ao ponto, mas... não sei qual é! Como está o caso, o envenenador deliberadamente chamou minha atenção para a situação e até insinuou fortemente que a mulher de Lynn não se suicidaria, e sim seria assassinada.
— Isto não faz sentido.
— Contudo, Markham, você tem a consubstanciação de minha conclusão aparentemente insana lá na sua mesa. Há o bilhete suicida e a carta para mim; há também seu relatório de que a mesma mão datilografou ambos.
Parou.
— Qual o próximo passo inevitável em sua racionalização? Como sussurrei a seus ouvidos relutantes, acho que o assassino deseja que nos concentremos na direção errada. Ele está tentando o feito impossível de ganhar todas as rodadas da partida com só um curinga, e isso é o que faz tudo tão sutil e diabólico.
— Mas você está omitindo o fato de que foram envenenadas três pessoas. Se sua teoria está correta, por que não poderia o envenenador simplesmente ter envenenado a moça e então envenenado a vítima na qual supostamente nos deveríamos deter? Por que fazer-nos parte do plano, quando o assassino aparentemente está no negócio de envenenamento por atacado?
— Pergunta razoável — concordou Vance — e que me está atormentando desde a noite passada. Esse procedimento teria sido o racional. Mas, Markham, nada há de racional nesse crime. Não há só um espantalho nos enfrentando, e sim uma série deles. Tenho a terrível suspeita de que eles estão dispostos em círculo, com o assassino fora da circunferência. Nossa única esperança é que algo saiu errado. Em qualquer mecanismo delicado e intrincado, uma pequena falha — um escorregão no funcionamento — faz ruir toda a estrutura e torna a máquina incapaz de trabalhar. Esse não é um crime plástico. Apesar de todas as suas hipersensibilidades, divagações e convoluções, é estático e fixo de concepção. E aí estão sua força e sua fraqueza...
Neste ponto, Swacker bateu na porta e empurrou-a. Nas mãos, um envelope grosso.
— O laudo da autópsia — disse, colocando-o na mesa de Markham e saindo novamente.
Markham abriu o envelope imediatamente e olhou para as páginas datilografadas unidas numa pasta azul. À medida que lia, o rosto se enevoava e uma expressão intrigada vinha-lhe aos olhos; quando chegou ao fim das páginas, havia uma ruga profunda na testa.
Ergueu lentamente a cabeça e olhou para Vance, que havia sentado em frente a ele na mesa, com um olhar de cálculo espantado.
— Caro Markham — queixou-se Vance — que segredo terrível você oculta?
— Não havia qualquer sinal de beladona no estômago de Virgínia! Tampouco quinino ou cânfora, o que elimina inteiramente as drágeas de rinite.
Vance acendeu um cigarro com deliberação lenta.
— Algum detalhe? Markham referiu-se ao laudo.
— As conclusões exatas são: congestão dos pulmões; muita cera nas cavidades da pleura; sangue principalmente no lado venoso da circulação; lado esquerdo do coração obstruído, lado direito, comparativamente, vazio; tecidos cerebrais e meninges congestionados, e a garganta, traquéia e esôfago hiperêmicos...
Todos os sintomas de morte por asfixia. — Vance olhou tristemente pela janela. — E nenhum veneno!... Doremus aventurou alguma opinião?
— Nada específico — informou-lhe Markham. — Ele não se compromete profissionalmente. Diz apenas que a causa da asfixia ainda é desconhecida.
— Sim, sim. Depende da análise do fígado, rins, intestinos e sangue. Isso levará uns dois dias. Mas algum veneno deve estar no estômago, se foi tomado oralmente.
— Mas Doremus diz aqui que a história que recebeu do caso e suas opiniões do exame imediato do corpo indicavam uma dose excessiva de beladona ou atropina.
— Soubemos disso a noite passada. — Vance se inclinou e, tomando o relatório, examinou-o detidamente. — Sim. É como você diz.
Sentou-se em sua cadeira, volveu lentamente o olhar para a expressão perturbada de Markham e tragou profundamente. Então atirou o relatório de volta à mesa de Markham com um gesto desanimado.
— É "duro", meu caro. Uma senhora é envenenada, presumivelmente por via oral, mas não se acham traços do veneno. Duas outras pessoas são envenenadas e se recuperam. Espera-se que imputemos a algum inocente a culpa do crime. Oh, meu Deus! Que situação!
XI - MEDO DE ÁGUA
(Domingo, 16 de outubro — 12:30 horas)
Swacker olhou na sala:
— O sargento Heath está aqui com um cavalheiro chamado Bloodgood.
Markham relanceou os olhos para Vance, que acedeu, e disse a Swacker que o fizesse entrar.
Bloodgood estava de mau humor. Um cigarro pendia-lhe dos lábios grossos, e as mãos estavam enfiadas nos bolsos das calças. Fez um aceno para Vance, sem falar, e jogou-se pesadamente na cadeira.
— Prossigam — disse indiferentemente. — Kinkaid me telefonou para avisar que os senhores viriam "tirar meu pêlo".
— É verdade? — Vance olhava pela janela. — Que interessante! Ele lhe disse para tomar cuidado, ou instruiu-o sobre o que contar?
Bloodgood irritou-se.
— Não. Por que deveria ele? Mas me disse que o senhor me ligara ao que aconteceu a Lynn ontem à noite.
— O senhor mesmo se ligou, Sr. Bloodgood — retrucou Vance suavemente, sem tirar os olhos do céu cinza. — Apenas pensamos que o senhor pudesse ter alguma explicação ou sugestão que nos ajudasse a desvendar toda essa trama demoníaca.
O tom de Vance, embora seguro e duro, não era inamistoso, e Bloodgood se impressionou evidentemente, pois se endireitou na cadeira e abandonou os modos agressivos. Na verdade, quando ele falou novamente, dei-me conta de sua urbanidade e postura.
— Não há nada que eu possa explicar, Sr. Vance. O senhor se refere, suponho, a minhas instruções ao criado japonês para levar água pura a Lynn... Coincidência infeliz, apenas isto. Estava somente sendo gentil com um convidado do Cassino... conforme exigido pelo dever. Kinkaid não é pessoa que tenha esse tipo de atenção. Sabia que Lynn não bebia água tônica, e o tinha escutado pedir água pura no início da noite. A maioria dos rapazes sabia de seus gestos, mas Mori está há pouco tempo conosco. Tenho de reconhecer que Lynn não bebe muito quando está no Cassino. Provavelmente leu em alguma parte que a pessoa se deve manter sóbria quando joga. Como se tivesse importância! — Bloodgood deu um riso de escárnio. — A sorte não investiga o estado mental de um homem antes de atacar.
— É verdade — murmurou Vance. — E a lei das probabilidades funciona igualmente para o sóbrio e o bêbado. É, a sorte é totalmente amoral. Pensamento confortador. Mas o único motivo atrás de sua gentileza para com Lynn era seu desejo de cumprir seu dever?
— Um motivo sinistro? — perguntou Bloodgood desconfiadamente, tornando-se rígido.
— Na verdade, eu não especifiquei — Vance fumava plàcidamente. — Por que emprestar a intenção menos caritativa a minhas palavras?
Bloodgood acalmou-se, e um quase sorriso apareceu-lhe.
— Eu talvez venha a me enforcar um dia. Faço uma gentileza, e o favorecido quase morre. O senhor me dá uma faca, e eu a apanho pela lâmina. — Deu de ombros. — A verdade é: normalmente eu não teria interferido com as bebidas de Lynn no cassino — não o estimo em demasia... — mas tive um pouco de pena dele ontem à noite. Kinkaid não gosta dele e quase sempre perde na roleta. Isto faz com que Kinkaid tripudie sobre ele. Ontem ele estava em maré de sorte: já tinha ganho muito do dinheiro perdido em outras noitadas. Então ele se descontrolou — reação psicológica, imagino — ficou nervoso e começou a fazer as coisas mais malucas — cobria as apostas, apostava contra ele próprio, etc. Ele não duraria muito mais. Precisava de um drinque, e quando vi a água tônica, tive vontade de ajudá-lo. Mandei, então, vir a água pura, pois ele não bebera a tônica. De certa forma, foi uma boa coisa: ele deixou de perder cerca de trinta mil, mas minha gentileza me encrencou.
— É, isso acontece. Nunca se sabe, não é? Este é um mundo maroto, sem dúvida. — Vance falava impessoalmente. — O senhor sabe de onde veio a água que tão gentilmente mandou vir?
— Do bar, suponho.
— Não, não. Não veio do bar. Mori foi desviado de sua tarefa. A água veio da garrafa particular de Kinkaid.
Bloodgood sentou-se reto, e os olhos se arregalaram. Vance concordou com a cabeça.
— Sim. Kinkaid disse a Mori para buscar a água no seu escritório. Havia gente demais no bar, foi o que ele me explicou. A água se atrasaria. Ele só estava pensando em Lynn. Todos estavam só pensando no bem-estar de Lynn ontem à noite. Anjos da guarda. Gente muito simpática. E então o ingrato do Lynn desfalece, envenenado.
Bloodgood começou a falar mas fechou rapidamente a boca e, afundando-se na cadeira, olhou reto para a frente, soturnamente.
Após pequena pausa, Vance apagou o cigarro e virou a cadeira de modo a encarar Bloodgood.
— O senhor sabe, claro — perguntou — que a mulher de Lynn morreu ontem à noite?
Bloodgood fez que sim, sem tirar os olhos do vácuo.
— Vi nos jornais da manhã.
— O senhor acredita ter sido suicídio? Bloodgood moveu a cabeça para trás e fixou Vance.
— Não foi? Os jornais disseram ter sido encontrado um bilhete suicida...
— É certo. Mas não inteiramente convincente.
— Mas Virgínia era capaz disso — afirmou Bloodgood. Vance não continuou com o tema.
— Suponho — disse — que Kinkaid lhe disse ao telefone que Amélia Llewellyn escapou por pouco também ontem à noite?
Bloodgood deu um pulo.
— O que? — exclamou. — Ele não me disse nada de Amélia. Que houve? — O homem parecia altamente perturbado.
— Ela tomou um copo dágua — no quarto da mãe — e desfaleceu igualzinho ao irmão. Não houve sérios danos, porém. Ela está muito bem hoje — acabamos de vir de lá. Não precisa se preocupar. Por favor, sente-se. Há mais um ou dois assuntos sobre os quais lhe quero falar.
Bloodgood sentou-se novamente, com relutância aparente.
— Tem certeza de que ela está bem?
— Tenho. O senhor poderá ir vê-la quando sair. Estou certo de que ela gostará de sua visita. Kinkaid também está lá. Falando nisso, quais suas relações com ele, Sr. Bloodgood?
O homem hesitou e então disse, indiferentemente:
— Puramente comerciais. — Vance não disse nada, e Bloodgood continuou. — Há certa amizade também, claro. Tenho muita gratidão por Kinkaid. Se não fosse por ele, eu provavelmente estaria ensinando química ou matemática, ganhando um terço do que recebo no Cassino, e me entediando de morte. Ele é severo, mas generoso. Não posso dizer que o admire inteiramente, porém tem muitas qualidades admiráveis, e sempre foi muito sincero comigo — Bloodgood parou um instante e acrescentou, com um leve sorriso: — Acho que ele gosta de mim — e isto, claro, faz com que eu seja parcial quanto a ele.
— O senhor dá alguma importância ao fato de que ele tenha mandado servir a Lynn a água de sua própria garrafa?
A pergunta perturbou Bloodgood enormemente. Moveu-se na cadeira e respirou fundo antes de responder.
— Não sei. Puxa, essa é difícil de dizer! Pode ter sido simples coincidência — é bem do feitio de Kinkaid fazer coisas espontaneamente: ele tem uma tendência a ser muito decente. Recebe as perdas como um cavalheiro e nunca se queixa quando vai tudo mal. Sei que ele joga lealmente e, para dizer a verdade, não consigo concebê-lo tentando derrubar um homem porque a casa está perdendo. Especialmente seu próprio sobrinho.
— Poderia ter havido outras razões que não fossem os ganhos de Lynn ontem à noite — sugeriu Vance.
Bloodgood pensou nisso por algum tempo.
— Compreendo o que quer dizer — replicou. — Com Amélia, Lynn e a mulher de Lynn fora do caminho... — Interrompeu-se e balançou a cabeça. — Não! Não condiz com o caráter de Kinkaid. Uma arma, talvez, numa emergência — sei que ele conseguiu, com sua perícia de atirador, livrar-se de algumas enrascadas sérias na África. Mas não veneno. Isso é arma de mulher.
— Ele é assim decidido?
— Sim, é. Ou faz ou fica inativo. Faz uma coisa ou não a faz. Não tem finura, no sentido psicológico. Isso o faz um grande jogador de pôquer, e medíocre de bridge. Uma vez me disse: "Qualquer mulher pode dominar o bridge, mas só um homem pode jogar bem pôquer." Ele é frio e não conhece o medo; é também tão astuto como Lúcifer. Não vê os meios, desde que atinja os fins, mas age sempre abertamente. Você pode confiar nele, mesmo que ele seja seu inimigo. Veneno? Não. Não faz sentido.
Vance fumou um pouco, abstraidamente.
— O senhor é químico — disse, finalmente — e íntimo de Kinkaid. Diga-me: por acaso ele também se interessa por química?
Pela primeira vez Bloodgood pareceu não se dominar. D"eu rápida olhada a Vance e pigarreou nervosamente.
— Acho que não. — O tom não convenceu totalmente. — É um assunto inteiramente fora de suas atividades e interesses. — Parou, e depois acrescentou: — Se a química desse dinheiro, é claro que Kinkaid talvez estivesse interessado, mas do ângulo puramente especulativo.
— Bem, bem — murmurou Vance. — Sempre alerta. Buscando uma oportunidade de lucro, por assim dizer. Sim. Combina com o instinto de jogador.
— Kinkaid sabe — complementou Bloodgood — que sua situação atual não pode durar indefinidamente. Um Cassino, na melhor hipótese, é uma fonte temporária de renda.
— Certo. Nossa civilização hipermoral. Triste... Mas deixemos Kinkaid de lado. Conte-nos o que sabe do jovem Dr. Kane. Ele foi jantar com os Llewellyns ontem à noite, e a Srta. Llewellyn o chamou quando a mulher de Lynn foi atacada.
O rosto de Bloodgood entristeceu.
— Vi-o muito pouco até hoje — replicou duramente — e apenas na casa dos Llewellyns. Acho que ele está interessado em Amélia. Vem de boa família, etc. É bastante agradável; tem uma personalidade congenial, mas me parece um fraco. Já que o senhor me perguntou sobre ele, devo ainda dizer-lhe: ele me impressionou como algo instável às vezes, como se estivesse somando números antes de responder a uma pergunta direta ou emitir uma opinião.
— O arrière-pensée em ação — sugeriu Vance. Bloodgood concordou.
— Sim. Muito efeminado mentalmente. Talvez, contudo, sejam apenas seu esnobismo e seu esforço constante de agradar — o modo insinuante que os jovens médicos cultivam.
— Que espécie de sujeito era Lynn quando o senhor o conheceu na Universidade?
— Normal. Medíocre, mas rebelde. Era um estudante sofrível, suas notas mal davam para passar. Dedicava-se excessivamente às diversões, e não tinha objetivo sério. Nunca, porém, o responsabilizei por isso: não era inteiramente sua culpa. A mãe sempre o mimou demais. Perdoava tudo que ele fizesse, e ainda facilitava a repetição das coisas erradas. Tinha, porém, o bom senso de não soltar o dinheiro. É por isso que ele joga — e o admite sinceramente.
— Ele acha — disse Vance, em tom casual — que a mãe possa ser a responsável pelos envenenamentos da noite passada.
— Será possível? — Bloodgood parecia espantadíssimo. Meditou por alguns momentos, depois disse: — Entendo a atitude dele de certa forma. Ele mesmo se referia a ela como "a mais nobre dama romana de todas". E não se enganava. Ela sempre foi o homem da casa. Não admitia interferência alguma em seus planos.
— O senhor está pensando em Agripina? — indagou Vance.
— Algo assim. — Bloodgood silenciou mais uma vez. Vance levantou-se, andou até o fim da sala, voltou e parou em frente a Bloodgood.
— Sr. Bloodgood — disse, com os olhos fixos no outro, — três pessoas foram envenenadas ontem à noite. Uma está morta, as outras duas se recuperaram. Não foi achado veneno no estômago de Virgínia Llewellyn. Duas das vítimas — Lynn e sua irmã — desfaleceram depois de beber um copo dágua. A garrafa de Amélia estava vazia quando chegamos ao seu quarto...
— Santo Deus! — A exclamação foi quase um sussurro, mas denotava horror. Bloodgood lutou para ficar de pé. O rosto empalidecera repentinamente e os olhos brilhavam como dois discos de metal polido. O cigarro caiu dos lábios, mas ele o ignorou. — Que me estão tentando dizer? Todos três foram envenenados por água...
— Por que isso o espanta tanto — mesmo se fosse verdade? — indagou Vance com voz firme, quase indiferente, olhando para o homem. — De fato, eu ia-lhe perguntar, após haver citado os detalhes das ocorrências de ontem, se o senhor teria alguma explicação a sugerir.
— Não... não. Nenhuma. — Havia um tremor na voz de Bloodgood e ele respirava com dificuldade. — Eu... eu fiquei nervoso com a repetição do fator água, pois fui eu que mandei que ela fosse servida a Lynn.
Vance sorriu friamente e deu um passo à frente:
— Esta desculpa foi fraca, Sr. Bloodgood. — Havia um tom cortante em sua voz. — O senhor terá de arranjar uma justificativa melhor para sua perturbação emocional.
— Mas como, se ela não existe? — protestou Bloodgood, procurando outro cigarro no bolso.
Vance continuou sem descanso:
— Item um: o senhor esteve presente ao jantar dos Llewellyns ontem à noite, e teve acesso às garrafas da casa. Item dois: só a garrafa da Srta. Amélia não foi envenenada. Item três: o senhor a pediu em casamento. Item quatro: o senhor é químico. Considere estes quatro itens à luz do fato de que foi também o senhor que ordenou água pura para Lynn no Cassino. O senhor tem algo a dizer?
Bloodgood se havia recomposto enquanto Vance falava. Engoliu várias vezes e umedeceu os lábios com a língua. Os braços estavam pendurados ao longo do corpo, e Bloodgood dava a impressão de que todos os músculos do corpo estavam tensos. Levantou a cabeça e olhou para Vance.
— Compreendo perfeitamente a situação — disse com voz rouca. — Apesar do fato de que nenhum veneno foi na verdade comprovado, acho que já percebo os acontecimentos. Não tenho explicação a dar, nem mais o que dizer. O senhor pode tomar a atitude que desejar. — Sorriu misteriosamente. — Faites votre jeu, monsieur.
Vance estudou o homem sem mudar a expressão.
— Acho que guardarei minhas fichas até a próxima volta da roda, Sr. Bloodgood — disse. — O jogo não acabou, como sabe. E tenho novo sistema de ação. — Fez um breve aceno com a cabeça e virou-se. — O senhor está livre para visitar a Srta. Amélia.
— Espero firmemente que seu novo sistema seja melhor do que a maioria — murmurou o homem, e saiu sem outra palavra.
Vance sentou-se novamente e, pegando outro cigarro, começou a fumar pensativamente.
— Sujeito estranho — disse. — Disse-me algo muito importante, mas — sei lá! — não tenho certeza do que seja. Ele foi racional e honesto, até que citei água. A idéia de veneno não o aborreceu, mas a idéia de água, sim. Uma espécie de hidrofobia psíquica. Muito misterioso. Ele está pensando algo — uma coisa vital para a nossa compreensão do caso. Mas não há modo de fazê-lo falar. Conheço o tipo. Ele praticamente ofereceu-se à prisão, mas não respondeu a minhas perguntas. Medo deve ter sido isto. Sabia-se encurralado, mas também tinha conhecimento de que não havia razão palpável para tal. Um jogador astuto. Um calculador mental rápido e um jogador de porcentagem.
Vance balançou a cabeça.
— Não é uma idéia confortadora. Estamos lidando com sutilezas, Markham, e nossos olhos estão vendados. Tateamos no escuro. Mas ele nos disse algo! E temos de descobrir o que é. É a chave. Esperemos. Chegará a hora. Spes fovet, et fore cras semper ait melius.
XII - VANCE FAZ UMA VIAGEM
(Domingo, 16 de outubro — 13:30 horas)
Vance levantou-se e dirigiu-se à mesa.
— Markham — disse, seriamente — só há um modo de atacar o problema. Precisamos manter os olhos fixos nos fatos físicos do caso e ignorar todo o resto que nos possa desviar. É por isso que quero que você me ponha imediatamente em contato com seu perito em tóxicos.
Markham enrugou a testa: • — Hoje?
— Sim. — Vance falava enfaticamente. — Hoje à tarde, se possível.
— Mas é domingo, Vance — resmungou Markham. — Pode ser impossível. Contudo, verei o que pode ser feito.
Tocou para chamar Swacker.
— Veja se consegue localizar o Dr. Adolph Hildebrandt — instruiu. — Já deve ter ido para casa; telefone para lá.
Swacker saiu.
— Hildebrandt é um bom homem — disse Markham a Vance. — Um dos melhores do país. Ê o tipo esforçado do alemão, cauteloso e altamente acadêmico, mas dá sempre uma solução. Se não fosse por ele, jamais teríamos conseguido condenar Waite e Sanford, lembra-se? Pode ser que não esteja em casa, sendo domingo. Porém...
Uma campainha tocou e Markham atendeu ao telefone. Depois de rápidas palavras, desligou e virou-se para Vance:
— Estamos com sorte. Ele está em casa — mora na Rua 84 — e nos espera à tarde.
— Pode ser que isso ajude — murmurou Vance. — Mas pode ser também que não. De qualquer modo, é nosso único ponto de partida. Puxa! Só queria saber o que Bloodgood está pensando. — Suspirou e deu uma tragada funda. — Bem, descansemos um pouco. Sei onde há uma ótima sopa de tartaruga e um grande filé. Vamos, amigo.
Entramos no carro e Vance nos levou a um pequeno restaurante francês na Rua 72, perto do Riverside Drive. Após a sobremesa de creme de menthe, fomos à casa do Dr. Hildebrandt.
O médico era um homem rotundo, completamente careca, com rosto de lua, orelhas salientes e olhos azuis desbotados. Vestia um paletó velho, calças largas e chinelos de feltro. A camisa era aberta na garganta, e as meias de lã, de desenhos fantásticos, caíam-lhe em dobras nos tornozelos. Fumava um enorme cachimbo curvado.
Ele_ mesmo atendeu à porta, e nos fez entrar em uma sala de estar estreita e entupida de mobília do século dezoito. Apesar da maneira algo distante e áspera, era agradável e gentil, e nos cumprimentou com grave cortesia.
Vance imediatamente entrou no assunto.
— Estamos aqui, doutor, — disse — para lhe fazer algumas perguntas sobre venenos e seus efeitos. Estamos enfrentando um problema sério e aparentemente obscuro, em relação à morte da Sra. Llewellyn ontem à noite...
— Ah, sim. — O Dr. Hildebrandt tirou lentamente o cachimbo da boca. — Doremus me telefonou hoje de manhã e eu presenciei a autópsia. Fiz uma análise do estômago para ver se achava beladona, mas não encontrei nada. Amanhã farei completa análise química dos órgãos...
— Estamos muito interessados em saber — disse Vance — se um veneno poderia ter causado a morte e não ser evidente na análise, e também como o veneno, nesse caso, poderia ter sido administrado.
O Dr. Hildebrandt acenou com a cabeça.
— Talvez possa ajudá-lo, não sei. A toxicologia é uma ciência complexa. Existem muitas fases sobre as quais ainda nada se sabe.
Voltou ao cachimbo e deu várias baforadas, como se estivesse arrumando as idéias. Depois falou de modo didático.
— O senhor deve saber que o veneno, no sentido biológico, não existe no corpo se a substância for inteiramente insolúvel, pois, neste caso, ele resiste à absorção da corrente sangüínea. O corolário é que, quanto mais solúvel a substância, mais rapidamente será absorvida pela corrente sangüínea e agirá sobre o corpo.
— E sobre a diluição de um veneno na água, doutor? — perguntou Vance.
— A água acelera a absorção de um veneno e aumenta sua atividade. Porém, no caso de um corrosivo, a água naturalmente reduz o efeito do tóxico. Por outro lado, o estado do estômago deve ser considerado no caso dos venenos tomados pela boca. Se há alimento no estômago na hora da ingestão, a absorção do veneno é mais lenta; se não há, a absorção e o efeito do veneno são mais rápidos.
— No caso Llewellyn o estômago deve ter estado relativamente vazio — disse Vance.
— Estava. E podemos supor que, se um veneno foi absorvido pelo estômago, o efeito foi rápido.
— Acho que sabemos a hora aproximada em que o veneno foi tomado — afirmou Vance — mas estamos interessados em estabelecê-la cientificamente.
O Dr. Hildebrandt concordou.
— Sim, a hora é muito importante quando há suspeita de crime. Mas sua determinação não é fácil porque, nesses casos, não há evidência real quanto ao modo e às condições em que o veneno foi ingerido. O tempo da administração depende inteiramente do tipo de veneno e dos sintomas observados. Quase todos os venenos comuns agem rapidamente, embora possa lembrar várias exceções psicológicas nas quais ação do veneno foi retardada por horas após a ingestão. Porém, falando geralmente, os sintomas de venenos tomados por via oral aparecem dentro de uma hora. Na maioria dos casos, se o estômago está vazio, os sintomas aparecem dez a quinze minutos após ser administrado o veneno. Isso é particularmente verdadeiro no caso da beladona, ou atropina.
— E quanto ao veneno — perguntou Vance — tomado oralmente e cuja presença, não obstante, não é descoberta no estômago mais tarde?
O Dr. Hildebrandt pigarreou, doutoralmente:
— Tal condição pode ser encontrada com certo número de venenos tomados via oral. Significa, simplesmente, que o organismo absorveu todo o veneno do estômago. Mas, naturalmente, haverá depósitos do veneno no sangue e nos tecidos. Infelizmente, em muitos e muitos casos de envenenamento criminoso, só o estômago é dado ao toxicólogo para exame químico. Descobertas só do estômago não são conclusivas, pois, como eu disse, a rápida absorção do veneno pode não deixar traços naquele órgão. Naturalmente, o toxicólogo a quem só dão o estômago para exame pode supor que qualquer veneno que lá encontre pode ser considerado um excesso do veneno realmente ingerido e absorvido pelo organismo. Porém, isso não é, certamente, uma prova direta. Por isso é que os outros órgãos de qualquer pessoa de quem suspeitam haja morrido de envenenamento deveriam ser quimicamente analisados: fígado, rins, intestinos, talvez mesmo o cérebro e a coluna espinal. Quando o veneno penetra no organismo oralmente, é inicialmente absorvido através do estômago. Depois, entra na circulação do sangue. E finalmente é depositado nos tecidos do fígado, rins e outros órgãos. O senhor compreende, naturalmente, que venenos podem penetrar no corpo por outros caminhos além da boca; e, em tais casos, claro que não haverá sinais do veneno no estômago.
— Ah! — Vance inclinou-se para a frente. — Esta é uma das coisas que eu gostaria de saber. Em vista do fato de a Sra. Llewellyn haver morrido muito pouco tempo após tomar o veneno, e de não haver traços dele em seu estômago, queria perguntar-lhe por que outros meios, além da ingestão, esse veneno — presumivelmente beladona — pode haver sido administrado.
. O Dr. Hildebrandt olhou pensativamente o espaço:
— Pode haver sido administrado parenteralmente, isto é: injeção direta na corrente sangüínea. Ou ser absorvido através das membranas mucosas do nariz ou através das conjuntivas. Em qualquer caso, naturalmente não seriam descobertos traços dele no estômago.
Por um momento Vance fumou meditativamente; finalmente, fez outra pergunta:
— Não existe caso em que o veneno pode ser tomado oralmente e produzir a morte, e ainda assim não deixar traços em qualquer órgão do corpo?
O doutor baixou os olhos e depois encarou Vance.
— Há venenos que, quando absorvidos pelo corpo, não têm ação química no sangue, e há outros que não se transformam em compostos insolúveis quando em contato com os tecidos. Esses venenos são rapidamente eliminados do sistema. Se uma vítima de envenenamento vive tempo suficientemente longo após tomar tal veneno, todos os vestígios da droga podem desaparecer do corpo. Mas não há indício de que isso tenha acontecido com a Sra. Llewellyn. Nela, os sintomas violentos de envenenamento surgiram logo após a indução e, segundo entendo, não houve processo de eliminação.
— Mas — continuou Vance — mesmo nos casos em que não se acha veneno em qualquer órgão, não haveria mudanças orgânicas no corpo que indicassem a natureza do veneno tomado?
— Em certos casos, sim. — O Dr. Hildebrandt olhou para o vácuo. — Essas indicações, contudo, não são muito dignas de crédito. Entenda, vários tipos de doenças podem produzir efeitos nos órgãos similares aos produzidos por certos venenos. Se, porém, as lesões encontradas forem idênticas às produzidas por um veneno que a pessoa supostamente recebeu, pode-se supor que elas são resultado do veneno. Por outro lado, alguns casos foram por mim observados, onde se sabia exatamente o veneno ingerido, e contudo os órgãos não mostravam qualquer das lesões que se deveria esperar. No famoso caso Heidelmeyer, por exemplo, sabia-se que a morte fora causada por arsênico, porém nem o estômago nem os intestinos estavam irritados, e a membrana mucosa estava ainda mais pálida do que o normal.
Vance sorriu desanimadamente e balançou a cabeça.
— Vejo que a toxicologia não é uma ciência que se possa chamar de matemática. Contudo, deve haver alguma forma de atingir uma conclusão definitiva, partindo de certas condições. Por exemplo, embora nenhum traço de veneno tivesse sido achado no sistema, não é possível determinar, da aparência post-mortem e dos sintomas de uma pessoa, qual o veneno tomado?
— Isso — retrucou o doutor — é um problema tão médico como toxicológico. Porém, direi isto: os sintomas de muitas doenças intimamente simulam os sintomas de certos tipos de envenenamento. Por exemplo, os sintomas de gastrenterite, da cólera, da úlcera do duodeno, uremia e acidose aguda são duplicados pelos sintomas de envenenamento por arsênico, acônito, digitalina, iodo, mercúrio, e os vários ácidos corrosivos e álcalis. As convulsões que acompanham o tétano, a eclampsia puerperal e a meningite são também causadas por cânfora, cianido e estriquinina. Pupilas dilatadas, que ocorrem nas doenças que produzem atrofia óptica, ou fraqueza do nervo óptico motor são também motivadas pelo grupo da beladona, cocaína e gelsemio, enquanto a contração da pupila pode ser também causada por ópio, morfina e heroína. Ópio, paraldeído, dióxido de carbono e os barbitais produzem coma, como também hemorragia cerebral, epilepsia e lesões cerebrais. O delírio encontrado em casos de doenças cerebrais orgânicas e nefrite pode ser freqüentemente duplicado pela administração de atropina, cocaína e vários outros venenos. Nitrobenzina, anilina, ópio e seus derivados produzem cianose, da mesma forma que as doenças dos sistemas cardíaco e respiratório. A paralisia decorre da ingestão de cianido e monóxido de carbono, mas é também produzida pelo tumor cerebral e apoplexia. Há ainda o problema de respiração. O ópio provoca respiração lenta, do mesmo modo que a uremia e a hemorragia cerebral. E o grupo de venenos da beladona produz respiração rápida, como a normalmente encontrada na histeria e lesões da medula.
— Puxa! — sorriu Vance. — Quanto mais nos aprofundamos, mais distante fica a solução.
O doutor sorriu largamente.
— O senhor conhece Goethe, não? Quanto mais o homem conhece, menos sabe...
— Isso não ajuda muito. Quero saber mais, não menos
— suspirou Vance.
— A toxicologia não é de todo uma ciência incorrigível
— disse o doutor, bem-humorado. — Se um veneno é achado nos órgãos de um morto, e a patologia do caso corresponde exatamente aos sintomas produzidos por aquele veneno, pode-se aceitar como certo que a pessoa morreu daquele veneno. Vance assentiu.
— Sim, compreendo. Mas, se bem o entendi, a ausência de qualquer veneno determinável nos órgãos não significa que a morte não foi devida à administração do veneno. É possível que o veneno possa realmente estar nos órgãos analisados e resistir à análise química?
— Oh, sim. Há várias substâncias tóxicas que a ciência ainda não sabe determinar. Além disso, o senhor não deve esquecer que há venenos que, quando em contato com certos elementos químicos do corpo humano, se convertem em substâncias inofensivas que normalmente se podem achar no corpo.
— Então é possível envenenar alguém deliberadamente, sem medo de deixar algum vestígio do método do assassínio?
O doutor inclinou levemente a cabeça.
— Sim, é possível. Se se puder introduzir vitoriosamente sódio comum no estômago...
— Sim, eu sei — interrompeu Vance. — Mas a perfuração das paredes estomacais pela combustão do sódio não é o tipo de coisa em que pensei. Queria perguntar o seguinte: há substâncias venenosas que podem produzir a morte e não deixar traços?
— Sim, há — replicou o doutor, lentamente, retirando novamente o cachimbo da boca, — Por exemplo, há muitos venenos vegetais que não produzem lesão específica nem são quimicamente identificáveis. E certos venenos orgânicos podem ser transformados em elementos normalmente existentes no corpo. Ademais, certos venenos voláteis podem estar inteiramente invisíveis quando o toxicólogo extrai os órgãos para exame. Não me refiro aos ácidos minerais que podem causar corrosão e serem eliminados do sistema antes que chegue a morte, pois acho que esse tipo de veneno não lhe interessa.
— Eu pensava especificamente — disse Vance — em algum veneno facilmente obtido, que pudesse ser dado em um copo dágua sem ser notado pela vítima.
O Dr. Hildebrandt pensou um instante, depois sacudiu a cabeça gravemente.
— Não. As drogas e elementos químicos que estou imaginando não satisfariam a todas as condições que o senhor impôs.
— Mas, doutor, — insistiu Vance — não é possível que um novo veneno possa ter sido descoberto recentemente, e então satisfizesse a minhas exigências?
— Claro que é possível — admitiu o médico. — Constantemente se descobrem venenos.
Vance calou-se um momento, e depois perguntou:
— Uma dose letal de atropina ou beladona em um copo dágua seria facilmente percebida por quem a bebesse?
— Oh, sim. A água teria um gosto amargo. — O médico olhou para Vance. — O senhor tem razões para crer que o veneno do caso Llewellyn foi dado com água?
Vance hesitou antes de responder.
— Ainda estamos especulando sobre esse ponto. O fato é que duas pessoas, além da Sra. Llewellyn, foram envenenadas ontem à noite, mas se recobraram. Ambas haviam bebido água antes de desfalecer. E a garrafa ao lado da cama da Sra. Llewellyn estava vazia quando chegamos.
— Entendo — murmurou o médico, fazendo um gesto com a cabeça. — Bem, talvez após minha análise química dos órgãos amanhã, eu lhe possa dizer mais.
Vance levantou-se.
— Estou profundamente agradecido ao senhor. É o único assunto em que penso agora. O caso parece bem confuso. Quando deverá estar pronto seu laudo?
O médico levantou-se e acompanhou-nos à porta.
— É difícil dizer. Começarei a trabalhar cedo de manhã, e se tiver sorte, poderei terminar o relatório amanhã à noite.
Partimos e Vance nos levou direto a seu apartamento. Estava calado e parecia pensar muito. Sua perturbação era visível, e Markham não tentou conversar até que nos instalamos na biblioteca. Currie entrou e acendeu a lareira, e Vance mandou servir conhaque Napoléon. Markham então lhe fez a primeira pergunta, desde que deixáramos a casa do médico.
— Você aprendeu alguma coisa; isto é, teve alguma idéia nova?
— Nada definido — respondeu Vance tristemente. — É estranho este caso. Às vezes sinto estar tocando em algo vital, que depois me escapa. Várias vezes esta tarde, à proporção que o médico falava, sentia que me dizia algo que eu deveria saber... mas não sabia o quê. Ah, Markham, se eu fosse psíquico!
Suspirou e aqueceu o conhaque entre as mãos, inspirando o aroma que ele exalava.
— Mas há um motivo sempre presente nos acontecimentos da noite passada — a água.
Markham o olhou pensativamente.
— Observei que várias perguntas suas focalizaram esse tema.
— Sim, claro. Era necessário. A água está presente em todos os atos desse drama diabólico. Lynn pede um uísque e insiste na água pura, mas não a bebe quando ela lhe é trazida. Mais tarde Bloodgood manda que ela lhe seja servida, e Kinkaid manda o criado buscar a água no seu escritório. Depois, o próprio Kinkaid quer um gole dágua, e a garrafa está vazia; ele a manda ao bar para encher. A garrafa de Virgínia está vazia quando chegamos à casa. Amélia toma o último copo dágua da garrafa da mãe e perde os sentidos. Sua própria garrafa é depois achada vazia — embora ela tenha explicado esse ponto. Depois Bloodgood fica nervoso e silencia, à simples menção de água. Em todo lado — água! Francamente, Markham, é como uma charada horrenda...
— Você acha que as vítimas foram todas envenenadas com água?
— Se eu achasse isso, o problema seria mais simples. — Vance fez um gesto desanimado com a mão. — Mas não há um fio principal que ligue essas várias repetições de água. Lynn bebeu uísque e água. Virgínia poderia, claro, ter sido envenenada com água, mas se o veneno que tomou fosse beladona ou atropina — como indicado pelos sinais post-mortem — teria provado o veneno e não esvaziaria toda a garrafa. A única das três vítimas que podemos afirmar ter sido envenenada por água é Amélia. Mas até ela não provou nada desviado, e tinha esvaziado a própria garrafa no início da noite, sem qualquer efeito desagradável. É tudo muito estranho. É como se a água tivesse sido deliberadamente introduzida no caso para nos levar a caminho errado. Qualquer assassínio planejado tão sutilmente como esse não apresenta um sinal repetido a toda hora, a não ser que propositadamente. Alguma porcentagem dele pode ser ocasional, mas não toda. Não pode ser. E a perturbação de Bloodgood quando citei água... Temos uma chave, Markham, mas... — inferno! — não conseguimos achar a porta...
Fez um gesto desesperançado.
— Água. Que idéia tola. Se houvesse algo além da água! Água não fere ninguém, a não ser quem se afoga. Por que água, Markham? Duas partes de hidrogênio e uma de oxigênio... fórmula simples, elementar...
Subitamente Vance parou de falar. Os olhos estavam estáticos, e ele automaticamente pôs o cálice de conhaque na mesa. Inclinou-se para a frente na cadeira, e ficou de pé.
— Meu Deus! — Foi até Markham. — Água não é necessariamente H2O. Estamos tratando do desconhecido. Sutilezas. Poderia ser, claro. Devem esperar que nos detenhamos na pista da água. Temos um químico, um médico, um jogador-financiador, livros de toxicologia, ódios, invejas, um complexo de Édipo, e três casos de envenenamento — e água por toda a parte. Ouça Markham, ocupe-se com alguma coisa algum tempo. Leia, pense, durma, jogue paciência — qualquer coisa. Só não fale.
Virou-se rapidamente a dirigiu-se a uma estante onde mantinha revistas e folhetos científicos. Por meia hora revirou-os, parando aqui e ali para ler algum parágrafo ou artigo. Depois, recolocou as revistas e os folhetos na estante e chamou Currie.
— Faça minha valise — pediu ao velho mordomo. — Coisa pouca e informal. Para uma noite. Depois, ponha-a no carro. Vou dirigir.
Markham levantou-se e olhou para Vance.
— Escute aqui! — Mostrava-se aborrecido. — Aonde vai você?
— Fazer uma pequena viagem — replicou Vance, com um sorriso enigmático. — Estou à procura da sabedoria. A pista da água me chama. Estarei de volta de manhã, mais sábio, mais triste — ou ambos.
Markham olhou-o um instante.
O que tem em mente? — perguntou.
— Talvez apenas um sonho fantástico, meu amigo — sorriu. Markham conhecia Vance bem demais para tentar extrair-lhe alguma informação adicional.
— Seu destino é também secreto? — perguntou, com irritação.
— Não, não. Vance foi até a mesa e encheu a cigarreira. — Não é secreto: vou a Princeton.
Markham o fixou espantado. Depois deu de ombros e brincou:
— Logo você, que estudou em Harvard!
XIII - UMA DESCOBERTA ESPANTOSA
(Segunda-feira, 17 de outubro — 12:00 horas)
Era quase meio-dia quando Vance voltou a Nova York. Eu estava ocupado com trabalho de rotina quando ele entrou na biblioteca, e mal me cumprimentou quando foi para a sala. Pude ver claramente, por seu modo concentrado e movimentos ansiosos, que algo urgente lhe passava pela mente. Alguns minutos depois ele voltou, com um paletó cinzento xadrez, um chapéu verde Homburg e pesadas botas de cano curto.
— Está um dia horrível, Van — observou. — O ar é de chuva, e nós vamos ao interior. Guarde sua contabilidade e venha. Mas preciso ver Markham primeiro. Telefone para o escritório e diga que estarei lá em vinte minutos — ele é um sujeito cem por cento.
Enquanto eu entrava em contato com o escritório do procurador distrital, Vance chamou Currie e deu-lhe instruções sobre o jantar.
Markham estava sozinho quando chegamos ao edifício do Tribunal.
— Sustive meu desapontamento esperando vocês — cumprimentou. — Qual é o relatório?
— Caro Markham! — protestou Vance, atirando-se numa cadeira. — Preciso fazer um relatório? — Ficou sério e olhou refletidamente para Markham. — A verdade é que nada tenho praticamente a relatar. Foi uma viagem frustrante.
— Por que você foi a Princeton? — perguntou Markham.
— Para visitar um velho conhecido — replicou Vance.
— O Dr. Hugh Scott Taylor — um dos grandes químicos de nossos dias. Ele é diretor do Departamento de Química da Universidade. Passei algumas horas ontem à noite com ele, inspecionando o Laboratório Químico Frick.
— Apenas uma visita de inspeção? — indagou Markham, observando Vance astutamente. — Ou algo específico?
— Não. Não geral. — Vance tragou. — Algo muito específico. Eu estava interessado em água pesada.
— Água pesada! — Markham sentou duro na cadeira.
— Encontrei em algum lugar uma referência à água pesada...
— Claro. Os jornais têm publicado muita coisa sobre o assunto. Descoberta fascinante. Um dos grandes acontecimentos da química moderna. Tema fascinante.
Sentou-se e esticou as pernas.
— A água pesada é um composto no qual o átomo de hidrogênio pesa duas vezes mais que o átomo de hidrogênio da água comum. É um líquido em que pelo menos noventa por cento das moléculas consistem de oxigênio combinado com o recentemente descoberto hidrogênio pesado. A fórmula é H2H2O, embora seja agora cientificamente conhecida como D2O. O que há de interessante nele é que tem a aparência e o gosto de água comum. Na verdade, há cerca de uma parte de água pesada em cinco mil partes de água comum, mas, devido à perda no processo de extração, exige quase dez mil partes de água pura para produzir uma parte de água pesada. Em certos laboratórios já trataram trezentos galões de água comum para produzir uns trinta gramas de água pesada. A descoberta da água pesada foi feita pelo Dr. Harold C. Urey, da Universidade de Columbia. Mas grande parte da pesquisa prática desse composto fantástico foi executada pelos cientistas da Universidade de Princeton. O aparelho do Laboratório Químico Frick é o primeiro projetado para a produção de água pesada em qualquer escala apreciável. Quando digo "escala apreciável" falo relativamente, pois o Dr. Taylor me disse ontem que a produção diária, mesmo lá, é menos de um centímetro cúbico. Eles esperam aumentar a produção para cerca de uma colher de chá por dia. Atualmente, Princeton possui menos de meio litro desse precioso fluido. O custo de produção é enorme e, devido à procura de amostras do líquido por cientistas do país todo, seu preço é de mais de cem dólares por centímetro cúbico. Uma colher de chá custaria mais de quatrocentos dólares, e um quarto, cerca de cem mil dólares... Olhou para Markham e continuou.
— Há grandes possibilidades comerciais desse novo artigo. O Dr. Taylor me disse que há uma firma comercial que já o está vendendo.
Markham estava profundamente interessado, e não retirava os olhos de Vance.
— Você então acha que a água pesada é a resposta para os envenenamentos de sábado à noite?
— Pode ser uma das respostas — retrucou Vance devagar — mas duvido que seja resposta definitiva. Há muitas coisas que impedem seja essa a fonte de toda a explicação. Para começar, o custo da água pesada é quase proibitivo, e há pouca disponibilidade do produto, o que não justifica a água presente a todo momento no caso Llewellyn.
— Mas e seu efeito tóxico no sistema humano? — perguntou Markham.
— Ah, exatamente! Infelizmente, não se sabe os efeitos que quantidades liberais da água pesada, tomadas internamente, teriam no ser humano. Na verdade, os pequenos volumes obtidos ainda não possibilitaram experimentos nesse sentido. Só se pode especular. O professor Swingle, de Princeton, provou que a água pesada é letal para pequenos peixes de água salgada; o crescimento de mudas na água pesada é retardado ou inteiramente interrompido, e esse efeito no funcionamento do protoplasma levou alguns pesquisadores de San Francisco à hipótese de que as indicações de velhice e senilidade são causadas pelo acúmulo normal de água pesada no corpo.
Vance fumou um instante e prosseguiu:
— Porém, não aceito que essas especulações tenham alguma conotação direta com nosso problema. Por outro lado, estou inclinado a pensar, Markham, que temos a intenção de trabalhar segundo essas linhas. De qualquer forma, elas nos podem levar à verdade.
— Que quer dizer com isso? — indagou Markham.
— Conversei com um dos brilhantes jovens assistentes do Dr. Taylor — o Sr. Martin Quayle — um químico excepcional, consciencioso e criativo, elemento de valor, enfim. Pessoalmente, porém, eu não confiaria demais nele. É de natureza incomumente ambiciosa...
— Que tem esse sujeito a ver com minha pergunta? — retrucou Markham.
— Quayle foi colega de classe de Bloodgood. Dois jovens químicos idealistas. Muito bons amigos.
Markham estudou Vance um momento, depois sacudiu a cabeça.
— Acho que há uma vaga conexão em algum lugar com o que você me disse agora — arriscou — mas ainda não vejo que ligação possa ter com o problema que estamos tentando resolver.
— Nem eu — admitiu Vance alegremente. — Simplesmente expus o fato, à falta de algo mais definido.
Markham subitamente se irritara. Deu um soco na mesa.
— Sendo assim, que ganhou você em ir a Princeton?
— Não sei — replicou Vance suavemente. — Reconheço estar desapontadíssimo. Esperava muito mais, porém não estou totalmente desconsolado. Há um tema ardiloso em relação à canção da água, e espero saber mais sobre ele hoje à noite. Vou fazer outra viagem à tarde — desta vez, ao interior. Estou contando com a idéia de Quayle para guiar minhas pegadas vacilantes.
Markham inspecionou Vance espertamente, depois sorriu-lhe cansadamente:
— A incoerência do oráculo de Delfos, o adivinhador da bola de cristal. Já me deveria ter acostumado... Então você vai ao interior?
— Sim — murmurou Vance docemente — lá para os lados de Closter...
Markham saltou.
— O quê? — gritou.
— Caro Markham, não me assuste assim. Você tem energia demais. — Vance suspirou. — Será que você pediria a Swacker para descobrir as companhias que fornecem água e energia elétrica às casas de Closter e seus arredores?
Markham apertou os lábios, depois chamou o secretário e lhe transmitiu o pedido de Vance.
Quando Swacker saiu, Vance virou-se para Markham e continuou:
— Quando tiver os nomes, você me escreveria uma carta bem amável de apresentação aos gerentes? Estou procurando informações...
— Que informações?
— Se quer mesmo saber — disse Vance tranqüilamente — vou pesquisar a quantidade de água e eletricidade consumida por certo cidadão importante dos arredores de Closter.
Markham sentou-se novamente.
— Meu Deus! Você acha que Kinkaid...?
— Meu amigo! — interrompeu Vance. — Não acho nada, é muito esforço... — Suspirou e nada mais disse.
Alguns minutos depois Swacker trouxe a informação que Closter e arredores eram supridos pela Cia. de Água Valley Stream e pela Cia. Englewood Power and Light, ambas com escritórios em Englewood.
Markham ditou as cartas solicitadas por Vance, e dez minutos depois nos dirigíamos a Englewood, a alguns quilômetros de Closter.
Englewood é perto de Nova York e, graças à técnica de motorista de Vance, lá chegamos em menos de meia hora. Vance perguntou o caminho para a Cia. de Água Valley Stream e, quando chegamos, mandou entregar a carta ao gerente. Fomos recebidos por um homem agradável e sério, que devia ter quarenta anos — um Sr. McCarty — em um pequeno escritório.
— Em que lhe posso ser útil, senhor? — perguntou, após os apertos de mão. — Teremos prazer em ajudar como for possível.
— Estou interessado — disse-lhe Vance — em saber o volume de água consumido pelo Sr. Richard Kinkaid, perto de Closter.
— Isso é fácil de saber. Dirigiu-se a um arquivo de aço e, após um momento, tirou de lá um pequeno cartão. Voltou à mesa, olhou para o registro e levantou as sobrancelhas com surpresa.
— Ah, sim — disse, um minuto após, como se de repente se lembrasse de algo. — Recordo-me das circunstâncias. O Sr. Kinkaid tem um registro de uma polegada e usa muita água. Sua taxa é baseada na tabela que varia entre 40 000 e 400 000 pés cúbicos de água anuais.
— E o Sr. Kinkaid tem apenas uma cabana de tamanho médio — ponderou Vance.
O Sr. McCarty assentiu.
— Sim, eu sei. A quantidade de água gasta pelo Sr. Kinkaid é suficiente para uma fábrica. O grande consumo foi observado por mim há mais de ano. Não podia entender o volume, e investiguei, mas descobri que o freguês estava satisfeito, e portanto não tivemos alternativa, senão continuar o serviço.
— Diga-me, Sr. McCarty — prosseguiu Vance — há alguma variação na quantidade de água consumida pelo Sr. Kinkaid segundo a época do ano? Isto é, ele gasta mais na primavera e no verão e menos no inverno, quando a cabana está fechada?
— Não — informou o gerente, olhando para os números.
— Não há praticamente variação. Segundo o cartão, o consumo de água é o mesmo no inverno e no verão.
Olhou para Vance:
— O senhor acha que devemos investigar mais o assunto?
— Não, não — respondeu Vance — Há quanto tempo esse consumo excessivo se verifica?
O gerente observou novamente o cartão, virou-o e examinou os números no verso.
— As ligações de água foram instaladas há mais de ano
— em agosto, exatamente — e o consumo excessivo começou quase imediatamente.
Vance levantou-se e estendeu a mão ao gerente.
— Muito grato, senhor. Era tudo que precisava saber. Aprecio sua gentileza.
Dos escritórios da Cia. de Água Valley Stream, fomos para os da Englewood Power and Light, alguns quarteirões adiante. Novamente Vance mandou entregar a carta ao gerente — Sr. Browning — e ele nos recebeu logo. Quando Vance lhe disse que queríamos verificar o consumo de Kinkaid de energia, ele olhou curiosamente.
— Não temos o hábito, o senhor compreende, de fornecer informações desta natureza — disse, de modo conservador. — Mas, dadas as circunstâncias, acho que devo avisá-lo de que o Sr. Kinkaid — pessoa muito conhecida aqui — combinou há mais de ano comigo o fornecimento de energia suficiente que atendesse a suas necessidades — as quais, devo acrescentar, excediam de muito o consumo normal de uma casa ou cabana de pesca daquele tamanho. Combinamos um suprimento de 500 kw, ao invés dos habituais 5 kw.
— Grato pela informação, senhor. — Vance ofereceu um cigarro ao Sr. Browning e ele mesmo tirou um. — Mas quando o Sr. Kinkaid combinou com o senhor esse grande suprimento de força, ele lhe disse como o usaria?
— Eu naturalmente lhe fiz essa pergunta — retrucou o gerente — e ele explicou que necessitava daquele volume para fazer experiências.
— O senhor não insistiu mais?
— O Sr. Kinkaid me informou que o trabalho experimental a ser feito era de natureza mais confidencial, e eu então tive de me satisfazer com isso. O senhor entende que nosso objetivo é dar o melhor serviço possível ao público.
— Sua atitude, senhor — disse Vance — é inteiramente certa. Gratíssimo pelas informações confidenciais.
O Sr. Browning levantou-se:
— Lamento não lhe poder dizer mais nada, exceto se o sr. quiser saber o montante exato de energia consumido.
— Não, obrigado — disse Vance, dirigindo-se à porta. — O senhor me falou tudo de que precisamos saber agora. — E saiu.
Quando entramos no carro, Vance sentou-se ao volante e ali ficou alguns instantes, abstraidamente. Depois tirou a cigarreira e, firmemente, acendeu outro Régie.
— Acho, Van, — disse lentamente — que vamos até a cabana de Kinkaid. Sei mais ou menos onde é. Se nos perdermos, poderemos perguntar.
Virou o carro e voltamos em direção ao rio Hudson. Quando atingimos a rodovia 9-W, Vance tomou o norte, ao longo das Palisades.
— Deve haver uma estradinha nos próximos quilômetros, e talvez uma seta para nos orientar — disse. — Vigie a estrada. Se perdermos essa seta, teremos de ir a Closter e indagar o rumo de lá.
Isso não foi preciso, pois cerca de quatro quilômetros depois chegamos a um poste rústico de orientação, à entrada de um caminho particular para carros afastado do rio, o que nos fez concluir que a cabana de caça de Kinkaid era em algum lugar além.
Virando nesse caminho, em instantes estávamos em um trecho intensamente coberto de árvores. Isso era Bergen County, um lugar entre o condado de Closter e a fronteira do Estado de Nova York, perto do lugar chamado Rockleigh, em Nova Jersey. Seguimos esse caminho particular talvez meio quilômetro, ei subitamente atingimos uma clareira, em cujo centro havia uma cabana de pedra de dois andares, que poderia ter sido construída originalmente para fins residenciais. A aparência era de total desolação. As janelas tinham sido cobertas de tábuas e havia um ar geral de desolação na pequena entrada e na porta maciça que era a entrada principal da cabana. Atrás da casa, à direita, uma garagem. Vance estacionou à esquerda, e saltamos.
— Parece um pouco abandonada, não, Van? — comentou, ao nos aproximarmos da porta da frente.
Puxou a antiquada maçaneta de latão várias vezes, mas, embora escutássemos a campainha lá dentro, ninguém respondeu.
— Acho que não há ninguém — disse ele. — E eu esperava tanto poder entrar. Vejamos o que nos reservam os fundos da casa.
Caminhamos pela trilha, mas, ao invés de ir diretamente aos fundos da cabana, Vance continuou para a garagem. A porta estava ligeiramente aberta, mas dela pendia pesado cadeado. Vance o contemplou e depois olhou para dentro da garagem.
— Sinais de vida recente — murmurou. — Não há carro, mas tampouco poeira ou ferrugem no cadeado. Ademais, há marcas de pneus no caminho e traços de óleo fresco no chão de cimento. Conclusão: o habitante ou habitantes da cabana foram embora há pouco. Qual o destino e a hora em que ele ou eles voltarão, não sabemos.
Fixou a elevação traseira da cabana e fumou silenciosamente.
— Será... — murmurou por fim. — Acho que pode ser feito. Van, que tal "bancarmos" os arrombadores?
Aproximou-se do pequeno pórtico de tela nos fundos da casa e subiu o pequeno lance de degraus de madeira que levava a ele. A porta não estava trancada e entramos no pórtico. Havia uma porta que levava à cabana, e, ao lado dela, uma pequena janela de copa. Ambas, porém, trancadas.
