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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CRIME DO INVERNO / S. S. Van Dine
O CRIME DO INVERNO / S. S. Van Dine

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Foi bem típico de Willard Huntington Wright, conhecido pelo público como S. S. Van Dine, que, ao falecer repentinamente, em 11 de abril de 1939, deixasse O Crime do Inverno na forma em que o publicamos, sem lhe faltar uma só vírgula. Tudo quanto fazia era assim executado, de modo preciso e completo, denotando sua consideração para com o próximo. O mesmo ocorreu com toda a série dos mistérios policiais de Philo Vance.
Ele próprio narrou como começou a escrever mistérios policiais, e tal narrativa se encontra em artigo intitulado "Eu era um intelectual e vejamos só o que sou agora". Trabalhara como crítico de literatura e arte, e como redator, após deixar Harvard em 1907. E empreendera tais tarefas com grande distinção, mas sem qualquer recompensa material digna de nota — e, por certo, sem acumular dinheiro algum. Quando a guerra eclodiu, pareceu-lhe que tudo em que acreditava e para que trabalhava marchava para a ruína — e agora, vinte e cinco anos depois, podemos afirmar que estivesse equivocado? Havia outras influências também operantes nele, talvez, mas ninguém que conhecesse Willard e a pureza de suas percepções na arte, sua dedicação ao que julgava ser o significado de nossa civilização, expresso nas artes, pode duvidar de que a desilusão completa e a ruína acarretadas pela guerra tenham sido o que finalmente o levou ao colapso nervoso, incapacitando-o por diversos anos. Ele jamais o teria explicado desse modo, ou de qualquer outro modo. Não dava explicações, não apresentava desculpas, em instante algum, e as muitas justificações por ele apresentadas brotavam da bondade de seu coração, tão oculta pela reticência que apenas um punhado de pessoas tomou conhecimento de sua verdadeira gentileza.
Assim é que, afinal, tudo que fizera e pretendera fazer parecia esboroar, e ele também.
Somente um espírito galhardo poderia ter-se erguido dessa queda e a galhardia, por si só, não teria sido suficiente. Mas Willard era também dono de um intelecto — nem mesmo o desalento poderia eliminá-lo — intelecto esse que funcionava com tudo que lhe dessem. Seria de crer que, se seu destino fosse o da reclusão solitária, teria saído da mesma com alguma descoberta biológica, baseada nos ratos que lhe infestassem a prisão. Seja como for, o médico que o tratou finalmente concordou com seus pedidos de ocupação mental, fazendo-lhe a concessão de que lesse livros de mistério, coisa que nunca fizera antes. O resultado foi que, assim como estudara pintura, literatura e filosofia, estudava agora involuntariamente e logo analisava conscientemente o romance policial. Quando se recuperou, era mestre no assunto.
Achava-se então grandemente endividado, mas julgou entrever a possibilidade de libertar-se de obrigações que um homem de sua honestidade não podia ignorar ou, na verdade, tolerar, mediante o que aprendera durante a enfermidade. Escreveu então, com cerca de dez mil palavras cada uma, as tramas de seus primeiros três livros policiais, nos quais deu atenção até mesmo aos últimos detalhes, notas de rodapé e o mais, levando-os ao Century Club, aonde foi almoçar com um dos responsáveis pela editora que os publicou.
Esse editor tinha pouco conhecimento de histórias de mistério, que não haviam usufruído grande aceitação desde Sherlock Holmes, mas conhecia Willard Wright muito bem. Sabia, desde os tempos de Harvard, que tudo quanto aquele homem fizesse sairia bem feito, e as condições razoáveis — tendo em vista o talento do autor — propostas por Willard foram prontamente aceitas.
Já se passaram treze anos desde que Philo Vance surgiu e solucionou o Caso Benson e, juntamente com essa obra e as onze outras que se lhe seguiram, trouxe grande prazer a centenas de milhares de leitores, postos diante das aflições e ansiedades de um decênio dos mais trágicos. Cada um desses livros famosos foi produzido, como aconteceu com os três primeiros, em longa sinopse — cerca de dez mil palavras — de feitura perfeita e completa em seu desenvolvimento. Após as três primeiras sinopses, o editor não examinou mais nenhuma, nem o desejava fazer, pois sabia com certeza que o livro terminado seria outra obra-prima no gênero. Tampouco examinava a segunda etapa do desenvolvimento, mas apenas a terceira, o original corrigido e pronto — e o lia então com o interesse e prazer de qualquer leitor, sem preocupação de natureza profissional. Mas essa segunda etapa no desenvolvimento infinitamente elaborado do enredo tinha cerca de trinta mil palavras, faltando-lhe apenas a preparação final de personagens, diálogo e atmosfera. O Crime do Inverno representa essa etapa na marcha de S. S. Van Dine para o estágio final, e se a trama chega mais depressa à culminação do que nos livros anteriores, aí temos o motivo.
Afirmam hoje que Philo Vance foi criado à imagem de S. S. Van Dine e, embora Willard não fumasse Régies, porém cigarros sem nicotina, percebiam-se semelhanças. Ambos eram de apresentação pessoal infinitamente cuidada, mostravam-se do mesmo modo cheios de decoro e consideração, e Vance dispunha do conhecimento surpreendentemente vasto e preciso de Willard quanto a mil artes e assuntos, e sua atitude céptica, mas bem-humorada, para com a vida e a sociedade. Na verdade, entretanto, a parecença só existiria para quem tivesse conhecimento superficial de Willard Huntington Wright. Vance, na medida em que era Wright, foi talvez a forma sob a qual um homem valoroso e gentil ocultava espírito quase delicado e sensível demais para uma época tão turbulenta e grosseira quanto a nossa. Willard não usava o coração a descoberto — mas havia pontos sensíveis, como sempre existem, e estavam sempre onde os amigos sabiam que estariam, perto da superfície, e de reação rápida.

 

 

 

 

 

 

I

Pedido de auxílio

(Terça-feira, 14 de janeiro — 11:00 horas)


— Você gostaria de umas férias curtas em ambiente ideal... esportes de inverno, companhia agradável e uma verdadeira mansão na qual pudesse descansar? Acabei de receber um convite assim para você, Vance.

Philo Vance puxou a fumaça do cigarro e sorriu. Tínhamos acabado de chegar ao gabinete do procurador distrital Markham, atendendo chamada ao mesmo tempo urgente e jocosa. Vance olhou para o companheiro e suspirou.

— Desconfio de você. Fale abertamente, meu caro Radamanto.

— O velho Carrington Rexon anda preocupado.

— Ah! — exclamou Vance, em voz arrastada. — Não existe bondade espontânea na vida. Que tristeza! Com que, então, solicitam que eu apareça nos Berkshires, só porque Carrington Rexon anda preocupado. Um detetive na mansão serviria para tranqüilizar o homem. Sou convidado. Nada lisonjeiro. Não.

— Não seja descrente, Vance.

— Mas por que deveriam as preocupações de Carrington Rexon ser trazidas a mim? Eu não estou preocupado, em absoluto.

— Logo ficará — contrapôs Markham, com perversidade fingida. — Não vá negar que você adora o sofrimento alheio, seu sádico. Você vive para o crime e o sofrimento. E adora preocupar-se. Morreria de tédio, se tudo estivesse em paz.

— Ora, ora — retorquiu Vance. — Sádico, não. Não. Sempre a me esforçar pela paz e pela calma. E essa minha natureza caridosa e altruísta.

— Exatamente o que eu pensava! A preocupação do velho Rexon atrai, mesmo, você. Já notei o brilho em seus olhos.

— Um lugar encantador, a propriedade Rexon — observou Vance, pensativo. — Mas por que, Markham, com os milhões dele, sua vida folgada e dois filhos adorados, e que o adoram, uma propriedade magnífica, toda aquela fama e saúde... por que estaria ele a se preocupar? É coisa de todo desarrazoada.

— Ainda assim, quer que você vá imediatamente.

— Como quiser. — E Vance afundou-se mais na poltrona. — As esmeraldas que ele tem, ao que imagino, devem ser o motivo dessas preocupações.

Markham lançou-lhe um olhar cheio de astúcia.

— Não me venha com clarividência. Detesto os ledores de sorte, ainda mais quando fazem adivinhações tão fáceis. É claro que são aquelas malditas esmeraldas.

— Conte-me tudo. Não deixe uma só pedra preciosa sem ser revirada. Dá para fazer isso?

Markham acendeu um charuto e, em seguida, explicou: — Não preciso falar com você sobre a famosa coleção de esmeraldas de Rexon. Você sabe provavelmente como aquilo está guardado, no cofre.

— Sei — confirmou Vance. — Examinei-o, há alguns anos. As jóias estão sob proteção inadequada, foi o que ach^i.

— Pois continuam assim. Graças a Deus o lugar não está em minha alçada, pois andaria a me preocupar constantemente, se estivesse. Já tentei persuadir Rexon a transferir a coleção para algum museu.

— Deselegante, de sua parte, Markham. Ele adora com fanatismo aquelas bugigangas. Haveria de estiolar, se ficasse sem as esmeraldas... Oh, para que existem os colecionadores?

— Não sei, realmente, não sei. Não fui eu quem fez o mundo.

— Deplorável — e Vance suspirava. — O que temos em vista?

— Uma situação imprevisível na propriedade de Rexon. O velho anda apreensivo, daí o desejo de contar com sua presença.

— Mais luz, por favor.

— A mansão Rexon — prosseguiu Markham — está no momento cheia de convidados, como resultado das férias do jovem Richard Rexon: ele acabou de regressar da Europa, onde esteve estudando medicina nos centros mais adiantados. O velho está oferecendo uma comemoração em honra do rapaz...

— Eu sei. E contando também com o anúncio do casamento de Richard com Carlotta Naesmith, criatura de sangue azul. Ainda assim, qual a causa da aflição dele?

— Sendo Rexon viúvo, e com a filha inválida, pediu à Srta. Naesmith para organizar uma festa e comemoração na casa. Ela cuidou do caso... desforrando-se. Os convidados, em sua maior parte, são elementos do café society: criaturas excêntricas, gente de todo desagradável aos gostos sérios do velho Rexon. Ele não compreende essa gente nova, inclina-se a não ter qualquer confiança nela. Não que desconfie deles, mas a proximidade de tais pessoas, com relação às preciosas esmeraldas, causa-lhe intranqüilidade.

— Um camarada antiquado. A nova geração é mesmo cheia de possibilidades incríveis. Não se trata de gente adorável e que nos deixe à vontade. Rexon tem alguma desconfiança específica?

— Só de um sujeito chamado Basset. E, por estranho que pareça, não é elemento convidado pela Srta. Naesmith; na verdade é um conhecido de Richard. A amizade começou no exterior... na Suíça, ao que parece. Veio no mesmo navio com ele, na última viagem. Mas o velho cavalheiro reconhece que não tem base para os receios que sente. Está apenas nervoso, de modo vago, por causa da situação geral. Deseja a companhia de alguém perspicaz e telefonou para mim, pediu ajuda, indicando o seu nome.

— Sim, os colecionadores são isso mesmo. A quem pode recorrer, neste momento de incerteza? Ah, ao velho amigo Markham! Markham dispõe de todos os recursos para esse trabalho delicado de observação. Recurso Número Um: o Sr. Philo Vance. Fica apresentável em sobrecasaca, não bebe na poncheira, é capaz de misturar-se aos convidados e observar, sem levantar suspeita alguma. Discrição garantida. Modo excelente de perceber algum vulto furtivo... se houver.

Vance sorriu, com resignação, perguntando em seguida: — É isso, em suma, o que pediu nosso amigo Rexon, pelo telefone interurbano?

— Em grande parte, sim — reconheceu Markham. — Mas ele o soube exprimir de modo mais caridoso. É de seu pleno conhecimento que o velho Rexon gosta de você e que, se soubesse do desejo, de sua parte, de ir à festa, teria sido muito bem acolhido.

— Você me envergonha, Markham — retorquiu Vance, compungido. — Gosto de Rexon, tanto quanto você. É um homem estimável... Pois bem, ele anseia por minha presença reconfortante. Assim sendo, esforçar-me-ei por manter-lhe a tranqüilidade.

 

 

 

 

II

 

Encanto ao luar

 

 


(Quarta-feira, 15 de janeiro — 21:00 horas)

 

 

Markham entrou em comunicação com Carrington Rexon e partimos de Nova York na tarde seguinte, viajando no automóvel Hispano-Suiza de Vance.

Fazia um dia frio, o ar era claro, pois a neve caíra durante a noite. A viagem a Winewood, nos Berkshires, teria normalmente levado cerca de cinco horas, mas as estradas ao norte da cidade estavam cobertas de neve e chegamos atrasados à propriedade de Rexon. A escuridão da noite já se apresentara, mas noite salpicada de estrelas no céu, a lua cheia de claridade.

Eram cerca de nove horas quando passamos por amplo portão de pedra que marcava os limites externos da ampla propriedade. Não havia pessoa alguma para nos indicar a direção e quando tínhamos chegado ao alto de um morro rochoso, Vance ficou sem saber que direção tomar. Viam-se marcas de pneumáticos semi-ocultas em uma das bifurcações da estrada estreita e nós entramos à direita, acompanhando-as.

Mais ou menos a dois quilômetros além, a estrada descia em aclive suave, dando para vale estreito e coberto de neve, em cuja extremidade penhascos alcantilados se erguiam até um planalto encoberto de árvores. Vance deixou que o carro descesse sem ruído, o motor desligado, para aquele lugar de encantamento, tranqüilo e branco.

Quando chegávamos à base do aclive, veio ter a nós o som distante de música, passando pelas árvores à esquerda. Não se percebia qualquer habitação por ali e a música intensificava a fantasia do cenário que tínhamos à frente.

Usando os freios, Vance fez parar o carro e, desembarcando, caminhou na direção das notas musicais.

Não tínhamos percorrido cem passos, quando, em meio das árvores que nos encobriam a visão, pudemos observar pequena poça de água gelada, na qual uma jovem patinava. A música vinha de pequena vitrola portátil, colocada sobre banco rústico, na beira da poça gelada.

A jovem, vestida com roupa branca e simples de patinação, parecia irreal à luz das estrelas e luar. Executava uma após outra pirueta difícil de patinação, repetindo-as com seriedade, como a querer aperfeiçoá-las. Vance, de repente, tornou-se atento.

— Céus! — cochichou. — Patinação magnífica!

Ali ficou, fascinado pela eficiência da jovem que executava diversas piruetas clássicas e rodopios complicados.

O som da vitrola cessou, quando a jovem completava um salto e giro em espiral, e Vance aproximou-se com cumprimento animado. Ela, de início, pareceu sobressaltada, mas logo sorria timidamente.

— Devem ser novos convidados da mansão — observou ela, a voz fraca. — Sinto muito que me tenham surpreendido patinando. É uma espécie de segredo, sabem?... Talvez não contem a ninguém — aduziu então, com tom de apelo na voz.

— Claro que não diremos — prometeu Vance, examinando-a com olhos observadores. — Creio que me lembro de você... Estive na mansão, faz alguns anos. Você não era a amiga e companheira da Srta. Joan?

Ela assentiu, concordando.

— Era, ainda sou. Meu nome é Ella Gunthar. Mas não me lembro do senhor. Deve ter sido quando eu era muito pequenina.

— Eu me chamo Philo Vance — disse-lhe ele. — Estava seguindo de automóvel para a mansão, extraviei-me. Quando ouvi sua música, vim para cá, na esperança de descobrir o rumo a tomar.

— Não está tão extraviado assim — contrapôs ela. — Aqui é o Green Glen, e se voltar pelo morro e tomar a estrada estreita para a direita, por cerca de quilômetro e meio, verá a mansão logo pela frente.

Vance agradeceu, mas ainda assim permaneceu ali alguns instantes.

— Diga-me uma coisa, Srta. Gunthar: se é a companheira de Joan na mansão, por que patina por aqui, tão longe da casa?

O rosto encantador da jovem toldou-se, por momentos.

— Eu... eu não quero magoar Joan — respondeu, de modo misterioso. — Sempre venho ao Green Glen de noite, quando acabo meu serviço na mansão, para patinar.

— Mas a vitrola — disse Vance. — Não é coisa pesada demais para carregar até aqui?

— Oh, não a guardo na mansão. — E a jovem riu. — Guardo na cabana de Jed, logo ali na curva da estrada, perto do cipreste grande. E guardo os patins e roupas de patinação por lá, também. É um segredo entre nós dois.

Vance dedicou-lhe um sorriso reconfortante.

— Bem, prometo que o segredo não transpirará. Trata-se de um belo segredo. Sabe que patina magnificamente? É uma das patinadoras mais talentosas que vi até hoje.

A jovem corou de prazer.

— Adoro a patinação — declarou, com simplicidade.

Minutos depois havíamos entrado no caminho e chegado à fartamente iluminada mansão Rexon.

Enquanto um mordomo idoso e calvo nos levava pelo hall do pavimento térreo, dava para ouvirmos a hilaridade ruidosa de muitos convidados no salão — fragmentos de música popular, risadas, vozes altas: um clamor alegre e juvenil.

Carrington Rexon, que se achava sozinho em seu gabinete, recebeu-nos com o ar digno do antigo cavalheiro. Era a primeira vez que eu o encontrava, mas conhecia-lhe os traços fisionômicos, já que suas fotografias haviam sido publicadas com freqüência na imprensa da cidade. Homem alto, esguio e de aspecto impressionante, em seus sessenta anos; distante e severo, com o ar imperioso do feudalismo. De modo vago, fazia pensar no famoso retrato de Lord Ribblesdale, feito por Sargent.

— Ah, Vance! Foi muita generosidade sua ter vindo. Talvez ache que eu esteja apreensivo sem razão...

A porta foi aberta e um jovem moreno, de aspecto sério, porte atlético, surgiu no limiar.

Rexon voltou-se, sem demonstrar surpresa.

— Meu filho Richard — informou-nos, não ocultando o orgulho que sentia. E logo: — Mas por que abandonou nossos convidados?

— Fiquei um pouco farto — explicou o rapaz, e logo dava de ombros, cm tom de escusa. — Acho que não estou acostumado a isso. É uma diferença tão grande...

Uma jovem com cerca de vinte e cinco anos surgiu no umbral da porta e olhou em volta.

Os modos severos do Rexon mais velho pareceram abrandar-se e ele nos apresentou. Eu também a vira muitas vezes, em fotografias dos jornais de Nova York. Carlotta Naesmith fora debutante cheia de vida e dotes, alguns anos antes. Era jovem de cabelos castanho-avermelhados, animada e cheia de energia, olhos sagazes e expressão de confiança em si própria. Meneou a cabeça em nossa direção, de modo casual, e voltou-se para o jovem Rexon.

— Completamente vencido, Dick? A alegria cansou você? Venha, não abandone o navio exatamente quando o mar se põe tempestuoso.

— Creio que Carlotta tem toda a razão, Richard — comentou Carrington Rexon. — Você voltou para casa a fim de descansar. Esqueça seus bisturis e micróbios por algum tempo. Volte para lá com Carlotta e leve o Sr. Vance, também. Ele deseja conhecer seus amigos.

 

 

 

 

III

 

O copo de bourbon

 

 


(Quarta-feira, 15 de janeiro — 22:30 horas)

 

 

Encontramos um espetáculo invulgarmente alegre e colorido no grande salão. Grupos de jovens lá estavam, brincando e rindo, enquanto outros dançavam. O cenário se animava pelo espírito de divertimento descuidado.

Carlotta Naesmith era anfitrioa competente e levou-nos por ali, varando a multidão ruidosa e apresentando-nos a torto e a direito.

— Aqui temos Dahlia Dunham — disse, puxando uma jovem de seus trinta anos, enérgica e nervosa. — Dahlia é oradora política, cheia de frases inacreditáveis e o terror dos aparteantes. Esposa qualquer causa, desde o socialismo ao fletcherismo...

— Mas não a lei seca, minha cara — retrucou a outra, cm voz rouca e sem firmeza, enquanto retirava o braço do da Srta. Naesmith e seguia apressadamente para o pequeno bar.

Surgiu outra jovem, em tom de queixa.

— Que lugar infernal! Não tem campo de pouso! Quando você pegar os milhões do Rexon, Carlotta, mande o Dick construir um campo de pouso.

Era loura e de físico frágil, olhos cristalinos que se destacavam no rosto pontudo. Reconhecia como Beatrice Maddox, antes que Carlotta Naesmith nos apresentasse, pois ela recebera grande publicidade. Conquistara recentemente a fama como aviadora, e apenas uma proibição governamental impedira seu plano de voar sozinha, atravessando o Oceano Atlântico.

— O que houve Bee? — perguntou uma voz trovejante atrás de mim, e logo um jovem e gigantesco irlandês passava os braços pela Srta. Maddox. — Você está com cara triste. Acabou a gasolina? A minha também. — E ele a levou na direção do bar.

— Esse é Pat McOrsay — explicou-nos a Srta. Naesmith. — Ele sabe andar depressa. Ganhou a corrida automobilística do ano passado, em Cincinnati. Gosta da Bee, mas acontece que ela desdenha os simples corredores de automóveis. Talvez entrem em acordo. Eu queria que vocês ficassem conhecendo Pat... é um animal... mas, esperem. Há outro demônio da velocidade presente aqui... Olá, Chuck — chamou, a distância. — Pare de dar barbadas a Sally e venha cá por um instante... se é possível.

Chuck Throme, o jóquei e cavalheiro de renome internacional, que vencera o último Steeplechase em Aintree, veio em nossa direção, os passos muito incertos e rígidos. Seu olhar já não focalizava ninguém, mas os modos eram impecáveis.

— Sente-se, querido, pois quero apresentar-lhe o Sr. Vance — exortou a Srta. Naesmith. — Não tente isso em pé. Os seus estribos vão cair.

Throme estendeu indignadamente o corpo, em toda a.sua estatura de 1,55m, e fez uma mesura com floreio requintado. Mas esse gesto supremo não se completou, já que foi caindo, estendendo-se no tapete e ali ficando.

— Aí temos uma corrida que o Chuck não ganhou — comentou nossa cicerone, rindo. — Vamos continuar. Algum ajudante haverá de colocá-lo novamente na sela... Não acha horrível, Sr. Vance? A bebida é uma maldição pavorosa. Destrói o cérebro, solapa a moral, e tudo o mais... O que me faz lembrar: vamos providenciar um intervalo em nossa rodada de deveres sociais e tomar alguma coisa.

Levou-nos então para o bar.

— Sou muito reservada... pelo bem do Richard. Só bebo Dubonnet, quando me acho em público. Mas não vá essa moderação feminina, de minha parte, afetar a vida de vocês. Aqui temos de tudo, até mesmo trinitrotolueno.

Vance tomou brandy. Ali estávamos em pé e conversando, quando um homem alto, tisnado de sol e desabrido, aproximou-se e passou os braços pela Srta. Naesmith, como se fosse seu dono.

— Ainda estou ansioso por saber qual é sua resposta, Carlotta — proclamou, bonachão. — Pela antepenúltima vez: Você vem ou não vem comigo à ilha dos Cocos, quando o Dick voltar a serrar ossos?

— Ah! — e Carlotta Naesmith girou sobre os calcanhares, arredando-o de si em gesto brincalhão. — Você continua com sua proposta de embarcar. É deselegante, Stan. E bem diante dos olhos de Dick!

Richard Rexon não demonstrava qualquer contrariedade. Adiantou-se e, pondo uma das mãos no braço do outro homem, apresentou-o a nós. Tratava-se de Stanley Sydes, jovem membro da sociedade, criatura com dinheiro em demasia que passava o tempo em expedições à procura de tesouros enterrados.

Vance tinha conhecimentos de tais atividades e logo se travou uma conversa breve.

— Um playboy cheio de bom dinheiro, que o gasta procurando dobrões sujos! — asseverou Carlotta Naesmith, rindo. — Aí temos um paradoxo... ou estará todo mundo louco, menos eu?

— Não é paradoxo, Srta. Naesmith — observou Vance, em tom agradável. — Compreendo perfeitamente o impulso do Sr. Sydes. Na verdade, não é o tesouro, mas a procura.

— Certo! — bradou Sydes. — A alegria de ultrapassar os outros, de solucionar enigmas; e a aquisição do inigualável... Ora, estou falando como se fosse um colecionador... Perdoe-me, Richard. Não vai qualquer ofensa a seu eminente pai no que digo.

Um grupo ruidoso, em frente, chamou-lhe a atenção e ele foi para lá.

Seu lugar no bar foi quase imediatamente tomado pela jovem que estivera gracejando com Throme.

— Por Deus, Sally! — foi como a Srta. Naesmith a cumprimentou. — Sozinha, de verdade? O seu jóquei cavalheiro não recuperou a montaria?... Cavalheiros, — disse, voltando-se para nós — temos aqui nada menos que Sally Alexander, a inimitável... orgulho de qualquer casa, raconteuse inconveniente e pianista extraordinária. Uma favelada. Ela levou o Livro Azul às massas... e fez com que as massas gostassem. Aí temos uma façanha, por Deus!

— Estão me pichando, minha gente — protestou Sally Alexander. — Sou elegante toda a vida.

— Concordo — disse Vance, a defendê-la. — Ouvi a Srta. Alexander cantar, e não corei por um só instante.

— Deve ter sido quando ela cantava no coro da escola, nos dias da infância.

— Só por causa disso — replicou a Srta. Alexander — vou tirar o Dick de você. '

Passou então o braço pelo de Richard Rexon e levou-o para a pista de dança.

A Srta. Naesmith deu de ombros e olhou para Vance.

— Já basta, Sir Galahad? Temos outras notabilidades no jardim zoológico. Não se trata de nada muito especial, entretanto. Acham que eu seja uma apresentadora sincera?

— Sincera e encantadora — afirmou Vance, baixando o copo. — Mas não existe um Sr. Bassett?

— Oh, Jacques... — e ela relanceou o olhar pelo aposento. — É amigo de Richard, como sabem. Espécime mais ou menos importado, ao que creio. De qualquer modo, veio no navio com Dick e está sempre comparando nossas pistas de esquiação com as da Suíça... para o detrimento das nossas, é claro..Talvez ele cante feito tirolês e viva de leite de cabra. Francamente, não sei. Mas acho que fala inglês americano com sotaque da planície... se não me falham os ouvidos.

Encontrara agora Bassett, a quem procurava com o olhar.

— Lá está, naquele canto, bebendo sozinho e com grande ânimo. Venham comigo. Poderão ficar com ele, para meu prazer. Depois irei salvar Dick. A esta altura a Sally já estará a contar casos apimentados.

Jacques Bassett achava-se sentado a uma mesinha, bebendo bourbon. Era alto, moreno, agressivamente atlético e as sobrancelhas espessas se juntavam sobre o nariz achatado e largo.

Falava sobre a Europa, e Vance demonstrou interesse. Surgiu o tópico das estações suíças para temporadas de inverno e Vance fez perguntas. Bassett discorreu sobre o assunto. Mostrou-se eloqüente quanto às pistas de tobogã e esqui em Oberlachen, no Tirol. Vance mencionou Amsterdam, mas o assunto não apresentava qualquer interesse para Bassett, que se afastou.

Vance voltou as costas e depois estendeu o lenço sobre o copo no qual Bassett estivera bebendo. Enfiando-o no bolso, retirou-se abruptamente da sala.

Pouco depois descobri Vance em companhia de Carrington Rexon, no gabinete do último. Havia outro homem presente, sentado diante da lareira acesa. Era criatura com pouco menos de cinqüenta anos, cabelo grisalho, fala macia que parecia encobrir tensão nervosa: tratava-se claramente de homem experiente, de modos profissionais, que eram rígidos, mas sabendo agradar o próximo. Não tive a surpresa de descobrir que se tratava do Dr. Loomis Quayne, o médico de Rexon.

— O Dr. Quayne — explicou Rexon — apareceu para ver minha filha Joan. Mas a agitação de tantos convidados a cansou, faz muito que se recolheu — disse, a voz melancólica.

(Durante nossa viagem de carro para Winewood, Vance me contara alguma coisa sobre a tragédia de Joan Rexon: como caíra e ferira a espinha, enquanto patinava, tendo apenas dez anos de idade.) — A fadiga de Joan não precisa causar-lhe preocupação, meu caro Rexon — asseverou o médico. — É natural, nas circunstâncias em que estamos. Um pouco dessa animação pode fazer bem a ela, na verdade... estimular-lhe o interesse, levá-la a pensar em coisas novas. A terapia psicológica constitui nosso maior recurso, agora... Aparecerei amanhã, outra vez. Espero que possa ver também Richard. Quase não conversei com ele, desde que voltou. Mas é ótimo vê-lo com aspecto tão bom como aquele de antes, em minha viagem ao exterior, faz dois anos.

— Dick está agora no salão — disse Rexon, com uma piscadela.

O médico sorriu.

— Não, esta noite não. Preciso ir embora. Deixei ligado o motor de meu carro, para não ter de injetar gasolina nas velas. Nestes dias de frio, o arranque não funciona muito bem... E prefiro o sossego de seu gabinete, se puder ficar sentado e terminar minha bebida.

— Acho que tem razão, doutor... Essa geração nova... — E Rexon sacudiu a cabeça, em ar de desaprovação.

Enquanto conversávamos, falando principalmente de assuntos gerais e sem importância, mas com alusões ocasionais ao futuro de Richard Rexon na medicina, tornou-se evidente que havia algo mais profundo do que a simples relação profissional entre Rexon e Quayne; uma certa intimidade, talvez devida ao conhecimento prolongado e.trágico.

Afinal o médico se levantou e despediu-se. Vance e eu, pouco depois, deixamos Carrington Rexon.

— Aí temos uma casa estranha e estonteante — observou Vance, estendendo-se na cadeira de espreguiçar de seu quarto. — Não admira que o velho Rexon esteja assustado. Provavelmente se sente perdido, em meio do desconhecido. Está mais do que decidido em ter Carlotta como nora, é exatamente o tipo de homem que anseia por um casamento dinástico para o filho. E a jovem não é deficiente, no que toca aos dotes. Muito interessante, mas viva demais para meu gosto maduro. E Richard. Camarada admirável. Sério demais para esta gente. É estranha, também, a atitude dele para com Carlotta. Não é o que devia ser, em absoluto. Pareceu de todo indiferente à intromissão do caçador de tesouros. E notei que isso irritou bastante a dama. Será que... criatura interessante, o Sydes. Tem uma esquisitice. E a explicou. Colecionador! Só isso... Mas o Bassett. Não é boa pessoa. Preocupa o velho Rexon. Carlotta também o sente. Há algo conhecido, naqueles x>lhos frios. Singular. E por que deveria mentir a respeito de Oberlachen? Não há pistas de esqui ou tobogã por lá. Apenas um lago, um castelo e alguns camponeses. Provavelmente nunca esteve naquele lugar. Conheceu Richard em Saint-Moritz. E queria conhecê-lo. Quando mencionei Amsterdam, Jacques não quis conversa. Bem, bem... Não, Van. Foi como disse. Uma gente estonteante. Aí temos a vida social, no que possui de mais ostentoso. É maquilagem mental em demasia.

Tirou seus cigarros Régies, acendeu um e estendeu as pernas.

— E por toda a noite não parei de pensar na pequenina Ella Gunthar. Criatura natural, viçosa. Encantadora. No entanto...

 

 

 

 

IV

 

O primeiro assassinato

 

 


(Quinta-feira, 16 de janeiro — 8:00 horas)

 

 

Às oito horas da manhã seguinte, bateram agitadamente à nossa porta.

— Sr. Vance! Sr. Vance! — E reconheci a voz do velho mordomo. O Sr. Rexon pede o favor de ir imediatamente ao gabinete dele.

Vance se pôs em pé com um salto.

— O que houve, Higgins?

— Eu... eu não sei.

— Certo!

Vestiu-se com rapidez e fomos para a sala de entrada. Uma mulher, envergando a libré negra de zeladora, estava debruçada sobre o corrimão da escada. Ouviu que chegávamos e se encostou na parede, olhos arregalados, o corpo rígido. Vance estacou, olhou-a com dureza. Ela era alta, de bom corpo, teria seus quarenta anos. Olhos verdes, cabelos negros, rosto enigmático. Mulher de estirpe superior, mas tensa em demasia.

— Pôde ouvir? — perguntou Vance, em tom frio.

— Temos uma tragédia! — disse ela, a voz de contralto, cheia de nervosismo.

— É artigo comum da vida. Descanse. Descemos apressadamente a escada.

— A criatura mais estranha, até agora, é a mansão — disse Vance, falando comigo. — Inibida. Ameaçadora. Sabe coisas em demasia. Lugar vulcânico, mas apenas fumegando. Ela é a tragédia. Que Deus a ajude...

Carrington Rexon estava vestindo um robe. No gabinete, em sua companhia, achava-se um homenzarrão de meia-idade, paletó de madeireiro, calças de belbutina e botas de couro. Pálido e nervoso, exibia suor nas mãos, enquanto se segurava na lareira.

— Eric Gunthar, meu administrador — disse-nos Rexon. — Acaba de descobrir o corpo de Lief Wallen em Tor Gulch, perto daqui. É evidente que caiu lá de cima da pedra. Gunthar veio comunicar e procurar ajuda. Pode ir com ele, Vance? Eu já telefonei chamando o médico... Wallen era o guarda do setor oeste da mansão, onde fica a Sala das Gemas.

— Talvez seja uma indicação. Perfeitamente. Compreendo. Irei com prazer.

— Lief deve ter escorregado — disse Gunthar, a voz espessa.

— Providencie para que alguém tome o lugar dele esta noite — ordenou Rexon. — É melhor levar dois homens para trazê-lo — aduziu.

— Darrup está lá embaixo. Vou procurar outro — disse Gunthar, e passou a mão pela testa. — Wallen estava triste de ver, senhor... Posso tomar outra coisa...?

— Você já bebeu demais — disse Vance. — Vamos indo!

Gunthar seguiu à frente, taciturno. Quando atravessávamos a estrada principal, diante da casa, surgiu uma figura estranha e desmazelada. A barba branca e hirsuta acentuava-lhe os ombros caídos. Arrastava os pés enquanto andava, mas havia energia nos movimentos. Voltou-se com rapidez para um grupo de árvores, como a querer evitar-nos. Gunthar o fez parar, com ordem peremptória.

— Venha cá, Jed. Precisamos de você.

O velho se aproximou, arrastando os pés, obediente.

— Lief caiu nas pedras em Tor Gulch — explicou Gunthar. — Vamos trazê-lo para cá.

O velho sorriu, com ar infantil. Algum motivo o levava a encarar a tragédia com divertimento.

— Talvez você tenha bebido demais, Eric. Ella disse que você bateu nela, na semana passada. Não devia fazer isso. O Gulch dá para mais de um.

Apanhamos então Guy Darrup, o carpinteiro da propriedade. Gunthar explicou o que se passava, os olhos de Darrup se toldaram. Não havia neles qualquer afabilidade. Partíamos rumo ao oeste, pela trilha, quando ele disse: — Acho que isso vai garantir seu emprego por algum tempo, Sr. Gunthar.

Este rosnou na resposta: — Vá andando. Cuide de sua vida. Talvez você gostasse de ser o administrador.

— Eu faria justiça a todos — foi a resposta, com amargura.

Tomamos uma trilha serpeante até à base dos penhascos, passamos por um grupo de árvores sobre as quais pairava o nevoeiro. Seguimos para o norte, atravessando um córrego regelado e depois tomamos a direção geral da qual tínhamos vindo.

— Você é o pai da Srta. Ella, não, Gunthar? — perguntou Vance, falando pela primeira vez.

Gunthar respondeu com um resmungo de confirmação.

— Quem é ele? — E, com um movimento da cabeça, Vance indicou o velho, que seguia em passos rápidos e arrastados, bem à frente.

Alguma decisão repentina levou Gunthar a procurar agradar.

— É o velho Jed. Foi administrador aqui, antes de mim. Está aposentado agora. Ficou maluco. Mora sozinho no Green Glen... foi ele quem deu esse nome. Não se mistura com os outros. Nós o chamamos de Eremita Verde... Coisa feia, essa com o Lief, tendo a casa cheia de convidados...

— Aquela observação de Darrup... Estava falando em um novo administrador?

— Ora, bolas! Estão sempre falando. Eu faço essa gente trabalhar, eles não gostam.

O velho Jed voltava-se abruptamente para a direita, passando por um grupo de arbustos.

— Ei — resmungou Gunthar — como é que você sabe para aonde ir?

— Acho que sei onde está Lief — disse Jed e, com uma casquinada, desapareceu atrás de uma rocha.

— Ficou maluco — repetiu Gunthar.

— Obrigado pela informação — disse Vance, e logo se ouvia um grito do velho Jed.

— Aqui está Lief, Eric.

Aproximamo-nos. Um corpo encolhido, em contorcimento pavoroso, jazia ao pé do penhasco. O rosto estava dilacerado e sujo de terra, a cabeça descoberta fora violentamente atingida. Notava-se uma poça escura de sangue coagulado.

Vance inclinou-se sobre o corpo e examinou-o detidamente, logo se erguendo.

— O médico de nada adiantará. Vamos deixá-lo aqui. Darrup ficará vigiando. Telefonarei para Winewood.

Ergueu o olhar para o flanco do penhasco e depois para as árvores por trás das torres da mansão.

Gunthar, com um gesto, afastou o velho Jed.

— Você não devia mesmo bater em Ella, Eric — admoestou o velho, com leve sorriso, ao seguir pelos penhascos em direção ao prado.

— Podemos chegar ao alto do penhasco, quando voltarmos à mansão? — perguntou Vance.

Gunthar hesitou.

— Há um atalho curto e que sobe muito, um pouco para trás. Mas é escalada perigosa...

— Nós a faremos. Toque a andar.

Quando havíamos subido com esforço o caminho escorregadio e perigoso, Gunthar indicou o local aproximado de onde Lief Wallen devia ter caído. Havia carvalhos pequenos no alto do penhasco e Vance caminhou entre eles, olhando para baixo, observando a camada fina de neve incrustada. De súbito, ajoelhou-se ao lado de um grosso tronco de árvore.

— Sangue, Gunthar — disse, apontando para uma mancha escura e irregular, a poucos centímetros do tronco.

Muntar arquejou.

— Santo Deus... cá em cima!

— Oh, pois é — E Vance levantou-se. — Não. Não foi acidente. Uma pena que o vento de ontem à noite apagasse as pegadas. Ainda assim... Vamos embora. Temos o que fazer.

Gunthar estacou de modo abrupto.

— O velho Jed sabia onde estava o corpo!

— O que foi ótimo — retrucou Vance, apressando-se na descida em direção à mansão.


V

 

A maldição das esmeraldas

 

 


(Quinta-feira, 16 de janeiro — 9:30 horas)

 

 

 

Carrington Rexon estava tomando café no gabinete, quando voltamos.

— É caso para a polícia — anunciou Vance, e logo explicou: — Telefonarei para Winewood.

Foi ao telefone e manteve ali uma conversa rápida. Rexon tocou a campainha e Higgins entrou.

— Oh! Ah! — e Vance sentou-se. — Muito obrigado. Basta o café, Higgins.

Acendeu então um cigarro, com gestos comedidos e incomuns, estendeu as pernas, sentado na cadeira.

Rexon se mantinha em silêncio, em calma fria, examinava Vance, olhando-o sobre a taça de café.

— Sinto muito que sua estada seja perturbada assim — murmurou. — Eu contava que minhas preocupações não tivessem fundamento.

— Nunca se sabe, não é verdade, amigo velho? Fazemos o que é possível.

O tenente O’Leary, da polícia de Winewood, homem alto, astuto e competente, muito superior ao delegado comum que se encontra no interior, chegou simultaneamente com o Dr. Quayne.

— Sinto muito, doutor. Não temos necessidade do senhor — disse Vance, narrando então os detalhes. — Há horas que o camarada morreu, ao que calculo. É um problema para o tenente.

— Dr. Quayne é o nosso legista — explicou O’Leary.

— Ah! — exclamou Vance, jogando o cigarro na lareira. — Isso facilita as coisas. Vamos imediatamente. Darrup ficou vigiando o corpo. Ordenei que o deixassem lá, onde Gunthar o encontrou. Desculpe minha intrusão, tenente. É apenas no interesse do Sr. Rexon.

— Muito bem, senhor — retorquiu O’Leary. — Vamos ver como está a terra.

— Muito preta, a despeito da neve.

Dez minutos depois o Dr. Quayne examinava o corpo de Lief Wallen.

— Foi uma queda e tanto — observou. — O impacto causou grandes estragos. Está morto faz oito horas. Pobre Wallen. Camarada honesto e consciencioso.

— Essa depressão linear e a laceração acima da orelha direita — comentou Vance.

Quayne inclinou-se novamente sobre o corpo, por diversos momentos.

— Percebo o que quer dizer — disse e olhou para Vance, de modo significativo. — Saberei melhor depois da autópsia.

Ergueu-se então, de cara fechada.

— É tudo por enquanto, tenente — aduziu. — Vou embora... tenho diversos chamados a atender.

— Obrigado, doutor — disse O’Leary, com cortesia. — Cuidarei da rotina.

Quayne fez uma mesura e retirou-se.

O’Leary olhou para Vance, com expressão arguta.

— O que acha daquela depressão e laceração, senhor?

— Venha comigo um instante, tenente.

Vance seguiu então até o alto do penhasco, onde mostrou ao outro a mancha escura no tronco do pequeno carvalho.

O’Leary examinou-a, assentindo com meneios de cabeça. Em seguida, encarou Vance com firmeza.

— Qual é a sua teoria, senhor?

— Preciso dizer? Não passa de uma idéia vaga, tenente. Altamente ilusória. Esse amassado na cabeça de Wallen pode ter sido causado por um instrumento. Não se coaduna com um tombo e rolamento. O pobre coitado pode ter sido atingido em outra parte, trazido até aqui em cima do penhasco e jogado para encobrir o ferimento. Há leves indicações aqui na neve, a despeito do vento que soprou ontem à noite. Mas não passa de um palpite o que estou dizendo. Poderia ter havido três pessoas aqui, ontem à noite, todavia. As marcas não ficaram muito claras. Não. Falta a prova... Minha teoria? Wallen foi atingido perto da mansão. Atingido acima da orelha, com instrumento modelado... digamos... como a extremidade arredondada de uma chave de boca. Teve o crânio fraturado, foi depois arrastado para cá. São as linhas quase apagadas que sobem a encosta. Talvez calcanhares. O corpo foi lançado daqui, de modo que o outro pudesse segurar-se a esta árvore, enquanto empurrava Wallen. Ocorreu hemorragia do nariz e das orelhas, daí o sangue que vemos.

— A mim isso não agrada, senhor — disse O’Leary, fazendo carranca.

— A mim também não. Mas respondi à sua pergunta. O’Leary examinou a mancha reveladora e voltou-se para Vance.

— Pode ajudar-nos, senhor? Eu ficaria lisonjeado. Não vou fingir que não o conheço.

— Deixando de lado o cumprimento, eu gostaria de ajudá-lo t— disse Vance, tirando um cigarro do maço. — Meu único interesse é o Sr. Rexon, como já disse.

— Compreendo. Meus agradecimentos. Vou pôr a máquina em funcionamento. — E O’Leary se afastou, com passos rápidos.

Quando voltamos à mansão o sol banhava a varanda espaçosa cercada de vidraças, estendendo-se por todo o lado do nascente da casa. Ao pé de um terraço estreito, partindo da varanda, via-se um rinque de patinação controlado artificialmente, três lados orlados por árvores esguias e jardins cultivados. Logo por baixo, ao sul, via-se um pavilhão agradável.

Joan Rexon se reclinava na varanda, em cadeira de rodas acolchoada, no formato de uma chaise longue; e a seu lado, em pequena cadeira de vime, estava Ella Gunthar. Vance foi ter com ambas, exibindo um sorriso de cumprimento. Joan Rexon era criatura frágil e melancólica, mas dava pouca impressão de invalidez. Apenas as veias azuladas em suas mãos finas indicavam a doença prolongada que lhe minara o vigor desde a infância.

