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O CRIME DO ESCARAVELHO
O CRIME DO ESCARAVELHO

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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XIV

 

Uma carta hieroglífica

 

Sexta-feira, 13 de julho — 16:15 horas)

 

 

Markham levantou-se irritadamente e percorreu todo o comprimento da sala, voltando em seguida. Como sempre, em momentos de perplexidade, tinha mãos cruzadas às costas e cabeça projetada para a frente.

— Que se danem todas as suas tias! — resmungou ele, quando chegou ao lado de Vance. — Você está sempre chamando por uma tia. Será que não tem nenhum tio?

Vance abriu os olhos e sorriu com brandura.

— Sei como você se sente. — A despeito do tom leviano de sua voz, havia uma inegável simpatia em suas palavras. — Ninguém, neste caso, está agindo como deve. É como se todos estivessem metidos em uma conspiração para confundir e complicar as coisas para nós.

— É exatamente isso! — Markham parecia irritado. — Por outro lado, há alguma coisa de verdadeiro no que o sargento diz. Por que teria Bliss... ?

— Muita teoria, velho Markham — interrompeu Vance. — Oh, muita teoria... muita especulação... muitas indagações fúteis. Aproxima-se uma chave que explicará tudo. Nossa tarefa imediata, ao que me parece, é encontrar essa chave.

— Claro! — Heath falou com pesado sarcasmo. — Suponhamos que eu comece a fincar os móveis com alfinetes de chapéu e a rasgar os tapetes...

Markham estalou os dedos impacientemente e Heath calou-se.

— Vamos voltar à terra. — Olhou para Vance com rancor. — Você já tem alguma idéia definitiva e todos os seus resmungos não são suficientes para me convencer do contrário. Qual é a sua sugestão para o nosso próximo passo? Entrevistar Salveter?

— Precisamente. — Vance concordou com a cabeça com desusada seriedade. — Aquele rapaz fanático se encaixa bem no quadro e sua presença no tablado agora é, como dizem os médicos, indicada.

Markham fez um sinal a Heath que se pôs de pé imediatamente, foi até à porta da sala de visitas e berrou para o andar de cima: — Hennessey!... Traga aquele sujeito aqui embaixo. Temos negócios a tratar com ele.

Poucos momentos mais tarde Salveter era introduzido na sala. Seus olhos brilhavam e ele se plantou agressivamente na frente de Vance, enfiando as mãos com violência nos bolsos das calças.

— Bem, aqui estou — anunciou ele, beligerantemente. — As algemas estão prontas?

Vance bocejou cuidadosamente e examinou o recém-chegado com expressão de enfado.

— Não seja tão viril, Sr. Salveter — disse Vance. — Estamos todos desgastados com este depressivo caso e simplesmente não temos mais condições de suportar demonstrações de energia e vigor. Sente-se e deixe que suas juntas relaxem... Quanto às algemas, o sargento Heath as mantém lindamente polidas. O senhor gostaria de experimentá-las?

— Talvez retrucou — Salveter, observando Vance calculadamente. — O que foi que o senhor disse a Meryt... à Sra. Bliss?

— Ofereci-lhe um dos meus Régies — respondeu Vance descuidadamente. — Ela é uma jovem de muito bom gosto... O senhor gostaria de fumar um desses? Ainda tenho dois.

— Obrigado. Fumo Deities.

— Nunca os mergulhou em ópio? — perguntou Vance delicadamente.

— Ópio?

— O suco concreto de papoulas, por assim dizer... obtido de ranhuras no córtex da cápsula da Papaver somniferum. Palavra grega: opion, isto é, omicron, pi, iota, omicron, nu.

— Não! — Salveter sentou-se abruptamente e desviou o olhar. — Qual é a idéia?

— Parece haver uma abundância de ópio na casa, sabe?

— Oh, é isso? — O homem levantou os olhos atentamente.

— O senhor não sabia? — Vance selecionou um de seus dois remanescentes cigarros. — Estávamos pensando que o senhor e o Sr. Scarlett eram os encarregados dos suprimentos médicos.

Pareceu que Salveter ia dizer algo, mas se passaram alguns instantes antes que falasse.

— Foi Meryt-Amen quem lhe disse isso? — perguntou, finalmente.

— E não é verdade? — Havia uma nota nova na voz de Vance.

— De certo modo — admitiu o outro. — O Dr. Bliss...

— E o ópio? — Vance inclinou-se para a frente.

— Oh, sempre houve ópio no armário lá de cima... quase uma lata.

— O senhor teve ópio em seu quarto ultimamente?

— Não... sim... eu...

— Muito obrigado. Escolheremos uma de suas respostas, não?

— Quem disse que havia ópio em meu quarto? — Salveter pôs os ombros para trás.

Vance recostou-se em sua cadeira.

— Isto realmente não tem importância. De qualquer modo agora não há ópio lá... Escute aqui, Sr. Salveter, o senhor voltou à saleta de refeições esta manhã depois de ter subido com a Sra. Bliss?

— Eu não!... Isto é — emendou ele — não me lembro. Vance se pôs de pé abruptamente e permaneceu ameaçador à frente do rapaz.

— Não tente adivinhar o que a Sra. Bliss nos disse. Se o senhor não quiser responder às minhas perguntas eu o entregarei ao Departamento de Homicídios e Deus que o ajude!... Estamos aqui para saber a verdade e queremos respostas diretas. O senhor voltou ou não à saleta de refeições?

— Não, não voltei.

— Isto é muito melhor... oh, muito melhor! — Vance suspirou e retomou sua cadeira. — E agora, Sr. Salveter, vamos fazer-lhe uma pergunta muito íntima. O senhor está amando a Sra. Bliss?

— Recuso-me a responder!

— Ótimo! Mas o senhor não ficaria absolutamente triste se o Dr. Bliss fosse juntar-se aos seus antepassados?

Salveter contraiu os maxilares e nada disse. Vance o observava ruminativamente.

— Eu sei — disse ele amistosamente — que o Sr. Kyle lhe legou uma considerável fortuna em seu testamento... Se o Dr. Bliss lhe pedisse para continuar a financiar as escavações no Egito, o senhor acederia?

— Eu insistiria nesse ponto, mesmo que ele não me pedisse. — Um brilho fanático luziu nos olhos de Salveter. — Isto é — acrescentou ele como se um novo pensamento lhe tivesse ocorrido — se Meryt-Amen aprovasse. Eu não gostaria de me opor a seus desejos.

— Ah! — Vance tinha acendido seu cigarro e fumava sonhadoramente. — E o senhor acha que ela não aprovaria?

Salveter sacudiu a cabeça.

— Não, creio que ela faria o que o doutor quisesse.

— Uma esposa dedicada... quoi?

Salveter agitou-se na cadeira.

— Ela é a mais reta, a mais leal...

— Sim, sim. — Vance exalou uma espiral de fumaça de cigarro. — Poupe-me seus adjetivos... No entanto, ao que me parece, ela não está inteiramente enlevada com o companheiro que escolheu para sua vida.

— Se não está — retrucou Salveter agastado — ela não o demonstra.

Vance concordou com a cabeça, desinteressadamente.

— O que o senhor pensa de Hani? — indagou.

— É um idiota, embora seja uma boa alma. Adora a Sra. Bliss... — Salveter empertigou-se e seus olhos se arregalaram. — Bom Deus, Sr. Vance! O senhor não está pensando... — Interrompeu-se, horrorizado, mas se recompôs em seguida. — Percebo onde estão querendo chegar. Mas... mas... Esses degenerados egípcios modernos! São todos


iguais... cães orientais todos eles. Nenhum sentimento de certo e errado — diabos supersticiosos — mas leais. Desconfio...

— Muito bem. Todos nós estamos desconfiando. — Vance, aparentemente, não se impressionara com a explosão de Salveter. — Mas, como o senhor diz, Hani é muito chegado à Sra. Bliss. Seria capaz de fazer muitas coisas por ela, não? Talvez arriscasse o pescoço se julgasse que a felicidade dela estava em jogo. É claro, ele poderia precisar de um bocado de preparo...

Uma luz pesada caiu sobre os olhos de Salveter.

— O senhor está na pista errada. Ninguém preparou Hani. Ele tem capacidade para agir por si mesmo...

— E de lançar suspeitas sobre outras pessoas? — Vance olhou para Salveter. — Eu diria que a colocação do alfinete de escaravelho é um pouco sutil demais para um mero fellah.

— O senhor pensa assim? — Salveter falou quase com desprezo. — O senhor não conhece essa gente como eu. Os egípcios já desenvolviam tramas intrincadas quando os nórdicos eram ainda arbóreos.

— Péssima antropologia — murmurou Vance. — E, sem dúvida, o senhor está pensando na tola história de Heródoto sobre a casa do tesouro do Rei Rhampsinutus. Pessoalmente sou de opinião que os sacerdotes estavam tapeando o papa da história... Por falar nisso, o senhor conhece alguém por aqui, além do Dr. Bliss, que use lápis Koh-i-noor?

— Não sabia nem que o doutor os usava. — O homem bateu as cinzas do cigarro no tapete e esfregou-as com o pé.

— O senhor, por acaso, viu o Dr. Bliss hoje pela manhã?

— Não. Quando desci para tomar café, Brush me disse que o doutor estava trabalhando em seu escritório.

— O senhor esteve no museu hoje pela manhã, antes de sair para se desincumbir de seu encargo no Metropolitan?

Salveter piscou os olhos rapidamente.

— Sim! — explodiu finalmente. — Geralmente vou ao museu todas as manhãs depois do café — uma espécie de hábito. Gosto de verificar se tudo está certo, se nada aconteceu durante a noite. Sou o curador assistente e, além de minhas responsabilidades, sinto-me tremendamente interessado pelo local. Faz parte de minhas obrigações ter tudo de olho.

Vance concordou com a cabeça compreensivelmente.

— A que horas o senhor entrou no museu hoje de manhã?

Salveter hesitou. Em seguida, lançando a cabeça para trás, encarou Vance desafiadoramente.

— Saí de casa pouco depois das nove. Quando cheguei à Quinta Avenida ocorreu-me subitamente que não inspecionara o museu e, por alguma razão, fiquei preocupado. Não posso dizer-lhe por que me sentia assim, mas estava preocupado. Talvez por causa do novo carregamento que chegou ontem. De qualquer modo, voltei, usei minha própria chave e entrei no museu...

— Por volta das nove e meia?

— Devia ser isso mesmo.

— E ninguém viu o senhor tornar a entrar em casa?

— Creio que dificilmente. De qualquer modo, não vi ninguém.

Vance olhou para ele desanimadamente.

— Espero que o senhor acabe o seu recital... Se não se incomodar poderei terminá-lo para o senhor.

— Não há necessidade. — Salveter jogou o cigarro em um cinzeiro esmaltado em cima da mesa e colocou-se resolutamente na borda da cadeira. — Direi tudo o que há a ser dito. Se, depois, o senhor não ficar satisfeito, pode determinar minha prisão.... e que vá para o diabo!

. Vance suspirou e deixou a cabeça cair para trás.

— Tanta energia! — sussurrou. — Mas, para que ser vulgar?... Acredito que o senhor tenha visto seu tio antes de finalmente sair do museu e se encaminhar para o Grande Mausoléu Americano na Avenida.

— Sim, eu o vi! — Os olhos de Salveter brilharam e seu queixo projetou-se para a frente. — Agora deduza daí o que quiser.

— Realmente, não posso estar-me preocupando. É muita fatigante. — Vance nem mesmo olhou para o homem: seus olhos, semicerrados, fixavam-se em um candelabro de cristal antigo pendente sobre a mesa do centro. — Já que o senhor viu o seu tio — disse ele — deve ter permanecido no museu no mínimo uma meia hora.

— Mais ou menos isso — Salveter, obviamente, não podia compreender a atitude de indiferença de Vance. — Na verdade, interessei-me por um papiro que recolhemos no inverno passado e procurei decifrar algumas palavras que me embaraçaram. Eram as palavras ankhet, wash e tema, que não consegui traduzir.

Vance cerrou levemente o cenho. Em seguida suas sobrancelhas se ergueram.

— Ankhet... wash... tema... — Pronunciou as palavras vagarosamente. — Ankhet estava escrita com ou sem determinativo?

Salveter não respondeu imediatamente.

— Com o determinativo pele de animal — disse, passado algum tempo.

— E a palavra seguinte era de fato wash, ou was? Novamente Salveter hesitou e olhou Vance com inquietação.

— Era wash, creio... E tema estava escrita com dupla ponta.

— Nada de ideograma fluente, não?... Isto é muito interessante... E durante os seus espasmos lingüísticos o seu tio chegou.

— Sim. Eu estava sentado na mesinha próxima do obelisco quando o Tio Benjamin abriu a porta. Ouvi-o dizer algo a Brush e me levantei para cumprimentá-lo. Estava bastante escuro e ele não me viu até chegar ao andar do museu.

— E então?

— Eu sabia que ele desejava examinar os novos tesouros e, por isso, fui-me embora. Dirigi-me ao Metropolitan...

— Seu tio parecia estar em seu estado de ânimo normal quando chegou ao museu?

— Como de costume... talvez um pouco macambúzio. Ele nunca estava bem-humorado pela manhã. Isso, porém, não queria dizer nada.

— O senhor saiu do museu imediatamente após tê-lo cumprimentado?

— Imediatamente. Não tinha percebido que estivera durante tanto tempo fuçando o papiro; apressei-me a sair. Uma outra coisa, eu sabia que ele tinha vindo avistar-se com o Dr. Bliss sobre assunto muito importante e não desejava importuná-los.

Vance sacudiu a cabeça afirmativamente, mas não deu qualquer indicação quanto a aceitar sem reservas ou não as declarações do outro. Permaneceu sentado, fumando preguiçosamente, os olhos suaves e impassíveis.

— E durante os vinte minutos seguintes — raciocinou Vance em voz alta — isto é, entre as dez horas e as dez e vinte, ocasião em que o Sr. Scarlett entrou no museu, o seu tio foi assassinado.

Salveter estremeceu.

— Assim parece — murmurou ele. — Mas — projetou o queixo para a frente — não tenho nada a ver com isso! Esta é a verdade, quer o senhor aceite ou não.

— Esta agora. Não seja indelicado — admoestou-o Vance calmamente. — Não tenho nada que aceitar ou não aceitar, sabe? Posso, meramente, escolher zombar dela.

— Pois zombe e que se dane!

Vance pôs-se de pé preguiçosamente, um sorriso frio nos lábios — um sorriso mais ameaçador do que qualquer contorção de raiva.

— Não gosto de sua linguagem, Sr. Salveter — disse, lentamente.

— Oh, não gosta? — O homem se pôs de pé num salto, os punhos crispados e desfechou um soco raivoso. Vance, no entanto, recuou com a rapidez de um felino, e segurou o outro pelo punho. Fez, em seguida, um rápido movimento de pivô para a direita e levou o braço de Salveter para trás, torcendo-o de encontro as suas espáduas. Com um involuntário grito de dor, o homem caiu sobre os joelhos. (Lembrei-me da maneira pela qual Vance havia salvo Markham de um ataque no escritório do procurador distrital, quando do encerramento do caso Benson.) Heath e Hennessey deram um passo à frente, mas Vance fez-lhes sinal com a mão livre para que parassem.

— Eu posso dar jeito neste impetuoso cavalheiro — disse ele. Em seguida levantou Salveter e o empurrou de volta à cadeira. — Uma liçãozinha de boas maneiras — observou prazerosamente. — Agora, por favor, civilize-se e responda às minhas perguntas ou serei obrigado a prendê-lo — e à Sra. Bliss — por conspiração para assassinar o Sr. Kyle.

Salveter estava completamente subjugado. Olhava seu antagonista com ridícula surpresa. Depois, repentinamente, parece que as palavras de Vance penetraram em seu atônito cérebro.

— A Sra. Bliss?... Ela não tem nada com isso, asseguro-lhe! — O tom de sua voz, ainda que altamente excitado, era respeitoso. — Se isso a salvar de qualquer suspeita, confesso o crime...

— Não há necessidade de tanto heroísmo. — Vance retomara sua cadeira e de novo fumava calmamente. — O senhor, porém, poderá dizer-nos por que, quando chegou ao museu esta tarde e soube da morte de seu tio, não mencionou o fato de ter estado com ele às dez horas.

— Eu... eu estava demasiado aborrecido... demasiado chocado — balbuciou o homem. — E tinha medo. Instinto de autoproteção, talvez. Não posso explicar. Realmente, não posso. Deveria ter-lhe dito, suponho... mas... mas...

Vance veio em seu auxílio.

— Mas o senhor não desejava envolver-se em um crime do qual era inocente. Sim... sim. Muito natural. Achou melhor esperar e verificar se alguém o havia visto... Escute, Sr. Salveter, não percebeu que se o senhor tivesse admitido ter estado com o seu tio às dez horas isso teria sido um ponto a seu favor?

Salveter se tornara mal-humorado e, antes que pudesse responder, Vance prosseguiu.

— Deixando essas especulações de lado, será que podemos confiar em que nos dirá exatamente o que fez no museu entre as nove e meia e as dez horas?

— Já lhe disse. — Salveter parecia confuso e distrait. — Eu estava comparando um papiro da décima oitava dinastia, recentemente encontrado pelo Dr. Bliss em Tebas, com uma translação de Luckenbill do prisma hexagonal dos Anais de Sennacherib1 a fim de determinar certos valores de...

 

 

(1) O prisma a que se referia Salveter era um de terracota adquirido pelo Instituto Oriental da Universidade de Chicago durante sua expedição de reconhecimento de 1919-20. O documento era uma duplicata variante do prisma de Taylor do Museu Britânico, escrito cerca de dois anos antes sob um outro epônimo.

 

 

— O senhor está romanceando assustadoramente, Sr. Salveter — interrompeu Vance calmamente. — E está-se permitindo um anacronismo. O prisma Sennacherib é feito em escrita cuneiforme babilônica e data de quase mil anos depois. — Levantou os olhos com seriedade. — O que esteve o senhor fazendo no museu esta manhã?

Salveter iniciou a projetar-se para a frente em sua cadeira, mas logo voltou para trás.

— Eu estava escrevendo uma carta — respondeu debilmente.

— Para quem?

— É melhor não dizer.

— Naturalmente. — Vance sorriu desanimado. — Em que língua?

Uma mudança imediata operou-se no homem. Ficou pálido e contraiu as mãos que até então se mantinham sobre os joelhos.

— Em que língua? — repetiu ele asperamente. — Por que me faz esta pergunta?... Em que língua provavelmente eu escreveria?... Banto, sânscrito, Walloon, ido...?

— Não. — O olhar de Vance fixou-se lentamente no rosto de Salveter. — Também eu não tinha em mente o aramaico, o agao, o swahili ou o sumério... O fato é que me ocorreu há um momento atrás que o senhor estava compondo uma epístola em hieróglifos egípcios.

Os olhos do homem se dilataram.

— Por que, em nome dos céus — perguntou desajeitadamente —, eu faria uma coisa dessas?

— Por quê? Ah, sim... por que mesmo? — Vance soltou um profundo suspiro. — Mas, na verdade, o senhor estava compondo em egípcio, não estava?

— Estava? O que o faz pensar assim?

— Devo explicar?... É tão diabolicamente simples. — Vance pôs fora o cigarro e fez um gesto apologético. — Eu poderia até adivinhar a quem a epístola era dirigida. A não ser que eu esteja desanimadoramente enganado, a Sra. Bliss era a destinatária. — Novamente Vance sorriu meditativamente. — O senhor mencionou três palavras do imaginário papiro que ainda não teria satisfatoriamente traduzido — ankhet, wash e tema. Mas, como até agora há dezenas de palavras egípcias que têm resistido a uma translação acurada, fiquei imaginando por que o senhor teria mencionado essas três em particular. Fiquei imaginando, além disso, por que o senhor iria mencionar três palavras de cujo significado não se lembrava, e que se aproximam tanto de outras tão familiares em egípcio... Refleti então sobre qual o significado dessas três palavras familiares. Ankh — sem um determinativo pode significar "o que vive". Was — que tanto se aproxima de wash — significa "felicidade" ou "boa fortuna", ainda que não ignore haver algumas dúvidas a esse respeito — Erman traduz essa palavra, com um ponto de interrogação, como Glück. A palavra tema com ponta dupla, que o senhor mencionou, é desconhecida para mim. No entanto, estou familiarizado com tem, que significa "a ser terminado" ou "a ser acabado"... está-me acompanhando?

Salveter olhava como um homem hipnotizado.

— Bom Deus! — murmurou ele.

— E assim — continuou Vance — concluí que o senhor estava lidando com formas bem conhecidas dessas três palavras e as mencionara porque, em suas outras formas aproximadas, seu significado transliterado é desconhecido... Além disso, as palavras se encaixavam perfeitamente na situação. Na verdade, Sr. Salveter, não seria preciso muita imaginação para reconstituir sua carta, conhecidas as três expressões-chave, isto é, o que vive, felicidade ou boa fortuna e a acabar, ou, terminar.

Vance parou brevemente, como para arrumar as palavras.

— O senhor provavelmente compôs uma comunicação em que dizia que "o que vive" (ankh) se interpunha no caminho de sua "felicidade" ou "boa fortuna" (was), e expressava o desejo de que a situação "terminasse" ou "acabasse" (tem)... Estou certo ou não?

Salveter continuava a olhar para Vance com uma espécie de assombro.

— Vou falar a verdade — disse ele por fim. — Foi isso exatamente o que escrevi. Meryt-Amen, que conhece a linguagem hieroglífica do Egito Médio melhor do que eu jamais conhecerei, sugeriu, faz muito tempo, que eu escrevesse para ela pelo menos uma vez por semana na linguagem de seus ancestrais, como exercício. Venho fazendo isso há anos. Ela sempre me corrige e me aconselha — é quase tão versada como qualquer dos escribas que decoraram as tumbas antigas... Esta manhã, quando voltei ao museu, lembrei-me de que o Metropolitan não abriria até às dez horas e, num súbito impulso, sentei-me e comecei a trabalhar nessa carta.

— Que pena — suspirou Vance — mas sua fraseologia naquela carta faz parecer que o senhor estava antevendo a adoção de medidas drásticas.

— Sei disso! — Salveter prendeu a respiração. — Aí está porque lhe menti. Mas o fato é, Sr. Vance, que a carta era bastante inocente... Sei que era bobagem, mas não a levei a sério. Francamente, senhor, era realmente uma lição sobre composição em egípcio — não uma comunicação de fato.

Vance concordou com a cabeça sem se comprometer.

— E onde está a carta agora? — quis saber.

— Na gaveta da mesa, no museu. Ainda não a havia terminado quando o Tio Benjamin chegou e a pus de lado.

— O senhor já se tinha utilizado dessas três palavras, ankh, was e tem?

Salveter concentrou-se e tomou uma respiração profunda.

— Sim! Já havia usado essas três palavras familiares. Então, quando o senhor me perguntou pela primeira vez sobre o que eu tinha feito no museu inventei a história sobre o papiro...

— E mencionou três palavras que lhe foram sugeridas pelas que o senhor realmente usou... não?

— Sim, senhor! É verdade.

— Agradecemos muito sua súbita explosão de sinceridade. — O tom de Vance era frígido. — O senhor quer ter a bondade de nos trazer a epístola inacabada? Adoraria vê-la e" talvez pudesse decifrá-la.

Salveter se pôs de pé num salto e quase saiu correndo da sala. Voltou poucos momentos depois, sob todos os aspectos estonteado e desanimado.

— Não está lá — anunciou ele. — Sumiu.

— Oh, e essa agora... Que pena.

Vance recostou-se pensativamente durante alguns instantes. Era seguida se pôs de pé repentinamente.

— Não está lá!... Sumiu! — murmurou ele. — Não gosto dessa situação, Markham... não gosto absolutamente... Por que teria a carta desaparecido? Por que... por quê?

Aproximou-se de Salveter.

— Em que espécie de papel o senhor escreveu aquela indiscreta carta? — perguntou, com controlada excitação.

— Em um bloco de papel amarelo... do tipo que geralmente se encontra em cima da mesa...

— E quanto à tinta... o senhor escreveu a lápis ou a tinta os caracteres?

— A tinta. Tinta verde. Há sempre lá no museu... Vance levantou a mão em um gesto de impaciência.

— Basta... Suba, vá para seu quarto... e espere lá.

— Mas, Sr. Vance, eu... eu estou preocupado com a carta. Onde o senhor julga que ela está?

— Por que deveria eu saber onde ela está?... E isto desde que, é claro, o senhor a tenha escrito. Não tenho vara de condão. — Vance estava terrivelmente preocupado, ainda que procurasse esconder esse fato. — O senhor não tinha coisa melhor a fazer do que deixar essa carta solta por aí?

— Nunca supus...

— Oh, nunca supôs?... Creio que não. — Vance olhou intensamente Salveter. — Essa não é a hora de especulações... Por favor, vá para o seu quarto. Tornarei a falar com o senhor... Não faça perguntas. Faça o que lhe estou dizendo!

Salveter, sem uma palavra, voltou-se e desapareceu pela porta. Podíamos ouvir suas pesadas passadas ao subir as escadas.


XV

 

Vance faz uma descoberta

 


(Sexta-feira, 13 de julho — 16:45 horas)

 

 

Vance permaneceu durante algum tempo em inquieto silêncio. Finalmente ergueu os olhos na direção de Hennessey.

— Quero que você vá lá para cima — disse ele — e escolha um posto de onde possa vigiar todos os quartos. Não quero que haja qualquer comunicação entre a Sra. Bliss, Salveter e Hani.

Hennessey consultou Heath com os olhos.

— Essas são as ordens — informou-o o sargento, e o detetive afastou-se sem alacridade.

Vance voltou-se para Markham.

— Talvez esse idiota desse jovem tenha de fato escrito essa tola carta — comentou, enquanto uma expressão preocupada aflorava-lhe ao rosto. — Vamos dar uma espiada no museu.

— Escute aqui, Vance, — Markham levantou-se — por que a possibilidade de que Salveter tenha escrito essa carta tola preocupa a você?

— Não sei — não tenho certeza. — Vance foi até à porta, mas logo se voltou subitamente. — Mas estou temeroso — estou infernalmente temeroso! Tal carta daria ao criminoso uma saída — isto é, se o que penso for verdade. Se a carta foi escrita temos que encontrá-la. Se não a encontrarmos há diversas explicações plausíveis para o seu desaparecimento — e uma delas é diabólica... Mas, vamos. Teremos que proceder a uma busca no museu — na chance de que tenha sido escrita, como diz Salveter, e deixada na gaveta da mesa.

Cruzou rapidamente o saguão e abriu a grande porta de aço.

— Se o Dr. Bliss e Guilfoyle chegarem enquanto estamos no museu — disse Vance a Snitkin, que permanecia encostado junto à porta da frente — leve-os à sala de visitas e os mantenha lá.

Descemos as escadas para o museu e Vance, imediatamente, foi até à mesinha situada ao lado do obelisco. Olhou para o bloco de papel amarelo e testou a cor da tinta. Em seguida abriu a gaveta e dela retirou o que continha. Após uns minutos de exame do conteúdo da gaveta, arrumou-a e fechou-a. Havia junto à mesinha uma cesta de papéis usados, de mogno, que Vance esvaziou no chão. Ajoelhando-se, examinou todos os pedacinhos de papel amassados. Finalmente levantou-se e sacudiu a cabeça.

— Não gosto disso, Markham, — disse ele. — Sentir-me-ia muito melhor se pudesse encontrar a carta.

Caminhou pelo museu, procurando pontos onde uma carta poderia ter sido jogada. Quando, porém, chegou às escadas em espiral ao fundo da sala, nelas apoiou as costas e olhou para Markham desanimadamente.

— Estou ficando cada vez mais assustado — observou em voz baixa. — Se essa trama diabólica der certo!... — Voltou-se subitamente e subiu as escadas correndo, fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. — Há uma chance... apenas uma chance — disse por sobre os ombros. — Eu devia ter pensado nisso antes.

Nós o seguimos, sem compreender, até o escritório do Dr. Bliss.

— A carta deveria estar no escritório — observou, procurando controlar sua ansiedade. — Era o que seria lógico e este caso é, fora de dúvida, inacreditavelmente lógico, Markham — tão lógico, tão matemático que por fim seremos capazes de entendê-lo corretamente. De fato é demasiadamente lógico — e aí reside sua fraqueza...

Vance já estava de quatro remexendo no esparramado conteúdo da cesta de papéis do Dr. Bliss. Após uns momentos de busca pegou dois pedaços rasgados de papel amarelo. Olhou-os cuidadosamente e pudemos notar pequeninas marcas de tinta verde no papel. Vance colocou-os de lado e prosseguiu em sua busca. Depois de alguns instantes tinha separado uma pequena pilha de fragmentos de papel amarelo.

— Creio que isso é tudo — disse, levantando-se. Sentou-se na cadeira giratória e colocou os pedaços de papel rasgados sobre o mata-borrão.

— Isso pode demorar algum tempo, mas como conheço razoavelmente hieróglifos egípcios, acredito que cumpra a tarefa sem muita dificuldade.

Vance começou a ajeitar e a encaixar uns nos outros os pedacinhos de papel, enquanto Markham, Heath e eu permanecíamos atrás dele, olhando-o fascinados. Ao fim de dez minutos Vance havia reconstituído a carta. Pegou então uma folha de papel branco grande de dentro de uma das gavetas e cobriu-a com mucilagem. Cuidadosamente, transferiu a carta reconstituída, peça por peça, para o papel gomado.

— Aí está, velho Markham, — suspirou ele — a carta inacabada que nos falou Salveter estar elaborando esta manhã, entre nove e meia e dez horas.

O documento era inquestionavelmente uma folha do papel amarelo que havíamos visto no museu. Nele viam-se quatro linhas de caracteres egípcios antigos, detalhadamente elaborados com tinta verde.

Vance colocou o dedo em um dos grupos de caracteres.

— Isso — disse-nos ele — é o hieróglifo ankh: Mudou o dedo de posição. — Aqui o sinal was... e aqui, mais para o fim, o que corresponde a tem.

— E daí? — Heath estava positivamente confuso e seu tom não parecia muito delicado. — Não podemos prender um sujeito porque desenhou umas figuras com olhos de aves em um pedaço de papel amarelo.

— Meu Deus, sargento! O senhor não pensa em outra coisa senão em atirar pessoas em masmorras? Temo que o senhor não tenha a natureza humana. Que pena... Por que não procura, ocasionalmente, usar o cérebro? — Olhou para cima e fiquei surpreendido com sua seriedade. — O jovem e impetuoso Sr. Salveter confessa que escreveu tolamente uma carta para sua Dulcinéia na linguagem dos faraós. Disse-nos que colocou o inacabado billet-doux na gaveta de uma mesa no museu. Descobrimos que não se encontra na gaveta da mesa mas sim que foi implacavelmente rasgada e atirada na cesta de papéis do escritório do Dr. Bliss... Que possíveis razões segundo as quais o senhor encararia o Paulo dessa epístola como um assassino?

— Não estou encarando ninguém como coisa nenhuma — retorquiu Heath violentamente. — Mas há muitas besteiras por aqui para que me sinta satisfeito. Quero ação.

Vance observava-o gravemente.

— Por uma vez, também quero ação, sargento. Se não tomarmos uma atitude qualquer dentro em breve, poderemos esperar por algo ainda pior do que já aconteceu. Mas terá que ser uma atitude inteligente — não o tipo de ação que o criminoso deseja que empreendamos. Estamos enredados nas malhas de uma trama habilmente urdida e, a não ser que tomemos cuidado com os nossos passos, o culpado continuará livre e nós ainda nos debatendo na teia.

Heath resmungou e passou a observar atentamente a carta reconstituída.

— Que maneira horrível de um sujeito escrever para uma dama — comentou ele com mal-humorado desdém. — Prefiro um tiro bem dado por um gangster. Esses crimes elegantes me enojam.

Markham estava carrancudo.

— Olhe aqui, Vance, — disse ele — você acredita que o criminoso tenha rasgado a carta e lançado os pedaços na cesta de papéis do Dr. Bliss?

— Pode haver alguma dúvida a esse respeito? — perguntou Vance como resposta.

— Mas qual, em nome dos céus, poderá ter sido o objetivo?

— Ainda não sei. Aí está por que estou assustado. — Vance olhou para fora pela janela de trás. — Mas a destruição daquela carta faz parte da trama e até que possamos obter provas claras e insofismáveis estamos em um beco sem saída.

— Ainda assim — insistiu Markham — se a carta fosse incriminatória, parece-me que teria sido valiosa para o criminoso. Rasgá-la não ajuda ninguém.

Heath olhou primeiro para Vance e depois para Markham.

— Talvez — sugeriu ele — o próprio Salveter a tenha rasgado.

— Quando? — indagou Vance calmamente.

— Como posso saber? — O sargento estava exasperado. — Talvez quando ele abateu o velho.

— Se esse fosse o caso, Salveter não teria admitido tê-la escrito.

— Bem — insistiu Heath — talvez ele a tenha rasgado quando o senhor mandou procurá-la há uns poucos minutos.

— E então, após havê-la destruído, veio até aqui e jogou os pedaços na cesta, onde poderiam ser encontrados... Não, sargento. Isso não é inteiramente razoável. Se Salveter se assustou e decidiu livrar-se da carta tê-la-ia destruído completamente — tê-la-ia queimado, mais provavelmente, sem dela deixar qualquer vestígio.

Markham, também, havia ficado fascinado pelos hieróglifos que Vance reconstituíra. Permanecia olhando, perplexo, os pedaços de papel novamente reunidos.

— Você julga, então, que a intenção era que nós achássemos a carta? — quis saber ele.

— Não sei. — O olhar distante de Vance não se modificou. — Talvez... e ainda assim... Não! Havia apenas uma chance em mil que viéssemos a esbarrar nela. A pessoa que jogou a carta aqui na cesta de papéis não poderia saber, nem mesmo presumir, que Salveter nos dissesse que a havia escrito e que a largara por aí.

— Por outro lado — Markham relutava em abandonar sua linha de raciocínio — a carta pode ter sido jogada aí na esperança de enredar Bliss ainda mais, isto é, ela pode ter sido encarada pelo criminoso como uma evidência forjada a mais, juntamente com o alfinete de escaravelho, o relatório financeiro e as pegadas.

Vance sacudiu a cabeça.

— Não. Isso não podia ser. Bliss, como sabe, não poderia ter escrito a carta... ela é, obviamente em demasia, uma comunicação de Salveter para a Sra. Bliss.

Vance pegou a carta reconstituída e se pôs a estudá-la durante algum tempo.

— Ela não é particularmente difícil de ser lida por alguém que saiba um pouco de egípcio. Nela está escrito exatamente aquilo que Salveter nos disse. — Tornou a colocar o papel em cima da mesa. — Há algo incrivelmente diabólico por trás disso. Quanto mais penso a respeito, mais me convenço de que não era esperado que achássemos a carta. Minha impressão é de que a carta foi descuidadamente jogada fora por alguém... após ter servido ao seu objetivo.

— Mas que possível objetivo? — indagou Markham.

— Se soubéssemos qual o objetivo — tornou Vance gravemente — poderíamos evitar outra tragédia.

Markham comprimiu os lábios sombriamente. Eu sabia o que se passava em seu cérebro: estava pensando nas terríveis predições de Vance nos casos dos Greenes e do Bispo — predições que se tornaram verdadeiras com todo o horror de uma catástrofe final e inelutável.

— Você acredita que este caso não esteja ainda encerrado? — perguntou Markham lentamente.

— Eu sei que não está. O plano não está completo. Nós prejudicamos os planos do criminoso não prendendo o Dr. Bliss. Precisamos continuar. Vimos apenas os obscuros preliminares desse tremendo esquema — e quando a trama for finalmente revelada, será monstruoso...

Vance dirigiu-se calmamente até à porta que conduzia ao saguão e, abrindo-a um pouquinho, espiou para fora.

— E, Markham, devemos ser cautelosos — é no que estou insistindo desde o princípio. Não nos devemos deixar apanhar por qualquer das armadilhas do criminoso. A prisão do Dr. Bliss era uma dessas armadilhas. Um único passo em falso de nossa parte e a trama terá êxito.

Voltou-se para Heath.

— Sargento, quer ter a bondade de me trazer o bloco de papel amarelo, a caneta e a tinta da mesa do museu?... Nós, também, devemos cobrir nossas pegadas, pois estamos sendo seguidos tão de perto quanto estamos seguindo o criminoso.

Heath, sem uma palavra, entrou no museu e, poucos momentos mais tarde, voltava com os artigos que lhe tinham sido pedidos. Vance pegou-os e sentou-se à mesa do doutor. Então, colocando a carta de Salveter à sua frente começou a copiar cuidadosamente os fonogramas e ideogramas em uma folha do papel amarelo.

— É melhor, creio eu, — explicou ele enquanto trabalhava — que escondamos o fato de que encontramos a carta. A pessoa que a rasgou e a atirou na cesta poderá suspeitar de que a encontramos e procurar os fragmentos. Se eles não estiverem aqui, ficará em guarda. É meramente uma remota precaução, mas não nos podemos permitir qualquer deslize. Estamos nos defrontando com uma mente de diabólica inteligência...

Após ter acabado de transcrever uns doze símbolos, Vance rasgou o papel em pedacinhos do mesmo tamanho que os da carta original e misturou-os com o conteúdo da cesta de papéis. Em seguida dobrou e colocou no bolso a carta original de Salveter.

— O senhor se incomoda, sargento, de voltar com a tinta e o papel para o museu?

— O senhor poderia ter sido um falsário, Sr. Vance — observou Heath bem-humorado, pegando o papel e o tinteiro e desaparecendo pela porta de aço.

— Não vejo luz alguma — comentou Markham tristemente. — Quanto mais avançamos, mais complicado se torna o caso.

Vance concordou com a cabeça, sombriamente.

— Não há nada que possamos fazer agora, a não ser aguardar os acontecimentos. Até agora temos detido o rei dos criminosos, mas ainda lhe restam alguns lances. É como uma das combinações de Alekhine no xadrez — não se pode prever exatamente o que ele tem em mente quando inicia um ataque. E ele poderá produzir uma combinação que limpe o tabuleiro e nos deixe sem defesa...

Heath reapareceu nesse momento, parecendo inquieto.

— Não gosto daquela maldita sala — resmungou ele. — Há cadáveres em demasia. Por que esses percevejos científicos andam desencavando múmias e coisas? É mórbido.

— Uma perfeita crítica dos egiptólogos, sargento — comentou Vance com um sorriso de simpatia. — Egiptologia não é uma ciência arqueológica — é uma condição patológica, uma aflição cerebral — dementia scholastica. Uma vez que o spirillum terrigenum penetre em seu sistema, você está perdido — amaldiçoado com uma moléstia incurável. Se você desenterra cadáveres que estão embaixo da terra há mil anos, você é um egiptólogo; mas se são cadáveres recentes, você é um Burke ou um Hare e a lei lhe cai em cima. Tudo isso se encaixa sob o título de remoção ilegal de cadáveres...1

 

 

 

(1) Vance estava descrevendo uma hipérbole e não acreditava mais do que John Dennis em "que um homem que pode cometer trocadilhos tão vis terá escrúpulos em bater carteiras". Vance conhecia vários egiptólogos e os respeitava altamente. Entre eles figuravam o Dr. Ludlow Buli e o Dr. Henry A. Carey, do Museu Metropolitano de Arte, que, de ama feita, o ajudaram generosamente em seu trabalho sobre os fragmentos de Menandro.

 


— Seja como for — Heath estava ainda confuso e mastigando seu charuto raivosamente — não gosto das coisas naquela morgue. E, especialmente, não gosto do ataúde negro sob as janelas da frente. O que há dentro dele, Sr. Vance?

— O sarcófago de granito? Realmente, não sei, sargento. Está vazio, provavelmente, a não ser que o Dr. Bliss o utilize como depósito — o que não é provável, considerando o peso de sua tampa.

Bateram à porta do saguão e Snitkin informou que Guilfoyle havia chegado com o Dr. Bliss.

— Há apenas uma ou duas perguntas que gostaria de fazer-lhe — disse Vance. — Depois, creio, poderemos ir embora: estou prelibando bolinhos com geléia...

— Ir embora agora? — perguntou Heath em surpreendido desgosto. — Qual é a idéia? Apenas começamos esta investigação.

— Fizemos mais do que isso — protestou Vance delicadamente. — Evitamos todas as ciladas que o criminoso nos armou. Transtornamos todos os seus cálculos e o obrigamos a reconstruir suas trincheiras. No pé em que se encontra o caso agora, é empate. O tabuleiro tem que ser arrumado novamente — e, felizmente para nós, o criminoso está com as peças brancas. É seu o primeiro movimento. Ele, simplesmente, tem que vencer a partida; não pode permitir-se jogar por um empate.

— Estou começando a compreender o que está querendo dizer, Vance. — Markham acenou com a cabeça, lentamente, de modo afirmativo. — Nós nos recusamos a acompanhar os seus movimentos em falso e ele tem agora que tornar a colocar a isca em sua armadilha.

— Dito com uma precisão e clareza completamente impróprias a um advogado — retrucou Vance, com um sorriso forçado. Em seguida ficou novamente sério. — Sim, creio que ele terá que recolocar a isca antes de qualquer movimento final. Estou com a esperança de que a nova isca nos dê a solução de toda a trama e permita ao sargento efetuar suas prisões.

— Bem, tudo o que tenho a dizer — reclamou Heath — é que é o caso mais curioso em que já me vi envolvido. Vamos comer bolinhos e esperar que o criminoso dê as cartas! Se eu expusesse uma tal técnica a O'Brien,1 ele chamaria uma ambulância e me mandaria para Bellevue.

— Providenciaremos para que o senhor não vá para uma enfermaria de psicopatas, sargento — disse Markham irritadamente, encaminhando-se para a porta.

 

 

 

(1) Inspetor-Chefe O'Brien era, à época, responsável por todo o Departamento de Polícia do Estado de Nova York.

 

 

 

 

XVI

 

Uma visita depois da meia-noite


(Sexta-feira, 13 de julho — 17:15 horas)

 

 

Encontramos o Dr. Bliss na sala de visitas, afundado em uma espreguiçadeira, o chapéu de tweed puxado sobre os olhos. Ao seu lado, Guilfoyle permanecia de pé, sorrindo maliciosamente.

Vance estava aborrecido e não se preocupou em esconder esse fato.

— Diga ao seu eficiente sabujo que espere lá fora, sim, sargento?

— OK. — Heath olhou Guilfoyle pesarosamente. — Caia fora, Guil, — ordenou ele — e não faça perguntas. Isto é um crime de morte — é uma festa de bruxas em um pulguedo.

O detetive sorriu e retirou-se.

Bliss ergueu os olhos. Era uma figura com aparência de derrota. Tinha o rosto ruborizado e, em suas faces encovadas, lia-se a humilhação e a apreensão.

— Agora eu suponho — disse ele em voz trêmula — que os senhores me prenderão por este crime horrendo. Mas — oh, meu Deus, cavalheiros! — eu lhes asseguro...

Vance parará a seu lado.

— Um momento, doutor — interrompeu ele. — Não se preocupe. Não iremos prendê-lo, mas gostaríamos de ter uma explicação de sua surpreendente ação. Por que, se o senhor é inocente, tentaria sair do país?

— Por que... por quê? — O homem se mostrava nervoso e excitado. — Eu estava com medo — esse é o porquê. Tudo está contra mim. Todos os indícios apontam para mim... Há alguém que me odeia e que me quer ver fora do caminho. Tudo é demasiado óbvio. A colocação de meu alfinete de escaravelho ao lado do corpo do pobre Kyle, o relatório financeiro encontrado na mão do morto, aquelas pegadas de sangue conduzindo ao meu escritório — pensam que não sei o que significa tudo isso? Significa que eu devo pagar o preço — eu, eu. — Bateu no peito fracamente. — E outras coisas serão encontradas; a pessoa que matou Kyle não descansará até que me veja por trás das grades — ou morto. Sei disso — sei disso! Aí está por que procurei fugir. E agora os senhores me trouxeram de volta à situação de um morto-vivo — a uma sorte mais desgraçada do que a que se abateu sobre o meu velho benfeitor...

Sua cabeça caiu para a frente e um estremecimento percorreu-lhe o corpo.

— Mesmo assim, foi uma tolice tentar fugir, doutor — observou Markham delicadamente. — O senhor deve confiar em nós. Asseguro-lhe que nenhuma injustiça será feita. Viemos a saber de muitas coisas no curso das investigações, e temos razões para acreditar que o senhor estava sob a ação de ópio em pó quando o crime foi cometido...

— Ópio em pó! — Bliss quase deu um pulo de sua cadeira. — Foi o gosto que senti! Havia algo diferente no café, esta manhã — senti um sabor curioso. Inicialmente pensei que Brush não o preparara da maneira que recomendei. Em seguida me senti tonto e esqueci do assunto... Ópio! Conheço o gosto. Uma ocasião tive disenteria no Egito e tomei ópio com pimenta da Guiné — minha Sun Cholera Mixture1 tinha acabado. — Sua boca se abriu desmedidamente e lançou a Markham um olhar de aterrorizado apelo. — Envenenado em minha própria casa! — Repentinamente uma vingança sombria brilhou em seus olhos. — O senhor tem razão — disse ele com uma dureza metálica. — Eu não deveria ter tentado fugir. Meu lugar é aqui e é minha obrigação ajudá-los...

 

 

 

(1) A Sun Cholera Mixture para disenteria (uma receita do Dr. G. W. Busteed) recebeu esse nome por ter sido sua fórmula publicada pelo New York Sun durante a agitação sobre a cólera em Nova York, em junho de 1849. A fórmula foi admitida na primeira edição do Formulário Nacional, em 1883. Era constituída de tintura de pimenta da Guiné, tintura de ruibarbo, espírito de cânfora, essência de hortelã e ópio.

 


— Sim, sim, doutor. — Vance estava palpavelmente aborrecido. — Lamentações são muito confortadoras, mas estamos procurando lidar com fatos. E até aqui o senhor não tem prestado grande ajuda... Diga-nos, quem era encarregado dos suprimentos médicos? — A pergunta foi feita abruptamente.

— Ora... ora... deixe-me ver... — Bliss desviou os olhos e começou a mexer no vinco das calças.

— Esqueça a pergunta. — Vance fez um gesto de resignação. — Talvez o senhor prefira dizer-nos quão bem a Sra. Bliss conhece hieróglifos egípcios.

Bliss pareceu surpreendido e foram-lhe necessários alguns momentos antes de se recompor.

— Ela os conhece, praticamente, tão bem quanto eu — respondeu finalmente. — Seu pai, Abercrombie, ensinou-lhe o antigo egípcio quando ela era ainda criança, e tem trabalhado comigo há anos na decifração das inscrições...

— E Hani?

— Oh, ele tem conhecimentos superficiais da grafia hieroglífica — nada fora do comum. Falta-lhe um cérebro educado...

— E o Sr. Salveter? Conhece bem o antigo egípcio?

— Razoavelmente bem. Ele é fraco em conhecimentos gramaticais, mas conhece bem os sinais e o vocabulário. Salveter estudou grego e árabe. Acredito que tenha estudado também um ou dois anos de assírio. Copta, do mesmo modo. A base lingüística usual para um arqueólogo. Scarlett, por outro lado, é algo como um perito, ainda que seja um seguidor leal do sistema de Budge — como muitos outros amadores.1) E Budge, é claro, é antiquado. Não me interpretem mal. Budge é um grande homem. Suas contribuições à egiptologia são inestimáveis e sua publicação do Livro dos Mortos...

 

 

 

(1 ).Sir E. A. Wallis Budge foi durante muitos anos o Conservador Antiguidades Egípcias e Assírias no Museu Britânico.

 


— Eu sei. — Vance concordou com impaciência. — Seu Index torna possível encontrar quase que qualquer passagem no Papiro de Ani...

— Exatamente. — Bliss começou a demonstrar uma curiosa animação: seu entusiasmo científico se manifestava.

— Alan Gardiner, no entanto, é o verdadeiro sábio moderno. Sua Gramática Egípcia é uma obra profunda e acurada. O opus mais importante em egiptologia, no entanto, é o Wörterbuch der aegyptischen Sprache, de Erman-Grapow...

Vance, subitamente, tornara-se interessado.

— O Sr. Salveter usa o Wörterbuch de Erman-Grapow? — quis saber ele.

— Certamente. Insisti nisso. Encomendei três coleções a Leipzig — uma para mim e cada uma das outras para Salveter e Scarlett.

— Os sinais diferem bastante, creio, do tipo Theinhardt usado por Budge.

— Oh, sim. — Bliss tirou o chapéu e jogou-o no chão.

— A consoante traduzida por Budge como u — o filhote de pássaro — aparece como w no Wörterbuch e em todas as obras modernas. E, é claro, há ainda o sinal cursivo em espiral que é também a adaptação hieroglífica da forma hierática abreviada de...

— Obrigado, doutor. — Vance pegou sua cigarreira, viu que lhe sobrara apenas um Régie e tornou a colocá-la no bolso. — Soube que o Sr. Scarlett, antes de sair de casa esta tarde, esteve lá em cima. Acredito que tenha ido vê-lo.

— Sim. — Bliss acomodou-se na cadeira. — Um sujeito simpático, Scarlett.

— O que lhe disse ele?

— Nada de importância. Desejou-me boa sorte, disse que estaria às ordens, se eu necessitasse dele. Coisas desse tipo.

— Quanto tempo ele passou com o senhor?

— Um minuto, mais ou menos. Saiu imediatamente. Disse que ia até a casa.

— Mais uma pergunta, doutor — falou Vance após uma interrupção de alguns instantes. — Quem, nesta casa, teria razões para jogar em suas costas o assassinato do Sr. Kyle?

Uma mudança repentina ocorreu em Bliss. Seus olhos se fixaram à frente e as linhas de seu rosto se endureceram em contornos quase aterrorizantes. Apertou os braços da cadeira e encolheu os pés. Medo e ódio apossaram-se dele; parecia um homem prestes a saltar sobre um inimigo mortal. Levantou-se em seguida, com todos os músculos do corpo tensos.

— Não posso responder a esta pergunta. Recuso-me a fazê-lo!... Não sei... não sei! Mas alguém existe, não é mesmo? — Esticou a mão e agarrou o braço de Vance. — Os senhores deveriam ter-me deixado fugir. — Seus olhos assumiram uma expressão selvagem e olhou apressadamente na direção da porta, como se temesse algum perigo iminente partido do saguão. — Faça-me prender, Sr. Vance! Faça o que quiser mas não me peça para permanecer aqui... — Sua voz se tornara compadecidamente apelativa.

Vance afastou-se dele.

— Controle-se, doutor, — disse em tom casual. — Nada lhe vai acontecer... Vá para o seu quarto e permaneça lá até amanhã. Nós cuidaremos do aspecto criminal do caso.

— Mas os Penhores não têm qualquer idéia sobre quem cometeu essa coisa horrível — protestou Bliss.

— Oh, mas saberemos, não tenha dúvida. — A afirmação serena de Vance pareceu exercer um efeito calmante sobre ele. — Somente nos é necessário aguardar um pouco. Até agora não temos provas suficiente para efetuar uma prisão. Mas, como o principal objetivo do criminoso falhou, é quase inevitável que tente um outro movimento e, quando o fizer, teremos talvez oportunidade de colher a necessária prova contra ele.

— Mas suponha que ele exerça uma ação direta — contra mim? — retrucou Bliss. — O fato de que tenha falhado em me envolver pode levá-lo a medidas mais desesperadas.

— Dificilmente eu pensaria assim — tornou Vance. — Mas, se alguma coisa acontecer, o senhor me encontrará nesse telefone. — Vance escreveu o número de seu telefone particular em um pedaço de papel e entregou-o a Bliss.

O doutor pegou o cartão ansiosamente, olhou-o e o colocou no bolso.

— Vou subir agora — anunciou e se dirigiu abstratamente para fora da sala.

— Você tem certeza, Vance, — perguntou Markham preocupado — de que não estamos submetendo o Dr. Bliss a um risco desnecessário?

— Absoluta. — Vance se pusera pensativo. — De qualquer modo, é um jogo delicado e não há outra maneira de agir. — Foi até à janela. — Não sei... — murmurou ele, acrescentando após alguns momentos: — Sargento, eu gostaria de falar com Salveter. E não há necessidade de que Hennessey permaneça lá em cima. Dispense-o.

Heath, confuso e aborrecido, foi até o saguão e chamou Hennessey.

Quando Salveter entrou na sala Vance nem sequer olhou em sua direção.

— Sr. Salveter, — disse ele, olhando as árvores empoeiradas do Parque Gramercy — se eu fosse o senhor fecharia a porta do meu quarto hoje de noite... E não escreva mais cartas — acrescentou ele. — Afaste-se também do museu.

Salveter pareceu assustado com essas recomendações. Estudou Vance durante algum tempo e em seguida contraiu os maxilares.

— Se alguém começar com coisas por aqui... — começou ele com uma agressividade quase feroz.

— Oh, muito bem — suspirou Vance. — Mas não projete sua personalidade com tanta intensidade. Estou fatigado.

Salveter, após um momento de hesitação, voltou-se e saiu da sala. Vance foi até à mesa do centro e apoiou-se pesadamente nela.

— Agora, uma palavra com Hani e podemos partir. Heath deu de ombros resignadamente e foi até à porta.

— Ei, Snitkin, traz aqui aquele Ali Babá de quimono.

Snitkin apressou-se a subir as escadas e pouco depois o egípcio se encontrava à nossa frente, sereno e alheado.

— Hani, — falou Vance, com uma impressividade completamente fora do comum — você fará bem em vigiar esta casa hoje à noite.

— Sim, effendi. Compreendo perfeitamente. O espírito de Sakhmet pode voltar e completar a tarefa que ela começou...

— Exatamente. — Vance deu um sorriso cansado. — Sua felina dama atrapalhou as coisas esta manhã e, provavelmente, voltará para acertar umas pontas que estão soltas... Vigie para ela, compreende?

Hani inclinou a cabeça.

— Sim, effendi. Nós nos compreendemos.

— O que é positivamente formidável. Incidentalmente, Hani, qual é o número da casa do Sr. Scarlett em Irving Place?

— Noventa e seis. — O egípcio revelou considerável interesse na pergunta de Vance.

— Isto é tudo... E dê lembranças minhas a sua deusa de cabeça de leão.

— Talvez seja Anúbis quem voltará, effendi — disse Hani sepulcralmente antes de deixar-nos.

Vance olhou Markham enigmaticamente.

— O cenário está pronto e a cortina não tardará a subir... Vamos embora. Não há mais nada que possamos fazer aqui e estou louco de fome.

Quando passávamos pela Rua Vinte, Vance nos conduziu na direção de Irving Place.

— Creio que devemos a Scarlett deixá-lo saber em que pé estão as coisas — explicou, negligentemente. — Foi ele quem nos comunicou o infausto acontecimento e, provavelmente, está impaciente e inquieto. Ele mora logo aqui, dobrando a esquina.

Markham encarou Vance inquisitivamente, mas não fez comentários. Heath, entretanto, resmungou impacientemente.

— Parece-me que estamos tratando de tudo, menos de esclarecer este crime — protestou ele.

— Scarlett é um sujeito ladino. Pode ter algumas idéias — retrucou Vance.

— Eu também tenho idéias — declarou o sargento maliciosamente. — Mas o que elas adiantam? Se eu estivesse à frente deste caso teria prendido todos da casa, posto cada um em uma cela e deixado que suassem. Na ocasião em que conseguissem dar início ao processo de habeas-corpus eu já saberia muito mais do que sei agora.

— Duvido, sargento — falou Vance suavemente. — Creio que o senhor saberia ainda menos... Ah, chegamos ao noventa e seis.

Vance dirigiu-se para a entrada colonial de uma velha casa de tijolos a umas poucas portas da Rua Vinte e tocou a campainha.

A habitação de Scarlett — duas peças ligadas em arco — situava-se no segundo andar, de frente. Era mobiliada em estilo Jacobino, discreto mas confortável, e caracterizava o solteirão sério. Scarlett abrira a porta atendendo à campainha e nos convidou a entrar com a polidez rígida do anfitrião britânico. Pareceu aliviado em nos ver.

— Tenho estado em assustadora confusão nestas últimas horas — comentou ele. — Procurando analisar este caso. Estava a ponto de ir correndo até o museu para ver que progresso os cavalheiros conseguiram.

— Progredimos um bocado — informou Vance — mas não foi um progresso de natureza tangível. Decidimos deixar as coisas correrem um pouco, prevendo que o culpado continuará a execução de sua trama e, deste modo, nos forneça algumas provas definitivas.

— Ah! — Scarlett tirou o cachimbo da boca, lentamente, e olhou Vance com atenção. — Essa observação me faz pensar que talvez você e eu tenhamos chegado à mesma conclusão. Não há razão alguma para que Kyle tenha sido morto, a não ser que sua morte levasse a algo mais...

— A que, por exemplo?

— Por Jó, eu gostaria de saber! — Scarlett ajeitou o fumo do cachimbo com o dedo e acendeu-o com um fósforo.

— Há várias explicações possíveis.

— Meu Deus! É mesmo?... Várias? Bem, bem! Poderia você esboçá-las para nós? Estamos tremendamente interessados, sabe?

— Oh, espere aí, Vance! De fato, como o velho Harry, não quero acusar ninguém — protestou Scarlett. — Hani, entretanto, não gosta muito do Dr. Bliss...

— Muito obrigado. Surpreendente como possa parecer, eu mesmo notei esse fato hoje pela manhã. Será que você não tem um outro raio de sol para lançar em nossa direção?

— Creio que Salveter está perdidamente enamorado de Meryt-Amen.

— Deixe isso para lá!

Vance tirou da cigarreira o Régie remanescente e bateu-o. Acendeu-o deliberadamente e, após uma tragada profunda, ergueu os olhos seriamente.

— Sim, Scarlett, — falou, lentamente — é muito possível que você e eu tenhamos chegado à mesma conclusão. Mas, naturalmente, não podemos fazer nenhum movimento até que tenhamos algo definitivo em que basear nossas hipóteses... Por falar nisso, o Dr. Bliss tentou deixar o país esta tarde. Se não fosse um dos homens do sargento Heath ele provavelmente estaria agora em viagem para Montreal.

Esperei que Scarlett se mostrasse surpreendido com esta notícia, mas, ao invés, limitou-se a acenar com a cabeça afirmativamente.

— Não me surpreendo. Ele está possivelmente em pânico. Não posso culpá-lo. As coisas parecem pretas para ele.

— Scarlett deu uma puxada no cachimbo e olhou de soslaio para Vance. — Quanto mais penso neste caso, mais fico com a impressão de que, afinal de contas...

— Oh, está bem — cortou Vance. — Mas não estamos ansiosos por possibilidades. O que queremos são fatos específicos.

— Temo que isso seja difícil. — Scarlett ficou pensativo.

— Tem havido demasiada inteligência...

— Ah! Este é o ponto — demasiada inteligência. Exatamente! Aí está a fraqueza do crime. E estou contando esperançosamente na abundantia cautelae. — Vance sorriu. — Realmente, sabe Scarlett, não sou tão estúpido quanto tenho parecido até agora. Meu objetivo em fazer parecer ridículas as minhas percepções tem sido o de atrair o criminoso a novos esforços. Mais cedo ou mais tarde ele errará a mão.

Scarlett não respondeu durante algum tempo. Finalmente falou.

— Aprecio sua confiança, Vance. Você é admirável. Na minha opinião, porém, você nunca será capaz de condenar o assassino.

— Talvez você tenha razão — admitiu Vance. — Entretanto, estou-lhe fazendo um apelo para que mantenha a situação de olho... Aviso-lhe, no entanto, que tenha cuidado. O assassino de Kyle é um sujeito implacável.

— Não é preciso que você me diga isso. — Scarlett levantou-se e, encaminhando-se à lareira, apoiou-se na moldura de mármore. — Eu poderia escrever volumes a seu respeito.

— Tenho certeza de que você poderia fazê-lo. — Para minha estupefação Vance aceitou a assombrosa declaração do outro sem a menor demonstração de surpresa. — Mas não há necessidade disso agora. — Vance, também, se pôs de pé e, encaminhando-se para a porta, deu um adeus casual a Scarlett. — Nós já vamos. Apenas pensei que lhe deveríamos dar uma notícia sobre o pé em que se encontram as coisas e adverti-lo para que tenha cuidado.

— Muita bondade sua, Vance. O fato é que estou terrivelmente preocupado — nervoso como um gato persa... Gostaria de poder trabalhar, mas todo o meu material está no museu. Sei que não vou dormir nem um pouco hoje à noite.

— Bem, até logo! — Vance virou a maçaneta da porta.

— Escute aqui, Vance! — Scarlett adiantou-se. — Você por acaso, vai voltar hoje à casa de Bliss?

— Não. Nada temos que fazer lá durante algum tempo.

— A voz de Vance era calma e arrastada, como se estivesse enfadado. — Por que quer saber?

Scarlett tornou a mexer no cachimbo como se movido por súbita agitação.

— Por nada. — Olhou para Vance com o cenho contraído. — Sem qualquer razão. Estou ansioso a respeito da situação. Não há como saber-se o que vai acontecer.

— O que quer que aconteça, Scarlett, — disse Vance, de certo modo abruptamente — a Sra. Bliss estará inteiramente a salvo. Creio que poderemos confiar em Hani para que assim seja.

— Sim... é claro — murmurou o homem. — Cão fiel, Hani... E quem desejaria fazer mal a Meryt?

— Quem, de fato? — Vance, agora, estava de pé no saguão, mantendo a porta aberta para que passássemos Markham, Heath e eu.

Scarlett, animado por algum instinto de hospitalidade, adiantou-se.

— Que pena que já se vão — disse, perfunctoriamente.

— Se puder ajudá-los em alguma coisa... Quer dizer que encerraram sua investigação na casa?

— Pelo momento, pelo menos. — Vance fez uma pausa Nós passamos por ele e ficamos esperando no topo das escadas. — Não estamos encarando uma volta ao estabelecimento de Bliss até que algo de novo venha à luz.

— Muito bem. — Scarlett sacudiu a cabeça afirmativamente com curiosa significação. — Se eu souber de alguma coisa telefono para você.

Saímos para Irving Place e Vance fez sinal para um táxi que passava.

— Comida... alimentação — resmungou ele. — Vejamos... O Brevoort não fica muito longe...

Tomamos um excelente chá no velho Brevoort, na parte baixa da Quinta Avenida e, pouco depois, Heath seguiu para o Departamento de Homicídios a fim de preparar seu relatório e pacificar os repórteres dos jornais que iriam cair em enxame em cima dele no momento que o caso fosse registrado.

— É melhor que o senhor fique de prontidão, sargento, — sugeriu Vance — pois estou prevendo uma série de acontecimentos e nada podemos fazer sem o senhor.

— Estarei no gabinete até às dez horas da noite — disse-lhe Heath mal-humoradamente. — Depois dessa hora o Sr. Markham sabe onde me encontrar. Mas quero dizer-lhe que não estou satisfeito.

— Nós também não — confessou alegremente. Markham telefonou para Swacker1 para que fechasse o escritório e fosse para casa. Em seguida nós três nos dirigimos para Longue Vue, a fim de jantarmos. Vance recusou-se a discutir o caso e insistiu em falar sobre Arturo Toscanini, o novo maestro da Orquestra Filarmônica.

 

 

 

(1) Swacker era um jovem brilhante e enérgico, secretário de Markham.

 


— Um superestimado Kapellmeister — reclamou ele enquanto provava seu canard Molière. — A mim me parece temperamentalmente incapaz de sentir os ideais clássicos nas grandes obras sinfônicas de Brahms e de Beethoven... O purê de tomate está excelente neste molho, mas o vinho de Madeira está muito ácido. A proibição, Markham, teve um efeito destruidor na comida deste país: ela praticamente acabou com a estética gastronômica... Mas, voltando a Toscanini. Estou positivamente surpreendido com os panegíricos com que a crítica o tem distinguido. Seus ideais secretos, estou inclinado a pensar, são Puccini, Giordano e Respighi; e nenhum homem, com tais ideais, deveria tentar interpretar os clássicos. Já o vi executar Brahms, Beethoven e Mozart, e todos eles, sob sua batuta, exudam um forte aroma italiano. Os americanos, porém, adoram-no. Os americanos, porém, não têm o sentido da beleza intelectual pura, das linhas clássicas arrebatadoras e da forma magistral. Eles adoram pianíssimos e fortíssimos profundamente contrastados, súbitas mudanças de tempo, saltitantes accelerandos e arrastados ritardandos. E Toscanini lhes dá tudo isso... Furtwängler, Walter, Klemperer, Mengelberger, Van Hoogstraatem — qualquer um destes condutores é, em minha opinião, superior a Toscanini quando se trata dos grandes clássicos germânicos.

— Você se importaria, Vance, — perguntou Markham irritadamente — em deixar de lado todas essas irrelevâncias e nos esboçar sua teoria sobre o caso Kyle?

— Eu me importaria muitíssimo — foi a resposta amável de Vance. — No entanto, após o Bar-le-Duc e Gervaise...

Na verdade já era quase meia-noite quando o assunto da tragédia foi novamente abordado. Tínhamos voltado ao apartamento de Vance após um longo passeio de carro pelo Parque Van Cortland; Markham e eu subíramos até o pequeno jardim-no terraço, a fim de apanharmos qualquer brisa que porventura soprasse ao longo da Rua Trinta e Oito, Leste. Currie havia preparado um delicioso ponche de champanha — a que os vienenses chamam de Bowl — contendo frutas frescas; permanecemos sentados sob o estrelado céu de verão, fumando e aguardando. "Aguardando", é a palavra correta, pois cada um de nós aguardava que algo de mau acontecesse.

Vance, apesar de todo o seu alheamento, estava intimamente tenso — posso dizer pelos seus movimentos restritos e vagarosos. Markham relutava em ir para casa — não estava absolutamente satisfeito com o rumo tomado pela investigação e esperava, como resultado dos prognósticos de Vance, que algo acontecesse para retirar o caso do esfumado reino das conjecturas e colocá-lo em bases mais sólidas sobre as quais fosse possível assentar uma ação mais definida.

Pouco depois da meia-noite Markham manteve uma longa palestra com Heath pelo telefone. Quando desligou deixou escapar um suspiro de desânimo.

— Nem quero pensar sobre o que os jornais da oposição dirão amanhã — observou ele sombriamente, enquanto cortava a ponta de um outro charuto. — Não chegamos exatamente à parte alguma nessa investigação...

— Oh, sim, chegamos. — Vance permanecia olhando a noite abafada. — Conseguimos um surpreendente progresso. O caso, podemos dizer, está encerrado, no que diz respeito à sua solução. Apenas aguardamos que o criminoso entre em pânico. No momento em que tal acontecer poderemos entrar em ação.

— Por que você tem que ser tão confusamente misterioso? — Markham estava de péssimo humor. — Você sempre emerge em rituais cabalísticos. A própria pitonisa de Delfos não era mais vaga ou obscura do que você. Se você acha que sabe quem matou Kyle, por que não nos diz?

— Não posso fazer isso. — Vance, também, estava mal-humorado. — Realmente, Markham, não estou procurando ser ilusório. Estou lutando por encontrar evidências tangíveis que dêem apoio a minhas teorias. Se esperarmos um pouco conseguiremos essas provas. — Olhou seriamente para Markham. — Há perigo, é claro. Algo imprevisto pode acontecer. Mas não há forma humana de impedir que tal aconteça. Qualquer passo que tomemos agora poderá terminar em tragédia. Já demos bastante corda para o criminoso; esperemos que ele se enforque...

Era exatamente meia-noite e vinte quando aconteceu aquilo por que Vance estava esperando. Estávamos sentados em silêncio, havia, talvez, uns dez minutos, quando Currie chegou ao jardim com um telefone portátil.

— Desculpe-me, senhor... — começou ele, mas, antes que pudesse continuar, Vance se pusera de pé e caminhava em sua direção.

— Ligue o telefone, Currie — determinou ele. — Responderei à chamada.

Vance pegou o aparelho e se encostou na porta francesa.

— Sim, sim... O que aconteceu? — Sua voz era baixa e ressonante. Escutou durante uns trinta segundos, com os olhos semicerrados. Em seguida limitou-se a dizer: — Iremos para aí imediatamente. — Devolveu o telefone a Currie.

Vance estava inquestionavelmente intrigado e permaneceu parado durante alguns momentos, a cabeça baixa, absorto em seus pensamentos.

— Não é o que eu esperava — falou, como se consigo mesmo. — Não se encaixa.

Pouco depois levantou a cabeça, como alguém subitamente atingido.

— Mas se encaixa! Claro que se encaixa! Era o que eu deveria ter esperado. — A despeito da descuidada posição de seu corpo seus olhos estavam animados. — Lógico! Tremendamente lógico!... Vamos, Markham, telefone para Heath... diga-lhe que nos encontre no museu tão depressa quanto lhe seja possível...

Markham havia-se levantado e olhava para Vance com expressão feroz.

— Quem estava ao telefone? — perguntou — E o que aconteceu?

— Por favor, fique tranqüilo, Markham — respondeu Vance calmamente. — Foi o Dr. Bliss quem falou comigo e, de acordo com sua histérica descrição, houve uma tentativa de assassinato em sua casa. Prometi-lhe que iríamos lá olhar...

Markham já arrebatara o telefone das mãos de Currie e estava pedindo nervosamente ligação para a casa de Heath.

 


XVII

 

 

A adaga de ouro

 

 


(Sábado, 14 de julho — 0:45 hora)

 

 

 

Tivemos que caminhar até à Quinta Avenida para encontrar um táxi àquela hora e, mesmo assim, passaram-se cinco minutos antes que aparecesse um vazio. O resultado é que vinte minutos haviam decorrido antes que entrássemos no Parque Gramercy e par assemos à porta da residência de Bliss.

Quando descíamos, surgiu um outro táxi contornando a esquina de Irving Place e quase bateu em nós quando seus freios foram subitamente acionados. A porta se abriu inteiramente antes que o carro finalmente parasse e a volumosa figura do sargento Heath se projetou sobre a calçada. Heath morava na rua Onze, Leste, e tinha conseguido vestir-se e chegar ao museu quase simultaneamente conosco.

— Meu Deus, sargento! — saudou-o Vance. — Estamos sincronizados, sabe? Chegamos ao mesmo destino, ao mesmo tempo, mas vindo de direções opostas. Idéia encantadora.

Heath recebeu a algo enigmática saudação com um grunhido.

— Por que toda a excitação? — perguntou ele a Markham. — O senhor não me disse muita coisa pelo telefone.

— Houve uma tentativa contra a vida do Dr. Bliss — informou-o Markham.

Heath assobiou suavemente.

— Certamente eu não esperava por essa, senhor.

— Nem o Sr. Vance. — A réplica pretendia ser um sarcasmo.

Subimos os degraus de pedra que conduziam ao vestíbulo, mas antes que pudéssemos tocar a campainha Brush abriu a porta. O mordomo levou o dedo indicador aos lábios e, inclinando-se misteriosamente para a frente, disse num sussurro: — O Dr. Bliss pediu que os cavalheiros entrassem em silêncio, de modo a não perturbar os outros moradores da casa... Ele está em seu quarto, esperando pelos senhores.

Brush vestia um robe de flanela e chinelas macias, mas, apesar do abafado da noite, tremia visivelmente. Seu rosto, sempre pálido, parecia agora o de um fantasma, na obscuridade.

Brush passou para dentro do saguão e fechou a porta cautelosamente com mãos trêmulas. Repentinamente, Vance aproximou-se dele e, agarrando-o pelo braço, fê-lo voltar-se.

— O que sabe você sobre o que ocorreu aqui hoje à noite — indagou em voz baixa.

Os olhos do mordomo se arregalaram e sua boca caiu.

— Nada, nada — conseguiu balbuciar.

— Essa agora! Então por que você está tão assustado? — Vance continuava a mantê-lo pelo braço.

— Estou com medo deste lugar — foi a melancólica resposta. — Quero ir embora daqui. Estranhas coisas estão acontecendo...

— De fato. Mas não se assuste; você estará em condições de procurar outras acomodações muito breve.

— Fico muito satisfeito com essa informação, senhor. — O homem parecia grandemente aliviado. — Mas o que aconteceu esta noite, senhor?

— Se você não sabe o que aconteceu, como se encontra aqui a essa hora — retrucou Vance — esperando pela nossa chegada e agindo como o vilão de um melodrama?

— Disseram-me para vir esperá-los, senhor. O Dr. Bliss desceu até o meu quarto...

— Onde é o seu quarto, Brush?

— No andar de baixo, na parte de trás, junto da cozinha.

— Muito bem. Prossiga.

— Bem, senhor, o Dr. Bliss veio a meu quarto há cerca de meia hora. Parecia muito preocupado e assustado... se o senhor entende o que quero dizer. Ele me disse que esperasse pelos cavalheiros na porta da frente — que os senhores chegariam a qualquer minuto. O doutor me instruiu para que não fizesse barulho e também que os avisasse...

— Ele subiu em seguida?

— Imediatamente, senhor.

— Onde é o quarto do Dr. Bliss?

— É a porta de trás do segundo andar, exatamente no topo das escadas. A porta da frente é do quarto de dormir da senhora.

Vance soltou o braço do homem.

— Você ouviu esta noite alguma perturbação?

— Nenhuma, senhor. Tudo esteve em calma. Todos foram cedo para seus quartos e eu mesmo fui para a cama antes das onze horas.

— Você pode ir para a cama agora — informou Vance.

— Sim, senhor. — Brush retirou-se rapidamente e desapareceu através da porta dos fundos do saguão.

Vance fez um gesto para que o seguíssemos e liderou o caminho escadas acima. Uma pequena lâmpada elétrica encontrava-se acesa no saguão de cima, mas isso não seria necessário para que achássemos o quarto do Dr. Bliss, pois sua porta se encontrava aberta alguns centímetros e um raio de luz saía em diagonal por ela, projetando-se no chão.

Sem bater, Vance empurrou a porta e entrou no quarto. Bliss estava rigidamente sentado em uma cadeira reta no canto oposto, ligeiramente inclinado para a frente, os olhos fixos na porta. Em sua mão aparecia um revólver de aparência brutal. À nossa entrada, pôs-se de pé, enquanto, simultaneamente, erguia a arma.

— Calma, calma, doutor! — Vance sorriu enigmaticamente. — Ponha de lado as armas de fogo e recite um poema lastimoso.

Bliss emitiu um audível suspiro de alívio e colocou a arma em uma mesinha a seu lado.

— Obrigado por ter vindo, Sr. Vance — disse ele em voz tensa. — E o senhor também, Sr. Markham. — Tomou conhecimento de minha presença e da de Heath com uma leve e desajeitada inclinação. — Aconteceu o que o senhor previu... Há um criminoso nesta casa!

— Bem, bem! Dificilmente pode-se dar a isso o nome de novidade. (Eu não podia compreender a atitude de Vance.) — Já sabemos disso desde as onze horas da manhã.

Bliss, também, estava perplexo e, imagino, algo despeitado pela maneira negligente de Vance, pois dirigiu-se com passos duros para a cama e, apontando para a cabeceira, observou com irritação: — E aqui está a prova!

A cama era uma peça colonial antiga, de mogno polido, com uma grande cabeceira curva se erguendo a, pelo menos, 1,20 m acima do colchão. Encontrava-se encostada à parede da esquerda, a um ângulo reto com a porta.

O objeto para o qual Bliss apontava com um dedo trêmulo era uma antiga adaga egípcia, com cerca de 25 centímetros de comprimento, cuja lâmina estava cravada na cabeceira da cama, logo acima do travesseiro. A direção de penetração encontrava-se em Unha com a porta.

Todos nós avançamos e permanecemos por alguns momentos contemplando aquela visão sinistra. Indubitavelmente a adaga fora arremessada com grande força, para ter entrado tão firmemente no duro mogno; era também óbvio que, se alguém estivesse deitado sobre o travesseiro na ocasião em que a adaga fora lançada, teria recebido todo o peso do golpe na garganta.

Vance estudou a posição da adaga, avaliando o seu alinhamento e o ângulo formado com a porta e, em seguida, esticou a mão para pegar a arma. Heath interceptou-lhe o movimento.

— Use seu lenço, Sr. Vance — advertiu ele. — Deve conter impressões digitais...

— Oh, não, sargento, não haverá impressões. — Vance falou com impressionante ar de conhecimento. — Quem quer que tenha lançado aquela adaga terá sido suficientemente cuidadoso para evitar tais toques de incriminação... — Retirou a lâmina com considerável dificuldade da cabeceira da cama e levou-a até à lâmpada da mesinha de luz.

 

 

 

 

 

 


Era uma linda e interessante peça de artesanato. O punho estava ornamentado com ouro granulado e estreitas faixas de esmalte e de pedras semipreciosas — ametistas, turquesas, granadas, cornalinas e pequeninas lascas de obsídio, calcedônia e feldspato. No cabo se achava sobreposto um nó de cristal de rocha e no punho destacava-se um desenho em arabesco de fio de ouro. A lâmina era de ouro endurecido com pequenos buracos rasos centrais terminando em uma decoração em palma gravada1.

 

 

 

(1) Uma adaga similar foi encontrada sobre a múmia real no túmulo de Tut-ankn-Amun pelo falecido Lord Carnavon e Howard Carter, e se encontra agora no Museu do Cairo.

 


— Fim da décima oitava dinastia — murmurou Vance, passando o dedo na adaga e estudando-lhe os desenhos. — linda, mas decadente. A grosseira simplicidade da arte egípcia inicial foi assustadoramente à garra durante a opulenta renascença que se seguiu à invasão dos hyksos... Dr. Bliss como essa bugiganga veio a ser sua?

Bliss sentia-se embaraçado e, quando respondeu, seu tom de voz era apologético e sem jeito.

— O fato é, Sr. Vance, que eu contrabandeei essa adaga para fora do Egito. Foi um achado inesperado e incomum e puramente acidental. É uma relíquia valiosa e fiquei com medo de que o governo egípcio a reclamasse.

— Bem posso imaginar que gostariam de reter essa peça em seu próprio país. — Vance jogou a adaga em cima da mesa. — E onde o senhor, normalmente, conserva essa arma?

— Sob alguns papéis em uma das gavetas da mesa de meu escritório — respondeu Bliss em seguida. — Era um item de caráter bastante pessoal e julguei que seria melhor não o arrolar no museu.

— Muito discreto... Quem, além do senhor, sabia de sua existência?

— Minha mulher, é claro e... — Bliss interrompeu-se subitamente e uma luz peculiar surgiu-lhe nos olhos.

— Vamos, vamos, doutor. — Vance falava aborrecido. — Isto não adianta. — Termine sua sentença.

— Já terminei. Minha mulher é a única pessoa a quem confiei o fato.

Vance aceitou a declaração sem qualquer outro argumento.

— Ainda assim — disse ele — qualquer pessoa poderia ter descoberto a arma, não?

Bliss concordou com a cabeça, vagarosamente.

— Desde que tenha andado remexendo em minha mesa.

— Exatamente. Quando, pela última vez, o senhor viu essa adaga na gaveta de sua mesa?

— Esta manhã. Estava procurando papel almaço em que preparar o meu relatório para o pobre Kyle...

— E quem, de seu conhecimento, esteve em seu escritório depois que saímos de casa esta tarde?

Bliss meditou alguns momentos e, logo em seguida, uma expressão de surpresa desceu sobre seu rosto.

— Prefiro não dizer.

— Nada podemos fazer para ajudá-lo, doutor, se o senhor tomar esta atitude — observou Vance severamente. — Foi o Sr. Salveter quem esteve em seu escritório?

Bliss fez uma pausa de alguns segundos. Em seguida contraiu os maxilares.

— Sim! — A palavra praticamente explodiu em seus lábios. — Mandei-o a meu escritório hoje à noite depois do jantar, a fim de me trazer um livro de memorando...

— Onde o senhor guarda esse livro?

— Na mesa. — Essa informação foi dada relutantemente. — Mas, qualquer tentativa de ligar Salveter...

— Neste momento não estamos tentando ligar ninguém com este episódio — interrompeu Vance. — Estamos unicamente tentando acumular todas as informações possíveis... Entretanto, o senhor deve admitir, doutor, — acrescentou Vance — que o jovem Sr. Salveter está — como devo dizer? — bastante interessado na Sra. Bliss...

— O que é isso? — Bliss retesou-se e olhou para Vance ferozmente. — Como ousa o senhor sugerir uma coisa dessas? Minha esposa, senhor...

— Ninguém criticou a Sra. Bliss — falou Vance delicadamente. — Além disso, uma hora da manhã é dificilmente a hora apropriada para pirotecnias de indignação.

Bliss afundou em sua cadeira e cobriu o rosto com as mãos.

— Talvez seja verdade — concedeu ele com voz de desespero. — Sou muito velho para ela... vivo muito absorvido por meu trabalho... Mas isso não significa que o rapaz tentaria matar-me.

— Talvez não — falou Vance indiferentemente. — Mas quem, então, o senhor suspeita que tenha tentado seccionar sua carótida?

— Não sei... não sei. — A voz do homem elevou-se lamentavelmente. Neste momento abriu-se a porta que dava acesso ao apartamento da frente e a Sra. Bliss surgiu no portal, um longo robe solto de linhas orientais lançado em seus ombros. Estava perfeitamente calma e os olhos se mantinham firmes, ainda que um tanto brilhantes, ao contemplar a cena à sua frente.

— Por que os senhores, cavalheiros, voltaram a esta hora? — quis saber ela imperiosamente.

— Foi feita uma tentativa contra a vida de seu marido — respondeu Markham sombriamente — e ele nos telefonou...

— Uma tentativa contra sua vida? Impossível! — A Sra. Bliss falou com exagerada ênfase e seu rosto tornou-se perceptivelmente pálido. Em seguida encaminhou-se até Bliss e colocou seus braços em torno dos ombros do marido em uma atitude de afeiçoada proteção. Seus olhos cintilavam ao erguê-los na direção de Vance. — Que absurdo é esse? Quem quererá tirar a vida de meu marido?

— Quem, na verdade? — Vance enfrentou calmamente o olhar da mulher. — Se nós o soubéssemos, poderíamos pelo menos prender essa pessoa por ataque com uma arma mortífera... creio que é esta a expressão.

— Uma arma mortífera? — A moça franziu o cenho, em óbvia tensão. — Oh, contem-me o que aconteceu!

Vance apontou para a adaga em cima da mesa.

— Tudo o que sabemos até agora é que aquela adaga que ali está encontrava-se cravada na cabeceira da cama quando aqui chegamos. Estávamos a ponto de pedir a seu marido um relato completo do acontecimento quando a senhora apareceu — uma encantadora Nefret-íti — à porta... Talvez — prosseguiu, voltando-se para Bliss — o doutor, agora, nos conte todo o episódio.

— Há realmente pouco o que contar. — Bliss sentou-se e começou, nervosamente, a fazer vincos nas dobras de seu robe. — Vim para o meu quarto pouco depois do jantar e fui para a cama. Não podia dormir, porém, e me levantei. Foi então que Salveter passou pela minha porta em caminho lá para cima e eu lhe pedi que trouxesse o livro memorando do escritório — pensava que pudesse afastar de minha mente os horríveis eventos do dia...

— Um momento, doutor — interrompeu Vance. — Sua porta estava aberta?

— Sim. Eu a havia aberto quando me levantei, para obter um pouco mais de ar no quarto — a atmosfera estava abafada... Em seguida fiquei olhando umas anotações e observações antigas que eu fizera, relativas às escavações do último inverno. Não consegui, porém, fixar minha mente nessas anotações e, finalmente, fechei a porta, apaguei as luzes e tornei a me deitar na cama.

— Que horas deviam ser então?

— Eu diria que entre dez e meia e onze horas... Dormi intermitentemente até às doze horas — podia ver as horas naquele relógio com mostrador luminoso — depois do que me tornei incrivelmente inquieto. Pus-me a pensar no pobre Kely e não consegui dormir mais. No entanto, fisicamente, eu estava exausto e permanecia imóvel... Cerca de um quarto de hora depois da meia-noite — a casa estava em completo silêncio, o senhor compreende — pensei ter ouvido passos nas escadas...

— Que escadas, doutor?

— Não pude determinar. Os passos podiam estar vindo de cima, do terceiro andar, ou de baixo, do primeiro. Eram passos silenciosos e se eu não estivesse acordado completamente e alerta não os teria notado. Como eram nem eu podia ter certeza, ainda que, de uma feita, julgasse ter ouvido um estalido, como se uma tábua estivesse um pouco solta sob o tapete.

— E então?

— Continuei deitado, especulando de quem poderia tratar-se, pois sabia que os demais membros da casa tinham ido para a cama cedo. Não me preocupei exatamente com o ruído até que percebi que os passos se aproximaram de minha porta e aí se detiveram. Foi então que o seu aviso, Sr. Vance, me ocorreu em plena força e senti que algum perigo desconhecido me espreitava do portal. Admito que fiquei, temporariamente, paralisado pelo medo: podia sentir as raízes de meu cabelo formigando e comecei a suar frio.

Bliss tomou uma respiração profunda, como que para livrar-se de uma assustadora recordação.

— Então a porta começou a se abrir vagarosa e suavemente. A luz do saguão tinha sido apagada e o quarto aqui estava em quase completa escuridão, de modo que não consegui ver coisa alguma. Podia, no entanto, escutar a porta se abrindo e percebi uma débil corrente de ar que entrou do saguão...

Um tremor percorreu o corpo de Bliss e seus olhos brilharam desusadamente.