— Espere — mandou Vance, e desapareceu pelos degraus do pórtico. Momentos depois voltou com um formão da caixa de ferramentas do carro. — Sempre tive um desejo de ser arrombador... Vejamos!
Colocou a lâmina do formão entre as duas pequenas cavidades da janela da copa e, depois de alguns minutos de manipulação, conseguiu tirar o parafuso que as mantinha trancadas. Depois, pondo o formão debaixo da parte inferior da janela, pôde abri-la. Havia um caixote vazio no canto do pórtico, que Vance colocou sob a janela. Ficou de pé nele e conseguiu, com esforço, esgueirar-se pela estreita abertura. Um momento depois ouvi um baque surdo e ele desapareceu na escuridão da casa. Logo, porém, seu rosto veio à janela.
— Não houve nada, Van — anunciou. — Entre, eu ajudo.
Puxei o chapéu para cima das orelhas e coloquei o corpo na abertura da janela. Vance segurou-me os ombros e me puxou para a copa escura e estreita.
— Puxa! — suspirou. — Ser arrombador não é brincadeira... Ainda bem que renunciei à carreira... Procuremos a porta do porão... Duvido que haja algo que nos interesse nos andares principais.
Achamos logo a porta do porão. Saía diretamente da copa que era dividida da cozinha por uma porta de vaivém. Vance seguia na frente, com o isqueiro aceso.
— Epa! — Ouvi-lhe a voz na meia escuridão adiante. — Que porta curiosa para uma inocente cabana de caça!
Eu estava logo atrás dele e, olhando por cima de seus ombros, consegui distinguir, à luz bruxuleante do isqueiro, uma porta enorme de carvalho, sólida, comparativamente nova. Não havia maçaneta nem cadeado, mas, no lugar habitual da maçaneta, estava uma tranca de ferro. Vance levantou-a e empurrou a porta. Escutamos então um ruído contínuo e insistente, como o de um motor, e sentimos um cheiro acre de algum elemento químico. A alguma distância pude perceber várias pequenas chamas, como se produzidas por fogareiros Bunsen.
Vance entrou no vestíbulo e tateou na parede. Finalmente, achou o interruptor. Houve um clique e uma luz brilhante de cerca de doze lâmpadas substituiu a escuridão.
Vi algo de espantoso. O porão de pedra, cujo tamanho original deveria ter sido de quase 18 m2, fora ampliado dos dois lados, de modo que tinha agora a extensão de pelo menos 36 m2. Estava cheio de filas de enormes mesas nas quais havia milhares de pequenos vidros redondos. Ao fundo do porão estavam vários geradores elétricos e, em algumas das mesas e prateleiras nas paredes, viam-se coleções variadas de garrafas e intrincado aparelhamento químico.
Vance andava entre as mesas, observando tudo:
— Puxa! — murmurou. — O Dr. Taylor teria inveja se pudesse ver este laboratório! Espantoso!
Aproximou-se de algumas mesas cujo aparelhamento não era igual aos demais, e onde eu vira as chamas azuis:
— Água pesada, Van — explicou, apontando várias garrafas em forma de cone, ao fim de uma série de tubos, válvulas e pilhas. — Deve haver aqui mais de um quarto de litro. Produção em alta escala. Se for pura, Kinkaid tem uma fortuna nesses frascos. Vê como é feita, Van? É um processo fascinante.
Examinou detidamente os aparelhos:
— O método de produção usado aqui é o mesmo concebido pelos cientistas de Princeton — o primeiro que tem algum valor prático. O eletrólito das células eletrolíticas comerciais é primeiro destilado para que sejam separados o carbono e o hidróxido. Acrescenta-se hidróxido de sódio, e então a solução é eletrolisada naquelas células.
Apontou para várias mesas mais adiante, contendo inúmeras garrafas de hidrômetro que eram esfriadas por imersão em grandes tanques rasos de água corrente.
— Os elétrodos, como você pode ver, são torcidos duas vezes nos ângulos certos, para formar ânodos e catódios nas células vizinhas; o potencial da corrente direta é suprido por aqueles geradores de motor ali. Leva cerca de três dias para reduzir o eletrodo a aproximadamente doze por cento do volume original; o eletrodo concretado é então parcialmente neutralizado pelo dióxido de carbono em ebulição nele. Depois, então, isso é destilado e acrescentado a outro grupo de células — aquelas nas mesas dos fundos — contendo água do mesmo grau, porém com o teor primitivo de hidróxido de sódio. São feitas três eletrólises sucessivas, que resultam em água com cerca de dois e meio por cento do pesado isótopo de hidrogênio. Daí para a frente, o hidrogênio contém o isótopo pesado que é recuperado pelo aparelho daquelas mesas.
Fez um gesto com a mão para o complicado aparelhamento à nossa frente.
— O gás eletrolítico misturado passa daquelas células à direita através desse vaporizador e desse tubo em T, o qual, como vê, está mergulhado em mercúrio para formar uma válvula de segurança para liberar a pressão excessiva; finalmente, ele flui para fora através daquele bocal de vidro capilar, onde acende uma chama.
Vance jogou o cigarro ao chão e o esmagou.
— E esse é o último passo, Van, para produzir o líquido mais caro do mundo. A água formada pela combustão é condensada nesse tubo inclinado de quartzo...
Ouvimos então o barulho de rápidas pisadas na escada do porão. Vance virou-se subitamente e correu, mas era tarde. A grande porta de carvalho tinha sido violentamente fechada, e quase simultaneamente a pesada tranca foi encaixada na fechadura.
Sobre o ruído dos motores e o fluxo da água corrente nos tanques rasos, pudemos perfeitamente ouvir o riso irado mas triunfante de alguém na escada.
XIV - O RÓTULO BRANCO
(Segunda-feira, 17 de outubro — 15:00 horas)
Vance fixou a pesada porta, com um sorriso estranho.
— Essa não, Van! — murmurou. — Eu abomino melodrama. Ademais, ainda não almoçamos — e são três horas. Situação desagradável, mas divertida. — Puxou uma cadeira, sentou-se calmamente, e começou a fumar.
De repente, apagaram-se as luzes do porão, e fomos deixados na escuridão total. Vance suspirou.
— Bem, bem. Você agüenta, Van? Lamento muito tê-lo envolvido nessa história louca. Vejamos se nossos captores são comunicativos.
Foi até a porta e bateu nela várias vezes, com as costas da cadeira. Novamente escutamos pisadas na escada, e uma voz abafada e não identificável perguntou:
— Quem é você... e o que quer aqui?
— Lamento ser o Sr. Vance... e gostaria muito de um pouco de homard à la Turque e uma garrafa de Chauvenet suave.
— Você vai receber algo pior do que isso — fez a voz, que, embora sua debilidade, demonstrava azedume e raiva. — Quantos são aí?
— Só dois — disse-lhe Vance. — Gente inofensiva. Turistas. Estamos conhecendo as matas de Jersey.
— Arrombadores inofensivos... esta é boa! — E a voz sorriu maliciosamente. — De qualquer forma, vocês serão inofensivos quando eu acabar com vocês. Já volto a lhes falar — vou avisar à polícia. — Escutamos passos subindo a escada.
Vance bateu na porta novamente, com a cadeira.
— Espere um pouco! — gritou.
— O que é agora? — A voz estava mais longe.
— Antes que aborreça os guardas — falou Vance — é bom que saiba que a polícia de Nova York sabe quem sou eu e por que estou aqui. Tenho um encontro com o procurador distrital Markham às cinco horas, e se eu não aparecer, esta cabana será totalmente revistada. Mas não se preocupe. Tenho muito em que pensar nas próximas horas. — Escutei-o sentar-se. Depois, pela pequena chama do isqueiro, vi que acendia um Régie.
Houve um breve silêncio, seguido de passos na escada e por um sussurro. Em alguns momentos as luzes do porão se acenderam e os motores recomeçaram a funcionar. Logo depois escutamos o som da tranca sendo solta, e a pesada porta de carvalho se abriu.
No alto da escada estava Kinkaid. O rosto parecia, mais do que nunca, uma máscara.
— Não sabia que era o senhor — disse, com tom glacial e sem modulação. — Se soubesse, não teria agido de forma tão hostil. Vim até cá e notei que a janela da copa fora forçada. Deduzi que houvesse arrombadores na casa e, quando vi as luzes do porão acesas, mandei trancar a porta.
— Não tem importância — replicou Vance calmamente.
— Foi um engano social meu... não seu.
Kinkaid segurou a porta aberta e ficou de lado. Subimos a escada para a cozinha, e ele nos conduziu à sala de estar. Ao lado de uma mesa maciça, havia um homem forte, de mais ou menos trinta e cinco anos, cabelo ruivo e rosto carrancudo. Vestia calças folgadas, paletó de trabalho e uma camisa de flanela cinza.
— O Sr. Arnheim — anunciou Kinkaid de modo casual.
— Ele é o encarregado do laboratório que os senhores inspecionaram.
Vance inclinou-se ligeiramente para o homem.
— Ah! Colega de sala de Bloodgood e Quayle? Arnheim agitou-se, e os olhos se toldaram.
— E daí? — rosnou.
— Pode sair, Arnheim — disse Kinkaid, fazendo um sinal com a mão.
O homem voltou à cozinha e o escutamos descer para o porão. Kinkaid sentou-se e examinou Vance com seus olhos de peixe.
— O senhor parece estar bem familiarizado com minhas atividades — comentou.
— Oh, não. Só com os fatos óbvios — assegurou-lhe Vance. — Procurava mais informações quando o senhor chegou.
— Sorte sua — disse Kinkaid — que o caso acabou como acabou. Arnheim odeia visitantes não convidados do laboratório. Estou a caminho de Atlantic City por uns dias e Arnheim me pegou de carro em Closter e me trouxe aqui.
Vance ergueu as sobrancelhas.
— Caminho meio complicado para ir de Nova York a Atlantic City, não acha?
O rosto de Kinkaid endureceu, e os olhos se estreitaram.
— Não é tão complicado assim — retrucou. — Queria tratar de alguns assuntos com Arnheim antes de viajar, de modo que fui de trem a Closter e ele me encontrou lá. Mais tarde me levará a Newark, para que eu pegue o trem das sete para Atlantic City. Meu itinerário está satisfatoriamente explicado?
— De certa forma, sim. — Vance assentiu. — Pode ser. Muito lógico, quando explicado. Fugindo do tumulto da cidade por uns tempos, hem?
— Quem não o faria... depois do que passei? — Kinkaid mudara o tom de voz, e falava quase petulantemente. — Fechei o Cassino por uns dias, em respeito a Virgínia. — Sentou-se empertigado e olhou Vance de modo mau. — Acredite ou não, senhor, mas gostaria de agarrar o animal que a matou.
— Sentimento nobre — murmurou Vance. — Primitivo, mas nobre. Aliás, a garrafa de água dela estava vazia quando chegamos à casa sábado à noite.
— Meu sobrinho me disse. E daí? Qual o crime em beber um copo d'água?
— Nenhum — reconheceu Vance — nem em fabricar água pesada. Laboratório fantástico, o seu.
— O melhor do mundo — afirmou Kinkaid, com orgulho evidente. — Foi idéia de Bloodgood. Ele via as possibilidades de se comercializar água pesada, as expôs a mim, e eu lhe dei "sinal verde"... eu financiaria o empreendimento. Com mais um mês, estaremos prontos para comercializá-la.
— É, muito bem. Sujeito de iniciativa, esse Bloodgood. — Vance acenou com a cabeça e manteve os olhos fixos em Kinkaid. — Ele teve a idéia, foi com Quayle ao Laboratório Frick e obteve todos os dados e planos necessários; depois procurou Arnheim e o encarregou das operações. Três jovens químicos ambiciosos — todos bons amigos — tentando fazer a vida, por assim dizer. Muito bem.
Kinkaid sorriu astutamente.
— O senhor parece saber tanto sobre a minha empresa quanto eu. Bloodgood lhe contou?
— Não. — Vance sacudiu a cabeça. — Ele evitou jeitosamente o assunto. Esforçou-se demais, porém, e causou minhas desconfianças. Fui a Princeton ontem à noite. Juntei várias coisas. Sua cabana de caça era indicada, de modo que vim até cá.
— Por que seu interesse por meu laboratório? — perguntou Kinkaid.
— O motivo da água. Há água demais aqui e no caso do envenenamento.
Kinkaid deu um salto, e o rosto ficou vermelho.
— Explique-se! — exigiu. — Água pesada não é veneno.
— Não se sabe — disse Vance, tranqüilamente. — Pode ser. Ainda não se pode afirmar. Tema interessante. De qualquer forma, a água foi o indício. Tenho simplesmente seguido as pistas.
Kinkaid calou-se. Depois, disse cuidadosamente:
— Agora compreendo o que quer dizer. O senhor descobriu alguma coisa?
— Nada de que não tivesse suspeitado antes — respondeu Vance, evasivamente.
— Que pena que seu arrombamento não tivesse resultados compensadores.
— Arrombamento? Oh, sim. Claro. — Vance deu de ombros. — O senhor vai dar queixa?
Kinkaid riu.
—' Não, desta vez passa. — Falava quase cordialmente.
— Muito obrigado — disse Vance, levantando-se. — Nesse caso, o Sr. Van Dine e eu vamos indo. Desculpe a pressa, mas estou morto de fome. Ainda não almocei. — Foi até a porta e parou. — Onde o senhor vai ficar em Atlantic City?
Kinkaid mostrou-se interessado na pergunta.
— O senhor acha que precisará de mim? Vou ficar no Ritz.
— Divirta-se — fez Vance, e pegamos o carro.
Mal passava de quatro e meia quando chegamos a casa. Vance pediu chá e uma muda de roupas, depois ligou para Markham.
— Tive uma tarde maravilhosa — contou ao procurador distrital. — Banquei o arrombador. Van e eu ficamos presos num porão escuro, aí disse seu nome, e foi o "Abre-te, Sésamo!" Fomos cerimoniosamente — para não dizer apologeticamente — soltos. Conversei com Kinkaid. Ele está produzindo quartos de litro de água pesada na cabana de caça. Tem um laboratório grande, aparelhado. Idéia de Bloodgood, ajudado e incentivado por outro colega de classe, um sujeitinho hostil chamado Arnheim. Kinkaid não me pareceu aborrecido por eu haver descoberto seu segredo. Até me desculpou pela entrada forçada. Está indo para Atlantic City. O caminho da água continua. Estou levando um balde ou dois de água fria, falando figurativamente, à casa dos Llewellyns hoje à noitinha. Caso estranho, Markham, mas a luz começa a surgir. Não muita, mas suficiente para me mostrar o caminho. Que tal jantar aqui em casa, às oito e meia, e depois ir ouvir o Terceiro Concerto de Brahms no Carnegie Hall? Conto mais quando chegar aí... E escute, Markham, traga o relatório de Hildebrandt se estiver pronto. Tchau!
Mais ou menos às seis horas, Vance chegou à casa dos Llewellyns. O mordomo nos fez entrar, com frígida dignidade. Aparentemente não se surpreendeu com a visita.
— Quem deseja ver, senhor?
— Quem está aqui, Smith? — perguntou Vance.
— Todos, senhor, menos o Sr. Kinkaid — informou o> mordomo. — O Sr. Bloodgood e o Dr. Kane também estão. Os cavalheiros estão no salão com o Sr. Lynn, e as senhoras, estão em cima.
Lynn, que devia ter escutado nossa chegada, veio até a porta do salão e nos convidou a entrar.
— Que bom ter vindo, Sr. Vance! — Ele ainda parecia deprimido, mas seu modo era ansioso. — Descobriu algo?
Antes que Vance pudesse responder, Bloodgood e o Dr. Kane se adiantaram para cumprimentá-lo. Terminadas as amenidades, Vance sentou perto da mesinha de centro.
— Descobri algumas coisas — disse a Lynn. Virou-se então para Bloodgood. — Acabo de chegar de Closter. Visitei a cabana de caça e conversei com Kinkaid. Porão interessante tem ele.
Lynn dirigiu-se à mesa e ficou ao lado de Vance.
— Sempre desconfiei que o velho tivesse bons vinhos na cabana — queixou-se. — Mas nunca me deu nenhuma amostra.
Os olhos de Bloodgood estavam em Vance: ignorou as observações de Lynn.
— O senhor encontrou alguém mais lá? — indagou.
— Sim, um tal de Arnheim. Camarada vigoroso. Ele nos trancou no porão, seguindo ordens de Kinkaid, claro. Foi muito aborrecido. — Inclinou-se para trás e encontrou o olhar de Bloodgood. — Conheci outro colega de classe seu, ontem à noite — Martin Quayle. Estava visitando rapidamente o Dr. Hugh Taylor. Vi também o Laboratório Frick.
Bloodgood deu um passo, mas os olhos não se moveram. Depois de um instante, perguntou:
— Aprendeu alguma coisa?
— Aprendi muito sobre água — disse Vance, com um leve sorriso.
— E será que também soube — indagou Bloodgood, em voz fria — o nome do responsável pelos acontecimentos de sábado?
Vance inclinou a cabeça afirmativamente e deu uma profunda tragada no cigarro.
— Sim, acho que sim.
Bloodgood enrugou a testa e esfregou a mão no queixo.
— Que pretende fazer agora?
— Prezado amigo! — exclamou Vance. — O senhor sabe muito bem que não posso tomar qualquer providência. É muito difícil determinar certos fatos, e mais ainda prová-los... O senhor nos poderia ajudar, por acaso? Bloodgood inclinou-se raivosamente.
— Não senhor! — explodiu. — O problema é seu.
— É verdade, é verdade. — Vance fez um gesto desanimado. — Uma situação triste e complicada...
O Dr. Kane, que escutara atentamente, sacudiu-se e levantou-se.
— Preciso ir — anunciou, olhando o relógio. — Ainda tenho de ir ao consultório, e tenho dois casos uterinos para diatermia. — Apertou a mão de todos e saiu apressadamente.
Bloodgood mal notou que o médico fora embora. Seu interesse ainda estava focalizado em Vance.
— Se o senhor sabe quem é o culpado — disse tranqüilamente — e não pode provar, tenciona desistir do caso?
— Não, não — fez Vance — perseverança é meu lema. E persistência. "Deus está com os perseverantes." Idéia confortadora. E "as águas gastam as pedras", segundo Jó. Comentário interessante, esse. Água novamente, note. O fato é, Sr. Bloodgood, que terei provas suficientes em pouco tempo. Espero um relatório químico do toxicólogo oficial esta.noite. Ele é um homem inteligente. Terei mais informações amanhã.
— E se não acharem veneno? — indagou Bloodgood.
— Melhor ainda — comentou Vance. — Isso simplificará tudo. Mas estou certo de que haverá veneno — em algum lugar. Há sutilezas demais neste caso: esta a sua fraqueza. Mas eu gosto de decimais longos: é tão mais fácil escrever pi do que centenas de dígitos.
— Vejo o que quer dizer. — Bloodgood olhou para o relógio e levantou-se. — O senhor me perdoe. Tenho que pegar o trem das sete para Atlantic City. Kinkaid quer que eu vá lá. Ele vai pegar o trem em Newark. — Inclinou-se rigidamente para nós e dirigiu-se ao vestíbulo.
Parou na porta e voltou-se.
— Tem objeção — perguntou a Vance — que eu diga a Kinkaid que o senhor sabe quem envenenou Virgínia?
Vance hesitou antes de responder, depois falou:
— Não, nenhuma. Boa idéia. Kinkaid tem direito a saber. O senhor pode acrescentar que amanhã o caso estará encerrado.
Bloodgood susteve a respiração e fixou Vance.
— Tem certeza de que quer que eu lhe diga isso?
— Absoluta. — Vance soltou a fumaça do cigarro. — Suponho que o senhor também vá hospedar-se no Ritz?
Bloodgood não respondeu logo. Finalmente, disse:
— Sim, ficarei lá. — Virou-se e saiu rapidamente.
Ele apenas desaparecera quando Lynn levantou-se e segurou o braço de Vance excitadamente. Os olhos brilhavam e ele tremia dos pés à cabeça.
— Meu Deus! — exclamou. — O senhor acha mesmo...
Vance levantou-se rapidamente e tirou a mão de Lynn do braço.
— Não seja histérico — disse severamente. — Vá dizer à sua mãe e à sua irmã que quero vê-las um momento.
Lynn, envergonhado e abatido, murmurou uma desculpa, e saiu da sala. Quando voltou, minutos depois, informou a Vance que as duas mulheres estavam no quarto de Amélia e o veriam lá.
Vance subiu imediatamente, onde a Sra. Llewellyn e sua filha o esperavam.
— Acho justo, senhoras — disse Vance, após cumprimentá-las rapidamente — contar-lhes o que já informei às outras pessoas interessadas no caso. Acredito saber quem é o responsável por essa situação horrível. Sei quem envenenou seu filho, senhora; e quem pôs o veneno em sua garrafa, senhorita. Também sei quem envenenou Virgínia e escreveu o bilhete suicida. No momento nada posso fazer, pois me falta a necessária prova legal. Mas espero que amanhã eu já tenha fatos suficientes nas mãos que garantam providências definitivas de minha parte. Minhas conclusões lhes causarão muita dor, e quero que as senhoras estejam preparadas.
Ambas as mulheres ficaram silenciosas, e Vance, com leve reverência, saiu do quarto. Mas, ao invés de voltar diretamente ao andar principal, foi em direção ao quarto onde morrera Virgínia.
— Quero dar mais uma olhada, Van — disse-me ele, entrando no quarto. Eu o segui, e ele fechou a porta silenciosamente.
Andou pelo quarto uns cinco minutos, examinando pensativamente cada item da mobília. Demorou-se na penteadeira; inspecionou novamente os livros nas prateleiras; abriu a gaveta da mesa de cabeceira e inspecionou-lhe o interior; tentou a porta da passagem que levava ao quarto de Amélia, e finalmente foi até o banheiro. Olhou em volta, cheirou o perfume no atomizador, e então abriu a pequena porta espelhada do armário de remédios. Olhou dentro por algum tempo, sem tocar em nada. Finalmente, fechou a porta e voltou ao quarto.
— Nada mais há para se aprender aqui, Van — anunciou. — Vamos para casa.
Quando passamos pela porta do salão, vimos Lynn sentado numa poltrona ao lado da lareira, com a cabeça nas mãos. Não nos escutou, ou estava por demais chocado com as recentes afirmações de Vance para se preocupar com as amabilidades convencionais de cortesia, pois não demonstrou saber que estávamos indo embora.
Markham chegou ao apartamento de Vance às sete e meia.
— Preciso de alguns drinques antes do jantar — observou. — Esse caso me perturbou o dia inteiro. E seu telefonema enigmático não me ajudou exatamente a levantar o moral... Conte tudo, Vance. Por que e como você ficou preso num porão? Parece incrível.
— Pelo contrário, foi muito razoável — sorriu Vance.
— Van e eu arrombamos a entrada. Usamos um formão para que pudéssemos entrar na cabana de Kinkaid.
— Ainda bem que vocês se livraram. — Markham falava ligeiramente, mas havia expressão perturbada em seu rosto.
— Minha jurisdição não vai até Jersey, você sabe.
Vance chamou Currie e pediu martinis secos com canapés de caviar Beluga e um cálice de Dubonnet para ele mesmo.
— Se vocês vão tomar coquetéis... — suspirou, e deu de ombros — perdoem-me, mas não os acompanho.
Enquanto Markham e eu tomávamos nossos coquetéis, Vance, bebendo Dubonnet, contou em detalhes os acontecimentos do dia. Quando terminou, Markham sacudiu a cabeça desoladamente.
— O que — perguntou — você ganhou com tudo isso?
— O envenenador — disse Vance. — Mas conhecendo sua mente legalista, não lhe posso ainda apresentar o culpado. Você não poderia fazer nada. Um corpo de jurados talvez decidisse censurá-lo por ser ambicioso demais. — Ficou sério. — Alguma notícia de Hildebrandt?
Markham assentiu:
— Sim, mas não é final. Ele me telefonou antes que eu saísse do escritório e me disse estar trabalhando o dia todo, mas sem encontrar sinais de veneno. Parecia muito preocupado, e me informou que continuaria até a noite. Parece que ele já analisou o fígado, os rins e intestinos, sem quaisquer resultados; vai agora tentar o sangue, os pulmões e o cérebro. Aparenta extremo interesse pelo caso.
— Esperava algo mais palpável a esta altura — fez Vance, levantando-se e andando para cima e para baixo. — Não posso entender. Já deveria ter sido achado algum veneno. Toda a minha teoria está vacilando, Markham. Não tenho mais nenhuma idéia.
Sentou-se novamente e fumou em silêncio um pouco.
— Examinei o quarto de Virgínia hoje novamente, esperando achar algo, mas nada aconteceu, a não ser que o armário de remédios estava novamente arrumado artisticamente. Tem agora a mesma aparência de quando o vi pela primeira vez. Tudo no lugar, compondo um padrão equilibrado. Composição correta.
— Você achou o que lhe tinha perturbado a estética ontem? — perguntou Markham, sem muito interesse.
— Oh, sim. Havia um lugar faltando ontem — um quadrado branco. Apenas um rótulo de farmácia num vidro azul alto. Um vidro de colírio. Alguém evidentemente tirara o vidro, depois de minha primeira inspeção do armário, e o devolveu com a etiqueta no outro lado. Assim, ao invés de eu ontem ter visto um valor de composição de um vidro azul alto com um grande rótulo branco, só enxerguei o retângulo azul do vidro. Mas hoje o rótulo branco do vidro estava na frente como antes.
— Muito útil — comentou Markham ironicamente. — Isso, por acaso, pode ser considerado evidência legal?
Antes de Markham terminar de falar, Vance deu um pulo.
— Santo Deus! — Tentou manter a excitação ansiosa fora do tom de voz. — Esse rótulo ao contrário pode ser o que eu estava esperando quando lhe pedi que tirasse os guardas da casa dos Llewellyns. Não sabia o que poderia ocorrer se todos da casa estivessem livres de supervisão e restrições, mas achei que alguma coisa poderia haver. A mudança na posição do vidro é a única coisa que aconteceu. Será...
Deu meia volta e foi ao telefone. Momentos após, falava com o Dr. Hildebrandt no laboratório químico do necrotério da cidade.
— Antes de tentar alguma outra coisa, doutor, — disse — faça uma análise das conjuntivas, dos sacos lacrimais e da membrana mucosa do nariz. Teste com beladona. Pode evitar-lhe trabalho extra...
XV - O ENCONTRO ÀS DUAS HORAS
(Terça-feira, 18 de outubro — 9:30 horas)
Vance chegou ao escritório do procurador distrital às nove e meia da manhã seguinte. Depois do concerto de câmara da véspera, Markham fora direto para casa, e Vance ficara acordado até tarde, lendo trechos de vários livros médicos. Parecia nervoso e excitado, e depois de um uísque com soda, eu fui para a cama, deixando-o na biblioteca, mas eu ainda estava acordado quando ele foi deitar-se duas horas depois. Os acontecimentos do dia haviam estimulado meus processos mentais, e era quase de manhã quando adormeci. Às oito, Vance me acordou e perguntou se eu queria participar das atividades que ele planejara para o dia.
Levantei imediatamente e notei que Vance estava de ótimo humor, quando me reuni a ele para tomar café.
— Algo final e revelador deve acontecer hoje, Van — disse-me alegremente. — Estou contando com as conjuntivas e a psicologia do medo. Já contei a todos os relacionados com o caso tudo que sabia, à exceção de Kinkaid, mas confio em que Bloodgood lhe transmita tudo o que eu disse, em Atlantic City. Espero que algumas das sementes plantadas por meus comentários encontrem solo fértil e produzam fruto. Vamos ao escritório de Markham logo que você acabe com esses ovos quentes. Anseio por ver o relatório de Hildebrandt.
Quando chegamos, Markham estava há pouco no escritório. Estudava uma folha datilografada de papel, e não se levantou quando entramos.
— Você adivinhou — informou imediatamente a Vance.
— O relatório de Hildebrandt estava na minha mesa quando cheguei.
— Ah!
— Conjuntivas, sacos lacrimais e membrana mucosa do nariz saturados de beladona, que também havia no sangue. O médico diz agora não haver dúvida quanto à causa da morte.
— Muito interessante — observou Vance. — Ontem à noite li um caso de uma criança de quatro anos que morreu de instilação de beladona nos olhos.
— Mas sendo assim — objetou Markham — onde entra a sua água pesada?
— Oh, não há mistério. Não esperavam que soubéssemos da existência da beladona na membrana das pálpebras nem no interior do olho. Esperavam que mergulhássemos na água pesada, de cabeça, por assim dizer. A toxicologia do envenenador estava certíssima no sentido acadêmico, mas não pôde prever todas as eventualidades.
— Não vou fingir — disse Markham irritadamente — que entendo suas observações misteriosas. O relatório do Dr. Hildebrandt, porém, é suficientemente definitivo, mas não nos ajuda no sentido legal.
. — Não — concordou Vance. — Legalmente falando, torna o caso mais difícil. Poderia ter sido suicídio... mas não foi.
— E sua teoria — indagou Markham — é que a beladona também foi o veneno tomado por Lynn e Amélia?
— Oh, não. — Vance sacudiu a cabeça enfaticamente.
— Isso foi outra coisa. A parte angustiante da história toda é que não temos prova da intenção de matar em qualquer dos três envenenamentos. Mas pelo menos sabemos onde estamos agora, com o relatório de Hildebrandt. Alguma outra notícia, por acaso?
— Sim — fez Markham. — Uma novidade muito estranha. Não lhe atribuo qualquer importância maior, porém. Antes que eu chegasse ao escritório, Kinkaid telefonou de Atlantic City. Swacker falou com ele. O velho disse que foi chamado de volta a Nova York inesperadamente — um problema no Cassino — e que se eu queria encontrá-lo lá, junto com você. Diz ter mais informações sobre o caso...
Vance ficou agitado com isso.
— Ele marcou alguma hora?
— Disse a Swacker que estaria muito ocupado o dia todo, e que duas horas lhe seria conveniente.
— Você, por acaso, lhe telefonou de volta?
— Não. Ele disse a Swacker que ia tomar um trem em alguns minutos. De qualquer modo, eu não sabia onde ele iria parar. Além disso, não vi necessidade de lhe telefonar, e não lhe queria falar antes de conversar com você. Você parece ter algumas idéias sobre o caso que, reconheço, ainda não pude imaginar. O que acha do convite? Você julga que ele vá fornecer alguma informação vital?
— Não, acho que não. — Vance fechou os olhos e pensou alguns instantes. — Situação estranha. Pode ser que ele esteja preocupado com minha descoberta do laboratório de água pesada, e queira esclarecer sua situação, na hipótese de nós suspeitarmos dele. Não deve estar muito preocupado, porém; do contrário, viria aqui e não se arriscaria a que não comparecêssemos ao Cassino.
Vance sentou-se subitamente.
— Eta! Há outra forma de encarar o caso. Casual... sim, mas demais. Como o resto do problema. Ninguém está agindo racionalmente. Sempre algo de mais ou de menos. Não há equilíbrio.
Levantou-se e foi até a janela. O olhar era perturbado e a testa estava enrugada.
— Tenho esperado acontecer alguma coisa... mas ainda não é isso.
— Que achou que pudesse acontecer, Vance? — perguntou Markham, estudando-o com expressão preocupada.
— Não sei — suspirou Vance. — Quase tudo, menos isso.
— Pensei que fôssemos participar de algo emocionante, mas a perspectiva de um papo com Kinkaid às duas horas não me anima muito...
Vance virou-se de repente.
— Mas claro, Markham! Isso pode ser exatamente o que eu queria. — Seus olhos brilhavam. — Poderia ser, não sei. Estava buscando mais sutilezas, mas já é tarde para elas.
Deveria ter entendido isso. O caso atingiu a fase decisiva. Markham, vamos a essa entrevista.
— Mas, Vance... — o outro quis protestar, mas Vance o interrompeu.
— Não, não. Precisamos ir ao Cassino e saber a verdade. — Apanhou o chapéu e o paletó. — Apanhe-me à uma e meia.
Dirigiu-se à porta e Markham lhe perguntou:
— Tem certeza de que sabe onde está pisando? Vance parou, a mão na maçaneta.
— Tenho. Acho que tenho.
— E que vai fazer até à uma e meia? — indagou Markham, maliciosamente.
— Meu caro! Você é tão desconfiado... — A maneira de Vance mudou de repente e ele sorriu para Markham, bem-humorado. — Curioso, vou dar alguns telefonemas. Depois, vou à chefatura da Rua 240, para ter uma conversa muito franca com o sargento Heath. Vou fazer compras, e depois darei um pulo à casa dos Llewellyns. Depois vou almoçar no Scarpotti ovos à Eugénie, salada de alcachofra e...
— Adeus! — fez Markham. — Até à uma e meia!
Vance me deixou no edifício do Tribunal e fui direto a seu apartamento, onde me ocupei com certo trabalho de rotina que estava acumulado.
Pouco depois da uma, Vance voltou. Parecia distraído e, julguei, tenso mental e fisicamente. Falou pouco, e nem citou a situação que eu sabia o preocupava. Andou para cima e para baixo na biblioteca por uns dez minutos, fumando, e depois foi ao quarto, onde pude ouvi-lo telefonar. Não consegui distinguir o que dizia, mas quando voltou à biblioteca parecia de melhor humor.
— Tudo vai bem, Van — falou, e sentou-se em frente à sua aquarela favorita, de Cézanne. — Se conseguirmos resolver esse caso cinqüenta por cento tão bem quanto essa linda gravura...
Markham chegou exatamente à uma e meia.
— Aqui estou — anunciou agressivamente, denotando irritação — embora não veja por que não pudéssemos mandar Kinkaid ir ao escritório nos contar o que quer.
— Há uma boa razão — disse Vance, olhando-o afetuosamente. — Espero que haja. Não tenho certeza... francamente. Mas é nossa única oportunidade, e precisamos agarrá-la. Há um canalha à solta. Markham respirou fundo.
— Acho que sei como se sente. De qualquer modo, estou aqui. Não está na hora de sairmos?
Vance hesitou.
— E se houver perigo?
— Não se importe com isso — falou bruscamente Markham. — Estou aqui. Vamos embora.
— Há uma coisa que quero avisar a você e a Van — disse Vance. — Não bebam nada no Cassino — sob nenhum pretexto.
Descemos e entramos no carro; quinze minutos depois virávamos na Rua 73, Oeste, e nos dirigíamos para Riverside Drive. Vance estacionou na porta do Cassino, saltamos do carro e subimos os degraus até o vestíbulo envidraçado. Vance olhou o relógio.
— Exatamente um minuto depois das duas — observou. — Nas circunstâncias, estamos pontuais.
Apertou pequena campainha de mármore ao lado da porta de bronze e, tomando da cigarreira, tirou um Régie e o acendeu. Logo escutamos o cadeado abrindo, a porta girando, e entramos no vestíbulo semi-escuro.
Fiquei um pouco surpreso ao ver Lynn nos abrir a porta.
— Meu tio esperava que os senhores viessem — disse, cumprimentando-nos agradàvelmente. — Como está muito ocupado, pediu-me para ajudá-lo. Está esperando no escritório. Vamos subir?
Vance agradeceu, e Lynn mostrou o caminho para o fim do vestíbulo e até à escadaria. Atravessamos o Salão Dourado e, depois de bater gentilmente na porta do escritório de Kinkaid, Lynn a abriu e nos fez entrar.
Mal tinha percebido que Kinkaid não estava na sala, quando a porta bateu e a chave virou na fechadura. Virei-me apreensivamente, e lá estava Lynn, ligeiramente encurvado, com um revólver de aço na mão. Mexia a ponta do revólver para lá e para cá, e nos tinha os três sob mira. Uma transformação horrível ocorrera nele. Os olhos, entreabertos mas sinistros e frios, me deram um calafrio. Os lábios estavam contorcidos em um sorriso cruel. Havia uma confiança tensa no vaivém do corpo, do qual emanava a ameaça de um poder mortal.
— Grato por terem vindo — disse em voz baixa. — E agora, seus "patos", sentem-se naquelas poltronas contra a parede. Antes de "despachá-los", tenho algo a dizer-lhes. Mantenham as mãos no peito.
Vance olhou curiosamente para o homem e depois fixou o revólver.
— Não há nada a fazer, Markham — disse. — O Sr. Llewellyn é o mestre-de-cerimônias aqui.
Vance estava entre Markham e eu, e se sentou resignadamente na cadeira do meio. As três poltronas tinham sido colocadas em fila em uma extremidade do escritório. Markham e eu sentamos de cada lado de Vance e, seguindo-lhe o exemplo, colocamos as mãos na frente do corpo. Llewellyn moveu-se cautelosamente, como um gato, e ficou a cerca de 1,20 m de nós.
— Sinto, Markham, havê-lo metido nisto — desculpou-se Vance. — E você também, Van. Mas é tarde demais para arrependimentos.
— Jogue fora o cigarro — ordenou Lynn, olhando para Vance.
Vance obedeceu, e Lynn esmagou o cigarro com o pé, sem mesmo olhar para o chão.
— Não façam o menor movimento. Não quero matá-los antes de lhes contar umas coisinhas.
— Queremos ouvi-las — disse Vance, em voz curiosa. — Julguei ter percebido todo o seu jogo, mas você é mais esperto do que eu pensava.
Lynn deu um riso de mofa.
— Você não pensou o bastante. Achou que meu capital estava acabado, que eu teria de desistir, um perdedor. Mas ainda tenho seis fichas para jogar... estas seis aqui. — E bateu no cilindro do revólver com a mão esquerda. — E vou colocar duas delas em cada um de vocês. Acham que ganho a rodada?
Vance assentiu.
— Sim, pode ser que sim. Mas pelo menos você teve de desistir das sutilezas no fim e recorrer aos métodos diretos. Não foi, afinal de contas, um crime perfeito. Você teve de se tornar um pistoleiro para cobrir as apostas que perdeu. Não é um final muito satisfatório. Um pouco humilhante, na verdade, para quem se considera diabòlicamente astuto. Havia um desprezo enorme na voz de Vance.
— Sabe, Markham, — acrescentou — esse cavalheiro matou a esposa. Mas não foi bastante esperto e não atingiu a meta final. Seu sistema lindamente elaborado não deu certo em algum lugar.
— Oh, não — interrompeu Lynn. — Ele deu certo. Eu apenas tenho de jogar um pouco mais — a roleta vai dar mais uma volta.
— Mais uma volta. — Vance sorriu secamente. — Sim. Você vai precisar acrescer mais três assassinatos à sua tabela, para encobrir o primeiro.
— Não me importo com isso. Na verdade, até será um prazer — disse Lynn, rispidamente.
Parou, duro e alerta, sem o menor traço de nervoso. O revólver estava firme, o olhar era frio. Eu o observava, fascinado. Tudo nele parecia personificar morte rápida e inescapável. O homem tinha um poder que parecia duplamente terrível devido ao contorno suave, quase feminino dos traços. Havia uma propriedade nesse homem muito mais aterradora e sinistra do que os terrores conhecidos e compreensíveis da vida. Ele manteve os olhos em Vance e depois perguntou:
— Que sabe você? Eu irei preenchendo os claros. Levará menos tempo assim.
— Sim, você teria de satisfazer sua vaidade — retrucou Vance. — Eu contava com isso. Um fraco de coração.
Os lábios de Lynn se contorceram em um sorriso mau.
— Você acha que não terei coragem de matar os três?
— Tentou rir, mas sua garganta só emitiu um som gutural áspero.
— Não duvido — disse Vance. — Estou convencido de que você tenciona matar-nos. Mas isso só provará o desespero de sua fraqueza. É tão fácil atirar em pessoas. O bandido mais ignorante e covarde é muito eficiente a esse respeito. Precisa-se ter coragem e inteligência para se atingir um fim, sem a violência da ação física direta e, ao mesmo tempo, para se escapar da revelação do crime.
— Fui mais esperto que vocês todos — gabou-se Lynn.
— E este pequeno clímax aqui é mais sutil do que julgam.
Tenho um álibi perfeito para hoje à tarde. Se lhes interessar, estou agora dirigindo por Westchester com minha mãe.
— Sim, claro. Desconfiei de algo semelhante. Sua mãe não estava em casa quando fui lá de manhã...
— Você foi lá em casa hoje?
— Sim, dei uma passada. Infelizmente, sua mãe juraria em falso, por você. Desde o início ela desconfiou de você, e tem feito o possível para encobri-lo e jogar a culpa em outra pessoa. Sua irmã, também, teve um palpite da verdade.
— Pode ser que sim — rosnou o homem. — Desconfianças não fazem mal a ninguém. É a prova que conta — e ninguém pode provar nada.
Vance assentiu.
— Sim, é fato. A propósito, você foi a Atlantic City ontem à noite, não foi?
— Claro. Mas ninguém sabe que estive lá. Simplesmente foi telefonar para fazer um favor a meu tio. Simples, e deu certo, não?
— Sim, aparentemente. Estamos aqui, se é isso que quer dizer. Foi sorte sua que o secretário do Sr. Markham não conhecesse sua voz ou a do Sr. Kinkaid.
— Por isto tive o cuidado de ligar antes da chegada do eminente procurador distrital ao escritório. — Falava com infinito sarcasmo e sorria exultante.
. Vance fez um gesto de cabeça, os olhos fixos no revólver.
— É óbvio que você entendeu tudo o que lhe disse ontem à noite em sua casa.
— Foi fácil — disse Lynn. — Sabia, quando você fingia se estar dirigindo a Bloodgood, que estava na realidade falando para mim, tentando contar-me o quanto sabia. E você pensou que eu fosse tentar logo outra jogada para comprovar seu conhecimento, não? — Sorriu sarcàsticamente. — Bem, eu fiz a jogada, não é? Consegui reuni-los aqui... e vou matá-los. Mas não era exatamente a jogada que você esperava...
— Não — concordou Vance. — Não é. O telefonema e o encontro me intrigaram muito. Não compreendi por que Kinkaid se pudesse alarmar. Mas diga-me, Lynn: como sabe que esta sua festinha terá êxito? Alguém no edifício poderá ouvir os tiros...
— Não! — Lynn sorriu com auto-satisfação. — O Cassino está fechado indefinidamente, e não há ninguém aqui. Kinkaid e Bloodgood estão longe. Tirei uma chave dos aposentos de Kinkaid há algumas semanas, caso ele tentasse reter meus lucros em alguma ocasião. — Novamente fez um som gutural na garganta. — Estamos isolados aqui, Vance, sem perigo de interrupção. A festa será um êxito... para mim.
— Vejo que você planejou tudo detalhadamente — murmurou Vance desanimadamente. — Você parece ter controle total da situação. Que está esperando?
Lynn riu.
— Estou-me divertindo e tenho interesse em saber quanto do meu plano você conseguiu decifrar.
— Aborrece-lhe saber que uma pessoa pudesse ter deslindado seu plano, não é? — provocou Vance.
— Não — resmungou Lynn. — Apenas me interessa. Sei que você entendeu um pouco dele e lhe direi o resto antes de matá-lo.
— Isso, claro, se deve creditar à sua mania de gabar-se — fez Vance. — Seu ego terá prazer...
— Não importa! — O tom gélido da voz de Lynn interrompeu-o. — Conte sua história. Quero escutá-la. Enquanto a estiver contando, não morrerá; e todos gostam de se agarrar à vida, mesmo que por minutos... Mantenham as mãos em cima da poltrona — ou os matarei em um segundo.
XVI - A TRAGÉDIA FINAL
(Terça-feira, 18 de outubro — 14:15 horas)
Vance olhou para Lynn com tranqüilidade crítica por alguns momentos, depois disse:
— Sim, você tem razão. Enquanto eu continuar a falar, você me deixará viver, pois acha que posso alimentar sua vaidade...
— Vance! — Markham falou pela primeira vez desde que entramos no Cassino. — Por que servir de instrumento a esse assassino? Ele já resolveu, e não há o que fazer. — O tom era brusco e tenso, mas denotava coragem e resignação, o que aumentou minha admiração por ele.
— Pode ser que você esteja certo, Markham — disse Vance, olhando para Lynn. — Mas não pode haver mal em falar com nosso carrasco antes que ele puxe o gatilho.
— Ande, fale! — Lynn falou com calma exagerada. — Ou devo eu contar a história?
— Não, não é preciso, exceto por alguns detalhes. Eis minhas deduções: você se decidiu a livrar-se de sua mulher e culpar seu tio. Sua mulher era um estorvo: você e sua mãe não gostavam dela, e você teria mais certeza de uma herança total, se ela estivesse fora do caminho. Quanto a Kinkaid, você jamais o estimou, e, eliminando-o como possível herdeiro, estaria também anulando uma fonte de irritação. Você não gosta de seu tio porque ele lhe é muito superior e demonstra abertamente seu desprezo por você. É a reação natural de gente mesquinha como você. Então você concebeu um plano, com sua mente vaidosa e egoísta, para executar o crime perfeito, que eliminaria todos os fatores que se atravessassem no seu caminho. E planejou o golpe, segundo idealizou, para que o que acontecesse não indicasse você como responsável. Idéia inteligente, mas você não teve inteligência para aperfeiçoá-la.
Vance parou, fixando Lynn; depois prosseguiu:
— Você concebeu o veneno como o agente criminoso porque era indireto e, portanto, não precisava de coragem. Isso vai de acordo com sua natureza. Você sabia que Virgínia estava pingando colírio todas as noites e lera nos livros de seu pai sobre toxicologia — que você provavelmente consultou unicamente para servir a seu objetivo — que era possível haver morte através da absorção de beladona pelas membranas mucosas dos olhos e do nariz. Foi simples para você dissolver uma quantidade de beladona ou tabletes de atropina no colírio. Mas você não sabia o bastante sobre os modernos métodos toxicológicos — talvez porque os livros de seu pai fossem antigos — e ignorava que hoje o estômago não é o único órgão que o toxicólogo analisa. Havia uma noção errada que só uma análise do estômago era necessária para provar ou não um suposto envenenamento, mas atualmente os livros de toxicologia detalham mais a matéria. Você deveria ter lido Webster, Ross, Withaus e Becker, ou Auterrieth. Contudo, você nos deu bastante trabalho até que minha atenção foi atraída pelo vidro de colírio no armário de remédios de seu banheiro...
— O quê? — Os olhos de Lynn se abriram mais, porém não cessaram de vigiar os três prisioneiros. — Você me perguntou uma vez sobre esse armário.
— Sim. Na época, porém, eu ainda tateava. Depois que você tirou o vidro de colírio e o esvaziou, domingo de manhã, quando voltou do hospital, você o pôs de volta com a frente para trás, de modo que o rótulo não ficou visível. Notei algo errado, mas não sabia o quê. Por isso é que todos de sua casa tiveram perfeita liberdade de ação durante todo o domingo. Aliás, você foi à farmácia no domingo — não foi? — e encheu o vidro de colírio novamente, agora com a solução original inofensiva, temendo que um vidro vazio chamasse a atenção.
— Sim. Continue.
— Muito grato por ter colocado o vidro de volta com o rótulo para a frente. Isso me deu a pista... e a análise química do toxicólogo comprovou minha teoria. Soube então que sua mulher morrera da absorção de beladona pelos olhos e que alguém da casa estivera manipulando o vidro de colírio para encobrir as pistas.
— Muito bem, acertou. Suponho que pense que Amélia e eu fomos também envenenados com beladona.
— Não, claro que não. Até eu sei algo de toxicologia para não pensar assim. Você se envenenou com nitroglicerina.
A cabeça de Lynn bambeou um pouco.
— Como sabe? — perguntou, mal movendo os lábios.
— Simples dedução — respondeu Vance. — O Dr. Kane me disse que você sofria do coração e que lhe havia receitado drágeas de nitroglicerina. Você provavelmente tomou demais uma vez e ficou atordoado; então estudou a ação da nitroglicerina e descobriu que uma dose excessiva o derrubaria, sem causar nenhum mal duradouro. Então, depois de haver composto o cenário em casa, você tomou uma boa dose das drágeas e saiu um pouco de cena, com a casa lotada. Não havia forma de determinar o veneno tomado, evidente. Os sintomas eram de simples desfalecimento. Calculei que você deveria ter feito isso quando o Dr. Kane me falou das drágeas de nitroglicerina.
— E Amélia?
— A mesma coisa. Só que o tiro saiu pela culatra. Você não destinava o veneno a ela. Você planejara que sua mãe tomasse a água da garrafa na qual você dissolvera a nitroglicerina, mas sua irmã lhe atrapalhou os planos.
— Você acha que eu queria envenenar mamãe?
— Não, pelo contrário — disse Vance. — Você queria que ela fosse uma das vítimas do enredo — como você — para que fosse eliminada como provável suspeita.
— Sim! — Uma luz curiosa brilhava nos olhos de Lynn. — Minha mãe precisava ser protegida. Eu tinha de pensar nela e em mim. Muita gente sabia que ela não gostava de minha mulher, e ela é agressiva e rude de muitas formas. Ela poderia ter sido uma das suspeitas.
— Isso é óbvio — retrucou Vance. — E quando você soube que sua irmã tomara a nitroglicerina, tentou outro meio de eliminar sua mãe do rol dos suspeitos. Quando nos escutou subir a escada no domingo de manhã, encenou uma comovente cena de Édipo em nosso benefício, fingindo pensar que sua mãe pudesse ser culpada. Uma dupla sutileza. Objetivava também a eliminá-lo dos suspeitos e deu à sua mãe a oportunidade de nos convencer que era inocente. Foi um pouco covarde, pois podia, na verdade, tê-la envolvido. Mas foi uma cena eficaz — em sentido dramático, claro. Há mais alguma coisa que você queria saber sobre minhas conclusões?
Lynn sorriu maliciosamente um instante, depois perguntou:
— Que pensou você sobre as drágeas de rinita e o bilhete suicida?
— Exatamente o que você queria que eu pensasse — disse Vance. — Eles foram um dos principais elementos de seu enredo. Reconheço ter sido um golpe inteligente, mas fui um pouco mais longe do que você tencionava. Você queria que eu aceitasse Kinkaid como culpado, mas vi logo que ele era seu bode expiatório.
Lynn franziu a testa e os olhos se estreitaram perigosamente. Havia ódio na sua expressão. Depois sorriu astuciosamente.
— Então você logo percebeu o bilhete suicida, hem? Sim, eu queria enredar Kinkaid, mas você pensou logo nele?
— Mais ou menos — reconheceu Vance. — Muito óbvio, porém.
— E a água pesada?
— Oh, sim. Foi a decorrência natural, após um pouco de raciocínio. Como você pretendia. Todo seu plano ficou transparente logo que um ou dois dos fatores principais se resolveram. A estrutura foi bem concebida, mas alguns detalhes não convenceram. Falta de conhecimento e pesquisa de sua parte. Bastante infantil, sabe. Desde o início pensei em você como suspeito.
— Mentira! — rosnou Lynn. — Conte-me seu raciocínio.
Vance respirou profundamente e encolheu os ombros.
— Como você disse, enquanto eu continuar a falar permaneço vivo. A gente sempre aproveita uns instantes a mais de vida. E eu não suportaria deixar este mundo sem lhe tirar a ansiedade mental.
Sua voz se tornara tão fria e firme quanto a de Lynn.
— Sua carta a mim, implorando minha presença no Cassino sábado à noite, foi seu primeiro erro de cálculo. Foi inteligente, porém, mas não o bastante. Obviamente insincera — como premeditado — mas dizia muita coisa, revelando mais ou menos o caráter do escritor. Um cérebro astuto e efeminado o concebeu, o que indicou o tipo de pessoa a procurar. Sinceramente, não era preciso que eu testemunhasse seu desfalecimento no Cassino: qualquer um me poderia ter dado os detalhes. Você datilografou a carta e a nota do suicídio, aliás muito mal, de modo a indicar não ter familiaridade com a máquina. Depois pôs a carta em Closter, para incriminar Kinkaid e chamar a atenção para a cabana de caça de seu tio, lá perto. Mas isso, também, foi exagero: se seu tio tivesse escrito a carta, ele a mandaria de qualquer lugar, menos de Closter. É um pequeno detalhe, porém, e não o incrimina. O conteúdo do vidro de rinite foi esvaziado para dar uma espécie de substanciação da culpa de Kinkaid. Você sabia, claro, que não se acharia beladona no estômago, e isso indicaria um suicídio. Sua manipulação das garrafas dágua visou a dar a impressão de que foi através da água que os venenos foram administrados. Esse foi o segundo sinal — o primeiro foi o carimbo de Closter — que levou ao motivo da água pesada. Uma vez descoberta a teoria suicida e a fabricação de água pesa"da por Kinkaid, as suspeitas contra ele seriam bem fortes. E você e sua mãe estariam automaticamente eliminados — desde que ela tivesse tomado a nitroglicerina que você lhe preparara... Meu raciocínio está certo?
— Sim — admitiu Lynn raivosamente. — Continue.
— Ninguém, claro, — prosseguiu Vance — sabe o efeito que a água pesada tem no corpo humano, se tomada internamente em grandes quantidades, pois ainda não há disponibilidade suficiente para experimentos desse tipo, mesmo se fosse possível realizá-los. Mas tem havido especulação considerável sobre os possíveis efeitos tóxicos da água pesada e, embora não tivesse sido possível provar cientificamente que você, sua mulher e sua mãe a tivessem bebido — se ela tivesse tomado a água e não sua irmã — as suspeitas contra Kinkaid seriam fortíssimas. E essa suposição, junto com as demais evidências que você produziu, o teriam colocado em uma situação difícil de sair. Você sabia, claro, que a natureza do veneno supostamente dado a você e a sua mãe não seria determinada porque vocês escaparam aos efeitos fatais. De modo que seu querido tio Richard ia entrar bem... Aliás, como descobriu o laboratório secreto de Kinkaid na cabana? Os olhos de Lynn brilharam astutamente.
— Há uma lareira que vai do meu quarto ao dele, e várias vezes consegui escutá-lo conversar com Bloodgood.
— Ah! — sorriu Vance com desprezo. — Então você, além de tudo, escuta os assuntos alheios! Seu caráter é admirável, Lynn.
— Pelo menos atinjo meus fins — retrucou o homem, sem o menor sinal de vergonha.
— Parece assim. Talvez eu seja excessivamente crítico, mas há uma coisa que eu admito não ter entendido. Talvez você me faça o favor de esclarecê-la. Por que você simplesmente não envenenou sua mulher e seu tio, poupando-se o trabalho de todas as sutilezas intrincadas?
Lynn fez uma careta tolerante.
— Isso não teria sido tão fácil de arquitetar... Kinkaid está sempre alerta. Ademais, a morte dele e a de minha mulher poderiam encaminhar as suspeitas para mim. Por que me arriscar? De qualquer forma, prefiro sentar-me e vê-lo suar. Arruiná-lo primeiro e depois mandá-lo para a cadeira elétrica. — O fanatismo se expressava nos olhos.
— Sim — assentiu Vance — compreendo seu ponto de vista. Jogando no seguro e obtendo resultados mais satisfatórios. Muito inteligente e sutilmente concebido. Porém podíamos não perseguir a idéia da água pesada, sabe.
— Se não o tivesse feito, eu o teria ajudado. Porém eu contava com você. Por isso é que lhe mandei a carta: sabia que à polícia escaparia a idéia da água pesada; mas sempre admirei o modo por que sua mente trabalha em suas investigações. Você e eu realmente temos muitas qualidades em comum.
— Sinto-me abominàvelmente lisonjeado — murmurou Vance. — E você indicou o motivo da água pesada muito bem, sabe. Porém Bloodgood e Kinkaid desempenharam, em suas mãos, brilhantemente o primeiro ato do seu terrível drama aqui no Cassino.
Llewellyn riu à socapa:
— Não foi mesmo? Foi uma sorte danada. Mas poderia não haver acontecido. De modo que ordenei água pura para que você me ouvisse. E teria feito um barulhão dos diabos a respeito da água tônica, se Bloodgood não houvesse subitamente se tornado Chesterfieldian. Deve lembrar-se, também, que esperei até Kinkaid estar perto da mesa antes de ordenar minha segunda bebida.