— Não é terrível, Sr. Vance! — disse Ella Gunthar, em voz trêmula. Ele a fitou por momentos, com expressão indagadora. — Meu pai acabou de falar-nos do pobre Lief Wallen. O senhor já sabe, não é?

Vance assentiu.

— Sei, mas não devemos deixar que isso crie uma sombra sobre nós — afirmou a Srta. Rexon. — Lief era tão bondoso, tão cheio de consideração...

— Ainda mais um motivo para não pensar nessas coisas — declarou Vance.

Ella Gunthar concordou, o semblante sério.

— A luz do sol e a neve... existem coisas felizes no mundo, em que podemos pensar.

Colocou então a mão sobre a de Joan, com ternura, mas a recordação da tragédia continuava.

— O pobre Lief deve ter caído quando voltava para casa, hoje de manhã.

Vance fitou-a, com ar de meditação.

— Não. Não foi hoje de manhã — afirmou. — Foi ontem à noite... por volta de meia-noite.

Ella agarrou-se à cadeira, uma expressão de susto veio a seu olhar.

— Meia-noite — murmurou. — Que horrível!

— Por que diz isso, Srta. Ella? — perguntou Vance, a quem intrigavam os modos da pequena.

— Eu... eu... à meia-noite... — e a voz lhe faltou.

Vance tratou de desviar imediatamente o rumo da conversa, mas não conseguiu fazer modificar o estado de espírito da pequena. Afinal, pediu licença e entrou na casa. Mal havia chegado ao pé da escadaria principal quando uma mão se colocou em seu braço. Ella Gunthar o acompanhara.

— Tem a certeza de que foi... meia-noite? — perguntou, o cochicho cheio de súplica e nervosismo.

— Por volta disso — afirmou Vance, falando em tom leve. — Mas por que está tão agitada, minha cara?

Os lábios de Ella tremiam.

— Eu vi o tenente O’Leary entrar com o senhor e ir ao gabinete do Sr. Rexon. Diga-me, Sr. Vance, por que ele veio?

Há alguma coisa... errada? Teremos todos de ir a Winewood... para responder perguntas, talvez?

Vance teve um sorriso destinado a reconfortá-la.

— Por favor, não vá encher sua linda cabecinha de preocupações. Haverá uma investigação, é claro... é o que determina a lei. Simples questão de formalidade. Mas eles, por certo, não pedirão que você vá.

Ella arregalou bastante os olhos.

— Uma investigação? — repetiu, falando baixinho. — Mas eu quero ir. Quero ouvir... tudo.

Vance se punha perplexo.

— Não está sendo tola, menina? Volte correndo, leia para Joan, esqueça-se por completo de...

— Mas o senhor não compreende. — E ela prendeu a respiração. — Eu tenho de ir à investigação. Talvez... — E ela se voltou de repente e seguiu correndo para a varanda.

— Céus! — murmurou Vance. — O que pode haver na mente dessa menina?

No patamar superior, quando nos voltamos rumo aos quartos, estava a zeladora, saída inesperadamente de pequeno corredor. Ela se empertigou, cheia de ares misteriosos.

— Ele morreu, não é? — indagava, em tom de voz sepulcral. — E talvez não tenha sido acidente.

— Como é possível saber? — retorquiu Vance, mostrando-se evasivo.

— As coisas normais não acontecem aqui — prosseguiu ela, cheia de nervosismo. — Aquelas esmeraldas puseram uma maldição nesta casa...

— Já vi que andou lendo novelas.

Ela não deu atenção às palavras de Vance.

— Aquelas pedras verdes... criam uma atmosfera. Elas atraem, irradiam tentação. Irradiam fogo.

Vance sorriu.

— O que acha de anormal por aqui?

— Tudo. A minha querida Joan é inválida. O velho Jed, um místico fanatizado. A Srta. Naesmith traz pessoas estranhas para cá. Há intriga e ciúmes profundos por toda a parte. O Sr. Rexon quer escolher a esposa para o filho.

Ela sorriu, de modo inescrutável, prosseguindo: — Ele não sabe que está fazendo castelos na areia. Tudo começou há anos.

— Já vi que ouve muita coisa, não? — contrapôs Vance com ironia.

— E vejo muita coisa, também. A dinastia Rexon está em derrocada. O jovem Sr. Richard finge muito, mas na primeira noite em que voltou da Europa havia uma pequena esperando por ele, no salão de trás, por trás das escadas. Ele a tomou nos braços, sem dizer uma palavra, e assim ficaram por muito tempo, bem juntinhos.

Ela se aproximou, baixou a voz e explicou: — Era Ella Gunthar!

— Ora, veja. — E Vance deu uma risada de indiferença. — Amor de jovens. Tem alguma objeção a apresentar?

A mulher se voltou, cheia de raiva, e se afastou pela sala.

 

 

 

 

VI

 

Uma mulher venenosa

 

 


(Quinta-feira, 16 de janeiro — 16:30 horas)

 

 

Vance retirou-se da mansão uma hora depois, exatamente quando a sereia de meio-dia emitia seu gemido, os morros em volta recolhendo a nota musical e reverberando o eco por mais tempo do que o toque inicial. Carrington Rexon guardava desde muito seu prazer infantil, conservando aquele sinal antiquado para os trabalhadores. Reconhecia que de nada valia, mas divertia-se em continuar a usá-lo.

O crepúsculo prematuro de inverno já se iniciara quando Vance regressou.

— Andei espiando e conversando por aí — disse a Carrington Rexon, instalando-se comodamente diante do fogo aceso na lareira. — Atividade de que muito necessitava. Espero que não se importe.

O riso de Rexon não denotava alegria alguma.

— Só espero que não tenha perdido seu tempo.

— Não. Não perdi. Vou ser franco. Sei que é o seu desejo.

Rexon assentiu rigidamente.

— As coisas não andam muito bem — resumiu Vance. — Mesquinhez e maldade em funcionamento. E ciúmes! Nada de modo aberto, apenas pelos subterrâneos. Mas podiam eclodir. Gunthar tem sido duro com os trabalhadores. Isso de nada vale... Ouvi dizer que tem planejado substituí-lo como administrador. Falou-se em Wallen. Há algum fundamento nisso?

— Francamente, sim. Mas eu não tinha pressa alguma.

— Lief Wallen queria casar-se com Ella. Tanto o pai quanto a filha protestaram. Atrito... cenas. Nada de bom. Muito amargor. Fonte de rancor geral dos trabalhadores na propriedade para com a Srta. Ella. Pensam que a moça se considera superior aos demais, por ser a companheira da Srta. Joan. Somente o velho Jed a defende. Eles dizem que o velho sofre de ilusões e tem uma fraqueza pela cor verde. A implicação é de que a presença das esmeraldas o afetou. Todos jogam lenha na fogueira e esperam pelo incêndio.

Rexon deu uma risadinha.

— E talvez você pense, Vance, que eu também estou afetado.

Vance teve um gesto de protesto.

— Por falar nisso, a sua chave é a única para a Sala das Gemas, não?

— Santo Deus, é claro! Chave especial, fechadura especial também. E a porta de aço.

— Esteve por lá hoje?

— Oh, sim. Encontrei tudo em ordem. Vance mudou de assunto.

— Fale-me sobre sua zeladora.

— Mareia Bruce? Criatura firme como pedra.

— Sim, acredito. Honesta, porém histérica. Rexon deu nova risadinha.

— Você tem observado muito... Mas ela adora Joan... cuida dela como mãe, quando Ella Gunthar não está trabalhando. Na essência, Bruce é uma ótima mulher. Quayne concorda com meu ponto de vista. Há um sentimento de camaradagem em marcha entre esses dois. Ela foi superintendente de enfermeiras em hospital, há tempo. Também o Quayne é homem de valor. Folgo em ver que essa amizade se desenvolve e evolui.

— Ah! — E Vance sorria. — Percebo que o Sr. Rexon é sentimental.

— O coração humano deseja a felicidade dos outros, tanto quanto para si próprio.

Já Rexon se pusera sério e perguntava: — E de que mais ficou sabendo, Vance? De alguma coisa relacionada com a morte de Lief Wallen?

Em resposta, Vance sacudiu a cabeça.

— A solução talvez apareça por meio de algo que não tem importância. Mais tarde. Apenas comecei.

Saiu então para o salão.

Bassett achava-se sentado à mesa perto da porta da varanda, onde o tínhamos encontrado pela primeira vez. Acabara de erguer a mão, tomando o braço de Ella Gunthar, que por ali passava. Sorria para ela, de modo desagradável. Ela se afastou. Bassett soltou-a.

— Altiva, não é?

Seu olhar a acompanhou, com expressão sardônica, enquanto Ella regressava à companhia da Srta. Joan. Vance se aproximou.

— Nada de esquiação hoje, Sr. Bassett? Pensei que toda a turma ia para as pistas de Winewood.

— Dormi demais e não peguei o pessoal... Coisinha bonita e loura, essa Ella Gunthar.

Seu olhar voltou para a varanda.

— Coisinha atraente demais, para uma criada.

Vance estreitou os olhos, duros como o aço, chamou a si a atenção de Bassett.

— Todos nós somos criados. Alguns, de nossos semelhantes. Outros, de nossos vícios. Pense no que estou dizendo — declarou e retirou-se para a varanda.

Naquele instante, o tenente O’Leary subia a escada da entrada lateral.

— O Dr. Quayne está fazendo a autópsia — anunciou.

— Investigação amanhã, ao meio-dia. Terá de comparecer, ao que receio, senhor. Virei buscá-lo.

— Alguma complicação? — indagou Vance.

— Não. Toquei tudo de manso. John Brander, nosso juiz, é um homem. Gosta de Rexon, e eu expliquei a situação. Não fará perguntas embaraçosas.

— Veredicto de acidente, talvez?

— Espero que sim, senhor. Brander compreende. Isso nos dará tempo.

— É um prazer trabalhar em sua companhia, tenente.

O’Leary entrou para falar com Rexon e Vance foi ao local onde Joan e Ella estavam sentadas.

Um grupo ruidoso de convidados, voltando da esquiação, vinha com estrondo pelo terraço, passou por nós com cumprimentos animados e prosseguiu subindo as escadas. Carlotta Naesmith e Stanley Sydes ficaram na varanda, juntando-se a nós.

Ella Gunthar olhava em volta, aflita.

— De nada adianta, Ella — disse-lhe a Srta. Naesmith, com ironia. — Dick ficou doido pela Sally Alexander.

— Não acredito!

A boca da Srta. Naesmith contorceu-se em sorriso cruel.

— Ficou sentida, Ella?

— Carlotta! Não seja venenosa! — E não se notava qualquer alegria na repreensão passada por Sydes.

— Como se sente hoje, Joan? — perguntou a Srta. Naesmith, mudando de tom quando a jovem lhe dedicou um sorriso terno. — E o senhor também, Sr. Vance? Por que não foi ter com o pessoal da esquiação? Aquilo transcorreu magnificamente. Havia pelo menos vinte e cinco centímetros de neve macia, sobre uma base espessa.

— Não acha que já tenho neve suficiente, nestes meus cabelos?

— E ficam muito bem, Sir Galahad!

Dito isso, ela se voltou e afagou a têmpora de Sydes, comentando: — Será que o Stan ficará simpático, quando se tornar grisalho?

— Prometo a você, minha deusa, — declarou Sydes — que me tornarei indizivelmente fascinante.

Dito isso, inclinou-se sobre ela e aduziu: — E agora, pela última vez...

— Eu sempre enjôo no mar. Vou procurar meu tesouro mais perto de casa.

— Talvez eu também procure, se você desdenhar meu convite — rebateu ele, agressivo e rabugento.

— O que acha que quer este homem selvagem, Joan? — perguntou a Srta. Naesmith, provocante. — Insiste em que vá de barco com ele à ilha dos Cocos e mergulhe, procurando o tesouro do Mary Dear na baía Wafer.

— Oh, isso seria maravilhoso! — exclamou a jovem, com anseio comovente.

— Minha menina querida — disse a outra jovem, em tom mais brando.

Subiu então, acompanhada por Sydes. Pouco depois Mareia Bruce saía.

— Pode ir para casa, Ella. Eu tomo conta de nossa querida.

Vance levantou-se.

— E eu levarei a Srta. Ella at£ à casa dela.

Eu sabia que Vance sentia grande compaixão pela pequena, que não fazia parte da vida alegre e animada transcorrida ao redor. E sabia do motivo pelo qual desejava caminhar em sua companhia, até à casa do pai. Ia esforçar-se por diverti-la e animá-la, de modo que o aguilhão nas palavras da Srta. Naesmith pudesse ser esquecido.

 

 

 

 

VII

 

A investigação

 

 


(Sexta-feira, 17 de janeiro — 12:00 horas)

 

 

A investigação aberta pelo magistrado fez aumentar a tensão. Ella Gunthar falara a Vance, cheia de sentimento de urgência, assim que chegara à mansão, de manhã. Tinha pleno conhecimento da hora e local da investigação e estava decidida a achar-se presente. Vance procurou dissuadi-la, mas, afinal, desistiu do esforço. Compreendeu que havia motivo mais forte do que a simples curiosidade e providenciou para que ela fosse levada conosco, no automóvel de O’Leary.

Na curva da estrada, onde a mesma se juntava à rodovia principal, O’Leary apertou a buzina e o som da mesma encontrou eco prolongado na sereia arcaica, tocada ao meio-dia, que reverberava por toda a propriedade e, de modo fantasmagórico, acompanhava-nos como um vingador mecânico, enquanto seguíamos viagem. O tenente tratou de oferecer explicações à preocupação de Vance, embora esse não a houvesse manifestado verbalmente.

— Não levaremos mais de dez minutos para chegar lá. Brander esperará por nós.

O pequeno gabinete no edifício público de Winewood estava cheio de residentes da aldeia e trabalhadores da propriedade de Rexon, mas não se notava a presença de qualquer convidado da mansão.

A um extremo do aposento, sobre plataforma baixa, via-se mesa comprida à qual presidia um homem atarracado, de rosto vermelho e olhos a piscar.

— Aquele é John Brander — cochichou O’Leary. — Homem razoável. Advogado imobiliário desta localidade.

À esquerda da mesa, separado por corrimão, encontrava-se o corpo de jurados, homens simples e sinceros, o tipo comum que se contava encontrar em cidade do interior. Um delegado, com ar de deslocada importância, apresentava-se em pé, ao lado do banco das testemunhas.

Eric Gunthar foi chamado em primeiro lugar. Explicou sucintamente como encontrara o corpo de Lief Wallen, quando ia trabalhar, e regressara ao Gulch em companhia do velho Jed, Darrup e Vance. Sob interrogatório bem conduzido, a escalada que fizera ao cume, em companhia de Vance, ficou elucidada; mas quando Gunthar se mostrou volúvel demais com relação à mancha de sangue, foi dispensado um tanto abruptamente e chamado Darrup. Este parecia amedrontado e pouco tinha a aduzir ao testemunho prestado por Gunthar. O velho Jed revelou-se figura um tanto comovente, no banco de testemunhas, e Brander não perdeu tempo com ele. «, Vance foi chamado em seguida. As perguntas de Brander resultaram, em grande parte, em repetições dos depoimentos já prestados; e a despeito da tentativa evidente do juiz, no sentido de "usar cautela, a mancha de sangue no pequeno carvalho do penhasco foi examinada em muitos detalhes. Brander hão parecia atribuir qualquer importância especial à mesma e saiu-se com uma sugestão sutil de que o sangue talvez não fosse humano. Eu próprio percebia uma efêmera visão mental de algum rapaz ou caçador a atirar em algum coelho correndo sobre a neve.

— Havia pegadas perto do local? — perguntou Brander.

— Não. Pegada nenhuma — respondeu Vance. — No entanto, notavam-se marcas vagas na neve.

— Alguma coisa definida?

— Não. — E Vance teve licença de retirar-se do banco. O Dr. Quayne foi então trazido a depor. Seu ar digno

e modos educados causaram boa impressão. Os jurados ouviam, denotando respeito evidente. O testemunho prestado pelo médico foi perfunctório e técnico. Narrou o estado do corpo, quando o encontrara pela primeira vez; calculou a hora da morte e apresentou com rapidez os achados da autópsia. Acentuou, todavia, a existência de um ferimento singular no crânio, sob a orelha direita de Wallen.

— Pois bem, esse ferimento no crânio, doutor — interveio o juiz. — O que notou de singular nele?

— Tinha contorno um tanto acentuado e comprimido, correndo da orelha direita cerca de dez centímetros na direção da têmpora... não é exatamente o que se podia esperar, até mesmo em choque violento com superfície lisa.

— Havia neve onde Wallen caiu?

— Cerca de três centímetros, pelos meus cálculos.

— Examinou o terreno por baixo da neve, procurando uma possível projeção?

— Não. Teria sido visível, se existisse.

— Mas existem rochas com pontas para fora, no penhasco, entre a parte de cima e o chão, não é mesmo?

— Pequenas, sim.

— Não é possível, portanto, que a cabeça de Wallen batesse em uma dessas rochas, enquanto caía?

O Dr. Quayne apertou os lábios, exprimindo grande dúvida.

— Ainda assim — persistiu Brander — não podia o senhor dizer de modo definido... poderia, doutor... que esse ferimento era de todo incompatível com a queda?

— Não. Não o posso afirmar de modo definido. Limito-me a dizer que o ferimento parecia singular, nas circunstâncias em que o encontramos; não era coisa de ser esperada.

— Ainda assim — e Brander inclinou-se à frente, com ar acentuado de cortesia —, vai desculpar-me, doutor, se insistir na questão. Tal ferimento teria sido possível em uma queda acidental do penhasco?

— Sim — respondeu o Dr. Quayne, denotando irritação —, teria sido possível.

— É tudo, doutor. Obrigado pela clareza de seu depoimento e ajuda que prestou.

O’Leary foi chamado em seguida. Seu depoimento, breve e impessoal, serviu apenas para corroborar o das testemunhas anteriores. Ao descer do banco, seguiu-se um interlúdio inesperado e dramático. Guy Darrup se pôs em pé, com um salto.

— Não está fazendo justiça a Lief Wallen, Dr. Juiz! — gritou, cheio de indignação. — Não está perguntando no sentido de achar a verdade. Eu podia contar...

Brander bateu na mesa com o martelo.

— Se tem provas a dar — disse, com azedume — deveria tê-lo feito quando estava depondo.

— Mas o senhor não me fez as perguntas certas, não foi, Sr. Juiz? Sei muita coisa sobre o coitado do Lief.

— Faça-o prestar novamente o juramento, delegado.

— Nada de bom para nós — cochichou Vance a O’Leary.

— Brander não pode fazer outra coisa — explicou O’Leary, que também estava apreensivo.

Darrup fez o segundo juramento.

— Agora, apresente-nos suas provas, Darrup — solicitou Brander, cujo tom mordente de voz de nada valeu.

— Talvez o senhor não saiba, Dr. Juiz, das coisas esquisitas e erradas que se passam lá na casa do patrão.

Darrup falava como se fosse um fanático.

— O Sr. Gunthar está sempre provocando os outros. E ele bebe demais, não agrada o patrão. Já foi avisado, foi mesmo. E era o Lief Wallen quem ia tomar o lugar dele... assim como ele tomou o lugar do velho Jed. E Lief queria casar com aquela filha bonita dele... aquela que cuida da Srta. Joan.

Ella Gunthar recuou, enquanto o depoente apontava em sua direção e prosseguia: — Lief tinha direito. Ia ser um bom marido para ela. Mas o Sr. Gunthar não queria. Acho que ele tem outras idéias — afirmou Darrup, contorcendo os lábios em sorriso cheio de astúcia. — E a pequena também não queria. Ela pensa que é melhor do que nós. E tem havido muitas coisas erradas em tudo... Lief não era rapaz de desistir à toa...

Darrup arquejou audivelmente e prosseguiu:

— Mas não é tudo, Dr. Juiz... não é mesmo tudo. Nada tem andado certo lá na casa do patrão. Há coisas engraçadas acontecendo. Coisas sérias e feias... coisas que a gente não aprende na Bíblia. O que a pequena vai fazer no Green Glen de noite é o que eu queria saber. Eu a vi indo de mansinho para a cabana do velho Jed. Tem gente tramando coisa por aí. Todo mundo está mentindo. Todo mundo está com ódio. E o velho Jed é esquisito. Não fala com ninguém. Mas anda tramando alguma coisa, sempre olhando lá em cima das árvores, botando os dedos na água do córrego, como se fosse um garoto. E depois, logo quando Lief ia tomar o lugar do Sr. Gunthar, cai lá da pedra. Lief sabia andar por ali, sabia andar tão bem que não ia cair desse jeito. E mais, o que ele foi fazer lá em cima, de noite, quando devia estar tomando conta da mansão?

A paciência de Brander se esgotava, ele bateu com força na mesa com o martelo.

— Você veio aqui para dar vazão a seus ódios, homem? Isso não é prova, isso é conversa de mulher velha.

— Não é prova! — berrou Darrup. — Se não é, pergunte à pequena do Sr. Gunthar por que estava descendo o morro do penhasco em carreira, à meia-noite, quando Lief caiu de lá!

— O que disse?

— O senhor bem que me ouviu, Sr. Brander. Eu estava trabalhando até tarde no pavilhão, consertando as coisas para a festa do patrão. E lá veio ela, descendo o morro em carreira, e entrou pelo pavilhão. E estava chorando, também.

Olhei para Ella Gunthar. Tinha o rosto lívido, os lábios tremiam. Houve agitação no aposento, Brander hesitou, pareceu pouco à vontade. Folheou alguns documentos que tinha à frente e logo dedicava um olhar raivoso a Darrup.

— Suas declarações não vêm ao caso — afirmou e fez uma pausa. — A menos, talvez, — e surgira um tom jocoso em sua voz — que esteja acusando uma simples menina de jogar um camarada grande como o Wallen lá do penhasco. É o que quer dizer?

— Não, Sr. Brander. — E Darrup voltara a seu ar taciturno. — Não havia de ser ela. Só estou dizendo...

Mais uma vez o martelo se fez ouvir.

— Basta! Essa investigação não se destina a prejudicar a reputação de uma jovem. Pretendemos apenas determinar por quais meios Wallen morreu e, se foi por meio criminoso, em mãos de quem. O que afirma, portanto, de nada vale a esta investigação. Saia daí, Darrup.

Darrup obedeceu, e Brander voltou-se com rapidez para O’Leary.

— Algum outro depoimento, tenente?

O’Leary, em resposta, sacudiu a cabeça.

— É tudo, então — disse Brander, falando rapidamente para o corpo de jurados; e esses se retiraram. Em menos de uma hora, declarou-se o veredicto: — Achamos que Lief Wallen morreu em queda acidental, sob circunstâncias suspeitas.

Brander ficara sobressaltado, abriu a boca, estava a ponto de falar, mas nada disse. A investigação terminara.

— Aí temos um veredicto! — zombou O’Leary, falando com Vance, quando voltávamos à mansão. — Não fez sentido algum. Mas Brander trabalhou o melhor que pôde.

— Sim... oh, sim. Não foi coisa rigorosamente legal. Poderia ter sido pior. Entretanto...

Ella Gunthar estava sentada no canto do banco de trás, a meu lado, tendo um lenço na boca, olhando sem ver, fitando a paisagem calma de inverno.

Vance tomou-lhe a mão com gentileza, quando chegamos.

— Darrup contou a verdade, minha cara? — perguntou.

— Não sei do que está falando...

— Que você vinha descendo em carreira, aquela noite?

— Eu... Não. Claro que não.

Ela ergueu o queixo, em ar de desafio, explicando: — Eu me achava em casa, à meia-noite. Não ouvi coisa alguma...

— Por que está com lorotas? — indagou Vance, cheio de severidade. Ela apertou os lábios e não disse coisa alguma. Vance prosseguiu, com ternura: — Talvez eu saiba. Você é uma menina corajosa. Mas muito tola. Nada a vai prejudicar. Quero que confie em mim.

Ato contínuo, estendeu-lhe a mão. Ela o fitou por momentos, tentando compreendê-lo, e logo um sorriso débil surgia em seus lábios. Em seguida, colocou a mão na dele, confiantemente.

— Agora, vá ter com Joan... e não tire esse sorriso do rosto.


VIII

 

Planos secretos

 

 

(Sexta-feira, 17 de janeiro — ao anoitecer)

 

 

Ao anoitecer, pouco após o jantar, eu me encontrava com Vance na varanda, olhando as sombras no rinque de patinação. Ecos de música e alegria vinham àquele canto afastado do salão principal. Vance parecia sério e contemplativo, fumava um Régie em silêncio, com a expressão de quem estava muito distante dali.

Não tardou, todavia, para que ouvíssemos o som de passadas a se aproximar por trás de nós, e Vance se voltou para receber Carlotta Naesmith.

— Meditando sobre seus pecados, Sir Galahad? — perguntou a jovem, enquanto se aproximava. — Mas isso de nada ajuda. Eu já tentei... Vim procurá-lo para fazer uma pergunta das mais importantes... vamos ver: sabe patinar bem?

— A esta altura de minha vida! — contrapôs Vance, fingindo abatimento. — Mas sua pergunta é lisonjeira, fico devidamente reconhecido.

— Eu bem contava que você soubesse patinar. Precisamos muito de um mestre-de-cerimônias — disse ela, provocando-o em tom brincalhão. — Assim sendo, está eleito para o cargo.

— Parece interessante. Mas gostaria de receber instruções que expliquem a coisa.

— O negócio é o seguinte — e ela continuou. — Todos os residentes deste jardim zoológico, com exceção dos decrépitos, vão dar uma festa ao Richard, na noite de amanhã. Será uma espécie de comemoração de despedida. Vai efetuar-se no rinque, lá fora... Eu sou a anfitrioa temporária, como sabe. E, de alguém tão brilhante quanto eu, espera-se a originalidade. Daí os patins... sendo a melhor idéia que pude imaginar.

— Parece divertido — observou Vance. — E quais são meus deveres?

— Oh, simplesmente o de manter as coisas em andamento. Seja oficioso... dá para sê-lo. Anuncie os animais. Tenho a certeza de que já percebeu: todos os números artísticos de animais têm um apresentador.

— E devo trazer medicação de primeiro socorro?

— Está-nos ofendendo, senhor — contrapôs ela, cheia de indignação. — Todos nós patinamos muitíssimo bem. Fui informada de que o bar será temporariamente fechado a sete chaves.

— Isso seria bom, com certeza — disse Vance, sorrindo.

— Estamos fazendo planejamento sério — prosseguiu ela. — Vamos até mesmo praticar no rinque de baixo, amanhã. E iremos a Winewood de manhã, procurando as roupas convenientes. Parece um pouco horrível, não acha?

— Oh, não — protestou Vance. — Parece muito alegre. É como afirmei antes. — E olhou para a jovem, com expressão indagadora. — Diga-me uma coisa, Srta. Naesmith, por que tentou magoar Ella Gunthar ontem?

Transformou-se a atitude da jovem, seus olhos se estreitaram. Ela deu de ombros, sem se comprometer.

— Não preciso olhar muito para ver que ela e o Dick se atraem mutuamente. Sempre foi assim, desde crianças.

— E Sally Alexander?

A jovem sorriu, mas sem divertimento algum.

— Dick não falou com ela por todo o dia. Mas deixemos que Ella se preocupe com o fato.

— E eu não preciso olhar muito — disse Vance, sem deixar de observá-la — para ver que a senhorita não estiolará, se o Richard for levado por outra.

Ela pensou por momentos, e a seguir contrapôs: — Dick é um bom garoto. A idéia é do Papai Rexon, como sabe. E quem sou eu para desfazer-lhe o sonho mais caro?

— Vale a pena ficarmos amargurados? — indagou Vance, tirando os cigarros do bolso. A Srta. Naesmith aceitou um deles e Vance acendeu o outro.

— Oh, isso acontece nos melhores círculos — disse a jovem, em tom jocoso. — E, seja lá como for, não cabe ao homem afastar-se. Essa é a minha prerrogativa.

— Compreendo. Uma simples questão de etiqueta a corrigir. Muito bem, muito bem.

A jovem jogou um beijo para Vance e voltou ao salão, onde predominavam os ruídos.

— É como pensei — murmurou ele, como a falar sozinho. — Nenhum dos dois o deseja. Richard torna bem claro esse fato. Daí o melindre. Transparece numa exibição de crueldade. Antiga seqüência feminina. Mesmo assim, no íntimo, é uma boa garota. Tudo andará por si mesmo. Pobre papai. Sim, a dinastia Rexon está em derrocada. É como Mareia Bruce predisse.

Olhou então para o rinque ensombrecido, inalando profundamente seu Régie.

— Ora vamos, é uma idéia que acalento.

Falava de modo descabido, ao voltar-se repentinamente e entrar.

Encontramos Joan Rexon em sua sala particular, sentada em um divã perto da janela; Mareia Bruce lia para ela.

— Por que não está no salão, minha jovem? — perguntou Vance, em tom agradável.

— Esta noite eu descanso — respondeu a moça. — Carlotta me contou que vai haver uma grande festa para Dick, amanhã, e quero sentir-me bem, para não perder um só instante.

Vance sentou-se.

— Ficaria cansada demais, se eu lhe falasse por alguns minutos?

— Ora, não. Gostaria muito. Vance voltou-se para a Srta. Bruce.

— Importa se eu ficar sozinho com a Srta. Joan?

A zeladora se ergueu, cheia de dignidade magoada, foi para a porta.

— Mais mistério — disse, a voz cava, os olhos verdes fuzilando.

— Oh, é verdade — confirmou Vance, com uma risada. — Uma trama das mais sombrias, na verdade. Mas posso completar minhas maquinações infernais em questão de dez minutos. Volte depois disso, está certo? Como é boazinha!

A mulher retirou-se, sem dizer uma só palavra.

— Quero falar um pouco sobre Ella — anunciou Vance, puxando a cadeira e pondo-se ao lado de Joan Rexon, que se achava reclinada.

— Minha querida Ella — disse a jovem com doçura.

— É mesmo uma querida, não acha?... Fiquei pensando, desde que cheguei, no motivo pelo qual eu não a vejo no rinque de patinação. Ela não sabe patinar?

Joan Rexon exibiu um sorriso triste.

— Oh, ela adorava patinar. Mas acho que perdeu o interesse... desde que eu caí.

— Mas sei que você adora ver os outros patinando, sentindo-se feliz.

Ela assentiu, concordando.

— É verdade! Nunca me esqueço do divertimento que isso me causava. Foi por isso que papai manteve os rinques e o pavilhão. Para eu ficar sentada na varanda, vendo os outros. Ele, muitas vezes, traz patinadores famosos aqui,, só para se apresentarem a mim.

— Ele faria qualquer coisa que a tornasse feliz — disse Vance.

Joan voltou a assentir, de modo enfático.

— E a Ella, também... Sabe, Sr. Vance, na verdade sou uma moça com muita sorte. E passo momentos formidáveis, só em ver os outros fazerem aquilo que eu adoraria fazer também.

— Por isso pensei que a Srta. Ella poderia cuidar da patinação para você, por assim dizer.

A jovem voltou a cabeça vagarosamente na direção da janela.

— Talvez seja por minha culpa, Sr. Vance. Muitas vezes pensei nisso.

— Conte-me, a mim — pediu Vance, falando baixinho.


— Bem, o caso é que quando eu era menina, logo depois do acidente, ela foi para o rinque e patinou... era uma grande patinadora. Eu vi, e era muito egoísta na ocasião. Bastou vê-la patinando para eu ficar magoada. Não compreendo muito bem. Eu era uma criança, só um criança...

— Compreendo, minha cara.

— E quando Ella voltou à varanda, eu estava chorando... Depois disso, por diversos anos, só a vi por intervalos. Ela esteve na escola, como sabe. E nunca mais voltamos a falar sobre a patinação.

Vance tomou-lhe a mão com suavidade.

— Provavelmente ela andou ocupada demais com outras coisas, não pôde patinar. Ou talvez tenha perdido o interesse, porque você não lhe podia fazer companhia. Não tem de sentir-se culpada... Mas já não a magoaria mais, não é verdade?

— Oh, não — e Joan obrigou-se a sorrir. — Eu bem queria que ela voltasse a patinar. Foi uma grande bobagem de minha parte.

— Todos nós fazemos bobagens, quando somos jovens — asseverou Vance, dando uma risada.

A jovem assentiu com ar sério.

— Eu não faço bobagens... desse jeito... não faço mais. Agora, quando vejo algum patinador maravilhoso, desejaria que fosse Ella. Sei que o teria conseguido, se continuasse a praticar.

— E sei precisamente como você se sente — afirmou ele; já se erguia, quando a porta foi aberta e Mareia Bruce entrou.

— A trama foi urdida — declarou-lhe Vance. — E tenho certeza de que não fatiguei a nossa jovem. Ela está pronta a ouvir o final da história.

Quando voltamos à sala de entrada e nos aproximamos da escadaria, vimos duas pessoas em conversa animada, a um canto do fundo. Eram Carlotta Naesmith e Stanley Sydes. Vance limitou-se a um olhar na direção deles e prosseguiu para o salão.

 


IX

 

Chamada abrupta

 

(Sábado, 18 de janeiro — de manhã)

 

 

Na manhã seguinte, Vance levantou-se bem disposto e, depois de tomar rapidamente o café, deixou a casa sozinho, desaparecendo pela trilha larga que passava pelo pavilhão, em direção da cabana de Gunthar. Pouco após sua partida, os demais.convidados se apresentaram à mesa do desjejum, reunindo-se em seguida diante da garagem espaçosa. Um por um os automóveis foram retirados e a caravana partiu alegremente, subindo a elevação até à estrada principal e rumando para Winewood. Mais ou menos meia hora depois, a zeladora empurrou, com ternura, a cadeira de rodas de Joan Rexon, para a varanda agora abandonada e, com atenções maternais, instalou-se em sua chaise longue especialmente construída, colocada perto da janela, de onde via o rinque de patinação.

Mal a jovem ali se instalara, Vance e Ella Gunthar fizeram a volta da trilha ao lado do pavilhão, acercando-se da casa.

— Está vendo, Srta. Joan? — perguntou Vance, quando entraram. — Não apenas levo sua encantadora companheira para a casa dela, à noite, como a acompanho até aqui, de manhã.

Ella Gunthar sorriu. Parecia especialmente satisfeita, tendo nos olhos uma centelha nova. Mareia Bruce, sentindo alguma coisa de novo, fitava alternadamente Ella e Vance. Em seguida, levantou-se, fez afagos em Joan Rexon e entrou na casa.

Vance permaneceu na varanda por algum tempo, conversando do modo mais trivial possível e finalmente entrou, a fim de procurar a comodidade da cadeira de espreguiçar em seu quarto. Parecia preocupado e ali ficou deitado, por algum tempo, fumando inquieto. Suas meditações, quaisquer que fossem, vieram a ser interrompidas por uma batida à porta. Entrou o tenente O’Leary, sentando-se. Em seu rosto aquilino notava-se mais severidade do que o comum.

— Queria falar-lhe a sós, Sr. Vance. O mordomo disse que estava aqui, de modo que tomei a liberdade...

— Muito prazer, tenente — asseverou Vance, rearrumando-se na cadeira e acendendo novo Régie. — Tenho a esperança de que não tenha trazido notícias desconsoladoras.

O’Leary debateu-se com o cachimbo por alguns momentos, sem responder. Tendo-o aceso, fitou Vance.

— Será, senhor, que, por acaso, tem a mesma idéia que eu?

— É possível — contrapôs Vance, cujas sobrancelhas se ergueram de modo indagador. — Qual é o seu pensamento?

— Estou convencido de que sei quem matou Wallen.

Vance encostou-se bem na cadeira, tranqüilamente, e examinou o rosto decidido do homem que tinha à frente.

— Notável! — murmurou, e logo sacudiu a cabeça. — Não. Não faço nenhuma idéia. Meu espírito estava vazio no que diz respeito a isso. De qualquer modo, obrigado por sua confiança. Pode ser mais explícito?

O’Leary, que de início o evitara, parecia agora aflito por falar.

— Calculo a coisa do seguinte modo, senhor: não acredito que Guy Darrup estivesse mentindo ontem, na investigação.

— Não. Não estava mentindo. Foi apenas impulsivo e ingênuo. Trata-se de homem sincero e simples, governado por emoções fanáticas. As indignações fervilham nele, e ontem transbordaram.

— Acredita nele, então?

— Oh, sim. Inteiramente. Não há alternativa. O fato é que andei espionando um pouco por aí, e já confirmei a maior parte do que ele declarou. Não temos uma situação das mais agradáveis, aqui, e nas adjacências. Mas onde se torna uma situação criminosa? Preciso de mais orientação. Pode fornecê-la?

— Eis como concatenei tudo: Gunthar bebe demais, está a ponto de ser despedido. Wallen achava-se programado para a promoção. Só nisso temos motivo suficiente, no caso de naturezas francas e grosseiras. Gunthar é homem de tal tipo. Não se mostra sutil, de modo algum, tende a ser cruel quando bebe: seria capaz de seguir o rumo direto... forte e sem rebouços... quando um problema o deixasse perplexo. Pois bem, aduzamos a isto o atrito entre ele e Wallen, com relação ao futuro da filha. Não acha que isso teria armado todo o palco?

— Concordo — assentiu Vance. — A oportunidade é ainda mais simples. Mas prossiga, tenente.

— Exatamente, senhor. Uma bela oportunidade. Gunthar conhece bem o terreno. Sabe dos atos de Wallen e também de suas fraquezas. O que seria mais fácil para ele do que arrastar Wallen ao penhasco, por algum pretexto, acertá-lo na.cabeça e jogá-lo no Gulch?... A Srta. Gunthar provavelmente desconfiou da intenção paterna, acompanhou-o em segredo pelo penhasco acima e, quando a coisa foi feita, desceu correndo de lá, chorando.

— E que teria Gunthar a ganhar com isso? — perguntou Vance, com indiferença. — Ainda assim seria demitido.

— Oh, sei que Wallen não era o único homem à altura do emprego. Rexon pode arranjar dez outros, com algum tempo. Mas estou informado de que Gunthar pretendia desistir da bebida... na qual começou faz pouco tempo... e recuperar a simpatia de Rexon.

— Mas, ainda ontem, Gunthar bebia além da conta. Eu o vi antes e depois da investigação.

— Isso corrobora minha teoria — declarou O’Leary. — Ele precisava beber para criar coragem... o que aconteceu é o bastante para abater até mesmo um homem mais forte.

— De fato — reconheceu Vance. — Aí temos uma boa observação. E o que mais, tenente?

— Gunthar ameaçou Wallen duas vezes.

— Ouviu dizer?

— É claro. Mas acredito que seja afirmação autêntica. Testemunhas fidedignas jurarão isso.

— Sua análise é inteligente, tenente — afirmou Vance, a voz arrastada. — Mas não constitui um caso liquidado, a defesa pode perfeitamente contestá-la.

A mágoa transpareceu em O’Leary.

— Não é tudo, senhor.

Puxou a cadeira mais à frente e aduziu: — Gunthar não pode apresentar um álibi satisfatório para a hora calculada da morte. Entrou na taberna do Murphy, em Winewood, às dez horas daquela noite. Estava nervoso e bebeu mais do que o costume. Quando saiu, eram cerca de onde e meia. É necessária quase meia hora de caminhada daqui a Winewood. Uma hora depois, Sokol, o farmacêutico em Winewood, estava voltando para casa, de automóvel, ao encerrar-se uma festa, e viu Gunthar cruzando o prado, no lado distante de Tor Gulch. Na ocasião, não deu importância ao fato, mas, depois da investigação, achou que a informação podia ter alguma importância e me falou. É verdade que Gunthar seguia em direção de sua cabana, mas não é esse o atalho vindo de Winewood... E é o trajeto que teria tomado, se houvesse estado antes no penhasco... Acha que isso reforça minha acusação contra Gunthar? — encerrou O’Leary, obstinadamente.

— Oh, de modo acentuado — concordou Vance, no mesmo instante. — Entretanto, está tudo muito circunstancial, não acha, tenente?

— Pode ser — retorquiu o outro, com um toque de bravata na voz, uma sensação satisfatória de triunfo sobre Vance. — Mas constitui o bastante para prender o homem.

— Oh, ora essa. Eu não faria.

Vance o afirmava, cheio de suavidade; aduzindo então: — Até aqui, saiu-se magnificamente, tenente. Juntou as coisas de modo mais do que inteligente. Para que estragar tudo, agindo com precipitação? Falta pegar mais algumas coisas.

— Não pretendo agir imediatamente. Alguns fatos a mais serviriam muito.

— É exato. Aí temos uma necessidade comum da humanidade. Não esquecerei sua teoria. Talvez consiga proporcionar-lhe os fatos que faltam. O crédito será todo seu.

O’Leary apagou o cachimbo e se pôs em pé.

— Há diversas pistas que estou seguindo sem barulho.

Mas achei que devia contar-lhe em que direção elas levam. Tinham a esperança de que o senhor visse as coisas pelo meu ponto de vista.

— E vejo — assegurou-lhe Vance. — Saiu-se muito bem. Mais uma vez, obrigado por sua confiança.

Após O’Leary ter-lhe apertado a mão e ido embora, Vance esmagou o cigarro no cinzeiro e foi ter à janela.

— Com os diabos, Vance, — disse ele, falando consigo mesmo — o homem é especioso demais. Especiosidade. A maldição de nossa era moderna. Mas pensa com clareza. Sujeito competente. Tanto melhor. Não é uma boa teoria. Espero que esteja errado.

Uma hora depois, Vance descia. O grupo que fora de carro a Winewood já regressara. Vimos alguns de seus componentes na sala de entrada do térreo e, do salão maior, vinham sons indicativos da presença dos outros.

O Dr. Quayne estava sentado em companhia de Joan Rexon e Ella" Gunthar, na varanda. Levantou-se ao ver-nos.

— Veio bem a tempo, Sr. Vance — foi o que nos disse, em sua" voz agradável. — Agora, pode entreter estas jovens. Tenho de retirar-me dentro de minutos, a fim de ver alguns pacientes que necessitam mais de mim do que Joan. Apareci para verificar se está em condições para a festa desta noite, e ela não precisa de mim, em absoluto. Com o descanso de ontem e este belo tempo que faz, acha-se pronta para as festividades.

— De qualquer modo — disse a Srta. Rexon — consegui mantê-lo aqui por uma hora, doutor.

— Isso foi puramente social, minha querida Joan — disse ele. E voltando-se para Vance: — Se todos os meus pacientes fossem encantadores como essas duas jovens, eu não conseguiria ver todos eles. A tentação de prolongar as visitas seria muito maior do que minha capacidade de resistir.

— Sr. Vance, a lisonja serve para curar alguém? — perguntou Joan Rexon, que parecia muito satisfeita.

— Não pode haver lisonja, no que lhe diz respeito — retorquiu Vance. — Sei que o Dr. Quayne fala sério, em tudo que lhe diz.

Diversos convidados saíram, vieram ter conosco por momentos, a fim de saberem de Joan Rexon, e logo voltaram para o interior da mansão. Soou a sereia de meio-dia. Também Bassett, ao que observei, saiu da casa, limitando-se, porém, a ficar na outra extremidade da varanda. Sentou-se a uma mesinha e começou uma partida de paciência.

O médico consultou o relógio de pulso.

— Santo Deus! Esse foi o sinal de meio-dia!

Fez uma mesura cordial às duas jovens, acrescentando: — As duas são uma influência perniciosa.

Passou rapidamente pela porta do salão e, minutos depois, vimos que se afastava de automóvel.

Permanecemos na varanda por mais meia hora, descansando à luz quente do sol, e Vance entreteve as pequenas com o relato de suas viagens ao Japão. Em meio de sua interessante narrativa, olhou para as portas situadas atrás de nós. Pedindo desculpas repentinamente, dirigiu-se para o interior da casa. Chegado lá, voltou-se e me fez um sinal para que o acompanhasse.

Higgins estava logo à entrada, o rosto lívido, os olhos velhos e cristalinos esbugalhados. O medo e o pavor haviam-se apoderado dele.

— Graças a Deus o encontrei, Sr. Vance.