— Eu teria gritado, mas minha garganta parecia fechada e não queria pôr em perigo a Sra. Bliss, que poderia acorrer ao meu chamado e esbarrar involuntariamente em algo perigoso e mortal... O raio ofuscante de uma lanterna foi lançado diretamente em meus olhos e, instintivamente, me afastei para um dos lados da cama. Naquele momento ouvi um som cortante e rápido seguido de um estalo na madeira, perto de minha cabeça. Notei, imediatamente, passos que se afastavam em retirada...

— Em que direção? — tornou a interromper Vance.

— Não tenho certeza. Eram passos muito leves. Percebi, apenas, que eram furtivos...

— O que fez depois disso, doutor?

— Esperei alguns minutos. Então, cautelosamente, fechei a porta e acendi as luzes. Foi nesse momento que percebi o que havia feito o ruído na cabeceira da cama, pois a primeira coisa que vi foi a adaga. Percebi, também, que eu havia sido o alvo de um ataque criminoso.

Vance acenou afirmativamente com a cabeça e, pegando a adaga, sopesou-a na palma da mão.

— Sim — resmungou ele — tem uma lâmina pesada e poderia ter sido lançada com precisão mesmo por um amador... Uma forma peculiar de assassinato, no entanto — prosseguiu ele, quase que falando consigo mesmo. — Teria sido muito mais simples e muito mais seguro para o atacante ter-se arrastado até à cama e enfiado a arma entre as costelas da pretensa vítima... Muito peculiar! A não ser, é claro... — Interrompeu-se e olhou para a cama pensativamente. Dentro em pouco deu de ombros e encarou Bliss. — Após a descoberta da arma, creio, o senhor telefonou para mim.

— Em menos de cinco minutos. Fiquei ouvindo à porta durante um momento, em seguida desci e telefonei para o senhor. Depois disso acordei Brush e determinei-lhe que ficasse esperando pelo senhor na porta da frente. Voltei cá para cima — tinha-me armado com o revólver lá no escritório... e esperei sua chegada.

A Sra. Bliss permanecera observando o marido com um olhar de profunda ansiedade durante o seu relato.

— Ouvi o ruído da adaga encravando-se na cabeceira da cama — disse ela em voz baixa e atemorizada. — Minha cama se apoia contra o lado oposto da parede. O ruído me surpreendeu e me acordou, mas não prestei mais atenção e continuei dormindo. — Lançou a cabeça para trás e olhou para Vance. — Isto é vergonhoso e ultrajante! O senhor insiste em que meu marido permaneça nesta casa que abriga um criminoso — um assassino que está tramando contra ele — e nada faz para protegê-lo.

— Mas nada lhe aconteceu, Sra. Bliss — respondeu Vance com delicada seriedade. — Ele perdeu uma hora de sono, mas realmente isso não é uma grande catástrofe. Posso assegurar-lhe que nenhum outro perigo o atingirá. — Olhou diretamente nos olhos da mulher e senti conscientemente que alguma compreensão se estabeleceu entre eles naquele momento de mútuo escrutínio.

—- Espero que o senhor encontre o culpado — disse a Sra. Bliss com trágica e vagarosa ênfase. — Estou em condições de enfrentar a verdade... agora.

— A senhora é muito corajosa, madame — murmurou Vance. — Nesse meio tempo a melhor ajuda que nos poderá dar é retirar-se para o seu quarto e esperar lá até que a chamemos. Pode confiar em mim.

— Oh, sei que posso! — Havia um toque em sua voz. Em seguida ela se inclinou impulsivamente, tocou com os lábios a testa de Bliss e voltou para o seu quarto.

Os olhos de Vance a seguiram com uma expressão curiosa: não pude determinar se a lamentava ou a apreciava ou se se condoia dela. Depois que a porta se fechou sobre a Sra. Bliss, Vance se encaminhou até à mesa e tornou a colocar a adaga sobre ela.

— Estava pensando, doutor, — disse Vance — se o senhor não tranca ou fecha sua porta à noite?

— Sempre — foi a resposta imediata. — Fico nervoso se dormir com a porta destrancada.

— E esta noite?

— Isto é o que me intriga. — A testa de Bliss permanecia franzida em perplexidade. — Tenho certeza de que a fechei logo que cheguei ao meu quarto. Mas, como já lhe disse, levantei-me mais tarde e abri a porta para conseguir um pouco de ar. A única explicação que me ocorre é que esqueci de trancar a porta quando voltei para a cama. Claro que é possível, pois estava muito preocupado...

— A porta não poderia ter sido destrancada pelo lado de fora?

— Não. Tenho certeza de que não poderia. A chave estava na fechadura, exatamente como está agora.

— Não haverá impressões digitais na maçaneta do lado de fora? — inquiriu Heath. — O vidro cortado as imprimiria facilmente.

— Meu Deus, sargento! — Vance sacudiu a cabeça desanimadamente. — Quem concebeu esta trama sabe coisa melhor do que deixar seus cartões de visita onde quer que vá...

Bliss pôs-se de pé num salto.

— Acaba de me ocorrer uma idéia — exclamou ele. — Esta adaga tinha uma bainha de ouro e esmalte; se essa bainha não estiver agora na gaveta de minha mesa, talvez... talvez...

— Sim, sim. É verdade. — Vance concordou com a cabeça. — Percebo o seu ponto. A bainha poderia estar ainda de posse do frustrado assassino. Uma excelente prova... Sargento, o senhor se incomoda de acompanhar o Dr. Bliss até o escritório a fim de certificar-se se a bainha foi levada ou não juntamente com a adaga? Não há necessidade de se preocuparem se a bainha não estiver lá.

Heath encaminhou-se prontamente para o saguão, acompanhado por Bliss. Pudemos ouvi-los descer ao primeiro andar.

— O que acha disso, Vance? — perguntou Markham, quando ficamos sozinhos. — Parece-me muito sério.

— Estou concluindo muitas coisas desse fato — replicou Vance sombriamente. — E é muito sério. Mas, graças a Deus, o golpe não foi muito brilhante. Toda a coisa foi assustadoramente remendada.

— Sim, posso perceber este fato — concordou Markham. — Imagine alguém lançando uma faca a dois metros ou mais, quando poderia ter dado um golpe único em um ponto vital.

— Oh, sim? — Vance ergueu as sobrancelhas. — Eu não estava pensando na técnica de lançamento de facas. Há outros pontos neste caso ainda menos inteligentes. Não posso entendê-los absolutamente. Talvez demasiado pânico. De qualquer modo, talvez possamos obter uma chave definitiva da trama através da sugestão do doutor sobre a bainha.

Ouvimos que Bliss e Heath tornavam a subir as escadas.

— Bem, sumiu — informou-nos o sargento quando os dois entraram no quarto.

— Sem dúvida foi levada junto com a adaga — suplementou o Dr. Bliss.

— Suponhamos que eu chame alguns de meus rapazes e demos uma busca completa na casa — sugeriu Heath.

— Não será necessário, sargento — tornou Vance. — Tenho um pressentimento de que não será difícil encontrá-la.

Markham estava ficando preocupado com os termos vagos de Vance.

— Suponho — disse ele com um toque de sarcasmo — que você nos pode dizer exatamente onde se encontra a bainha.

— Sim, creio que sim. — Vance falou com meditativa seriedade. — No entanto, vou verificar minha teoria mais tarde... Nesse meio tempo — estava-se dirigindo a Bliss — ficar-lhe-ei imensamente agradecido se o senhor permanecer em seu quarto até que terminemos a investigação.

Bliss inclinou-se em aquiescência.

— Vamos até à sala de visitas por um momento — continuou Vance. — Há um trabalhinho a ser feito lá.

Vance se pôs a caminhar na direção do saguão, mas logo em seguida parou, como se movido por súbito impulso e, indo até à mesa, enfiou a adaga no bolso. Bliss fechou a porta atrás de nós e pudemos ouvir que a chave era girada na fechadura. Markham, Heath e eu começamos a descer as escadas, com Vance a nossa retaguarda.

Havíamos descido apenas uns poucos degraus quando fomos detidos por uma voz calma e serena vinda do andar de cima.

— Posso ajudar em alguma coisa, effendi?

A inesperada pergunta naquela casa calma e escura fez com que nos voltássemos instintivamente. No topo da escada que conduzia ao terceiro andar percebia-se a figura ensombrecida de Hani, seu kaftan solto destacando-se como uma sombra escura contra a palidamente iluminada parede de trás.

— Oh, muito! — respondeu Vance prazerosamente. — Estamos-nos dirigindo agora mesmo para a sala de visitas a fim de termos uma pequena reunião. Junte-se a nós, Hani.


XVIII

 

 

Uma luz no museu


(Sábado, 14 de julho — 1:15 hora)

 

 

Hani se reuniu a nós na sala de visitas. Permanecia calmo e dignificado, enquanto seus inescrutáveis olhos azuis repousavam impassivelmente em Vance, como os de um antigo sacerdote egípcio meditando ante o altar de Osíris.

— Como acontece que você esteja acordado e por aqui a esta hora? — perguntou Vance casualmente. — Outro ataque de gastrite?

— Não effendi. — Hani falou em um tom de voz comedido e vagaroso. — Levantei-me quando ouvi o senhor falando com Brush. Sempre durmo com a minha porta aberta.

— Talvez, então, você tenha ouvido Sakhmet, quando ela voltou hoje a esta casa.

— Sakhmet voltou? — O egípcio levantou a cabeça levemente, interessado.

— É uma forma de dizer... Ela, porém, é uma deusa muito ineficiente. Tornou a deitar tudo a perder.

— O senhor tem certeza de que não fez de propósito? — A despeito do tom arrastado da voz de Hani, havia nela uma nota significativa.

Vance o observou durante algum tempo. Em seguida, falou: — Você ouviu passos na escada ou ao longo do corredor do segundo andar pouco depois da meia-noite?

O homem sacudiu a cabeça vagarosamente.

— Não ouvi coisa alguma. Mas eu estava dormindo havia pelo menos uma hora, antes de sua chegada, e os sons de passos abafados no tapete espesso dificilmente me acordariam.

— O próprio Dr. Bliss — explicou Vance — desceu e telefonou para mim. Você também não o ouviu?

— Os primeiros sons que percebi foi quando os cavalheiros chegaram à porta da^ frente e falaram com Brush. Suas vozes, ou, talvez, a porta se abrindo, me acordaram. Mais tarde ouvi sons abafados no quarto do Dr. Bliss que é exatamente embaixo do meu. Não pude, porém, distinguir nada do que foi dito.

— É claro que você não percebeu que alguém apagou a luz do saguão do segundo andar por volta da meia-noite.

— Se eu não estivesse dormindo, certamente que o teria notado, já que a luz ilumina fracamente meu quarto lá em cima. Quando acordei, no entanto, a luz estava acesa como de costume. — Hani franziu o cenho levemente. — Quem teria apagado a luz do saguão a uma tal hora?

— Não sei... — Vance não tirou os olhos de cima do egípcio. — O Dr. Bliss acaba de nos dizer que foi alguém com desígnios sobre sua vida.

— Ah! — A exclamação foi como um suspiro de alívio. — Mas a tentativa, suponho, não obteve êxito.

— Não. Foi um fiasco. A técnica, eu diria, foi não somente estúpida como temerária.

— Não foi Sakhmet. — O pronunciamento de Hani foi quase sepulcral.

— Essa agora! — Vance sorriu ligeiramente. — Ela está ainda reclinada, então, para o lado dos grandes ventos oeste dos céus...1 Estou satisfeito em poder excluí-la e, uma vez que nenhuma força oculta se encontrava em ação, talvez você possa sugerir quem teria um motivo para cortar a garganta do doutor.

 

 

 

(1) Vance estava-se referindo jocosamente à declaração de Sakhmet no Capítulo de Abertura da Boca de Osíris Ani no Livro dos Mortos egípcio: (seguem-se alguns hieróglifos no texto original) "Eu sou a deusa Sakhmet e tenho meu assento ao lado do grande oeste (vento?) dos céus".

 


— Há muitas pessoas que não chorariam se ele deixasse esta vida; mas não conheço ninguém que tomasse nas próprias mãos a precipitação dessa partida.

Vance acendeu um Régie e sentou-se.

— Em que, Hani, você imaginou que nos poderia ser útil?

— Como o senhor, effendi, — veio a resposta delicada — esperei que algo desagradável e talvez violento acontecesse nesta casa esta noite. Quando ouvi o senhor chegar e se dirigir para o quarto do Dr. Bliss, ocorreu-me que talvez tivesse acontecido o evento que se aguardava. Assim, esperei no saguão de cima até que o senhor saísse.

— Muita consideração e muita reflexão de sua parte — murmurou Vance, dando algumas tragadas no cigarro. Após algum tempo, perguntou: — Se o Sr. Salveter tivesse saído de seu quarto hoje à noite, depois que você foi deitar-se, você teria tomado conhecimento do fato?

O egípcio hesitou e seus olhos se contraíram.

— Creio que sim. Seu quarto é exatamente em frente ao meu...

— Conheço a disposição das peças.

— Não parece provável que o Sr. Salveter pudesse ter destrancado sua porta e saído sem que eu me tivesse apercebido do fato.

— Mas é possível, não? — Vance mostrava-se insistente.

— Se você estivesse dormindo e o Sr. Salveter tivesse boas razões para não perturbá-lo, ele poderia ter saído com tanto cuidado que você continuaria a dormir sem tomar qualquer conhecimento do que estava acontecendo.

— Possível é — admitiu Hani sem muita vontade. — Mas tenho certeza de que ele não saiu do quarto depois que se recolheu.

— O seu desejo, temo, é o pai de sua certeza — suspirou Vance. — No entanto, não devemos ridicularizar esse ponto.

Hani observava Vance com decrescente interesse.

— O Dr. Bliss sugeriu que o Sr. Salveter saiu do quarto esta noite?

— Não, pelo contrário — assegurou-lhe Vance. — O doutor declarou enfaticamente que qualquer tentativa para vincular o Sr. Salveter com os passos furtivos do lado de fora de sua porta à meia-noite seria um grave erro.

— O Dr. Bliss está inteiramente certo — declarou Hani.

— Mesmo assim, Hani, o doutor insistiu que um assassino em potencial andava vagando pela casa. Quem mais poderia ser?

— Não posso imaginar. — Hani parecia quase indiferente.

— Você não acredita que possa ter sido a Sra. Bliss?

— Nunca! — O tom do homem se tornara subitamente animado. — Meryt-Amen não teria razão para ir até o saguão. Ela tem acesso ao quarto do marido através de uma porta de comunicação...

— Foi o que observei há uns momentos — ela veio se reunir a nós no quarto do doutor. E posso-lhe dizer, Hani, que ela está mais ansiosa do que nós em descobrir a pessoa que tentou contra a vida de seu marido.

— Ansiosa... e triste, effendi. — Uma nova nota surgiu na voz de Hani. — Ela ainda não entendeu as coisas que aconteceram aqui hoje. Quando entender...

— Não vamos agora especular ao longo dessas linhas — cortou Vance bruscamente. Meteu a mão no bolso e dele retirou a adaga. — Já viu isto aqui alguma vez? — perguntou, mantendo o objeto na direção do egípcio.

Os olhos do homem se arregalaram ao fitar o objeto brilhante e ornamentado. A princípio pareceu fascinado, mas logo em seguida seu rosto sombreou-se e os músculos faciais passaram a contrair-se espasmodicamente. Uma surda raiva se apossara dele.

— De onde veio a adaga faraônica? — perguntou ele, esforçando-se por controlar sua emoção.

— Foi trazida do Egito pelo Dr. Bliss — informou Vance. Hani pegou a adaga e a manteve reverentemente sob a luz.

— Só poderia ter vindo da tumba de Ai. Aqui no punho de cristal está fracamente gravado o símbolo real. Observem: Kheper-kheperu-Re Iry-Maët...

— Sim, sim. O último faraó da décima oitava dinastia. O doutor encontrou a adaga durante suas escavações no Vale dos Reis. — Vance estava observando Hani atentamente. — Você tem certeza de que nunca viu este objeto antes?

Hani empertigou-se orgulhosamente.

— Se eu tivesse visto teria informado ao meu governo. Este objeto não estaria mais em mãos de um violador estrangeiro, mas sim no país ao qual pertence, cuidado por mãos carinhosas no Cairo... O Dr. Bliss fez muito bem em mantê-lo escondido.

Havia em sua voz azedo ódio, mas de repente suas maneiras se modificaram.

— O senhor me permite perguntar-lhe quando, pela primeira vez, viu esta adaga real?

— Há uns minutos — respondeu Vance. — Estava fincada na cabeceira da cama do doutor, exatamente por trás do lugar onde sua cabeça estivera um segundo antes.

O olhar de Hani passou por Vance, na direção de algum ponto distante e seus olhos se tornaram astutamente pensativos.

— Esta adaga não tinha uma bainha? — perguntou.

— Oh, sim. — Uma centelha perpassou pelo canto dos olhos de Vance. — De ouro e esmalte, ainda que eu não a tenha visto. O fato é, Hani, que estamos tremendamente interessados na bainha. Ela desapareceu... jaz perdida em algum lugar por aí. Vamos fazer uma busca a sua procura daqui a pouco.

Hani acenou a cabeça compreensivamente.

— E se o senhor a encontrar, tem certeza de que ficará sabendo mais do que sabe até agora?

— Será possível, pelo menos, verificar minhas suspeitas.

— A bainha será um objeto fácil de esconder com segurança — lembrou Hani.

— De fato não prevejo qualquer dificuldade em pôr minhas mãos nela. — Vance levantou-se e ficou na frente do homem. — Talvez você possa sugerir onde poderemos começar nossa busca, não?

— Não, effendi — respondeu Hani, depois de perceptível hesitação. — Não neste momento. Preciso de tempo para pensar a este respeito.

— Muito bem. Suponhamos que vá para o seu quarto e se entregue a alguma concentração lamaica. Você não está ajudando em nada.

Hani devolveu a adaga e voltou-se na direção do saguão.

— E tenha a bondade — pediu Vance — de bater à porta do Sr. Salveter e dizer-lhe que queremos vê-lo imediatamente.

Hani inclinou-se e desapareceu.

— Não gosto desse pássaro — resmungou Heath, quando o egípcio se encontrava fora do alcance da voz. — É muito escorregadio e sabe de alguma coisa que não quer dizer. Gostaria de soltar meus rapazes em cima dele com um pedaço de mangueira de borracha — eles o fariam falar... Não me surpreenderia, Sr. Vance, se tivesse sido ele quem lançou a adaga. O senhor observou a maneira pela qual a segurou, com a ponta voltada para os dedos? Exatamente como os atiradores de facas nos vaudevilles.

— Oh, ele poderia ter estado descuidadamente, pensando na traquéia do Dr. Bliss — concedeu Vance. — No entanto, o episódio da adaga não me preocupa nem a metade de algo que não aconteceu esta noite.

— Bem, a mim me parece que aconteceu bastante — retorquiu Heath.

Markham encarou Vance inquisitivamente.

— O que você tem em mente? — perguntou.

— O quadro que nos foi apresentado esta noite, estava inacabado. Pude perceber ainda as bases da pintura. E não houve vernissage. A tela precisava de uma outra forma. A linha geradora não estava completa...

Nesse momento pudemos perceber passadas do lado de fora. Salveter, com um amassado robe por cima do pijama, piscou ao se defrontar com as luzes da sala de visitas. Parecia estar apenas meio acordado, e, quando suas pupilas se acostumaram à claridade, correu os olhos por nós quatro e, depois, olhou o relógio em cima da lareira.

— O que é agora? — perguntou. — O que aconteceu? — Parecia não só surpreendido como ansioso.

— O Dr. Bliss me telefonou informando de que alguém tentara matá-lo — explicou Vance. — Viemos correndo. Sabe alguma coisa a respeito?

— Bom Deus, não! — Salveter sentou-se pesadamente em uma cadeira perto da porta. — Alguém tentou matar o doutor? Quando?... Como? — Procurava algo nervosamente em seus bolsos e Vance, interpretando-lhe corretamente o gesto, ofereceu-lhe sua cigarreira. Salveter acendeu um Régie nervosamente e deu algumas tragadas profundas.

— Pouco depois da meia-noite — respondeu Vance. — Mas a tentativa falhou sombriamente. — Atirou a adaga no colo de Salveter. — Conhece essa bugiganga?

O outro estudou a arma durante alguns segundos, sem tocá-la. Uma crescente surpresa surgia em sua expressão e, cuidadosamente, pegou a adaga e a examinou.

— Nunca vi isso em minha vida — disse em tom horrorizado. — É um espécime arqueológico muito valioso... uma peça rara de museu. De onde, em nome dos céus, o senhor desenterrou isso? Certamente não pertence à coleção Bliss.

— Ah, pertence — assegurou-lhe Vance. — Um item privado por assim dizer. Sempre conservado escondido de olhos vulgares.

— Estou surpreendido. Aposto que o governo egípcio nada sabe a respeito. — Salveter levantou os olhos abruptamente. — Tem esta adaga alguma coisa que ver com a tentativa contra a vida do doutor?

— Aparentemente muita coisa — respondeu Vance negligentemente. — Encontramo-la cravada na cabeceira da cama do doutor, evidentemente lançada com toda a força contra o ponto onde sua cabeça deveria ter estado.

Salveter cerrou o cenho e contraiu os lábios.

— Olhe aqui, Sr. Vance, — declarou finalmente — não temos ilusionistas malaios nesta casa... A não ser — acrescentou ele como que tomado por uma segunda idéia — que Hani conheça a arte. Esses orientais são cheios de erudição e de maquinações.

— A representação desta noite não foi o que, de acordo com todos os relatos, poder-se-ia chamar de artística. Foi, de fato, um tanto amadorística. Tenho certeza de que um malaio poderia ter feito coisa muito melhor com o seu kris. Em primeiro lugar os passos e o abrir da porta pelo intruso foram completamente audíveis pelo Dr. Bliss; em segundo lugar houve uma suficiente demora entre a projeção do foco da lanterna e o lançamento da faça, permitindo ao doutor que removesse a cabeça da linha de arremesso...

Nesse momento Hani apareceu à porta tendo em mãos um pequeno objeto. Aproximando-se, lançou-o em cima da mesa de centro.

— Aqui, effendi, — disse em voz baixa — está a bainha da adaga real. Encontrei-a junto ao rodapé do saguão do segundo andar, próximo ao topo das escadas.

Vance mal olhou para o objeto.

— Muito obrigado — disse, em voz arrastada. — Eu sabia que você a encontraria, mas não pensei que fosse no saguão.

— Garanto-lhe...

— Oh, sem dúvida. — Vance olhou diretamente nos olhos de Hani e, dentro em pouco, um ligeiro sorriso aflorou em seu olhar. — Não é verdade, Hani, — perguntou deliberadamente — que achou a bainha exatamente onde eu e você acreditávamos que ela estivesse escondida?

O egípcio não respondeu imediatamente. Em seguida falou: — Contei-lhe minha história, effendi. O senhor pode tirar suas próprias conclusões.

Vance pareceu satisfeito e acenou com a mão na direção da porta.

— E agora, Hani, vá para a cama. Não precisaremos mais de você esta noite. Leiltak sa'ida.

— Leiltak sa'ida wemubaraka. — O homem inclinou-se e partiu.

Vance pegou a bainha e, tomando a adaga de Salveter, enfiou-a no local adequado, olhando criticamente para o ornato dourado.

— Influência egéia — murmurou. — Bonito, mas demasiado complicado. Esses ornatos florais da décima oitava dinastia têm a mesma relação com a arte egípcia inicial que o bolo de gengibre bizantino tem com as simples ordens gregas. — Manteve a bainha próxima de seus olhos. — E, por falar nisso, aqui está uma decoração que poderá interessá-lo, Sr. Salveter. Os arabescos formais terminam em uma cabeça de chacal.

— Anûpu, não? O nome próprio de Hani. É curioso. — Salveter levantou-se e olhou o desenho. — Há um outro ponto que pode ser considerado, Sr. Vance — prosseguiu ele após uma pausa. — Esses coptas das classes mais baixas, apesar de toda sua superficial veneração cristã, são altamente supersticiosos. Seus cérebros seguem uma Unha tradicional: gostam de encaixar todas as coisas em um preconcebido simbolismo. Houve umas nove ou mais mortes coincidentes, ultimamente, entre pessoas relacionadas com escavações no Egito (1), e os nativos ridiculamente imaginam que os espíritos de seus ancestrais permanecem em armadilhas junto às várias tumbas para aniquilar os intrusos ocidentais, como uma espécie de medida punitiva. Eles de fato acreditam nessas forças maléficas... E aqui está Hani, no fundo um egípcio supersticioso, que se ressente com a obra do Dr. Bliss: não será possível que ele tenha considerado a morte do doutor com uma adaga que já pertenceu a um faraó como uma sorte de retribuição mística, na mesma linha que todas essas irracionais histórias de fantasmas? E Hani pode até ter considerado a cabeça de chacal na bainha da adaga como um sinal de que ele — cujo nome é o mesmo do deus de cabeça de chacal, Anúbis — tenha sido divinamente apontado como o agente desse ato de vingança.

 

 

 

(1) Salveter estava-se referindo ao Lord Carnavon, ao honorável coronel Aubrey Herbert, ao general Sir Lee Stack, a George J. Gould, a Woolf Joel, a Sir Archibald Douglas Reid, ao professor Lafleur, a H. G. Evelyn-White e ao professor Georges-Aaron Bénédite. Desde essa época mais dois nomes vieram juntar-se a esta lista fatal — os dos honoráveis Richard Bethell, secretário de Howard Carter, e de Lord Westbury.

 


— Uma encantadora teoria — foi o comentário algo desinteressado de Vance. — Mas demasiado plausível, temo. Estou chegando à opinião de que Hani não é assim tão estúpido e tão supersticioso como quer que nós pensemos. Ele é uma espécie de moderno Theogonius, que julga fazer parte de sua sabedoria simular inferioridade mental.2

 

 

(2) Theogonius era um amigo de Simon Magus que, por seu medo ao Imperador Calígula, fingia imbecilidade, a fim de esconder sua sabedoria. Suetônio se refere a ele como Theogonius, mas Scaliger, Casaubon e outros historiadores dão "Telegenius" como a grafia correta.

 


Salveter, lentamente, acenou com a cabeça de modo afirmativo.

— Às vezes percebo nele essas mesmas qualidades... Mas, quem mais...?

— Ah, quem mais? — Vance suspirou. — Escute aqui, Sr. Salveter, a que horas foi para a cama esta noite?

— Às dez e trinta — respondeu o homem agressivamente. — E não me levantei até agora, quando Hani veio me chamar.

— O senhor, então, retirou-se imediatamente depois de ter levado o livro memorando do escritório para o Dr. Bliss.

— Oh, ele lhe falou a esse respeito, não?... Sim, entreguei-lhe o livro e fui para o meu quarto.

— O livro, pelo que sei, estava em cima da mesa.

— Sim, estava... Mas por que todas essas perguntas a respeito de um livro memorando?

— Aquela adaga — explicou Vance — também era |guardada em uma das gavetas da mesa do Dr. Bliss.

Salveter de um salto se pôs de pé.

— Estou entendendo! — Seu rosto estava lívido.

— Oh, não está — Vance assegurou-lhe brandamente. — E eu apreciaria muito se o senhor procurasse acalmar-se. Sua vitalidade positivamente me cansa... Diga-me uma coisa, o senhor trancou a porta de seu quarto hoje à noite?

— Sempre a tranco durante a noite.

— E durante o dia?

— Deixo-a aberta, para arejar o quarto.

— O senhor não ouviu nada esta noite, depois de ter ido para o quarto?

— Absolutamente nada. Dormi logo... a reação, suponho.

Vance levantou-se.

— Uma outra coisa. Onde jantou a família esta noite?

— Na saleta de refeições. No entanto, dificilmente poderíamos dizer que foi um jantar. Ninguém tinha fome. Foi mais uma ceia ligeira. Assim, comemos lá embaixo. Menos incômodo.

— E o que fizeram as diversas pessoas da casa depois dessa refeição?

— Hani subiu imediatamente, creio eu. O doutor, a Sra. Bliss e eu ficamos sentados aqui na sala de visitas por uma hora mais ou menos, quando o doutor pediu desculpas e retirou-se para o seu quarto. Pouco depois Meryt-Amen subiu também e eu fiquei por aqui até dez e meia, tentando ler.

— Obrigado, Sr. Salveter. Isso é tudo. — Vance se deslocou na direção do saguão. — Somente gostaria ainda que o senhor avisasse a Sra. Bliss e ao doutor que não iremos mais perturbá-los hoje à noite. Amanhã, provavelmente, falaremos com eles... Vamos, Markham. Não há realmente nada que possamos fazer aqui.

— Eu poderia fazer um pouco mais — objetou Heath com azedo antagonismo. — Mas este caso está sendo conduzido como um chá de senhoras. Alguém, nesta casa, lançou uma adaga e se eu fizesse as coisas como quero arrancaria a verdade de dentro dele.

Markham esforçou-se diplomaticamente para aplacar os sentimentos arrufados do sargento, porém sem notável sucesso.

Estávamos de pé, pelo lado de dentro da porta, preparando-nos para partir e Vance se detivera para acender um cigarro. Ele estava de frente para a porta grande de aço que conduzia ao museu e percebi que, de repente, se pusera tenso.

— Oh, espere um momento, Sr. Salveter — chamou ele, e o homem, que se encontrava nesse momento quase no topo do primeiro lance de degraus, voltou-se e tornou a aproximar-se. — Por que as luzes no museu?

Olhei para a parte de baixo da porta de aço, onde se fixavam os olhos de Vance e, pela primeira vez, percebi uma tênue réstia de luz. Salveter, também, olhou para o chão e franziu o cenho.

— Tenho certeza de que não sei — respondeu, com a voz intrigada. — Supõe-se que a última pessoa a deixar o museu deva apagar as luzes. Ninguém, entretanto, que seja do meu conhecimento, esteve no museu hoje de noite... Vou ver o que é. — Encaminhou-se para a porta, mas Vance se colocou a sua frente.

— Não se preocupe — disse, peremptoriamente. — Verei eu mesmo. Boa noite.

Salveter recebeu inquieto a deliberação de Vance, mas, sem dizer nada, subiu as escadas.

Quando ele desapareceu por trás da balaustrada do segundo andar, Vance girou a maçaneta delicadamente e abriu a porta do museu. Abaixo de nós, no lado oposto da sala, sentado à mesa próxima ao obelisco e cercado por arquivos, fotografias e pastas de cartolina, encontrava-se Scarlett. O casaco e o colete estavam nas costas da cadeira; uma pala de celulóide verde cobria-lhe os olhos; tinha uma caneta na mão, suspensa sobre um livro grande de anotações.

Scarlett olhou para cima quando a porta se abriu.

— Oh, alô! — cumprimentou ele alegremente. — Pensei que já tivessem liquidado hoje com a casa de Bliss.

— Agora já é amanhã — tornou Vance, descendo as escadas e cruzando o museu.

— O quê?! — Scarlett levou a mão atrás e puxou o relógio. — Grande Escócia! É isso mesmo. Não fazia idéia da hora. Estou trabalhando aqui desde as oito horas...

— Surpreendente. — Vance examinou algumas fotografias. — Muito interessante... Quem fez você entrar?

— Brush, é claro. — Scarlett parecia bastante surpreendido com a pergunta. — Disse que a família estava jantando na saleta de refeições. Pedi-lhe que não os perturbasse, pois eu tinha algum trabalho para terminar...

— Ele não nos falou sobre sua chegada. — Vance, aparentemente, estava interessado no exame de uma fotografia de quatro braceletes amuletos.

— Mas por que deveria ter falado, Vance? — Scarlett se pusera de pé e estava vestindo o casaco. — É uma coisa comum para mim vir até aqui e trabalhar à noite. Estou entrando e saindo da casa constantemente. Quando trabalho à noite sempre desligo a luz quando saio e verifico se a porta da frente está fechada. Não é nada fora do comum que eu venha até aqui depois do jantar.

— Naturalmente foi por isso que Brush não nos falou. — Vance tornou a colocar as fotografias em cima da mesa. — No entanto, algo fora do comum aconteceu aqui esta noite.

— Colocou a bainha da adaga na frente de Scarlett. — O que sabe você sobre este bizarro objeto?

— Oh, muita coisa. — Scarlett sorriu e lançou sobre Vance um olhar interrogativo. — Como você veio a esbarrar com isso? É um dos recônditos segredos do Dr. Bliss.

— Realmente? — Vance ergueu as sobrancelhas, com simulada surpresa. — Então isso lhe é familiar?

— Bastante. Vi o velho malandro escondê-la em sua camisa caqui quando a encontrou. Fiquei calado — não era da minha conta. Mais tarde, quando já estávamos aqui em Nova York, ele me falou que a havia contrabandeado para fora do Egito e me confiou que a estava mantendo escondida em seu escritório. O Dr. Bliss temia constantemente que Hani a descobrisse e me fez jurar que manteria segredo. Concordei.

O que é uma adaga, afinal de contas? De qualquer modo o Museu do Cairo tem a nata de todas as escavações.

— Ele a conservava escondida por baixo de alguns papéis em uma das gavetas de sua mesa.

— Sim, sei disso. Esconderijo seguro. Hani raramente vai até o escritório... Mas, estou curioso...

— Estamos todos curiosos. Situação desagradável, não?

— Vance não lhe deu tempo de especular. — Quem mais sabia da existência da adaga?

— Ninguém mais, tanto quanto eu saiba. O doutor, certamente, não iria revelar o fato a Hani, e tenho sérias dúvidas de que informasse a Sra. Bliss. Ela tem peculiares lealdades para com seu país de origem e o doutor as respeita. Não sei como ela reagiria ao roubo de tão valioso tesouro.

— E com relação a Salveter?

— Eu diria que não — Scarlett fez uma careta de desagrado. — Ele seguramente confiaria a Meryt-Amen. Jovem impulsivo.

— Bem, alguém sabia onde se encontrava — observou Vance. — O Dr. Bliss me telefonou pouco depois da meia-noite dizendo que havia escapado de ser assassinado pelo proverbial fio de cabelo; viemos correndo para cá e encontramos a ponta desse punhal cravada na cabeceira de sua cama.

— Por Jó! Não diga! — Scarlett parecia chocado e perplexo. — Alguém deve ter descoberto a adaga... e, então...

— Scarlett interrompeu-se bruscamente e lançou um olhar rápido sobre Vance. — Como explica isso?

— Não tenho explicação. Muito misterioso... Hani, por falar nisso, encontrou a bainha no saguão, próximo à porta do doutor.

— Isso é estranho... — Scarlett fez uma pausa como se estivesse meditando. Em seguida se pôs a arrumar os papéis e as fotografias em pilhas e a ajeitar as caixas de arquivo embaixo da mesa. — Você não conseguiu nenhuma sugestão do restante do pessoal da casa? — perguntou.

— Inúmeras sugestões. Todas conflitantes e, em sua maior parte, tolas. Assim, estamos voltando para casa. Acontece que vimos a luz por baixo da porta e ficamos curiosos... Também vai sair agora?

— Sim. — Scarlett pegou o chapéu. — Já devia ter ido embora há muito tempo, mas não me apercebi das horas que eram.

Saímos todos juntos da casa. Um pesado silêncio caíra sobre nós e somente quando Scarlett parou em frente de sua casa foi que um de nós falou. Vance disse: — Boa noite. Não deixe que a adaga perturbe seus sonhos.

Scarlett acenou um abstrato adeus.

— Obrigado, meu velho — respondeu. — Tentarei seguir seu conselho.

Vance tinha dado alguns passos quando se voltou subitamente.

— E olhe aqui, Scarlett. Se eu fosse você ficaria longe da casa de Bliss durante algum tempo.

 


XIX

 

 

Um encontro desfeito


(Sábado, 14 de julho — das 2:00 às 10:00 horas)

 

 

Heath deixou-nos na esquina da Rua Dezenove com a Quarta Avenida; Vance, Markham e eu tomamos um táxi para voltar ao apartamento de Vance. Eram quase duas horas, mas Markham não dava demonstrações de que iria para casa. Subiu com Vance até à biblioteca, e abrindo as janelas francesas, ficou olhando para fora, para a noite pesada e tomada pela névoa. Os eventos do dia não lhe haviam agradado e percebi que sua dúvida era tão profunda que ele não se sentia inclinado a fazer movimento algum até que os fatores conflitantes da situação se tornassem mais claros.

O caso, no princípio, parecera simples, e o número de suspeitos possíveis era limitado, por certo. No entanto, a despeito desses dois fatos, havia uma sutil e misteriosa intangibilidade em torno do caso que tornavam impossível um movimento drástico. Os elementos eram por demais fluidos, os possíveis motivos por demais contraditórios. Vance tinha sido o primeiro a perceber as ilusórias complicações, o primeiro a indicar os invisíveis paradoxos. E, tão seguramente pusera ele o dedo nos pontos vitais da trama — tão precisamente havia ele previsto certas fases do desenvolvimento dessa trama — que Markham, não só figurativa como literalmente, tinha passado para o fundo quadro e permitido que ele dirigisse o caso a sua maneira.

Contudo, Markham estava insatisfeito e impaciente. Nada que levasse definitivamente ao verdadeiro culpado, tanto quanto podia ser visto, tinha sido trazido à luz pelo processo de investigação de Vance, não profissional e quase descuidado.

— Não estamos avançando, Vance — protestou Markham com sombria preocupação, voltando-se da janela. — Mantive-me à parte durante todo o dia, deixando que você conduzisse as coisas como melhor lhe parecesse, porque senti que o seu conhecimento das pessoas e da egiptologia lhe dariam vantagem sobre depoimentos oficiais impessoais. Achei também que você tinha uma teoria plausível sobre todo o assunto, a qual estava procurando verificar. No entanto, o assassinato de Kyle está tão longe de uma solução como quando entramos no museu pela primeira vez.

— Você é um pessimista incorrigível, Markham — replicou Vance, enquanto vestia um robe estampado. — Passaram-se apenas quinze horas desde que nos deparamos com Sakhmet atravessada no crânio de Kyle e você deve admitir, doloroso como isso possa ser para um procurador distrital, que a investigação criminal média raramente começa em tão curto espaço de tempo...

— Na investigação criminal média, no entanto — retorquiu Markham azedamente — teríamos encontrado pelo menos uma ou duas pistas e esboçado uma rotina de trabalho. Se Heath estivesse conduzindo as coisas já teria efetuado alguma prisão — o campo de possibilidades não é extenso.

— Ouso dizer que Heath já teria prendido alguém. Sem dúvida já teria todo o mundo nas grades, inclusive Brush e Dingle e os curadores do Museu Metropolitano. A tática típica: massacrar pessoas inocentes para fazer a alegria de um jornalista. Não me sinto atraído por essa técnica, entretanto. Sou por demais humano — continuo a manter muitas de minhas primeiras ilusões. Sentimentalmente, alas!, será provavelmente a minha queda.

Markham fungou e sentou-se na extremidade da mesa. Durante algum tempo ficou tamborilando num volume encadernado em couro do Malleus Maleficarum.

— Você me falou bastante enfaticamente — disse ele — que quando este segundo episódio acontecesse — a tentativa contra a vida de Bliss — você compreenderia todas as fases da trama e talvez fosse capaz de aduzir algumas evidências tangíveis contra o assassino de Kyle. Parece-me, no entanto, que os acontecimentos desta noite nos fizeram mergulhar ainda mais profundamente nas incertezas.

Vance sacudiu a cabeça, seriamente, em desacordo.

— O lançamento da adaga e o esconder e encontrar a bainha iluminaram o único ponto discutível da trama.

Markham olhou para cima severamente.

— Você pensa que sabe qual é a trama?

Vance colocou cuidadosamente um Régie em uma piteira longa e olhou uma fotografia pequena de Picasso em cima da lareira.

— Sim, Markham, — retorquiu ele vagarosamente — creio que sei qual é a trama. E se esta noite ocorrer aquilo que espero, posso, acredito, convencê-lo de que estou certo em minha diagnose. Infelizmente o arremesso da adaga foi apenas uma parte do episódio pré-arranjado. Como já lhe disse há uns momentos atrás, o quadro não está ainda completo. Algo interveio. E o toque final — o arremate do episódio — ainda está por vir.

Vance falou com impressionante solenidade e Markham, segundo percebi, ficou fortemente influenciado por sua maneira.

— Você tem alguma noção definida — perguntou ele — sobre o que será esse toque final?

— Oh, sim. Mas exatamente qual a forma que vai tomar não posso dizer. A própria pessoa que urdiu a trama provavelmente também não o sabe, pois deve aguardar uma oportunidade propícia. Mas tudo estará centrado em torno de um objetivo específico — um indício forjado, Markham. Esse indício já foi cuidadosamente preparado e sua colocação é o único fator indefinido ainda... Sim, estou esperando o aparecimento de um específico item; quando esse item aparecer poderei convencê-lo de toda a diabólica verdade.

— Quando, em sua opinião, esse indício aparecerá? — quis saber Markham, inquieto.

— Quase que a qualquer momento. — O tom de voz de Vance era monótono e calmo. — Algo evitou que tomasse forma esta noite, pois que é um corolário íntimo do arremesso da adaga. Recusando-me a levar muito a sério aquele episódio e deixando que Hani encontrasse a bainha fiz com que se tornasse necessário o imediato forjamento do indício final. Uma vez mais, recusei-me a cair na armadilha do criminoso — ainda que, como já disse, a isca não estivesse colocada inteiramente na armadilha.

— Estou satisfeito em ter uma espécie de explicação para sua atitude casual na noite de hoje. — A despeito da nota de sarcasmo na voz de Markham, era óbvio que, no fundo, ele não estava fazendo críticas à conduta de Vance. Ele estava ao largo e inclinado, conseqüentemente, a irritar-se.

— Aparentemente você não se interessou em descobrir quem lançou aquela adaga no travesseiro de Bliss.

— Mas Markham, meu velho, sei quem lançou o adornado punhal. — Vance fez um ligeiro gesto de impaciência.

— Minha única preocupação é aquilo a que os repórteres chamam de "as causas do crime".

Markham percebeu que não valia a pena insistir em saber, nesse momento, quem teria lançado a adaga; assim, continuou a comentar as recentes atividades de Vance na casa de Bliss.

— Você poderia ter obtido muito boas sugestões de Scarlett, evidentemente ele esteve no museu durante todo o tempo...

— Mesmo assim, Markham, — contrapôs Vance — não se esqueça de que existe uma espessa parede dupla entre o museu e a residência de Bliss e que essas portas de aço são, praticamente, à prova de som. Poderiam ter explodido bombas no quarto do doutor, sem que qualquer pessoa no museu as ouvisse.

— Talvez você tenha razão. — Markham levantou-se e ficou olhando para Vance apreciativamente. — Estou confiando um bocado em você, seu esteta confuso. Estou sendo contrário a todos os meus princípios e refutando completamente as normas oficiais de procedimento porque acredito em você. Mas Deus o ajude se falhar... Qual é o programa para amanhã?

Vance dedicou-lhe um olhar agradecido e afetivo. Logo em seguida um sorriso cínico espalhou-se em seu rosto.

— Eu sou, por assim dizer, a embreagem não oficial que o promotor distrital sonolento aciona, não? Não é um cumprimento esmagador.

Entre esses dois amigos era sempre o caso de que, quando um emitisse uma observação generosa o outro imediatamente o travava, temeroso de alguma demonstração ostensiva de sentimentos.

— O programa para amanhã? — Vance meditou sobre a pergunta de Markham. — Realmente, sabe, não dediquei a isso nenhuma consideração cartesiana... Há uma exibição de Gauguin no Wildenstein. Poderia ir até lá e me aquecer nas cores harmônicas do grande Pont-Avenois. Há, também, um recital do Septet Beethoven no Carnegie Hall e uma pré-apresentação de afrescos egípcios das paredes das tumbas de Nakhte, Menena e Rekh-mi-Re...

— E uma exposição de orquídeas no Palácio Grand Central — sugeriu Markham com raivosa ironia. — Mas, olhe aqui, Vance, se deixarmos essa coisa rolar mais um dia sem tomar alguma espécie de ação, poderá haver perigo pela frente para alguém mais, do mesmo modo que houve perigo para Bliss esta noite. Se o assassino de Kyle é tão implacável como você diz e seu trabalho não foi ainda completado...

— Não, não penso assim. — O rosto de Vance estava novamente sombrio. — A trama não inclui qualquer outro ato de violência. Acredito que tenha entrado agora em um estágio mais tranqüilo e sutil — ainda mais funesto. — Durante um momento fumou especulativamente. — Mesmo assim... talvez haja uma chance remota. As coisas não estão correndo de acordo com os cálculos do criminoso. Impedimos seus dois movimentos mais ambiciosos. Sobra-lhe, porém, uma combinação mais e estou certo de que a tentará...

A voz de Vance se interrompeu e, levantando-se, pôs-se a andar para lá e para cá até à janela francesa.

— De qualquer modo cuidarei da situação pela manhã — disse ele. — Ficarei em guarda contra qualquer possibilidade de perigo. Ao mesmo tempo, apressarei o forjamento do último indício.

— Quanto tempo irá durar toda essa história? — Markham parecia confuso e nervoso. — Não posso continuar indefinidamente esperando que aconteçam fatos apocalípticos.

— Dê-me vinte e quatro horas. Então, se não receber-t mos outro auxílio do cavalheiro que está acionando os cordéis, você poderá deixar que Heath se abata sobre a família.

Não se tinham passado vinte e quatro horas quando o evento culminante teve lugar. O dia 14 de julho permanecerá sempre em minha memória como um dos dias mais excitantes e terríveis de minha vida e quando, anos mais tarde, estava registrando este caso, dificilmente podia deixar de estremecer. Não ouso pensar sobre o que teria acontecido — que tremenda injustiça poderia ter sido perpetrada de boa-fé — se Vance não tivesse percebido as maquinações interiores da diabólica trama envolvendo a morte de Kyle e não persistisse em sua recusa de permitir a Markham e Heath a linha de ação óbvia de prenderem Bliss.

Vance me disse, meses mais tarde, que jamais em sua carreira se havia confrontado com uma tarefa tão delicada como a de aplacar Markham e convencê-lo de que uma espera impassiva era a única maneira de chegar à verdade. Quase que a partir do momento em que Vance entrou no museu, atendendo à chamada de Scarlett, ele percebera as tremendas dificuldades que tinha pela frente, pois tudo tinha sido planejado de modo a forçar Markham e a polícia a tomarem a medida contra a qual ele tão consistentemente tinha lutado.

Ainda que Markham não tivesse saído do apartamento' de Vance antes das duas horas e meia na noite do arremesso da adaga, Vance, na manhã seguinte, estava de pé antes das oito. O dia prometia ser sufocante e ele tomou seu café no jardim do terraço. Mandou que Currie comprasse todos os jornais da manhã e, durante cerca de uma meia hora, dedicou-se à leitura do assassinato de Kyle.

Heath tinha sido altamente discreto no fornecimento dos fatos e apenas o esqueleto da. história tinha sido posto ao alcance da imprensa. No entanto, a preeminência de Kyle e a distinta reputação de Bliss fizeram com que o crime provocasse um tremendo furor. Isso se traduzia no enaltecimento de primeira página de todos os jornais metropolitanos e nas longas referências aos trabalhos egiptológicos de Bliss e ao interesse financeiro do filantropo morto nesses trabalhos. A teoria geral parecia ser — e nisso reconheço a habilidosa mão do sargento — que alguém da rua tinha entrado no museu e, como ato de vingança ou de inimizade, matara Kyle com a primeira arma disponível.

Heath falara à imprensa sobre o encontro do alfinete de escaravelho ao lado do corpo, mas não deu qualquer outra informação a respeito. Devido a esse pequeno objeto, que era o único detalhe evidenciai fornecido, os jornais, sempre à procura de títulos de identificação, deram à tragédia o nome de o caso do escaravelho. Esse nome acompanha o crime até o dia de hoje. Mesmo as pessoas que se esqueceram do nome de Benjamin H. Kyle lembram-se ainda da sensação causada por esse crime, como resultado do encontro daquela antiga peça de lápis-lazúli, ostentando a inscrição do nome de um faraó egípcio do ano de 1650 antes de Cristo.

Vance leu as notícias com um sorriso cínico.

— Pobre Markham — murmurou ele. — A menos que algo definido aconteça logo, as críticas contra sua administração descerão sobre ele como um bando de monstros. Vejo que Heath anunciou ao mundo que o procurador distrital está completamente encarregado do caso...

Permaneceu fumando meditativamente durante algum tempo. Em seguida telefonou para Salveter e pediu-lhe que fosse imediatamente a seu apartamento.

— Tenho a esperança de remover todas as possibilidades de desastre — explicou-me ao desligar o receptor — embora esteja convencido de que haverá uma outra tentativa de nos enganar antes que qualquer medida desesperada seja tomada.

Os seguintes quinze minutos foram passados por Vance preguiçosamente deitado com os olhos cerrados. Pensei que tivesse dormido, mas quando Currie abriu suavemente a porta para anunciar Salveter, Vance fez-lhe sinal para que deixasse entrar o visitante, antes que o criado pudesse falar.

Salveter entrou um minuto mais tarde, parecendo ansioso e intrigado.

— Sente-se, Sr. Salveter. — Vance indicou indolentemente uma cadeira. — Tenho estado pensando sobre a Rainha Hetep-hir-es e o Museu de Boston. O senhor terá algum motivo que o possa levar razoavelmente a Boston esta noite?

Salveter pareceu ainda mais intrigado.

— Sempre tenho alguma coisa para fazer lá — replicou, franzindo o cenho. — Especialmente em vista das escavações da Expedição Harvard-Boston nas pirâmides de Gizeh. Foi em conexão com essas escavações que tive que ir ao Museu Metropolitano ontem pela manhã para o Dr. Bliss... Isso responde sua pergunta satisfatoriamente?

— Bastante... E essas reproduções do mobiliário da tumba de Hetep-hir-es: o senhor não as poderia arranjar com mais facilidade se visse o Dr. Reisner pessoalmente?

— Certamente. O fato é que tenho que ir lá de qualquer modo, a fim de fechar negócio. Ontem eu estava meramente na pista de informações preliminares.

— O fato de amanhã ser domingo o prejudica de alguma forma?

— Pelo contrário. Provavelmente poderei ver o Dr. Reisner fora de seu gabinete e discutir o assunto calmamente com ele.

— Se assim é, suponho que o senhor poderá tomar um trem esta noite, depois do jantar. Volte, digamos, amanhã à noite. Alguma objeção?

A curiosidade de Salveter cedeu lugar à estupefação.

— Bem, não — gaguejou ele. — Nenhuma objeção particular, mas...

— O Dr. Bliss acharia estranho se o senhor lhe desse essa notícia assim de repente?

— Não posso dizer. Provavelmente não. O museu não é lugar particularmente agradável, principalmente agora...

— Bem, desejo que vá, Sr. Salveter. — Vance abandonou suas maneiras despreocupadas e sentou-se. — E desejo que o senhor vá sem perguntas e sem discussão. Não há possibilidades de que o Dr. Bliss proíba sua ida, há?

— Oh, nada disso — assegurou Salveter. — Ele poderá achar curioso que eu saia em uma ocasião dessas, mas nunca interfere com a maneira pela qual conduzo meus afazeres.

Vance levantou-se.

— Está bem. Há um trem que parte da Grand Central para Boston hoje às nove e meia da noite. Veja se toma esse trem... E — aduziu ainda — pode telefonar-me da estação à guisa de verificação. Estarei aqui entre nove e nove e meia... O senhor poderá voltar para Nova York a qualquer hora que queira depois do meio-dia de amanhã.

Salveter sorriu para Vance encabulado.

— Suponho que isso sejam ordens.

— Ordens sérias e importantes, Sr. Salveter — respondeu Vance de modo impressionante. — E não há necessidade de que o senhor se preocupe com a Sra. Bliss. Hani, tenho certeza, tomará conta dela.

Salveter ia responder qualquer coisa, mas mudou de idéia e, voltando-se subitamente, retirou-se rápido.

Vance bocejou e levantou-se preguiçosamente.

— Creio, agora, que dormirei mais umas duas horas.

Após o almoço no Marguery, Vance foi até à exposição de Gauguin e, mais tarde, até o Carnegie Hall para ouvir o Septet Beethoven. Quando o concerto terminou era demasiado tarde para ver a exposição de afrescos no Museu Metropolitano de Arte. Ao invés disso, Vance foi buscar Markham em seu carro e nós três fomos jantar no Claremont.

Vance explicou rapidamente as medidas que tinha tomado com relação a Salveter. Markham quase que não fez comentários. Parecia cansado e desanimado, mas havia uma abstrata tensão em sua atitude, o que me fez perceber o quanto confiava na predição de Vance de que algo tangível não custaria a acontecer com relação ao caso de Kyle.

Após o jantar regressamos ao jardim do terraço de Vance. O enervante calor do meio do verão ainda se fazia sentir e dificilmente qualquer brisa soprava.

— Disse a Heath que telefonaria para ele... — começou a falar Markham acomodando-se em uma cadeira de vime.

— Eu ia mesmo sugerir que se entrasse em ligação com o sargento — opinou Vance. — Gostaria bastante de tê-lo aqui à mão. Ele é confortante.

Tocou a campainha chamando Currie e mandou trazer o telefone. Em seguida ligou para Heath e pediu-lhe que viesse ter conosco.

— Estou com um pressentimento psíquico — disse ele dirigindo-se a Markham, com um ar de forçada leviandade — de que não demorará muito e seremos convocados para testemunhar a irrefutável prova da culpa de alguém. E se essa prova for o que penso...

Markham, de súbito, inclinou-se para a frente em sua cadeira.

— Acaba de me ocorrer o que você está sugerindo tão misteriosamente! — exclamou ele. — Tem alguma relação com aquela carta hieroglífica que você encontrou no escritório.

Vance hesitou apenas momentaneamente.

— Sim, Markham — concordou Vance. — Aquela carta rasgada ainda não foi explicada. Tenho a respeito uma teoria que não me quer abandonar... ela se encaixa perfeitamente demais com toda a odiosa trama.

— Mas você está com a carta — argumentou Markham, em um esforço para fazer Vance falar.

— Oh, sim. E estou feliz que assim seja.

— Você acredita que é a carta que Salveter disse que escreveu?

— Indubitavelmente.

— E você acredita que ele não saiba que a carta foi rasgada e jogada na cesta de papéis usados do doutor?

— Oh, claro. Ele ainda está intrigado com o fim que ela levou... e preocupado também.

Markham estudou Vance com indisfarçável curiosidade.

— Você se referiu a algum objetivo ao qual a carta poderia ter servido antes de ter sido jogada fora.

— É isso o que estou esperando verificar. O fato é, Markham, que eu esperei que a carta entraria no mistério do arremesso da adaga na noite passada. E admito que me senti terrivelmente fracassado quando nos deparamos com toda a família confortavelmente acomodada na cama sem nos termos 'deparado com um simples hieróglifo. — Puxou um cigarro. — Havia uma razão para isso e creio que conheço a explicação. Aí está a razão de minha fé infantil de que algo ocorrerá agora, a qualquer momento...

O telefone tocou e Vance o atendeu imediatamente. Era Salveter, chamando da Estação Grand Central. Após uma conversação ligeira, Vance recolocou o instrumento sobre a mesa, com ar de satisfação.

— O doutor — disse ele — estava evidentemente muito ansioso em passar a noite de hoje e amanhã sem o seu assistente curador. Assim, esse pequeno lance estratégico foi realizado sem dificuldade...

Meia hora mais tarde Heath foi introduzido no jardim do terraço. Estava sombrio e deprimido e sua saudação foi pouco mais do que um grunhido gutural.

— Alivie o seu coração, sargento — cumprimentou-o Vance alegremente. — Hoje é o Dia da Bastilha.1 Isso pode ter um significado simbólico. Não está além do reino das possibilidades que o senhor possa encarcerar o assassino de Kyle antes da meia-noite.

 

 

 

(1) Vance, é claro, estava-se referindo à Festa Nacional Francesa, que se comemora no dia 14 de julho.

 


— Sim? — Heath estava completamente céptico. — Ele virá aqui entregar-se, trazendo todas as provas? Que sujeito bom e acomodado.

— Não exatamente, sargento. Mas estou esperando que ele nos mande chamar; e creio que poderá ser tão generoso ao ponto de indicar, ele mesmo, a principal prova.

— Maluco, não? Bem, Sr. Vance, se ele o fizer nenhum júri o condenará. Conseguirá um atestado de insanidade com direito a acomodações e tratamento médico pelo resto de sua vida. — Consultou o relógio. — São dez horas. A que horas chegará o convite?

— Dez? — Vance verificou as horas. — Meu Deus! É mais tarde do que eu pensava... — Um ar de ansiedade passou em seu rosto. — Será que calculei mal todo esse caso?

Jogou fora o cigarro e se pôs a caminhar para cá e para lá. Dentro em pouco parou à frente de Markham que o observava inquietamente.

— Quando mandei Salveter embora — começou Vance vagarosamente — confiava em que o esperado evento aconteceria imediatamente. Temo que algo tenha corrido errado. Assim, penso que o melhor é esboçar o caso para vocês agora.

Fez uma pausa e franziu o cenho.

— Entretanto — acrescentou — seria aconselhável que Scarlett estivesse presente. Tenho certeza de que ele poderia preencher algumas falhas.

Markham pareceu surpreendido.

— O que sabe Scarlett a este respeito?

— Oh, muita coisa — foi a resposta de Vance. Em seguida voltou-se para o telefone, mas hesitou. — Ele não tem um telefone particular e não sei o número do telefone da casa...

— Isto é fácil. — Heath pegou o telefone e pediu ligação com um certo funcionário da noite de sua Seção. Após umas poucas palavras de explicação, desligou e chamou um número. Houve uma considerável demora, mas ao fim de algum tempo alguém respondeu do outro lado. Pelas perguntas do sargento ficou evidente que Scarlett não se encontrava em casa.

— Era sua senhoria — explicou Heath desgostosamente, quando recolocou o receptor no lugar. — Scarlett saiu às oito horas... disse que iria dar uma chegada ao museu e que estaria de volta às nove. A essa hora tinha um encontro com um sujeito em seu apartamento e o mesmo ainda está esperando por ele.

— Então podemos alcançá-lo no museu. — Vance ligou para o número de Bliss e pediu a Brush que chamasse Scarlett ao telefone. Depois de alguns minutos afastou o telefone.

— Scarlett também não está no museu — disse. — Ele chegou lá, de acordo com Brush, por volta das oito horas e deve ter saído sem ser observado. Provavelmente está em seu caminho de volta a seu apartamento. Vamos esperar um pouco e tornar a telefonar-lhe.

— É necessário que tenhamos Scarlett aqui? — Indagou Markham impacientemente.

— Não exatamente necessário — retorquiu Vance evasivamente — mas muito desejável. Lembre-se de que ele admitiu com toda a franqueza que poderia dizer-me muita coisa a respeito do criminoso...

Vance interrompeu-se abruptamente, e com tensa deliberação escolheu e acendeu um outro cigarro. Suas pálpebras baixaram e ficou olhando fixamente para o chão.

— Sargento — disse ele com a voz controlada —, acredito que o senhor tenha dito que o Sr. Scarlett tinha um encontro com alguém às nove e informara sua senhoria de que estaria de volta a essa hora.

— Foi o que a dama me disse ao telefone.

— Por favor, veja se Scarlett já chegou em casa.

Sem uma palavra, Heath tornou a erguer o receptor e a pedir o número do telefone de Scarlett. Um minuto mais tarde voltava-se para Vance.

— Ele ainda não apareceu.

— Tremendamente estranho — resmungou Vance. — Não estou gostando disso, Markham.

Seu cérebro se entregou a especulações e me pareceu que Vance se pusera ligeiramente pálido.

— Estou ficando assustado — prosseguiu ele com voz abafada. — Já deveríamos ter ouvido alguma coisa a respeito da carta... Estou com medo de que tenhamos problemas pela frente.

Olhou para Markham com seriedade e preocupação.

— Não poderemos esperar mais. Talvez já seja tarde. Temos que agir imediatamente. — Encaminhou-se para a porta. — Vamos Markham, e o senhor, sargento. Temos o que fazer no museu. Se andarmos depressa talvez cheguemos a tempo.

Ambos, Markham e Heath, se haviam posto de pé enquanto Vance falava. Havia em sua voz estranha urgência e previsão de coisas terríveis em seus olhos. Vance desapareceu rapidamente no interior da casa e todos nós, mobilizados pela controlada excitação de sua atitude, o acompanhamos em silêncio. Seu carro se encontrava do lado de fora e alguns momentos mais tarde estávamos contornando perigosamente a esquina da Rua Trinta e Oito com a Avenida Park, na direção do Museu Bliss.


XX

 

O sarcófago de granito

 

 

(Sábado, 14 de julho — 22:10 horas)

 

 

Chegamos ao museu em menos de dez minutos. Vance subiu correndo os degraus de pedra, com Markham, Heath e eu em seus calcanhares. Não somente havia uma luz acesa no vestíbulo como também, através dos painéis de vidro da porta da frente, podíamos ver no saguão uma luz brilhando. Vance tocou a campainha vigorosamente, mas algum tempo se passou antes que Brush atendesse.

— Cochilando? — perguntou Vance. Estava tenso e sensível.

— Não, senhor. — Brush afastou-se de Vance. — Eu estava na cozinha...

— Diga ao Dr. Bliss que estamos aqui e queremos vê-lo, imediatamente.

— Sim, senhor. — O mordomo atravessou o saguão e bateu à porta do escritório. Não houve resposta e ele tornou a bater. Após um momento Brush girou a maçaneta e espiou para dentro. Depois voltou até onde nós estávamos.

— O doutor não está em seu escritório. Talvez tenha ido para o quarto... Vou ver.

Encaminhou-se para as escadas e já ia começar a subi-las quando uma voz calma o deteve.

— Effendi Bliss não está aqui em cima. Hani desceu vagarosamente até o saguão da frente. — É possível que esteja no museu.

— Bem, bem! — Vance olhou para o homem reflexivamente. — Surpreendente como você sempre aparece... Então você acredita que o doutor esteja perambulando entre os seus tesouros, não? — Vance abriu a grande porta de aço do museu. — Se o doutor estiver aqui está consumindo o seu tempo no escuro. — Caminhando pelo patamar das escadas no interior do museu, Vance acendeu as luzes e correu os olhos pela grande sala. — Aparentemente você está errado, Hani, com relação ao paradeiro do doutor. Pelo que se pode ver o museu está vazio.

O egípcio permanecia tranqüilo.

— Talvez o Dr. Bliss tenha saído para tomar um pouco de ar.

Houve uma ruga de preocupação no rosto de Vance.

— É possível — murmurou ele. — No entanto, desejo que você se certifique de que ele não está lá em cima.

— Eu o teria visto se ele tivesse subido depois do jantar — respondeu o egípcio calmamente. — De qualquer modo, seguirei suas instruções. — Com isso Hani subiu para procurar Bliss.

Vance aproximou-se de Brush e perguntou em voz baixa: — A que horas o Sr. Scarlett saiu daqui esta noite?

— Não sei, senhor. — O homem estava assustado pela atitude de Vance. — Realmente não sei. Ele chegou por volta das oito horas e o fiz entrar. Talvez ele tenha saído com o Dr. Bliss. Freqüentemente eles saem juntos à noite para um passeio.

— O Sr. Scarlett se dirigiu ao museu quando chegou às oito horas?

— Não, senhor. Ele perguntou pelo Dr. Bliss...

— Ah! E ele se encontrou com o doutor?

— Sim, senhor... Isto é — Brush corrigiu-se a si mesmo —, suponho que sim. Disse-lhe que o Dr. Bliss se encontrava no escritório e ele imediatamente atravessou o saguão. Voltei para a cozinha.

— Você notou alguma coisa fora do comum nas maneiras do Sr. Scarlett.

O mordomo meditou alguns instantes.

— Bem, senhor, já que o mencionou, eu diria que o Sr. Scarlett estava um pouco rígido e distante, como se tivesse alguma coisa na cabeça... se o senhor compreende o que quero dizer.

— E a última vez em que você o viu foi ao se aproximar da porta do escritório?

— Sim, senhor.

Vance sacudiu a cabeça despedindo o mordomo.

— Permaneça na sala de visitas até novas determinações — disse Vance.

Quando Brush desaparecia pela porta de dobrar, Hani descia lentamente as escadas.

— Como eu já disse — informou ele indiferentemente —, o Dr. Bliss não está lá em cima.

Vance examinou-o seriamente.

— Você sabe que o Sr. Scarlett esteve aqui esta noite?

— Sim, sei. — Uma luz curiosa surgiu nos olhos do homem. — Eu estava na sala de visitas quando Brush o fez entrar.

— Ele veio ver o Dr. Bliss — disse Vance.

— Sim. Ouvi-o perguntar a Brush...

— O Sr. Scarlett avistou-se com o doutor?

O egípcio não respondeu logo. Enfrentou firmemente o olhar de Vance, como se estivesse procurando ler o pensamento do outro. Finalmente, chegando a uma decisão, disse: — Eles estiveram juntos — pelo que sei — pelo menos uma meia hora. Quando o Sr. Scarlett entrou no escritório deixou a porta entreaberta e eu os ouvi conversando. Mas não pude perceber sobre o que falavam. Suas vozes estavam abafadas.

— Durante quanto tempo você ficou escutando?

— Por cerca de meia hora. Depois eu subi.

Desde então você não viu mais nem o Dr. Bliss nem o Sr. Scarlett?

— Não, effendi.

— Onde estava o Sr. Salveter durante a reunião no escritório? — Vance esforçava-se para controlar sua ansiedade.

— Ele estava em casa? — perguntou Hani evasivamente. — Durante o jantar ele me disse que estava indo a Boston.

— Sim, sim. No trem das nove e meia. Não lhe teria sido necessário sair de casa antes das nove... Onde esteve ele entre as oito e as nove?

Hani deu de ombros.

— Não o vi. Ele saiu de casa antes de o Sr. Scarlett chegar. Certamente não estava aqui depois das oito horas...

— Você está mentindo. — O tom de voz de Vance era frígido.

— Wahyât en-nabi...

— Não tente me impressionar... não estou de bom humor. — Os olhos de Vance eram como aço. — O que você julga que aconteceu aqui esta noite?

— Penso que Sakhmet talvez tenha voltado.

O rosto de Vance se fez pálido; no entanto, talvez tenha sido, apenas, o reflexo da luz do saguão.

— Vá para o seu quarto e espere lá — disse Vance brevemente.

Hani inclinou-se.

— O senhor não está precisando de meu auxílio, agora, effendi. O senhor entende muitas coisas. — Dizendo isso o egípcio afastou-se com toda a dignidade.

Vance permaneceu tenso até que ele tivesse desaparecido. Em seguida, fazendo um sinal para nós, atravessou o saguão na direção do escritório. Abrindo a porta Vance acendeu as luzes.

Havia ansiedade e pressa em todos os seus movimentos e a elétrica atmosfera de sua atitude era transmitida a todos nós. Percebemos que algo trágico e terrível o estava impulsionando.

Vance se aproximou das duas janelas e se inclinou para fora. À pálida luz refletida ele podia ver as lajes de asfalto lá embaixo. Espiou sob a mesa e avaliou com os olhos o vão livre embaixo do diva. Em seguida encaminhou-se até à porta que conduzia ao museu.

— Não pensei mesmo que fôssemos achar alguma coisa no escritório; mas havia uma chance...

Já estava descendo as escadas em espiral.

— Estará aqui no museu — chamou-nos ele. — Venha, sargento. Há um serviço a ser feito. O diabo andou solto esta noite...


Vance passou pelo assento real e pelas prateleiras de shawabtis e parou junto à mesa longa de tampo de vidro, as mãos metidas nos bolsos do casaco, os olhos correndo rapidamente a sala. Markham, Heath e eu aguardávamos no pé das escadas.

— O que é que está havendo? — perguntou Markham asperamente. — O que aconteceu? E, incidentalmente, o que está você procurando?

— Não sei o que aconteceu. — Algo no tom de voz de Vance fez com que meu corpo fosse percorrido por um calafrio. — E estou procurando algo horrível. Se não for aqui...

Não chegou a terminar a frase. Encaminhando-se rapidamente até à grande réplica de Kha-ef-Rê deu uma volta a seu redor. Em seguida aproximou-se da estátua de Ramsés II e inspecionou sua base. Depois disso acercou-se de Teti-shiret e bateu em seu pedestal com os nós dos dedos.

— Todas são sólidas — resmungou. — Vamos tentar as caixas com as múmias. — Tornou a atravessar o museu.

— Comece por aquela extremidade, sargento. As tampas podem ser removidas facilmente. Se tiver alguma dificuldade, arrebente-as. — O próprio Vance encaminhou-se para a caixa próxima a Kha-ef-Rê e enfiando a mão por baixo da tampa retirou-a e a colocou no soalho.

Heath, aparentemente animado por urgente desejo de ação física, já havia iniciado sua busca na outra extremidade da linha. Não se mostrava delicado de modo algum. Arrancava as tampas, com raiva, lançando-as ao chão com desnecessária violência.

Vance, absorto em sua própria tarefa, prestava pouca atenção, a não ser olhando a cada vez que uma tampa era arrancada da caixa. Markham, no entanto, começara a inquietar-se. Observou o sargento desaprovadoramente durante alguns momentos, o rosto sombrio. Logo em seguida aproximou-se.

— Não posso deixar que isso continue, Vance — observou ele. — Isso são tesouros valiosos e não temos o direito...

Vance levantou-se e olhou diretamente para Markham.

— E se houver um homem morto dentro de uma delas? — perguntou com uma frieza que levou Markham a se sentir rígido.

— Um homem morto?

— Colocado aqui hoje à noite, entre as oito e as nove horas.

As palavras de Vance tinham características agourentas e impressionantes e Markham não disse mais nada. Permaneceu parado, suas linhas tensas, observando a febril inspeção das demais caixas de múmias.

No entanto não foi feita nenhuma descoberta desagradável. Heath removeu a tampa da última caixa com óbvio desapontamento.

— Creio que há alguma coisa errada com suas idéias, Sr. Vance — comentou desanimado; na verdade havia uma nota de simpatia em sua voz.

Vance, absorto e com o olhar distante, estava agora ao lado da caixa de vidro. Sua tensão era tão aparente que Markham se aproximou dele e tocou-lhe no braço.

— Talvez nós pudéssemos tornar a calcular todo este caso ao longo de outras linhas... — começou ele, mas Vance o interrompeu.

— Não. Este caso não pode ser recalculado. É demasiado lógico. Houve uma tragédia aqui esta noite e chegamos muito tarde para interceptá-la.

— Devíamos ter tomado precauções. — O tom de Markham era azedo.

— Precauções! Todas as precauções possíveis foram tomadas. Esta noite foi introduzido um novo elemento na situação — um elemento que não poderia ter sido previsto. A tragédia desta noite não fazia parte da trama... — Vance voltou-se e se afastou. — Tenho que pensar no assunto. Tenho que refazer o raciocínio do criminoso... — Fez a volta completa do museu, sem tirar os olhos do chão.

Heath fumava seu charuto meditativamente. Não havia saído da frente da caixa das múmias e fingia estar interessado nos grosseiros hieróglifos coloridos. Desde o caso da Canária, quando Tony Skeel tinha deixado de comparecer ao seu encontro no gabinete do promotor distrital, ele passara a acreditar, apesar de todos os seus protestos, nos prognósticos de Vance; agora estava profundamente surpreso com o fracasso do outro. Eu o estava observando, um pouco surpreso também, quando percebi que uma ruga de curiosidade vincava sua testa. Tirando o charuto da boca inclinou-se sobre uma das caixas das múmias e levantou um objeto de metal.

— Que diabo de lugar para guardar um macaco de automóvel — observou ele. (Seu interesse no macaco era, obviamente, uma tentativa inconsciente para distrair seus pensamentos, afastando-os da tensa situação.) Tornou a colocar o macaco na caixa e sentou-se na base da estátua de Kha-ef-Rê. Nem Markham nem Vance tinham, aparentemente, prestado a menor atenção a sua irrelevante descoberta.

Vance continuava a caminhar pelo museu. Pela primeira vez, desde que chegáramos, tirou um cigarro e acendeu-o.

— Todas as linhas de raciocínio vêm ter aqui, Markham. — Vance falou em voz baixa e desanimada. — Não havia necessidade de a evidência ser levada embora. Em primeiro lugar teria sido muito temerário; em segundo lugar, não se supunha que fôssemos suspeitar de alguma coisa antes de um dia ou dois...

Sua voz interrompeu-se e seu corpo se pôs subitamente tenso. Aproximou-se apressadamente de Heath.

— Um macaco de automóvel! — Uma modificação dinâmica se apossara dele. — Oh, minha tia! Desconfio... desconfio...

Aproximou-se rapidamente do sarcófago negro debaixo das janelas da frente e o examinou ansiosamente.

— Muito alto — resmungou. — Um metro livre sobre o solo! Não poderia ter sido feito... Mas tinha que ser feito... de alguma forma... — Olhou em torno. — Aquele tamborete! — Apontava para um banquinho sólido de carvalho, com cerca de 50 cm de altura, encostado à parede, próximo à estátua de madeira asiática. — Ele não estava ali na noite passada; estava junto da mesinha ao lado do obelisco... Scarlett o estava usando. — Enquanto falava aproximou-se do tamborete e o ergueu. — E a parte de cima está arranhada... há um corte... — Vance colocou o banquinho de encontro ao sarcófago. — Rápido, sargento! Traga-me aquele macaco.

Heath obedeceu rapidamente e Vance colocou o macaco em cima do tamborete, ajustando sua base sobre os arranhões na madeira. A cabeça de sustentação ficou próxima da parte de baixo da tampa do sarcófago, a uma distância de dois centímetros, no ponto em que a tampa se estendia uns poucos centímetros sobre o fim da elevação entre os dois suportes dos cantos, em forma de pernas de leão.

Nós nos reuníramos em torno de Vance em silêncio tenso, não sabendo o que esperar, mas pressentindo que nos encontrávamos perto de alguma revelação aterrorizante.

Vance inseriu a alavanca de elevação, que Heath lhe passou, no soquete correspondente, e a acionou cautelosamente para cima e para baixo. O macaco funcionou perfeitamente. A cada movimento da alavanca para baixo ouvia-se um clique metálico quando a engrenagem se encaixava nos dentes da cremalheira. Centímetro a centímetro a extremidade da pesada tampa do granito — que deveria ter mais de meia tonelada1 — foi sendo erguida.

 

 

(1) Essa foi minha estimativa durante a operação de Vance. Mais tarde calculei o peso da tampa. Tinha três metros de comprimento por 1,20 m de largura e era encimada por uma grande figura esculpida. Uma avaliação cautelosa nos daria uns três metros cúbicos para a tampa; como a densidade do granito é de aproximadamente 2,70 gramas por centímetro cúbico, ou 170 libras por pé cúbico, a tampa deveria pesar, pelo menos, 1.700 libras ou 800 quilos.

 

 

De repente Heath recuou alarmado.

— O senhor não está com medo, Sr. Vance, que a outra extremidade da tampa deslize de cima do sarcófago?

— Não, sargento — assegurou Vance. — A fricção de uma massa tão grande é o bastante para mantê-la a um ângulo muito maior do que este macaco poderá incliná-la.

A extremidade da tampa já se achava agora erguida uns 20 cm e Vance empregava ambas as mãos na alavanca do macaco. Era necessário que trabalhasse com todo o cuidado, temeroso de que a cabeça do macaco escorregasse sob a suave superfície do granito, 22 cm... 25 cm... 28 cm... 30 cm... A cremalheira já havia quase atingido seu limite de elevação. Com um impulso final para baixo, Vance soltou a alavanca e testou a solidez do macaco completamente distendido.

— Está firme, creio...

Heath já tirara do bolso sua lanterna e lançava seu foco no interior dos escuros recessos do sarcófago.

— Mãe de Deus! — exclamou ele.

Eu estava de pé logo atrás, inclinado sobre os seus ombros largos; simultaneamente com o clarão da lanterna vi a coisa horrorosa que provocara sua exclamação. No fundo do sarcófago via-se um corpo humano todo torcido, com as costas voltadas para cima e as pernas incrivelmente dobradas, como se alguém o tivesse apressadamente enfiado pela abertura, com a cabeça em primeiro lugar.

Markham permaneceu inclinado para a frente como uma pessoa paralisada no meio da ação.

A voz calma, mas insistente, de Vance quebrou a tensão de nosso horror.

— Mantenha a luz firme, sargento. E você, Markham, ajude-me. Mas, cuidado. Não encoste no macaco...

Com grande cuidado Vance se esticou para dentro do sarcófago e virou o corpo até que a cabeça ficasse voltada para o ponto mais amplo da abertura. Um calafrio percorreu minha espinha enquanto eu os observava, pois sabia que o menor esbarrão ou o mero encostar no macaco teria feito com que a maciça tampa de granito caísse sobre eles. Heath, também, percebeu o mesmo fato — eu podia notar as gotas de suor brilhando em sua testa enquanto observava a perigosa operação com o medo estampado nos olhos.

Vagarosamente o corpo emergiu pela estreita abertura e, quando os pés passaram pela borda do sarcófago e bateram no chão a luz da lanterna se apagou e Heath sentou-se com um suspiro convulsivo.

— Que diabo! Eu poderia ter falhado, Sr. Vance — resmungou ele. (Fiquei gostando ainda mais do sargento depois desse episódio.) Markham permanecia olhando para baixo, contemplando o corpo inerte com estupefação.

— Scarlett! — exclamou ele com voz de completa incredulidade.

Vance limitou-se a concordar com a cabeça e se inclinou sobre a figura prostrada. O rosto de Scarlett estava danoso devido à insuficiente oxigenação do sangue; seus olhos estavam saltados e fixos; havia uma crosta de sangue em torno de suas narinas. Vance encostou o ouvido no peito do homem e tomou seu punho em uma das mãos para sentir-lhe o pulso. Em seguida tirou sua cigarreira de ouro e a aproximou dos lábios de Scarlett. Após olhar a cigarreira voltou-se excitadamente para Heath.

— A ambulância, sargento! Depressa! Scarlett ainda está vivo...

Heath se despencou pelas escadas abaixo e desapareceu no saguão da frente.

Markham olhava Vance atentamente.

— Não estou compreendendo — disse ele asperamente.

— Nem eu... inteiramente. — Os olhos de Vance estavam fixos em Scarlett. — Eu o avisei que se mantivesse afastado daqui. Ele, também, sabia do perigo, mas mesmo assim... Você se lembra da dedicatória de Rider Haggard a seu filho no Allan Quatermain, quando ele fala do mais alto posto que pode ser obtido por alguém — o estado e a dignidade de um cavalheiro inglês? (1)... Scarlett era um cavalheiro inglês. Sabendo do perigo, veio aqui esta noite. Ele julgou que poderia dar um fim à tragédia.

 

 

(1) Na verdadeira dedicatória lê-se: "Dedico este livro de aventuras a meu filho Arthur John Rider Haggard, na esperança de que no futuro ele e muitos outros rapazes, a quem jamais conhecerei, possam, nos atos e nas palavras de Allan Quatermain e seus companheiros, aqui registrados, encontrar algo que os ajude a conseguir o que, de acordo com Sir Henry Curtis, afirmo ser o mais alto posto que alguém jamais pode obter — o estado e a dignidade dos cavalheiros ingleses."

 

 

Markham estava atordoado e intrigado.

— Temos que agir de algum modo... agora.

— Sim... — Vance estava profundamente preocupado. — Mas é difícil! Não há provas. Não há esperança para nós... A não ser que... — Vance cortou a frase. — Aquela carta hieroglífica! Talvez esteja por aqui em algum lugar. Esta noite era a ocasião, mas Scarlett chegou inesperadamente. Não sei se ele também sabia disso... — Os olhos de Vance fixaram-se no espaço e, durante alguns momentos, ele permaneceu rígido. Em seguida dirigiu-se subitamente até o sarcófago e, acendendo um fósforo, olhou o seu interior.

— Nada. — Havia um triste desapontamento no tom de sua voz. — Ainda assim, deveria estar aqui... — Empertigou-se. — Talvez... sim! Isso também seria lógico.

Ajoelhou-se ao lado do homem inconsciente e se pôs a remexer em seus bolsos. O paletó de Scarlett estava abotoado e somente quando Vance chegou aos bolsos de dentro é que sua busca foi recompensada. Vance dele tirou uma folha amassada de papel amarelo, do tipo em que Salveter fizera seu exercício de egípcio, e após uma olhada para o papel meteu-o no bolso.

Heath apareceu à porta.

— OK — gritou ele para baixo. — Disse que viessem correndo.

— Quanto tempo vai demorar? — quis saber Vance.

— Não será mais de dez minutos. Chamei o Posto Central e de lá transmitirão a mensagem para o posto local. Normalmente pegam quem está de ronda, mas isso não retarda as coisas. Esperarei por eles na porta.

— Um momento. — Vance escreveu alguma coisa nas costas de um envelope e entregou este a Heath. — Chame a Western Union e envie este telegrama.

Heath apanhou a mensagem, leu-a, assobiou suavemente e saiu para o saguão.

— Estou telegrafando a Salveter em Nova Haven, para sair do trem em Nova London e voltar a Nova York — explicou Vance a Markham. — Ele poderá pegar o expresso em Nova London e estará aqui amanhã pela manhã.

Markham olhou-o com um olhar astuto.

— Você acha que ele virá?

— Oh, sim.

Quando a ambulância chegou, Heath escoltou o interno, o motorista de uniforme azul e o policial ao interior do museu. O interno, um rapaz corado com expressão séria, inclinou-se para Markham e se ajoelhou ao lado de Scarlett. Após um exame superficial fez um sinal para o motorista.

— Cuidado com sua cabeça.

O homem, ajudado pelo policial, colocou Scarlett na padiola.

— Ele está muito mal, doutor? — perguntou Markham, ansiosamente.

— Muito, senhor. — O interno sacudiu a cabeça pomposamente. — Uma feia fratura de base do crânio. Respiração Cheyne-Stokes. Se sobreviver terá mais sorte do que eu jamais terei. — Com um dar de ombros o interno acompanhou a padiola para fora da casa.

— Telefonarei para o hospital mais tarde — informou Markham a Vance. — Se Scarlett sobreviver nos poderá fornecer a prova.

— Não conte com isso —- desencorajou-o Vance. — O episódio desta noite foi isolado. — Encaminhou-se até o sarcófago e acionou o macaco para a posição reversa. Lentamente a tampa desceu para sua posição original. — Um tanto perigoso deixar a tampa aberta.

Markham permanecia por perto, carrancudo.

— Vance, que papel foi aquele que você encontrou no bolso de Scarlett?

— Creio que era um documento incriminatório escrito em hieróglifos egípcios. Veremos.

Colocou o papel em cima do sarcófago e o alisou, Era quase igual à carta que Vance havia reconstituído no escritório de Bliss. A cor do papel era a mesma e continha quatro linhas de hieróglifos escritos com tinta verde.

Vance estudou a carta enquanto Markham, Heath, que tinha voltado ao museu, e eu o observávamos.

— Deixem-me ver o quanto me lembro de meu egípcio — murmurou Vance. — Há anos que não faço nenhuma transliteração...

Colocou o monóculo no olho e inclinou-se para a frente.

— Meryet-Amun, aha-y o er yu son maut-y en merya-y men seshem pen dya-y em yeb-y era-y en marwet mer-en yu rekha-t khet nibet hir-sa hetpa-t na-y khejt shewa-n em debat nefra-n entot hena-y... Está tudo feito com grande precisão, Markham. Os substantivos e os adjetivos concordam quanto ao gênero, e as terminações verbais...

 

 

 

 

 

 

— Não dê importância a essas coisas — interrompeu-o Markham impacientemente. — O que está escrito no papel?

— Desculpe-me, velho Markham! — protestou Vance. — A linguagem do Reino Médio do Egito é muito difícil. Perto dela o copta, o assírio, o grego e o sânscrito não passam do abecedário. No entanto, posso dar-lhe uma tradução literal.

— Começou a ler vagarosamente. — “Bem-amada de Amûn, paro por aqui até que chegue o irmão de minha mãe. Não desejo que esta situação perdure. Tenho em meu coração que devo agir em favor de nosso bem-estar. Tendes que saber de tudo mais tarde. Ficareis satisfeita comigo quando estivermos livres do que bloqueia o nosso caminho, seremos felizes, vós e eu juntos..." Não é uma construção da Harvard, mas era assim a maneira de se expressar dos antigos egípcios.

— Bem, para mim não faz sentido — comentou Heath azedamente.

— Apropriadamente parafraseado, porém, faz um sentido dos diabos, sargento. No inglês corrente significa: "Meryt-Amen, estou esperando meu tio. Não posso agüentar mais esta situação e decidi empreender uma ação drástica em prol de nossa felicidade. Mais tarde você compreenderá tudo e me desculpará quando estivermos livres de todos os obstáculos e pudermos ser felizes juntos"... Faz algum sentido, sargento?

— Estou surpreendido! — Heath olhou para Vance com ar de crítica e desprezo. — E o senhor mandou aquele pássaro, Salveter, para Boston!

— Ele estará de volta amanhã — assegurou Vance.

— Mas, olhe aqui — os olhos de Markham estavam fixos no papel incriminatório —, e a outra carta que você reconstituiu? E esta carta, como veio parar no bolso de Scarlett?

Vance dobrou o papel cuidadosamente e colocou-o em sua carteira.

— Chegou a hora — disse ele vagarosamente — de lhes contar tudo. Talvez, quando vocês conhecerem os fatos, possam imaginar alguma linha de ação. Prevejo dificuldades legais pela frente, mas disponho agora de todas as evidências que jamais poderemos esperar. — Vance estava inquieto e preocupado. — A intrusão de Scarlett nos acontecimentos desta noite mudou os planos do criminoso. De qualquer modo, já posso convencê-los da incrível e abominável verdade.