— Sim, notei isso. Muito esperto. Você jogou bem suas cartas. Pena que não tivesse lido um pouco mais sobre toxicologia.
— Isso agora já não importa. — Llewellyn fungou depreciativamente. — Foi melhor assim. Kinkaid terá três cadáveres bem aqui no seu escritório para explicar... Não terá uma única chance no mundo, pois mesmo que tenha um álibi, não poderá provar que não mandou um de seus capangas matá-los. E isso é melhor do que tê-lo preso sob suspeita e julgado sob provas circunstanciais de um envenenamento em Park Avenue.
— De modo que também nós fomos joguetes em suas mãos — observou Vance desanimadamente.
— Isso mesmo... e lindamente! — Llewellyn olhou de esguelha para Vance, em triunfo. — As cartas têm trabalhado para mim, nestes últimos dias. Mas sorte e inteligência andam sempre juntas.
— Oh, é verdade... E quando você nos haja assassinado irá juntar-se à mamãe no campo para estabelecer um álibi indestrutível. O secretário de Markham testemunhará que Kinkaid nos marcou encontro aqui às duas horas. Você dará testemunho de minha conversa com Bloodgood na noite passada, e Kane confirmará isso. Você falará também tudo que sabe a respeito da água pesada, e Arnheim terá de admitir que eu estive na cabana de caça. Nossos corpos serão encontrados aqui; e desde que tudo apontará diretamente para Kinkaid, ele será preso. — Vance sacudia a cabeça admirativamente. — Sim. É como você diz. Ele não terá uma chance, mesmo que eventualmente prove que ele próprio o fez ou mandou que alguém fizesse por ele. Em qualquer caso, está perdido... Muito lindo. Não vejo uma só falha no raciocínio.
— Não. — Llewellyn sorriu. — Eu mesmo estou-me admirando!
Markham olhava-o, raivoso; e explodiu:
— Você é um demônio terrível!
— Palavras, Sr. Markham... apenas palavras! — retrucou-lhe o outro, maciamente.
— Sim, Markham — falou Vance. — Tais epítetos apenas lisonjeiam o cavalheiro.
Os lábios de Llewellyn se encurvaram de modo hediondo:
— Há mais alguma coisa que não compreende, Vance? Terei prazer em explicar.
— Não. — Vance sacudiu negativamente a cabeça. — Penso que o terreno está muito bem preparado.
Llewellyn deu um hediondo sorriso, com triunfante auto-satisfação:
— Bem, consegui; e prosseguirei com a coisa. Planejei tudo, do começo ao fim. Realizei uma morte de forma nunca antes realizada. Eu lhes forneci quatro suspeitos, mantendo-me ao fundo, ignorado. Não me incomodava até onde vocês fossem: quanto mais longe chegassem, mais afastados estariam da verdade...
— Você esquece que por fim o descobrimos... — falou Vance casualmente.
— Mas esse é o meu maior triunfo! — gabou-se Llewellyn. — Enganei-me em um ou dois pequenos detalhes em meu conhecimento sobre venenos, dando-lhe assim uma chave. Mas fui de encontro a suas suspeitas com um golpe ainda mais inteligente. O que você considera meu erro eu transformei no grande triunfo culminante... — Havia um brilho maníaco de egoísmo em seus olhos fixos. — E agora, fecharemos o livro!
Os músculos de seu rosto relaxaram numa fria máscara mortal. Havia uma cintilação quase hipnótica em seus desbotados olhos azuis. Deu um curto passo para nós e com marcada deliberação apontou o revólver. A ponta se dirigia diretamente ao estômago de Vance...
Em qualquer grande momento final dessa espécie, em que a vida que conhecemos está a ponto de ser varrida, c quando aquilo a que chamamos consciência está a ponto de desaparecer, é curioso como nossas mentes recebem e registram os simples sons comuns do mundo em torno de nós — sons que mal identificamos no curso comum dos acontecimentos. Enquanto estava ali sentado, naquele terrível momento, de algum modo estava cônscio de que, a distância, uma voz aguda de mulher estava chamando; podia ouvir o som do apito de um barco no Hudson; estava cônscio de que lá fora na rua, os freios de um automóvel tinham sido violentamente acionados; dava-me conta do ruído surdo do tráfego na avenida próxima...
Vance se ergueu a meio em sua cadeira e se inclinou para a frente. Seus olhos se estreitaram, mas havia um sorriso desdenhoso em seus lábios. Por um momento pensei que se preparava para lançar-se rapidamente sobre Llewellyn. Porém, se tal fora sua intenção, ele se atrasou: nesse momento, Llewellyn, o revólver ainda firmemente apontado para o estômago de Vance, deu ao gatilho duas vezes em rápida sucessão. Houve duas ensurdecedoras detonações no pequeno escritório e, acompanhando-as, duas faixas de fogo brilharam na ponta do revólver de Llewellyn. Uma onda de horror passou sobre mim e paralisou cada músculo de meu corpo...
Os olhos de Vance se fecharam lentamente. Levou uma das mãos à boca. Tossiu, sufocado. A mão descaiu em seu colo. Ele parecia vacilante, sua cabeça pendeu. Então escorregou lentamente para diante e ficou todo retorcido aos pés de Llewellyn. Meus olhos, que pareciam querer saltar das órbitas, estavam fixos em Vance, num horror selvagem.
Llewellyn relanceou-lhe o olhar rapidamente, sem mudar de expressão. Deu um passo para um lado, ao mesmo tempo que mirava para Markham, que parecia petrificado.
— Levante-se! — ordenou Llewellyn.
Markham tomou fôlego vigorosamente e se levantou. Os ombros estavam erguidos, desafiantes, e nem por um momento abaixou o olhar firme e agressivo.
— Você intimamente não passa de um policial — disse Llewellyn. — Acho que vou baleá-lo pelas costas. Vire-se.
Markham não se moveu.
— Não para você Llewellyn — retrucou, calmamente. — Receberei de frente tudo que queira dar-me.
Enquanto ele falava, ouvi um curioso ruído deslizante na outra extremidade do pequeno escritório, e instintivamente olhei nessa direção... e vi algo que me admirou: um dos painéis de madeira na parede oposta desapareceu e, na abertura, estava Kinkaid, uma grande automática na mão. Caminhava lentamente para diante; e tinha a arma apontada diretamente para Llewellyn.
Llewellyn também ouviu o ruído, pois virou-se parcialmente e relanceou os olhos por cima do ombro. Ouviram-se duas explosões. Porém, desta vez, da arma de Kinkaid. Llewellyn se deteve em meio ao movimento. Seus olhos se abriram desmesuradamente, num espanto, e o revólver que segurava caiu-lhe da mão. Ficou imóvel, como que gelado, por talvez dois segundos. Depois, todos os seus músculos amoleceram: a cabeça descaiu, e ele rolou para o chão. Ao ver o que acontecera, Markham e eu ficamos espantados demais para mover-nos ou falar.
No breve, terrível silêncio que se seguiu, aconteceu uma coisa extraordinária. Por um momento, senti como se estivesse testemunhando alguma cena mágica; parecia estar acontecendo um milagre fantástico: meu olhar fascinado acompanhara a queda de Llewellyn e depois se moveu para a forma imóvel de Vance... e então Vance se moveu e se levantou vagarosamente. Tirando o lenço do bolso interior do paletó, começou a espanar-se.
— Muitíssimo obrigado, Kinkaid — murmurou. — Você nos poupou uma grande quantidade de aborrecimentos. Ouvi seu carro e procurei manter o menino ocupado até que você chegasse aqui em cima. Tinha a esperança de que, ao ouvir os tiros, você fizesse o mesmo com ele. Por isso é que o deixei pensar que me matara.
Kinkaid apertou os olhos, zangado. Depois sua expressão mudou, e ele riu asperamente.
— Queria que eu atirasse nele, não? Por mim, está muito bem. Grato pela oportunidade... Desculpe não haver chegado antes... Mas o trem estava um pouco atrasado e o meu táxi ficou retido no tráfego.
— Por favor, não se desculpe — falou Vance. — Você chegou no momento exato. — Ajoelhou-se junto de Llewellyn e lhe suspendeu a mão: caiu mole. — Está morto e bem morto... Você lhe atravessou o coração. É um excelente atirador, Kinkaid.
— Sempre fui — replicou o outro, secamente.
Markham ainda estava, como um sonâmbulo: pálido e transpirando. Fez um esforço para falar.
— Você... tem certeza de que está bem, Vance?
— Ora, completamente! — Vance sorriu. — Nunca estive melhor. Terei de morrer um dia, mas, realmente, não gostaria que um degenerado patológico como Llewellyn escolhesse a data para o meu falecimento. — Seus olhos se viraram contritamente para Markham: — Estou terrivelmente triste por lhe haver causado, e a Van, toda essa agitação. Mas tinha de gravar a confissão de Llewellyn nos registros. Não tínhamos nenhuma evidência, nenhuma prova esmagadora contra ele, como vocês sabem.
— Mas... mas... — Markham estremeceu, aparentemente ainda incapaz de aceitar a surpreendente situação.
— Oh! O revólver de Llewellyn só tinha cartuchos de festim — explicou Vance. — Verifiquei e providenciei isso hoje pela manhã quando visitei o domicílio dele.
— Você sabia o que ele ia fazer? — Markham olhou incrèdulamente para Vance e esfregou vigorosamente o lenço no rosto.
— Suspeitei da coisa... — disse Vance, acendendo um cigarro.
Markham "arriou" na cadeira, como um homem exausto.
— Tomarei um conhaque — anunciou Kinkaid. — Acho que todos tomaríamos uma bebida. — E se dirigiu à porta que levava ao bar.
Os olhos de Markham ainda estavam pregados em Vance, mas já haviam perdido aquela expressão de espanto:
— O que quis dizer ainda agora quando falou que tinha de pegar a confissão de Llewellyn e gravá-la?
— Exatamente isso — retrucou Vance. — E isto me recorda. Preciso desligar o ditafone.
Encaminhou-se para um pequeno quadro acima da secretária de Kinkaid e o retirou da parede, mostrando um pequeno disco de metal.
— É isto, rapazes — disse, aparentemente falando com a parede. Depois cortou os dois arames atados ao disco.
— Vê, Markham, quando me falou esta manhã do suposto telefonema de Kinkaid, não pude entender a coisa. Porém, logo me acudiu que não fora absolutamente Kinkaid quem telefonara, e sim Llewellyn. Dele é que eu esperava alguma ação, após as observações que lhe pingara no ouvido indiretamente a noite passada. Admito que não esperava nada de tão conclusivo e final como esta pequena representação: por isso é que a princípio fiquei tão surpreso. Porém, desde que a luz brilhou em minha mente, percebi que a história era lógica e sutil. Premissa: você e eu estávamos no caminho certo. Conclusão: você e eu tínhamos de ser arredados do caminho. Assim, visto que estávamos sendo atraídos para o Cassino, não era particularmente difícil acompanhar o silogismo de Llewellyn. Eu estava certíssimo de que ele fora realmente a Atlantic City para dar o telefonema — é difícil, sabe, simular, de uma estação local, um chamado de longa distância. Portanto, eu sabia ter pela frente várias horas para fazer os meus preparativos. Imediatamente, telefonei a Kinkaid em Atlantic City, contei-lhe todas as circunstâncias e pedi-lhe que viesse de imediato para Nova York. Por ele, soube, também, como entrar no Cassino para instalar um ditafone. Por isso é que chamei o vigoroso sargento. Ele e alguns dos rapazes da Divisão de Homicídios e um estenógrafo estão no apartamento da casa vizinha, e anotaram tudo que foi dito aqui esta tarde.
Sentou-se na poltrona em frente a Markham e deu uma longa tragada em seu cigarro; e continuou:
— Admito que não estava muito certo sobre o método que Llewellyn usaria para afastar-nos de seu caminho e atirar as suspeitas sobre o tio. Por isso é que o preveni e a Van para que não bebessem nada aqui — havia a possibilidade de que ele tornasse a empregar veneno. Mas pensei que ele poderia usar seu revólver; de modo que comprei uma caixa de cartuchos de festim, fui à casa dele esta manhã sob um pretexto perfeitamente tolo e, quando fiquei sozinho no seu quarto, substituí os cartuchos do revólver pelos de festim. Havia a possibilidade de que ele notasse a substituição se examinasse o revólver de frente; mas soube que os de festim estavam em seu lugar antes de sentar-me a seu lado há pouco. De outra maneira eu teria aplicado, imediatamente, um pouco de judô no rapazinho...
Kinkaid voltou ao escritório com uma garrafa de conhaque e quatro copos. Descansando a bandeja na secretária, encheu os copos e nos convidou a servir-nos.
— Devo fazê-lo, Vance? — perguntou Markham, com um sorriso. — Você nos disse para não bebermos nada aqui...
— Agora está tudo bem. — Vance tomou um gole do seu Courvoisier. — Desde o princípio considerei o Sr. Kinkaid nosso mais valioso aliado.
— Ora, vá para o diabo! — resmungou Kinkaid, bem-humorado. — Afinal de contas você me venceu!
Nesse momento nos chegou o barulho de uma porta batendo, seguido por pesadas passadas na escada. Kinkaid foi até a porta do escritório que levava ao Salão Dourado e a abriu. No umbral estava Heath, um Colt na mão. Por trás dele, amontoados, estavam Snitkin, Hennessey e Burke. Os olhos de Heath, fixos em Vance, estavam arregalados num espanto infantil.
— O senhor não está morto! — quase gritou.
— Longe disso, sargento; mas, por favor, vire pra lá esse revólver: por hoje, chega de tiros!
A mão de Heath escorregou para o lado, porém seus olhos espantados não desfitavam Vance. Disse:
— Sabe, o senhor me disse para eu não me perturbar com coisa alguma que ouvisse pelo ditafone, e para permanecer na escuta até que me desse o sinal combinado. Mas quando ouvi o que esse garoto disse, e logo os tiros e o senhor caindo, dei a coisa por terminada.
— Muita bondade sua, sargento, mas desnecessária. — Mostrou a figura caída de Lynn Llewellyn. — Aí está o valentão. Nenhuma complicação. Um tiro no coração. Morto. Você terá de levá-lo para o necrotério, claro. Mas será tudo. A coisa saiu maravilhosamente bem. Nenhum distúrbio. Nada de julgamento. Nada de júri. Mas a Justiça triunfante. A vida continua. Mas por quê?
Duvido que Heath haja entendido ou sequer ouvido o que Vance dizia: continuava a olhá-lo, boquiaberto.
— O senhor está certo... de não estar ferido? — As palavras pareciam sair-lhe dos lábios numa automática expressão de sua apreensão.
Vance depositou na mesa o seu copo de conhaque e, caminhando para Heath, pôs-lhe afetuosamente a mão no ombro:
— Completamente certo — disse, com brandura. Balançou a cabeça, em comiseração. — Desculpe, sargento, desapontá-lo assim!...
* * *
O assassinato de Virgínia Llewellyn, como vocês talvez recordem, ocupou as primeiras páginas dos jornais do país durante vários dias, mas logo cedeu lugar a outros escândalos. A maioria dos fatos mais importantes do caso se tornou do conhecimento público. Porém não todos eles. Kinkaid foi, naturalmente, absolvido da morte de Llewellyn: Markham providenciou para que o caso nem sequer fosse a julgamento.
O Cassino foi fechado permanentemente após um ano, e a bela mansão de arenito acinzentado foi derrubada para dar lugar à construção de um moderno arranha-céu. A esse tempo já Kinkaid fizera uma pequena fortuna; e desde então o fabrico de água pesada era sua ocupação.
A Sra. Llewellyn se recuperou do choque da morte de seu filho em muito menos tempo do que eu julgara possível. Lançou-se mais energicamente que nunca em trabalhos de assistência social: freqüentemente vejo seu nome nos jornais, em conexão com atividades filantrópicas. Bloodgood e Amélia Llewellyn se casaram uma semana depois que Kinkaid fechou o Cassino para sempre e agora moram em Paris. (Incidentalmente: a Sra. Bloodgood desistiu de sua carreira artística.) Recentemente encontrei o Dr. Kane na Park Avenue. Ostentava uma aparência de grande importância e me informou que ia correndo para o seu gabinete para um tratamento de diatermia numa paciente.
{1} Os registros da Expedição Conjunta à Mesopotâmia, empreendida pela Universidade da Pensylvania e o Museu Britânico, sob a direção do Dr. C. Leonard Woolley, apareceram recentemente.
{2} Vance possuía alguns cães de caça excepcionalmente bons, que lhe haviam conquistado alguns prêmios notáveis em vários concursos no este. Haviam sido treinados por um dos maiores peritos do país, tendo voltado para Vance perfeitamente domesticados para o trabalho de campo, vance tinha grande satisfação em cuidar pessoalmente dos cães.
{3} Interessante notar que o mesmo método de seleção e treinamento de carteadores foi adotado em Água Caliente.
{4} Kinkaid até empregava as rodas de roleta européias, com apenas um simples "O".
{5} Imagino que Kinkaid teve a idéia desses dois gigantescos atendentes inspirado nos impressionantes gigantes no hall de entrada do salão de jantar do Savoy, em Londres.
{6} Em francês: O senhor se compromete e depois vê... Mas o que espera ver, senhor? (N. do T.)
{7} Snitkin e Hennessey eram dois membros da Divisão de Homicídios que haviam participado em vários dos casos criminais de Vance.
{8} O sargento Ernest Heath, da Divisão de Homicídios, estivera oficialmente encarregado de todos os casos que Vance investigara.
{9} A mesma sala — passou-me pela memória — onde foi jogada a dramática partida de pôquer do caso da Canária.
{10} Dr. Emanuel Doremus, o Médico Legisla Chefe de Nova York.
{11} Secretário de Markham.
Na carreira notável do detetive Philo Vance, o chamado Crime do Cassino constituiu, talvez, o problema mais diabólico e sutil, o desafio mais completo aos seus poderes de intuição e análise.
Digamos logo que se tratou de um crime de envenenamento, mas não um caso comum... Envolveu, da parte do criminoso, uma técnica tão eficaz que isso o colocou muitos furos acima dos mais famosos crimes do gênero.
Sem dúvida, de um ponto de vista puramente objetivo, o caso não foi tão espetacular assim e poderia até ser considerado comum. Mas o nosso amigo assassino procurou embaralhar cuidadosamente todas as pistas, desviando as suspeitas e dissimulando os verdadeiros motivos do crime.
https://img.comunidades.net/bib/bibliotecasemlimites/8_O_CRIME_DO_CASSINO.jpg
I - CARTA ANÔNIMA
(Sábado, 15 de outubro — 10:00 horas)
Foi no frio outono que se seguiu ao espetacular crime do Dragão que Philo Vance teve de enfrentar o que foi, provavelmente, o mais sutil e diabólico problema criminal de sua carreira. Diferente de seus outros casos, esse mistério foi de envenenamento. Porém não um caso comum de envenenamento: incluía uma técnica avançada e muito elaborada, a ser equiparada à de crimes tão famosos como os casos de Cordelia Botkin, Molineux, Maybrick, Buchanan, Bowers e Carlyle Harris.
A designação que lhe foi dada pelos jornais — o crime do Cassino — estava tecnicamente errada, embora o famoso cassino de jogo de Kinkaid, na Rua 73, Oeste, haja desempenhado nele grande e importante parte. De fato, o primeiro episódio sinistro nesse notório crime ocorreu ao lado da mesa de roleta no Salão Dourado do cassino; e o episódio final da tragédia se desenrolou no escritório jacobiano, apainelado de nogueira, de Kinkaid, pertinho do principal salão de jogo.
Incidentalmente, posso dizer que aquela última e terrível cena me perseguirá até o fim dos meus dias. Acompanhei Vance através de muitas situações chocantes, no decorrer de suas investigações criminais, porém jamais passei por experiência que me afetasse tanto quanto aquele fatal e terrífico desfecho que veio tão súbita e inesperadamente, no espalhafatoso local de jogo.
E Markham também, eu sei, passou por uma deprimente metamorfose naqueles momentos agônicos, quando o assassino se ergueu diante de nós e gargalhou, triunfante. Até hoje, a só menção do incidente deixa Markham irritável e nervoso — fato que, a considerar-se sua calma habitual, claramente indica a profunda e duradoura impressão que lhe deixou o trágico acontecimento.
O crime do cassino, excetuando o evento fatal que vinha de terminar, não foi tão espetacular em seus detalhes como muitos outros casos solucionados por Vance. De um ponto de vista puramente objetivo, poderia até ser considerado comum, pois em seu mecanismo superficial houve muitos paralelos com bem conhecidos casos da história criminal. O que o distinguiu, porém, de seus muitos predecessores foi o sutil processo interior que o assassino achou para desviar suspeitas e criar novas e mais diabólicas situações em que se pudesse encontrar o real motivo do crime. Não era, apenas, uma roda dentro de outra roda, e sim uma elaborada é complicada peça de maquinismo psicológico, o mecanismo que arrastava mais e mais, quase indefinidamente, à mais surpreendente — e errônea — conclusão.
Realmente, o primeiro movimento do assassino foi talvez o mais astuto ato de todo o profundo esquema: uma carta endereçada a Vance trinta e seis horas antes que o mecanismo da peça fosse posto em operação. Porém, bem curiosamente, esta suprema sutileza é que, no fim, encaminhou ao reconhecimento do culpado. Talvez fosse por demais sutil o ato de escrever aquela carta; talvez derrotasse o próprio desígnio chamando muda atenção para os processos mentais do assassino, e assim deu a Vance uma chave intelectual que afortunadamente lhe desviou os esforços de mais insistentes e óbvias linhas de raciocínio. De qualquer modo, conseguiu seu objetivo superficial, pois Vance foi realmente espectador do primeiro ataque, por assim dizer, do florete do vilão.
E, como testemunha ocular do primeiro episódio desse famoso mistério de assassinato por veneno, Vance tornou-se diretamente envolvido no caso; de modo que, nas circunstâncias, levou o problema a John F. X. Markham, então procurador distrital de Nova York e o mais chegado amigo de Vance; ao passo que, em todas as demais investigações criminais foi Markham o responsável pela participação de Vance.
A carta a que me refiro chegou pelo correio da manhã, no sábado, 15 de outubro. Consistia de duas páginas datilografadas, e o envelope estava carimbado de Closter, Nova Jersey. O selo indicava haver sido postada ao meio-dia do dia antecedente. Vance trabalhara até tarde da noite na sexta-feira, rotulando e comparando desenhos estéticos da cerâmica sumeriana numa tentativa de estabelecer a influência cultural dessa antiga civilização{1}, e não se levantou senão às 10 horas no sábado. Eu estava morando no apartamento de Vance, na Rua 38, Leste, na ocasião; e, embora minha posição fosse a de conselheiro legal e administrador financeiro, eu me havia, durante os três últimos anos, tornado gradualmente uma espécie de secretário-geral a seu serviço. "Serviço" talvez não seja a expressão correta, pois Vance e eu havíamos sido amigos íntimos desde os tempos de Harvard; e essa relação é que me levara a romper minha conexão com a firma de advocacia de meu pai — Van Dine, Davis & Van Dine — e a devotar-me por inteiro à tarefa de zelar pelos negócios de Vance.
Nessa fria, quase hibernai manhã de outubro, como de costume eu abrira e separara sua correspondência, atentando para os assuntos de minha competência, e estava empenhado em preencher os formulários em branco para os julgamentos de campo do outono{2}, quando Vance entrou na biblioteca e, com uma saudação de cabeça, sentou em sua cadeira favorita — uma poltrona Rainha Ana — diante da lareira.
Ele usava um raro roupão de mandarim e sandálias chinesas; fiquei assombrado com essa vestimenta, pois ele raramente descia para o café da manhã (que invariavelmente consistia de uma xícara de café à moda turca e um dos seus queridos cigarros Régies vestido tão aprimoradamente.
— Olhe, Van, — observou ele, depois de tocar a campainha para chamar Currie, seu idoso camareiro e mordomo — não faça esse ar de espanto... Sentia-me deprimido ao acordar. Não consegui determinar os desenhos em algumas das linhas e antigas esteias e sinetes cilíndricos que cavaram em Ur, e em conseqüência tive uma noite insone. Portanto, enfeitei-me com estas roupas chinesas num esforço para neutralizar meus sentimentos e na esperança, devo acrescentar, de, que, por um processo de osmose psíquica, adquirisse um pouco daquela calma oriental, tão comentada pelos sinólogos.
Nesse momento Currie trouxe o café. Após acender um Régie e tomar alguns goles do líquido preto e espesso, olhou-me preguiçosamente, perguntando:
— Alguma correspondência interessante?
Tão interessado eu estivera na estranha carta anônima que acabara de chegar — embora ainda não tivesse idéia de seu trágico significado — que lha entreguei, sem uma palavra. Deu-lhe uma olhadela, sobrancelhas levemente erguidas, demorou o olhar na enigmática assinatura, e depois, colocando na mesa a xícara de café, leu-a vagarosamente. Enquanto isso, eu o observava, e notei uma curiosa expressão velada em seus olhos, que se aprofundaram e se tornaram invulgarmente sérios ao terminar a leitura.
. A carta ainda permanece nos arquivos de Vance, e vou reproduzi-la textualmente, pois nela Vance descobriu uma de suas "chaves" mais valiosas, chave que, embora não o levasse realmente ao assassino no começo, pelo menos desviou Vance da óbvia linha de pesquisa pretendida pelo maquinador. Como acabei de dizer, a carta era datilografada, porém o trabalho estava mal feito — isto é: era evidente a falta de familiaridade do datilografo com a máquina. Dizia a carta:
"CARO SR. VANCE:
Em minha aflição apelo para o senhor. Este apelo é também feito em nome da humanidade e da justiça. Conheço-o de reputação — e o senhor é o único homem em Nova York que pode evitar uma terrível catástrofe, ou pelo menos providenciar para que o castigo seja dado ao executante de um crime prestes a realizar-se. Horríveis nuvens negras pairam sobre certa família em Nova York — elas se vêm reunindo há anos — e sei que a tempestade está, prestes a explodir. Há perigo e tragédia no ar. Por favor, não me falho, embora eu admita ser um estranho para o senhor.
Não sei exatamente o que vai acontecer. Se o soubesse poderia ir à Polícia. Porém, qualquer interferência oficial agora poria o maquinador em guarda e apenas adiaria a tragédia. Gostaria de poder dizer-lhe mais — mas de nada mais sei. A coisa é assustadoramente vaga: é mais uma atmosfera do que uma situação específica. Mas vai acontecer — algo vai acontecer — e seja o que for que aconteça, será enganoso e errado. Assim, por favor, não permita que aparências o enganem. Olhe — olhe — por baixo das coisas, em busca da verdade. Todos os que estão envolvidos são anormais e trapaceiros. Não os subestime.
Eis tudo que posso contar-lhe:
O senhor conhece o jovem Lynn Llewellyn — pelo que sei — e provavelmente sabe de seu casamento há três anos com a linda estrela de comédia musical, Virgínia Vale. Ela desistiu de sua carreira e os dois têm morado com a família dele. Porém o casamento foi um engano terrível, e durante três anos a tragédia tem vindo fermentando. Agora a coisa atingiu o clímax. Vi os contornos irem tomando forma. E há outros além dos Llewellyns, no quadro.
Há perigo — tremendo perigo — para alguém mais: não sei exatamente quem. E a ocasião é amanhã à noite, sábado.
Lynn Llewellyn deve ser vigiado. E cuidadosamente!
Haverá um jantar na residência dos Llewellyns amanhã à noite, e estarão presentes todos os implicados nessa tragédia pendente: Richard Kinkaid, Morgan Bloodgood, o jovem Lynn e sua infeliz esposa, a irmã de Lynn, Amélia, bem como sua mãe. O motivo é o aniversário da mãe.
Embora saiba que haverá um distúrbio de qualquer espécie nesse jantar, calculo que o senhor nada poderá fazer a esse respeito. De toda maneira, isso não importará. O jantar será apenas o começo dos acontecimentos. Mas algo de grave acontecerá mais tarde. Sei que acontecerá. Ê chegada a ocasião.
Após o jantar, Lynn Llewellyn irá ao cassino de Kinkaid para jogar: faz isso todas as noites de sábado. Sei que o senhor mesmo visita freqüentemente o cassino. E o que lhe peço é que vá lá amanhã à noite. Deve ir. E deve vigiar Lynn Llewellyn em todos os minutos. Observe também Kinkaid e Bloodgood.
Há de estar cogitando por que não o faço eu mesmo: asseguro-lhe que minha posição e as circunstâncias tornam isso totalmente impossível.
Gostaria de ser mais explícito. Acontece que nada mais sei para dizer-lhe. O senhor deve descobrir.”
A assinatura, também datilografada, era: "Alguém Profundamente Interessado".
Ao esquadrinhar a carta pela segunda vez, Vance afundou na cadeira e espichou as pernas preguiçosamente.
— Um documento espantoso, Van! — comentou ele, após várias baforadas no cigarro. — E completamente falso, sabe... Um toque literário aqui e ali — uma pontinha de melodrama — algumas amostras de afetada retórica... e, ocasionalmente, uma preocupação profunda; embora vaga, a assinatura é genuína. Sim... sim... isso é óbvio: está batida mais pesadamente que o resto da carta... maior pressão nas teclas... Paixão no que fazia. E não uma paixão agradável: uma ponta de vingança, de par com ansiedade... — Sua voz diminuiu um pouco: — Ansiedade! — continuou, como para si próprio. — Isso é exatamente o que transpira entre linhas. Mas ansiedade por quê?... a respeito de quem?... O jogador Lynn? Pode ser, claro. Mas ainda assim... — Outra vez sua voz diminuiu, e de novo ele examinou a carta, ajustando cuidadosamente o monóculo e examinando ambos os lados do papel. — Papel comercial comum, que se pode comprar em qualquer papelaria... e envelope liso, de ponta virada. Meu ansioso e gárrulo correspondente foi extremamente cuidadoso no evitar a possibilidade de ser descoberto por meio do vendedor... Que pena!... Porém, eu gostaria que o autor houvesse freqüentado uma escola comercial. Sua datilografia é atroz: mal espacejada, batidas nas teclas erradas, nenhuma noção de margem — tudo indicando nenhuma familiaridade com os dispositivos tão simples da máquina de escrever.
Acendeu outro cigarro e terminou seu café. Depois recostou-se na poltrona e leu a carta pela terceira vez. Raramente eu o vira tão interessado. Por fim disse:
— Por que os detalhes domésticos dos Llewellyns, Van? Quem quer que leia jornais conhece a situação naquela casa. A linda e loura atriz casando na Coluna Social sob protestos da mamãe e acabando sob o teto dessa mamãe; Lynn Llewellyn, o jovem farrista e queridinho dos clubes noturnos; a séria irmãzinha, das frivolidades sociais virando-se para estudos de arte; quem, nesse campo de atividades, poderia deixar de ouvir falar dessas coisas? E a própria mamãe é uma ruidosa filantropa e membro dos comitês de todas as organizações sociais e econômicas que pode encontrar. E certamente Kinkaid, o irmão da velha senhora, não é nenhum inconnu... Há poucas personalidades na cidade mais desacreditadas que ele — para grande desgosto e humilhação da Sra. Llewellyn. Só a riqueza da família seria uma fonte de mexericos. Mas o meu correspondente teve de lembrar-me tudo isso. Por quê? Por que a carta, afinal? Por que fui escolhido para recebê-la? Por que a linguagem florida? Por que a abominável datilografia? Por que este papel e o sigilo? Por que tudo isso?... Calculo... calculo que...
Levantou-se e começou a andar abaixo e acima. Eu estava surpreso ante sua perturbação: isso era completamente incomum. A carta não me impressionara muito, a não ser por sua raridade; e minha primeira inclinação foi considerá-la o ato de um excêntrico ou de alguém com rancor contra os Llewellyns e que procurasse por tais meios indiretos causar-lhes aborrecimentos. Porém Vance, evidentemente, captara algo na carta que me escapara por completo.
Subitamente cessou seu contemplativo ir e vir e ele se dirigiu ao telefone. Momentos depois estava falando com Markham, instando com ele para que viesse ao apartamento naquela noite.
— É realmente muito importante — disse. — Tenho um documento fascinante para mostrar-lhe... Seja um bom menino e venha!
Depois de desligar o telefone, Vance sentou-se em silêncio. Finalmente ergueu-se e foi até o setor de sua biblioteca dedicado à Psicanálise e à Psicologia de Anormais. Percorreu os índices de várias obras de Freud, Jung, Stekel e Ferenezi; e, marcando algumas páginas, voltou a sentar-se para folhear os volumes. Após uma hora, mais ou menos, recolocou os volumes nas prateleiras e passou outros trinta minutos consultando vários livros de referências, tais como o Who's Who, o New York Social Register e o American Biographical Dictionary. Finalmente, deu de ombros levemente, bocejou e sentou-se à escrivaninha, na qual estavam espalhadas numerosas reproduções das obras de arte desenterradas nas escavações do Dr. Woolley, que duraram sete anos, em Ur.
Sábado, sendo dia de meio-expediente no gabinete do procurador distrital, Markham chegou pouco depois das 2 horas. Nesse ínterim, Vance se vestira e almoçara, e recebeu Markham na biblioteca.
— Um dia meio murcho... — queixou-se, conduzindo Markham para uma poltrona diante da lareira. — Nada bom para um homem estar só. A depressão me tiraniza como uma bruxa. Faltei ao concurso em Long Island hoje. Preferi ficar em casa e contemplar as brasas incandescentes. Talvez esteja envelhecendo e ficando cheio de sonhos... Angustiado... Mas estou imensamente grato por sua vinda. Que tal um traguinho de Napoléon de 1811, para contrabalançar suas melancolias outonais?
— Não tenho melancolias hoje, outonais ou de qualquer outro tipo — replicou Markham, observando Vance cuidadosamente. — E você, quanto mais fala, mais arduamente está pensando: sintoma inequívoco. (Ainda examinava Vance.) — Entretanto, tomarei o conhaque. Mas, por que o ar de mistério ao telefone?
— Querido Markham... oh, querido Markham! Parecia, mesmo, tão misterioso assim? Os dias melancólicos...
— Ora, vamos, Vance! Onde está o tal papel interessante *que desejava mostrar-me?
— Ah! sim... — Vance meteu a mão no bolso e, tirando a carta anônima que recebera naquela manhã, passou-a a Markham. — Realmente, esta carta não devia ter vindo num dia depressivo como este...
Markham leu a carta, sem lhe dar maior importância, e atirou-a na mesa, com um leve gesto de irritação.
— Bem, o que há, afinal? — perguntou, tentando esconder o aborrecimento. — Sinceramente, espero que não a leve a sério.
— Nem a sério, nem frivolamente — Vance suspirou — mas de mente alerta, meu velho. A epístola tem possibilidades, sabe...
— Pelo amor de Deus, Vance! Recebemos cartas assim todos os dias... Montes delas! Se fôssemos dar-lhes atenção, não teríamos tempo para mais nada! É hábito de autores profissionais de cartas anônimas... Mas não preciso explicar-lhe isso: você é muito bom psicólogo.
Vance acenou que sim, com uma seriedade invulgar:
— Sim, sim, claro: complexo de epistolografia. Combinação de fútil egomania, covardia e sadismo... Conheço bem a fórmula. Mas, realmente, sabe, não estou convencido de que esta carta se enquadre nessa categoria.
Markham olhou-o de relance:
— Realmente pensa que seja uma honesta expressão de preocupação baseada em conhecimento de algo?
— Oh! não... ao contrário! — Vance olhava o cigarro, meditativamente. — É mais profundo que isso. Se fosse uma carta sincera, seria menos prolixa e mais objetiva. Sua prolixidade e afetada fraseologia indicam um motivo ulterior: há muita maquinação por trás disso... E sinistras implicações, também: uma atmosfera de raciocínio anormal... uma genuína nota de tragédia cruel, como se um espírito maligno estivesse maquinando e rindo à socapa ao mesmo tempo... Não gosto disso, Markham... não gosto disso, absolutamente.
Markham olhava para Vance, surpreso. Começou a dizer algo, mas, em vez disso, pegou a carta e tornou a lê-la, mais cuidadosamente desta vez. Ao terminar, balançou a cabeça vagarosamente:
— Não, Vance: os dias mais tristes do ano afetaram sua imaginação. Esta carta não passa da explosão de alguma histérica, igualmente afetada.
— Há nela uns toques femininos, não? — Vance falava languidamente. — Notei isso. Mas o estilo geral da carta não indica alucinações.
Markham sacudiu a mão num gesto apologético e fumou em silêncio por alguns instantes. Depois, perguntou:
— Conhece os Llewellyns pessoalmente?
— Encontrei Lynn Llewellyn certa vez... simples apresentação... e o tenho visto no cassino muitas vezes. O comum tipo extravagante de menino mimado cuja mãe tem os cordões da bolsa. E, claro, conheço Kinkaid. Todo mundo conhece Richard Kinkaid, menos a polícia e o procurador distrital... Mas você faz muito bem em ignorar sua existência e em recusar fechar sua dourada caverna de pecado. A coisa vai realmente muito bem, e só quem pode gastar a rodo vai lá. Sim, senhor! Imagine a ingenuidade de quem pensa que jogo pode ser acabado por meio de leis e batidas da polícia!... O Cassino é um lugar delicioso, Markham, bonito e de aparência absolutamente correta. Você gostaria imensamente... se não fosse procurador...! Triste... muito triste...
Markham se mexeu pouco à vontade em sua poltrona, e lançou a Vance um olhar destruidor, seguido por um indulgente sorriso:
— Algum dia irei lá... talvez depois das próximas eleições — replicou. — Conhece alguns dos outros mencionados na carta?
— Só Morgan Bloodgood: é o crupiê-chefe de Kinkaid, seu braço-direito, por assim dizer. Porém conheço-o apenas profissionalmente, embora saiba que é amigo dos Llewellyns e conheceu a esposa de Lynn quando ela pertencia à comédia musical. É um universitário e um gênio para lidar com algarismos: doutorou-se em Matemática em Princeton, disse-me Kinkaid. Foi professor por um ano ou dois, e depois veio trabalhar com Kinkaid. Provavelmente gostava de excitação... qualquer coisa é preferível à teoria dos quanta... A outra pessoa em perspectiva para o drama me é desconhecida. Nunca sequer vi Virgínia Vale: estava no estrangeiro durante seu breve triunfo no palco. E o caminho da velha Sra. Llewellyn nunca cruzou o meu. Nem jamais encontrei a filha 'aspirante a artista, Amélia.
— Quais as relações entre Kinkaid e a velha senhora? Dão-se bem como o deveriam irmão e irmã?
Vance olhou languidamente para Markham:
— Pensei nesse ângulo, também. Claro, a velha senhora se envergonha de seu cabeçudo irmão: há de ser bem aborrecido para uma fanática assistente social acolher um irmão que não passa de um jogador profissional. E, embora publicamente sejam educados um com o outro, imagino que haja conflitos internamente, especialmente porque a residência de Park Avenue lhes pertence em conjunto e vivem ambos sob o mesmo teto. Porém não penso que a velha senhora leve sua animosidade a ponto de tramar contra Kinkaid... Não, não. Por esse lado não encontraremos uma explicação para a carta...
Nesse momento, Currie entrou na biblioteca:
— Perdão, senhor, mas há alguém ao telefone que deseja que eu lhe pergunte se o senhor pretende ir ao Cassino logo à noite...
— Homem ou mulher? — interrompeu Vance.
— Realmente, senhor... não poderia dizer. A voz era vaga e apagada... eu diria: disfarçada. Porém a pessoa me pediu que lhe dissesse que ele — ou ela — não diria mais uma palavra, mas esperaria no telefone pela sua resposta.
Vance não falou por vários momentos; finalmente, murmurou:
— Eu já esperava algo assim... Diga ao sujeito que me chamou que estarei lá pelas dez da noite.
Preocupado, Markham tirou o charuto da boca e olhou para Vance:
— Realmente pretende ir ao Cassino por causa dessa carta?
Vance respondeu seriamente:
— Claro que sim.
II - O CASSINO
(Sábado, 15 de outubro — 22:30 horas)
O famoso estabelecimento de jogo de Richard Kinkaid — o Cassino, na Rua 73, Oeste, perto da West End Avenue — em seu dias de apogeu tinha direitos às glórias do extinto Canfield. Floresceu durante pouco tempo, mas ainda assim sua memória se mantém viva para muita gente, e sua fama se espalhava por todos os cantos do país. Forma um ardente e indispensável elo na cadeia de locais de diversão da espetacular história da vida noturna de Nova York, Um alto prédio de apartamentos, com terraços e avarandados, se ergue, agora, onde antes fora o Cassino.
Para os passantes não-iniciados o Cassino era apenas outra imponente mansão, das que outrora faziam o orgulho do West Side superior. A casa fora construída na última década do século passado e era residência do pai de Richard, Amos Kinkaid (conhecido como "o Velho Amos"), um dos mais astutos e ricos corretores de imóveis da cidade. Essa propriedade foi o quinhão diretamente legado a Richard Kinkaid no testamento do Velho Amos: todas as demais propriedades haviam sido transmitidas juntamente a seus dois filhos, Kinkaid e a Sra. Anthony Llewellyn, que, por ocasião da herança, já era viúva com dois filhos, Lynn e Amélia, ambos pelos dez anos de idade.
Richard Kinkaid morara sozinho no casarão por vários anos após a morte do Velho Amos. Então, fechou portas e janelas e satisfez seu desejo de viagens e aventuras pelos mais remotos lugares do mundo. Sempre possuíra um irresistível pendor pelo jogo, talvez herdado do pai, e no decurso de suas viagens visitou muitos dos mais afamados locais de jogatina da Europa. As narrativas de seus espetaculares ganhos e perdas chegavam, muitas vezes, às manchetes dos jornais. Quando as perdas excediam de muito os ganhos, Kinkaid voltava à América, mais pobre, porém muito mais "sabido".
Contando com influência política e poderosas relações pessoais, decidiu fazer um esforço para recuperar suas perdas abrindo sua própria e luxuosa casa de jogo, pelos padrões de algumas das mais famosas casas da América dos velhos tempos.
— O que há de errado comigo — disse Kinkaid a um dos seus protetores ocultos — é que sempre joguei do lado errado da mesa.
Mandou remodelar e redecorar o casarão da Rua 73, foi pródigo em concessões, e iniciou sua notória empresa "no lado certo da mesa". Esse embelezamento da casa esgotou o resto de seu patrimônio. Chamou ao novo estabelecimento Cassino Kinkaid, lembrando-se, talvez, de Monte Cario. Porém o local se tornou tão conhecido entre os ricaços que o nome "Kinkaid" logo se tornou supérfluo: só havia um "Cassino" na América.
Como tantos outros estabelecimentos extralegais de sua espécie, e como os vários luxuosos clubes noturnos que surgiram durante a época da proibição, o Cassino era regido como um clube particular. Era essencial tornar-se membro, e todos os pretendentes eram prudentemente investigados. A jóia de admissão era suficientemente alta para desencorajar elementos indesejáveis; e a lista daqueles a quem era concedido o privilégio de pertencer ao "clube" parecia uma compilação de nomes dos social e profissionalmente preeminentes.
Para crupiê-chefe e supervisor dos jogos, Kinkaid escolhera Morgan Bloodgood, jovem e culto matemático que conheceu em casa de sua irmã. Bloodgood estivera na Universidade com Lynn Llewellyn e, incidentalmente, Bloodgood é que foi o causador do encontro de Virgínia Vale e o jovem Llewellyn. Enquanto na Universidade e durante o tempo em que lecionou Matemática, tivera Bloodgood um hobby: ocupava-se com a lei das probabilidades. Aplicava suas descobertas especialmente à relação dessas leis ao jogo numérico e calculara elaboradamente as porcentagens em todos os conhecidos jogos de azar. Suas estimativas de permutas, possibilidades de repetições e mudanças de seqüência em relação aos jogos de cartas são hoje oficialmente usadas no computar chances em esboços; e em certo tempo foi associado ao gabinete do Promotor, expondo as esmagadoras chances em favor dos donos em conexão com uma campanha de caráter amplo contra as máquinas caça-níqueis de todos os tipos.
Certa vez perguntaram a Kinkaid por que escolhera o jovem Bloodgood de preferência a um antigo e experiente crupiê, e ele respondeu:
— Sou como o velho Gobseck de Balzac, que entregou todos os seus negócios legais aos cuidados de um procurador bem jovem, Derville, pela teoria de que se pode confiar num homem abaixo de 30, mas depois dessa idade não se pode confiar plenamente em ninguém.
Os assistentes de crupiê e os carteadores no Cassino eram igualmente escolhidos nas fileiras dos bem-nascidos, profissionais jovens, de boa aparência e fina educação; e eram cuidadosamente treinados nos meandros de seus deveres{3}.
Cínica e céptica como poderia parecer a filosofia de Kinkaid, sua aplicação prática obteve o maior êxito. Seu jogo do "lado certo da mesa" prosperou. Estava satisfeito com a habitual porcentagem da casa, e o mais astuto dos jogadores e peritos jamais pôde acusá-lo de "preparar" quaisquer dos seus jogos{4}. Em todas as disputas entre jogador e crupiê, o jogador era pago sem discussão. Muitas pequenas fortunas foram perdidas e ganhas no Cassino durante sua existência relativamente breve; e o jogo sempre foi forte, especialmente nas noites de sextas-feiras e sábados.
Ao chegarmos ao Cassino, Vance e eu, nessa fatal noite de sábado, 15 de outubro, havia apenas uns poucos sócios esparsos. Ainda era muito cedo para a habitual quantidade de freqüentadores que, de costume, vinham após o teatro.
Ao galgarmos os largos degraus de entrada para o estreito vestíbulo cheio de espelhos e guarnecido de peças de ferro trabalhado, fomos cumprimentados pelo porteiro chinês que permanecia à esquerda da entrada. Por algum sinal secreto nossa identidade foi comunicada aos encarregados na parte interna; e quase simultaneamente à nossa chegada ao vestíbulo a grande porta de bronze (que o Velho Amos trouxera da Itália) foi aberta. No espaçoso vestíbulo com cortinas de brocado e quadros de mestres, mobiliado no luxuriante estilo italiano renascentista, nossos chapéus e sobretudos nos foram tomados por dois atendentes uniformizados, ambos altos e fortes{5}.
Ao fundo do vestíbulo, havia uma escadaria de mármore dividida em duas que levava, de cada lado de uma fonte luminosa, aos salões de jogo, em cima.
No segundo andar, Kinkaid combinara a antiga sala de visitas e a sala de recepção num imenso salão a que batizara de Salão Dourado. Abrangia toda a fachada da casa e tinha talvez uns vinte metros de comprimento. A um dos lados, uma alcova fora preparada como sala de descanso. O salão era decorado em estilo romano modificado, com ocasionais sugestões de ornamentação bizantina. As paredes eram cobertas de folhas douradas, e as pilastras de mármore liso eram enquadradas por grandes painéis retangulares, de um tom de marfim que se misturava ao dourado das paredes e ao colorido acastanhado do teto. As cortinas, nas altas janelas, eram de brocado de seda amarelo com desenhos em relevo dourado; e a forração do chão, de cor ocre neutro.
Havia três mesas de roleta ao centro do salão, duas de vinte-e-um, mesas ao meio das paredes dos dois lados do salão, quatro mesas de bacará nos quatro cantos da sala, e mesas de chemin-de-fer e uma elaborada mesa de dados no fim do salão, entre as janelas. Na parte traseira do Salão Dourado, a leste, uma sala para jogos privados de carta, com uma fileira de pequenas mesas individuais onde se poderia jogar qualquer tipo de solitário, e uma carteador para assistir e pagar ou receber, conforme a sorte ou a habilidade do jogador. Junto a esta sala havia um bar de cristal com uma larga arcada que levava ao salão principal. Ali, só as mais finas bebidas eram servidas. Evidentemente, essas duas salas haviam sido a principal sala de refeições e a saleta de desjejum da antiga mansão Kinkaid. Uma gaiola para o caixa fora arranjada onde outrora fora uma espécie de armário-rouparia, à esquerda do bar.
O escritório particular de Richard Kinkaid fora construído obstruindo a parte anterior do vestíbulo superior. Havia uma porta que dava para o bar e outra para o Salão Dourado. Tinha cerca de dez metros quadrados e era apainelado em nogueira — sombria, porém bela sala, com uma só e ampla janela de vidro abrindo para o pátio fronteiro.
(Menciono o escritório aqui porque representou parte importante no clímax final terrível da tragédia que, logo logo, começaria ante nossos olhos.)
Quando, nessa noite de sábado, chegamos ao estreito vestíbulo do segundo andar, que levava ao salão principal, Vance olhou casualmente para as duas salas de jogo e voltou-se para o bar:
— Penso, Van, que teremos muito tempo para um gole de champanha... Nosso jovem amigo está sentado na sala de descanso, sozinho, aparentemente absorto em computações. Lynn é um jogador de sistema; e são precisos muitos preliminares antes que ele comece. Se algo de adverso está por acontecer-lhe esta noite, ele está ou bem-aventuradamente inconsciente disso ou serenamente indiferente. Contudo, agora não há ninguém na sala que esteja razoavelmente interessado em sua existência — ou não-existência, quanto à questão — de modo que podemos aguardar um pouquinho por aqui.
Encomendou uma garrafa de Krug de 1904 e recostou-se, com a maior placidez, na ampla poltrona junto à pequena mesa em que o vinho foi servido. Porém, apesar de seus modos lânguidos, eu sabia que ele estava tenso: isso para mim era óbvio pela maneira lenta, deliberada por que tirou o cigarro da boca e pôs as cinzas exatamente no centro do cinzeiro.
Mal acabáramos nosso champanha quando Morgan Bloodgood, surgindo de uma porta traseira, passou pelo bar a caminho do salão principal. Era alto, esbelto, testa ampla, nariz aquilino, lábios moles, queixo pontudo e orelhas proeminentes de lóbulos recuados. Os olhos eram duros e de um particular cinza-esverdeado, e tão fundos que pareciam em perpétua sombra. Cabelos finos e cor de areia; e tez pálida, completamente descorada. Mas não era um homem sem atrativos. Havia calma e frieza no conjunto de suas feições — uma imobilidade que dava a impressão de força latente e pensamentos profundos. Embora eu soubesse que ele mal chegara aos trinta, poderia facilmente passar por um homem de quarenta ou mais.
Ao avistar Vance, parou e cumprimentou agradável mas reservadamente:
— Vai tentar a sorte esta noite, Sr. Vance?
— Absolutamente... — replicou Vance, sorrindo apenas com os lábios. E acrescentou: — Tenho um novo sistema, sabe.
— Isso é amedrontador para a casa... — sorriu Bloodgood. — Baseado em Laplace ou em von Kries? (Pensei ter percebido uma ponta de sarcasmo em sua voz.)
— Oh! meu caro! — respondeu Vance. — Realmente! Eu raramente me meto com matemáticas: deixo isso para os peritos. Prefiro a simples máxima de Napoleão: "Je m'engage et puis je vois!"
— Isso é tão bom — ou tão mau — como qualquer outro sistema. No fim, tudo vem a dar no mesmo... — E passou para o Salão Dourado.
Através dos reposteiros entreabertos nós o vimos assumir seu lugar à roda da mesa central de roleta.
Vance depositou o copo e, acendendo cuidadosamente outro Régie, ergueu-se vagarosamente.
— Acho que chegou a hora... — murmurou, ao adiantar-se para a arcada que levava ao Salão Dourado.
Ao entrarmos no salão, abriu-se a porta do escritório de Kinkaid e ele apareceu. Vendo Vance, sorriu profissionalmente e cumprimentou-o num tom de amabilidade estereotipada:
— Boa noite. O senhor é quase um estranho aqui...
— Encantado por não haver sido inteiramente esquecido aqui, sabe... — retrucou Vance, agradàvelmente, acrescentando: — Especialmente porque um dos meus objetivos ao vir aqui hoje era falar-lhe.
Kinkaid se retesou quase imperceptivelmente, e perguntou com um sorriso frio e simulado ar de bom humor:
— Bem, está falando comigo, não?
— Oh! sim! — Vance também se tornou cordial. — Mas eu preferiria mil vezes falar-lhe em seu escritório particular.
Kinkaid olhou para Vance, estreitando os olhos. Vance lhe devolveu o olhar, sem deixar que o sorriso lhe fugisse dos lábios.
Sem uma palavra Kinkaid se voltou e reabriu a porta do escritório, colocando-se a um lado para que Vance e eu o precedêssemos. Seguiu-nos e fechou a porta atrás de si. Ficou de pé, rígido, esperando, olhos fixos em Vance. Este levou o cigarro aos lábios, tomou uma funda inalação e mandou para o teto um anel de fumo azulado.
— Poderíamos sentar-nos? — perguntou, casualmente.
— Naturalmente, se está cansado. — falou Kinkaid em voz metálica, o rosto era uma máscara inexpressiva.
— Muitíssimo obrigado — Vance ignorou a atitude do outro e sentou-se numa das poltronas de couro perto da porta, cruzando as pernas numa posição confortável.
A despeito das maneiras glaciais de Kinkaid, senti que o homem não antagonizava o seu hóspede: como jogador, estava assumindo uma defesa para o possível caso de alguma ameaça de natureza ainda desconhecida para ele. Sabia, como qualquer outra pessoa na cidade, que Vance era estreitamente — embora não oficialmente — associado ao procurador distrital; e ocorreu-me que Kinkaid provavelmente pensou que Vance viera como representante em alguma desagradável missão oficial. Sua reação a tal suspeita teria, naturalmente, sido essa atitude reservadamente beligerante.
Richard Kinkaid, apesar de sua aparência superficial de jogador profissional, era um homem inteligente e culto. Fora universitário brilhante e possuía dois diplomas acadêmicos. Falava fluentemente vários idiomas e, quando jovem, fora um arqueólogo de certa notoriedade. Escrevera dois livros sobre suas viagens ao Oriente, ambos podendo ser encontrados nas melhores livrarias.
Era grandalhão e, a despeito de sua tendência para a corpulência, era óbvia sua poderosa constituição. O cabelo cinza-aço parecia muito leve em contraste com a pele rude. Rosto oval, mas de feições um tanto rudes. Sobrancelhas largas e baixas, nariz curto e irregular, boca apertada e dura — um longo e estreito traço. Os olhos, entretanto, eram a característica notável de seu rosto: eram pequenos, parecendo os de alguém com o mal de Bright, de modo que as pupilas pareciam sempre acima dos centros das órbitas, dando-lhe uma expressão sardônica, quase sinistra. Havia astúcia, perseverança, sutileza, crueldade e indiferença em seus olhos.
De pé diante de nós nessa noite, uma das mãos pousando na bela secretária trabalhada perto da janela, a outra no bolso interno do dinner jacket, mantinha o olhar fixo em Vance, sem demonstrar aborrecimento nem preocupação; um perfeito "cara-de-pau".
Por fim, Vance falou:
— Desejava vê-lo hoje, Sr. Kinkaid, porque recebi uma carta esta manhã e me ocorreu que poderia interessá-lo, porquanto o seu nome era nela citado não muito afetuosamente. De fato, ela se refere intimamente a vários membros de sua família.
Kinkaid continuava a fitar Vance, sem mudar de expressão. Nem falou ou fez o menor movimento.
Por um momento, Vance contemplou o fim de seu cigarro. Depois disse:
— Penso que será melhor que a veja, pessoalmente. Retirou do bolso as duas páginas datilografadas e as entregou a Kinkaid, que as tomou indiferentemente e as abriu.
Observei-o rigorosamente enquanto lia. Não lhe apareceu nos olhos nenhuma nova expressão, seus lábios não se moveram, mas a cor de suas faces mudou perceptivelmente e, ao chegar ao fim, os músculos de seu rosto estremeciam espasmodicamente. Seu pescoço forte estufou por cima do colarinho, e manchas vermelhas nele se espalharam.
A mão que segurava a carta estremecia convulsivamente, como se estivessem tensos os músculos do braço; e lentamente ergueu os olhos até encontrar os de Vance.
— Bem, que significa isso? — perguntou de dentes cerrados.