Sua voz tremia, faltava, as palavras eram quase inaudíveis.

— Não achei o Sr. Richard. Venha depressa, senhor. Aconteceu uma coisa horrível...

Ele caminhou com rapidez para trás da escadaria principal, levando-nos para o gabinete de Carrington Rexon.

E lá, estendido no chão diante da lareira, estava o dono da mansão Rexon.

 


X

 

 

Chave desaparecida

 

(Sábado, 18 de janeiro — 12:30 horas)

 

 

Vance, que se ajoelhara por momentos, examinou superficialmente o filete de sangue coagulado, atrás da orelha direita de Carrington Rexon. Ouviu por instantes a respiração difícil, depois tomou a pulsação. Voltou o rosto do homem para a luz, notou que estava inteiramente sem cor. Ergueu a pálpebra superior de um dos olhos, o globo ocular estava firme, a pupila se contraiu. Tocou a córnea com a ponta do dedo, as pálpebras imediatamente se fecharam em aperto.

— Não é coisa séria — anunciou então. — Ele está reagindo agora, saindo da inconsciência... Escute, Higgins, * chame imediatamente o médico.

Afrouxou então o colarinho da gravata antiquada de Rexon.

Higgins tossiu.

— Telefonei para o Dr. Quayne, antes de falar com o senhor. Por sorte, ele estava em casa. Deverá vir imediatamente para cá.

— Muito bem, Higgins. Agora, se puder fazer o favor de telefonar para o tenente O’Leary... diga-lhe para vir em seguida. Caso urgente. Explique, se for preciso.

— Sim, senhor.

Higgins apanhou o telefone, efetuou a chamada e desligou, explicando: — O tenente diz que estará aqui dentro de dez minutos, senhor.

Vance foi à janela e abriu. Em seguida caminhou para a lareira e ali colocou mais uma acha de lenha. As chamas estralejantes pareceram afugentar o ar sombrio que pairava no aposento. Uma batida à porta foi acompanhada pela entrada do Dr. Quayne, de maleta na mão.

— Santo Deus! O que se passa! — exclamou, e correu para Rexon.

— Não é coisa séria demais, doutor. Uma batida forte na cabeça.

Dizendo isso, Vance afastou-se um passo e prosseguiu: — Já deve estar voltando a si. Há todas as indicações de que volta à tonicidade muscular. Estava com o pulso fraco, porém regular. Havia reflexo claro na córnea, quando lhe abri o olho. Resistência iniludível, quando lhe movimentei a cabeça.

Quayne assentiu e passou a cuidar do ferimento. Rexon emitiu um gemido baixo, abriu os olhos e fitou sem ver. A uma ordem de Quayne, Higgins trouxe brandy. O médico obrigou Rexon a tomar uma dose, e o homem prostrado voltou a gemer, fechando os olhos.

— Uma sorte eu ter ido para casa almoçar, antes de continuar com meus chamados... — dizia o doutor, em tom casual, enquanto continuava a examinar Rexon. Por fim, levantou-se. — Tudo está em ordem perfeita — declarou, animadamente.

Rexon abria novamente os olhos, estava quase enxergando agora. Reconheceu Vance e Quayne, tentou sorrir, contraiu-se de dor e ergueu a mão, pondo-a na nuca.

— Cuidaremos disso em um momento — prometeu-lhe Quayne, com bondade. E então, ajudado por Higgins, colocou Rexon no sofá. Com dedos hábeis, fez curativos no ferimento, enquanto continuava a reconfortar o paciente.

Nesse momento o tenente O’Leary entrou. Vance, em voz baixa, deu-lhe os detalhes.

— Podemos fazer-lhe uma ou duas perguntas, agora? — perguntou Vance, quando o médico se afastou do sofá.

— É claro, é claro — respondeu Quayne. — O Sr. Rexon estará muito bem, agora mesmo.

Vance fez um gesto para que Higgins deixasse o aposento e achegou-se ao sofá, na companhia de O’Leary.

— Muito bem, o que pode contar-nos, amigo velho? — perguntou ao ferido.

— Duvido que possa contar-lhe alguma coisa, Vance — afirmou Rexon, a voz baixa e roufenha, mas aumentando em volume enquanto prosseguia: — Eu tinha acabado de levantar de minha escrivaninha, para tocar chamando Higgins... devo ter sido atingido por trás.

Voltou a levar a mão à cabeça, aduzindo: — E logo em seguida, só sei que você e o Quayne estavam aqui, comigo.

— Faz idéia de quando aconteceu?

— Idéia muito vaga, ao que receio.

Rexon pensou por momentos, e logo acrescentou: — Mas, esperem! Acho que ouvi as primeiras notas da sereia, antes de perder a consciência... Sim, tenho certeza. Lembro de ter ficado irritado, porque era quase meio-dia e ainda não tinha sido retirada a minha bandeja de desjejum. Ela geralmente é levada daqui às onze horas. Aí está o motivo por que eu ia chamar Higgins.

— Esteve aqui no gabinete desde que desceu, hoje de manhã, senhor? — indagou O’Leary.

— Mais ou menos, sim, tenente. Mas saí da sala por alguns minutos, uma ou duas vezes.

— Esteve alguém aqui em sua companhia? — perguntou Vance.

— Sim. Mareia Bruce veio receber instruções, como faz geralmente, no caso de termos convidados. E meu filho passou cerca de meia hora comigo. O Dr. Quayne apareceu para dar "bom dia", antes de ir ver Joan. Sydes e Carlotta entraram por um minuto. Alguns outros convidados também entraram. Vou tentar lembrar, se quer saber quem mais esteve aqui.

— Não... oh, não. Na verdade, não tem importância — afirmou Vance.

— Lembra-se de alguma sensação de vertigem, quando se levantou para chamar Higgins? — perguntou o médico. — A julgar pelo ferimento, acho altamente possível que você tenha batido em um dos ferros da lareira, quando caiu.

— Não vejo como — contrapôs Rexon, um tanto irritado. — Eu não estava tonto, de modo algum. A sensação foi de que me golpearam por trás.

— Ah! Entendo — disse Quayne, em tom pensativo.

Rexon, de repente, adiantou-se um pouco, os olhos com expressão frenética. Um molho de chaves, em corrente comprida, pendia de seu bolso das calças, sobre a orla do divã. Ele apanhou as chaves e se jogou de volta ao divã, remexendo-as, com expressão histérica.

— A chave! — arquejava, após instantes. — A chave da Sala das Gemas! Meu Deus do céu! Ela sumiu!

— Calma aí, Rexon — admoestou o médico. — Não pode ter sumido. Examine outra vez... com calma.

Desalentado, Rexon examinou os bolsos. O’Leary vasculhou o soalho, em vão. Vance saiu do aposento e logo voltava, informando que a porta da Sala das Gemas estava trancada.

— Isso nada prova! — explodiu Rexon. — Temos de entrar lá agora mesmo. Vou apanhar a outra chave.

Levantou-se com debilidade enquanto falava e caminhou com passos incertos pela sala. Apanhando uma gravura de Rembrandt, de valor inestimável, na parede em frente, jogou-a sem cuidado para o lado. Em seguida, apertou um pequeno medalhão de madeira e um painel estreito se movimentou, pondo à mostra uma chapa oval de aço, que continha um segredo. Seus dedos nervosos empreenderam uma seqüência de voltas — à esquerda e à direita, novamente à esquerda. Finalmente abriu a chapa e enfiou a mão no cofre oculto. Tirou de lá uma chave de eixo comprido e fino. Tomando-a de sua mão, Vance seguiu à frente, pela sala de entrada. Teve alguma dificuldade em enfiar a chave na fechadura, mas finalmente o conseguiu e empurrou a pesada porta de aço. Rexon passou por ele, agitado, estacou de súbito no meio da famosa Sala das Gemas.

— Sumiram!

Sua voz era pouco mais que um murmúrio roufenho.

— A parte mais preciosa de minha coleção. E o colar de Istar...

Sua voz faltou, enquanto ele apontava com gesto espasmódico e começava a oscilar.

Quayne veio imediatamente colocar-se a seu lado e pegou-o pelo braço.

— Meu caro amigo — advertiu, voltou-se então para nós. — Vou levá-lo para o gabinete, cavalheiros.

Saiu então com Rexon.

Vance fechou a porta após a retirada dos dois, passando-lhe a chave. Acendeu um cigarro e caminhou calmamente por aquele aposento interessante, enquanto O’Leary o acompanhava em silêncio. Era uma sala inteiramente destituída de ornamentos, a não ser pelo tapete de ébano e as numerosas vitrinas orladas de metal, situadas nas paredes. Esmeraldas de diversos tipos e dimensões, em suportes refinados e singulares, estavam ali à mostra, sobre veludo branco. Ao canto para o qual Rexon apontara, uma vitrina maior do que as demais tivera partido o painel dianteiro. Uma vitrina menor, ao lado da maior, fora igualmente violada. Estavam ambas vazias, mas nenhuma das demais vitrinas no aposento apresentava sinais de ter sido tocada.

— Coisa mistificante — murmurou Vance. — Apenas duas vitrinas partidas.

— Provavelmente não teve tempo, foi preciso trabalhar depressa — opinou O’Leary.

— De fato, tenente. Todas as indicações são nesse sentido... O que será que Istar tem a ver com o caso?

. Adiantou-se até à janela lateral e abriu o ferrolho. O’Leary olhava, enquanto ele examinava as barras de ferro grossas e cruzadas que fechavam todo o caixilho da janela. Examinaram então, da mesma maneira, a outra janela.

— Ora, essa! Aqui temos algo interessante, tenente. Remexeram nisto, um pouco, não acha?

Chamou a atenção de O’Leary para algumas ranhuras de aspecto singular, em três das barras.

As sobrancelhas de O’Leary subiram, em espanto.

— Quem fez isso deve ter procurado entrar deste modo, de início, e depois verificou que era empreitada difícil demais. Não teve paciência.

— Ou então — retorquiu Vance — ocorreu uma interrupção. Tentativa abortada. Pode ser. Vamos passear.

Fecharam novamente as janelas, e Vance olhou mais uma vez o aposento, antes de trancar a pesadona porta.

No gabinete, o Dr. Quayne tentava inutilmente consolar Rexon.

— Mas não levaram todas — dizia, em afirmações inúteis desse tipo. — Apenas algumas peças...

— Apenas algumas peças! — repetiu Rexon, desesperado. — São exatamente as peças que importam! Se houvessem levado todas as outras e deixado aquelas... — e ele não terminou a frase.

Vance entregou a chave a Rexon.

— Fechei novamente a porta, é claro. Agora, conte-nos o que está faltando. E o que tem Istar a ver com o caso?

Rexon, com um solavanco, ajeitou-se na cadeira e apoiou-se na escrivaninha.

— Todas as pedras desengastadas que eu possuía. Passei a vida a colecioná-las.

— Seriam as de venda mais fácil, ao que presumo — observou O’Leary, respeitosamente.

— Sim. Exatamente. Uma fortuna, para qualquer um que se tenha apossado delas. Todas, menos a Istar...

— O que tem a Istar? — persistiu Vance.

— É o colar da Rainha Istar — gemeu Rexon. — A peça mais rara de minha coleção. Veio do Egito... décima oitava dinastia. Jamais poderá ser substituído. Seis esmeraldas cabochão, de corte impecável, em corrente de pedras menores, cravadas em prata e pérolas... Você se lembra, não é, Vance?

— Ah, sim, é claro que lembro — corroborou Vance, em solidariedade. — Uma rainha das mais traquinas... a Istar. Sempre a aborrecer as pessoas.

O’Leary fazia anotações em um caderninho.

— Quando esteve na sala pela última vez? — perguntou Vance.

— Hoje de manhã, bem cedo. Vou lá todas as manhãs. Mareia Bruce foi comigo, para espanar um pouco a poeira. Era para mostrar a meus convidados, esta noite.

— Ah, sim. Que pena. Agora, naturalmente, não haverá tal exibição.

— Não — confirmou Rexon, sacudindo a cabeça, tomado de desapontamento.

— Mas os moços precisam da festa esta noite, como se nada houvesse acontecido. Você concorda, Rexon? — perguntou Vance, em tom de voz imperativo.

— Sim, por todos os títulos — acedeu Rexon. — De nada adianta estragar a alegria dos outros.

O médico logo se levantava, apanhando a maleta.

— Já não precisa mais de meus serviços, Rexon. Eu bem queria ser mais útil. Mas voltarei esta noite, para ficar de olho na Joan para você.

— Obrigado, Quayne. É muita bondade. O médico fez uma mesura e se retirou. O’Leary fechou o caderninho de anotações.

— Diga-me, Sr. Rexon, o seu administrador esteve aqui para vê-lo esta manhã?

— Gunthar? Não — respondeu Rexon. — Andou provavelmente trabalhando no rinque e no pavilhão. Mas é estranho que me pergunte isso. Higgins me contou, quando desci hoje de manhã, que Gunthar esteve aqui cerca de meia hora antes, pedindo para falar comigo. Higgins lhe disse que eu não descera ainda e o homem foi embora, resmungando sozinho. Não compreendo, pois ele nunca vem aqui, a menos que o mande chamar.

O’Leary assentiu, e era perceptível a satisfação que sentia. Foi até à janela aberta, baixou-a e voltou a erguê-la. Em seguida, inclinou-se para fora alguns instantes, como a examinar as lajes por baixo. Notava-se uma expressão de cálculo em seu semblante, quando voltou a ter conosco.

Ao deixarmos o gabinete, Vance chamou o tenente para o lado.

— Que me diz de Gunthar? — perguntou, em voz baixa. — Tem algum segredo a revelar?

— O caso está ainda mais claro agora do que ontem — afirmou o tenente, com ar solene. — O senhor reconheceu que eu estava em boa pista. Mas vamos adicionar uma coisa: tentei falar com Gunthar hoje de manhã. Um dos trabalhadores me disse que ele fora à mansão, a fim de falar com o patrão. Parecia natural, de modo que esperei por algum tempo. Mas Gunthar não regressou.

O’Leary lançou um olhar de triunfo a Vance.

— O caso, senhor, é que teria sido muito fácil para o homem entrar no gabinete, passando pela janela, quer nessa ocasião ou mais tarde, quando o Sr. Rexon saiu de lá. Só teve de esperar atrás da cortina, até chegar o momento oportuno. Depois de dar o golpe, teria sido trabalho de instantes tirar-lhe a chave e chegar à Sala das Gemas. Vance assentiu.

— Raciocínio muito inteligente, tenente. E lógico, por muitos pontos de vista.

— Sim, e há mais — persistiu O’Leary. — Não estou convencido, em absoluto, de que a filha dele não esteja misturada no fato... o senhor sabe, coisa como avisar ao pai, chegado o momento oportuno...

— Oh, meu caro amigo! Você me surpreende a cada instante. Veja lá, não está levando esse preconceito contra Gunthar um pouco longe demais?

O’Leary ficara surpreso, diante do fato de que Vance não parecia compreender as possibilidades circunstanciais da situação.

— Não, acredito que não — retorquiu, com a calma da convicção. — Já tenho o bastante para prender a pequena, juntamente com o pai.

— Mas sob qual acusação, tenente? — perguntou Vance, que estava preocupado.

— Como testemunha material, quando mais não seja — foi a resposta confiante de O’Leary.

Vance acendeu um cigarro e soprou uma baforada prolongada.

— Não estou procurando pôr seu caso à prova, tenente. Não, ele é lógico demais. Limito-me a fazer um pedido urgente. Nem a pequena, nem seu pai, deverão fugir esta noite, certo? Amanhã, com certeza, servirá igualmente a seu objetivo. Pode esperar, tenente? Estou a suplicar.

O’Leary contemplou Vance por momentos prolongados e não havia como negar a expressão de admiração, por baixo de sua perturbação e dúvida. Finalmente assentiu.

— Esperarei, senhor. Embora não concorde.

E ele se afastou pela varanda, desaparecendo na escadaria lateral.

Também Vance saiu da varanda, momentos depois. Joan Rexon continuava sentada onde a deixara, mas Ella Gunthar já não se achava ali. Em seu lugar estava Carlotta Naesmith.

— Santo Deus! — murmurou Vance. — De nada adianta achar que o valente tenente não tenha observado a ausência da Srta. Ella. Não. Camarada observador, o O’Leary.

Bassett continuava debruçado sobre a mesa, onde iniciara sua partida de Canfield. Stanley Sydes viera ter com ele, sentando-se em cadeira à frente e operando a banca. Entre os dois via-se uma garrafa de bourbon.


XI

 

Soirée de despedida

 

 

(Sábado, 18 de janeiro — 21:00 horas)

 

 

A tarde transcorrera sem maiores incidentes. Após o almoço, Carlotta Naesmith e Stanley Sydes convidaram Vance a ir com os demais, a fim de observarem o adestramento dos patinadores sobre o gelo. Ele declinara, educadamente, e Richard Rexon, que também permanecera na mansão, conversara brevemente com Vance sobre as esmeraldas roubadas, tendo passado o resto da tarde pensando no assunto. A Srta. Joan fora para o quarto descansar. A casa se apresentava invulgarmente silenciosa.

Ao jantar reinou conversa animada entre os convidados e, de modo especial, surgiram boatos misteriosos sobre uma patinadora a quem o Sr. Rexon convidara para a apresentação, e que se apresentaria de surpresa. Todavia, ninguém tinha qualquer informação mais detalhada a seu respeito.

Encerrado o jantar, os convidados mais velhos se reuniram na varanda, agrupando-se em ambos os lados da chaise longue da Srta. Joan, na janela central. A noite era clara, não se apresentando fria demais.

Pouco antes das nove horas Mareia Bruce trouxe a Srta. Joan para seu lugar.

— Por favor, puxem uma cadeira para Ella sentar-se a meu lado — solicitou a jovem. — Ela deve chegar a qualquer instante.

A Srta. Bruce atendeu ao pedido.

O Dr. Quayne apareceu e, depois de palavras de incentivo à Srta. Joan e cumprimentos a Richard, sentou-se ao lado de Carrington Rexon, atrás dos convidados mais jovens. Jacques Bassett permaneceu em pé, encostado nas portas fechadas, ao fundo do aposento. O tenente O’Leary, sem chamar a atenção, sentou-se também.

Uma vitrola alta e de modelo antigo foi levada para o rinque por Higgins e outro criado. Seguiu também para lá uma pilha de discos.

Vance, sobre patins, em imaculada indumentária noturna, tendo um cachecol branco no pescoço, apresentou-se no rinque. Outras luzes foram acesas quando ele se adiantou.

— Minhas senhoras e cavalheiros — começou, em tom fingido de cerimônia, a voz clara e ressonante. — Fui honrado com o privilégio de dirigir este acontecimento memorável. Cheio de confiança, posso prometer-lhes uma noitada de entretenimento o mais invulgar.

Suas declarações foram acompanhadas por aplauso geral.

— Temos conosco essa noite — prosseguiu ele, com formalismo exagerado — patinadores de grande renome. Posso mesmo dizer que são de renome mundial. A maioria dos assistentes, ao que tenho certeza, reconhecerá cada nome, à medida que for anunciado...

Novos aplausos eclodiram às palavras seguintes.

— A primeira de nossas estrelas convidadas — remoçou ele — é a Srta. Sally Alexander. Ela os entreterá, a seu modo incomparável.

A Srta. Alexander veio do pavilhão, figurinhas sorridente em farrapos coloridos, patinando graciosamente para o círculo de luz lançado de uma janela superior da mansão. Entoou uma alegre chansonette parisiense, de duplo sentido, sendo recompensada por muitas risadas e aplausos. Seu número seguinte foi um monólogo, no qual representava uma celebridade embriagada, tentando abrir caminho em meio a um coro de debutantes cheias de admiração. Os patins não facilitaram a tarefa, de modo algum. A pequena platéia estava verdadeiramente a se divertir, e manifestou de modo prolongado e altissonante a aprovação.

Vance ajudou a jovem no regresso ao pavilhão e veio de lá com Dahlia Dunham e Chuck Throme, ambos de calção e blusa. Eles patinaram até à luz principal, com mesura acentuada. Vance ergueu a mão da jovem.

— À minha direita, usando calções vermelhos — anunciou — temos a Srta. Dahlia Dunham... uma lutadora dás mais encantadoras, com muitas vitórias em sua bagagem. À esquerda, de calção branco, temos o jóquei Throme, com uma lista de vitórias também das maiores. Os dois, agora, vão passar por três rodadas, a fim de disputar o campeonato de patinação pesada.

Calçaram-se as luvas, os segundos foram arredados por gestos; e logo o juiz se adiantava, tinha início a contenda. Os dois litigantes trocaram socos leves, por alguns segundos. Entraram em corpo-a-corpo, sendo separados pelo árbitro. O gelo escorregadio, sob os patins, fazia com que muitos dos socos errassem o alvo. Os que alcançavam o objetivo causavam pouco dano. Quando Vance soprou o apito, ao final do terceiro round, a Srta. Dunham foi declarada vencedora, por aclamação do público. Chuck Throme, aceitando galhardamente a derrota, ensaiou nova mesura. Como em ocasião anterior, levou o gesto ao excesso, os patins deslizaram, ele caiu e se estendeu no gelo. Vance e a Srta. Dunham o ajudaram a ficar em pé, ajudaram-no também a sair do rinque.

Joan Rexon sentou-se e relanceou o olhar em volta.

— Eu bem queria que Ella viesse — ouvi quando dizia. — Está perdendo tudo isto. Você a viu, Dick?

Com ar sombrio, Richard Rexon sacudiu a cabeça.

— Talvez esteja lá fora, em algum lugar. — E saiu para investigar.

A Srta. Maddox e Pat McOrsay, em seguida, apresentaram sua cena com pequeno avião improvisado sobre deslizadores. Isto foi seguido pelo anúncio de Vance, apresentando o número da Srta. Naesmith, em companhia de Stanley Sydes. Em roupagem espanhola, eles executaram uma série de danças, ao acompanhamento dos discos que Vance colocava na vitrola. Os demais executantes vieram ter com eles, no tango final. Richard Rexon regressara à companhia de Joan, que estava desconsolada.

— E agora — fez-se novamente ouvir a voz de Vance — temos uma surpresa para todos. Não posso dizer-lhes qual o nome desta artista, pois ela é praticamente desconhecida. Nós a chamamos de Maravilha Mascarada... Mas, um instante! Tenho de soprar ao ouvido de nosso maestro a melodia que deverá executar.

Fez pantomimas cômicas para a vitrola, colocando ali novo disco. Os acordes encantadores de Geschichten aus dem Wiener Wald surgiram flutuando pela noite silenciosa. E então...

Uma figura feminina e pequenina veio pelo gelo, com facilidade e ritmo inacreditáveis. Sua roupa de veludo e lantejoulas brilhava alegremente às luzes. Uma máscara prateada cobria a maior parte de seu rosto. Sua dança no gelo, espaçada, foi desempenhada com requinte. Dotada de graça inacreditável, combinava as mais difíceis figuras com espirais, giros e saltos de originalidade audaciosa.

Todos emitiam exclamações de grande prazer. Houve quem observasse que devia ser Linda Höffler, a mais recente sensação no mundo dos patinadores. Alguns dos convidados interrogavam a Srta. Joan e o jovem Rexon. Estes negavam ter qualquer conhecimento de quem fosse. Carrington Rexon, quando lhe indagaram que estrela famosa contratara para a noitada, não deu qualquer informação.

A cada vez que a jovem deixava o rinque o aplauso era tão constante e alto que Vance se via obrigado a trazê-la de volta.

Finalmente uma das vozes pediu: — Tire a máscara!

O grito logo era transformado em coro uníssono. Vance cochichou para a jovem que tinha ao lado e esta lhe permitiu que tirasse a máscara de seu rosto. Sorridente, cheia de felicidade, lá estava Ella Gunthar diante de nós.

Joan Rexon ergueu-se, em assomo de triunfo.

— Eu sabia que era Ella! — proclamou, quase às lágrimas. — Sempre achei que Ella patinaria bem. Não é maravilhosa, Richard?

O jovem Rexon, entretanto, já se encontrava nos degraus do terraço, seguindo para o rinque. Carrington Rexon e o médico foram ter ao lado da Srta. Joan.

— Oh, Papai! — exclamou a jovem. — Por que não me falou?

— Foi uma surpresa, para você e para mim também, minha cara. O Sr. Vance me disse apenas que preparara alguma coisa para você. Eu não fazia idéia de que fosse uma surpresa assim.

— Está bem, agora. Está bem — interveio Quayne, em tom de admoestação. — Acho que bastou por esta noite, Joan.

Os dois homens ajudaram a moça a entrar.

Em torno de Ella Gunthar, no rinque, formou-se um círculo ruidoso. Os trabalhadores da propriedade, a quem tinha sido dada licença para assistirem ao desempenho, afastavam-se agora. Os convidados se retiraram para o interior da casa.

Mais tarde reuniram-se no salão. Os executantes vieram do pavilhão, envergando ainda as roupas em que se tinham apresentado. Vance, a quem cobriram de parabéns, recusava todos os louvores.

— Foi tudo obra da Srta. Naesmith, fiquem sabendo — dizia a todos.

Ella Gunthar entrou, acompanhada por Richard Rexon, entusiasticamente cumprimentada por todos os lados. Parecia agitada, nervosa, permaneceu apenas o tempo suficiente para abraçar a Srta. Joan e dizer-lhe algumas palavras. O jovem Rexon e Vance ofereceram-se para acompanhá-la até à casa, mas a moça os rechaçou educadamente, retirando-se sozinha.

Trouxeram a vitrola do rinque. Alguém lhe deu corda e começou a tocar um disco. Logo se iniciava a dança. Quayne trouxe a zeladora, dizendo-lhe para levar a Srta. Joan para a cama. A mulher exibia expressão nova de orgulho, estava quase animada, ao encarregar-se da pequena.

Aumentou a alegria da festa. Apenas Jacques Bassett permanecia sentado, sozinho e taciturno. Quayne estava a ponto de aproximar-se, mas foi interceptado pela Srta. Naesmith, a perguntar-lhe qual era o melhor antídoto para o enjôo no mar. Richard Rexon foi ter com Bassett à mesa deste.

Para Vance, fora o bastante. Despediu-se do anfitrião. O’Leary se aproximou, com olhar indagador, mas Vance o arredou de si.

— Vamos dormir sobre a questão, tenente — propôs. — Apareça por volta do meio-dia... Festa animada, não acha?... Até amanhã.

O’Leary o observava, sombriamente, enquanto Vance subia as escadas.


XII

 

O colar da rainha istar

 

 

(Domingo, 19 de janeiro — 9:30 horas)

 

 

Vance despertou cedo mais uma vez, no domingo. Depois de tomar café forte, convidou-me a passear em sua companhia, sob a luz clara do sol de inverno. A neve caíra nas primeiras horas da madrugada e o mundo ao redor de nós estava coberto por capa branca e recém-colocada. Tomamos uma trilha que dava para a pequena poça gelada no Green Glen, onde havíamos encontrado Ella Gunthar pela primeira vez. Quando contornávamos um arbusto maior, em um dos extremos da lagoa, pudemos ver uma pequena cabana.

— Deve ser a cabana do Eremita Verde — comentou Vance. — Vamos fazer uma visita em manhã sabatina ao druida.

A porta estava entreaberta e Vance bateu. Não se ouviu qualquer resposta. Abriu então a porta e, a uma mesinha perto da janela, estava sentado o velho Jed, que ergueu o olhar, sem demonstrar qualquer surpresa.

— Bom dia — disse Vance, do limiar, em tom agradável. — Podemos entrar?

O velho meneou a cabeça, denotando indiferença. Tinha a atenção centralizada em algum objeto entre os dedos. Ao nos aproximarmos, ergueu as mãos. O sol incidia plenamente sobre estonteante colar de esmeraldas.

— Seis cabochões em uma corrente de pedras pequenas — disse Vance, quase a falar sozinho, e logo observou, dirigindo-se ao velho: — Lindo, não acha?

O velho Jed sorriu com prazer infantil, enquanto deixava as pedras verdes deslizarem entre os dedos. Vance sentou-se ao seu lado.

— O que mais tem aí?

O velho Jed sacudiu a cabeça.

— O que fez com as outras?

— Não tem outras. Só isto.

Ele espalhou o colar sobre a mesa, convidando Vance a partilhar no êxtase da contemplação.

— Como os prados verdes na primavera — disse, a seu modo místico. — Como córregos de água... como as árvores de Deus no verão: verdes, toda a beleza da natureza é verde.

Enquanto o declarava, seus olhos brilhavam fanaticamente.

— Sim — disse Vance, acompanhando-lhe o estado de espírito. — A primavera... o verde da natureza por toda a parte: "E todos os prados, amplos e espalhados, Eram verdes e prateados, verdes e dourados".

Ergueu o olhar, com expressão bondosa.

— Achou-o, Jed?

O velho, em resposta, acenou com a cabeça, confirmando.

— Onde achou?

Outra sacudidela da cabeça.

— Você é amigo da Srta. Ella? — perguntou o eremita, como se desejasse mudar de assunto.

— Sim, é claro. E você também.

A cabeça grisalha se sacudiu entusiasticamente.

— Mas aquele camarada que o Sr. Richard trouxe quando veio. Você é amigo dele?

— Do Sr. Bassett? Não. Não sou amigo dele. Muito longe disso... O que me conta sobre aquele homem?

— Não presta — declarou o velho Jed, na maior economia de palavras.

Vance ergueu levemente as sobrancelhas.

— Foi ele quem lhe deu esse colar verde?

— Não! — e o velho se tornava petulante. — Ele veio a fim de criar encrencas para a Srta. Ella.

— Não me diga! Quando foi isso?

— Veio aqui ontem à noite. Antes da grande festança na casa grande. Pensou que a Srta. Ella estava sozinha. Mas eu o vi. — E o velho Jed deu uma risadinha de cacarejo. — Agora, ele não vem mais aqui.

— Não? Por que não?

— Ele não vem mais — repetiu o outro, de modo vago. — Mas lá na casa grande, moço, você vai cuidar de Ella?

— Por certo — prometeu Vance. — Ela estará bem... Mas, diga-me uma coisa, Jed: como arranjou esse brinquedinho?

O velho voltou a fitá-lo, imerso em silêncio inexpressivo.

Vance tentou uma estratégia.

— Preciso saber, pelo bem da Srta. Ella.

— A Srta. Ella, ela não faz nada mau.

— Nesse caso, conte-me onde arranjou esse colar — insistiu Vance.

O velho relanceou o olhar em volta, com ar perplexo. Fitou então o pequeno fonógrafo que tínhamos visto Ella Gunthar usando. Olhou então para Vance, cheio de triunfo.

— Ali! — E apontou para o instrumento.

Vance se levantou e o trouxe para a mesa. Abriu o aparelho e o sacudiu, sem que nada fosse revelado. O velho apanhou o colar e o colocou sobre a base de feltro verde.

— Assim — disse, com simplicidade. — Estava escondido aí, quando achei.

Neste momento a porta se escancarou mais uma vez. Lá estava Ella Gunthar, o sorriso desaparecendo dos lábios ao nos encontrar. O velho Jed se pôs em pé para recebê-la. Vance atravessou o aposento, tomou a jovem pela mão, com gentileza, levando-a à mesa. Ela viu a vitrola aberta, com a fieira de jóias cintilando lá dentro. De modo abrupto, voltou-se para o outro lado, inteiramente pálida.

— O que sabe disto, Srta. Gunthar? — perguntou Van-ce, com indulgência.

— Não sei... coisa alguma a esse respeito — foi a resposta, em voz baixa e hesitante.

— Mas já o viu antes?

— Eu... acho que sim. Na Sala das Gemas.

— E como veio isto ser escondido em sua pequena caixa de música? Jed diz que achou ali.

— Eu... não sei. Talvez não seja verdadeiro.

— Oh, são jóias verdadeiras, minha cara.

— Não sei nada a esse respeito — repetiu ela, obstinada.

— Agora eu acho que você está com lorotas outra vez. Sabe que um colar assim e muitas outras pedras de grande valor desapareceram da Sala das Gemas?

Ela assentiu.

— Richard me contou, ontem à noite.

— Foi Richard quem lhe deu isso?

— Não! — e ela fitou Vance, tomada de indignação. — E Jed também não sabe nada a esse respeito. Nem meu pai! Oh, vocês estão todos tentando jogar mentiras sobre meu pai... acha que não sei por que aquele oficial da polícia de Winewood está sempre por aí na propriedade? — e as palavras vinham em assomo apaixonado.

Vance observava e aquilatava a jovem, em sua manifestação de contrariedade.

— Quem, então, minha cara, tirou as esmeraldas? — perguntou, calmamente.

— Quem foi?... Quem? — repetiu ela, e mordeu os lábios. Pensou por diversos instantes e então, como a seguir impulso repentino, declarou em desafio: — Eu tirei... eu tirei, naturalmente!

— Você tirou! — repetiu Vance, sem acreditar. — E o que mais tirou, além do colar de Istar, Srta. Ella?

— Não sei o que foi... algumas pedras soltas.

— Como entrou na Sala das Gemas?

— Achei a porta aberta.

— Ora, vamos, Srta. Ella. O Sr. Rexon não tem o hábito de deixar aberta a porta da Sala das Gemas.

— Eu a encontrei aberta — persistiu a moça.

— E dentro da sala, o que fez?

— Abri duas vitrinas. Vance riu baixinho.

— E encontrou as vitrinas abertas, também?

Ela começou a se erguer, com sobressalto, lágrimas surgiam em seus olhos.

— Eu... eu... as quebrei — gaguejou.

— Entendo, Srta. Ella. Nessa caso, não se importa de ir em minha companhia à mansão e contar tudo ao Sr. Rexon?

— Não — disse ela, engolindo em seco. — Não me importo.

O velho Jed olhava para Vance, para a pequena, e outra vez para Vance. Franziu a testa, na tentativa por prestar atenção.

— Sr. Vance, — perguntou a jovem, com timidez — a Srta. Joan vai ter de saber? E... e... Richard?

— Receio que sim — disse Vance. — Mas talvez não seja tudo de uma vez, minha cara. Está pronta para ir?

Vance embolsou o colar e acompanhou a pequena, retirando-se da cabana. Mais uma vez tomou a trilha pela qual tínhamos vindo. Não fez qualquer outra referência às jóias desaparecidas. Em vez, perguntou: — Bassett voltou a comportar-se mal? Ela respondeu sem desviar o olhar.

— Não foi nada... Jed lhe contou?... Nunca vi o Jed com tanta raiva. Acho que o Sr. Bassett levou um susto verdadeiro.

O resto da caminhada foi em silêncio.

Carrington Rexon achava-se sozinho no gabinete. Ella Gunthar entrou ali, enquanto Vance abria a porta para que passasse. Entrou e foi para um dos lados, pondo-se timidamente de costas para a parede. Vance indicou uma cadeira, a jovem desviou o olhar para Rexon e adiantou-se.

— Agora, minha cara — incentivou Vance, quando a moça se sentou.

Ela baixou o olhar e agarrou-se aos braços da cadeira.

— Sr. Rexon, eu... — começou a dizer, ergueu a cabeça e falou então, com muita rapidez. — Eu tirei as esmeraldas.

— Você o quê? — contrapôs Rexon, tomado de espanto.

— Eu tirei as esmeraldas — repetiu ela, falando mais devagar.

Rexon riu com amargor, sem poder controlar-se.

— Posso provar que tirei! — declarou ela, impensadamente. Estendeu então a mão para Vance, pedindo o colar. Ele o retirou do bolso e o entregou à moça, que o colocou sobre a escrivaninha ao lado, em gesto acanhado.

Rexon o recolheu com aflição, examinando-o cuidadosamente.

— O colar de Istar! Ah!

E logo indagava, com ar astuto: — Onde está o resto?

A jovem sacudiu a cabeça.

— Não vou contar. Não conto!

Seus lábios apertados indicavam, de modo inegável, que não estava disposta a falar mais.

Rexon encostou-se na cadeira e examinou a jovem com olhar crítico. E então, com rispidez: — E você é a pequena com quem meu filho quer casar!

O rosto de Ella Gunthar tornou-se rubro, de repente. As palavras de Rexon haviam-na sobressaltado.

— Oh, sim, minha jovem e querida dama — prosseguiu Rexon, friamente. — Você não imaginava que eu tivesse conhecimento do que ocorre entre os dois. A Srta. Naesmith contou-me, ontem à noite... a Srta. Naesmith, que eu contava vir tornar-se a esposa dele... Bah! Depois de tudo que fiz por você! Não se contentou em roubar o amor de meu único filho. Tinha de ficar com minhas esmeraldas, também.

Ergueu-se um pouco, levado pela raiva, enquanto prosseguia: — Estou quase satisfeito por ter acontecido isto. Valerá muito bem a perda das esmeraldas, se eu puder salvar Richard...

Vance, com passos rápidos, contornou a escrivaninha e pôs a mão no ombro do homem mais velho.

— Meu velho amigo, por favor! Não transforme um desapontamento em tragédia.

Rexon afrouxou, sob a pressão convincente da mão de Vance.

As lágrimas inundavam os olhos de Ella Gunthar, Vance veio colocar-se a seu lado.

— Pobre menina, — disse, acalmando-a — não acha que esta farsa trágica foi longe demais? Chegou o momento da verdade... toda a verdade que conhece. Estamos às escuras, precisamos de sua ajuda. Algumas forças terríveis estão agindo aqui na mansão. Será, talvez, algum criminoso dos mais temíveis. Você somente poderá ajudar as pessoas a quem ama contando-nos a verdade. Quer fazê-lo?

Ela respirou fundo e enxugou os olhos.

— Sim, farei — disse, com decisão inesperada. Vance sentou-se a seu lado.

— Nesse caso, conte-me em primeiro lugar a quem está querendo proteger, com este relato tolo de que roubou as jóias.

— Eu... não sei com certeza. Mas pareceu que todos a quem eu amo haviam sido de repente presos em uma armadilha horrível. O pobre Jed, a quem o senhor pegou com o colar; meu pai, de quem eu sei que aquele oficial da polícia desconfia, por muitas coisas; e o Richard, de algum modo... E tudo se achava embrulhado de modo tão pavoroso, com aquela noite no penhasco, quando o pobre Lief foi morto. Eu... eu... era uma confusão completa. E pareceu que só eu podia ajudar.

Ocultou o rosto com as mãos, mas, quando voltou a erguê-lo, os olhos continuavam secos.

— Eu tinha de tentar ajudá-los, sem saber como, porque na verdade não sabia... Apenas algumas coisinhas, aqui e acolá, que não se concatenavam.

— Pobre menina — voltou Vance a murmurar. — Mas eu lhe peço o favor de contar o que sabe... todas as coisinhas... qualquer fato que lhe possa ocorrer. Talvez isso nos ajude a todos... ainda mais os que você ama.

— Oh, vou tentar! Vou tentar! — e ela falava com aflição, preparando-se para dizer o que sabia. — Talvez ache, Sr. Vance, que insisti em ir à investigação de sexta-feira apenas porque sou uma criança curiosa.

— Não -— retorquiu Vance. — Naturalmente, pensei na questão. Mas não formei opinião.

— Bem, seja lá como for, o senhor sabe de tudo que ouvi por lá. Acho que os jurados estavam aflitos por encerrarem a questão. (Percebi que Vance se espantava com a sagacidade indicada por tal observação.) — E ouvi outras coisas, também, Sr. Vance. Ouvi os trabalhadores dizendo que o fato de meu pai ter sido aquele que descobriu o corpo de Lief Wallen... Guy Darrup ainda está dizendo que eu devia ter casado com Lief... E é culpa da moça, se não ama um homem?... Depois ouvi meu pai dizer que era estranho Jed saber exatamente para que lado devia ir, aquela manhã. Jed, que não é capaz de fazer mal a uma mosca!... Soube que meu pai não esteve em casa à meia-noite em que Lief morreu, e isso tornava as coisas muito difíceis para ele... Bem, eu não estava em casa à meia-noite, também! Isso quer dizer que eu matei Lief Wallen?...

Ela se interrompeu, mas logo prosseguia: — Sinto muito, se estou fazendo uma salada. Mas é porque me sinto confusa... Pouco antes de meia-noite, naquele dia, eu vim aqui. Richard pediu que eu viesse. Não tínhamos tido a oportunidade de estar sozinhos durante todo o dia. Íamo-nos encontrar em uma árvore favorita, que temos por trás do pavilhão. Fiquei lá esperando, mas Richard não apareceu. Depois ouvi que ele falava com alguém... Estava com raiva, ao que acredito. Mas deve ter voltado para a casa. Foi quando passei correndo pelo pavilhão, chorando. Exatamente como Guy Darrup disse que fiz. Mas ele não sabia o motivo.

Ela fez uma pausa, olhou para Vance e depois para Rexon.

— Alguma coisa mais? — indagou Vance, lançando-lhe um olhar penetrante.

— Eu já não disse o suficiente? — contrapôs ela, a voz cansada.

— Ainda não contou onde arranjou o colar.

— Preciso contar?

— Talvez ajude a esclarecer uma situação infernalmente complexa, sabia?

— Está bem. Mas meu pai não o tirou!

Ela lançou um olhar de desafio a Rexon e prosseguiu:

— Achei no chão, perto da janela do vestiário reservado para mim, no pavilhão, ontem à noite. Ia devolvê-lo ao Sr. Rexon. Mas foi quando Richard me contou o que acontecera. Fiquei com medo de que fizessem perguntas. Sabia que meu pai esteve ontem no pavilhão. Jed levou minha roupa até lá, para mim. Papai trancou o quarto... para guardar a surpresa... e me deu a chave. Tive medo de fazer qualquer coisa com o colar, até poder pensar no que seria melhor. Aí está o motivo por que o levei para a cabana de Jed e escondi em minha caixinha de música... Mas meu pai não tirou! E o velho Jed também não!...

Carrington Rexon parecia profundamente perplexo e perturbado. Vance colocou as mãos nos ombros de Ella Gunthar e estava a ponto de ajudá-la a levantar da cadeira.

Uma batida à porta foi acompanhada pela entrada de Higgins, trazendo o tenente O’Leary e um investigador à paisana.

 


XIII

 

O segundo assassinato

 

 

(Domingo, 19 de janeiro — 11:00 horas)

 

 

O’Leary olhou para Vance, depois para a moça sentada e, em seguida, para o colar sobre a escrivaninha, à frente de Rexon.

— De onde veio isso, senhor? — indagou, sem rodeios. Vance, de modo sucinto, repetiu o relato que a pequena apresentara quanto à descoberta do colar.

— Aí temos uma história altamente provável — comentou O’Leary, em tom sarcástico.

O telefone se fez ouvir e Rexon atendeu. E logo: — É de Nova York, Vance... para você. Esta é uma linha particular. Perfeitamente segura, pode falar à vontade — disse, empurrando o aparelho sobre a escrivaninha.

O’Leary chamou seu companheiro para o lado e falou animadamente, enquanto Vance se achava ao telefone.

—... O que causou a demora, sargento? — dizia Vance. — Ah, os registros em Washington... Compreendo... Vou anotar, palavra por palavra...

Estendeu a mão para apanhar papel e lápis, escreveu uma mensagem que lhe era ditada. Reconheci a animação, sob sua aparência calma, enquanto ele escrevia com rapidez.

— Meticuloso e completo como sempre, sargento — dizia com satisfação, ao deixar o lápis. — Isto me dá exatamente o que precisava... Não. Não é necessário que venha. Muito obrigado...

Desligou o telefone, empurrou-o de volta e se pôs em pé. Suspirou, então. Dobrou a mensagem que escrevera no papel, colocou-a no bolso. Voltou a sentar-se e acendeu um Régie.

— E então, tenente?

O’Leary voltou para o lado da cadeira de Ella Gunthar.

— Mantive a promessa que lhe fiz, senhor — afirmou. E estava calmo, não se fazendo de intrometido. — Esperei, como pediu que esperasse. Agora não tenho alternativa senão prender esta jovem e o pai dela. Acredito que concorde com o que pretendo fazer, senhor. Trouxe este homem para efetuar a prisão — afirmou, um pouco hesitante. — A menos que o senhor possua novas informações que venha modificar minha decisão.