Markham estudou Vance durante alguns momentos e uma luz de surpresa brilhou em seus olhos.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou ele. — Percebo o que quer dizer. — Cerrou os dentes. — Primeiro, porém, devo telefonar para o hospital. Há uma chance de que Scarlett nos possa ajudar — se ele sobreviver.

Markham encaminhou-se para a parte de trás do museu e subiu as escadas em espiral até o escritório. Poucos minutos mais tarde reapareceu, com sombrio ar de desânimo.

— Falei com o doutor — disse ele. — Não há uma chance em mil para Scarlett. Contusão cerebral... e sufocação. Aplicaram-lhe agora o pulmotor. Mesmo que ele consiga sobreviver ficará inconsciente durante uma ou duas semanas.

— Estava temeroso de que assim fosse. — Raramente eu vira Vance tão apreensivo. — Chegamos tarde demais. Mas — que diabo! — eu não poderia prever o seu quixotismo. E eu o avisei...

— Calma, velho. — Markham falou com bondade paternal. — A culpa não é sua. Não havia nada que você pudesse ter feito. E você estava certo em guardar a verdade para si mesmo...

— Desculpem-me! — Heath estava exasperado. — Eu mesmo não sou exatamente um inimigo da verdade. Por que não posso saber o que se passa?

— Pode sim, sargento. — Vance colocou a mão no ombro do outro. — Vamos até à sala de visitas. "E todas as montanhas e as elevações ficarão baixas, e o mau ficará bom, e planos os locais enrugados."

Encaminhou-se para as escadas e nós o seguimos.

 


XXI

 

 

O assassino

 

(Sábado, 14 de julho — 22:40 horas)

 

 

Brush se pôs de pé quando entramos na sala de visitas. Estava pálido e visivelmente assustado.

— Por que está preocupado? — perguntou-lhe Vance.

— Suponha, senhor, que eu seja acusado! — explodiu o homem. — Fui eu que deixei a porta aberta ontem pela manhã... eu queria obter um pouco de ar fresco. E então o senhor chegou e disse alguma coisa que teria acontecido ao Sr. Kyle. Sei que não deveria ter deixado a porta destrancada. (Percebi então por que ele tinha agido de maneira tão assustada.) — Você pode acalmar-se — disse-lhe Vance. — Sabemos quem matou o Sr. Kyle e posso assegurar-lhe que o criminoso não veio pela porta da frente.

— Obrigado, senhor. — As palavras foram acompanhadas por um suspiro de alívio.

— Agora diga a Hani para vir aqui. Depois pode ir para o seu quarto.

Mal Brush havia saído quando se ouviu o ruído de uma chave sendo enfiada na porta da frente. Um momento mais tarde o Dr. Bliss apareceu na entrada da sala de visitas.

— Boa noite, doutor — cumprimentou Vance. — Espero que não nos estejamos intrometendo. Mas há algumas perguntas que queremos fazer a Hani durante a ausência do Sr. Salveter.

— Compreendo — replicou Bliss, com um triste aceno de cabeça. — O senhor sabe, então, da excursão de Salveter a Boston.

— Ele telefonou para mim e perguntou se podia ir. Bliss encarou Vance com olhos pesados e inquisitivos.

— Seu desejo de viajar para o norte nesta época foi muito inusitado — comentou ele —, mas não fiz qualquer objeção. A atmosfera por aqui está muito deprimente e simpatizei com seu desejo de fugir dela.

— A que horas ele saiu de casa? — Vance fez a pergunta descuidadamente.

— Por volta das nove horas. Ofereci-me para levá-lo até a estação...

— Às nove? E onde estava ele entre as oito e as nove? Bliss parecia infeliz.

— Esteve comigo no escritório. Estávamos tratando de detalhes referentes às reproduções do Mobiliário da tumba de Hotpeheres.

— Ele estava com o senhor quando o Sr. Scarlett chegou?

— Sim. — Bliss cerrou o cenho. — Muito peculiar a visita de Scarlett. Evidentemente queria conversar com Salveter sozinho. Ele agiu de forma a mais misteriosa... tratou Salveter com uma espécie de frio ressentimento. Continuei, porém, a discutir o objetivo da viagem de Salveter ao norte...

— O Sr. Scarlett esperou?

— Sim. Ele observava Salveter como uma águia. Quando Salveter saiu, Scarlett o acompanhou.

— Ah! E o senhor, doutor? — Vance, aparentemente, estava absorvido na escolha de um cigarro em sua cigarreira.

— Eu fiquei no escritório.

— Foi essa a última vez que o senhor viu Scarlett e Salveter?

— Sim. Saí para um passeio por volta das nove e meia. Na saída dei uma olhada no museu, pensando que Scarlett talvez tivesse ficado e gostasse de me acompanhar. A sala, porém, estava vazia. Assim, fui pela avenida até a Praça Washington...

Vance tinha acendido o cigarro — Não o incomodaremos mais — O senhor deseja ver-me? — Sua atitude era de alheamento e, julguei eu, um pouco aborrecida.

— Sim. — Vance indicou uma cadeira de frente para a mesa. Em seguida voltou-se rapidamente para Bliss que já estava saindo.

— Numa segunda idéia, doutor, talvez seja aconselhável para nós tornar a lhe fazer perguntas a respeito do Sr. Salveter. O senhor poderia esperar no escritório?

— Claro que sim. — Bliss olhou Vance compreensivamente e se encaminhou para o saguão. Poucos momentos depois ouvimos a porta do escritório fechar-se.

Vance olhou Hani com um olhar curioso, que não entendi.

— Há algo que quero dizer ao Sr. Markham — disse Vance. — Você poderia ter a bondade de esperar no saguão e não deixar que ninguém nos perturbe?

Hani levantou-se.

— Com prazer, effendi. — Hani foi assumir seu posto do lado de fora.

Vance fechou as portas de dobrar e voltando até à mesa do centro sentou-se confortavelmente.

— Você, Markham, e o senhor, sargento, estavam ambos certos quando concluíram, ontem pela manhã, que o Dr. Bliss era o responsável pela morte de Kyle...

— Escute aqui! — Heath se pôs de pé num salto. — Que diabo...

— Calma, sargento. Por favor, sente-se e controle-se.

— Eu disse que ele era o assassino! E o senhor falou...

— Meu Deus! O senhor não pode acalmar-se? Está tão excitado, sargento. — Vance fez um gesto de desespero. — Lembro-me de que o senhor se referiu, deselegantemente, que Bliss havia "liquidado" o Sr. Kyle. Espero que o senhor não tenha esquecido que, ontem à noite, observei que muitas vezes chegamos ao mesmo destino e ao mesmo tempo, mas vindos de diferentes direções, — Obrigado, doutor. — e fumava melancolicamente. esta noite.

Hani entrou na sala.

— Era isso, então, o que o senhor queria dizer? — Heath retomou sua cadeira de mau humor. — Então, por que o senhor não me deixou prendê-lo?

— Porque era isso o que ele desejava que o senhor fizesse.

— Estou boiando — protestou Heath. — O mundo ficou maluco.

— Um momento, sargento. — Markham falou de maneira peremptória. — Estou começando a entender este caso. Não é absolutamente insano... Deixemos que o Sr. Vance continue.

Heath ia começar a reclamar, mas, ao invés, fez uma careta de resignação e se pôs a mastigar o charuto. Vance olhou-o com simpatia.

— Eu sabia, sargento — ou, pelo menos, tinha fortes suspeitas —, cinco minutos depois de termos entrado aqui no museu ontem pela manhã, que Bliss era a culpado. A história de Scarlett a respeito do encontro deu-me a primeira indicação. O telefonema de Bliss na presença de todos e suas observações a respeito do novo carregamento deram-me a impressão de que se encaixavam perfeitamente em um plano preconcebido. Então, quando vi os vários indícios, senti, positivamente, que haviam sido plantados pelo próprio Bliss. Para Bliss não se tratava apenas de apontar a si mesmo como suspeito, mas — também — de lançar suspeitas sobre uma outra pessoa. Felizmente, ele ultrapassou os limites da plausibilidade, pois, se alguma outra pessoa tivesse cometido o crime, os indícios forjados teriam sido em menor número e menos óbvios. Conseqüentemente, saltei para a conclusão de que Bliss tinha assassinado Kyle e, ao mesmo tempo, esforçava-se para nos fazer crer que ele tinha sido a vítima de uma trama...

— Mas, Sr. Vance — interrompeu Heath — o senhor disse...

— Eu não disse nenhuma palavra que lhes desse a impressão definitiva de que exonerava Bliss de culpa. Nem disse que ele era inocente... Pense um pouco. O senhor se lembrará de que eu disse apenas que os indícios não pareciam verdadeiros, que as coisas não eram o que pareciam. Eu sabia que os indícios eram armadilhas, criadas por Bliss para nos despistar. Eu também sabia — do mesmo modo que o Sr. Markham — que se prendêssemos Bliss com evidências aparentes, seria impossível condená-lo.

Markham concordou com a cabeça, meditativamente.

— Sim, sargento. O Sr. Vance está certo. Não me lembro de qualquer observação sua inconsistente com sua crença na culpa de Bliss.

— Embora eu soubesse que Bliss era o culpado — continuou Vance —, ignorava qual fosse seu objetivo final ou quem estava ele procurando envolver. Suspeitei que fosse Salveter, embora pudesse igualmente ter sido Scarlett, Hani ou a Sra. Bliss. Vi imediatamente a necessidade de determinar a verdadeira vítima de sua trama. Assim, fingi acreditar na situação óbvia. Não podia deixar que Bliss pensasse que eu suspeitava dele — minha única esperança residia em fingir que acreditava que o culpado fosse outra pessoa. Mas eu evitei as armadilhas destinadas a nós. Eu desejava que Bliss forjasse outros indícios contra sua vítima e, talvez, nos fornecesse algum explorável. Aí está por que lhes pedi que me acompanhassem no jogo de espera.

— Mas qual era a idéia de Bliss de se deixar prender? — perguntou Markham. — Havia perigo nisso.

— Muito pouco. Bliss provavelmente acreditava que mesmo antes de uma acusação ele ou o seu advogado poderiam persuadir você de sua inocência e da culpa de Salveter. Ou, se ele fosse levado a julgamento, tinha quase certeza de uma absolvição e estaria então inteiramente a salvo pelo acalentador princípio do duplo risco, ou autrefois acquit... Não, ele não estava correndo um grande perigo. E lembrem-se, também, que ele estava jogando uma grande partida. Uma vez que tivesse sido preso, sentir-se-ia justificado em acusar Salveter abertamente como assassino e imaginador da trama. Daí por que fui contra sua prisão, pois era exatamente aquilo que desejava. Enquanto Bliss se julgasse fora de suspeitas não havia razão em se defender à custa de Salveter. E, para envolver Salveter, ele foi forçado a forjar novas evidências, a conceber outros esquemas. E era nesses esquemas que eu confiava para a obtenção de provas.

— Estou perdido! — As cinzas do charuto de Heath se desprenderam e caíram em seu colete, mas ele nem notou.

— Mas, sargento, eu lhe dei inúmeros avisos. E havia o motivo. Estou convencido de que Bliss sabia que não viria mais auxílio financeiro da parte de Kyle e não há nada que ele não fizesse para assegurar a continuação de suas pesquisas. Além disso, estava com muito ciúme de Salveter, pois sabia que a Sra. Bliss amava o jovem.

— Mas por que — indagou Markham — ele não matou Salveter meramente?

— Oh, sim! O dinheiro era um fator capital... ele queria que Meryt herdasse a fortuna de Kyle. Seu segundo objetivo era eliminar Salveter do coração de Meryt-Amen: não havia motivo para liquidá-lo. Assim, Bliss planejou sutilmente afastar a suspeita de sua pessoa, fazendo parecer que Salveter não somente matou o tio, mas, também, procurou mandar outro para a cadeira em seu lugar.

Vance lentamente acendeu um outro cigarro.

— Bliss estava matando três coelhos com uma cajadada. Estava-se fazendo de mártir aos olhos de Meryt-Amen, eliminando Salveter e assegurando a sua mulher uma fortuna com a qual poderia continuar suas escavações. Poucos crimes têm tido tão poderosos motivos tríplices... Uma das coisas trágicas é que a Sra. Bliss acreditava bastante na culpa de Salveter e sofria abominavelmente. Lembrem-se de que ela tomou a atitude de declarar que queria que o criminoso fosse levado à justiça. E, durante todo o tempo, temia que fosse Salveter...

— Seja como for — disse Heath —, Bliss não parecia muito, ansioso em envolver Salveter no caso.

— Ah, mas estava, sargento. Constantemente estava procurando envolver Salveter, embora fingindo que não estivesse. Uma fingida relutância. Ele não podia ser demasiado óbvio a esse respeito, isso teria afastado sua caça... Vocês se lembram de minha pergunta sobre quem era o encarregado dos suprimentos médicos. Bliss hesitou, como se procurando proteger alguém. Muito inteligente.

— Mas, se o senhor sabia disso... — começou Heath.

— Eu não sabia de tudo isso, sargento. Sabia apenas que Bliss era o culpado, mas não tinha certeza de que Salveter fosse o objetivo de sua trama. Assim, tive que investigar e conhecer a verdade.

— De qualquer modo, eu estava certo desde o princípio, quando disse que Bliss era o culpado — declarou Heath obstinadamente.

— Claro que sim, sargento. — Vance falou quase afetivamente. — E eu me sentia terrivelmente mal em ter de contradizê-lo. — Vance levantou-se e se aproximando de Heath estendeu-lhe a mão. — O senhor me desculpa?

— Bem... talvez. — Os olhos de Heath traíam seu tom áspero ao apertar a mão de Vance. — De qualquer modo, eu estava certo!

Vance sorriu e sentou-se.

— A trama, em si mesma, era simples — continuou Vance depois de alguns instantes. — Bliss telefonou a Kyle na presença de todos e marcou um encontro para as onze horas. Mencionou, especificamente, o novo carregamento e sugeriu que Kyle viesse cedo. Já estava decidido sobre o assassinato — e na verdade sobre toda a trama —, quando combinou o encontro fatal. Deliberadamente Bliss deixou o alfinete de escaravelho em cima da mesa do escritório. Após matar Kyle, colocou o alfinete e o relatório financeiro ao lado do corpo. E observe, Markham, que Salveter tinha acesso a ambos os objetos. Além disso, Bliss sabia que Salveter tinha o hábito de ir ao museu depois do café matinal. Planejou o apontamento com Kyle de forma tal que, provavelmente, Salveter e o tio se encontrariam. Mandou Salveter ao Museu Metropolitano para que estivesse fora de casa enquanto ele assassinava Kyle. Fixou também a estátua de Sakhmet de modo tal que pareceria ser uma armadilha. O criminoso poderia facilmente ter voltado a qualquer momento antes de nossa chegada e colocado o pino e o relatório e feito as pegadas, desde que, claro, Bliss estivesse adormecido pelo efeito do ópio...

Heath retesou-se e olhou para Vance.

— Aquela armadilha era apenas fingida? — perguntou indignado.

— Nada mais do que isso, sargento. Foi montada depois do crime, de modo que, se Salveter tivesse um álibi, ainda assim poderia ser culpado. Além disso, a possibilidade de Kyle ter sido assassinado por uma pessoa ausente era um outro ponto a favor de Bliss. Por que iria Bliss se preocupar com uma armadilha mortal, se tinha todas as oportunidades de matar Kyle em contatos diretos? A armadilha era, meramente, mais um contra-indício...

— Mas o lápis usado na armadilha — interpôs Markham — não era do tipo dos que Salveter usava.

— Meu caro Markham! Bliss usou um de seus próprios lápis como haste vertical a fim de criar mais um indício contra si mesmo. Um homem que verdadeiramente estivesse montando uma armadilha mortal não iria empregar seu próprio lápis... empregaria o lápis do homem a quem estava procurando envolver. Assim, o doutor empregou seu próprio lápis — para lançar as suspeitas para outro lado. A armadilha, no entanto, não me enganou. Era por demais fortuita. Um assassino não correria um tal risco. A estátua poderia não cair exatamente na cabeça de Kyle. Uma outra coisa: um homem abatido daquela maneira provavelmente não cairia na posição em que encontramos Kyle, com a cabeça exatamente sob o ponto em que a estátua o atingiu e com os braços esticados. Quando fiz minha experiência e a estátua caiu exatamente onde tinha estado a cabeça de Kyle, percebi o quanto improvável era que, na verdade, ele tivesse sido morto pela estátua caindo. — Vance piscou os olhos. — Não levantei este ponto na ocasião porque desejava que vocês acreditassem na armadilha mortal.

— Certo mais uma vez! — Heath bateu na testa com a palma da mão, dramaticamente. — E nunca pensei nisso!... Claro que o desculpo, Sr. Vance!

— A verdade é, sargento, que fiz tudo o que podia para que o senhor não percebesse a incoerência desse fato. E o Sr. Markham também não percebeu1. Na verdade, Kyle foi morto enquanto olhava dentro do armário, por um golpe desferido por alguém por trás dele. Imagino, também, que tenha sido empregada uma daquelas pesadas maças de pórfiro. O corpo de Kyle foi arrumado na posição em que o encontramos e, então, a estátua de Sakhmet foi deixada cair sobre o seu crânio, obliterando a evidência do primeiro golpe.

 

 

 

(1) Nem eu. No entanto, enquanto esses meus registros estavam sendo publicados em série no American Magazine, vários leitores escreveram apontando a incoerência.

 

 

 

— Suponha, no entanto — objetou Markham —, que você não houvesse notado o anel solto da cortina?

— A armadilha foi montada de modo que descobríssemos este fato. Se nós não o tivéssemos percebido, Bliss teria chamado nossa atenção para o fato.

— E as impressões digitais... — começou Heath meio confuso.

— Foram deixadas propositadamente na estátua. Mais evidências, sabem, contra Bliss. Ele, porém, tinha um álibi em reserva. Sua primeira explicação era muito simples e específica: tinha movido Sakhmet porque não estava no lugar correto. A segunda explicação, no entanto, do por que não havia impressões digitais em Sakhmet viria mais tarde, após sua prisão, isto é, ninguém, de fato, teria empunhado a estátua: fora uma armadilha mortal montada por Salveter!

Vance fez um gesto com a mão aberta.

— Bliss cobriu todas as evidências contra sua pessoa com outras apontando para Salveter. Observem, por exemplo, a evidência das pegadas de sangue. Superficialmente elas apontavam para Bliss. Mas lá estava o onipresente contra-indício, isto é, ontem pela manhã ele estava usando chinelas e apenas um pé de tênis foi encontrado no escritório. O outro pé de tênis se encontrava em seu quarto, exatamente onde ele dissera que o deixara na noite anterior. Bliss, simplesmente, trouxe um dos pés de tênis cá para baixo, forjou as pegadas de sangue e colocou o pé do sapato na cesta de papéis. Ele queria que encontrássemos as pegadas e descobríssemos o sapato. E foi o que fizemos, isto é, o sargento fez. Sua resposta quanto às pegadas, após sua prisão, seria meramente dizer que alguém que tinha acesso ao seu quarto tinha levado o pé de tênis para baixo e forjado as pegadas para envolvê-lo.

Markham concordou com a cabeça.

— Sim — disse ele. — Estive tentado a eximi-lo de culpa, especialmente depois da descoberta do ópio em seu café.

— Ah, aquele ópio! O álibi perfeito! Que júri iria condená-lo após a evidência do ópio em seu café? Tê-lo-iam olhado como a vítima de uma trama. E o escritório do promotor distrital teria recebido severas críticas... E no entanto, como foi simples o episódio do ópio! Bliss pegou a lata no armário, extraiu dela o que precisava para o ardil e colocou o pó no fundo de sua xícara.

— Você não acreditou que ele estivesse narcotizado?

— Não. Eu sabia que ele não estava. Um narcótico contrai as pupilas e as de Bliss estavam dilatadas de excitação. Percebi que ele estava fingindo e isso me fez suspeitar de que encontraria uma droga em seu café.

— Mas, e a lata? — A pergunta foi feita por Heath. — Nunca entendi direito aquele negócio da lata. O senhor mandou Hani...

— Calma, sargento! — Vance falou com bom humor. — Eu sabia onde estava a lata e desejava unicamente me certificar do quanto Hani também sabia.

— Estou percebendo o ponto do sargento — interveio Markham. — Nós não sabíamos que a lata de ópio estava no quarto de Salveter.

— Oh, e agora, sabemos? — Vance se voltou na direção do saguão. — Hani!

O egípcio abriu a porta de correr.

— Escute aqui. — Vance olhou diretamente nos olhos do homem. — Estou profundamente surpreendido com sua atitude de simulação, mas desejamos conhecer alguns fatos. Onde você encontrou a lata de ópio?

— Effendi, já não há mais necessidade de simulação. O senhor é um homem de profunda sabedoria e confio no senhor. A lata estava escondida no quarto do Sr. Salveter.

— Muito obrigado — Vance foi quase brusco. — E agora volte para o saguão.

Hani saiu e fechou a porta suavemente.

— E, por não descer para o café ontem pela manhã — continuou Vance —, Bliss sabia que sua mulher e Salveter estariam sozinhos na saleta de refeições e que o rapaz poderia, facilmente, ter posto o ópio no seu café...

— Mas — perguntou Markham —, se você sabia que Bliss pôs o ópio no próprio café, por que todo o interesse no samovar?

— Eu tinha que ter certeza contra quem a trama de Bliss era dirigida. Ele estava tentando fazer crer ser a própria vítima da trama. Como o seu objetivo era envolver alguma outra pessoa, eu sabia que a verdadeira vítima tinha que ter tido acesso ao café ontem pela manhã.

Heath balançou a cabeça meditativamente.

— Isso foi fácil. O velho estava fingindo que alguém tentara proporcionar-lhe algo para apagar, e se o pássaro a quem estava querendo incriminar não pudesse tê-lo feito, a trama teria ido para as pitangas... Mas escute aqui, Sr. Vance — Heath subitamente se lembrara de algo —, o que tinha em mente o doutor ao fingir que fugia?

— Isso era um resultado perfeitamente lógico do que acontecera antes — explicou Vance. — Depois que nos recusamos a prendê-lo, o doutor começou a preocupar-se. Como sabem, ele ansiava por ser preso e nós o desapontamos tremendamente. Sentado em seu quarto, Bliss se pôs a planejar. Como poderia ser capaz de fazer com que déssemos atrás e o fizéssemos prender, desta forma dando-lhe a chance de apontar todas as evidências do ardiloso plano de Salveter contra ele? Decidiu-se a tentar a fuga. Esse gesto, supôs Bliss, sem duvida levantaria novamente as suspeitas contra ele. Assim, saiu simplesmente, retirou todo seu dinheiro do banco, foi de táxi até a Estação Grand Central, perguntou abertamente a respeito de trens para Montreal e permaneceu ostensivamente no portão aguardando o trem... Ele sabia que Guilfoyle o estava seguindo, pois, se estivesse realmente tentando fugir, podem ter certeza de que o policial jamais o teria acompanhado. O senhor, sargento, aceitou a ação de Bliss pelo que ela aparentava ser e tive medo de que sua tola tentativa produzisse o resultado exato que Bliss esperava — isto é, ser novamente preso. Foi por isso que combati essa idéia tão apaixonadamente.

Vance se inclinou para trás mas não se descontraiu. Em sua atitude havia um rígido alerta.

— E como o senhor não o algemou, sargento — continuou Vance —, Bliss foi forçado a dar mais um passo. Ele tinha que forjar um caso contra Salveter. Assim, imaginou e executou o drama com a adaga. Deliberadamente mandou que Salveter fosse ao escritório para apanhar um livro memorando na mesa onde a adaga estava guardada...

— E a bainha! — exclamou Markham.

— Oh, claro. Foi esse o indício real contra Salveter. Colocando a bainha no quarto de Salveter, Bliss estava-nos sugerindo que poderíamos encontrar o provável assassino pela localização daquela peça. Eu sabia onde se encontrava a bainha no momento em que ele tão auxiliadoramente a mencionou; assim, dei a Hani uma chance de mentir a respeito...

— Você quer dizer que Hani não encontrou a bainha no saguão?

— Claro que não.

Vance tornou a chamar Hani lá no saguão.

— Onde você encontrou a bainha da adaga real? — perguntou.

Hani respondeu sem um momento de hesitação.

— No quarto do Sr. Salveter, effendi... como o senhor bem o sabe.

Vance concordou com a cabeça.

— E por falar nisso, Hani, alguém se aproximou desta porta esta noite?

— Não, effendi. O doutor está ainda em seu escritório. Vance despediu-o com um gesto e prosseguiu.

— Pode ver, Markham, que Bliss colocou a bainha no quarto de Salveter e, em seguida, lançou a adaga contra a cabeceira de sua cama. Telefonou para mim e, quando chegamos, deu-nos uma descrição complicada, mas plausível, de ter sido atacado por um inconnu.

— Ele foi um excelente ator — comentou Heath.

— Sim... de um modo geral. Mas houve um aspecto psicológico de que se descuidou. Se tivesse, de fato, sido alvo de um ataque criminoso, Bliss não teria ido sozinho no escuro para me telefonar. Teria, em primeiro lugar, acordado todo o mundo.1

 

 

(1) Deve ser lembrado que, no caso Greene, o criminoso, fingindo estar amedrontado pelos sinistros perigos que se escondiam nos corredores escuros da mansão de Greene, cometeu um similar erro de julgamento psicológico, descendo para a despensa no meio da noite, sem outra razão que não a de satisfazer uma certa vontade de comer.

 

 

— Isso é razoável. — Markham se tornava impaciente. — Mas você disse alguma coisa a respeito de o quadro não estar completo...

— A carta! — Vance se pôs de pé e jogou o cigarro fora. — Era o fator que estava faltando. Eu não podia entender por que a carta hieroglífica forjada não apareceu à noite passada — era essa a oportunidade perfeita. Mas a carta não aparecia em lugar nenhum e isso me deixava intrigado... No entanto, quando encontrei Scarlett trabalhando no museu, eu compreendi. O doutor — estou convencido — pretendeu colocar a carta forjada, que temporariamente havia posto na gaveta da mesa, no quarto de Meryt-Amen ou em algum outro lugar onde pudéssemos encontrá-la. Entretanto, quando olhou para dentro do museu através da porta do escritório, viu Scarlett trabalhando na mesa. Assim, deixou a carta passar, reservando-a para uso futuro — no caso em que não prendêssemos Salveter após o episódio da adaga. Quando eu, deliberadamente, desprezei os indícios que o doutor havia preparado contra Salveter, sabia que a carta não tardaria a aparecer. Eu estava temeroso de que Scarlett, de algum modo obstasse o esquema de Bliss, razão pela qual o avisei de que se conservasse afastado da casa. Não sei o que mais eu poderia ter feito.

— Nem eu. — O tom de Markham era consolador. — Scarlett devia ter seguido o seu conselho.

— Mas não o fez — suspirou Vance, lamentando-se.

— Você pensa, então, que Scarlett suspeitava da verdade?

— Indubitavelmente. E suspeitou logo no início da partida. Mas não tinha certeza bastante para falar. Temia estar cometendo uma injustiça com o doutor. Assim, sendo um cavalheiro inglês, guardou silêncio. Em minha opinião, Scarlett começou a se preocupar com esta situação e resolveu finalmente ir a Bliss...

— Então alguma coisa deve tê-lo convencido.

— A adaga, Markham. Bliss cometeu um grave erro a esse respeito. Scarlett e Bliss eram as duas únicas pessoas que sabiam da arma contrabandeada. Quando mostrei a arma a Scarlett e informei-o de que tinha sido usada em uma tentativa contra a vida de Bliss, ele ficou sabendo conclusivamente que o doutor imaginara toda a lenda.

— E ele veio aqui esta noite para se defrontar com Bliss?

— Exatamente. Scarlett percebeu que Bliss estava procurando envolver Salveter e queria que Bliss soubesse que todo o seu monstruoso esquema estava desvendado. Scarlett veio aqui para proteger um inocente — a despeito do fato de que Salveter fosse seu rival, como era o caso, nas afeições de Meryt-Amen. Isso seria bem de Scarlett... — Vance parecia triste. — Quando enviei Salveter a Boston pensei que tivesse eliminado todas as possibilidades de perigo. Scarlett, porém, achou que deveria tomar as rédeas em suas próprias mãos. Sua atitude foi muito bonita, porém mal avisada. O problema todo estava em que isso dava a Bliss a oportunidade pela qual ele esperava. Quando Bliss não conseguiu retirar do museu a carta forjada, na noite passada, e quando declinamos de seu convite de encontrar a bainha no quarto de Salveter, era preciso que ele lançasse seu trunfo — a carta forjada.

— Sim, sim. Entendo. Mas onde se encaixa Scarlett?

— Quando Scarlett veio aqui esta noite, Bliss, sem dúvida, ouviu sua acusação diplomaticamente e então, com algum pretexto, conseguiu atraí-lo até o museu. Quando Scarlett se descuidou, Bliss o golpeou na cabeça — provavelmente com uma daquelas maças do último armário — e o colocou dentro do sarcófago. Foi um problema simples para ele apanhar o macaco de seu carro, que fica estacionado aí fora, na rua... lembrem-se de que ele se ofereceu para levar Salveter à estação...

— Mas, e a carta?

— Você não percebe que tudo se encaixa? O ataque a Scarlett teve lugar entre as oito e as oito e meia. Salveter, provavelmente, encontrava-se lá em cima, dando adeus à Sra. Bliss. De qualquer modo, estava na casa e poderia ter sido o assassino de Scarlett. A fim de tornar claro que Salveter era de jato o assassino de Scarlett, Bliss amassou a comprometedora carta forjada e a enfiou no bolso de Scarlett. Queria tornar aparente que Scarlett viera aqui esta noite para se defrontar com Salveter, mencionara a carta que tinha encontrado na gaveta da mesa e fora assassinado pelo rapaz.

— Mas, e por que Salveter não teria levado a carta?

— Na presunção de que Salveter não sabia que Scarlett tinha a carta no bolso.

— O que quero saber — interveio Heath — é como Bliss veio a tomar conhecimento da carta original de Salveter.

— Este ponto é facilmente explicável, sargento. — Vance puxou a cigarreira. — Salveter, indubitavelmente, voltou ao museu ontem pela manhã, como ele mesmo nos disse, e estava trabalhando em sua carta quando Kyle chegou. Salveter, então, enfiou a carta na gaveta da mesa e se dirigiu ao Museu Metropolitano a fim de cumprir sua missão. Bliss, que provavelmente o estava observando por uma fresta na porta do escritório, viu-o pôr o papel de lado e mais tarde foi buscá-lo para ver do que se tratava. Sendo uma carta indiscreta para Meryt-Amen, o fato deu a Bliss uma idéia. Levou a carta para o seu escritório e tornou a escrevê-la, fazendo-a diretamente incriminante; em seguida rasgou o original. Quando eu soube que a carta tinha desaparecido fiquei preocupado, pois suspeitei de que Bliss se tivesse apossado dela. Quando vi que a carta tinha sido destruída e jogada fora, convenci-me de que encontraríamos uma outra carta. Mas, desde que eu tinha o original em minhas mãos, acreditei que a carta forjada, quando aparecesse, nos daria uma prova contra Bliss.

— Era por isso que o senhor estava tão interessado naquelas três palavras?

— Sim, sargento. Custava-me acreditar que Bliss usaria tem, was e ankh ao tornar a escrever a carta, pois ele não poderia saber que Salveter nos tinha falado a respeito e citado especificamente essas três palavras. De fato, nenhuma das três palavras se encontrava na carta forjada.

— Um perito caligráfico, porém...

— Oh, sargento! Não seja tão ingênuo. Um perito em caligrafia é um cientista romântico, mesmo quando se trata da grafia em inglês, que lhe é familiar. E todas suas regras estão baseadas em idiossincrasias da escrita manual. Nenhum perito em artes pode dizer com segurança quem fez um desenho — e a escrita egípcia é, em sua maior parte, desenhos. Desenhos falsos, de Michelangelo, por exemplo, são vendidos freqüentemente por negociantes espertos. A única aproximação em tais assuntos é a aproximação estética, e não há qualquer estética nos hieróglifos egípcios.

Heath fez uma careta.

— Bem, se a carta forjada não podia ser admitida como prova, qual era a idéia do doutor?

— O senhor não percebe, sargento, que mesmo que a carta não pudesse ser identificada com Salveter de forma absoluta, ela teria feito todo mundo acreditar que o rapaz era culpado e conseguira fugir a uma condenação à base de tecnicismos legais? Meryt-Amen certamente teria acreditado que Salveter escrevera a carta; e era isso o que Bliss queria.

Vance voltou-se para Markham.

— Este é um aspecto legal que realmente não tem importância. Salveter poderia não ser condenado, mas a trama de Bliss, de qualquer modo teria obtido sucesso. Com a morte de Kyle, Bliss teria acesso à metade de sua fortuna — no nome de sua mulher, não há dúvida — e Meryt-Amen teria repudiado Salveter. Assim, Bliss teria tido êxito em todos seus truques. Mesmo legalmente Salveter poderia vir a ser condenado, se não fosse a remoção que Hani fez de dois indícios diretos, do quarto de Salveter — a lata de ópio e a bainha. Além disso, havia a carta no bolso de Scarlett.

— Mas, Vance, como a carta poderia vir a ser encontrada? — indagou Markham. — Se você não tivesse suspeitado da trama e procurado o corpo de Scarlett, este poderia ter permanecido no sarcófago quase indefinidamente.

— Não. — Vance sacudiu a cabeça. — Scarlett teria que permanecer no sarcófago apenas uns dias. Quando, amanhã, fosse constatado que ele estava desaparecido, Bliss provavelmente encontraria o corpo para nós, juntamente com a carta.

Vance olhou para Markham inquisitivamente.

— Como conseguiremos ligar Bliss com o crime, já que Salveter se encontrava na casa na hora do ataque?

— Se Scarlett se recuperasse...

— Se!... Exatamente. Mas, suponhamos que ele não se recupere — e as chances são contra ele. Então? Scarlett, quando muito, poderia testemunhar que Bliss cometeu contra ele um ataque abortivo e mal sucedido. Na verdade, seria possível condená-lo por assalto criminoso, mas isso deixaria o assassinato de Kyle ainda sem solução. E se Bliss alegasse que Scarlett o atacara e que ele revidara ao ataque em autodefesa, seria difícil que você obtivesse sua condenação mesmo por tentativa de morte.

Markham levantou-se e ficou caminhando para cá e para lá na sala. Heath, então, fez uma pergunta.

— Como esse Ali Babá entra no quadro, Sr. Vance?

— Hani sabia desde o princípio o que tinha acontecido e foi bastante sabido para perceber a trama que Bliss desenvolvia contra Salveter. Ele adorava Salveter e Meryt-Amen, e queria que fossem ambos felizes. O que poderia Hani fazer senão aplicar todas as suas energias para proteger os dois? E certamente foi o que fez, sargento. Os egípcios não são como os ocidentais. Era contra sua natureza falar francamente e nos contar de suas suspeitas. Hani desenvolveu um jogo inteligente... o único jogo que poderia desenvolver. Hani jamais acreditou na vingança de Sakhmet. Apenas usou sua logomaquia supersticiosa para encobrir a verdade. Lutou, com suas palavras, pela segurança de Salveter.

Markham parou na frente de Vance.

— É tudo inacreditável! Nunca soube de um criminoso igual a Bliss.

— Oh, não lhe tribute demasiado crédito. — Vance acendeu o cigarro que mantivera na mão nos últimos cinco minutos. — Ele assustadoramente exagerou nos indícios, fazendo-os demasiado gritantes. Aí residiu sua fraqueza.

— Ainda assim — replicou Markham —, se você não tivesse entrado em cena eu teria levantado uma acusação de culpa contra ele.

— E você teria caído em suas mãos. Porque eu não queria que isso acontecesse, fingi argumentar contra a culpa de Bliss.

— Um palimpsesto! — comentou Markham após alguns momentos.

Vance deu uma tragada profunda em seu cigarro.

— Exatamente. Palimpsestas... "torne a limpar suavemente". Em primeiro lugar a verdadeira história do crime, cuidadosamente indicada. Em seguida, foi apagada e tornada a escrever, com Salveter como vilão. Esta história foi também apagada e o conto original — em esboço grotesco e cheio de incoerências e furos — foi novamente escrito. Nós deveríamos ler a terceira versão, tornarmo-nos cépticos a seu respeito, e encontrar entre as linhas os indícios da culpa de Salveter. Coube-me seguir a primeira e original versão — a verdade duas vezes escrita.

— E o senhor o conseguiu, Sr. Vance! — Heath se pusera de pé e se encaminhara para a porta. — O doutor está no escritório, Chefe. Eu mesmo vou levá-lo ao Posto Central.


XXII

 

O julgamento de Anúbis

 

 


(Sábado, 14 de julho — 23:00 horas)

 

 

— Calma, sargento! Não se apresse. — A despeito do tom arrastado da voz de Vance, Heath imediatamente se deteve. — Se eu fosse o senhor, pediria ao Sr. Markham que lhe fornecesse alguns conselhos legais, antes de prender o doutor.

— Os conselhos legais que se danem!

— Oh, claro. Em princípio concordo com o senhor. Mas não há necessidade de sermos temerários a respeito desses assuntos. Sempre é bom usar cautela.

Markham, que se encontrava de pé ao lado de Vance, levantou a cabeça.

— Sente-se, sargento — determinou ele. — Não podemos prender um homem baseado na teoria. — Foi até à lareira e voltou. — Temos que pensar no assunto. Não temos provas contra Bliss. Não o poderíamos manter por uma hora se um bom advogado tomasse conta do caso.

— E Bliss sabe disso — observou Vance.

— Mas ele matou Kyle! — protestou Heath.

— Sem dúvida. — Markham sentou-se ao lado da mesa e apoiou p queixo nas mãos. — No entanto, não tenho nada tangível para apresentar ao grande júri. E, como diz o Sr. Vance, mesmo que Scarlett se recupere, eu teria apenas uma acusação de tentativa de assassínio contra Bliss.

— O que me faz ferver, senhor — resmungou Heath —, é como um sujeito pode cometer um crime quase a nossa vista e nada lhe acontecer. Não é razoável.

— Ah, mas pouca coisa é razoável neste mundo fantástico e irônico, sargento — comentou Vance.

— Bem, de qualquer modo — retrucou Heath —, eu prenderia imediatamente esse pássaro e correria o risco de fazer com que a acusação colasse.

— Também penso assim — disse Markham. — Mas não importa o quanto estejamos convencidos da verdade devemos ser capazes de apresentar provas conclusivas. E este demônio cobriu todas as provas tão inteligentemente que qualquer júri do país o absolveria, mesmo que o pudéssemos levar a julgamento, o que é altamente duvidoso.

Vance suspirou e se pôs de pé.

— A lei! — Vance falou com fervor fora do comum. — E as salas onde essa lei é posta à vista do público chamam-se cortes de justiça. Justiça! Oh, minha preciosa tia! Summum jus, summa injuria. Como é possível a obtenção de justiça, ou mesmo de informações, em echolalia? Aqui estamos nós três — um procurador distrital, um sargento do Departamento de Homicídios e um amante do Concerto em Si Bemol para Piano, de Bach — com um criminoso conhecido a menos de quinze metros onde nos encontramos; e nada podemos fazer. Por quê? Porque esta elaborada invenção de imbecis, denominada lei, falhou em proporcionar o extermínio de um assassino desprezível e perigoso, que não somente assassinou seu benfeitor a sangue-frio, como também tentou matar um outro homem decente, esforçando-se por incriminar um terceiro homem inocente em ambos os crimes, tudo para que pudesse continuar a desenterrar cadáveres antigos e venerados!... Não é de admirar-se que Hani os deteste. No fundo, Bliss é uma hiena e Hani um homem honrado e inteligente.

— Admito que a lei seja imperfeita — interrompeu Markham desajeitadamente. — Sua dissertação, no entanto, é completamente inútil. Estamos-nos defrontando com um problema terrível e deve ser encontrada uma forma de resolvê-lo.

Vance continuava junto da mesa com os olhos fixos na porta.

— Mas sua lei jamais resolverá este problema — disse ele. — Você não pode condenar Bliss; você nem ousa prendê-lo. Ele poderá transformá-lo em um palhaço em todo o país, se tentar prendê-lo. Além disso, Bliss se tornaria uma espécie de herói perseguido por uma polícia incompetente e confusa, que tinha injustamente saltado em cima dele num momento de titubeante desespero, a fim de salvar suas linhas mais ou menos clássicas Vance deu uma tragada profunda no cigarro.

— Velho Markham, estou inclinado a pensar que os deuses do antigo Egito eram mais inteligentes do que Sólon, Justiniano e todos os demais fazedores de leis combinados. Hani estava trapaceando a respeito da vingança de Sakhmet, mas, afinal de contas, a dama do disco solar seria exatamente tão eficiente quanto seus tolos estatutos. Idéias mitológicas são, largamente, não-senso; mas, como não-senso, serão elas mais absurdas do que a lei de nossos dias?

— Pelo amor de Deus, pare com isso. — Markham estava irritado.

Vance encarou-o preocupado.

— Você está com as mãos atadas pelo tecnicismo de um sistema judicial e, como resultado, uma criatura como Bliss continuará solta pelo mundo. Além disso, um sujeito, inofensivo como Salveter será posto sob suspeição e arruinado. Também Meryt-Amen — uma dama corajosa...

— Percebo tudo isso. — Markham se levantara, com uma expressão de agonia estampada em seu rosto. — Mesmo assim, Vance, não há prova alguma convincente contra Bliss.

— É desanimador. Sua única esperança parece ser que o doutor sofra um acidente súbito e fatal. Tais coisas acontecem, como sabem.

Vance permaneceu fumando durante uns momentos.

— Se, pelo menos, os deuses de Hani dispusessem dos poderes sobrenaturais que lhes são atribuídos! — suspirou ele. — Como seria tremendamente simples! Na verdade Anúbis não se mostrou completamente neste caso. Ele tem-se mantido desesperadamente preguiçoso. Como deus do submundo...

— Basta! — Markham levantou-se. — Tenha um pouco de senso de oportunidade. Ser um esteta sem responsabilidades é, sem dúvida, delicioso, mas o progresso do mundo tem que continuar...

— Oh, absolutamente. — Vance parecia completamente indiferente à explosão do outro. — Você pode esboçar uma nova lei modificando as regras existentes a respeito de provas e apresentá-la à legislatura. A única dificuldade seria que pela ocasião que esses intelectuais estivessem discutindo e indicando comitês, você, eu, o sargento e Bliss já teríamos atravessado para sempre os sombrios corredores do tempo.

Markham voltou-se vagarosamente para Vance. Seus olhos eram meros traços.

— O que está escondido atrás de toda essa garrulice infantil? — perguntou ele. — Você tem qualquer coisa em mente.

Vance sentou-se na borda da mesa e, jogando fora o cigarro, enfiou as mãos profundamente nos bolsos.

— Markham — falou ele, com séria deliberação —, você sabe tão bem quanto eu que Bliss está fora do alcance da lei e que não há forma humana de condená-lo. O único meio pelo qual ele pode ser levado a julgamento é através de artifícios.

— Artifícios? — Markham ficou momentaneamente indignado.

— Oh, nada repreensível — respondeu Vance alheada-mente, pegando outro cigarro. — Considere, Markham... — Vance se lançou a uma detalhada recapitulação do caso. Eu não podia entender qual o objetivo de todo o seu palavrório, pois parecia que não tinha qualquer relação com o ponto crucial em discussão. Markham estava também intrigado. Várias vezes tentou interromper Vance, mas este levantava a mão imperativamente e continuava com sua descrição.

Após dez minutos Markham se recusou a permanecer em silêncio.

— Vamos ao ponto, Vance — disse ele um tanto zangado. — Você já nos disse tudo isso antes. Você tem ou não tem alguma sugestão?

— Sim, tenho uma sugestão. — Vance falou com seriedade. — É uma experiência psicológica e há uma chance de que dê resultado. Creio que, se Bliss se defrontar de repente com o que sabemos e se usarmos em cima dele um pouco de chicana, talvez admita algo que permita a você pôr-lhe a mão em cima. Bliss não sabe que encontramos Scarlett no sarcófago e podemos fingir que obtivemos do pobre sujeito uma declaração incriminatória. Podemos ir tão longe ao ponto de dizer-lhe que a Sra. Bliss está inteiramente convencida da verdade, pois, se ele acreditar que sua trama falhou e que não há esperanças de continuar suas escavações, talvez confesse tudo. Bliss é um colossal egoísta e, se for acuado num canto, poderá deixar explodir a verdade e blasonar a respeito de sua inteligência. E você deve admitir que a única forma de enviar o grande velhaco ao carrasco está numa confissão.

— Chefe, não podemos prender o sujeito à base dos indícios que ele forjou contra si mesmo? — perguntou Heath irritadamente. — Há o alfinete de escaravelho, as pegadas de sangue e as impressões digitais...

— Não, não, sargento. — Markham estava impaciente. — Bliss se cobriu quanto a cada um desses pontos e, no momento em que o prendermos, voltar-se-á contra Salveter. Tudo o que conseguiremos será a ruína de um homem inocente e a infelicidade da Sra. Bliss.

Heath capitulou.

— Sim, posso perceber isso — disse ele azedamente, após alguns momentos. — Mas esta situação acaba comigo. Já vi muitos patifes inteligentes na minha vida, mas este pássaro, Bliss, bate a todos eles... Por que não seguir a sugestão do Sr. Vance?

Markham interrompeu suas passadas nervosas e cerrou os dentes.

— Creio que teremos que fazê-lo. — Fixou seu olhar em Vance. — Mas não o trate com luvas de pelica.

— Na verdade nunca usei tais luvas. Camurça, sim, em certas ocasiões. No inverno sou favorável a couro de porco e a hiena. Mas pelica! Oh meu Deus!...

Vance foi até à porta de dobrar e abriu-a. Hani permanecia do lado de fora, de braços cruzados, uma sentinela atenta e silenciosa.

— O doutor saiu do escritório? — perguntou Vance, — Não, effendi. — Os olhos de Hani continuavam fixos à frente.

— Ótimo! — Vance começou a atravessar o saguão. — Venha, Markham. Vamos ver qual o resultado de um pouco de persuasão extralegal.

Markham, Heath e eu seguimos Vance. Este não bateu à porta do escritório, abrindo-a sem-cerimoniosamente.

— Oh! Há alguma coisa errada. — O comentário de Vance chegou-nos ao mesmo tempo que a constatação de que o escritório estava vazio. — Um tanto embaraçante. — Vance foi até à porta de aço que levava às escadas em espiral e abriu-a. — Sem dúvida o doutor está confraternizando com os seus tesouros. — Passou pela porta e desceu as escadas, tendo a nós em sua trilha.

Vance parou ao pé das escadas e levou a mão à testa.

— Jamais entrevistaremos Bliss neste mundo novamente — disse ele em voz baixa.

Não havia necessidade de explicação por parte de Vance. No canto oposto, quase no local exato em que tínhamos encontrado o corpo de Kyle no dia anterior, jazia Bliss esparramado, com o rosto voltado para baixo, no meio de uma poça de sangue. Atravessada na parte traseira de seu crânio esmagado, a estátua de Anúbis em tamanho natural. A pesada imagem do rei do submundo tinha aparentemente caído em cima dele quando se achava debruçado sobre seus preciosos artigos dentro do armário diante do qual assassinara Kyle. A coincidência era tão chocante que nenhum de nós articulou palavra durante alguns instantes. Permanecemos, numa espécie de paralisado horror, olhando para o corpo do grande egiptólogo.

Markham foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— É incrível! — Sua voz estava tensa e diferente de seu natural. — Há nisso uma retribuição divina.

— Oh, sem dúvida. — Vance aproximou-se da base da estátua e inclinou-se. — No entanto, não sou muito místico. Sou empírico... o mesmo que Weininger disse que os ingleses são.1 Vance ajustou o monóculo. — Ah!... Desculpem-me por desapontá-los e tudo o mais. Mas não há nada de sobrenatural a respeito da morte do doutor. Atente, Markham, que os tornozelos de Anúbis estão quebrados... A situação é bastante óbvia. Enquanto o doutor estava debruçado sobre seus tesouros, esbarrou na estátua de alguma forma e ela caiu-lhe em cima.

 

 

 

(1) Vance estava-se referindo à famosa passagem do Capítulo Das Judentum, do livro de Otto Weininger Geschlecht und Charakter.

 


Todos nós nos inclinamos para a frente. A pesada base da estátua de Anúbis estava exatamente onde nós a tínhamos visto pela primeira vez; mas a estátua, dos tornozelos para cima, tinha-se partido.

— Como vêem — estava dizendo Vance, apontando para a base — os tornozelos são muito finos e a estátua é feita de calcário — uma substância bastante frágil. Os tornozelos, sem dúvida, foram trincados durante o embarque e o peso tremendo do corpo aumentou a falha.

Heath examinou a estátua atentamente.

— Não há dúvida de que foi o que aconteceu — observou ele pondo-se de pé... Nunca tive muita coisa boa em minha vida, Chefe — acrescentou ele dirigindo-se a Markham com fingida alegria —, mas jamais desejei nada melhor do que isso. O Sr. Vance poderia ter atraído o doutor a uma confissão, mas poderia ter falhado. Agora não temos nada com que nos preocupar.

— É verdade. — Markham acenou a cabeça vagamente. Ele estava ainda sob a influência da assombrosa mudança de situação. — Entrego-lhe os encargos, sargento. O melhor é chamar a ambulância e o médico legista. Telefone para mim tão logo o trabalho de rotina esteja terminado. Eu cuidarei dos repórteres amanhã pela manhã... Graças a Deus o caso está encerrado!

Permaneceu parado durante algum tempo, com os olhos fixos no corpo. Parecia quase perturbado, mas eu sabia que um grande peso tinha sido retirado de sua cabeça pela inesperada morte de Bliss.

— Tomarei conta de tudo, senhor — assegurou-lhe Heath. — Mas quem vai dar a notícia à Sra. Bliss?

— Hani o fará — disse Vance. Pôs a mão no ombro de Markham. — Vamos, amigo velho. Você precisa dormir... Vamos dar uma passada em minha humilde morada e eu lhe oferecerei um conhaque com soda. Ainda tenho algum Napoléon-48.

— Obrigado. — Markham exalou profundo suspiro. Quando saímos no saguão da frente, Vance fez um sinal chamando Hani.

— É muito tocante, mas seu bem-amado patrão partiu para Amentet a fim de juntar-se às sombras dos faraós.

— Ele está morto? — indagou o egípcio, erguendo as sobrancelhas.

— Oh, sim, Hani. Anúbis caiu-lhe em cima quando ele se encontrava debruçado examinando o último armário. Uma morte muito eficiente. Mas houve nela uma certa justiça. O Dr. Bliss era o culpado pela morte do Sr. Kyle.

— O senhor e eu sabíamos disso, effendi. — Hani sorriu tristonhamente para Vance. — Temo, porém, que a morte do doutor tenha ocorrido por minha culpa. Quando desempacotei a estátua de Anúbis e a coloquei no canto, percebi que os tornozelos estavam trincados. Não disse nada ao doutor porque temi que ele me acusasse de ter sido descuidado ou de ter, propositadamente, danificado seu tesouro.

— Ninguém vai culpá-lo pela morte do Dr. Bliss — disse Vance casualmente. — Deixamos a seu cargo informar à Sra. Bliss sobre a tragédia. E o Sr. Salveter estará de volta amanhã pela manhã... Es-salamu alei-kum.

— Ma es-salam, effendi.

Vance, Markham e eu saímos para o ar pesado da noite.

— Vamos dar uma volta — propôs Vance. — É pouco mais de dois quilômetros até o meu apartamento e sinto necessidade de exercício.

Markham concordou com a sugestão e caminhamos em silêncio na direção da Quinta Avenida. Quando havíamos cruzado a Madison Square e passado pelo Stuyvessant Club, Markham falou.

— É quase inacreditável, Vance. Este é o tipo de coisa que torna alguém supersticioso. Aqui estávamos nós, defrontando-nos com um problema sem solução. Sabíamos que Bliss era culpado, mas, mesmo assim, não havia como apanhá-lo. Enquanto discutíamos o problema, Bliss entrou no museu e foi acidentalmente morto pela queda de uma estátua, praticamente no mesmo local em que assassinara Kyle... Que diabo! Tais coisas não acontecem no curso normal dos eventos do mundo. E o que torna tudo ainda mais fantástico é que você sugeriu que ele poderia sofrer um acidente.

— Sim, sim. Interessante coincidência. — Vance não parecia propenso a discutir o assunto.

— E o egípcio — continuou Markham. — Não ficou absolutamente Surpreendido quando você lhe falou da morte de Bliss. Ele agiu quase como se esperasse por essa notícia...

Subitamente Markham interrompeu-se. Vance e eu paramos também e olhamos para ele. Seus olhos brilhavam.

— Hani matou Bliss!

Vance suspirou e deu de ombros.

— Claro que foi ele, Markham. Meu Deus! Pensei que você tivesse compreendido a situação.

— Compreendido? — Markham parecia incoerente. — O que está querendo dizer?

— Tudo é por demais óbvio — respondeu Vance suavemente. — Percebi, do mesmo modo que você, que não havia forma de condenar Bliss. Assim, sugeri a Hani como poderia ser dado um fim a todo o caso...

— Você sugeriu a Hani?

— Durante nossa conversação na sala de visitas. Realmente, velho Markham, não costumo entregar-me a estranhas divagações sobre mitologia, a não ser que tenha uma razão. Simplesmente fiz com que Hani percebesse que não havia forma legal de levar Bliss à justiça e insinuei como poderia ele sobrepor-se a essa dificuldade e, incidentalmente, evitar a você uma situação verdadeiramente embaraçosa...

— Mas Hani permaneceu no saguão com a porta fechada. — A indignação de Markham crescia.

— Exatamente. Disse-lhe que permanecesse do lado de fora da porta. Tinha a certeza de que nos escutaria...

— Você, deliberadamente...

— Oh, o mais deliberadamente possível. — Vance abriu os braços em um gesto de rendição. — Enquanto falava com vocês e, indubitavelmente, fazia papel de tolo, eu estava realmente conversando com Hani. É claro que não poderia saber se ele se aproveitaria ou não da oportunidade. Mas ele se aproveitou. Armou-se com uma maça do museu — espero que tenha sido a mesma que Bliss usou em Kyle — e golpeou a cabeça do doutor. Em seguida arrastou o corpo pelas escadas em espiral, até lá embaixo, e o deixou aos pés de Anúbis. Com a maça quebrou os tornozelos da estátua e a fez cair sobre o crânio de Bliss. Muito simples.

— E todo aquele seu palavrório na sala de visitas...

— Era meramente para conservar você e Heath afastados, no caso em que Hani resolvesse agir.

Os olhos de Markham se estreitaram.

— Você não pode sair-se bem com essa espécie de coisa, Vance. Vou processar Hani pelo crime. Haverá impressões digitais...

— Oh, não, não haverá impressões digitais, Markham. Você não notou as luvas na chapeleira? Hani não é tolo. Ele calçou as luvas antes de ir ao escritório. Seria muito mais difícil a você conseguir condená-lo do que a Bliss. Pessoalmente admiro muito Hani. Sujeito decidido!

Durante algum tempo Markham estava zangado demais para falar. Finalmente, porém, deu voz a uma exclamação.

— É ultrajante!

— Claro que é —- concordou Vance amistosamente. — Assim foi o assassinato de Kyle — Acendeu um cigarro e tragou prazerosamente. — O que há de errado com vocês, advogados, é que são muito ciumentos e sedentos de sangue. Você queria mandar pessoalmente Bliss para a cadeira elétrica e não pôde fazê-lo. Hani simplificou as coisas para você. Em minha opinião, você está simplesmente desapontado porque outrem cobrou a vida de Bliss antes que você pudesse fazê-lo... Realmente, sabe, Markham, você é tremendamente egoísta.

 

 

 

 

Creio que não faltará um curto post-scriptum. Markham não encontrou dificuldades, como o leitor sem dúvida se lembrará, em convencer a imprensa de que Bliss tinha sido o culpado pela morte de Benjamin H. Kyle e que sua trágica morte "acidental" tinha muito daquilo a que comumente se chama de justiça divina.

Scarlett, ao contrário do que previra o médico, recuperou-se. No entanto, passaram-se muitas semanas antes que pudesse falar racionalmente. Vance e eu o visitamos no hospital no fim de agosto e ele corroborou a teoria de Vance sobre o que tinha acontecido na noite fatal no museu. Scarlett voltou para a Inglaterra em princípios de setembro — seu pai morrera, deixando-lhe uma propriedade endividada em Bedfordshire.

A Sra. Bliss e Salveter se casaram em Nice no fim da primavera seguinte, e as escavações do túmulo de Intef, de acordo com os boletins do Instituto Arqueológico, ainda continuam. Salveter está encarregado dos trabalhos e sinto-me feliz em assinalar que Scarlett é o perito técnico da expedição.

Hani, segundo uma carta recente de Salveter a Vance, "reconciliou-se com a violação das tumbas de seus ancestrais". Continua com Meryt-Amen e Salveter e estou inclinado a pensar que o seu amor por esse jovem casal é maior do que seus preconceitos nacionais.

XIV

 

Uma carta hieroglífica

 

Sexta-feira, 13 de julho — 16:15 horas)

 

 

Markham levantou-se irritadamente e percorreu todo o comprimento da sala, voltando em seguida. Como sempre, em momentos de perplexidade, tinha mãos cruzadas às costas e cabeça projetada para a frente.

— Que se danem todas as suas tias! — resmungou ele, quando chegou ao lado de Vance. — Você está sempre chamando por uma tia. Será que não tem nenhum tio?

Vance abriu os olhos e sorriu com brandura.

— Sei como você se sente. — A despeito do tom leviano de sua voz, havia uma inegável simpatia em suas palavras. — Ninguém, neste caso, está agindo como deve. É como se todos estivessem metidos em uma conspiração para confundir e complicar as coisas para nós.

— É exatamente isso! — Markham parecia irritado. — Por outro lado, há alguma coisa de verdadeiro no que o sargento diz. Por que teria Bliss... ?

— Muita teoria, velho Markham — interrompeu Vance. — Oh, muita teoria... muita especulação... muitas indagações fúteis. Aproxima-se uma chave que explicará tudo. Nossa tarefa imediata, ao que me parece, é encontrar essa chave.

— Claro! — Heath falou com pesado sarcasmo. — Suponhamos que eu comece a fincar os móveis com alfinetes de chapéu e a rasgar os tapetes...

Markham estalou os dedos impacientemente e Heath calou-se.

— Vamos voltar à terra. — Olhou para Vance com rancor. — Você já tem alguma idéia definitiva e todos os seus resmungos não são suficientes para me convencer do contrário. Qual é a sua sugestão para o nosso próximo passo? Entrevistar Salveter?

— Precisamente. — Vance concordou com a cabeça com desusada seriedade. — Aquele rapaz fanático se encaixa bem no quadro e sua presença no tablado agora é, como dizem os médicos, indicada.

Markham fez um sinal a Heath que se pôs de pé imediatamente, foi até à porta da sala de visitas e berrou para o andar de cima: — Hennessey!... Traga aquele sujeito aqui embaixo. Temos negócios a tratar com ele.

Poucos momentos mais tarde Salveter era introduzido na sala. Seus olhos brilhavam e ele se plantou agressivamente na frente de Vance, enfiando as mãos com violência nos bolsos das calças.

— Bem, aqui estou — anunciou ele, beligerantemente. — As algemas estão prontas?

Vance bocejou cuidadosamente e examinou o recém-chegado com expressão de enfado.

— Não seja tão viril, Sr. Salveter — disse Vance. — Estamos todos desgastados com este depressivo caso e simplesmente não temos mais condições de suportar demonstrações de energia e vigor. Sente-se e deixe que suas juntas relaxem... Quanto às algemas, o sargento Heath as mantém lindamente polidas. O senhor gostaria de experimentá-las?

— Talvez retrucou — Salveter, observando Vance calculadamente. — O que foi que o senhor disse a Meryt... à Sra. Bliss?

— Ofereci-lhe um dos meus Régies — respondeu Vance descuidadamente. — Ela é uma jovem de muito bom gosto... O senhor gostaria de fumar um desses? Ainda tenho dois.

— Obrigado. Fumo Deities.

— Nunca os mergulhou em ópio? — perguntou Vance delicadamente.

— Ópio?

— O suco concreto de papoulas, por assim dizer... obtido de ranhuras no córtex da cápsula da Papaver somniferum. Palavra grega: opion, isto é, omicron, pi, iota, omicron, nu.

— Não! — Salveter sentou-se abruptamente e desviou o olhar. — Qual é a idéia?

— Parece haver uma abundância de ópio na casa, sabe?

— Oh, é isso? — O homem levantou os olhos atentamente.

— O senhor não sabia? — Vance selecionou um de seus dois remanescentes cigarros. — Estávamos pensando que o senhor e o Sr. Scarlett eram os encarregados dos suprimentos médicos.

Pareceu que Salveter ia dizer algo, mas se passaram alguns instantes antes que falasse.

— Foi Meryt-Amen quem lhe disse isso? — perguntou, finalmente.

— E não é verdade? — Havia uma nota nova na voz de Vance.

— De certo modo — admitiu o outro. — O Dr. Bliss...

— E o ópio? — Vance inclinou-se para a frente.

— Oh, sempre houve ópio no armário lá de cima... quase uma lata.

— O senhor teve ópio em seu quarto ultimamente?

— Não... sim... eu...

— Muito obrigado. Escolheremos uma de suas respostas, não?

— Quem disse que havia ópio em meu quarto? — Salveter pôs os ombros para trás.

Vance recostou-se em sua cadeira.

— Isto realmente não tem importância. De qualquer modo agora não há ópio lá... Escute aqui, Sr. Salveter, o senhor voltou à saleta de refeições esta manhã depois de ter subido com a Sra. Bliss?

— Eu não!... Isto é — emendou ele — não me lembro. Vance se pôs de pé abruptamente e permaneceu ameaçador à frente do rapaz.

— Não tente adivinhar o que a Sra. Bliss nos disse. Se o senhor não quiser responder às minhas perguntas eu o entregarei ao Departamento de Homicídios e Deus que o ajude!... Estamos aqui para saber a verdade e queremos respostas diretas. O senhor voltou ou não à saleta de refeições?

— Não, não voltei.

— Isto é muito melhor... oh, muito melhor! — Vance suspirou e retomou sua cadeira. — E agora, Sr. Salveter, vamos fazer-lhe uma pergunta muito íntima. O senhor está amando a Sra. Bliss?

— Recuso-me a responder!

— Ótimo! Mas o senhor não ficaria absolutamente triste se o Dr. Bliss fosse juntar-se aos seus antepassados?

Salveter contraiu os maxilares e nada disse. Vance o observava ruminativamente.

— Eu sei — disse ele amistosamente — que o Sr. Kyle lhe legou uma considerável fortuna em seu testamento... Se o Dr. Bliss lhe pedisse para continuar a financiar as escavações no Egito, o senhor acederia?

— Eu insistiria nesse ponto, mesmo que ele não me pedisse. — Um brilho fanático luziu nos olhos de Salveter. — Isto é — acrescentou ele como se um novo pensamento lhe tivesse ocorrido — se Meryt-Amen aprovasse. Eu não gostaria de me opor a seus desejos.

— Ah! — Vance tinha acendido seu cigarro e fumava sonhadoramente. — E o senhor acha que ela não aprovaria?

Salveter sacudiu a cabeça.

— Não, creio que ela faria o que o doutor quisesse.

— Uma esposa dedicada... quoi?

Salveter agitou-se na cadeira.

— Ela é a mais reta, a mais leal...

— Sim, sim. — Vance exalou uma espiral de fumaça de cigarro. — Poupe-me seus adjetivos... No entanto, ao que me parece, ela não está inteiramente enlevada com o companheiro que escolheu para sua vida.

— Se não está — retrucou Salveter agastado — ela não o demonstra.

Vance concordou com a cabeça, desinteressadamente.

— O que o senhor pensa de Hani? — indagou.

— É um idiota, embora seja uma boa alma. Adora a Sra. Bliss... — Salveter empertigou-se e seus olhos se arregalaram. — Bom Deus, Sr. Vance! O senhor não está pensando... — Interrompeu-se, horrorizado, mas se recompôs em seguida. — Percebo onde estão querendo chegar. Mas... mas... Esses degenerados egípcios modernos! São todos


iguais... cães orientais todos eles. Nenhum sentimento de certo e errado — diabos supersticiosos — mas leais. Desconfio...

— Muito bem. Todos nós estamos desconfiando. — Vance, aparentemente, não se impressionara com a explosão de Salveter. — Mas, como o senhor diz, Hani é muito chegado à Sra. Bliss. Seria capaz de fazer muitas coisas por ela, não? Talvez arriscasse o pescoço se julgasse que a felicidade dela estava em jogo. É claro, ele poderia precisar de um bocado de preparo...

Uma luz pesada caiu sobre os olhos de Salveter.

— O senhor está na pista errada. Ninguém preparou Hani. Ele tem capacidade para agir por si mesmo...

— E de lançar suspeitas sobre outras pessoas? — Vance olhou para Salveter. — Eu diria que a colocação do alfinete de escaravelho é um pouco sutil demais para um mero fellah.

— O senhor pensa assim? — Salveter falou quase com desprezo. — O senhor não conhece essa gente como eu. Os egípcios já desenvolviam tramas intrincadas quando os nórdicos eram ainda arbóreos.

— Péssima antropologia — murmurou Vance. — E, sem dúvida, o senhor está pensando na tola história de Heródoto sobre a casa do tesouro do Rei Rhampsinutus. Pessoalmente sou de opinião que os sacerdotes estavam tapeando o papa da história... Por falar nisso, o senhor conhece alguém por aqui, além do Dr. Bliss, que use lápis Koh-i-noor?

— Não sabia nem que o doutor os usava. — O homem bateu as cinzas do cigarro no tapete e esfregou-as com o pé.

— O senhor, por acaso, viu o Dr. Bliss hoje pela manhã?

— Não. Quando desci para tomar café, Brush me disse que o doutor estava trabalhando em seu escritório.

— O senhor esteve no museu hoje pela manhã, antes de sair para se desincumbir de seu encargo no Metropolitan?

Salveter piscou os olhos rapidamente.

— Sim! — explodiu finalmente. — Geralmente vou ao museu todas as manhãs depois do café — uma espécie de hábito. Gosto de verificar se tudo está certo, se nada aconteceu durante a noite. Sou o curador assistente e, além de minhas responsabilidades, sinto-me tremendamente interessado pelo local. Faz parte de minhas obrigações ter tudo de olho.

Vance concordou com a cabeça compreensivelmente.

— A que horas o senhor entrou no museu hoje de manhã?

Salveter hesitou. Em seguida, lançando a cabeça para trás, encarou Vance desafiadoramente.

— Saí de casa pouco depois das nove. Quando cheguei à Quinta Avenida ocorreu-me subitamente que não inspecionara o museu e, por alguma razão, fiquei preocupado. Não posso dizer-lhe por que me sentia assim, mas estava preocupado. Talvez por causa do novo carregamento que chegou ontem. De qualquer modo, voltei, usei minha própria chave e entrei no museu...

— Por volta das nove e meia?

— Devia ser isso mesmo.

— E ninguém viu o senhor tornar a entrar em casa?

— Creio que dificilmente. De qualquer modo, não vi ninguém.

Vance olhou para ele desanimadamente.

— Espero que o senhor acabe o seu recital... Se não se incomodar poderei terminá-lo para o senhor.

— Não há necessidade. — Salveter jogou o cigarro em um cinzeiro esmaltado em cima da mesa e colocou-se resolutamente na borda da cadeira. — Direi tudo o que há a ser dito. Se, depois, o senhor não ficar satisfeito, pode determinar minha prisão.... e que vá para o diabo!

. Vance suspirou e deixou a cabeça cair para trás.

— Tanta energia! — sussurrou. — Mas, para que ser vulgar?... Acredito que o senhor tenha visto seu tio antes de finalmente sair do museu e se encaminhar para o Grande Mausoléu Americano na Avenida.

— Sim, eu o vi! — Os olhos de Salveter brilharam e seu queixo projetou-se para a frente. — Agora deduza daí o que quiser.

— Realmente, não posso estar-me preocupando. É muita fatigante. — Vance nem mesmo olhou para o homem: seus olhos, semicerrados, fixavam-se em um candelabro de cristal antigo pendente sobre a mesa do centro. — Já que o senhor viu o seu tio — disse ele — deve ter permanecido no museu no mínimo uma meia hora.

— Mais ou menos isso — Salveter, obviamente, não podia compreender a atitude de indiferença de Vance. — Na verdade, interessei-me por um papiro que recolhemos no inverno passado e procurei decifrar algumas palavras que me embaraçaram. Eram as palavras ankhet, wash e tema, que não consegui traduzir.

Vance cerrou levemente o cenho. Em seguida suas sobrancelhas se ergueram.

— Ankhet... wash... tema... — Pronunciou as palavras vagarosamente. — Ankhet estava escrita com ou sem determinativo?

Salveter não respondeu imediatamente.

— Com o determinativo pele de animal — disse, passado algum tempo.

— E a palavra seguinte era de fato wash, ou was? Novamente Salveter hesitou e olhou Vance com inquietação.

— Era wash, creio... E tema estava escrita com dupla ponta.

— Nada de ideograma fluente, não?... Isto é muito interessante... E durante os seus espasmos lingüísticos o seu tio chegou.

— Sim. Eu estava sentado na mesinha próxima do obelisco quando o Tio Benjamin abriu a porta. Ouvi-o dizer algo a Brush e me levantei para cumprimentá-lo. Estava bastante escuro e ele não me viu até chegar ao andar do museu.

— E então?

— Eu sabia que ele desejava examinar os novos tesouros e, por isso, fui-me embora. Dirigi-me ao Metropolitan...

— Seu tio parecia estar em seu estado de ânimo normal quando chegou ao museu?

— Como de costume... talvez um pouco macambúzio. Ele nunca estava bem-humorado pela manhã. Isso, porém, não queria dizer nada.

— O senhor saiu do museu imediatamente após tê-lo cumprimentado?

— Imediatamente. Não tinha percebido que estivera durante tanto tempo fuçando o papiro; apressei-me a sair. Uma outra coisa, eu sabia que ele tinha vindo avistar-se com o Dr. Bliss sobre assunto muito importante e não desejava importuná-los.

Vance sacudiu a cabeça afirmativamente, mas não deu qualquer indicação quanto a aceitar sem reservas ou não as declarações do outro. Permaneceu sentado, fumando preguiçosamente, os olhos suaves e impassíveis.

— E durante os vinte minutos seguintes — raciocinou Vance em voz alta — isto é, entre as dez horas e as dez e vinte, ocasião em que o Sr. Scarlett entrou no museu, o seu tio foi assassinado.

Salveter estremeceu.

— Assim parece — murmurou ele. — Mas — projetou o queixo para a frente — não tenho nada a ver com isso! Esta é a verdade, quer o senhor aceite ou não.

— Esta agora. Não seja indelicado — admoestou-o Vance calmamente. — Não tenho nada que aceitar ou não aceitar, sabe? Posso, meramente, escolher zombar dela.

— Pois zombe e que se dane!

Vance pôs-se de pé preguiçosamente, um sorriso frio nos lábios — um sorriso mais ameaçador do que qualquer contorção de raiva.

— Não gosto de sua linguagem, Sr. Salveter — disse, lentamente.

— Oh, não gosta? — O homem se pôs de pé num salto, os punhos crispados e desfechou um soco raivoso. Vance, no entanto, recuou com a rapidez de um felino, e segurou o outro pelo punho. Fez, em seguida, um rápido movimento de pivô para a direita e levou o braço de Salveter para trás, torcendo-o de encontro as suas espáduas. Com um involuntário grito de dor, o homem caiu sobre os joelhos. (Lembrei-me da maneira pela qual Vance havia salvo Markham de um ataque no escritório do procurador distrital, quando do encerramento do caso Benson.) Heath e Hennessey deram um passo à frente, mas Vance fez-lhes sinal com a mão livre para que parassem.

— Eu posso dar jeito neste impetuoso cavalheiro — disse ele. Em seguida levantou Salveter e o empurrou de volta à cadeira. — Uma liçãozinha de boas maneiras — observou prazerosamente. — Agora, por favor, civilize-se e responda às minhas perguntas ou serei obrigado a prendê-lo — e à Sra. Bliss — por conspiração para assassinar o Sr. Kyle.

Salveter estava completamente subjugado. Olhava seu antagonista com ridícula surpresa. Depois, repentinamente, parece que as palavras de Vance penetraram em seu atônito cérebro.

— A Sra. Bliss?... Ela não tem nada com isso, asseguro-lhe! — O tom de sua voz, ainda que altamente excitado, era respeitoso. — Se isso a salvar de qualquer suspeita, confesso o crime...

— Não há necessidade de tanto heroísmo. — Vance retomara sua cadeira e de novo fumava calmamente. — O senhor, porém, poderá dizer-nos por que, quando chegou ao museu esta tarde e soube da morte de seu tio, não mencionou o fato de ter estado com ele às dez horas.

— Eu... eu estava demasiado aborrecido... demasiado chocado — balbuciou o homem. — E tinha medo. Instinto de autoproteção, talvez. Não posso explicar. Realmente, não posso. Deveria ter-lhe dito, suponho... mas... mas...

Vance veio em seu auxílio.

— Mas o senhor não desejava envolver-se em um crime do qual era inocente. Sim... sim. Muito natural. Achou melhor esperar e verificar se alguém o havia visto... Escute, Sr. Salveter, não percebeu que se o senhor tivesse admitido ter estado com o seu tio às dez horas isso teria sido um ponto a seu favor?

Salveter se tornara mal-humorado e, antes que pudesse responder, Vance prosseguiu.

— Deixando essas especulações de lado, será que podemos confiar em que nos dirá exatamente o que fez no museu entre as nove e meia e as dez horas?

— Já lhe disse. — Salveter parecia confuso e distrait. — Eu estava comparando um papiro da décima oitava dinastia, recentemente encontrado pelo Dr. Bliss em Tebas, com uma translação de Luckenbill do prisma hexagonal dos Anais de Sennacherib1 a fim de determinar certos valores de...

 

 

(1) O prisma a que se referia Salveter era um de terracota adquirido pelo Instituto Oriental da Universidade de Chicago durante sua expedição de reconhecimento de 1919-20. O documento era uma duplicata variante do prisma de Taylor do Museu Britânico, escrito cerca de dois anos antes sob um outro epônimo.

 

 

— O senhor está romanceando assustadoramente, Sr. Salveter — interrompeu Vance calmamente. — E está-se permitindo um anacronismo. O prisma Sennacherib é feito em escrita cuneiforme babilônica e data de quase mil anos depois. — Levantou os olhos com seriedade. — O que esteve o senhor fazendo no museu esta manhã?

Salveter iniciou a projetar-se para a frente em sua cadeira, mas logo voltou para trás.

— Eu estava escrevendo uma carta — respondeu debilmente.

— Para quem?

— É melhor não dizer.

— Naturalmente. — Vance sorriu desanimado. — Em que língua?

Uma mudança imediata operou-se no homem. Ficou pálido e contraiu as mãos que até então se mantinham sobre os joelhos.

— Em que língua? — repetiu ele asperamente. — Por que me faz esta pergunta?... Em que língua provavelmente eu escreveria?... Banto, sânscrito, Walloon, ido...?

— Não. — O olhar de Vance fixou-se lentamente no rosto de Salveter. — Também eu não tinha em mente o aramaico, o agao, o swahili ou o sumério... O fato é que me ocorreu há um momento atrás que o senhor estava compondo uma epístola em hieróglifos egípcios.

Os olhos do homem se dilataram.

— Por que, em nome dos céus — perguntou desajeitadamente —, eu faria uma coisa dessas?

— Por quê? Ah, sim... por que mesmo? — Vance soltou um profundo suspiro. — Mas, na verdade, o senhor estava compondo em egípcio, não estava?

— Estava? O que o faz pensar assim?

— Devo explicar?... É tão diabolicamente simples. — Vance pôs fora o cigarro e fez um gesto apologético. — Eu poderia até adivinhar a quem a epístola era dirigida. A não ser que eu esteja desanimadoramente enganado, a Sra. Bliss era a destinatária. — Novamente Vance sorriu meditativamente. — O senhor mencionou três palavras do imaginário papiro que ainda não teria satisfatoriamente traduzido — ankhet, wash e tema. Mas, como até agora há dezenas de palavras egípcias que têm resistido a uma translação acurada, fiquei imaginando por que o senhor teria mencionado essas três em particular. Fiquei imaginando, além disso, por que o senhor iria mencionar três palavras de cujo significado não se lembrava, e que se aproximam tanto de outras tão familiares em egípcio... Refleti então sobre qual o significado dessas três palavras familiares. Ankh — sem um determinativo pode significar "o que vive". Was — que tanto se aproxima de wash — significa "felicidade" ou "boa fortuna", ainda que não ignore haver algumas dúvidas a esse respeito — Erman traduz essa palavra, com um ponto de interrogação, como Glück. A palavra tema com ponta dupla, que o senhor mencionou, é desconhecida para mim. No entanto, estou familiarizado com tem, que significa "a ser terminado" ou "a ser acabado"... está-me acompanhando?

Salveter olhava como um homem hipnotizado.

— Bom Deus! — murmurou ele.

— E assim — continuou Vance — concluí que o senhor estava lidando com formas bem conhecidas dessas três palavras e as mencionara porque, em suas outras formas aproximadas, seu significado transliterado é desconhecido... Além disso, as palavras se encaixavam perfeitamente na situação. Na verdade, Sr. Salveter, não seria preciso muita imaginação para reconstituir sua carta, conhecidas as três expressões-chave, isto é, o que vive, felicidade ou boa fortuna e a acabar, ou, terminar.

Vance parou brevemente, como para arrumar as palavras.

— O senhor provavelmente compôs uma comunicação em que dizia que "o que vive" (ankh) se interpunha no caminho de sua "felicidade" ou "boa fortuna" (was), e expressava o desejo de que a situação "terminasse" ou "acabasse" (tem)... Estou certo ou não?

Salveter continuava a olhar para Vance com uma espécie de assombro.

— Vou falar a verdade — disse ele por fim. — Foi isso exatamente o que escrevi. Meryt-Amen, que conhece a linguagem hieroglífica do Egito Médio melhor do que eu jamais conhecerei, sugeriu, faz muito tempo, que eu escrevesse para ela pelo menos uma vez por semana na linguagem de seus ancestrais, como exercício. Venho fazendo isso há anos. Ela sempre me corrige e me aconselha — é quase tão versada como qualquer dos escribas que decoraram as tumbas antigas... Esta manhã, quando voltei ao museu, lembrei-me de que o Metropolitan não abriria até às dez horas e, num súbito impulso, sentei-me e comecei a trabalhar nessa carta.

— Que pena — suspirou Vance — mas sua fraseologia naquela carta faz parecer que o senhor estava antevendo a adoção de medidas drásticas.

— Sei disso! — Salveter prendeu a respiração. — Aí está porque lhe menti. Mas o fato é, Sr. Vance, que a carta era bastante inocente... Sei que era bobagem, mas não a levei a sério. Francamente, senhor, era realmente uma lição sobre composição em egípcio — não uma comunicação de fato.

Vance concordou com a cabeça sem se comprometer.

— E onde está a carta agora? — quis saber.

— Na gaveta da mesa, no museu. Ainda não a havia terminado quando o Tio Benjamin chegou e a pus de lado.

— O senhor já se tinha utilizado dessas três palavras, ankh, was e tem?

Salveter concentrou-se e tomou uma respiração profunda.

— Sim! Já havia usado essas três palavras familiares. Então, quando o senhor me perguntou pela primeira vez sobre o que eu tinha feito no museu inventei a história sobre o papiro...

— E mencionou três palavras que lhe foram sugeridas pelas que o senhor realmente usou... não?

— Sim, senhor! É verdade.

— Agradecemos muito sua súbita explosão de sinceridade. — O tom de Vance era frígido. — O senhor quer ter a bondade de nos trazer a epístola inacabada? Adoraria vê-la e" talvez pudesse decifrá-la.

Salveter se pôs de pé num salto e quase saiu correndo da sala. Voltou poucos momentos depois, sob todos os aspectos estonteado e desanimado.

— Não está lá — anunciou ele. — Sumiu.

— Oh, e essa agora... Que pena.

Vance recostou-se pensativamente durante alguns instantes. Era seguida se pôs de pé repentinamente.

— Não está lá!... Sumiu! — murmurou ele. — Não gosto dessa situação, Markham... não gosto absolutamente... Por que teria a carta desaparecido? Por que... por quê?

Aproximou-se de Salveter.

— Em que espécie de papel o senhor escreveu aquela indiscreta carta? — perguntou, com controlada excitação.

— Em um bloco de papel amarelo... do tipo que geralmente se encontra em cima da mesa...

— E quanto à tinta... o senhor escreveu a lápis ou a tinta os caracteres?

— A tinta. Tinta verde. Há sempre lá no museu... Vance levantou a mão em um gesto de impaciência.

— Basta... Suba, vá para seu quarto... e espere lá.

— Mas, Sr. Vance, eu... eu estou preocupado com a carta. Onde o senhor julga que ela está?

— Por que deveria eu saber onde ela está?... E isto desde que, é claro, o senhor a tenha escrito. Não tenho vara de condão. — Vance estava terrivelmente preocupado, ainda que procurasse esconder esse fato. — O senhor não tinha coisa melhor a fazer do que deixar essa carta solta por aí?

— Nunca supus...

— Oh, nunca supôs?... Creio que não. — Vance olhou intensamente Salveter. — Essa não é a hora de especulações... Por favor, vá para o seu quarto. Tornarei a falar com o senhor... Não faça perguntas. Faça o que lhe estou dizendo!

Salveter, sem uma palavra, voltou-se e desapareceu pela porta. Podíamos ouvir suas pesadas passadas ao subir as escadas.


XV

 

Vance faz uma descoberta

 


(Sexta-feira, 13 de julho — 16:45 horas)

 

 

Vance permaneceu durante algum tempo em inquieto silêncio. Finalmente ergueu os olhos na direção de Hennessey.

— Quero que você vá lá para cima — disse ele — e escolha um posto de onde possa vigiar todos os quartos. Não quero que haja qualquer comunicação entre a Sra. Bliss, Salveter e Hani.

Hennessey consultou Heath com os olhos.

— Essas são as ordens — informou-o o sargento, e o detetive afastou-se sem alacridade.

Vance voltou-se para Markham.

— Talvez esse idiota desse jovem tenha de fato escrito essa tola carta — comentou, enquanto uma expressão preocupada aflorava-lhe ao rosto. — Vamos dar uma espiada no museu.

— Escute aqui, Vance, — Markham levantou-se — por que a possibilidade de que Salveter tenha escrito essa carta tola preocupa a você?

— Não sei — não tenho certeza. — Vance foi até à porta, mas logo se voltou subitamente. — Mas estou temeroso — estou infernalmente temeroso! Tal carta daria ao criminoso uma saída — isto é, se o que penso for verdade. Se a carta foi escrita temos que encontrá-la. Se não a encontrarmos há diversas explicações plausíveis para o seu desaparecimento — e uma delas é diabólica... Mas, vamos. Teremos que proceder a uma busca no museu — na chance de que tenha sido escrita, como diz Salveter, e deixada na gaveta da mesa.

Cruzou rapidamente o saguão e abriu a grande porta de aço.

— Se o Dr. Bliss e Guilfoyle chegarem enquanto estamos no museu — disse Vance a Snitkin, que permanecia encostado junto à porta da frente — leve-os à sala de visitas e os mantenha lá.

Descemos as escadas para o museu e Vance, imediatamente, foi até à mesinha situada ao lado do obelisco. Olhou para o bloco de papel amarelo e testou a cor da tinta. Em seguida abriu a gaveta e dela retirou o que continha. Após uns minutos de exame do conteúdo da gaveta, arrumou-a e fechou-a. Havia junto à mesinha uma cesta de papéis usados, de mogno, que Vance esvaziou no chão. Ajoelhando-se, examinou todos os pedacinhos de papel amassados. Finalmente levantou-se e sacudiu a cabeça.

— Não gosto disso, Markham, — disse ele. — Sentir-me-ia muito melhor se pudesse encontrar a carta.

Caminhou pelo museu, procurando pontos onde uma carta poderia ter sido jogada. Quando, porém, chegou às escadas em espiral ao fundo da sala, nelas apoiou as costas e olhou para Markham desanimadamente.

— Estou ficando cada vez mais assustado — observou em voz baixa. — Se essa trama diabólica der certo!... — Voltou-se subitamente e subiu as escadas correndo, fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. — Há uma chance... apenas uma chance — disse por sobre os ombros. — Eu devia ter pensado nisso antes.

Nós o seguimos, sem compreender, até o escritório do Dr. Bliss.

— A carta deveria estar no escritório — observou, procurando controlar sua ansiedade. — Era o que seria lógico e este caso é, fora de dúvida, inacreditavelmente lógico, Markham — tão lógico, tão matemático que por fim seremos capazes de entendê-lo corretamente. De fato é demasiadamente lógico — e aí reside sua fraqueza...

Vance já estava de quatro remexendo no esparramado conteúdo da cesta de papéis do Dr. Bliss. Após uns momentos de busca pegou dois pedaços rasgados de papel amarelo. Olhou-os cuidadosamente e pudemos notar pequeninas marcas de tinta verde no papel. Vance colocou-os de lado e prosseguiu em sua busca. Depois de alguns instantes tinha separado uma pequena pilha de fragmentos de papel amarelo.