Vance fez com a mão um leve gesto de rejeição, dizendo placidamente:
— Ainda não fiz a menor aposta. Apenas, aguardo.
— Suponha que eu não queira apostar? — retorquiu Kinkaid.
— Oh! perfeitamente! É seu privilégio... — Vance sorria glacialmente.
Kinkaid hesitou um momento; depois pigarreou e sentou-se na poltrona diante da secretária, colocando a carta diante de si. Depois de um minuto ou dois de silêncio golpeou a carta com os nós dos dedos e deu de ombros:
— Eu diria que isto é trabalho de algum excêntrico. — Seu tom era leve e desdenhoso.
— Não, não. Realmente, não, Sr. Kinkaid — Vance protestou brandamente. — Não poderia ser... não poderia ser absolutamente. O senhor escolheu o número errado... Por que não escolher outro palpite?
— Para o diabo! — explodiu Kinkaid. Balançou-se na cadeira giratória e olhou Vance com fria e penetrante ameaça. — Não sou nenhum danado detetive... O que tem a carta a ver comigo, afinal?
Vance não replicou. Em vez disso, enfrentou o olhar de Kinkaid com uma calma glacial — uma calma impessoal e devastadora. Nunca invejei a ninguém a tarefa de enfrentar o olhar de Vance. Havia em seu olhar, quando ele queria, um sutil poder psicológico a que a mais forte natureza não podia resistir.
Kinkaid, com toda a sua força mental, encontrara o seu igual. Ele soube que o olhar de Vance não se abaixaria nem mudaria; e na comunicação silenciosa entre os dois fortes adversários quando se miraram profundamente nos olhos uni do outro, Kinkaid capitulou.
— Muito bem — disse, com um sorriso bem-humorado. — Farei uma outra aposta — se isso pode ajudá-lo... — Deu outra olhada à carta. — Há muita verdade aqui. Seja quem for que escreveu isto, conhece bem a respeito da situação da família.
— Você sabe usar uma máquina de escrever, não? — perguntou Vance.
Kinkaid forçou uma risada:
— Tão mal como quem escreveu isto. — E indicou a carta.
Vance abanou a cabeça, com simpatia, observando:
— Também não sou bom nisso... Desagradável invenção, a máquina de escrever... Mas acha que alguém pretende ferir o jovem Llewellyn?
— Não sei, mas espero que sim — estalou Kinkaid, com um mau sorriso. — Ele merece a morte.
— Por que não faz isso você mesmo? — perguntou Vance casualmente.
Kinkaid riu à socapa desagradàvelmente.
— Já pensei nisso muitas vezes. Porém, ele não vale o risco.
— Mas, em público, você parece mais ou menos tolerante com seu sobrinho...
—- Preconceito de família, penso... A maldição do nepotismo. Minha irmã é doida por ele.
— Ele gasta tempo demais aqui no Cassino... — A observação era meio pergunta, meio afirmativa.
Kinkaid acenou com a cabeça:
— Tentando arranjar algum dinheiro de Kinkaid, já que sua mãe não lhe dá o bastante. E eu o animo. Por que não? Ele tem um sistema... Gostaria de que todos tivessem um sistema. Os jogadores a esmo, que 'jogam ao acaso, é que reduzem os lucros.
Vance fez a conversa voltar à carta:
— Acredita que haja uma tragédia iminente sobre sua família?
— Não há sempre alguma iminente sobre todas as famílias? — respondeu Kinkaid. — Mas, se algo vai acontecer a Lynn, espero que aconteça aqui no Cassino.
— De qualquer modo — persistiu Vance — a carta insiste em que eu viesse aqui esta noite e ficasse de olho no garoto.
Kinkaid sacudiu a mão:
— Descontarei isso.
— Mas você acaba de admitir que há muito de verdade na carta.
Kinkaid sentou-se imóvel, por algum tempo, os olhos — como dois pequenos discos brilhantes — fixos na parede. Por fim, inclinou-se para a frente e olhou diretamente para Vance:
— Serei franco com o senhor, Vance: tenho uma idéia bem nítida de quem escreveu tal carta. Simplesmente um caso de mania e covardia. Esqueça!
— Sim senhor! — murmurou Vance. — Isso é interessantíssimo! — Esmagou o cigarro, pegou da carta, tornou a dobrá-la e a pôs de volta no bolso. — Desculpe-me tê-lo perturbado... Mas creio que me demorarei um pouco.
Kinkaid não disse uma palavra nem se levantou, quando passamos ao Salão Dourado.
III - A PRIMEIRA TRAGÉDIA
(Sábado, 15 de outubro — 23:15 horas)
O Cassino começava a encher-se. Havia pelo menos uns cem "membros" jogando nas várias mesas e conversando em pequenos grupos. No grande salão havia uma atmosfera colorida, de festa, juntamente com um matiz de excitamento e tensão. Os assistentes japoneses, em costumes nativos, moviam-se rápida e silenciosamente em suas várias incumbências; e de cada lado da arcada de entrada havia, rígidos, dois atendentes uniformizados. Nenhum movimento, por mais inocente, de qualquer pessoa escapava aos olhos vigilantes dessas senti -nelas. Era uma reunião elegante; e não tive dificuldade em identificar muitas pessoas preeminentes dos círculos sociais e financeiros.
Lynn Llewellyn ainda estava sentado a um canto da sala de repouso, muito ocupado com lápis e um caderno de notas, e aparentemente alheado a toda a atividade que se desenrolava à sua volta.
Vance percorreu o salão, cumprimentando de passagem vários conhecidos. Deteve-se junto a uma mesa perto da janela da fachada e comprou algumas fichas. Atirou-as no "um", de cada vez dobrando até cinco, e depois recomeçando. Incrível quantos "uns" apareceram nos dados na "gaiola"; e após quinze minutos Vance havia ganho perto de mil dólares. Todavia, parecia inquieto, e recolheu seus ganhos indiferentemente. Voltando novamente ao centro do salão, caminhou para a mesa de roleta operada por Bloodgood. Durante várias rodadas ficou só observando; depois, sentou-se e reuniu-se ao jogo. Estava de frente para a sala de descanso. Ao tomar seu lugar à mesa, olhou casualmente naquela direção: Llewellyn continuava mergulhado em seus pensamentos.
Haviam sido feitas as escolhas para a próxima rodada — eram apenas cinco ou seis apostadores, na ocasião — e Bloodgood estava com a bola parada contra seu dedo médio no buraco da roleta, pronto a projetá-la em suas indeterminadas circunvoluções. Mas, por alguma razão, não a arremessou de imediato.
— Faites votre jeu, monsieur — disse, graciosamente, olhando Vance diretamente.
Vance virou a cabeça rapidamente e encontrou o sorriso levemente cínico de Bloodgood.
— Muito obrigado pelo aviso pessoal — disse, com exagerada cortesia; e, inclinando-se mais sobre a mesa na direção da roleta, colocou uma nota de cem dólares na área verde marcada "O" ao cimo das três colunas de algarismos. — Meu sistema me aconselha a jogar, hoje, no "número da casa".
Desapareceu o fraco sorriso de Bloodgood e suas sobrancelhas se ergueram. Então girou a roda destramente.
Foi uma rodada longa, pois a bola, atirada com forte ímpeto, dançou para diante e para trás durante algum tempo por entre as ranhuras da roleta e os lados do bojo. Por fim, pareceu estabilizar-se num dos compartimentos numerados, embora a roda ainda rodasse rapidamente demais para permitir a leitura dos números; mas pulou outra vez, deu um ou dois giros, e finalmente parou no local verde — o "número da casa".
Houve um sussurro em torno da mesa, enquanto o rodo raspava todas as outras apostas; porém, enquanto eu observava cuidadosamente o rosto de Bloodgood, não pude notar a mais leve mudança de expressão: era o perfeito crupiê, sem emoções.
.— Seu sistema parece funcionar... — observou ele a Vance, enquanto retirava uma aposta de trinta e cinco fichas amarelas. — Vous vous engagez, et puis vous voyez... Mais, qu'est-ce que vous espérez voir, monsieur{6}?
— Não tenho a menor idéia — retrucou Vance, reunindo suas fichas. — Não estou esperando... Eu vou à deriva...
— De qualquer modo, está de sorte esta noite — sorriu Llewellyn.
— Acho que sim... — Vance pôs no bolso os seus ganhos e afastou-se da mesa.
Dirigiu-se lentamente para a sala de carteados, deteve-se à entrada, e então caminhou para o jogo do vinte-e-um, que se desenrolava numa mesa semicircular, a apenas alguns metros da sala de repouso. Havia duas cadeiras vagas de frente para o vestíbulo, mas Vance esperou. O carteador sentava numa pequena plataforma elevada, e quando o apostador a seu lado abandonou seu assento, Vance tomou a cadeira vaga. Notei que, dessa posição, ele podia perfeitamente observar Llewellyn.
Ele colocou uma ficha amarela na seção apainelada da mesa à sua frente e uma carta lhe foi distribuída. Deu-lhe uma olhadela: de pé atrás dele, vi que era um ás de paus. A carta que lhe foi distribuída a seguir foi outro ás.
— Interessante isso, Van — observou-me, por cima do ombro. — Os "uns" me estão perseguindo esta noite...
Virou seu primeiro ás e deixou o outro ao lado desse, colocando sobre ele outra ficha amarela. Ele foi o último a ser servido pelo carteador e, para meu espanto, ele tirou duas figuras: um valete e uma rainha. Esta combinação de um ás e uma figura constitui um sucesso absoluto, e Vance tirou duas delas numa só mão. Os pontos totalizavam dezenove.
Vance ia apostar a segunda mão, quando Llewellyn se levantou com determinação do canto em que estava sentado e aproximou-se de Bloodgood na mesa da roleta com o bloco de notas em mão. Em vez de continuar o jogo, Vance novamente pegou seus ganhos, escorregou de sua cadeira alta e caminhou ociosamente para o centro da sala, tomando lugar atrás da fila de cadeiras ao lado da mesa de roleta oposto àquele em que Llewellyn se sentara.
Lynn Llewellyn era de estatura média e esbelto. Olhos azuis e, embora se movessem com rapidez, não mostravam animação. Entretanto, sua boca era emotiva e móbil. Seu rosto fino dava a impressão de fraqueza e argúcia, porém era um rosto capaz — um rosto que certo tipo de mulher poderia considerar belo.
Ao sentar-se, olhou em volta vivamente, cumprimentou Bloodgood e os demais presentes, mas aparentemente não viu Vance, embora este estivesse de pé diretamente do outro lado da mesa. Observou o jogo por vários minutos, anotando os números vencedores no caderninho que colocara diante de si, na mesa. Após cinco ou seis rodadas, começou a mostrar desagrado e, virando-se na cadeira, chamou um dos serventes japoneses que ia passando:
— Scotch, e traga também um copo dágua.
Enquanto a bebida vinha, ele continuava suas anotações. Por fim, quando três números da mesma coluna apareceram sucessivamente, ele começou avidamente a jogar. Quando o rapaz trouxe o uísque, despachou-o bruscamente e se concentrou no jogo.
Na primeira meia hora em que o observamos, tentei determinar alguma seqüência matemática em sua escolha de números, porém, não tendo êxito, desisti. Soube mais tarde que Llewellyn estava jogando uma curiosa e, segundo Vance, inteiramente inconsistente e contraditória variação do sistema Labouchère — ou, como é popularmente chamado, Labby — que, durante muitos anos, fora meticulosamente testado em Monte Cario.
Contudo, ainda que o sistema haja sido considerado inadequado cientificamente, Llewellyn estava tirando vantagem dele. Realmente, se ele seguisse suas vantagens, como o costume do jogador amador, teria, como aconteceu, progredido mais rapidamente. Porém, cada vez que pegava um número (en plein) ou um meio número (à cheval) ou um quarto de número (en carré), retirava seus ganhos em proporção à sua duplicação, multiplicando apenas quando a sorte era contra ele. Após quase cada jogada, relanceava os olhos rapidamente às tabelas cuidadosamente alinhadas e colunas de algarismos do caderninho; e era óbvio que, a despeito da tentação de fazer de outra maneira, persistia rigidamente na fórmula que decidira seguir.
Pouco depois da meia-noite, quando uma de suas séries de dublagem alcançara o máximo, veio o número certo. O resultado foi um lucro enorme, e quando conferiu as seis pilhas de fichas amarelas, tomou fôlego tremulamente e recostou-se em sua cadeira. Calculei, assim por alto, de que tinha à sua frente aproximadamente dez mil dólares. Logo espalhou-se o boato de sua sorte, e os outros jogadores na sala se reuniram, curiosos, em redor dele e da mesa de Bloodgood.
Relanceei o olhar em volta e notei as várias expressões dos espectadores: algumas eram cínicas, outras invejosas, algumas apenas interessadas. Bloodgood não dava indicação, por um olhar ou uma inflexão de voz, de que algo de invulgar estivesse acontecendo: era o autômato infalível, desempenhando seus deveres com precisão mecânica.
Quando Llewellyn relaxou em seu assento após esse golpe, ele relanceou o olhar e, percebendo o olhar de Vance, inclinou a cabeça, abstrato. Ainda estava ocupado com seus cálculos e computações, anotando cada volta da roda e registrando em seu caderno o número vencedor. Seu rosto se tornara vermelho, e os lábios se moviam nervosamente enquanto anotava os algarismos. Suas mãos tremiam visivelmente, e de momento a momento respirava profundamente, como tentando acalmar os nervos. Uma ou duas vezes notei que jogava para frente o ombro esquerdo e curvava a cabeça para a esquerda, como um homem com angina do peito tentando aliviar a dor em seu coração.
Depois que passou a sexta jogada, Llewellyn se curvou para a frente e continuou seu cuidadoso sistema de selecionar e empilhar. Desta vez notei que introduzia algumas novas variações em seu método. Fez o que é conhecido como "cobrir" suas apostas, colocando o mesmo dinheiro no preto e no vermelho contra a cor do número que escolhera, e opondo a première, milieu, ou dernière douzaine contra o particular grupo de doze no qual fizera sua escolha numérica en plein, bem como utilizando tanto os pares como os ímpares (pair e impair), e o alto e o baixo (passe e manque), da mesma maneira. Essa mímica — murmurou-me Vance ao ouvido — não está nos livros. Ele está perdendo a ousadia e adotando tanto o sistema de d'Alembert como o Montant Belge. Porém, realmente ele não se importa a mínima. Se tem sorte, ganhará de qualquer maneira; e se não, perderá. Sistemas são para otimistas e sonhadores. Permanece o fato imutável de que a casa paga trinta e cinco a um contra trinta e seis possibilidades e um anexo "número da casa". Isso é destino... ninguém pode com ele.
Mas a sorte de Llewellyn na roleta estava evidentemente a seu favor nessa noite, pois pouco tempo depois ganhou outra vez num número em pirâmide. Quando puxou para si as fichas, suas mãos tremiam tanto que ele virou uma das apostas e teve dificuldade em reagrupá-la. Novamente recostou-se em sua cadeira e deixou passar os seguintes jogos. Escureceu-lhe a cor da pele, os olhos ficaram com um brilho fora do natural e os músculos da face começaram a repuxar-se. Esgazeou o olhar em torno, inexpressivamente, e sentiu falta de um dos números que aparecera na roda, de modo que teve de perguntar por ele a Bloodgood, a fim de manter completas suas anotações no caderninho.
A tensão se apossara dos espectadores. Uma estranha calmaria substituíra a conversa geral. Todos pareciam observar as conseqüências desse antiqüíssimo conflito entre um homem e as insondáveis leis da probabilidade. Llewellyn ali estava sentado com uma fortuna em fichas empilhada em sua frente. Alguns mil dólares a mais e a banca "quebraria"; pois Kinkaid destinara nessa noite um capital de quarenta mil dólares para essa mesa.
Durante o silêncio cheio de eletricidade que subitamente se instalara no salão, apenas quebrado pelo zumbido da bola giratória, o retinir das fichas e a monótona voz de Bloodgood, Kinkaid saiu do escritório e se aproximou da mesa. Parou ao lado de Vance, e indiferentemente observou o jogo por alguns momentos.
— Evidentemente, esta é a noite de Lynn — falou, casualmente.
— Sim, é mesmo... — Vance não tirou os olhos da nervosa e trêmula figura de Llewellyn.
Nesse momento Llewellyn apanhou outra en plein, porém tinha apenas uma ficha sobre o número. Contudo, isso marcava o fim de um ciclo matemático, segundo seu confuso sistema; e, retirando suas fichas, recostou-se na cadeira uma vez mais. Respirava pesadamente, como se não pudesse captar ar suficiente para seus pulmões; e novamente forçou o ombro esquerdo para diante.
Passava um servente japonês e Llewellyn o agarrou:
— Scotch — ordenou outra vez e, com aparente esforço,, anotou o número vencedor em seu caderno.
— Ele esteve bebendo muito esta noite? — Kinkaid perguntou a Vance.
— Há algum tempo atrás mandou vir um uísque, mas não o tomou — respondeu Vance. — Este será o primeiro, tanto quanto sei.
Poucos minutos depois o boy colocou ao lado de Llewellyn uma pequena bandeja de prata com um copo de uísque, um copo vazio e uma garrafinha de água tônica. Bloodgood acabara de pôr a roleta a girar, e relanceou o olhar para a bandeja. Chamou o boy:
— Mori! O Sr. Llewellyn toma água pura.
O japonês voltou, colocou o uísque na mesa diante de Llewellyn e, levando de volta a bandeja com a água tônica, afastou-se. Ao aproximar-se do fim da mesa, Kinkaid disse-lhe:
— Pode apanhar a água da garrafa em meu escritório. O rapaz acenou que sim e apressou-se.
— Lynn precisa de um gole e depressa... — Kinkaid observou a Vance. — Não adianta querer detê-lo... O maluco! Estará sem um dólar quando chegar a casa esta noite.
Como para dar razão à profecia de Kinkaid, Llewellyn fez uma grande aposta e perdeu. Enquanto consultava seu caderninho quanto ao número seguinte, o boy voltou e colocou perto dele um copo de água pura. Llewellyn esvaziou de um só gole seu copo de uísque e imediatamente bebeu a água. Empurrando para o lado os copos vazios, fez a jogada seguinte.
Perdeu novamente. Então, redobrou, e tornou a perder. Estava jogando Preto 20 e Vermelho 5, e no seguinte turno dividiu ao meio sua primeira aposta entre Vermelho 21 e Preto 4. Veio o "onze". Ele então dividiu em quatro, jogando 17, 18, 20 e 21 numa aposta, e 4, 5, 7 e 8 em outra. Repetiu-se o "onze".
Quando Bloodgood raspara as fichas, Llewellyn ficou sentado olhando o verde, sem se mover. Durante cinco minutos completos assim permaneceu, deixando os jogos se sucederem sem lhes dar a mínima atenção. Uma ou duas vezes esfregou as mãos nos olhos e sacudiu a cabeça violentamente, como se fosse presa de certa confusão mental.
Vance se adiantara um passo e o observava atentamente, e Kinkaid, também, parecia profundamente preocupado com o procedimento de Llewellyn. De tempos a tempos, Bloodgood lhe lançava um olhar, mas sem qualquer indicação de algo mais que um interesse casual.
Já então o rosto de Llewellyn estava escarlate, ele apertava as têmporas com as palmas das mãos e respirava fundo, como um homem a quem a cabeça pulsa de dor e que se sente sufocado.
Subitamente, como se fizesse um esforço enorme, ergueu-se, virando a cadeira e afastou-se da mesa. As mãos caíam ao longo do corpo. Deu dois ou três passos, cambaleou e caiu ao chão, num amontoado todo torcido.
Seguiu-se uma confusão, e vários dos jogadores que haviam estado ao lado de Llewellyn à mesa se aglomeraram sobre o homem prostrado. Porém dois dos serventes uniformizados à entrada adiantaram-se apressadamente e, abrindo caminho a cotoveladas por entre os espectadores, levantaram Llewellyn e o carregaram para o escritório de Kinkaid. Este já estava à porta, segurando-a para que pudessem entrar com o homem desmaiado.
Vance e eu os seguimos até o escritório antes que Kinkaid tivesse tempo de fechar a porta.
— Que desejam aqui? — estalou Kinkaid.
— Quero ficar aqui um pouco — replicou Vance em voz firme e gelada. — Ponha isso à conta de curiosidade, se deve ter uma razão.
Kinkaid bufou e fez sinal aos portadores para que saíssem.
— Venha cá, Van — pediu Vance. — Ajude-me a pôr o rapaz nesta cadeira.
Pusemos Llewellyn na cadeira, e Vance inclinou-lhe o corpo para diante de modo a que a cabeça ficasse entre os joelhos. Observei que o rosto de Llewellyn perdera toda a cor e estava agora mortalmente branco. Vance tomou-lhe a pulsação e virou-se para Kinkaid, que permanecia rígido junto à escrivaninha, com um sorriso escarninho.
— Você tem sais de cheirar? — perguntou Vance.
Kinkaid puxou uma das gavetas da secretária e entregou a Vance uma garrafinha verde que Vance pegou e pôs sob as narinas de Llewellyn.
Nesse momento, Bloodgood abriu a porta do escritório, entrou e a fechou rapidamente.
— Que aconteceu? — perguntou a Kinkaid. Havia uma nota de alarma em seu rosto.
— Volte ao seu posto — ordenou Kinkaid, zangado. — Não há nada... Um homem não pode desmaiar?
Bloodgood hesitou, olhou interrogativamente Vance, deu de ombros e se foi.
Vance tornou a tomar o pulso a Llewellyn, forçou-lhe a cabeça para baixo e, erguendo uma das pálpebras, examinou-lhe o olho. Então colocou Llewellyn no chão e pôs-lhe sob a cabeça uma almofada chata.
— Ele não desmaiou, Kinkaid — disse Vance, erguendo-se e olhando severamente o outro. — Foi envenenado...
— Bolas! — A palavra saiu guturalmente.
— Conhece algum médico nas vizinhanças? — O tom de Vance era significativamente calmo.
Kinkaid suspendeu a respiração:
— Há um aqui vizinho. Mas...
— Mande buscá-lo. — ordenou Vance. — E depressa!
Por um momento Kinkaid permaneceu rígido, ressentido com a ordem; depois virou-se para a secretária e discou um número. Após um momento, pigarreou e falou numa voz forçada:
— Dr. Rogers?... Aqui é Kinkaid. Houve um acidente. Venha imediatamente... Obrigado.
Recolocou o fone e voltou-se para Vance, com uma praga, e falou, furiosamente:
— Uma bela encrenca!
Dirigiu-se a uma pequena estante ao lado da mesa, onde havia um serviço de água, de prata, virando a garrafa em um dos copos de cristal. A garrafa estava vazia.
— Diabo! — rosnou. Apertou o botão da campainha. — Vou tomar um brandy. E você? — perguntou a Vance, olhar enviesado.
— Muitíssimo obrigado! — murmurou Vance.
Abriu-se a porta que dava para o bar e apareceu um servente.
— Courvoisier — ordenou Kinkaid. — E encha esta garrafa — acrescentou, apontando o serviço de água.
O homem pegou a garrafa e voltou ao bar. (À vista do corpo de Llewellyn no chão, teve um impulso para aproximar-se, mas não o fez: Kinkaid escolhia seu pessoal com astuta discriminação.)
Ao ser trazido o conhaque e servido, Kinkaid bebeu o dele de um só gole. Vance ainda bebericava o dele quando um dos homens uniformizados do vestíbulo de recepção bateu à porta e fez entrar o médico, um cavalheiro rotundo com um benevolente rosto de criança.
— Ali está seu paciente — falou Kinkaid desagradavelmente, apontando para Llewellyn. — Qual o veredicto?
O Dr. Rogers ajoelhou ao lado da figura deitada, resmungando enquanto o fazia:
— Sorte terem-me apanhado...
Fez um exame rápido: olhou as pupilas de Llewellyn, pôs-lhe o estetoscópio no coração, e sentiu-lhe os pulsos e a nuca. À medida que trabalhava fazia várias perguntas referentes aos antecedentes da atual condição de Llewellyn. Vance é que respondia, descrevendo o nervosismo de Llewellyn à mesa de roleta, sua cor vermelha e súbita prostração.
— Parece um caso de envenenamento — falou o Dr. Rogers a Kinkaid, abrindo seu estojo e preparando uma injeção hipodérmica. — Ainda não posso dizer do que se trata. Ele está em estado letárgico. Pulso curto, acelerado, respiração rápida, superficial; pupilas dilatadas... todos os sintomas de uma toxemia aguda. O que me disse a respeito da vermelhidão, dos cambaleios e do colapso; e agora a palidez... tudo indica certo tipo de veneno. Apliquei-lhe uma injeção de cafeína: é tudo que posso fazer aqui... — Ergueu-se pesadamente e pôs a seringa na maleta. — Devem levá-lo imediatamente para o hospital: precisa de tratamento heróico. Chamarei uma ambulância... — E dirigiu-se ao telefone.
Kinkaid adiantou-se: voltara a ser o jogador frio, impassível.
— Leve-o para o hospital mais próximo... o melhor que conheça — disse, em tom comercial. — Cuidarei de todos os detalhes.
O Dr. Rogers assentiu:
— O Park End... fica nas vizinhanças. — E pôs-se a discar, desajeitadamente.
Vance dirigiu-se à porta:
— Estarei por aí mesmo... — Sua expressão era severa; olhou Kinkaid, um longo, significativo olhar: — Interessante a carta que recebi, hem, Kinkaid?... Adeusinho!
Poucos minutos mais tarde estávamos na Rua 73. Era uma noite bem fria, e começava a cair um chuvisco gelado.
O carro de Vance estava estacionado a alguns metros do Cassino e, ao nos encaminharmos para ele, os detetives Snitkin e Hennessey{7} surgiram do portal de uma casa próxima.
— Tudo bem, Sr. Vance? — perguntou Snitkin, numa voz sepulcral.
— Santo Deus! — exclamou Vance. — Que estão vocês fazendo aqui numa noite como esta?
— O sargento Heath{8} nos mandou aqui para patrulhar em volta do Cassino, caso o senhor precisasse de nós — explicou Snitkin. — O sargento disse que o senhor esperava algo de "brabo" por aqui.
— Realmente! Disse, não? Muito engraçado! — Vance parecia embaraçado. — Inteligente garoto, o sargento!... Todavia, tudo já está sob controle. Estou gratíssimo pela sua vinda, mas não há razão para permanecerem por aqui. Eu mesmo já estou indo para a cama...
Porém, em vez de ir para casa, fomos ao apartamento de Markham.
Para minha surpresa, Markham ainda estava de pé e nos recebeu cordialmente no salão{9}. Depois de nos sentarmos confortàvelmente, Vance virou-se para ele, com ar interrogativo:
— Snitkin e Hennessey estavam-me guardando como bons meninos esta noite. Por acaso, pode dizer-me a razão para tão solícito devotamento?
Markham sorriu, ligeiramente encabulado, e explicou:
— A verdade é, Vance, que depois que você saiu de casa esta noite comecei a pensar que, afinal, devia haver algo de suspeito naquela carta; telefonei ao sargento Heath e lhe contei — tanto quanto me lembrava — o que havia nela. Disse-lhe também que você decidira ir ao Cassino esta noite para vigiar o jovem Llewellyn. Pensei que seria bom mandar um par de rapazes, para estar à mão caso houvesse alguma verdade na carta.
— Isso explica tudo — disse Vance. — Entretanto, não houve necessidade de guarda pessoal. Porém a carta provou ser espantosamente profética.
— Que foi que disse? — Markham deu uma volta completa na cadeira giratória.
— Sim, sim! Uma epístola que era um prognóstico! Lynn Llewellyn foi envenenado diante dos meus olhos.
Markham pulou:
— Morto?
— Não estava quando o deixei. Mas não fiquei esperando. — Vance estava pensativo. — Estava em más condições... Está sob os cuidados do Dr. Rogers, no Hospital Park End... Diabólica situação! Sinto-me confuso! — Também ele se levantou. — Espere um momento. — Foi à cabina, e eu o ouvi telefonando.
Daí a pouco voltou:
— Acabo de falar com o atarracado esculápio no hospital: Llewellyn está na mesma — só que sua respiração está mais lenta e mais superficial. A pressão baixou para setenta a cinqüenta, e está tendo movimentos convulsivos... Está sendo feito todo o possível: adrenalina, cafeína, digitális, e lavagem gástrica via nasal. Claro, não há ainda diagnóstico positivo. Uma verdadeira mistificação, Markham...
Justamente nesse momento o telefone tocou e Markham atendeu. Um minuto depois ele surgiu: pálido e com a fronte enrugada. Veio até a mesa do centro, como um homem estupidificado. Murmurou:
— Vance, por Deus! Algo diabólico está acontecendo! Era Heath ao telefone. Acabou de chegar um chamado à delegacia. Heath contou-me... por causa daquela carta, penso...
Deteve-se, olhar perdido no espaço. Vance olhou-o com curiosidade:
— E, por favor, o que disse o sargento?
Markham, como se o fizesse com esforço considerável, voltou os olhos para Vance:
— A jovem esposa de Llewellyn está morta... envenenada!
IV - O QUARTO DA MOÇA ASSASSINADA
(Domingo, 16 de outubro — 1:30 hora)
As sobrancelhas de Vance se ergueram.
— Céus! Por essa eu não esperava! Entretanto... há um padrão... Ouça, Markham por acaso o sargento disse a que hora a moça morreu?
— Não — Markham sacudiu a cabeça, abstratamente. — Ao que parece, primeiro chamaram um médico; depois, telefonaram para a polícia. Podemos supor que a morte ocorreu há cerca de meia hora...
— Meia hora! — Vance bateu no braço de sua poltrona, rufando os dedos. — Exatamente na ocasião em que Lynn caiu... Simultaneidade, hem?... Esquisito... diabòlicamente esquisito... Nenhuma outra informação?
— Não, nada mais. Heath estava apenas esperando um carro com alguns dos rapazes, para dirigir-se para a mansão dos Llewellyns. Provavelmente telefonará outra vez quando chegar lá.
Vance atirou o cigarro na lareira e levantou-se:
— Não devíamos estar aqui — falou, com entonação zangada, voltando-se para Markham. — Vamos para Park Avenue descobrir por nós mesmos. Não estou gostando disso, Markham... não estou gostando absolutamente. Há em andamento algo de diabólico e sinistro — e anormal... Senti isso ao ler aquela carta pela primeira vez. Algum terrível assassino está à solta: esses dois envenenamentos podem ser apenas o começo. O envenenador é o pior dos criminosos: nunca se sabe até onde pode ir... Vamos.
Raramente eu havia visto Vance tão perturbado e insistente; e Markham, sentindo a força de sua resolução e seus temores, permitiu, sem protesto, ser levado no carro de Vance à antiga mansão dos Llewellyns em Park Avenue.
O casarão, de arenito castanho-avermelhado, era alguns metros recuado da Avenida. Uma grade de ferro toda em arabescos, com um enorme portão, se estendia ao longo de todo o terreno, de cerca de 15 a 20 metros de comprimento; e a passagem entre os edifícios não era pavimentada, e sim cercada por uma sebe viva, duas ordens de ciprestes; e dois canteiros de flores, um de cada lado do passeio lajeado, levavam até a maciça porta de carvalho.
Ao chegarmos à casa dos Llewellyns, já a polícia estava lá. Dois policiais uniformizados, do distrito policial local, estavam de vigia na área externa. Ao reconhecerem o procurador distrital, cumprimentaram e se adiantaram:
— O sargento Heath e alguns dos rapazes da Divisão de Homicídios acabaram de chegar, Chefe — um deles explicou a Markham, apertando o botão da campainha da porta.
A porta da frente foi aberta imediatamente por um homem alto, magro e muito pálido, vestindo casaca e seus acessórios.
— Sou o procurador distrital — disse-lhe Markham — e desejo falar ao sargento Heath. Chegou há poucos momentos, creio.
O homem curvou-se tesamente, com exagerada dignidade:
— Certamente, senhor — falou, com acento levemente cockney.
— Tenha a bondade de entrar, senhor... Os policiais estão lá em cima... nos aposentos da Sra. Lyn Llewellyn, ao fim do vestíbulo. Sou o mordomo e recebi ordens de permanecer aqui, na porta. (A última observação era sua desculpa por não nos acompanhar.)
Passamos por ele e subimos a ampla escada circular, brilhantemente iluminada. Ao alcançarmos o primeiro patamar, o detetive Sullivan, de guarda no vestíbulo acima, cumprimentou Markham:
— Alô, Chefe! O sargento ficará satisfeito com a sua vinda. Parece um caso bem sujo... — E mostrou o caminho para o vestíbulo.
Na ala sul da casa, Sullivan abriu-nos uma porta. Entramos num quarto amplo, quase quadrado, teto alto e uma lareira esculpida à moda antiga; pesados reposteiros de uma era passada pendiam das altas janelas trancadas. O mobiliário — Império — parecia autêntico e caríssimo; nas paredes, quadros preciosos que poderiam honrar qualquer museu de arte.
Na alta cama de dossel, à nossa esquerda, jazia a figura imóvel de uma mulher de cerca de trinta anos. A colcha de seda fora parcialmente atirada para trás e ambos os braços estavam puxados por cima da sua cabeça. Seu cabelo fora escovado simplesmente para trás, cobertos por uma rede atada em sua nuca.
O rosto, sob uma camada de creme recentemente aplicada, estava azulado e manchado, como se tivesse morrido numa convulsão; os olhos, escancarados e fixos. Era uma visão de gelar o sangue.
O sargento Heath, dois membros da Divisão de Homicídios — detetives Burke e Guilfoyle — e o tenente Smalley, da estação local, estavam no quarto. O sargento sentara ante a mesa de mármore do centro, seu bloco de notas diante de si.
De frente para a mesa estava uma mulher alta e vigorosa de cerca de sessenta anos, rosto aquilino de feições fortes. Topava de leve os olhos com um lencinho de renda. Embora jamais a houvesse visto, reconheci-a de retratos de jornais, onde aparecia de tempos a tempos: era a Sra. Anthony Llewellyn.
Junto dela, uma jovem que se parecia singularmente com Lynn Llewellyn, e corretamente julguei fosse Amélia Llewellyn, a irmã de Lynn. Seu cabelo escuro era repartido ao meio e posto por trás das orelhas num coque baixo. O rosto, como o de sua mãe, era forte e aquilino, de marcante dureza e uma expressão quase desdenhosa. Olhou-nos de relance, ao entrarmos, com um olhar frio e indiferente. Ambas usavam roupões acolchoados, de seda, em f ei tio de quimonos.
Diante da lareira estava de pé um homem nervoso, esbelto, de uns trinta e cinco anos, em toalete de jantar, fumando um cigarro preso a uma longa piteira de marfim. Logo soubemos tratar-se do Dr. Allan Kane, um amigo da Srta. Llewellyn, que morava a um quarteirão de distância da casa dos Llewellyns, e fora chamado pela moça. O Dr. Kane é que informara a polícia a respeito da morte da jovem Sra. Llewellyn. Apesar de agitado, Kane tinha um aspecto de seriedade profissional. Tinha o rosto avermelhado e repousava o peso do corpo ora num pé ora noutro; mas seu olhar era direto e avaliativo enquanto nos media um a um.
O sargento Heath ergueu-se e nos cumprimentou, ao entrarmos.
— Estava esperando que viesse, sr. Markham — disse, com ar de alívio. — Mas não o Sr. Vance. Pensei que estivesse no Cassino.
— Eu estava no Cassino, sargento — afirmou Vance, em voz baixa e séria. — E obrigado por Snitkin e Hennessey, mas não precisei...
— Lynn! — O nome, como um gemido agônico, rompeu a triste atmosfera do quarto. Viera dos lábios da Sra. Llewellyn; voltou-se para Vance, apreensiva: — Viu meu filho lá? Ele está bem?
Vance olhou a senhora por vários minutos, como que a decidir o que responder. Então disse, com simpatia e determinação :
— Lamento, senhora, mas seu filho também foi envenenado...
— Meu filho está morto?... — A intensidade de suas palavras me fez correr um frio pela espinha.
Vance sacudiu negativamente a cabeça, olhando atentamente a angustiada mulher:
— Não até as últimas notícias. Está sob cuidados médicos, no Hospital Park End...
— Tenho de ir para junto dele! — gritou, querendo sair do quarto. Porém Vance a deteve gentilmente:
— Não; agora, não, por favor. Não lhe faria bem, e a senhora é necessária aqui agora. Daqui a pouco pedirei notícias ao hospital, para a senhora... Lamento ter de dar-lhe notícia tão triste, senhora; mas teria de saber, mais cedo ou mais tarde... Por favor, sente-se e nos ajude.
A mulher impertigou-se, numa atitude espartana:
— Nunca se dirá que nós, Llewellyns, não cumprimos nosso dever — anunciou, em voz austera; e sentou-se rigidamente numa cadeira aos pés da cama.
Amélia Llewellyn estivera observando a mãe, com céptica indiferença:
— Muito nobre... — comentou, dando de ombros. — Nós, Llewellyns... o habitual abracadabra. "Firmitas et fortitudo", o moto da família. Um grifo rampant ou sejant ou couchant — esqueci qual. De qualquer modo, o grifo é uma criatura quimérica. Completa característica de nossa família: capaz de tudo... e de nada.
— Talvez o grifo dos Llewellyns seja segreant — sugeriu Vance, olhando firme para a moça.
Ela susteve a respiração, devolveu o olhar a Vance por alguns segundos, e respondeu sèpticamente:
— Pode ser... Os Llewellyns são, antes de mais nada, excêntricos.
Vance continuou a olhá-la severamente, e após um momento ela caminhou até ele, com um sorriso meio torcido.
— Assim, o queridinho Lynn — filho modelar — também foi envenenado? — disse, e o sorriso lhe desapareceu da boca. — Alguém está evidentemente determinado a fazer um lindo trabalho conosco... Não ficaria surpresa se eu fosse a próxima... Há dinheiro demais, dinheiro podre, nesta família.
Lançou um olhar de sarcasmo à sua mãe, que a observava iradamente; depois, sentando-se à borda da mesa, acendeu um cigarro.
Markham estava impaciente e aborrecido:
— Continue com seu serviço, sargento — ordenou bruscamente. — Quem encontrou esta jovem mulher? — Sacudiu a mão, com desagrado, na direção da cama.
— Fui eu. — Amélia Llewellyn se tornara séria, e seu peito arfava com emoção.
— Ah! — Vance sentou-se e estudou a moça, zombeteiramente. — Suponhamos que nos conte as circunstâncias, senhorita.
— Todos fomos para a cama por volta das onze — ela começou. — Tio Dick e o Sr. Bloodgood tinham ido para o Cassino logo depois do jantar. Lynn os seguiu cerca de uma hora mais tarde. E Allan — o Dr. Kane, aqui — tinha de dar alguns telefonemas e saiu com Lynn...
— Um momento! — interrompeu Vance, erguendo a mão. — Pelo que sei, o jantar desta noite era mais ou menos um negócio de família. Estava presente o Dr. Kane?
— Sim, ele estava aqui. — A moça assentiu amargamente. — Eu sabia o que significava outro desses jantares de aniversário: disputas, recriminações, briga geral. E eu estava nervosa. Assim, no último minuto, pedi ao Dr. Kane que viesse jantar, na esperança de que sua presença acalmasse os ânimos. Claro, Morgan Bloodgood também estava aqui, porém ele é, realmente, como da família. Não hesitamos em ventilar nossas diferenças em sua presença.
— E adiantou alguma coisa a presença do Dr. Kane?
— Não — ela replicou. — Havia muita paixão reprimida a que se precisava dar vazão...
Vance hesitou, mas depois continuou seu interrogatório:
— Então Lynn e seu tio e os outros partiram; e a senhorita, sua cunhada e sua mãe se recolheram lá pelas onze. Que aconteceu então?
— Eu estava cansada e inquieta e não podia dormir. Levantei-me por volta de meia-noite e comecei a desenhar. Trabalhara por uma hora, mais ou menos, e acabava de resolver deitar-me novamente quando ouvi Virgínia gritar, numa voz histérica. Meu quarto é nesta ala da casa, e os dois apartamentos são separados apenas por um estreito corredor que uso como armário de roupas. — Com um movimento de cabeça indicou uma porta ao fundo do quarto.
— Poderia ouvir sua cunhada com as duas portas e o guarda-roupa entre vocês? — perguntou Vance.
— Comumente, não; porém eu havia acabado de entrar no armário para pendurar meu roupão.
— E o que fez então?
— Parei na porta para ouvir, e Virgínia gritava como se estivesse asfixiada. Tentei o trinco. A porta não estava trancada...
— Era raro que essa porta não estivesse trancada? — interrompeu Vance.
— Não. De fato, raramente era trancada. — Continue, por favor!
— Bem, Virgínia estava na cama, como está agora. Os olhos, arregalados; o rosto, terrivelmente vermelho; e estava numa horrível convulsão. Corri para o patamar e chamei mamãe. Mamãe acorreu e olhou-a. "Chame um médico, Amélia", disse; e imediatamente telefonei ao Dr. Kane. Mora aqui pertinho e veio imediatamente. Enquanto eu telefonava, Virgínia pareceu desmaiar. Tornou-se dura... dura demais. Eu... eu soube que ela havia morrido... A moça estremeceu involuntariamente e sua voz diminuiu lentamente.
— E depois, Dr. Kane? — Vance se voltara para o homem apoiado à lareira.
Kane adiantou-se, nervosamente: sua mão tremia ao tirar a piteira da boca.
— Quando cheguei, senhor, poucos minutos depois — começou, com estudado ar de dignidade profissional — a Sra. Llewellyn — Sra. Lynn Llewellyn, quero dizer, naturalmente — estava morta. Os olhos estavam esbugalhados; as pupilas tão dilatadas que dificilmente se distinguiria a retina; e estava coberta com uma erupção de pele semelhante à escarlatina. Pareceu ter uma alta de temperatura post mortem, e a posição de seus braços e a distorção dos músculos faciais e cervicais indicavam que tivera uma convulsão e morreu de asfixia. Os sintomas são de algum veneno do grupo da beladona — hioscina, atropina, ou escopolamina. Não mexi no corpo e preveni a Sra. Llewellyn e sua filha que não o tocassem. Telefonei imediatamente para a polícia.
— Correto! — murmurou Vance. — E então o senhor esperou pela nossa chegada?
— Naturalmente! — Kane recuperara muito do seu autocontrole, embora ainda estivesse vermelho e respirasse pesadamente.
— E nada no quarto foi tocado?
— Nada. Estive aqui todo o tempo, e a Sra. e a Srta. Llewellyn esperaram aqui comigo.
Vance assentiu lentamente:
— A propósito, doutor: usa uma máquina de escrever? Kane teve um movimento de surpresa, e gaguejou:
—... Sim! Costumava datilografar meus pontos na escola de medicina. Não sou lá muito bom nisso... Mas... não compreendo... Mas se a minha datilografia pode ser de alguma ajuda no caso...
— Apenas uma pergunta ociosa — retorquiu Vance casualmente, e voltou-se para Heath. — O médico legista foi avisado?
— Claro. — O sargento estava calado, aborrecido, mastigando seu charuto. — O chamado foi através do escritório, como de costume, porém eu telefonei para Doremus, em sua casa... Não gostei da organização das coisas, esta noite... {10}
— E ele ficou provavelmente muito aborrecido... — sugeriu Vance.
O sargento grunhiu:
— Eu diria que ficou mesmo. Porém disse-lhe que o Sr. Markham estaria aqui, e ele afirmou que também viria. Deve chegar a qualquer momento...
Vance levantou-se e encarou Kane:
— Penso que isto é tudo, por agora, doutor. Mas devo pedir-lhe que permaneça aqui até que chegue o legista. O senhor poderá ajudá-lo... O senhor se importaria de esperar no salão, embaixo?
— Certamente que não! Terei satisfação em ajudar do modo que possa.
Quando ele saiu, Vance voltou-se para as duas mulheres:
— Sinto ter de pedir-lhes para ficar aqui em cima, porém é necessário. Tenham a bondade de aguardar em seus quartos.
Embora macia, sua voz tinha um inconfundível tom de ' comando.
A Sra. Llewellyn ergueu-se: seus olhos fulguravam.
— Por que não posso ir ver meu filho? Aqui não há nada mais que eu possa fazer. Nada sei de toda essa questão.
— A senhora não pode ajudar seu filho — replicou Vance, com firmeza; — e pode ser capaz de ajudar-nos aqui. Todavia, terei satisfação em saber como ele vai passando.
Foi ao telefone na mesinha de cabeceira; um minuto depois falava ao Dr. Rogers. Ao desligar, voltou-se encorajadoramente para a Sra. Llewellyn:
— Seu filho já saiu do estado de coma, senhora; respira mais normalmente, o pulso está mais forte, enfim, parece fora de perigo. A senhora será notificada imediatamente se houver alguma piora.
Segurando o lencinho nos olhos, a Sra. Llewellyn saiu soluçando.
Amélia Llewellyn não saiu logo. Esperou que a porta se fechasse e então olhou para Vance interrogativamente, perguntando numa voz metálica:
— Por que perguntou se o Dr. Kane usava uma máquina de escrever?
Vance tirou do bolso a carta que o metera na questão e a entregou à moça, sem uma palavra. Observou-a atentamente, olhos semicerrados, enquanto a lia. Notou-lhe certa perturbação, mas não surpresa. Chegando ao fim, ela deliberada-mente tornou a dobrar a carta e a devolveu a Vance.
— Obrigada — disse e, voltando-se, saiu do quarto.
— Um momento. A senhorita também usa uma máquina de escrever?
A moça, apàticamente, assentiu:
— Oh! Sim. Faço toda a minha correspondência numa pequena máquina que tenho... Entretanto — acrescentou, com um fraco sorriso — sou muito mais competente que a pessoa que datilografou essa carta.
— E os demais membros da casa também usam a máquina? — perguntou Vance.
— Sim... todos somos muito modernos. — A moça falava indiferentemente. Mesmo mamãe datilografa suas conferências. E tio Dick, tendo sido escritor há tempos, aperfeiçoou um rápido, porém superficial, sistema de dois dedos.
— E sua cunhada: usava uma?
Os olhos da moça se voltaram para a cama e ela estremeceu:
— Sim. Virgínia se divertia com a máquina enquanto Lynn estava fora, jogando... O próprio Lynn é ótimo datilografo. Freqüentou uma escola de comércio... provavelmente pensando em ser um dia chamado a cuidar dos negócios dos Llewellyns. Mas mamãe não pensava assim, de modo que ele se voltou para os night-clubs. (Havia um curioso desinteresse na sua maneira de falar que, no momento, não pude aprofundar.)
— Isso deixa apenas o Sr. Bloodgood... — começou Vance; mas a moça o interrompeu rapidamente:
— Ele também datilografa — seus olhos escureceram, e senti que sua atitude para com Bloodgood não era das mais amigáveis. — Ele datilografa a maioria de seus relatórios sobre esse negócio de máquinas caça-níqueis com que se meteu, em nossa máquina de escrever que está lá embaixo.
Vance ergueu as sobrancelhas levemente, interessado:
— Ainda há outra máquina lá embaixo?
Outra vez a moça afirmou, e deu de ombros como se isso fosse coisa que não a interessasse.
— Sempre houve uma lá... na pequena biblioteca da sala.
— Acha — perguntou Vance — que a carta pode haver sido escrita naquela máquina?
— Pode ter sido... É o mesmo tipo de letra e a mesma cor de fita... Mas há tantas parecidas...
— E talvez — prosseguiu Vance — você possa sugerir quem foi o autor da comunicação.
Tornou-se nublada a expressão de Amélia Llewellyn e o olhar duro lhe voltou.
— Eu poderia fazer várias sugestões — disse, num tom áspero. — Porém não tenho intenção de fazer nada disso. — E abrindo a porta com decisiva rapidez, saiu do quarto.
— Aprende-se muito! — rosnou Heath, sarcàsticamente. — Esta casa é um punhado de datilógrafos...
Vance olhou indulgentemente para o sargento:
— Aprendi muito hoje, sabe!
Heath mudou de um lado para o outro o charuto entre os dentes e fez uma careta:
— Talvez sim, talvez não... — murmurou. — O caso é meio torto, se quer saber... Llewellyn sendo envenenado no Cassino, e sua esposa tendo a mesma dose aqui, ao mesmo tempo. Parece-me haver um bando trabalhando...
— A mesma pessoa poderia realizar ambos os atos, sargento — retrucou Vance indulgentemente. — Na verdade, estou certo de que foi a mesma pessoa. Além disso, acho que a mesma pessoa me enviou a carta... Espere um minuto!
Caminhou para a mesinha de cabeceira e, pondo de lado o telefone, apanhou um pequeno papel dobrado:
— Vi isso quando telefonei ao hospital. Mas propositadamente não o examinei até que as senhoras se houvessem retirado.
Desdobrou o papel e o segurou sob a luz do abajur. De onde eu estava podia ver tratar-se de uma simples folha de bloco, azul, e estava datilografado.
— Santos Céus! — murmurou Vance, ao lê-lo. — Espantoso!...
Depois entregou o papel a Markham, que o segurou de modo a que eu e Heath, de pé a seu lado, pudéssemos vê-lo. Era uma nota mal datilografada e dizia:
"Caro Lynn — Não posso fazê-lo feliz, e Deus sabe que nesta casa ninguém tentou fazer-me feliz. Tio Dick é a única pessoa aqui a tratar-me com delicadeza e consideração. Não me querem aqui, e me sinto miserável. Vou envenenar-me. Adeus... e possa o seu novo sistema de roleta trazer-lhe a fortuna que você parece querer mais que tudo." A assinatura, "Virgínia", também estava datilografada. Markham dobrou a nota e franziu os lábios. Olhou para Vance durante muito tempo e depois observou:
— Isso parece simplificar as coisas.
— Oh! meu caro amigo! — protestou Vance. — Esta nota complicou abominàvelmente a situação!
V - VENENO!
(Domingo, 16 de outubro — 2:15 horas)
Nesse momento, Sullivan abriu a porta e fez entrar o Dr. Doremus, pessoa elegante, com um ar mordaz. Usava um casacão de tweed, e a aba do seu chapéu de feltro cinza-pérola estava caída faceiramente para um lado.
Cumprimentou-nos com dramática consternação, e relanceou um olhar petulante para o sargento Heath.
— Quando vocês não me chamam para ver seus cadáveres à hora do jantar, esperam que eu esteja dormindo e me confundem completamente... Isso não é direito... não é direito... É uma conspiração para roubar-me a alimentação e o repouso. Envelheci vinte anos desde que comecei com este serviço três anos atrás.
— Pois você parece bastante jovem e esperto... — sorriu Heath. (Há muito se acostumara com os resmungos do médico legista.)
— Bem, não há que esperar muita consideração de vocês, meninos da Divisão de Homicídios. Onde está o corpo? — Os olhos percorreram o quarto e chegaram a rígida figura de Virgínia Llewellyn. — Uma senhora, hem? De que morreu?
— Você vai-nos dizer. — De súbito, Heath tornara-se agressivo.
Doremus resmungou; então, tirando o chapéu e o casaco pô-los numa cadeira, e aproximou-se da cama. Durante dez minutos examinou a moça morta e, uma vez mais, impressionou-me sua competência e minuciosidade. Com todos os seus maneirismos e atitudes cépticas, era um astuto e eficiente médico — um dos melhores e mais conscienciosos legistas que Nova York já teve.
Enquanto Doremus estava ocupado com sua repulsiva tarefa, Vance fez uma breve inspeção do quarto. Foi primeiro até a mesinha de cabeceira onde repousava um pequeno serviço de prata parecido com o do escritório de Kinkaid no Cassino. Apanhou os dois copos e os examinou: ambos pareciam enxutos. Depois tirou a rolha da garrafa e a virou num dos copos: vazia. Vance estava carrancudo ao depositá-la na bandeja. Após inspecionar a gavetinha da mesa, caminhou para o banheiro, que estava entreaberto, nos fundos do quarto.
Ao passar por Markham, comentou a meia voz:
— O serviço para noite é abominável. A garrafa dágua de Kinkaid, vazia; e também a de Lynn Llewellyn. Esquisito, não lhe parece? Incidentalmente, a gaveta da mesinha de cabeceira só contém um lenço, um baralho de cartas — para solitários, sem dúvida — um lápis e um bloco de notas, um bastão de pomada para lábios e um par de óculos de leitura... Nada de letal...
Segui Vance ao banheiro, pois sabia que tinha algo de definido em mente ao começar sua inspeção: esse fato era claramente indicado por seus modos descansados e casuais, que ele invariavelmente assumia em momentos de alta tensão.
O banheiro era grande, completamente modernizado, e tinha duas janelinhas que davam para o pátio interno. Estava muito bem arrumado, tudo em ordem. Após acender a luz. Vance olhou-o pesquisadoramente. Havia um pequeno pulverizador e um tudo de tabletes para banho no peitoril de uma das janelas.
Vance pressionou o pulverizador e sentiu o cheiro do spray.
— Fleur-de-lis, de Derline, Van — observou. — Ideal para louras. — Leu o rótulo pregado no tubo de pastilhas para banho. — Também Fleur-de-lis, de Derline. Consistente e correto. Ah! a maioria das mulheres comete o erro fatal de opor seu perfume de banho ao perfume pessoal do corpo...
Abriu a porta do armarinho de remédios e o examinou. Continha apenas os artigos habituais: cremes de limpeza de pele e de hidratação, um frasco de loção para mãos, águas de toalete, talco e pós para banho, um desodorizante, um tubo de pasta de dentes, fio dental, um termômetro e os medicamentos convencionais: iodo, aspirina, bicarbonato de sódio, cânfora, desinfetantes bucais e para embrocações, glicerina, argirol, amônia, benjoim, leite de magnésia, tabletes de brometo, um colírio, etc.
Vance levou um tempo considerável examinando minuciosamente cada artigo. Por fim, retirou uma garrafinha de cor castanha com um rótulo impresso e, cuidadosamente ajustando o monóculo, leu o tipo fino da fórmula. Então escorregou a garrafinha em seu bolso, fechou a portinhola do armariozinho e voltou ao quarto de dormir.
O Dr. Doremus estava justamente cobrindo com um lençol a rígida forma estirada na cama. Voltou-se para Heath com simulada truculência:
— Bem, e quanto a isso? — perguntou, irritado, espalhando as mãos num gesto de inquirição: — Ela está morta... se é isso que querem saber. E tive de ser tirado à força dos lençóis, às duas da madrugada, para dizer-lhes isso!
Heath lentamente tirou o charuto dos dentes e olhou furiosamente para o Legista:
— Muito bem, doe! Ela está morta, diz o senhor! Mas há quanto tempo o está, e o que a matou?
— Eu sabia o que vinha vindo por aí... — suspirou Doremus; e então tornou-se profissionalmente sério. — Bem, sargento, ela está morta há umas duas horas, e foi envenenada... Agora, suponho que vai querer que lhe diga onde ela apanhou o veneno. — E olhou de esguelha para Heath.
Vance meteu-se entre os dois homens:
— Um médico chamado aqui — disse gravemente a Doremus — sugeriu que ela pode haver morrido devido a um dos venenos do grupo da beladona.
— Qualquer estudante de medicina, terceiranista, saberia disso — Doremus retrucou. — Claro, é envenenamento por beladona... Esse serra-ossos esteve aqui a tempo de tomar a temperatura post mortem dela?
— Dez minutos após sua morte já ele estava aqui — disse Vance.
— Bem, bem. — Doremus pôs o casaco e cuidadosamente ajeitou a aba do chapéu. — Todas as indicações: olhos esbugalhados, pupilas largamente dilatadas, manchas na pele, um salto na temperatura, sinais de convulsões e asfixia... Simples.
— Sim, sim... totalmente — Vance puxou do bolso o frasquinho que retirara do armarinho de remédios e entregou-o ao legista: — Poderiam esses tabletes ser a causa da morte?