— Creio que sim, tenente — declarou Vance e voltou-se para a jovem sentada na cadeira. — Pode fazer o favor de ir ter com a Srta. Joan na varanda, Srta. Ella?

— Sinto muito, senhor — atalhou O’Leary, erguendo a mão, de modo peremptório. — Acho que não posso permitir.

— Oh, veja só! Nesse caso, mande o seu companheiro com ela. É coisa inteiramente segura, tenente.

O’Leary fez careta, mas atendeu ao pedido. A jovem retirou-se vagarosamente do aposento, acompanhada pelo robusto investigador de Winewood.

— Meu reconhecimento infinito — disse Vance, jogando p cigarro na grelha da lareira. — Tenente, eu lhe prometi novas informações. Aqui estão.

Ato contínuo, estendeu o papel dobrado que tirara do bolso, passando-o a O’Leary.

O tenente o desdobrou, examinou o conteúdo com olhos rápidos e depois leu em voz alta: — Copo de uísque apresentado tem impressões digitais claras de Jasper Biset. Também a descrição corresponde. Biset é tido como chefe de organização internacional de ladrões de jóias. Geralmente se mantém na sombra. Não há fundamento para processo criminal contra ele. É mais conhecido no exterior, mas seria reconhecido aqui. Visto pela última vez em Saint-Moritz, Suíça.

O’Leary ergueu o olhar; o semblante inexpressivo.

— Permita que explique mais — disse Vance. — Em minha primeira noite aqui, vi um rosto. Era rosto estranhamente conhecido. Fiz uma associação vaga. Com Amsterdam. Eram as sobrancelhas que se juntavam, acima do nariz. Como uma barra negra. Mas o rosto não era o mesmo. Não, faltava alguma coisa. Devia ter havido um bigode. Bigode eriçado. No entanto... Os bigodes podem ser criados e tirados. Seguindo um impulso, apanhei o copo no qual o cavalheiro estivera tomando bourbon em demasia. Enviei-o, com um bilhete e descrição geral do cavalheiro, à polícia de Nova York. Contando... Aí temos o relatório, palavra por palavra. Acabei de recebê-lo.

— Quem é Jasper Biset? — perguntou O’Leary, em cuja voz transparecia a exasperação.

— A criatura conhecida da polícia como Jasper Biset está aqui sob o nome mais conveniente de Jacques Bassett. Convidado da mansão. Convidado, de modo mais específico, do Sr. Richard Rexon.

Carrington Rexon teve um movimento brusco, mas não disse coisa alguma.

— O senhor, então, acha que ele é... — começou O’Leary a dizer.

— Não sei, tenente. Esses são todos os fatos de que disponho. Estou sendo franco. Mantenho a mente aberta e receptiva, como no seu caso. Mas uma conversa com Biset-Bassett é coisa que se torna claramente recomendável... não acha? Vamos fazê-lo aqui?

O’Leary, um tanto aturdido e incerto, assentiu.

Vance voltou-se para Rexon.

— Pode mandar chamar o cavalheiro, senhor?

Rexon, o semblante carregado, tocou a campainha. Higgins apareceu, recebeu as instruções necessárias. Vance andava de um para outro lado do aposento. Acendeu um novo Régie. O tenente permaneceu em pé, em atitude estóica, à janela, pelejando com o cachimbo. Higgins logo voltava.

— Sinto muito, senhor. O Sr. Bassett não está no quarto dele.

— Ora, não o consegue encontrar, homem? — inquiriu Rexon, demonstrando impaciência.

— Tem-se a impressão, senhor, de que o cavalheiro não esteve no seu quarto por toda a noite.

— Oh, ora essa! — e Vance se pôs em pé, inteiramente imóvel, o cigarro a meio caminho dos lábios. — Tem certeza, Higgins?

— Bati à porta dele, senhor. Ninguém atendeu. A porta não estava trancada. Olhei para o interior, senhor. A cama não foi usada essa noite. Confirmei com a camareira.

Rexon emitiu um gemido.

O’Leary se pôs em pé, agressivamente indignado.

— Acho que devíamos ter agido mais cedo, Sr. Vance.

Vance não deu atenção à repreensão implícita naquelas palavras.

— Higgins, chame a garagem.

O mordomo discou três números e entregou o telefone a Vance.

— Algum carro saiu hoje de manhã? — perguntou Vance e aguardou por instante. — E ontem à noite?

Desligou então o telefone, dizendo: — Todos os automóveis estão aqui. É curioso. Que tal irmos até o boudoir do cavalheiro?

Não se notava qualquer desarrumação no aposento. Um dos armários continha ternos muito bem arrumados nos cabides. O outro pôs à mostra um sobretudo cinzento, outro marrom, dois ou três robes de chambre e diversos pares de sapatos. Três chapéus achavam-se arrumados na prateleira superior. Dos armários Vance foi ao bureau e examinou as gavetas. Estavam bem arrumadas e cheias, contendo os acessórios costumeiros de homem de bom gosto. Em um dos cantos do quarto via-se a mala, com bolsa menor e do mesmo couro. Vance as abriu, verificando que estavam vazias.

— Não dá para ver coisa alguma de útil por aqui — comentou, observando todos os detalhes do aposento. — É melhor irmos a Winewood. Uma conversa com o chefe da estação poderá ser reveladora.

O pequeno automóvel do tenente achava-se estacionado em frente da varanda. O’Leary seguiu em sua direção, ao descer os degraus.

— Oh, espere! — e Vance o deteve. — Por favor! A mente funciona com mais eficiência, em velocidades menores. Vamos a pé. Se não se importa.

O’Leary deu de ombros, continuou andando para a extremidade da trilha e entrou na estrada de automóveis que passava pela propriedade, até à estrada municipal. A camada mais recente de neve não fora tocada, a não ser por um par de pneus, assinalando a chegada do tenente, uma ou duas horas antes.

Vance acendeu o cigarro. Nós o acompanhamos, andando.

— Não é todos os dias que se tem a oportunidade de pôr as mãos em um assassino — comentou O’Leary, em tom sombrio. — Será uma pena, se ele fugiu.

— Oh, sim. Não resta dúvida. Muito triste. Mas não estou convencido de que o homem seja realmente um assassino. As minhas próprias observações não o indicam. Não, em absoluto. Não é o tipo que lida com assassinato. Homem suave e gentil demais. Não mancharia as mãos com sangue.

— O senhor não acha, então, que ele tenha morto Wallen, na tentativa anterior de obter as esmeraldas? — indagou O’Leary, surpreso.

— Não... Oh, não. Como disse. Não é o tipo. Ainda assim...

.— Mas reconhece que ele foi embora com as jóias?

— Meu caro tenente! Não reconheço coisa alguma. Estou apenas olhando em volta, neste instante. Esforçando-me por aprender.

— Isso nos leva de volta a Eric Gunthar. Já foi pedido a ele que explicasse sua posição, durante o incidente de ontem?

— Não, ainda não. Boa idéia, entretanto. Falarei mais tarde com ele. "Onde esteve na noite de...?" E perguntas desse tipo. Talvez ajude, talvez não... — E Vance jogou a ponta do cigarro para o lado.

Havíamos acabado de passar pelos portões maiores e dado talvez cem passos na direção de Winewood, pela estrada. O’Leary sacou o cachimbo.

— O automóvel teria sido mais rápido...

— Mais rápido, sim — retorquiu Vance, estacando abruptamente. — Mas não produziria tantos resultados... Olhe mais além, tenente.

Dirigia nosso olhar para um grupo de árvore, ao lado da estrada, logo abaixo da muralha alta da propriedade Rexon. Um amontoado de neve, em forma irregular, com manchas escuras aqui e acolá, era encerrado por um par de sapatos de couro.

— Poderíamos ter passado por aqui de automóvel, sem ver, não acha? — comentou Vance, caminhando em meio aos arbustos e acompanhado por O’Leary, este em silêncio envergonhado.

Ao nos aproximarmos, notamos que o volume apresentava o contorno de forma humana amontoada, um dos braços retorcidos sob o dorso, o outro estendido a partir do ombro.

— Aí, a meu ver, está nosso desaparecido técnico de jóias.

Vance falava em tom solene; aproximou-se da figura e voltou-lhe o rosto para cima.

Era Jacques Bassett, na roupa noturna em que o vira na noite anterior. Usava agora, além da mesma, um chapéu negro. Vance inclinou-se e examinou mais atentamente o corpo. Uma faixa de neve pegajosa e escurecida, acima da orelha direita, chamou-lhe a atenção.

— O mesmo que Wallen, tenente. Não temos aqui uma coisa agradável. Nada agradável, em absoluto.

— Tem razão, senhor. Parece-se demais a Wallen. O mesmo tipo de ferimento. A mim também não agrada, senhor... acha que está morto faz muito tempo? — perguntou O’Leary, e Vance já se erguia.

— Oito ou dez horas. Mas, tenente! Eu não sou o perito médico. Devíamos ter o Quayne aqui presente. Quer que eu volte à mansão e telefone para o seu esculápio, ou prefere cuidar do caso enquanto espero?

— Não é necessário que fique aqui, senhor — disse O’Leary, mostrando-se respeitoso. — Eu ficarei. Se puder fazer-me o favor de telefonar para o Dr. Quayne.

— Com prazer, tenente... E por falar nisso... — acrescentou, hesitando. — Pode dizer-me se as esmeraldas estão na indumentária do cavalheiro?

— Eu não o devia examinar, senhor. Vai contra os regulamentos — afiançou O’Leary, ajoelhando-se enquanto o dizia e examinando rapidamente os bolsos de Bassett. Ergueu-se então. — Esmeralda alguma, senhor. Só as coisas comuns — e aduziu com rapidez: — Percebe o que isso significa, senhor?

Vance lançou-lhe um olhar de esguelha.

— Você é inteligente demais para este lugar, tenente.

— Mas gosto daqui... O que temos aqui faz carga contra Eric Gunthar ainda maior do que antes... Não acha, senhor?

Vance assentiu.

— Receio que sim... em teoria. Mas, tenente, com certeza não acredita que...

— Não me pagam para que acredite em coisas, senhor. Sou pago para acompanhar os fatos.

O’Leary puxou uma baforada do cachimbo e acrescentou: — E receio que tenha de efetuar a prisão de Gunthar e da filha. Estou dizendo isso agora, senhor, porque quero ser justo.

— Compreendo, tenente. Voltando-se, Vance regressou à mansão.

Na varanda, alguns dos convidados conversavam animadamente. Joan Rexon fora para dentro, Ella Gunthar estava sentada, distante dos demais, olhando com inquietação para o rinque. Continuava ainda sob a guarda bastante ridícula do investigador de Winewood. Vance aproximou-se da jovem.

— Escute com atenção, minha cara. Existe perigo real para você e seu pai. Preciso de sua ajuda. Você e eu temos de trabalhar juntos. Vamos livrar-nos do pesadelo. Eis o que deve fazer: apanhe os patins e roupa de patinação. Diga a seu pai que o Sr. Rexon gostaria de falar-lhe, no gabinete. E o velho Jed também, se o encontrar. Este cavalheiro a acompanhará — disse Vance, indicando o policial. — Depois, deve voltar aqui ao rinque e patinar como se tudo que deseja dependesse disso. Mantenha todos os convidados bem interessados. Não os deixe chegar perto da casa, de modo algum. Patine até que eu lhe dê o sinal para parar. Enquanto isso, estarei trabalhando o mais que puder por você e seu pai. Entendeu?

Os olhos da jovem tremiam, mas ela ergueu o queixo e fitou Vance diretamente.

— Farei tudo que pede.

Havia decisão, submissão e heroísmo em sua voz. Ela seguiu para o pavilhão, o oficial corpulento bem próximo.

Vance seguiu para o gabinete. Carlotta Naesmith aproximou-se em carreira, o ar indagador, como se quisesse perguntar alguma coisa.

Vance ergueu a mão.

— Agora não, por favor. Tenho algo a lhe pedir, algo urgente. Todos os convidados devem ser mantidos fora daqui. Longe da casa. Ella Gunthar vai patinar para eles. Você a magoou muito, ela está sofrendo. Seja bondosa.

Antes que a Srta. Naesmith pudesse responder, Vance prosseguiu em sua marcha para o gabinete.

Encontrou Carrington Rexon ainda sozinho por lá e o colocou rapidamente a par dos novos acontecimentos.

O outro afundou-se na cadeira, desalentado.

— Outra morte! — gemeu, abatidíssimo. — E as esmeraldas?

— Não estavam com ele. Ainda poderão ser recuperadas.

Vance estendeu a mão para o telefone, chamou Quayne, colocou-o a par da situação e lhe disse onde poderia encontrar o tenente O’Leary, guardando o corpo de Bassett.

— O que acha de tudo isso, Vance? — perguntou Rexon, quando o outro sentou-se em frente.

— Ainda nada, velho amigo. Estou tentando somar as parcelas. Tem de resultar em soma simples, mais cedo ou mais tarde... Pode pedir à sua zeladora para vir aqui, por favor? Tenho algumas perguntas a fazer-lhe.

Rexon transmitiu o pedido pelo telefone interno.

Vance se levantou, reprimindo o nervosismo, foi à janela e acendeu um cigarro. Finalmente se voltou e fitou o anfitrião.

— Tenho o pressentimento de que, em algum lugar, hoje de manhã, deixei escapar alguma coisa. Não é de importância. Ainda assim, amola-me muito. Algo inconscientemente aguardado. Espero que não tenha acontecido.


XIV

 

Patinando para ganhar tempo

 


(Domingo, 19 de janeiro — 13:15 horas)

 

 

Mareia Bruce entrou, cheia de dignidade e compostura. Vance puxou uma cadeira para que se sentasse.

— Temos algumas perguntas a fazer-lhe, Srta. Bruce — começou a dizer, iniciando a conversa.

— Nada mais aqui me surpreende — retorquiu a zeladora, em tom filosófico. — Farei o possível para responder.

— Sabe, naturalmente, que diversas das esmeraldas foram roubadas da Sala das Gemas?

— O Sr. Rexon já me informou do ocorrido. É o que me surpreende ainda menos do que tudo o mais. Ficarei satisfeita em livrar-me da atmosfera que cerca essas pedras.

— O que quer dizer, Bruce? — interveio Rexon.

— É bom que lhe diga de uma vez, senhor. Terá de saber, agora ou mais tarde. Estou pedindo demissão imediatamente, senhor. E sairei daqui para sempre, em cerca de uma semana... talvez antes.

— Demissão! Vai embora! Mas por que, Bruce? A mulher corou.

— O doutor fez-me a honra de me pedir em casamento. Vance sorriu, de modo agradável.

— Muito bem, muito bem! Isso deve ter acontecido ontem à noite... não é mesmo, Srta. Bruce? Logo antes de vir tomar conta da Srta. Joan.

A mulher pareceu sobressaltada.

— Como pôde saber?

— É a chama do amor, nos olhos da mulher. Vi todos os sinais. Gostaria de ser o primeiro a dar-lhe os parabéns.

— E eu, também, folgo muitíssimo em sabê-lo, Bruce... — Mas a voz de Rexon faltou, ele prosseguiu depois de leve pausa: — Porém não podia ficar conosco? A Joan vai sentir sua falta...

— E eu lamento muito ter de deixar a Srta. Joan, senhor. Mas Loomis... quer dizer, o doutor... quer sair de Winewood. Está tendo dificuldades cada vez maiores em viver por aqui... havendo dois médicos mais jovens a tomar-lhe a clientela.

— E para onde pretende ir?

— Ainda não tenho certeza, senhor. Ele mencionou a possibilidade de irmos para o exterior.

Rexon assentiu, conformado.

— Compreendo. Compreendo. Imagino que a parada esteja realmente ficando dura para Quayne. Mas, meu Deus! Sentirei a falta dele. E de você também, Bruce.

— Tratemos agora de assuntos menos agradáveis, Srta. Bruce — solicitou Vance, sentando-se no braço de uma poltrona. — Deve ter descido para cá, para o pavimento térreo, por volta do meio-dia de ontem.

— Desci, sim. Estive cá embaixo a maior parte da manhã, cuidando das refeições e...

— Viu Eric Gunthar aqui?

— Notei que ele ficou lá fora, na entrada traseira. Mas não sei se ele entrou na casa.

— Viu o velho Jed?

— Aquele eremita! Ele nunca se aproxima da casa, senhor.

— Bem, consegue lembrar-se de alguém que tenha visto, com certeza? Na sala de entrada ali, ou perto da Sala das Gemas?

— Tantos convidados subiam e desciam... — E ela hesitou por momentos, como a procurar coordenar os pensamentos. — O Sr. Richard passou com rapidez pela sala de entrada, uma ou duas vezes. Acho que vi também o amigo dele, o de aspecto estrangeiro. E aquele cavalheiro caçador de tesouros andou por aqui. Não sei se estava esperando a Srta. Naesmith, ou o quê. E vi o Dr. Quayne, embora não tivesse oportunidade de falar com ele — explicou a zeladora, que parecia ávida em aproveitar qualquer pretexto para mencionar o futuro marido.

— E o viu, quando ele chegou de manhã? — perguntou Vance.

— Não. Foi quando ele saía. Tinha ficado mais tempo do que o costume, estava atrasado. Lembro que a sereia do meio-dia havia tocado alguns minutos antes...

Vance deu um salto, pondo-se em pé, ergueu a mão e pediu silêncio. Uma expressão de distanciamento veio a seu semblante. Caminhou de um para outro lado nervosamente, diversas vezes. Depois estacou de súbito, diante da escrivaninha de Rexon.

— Aquele algo insignificante — observou, com palavras vagarosas, ao deixar-se afundar na poltrona. — Acho que encontrei. A sereia. Não a ouvi tocando hoje.

— Ela não é tocada aos domingos — informou Rexon. —"Não, claro que não. Mas ontem.

— O que pode a sereia ter a ver com tudo isto, Vance?

— Tudo. Preciso pensar um pouco.

Tirou a cigarreira e escolheu um dos cigarros, com gestos deliberados. Caminhou até à janela e ficou olhando por instantes. Ao se voltar, batidas leves à porta foram acompanhadas pela entrada tímida de Eric Gunthar, que retorcia nervosamente o chapéu nas mãos.

— Queria falar comigo, patrão? — perguntou, o olhar baixo, fitando o chão.

Foi Vance quem respondeu à pergunta: — É melhor que saiba logo do pior, Gunthar. O tenente O’Leary está decidido a prender você e sua filha, por suspeitas. Já deve ter notado que ele tem um investigador a vigiar a Srta. Ella... Ela voltou com você?

— Sim, senhor. Voltou. Está no pavilhão, mudando de roupa. Disse que ia patinar no rinque.

— Ótimo — disse Vance. — Daqui a pouco vamos sair, todos nós, e assistir à patinação dela.

— Minha filha pediu para lhe dizer, senhor, que não encontrou o velho Jed em parte alguma.

— Obrigado. Não faz mal... Mas, voltando ao que eu dizia: não vejo motivo por que você também não deva estar aqui. De nada adianta querer fugir. O tenente chegará a qualquer instante. Você deve ficar aqui, sentado. Confie em mim, exatamente como sua filha. Farei o possível. Talvez não consiga, mas não há outro modo. Sente-se aí e espere, entendeu?

Assentindo com desânimo, o homem caminhou com passos desajeitados rumo à cadeira que Vance lhe indicara. Continuou a girar o chapéu nas mãos, logo o colocava atrás de si e apoiava a cabeça nas palmas das mãos, em atitude dócil. Estava envergonhado, assustado.

Vance acabara de voltar e sentara-se em frente à escrivaninha de Rexon quando outra batida à porta anunciou a chegada do tenente e do Dr. Quayne. Leve cheiro de gasolina os acompanhava, em sua entrada no aposento.

— Vejo que sua carruagem recebeu outra injeção intra-muscular, doutor — disse Vance, em tom agradável.

Quayne limitou-se a assentir.

— Parabéns e cumprimentos, doutor — disse Rexon. — Mareia Bruce acabou de nos falar do casamento...

Quayne sorriu e olhou para a noiva, a admirá-la. Sentou-se no divã comprido de couro e a Srta. Bruce levantou-se da cadeira, indo fazer-lhe companhia.

— Achei que você ficaria satisfeito, Rexon — disse Quayne, com certo orgulho.

— Naturalmente, mas vou sentir a falta dos dois. E Joan também sentirá.

O’Leary murmurou seus parabéns, o olhar fixo na figura abatida de Gunthar, que estava inquieto e sentado na beira da cadeira. Depois franziu o cenho, denotando perplexidade, e procurou o olhar de Vance.

— Sim. Decerto, tenente. Fazendo o bondoso. Sabia que você apareceria logo. Achei melhor estar com o Gunthar, pronto para entregá-lo. Tentando fazer a minha parte. Sempre aprecio os favores.

— E a moça?

— À sua espera, também. Isto é, por assim dizer, Se não estiver lá fora no rinque, chegará dentro de um ou dois minutos. Patinando para os convidados. Sob o olho vigilante de seu robusto policial, 6 claro.

O’Leary, de repente, deu alguns passos para trás, apertou os olhos e lançou a Vance um olhar arguto.

— Qual é o significado de tudo isso, senhor? Aí temos algo escondido.

Vance sorriu, fatigado, e assentiu.

— Tem toda a razão, tenente! Há algo escondido. Mas, o que será? Acredito que seja a sereia... a sereia que toca ao meio-dia aqui, tenente, e que ecoa pelos morros e...

O’Leary o interrompeu, impaciente.

— A que ponto quer chegar, senhor?

— A um simples bate-papo. Concatenar as coisas, fazer algumas perguntas. Examinar nossas almas. É bom para elas, de vez em quando. E quando houvermos terminado, poderá levar Gunthar e a filha daqui. Se ainda o desejar, tenente.

— A mim parece perda de tempo, senhor.

— E o mesmo ocorre, mais ou menos, com toda a vida... não acha?

— Quanto tempo isto vai levar, senhor? — indagou O’Leary, cuja inquietação se tornava evidente. — Já fui muito longe em sua companhia. De minha parte, estou pronto para levá-los agora...

— Determine o momento, quando quiser, tenente. O’Leary guardou o cachimbo.

— É justo.

— Sim... oh, sim. Sempre justo. Pode ser inútil às vezes, mas justo.

 

 

 

XV

 

Perguntas e respostas

 


(Domingo, 19 de janeiro — 13:45 horas)

 

 

O Dr. Quayne se remexeu inquieto, no sofá onde sentara.

— Aí temos um mau negócio — observou. — Um mau negócio. Há pelo menos dez horas que Bassett morreu. Mandamos retirar o corpo para o necrotério. Outra autópsia a fazer. Pelo que vi de início, posso apenas afirmar que teve morte muito parecida à de Wallen. Desta feita, entretanto, não há penhasco do qual possa ter caído.

— Também o senhor observou a semelhança dos ferimentos, não foi, doutor? — indagou O’Leary.

— Não podia deixar de ser visto — retorquiu Quayne. — Nunca vi coincidência tão estranha. Se não estivesse confundido por outros fatores, poderia quase jurar que ambas as mortes foram causadas do mesmo modo.

O’Leary apertou os lábios, indicando grande satisfação, e assentiu com meneios enérgicos.

— Foi o mesmo pensamento que tive — afirmou o policial.

— Ao que estou informado, Sr. Vance, — prosseguiu o médico — recebeu um relatório oficial sobre o homem, hoje de manhã, relatório esse que lança luz bastante sinistra na questão. Pelo que o tenente O’Leary me disse, formei uma teoria que gostaria de lhe apresentar.

— Faça o favor de dizer — pediu Vance, ansioso.

— É a seguinte: obviamente Bassett veio para cá com o fito exclusivo de pôr as mãos em algumas das esmeraldas do Sr. Rexon. Suponho que a primeira tentativa dele tenha sido feita pelo lado de fora, e que foi surpreendido pelo guarda, Wallen, podemos concluir que só lhe restava uma alternativa, qual seja o de acabar com Wallen. Suponhamos, ademais, que tenha agido assim; que foi surpreendido por um amigo de Wallen, que, em tais circunstâncias, nada pôde fazer para evitar o assassinato. Esse outro homem, podemos ter certeza, ficaria cem raiva e trataria de vingar-se na primeira oportunidade. Essa gente é, toda ela, muito simples, Sr. Vance. Eles acreditam apaixonadamente na lei mosaica de "olho por olho". Não hesitariam em fazer justiça pelas próprias mãos.

— Teoria muito plausível, a sua, doutor — disse Vance. — Digna de exame.

Quayne assentiu, reconhecendo o cumprimento. E logo Vance olhava de modo abrupto para a Srta. Bruce, sentada ao lado do noivo.

— Contou-nos, então, que viu o Sr. Sydes rondando por aqui, por volta do meio-dia?

Ela confirmou.

Vance dirigia-se agora a Rexon.

— Pode fazer o favor de mandar chamar o cavalheiro? E também seu filho. Faça-o agora, por favor. Precisamos de rapidez, amigo velho. As folhas começam a virar-se, o passarinho está a ponto de bater asas. O nosso tempo escasseia.

Rexon tocou a campainha para chamar o mordomo, a quem transmitiu o pedido.

Em poucos minutos uma batida à porta foi acompanhada pela entrada de Stanley Sydes, em bamboleio arrogante, tendo Richard Rexon bem atrás. O último caminhou até à janela por trás da escrivaninha do pai, sentando-se em seu peitoril. Sydes continuou em pé, os braços apoiados nas costas de uma cadeira vazia.

— Aqui temos uma reunião e tanto — comentou, despreocupadamente. — E espero que não tenhamos todos de perder o desempenho da Srta. Gunthar. Nunca vi alguém que a igualasse patinando no gelo.

— Sua opinião não é a única, Sr. Sydes — observou Vance. — Vamos procurar retê-lo aqui o menor tempo possível... Será possível, lembrar-se de onde esteve ontem, ao soar o apito de meio-dia? A Srta. Bruce, aqui presente, acha que o viu a essa hora, caminhando na sala de entrada do térreo.

Sydes riu expansivamente.

— E não está enganada. Provavelmente ia ao bar, a fim de acalmar meus nervos estraçalhados.

— Espero que o antídoto tenha sido eficaz — observou Vance, com um sorriso. — Hoje o senhor está com excelente aspecto... Ainda que isso não venha ao caso, Sr. Sydes, os seus interesses se limitam apenas aos tesouros enterrados? — E o fitava com atenção.

— Acho que não o entendi, senhor. Como disse antes, é a sensação da procura o que me atrai. Mas não acredito que homem algum refugasse um tesouro que estivesse bem diante do nariz... se me permitem a observação.

— Tinha conhecimento da coleção de esmeraldas do Sr. Rexon?

— Por estranho que pareça, não tinha, até um ou dois dias atrás. Foi outra coisa o que me trouxe aqui. Posso acrescentar, todavia, que fiquei verdadeiramente desapontado ao tomar conhecimento de que não íamos ver as pedras, afinal.

— Sabe, por acaso, o motivo pelo qual o Sr. Rexon não abriu a Sala das Gemas para a visita dos convidados?

— Não faço a menor idéia. E não tive a preocupação de indagar.

— É dono de admirável controle — murmurou Vance. — Merece respeito. Vou responder, para o senhor, a pergunta que não foi feita. O fato é que certo número das esmeraldas desapareceu da Sala das Gemas... foram certamente roubadas. E um dos convidados... o Sr. Bassett... foi assassinado.

Com um salto, Richard Rexon se ergueu do peitoril da janela.

Sydes empertigou o corpo e respirou fundo.

— Inacreditável! — murmurou. — Ora, vi o homem faz apenas... — e se interrompeu.

— Sim? — incentivou Vance. — Quando viu Bassett pela última vez?

— Pensando bem — retorquiu Sydes, em tom lamentoso — não o vi hoje, de modo algum... Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Obrigado. Basta que volte a ter com os outros e ajude a Srta. Gunthar a mantê-los entretidos e fora daqui.

Sydes fez uma mesura e retirou-se, com uma expressão de preocupação mista com alívio.

O jovem Rexon conversava em voz baixa com o pai. Parecia perplexo, ao voltar à janela. Vance se dirigiu a ele.

— O que sabia a respeito de seu amigo Bassett, Sr. Rexon?

O rapaz não respondeu em seguida. Vance acendeu um cigarro, enquanto esperava, e finalmente o jovem Rexon se manifestou: — Não sabia grande coisa, ao que receio. Apenas que parecia ser um camarada agradável, e também bom companheiro de viagem.

— O que não constitui recomendação suficiente, de modo algum — resmungou o velho Rexon com amargura. — O homem era um patife!

— Sabia — perguntou Vance, descuidadamente — que durante sua breve estada aqui ele andou importunando a Srta. Ella?

Richard Rexon, em resposta, limitou-se a sacudir a cabeça e Vance prosseguiu: — O velho Jed achou necessário repreendê-lo com severidade. Talvez Jed tenha feito mais do que isso...

Eric Gunthar, ouvindo tais palavras, deu um salto na cadeira.

— Não pode dizer isso, senhor! O eremita pode ser um esquisitão, mas não matou ninguém!

Ele próprio pareceu surpreso pela atitude que acabara de tomar, e afundou-se novamente na cadeira.

Quayne lançou olhar significativo a Vance.

— O que vem a confirmar minha afirmação anterior, Sr. Vance.

Este assentiu, distraído. Pegou o cinzeiro e bateu as cinzas do cigarro.

— Diga-me uma coisa, Gunthar: esse seu eremita era amigo de Lief Wallen?

— O eremita não é amigo de ninguém. Talvez só de minha Ella.

— E Wallen tinha algum amigo na propriedade, que quisesse vingá-lo, se soubesse que tinha havido assassinato?

— Não sei nada sobre os amigos, mas qualquer um de nós o faria, se tivesse motivo.

— Muito interessante. E altamente recomendável... Mas acredito que o tenente O’Leary tenha uma ou duas perguntas a lhe fazer.

Vance, com amplo gesto da mão, parecia estar entregando uma testemunha à inquirição da promotoria.

— Sr. Gunthar, — começou o tenente a dizer —, esteve na taberna de Murphy na noite em que Wallen morreu?

Gunthar procurou lembrar-se.

— Estive, sim.

— E foi diretamente para sua cabana, saindo de lá?

— Pode dizer que sim, senhor. Só parei fora da casa, aqui, para ver o que se passava.

— E viu Wallen?

— Não... acho que não — respondeu Gunthar, hesitando e logo corrigia a afirmação: — Ou, se vi, não prestei grande atenção.

— Veio ontem à mansão, Gunthar? — indagou o tenente, cuja expressão se tornava mais belicosa.

— Bem, eu vim... e não vim. Quer dizer, eu não entrei na casa, por assim dizer.

— Para que veio aqui?

— Para falar com o patrão.

Dito isso, Gunthar lançou um olhar inquieto a Rexon e prosseguiu:

— O caso é que o Sr. Richard queria que eu viesse aqui e prometesse ao patrão que não ia beber mais, se ele me deixasse no emprego. Por isso vim logo de manhã. Mas o patrão ainda não tinha descido. Mais tarde, o Sr. Richard foi falar comigo, onde eu estava trabalhando, no pavilhão, e me disse para subir outra vez. Eu não queria ir, mas o Sr. Richard não me largou. Por isso vim. Estava com uma garrafa no bolso e tomei outro gole a caminho. Só para dar coragem, sabe? E quando cheguei aqui, parei para pensar no que ia dizer. Depois achei que o patrão não ia gostar, se sentisse o cheiro de bebida. Fiquei lá fora por algum tempo, pensando no que ia fazer. Mas não entrei. Voltei para o pavilhão. Depois do almoço, o Sr. Richard foi lá outra vez, para me perguntar...

— Chega — interrompeu O’Leary, impaciente.

— Acho, tenente, — interpôs Vance, em voz agradável — que a teoria do doutor se mostra mais plausível. Já conheci médicos, entretanto, que, quando não gostavam de um diagnóstico que não pudesse ser provado com certeza, adotavam uma alternativa mais aceitável, baseada nos mesmos fatores principais.

— Aí temos uma observação cheia de discernimento — observou Quayne, secamente.

— Começamos com a suposição admissível de que o guarda, tendo frustrado uma tentativa de entrada na Sala das Gemas, feita por fora da casa, foi deliberadamente assassinado. Que exista testemunha ocular desse assassinato, não parece absurdo. Sabemos, com certeza, que a entrada é efetuada mais tarde, na Sala das Gemas, graças à chave do Sr. Rexon. Sabemos, do mesmo modo, além de qualquer dúvida, que certo Bassett, com motivos suficientes e compreensíveis para interessar-se pelas esmeraldas, é vítima do segundo assassinato.

Vance fez uma pausa e acendeu novo Régie.

— Defrontamo-nos — prosseguiu então — com um número maior de fatores desconhecidos do que é possível relacionar em um só problema: Quem testemunhou esse primeiro assassinato hipotético? Quem conseguiu a chave para a sala onde são guardadas as jóias e se apropriou das esmeraldas? Finalmente, quem deu fim a Bassett, e por quê?

Puxou baforadas do cigarro, pensativo, e relanceou o olhar em volta.

— De início — prosseguiu — Bassett parece ser a indicação lógica do segundo fator do enigma.

Os demais assentiram, concordando, e ele prosseguiu: — Se, ao menos, tivéssemos encontrado as esmeraldas com ele... ou em seu quarto...

— E foi dada uma busca completa? — indagou Carrington Rexon, cheio de esperanças.

Antes que Vance pudesse responder, o médico voltou a falar:

— Meu caro Rexon — dizia, quase como se se dirigisse a uma criança. — O homem não era criatura tão simplória a ponto de deixá-las de qualquer modo por aí. Poderia fazer delas um embrulho seguro e despachá-las para algum lugar, pelo correio.

— Uma sugestão razoável — concordou Vance. — Por outro lado, sou irresistivelmente levado à conclusão de que Bassett não poderia, de modo algum, ter tirado as esmeraldas.

Seguiu-se um murmúrio de discordância e surpresa.

— Por que não, Sr. Vance? — e a pergunta era feita por O’Leary.

— Pelo simples motivo, tenente, de que ele não teria tempo para tanto. O Sr. Rexon nos contou que ouviu o começo da sereia do meio-dia, exatamente quando foi golpeado e perdeu a consciência. Não é mesmo assim, velho amigo?

— Perfeitamente, Vance. Tenho absoluta certeza.

— Mas — interpôs o médico — eu só fui chamado após meio-dia e meia. Suponho que ninguém soubesse da situação do Sr. Rexon, até então.

— Tem toda a razão, doutor — observou Vance. — Ainda assim, persisto na opinião de que Bassett não teria conseguido... O hábito embota nossa percepção do ato ou som repetido. Quantos de nós temos consciência das batidas de um relógio, a menos que as estejamos esperando? Deixamos o tempo passar por nós, sem ser observado. Mas é bastante que um homem tenha de pegar um trem ou chegar à hora aprazada a um encontro, e o tique-taque de seu relógio adquire significado para ele... Acha isso psicologicamente correto, Dr. Quayne?

— Sem dúvida — concordou o médico e colocou a mão no ombro da mulher a seu lado, mas esta parecia imersa em seus próprios pensamentos.

— Muito bem, nesse caso... Bassett veio ter conosco na varanda, quase antes do eco da sirena ter acabado. Talvez o tenha observado.

— Não o posso afirmar — disse o médico, tossindo, com ar negligente.

— Talvez não. Ele era cidadão um tanto distante dos demais. Ficou em um dos extremos da varanda... sozinho. O singular é que eu não teria notado a sereia. Não havia observado, nos outros dias. O hábito, como afirmei, embota nossos sentidos, não é verdade? Mas embora não tivesse consciência do fato no momento, o som foi chamado à minha atenção. Pelo senhor mesmo, doutor. Lembra-se?

— É possível. Lembro-me de que estava com pressa. Fiquei mais tempo do que pretendia.

— Exatamente. Mas o importante é... e o senhor não podia saber,' doutor, porque nos deixou de imediato... que Bassett permaneceu na varanda pelo menos na meia hora seguinte... e isso esclarece o que quero dizer?

Novo murmúrio abafado se fez ouvir entre os demais.

— Eliminando assim Bassett dessa fase de nosso pequeno problema, quem podemos colocar em seu lugar?... Sydes, sem a menor dúvida, estava dizendo a verdade.

— Pode ser, Sr. Vance — reconheceu O’Leary. — Mas que me diz de Eric Gunthar? Estou prestes a prendê-lo, senhor.

Gunthar remexeu-se na cadeira, o jovem Rexon se adiantou.

— Se me der licença, senhor, acho que posso confirmar as declarações de Gunthar. Pode acreditar nelas, ele contou a verdade.

— Sim, tenente — corroborou Vance. — Deixe-me dizer o seguinte, a respeito de Gunthar: ele tem sido fraco e tolo." Permitiu que sua vaidade e competência normais se transformassem em agressividades. Daí os inimigos que fez. Em seguida, começou a beber em demasia. Era para fortalecer-lhe a confiança. Atitude nada ajuizada. Não, de modo algum. Resultado: tanto ele quanto a filha se acham agora em grandes apuros. Ainda assim, não acredito que seja culpado. E acredito que venha a concordar comigo, dentro em breve, tenente. Alguns minutos a mais, por favor...

Olhou para O’Leary e recebeu dele um assentimento de má vontade. Fitou então o jovem Rexon.

— Que me diz de si, Sr. Richard? Podia ter tirado as esmeraldas de seu pai e feito um embrulho com elas... ?

Foi interrompido por um grito semi-abafado, dado por Mareia Bruce que, de súbito, levantou-se do sofá.

— Oh, meu Deus! — gemeu; e saiu correndo do aposento.

Quayne lançou-lhe um olhar de espanto.

A pergunta de Vance nos deixara, a todos, igualmente aturdidos. O jovem Rexon ficara lívido e sem fala, diante do acusador.

— Com base no que observei e ouvi — prosseguiu Vance, implacavelmente — e deixando de lado por enquanto a questão do móvel do crime, o senhor parece ter tido todas as oportunidades para...

Carrington Rexon deu um salto da cadeira e esmurrou a escrivaninha com o punho cerrado.

— Olhe aqui, Vance! — trovejou. — Já foi longe demais! Se vai transformar o caso em uma farsa, prefiro dizer que as esmeraldas se danem, e encerrar o assunto imediatamente.

— Rexon tem toda a razão — secundou Quayne, em tom imponente. — Pense só no escândalo...

— Estou pensando nele — retorquiu Vance, que continuara calmo. — Mas não se trata mais de uma questão de esmeraldas, apenas esmeraldas. Temos, com certeza, um assassinato a deslindar. Talvez dois. Acredito que o Sr. Rexon não diria "danem-se" a essas mortes.

O proprietário da mansão sacudiu a cabeça, desalentado. Deixou-se cair novamente na cadeira, e o filho, a um gesto de Vance, retomou o lugar no peitoril da janela.

 


XVI

 

Cortina final


(Domingo, 19 de janeiro — 14:45 horas)

 

 

Vance deu alguns passos pelo aposento, a atenção chamada por olhos que espiavam pela janela, atrás de Richard Rexon. Era o Eremita Verde. Ele não se moveu, enquanto Vance se aproximava da janela e a suspendia.

— É melhor que entre para cá, Jed — sugeriu Vance, em tom. casual. — Vai poder ver muito melhor, não acha? E ouvir, também. Será mais satisfatório, não é verdade?

Fechou então a janela, quando o ancião se afastava. Vance voltou à cadeira, cruzando as pernas ao sentar-se.

Higgins abriu a porta, tendo no semblante um ar de surpresa.

— É o velho Jed, senhor — murmurou, sem jeito.

— Sim... oh, sim. Mande-o entrar — e foi Vance quem falou.

O ancião, cabeça branca, entrou na sala arrastando os pés, olhando para um e outro lado, como a procurar onde pudesse esconder-se. Escolheu finalmente uma cadeira no canto mais perto de Vance e sentou-se, sem dizer uma só palavra.

— Em que pé estamos, agora? — recomeçou Vance. — Ah, sim. Ainda temos de encontrar a identidade das pessoas envolvidas em uma cena dramática de agressão física e roubo.

Ergueu-se da cadeira e se encostou nela, debruçado.

— O Sr. Rexon, me contou, Dr. Quayne, que está pensando em deixar Winewood.

Dizendo isso, Vance dedicava um olhar indolente ao médico.

Este pareceu surpreso.

— Francamente, sim — respondeu. — Embora não me lembre de ter mencionado o assunto. De qualquer modo, não vejo o que meus planos para o futuro têm a ver com essa questão.

— Logo verá, doutor.

Vance extraiu do bolso um cartão de visitas e um lápis. Escreveu apressadamente algumas palavras e brincou com o cartão por alguns momentos.

— O nosso problema começa a ficar muito bem enunciado — disse então, olhando os demais. — Eu disse que Bassett não podia ter obtido as jóias. Mas podia... e provavelmente pôde — atacar o Sr. Rexon e conseguir a chave para a Sala das Gemas... Sim, teria tempo exatamente para isso... Esta minha suposição atribui a ele metade do segundo papel. Mas nosso elenco continua lamentavelmente incompleto... Permita mais uma pergunta, Dr. Quayne. Por que fez questão de me lembrar que eram doze minutos após meio-dia, ontem?

— Repilo o que quer dizer, senhor. Eu estava simplesmente com pressa.

— É como diz. Com pressa de entrar na Sala das Gemas e sair novamente, doutor?

Quayne não respondeu, limitando-se a sorrir, como faria diante de alguma criança precoce.

A porta foi aberta de repente e Mareia Bruce voltou, entrando afobadamente no aposento. Tinha o rosto rubro, as mãos arrancavam com fúria o envoltório de papel de um pequeno embrulho. Lançou então um olhar de asco ao homem sentado no divã.

Na confusão momentânea que se formou, Vance passou o cartão que tinha na mão ao tenente O’Leary. Este último saiu do aposento e regressou quase em seguida. Caminhou então, devagar, para o divã, sentando-se ao lado de Quayne.

Mareia Bruce já retirara os últimos fragmentos de papel e agora ostentava nas mãos trêmulas uma pequena bolsa de camurça, de confecção tosca, atada com fio dental. Seus olhos verdes e cheios de fúria fitavam Quayne.

— Seu charlatão! Seu ladrão! — vituperava. — Acha que eu poderia ser enganada com tanta facilidade? Pensou que por causa de suas palavras melosas podia contar comigo para ajudá-lo, protegê-lo em sua hora de aperto?... Sua hora de aperto! — repetiu cheia de desdém. — Hora de vergonha! Hora de perfídia!

Voltou-lhe as costas e estendeu a bolsinha para Vance, que a recebeu, colocando-a sobre a escrivaninha.

Carrington Rexon, os dedos trêmulos, conseguiu abrir a bolsinha. Esvaziou seu conteúdo e as jóias brilhantes formaram uma figura de luz tremelicante no mata-borrão que tinha à frente. O filho voltou a tomar seu lado e, juntos, examinaram as pedras.

— Acho que estão todas aqui, Vance — afirmou o proprietário da mansão, tirando do bolso um lenço e colocando as pedras, uma por uma, em suas dobras.

No divã, Quayne permanecia sentado, com lividez cadavérica. Parecia ter envelhecido muitos anos em questão de minutos. O’Leary aproximou-se um pouco mais dele.

Vance voltou-se para a zeladora.

— Posso perguntar como essa bolsinha chegou a seu poder, madame?

— Ele a trouxe para mim — foi a resposta, com o dedo desdenhosamente apontado para o médico. — Ontem à noite. Para que eu guardasse. Estava tudo embrulhado. Ia ser uma surpresa, uma surpresa que eu partilharia com ele, quando estivéssemos casados e... — Ela cessou abruptamente de falar.

Vance fez uma mesura para a mulher.

— Obrigado, madame. Era a prova concreta de que eu precisava... Uma sorte, para o Sr. Rexon, que os bancos estivessem fechados ontem... não acha, doutor?

Quayne deu de ombros, com ar indefeso.