— Creio que isso é tudo — disse, levantando-se. Sentou-se na cadeira giratória e colocou os pedaços de papel rasgados sobre o mata-borrão.

— Isso pode demorar algum tempo, mas como conheço razoavelmente hieróglifos egípcios, acredito que cumpra a tarefa sem muita dificuldade.

Vance começou a ajeitar e a encaixar uns nos outros os pedacinhos de papel, enquanto Markham, Heath e eu permanecíamos atrás dele, olhando-o fascinados. Ao fim de dez minutos Vance havia reconstituído a carta. Pegou então uma folha de papel branco grande de dentro de uma das gavetas e cobriu-a com mucilagem. Cuidadosamente, transferiu a carta reconstituída, peça por peça, para o papel gomado.

— Aí está, velho Markham, — suspirou ele — a carta inacabada que nos falou Salveter estar elaborando esta manhã, entre nove e meia e dez horas.

O documento era inquestionavelmente uma folha do papel amarelo que havíamos visto no museu. Nele viam-se quatro linhas de caracteres egípcios antigos, detalhadamente elaborados com tinta verde.

Vance colocou o dedo em um dos grupos de caracteres.

— Isso — disse-nos ele — é o hieróglifo ankh: Mudou o dedo de posição. — Aqui o sinal was... e aqui, mais para o fim, o que corresponde a tem.

— E daí? — Heath estava positivamente confuso e seu tom não parecia muito delicado. — Não podemos prender um sujeito porque desenhou umas figuras com olhos de aves em um pedaço de papel amarelo.

— Meu Deus, sargento! O senhor não pensa em outra coisa senão em atirar pessoas em masmorras? Temo que o senhor não tenha a natureza humana. Que pena... Por que não procura, ocasionalmente, usar o cérebro? — Olhou para cima e fiquei surpreendido com sua seriedade. — O jovem e impetuoso Sr. Salveter confessa que escreveu tolamente uma carta para sua Dulcinéia na linguagem dos faraós. Disse-nos que colocou o inacabado billet-doux na gaveta de uma mesa no museu. Descobrimos que não se encontra na gaveta da mesa mas sim que foi implacavelmente rasgada e atirada na cesta de papéis do escritório do Dr. Bliss... Que possíveis razões segundo as quais o senhor encararia o Paulo dessa epístola como um assassino?

— Não estou encarando ninguém como coisa nenhuma — retorquiu Heath violentamente. — Mas há muitas besteiras por aqui para que me sinta satisfeito. Quero ação.

Vance observava-o gravemente.

— Por uma vez, também quero ação, sargento. Se não tomarmos uma atitude qualquer dentro em breve, poderemos esperar por algo ainda pior do que já aconteceu. Mas terá que ser uma atitude inteligente — não o tipo de ação que o criminoso deseja que empreendamos. Estamos enredados nas malhas de uma trama habilmente urdida e, a não ser que tomemos cuidado com os nossos passos, o culpado continuará livre e nós ainda nos debatendo na teia.

Heath resmungou e passou a observar atentamente a carta reconstituída.

— Que maneira horrível de um sujeito escrever para uma dama — comentou ele com mal-humorado desdém. — Prefiro um tiro bem dado por um gangster. Esses crimes elegantes me enojam.

Markham estava carrancudo.

— Olhe aqui, Vance, — disse ele — você acredita que o criminoso tenha rasgado a carta e lançado os pedaços na cesta de papéis do Dr. Bliss?

— Pode haver alguma dúvida a esse respeito? — perguntou Vance como resposta.

— Mas qual, em nome dos céus, poderá ter sido o objetivo?

— Ainda não sei. Aí está por que estou assustado. — Vance olhou para fora pela janela de trás. — Mas a destruição daquela carta faz parte da trama e até que possamos obter provas claras e insofismáveis estamos em um beco sem saída.

— Ainda assim — insistiu Markham — se a carta fosse incriminatória, parece-me que teria sido valiosa para o criminoso. Rasgá-la não ajuda ninguém.

Heath olhou primeiro para Vance e depois para Markham.

— Talvez — sugeriu ele — o próprio Salveter a tenha rasgado.

— Quando? — indagou Vance calmamente.

— Como posso saber? — O sargento estava exasperado. — Talvez quando ele abateu o velho.

— Se esse fosse o caso, Salveter não teria admitido tê-la escrito.

— Bem — insistiu Heath — talvez ele a tenha rasgado quando o senhor mandou procurá-la há uns poucos minutos.

— E então, após havê-la destruído, veio até aqui e jogou os pedaços na cesta, onde poderiam ser encontrados... Não, sargento. Isso não é inteiramente razoável. Se Salveter se assustou e decidiu livrar-se da carta tê-la-ia destruído completamente — tê-la-ia queimado, mais provavelmente, sem dela deixar qualquer vestígio.

Markham, também, havia ficado fascinado pelos hieróglifos que Vance reconstituíra. Permanecia olhando, perplexo, os pedaços de papel novamente reunidos.

— Você julga, então, que a intenção era que nós achássemos a carta? — quis saber ele.

— Não sei. — O olhar distante de Vance não se modificou. — Talvez... e ainda assim... Não! Havia apenas uma chance em mil que viéssemos a esbarrar nela. A pessoa que jogou a carta aqui na cesta de papéis não poderia saber, nem mesmo presumir, que Salveter nos dissesse que a havia escrito e que a largara por aí.

— Por outro lado — Markham relutava em abandonar sua linha de raciocínio — a carta pode ter sido jogada aí na esperança de enredar Bliss ainda mais, isto é, ela pode ter sido encarada pelo criminoso como uma evidência forjada a mais, juntamente com o alfinete de escaravelho, o relatório financeiro e as pegadas.

Vance sacudiu a cabeça.

— Não. Isso não podia ser. Bliss, como sabe, não poderia ter escrito a carta... ela é, obviamente em demasia, uma comunicação de Salveter para a Sra. Bliss.

Vance pegou a carta reconstituída e se pôs a estudá-la durante algum tempo.

— Ela não é particularmente difícil de ser lida por alguém que saiba um pouco de egípcio. Nela está escrito exatamente aquilo que Salveter nos disse. — Tornou a colocar o papel em cima da mesa. — Há algo incrivelmente diabólico por trás disso. Quanto mais penso a respeito, mais me convenço de que não era esperado que achássemos a carta. Minha impressão é de que a carta foi descuidadamente jogada fora por alguém... após ter servido ao seu objetivo.

— Mas que possível objetivo? — indagou Markham.

— Se soubéssemos qual o objetivo — tornou Vance gravemente — poderíamos evitar outra tragédia.

Markham comprimiu os lábios sombriamente. Eu sabia o que se passava em seu cérebro: estava pensando nas terríveis predições de Vance nos casos dos Greenes e do Bispo — predições que se tornaram verdadeiras com todo o horror de uma catástrofe final e inelutável.

— Você acredita que este caso não esteja ainda encerrado? — perguntou Markham lentamente.

— Eu sei que não está. O plano não está completo. Nós prejudicamos os planos do criminoso não prendendo o Dr. Bliss. Precisamos continuar. Vimos apenas os obscuros preliminares desse tremendo esquema — e quando a trama for finalmente revelada, será monstruoso...

Vance dirigiu-se calmamente até à porta que conduzia ao saguão e, abrindo-a um pouquinho, espiou para fora.

— E, Markham, devemos ser cautelosos — é no que estou insistindo desde o princípio. Não nos devemos deixar apanhar por qualquer das armadilhas do criminoso. A prisão do Dr. Bliss era uma dessas armadilhas. Um único passo em falso de nossa parte e a trama terá êxito.

Voltou-se para Heath.

— Sargento, quer ter a bondade de me trazer o bloco de papel amarelo, a caneta e a tinta da mesa do museu?... Nós, também, devemos cobrir nossas pegadas, pois estamos sendo seguidos tão de perto quanto estamos seguindo o criminoso.

Heath, sem uma palavra, entrou no museu e, poucos momentos mais tarde, voltava com os artigos que lhe tinham sido pedidos. Vance pegou-os e sentou-se à mesa do doutor. Então, colocando a carta de Salveter à sua frente começou a copiar cuidadosamente os fonogramas e ideogramas em uma folha do papel amarelo.

— É melhor, creio eu, — explicou ele enquanto trabalhava — que escondamos o fato de que encontramos a carta. A pessoa que a rasgou e a atirou na cesta poderá suspeitar de que a encontramos e procurar os fragmentos. Se eles não estiverem aqui, ficará em guarda. É meramente uma remota precaução, mas não nos podemos permitir qualquer deslize. Estamos nos defrontando com uma mente de diabólica inteligência...

Após ter acabado de transcrever uns doze símbolos, Vance rasgou o papel em pedacinhos do mesmo tamanho que os da carta original e misturou-os com o conteúdo da cesta de papéis. Em seguida dobrou e colocou no bolso a carta original de Salveter.

— O senhor se incomoda, sargento, de voltar com a tinta e o papel para o museu?

— O senhor poderia ter sido um falsário, Sr. Vance — observou Heath bem-humorado, pegando o papel e o tinteiro e desaparecendo pela porta de aço.

— Não vejo luz alguma — comentou Markham tristemente. — Quanto mais avançamos, mais complicado se torna o caso.

Vance concordou com a cabeça, sombriamente.

— Não há nada que possamos fazer agora, a não ser aguardar os acontecimentos. Até agora temos detido o rei dos criminosos, mas ainda lhe restam alguns lances. É como uma das combinações de Alekhine no xadrez — não se pode prever exatamente o que ele tem em mente quando inicia um ataque. E ele poderá produzir uma combinação que limpe o tabuleiro e nos deixe sem defesa...

Heath reapareceu nesse momento, parecendo inquieto.

— Não gosto daquela maldita sala — resmungou ele. — Há cadáveres em demasia. Por que esses percevejos científicos andam desencavando múmias e coisas? É mórbido.

— Uma perfeita crítica dos egiptólogos, sargento — comentou Vance com um sorriso de simpatia. — Egiptologia não é uma ciência arqueológica — é uma condição patológica, uma aflição cerebral — dementia scholastica. Uma vez que o spirillum terrigenum penetre em seu sistema, você está perdido — amaldiçoado com uma moléstia incurável. Se você desenterra cadáveres que estão embaixo da terra há mil anos, você é um egiptólogo; mas se são cadáveres recentes, você é um Burke ou um Hare e a lei lhe cai em cima. Tudo isso se encaixa sob o título de remoção ilegal de cadáveres...1

 

 

 

(1) Vance estava descrevendo uma hipérbole e não acreditava mais do que John Dennis em "que um homem que pode cometer trocadilhos tão vis terá escrúpulos em bater carteiras". Vance conhecia vários egiptólogos e os respeitava altamente. Entre eles figuravam o Dr. Ludlow Buli e o Dr. Henry A. Carey, do Museu Metropolitano de Arte, que, de ama feita, o ajudaram generosamente em seu trabalho sobre os fragmentos de Menandro.

 


— Seja como for — Heath estava ainda confuso e mastigando seu charuto raivosamente — não gosto das coisas naquela morgue. E, especialmente, não gosto do ataúde negro sob as janelas da frente. O que há dentro dele, Sr. Vance?

— O sarcófago de granito? Realmente, não sei, sargento. Está vazio, provavelmente, a não ser que o Dr. Bliss o utilize como depósito — o que não é provável, considerando o peso de sua tampa.

Bateram à porta do saguão e Snitkin informou que Guilfoyle havia chegado com o Dr. Bliss.

— Há apenas uma ou duas perguntas que gostaria de fazer-lhe — disse Vance. — Depois, creio, poderemos ir embora: estou prelibando bolinhos com geléia...

— Ir embora agora? — perguntou Heath em surpreendido desgosto. — Qual é a idéia? Apenas começamos esta investigação.

— Fizemos mais do que isso — protestou Vance delicadamente. — Evitamos todas as ciladas que o criminoso nos armou. Transtornamos todos os seus cálculos e o obrigamos a reconstruir suas trincheiras. No pé em que se encontra o caso agora, é empate. O tabuleiro tem que ser arrumado novamente — e, felizmente para nós, o criminoso está com as peças brancas. É seu o primeiro movimento. Ele, simplesmente, tem que vencer a partida; não pode permitir-se jogar por um empate.

— Estou começando a compreender o que está querendo dizer, Vance. — Markham acenou com a cabeça, lentamente, de modo afirmativo. — Nós nos recusamos a acompanhar os seus movimentos em falso e ele tem agora que tornar a colocar a isca em sua armadilha.

— Dito com uma precisão e clareza completamente impróprias a um advogado — retrucou Vance, com um sorriso forçado. Em seguida ficou novamente sério. — Sim, creio que ele terá que recolocar a isca antes de qualquer movimento final. Estou com a esperança de que a nova isca nos dê a solução de toda a trama e permita ao sargento efetuar suas prisões.

— Bem, tudo o que tenho a dizer — reclamou Heath — é que é o caso mais curioso em que já me vi envolvido. Vamos comer bolinhos e esperar que o criminoso dê as cartas! Se eu expusesse uma tal técnica a O'Brien,1 ele chamaria uma ambulância e me mandaria para Bellevue.

— Providenciaremos para que o senhor não vá para uma enfermaria de psicopatas, sargento — disse Markham irritadamente, encaminhando-se para a porta.

 

 

 

(1) Inspetor-Chefe O'Brien era, à época, responsável por todo o Departamento de Polícia do Estado de Nova York.

 

 

 

 

XVI

 

Uma visita depois da meia-noite


(Sexta-feira, 13 de julho — 17:15 horas)

 

 

Encontramos o Dr. Bliss na sala de visitas, afundado em uma espreguiçadeira, o chapéu de tweed puxado sobre os olhos. Ao seu lado, Guilfoyle permanecia de pé, sorrindo maliciosamente.

Vance estava aborrecido e não se preocupou em esconder esse fato.

— Diga ao seu eficiente sabujo que espere lá fora, sim, sargento?

— OK. — Heath olhou Guilfoyle pesarosamente. — Caia fora, Guil, — ordenou ele — e não faça perguntas. Isto é um crime de morte — é uma festa de bruxas em um pulguedo.

O detetive sorriu e retirou-se.

Bliss ergueu os olhos. Era uma figura com aparência de derrota. Tinha o rosto ruborizado e, em suas faces encovadas, lia-se a humilhação e a apreensão.

— Agora eu suponho — disse ele em voz trêmula — que os senhores me prenderão por este crime horrendo. Mas — oh, meu Deus, cavalheiros! — eu lhes asseguro...

Vance parará a seu lado.

— Um momento, doutor — interrompeu ele. — Não se preocupe. Não iremos prendê-lo, mas gostaríamos de ter uma explicação de sua surpreendente ação. Por que, se o senhor é inocente, tentaria sair do país?

— Por que... por quê? — O homem se mostrava nervoso e excitado. — Eu estava com medo — esse é o porquê. Tudo está contra mim. Todos os indícios apontam para mim... Há alguém que me odeia e que me quer ver fora do caminho. Tudo é demasiado óbvio. A colocação de meu alfinete de escaravelho ao lado do corpo do pobre Kyle, o relatório financeiro encontrado na mão do morto, aquelas pegadas de sangue conduzindo ao meu escritório — pensam que não sei o que significa tudo isso? Significa que eu devo pagar o preço — eu, eu. — Bateu no peito fracamente. — E outras coisas serão encontradas; a pessoa que matou Kyle não descansará até que me veja por trás das grades — ou morto. Sei disso — sei disso! Aí está por que procurei fugir. E agora os senhores me trouxeram de volta à situação de um morto-vivo — a uma sorte mais desgraçada do que a que se abateu sobre o meu velho benfeitor...

Sua cabeça caiu para a frente e um estremecimento percorreu-lhe o corpo.

— Mesmo assim, foi uma tolice tentar fugir, doutor — observou Markham delicadamente. — O senhor deve confiar em nós. Asseguro-lhe que nenhuma injustiça será feita. Viemos a saber de muitas coisas no curso das investigações, e temos razões para acreditar que o senhor estava sob a ação de ópio em pó quando o crime foi cometido...

— Ópio em pó! — Bliss quase deu um pulo de sua cadeira. — Foi o gosto que senti! Havia algo diferente no café, esta manhã — senti um sabor curioso. Inicialmente pensei que Brush não o preparara da maneira que recomendei. Em seguida me senti tonto e esqueci do assunto... Ópio! Conheço o gosto. Uma ocasião tive disenteria no Egito e tomei ópio com pimenta da Guiné — minha Sun Cholera Mixture1 tinha acabado. — Sua boca se abriu desmedidamente e lançou a Markham um olhar de aterrorizado apelo. — Envenenado em minha própria casa! — Repentinamente uma vingança sombria brilhou em seus olhos. — O senhor tem razão — disse ele com uma dureza metálica. — Eu não deveria ter tentado fugir. Meu lugar é aqui e é minha obrigação ajudá-los...

 

 

 

(1) A Sun Cholera Mixture para disenteria (uma receita do Dr. G. W. Busteed) recebeu esse nome por ter sido sua fórmula publicada pelo New York Sun durante a agitação sobre a cólera em Nova York, em junho de 1849. A fórmula foi admitida na primeira edição do Formulário Nacional, em 1883. Era constituída de tintura de pimenta da Guiné, tintura de ruibarbo, espírito de cânfora, essência de hortelã e ópio.

 


— Sim, sim, doutor. — Vance estava palpavelmente aborrecido. — Lamentações são muito confortadoras, mas estamos procurando lidar com fatos. E até aqui o senhor não tem prestado grande ajuda... Diga-nos, quem era encarregado dos suprimentos médicos? — A pergunta foi feita abruptamente.

— Ora... ora... deixe-me ver... — Bliss desviou os olhos e começou a mexer no vinco das calças.

— Esqueça a pergunta. — Vance fez um gesto de resignação. — Talvez o senhor prefira dizer-nos quão bem a Sra. Bliss conhece hieróglifos egípcios.

Bliss pareceu surpreendido e foram-lhe necessários alguns momentos antes de se recompor.

— Ela os conhece, praticamente, tão bem quanto eu — respondeu finalmente. — Seu pai, Abercrombie, ensinou-lhe o antigo egípcio quando ela era ainda criança, e tem trabalhado comigo há anos na decifração das inscrições...

— E Hani?

— Oh, ele tem conhecimentos superficiais da grafia hieroglífica — nada fora do comum. Falta-lhe um cérebro educado...

— E o Sr. Salveter? Conhece bem o antigo egípcio?

— Razoavelmente bem. Ele é fraco em conhecimentos gramaticais, mas conhece bem os sinais e o vocabulário. Salveter estudou grego e árabe. Acredito que tenha estudado também um ou dois anos de assírio. Copta, do mesmo modo. A base lingüística usual para um arqueólogo. Scarlett, por outro lado, é algo como um perito, ainda que seja um seguidor leal do sistema de Budge — como muitos outros amadores.1) E Budge, é claro, é antiquado. Não me interpretem mal. Budge é um grande homem. Suas contribuições à egiptologia são inestimáveis e sua publicação do Livro dos Mortos...

 

 

 

(1 ).Sir E. A. Wallis Budge foi durante muitos anos o Conservador Antiguidades Egípcias e Assírias no Museu Britânico.

 


— Eu sei. — Vance concordou com impaciência. — Seu Index torna possível encontrar quase que qualquer passagem no Papiro de Ani...

— Exatamente. — Bliss começou a demonstrar uma curiosa animação: seu entusiasmo científico se manifestava.

— Alan Gardiner, no entanto, é o verdadeiro sábio moderno. Sua Gramática Egípcia é uma obra profunda e acurada. O opus mais importante em egiptologia, no entanto, é o Wörterbuch der aegyptischen Sprache, de Erman-Grapow...

Vance, subitamente, tornara-se interessado.

— O Sr. Salveter usa o Wörterbuch de Erman-Grapow? — quis saber ele.

— Certamente. Insisti nisso. Encomendei três coleções a Leipzig — uma para mim e cada uma das outras para Salveter e Scarlett.

— Os sinais diferem bastante, creio, do tipo Theinhardt usado por Budge.

— Oh, sim. — Bliss tirou o chapéu e jogou-o no chão.

— A consoante traduzida por Budge como u — o filhote de pássaro — aparece como w no Wörterbuch e em todas as obras modernas. E, é claro, há ainda o sinal cursivo em espiral que é também a adaptação hieroglífica da forma hierática abreviada de...

— Obrigado, doutor. — Vance pegou sua cigarreira, viu que lhe sobrara apenas um Régie e tornou a colocá-la no bolso. — Soube que o Sr. Scarlett, antes de sair de casa esta tarde, esteve lá em cima. Acredito que tenha ido vê-lo.

— Sim. — Bliss acomodou-se na cadeira. — Um sujeito simpático, Scarlett.

— O que lhe disse ele?

— Nada de importância. Desejou-me boa sorte, disse que estaria às ordens, se eu necessitasse dele. Coisas desse tipo.

— Quanto tempo ele passou com o senhor?

— Um minuto, mais ou menos. Saiu imediatamente. Disse que ia até a casa.

— Mais uma pergunta, doutor — falou Vance após uma interrupção de alguns instantes. — Quem, nesta casa, teria razões para jogar em suas costas o assassinato do Sr. Kyle?

Uma mudança repentina ocorreu em Bliss. Seus olhos se fixaram à frente e as linhas de seu rosto se endureceram em contornos quase aterrorizantes. Apertou os braços da cadeira e encolheu os pés. Medo e ódio apossaram-se dele; parecia um homem prestes a saltar sobre um inimigo mortal. Levantou-se em seguida, com todos os músculos do corpo tensos.

— Não posso responder a esta pergunta. Recuso-me a fazê-lo!... Não sei... não sei! Mas alguém existe, não é mesmo? — Esticou a mão e agarrou o braço de Vance. — Os senhores deveriam ter-me deixado fugir. — Seus olhos assumiram uma expressão selvagem e olhou apressadamente na direção da porta, como se temesse algum perigo iminente partido do saguão. — Faça-me prender, Sr. Vance! Faça o que quiser mas não me peça para permanecer aqui... — Sua voz se tornara compadecidamente apelativa.

Vance afastou-se dele.

— Controle-se, doutor, — disse em tom casual. — Nada lhe vai acontecer... Vá para o seu quarto e permaneça lá até amanhã. Nós cuidaremos do aspecto criminal do caso.

— Mas os Penhores não têm qualquer idéia sobre quem cometeu essa coisa horrível — protestou Bliss.

— Oh, mas saberemos, não tenha dúvida. — A afirmação serena de Vance pareceu exercer um efeito calmante sobre ele. — Somente nos é necessário aguardar um pouco. Até agora não temos provas suficiente para efetuar uma prisão. Mas, como o principal objetivo do criminoso falhou, é quase inevitável que tente um outro movimento e, quando o fizer, teremos talvez oportunidade de colher a necessária prova contra ele.

— Mas suponha que ele exerça uma ação direta — contra mim? — retrucou Bliss. — O fato de que tenha falhado em me envolver pode levá-lo a medidas mais desesperadas.

— Dificilmente eu pensaria assim — tornou Vance. — Mas, se alguma coisa acontecer, o senhor me encontrará nesse telefone. — Vance escreveu o número de seu telefone particular em um pedaço de papel e entregou-o a Bliss.

O doutor pegou o cartão ansiosamente, olhou-o e o colocou no bolso.

— Vou subir agora — anunciou e se dirigiu abstratamente para fora da sala.

— Você tem certeza, Vance, — perguntou Markham preocupado — de que não estamos submetendo o Dr. Bliss a um risco desnecessário?

— Absoluta. — Vance se pusera pensativo. — De qualquer modo, é um jogo delicado e não há outra maneira de agir. — Foi até à janela. — Não sei... — murmurou ele, acrescentando após alguns momentos: — Sargento, eu gostaria de falar com Salveter. E não há necessidade de que Hennessey permaneça lá em cima. Dispense-o.

Heath, confuso e aborrecido, foi até o saguão e chamou Hennessey.

Quando Salveter entrou na sala Vance nem sequer olhou em sua direção.

— Sr. Salveter, — disse ele, olhando as árvores empoeiradas do Parque Gramercy — se eu fosse o senhor fecharia a porta do meu quarto hoje de noite... E não escreva mais cartas — acrescentou ele. — Afaste-se também do museu.

Salveter pareceu assustado com essas recomendações. Estudou Vance durante algum tempo e em seguida contraiu os maxilares.

— Se alguém começar com coisas por aqui... — começou ele com uma agressividade quase feroz.

— Oh, muito bem — suspirou Vance. — Mas não projete sua personalidade com tanta intensidade. Estou fatigado.

Salveter, após um momento de hesitação, voltou-se e saiu da sala. Vance foi até à mesa do centro e apoiou-se pesadamente nela.

— Agora, uma palavra com Hani e podemos partir. Heath deu de ombros resignadamente e foi até à porta.

— Ei, Snitkin, traz aqui aquele Ali Babá de quimono.

Snitkin apressou-se a subir as escadas e pouco depois o egípcio se encontrava à nossa frente, sereno e alheado.

— Hani, — falou Vance, com uma impressividade completamente fora do comum — você fará bem em vigiar esta casa hoje à noite.

— Sim, effendi. Compreendo perfeitamente. O espírito de Sakhmet pode voltar e completar a tarefa que ela começou...

— Exatamente. — Vance deu um sorriso cansado. — Sua felina dama atrapalhou as coisas esta manhã e, provavelmente, voltará para acertar umas pontas que estão soltas... Vigie para ela, compreende?

Hani inclinou a cabeça.

— Sim, effendi. Nós nos compreendemos.

— O que é positivamente formidável. Incidentalmente, Hani, qual é o número da casa do Sr. Scarlett em Irving Place?

— Noventa e seis. — O egípcio revelou considerável interesse na pergunta de Vance.

— Isto é tudo... E dê lembranças minhas a sua deusa de cabeça de leão.

— Talvez seja Anúbis quem voltará, effendi — disse Hani sepulcralmente antes de deixar-nos.

Vance olhou Markham enigmaticamente.

— O cenário está pronto e a cortina não tardará a subir... Vamos embora. Não há mais nada que possamos fazer aqui e estou louco de fome.

Quando passávamos pela Rua Vinte, Vance nos conduziu na direção de Irving Place.

— Creio que devemos a Scarlett deixá-lo saber em que pé estão as coisas — explicou, negligentemente. — Foi ele quem nos comunicou o infausto acontecimento e, provavelmente, está impaciente e inquieto. Ele mora logo aqui, dobrando a esquina.

Markham encarou Vance inquisitivamente, mas não fez comentários. Heath, entretanto, resmungou impacientemente.

— Parece-me que estamos tratando de tudo, menos de esclarecer este crime — protestou ele.

— Scarlett é um sujeito ladino. Pode ter algumas idéias — retrucou Vance.

— Eu também tenho idéias — declarou o sargento maliciosamente. — Mas o que elas adiantam? Se eu estivesse à frente deste caso teria prendido todos da casa, posto cada um em uma cela e deixado que suassem. Na ocasião em que conseguissem dar início ao processo de habeas-corpus eu já saberia muito mais do que sei agora.

— Duvido, sargento — falou Vance suavemente. — Creio que o senhor saberia ainda menos... Ah, chegamos ao noventa e seis.

Vance dirigiu-se para a entrada colonial de uma velha casa de tijolos a umas poucas portas da Rua Vinte e tocou a campainha.

A habitação de Scarlett — duas peças ligadas em arco — situava-se no segundo andar, de frente. Era mobiliada em estilo Jacobino, discreto mas confortável, e caracterizava o solteirão sério. Scarlett abrira a porta atendendo à campainha e nos convidou a entrar com a polidez rígida do anfitrião britânico. Pareceu aliviado em nos ver.

— Tenho estado em assustadora confusão nestas últimas horas — comentou ele. — Procurando analisar este caso. Estava a ponto de ir correndo até o museu para ver que progresso os cavalheiros conseguiram.

— Progredimos um bocado — informou Vance — mas não foi um progresso de natureza tangível. Decidimos deixar as coisas correrem um pouco, prevendo que o culpado continuará a execução de sua trama e, deste modo, nos forneça algumas provas definitivas.

— Ah! — Scarlett tirou o cachimbo da boca, lentamente, e olhou Vance com atenção. — Essa observação me faz pensar que talvez você e eu tenhamos chegado à mesma conclusão. Não há razão alguma para que Kyle tenha sido morto, a não ser que sua morte levasse a algo mais...

— A que, por exemplo?

— Por Jó, eu gostaria de saber! — Scarlett ajeitou o fumo do cachimbo com o dedo e acendeu-o com um fósforo.

— Há várias explicações possíveis.

— Meu Deus! É mesmo?... Várias? Bem, bem! Poderia você esboçá-las para nós? Estamos tremendamente interessados, sabe?

— Oh, espere aí, Vance! De fato, como o velho Harry, não quero acusar ninguém — protestou Scarlett. — Hani, entretanto, não gosta muito do Dr. Bliss...

— Muito obrigado. Surpreendente como possa parecer, eu mesmo notei esse fato hoje pela manhã. Será que você não tem um outro raio de sol para lançar em nossa direção?

— Creio que Salveter está perdidamente enamorado de Meryt-Amen.

— Deixe isso para lá!

Vance tirou da cigarreira o Régie remanescente e bateu-o. Acendeu-o deliberadamente e, após uma tragada profunda, ergueu os olhos seriamente.

— Sim, Scarlett, — falou, lentamente — é muito possível que você e eu tenhamos chegado à mesma conclusão. Mas, naturalmente, não podemos fazer nenhum movimento até que tenhamos algo definitivo em que basear nossas hipóteses... Por falar nisso, o Dr. Bliss tentou deixar o país esta tarde. Se não fosse um dos homens do sargento Heath ele provavelmente estaria agora em viagem para Montreal.

Esperei que Scarlett se mostrasse surpreendido com esta notícia, mas, ao invés, limitou-se a acenar com a cabeça afirmativamente.

— Não me surpreendo. Ele está possivelmente em pânico. Não posso culpá-lo. As coisas parecem pretas para ele.

— Scarlett deu uma puxada no cachimbo e olhou de soslaio para Vance. — Quanto mais penso neste caso, mais fico com a impressão de que, afinal de contas...

— Oh, está bem — cortou Vance. — Mas não estamos ansiosos por possibilidades. O que queremos são fatos específicos.

— Temo que isso seja difícil. — Scarlett ficou pensativo.

— Tem havido demasiada inteligência...

— Ah! Este é o ponto — demasiada inteligência. Exatamente! Aí está a fraqueza do crime. E estou contando esperançosamente na abundantia cautelae. — Vance sorriu. — Realmente, sabe Scarlett, não sou tão estúpido quanto tenho parecido até agora. Meu objetivo em fazer parecer ridículas as minhas percepções tem sido o de atrair o criminoso a novos esforços. Mais cedo ou mais tarde ele errará a mão.

Scarlett não respondeu durante algum tempo. Finalmente falou.

— Aprecio sua confiança, Vance. Você é admirável. Na minha opinião, porém, você nunca será capaz de condenar o assassino.

— Talvez você tenha razão — admitiu Vance. — Entretanto, estou-lhe fazendo um apelo para que mantenha a situação de olho... Aviso-lhe, no entanto, que tenha cuidado. O assassino de Kyle é um sujeito implacável.

— Não é preciso que você me diga isso. — Scarlett levantou-se e, encaminhando-se à lareira, apoiou-se na moldura de mármore. — Eu poderia escrever volumes a seu respeito.

— Tenho certeza de que você poderia fazê-lo. — Para minha estupefação Vance aceitou a assombrosa declaração do outro sem a menor demonstração de surpresa. — Mas não há necessidade disso agora. — Vance, também, se pôs de pé e, encaminhando-se para a porta, deu um adeus casual a Scarlett. — Nós já vamos. Apenas pensei que lhe deveríamos dar uma notícia sobre o pé em que se encontram as coisas e adverti-lo para que tenha cuidado.

— Muita bondade sua, Vance. O fato é que estou terrivelmente preocupado — nervoso como um gato persa... Gostaria de poder trabalhar, mas todo o meu material está no museu. Sei que não vou dormir nem um pouco hoje à noite.

— Bem, até logo! — Vance virou a maçaneta da porta.

— Escute aqui, Vance! — Scarlett adiantou-se. — Você por acaso, vai voltar hoje à casa de Bliss?

— Não. Nada temos que fazer lá durante algum tempo.

— A voz de Vance era calma e arrastada, como se estivesse enfadado. — Por que quer saber?

Scarlett tornou a mexer no cachimbo como se movido por súbita agitação.

— Por nada. — Olhou para Vance com o cenho contraído. — Sem qualquer razão. Estou ansioso a respeito da situação. Não há como saber-se o que vai acontecer.

— O que quer que aconteça, Scarlett, — disse Vance, de certo modo abruptamente — a Sra. Bliss estará inteiramente a salvo. Creio que poderemos confiar em Hani para que assim seja.

— Sim... é claro — murmurou o homem. — Cão fiel, Hani... E quem desejaria fazer mal a Meryt?

— Quem, de fato? — Vance, agora, estava de pé no saguão, mantendo a porta aberta para que passássemos Markham, Heath e eu.

Scarlett, animado por algum instinto de hospitalidade, adiantou-se.

— Que pena que já se vão — disse, perfunctoriamente.

— Se puder ajudá-los em alguma coisa... Quer dizer que encerraram sua investigação na casa?

— Pelo momento, pelo menos. — Vance fez uma pausa Nós passamos por ele e ficamos esperando no topo das escadas. — Não estamos encarando uma volta ao estabelecimento de Bliss até que algo de novo venha à luz.

— Muito bem. — Scarlett sacudiu a cabeça afirmativamente com curiosa significação. — Se eu souber de alguma coisa telefono para você.

Saímos para Irving Place e Vance fez sinal para um táxi que passava.

— Comida... alimentação — resmungou ele. — Vejamos... O Brevoort não fica muito longe...

Tomamos um excelente chá no velho Brevoort, na parte baixa da Quinta Avenida e, pouco depois, Heath seguiu para o Departamento de Homicídios a fim de preparar seu relatório e pacificar os repórteres dos jornais que iriam cair em enxame em cima dele no momento que o caso fosse registrado.

— É melhor que o senhor fique de prontidão, sargento, — sugeriu Vance — pois estou prevendo uma série de acontecimentos e nada podemos fazer sem o senhor.

— Estarei no gabinete até às dez horas da noite — disse-lhe Heath mal-humoradamente. — Depois dessa hora o Sr. Markham sabe onde me encontrar. Mas quero dizer-lhe que não estou satisfeito.

— Nós também não — confessou alegremente. Markham telefonou para Swacker1 para que fechasse o escritório e fosse para casa. Em seguida nós três nos dirigimos para Longue Vue, a fim de jantarmos. Vance recusou-se a discutir o caso e insistiu em falar sobre Arturo Toscanini, o novo maestro da Orquestra Filarmônica.

 

 

 

(1) Swacker era um jovem brilhante e enérgico, secretário de Markham.

 


— Um superestimado Kapellmeister — reclamou ele enquanto provava seu canard Molière. — A mim me parece temperamentalmente incapaz de sentir os ideais clássicos nas grandes obras sinfônicas de Brahms e de Beethoven... O purê de tomate está excelente neste molho, mas o vinho de Madeira está muito ácido. A proibição, Markham, teve um efeito destruidor na comida deste país: ela praticamente acabou com a estética gastronômica... Mas, voltando a Toscanini. Estou positivamente surpreendido com os panegíricos com que a crítica o tem distinguido. Seus ideais secretos, estou inclinado a pensar, são Puccini, Giordano e Respighi; e nenhum homem, com tais ideais, deveria tentar interpretar os clássicos. Já o vi executar Brahms, Beethoven e Mozart, e todos eles, sob sua batuta, exudam um forte aroma italiano. Os americanos, porém, adoram-no. Os americanos, porém, não têm o sentido da beleza intelectual pura, das linhas clássicas arrebatadoras e da forma magistral. Eles adoram pianíssimos e fortíssimos profundamente contrastados, súbitas mudanças de tempo, saltitantes accelerandos e arrastados ritardandos. E Toscanini lhes dá tudo isso... Furtwängler, Walter, Klemperer, Mengelberger, Van Hoogstraatem — qualquer um destes condutores é, em minha opinião, superior a Toscanini quando se trata dos grandes clássicos germânicos.

— Você se importaria, Vance, — perguntou Markham irritadamente — em deixar de lado todas essas irrelevâncias e nos esboçar sua teoria sobre o caso Kyle?

— Eu me importaria muitíssimo — foi a resposta amável de Vance. — No entanto, após o Bar-le-Duc e Gervaise...

Na verdade já era quase meia-noite quando o assunto da tragédia foi novamente abordado. Tínhamos voltado ao apartamento de Vance após um longo passeio de carro pelo Parque Van Cortland; Markham e eu subíramos até o pequeno jardim-no terraço, a fim de apanharmos qualquer brisa que porventura soprasse ao longo da Rua Trinta e Oito, Leste. Currie havia preparado um delicioso ponche de champanha — a que os vienenses chamam de Bowl — contendo frutas frescas; permanecemos sentados sob o estrelado céu de verão, fumando e aguardando. "Aguardando", é a palavra correta, pois cada um de nós aguardava que algo de mau acontecesse.

Vance, apesar de todo o seu alheamento, estava intimamente tenso — posso dizer pelos seus movimentos restritos e vagarosos. Markham relutava em ir para casa — não estava absolutamente satisfeito com o rumo tomado pela investigação e esperava, como resultado dos prognósticos de Vance, que algo acontecesse para retirar o caso do esfumado reino das conjecturas e colocá-lo em bases mais sólidas sobre as quais fosse possível assentar uma ação mais definida.

Pouco depois da meia-noite Markham manteve uma longa palestra com Heath pelo telefone. Quando desligou deixou escapar um suspiro de desânimo.

— Nem quero pensar sobre o que os jornais da oposição dirão amanhã — observou ele sombriamente, enquanto cortava a ponta de um outro charuto. — Não chegamos exatamente à parte alguma nessa investigação...

— Oh, sim, chegamos. — Vance permanecia olhando a noite abafada. — Conseguimos um surpreendente progresso. O caso, podemos dizer, está encerrado, no que diz respeito à sua solução. Apenas aguardamos que o criminoso entre em pânico. No momento em que tal acontecer poderemos entrar em ação.

— Por que você tem que ser tão confusamente misterioso? — Markham estava de péssimo humor. — Você sempre emerge em rituais cabalísticos. A própria pitonisa de Delfos não era mais vaga ou obscura do que você. Se você acha que sabe quem matou Kyle, por que não nos diz?

— Não posso fazer isso. — Vance, também, estava mal-humorado. — Realmente, Markham, não estou procurando ser ilusório. Estou lutando por encontrar evidências tangíveis que dêem apoio a minhas teorias. Se esperarmos um pouco conseguiremos essas provas. — Olhou seriamente para Markham. — Há perigo, é claro. Algo imprevisto pode acontecer. Mas não há forma humana de impedir que tal aconteça. Qualquer passo que tomemos agora poderá terminar em tragédia. Já demos bastante corda para o criminoso; esperemos que ele se enforque...

Era exatamente meia-noite e vinte quando aconteceu aquilo por que Vance estava esperando. Estávamos sentados em silêncio, havia, talvez, uns dez minutos, quando Currie chegou ao jardim com um telefone portátil.

— Desculpe-me, senhor... — começou ele, mas, antes que pudesse continuar, Vance se pusera de pé e caminhava em sua direção.

— Ligue o telefone, Currie — determinou ele. — Responderei à chamada.

Vance pegou o aparelho e se encostou na porta francesa.

— Sim, sim... O que aconteceu? — Sua voz era baixa e ressonante. Escutou durante uns trinta segundos, com os olhos semicerrados. Em seguida limitou-se a dizer: — Iremos para aí imediatamente. — Devolveu o telefone a Currie.

Vance estava inquestionavelmente intrigado e permaneceu parado durante alguns momentos, a cabeça baixa, absorto em seus pensamentos.

— Não é o que eu esperava — falou, como se consigo mesmo. — Não se encaixa.

Pouco depois levantou a cabeça, como alguém subitamente atingido.

— Mas se encaixa! Claro que se encaixa! Era o que eu deveria ter esperado. — A despeito da descuidada posição de seu corpo seus olhos estavam animados. — Lógico! Tremendamente lógico!... Vamos, Markham, telefone para Heath... diga-lhe que nos encontre no museu tão depressa quanto lhe seja possível...

Markham havia-se levantado e olhava para Vance com expressão feroz.

— Quem estava ao telefone? — perguntou — E o que aconteceu?

— Por favor, fique tranqüilo, Markham — respondeu Vance calmamente. — Foi o Dr. Bliss quem falou comigo e, de acordo com sua histérica descrição, houve uma tentativa de assassinato em sua casa. Prometi-lhe que iríamos lá olhar...

Markham já arrebatara o telefone das mãos de Currie e estava pedindo nervosamente ligação para a casa de Heath.

 


XVII

 

 

A adaga de ouro

 

 


(Sábado, 14 de julho — 0:45 hora)

 

 

 

Tivemos que caminhar até à Quinta Avenida para encontrar um táxi àquela hora e, mesmo assim, passaram-se cinco minutos antes que aparecesse um vazio. O resultado é que vinte minutos haviam decorrido antes que entrássemos no Parque Gramercy e par assemos à porta da residência de Bliss.

Quando descíamos, surgiu um outro táxi contornando a esquina de Irving Place e quase bateu em nós quando seus freios foram subitamente acionados. A porta se abriu inteiramente antes que o carro finalmente parasse e a volumosa figura do sargento Heath se projetou sobre a calçada. Heath morava na rua Onze, Leste, e tinha conseguido vestir-se e chegar ao museu quase simultaneamente conosco.

— Meu Deus, sargento! — saudou-o Vance. — Estamos sincronizados, sabe? Chegamos ao mesmo destino, ao mesmo tempo, mas vindo de direções opostas. Idéia encantadora.

Heath recebeu a algo enigmática saudação com um grunhido.

— Por que toda a excitação? — perguntou ele a Markham. — O senhor não me disse muita coisa pelo telefone.

— Houve uma tentativa contra a vida do Dr. Bliss — informou-o Markham.

Heath assobiou suavemente.

— Certamente eu não esperava por essa, senhor.

— Nem o Sr. Vance. — A réplica pretendia ser um sarcasmo.

Subimos os degraus de pedra que conduziam ao vestíbulo, mas antes que pudéssemos tocar a campainha Brush abriu a porta. O mordomo levou o dedo indicador aos lábios e, inclinando-se misteriosamente para a frente, disse num sussurro: — O Dr. Bliss pediu que os cavalheiros entrassem em silêncio, de modo a não perturbar os outros moradores da casa... Ele está em seu quarto, esperando pelos senhores.

Brush vestia um robe de flanela e chinelas macias, mas, apesar do abafado da noite, tremia visivelmente. Seu rosto, sempre pálido, parecia agora o de um fantasma, na obscuridade.

Brush passou para dentro do saguão e fechou a porta cautelosamente com mãos trêmulas. Repentinamente, Vance aproximou-se dele e, agarrando-o pelo braço, fê-lo voltar-se.

— O que sabe você sobre o que ocorreu aqui hoje à noite — indagou em voz baixa.

Os olhos do mordomo se arregalaram e sua boca caiu.

— Nada, nada — conseguiu balbuciar.

— Essa agora! Então por que você está tão assustado? — Vance continuava a mantê-lo pelo braço.

— Estou com medo deste lugar — foi a melancólica resposta. — Quero ir embora daqui. Estranhas coisas estão acontecendo...

— De fato. Mas não se assuste; você estará em condições de procurar outras acomodações muito breve.

— Fico muito satisfeito com essa informação, senhor. — O homem parecia grandemente aliviado. — Mas o que aconteceu esta noite, senhor?

— Se você não sabe o que aconteceu, como se encontra aqui a essa hora — retrucou Vance — esperando pela nossa chegada e agindo como o vilão de um melodrama?

— Disseram-me para vir esperá-los, senhor. O Dr. Bliss desceu até o meu quarto...

— Onde é o seu quarto, Brush?

— No andar de baixo, na parte de trás, junto da cozinha.

— Muito bem. Prossiga.

— Bem, senhor, o Dr. Bliss veio a meu quarto há cerca de meia hora. Parecia muito preocupado e assustado... se o senhor entende o que quero dizer. Ele me disse que esperasse pelos cavalheiros na porta da frente — que os senhores chegariam a qualquer minuto. O doutor me instruiu para que não fizesse barulho e também que os avisasse...

— Ele subiu em seguida?

— Imediatamente, senhor.

— Onde é o quarto do Dr. Bliss?

— É a porta de trás do segundo andar, exatamente no topo das escadas. A porta da frente é do quarto de dormir da senhora.

Vance soltou o braço do homem.

— Você ouviu esta noite alguma perturbação?

— Nenhuma, senhor. Tudo esteve em calma. Todos foram cedo para seus quartos e eu mesmo fui para a cama antes das onze horas.

— Você pode ir para a cama agora — informou Vance.

— Sim, senhor. — Brush retirou-se rapidamente e desapareceu através da porta dos fundos do saguão.

Vance fez um gesto para que o seguíssemos e liderou o caminho escadas acima. Uma pequena lâmpada elétrica encontrava-se acesa no saguão de cima, mas isso não seria necessário para que achássemos o quarto do Dr. Bliss, pois sua porta se encontrava aberta alguns centímetros e um raio de luz saía em diagonal por ela, projetando-se no chão.

Sem bater, Vance empurrou a porta e entrou no quarto. Bliss estava rigidamente sentado em uma cadeira reta no canto oposto, ligeiramente inclinado para a frente, os olhos fixos na porta. Em sua mão aparecia um revólver de aparência brutal. À nossa entrada, pôs-se de pé, enquanto, simultaneamente, erguia a arma.

— Calma, calma, doutor! — Vance sorriu enigmaticamente. — Ponha de lado as armas de fogo e recite um poema lastimoso.

Bliss emitiu um audível suspiro de alívio e colocou a arma em uma mesinha a seu lado.

— Obrigado por ter vindo, Sr. Vance — disse ele em voz tensa. — E o senhor também, Sr. Markham. — Tomou conhecimento de minha presença e da de Heath com uma leve e desajeitada inclinação. — Aconteceu o que o senhor previu... Há um criminoso nesta casa!

— Bem, bem! Dificilmente pode-se dar a isso o nome de novidade. (Eu não podia compreender a atitude de Vance.) — Já sabemos disso desde as onze horas da manhã.

Bliss, também, estava perplexo e, imagino, algo despeitado pela maneira negligente de Vance, pois dirigiu-se com passos duros para a cama e, apontando para a cabeceira, observou com irritação: — E aqui está a prova!

A cama era uma peça colonial antiga, de mogno polido, com uma grande cabeceira curva se erguendo a, pelo menos, 1,20 m acima do colchão. Encontrava-se encostada à parede da esquerda, a um ângulo reto com a porta.

O objeto para o qual Bliss apontava com um dedo trêmulo era uma antiga adaga egípcia, com cerca de 25 centímetros de comprimento, cuja lâmina estava cravada na cabeceira da cama, logo acima do travesseiro. A direção de penetração encontrava-se em Unha com a porta.

Todos nós avançamos e permanecemos por alguns momentos contemplando aquela visão sinistra. Indubitavelmente a adaga fora arremessada com grande força, para ter entrado tão firmemente no duro mogno; era também óbvio que, se alguém estivesse deitado sobre o travesseiro na ocasião em que a adaga fora lançada, teria recebido todo o peso do golpe na garganta.

Vance estudou a posição da adaga, avaliando o seu alinhamento e o ângulo formado com a porta e, em seguida, esticou a mão para pegar a arma. Heath interceptou-lhe o movimento.

— Use seu lenço, Sr. Vance — advertiu ele. — Deve conter impressões digitais...

— Oh, não, sargento, não haverá impressões. — Vance falou com impressionante ar de conhecimento. — Quem quer que tenha lançado aquela adaga terá sido suficientemente cuidadoso para evitar tais toques de incriminação... — Retirou a lâmina com considerável dificuldade da cabeceira da cama e levou-a até à lâmpada da mesinha de luz.

 

 

 

 

 

 


Era uma linda e interessante peça de artesanato. O punho estava ornamentado com ouro granulado e estreitas faixas de esmalte e de pedras semipreciosas — ametistas, turquesas, granadas, cornalinas e pequeninas lascas de obsídio, calcedônia e feldspato. No cabo se achava sobreposto um nó de cristal de rocha e no punho destacava-se um desenho em arabesco de fio de ouro. A lâmina era de ouro endurecido com pequenos buracos rasos centrais terminando em uma decoração em palma gravada1.

 

 

 

(1) Uma adaga similar foi encontrada sobre a múmia real no túmulo de Tut-ankn-Amun pelo falecido Lord Carnavon e Howard Carter, e se encontra agora no Museu do Cairo.

 


— Fim da décima oitava dinastia — murmurou Vance, passando o dedo na adaga e estudando-lhe os desenhos. — linda, mas decadente. A grosseira simplicidade da arte egípcia inicial foi assustadoramente à garra durante a opulenta renascença que se seguiu à invasão dos hyksos... Dr. Bliss como essa bugiganga veio a ser sua?

Bliss sentia-se embaraçado e, quando respondeu, seu tom de voz era apologético e sem jeito.

— O fato é, Sr. Vance, que eu contrabandeei essa adaga para fora do Egito. Foi um achado inesperado e incomum e puramente acidental. É uma relíquia valiosa e fiquei com medo de que o governo egípcio a reclamasse.

— Bem posso imaginar que gostariam de reter essa peça em seu próprio país. — Vance jogou a adaga em cima da mesa. — E onde o senhor, normalmente, conserva essa arma?

— Sob alguns papéis em uma das gavetas da mesa de meu escritório — respondeu Bliss em seguida. — Era um item de caráter bastante pessoal e julguei que seria melhor não o arrolar no museu.

— Muito discreto... Quem, além do senhor, sabia de sua existência?

— Minha mulher, é claro e... — Bliss interrompeu-se subitamente e uma luz peculiar surgiu-lhe nos olhos.

— Vamos, vamos, doutor. — Vance falava aborrecido. — Isto não adianta. — Termine sua sentença.

— Já terminei. Minha mulher é a única pessoa a quem confiei o fato.

Vance aceitou a declaração sem qualquer outro argumento.

— Ainda assim — disse ele — qualquer pessoa poderia ter descoberto a arma, não?

Bliss concordou com a cabeça, vagarosamente.

— Desde que tenha andado remexendo em minha mesa.

— Exatamente. Quando, pela última vez, o senhor viu essa adaga na gaveta de sua mesa?

— Esta manhã. Estava procurando papel almaço em que preparar o meu relatório para o pobre Kyle...

— E quem, de seu conhecimento, esteve em seu escritório depois que saímos de casa esta tarde?

Bliss meditou alguns momentos e, logo em seguida, uma expressão de surpresa desceu sobre seu rosto.

— Prefiro não dizer.

— Nada podemos fazer para ajudá-lo, doutor, se o senhor tomar esta atitude — observou Vance severamente. — Foi o Sr. Salveter quem esteve em seu escritório?

Bliss fez uma pausa de alguns segundos. Em seguida contraiu os maxilares.

— Sim! — A palavra praticamente explodiu em seus lábios. — Mandei-o a meu escritório hoje à noite depois do jantar, a fim de me trazer um livro de memorando...

— Onde o senhor guarda esse livro?

— Na mesa. — Essa informação foi dada relutantemente. — Mas, qualquer tentativa de ligar Salveter...

— Neste momento não estamos tentando ligar ninguém com este episódio — interrompeu Vance. — Estamos unicamente tentando acumular todas as informações possíveis... Entretanto, o senhor deve admitir, doutor, — acrescentou Vance — que o jovem Sr. Salveter está — como devo dizer? — bastante interessado na Sra. Bliss...

— O que é isso? — Bliss retesou-se e olhou para Vance ferozmente. — Como ousa o senhor sugerir uma coisa dessas? Minha esposa, senhor...

— Ninguém criticou a Sra. Bliss — falou Vance delicadamente. — Além disso, uma hora da manhã é dificilmente a hora apropriada para pirotecnias de indignação.

Bliss afundou em sua cadeira e cobriu o rosto com as mãos.

— Talvez seja verdade — concedeu ele com voz de desespero. — Sou muito velho para ela... vivo muito absorvido por meu trabalho... Mas isso não significa que o rapaz tentaria matar-me.

— Talvez não — falou Vance indiferentemente. — Mas quem, então, o senhor suspeita que tenha tentado seccionar sua carótida?

— Não sei... não sei. — A voz do homem elevou-se lamentavelmente. Neste momento abriu-se a porta que dava acesso ao apartamento da frente e a Sra. Bliss surgiu no portal, um longo robe solto de linhas orientais lançado em seus ombros. Estava perfeitamente calma e os olhos se mantinham firmes, ainda que um tanto brilhantes, ao contemplar a cena à sua frente.

— Por que os senhores, cavalheiros, voltaram a esta hora? — quis saber ela imperiosamente.

— Foi feita uma tentativa contra a vida de seu marido — respondeu Markham sombriamente — e ele nos telefonou...

— Uma tentativa contra sua vida? Impossível! — A Sra. Bliss falou com exagerada ênfase e seu rosto tornou-se perceptivelmente pálido. Em seguida encaminhou-se até Bliss e colocou seus braços em torno dos ombros do marido em uma atitude de afeiçoada proteção. Seus olhos cintilavam ao erguê-los na direção de Vance. — Que absurdo é esse? Quem quererá tirar a vida de meu marido?

— Quem, na verdade? — Vance enfrentou calmamente o olhar da mulher. — Se nós o soubéssemos, poderíamos pelo menos prender essa pessoa por ataque com uma arma mortífera... creio que é esta a expressão.

— Uma arma mortífera? — A moça franziu o cenho, em óbvia tensão. — Oh, contem-me o que aconteceu!

Vance apontou para a adaga em cima da mesa.

— Tudo o que sabemos até agora é que aquela adaga que ali está encontrava-se cravada na cabeceira da cama quando aqui chegamos. Estávamos a ponto de pedir a seu marido um relato completo do acontecimento quando a senhora apareceu — uma encantadora Nefret-íti — à porta... Talvez — prosseguiu, voltando-se para Bliss — o doutor, agora, nos conte todo o episódio.

— Há realmente pouco o que contar. — Bliss sentou-se e começou, nervosamente, a fazer vincos nas dobras de seu robe. — Vim para o meu quarto pouco depois do jantar e fui para a cama. Não podia dormir, porém, e me levantei. Foi então que Salveter passou pela minha porta em caminho lá para cima e eu lhe pedi que trouxesse o livro memorando do escritório — pensava que pudesse afastar de minha mente os horríveis eventos do dia...

— Um momento, doutor — interrompeu Vance. — Sua porta estava aberta?

— Sim. Eu a havia aberto quando me levantei, para obter um pouco mais de ar no quarto — a atmosfera estava abafada... Em seguida fiquei olhando umas anotações e observações antigas que eu fizera, relativas às escavações do último inverno. Não consegui, porém, fixar minha mente nessas anotações e, finalmente, fechei a porta, apaguei as luzes e tornei a me deitar na cama.

— Que horas deviam ser então?

— Eu diria que entre dez e meia e onze horas... Dormi intermitentemente até às doze horas — podia ver as horas naquele relógio com mostrador luminoso — depois do que me tornei incrivelmente inquieto. Pus-me a pensar no pobre Kely e não consegui dormir mais. No entanto, fisicamente, eu estava exausto e permanecia imóvel... Cerca de um quarto de hora depois da meia-noite — a casa estava em completo silêncio, o senhor compreende — pensei ter ouvido passos nas escadas...

— Que escadas, doutor?

— Não pude determinar. Os passos podiam estar vindo de cima, do terceiro andar, ou de baixo, do primeiro. Eram passos silenciosos e se eu não estivesse acordado completamente e alerta não os teria notado. Como eram nem eu podia ter certeza, ainda que, de uma feita, julgasse ter ouvido um estalido, como se uma tábua estivesse um pouco solta sob o tapete.

— E então?

— Continuei deitado, especulando de quem poderia tratar-se, pois sabia que os demais membros da casa tinham ido para a cama cedo. Não me preocupei exatamente com o ruído até que percebi que os passos se aproximaram de minha porta e aí se detiveram. Foi então que o seu aviso, Sr. Vance, me ocorreu em plena força e senti que algum perigo desconhecido me espreitava do portal. Admito que fiquei, temporariamente, paralisado pelo medo: podia sentir as raízes de meu cabelo formigando e comecei a suar frio.

Bliss tomou uma respiração profunda, como que para livrar-se de uma assustadora recordação.

— Então a porta começou a se abrir vagarosa e suavemente. A luz do saguão tinha sido apagada e o quarto aqui estava em quase completa escuridão, de modo que não consegui ver coisa alguma. Podia, no entanto, escutar a porta se abrindo e percebi uma débil corrente de ar que entrou do saguão...

Um tremor percorreu o corpo de Bliss e seus olhos brilharam desusadamente.

— Eu teria gritado, mas minha garganta parecia fechada e não queria pôr em perigo a Sra. Bliss, que poderia acorrer ao meu chamado e esbarrar involuntariamente em algo perigoso e mortal... O raio ofuscante de uma lanterna foi lançado diretamente em meus olhos e, instintivamente, me afastei para um dos lados da cama. Naquele momento ouvi um som cortante e rápido seguido de um estalo na madeira, perto de minha cabeça. Notei, imediatamente, passos que se afastavam em retirada...

— Em que direção? — tornou a interromper Vance.

— Não tenho certeza. Eram passos muito leves. Percebi, apenas, que eram furtivos...

— O que fez depois disso, doutor?

— Esperei alguns minutos. Então, cautelosamente, fechei a porta e acendi as luzes. Foi nesse momento que percebi o que havia feito o ruído na cabeceira da cama, pois a primeira coisa que vi foi a adaga. Percebi, também, que eu havia sido o alvo de um ataque criminoso.

Vance acenou afirmativamente com a cabeça e, pegando a adaga, sopesou-a na palma da mão.

— Sim — resmungou ele — tem uma lâmina pesada e poderia ter sido lançada com precisão mesmo por um amador... Uma forma peculiar de assassinato, no entanto — prosseguiu ele, quase que falando consigo mesmo. — Teria sido muito mais simples e muito mais seguro para o atacante ter-se arrastado até à cama e enfiado a arma entre as costelas da pretensa vítima... Muito peculiar! A não ser, é claro... — Interrompeu-se e olhou para a cama pensativamente. Dentro em pouco deu de ombros e encarou Bliss. — Após a descoberta da arma, creio, o senhor telefonou para mim.

— Em menos de cinco minutos. Fiquei ouvindo à porta durante um momento, em seguida desci e telefonei para o senhor. Depois disso acordei Brush e determinei-lhe que ficasse esperando pelo senhor na porta da frente. Voltei cá para cima — tinha-me armado com o revólver lá no escritório... e esperei sua chegada.

A Sra. Bliss permanecera observando o marido com um olhar de profunda ansiedade durante o seu relato.

— Ouvi o ruído da adaga encravando-se na cabeceira da cama — disse ela em voz baixa e atemorizada. — Minha cama se apoia contra o lado oposto da parede. O ruído me surpreendeu e me acordou, mas não prestei mais atenção e continuei dormindo. — Lançou a cabeça para trás e olhou para Vance. — Isto é vergonhoso e ultrajante! O senhor insiste em que meu marido permaneça nesta casa que abriga um criminoso — um assassino que está tramando contra ele — e nada faz para protegê-lo.

— Mas nada lhe aconteceu, Sra. Bliss — respondeu Vance com delicada seriedade. — Ele perdeu uma hora de sono, mas realmente isso não é uma grande catástrofe. Posso assegurar-lhe que nenhum outro perigo o atingirá. — Olhou diretamente nos olhos da mulher e senti conscientemente que alguma compreensão se estabeleceu entre eles naquele momento de mútuo escrutínio.

—- Espero que o senhor encontre o culpado — disse a Sra. Bliss com trágica e vagarosa ênfase. — Estou em condições de enfrentar a verdade... agora.

— A senhora é muito corajosa, madame — murmurou Vance. — Nesse meio tempo a melhor ajuda que nos poderá dar é retirar-se para o seu quarto e esperar lá até que a chamemos. Pode confiar em mim.

— Oh, sei que posso! — Havia um toque em sua voz. Em seguida ela se inclinou impulsivamente, tocou com os lábios a testa de Bliss e voltou para o seu quarto.

Os olhos de Vance a seguiram com uma expressão curiosa: não pude determinar se a lamentava ou a apreciava ou se se condoia dela. Depois que a porta se fechou sobre a Sra. Bliss, Vance se encaminhou até à mesa e tornou a colocar a adaga sobre ela.

— Estava pensando, doutor, — disse Vance — se o senhor não tranca ou fecha sua porta à noite?

— Sempre — foi a resposta imediata. — Fico nervoso se dormir com a porta destrancada.

— E esta noite?

— Isto é o que me intriga. — A testa de Bliss permanecia franzida em perplexidade. — Tenho certeza de que a fechei logo que cheguei ao meu quarto. Mas, como já lhe disse, levantei-me mais tarde e abri a porta para conseguir um pouco de ar. A única explicação que me ocorre é que esqueci de trancar a porta quando voltei para a cama. Claro que é possível, pois estava muito preocupado...

— A porta não poderia ter sido destrancada pelo lado de fora?

— Não. Tenho certeza de que não poderia. A chave estava na fechadura, exatamente como está agora.

— Não haverá impressões digitais na maçaneta do lado de fora? — inquiriu Heath. — O vidro cortado as imprimiria facilmente.

— Meu Deus, sargento! — Vance sacudiu a cabeça desanimadamente. — Quem concebeu esta trama sabe coisa melhor do que deixar seus cartões de visita onde quer que vá...

Bliss pôs-se de pé num salto.

— Acaba de me ocorrer uma idéia — exclamou ele. — Esta adaga tinha uma bainha de ouro e esmalte; se essa bainha não estiver agora na gaveta de minha mesa, talvez... talvez...

— Sim, sim. É verdade. — Vance concordou com a cabeça. — Percebo o seu ponto. A bainha poderia estar ainda de posse do frustrado assassino. Uma excelente prova... Sargento, o senhor se incomoda de acompanhar o Dr. Bliss até o escritório a fim de certificar-se se a bainha foi levada ou não juntamente com a adaga? Não há necessidade de se preocuparem se a bainha não estiver lá.

Heath encaminhou-se prontamente para o saguão, acompanhado por Bliss. Pudemos ouvi-los descer ao primeiro andar.

— O que acha disso, Vance? — perguntou Markham, quando ficamos sozinhos. — Parece-me muito sério.

— Estou concluindo muitas coisas desse fato — replicou Vance sombriamente. — E é muito sério. Mas, graças a Deus, o golpe não foi muito brilhante. Toda a coisa foi assustadoramente remendada.

— Sim, posso perceber este fato — concordou Markham. — Imagine alguém lançando uma faca a dois metros ou mais, quando poderia ter dado um golpe único em um ponto vital.

— Oh, sim? — Vance ergueu as sobrancelhas. — Eu não estava pensando na técnica de lançamento de facas. Há outros pontos neste caso ainda menos inteligentes. Não posso entendê-los absolutamente. Talvez demasiado pânico. De qualquer modo, talvez possamos obter uma chave definitiva da trama através da sugestão do doutor sobre a bainha.

Ouvimos que Bliss e Heath tornavam a subir as escadas.

— Bem, sumiu — informou-nos o sargento quando os dois entraram no quarto.

— Sem dúvida foi levada junto com a adaga — suplementou o Dr. Bliss.

— Suponhamos que eu chame alguns de meus rapazes e demos uma busca completa na casa — sugeriu Heath.

— Não será necessário, sargento — tornou Vance. — Tenho um pressentimento de que não será difícil encontrá-la.

Markham estava ficando preocupado com os termos vagos de Vance.

— Suponho — disse ele com um toque de sarcasmo — que você nos pode dizer exatamente onde se encontra a bainha.

— Sim, creio que sim. — Vance falou com meditativa seriedade. — No entanto, vou verificar minha teoria mais tarde... Nesse meio tempo — estava-se dirigindo a Bliss — ficar-lhe-ei imensamente agradecido se o senhor permanecer em seu quarto até que terminemos a investigação.

Bliss inclinou-se em aquiescência.

— Vamos até à sala de visitas por um momento — continuou Vance. — Há um trabalhinho a ser feito lá.

Vance se pôs a caminhar na direção do saguão, mas logo em seguida parou, como se movido por súbito impulso e, indo até à mesa, enfiou a adaga no bolso. Bliss fechou a porta atrás de nós e pudemos ouvir que a chave era girada na fechadura. Markham, Heath e eu começamos a descer as escadas, com Vance a nossa retaguarda.

Havíamos descido apenas uns poucos degraus quando fomos detidos por uma voz calma e serena vinda do andar de cima.

— Posso ajudar em alguma coisa, effendi?

A inesperada pergunta naquela casa calma e escura fez com que nos voltássemos instintivamente. No topo da escada que conduzia ao terceiro andar percebia-se a figura ensombrecida de Hani, seu kaftan solto destacando-se como uma sombra escura contra a palidamente iluminada parede de trás.

— Oh, muito! — respondeu Vance prazerosamente. — Estamos-nos dirigindo agora mesmo para a sala de visitas a fim de termos uma pequena reunião. Junte-se a nós, Hani.


XVIII

 

 

Uma luz no museu


(Sábado, 14 de julho — 1:15 hora)

 

 

Hani se reuniu a nós na sala de visitas. Permanecia calmo e dignificado, enquanto seus inescrutáveis olhos azuis repousavam impassivelmente em Vance, como os de um antigo sacerdote egípcio meditando ante o altar de Osíris.

— Como acontece que você esteja acordado e por aqui a esta hora? — perguntou Vance casualmente. — Outro ataque de gastrite?

— Não effendi. — Hani falou em um tom de voz comedido e vagaroso. — Levantei-me quando ouvi o senhor falando com Brush. Sempre durmo com a minha porta aberta.

— Talvez, então, você tenha ouvido Sakhmet, quando ela voltou hoje a esta casa.

— Sakhmet voltou? — O egípcio levantou a cabeça levemente, interessado.

— É uma forma de dizer... Ela, porém, é uma deusa muito ineficiente. Tornou a deitar tudo a perder.

— O senhor tem certeza de que não fez de propósito? — A despeito do tom arrastado da voz de Hani, havia nela uma nota significativa.

Vance o observou durante algum tempo. Em seguida, falou: — Você ouviu passos na escada ou ao longo do corredor do segundo andar pouco depois da meia-noite?

O homem sacudiu a cabeça vagarosamente.

— Não ouvi coisa alguma. Mas eu estava dormindo havia pelo menos uma hora, antes de sua chegada, e os sons de passos abafados no tapete espesso dificilmente me acordariam.

— O próprio Dr. Bliss — explicou Vance — desceu e telefonou para mim. Você também não o ouviu?

— Os primeiros sons que percebi foi quando os cavalheiros chegaram à porta da^ frente e falaram com Brush. Suas vozes, ou, talvez, a porta se abrindo, me acordaram. Mais tarde ouvi sons abafados no quarto do Dr. Bliss que é exatamente embaixo do meu. Não pude, porém, distinguir nada do que foi dito.

— É claro que você não percebeu que alguém apagou a luz do saguão do segundo andar por volta da meia-noite.

— Se eu não estivesse dormindo, certamente que o teria notado, já que a luz ilumina fracamente meu quarto lá em cima. Quando acordei, no entanto, a luz estava acesa como de costume. — Hani franziu o cenho levemente. — Quem teria apagado a luz do saguão a uma tal hora?

— Não sei... — Vance não tirou os olhos de cima do egípcio. — O Dr. Bliss acaba de nos dizer que foi alguém com desígnios sobre sua vida.

— Ah! — A exclamação foi como um suspiro de alívio. — Mas a tentativa, suponho, não obteve êxito.

— Não. Foi um fiasco. A técnica, eu diria, foi não somente estúpida como temerária.

— Não foi Sakhmet. — O pronunciamento de Hani foi quase sepulcral.

— Essa agora! — Vance sorriu ligeiramente. — Ela está ainda reclinada, então, para o lado dos grandes ventos oeste dos céus...1 Estou satisfeito em poder excluí-la e, uma vez que nenhuma força oculta se encontrava em ação, talvez você possa sugerir quem teria um motivo para cortar a garganta do doutor.

 

 

 

(1) Vance estava-se referindo jocosamente à declaração de Sakhmet no Capítulo de Abertura da Boca de Osíris Ani no Livro dos Mortos egípcio: (seguem-se alguns hieróglifos no texto original) "Eu sou a deusa Sakhmet e tenho meu assento ao lado do grande oeste (vento?) dos céus".

 


— Há muitas pessoas que não chorariam se ele deixasse esta vida; mas não conheço ninguém que tomasse nas próprias mãos a precipitação dessa partida.

Vance acendeu um Régie e sentou-se.

— Em que, Hani, você imaginou que nos poderia ser útil?

— Como o senhor, effendi, — veio a resposta delicada — esperei que algo desagradável e talvez violento acontecesse nesta casa esta noite. Quando ouvi o senhor chegar e se dirigir para o quarto do Dr. Bliss, ocorreu-me que talvez tivesse acontecido o evento que se aguardava. Assim, esperei no saguão de cima até que o senhor saísse.

— Muita consideração e muita reflexão de sua parte — murmurou Vance, dando algumas tragadas no cigarro. Após algum tempo, perguntou: — Se o Sr. Salveter tivesse saído de seu quarto hoje à noite, depois que você foi deitar-se, você teria tomado conhecimento do fato?

O egípcio hesitou e seus olhos se contraíram.

— Creio que sim. Seu quarto é exatamente em frente ao meu...

— Conheço a disposição das peças.

— Não parece provável que o Sr. Salveter pudesse ter destrancado sua porta e saído sem que eu me tivesse apercebido do fato.

— Mas é possível, não? — Vance mostrava-se insistente.

— Se você estivesse dormindo e o Sr. Salveter tivesse boas razões para não perturbá-lo, ele poderia ter saído com tanto cuidado que você continuaria a dormir sem tomar qualquer conhecimento do que estava acontecendo.

— Possível é — admitiu Hani sem muita vontade. — Mas tenho certeza de que ele não saiu do quarto depois que se recolheu.

— O seu desejo, temo, é o pai de sua certeza — suspirou Vance. — No entanto, não devemos ridicularizar esse ponto.

Hani observava Vance com decrescente interesse.

— O Dr. Bliss sugeriu que o Sr. Salveter saiu do quarto esta noite?

— Não, pelo contrário — assegurou-lhe Vance. — O doutor declarou enfaticamente que qualquer tentativa para vincular o Sr. Salveter com os passos furtivos do lado de fora de sua porta à meia-noite seria um grave erro.

— O Dr. Bliss está inteiramente certo — declarou Hani.

— Mesmo assim, Hani, o doutor insistiu que um assassino em potencial andava vagando pela casa. Quem mais poderia ser?

— Não posso imaginar. — Hani parecia quase indiferente.

— Você não acredita que possa ter sido a Sra. Bliss?

— Nunca! — O tom do homem se tornara subitamente animado. — Meryt-Amen não teria razão para ir até o saguão. Ela tem acesso ao quarto do marido através de uma porta de comunicação...

— Foi o que observei há uns momentos — ela veio se reunir a nós no quarto do doutor. E posso-lhe dizer, Hani, que ela está mais ansiosa do que nós em descobrir a pessoa que tentou contra a vida de seu marido.

— Ansiosa... e triste, effendi. — Uma nova nota surgiu na voz de Hani. — Ela ainda não entendeu as coisas que aconteceram aqui hoje. Quando entender...

— Não vamos agora especular ao longo dessas linhas — cortou Vance bruscamente. Meteu a mão no bolso e dele retirou a adaga. — Já viu isto aqui alguma vez? — perguntou, mantendo o objeto na direção do egípcio.

Os olhos do homem se arregalaram ao fitar o objeto brilhante e ornamentado. A princípio pareceu fascinado, mas logo em seguida seu rosto sombreou-se e os músculos faciais passaram a contrair-se espasmodicamente. Uma surda raiva se apossara dele.

— De onde veio a adaga faraônica? — perguntou ele, esforçando-se por controlar sua emoção.

— Foi trazida do Egito pelo Dr. Bliss — informou Vance. Hani pegou a adaga e a manteve reverentemente sob a luz.

— Só poderia ter vindo da tumba de Ai. Aqui no punho de cristal está fracamente gravado o símbolo real. Observem: Kheper-kheperu-Re Iry-Maët...

— Sim, sim. O último faraó da décima oitava dinastia. O doutor encontrou a adaga durante suas escavações no Vale dos Reis. — Vance estava observando Hani atentamente. — Você tem certeza de que nunca viu este objeto antes?

Hani empertigou-se orgulhosamente.

— Se eu tivesse visto teria informado ao meu governo. Este objeto não estaria mais em mãos de um violador estrangeiro, mas sim no país ao qual pertence, cuidado por mãos carinhosas no Cairo... O Dr. Bliss fez muito bem em mantê-lo escondido.

Havia em sua voz azedo ódio, mas de repente suas maneiras se modificaram.

— O senhor me permite perguntar-lhe quando, pela primeira vez, viu esta adaga real?

— Há uns minutos — respondeu Vance. — Estava fincada na cabeceira da cama do doutor, exatamente por trás do lugar onde sua cabeça estivera um segundo antes.

O olhar de Hani passou por Vance, na direção de algum ponto distante e seus olhos se tornaram astutamente pensativos.

— Esta adaga não tinha uma bainha? — perguntou.

— Oh, sim. — Uma centelha perpassou pelo canto dos olhos de Vance. — De ouro e esmalte, ainda que eu não a tenha visto. O fato é, Hani, que estamos tremendamente interessados na bainha. Ela desapareceu... jaz perdida em algum lugar por aí. Vamos fazer uma busca a sua procura daqui a pouco.

Hani acenou a cabeça compreensivamente.

— E se o senhor a encontrar, tem certeza de que ficará sabendo mais do que sabe até agora?

— Será possível, pelo menos, verificar minhas suspeitas.

— A bainha será um objeto fácil de esconder com segurança — lembrou Hani.

— De fato não prevejo qualquer dificuldade em pôr minhas mãos nela. — Vance levantou-se e ficou na frente do homem. — Talvez você possa sugerir onde poderemos começar nossa busca, não?

— Não, effendi — respondeu Hani, depois de perceptível hesitação. — Não neste momento. Preciso de tempo para pensar a este respeito.

— Muito bem. Suponhamos que vá para o seu quarto e se entregue a alguma concentração lamaica. Você não está ajudando em nada.

Hani devolveu a adaga e voltou-se na direção do saguão.

— E tenha a bondade — pediu Vance — de bater à porta do Sr. Salveter e dizer-lhe que queremos vê-lo imediatamente.

Hani inclinou-se e desapareceu.

— Não gosto desse pássaro — resmungou Heath, quando o egípcio se encontrava fora do alcance da voz. — É muito escorregadio e sabe de alguma coisa que não quer dizer. Gostaria de soltar meus rapazes em cima dele com um pedaço de mangueira de borracha — eles o fariam falar... Não me surpreenderia, Sr. Vance, se tivesse sido ele quem lançou a adaga. O senhor observou a maneira pela qual a segurou, com a ponta voltada para os dedos? Exatamente como os atiradores de facas nos vaudevilles.

— Oh, ele poderia ter estado descuidadamente, pensando na traquéia do Dr. Bliss — concedeu Vance. — No entanto, o episódio da adaga não me preocupa nem a metade de algo que não aconteceu esta noite.

— Bem, a mim me parece que aconteceu bastante — retorquiu Heath.

Markham encarou Vance inquisitivamente.

— O que você tem em mente? — perguntou.

— O quadro que nos foi apresentado esta noite, estava inacabado. Pude perceber ainda as bases da pintura. E não houve vernissage. A tela precisava de uma outra forma. A linha geradora não estava completa...

Nesse momento pudemos perceber passadas do lado de fora. Salveter, com um amassado robe por cima do pijama, piscou ao se defrontar com as luzes da sala de visitas. Parecia estar apenas meio acordado, e, quando suas pupilas se acostumaram à claridade, correu os olhos por nós quatro e, depois, olhou o relógio em cima da lareira.

— O que é agora? — perguntou. — O que aconteceu? — Parecia não só surpreendido como ansioso.

— O Dr. Bliss me telefonou informando de que alguém tentara matá-lo — explicou Vance. — Viemos correndo. Sabe alguma coisa a respeito?

— Bom Deus, não! — Salveter sentou-se pesadamente em uma cadeira perto da porta. — Alguém tentou matar o doutor? Quando?... Como? — Procurava algo nervosamente em seus bolsos e Vance, interpretando-lhe corretamente o gesto, ofereceu-lhe sua cigarreira. Salveter acendeu um Régie nervosamente e deu algumas tragadas profundas.

— Pouco depois da meia-noite — respondeu Vance. — Mas a tentativa falhou sombriamente. — Atirou a adaga no colo de Salveter. — Conhece essa bugiganga?

O outro estudou a arma durante alguns segundos, sem tocá-la. Uma crescente surpresa surgia em sua expressão e, cuidadosamente, pegou a adaga e a examinou.

— Nunca vi isso em minha vida — disse em tom horrorizado. — É um espécime arqueológico muito valioso... uma peça rara de museu. De onde, em nome dos céus, o senhor desenterrou isso? Certamente não pertence à coleção Bliss.

— Ah, pertence — assegurou-lhe Vance. — Um item privado por assim dizer. Sempre conservado escondido de olhos vulgares.

— Estou surpreendido. Aposto que o governo egípcio nada sabe a respeito. — Salveter levantou os olhos abruptamente. — Tem esta adaga alguma coisa que ver com a tentativa contra a vida do doutor?

— Aparentemente muita coisa — respondeu Vance negligentemente. — Encontramo-la cravada na cabeceira da cama do doutor, evidentemente lançada com toda a força contra o ponto onde sua cabeça deveria ter estado.

Salveter cerrou o cenho e contraiu os lábios.

— Olhe aqui, Sr. Vance, — declarou finalmente — não temos ilusionistas malaios nesta casa... A não ser — acrescentou ele como que tomado por uma segunda idéia — que Hani conheça a arte. Esses orientais são cheios de erudição e de maquinações.

— A representação desta noite não foi o que, de acordo com todos os relatos, poder-se-ia chamar de artística. Foi, de fato, um tanto amadorística. Tenho certeza de que um malaio poderia ter feito coisa muito melhor com o seu kris. Em primeiro lugar os passos e o abrir da porta pelo intruso foram completamente audíveis pelo Dr. Bliss; em segundo lugar houve uma suficiente demora entre a projeção do foco da lanterna e o lançamento da faça, permitindo ao doutor que removesse a cabeça da linha de arremesso...

Nesse momento Hani apareceu à porta tendo em mãos um pequeno objeto. Aproximando-se, lançou-o em cima da mesa de centro.

— Aqui, effendi, — disse em voz baixa — está a bainha da adaga real. Encontrei-a junto ao rodapé do saguão do segundo andar, próximo ao topo das escadas.

Vance mal olhou para o objeto.

— Muito obrigado — disse, em voz arrastada. — Eu sabia que você a encontraria, mas não pensei que fosse no saguão.

— Garanto-lhe...

— Oh, sem dúvida. — Vance olhou diretamente nos olhos de Hani e, dentro em pouco, um ligeiro sorriso aflorou em seu olhar. — Não é verdade, Hani, — perguntou deliberadamente — que achou a bainha exatamente onde eu e você acreditávamos que ela estivesse escondida?

O egípcio não respondeu imediatamente. Em seguida falou: — Contei-lhe minha história, effendi. O senhor pode tirar suas próprias conclusões.

Vance pareceu satisfeito e acenou com a mão na direção da porta.

— E agora, Hani, vá para a cama. Não precisaremos mais de você esta noite. Leiltak sa'ida.

— Leiltak sa'ida wemubaraka. — O homem inclinou-se e partiu.

Vance pegou a bainha e, tomando a adaga de Salveter, enfiou-a no local adequado, olhando criticamente para o ornato dourado.

— Influência egéia — murmurou. — Bonito, mas demasiado complicado. Esses ornatos florais da décima oitava dinastia têm a mesma relação com a arte egípcia inicial que o bolo de gengibre bizantino tem com as simples ordens gregas. — Manteve a bainha próxima de seus olhos. — E, por falar nisso, aqui está uma decoração que poderá interessá-lo, Sr. Salveter. Os arabescos formais terminam em uma cabeça de chacal.

— Anûpu, não? O nome próprio de Hani. É curioso. — Salveter levantou-se e olhou o desenho. — Há um outro ponto que pode ser considerado, Sr. Vance — prosseguiu ele após uma pausa. — Esses coptas das classes mais baixas, apesar de toda sua superficial veneração cristã, são altamente supersticiosos. Seus cérebros seguem uma Unha tradicional: gostam de encaixar todas as coisas em um preconcebido simbolismo. Houve umas nove ou mais mortes coincidentes, ultimamente, entre pessoas relacionadas com escavações no Egito (1), e os nativos ridiculamente imaginam que os espíritos de seus ancestrais permanecem em armadilhas junto às várias tumbas para aniquilar os intrusos ocidentais, como uma espécie de medida punitiva. Eles de fato acreditam nessas forças maléficas... E aqui está Hani, no fundo um egípcio supersticioso, que se ressente com a obra do Dr. Bliss: não será possível que ele tenha considerado a morte do doutor com uma adaga que já pertenceu a um faraó como uma sorte de retribuição mística, na mesma linha que todas essas irracionais histórias de fantasmas? E Hani pode até ter considerado a cabeça de chacal na bainha da adaga como um sinal de que ele — cujo nome é o mesmo do deus de cabeça de chacal, Anúbis — tenha sido divinamente apontado como o agente desse ato de vingança.

 

 

 

(1) Salveter estava-se referindo ao Lord Carnavon, ao honorável coronel Aubrey Herbert, ao general Sir Lee Stack, a George J. Gould, a Woolf Joel, a Sir Archibald Douglas Reid, ao professor Lafleur, a H. G. Evelyn-White e ao professor Georges-Aaron Bénédite. Desde essa época mais dois nomes vieram juntar-se a esta lista fatal — os dos honoráveis Richard Bethell, secretário de Howard Carter, e de Lord Westbury.

 


— Uma encantadora teoria — foi o comentário algo desinteressado de Vance. — Mas demasiado plausível, temo. Estou chegando à opinião de que Hani não é assim tão estúpido e tão supersticioso como quer que nós pensemos. Ele é uma espécie de moderno Theogonius, que julga fazer parte de sua sabedoria simular inferioridade mental.2

 

 

(2) Theogonius era um amigo de Simon Magus que, por seu medo ao Imperador Calígula, fingia imbecilidade, a fim de esconder sua sabedoria. Suetônio se refere a ele como Theogonius, mas Scaliger, Casaubon e outros historiadores dão "Telegenius" como a grafia correta.

 


Salveter, lentamente, acenou com a cabeça de modo afirmativo.

— Às vezes percebo nele essas mesmas qualidades... Mas, quem mais...?

— Ah, quem mais? — Vance suspirou. — Escute aqui, Sr. Salveter, a que horas foi para a cama esta noite?

— Às dez e trinta — respondeu o homem agressivamente. — E não me levantei até agora, quando Hani veio me chamar.

— O senhor, então, retirou-se imediatamente depois de ter levado o livro memorando do escritório para o Dr. Bliss.

— Oh, ele lhe falou a esse respeito, não?... Sim, entreguei-lhe o livro e fui para o meu quarto.

— O livro, pelo que sei, estava em cima da mesa.

— Sim, estava... Mas por que todas essas perguntas a respeito de um livro memorando?

— Aquela adaga — explicou Vance — também era |guardada em uma das gavetas da mesa do Dr. Bliss.

Salveter de um salto se pôs de pé.

— Estou entendendo! — Seu rosto estava lívido.

— Oh, não está — Vance assegurou-lhe brandamente. — E eu apreciaria muito se o senhor procurasse acalmar-se. Sua vitalidade positivamente me cansa... Diga-me uma coisa, o senhor trancou a porta de seu quarto hoje à noite?

— Sempre a tranco durante a noite.

— E durante o dia?

— Deixo-a aberta, para arejar o quarto.

— O senhor não ouviu nada esta noite, depois de ter ido para o quarto?

— Absolutamente nada. Dormi logo... a reação, suponho.

Vance levantou-se.

— Uma outra coisa. Onde jantou a família esta noite?

— Na saleta de refeições. No entanto, dificilmente poderíamos dizer que foi um jantar. Ninguém tinha fome. Foi mais uma ceia ligeira. Assim, comemos lá embaixo. Menos incômodo.

— E o que fizeram as diversas pessoas da casa depois dessa refeição?

— Hani subiu imediatamente, creio eu. O doutor, a Sra. Bliss e eu ficamos sentados aqui na sala de visitas por uma hora mais ou menos, quando o doutor pediu desculpas e retirou-se para o seu quarto. Pouco depois Meryt-Amen subiu também e eu fiquei por aqui até dez e meia, tentando ler.

— Obrigado, Sr. Salveter. Isso é tudo. — Vance se deslocou na direção do saguão. — Somente gostaria ainda que o senhor avisasse a Sra. Bliss e ao doutor que não iremos mais perturbá-los hoje à noite. Amanhã, provavelmente, falaremos com eles... Vamos, Markham. Não há realmente nada que possamos fazer aqui.

— Eu poderia fazer um pouco mais — objetou Heath com azedo antagonismo. — Mas este caso está sendo conduzido como um chá de senhoras. Alguém, nesta casa, lançou uma adaga e se eu fizesse as coisas como quero arrancaria a verdade de dentro dele.

Markham esforçou-se diplomaticamente para aplacar os sentimentos arrufados do sargento, porém sem notável sucesso.