Doremus olhou atentamente o rótulo e a fórmula impressa:
— Tabletes para regulagem de rinite... remedinho caseiro... — Pôs o frasco sob a luz do abajur e examinou-o de olhos semicerrados. — Cânfora em pó! — Leu em voz alta: — Extrato fluído de raiz de beladona... um quarto de mínimo, e sulfato de quinino... Certamente isso poderia ter causado a coisa... se fossem tomadas muitas delas.
— O frasco está vazio; e continha cem tabletes, está no rótulo.
O Dr. Doremus, ainda examinando o rótulo, balançou a cabeça:
— Cem vezes um quarto de mínimo seriam vinte e cinco mínimos... Beladona bastante para nocautear qualquer resfriado. — Devolveu a garrafinha a Vance: — Esta é a resposta. Por que fazer-me levantar no meio da noite, se você tinha todo o narcótico?
— Na realidade, doutor, estávamos apenas experimentando. Acabei de encontrar esta garrafinha vazia, sabe, e pensei nisso como uma possibilidade.
— Parece-me muito boa. — Doremus encaminhou-se para a porta. — Só um post mortem responderá exatamente suas perguntas.
Markham falou bruscamente:
— Isso é justamente o que queremos, doutor. Quando, o mais cedo possível, poderemos ter um relatório da autópsia?
— Oh! Deus! — Doremus apertou os dentes. — E amanhã é domingo... Essa pressa moderna me acabará matando... Que tal amanhã às onze da manhã?
— Eminentemente satisfatório — respondeu-lhe Markham.
O Dr. Doremus tirou do bolso um pequeno bloco e, nele escrevendo algo, rasgou o pedaço de papel e deu-o ao sargento:
— Aqui está a ordem para a remoção do cadáver.
O sargento pôs no bolso o pedaço de papel, murmurando:
— O corpo estará no necrotério antes do senhor.
— Excelente! — Doremus olhou de esguelha desagradavelmente para Heath e abriu a porta. — E agora vou voltar a dormir. Vocês poderão ter um massacre hoje à noite, se quiserem, mas não me verão até amanhã às nove horas...
Abanou a mão num gesto de adeus para todos nós e saiu rapidamente.
Quando o legista bateu a porta ao sair, Markham voltou-se gravemente para Vance:
— Onde encontrou esse frasco, Vance?
— No lavatório. Foi a única coisa que vi ali que parecia oferecer alguma possibilidade.
— Considerado em conexão com a nota de suicídio que você descobriu — observou Markham — parece fornecer uma explicação simples para esse caso terrível.
Por vários momentos Vance ficou olhando Markham, pensativamente; depois, inalando profundamente o seu cigarro, caminhou todo o comprimento do quarto e voltou, cabeça abaixada em contemplação.
— Não estou tão certo, Markham — murmurou, quase para si mesmo. — Afirmo-lhe que essa é uma solução muito bem preparada para a morte daquela moça ali na cama. Mas, e quanto ao pobre rapaz que está no hospital? Ali não havia beladona que lhe fizesse mal; e certamente em sua mente não havia nenhuma pressa de suicidar-se. Estava jogando para ganhar, esta noite; e seu tolo sistema aparentemente funcionava bem. Mesmo assim, no meio do jogo ele desmaia... Não, não... Essa garrafinha vazia é demasiado simples... e este caso não é simples absolutamente: está cheio de sombras e de pistas falsas... esconde sutilezas e circunvoluções cerebrais...
— Afinal, você encontrou o frasco... — começou Markham. Porém Vance o interrompeu:
— Isso pode haver sido arranjado para nós. Ajusta-se bem demais ao esquema... Saberemos mais — ou menos — amanhã de manhã quando Doremus enviar seu relatório.
Markham estava aborrecido:
— Por que forjar todos esses mistérios?
— Meu caro Markham! — reprovou-o Vance, e ficou durante vários minutos aparentemente absorto numas gravuras do século dezoito, penduradas sobre a lareira.
Nesse ínterim, Heath telefonara à Assistência Pública para que mandassem uma ambulância para retirar o corpo. Depois desse telefonema, falou ao tenente Smalley do distrito policial local, que silenciosamente observara tudo de um canto do quarto:
— Não há mais nada, tenente. O Sr. Markham está aqui, e tudo não passará de rotina até que o Dr. Doremus faça a autópsia. Mas pode deixar aí fora um par de rapazes.
— Como queira, sargento. — O tenente Smalley apertou as mãos de todos os presentes, depois saiu com um ar de óbvio alívio.
— Penso que também podemos ir — falou Markham,
— Você fica encarregado do caso aqui, naturalmente, sargento... Tratarei disso com o inspetor logo de manhã.
— Ora, Markham — disse Vance — não vamos todos embora precipitadamente. Eu gostaria de conhecer alguns fatos, e já que estamos aqui...
— O que, por exemplo, você gostaria de saber? — Markham estava impaciente.
Vance afastou os olhos da gravura e olhou tristemente para a moça morta.
— Gostaria de falar mais um pouco com o Dr. Kane antes de nos retirarmos.
Markham fez uma expressão estranha, mas finalmente assentiu relutante:
— Ele está lá embaixo. — E foi à frente, para o vestíbulo.
O Dr. Kane andava nervosamente acima e abaixo, ao entrarmos no salão de estar.
— Qual é o relatório? — perguntou antes que Vance tivesse tempo de falar.
— O legista apenas corroborou o seu diagnóstico, doutor — disse-lhe Vance. — O post mortem será a primeira coisa a ser realizada pela manhã... A propósito, doutor, o senhor é o médico de família dos Llewellyns?
— Eu mal poderia afirmar isso — respondeu o outro.
— Duvido que tenham alguém que os atenda com regularidade. Não precisam de muita supervisão médica: é uma família saudável. Ocasionalmente prescrevo, entretanto, para coisinhas de menor importância, mais como amigo do que como profissional.
— E receitou para algum deles ultimamente? — perguntou Vance.
Kane pensou por um momento, e respondeu, lentamente:
— Nada de importância... Sugeri um fortificante à base de ferro — Blaud's Mass — e estriquinina para a Srta. Llewellyn há uns dias passados...
— Lynn Llewellyn tem qualquer doença — interrompeu Vance — que o faça desmaiar sob forte excitação?
— Não! Tem o coração hipertrofiado, com tendência a pressão alta... resultado de atletismo no ginásio...
— Angina?
Kane sacudiu a cabeça:
— Nada tão sério assim, embora sua condição possa caminhar para isso, algum dia.
— Nunca receitou para ele?
— Há um ano, mais ou menos, fiz-lhe uma receita para tabletes de nitroglicerina — dois cêntimos de grão. Foi tudo.
— Nitroglicerina, hem? — Havia um brilho de interesse nos olhos de Vance. — Muito revelador... E sua esposa: nunca foi chamado para atendê-la?
— Oh! uma ou duas. vezes... Tinha olhos fracos, e recomendei um colírio comum... É experiência minha — acrescentou, meio pomposo — que as louras muito claras com pálidos olhos azuis — falta de pigmentação, entende... — têm olhos mais fracos que as morenas...
— Não vamos entrar em teorias oftalmológicas — cortou Vance, com um sorriso insinuante. — Está ficando muito tarde... Que mais receitou para a jovem Sra. Llewellyn?
— Isso é, realmente, tudo. — Kane, apesar de tentar fazer pose, estava ficando nervoso. — Recomendei um ungüento para uma leve inflamação em uma de suas mãos, há já muitos meses; e na semana passada, quando ela teve um incomodativo resfriado na cabeça, sugeri comprimidos para rinite. Não me recordo de nada mais... — Comprimidos para rinite? — O olhar penetrante de Vance não o deixava. — Quantos mandou que ela tomasse?
— Oh! A dose usual: um ou dois comprimidos de duas em duas horas.
— A maioria dos comprimidos para rinite contém bela-dona, não? — observou Vance num tom áspero.
— Ora, sim... claro... — Os olhos de Kane subitamente se arregalaram, e olhou para Vance com terror intenso.
— Mas... mas... realmente... — gaguejou e calou-se.
— Encontramos um frasco vazio, para cem comprimidos, em seu armarinho de remédios — informou Vance, sem mover o olhar. — E, de acordo com seu diagnóstico, a Sra. Llewellyn morreu envenenada por beladona.
Kane ficou boquiaberto e totalmente pálido:
— Meu Deus! — murmurou. — Ela... ela não pode ter feito isso! — O homem tremia visivelmente. — Ela devia saber... e fui bastante explícito...
— Ninguém pensaria em culpá-lo nas atuais circunstâncias, doutor — falou Vance, consoladoramente. — Diga-me, a Sra. Llewellyn era uma paciente inteligente e conscienciosa?
— Sim, muito. — Kane umedeceu os lábios, fazendo um valente esforço para controlar-se. — Era sempre extremamente cuidadosa no seguir implicitamente minhas instruções. Lembro-me agora de que me telefonou, no outro dia, para perguntar se poderia tomar um comprimido extra antes de passadas as duas horas do intervalo.
— E a loção para os olhos? — perguntou Vance, muito casualmente.
— Estou certo de que seguiu minhas instruções — respondeu Kane, sinceramente. — Embora, naturalmente, fosse uma solução absolutamente inocente...
— E qual foi sua determinação quanto a isso?
— Disse-lhe que deveria banhar os olhos todas as noites antes de dormir.
— Quais eram os ingredientes do ungüento que lhe receitou para a mão?
Kane pareceu surpreso:
— Tenho certeza de que não sei! — retrucou, inseguro.
— Os habituais emolientes, suponho. Era um preparado já pronto, à venda em qualquer drogaria... provavelmente continha oxido de zinco ou lanolina. Não poderia haver nele nada de perigoso.
Vance caminhou para a janela da frente e olhou para fora: estava confuso e perturbado.
— Esses foram todos os seus serviços médicos para Lynn Llewellyn e sua esposa? — perguntou, voltando lentamente ao centro da sala.
— Sim! — Embora estivesse trêmula a voz de Kane, nela havia um tom de inegável ênfase.
Por um breve período, Vance olhou fixamente para o jovem doutor.
— Penso que isso é tudo. Não há nada mais que o senhor possa fazer aqui hoje.
Kane deu um fundo suspiro de alívio e caminhou para a porta.
— Boa noite, senhores! — falou, com um olhar interrogativo para Vance. — Por favor, chamem-me se eu puder ajudar em algo. Ficaria muito grato se me deixassem saber o resultado da autópsia.
Vance curvou-se, distraidamente:
— Teremos satisfação nisso, doutor. E nossas desculpas por retê-lo até tão tarde.
Por um momento Kane ficou imóvel, e pensei que fosse dizer algo; porém subitamente saiu, e um momento depois pudemos ouvir o mordomo ajudando-o a vestir o sobretudo.
Vance ficou de pé junto à mesa por alguns momentos, olhando direto em frente e os dedos distraidamente seguindo os desenhos da madeira. Depois, sem mover os olhos, sentou-se e muito devagar e deliberadamente apanhou a cigarreira.
Nesse ínterim, Markham estivera de pé junto à porta, observando atentamente o doutor e Vance. Dirigiu-se então até a lareira e nela se recostou, comentando gravemente:
— Vance, estou começando a entender o que se passa em sua mente.
Vance ergueu o olhar e suspirou fundamente:
— Realmente, Markham? — Sacudiu a cabeça, ar desencorajado. — Você é muito mais arguto que eu... Daria meu vaso ting-yao para saber o que está em minha mente. Tudo é muito confuso... Tudo se encaixa... é um perfeito mosaico. E isso é que me assusta.
Sacudiu-se gentilmente, como para afastar algum pensamento intruso, e, indo até à porta, chamou o mordomo:
— Por favor, diga à Srta. Llewellyn — penso que está em seu quarto — que apreciaria se viesse até o salão.
Quando o criado se dirigiu para as escadas, Vance caminhou até a lareira e ficou de pé ao lado de Markham:
— Há algumas outras coisinhas que eu gostaria de saber antes de nos despedirmos — explicou. Estava perturbado e inquieto; eu raramente o vira assim. — Nenhum dos casos em que o tenho ajudado, Markham, fez-me sentir tão fortemente a presença de uma personalidade tão sutil e devastadora. Nem uma só vez essa personalidade se manifestou em todos os trágicos acontecimentos desta noite; porém sei que está aqui, sorrindo de nós e nos desafiando a penetrar até o fundo de seu diabólico esquema. E todos os ingredientes da trama são, aparentemente, comuns e óbvios — mas sinto que há marcos indicando para longe da verdade. — Fumou um momento em silêncio; depois disse: — A diabólica parte da coisa é que nem sequer compreendemos ou podemos seguir essas indicações...
Ouvimos os passos leves a descer a escadaria: um momento depois Amélia Llewellyn estava de pé à porta do salão.
VI - UM GRITO NA NOITE
(Domingo, 16 de outubro — 3:00 horas)
Ela mudara seu roupão acolchoado por pijama de cetim negro, e reparei que se pintara recentemente. Fumava um cigarro numa piteira de ébano em relevo, e sua presença, emoldurada pelo mármore do batente da porta, era marcante e me lembrava uma gravura espetacular de Zuloaga.
— Recebi sua intimação verbal através do trêmulo e elegante Crichton — o nome de nosso mordomo é na verdade Smith — e eis-me aqui. — Falava com ar mundano jocoso. — Bem, em que ficamos?
— Permita-me sentar-me, Srta. Llewellyn — respondeu Vance, pegando uma cadeira com imponência.
— À vontade. — Ela se acomodou na cadeira e cruzou as pernas. — Estou exausta, com toda essa agitação incomum.
Vance sentou-se de frente para ela.
— Por acaso já lhe ocorreu, Srta. Llewellyn — perguntou — que a mulher de seu irmão se possa ter suicidado?
— Pelo amor de Deus, não! — A moça inclinou-se para a frente, indubitavelmente surpresa. Subitamente, perdera o modo cínico.
— Então, a senhorita não sabe de nenhuma razão que pudesse ter ocasionado o suicídio? — Vance prosseguiu calmamente.
— As razões que ela pudesse ter eram iguais às de todo mundo. — Amélia Llewellyn fixou o vácuo, sem olhar para Vance. — Nós todos podemos pensar em algum bom motivo para nos matar, mas Virgínia nada tinha com que se preocupar. Tinha tudo o que queria, e estava vivendo mais confortavelmente, materialmente falando, do que nunca antes. — (Esta observação foi feita com um tom de amargura). — Ela conheceu Lynn muito bem, antes de casar com ele, e deve ter previsto todas as vantagens e desvantagens que o casamento lhe traria. Considerando que não gostávamos especialmente dela, nós a tratávamos bem demais... especialmente mamãe. Aliás, ela sempre foi a favorita de mamãe, e qualquer pessoa que Lynn trouxesse aqui em casa seria tratada com gentileza e consideração.
— Mesmo assim — comentou Vance — as pessoas ocasionalmente se suicidam sob essas circunstâncias.
— Isto é verdade. — A moça deu de ombros. — Mas Virgínia era covarde demais para tirar a própria vida, mesmo que fosse terrivelmente infeliz. (Certa animosidade tomou conta de sua voz). — Além disso, ela era egoísta e vaidosa...
— Vaidosa em relação a quê, por exemplo? — perguntou Vance.
— Em relação a tudo. — Ela jogou as cinzas do cigarro no chão. — Ela era especialmente vaidosa em relação à aparência. Sentia-se o tempo todo no palco e maquilada, por assim dizer.
— Não lhe parece possível — Vance insistiu — que se ela se tivesse sentido muito infeliz... ?
— Não. — A moça antecipou-se ao resto da pergunta com uma negativa enfática. — Se Virgínia se tivesse sentido infeliz demais para agüentar a vida aqui, ela não se mataria. Ela teria fugido com um homem, ou talvez tivesse voltado ao palco — o que é uma forma indireta de fazer a mesma coisa.
— A senhorita não está sendo bondosa — murmurou Vance.
— Bondosa? — Ela riu de modo desagradável. — Talvez não. Mas, de qualquer maneira, não sou inteiramente imbecil.
— Suponha — retrucou suavemente Vance — que eu lhe dissesse que achamos um bilhete de suicídio?
Os olhos da moça se arregalaram, e ela fixou Vance com pesar.
— Não acredito! — disse veementemente.
— Contudo, Srta. Llewellyn, é verdade — disse-lhe Vance gravemente.
Por vários instantes ninguém falou. Amélia Llewellyn desviou os olhos de Vance e os fixou no vácuo; seus lábios se apertaram, e uma expressão arguta e dura surgiu-lhe no rosto. Vance a observava atentamente, sem deixar perceber. Após certo tempo, ela se moveu na cadeira e disse, com simplicidade artificial:
— Nunca se sabe, não é? Acho que não sou muito boa psicóloga. Não posso imaginar Virginia se matando. É, porém, um gesto muito teatral, bem ao seu feitio. Lynn tentou uma auto-aniquilação, também? Um pacto suicida, ou algo semelhante?
— Se tentou — replicou Vance de modo casual — evidentemente falhou... segundo o último relatório.
— Isto seria bem de acordo com seu caráter — observou a moça em tom surdo. — Lynn não é exatamente a imagem da eficiência. Ele sempre perde por um triz. Supervisão materna excessiva, talvez.
Vance se aborreceu com a atitude dela.
— Vamos esquecer um pouco essa fase do assunto — disse asperamente. — Estamos agora interessados apenas nos fatos. A senhorita nos poderia contar alguma coisa da atitude de seu tio — isto é, do Sr. Kinkaid — em relação à sua cunhada? O bilhete que achamos dizia que ele havia sido especialmente bondoso para com ela.
— É verdade. — A moça assumiu ar menos arrogante. — O tio Dick "tinha um fraco" por Virginia. Talvez ele achasse que, na condição de mulher de Lynn, ela merecesse piedade. Ou talvez ele a considerasse uma aventureira como ele mesmo. De qualquer modo, parecia haver uma união entre eles. De quando em vez tenho pensado que o tio Dick deixou que Lynn ganhasse algumas vezes no cassino para que Virginia tivesse mais dinheiro para gastar.
— Isto é muito interessante. — Vance acendeu outro cigarro e continuou. — E isto me leva a outra, questão. Espero que a senhorita não se incomode, é algo pessoal, mas a resposta nos poderá ajudar grandemente.
— Não se desculpe — disse a moça. — Não tenho segredos. Pergunte-me o que quiser.
— Muita gentileza sua — murmurou Vance. — A verdade é que gostaríamos de saber a real situação financeira dos membros de sua família.
— Só isto? — Ela pareceu sinceramente surpresa, talvez até desapontada. — A resposta é muito simples. Quando meu avô, Amos Kinkaid, morreu, deixou o grosso da fortuna para minha mãe. Ele confiava muito no tino comercial que ela possuía, mas não achava o mesmo de tio Dick e só lhe legou uma pequena parcela do patrimônio. As crianças — Lynn e eu — eram pequenas demais para merecer consideração e, de qualquer forma, ele provavelmente contava com mamãe para tratar de nosso bem-estar. O resultado é que o tio Dick teve mais ou menos de se cuidar sozinho, e que mamãe é a administradora do dinheiro do velho Amos. Lynn e eu dependemos totalmente da generosidade dela, que nos dá uma mesada bem razoável. E isto é tudo sobre o assunto.
— Mas como — perguntou Vance — será distribuído o patrimônio caso morra sua mãe?
— Só mamãe lhe poderá responder — replicou a moça. — Mas imagino que será dividido entre Lynn e eu — indo a maior parte, evidentemente, para Lynn.
— E seu tio?
— Bem, mamãe não o aprova. Duvido que ela o tenha contemplado no seu testamento.
— Caso sua mãe esteja viva depois que a senhorita e seu irmão morrerem, para quem iria o dinheiro?
— Para o tio Dick, acho — se estivesse vivo. Mamãe tem um sentimento de família muito pronunciado. Acho que ela preferiria que tio Dick herdasse a fortuna, para que o dinheiro não caísse em mãos de estranhos.
— Mas suponhamos que a senhorita ou seu irmão morresse e antes de sua mãe, a senhorita acha que o filho que ficasse herdaria tudo?
Amélia Llewellyn acenou com a cabeça.
— É o que acho — respondeu, com tranqüila sinceridade. — Mas ninguém pode saber ao certo os planos e idéias de mamãe. E, naturalmente, não discutimos jamais o assunto.
— Sim, claro, claro. — Vance deu uma tragada e se ergueu um pouco da cadeira. — Há uma outra pergunta a lhe fazer. A senhorita tem sido gentilíssima. A situação é muito grave, e não se pode saber que fatos ou sugestões nos poderão ser de auxílio.
— Acho que entendo. — A moça falava com suavidade aparente, do que até agora eu a julgara incapaz. — Por favor, não hesite em entrar em contato comigo para me perguntar qualquer coisa que possa ajudá-lo. Estou muito desgostosa com tudo... sinceramente. Eu não me importava com Virgínia, mas — afinal de contas — uma morte como a dela é... bem, uma coisa que eu não desejaria a meu pior inimigo.
Vance desviou os olhos da moça e mirou a ponta do cigarro. Tentei perceber sua reação mental, mas o rosto nada demonstrava do que lhe passava pela cabeça.
— Minha pergunta diz respeito à Sra. Lynn Llewellyn — disse ele. — E simplesmente isto: se ela tivesse sobrevivido à senhorita e a seu irmão, qual o efeito sobre o testamento de sua mãe?
Amélia Llewellyn ponderou sobre a pergunta.
— Não sei — respondeu depois de algum tempo. — Nunca pensei na situação sob esse aspecto. Mas inclino-me a pensar que mamãe teria feito de Virgínia a principal beneficiada. Ela provavelmente recorreria a qualquer coisa para evitar que tio Dick recebesse o legado. Ademais, a afeição quase patológica que tinha por Lynn afetaria sua decisão. Afinal, Virgínia era mulher de Lynn, e ele e tudo que lhe pertencesse sempre vieram em primeiro lugar para mamãe. — Ela encarou Vance suplicantemente. — Gostaria de poder ajudá-lo mais.
Vance se levantou.
— A senhorita nos ajudou imensamente — mesmo. Estamos todos tateando no escuro, e não vamos mais tomar seu tempo. Mas gostaríamos de falar com sua mãe. A senhorita poderia pedir-lhe que viesse ao salão?
— Claro. — A moça se levantou devagar e dirigiu-se à porta. — Estou certa de que ela terá o maior prazer. Sua única ambição na vida é participar dos assuntos de todos e ser o centro de toda agitação — Ela saiu lentamente da sala, e a escutamos subindo as escadas.
— Uma criatura estranha — comentou Vance, como se estivesse pensando em voz alta. — Uma combinação de extremos: fria como o aço, mas altamente emotiva. Há nela um antagonismo cerebral constante, ela não se decide. Está vivendo num limite psíquico — coração e cabeça em debate. Curiosamente simbólico este complexo caos. Não há orientação alguma para nós. — Ele nos olhou ansiosamente. — Não acha, Markham? Há uma dúzia de caminhos para se tomar — e todos nos podem desviar do certo. Mas há uma ruela escondida em algum lugar, e esse será o caminho a tomar.
Dirigiu-se para os fundos do salão.
— No meio tempo — disse, em tom mais leve — exercitarei minha mania pelos detalhes.
Atrás de cortinas pesadas de veludo no meio da parede dos fundos havia portas maciças de correr: Vance abriu uma delas. Tateou ao longo da parede da outra sala, e em alguns segundos um jato de luz revelou uma pequena biblioteca. Víamos Vance examinando rapidamente o que o cercava, e depois dirigiu-se à escrivaninha em forma de rim e se sentou. Na mesa estava uma máquina de escrever, e depois de lhe colocar um pedaço de papel, começou a datilografar. Logo retirou o papel da máquina, observou-o atentamente, dobrou-o e o pôs no bolso de dentro do colete.
Ao voltar para o salão, deteve-se junto a umas estantes e percorreu com os olhos os livros que elas continham. Ainda inspecionava os livros quando a Sra. Llewellyn entrou, com um ar de majestade dominadora. Vance deve tê-la escutado entrar, pois se voltou imediatamente, e se reuniu a nós no salão.
Ele se inclinou e, apontando uma das amplas poltronas cobertas de seda que rodeavam uma mesinha de centro, pediu-lhe que se sentasse.
— Qual o assunto que os senhores desejam discutir comigo? — indagou a Sra. Llewellyn, sem fazer qualquer tentativa de se sentar.
— Observo — disse Vance, ignorando-lhe a maneira e a pergunta — que a senhora tem uma interessantíssima coleção de livros de medicina na outra sala. — Ele fez um gesto com a mão, indicando as portas de correr.
A Sra. Llewellyn hesitou e disse:
— Eu não me surpreenderia com o fato. Meu falecido marido, embora não fosse médico, se interessava enormemente por pesquisa médica. Até escrevia de vez em quando para revistas médicas.
— Há — continuou Vance, sem mudar o tom — várias obras-padrão sobre toxicologia entre os tratados gerais.
A mulher moveu o queixo agressivamente e, com um dar de ombros imperceptível, sentou-se com rígida dignidade. na beira de uma cadeira perto da porta.
— Ê bem provável — disse. — O senhor acha que eles têm algo a ver com a tragédia desta noite? — Havia certo tom de desprezo na pergunta.
Vance não continuou com o tema. Ao invés, ele lhe perguntou:
— A senhora sabe de alguma razão que levasse sua nora a suicidar-se?
A mulher não mexeu nenhum músculo facial por alguns instantes, mas seus olhos subitamente se nublaram, como se estivessem pensando. Logo levantou a cabeça.
— Suicídio? — Havia uma animação contida em sua voz. — Não havia pensado em sua morte sob tal aspecto, mas sua sugestão de agora me faz ver que haveria uma explicação lógica. — Ela acenou com a cabeça lentamente. — Virgínia era muito infeliz aqui. Ela não se adaptou ao novo ambiente, e várias vezes me disse querer estar morta. Não dei qualquer importância à observação — é uma figura retórica por demais usada. Contudo, fiz o que podia para tornar a pobre criatura feliz.
— Uma situação delicada — murmurou Vance cordialmente. — Por alto, senhora, poderia dizer-nos — em estrito sigilo, claro — quais serão os termos gerais de seu testamento?
A mulher olhou Vance fixamente, e de modo irado.
— Certamente que não! Para lhe ser franca, não gostei da pergunta. Meu testamento é um assunto que só a mim diz respeito. Não teria qualquer conotação com a horrível situação de que estamos tratando.
— Não estou inteiramente convencido disto — replicou mansamente Vance. — Há uma linha de raciocínio, por exemplo, que nos poderia levar a especular da possibilidade que um dos beneficiários em potencial ganharia pela — digamos, ausência? — de certos outros herdeiros.
A mulher pôs-se em pé abruptamente e ficou rigidamente tensa, e os olhos brilhavam ferozmente para Vance.
— O senhor está insinuando — sua voz era fria e cortante — que meu irmão... ?
— Cara Sra. Llewellyn! — Vance retrucou asperamente. — Não estava pensando em ninguém. Mas a senhora parece não avaliar a importância do fato de que dois membros de sua família foram envenenados hoje, e que é nosso dever determinar todos os fatores possíveis que possam, mesmo remotamente, ter algo a ver com o caso.
— Mas o senhor mesmo — protestou a mulher em voz branda, sentando-se. novamente — adiantou a possibilidade de Virgínia se ter suicidado.
— Não foi bem assim, senhora — corrigiu Vance. — Eu apenas lhe perguntei se achava plausível essa teoria. Por outro lado, a senhora acha possível que seu filho tenha tentado matar-se?
— Não — claro que não! — replicou dogmaticamente. Veio-lhe um olhar abstraído. — Porém... não sei. Ele sempre foi muito emotivo — muito temperamental. A menor coisa o aborrecia. Ele ficava pensativo, e exagerava...
— Pessoalmente — disse Vance — não posso crer que seu filho tenha tentado acabar com a vida. Eu o estava observando quando ele foi atacado. Ele estava ganhando bem, e tinha total domínio da máquina.
A mulher parecia ter perdido o interesse em tudo, exceto no bem-estar do filho.
— O senhor acha que ele está bem? — perguntou suplicantemente. — O senhor me deveria ter deixado ficar com ele. O senhor pode perguntar novamente como está ele?
Vance se levantou imediatamente e se dirigiu à porta:
— Com prazer, senhora.
Alguns momentos depois nós o escutamos falando ao telefone no vestíbulo. Depois voltou ao salão.
— Parece que o Sr. Llewellyn — disse ele — está fora de perigo, o Dr. Rogers já saiu do hospital, mas o médico-residente que está de plantão me disse que seu filho está repousando tranqüilamente, e que seu pulso está praticamente normal agora. Ele acredita que o Sr. Llewellyn possa voltar para casa amanhã de manhã.
— Graças a Deus! — A mulher soltou um suspiro de alívio. — Poderei dormir agora. O senhor quer-me perguntar mais alguma coisa?
Vance inclinou a cabeça.
— A pergunta sem dúvida parecerá irrelevante agora, mas sua resposta poderá esclarecer certa fase dessa situação constrangedora. — Ele olhou diretamente para a Sra. Llewellyn. — Qual a situação exata do Sr. Bloodgood nesta casa?
A mulher levantou as sobrancelhas e contemplou Vance um meio minuto antes de responder, depois falou em tom curiosamente convencional e distante.
— O Sr. Bloodgood é íntimo amigo de meu filho. Foram colegas de Universidade. Acredito que ele conheceu Virgínia muitos anos antes que ela entrasse para nossa família. Meu irmão — o Sr. Kinkaid — sempre admirou o Sr. Bloodgood. Ele via possibilidades no rapaz, e o treinou para sua posição atual. O Sr. Bloodgood vem muito à minha casa, seja socialmente, seja a negócios. O senhor compreende — acrescentou à guisa de explicação — meu irmão mora aqui. Na verdade, metade da casa lhe pertence.
— Onde são os aposentos do Sr. Kinkaid? — perguntou Vance.
— Ele ocupa todo o terceiro andar.
— Posso saber — continuou Vance — quais as relações entre o Sr. Bloodgood e sua filha?
A mulher deu um rápido olhar para Vance, mas não hesitou em responder à pergunta com aparente franqueza.
— O Sr. Bloodgood está profundamente interessado em Amélia. Ele já a pediu em casamento, creio; ela ainda não se decidiu, pelo que eu saiba. Às vezes acho que gosta dele, mas outras vezes Amélia o trata abominàvelmente. Acho que não confia totalmente nele. Acontece que ela pensa muito em sua arte, e pode achar que o casamento venha a interferir com sua carreira.
— A senhora aprovaria o casamento? — perguntou Vance de modo casual.
— Não aprovaria nem desaprovaria — disse ela, e calou a boca.
Vance a olhou ligeiramente intrigado.
— O Dr. Kane está também interessado na sua filha?
— Oh, sim, acho que bastante... como quem não quer nada. Mas lhe asseguro que Amélia não tem intenções sentimentais a respeito dele. Apesar disso, utiliza-o constantemente — não tem escrúpulos a tal respeito. Às vezes, Allan Kane lhe é muito conveniente, e ele descende de ótima família.
Vance levantou-se lentamente da cadeira e inclinou-se:
— Não a deteremos mais — disse, com ar de fria cortesia. — Apreciamos seu auxílio e desejamos que a senhora saiba que trataremos de tudo sem a incomodar mais.
A Sra. Llewellyn ergueu-se àgilmente e saiu do salão sem mais uma palavra.
Quando ela já não o podia ouvir, Markham se levantou agressivamente e encarou Vance:
— Já aturei o bastante. Toda essa fofoca de família não nos está levando a parte alguma. Você está simplesmente fabricando fantasmas.
Vance suspirou resignadamente:
— Bem, vamos indo! A hora da bruxa passou há muito tempo...
Quando saía para o vestíbulo, o detetive Sullivan descia as escadas.
— O sargento vai esperar pelo carro e pôs todos para dormir — disse a Markham. — Vou para casa dormir. Boa noite, Chefe; até logo, Sr. Vance. — E partiu.
O mordomo cavernoso, parecendo cansado e sonolento, ajudou-nos a vestir os sobretudos.
— Você receberá instruções do sargento Heath — disse Markham.
O homem inclinou-se e se dirigiu à porta, para abri-la. Antes que o fizesse, porém, ouviu-se o barulho de uma chave na fechadura e logo Kinkaid irrompia no vestíbulo. Parou logo que nos viu:
— Que significa isto? — perguntou agressivamente. — Que fazem aqueles guardas lá fora?
— Estamos aqui a serviço — informou Markham. — Houve uma tragédia aqui esta noite.
Os músculos do rosto de Kinkaid subitamente se relaxaram e sua expressão se tornou calma e fria: em fração de segundo ele voltara a ser o jogador inescrutável.
— A mulher de seu sobrinho está morta — disse Vance.
— Envenenada. E, como o senhor sabe, Lynn Llewellyn também foi envenenado esta noite...
— Lynn que vá pro inferno! — falou Kinkaid entre dentes. — Qual o resto da história?
— É tudo que sabemos no momento, exceto que a Sra. Llewellyn morreu aproximadamente à mesma hora em que o marido passou mal no seu Cassino. Afirmou o legista que o envenenamento foi por beladona. O sargento Heath, da Divisão de Homicídios, está esperando lá em cima pelo carro que levará o corpo para o necrotério. Saberemos mais amanhã, após o post mortem. Segundo o último relatório, seu sobrinho está fora de perigo.
Nesse momento houve uma interrupção chocante. Ouviu-se um grito de mulher vindo da parte de cima da casa. Abriu-se uma porta que, após, se fechou com estrondo, e escutamos um gemido fraco. Houve então o ruído de fortes passadas no corredor acima de nós. Meu sangue pareceu congelar nas veias
— não sei por quê — e todos nos dirigimos à escada.
De súbito, Heath apareceu no patamar superior. Sob a forte luz do vestíbulo, pude ver seus olhos cheios de excitação. Chamou-nos com um gesto brusco do braço:
— Venha cá, Sr. Markham! — disse, com voz rouca. — Aconteceu algo!
VII - MAIS VENENO!
(Domingo, 16 de outubro — 3:30 horas)
Quando chegávamos ao patamar superior já Heath ia longe no vestíbulo, pesadamente, em direção à porta aberta de um quarto do lado norte. Nós o seguimos rapidamente, porém as largas costas do sargento nos obstruíam a visão, e só quando realmente entramos no quarto vimos a causa do súbito chamado. Esse quarto, tal como o vestíbulo, estava brilhantemente iluminado. Era, obviamente, o quarto da Sra. Anthony Llewellyn. Embora maior que o de Virgínia, continha menos móveis, todos de uma rigorosa severidade, que refletia o caráter e a personalidade de sua ocupante.
A Sra. Llewellyn estava de pé se escorando à parede do lado interno da porta, seu lenço de rendas apertado contra o rosto, olhos arregalados de horror para algo que jazia no chão. Gemia e tremia, e não ergueu os olhos ao entrarmos. O que olhava a deixava fascinada e sem fala.
Ali, a poucos passos dela, toda dobrada no alto tapete azul, jazia a forma rígida de Amélia Llewellyn.
A princípio a Sra. Llewellyn apenas apontou. Depois, com grande esforço, falou roucamente:
— Ela se encaminhava para o seu quarto: subitamente parou, pôs as mãos na cabeça, e caiu... — Tornou a apontar para a filha, quase como se imaginasse que não víamos a figura prostrada.
Vance já estava ajoelhado ao lado da moça. Sentiu-lhe o pulso, auscultou-lhe o coração, viu-lhe os olhos. Então acenou a Heath e se moveu para o lado oposto do leito. Eles levantaram a moça e a colocaram atravessada na cama, deixando sua cabeça caída para o lado.
— Sais voláteis — ordenou Vance. — E, sargento, chame o mordomo.
A Sra. Llewellyn pôs-se em atividade, foi até sua penteadeira e apanhou um vidrinho verde como o que Kinkaid dera a Vance no Cassino no começo dessa noite.
— Segure-o perto do nariz dela, mas não tão perto que dê para queimar — falou à senhora e voltou-se para a porta.
Apareceu o mordomo. Sua debilidade parecia haver desaparecido; estava nervosamente alerta.
— Chame o Dr. Kane ao telefone — ordenou Vance peremptoriamente.
O homem dirigiu-se apressadamente para uma mesinha de telefone e principiou a discar um número.
Kinkaid permanecia no umbral da porta, observando, expressão dura, rigidamente imóvel. Só os olhos se moviam, tomando nota de todos os aspectos da situação. Olhou na direção da cama, porém seu olhar não pousava na quieta forma de sua irmã.
— Qual é a resposta, Sr. Vance? — perguntou obstinadamente.
— Veneno... — murmurou Vance, acendendo um cigarro. — Sim... exatamente. Tal como Lynn Llewellyn. Um caso repulsivo... Isso o surpreende?
Os olhos de Kinkaid se abaixaram ameaçadoramente:
— Que diabo quer dizer com essa pergunta? Porém o Dr. Kane estava na linha e Vance lhe falou:
— Amélia Llewellyn está seriamente doente. Venha imediatamente! E traga suas injeções — cafeína, digitalina e adrenalina. Compreende?... Muito bem. — Recolocou o fone e se voltou para o interior do quarto. — Felizmente, Kane ainda estava acordado... estará aqui em poucos minutos. — Então ajustou o monóculo e examinou Kinkaid. — Qual é sua resposta à minha pergunta?
Kinkaid começou a vociferar, depois pareceu pensar melhor:
— Sim — estalou, enfrentando o olhar de Vance. — Estou tão surpreso quanto você!
— Você ficaria surpreso se soubesse quão longe estou de surpreender-me — murmurou Vance, e se encaminhou para as duas mulheres. Pegou os sais com a Sra. Llewellyn, e tornou a sentir o pulso da moça. Depois, sentou-se na beira da cama e fez sinal à Sra. Llewellyn para falar-lhe à parte:
— Qual é a história toda? — perguntou-lhe, sem benevolência. — Falemos disso antes que o doutor chegue.
A senhora tropeçou numa cadeira, sentou-se ereta, e arrumou o roupão em torno de si. Quando falou já estava completamente dona de si:
— Amélia veio ao meu quarto e me disse que o senhor queria falar-me. Sentou-se na cadeira onde estou agora. Falou que me esperaria aqui... precisava falar-me...
— Isso é tudo? — perguntou Vance. — A senhora não desceu imediatamente, não foi? Ainda me deu tempo de datilografar um bocado...
A Sra. Llewellyn apertou os lábios e acrescentou glacial-mente:
— Se lhe é essencial saber: empoei o rosto, escovei os cabelos ao espelho de minha penteadeira. Atrasei-me... para compor-me um pouco... eu sabia que ia ser uma provação.
— E durante essa preparação espiritual, o que fazia ou dizia sua filha?
— Não dizia nada. Acendeu um cigarro e fumava...
— Nada mais? Nenhuma outra indicação de atividade?
— Deve haver cruzado as pernas ou dobrado as mãos... não prestei atenção. — A mulher falou, com um sarcasmo desmoralizador: — Oh! sim. Foi até a mesinha de cabeceira e serviu-se de um copo de água do jarro.
Vance inclinou a cabeça.
— Impulso natural. Nervoso, perturbação. Cigarros demais. Garganta seca. Sim. Tudo em ordem... — Levantou-se e inspecionou o jarro na mesinha de cabeceira entre a cama e a cadeira em que sentava a Sra. Llewellyn.
— Vazio — observou. — Estava sedenta. Sim. Ou talvez... — Ele voltou a sentar na beira do leito e pareceu meditar. — Vazio — repetiu, e balançou a cabeça pensativa-mente. — Tremendamente engraçado! Todas as garrafas de água vazias esta noite. No Cassino. No quarto da Sra. Lynn Llewellyn. E agora, aqui. Grande pobreza de água... — Olhou para cima rapidamente: — Onde, Sra. Llewellyn, é a entrada para o quarto de sua filha?
— A porta ao fim do pequeno corredor que leva do vestíbulo ao começo das escadas. — Ela inspecionava Vance com uma curiosa preocupação onde se patenteava um forte antagonismo.
Vance se dirigiu a Heath:
— Sargento, dê uma olhadela no serviço de água do quarto da Srta. Llewellyn.
Heath saiu com alacridade. Poucos minutos depois, voltou.
— Está vazia... — informou, espantado.
Vance levantou-se e, caminhando para um cinzeiro na mesinha do telefone, ali pôs o cigarro. Demorou-se, pensativamente, no fazer isso:
— Sim... sim... claro. Tinha de ser. Como eu dizia. Água, não há água em lugar algum... apenas algumas gotas para beber — o quê? O inverso do Antigo Marinheiro... — Ergueu a cabeça e novamente encarou a Sra. Llewellyn: — Quem enche os jarros?
— A criada, naturalmente.
— Quando?
— Depois do jantar, quando vai preparar as camas para a noite.
— Costuma esquecer-se?
— Nunca. Annie é muito competente.
— Bem, bem. Falarei com Annie amanhã de manhã. Questão de rotina. Agora, continue, Sra. Llewellyn: sua filha acendeu um cigarro, serviu-se de um copo dágua, e a senhora gentilmente atendeu ao nosso chamado. Depois, quando voltou...?
— Amélia continuava sentada nesta cadeira. — A mulher não movera os olhos de Vance. — Ela ainda estava fumando. Queixou-se, porém, de uma tremenda dor de cabeça acima dos olhos, e o rosto estava congestionado. Disse que toda a cabeça latejava e havia um zumbido em seus ouvidos.
Disse também que se sentia tonta e fraca. Não dei a isso maior importância, levei à conta da excitação nervosa, e disse-lhe que se metesse na cama. Disse que assim o faria — que se sentia muito mal — e então falou incoerentemente a respeito de Virgínia, e levantou-se. Apertou as têmporas com as mãos e se encaminhou para fora. Estava chegando à porta quando oscilou de um para outro lado e caiu ao chão. Sacudi-a, falei-lhe. Penso que então gritei — coisas horríveis estavam acontecendo nesta noite e eu estava esgotada. Esse cavalheiro — e indicava Heath — veio e imediatamente chamou todos vocês. Isso é tudo que tenho para dizer-lhe.
— E foi bastante... — murmurou Vance. — Muito obrigado. A senhora explicou muito bem. Perfeita descrição do desmaio de seu filho, também. Exatamente. Paralelo. Só que ele aconteceu no lado oeste da cidade... e sua filha no lado leste. Foi assim mesmo. Respiração pesada, pulso rápido demais. Porém os mesmos sintomas. Ele conseguiu safar-se bem. Sua filha o fará ainda melhor, pois teve socorros médicos imediatos...
Vagarosamente puxou a cigarreira e cuidadosamente escolheu um Régie. Acendeu-o e enviou ao teto um azul anel de fumaça.
— Imagino quem ficará desapontado com a recuperação! Imagino... Situação interessantíssima. Interessante porém trágica. Trágica mesmo... — Mergulhou nos seus sombrios pensamentos.
Kinkaid entrara no quarto e agora sentava na beira de uma mesa para fumantes.
— Está certo de que é veneno? — perguntou, com aqueles olhos de peixe fixos em Vance.
— Veneno? Sim, sim. Sintomas de excitação, naturalmente. Quando ocorre colapso, ou desmaio, por causas naturais, a pessoa reage ao ter a cabeça abaixada e cheirar sais. Isto é diferente. A mesma coisa aqui como com seu sobrinho. Com uma diferença, contudo: Lynn teve a dose maior.
O rosto de Kinkaid parecia uma máscara; quando falou novamente mal movia os lábios:
— E como um danado de um louco ainda lhe dei a beber da minha garrafa.
Vance acenou com a cabeça:
— Sim. Observei isso. Grave asneira de sua parte... falando "ex post jacto".
O mordomo tornou a aparecer na porta; falava diretamente a Vance: — Perdão, senhor. Penso que não me julgará um intrometido. Ouvi-o perguntar a respeito dos jarros dágua, e tomei a iniciativa de acordar Annie e perguntar-lhe sobre isso. Assegurou-me, senhor, que encheu todos eles ontem à noite, como de costume, quando preparara os quartos logo depois do jantar.
Vance olhou admirativamente para o pálido homem:
— Excelente, Smith! — exclamou. — Fico-lhe muito grato!
— Obrigado, senhor!
Chegou-nos o som da campainha da porta. O mordomo apressou-se a atender. Poucos momentos depois o Dr. Kane, ainda em traje de cerimônia e carregando uma valise, entrou às pressas. Estava mais pálido que da última vez que o vira, e havia sombras sob os seus olhos. Foi diretamente ao leito onde jazia Amélia inconsciente. Havia em sua expressão uma angústia muito mais pessoal que profissional.
— Sintomas de colapso — disse-lhe Vance, de pé a seu lado. — Pulso irregular, respiração arfante, palidez, etc. Estimulantes drásticos são o indicado. Primeiro cafeína — três grãos — depois digitális. Talvez a adrenalina não seja necessária... Não faça perguntas, doutor. Trabalhe rápido. Minha responsabilidade. Já passei por isso esta noite.
Kane seguiu as instruções de Vance. Senti-me deprimido, por ele, embora, na ocasião, não pudesse explicar minha atitude. Ele me impressionava como um personagem patético, um fraco dominado pela forte personalidade de Vance.
Enquanto Kane estava no banheiro preparando a injeção, Vance preparava o braço de Amélia para recebê-la. Depois que a cafeína foi administrada, Vance virou-se para nós:
— Melhor que nos retiremos todos.
— Está-me incluindo? — perguntou a Sra. Llewellyn altivamente.
— Será o melhor — disse Vance.
A mulher aquiesceu raivosamente, precedendo-nos à porta.
Pouco depois o Dr. Kane se reuniu a nós no salão.
— Ela está reagindo — falou a Vance, em voz trêmula de emoção. — O pulso está melhor e sua cor mais normal, está-se movendo um pouco e tentando falar.
Vance se levantou.
— Excelente. Ponha-a na cama, Sra. Llewellyn. E o senhor, doutor, por favor fique um pouco e dê uma olhada nas coisas. — Ele se dirigiu para a porta. — Voltaremos de manhã.
Quando saíamos, chegou o coche para levar o cadáver de Virgínia Llewellyn. A garoa acabara, mas a noite ainda estava úmida e fria.
— Caso angustiante — comentou Vance para Markham, quando deu a partida no carro, dirigindo-se à cidade. — Há algo de infernal acontecendo. Três pessoas envenenadas — uma está morta; as outras duas estão sob cuidados médicos. Quem será o próximo? Por que estamos aqui, Markham? Qual a razão de tudo? E há toda uma eternidade para se vadiar. Pensamento deprimente. Contudo... Ele suspirou. — Há uma grande escuridão. Não consigo encontrar o caminho. Há muitos obstáculos que impedem nosso trilhar. Mentiras e realidades misturadas — e apenas um caminho aberto para nós — o da fantasia, que leva ao pior crime de todos...
— Não compreendo. — Markham estava sombrio e perturbado. — Naturalmente sinto alguma influência estranha...
— Oh, é muito pior que isso — interrompeu Vance. — Estava tentando dizer que este caso é de um crime dentro de outro: espera-se que nós efetuemos o horror final. O tom básico desta macabra sinfonia deve ser que prendamos uma pessoa inocente. Toda a técnica se fundamenta numa decepção enorme. Espera-se que sigamos a aparente verdade — e não será absolutamente a verdade, mas a mentira pior e mais diabólica de uma trama muito sutil,
— Você está exagerando. — Markham tentou ser realista. — Afinal de contas, Lynn Llewellyn e sua irmã estão-se recuperando.
— Sim, sim. — Vance concordou soturnamente, sem tirar os olhos da estrada. — Houve um erro de cálculo, o que torna a história bem mais difícil de apurar.
— Acontece, porém... começou Markham, mas Vance o interrompeu impacientemente.
— Meu caro amigo! Essa é a pior parte da história. —
Acontece. Tudo acontece. Não há um esboço. O caos é geral. Acontece que Kane receitou drágeas para rinite que continham a droga que provoca os mesmos sintomas horríveis da morte de Virgínia. Acontece que Amélia estava no guarda-roupa no momento exato em que escutou o grito de Virgínia e pôde testemunhar sua morte. Acontece que Lynn e sua mulher foram envenenados praticamente ao mesmo tempo, embora estivessem em lugares opostos da cidade. Acontece que Amélia bebeu a água do jarro de sua mãe. Acontece que estavam todos em casa hoje à noite na hora do jantar e portanto tinham acesso a todos os banheiros e serviços de água. Acontece que não havia água em qualquer das garrafas, quando nós as examinamos. Acontece que Kinkaid deu a Lynn um gole de sua garrafa dez minutos antes que este desfalecesse. Acontece que eu recebi uma carta e estava presente para testemunhar o desmaio de Lynn. Acontece que o Dr. Kane foi convidado para jantar à última hora. Acontece que nós estávamos na casa quando Amélia foi envenenada. Acontece que Kinkaid chegou a casa naquele exato instante. Acontece que a carta que eu recebi estava com carimbo de Closter, Nova Jersey. Acontece...
— Um momento, Vance. Por que fez esta última observação sobre Closter?
— Acontece que Kinkaid tem uma cabana de caça nos arredores de Closter e passa muito tempo lá, embora eu ache que ele a feche fora das temporadas, como agora — esperando chegar setembro.
— Pelo amor de Deus, Vance! — Markham sentou-se ereto e inclinou-se para a frente. — Você não está insinuando...
— Meu caro amigo! — fez Vance, de modo reprovativo. — Não estou insinuando nada: apenas conjeturando, fazendo o que os psicanalistas chamam associação livre... O único ponto que estou tentando sustentar é que a vida é real, e nada há de real neste caso. É trágico — diabòlicamente trágico — mas é um drama de marionetes, e elas estão sendo cuidadosamente preparadas no cenário... com o único fito de decepcionar.
— É obra do demônio — murmurou Markham desesperançadamente.
— Sem dúvida. Um caso definido de culpa luciferiana. Uma idéia suavizante, mas fútil.
— Pelo menos — argumentou Markham — você pode eliminar a mulher de Lynn do enredo. Seu suicídio...
— Oh, meu Deus! — Vance sacudiu a cabeça. — A morte dela é a parte mais sutil e incalculável do argumento. Na verdade, Markham, não foi suicídio. Nenhuma mulher, nas circunstâncias, comete autodestruição daquela forma. Ela era atriz e vaidosa. Amélia nos explicou isso de maneira definida. Você acha que ela se teria dado uma aparência desagradável, com uma aplicação generosa de base e uma rede de cabelos, para sua última grande cena dramática na terra? Oh, não, Markham. Não. Ela fora para a cama do modo convencionalmente mais aprovado e desleixadamente doméstico, com todas as indicações de ter esperado o amanhã — por mais desagradável que pudesse ser... E por que teria gritado em desespero quando o veneno começou a agir?
— Mas o bilhete que ela deixou — protestou Markham. — Certamente isto é bastante indicador.
— Esse bilhete teria sido mais convincente — replicou Vance — se tivesse estado mais em evidência. Mas estava escondido, por assim dizer — dobrado e colocado debaixo do telefone. Esperava-se que nós o encontrássemos. Ela deveria morrer sem saber da existência dele.
Markham estava calado, e Vance continuou a falar, após um momento.
— Mas nós não deveríamos acreditar nele. É esta a parte incrível. Nós deveríamos suspeitar dele — procurar a pessoa que pudesse tê-lo escrito e colocado sob o telefone.
— Puxa, Vance! — A voz de Markham mal se fazia ouvir, devido ao ruído do motor. — Que idéia extravagante!
— Você não entende, Markham? — (Vance parará bruscamente em frente à casa de Markham). — O bilhete e a carta que recebi foram datilografados exatamente da mesma forma deficiente. Obviamente, ambos foram redigidos pela mesma pessoa: mesmo a pontuação e a margem são idênticas. Você realmente acha que uma mulher desesperada, à beira do suicídio, ter-me-ia mandado a carta que recebi?... E isto me lembra..."
Pôs a mão no bolso e, tirando a carta, o bilhete da suicida e a folha de papel em que datilografara algumas linhas na casa dos Llewellyns, passou-os a Markham.
— Você mandaria verificar isto aqui para mim? Faça com que um de seus brilhantes subordinados use lente e faça testes científicos. Apreciaria muitíssimo uma verificação oficial de que as três peças foram feitas na mesma máquina.
Markham pegou os papéis.
— Isto é fácil — disse ele, e encarou Vance com incerteza indagadora. Depois saltou do carro e parou na calçada.
— Você já pensou no que fazer amanhã?
— Oh, sim — suspirou Vance. — A vida tem um jeito de prosseguir, haja o que houver. Tudo volta a seus lugares. Uma geração vai embora, mas o sol continua surgindo. É tudo vaidade e inquietação espiritual.
— Por favor, deixe de lado o Eclesiastes por um momento — pediu Markham. — Que vai fazer amanhã?
— Telefonarei às dez, e iremos à casa dos Llewellyns. Você deve estar lá, sob a alegação do dever, etc. É triste. — Ele falava vivamente, mas a expressão do rosto não condizia com a da voz. Markham deve ter percebido sua importância.
— Acho que suportaria ter contato mais cordial com Lynn e Amélia quando eles se recuperarem. Será por conta de pesquisa. Eles serão os únicos sobreviventes, heroicamente salvos por este seu amigo.
— Muito bem — concordou Markham com acentuado desânimo. — Às dez horas, então. Mas não vejo o que você poderá conseguir interrogando Lynn e Amélia.
— Não digo que isso me levará muito longe...
— Oh, sim — resmungou Markham. — Um passo lhe basta. Eu sei. Sua piedade cristã prevê o mal que as pessoas enfrentarão... Boa noite. Vá para casa. Eu o detesto.
— Sonhe com os anjos.
O carro saiu perigosamente pela rua escorregadia, em direção à Sexta Avenida.
VIII - O ARMÁRIO DE REMÉDIOS
(Domingo, 16 de outubro — 10:00 horas)
Exatamente às dez da manhã Vance parou o carro em frente ao apartamento de Markham. O tempo tinha clareado um pouco, mas o ar ainda estava frio, e o céu encoberto. Markham estava esperando por Vance no vestíbulo. Ele estava carrancudo e impaciente, e seu olhar era perturbado. Os jornais da manhã traziam breves relatos da morte de Virgínia Llewellyn, e as manchetes eram lúgubres. Havia uma afirmação breve e sem compromisso de Heath, e meia coluna com a história da família. Não foram citados o envenenamento de Lynn Llewellyn no Cassino nem o desfalecimento de Amélia Llewellyn em casa. O sargento deve ter cuidadosamente evitado qualquer citação das duas ocorrências. Mas a história era suficientemente estranha: a própria ausência de detalhes lhe acrescentava mistério e incentivava a especulação pública. A explicação dada era de suicídio e o bilhete suicida era acentuado — embora, segundo os relatos, a polícia não tivesse divulgado seu teor. Muitas fotografias — de Virgínia, da Sra. Llewellyn e Kinkaid — acompanhavam o texto. Markham carregava os jornais amassados debaixo do braço quando saiu para a calçada.
— Caro Justiniano! — cumprimentou-o Vance. — Estou surpreso e deliciado. Você está pronto na hora. E já tomou café? Que devoção comovente aos seus deveres cívicos!
— Ademais — rosnou Markham com evidente mau humor — fiz com que um de nossos técnicos trabalhasse neste domingo e o mandei com todos os papéis datilografados para o laboratório. Tirei também Swacker{11} da cama e disse-lhe que fosse para o escritório.
Vance balançou a cabeça admirativamente.
— Estou positivamente desnorteado por suas atividades matinais.
Quando chegamos à casa dos Llewellyns, o mordomo nos abriu a porta. Heath estava no vestíbulo, parecendo sério e empertigado. Snitkin e Sullivan também estavam, fumando pausadamente e parecendo entediados.
— Alguma novidade, sargento? — perguntou Markham.
— Se o senhor quiser usar esse nome... — O sargento estava irritadiço. — Dormi três horas, e já enfrentei os repórteres. Não há qualquer pista. Estava esperando pelos senhores. — Mudou o charuto para o outro lado da boca. — Estão todos na casa. A velha desceu às oito e meia e se trancou na biblioteca.
Vance virou-se para ele.