— Sua teoria não estava muito errada, doutor... Agora, se atribuirmos ao Dr. Quayne o papel de elemento que obteve as jóias, como sugerem de modo tão irresistível as circunstâncias, o problema deixa de existir.

— Mas como, de que jeito, Vance... — e Carrington Rexon já não sabia o que dizer.

— Se o nosso bom médico me ajudar a elucidar mais o assunto... O aparecimento de Bassett na varanda, ontem, foi a deixa de que ele executara metade do plano. Estou certo, doutor?

Quayne não deu qualquer sinal de ter ouvido aquelas palavras.

— E tendo formado para si um álibi inatacável naquela hora perigosa do meio-dia, só foi preciso entrar na casa, tirar a chave de onde sabia que ele a tinha deixado para o senhor, e o resto não podia ser mais simples. Sua presença em qualquer outro lugar, no andar térreo, não teria causado desconfiança alguma... Mas pode contar-nos, doutor, que forma de chantagem Bassett empregou para induzi-lo a participar desse plano?

Quayne permanecia em silêncio completo.

— Nesse caso, tenho de recorrer novamente ao nosso limitado elenco — prosseguiu Vance. — O senhor foi de imensa valia, um pouco antes, doutor. Não resta dúvida de que estava a ajudar a si próprio. Sugeriu a existência de uma testemunha ocular no assassinato de Wallen. Pois bem, quem poderíamos colocar nesse papel e que fosse mais adequado do que o Sr. Bassett?... está claro que isso não passa de adivinhação. Mas, a meu ver, ele satisfazia todos os requisitos...

Seguiu-se uma interrupção inesperada, feita pelo Eremita Verde.

— Não é adivinhação, moço. Se está falando da noite em que Lief Wallen morreu, eu estava lá. Estava lá, porque tinha ido cuidar da Srta. Ella. A Srta. Ella não devia vir aqui tão tarde... Eu vi o doutor caminhar em companhia de Lief. E vi o Sr. Bassett seguir atrás deles. Tudo muito quietinho e sossegado. Eu não sabia que eles pretendiam fazer o mal...

Vance voltou-se de súbito para O’Leary, com ar indagador. O tenente se pôs em pé, com movimento brusco do braço, parecendo-se muito ao de um mágico, quando está a ponto de se sair com alguma surpresa. Descendo gradualmente de sua manga, veio uma chave pesada, com cerca de trinta centímetros de comprimento, aberturas quadradas e variadas em cada extremidade. Ele a estendeu a Vance.

— Por Deus! — disse Vance, sem se alterar. — Uma chave de boca! Em geral, faz parte das ferramentas de um automóvel... não acha, doutor?

Quayne enrijou o corpo, os olhos se esbugalharam e prenderam-se na chave reveladora que Vance tinha à mão.

— Uma pena que sua primeira tentativa de entrar na Sala das Gemas não tenha obtido mais êxito, doutor.

Vance olhou friamente para o homem sentado no divã e aduziu: — Com que, então, Bassett foi mesmo testemunha ocular. Deve ter imposto condições pesadas, doutor.

Quayne falava agora, pela primeira vez. A voz era constrangida, cheia de amargor.

— Metade do que eu poderia obter. E só correu riscos mínimos.

— E o senhor tomou, então, a precaução adicional de deixar o colar no pavilhão, na esperança de assim prejudicar ainda mais Gunthar, que já parecia estar sob suspeita.

O médico estendeu as mãos, em gesto de quem estava indefeso.

— Mas, mesmo assim, achou que não podia confiar em seu sócio? Julgou mais seguro... e mais proveitoso... tirá-lo da manobra, de uma vez por todas?

Quayne se inclinou à frente, o corpo rígido.

— É melhor que eu conte tudo — disse, fatigado. — Quando estive no exterior, faz dois anos, Richard apresentou-me a Jacques Bassett. Foi um conhecimento dos mais infelizes, para mim. Desde o início o homem me desagradou, embora eu tentasse não dar a perceber. Por mais curta que fosse nossa ligação, senti sua influência má. Em momento de fraqueza, fui persuadido a contrabandear um volume com jóias, trazendo-o a este país, para ele. Consegui bastante êxito. Embora ficasse sob suspeita por algum tempo, a investigação federal foi finalmente cancelada. Quando enviei ao patife a parte que lhe cabia na transação, julguei que o tinha arredado para sempre da minha vida. Foi quando Richard veio para casa e trouxe Bassett em sua companhia. Fiquei angustiado ao ver que a amizade deles prosseguira. Mas não podia dizer coisa alguma... Como afirmei antes, a viagem de Bassett para cá foi motivada unicamente pelo seu desejo de apanhar as esmeraldas de Rexon. Ele não perdeu tempo em restabelecer o contato comigo. Tornou bem claro que tivera a sorte de descobrir um aliado, contra a vontade, e que se achava sob suas ordens. Ofereceu-me a escolha de fazer o que mandava ou de ser denunciado na questão do contrabando. Pintou tudo em cores muito boas para mim, se eu fizesse o que ele queria... Há anos que tenho querido casar-me com Mareia Bruce...

Lançou um olhar de súplica à mulher, que estava do outro lado do aposento. Ela recobrara o controle de si mesma, retribuindo com olhar gelado.

— Mas nunca tive rendimentos suficientes para sustentá-la — prosseguiu Quayne. — Minha clínica decaíra a tal ponto que só os honorários pagos por Rexon eram o que restava. Nos muitos anos de minha ligação com esta casa, não me ocorreu por um só instante a idéia de roubar as esmeraldas. O plano foi de Bassett. Mas eu fui presa fácil de seus desígnios... Wallen interrompeu nossa primeira tentativa e tornou-se necessário que nos livrássemos dele. Eu tinha a chave de boca comigo, usei-a para fraturar-lhe o crânio. Depois o arrastamos até o penhasco e o jogamos de lá. Parecia que estávamos a salvo, e eu queria desistir, naquele momento. Mas Bassett se valeu desse segundo crime para aumentar as ameaças. Não pude fazer outra coisa senão prosseguir...

Fez uma pausa curta e prosseguiu: — Adivinhou com muita argúcia, sr. Vance, o modo pelo qual Bassett obteve a chave para mim... Ontem à noite, em hora avançada, eu o encontrei perto da casa, a fim de dividirmos as jóias. Desconfiando dele, levei a chave de boca como precaução. Travamos uma discussão violenta, ele me ameaçou, e eu voltei a utilizar a chave... O resto, vocês já sabem...

Quando se ergueu inesperadamente, O’Leary o imitou, já com um par de algemas na mão. Vance fez-lhe um gesto negativo. O médico olhou em volta, os olhos nublados. Uma de suas mãos foi vagarosamente do bolso interno à boca...

No mesmo instante era lançado de volta ao divã, o corpo em convulsões horríveis. Em questão de segundos, imobilizava-se.

— Cheiro de amêndoas amargas — comentou Vance, calmamente. — Cianureto... Mais inteligente do que eu pensava. Isso nos deixa sem qualquer problema, elimina o segundo ator, no papel duplo.

O silêncio invadiu o aposento por um ou dois minutos.

Foi O’Leary quem o rompeu: — Mas, Sr. Vance, como imaginou que fosse aquela chave de boca?

— Não houve grande dificuldade — explicou Vance, a voz arrastada. — Havia dois fatores faltando no conjunto. O elemento de tempo e a arma do crime. O primeiro se esclareceu, quando percebi a artimanha inteligente dos dois, baseada no apito da sereia. O segundo ocorreu-me quando Quayne voltou em sua companhia esta tarde, após examinar o corpo de Bassett. Trazia um perceptível cheiro de gasolina. E eu me recordei daquela outra noite, quando ele falou em injetar gasolina no motor do carro, em vez de usar o arranque. Há duas ferramentas com as quais retirar as velas para fazê-lo... uma chave-inglesa, ou uma chave de boca... devem lembrar-se da natureza dos ferimentos no crânio de Wallen e no de Bassett. Uma fratura linear e de depressão, sobre o osso fino da têmpora. Um golpe forte com uma chave de aço serviria para a encomenda. Mencionei exatamente uma arma assim como possibilidade, no momento em que Wallen foi encontrado.

Vance fez uma pausa e acendeu o cigarro.

— De modo comum, naturalmente, a arma assassina é eliminada o mais depressa possível. Mas, nesse caso, tem de ser mantida à mão, a fim de afrouxar as velas do motor. Convenci-me de que seria encontrada com facilidade... no chão do seu automóvel, talvez... Não é assim, tenente?

O’Leary assentiu, exprimindo admiração.

— Mas, Sr. Vance, — contrapôs, um tanto encabulado — suponhamos que o senhor não estivesse na varanda, quando aquela sereia tocou? Quayne não podia contar com a sua presença, no momento exato.

— Obviamente que não. Mas não teria importado. Ele contava com a Srta. Joan e com a Srta. Ella. Isso vinha servir-lhe admiravelmente ao intuito. Talvez fosse ainda melhor. Ainda assim... não sei. Ele teria insistido em fazer-se ver. Achava que era a sua "saída" irrefutável, percebe?

— E como — perguntou Carrington Rexon — Bassett conseguiu entrar aqui sem que eu o visse?

— Você não disse que esteve fora da sala, amigo velho? —contrapôs Vance, inalando profundamente seu Régie. — O homem era paciente, tinha grandes objetivos...

Carlotta Naesmith irrompeu então no aposento.

— A pobre garota está cansada, Sir Galahad. Mas disse que recebeu instruções suas para continuar patinando.

Vance passou rapidamente diante da figura inerte de Quayne, estendida no divã.

— Obrigado, Srta. Naesmith. Dentro de instantes direi a ela que tudo vai bem, agora. Logo estaremos lá, todos nós.

— Por favor, Sir Galahad, deixe que eu conte a ela. — E a Srta. Naesmith saiu da sala, antes que Vance pudesse responder.

 

 

Os convidados deixaram a mansão Rexon na manhã seguinte. Também Richard Rexon ia partir de automóvel para Nova York, mais tarde, em companhia de Vance e de mim. Carlotta Naesmith e Stanley Sydes foram os últimos a se despedir. Formavam um grupo um tanto silencioso na varanda, enquanto Higgins levava as malas para fora.

A Srta. Naesmith se deteve no terraço.

— Você vai mandar-me seu novo endereço pelo correio, Dick? — perguntou, falando a distância. — E eu lhe mandarei cartões-postais da ilha dos Cocos. Espero que goste, Dick.

Um sorriso de compreensão foi trocado entre os dois, enquanto Carrington Rexon franzia as sobrancelhas.

Sydes, ainda na varanda, fez a pergunta entusiasmada: — Está falando sério, minha deusa?

— Mais do que sério — replicou ela, correndo para o automóvel. — Quando é que partimos?

— Assim que chegarmos ao iate, querida. — E Sydes foi em seu encalço.

Pouco depois Vance se achava no gabinete de Carrington Rexon, despedindo-se.

— A ingratidão dos jovens — queixava-se Rexon, com amargura. — Não sei em que o mundo vai dar.

— Ora, a coisa não é tão má assim — retorquiu Vance compreensivo. — E não foi você, Rexon, quem falou a respeito do coração humano que deseja a felicidade dos outros?

Rexon fitou-o: uma nova expressão veio devagar a seu olhar.

Richard entrou.

— Você vai dizer ao Higgins para despachar minhas malas, Papai?

— É claro, meu filho. Cuide bem de si... E... antes que se vá, filho, pode trazer Ella aqui, para conversarmos?

Retirando-se com um sorriso nos lábios, Vance os deixou a sós.

Foi bem típico de Willard Huntington Wright, conhecido pelo público como S. S. Van Dine, que, ao falecer repentinamente, em 11 de abril de 1939, deixasse O Crime do Inverno na forma em que o publicamos, sem lhe faltar uma só vírgula. Tudo quanto fazia era assim executado, de modo preciso e completo, denotando sua consideração para com o próximo. O mesmo ocorreu com toda a série dos mistérios policiais de Philo Vance.
Ele próprio narrou como começou a escrever mistérios policiais, e tal narrativa se encontra em artigo intitulado "Eu era um intelectual e vejamos só o que sou agora". Trabalhara como crítico de literatura e arte, e como redator, após deixar Harvard em 1907. E empreendera tais tarefas com grande distinção, mas sem qualquer recompensa material digna de nota — e, por certo, sem acumular dinheiro algum. Quando a guerra eclodiu, pareceu-lhe que tudo em que acreditava e para que trabalhava marchava para a ruína — e agora, vinte e cinco anos depois, podemos afirmar que estivesse equivocado? Havia outras influências também operantes nele, talvez, mas ninguém que conhecesse Willard e a pureza de suas percepções na arte, sua dedicação ao que julgava ser o significado de nossa civilização, expresso nas artes, pode duvidar de que a desilusão completa e a ruína acarretadas pela guerra tenham sido o que finalmente o levou ao colapso nervoso, incapacitando-o por diversos anos. Ele jamais o teria explicado desse modo, ou de qualquer outro modo. Não dava explicações, não apresentava desculpas, em instante algum, e as muitas justificações por ele apresentadas brotavam da bondade de seu coração, tão oculta pela reticência que apenas um punhado de pessoas tomou conhecimento de sua verdadeira gentileza.
Assim é que, afinal, tudo que fizera e pretendera fazer parecia esboroar, e ele também.
Somente um espírito galhardo poderia ter-se erguido dessa queda e a galhardia, por si só, não teria sido suficiente. Mas Willard era também dono de um intelecto — nem mesmo o desalento poderia eliminá-lo — intelecto esse que funcionava com tudo que lhe dessem. Seria de crer que, se seu destino fosse o da reclusão solitária, teria saído da mesma com alguma descoberta biológica, baseada nos ratos que lhe infestassem a prisão. Seja como for, o médico que o tratou finalmente concordou com seus pedidos de ocupação mental, fazendo-lhe a concessão de que lesse livros de mistério, coisa que nunca fizera antes. O resultado foi que, assim como estudara pintura, literatura e filosofia, estudava agora involuntariamente e logo analisava conscientemente o romance policial. Quando se recuperou, era mestre no assunto.
Achava-se então grandemente endividado, mas julgou entrever a possibilidade de libertar-se de obrigações que um homem de sua honestidade não podia ignorar ou, na verdade, tolerar, mediante o que aprendera durante a enfermidade. Escreveu então, com cerca de dez mil palavras cada uma, as tramas de seus primeiros três livros policiais, nos quais deu atenção até mesmo aos últimos detalhes, notas de rodapé e o mais, levando-os ao Century Club, aonde foi almoçar com um dos responsáveis pela editora que os publicou.
Esse editor tinha pouco conhecimento de histórias de mistério, que não haviam usufruído grande aceitação desde Sherlock Holmes, mas conhecia Willard Wright muito bem. Sabia, desde os tempos de Harvard, que tudo quanto aquele homem fizesse sairia bem feito, e as condições razoáveis — tendo em vista o talento do autor — propostas por Willard foram prontamente aceitas.
Já se passaram treze anos desde que Philo Vance surgiu e solucionou o Caso Benson e, juntamente com essa obra e as onze outras que se lhe seguiram, trouxe grande prazer a centenas de milhares de leitores, postos diante das aflições e ansiedades de um decênio dos mais trágicos. Cada um desses livros famosos foi produzido, como aconteceu com os três primeiros, em longa sinopse — cerca de dez mil palavras — de feitura perfeita e completa em seu desenvolvimento. Após as três primeiras sinopses, o editor não examinou mais nenhuma, nem o desejava fazer, pois sabia com certeza que o livro terminado seria outra obra-prima no gênero. Tampouco examinava a segunda etapa do desenvolvimento, mas apenas a terceira, o original corrigido e pronto — e o lia então com o interesse e prazer de qualquer leitor, sem preocupação de natureza profissional. Mas essa segunda etapa no desenvolvimento infinitamente elaborado do enredo tinha cerca de trinta mil palavras, faltando-lhe apenas a preparação final de personagens, diálogo e atmosfera. O Crime do Inverno representa essa etapa na marcha de S. S. Van Dine para o estágio final, e se a trama chega mais depressa à culminação do que nos livros anteriores, aí temos o motivo.
Afirmam hoje que Philo Vance foi criado à imagem de S. S. Van Dine e, embora Willard não fumasse Régies, porém cigarros sem nicotina, percebiam-se semelhanças. Ambos eram de apresentação pessoal infinitamente cuidada, mostravam-se do mesmo modo cheios de decoro e consideração, e Vance dispunha do conhecimento surpreendentemente vasto e preciso de Willard quanto a mil artes e assuntos, e sua atitude céptica, mas bem-humorada, para com a vida e a sociedade. Na verdade, entretanto, a parecença só existiria para quem tivesse conhecimento superficial de Willard Huntington Wright. Vance, na medida em que era Wright, foi talvez a forma sob a qual um homem valoroso e gentil ocultava espírito quase delicado e sensível demais para uma época tão turbulenta e grosseira quanto a nossa. Willard não usava o coração a descoberto — mas havia pontos sensíveis, como sempre existem, e estavam sempre onde os amigos sabiam que estariam, perto da superfície, e de reação rápida.

 

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I

Pedido de auxílio

(Terça-feira, 14 de janeiro — 11:00 horas)


— Você gostaria de umas férias curtas em ambiente ideal... esportes de inverno, companhia agradável e uma verdadeira mansão na qual pudesse descansar? Acabei de receber um convite assim para você, Vance.

Philo Vance puxou a fumaça do cigarro e sorriu. Tínhamos acabado de chegar ao gabinete do procurador distrital Markham, atendendo chamada ao mesmo tempo urgente e jocosa. Vance olhou para o companheiro e suspirou.

— Desconfio de você. Fale abertamente, meu caro Radamanto.

— O velho Carrington Rexon anda preocupado.

— Ah! — exclamou Vance, em voz arrastada. — Não existe bondade espontânea na vida. Que tristeza! Com que, então, solicitam que eu apareça nos Berkshires, só porque Carrington Rexon anda preocupado. Um detetive na mansão serviria para tranqüilizar o homem. Sou convidado. Nada lisonjeiro. Não.

— Não seja descrente, Vance.

— Mas por que deveriam as preocupações de Carrington Rexon ser trazidas a mim? Eu não estou preocupado, em absoluto.

— Logo ficará — contrapôs Markham, com perversidade fingida. — Não vá negar que você adora o sofrimento alheio, seu sádico. Você vive para o crime e o sofrimento. E adora preocupar-se. Morreria de tédio, se tudo estivesse em paz.

— Ora, ora — retorquiu Vance. — Sádico, não. Não. Sempre a me esforçar pela paz e pela calma. E essa minha natureza caridosa e altruísta.

— Exatamente o que eu pensava! A preocupação do velho Rexon atrai, mesmo, você. Já notei o brilho em seus olhos.

— Um lugar encantador, a propriedade Rexon — observou Vance, pensativo. — Mas por que, Markham, com os milhões dele, sua vida folgada e dois filhos adorados, e que o adoram, uma propriedade magnífica, toda aquela fama e saúde... por que estaria ele a se preocupar? É coisa de todo desarrazoada.

— Ainda assim, quer que você vá imediatamente.

— Como quiser. — E Vance afundou-se mais na poltrona. — As esmeraldas que ele tem, ao que imagino, devem ser o motivo dessas preocupações.

Markham lançou-lhe um olhar cheio de astúcia.

— Não me venha com clarividência. Detesto os ledores de sorte, ainda mais quando fazem adivinhações tão fáceis. É claro que são aquelas malditas esmeraldas.

— Conte-me tudo. Não deixe uma só pedra preciosa sem ser revirada. Dá para fazer isso?

Markham acendeu um charuto e, em seguida, explicou: — Não preciso falar com você sobre a famosa coleção de esmeraldas de Rexon. Você sabe provavelmente como aquilo está guardado, no cofre.

— Sei — confirmou Vance. — Examinei-o, há alguns anos. As jóias estão sob proteção inadequada, foi o que ach^i.

— Pois continuam assim. Graças a Deus o lugar não está em minha alçada, pois andaria a me preocupar constantemente, se estivesse. Já tentei persuadir Rexon a transferir a coleção para algum museu.

— Deselegante, de sua parte, Markham. Ele adora com fanatismo aquelas bugigangas. Haveria de estiolar, se ficasse sem as esmeraldas... Oh, para que existem os colecionadores?

— Não sei, realmente, não sei. Não fui eu quem fez o mundo.

— Deplorável — e Vance suspirava. — O que temos em vista?

— Uma situação imprevisível na propriedade de Rexon. O velho anda apreensivo, daí o desejo de contar com sua presença.

— Mais luz, por favor.

— A mansão Rexon — prosseguiu Markham — está no momento cheia de convidados, como resultado das férias do jovem Richard Rexon: ele acabou de regressar da Europa, onde esteve estudando medicina nos centros mais adiantados. O velho está oferecendo uma comemoração em honra do rapaz...

— Eu sei. E contando também com o anúncio do casamento de Richard com Carlotta Naesmith, criatura de sangue azul. Ainda assim, qual a causa da aflição dele?

— Sendo Rexon viúvo, e com a filha inválida, pediu à Srta. Naesmith para organizar uma festa e comemoração na casa. Ela cuidou do caso... desforrando-se. Os convidados, em sua maior parte, são elementos do café society: criaturas excêntricas, gente de todo desagradável aos gostos sérios do velho Rexon. Ele não compreende essa gente nova, inclina-se a não ter qualquer confiança nela. Não que desconfie deles, mas a proximidade de tais pessoas, com relação às preciosas esmeraldas, causa-lhe intranqüilidade.

— Um camarada antiquado. A nova geração é mesmo cheia de possibilidades incríveis. Não se trata de gente adorável e que nos deixe à vontade. Rexon tem alguma desconfiança específica?

— Só de um sujeito chamado Basset. E, por estranho que pareça, não é elemento convidado pela Srta. Naesmith; na verdade é um conhecido de Richard. A amizade começou no exterior... na Suíça, ao que parece. Veio no mesmo navio com ele, na última viagem. Mas o velho cavalheiro reconhece que não tem base para os receios que sente. Está apenas nervoso, de modo vago, por causa da situação geral. Deseja a companhia de alguém perspicaz e telefonou para mim, pediu ajuda, indicando o seu nome.

— Sim, os colecionadores são isso mesmo. A quem pode recorrer, neste momento de incerteza? Ah, ao velho amigo Markham! Markham dispõe de todos os recursos para esse trabalho delicado de observação. Recurso Número Um: o Sr. Philo Vance. Fica apresentável em sobrecasaca, não bebe na poncheira, é capaz de misturar-se aos convidados e observar, sem levantar suspeita alguma. Discrição garantida. Modo excelente de perceber algum vulto furtivo... se houver.

Vance sorriu, com resignação, perguntando em seguida: — É isso, em suma, o que pediu nosso amigo Rexon, pelo telefone interurbano?

— Em grande parte, sim — reconheceu Markham. — Mas ele o soube exprimir de modo mais caridoso. É de seu pleno conhecimento que o velho Rexon gosta de você e que, se soubesse do desejo, de sua parte, de ir à festa, teria sido muito bem acolhido.

— Você me envergonha, Markham — retorquiu Vance, compungido. — Gosto de Rexon, tanto quanto você. É um homem estimável... Pois bem, ele anseia por minha presença reconfortante. Assim sendo, esforçar-me-ei por manter-lhe a tranqüilidade.

 

 

 

 

II

 

Encanto ao luar

 

 


(Quarta-feira, 15 de janeiro — 21:00 horas)

 

 

Markham entrou em comunicação com Carrington Rexon e partimos de Nova York na tarde seguinte, viajando no automóvel Hispano-Suiza de Vance.

Fazia um dia frio, o ar era claro, pois a neve caíra durante a noite. A viagem a Winewood, nos Berkshires, teria normalmente levado cerca de cinco horas, mas as estradas ao norte da cidade estavam cobertas de neve e chegamos atrasados à propriedade de Rexon. A escuridão da noite já se apresentara, mas noite salpicada de estrelas no céu, a lua cheia de claridade.

Eram cerca de nove horas quando passamos por amplo portão de pedra que marcava os limites externos da ampla propriedade. Não havia pessoa alguma para nos indicar a direção e quando tínhamos chegado ao alto de um morro rochoso, Vance ficou sem saber que direção tomar. Viam-se marcas de pneumáticos semi-ocultas em uma das bifurcações da estrada estreita e nós entramos à direita, acompanhando-as.

Mais ou menos a dois quilômetros além, a estrada descia em aclive suave, dando para vale estreito e coberto de neve, em cuja extremidade penhascos alcantilados se erguiam até um planalto encoberto de árvores. Vance deixou que o carro descesse sem ruído, o motor desligado, para aquele lugar de encantamento, tranqüilo e branco.

Quando chegávamos à base do aclive, veio ter a nós o som distante de música, passando pelas árvores à esquerda. Não se percebia qualquer habitação por ali e a música intensificava a fantasia do cenário que tínhamos à frente.

Usando os freios, Vance fez parar o carro e, desembarcando, caminhou na direção das notas musicais.

Não tínhamos percorrido cem passos, quando, em meio das árvores que nos encobriam a visão, pudemos observar pequena poça de água gelada, na qual uma jovem patinava. A música vinha de pequena vitrola portátil, colocada sobre banco rústico, na beira da poça gelada.

A jovem, vestida com roupa branca e simples de patinação, parecia irreal à luz das estrelas e luar. Executava uma após outra pirueta difícil de patinação, repetindo-as com seriedade, como a querer aperfeiçoá-las. Vance, de repente, tornou-se atento.

— Céus! — cochichou. — Patinação magnífica!

Ali ficou, fascinado pela eficiência da jovem que executava diversas piruetas clássicas e rodopios complicados.

O som da vitrola cessou, quando a jovem completava um salto e giro em espiral, e Vance aproximou-se com cumprimento animado. Ela, de início, pareceu sobressaltada, mas logo sorria timidamente.

— Devem ser novos convidados da mansão — observou ela, a voz fraca. — Sinto muito que me tenham surpreendido patinando. É uma espécie de segredo, sabem?... Talvez não contem a ninguém — aduziu então, com tom de apelo na voz.

— Claro que não diremos — prometeu Vance, examinando-a com olhos observadores. — Creio que me lembro de você... Estive na mansão, faz alguns anos. Você não era a amiga e companheira da Srta. Joan?

Ela assentiu, concordando.

— Era, ainda sou. Meu nome é Ella Gunthar. Mas não me lembro do senhor. Deve ter sido quando eu era muito pequenina.

— Eu me chamo Philo Vance — disse-lhe ele. — Estava seguindo de automóvel para a mansão, extraviei-me. Quando ouvi sua música, vim para cá, na esperança de descobrir o rumo a tomar.

— Não está tão extraviado assim — contrapôs ela. — Aqui é o Green Glen, e se voltar pelo morro e tomar a estrada estreita para a direita, por cerca de quilômetro e meio, verá a mansão logo pela frente.

Vance agradeceu, mas ainda assim permaneceu ali alguns instantes.

— Diga-me uma coisa, Srta. Gunthar: se é a companheira de Joan na mansão, por que patina por aqui, tão longe da casa?

O rosto encantador da jovem toldou-se, por momentos.

— Eu... eu não quero magoar Joan — respondeu, de modo misterioso. — Sempre venho ao Green Glen de noite, quando acabo meu serviço na mansão, para patinar.

— Mas a vitrola — disse Vance. — Não é coisa pesada demais para carregar até aqui?

— Oh, não a guardo na mansão. — E a jovem riu. — Guardo na cabana de Jed, logo ali na curva da estrada, perto do cipreste grande. E guardo os patins e roupas de patinação por lá, também. É um segredo entre nós dois.

Vance dedicou-lhe um sorriso reconfortante.

— Bem, prometo que o segredo não transpirará. Trata-se de um belo segredo. Sabe que patina magnificamente? É uma das patinadoras mais talentosas que vi até hoje.

A jovem corou de prazer.

— Adoro a patinação — declarou, com simplicidade.

Minutos depois havíamos entrado no caminho e chegado à fartamente iluminada mansão Rexon.

Enquanto um mordomo idoso e calvo nos levava pelo hall do pavimento térreo, dava para ouvirmos a hilaridade ruidosa de muitos convidados no salão — fragmentos de música popular, risadas, vozes altas: um clamor alegre e juvenil.

Carrington Rexon, que se achava sozinho em seu gabinete, recebeu-nos com o ar digno do antigo cavalheiro. Era a primeira vez que eu o encontrava, mas conhecia-lhe os traços fisionômicos, já que suas fotografias haviam sido publicadas com freqüência na imprensa da cidade. Homem alto, esguio e de aspecto impressionante, em seus sessenta anos; distante e severo, com o ar imperioso do feudalismo. De modo vago, fazia pensar no famoso retrato de Lord Ribblesdale, feito por Sargent.

— Ah, Vance! Foi muita generosidade sua ter vindo. Talvez ache que eu esteja apreensivo sem razão...

A porta foi aberta e um jovem moreno, de aspecto sério, porte atlético, surgiu no limiar.

Rexon voltou-se, sem demonstrar surpresa.

— Meu filho Richard — informou-nos, não ocultando o orgulho que sentia. E logo: — Mas por que abandonou nossos convidados?

— Fiquei um pouco farto — explicou o rapaz, e logo dava de ombros, cm tom de escusa. — Acho que não estou acostumado a isso. É uma diferença tão grande...

Uma jovem com cerca de vinte e cinco anos surgiu no umbral da porta e olhou em volta.

Os modos severos do Rexon mais velho pareceram abrandar-se e ele nos apresentou. Eu também a vira muitas vezes, em fotografias dos jornais de Nova York. Carlotta Naesmith fora debutante cheia de vida e dotes, alguns anos antes. Era jovem de cabelos castanho-avermelhados, animada e cheia de energia, olhos sagazes e expressão de confiança em si própria. Meneou a cabeça em nossa direção, de modo casual, e voltou-se para o jovem Rexon.

— Completamente vencido, Dick? A alegria cansou você? Venha, não abandone o navio exatamente quando o mar se põe tempestuoso.

— Creio que Carlotta tem toda a razão, Richard — comentou Carrington Rexon. — Você voltou para casa a fim de descansar. Esqueça seus bisturis e micróbios por algum tempo. Volte para lá com Carlotta e leve o Sr. Vance, também. Ele deseja conhecer seus amigos.

 

 

 

 

III

 

O copo de bourbon

 

 


(Quarta-feira, 15 de janeiro — 22:30 horas)

 

 

Encontramos um espetáculo invulgarmente alegre e colorido no grande salão. Grupos de jovens lá estavam, brincando e rindo, enquanto outros dançavam. O cenário se animava pelo espírito de divertimento descuidado.

Carlotta Naesmith era anfitrioa competente e levou-nos por ali, varando a multidão ruidosa e apresentando-nos a torto e a direito.

— Aqui temos Dahlia Dunham — disse, puxando uma jovem de seus trinta anos, enérgica e nervosa. — Dahlia é oradora política, cheia de frases inacreditáveis e o terror dos aparteantes. Esposa qualquer causa, desde o socialismo ao fletcherismo...

— Mas não a lei seca, minha cara — retrucou a outra, cm voz rouca e sem firmeza, enquanto retirava o braço do da Srta. Naesmith e seguia apressadamente para o pequeno bar.

Surgiu outra jovem, em tom de queixa.

— Que lugar infernal! Não tem campo de pouso! Quando você pegar os milhões do Rexon, Carlotta, mande o Dick construir um campo de pouso.

Era loura e de físico frágil, olhos cristalinos que se destacavam no rosto pontudo. Reconhecia como Beatrice Maddox, antes que Carlotta Naesmith nos apresentasse, pois ela recebera grande publicidade. Conquistara recentemente a fama como aviadora, e apenas uma proibição governamental impedira seu plano de voar sozinha, atravessando o Oceano Atlântico.

— O que houve Bee? — perguntou uma voz trovejante atrás de mim, e logo um jovem e gigantesco irlandês passava os braços pela Srta. Maddox. — Você está com cara triste. Acabou a gasolina? A minha também. — E ele a levou na direção do bar.

— Esse é Pat McOrsay — explicou-nos a Srta. Naesmith. — Ele sabe andar depressa. Ganhou a corrida automobilística do ano passado, em Cincinnati. Gosta da Bee, mas acontece que ela desdenha os simples corredores de automóveis. Talvez entrem em acordo. Eu queria que vocês ficassem conhecendo Pat... é um animal... mas, esperem. Há outro demônio da velocidade presente aqui... Olá, Chuck — chamou, a distância. — Pare de dar barbadas a Sally e venha cá por um instante... se é possível.

Chuck Throme, o jóquei e cavalheiro de renome internacional, que vencera o último Steeplechase em Aintree, veio em nossa direção, os passos muito incertos e rígidos. Seu olhar já não focalizava ninguém, mas os modos eram impecáveis.

— Sente-se, querido, pois quero apresentar-lhe o Sr. Vance — exortou a Srta. Naesmith. — Não tente isso em pé. Os seus estribos vão cair.

Throme estendeu indignadamente o corpo, em toda a.sua estatura de 1,55m, e fez uma mesura com floreio requintado. Mas esse gesto supremo não se completou, já que foi caindo, estendendo-se no tapete e ali ficando.

— Aí temos uma corrida que o Chuck não ganhou — comentou nossa cicerone, rindo. — Vamos continuar. Algum ajudante haverá de colocá-lo novamente na sela... Não acha horrível, Sr. Vance? A bebida é uma maldição pavorosa. Destrói o cérebro, solapa a moral, e tudo o mais... O que me faz lembrar: vamos providenciar um intervalo em nossa rodada de deveres sociais e tomar alguma coisa.

Levou-nos então para o bar.

— Sou muito reservada... pelo bem do Richard. Só bebo Dubonnet, quando me acho em público. Mas não vá essa moderação feminina, de minha parte, afetar a vida de vocês. Aqui temos de tudo, até mesmo trinitrotolueno.

Vance tomou brandy. Ali estávamos em pé e conversando, quando um homem alto, tisnado de sol e desabrido, aproximou-se e passou os braços pela Srta. Naesmith, como se fosse seu dono.

— Ainda estou ansioso por saber qual é sua resposta, Carlotta — proclamou, bonachão. — Pela antepenúltima vez: Você vem ou não vem comigo à ilha dos Cocos, quando o Dick voltar a serrar ossos?

— Ah! — e Carlotta Naesmith girou sobre os calcanhares, arredando-o de si em gesto brincalhão. — Você continua com sua proposta de embarcar. É deselegante, Stan. E bem diante dos olhos de Dick!

Richard Rexon não demonstrava qualquer contrariedade. Adiantou-se e, pondo uma das mãos no braço do outro homem, apresentou-o a nós. Tratava-se de Stanley Sydes, jovem membro da sociedade, criatura com dinheiro em demasia que passava o tempo em expedições à procura de tesouros enterrados.

Vance tinha conhecimentos de tais atividades e logo se travou uma conversa breve.

— Um playboy cheio de bom dinheiro, que o gasta procurando dobrões sujos! — asseverou Carlotta Naesmith, rindo. — Aí temos um paradoxo... ou estará todo mundo louco, menos eu?

— Não é paradoxo, Srta. Naesmith — observou Vance, em tom agradável. — Compreendo perfeitamente o impulso do Sr. Sydes. Na verdade, não é o tesouro, mas a procura.

— Certo! — bradou Sydes. — A alegria de ultrapassar os outros, de solucionar enigmas; e a aquisição do inigualável... Ora, estou falando como se fosse um colecionador... Perdoe-me, Richard. Não vai qualquer ofensa a seu eminente pai no que digo.

Um grupo ruidoso, em frente, chamou-lhe a atenção e ele foi para lá.

Seu lugar no bar foi quase imediatamente tomado pela jovem que estivera gracejando com Throme.

— Por Deus, Sally! — foi como a Srta. Naesmith a cumprimentou. — Sozinha, de verdade? O seu jóquei cavalheiro não recuperou a montaria?... Cavalheiros, — disse, voltando-se para nós — temos aqui nada menos que Sally Alexander, a inimitável... orgulho de qualquer casa, raconteuse inconveniente e pianista extraordinária. Uma favelada. Ela levou o Livro Azul às massas... e fez com que as massas gostassem. Aí temos uma façanha, por Deus!

— Estão me pichando, minha gente — protestou Sally Alexander. — Sou elegante toda a vida.

— Concordo — disse Vance, a defendê-la. — Ouvi a Srta. Alexander cantar, e não corei por um só instante.

— Deve ter sido quando ela cantava no coro da escola, nos dias da infância.

— Só por causa disso — replicou a Srta. Alexander — vou tirar o Dick de você. '

Passou então o braço pelo de Richard Rexon e levou-o para a pista de dança.

A Srta. Naesmith deu de ombros e olhou para Vance.

— Já basta, Sir Galahad? Temos outras notabilidades no jardim zoológico. Não se trata de nada muito especial, entretanto. Acham que eu seja uma apresentadora sincera?

— Sincera e encantadora — afirmou Vance, baixando o copo. — Mas não existe um Sr. Bassett?

— Oh, Jacques... — e ela relanceou o olhar pelo aposento. — É amigo de Richard, como sabem. Espécime mais ou menos importado, ao que creio. De qualquer modo, veio no navio com Dick e está sempre comparando nossas pistas de esquiação com as da Suíça... para o detrimento das nossas, é claro..Talvez ele cante feito tirolês e viva de leite de cabra. Francamente, não sei. Mas acho que fala inglês americano com sotaque da planície... se não me falham os ouvidos.

Encontrara agora Bassett, a quem procurava com o olhar.

— Lá está, naquele canto, bebendo sozinho e com grande ânimo. Venham comigo. Poderão ficar com ele, para meu prazer. Depois irei salvar Dick. A esta altura a Sally já estará a contar casos apimentados.

Jacques Bassett achava-se sentado a uma mesinha, bebendo bourbon. Era alto, moreno, agressivamente atlético e as sobrancelhas espessas se juntavam sobre o nariz achatado e largo.

Falava sobre a Europa, e Vance demonstrou interesse. Surgiu o tópico das estações suíças para temporadas de inverno e Vance fez perguntas. Bassett discorreu sobre o assunto. Mostrou-se eloqüente quanto às pistas de tobogã e esqui em Oberlachen, no Tirol. Vance mencionou Amsterdam, mas o assunto não apresentava qualquer interesse para Bassett, que se afastou.

Vance voltou as costas e depois estendeu o lenço sobre o copo no qual Bassett estivera bebendo. Enfiando-o no bolso, retirou-se abruptamente da sala.

Pouco depois descobri Vance em companhia de Carrington Rexon, no gabinete do último. Havia outro homem presente, sentado diante da lareira acesa. Era criatura com pouco menos de cinqüenta anos, cabelo grisalho, fala macia que parecia encobrir tensão nervosa: tratava-se claramente de homem experiente, de modos profissionais, que eram rígidos, mas sabendo agradar o próximo. Não tive a surpresa de descobrir que se tratava do Dr. Loomis Quayne, o médico de Rexon.

— O Dr. Quayne — explicou Rexon — apareceu para ver minha filha Joan. Mas a agitação de tantos convidados a cansou, faz muito que se recolheu — disse, a voz melancólica.

(Durante nossa viagem de carro para Winewood, Vance me contara alguma coisa sobre a tragédia de Joan Rexon: como caíra e ferira a espinha, enquanto patinava, tendo apenas dez anos de idade.) — A fadiga de Joan não precisa causar-lhe preocupação, meu caro Rexon — asseverou o médico. — É natural, nas circunstâncias em que estamos. Um pouco dessa animação pode fazer bem a ela, na verdade... estimular-lhe o interesse, levá-la a pensar em coisas novas. A terapia psicológica constitui nosso maior recurso, agora... Aparecerei amanhã, outra vez. Espero que possa ver também Richard. Quase não conversei com ele, desde que voltou. Mas é ótimo vê-lo com aspecto tão bom como aquele de antes, em minha viagem ao exterior, faz dois anos.

— Dick está agora no salão — disse Rexon, com uma piscadela.

O médico sorriu.

— Não, esta noite não. Preciso ir embora. Deixei ligado o motor de meu carro, para não ter de injetar gasolina nas velas. Nestes dias de frio, o arranque não funciona muito bem... E prefiro o sossego de seu gabinete, se puder ficar sentado e terminar minha bebida.

— Acho que tem razão, doutor... Essa geração nova... — E Rexon sacudiu a cabeça, em ar de desaprovação.

Enquanto conversávamos, falando principalmente de assuntos gerais e sem importância, mas com alusões ocasionais ao futuro de Richard Rexon na medicina, tornou-se evidente que havia algo mais profundo do que a simples relação profissional entre Rexon e Quayne; uma certa intimidade, talvez devida ao conhecimento prolongado e.trágico.

Afinal o médico se levantou e despediu-se. Vance e eu, pouco depois, deixamos Carrington Rexon.

— Aí temos uma casa estranha e estonteante — observou Vance, estendendo-se na cadeira de espreguiçar de seu quarto. — Não admira que o velho Rexon esteja assustado. Provavelmente se sente perdido, em meio do desconhecido. Está mais do que decidido em ter Carlotta como nora, é exatamente o tipo de homem que anseia por um casamento dinástico para o filho. E a jovem não é deficiente, no que toca aos dotes. Muito interessante, mas viva demais para meu gosto maduro. E Richard. Camarada admirável. Sério demais para esta gente. É estranha, também, a atitude dele para com Carlotta. Não é o que devia ser, em absoluto. Pareceu de todo indiferente à intromissão do caçador de tesouros. E notei que isso irritou bastante a dama. Será que... criatura interessante, o Sydes. Tem uma esquisitice. E a explicou. Colecionador! Só isso... Mas o Bassett. Não é boa pessoa. Preocupa o velho Rexon. Carlotta também o sente. Há algo conhecido, naqueles x>lhos frios. Singular. E por que deveria mentir a respeito de Oberlachen? Não há pistas de esqui ou tobogã por lá. Apenas um lago, um castelo e alguns camponeses. Provavelmente nunca esteve naquele lugar. Conheceu Richard em Saint-Moritz. E queria conhecê-lo. Quando mencionei Amsterdam, Jacques não quis conversa. Bem, bem... Não, Van. Foi como disse. Uma gente estonteante. Aí temos a vida social, no que possui de mais ostentoso. É maquilagem mental em demasia.

Tirou seus cigarros Régies, acendeu um e estendeu as pernas.

— E por toda a noite não parei de pensar na pequenina Ella Gunthar. Criatura natural, viçosa. Encantadora. No entanto...

 

 

 

 

IV

 

O primeiro assassinato

 

 


(Quinta-feira, 16 de janeiro — 8:00 horas)

 

 

Às oito horas da manhã seguinte, bateram agitadamente à nossa porta.

— Sr. Vance! Sr. Vance! — E reconheci a voz do velho mordomo. O Sr. Rexon pede o favor de ir imediatamente ao gabinete dele.

Vance se pôs em pé com um salto.

— O que houve, Higgins?

— Eu... eu não sei.

— Certo!

Vestiu-se com rapidez e fomos para a sala de entrada. Uma mulher, envergando a libré negra de zeladora, estava debruçada sobre o corrimão da escada. Ouviu que chegávamos e se encostou na parede, olhos arregalados, o corpo rígido. Vance estacou, olhou-a com dureza. Ela era alta, de bom corpo, teria seus quarenta anos. Olhos verdes, cabelos negros, rosto enigmático. Mulher de estirpe superior, mas tensa em demasia.

— Pôde ouvir? — perguntou Vance, em tom frio.

— Temos uma tragédia! — disse ela, a voz de contralto, cheia de nervosismo.

— É artigo comum da vida. Descanse. Descemos apressadamente a escada.

— A criatura mais estranha, até agora, é a mansão — disse Vance, falando comigo. — Inibida. Ameaçadora. Sabe coisas em demasia. Lugar vulcânico, mas apenas fumegando. Ela é a tragédia. Que Deus a ajude...

Carrington Rexon estava vestindo um robe. No gabinete, em sua companhia, achava-se um homenzarrão de meia-idade, paletó de madeireiro, calças de belbutina e botas de couro. Pálido e nervoso, exibia suor nas mãos, enquanto se segurava na lareira.