Estávamos de pé, pelo lado de dentro da porta, preparando-nos para partir e Vance se detivera para acender um cigarro. Ele estava de frente para a porta grande de aço que conduzia ao museu e percebi que, de repente, se pusera tenso.

— Oh, espere um momento, Sr. Salveter — chamou ele, e o homem, que se encontrava nesse momento quase no topo do primeiro lance de degraus, voltou-se e tornou a aproximar-se. — Por que as luzes no museu?

Olhei para a parte de baixo da porta de aço, onde se fixavam os olhos de Vance e, pela primeira vez, percebi uma tênue réstia de luz. Salveter, também, olhou para o chão e franziu o cenho.

— Tenho certeza de que não sei — respondeu, com a voz intrigada. — Supõe-se que a última pessoa a deixar o museu deva apagar as luzes. Ninguém, entretanto, que seja do meu conhecimento, esteve no museu hoje de noite... Vou ver o que é. — Encaminhou-se para a porta, mas Vance se colocou a sua frente.

— Não se preocupe — disse, peremptoriamente. — Verei eu mesmo. Boa noite.

Salveter recebeu inquieto a deliberação de Vance, mas, sem dizer nada, subiu as escadas.

Quando ele desapareceu por trás da balaustrada do segundo andar, Vance girou a maçaneta delicadamente e abriu a porta do museu. Abaixo de nós, no lado oposto da sala, sentado à mesa próxima ao obelisco e cercado por arquivos, fotografias e pastas de cartolina, encontrava-se Scarlett. O casaco e o colete estavam nas costas da cadeira; uma pala de celulóide verde cobria-lhe os olhos; tinha uma caneta na mão, suspensa sobre um livro grande de anotações.

Scarlett olhou para cima quando a porta se abriu.

— Oh, alô! — cumprimentou ele alegremente. — Pensei que já tivessem liquidado hoje com a casa de Bliss.

— Agora já é amanhã — tornou Vance, descendo as escadas e cruzando o museu.

— O quê?! — Scarlett levou a mão atrás e puxou o relógio. — Grande Escócia! É isso mesmo. Não fazia idéia da hora. Estou trabalhando aqui desde as oito horas...

— Surpreendente. — Vance examinou algumas fotografias. — Muito interessante... Quem fez você entrar?

— Brush, é claro. — Scarlett parecia bastante surpreendido com a pergunta. — Disse que a família estava jantando na saleta de refeições. Pedi-lhe que não os perturbasse, pois eu tinha algum trabalho para terminar...

— Ele não nos falou sobre sua chegada. — Vance, aparentemente, estava interessado no exame de uma fotografia de quatro braceletes amuletos.

— Mas por que deveria ter falado, Vance? — Scarlett se pusera de pé e estava vestindo o casaco. — É uma coisa comum para mim vir até aqui e trabalhar à noite. Estou entrando e saindo da casa constantemente. Quando trabalho à noite sempre desligo a luz quando saio e verifico se a porta da frente está fechada. Não é nada fora do comum que eu venha até aqui depois do jantar.

— Naturalmente foi por isso que Brush não nos falou. — Vance tornou a colocar as fotografias em cima da mesa. — No entanto, algo fora do comum aconteceu aqui esta noite.

— Colocou a bainha da adaga na frente de Scarlett. — O que sabe você sobre este bizarro objeto?

— Oh, muita coisa. — Scarlett sorriu e lançou sobre Vance um olhar interrogativo. — Como você veio a esbarrar com isso? É um dos recônditos segredos do Dr. Bliss.

— Realmente? — Vance ergueu as sobrancelhas, com simulada surpresa. — Então isso lhe é familiar?

— Bastante. Vi o velho malandro escondê-la em sua camisa caqui quando a encontrou. Fiquei calado — não era da minha conta. Mais tarde, quando já estávamos aqui em Nova York, ele me falou que a havia contrabandeado para fora do Egito e me confiou que a estava mantendo escondida em seu escritório. O Dr. Bliss temia constantemente que Hani a descobrisse e me fez jurar que manteria segredo. Concordei.

O que é uma adaga, afinal de contas? De qualquer modo o Museu do Cairo tem a nata de todas as escavações.

— Ele a conservava escondida por baixo de alguns papéis em uma das gavetas de sua mesa.

— Sim, sei disso. Esconderijo seguro. Hani raramente vai até o escritório... Mas, estou curioso...

— Estamos todos curiosos. Situação desagradável, não?

— Vance não lhe deu tempo de especular. — Quem mais sabia da existência da adaga?

— Ninguém mais, tanto quanto eu saiba. O doutor, certamente, não iria revelar o fato a Hani, e tenho sérias dúvidas de que informasse a Sra. Bliss. Ela tem peculiares lealdades para com seu país de origem e o doutor as respeita. Não sei como ela reagiria ao roubo de tão valioso tesouro.

— E com relação a Salveter?

— Eu diria que não — Scarlett fez uma careta de desagrado. — Ele seguramente confiaria a Meryt-Amen. Jovem impulsivo.

— Bem, alguém sabia onde se encontrava — observou Vance. — O Dr. Bliss me telefonou pouco depois da meia-noite dizendo que havia escapado de ser assassinado pelo proverbial fio de cabelo; viemos correndo para cá e encontramos a ponta desse punhal cravada na cabeceira de sua cama.

— Por Jó! Não diga! — Scarlett parecia chocado e perplexo. — Alguém deve ter descoberto a adaga... e, então...

— Scarlett interrompeu-se bruscamente e lançou um olhar rápido sobre Vance. — Como explica isso?

— Não tenho explicação. Muito misterioso... Hani, por falar nisso, encontrou a bainha no saguão, próximo à porta do doutor.

— Isso é estranho... — Scarlett fez uma pausa como se estivesse meditando. Em seguida se pôs a arrumar os papéis e as fotografias em pilhas e a ajeitar as caixas de arquivo embaixo da mesa. — Você não conseguiu nenhuma sugestão do restante do pessoal da casa? — perguntou.

— Inúmeras sugestões. Todas conflitantes e, em sua maior parte, tolas. Assim, estamos voltando para casa. Acontece que vimos a luz por baixo da porta e ficamos curiosos... Também vai sair agora?

— Sim. — Scarlett pegou o chapéu. — Já devia ter ido embora há muito tempo, mas não me apercebi das horas que eram.

Saímos todos juntos da casa. Um pesado silêncio caíra sobre nós e somente quando Scarlett parou em frente de sua casa foi que um de nós falou. Vance disse: — Boa noite. Não deixe que a adaga perturbe seus sonhos.

Scarlett acenou um abstrato adeus.

— Obrigado, meu velho — respondeu. — Tentarei seguir seu conselho.

Vance tinha dado alguns passos quando se voltou subitamente.

— E olhe aqui, Scarlett. Se eu fosse você ficaria longe da casa de Bliss durante algum tempo.

 


XIX

 

 

Um encontro desfeito


(Sábado, 14 de julho — das 2:00 às 10:00 horas)

 

 

Heath deixou-nos na esquina da Rua Dezenove com a Quarta Avenida; Vance, Markham e eu tomamos um táxi para voltar ao apartamento de Vance. Eram quase duas horas, mas Markham não dava demonstrações de que iria para casa. Subiu com Vance até à biblioteca, e abrindo as janelas francesas, ficou olhando para fora, para a noite pesada e tomada pela névoa. Os eventos do dia não lhe haviam agradado e percebi que sua dúvida era tão profunda que ele não se sentia inclinado a fazer movimento algum até que os fatores conflitantes da situação se tornassem mais claros.

O caso, no princípio, parecera simples, e o número de suspeitos possíveis era limitado, por certo. No entanto, a despeito desses dois fatos, havia uma sutil e misteriosa intangibilidade em torno do caso que tornavam impossível um movimento drástico. Os elementos eram por demais fluidos, os possíveis motivos por demais contraditórios. Vance tinha sido o primeiro a perceber as ilusórias complicações, o primeiro a indicar os invisíveis paradoxos. E, tão seguramente pusera ele o dedo nos pontos vitais da trama — tão precisamente havia ele previsto certas fases do desenvolvimento dessa trama — que Markham, não só figurativa como literalmente, tinha passado para o fundo quadro e permitido que ele dirigisse o caso a sua maneira.

Contudo, Markham estava insatisfeito e impaciente. Nada que levasse definitivamente ao verdadeiro culpado, tanto quanto podia ser visto, tinha sido trazido à luz pelo processo de investigação de Vance, não profissional e quase descuidado.

— Não estamos avançando, Vance — protestou Markham com sombria preocupação, voltando-se da janela. — Mantive-me à parte durante todo o dia, deixando que você conduzisse as coisas como melhor lhe parecesse, porque senti que o seu conhecimento das pessoas e da egiptologia lhe dariam vantagem sobre depoimentos oficiais impessoais. Achei também que você tinha uma teoria plausível sobre todo o assunto, a qual estava procurando verificar. No entanto, o assassinato de Kyle está tão longe de uma solução como quando entramos no museu pela primeira vez.

— Você é um pessimista incorrigível, Markham — replicou Vance, enquanto vestia um robe estampado. — Passaram-se apenas quinze horas desde que nos deparamos com Sakhmet atravessada no crânio de Kyle e você deve admitir, doloroso como isso possa ser para um procurador distrital, que a investigação criminal média raramente começa em tão curto espaço de tempo...

— Na investigação criminal média, no entanto — retorquiu Markham azedamente — teríamos encontrado pelo menos uma ou duas pistas e esboçado uma rotina de trabalho. Se Heath estivesse conduzindo as coisas já teria efetuado alguma prisão — o campo de possibilidades não é extenso.

— Ouso dizer que Heath já teria prendido alguém. Sem dúvida já teria todo o mundo nas grades, inclusive Brush e Dingle e os curadores do Museu Metropolitano. A tática típica: massacrar pessoas inocentes para fazer a alegria de um jornalista. Não me sinto atraído por essa técnica, entretanto. Sou por demais humano — continuo a manter muitas de minhas primeiras ilusões. Sentimentalmente, alas!, será provavelmente a minha queda.

Markham fungou e sentou-se na extremidade da mesa. Durante algum tempo ficou tamborilando num volume encadernado em couro do Malleus Maleficarum.

— Você me falou bastante enfaticamente — disse ele — que quando este segundo episódio acontecesse — a tentativa contra a vida de Bliss — você compreenderia todas as fases da trama e talvez fosse capaz de aduzir algumas evidências tangíveis contra o assassino de Kyle. Parece-me, no entanto, que os acontecimentos desta noite nos fizeram mergulhar ainda mais profundamente nas incertezas.

Vance sacudiu a cabeça, seriamente, em desacordo.

— O lançamento da adaga e o esconder e encontrar a bainha iluminaram o único ponto discutível da trama.

Markham olhou para cima severamente.

— Você pensa que sabe qual é a trama?

Vance colocou cuidadosamente um Régie em uma piteira longa e olhou uma fotografia pequena de Picasso em cima da lareira.

— Sim, Markham, — retorquiu ele vagarosamente — creio que sei qual é a trama. E se esta noite ocorrer aquilo que espero, posso, acredito, convencê-lo de que estou certo em minha diagnose. Infelizmente o arremesso da adaga foi apenas uma parte do episódio pré-arranjado. Como já lhe disse há uns momentos atrás, o quadro não está ainda completo. Algo interveio. E o toque final — o arremate do episódio — ainda está por vir.

Vance falou com impressionante solenidade e Markham, segundo percebi, ficou fortemente influenciado por sua maneira.

— Você tem alguma noção definida — perguntou ele — sobre o que será esse toque final?

— Oh, sim. Mas exatamente qual a forma que vai tomar não posso dizer. A própria pessoa que urdiu a trama provavelmente também não o sabe, pois deve aguardar uma oportunidade propícia. Mas tudo estará centrado em torno de um objetivo específico — um indício forjado, Markham. Esse indício já foi cuidadosamente preparado e sua colocação é o único fator indefinido ainda... Sim, estou esperando o aparecimento de um específico item; quando esse item aparecer poderei convencê-lo de toda a diabólica verdade.

— Quando, em sua opinião, esse indício aparecerá? — quis saber Markham, inquieto.

— Quase que a qualquer momento. — O tom de voz de Vance era monótono e calmo. — Algo evitou que tomasse forma esta noite, pois que é um corolário íntimo do arremesso da adaga. Recusando-me a levar muito a sério aquele episódio e deixando que Hani encontrasse a bainha fiz com que se tornasse necessário o imediato forjamento do indício final. Uma vez mais, recusei-me a cair na armadilha do criminoso — ainda que, como já disse, a isca não estivesse colocada inteiramente na armadilha.

— Estou satisfeito em ter uma espécie de explicação para sua atitude casual na noite de hoje. — A despeito da nota de sarcasmo na voz de Markham, era óbvio que, no fundo, ele não estava fazendo críticas à conduta de Vance. Ele estava ao largo e inclinado, conseqüentemente, a irritar-se.

— Aparentemente você não se interessou em descobrir quem lançou aquela adaga no travesseiro de Bliss.

— Mas Markham, meu velho, sei quem lançou o adornado punhal. — Vance fez um ligeiro gesto de impaciência.

— Minha única preocupação é aquilo a que os repórteres chamam de "as causas do crime".

Markham percebeu que não valia a pena insistir em saber, nesse momento, quem teria lançado a adaga; assim, continuou a comentar as recentes atividades de Vance na casa de Bliss.

— Você poderia ter obtido muito boas sugestões de Scarlett, evidentemente ele esteve no museu durante todo o tempo...

— Mesmo assim, Markham, — contrapôs Vance — não se esqueça de que existe uma espessa parede dupla entre o museu e a residência de Bliss e que essas portas de aço são, praticamente, à prova de som. Poderiam ter explodido bombas no quarto do doutor, sem que qualquer pessoa no museu as ouvisse.

— Talvez você tenha razão. — Markham levantou-se e ficou olhando para Vance apreciativamente. — Estou confiando um bocado em você, seu esteta confuso. Estou sendo contrário a todos os meus princípios e refutando completamente as normas oficiais de procedimento porque acredito em você. Mas Deus o ajude se falhar... Qual é o programa para amanhã?

Vance dedicou-lhe um olhar agradecido e afetivo. Logo em seguida um sorriso cínico espalhou-se em seu rosto.

— Eu sou, por assim dizer, a embreagem não oficial que o promotor distrital sonolento aciona, não? Não é um cumprimento esmagador.

Entre esses dois amigos era sempre o caso de que, quando um emitisse uma observação generosa o outro imediatamente o travava, temeroso de alguma demonstração ostensiva de sentimentos.

— O programa para amanhã? — Vance meditou sobre a pergunta de Markham. — Realmente, sabe, não dediquei a isso nenhuma consideração cartesiana... Há uma exibição de Gauguin no Wildenstein. Poderia ir até lá e me aquecer nas cores harmônicas do grande Pont-Avenois. Há, também, um recital do Septet Beethoven no Carnegie Hall e uma pré-apresentação de afrescos egípcios das paredes das tumbas de Nakhte, Menena e Rekh-mi-Re...

— E uma exposição de orquídeas no Palácio Grand Central — sugeriu Markham com raivosa ironia. — Mas, olhe aqui, Vance, se deixarmos essa coisa rolar mais um dia sem tomar alguma espécie de ação, poderá haver perigo pela frente para alguém mais, do mesmo modo que houve perigo para Bliss esta noite. Se o assassino de Kyle é tão implacável como você diz e seu trabalho não foi ainda completado...

— Não, não penso assim. — O rosto de Vance estava novamente sombrio. — A trama não inclui qualquer outro ato de violência. Acredito que tenha entrado agora em um estágio mais tranqüilo e sutil — ainda mais funesto. — Durante um momento fumou especulativamente. — Mesmo assim... talvez haja uma chance remota. As coisas não estão correndo de acordo com os cálculos do criminoso. Impedimos seus dois movimentos mais ambiciosos. Sobra-lhe, porém, uma combinação mais e estou certo de que a tentará...

A voz de Vance se interrompeu e, levantando-se, pôs-se a andar para lá e para cá até à janela francesa.

— De qualquer modo cuidarei da situação pela manhã — disse ele. — Ficarei em guarda contra qualquer possibilidade de perigo. Ao mesmo tempo, apressarei o forjamento do último indício.

— Quanto tempo irá durar toda essa história? — Markham parecia confuso e nervoso. — Não posso continuar indefinidamente esperando que aconteçam fatos apocalípticos.

— Dê-me vinte e quatro horas. Então, se não receber-t mos outro auxílio do cavalheiro que está acionando os cordéis, você poderá deixar que Heath se abata sobre a família.

Não se tinham passado vinte e quatro horas quando o evento culminante teve lugar. O dia 14 de julho permanecerá sempre em minha memória como um dos dias mais excitantes e terríveis de minha vida e quando, anos mais tarde, estava registrando este caso, dificilmente podia deixar de estremecer. Não ouso pensar sobre o que teria acontecido — que tremenda injustiça poderia ter sido perpetrada de boa-fé — se Vance não tivesse percebido as maquinações interiores da diabólica trama envolvendo a morte de Kyle e não persistisse em sua recusa de permitir a Markham e Heath a linha de ação óbvia de prenderem Bliss.

Vance me disse, meses mais tarde, que jamais em sua carreira se havia confrontado com uma tarefa tão delicada como a de aplacar Markham e convencê-lo de que uma espera impassiva era a única maneira de chegar à verdade. Quase que a partir do momento em que Vance entrou no museu, atendendo à chamada de Scarlett, ele percebera as tremendas dificuldades que tinha pela frente, pois tudo tinha sido planejado de modo a forçar Markham e a polícia a tomarem a medida contra a qual ele tão consistentemente tinha lutado.

Ainda que Markham não tivesse saído do apartamento' de Vance antes das duas horas e meia na noite do arremesso da adaga, Vance, na manhã seguinte, estava de pé antes das oito. O dia prometia ser sufocante e ele tomou seu café no jardim do terraço. Mandou que Currie comprasse todos os jornais da manhã e, durante cerca de uma meia hora, dedicou-se à leitura do assassinato de Kyle.

Heath tinha sido altamente discreto no fornecimento dos fatos e apenas o esqueleto da. história tinha sido posto ao alcance da imprensa. No entanto, a preeminência de Kyle e a distinta reputação de Bliss fizeram com que o crime provocasse um tremendo furor. Isso se traduzia no enaltecimento de primeira página de todos os jornais metropolitanos e nas longas referências aos trabalhos egiptológicos de Bliss e ao interesse financeiro do filantropo morto nesses trabalhos. A teoria geral parecia ser — e nisso reconheço a habilidosa mão do sargento — que alguém da rua tinha entrado no museu e, como ato de vingança ou de inimizade, matara Kyle com a primeira arma disponível.

Heath falara à imprensa sobre o encontro do alfinete de escaravelho ao lado do corpo, mas não deu qualquer outra informação a respeito. Devido a esse pequeno objeto, que era o único detalhe evidenciai fornecido, os jornais, sempre à procura de títulos de identificação, deram à tragédia o nome de o caso do escaravelho. Esse nome acompanha o crime até o dia de hoje. Mesmo as pessoas que se esqueceram do nome de Benjamin H. Kyle lembram-se ainda da sensação causada por esse crime, como resultado do encontro daquela antiga peça de lápis-lazúli, ostentando a inscrição do nome de um faraó egípcio do ano de 1650 antes de Cristo.

Vance leu as notícias com um sorriso cínico.

— Pobre Markham — murmurou ele. — A menos que algo definido aconteça logo, as críticas contra sua administração descerão sobre ele como um bando de monstros. Vejo que Heath anunciou ao mundo que o procurador distrital está completamente encarregado do caso...

Permaneceu fumando meditativamente durante algum tempo. Em seguida telefonou para Salveter e pediu-lhe que fosse imediatamente a seu apartamento.

— Tenho a esperança de remover todas as possibilidades de desastre — explicou-me ao desligar o receptor — embora esteja convencido de que haverá uma outra tentativa de nos enganar antes que qualquer medida desesperada seja tomada.

Os seguintes quinze minutos foram passados por Vance preguiçosamente deitado com os olhos cerrados. Pensei que tivesse dormido, mas quando Currie abriu suavemente a porta para anunciar Salveter, Vance fez-lhe sinal para que deixasse entrar o visitante, antes que o criado pudesse falar.

Salveter entrou um minuto mais tarde, parecendo ansioso e intrigado.

— Sente-se, Sr. Salveter. — Vance indicou indolentemente uma cadeira. — Tenho estado pensando sobre a Rainha Hetep-hir-es e o Museu de Boston. O senhor terá algum motivo que o possa levar razoavelmente a Boston esta noite?

Salveter pareceu ainda mais intrigado.

— Sempre tenho alguma coisa para fazer lá — replicou, franzindo o cenho. — Especialmente em vista das escavações da Expedição Harvard-Boston nas pirâmides de Gizeh. Foi em conexão com essas escavações que tive que ir ao Museu Metropolitano ontem pela manhã para o Dr. Bliss... Isso responde sua pergunta satisfatoriamente?

— Bastante... E essas reproduções do mobiliário da tumba de Hetep-hir-es: o senhor não as poderia arranjar com mais facilidade se visse o Dr. Reisner pessoalmente?

— Certamente. O fato é que tenho que ir lá de qualquer modo, a fim de fechar negócio. Ontem eu estava meramente na pista de informações preliminares.

— O fato de amanhã ser domingo o prejudica de alguma forma?

— Pelo contrário. Provavelmente poderei ver o Dr. Reisner fora de seu gabinete e discutir o assunto calmamente com ele.

— Se assim é, suponho que o senhor poderá tomar um trem esta noite, depois do jantar. Volte, digamos, amanhã à noite. Alguma objeção?

A curiosidade de Salveter cedeu lugar à estupefação.

— Bem, não — gaguejou ele. — Nenhuma objeção particular, mas...

— O Dr. Bliss acharia estranho se o senhor lhe desse essa notícia assim de repente?

— Não posso dizer. Provavelmente não. O museu não é lugar particularmente agradável, principalmente agora...

— Bem, desejo que vá, Sr. Salveter. — Vance abandonou suas maneiras despreocupadas e sentou-se. — E desejo que o senhor vá sem perguntas e sem discussão. Não há possibilidades de que o Dr. Bliss proíba sua ida, há?

— Oh, nada disso — assegurou Salveter. — Ele poderá achar curioso que eu saia em uma ocasião dessas, mas nunca interfere com a maneira pela qual conduzo meus afazeres.

Vance levantou-se.

— Está bem. Há um trem que parte da Grand Central para Boston hoje às nove e meia da noite. Veja se toma esse trem... E — aduziu ainda — pode telefonar-me da estação à guisa de verificação. Estarei aqui entre nove e nove e meia... O senhor poderá voltar para Nova York a qualquer hora que queira depois do meio-dia de amanhã.

Salveter sorriu para Vance encabulado.

— Suponho que isso sejam ordens.

— Ordens sérias e importantes, Sr. Salveter — respondeu Vance de modo impressionante. — E não há necessidade de que o senhor se preocupe com a Sra. Bliss. Hani, tenho certeza, tomará conta dela.

Salveter ia responder qualquer coisa, mas mudou de idéia e, voltando-se subitamente, retirou-se rápido.

Vance bocejou e levantou-se preguiçosamente.

— Creio, agora, que dormirei mais umas duas horas.

Após o almoço no Marguery, Vance foi até à exposição de Gauguin e, mais tarde, até o Carnegie Hall para ouvir o Septet Beethoven. Quando o concerto terminou era demasiado tarde para ver a exposição de afrescos no Museu Metropolitano de Arte. Ao invés disso, Vance foi buscar Markham em seu carro e nós três fomos jantar no Claremont.

Vance explicou rapidamente as medidas que tinha tomado com relação a Salveter. Markham quase que não fez comentários. Parecia cansado e desanimado, mas havia uma abstrata tensão em sua atitude, o que me fez perceber o quanto confiava na predição de Vance de que algo tangível não custaria a acontecer com relação ao caso de Kyle.

Após o jantar regressamos ao jardim do terraço de Vance. O enervante calor do meio do verão ainda se fazia sentir e dificilmente qualquer brisa soprava.

— Disse a Heath que telefonaria para ele... — começou a falar Markham acomodando-se em uma cadeira de vime.

— Eu ia mesmo sugerir que se entrasse em ligação com o sargento — opinou Vance. — Gostaria bastante de tê-lo aqui à mão. Ele é confortante.

Tocou a campainha chamando Currie e mandou trazer o telefone. Em seguida ligou para Heath e pediu-lhe que viesse ter conosco.

— Estou com um pressentimento psíquico — disse ele dirigindo-se a Markham, com um ar de forçada leviandade — de que não demorará muito e seremos convocados para testemunhar a irrefutável prova da culpa de alguém. E se essa prova for o que penso...

Markham, de súbito, inclinou-se para a frente em sua cadeira.

— Acaba de me ocorrer o que você está sugerindo tão misteriosamente! — exclamou ele. — Tem alguma relação com aquela carta hieroglífica que você encontrou no escritório.

Vance hesitou apenas momentaneamente.

— Sim, Markham — concordou Vance. — Aquela carta rasgada ainda não foi explicada. Tenho a respeito uma teoria que não me quer abandonar... ela se encaixa perfeitamente demais com toda a odiosa trama.

— Mas você está com a carta — argumentou Markham, em um esforço para fazer Vance falar.

— Oh, sim. E estou feliz que assim seja.

— Você acredita que é a carta que Salveter disse que escreveu?

— Indubitavelmente.

— E você acredita que ele não saiba que a carta foi rasgada e jogada na cesta de papéis usados do doutor?

— Oh, claro. Ele ainda está intrigado com o fim que ela levou... e preocupado também.

Markham estudou Vance com indisfarçável curiosidade.

— Você se referiu a algum objetivo ao qual a carta poderia ter servido antes de ter sido jogada fora.

— É isso o que estou esperando verificar. O fato é, Markham, que eu esperei que a carta entraria no mistério do arremesso da adaga na noite passada. E admito que me senti terrivelmente fracassado quando nos deparamos com toda a família confortavelmente acomodada na cama sem nos termos 'deparado com um simples hieróglifo. — Puxou um cigarro. — Havia uma razão para isso e creio que conheço a explicação. Aí está a razão de minha fé infantil de que algo ocorrerá agora, a qualquer momento...

O telefone tocou e Vance o atendeu imediatamente. Era Salveter, chamando da Estação Grand Central. Após uma conversação ligeira, Vance recolocou o instrumento sobre a mesa, com ar de satisfação.

— O doutor — disse ele — estava evidentemente muito ansioso em passar a noite de hoje e amanhã sem o seu assistente curador. Assim, esse pequeno lance estratégico foi realizado sem dificuldade...

Meia hora mais tarde Heath foi introduzido no jardim do terraço. Estava sombrio e deprimido e sua saudação foi pouco mais do que um grunhido gutural.

— Alivie o seu coração, sargento — cumprimentou-o Vance alegremente. — Hoje é o Dia da Bastilha.1 Isso pode ter um significado simbólico. Não está além do reino das possibilidades que o senhor possa encarcerar o assassino de Kyle antes da meia-noite.

 

 

 

(1) Vance, é claro, estava-se referindo à Festa Nacional Francesa, que se comemora no dia 14 de julho.

 


— Sim? — Heath estava completamente céptico. — Ele virá aqui entregar-se, trazendo todas as provas? Que sujeito bom e acomodado.

— Não exatamente, sargento. Mas estou esperando que ele nos mande chamar; e creio que poderá ser tão generoso ao ponto de indicar, ele mesmo, a principal prova.

— Maluco, não? Bem, Sr. Vance, se ele o fizer nenhum júri o condenará. Conseguirá um atestado de insanidade com direito a acomodações e tratamento médico pelo resto de sua vida. — Consultou o relógio. — São dez horas. A que horas chegará o convite?

— Dez? — Vance verificou as horas. — Meu Deus! É mais tarde do que eu pensava... — Um ar de ansiedade passou em seu rosto. — Será que calculei mal todo esse caso?

Jogou fora o cigarro e se pôs a caminhar para cá e para lá. Dentro em pouco parou à frente de Markham que o observava inquietamente.

— Quando mandei Salveter embora — começou Vance vagarosamente — confiava em que o esperado evento aconteceria imediatamente. Temo que algo tenha corrido errado. Assim, penso que o melhor é esboçar o caso para vocês agora.

Fez uma pausa e franziu o cenho.

— Entretanto — acrescentou — seria aconselhável que Scarlett estivesse presente. Tenho certeza de que ele poderia preencher algumas falhas.

Markham pareceu surpreendido.

— O que sabe Scarlett a este respeito?

— Oh, muita coisa — foi a resposta de Vance. Em seguida voltou-se para o telefone, mas hesitou. — Ele não tem um telefone particular e não sei o número do telefone da casa...

— Isto é fácil. — Heath pegou o telefone e pediu ligação com um certo funcionário da noite de sua Seção. Após umas poucas palavras de explicação, desligou e chamou um número. Houve uma considerável demora, mas ao fim de algum tempo alguém respondeu do outro lado. Pelas perguntas do sargento ficou evidente que Scarlett não se encontrava em casa.

— Era sua senhoria — explicou Heath desgostosamente, quando recolocou o receptor no lugar. — Scarlett saiu às oito horas... disse que iria dar uma chegada ao museu e que estaria de volta às nove. A essa hora tinha um encontro com um sujeito em seu apartamento e o mesmo ainda está esperando por ele.

— Então podemos alcançá-lo no museu. — Vance ligou para o número de Bliss e pediu a Brush que chamasse Scarlett ao telefone. Depois de alguns minutos afastou o telefone.

— Scarlett também não está no museu — disse. — Ele chegou lá, de acordo com Brush, por volta das oito horas e deve ter saído sem ser observado. Provavelmente está em seu caminho de volta a seu apartamento. Vamos esperar um pouco e tornar a telefonar-lhe.

— É necessário que tenhamos Scarlett aqui? — Indagou Markham impacientemente.

— Não exatamente necessário — retorquiu Vance evasivamente — mas muito desejável. Lembre-se de que ele admitiu com toda a franqueza que poderia dizer-me muita coisa a respeito do criminoso...

Vance interrompeu-se abruptamente, e com tensa deliberação escolheu e acendeu um outro cigarro. Suas pálpebras baixaram e ficou olhando fixamente para o chão.

— Sargento — disse ele com a voz controlada —, acredito que o senhor tenha dito que o Sr. Scarlett tinha um encontro com alguém às nove e informara sua senhoria de que estaria de volta a essa hora.

— Foi o que a dama me disse ao telefone.

— Por favor, veja se Scarlett já chegou em casa.

Sem uma palavra, Heath tornou a erguer o receptor e a pedir o número do telefone de Scarlett. Um minuto mais tarde voltava-se para Vance.

— Ele ainda não apareceu.

— Tremendamente estranho — resmungou Vance. — Não estou gostando disso, Markham.

Seu cérebro se entregou a especulações e me pareceu que Vance se pusera ligeiramente pálido.

— Estou ficando assustado — prosseguiu ele com voz abafada. — Já deveríamos ter ouvido alguma coisa a respeito da carta... Estou com medo de que tenhamos problemas pela frente.

Olhou para Markham com seriedade e preocupação.

— Não poderemos esperar mais. Talvez já seja tarde. Temos que agir imediatamente. — Encaminhou-se para a porta. — Vamos Markham, e o senhor, sargento. Temos o que fazer no museu. Se andarmos depressa talvez cheguemos a tempo.

Ambos, Markham e Heath, se haviam posto de pé enquanto Vance falava. Havia em sua voz estranha urgência e previsão de coisas terríveis em seus olhos. Vance desapareceu rapidamente no interior da casa e todos nós, mobilizados pela controlada excitação de sua atitude, o acompanhamos em silêncio. Seu carro se encontrava do lado de fora e alguns momentos mais tarde estávamos contornando perigosamente a esquina da Rua Trinta e Oito com a Avenida Park, na direção do Museu Bliss.


XX

 

O sarcófago de granito

 

 

(Sábado, 14 de julho — 22:10 horas)

 

 

Chegamos ao museu em menos de dez minutos. Vance subiu correndo os degraus de pedra, com Markham, Heath e eu em seus calcanhares. Não somente havia uma luz acesa no vestíbulo como também, através dos painéis de vidro da porta da frente, podíamos ver no saguão uma luz brilhando. Vance tocou a campainha vigorosamente, mas algum tempo se passou antes que Brush atendesse.

— Cochilando? — perguntou Vance. Estava tenso e sensível.

— Não, senhor. — Brush afastou-se de Vance. — Eu estava na cozinha...

— Diga ao Dr. Bliss que estamos aqui e queremos vê-lo, imediatamente.

— Sim, senhor. — O mordomo atravessou o saguão e bateu à porta do escritório. Não houve resposta e ele tornou a bater. Após um momento Brush girou a maçaneta e espiou para dentro. Depois voltou até onde nós estávamos.

— O doutor não está em seu escritório. Talvez tenha ido para o quarto... Vou ver.

Encaminhou-se para as escadas e já ia começar a subi-las quando uma voz calma o deteve.

— Effendi Bliss não está aqui em cima. Hani desceu vagarosamente até o saguão da frente. — É possível que esteja no museu.

— Bem, bem! — Vance olhou para o homem reflexivamente. — Surpreendente como você sempre aparece... Então você acredita que o doutor esteja perambulando entre os seus tesouros, não? — Vance abriu a grande porta de aço do museu. — Se o doutor estiver aqui está consumindo o seu tempo no escuro. — Caminhando pelo patamar das escadas no interior do museu, Vance acendeu as luzes e correu os olhos pela grande sala. — Aparentemente você está errado, Hani, com relação ao paradeiro do doutor. Pelo que se pode ver o museu está vazio.

O egípcio permanecia tranqüilo.

— Talvez o Dr. Bliss tenha saído para tomar um pouco de ar.

Houve uma ruga de preocupação no rosto de Vance.

— É possível — murmurou ele. — No entanto, desejo que você se certifique de que ele não está lá em cima.

— Eu o teria visto se ele tivesse subido depois do jantar — respondeu o egípcio calmamente. — De qualquer modo, seguirei suas instruções. — Com isso Hani subiu para procurar Bliss.

Vance aproximou-se de Brush e perguntou em voz baixa: — A que horas o Sr. Scarlett saiu daqui esta noite?

— Não sei, senhor. — O homem estava assustado pela atitude de Vance. — Realmente não sei. Ele chegou por volta das oito horas e o fiz entrar. Talvez ele tenha saído com o Dr. Bliss. Freqüentemente eles saem juntos à noite para um passeio.

— O Sr. Scarlett se dirigiu ao museu quando chegou às oito horas?

— Não, senhor. Ele perguntou pelo Dr. Bliss...

— Ah! E ele se encontrou com o doutor?

— Sim, senhor... Isto é — Brush corrigiu-se a si mesmo —, suponho que sim. Disse-lhe que o Dr. Bliss se encontrava no escritório e ele imediatamente atravessou o saguão. Voltei para a cozinha.

— Você notou alguma coisa fora do comum nas maneiras do Sr. Scarlett.

O mordomo meditou alguns instantes.

— Bem, senhor, já que o mencionou, eu diria que o Sr. Scarlett estava um pouco rígido e distante, como se tivesse alguma coisa na cabeça... se o senhor compreende o que quero dizer.

— E a última vez em que você o viu foi ao se aproximar da porta do escritório?

— Sim, senhor.

Vance sacudiu a cabeça despedindo o mordomo.

— Permaneça na sala de visitas até novas determinações — disse Vance.

Quando Brush desaparecia pela porta de dobrar, Hani descia lentamente as escadas.

— Como eu já disse — informou ele indiferentemente —, o Dr. Bliss não está lá em cima.

Vance examinou-o seriamente.

— Você sabe que o Sr. Scarlett esteve aqui esta noite?

— Sim, sei. — Uma luz curiosa surgiu nos olhos do homem. — Eu estava na sala de visitas quando Brush o fez entrar.

— Ele veio ver o Dr. Bliss — disse Vance.

— Sim. Ouvi-o perguntar a Brush...

— O Sr. Scarlett avistou-se com o doutor?

O egípcio não respondeu logo. Enfrentou firmemente o olhar de Vance, como se estivesse procurando ler o pensamento do outro. Finalmente, chegando a uma decisão, disse: — Eles estiveram juntos — pelo que sei — pelo menos uma meia hora. Quando o Sr. Scarlett entrou no escritório deixou a porta entreaberta e eu os ouvi conversando. Mas não pude perceber sobre o que falavam. Suas vozes estavam abafadas.

— Durante quanto tempo você ficou escutando?

— Por cerca de meia hora. Depois eu subi.

Desde então você não viu mais nem o Dr. Bliss nem o Sr. Scarlett?

— Não, effendi.

— Onde estava o Sr. Salveter durante a reunião no escritório? — Vance esforçava-se para controlar sua ansiedade.

— Ele estava em casa? — perguntou Hani evasivamente. — Durante o jantar ele me disse que estava indo a Boston.

— Sim, sim. No trem das nove e meia. Não lhe teria sido necessário sair de casa antes das nove... Onde esteve ele entre as oito e as nove?

Hani deu de ombros.

— Não o vi. Ele saiu de casa antes de o Sr. Scarlett chegar. Certamente não estava aqui depois das oito horas...

— Você está mentindo. — O tom de voz de Vance era frígido.

— Wahyât en-nabi...

— Não tente me impressionar... não estou de bom humor. — Os olhos de Vance eram como aço. — O que você julga que aconteceu aqui esta noite?

— Penso que Sakhmet talvez tenha voltado.

O rosto de Vance se fez pálido; no entanto, talvez tenha sido, apenas, o reflexo da luz do saguão.

— Vá para o seu quarto e espere lá — disse Vance brevemente.

Hani inclinou-se.

— O senhor não está precisando de meu auxílio, agora, effendi. O senhor entende muitas coisas. — Dizendo isso o egípcio afastou-se com toda a dignidade.

Vance permaneceu tenso até que ele tivesse desaparecido. Em seguida, fazendo um sinal para nós, atravessou o saguão na direção do escritório. Abrindo a porta Vance acendeu as luzes.

Havia ansiedade e pressa em todos os seus movimentos e a elétrica atmosfera de sua atitude era transmitida a todos nós. Percebemos que algo trágico e terrível o estava impulsionando.

Vance se aproximou das duas janelas e se inclinou para fora. À pálida luz refletida ele podia ver as lajes de asfalto lá embaixo. Espiou sob a mesa e avaliou com os olhos o vão livre embaixo do diva. Em seguida encaminhou-se até à porta que conduzia ao museu.

— Não pensei mesmo que fôssemos achar alguma coisa no escritório; mas havia uma chance...

Já estava descendo as escadas em espiral.

— Estará aqui no museu — chamou-nos ele. — Venha, sargento. Há um serviço a ser feito. O diabo andou solto esta noite...


Vance passou pelo assento real e pelas prateleiras de shawabtis e parou junto à mesa longa de tampo de vidro, as mãos metidas nos bolsos do casaco, os olhos correndo rapidamente a sala. Markham, Heath e eu aguardávamos no pé das escadas.

— O que é que está havendo? — perguntou Markham asperamente. — O que aconteceu? E, incidentalmente, o que está você procurando?

— Não sei o que aconteceu. — Algo no tom de voz de Vance fez com que meu corpo fosse percorrido por um calafrio. — E estou procurando algo horrível. Se não for aqui...

Não chegou a terminar a frase. Encaminhando-se rapidamente até à grande réplica de Kha-ef-Rê deu uma volta a seu redor. Em seguida aproximou-se da estátua de Ramsés II e inspecionou sua base. Depois disso acercou-se de Teti-shiret e bateu em seu pedestal com os nós dos dedos.

— Todas são sólidas — resmungou. — Vamos tentar as caixas com as múmias. — Tornou a atravessar o museu.

— Comece por aquela extremidade, sargento. As tampas podem ser removidas facilmente. Se tiver alguma dificuldade, arrebente-as. — O próprio Vance encaminhou-se para a caixa próxima a Kha-ef-Rê e enfiando a mão por baixo da tampa retirou-a e a colocou no soalho.

Heath, aparentemente animado por urgente desejo de ação física, já havia iniciado sua busca na outra extremidade da linha. Não se mostrava delicado de modo algum. Arrancava as tampas, com raiva, lançando-as ao chão com desnecessária violência.

Vance, absorto em sua própria tarefa, prestava pouca atenção, a não ser olhando a cada vez que uma tampa era arrancada da caixa. Markham, no entanto, começara a inquietar-se. Observou o sargento desaprovadoramente durante alguns momentos, o rosto sombrio. Logo em seguida aproximou-se.

— Não posso deixar que isso continue, Vance — observou ele. — Isso são tesouros valiosos e não temos o direito...

Vance levantou-se e olhou diretamente para Markham.

— E se houver um homem morto dentro de uma delas? — perguntou com uma frieza que levou Markham a se sentir rígido.

— Um homem morto?

— Colocado aqui hoje à noite, entre as oito e as nove horas.

As palavras de Vance tinham características agourentas e impressionantes e Markham não disse mais nada. Permaneceu parado, suas linhas tensas, observando a febril inspeção das demais caixas de múmias.

No entanto não foi feita nenhuma descoberta desagradável. Heath removeu a tampa da última caixa com óbvio desapontamento.

— Creio que há alguma coisa errada com suas idéias, Sr. Vance — comentou desanimado; na verdade havia uma nota de simpatia em sua voz.

Vance, absorto e com o olhar distante, estava agora ao lado da caixa de vidro. Sua tensão era tão aparente que Markham se aproximou dele e tocou-lhe no braço.

— Talvez nós pudéssemos tornar a calcular todo este caso ao longo de outras linhas... — começou ele, mas Vance o interrompeu.

— Não. Este caso não pode ser recalculado. É demasiado lógico. Houve uma tragédia aqui esta noite e chegamos muito tarde para interceptá-la.

— Devíamos ter tomado precauções. — O tom de Markham era azedo.

— Precauções! Todas as precauções possíveis foram tomadas. Esta noite foi introduzido um novo elemento na situação — um elemento que não poderia ter sido previsto. A tragédia desta noite não fazia parte da trama... — Vance voltou-se e se afastou. — Tenho que pensar no assunto. Tenho que refazer o raciocínio do criminoso... — Fez a volta completa do museu, sem tirar os olhos do chão.

Heath fumava seu charuto meditativamente. Não havia saído da frente da caixa das múmias e fingia estar interessado nos grosseiros hieróglifos coloridos. Desde o caso da Canária, quando Tony Skeel tinha deixado de comparecer ao seu encontro no gabinete do promotor distrital, ele passara a acreditar, apesar de todos os seus protestos, nos prognósticos de Vance; agora estava profundamente surpreso com o fracasso do outro. Eu o estava observando, um pouco surpreso também, quando percebi que uma ruga de curiosidade vincava sua testa. Tirando o charuto da boca inclinou-se sobre uma das caixas das múmias e levantou um objeto de metal.

— Que diabo de lugar para guardar um macaco de automóvel — observou ele. (Seu interesse no macaco era, obviamente, uma tentativa inconsciente para distrair seus pensamentos, afastando-os da tensa situação.) Tornou a colocar o macaco na caixa e sentou-se na base da estátua de Kha-ef-Rê. Nem Markham nem Vance tinham, aparentemente, prestado a menor atenção a sua irrelevante descoberta.

Vance continuava a caminhar pelo museu. Pela primeira vez, desde que chegáramos, tirou um cigarro e acendeu-o.

— Todas as linhas de raciocínio vêm ter aqui, Markham. — Vance falou em voz baixa e desanimada. — Não havia necessidade de a evidência ser levada embora. Em primeiro lugar teria sido muito temerário; em segundo lugar, não se supunha que fôssemos suspeitar de alguma coisa antes de um dia ou dois...

Sua voz interrompeu-se e seu corpo se pôs subitamente tenso. Aproximou-se apressadamente de Heath.

— Um macaco de automóvel! — Uma modificação dinâmica se apossara dele. — Oh, minha tia! Desconfio... desconfio...

Aproximou-se rapidamente do sarcófago negro debaixo das janelas da frente e o examinou ansiosamente.

— Muito alto — resmungou. — Um metro livre sobre o solo! Não poderia ter sido feito... Mas tinha que ser feito... de alguma forma... — Olhou em torno. — Aquele tamborete! — Apontava para um banquinho sólido de carvalho, com cerca de 50 cm de altura, encostado à parede, próximo à estátua de madeira asiática. — Ele não estava ali na noite passada; estava junto da mesinha ao lado do obelisco... Scarlett o estava usando. — Enquanto falava aproximou-se do tamborete e o ergueu. — E a parte de cima está arranhada... há um corte... — Vance colocou o banquinho de encontro ao sarcófago. — Rápido, sargento! Traga-me aquele macaco.

Heath obedeceu rapidamente e Vance colocou o macaco em cima do tamborete, ajustando sua base sobre os arranhões na madeira. A cabeça de sustentação ficou próxima da parte de baixo da tampa do sarcófago, a uma distância de dois centímetros, no ponto em que a tampa se estendia uns poucos centímetros sobre o fim da elevação entre os dois suportes dos cantos, em forma de pernas de leão.

Nós nos reuníramos em torno de Vance em silêncio tenso, não sabendo o que esperar, mas pressentindo que nos encontrávamos perto de alguma revelação aterrorizante.

Vance inseriu a alavanca de elevação, que Heath lhe passou, no soquete correspondente, e a acionou cautelosamente para cima e para baixo. O macaco funcionou perfeitamente. A cada movimento da alavanca para baixo ouvia-se um clique metálico quando a engrenagem se encaixava nos dentes da cremalheira. Centímetro a centímetro a extremidade da pesada tampa do granito — que deveria ter mais de meia tonelada1 — foi sendo erguida.

 

 

(1) Essa foi minha estimativa durante a operação de Vance. Mais tarde calculei o peso da tampa. Tinha três metros de comprimento por 1,20 m de largura e era encimada por uma grande figura esculpida. Uma avaliação cautelosa nos daria uns três metros cúbicos para a tampa; como a densidade do granito é de aproximadamente 2,70 gramas por centímetro cúbico, ou 170 libras por pé cúbico, a tampa deveria pesar, pelo menos, 1.700 libras ou 800 quilos.

 

 

De repente Heath recuou alarmado.

— O senhor não está com medo, Sr. Vance, que a outra extremidade da tampa deslize de cima do sarcófago?

— Não, sargento — assegurou Vance. — A fricção de uma massa tão grande é o bastante para mantê-la a um ângulo muito maior do que este macaco poderá incliná-la.

A extremidade da tampa já se achava agora erguida uns 20 cm e Vance empregava ambas as mãos na alavanca do macaco. Era necessário que trabalhasse com todo o cuidado, temeroso de que a cabeça do macaco escorregasse sob a suave superfície do granito, 22 cm... 25 cm... 28 cm... 30 cm... A cremalheira já havia quase atingido seu limite de elevação. Com um impulso final para baixo, Vance soltou a alavanca e testou a solidez do macaco completamente distendido.

— Está firme, creio...

Heath já tirara do bolso sua lanterna e lançava seu foco no interior dos escuros recessos do sarcófago.

— Mãe de Deus! — exclamou ele.

Eu estava de pé logo atrás, inclinado sobre os seus ombros largos; simultaneamente com o clarão da lanterna vi a coisa horrorosa que provocara sua exclamação. No fundo do sarcófago via-se um corpo humano todo torcido, com as costas voltadas para cima e as pernas incrivelmente dobradas, como se alguém o tivesse apressadamente enfiado pela abertura, com a cabeça em primeiro lugar.

Markham permaneceu inclinado para a frente como uma pessoa paralisada no meio da ação.

A voz calma, mas insistente, de Vance quebrou a tensão de nosso horror.

— Mantenha a luz firme, sargento. E você, Markham, ajude-me. Mas, cuidado. Não encoste no macaco...

Com grande cuidado Vance se esticou para dentro do sarcófago e virou o corpo até que a cabeça ficasse voltada para o ponto mais amplo da abertura. Um calafrio percorreu minha espinha enquanto eu os observava, pois sabia que o menor esbarrão ou o mero encostar no macaco teria feito com que a maciça tampa de granito caísse sobre eles. Heath, também, percebeu o mesmo fato — eu podia notar as gotas de suor brilhando em sua testa enquanto observava a perigosa operação com o medo estampado nos olhos.

Vagarosamente o corpo emergiu pela estreita abertura e, quando os pés passaram pela borda do sarcófago e bateram no chão a luz da lanterna se apagou e Heath sentou-se com um suspiro convulsivo.

— Que diabo! Eu poderia ter falhado, Sr. Vance — resmungou ele. (Fiquei gostando ainda mais do sargento depois desse episódio.) Markham permanecia olhando para baixo, contemplando o corpo inerte com estupefação.

— Scarlett! — exclamou ele com voz de completa incredulidade.

Vance limitou-se a concordar com a cabeça e se inclinou sobre a figura prostrada. O rosto de Scarlett estava danoso devido à insuficiente oxigenação do sangue; seus olhos estavam saltados e fixos; havia uma crosta de sangue em torno de suas narinas. Vance encostou o ouvido no peito do homem e tomou seu punho em uma das mãos para sentir-lhe o pulso. Em seguida tirou sua cigarreira de ouro e a aproximou dos lábios de Scarlett. Após olhar a cigarreira voltou-se excitadamente para Heath.

— A ambulância, sargento! Depressa! Scarlett ainda está vivo...

Heath se despencou pelas escadas abaixo e desapareceu no saguão da frente.

Markham olhava Vance atentamente.

— Não estou compreendendo — disse ele asperamente.

— Nem eu... inteiramente. — Os olhos de Vance estavam fixos em Scarlett. — Eu o avisei que se mantivesse afastado daqui. Ele, também, sabia do perigo, mas mesmo assim... Você se lembra da dedicatória de Rider Haggard a seu filho no Allan Quatermain, quando ele fala do mais alto posto que pode ser obtido por alguém — o estado e a dignidade de um cavalheiro inglês? (1)... Scarlett era um cavalheiro inglês. Sabendo do perigo, veio aqui esta noite. Ele julgou que poderia dar um fim à tragédia.

 

 

(1) Na verdadeira dedicatória lê-se: "Dedico este livro de aventuras a meu filho Arthur John Rider Haggard, na esperança de que no futuro ele e muitos outros rapazes, a quem jamais conhecerei, possam, nos atos e nas palavras de Allan Quatermain e seus companheiros, aqui registrados, encontrar algo que os ajude a conseguir o que, de acordo com Sir Henry Curtis, afirmo ser o mais alto posto que alguém jamais pode obter — o estado e a dignidade dos cavalheiros ingleses."

 

 

Markham estava atordoado e intrigado.

— Temos que agir de algum modo... agora.

— Sim... — Vance estava profundamente preocupado. — Mas é difícil! Não há provas. Não há esperança para nós... A não ser que... — Vance cortou a frase. — Aquela carta hieroglífica! Talvez esteja por aqui em algum lugar. Esta noite era a ocasião, mas Scarlett chegou inesperadamente. Não sei se ele também sabia disso... — Os olhos de Vance fixaram-se no espaço e, durante alguns momentos, ele permaneceu rígido. Em seguida dirigiu-se subitamente até o sarcófago e, acendendo um fósforo, olhou o seu interior.

— Nada. — Havia um triste desapontamento no tom de sua voz. — Ainda assim, deveria estar aqui... — Empertigou-se. — Talvez... sim! Isso também seria lógico.

Ajoelhou-se ao lado do homem inconsciente e se pôs a remexer em seus bolsos. O paletó de Scarlett estava abotoado e somente quando Vance chegou aos bolsos de dentro é que sua busca foi recompensada. Vance dele tirou uma folha amassada de papel amarelo, do tipo em que Salveter fizera seu exercício de egípcio, e após uma olhada para o papel meteu-o no bolso.

Heath apareceu à porta.

— OK — gritou ele para baixo. — Disse que viessem correndo.

— Quanto tempo vai demorar? — quis saber Vance.

— Não será mais de dez minutos. Chamei o Posto Central e de lá transmitirão a mensagem para o posto local. Normalmente pegam quem está de ronda, mas isso não retarda as coisas. Esperarei por eles na porta.

— Um momento. — Vance escreveu alguma coisa nas costas de um envelope e entregou este a Heath. — Chame a Western Union e envie este telegrama.

Heath apanhou a mensagem, leu-a, assobiou suavemente e saiu para o saguão.

— Estou telegrafando a Salveter em Nova Haven, para sair do trem em Nova London e voltar a Nova York — explicou Vance a Markham. — Ele poderá pegar o expresso em Nova London e estará aqui amanhã pela manhã.

Markham olhou-o com um olhar astuto.

— Você acha que ele virá?

— Oh, sim.

Quando a ambulância chegou, Heath escoltou o interno, o motorista de uniforme azul e o policial ao interior do museu. O interno, um rapaz corado com expressão séria, inclinou-se para Markham e se ajoelhou ao lado de Scarlett. Após um exame superficial fez um sinal para o motorista.

— Cuidado com sua cabeça.

O homem, ajudado pelo policial, colocou Scarlett na padiola.

— Ele está muito mal, doutor? — perguntou Markham, ansiosamente.

— Muito, senhor. — O interno sacudiu a cabeça pomposamente. — Uma feia fratura de base do crânio. Respiração Cheyne-Stokes. Se sobreviver terá mais sorte do que eu jamais terei. — Com um dar de ombros o interno acompanhou a padiola para fora da casa.

— Telefonarei para o hospital mais tarde — informou Markham a Vance. — Se Scarlett sobreviver nos poderá fornecer a prova.

— Não conte com isso —- desencorajou-o Vance. — O episódio desta noite foi isolado. — Encaminhou-se até o sarcófago e acionou o macaco para a posição reversa. Lentamente a tampa desceu para sua posição original. — Um tanto perigoso deixar a tampa aberta.

Markham permanecia por perto, carrancudo.

— Vance, que papel foi aquele que você encontrou no bolso de Scarlett?

— Creio que era um documento incriminatório escrito em hieróglifos egípcios. Veremos.

Colocou o papel em cima do sarcófago e o alisou, Era quase igual à carta que Vance havia reconstituído no escritório de Bliss. A cor do papel era a mesma e continha quatro linhas de hieróglifos escritos com tinta verde.

Vance estudou a carta enquanto Markham, Heath, que tinha voltado ao museu, e eu o observávamos.

— Deixem-me ver o quanto me lembro de meu egípcio — murmurou Vance. — Há anos que não faço nenhuma transliteração...

Colocou o monóculo no olho e inclinou-se para a frente.

— Meryet-Amun, aha-y o er yu son maut-y en merya-y men seshem pen dya-y em yeb-y era-y en marwet mer-en yu rekha-t khet nibet hir-sa hetpa-t na-y khejt shewa-n em debat nefra-n entot hena-y... Está tudo feito com grande precisão, Markham. Os substantivos e os adjetivos concordam quanto ao gênero, e as terminações verbais...

 

 

 

 

 

 

— Não dê importância a essas coisas — interrompeu-o Markham impacientemente. — O que está escrito no papel?

— Desculpe-me, velho Markham! — protestou Vance. — A linguagem do Reino Médio do Egito é muito difícil. Perto dela o copta, o assírio, o grego e o sânscrito não passam do abecedário. No entanto, posso dar-lhe uma tradução literal.

— Começou a ler vagarosamente. — “Bem-amada de Amûn, paro por aqui até que chegue o irmão de minha mãe. Não desejo que esta situação perdure. Tenho em meu coração que devo agir em favor de nosso bem-estar. Tendes que saber de tudo mais tarde. Ficareis satisfeita comigo quando estivermos livres do que bloqueia o nosso caminho, seremos felizes, vós e eu juntos..." Não é uma construção da Harvard, mas era assim a maneira de se expressar dos antigos egípcios.

— Bem, para mim não faz sentido — comentou Heath azedamente.

— Apropriadamente parafraseado, porém, faz um sentido dos diabos, sargento. No inglês corrente significa: "Meryt-Amen, estou esperando meu tio. Não posso agüentar mais esta situação e decidi empreender uma ação drástica em prol de nossa felicidade. Mais tarde você compreenderá tudo e me desculpará quando estivermos livres de todos os obstáculos e pudermos ser felizes juntos"... Faz algum sentido, sargento?

— Estou surpreendido! — Heath olhou para Vance com ar de crítica e desprezo. — E o senhor mandou aquele pássaro, Salveter, para Boston!

— Ele estará de volta amanhã — assegurou Vance.

— Mas, olhe aqui — os olhos de Markham estavam fixos no papel incriminatório —, e a outra carta que você reconstituiu? E esta carta, como veio parar no bolso de Scarlett?

Vance dobrou o papel cuidadosamente e colocou-o em sua carteira.

— Chegou a hora — disse ele vagarosamente — de lhes contar tudo. Talvez, quando vocês conhecerem os fatos, possam imaginar alguma linha de ação. Prevejo dificuldades legais pela frente, mas disponho agora de todas as evidências que jamais poderemos esperar. — Vance estava inquieto e preocupado. — A intrusão de Scarlett nos acontecimentos desta noite mudou os planos do criminoso. De qualquer modo, já posso convencê-los da incrível e abominável verdade.

Markham estudou Vance durante alguns momentos e uma luz de surpresa brilhou em seus olhos.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou ele. — Percebo o que quer dizer. — Cerrou os dentes. — Primeiro, porém, devo telefonar para o hospital. Há uma chance de que Scarlett nos possa ajudar — se ele sobreviver.

Markham encaminhou-se para a parte de trás do museu e subiu as escadas em espiral até o escritório. Poucos minutos mais tarde reapareceu, com sombrio ar de desânimo.

— Falei com o doutor — disse ele. — Não há uma chance em mil para Scarlett. Contusão cerebral... e sufocação. Aplicaram-lhe agora o pulmotor. Mesmo que ele consiga sobreviver ficará inconsciente durante uma ou duas semanas.

— Estava temeroso de que assim fosse. — Raramente eu vira Vance tão apreensivo. — Chegamos tarde demais. Mas — que diabo! — eu não poderia prever o seu quixotismo. E eu o avisei...

— Calma, velho. — Markham falou com bondade paternal. — A culpa não é sua. Não havia nada que você pudesse ter feito. E você estava certo em guardar a verdade para si mesmo...

— Desculpem-me! — Heath estava exasperado. — Eu mesmo não sou exatamente um inimigo da verdade. Por que não posso saber o que se passa?

— Pode sim, sargento. — Vance colocou a mão no ombro do outro. — Vamos até à sala de visitas. "E todas as montanhas e as elevações ficarão baixas, e o mau ficará bom, e planos os locais enrugados."

Encaminhou-se para as escadas e nós o seguimos.

 


XXI

 

 

O assassino

 

(Sábado, 14 de julho — 22:40 horas)

 

 

Brush se pôs de pé quando entramos na sala de visitas. Estava pálido e visivelmente assustado.

— Por que está preocupado? — perguntou-lhe Vance.

— Suponha, senhor, que eu seja acusado! — explodiu o homem. — Fui eu que deixei a porta aberta ontem pela manhã... eu queria obter um pouco de ar fresco. E então o senhor chegou e disse alguma coisa que teria acontecido ao Sr. Kyle. Sei que não deveria ter deixado a porta destrancada. (Percebi então por que ele tinha agido de maneira tão assustada.) — Você pode acalmar-se — disse-lhe Vance. — Sabemos quem matou o Sr. Kyle e posso assegurar-lhe que o criminoso não veio pela porta da frente.

— Obrigado, senhor. — As palavras foram acompanhadas por um suspiro de alívio.

— Agora diga a Hani para vir aqui. Depois pode ir para o seu quarto.

Mal Brush havia saído quando se ouviu o ruído de uma chave sendo enfiada na porta da frente. Um momento mais tarde o Dr. Bliss apareceu na entrada da sala de visitas.

— Boa noite, doutor — cumprimentou Vance. — Espero que não nos estejamos intrometendo. Mas há algumas perguntas que queremos fazer a Hani durante a ausência do Sr. Salveter.

— Compreendo — replicou Bliss, com um triste aceno de cabeça. — O senhor sabe, então, da excursão de Salveter a Boston.

— Ele telefonou para mim e perguntou se podia ir. Bliss encarou Vance com olhos pesados e inquisitivos.

— Seu desejo de viajar para o norte nesta época foi muito inusitado — comentou ele —, mas não fiz qualquer objeção. A atmosfera por aqui está muito deprimente e simpatizei com seu desejo de fugir dela.

— A que horas ele saiu de casa? — Vance fez a pergunta descuidadamente.

— Por volta das nove horas. Ofereci-me para levá-lo até a estação...

— Às nove? E onde estava ele entre as oito e as nove? Bliss parecia infeliz.

— Esteve comigo no escritório. Estávamos tratando de detalhes referentes às reproduções do Mobiliário da tumba de Hotpeheres.

— Ele estava com o senhor quando o Sr. Scarlett chegou?

— Sim. — Bliss cerrou o cenho. — Muito peculiar a visita de Scarlett. Evidentemente queria conversar com Salveter sozinho. Ele agiu de forma a mais misteriosa... tratou Salveter com uma espécie de frio ressentimento. Continuei, porém, a discutir o objetivo da viagem de Salveter ao norte...

— O Sr. Scarlett esperou?

— Sim. Ele observava Salveter como uma águia. Quando Salveter saiu, Scarlett o acompanhou.

— Ah! E o senhor, doutor? — Vance, aparentemente, estava absorvido na escolha de um cigarro em sua cigarreira.

— Eu fiquei no escritório.

— Foi essa a última vez que o senhor viu Scarlett e Salveter?

— Sim. Saí para um passeio por volta das nove e meia. Na saída dei uma olhada no museu, pensando que Scarlett talvez tivesse ficado e gostasse de me acompanhar. A sala, porém, estava vazia. Assim, fui pela avenida até a Praça Washington...

Vance tinha acendido o cigarro — Não o incomodaremos mais — O senhor deseja ver-me? — Sua atitude era de alheamento e, julguei eu, um pouco aborrecida.

— Sim. — Vance indicou uma cadeira de frente para a mesa. Em seguida voltou-se rapidamente para Bliss que já estava saindo.

— Numa segunda idéia, doutor, talvez seja aconselhável para nós tornar a lhe fazer perguntas a respeito do Sr. Salveter. O senhor poderia esperar no escritório?

— Claro que sim. — Bliss olhou Vance compreensivamente e se encaminhou para o saguão. Poucos momentos depois ouvimos a porta do escritório fechar-se.

Vance olhou Hani com um olhar curioso, que não entendi.

— Há algo que quero dizer ao Sr. Markham — disse Vance. — Você poderia ter a bondade de esperar no saguão e não deixar que ninguém nos perturbe?

Hani levantou-se.

— Com prazer, effendi. — Hani foi assumir seu posto do lado de fora.

Vance fechou as portas de dobrar e voltando até à mesa do centro sentou-se confortavelmente.

— Você, Markham, e o senhor, sargento, estavam ambos certos quando concluíram, ontem pela manhã, que o Dr. Bliss era o responsável pela morte de Kyle...

— Escute aqui! — Heath se pôs de pé num salto. — Que diabo...

— Calma, sargento. Por favor, sente-se e controle-se.

— Eu disse que ele era o assassino! E o senhor falou...

— Meu Deus! O senhor não pode acalmar-se? Está tão excitado, sargento. — Vance fez um gesto de desespero. — Lembro-me de que o senhor se referiu, deselegantemente, que Bliss havia "liquidado" o Sr. Kyle. Espero que o senhor não tenha esquecido que, ontem à noite, observei que muitas vezes chegamos ao mesmo destino e ao mesmo tempo, mas vindos de diferentes direções, — Obrigado, doutor. — e fumava melancolicamente. esta noite.

Hani entrou na sala.

— Era isso, então, o que o senhor queria dizer? — Heath retomou sua cadeira de mau humor. — Então, por que o senhor não me deixou prendê-lo?

— Porque era isso o que ele desejava que o senhor fizesse.

— Estou boiando — protestou Heath. — O mundo ficou maluco.

— Um momento, sargento. — Markham falou de maneira peremptória. — Estou começando a entender este caso. Não é absolutamente insano... Deixemos que o Sr. Vance continue.

Heath ia começar a reclamar, mas, ao invés, fez uma careta de resignação e se pôs a mastigar o charuto. Vance olhou-o com simpatia.

— Eu sabia, sargento — ou, pelo menos, tinha fortes suspeitas —, cinco minutos depois de termos entrado aqui no museu ontem pela manhã, que Bliss era a culpado. A história de Scarlett a respeito do encontro deu-me a primeira indicação. O telefonema de Bliss na presença de todos e suas observações a respeito do novo carregamento deram-me a impressão de que se encaixavam perfeitamente em um plano preconcebido. Então, quando vi os vários indícios, senti, positivamente, que haviam sido plantados pelo próprio Bliss. Para Bliss não se tratava apenas de apontar a si mesmo como suspeito, mas — também — de lançar suspeitas sobre uma outra pessoa. Felizmente, ele ultrapassou os limites da plausibilidade, pois, se alguma outra pessoa tivesse cometido o crime, os indícios forjados teriam sido em menor número e menos óbvios. Conseqüentemente, saltei para a conclusão de que Bliss tinha assassinado Kyle e, ao mesmo tempo, esforçava-se para nos fazer crer que ele tinha sido a vítima de uma trama...

— Mas, Sr. Vance — interrompeu Heath — o senhor disse...

— Eu não disse nenhuma palavra que lhes desse a impressão definitiva de que exonerava Bliss de culpa. Nem disse que ele era inocente... Pense um pouco. O senhor se lembrará de que eu disse apenas que os indícios não pareciam verdadeiros, que as coisas não eram o que pareciam. Eu sabia que os indícios eram armadilhas, criadas por Bliss para nos despistar. Eu também sabia — do mesmo modo que o Sr. Markham — que se prendêssemos Bliss com evidências aparentes, seria impossível condená-lo.

Markham concordou com a cabeça, meditativamente.

— Sim, sargento. O Sr. Vance está certo. Não me lembro de qualquer observação sua inconsistente com sua crença na culpa de Bliss.

— Embora eu soubesse que Bliss era o culpado — continuou Vance —, ignorava qual fosse seu objetivo final ou quem estava ele procurando envolver. Suspeitei que fosse Salveter, embora pudesse igualmente ter sido Scarlett, Hani ou a Sra. Bliss. Vi imediatamente a necessidade de determinar a verdadeira vítima de sua trama. Assim, fingi acreditar na situação óbvia. Não podia deixar que Bliss pensasse que eu suspeitava dele — minha única esperança residia em fingir que acreditava que o culpado fosse outra pessoa. Mas eu evitei as armadilhas destinadas a nós. Eu desejava que Bliss forjasse outros indícios contra sua vítima e, talvez, nos fornecesse algum explorável. Aí está por que lhes pedi que me acompanhassem no jogo de espera.

— Mas qual era a idéia de Bliss de se deixar prender? — perguntou Markham. — Havia perigo nisso.

— Muito pouco. Bliss provavelmente acreditava que mesmo antes de uma acusação ele ou o seu advogado poderiam persuadir você de sua inocência e da culpa de Salveter. Ou, se ele fosse levado a julgamento, tinha quase certeza de uma absolvição e estaria então inteiramente a salvo pelo acalentador princípio do duplo risco, ou autrefois acquit... Não, ele não estava correndo um grande perigo. E lembrem-se, também, que ele estava jogando uma grande partida. Uma vez que tivesse sido preso, sentir-se-ia justificado em acusar Salveter abertamente como assassino e imaginador da trama. Daí por que fui contra sua prisão, pois era exatamente aquilo que desejava. Enquanto Bliss se julgasse fora de suspeitas não havia razão em se defender à custa de Salveter. E, para envolver Salveter, ele foi forçado a forjar novas evidências, a conceber outros esquemas. E era nesses esquemas que eu confiava para a obtenção de provas.

— Estou perdido! — As cinzas do charuto de Heath se desprenderam e caíram em seu colete, mas ele nem notou.

— Mas, sargento, eu lhe dei inúmeros avisos. E havia o motivo. Estou convencido de que Bliss sabia que não viria mais auxílio financeiro da parte de Kyle e não há nada que ele não fizesse para assegurar a continuação de suas pesquisas. Além disso, estava com muito ciúme de Salveter, pois sabia que a Sra. Bliss amava o jovem.

— Mas por que — indagou Markham — ele não matou Salveter meramente?

— Oh, sim! O dinheiro era um fator capital... ele queria que Meryt herdasse a fortuna de Kyle. Seu segundo objetivo era eliminar Salveter do coração de Meryt-Amen: não havia motivo para liquidá-lo. Assim, Bliss planejou sutilmente afastar a suspeita de sua pessoa, fazendo parecer que Salveter não somente matou o tio, mas, também, procurou mandar outro para a cadeira em seu lugar.

Vance lentamente acendeu um outro cigarro.

— Bliss estava matando três coelhos com uma cajadada. Estava-se fazendo de mártir aos olhos de Meryt-Amen, eliminando Salveter e assegurando a sua mulher uma fortuna com a qual poderia continuar suas escavações. Poucos crimes têm tido tão poderosos motivos tríplices... Uma das coisas trágicas é que a Sra. Bliss acreditava bastante na culpa de Salveter e sofria abominavelmente. Lembrem-se de que ela tomou a atitude de declarar que queria que o criminoso fosse levado à justiça. E, durante todo o tempo, temia que fosse Salveter...

— Seja como for — disse Heath —, Bliss não parecia muito, ansioso em envolver Salveter no caso.

— Ah, mas estava, sargento. Constantemente estava procurando envolver Salveter, embora fingindo que não estivesse. Uma fingida relutância. Ele não podia ser demasiado óbvio a esse respeito, isso teria afastado sua caça... Vocês se lembram de minha pergunta sobre quem era o encarregado dos suprimentos médicos. Bliss hesitou, como se procurando proteger alguém. Muito inteligente.

— Mas, se o senhor sabia disso... — começou Heath.

— Eu não sabia de tudo isso, sargento. Sabia apenas que Bliss era o culpado, mas não tinha certeza de que Salveter fosse o objetivo de sua trama. Assim, tive que investigar e conhecer a verdade.

— De qualquer modo, eu estava certo desde o princípio, quando disse que Bliss era o culpado — declarou Heath obstinadamente.

— Claro que sim, sargento. — Vance falou quase afetivamente. — E eu me sentia terrivelmente mal em ter de contradizê-lo. — Vance levantou-se e se aproximando de Heath estendeu-lhe a mão. — O senhor me desculpa?

— Bem... talvez. — Os olhos de Heath traíam seu tom áspero ao apertar a mão de Vance. — De qualquer modo, eu estava certo!

Vance sorriu e sentou-se.

— A trama, em si mesma, era simples — continuou Vance depois de alguns instantes. — Bliss telefonou a Kyle na presença de todos e marcou um encontro para as onze horas. Mencionou, especificamente, o novo carregamento e sugeriu que Kyle viesse cedo. Já estava decidido sobre o assassinato — e na verdade sobre toda a trama —, quando combinou o encontro fatal. Deliberadamente Bliss deixou o alfinete de escaravelho em cima da mesa do escritório. Após matar Kyle, colocou o alfinete e o relatório financeiro ao lado do corpo. E observe, Markham, que Salveter tinha acesso a ambos os objetos. Além disso, Bliss sabia que Salveter tinha o hábito de ir ao museu depois do café matinal. Planejou o apontamento com Kyle de forma tal que, provavelmente, Salveter e o tio se encontrariam. Mandou Salveter ao Museu Metropolitano para que estivesse fora de casa enquanto ele assassinava Kyle. Fixou também a estátua de Sakhmet de modo tal que pareceria ser uma armadilha. O criminoso poderia facilmente ter voltado a qualquer momento antes de nossa chegada e colocado o pino e o relatório e feito as pegadas, desde que, claro, Bliss estivesse adormecido pelo efeito do ópio...

Heath retesou-se e olhou para Vance.

— Aquela armadilha era apenas fingida? — perguntou indignado.

— Nada mais do que isso, sargento. Foi montada depois do crime, de modo que, se Salveter tivesse um álibi, ainda assim poderia ser culpado. Além disso, a possibilidade de Kyle ter sido assassinado por uma pessoa ausente era um outro ponto a favor de Bliss. Por que iria Bliss se preocupar com uma armadilha mortal, se tinha todas as oportunidades de matar Kyle em contatos diretos? A armadilha era, meramente, mais um contra-indício...

— Mas o lápis usado na armadilha — interpôs Markham — não era do tipo dos que Salveter usava.

— Meu caro Markham! Bliss usou um de seus próprios lápis como haste vertical a fim de criar mais um indício contra si mesmo. Um homem que verdadeiramente estivesse montando uma armadilha mortal não iria empregar seu próprio lápis... empregaria o lápis do homem a quem estava procurando envolver. Assim, o doutor empregou seu próprio lápis — para lançar as suspeitas para outro lado. A armadilha, no entanto, não me enganou. Era por demais fortuita. Um assassino não correria um tal risco. A estátua poderia não cair exatamente na cabeça de Kyle. Uma outra coisa: um homem abatido daquela maneira provavelmente não cairia na posição em que encontramos Kyle, com a cabeça exatamente sob o ponto em que a estátua o atingiu e com os braços esticados. Quando fiz minha experiência e a estátua caiu exatamente onde tinha estado a cabeça de Kyle, percebi o quanto improvável era que, na verdade, ele tivesse sido morto pela estátua caindo. — Vance piscou os olhos. — Não levantei este ponto na ocasião porque desejava que vocês acreditassem na armadilha mortal.

— Certo mais uma vez! — Heath bateu na testa com a palma da mão, dramaticamente. — E nunca pensei nisso!... Claro que o desculpo, Sr. Vance!

— A verdade é, sargento, que fiz tudo o que podia para que o senhor não percebesse a incoerência desse fato. E o Sr. Markham também não percebeu1. Na verdade, Kyle foi morto enquanto olhava dentro do armário, por um golpe desferido por alguém por trás dele. Imagino, também, que tenha sido empregada uma daquelas pesadas maças de pórfiro. O corpo de Kyle foi arrumado na posição em que o encontramos e, então, a estátua de Sakhmet foi deixada cair sobre o seu crânio, obliterando a evidência do primeiro golpe.

 

 

 

(1) Nem eu. No entanto, enquanto esses meus registros estavam sendo publicados em série no American Magazine, vários leitores escreveram apontando a incoerência.

 

 

 

— Suponha, no entanto — objetou Markham —, que você não houvesse notado o anel solto da cortina?

— A armadilha foi montada de modo que descobríssemos este fato. Se nós não o tivéssemos percebido, Bliss teria chamado nossa atenção para o fato.

— E as impressões digitais... — começou Heath meio confuso.

— Foram deixadas propositadamente na estátua. Mais evidências, sabem, contra Bliss. Ele, porém, tinha um álibi em reserva. Sua primeira explicação era muito simples e específica: tinha movido Sakhmet porque não estava no lugar correto. A segunda explicação, no entanto, do por que não havia impressões digitais em Sakhmet viria mais tarde, após sua prisão, isto é, ninguém, de fato, teria empunhado a estátua: fora uma armadilha mortal montada por Salveter!

Vance fez um gesto com a mão aberta.

— Bliss cobriu todas as evidências contra sua pessoa com outras apontando para Salveter. Observem, por exemplo, a evidência das pegadas de sangue. Superficialmente elas apontavam para Bliss. Mas lá estava o onipresente contra-indício, isto é, ontem pela manhã ele estava usando chinelas e apenas um pé de tênis foi encontrado no escritório. O outro pé de tênis se encontrava em seu quarto, exatamente onde ele dissera que o deixara na noite anterior. Bliss, simplesmente, trouxe um dos pés de tênis cá para baixo, forjou as pegadas de sangue e colocou o pé do sapato na cesta de papéis. Ele queria que encontrássemos as pegadas e descobríssemos o sapato. E foi o que fizemos, isto é, o sargento fez. Sua resposta quanto às pegadas, após sua prisão, seria meramente dizer que alguém que tinha acesso ao seu quarto tinha levado o pé de tênis para baixo e forjado as pegadas para envolvê-lo.

Markham concordou com a cabeça.

— Sim — disse ele. — Estive tentado a eximi-lo de culpa, especialmente depois da descoberta do ópio em seu café.

— Ah, aquele ópio! O álibi perfeito! Que júri iria condená-lo após a evidência do ópio em seu café? Tê-lo-iam olhado como a vítima de uma trama. E o escritório do promotor distrital teria recebido severas críticas... E no entanto, como foi simples o episódio do ópio! Bliss pegou a lata no armário, extraiu dela o que precisava para o ardil e colocou o pó no fundo de sua xícara.

— Você não acreditou que ele estivesse narcotizado?

— Não. Eu sabia que ele não estava. Um narcótico contrai as pupilas e as de Bliss estavam dilatadas de excitação. Percebi que ele estava fingindo e isso me fez suspeitar de que encontraria uma droga em seu café.

— Mas, e a lata? — A pergunta foi feita por Heath. — Nunca entendi direito aquele negócio da lata. O senhor mandou Hani...

— Calma, sargento! — Vance falou com bom humor. — Eu sabia onde estava a lata e desejava unicamente me certificar do quanto Hani também sabia.

— Estou percebendo o ponto do sargento — interveio Markham. — Nós não sabíamos que a lata de ópio estava no quarto de Salveter.

— Oh, e agora, sabemos? — Vance se voltou na direção do saguão. — Hani!

O egípcio abriu a porta de correr.

— Escute aqui. — Vance olhou diretamente nos olhos do homem. — Estou profundamente surpreendido com sua atitude de simulação, mas desejamos conhecer alguns fatos. Onde você encontrou a lata de ópio?

— Effendi, já não há mais necessidade de simulação. O senhor é um homem de profunda sabedoria e confio no senhor. A lata estava escondida no quarto do Sr. Salveter.

— Muito obrigado — Vance foi quase brusco. — E agora volte para o saguão.

Hani saiu e fechou a porta suavemente.

— E, por não descer para o café ontem pela manhã — continuou Vance —, Bliss sabia que sua mulher e Salveter estariam sozinhos na saleta de refeições e que o rapaz poderia, facilmente, ter posto o ópio no seu café...

— Mas — perguntou Markham —, se você sabia que Bliss pôs o ópio no próprio café, por que todo o interesse no samovar?

— Eu tinha que ter certeza contra quem a trama de Bliss era dirigida. Ele estava tentando fazer crer ser a própria vítima da trama. Como o seu objetivo era envolver alguma outra pessoa, eu sabia que a verdadeira vítima tinha que ter tido acesso ao café ontem pela manhã.

Heath balançou a cabeça meditativamente.

— Isso foi fácil. O velho estava fingindo que alguém tentara proporcionar-lhe algo para apagar, e se o pássaro a quem estava querendo incriminar não pudesse tê-lo feito, a trama teria ido para as pitangas... Mas escute aqui, Sr. Vance — Heath subitamente se lembrara de algo —, o que tinha em mente o doutor ao fingir que fugia?

— Isso era um resultado perfeitamente lógico do que acontecera antes — explicou Vance. — Depois que nos recusamos a prendê-lo, o doutor começou a preocupar-se. Como sabem, ele ansiava por ser preso e nós o desapontamos tremendamente. Sentado em seu quarto, Bliss se pôs a planejar. Como poderia ser capaz de fazer com que déssemos atrás e o fizéssemos prender, desta forma dando-lhe a chance de apontar todas as evidências do ardiloso plano de Salveter contra ele? Decidiu-se a tentar a fuga. Esse gesto, supôs Bliss, sem duvida levantaria novamente as suspeitas contra ele. Assim, saiu simplesmente, retirou todo seu dinheiro do banco, foi de táxi até a Estação Grand Central, perguntou abertamente a respeito de trens para Montreal e permaneceu ostensivamente no portão aguardando o trem... Ele sabia que Guilfoyle o estava seguindo, pois, se estivesse realmente tentando fugir, podem ter certeza de que o policial jamais o teria acompanhado. O senhor, sargento, aceitou a ação de Bliss pelo que ela aparentava ser e tive medo de que sua tola tentativa produzisse o resultado exato que Bliss esperava — isto é, ser novamente preso. Foi por isso que combati essa idéia tão apaixonadamente.

Vance se inclinou para trás mas não se descontraiu. Em sua atitude havia um rígido alerta.

— E como o senhor não o algemou, sargento — continuou Vance —, Bliss foi forçado a dar mais um passo. Ele tinha que forjar um caso contra Salveter. Assim, imaginou e executou o drama com a adaga. Deliberadamente mandou que Salveter fosse ao escritório para apanhar um livro memorando na mesa onde a adaga estava guardada...

— E a bainha! — exclamou Markham.

— Oh, claro. Foi esse o indício real contra Salveter. Colocando a bainha no quarto de Salveter, Bliss estava-nos sugerindo que poderíamos encontrar o provável assassino pela localização daquela peça. Eu sabia onde se encontrava a bainha no momento em que ele tão auxiliadoramente a mencionou; assim, dei a Hani uma chance de mentir a respeito...

— Você quer dizer que Hani não encontrou a bainha no saguão?

— Claro que não.

Vance tornou a chamar Hani lá no saguão.

— Onde você encontrou a bainha da adaga real? — perguntou.

Hani respondeu sem um momento de hesitação.

— No quarto do Sr. Salveter, effendi... como o senhor bem o sabe.

Vance concordou com a cabeça.

— E por falar nisso, Hani, alguém se aproximou desta porta esta noite?

— Não, effendi. O doutor está ainda em seu escritório. Vance despediu-o com um gesto e prosseguiu.

— Pode ver, Markham, que Bliss colocou a bainha no quarto de Salveter e, em seguida, lançou a adaga contra a cabeceira de sua cama. Telefonou para mim e, quando chegamos, deu-nos uma descrição complicada, mas plausível, de ter sido atacado por um inconnu.

— Ele foi um excelente ator — comentou Heath.

— Sim... de um modo geral. Mas houve um aspecto psicológico de que se descuidou. Se tivesse, de fato, sido alvo de um ataque criminoso, Bliss não teria ido sozinho no escuro para me telefonar. Teria, em primeiro lugar, acordado todo o mundo.1

 

 

(1) Deve ser lembrado que, no caso Greene, o criminoso, fingindo estar amedrontado pelos sinistros perigos que se escondiam nos corredores escuros da mansão de Greene, cometeu um similar erro de julgamento psicológico, descendo para a despensa no meio da noite, sem outra razão que não a de satisfazer uma certa vontade de comer.

 

 

— Isso é razoável. — Markham se tornava impaciente. — Mas você disse alguma coisa a respeito de o quadro não estar completo...

— A carta! — Vance se pôs de pé e jogou o cigarro fora. — Era o fator que estava faltando. Eu não podia entender por que a carta hieroglífica forjada não apareceu à noite passada — era essa a oportunidade perfeita. Mas a carta não aparecia em lugar nenhum e isso me deixava intrigado... No entanto, quando encontrei Scarlett trabalhando no museu, eu compreendi. O doutor — estou convencido — pretendeu colocar a carta forjada, que temporariamente havia posto na gaveta da mesa, no quarto de Meryt-Amen ou em algum outro lugar onde pudéssemos encontrá-la. Entretanto, quando olhou para dentro do museu através da porta do escritório, viu Scarlett trabalhando na mesa. Assim, deixou a carta passar, reservando-a para uso futuro — no caso em que não prendêssemos Salveter após o episódio da adaga. Quando eu, deliberadamente, desprezei os indícios que o doutor havia preparado contra Salveter, sabia que a carta não tardaria a aparecer. Eu estava temeroso de que Scarlett, de algum modo obstasse o esquema de Bliss, razão pela qual o avisei de que se conservasse afastado da casa. Não sei o que mais eu poderia ter feito.

— Nem eu. — O tom de Markham era consolador. — Scarlett devia ter seguido o seu conselho.

— Mas não o fez — suspirou Vance, lamentando-se.

— Você pensa, então, que Scarlett suspeitava da verdade?

— Indubitavelmente. E suspeitou logo no início da partida. Mas não tinha certeza bastante para falar. Temia estar cometendo uma injustiça com o doutor. Assim, sendo um cavalheiro inglês, guardou silêncio. Em minha opinião, Scarlett começou a se preocupar com esta situação e resolveu finalmente ir a Bliss...

— Então alguma coisa deve tê-lo convencido.

— A adaga, Markham. Bliss cometeu um grave erro a esse respeito. Scarlett e Bliss eram as duas únicas pessoas que sabiam da arma contrabandeada. Quando mostrei a arma a Scarlett e informei-o de que tinha sido usada em uma tentativa contra a vida de Bliss, ele ficou sabendo conclusivamente que o doutor imaginara toda a lenda.

— E ele veio aqui esta noite para se defrontar com Bliss?

— Exatamente. Scarlett percebeu que Bliss estava procurando envolver Salveter e queria que Bliss soubesse que todo o seu monstruoso esquema estava desvendado. Scarlett veio aqui para proteger um inocente — a despeito do fato de que Salveter fosse seu rival, como era o caso, nas afeições de Meryt-Amen. Isso seria bem de Scarlett... — Vance parecia triste. — Quando enviei Salveter a Boston pensei que tivesse eliminado todas as possibilidades de perigo. Scarlett, porém, achou que deveria tomar as rédeas em suas próprias mãos. Sua atitude foi muito bonita, porém mal avisada. O problema todo estava em que isso dava a Bliss a oportunidade pela qual ele esperava. Quando Bliss não conseguiu retirar do museu a carta forjada, na noite passada, e quando declinamos de seu convite de encontrar a bainha no quarto de Salveter, era preciso que ele lançasse seu trunfo — a carta forjada.

— Sim, sim. Entendo. Mas onde se encaixa Scarlett?