— É mesmo? E quanto tempo ficou lá?
— Cerca de meia hora. Depois subiu de novo.
— Alguma notícia sobre a jovem?
— Acho que está bem. Eu a ouvi andando por aí e falando. O Dr. Kane chegou há meia hora. Está lá em cima com ela.
— Você já viu Kinkaid esta manhã? Heath bufou:
— Sim, eu o vi. Desceu cedo e contente. Ofereceu-me um drinque, e disse que ia sair. Eu o avisei, porém, que deveria ficar, até que eu recebesse instruções do procurador distrital.
— Ele objetou? — perguntou Vance.
— Não. Disse que não havia problema. Parecia até satisfeito. Falou que tomaria todas as providências por telefone, pediu um gim e voltou para cima.
— Gostaria de ter escutado seus telefonemas — murmurou Vance.
— Não lhe teria servido de nada — disse-lhe Heath, com um gesto de desprezo desgostoso. — Escutei no telefone daqui de baixo. Ele falou com o irmão em casa, e com o camarada chamado Bloodgood e o caixa do Cassino. Só assuntos comerciais. Não falou com nenhuma mulher.
— Nenhum chamado interurbano? — perguntou Vance de modo casual.
Heath tirou o charuto da boca e olhou-o astutamente:
— Sim... um. Ele ligou para um telefone de Closter.
— Ah!
— Mas não houve resposta, e ele desligou.
— Isto me decepciona muito — comentou Vance. — Você se lembra do número?
Heath deu um sorriso triunfante.
— Claro. E descobri tudo sobre ele. É da velha cabana de caça que ele tem nos arredores de Closter.
— Ótimo! — Vance fez um sinal de aprovação. — Houve algo mais, sargento?
— O rapaz chegou há mais ou menos vinte minutos.
— Lynn?
Heath confirmou com a cabeça, indiferentemente.
— Parecia bem tonto, mas está longe de ter outra coisa mais séria. Quis até brigar comigo e Snitkin. — O sargento sorriu amargamente. — Acho que ele não sabia das notícias; embora, julgando pelo que andei escutando, ele não se fosse mesmo importar. Não lhe contei nada — disse-lhe simplesmente que era melhor que ele subisse para falar com a mãe. Isto é tudo que houve.
Vance sacudiu tristemente a cabeça:
— Você não me está ajudando muito, sargento. E eu tinha esperanças. Porém... — Ele olhou para Markham e suspirou pensativamente. — Estamos condenados ao papel do castor — trabalho e mais trabalho. Vamos falar com Lynn e Amélia, mas primeiro acho que vou dar mais uma olhada no quarto de Virgínia. Talvez algo tenha passado despercebido. — Subiu as escadas, e Markham e eu o seguimos.
Quando nos aproximamos do lance superior, chegou-nos o som histérico de uma voz, vindo do quarto de Virgínia, embora não pudéssemos distinguir as palavras. Quando chegamos ao vestíbulo de cima, deparamos com a cena trágica. Pela porta aberta no fim do corredor pudemos ver a Sra. Llewellyn sentada em uma cadeira perto da cama e Lynn ajoelhado à sua frente. Olhava excitadamente para a mãe e lhe agarrava os braços. A cabeça da mulher pendia para a frente e a mão estava no ombro do filho. Ambos estavam de lado, e parece que não deram conta de nossa presença próxima.
A voz alta e soluçante de Lynn nos chegava agora distintamente:
— Querida! — gritava ele. — Diga-me que não foi você! Por Deus, diga que não foi você! Você sabe que eu a amo... mas não queria isso! Você não é culpada, é? — A agonia em sua voz me deu um arrepio.
Vance pigarreou para que eles notassem nossa presença, e ambos voltaram as cabeças rapidamente para nós. Lynn ergueu-se e saiu do nosso alcance. Quando entramos no quarto, ele estava perto da janela da frente, com as costas para nós. A Sra. Llewellyn não havia deixado a cadeira, mas se sentara eretamente, e acenou formalmente quando entramos.
— Sentimos intrometer-nos, senhora — disse Vance, com uma reverência, — Mas, segundo o que nos contou o sargento Heath, esperávamos que este quarto estivesse desocupado. De outra forma, teríamos pedido que nos anunciassem.
— Não importa — replicou a mulher. — Meu filho quis vir aqui, por alguma razão mórbida. Acaba de saber que sua mulher morreu.
Lynn estava agora de frente para nós. Os olhos, convulsos e vermelhos; e ele tentou limpar a evidência de lágrimas recentes.
— Perdoem-me, senhores — desculpou-se, com uma inclinação para Vance. — A notícia foi um choque terrível. Estou muito... muito nervoso, e fora de mim.
— Sim, claro. Nós entendemos — disse Vance. — Um assunto trágico. E eu estava no Cassino a noite passada. O senhor recebeu um grande choque. Sua irmã teve experiência semelhante aqui, a noite passada. Ainda bem que estão ambos salvos.
Lynn fez um gesto vago com a cabeça e olhou em volta, com olhos esgazeados.
— Não... não posso entender — murmurou.
— Estamos aqui para fazer o possível — disse-lhe Vance. — Vamos querer conversar com o senhor mais tarde. Nesse meio tempo, o senhor se importaria em esperar em outro lugar? Temos de examinar umas coisas antes.
— Esperarei no salão. — Dirigiu-se pesadamente para a porta, e, quando passou pela mãe, deu-lhe um olhar patético, que ela devolveu inexpressivamente.
Quando ele deixou o quarto, a Sra. Llewellyn se virou para Vance.
— Lynn — disse, com um sorriso triste — praticamente me acusou de responsável pelos acontecimentos trágicos da noite passada.
Vance fez um gesto de compreensão.
— Lamento que sem querer tenhamos ouvido algumas das coisas que ele lhe disse. Mas a senhora não se deve esquecer que ele está fora de si hoje.
A mulher não pareceu ter ouvido o que Vance dissera.
— Claro — explicou ela — que Lynn não acredita nas terríveis insinuações que fez. O pobre está sofrendo muito. Tudo foi um grande choque para ele, que busca cegamente uma explicação. Ele teme vagamente que eu seja responsável. Queria poder ajudá-lo; ele está mesmo sofrendo. — Apesar da profunda preocupação que suas palavras indicavam, a voz era áspera e artificial.
Vance a contemplou um instante. As pálpebras lhe caíram sobre os olhos, emprestando-lhe uma expressão lânguida.
— Compreendo perfeitamente o que sente — disse — mas por que seu filho suspeitaria da senhora?
A Sra. Llewellyn hesitou antes de responder, depois os músculos faciais enrijeceram, como se afetados por uma decisão súbita e angustiante.
— Acho que devo dizer-lhe que fiz cerrada oposição a que se casasse com Virgínia. Não gostava dela — ela não o merecia. Talvez eu tenha sido franca demais em minhas observações a ele; temo que ainda não tenha dominado meus sentimentos a esse respeito. Contudo, não podia disfarçar, em assunto tão vital para a felicidade de meu filho. — Apertou os lábios e continuou. — Pode ser que ele tenha interpretado mal minha atitude, e levado meus comentários mais a sério do que eu intencionava.
Vance fez um gesto discreto com a cabeça.
— Entendo o que quer dizer — murmurou. Depois acrescentou, sem deixar de encarar a mulher: — A senhora e seu filho são excepcionalmente unidos.
— Sim. — Ela concordou, com um olhar abstraído. — Ele sempre dependeu de mim.
— Um caso de fixação materna, talvez — sugeriu Vance.
— Pode ser. — Ela olhou para o chão e disse, após um momento: — Isto justificaria seus temores e desconfianças em relação a mim.
Vance dirigiu-se à lareira:
— Sim, esta poderia ser uma explicação, mas não vamos entrar agora nessa possibilidade. Mais tarde, talvez. Entretanto...
A mulher ergueu-se vigorosamente.
— Estarei no meu quarto, se o senhor quiser falar comigo novamente. — Deu largas passadas em direção à porta e a fechou, após sair.
Vance contemplou a ponta do cigarro meditativamente:
— Qual o significado de todos os detalhes íntimos? Ela não estava nada preocupada consigo mesmo, e na verdade parecia até contente que tivéssemos surpreendido Lynn histérico e de joelhos. Será... Doloroso e intrigante, Markham. — Levantou a cabeça e examinou o quarto. — Vejamos se encontramos algo novo. Qualquer coisa. A mais leve sugestão. Os antecedentes do caso são, todos, nebulosos. Para dizer a verdade, Markham, não sei nada. Minha mente está totalmente desorientada. Tenho certas suspeitas, porém...
Encaminhou-se para a penteadeira e estudou os inúmeros cosméticos.
— Os artigos comuns — murmurou, abrindo a gaveta e olhando-a. — Sim, tudo normal. Sombras de olho, máscara, lápis de sobrancelha — todos os acessórios da vaidade. Que não foram usados a noite passada. Isto indica, como disse, morte inesperada e não premeditada. Fechou a gaveta e foi para a lareira, parando em frente de uma prateleira com livros. — Novelas francesas de variedade barata. A senhora tinha horrível gosto literário. — Pegou o antiquado relógio de porcelana que estava em cima da lareira. — Com corda — e certo. — Inclinou-se para dentro da lareira. — Nada — queixou-se. — Nem uma ponta de cigarro. — Moveu-se pelo quarto, observando cuidadosamente todos os itens de mobiliário e decoração, e finalmente parou ao pé da cama. — Acho que nada aqui nos ajudará, Markham. — Fumou por um segundo, e virou-se para o fundo do quarto, sem entusiasmo. — O banheiro, uma vez mais — suspirou. — Só por precaução...
Foi até o banheiro e lá passou algum tempo, reinspecionando o armário de remédios. Quando voltou ao quarto, seu olhar estava perturbado.
— Que estranho! — murmurou para ninguém em especial. Depois levantou a vista para Markham. — Juraria que alguém andou mexendo nos vidros de remédio desde que eu os examinei a noite passada.
Markham não se impressionou.
— Por quê? — perguntou impacientemente. — E, mesmo se fosse verdade, que importância teria?
— Não sei responder a nenhuma de suas perguntas — replicou Vance. — Mas a noite passada gravei uma imagem nítida dos — como direi? — esboços dos vidros, caixas e tubos do armário — certo equilíbrio de disposição dos ângulos e planos, tal como num quadro de Picasso. E agora as proporções e relacionamentos das linhas e quadrados não são os mesmos. Há uma leve distorção dos valores da noite passada: é como se alguma força tivesse sido removida ou alguma forma linear acentuada — o quadro foi modificado de alguma forma. Mas aparentemente não falta nada no armário — chequei cada item. — Deu uma tragada funda no cigarro. — Contudo, há diferença — uma marca de creiom ou uma rasura em algum lugar.
— Parece oculto — murmurou Markham.
— Ouso dizer que sim — concordou Vance. — Provavelmente. De qualquer forma, não gosto disso. Perturba minha sensibilidade estética. — Deu de ombros e voltou à cabeceira da cama.
Ficou algum tempo examinando a mesinha de cabeceira, com um cinzeiro, telefone e abajur de seda. Puxou, então, lentamente a gavetinha.
— Que é isto? — Subitamente tirou de lá um revólver de aço. — Ele não estava aí a noite passada, Markham. Surpreendente! — Estudou o revólver e o devolveu cuidadosamente ao mesmo lugar.
Markham estava mais animado.
— Tem certeza de que não estava aí ontem, Vance?
— Claro. Não é miragem.
— Mesmo assim — disse Markham, com jeito impaciente — que ligação poderá ter com os envenenamentos?
— Não tenho a mínima idéia — reconheceu Vance calmamente. — Contudo, tem interesse acadêmico. Vamos descer e conversar com o infeliz Lynn.
IX - ENTREVISTA PENOSA
(Domingo, 16 de outubro — 10:30 horas)
Ao entrarmos no salão, Lynn estava estirado numa confortável poltrona, fumando cachimbo. Ao nos ver, levantou-se com aparente esforço e caminhou pesadamente para a mesa de centro.
— Que fizeram, afinal? — perguntou roucamente, os olhos turvos indo de um a outro de nós.
— Por enquanto, nada — Vance mal dava atenção ao homem e se encaminhou para a janela da frente. — Esperamos que possa ajudar-nos.
— Tudo que quiserem... — Llewellyn moveu o braço num gesto de dócil complacência. — Mas não vejo em que lhes possa ser útil... Nem sequer sei o que me aconteceu na noite passada. Aposto que estava ganhando muito. — Seu tom se tornara amargo, e havia um ricto sarcástico em seus lábios.
— Quanto ganhou? — perguntou Vance com naturalidade, e sem se voltar.
— Mais de trinta mil. Meu tio me disse, esta manhã, que os guardara no cofre para mim. — Os músculos da mandíbula tremeram: — Mas quero quebrar aquela danada banca.
— A propósito — Vance voltou para o centro da sala e sentou-se junto à mesa — notou algum sabor peculiar no uísque ou na água que bebeu ontem à noite?
— Não, não senti. — A resposta veio sem hesitação. i— Pensei nisso esta manhã... tentei recordar... mas nada havia de errado, tanto quanto me lembro... embora, na ocasião, eu estivesse muito excitado — acrescentou.
— Sua irmã bebeu um copo dágua no quarto de sua mãe, na noite passada — continuou Vance — e teve um colapso com os mesmos sintomas que você mostrou.
Lynn acenou que sim:
— Sei. Mas não posso imaginar a coisa. Tudo é um pesadelo...
— Exatamente isso — concordou Vance. Então, após uma pausa, relanceou o olhar para cima: — Ouça, Sr. Llewellyn, ocorreu-lhe que sua esposa possa haver cometido suicídio?
O rapaz parou de repente e, dando uma volta, fixou Vance, espantado:
— Suicídio?... não... não... não tinha razão para isso... — Interrompeu-se de súbito. — Mas nunca se pode saber — resumiu numa voz forçada, reprimida. — Pode ser, claro. Não havia pensado nisso... Realmente pensa que foi suicídio?
— Achamos uma nota a respeito — respondeu Vance, calmamente.
Por um momento, Llewellyn nada disse. Deu alguns passos para a frente: depois voltou e sentou na mesma poltrona em que o havíamos encontrado.
— Posso ver essa nota? — perguntou, lentamente.
— Não a temos conosco agora. — Vance falou de modo simples. — Eu a mostrarei mais tarde. Está datilografada — dirigida a você — e fala de sua infelicidade aqui, e da bondade de seu tio para com ela. E lhe deseja a melhor sorte na roleta. Isso foi tudo. Cuidadosamente dobrada debaixo do telefone.
Llewellyn não fez um só movimento. Olhava em frente, sem qualquer comentário ou indicação facial sobre o que pensava. Finalmente Vance tornou a falar:
— O senhor possui um revólver, Sr. Llewellyn? — perguntou.
O homem ficou rígido na cadeira e olhou para Vance interrogativamente:
— Sim, tenho, mas não vejo a relação...
— E onde costuma guardá-lo?
— Na gaveta da mesa de cabeceira, perto da cama. Já tivemos uns dois sustos com ladrão.
— Não estava na gaveta a noite passada.
— Naturalmente. Eu o tinha comigo. — Llewellyn examinava Vance, com o cenho carregado.
— O senhor sempre o leva quando sai? — perguntou Vance.
— Não — raramente. — Mas geralmente o carrego quando vou ao Cassino.
— Por que o senhor ressalta o Cassino especialmente?
Llewellyn parou antes de responder, e subitamente lhe veio um olhar de animosidade.
— Nunca sei o que me pode acontecer lá — disse finalmente, entre dentes cerrados. — Meu tio e eu não nos adoramos exatamente. Eu gostaria de ficar com o dinheiro dele, e ele com o meu. Para lhe ser franco: não confio nele. E os acontecimentos da noite passada podem ou não justificar minha desconfiança. De qualquer modo, tenho minha teoria sobre o acontecido.
— Não lhe pediremos que a exponha agora, Sr. Llewellyn — replicou friamente Vance. — Também tenho idéias. Não adianta confundir o assunto com especulações. Então o senhor levou o revólver para o Cassino e depois o recolocou na gaveta da mesinha de cabeceira hoje de manhã: é isto?
— Sim. Foi exatamente o que fiz. — Llewellyn tinha um tom agressivo.
Markham fez uma pergunta:
— O senhor tem licença de arma?
— Naturalmente. — Llewellyn sentou no fundo da cadeira.
Vance levantou-se novamente e o encarou.
— E o Sr. Bloodgood? — perguntou. — Ele representa outra razão para seus temores?
— Confio nele tanto quanto em Kinkaid... se é isso que o senhor quer saber — retrucou o homem firmemente. — Ele é dominado por Kinkaid. Faria qualquer coisa que meu tio lhe mandasse. É frio como um peixe, e ganharia muito se pudesse jogar as cartas como deseja.
Vance fez um gesto de entendimento.
— Sim... certo. Vejo o que quer dizer. Sua mãe praticamente nos disse que ele quer casar com sua irmã.
— É verdade. E por que não? Seria um grande "golpe do baú".
— Sua mãe nos disse também que sua irmã repetidamente recusou-lhe os pedidos de casamento.
— Isto não quer dizer nada. — Havia certo tom de amargura na voz. — O entusiasmo de Amélia pela arte não é muito grande. Ela está apenas temporariamente entediada com a vida. Vencerá a face e se casará com Bloodgood com o tempo. Em sua maneira superficial e fria, ela gosta dele. Lynn fez uma pausa e acrescentou com desdém: — Esses dois fariam uma ótima combinação.
— Comentários esclarecedores — murmurou Vance. — E o jovem Dr. Kane?...
— Oh, ele não conta. Tem sérias intenções para com Amélia, e sempre será seu escravo. Ela acha isso ótimo e ocasionalmente o encoraja.
— Uma família patética — comentou Vance. Llewellyn não se ofendeu. Deu um ligeiro sorriso e disse:
— Exatamente. Como todas as famílias antigas com dinheiro demais e sem objetivos, a não ser instilar ódio e armar tramas.
Vance olhou para Lynn com curiosidade vaga, quase patética:
— O senhor conhece alguma coisa sobre veneno? — perguntou inesperadamente.
O homem deu um sorriso sem graça: a pergunta não o impressionou muito.
— Não — disse, rapidamente. — Mas evidentemente alguém por aqui sabe muito sobre veneno.
— Há muitos volumes extensos sobre o assunto na pequena biblioteca — fez Vance, com um gesto de mãos.
— O quê? — Lynn parecia surpreso. — Livros sobre veneno... aqui? — Encarou Vance alguns instantes, depois se afundou ainda mais na cadeira e começou a mexer o cachimbo.
— O fato o surpreende? — A voz de Vance era suave.
— Não, não, claro que não — respondeu Lynn, quase inaudivelmente. — Só por um instante, mas depois me lembrei do interesse científico de meu pai... provavelmente alguns de seus livros velhos...
A testa de Lynn estava franzida: os olhos se estreitaram, em intensa especulação. Dava a impressão de estar tendo suspeitas desagradáveis, e se manteve quase rígido.
Sem parecer fazê-lo, Vance o observou por vários instantes antes de falar.
— Isso é tudo agora, Sr. Llewellyn — disse polidamente. — O senhor pode subir. Se precisarmos falar-lhe de novo, o avisaremos. É melhor que o senhor hoje repouse. Perdoe-me por havê-lo aborrecido com a citação dos tratados de toxicologia.
O homem se erguera e já estava à porta.
— O senhor não me aborreceu — disse, parando. — Kane é médico, Bloodgood formou-se em química na Universidade, e Kinkaid escreveu um capítulo inteiro sobre venenos orientais em um de seus livros de viagem...
— Sim, entendo perfeitamente — interrompeu Vance impacientemente. — Eles não precisariam recorrer aos livros, claro. E se os livros foram usados como fonte de informação para o que aconteceu aqui ontem, isto poderia limitar as coisas ao senhor, sua mãe e sua irmã. E o senhor e sua irmã foram vítimas do enredo, de modo que resta sua mãe como a pessoa que poderia ter usado os livros. Foi isto o que o senhor pensou?
Lynn fez um movimento agressivo.
— Não, nada disso! — protestou vigorosamente.
— Enganei-me — murmurou Vance, com uma nota curiosa de solidariedade na voz. — Eu quis dizer o seguinte, Sr. Llewellyn: por alguma razão, o senhor mexeu no armário de remédios esta manhã?
O homem balançou a cabeça.
— Não, tenho certeza que não.
— Não importa. Alguém mexeu. — Vance voltou à cadeira, e Lynn, com um encolher de ombros, saiu do aposento.
— O que é que você acha dele, Vance? — perguntou Markham.
— Ele está sofrendo. — Vance suspirou pensativamente. — Cheio de idéias mórbidas, e se preocupando abominavelmente com a "mama". Caso triste...
— Ele disse ter uma teoria sobre o ocorrido a noite passada. Por que você não quis que ele a expusesse?
— Teria sido muito cruel, revelar seu estado de espírito. Já não agüento a situação como está, e não vou suportar muito mais, Markham. Quero ir embora, ver o sol, Papai Noel, comer linguado, escutar Beethoven...
X - O RELATÓRIO POST-MORTEM
(Domingo, 16 de outubro — 11:15 horas)
O sargento Heath surgiu à porta.
— O jovem doutor está descendo. O senhor quer vê-lo? Vance hesitou, depois fez que sim.
— Sim, peça-lhe que entre, sargento.
Heath desapareceu, e um momento mais tarde o Dr. Kane entrou no salão. O rosto estava abatido e perturbado, como se ele não tivesse descansado, mas não havia apreensão em seu olhar. Seus modos eram quase cordiais quando nos cumprimentou.
— Como está sua paciente? — perguntou-lhe Vance.
— Praticamente normal, senhor. Fiquei aqui umas duas horas depois que os senhores saíram a noite passada, e a Srta. Llewellyn repousava calmamente quando fui embora. Naturalmente, ela está fraca e muito nervosa, mas o pulso, respiração e pressão estão normais.
— O senhor tem idéia, doutor, — perguntou Vance — da droga que causou o problema à Srta. Llewellyn?
O Dr. Kane apertou os lábios e olhou para o vácuo.
— Não — ele replicou afinal — embora seja lógico que eu tenha pensado muito sobre o assunto. Ela estava com os sintomas normais de colapso — nada há de diferente sobre eles — e há, evidentemente, muitas drogas que, terapeuticamente falando, poderiam tê-los produzido. Uma dose excessiva de qualquer soporífero com barbitúricos poderia tê-los motivado. Mas, o senhor deve entender que não posso afirmar uma opinião. Tenciono pesquisar um pouco sobre o assunto assim que voltar ao consultório.
Vance não insistiu. Deixou que o médico se fosse e mandou chamar o mordomo.
Smith estava imperturbável como sempre e o rosto pálido.
— Diga, por favor, à Srta. Llewellyn — falou Vance — que gostaríamos de falar-lhe, no seu quarto ou no salão — como lhe for mais conveniente.
O mordomo se inclinou e saiu. Quando voltou, informou que a Srta. Llewellyn nos receberia no quarto, e subimos.
A moça estava numa espreguiçadeira, vestida com pijamas japoneses cuidadosamente bordados. A seu lado havia um pequeno tamborete de laça vermelho, no qual se viam um estojo de cigarros, algumas revistas de arte e uma cigarreira de prata, cujo desenho imitava Mercúrio. Ela nos cumprimentou e fez uma tentativa cínica de sorriso.
— Sua visita, segundo depreendi pelo Dr. Kane, por pouco não era feita no necrotério...
— Estamos encantados — disse Vance seriamente — de encontrá-la melhor.
— Mas alguém — disse amargamente — por certo não encarará minha recuperação sob luz tão favorável. — Ela deu
de ombros e fez uma careta. — Estou começando a sentir-me como uma visitante do castelo dos Bórgias. Hoje de manhã fiquei apavorada ao tomar café.
Vance fez um gesto de compreensão.
— Duvido que a senhorita precise temer mais. Algo andou totalmente errado a noite passada. O envenenador deve ter-se confundido com as coincidências imprevistas. E na ocasião em que ele se tiver reorganizado e planejado outra campanha, esperamos já ter a situação sob controle. Pelo menos sabemos onde buscar indícios.
Amélia Llewellyn fez um olhar inquisitivo e todo traço de cinismo desapareceu-lhe do rosto.
— Parece — observou — que o senhor sabe mais do que diz.
— Bem, é verdade. Bem mais, porém não o suficiente. Não perco as esperanças... Já viu seu irmão? Está totalmente recuperado, e ficou pior do que a senhorita.
— Sim — comentou a moça. — Somos dois fracassos. É bem nosso, isso. Estamos sempre desapontando alguém.
— Espero — disse Vance — não a desapontar neste caso. No meio tempo, a senhorita se importaria se eu olhasse no seu armário de roupas e fizesse uma pequena experiência lá?
— Claro que não! — Ela moveu o braço de forma engraçada, para uma porta à sua esquerda.
Vance foi até ela e a abriu. O espaço existente, conforme ela nos explicara a noite passada, era uma passagem antiga que ligara os dois quartos principais da ala sul da casa. Havia uma sapateira e um pequeno armário à direita, e à esquerda estavam pendurados vários vestidos e casacos. Na metade da passagem permanecia uma pia de tampo de mármore. Na outra extremidade do armário improvisado havia outra porta. Vance a abriu, e vimos o grande quarto onde Virginia Llewellyn havia sido assassinada.
Vance voltou até nós e me disse:
— Van, vá ao outro quarto, feche as portas e fique ao lado da cama. Então me chame em voz bastante alta. Quando você me escutar bater na porta mais afastada, chame-me novamente, no mesmo tom de voz.
Passei pelo guarda-roupas para o quarto mais longe e, de pé ao lado da cama onde morrera Virginia, dei um grito. Após instantes, escutei a batida de Vance na porta, e gritei novamente. Então Vance abriu a porta.
— É só, Van. Obrigado.
Quando voltamos ao quarto de Amélia, a moça olhou ironicamente para Vance.
— O que, Sr. Lecop, aprendeu? — perguntou ela.
— Só que a senhorita nos disse a verdade sobre as possibilidades acústicas entre os dois quartos — retrucou Vance. — Não pude escutar o Sr. Van Dine com ambas as portas fechadas, mas o ouvi perfeitamente quando estava no armário de roupas.
A moça deu um suspiro dramático.
— Que bom minha verdade ter sido comprovada uma vez. A principal crítica que minha mãe me faz é que eu prefiro mentir a dizer a verdade.
— Falando de sua mãe — Vance sentou-se e contemplou a moça com olhos graves — quero que a senhorita nos diga como veio beber o copo d'água no quarto de sua mãe a noite passada.
Amélia tornou-se séria rapidamente, à vista do tom de Vance.
— Como é que se toma um gole d'água? Só sei que tive sede e instintivamente peguei a garrafa que estava ao meu alcance. Ia esperar lá que mamãe voltasse. Estava naturalmente nervosa e queria falar com alguém...
— Notou gosto estranho na água?
— Não, parecia normal.
— Quanta água havia no jarro?
— Mal dava para encher um copo. Lembro-me vagamente de ter desejado que houvesse mais. Mas tive preguiça e não me levantei. Quando mamãe voltou, eu estava com uma enxaqueca tremenda, meus ouvidos zuniam, e me sentia terrivelmente fraca. Minha cabeça estava confusa, e me levantei para ir para meu quarto. É tudo de que me lembro.
— A senhorita se lembra perfeitamente de quando sua mãe voltou ao quarto?
— Oh, sim. Nós nos dissemos algo... não sei o quê. Provavelmente me queixei da dor da cabeça... mas tudo rodava à minha volta.
— Quando a senhorita teve sede, mencionou o fato à sua mãe?
A moça pensou um momento, depois respondeu:
— Não. Mamãe estava na penteadeira, embelezando-se para falar com os senhores. Acho que não nos falamos na ocasião. Eu apenas me servi da água do jarro, e mamãe saiu imponentemente do quarto.
— E a água da sua garrafa na noite passada? — perguntou Vance. — A empregada disse que a encheu, mas enquanto a senhorita estava inconsciente no quarto de sua mãe, inspecionamos sua garrafa e ela estava vazia.
— Sim, eu sei que estava. Bebi toda a água que ela continha enquanto desenhava, antes de passar mal. — Os olhos se arregalaram. — Minha água também estava envenenada?
Vance balançou a cabeça.
— Não, não seria possível. Passou muito tempo depois que a senhorita a bebeu. A senhorita teria sentido os efeitos do veneno no máximo em meia hora...
Vance virou-se rapidamente e dirigiu-se para a porta do vestíbulo. Torceu a maçaneta cuidadosamente e logo a abriu. No corredor, estava Richard Kinkaid.
Nem um músculo se moveu para demonstrar que a rápida ação de Vance o desconcertara. Tirou o cigarro rapidamente da boca e fez uma reverência formal.
— Bom dia, Sr. Vance — disse com voz fria. — Desci para saber de minha sobrinha, mas, quando ouvi vozes no quarto, achei que o senhor e o Sr. Markham poderiam estar aqui, e não quis perturbá-los. Mas evidentemente o senhor me escutou...
— Sim, escutei alguém se mexer do lado de fora da porta. — Vance ficou de lado. — Estávamos fazendo algumas perguntas à Srta. Llewellyn, mas já terminamos. Ela melhorou muito esta manhã.
Kinkaid entrou no quarto e, após cumprimentar a sobrinha com uma ou duas frases convencionais, sentou-se.
— Alguma novidade? — indagou, lançando a Vance um olhar calculista e arguto.
— Oh, uma porção — disse Vance. — Estamos juntando as peças, mas é cedo para nos alegrarmos. Contudo, estou satisfeito de que o senhor tenha chegado. Queria perguntar-lhe o endereço de Bloodgood. Estamos ansiosos para conversar com ele.
O queixo de Kinkaid endureceu, e o olhar era inamistoso. Mas não havia outra indicação de que ele estivesse surpreso pelas observações de Vance.
— Bloodgood mora no Hotel Astoria, na Rua 22 — disse, e lentamente sacudiu as cinzas do cigarro no cinzeiro. — Contudo — acrescentou, com ligeiro tom de desprezo — o senhor está batendo na porta errada. Mas prossiga e o interrogue, por favor. Ele ficará o dia todo no hotel — acabei de falar-lhe. Mas o senhor estará perdendo seu tempo... Bloodgood é uma pessoa digna.
— Realmente, não conheço o fulano muito bem — murmurou Vance. — Mas como foi ele que pediu água simples para Lynn ontem à noite no Cassino, talvez seja interessante saber suas opiniões sobre o assunto.
Amélia, que visivelmente enrijecera ao ouvir o nome de Bloodgood, levantou-se e olhou desafiadoramente para Vance.
— O que o senhor quer dizer? — perguntou. — O senhor acusa o Sr. Bloodgood de haver dado o veneno a Lynn?
— Cara senhorita!
— Porque, se o senhor está tentando fazer isso, — prosseguiu a moça em tom zangado — posso dizer-lhe exatamente o responsável por tudo que aconteceu a esta família a noite passada.
Vance a olhou calmamente, e o tom de sua voz era igual ao dela — Quando a verdade for conhecida, Srta. Llewellyn — disse — seu testemunho não será necessário. — Inclinou-se formalmente para ela e para Kinkaid, e saímos.
Quando estávamos para descer ao andar principal, Vance hesitou e dirigiu-se ao quarto da Sra. Llewellyn.
— Há um pequeno assunto que quero mencionar à dona da casa antes de sairmos — explicou a Markham, quando bateu à porta.
A Sra. Llewellyn nos recebeu de mau grado, e seus modos eram de acentuado antagonismo.
Vance pediu desculpas por perturbá-la.
— Quero simplesmente informá-la, por ser de seu interesse, que seu filho pareceu muito perturbado quando lhe comuniquei sobre os volumes de toxicologia da biblioteca. Ele deu a impressão de não saber dessa existência.
— E por que isso me interessaria? — retrucou a mulher com desdém. — Meu filho não lê muito — suas necessidades literárias são inteiramente satisfeitas pelo teatro. Duvido que ele saiba qualquer dos títulos dos livros que o pai lia. Nada lhe interessaria menos que a pesquisa científica. Portanto, sua perturbação com a existência de livros sobre venenos nesta casa é, eu lhe afirmo, perfeitamente natural, dada a experiência por que passou a noite passada.
Vance fez um gesto como se estivesse satisfeito com a explanação.
— Isso é muito possível — ele murmurou. — E talvez a senhora nos possa dar explicação tão colorida para o fato de haver passado parte da manhã na biblioteca.
— Então estou sendo espionada! — A frase foi dita com indignação, mas a mulher mudou rapidamente de atitude. Os olhos se contraíram e um sorriso maroto apareceu-lhe nos lábios. — A insinuação de suas palavras é, suponho, que eu tenha estado consultando os livros sobre venenos.
Vance esperou, e a mulher continuou.
— Bem, foi isso mesmo que eu fiz. Se lhe puder ajudar: estive procurando uma droga comum que pudesse justificar o estado de meus filhos ontem à noite.
— A senhora encontrou essa referência?
— Não, não achei.
Vance deixou o assunto por aí. Despediu-se e acrescentou.
— Não haverá mais espionagem... por algum tempo, pelo menos. A polícia será retirada de sua casa, e a senhora e sua família estão livres para se locomover como desejarem.
Quando descemos, Markham levou Vance ao salão.
— Veja, Vance — perguntou com preocupação — você não está sendo um pouco apressado?
— Caro Markham — Vance repreendeu-o — eu nunca me apresso. Nunca me precipito, sou sempre cauteloso. Preciso ter razões para tudo. E tenho excelentes razões para temporariamente retirar a supervisão da casa dos Llewellyns.
— Ainda assim — resmungou Markham. — Não gosto da situação aqui, e acho que deveria ser vigiada.
— Uma grande idéia, mas que não será útil. — Vance olhou pensativamente para Markham. — Vigiar não nos adiantará. Fui convidado a assistir ao desfalecimento de Lynn. E todos nós estávamos na casa ontem à noite quando Amélia foi atacada. Acho que não se pode esperar que todos os membros da família Llewellyn tenham um guarda-costas indefinidamente.
Markham estudou Vance detidamente, como se tentando ler o pensamento do outro.
— Achei estranho Amélia haver dito que sabia quem era o responsável pelo caso todo. Você acredita nela?
— Oh, meu caro Markham! — Vance suspirou — É cedo demais para começar a acreditar em alguém. Nossa única esperança é o cepticismo total. A dúvida honesta é muito eficiente às vezes. Dá à mente uma oportunidade de agir livremente.
— Não obstante — observou Markham irritadamente, — você está pensando em algo definido, ao querer que a polícia se retire.
— Não, não — retrucou Vance e sorriu. — Estou apenas tateando. E quero ver o relatório post-mortem. Isto, pelo menos, será definido. Pode ser que nos revele algo.
Markham cedeu relutantemente.
— Muito bem. Instruirei Heath para que se retire temporariamente e mande os rapazes para casa.
— E diga-lhe para apanhar nosso crupiê no Astoria e o traga a nosso escritório — disse Vance. — Estou ansioso para "torrá-lo", como diriam vocês, promotores públicos. E acho que os arredores judiciais e deprimentes do edifício do Tribunal poderiam ter o efeito psicológico desejado.
— Que espera saber dele?
— Nada... positivamente, nada — replicou Vance, e acrescentou: — Porém, mesmo a negativa pode ser útil. Tenho uma sensação de que este caso será resolvido por uma pista insignificante.
Markham resmungou, e saímos para o vestíbulo onde o sargento esperava desanimadamente.
Dez minutos mais tarde Vance, Markham e eu seguíamos para a cidade, após Heath haver sido instruído sobre o que Vance solicitara.
Logo que entramos no velho mas espaçoso escritório do procurador distrital, Markham chamou Swacker e indagou-lhe sobre o laudo do Dr. Doremus e sobre o relatório referente aos espécimes de datilografia que haviam sido enviados ao laboratório científico.
— O relatório do laboratório chegou — disse-lhe Swacker, apontando um envelope fechado na escrivaninha — mas o Dr. Doremus telefonou às onze para dizer que o laudo da autópsia está atrasado. Telefonei há dez minutos, e um dos assistentes me informou que o laudo está a caminho. Eu o trarei logo que ele chegue.
Markham mexeu com a cabeça, e Swacker saiu.
— Atrasado, hem? Por quê? — reclamou Vance. — Não deve ter havido problema. Indicou-se que o envenenamento fora por beladona, o toxicologista sabia o que procurar. Será... No meio tempo, vejamos as informações do bravo rapaz da lente.
Markham já havia aberto o envelope. Colocou as três amostras da datilografia em um lado e examinou o relatório que as acompanhava. Depois de alguns momentos, ele também o largou.
— Exatamente o que você suspeitava — disse para Vance sem entusiasmo. — A datilografia foi feita na mesma máquina, e dentro de período razoável de tempo — isto é, a tinta da fita estava na mesma fase de desgaste, e não se pode dizer com certeza que papel foi escrito primeiro. Também o bilhete da suicida e a carta que você recebeu foram provavelmente datilografados pela mesma pessoa. Especificações de pressão e pontuação e as consistências dos erros quando as letras eram batidas são as mesmas em ambos. Há muitos detalhes técnicos, mas esses são os principais. — Ele apanhou o relatório e o entregou a Vance. — Você quer vê-lo?
Vance fez um gesto negativo com a mão.
— Não, só ansiava pela comprovação. Markham se inclinou para a frente.
— Olhe aqui, Vance, qual a importância desses dois documentos datilografados? Considerando que a moça não se matou, qual teria sido o objetivo da pessoa que a envenenou, ao lhe mandar a carta?
Vance ficou sério.
— Na verdade, Markham, não sei. — Andava para cima e para baixo enquanto falava. — Se a carta e o bilhete tivessem sido datilografados por duas pessoas diferentes, a coisa seria comparativamente fácil. Simplesmente significaria que alguém planejara envenenar a moça de modo a parecer um suicídio e que outra pessoa, com um palpite que fora assassinato, me mandara um bilhete dramático de socorro. Nessa circunstância, duas conclusões seriam obtidas: primeira, que o escritor da carta anônima temia que Lynn fosse a vítima; e segunda, que o escritor suspeitava que o próprio Lynn desejava assassinar a mulher e queria que eu o vigiasse...
— E ambos foram vitimados — interrompeu Markham sombriamente. — De modo que essa hipótese não nos leva a lugar algum. De qualquer forma, é só uma especulação, baseada na falsa premissa de que duas pessoas diferentes prepararam os dois documentos. Por que não chegar ao ponto?
— Oh, meu caro! — resmungou Vance. — Estou tentando desesperadamente chegar ao ponto, mas... não sei qual é! Como está o caso, o envenenador deliberadamente chamou minha atenção para a situação e até insinuou fortemente que a mulher de Lynn não se suicidaria, e sim seria assassinada.
— Isto não faz sentido.
— Contudo, Markham, você tem a consubstanciação de minha conclusão aparentemente insana lá na sua mesa. Há o bilhete suicida e a carta para mim; há também seu relatório de que a mesma mão datilografou ambos.
Parou.
— Qual o próximo passo inevitável em sua racionalização? Como sussurrei a seus ouvidos relutantes, acho que o assassino deseja que nos concentremos na direção errada. Ele está tentando o feito impossível de ganhar todas as rodadas da partida com só um curinga, e isso é o que faz tudo tão sutil e diabólico.
— Mas você está omitindo o fato de que foram envenenadas três pessoas. Se sua teoria está correta, por que não poderia o envenenador simplesmente ter envenenado a moça e então envenenado a vítima na qual supostamente nos deveríamos deter? Por que fazer-nos parte do plano, quando o assassino aparentemente está no negócio de envenenamento por atacado?
— Pergunta razoável — concordou Vance — e que me está atormentando desde a noite passada. Esse procedimento teria sido o racional. Mas, Markham, nada há de racional nesse crime. Não há só um espantalho nos enfrentando, e sim uma série deles. Tenho a terrível suspeita de que eles estão dispostos em círculo, com o assassino fora da circunferência. Nossa única esperança é que algo saiu errado. Em qualquer mecanismo delicado e intrincado, uma pequena falha — um escorregão no funcionamento — faz ruir toda a estrutura e torna a máquina incapaz de trabalhar. Esse não é um crime plástico. Apesar de todas as suas hipersensibilidades, divagações e convoluções, é estático e fixo de concepção. E aí estão sua força e sua fraqueza...
Neste ponto, Swacker bateu na porta e empurrou-a. Nas mãos, um envelope grosso.
— O laudo da autópsia — disse, colocando-o na mesa de Markham e saindo novamente.
Markham abriu o envelope imediatamente e olhou para as páginas datilografadas unidas numa pasta azul. À medida que lia, o rosto se enevoava e uma expressão intrigada vinha-lhe aos olhos; quando chegou ao fim das páginas, havia uma ruga profunda na testa.
Ergueu lentamente a cabeça e olhou para Vance, que havia sentado em frente a ele na mesa, com um olhar de cálculo espantado.
— Caro Markham — queixou-se Vance — que segredo terrível você oculta?
— Não havia qualquer sinal de beladona no estômago de Virgínia! Tampouco quinino ou cânfora, o que elimina inteiramente as drágeas de rinite.
Vance acendeu um cigarro com deliberação lenta.
— Algum detalhe? Markham referiu-se ao laudo.
— As conclusões exatas são: congestão dos pulmões; muita cera nas cavidades da pleura; sangue principalmente no lado venoso da circulação; lado esquerdo do coração obstruído, lado direito, comparativamente, vazio; tecidos cerebrais e meninges congestionados, e a garganta, traquéia e esôfago hiperêmicos...
Todos os sintomas de morte por asfixia. — Vance olhou tristemente pela janela. — E nenhum veneno!... Doremus aventurou alguma opinião?
— Nada específico — informou-lhe Markham. — Ele não se compromete profissionalmente. Diz apenas que a causa da asfixia ainda é desconhecida.
— Sim, sim. Depende da análise do fígado, rins, intestinos e sangue. Isso levará uns dois dias. Mas algum veneno deve estar no estômago, se foi tomado oralmente.
— Mas Doremus diz aqui que a história que recebeu do caso e suas opiniões do exame imediato do corpo indicavam uma dose excessiva de beladona ou atropina.
— Soubemos disso a noite passada. — Vance se inclinou e, tomando o relatório, examinou-o detidamente. — Sim. É como você diz.
Sentou-se em sua cadeira, volveu lentamente o olhar para a expressão perturbada de Markham e tragou profundamente. Então atirou o relatório de volta à mesa de Markham com um gesto desanimado.
— É "duro", meu caro. Uma senhora é envenenada, presumivelmente por via oral, mas não se acham traços do veneno. Duas outras pessoas são envenenadas e se recuperam. Espera-se que imputemos a algum inocente a culpa do crime. Oh, meu Deus! Que situação!
XI - MEDO DE ÁGUA
(Domingo, 16 de outubro — 12:30 horas)
Swacker olhou na sala:
— O sargento Heath está aqui com um cavalheiro chamado Bloodgood.
Markham relanceou os olhos para Vance, que acedeu, e disse a Swacker que o fizesse entrar.
Bloodgood estava de mau humor. Um cigarro pendia-lhe dos lábios grossos, e as mãos estavam enfiadas nos bolsos das calças. Fez um aceno para Vance, sem falar, e jogou-se pesadamente na cadeira.
— Prossigam — disse indiferentemente. — Kinkaid me telefonou para avisar que os senhores viriam "tirar meu pêlo".
— É verdade? — Vance olhava pela janela. — Que interessante! Ele lhe disse para tomar cuidado, ou instruiu-o sobre o que contar?
Bloodgood irritou-se.
— Não. Por que deveria ele? Mas me disse que o senhor me ligara ao que aconteceu a Lynn ontem à noite.
— O senhor mesmo se ligou, Sr. Bloodgood — retrucou Vance suavemente, sem tirar os olhos do céu cinza. — Apenas pensamos que o senhor pudesse ter alguma explicação ou sugestão que nos ajudasse a desvendar toda essa trama demoníaca.
O tom de Vance, embora seguro e duro, não era inamistoso, e Bloodgood se impressionou evidentemente, pois se endireitou na cadeira e abandonou os modos agressivos. Na verdade, quando ele falou novamente, dei-me conta de sua urbanidade e postura.
— Não há nada que eu possa explicar, Sr. Vance. O senhor se refere, suponho, a minhas instruções ao criado japonês para levar água pura a Lynn... Coincidência infeliz, apenas isto. Estava somente sendo gentil com um convidado do Cassino... conforme exigido pelo dever. Kinkaid não é pessoa que tenha esse tipo de atenção. Sabia que Lynn não bebia água tônica, e o tinha escutado pedir água pura no início da noite. A maioria dos rapazes sabia de seus gestos, mas Mori está há pouco tempo conosco. Tenho de reconhecer que Lynn não bebe muito quando está no Cassino. Provavelmente leu em alguma parte que a pessoa se deve manter sóbria quando joga. Como se tivesse importância! — Bloodgood deu um riso de escárnio. — A sorte não investiga o estado mental de um homem antes de atacar.
— É verdade — murmurou Vance. — E a lei das probabilidades funciona igualmente para o sóbrio e o bêbado. É, a sorte é totalmente amoral. Pensamento confortador. Mas o único motivo atrás de sua gentileza para com Lynn era seu desejo de cumprir seu dever?
— Um motivo sinistro? — perguntou Bloodgood desconfiadamente, tornando-se rígido.
— Na verdade, eu não especifiquei — Vance fumava plàcidamente. — Por que emprestar a intenção menos caritativa a minhas palavras?
Bloodgood acalmou-se, e um quase sorriso apareceu-lhe.
— Eu talvez venha a me enforcar um dia. Faço uma gentileza, e o favorecido quase morre. O senhor me dá uma faca, e eu a apanho pela lâmina. — Deu de ombros. — A verdade é: normalmente eu não teria interferido com as bebidas de Lynn no cassino — não o estimo em demasia... — mas tive um pouco de pena dele ontem à noite. Kinkaid não gosta dele e quase sempre perde na roleta. Isto faz com que Kinkaid tripudie sobre ele. Ontem ele estava em maré de sorte: já tinha ganho muito do dinheiro perdido em outras noitadas. Então ele se descontrolou — reação psicológica, imagino — ficou nervoso e começou a fazer as coisas mais malucas — cobria as apostas, apostava contra ele próprio, etc. Ele não duraria muito mais. Precisava de um drinque, e quando vi a água tônica, tive vontade de ajudá-lo. Mandei, então, vir a água pura, pois ele não bebera a tônica. De certa forma, foi uma boa coisa: ele deixou de perder cerca de trinta mil, mas minha gentileza me encrencou.
— É, isso acontece. Nunca se sabe, não é? Este é um mundo maroto, sem dúvida. — Vance falava impessoalmente. — O senhor sabe de onde veio a água que tão gentilmente mandou vir?
— Do bar, suponho.
— Não, não. Não veio do bar. Mori foi desviado de sua tarefa. A água veio da garrafa particular de Kinkaid.
Bloodgood sentou-se reto, e os olhos se arregalaram. Vance concordou com a cabeça.
— Sim. Kinkaid disse a Mori para buscar a água no seu escritório. Havia gente demais no bar, foi o que ele me explicou. A água se atrasaria. Ele só estava pensando em Lynn. Todos estavam só pensando no bem-estar de Lynn ontem à noite. Anjos da guarda. Gente muito simpática. E então o ingrato do Lynn desfalece, envenenado.
Bloodgood começou a falar mas fechou rapidamente a boca e, afundando-se na cadeira, olhou reto para a frente, soturnamente.
Após pequena pausa, Vance apagou o cigarro e virou a cadeira de modo a encarar Bloodgood.
— O senhor sabe, claro — perguntou — que a mulher de Lynn morreu ontem à noite?
Bloodgood fez que sim, sem tirar os olhos do vácuo.
— Vi nos jornais da manhã.
— O senhor acredita ter sido suicídio? Bloodgood moveu a cabeça para trás e fixou Vance.
— Não foi? Os jornais disseram ter sido encontrado um bilhete suicida...
— É certo. Mas não inteiramente convincente.
— Mas Virgínia era capaz disso — afirmou Bloodgood. Vance não continuou com o tema.
— Suponho — disse — que Kinkaid lhe disse ao telefone que Amélia Llewellyn escapou por pouco também ontem à noite?
Bloodgood deu um pulo.
— O que? — exclamou. — Ele não me disse nada de Amélia. Que houve? — O homem parecia altamente perturbado.
— Ela tomou um copo dágua — no quarto da mãe — e desfaleceu igualzinho ao irmão. Não houve sérios danos, porém. Ela está muito bem hoje — acabamos de vir de lá. Não precisa se preocupar. Por favor, sente-se. Há mais um ou dois assuntos sobre os quais lhe quero falar.
Bloodgood sentou-se novamente, com relutância aparente.
— Tem certeza de que ela está bem?
— Tenho. O senhor poderá ir vê-la quando sair. Estou certo de que ela gostará de sua visita. Kinkaid também está lá. Falando nisso, quais suas relações com ele, Sr. Bloodgood?
O homem hesitou e então disse, indiferentemente:
— Puramente comerciais. — Vance não disse nada, e Bloodgood continuou. — Há certa amizade também, claro. Tenho muita gratidão por Kinkaid. Se não fosse por ele, eu provavelmente estaria ensinando química ou matemática, ganhando um terço do que recebo no Cassino, e me entediando de morte. Ele é severo, mas generoso. Não posso dizer que o admire inteiramente, porém tem muitas qualidades admiráveis, e sempre foi muito sincero comigo — Bloodgood parou um instante e acrescentou, com um leve sorriso: — Acho que ele gosta de mim — e isto, claro, faz com que eu seja parcial quanto a ele.
— O senhor dá alguma importância ao fato de que ele tenha mandado servir a Lynn a água de sua própria garrafa?
A pergunta perturbou Bloodgood enormemente. Moveu-se na cadeira e respirou fundo antes de responder.
— Não sei. Puxa, essa é difícil de dizer! Pode ter sido simples coincidência — é bem do feitio de Kinkaid fazer coisas espontaneamente: ele tem uma tendência a ser muito decente. Recebe as perdas como um cavalheiro e nunca se queixa quando vai tudo mal. Sei que ele joga lealmente e, para dizer a verdade, não consigo concebê-lo tentando derrubar um homem porque a casa está perdendo. Especialmente seu próprio sobrinho.
— Poderia ter havido outras razões que não fossem os ganhos de Lynn ontem à noite — sugeriu Vance.
Bloodgood pensou nisso por algum tempo.
— Compreendo o que quer dizer — replicou. — Com Amélia, Lynn e a mulher de Lynn fora do caminho... — Interrompeu-se e balançou a cabeça. — Não! Não condiz com o caráter de Kinkaid. Uma arma, talvez, numa emergência — sei que ele conseguiu, com sua perícia de atirador, livrar-se de algumas enrascadas sérias na África. Mas não veneno. Isso é arma de mulher.
— Ele é assim decidido?
— Sim, é. Ou faz ou fica inativo. Faz uma coisa ou não a faz. Não tem finura, no sentido psicológico. Isso o faz um grande jogador de pôquer, e medíocre de bridge. Uma vez me disse: "Qualquer mulher pode dominar o bridge, mas só um homem pode jogar bem pôquer." Ele é frio e não conhece o medo; é também tão astuto como Lúcifer. Não vê os meios, desde que atinja os fins, mas age sempre abertamente. Você pode confiar nele, mesmo que ele seja seu inimigo. Veneno? Não. Não faz sentido.
Vance fumou um pouco, abstraidamente.
— O senhor é químico — disse, finalmente — e íntimo de Kinkaid. Diga-me: por acaso ele também se interessa por química?
Pela primeira vez Bloodgood pareceu não se dominar. D"eu rápida olhada a Vance e pigarreou nervosamente.
— Acho que não. — O tom não convenceu totalmente. — É um assunto inteiramente fora de suas atividades e interesses. — Parou, e depois acrescentou: — Se a química desse dinheiro, é claro que Kinkaid talvez estivesse interessado, mas do ângulo puramente especulativo.
— Bem, bem — murmurou Vance. — Sempre alerta. Buscando uma oportunidade de lucro, por assim dizer. Sim. Combina com o instinto de jogador.
— Kinkaid sabe — complementou Bloodgood — que sua situação atual não pode durar indefinidamente. Um Cassino, na melhor hipótese, é uma fonte temporária de renda.
— Certo. Nossa civilização hipermoral. Triste... Mas deixemos Kinkaid de lado. Conte-nos o que sabe do jovem Dr. Kane. Ele foi jantar com os Llewellyns ontem à noite, e a Srta. Llewellyn o chamou quando a mulher de Lynn foi atacada.
O rosto de Bloodgood entristeceu.
— Vi-o muito pouco até hoje — replicou duramente — e apenas na casa dos Llewellyns. Acho que ele está interessado em Amélia. Vem de boa família, etc. É bastante agradável; tem uma personalidade congenial, mas me parece um fraco. Já que o senhor me perguntou sobre ele, devo ainda dizer-lhe: ele me impressionou como algo instável às vezes, como se estivesse somando números antes de responder a uma pergunta direta ou emitir uma opinião.
— O arrière-pensée em ação — sugeriu Vance. Bloodgood concordou.
— Sim. Muito efeminado mentalmente. Talvez, contudo, sejam apenas seu esnobismo e seu esforço constante de agradar — o modo insinuante que os jovens médicos cultivam.
— Que espécie de sujeito era Lynn quando o senhor o conheceu na Universidade?
— Normal. Medíocre, mas rebelde. Era um estudante sofrível, suas notas mal davam para passar. Dedicava-se excessivamente às diversões, e não tinha objetivo sério. Nunca, porém, o responsabilizei por isso: não era inteiramente sua culpa. A mãe sempre o mimou demais. Perdoava tudo que ele fizesse, e ainda facilitava a repetição das coisas erradas. Tinha, porém, o bom senso de não soltar o dinheiro. É por isso que ele joga — e o admite sinceramente.
— Ele acha — disse Vance, em tom casual — que a mãe possa ser a responsável pelos envenenamentos da noite passada.
— Será possível? — Bloodgood parecia espantadíssimo. Meditou por alguns momentos, depois disse: — Entendo a atitude dele de certa forma. Ele mesmo se referia a ela como "a mais nobre dama romana de todas". E não se enganava. Ela sempre foi o homem da casa. Não admitia interferência alguma em seus planos.
— O senhor está pensando em Agripina? — indagou Vance.
— Algo assim. — Bloodgood silenciou mais uma vez. Vance levantou-se, andou até o fim da sala, voltou e parou em frente a Bloodgood.
— Sr. Bloodgood — disse, com os olhos fixos no outro, — três pessoas foram envenenadas ontem à noite. Uma está morta, as outras duas se recuperaram. Não foi achado veneno no estômago de Virgínia Llewellyn. Duas das vítimas — Lynn e sua irmã — desfaleceram depois de beber um copo dágua. A garrafa de Amélia estava vazia quando chegamos ao seu quarto...
— Santo Deus! — A exclamação foi quase um sussurro, mas denotava horror. Bloodgood lutou para ficar de pé. O rosto empalidecera repentinamente e os olhos brilhavam como dois discos de metal polido. O cigarro caiu dos lábios, mas ele o ignorou. — Que me estão tentando dizer? Todos três foram envenenados por água...
— Por que isso o espanta tanto — mesmo se fosse verdade? — indagou Vance com voz firme, quase indiferente, olhando para o homem. — De fato, eu ia-lhe perguntar, após haver citado os detalhes das ocorrências de ontem, se o senhor teria alguma explicação a sugerir.
— Não... não. Nenhuma. — Havia um tremor na voz de Bloodgood e ele respirava com dificuldade. — Eu... eu fiquei nervoso com a repetição do fator água, pois fui eu que mandei que ela fosse servida a Lynn.
Vance sorriu friamente e deu um passo à frente:
— Esta desculpa foi fraca, Sr. Bloodgood. — Havia um tom cortante em sua voz. — O senhor terá de arranjar uma justificativa melhor para sua perturbação emocional.