— Eric Gunthar, meu administrador — disse-nos Rexon. — Acaba de descobrir o corpo de Lief Wallen em Tor Gulch, perto daqui. É evidente que caiu lá de cima da pedra. Gunthar veio comunicar e procurar ajuda. Pode ir com ele, Vance? Eu já telefonei chamando o médico... Wallen era o guarda do setor oeste da mansão, onde fica a Sala das Gemas.

— Talvez seja uma indicação. Perfeitamente. Compreendo. Irei com prazer.

— Lief deve ter escorregado — disse Gunthar, a voz espessa.

— Providencie para que alguém tome o lugar dele esta noite — ordenou Rexon. — É melhor levar dois homens para trazê-lo — aduziu.

— Darrup está lá embaixo. Vou procurar outro — disse Gunthar, e passou a mão pela testa. — Wallen estava triste de ver, senhor... Posso tomar outra coisa...?

— Você já bebeu demais — disse Vance. — Vamos indo!

Gunthar seguiu à frente, taciturno. Quando atravessávamos a estrada principal, diante da casa, surgiu uma figura estranha e desmazelada. A barba branca e hirsuta acentuava-lhe os ombros caídos. Arrastava os pés enquanto andava, mas havia energia nos movimentos. Voltou-se com rapidez para um grupo de árvores, como a querer evitar-nos. Gunthar o fez parar, com ordem peremptória.

— Venha cá, Jed. Precisamos de você.

O velho se aproximou, arrastando os pés, obediente.

— Lief caiu nas pedras em Tor Gulch — explicou Gunthar. — Vamos trazê-lo para cá.

O velho sorriu, com ar infantil. Algum motivo o levava a encarar a tragédia com divertimento.

— Talvez você tenha bebido demais, Eric. Ella disse que você bateu nela, na semana passada. Não devia fazer isso. O Gulch dá para mais de um.

Apanhamos então Guy Darrup, o carpinteiro da propriedade. Gunthar explicou o que se passava, os olhos de Darrup se toldaram. Não havia neles qualquer afabilidade. Partíamos rumo ao oeste, pela trilha, quando ele disse: — Acho que isso vai garantir seu emprego por algum tempo, Sr. Gunthar.

Este rosnou na resposta: — Vá andando. Cuide de sua vida. Talvez você gostasse de ser o administrador.

— Eu faria justiça a todos — foi a resposta, com amargura.

Tomamos uma trilha serpeante até à base dos penhascos, passamos por um grupo de árvores sobre as quais pairava o nevoeiro. Seguimos para o norte, atravessando um córrego regelado e depois tomamos a direção geral da qual tínhamos vindo.

— Você é o pai da Srta. Ella, não, Gunthar? — perguntou Vance, falando pela primeira vez.

Gunthar respondeu com um resmungo de confirmação.

— Quem é ele? — E, com um movimento da cabeça, Vance indicou o velho, que seguia em passos rápidos e arrastados, bem à frente.

Alguma decisão repentina levou Gunthar a procurar agradar.

— É o velho Jed. Foi administrador aqui, antes de mim. Está aposentado agora. Ficou maluco. Mora sozinho no Green Glen... foi ele quem deu esse nome. Não se mistura com os outros. Nós o chamamos de Eremita Verde... Coisa feia, essa com o Lief, tendo a casa cheia de convidados...

— Aquela observação de Darrup... Estava falando em um novo administrador?

— Ora, bolas! Estão sempre falando. Eu faço essa gente trabalhar, eles não gostam.

O velho Jed voltava-se abruptamente para a direita, passando por um grupo de arbustos.

— Ei — resmungou Gunthar — como é que você sabe para aonde ir?

— Acho que sei onde está Lief — disse Jed e, com uma casquinada, desapareceu atrás de uma rocha.

— Ficou maluco — repetiu Gunthar.

— Obrigado pela informação — disse Vance, e logo se ouvia um grito do velho Jed.

— Aqui está Lief, Eric.

Aproximamo-nos. Um corpo encolhido, em contorcimento pavoroso, jazia ao pé do penhasco. O rosto estava dilacerado e sujo de terra, a cabeça descoberta fora violentamente atingida. Notava-se uma poça escura de sangue coagulado.

Vance inclinou-se sobre o corpo e examinou-o detidamente, logo se erguendo.

— O médico de nada adiantará. Vamos deixá-lo aqui. Darrup ficará vigiando. Telefonarei para Winewood.

Ergueu o olhar para o flanco do penhasco e depois para as árvores por trás das torres da mansão.

Gunthar, com um gesto, afastou o velho Jed.

— Você não devia mesmo bater em Ella, Eric — admoestou o velho, com leve sorriso, ao seguir pelos penhascos em direção ao prado.

— Podemos chegar ao alto do penhasco, quando voltarmos à mansão? — perguntou Vance.

Gunthar hesitou.

— Há um atalho curto e que sobe muito, um pouco para trás. Mas é escalada perigosa...

— Nós a faremos. Toque a andar.

Quando havíamos subido com esforço o caminho escorregadio e perigoso, Gunthar indicou o local aproximado de onde Lief Wallen devia ter caído. Havia carvalhos pequenos no alto do penhasco e Vance caminhou entre eles, olhando para baixo, observando a camada fina de neve incrustada. De súbito, ajoelhou-se ao lado de um grosso tronco de árvore.

— Sangue, Gunthar — disse, apontando para uma mancha escura e irregular, a poucos centímetros do tronco.

Muntar arquejou.

— Santo Deus... cá em cima!

— Oh, pois é — E Vance levantou-se. — Não. Não foi acidente. Uma pena que o vento de ontem à noite apagasse as pegadas. Ainda assim... Vamos embora. Temos o que fazer.

Gunthar estacou de modo abrupto.

— O velho Jed sabia onde estava o corpo!

— O que foi ótimo — retrucou Vance, apressando-se na descida em direção à mansão.


V

 

A maldição das esmeraldas

 

 


(Quinta-feira, 16 de janeiro — 9:30 horas)

 

 

 

Carrington Rexon estava tomando café no gabinete, quando voltamos.

— É caso para a polícia — anunciou Vance, e logo explicou: — Telefonarei para Winewood.

Foi ao telefone e manteve ali uma conversa rápida. Rexon tocou a campainha e Higgins entrou.

— Oh! Ah! — e Vance sentou-se. — Muito obrigado. Basta o café, Higgins.

Acendeu então um cigarro, com gestos comedidos e incomuns, estendeu as pernas, sentado na cadeira.

Rexon se mantinha em silêncio, em calma fria, examinava Vance, olhando-o sobre a taça de café.

— Sinto muito que sua estada seja perturbada assim — murmurou. — Eu contava que minhas preocupações não tivessem fundamento.

— Nunca se sabe, não é verdade, amigo velho? Fazemos o que é possível.

O tenente O’Leary, da polícia de Winewood, homem alto, astuto e competente, muito superior ao delegado comum que se encontra no interior, chegou simultaneamente com o Dr. Quayne.

— Sinto muito, doutor. Não temos necessidade do senhor — disse Vance, narrando então os detalhes. — Há horas que o camarada morreu, ao que calculo. É um problema para o tenente.

— Dr. Quayne é o nosso legista — explicou O’Leary.

— Ah! — exclamou Vance, jogando o cigarro na lareira. — Isso facilita as coisas. Vamos imediatamente. Darrup ficou vigiando o corpo. Ordenei que o deixassem lá, onde Gunthar o encontrou. Desculpe minha intrusão, tenente. É apenas no interesse do Sr. Rexon.

— Muito bem, senhor — retorquiu O’Leary. — Vamos ver como está a terra.

— Muito preta, a despeito da neve.

Dez minutos depois o Dr. Quayne examinava o corpo de Lief Wallen.

— Foi uma queda e tanto — observou. — O impacto causou grandes estragos. Está morto faz oito horas. Pobre Wallen. Camarada honesto e consciencioso.

— Essa depressão linear e a laceração acima da orelha direita — comentou Vance.

Quayne inclinou-se novamente sobre o corpo, por diversos momentos.

— Percebo o que quer dizer — disse e olhou para Vance, de modo significativo. — Saberei melhor depois da autópsia.

Ergueu-se então, de cara fechada.

— É tudo por enquanto, tenente — aduziu. — Vou embora... tenho diversos chamados a atender.

— Obrigado, doutor — disse O’Leary, com cortesia. — Cuidarei da rotina.

Quayne fez uma mesura e retirou-se.

O’Leary olhou para Vance, com expressão arguta.

— O que acha daquela depressão e laceração, senhor?

— Venha comigo um instante, tenente.

Vance seguiu então até o alto do penhasco, onde mostrou ao outro a mancha escura no tronco do pequeno carvalho.

O’Leary examinou-a, assentindo com meneios de cabeça. Em seguida, encarou Vance com firmeza.

— Qual é a sua teoria, senhor?

— Preciso dizer? Não passa de uma idéia vaga, tenente. Altamente ilusória. Esse amassado na cabeça de Wallen pode ter sido causado por um instrumento. Não se coaduna com um tombo e rolamento. O pobre coitado pode ter sido atingido em outra parte, trazido até aqui em cima do penhasco e jogado para encobrir o ferimento. Há leves indicações aqui na neve, a despeito do vento que soprou ontem à noite. Mas não passa de um palpite o que estou dizendo. Poderia ter havido três pessoas aqui, ontem à noite, todavia. As marcas não ficaram muito claras. Não. Falta a prova... Minha teoria? Wallen foi atingido perto da mansão. Atingido acima da orelha, com instrumento modelado... digamos... como a extremidade arredondada de uma chave de boca. Teve o crânio fraturado, foi depois arrastado para cá. São as linhas quase apagadas que sobem a encosta. Talvez calcanhares. O corpo foi lançado daqui, de modo que o outro pudesse segurar-se a esta árvore, enquanto empurrava Wallen. Ocorreu hemorragia do nariz e das orelhas, daí o sangue que vemos.

— A mim isso não agrada, senhor — disse O’Leary, fazendo carranca.

— A mim também não. Mas respondi à sua pergunta. O’Leary examinou a mancha reveladora e voltou-se para Vance.

— Pode ajudar-nos, senhor? Eu ficaria lisonjeado. Não vou fingir que não o conheço.

— Deixando de lado o cumprimento, eu gostaria de ajudá-lo t— disse Vance, tirando um cigarro do maço. — Meu único interesse é o Sr. Rexon, como já disse.

— Compreendo. Meus agradecimentos. Vou pôr a máquina em funcionamento. — E O’Leary se afastou, com passos rápidos.

Quando voltamos à mansão o sol banhava a varanda espaçosa cercada de vidraças, estendendo-se por todo o lado do nascente da casa. Ao pé de um terraço estreito, partindo da varanda, via-se um rinque de patinação controlado artificialmente, três lados orlados por árvores esguias e jardins cultivados. Logo por baixo, ao sul, via-se um pavilhão agradável.

Joan Rexon se reclinava na varanda, em cadeira de rodas acolchoada, no formato de uma chaise longue; e a seu lado, em pequena cadeira de vime, estava Ella Gunthar. Vance foi ter com ambas, exibindo um sorriso de cumprimento. Joan Rexon era criatura frágil e melancólica, mas dava pouca impressão de invalidez. Apenas as veias azuladas em suas mãos finas indicavam a doença prolongada que lhe minara o vigor desde a infância.

— Não é terrível, Sr. Vance! — disse Ella Gunthar, em voz trêmula. Ele a fitou por momentos, com expressão indagadora. — Meu pai acabou de falar-nos do pobre Lief Wallen. O senhor já sabe, não é?

Vance assentiu.

— Sei, mas não devemos deixar que isso crie uma sombra sobre nós — afirmou a Srta. Rexon. — Lief era tão bondoso, tão cheio de consideração...

— Ainda mais um motivo para não pensar nessas coisas — declarou Vance.

Ella Gunthar concordou, o semblante sério.

— A luz do sol e a neve... existem coisas felizes no mundo, em que podemos pensar.

Colocou então a mão sobre a de Joan, com ternura, mas a recordação da tragédia continuava.

— O pobre Lief deve ter caído quando voltava para casa, hoje de manhã.

Vance fitou-a, com ar de meditação.

— Não. Não foi hoje de manhã — afirmou. — Foi ontem à noite... por volta de meia-noite.

Ella agarrou-se à cadeira, uma expressão de susto veio a seu olhar.

— Meia-noite — murmurou. — Que horrível!

— Por que diz isso, Srta. Ella? — perguntou Vance, a quem intrigavam os modos da pequena.

— Eu... eu... à meia-noite... — e a voz lhe faltou.

Vance tratou de desviar imediatamente o rumo da conversa, mas não conseguiu fazer modificar o estado de espírito da pequena. Afinal, pediu licença e entrou na casa. Mal havia chegado ao pé da escadaria principal quando uma mão se colocou em seu braço. Ella Gunthar o acompanhara.

— Tem a certeza de que foi... meia-noite? — perguntou, o cochicho cheio de súplica e nervosismo.

— Por volta disso — afirmou Vance, falando em tom leve. — Mas por que está tão agitada, minha cara?

Os lábios de Ella tremiam.

— Eu vi o tenente O’Leary entrar com o senhor e ir ao gabinete do Sr. Rexon. Diga-me, Sr. Vance, por que ele veio?

Há alguma coisa... errada? Teremos todos de ir a Winewood... para responder perguntas, talvez?

Vance teve um sorriso destinado a reconfortá-la.

— Por favor, não vá encher sua linda cabecinha de preocupações. Haverá uma investigação, é claro... é o que determina a lei. Simples questão de formalidade. Mas eles, por certo, não pedirão que você vá.

Ella arregalou bastante os olhos.

— Uma investigação? — repetiu, falando baixinho. — Mas eu quero ir. Quero ouvir... tudo.

Vance se punha perplexo.

— Não está sendo tola, menina? Volte correndo, leia para Joan, esqueça-se por completo de...

— Mas o senhor não compreende. — E ela prendeu a respiração. — Eu tenho de ir à investigação. Talvez... — E ela se voltou de repente e seguiu correndo para a varanda.

— Céus! — murmurou Vance. — O que pode haver na mente dessa menina?

No patamar superior, quando nos voltamos rumo aos quartos, estava a zeladora, saída inesperadamente de pequeno corredor. Ela se empertigou, cheia de ares misteriosos.

— Ele morreu, não é? — indagava, em tom de voz sepulcral. — E talvez não tenha sido acidente.

— Como é possível saber? — retorquiu Vance, mostrando-se evasivo.

— As coisas normais não acontecem aqui — prosseguiu ela, cheia de nervosismo. — Aquelas esmeraldas puseram uma maldição nesta casa...

— Já vi que andou lendo novelas.

Ela não deu atenção às palavras de Vance.

— Aquelas pedras verdes... criam uma atmosfera. Elas atraem, irradiam tentação. Irradiam fogo.

Vance sorriu.

— O que acha de anormal por aqui?

— Tudo. A minha querida Joan é inválida. O velho Jed, um místico fanatizado. A Srta. Naesmith traz pessoas estranhas para cá. Há intriga e ciúmes profundos por toda a parte. O Sr. Rexon quer escolher a esposa para o filho.

Ela sorriu, de modo inescrutável, prosseguindo: — Ele não sabe que está fazendo castelos na areia. Tudo começou há anos.

— Já vi que ouve muita coisa, não? — contrapôs Vance com ironia.

— E vejo muita coisa, também. A dinastia Rexon está em derrocada. O jovem Sr. Richard finge muito, mas na primeira noite em que voltou da Europa havia uma pequena esperando por ele, no salão de trás, por trás das escadas. Ele a tomou nos braços, sem dizer uma palavra, e assim ficaram por muito tempo, bem juntinhos.

Ela se aproximou, baixou a voz e explicou: — Era Ella Gunthar!

— Ora, veja. — E Vance deu uma risada de indiferença. — Amor de jovens. Tem alguma objeção a apresentar?

A mulher se voltou, cheia de raiva, e se afastou pela sala.

 

 

 

 

VI

 

Uma mulher venenosa

 

 


(Quinta-feira, 16 de janeiro — 16:30 horas)

 

 

Vance retirou-se da mansão uma hora depois, exatamente quando a sereia de meio-dia emitia seu gemido, os morros em volta recolhendo a nota musical e reverberando o eco por mais tempo do que o toque inicial. Carrington Rexon guardava desde muito seu prazer infantil, conservando aquele sinal antiquado para os trabalhadores. Reconhecia que de nada valia, mas divertia-se em continuar a usá-lo.

O crepúsculo prematuro de inverno já se iniciara quando Vance regressou.

— Andei espiando e conversando por aí — disse a Carrington Rexon, instalando-se comodamente diante do fogo aceso na lareira. — Atividade de que muito necessitava. Espero que não se importe.

O riso de Rexon não denotava alegria alguma.

— Só espero que não tenha perdido seu tempo.

— Não. Não perdi. Vou ser franco. Sei que é o seu desejo.

Rexon assentiu rigidamente.

— As coisas não andam muito bem — resumiu Vance. — Mesquinhez e maldade em funcionamento. E ciúmes! Nada de modo aberto, apenas pelos subterrâneos. Mas podiam eclodir. Gunthar tem sido duro com os trabalhadores. Isso de nada vale... Ouvi dizer que tem planejado substituí-lo como administrador. Falou-se em Wallen. Há algum fundamento nisso?

— Francamente, sim. Mas eu não tinha pressa alguma.

— Lief Wallen queria casar-se com Ella. Tanto o pai quanto a filha protestaram. Atrito... cenas. Nada de bom. Muito amargor. Fonte de rancor geral dos trabalhadores na propriedade para com a Srta. Ella. Pensam que a moça se considera superior aos demais, por ser a companheira da Srta. Joan. Somente o velho Jed a defende. Eles dizem que o velho sofre de ilusões e tem uma fraqueza pela cor verde. A implicação é de que a presença das esmeraldas o afetou. Todos jogam lenha na fogueira e esperam pelo incêndio.

Rexon deu uma risadinha.

— E talvez você pense, Vance, que eu também estou afetado.

Vance teve um gesto de protesto.

— Por falar nisso, a sua chave é a única para a Sala das Gemas, não?

— Santo Deus, é claro! Chave especial, fechadura especial também. E a porta de aço.

— Esteve por lá hoje?

— Oh, sim. Encontrei tudo em ordem. Vance mudou de assunto.

— Fale-me sobre sua zeladora.

— Mareia Bruce? Criatura firme como pedra.

— Sim, acredito. Honesta, porém histérica. Rexon deu nova risadinha.

— Você tem observado muito... Mas ela adora Joan... cuida dela como mãe, quando Ella Gunthar não está trabalhando. Na essência, Bruce é uma ótima mulher. Quayne concorda com meu ponto de vista. Há um sentimento de camaradagem em marcha entre esses dois. Ela foi superintendente de enfermeiras em hospital, há tempo. Também o Quayne é homem de valor. Folgo em ver que essa amizade se desenvolve e evolui.

— Ah! — E Vance sorria. — Percebo que o Sr. Rexon é sentimental.

— O coração humano deseja a felicidade dos outros, tanto quanto para si próprio.

Já Rexon se pusera sério e perguntava: — E de que mais ficou sabendo, Vance? De alguma coisa relacionada com a morte de Lief Wallen?

Em resposta, Vance sacudiu a cabeça.

— A solução talvez apareça por meio de algo que não tem importância. Mais tarde. Apenas comecei.

Saiu então para o salão.

Bassett achava-se sentado à mesa perto da porta da varanda, onde o tínhamos encontrado pela primeira vez. Acabara de erguer a mão, tomando o braço de Ella Gunthar, que por ali passava. Sorria para ela, de modo desagradável. Ela se afastou. Bassett soltou-a.

— Altiva, não é?

Seu olhar a acompanhou, com expressão sardônica, enquanto Ella regressava à companhia da Srta. Joan. Vance se aproximou.

— Nada de esquiação hoje, Sr. Bassett? Pensei que toda a turma ia para as pistas de Winewood.

— Dormi demais e não peguei o pessoal... Coisinha bonita e loura, essa Ella Gunthar.

Seu olhar voltou para a varanda.

— Coisinha atraente demais, para uma criada.

Vance estreitou os olhos, duros como o aço, chamou a si a atenção de Bassett.

— Todos nós somos criados. Alguns, de nossos semelhantes. Outros, de nossos vícios. Pense no que estou dizendo — declarou e retirou-se para a varanda.

Naquele instante, o tenente O’Leary subia a escada da entrada lateral.

— O Dr. Quayne está fazendo a autópsia — anunciou.

— Investigação amanhã, ao meio-dia. Terá de comparecer, ao que receio, senhor. Virei buscá-lo.

— Alguma complicação? — indagou Vance.

— Não. Toquei tudo de manso. John Brander, nosso juiz, é um homem. Gosta de Rexon, e eu expliquei a situação. Não fará perguntas embaraçosas.

— Veredicto de acidente, talvez?

— Espero que sim, senhor. Brander compreende. Isso nos dará tempo.

— É um prazer trabalhar em sua companhia, tenente.

O’Leary entrou para falar com Rexon e Vance foi ao local onde Joan e Ella estavam sentadas.

Um grupo ruidoso de convidados, voltando da esquiação, vinha com estrondo pelo terraço, passou por nós com cumprimentos animados e prosseguiu subindo as escadas. Carlotta Naesmith e Stanley Sydes ficaram na varanda, juntando-se a nós.

Ella Gunthar olhava em volta, aflita.

— De nada adianta, Ella — disse-lhe a Srta. Naesmith, com ironia. — Dick ficou doido pela Sally Alexander.

— Não acredito!

A boca da Srta. Naesmith contorceu-se em sorriso cruel.

— Ficou sentida, Ella?

— Carlotta! Não seja venenosa! — E não se notava qualquer alegria na repreensão passada por Sydes.

— Como se sente hoje, Joan? — perguntou a Srta. Naesmith, mudando de tom quando a jovem lhe dedicou um sorriso terno. — E o senhor também, Sr. Vance? Por que não foi ter com o pessoal da esquiação? Aquilo transcorreu magnificamente. Havia pelo menos vinte e cinco centímetros de neve macia, sobre uma base espessa.

— Não acha que já tenho neve suficiente, nestes meus cabelos?

— E ficam muito bem, Sir Galahad!

Dito isso, ela se voltou e afagou a têmpora de Sydes, comentando: — Será que o Stan ficará simpático, quando se tornar grisalho?

— Prometo a você, minha deusa, — declarou Sydes — que me tornarei indizivelmente fascinante.

Dito isso, inclinou-se sobre ela e aduziu: — E agora, pela última vez...

— Eu sempre enjôo no mar. Vou procurar meu tesouro mais perto de casa.

— Talvez eu também procure, se você desdenhar meu convite — rebateu ele, agressivo e rabugento.

— O que acha que quer este homem selvagem, Joan? — perguntou a Srta. Naesmith, provocante. — Insiste em que vá de barco com ele à ilha dos Cocos e mergulhe, procurando o tesouro do Mary Dear na baía Wafer.

— Oh, isso seria maravilhoso! — exclamou a jovem, com anseio comovente.

— Minha menina querida — disse a outra jovem, em tom mais brando.

Subiu então, acompanhada por Sydes. Pouco depois Mareia Bruce saía.

— Pode ir para casa, Ella. Eu tomo conta de nossa querida.

Vance levantou-se.

— E eu levarei a Srta. Ella at£ à casa dela.

Eu sabia que Vance sentia grande compaixão pela pequena, que não fazia parte da vida alegre e animada transcorrida ao redor. E sabia do motivo pelo qual desejava caminhar em sua companhia, até à casa do pai. Ia esforçar-se por diverti-la e animá-la, de modo que o aguilhão nas palavras da Srta. Naesmith pudesse ser esquecido.

 

 

 

 

VII

 

A investigação

 

 


(Sexta-feira, 17 de janeiro — 12:00 horas)

 

 

A investigação aberta pelo magistrado fez aumentar a tensão. Ella Gunthar falara a Vance, cheia de sentimento de urgência, assim que chegara à mansão, de manhã. Tinha pleno conhecimento da hora e local da investigação e estava decidida a achar-se presente. Vance procurou dissuadi-la, mas, afinal, desistiu do esforço. Compreendeu que havia motivo mais forte do que a simples curiosidade e providenciou para que ela fosse levada conosco, no automóvel de O’Leary.

Na curva da estrada, onde a mesma se juntava à rodovia principal, O’Leary apertou a buzina e o som da mesma encontrou eco prolongado na sereia arcaica, tocada ao meio-dia, que reverberava por toda a propriedade e, de modo fantasmagórico, acompanhava-nos como um vingador mecânico, enquanto seguíamos viagem. O tenente tratou de oferecer explicações à preocupação de Vance, embora esse não a houvesse manifestado verbalmente.

— Não levaremos mais de dez minutos para chegar lá. Brander esperará por nós.

O pequeno gabinete no edifício público de Winewood estava cheio de residentes da aldeia e trabalhadores da propriedade de Rexon, mas não se notava a presença de qualquer convidado da mansão.

A um extremo do aposento, sobre plataforma baixa, via-se mesa comprida à qual presidia um homem atarracado, de rosto vermelho e olhos a piscar.

— Aquele é John Brander — cochichou O’Leary. — Homem razoável. Advogado imobiliário desta localidade.

À esquerda da mesa, separado por corrimão, encontrava-se o corpo de jurados, homens simples e sinceros, o tipo comum que se contava encontrar em cidade do interior. Um delegado, com ar de deslocada importância, apresentava-se em pé, ao lado do banco das testemunhas.

Eric Gunthar foi chamado em primeiro lugar. Explicou sucintamente como encontrara o corpo de Lief Wallen, quando ia trabalhar, e regressara ao Gulch em companhia do velho Jed, Darrup e Vance. Sob interrogatório bem conduzido, a escalada que fizera ao cume, em companhia de Vance, ficou elucidada; mas quando Gunthar se mostrou volúvel demais com relação à mancha de sangue, foi dispensado um tanto abruptamente e chamado Darrup. Este parecia amedrontado e pouco tinha a aduzir ao testemunho prestado por Gunthar. O velho Jed revelou-se figura um tanto comovente, no banco de testemunhas, e Brander não perdeu tempo com ele. «, Vance foi chamado em seguida. As perguntas de Brander resultaram, em grande parte, em repetições dos depoimentos já prestados; e a despeito da tentativa evidente do juiz, no sentido de "usar cautela, a mancha de sangue no pequeno carvalho do penhasco foi examinada em muitos detalhes. Brander hão parecia atribuir qualquer importância especial à mesma e saiu-se com uma sugestão sutil de que o sangue talvez não fosse humano. Eu próprio percebia uma efêmera visão mental de algum rapaz ou caçador a atirar em algum coelho correndo sobre a neve.

— Havia pegadas perto do local? — perguntou Brander.

— Não. Pegada nenhuma — respondeu Vance. — No entanto, notavam-se marcas vagas na neve.

— Alguma coisa definida?

— Não. — E Vance teve licença de retirar-se do banco. O Dr. Quayne foi então trazido a depor. Seu ar digno

e modos educados causaram boa impressão. Os jurados ouviam, denotando respeito evidente. O testemunho prestado pelo médico foi perfunctório e técnico. Narrou o estado do corpo, quando o encontrara pela primeira vez; calculou a hora da morte e apresentou com rapidez os achados da autópsia. Acentuou, todavia, a existência de um ferimento singular no crânio, sob a orelha direita de Wallen.

— Pois bem, esse ferimento no crânio, doutor — interveio o juiz. — O que notou de singular nele?

— Tinha contorno um tanto acentuado e comprimido, correndo da orelha direita cerca de dez centímetros na direção da têmpora... não é exatamente o que se podia esperar, até mesmo em choque violento com superfície lisa.

— Havia neve onde Wallen caiu?

— Cerca de três centímetros, pelos meus cálculos.

— Examinou o terreno por baixo da neve, procurando uma possível projeção?

— Não. Teria sido visível, se existisse.

— Mas existem rochas com pontas para fora, no penhasco, entre a parte de cima e o chão, não é mesmo?

— Pequenas, sim.

— Não é possível, portanto, que a cabeça de Wallen batesse em uma dessas rochas, enquanto caía?

O Dr. Quayne apertou os lábios, exprimindo grande dúvida.

— Ainda assim — persistiu Brander — não podia o senhor dizer de modo definido... poderia, doutor... que esse ferimento era de todo incompatível com a queda?

— Não. Não o posso afirmar de modo definido. Limito-me a dizer que o ferimento parecia singular, nas circunstâncias em que o encontramos; não era coisa de ser esperada.

— Ainda assim — e Brander inclinou-se à frente, com ar acentuado de cortesia —, vai desculpar-me, doutor, se insistir na questão. Tal ferimento teria sido possível em uma queda acidental do penhasco?

— Sim — respondeu o Dr. Quayne, denotando irritação —, teria sido possível.

— É tudo, doutor. Obrigado pela clareza de seu depoimento e ajuda que prestou.

O’Leary foi chamado em seguida. Seu depoimento, breve e impessoal, serviu apenas para corroborar o das testemunhas anteriores. Ao descer do banco, seguiu-se um interlúdio inesperado e dramático. Guy Darrup se pôs em pé, com um salto.

— Não está fazendo justiça a Lief Wallen, Dr. Juiz! — gritou, cheio de indignação. — Não está perguntando no sentido de achar a verdade. Eu podia contar...

Brander bateu na mesa com o martelo.

— Se tem provas a dar — disse, com azedume — deveria tê-lo feito quando estava depondo.

— Mas o senhor não me fez as perguntas certas, não foi, Sr. Juiz? Sei muita coisa sobre o coitado do Lief.

— Faça-o prestar novamente o juramento, delegado.

— Nada de bom para nós — cochichou Vance a O’Leary.

— Brander não pode fazer outra coisa — explicou O’Leary, que também estava apreensivo.

Darrup fez o segundo juramento.

— Agora, apresente-nos suas provas, Darrup — solicitou Brander, cujo tom mordente de voz de nada valeu.

— Talvez o senhor não saiba, Dr. Juiz, das coisas esquisitas e erradas que se passam lá na casa do patrão.

Darrup falava como se fosse um fanático.

— O Sr. Gunthar está sempre provocando os outros. E ele bebe demais, não agrada o patrão. Já foi avisado, foi mesmo. E era o Lief Wallen quem ia tomar o lugar dele... assim como ele tomou o lugar do velho Jed. E Lief queria casar com aquela filha bonita dele... aquela que cuida da Srta. Joan.

Ella Gunthar recuou, enquanto o depoente apontava em sua direção e prosseguia: — Lief tinha direito. Ia ser um bom marido para ela. Mas o Sr. Gunthar não queria. Acho que ele tem outras idéias — afirmou Darrup, contorcendo os lábios em sorriso cheio de astúcia. — E a pequena também não queria. Ela pensa que é melhor do que nós. E tem havido muitas coisas erradas em tudo... Lief não era rapaz de desistir à toa...

Darrup arquejou audivelmente e prosseguiu:

— Mas não é tudo, Dr. Juiz... não é mesmo tudo. Nada tem andado certo lá na casa do patrão. Há coisas engraçadas acontecendo. Coisas sérias e feias... coisas que a gente não aprende na Bíblia. O que a pequena vai fazer no Green Glen de noite é o que eu queria saber. Eu a vi indo de mansinho para a cabana do velho Jed. Tem gente tramando coisa por aí. Todo mundo está mentindo. Todo mundo está com ódio. E o velho Jed é esquisito. Não fala com ninguém. Mas anda tramando alguma coisa, sempre olhando lá em cima das árvores, botando os dedos na água do córrego, como se fosse um garoto. E depois, logo quando Lief ia tomar o lugar do Sr. Gunthar, cai lá da pedra. Lief sabia andar por ali, sabia andar tão bem que não ia cair desse jeito. E mais, o que ele foi fazer lá em cima, de noite, quando devia estar tomando conta da mansão?

A paciência de Brander se esgotava, ele bateu com força na mesa com o martelo.

— Você veio aqui para dar vazão a seus ódios, homem? Isso não é prova, isso é conversa de mulher velha.

— Não é prova! — berrou Darrup. — Se não é, pergunte à pequena do Sr. Gunthar por que estava descendo o morro do penhasco em carreira, à meia-noite, quando Lief caiu de lá!

— O que disse?

— O senhor bem que me ouviu, Sr. Brander. Eu estava trabalhando até tarde no pavilhão, consertando as coisas para a festa do patrão. E lá veio ela, descendo o morro em carreira, e entrou pelo pavilhão. E estava chorando, também.

Olhei para Ella Gunthar. Tinha o rosto lívido, os lábios tremiam. Houve agitação no aposento, Brander hesitou, pareceu pouco à vontade. Folheou alguns documentos que tinha à frente e logo dedicava um olhar raivoso a Darrup.

— Suas declarações não vêm ao caso — afirmou e fez uma pausa. — A menos, talvez, — e surgira um tom jocoso em sua voz — que esteja acusando uma simples menina de jogar um camarada grande como o Wallen lá do penhasco. É o que quer dizer?

— Não, Sr. Brander. — E Darrup voltara a seu ar taciturno. — Não havia de ser ela. Só estou dizendo...

Mais uma vez o martelo se fez ouvir.

— Basta! Essa investigação não se destina a prejudicar a reputação de uma jovem. Pretendemos apenas determinar por quais meios Wallen morreu e, se foi por meio criminoso, em mãos de quem. O que afirma, portanto, de nada vale a esta investigação. Saia daí, Darrup.

Darrup obedeceu, e Brander voltou-se com rapidez para O’Leary.

— Algum outro depoimento, tenente?

O’Leary, em resposta, sacudiu a cabeça.

— É tudo, então — disse Brander, falando rapidamente para o corpo de jurados; e esses se retiraram. Em menos de uma hora, declarou-se o veredicto: — Achamos que Lief Wallen morreu em queda acidental, sob circunstâncias suspeitas.

Brander ficara sobressaltado, abriu a boca, estava a ponto de falar, mas nada disse. A investigação terminara.

— Aí temos um veredicto! — zombou O’Leary, falando com Vance, quando voltávamos à mansão. — Não fez sentido algum. Mas Brander trabalhou o melhor que pôde.

— Sim... oh, sim. Não foi coisa rigorosamente legal. Poderia ter sido pior. Entretanto...

Ella Gunthar estava sentada no canto do banco de trás, a meu lado, tendo um lenço na boca, olhando sem ver, fitando a paisagem calma de inverno.

Vance tomou-lhe a mão com gentileza, quando chegamos.

— Darrup contou a verdade, minha cara? — perguntou.

— Não sei do que está falando...

— Que você vinha descendo em carreira, aquela noite?

— Eu... Não. Claro que não.

Ela ergueu o queixo, em ar de desafio, explicando: — Eu me achava em casa, à meia-noite. Não ouvi coisa alguma...

— Por que está com lorotas? — indagou Vance, cheio de severidade. Ela apertou os lábios e não disse coisa alguma. Vance prosseguiu, com ternura: — Talvez eu saiba. Você é uma menina corajosa. Mas muito tola. Nada a vai prejudicar. Quero que confie em mim.

Ato contínuo, estendeu-lhe a mão. Ela o fitou por momentos, tentando compreendê-lo, e logo um sorriso débil surgia em seus lábios. Em seguida, colocou a mão na dele, confiantemente.

— Agora, vá ter com Joan... e não tire esse sorriso do rosto.


VIII

 

Planos secretos

 

 

(Sexta-feira, 17 de janeiro — ao anoitecer)

 

 

Ao anoitecer, pouco após o jantar, eu me encontrava com Vance na varanda, olhando as sombras no rinque de patinação. Ecos de música e alegria vinham àquele canto afastado do salão principal. Vance parecia sério e contemplativo, fumava um Régie em silêncio, com a expressão de quem estava muito distante dali.

Não tardou, todavia, para que ouvíssemos o som de passadas a se aproximar por trás de nós, e Vance se voltou para receber Carlotta Naesmith.

— Meditando sobre seus pecados, Sir Galahad? — perguntou a jovem, enquanto se aproximava. — Mas isso de nada ajuda. Eu já tentei... Vim procurá-lo para fazer uma pergunta das mais importantes... vamos ver: sabe patinar bem?

— A esta altura de minha vida! — contrapôs Vance, fingindo abatimento. — Mas sua pergunta é lisonjeira, fico devidamente reconhecido.

— Eu bem contava que você soubesse patinar. Precisamos muito de um mestre-de-cerimônias — disse ela, provocando-o em tom brincalhão. — Assim sendo, está eleito para o cargo.

— Parece interessante. Mas gostaria de receber instruções que expliquem a coisa.

— O negócio é o seguinte — e ela continuou. — Todos os residentes deste jardim zoológico, com exceção dos decrépitos, vão dar uma festa ao Richard, na noite de amanhã. Será uma espécie de comemoração de despedida. Vai efetuar-se no rinque, lá fora... Eu sou a anfitrioa temporária, como sabe. E, de alguém tão brilhante quanto eu, espera-se a originalidade. Daí os patins... sendo a melhor idéia que pude imaginar.

— Parece divertido — observou Vance. — E quais são meus deveres?

— Oh, simplesmente o de manter as coisas em andamento. Seja oficioso... dá para sê-lo. Anuncie os animais. Tenho a certeza de que já percebeu: todos os números artísticos de animais têm um apresentador.

— E devo trazer medicação de primeiro socorro?

— Está-nos ofendendo, senhor — contrapôs ela, cheia de indignação. — Todos nós patinamos muitíssimo bem. Fui informada de que o bar será temporariamente fechado a sete chaves.

— Isso seria bom, com certeza — disse Vance, sorrindo.

— Estamos fazendo planejamento sério — prosseguiu ela. — Vamos até mesmo praticar no rinque de baixo, amanhã. E iremos a Winewood de manhã, procurando as roupas convenientes. Parece um pouco horrível, não acha?

— Oh, não — protestou Vance. — Parece muito alegre. É como afirmei antes. — E olhou para a jovem, com expressão indagadora. — Diga-me uma coisa, Srta. Naesmith, por que tentou magoar Ella Gunthar ontem?

Transformou-se a atitude da jovem, seus olhos se estreitaram. Ela deu de ombros, sem se comprometer.

— Não preciso olhar muito para ver que ela e o Dick se atraem mutuamente. Sempre foi assim, desde crianças.

— E Sally Alexander?

A jovem sorriu, mas sem divertimento algum.

— Dick não falou com ela por todo o dia. Mas deixemos que Ella se preocupe com o fato.

— E eu não preciso olhar muito — disse Vance, sem deixar de observá-la — para ver que a senhorita não estiolará, se o Richard for levado por outra.

Ela pensou por momentos, e a seguir contrapôs: — Dick é um bom garoto. A idéia é do Papai Rexon, como sabe. E quem sou eu para desfazer-lhe o sonho mais caro?

— Vale a pena ficarmos amargurados? — indagou Vance, tirando os cigarros do bolso. A Srta. Naesmith aceitou um deles e Vance acendeu o outro.

— Oh, isso acontece nos melhores círculos — disse a jovem, em tom jocoso. — E, seja lá como for, não cabe ao homem afastar-se. Essa é a minha prerrogativa.

— Compreendo. Uma simples questão de etiqueta a corrigir. Muito bem, muito bem.

A jovem jogou um beijo para Vance e voltou ao salão, onde predominavam os ruídos.

— É como pensei — murmurou ele, como a falar sozinho. — Nenhum dos dois o deseja. Richard torna bem claro esse fato. Daí o melindre. Transparece numa exibição de crueldade. Antiga seqüência feminina. Mesmo assim, no íntimo, é uma boa garota. Tudo andará por si mesmo. Pobre papai. Sim, a dinastia Rexon está em derrocada. É como Mareia Bruce predisse.

Olhou então para o rinque ensombrecido, inalando profundamente seu Régie.

— Ora vamos, é uma idéia que acalento.

Falava de modo descabido, ao voltar-se repentinamente e entrar.

Encontramos Joan Rexon em sua sala particular, sentada em um divã perto da janela; Mareia Bruce lia para ela.

— Por que não está no salão, minha jovem? — perguntou Vance, em tom agradável.

— Esta noite eu descanso — respondeu a moça. — Carlotta me contou que vai haver uma grande festa para Dick, amanhã, e quero sentir-me bem, para não perder um só instante.

Vance sentou-se.

— Ficaria cansada demais, se eu lhe falasse por alguns minutos?

— Ora, não. Gostaria muito. Vance voltou-se para a Srta. Bruce.

— Importa se eu ficar sozinho com a Srta. Joan?

A zeladora se ergueu, cheia de dignidade magoada, foi para a porta.

— Mais mistério — disse, a voz cava, os olhos verdes fuzilando.

— Oh, é verdade — confirmou Vance, com uma risada. — Uma trama das mais sombrias, na verdade. Mas posso completar minhas maquinações infernais em questão de dez minutos. Volte depois disso, está certo? Como é boazinha!

A mulher retirou-se, sem dizer uma só palavra.

— Quero falar um pouco sobre Ella — anunciou Vance, puxando a cadeira e pondo-se ao lado de Joan Rexon, que se achava reclinada.

— Minha querida Ella — disse a jovem com doçura.

— É mesmo uma querida, não acha?... Fiquei pensando, desde que cheguei, no motivo pelo qual eu não a vejo no rinque de patinação. Ela não sabe patinar?

Joan Rexon exibiu um sorriso triste.

— Oh, ela adorava patinar. Mas acho que perdeu o interesse... desde que eu caí.

— Mas sei que você adora ver os outros patinando, sentindo-se feliz.

Ela assentiu, concordando.

— É verdade! Nunca me esqueço do divertimento que isso me causava. Foi por isso que papai manteve os rinques e o pavilhão. Para eu ficar sentada na varanda, vendo os outros. Ele, muitas vezes, traz patinadores famosos aqui,, só para se apresentarem a mim.

— Ele faria qualquer coisa que a tornasse feliz — disse Vance.

Joan voltou a assentir, de modo enfático.

— E a Ella, também... Sabe, Sr. Vance, na verdade sou uma moça com muita sorte. E passo momentos formidáveis, só em ver os outros fazerem aquilo que eu adoraria fazer também.

— Por isso pensei que a Srta. Ella poderia cuidar da patinação para você, por assim dizer.

A jovem voltou a cabeça vagarosamente na direção da janela.

— Talvez seja por minha culpa, Sr. Vance. Muitas vezes pensei nisso.

— Conte-me, a mim — pediu Vance, falando baixinho.


— Bem, o caso é que quando eu era menina, logo depois do acidente, ela foi para o rinque e patinou... era uma grande patinadora. Eu vi, e era muito egoísta na ocasião. Bastou vê-la patinando para eu ficar magoada. Não compreendo muito bem. Eu era uma criança, só um criança...

— Compreendo, minha cara.

— E quando Ella voltou à varanda, eu estava chorando... Depois disso, por diversos anos, só a vi por intervalos. Ela esteve na escola, como sabe. E nunca mais voltamos a falar sobre a patinação.

Vance tomou-lhe a mão com suavidade.

— Provavelmente ela andou ocupada demais com outras coisas, não pôde patinar. Ou talvez tenha perdido o interesse, porque você não lhe podia fazer companhia. Não tem de sentir-se culpada... Mas já não a magoaria mais, não é verdade?

— Oh, não — e Joan obrigou-se a sorrir. — Eu bem queria que ela voltasse a patinar. Foi uma grande bobagem de minha parte.

— Todos nós fazemos bobagens, quando somos jovens — asseverou Vance, dando uma risada.

A jovem assentiu com ar sério.

— Eu não faço bobagens... desse jeito... não faço mais. Agora, quando vejo algum patinador maravilhoso, desejaria que fosse Ella. Sei que o teria conseguido, se continuasse a praticar.

— E sei precisamente como você se sente — afirmou ele; já se erguia, quando a porta foi aberta e Mareia Bruce entrou.

— A trama foi urdida — declarou-lhe Vance. — E tenho certeza de que não fatiguei a nossa jovem. Ela está pronta a ouvir o final da história.

Quando voltamos à sala de entrada e nos aproximamos da escadaria, vimos duas pessoas em conversa animada, a um canto do fundo. Eram Carlotta Naesmith e Stanley Sydes. Vance limitou-se a um olhar na direção deles e prosseguiu para o salão.