— Quando Scarlett veio aqui esta noite, Bliss, sem dúvida, ouviu sua acusação diplomaticamente e então, com algum pretexto, conseguiu atraí-lo até o museu. Quando Scarlett se descuidou, Bliss o golpeou na cabeça — provavelmente com uma daquelas maças do último armário — e o colocou dentro do sarcófago. Foi um problema simples para ele apanhar o macaco de seu carro, que fica estacionado aí fora, na rua... lembrem-se de que ele se ofereceu para levar Salveter à estação...

— Mas, e a carta?

— Você não percebe que tudo se encaixa? O ataque a Scarlett teve lugar entre as oito e as oito e meia. Salveter, provavelmente, encontrava-se lá em cima, dando adeus à Sra. Bliss. De qualquer modo, estava na casa e poderia ter sido o assassino de Scarlett. A fim de tornar claro que Salveter era de jato o assassino de Scarlett, Bliss amassou a comprometedora carta forjada e a enfiou no bolso de Scarlett. Queria tornar aparente que Scarlett viera aqui esta noite para se defrontar com Salveter, mencionara a carta que tinha encontrado na gaveta da mesa e fora assassinado pelo rapaz.

— Mas, e por que Salveter não teria levado a carta?

— Na presunção de que Salveter não sabia que Scarlett tinha a carta no bolso.

— O que quero saber — interveio Heath — é como Bliss veio a tomar conhecimento da carta original de Salveter.

— Este ponto é facilmente explicável, sargento. — Vance puxou a cigarreira. — Salveter, indubitavelmente, voltou ao museu ontem pela manhã, como ele mesmo nos disse, e estava trabalhando em sua carta quando Kyle chegou. Salveter, então, enfiou a carta na gaveta da mesa e se dirigiu ao Museu Metropolitano a fim de cumprir sua missão. Bliss, que provavelmente o estava observando por uma fresta na porta do escritório, viu-o pôr o papel de lado e mais tarde foi buscá-lo para ver do que se tratava. Sendo uma carta indiscreta para Meryt-Amen, o fato deu a Bliss uma idéia. Levou a carta para o seu escritório e tornou a escrevê-la, fazendo-a diretamente incriminante; em seguida rasgou o original. Quando eu soube que a carta tinha desaparecido fiquei preocupado, pois suspeitei de que Bliss se tivesse apossado dela. Quando vi que a carta tinha sido destruída e jogada fora, convenci-me de que encontraríamos uma outra carta. Mas, desde que eu tinha o original em minhas mãos, acreditei que a carta forjada, quando aparecesse, nos daria uma prova contra Bliss.

— Era por isso que o senhor estava tão interessado naquelas três palavras?

— Sim, sargento. Custava-me acreditar que Bliss usaria tem, was e ankh ao tornar a escrever a carta, pois ele não poderia saber que Salveter nos tinha falado a respeito e citado especificamente essas três palavras. De fato, nenhuma das três palavras se encontrava na carta forjada.

— Um perito caligráfico, porém...

— Oh, sargento! Não seja tão ingênuo. Um perito em caligrafia é um cientista romântico, mesmo quando se trata da grafia em inglês, que lhe é familiar. E todas suas regras estão baseadas em idiossincrasias da escrita manual. Nenhum perito em artes pode dizer com segurança quem fez um desenho — e a escrita egípcia é, em sua maior parte, desenhos. Desenhos falsos, de Michelangelo, por exemplo, são vendidos freqüentemente por negociantes espertos. A única aproximação em tais assuntos é a aproximação estética, e não há qualquer estética nos hieróglifos egípcios.

Heath fez uma careta.

— Bem, se a carta forjada não podia ser admitida como prova, qual era a idéia do doutor?

— O senhor não percebe, sargento, que mesmo que a carta não pudesse ser identificada com Salveter de forma absoluta, ela teria feito todo mundo acreditar que o rapaz era culpado e conseguira fugir a uma condenação à base de tecnicismos legais? Meryt-Amen certamente teria acreditado que Salveter escrevera a carta; e era isso o que Bliss queria.

Vance voltou-se para Markham.

— Este é um aspecto legal que realmente não tem importância. Salveter poderia não ser condenado, mas a trama de Bliss, de qualquer modo teria obtido sucesso. Com a morte de Kyle, Bliss teria acesso à metade de sua fortuna — no nome de sua mulher, não há dúvida — e Meryt-Amen teria repudiado Salveter. Assim, Bliss teria tido êxito em todos seus truques. Mesmo legalmente Salveter poderia vir a ser condenado, se não fosse a remoção que Hani fez de dois indícios diretos, do quarto de Salveter — a lata de ópio e a bainha. Além disso, havia a carta no bolso de Scarlett.

— Mas, Vance, como a carta poderia vir a ser encontrada? — indagou Markham. — Se você não tivesse suspeitado da trama e procurado o corpo de Scarlett, este poderia ter permanecido no sarcófago quase indefinidamente.

— Não. — Vance sacudiu a cabeça. — Scarlett teria que permanecer no sarcófago apenas uns dias. Quando, amanhã, fosse constatado que ele estava desaparecido, Bliss provavelmente encontraria o corpo para nós, juntamente com a carta.

Vance olhou para Markham inquisitivamente.

— Como conseguiremos ligar Bliss com o crime, já que Salveter se encontrava na casa na hora do ataque?

— Se Scarlett se recuperasse...

— Se!... Exatamente. Mas, suponhamos que ele não se recupere — e as chances são contra ele. Então? Scarlett, quando muito, poderia testemunhar que Bliss cometeu contra ele um ataque abortivo e mal sucedido. Na verdade, seria possível condená-lo por assalto criminoso, mas isso deixaria o assassinato de Kyle ainda sem solução. E se Bliss alegasse que Scarlett o atacara e que ele revidara ao ataque em autodefesa, seria difícil que você obtivesse sua condenação mesmo por tentativa de morte.

Markham levantou-se e ficou caminhando para cá e para lá na sala. Heath, então, fez uma pergunta.

— Como esse Ali Babá entra no quadro, Sr. Vance?

— Hani sabia desde o princípio o que tinha acontecido e foi bastante sabido para perceber a trama que Bliss desenvolvia contra Salveter. Ele adorava Salveter e Meryt-Amen, e queria que fossem ambos felizes. O que poderia Hani fazer senão aplicar todas as suas energias para proteger os dois? E certamente foi o que fez, sargento. Os egípcios não são como os ocidentais. Era contra sua natureza falar francamente e nos contar de suas suspeitas. Hani desenvolveu um jogo inteligente... o único jogo que poderia desenvolver. Hani jamais acreditou na vingança de Sakhmet. Apenas usou sua logomaquia supersticiosa para encobrir a verdade. Lutou, com suas palavras, pela segurança de Salveter.

Markham parou na frente de Vance.

— É tudo inacreditável! Nunca soube de um criminoso igual a Bliss.

— Oh, não lhe tribute demasiado crédito. — Vance acendeu o cigarro que mantivera na mão nos últimos cinco minutos. — Ele assustadoramente exagerou nos indícios, fazendo-os demasiado gritantes. Aí residiu sua fraqueza.

— Ainda assim — replicou Markham —, se você não tivesse entrado em cena eu teria levantado uma acusação de culpa contra ele.

— E você teria caído em suas mãos. Porque eu não queria que isso acontecesse, fingi argumentar contra a culpa de Bliss.

— Um palimpsesto! — comentou Markham após alguns momentos.

Vance deu uma tragada profunda em seu cigarro.

— Exatamente. Palimpsestas... "torne a limpar suavemente". Em primeiro lugar a verdadeira história do crime, cuidadosamente indicada. Em seguida, foi apagada e tornada a escrever, com Salveter como vilão. Esta história foi também apagada e o conto original — em esboço grotesco e cheio de incoerências e furos — foi novamente escrito. Nós deveríamos ler a terceira versão, tornarmo-nos cépticos a seu respeito, e encontrar entre as linhas os indícios da culpa de Salveter. Coube-me seguir a primeira e original versão — a verdade duas vezes escrita.

— E o senhor o conseguiu, Sr. Vance! — Heath se pusera de pé e se encaminhara para a porta. — O doutor está no escritório, Chefe. Eu mesmo vou levá-lo ao Posto Central.


XXII

 

O julgamento de Anúbis

 

 


(Sábado, 14 de julho — 23:00 horas)

 

 

— Calma, sargento! Não se apresse. — A despeito do tom arrastado da voz de Vance, Heath imediatamente se deteve. — Se eu fosse o senhor, pediria ao Sr. Markham que lhe fornecesse alguns conselhos legais, antes de prender o doutor.

— Os conselhos legais que se danem!

— Oh, claro. Em princípio concordo com o senhor. Mas não há necessidade de sermos temerários a respeito desses assuntos. Sempre é bom usar cautela.

Markham, que se encontrava de pé ao lado de Vance, levantou a cabeça.

— Sente-se, sargento — determinou ele. — Não podemos prender um homem baseado na teoria. — Foi até à lareira e voltou. — Temos que pensar no assunto. Não temos provas contra Bliss. Não o poderíamos manter por uma hora se um bom advogado tomasse conta do caso.

— E Bliss sabe disso — observou Vance.

— Mas ele matou Kyle! — protestou Heath.

— Sem dúvida. — Markham sentou-se ao lado da mesa e apoiou p queixo nas mãos. — No entanto, não tenho nada tangível para apresentar ao grande júri. E, como diz o Sr. Vance, mesmo que Scarlett se recupere, eu teria apenas uma acusação de tentativa de assassínio contra Bliss.

— O que me faz ferver, senhor — resmungou Heath —, é como um sujeito pode cometer um crime quase a nossa vista e nada lhe acontecer. Não é razoável.

— Ah, mas pouca coisa é razoável neste mundo fantástico e irônico, sargento — comentou Vance.

— Bem, de qualquer modo — retrucou Heath —, eu prenderia imediatamente esse pássaro e correria o risco de fazer com que a acusação colasse.

— Também penso assim — disse Markham. — Mas não importa o quanto estejamos convencidos da verdade devemos ser capazes de apresentar provas conclusivas. E este demônio cobriu todas as provas tão inteligentemente que qualquer júri do país o absolveria, mesmo que o pudéssemos levar a julgamento, o que é altamente duvidoso.

Vance suspirou e se pôs de pé.

— A lei! — Vance falou com fervor fora do comum. — E as salas onde essa lei é posta à vista do público chamam-se cortes de justiça. Justiça! Oh, minha preciosa tia! Summum jus, summa injuria. Como é possível a obtenção de justiça, ou mesmo de informações, em echolalia? Aqui estamos nós três — um procurador distrital, um sargento do Departamento de Homicídios e um amante do Concerto em Si Bemol para Piano, de Bach — com um criminoso conhecido a menos de quinze metros onde nos encontramos; e nada podemos fazer. Por quê? Porque esta elaborada invenção de imbecis, denominada lei, falhou em proporcionar o extermínio de um assassino desprezível e perigoso, que não somente assassinou seu benfeitor a sangue-frio, como também tentou matar um outro homem decente, esforçando-se por incriminar um terceiro homem inocente em ambos os crimes, tudo para que pudesse continuar a desenterrar cadáveres antigos e venerados!... Não é de admirar-se que Hani os deteste. No fundo, Bliss é uma hiena e Hani um homem honrado e inteligente.

— Admito que a lei seja imperfeita — interrompeu Markham desajeitadamente. — Sua dissertação, no entanto, é completamente inútil. Estamos-nos defrontando com um problema terrível e deve ser encontrada uma forma de resolvê-lo.

Vance continuava junto da mesa com os olhos fixos na porta.

— Mas sua lei jamais resolverá este problema — disse ele. — Você não pode condenar Bliss; você nem ousa prendê-lo. Ele poderá transformá-lo em um palhaço em todo o país, se tentar prendê-lo. Além disso, Bliss se tornaria uma espécie de herói perseguido por uma polícia incompetente e confusa, que tinha injustamente saltado em cima dele num momento de titubeante desespero, a fim de salvar suas linhas mais ou menos clássicas Vance deu uma tragada profunda no cigarro.

— Velho Markham, estou inclinado a pensar que os deuses do antigo Egito eram mais inteligentes do que Sólon, Justiniano e todos os demais fazedores de leis combinados. Hani estava trapaceando a respeito da vingança de Sakhmet, mas, afinal de contas, a dama do disco solar seria exatamente tão eficiente quanto seus tolos estatutos. Idéias mitológicas são, largamente, não-senso; mas, como não-senso, serão elas mais absurdas do que a lei de nossos dias?

— Pelo amor de Deus, pare com isso. — Markham estava irritado.

Vance encarou-o preocupado.

— Você está com as mãos atadas pelo tecnicismo de um sistema judicial e, como resultado, uma criatura como Bliss continuará solta pelo mundo. Além disso, um sujeito, inofensivo como Salveter será posto sob suspeição e arruinado. Também Meryt-Amen — uma dama corajosa...

— Percebo tudo isso. — Markham se levantara, com uma expressão de agonia estampada em seu rosto. — Mesmo assim, Vance, não há prova alguma convincente contra Bliss.

— É desanimador. Sua única esperança parece ser que o doutor sofra um acidente súbito e fatal. Tais coisas acontecem, como sabem.

Vance permaneceu fumando durante uns momentos.

— Se, pelo menos, os deuses de Hani dispusessem dos poderes sobrenaturais que lhes são atribuídos! — suspirou ele. — Como seria tremendamente simples! Na verdade Anúbis não se mostrou completamente neste caso. Ele tem-se mantido desesperadamente preguiçoso. Como deus do submundo...

— Basta! — Markham levantou-se. — Tenha um pouco de senso de oportunidade. Ser um esteta sem responsabilidades é, sem dúvida, delicioso, mas o progresso do mundo tem que continuar...

— Oh, absolutamente. — Vance parecia completamente indiferente à explosão do outro. — Você pode esboçar uma nova lei modificando as regras existentes a respeito de provas e apresentá-la à legislatura. A única dificuldade seria que pela ocasião que esses intelectuais estivessem discutindo e indicando comitês, você, eu, o sargento e Bliss já teríamos atravessado para sempre os sombrios corredores do tempo.

Markham voltou-se vagarosamente para Vance. Seus olhos eram meros traços.

— O que está escondido atrás de toda essa garrulice infantil? — perguntou ele. — Você tem qualquer coisa em mente.

Vance sentou-se na borda da mesa e, jogando fora o cigarro, enfiou as mãos profundamente nos bolsos.

— Markham — falou ele, com séria deliberação —, você sabe tão bem quanto eu que Bliss está fora do alcance da lei e que não há forma humana de condená-lo. O único meio pelo qual ele pode ser levado a julgamento é através de artifícios.

— Artifícios? — Markham ficou momentaneamente indignado.

— Oh, nada repreensível — respondeu Vance alheada-mente, pegando outro cigarro. — Considere, Markham... — Vance se lançou a uma detalhada recapitulação do caso. Eu não podia entender qual o objetivo de todo o seu palavrório, pois parecia que não tinha qualquer relação com o ponto crucial em discussão. Markham estava também intrigado. Várias vezes tentou interromper Vance, mas este levantava a mão imperativamente e continuava com sua descrição.

Após dez minutos Markham se recusou a permanecer em silêncio.

— Vamos ao ponto, Vance — disse ele um tanto zangado. — Você já nos disse tudo isso antes. Você tem ou não tem alguma sugestão?

— Sim, tenho uma sugestão. — Vance falou com seriedade. — É uma experiência psicológica e há uma chance de que dê resultado. Creio que, se Bliss se defrontar de repente com o que sabemos e se usarmos em cima dele um pouco de chicana, talvez admita algo que permita a você pôr-lhe a mão em cima. Bliss não sabe que encontramos Scarlett no sarcófago e podemos fingir que obtivemos do pobre sujeito uma declaração incriminatória. Podemos ir tão longe ao ponto de dizer-lhe que a Sra. Bliss está inteiramente convencida da verdade, pois, se ele acreditar que sua trama falhou e que não há esperanças de continuar suas escavações, talvez confesse tudo. Bliss é um colossal egoísta e, se for acuado num canto, poderá deixar explodir a verdade e blasonar a respeito de sua inteligência. E você deve admitir que a única forma de enviar o grande velhaco ao carrasco está numa confissão.

— Chefe, não podemos prender o sujeito à base dos indícios que ele forjou contra si mesmo? — perguntou Heath irritadamente. — Há o alfinete de escaravelho, as pegadas de sangue e as impressões digitais...

— Não, não, sargento. — Markham estava impaciente. — Bliss se cobriu quanto a cada um desses pontos e, no momento em que o prendermos, voltar-se-á contra Salveter. Tudo o que conseguiremos será a ruína de um homem inocente e a infelicidade da Sra. Bliss.

Heath capitulou.

— Sim, posso perceber isso — disse ele azedamente, após alguns momentos. — Mas esta situação acaba comigo. Já vi muitos patifes inteligentes na minha vida, mas este pássaro, Bliss, bate a todos eles... Por que não seguir a sugestão do Sr. Vance?

Markham interrompeu suas passadas nervosas e cerrou os dentes.

— Creio que teremos que fazê-lo. — Fixou seu olhar em Vance. — Mas não o trate com luvas de pelica.

— Na verdade nunca usei tais luvas. Camurça, sim, em certas ocasiões. No inverno sou favorável a couro de porco e a hiena. Mas pelica! Oh meu Deus!...

Vance foi até à porta de dobrar e abriu-a. Hani permanecia do lado de fora, de braços cruzados, uma sentinela atenta e silenciosa.

— O doutor saiu do escritório? — perguntou Vance, — Não, effendi. — Os olhos de Hani continuavam fixos à frente.

— Ótimo! — Vance começou a atravessar o saguão. — Venha, Markham. Vamos ver qual o resultado de um pouco de persuasão extralegal.

Markham, Heath e eu seguimos Vance. Este não bateu à porta do escritório, abrindo-a sem-cerimoniosamente.

— Oh! Há alguma coisa errada. — O comentário de Vance chegou-nos ao mesmo tempo que a constatação de que o escritório estava vazio. — Um tanto embaraçante. — Vance foi até à porta de aço que levava às escadas em espiral e abriu-a. — Sem dúvida o doutor está confraternizando com os seus tesouros. — Passou pela porta e desceu as escadas, tendo a nós em sua trilha.

Vance parou ao pé das escadas e levou a mão à testa.

— Jamais entrevistaremos Bliss neste mundo novamente — disse ele em voz baixa.

Não havia necessidade de explicação por parte de Vance. No canto oposto, quase no local exato em que tínhamos encontrado o corpo de Kyle no dia anterior, jazia Bliss esparramado, com o rosto voltado para baixo, no meio de uma poça de sangue. Atravessada na parte traseira de seu crânio esmagado, a estátua de Anúbis em tamanho natural. A pesada imagem do rei do submundo tinha aparentemente caído em cima dele quando se achava debruçado sobre seus preciosos artigos dentro do armário diante do qual assassinara Kyle. A coincidência era tão chocante que nenhum de nós articulou palavra durante alguns instantes. Permanecemos, numa espécie de paralisado horror, olhando para o corpo do grande egiptólogo.

Markham foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— É incrível! — Sua voz estava tensa e diferente de seu natural. — Há nisso uma retribuição divina.

— Oh, sem dúvida. — Vance aproximou-se da base da estátua e inclinou-se. — No entanto, não sou muito místico. Sou empírico... o mesmo que Weininger disse que os ingleses são.1 Vance ajustou o monóculo. — Ah!... Desculpem-me por desapontá-los e tudo o mais. Mas não há nada de sobrenatural a respeito da morte do doutor. Atente, Markham, que os tornozelos de Anúbis estão quebrados... A situação é bastante óbvia. Enquanto o doutor estava debruçado sobre seus tesouros, esbarrou na estátua de alguma forma e ela caiu-lhe em cima.

 

 

 

(1) Vance estava-se referindo à famosa passagem do Capítulo Das Judentum, do livro de Otto Weininger Geschlecht und Charakter.

 


Todos nós nos inclinamos para a frente. A pesada base da estátua de Anúbis estava exatamente onde nós a tínhamos visto pela primeira vez; mas a estátua, dos tornozelos para cima, tinha-se partido.

— Como vêem — estava dizendo Vance, apontando para a base — os tornozelos são muito finos e a estátua é feita de calcário — uma substância bastante frágil. Os tornozelos, sem dúvida, foram trincados durante o embarque e o peso tremendo do corpo aumentou a falha.

Heath examinou a estátua atentamente.

— Não há dúvida de que foi o que aconteceu — observou ele pondo-se de pé... Nunca tive muita coisa boa em minha vida, Chefe — acrescentou ele dirigindo-se a Markham com fingida alegria —, mas jamais desejei nada melhor do que isso. O Sr. Vance poderia ter atraído o doutor a uma confissão, mas poderia ter falhado. Agora não temos nada com que nos preocupar.

— É verdade. — Markham acenou a cabeça vagamente. Ele estava ainda sob a influência da assombrosa mudança de situação. — Entrego-lhe os encargos, sargento. O melhor é chamar a ambulância e o médico legista. Telefone para mim tão logo o trabalho de rotina esteja terminado. Eu cuidarei dos repórteres amanhã pela manhã... Graças a Deus o caso está encerrado!

Permaneceu parado durante algum tempo, com os olhos fixos no corpo. Parecia quase perturbado, mas eu sabia que um grande peso tinha sido retirado de sua cabeça pela inesperada morte de Bliss.

— Tomarei conta de tudo, senhor — assegurou-lhe Heath. — Mas quem vai dar a notícia à Sra. Bliss?

— Hani o fará — disse Vance. Pôs a mão no ombro de Markham. — Vamos, amigo velho. Você precisa dormir... Vamos dar uma passada em minha humilde morada e eu lhe oferecerei um conhaque com soda. Ainda tenho algum Napoléon-48.

— Obrigado. — Markham exalou profundo suspiro. Quando saímos no saguão da frente, Vance fez um sinal chamando Hani.

— É muito tocante, mas seu bem-amado patrão partiu para Amentet a fim de juntar-se às sombras dos faraós.

— Ele está morto? — indagou o egípcio, erguendo as sobrancelhas.

— Oh, sim, Hani. Anúbis caiu-lhe em cima quando ele se encontrava debruçado examinando o último armário. Uma morte muito eficiente. Mas houve nela uma certa justiça. O Dr. Bliss era o culpado pela morte do Sr. Kyle.

— O senhor e eu sabíamos disso, effendi. — Hani sorriu tristonhamente para Vance. — Temo, porém, que a morte do doutor tenha ocorrido por minha culpa. Quando desempacotei a estátua de Anúbis e a coloquei no canto, percebi que os tornozelos estavam trincados. Não disse nada ao doutor porque temi que ele me acusasse de ter sido descuidado ou de ter, propositadamente, danificado seu tesouro.

— Ninguém vai culpá-lo pela morte do Dr. Bliss — disse Vance casualmente. — Deixamos a seu cargo informar à Sra. Bliss sobre a tragédia. E o Sr. Salveter estará de volta amanhã pela manhã... Es-salamu alei-kum.

— Ma es-salam, effendi.

Vance, Markham e eu saímos para o ar pesado da noite.

— Vamos dar uma volta — propôs Vance. — É pouco mais de dois quilômetros até o meu apartamento e sinto necessidade de exercício.

Markham concordou com a sugestão e caminhamos em silêncio na direção da Quinta Avenida. Quando havíamos cruzado a Madison Square e passado pelo Stuyvessant Club, Markham falou.

— É quase inacreditável, Vance. Este é o tipo de coisa que torna alguém supersticioso. Aqui estávamos nós, defrontando-nos com um problema sem solução. Sabíamos que Bliss era culpado, mas, mesmo assim, não havia como apanhá-lo. Enquanto discutíamos o problema, Bliss entrou no museu e foi acidentalmente morto pela queda de uma estátua, praticamente no mesmo local em que assassinara Kyle... Que diabo! Tais coisas não acontecem no curso normal dos eventos do mundo. E o que torna tudo ainda mais fantástico é que você sugeriu que ele poderia sofrer um acidente.

— Sim, sim. Interessante coincidência. — Vance não parecia propenso a discutir o assunto.

— E o egípcio — continuou Markham. — Não ficou absolutamente Surpreendido quando você lhe falou da morte de Bliss. Ele agiu quase como se esperasse por essa notícia...

Subitamente Markham interrompeu-se. Vance e eu paramos também e olhamos para ele. Seus olhos brilhavam.

— Hani matou Bliss!

Vance suspirou e deu de ombros.

— Claro que foi ele, Markham. Meu Deus! Pensei que você tivesse compreendido a situação.

— Compreendido? — Markham parecia incoerente. — O que está querendo dizer?

— Tudo é por demais óbvio — respondeu Vance suavemente. — Percebi, do mesmo modo que você, que não havia forma de condenar Bliss. Assim, sugeri a Hani como poderia ser dado um fim a todo o caso...

— Você sugeriu a Hani?

— Durante nossa conversação na sala de visitas. Realmente, velho Markham, não costumo entregar-me a estranhas divagações sobre mitologia, a não ser que tenha uma razão. Simplesmente fiz com que Hani percebesse que não havia forma legal de levar Bliss à justiça e insinuei como poderia ele sobrepor-se a essa dificuldade e, incidentalmente, evitar a você uma situação verdadeiramente embaraçosa...

— Mas Hani permaneceu no saguão com a porta fechada. — A indignação de Markham crescia.

— Exatamente. Disse-lhe que permanecesse do lado de fora da porta. Tinha a certeza de que nos escutaria...

— Você, deliberadamente...

— Oh, o mais deliberadamente possível. — Vance abriu os braços em um gesto de rendição. — Enquanto falava com vocês e, indubitavelmente, fazia papel de tolo, eu estava realmente conversando com Hani. É claro que não poderia saber se ele se aproveitaria ou não da oportunidade. Mas ele se aproveitou. Armou-se com uma maça do museu — espero que tenha sido a mesma que Bliss usou em Kyle — e golpeou a cabeça do doutor. Em seguida arrastou o corpo pelas escadas em espiral, até lá embaixo, e o deixou aos pés de Anúbis. Com a maça quebrou os tornozelos da estátua e a fez cair sobre o crânio de Bliss. Muito simples.

— E todo aquele seu palavrório na sala de visitas...

— Era meramente para conservar você e Heath afastados, no caso em que Hani resolvesse agir.

Os olhos de Markham se estreitaram.

— Você não pode sair-se bem com essa espécie de coisa, Vance. Vou processar Hani pelo crime. Haverá impressões digitais...

— Oh, não, não haverá impressões digitais, Markham. Você não notou as luvas na chapeleira? Hani não é tolo. Ele calçou as luvas antes de ir ao escritório. Seria muito mais difícil a você conseguir condená-lo do que a Bliss. Pessoalmente admiro muito Hani. Sujeito decidido!

Durante algum tempo Markham estava zangado demais para falar. Finalmente, porém, deu voz a uma exclamação.

— É ultrajante!

— Claro que é —- concordou Vance amistosamente. — Assim foi o assassinato de Kyle — Acendeu um cigarro e tragou prazerosamente. — O que há de errado com vocês, advogados, é que são muito ciumentos e sedentos de sangue. Você queria mandar pessoalmente Bliss para a cadeira elétrica e não pôde fazê-lo. Hani simplificou as coisas para você. Em minha opinião, você está simplesmente desapontado porque outrem cobrou a vida de Bliss antes que você pudesse fazê-lo... Realmente, sabe, Markham, você é tremendamente egoísta.

 

 

 

 

Creio que não faltará um curto post-scriptum. Markham não encontrou dificuldades, como o leitor sem dúvida se lembrará, em convencer a imprensa de que Bliss tinha sido o culpado pela morte de Benjamin H. Kyle e que sua trágica morte "acidental" tinha muito daquilo a que comumente se chama de justiça divina.

Scarlett, ao contrário do que previra o médico, recuperou-se. No entanto, passaram-se muitas semanas antes que pudesse falar racionalmente. Vance e eu o visitamos no hospital no fim de agosto e ele corroborou a teoria de Vance sobre o que tinha acontecido na noite fatal no museu. Scarlett voltou para a Inglaterra em princípios de setembro — seu pai morrera, deixando-lhe uma propriedade endividada em Bedfordshire.

A Sra. Bliss e Salveter se casaram em Nice no fim da primavera seguinte, e as escavações do túmulo de Intef, de acordo com os boletins do Instituto Arqueológico, ainda continuam. Salveter está encarregado dos trabalhos e sinto-me feliz em assinalar que Scarlett é o perito técnico da expedição.

Hani, segundo uma carta recente de Salveter a Vance, "reconciliou-se com a violação das tumbas de seus ancestrais". Continua com Meryt-Amen e Salveter e estou inclinado a pensar que o seu amor por esse jovem casal é maior do que seus preconceitos nacionais.

XIV

 

Uma carta hieroglífica

 

Sexta-feira, 13 de julho — 16:15 horas)

 

 

Markham levantou-se irritadamente e percorreu todo o comprimento da sala, voltando em seguida. Como sempre, em momentos de perplexidade, tinha mãos cruzadas às costas e cabeça projetada para a frente.

— Que se danem todas as suas tias! — resmungou ele, quando chegou ao lado de Vance. — Você está sempre chamando por uma tia. Será que não tem nenhum tio?

Vance abriu os olhos e sorriu com brandura.

— Sei como você se sente. — A despeito do tom leviano de sua voz, havia uma inegável simpatia em suas palavras. — Ninguém, neste caso, está agindo como deve. É como se todos estivessem metidos em uma conspiração para confundir e complicar as coisas para nós.

— É exatamente isso! — Markham parecia irritado. — Por outro lado, há alguma coisa de verdadeiro no que o sargento diz. Por que teria Bliss... ?

— Muita teoria, velho Markham — interrompeu Vance. — Oh, muita teoria... muita especulação... muitas indagações fúteis. Aproxima-se uma chave que explicará tudo. Nossa tarefa imediata, ao que me parece, é encontrar essa chave.

— Claro! — Heath falou com pesado sarcasmo. — Suponhamos que eu comece a fincar os móveis com alfinetes de chapéu e a rasgar os tapetes...

Markham estalou os dedos impacientemente e Heath calou-se.

— Vamos voltar à terra. — Olhou para Vance com rancor. — Você já tem alguma idéia definitiva e todos os seus resmungos não são suficientes para me convencer do contrário. Qual é a sua sugestão para o nosso próximo passo? Entrevistar Salveter?

— Precisamente. — Vance concordou com a cabeça com desusada seriedade. — Aquele rapaz fanático se encaixa bem no quadro e sua presença no tablado agora é, como dizem os médicos, indicada.

Markham fez um sinal a Heath que se pôs de pé imediatamente, foi até à porta da sala de visitas e berrou para o andar de cima: — Hennessey!... Traga aquele sujeito aqui embaixo. Temos negócios a tratar com ele.

Poucos momentos mais tarde Salveter era introduzido na sala. Seus olhos brilhavam e ele se plantou agressivamente na frente de Vance, enfiando as mãos com violência nos bolsos das calças.

— Bem, aqui estou — anunciou ele, beligerantemente. — As algemas estão prontas?

Vance bocejou cuidadosamente e examinou o recém-chegado com expressão de enfado.

— Não seja tão viril, Sr. Salveter — disse Vance. — Estamos todos desgastados com este depressivo caso e simplesmente não temos mais condições de suportar demonstrações de energia e vigor. Sente-se e deixe que suas juntas relaxem... Quanto às algemas, o sargento Heath as mantém lindamente polidas. O senhor gostaria de experimentá-las?

— Talvez retrucou — Salveter, observando Vance calculadamente. — O que foi que o senhor disse a Meryt... à Sra. Bliss?

— Ofereci-lhe um dos meus Régies — respondeu Vance descuidadamente. — Ela é uma jovem de muito bom gosto... O senhor gostaria de fumar um desses? Ainda tenho dois.

— Obrigado. Fumo Deities.

— Nunca os mergulhou em ópio? — perguntou Vance delicadamente.

— Ópio?

— O suco concreto de papoulas, por assim dizer... obtido de ranhuras no córtex da cápsula da Papaver somniferum. Palavra grega: opion, isto é, omicron, pi, iota, omicron, nu.

— Não! — Salveter sentou-se abruptamente e desviou o olhar. — Qual é a idéia?

— Parece haver uma abundância de ópio na casa, sabe?

— Oh, é isso? — O homem levantou os olhos atentamente.

— O senhor não sabia? — Vance selecionou um de seus dois remanescentes cigarros. — Estávamos pensando que o senhor e o Sr. Scarlett eram os encarregados dos suprimentos médicos.

Pareceu que Salveter ia dizer algo, mas se passaram alguns instantes antes que falasse.

— Foi Meryt-Amen quem lhe disse isso? — perguntou, finalmente.

— E não é verdade? — Havia uma nota nova na voz de Vance.

— De certo modo — admitiu o outro. — O Dr. Bliss...

— E o ópio? — Vance inclinou-se para a frente.

— Oh, sempre houve ópio no armário lá de cima... quase uma lata.

— O senhor teve ópio em seu quarto ultimamente?

— Não... sim... eu...

— Muito obrigado. Escolheremos uma de suas respostas, não?

— Quem disse que havia ópio em meu quarto? — Salveter pôs os ombros para trás.

Vance recostou-se em sua cadeira.

— Isto realmente não tem importância. De qualquer modo agora não há ópio lá... Escute aqui, Sr. Salveter, o senhor voltou à saleta de refeições esta manhã depois de ter subido com a Sra. Bliss?

— Eu não!... Isto é — emendou ele — não me lembro. Vance se pôs de pé abruptamente e permaneceu ameaçador à frente do rapaz.

— Não tente adivinhar o que a Sra. Bliss nos disse. Se o senhor não quiser responder às minhas perguntas eu o entregarei ao Departamento de Homicídios e Deus que o ajude!... Estamos aqui para saber a verdade e queremos respostas diretas. O senhor voltou ou não à saleta de refeições?

— Não, não voltei.

— Isto é muito melhor... oh, muito melhor! — Vance suspirou e retomou sua cadeira. — E agora, Sr. Salveter, vamos fazer-lhe uma pergunta muito íntima. O senhor está amando a Sra. Bliss?

— Recuso-me a responder!

— Ótimo! Mas o senhor não ficaria absolutamente triste se o Dr. Bliss fosse juntar-se aos seus antepassados?

Salveter contraiu os maxilares e nada disse. Vance o observava ruminativamente.

— Eu sei — disse ele amistosamente — que o Sr. Kyle lhe legou uma considerável fortuna em seu testamento... Se o Dr. Bliss lhe pedisse para continuar a financiar as escavações no Egito, o senhor acederia?

— Eu insistiria nesse ponto, mesmo que ele não me pedisse. — Um brilho fanático luziu nos olhos de Salveter. — Isto é — acrescentou ele como se um novo pensamento lhe tivesse ocorrido — se Meryt-Amen aprovasse. Eu não gostaria de me opor a seus desejos.

— Ah! — Vance tinha acendido seu cigarro e fumava sonhadoramente. — E o senhor acha que ela não aprovaria?

Salveter sacudiu a cabeça.

— Não, creio que ela faria o que o doutor quisesse.

— Uma esposa dedicada... quoi?

Salveter agitou-se na cadeira.

— Ela é a mais reta, a mais leal...

— Sim, sim. — Vance exalou uma espiral de fumaça de cigarro. — Poupe-me seus adjetivos... No entanto, ao que me parece, ela não está inteiramente enlevada com o companheiro que escolheu para sua vida.

— Se não está — retrucou Salveter agastado — ela não o demonstra.

Vance concordou com a cabeça, desinteressadamente.

— O que o senhor pensa de Hani? — indagou.

— É um idiota, embora seja uma boa alma. Adora a Sra. Bliss... — Salveter empertigou-se e seus olhos se arregalaram. — Bom Deus, Sr. Vance! O senhor não está pensando... — Interrompeu-se, horrorizado, mas se recompôs em seguida. — Percebo onde estão querendo chegar. Mas... mas... Esses degenerados egípcios modernos! São todos


iguais... cães orientais todos eles. Nenhum sentimento de certo e errado — diabos supersticiosos — mas leais. Desconfio...

— Muito bem. Todos nós estamos desconfiando. — Vance, aparentemente, não se impressionara com a explosão de Salveter. — Mas, como o senhor diz, Hani é muito chegado à Sra. Bliss. Seria capaz de fazer muitas coisas por ela, não? Talvez arriscasse o pescoço se julgasse que a felicidade dela estava em jogo. É claro, ele poderia precisar de um bocado de preparo...

Uma luz pesada caiu sobre os olhos de Salveter.

— O senhor está na pista errada. Ninguém preparou Hani. Ele tem capacidade para agir por si mesmo...

— E de lançar suspeitas sobre outras pessoas? — Vance olhou para Salveter. — Eu diria que a colocação do alfinete de escaravelho é um pouco sutil demais para um mero fellah.

— O senhor pensa assim? — Salveter falou quase com desprezo. — O senhor não conhece essa gente como eu. Os egípcios já desenvolviam tramas intrincadas quando os nórdicos eram ainda arbóreos.

— Péssima antropologia — murmurou Vance. — E, sem dúvida, o senhor está pensando na tola história de Heródoto sobre a casa do tesouro do Rei Rhampsinutus. Pessoalmente sou de opinião que os sacerdotes estavam tapeando o papa da história... Por falar nisso, o senhor conhece alguém por aqui, além do Dr. Bliss, que use lápis Koh-i-noor?

— Não sabia nem que o doutor os usava. — O homem bateu as cinzas do cigarro no tapete e esfregou-as com o pé.

— O senhor, por acaso, viu o Dr. Bliss hoje pela manhã?

— Não. Quando desci para tomar café, Brush me disse que o doutor estava trabalhando em seu escritório.

— O senhor esteve no museu hoje pela manhã, antes de sair para se desincumbir de seu encargo no Metropolitan?

Salveter piscou os olhos rapidamente.

— Sim! — explodiu finalmente. — Geralmente vou ao museu todas as manhãs depois do café — uma espécie de hábito. Gosto de verificar se tudo está certo, se nada aconteceu durante a noite. Sou o curador assistente e, além de minhas responsabilidades, sinto-me tremendamente interessado pelo local. Faz parte de minhas obrigações ter tudo de olho.

Vance concordou com a cabeça compreensivelmente.

— A que horas o senhor entrou no museu hoje de manhã?

Salveter hesitou. Em seguida, lançando a cabeça para trás, encarou Vance desafiadoramente.

— Saí de casa pouco depois das nove. Quando cheguei à Quinta Avenida ocorreu-me subitamente que não inspecionara o museu e, por alguma razão, fiquei preocupado. Não posso dizer-lhe por que me sentia assim, mas estava preocupado. Talvez por causa do novo carregamento que chegou ontem. De qualquer modo, voltei, usei minha própria chave e entrei no museu...

— Por volta das nove e meia?

— Devia ser isso mesmo.

— E ninguém viu o senhor tornar a entrar em casa?

— Creio que dificilmente. De qualquer modo, não vi ninguém.

Vance olhou para ele desanimadamente.

— Espero que o senhor acabe o seu recital... Se não se incomodar poderei terminá-lo para o senhor.

— Não há necessidade. — Salveter jogou o cigarro em um cinzeiro esmaltado em cima da mesa e colocou-se resolutamente na borda da cadeira. — Direi tudo o que há a ser dito. Se, depois, o senhor não ficar satisfeito, pode determinar minha prisão.... e que vá para o diabo!

. Vance suspirou e deixou a cabeça cair para trás.

— Tanta energia! — sussurrou. — Mas, para que ser vulgar?... Acredito que o senhor tenha visto seu tio antes de finalmente sair do museu e se encaminhar para o Grande Mausoléu Americano na Avenida.

— Sim, eu o vi! — Os olhos de Salveter brilharam e seu queixo projetou-se para a frente. — Agora deduza daí o que quiser.

— Realmente, não posso estar-me preocupando. É muita fatigante. — Vance nem mesmo olhou para o homem: seus olhos, semicerrados, fixavam-se em um candelabro de cristal antigo pendente sobre a mesa do centro. — Já que o senhor viu o seu tio — disse ele — deve ter permanecido no museu no mínimo uma meia hora.

— Mais ou menos isso — Salveter, obviamente, não podia compreender a atitude de indiferença de Vance. — Na verdade, interessei-me por um papiro que recolhemos no inverno passado e procurei decifrar algumas palavras que me embaraçaram. Eram as palavras ankhet, wash e tema, que não consegui traduzir.

Vance cerrou levemente o cenho. Em seguida suas sobrancelhas se ergueram.

— Ankhet... wash... tema... — Pronunciou as palavras vagarosamente. — Ankhet estava escrita com ou sem determinativo?

Salveter não respondeu imediatamente.

— Com o determinativo pele de animal — disse, passado algum tempo.

— E a palavra seguinte era de fato wash, ou was? Novamente Salveter hesitou e olhou Vance com inquietação.

— Era wash, creio... E tema estava escrita com dupla ponta.

— Nada de ideograma fluente, não?... Isto é muito interessante... E durante os seus espasmos lingüísticos o seu tio chegou.

— Sim. Eu estava sentado na mesinha próxima do obelisco quando o Tio Benjamin abriu a porta. Ouvi-o dizer algo a Brush e me levantei para cumprimentá-lo. Estava bastante escuro e ele não me viu até chegar ao andar do museu.

— E então?

— Eu sabia que ele desejava examinar os novos tesouros e, por isso, fui-me embora. Dirigi-me ao Metropolitan...

— Seu tio parecia estar em seu estado de ânimo normal quando chegou ao museu?

— Como de costume... talvez um pouco macambúzio. Ele nunca estava bem-humorado pela manhã. Isso, porém, não queria dizer nada.

— O senhor saiu do museu imediatamente após tê-lo cumprimentado?

— Imediatamente. Não tinha percebido que estivera durante tanto tempo fuçando o papiro; apressei-me a sair. Uma outra coisa, eu sabia que ele tinha vindo avistar-se com o Dr. Bliss sobre assunto muito importante e não desejava importuná-los.

Vance sacudiu a cabeça afirmativamente, mas não deu qualquer indicação quanto a aceitar sem reservas ou não as declarações do outro. Permaneceu sentado, fumando preguiçosamente, os olhos suaves e impassíveis.

— E durante os vinte minutos seguintes — raciocinou Vance em voz alta — isto é, entre as dez horas e as dez e vinte, ocasião em que o Sr. Scarlett entrou no museu, o seu tio foi assassinado.

Salveter estremeceu.

— Assim parece — murmurou ele. — Mas — projetou o queixo para a frente — não tenho nada a ver com isso! Esta é a verdade, quer o senhor aceite ou não.

— Esta agora. Não seja indelicado — admoestou-o Vance calmamente. — Não tenho nada que aceitar ou não aceitar, sabe? Posso, meramente, escolher zombar dela.

— Pois zombe e que se dane!

Vance pôs-se de pé preguiçosamente, um sorriso frio nos lábios — um sorriso mais ameaçador do que qualquer contorção de raiva.

— Não gosto de sua linguagem, Sr. Salveter — disse, lentamente.

— Oh, não gosta? — O homem se pôs de pé num salto, os punhos crispados e desfechou um soco raivoso. Vance, no entanto, recuou com a rapidez de um felino, e segurou o outro pelo punho. Fez, em seguida, um rápido movimento de pivô para a direita e levou o braço de Salveter para trás, torcendo-o de encontro as suas espáduas. Com um involuntário grito de dor, o homem caiu sobre os joelhos. (Lembrei-me da maneira pela qual Vance havia salvo Markham de um ataque no escritório do procurador distrital, quando do encerramento do caso Benson.) Heath e Hennessey deram um passo à frente, mas Vance fez-lhes sinal com a mão livre para que parassem.

— Eu posso dar jeito neste impetuoso cavalheiro — disse ele. Em seguida levantou Salveter e o empurrou de volta à cadeira. — Uma liçãozinha de boas maneiras — observou prazerosamente. — Agora, por favor, civilize-se e responda às minhas perguntas ou serei obrigado a prendê-lo — e à Sra. Bliss — por conspiração para assassinar o Sr. Kyle.

Salveter estava completamente subjugado. Olhava seu antagonista com ridícula surpresa. Depois, repentinamente, parece que as palavras de Vance penetraram em seu atônito cérebro.

— A Sra. Bliss?... Ela não tem nada com isso, asseguro-lhe! — O tom de sua voz, ainda que altamente excitado, era respeitoso. — Se isso a salvar de qualquer suspeita, confesso o crime...

— Não há necessidade de tanto heroísmo. — Vance retomara sua cadeira e de novo fumava calmamente. — O senhor, porém, poderá dizer-nos por que, quando chegou ao museu esta tarde e soube da morte de seu tio, não mencionou o fato de ter estado com ele às dez horas.

— Eu... eu estava demasiado aborrecido... demasiado chocado — balbuciou o homem. — E tinha medo. Instinto de autoproteção, talvez. Não posso explicar. Realmente, não posso. Deveria ter-lhe dito, suponho... mas... mas...

Vance veio em seu auxílio.

— Mas o senhor não desejava envolver-se em um crime do qual era inocente. Sim... sim. Muito natural. Achou melhor esperar e verificar se alguém o havia visto... Escute, Sr. Salveter, não percebeu que se o senhor tivesse admitido ter estado com o seu tio às dez horas isso teria sido um ponto a seu favor?

Salveter se tornara mal-humorado e, antes que pudesse responder, Vance prosseguiu.

— Deixando essas especulações de lado, será que podemos confiar em que nos dirá exatamente o que fez no museu entre as nove e meia e as dez horas?

— Já lhe disse. — Salveter parecia confuso e distrait. — Eu estava comparando um papiro da décima oitava dinastia, recentemente encontrado pelo Dr. Bliss em Tebas, com uma translação de Luckenbill do prisma hexagonal dos Anais de Sennacherib1 a fim de determinar certos valores de...

 

 

(1) O prisma a que se referia Salveter era um de terracota adquirido pelo Instituto Oriental da Universidade de Chicago durante sua expedição de reconhecimento de 1919-20. O documento era uma duplicata variante do prisma de Taylor do Museu Britânico, escrito cerca de dois anos antes sob um outro epônimo.

 

 

— O senhor está romanceando assustadoramente, Sr. Salveter — interrompeu Vance calmamente. — E está-se permitindo um anacronismo. O prisma Sennacherib é feito em escrita cuneiforme babilônica e data de quase mil anos depois. — Levantou os olhos com seriedade. — O que esteve o senhor fazendo no museu esta manhã?

Salveter iniciou a projetar-se para a frente em sua cadeira, mas logo voltou para trás.

— Eu estava escrevendo uma carta — respondeu debilmente.

— Para quem?

— É melhor não dizer.

— Naturalmente. — Vance sorriu desanimado. — Em que língua?

Uma mudança imediata operou-se no homem. Ficou pálido e contraiu as mãos que até então se mantinham sobre os joelhos.

— Em que língua? — repetiu ele asperamente. — Por que me faz esta pergunta?... Em que língua provavelmente eu escreveria?... Banto, sânscrito, Walloon, ido...?

— Não. — O olhar de Vance fixou-se lentamente no rosto de Salveter. — Também eu não tinha em mente o aramaico, o agao, o swahili ou o sumério... O fato é que me ocorreu há um momento atrás que o senhor estava compondo uma epístola em hieróglifos egípcios.

Os olhos do homem se dilataram.

— Por que, em nome dos céus — perguntou desajeitadamente —, eu faria uma coisa dessas?

— Por quê? Ah, sim... por que mesmo? — Vance soltou um profundo suspiro. — Mas, na verdade, o senhor estava compondo em egípcio, não estava?

— Estava? O que o faz pensar assim?

— Devo explicar?... É tão diabolicamente simples. — Vance pôs fora o cigarro e fez um gesto apologético. — Eu poderia até adivinhar a quem a epístola era dirigida. A não ser que eu esteja desanimadoramente enganado, a Sra. Bliss era a destinatária. — Novamente Vance sorriu meditativamente. — O senhor mencionou três palavras do imaginário papiro que ainda não teria satisfatoriamente traduzido — ankhet, wash e tema. Mas, como até agora há dezenas de palavras egípcias que têm resistido a uma translação acurada, fiquei imaginando por que o senhor teria mencionado essas três em particular. Fiquei imaginando, além disso, por que o senhor iria mencionar três palavras de cujo significado não se lembrava, e que se aproximam tanto de outras tão familiares em egípcio... Refleti então sobre qual o significado dessas três palavras familiares. Ankh — sem um determinativo pode significar "o que vive". Was — que tanto se aproxima de wash — significa "felicidade" ou "boa fortuna", ainda que não ignore haver algumas dúvidas a esse respeito — Erman traduz essa palavra, com um ponto de interrogação, como Glück. A palavra tema com ponta dupla, que o senhor mencionou, é desconhecida para mim. No entanto, estou familiarizado com tem, que significa "a ser terminado" ou "a ser acabado"... está-me acompanhando?

Salveter olhava como um homem hipnotizado.

— Bom Deus! — murmurou ele.

— E assim — continuou Vance — concluí que o senhor estava lidando com formas bem conhecidas dessas três palavras e as mencionara porque, em suas outras formas aproximadas, seu significado transliterado é desconhecido... Além disso, as palavras se encaixavam perfeitamente na situação. Na verdade, Sr. Salveter, não seria preciso muita imaginação para reconstituir sua carta, conhecidas as três expressões-chave, isto é, o que vive, felicidade ou boa fortuna e a acabar, ou, terminar.

Vance parou brevemente, como para arrumar as palavras.

— O senhor provavelmente compôs uma comunicação em que dizia que "o que vive" (ankh) se interpunha no caminho de sua "felicidade" ou "boa fortuna" (was), e expressava o desejo de que a situação "terminasse" ou "acabasse" (tem)... Estou certo ou não?

Salveter continuava a olhar para Vance com uma espécie de assombro.

— Vou falar a verdade — disse ele por fim. — Foi isso exatamente o que escrevi. Meryt-Amen, que conhece a linguagem hieroglífica do Egito Médio melhor do que eu jamais conhecerei, sugeriu, faz muito tempo, que eu escrevesse para ela pelo menos uma vez por semana na linguagem de seus ancestrais, como exercício. Venho fazendo isso há anos. Ela sempre me corrige e me aconselha — é quase tão versada como qualquer dos escribas que decoraram as tumbas antigas... Esta manhã, quando voltei ao museu, lembrei-me de que o Metropolitan não abriria até às dez horas e, num súbito impulso, sentei-me e comecei a trabalhar nessa carta.

— Que pena — suspirou Vance — mas sua fraseologia naquela carta faz parecer que o senhor estava antevendo a adoção de medidas drásticas.

— Sei disso! — Salveter prendeu a respiração. — Aí está porque lhe menti. Mas o fato é, Sr. Vance, que a carta era bastante inocente... Sei que era bobagem, mas não a levei a sério. Francamente, senhor, era realmente uma lição sobre composição em egípcio — não uma comunicação de fato.

Vance concordou com a cabeça sem se comprometer.

— E onde está a carta agora? — quis saber.

— Na gaveta da mesa, no museu. Ainda não a havia terminado quando o Tio Benjamin chegou e a pus de lado.

— O senhor já se tinha utilizado dessas três palavras, ankh, was e tem?

Salveter concentrou-se e tomou uma respiração profunda.

— Sim! Já havia usado essas três palavras familiares. Então, quando o senhor me perguntou pela primeira vez sobre o que eu tinha feito no museu inventei a história sobre o papiro...

— E mencionou três palavras que lhe foram sugeridas pelas que o senhor realmente usou... não?

— Sim, senhor! É verdade.

— Agradecemos muito sua súbita explosão de sinceridade. — O tom de Vance era frígido. — O senhor quer ter a bondade de nos trazer a epístola inacabada? Adoraria vê-la e" talvez pudesse decifrá-la.

Salveter se pôs de pé num salto e quase saiu correndo da sala. Voltou poucos momentos depois, sob todos os aspectos estonteado e desanimado.

— Não está lá — anunciou ele. — Sumiu.

— Oh, e essa agora... Que pena.

Vance recostou-se pensativamente durante alguns instantes. Era seguida se pôs de pé repentinamente.

— Não está lá!... Sumiu! — murmurou ele. — Não gosto dessa situação, Markham... não gosto absolutamente... Por que teria a carta desaparecido? Por que... por quê?

Aproximou-se de Salveter.

— Em que espécie de papel o senhor escreveu aquela indiscreta carta? — perguntou, com controlada excitação.

— Em um bloco de papel amarelo... do tipo que geralmente se encontra em cima da mesa...

— E quanto à tinta... o senhor escreveu a lápis ou a tinta os caracteres?

— A tinta. Tinta verde. Há sempre lá no museu... Vance levantou a mão em um gesto de impaciência.

— Basta... Suba, vá para seu quarto... e espere lá.

— Mas, Sr. Vance, eu... eu estou preocupado com a carta. Onde o senhor julga que ela está?

— Por que deveria eu saber onde ela está?... E isto desde que, é claro, o senhor a tenha escrito. Não tenho vara de condão. — Vance estava terrivelmente preocupado, ainda que procurasse esconder esse fato. — O senhor não tinha coisa melhor a fazer do que deixar essa carta solta por aí?

— Nunca supus...

— Oh, nunca supôs?... Creio que não. — Vance olhou intensamente Salveter. — Essa não é a hora de especulações... Por favor, vá para o seu quarto. Tornarei a falar com o senhor... Não faça perguntas. Faça o que lhe estou dizendo!

Salveter, sem uma palavra, voltou-se e desapareceu pela porta. Podíamos ouvir suas pesadas passadas ao subir as escadas.


XV

 

Vance faz uma descoberta

 


(Sexta-feira, 13 de julho — 16:45 horas)

 

 

Vance permaneceu durante algum tempo em inquieto silêncio. Finalmente ergueu os olhos na direção de Hennessey.

— Quero que você vá lá para cima — disse ele — e escolha um posto de onde possa vigiar todos os quartos. Não quero que haja qualquer comunicação entre a Sra. Bliss, Salveter e Hani.

Hennessey consultou Heath com os olhos.

— Essas são as ordens — informou-o o sargento, e o detetive afastou-se sem alacridade.

Vance voltou-se para Markham.

— Talvez esse idiota desse jovem tenha de fato escrito essa tola carta — comentou, enquanto uma expressão preocupada aflorava-lhe ao rosto. — Vamos dar uma espiada no museu.

— Escute aqui, Vance, — Markham levantou-se — por que a possibilidade de que Salveter tenha escrito essa carta tola preocupa a você?

— Não sei — não tenho certeza. — Vance foi até à porta, mas logo se voltou subitamente. — Mas estou temeroso — estou infernalmente temeroso! Tal carta daria ao criminoso uma saída — isto é, se o que penso for verdade. Se a carta foi escrita temos que encontrá-la. Se não a encontrarmos há diversas explicações plausíveis para o seu desaparecimento — e uma delas é diabólica... Mas, vamos. Teremos que proceder a uma busca no museu — na chance de que tenha sido escrita, como diz Salveter, e deixada na gaveta da mesa.

Cruzou rapidamente o saguão e abriu a grande porta de aço.

— Se o Dr. Bliss e Guilfoyle chegarem enquanto estamos no museu — disse Vance a Snitkin, que permanecia encostado junto à porta da frente — leve-os à sala de visitas e os mantenha lá.

Descemos as escadas para o museu e Vance, imediatamente, foi até à mesinha situada ao lado do obelisco. Olhou para o bloco de papel amarelo e testou a cor da tinta. Em seguida abriu a gaveta e dela retirou o que continha. Após uns minutos de exame do conteúdo da gaveta, arrumou-a e fechou-a. Havia junto à mesinha uma cesta de papéis usados, de mogno, que Vance esvaziou no chão. Ajoelhando-se, examinou todos os pedacinhos de papel amassados. Finalmente levantou-se e sacudiu a cabeça.

— Não gosto disso, Markham, — disse ele. — Sentir-me-ia muito melhor se pudesse encontrar a carta.

Caminhou pelo museu, procurando pontos onde uma carta poderia ter sido jogada. Quando, porém, chegou às escadas em espiral ao fundo da sala, nelas apoiou as costas e olhou para Markham desanimadamente.

— Estou ficando cada vez mais assustado — observou em voz baixa. — Se essa trama diabólica der certo!... — Voltou-se subitamente e subiu as escadas correndo, fazendo-nos sinal para que o seguíssemos. — Há uma chance... apenas uma chance — disse por sobre os ombros. — Eu devia ter pensado nisso antes.

Nós o seguimos, sem compreender, até o escritório do Dr. Bliss.

— A carta deveria estar no escritório — observou, procurando controlar sua ansiedade. — Era o que seria lógico e este caso é, fora de dúvida, inacreditavelmente lógico, Markham — tão lógico, tão matemático que por fim seremos capazes de entendê-lo corretamente. De fato é demasiadamente lógico — e aí reside sua fraqueza...

Vance já estava de quatro remexendo no esparramado conteúdo da cesta de papéis do Dr. Bliss. Após uns momentos de busca pegou dois pedaços rasgados de papel amarelo. Olhou-os cuidadosamente e pudemos notar pequeninas marcas de tinta verde no papel. Vance colocou-os de lado e prosseguiu em sua busca. Depois de alguns instantes tinha separado uma pequena pilha de fragmentos de papel amarelo.

— Creio que isso é tudo — disse, levantando-se. Sentou-se na cadeira giratória e colocou os pedaços de papel rasgados sobre o mata-borrão.

— Isso pode demorar algum tempo, mas como conheço razoavelmente hieróglifos egípcios, acredito que cumpra a tarefa sem muita dificuldade.

Vance começou a ajeitar e a encaixar uns nos outros os pedacinhos de papel, enquanto Markham, Heath e eu permanecíamos atrás dele, olhando-o fascinados. Ao fim de dez minutos Vance havia reconstituído a carta. Pegou então uma folha de papel branco grande de dentro de uma das gavetas e cobriu-a com mucilagem. Cuidadosamente, transferiu a carta reconstituída, peça por peça, para o papel gomado.

— Aí está, velho Markham, — suspirou ele — a carta inacabada que nos falou Salveter estar elaborando esta manhã, entre nove e meia e dez horas.

O documento era inquestionavelmente uma folha do papel amarelo que havíamos visto no museu. Nele viam-se quatro linhas de caracteres egípcios antigos, detalhadamente elaborados com tinta verde.

Vance colocou o dedo em um dos grupos de caracteres.

— Isso — disse-nos ele — é o hieróglifo ankh: Mudou o dedo de posição. — Aqui o sinal was... e aqui, mais para o fim, o que corresponde a tem.

— E daí? — Heath estava positivamente confuso e seu tom não parecia muito delicado. — Não podemos prender um sujeito porque desenhou umas figuras com olhos de aves em um pedaço de papel amarelo.

— Meu Deus, sargento! O senhor não pensa em outra coisa senão em atirar pessoas em masmorras? Temo que o senhor não tenha a natureza humana. Que pena... Por que não procura, ocasionalmente, usar o cérebro? — Olhou para cima e fiquei surpreendido com sua seriedade. — O jovem e impetuoso Sr. Salveter confessa que escreveu tolamente uma carta para sua Dulcinéia na linguagem dos faraós. Disse-nos que colocou o inacabado billet-doux na gaveta de uma mesa no museu. Descobrimos que não se encontra na gaveta da mesa mas sim que foi implacavelmente rasgada e atirada na cesta de papéis do escritório do Dr. Bliss... Que possíveis razões segundo as quais o senhor encararia o Paulo dessa epístola como um assassino?

— Não estou encarando ninguém como coisa nenhuma — retorquiu Heath violentamente. — Mas há muitas besteiras por aqui para que me sinta satisfeito. Quero ação.

Vance observava-o gravemente.

— Por uma vez, também quero ação, sargento. Se não tomarmos uma atitude qualquer dentro em breve, poderemos esperar por algo ainda pior do que já aconteceu. Mas terá que ser uma atitude inteligente — não o tipo de ação que o criminoso deseja que empreendamos. Estamos enredados nas malhas de uma trama habilmente urdida e, a não ser que tomemos cuidado com os nossos passos, o culpado continuará livre e nós ainda nos debatendo na teia.

Heath resmungou e passou a observar atentamente a carta reconstituída.

— Que maneira horrível de um sujeito escrever para uma dama — comentou ele com mal-humorado desdém. — Prefiro um tiro bem dado por um gangster. Esses crimes elegantes me enojam.

Markham estava carrancudo.

— Olhe aqui, Vance, — disse ele — você acredita que o criminoso tenha rasgado a carta e lançado os pedaços na cesta de papéis do Dr. Bliss?

— Pode haver alguma dúvida a esse respeito? — perguntou Vance como resposta.

— Mas qual, em nome dos céus, poderá ter sido o objetivo?

— Ainda não sei. Aí está por que estou assustado. — Vance olhou para fora pela janela de trás. — Mas a destruição daquela carta faz parte da trama e até que possamos obter provas claras e insofismáveis estamos em um beco sem saída.

— Ainda assim — insistiu Markham — se a carta fosse incriminatória, parece-me que teria sido valiosa para o criminoso. Rasgá-la não ajuda ninguém.

Heath olhou primeiro para Vance e depois para Markham.

— Talvez — sugeriu ele — o próprio Salveter a tenha rasgado.

— Quando? — indagou Vance calmamente.

— Como posso saber? — O sargento estava exasperado. — Talvez quando ele abateu o velho.

— Se esse fosse o caso, Salveter não teria admitido tê-la escrito.

— Bem — insistiu Heath — talvez ele a tenha rasgado quando o senhor mandou procurá-la há uns poucos minutos.

— E então, após havê-la destruído, veio até aqui e jogou os pedaços na cesta, onde poderiam ser encontrados... Não, sargento. Isso não é inteiramente razoável. Se Salveter se assustou e decidiu livrar-se da carta tê-la-ia destruído completamente — tê-la-ia queimado, mais provavelmente, sem dela deixar qualquer vestígio.

Markham, também, havia ficado fascinado pelos hieróglifos que Vance reconstituíra. Permanecia olhando, perplexo, os pedaços de papel novamente reunidos.

— Você julga, então, que a intenção era que nós achássemos a carta? — quis saber ele.

— Não sei. — O olhar distante de Vance não se modificou. — Talvez... e ainda assim... Não! Havia apenas uma chance em mil que viéssemos a esbarrar nela. A pessoa que jogou a carta aqui na cesta de papéis não poderia saber, nem mesmo presumir, que Salveter nos dissesse que a havia escrito e que a largara por aí.

— Por outro lado — Markham relutava em abandonar sua linha de raciocínio — a carta pode ter sido jogada aí na esperança de enredar Bliss ainda mais, isto é, ela pode ter sido encarada pelo criminoso como uma evidência forjada a mais, juntamente com o alfinete de escaravelho, o relatório financeiro e as pegadas.

Vance sacudiu a cabeça.

— Não. Isso não podia ser. Bliss, como sabe, não poderia ter escrito a carta... ela é, obviamente em demasia, uma comunicação de Salveter para a Sra. Bliss.

Vance pegou a carta reconstituída e se pôs a estudá-la durante algum tempo.

— Ela não é particularmente difícil de ser lida por alguém que saiba um pouco de egípcio. Nela está escrito exatamente aquilo que Salveter nos disse. — Tornou a colocar o papel em cima da mesa. — Há algo incrivelmente diabólico por trás disso. Quanto mais penso a respeito, mais me convenço de que não era esperado que achássemos a carta. Minha impressão é de que a carta foi descuidadamente jogada fora por alguém... após ter servido ao seu objetivo.

— Mas que possível objetivo? — indagou Markham.

— Se soubéssemos qual o objetivo — tornou Vance gravemente — poderíamos evitar outra tragédia.

Markham comprimiu os lábios sombriamente. Eu sabia o que se passava em seu cérebro: estava pensando nas terríveis predições de Vance nos casos dos Greenes e do Bispo — predições que se tornaram verdadeiras com todo o horror de uma catástrofe final e inelutável.

— Você acredita que este caso não esteja ainda encerrado? — perguntou Markham lentamente.

— Eu sei que não está. O plano não está completo. Nós prejudicamos os planos do criminoso não prendendo o Dr. Bliss. Precisamos continuar. Vimos apenas os obscuros preliminares desse tremendo esquema — e quando a trama for finalmente revelada, será monstruoso...

Vance dirigiu-se calmamente até à porta que conduzia ao saguão e, abrindo-a um pouquinho, espiou para fora.

— E, Markham, devemos ser cautelosos — é no que estou insistindo desde o princípio. Não nos devemos deixar apanhar por qualquer das armadilhas do criminoso. A prisão do Dr. Bliss era uma dessas armadilhas. Um único passo em falso de nossa parte e a trama terá êxito.

Voltou-se para Heath.

— Sargento, quer ter a bondade de me trazer o bloco de papel amarelo, a caneta e a tinta da mesa do museu?... Nós, também, devemos cobrir nossas pegadas, pois estamos sendo seguidos tão de perto quanto estamos seguindo o criminoso.

Heath, sem uma palavra, entrou no museu e, poucos momentos mais tarde, voltava com os artigos que lhe tinham sido pedidos. Vance pegou-os e sentou-se à mesa do doutor. Então, colocando a carta de Salveter à sua frente começou a copiar cuidadosamente os fonogramas e ideogramas em uma folha do papel amarelo.

— É melhor, creio eu, — explicou ele enquanto trabalhava — que escondamos o fato de que encontramos a carta. A pessoa que a rasgou e a atirou na cesta poderá suspeitar de que a encontramos e procurar os fragmentos. Se eles não estiverem aqui, ficará em guarda. É meramente uma remota precaução, mas não nos podemos permitir qualquer deslize. Estamos nos defrontando com uma mente de diabólica inteligência...

Após ter acabado de transcrever uns doze símbolos, Vance rasgou o papel em pedacinhos do mesmo tamanho que os da carta original e misturou-os com o conteúdo da cesta de papéis. Em seguida dobrou e colocou no bolso a carta original de Salveter.

— O senhor se incomoda, sargento, de voltar com a tinta e o papel para o museu?

— O senhor poderia ter sido um falsário, Sr. Vance — observou Heath bem-humorado, pegando o papel e o tinteiro e desaparecendo pela porta de aço.

— Não vejo luz alguma — comentou Markham tristemente. — Quanto mais avançamos, mais complicado se torna o caso.

Vance concordou com a cabeça, sombriamente.

— Não há nada que possamos fazer agora, a não ser aguardar os acontecimentos. Até agora temos detido o rei dos criminosos, mas ainda lhe restam alguns lances. É como uma das combinações de Alekhine no xadrez — não se pode prever exatamente o que ele tem em mente quando inicia um ataque. E ele poderá produzir uma combinação que limpe o tabuleiro e nos deixe sem defesa...

Heath reapareceu nesse momento, parecendo inquieto.

— Não gosto daquela maldita sala — resmungou ele. — Há cadáveres em demasia. Por que esses percevejos científicos andam desencavando múmias e coisas? É mórbido.

— Uma perfeita crítica dos egiptólogos, sargento — comentou Vance com um sorriso de simpatia. — Egiptologia não é uma ciência arqueológica — é uma condição patológica, uma aflição cerebral — dementia scholastica. Uma vez que o spirillum terrigenum penetre em seu sistema, você está perdido — amaldiçoado com uma moléstia incurável. Se você desenterra cadáveres que estão embaixo da terra há mil anos, você é um egiptólogo; mas se são cadáveres recentes, você é um Burke ou um Hare e a lei lhe cai em cima. Tudo isso se encaixa sob o título de remoção ilegal de cadáveres...1

 

 

 

(1) Vance estava descrevendo uma hipérbole e não acreditava mais do que John Dennis em "que um homem que pode cometer trocadilhos tão vis terá escrúpulos em bater carteiras". Vance conhecia vários egiptólogos e os respeitava altamente. Entre eles figuravam o Dr. Ludlow Buli e o Dr. Henry A. Carey, do Museu Metropolitano de Arte, que, de ama feita, o ajudaram generosamente em seu trabalho sobre os fragmentos de Menandro.

 


— Seja como for — Heath estava ainda confuso e mastigando seu charuto raivosamente — não gosto das coisas naquela morgue. E, especialmente, não gosto do ataúde negro sob as janelas da frente. O que há dentro dele, Sr. Vance?

— O sarcófago de granito? Realmente, não sei, sargento. Está vazio, provavelmente, a não ser que o Dr. Bliss o utilize como depósito — o que não é provável, considerando o peso de sua tampa.

Bateram à porta do saguão e Snitkin informou que Guilfoyle havia chegado com o Dr. Bliss.

— Há apenas uma ou duas perguntas que gostaria de fazer-lhe — disse Vance. — Depois, creio, poderemos ir embora: estou prelibando bolinhos com geléia...

— Ir embora agora? — perguntou Heath em surpreendido desgosto. — Qual é a idéia? Apenas começamos esta investigação.

— Fizemos mais do que isso — protestou Vance delicadamente. — Evitamos todas as ciladas que o criminoso nos armou. Transtornamos todos os seus cálculos e o obrigamos a reconstruir suas trincheiras. No pé em que se encontra o caso agora, é empate. O tabuleiro tem que ser arrumado novamente — e, felizmente para nós, o criminoso está com as peças brancas. É seu o primeiro movimento. Ele, simplesmente, tem que vencer a partida; não pode permitir-se jogar por um empate.

— Estou começando a compreender o que está querendo dizer, Vance. — Markham acenou com a cabeça, lentamente, de modo afirmativo. — Nós nos recusamos a acompanhar os seus movimentos em falso e ele tem agora que tornar a colocar a isca em sua armadilha.

— Dito com uma precisão e clareza completamente impróprias a um advogado — retrucou Vance, com um sorriso forçado. Em seguida ficou novamente sério. — Sim, creio que ele terá que recolocar a isca antes de qualquer movimento final. Estou com a esperança de que a nova isca nos dê a solução de toda a trama e permita ao sargento efetuar suas prisões.

— Bem, tudo o que tenho a dizer — reclamou Heath — é que é o caso mais curioso em que já me vi envolvido. Vamos comer bolinhos e esperar que o criminoso dê as cartas! Se eu expusesse uma tal técnica a O'Brien,1 ele chamaria uma ambulância e me mandaria para Bellevue.

— Providenciaremos para que o senhor não vá para uma enfermaria de psicopatas, sargento — disse Markham irritadamente, encaminhando-se para a porta.

 

 

 

(1) Inspetor-Chefe O'Brien era, à época, responsável por todo o Departamento de Polícia do Estado de Nova York.

 

 

 

 

XVI

 

Uma visita depois da meia-noite


(Sexta-feira, 13 de julho — 17:15 horas)

 

 

Encontramos o Dr. Bliss na sala de visitas, afundado em uma espreguiçadeira, o chapéu de tweed puxado sobre os olhos. Ao seu lado, Guilfoyle permanecia de pé, sorrindo maliciosamente.

Vance estava aborrecido e não se preocupou em esconder esse fato.

— Diga ao seu eficiente sabujo que espere lá fora, sim, sargento?

— OK. — Heath olhou Guilfoyle pesarosamente. — Caia fora, Guil, — ordenou ele — e não faça perguntas. Isto é um crime de morte — é uma festa de bruxas em um pulguedo.

O detetive sorriu e retirou-se.

Bliss ergueu os olhos. Era uma figura com aparência de derrota. Tinha o rosto ruborizado e, em suas faces encovadas, lia-se a humilhação e a apreensão.

— Agora eu suponho — disse ele em voz trêmula — que os senhores me prenderão por este crime horrendo. Mas — oh, meu Deus, cavalheiros! — eu lhes asseguro...

Vance parará a seu lado.

— Um momento, doutor — interrompeu ele. — Não se preocupe. Não iremos prendê-lo, mas gostaríamos de ter uma explicação de sua surpreendente ação. Por que, se o senhor é inocente, tentaria sair do país?

— Por que... por quê? — O homem se mostrava nervoso e excitado. — Eu estava com medo — esse é o porquê. Tudo está contra mim. Todos os indícios apontam para mim... Há alguém que me odeia e que me quer ver fora do caminho. Tudo é demasiado óbvio. A colocação de meu alfinete de escaravelho ao lado do corpo do pobre Kyle, o relatório financeiro encontrado na mão do morto, aquelas pegadas de sangue conduzindo ao meu escritório — pensam que não sei o que significa tudo isso? Significa que eu devo pagar o preço — eu, eu. — Bateu no peito fracamente. — E outras coisas serão encontradas; a pessoa que matou Kyle não descansará até que me veja por trás das grades — ou morto. Sei disso — sei disso! Aí está por que procurei fugir. E agora os senhores me trouxeram de volta à situação de um morto-vivo — a uma sorte mais desgraçada do que a que se abateu sobre o meu velho benfeitor...

Sua cabeça caiu para a frente e um estremecimento percorreu-lhe o corpo.

— Mesmo assim, foi uma tolice tentar fugir, doutor — observou Markham delicadamente. — O senhor deve confiar em nós. Asseguro-lhe que nenhuma injustiça será feita. Viemos a saber de muitas coisas no curso das investigações, e temos razões para acreditar que o senhor estava sob a ação de ópio em pó quando o crime foi cometido...

— Ópio em pó! — Bliss quase deu um pulo de sua cadeira. — Foi o gosto que senti! Havia algo diferente no café, esta manhã — senti um sabor curioso. Inicialmente pensei que Brush não o preparara da maneira que recomendei. Em seguida me senti tonto e esqueci do assunto... Ópio! Conheço o gosto. Uma ocasião tive disenteria no Egito e tomei ópio com pimenta da Guiné — minha Sun Cholera Mixture1 tinha acabado. — Sua boca se abriu desmedidamente e lançou a Markham um olhar de aterrorizado apelo. — Envenenado em minha própria casa! — Repentinamente uma vingança sombria brilhou em seus olhos. — O senhor tem razão — disse ele com uma dureza metálica. — Eu não deveria ter tentado fugir. Meu lugar é aqui e é minha obrigação ajudá-los...

 

 

 

(1) A Sun Cholera Mixture para disenteria (uma receita do Dr. G. W. Busteed) recebeu esse nome por ter sido sua fórmula publicada pelo New York Sun durante a agitação sobre a cólera em Nova York, em junho de 1849. A fórmula foi admitida na primeira edição do Formulário Nacional, em 1883. Era constituída de tintura de pimenta da Guiné, tintura de ruibarbo, espírito de cânfora, essência de hortelã e ópio.

 


— Sim, sim, doutor. — Vance estava palpavelmente aborrecido. — Lamentações são muito confortadoras, mas estamos procurando lidar com fatos. E até aqui o senhor não tem prestado grande ajuda... Diga-nos, quem era encarregado dos suprimentos médicos? — A pergunta foi feita abruptamente.

— Ora... ora... deixe-me ver... — Bliss desviou os olhos e começou a mexer no vinco das calças.

— Esqueça a pergunta. — Vance fez um gesto de resignação. — Talvez o senhor prefira dizer-nos quão bem a Sra. Bliss conhece hieróglifos egípcios.

Bliss pareceu surpreendido e foram-lhe necessários alguns momentos antes de se recompor.

— Ela os conhece, praticamente, tão bem quanto eu — respondeu finalmente. — Seu pai, Abercrombie, ensinou-lhe o antigo egípcio quando ela era ainda criança, e tem trabalhado comigo há anos na decifração das inscrições...

— E Hani?

— Oh, ele tem conhecimentos superficiais da grafia hieroglífica — nada fora do comum. Falta-lhe um cérebro educado...

— E o Sr. Salveter? Conhece bem o antigo egípcio?

— Razoavelmente bem. Ele é fraco em conhecimentos gramaticais, mas conhece bem os sinais e o vocabulário. Salveter estudou grego e árabe. Acredito que tenha estudado também um ou dois anos de assírio. Copta, do mesmo modo. A base lingüística usual para um arqueólogo. Scarlett, por outro lado, é algo como um perito, ainda que seja um seguidor leal do sistema de Budge — como muitos outros amadores.1) E Budge, é claro, é antiquado. Não me interpretem mal. Budge é um grande homem. Suas contribuições à egiptologia são inestimáveis e sua publicação do Livro dos Mortos...

 

 

 

(1 ).Sir E. A. Wallis Budge foi durante muitos anos o Conservador Antiguidades Egípcias e Assírias no Museu Britânico.

 


— Eu sei. — Vance concordou com impaciência. — Seu Index torna possível encontrar quase que qualquer passagem no Papiro de Ani...

— Exatamente. — Bliss começou a demonstrar uma curiosa animação: seu entusiasmo científico se manifestava.

— Alan Gardiner, no entanto, é o verdadeiro sábio moderno. Sua Gramática Egípcia é uma obra profunda e acurada. O opus mais importante em egiptologia, no entanto, é o Wörterbuch der aegyptischen Sprache, de Erman-Grapow...

Vance, subitamente, tornara-se interessado.

— O Sr. Salveter usa o Wörterbuch de Erman-Grapow? — quis saber ele.

— Certamente. Insisti nisso. Encomendei três coleções a Leipzig — uma para mim e cada uma das outras para Salveter e Scarlett.

— Os sinais diferem bastante, creio, do tipo Theinhardt usado por Budge.

— Oh, sim. — Bliss tirou o chapéu e jogou-o no chão.

— A consoante traduzida por Budge como u — o filhote de pássaro — aparece como w no Wörterbuch e em todas as obras modernas. E, é claro, há ainda o sinal cursivo em espiral que é também a adaptação hieroglífica da forma hierática abreviada de...

— Obrigado, doutor. — Vance pegou sua cigarreira, viu que lhe sobrara apenas um Régie e tornou a colocá-la no bolso. — Soube que o Sr. Scarlett, antes de sair de casa esta tarde, esteve lá em cima. Acredito que tenha ido vê-lo.

— Sim. — Bliss acomodou-se na cadeira. — Um sujeito simpático, Scarlett.

— O que lhe disse ele?

— Nada de importância. Desejou-me boa sorte, disse que estaria às ordens, se eu necessitasse dele. Coisas desse tipo.

— Quanto tempo ele passou com o senhor?

— Um minuto, mais ou menos. Saiu imediatamente. Disse que ia até a casa.

— Mais uma pergunta, doutor — falou Vance após uma interrupção de alguns instantes. — Quem, nesta casa, teria razões para jogar em suas costas o assassinato do Sr. Kyle?

Uma mudança repentina ocorreu em Bliss. Seus olhos se fixaram à frente e as linhas de seu rosto se endureceram em contornos quase aterrorizantes. Apertou os braços da cadeira e encolheu os pés. Medo e ódio apossaram-se dele; parecia um homem prestes a saltar sobre um inimigo mortal. Levantou-se em seguida, com todos os músculos do corpo tensos.

— Não posso responder a esta pergunta. Recuso-me a fazê-lo!... Não sei... não sei! Mas alguém existe, não é mesmo? — Esticou a mão e agarrou o braço de Vance. — Os senhores deveriam ter-me deixado fugir. — Seus olhos assumiram uma expressão selvagem e olhou apressadamente na direção da porta, como se temesse algum perigo iminente partido do saguão. — Faça-me prender, Sr. Vance! Faça o que quiser mas não me peça para permanecer aqui... — Sua voz se tornara compadecidamente apelativa.

Vance afastou-se dele.

— Controle-se, doutor, — disse em tom casual. — Nada lhe vai acontecer... Vá para o seu quarto e permaneça lá até amanhã. Nós cuidaremos do aspecto criminal do caso.

— Mas os Penhores não têm qualquer idéia sobre quem cometeu essa coisa horrível — protestou Bliss.

— Oh, mas saberemos, não tenha dúvida. — A afirmação serena de Vance pareceu exercer um efeito calmante sobre ele. — Somente nos é necessário aguardar um pouco. Até agora não temos provas suficiente para efetuar uma prisão. Mas, como o principal objetivo do criminoso falhou, é quase inevitável que tente um outro movimento e, quando o fizer, teremos talvez oportunidade de colher a necessária prova contra ele.

— Mas suponha que ele exerça uma ação direta — contra mim? — retrucou Bliss. — O fato de que tenha falhado em me envolver pode levá-lo a medidas mais desesperadas.

— Dificilmente eu pensaria assim — tornou Vance. — Mas, se alguma coisa acontecer, o senhor me encontrará nesse telefone. — Vance escreveu o número de seu telefone particular em um pedaço de papel e entregou-o a Bliss.

O doutor pegou o cartão ansiosamente, olhou-o e o colocou no bolso.

— Vou subir agora — anunciou e se dirigiu abstratamente para fora da sala.

— Você tem certeza, Vance, — perguntou Markham preocupado — de que não estamos submetendo o Dr. Bliss a um risco desnecessário?

— Absoluta. — Vance se pusera pensativo. — De qualquer modo, é um jogo delicado e não há outra maneira de agir. — Foi até à janela. — Não sei... — murmurou ele, acrescentando após alguns momentos: — Sargento, eu gostaria de falar com Salveter. E não há necessidade de que Hennessey permaneça lá em cima. Dispense-o.

Heath, confuso e aborrecido, foi até o saguão e chamou Hennessey.

Quando Salveter entrou na sala Vance nem sequer olhou em sua direção.

— Sr. Salveter, — disse ele, olhando as árvores empoeiradas do Parque Gramercy — se eu fosse o senhor fecharia a porta do meu quarto hoje de noite... E não escreva mais cartas — acrescentou ele. — Afaste-se também do museu.

Salveter pareceu assustado com essas recomendações. Estudou Vance durante algum tempo e em seguida contraiu os maxilares.

— Se alguém começar com coisas por aqui... — começou ele com uma agressividade quase feroz.

— Oh, muito bem — suspirou Vance. — Mas não projete sua personalidade com tanta intensidade. Estou fatigado.

Salveter, após um momento de hesitação, voltou-se e saiu da sala. Vance foi até à mesa do centro e apoiou-se pesadamente nela.

— Agora, uma palavra com Hani e podemos partir. Heath deu de ombros resignadamente e foi até à porta.

— Ei, Snitkin, traz aqui aquele Ali Babá de quimono.

Snitkin apressou-se a subir as escadas e pouco depois o egípcio se encontrava à nossa frente, sereno e alheado.

— Hani, — falou Vance, com uma impressividade completamente fora do comum — você fará bem em vigiar esta casa hoje à noite.

— Sim, effendi. Compreendo perfeitamente. O espírito de Sakhmet pode voltar e completar a tarefa que ela começou...

— Exatamente. — Vance deu um sorriso cansado. — Sua felina dama atrapalhou as coisas esta manhã e, provavelmente, voltará para acertar umas pontas que estão soltas... Vigie para ela, compreende?

Hani inclinou a cabeça.

— Sim, effendi. Nós nos compreendemos.

— O que é positivamente formidável. Incidentalmente, Hani, qual é o número da casa do Sr. Scarlett em Irving Place?

— Noventa e seis. — O egípcio revelou considerável interesse na pergunta de Vance.

— Isto é tudo... E dê lembranças minhas a sua deusa de cabeça de leão.

— Talvez seja Anúbis quem voltará, effendi — disse Hani sepulcralmente antes de deixar-nos.

Vance olhou Markham enigmaticamente.

— O cenário está pronto e a cortina não tardará a subir... Vamos embora. Não há mais nada que possamos fazer aqui e estou louco de fome.

Quando passávamos pela Rua Vinte, Vance nos conduziu na direção de Irving Place.

— Creio que devemos a Scarlett deixá-lo saber em que pé estão as coisas — explicou, negligentemente. — Foi ele quem nos comunicou o infausto acontecimento e, provavelmente, está impaciente e inquieto. Ele mora logo aqui, dobrando a esquina.

Markham encarou Vance inquisitivamente, mas não fez comentários. Heath, entretanto, resmungou impacientemente.

— Parece-me que estamos tratando de tudo, menos de esclarecer este crime — protestou ele.

— Scarlett é um sujeito ladino. Pode ter algumas idéias — retrucou Vance.

— Eu também tenho idéias — declarou o sargento maliciosamente. — Mas o que elas adiantam? Se eu estivesse à frente deste caso teria prendido todos da casa, posto cada um em uma cela e deixado que suassem. Na ocasião em que conseguissem dar início ao processo de habeas-corpus eu já saberia muito mais do que sei agora.

— Duvido, sargento — falou Vance suavemente. — Creio que o senhor saberia ainda menos... Ah, chegamos ao noventa e seis.

Vance dirigiu-se para a entrada colonial de uma velha casa de tijolos a umas poucas portas da Rua Vinte e tocou a campainha.

A habitação de Scarlett — duas peças ligadas em arco — situava-se no segundo andar, de frente. Era mobiliada em estilo Jacobino, discreto mas confortável, e caracterizava o solteirão sério. Scarlett abrira a porta atendendo à campainha e nos convidou a entrar com a polidez rígida do anfitrião britânico. Pareceu aliviado em nos ver.

— Tenho estado em assustadora confusão nestas últimas horas — comentou ele. — Procurando analisar este caso. Estava a ponto de ir correndo até o museu para ver que progresso os cavalheiros conseguiram.

— Progredimos um bocado — informou Vance — mas não foi um progresso de natureza tangível. Decidimos deixar as coisas correrem um pouco, prevendo que o culpado continuará a execução de sua trama e, deste modo, nos forneça algumas provas definitivas.

— Ah! — Scarlett tirou o cachimbo da boca, lentamente, e olhou Vance com atenção. — Essa observação me faz pensar que talvez você e eu tenhamos chegado à mesma conclusão. Não há razão alguma para que Kyle tenha sido morto, a não ser que sua morte levasse a algo mais...

— A que, por exemplo?

— Por Jó, eu gostaria de saber! — Scarlett ajeitou o fumo do cachimbo com o dedo e acendeu-o com um fósforo.

— Há várias explicações possíveis.

— Meu Deus! É mesmo?... Várias? Bem, bem! Poderia você esboçá-las para nós? Estamos tremendamente interessados, sabe?

— Oh, espere aí, Vance! De fato, como o velho Harry, não quero acusar ninguém — protestou Scarlett. — Hani, entretanto, não gosta muito do Dr. Bliss...