— Mas como, se ela não existe? — protestou Bloodgood, procurando outro cigarro no bolso.
Vance continuou sem descanso:
— Item um: o senhor esteve presente ao jantar dos Llewellyns ontem à noite, e teve acesso às garrafas da casa. Item dois: só a garrafa da Srta. Amélia não foi envenenada. Item três: o senhor a pediu em casamento. Item quatro: o senhor é químico. Considere estes quatro itens à luz do fato de que foi também o senhor que ordenou água pura para Lynn no Cassino. O senhor tem algo a dizer?
Bloodgood se havia recomposto enquanto Vance falava. Engoliu várias vezes e umedeceu os lábios com a língua. Os braços estavam pendurados ao longo do corpo, e Bloodgood dava a impressão de que todos os músculos do corpo estavam tensos. Levantou a cabeça e olhou para Vance.
— Compreendo perfeitamente a situação — disse com voz rouca. — Apesar do fato de que nenhum veneno foi na verdade comprovado, acho que já percebo os acontecimentos. Não tenho explicação a dar, nem mais o que dizer. O senhor pode tomar a atitude que desejar. — Sorriu misteriosamente. — Faites votre jeu, monsieur.
Vance estudou o homem sem mudar a expressão.
— Acho que guardarei minhas fichas até a próxima volta da roda, Sr. Bloodgood — disse. — O jogo não acabou, como sabe. E tenho novo sistema de ação. — Fez um breve aceno com a cabeça e virou-se. — O senhor está livre para visitar a Srta. Amélia.
— Espero firmemente que seu novo sistema seja melhor do que a maioria — murmurou o homem, e saiu sem outra palavra.
Vance sentou-se novamente e, pegando outro cigarro, começou a fumar pensativamente.
— Sujeito estranho — disse. — Disse-me algo muito importante, mas — sei lá! — não tenho certeza do que seja. Ele foi racional e honesto, até que citei água. A idéia de veneno não o aborreceu, mas a idéia de água, sim. Uma espécie de hidrofobia psíquica. Muito misterioso. Ele está pensando algo — uma coisa vital para a nossa compreensão do caso. Mas não há modo de fazê-lo falar. Conheço o tipo. Ele praticamente ofereceu-se à prisão, mas não respondeu a minhas perguntas. Medo deve ter sido isto. Sabia-se encurralado, mas também tinha conhecimento de que não havia razão palpável para tal. Um jogador astuto. Um calculador mental rápido e um jogador de porcentagem.
Vance balançou a cabeça.
— Não é uma idéia confortadora. Estamos lidando com sutilezas, Markham, e nossos olhos estão vendados. Tateamos no escuro. Mas ele nos disse algo! E temos de descobrir o que é. É a chave. Esperemos. Chegará a hora. Spes fovet, et fore cras semper ait melius.
XII - VANCE FAZ UMA VIAGEM
(Domingo, 16 de outubro — 13:30 horas)
Vance levantou-se e dirigiu-se à mesa.
— Markham — disse, seriamente — só há um modo de atacar o problema. Precisamos manter os olhos fixos nos fatos físicos do caso e ignorar todo o resto que nos possa desviar. É por isso que quero que você me ponha imediatamente em contato com seu perito em tóxicos.
Markham enrugou a testa: • — Hoje?
— Sim. — Vance falava enfaticamente. — Hoje à tarde, se possível.
— Mas é domingo, Vance — resmungou Markham. — Pode ser impossível. Contudo, verei o que pode ser feito.
Tocou para chamar Swacker.
— Veja se consegue localizar o Dr. Adolph Hildebrandt — instruiu. — Já deve ter ido para casa; telefone para lá.
Swacker saiu.
— Hildebrandt é um bom homem — disse Markham a Vance. — Um dos melhores do país. Ê o tipo esforçado do alemão, cauteloso e altamente acadêmico, mas dá sempre uma solução. Se não fosse por ele, jamais teríamos conseguido condenar Waite e Sanford, lembra-se? Pode ser que não esteja em casa, sendo domingo. Porém...
Uma campainha tocou e Markham atendeu ao telefone. Depois de rápidas palavras, desligou e virou-se para Vance:
— Estamos com sorte. Ele está em casa — mora na Rua 84 — e nos espera à tarde.
— Pode ser que isso ajude — murmurou Vance. — Mas pode ser também que não. De qualquer modo, é nosso único ponto de partida. Puxa! Só queria saber o que Bloodgood está pensando. — Suspirou e deu uma tragada funda. — Bem, descansemos um pouco. Sei onde há uma ótima sopa de tartaruga e um grande filé. Vamos, amigo.
Entramos no carro e Vance nos levou a um pequeno restaurante francês na Rua 72, perto do Riverside Drive. Após a sobremesa de creme de menthe, fomos à casa do Dr. Hildebrandt.
O médico era um homem rotundo, completamente careca, com rosto de lua, orelhas salientes e olhos azuis desbotados. Vestia um paletó velho, calças largas e chinelos de feltro. A camisa era aberta na garganta, e as meias de lã, de desenhos fantásticos, caíam-lhe em dobras nos tornozelos. Fumava um enorme cachimbo curvado.
Ele_ mesmo atendeu à porta, e nos fez entrar em uma sala de estar estreita e entupida de mobília do século dezoito. Apesar da maneira algo distante e áspera, era agradável e gentil, e nos cumprimentou com grave cortesia.
Vance imediatamente entrou no assunto.
— Estamos aqui, doutor, — disse — para lhe fazer algumas perguntas sobre venenos e seus efeitos. Estamos enfrentando um problema sério e aparentemente obscuro, em relação à morte da Sra. Llewellyn ontem à noite...
— Ah, sim. — O Dr. Hildebrandt tirou lentamente o cachimbo da boca. — Doremus me telefonou hoje de manhã e eu presenciei a autópsia. Fiz uma análise do estômago para ver se achava beladona, mas não encontrei nada. Amanhã farei completa análise química dos órgãos...
— Estamos muito interessados em saber — disse Vance — se um veneno poderia ter causado a morte e não ser evidente na análise, e também como o veneno, nesse caso, poderia ter sido administrado.
O Dr. Hildebrandt acenou com a cabeça.
— Talvez possa ajudá-lo, não sei. A toxicologia é uma ciência complexa. Existem muitas fases sobre as quais ainda nada se sabe.
Voltou ao cachimbo e deu várias baforadas, como se estivesse arrumando as idéias. Depois falou de modo didático.
— O senhor deve saber que o veneno, no sentido biológico, não existe no corpo se a substância for inteiramente insolúvel, pois, neste caso, ele resiste à absorção da corrente sangüínea. O corolário é que, quanto mais solúvel a substância, mais rapidamente será absorvida pela corrente sangüínea e agirá sobre o corpo.
— E sobre a diluição de um veneno na água, doutor? — perguntou Vance.
— A água acelera a absorção de um veneno e aumenta sua atividade. Porém, no caso de um corrosivo, a água naturalmente reduz o efeito do tóxico. Por outro lado, o estado do estômago deve ser considerado no caso dos venenos tomados pela boca. Se há alimento no estômago na hora da ingestão, a absorção do veneno é mais lenta; se não há, a absorção e o efeito do veneno são mais rápidos.
— No caso Llewellyn o estômago deve ter estado relativamente vazio — disse Vance.
— Estava. E podemos supor que, se um veneno foi absorvido pelo estômago, o efeito foi rápido.
— Acho que sabemos a hora aproximada em que o veneno foi tomado — afirmou Vance — mas estamos interessados em estabelecê-la cientificamente.
O Dr. Hildebrandt concordou.
— Sim, a hora é muito importante quando há suspeita de crime. Mas sua determinação não é fácil porque, nesses casos, não há evidência real quanto ao modo e às condições em que o veneno foi ingerido. O tempo da administração depende inteiramente do tipo de veneno e dos sintomas observados. Quase todos os venenos comuns agem rapidamente, embora possa lembrar várias exceções psicológicas nas quais ação do veneno foi retardada por horas após a ingestão. Porém, falando geralmente, os sintomas de venenos tomados por via oral aparecem dentro de uma hora. Na maioria dos casos, se o estômago está vazio, os sintomas aparecem dez a quinze minutos após ser administrado o veneno. Isso é particularmente verdadeiro no caso da beladona, ou atropina.
— E quanto ao veneno — perguntou Vance — tomado oralmente e cuja presença, não obstante, não é descoberta no estômago mais tarde?
O Dr. Hildebrandt pigarreou, doutoralmente:
— Tal condição pode ser encontrada com certo número de venenos tomados via oral. Significa, simplesmente, que o organismo absorveu todo o veneno do estômago. Mas, naturalmente, haverá depósitos do veneno no sangue e nos tecidos. Infelizmente, em muitos e muitos casos de envenenamento criminoso, só o estômago é dado ao toxicólogo para exame químico. Descobertas só do estômago não são conclusivas, pois, como eu disse, a rápida absorção do veneno pode não deixar traços naquele órgão. Naturalmente, o toxicólogo a quem só dão o estômago para exame pode supor que qualquer veneno que lá encontre pode ser considerado um excesso do veneno realmente ingerido e absorvido pelo organismo. Porém, isso não é, certamente, uma prova direta. Por isso é que os outros órgãos de qualquer pessoa de quem suspeitam haja morrido de envenenamento deveriam ser quimicamente analisados: fígado, rins, intestinos, talvez mesmo o cérebro e a coluna espinal. Quando o veneno penetra no organismo oralmente, é inicialmente absorvido através do estômago. Depois, entra na circulação do sangue. E finalmente é depositado nos tecidos do fígado, rins e outros órgãos. O senhor compreende, naturalmente, que venenos podem penetrar no corpo por outros caminhos além da boca; e, em tais casos, claro que não haverá sinais do veneno no estômago.
— Ah! — Vance inclinou-se para a frente. — Esta é uma das coisas que eu gostaria de saber. Em vista do fato de a Sra. Llewellyn haver morrido muito pouco tempo após tomar o veneno, e de não haver traços dele em seu estômago, queria perguntar-lhe por que outros meios, além da ingestão, esse veneno — presumivelmente beladona — pode haver sido administrado.
. O Dr. Hildebrandt olhou pensativamente o espaço:
— Pode haver sido administrado parenteralmente, isto é: injeção direta na corrente sangüínea. Ou ser absorvido através das membranas mucosas do nariz ou através das conjuntivas. Em qualquer caso, naturalmente não seriam descobertos traços dele no estômago.
Por um momento Vance fumou meditativamente; finalmente, fez outra pergunta:
— Não existe caso em que o veneno pode ser tomado oralmente e produzir a morte, e ainda assim não deixar traços em qualquer órgão do corpo?
O doutor baixou os olhos e depois encarou Vance.
— Há venenos que, quando absorvidos pelo corpo, não têm ação química no sangue, e há outros que não se transformam em compostos insolúveis quando em contato com os tecidos. Esses venenos são rapidamente eliminados do sistema. Se uma vítima de envenenamento vive tempo suficientemente longo após tomar tal veneno, todos os vestígios da droga podem desaparecer do corpo. Mas não há indício de que isso tenha acontecido com a Sra. Llewellyn. Nela, os sintomas violentos de envenenamento surgiram logo após a indução e, segundo entendo, não houve processo de eliminação.
— Mas — continuou Vance — mesmo nos casos em que não se acha veneno em qualquer órgão, não haveria mudanças orgânicas no corpo que indicassem a natureza do veneno tomado?
— Em certos casos, sim. — O Dr. Hildebrandt olhou para o vácuo. — Essas indicações, contudo, não são muito dignas de crédito. Entenda, vários tipos de doenças podem produzir efeitos nos órgãos similares aos produzidos por certos venenos. Se, porém, as lesões encontradas forem idênticas às produzidas por um veneno que a pessoa supostamente recebeu, pode-se supor que elas são resultado do veneno. Por outro lado, alguns casos foram por mim observados, onde se sabia exatamente o veneno ingerido, e contudo os órgãos não mostravam qualquer das lesões que se deveria esperar. No famoso caso Heidelmeyer, por exemplo, sabia-se que a morte fora causada por arsênico, porém nem o estômago nem os intestinos estavam irritados, e a membrana mucosa estava ainda mais pálida do que o normal.
Vance sorriu desanimadamente e balançou a cabeça.
— Vejo que a toxicologia não é uma ciência que se possa chamar de matemática. Contudo, deve haver alguma forma de atingir uma conclusão definitiva, partindo de certas condições. Por exemplo, embora nenhum traço de veneno tivesse sido achado no sistema, não é possível determinar, da aparência post-mortem e dos sintomas de uma pessoa, qual o veneno tomado?
— Isso — retrucou o doutor — é um problema tão médico como toxicológico. Porém, direi isto: os sintomas de muitas doenças intimamente simulam os sintomas de certos tipos de envenenamento. Por exemplo, os sintomas de gastrenterite, da cólera, da úlcera do duodeno, uremia e acidose aguda são duplicados pelos sintomas de envenenamento por arsênico, acônito, digitalina, iodo, mercúrio, e os vários ácidos corrosivos e álcalis. As convulsões que acompanham o tétano, a eclampsia puerperal e a meningite são também causadas por cânfora, cianido e estriquinina. Pupilas dilatadas, que ocorrem nas doenças que produzem atrofia óptica, ou fraqueza do nervo óptico motor são também motivadas pelo grupo da beladona, cocaína e gelsemio, enquanto a contração da pupila pode ser também causada por ópio, morfina e heroína. Ópio, paraldeído, dióxido de carbono e os barbitais produzem coma, como também hemorragia cerebral, epilepsia e lesões cerebrais. O delírio encontrado em casos de doenças cerebrais orgânicas e nefrite pode ser freqüentemente duplicado pela administração de atropina, cocaína e vários outros venenos. Nitrobenzina, anilina, ópio e seus derivados produzem cianose, da mesma forma que as doenças dos sistemas cardíaco e respiratório. A paralisia decorre da ingestão de cianido e monóxido de carbono, mas é também produzida pelo tumor cerebral e apoplexia. Há ainda o problema de respiração. O ópio provoca respiração lenta, do mesmo modo que a uremia e a hemorragia cerebral. E o grupo de venenos da beladona produz respiração rápida, como a normalmente encontrada na histeria e lesões da medula.
— Puxa! — sorriu Vance. — Quanto mais nos aprofundamos, mais distante fica a solução.
O doutor sorriu largamente.
— O senhor conhece Goethe, não? Quanto mais o homem conhece, menos sabe...
— Isso não ajuda muito. Quero saber mais, não menos
— suspirou Vance.
— A toxicologia não é de todo uma ciência incorrigível
— disse o doutor, bem-humorado. — Se um veneno é achado nos órgãos de um morto, e a patologia do caso corresponde exatamente aos sintomas produzidos por aquele veneno, pode-se aceitar como certo que a pessoa morreu daquele veneno. Vance assentiu.
— Sim, compreendo. Mas, se bem o entendi, a ausência de qualquer veneno determinável nos órgãos não significa que a morte não foi devida à administração do veneno. É possível que o veneno possa realmente estar nos órgãos analisados e resistir à análise química?
— Oh, sim. Há várias substâncias tóxicas que a ciência ainda não sabe determinar. Além disso, o senhor não deve esquecer que há venenos que, quando em contato com certos elementos químicos do corpo humano, se convertem em substâncias inofensivas que normalmente se podem achar no corpo.
— Então é possível envenenar alguém deliberadamente, sem medo de deixar algum vestígio do método do assassínio?
O doutor inclinou levemente a cabeça.
— Sim, é possível. Se se puder introduzir vitoriosamente sódio comum no estômago...
— Sim, eu sei — interrompeu Vance. — Mas a perfuração das paredes estomacais pela combustão do sódio não é o tipo de coisa em que pensei. Queria perguntar o seguinte: há substâncias venenosas que podem produzir a morte e não deixar traços?
— Sim, há — replicou o doutor, lentamente, retirando novamente o cachimbo da boca, — Por exemplo, há muitos venenos vegetais que não produzem lesão específica nem são quimicamente identificáveis. E certos venenos orgânicos podem ser transformados em elementos normalmente existentes no corpo. Ademais, certos venenos voláteis podem estar inteiramente invisíveis quando o toxicólogo extrai os órgãos para exame. Não me refiro aos ácidos minerais que podem causar corrosão e serem eliminados do sistema antes que chegue a morte, pois acho que esse tipo de veneno não lhe interessa.
— Eu pensava especificamente — disse Vance — em algum veneno facilmente obtido, que pudesse ser dado em um copo dágua sem ser notado pela vítima.
O Dr. Hildebrandt pensou um instante, depois sacudiu a cabeça gravemente.
— Não. As drogas e elementos químicos que estou imaginando não satisfariam a todas as condições que o senhor impôs.
— Mas, doutor, — insistiu Vance — não é possível que um novo veneno possa ter sido descoberto recentemente, e então satisfizesse a minhas exigências?
— Claro que é possível — admitiu o médico. — Constantemente se descobrem venenos.
Vance calou-se um momento, e depois perguntou:
— Uma dose letal de atropina ou beladona em um copo dágua seria facilmente percebida por quem a bebesse?
— Oh, sim. A água teria um gosto amargo. — O médico olhou para Vance. — O senhor tem razões para crer que o veneno do caso Llewellyn foi dado com água?
Vance hesitou antes de responder.
— Ainda estamos especulando sobre esse ponto. O fato é que duas pessoas, além da Sra. Llewellyn, foram envenenadas ontem à noite, mas se recobraram. Ambas haviam bebido água antes de desfalecer. E a garrafa ao lado da cama da Sra. Llewellyn estava vazia quando chegamos.
— Entendo — murmurou o médico, fazendo um gesto com a cabeça. — Bem, talvez após minha análise química dos órgãos amanhã, eu lhe possa dizer mais.
Vance levantou-se.
— Estou profundamente agradecido ao senhor. É o único assunto em que penso agora. O caso parece bem confuso. Quando deverá estar pronto seu laudo?
O médico levantou-se e acompanhou-nos à porta.
— É difícil dizer. Começarei a trabalhar cedo de manhã, e se tiver sorte, poderei terminar o relatório amanhã à noite.
Partimos e Vance nos levou direto a seu apartamento. Estava calado e parecia pensar muito. Sua perturbação era visível, e Markham não tentou conversar até que nos instalamos na biblioteca. Currie entrou e acendeu a lareira, e Vance mandou servir conhaque Napoléon. Markham então lhe fez a primeira pergunta, desde que deixáramos a casa do médico.
— Você aprendeu alguma coisa; isto é, teve alguma idéia nova?
— Nada definido — respondeu Vance tristemente. — É estranho este caso. Às vezes sinto estar tocando em algo vital, que depois me escapa. Várias vezes esta tarde, à proporção que o médico falava, sentia que me dizia algo que eu deveria saber... mas não sabia o quê. Ah, Markham, se eu fosse psíquico!
Suspirou e aqueceu o conhaque entre as mãos, inspirando o aroma que ele exalava.
— Mas há um motivo sempre presente nos acontecimentos da noite passada — a água.
Markham o olhou pensativamente.
— Observei que várias perguntas suas focalizaram esse tema.
— Sim, claro. Era necessário. A água está presente em todos os atos desse drama diabólico. Lynn pede um uísque e insiste na água pura, mas não a bebe quando ela lhe é trazida. Mais tarde Bloodgood manda que ela lhe seja servida, e Kinkaid manda o criado buscar a água no seu escritório. Depois, o próprio Kinkaid quer um gole dágua, e a garrafa está vazia; ele a manda ao bar para encher. A garrafa de Virgínia está vazia quando chegamos à casa. Amélia toma o último copo dágua da garrafa da mãe e perde os sentidos. Sua própria garrafa é depois achada vazia — embora ela tenha explicado esse ponto. Depois Bloodgood fica nervoso e silencia, à simples menção de água. Em todo lado — água! Francamente, Markham, é como uma charada horrenda...
— Você acha que as vítimas foram todas envenenadas com água?
— Se eu achasse isso, o problema seria mais simples. — Vance fez um gesto desanimado com a mão. — Mas não há um fio principal que ligue essas várias repetições de água. Lynn bebeu uísque e água. Virgínia poderia, claro, ter sido envenenada com água, mas se o veneno que tomou fosse beladona ou atropina — como indicado pelos sinais post-mortem — teria provado o veneno e não esvaziaria toda a garrafa. A única das três vítimas que podemos afirmar ter sido envenenada por água é Amélia. Mas até ela não provou nada desviado, e tinha esvaziado a própria garrafa no início da noite, sem qualquer efeito desagradável. É tudo muito estranho. É como se a água tivesse sido deliberadamente introduzida no caso para nos levar a caminho errado. Qualquer assassínio planejado tão sutilmente como esse não apresenta um sinal repetido a toda hora, a não ser que propositadamente. Alguma porcentagem dele pode ser ocasional, mas não toda. Não pode ser. E a perturbação de Bloodgood quando citei água... Temos uma chave, Markham, mas... — inferno! — não conseguimos achar a porta...
Fez um gesto desesperançado.
— Água. Que idéia tola. Se houvesse algo além da água! Água não fere ninguém, a não ser quem se afoga. Por que água, Markham? Duas partes de hidrogênio e uma de oxigênio... fórmula simples, elementar...
Subitamente Vance parou de falar. Os olhos estavam estáticos, e ele automaticamente pôs o cálice de conhaque na mesa. Inclinou-se para a frente na cadeira, e ficou de pé.
— Meu Deus! — Foi até Markham. — Água não é necessariamente H2O. Estamos tratando do desconhecido. Sutilezas. Poderia ser, claro. Devem esperar que nos detenhamos na pista da água. Temos um químico, um médico, um jogador-financiador, livros de toxicologia, ódios, invejas, um complexo de Édipo, e três casos de envenenamento — e água por toda a parte. Ouça Markham, ocupe-se com alguma coisa algum tempo. Leia, pense, durma, jogue paciência — qualquer coisa. Só não fale.
Virou-se rapidamente a dirigiu-se a uma estante onde mantinha revistas e folhetos científicos. Por meia hora revirou-os, parando aqui e ali para ler algum parágrafo ou artigo. Depois, recolocou as revistas e os folhetos na estante e chamou Currie.
— Faça minha valise — pediu ao velho mordomo. — Coisa pouca e informal. Para uma noite. Depois, ponha-a no carro. Vou dirigir.
Markham levantou-se e olhou para Vance.
— Escute aqui! — Mostrava-se aborrecido. — Aonde vai você?
— Fazer uma pequena viagem — replicou Vance, com um sorriso enigmático. — Estou à procura da sabedoria. A pista da água me chama. Estarei de volta de manhã, mais sábio, mais triste — ou ambos.
Markham olhou-o um instante.
O que tem em mente? — perguntou.
— Talvez apenas um sonho fantástico, meu amigo — sorriu. Markham conhecia Vance bem demais para tentar extrair-lhe alguma informação adicional.
— Seu destino é também secreto? — perguntou, com irritação.
— Não, não. Vance foi até a mesa e encheu a cigarreira. — Não é secreto: vou a Princeton.
Markham o fixou espantado. Depois deu de ombros e brincou:
— Logo você, que estudou em Harvard!
XIII - UMA DESCOBERTA ESPANTOSA
(Segunda-feira, 17 de outubro — 12:00 horas)
Era quase meio-dia quando Vance voltou a Nova York. Eu estava ocupado com trabalho de rotina quando ele entrou na biblioteca, e mal me cumprimentou quando foi para a sala. Pude ver claramente, por seu modo concentrado e movimentos ansiosos, que algo urgente lhe passava pela mente. Alguns minutos depois ele voltou, com um paletó cinzento xadrez, um chapéu verde Homburg e pesadas botas de cano curto.
— Está um dia horrível, Van — observou. — O ar é de chuva, e nós vamos ao interior. Guarde sua contabilidade e venha. Mas preciso ver Markham primeiro. Telefone para o escritório e diga que estarei lá em vinte minutos — ele é um sujeito cem por cento.
Enquanto eu entrava em contato com o escritório do procurador distrital, Vance chamou Currie e deu-lhe instruções sobre o jantar.
Markham estava sozinho quando chegamos ao edifício do Tribunal.
— Sustive meu desapontamento esperando vocês — cumprimentou. — Qual é o relatório?
— Caro Markham! — protestou Vance, atirando-se numa cadeira. — Preciso fazer um relatório? — Ficou sério e olhou refletidamente para Markham. — A verdade é que nada tenho praticamente a relatar. Foi uma viagem frustrante.
— Por que você foi a Princeton? — perguntou Markham.
— Para visitar um velho conhecido — replicou Vance.
— O Dr. Hugh Scott Taylor — um dos grandes químicos de nossos dias. Ele é diretor do Departamento de Química da Universidade. Passei algumas horas ontem à noite com ele, inspecionando o Laboratório Químico Frick.
— Apenas uma visita de inspeção? — indagou Markham, observando Vance astutamente. — Ou algo específico?
— Não. Não geral. — Vance tragou. — Algo muito específico. Eu estava interessado em água pesada.
— Água pesada! — Markham sentou duro na cadeira.
— Encontrei em algum lugar uma referência à água pesada...
— Claro. Os jornais têm publicado muita coisa sobre o assunto. Descoberta fascinante. Um dos grandes acontecimentos da química moderna. Tema fascinante.
Sentou-se e esticou as pernas.
— A água pesada é um composto no qual o átomo de hidrogênio pesa duas vezes mais que o átomo de hidrogênio da água comum. É um líquido em que pelo menos noventa por cento das moléculas consistem de oxigênio combinado com o recentemente descoberto hidrogênio pesado. A fórmula é H2H2O, embora seja agora cientificamente conhecida como D2O. O que há de interessante nele é que tem a aparência e o gosto de água comum. Na verdade, há cerca de uma parte de água pesada em cinco mil partes de água comum, mas, devido à perda no processo de extração, exige quase dez mil partes de água pura para produzir uma parte de água pesada. Em certos laboratórios já trataram trezentos galões de água comum para produzir uns trinta gramas de água pesada. A descoberta da água pesada foi feita pelo Dr. Harold C. Urey, da Universidade de Columbia. Mas grande parte da pesquisa prática desse composto fantástico foi executada pelos cientistas da Universidade de Princeton. O aparelho do Laboratório Químico Frick é o primeiro projetado para a produção de água pesada em qualquer escala apreciável. Quando digo "escala apreciável" falo relativamente, pois o Dr. Taylor me disse ontem que a produção diária, mesmo lá, é menos de um centímetro cúbico. Eles esperam aumentar a produção para cerca de uma colher de chá por dia. Atualmente, Princeton possui menos de meio litro desse precioso fluido. O custo de produção é enorme e, devido à procura de amostras do líquido por cientistas do país todo, seu preço é de mais de cem dólares por centímetro cúbico. Uma colher de chá custaria mais de quatrocentos dólares, e um quarto, cerca de cem mil dólares... Olhou para Markham e continuou.
— Há grandes possibilidades comerciais desse novo artigo. O Dr. Taylor me disse que há uma firma comercial que já o está vendendo.
Markham estava profundamente interessado, e não retirava os olhos de Vance.
— Você então acha que a água pesada é a resposta para os envenenamentos de sábado à noite?
— Pode ser uma das respostas — retrucou Vance devagar — mas duvido que seja resposta definitiva. Há muitas coisas que impedem seja essa a fonte de toda a explicação. Para começar, o custo da água pesada é quase proibitivo, e há pouca disponibilidade do produto, o que não justifica a água presente a todo momento no caso Llewellyn.
— Mas e seu efeito tóxico no sistema humano? — perguntou Markham.
— Ah, exatamente! Infelizmente, não se sabe os efeitos que quantidades liberais da água pesada, tomadas internamente, teriam no ser humano. Na verdade, os pequenos volumes obtidos ainda não possibilitaram experimentos nesse sentido. Só se pode especular. O professor Swingle, de Princeton, provou que a água pesada é letal para pequenos peixes de água salgada; o crescimento de mudas na água pesada é retardado ou inteiramente interrompido, e esse efeito no funcionamento do protoplasma levou alguns pesquisadores de San Francisco à hipótese de que as indicações de velhice e senilidade são causadas pelo acúmulo normal de água pesada no corpo.
Vance fumou um instante e prosseguiu:
— Porém, não aceito que essas especulações tenham alguma conotação direta com nosso problema. Por outro lado, estou inclinado a pensar, Markham, que temos a intenção de trabalhar segundo essas linhas. De qualquer forma, elas nos podem levar à verdade.
— Que quer dizer com isso? — indagou Markham.
— Conversei com um dos brilhantes jovens assistentes do Dr. Taylor — o Sr. Martin Quayle — um químico excepcional, consciencioso e criativo, elemento de valor, enfim. Pessoalmente, porém, eu não confiaria demais nele. É de natureza incomumente ambiciosa...
— Que tem esse sujeito a ver com minha pergunta? — retrucou Markham.
— Quayle foi colega de classe de Bloodgood. Dois jovens químicos idealistas. Muito bons amigos.
Markham estudou Vance um momento, depois sacudiu a cabeça.
— Acho que há uma vaga conexão em algum lugar com o que você me disse agora — arriscou — mas ainda não vejo que ligação possa ter com o problema que estamos tentando resolver.
— Nem eu — admitiu Vance alegremente. — Simplesmente expus o fato, à falta de algo mais definido.
Markham subitamente se irritara. Deu um soco na mesa.
— Sendo assim, que ganhou você em ir a Princeton?
— Não sei — replicou Vance suavemente. — Reconheço estar desapontadíssimo. Esperava muito mais, porém não estou totalmente desconsolado. Há um tema ardiloso em relação à canção da água, e espero saber mais sobre ele hoje à noite. Vou fazer outra viagem à tarde — desta vez, ao interior. Estou contando com a idéia de Quayle para guiar minhas pegadas vacilantes.
Markham inspecionou Vance espertamente, depois sorriu-lhe cansadamente:
— A incoerência do oráculo de Delfos, o adivinhador da bola de cristal. Já me deveria ter acostumado... Então você vai ao interior?
— Sim — murmurou Vance docemente — lá para os lados de Closter...
Markham saltou.
— O quê? — gritou.
— Caro Markham, não me assuste assim. Você tem energia demais. — Vance suspirou. — Será que você pediria a Swacker para descobrir as companhias que fornecem água e energia elétrica às casas de Closter e seus arredores?
Markham apertou os lábios, depois chamou o secretário e lhe transmitiu o pedido de Vance.
Quando Swacker saiu, Vance virou-se para Markham e continuou:
— Quando tiver os nomes, você me escreveria uma carta bem amável de apresentação aos gerentes? Estou procurando informações...
— Que informações?
— Se quer mesmo saber — disse Vance tranqüilamente — vou pesquisar a quantidade de água e eletricidade consumida por certo cidadão importante dos arredores de Closter.
Markham sentou-se novamente.
— Meu Deus! Você acha que Kinkaid...?
— Meu amigo! — interrompeu Vance. — Não acho nada, é muito esforço... — Suspirou e nada mais disse.
Alguns minutos depois Swacker trouxe a informação que Closter e arredores eram supridos pela Cia. de Água Valley Stream e pela Cia. Englewood Power and Light, ambas com escritórios em Englewood.
Markham ditou as cartas solicitadas por Vance, e dez minutos depois nos dirigíamos a Englewood, a alguns quilômetros de Closter.
Englewood é perto de Nova York e, graças à técnica de motorista de Vance, lá chegamos em menos de meia hora. Vance perguntou o caminho para a Cia. de Água Valley Stream e, quando chegamos, mandou entregar a carta ao gerente. Fomos recebidos por um homem agradável e sério, que devia ter quarenta anos — um Sr. McCarty — em um pequeno escritório.
— Em que lhe posso ser útil, senhor? — perguntou, após os apertos de mão. — Teremos prazer em ajudar como for possível.
— Estou interessado — disse-lhe Vance — em saber o volume de água consumido pelo Sr. Richard Kinkaid, perto de Closter.
— Isso é fácil de saber. Dirigiu-se a um arquivo de aço e, após um momento, tirou de lá um pequeno cartão. Voltou à mesa, olhou para o registro e levantou as sobrancelhas com surpresa.
— Ah, sim — disse, um minuto após, como se de repente se lembrasse de algo. — Recordo-me das circunstâncias. O Sr. Kinkaid tem um registro de uma polegada e usa muita água. Sua taxa é baseada na tabela que varia entre 40 000 e 400 000 pés cúbicos de água anuais.
— E o Sr. Kinkaid tem apenas uma cabana de tamanho médio — ponderou Vance.
O Sr. McCarty assentiu.
— Sim, eu sei. A quantidade de água gasta pelo Sr. Kinkaid é suficiente para uma fábrica. O grande consumo foi observado por mim há mais de ano. Não podia entender o volume, e investiguei, mas descobri que o freguês estava satisfeito, e portanto não tivemos alternativa, senão continuar o serviço.
— Diga-me, Sr. McCarty — prosseguiu Vance — há alguma variação na quantidade de água consumida pelo Sr. Kinkaid segundo a época do ano? Isto é, ele gasta mais na primavera e no verão e menos no inverno, quando a cabana está fechada?
— Não — informou o gerente, olhando para os números.
— Não há praticamente variação. Segundo o cartão, o consumo de água é o mesmo no inverno e no verão.
Olhou para Vance:
— O senhor acha que devemos investigar mais o assunto?
— Não, não — respondeu Vance — Há quanto tempo esse consumo excessivo se verifica?
O gerente observou novamente o cartão, virou-o e examinou os números no verso.
— As ligações de água foram instaladas há mais de ano
— em agosto, exatamente — e o consumo excessivo começou quase imediatamente.
Vance levantou-se e estendeu a mão ao gerente.
— Muito grato, senhor. Era tudo que precisava saber. Aprecio sua gentileza.
Dos escritórios da Cia. de Água Valley Stream, fomos para os da Englewood Power and Light, alguns quarteirões adiante. Novamente Vance mandou entregar a carta ao gerente — Sr. Browning — e ele nos recebeu logo. Quando Vance lhe disse que queríamos verificar o consumo de Kinkaid de energia, ele olhou curiosamente.
— Não temos o hábito, o senhor compreende, de fornecer informações desta natureza — disse, de modo conservador. — Mas, dadas as circunstâncias, acho que devo avisá-lo de que o Sr. Kinkaid — pessoa muito conhecida aqui — combinou há mais de ano comigo o fornecimento de energia suficiente que atendesse a suas necessidades — as quais, devo acrescentar, excediam de muito o consumo normal de uma casa ou cabana de pesca daquele tamanho. Combinamos um suprimento de 500 kw, ao invés dos habituais 5 kw.
— Grato pela informação, senhor. — Vance ofereceu um cigarro ao Sr. Browning e ele mesmo tirou um. — Mas quando o Sr. Kinkaid combinou com o senhor esse grande suprimento de força, ele lhe disse como o usaria?
— Eu naturalmente lhe fiz essa pergunta — retrucou o gerente — e ele explicou que necessitava daquele volume para fazer experiências.
— O senhor não insistiu mais?
— O Sr. Kinkaid me informou que o trabalho experimental a ser feito era de natureza mais confidencial, e eu então tive de me satisfazer com isso. O senhor entende que nosso objetivo é dar o melhor serviço possível ao público.
— Sua atitude, senhor — disse Vance — é inteiramente certa. Gratíssimo pelas informações confidenciais.
O Sr. Browning levantou-se:
— Lamento não lhe poder dizer mais nada, exceto se o sr. quiser saber o montante exato de energia consumido.
— Não, obrigado — disse Vance, dirigindo-se à porta. — O senhor me falou tudo de que precisamos saber agora. — E saiu.
Quando entramos no carro, Vance sentou-se ao volante e ali ficou alguns instantes, abstraidamente. Depois tirou a cigarreira e, firmemente, acendeu outro Régie.
— Acho, Van, — disse lentamente — que vamos até a cabana de Kinkaid. Sei mais ou menos onde é. Se nos perdermos, poderemos perguntar.
Virou o carro e voltamos em direção ao rio Hudson. Quando atingimos a rodovia 9-W, Vance tomou o norte, ao longo das Palisades.
— Deve haver uma estradinha nos próximos quilômetros, e talvez uma seta para nos orientar — disse. — Vigie a estrada. Se perdermos essa seta, teremos de ir a Closter e indagar o rumo de lá.
Isso não foi preciso, pois cerca de quatro quilômetros depois chegamos a um poste rústico de orientação, à entrada de um caminho particular para carros afastado do rio, o que nos fez concluir que a cabana de caça de Kinkaid era em algum lugar além.
Virando nesse caminho, em instantes estávamos em um trecho intensamente coberto de árvores. Isso era Bergen County, um lugar entre o condado de Closter e a fronteira do Estado de Nova York, perto do lugar chamado Rockleigh, em Nova Jersey. Seguimos esse caminho particular talvez meio quilômetro, ei subitamente atingimos uma clareira, em cujo centro havia uma cabana de pedra de dois andares, que poderia ter sido construída originalmente para fins residenciais. A aparência era de total desolação. As janelas tinham sido cobertas de tábuas e havia um ar geral de desolação na pequena entrada e na porta maciça que era a entrada principal da cabana. Atrás da casa, à direita, uma garagem. Vance estacionou à esquerda, e saltamos.
— Parece um pouco abandonada, não, Van? — comentou, ao nos aproximarmos da porta da frente.
Puxou a antiquada maçaneta de latão várias vezes, mas, embora escutássemos a campainha lá dentro, ninguém respondeu.
— Acho que não há ninguém — disse ele. — E eu esperava tanto poder entrar. Vejamos o que nos reservam os fundos da casa.
Caminhamos pela trilha, mas, ao invés de ir diretamente aos fundos da cabana, Vance continuou para a garagem. A porta estava ligeiramente aberta, mas dela pendia pesado cadeado. Vance o contemplou e depois olhou para dentro da garagem.
— Sinais de vida recente — murmurou. — Não há carro, mas tampouco poeira ou ferrugem no cadeado. Ademais, há marcas de pneus no caminho e traços de óleo fresco no chão de cimento. Conclusão: o habitante ou habitantes da cabana foram embora há pouco. Qual o destino e a hora em que ele ou eles voltarão, não sabemos.
Fixou a elevação traseira da cabana e fumou silenciosamente.
— Será... — murmurou por fim. — Acho que pode ser feito. Van, que tal "bancarmos" os arrombadores?
Aproximou-se do pequeno pórtico de tela nos fundos da casa e subiu o pequeno lance de degraus de madeira que levava a ele. A porta não estava trancada e entramos no pórtico. Havia uma porta que levava à cabana, e, ao lado dela, uma pequena janela de copa. Ambas, porém, trancadas.
— Espere — mandou Vance, e desapareceu pelos degraus do pórtico. Momentos depois voltou com um formão da caixa de ferramentas do carro. — Sempre tive um desejo de ser arrombador... Vejamos!
Colocou a lâmina do formão entre as duas pequenas cavidades da janela da copa e, depois de alguns minutos de manipulação, conseguiu tirar o parafuso que as mantinha trancadas. Depois, pondo o formão debaixo da parte inferior da janela, pôde abri-la. Havia um caixote vazio no canto do pórtico, que Vance colocou sob a janela. Ficou de pé nele e conseguiu, com esforço, esgueirar-se pela estreita abertura. Um momento depois ouvi um baque surdo e ele desapareceu na escuridão da casa. Logo, porém, seu rosto veio à janela.
— Não houve nada, Van — anunciou. — Entre, eu ajudo.
Puxei o chapéu para cima das orelhas e coloquei o corpo na abertura da janela. Vance segurou-me os ombros e me puxou para a copa escura e estreita.
— Puxa! — suspirou. — Ser arrombador não é brincadeira... Ainda bem que renunciei à carreira... Procuremos a porta do porão... Duvido que haja algo que nos interesse nos andares principais.
Achamos logo a porta do porão. Saía diretamente da copa que era dividida da cozinha por uma porta de vaivém. Vance seguia na frente, com o isqueiro aceso.
— Epa! — Ouvi-lhe a voz na meia escuridão adiante. — Que porta curiosa para uma inocente cabana de caça!
Eu estava logo atrás dele e, olhando por cima de seus ombros, consegui distinguir, à luz bruxuleante do isqueiro, uma porta enorme de carvalho, sólida, comparativamente nova. Não havia maçaneta nem cadeado, mas, no lugar habitual da maçaneta, estava uma tranca de ferro. Vance levantou-a e empurrou a porta. Escutamos então um ruído contínuo e insistente, como o de um motor, e sentimos um cheiro acre de algum elemento químico. A alguma distância pude perceber várias pequenas chamas, como se produzidas por fogareiros Bunsen.
Vance entrou no vestíbulo e tateou na parede. Finalmente, achou o interruptor. Houve um clique e uma luz brilhante de cerca de doze lâmpadas substituiu a escuridão.
Vi algo de espantoso. O porão de pedra, cujo tamanho original deveria ter sido de quase 18 m2, fora ampliado dos dois lados, de modo que tinha agora a extensão de pelo menos 36 m2. Estava cheio de filas de enormes mesas nas quais havia milhares de pequenos vidros redondos. Ao fundo do porão estavam vários geradores elétricos e, em algumas das mesas e prateleiras nas paredes, viam-se coleções variadas de garrafas e intrincado aparelhamento químico.
Vance andava entre as mesas, observando tudo:
— Puxa! — murmurou. — O Dr. Taylor teria inveja se pudesse ver este laboratório! Espantoso!
Aproximou-se de algumas mesas cujo aparelhamento não era igual aos demais, e onde eu vira as chamas azuis:
— Água pesada, Van — explicou, apontando várias garrafas em forma de cone, ao fim de uma série de tubos, válvulas e pilhas. — Deve haver aqui mais de um quarto de litro. Produção em alta escala. Se for pura, Kinkaid tem uma fortuna nesses frascos. Vê como é feita, Van? É um processo fascinante.
Examinou detidamente os aparelhos:
— O método de produção usado aqui é o mesmo concebido pelos cientistas de Princeton — o primeiro que tem algum valor prático. O eletrólito das células eletrolíticas comerciais é primeiro destilado para que sejam separados o carbono e o hidróxido. Acrescenta-se hidróxido de sódio, e então a solução é eletrolisada naquelas células.
Apontou para várias mesas mais adiante, contendo inúmeras garrafas de hidrômetro que eram esfriadas por imersão em grandes tanques rasos de água corrente.
— Os elétrodos, como você pode ver, são torcidos duas vezes nos ângulos certos, para formar ânodos e catódios nas células vizinhas; o potencial da corrente direta é suprido por aqueles geradores de motor ali. Leva cerca de três dias para reduzir o eletrodo a aproximadamente doze por cento do volume original; o eletrodo concretado é então parcialmente neutralizado pelo dióxido de carbono em ebulição nele. Depois, então, isso é destilado e acrescentado a outro grupo de células — aquelas nas mesas dos fundos — contendo água do mesmo grau, porém com o teor primitivo de hidróxido de sódio. São feitas três eletrólises sucessivas, que resultam em água com cerca de dois e meio por cento do pesado isótopo de hidrogênio. Daí para a frente, o hidrogênio contém o isótopo pesado que é recuperado pelo aparelho daquelas mesas.
Fez um gesto com a mão para o complicado aparelhamento à nossa frente.
— O gás eletrolítico misturado passa daquelas células à direita através desse vaporizador e desse tubo em T, o qual, como vê, está mergulhado em mercúrio para formar uma válvula de segurança para liberar a pressão excessiva; finalmente, ele flui para fora através daquele bocal de vidro capilar, onde acende uma chama.
Vance jogou o cigarro ao chão e o esmagou.
— E esse é o último passo, Van, para produzir o líquido mais caro do mundo. A água formada pela combustão é condensada nesse tubo inclinado de quartzo...
Ouvimos então o barulho de rápidas pisadas na escada do porão. Vance virou-se subitamente e correu, mas era tarde. A grande porta de carvalho tinha sido violentamente fechada, e quase simultaneamente a pesada tranca foi encaixada na fechadura.
Sobre o ruído dos motores e o fluxo da água corrente nos tanques rasos, pudemos perfeitamente ouvir o riso irado mas triunfante de alguém na escada.
XIV - O RÓTULO BRANCO
(Segunda-feira, 17 de outubro — 15:00 horas)
Vance fixou a pesada porta, com um sorriso estranho.
— Essa não, Van! — murmurou. — Eu abomino melodrama. Ademais, ainda não almoçamos — e são três horas. Situação desagradável, mas divertida. — Puxou uma cadeira, sentou-se calmamente, e começou a fumar.
De repente, apagaram-se as luzes do porão, e fomos deixados na escuridão total. Vance suspirou.
— Bem, bem. Você agüenta, Van? Lamento muito tê-lo envolvido nessa história louca. Vejamos se nossos captores são comunicativos.
Foi até a porta e bateu nela várias vezes, com as costas da cadeira. Novamente escutamos pisadas na escada, e uma voz abafada e não identificável perguntou:
— Quem é você... e o que quer aqui?
— Lamento ser o Sr. Vance... e gostaria muito de um pouco de homard à la Turque e uma garrafa de Chauvenet suave.
— Você vai receber algo pior do que isso — fez a voz, que, embora sua debilidade, demonstrava azedume e raiva. — Quantos são aí?
— Só dois — disse-lhe Vance. — Gente inofensiva. Turistas. Estamos conhecendo as matas de Jersey.
— Arrombadores inofensivos... esta é boa! — E a voz sorriu maliciosamente. — De qualquer forma, vocês serão inofensivos quando eu acabar com vocês. Já volto a lhes falar — vou avisar à polícia. — Escutamos passos subindo a escada.
Vance bateu na porta novamente, com a cadeira.
— Espere um pouco! — gritou.
— O que é agora? — A voz estava mais longe.
— Antes que aborreça os guardas — falou Vance — é bom que saiba que a polícia de Nova York sabe quem sou eu e por que estou aqui. Tenho um encontro com o procurador distrital Markham às cinco horas, e se eu não aparecer, esta cabana será totalmente revistada. Mas não se preocupe. Tenho muito em que pensar nas próximas horas. — Escutei-o sentar-se. Depois, pela pequena chama do isqueiro, vi que acendia um Régie.
Houve um breve silêncio, seguido de passos na escada e por um sussurro. Em alguns momentos as luzes do porão se acenderam e os motores recomeçaram a funcionar. Logo depois escutamos o som da tranca sendo solta, e a pesada porta de carvalho se abriu.
No alto da escada estava Kinkaid. O rosto parecia, mais do que nunca, uma máscara.
— Não sabia que era o senhor — disse, com tom glacial e sem modulação. — Se soubesse, não teria agido de forma tão hostil. Vim até cá e notei que a janela da copa fora forçada. Deduzi que houvesse arrombadores na casa e, quando vi as luzes do porão acesas, mandei trancar a porta.
— Não tem importância — replicou Vance calmamente.
— Foi um engano social meu... não seu.
Kinkaid segurou a porta aberta e ficou de lado. Subimos a escada para a cozinha, e ele nos conduziu à sala de estar. Ao lado de uma mesa maciça, havia um homem forte, de mais ou menos trinta e cinco anos, cabelo ruivo e rosto carrancudo. Vestia calças folgadas, paletó de trabalho e uma camisa de flanela cinza.
— O Sr. Arnheim — anunciou Kinkaid de modo casual.
— Ele é o encarregado do laboratório que os senhores inspecionaram.
Vance inclinou-se ligeiramente para o homem.
— Ah! Colega de sala de Bloodgood e Quayle? Arnheim agitou-se, e os olhos se toldaram.
— E daí? — rosnou.
— Pode sair, Arnheim — disse Kinkaid, fazendo um sinal com a mão.
O homem voltou à cozinha e o escutamos descer para o porão. Kinkaid sentou-se e examinou Vance com seus olhos de peixe.
— O senhor parece estar bem familiarizado com minhas atividades — comentou.
— Oh, não. Só com os fatos óbvios — assegurou-lhe Vance. — Procurava mais informações quando o senhor chegou.
— Sorte sua — disse Kinkaid — que o caso acabou como acabou. Arnheim odeia visitantes não convidados do laboratório. Estou a caminho de Atlantic City por uns dias e Arnheim me pegou de carro em Closter e me trouxe aqui.
Vance ergueu as sobrancelhas.
— Caminho meio complicado para ir de Nova York a Atlantic City, não acha?
O rosto de Kinkaid endureceu, e os olhos se estreitaram.
— Não é tão complicado assim — retrucou. — Queria tratar de alguns assuntos com Arnheim antes de viajar, de modo que fui de trem a Closter e ele me encontrou lá. Mais tarde me levará a Newark, para que eu pegue o trem das sete para Atlantic City. Meu itinerário está satisfatoriamente explicado?
— De certa forma, sim. — Vance assentiu. — Pode ser. Muito lógico, quando explicado. Fugindo do tumulto da cidade por uns tempos, hem?
— Quem não o faria... depois do que passei? — Kinkaid mudara o tom de voz, e falava quase petulantemente. — Fechei o Cassino por uns dias, em respeito a Virgínia. — Sentou-se empertigado e olhou Vance de modo mau. — Acredite ou não, senhor, mas gostaria de agarrar o animal que a matou.
— Sentimento nobre — murmurou Vance. — Primitivo, mas nobre. Aliás, a garrafa de água dela estava vazia quando chegamos à casa sábado à noite.
— Meu sobrinho me disse. E daí? Qual o crime em beber um copo d'água?
— Nenhum — reconheceu Vance — nem em fabricar água pesada. Laboratório fantástico, o seu.
— O melhor do mundo — afirmou Kinkaid, com orgulho evidente. — Foi idéia de Bloodgood. Ele via as possibilidades de se comercializar água pesada, as expôs a mim, e eu lhe dei "sinal verde"... eu financiaria o empreendimento. Com mais um mês, estaremos prontos para comercializá-la.
— É, muito bem. Sujeito de iniciativa, esse Bloodgood. — Vance acenou com a cabeça e manteve os olhos fixos em Kinkaid. — Ele teve a idéia, foi com Quayle ao Laboratório Frick e obteve todos os dados e planos necessários; depois procurou Arnheim e o encarregou das operações. Três jovens químicos ambiciosos — todos bons amigos — tentando fazer a vida, por assim dizer. Muito bem.
Kinkaid sorriu astutamente.
— O senhor parece saber tanto sobre a minha empresa quanto eu. Bloodgood lhe contou?
— Não. — Vance sacudiu a cabeça. — Ele evitou jeitosamente o assunto. Esforçou-se demais, porém, e causou minhas desconfianças. Fui a Princeton ontem à noite. Juntei várias coisas. Sua cabana de caça era indicada, de modo que vim até cá.
— Por que seu interesse por meu laboratório? — perguntou Kinkaid.
— O motivo da água. Há água demais aqui e no caso do envenenamento.
Kinkaid deu um salto, e o rosto ficou vermelho.
— Explique-se! — exigiu. — Água pesada não é veneno.
— Não se sabe — disse Vance, tranqüilamente. — Pode ser. Ainda não se pode afirmar. Tema interessante. De qualquer forma, a água foi o indício. Tenho simplesmente seguido as pistas.
Kinkaid calou-se. Depois, disse cuidadosamente:
— Agora compreendo o que quer dizer. O senhor descobriu alguma coisa?
— Nada de que não tivesse suspeitado antes — respondeu Vance, evasivamente.
— Que pena que seu arrombamento não tivesse resultados compensadores.
— Arrombamento? Oh, sim. Claro. — Vance deu de ombros. — O senhor vai dar queixa?
Kinkaid riu.
—' Não, desta vez passa. — Falava quase cordialmente.
— Muito obrigado — disse Vance, levantando-se. — Nesse caso, o Sr. Van Dine e eu vamos indo. Desculpe a pressa, mas estou morto de fome. Ainda não almocei. — Foi até a porta e parou. — Onde o senhor vai ficar em Atlantic City?
Kinkaid mostrou-se interessado na pergunta.
— O senhor acha que precisará de mim? Vou ficar no Ritz.
— Divirta-se — fez Vance, e pegamos o carro.
Mal passava de quatro e meia quando chegamos a casa. Vance pediu chá e uma muda de roupas, depois ligou para Markham.
— Tive uma tarde maravilhosa — contou ao procurador distrital. — Banquei o arrombador. Van e eu ficamos presos num porão escuro, aí disse seu nome, e foi o "Abre-te, Sésamo!" Fomos cerimoniosamente — para não dizer apologeticamente — soltos. Conversei com Kinkaid. Ele está produzindo quartos de litro de água pesada na cabana de caça. Tem um laboratório grande, aparelhado. Idéia de Bloodgood, ajudado e incentivado por outro colega de classe, um sujeitinho hostil chamado Arnheim. Kinkaid não me pareceu aborrecido por eu haver descoberto seu segredo. Até me desculpou pela entrada forçada. Está indo para Atlantic City. O caminho da água continua. Estou levando um balde ou dois de água fria, falando figurativamente, à casa dos Llewellyns hoje à noitinha. Caso estranho, Markham, mas a luz começa a surgir. Não muita, mas suficiente para me mostrar o caminho. Que tal jantar aqui em casa, às oito e meia, e depois ir ouvir o Terceiro Concerto de Brahms no Carnegie Hall? Conto mais quando chegar aí... E escute, Markham, traga o relatório de Hildebrandt se estiver pronto. Tchau!
Mais ou menos às seis horas, Vance chegou à casa dos Llewellyns. O mordomo nos fez entrar, com frígida dignidade. Aparentemente não se surpreendeu com a visita.
— Quem deseja ver, senhor?
— Quem está aqui, Smith? — perguntou Vance.
— Todos, senhor, menos o Sr. Kinkaid — informou o> mordomo. — O Sr. Bloodgood e o Dr. Kane também estão. Os cavalheiros estão no salão com o Sr. Lynn, e as senhoras, estão em cima.
Lynn, que devia ter escutado nossa chegada, veio até a porta do salão e nos convidou a entrar.
— Que bom ter vindo, Sr. Vance! — Ele ainda parecia deprimido, mas seu modo era ansioso. — Descobriu algo?
Antes que Vance pudesse responder, Bloodgood e o Dr. Kane se adiantaram para cumprimentá-lo. Terminadas as amenidades, Vance sentou perto da mesinha de centro.
— Descobri algumas coisas — disse a Lynn. Virou-se então para Bloodgood. — Acabo de chegar de Closter. Visitei a cabana de caça e conversei com Kinkaid. Porão interessante tem ele.
Lynn dirigiu-se à mesa e ficou ao lado de Vance.
— Sempre desconfiei que o velho tivesse bons vinhos na cabana — queixou-se. — Mas nunca me deu nenhuma amostra.
Os olhos de Bloodgood estavam em Vance: ignorou as observações de Lynn.
— O senhor encontrou alguém mais lá? — indagou.
— Sim, um tal de Arnheim. Camarada vigoroso. Ele nos trancou no porão, seguindo ordens de Kinkaid, claro. Foi muito aborrecido. — Inclinou-se para trás e encontrou o olhar de Bloodgood. — Conheci outro colega de classe seu, ontem à noite — Martin Quayle. Estava visitando rapidamente o Dr. Hugh Taylor. Vi também o Laboratório Frick.
Bloodgood deu um passo, mas os olhos não se moveram. Depois de um instante, perguntou:
— Aprendeu alguma coisa?
— Aprendi muito sobre água — disse Vance, com um leve sorriso.
— E será que também soube — indagou Bloodgood, em voz fria — o nome do responsável pelos acontecimentos de sábado?
Vance inclinou a cabeça afirmativamente e deu uma profunda tragada no cigarro.
— Sim, acho que sim.
Bloodgood enrugou a testa e esfregou a mão no queixo.
— Que pretende fazer agora?
— Prezado amigo! — exclamou Vance. — O senhor sabe muito bem que não posso tomar qualquer providência. É muito difícil determinar certos fatos, e mais ainda prová-los... O senhor nos poderia ajudar, por acaso? Bloodgood inclinou-se raivosamente.
— Não senhor! — explodiu. — O problema é seu.
— É verdade, é verdade. — Vance fez um gesto desanimado. — Uma situação triste e complicada...
O Dr. Kane, que escutara atentamente, sacudiu-se e levantou-se.