 


IX

 

Chamada abrupta

 

(Sábado, 18 de janeiro — de manhã)

 

 

Na manhã seguinte, Vance levantou-se bem disposto e, depois de tomar rapidamente o café, deixou a casa sozinho, desaparecendo pela trilha larga que passava pelo pavilhão, em direção da cabana de Gunthar. Pouco após sua partida, os demais.convidados se apresentaram à mesa do desjejum, reunindo-se em seguida diante da garagem espaçosa. Um por um os automóveis foram retirados e a caravana partiu alegremente, subindo a elevação até à estrada principal e rumando para Winewood. Mais ou menos meia hora depois, a zeladora empurrou, com ternura, a cadeira de rodas de Joan Rexon, para a varanda agora abandonada e, com atenções maternais, instalou-se em sua chaise longue especialmente construída, colocada perto da janela, de onde via o rinque de patinação.

Mal a jovem ali se instalara, Vance e Ella Gunthar fizeram a volta da trilha ao lado do pavilhão, acercando-se da casa.

— Está vendo, Srta. Joan? — perguntou Vance, quando entraram. — Não apenas levo sua encantadora companheira para a casa dela, à noite, como a acompanho até aqui, de manhã.

Ella Gunthar sorriu. Parecia especialmente satisfeita, tendo nos olhos uma centelha nova. Mareia Bruce, sentindo alguma coisa de novo, fitava alternadamente Ella e Vance. Em seguida, levantou-se, fez afagos em Joan Rexon e entrou na casa.

Vance permaneceu na varanda por algum tempo, conversando do modo mais trivial possível e finalmente entrou, a fim de procurar a comodidade da cadeira de espreguiçar em seu quarto. Parecia preocupado e ali ficou deitado, por algum tempo, fumando inquieto. Suas meditações, quaisquer que fossem, vieram a ser interrompidas por uma batida à porta. Entrou o tenente O’Leary, sentando-se. Em seu rosto aquilino notava-se mais severidade do que o comum.

— Queria falar-lhe a sós, Sr. Vance. O mordomo disse que estava aqui, de modo que tomei a liberdade...

— Muito prazer, tenente — asseverou Vance, rearrumando-se na cadeira e acendendo novo Régie. — Tenho a esperança de que não tenha trazido notícias desconsoladoras.

O’Leary debateu-se com o cachimbo por alguns momentos, sem responder. Tendo-o aceso, fitou Vance.

— Será, senhor, que, por acaso, tem a mesma idéia que eu?

— É possível — contrapôs Vance, cujas sobrancelhas se ergueram de modo indagador. — Qual é o seu pensamento?

— Estou convencido de que sei quem matou Wallen.

Vance encostou-se bem na cadeira, tranqüilamente, e examinou o rosto decidido do homem que tinha à frente.

— Notável! — murmurou, e logo sacudiu a cabeça. — Não. Não faço nenhuma idéia. Meu espírito estava vazio no que diz respeito a isso. De qualquer modo, obrigado por sua confiança. Pode ser mais explícito?

O’Leary, que de início o evitara, parecia agora aflito por falar.

— Calculo a coisa do seguinte modo, senhor: não acredito que Guy Darrup estivesse mentindo ontem, na investigação.

— Não. Não estava mentindo. Foi apenas impulsivo e ingênuo. Trata-se de homem sincero e simples, governado por emoções fanáticas. As indignações fervilham nele, e ontem transbordaram.

— Acredita nele, então?

— Oh, sim. Inteiramente. Não há alternativa. O fato é que andei espionando um pouco por aí, e já confirmei a maior parte do que ele declarou. Não temos uma situação das mais agradáveis, aqui, e nas adjacências. Mas onde se torna uma situação criminosa? Preciso de mais orientação. Pode fornecê-la?

— Eis como concatenei tudo: Gunthar bebe demais, está a ponto de ser despedido. Wallen achava-se programado para a promoção. Só nisso temos motivo suficiente, no caso de naturezas francas e grosseiras. Gunthar é homem de tal tipo. Não se mostra sutil, de modo algum, tende a ser cruel quando bebe: seria capaz de seguir o rumo direto... forte e sem rebouços... quando um problema o deixasse perplexo. Pois bem, aduzamos a isto o atrito entre ele e Wallen, com relação ao futuro da filha. Não acha que isso teria armado todo o palco?

— Concordo — assentiu Vance. — A oportunidade é ainda mais simples. Mas prossiga, tenente.

— Exatamente, senhor. Uma bela oportunidade. Gunthar conhece bem o terreno. Sabe dos atos de Wallen e também de suas fraquezas. O que seria mais fácil para ele do que arrastar Wallen ao penhasco, por algum pretexto, acertá-lo na.cabeça e jogá-lo no Gulch?... A Srta. Gunthar provavelmente desconfiou da intenção paterna, acompanhou-o em segredo pelo penhasco acima e, quando a coisa foi feita, desceu correndo de lá, chorando.

— E que teria Gunthar a ganhar com isso? — perguntou Vance, com indiferença. — Ainda assim seria demitido.

— Oh, sei que Wallen não era o único homem à altura do emprego. Rexon pode arranjar dez outros, com algum tempo. Mas estou informado de que Gunthar pretendia desistir da bebida... na qual começou faz pouco tempo... e recuperar a simpatia de Rexon.

— Mas, ainda ontem, Gunthar bebia além da conta. Eu o vi antes e depois da investigação.

— Isso corrobora minha teoria — declarou O’Leary. — Ele precisava beber para criar coragem... o que aconteceu é o bastante para abater até mesmo um homem mais forte.

— De fato — reconheceu Vance. — Aí temos uma boa observação. E o que mais, tenente?

— Gunthar ameaçou Wallen duas vezes.

— Ouviu dizer?

— É claro. Mas acredito que seja afirmação autêntica. Testemunhas fidedignas jurarão isso.

— Sua análise é inteligente, tenente — afirmou Vance, a voz arrastada. — Mas não constitui um caso liquidado, a defesa pode perfeitamente contestá-la.

A mágoa transpareceu em O’Leary.

— Não é tudo, senhor.

Puxou a cadeira mais à frente e aduziu: — Gunthar não pode apresentar um álibi satisfatório para a hora calculada da morte. Entrou na taberna do Murphy, em Winewood, às dez horas daquela noite. Estava nervoso e bebeu mais do que o costume. Quando saiu, eram cerca de onde e meia. É necessária quase meia hora de caminhada daqui a Winewood. Uma hora depois, Sokol, o farmacêutico em Winewood, estava voltando para casa, de automóvel, ao encerrar-se uma festa, e viu Gunthar cruzando o prado, no lado distante de Tor Gulch. Na ocasião, não deu importância ao fato, mas, depois da investigação, achou que a informação podia ter alguma importância e me falou. É verdade que Gunthar seguia em direção de sua cabana, mas não é esse o atalho vindo de Winewood... E é o trajeto que teria tomado, se houvesse estado antes no penhasco... Acha que isso reforça minha acusação contra Gunthar? — encerrou O’Leary, obstinadamente.

— Oh, de modo acentuado — concordou Vance, no mesmo instante. — Entretanto, está tudo muito circunstancial, não acha, tenente?

— Pode ser — retorquiu o outro, com um toque de bravata na voz, uma sensação satisfatória de triunfo sobre Vance. — Mas constitui o bastante para prender o homem.

— Oh, ora essa. Eu não faria.

Vance o afirmava, cheio de suavidade; aduzindo então: — Até aqui, saiu-se magnificamente, tenente. Juntou as coisas de modo mais do que inteligente. Para que estragar tudo, agindo com precipitação? Falta pegar mais algumas coisas.

— Não pretendo agir imediatamente. Alguns fatos a mais serviriam muito.

— É exato. Aí temos uma necessidade comum da humanidade. Não esquecerei sua teoria. Talvez consiga proporcionar-lhe os fatos que faltam. O crédito será todo seu.

O’Leary apagou o cachimbo e se pôs em pé.

— Há diversas pistas que estou seguindo sem barulho.

Mas achei que devia contar-lhe em que direção elas levam. Tinham a esperança de que o senhor visse as coisas pelo meu ponto de vista.

— E vejo — assegurou-lhe Vance. — Saiu-se muito bem. Mais uma vez, obrigado por sua confiança.

Após O’Leary ter-lhe apertado a mão e ido embora, Vance esmagou o cigarro no cinzeiro e foi ter à janela.

— Com os diabos, Vance, — disse ele, falando consigo mesmo — o homem é especioso demais. Especiosidade. A maldição de nossa era moderna. Mas pensa com clareza. Sujeito competente. Tanto melhor. Não é uma boa teoria. Espero que esteja errado.

Uma hora depois, Vance descia. O grupo que fora de carro a Winewood já regressara. Vimos alguns de seus componentes na sala de entrada do térreo e, do salão maior, vinham sons indicativos da presença dos outros.

O Dr. Quayne estava sentado em companhia de Joan Rexon e Ella" Gunthar, na varanda. Levantou-se ao ver-nos.

— Veio bem a tempo, Sr. Vance — foi o que nos disse, em sua" voz agradável. — Agora, pode entreter estas jovens. Tenho de retirar-me dentro de minutos, a fim de ver alguns pacientes que necessitam mais de mim do que Joan. Apareci para verificar se está em condições para a festa desta noite, e ela não precisa de mim, em absoluto. Com o descanso de ontem e este belo tempo que faz, acha-se pronta para as festividades.

— De qualquer modo — disse a Srta. Rexon — consegui mantê-lo aqui por uma hora, doutor.

— Isso foi puramente social, minha querida Joan — disse ele. E voltando-se para Vance: — Se todos os meus pacientes fossem encantadores como essas duas jovens, eu não conseguiria ver todos eles. A tentação de prolongar as visitas seria muito maior do que minha capacidade de resistir.

— Sr. Vance, a lisonja serve para curar alguém? — perguntou Joan Rexon, que parecia muito satisfeita.

— Não pode haver lisonja, no que lhe diz respeito — retorquiu Vance. — Sei que o Dr. Quayne fala sério, em tudo que lhe diz.

Diversos convidados saíram, vieram ter conosco por momentos, a fim de saberem de Joan Rexon, e logo voltaram para o interior da mansão. Soou a sereia de meio-dia. Também Bassett, ao que observei, saiu da casa, limitando-se, porém, a ficar na outra extremidade da varanda. Sentou-se a uma mesinha e começou uma partida de paciência.

O médico consultou o relógio de pulso.

— Santo Deus! Esse foi o sinal de meio-dia!

Fez uma mesura cordial às duas jovens, acrescentando: — As duas são uma influência perniciosa.

Passou rapidamente pela porta do salão e, minutos depois, vimos que se afastava de automóvel.

Permanecemos na varanda por mais meia hora, descansando à luz quente do sol, e Vance entreteve as pequenas com o relato de suas viagens ao Japão. Em meio de sua interessante narrativa, olhou para as portas situadas atrás de nós. Pedindo desculpas repentinamente, dirigiu-se para o interior da casa. Chegado lá, voltou-se e me fez um sinal para que o acompanhasse.

Higgins estava logo à entrada, o rosto lívido, os olhos velhos e cristalinos esbugalhados. O medo e o pavor haviam-se apoderado dele.

— Graças a Deus o encontrei, Sr. Vance.

Sua voz tremia, faltava, as palavras eram quase inaudíveis.

— Não achei o Sr. Richard. Venha depressa, senhor. Aconteceu uma coisa horrível...

Ele caminhou com rapidez para trás da escadaria principal, levando-nos para o gabinete de Carrington Rexon.

E lá, estendido no chão diante da lareira, estava o dono da mansão Rexon.

 


X

 

 

Chave desaparecida

 

(Sábado, 18 de janeiro — 12:30 horas)

 

 

Vance, que se ajoelhara por momentos, examinou superficialmente o filete de sangue coagulado, atrás da orelha direita de Carrington Rexon. Ouviu por instantes a respiração difícil, depois tomou a pulsação. Voltou o rosto do homem para a luz, notou que estava inteiramente sem cor. Ergueu a pálpebra superior de um dos olhos, o globo ocular estava firme, a pupila se contraiu. Tocou a córnea com a ponta do dedo, as pálpebras imediatamente se fecharam em aperto.

— Não é coisa séria — anunciou então. — Ele está reagindo agora, saindo da inconsciência... Escute, Higgins, * chame imediatamente o médico.

Afrouxou então o colarinho da gravata antiquada de Rexon.

Higgins tossiu.

— Telefonei para o Dr. Quayne, antes de falar com o senhor. Por sorte, ele estava em casa. Deverá vir imediatamente para cá.

— Muito bem, Higgins. Agora, se puder fazer o favor de telefonar para o tenente O’Leary... diga-lhe para vir em seguida. Caso urgente. Explique, se for preciso.

— Sim, senhor.

Higgins apanhou o telefone, efetuou a chamada e desligou, explicando: — O tenente diz que estará aqui dentro de dez minutos, senhor.

Vance foi à janela e abriu. Em seguida caminhou para a lareira e ali colocou mais uma acha de lenha. As chamas estralejantes pareceram afugentar o ar sombrio que pairava no aposento. Uma batida à porta foi acompanhada pela entrada do Dr. Quayne, de maleta na mão.

— Santo Deus! O que se passa! — exclamou, e correu para Rexon.

— Não é coisa séria demais, doutor. Uma batida forte na cabeça.

Dizendo isso, Vance afastou-se um passo e prosseguiu: — Já deve estar voltando a si. Há todas as indicações de que volta à tonicidade muscular. Estava com o pulso fraco, porém regular. Havia reflexo claro na córnea, quando lhe abri o olho. Resistência iniludível, quando lhe movimentei a cabeça.

Quayne assentiu e passou a cuidar do ferimento. Rexon emitiu um gemido baixo, abriu os olhos e fitou sem ver. A uma ordem de Quayne, Higgins trouxe brandy. O médico obrigou Rexon a tomar uma dose, e o homem prostrado voltou a gemer, fechando os olhos.

— Uma sorte eu ter ido para casa almoçar, antes de continuar com meus chamados... — dizia o doutor, em tom casual, enquanto continuava a examinar Rexon. Por fim, levantou-se. — Tudo está em ordem perfeita — declarou, animadamente.

Rexon abria novamente os olhos, estava quase enxergando agora. Reconheceu Vance e Quayne, tentou sorrir, contraiu-se de dor e ergueu a mão, pondo-a na nuca.

— Cuidaremos disso em um momento — prometeu-lhe Quayne, com bondade. E então, ajudado por Higgins, colocou Rexon no sofá. Com dedos hábeis, fez curativos no ferimento, enquanto continuava a reconfortar o paciente.

Nesse momento o tenente O’Leary entrou. Vance, em voz baixa, deu-lhe os detalhes.

— Podemos fazer-lhe uma ou duas perguntas, agora? — perguntou Vance, quando o médico se afastou do sofá.

— É claro, é claro — respondeu Quayne. — O Sr. Rexon estará muito bem, agora mesmo.

Vance fez um gesto para que Higgins deixasse o aposento e achegou-se ao sofá, na companhia de O’Leary.

— Muito bem, o que pode contar-nos, amigo velho? — perguntou ao ferido.

— Duvido que possa contar-lhe alguma coisa, Vance — afirmou Rexon, a voz baixa e roufenha, mas aumentando em volume enquanto prosseguia: — Eu tinha acabado de levantar de minha escrivaninha, para tocar chamando Higgins... devo ter sido atingido por trás.

Voltou a levar a mão à cabeça, aduzindo: — E logo em seguida, só sei que você e o Quayne estavam aqui, comigo.

— Faz idéia de quando aconteceu?

— Idéia muito vaga, ao que receio.

Rexon pensou por momentos, e logo acrescentou: — Mas, esperem! Acho que ouvi as primeiras notas da sereia, antes de perder a consciência... Sim, tenho certeza. Lembro de ter ficado irritado, porque era quase meio-dia e ainda não tinha sido retirada a minha bandeja de desjejum. Ela geralmente é levada daqui às onze horas. Aí está o motivo por que eu ia chamar Higgins.

— Esteve aqui no gabinete desde que desceu, hoje de manhã, senhor? — indagou O’Leary.

— Mais ou menos, sim, tenente. Mas saí da sala por alguns minutos, uma ou duas vezes.

— Esteve alguém aqui em sua companhia? — perguntou Vance.

— Sim. Mareia Bruce veio receber instruções, como faz geralmente, no caso de termos convidados. E meu filho passou cerca de meia hora comigo. O Dr. Quayne apareceu para dar "bom dia", antes de ir ver Joan. Sydes e Carlotta entraram por um minuto. Alguns outros convidados também entraram. Vou tentar lembrar, se quer saber quem mais esteve aqui.

— Não... oh, não. Na verdade, não tem importância — afirmou Vance.

— Lembra-se de alguma sensação de vertigem, quando se levantou para chamar Higgins? — perguntou o médico. — A julgar pelo ferimento, acho altamente possível que você tenha batido em um dos ferros da lareira, quando caiu.

— Não vejo como — contrapôs Rexon, um tanto irritado. — Eu não estava tonto, de modo algum. A sensação foi de que me golpearam por trás.

— Ah! Entendo — disse Quayne, em tom pensativo.

Rexon, de repente, adiantou-se um pouco, os olhos com expressão frenética. Um molho de chaves, em corrente comprida, pendia de seu bolso das calças, sobre a orla do divã. Ele apanhou as chaves e se jogou de volta ao divã, remexendo-as, com expressão histérica.

— A chave! — arquejava, após instantes. — A chave da Sala das Gemas! Meu Deus do céu! Ela sumiu!

— Calma aí, Rexon — admoestou o médico. — Não pode ter sumido. Examine outra vez... com calma.

Desalentado, Rexon examinou os bolsos. O’Leary vasculhou o soalho, em vão. Vance saiu do aposento e logo voltava, informando que a porta da Sala das Gemas estava trancada.

— Isso nada prova! — explodiu Rexon. — Temos de entrar lá agora mesmo. Vou apanhar a outra chave.

Levantou-se com debilidade enquanto falava e caminhou com passos incertos pela sala. Apanhando uma gravura de Rembrandt, de valor inestimável, na parede em frente, jogou-a sem cuidado para o lado. Em seguida, apertou um pequeno medalhão de madeira e um painel estreito se movimentou, pondo à mostra uma chapa oval de aço, que continha um segredo. Seus dedos nervosos empreenderam uma seqüência de voltas — à esquerda e à direita, novamente à esquerda. Finalmente abriu a chapa e enfiou a mão no cofre oculto. Tirou de lá uma chave de eixo comprido e fino. Tomando-a de sua mão, Vance seguiu à frente, pela sala de entrada. Teve alguma dificuldade em enfiar a chave na fechadura, mas finalmente o conseguiu e empurrou a pesada porta de aço. Rexon passou por ele, agitado, estacou de súbito no meio da famosa Sala das Gemas.

— Sumiram!

Sua voz era pouco mais que um murmúrio roufenho.

— A parte mais preciosa de minha coleção. E o colar de Istar...

Sua voz faltou, enquanto ele apontava com gesto espasmódico e começava a oscilar.

Quayne veio imediatamente colocar-se a seu lado e pegou-o pelo braço.

— Meu caro amigo — advertiu, voltou-se então para nós. — Vou levá-lo para o gabinete, cavalheiros.

Saiu então com Rexon.

Vance fechou a porta após a retirada dos dois, passando-lhe a chave. Acendeu um cigarro e caminhou calmamente por aquele aposento interessante, enquanto O’Leary o acompanhava em silêncio. Era uma sala inteiramente destituída de ornamentos, a não ser pelo tapete de ébano e as numerosas vitrinas orladas de metal, situadas nas paredes. Esmeraldas de diversos tipos e dimensões, em suportes refinados e singulares, estavam ali à mostra, sobre veludo branco. Ao canto para o qual Rexon apontara, uma vitrina maior do que as demais tivera partido o painel dianteiro. Uma vitrina menor, ao lado da maior, fora igualmente violada. Estavam ambas vazias, mas nenhuma das demais vitrinas no aposento apresentava sinais de ter sido tocada.

— Coisa mistificante — murmurou Vance. — Apenas duas vitrinas partidas.

— Provavelmente não teve tempo, foi preciso trabalhar depressa — opinou O’Leary.

— De fato, tenente. Todas as indicações são nesse sentido... O que será que Istar tem a ver com o caso?

. Adiantou-se até à janela lateral e abriu o ferrolho. O’Leary olhava, enquanto ele examinava as barras de ferro grossas e cruzadas que fechavam todo o caixilho da janela. Examinaram então, da mesma maneira, a outra janela.

— Ora, essa! Aqui temos algo interessante, tenente. Remexeram nisto, um pouco, não acha?

Chamou a atenção de O’Leary para algumas ranhuras de aspecto singular, em três das barras.

As sobrancelhas de O’Leary subiram, em espanto.

— Quem fez isso deve ter procurado entrar deste modo, de início, e depois verificou que era empreitada difícil demais. Não teve paciência.

— Ou então — retorquiu Vance — ocorreu uma interrupção. Tentativa abortada. Pode ser. Vamos passear.

Fecharam novamente as janelas, e Vance olhou mais uma vez o aposento, antes de trancar a pesadona porta.

No gabinete, o Dr. Quayne tentava inutilmente consolar Rexon.

— Mas não levaram todas — dizia, em afirmações inúteis desse tipo. — Apenas algumas peças...

— Apenas algumas peças! — repetiu Rexon, desesperado. — São exatamente as peças que importam! Se houvessem levado todas as outras e deixado aquelas... — e ele não terminou a frase.

Vance entregou a chave a Rexon.

— Fechei novamente a porta, é claro. Agora, conte-nos o que está faltando. E o que tem Istar a ver com o caso?

Rexon, com um solavanco, ajeitou-se na cadeira e apoiou-se na escrivaninha.

— Todas as pedras desengastadas que eu possuía. Passei a vida a colecioná-las.

— Seriam as de venda mais fácil, ao que presumo — observou O’Leary, respeitosamente.

— Sim. Exatamente. Uma fortuna, para qualquer um que se tenha apossado delas. Todas, menos a Istar...

— O que tem a Istar? — persistiu Vance.

— É o colar da Rainha Istar — gemeu Rexon. — A peça mais rara de minha coleção. Veio do Egito... décima oitava dinastia. Jamais poderá ser substituído. Seis esmeraldas cabochão, de corte impecável, em corrente de pedras menores, cravadas em prata e pérolas... Você se lembra, não é, Vance?

— Ah, sim, é claro que lembro — corroborou Vance, em solidariedade. — Uma rainha das mais traquinas... a Istar. Sempre a aborrecer as pessoas.

O’Leary fazia anotações em um caderninho.

— Quando esteve na sala pela última vez? — perguntou Vance.

— Hoje de manhã, bem cedo. Vou lá todas as manhãs. Mareia Bruce foi comigo, para espanar um pouco a poeira. Era para mostrar a meus convidados, esta noite.

— Ah, sim. Que pena. Agora, naturalmente, não haverá tal exibição.

— Não — confirmou Rexon, sacudindo a cabeça, tomado de desapontamento.

— Mas os moços precisam da festa esta noite, como se nada houvesse acontecido. Você concorda, Rexon? — perguntou Vance, em tom de voz imperativo.

— Sim, por todos os títulos — acedeu Rexon. — De nada adianta estragar a alegria dos outros.

O médico logo se levantava, apanhando a maleta.

— Já não precisa mais de meus serviços, Rexon. Eu bem queria ser mais útil. Mas voltarei esta noite, para ficar de olho na Joan para você.

— Obrigado, Quayne. É muita bondade. O médico fez uma mesura e se retirou. O’Leary fechou o caderninho de anotações.

— Diga-me, Sr. Rexon, o seu administrador esteve aqui para vê-lo esta manhã?

— Gunthar? Não — respondeu Rexon. — Andou provavelmente trabalhando no rinque e no pavilhão. Mas é estranho que me pergunte isso. Higgins me contou, quando desci hoje de manhã, que Gunthar esteve aqui cerca de meia hora antes, pedindo para falar comigo. Higgins lhe disse que eu não descera ainda e o homem foi embora, resmungando sozinho. Não compreendo, pois ele nunca vem aqui, a menos que o mande chamar.

O’Leary assentiu, e era perceptível a satisfação que sentia. Foi até à janela aberta, baixou-a e voltou a erguê-la. Em seguida, inclinou-se para fora alguns instantes, como a examinar as lajes por baixo. Notava-se uma expressão de cálculo em seu semblante, quando voltou a ter conosco.

Ao deixarmos o gabinete, Vance chamou o tenente para o lado.

— Que me diz de Gunthar? — perguntou, em voz baixa. — Tem algum segredo a revelar?

— O caso está ainda mais claro agora do que ontem — afirmou o tenente, com ar solene. — O senhor reconheceu que eu estava em boa pista. Mas vamos adicionar uma coisa: tentei falar com Gunthar hoje de manhã. Um dos trabalhadores me disse que ele fora à mansão, a fim de falar com o patrão. Parecia natural, de modo que esperei por algum tempo. Mas Gunthar não regressou.

O’Leary lançou um olhar de triunfo a Vance.

— O caso, senhor, é que teria sido muito fácil para o homem entrar no gabinete, passando pela janela, quer nessa ocasião ou mais tarde, quando o Sr. Rexon saiu de lá. Só teve de esperar atrás da cortina, até chegar o momento oportuno. Depois de dar o golpe, teria sido trabalho de instantes tirar-lhe a chave e chegar à Sala das Gemas. Vance assentiu.

— Raciocínio muito inteligente, tenente. E lógico, por muitos pontos de vista.

— Sim, e há mais — persistiu O’Leary. — Não estou convencido, em absoluto, de que a filha dele não esteja misturada no fato... o senhor sabe, coisa como avisar ao pai, chegado o momento oportuno...

— Oh, meu caro amigo! Você me surpreende a cada instante. Veja lá, não está levando esse preconceito contra Gunthar um pouco longe demais?

O’Leary ficara surpreso, diante do fato de que Vance não parecia compreender as possibilidades circunstanciais da situação.

— Não, acredito que não — retorquiu, com a calma da convicção. — Já tenho o bastante para prender a pequena, juntamente com o pai.

— Mas sob qual acusação, tenente? — perguntou Vance, que estava preocupado.

— Como testemunha material, quando mais não seja — foi a resposta confiante de O’Leary.

Vance acendeu um cigarro e soprou uma baforada prolongada.

— Não estou procurando pôr seu caso à prova, tenente. Não, ele é lógico demais. Limito-me a fazer um pedido urgente. Nem a pequena, nem seu pai, deverão fugir esta noite, certo? Amanhã, com certeza, servirá igualmente a seu objetivo. Pode esperar, tenente? Estou a suplicar.

O’Leary contemplou Vance por momentos prolongados e não havia como negar a expressão de admiração, por baixo de sua perturbação e dúvida. Finalmente assentiu.

— Esperarei, senhor. Embora não concorde.

E ele se afastou pela varanda, desaparecendo na escadaria lateral.

Também Vance saiu da varanda, momentos depois. Joan Rexon continuava sentada onde a deixara, mas Ella Gunthar já não se achava ali. Em seu lugar estava Carlotta Naesmith.

— Santo Deus! — murmurou Vance. — De nada adianta achar que o valente tenente não tenha observado a ausência da Srta. Ella. Não. Camarada observador, o O’Leary.

Bassett continuava debruçado sobre a mesa, onde iniciara sua partida de Canfield. Stanley Sydes viera ter com ele, sentando-se em cadeira à frente e operando a banca. Entre os dois via-se uma garrafa de bourbon.


XI

 

Soirée de despedida

 

 

(Sábado, 18 de janeiro — 21:00 horas)

 

 

A tarde transcorrera sem maiores incidentes. Após o almoço, Carlotta Naesmith e Stanley Sydes convidaram Vance a ir com os demais, a fim de observarem o adestramento dos patinadores sobre o gelo. Ele declinara, educadamente, e Richard Rexon, que também permanecera na mansão, conversara brevemente com Vance sobre as esmeraldas roubadas, tendo passado o resto da tarde pensando no assunto. A Srta. Joan fora para o quarto descansar. A casa se apresentava invulgarmente silenciosa.

Ao jantar reinou conversa animada entre os convidados e, de modo especial, surgiram boatos misteriosos sobre uma patinadora a quem o Sr. Rexon convidara para a apresentação, e que se apresentaria de surpresa. Todavia, ninguém tinha qualquer informação mais detalhada a seu respeito.

Encerrado o jantar, os convidados mais velhos se reuniram na varanda, agrupando-se em ambos os lados da chaise longue da Srta. Joan, na janela central. A noite era clara, não se apresentando fria demais.

Pouco antes das nove horas Mareia Bruce trouxe a Srta. Joan para seu lugar.

— Por favor, puxem uma cadeira para Ella sentar-se a meu lado — solicitou a jovem. — Ela deve chegar a qualquer instante.

A Srta. Bruce atendeu ao pedido.

O Dr. Quayne apareceu e, depois de palavras de incentivo à Srta. Joan e cumprimentos a Richard, sentou-se ao lado de Carrington Rexon, atrás dos convidados mais jovens. Jacques Bassett permaneceu em pé, encostado nas portas fechadas, ao fundo do aposento. O tenente O’Leary, sem chamar a atenção, sentou-se também.

Uma vitrola alta e de modelo antigo foi levada para o rinque por Higgins e outro criado. Seguiu também para lá uma pilha de discos.

Vance, sobre patins, em imaculada indumentária noturna, tendo um cachecol branco no pescoço, apresentou-se no rinque. Outras luzes foram acesas quando ele se adiantou.

— Minhas senhoras e cavalheiros — começou, em tom fingido de cerimônia, a voz clara e ressonante. — Fui honrado com o privilégio de dirigir este acontecimento memorável. Cheio de confiança, posso prometer-lhes uma noitada de entretenimento o mais invulgar.

Suas declarações foram acompanhadas por aplauso geral.

— Temos conosco essa noite — prosseguiu ele, com formalismo exagerado — patinadores de grande renome. Posso mesmo dizer que são de renome mundial. A maioria dos assistentes, ao que tenho certeza, reconhecerá cada nome, à medida que for anunciado...

Novos aplausos eclodiram às palavras seguintes.

— A primeira de nossas estrelas convidadas — remoçou ele — é a Srta. Sally Alexander. Ela os entreterá, a seu modo incomparável.

A Srta. Alexander veio do pavilhão, figurinhas sorridente em farrapos coloridos, patinando graciosamente para o círculo de luz lançado de uma janela superior da mansão. Entoou uma alegre chansonette parisiense, de duplo sentido, sendo recompensada por muitas risadas e aplausos. Seu número seguinte foi um monólogo, no qual representava uma celebridade embriagada, tentando abrir caminho em meio a um coro de debutantes cheias de admiração. Os patins não facilitaram a tarefa, de modo algum. A pequena platéia estava verdadeiramente a se divertir, e manifestou de modo prolongado e altissonante a aprovação.

Vance ajudou a jovem no regresso ao pavilhão e veio de lá com Dahlia Dunham e Chuck Throme, ambos de calção e blusa. Eles patinaram até à luz principal, com mesura acentuada. Vance ergueu a mão da jovem.

— À minha direita, usando calções vermelhos — anunciou — temos a Srta. Dahlia Dunham... uma lutadora dás mais encantadoras, com muitas vitórias em sua bagagem. À esquerda, de calção branco, temos o jóquei Throme, com uma lista de vitórias também das maiores. Os dois, agora, vão passar por três rodadas, a fim de disputar o campeonato de patinação pesada.

Calçaram-se as luvas, os segundos foram arredados por gestos; e logo o juiz se adiantava, tinha início a contenda. Os dois litigantes trocaram socos leves, por alguns segundos. Entraram em corpo-a-corpo, sendo separados pelo árbitro. O gelo escorregadio, sob os patins, fazia com que muitos dos socos errassem o alvo. Os que alcançavam o objetivo causavam pouco dano. Quando Vance soprou o apito, ao final do terceiro round, a Srta. Dunham foi declarada vencedora, por aclamação do público. Chuck Throme, aceitando galhardamente a derrota, ensaiou nova mesura. Como em ocasião anterior, levou o gesto ao excesso, os patins deslizaram, ele caiu e se estendeu no gelo. Vance e a Srta. Dunham o ajudaram a ficar em pé, ajudaram-no também a sair do rinque.

Joan Rexon sentou-se e relanceou o olhar em volta.

— Eu bem queria que Ella viesse — ouvi quando dizia. — Está perdendo tudo isto. Você a viu, Dick?

Com ar sombrio, Richard Rexon sacudiu a cabeça.

— Talvez esteja lá fora, em algum lugar. — E saiu para investigar.

A Srta. Maddox e Pat McOrsay, em seguida, apresentaram sua cena com pequeno avião improvisado sobre deslizadores. Isto foi seguido pelo anúncio de Vance, apresentando o número da Srta. Naesmith, em companhia de Stanley Sydes. Em roupagem espanhola, eles executaram uma série de danças, ao acompanhamento dos discos que Vance colocava na vitrola. Os demais executantes vieram ter com eles, no tango final. Richard Rexon regressara à companhia de Joan, que estava desconsolada.

— E agora — fez-se novamente ouvir a voz de Vance — temos uma surpresa para todos. Não posso dizer-lhes qual o nome desta artista, pois ela é praticamente desconhecida. Nós a chamamos de Maravilha Mascarada... Mas, um instante! Tenho de soprar ao ouvido de nosso maestro a melodia que deverá executar.

Fez pantomimas cômicas para a vitrola, colocando ali novo disco. Os acordes encantadores de Geschichten aus dem Wiener Wald surgiram flutuando pela noite silenciosa. E então...

Uma figura feminina e pequenina veio pelo gelo, com facilidade e ritmo inacreditáveis. Sua roupa de veludo e lantejoulas brilhava alegremente às luzes. Uma máscara prateada cobria a maior parte de seu rosto. Sua dança no gelo, espaçada, foi desempenhada com requinte. Dotada de graça inacreditável, combinava as mais difíceis figuras com espirais, giros e saltos de originalidade audaciosa.

Todos emitiam exclamações de grande prazer. Houve quem observasse que devia ser Linda Höffler, a mais recente sensação no mundo dos patinadores. Alguns dos convidados interrogavam a Srta. Joan e o jovem Rexon. Estes negavam ter qualquer conhecimento de quem fosse. Carrington Rexon, quando lhe indagaram que estrela famosa contratara para a noitada, não deu qualquer informação.

A cada vez que a jovem deixava o rinque o aplauso era tão constante e alto que Vance se via obrigado a trazê-la de volta.

Finalmente uma das vozes pediu: — Tire a máscara!

O grito logo era transformado em coro uníssono. Vance cochichou para a jovem que tinha ao lado e esta lhe permitiu que tirasse a máscara de seu rosto. Sorridente, cheia de felicidade, lá estava Ella Gunthar diante de nós.

Joan Rexon ergueu-se, em assomo de triunfo.

— Eu sabia que era Ella! — proclamou, quase às lágrimas. — Sempre achei que Ella patinaria bem. Não é maravilhosa, Richard?

O jovem Rexon, entretanto, já se encontrava nos degraus do terraço, seguindo para o rinque. Carrington Rexon e o médico foram ter ao lado da Srta. Joan.

— Oh, Papai! — exclamou a jovem. — Por que não me falou?

— Foi uma surpresa, para você e para mim também, minha cara. O Sr. Vance me disse apenas que preparara alguma coisa para você. Eu não fazia idéia de que fosse uma surpresa assim.

— Está bem, agora. Está bem — interveio Quayne, em tom de admoestação. — Acho que bastou por esta noite, Joan.

Os dois homens ajudaram a moça a entrar.

Em torno de Ella Gunthar, no rinque, formou-se um círculo ruidoso. Os trabalhadores da propriedade, a quem tinha sido dada licença para assistirem ao desempenho, afastavam-se agora. Os convidados se retiraram para o interior da casa.

Mais tarde reuniram-se no salão. Os executantes vieram do pavilhão, envergando ainda as roupas em que se tinham apresentado. Vance, a quem cobriram de parabéns, recusava todos os louvores.

— Foi tudo obra da Srta. Naesmith, fiquem sabendo — dizia a todos.

Ella Gunthar entrou, acompanhada por Richard Rexon, entusiasticamente cumprimentada por todos os lados. Parecia agitada, nervosa, permaneceu apenas o tempo suficiente para abraçar a Srta. Joan e dizer-lhe algumas palavras. O jovem Rexon e Vance ofereceram-se para acompanhá-la até à casa, mas a moça os rechaçou educadamente, retirando-se sozinha.

Trouxeram a vitrola do rinque. Alguém lhe deu corda e começou a tocar um disco. Logo se iniciava a dança. Quayne trouxe a zeladora, dizendo-lhe para levar a Srta. Joan para a cama. A mulher exibia expressão nova de orgulho, estava quase animada, ao encarregar-se da pequena.

Aumentou a alegria da festa. Apenas Jacques Bassett permanecia sentado, sozinho e taciturno. Quayne estava a ponto de aproximar-se, mas foi interceptado pela Srta. Naesmith, a perguntar-lhe qual era o melhor antídoto para o enjôo no mar. Richard Rexon foi ter com Bassett à mesa deste.

Para Vance, fora o bastante. Despediu-se do anfitrião. O’Leary se aproximou, com olhar indagador, mas Vance o arredou de si.

— Vamos dormir sobre a questão, tenente — propôs. — Apareça por volta do meio-dia... Festa animada, não acha?... Até amanhã.

O’Leary o observava, sombriamente, enquanto Vance subia as escadas.


XII

 

O colar da rainha istar

 

 

(Domingo, 19 de janeiro — 9:30 horas)

 

 

Vance despertou cedo mais uma vez, no domingo. Depois de tomar café forte, convidou-me a passear em sua companhia, sob a luz clara do sol de inverno. A neve caíra nas primeiras horas da madrugada e o mundo ao redor de nós estava coberto por capa branca e recém-colocada. Tomamos uma trilha que dava para a pequena poça gelada no Green Glen, onde havíamos encontrado Ella Gunthar pela primeira vez. Quando contornávamos um arbusto maior, em um dos extremos da lagoa, pudemos ver uma pequena cabana.

— Deve ser a cabana do Eremita Verde — comentou Vance. — Vamos fazer uma visita em manhã sabatina ao druida.

A porta estava entreaberta e Vance bateu. Não se ouviu qualquer resposta. Abriu então a porta e, a uma mesinha perto da janela, estava sentado o velho Jed, que ergueu o olhar, sem demonstrar qualquer surpresa.

— Bom dia — disse Vance, do limiar, em tom agradável. — Podemos entrar?

O velho meneou a cabeça, denotando indiferença. Tinha a atenção centralizada em algum objeto entre os dedos. Ao nos aproximarmos, ergueu as mãos. O sol incidia plenamente sobre estonteante colar de esmeraldas.

— Seis cabochões em uma corrente de pedras pequenas — disse Vance, quase a falar sozinho, e logo observou, dirigindo-se ao velho: — Lindo, não acha?

O velho Jed sorriu com prazer infantil, enquanto deixava as pedras verdes deslizarem entre os dedos. Vance sentou-se ao seu lado.

— O que mais tem aí?

O velho Jed sacudiu a cabeça.

— O que fez com as outras?

— Não tem outras. Só isto.

Ele espalhou o colar sobre a mesa, convidando Vance a partilhar no êxtase da contemplação.

— Como os prados verdes na primavera — disse, a seu modo místico. — Como córregos de água... como as árvores de Deus no verão: verdes, toda a beleza da natureza é verde.

Enquanto o declarava, seus olhos brilhavam fanaticamente.

— Sim — disse Vance, acompanhando-lhe o estado de espírito. — A primavera... o verde da natureza por toda a parte: "E todos os prados, amplos e espalhados, Eram verdes e prateados, verdes e dourados".

Ergueu o olhar, com expressão bondosa.

— Achou-o, Jed?

O velho, em resposta, acenou com a cabeça, confirmando.

— Onde achou?

Outra sacudidela da cabeça.

— Você é amigo da Srta. Ella? — perguntou o eremita, como se desejasse mudar de assunto.

— Sim, é claro. E você também.

A cabeça grisalha se sacudiu entusiasticamente.

— Mas aquele camarada que o Sr. Richard trouxe quando veio. Você é amigo dele?

— Do Sr. Bassett? Não. Não sou amigo dele. Muito longe disso... O que me conta sobre aquele homem?

— Não presta — declarou o velho Jed, na maior economia de palavras.

Vance ergueu levemente as sobrancelhas.

— Foi ele quem lhe deu esse colar verde?

— Não! — e o velho se tornava petulante. — Ele veio a fim de criar encrencas para a Srta. Ella.

— Não me diga! Quando foi isso?

— Veio aqui ontem à noite. Antes da grande festança na casa grande. Pensou que a Srta. Ella estava sozinha. Mas eu o vi. — E o velho Jed deu uma risadinha de cacarejo. — Agora, ele não vem mais aqui.

— Não? Por que não?

— Ele não vem mais — repetiu o outro, de modo vago. — Mas lá na casa grande, moço, você vai cuidar de Ella?

— Por certo — prometeu Vance. — Ela estará bem... Mas, diga-me uma coisa, Jed: como arranjou esse brinquedinho?

O velho voltou a fitá-lo, imerso em silêncio inexpressivo.

Vance tentou uma estratégia.

— Preciso saber, pelo bem da Srta. Ella.

— A Srta. Ella, ela não faz nada mau.

— Nesse caso, conte-me onde arranjou esse colar — insistiu Vance.

O velho relanceou o olhar em volta, com ar perplexo. Fitou então o pequeno fonógrafo que tínhamos visto Ella Gunthar usando. Olhou então para Vance, cheio de triunfo.

— Ali! — E apontou para o instrumento.

Vance se levantou e o trouxe para a mesa. Abriu o aparelho e o sacudiu, sem que nada fosse revelado. O velho apanhou o colar e o colocou sobre a base de feltro verde.

— Assim — disse, com simplicidade. — Estava escondido aí, quando achei.

Neste momento a porta se escancarou mais uma vez. Lá estava Ella Gunthar, o sorriso desaparecendo dos lábios ao nos encontrar. O velho Jed se pôs em pé para recebê-la. Vance atravessou o aposento, tomou a jovem pela mão, com gentileza, levando-a à mesa. Ela viu a vitrola aberta, com a fieira de jóias cintilando lá dentro. De modo abrupto, voltou-se para o outro lado, inteiramente pálida.

— O que sabe disto, Srta. Gunthar? — perguntou Van-ce, com indulgência.

— Não sei... coisa alguma a esse respeito — foi a resposta, em voz baixa e hesitante.

— Mas já o viu antes?

— Eu... acho que sim. Na Sala das Gemas.

— E como veio isto ser escondido em sua pequena caixa de música? Jed diz que achou ali.

— Eu... não sei. Talvez não seja verdadeiro.

— Oh, são jóias verdadeiras, minha cara.

— Não sei nada a esse respeito — repetiu ela, obstinada.

— Agora eu acho que você está com lorotas outra vez. Sabe que um colar assim e muitas outras pedras de grande valor desapareceram da Sala das Gemas?

Ela assentiu.

— Richard me contou, ontem à noite.

— Foi Richard quem lhe deu isso?

— Não! — e ela fitou Vance, tomada de indignação. — E Jed também não sabe nada a esse respeito. Nem meu pai! Oh, vocês estão todos tentando jogar mentiras sobre meu pai... acha que não sei por que aquele oficial da polícia de Winewood está sempre por aí na propriedade? — e as palavras vinham em assomo apaixonado.

Vance observava e aquilatava a jovem, em sua manifestação de contrariedade.

— Quem, então, minha cara, tirou as esmeraldas? — perguntou, calmamente.

— Quem foi?... Quem? — repetiu ela, e mordeu os lábios. Pensou por diversos instantes e então, como a seguir impulso repentino, declarou em desafio: — Eu tirei... eu tirei, naturalmente!

— Você tirou! — repetiu Vance, sem acreditar. — E o que mais tirou, além do colar de Istar, Srta. Ella?