— Muito obrigado. Surpreendente como possa parecer, eu mesmo notei esse fato hoje pela manhã. Será que você não tem um outro raio de sol para lançar em nossa direção?

— Creio que Salveter está perdidamente enamorado de Meryt-Amen.

— Deixe isso para lá!

Vance tirou da cigarreira o Régie remanescente e bateu-o. Acendeu-o deliberadamente e, após uma tragada profunda, ergueu os olhos seriamente.

— Sim, Scarlett, — falou, lentamente — é muito possível que você e eu tenhamos chegado à mesma conclusão. Mas, naturalmente, não podemos fazer nenhum movimento até que tenhamos algo definitivo em que basear nossas hipóteses... Por falar nisso, o Dr. Bliss tentou deixar o país esta tarde. Se não fosse um dos homens do sargento Heath ele provavelmente estaria agora em viagem para Montreal.

Esperei que Scarlett se mostrasse surpreendido com esta notícia, mas, ao invés, limitou-se a acenar com a cabeça afirmativamente.

— Não me surpreendo. Ele está possivelmente em pânico. Não posso culpá-lo. As coisas parecem pretas para ele.

— Scarlett deu uma puxada no cachimbo e olhou de soslaio para Vance. — Quanto mais penso neste caso, mais fico com a impressão de que, afinal de contas...

— Oh, está bem — cortou Vance. — Mas não estamos ansiosos por possibilidades. O que queremos são fatos específicos.

— Temo que isso seja difícil. — Scarlett ficou pensativo.

— Tem havido demasiada inteligência...

— Ah! Este é o ponto — demasiada inteligência. Exatamente! Aí está a fraqueza do crime. E estou contando esperançosamente na abundantia cautelae. — Vance sorriu. — Realmente, sabe Scarlett, não sou tão estúpido quanto tenho parecido até agora. Meu objetivo em fazer parecer ridículas as minhas percepções tem sido o de atrair o criminoso a novos esforços. Mais cedo ou mais tarde ele errará a mão.

Scarlett não respondeu durante algum tempo. Finalmente falou.

— Aprecio sua confiança, Vance. Você é admirável. Na minha opinião, porém, você nunca será capaz de condenar o assassino.

— Talvez você tenha razão — admitiu Vance. — Entretanto, estou-lhe fazendo um apelo para que mantenha a situação de olho... Aviso-lhe, no entanto, que tenha cuidado. O assassino de Kyle é um sujeito implacável.

— Não é preciso que você me diga isso. — Scarlett levantou-se e, encaminhando-se à lareira, apoiou-se na moldura de mármore. — Eu poderia escrever volumes a seu respeito.

— Tenho certeza de que você poderia fazê-lo. — Para minha estupefação Vance aceitou a assombrosa declaração do outro sem a menor demonstração de surpresa. — Mas não há necessidade disso agora. — Vance, também, se pôs de pé e, encaminhando-se para a porta, deu um adeus casual a Scarlett. — Nós já vamos. Apenas pensei que lhe deveríamos dar uma notícia sobre o pé em que se encontram as coisas e adverti-lo para que tenha cuidado.

— Muita bondade sua, Vance. O fato é que estou terrivelmente preocupado — nervoso como um gato persa... Gostaria de poder trabalhar, mas todo o meu material está no museu. Sei que não vou dormir nem um pouco hoje à noite.

— Bem, até logo! — Vance virou a maçaneta da porta.

— Escute aqui, Vance! — Scarlett adiantou-se. — Você por acaso, vai voltar hoje à casa de Bliss?

— Não. Nada temos que fazer lá durante algum tempo.

— A voz de Vance era calma e arrastada, como se estivesse enfadado. — Por que quer saber?

Scarlett tornou a mexer no cachimbo como se movido por súbita agitação.

— Por nada. — Olhou para Vance com o cenho contraído. — Sem qualquer razão. Estou ansioso a respeito da situação. Não há como saber-se o que vai acontecer.

— O que quer que aconteça, Scarlett, — disse Vance, de certo modo abruptamente — a Sra. Bliss estará inteiramente a salvo. Creio que poderemos confiar em Hani para que assim seja.

— Sim... é claro — murmurou o homem. — Cão fiel, Hani... E quem desejaria fazer mal a Meryt?

— Quem, de fato? — Vance, agora, estava de pé no saguão, mantendo a porta aberta para que passássemos Markham, Heath e eu.

Scarlett, animado por algum instinto de hospitalidade, adiantou-se.

— Que pena que já se vão — disse, perfunctoriamente.

— Se puder ajudá-los em alguma coisa... Quer dizer que encerraram sua investigação na casa?

— Pelo momento, pelo menos. — Vance fez uma pausa Nós passamos por ele e ficamos esperando no topo das escadas. — Não estamos encarando uma volta ao estabelecimento de Bliss até que algo de novo venha à luz.

— Muito bem. — Scarlett sacudiu a cabeça afirmativamente com curiosa significação. — Se eu souber de alguma coisa telefono para você.

Saímos para Irving Place e Vance fez sinal para um táxi que passava.

— Comida... alimentação — resmungou ele. — Vejamos... O Brevoort não fica muito longe...

Tomamos um excelente chá no velho Brevoort, na parte baixa da Quinta Avenida e, pouco depois, Heath seguiu para o Departamento de Homicídios a fim de preparar seu relatório e pacificar os repórteres dos jornais que iriam cair em enxame em cima dele no momento que o caso fosse registrado.

— É melhor que o senhor fique de prontidão, sargento, — sugeriu Vance — pois estou prevendo uma série de acontecimentos e nada podemos fazer sem o senhor.

— Estarei no gabinete até às dez horas da noite — disse-lhe Heath mal-humoradamente. — Depois dessa hora o Sr. Markham sabe onde me encontrar. Mas quero dizer-lhe que não estou satisfeito.

— Nós também não — confessou alegremente. Markham telefonou para Swacker1 para que fechasse o escritório e fosse para casa. Em seguida nós três nos dirigimos para Longue Vue, a fim de jantarmos. Vance recusou-se a discutir o caso e insistiu em falar sobre Arturo Toscanini, o novo maestro da Orquestra Filarmônica.

 

 

 

(1) Swacker era um jovem brilhante e enérgico, secretário de Markham.

 


— Um superestimado Kapellmeister — reclamou ele enquanto provava seu canard Molière. — A mim me parece temperamentalmente incapaz de sentir os ideais clássicos nas grandes obras sinfônicas de Brahms e de Beethoven... O purê de tomate está excelente neste molho, mas o vinho de Madeira está muito ácido. A proibição, Markham, teve um efeito destruidor na comida deste país: ela praticamente acabou com a estética gastronômica... Mas, voltando a Toscanini. Estou positivamente surpreendido com os panegíricos com que a crítica o tem distinguido. Seus ideais secretos, estou inclinado a pensar, são Puccini, Giordano e Respighi; e nenhum homem, com tais ideais, deveria tentar interpretar os clássicos. Já o vi executar Brahms, Beethoven e Mozart, e todos eles, sob sua batuta, exudam um forte aroma italiano. Os americanos, porém, adoram-no. Os americanos, porém, não têm o sentido da beleza intelectual pura, das linhas clássicas arrebatadoras e da forma magistral. Eles adoram pianíssimos e fortíssimos profundamente contrastados, súbitas mudanças de tempo, saltitantes accelerandos e arrastados ritardandos. E Toscanini lhes dá tudo isso... Furtwängler, Walter, Klemperer, Mengelberger, Van Hoogstraatem — qualquer um destes condutores é, em minha opinião, superior a Toscanini quando se trata dos grandes clássicos germânicos.

— Você se importaria, Vance, — perguntou Markham irritadamente — em deixar de lado todas essas irrelevâncias e nos esboçar sua teoria sobre o caso Kyle?

— Eu me importaria muitíssimo — foi a resposta amável de Vance. — No entanto, após o Bar-le-Duc e Gervaise...

Na verdade já era quase meia-noite quando o assunto da tragédia foi novamente abordado. Tínhamos voltado ao apartamento de Vance após um longo passeio de carro pelo Parque Van Cortland; Markham e eu subíramos até o pequeno jardim-no terraço, a fim de apanharmos qualquer brisa que porventura soprasse ao longo da Rua Trinta e Oito, Leste. Currie havia preparado um delicioso ponche de champanha — a que os vienenses chamam de Bowl — contendo frutas frescas; permanecemos sentados sob o estrelado céu de verão, fumando e aguardando. "Aguardando", é a palavra correta, pois cada um de nós aguardava que algo de mau acontecesse.

Vance, apesar de todo o seu alheamento, estava intimamente tenso — posso dizer pelos seus movimentos restritos e vagarosos. Markham relutava em ir para casa — não estava absolutamente satisfeito com o rumo tomado pela investigação e esperava, como resultado dos prognósticos de Vance, que algo acontecesse para retirar o caso do esfumado reino das conjecturas e colocá-lo em bases mais sólidas sobre as quais fosse possível assentar uma ação mais definida.

Pouco depois da meia-noite Markham manteve uma longa palestra com Heath pelo telefone. Quando desligou deixou escapar um suspiro de desânimo.

— Nem quero pensar sobre o que os jornais da oposição dirão amanhã — observou ele sombriamente, enquanto cortava a ponta de um outro charuto. — Não chegamos exatamente à parte alguma nessa investigação...

— Oh, sim, chegamos. — Vance permanecia olhando a noite abafada. — Conseguimos um surpreendente progresso. O caso, podemos dizer, está encerrado, no que diz respeito à sua solução. Apenas aguardamos que o criminoso entre em pânico. No momento em que tal acontecer poderemos entrar em ação.

— Por que você tem que ser tão confusamente misterioso? — Markham estava de péssimo humor. — Você sempre emerge em rituais cabalísticos. A própria pitonisa de Delfos não era mais vaga ou obscura do que você. Se você acha que sabe quem matou Kyle, por que não nos diz?

— Não posso fazer isso. — Vance, também, estava mal-humorado. — Realmente, Markham, não estou procurando ser ilusório. Estou lutando por encontrar evidências tangíveis que dêem apoio a minhas teorias. Se esperarmos um pouco conseguiremos essas provas. — Olhou seriamente para Markham. — Há perigo, é claro. Algo imprevisto pode acontecer. Mas não há forma humana de impedir que tal aconteça. Qualquer passo que tomemos agora poderá terminar em tragédia. Já demos bastante corda para o criminoso; esperemos que ele se enforque...

Era exatamente meia-noite e vinte quando aconteceu aquilo por que Vance estava esperando. Estávamos sentados em silêncio, havia, talvez, uns dez minutos, quando Currie chegou ao jardim com um telefone portátil.

— Desculpe-me, senhor... — começou ele, mas, antes que pudesse continuar, Vance se pusera de pé e caminhava em sua direção.

— Ligue o telefone, Currie — determinou ele. — Responderei à chamada.

Vance pegou o aparelho e se encostou na porta francesa.

— Sim, sim... O que aconteceu? — Sua voz era baixa e ressonante. Escutou durante uns trinta segundos, com os olhos semicerrados. Em seguida limitou-se a dizer: — Iremos para aí imediatamente. — Devolveu o telefone a Currie.

Vance estava inquestionavelmente intrigado e permaneceu parado durante alguns momentos, a cabeça baixa, absorto em seus pensamentos.

— Não é o que eu esperava — falou, como se consigo mesmo. — Não se encaixa.

Pouco depois levantou a cabeça, como alguém subitamente atingido.

— Mas se encaixa! Claro que se encaixa! Era o que eu deveria ter esperado. — A despeito da descuidada posição de seu corpo seus olhos estavam animados. — Lógico! Tremendamente lógico!... Vamos, Markham, telefone para Heath... diga-lhe que nos encontre no museu tão depressa quanto lhe seja possível...

Markham havia-se levantado e olhava para Vance com expressão feroz.

— Quem estava ao telefone? — perguntou — E o que aconteceu?

— Por favor, fique tranqüilo, Markham — respondeu Vance calmamente. — Foi o Dr. Bliss quem falou comigo e, de acordo com sua histérica descrição, houve uma tentativa de assassinato em sua casa. Prometi-lhe que iríamos lá olhar...

Markham já arrebatara o telefone das mãos de Currie e estava pedindo nervosamente ligação para a casa de Heath.

 


XVII

 

 

A adaga de ouro

 

 


(Sábado, 14 de julho — 0:45 hora)

 

 

 

Tivemos que caminhar até à Quinta Avenida para encontrar um táxi àquela hora e, mesmo assim, passaram-se cinco minutos antes que aparecesse um vazio. O resultado é que vinte minutos haviam decorrido antes que entrássemos no Parque Gramercy e par assemos à porta da residência de Bliss.

Quando descíamos, surgiu um outro táxi contornando a esquina de Irving Place e quase bateu em nós quando seus freios foram subitamente acionados. A porta se abriu inteiramente antes que o carro finalmente parasse e a volumosa figura do sargento Heath se projetou sobre a calçada. Heath morava na rua Onze, Leste, e tinha conseguido vestir-se e chegar ao museu quase simultaneamente conosco.

— Meu Deus, sargento! — saudou-o Vance. — Estamos sincronizados, sabe? Chegamos ao mesmo destino, ao mesmo tempo, mas vindo de direções opostas. Idéia encantadora.

Heath recebeu a algo enigmática saudação com um grunhido.

— Por que toda a excitação? — perguntou ele a Markham. — O senhor não me disse muita coisa pelo telefone.

— Houve uma tentativa contra a vida do Dr. Bliss — informou-o Markham.

Heath assobiou suavemente.

— Certamente eu não esperava por essa, senhor.

— Nem o Sr. Vance. — A réplica pretendia ser um sarcasmo.

Subimos os degraus de pedra que conduziam ao vestíbulo, mas antes que pudéssemos tocar a campainha Brush abriu a porta. O mordomo levou o dedo indicador aos lábios e, inclinando-se misteriosamente para a frente, disse num sussurro: — O Dr. Bliss pediu que os cavalheiros entrassem em silêncio, de modo a não perturbar os outros moradores da casa... Ele está em seu quarto, esperando pelos senhores.

Brush vestia um robe de flanela e chinelas macias, mas, apesar do abafado da noite, tremia visivelmente. Seu rosto, sempre pálido, parecia agora o de um fantasma, na obscuridade.

Brush passou para dentro do saguão e fechou a porta cautelosamente com mãos trêmulas. Repentinamente, Vance aproximou-se dele e, agarrando-o pelo braço, fê-lo voltar-se.

— O que sabe você sobre o que ocorreu aqui hoje à noite — indagou em voz baixa.

Os olhos do mordomo se arregalaram e sua boca caiu.

— Nada, nada — conseguiu balbuciar.

— Essa agora! Então por que você está tão assustado? — Vance continuava a mantê-lo pelo braço.

— Estou com medo deste lugar — foi a melancólica resposta. — Quero ir embora daqui. Estranhas coisas estão acontecendo...

— De fato. Mas não se assuste; você estará em condições de procurar outras acomodações muito breve.

— Fico muito satisfeito com essa informação, senhor. — O homem parecia grandemente aliviado. — Mas o que aconteceu esta noite, senhor?

— Se você não sabe o que aconteceu, como se encontra aqui a essa hora — retrucou Vance — esperando pela nossa chegada e agindo como o vilão de um melodrama?

— Disseram-me para vir esperá-los, senhor. O Dr. Bliss desceu até o meu quarto...

— Onde é o seu quarto, Brush?

— No andar de baixo, na parte de trás, junto da cozinha.

— Muito bem. Prossiga.

— Bem, senhor, o Dr. Bliss veio a meu quarto há cerca de meia hora. Parecia muito preocupado e assustado... se o senhor entende o que quero dizer. Ele me disse que esperasse pelos cavalheiros na porta da frente — que os senhores chegariam a qualquer minuto. O doutor me instruiu para que não fizesse barulho e também que os avisasse...

— Ele subiu em seguida?

— Imediatamente, senhor.

— Onde é o quarto do Dr. Bliss?

— É a porta de trás do segundo andar, exatamente no topo das escadas. A porta da frente é do quarto de dormir da senhora.

Vance soltou o braço do homem.

— Você ouviu esta noite alguma perturbação?

— Nenhuma, senhor. Tudo esteve em calma. Todos foram cedo para seus quartos e eu mesmo fui para a cama antes das onze horas.

— Você pode ir para a cama agora — informou Vance.

— Sim, senhor. — Brush retirou-se rapidamente e desapareceu através da porta dos fundos do saguão.

Vance fez um gesto para que o seguíssemos e liderou o caminho escadas acima. Uma pequena lâmpada elétrica encontrava-se acesa no saguão de cima, mas isso não seria necessário para que achássemos o quarto do Dr. Bliss, pois sua porta se encontrava aberta alguns centímetros e um raio de luz saía em diagonal por ela, projetando-se no chão.

Sem bater, Vance empurrou a porta e entrou no quarto. Bliss estava rigidamente sentado em uma cadeira reta no canto oposto, ligeiramente inclinado para a frente, os olhos fixos na porta. Em sua mão aparecia um revólver de aparência brutal. À nossa entrada, pôs-se de pé, enquanto, simultaneamente, erguia a arma.

— Calma, calma, doutor! — Vance sorriu enigmaticamente. — Ponha de lado as armas de fogo e recite um poema lastimoso.

Bliss emitiu um audível suspiro de alívio e colocou a arma em uma mesinha a seu lado.

— Obrigado por ter vindo, Sr. Vance — disse ele em voz tensa. — E o senhor também, Sr. Markham. — Tomou conhecimento de minha presença e da de Heath com uma leve e desajeitada inclinação. — Aconteceu o que o senhor previu... Há um criminoso nesta casa!

— Bem, bem! Dificilmente pode-se dar a isso o nome de novidade. (Eu não podia compreender a atitude de Vance.) — Já sabemos disso desde as onze horas da manhã.

Bliss, também, estava perplexo e, imagino, algo despeitado pela maneira negligente de Vance, pois dirigiu-se com passos duros para a cama e, apontando para a cabeceira, observou com irritação: — E aqui está a prova!

A cama era uma peça colonial antiga, de mogno polido, com uma grande cabeceira curva se erguendo a, pelo menos, 1,20 m acima do colchão. Encontrava-se encostada à parede da esquerda, a um ângulo reto com a porta.

O objeto para o qual Bliss apontava com um dedo trêmulo era uma antiga adaga egípcia, com cerca de 25 centímetros de comprimento, cuja lâmina estava cravada na cabeceira da cama, logo acima do travesseiro. A direção de penetração encontrava-se em Unha com a porta.

Todos nós avançamos e permanecemos por alguns momentos contemplando aquela visão sinistra. Indubitavelmente a adaga fora arremessada com grande força, para ter entrado tão firmemente no duro mogno; era também óbvio que, se alguém estivesse deitado sobre o travesseiro na ocasião em que a adaga fora lançada, teria recebido todo o peso do golpe na garganta.

Vance estudou a posição da adaga, avaliando o seu alinhamento e o ângulo formado com a porta e, em seguida, esticou a mão para pegar a arma. Heath interceptou-lhe o movimento.

— Use seu lenço, Sr. Vance — advertiu ele. — Deve conter impressões digitais...

— Oh, não, sargento, não haverá impressões. — Vance falou com impressionante ar de conhecimento. — Quem quer que tenha lançado aquela adaga terá sido suficientemente cuidadoso para evitar tais toques de incriminação... — Retirou a lâmina com considerável dificuldade da cabeceira da cama e levou-a até à lâmpada da mesinha de luz.

 

 

 

 

 

 


Era uma linda e interessante peça de artesanato. O punho estava ornamentado com ouro granulado e estreitas faixas de esmalte e de pedras semipreciosas — ametistas, turquesas, granadas, cornalinas e pequeninas lascas de obsídio, calcedônia e feldspato. No cabo se achava sobreposto um nó de cristal de rocha e no punho destacava-se um desenho em arabesco de fio de ouro. A lâmina era de ouro endurecido com pequenos buracos rasos centrais terminando em uma decoração em palma gravada1.

 

 

 

(1) Uma adaga similar foi encontrada sobre a múmia real no túmulo de Tut-ankn-Amun pelo falecido Lord Carnavon e Howard Carter, e se encontra agora no Museu do Cairo.

 


— Fim da décima oitava dinastia — murmurou Vance, passando o dedo na adaga e estudando-lhe os desenhos. — linda, mas decadente. A grosseira simplicidade da arte egípcia inicial foi assustadoramente à garra durante a opulenta renascença que se seguiu à invasão dos hyksos... Dr. Bliss como essa bugiganga veio a ser sua?

Bliss sentia-se embaraçado e, quando respondeu, seu tom de voz era apologético e sem jeito.

— O fato é, Sr. Vance, que eu contrabandeei essa adaga para fora do Egito. Foi um achado inesperado e incomum e puramente acidental. É uma relíquia valiosa e fiquei com medo de que o governo egípcio a reclamasse.

— Bem posso imaginar que gostariam de reter essa peça em seu próprio país. — Vance jogou a adaga em cima da mesa. — E onde o senhor, normalmente, conserva essa arma?

— Sob alguns papéis em uma das gavetas da mesa de meu escritório — respondeu Bliss em seguida. — Era um item de caráter bastante pessoal e julguei que seria melhor não o arrolar no museu.

— Muito discreto... Quem, além do senhor, sabia de sua existência?

— Minha mulher, é claro e... — Bliss interrompeu-se subitamente e uma luz peculiar surgiu-lhe nos olhos.

— Vamos, vamos, doutor. — Vance falava aborrecido. — Isto não adianta. — Termine sua sentença.

— Já terminei. Minha mulher é a única pessoa a quem confiei o fato.

Vance aceitou a declaração sem qualquer outro argumento.

— Ainda assim — disse ele — qualquer pessoa poderia ter descoberto a arma, não?

Bliss concordou com a cabeça, vagarosamente.

— Desde que tenha andado remexendo em minha mesa.

— Exatamente. Quando, pela última vez, o senhor viu essa adaga na gaveta de sua mesa?

— Esta manhã. Estava procurando papel almaço em que preparar o meu relatório para o pobre Kyle...

— E quem, de seu conhecimento, esteve em seu escritório depois que saímos de casa esta tarde?

Bliss meditou alguns momentos e, logo em seguida, uma expressão de surpresa desceu sobre seu rosto.

— Prefiro não dizer.

— Nada podemos fazer para ajudá-lo, doutor, se o senhor tomar esta atitude — observou Vance severamente. — Foi o Sr. Salveter quem esteve em seu escritório?

Bliss fez uma pausa de alguns segundos. Em seguida contraiu os maxilares.

— Sim! — A palavra praticamente explodiu em seus lábios. — Mandei-o a meu escritório hoje à noite depois do jantar, a fim de me trazer um livro de memorando...

— Onde o senhor guarda esse livro?

— Na mesa. — Essa informação foi dada relutantemente. — Mas, qualquer tentativa de ligar Salveter...

— Neste momento não estamos tentando ligar ninguém com este episódio — interrompeu Vance. — Estamos unicamente tentando acumular todas as informações possíveis... Entretanto, o senhor deve admitir, doutor, — acrescentou Vance — que o jovem Sr. Salveter está — como devo dizer? — bastante interessado na Sra. Bliss...

— O que é isso? — Bliss retesou-se e olhou para Vance ferozmente. — Como ousa o senhor sugerir uma coisa dessas? Minha esposa, senhor...

— Ninguém criticou a Sra. Bliss — falou Vance delicadamente. — Além disso, uma hora da manhã é dificilmente a hora apropriada para pirotecnias de indignação.

Bliss afundou em sua cadeira e cobriu o rosto com as mãos.

— Talvez seja verdade — concedeu ele com voz de desespero. — Sou muito velho para ela... vivo muito absorvido por meu trabalho... Mas isso não significa que o rapaz tentaria matar-me.

— Talvez não — falou Vance indiferentemente. — Mas quem, então, o senhor suspeita que tenha tentado seccionar sua carótida?

— Não sei... não sei. — A voz do homem elevou-se lamentavelmente. Neste momento abriu-se a porta que dava acesso ao apartamento da frente e a Sra. Bliss surgiu no portal, um longo robe solto de linhas orientais lançado em seus ombros. Estava perfeitamente calma e os olhos se mantinham firmes, ainda que um tanto brilhantes, ao contemplar a cena à sua frente.

— Por que os senhores, cavalheiros, voltaram a esta hora? — quis saber ela imperiosamente.

— Foi feita uma tentativa contra a vida de seu marido — respondeu Markham sombriamente — e ele nos telefonou...

— Uma tentativa contra sua vida? Impossível! — A Sra. Bliss falou com exagerada ênfase e seu rosto tornou-se perceptivelmente pálido. Em seguida encaminhou-se até Bliss e colocou seus braços em torno dos ombros do marido em uma atitude de afeiçoada proteção. Seus olhos cintilavam ao erguê-los na direção de Vance. — Que absurdo é esse? Quem quererá tirar a vida de meu marido?

— Quem, na verdade? — Vance enfrentou calmamente o olhar da mulher. — Se nós o soubéssemos, poderíamos pelo menos prender essa pessoa por ataque com uma arma mortífera... creio que é esta a expressão.

— Uma arma mortífera? — A moça franziu o cenho, em óbvia tensão. — Oh, contem-me o que aconteceu!

Vance apontou para a adaga em cima da mesa.

— Tudo o que sabemos até agora é que aquela adaga que ali está encontrava-se cravada na cabeceira da cama quando aqui chegamos. Estávamos a ponto de pedir a seu marido um relato completo do acontecimento quando a senhora apareceu — uma encantadora Nefret-íti — à porta... Talvez — prosseguiu, voltando-se para Bliss — o doutor, agora, nos conte todo o episódio.

— Há realmente pouco o que contar. — Bliss sentou-se e começou, nervosamente, a fazer vincos nas dobras de seu robe. — Vim para o meu quarto pouco depois do jantar e fui para a cama. Não podia dormir, porém, e me levantei. Foi então que Salveter passou pela minha porta em caminho lá para cima e eu lhe pedi que trouxesse o livro memorando do escritório — pensava que pudesse afastar de minha mente os horríveis eventos do dia...

— Um momento, doutor — interrompeu Vance. — Sua porta estava aberta?

— Sim. Eu a havia aberto quando me levantei, para obter um pouco mais de ar no quarto — a atmosfera estava abafada... Em seguida fiquei olhando umas anotações e observações antigas que eu fizera, relativas às escavações do último inverno. Não consegui, porém, fixar minha mente nessas anotações e, finalmente, fechei a porta, apaguei as luzes e tornei a me deitar na cama.

— Que horas deviam ser então?

— Eu diria que entre dez e meia e onze horas... Dormi intermitentemente até às doze horas — podia ver as horas naquele relógio com mostrador luminoso — depois do que me tornei incrivelmente inquieto. Pus-me a pensar no pobre Kely e não consegui dormir mais. No entanto, fisicamente, eu estava exausto e permanecia imóvel... Cerca de um quarto de hora depois da meia-noite — a casa estava em completo silêncio, o senhor compreende — pensei ter ouvido passos nas escadas...

— Que escadas, doutor?

— Não pude determinar. Os passos podiam estar vindo de cima, do terceiro andar, ou de baixo, do primeiro. Eram passos silenciosos e se eu não estivesse acordado completamente e alerta não os teria notado. Como eram nem eu podia ter certeza, ainda que, de uma feita, julgasse ter ouvido um estalido, como se uma tábua estivesse um pouco solta sob o tapete.

— E então?

— Continuei deitado, especulando de quem poderia tratar-se, pois sabia que os demais membros da casa tinham ido para a cama cedo. Não me preocupei exatamente com o ruído até que percebi que os passos se aproximaram de minha porta e aí se detiveram. Foi então que o seu aviso, Sr. Vance, me ocorreu em plena força e senti que algum perigo desconhecido me espreitava do portal. Admito que fiquei, temporariamente, paralisado pelo medo: podia sentir as raízes de meu cabelo formigando e comecei a suar frio.

Bliss tomou uma respiração profunda, como que para livrar-se de uma assustadora recordação.

— Então a porta começou a se abrir vagarosa e suavemente. A luz do saguão tinha sido apagada e o quarto aqui estava em quase completa escuridão, de modo que não consegui ver coisa alguma. Podia, no entanto, escutar a porta se abrindo e percebi uma débil corrente de ar que entrou do saguão...

Um tremor percorreu o corpo de Bliss e seus olhos brilharam desusadamente.

— Eu teria gritado, mas minha garganta parecia fechada e não queria pôr em perigo a Sra. Bliss, que poderia acorrer ao meu chamado e esbarrar involuntariamente em algo perigoso e mortal... O raio ofuscante de uma lanterna foi lançado diretamente em meus olhos e, instintivamente, me afastei para um dos lados da cama. Naquele momento ouvi um som cortante e rápido seguido de um estalo na madeira, perto de minha cabeça. Notei, imediatamente, passos que se afastavam em retirada...

— Em que direção? — tornou a interromper Vance.

— Não tenho certeza. Eram passos muito leves. Percebi, apenas, que eram furtivos...

— O que fez depois disso, doutor?

— Esperei alguns minutos. Então, cautelosamente, fechei a porta e acendi as luzes. Foi nesse momento que percebi o que havia feito o ruído na cabeceira da cama, pois a primeira coisa que vi foi a adaga. Percebi, também, que eu havia sido o alvo de um ataque criminoso.

Vance acenou afirmativamente com a cabeça e, pegando a adaga, sopesou-a na palma da mão.

— Sim — resmungou ele — tem uma lâmina pesada e poderia ter sido lançada com precisão mesmo por um amador... Uma forma peculiar de assassinato, no entanto — prosseguiu ele, quase que falando consigo mesmo. — Teria sido muito mais simples e muito mais seguro para o atacante ter-se arrastado até à cama e enfiado a arma entre as costelas da pretensa vítima... Muito peculiar! A não ser, é claro... — Interrompeu-se e olhou para a cama pensativamente. Dentro em pouco deu de ombros e encarou Bliss. — Após a descoberta da arma, creio, o senhor telefonou para mim.

— Em menos de cinco minutos. Fiquei ouvindo à porta durante um momento, em seguida desci e telefonei para o senhor. Depois disso acordei Brush e determinei-lhe que ficasse esperando pelo senhor na porta da frente. Voltei cá para cima — tinha-me armado com o revólver lá no escritório... e esperei sua chegada.

A Sra. Bliss permanecera observando o marido com um olhar de profunda ansiedade durante o seu relato.

— Ouvi o ruído da adaga encravando-se na cabeceira da cama — disse ela em voz baixa e atemorizada. — Minha cama se apoia contra o lado oposto da parede. O ruído me surpreendeu e me acordou, mas não prestei mais atenção e continuei dormindo. — Lançou a cabeça para trás e olhou para Vance. — Isto é vergonhoso e ultrajante! O senhor insiste em que meu marido permaneça nesta casa que abriga um criminoso — um assassino que está tramando contra ele — e nada faz para protegê-lo.

— Mas nada lhe aconteceu, Sra. Bliss — respondeu Vance com delicada seriedade. — Ele perdeu uma hora de sono, mas realmente isso não é uma grande catástrofe. Posso assegurar-lhe que nenhum outro perigo o atingirá. — Olhou diretamente nos olhos da mulher e senti conscientemente que alguma compreensão se estabeleceu entre eles naquele momento de mútuo escrutínio.

—- Espero que o senhor encontre o culpado — disse a Sra. Bliss com trágica e vagarosa ênfase. — Estou em condições de enfrentar a verdade... agora.

— A senhora é muito corajosa, madame — murmurou Vance. — Nesse meio tempo a melhor ajuda que nos poderá dar é retirar-se para o seu quarto e esperar lá até que a chamemos. Pode confiar em mim.

— Oh, sei que posso! — Havia um toque em sua voz. Em seguida ela se inclinou impulsivamente, tocou com os lábios a testa de Bliss e voltou para o seu quarto.

Os olhos de Vance a seguiram com uma expressão curiosa: não pude determinar se a lamentava ou a apreciava ou se se condoia dela. Depois que a porta se fechou sobre a Sra. Bliss, Vance se encaminhou até à mesa e tornou a colocar a adaga sobre ela.

— Estava pensando, doutor, — disse Vance — se o senhor não tranca ou fecha sua porta à noite?

— Sempre — foi a resposta imediata. — Fico nervoso se dormir com a porta destrancada.

— E esta noite?

— Isto é o que me intriga. — A testa de Bliss permanecia franzida em perplexidade. — Tenho certeza de que a fechei logo que cheguei ao meu quarto. Mas, como já lhe disse, levantei-me mais tarde e abri a porta para conseguir um pouco de ar. A única explicação que me ocorre é que esqueci de trancar a porta quando voltei para a cama. Claro que é possível, pois estava muito preocupado...

— A porta não poderia ter sido destrancada pelo lado de fora?

— Não. Tenho certeza de que não poderia. A chave estava na fechadura, exatamente como está agora.

— Não haverá impressões digitais na maçaneta do lado de fora? — inquiriu Heath. — O vidro cortado as imprimiria facilmente.

— Meu Deus, sargento! — Vance sacudiu a cabeça desanimadamente. — Quem concebeu esta trama sabe coisa melhor do que deixar seus cartões de visita onde quer que vá...

Bliss pôs-se de pé num salto.

— Acaba de me ocorrer uma idéia — exclamou ele. — Esta adaga tinha uma bainha de ouro e esmalte; se essa bainha não estiver agora na gaveta de minha mesa, talvez... talvez...

— Sim, sim. É verdade. — Vance concordou com a cabeça. — Percebo o seu ponto. A bainha poderia estar ainda de posse do frustrado assassino. Uma excelente prova... Sargento, o senhor se incomoda de acompanhar o Dr. Bliss até o escritório a fim de certificar-se se a bainha foi levada ou não juntamente com a adaga? Não há necessidade de se preocuparem se a bainha não estiver lá.

Heath encaminhou-se prontamente para o saguão, acompanhado por Bliss. Pudemos ouvi-los descer ao primeiro andar.

— O que acha disso, Vance? — perguntou Markham, quando ficamos sozinhos. — Parece-me muito sério.

— Estou concluindo muitas coisas desse fato — replicou Vance sombriamente. — E é muito sério. Mas, graças a Deus, o golpe não foi muito brilhante. Toda a coisa foi assustadoramente remendada.

— Sim, posso perceber este fato — concordou Markham. — Imagine alguém lançando uma faca a dois metros ou mais, quando poderia ter dado um golpe único em um ponto vital.

— Oh, sim? — Vance ergueu as sobrancelhas. — Eu não estava pensando na técnica de lançamento de facas. Há outros pontos neste caso ainda menos inteligentes. Não posso entendê-los absolutamente. Talvez demasiado pânico. De qualquer modo, talvez possamos obter uma chave definitiva da trama através da sugestão do doutor sobre a bainha.

Ouvimos que Bliss e Heath tornavam a subir as escadas.

— Bem, sumiu — informou-nos o sargento quando os dois entraram no quarto.

— Sem dúvida foi levada junto com a adaga — suplementou o Dr. Bliss.

— Suponhamos que eu chame alguns de meus rapazes e demos uma busca completa na casa — sugeriu Heath.

— Não será necessário, sargento — tornou Vance. — Tenho um pressentimento de que não será difícil encontrá-la.

Markham estava ficando preocupado com os termos vagos de Vance.

— Suponho — disse ele com um toque de sarcasmo — que você nos pode dizer exatamente onde se encontra a bainha.

— Sim, creio que sim. — Vance falou com meditativa seriedade. — No entanto, vou verificar minha teoria mais tarde... Nesse meio tempo — estava-se dirigindo a Bliss — ficar-lhe-ei imensamente agradecido se o senhor permanecer em seu quarto até que terminemos a investigação.

Bliss inclinou-se em aquiescência.

— Vamos até à sala de visitas por um momento — continuou Vance. — Há um trabalhinho a ser feito lá.

Vance se pôs a caminhar na direção do saguão, mas logo em seguida parou, como se movido por súbito impulso e, indo até à mesa, enfiou a adaga no bolso. Bliss fechou a porta atrás de nós e pudemos ouvir que a chave era girada na fechadura. Markham, Heath e eu começamos a descer as escadas, com Vance a nossa retaguarda.

Havíamos descido apenas uns poucos degraus quando fomos detidos por uma voz calma e serena vinda do andar de cima.

— Posso ajudar em alguma coisa, effendi?

A inesperada pergunta naquela casa calma e escura fez com que nos voltássemos instintivamente. No topo da escada que conduzia ao terceiro andar percebia-se a figura ensombrecida de Hani, seu kaftan solto destacando-se como uma sombra escura contra a palidamente iluminada parede de trás.

— Oh, muito! — respondeu Vance prazerosamente. — Estamos-nos dirigindo agora mesmo para a sala de visitas a fim de termos uma pequena reunião. Junte-se a nós, Hani.


XVIII

 

 

Uma luz no museu


(Sábado, 14 de julho — 1:15 hora)

 

 

Hani se reuniu a nós na sala de visitas. Permanecia calmo e dignificado, enquanto seus inescrutáveis olhos azuis repousavam impassivelmente em Vance, como os de um antigo sacerdote egípcio meditando ante o altar de Osíris.

— Como acontece que você esteja acordado e por aqui a esta hora? — perguntou Vance casualmente. — Outro ataque de gastrite?

— Não effendi. — Hani falou em um tom de voz comedido e vagaroso. — Levantei-me quando ouvi o senhor falando com Brush. Sempre durmo com a minha porta aberta.

— Talvez, então, você tenha ouvido Sakhmet, quando ela voltou hoje a esta casa.

— Sakhmet voltou? — O egípcio levantou a cabeça levemente, interessado.

— É uma forma de dizer... Ela, porém, é uma deusa muito ineficiente. Tornou a deitar tudo a perder.

— O senhor tem certeza de que não fez de propósito? — A despeito do tom arrastado da voz de Hani, havia nela uma nota significativa.

Vance o observou durante algum tempo. Em seguida, falou: — Você ouviu passos na escada ou ao longo do corredor do segundo andar pouco depois da meia-noite?

O homem sacudiu a cabeça vagarosamente.

— Não ouvi coisa alguma. Mas eu estava dormindo havia pelo menos uma hora, antes de sua chegada, e os sons de passos abafados no tapete espesso dificilmente me acordariam.

— O próprio Dr. Bliss — explicou Vance — desceu e telefonou para mim. Você também não o ouviu?

— Os primeiros sons que percebi foi quando os cavalheiros chegaram à porta da^ frente e falaram com Brush. Suas vozes, ou, talvez, a porta se abrindo, me acordaram. Mais tarde ouvi sons abafados no quarto do Dr. Bliss que é exatamente embaixo do meu. Não pude, porém, distinguir nada do que foi dito.

— É claro que você não percebeu que alguém apagou a luz do saguão do segundo andar por volta da meia-noite.

— Se eu não estivesse dormindo, certamente que o teria notado, já que a luz ilumina fracamente meu quarto lá em cima. Quando acordei, no entanto, a luz estava acesa como de costume. — Hani franziu o cenho levemente. — Quem teria apagado a luz do saguão a uma tal hora?

— Não sei... — Vance não tirou os olhos de cima do egípcio. — O Dr. Bliss acaba de nos dizer que foi alguém com desígnios sobre sua vida.

— Ah! — A exclamação foi como um suspiro de alívio. — Mas a tentativa, suponho, não obteve êxito.

— Não. Foi um fiasco. A técnica, eu diria, foi não somente estúpida como temerária.

— Não foi Sakhmet. — O pronunciamento de Hani foi quase sepulcral.

— Essa agora! — Vance sorriu ligeiramente. — Ela está ainda reclinada, então, para o lado dos grandes ventos oeste dos céus...1 Estou satisfeito em poder excluí-la e, uma vez que nenhuma força oculta se encontrava em ação, talvez você possa sugerir quem teria um motivo para cortar a garganta do doutor.

 

 

 

(1) Vance estava-se referindo jocosamente à declaração de Sakhmet no Capítulo de Abertura da Boca de Osíris Ani no Livro dos Mortos egípcio: (seguem-se alguns hieróglifos no texto original) "Eu sou a deusa Sakhmet e tenho meu assento ao lado do grande oeste (vento?) dos céus".

 


— Há muitas pessoas que não chorariam se ele deixasse esta vida; mas não conheço ninguém que tomasse nas próprias mãos a precipitação dessa partida.

Vance acendeu um Régie e sentou-se.

— Em que, Hani, você imaginou que nos poderia ser útil?

— Como o senhor, effendi, — veio a resposta delicada — esperei que algo desagradável e talvez violento acontecesse nesta casa esta noite. Quando ouvi o senhor chegar e se dirigir para o quarto do Dr. Bliss, ocorreu-me que talvez tivesse acontecido o evento que se aguardava. Assim, esperei no saguão de cima até que o senhor saísse.

— Muita consideração e muita reflexão de sua parte — murmurou Vance, dando algumas tragadas no cigarro. Após algum tempo, perguntou: — Se o Sr. Salveter tivesse saído de seu quarto hoje à noite, depois que você foi deitar-se, você teria tomado conhecimento do fato?

O egípcio hesitou e seus olhos se contraíram.

— Creio que sim. Seu quarto é exatamente em frente ao meu...

— Conheço a disposição das peças.

— Não parece provável que o Sr. Salveter pudesse ter destrancado sua porta e saído sem que eu me tivesse apercebido do fato.

— Mas é possível, não? — Vance mostrava-se insistente.

— Se você estivesse dormindo e o Sr. Salveter tivesse boas razões para não perturbá-lo, ele poderia ter saído com tanto cuidado que você continuaria a dormir sem tomar qualquer conhecimento do que estava acontecendo.

— Possível é — admitiu Hani sem muita vontade. — Mas tenho certeza de que ele não saiu do quarto depois que se recolheu.

— O seu desejo, temo, é o pai de sua certeza — suspirou Vance. — No entanto, não devemos ridicularizar esse ponto.

Hani observava Vance com decrescente interesse.

— O Dr. Bliss sugeriu que o Sr. Salveter saiu do quarto esta noite?

— Não, pelo contrário — assegurou-lhe Vance. — O doutor declarou enfaticamente que qualquer tentativa para vincular o Sr. Salveter com os passos furtivos do lado de fora de sua porta à meia-noite seria um grave erro.

— O Dr. Bliss está inteiramente certo — declarou Hani.

— Mesmo assim, Hani, o doutor insistiu que um assassino em potencial andava vagando pela casa. Quem mais poderia ser?

— Não posso imaginar. — Hani parecia quase indiferente.

— Você não acredita que possa ter sido a Sra. Bliss?

— Nunca! — O tom do homem se tornara subitamente animado. — Meryt-Amen não teria razão para ir até o saguão. Ela tem acesso ao quarto do marido através de uma porta de comunicação...

— Foi o que observei há uns momentos — ela veio se reunir a nós no quarto do doutor. E posso-lhe dizer, Hani, que ela está mais ansiosa do que nós em descobrir a pessoa que tentou contra a vida de seu marido.

— Ansiosa... e triste, effendi. — Uma nova nota surgiu na voz de Hani. — Ela ainda não entendeu as coisas que aconteceram aqui hoje. Quando entender...

— Não vamos agora especular ao longo dessas linhas — cortou Vance bruscamente. Meteu a mão no bolso e dele retirou a adaga. — Já viu isto aqui alguma vez? — perguntou, mantendo o objeto na direção do egípcio.

Os olhos do homem se arregalaram ao fitar o objeto brilhante e ornamentado. A princípio pareceu fascinado, mas logo em seguida seu rosto sombreou-se e os músculos faciais passaram a contrair-se espasmodicamente. Uma surda raiva se apossara dele.

— De onde veio a adaga faraônica? — perguntou ele, esforçando-se por controlar sua emoção.

— Foi trazida do Egito pelo Dr. Bliss — informou Vance. Hani pegou a adaga e a manteve reverentemente sob a luz.

— Só poderia ter vindo da tumba de Ai. Aqui no punho de cristal está fracamente gravado o símbolo real. Observem: Kheper-kheperu-Re Iry-Maët...

— Sim, sim. O último faraó da décima oitava dinastia. O doutor encontrou a adaga durante suas escavações no Vale dos Reis. — Vance estava observando Hani atentamente. — Você tem certeza de que nunca viu este objeto antes?

Hani empertigou-se orgulhosamente.

— Se eu tivesse visto teria informado ao meu governo. Este objeto não estaria mais em mãos de um violador estrangeiro, mas sim no país ao qual pertence, cuidado por mãos carinhosas no Cairo... O Dr. Bliss fez muito bem em mantê-lo escondido.

Havia em sua voz azedo ódio, mas de repente suas maneiras se modificaram.

— O senhor me permite perguntar-lhe quando, pela primeira vez, viu esta adaga real?

— Há uns minutos — respondeu Vance. — Estava fincada na cabeceira da cama do doutor, exatamente por trás do lugar onde sua cabeça estivera um segundo antes.

O olhar de Hani passou por Vance, na direção de algum ponto distante e seus olhos se tornaram astutamente pensativos.

— Esta adaga não tinha uma bainha? — perguntou.

— Oh, sim. — Uma centelha perpassou pelo canto dos olhos de Vance. — De ouro e esmalte, ainda que eu não a tenha visto. O fato é, Hani, que estamos tremendamente interessados na bainha. Ela desapareceu... jaz perdida em algum lugar por aí. Vamos fazer uma busca a sua procura daqui a pouco.

Hani acenou a cabeça compreensivamente.

— E se o senhor a encontrar, tem certeza de que ficará sabendo mais do que sabe até agora?

— Será possível, pelo menos, verificar minhas suspeitas.

— A bainha será um objeto fácil de esconder com segurança — lembrou Hani.

— De fato não prevejo qualquer dificuldade em pôr minhas mãos nela. — Vance levantou-se e ficou na frente do homem. — Talvez você possa sugerir onde poderemos começar nossa busca, não?

— Não, effendi — respondeu Hani, depois de perceptível hesitação. — Não neste momento. Preciso de tempo para pensar a este respeito.

— Muito bem. Suponhamos que vá para o seu quarto e se entregue a alguma concentração lamaica. Você não está ajudando em nada.

Hani devolveu a adaga e voltou-se na direção do saguão.

— E tenha a bondade — pediu Vance — de bater à porta do Sr. Salveter e dizer-lhe que queremos vê-lo imediatamente.

Hani inclinou-se e desapareceu.

— Não gosto desse pássaro — resmungou Heath, quando o egípcio se encontrava fora do alcance da voz. — É muito escorregadio e sabe de alguma coisa que não quer dizer. Gostaria de soltar meus rapazes em cima dele com um pedaço de mangueira de borracha — eles o fariam falar... Não me surpreenderia, Sr. Vance, se tivesse sido ele quem lançou a adaga. O senhor observou a maneira pela qual a segurou, com a ponta voltada para os dedos? Exatamente como os atiradores de facas nos vaudevilles.

— Oh, ele poderia ter estado descuidadamente, pensando na traquéia do Dr. Bliss — concedeu Vance. — No entanto, o episódio da adaga não me preocupa nem a metade de algo que não aconteceu esta noite.

— Bem, a mim me parece que aconteceu bastante — retorquiu Heath.

Markham encarou Vance inquisitivamente.

— O que você tem em mente? — perguntou.

— O quadro que nos foi apresentado esta noite, estava inacabado. Pude perceber ainda as bases da pintura. E não houve vernissage. A tela precisava de uma outra forma. A linha geradora não estava completa...

Nesse momento pudemos perceber passadas do lado de fora. Salveter, com um amassado robe por cima do pijama, piscou ao se defrontar com as luzes da sala de visitas. Parecia estar apenas meio acordado, e, quando suas pupilas se acostumaram à claridade, correu os olhos por nós quatro e, depois, olhou o relógio em cima da lareira.

— O que é agora? — perguntou. — O que aconteceu? — Parecia não só surpreendido como ansioso.

— O Dr. Bliss me telefonou informando de que alguém tentara matá-lo — explicou Vance. — Viemos correndo. Sabe alguma coisa a respeito?

— Bom Deus, não! — Salveter sentou-se pesadamente em uma cadeira perto da porta. — Alguém tentou matar o doutor? Quando?... Como? — Procurava algo nervosamente em seus bolsos e Vance, interpretando-lhe corretamente o gesto, ofereceu-lhe sua cigarreira. Salveter acendeu um Régie nervosamente e deu algumas tragadas profundas.

— Pouco depois da meia-noite — respondeu Vance. — Mas a tentativa falhou sombriamente. — Atirou a adaga no colo de Salveter. — Conhece essa bugiganga?

O outro estudou a arma durante alguns segundos, sem tocá-la. Uma crescente surpresa surgia em sua expressão e, cuidadosamente, pegou a adaga e a examinou.

— Nunca vi isso em minha vida — disse em tom horrorizado. — É um espécime arqueológico muito valioso... uma peça rara de museu. De onde, em nome dos céus, o senhor desenterrou isso? Certamente não pertence à coleção Bliss.

— Ah, pertence — assegurou-lhe Vance. — Um item privado por assim dizer. Sempre conservado escondido de olhos vulgares.

— Estou surpreendido. Aposto que o governo egípcio nada sabe a respeito. — Salveter levantou os olhos abruptamente. — Tem esta adaga alguma coisa que ver com a tentativa contra a vida do doutor?

— Aparentemente muita coisa — respondeu Vance negligentemente. — Encontramo-la cravada na cabeceira da cama do doutor, evidentemente lançada com toda a força contra o ponto onde sua cabeça deveria ter estado.

Salveter cerrou o cenho e contraiu os lábios.

— Olhe aqui, Sr. Vance, — declarou finalmente — não temos ilusionistas malaios nesta casa... A não ser — acrescentou ele como que tomado por uma segunda idéia — que Hani conheça a arte. Esses orientais são cheios de erudição e de maquinações.

— A representação desta noite não foi o que, de acordo com todos os relatos, poder-se-ia chamar de artística. Foi, de fato, um tanto amadorística. Tenho certeza de que um malaio poderia ter feito coisa muito melhor com o seu kris. Em primeiro lugar os passos e o abrir da porta pelo intruso foram completamente audíveis pelo Dr. Bliss; em segundo lugar houve uma suficiente demora entre a projeção do foco da lanterna e o lançamento da faça, permitindo ao doutor que removesse a cabeça da linha de arremesso...

Nesse momento Hani apareceu à porta tendo em mãos um pequeno objeto. Aproximando-se, lançou-o em cima da mesa de centro.

— Aqui, effendi, — disse em voz baixa — está a bainha da adaga real. Encontrei-a junto ao rodapé do saguão do segundo andar, próximo ao topo das escadas.

Vance mal olhou para o objeto.

— Muito obrigado — disse, em voz arrastada. — Eu sabia que você a encontraria, mas não pensei que fosse no saguão.

— Garanto-lhe...

— Oh, sem dúvida. — Vance olhou diretamente nos olhos de Hani e, dentro em pouco, um ligeiro sorriso aflorou em seu olhar. — Não é verdade, Hani, — perguntou deliberadamente — que achou a bainha exatamente onde eu e você acreditávamos que ela estivesse escondida?

O egípcio não respondeu imediatamente. Em seguida falou: — Contei-lhe minha história, effendi. O senhor pode tirar suas próprias conclusões.

Vance pareceu satisfeito e acenou com a mão na direção da porta.

— E agora, Hani, vá para a cama. Não precisaremos mais de você esta noite. Leiltak sa'ida.

— Leiltak sa'ida wemubaraka. — O homem inclinou-se e partiu.

Vance pegou a bainha e, tomando a adaga de Salveter, enfiou-a no local adequado, olhando criticamente para o ornato dourado.

— Influência egéia — murmurou. — Bonito, mas demasiado complicado. Esses ornatos florais da décima oitava dinastia têm a mesma relação com a arte egípcia inicial que o bolo de gengibre bizantino tem com as simples ordens gregas. — Manteve a bainha próxima de seus olhos. — E, por falar nisso, aqui está uma decoração que poderá interessá-lo, Sr. Salveter. Os arabescos formais terminam em uma cabeça de chacal.

— Anûpu, não? O nome próprio de Hani. É curioso. — Salveter levantou-se e olhou o desenho. — Há um outro ponto que pode ser considerado, Sr. Vance — prosseguiu ele após uma pausa. — Esses coptas das classes mais baixas, apesar de toda sua superficial veneração cristã, são altamente supersticiosos. Seus cérebros seguem uma Unha tradicional: gostam de encaixar todas as coisas em um preconcebido simbolismo. Houve umas nove ou mais mortes coincidentes, ultimamente, entre pessoas relacionadas com escavações no Egito (1), e os nativos ridiculamente imaginam que os espíritos de seus ancestrais permanecem em armadilhas junto às várias tumbas para aniquilar os intrusos ocidentais, como uma espécie de medida punitiva. Eles de fato acreditam nessas forças maléficas... E aqui está Hani, no fundo um egípcio supersticioso, que se ressente com a obra do Dr. Bliss: não será possível que ele tenha considerado a morte do doutor com uma adaga que já pertenceu a um faraó como uma sorte de retribuição mística, na mesma linha que todas essas irracionais histórias de fantasmas? E Hani pode até ter considerado a cabeça de chacal na bainha da adaga como um sinal de que ele — cujo nome é o mesmo do deus de cabeça de chacal, Anúbis — tenha sido divinamente apontado como o agente desse ato de vingança.

 

 

 

(1) Salveter estava-se referindo ao Lord Carnavon, ao honorável coronel Aubrey Herbert, ao general Sir Lee Stack, a George J. Gould, a Woolf Joel, a Sir Archibald Douglas Reid, ao professor Lafleur, a H. G. Evelyn-White e ao professor Georges-Aaron Bénédite. Desde essa época mais dois nomes vieram juntar-se a esta lista fatal — os dos honoráveis Richard Bethell, secretário de Howard Carter, e de Lord Westbury.

 


— Uma encantadora teoria — foi o comentário algo desinteressado de Vance. — Mas demasiado plausível, temo. Estou chegando à opinião de que Hani não é assim tão estúpido e tão supersticioso como quer que nós pensemos. Ele é uma espécie de moderno Theogonius, que julga fazer parte de sua sabedoria simular inferioridade mental.2

 

 

(2) Theogonius era um amigo de Simon Magus que, por seu medo ao Imperador Calígula, fingia imbecilidade, a fim de esconder sua sabedoria. Suetônio se refere a ele como Theogonius, mas Scaliger, Casaubon e outros historiadores dão "Telegenius" como a grafia correta.

 


Salveter, lentamente, acenou com a cabeça de modo afirmativo.

— Às vezes percebo nele essas mesmas qualidades... Mas, quem mais...?

— Ah, quem mais? — Vance suspirou. — Escute aqui, Sr. Salveter, a que horas foi para a cama esta noite?

— Às dez e trinta — respondeu o homem agressivamente. — E não me levantei até agora, quando Hani veio me chamar.

— O senhor, então, retirou-se imediatamente depois de ter levado o livro memorando do escritório para o Dr. Bliss.

— Oh, ele lhe falou a esse respeito, não?... Sim, entreguei-lhe o livro e fui para o meu quarto.

— O livro, pelo que sei, estava em cima da mesa.

— Sim, estava... Mas por que todas essas perguntas a respeito de um livro memorando?

— Aquela adaga — explicou Vance — também era |guardada em uma das gavetas da mesa do Dr. Bliss.

Salveter de um salto se pôs de pé.

— Estou entendendo! — Seu rosto estava lívido.

— Oh, não está — Vance assegurou-lhe brandamente. — E eu apreciaria muito se o senhor procurasse acalmar-se. Sua vitalidade positivamente me cansa... Diga-me uma coisa, o senhor trancou a porta de seu quarto hoje à noite?

— Sempre a tranco durante a noite.

— E durante o dia?

— Deixo-a aberta, para arejar o quarto.

— O senhor não ouviu nada esta noite, depois de ter ido para o quarto?

— Absolutamente nada. Dormi logo... a reação, suponho.

Vance levantou-se.

— Uma outra coisa. Onde jantou a família esta noite?

— Na saleta de refeições. No entanto, dificilmente poderíamos dizer que foi um jantar. Ninguém tinha fome. Foi mais uma ceia ligeira. Assim, comemos lá embaixo. Menos incômodo.

— E o que fizeram as diversas pessoas da casa depois dessa refeição?

— Hani subiu imediatamente, creio eu. O doutor, a Sra. Bliss e eu ficamos sentados aqui na sala de visitas por uma hora mais ou menos, quando o doutor pediu desculpas e retirou-se para o seu quarto. Pouco depois Meryt-Amen subiu também e eu fiquei por aqui até dez e meia, tentando ler.

— Obrigado, Sr. Salveter. Isso é tudo. — Vance se deslocou na direção do saguão. — Somente gostaria ainda que o senhor avisasse a Sra. Bliss e ao doutor que não iremos mais perturbá-los hoje à noite. Amanhã, provavelmente, falaremos com eles... Vamos, Markham. Não há realmente nada que possamos fazer aqui.

— Eu poderia fazer um pouco mais — objetou Heath com azedo antagonismo. — Mas este caso está sendo conduzido como um chá de senhoras. Alguém, nesta casa, lançou uma adaga e se eu fizesse as coisas como quero arrancaria a verdade de dentro dele.

Markham esforçou-se diplomaticamente para aplacar os sentimentos arrufados do sargento, porém sem notável sucesso.

Estávamos de pé, pelo lado de dentro da porta, preparando-nos para partir e Vance se detivera para acender um cigarro. Ele estava de frente para a porta grande de aço que conduzia ao museu e percebi que, de repente, se pusera tenso.

— Oh, espere um momento, Sr. Salveter — chamou ele, e o homem, que se encontrava nesse momento quase no topo do primeiro lance de degraus, voltou-se e tornou a aproximar-se. — Por que as luzes no museu?

Olhei para a parte de baixo da porta de aço, onde se fixavam os olhos de Vance e, pela primeira vez, percebi uma tênue réstia de luz. Salveter, também, olhou para o chão e franziu o cenho.

— Tenho certeza de que não sei — respondeu, com a voz intrigada. — Supõe-se que a última pessoa a deixar o museu deva apagar as luzes. Ninguém, entretanto, que seja do meu conhecimento, esteve no museu hoje de noite... Vou ver o que é. — Encaminhou-se para a porta, mas Vance se colocou a sua frente.

— Não se preocupe — disse, peremptoriamente. — Verei eu mesmo. Boa noite.

Salveter recebeu inquieto a deliberação de Vance, mas, sem dizer nada, subiu as escadas.

Quando ele desapareceu por trás da balaustrada do segundo andar, Vance girou a maçaneta delicadamente e abriu a porta do museu. Abaixo de nós, no lado oposto da sala, sentado à mesa próxima ao obelisco e cercado por arquivos, fotografias e pastas de cartolina, encontrava-se Scarlett. O casaco e o colete estavam nas costas da cadeira; uma pala de celulóide verde cobria-lhe os olhos; tinha uma caneta na mão, suspensa sobre um livro grande de anotações.

Scarlett olhou para cima quando a porta se abriu.

— Oh, alô! — cumprimentou ele alegremente. — Pensei que já tivessem liquidado hoje com a casa de Bliss.

— Agora já é amanhã — tornou Vance, descendo as escadas e cruzando o museu.

— O quê?! — Scarlett levou a mão atrás e puxou o relógio. — Grande Escócia! É isso mesmo. Não fazia idéia da hora. Estou trabalhando aqui desde as oito horas...

— Surpreendente. — Vance examinou algumas fotografias. — Muito interessante... Quem fez você entrar?

— Brush, é claro. — Scarlett parecia bastante surpreendido com a pergunta. — Disse que a família estava jantando na saleta de refeições. Pedi-lhe que não os perturbasse, pois eu tinha algum trabalho para terminar...

— Ele não nos falou sobre sua chegada. — Vance, aparentemente, estava interessado no exame de uma fotografia de quatro braceletes amuletos.

— Mas por que deveria ter falado, Vance? — Scarlett se pusera de pé e estava vestindo o casaco. — É uma coisa comum para mim vir até aqui e trabalhar à noite. Estou entrando e saindo da casa constantemente. Quando trabalho à noite sempre desligo a luz quando saio e verifico se a porta da frente está fechada. Não é nada fora do comum que eu venha até aqui depois do jantar.

— Naturalmente foi por isso que Brush não nos falou. — Vance tornou a colocar as fotografias em cima da mesa. — No entanto, algo fora do comum aconteceu aqui esta noite.

— Colocou a bainha da adaga na frente de Scarlett. — O que sabe você sobre este bizarro objeto?

— Oh, muita coisa. — Scarlett sorriu e lançou sobre Vance um olhar interrogativo. — Como você veio a esbarrar com isso? É um dos recônditos segredos do Dr. Bliss.

— Realmente? — Vance ergueu as sobrancelhas, com simulada surpresa. — Então isso lhe é familiar?

— Bastante. Vi o velho malandro escondê-la em sua camisa caqui quando a encontrou. Fiquei calado — não era da minha conta. Mais tarde, quando já estávamos aqui em Nova York, ele me falou que a havia contrabandeado para fora do Egito e me confiou que a estava mantendo escondida em seu escritório. O Dr. Bliss temia constantemente que Hani a descobrisse e me fez jurar que manteria segredo. Concordei.

O que é uma adaga, afinal de contas? De qualquer modo o Museu do Cairo tem a nata de todas as escavações.

— Ele a conservava escondida por baixo de alguns papéis em uma das gavetas de sua mesa.

— Sim, sei disso. Esconderijo seguro. Hani raramente vai até o escritório... Mas, estou curioso...

— Estamos todos curiosos. Situação desagradável, não?

— Vance não lhe deu tempo de especular. — Quem mais sabia da existência da adaga?

— Ninguém mais, tanto quanto eu saiba. O doutor, certamente, não iria revelar o fato a Hani, e tenho sérias dúvidas de que informasse a Sra. Bliss. Ela tem peculiares lealdades para com seu país de origem e o doutor as respeita. Não sei como ela reagiria ao roubo de tão valioso tesouro.

— E com relação a Salveter?

— Eu diria que não — Scarlett fez uma careta de desagrado. — Ele seguramente confiaria a Meryt-Amen. Jovem impulsivo.

— Bem, alguém sabia onde se encontrava — observou Vance. — O Dr. Bliss me telefonou pouco depois da meia-noite dizendo que havia escapado de ser assassinado pelo proverbial fio de cabelo; viemos correndo para cá e encontramos a ponta desse punhal cravada na cabeceira de sua cama.

— Por Jó! Não diga! — Scarlett parecia chocado e perplexo. — Alguém deve ter descoberto a adaga... e, então...

— Scarlett interrompeu-se bruscamente e lançou um olhar rápido sobre Vance. — Como explica isso?

— Não tenho explicação. Muito misterioso... Hani, por falar nisso, encontrou a bainha no saguão, próximo à porta do doutor.

— Isso é estranho... — Scarlett fez uma pausa como se estivesse meditando. Em seguida se pôs a arrumar os papéis e as fotografias em pilhas e a ajeitar as caixas de arquivo embaixo da mesa. — Você não conseguiu nenhuma sugestão do restante do pessoal da casa? — perguntou.

— Inúmeras sugestões. Todas conflitantes e, em sua maior parte, tolas. Assim, estamos voltando para casa. Acontece que vimos a luz por baixo da porta e ficamos curiosos... Também vai sair agora?

— Sim. — Scarlett pegou o chapéu. — Já devia ter ido embora há muito tempo, mas não me apercebi das horas que eram.

Saímos todos juntos da casa. Um pesado silêncio caíra sobre nós e somente quando Scarlett parou em frente de sua casa foi que um de nós falou. Vance disse: — Boa noite. Não deixe que a adaga perturbe seus sonhos.

Scarlett acenou um abstrato adeus.

— Obrigado, meu velho — respondeu. — Tentarei seguir seu conselho.

Vance tinha dado alguns passos quando se voltou subitamente.

— E olhe aqui, Scarlett. Se eu fosse você ficaria longe da casa de Bliss durante algum tempo.

 


XIX

 

 

Um encontro desfeito


(Sábado, 14 de julho — das 2:00 às 10:00 horas)

 

 

Heath deixou-nos na esquina da Rua Dezenove com a Quarta Avenida; Vance, Markham e eu tomamos um táxi para voltar ao apartamento de Vance. Eram quase duas horas, mas Markham não dava demonstrações de que iria para casa. Subiu com Vance até à biblioteca, e abrindo as janelas francesas, ficou olhando para fora, para a noite pesada e tomada pela névoa. Os eventos do dia não lhe haviam agradado e percebi que sua dúvida era tão profunda que ele não se sentia inclinado a fazer movimento algum até que os fatores conflitantes da situação se tornassem mais claros.

O caso, no princípio, parecera simples, e o número de suspeitos possíveis era limitado, por certo. No entanto, a despeito desses dois fatos, havia uma sutil e misteriosa intangibilidade em torno do caso que tornavam impossível um movimento drástico. Os elementos eram por demais fluidos, os possíveis motivos por demais contraditórios. Vance tinha sido o primeiro a perceber as ilusórias complicações, o primeiro a indicar os invisíveis paradoxos. E, tão seguramente pusera ele o dedo nos pontos vitais da trama — tão precisamente havia ele previsto certas fases do desenvolvimento dessa trama — que Markham, não só figurativa como literalmente, tinha passado para o fundo quadro e permitido que ele dirigisse o caso a sua maneira.

Contudo, Markham estava insatisfeito e impaciente. Nada que levasse definitivamente ao verdadeiro culpado, tanto quanto podia ser visto, tinha sido trazido à luz pelo processo de investigação de Vance, não profissional e quase descuidado.

— Não estamos avançando, Vance — protestou Markham com sombria preocupação, voltando-se da janela. — Mantive-me à parte durante todo o dia, deixando que você conduzisse as coisas como melhor lhe parecesse, porque senti que o seu conhecimento das pessoas e da egiptologia lhe dariam vantagem sobre depoimentos oficiais impessoais. Achei também que você tinha uma teoria plausível sobre todo o assunto, a qual estava procurando verificar. No entanto, o assassinato de Kyle está tão longe de uma solução como quando entramos no museu pela primeira vez.

— Você é um pessimista incorrigível, Markham — replicou Vance, enquanto vestia um robe estampado. — Passaram-se apenas quinze horas desde que nos deparamos com Sakhmet atravessada no crânio de Kyle e você deve admitir, doloroso como isso possa ser para um procurador distrital, que a investigação criminal média raramente começa em tão curto espaço de tempo...

— Na investigação criminal média, no entanto — retorquiu Markham azedamente — teríamos encontrado pelo menos uma ou duas pistas e esboçado uma rotina de trabalho. Se Heath estivesse conduzindo as coisas já teria efetuado alguma prisão — o campo de possibilidades não é extenso.

— Ouso dizer que Heath já teria prendido alguém. Sem dúvida já teria todo o mundo nas grades, inclusive Brush e Dingle e os curadores do Museu Metropolitano. A tática típica: massacrar pessoas inocentes para fazer a alegria de um jornalista. Não me sinto atraído por essa técnica, entretanto. Sou por demais humano — continuo a manter muitas de minhas primeiras ilusões. Sentimentalmente, alas!, será provavelmente a minha queda.

Markham fungou e sentou-se na extremidade da mesa. Durante algum tempo ficou tamborilando num volume encadernado em couro do Malleus Maleficarum.

— Você me falou bastante enfaticamente — disse ele — que quando este segundo episódio acontecesse — a tentativa contra a vida de Bliss — você compreenderia todas as fases da trama e talvez fosse capaz de aduzir algumas evidências tangíveis contra o assassino de Kyle. Parece-me, no entanto, que os acontecimentos desta noite nos fizeram mergulhar ainda mais profundamente nas incertezas.

Vance sacudiu a cabeça, seriamente, em desacordo.

— O lançamento da adaga e o esconder e encontrar a bainha iluminaram o único ponto discutível da trama.

Markham olhou para cima severamente.

— Você pensa que sabe qual é a trama?

Vance colocou cuidadosamente um Régie em uma piteira longa e olhou uma fotografia pequena de Picasso em cima da lareira.

— Sim, Markham, — retorquiu ele vagarosamente — creio que sei qual é a trama. E se esta noite ocorrer aquilo que espero, posso, acredito, convencê-lo de que estou certo em minha diagnose. Infelizmente o arremesso da adaga foi apenas uma parte do episódio pré-arranjado. Como já lhe disse há uns momentos atrás, o quadro não está ainda completo. Algo interveio. E o toque final — o arremate do episódio — ainda está por vir.

Vance falou com impressionante solenidade e Markham, segundo percebi, ficou fortemente influenciado por sua maneira.

— Você tem alguma noção definida — perguntou ele — sobre o que será esse toque final?

— Oh, sim. Mas exatamente qual a forma que vai tomar não posso dizer. A própria pessoa que urdiu a trama provavelmente também não o sabe, pois deve aguardar uma oportunidade propícia. Mas tudo estará centrado em torno de um objetivo específico — um indício forjado, Markham. Esse indício já foi cuidadosamente preparado e sua colocação é o único fator indefinido ainda... Sim, estou esperando o aparecimento de um específico item; quando esse item aparecer poderei convencê-lo de toda a diabólica verdade.

— Quando, em sua opinião, esse indício aparecerá? — quis saber Markham, inquieto.

— Quase que a qualquer momento. — O tom de voz de Vance era monótono e calmo. — Algo evitou que tomasse forma esta noite, pois que é um corolário íntimo do arremesso da adaga. Recusando-me a levar muito a sério aquele episódio e deixando que Hani encontrasse a bainha fiz com que se tornasse necessário o imediato forjamento do indício final. Uma vez mais, recusei-me a cair na armadilha do criminoso — ainda que, como já disse, a isca não estivesse colocada inteiramente na armadilha.

— Estou satisfeito em ter uma espécie de explicação para sua atitude casual na noite de hoje. — A despeito da nota de sarcasmo na voz de Markham, era óbvio que, no fundo, ele não estava fazendo críticas à conduta de Vance. Ele estava ao largo e inclinado, conseqüentemente, a irritar-se.

— Aparentemente você não se interessou em descobrir quem lançou aquela adaga no travesseiro de Bliss.

— Mas Markham, meu velho, sei quem lançou o adornado punhal. — Vance fez um ligeiro gesto de impaciência.

— Minha única preocupação é aquilo a que os repórteres chamam de "as causas do crime".

Markham percebeu que não valia a pena insistir em saber, nesse momento, quem teria lançado a adaga; assim, continuou a comentar as recentes atividades de Vance na casa de Bliss.

— Você poderia ter obtido muito boas sugestões de Scarlett, evidentemente ele esteve no museu durante todo o tempo...

— Mesmo assim, Markham, — contrapôs Vance — não se esqueça de que existe uma espessa parede dupla entre o museu e a residência de Bliss e que essas portas de aço são, praticamente, à prova de som. Poderiam ter explodido bombas no quarto do doutor, sem que qualquer pessoa no museu as ouvisse.

— Talvez você tenha razão. — Markham levantou-se e ficou olhando para Vance apreciativamente. — Estou confiando um bocado em você, seu esteta confuso. Estou sendo contrário a todos os meus princípios e refutando completamente as normas oficiais de procedimento porque acredito em você. Mas Deus o ajude se falhar... Qual é o programa para amanhã?

Vance dedicou-lhe um olhar agradecido e afetivo. Logo em seguida um sorriso cínico espalhou-se em seu rosto.

— Eu sou, por assim dizer, a embreagem não oficial que o promotor distrital sonolento aciona, não? Não é um cumprimento esmagador.

Entre esses dois amigos era sempre o caso de que, quando um emitisse uma observação generosa o outro imediatamente o travava, temeroso de alguma demonstração ostensiva de sentimentos.

— O programa para amanhã? — Vance meditou sobre a pergunta de Markham. — Realmente, sabe, não dediquei a isso nenhuma consideração cartesiana... Há uma exibição de Gauguin no Wildenstein. Poderia ir até lá e me aquecer nas cores harmônicas do grande Pont-Avenois. Há, também, um recital do Septet Beethoven no Carnegie Hall e uma pré-apresentação de afrescos egípcios das paredes das tumbas de Nakhte, Menena e Rekh-mi-Re...

— E uma exposição de orquídeas no Palácio Grand Central — sugeriu Markham com raivosa ironia. — Mas, olhe aqui, Vance, se deixarmos essa coisa rolar mais um dia sem tomar alguma espécie de ação, poderá haver perigo pela frente para alguém mais, do mesmo modo que houve perigo para Bliss esta noite. Se o assassino de Kyle é tão implacável como você diz e seu trabalho não foi ainda completado...

— Não, não penso assim. — O rosto de Vance estava novamente sombrio. — A trama não inclui qualquer outro ato de violência. Acredito que tenha entrado agora em um estágio mais tranqüilo e sutil — ainda mais funesto. — Durante um momento fumou especulativamente. — Mesmo assim... talvez haja uma chance remota. As coisas não estão correndo de acordo com os cálculos do criminoso. Impedimos seus dois movimentos mais ambiciosos. Sobra-lhe, porém, uma combinação mais e estou certo de que a tentará...

A voz de Vance se interrompeu e, levantando-se, pôs-se a andar para lá e para cá até à janela francesa.

— De qualquer modo cuidarei da situação pela manhã — disse ele. — Ficarei em guarda contra qualquer possibilidade de perigo. Ao mesmo tempo, apressarei o forjamento do último indício.

— Quanto tempo irá durar toda essa história? — Markham parecia confuso e nervoso. — Não posso continuar indefinidamente esperando que aconteçam fatos apocalípticos.

— Dê-me vinte e quatro horas. Então, se não receber-t mos outro auxílio do cavalheiro que está acionando os cordéis, você poderá deixar que Heath se abata sobre a família.

Não se tinham passado vinte e quatro horas quando o evento culminante teve lugar. O dia 14 de julho permanecerá sempre em minha memória como um dos dias mais excitantes e terríveis de minha vida e quando, anos mais tarde, estava registrando este caso, dificilmente podia deixar de estremecer. Não ouso pensar sobre o que teria acontecido — que tremenda injustiça poderia ter sido perpetrada de boa-fé — se Vance não tivesse percebido as maquinações interiores da diabólica trama envolvendo a morte de Kyle e não persistisse em sua recusa de permitir a Markham e Heath a linha de ação óbvia de prenderem Bliss.

Vance me disse, meses mais tarde, que jamais em sua carreira se havia confrontado com uma tarefa tão delicada como a de aplacar Markham e convencê-lo de que uma espera impassiva era a única maneira de chegar à verdade. Quase que a partir do momento em que Vance entrou no museu, atendendo à chamada de Scarlett, ele percebera as tremendas dificuldades que tinha pela frente, pois tudo tinha sido planejado de modo a forçar Markham e a polícia a tomarem a medida contra a qual ele tão consistentemente tinha lutado.

Ainda que Markham não tivesse saído do apartamento' de Vance antes das duas horas e meia na noite do arremesso da adaga, Vance, na manhã seguinte, estava de pé antes das oito. O dia prometia ser sufocante e ele tomou seu café no jardim do terraço. Mandou que Currie comprasse todos os jornais da manhã e, durante cerca de uma meia hora, dedicou-se à leitura do assassinato de Kyle.

Heath tinha sido altamente discreto no fornecimento dos fatos e apenas o esqueleto da. história tinha sido posto ao alcance da imprensa. No entanto, a preeminência de Kyle e a distinta reputação de Bliss fizeram com que o crime provocasse um tremendo furor. Isso se traduzia no enaltecimento de primeira página de todos os jornais metropolitanos e nas longas referências aos trabalhos egiptológicos de Bliss e ao interesse financeiro do filantropo morto nesses trabalhos. A teoria geral parecia ser — e nisso reconheço a habilidosa mão do sargento — que alguém da rua tinha entrado no museu e, como ato de vingança ou de inimizade, matara Kyle com a primeira arma disponível.

Heath falara à imprensa sobre o encontro do alfinete de escaravelho ao lado do corpo, mas não deu qualquer outra informação a respeito. Devido a esse pequeno objeto, que era o único detalhe evidenciai fornecido, os jornais, sempre à procura de títulos de identificação, deram à tragédia o nome de o caso do escaravelho. Esse nome acompanha o crime até o dia de hoje. Mesmo as pessoas que se esqueceram do nome de Benjamin H. Kyle lembram-se ainda da sensação causada por esse crime, como resultado do encontro daquela antiga peça de lápis-lazúli, ostentando a inscrição do nome de um faraó egípcio do ano de 1650 antes de Cristo.

Vance leu as notícias com um sorriso cínico.

— Pobre Markham — murmurou ele. — A menos que algo definido aconteça logo, as críticas contra sua administração descerão sobre ele como um bando de monstros. Vejo que Heath anunciou ao mundo que o procurador distrital está completamente encarregado do caso...

Permaneceu fumando meditativamente durante algum tempo. Em seguida telefonou para Salveter e pediu-lhe que fosse imediatamente a seu apartamento.

— Tenho a esperança de remover todas as possibilidades de desastre — explicou-me ao desligar o receptor — embora esteja convencido de que haverá uma outra tentativa de nos enganar antes que qualquer medida desesperada seja tomada.

Os seguintes quinze minutos foram passados por Vance preguiçosamente deitado com os olhos cerrados. Pensei que tivesse dormido, mas quando Currie abriu suavemente a porta para anunciar Salveter, Vance fez-lhe sinal para que deixasse entrar o visitante, antes que o criado pudesse falar.

Salveter entrou um minuto mais tarde, parecendo ansioso e intrigado.

— Sente-se, Sr. Salveter. — Vance indicou indolentemente uma cadeira. — Tenho estado pensando sobre a Rainha Hetep-hir-es e o Museu de Boston. O senhor terá algum motivo que o possa levar razoavelmente a Boston esta noite?

Salveter pareceu ainda mais intrigado.

— Sempre tenho alguma coisa para fazer lá — replicou, franzindo o cenho. — Especialmente em vista das escavações da Expedição Harvard-Boston nas pirâmides de Gizeh. Foi em conexão com essas escavações que tive que ir ao Museu Metropolitano ontem pela manhã para o Dr. Bliss... Isso responde sua pergunta satisfatoriamente?

— Bastante... E essas reproduções do mobiliário da tumba de Hetep-hir-es: o senhor não as poderia arranjar com mais facilidade se visse o Dr. Reisner pessoalmente?

— Certamente. O fato é que tenho que ir lá de qualquer modo, a fim de fechar negócio. Ontem eu estava meramente na pista de informações preliminares.

— O fato de amanhã ser domingo o prejudica de alguma forma?

— Pelo contrário. Provavelmente poderei ver o Dr. Reisner fora de seu gabinete e discutir o assunto calmamente com ele.

— Se assim é, suponho que o senhor poderá tomar um trem esta noite, depois do jantar. Volte, digamos, amanhã à noite. Alguma objeção?

A curiosidade de Salveter cedeu lugar à estupefação.

— Bem, não — gaguejou ele. — Nenhuma objeção particular, mas...

— O Dr. Bliss acharia estranho se o senhor lhe desse essa notícia assim de repente?

— Não posso dizer. Provavelmente não. O museu não é lugar particularmente agradável, principalmente agora...

— Bem, desejo que vá, Sr. Salveter. — Vance abandonou suas maneiras despreocupadas e sentou-se. — E desejo que o senhor vá sem perguntas e sem discussão. Não há possibilidades de que o Dr. Bliss proíba sua ida, há?

— Oh, nada disso — assegurou Salveter. — Ele poderá achar curioso que eu saia em uma ocasião dessas, mas nunca interfere com a maneira pela qual conduzo meus afazeres.

Vance levantou-se.

— Está bem. Há um trem que parte da Grand Central para Boston hoje às nove e meia da noite. Veja se toma esse trem... E — aduziu ainda — pode telefonar-me da estação à guisa de verificação. Estarei aqui entre nove e nove e meia... O senhor poderá voltar para Nova York a qualquer hora que queira depois do meio-dia de amanhã.

Salveter sorriu para Vance encabulado.

— Suponho que isso sejam ordens.

— Ordens sérias e importantes, Sr. Salveter — respondeu Vance de modo impressionante. — E não há necessidade de que o senhor se preocupe com a Sra. Bliss. Hani, tenho certeza, tomará conta dela.

Salveter ia responder qualquer coisa, mas mudou de idéia e, voltando-se subitamente, retirou-se rápido.

Vance bocejou e levantou-se preguiçosamente.

— Creio, agora, que dormirei mais umas duas horas.

Após o almoço no Marguery, Vance foi até à exposição de Gauguin e, mais tarde, até o Carnegie Hall para ouvir o Septet Beethoven. Quando o concerto terminou era demasiado tarde para ver a exposição de afrescos no Museu Metropolitano de Arte. Ao invés disso, Vance foi buscar Markham em seu carro e nós três fomos jantar no Claremont.

Vance explicou rapidamente as medidas que tinha tomado com relação a Salveter. Markham quase que não fez comentários. Parecia cansado e desanimado, mas havia uma abstrata tensão em sua atitude, o que me fez perceber o quanto confiava na predição de Vance de que algo tangível não custaria a acontecer com relação ao caso de Kyle.

Após o jantar regressamos ao jardim do terraço de Vance. O enervante calor do meio do verão ainda se fazia sentir e dificilmente qualquer brisa soprava.

— Disse a Heath que telefonaria para ele... — começou a falar Markham acomodando-se em uma cadeira de vime.

— Eu ia mesmo sugerir que se entrasse em ligação com o sargento — opinou Vance. — Gostaria bastante de tê-lo aqui à mão. Ele é confortante.

Tocou a campainha chamando Currie e mandou trazer o telefone. Em seguida ligou para Heath e pediu-lhe que viesse ter conosco.

— Estou com um pressentimento psíquico — disse ele dirigindo-se a Markham, com um ar de forçada leviandade — de que não demorará muito e seremos convocados para testemunhar a irrefutável prova da culpa de alguém. E se essa prova for o que penso...

Markham, de súbito, inclinou-se para a frente em sua cadeira.

— Acaba de me ocorrer o que você está sugerindo tão misteriosamente! — exclamou ele. — Tem alguma relação com aquela carta hieroglífica que você encontrou no escritório.

Vance hesitou apenas momentaneamente.

— Sim, Markham — concordou Vance. — Aquela carta rasgada ainda não foi explicada. Tenho a respeito uma teoria que não me quer abandonar... ela se encaixa perfeitamente demais com toda a odiosa trama.

— Mas você está com a carta — argumentou Markham, em um esforço para fazer Vance falar.

— Oh, sim. E estou feliz que assim seja.

— Você acredita que é a carta que Salveter disse que escreveu?

— Indubitavelmente.

— E você acredita que ele não saiba que a carta foi rasgada e jogada na cesta de papéis usados do doutor?

— Oh, claro. Ele ainda está intrigado com o fim que ela levou... e preocupado também.

Markham estudou Vance com indisfarçável curiosidade.

— Você se referiu a algum objetivo ao qual a carta poderia ter servido antes de ter sido jogada fora.

— É isso o que estou esperando verificar. O fato é, Markham, que eu esperei que a carta entraria no mistério do arremesso da adaga na noite passada. E admito que me senti terrivelmente fracassado quando nos deparamos com toda a família confortavelmente acomodada na cama sem nos termos 'deparado com um simples hieróglifo. — Puxou um cigarro. — Havia uma razão para isso e creio que conheço a explicação. Aí está a razão de minha fé infantil de que algo ocorrerá agora, a qualquer momento...

O telefone tocou e Vance o atendeu imediatamente. Era Salveter, chamando da Estação Grand Central. Após uma conversação ligeira, Vance recolocou o instrumento sobre a mesa, com ar de satisfação.

— O doutor — disse ele — estava evidentemente muito ansioso em passar a noite de hoje e amanhã sem o seu assistente curador. Assim, esse pequeno lance estratégico foi realizado sem dificuldade...

Meia hora mais tarde Heath foi introduzido no jardim do terraço. Estava sombrio e deprimido e sua saudação foi pouco mais do que um grunhido gutural.

— Alivie o seu coração, sargento — cumprimentou-o Vance alegremente. — Hoje é o Dia da Bastilha.1 Isso pode ter um significado simbólico. Não está além do reino das possibilidades que o senhor possa encarcerar o assassino de Kyle antes da meia-noite.

 

 

 

(1) Vance, é claro, estava-se referindo à Festa Nacional Francesa, que se comemora no dia 14 de julho.

 


— Sim? — Heath estava completamente céptico. — Ele virá aqui entregar-se, trazendo todas as provas? Que sujeito bom e acomodado.

— Não exatamente, sargento. Mas estou esperando que ele nos mande chamar; e creio que poderá ser tão generoso ao ponto de indicar, ele mesmo, a principal prova.

— Maluco, não? Bem, Sr. Vance, se ele o fizer nenhum júri o condenará. Conseguirá um atestado de insanidade com direito a acomodações e tratamento médico pelo resto de sua vida. — Consultou o relógio. — São dez horas. A que horas chegará o convite?

— Dez? — Vance verificou as horas. — Meu Deus! É mais tarde do que eu pensava... — Um ar de ansiedade passou em seu rosto. — Será que calculei mal todo esse caso?

Jogou fora o cigarro e se pôs a caminhar para cá e para lá. Dentro em pouco parou à frente de Markham que o observava inquietamente.

— Quando mandei Salveter embora — começou Vance vagarosamente — confiava em que o esperado evento aconteceria imediatamente. Temo que algo tenha corrido errado. Assim, penso que o melhor é esboçar o caso para vocês agora.

Fez uma pausa e franziu o cenho.

— Entretanto — acrescentou — seria aconselhável que Scarlett estivesse presente. Tenho certeza de que ele poderia preencher algumas falhas.

Markham pareceu surpreendido.

— O que sabe Scarlett a este respeito?

— Oh, muita coisa — foi a resposta de Vance. Em seguida voltou-se para o telefone, mas hesitou. — Ele não tem um telefone particular e não sei o número do telefone da casa...