— Preciso ir — anunciou, olhando o relógio. — Ainda tenho de ir ao consultório, e tenho dois casos uterinos para diatermia. — Apertou a mão de todos e saiu apressadamente.
Bloodgood mal notou que o médico fora embora. Seu interesse ainda estava focalizado em Vance.
— Se o senhor sabe quem é o culpado — disse tranqüilamente — e não pode provar, tenciona desistir do caso?
— Não, não — fez Vance — perseverança é meu lema. E persistência. "Deus está com os perseverantes." Idéia confortadora. E "as águas gastam as pedras", segundo Jó. Comentário interessante, esse. Água novamente, note. O fato é, Sr. Bloodgood, que terei provas suficientes em pouco tempo. Espero um relatório químico do toxicólogo oficial esta.noite. Ele é um homem inteligente. Terei mais informações amanhã.
— E se não acharem veneno? — indagou Bloodgood.
— Melhor ainda — comentou Vance. — Isso simplificará tudo. Mas estou certo de que haverá veneno — em algum lugar. Há sutilezas demais neste caso: esta a sua fraqueza. Mas eu gosto de decimais longos: é tão mais fácil escrever pi do que centenas de dígitos.
— Vejo o que quer dizer. — Bloodgood olhou para o relógio e levantou-se. — O senhor me perdoe. Tenho que pegar o trem das sete para Atlantic City. Kinkaid quer que eu vá lá. Ele vai pegar o trem em Newark. — Inclinou-se rigidamente para nós e dirigiu-se ao vestíbulo.
Parou na porta e voltou-se.
— Tem objeção — perguntou a Vance — que eu diga a Kinkaid que o senhor sabe quem envenenou Virgínia?
Vance hesitou antes de responder, depois falou:
— Não, nenhuma. Boa idéia. Kinkaid tem direito a saber. O senhor pode acrescentar que amanhã o caso estará encerrado.
Bloodgood susteve a respiração e fixou Vance.
— Tem certeza de que quer que eu lhe diga isso?
— Absoluta. — Vance soltou a fumaça do cigarro. — Suponho que o senhor também vá hospedar-se no Ritz?
Bloodgood não respondeu logo. Finalmente, disse:
— Sim, ficarei lá. — Virou-se e saiu rapidamente.
Ele apenas desaparecera quando Lynn levantou-se e segurou o braço de Vance excitadamente. Os olhos brilhavam e ele tremia dos pés à cabeça.
— Meu Deus! — exclamou. — O senhor acha mesmo...
Vance levantou-se rapidamente e tirou a mão de Lynn do braço.
— Não seja histérico — disse severamente. — Vá dizer à sua mãe e à sua irmã que quero vê-las um momento.
Lynn, envergonhado e abatido, murmurou uma desculpa, e saiu da sala. Quando voltou, minutos depois, informou a Vance que as duas mulheres estavam no quarto de Amélia e o veriam lá.
Vance subiu imediatamente, onde a Sra. Llewellyn e sua filha o esperavam.
— Acho justo, senhoras — disse Vance, após cumprimentá-las rapidamente — contar-lhes o que já informei às outras pessoas interessadas no caso. Acredito saber quem é o responsável por essa situação horrível. Sei quem envenenou seu filho, senhora; e quem pôs o veneno em sua garrafa, senhorita. Também sei quem envenenou Virgínia e escreveu o bilhete suicida. No momento nada posso fazer, pois me falta a necessária prova legal. Mas espero que amanhã eu já tenha fatos suficientes nas mãos que garantam providências definitivas de minha parte. Minhas conclusões lhes causarão muita dor, e quero que as senhoras estejam preparadas.
Ambas as mulheres ficaram silenciosas, e Vance, com leve reverência, saiu do quarto. Mas, ao invés de voltar diretamente ao andar principal, foi em direção ao quarto onde morrera Virgínia.
— Quero dar mais uma olhada, Van — disse-me ele, entrando no quarto. Eu o segui, e ele fechou a porta silenciosamente.
Andou pelo quarto uns cinco minutos, examinando pensativamente cada item da mobília. Demorou-se na penteadeira; inspecionou novamente os livros nas prateleiras; abriu a gaveta da mesa de cabeceira e inspecionou-lhe o interior; tentou a porta da passagem que levava ao quarto de Amélia, e finalmente foi até o banheiro. Olhou em volta, cheirou o perfume no atomizador, e então abriu a pequena porta espelhada do armário de remédios. Olhou dentro por algum tempo, sem tocar em nada. Finalmente, fechou a porta e voltou ao quarto.
— Nada mais há para se aprender aqui, Van — anunciou. — Vamos para casa.
Quando passamos pela porta do salão, vimos Lynn sentado numa poltrona ao lado da lareira, com a cabeça nas mãos. Não nos escutou, ou estava por demais chocado com as recentes afirmações de Vance para se preocupar com as amabilidades convencionais de cortesia, pois não demonstrou saber que estávamos indo embora.
Markham chegou ao apartamento de Vance às sete e meia.
— Preciso de alguns drinques antes do jantar — observou. — Esse caso me perturbou o dia inteiro. E seu telefonema enigmático não me ajudou exatamente a levantar o moral... Conte tudo, Vance. Por que e como você ficou preso num porão? Parece incrível.
— Pelo contrário, foi muito razoável — sorriu Vance.
— Van e eu arrombamos a entrada. Usamos um formão para que pudéssemos entrar na cabana de Kinkaid.
— Ainda bem que vocês se livraram. — Markham falava ligeiramente, mas havia expressão perturbada em seu rosto.
— Minha jurisdição não vai até Jersey, você sabe.
Vance chamou Currie e pediu martinis secos com canapés de caviar Beluga e um cálice de Dubonnet para ele mesmo.
— Se vocês vão tomar coquetéis... — suspirou, e deu de ombros — perdoem-me, mas não os acompanho.
Enquanto Markham e eu tomávamos nossos coquetéis, Vance, bebendo Dubonnet, contou em detalhes os acontecimentos do dia. Quando terminou, Markham sacudiu a cabeça desoladamente.
— O que — perguntou — você ganhou com tudo isso?
— O envenenador — disse Vance. — Mas conhecendo sua mente legalista, não lhe posso ainda apresentar o culpado. Você não poderia fazer nada. Um corpo de jurados talvez decidisse censurá-lo por ser ambicioso demais. — Ficou sério. — Alguma notícia de Hildebrandt?
Markham assentiu:
— Sim, mas não é final. Ele me telefonou antes que eu saísse do escritório e me disse estar trabalhando o dia todo, mas sem encontrar sinais de veneno. Parecia muito preocupado, e me informou que continuaria até a noite. Parece que ele já analisou o fígado, os rins e intestinos, sem quaisquer resultados; vai agora tentar o sangue, os pulmões e o cérebro. Aparenta extremo interesse pelo caso.
— Esperava algo mais palpável a esta altura — fez Vance, levantando-se e andando para cima e para baixo. — Não posso entender. Já deveria ter sido achado algum veneno. Toda a minha teoria está vacilando, Markham. Não tenho mais nenhuma idéia.
Sentou-se novamente e fumou em silêncio um pouco.
— Examinei o quarto de Virgínia hoje novamente, esperando achar algo, mas nada aconteceu, a não ser que o armário de remédios estava novamente arrumado artisticamente. Tem agora a mesma aparência de quando o vi pela primeira vez. Tudo no lugar, compondo um padrão equilibrado. Composição correta.
— Você achou o que lhe tinha perturbado a estética ontem? — perguntou Markham, sem muito interesse.
— Oh, sim. Havia um lugar faltando ontem — um quadrado branco. Apenas um rótulo de farmácia num vidro azul alto. Um vidro de colírio. Alguém evidentemente tirara o vidro, depois de minha primeira inspeção do armário, e o devolveu com a etiqueta no outro lado. Assim, ao invés de eu ontem ter visto um valor de composição de um vidro azul alto com um grande rótulo branco, só enxerguei o retângulo azul do vidro. Mas hoje o rótulo branco do vidro estava na frente como antes.
— Muito útil — comentou Markham ironicamente. — Isso, por acaso, pode ser considerado evidência legal?
Antes de Markham terminar de falar, Vance deu um pulo.
— Santo Deus! — Tentou manter a excitação ansiosa fora do tom de voz. — Esse rótulo ao contrário pode ser o que eu estava esperando quando lhe pedi que tirasse os guardas da casa dos Llewellyns. Não sabia o que poderia ocorrer se todos da casa estivessem livres de supervisão e restrições, mas achei que alguma coisa poderia haver. A mudança na posição do vidro é a única coisa que aconteceu. Será...
Deu meia volta e foi ao telefone. Momentos após, falava com o Dr. Hildebrandt no laboratório químico do necrotério da cidade.
— Antes de tentar alguma outra coisa, doutor, — disse — faça uma análise das conjuntivas, dos sacos lacrimais e da membrana mucosa do nariz. Teste com beladona. Pode evitar-lhe trabalho extra...
XV - O ENCONTRO ÀS DUAS HORAS
(Terça-feira, 18 de outubro — 9:30 horas)
Vance chegou ao escritório do procurador distrital às nove e meia da manhã seguinte. Depois do concerto de câmara da véspera, Markham fora direto para casa, e Vance ficara acordado até tarde, lendo trechos de vários livros médicos. Parecia nervoso e excitado, e depois de um uísque com soda, eu fui para a cama, deixando-o na biblioteca, mas eu ainda estava acordado quando ele foi deitar-se duas horas depois. Os acontecimentos do dia haviam estimulado meus processos mentais, e era quase de manhã quando adormeci. Às oito, Vance me acordou e perguntou se eu queria participar das atividades que ele planejara para o dia.
Levantei imediatamente e notei que Vance estava de ótimo humor, quando me reuni a ele para tomar café.
— Algo final e revelador deve acontecer hoje, Van — disse-me alegremente. — Estou contando com as conjuntivas e a psicologia do medo. Já contei a todos os relacionados com o caso tudo que sabia, à exceção de Kinkaid, mas confio em que Bloodgood lhe transmita tudo o que eu disse, em Atlantic City. Espero que algumas das sementes plantadas por meus comentários encontrem solo fértil e produzam fruto. Vamos ao escritório de Markham logo que você acabe com esses ovos quentes. Anseio por ver o relatório de Hildebrandt.
Quando chegamos, Markham estava há pouco no escritório. Estudava uma folha datilografada de papel, e não se levantou quando entramos.
— Você adivinhou — informou imediatamente a Vance.
— O relatório de Hildebrandt estava na minha mesa quando cheguei.
— Ah!
— Conjuntivas, sacos lacrimais e membrana mucosa do nariz saturados de beladona, que também havia no sangue. O médico diz agora não haver dúvida quanto à causa da morte.
— Muito interessante — observou Vance. — Ontem à noite li um caso de uma criança de quatro anos que morreu de instilação de beladona nos olhos.
— Mas sendo assim — objetou Markham — onde entra a sua água pesada?
— Oh, não há mistério. Não esperavam que soubéssemos da existência da beladona na membrana das pálpebras nem no interior do olho. Esperavam que mergulhássemos na água pesada, de cabeça, por assim dizer. A toxicologia do envenenador estava certíssima no sentido acadêmico, mas não pôde prever todas as eventualidades.
— Não vou fingir — disse Markham irritadamente — que entendo suas observações misteriosas. O relatório do Dr. Hildebrandt, porém, é suficientemente definitivo, mas não nos ajuda no sentido legal.
. — Não — concordou Vance. — Legalmente falando, torna o caso mais difícil. Poderia ter sido suicídio... mas não foi.
— E sua teoria — indagou Markham — é que a beladona também foi o veneno tomado por Lynn e Amélia?
— Oh, não. — Vance sacudiu a cabeça enfaticamente.
— Isso foi outra coisa. A parte angustiante da história toda é que não temos prova da intenção de matar em qualquer dos três envenenamentos. Mas pelo menos sabemos onde estamos agora, com o relatório de Hildebrandt. Alguma outra notícia, por acaso?
— Sim — fez Markham. — Uma novidade muito estranha. Não lhe atribuo qualquer importância maior, porém. Antes que eu chegasse ao escritório, Kinkaid telefonou de Atlantic City. Swacker falou com ele. O velho disse que foi chamado de volta a Nova York inesperadamente — um problema no Cassino — e que se eu queria encontrá-lo lá, junto com você. Diz ter mais informações sobre o caso...
Vance ficou agitado com isso.
— Ele marcou alguma hora?
— Disse a Swacker que estaria muito ocupado o dia todo, e que duas horas lhe seria conveniente.
— Você, por acaso, lhe telefonou de volta?
— Não. Ele disse a Swacker que ia tomar um trem em alguns minutos. De qualquer modo, eu não sabia onde ele iria parar. Além disso, não vi necessidade de lhe telefonar, e não lhe queria falar antes de conversar com você. Você parece ter algumas idéias sobre o caso que, reconheço, ainda não pude imaginar. O que acha do convite? Você julga que ele vá fornecer alguma informação vital?
— Não, acho que não. — Vance fechou os olhos e pensou alguns instantes. — Situação estranha. Pode ser que ele esteja preocupado com minha descoberta do laboratório de água pesada, e queira esclarecer sua situação, na hipótese de nós suspeitarmos dele. Não deve estar muito preocupado, porém; do contrário, viria aqui e não se arriscaria a que não comparecêssemos ao Cassino.
Vance sentou-se subitamente.
— Eta! Há outra forma de encarar o caso. Casual... sim, mas demais. Como o resto do problema. Ninguém está agindo racionalmente. Sempre algo de mais ou de menos. Não há equilíbrio.
Levantou-se e foi até a janela. O olhar era perturbado e a testa estava enrugada.
— Tenho esperado acontecer alguma coisa... mas ainda não é isso.
— Que achou que pudesse acontecer, Vance? — perguntou Markham, estudando-o com expressão preocupada.
— Não sei — suspirou Vance. — Quase tudo, menos isso.
— Pensei que fôssemos participar de algo emocionante, mas a perspectiva de um papo com Kinkaid às duas horas não me anima muito...
Vance virou-se de repente.
— Mas claro, Markham! Isso pode ser exatamente o que eu queria. — Seus olhos brilhavam. — Poderia ser, não sei. Estava buscando mais sutilezas, mas já é tarde para elas.
Deveria ter entendido isso. O caso atingiu a fase decisiva. Markham, vamos a essa entrevista.
— Mas, Vance... — o outro quis protestar, mas Vance o interrompeu.
— Não, não. Precisamos ir ao Cassino e saber a verdade. — Apanhou o chapéu e o paletó. — Apanhe-me à uma e meia.
Dirigiu-se à porta e Markham lhe perguntou:
— Tem certeza de que sabe onde está pisando? Vance parou, a mão na maçaneta.
— Tenho. Acho que tenho.
— E que vai fazer até à uma e meia? — indagou Markham, maliciosamente.
— Meu caro! Você é tão desconfiado... — A maneira de Vance mudou de repente e ele sorriu para Markham, bem-humorado. — Curioso, vou dar alguns telefonemas. Depois, vou à chefatura da Rua 240, para ter uma conversa muito franca com o sargento Heath. Vou fazer compras, e depois darei um pulo à casa dos Llewellyns. Depois vou almoçar no Scarpotti ovos à Eugénie, salada de alcachofra e...
— Adeus! — fez Markham. — Até à uma e meia!
Vance me deixou no edifício do Tribunal e fui direto a seu apartamento, onde me ocupei com certo trabalho de rotina que estava acumulado.
Pouco depois da uma, Vance voltou. Parecia distraído e, julguei, tenso mental e fisicamente. Falou pouco, e nem citou a situação que eu sabia o preocupava. Andou para cima e para baixo na biblioteca por uns dez minutos, fumando, e depois foi ao quarto, onde pude ouvi-lo telefonar. Não consegui distinguir o que dizia, mas quando voltou à biblioteca parecia de melhor humor.
— Tudo vai bem, Van — falou, e sentou-se em frente à sua aquarela favorita, de Cézanne. — Se conseguirmos resolver esse caso cinqüenta por cento tão bem quanto essa linda gravura...
Markham chegou exatamente à uma e meia.
— Aqui estou — anunciou agressivamente, denotando irritação — embora não veja por que não pudéssemos mandar Kinkaid ir ao escritório nos contar o que quer.
— Há uma boa razão — disse Vance, olhando-o afetuosamente. — Espero que haja. Não tenho certeza... francamente. Mas é nossa única oportunidade, e precisamos agarrá-la. Há um canalha à solta. Markham respirou fundo.
— Acho que sei como se sente. De qualquer modo, estou aqui. Não está na hora de sairmos?
Vance hesitou.
— E se houver perigo?
— Não se importe com isso — falou bruscamente Markham. — Estou aqui. Vamos embora.
— Há uma coisa que quero avisar a você e a Van — disse Vance. — Não bebam nada no Cassino — sob nenhum pretexto.
Descemos e entramos no carro; quinze minutos depois virávamos na Rua 73, Oeste, e nos dirigíamos para Riverside Drive. Vance estacionou na porta do Cassino, saltamos do carro e subimos os degraus até o vestíbulo envidraçado. Vance olhou o relógio.
— Exatamente um minuto depois das duas — observou. — Nas circunstâncias, estamos pontuais.
Apertou pequena campainha de mármore ao lado da porta de bronze e, tomando da cigarreira, tirou um Régie e o acendeu. Logo escutamos o cadeado abrindo, a porta girando, e entramos no vestíbulo semi-escuro.
Fiquei um pouco surpreso ao ver Lynn nos abrir a porta.
— Meu tio esperava que os senhores viessem — disse, cumprimentando-nos agradàvelmente. — Como está muito ocupado, pediu-me para ajudá-lo. Está esperando no escritório. Vamos subir?
Vance agradeceu, e Lynn mostrou o caminho para o fim do vestíbulo e até à escadaria. Atravessamos o Salão Dourado e, depois de bater gentilmente na porta do escritório de Kinkaid, Lynn a abriu e nos fez entrar.
Mal tinha percebido que Kinkaid não estava na sala, quando a porta bateu e a chave virou na fechadura. Virei-me apreensivamente, e lá estava Lynn, ligeiramente encurvado, com um revólver de aço na mão. Mexia a ponta do revólver para lá e para cá, e nos tinha os três sob mira. Uma transformação horrível ocorrera nele. Os olhos, entreabertos mas sinistros e frios, me deram um calafrio. Os lábios estavam contorcidos em um sorriso cruel. Havia uma confiança tensa no vaivém do corpo, do qual emanava a ameaça de um poder mortal.
— Grato por terem vindo — disse em voz baixa. — E agora, seus "patos", sentem-se naquelas poltronas contra a parede. Antes de "despachá-los", tenho algo a dizer-lhes. Mantenham as mãos no peito.
Vance olhou curiosamente para o homem e depois fixou o revólver.
— Não há nada a fazer, Markham — disse. — O Sr. Llewellyn é o mestre-de-cerimônias aqui.
Vance estava entre Markham e eu, e se sentou resignadamente na cadeira do meio. As três poltronas tinham sido colocadas em fila em uma extremidade do escritório. Markham e eu sentamos de cada lado de Vance e, seguindo-lhe o exemplo, colocamos as mãos na frente do corpo. Llewellyn moveu-se cautelosamente, como um gato, e ficou a cerca de 1,20 m de nós.
— Sinto, Markham, havê-lo metido nisto — desculpou-se Vance. — E você também, Van. Mas é tarde demais para arrependimentos.
— Jogue fora o cigarro — ordenou Lynn, olhando para Vance.
Vance obedeceu, e Lynn esmagou o cigarro com o pé, sem mesmo olhar para o chão.
— Não façam o menor movimento. Não quero matá-los antes de lhes contar umas coisinhas.
— Queremos ouvi-las — disse Vance, em voz curiosa. — Julguei ter percebido todo o seu jogo, mas você é mais esperto do que eu pensava.
Lynn deu um riso de mofa.
— Você não pensou o bastante. Achou que meu capital estava acabado, que eu teria de desistir, um perdedor. Mas ainda tenho seis fichas para jogar... estas seis aqui. — E bateu no cilindro do revólver com a mão esquerda. — E vou colocar duas delas em cada um de vocês. Acham que ganho a rodada?
Vance assentiu.
— Sim, pode ser que sim. Mas pelo menos você teve de desistir das sutilezas no fim e recorrer aos métodos diretos. Não foi, afinal de contas, um crime perfeito. Você teve de se tornar um pistoleiro para cobrir as apostas que perdeu. Não é um final muito satisfatório. Um pouco humilhante, na verdade, para quem se considera diabòlicamente astuto. Havia um desprezo enorme na voz de Vance.
— Sabe, Markham, — acrescentou — esse cavalheiro matou a esposa. Mas não foi bastante esperto e não atingiu a meta final. Seu sistema lindamente elaborado não deu certo em algum lugar.
— Oh, não — interrompeu Lynn. — Ele deu certo. Eu apenas tenho de jogar um pouco mais — a roleta vai dar mais uma volta.
— Mais uma volta. — Vance sorriu secamente. — Sim. Você vai precisar acrescer mais três assassinatos à sua tabela, para encobrir o primeiro.
— Não me importo com isso. Na verdade, até será um prazer — disse Lynn, rispidamente.
Parou, duro e alerta, sem o menor traço de nervoso. O revólver estava firme, o olhar era frio. Eu o observava, fascinado. Tudo nele parecia personificar morte rápida e inescapável. O homem tinha um poder que parecia duplamente terrível devido ao contorno suave, quase feminino dos traços. Havia uma propriedade nesse homem muito mais aterradora e sinistra do que os terrores conhecidos e compreensíveis da vida. Ele manteve os olhos em Vance e depois perguntou:
— Que sabe você? Eu irei preenchendo os claros. Levará menos tempo assim.
— Sim, você teria de satisfazer sua vaidade — retrucou Vance. — Eu contava com isso. Um fraco de coração.
Os lábios de Lynn se contorceram em um sorriso mau.
— Você acha que não terei coragem de matar os três?
— Tentou rir, mas sua garganta só emitiu um som gutural áspero.
— Não duvido — disse Vance. — Estou convencido de que você tenciona matar-nos. Mas isso só provará o desespero de sua fraqueza. É tão fácil atirar em pessoas. O bandido mais ignorante e covarde é muito eficiente a esse respeito. Precisa-se ter coragem e inteligência para se atingir um fim, sem a violência da ação física direta e, ao mesmo tempo, para se escapar da revelação do crime.
— Fui mais esperto que vocês todos — gabou-se Lynn.
— E este pequeno clímax aqui é mais sutil do que julgam.
Tenho um álibi perfeito para hoje à tarde. Se lhes interessar, estou agora dirigindo por Westchester com minha mãe.
— Sim, claro. Desconfiei de algo semelhante. Sua mãe não estava em casa quando fui lá de manhã...
— Você foi lá em casa hoje?
— Sim, dei uma passada. Infelizmente, sua mãe juraria em falso, por você. Desde o início ela desconfiou de você, e tem feito o possível para encobri-lo e jogar a culpa em outra pessoa. Sua irmã, também, teve um palpite da verdade.
— Pode ser que sim — rosnou o homem. — Desconfianças não fazem mal a ninguém. É a prova que conta — e ninguém pode provar nada.
Vance assentiu.
— Sim, é fato. A propósito, você foi a Atlantic City ontem à noite, não foi?
— Claro. Mas ninguém sabe que estive lá. Simplesmente foi telefonar para fazer um favor a meu tio. Simples, e deu certo, não?
— Sim, aparentemente. Estamos aqui, se é isso que quer dizer. Foi sorte sua que o secretário do Sr. Markham não conhecesse sua voz ou a do Sr. Kinkaid.
— Por isto tive o cuidado de ligar antes da chegada do eminente procurador distrital ao escritório. — Falava com infinito sarcasmo e sorria exultante.
. Vance fez um gesto de cabeça, os olhos fixos no revólver.
— É óbvio que você entendeu tudo o que lhe disse ontem à noite em sua casa.
— Foi fácil — disse Lynn. — Sabia, quando você fingia se estar dirigindo a Bloodgood, que estava na realidade falando para mim, tentando contar-me o quanto sabia. E você pensou que eu fosse tentar logo outra jogada para comprovar seu conhecimento, não? — Sorriu sarcàsticamente. — Bem, eu fiz a jogada, não é? Consegui reuni-los aqui... e vou matá-los. Mas não era exatamente a jogada que você esperava...
— Não — concordou Vance. — Não é. O telefonema e o encontro me intrigaram muito. Não compreendi por que Kinkaid se pudesse alarmar. Mas diga-me, Lynn: como sabe que esta sua festinha terá êxito? Alguém no edifício poderá ouvir os tiros...
— Não! — Lynn sorriu com auto-satisfação. — O Cassino está fechado indefinidamente, e não há ninguém aqui. Kinkaid e Bloodgood estão longe. Tirei uma chave dos aposentos de Kinkaid há algumas semanas, caso ele tentasse reter meus lucros em alguma ocasião. — Novamente fez um som gutural na garganta. — Estamos isolados aqui, Vance, sem perigo de interrupção. A festa será um êxito... para mim.
— Vejo que você planejou tudo detalhadamente — murmurou Vance desanimadamente. — Você parece ter controle total da situação. Que está esperando?
Lynn riu.
— Estou-me divertindo e tenho interesse em saber quanto do meu plano você conseguiu decifrar.
— Aborrece-lhe saber que uma pessoa pudesse ter deslindado seu plano, não é? — provocou Vance.
— Não — resmungou Lynn. — Apenas me interessa. Sei que você entendeu um pouco dele e lhe direi o resto antes de matá-lo.
— Isso, claro, se deve creditar à sua mania de gabar-se — fez Vance. — Seu ego terá prazer...
— Não importa! — O tom gélido da voz de Lynn interrompeu-o. — Conte sua história. Quero escutá-la. Enquanto a estiver contando, não morrerá; e todos gostam de se agarrar à vida, mesmo que por minutos... Mantenham as mãos em cima da poltrona — ou os matarei em um segundo.
XVI - A TRAGÉDIA FINAL
(Terça-feira, 18 de outubro — 14:15 horas)
Vance olhou para Lynn com tranqüilidade crítica por alguns momentos, depois disse:
— Sim, você tem razão. Enquanto eu continuar a falar, você me deixará viver, pois acha que posso alimentar sua vaidade...
— Vance! — Markham falou pela primeira vez desde que entramos no Cassino. — Por que servir de instrumento a esse assassino? Ele já resolveu, e não há o que fazer. — O tom era brusco e tenso, mas denotava coragem e resignação, o que aumentou minha admiração por ele.
— Pode ser que você esteja certo, Markham — disse Vance, olhando para Lynn. — Mas não pode haver mal em falar com nosso carrasco antes que ele puxe o gatilho.
— Ande, fale! — Lynn falou com calma exagerada. — Ou devo eu contar a história?
— Não, não é preciso, exceto por alguns detalhes. Eis minhas deduções: você se decidiu a livrar-se de sua mulher e culpar seu tio. Sua mulher era um estorvo: você e sua mãe não gostavam dela, e você teria mais certeza de uma herança total, se ela estivesse fora do caminho. Quanto a Kinkaid, você jamais o estimou, e, eliminando-o como possível herdeiro, estaria também anulando uma fonte de irritação. Você não gosta de seu tio porque ele lhe é muito superior e demonstra abertamente seu desprezo por você. É a reação natural de gente mesquinha como você. Então você concebeu um plano, com sua mente vaidosa e egoísta, para executar o crime perfeito, que eliminaria todos os fatores que se atravessassem no seu caminho. E planejou o golpe, segundo idealizou, para que o que acontecesse não indicasse você como responsável. Idéia inteligente, mas você não teve inteligência para aperfeiçoá-la.
Vance parou, fixando Lynn; depois prosseguiu:
— Você concebeu o veneno como o agente criminoso porque era indireto e, portanto, não precisava de coragem. Isso vai de acordo com sua natureza. Você sabia que Virgínia estava pingando colírio todas as noites e lera nos livros de seu pai sobre toxicologia — que você provavelmente consultou unicamente para servir a seu objetivo — que era possível haver morte através da absorção de beladona pelas membranas mucosas dos olhos e do nariz. Foi simples para você dissolver uma quantidade de beladona ou tabletes de atropina no colírio. Mas você não sabia o bastante sobre os modernos métodos toxicológicos — talvez porque os livros de seu pai fossem antigos — e ignorava que hoje o estômago não é o único órgão que o toxicólogo analisa. Havia uma noção errada que só uma análise do estômago era necessária para provar ou não um suposto envenenamento, mas atualmente os livros de toxicologia detalham mais a matéria. Você deveria ter lido Webster, Ross, Withaus e Becker, ou Auterrieth. Contudo, você nos deu bastante trabalho até que minha atenção foi atraída pelo vidro de colírio no armário de remédios de seu banheiro...
— O quê? — Os olhos de Lynn se abriram mais, porém não cessaram de vigiar os três prisioneiros. — Você me perguntou uma vez sobre esse armário.
— Sim. Na época, porém, eu ainda tateava. Depois que você tirou o vidro de colírio e o esvaziou, domingo de manhã, quando voltou do hospital, você o pôs de volta com a frente para trás, de modo que o rótulo não ficou visível. Notei algo errado, mas não sabia o quê. Por isso é que todos de sua casa tiveram perfeita liberdade de ação durante todo o domingo. Aliás, você foi à farmácia no domingo — não foi? — e encheu o vidro de colírio novamente, agora com a solução original inofensiva, temendo que um vidro vazio chamasse a atenção.
— Sim. Continue.
— Muito grato por ter colocado o vidro de volta com o rótulo para a frente. Isso me deu a pista... e a análise química do toxicólogo comprovou minha teoria. Soube então que sua mulher morrera da absorção de beladona pelos olhos e que alguém da casa estivera manipulando o vidro de colírio para encobrir as pistas.
— Muito bem, acertou. Suponho que pense que Amélia e eu fomos também envenenados com beladona.
— Não, claro que não. Até eu sei algo de toxicologia para não pensar assim. Você se envenenou com nitroglicerina.
A cabeça de Lynn bambeou um pouco.
— Como sabe? — perguntou, mal movendo os lábios.
— Simples dedução — respondeu Vance. — O Dr. Kane me disse que você sofria do coração e que lhe havia receitado drágeas de nitroglicerina. Você provavelmente tomou demais uma vez e ficou atordoado; então estudou a ação da nitroglicerina e descobriu que uma dose excessiva o derrubaria, sem causar nenhum mal duradouro. Então, depois de haver composto o cenário em casa, você tomou uma boa dose das drágeas e saiu um pouco de cena, com a casa lotada. Não havia forma de determinar o veneno tomado, evidente. Os sintomas eram de simples desfalecimento. Calculei que você deveria ter feito isso quando o Dr. Kane me falou das drágeas de nitroglicerina.
— E Amélia?
— A mesma coisa. Só que o tiro saiu pela culatra. Você não destinava o veneno a ela. Você planejara que sua mãe tomasse a água da garrafa na qual você dissolvera a nitroglicerina, mas sua irmã lhe atrapalhou os planos.
— Você acha que eu queria envenenar mamãe?
— Não, pelo contrário — disse Vance. — Você queria que ela fosse uma das vítimas do enredo — como você — para que fosse eliminada como provável suspeita.
— Sim! — Uma luz curiosa brilhava nos olhos de Lynn. — Minha mãe precisava ser protegida. Eu tinha de pensar nela e em mim. Muita gente sabia que ela não gostava de minha mulher, e ela é agressiva e rude de muitas formas. Ela poderia ter sido uma das suspeitas.
— Isso é óbvio — retrucou Vance. — E quando você soube que sua irmã tomara a nitroglicerina, tentou outro meio de eliminar sua mãe do rol dos suspeitos. Quando nos escutou subir a escada no domingo de manhã, encenou uma comovente cena de Édipo em nosso benefício, fingindo pensar que sua mãe pudesse ser culpada. Uma dupla sutileza. Objetivava também a eliminá-lo dos suspeitos e deu à sua mãe a oportunidade de nos convencer que era inocente. Foi um pouco covarde, pois podia, na verdade, tê-la envolvido. Mas foi uma cena eficaz — em sentido dramático, claro. Há mais alguma coisa que você queria saber sobre minhas conclusões?
Lynn sorriu maliciosamente um instante, depois perguntou:
— Que pensou você sobre as drágeas de rinita e o bilhete suicida?
— Exatamente o que você queria que eu pensasse — disse Vance. — Eles foram um dos principais elementos de seu enredo. Reconheço ter sido um golpe inteligente, mas fui um pouco mais longe do que você tencionava. Você queria que eu aceitasse Kinkaid como culpado, mas vi logo que ele era seu bode expiatório.
Lynn franziu a testa e os olhos se estreitaram perigosamente. Havia ódio na sua expressão. Depois sorriu astuciosamente.
— Então você logo percebeu o bilhete suicida, hem? Sim, eu queria enredar Kinkaid, mas você pensou logo nele?
— Mais ou menos — reconheceu Vance. — Muito óbvio, porém.
— E a água pesada?
— Oh, sim. Foi a decorrência natural, após um pouco de raciocínio. Como você pretendia. Todo seu plano ficou transparente logo que um ou dois dos fatores principais se resolveram. A estrutura foi bem concebida, mas alguns detalhes não convenceram. Falta de conhecimento e pesquisa de sua parte. Bastante infantil, sabe. Desde o início pensei em você como suspeito.
— Mentira! — rosnou Lynn. — Conte-me seu raciocínio.
Vance respirou profundamente e encolheu os ombros.
— Como você disse, enquanto eu continuar a falar permaneço vivo. A gente sempre aproveita uns instantes a mais de vida. E eu não suportaria deixar este mundo sem lhe tirar a ansiedade mental.
Sua voz se tornara tão fria e firme quanto a de Lynn.
— Sua carta a mim, implorando minha presença no Cassino sábado à noite, foi seu primeiro erro de cálculo. Foi inteligente, porém, mas não o bastante. Obviamente insincera — como premeditado — mas dizia muita coisa, revelando mais ou menos o caráter do escritor. Um cérebro astuto e efeminado o concebeu, o que indicou o tipo de pessoa a procurar. Sinceramente, não era preciso que eu testemunhasse seu desfalecimento no Cassino: qualquer um me poderia ter dado os detalhes. Você datilografou a carta e a nota do suicídio, aliás muito mal, de modo a indicar não ter familiaridade com a máquina. Depois pôs a carta em Closter, para incriminar Kinkaid e chamar a atenção para a cabana de caça de seu tio, lá perto. Mas isso, também, foi exagero: se seu tio tivesse escrito a carta, ele a mandaria de qualquer lugar, menos de Closter. É um pequeno detalhe, porém, e não o incrimina. O conteúdo do vidro de rinite foi esvaziado para dar uma espécie de substanciação da culpa de Kinkaid. Você sabia, claro, que não se acharia beladona no estômago, e isso indicaria um suicídio. Sua manipulação das garrafas dágua visou a dar a impressão de que foi através da água que os venenos foram administrados. Esse foi o segundo sinal — o primeiro foi o carimbo de Closter — que levou ao motivo da água pesada. Uma vez descoberta a teoria suicida e a fabricação de água pesa"da por Kinkaid, as suspeitas contra ele seriam bem fortes. E você e sua mãe estariam automaticamente eliminados — desde que ela tivesse tomado a nitroglicerina que você lhe preparara... Meu raciocínio está certo?
— Sim — admitiu Lynn raivosamente. — Continue.
— Ninguém, claro, — prosseguiu Vance — sabe o efeito que a água pesada tem no corpo humano, se tomada internamente em grandes quantidades, pois ainda não há disponibilidade suficiente para experimentos desse tipo, mesmo se fosse possível realizá-los. Mas tem havido especulação considerável sobre os possíveis efeitos tóxicos da água pesada e, embora não tivesse sido possível provar cientificamente que você, sua mulher e sua mãe a tivessem bebido — se ela tivesse tomado a água e não sua irmã — as suspeitas contra Kinkaid seriam fortíssimas. E essa suposição, junto com as demais evidências que você produziu, o teriam colocado em uma situação difícil de sair. Você sabia, claro, que a natureza do veneno supostamente dado a você e a sua mãe não seria determinada porque vocês escaparam aos efeitos fatais. De modo que seu querido tio Richard ia entrar bem... Aliás, como descobriu o laboratório secreto de Kinkaid na cabana? Os olhos de Lynn brilharam astutamente.
— Há uma lareira que vai do meu quarto ao dele, e várias vezes consegui escutá-lo conversar com Bloodgood.
— Ah! — sorriu Vance com desprezo. — Então você, além de tudo, escuta os assuntos alheios! Seu caráter é admirável, Lynn.
— Pelo menos atinjo meus fins — retrucou o homem, sem o menor sinal de vergonha.
— Parece assim. Talvez eu seja excessivamente crítico, mas há uma coisa que eu admito não ter entendido. Talvez você me faça o favor de esclarecê-la. Por que você simplesmente não envenenou sua mulher e seu tio, poupando-se o trabalho de todas as sutilezas intrincadas?
Lynn fez uma careta tolerante.
— Isso não teria sido tão fácil de arquitetar... Kinkaid está sempre alerta. Ademais, a morte dele e a de minha mulher poderiam encaminhar as suspeitas para mim. Por que me arriscar? De qualquer forma, prefiro sentar-me e vê-lo suar. Arruiná-lo primeiro e depois mandá-lo para a cadeira elétrica. — O fanatismo se expressava nos olhos.
— Sim — assentiu Vance — compreendo seu ponto de vista. Jogando no seguro e obtendo resultados mais satisfatórios. Muito inteligente e sutilmente concebido. Porém podíamos não perseguir a idéia da água pesada, sabe.
— Se não o tivesse feito, eu o teria ajudado. Porém eu contava com você. Por isso é que lhe mandei a carta: sabia que à polícia escaparia a idéia da água pesada; mas sempre admirei o modo por que sua mente trabalha em suas investigações. Você e eu realmente temos muitas qualidades em comum.
— Sinto-me abominàvelmente lisonjeado — murmurou Vance. — E você indicou o motivo da água pesada muito bem, sabe. Porém Bloodgood e Kinkaid desempenharam, em suas mãos, brilhantemente o primeiro ato do seu terrível drama aqui no Cassino.
Llewellyn riu à socapa:
— Não foi mesmo? Foi uma sorte danada. Mas poderia não haver acontecido. De modo que ordenei água pura para que você me ouvisse. E teria feito um barulhão dos diabos a respeito da água tônica, se Bloodgood não houvesse subitamente se tornado Chesterfieldian. Deve lembrar-se, também, que esperei até Kinkaid estar perto da mesa antes de ordenar minha segunda bebida.
— Sim, notei isso. Muito esperto. Você jogou bem suas cartas. Pena que não tivesse lido um pouco mais sobre toxicologia.
— Isso agora já não importa. — Llewellyn fungou depreciativamente. — Foi melhor assim. Kinkaid terá três cadáveres bem aqui no seu escritório para explicar... Não terá uma única chance no mundo, pois mesmo que tenha um álibi, não poderá provar que não mandou um de seus capangas matá-los. E isso é melhor do que tê-lo preso sob suspeita e julgado sob provas circunstanciais de um envenenamento em Park Avenue.
— De modo que também nós fomos joguetes em suas mãos — observou Vance desanimadamente.
— Isso mesmo... e lindamente! — Llewellyn olhou de esguelha para Vance, em triunfo. — As cartas têm trabalhado para mim, nestes últimos dias. Mas sorte e inteligência andam sempre juntas.
— Oh, é verdade... E quando você nos haja assassinado irá juntar-se à mamãe no campo para estabelecer um álibi indestrutível. O secretário de Markham testemunhará que Kinkaid nos marcou encontro aqui às duas horas. Você dará testemunho de minha conversa com Bloodgood na noite passada, e Kane confirmará isso. Você falará também tudo que sabe a respeito da água pesada, e Arnheim terá de admitir que eu estive na cabana de caça. Nossos corpos serão encontrados aqui; e desde que tudo apontará diretamente para Kinkaid, ele será preso. — Vance sacudia a cabeça admirativamente. — Sim. É como você diz. Ele não terá uma chance, mesmo que eventualmente prove que ele próprio o fez ou mandou que alguém fizesse por ele. Em qualquer caso, está perdido... Muito lindo. Não vejo uma só falha no raciocínio.
— Não. — Llewellyn sorriu. — Eu mesmo estou-me admirando!
Markham olhava-o, raivoso; e explodiu:
— Você é um demônio terrível!
— Palavras, Sr. Markham... apenas palavras! — retrucou-lhe o outro, maciamente.
— Sim, Markham — falou Vance. — Tais epítetos apenas lisonjeiam o cavalheiro.
Os lábios de Llewellyn se encurvaram de modo hediondo:
— Há mais alguma coisa que não compreende, Vance? Terei prazer em explicar.
— Não. — Vance sacudiu negativamente a cabeça. — Penso que o terreno está muito bem preparado.
Llewellyn deu um hediondo sorriso, com triunfante auto-satisfação:
— Bem, consegui; e prosseguirei com a coisa. Planejei tudo, do começo ao fim. Realizei uma morte de forma nunca antes realizada. Eu lhes forneci quatro suspeitos, mantendo-me ao fundo, ignorado. Não me incomodava até onde vocês fossem: quanto mais longe chegassem, mais afastados estariam da verdade...
— Você esquece que por fim o descobrimos... — falou Vance casualmente.
— Mas esse é o meu maior triunfo! — gabou-se Llewellyn. — Enganei-me em um ou dois pequenos detalhes em meu conhecimento sobre venenos, dando-lhe assim uma chave. Mas fui de encontro a suas suspeitas com um golpe ainda mais inteligente. O que você considera meu erro eu transformei no grande triunfo culminante... — Havia um brilho maníaco de egoísmo em seus olhos fixos. — E agora, fecharemos o livro!
Os músculos de seu rosto relaxaram numa fria máscara mortal. Havia uma cintilação quase hipnótica em seus desbotados olhos azuis. Deu um curto passo para nós e com marcada deliberação apontou o revólver. A ponta se dirigia diretamente ao estômago de Vance...
Em qualquer grande momento final dessa espécie, em que a vida que conhecemos está a ponto de ser varrida, c quando aquilo a que chamamos consciência está a ponto de desaparecer, é curioso como nossas mentes recebem e registram os simples sons comuns do mundo em torno de nós — sons que mal identificamos no curso comum dos acontecimentos. Enquanto estava ali sentado, naquele terrível momento, de algum modo estava cônscio de que, a distância, uma voz aguda de mulher estava chamando; podia ouvir o som do apito de um barco no Hudson; estava cônscio de que lá fora na rua, os freios de um automóvel tinham sido violentamente acionados; dava-me conta do ruído surdo do tráfego na avenida próxima...
Vance se ergueu a meio em sua cadeira e se inclinou para a frente. Seus olhos se estreitaram, mas havia um sorriso desdenhoso em seus lábios. Por um momento pensei que se preparava para lançar-se rapidamente sobre Llewellyn. Porém, se tal fora sua intenção, ele se atrasou: nesse momento, Llewellyn, o revólver ainda firmemente apontado para o estômago de Vance, deu ao gatilho duas vezes em rápida sucessão. Houve duas ensurdecedoras detonações no pequeno escritório e, acompanhando-as, duas faixas de fogo brilharam na ponta do revólver de Llewellyn. Uma onda de horror passou sobre mim e paralisou cada músculo de meu corpo...
Os olhos de Vance se fecharam lentamente. Levou uma das mãos à boca. Tossiu, sufocado. A mão descaiu em seu colo. Ele parecia vacilante, sua cabeça pendeu. Então escorregou lentamente para diante e ficou todo retorcido aos pés de Llewellyn. Meus olhos, que pareciam querer saltar das órbitas, estavam fixos em Vance, num horror selvagem.
Llewellyn relanceou-lhe o olhar rapidamente, sem mudar de expressão. Deu um passo para um lado, ao mesmo tempo que mirava para Markham, que parecia petrificado.
— Levante-se! — ordenou Llewellyn.
Markham tomou fôlego vigorosamente e se levantou. Os ombros estavam erguidos, desafiantes, e nem por um momento abaixou o olhar firme e agressivo.
— Você intimamente não passa de um policial — disse Llewellyn. — Acho que vou baleá-lo pelas costas. Vire-se.
Markham não se moveu.
— Não para você Llewellyn — retrucou, calmamente. — Receberei de frente tudo que queira dar-me.
Enquanto ele falava, ouvi um curioso ruído deslizante na outra extremidade do pequeno escritório, e instintivamente olhei nessa direção... e vi algo que me admirou: um dos painéis de madeira na parede oposta desapareceu e, na abertura, estava Kinkaid, uma grande automática na mão. Caminhava lentamente para diante; e tinha a arma apontada diretamente para Llewellyn.
Llewellyn também ouviu o ruído, pois virou-se parcialmente e relanceou os olhos por cima do ombro. Ouviram-se duas explosões. Porém, desta vez, da arma de Kinkaid. Llewellyn se deteve em meio ao movimento. Seus olhos se abriram desmesuradamente, num espanto, e o revólver que segurava caiu-lhe da mão. Ficou imóvel, como que gelado, por talvez dois segundos. Depois, todos os seus músculos amoleceram: a cabeça descaiu, e ele rolou para o chão. Ao ver o que acontecera, Markham e eu ficamos espantados demais para mover-nos ou falar.
No breve, terrível silêncio que se seguiu, aconteceu uma coisa extraordinária. Por um momento, senti como se estivesse testemunhando alguma cena mágica; parecia estar acontecendo um milagre fantástico: meu olhar fascinado acompanhara a queda de Llewellyn e depois se moveu para a forma imóvel de Vance... e então Vance se moveu e se levantou vagarosamente. Tirando o lenço do bolso interior do paletó, começou a espanar-se.
— Muitíssimo obrigado, Kinkaid — murmurou. — Você nos poupou uma grande quantidade de aborrecimentos. Ouvi seu carro e procurei manter o menino ocupado até que você chegasse aqui em cima. Tinha a esperança de que, ao ouvir os tiros, você fizesse o mesmo com ele. Por isso é que o deixei pensar que me matara.
Kinkaid apertou os olhos, zangado. Depois sua expressão mudou, e ele riu asperamente.
— Queria que eu atirasse nele, não? Por mim, está muito bem. Grato pela oportunidade... Desculpe não haver chegado antes... Mas o trem estava um pouco atrasado e o meu táxi ficou retido no tráfego.
— Por favor, não se desculpe — falou Vance. — Você chegou no momento exato. — Ajoelhou-se junto de Llewellyn e lhe suspendeu a mão: caiu mole. — Está morto e bem morto... Você lhe atravessou o coração. É um excelente atirador, Kinkaid.
— Sempre fui — replicou o outro, secamente.
Markham ainda estava, como um sonâmbulo: pálido e transpirando. Fez um esforço para falar.
— Você... tem certeza de que está bem, Vance?
— Ora, completamente! — Vance sorriu. — Nunca estive melhor. Terei de morrer um dia, mas, realmente, não gostaria que um degenerado patológico como Llewellyn escolhesse a data para o meu falecimento. — Seus olhos se viraram contritamente para Markham: — Estou terrivelmente triste por lhe haver causado, e a Van, toda essa agitação. Mas tinha de gravar a confissão de Llewellyn nos registros. Não tínhamos nenhuma evidência, nenhuma prova esmagadora contra ele, como vocês sabem.
— Mas... mas... — Markham estremeceu, aparentemente ainda incapaz de aceitar a surpreendente situação.
— Oh! O revólver de Llewellyn só tinha cartuchos de festim — explicou Vance. — Verifiquei e providenciei isso hoje pela manhã quando visitei o domicílio dele.
— Você sabia o que ele ia fazer? — Markham olhou incrèdulamente para Vance e esfregou vigorosamente o lenço no rosto.
— Suspeitei da coisa... — disse Vance, acendendo um cigarro.
Markham "arriou" na cadeira, como um homem exausto.
— Tomarei um conhaque — anunciou Kinkaid. — Acho que todos tomaríamos uma bebida. — E se dirigiu à porta que levava ao bar.
Os olhos de Markham ainda estavam pregados em Vance, mas já haviam perdido aquela expressão de espanto:
— O que quis dizer ainda agora quando falou que tinha de pegar a confissão de Llewellyn e gravá-la?
— Exatamente isso — retrucou Vance. — E isto me recorda. Preciso desligar o ditafone.
Encaminhou-se para um pequeno quadro acima da secretária de Kinkaid e o retirou da parede, mostrando um pequeno disco de metal.
— É isto, rapazes — disse, aparentemente falando com a parede. Depois cortou os dois arames atados ao disco.
— Vê, Markham, quando me falou esta manhã do suposto telefonema de Kinkaid, não pude entender a coisa. Porém, logo me acudiu que não fora absolutamente Kinkaid quem telefonara, e sim Llewellyn. Dele é que eu esperava alguma ação, após as observações que lhe pingara no ouvido indiretamente a noite passada. Admito que não esperava nada de tão conclusivo e final como esta pequena representação: por isso é que a princípio fiquei tão surpreso. Porém, desde que a luz brilhou em minha mente, percebi que a história era lógica e sutil. Premissa: você e eu estávamos no caminho certo. Conclusão: você e eu tínhamos de ser arredados do caminho. Assim, visto que estávamos sendo atraídos para o Cassino, não era particularmente difícil acompanhar o silogismo de Llewellyn. Eu estava certíssimo de que ele fora realmente a Atlantic City para dar o telefonema — é difícil, sabe, simular, de uma estação local, um chamado de longa distância. Portanto, eu sabia ter pela frente várias horas para fazer os meus preparativos. Imediatamente, telefonei a Kinkaid em Atlantic City, contei-lhe todas as circunstâncias e pedi-lhe que viesse de imediato para Nova York. Por ele, soube, também, como entrar no Cassino para instalar um ditafone. Por isso é que chamei o vigoroso sargento. Ele e alguns dos rapazes da Divisão de Homicídios e um estenógrafo estão no apartamento da casa vizinha, e anotaram tudo que foi dito aqui esta tarde.
Sentou-se na poltrona em frente a Markham e deu uma longa tragada em seu cigarro; e continuou:
— Admito que não estava muito certo sobre o método que Llewellyn usaria para afastar-nos de seu caminho e atirar as suspeitas sobre o tio. Por isso é que o preveni e a Van para que não bebessem nada aqui — havia a possibilidade de que ele tornasse a empregar veneno. Mas pensei que ele poderia usar seu revólver; de modo que comprei uma caixa de cartuchos de festim, fui à casa dele esta manhã sob um pretexto perfeitamente tolo e, quando fiquei sozinho no seu quarto, substituí os cartuchos do revólver pelos de festim. Havia a possibilidade de que ele notasse a substituição se examinasse o revólver de frente; mas soube que os de festim estavam em seu lugar antes de sentar-me a seu lado há pouco. De outra maneira eu teria aplicado, imediatamente, um pouco de judô no rapazinho...
Kinkaid voltou ao escritório com uma garrafa de conhaque e quatro copos. Descansando a bandeja na secretária, encheu os copos e nos convidou a servir-nos.
— Devo fazê-lo, Vance? — perguntou Markham, com um sorriso. — Você nos disse para não bebermos nada aqui...
— Agora está tudo bem. — Vance tomou um gole do seu Courvoisier. — Desde o princípio considerei o Sr. Kinkaid nosso mais valioso aliado.
— Ora, vá para o diabo! — resmungou Kinkaid, bem-humorado. — Afinal de contas você me venceu!
Nesse momento nos chegou o barulho de uma porta batendo, seguido por pesadas passadas na escada. Kinkaid foi até a porta do escritório que levava ao Salão Dourado e a abriu. No umbral estava Heath, um Colt na mão. Por trás dele, amontoados, estavam Snitkin, Hennessey e Burke. Os olhos de Heath, fixos em Vance, estavam arregalados num espanto infantil.
— O senhor não está morto! — quase gritou.
— Longe disso, sargento; mas, por favor, vire pra lá esse revólver: por hoje, chega de tiros!
A mão de Heath escorregou para o lado, porém seus olhos espantados não desfitavam Vance. Disse:
— Sabe, o senhor me disse para eu não me perturbar com coisa alguma que ouvisse pelo ditafone, e para permanecer na escuta até que me desse o sinal combinado. Mas quando ouvi o que esse garoto disse, e logo os tiros e o senhor caindo, dei a coisa por terminada.
— Muita bondade sua, sargento, mas desnecessária. — Mostrou a figura caída de Lynn Llewellyn. — Aí está o valentão. Nenhuma complicação. Um tiro no coração. Morto. Você terá de levá-lo para o necrotério, claro. Mas será tudo. A coisa saiu maravilhosamente bem. Nenhum distúrbio. Nada de julgamento. Nada de júri. Mas a Justiça triunfante. A vida continua. Mas por quê?
Duvido que Heath haja entendido ou sequer ouvido o que Vance dizia: continuava a olhá-lo, boquiaberto.
— O senhor está certo... de não estar ferido? — As palavras pareciam sair-lhe dos lábios numa automática expressão de sua apreensão.
Vance depositou na mesa o seu copo de conhaque e, caminhando para Heath, pôs-lhe afetuosamente a mão no ombro:
— Completamente certo — disse, com brandura. Balançou a cabeça, em comiseração. — Desculpe, sargento, desapontá-lo assim!...
* * *
O assassinato de Virgínia Llewellyn, como vocês talvez recordem, ocupou as primeiras páginas dos jornais do país durante vários dias, mas logo cedeu lugar a outros escândalos. A maioria dos fatos mais importantes do caso se tornou do conhecimento público. Porém não todos eles. Kinkaid foi, naturalmente, absolvido da morte de Llewellyn: Markham providenciou para que o caso nem sequer fosse a julgamento.
O Cassino foi fechado permanentemente após um ano, e a bela mansão de arenito acinzentado foi derrubada para dar lugar à construção de um moderno arranha-céu. A esse tempo já Kinkaid fizera uma pequena fortuna; e desde então o fabrico de água pesada era sua ocupação.
A Sra. Llewellyn se recuperou do choque da morte de seu filho em muito menos tempo do que eu julgara possível. Lançou-se mais energicamente que nunca em trabalhos de assistência social: freqüentemente vejo seu nome nos jornais, em conexão com atividades filantrópicas. Bloodgood e Amélia Llewellyn se casaram uma semana depois que Kinkaid fechou o Cassino para sempre e agora moram em Paris. (Incidentalmente: a Sra. Bloodgood desistiu de sua carreira artística.) Recentemente encontrei o Dr. Kane na Park Avenue. Ostentava uma aparência de grande importância e me informou que ia correndo para o seu gabinete para um tratamento de diatermia numa paciente.
{1} Os registros da Expedição Conjunta à Mesopotâmia, empreendida pela Universidade da Pensylvania e o Museu Britânico, sob a direção do Dr. C. Leonard Woolley, apareceram recentemente.
{2} Vance possuía alguns cães de caça excepcionalmente bons, que lhe haviam conquistado alguns prêmios notáveis em vários concursos no este. Haviam sido treinados por um dos maiores peritos do país, tendo voltado para Vance perfeitamente domesticados para o trabalho de campo, vance tinha grande satisfação em cuidar pessoalmente dos cães.
{3} Interessante notar que o mesmo método de seleção e treinamento de carteadores foi adotado em Água Caliente.
{4} Kinkaid até empregava as rodas de roleta européias, com apenas um simples "O".
{5} Imagino que Kinkaid teve a idéia desses dois gigantescos atendentes inspirado nos impressionantes gigantes no hall de entrada do salão de jantar do Savoy, em Londres.
{6} Em francês: O senhor se compromete e depois vê... Mas o que espera ver, senhor? (N. do T.)
{7} Snitkin e Hennessey eram dois membros da Divisão de Homicídios que haviam participado em vários dos casos criminais de Vance.
{8} O sargento Ernest Heath, da Divisão de Homicídios, estivera oficialmente encarregado de todos os casos que Vance investigara.
{9} A mesma sala — passou-me pela memória — onde foi jogada a dramática partida de pôquer do caso da Canária.
{10} Dr. Emanuel Doremus, o Médico Legisla Chefe de Nova York.
{11} Secretário de Markham.
S. S. Van Dine
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