— Isto é fácil. — Heath pegou o telefone e pediu ligação com um certo funcionário da noite de sua Seção. Após umas poucas palavras de explicação, desligou e chamou um número. Houve uma considerável demora, mas ao fim de algum tempo alguém respondeu do outro lado. Pelas perguntas do sargento ficou evidente que Scarlett não se encontrava em casa.

— Era sua senhoria — explicou Heath desgostosamente, quando recolocou o receptor no lugar. — Scarlett saiu às oito horas... disse que iria dar uma chegada ao museu e que estaria de volta às nove. A essa hora tinha um encontro com um sujeito em seu apartamento e o mesmo ainda está esperando por ele.

— Então podemos alcançá-lo no museu. — Vance ligou para o número de Bliss e pediu a Brush que chamasse Scarlett ao telefone. Depois de alguns minutos afastou o telefone.

— Scarlett também não está no museu — disse. — Ele chegou lá, de acordo com Brush, por volta das oito horas e deve ter saído sem ser observado. Provavelmente está em seu caminho de volta a seu apartamento. Vamos esperar um pouco e tornar a telefonar-lhe.

— É necessário que tenhamos Scarlett aqui? — Indagou Markham impacientemente.

— Não exatamente necessário — retorquiu Vance evasivamente — mas muito desejável. Lembre-se de que ele admitiu com toda a franqueza que poderia dizer-me muita coisa a respeito do criminoso...

Vance interrompeu-se abruptamente, e com tensa deliberação escolheu e acendeu um outro cigarro. Suas pálpebras baixaram e ficou olhando fixamente para o chão.

— Sargento — disse ele com a voz controlada —, acredito que o senhor tenha dito que o Sr. Scarlett tinha um encontro com alguém às nove e informara sua senhoria de que estaria de volta a essa hora.

— Foi o que a dama me disse ao telefone.

— Por favor, veja se Scarlett já chegou em casa.

Sem uma palavra, Heath tornou a erguer o receptor e a pedir o número do telefone de Scarlett. Um minuto mais tarde voltava-se para Vance.

— Ele ainda não apareceu.

— Tremendamente estranho — resmungou Vance. — Não estou gostando disso, Markham.

Seu cérebro se entregou a especulações e me pareceu que Vance se pusera ligeiramente pálido.

— Estou ficando assustado — prosseguiu ele com voz abafada. — Já deveríamos ter ouvido alguma coisa a respeito da carta... Estou com medo de que tenhamos problemas pela frente.

Olhou para Markham com seriedade e preocupação.

— Não poderemos esperar mais. Talvez já seja tarde. Temos que agir imediatamente. — Encaminhou-se para a porta. — Vamos Markham, e o senhor, sargento. Temos o que fazer no museu. Se andarmos depressa talvez cheguemos a tempo.

Ambos, Markham e Heath, se haviam posto de pé enquanto Vance falava. Havia em sua voz estranha urgência e previsão de coisas terríveis em seus olhos. Vance desapareceu rapidamente no interior da casa e todos nós, mobilizados pela controlada excitação de sua atitude, o acompanhamos em silêncio. Seu carro se encontrava do lado de fora e alguns momentos mais tarde estávamos contornando perigosamente a esquina da Rua Trinta e Oito com a Avenida Park, na direção do Museu Bliss.


XX

 

O sarcófago de granito

 

 

(Sábado, 14 de julho — 22:10 horas)

 

 

Chegamos ao museu em menos de dez minutos. Vance subiu correndo os degraus de pedra, com Markham, Heath e eu em seus calcanhares. Não somente havia uma luz acesa no vestíbulo como também, através dos painéis de vidro da porta da frente, podíamos ver no saguão uma luz brilhando. Vance tocou a campainha vigorosamente, mas algum tempo se passou antes que Brush atendesse.

— Cochilando? — perguntou Vance. Estava tenso e sensível.

— Não, senhor. — Brush afastou-se de Vance. — Eu estava na cozinha...

— Diga ao Dr. Bliss que estamos aqui e queremos vê-lo, imediatamente.

— Sim, senhor. — O mordomo atravessou o saguão e bateu à porta do escritório. Não houve resposta e ele tornou a bater. Após um momento Brush girou a maçaneta e espiou para dentro. Depois voltou até onde nós estávamos.

— O doutor não está em seu escritório. Talvez tenha ido para o quarto... Vou ver.

Encaminhou-se para as escadas e já ia começar a subi-las quando uma voz calma o deteve.

— Effendi Bliss não está aqui em cima. Hani desceu vagarosamente até o saguão da frente. — É possível que esteja no museu.

— Bem, bem! — Vance olhou para o homem reflexivamente. — Surpreendente como você sempre aparece... Então você acredita que o doutor esteja perambulando entre os seus tesouros, não? — Vance abriu a grande porta de aço do museu. — Se o doutor estiver aqui está consumindo o seu tempo no escuro. — Caminhando pelo patamar das escadas no interior do museu, Vance acendeu as luzes e correu os olhos pela grande sala. — Aparentemente você está errado, Hani, com relação ao paradeiro do doutor. Pelo que se pode ver o museu está vazio.

O egípcio permanecia tranqüilo.

— Talvez o Dr. Bliss tenha saído para tomar um pouco de ar.

Houve uma ruga de preocupação no rosto de Vance.

— É possível — murmurou ele. — No entanto, desejo que você se certifique de que ele não está lá em cima.

— Eu o teria visto se ele tivesse subido depois do jantar — respondeu o egípcio calmamente. — De qualquer modo, seguirei suas instruções. — Com isso Hani subiu para procurar Bliss.

Vance aproximou-se de Brush e perguntou em voz baixa: — A que horas o Sr. Scarlett saiu daqui esta noite?

— Não sei, senhor. — O homem estava assustado pela atitude de Vance. — Realmente não sei. Ele chegou por volta das oito horas e o fiz entrar. Talvez ele tenha saído com o Dr. Bliss. Freqüentemente eles saem juntos à noite para um passeio.

— O Sr. Scarlett se dirigiu ao museu quando chegou às oito horas?

— Não, senhor. Ele perguntou pelo Dr. Bliss...

— Ah! E ele se encontrou com o doutor?

— Sim, senhor... Isto é — Brush corrigiu-se a si mesmo —, suponho que sim. Disse-lhe que o Dr. Bliss se encontrava no escritório e ele imediatamente atravessou o saguão. Voltei para a cozinha.

— Você notou alguma coisa fora do comum nas maneiras do Sr. Scarlett.

O mordomo meditou alguns instantes.

— Bem, senhor, já que o mencionou, eu diria que o Sr. Scarlett estava um pouco rígido e distante, como se tivesse alguma coisa na cabeça... se o senhor compreende o que quero dizer.

— E a última vez em que você o viu foi ao se aproximar da porta do escritório?

— Sim, senhor.

Vance sacudiu a cabeça despedindo o mordomo.

— Permaneça na sala de visitas até novas determinações — disse Vance.

Quando Brush desaparecia pela porta de dobrar, Hani descia lentamente as escadas.

— Como eu já disse — informou ele indiferentemente —, o Dr. Bliss não está lá em cima.

Vance examinou-o seriamente.

— Você sabe que o Sr. Scarlett esteve aqui esta noite?

— Sim, sei. — Uma luz curiosa surgiu nos olhos do homem. — Eu estava na sala de visitas quando Brush o fez entrar.

— Ele veio ver o Dr. Bliss — disse Vance.

— Sim. Ouvi-o perguntar a Brush...

— O Sr. Scarlett avistou-se com o doutor?

O egípcio não respondeu logo. Enfrentou firmemente o olhar de Vance, como se estivesse procurando ler o pensamento do outro. Finalmente, chegando a uma decisão, disse: — Eles estiveram juntos — pelo que sei — pelo menos uma meia hora. Quando o Sr. Scarlett entrou no escritório deixou a porta entreaberta e eu os ouvi conversando. Mas não pude perceber sobre o que falavam. Suas vozes estavam abafadas.

— Durante quanto tempo você ficou escutando?

— Por cerca de meia hora. Depois eu subi.

Desde então você não viu mais nem o Dr. Bliss nem o Sr. Scarlett?

— Não, effendi.

— Onde estava o Sr. Salveter durante a reunião no escritório? — Vance esforçava-se para controlar sua ansiedade.

— Ele estava em casa? — perguntou Hani evasivamente. — Durante o jantar ele me disse que estava indo a Boston.

— Sim, sim. No trem das nove e meia. Não lhe teria sido necessário sair de casa antes das nove... Onde esteve ele entre as oito e as nove?

Hani deu de ombros.

— Não o vi. Ele saiu de casa antes de o Sr. Scarlett chegar. Certamente não estava aqui depois das oito horas...

— Você está mentindo. — O tom de voz de Vance era frígido.

— Wahyât en-nabi...

— Não tente me impressionar... não estou de bom humor. — Os olhos de Vance eram como aço. — O que você julga que aconteceu aqui esta noite?

— Penso que Sakhmet talvez tenha voltado.

O rosto de Vance se fez pálido; no entanto, talvez tenha sido, apenas, o reflexo da luz do saguão.

— Vá para o seu quarto e espere lá — disse Vance brevemente.

Hani inclinou-se.

— O senhor não está precisando de meu auxílio, agora, effendi. O senhor entende muitas coisas. — Dizendo isso o egípcio afastou-se com toda a dignidade.

Vance permaneceu tenso até que ele tivesse desaparecido. Em seguida, fazendo um sinal para nós, atravessou o saguão na direção do escritório. Abrindo a porta Vance acendeu as luzes.

Havia ansiedade e pressa em todos os seus movimentos e a elétrica atmosfera de sua atitude era transmitida a todos nós. Percebemos que algo trágico e terrível o estava impulsionando.

Vance se aproximou das duas janelas e se inclinou para fora. À pálida luz refletida ele podia ver as lajes de asfalto lá embaixo. Espiou sob a mesa e avaliou com os olhos o vão livre embaixo do diva. Em seguida encaminhou-se até à porta que conduzia ao museu.

— Não pensei mesmo que fôssemos achar alguma coisa no escritório; mas havia uma chance...

Já estava descendo as escadas em espiral.

— Estará aqui no museu — chamou-nos ele. — Venha, sargento. Há um serviço a ser feito. O diabo andou solto esta noite...


Vance passou pelo assento real e pelas prateleiras de shawabtis e parou junto à mesa longa de tampo de vidro, as mãos metidas nos bolsos do casaco, os olhos correndo rapidamente a sala. Markham, Heath e eu aguardávamos no pé das escadas.

— O que é que está havendo? — perguntou Markham asperamente. — O que aconteceu? E, incidentalmente, o que está você procurando?

— Não sei o que aconteceu. — Algo no tom de voz de Vance fez com que meu corpo fosse percorrido por um calafrio. — E estou procurando algo horrível. Se não for aqui...

Não chegou a terminar a frase. Encaminhando-se rapidamente até à grande réplica de Kha-ef-Rê deu uma volta a seu redor. Em seguida aproximou-se da estátua de Ramsés II e inspecionou sua base. Depois disso acercou-se de Teti-shiret e bateu em seu pedestal com os nós dos dedos.

— Todas são sólidas — resmungou. — Vamos tentar as caixas com as múmias. — Tornou a atravessar o museu.

— Comece por aquela extremidade, sargento. As tampas podem ser removidas facilmente. Se tiver alguma dificuldade, arrebente-as. — O próprio Vance encaminhou-se para a caixa próxima a Kha-ef-Rê e enfiando a mão por baixo da tampa retirou-a e a colocou no soalho.

Heath, aparentemente animado por urgente desejo de ação física, já havia iniciado sua busca na outra extremidade da linha. Não se mostrava delicado de modo algum. Arrancava as tampas, com raiva, lançando-as ao chão com desnecessária violência.

Vance, absorto em sua própria tarefa, prestava pouca atenção, a não ser olhando a cada vez que uma tampa era arrancada da caixa. Markham, no entanto, começara a inquietar-se. Observou o sargento desaprovadoramente durante alguns momentos, o rosto sombrio. Logo em seguida aproximou-se.

— Não posso deixar que isso continue, Vance — observou ele. — Isso são tesouros valiosos e não temos o direito...

Vance levantou-se e olhou diretamente para Markham.

— E se houver um homem morto dentro de uma delas? — perguntou com uma frieza que levou Markham a se sentir rígido.

— Um homem morto?

— Colocado aqui hoje à noite, entre as oito e as nove horas.

As palavras de Vance tinham características agourentas e impressionantes e Markham não disse mais nada. Permaneceu parado, suas linhas tensas, observando a febril inspeção das demais caixas de múmias.

No entanto não foi feita nenhuma descoberta desagradável. Heath removeu a tampa da última caixa com óbvio desapontamento.

— Creio que há alguma coisa errada com suas idéias, Sr. Vance — comentou desanimado; na verdade havia uma nota de simpatia em sua voz.

Vance, absorto e com o olhar distante, estava agora ao lado da caixa de vidro. Sua tensão era tão aparente que Markham se aproximou dele e tocou-lhe no braço.

— Talvez nós pudéssemos tornar a calcular todo este caso ao longo de outras linhas... — começou ele, mas Vance o interrompeu.

— Não. Este caso não pode ser recalculado. É demasiado lógico. Houve uma tragédia aqui esta noite e chegamos muito tarde para interceptá-la.

— Devíamos ter tomado precauções. — O tom de Markham era azedo.

— Precauções! Todas as precauções possíveis foram tomadas. Esta noite foi introduzido um novo elemento na situação — um elemento que não poderia ter sido previsto. A tragédia desta noite não fazia parte da trama... — Vance voltou-se e se afastou. — Tenho que pensar no assunto. Tenho que refazer o raciocínio do criminoso... — Fez a volta completa do museu, sem tirar os olhos do chão.

Heath fumava seu charuto meditativamente. Não havia saído da frente da caixa das múmias e fingia estar interessado nos grosseiros hieróglifos coloridos. Desde o caso da Canária, quando Tony Skeel tinha deixado de comparecer ao seu encontro no gabinete do promotor distrital, ele passara a acreditar, apesar de todos os seus protestos, nos prognósticos de Vance; agora estava profundamente surpreso com o fracasso do outro. Eu o estava observando, um pouco surpreso também, quando percebi que uma ruga de curiosidade vincava sua testa. Tirando o charuto da boca inclinou-se sobre uma das caixas das múmias e levantou um objeto de metal.

— Que diabo de lugar para guardar um macaco de automóvel — observou ele. (Seu interesse no macaco era, obviamente, uma tentativa inconsciente para distrair seus pensamentos, afastando-os da tensa situação.) Tornou a colocar o macaco na caixa e sentou-se na base da estátua de Kha-ef-Rê. Nem Markham nem Vance tinham, aparentemente, prestado a menor atenção a sua irrelevante descoberta.

Vance continuava a caminhar pelo museu. Pela primeira vez, desde que chegáramos, tirou um cigarro e acendeu-o.

— Todas as linhas de raciocínio vêm ter aqui, Markham. — Vance falou em voz baixa e desanimada. — Não havia necessidade de a evidência ser levada embora. Em primeiro lugar teria sido muito temerário; em segundo lugar, não se supunha que fôssemos suspeitar de alguma coisa antes de um dia ou dois...

Sua voz interrompeu-se e seu corpo se pôs subitamente tenso. Aproximou-se apressadamente de Heath.

— Um macaco de automóvel! — Uma modificação dinâmica se apossara dele. — Oh, minha tia! Desconfio... desconfio...

Aproximou-se rapidamente do sarcófago negro debaixo das janelas da frente e o examinou ansiosamente.

— Muito alto — resmungou. — Um metro livre sobre o solo! Não poderia ter sido feito... Mas tinha que ser feito... de alguma forma... — Olhou em torno. — Aquele tamborete! — Apontava para um banquinho sólido de carvalho, com cerca de 50 cm de altura, encostado à parede, próximo à estátua de madeira asiática. — Ele não estava ali na noite passada; estava junto da mesinha ao lado do obelisco... Scarlett o estava usando. — Enquanto falava aproximou-se do tamborete e o ergueu. — E a parte de cima está arranhada... há um corte... — Vance colocou o banquinho de encontro ao sarcófago. — Rápido, sargento! Traga-me aquele macaco.

Heath obedeceu rapidamente e Vance colocou o macaco em cima do tamborete, ajustando sua base sobre os arranhões na madeira. A cabeça de sustentação ficou próxima da parte de baixo da tampa do sarcófago, a uma distância de dois centímetros, no ponto em que a tampa se estendia uns poucos centímetros sobre o fim da elevação entre os dois suportes dos cantos, em forma de pernas de leão.

Nós nos reuníramos em torno de Vance em silêncio tenso, não sabendo o que esperar, mas pressentindo que nos encontrávamos perto de alguma revelação aterrorizante.

Vance inseriu a alavanca de elevação, que Heath lhe passou, no soquete correspondente, e a acionou cautelosamente para cima e para baixo. O macaco funcionou perfeitamente. A cada movimento da alavanca para baixo ouvia-se um clique metálico quando a engrenagem se encaixava nos dentes da cremalheira. Centímetro a centímetro a extremidade da pesada tampa do granito — que deveria ter mais de meia tonelada1 — foi sendo erguida.

 

 

(1) Essa foi minha estimativa durante a operação de Vance. Mais tarde calculei o peso da tampa. Tinha três metros de comprimento por 1,20 m de largura e era encimada por uma grande figura esculpida. Uma avaliação cautelosa nos daria uns três metros cúbicos para a tampa; como a densidade do granito é de aproximadamente 2,70 gramas por centímetro cúbico, ou 170 libras por pé cúbico, a tampa deveria pesar, pelo menos, 1.700 libras ou 800 quilos.

 

 

De repente Heath recuou alarmado.

— O senhor não está com medo, Sr. Vance, que a outra extremidade da tampa deslize de cima do sarcófago?

— Não, sargento — assegurou Vance. — A fricção de uma massa tão grande é o bastante para mantê-la a um ângulo muito maior do que este macaco poderá incliná-la.

A extremidade da tampa já se achava agora erguida uns 20 cm e Vance empregava ambas as mãos na alavanca do macaco. Era necessário que trabalhasse com todo o cuidado, temeroso de que a cabeça do macaco escorregasse sob a suave superfície do granito, 22 cm... 25 cm... 28 cm... 30 cm... A cremalheira já havia quase atingido seu limite de elevação. Com um impulso final para baixo, Vance soltou a alavanca e testou a solidez do macaco completamente distendido.

— Está firme, creio...

Heath já tirara do bolso sua lanterna e lançava seu foco no interior dos escuros recessos do sarcófago.

— Mãe de Deus! — exclamou ele.

Eu estava de pé logo atrás, inclinado sobre os seus ombros largos; simultaneamente com o clarão da lanterna vi a coisa horrorosa que provocara sua exclamação. No fundo do sarcófago via-se um corpo humano todo torcido, com as costas voltadas para cima e as pernas incrivelmente dobradas, como se alguém o tivesse apressadamente enfiado pela abertura, com a cabeça em primeiro lugar.

Markham permaneceu inclinado para a frente como uma pessoa paralisada no meio da ação.

A voz calma, mas insistente, de Vance quebrou a tensão de nosso horror.

— Mantenha a luz firme, sargento. E você, Markham, ajude-me. Mas, cuidado. Não encoste no macaco...

Com grande cuidado Vance se esticou para dentro do sarcófago e virou o corpo até que a cabeça ficasse voltada para o ponto mais amplo da abertura. Um calafrio percorreu minha espinha enquanto eu os observava, pois sabia que o menor esbarrão ou o mero encostar no macaco teria feito com que a maciça tampa de granito caísse sobre eles. Heath, também, percebeu o mesmo fato — eu podia notar as gotas de suor brilhando em sua testa enquanto observava a perigosa operação com o medo estampado nos olhos.

Vagarosamente o corpo emergiu pela estreita abertura e, quando os pés passaram pela borda do sarcófago e bateram no chão a luz da lanterna se apagou e Heath sentou-se com um suspiro convulsivo.

— Que diabo! Eu poderia ter falhado, Sr. Vance — resmungou ele. (Fiquei gostando ainda mais do sargento depois desse episódio.) Markham permanecia olhando para baixo, contemplando o corpo inerte com estupefação.

— Scarlett! — exclamou ele com voz de completa incredulidade.

Vance limitou-se a concordar com a cabeça e se inclinou sobre a figura prostrada. O rosto de Scarlett estava danoso devido à insuficiente oxigenação do sangue; seus olhos estavam saltados e fixos; havia uma crosta de sangue em torno de suas narinas. Vance encostou o ouvido no peito do homem e tomou seu punho em uma das mãos para sentir-lhe o pulso. Em seguida tirou sua cigarreira de ouro e a aproximou dos lábios de Scarlett. Após olhar a cigarreira voltou-se excitadamente para Heath.

— A ambulância, sargento! Depressa! Scarlett ainda está vivo...

Heath se despencou pelas escadas abaixo e desapareceu no saguão da frente.

Markham olhava Vance atentamente.

— Não estou compreendendo — disse ele asperamente.

— Nem eu... inteiramente. — Os olhos de Vance estavam fixos em Scarlett. — Eu o avisei que se mantivesse afastado daqui. Ele, também, sabia do perigo, mas mesmo assim... Você se lembra da dedicatória de Rider Haggard a seu filho no Allan Quatermain, quando ele fala do mais alto posto que pode ser obtido por alguém — o estado e a dignidade de um cavalheiro inglês? (1)... Scarlett era um cavalheiro inglês. Sabendo do perigo, veio aqui esta noite. Ele julgou que poderia dar um fim à tragédia.

 

 

(1) Na verdadeira dedicatória lê-se: "Dedico este livro de aventuras a meu filho Arthur John Rider Haggard, na esperança de que no futuro ele e muitos outros rapazes, a quem jamais conhecerei, possam, nos atos e nas palavras de Allan Quatermain e seus companheiros, aqui registrados, encontrar algo que os ajude a conseguir o que, de acordo com Sir Henry Curtis, afirmo ser o mais alto posto que alguém jamais pode obter — o estado e a dignidade dos cavalheiros ingleses."

 

 

Markham estava atordoado e intrigado.

— Temos que agir de algum modo... agora.

— Sim... — Vance estava profundamente preocupado. — Mas é difícil! Não há provas. Não há esperança para nós... A não ser que... — Vance cortou a frase. — Aquela carta hieroglífica! Talvez esteja por aqui em algum lugar. Esta noite era a ocasião, mas Scarlett chegou inesperadamente. Não sei se ele também sabia disso... — Os olhos de Vance fixaram-se no espaço e, durante alguns momentos, ele permaneceu rígido. Em seguida dirigiu-se subitamente até o sarcófago e, acendendo um fósforo, olhou o seu interior.

— Nada. — Havia um triste desapontamento no tom de sua voz. — Ainda assim, deveria estar aqui... — Empertigou-se. — Talvez... sim! Isso também seria lógico.

Ajoelhou-se ao lado do homem inconsciente e se pôs a remexer em seus bolsos. O paletó de Scarlett estava abotoado e somente quando Vance chegou aos bolsos de dentro é que sua busca foi recompensada. Vance dele tirou uma folha amassada de papel amarelo, do tipo em que Salveter fizera seu exercício de egípcio, e após uma olhada para o papel meteu-o no bolso.

Heath apareceu à porta.

— OK — gritou ele para baixo. — Disse que viessem correndo.

— Quanto tempo vai demorar? — quis saber Vance.

— Não será mais de dez minutos. Chamei o Posto Central e de lá transmitirão a mensagem para o posto local. Normalmente pegam quem está de ronda, mas isso não retarda as coisas. Esperarei por eles na porta.

— Um momento. — Vance escreveu alguma coisa nas costas de um envelope e entregou este a Heath. — Chame a Western Union e envie este telegrama.

Heath apanhou a mensagem, leu-a, assobiou suavemente e saiu para o saguão.

— Estou telegrafando a Salveter em Nova Haven, para sair do trem em Nova London e voltar a Nova York — explicou Vance a Markham. — Ele poderá pegar o expresso em Nova London e estará aqui amanhã pela manhã.

Markham olhou-o com um olhar astuto.

— Você acha que ele virá?

— Oh, sim.

Quando a ambulância chegou, Heath escoltou o interno, o motorista de uniforme azul e o policial ao interior do museu. O interno, um rapaz corado com expressão séria, inclinou-se para Markham e se ajoelhou ao lado de Scarlett. Após um exame superficial fez um sinal para o motorista.

— Cuidado com sua cabeça.

O homem, ajudado pelo policial, colocou Scarlett na padiola.

— Ele está muito mal, doutor? — perguntou Markham, ansiosamente.

— Muito, senhor. — O interno sacudiu a cabeça pomposamente. — Uma feia fratura de base do crânio. Respiração Cheyne-Stokes. Se sobreviver terá mais sorte do que eu jamais terei. — Com um dar de ombros o interno acompanhou a padiola para fora da casa.

— Telefonarei para o hospital mais tarde — informou Markham a Vance. — Se Scarlett sobreviver nos poderá fornecer a prova.

— Não conte com isso —- desencorajou-o Vance. — O episódio desta noite foi isolado. — Encaminhou-se até o sarcófago e acionou o macaco para a posição reversa. Lentamente a tampa desceu para sua posição original. — Um tanto perigoso deixar a tampa aberta.

Markham permanecia por perto, carrancudo.

— Vance, que papel foi aquele que você encontrou no bolso de Scarlett?

— Creio que era um documento incriminatório escrito em hieróglifos egípcios. Veremos.

Colocou o papel em cima do sarcófago e o alisou, Era quase igual à carta que Vance havia reconstituído no escritório de Bliss. A cor do papel era a mesma e continha quatro linhas de hieróglifos escritos com tinta verde.

Vance estudou a carta enquanto Markham, Heath, que tinha voltado ao museu, e eu o observávamos.

— Deixem-me ver o quanto me lembro de meu egípcio — murmurou Vance. — Há anos que não faço nenhuma transliteração...

Colocou o monóculo no olho e inclinou-se para a frente.

— Meryet-Amun, aha-y o er yu son maut-y en merya-y men seshem pen dya-y em yeb-y era-y en marwet mer-en yu rekha-t khet nibet hir-sa hetpa-t na-y khejt shewa-n em debat nefra-n entot hena-y... Está tudo feito com grande precisão, Markham. Os substantivos e os adjetivos concordam quanto ao gênero, e as terminações verbais...

 

 

 

 

 

 

— Não dê importância a essas coisas — interrompeu-o Markham impacientemente. — O que está escrito no papel?

— Desculpe-me, velho Markham! — protestou Vance. — A linguagem do Reino Médio do Egito é muito difícil. Perto dela o copta, o assírio, o grego e o sânscrito não passam do abecedário. No entanto, posso dar-lhe uma tradução literal.

— Começou a ler vagarosamente. — “Bem-amada de Amûn, paro por aqui até que chegue o irmão de minha mãe. Não desejo que esta situação perdure. Tenho em meu coração que devo agir em favor de nosso bem-estar. Tendes que saber de tudo mais tarde. Ficareis satisfeita comigo quando estivermos livres do que bloqueia o nosso caminho, seremos felizes, vós e eu juntos..." Não é uma construção da Harvard, mas era assim a maneira de se expressar dos antigos egípcios.

— Bem, para mim não faz sentido — comentou Heath azedamente.

— Apropriadamente parafraseado, porém, faz um sentido dos diabos, sargento. No inglês corrente significa: "Meryt-Amen, estou esperando meu tio. Não posso agüentar mais esta situação e decidi empreender uma ação drástica em prol de nossa felicidade. Mais tarde você compreenderá tudo e me desculpará quando estivermos livres de todos os obstáculos e pudermos ser felizes juntos"... Faz algum sentido, sargento?

— Estou surpreendido! — Heath olhou para Vance com ar de crítica e desprezo. — E o senhor mandou aquele pássaro, Salveter, para Boston!

— Ele estará de volta amanhã — assegurou Vance.

— Mas, olhe aqui — os olhos de Markham estavam fixos no papel incriminatório —, e a outra carta que você reconstituiu? E esta carta, como veio parar no bolso de Scarlett?

Vance dobrou o papel cuidadosamente e colocou-o em sua carteira.

— Chegou a hora — disse ele vagarosamente — de lhes contar tudo. Talvez, quando vocês conhecerem os fatos, possam imaginar alguma linha de ação. Prevejo dificuldades legais pela frente, mas disponho agora de todas as evidências que jamais poderemos esperar. — Vance estava inquieto e preocupado. — A intrusão de Scarlett nos acontecimentos desta noite mudou os planos do criminoso. De qualquer modo, já posso convencê-los da incrível e abominável verdade.

Markham estudou Vance durante alguns momentos e uma luz de surpresa brilhou em seus olhos.

— Deus Todo-Poderoso! — exclamou ele. — Percebo o que quer dizer. — Cerrou os dentes. — Primeiro, porém, devo telefonar para o hospital. Há uma chance de que Scarlett nos possa ajudar — se ele sobreviver.

Markham encaminhou-se para a parte de trás do museu e subiu as escadas em espiral até o escritório. Poucos minutos mais tarde reapareceu, com sombrio ar de desânimo.

— Falei com o doutor — disse ele. — Não há uma chance em mil para Scarlett. Contusão cerebral... e sufocação. Aplicaram-lhe agora o pulmotor. Mesmo que ele consiga sobreviver ficará inconsciente durante uma ou duas semanas.

— Estava temeroso de que assim fosse. — Raramente eu vira Vance tão apreensivo. — Chegamos tarde demais. Mas — que diabo! — eu não poderia prever o seu quixotismo. E eu o avisei...

— Calma, velho. — Markham falou com bondade paternal. — A culpa não é sua. Não havia nada que você pudesse ter feito. E você estava certo em guardar a verdade para si mesmo...

— Desculpem-me! — Heath estava exasperado. — Eu mesmo não sou exatamente um inimigo da verdade. Por que não posso saber o que se passa?

— Pode sim, sargento. — Vance colocou a mão no ombro do outro. — Vamos até à sala de visitas. "E todas as montanhas e as elevações ficarão baixas, e o mau ficará bom, e planos os locais enrugados."

Encaminhou-se para as escadas e nós o seguimos.

 


XXI

 

 

O assassino

 

(Sábado, 14 de julho — 22:40 horas)

 

 

Brush se pôs de pé quando entramos na sala de visitas. Estava pálido e visivelmente assustado.

— Por que está preocupado? — perguntou-lhe Vance.

— Suponha, senhor, que eu seja acusado! — explodiu o homem. — Fui eu que deixei a porta aberta ontem pela manhã... eu queria obter um pouco de ar fresco. E então o senhor chegou e disse alguma coisa que teria acontecido ao Sr. Kyle. Sei que não deveria ter deixado a porta destrancada. (Percebi então por que ele tinha agido de maneira tão assustada.) — Você pode acalmar-se — disse-lhe Vance. — Sabemos quem matou o Sr. Kyle e posso assegurar-lhe que o criminoso não veio pela porta da frente.

— Obrigado, senhor. — As palavras foram acompanhadas por um suspiro de alívio.

— Agora diga a Hani para vir aqui. Depois pode ir para o seu quarto.

Mal Brush havia saído quando se ouviu o ruído de uma chave sendo enfiada na porta da frente. Um momento mais tarde o Dr. Bliss apareceu na entrada da sala de visitas.

— Boa noite, doutor — cumprimentou Vance. — Espero que não nos estejamos intrometendo. Mas há algumas perguntas que queremos fazer a Hani durante a ausência do Sr. Salveter.

— Compreendo — replicou Bliss, com um triste aceno de cabeça. — O senhor sabe, então, da excursão de Salveter a Boston.

— Ele telefonou para mim e perguntou se podia ir. Bliss encarou Vance com olhos pesados e inquisitivos.

— Seu desejo de viajar para o norte nesta época foi muito inusitado — comentou ele —, mas não fiz qualquer objeção. A atmosfera por aqui está muito deprimente e simpatizei com seu desejo de fugir dela.

— A que horas ele saiu de casa? — Vance fez a pergunta descuidadamente.

— Por volta das nove horas. Ofereci-me para levá-lo até a estação...

— Às nove? E onde estava ele entre as oito e as nove? Bliss parecia infeliz.

— Esteve comigo no escritório. Estávamos tratando de detalhes referentes às reproduções do Mobiliário da tumba de Hotpeheres.

— Ele estava com o senhor quando o Sr. Scarlett chegou?

— Sim. — Bliss cerrou o cenho. — Muito peculiar a visita de Scarlett. Evidentemente queria conversar com Salveter sozinho. Ele agiu de forma a mais misteriosa... tratou Salveter com uma espécie de frio ressentimento. Continuei, porém, a discutir o objetivo da viagem de Salveter ao norte...

— O Sr. Scarlett esperou?

— Sim. Ele observava Salveter como uma águia. Quando Salveter saiu, Scarlett o acompanhou.

— Ah! E o senhor, doutor? — Vance, aparentemente, estava absorvido na escolha de um cigarro em sua cigarreira.

— Eu fiquei no escritório.

— Foi essa a última vez que o senhor viu Scarlett e Salveter?

— Sim. Saí para um passeio por volta das nove e meia. Na saída dei uma olhada no museu, pensando que Scarlett talvez tivesse ficado e gostasse de me acompanhar. A sala, porém, estava vazia. Assim, fui pela avenida até a Praça Washington...

Vance tinha acendido o cigarro — Não o incomodaremos mais — O senhor deseja ver-me? — Sua atitude era de alheamento e, julguei eu, um pouco aborrecida.

— Sim. — Vance indicou uma cadeira de frente para a mesa. Em seguida voltou-se rapidamente para Bliss que já estava saindo.

— Numa segunda idéia, doutor, talvez seja aconselhável para nós tornar a lhe fazer perguntas a respeito do Sr. Salveter. O senhor poderia esperar no escritório?

— Claro que sim. — Bliss olhou Vance compreensivamente e se encaminhou para o saguão. Poucos momentos depois ouvimos a porta do escritório fechar-se.

Vance olhou Hani com um olhar curioso, que não entendi.

— Há algo que quero dizer ao Sr. Markham — disse Vance. — Você poderia ter a bondade de esperar no saguão e não deixar que ninguém nos perturbe?

Hani levantou-se.

— Com prazer, effendi. — Hani foi assumir seu posto do lado de fora.

Vance fechou as portas de dobrar e voltando até à mesa do centro sentou-se confortavelmente.

— Você, Markham, e o senhor, sargento, estavam ambos certos quando concluíram, ontem pela manhã, que o Dr. Bliss era o responsável pela morte de Kyle...

— Escute aqui! — Heath se pôs de pé num salto. — Que diabo...

— Calma, sargento. Por favor, sente-se e controle-se.

— Eu disse que ele era o assassino! E o senhor falou...

— Meu Deus! O senhor não pode acalmar-se? Está tão excitado, sargento. — Vance fez um gesto de desespero. — Lembro-me de que o senhor se referiu, deselegantemente, que Bliss havia "liquidado" o Sr. Kyle. Espero que o senhor não tenha esquecido que, ontem à noite, observei que muitas vezes chegamos ao mesmo destino e ao mesmo tempo, mas vindos de diferentes direções, — Obrigado, doutor. — e fumava melancolicamente. esta noite.

Hani entrou na sala.

— Era isso, então, o que o senhor queria dizer? — Heath retomou sua cadeira de mau humor. — Então, por que o senhor não me deixou prendê-lo?

— Porque era isso o que ele desejava que o senhor fizesse.

— Estou boiando — protestou Heath. — O mundo ficou maluco.

— Um momento, sargento. — Markham falou de maneira peremptória. — Estou começando a entender este caso. Não é absolutamente insano... Deixemos que o Sr. Vance continue.

Heath ia começar a reclamar, mas, ao invés, fez uma careta de resignação e se pôs a mastigar o charuto. Vance olhou-o com simpatia.

— Eu sabia, sargento — ou, pelo menos, tinha fortes suspeitas —, cinco minutos depois de termos entrado aqui no museu ontem pela manhã, que Bliss era a culpado. A história de Scarlett a respeito do encontro deu-me a primeira indicação. O telefonema de Bliss na presença de todos e suas observações a respeito do novo carregamento deram-me a impressão de que se encaixavam perfeitamente em um plano preconcebido. Então, quando vi os vários indícios, senti, positivamente, que haviam sido plantados pelo próprio Bliss. Para Bliss não se tratava apenas de apontar a si mesmo como suspeito, mas — também — de lançar suspeitas sobre uma outra pessoa. Felizmente, ele ultrapassou os limites da plausibilidade, pois, se alguma outra pessoa tivesse cometido o crime, os indícios forjados teriam sido em menor número e menos óbvios. Conseqüentemente, saltei para a conclusão de que Bliss tinha assassinado Kyle e, ao mesmo tempo, esforçava-se para nos fazer crer que ele tinha sido a vítima de uma trama...

— Mas, Sr. Vance — interrompeu Heath — o senhor disse...

— Eu não disse nenhuma palavra que lhes desse a impressão definitiva de que exonerava Bliss de culpa. Nem disse que ele era inocente... Pense um pouco. O senhor se lembrará de que eu disse apenas que os indícios não pareciam verdadeiros, que as coisas não eram o que pareciam. Eu sabia que os indícios eram armadilhas, criadas por Bliss para nos despistar. Eu também sabia — do mesmo modo que o Sr. Markham — que se prendêssemos Bliss com evidências aparentes, seria impossível condená-lo.

Markham concordou com a cabeça, meditativamente.

— Sim, sargento. O Sr. Vance está certo. Não me lembro de qualquer observação sua inconsistente com sua crença na culpa de Bliss.

— Embora eu soubesse que Bliss era o culpado — continuou Vance —, ignorava qual fosse seu objetivo final ou quem estava ele procurando envolver. Suspeitei que fosse Salveter, embora pudesse igualmente ter sido Scarlett, Hani ou a Sra. Bliss. Vi imediatamente a necessidade de determinar a verdadeira vítima de sua trama. Assim, fingi acreditar na situação óbvia. Não podia deixar que Bliss pensasse que eu suspeitava dele — minha única esperança residia em fingir que acreditava que o culpado fosse outra pessoa. Mas eu evitei as armadilhas destinadas a nós. Eu desejava que Bliss forjasse outros indícios contra sua vítima e, talvez, nos fornecesse algum explorável. Aí está por que lhes pedi que me acompanhassem no jogo de espera.

— Mas qual era a idéia de Bliss de se deixar prender? — perguntou Markham. — Havia perigo nisso.

— Muito pouco. Bliss provavelmente acreditava que mesmo antes de uma acusação ele ou o seu advogado poderiam persuadir você de sua inocência e da culpa de Salveter. Ou, se ele fosse levado a julgamento, tinha quase certeza de uma absolvição e estaria então inteiramente a salvo pelo acalentador princípio do duplo risco, ou autrefois acquit... Não, ele não estava correndo um grande perigo. E lembrem-se, também, que ele estava jogando uma grande partida. Uma vez que tivesse sido preso, sentir-se-ia justificado em acusar Salveter abertamente como assassino e imaginador da trama. Daí por que fui contra sua prisão, pois era exatamente aquilo que desejava. Enquanto Bliss se julgasse fora de suspeitas não havia razão em se defender à custa de Salveter. E, para envolver Salveter, ele foi forçado a forjar novas evidências, a conceber outros esquemas. E era nesses esquemas que eu confiava para a obtenção de provas.

— Estou perdido! — As cinzas do charuto de Heath se desprenderam e caíram em seu colete, mas ele nem notou.

— Mas, sargento, eu lhe dei inúmeros avisos. E havia o motivo. Estou convencido de que Bliss sabia que não viria mais auxílio financeiro da parte de Kyle e não há nada que ele não fizesse para assegurar a continuação de suas pesquisas. Além disso, estava com muito ciúme de Salveter, pois sabia que a Sra. Bliss amava o jovem.

— Mas por que — indagou Markham — ele não matou Salveter meramente?

— Oh, sim! O dinheiro era um fator capital... ele queria que Meryt herdasse a fortuna de Kyle. Seu segundo objetivo era eliminar Salveter do coração de Meryt-Amen: não havia motivo para liquidá-lo. Assim, Bliss planejou sutilmente afastar a suspeita de sua pessoa, fazendo parecer que Salveter não somente matou o tio, mas, também, procurou mandar outro para a cadeira em seu lugar.

Vance lentamente acendeu um outro cigarro.

— Bliss estava matando três coelhos com uma cajadada. Estava-se fazendo de mártir aos olhos de Meryt-Amen, eliminando Salveter e assegurando a sua mulher uma fortuna com a qual poderia continuar suas escavações. Poucos crimes têm tido tão poderosos motivos tríplices... Uma das coisas trágicas é que a Sra. Bliss acreditava bastante na culpa de Salveter e sofria abominavelmente. Lembrem-se de que ela tomou a atitude de declarar que queria que o criminoso fosse levado à justiça. E, durante todo o tempo, temia que fosse Salveter...

— Seja como for — disse Heath —, Bliss não parecia muito, ansioso em envolver Salveter no caso.

— Ah, mas estava, sargento. Constantemente estava procurando envolver Salveter, embora fingindo que não estivesse. Uma fingida relutância. Ele não podia ser demasiado óbvio a esse respeito, isso teria afastado sua caça... Vocês se lembram de minha pergunta sobre quem era o encarregado dos suprimentos médicos. Bliss hesitou, como se procurando proteger alguém. Muito inteligente.

— Mas, se o senhor sabia disso... — começou Heath.

— Eu não sabia de tudo isso, sargento. Sabia apenas que Bliss era o culpado, mas não tinha certeza de que Salveter fosse o objetivo de sua trama. Assim, tive que investigar e conhecer a verdade.

— De qualquer modo, eu estava certo desde o princípio, quando disse que Bliss era o culpado — declarou Heath obstinadamente.

— Claro que sim, sargento. — Vance falou quase afetivamente. — E eu me sentia terrivelmente mal em ter de contradizê-lo. — Vance levantou-se e se aproximando de Heath estendeu-lhe a mão. — O senhor me desculpa?

— Bem... talvez. — Os olhos de Heath traíam seu tom áspero ao apertar a mão de Vance. — De qualquer modo, eu estava certo!

Vance sorriu e sentou-se.

— A trama, em si mesma, era simples — continuou Vance depois de alguns instantes. — Bliss telefonou a Kyle na presença de todos e marcou um encontro para as onze horas. Mencionou, especificamente, o novo carregamento e sugeriu que Kyle viesse cedo. Já estava decidido sobre o assassinato — e na verdade sobre toda a trama —, quando combinou o encontro fatal. Deliberadamente Bliss deixou o alfinete de escaravelho em cima da mesa do escritório. Após matar Kyle, colocou o alfinete e o relatório financeiro ao lado do corpo. E observe, Markham, que Salveter tinha acesso a ambos os objetos. Além disso, Bliss sabia que Salveter tinha o hábito de ir ao museu depois do café matinal. Planejou o apontamento com Kyle de forma tal que, provavelmente, Salveter e o tio se encontrariam. Mandou Salveter ao Museu Metropolitano para que estivesse fora de casa enquanto ele assassinava Kyle. Fixou também a estátua de Sakhmet de modo tal que pareceria ser uma armadilha. O criminoso poderia facilmente ter voltado a qualquer momento antes de nossa chegada e colocado o pino e o relatório e feito as pegadas, desde que, claro, Bliss estivesse adormecido pelo efeito do ópio...

Heath retesou-se e olhou para Vance.

— Aquela armadilha era apenas fingida? — perguntou indignado.

— Nada mais do que isso, sargento. Foi montada depois do crime, de modo que, se Salveter tivesse um álibi, ainda assim poderia ser culpado. Além disso, a possibilidade de Kyle ter sido assassinado por uma pessoa ausente era um outro ponto a favor de Bliss. Por que iria Bliss se preocupar com uma armadilha mortal, se tinha todas as oportunidades de matar Kyle em contatos diretos? A armadilha era, meramente, mais um contra-indício...

— Mas o lápis usado na armadilha — interpôs Markham — não era do tipo dos que Salveter usava.

— Meu caro Markham! Bliss usou um de seus próprios lápis como haste vertical a fim de criar mais um indício contra si mesmo. Um homem que verdadeiramente estivesse montando uma armadilha mortal não iria empregar seu próprio lápis... empregaria o lápis do homem a quem estava procurando envolver. Assim, o doutor empregou seu próprio lápis — para lançar as suspeitas para outro lado. A armadilha, no entanto, não me enganou. Era por demais fortuita. Um assassino não correria um tal risco. A estátua poderia não cair exatamente na cabeça de Kyle. Uma outra coisa: um homem abatido daquela maneira provavelmente não cairia na posição em que encontramos Kyle, com a cabeça exatamente sob o ponto em que a estátua o atingiu e com os braços esticados. Quando fiz minha experiência e a estátua caiu exatamente onde tinha estado a cabeça de Kyle, percebi o quanto improvável era que, na verdade, ele tivesse sido morto pela estátua caindo. — Vance piscou os olhos. — Não levantei este ponto na ocasião porque desejava que vocês acreditassem na armadilha mortal.

— Certo mais uma vez! — Heath bateu na testa com a palma da mão, dramaticamente. — E nunca pensei nisso!... Claro que o desculpo, Sr. Vance!

— A verdade é, sargento, que fiz tudo o que podia para que o senhor não percebesse a incoerência desse fato. E o Sr. Markham também não percebeu1. Na verdade, Kyle foi morto enquanto olhava dentro do armário, por um golpe desferido por alguém por trás dele. Imagino, também, que tenha sido empregada uma daquelas pesadas maças de pórfiro. O corpo de Kyle foi arrumado na posição em que o encontramos e, então, a estátua de Sakhmet foi deixada cair sobre o seu crânio, obliterando a evidência do primeiro golpe.

 

 

 

(1) Nem eu. No entanto, enquanto esses meus registros estavam sendo publicados em série no American Magazine, vários leitores escreveram apontando a incoerência.

 

 

 

— Suponha, no entanto — objetou Markham —, que você não houvesse notado o anel solto da cortina?

— A armadilha foi montada de modo que descobríssemos este fato. Se nós não o tivéssemos percebido, Bliss teria chamado nossa atenção para o fato.

— E as impressões digitais... — começou Heath meio confuso.

— Foram deixadas propositadamente na estátua. Mais evidências, sabem, contra Bliss. Ele, porém, tinha um álibi em reserva. Sua primeira explicação era muito simples e específica: tinha movido Sakhmet porque não estava no lugar correto. A segunda explicação, no entanto, do por que não havia impressões digitais em Sakhmet viria mais tarde, após sua prisão, isto é, ninguém, de fato, teria empunhado a estátua: fora uma armadilha mortal montada por Salveter!

Vance fez um gesto com a mão aberta.

— Bliss cobriu todas as evidências contra sua pessoa com outras apontando para Salveter. Observem, por exemplo, a evidência das pegadas de sangue. Superficialmente elas apontavam para Bliss. Mas lá estava o onipresente contra-indício, isto é, ontem pela manhã ele estava usando chinelas e apenas um pé de tênis foi encontrado no escritório. O outro pé de tênis se encontrava em seu quarto, exatamente onde ele dissera que o deixara na noite anterior. Bliss, simplesmente, trouxe um dos pés de tênis cá para baixo, forjou as pegadas de sangue e colocou o pé do sapato na cesta de papéis. Ele queria que encontrássemos as pegadas e descobríssemos o sapato. E foi o que fizemos, isto é, o sargento fez. Sua resposta quanto às pegadas, após sua prisão, seria meramente dizer que alguém que tinha acesso ao seu quarto tinha levado o pé de tênis para baixo e forjado as pegadas para envolvê-lo.

Markham concordou com a cabeça.

— Sim — disse ele. — Estive tentado a eximi-lo de culpa, especialmente depois da descoberta do ópio em seu café.

— Ah, aquele ópio! O álibi perfeito! Que júri iria condená-lo após a evidência do ópio em seu café? Tê-lo-iam olhado como a vítima de uma trama. E o escritório do promotor distrital teria recebido severas críticas... E no entanto, como foi simples o episódio do ópio! Bliss pegou a lata no armário, extraiu dela o que precisava para o ardil e colocou o pó no fundo de sua xícara.

— Você não acreditou que ele estivesse narcotizado?

— Não. Eu sabia que ele não estava. Um narcótico contrai as pupilas e as de Bliss estavam dilatadas de excitação. Percebi que ele estava fingindo e isso me fez suspeitar de que encontraria uma droga em seu café.

— Mas, e a lata? — A pergunta foi feita por Heath. — Nunca entendi direito aquele negócio da lata. O senhor mandou Hani...

— Calma, sargento! — Vance falou com bom humor. — Eu sabia onde estava a lata e desejava unicamente me certificar do quanto Hani também sabia.

— Estou percebendo o ponto do sargento — interveio Markham. — Nós não sabíamos que a lata de ópio estava no quarto de Salveter.

— Oh, e agora, sabemos? — Vance se voltou na direção do saguão. — Hani!

O egípcio abriu a porta de correr.

— Escute aqui. — Vance olhou diretamente nos olhos do homem. — Estou profundamente surpreendido com sua atitude de simulação, mas desejamos conhecer alguns fatos. Onde você encontrou a lata de ópio?

— Effendi, já não há mais necessidade de simulação. O senhor é um homem de profunda sabedoria e confio no senhor. A lata estava escondida no quarto do Sr. Salveter.

— Muito obrigado — Vance foi quase brusco. — E agora volte para o saguão.

Hani saiu e fechou a porta suavemente.

— E, por não descer para o café ontem pela manhã — continuou Vance —, Bliss sabia que sua mulher e Salveter estariam sozinhos na saleta de refeições e que o rapaz poderia, facilmente, ter posto o ópio no seu café...

— Mas — perguntou Markham —, se você sabia que Bliss pôs o ópio no próprio café, por que todo o interesse no samovar?

— Eu tinha que ter certeza contra quem a trama de Bliss era dirigida. Ele estava tentando fazer crer ser a própria vítima da trama. Como o seu objetivo era envolver alguma outra pessoa, eu sabia que a verdadeira vítima tinha que ter tido acesso ao café ontem pela manhã.

Heath balançou a cabeça meditativamente.

— Isso foi fácil. O velho estava fingindo que alguém tentara proporcionar-lhe algo para apagar, e se o pássaro a quem estava querendo incriminar não pudesse tê-lo feito, a trama teria ido para as pitangas... Mas escute aqui, Sr. Vance — Heath subitamente se lembrara de algo —, o que tinha em mente o doutor ao fingir que fugia?

— Isso era um resultado perfeitamente lógico do que acontecera antes — explicou Vance. — Depois que nos recusamos a prendê-lo, o doutor começou a preocupar-se. Como sabem, ele ansiava por ser preso e nós o desapontamos tremendamente. Sentado em seu quarto, Bliss se pôs a planejar. Como poderia ser capaz de fazer com que déssemos atrás e o fizéssemos prender, desta forma dando-lhe a chance de apontar todas as evidências do ardiloso plano de Salveter contra ele? Decidiu-se a tentar a fuga. Esse gesto, supôs Bliss, sem duvida levantaria novamente as suspeitas contra ele. Assim, saiu simplesmente, retirou todo seu dinheiro do banco, foi de táxi até a Estação Grand Central, perguntou abertamente a respeito de trens para Montreal e permaneceu ostensivamente no portão aguardando o trem... Ele sabia que Guilfoyle o estava seguindo, pois, se estivesse realmente tentando fugir, podem ter certeza de que o policial jamais o teria acompanhado. O senhor, sargento, aceitou a ação de Bliss pelo que ela aparentava ser e tive medo de que sua tola tentativa produzisse o resultado exato que Bliss esperava — isto é, ser novamente preso. Foi por isso que combati essa idéia tão apaixonadamente.

Vance se inclinou para trás mas não se descontraiu. Em sua atitude havia um rígido alerta.

— E como o senhor não o algemou, sargento — continuou Vance —, Bliss foi forçado a dar mais um passo. Ele tinha que forjar um caso contra Salveter. Assim, imaginou e executou o drama com a adaga. Deliberadamente mandou que Salveter fosse ao escritório para apanhar um livro memorando na mesa onde a adaga estava guardada...

— E a bainha! — exclamou Markham.

— Oh, claro. Foi esse o indício real contra Salveter. Colocando a bainha no quarto de Salveter, Bliss estava-nos sugerindo que poderíamos encontrar o provável assassino pela localização daquela peça. Eu sabia onde se encontrava a bainha no momento em que ele tão auxiliadoramente a mencionou; assim, dei a Hani uma chance de mentir a respeito...

— Você quer dizer que Hani não encontrou a bainha no saguão?

— Claro que não.

Vance tornou a chamar Hani lá no saguão.

— Onde você encontrou a bainha da adaga real? — perguntou.

Hani respondeu sem um momento de hesitação.

— No quarto do Sr. Salveter, effendi... como o senhor bem o sabe.

Vance concordou com a cabeça.

— E por falar nisso, Hani, alguém se aproximou desta porta esta noite?

— Não, effendi. O doutor está ainda em seu escritório. Vance despediu-o com um gesto e prosseguiu.

— Pode ver, Markham, que Bliss colocou a bainha no quarto de Salveter e, em seguida, lançou a adaga contra a cabeceira de sua cama. Telefonou para mim e, quando chegamos, deu-nos uma descrição complicada, mas plausível, de ter sido atacado por um inconnu.

— Ele foi um excelente ator — comentou Heath.

— Sim... de um modo geral. Mas houve um aspecto psicológico de que se descuidou. Se tivesse, de fato, sido alvo de um ataque criminoso, Bliss não teria ido sozinho no escuro para me telefonar. Teria, em primeiro lugar, acordado todo o mundo.1

 

 

(1) Deve ser lembrado que, no caso Greene, o criminoso, fingindo estar amedrontado pelos sinistros perigos que se escondiam nos corredores escuros da mansão de Greene, cometeu um similar erro de julgamento psicológico, descendo para a despensa no meio da noite, sem outra razão que não a de satisfazer uma certa vontade de comer.

 

 

— Isso é razoável. — Markham se tornava impaciente. — Mas você disse alguma coisa a respeito de o quadro não estar completo...

— A carta! — Vance se pôs de pé e jogou o cigarro fora. — Era o fator que estava faltando. Eu não podia entender por que a carta hieroglífica forjada não apareceu à noite passada — era essa a oportunidade perfeita. Mas a carta não aparecia em lugar nenhum e isso me deixava intrigado... No entanto, quando encontrei Scarlett trabalhando no museu, eu compreendi. O doutor — estou convencido — pretendeu colocar a carta forjada, que temporariamente havia posto na gaveta da mesa, no quarto de Meryt-Amen ou em algum outro lugar onde pudéssemos encontrá-la. Entretanto, quando olhou para dentro do museu através da porta do escritório, viu Scarlett trabalhando na mesa. Assim, deixou a carta passar, reservando-a para uso futuro — no caso em que não prendêssemos Salveter após o episódio da adaga. Quando eu, deliberadamente, desprezei os indícios que o doutor havia preparado contra Salveter, sabia que a carta não tardaria a aparecer. Eu estava temeroso de que Scarlett, de algum modo obstasse o esquema de Bliss, razão pela qual o avisei de que se conservasse afastado da casa. Não sei o que mais eu poderia ter feito.

— Nem eu. — O tom de Markham era consolador. — Scarlett devia ter seguido o seu conselho.

— Mas não o fez — suspirou Vance, lamentando-se.

— Você pensa, então, que Scarlett suspeitava da verdade?

— Indubitavelmente. E suspeitou logo no início da partida. Mas não tinha certeza bastante para falar. Temia estar cometendo uma injustiça com o doutor. Assim, sendo um cavalheiro inglês, guardou silêncio. Em minha opinião, Scarlett começou a se preocupar com esta situação e resolveu finalmente ir a Bliss...

— Então alguma coisa deve tê-lo convencido.

— A adaga, Markham. Bliss cometeu um grave erro a esse respeito. Scarlett e Bliss eram as duas únicas pessoas que sabiam da arma contrabandeada. Quando mostrei a arma a Scarlett e informei-o de que tinha sido usada em uma tentativa contra a vida de Bliss, ele ficou sabendo conclusivamente que o doutor imaginara toda a lenda.

— E ele veio aqui esta noite para se defrontar com Bliss?

— Exatamente. Scarlett percebeu que Bliss estava procurando envolver Salveter e queria que Bliss soubesse que todo o seu monstruoso esquema estava desvendado. Scarlett veio aqui para proteger um inocente — a despeito do fato de que Salveter fosse seu rival, como era o caso, nas afeições de Meryt-Amen. Isso seria bem de Scarlett... — Vance parecia triste. — Quando enviei Salveter a Boston pensei que tivesse eliminado todas as possibilidades de perigo. Scarlett, porém, achou que deveria tomar as rédeas em suas próprias mãos. Sua atitude foi muito bonita, porém mal avisada. O problema todo estava em que isso dava a Bliss a oportunidade pela qual ele esperava. Quando Bliss não conseguiu retirar do museu a carta forjada, na noite passada, e quando declinamos de seu convite de encontrar a bainha no quarto de Salveter, era preciso que ele lançasse seu trunfo — a carta forjada.

— Sim, sim. Entendo. Mas onde se encaixa Scarlett?

— Quando Scarlett veio aqui esta noite, Bliss, sem dúvida, ouviu sua acusação diplomaticamente e então, com algum pretexto, conseguiu atraí-lo até o museu. Quando Scarlett se descuidou, Bliss o golpeou na cabeça — provavelmente com uma daquelas maças do último armário — e o colocou dentro do sarcófago. Foi um problema simples para ele apanhar o macaco de seu carro, que fica estacionado aí fora, na rua... lembrem-se de que ele se ofereceu para levar Salveter à estação...

— Mas, e a carta?

— Você não percebe que tudo se encaixa? O ataque a Scarlett teve lugar entre as oito e as oito e meia. Salveter, provavelmente, encontrava-se lá em cima, dando adeus à Sra. Bliss. De qualquer modo, estava na casa e poderia ter sido o assassino de Scarlett. A fim de tornar claro que Salveter era de jato o assassino de Scarlett, Bliss amassou a comprometedora carta forjada e a enfiou no bolso de Scarlett. Queria tornar aparente que Scarlett viera aqui esta noite para se defrontar com Salveter, mencionara a carta que tinha encontrado na gaveta da mesa e fora assassinado pelo rapaz.

— Mas, e por que Salveter não teria levado a carta?

— Na presunção de que Salveter não sabia que Scarlett tinha a carta no bolso.

— O que quero saber — interveio Heath — é como Bliss veio a tomar conhecimento da carta original de Salveter.

— Este ponto é facilmente explicável, sargento. — Vance puxou a cigarreira. — Salveter, indubitavelmente, voltou ao museu ontem pela manhã, como ele mesmo nos disse, e estava trabalhando em sua carta quando Kyle chegou. Salveter, então, enfiou a carta na gaveta da mesa e se dirigiu ao Museu Metropolitano a fim de cumprir sua missão. Bliss, que provavelmente o estava observando por uma fresta na porta do escritório, viu-o pôr o papel de lado e mais tarde foi buscá-lo para ver do que se tratava. Sendo uma carta indiscreta para Meryt-Amen, o fato deu a Bliss uma idéia. Levou a carta para o seu escritório e tornou a escrevê-la, fazendo-a diretamente incriminante; em seguida rasgou o original. Quando eu soube que a carta tinha desaparecido fiquei preocupado, pois suspeitei de que Bliss se tivesse apossado dela. Quando vi que a carta tinha sido destruída e jogada fora, convenci-me de que encontraríamos uma outra carta. Mas, desde que eu tinha o original em minhas mãos, acreditei que a carta forjada, quando aparecesse, nos daria uma prova contra Bliss.

— Era por isso que o senhor estava tão interessado naquelas três palavras?

— Sim, sargento. Custava-me acreditar que Bliss usaria tem, was e ankh ao tornar a escrever a carta, pois ele não poderia saber que Salveter nos tinha falado a respeito e citado especificamente essas três palavras. De fato, nenhuma das três palavras se encontrava na carta forjada.

— Um perito caligráfico, porém...

— Oh, sargento! Não seja tão ingênuo. Um perito em caligrafia é um cientista romântico, mesmo quando se trata da grafia em inglês, que lhe é familiar. E todas suas regras estão baseadas em idiossincrasias da escrita manual. Nenhum perito em artes pode dizer com segurança quem fez um desenho — e a escrita egípcia é, em sua maior parte, desenhos. Desenhos falsos, de Michelangelo, por exemplo, são vendidos freqüentemente por negociantes espertos. A única aproximação em tais assuntos é a aproximação estética, e não há qualquer estética nos hieróglifos egípcios.

Heath fez uma careta.

— Bem, se a carta forjada não podia ser admitida como prova, qual era a idéia do doutor?

— O senhor não percebe, sargento, que mesmo que a carta não pudesse ser identificada com Salveter de forma absoluta, ela teria feito todo mundo acreditar que o rapaz era culpado e conseguira fugir a uma condenação à base de tecnicismos legais? Meryt-Amen certamente teria acreditado que Salveter escrevera a carta; e era isso o que Bliss queria.

Vance voltou-se para Markham.

— Este é um aspecto legal que realmente não tem importância. Salveter poderia não ser condenado, mas a trama de Bliss, de qualquer modo teria obtido sucesso. Com a morte de Kyle, Bliss teria acesso à metade de sua fortuna — no nome de sua mulher, não há dúvida — e Meryt-Amen teria repudiado Salveter. Assim, Bliss teria tido êxito em todos seus truques. Mesmo legalmente Salveter poderia vir a ser condenado, se não fosse a remoção que Hani fez de dois indícios diretos, do quarto de Salveter — a lata de ópio e a bainha. Além disso, havia a carta no bolso de Scarlett.

— Mas, Vance, como a carta poderia vir a ser encontrada? — indagou Markham. — Se você não tivesse suspeitado da trama e procurado o corpo de Scarlett, este poderia ter permanecido no sarcófago quase indefinidamente.

— Não. — Vance sacudiu a cabeça. — Scarlett teria que permanecer no sarcófago apenas uns dias. Quando, amanhã, fosse constatado que ele estava desaparecido, Bliss provavelmente encontraria o corpo para nós, juntamente com a carta.

Vance olhou para Markham inquisitivamente.

— Como conseguiremos ligar Bliss com o crime, já que Salveter se encontrava na casa na hora do ataque?

— Se Scarlett se recuperasse...

— Se!... Exatamente. Mas, suponhamos que ele não se recupere — e as chances são contra ele. Então? Scarlett, quando muito, poderia testemunhar que Bliss cometeu contra ele um ataque abortivo e mal sucedido. Na verdade, seria possível condená-lo por assalto criminoso, mas isso deixaria o assassinato de Kyle ainda sem solução. E se Bliss alegasse que Scarlett o atacara e que ele revidara ao ataque em autodefesa, seria difícil que você obtivesse sua condenação mesmo por tentativa de morte.

Markham levantou-se e ficou caminhando para cá e para lá na sala. Heath, então, fez uma pergunta.

— Como esse Ali Babá entra no quadro, Sr. Vance?

— Hani sabia desde o princípio o que tinha acontecido e foi bastante sabido para perceber a trama que Bliss desenvolvia contra Salveter. Ele adorava Salveter e Meryt-Amen, e queria que fossem ambos felizes. O que poderia Hani fazer senão aplicar todas as suas energias para proteger os dois? E certamente foi o que fez, sargento. Os egípcios não são como os ocidentais. Era contra sua natureza falar francamente e nos contar de suas suspeitas. Hani desenvolveu um jogo inteligente... o único jogo que poderia desenvolver. Hani jamais acreditou na vingança de Sakhmet. Apenas usou sua logomaquia supersticiosa para encobrir a verdade. Lutou, com suas palavras, pela segurança de Salveter.

Markham parou na frente de Vance.

— É tudo inacreditável! Nunca soube de um criminoso igual a Bliss.

— Oh, não lhe tribute demasiado crédito. — Vance acendeu o cigarro que mantivera na mão nos últimos cinco minutos. — Ele assustadoramente exagerou nos indícios, fazendo-os demasiado gritantes. Aí residiu sua fraqueza.

— Ainda assim — replicou Markham —, se você não tivesse entrado em cena eu teria levantado uma acusação de culpa contra ele.

— E você teria caído em suas mãos. Porque eu não queria que isso acontecesse, fingi argumentar contra a culpa de Bliss.

— Um palimpsesto! — comentou Markham após alguns momentos.

Vance deu uma tragada profunda em seu cigarro.

— Exatamente. Palimpsestas... "torne a limpar suavemente". Em primeiro lugar a verdadeira história do crime, cuidadosamente indicada. Em seguida, foi apagada e tornada a escrever, com Salveter como vilão. Esta história foi também apagada e o conto original — em esboço grotesco e cheio de incoerências e furos — foi novamente escrito. Nós deveríamos ler a terceira versão, tornarmo-nos cépticos a seu respeito, e encontrar entre as linhas os indícios da culpa de Salveter. Coube-me seguir a primeira e original versão — a verdade duas vezes escrita.

— E o senhor o conseguiu, Sr. Vance! — Heath se pusera de pé e se encaminhara para a porta. — O doutor está no escritório, Chefe. Eu mesmo vou levá-lo ao Posto Central.


XXII

 

O julgamento de Anúbis

 

 


(Sábado, 14 de julho — 23:00 horas)

 

 

— Calma, sargento! Não se apresse. — A despeito do tom arrastado da voz de Vance, Heath imediatamente se deteve. — Se eu fosse o senhor, pediria ao Sr. Markham que lhe fornecesse alguns conselhos legais, antes de prender o doutor.

— Os conselhos legais que se danem!

— Oh, claro. Em princípio concordo com o senhor. Mas não há necessidade de sermos temerários a respeito desses assuntos. Sempre é bom usar cautela.

Markham, que se encontrava de pé ao lado de Vance, levantou a cabeça.

— Sente-se, sargento — determinou ele. — Não podemos prender um homem baseado na teoria. — Foi até à lareira e voltou. — Temos que pensar no assunto. Não temos provas contra Bliss. Não o poderíamos manter por uma hora se um bom advogado tomasse conta do caso.

— E Bliss sabe disso — observou Vance.

— Mas ele matou Kyle! — protestou Heath.

— Sem dúvida. — Markham sentou-se ao lado da mesa e apoiou p queixo nas mãos. — No entanto, não tenho nada tangível para apresentar ao grande júri. E, como diz o Sr. Vance, mesmo que Scarlett se recupere, eu teria apenas uma acusação de tentativa de assassínio contra Bliss.

— O que me faz ferver, senhor — resmungou Heath —, é como um sujeito pode cometer um crime quase a nossa vista e nada lhe acontecer. Não é razoável.

— Ah, mas pouca coisa é razoável neste mundo fantástico e irônico, sargento — comentou Vance.

— Bem, de qualquer modo — retrucou Heath —, eu prenderia imediatamente esse pássaro e correria o risco de fazer com que a acusação colasse.

— Também penso assim — disse Markham. — Mas não importa o quanto estejamos convencidos da verdade devemos ser capazes de apresentar provas conclusivas. E este demônio cobriu todas as provas tão inteligentemente que qualquer júri do país o absolveria, mesmo que o pudéssemos levar a julgamento, o que é altamente duvidoso.

Vance suspirou e se pôs de pé.

— A lei! — Vance falou com fervor fora do comum. — E as salas onde essa lei é posta à vista do público chamam-se cortes de justiça. Justiça! Oh, minha preciosa tia! Summum jus, summa injuria. Como é possível a obtenção de justiça, ou mesmo de informações, em echolalia? Aqui estamos nós três — um procurador distrital, um sargento do Departamento de Homicídios e um amante do Concerto em Si Bemol para Piano, de Bach — com um criminoso conhecido a menos de quinze metros onde nos encontramos; e nada podemos fazer. Por quê? Porque esta elaborada invenção de imbecis, denominada lei, falhou em proporcionar o extermínio de um assassino desprezível e perigoso, que não somente assassinou seu benfeitor a sangue-frio, como também tentou matar um outro homem decente, esforçando-se por incriminar um terceiro homem inocente em ambos os crimes, tudo para que pudesse continuar a desenterrar cadáveres antigos e venerados!... Não é de admirar-se que Hani os deteste. No fundo, Bliss é uma hiena e Hani um homem honrado e inteligente.

— Admito que a lei seja imperfeita — interrompeu Markham desajeitadamente. — Sua dissertação, no entanto, é completamente inútil. Estamos-nos defrontando com um problema terrível e deve ser encontrada uma forma de resolvê-lo.

Vance continuava junto da mesa com os olhos fixos na porta.

— Mas sua lei jamais resolverá este problema — disse ele. — Você não pode condenar Bliss; você nem ousa prendê-lo. Ele poderá transformá-lo em um palhaço em todo o país, se tentar prendê-lo. Além disso, Bliss se tornaria uma espécie de herói perseguido por uma polícia incompetente e confusa, que tinha injustamente saltado em cima dele num momento de titubeante desespero, a fim de salvar suas linhas mais ou menos clássicas Vance deu uma tragada profunda no cigarro.

— Velho Markham, estou inclinado a pensar que os deuses do antigo Egito eram mais inteligentes do que Sólon, Justiniano e todos os demais fazedores de leis combinados. Hani estava trapaceando a respeito da vingança de Sakhmet, mas, afinal de contas, a dama do disco solar seria exatamente tão eficiente quanto seus tolos estatutos. Idéias mitológicas são, largamente, não-senso; mas, como não-senso, serão elas mais absurdas do que a lei de nossos dias?

— Pelo amor de Deus, pare com isso. — Markham estava irritado.

Vance encarou-o preocupado.

— Você está com as mãos atadas pelo tecnicismo de um sistema judicial e, como resultado, uma criatura como Bliss continuará solta pelo mundo. Além disso, um sujeito, inofensivo como Salveter será posto sob suspeição e arruinado. Também Meryt-Amen — uma dama corajosa...

— Percebo tudo isso. — Markham se levantara, com uma expressão de agonia estampada em seu rosto. — Mesmo assim, Vance, não há prova alguma convincente contra Bliss.

— É desanimador. Sua única esperança parece ser que o doutor sofra um acidente súbito e fatal. Tais coisas acontecem, como sabem.

Vance permaneceu fumando durante uns momentos.

— Se, pelo menos, os deuses de Hani dispusessem dos poderes sobrenaturais que lhes são atribuídos! — suspirou ele. — Como seria tremendamente simples! Na verdade Anúbis não se mostrou completamente neste caso. Ele tem-se mantido desesperadamente preguiçoso. Como deus do submundo...

— Basta! — Markham levantou-se. — Tenha um pouco de senso de oportunidade. Ser um esteta sem responsabilidades é, sem dúvida, delicioso, mas o progresso do mundo tem que continuar...

— Oh, absolutamente. — Vance parecia completamente indiferente à explosão do outro. — Você pode esboçar uma nova lei modificando as regras existentes a respeito de provas e apresentá-la à legislatura. A única dificuldade seria que pela ocasião que esses intelectuais estivessem discutindo e indicando comitês, você, eu, o sargento e Bliss já teríamos atravessado para sempre os sombrios corredores do tempo.

Markham voltou-se vagarosamente para Vance. Seus olhos eram meros traços.

— O que está escondido atrás de toda essa garrulice infantil? — perguntou ele. — Você tem qualquer coisa em mente.

Vance sentou-se na borda da mesa e, jogando fora o cigarro, enfiou as mãos profundamente nos bolsos.

— Markham — falou ele, com séria deliberação —, você sabe tão bem quanto eu que Bliss está fora do alcance da lei e que não há forma humana de condená-lo. O único meio pelo qual ele pode ser levado a julgamento é através de artifícios.

— Artifícios? — Markham ficou momentaneamente indignado.

— Oh, nada repreensível — respondeu Vance alheada-mente, pegando outro cigarro. — Considere, Markham... — Vance se lançou a uma detalhada recapitulação do caso. Eu não podia entender qual o objetivo de todo o seu palavrório, pois parecia que não tinha qualquer relação com o ponto crucial em discussão. Markham estava também intrigado. Várias vezes tentou interromper Vance, mas este levantava a mão imperativamente e continuava com sua descrição.

Após dez minutos Markham se recusou a permanecer em silêncio.

— Vamos ao ponto, Vance — disse ele um tanto zangado. — Você já nos disse tudo isso antes. Você tem ou não tem alguma sugestão?

— Sim, tenho uma sugestão. — Vance falou com seriedade. — É uma experiência psicológica e há uma chance de que dê resultado. Creio que, se Bliss se defrontar de repente com o que sabemos e se usarmos em cima dele um pouco de chicana, talvez admita algo que permita a você pôr-lhe a mão em cima. Bliss não sabe que encontramos Scarlett no sarcófago e podemos fingir que obtivemos do pobre sujeito uma declaração incriminatória. Podemos ir tão longe ao ponto de dizer-lhe que a Sra. Bliss está inteiramente convencida da verdade, pois, se ele acreditar que sua trama falhou e que não há esperanças de continuar suas escavações, talvez confesse tudo. Bliss é um colossal egoísta e, se for acuado num canto, poderá deixar explodir a verdade e blasonar a respeito de sua inteligência. E você deve admitir que a única forma de enviar o grande velhaco ao carrasco está numa confissão.

— Chefe, não podemos prender o sujeito à base dos indícios que ele forjou contra si mesmo? — perguntou Heath irritadamente. — Há o alfinete de escaravelho, as pegadas de sangue e as impressões digitais...

— Não, não, sargento. — Markham estava impaciente. — Bliss se cobriu quanto a cada um desses pontos e, no momento em que o prendermos, voltar-se-á contra Salveter. Tudo o que conseguiremos será a ruína de um homem inocente e a infelicidade da Sra. Bliss.

Heath capitulou.

— Sim, posso perceber isso — disse ele azedamente, após alguns momentos. — Mas esta situação acaba comigo. Já vi muitos patifes inteligentes na minha vida, mas este pássaro, Bliss, bate a todos eles... Por que não seguir a sugestão do Sr. Vance?

Markham interrompeu suas passadas nervosas e cerrou os dentes.

— Creio que teremos que fazê-lo. — Fixou seu olhar em Vance. — Mas não o trate com luvas de pelica.

— Na verdade nunca usei tais luvas. Camurça, sim, em certas ocasiões. No inverno sou favorável a couro de porco e a hiena. Mas pelica! Oh meu Deus!...

Vance foi até à porta de dobrar e abriu-a. Hani permanecia do lado de fora, de braços cruzados, uma sentinela atenta e silenciosa.

— O doutor saiu do escritório? — perguntou Vance, — Não, effendi. — Os olhos de Hani continuavam fixos à frente.

— Ótimo! — Vance começou a atravessar o saguão. — Venha, Markham. Vamos ver qual o resultado de um pouco de persuasão extralegal.

Markham, Heath e eu seguimos Vance. Este não bateu à porta do escritório, abrindo-a sem-cerimoniosamente.

— Oh! Há alguma coisa errada. — O comentário de Vance chegou-nos ao mesmo tempo que a constatação de que o escritório estava vazio. — Um tanto embaraçante. — Vance foi até à porta de aço que levava às escadas em espiral e abriu-a. — Sem dúvida o doutor está confraternizando com os seus tesouros. — Passou pela porta e desceu as escadas, tendo a nós em sua trilha.

Vance parou ao pé das escadas e levou a mão à testa.

— Jamais entrevistaremos Bliss neste mundo novamente — disse ele em voz baixa.

Não havia necessidade de explicação por parte de Vance. No canto oposto, quase no local exato em que tínhamos encontrado o corpo de Kyle no dia anterior, jazia Bliss esparramado, com o rosto voltado para baixo, no meio de uma poça de sangue. Atravessada na parte traseira de seu crânio esmagado, a estátua de Anúbis em tamanho natural. A pesada imagem do rei do submundo tinha aparentemente caído em cima dele quando se achava debruçado sobre seus preciosos artigos dentro do armário diante do qual assassinara Kyle. A coincidência era tão chocante que nenhum de nós articulou palavra durante alguns instantes. Permanecemos, numa espécie de paralisado horror, olhando para o corpo do grande egiptólogo.

Markham foi o primeiro a quebrar o silêncio.

— É incrível! — Sua voz estava tensa e diferente de seu natural. — Há nisso uma retribuição divina.

— Oh, sem dúvida. — Vance aproximou-se da base da estátua e inclinou-se. — No entanto, não sou muito místico. Sou empírico... o mesmo que Weininger disse que os ingleses são.1 Vance ajustou o monóculo. — Ah!... Desculpem-me por desapontá-los e tudo o mais. Mas não há nada de sobrenatural a respeito da morte do doutor. Atente, Markham, que os tornozelos de Anúbis estão quebrados... A situação é bastante óbvia. Enquanto o doutor estava debruçado sobre seus tesouros, esbarrou na estátua de alguma forma e ela caiu-lhe em cima.

 

 

 

(1) Vance estava-se referindo à famosa passagem do Capítulo Das Judentum, do livro de Otto Weininger Geschlecht und Charakter.

 


Todos nós nos inclinamos para a frente. A pesada base da estátua de Anúbis estava exatamente onde nós a tínhamos visto pela primeira vez; mas a estátua, dos tornozelos para cima, tinha-se partido.

— Como vêem — estava dizendo Vance, apontando para a base — os tornozelos são muito finos e a estátua é feita de calcário — uma substância bastante frágil. Os tornozelos, sem dúvida, foram trincados durante o embarque e o peso tremendo do corpo aumentou a falha.

Heath examinou a estátua atentamente.

— Não há dúvida de que foi o que aconteceu — observou ele pondo-se de pé... Nunca tive muita coisa boa em minha vida, Chefe — acrescentou ele dirigindo-se a Markham com fingida alegria —, mas jamais desejei nada melhor do que isso. O Sr. Vance poderia ter atraído o doutor a uma confissão, mas poderia ter falhado. Agora não temos nada com que nos preocupar.

— É verdade. — Markham acenou a cabeça vagamente. Ele estava ainda sob a influência da assombrosa mudança de situação. — Entrego-lhe os encargos, sargento. O melhor é chamar a ambulância e o médico legista. Telefone para mim tão logo o trabalho de rotina esteja terminado. Eu cuidarei dos repórteres amanhã pela manhã... Graças a Deus o caso está encerrado!

Permaneceu parado durante algum tempo, com os olhos fixos no corpo. Parecia quase perturbado, mas eu sabia que um grande peso tinha sido retirado de sua cabeça pela inesperada morte de Bliss.

— Tomarei conta de tudo, senhor — assegurou-lhe Heath. — Mas quem vai dar a notícia à Sra. Bliss?

— Hani o fará — disse Vance. Pôs a mão no ombro de Markham. — Vamos, amigo velho. Você precisa dormir... Vamos dar uma passada em minha humilde morada e eu lhe oferecerei um conhaque com soda. Ainda tenho algum Napoléon-48.

— Obrigado. — Markham exalou profundo suspiro. Quando saímos no saguão da frente, Vance fez um sinal chamando Hani.

— É muito tocante, mas seu bem-amado patrão partiu para Amentet a fim de juntar-se às sombras dos faraós.

— Ele está morto? — indagou o egípcio, erguendo as sobrancelhas.

— Oh, sim, Hani. Anúbis caiu-lhe em cima quando ele se encontrava debruçado examinando o último armário. Uma morte muito eficiente. Mas houve nela uma certa justiça. O Dr. Bliss era o culpado pela morte do Sr. Kyle.

— O senhor e eu sabíamos disso, effendi. — Hani sorriu tristonhamente para Vance. — Temo, porém, que a morte do doutor tenha ocorrido por minha culpa. Quando desempacotei a estátua de Anúbis e a coloquei no canto, percebi que os tornozelos estavam trincados. Não disse nada ao doutor porque temi que ele me acusasse de ter sido descuidado ou de ter, propositadamente, danificado seu tesouro.

— Ninguém vai culpá-lo pela morte do Dr. Bliss — disse Vance casualmente. — Deixamos a seu cargo informar à Sra. Bliss sobre a tragédia. E o Sr. Salveter estará de volta amanhã pela manhã... Es-salamu alei-kum.

— Ma es-salam, effendi.

Vance, Markham e eu saímos para o ar pesado da noite.

— Vamos dar uma volta — propôs Vance. — É pouco mais de dois quilômetros até o meu apartamento e sinto necessidade de exercício.

Markham concordou com a sugestão e caminhamos em silêncio na direção da Quinta Avenida. Quando havíamos cruzado a Madison Square e passado pelo Stuyvessant Club, Markham falou.

— É quase inacreditável, Vance. Este é o tipo de coisa que torna alguém supersticioso. Aqui estávamos nós, defrontando-nos com um problema sem solução. Sabíamos que Bliss era culpado, mas, mesmo assim, não havia como apanhá-lo. Enquanto discutíamos o problema, Bliss entrou no museu e foi acidentalmente morto pela queda de uma estátua, praticamente no mesmo local em que assassinara Kyle... Que diabo! Tais coisas não acontecem no curso normal dos eventos do mundo. E o que torna tudo ainda mais fantástico é que você sugeriu que ele poderia sofrer um acidente.

— Sim, sim. Interessante coincidência. — Vance não parecia propenso a discutir o assunto.

— E o egípcio — continuou Markham. — Não ficou absolutamente Surpreendido quando você lhe falou da morte de Bliss. Ele agiu quase como se esperasse por essa notícia...

Subitamente Markham interrompeu-se. Vance e eu paramos também e olhamos para ele. Seus olhos brilhavam.

— Hani matou Bliss!

Vance suspirou e deu de ombros.

— Claro que foi ele, Markham. Meu Deus! Pensei que você tivesse compreendido a situação.

— Compreendido? — Markham parecia incoerente. — O que está querendo dizer?

— Tudo é por demais óbvio — respondeu Vance suavemente. — Percebi, do mesmo modo que você, que não havia forma de condenar Bliss. Assim, sugeri a Hani como poderia ser dado um fim a todo o caso...

— Você sugeriu a Hani?

— Durante nossa conversação na sala de visitas. Realmente, velho Markham, não costumo entregar-me a estranhas divagações sobre mitologia, a não ser que tenha uma razão. Simplesmente fiz com que Hani percebesse que não havia forma legal de levar Bliss à justiça e insinuei como poderia ele sobrepor-se a essa dificuldade e, incidentalmente, evitar a você uma situação verdadeiramente embaraçosa...

— Mas Hani permaneceu no saguão com a porta fechada. — A indignação de Markham crescia.

— Exatamente. Disse-lhe que permanecesse do lado de fora da porta. Tinha a certeza de que nos escutaria...

— Você, deliberadamente...

— Oh, o mais deliberadamente possível. — Vance abriu os braços em um gesto de rendição. — Enquanto falava com vocês e, indubitavelmente, fazia papel de tolo, eu estava realmente conversando com Hani. É claro que não poderia saber se ele se aproveitaria ou não da oportunidade. Mas ele se aproveitou. Armou-se com uma maça do museu — espero que tenha sido a mesma que Bliss usou em Kyle — e golpeou a cabeça do doutor. Em seguida arrastou o corpo pelas escadas em espiral, até lá embaixo, e o deixou aos pés de Anúbis. Com a maça quebrou os tornozelos da estátua e a fez cair sobre o crânio de Bliss. Muito simples.

— E todo aquele seu palavrório na sala de visitas...

— Era meramente para conservar você e Heath afastados, no caso em que Hani resolvesse agir.

Os olhos de Markham se estreitaram.

— Você não pode sair-se bem com essa espécie de coisa, Vance. Vou processar Hani pelo crime. Haverá impressões digitais...

— Oh, não, não haverá impressões digitais, Markham. Você não notou as luvas na chapeleira? Hani não é tolo. Ele calçou as luvas antes de ir ao escritório. Seria muito mais difícil a você conseguir condená-lo do que a Bliss. Pessoalmente admiro muito Hani. Sujeito decidido!

Durante algum tempo Markham estava zangado demais para falar. Finalmente, porém, deu voz a uma exclamação.

— É ultrajante!

— Claro que é —- concordou Vance amistosamente. — Assim foi o assassinato de Kyle — Acendeu um cigarro e tragou prazerosamente. — O que há de errado com vocês, advogados, é que são muito ciumentos e sedentos de sangue. Você queria mandar pessoalmente Bliss para a cadeira elétrica e não pôde fazê-lo. Hani simplificou as coisas para você. Em minha opinião, você está simplesmente desapontado porque outrem cobrou a vida de Bliss antes que você pudesse fazê-lo... Realmente, sabe, Markham, você é tremendamente egoísta.

 

 

 

 

Creio que não faltará um curto post-scriptum. Markham não encontrou dificuldades, como o leitor sem dúvida se lembrará, em convencer a imprensa de que Bliss tinha sido o culpado pela morte de Benjamin H. Kyle e que sua trágica morte "acidental" tinha muito daquilo a que comumente se chama de justiça divina.

Scarlett, ao contrário do que previra o médico, recuperou-se. No entanto, passaram-se muitas semanas antes que pudesse falar racionalmente. Vance e eu o visitamos no hospital no fim de agosto e ele corroborou a teoria de Vance sobre o que tinha acontecido na noite fatal no museu. Scarlett voltou para a Inglaterra em princípios de setembro — seu pai morrera, deixando-lhe uma propriedade endividada em Bedfordshire.

A Sra. Bliss e Salveter se casaram em Nice no fim da primavera seguinte, e as escavações do túmulo de Intef, de acordo com os boletins do Instituto Arqueológico, ainda continuam. Salveter está encarregado dos trabalhos e sinto-me feliz em assinalar que Scarlett é o perito técnico da expedição.

Hani, segundo uma carta recente de Salveter a Vance, "reconciliou-se com a violação das tumbas de seus ancestrais". Continua com Meryt-Amen e Salveter e estou inclinado a pensar que o seu amor por esse jovem casal é maior do que seus preconceitos nacionais.

 

 

                                                   S. S. Van Dine         

 

 

 

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