— Não sei o que foi... algumas pedras soltas.

— Como entrou na Sala das Gemas?

— Achei a porta aberta.

— Ora, vamos, Srta. Ella. O Sr. Rexon não tem o hábito de deixar aberta a porta da Sala das Gemas.

— Eu a encontrei aberta — persistiu a moça.

— E dentro da sala, o que fez?

— Abri duas vitrinas. Vance riu baixinho.

— E encontrou as vitrinas abertas, também?

Ela começou a se erguer, com sobressalto, lágrimas surgiam em seus olhos.

— Eu... eu... as quebrei — gaguejou.

— Entendo, Srta. Ella. Nessa caso, não se importa de ir em minha companhia à mansão e contar tudo ao Sr. Rexon?

— Não — disse ela, engolindo em seco. — Não me importo.

O velho Jed olhava para Vance, para a pequena, e outra vez para Vance. Franziu a testa, na tentativa por prestar atenção.

— Sr. Vance, — perguntou a jovem, com timidez — a Srta. Joan vai ter de saber? E... e... Richard?

— Receio que sim — disse Vance. — Mas talvez não seja tudo de uma vez, minha cara. Está pronta para ir?

Vance embolsou o colar e acompanhou a pequena, retirando-se da cabana. Mais uma vez tomou a trilha pela qual tínhamos vindo. Não fez qualquer outra referência às jóias desaparecidas. Em vez, perguntou: — Bassett voltou a comportar-se mal? Ela respondeu sem desviar o olhar.

— Não foi nada... Jed lhe contou?... Nunca vi o Jed com tanta raiva. Acho que o Sr. Bassett levou um susto verdadeiro.

O resto da caminhada foi em silêncio.

Carrington Rexon achava-se sozinho no gabinete. Ella Gunthar entrou ali, enquanto Vance abria a porta para que passasse. Entrou e foi para um dos lados, pondo-se timidamente de costas para a parede. Vance indicou uma cadeira, a jovem desviou o olhar para Rexon e adiantou-se.

— Agora, minha cara — incentivou Vance, quando a moça se sentou.

Ela baixou o olhar e agarrou-se aos braços da cadeira.

— Sr. Rexon, eu... — começou a dizer, ergueu a cabeça e falou então, com muita rapidez. — Eu tirei as esmeraldas.

— Você o quê? — contrapôs Rexon, tomado de espanto.

— Eu tirei as esmeraldas — repetiu ela, falando mais devagar.

Rexon riu com amargor, sem poder controlar-se.

— Posso provar que tirei! — declarou ela, impensadamente. Estendeu então a mão para Vance, pedindo o colar. Ele o retirou do bolso e o entregou à moça, que o colocou sobre a escrivaninha ao lado, em gesto acanhado.

Rexon o recolheu com aflição, examinando-o cuidadosamente.

— O colar de Istar! Ah!

E logo indagava, com ar astuto: — Onde está o resto?

A jovem sacudiu a cabeça.

— Não vou contar. Não conto!

Seus lábios apertados indicavam, de modo inegável, que não estava disposta a falar mais.

Rexon encostou-se na cadeira e examinou a jovem com olhar crítico. E então, com rispidez: — E você é a pequena com quem meu filho quer casar!

O rosto de Ella Gunthar tornou-se rubro, de repente. As palavras de Rexon haviam-na sobressaltado.

— Oh, sim, minha jovem e querida dama — prosseguiu Rexon, friamente. — Você não imaginava que eu tivesse conhecimento do que ocorre entre os dois. A Srta. Naesmith contou-me, ontem à noite... a Srta. Naesmith, que eu contava vir tornar-se a esposa dele... Bah! Depois de tudo que fiz por você! Não se contentou em roubar o amor de meu único filho. Tinha de ficar com minhas esmeraldas, também.

Ergueu-se um pouco, levado pela raiva, enquanto prosseguia: — Estou quase satisfeito por ter acontecido isto. Valerá muito bem a perda das esmeraldas, se eu puder salvar Richard...

Vance, com passos rápidos, contornou a escrivaninha e pôs a mão no ombro do homem mais velho.

— Meu velho amigo, por favor! Não transforme um desapontamento em tragédia.

Rexon afrouxou, sob a pressão convincente da mão de Vance.

As lágrimas inundavam os olhos de Ella Gunthar, Vance veio colocar-se a seu lado.

— Pobre menina, — disse, acalmando-a — não acha que esta farsa trágica foi longe demais? Chegou o momento da verdade... toda a verdade que conhece. Estamos às escuras, precisamos de sua ajuda. Algumas forças terríveis estão agindo aqui na mansão. Será, talvez, algum criminoso dos mais temíveis. Você somente poderá ajudar as pessoas a quem ama contando-nos a verdade. Quer fazê-lo?

Ela respirou fundo e enxugou os olhos.

— Sim, farei — disse, com decisão inesperada. Vance sentou-se a seu lado.

— Nesse caso, conte-me em primeiro lugar a quem está querendo proteger, com este relato tolo de que roubou as jóias.

— Eu... não sei com certeza. Mas pareceu que todos a quem eu amo haviam sido de repente presos em uma armadilha horrível. O pobre Jed, a quem o senhor pegou com o colar; meu pai, de quem eu sei que aquele oficial da polícia desconfia, por muitas coisas; e o Richard, de algum modo... E tudo se achava embrulhado de modo tão pavoroso, com aquela noite no penhasco, quando o pobre Lief foi morto. Eu... eu... era uma confusão completa. E pareceu que só eu podia ajudar.

Ocultou o rosto com as mãos, mas, quando voltou a erguê-lo, os olhos continuavam secos.

— Eu tinha de tentar ajudá-los, sem saber como, porque na verdade não sabia... Apenas algumas coisinhas, aqui e acolá, que não se concatenavam.

— Pobre menina — voltou Vance a murmurar. — Mas eu lhe peço o favor de contar o que sabe... todas as coisinhas... qualquer fato que lhe possa ocorrer. Talvez isso nos ajude a todos... ainda mais os que você ama.

— Oh, vou tentar! Vou tentar! — e ela falava com aflição, preparando-se para dizer o que sabia. — Talvez ache, Sr. Vance, que insisti em ir à investigação de sexta-feira apenas porque sou uma criança curiosa.

— Não -— retorquiu Vance. — Naturalmente, pensei na questão. Mas não formei opinião.

— Bem, seja lá como for, o senhor sabe de tudo que ouvi por lá. Acho que os jurados estavam aflitos por encerrarem a questão. (Percebi que Vance se espantava com a sagacidade indicada por tal observação.) — E ouvi outras coisas, também, Sr. Vance. Ouvi os trabalhadores dizendo que o fato de meu pai ter sido aquele que descobriu o corpo de Lief Wallen... Guy Darrup ainda está dizendo que eu devia ter casado com Lief... E é culpa da moça, se não ama um homem?... Depois ouvi meu pai dizer que era estranho Jed saber exatamente para que lado devia ir, aquela manhã. Jed, que não é capaz de fazer mal a uma mosca!... Soube que meu pai não esteve em casa à meia-noite em que Lief morreu, e isso tornava as coisas muito difíceis para ele... Bem, eu não estava em casa à meia-noite, também! Isso quer dizer que eu matei Lief Wallen?...

Ela se interrompeu, mas logo prosseguia: — Sinto muito, se estou fazendo uma salada. Mas é porque me sinto confusa... Pouco antes de meia-noite, naquele dia, eu vim aqui. Richard pediu que eu viesse. Não tínhamos tido a oportunidade de estar sozinhos durante todo o dia. Íamo-nos encontrar em uma árvore favorita, que temos por trás do pavilhão. Fiquei lá esperando, mas Richard não apareceu. Depois ouvi que ele falava com alguém... Estava com raiva, ao que acredito. Mas deve ter voltado para a casa. Foi quando passei correndo pelo pavilhão, chorando. Exatamente como Guy Darrup disse que fiz. Mas ele não sabia o motivo.

Ela fez uma pausa, olhou para Vance e depois para Rexon.

— Alguma coisa mais? — indagou Vance, lançando-lhe um olhar penetrante.

— Eu já não disse o suficiente? — contrapôs ela, a voz cansada.

— Ainda não contou onde arranjou o colar.

— Preciso contar?

— Talvez ajude a esclarecer uma situação infernalmente complexa, sabia?

— Está bem. Mas meu pai não o tirou!

Ela lançou um olhar de desafio a Rexon e prosseguiu:

— Achei no chão, perto da janela do vestiário reservado para mim, no pavilhão, ontem à noite. Ia devolvê-lo ao Sr. Rexon. Mas foi quando Richard me contou o que acontecera. Fiquei com medo de que fizessem perguntas. Sabia que meu pai esteve ontem no pavilhão. Jed levou minha roupa até lá, para mim. Papai trancou o quarto... para guardar a surpresa... e me deu a chave. Tive medo de fazer qualquer coisa com o colar, até poder pensar no que seria melhor. Aí está o motivo por que o levei para a cabana de Jed e escondi em minha caixinha de música... Mas meu pai não tirou! E o velho Jed também não!...

Carrington Rexon parecia profundamente perplexo e perturbado. Vance colocou as mãos nos ombros de Ella Gunthar e estava a ponto de ajudá-la a levantar da cadeira.

Uma batida à porta foi acompanhada pela entrada de Higgins, trazendo o tenente O’Leary e um investigador à paisana.

 


XIII

 

O segundo assassinato

 

 

(Domingo, 19 de janeiro — 11:00 horas)

 

 

O’Leary olhou para Vance, depois para a moça sentada e, em seguida, para o colar sobre a escrivaninha, à frente de Rexon.

— De onde veio isso, senhor? — indagou, sem rodeios. Vance, de modo sucinto, repetiu o relato que a pequena apresentara quanto à descoberta do colar.

— Aí temos uma história altamente provável — comentou O’Leary, em tom sarcástico.

O telefone se fez ouvir e Rexon atendeu. E logo: — É de Nova York, Vance... para você. Esta é uma linha particular. Perfeitamente segura, pode falar à vontade — disse, empurrando o aparelho sobre a escrivaninha.

O’Leary chamou seu companheiro para o lado e falou animadamente, enquanto Vance se achava ao telefone.

—... O que causou a demora, sargento? — dizia Vance. — Ah, os registros em Washington... Compreendo... Vou anotar, palavra por palavra...

Estendeu a mão para apanhar papel e lápis, escreveu uma mensagem que lhe era ditada. Reconheci a animação, sob sua aparência calma, enquanto ele escrevia com rapidez.

— Meticuloso e completo como sempre, sargento — dizia com satisfação, ao deixar o lápis. — Isto me dá exatamente o que precisava... Não. Não é necessário que venha. Muito obrigado...

Desligou o telefone, empurrou-o de volta e se pôs em pé. Suspirou, então. Dobrou a mensagem que escrevera no papel, colocou-a no bolso. Voltou a sentar-se e acendeu um Régie.

— E então, tenente?

O’Leary voltou para o lado da cadeira de Ella Gunthar.

— Mantive a promessa que lhe fiz, senhor — afirmou. E estava calmo, não se fazendo de intrometido. — Esperei, como pediu que esperasse. Agora não tenho alternativa senão prender esta jovem e o pai dela. Acredito que concorde com o que pretendo fazer, senhor. Trouxe este homem para efetuar a prisão — afirmou, um pouco hesitante. — A menos que o senhor possua novas informações que venha modificar minha decisão.

— Creio que sim, tenente — declarou Vance e voltou-se para a jovem sentada na cadeira. — Pode fazer o favor de ir ter com a Srta. Joan na varanda, Srta. Ella?

— Sinto muito, senhor — atalhou O’Leary, erguendo a mão, de modo peremptório. — Acho que não posso permitir.

— Oh, veja só! Nesse caso, mande o seu companheiro com ela. É coisa inteiramente segura, tenente.

O’Leary fez careta, mas atendeu ao pedido. A jovem retirou-se vagarosamente do aposento, acompanhada pelo robusto investigador de Winewood.

— Meu reconhecimento infinito — disse Vance, jogando p cigarro na grelha da lareira. — Tenente, eu lhe prometi novas informações. Aqui estão.

Ato contínuo, estendeu o papel dobrado que tirara do bolso, passando-o a O’Leary.

O tenente o desdobrou, examinou o conteúdo com olhos rápidos e depois leu em voz alta: — Copo de uísque apresentado tem impressões digitais claras de Jasper Biset. Também a descrição corresponde. Biset é tido como chefe de organização internacional de ladrões de jóias. Geralmente se mantém na sombra. Não há fundamento para processo criminal contra ele. É mais conhecido no exterior, mas seria reconhecido aqui. Visto pela última vez em Saint-Moritz, Suíça.

O’Leary ergueu o olhar; o semblante inexpressivo.

— Permita que explique mais — disse Vance. — Em minha primeira noite aqui, vi um rosto. Era rosto estranhamente conhecido. Fiz uma associação vaga. Com Amsterdam. Eram as sobrancelhas que se juntavam, acima do nariz. Como uma barra negra. Mas o rosto não era o mesmo. Não, faltava alguma coisa. Devia ter havido um bigode. Bigode eriçado. No entanto... Os bigodes podem ser criados e tirados. Seguindo um impulso, apanhei o copo no qual o cavalheiro estivera tomando bourbon em demasia. Enviei-o, com um bilhete e descrição geral do cavalheiro, à polícia de Nova York. Contando... Aí temos o relatório, palavra por palavra. Acabei de recebê-lo.

— Quem é Jasper Biset? — perguntou O’Leary, em cuja voz transparecia a exasperação.

— A criatura conhecida da polícia como Jasper Biset está aqui sob o nome mais conveniente de Jacques Bassett. Convidado da mansão. Convidado, de modo mais específico, do Sr. Richard Rexon.

Carrington Rexon teve um movimento brusco, mas não disse coisa alguma.

— O senhor, então, acha que ele é... — começou O’Leary a dizer.

— Não sei, tenente. Esses são todos os fatos de que disponho. Estou sendo franco. Mantenho a mente aberta e receptiva, como no seu caso. Mas uma conversa com Biset-Bassett é coisa que se torna claramente recomendável... não acha? Vamos fazê-lo aqui?

O’Leary, um tanto aturdido e incerto, assentiu.

Vance voltou-se para Rexon.

— Pode mandar chamar o cavalheiro, senhor?

Rexon, o semblante carregado, tocou a campainha. Higgins apareceu, recebeu as instruções necessárias. Vance andava de um para outro lado do aposento. Acendeu um novo Régie. O tenente permaneceu em pé, em atitude estóica, à janela, pelejando com o cachimbo. Higgins logo voltava.

— Sinto muito, senhor. O Sr. Bassett não está no quarto dele.

— Ora, não o consegue encontrar, homem? — inquiriu Rexon, demonstrando impaciência.

— Tem-se a impressão, senhor, de que o cavalheiro não esteve no seu quarto por toda a noite.

— Oh, ora essa! — e Vance se pôs em pé, inteiramente imóvel, o cigarro a meio caminho dos lábios. — Tem certeza, Higgins?

— Bati à porta dele, senhor. Ninguém atendeu. A porta não estava trancada. Olhei para o interior, senhor. A cama não foi usada essa noite. Confirmei com a camareira.

Rexon emitiu um gemido.

O’Leary se pôs em pé, agressivamente indignado.

— Acho que devíamos ter agido mais cedo, Sr. Vance.

Vance não deu atenção à repreensão implícita naquelas palavras.

— Higgins, chame a garagem.

O mordomo discou três números e entregou o telefone a Vance.

— Algum carro saiu hoje de manhã? — perguntou Vance e aguardou por instante. — E ontem à noite?

Desligou então o telefone, dizendo: — Todos os automóveis estão aqui. É curioso. Que tal irmos até o boudoir do cavalheiro?

Não se notava qualquer desarrumação no aposento. Um dos armários continha ternos muito bem arrumados nos cabides. O outro pôs à mostra um sobretudo cinzento, outro marrom, dois ou três robes de chambre e diversos pares de sapatos. Três chapéus achavam-se arrumados na prateleira superior. Dos armários Vance foi ao bureau e examinou as gavetas. Estavam bem arrumadas e cheias, contendo os acessórios costumeiros de homem de bom gosto. Em um dos cantos do quarto via-se a mala, com bolsa menor e do mesmo couro. Vance as abriu, verificando que estavam vazias.

— Não dá para ver coisa alguma de útil por aqui — comentou, observando todos os detalhes do aposento. — É melhor irmos a Winewood. Uma conversa com o chefe da estação poderá ser reveladora.

O pequeno automóvel do tenente achava-se estacionado em frente da varanda. O’Leary seguiu em sua direção, ao descer os degraus.

— Oh, espere! — e Vance o deteve. — Por favor! A mente funciona com mais eficiência, em velocidades menores. Vamos a pé. Se não se importa.

O’Leary deu de ombros, continuou andando para a extremidade da trilha e entrou na estrada de automóveis que passava pela propriedade, até à estrada municipal. A camada mais recente de neve não fora tocada, a não ser por um par de pneus, assinalando a chegada do tenente, uma ou duas horas antes.

Vance acendeu o cigarro. Nós o acompanhamos, andando.

— Não é todos os dias que se tem a oportunidade de pôr as mãos em um assassino — comentou O’Leary, em tom sombrio. — Será uma pena, se ele fugiu.

— Oh, sim. Não resta dúvida. Muito triste. Mas não estou convencido de que o homem seja realmente um assassino. As minhas próprias observações não o indicam. Não, em absoluto. Não é o tipo que lida com assassinato. Homem suave e gentil demais. Não mancharia as mãos com sangue.

— O senhor não acha, então, que ele tenha morto Wallen, na tentativa anterior de obter as esmeraldas? — indagou O’Leary, surpreso.

— Não... Oh, não. Como disse. Não é o tipo. Ainda assim...

.— Mas reconhece que ele foi embora com as jóias?

— Meu caro tenente! Não reconheço coisa alguma. Estou apenas olhando em volta, neste instante. Esforçando-me por aprender.

— Isso nos leva de volta a Eric Gunthar. Já foi pedido a ele que explicasse sua posição, durante o incidente de ontem?

— Não, ainda não. Boa idéia, entretanto. Falarei mais tarde com ele. "Onde esteve na noite de...?" E perguntas desse tipo. Talvez ajude, talvez não... — E Vance jogou a ponta do cigarro para o lado.

Havíamos acabado de passar pelos portões maiores e dado talvez cem passos na direção de Winewood, pela estrada. O’Leary sacou o cachimbo.

— O automóvel teria sido mais rápido...

— Mais rápido, sim — retorquiu Vance, estacando abruptamente. — Mas não produziria tantos resultados... Olhe mais além, tenente.

Dirigia nosso olhar para um grupo de árvore, ao lado da estrada, logo abaixo da muralha alta da propriedade Rexon. Um amontoado de neve, em forma irregular, com manchas escuras aqui e acolá, era encerrado por um par de sapatos de couro.

— Poderíamos ter passado por aqui de automóvel, sem ver, não acha? — comentou Vance, caminhando em meio aos arbustos e acompanhado por O’Leary, este em silêncio envergonhado.

Ao nos aproximarmos, notamos que o volume apresentava o contorno de forma humana amontoada, um dos braços retorcidos sob o dorso, o outro estendido a partir do ombro.

— Aí, a meu ver, está nosso desaparecido técnico de jóias.

Vance falava em tom solene; aproximou-se da figura e voltou-lhe o rosto para cima.

Era Jacques Bassett, na roupa noturna em que o vira na noite anterior. Usava agora, além da mesma, um chapéu negro. Vance inclinou-se e examinou mais atentamente o corpo. Uma faixa de neve pegajosa e escurecida, acima da orelha direita, chamou-lhe a atenção.

— O mesmo que Wallen, tenente. Não temos aqui uma coisa agradável. Nada agradável, em absoluto.

— Tem razão, senhor. Parece-se demais a Wallen. O mesmo tipo de ferimento. A mim também não agrada, senhor... acha que está morto faz muito tempo? — perguntou O’Leary, e Vance já se erguia.

— Oito ou dez horas. Mas, tenente! Eu não sou o perito médico. Devíamos ter o Quayne aqui presente. Quer que eu volte à mansão e telefone para o seu esculápio, ou prefere cuidar do caso enquanto espero?

— Não é necessário que fique aqui, senhor — disse O’Leary, mostrando-se respeitoso. — Eu ficarei. Se puder fazer-me o favor de telefonar para o Dr. Quayne.

— Com prazer, tenente... E por falar nisso... — acrescentou, hesitando. — Pode dizer-me se as esmeraldas estão na indumentária do cavalheiro?

— Eu não o devia examinar, senhor. Vai contra os regulamentos — afiançou O’Leary, ajoelhando-se enquanto o dizia e examinando rapidamente os bolsos de Bassett. Ergueu-se então. — Esmeralda alguma, senhor. Só as coisas comuns — e aduziu com rapidez: — Percebe o que isso significa, senhor?

Vance lançou-lhe um olhar de esguelha.

— Você é inteligente demais para este lugar, tenente.

— Mas gosto daqui... O que temos aqui faz carga contra Eric Gunthar ainda maior do que antes... Não acha, senhor?

Vance assentiu.

— Receio que sim... em teoria. Mas, tenente, com certeza não acredita que...

— Não me pagam para que acredite em coisas, senhor. Sou pago para acompanhar os fatos.

O’Leary puxou uma baforada do cachimbo e acrescentou: — E receio que tenha de efetuar a prisão de Gunthar e da filha. Estou dizendo isso agora, senhor, porque quero ser justo.

— Compreendo, tenente. Voltando-se, Vance regressou à mansão.

Na varanda, alguns dos convidados conversavam animadamente. Joan Rexon fora para dentro, Ella Gunthar estava sentada, distante dos demais, olhando com inquietação para o rinque. Continuava ainda sob a guarda bastante ridícula do investigador de Winewood. Vance aproximou-se da jovem.

— Escute com atenção, minha cara. Existe perigo real para você e seu pai. Preciso de sua ajuda. Você e eu temos de trabalhar juntos. Vamos livrar-nos do pesadelo. Eis o que deve fazer: apanhe os patins e roupa de patinação. Diga a seu pai que o Sr. Rexon gostaria de falar-lhe, no gabinete. E o velho Jed também, se o encontrar. Este cavalheiro a acompanhará — disse Vance, indicando o policial. — Depois, deve voltar aqui ao rinque e patinar como se tudo que deseja dependesse disso. Mantenha todos os convidados bem interessados. Não os deixe chegar perto da casa, de modo algum. Patine até que eu lhe dê o sinal para parar. Enquanto isso, estarei trabalhando o mais que puder por você e seu pai. Entendeu?

Os olhos da jovem tremiam, mas ela ergueu o queixo e fitou Vance diretamente.

— Farei tudo que pede.

Havia decisão, submissão e heroísmo em sua voz. Ela seguiu para o pavilhão, o oficial corpulento bem próximo.

Vance seguiu para o gabinete. Carlotta Naesmith aproximou-se em carreira, o ar indagador, como se quisesse perguntar alguma coisa.

Vance ergueu a mão.

— Agora não, por favor. Tenho algo a lhe pedir, algo urgente. Todos os convidados devem ser mantidos fora daqui. Longe da casa. Ella Gunthar vai patinar para eles. Você a magoou muito, ela está sofrendo. Seja bondosa.

Antes que a Srta. Naesmith pudesse responder, Vance prosseguiu em sua marcha para o gabinete.

Encontrou Carrington Rexon ainda sozinho por lá e o colocou rapidamente a par dos novos acontecimentos.

O outro afundou-se na cadeira, desalentado.

— Outra morte! — gemeu, abatidíssimo. — E as esmeraldas?

— Não estavam com ele. Ainda poderão ser recuperadas.

Vance estendeu a mão para o telefone, chamou Quayne, colocou-o a par da situação e lhe disse onde poderia encontrar o tenente O’Leary, guardando o corpo de Bassett.

— O que acha de tudo isso, Vance? — perguntou Rexon, quando o outro sentou-se em frente.

— Ainda nada, velho amigo. Estou tentando somar as parcelas. Tem de resultar em soma simples, mais cedo ou mais tarde... Pode pedir à sua zeladora para vir aqui, por favor? Tenho algumas perguntas a fazer-lhe.

Rexon transmitiu o pedido pelo telefone interno.

Vance se levantou, reprimindo o nervosismo, foi à janela e acendeu um cigarro. Finalmente se voltou e fitou o anfitrião.

— Tenho o pressentimento de que, em algum lugar, hoje de manhã, deixei escapar alguma coisa. Não é de importância. Ainda assim, amola-me muito. Algo inconscientemente aguardado. Espero que não tenha acontecido.


XIV

 

Patinando para ganhar tempo

 


(Domingo, 19 de janeiro — 13:15 horas)

 

 

Mareia Bruce entrou, cheia de dignidade e compostura. Vance puxou uma cadeira para que se sentasse.

— Temos algumas perguntas a fazer-lhe, Srta. Bruce — começou a dizer, iniciando a conversa.

— Nada mais aqui me surpreende — retorquiu a zeladora, em tom filosófico. — Farei o possível para responder.

— Sabe, naturalmente, que diversas das esmeraldas foram roubadas da Sala das Gemas?

— O Sr. Rexon já me informou do ocorrido. É o que me surpreende ainda menos do que tudo o mais. Ficarei satisfeita em livrar-me da atmosfera que cerca essas pedras.

— O que quer dizer, Bruce? — interveio Rexon.

— É bom que lhe diga de uma vez, senhor. Terá de saber, agora ou mais tarde. Estou pedindo demissão imediatamente, senhor. E sairei daqui para sempre, em cerca de uma semana... talvez antes.

— Demissão! Vai embora! Mas por que, Bruce? A mulher corou.

— O doutor fez-me a honra de me pedir em casamento. Vance sorriu, de modo agradável.

— Muito bem, muito bem! Isso deve ter acontecido ontem à noite... não é mesmo, Srta. Bruce? Logo antes de vir tomar conta da Srta. Joan.

A mulher pareceu sobressaltada.

— Como pôde saber?

— É a chama do amor, nos olhos da mulher. Vi todos os sinais. Gostaria de ser o primeiro a dar-lhe os parabéns.

— E eu, também, folgo muitíssimo em sabê-lo, Bruce... — Mas a voz de Rexon faltou, ele prosseguiu depois de leve pausa: — Porém não podia ficar conosco? A Joan vai sentir sua falta...

— E eu lamento muito ter de deixar a Srta. Joan, senhor. Mas Loomis... quer dizer, o doutor... quer sair de Winewood. Está tendo dificuldades cada vez maiores em viver por aqui... havendo dois médicos mais jovens a tomar-lhe a clientela.

— E para onde pretende ir?

— Ainda não tenho certeza, senhor. Ele mencionou a possibilidade de irmos para o exterior.

Rexon assentiu, conformado.

— Compreendo. Compreendo. Imagino que a parada esteja realmente ficando dura para Quayne. Mas, meu Deus! Sentirei a falta dele. E de você também, Bruce.

— Tratemos agora de assuntos menos agradáveis, Srta. Bruce — solicitou Vance, sentando-se no braço de uma poltrona. — Deve ter descido para cá, para o pavimento térreo, por volta do meio-dia de ontem.

— Desci, sim. Estive cá embaixo a maior parte da manhã, cuidando das refeições e...

— Viu Eric Gunthar aqui?

— Notei que ele ficou lá fora, na entrada traseira. Mas não sei se ele entrou na casa.

— Viu o velho Jed?

— Aquele eremita! Ele nunca se aproxima da casa, senhor.

— Bem, consegue lembrar-se de alguém que tenha visto, com certeza? Na sala de entrada ali, ou perto da Sala das Gemas?

— Tantos convidados subiam e desciam... — E ela hesitou por momentos, como a procurar coordenar os pensamentos. — O Sr. Richard passou com rapidez pela sala de entrada, uma ou duas vezes. Acho que vi também o amigo dele, o de aspecto estrangeiro. E aquele cavalheiro caçador de tesouros andou por aqui. Não sei se estava esperando a Srta. Naesmith, ou o quê. E vi o Dr. Quayne, embora não tivesse oportunidade de falar com ele — explicou a zeladora, que parecia ávida em aproveitar qualquer pretexto para mencionar o futuro marido.

— E o viu, quando ele chegou de manhã? — perguntou Vance.

— Não. Foi quando ele saía. Tinha ficado mais tempo do que o costume, estava atrasado. Lembro que a sereia do meio-dia havia tocado alguns minutos antes...

Vance deu um salto, pondo-se em pé, ergueu a mão e pediu silêncio. Uma expressão de distanciamento veio a seu semblante. Caminhou de um para outro lado nervosamente, diversas vezes. Depois estacou de súbito, diante da escrivaninha de Rexon.

— Aquele algo insignificante — observou, com palavras vagarosas, ao deixar-se afundar na poltrona. — Acho que encontrei. A sereia. Não a ouvi tocando hoje.

— Ela não é tocada aos domingos — informou Rexon. —"Não, claro que não. Mas ontem.

— O que pode a sereia ter a ver com tudo isto, Vance?

— Tudo. Preciso pensar um pouco.

Tirou a cigarreira e escolheu um dos cigarros, com gestos deliberados. Caminhou até à janela e ficou olhando por instantes. Ao se voltar, batidas leves à porta foram acompanhadas pela entrada tímida de Eric Gunthar, que retorcia nervosamente o chapéu nas mãos.

— Queria falar comigo, patrão? — perguntou, o olhar baixo, fitando o chão.

Foi Vance quem respondeu à pergunta: — É melhor que saiba logo do pior, Gunthar. O tenente O’Leary está decidido a prender você e sua filha, por suspeitas. Já deve ter notado que ele tem um investigador a vigiar a Srta. Ella... Ela voltou com você?

— Sim, senhor. Voltou. Está no pavilhão, mudando de roupa. Disse que ia patinar no rinque.

— Ótimo — disse Vance. — Daqui a pouco vamos sair, todos nós, e assistir à patinação dela.

— Minha filha pediu para lhe dizer, senhor, que não encontrou o velho Jed em parte alguma.

— Obrigado. Não faz mal... Mas, voltando ao que eu dizia: não vejo motivo por que você também não deva estar aqui. De nada adianta querer fugir. O tenente chegará a qualquer instante. Você deve ficar aqui, sentado. Confie em mim, exatamente como sua filha. Farei o possível. Talvez não consiga, mas não há outro modo. Sente-se aí e espere, entendeu?

Assentindo com desânimo, o homem caminhou com passos desajeitados rumo à cadeira que Vance lhe indicara. Continuou a girar o chapéu nas mãos, logo o colocava atrás de si e apoiava a cabeça nas palmas das mãos, em atitude dócil. Estava envergonhado, assustado.

Vance acabara de voltar e sentara-se em frente à escrivaninha de Rexon quando outra batida à porta anunciou a chegada do tenente e do Dr. Quayne. Leve cheiro de gasolina os acompanhava, em sua entrada no aposento.

— Vejo que sua carruagem recebeu outra injeção intra-muscular, doutor — disse Vance, em tom agradável.

Quayne limitou-se a assentir.

— Parabéns e cumprimentos, doutor — disse Rexon. — Mareia Bruce acabou de nos falar do casamento...

Quayne sorriu e olhou para a noiva, a admirá-la. Sentou-se no divã comprido de couro e a Srta. Bruce levantou-se da cadeira, indo fazer-lhe companhia.

— Achei que você ficaria satisfeito, Rexon — disse Quayne, com certo orgulho.

— Naturalmente, mas vou sentir a falta dos dois. E Joan também sentirá.

O’Leary murmurou seus parabéns, o olhar fixo na figura abatida de Gunthar, que estava inquieto e sentado na beira da cadeira. Depois franziu o cenho, denotando perplexidade, e procurou o olhar de Vance.

— Sim. Decerto, tenente. Fazendo o bondoso. Sabia que você apareceria logo. Achei melhor estar com o Gunthar, pronto para entregá-lo. Tentando fazer a minha parte. Sempre aprecio os favores.

— E a moça?

— À sua espera, também. Isto é, por assim dizer, Se não estiver lá fora no rinque, chegará dentro de um ou dois minutos. Patinando para os convidados. Sob o olho vigilante de seu robusto policial, 6 claro.

O’Leary, de repente, deu alguns passos para trás, apertou os olhos e lançou a Vance um olhar arguto.

— Qual é o significado de tudo isso, senhor? Aí temos algo escondido.

Vance sorriu, fatigado, e assentiu.

— Tem toda a razão, tenente! Há algo escondido. Mas, o que será? Acredito que seja a sereia... a sereia que toca ao meio-dia aqui, tenente, e que ecoa pelos morros e...

O’Leary o interrompeu, impaciente.

— A que ponto quer chegar, senhor?

— A um simples bate-papo. Concatenar as coisas, fazer algumas perguntas. Examinar nossas almas. É bom para elas, de vez em quando. E quando houvermos terminado, poderá levar Gunthar e a filha daqui. Se ainda o desejar, tenente.

— A mim parece perda de tempo, senhor.

— E o mesmo ocorre, mais ou menos, com toda a vida... não acha?

— Quanto tempo isto vai levar, senhor? — indagou O’Leary, cuja inquietação se tornava evidente. — Já fui muito longe em sua companhia. De minha parte, estou pronto para levá-los agora...

— Determine o momento, quando quiser, tenente. O’Leary guardou o cachimbo.

— É justo.

— Sim... oh, sim. Sempre justo. Pode ser inútil às vezes, mas justo.

 

 

 

XV

 

Perguntas e respostas

 


(Domingo, 19 de janeiro — 13:45 horas)

 

 

O Dr. Quayne se remexeu inquieto, no sofá onde sentara.

— Aí temos um mau negócio — observou. — Um mau negócio. Há pelo menos dez horas que Bassett morreu. Mandamos retirar o corpo para o necrotério. Outra autópsia a fazer. Pelo que vi de início, posso apenas afirmar que teve morte muito parecida à de Wallen. Desta feita, entretanto, não há penhasco do qual possa ter caído.

— Também o senhor observou a semelhança dos ferimentos, não foi, doutor? — indagou O’Leary.

— Não podia deixar de ser visto — retorquiu Quayne. — Nunca vi coincidência tão estranha. Se não estivesse confundido por outros fatores, poderia quase jurar que ambas as mortes foram causadas do mesmo modo.

O’Leary apertou os lábios, indicando grande satisfação, e assentiu com meneios enérgicos.

— Foi o mesmo pensamento que tive — afirmou o policial.

— Ao que estou informado, Sr. Vance, — prosseguiu o médico — recebeu um relatório oficial sobre o homem, hoje de manhã, relatório esse que lança luz bastante sinistra na questão. Pelo que o tenente O’Leary me disse, formei uma teoria que gostaria de lhe apresentar.

— Faça o favor de dizer — pediu Vance, ansioso.

— É a seguinte: obviamente Bassett veio para cá com o fito exclusivo de pôr as mãos em algumas das esmeraldas do Sr. Rexon. Suponho que a primeira tentativa dele tenha sido feita pelo lado de fora, e que foi surpreendido pelo guarda, Wallen, podemos concluir que só lhe restava uma alternativa, qual seja o de acabar com Wallen. Suponhamos, ademais, que tenha agido assim; que foi surpreendido por um amigo de Wallen, que, em tais circunstâncias, nada pôde fazer para evitar o assassinato. Esse outro homem, podemos ter certeza, ficaria cem raiva e trataria de vingar-se na primeira oportunidade. Essa gente é, toda ela, muito simples, Sr. Vance. Eles acreditam apaixonadamente na lei mosaica de "olho por olho". Não hesitariam em fazer justiça pelas próprias mãos.

— Teoria muito plausível, a sua, doutor — disse Vance. — Digna de exame.

Quayne assentiu, reconhecendo o cumprimento. E logo Vance olhava de modo abrupto para a Srta. Bruce, sentada ao lado do noivo.

— Contou-nos, então, que viu o Sr. Sydes rondando por aqui, por volta do meio-dia?

Ela confirmou.

Vance dirigia-se agora a Rexon.

— Pode fazer o favor de mandar chamar o cavalheiro? E também seu filho. Faça-o agora, por favor. Precisamos de rapidez, amigo velho. As folhas começam a virar-se, o passarinho está a ponto de bater asas. O nosso tempo escasseia.

Rexon tocou a campainha para chamar o mordomo, a quem transmitiu o pedido.

Em poucos minutos uma batida à porta foi acompanhada pela entrada de Stanley Sydes, em bamboleio arrogante, tendo Richard Rexon bem atrás. O último caminhou até à janela por trás da escrivaninha do pai, sentando-se em seu peitoril. Sydes continuou em pé, os braços apoiados nas costas de uma cadeira vazia.

— Aqui temos uma reunião e tanto — comentou, despreocupadamente. — E espero que não tenhamos todos de perder o desempenho da Srta. Gunthar. Nunca vi alguém que a igualasse patinando no gelo.

— Sua opinião não é a única, Sr. Sydes — observou Vance. — Vamos procurar retê-lo aqui o menor tempo possível... Será possível, lembrar-se de onde esteve ontem, ao soar o apito de meio-dia? A Srta. Bruce, aqui presente, acha que o viu a essa hora, caminhando na sala de entrada do térreo.

Sydes riu expansivamente.

— E não está enganada. Provavelmente ia ao bar, a fim de acalmar meus nervos estraçalhados.

— Espero que o antídoto tenha sido eficaz — observou Vance, com um sorriso. — Hoje o senhor está com excelente aspecto... Ainda que isso não venha ao caso, Sr. Sydes, os seus interesses se limitam apenas aos tesouros enterrados? — E o fitava com atenção.

— Acho que não o entendi, senhor. Como disse antes, é a sensação da procura o que me atrai. Mas não acredito que homem algum refugasse um tesouro que estivesse bem diante do nariz... se me permitem a observação.

— Tinha conhecimento da coleção de esmeraldas do Sr. Rexon?

— Por estranho que pareça, não tinha, até um ou dois dias atrás. Foi outra coisa o que me trouxe aqui. Posso acrescentar, todavia, que fiquei verdadeiramente desapontado ao tomar conhecimento de que não íamos ver as pedras, afinal.

— Sabe, por acaso, o motivo pelo qual o Sr. Rexon não abriu a Sala das Gemas para a visita dos convidados?

— Não faço a menor idéia. E não tive a preocupação de indagar.

— É dono de admirável controle — murmurou Vance. — Merece respeito. Vou responder, para o senhor, a pergunta que não foi feita. O fato é que certo número das esmeraldas desapareceu da Sala das Gemas... foram certamente roubadas. E um dos convidados... o Sr. Bassett... foi assassinado.

Com um salto, Richard Rexon se ergueu do peitoril da janela.

Sydes empertigou o corpo e respirou fundo.

— Inacreditável! — murmurou. — Ora, vi o homem faz apenas... — e se interrompeu.

— Sim? — incentivou Vance. — Quando viu Bassett pela última vez?

— Pensando bem — retorquiu Sydes, em tom lamentoso — não o vi hoje, de modo algum... Posso ajudá-lo em alguma coisa?

— Obrigado. Basta que volte a ter com os outros e ajude a Srta. Gunthar a mantê-los entretidos e fora daqui.

Sydes fez uma mesura e retirou-se, com uma expressão de preocupação mista com alívio.

O jovem Rexon conversava em voz baixa com o pai. Parecia perplexo, ao voltar à janela. Vance se dirigiu a ele.

— O que sabia a respeito de seu amigo Bassett, Sr. Rexon?

O rapaz não respondeu em seguida. Vance acendeu um cigarro, enquanto esperava, e finalmente o jovem Rexon se manifestou: — Não sabia grande coisa, ao que receio. Apenas que parecia ser um camarada agradável, e também bom companheiro de viagem.

— O que não constitui recomendação suficiente, de modo algum — resmungou o velho Rexon com amargura. — O homem era um patife!

— Sabia — perguntou Vance, descuidadamente — que durante sua breve estada aqui ele andou importunando a Srta. Ella?

Richard Rexon, em resposta, limitou-se a sacudir a cabeça e Vance prosseguiu: — O velho Jed achou necessário repreendê-lo com severidade. Talvez Jed tenha feito mais do que isso...

Eric Gunthar, ouvindo tais palavras, deu um salto na cadeira.

— Não pode dizer isso, senhor! O eremita pode ser um esquisitão, mas não matou ninguém!

Ele próprio pareceu surpreso pela atitude que acabara de tomar, e afundou-se novamente na cadeira.

Quayne lançou olhar significativo a Vance.

— O que vem a confirmar minha afirmação anterior, Sr. Vance.

Este assentiu, distraído. Pegou o cinzeiro e bateu as cinzas do cigarro.

— Diga-me uma coisa, Gunthar: esse seu eremita era amigo de Lief Wallen?

— O eremita não é amigo de ninguém. Talvez só de minha Ella.

— E Wallen tinha algum amigo na propriedade, que quisesse vingá-lo, se soubesse que tinha havido assassinato?

— Não sei nada sobre os amigos, mas qualquer um de nós o faria, se tivesse motivo.

— Muito interessante. E altamente recomendável... Mas acredito que o tenente O’Leary tenha uma ou duas perguntas a lhe fazer.

Vance, com amplo gesto da mão, parecia estar entregando uma testemunha à inquirição da promotoria.

— Sr. Gunthar, — começou o tenente a dizer —, esteve na taberna de Murphy na noite em que Wallen morreu?

Gunthar procurou lembrar-se.

— Estive, sim.

— E foi diretamente para sua cabana, saindo de lá?

— Pode dizer que sim, senhor. Só parei fora da casa, aqui, para ver o que se passava.

— E viu Wallen?

— Não... acho que não — respondeu Gunthar, hesitando e logo corrigia a afirmação: — Ou, se vi, não prestei grande atenção.

— Veio ontem à mansão, Gunthar? — indagou o tenente, cuja expressão se tornava mais belicosa.

— Bem, eu vim... e não vim. Quer dizer, eu não entrei na casa, por assim dizer.

— Para que veio aqui?

— Para falar com o patrão.

Dito isso, Gunthar lançou um olhar inquieto a Rexon e prosseguiu:

— O caso é que o Sr. Richard queria que eu viesse aqui e prometesse ao patrão que não ia beber mais, se ele me deixasse no emprego. Por isso vim logo de manhã. Mas o patrão ainda não tinha descido. Mais tarde, o Sr. Richard foi falar comigo, onde eu estava trabalhando, no pavilhão, e me disse para subir outra vez. Eu não queria ir, mas o Sr. Richard não me largou. Por isso vim. Estava com uma garrafa no bolso e tomei outro gole a caminho. Só para dar coragem, sabe? E quando cheguei aqui, parei para pensar no que ia dizer. Depois achei que o patrão não ia gostar, se sentisse o cheiro de bebida. Fiquei lá fora por algum tempo, pensando no que ia fazer. Mas não entrei. Voltei para o pavilhão. Depois do almoço, o Sr. Richard foi lá outra vez, para me perguntar...

— Chega — interrompeu O’Leary, impaciente.

— Acho, tenente, — interpôs Vance, em voz agradável — que a teoria do doutor se mostra mais plausível. Já conheci médicos, entretanto, que, quando não gostavam de um diagnóstico que não pudesse ser provado com certeza, adotavam uma alternativa mais aceitável, baseada nos mesmos fatores principais.

— Aí temos uma observação cheia de discernimento — observou Quayne, secamente.

— Começamos com a suposição admissível de que o guarda, tendo frustrado uma tentativa de entrada na Sala das Gemas, feita por fora da casa, foi deliberadamente assassinado. Que exista testemunha ocular desse assassinato, não parece absurdo. Sabemos, com certeza, que a entrada é efetuada mais tarde, na Sala das Gemas, graças à chave do Sr. Rexon. Sabemos, do mesmo modo, além de qualquer dúvida, que certo Bassett, com motivos suficientes e compreensíveis para interessar-se pelas esmeraldas, é vítima do segundo assassinato.

Vance fez uma pausa e acendeu novo Régie.

— Defrontamo-nos — prosseguiu então — com um número maior de fatores desconhecidos do que é possível relacionar em um só problema: Quem testemunhou esse primeiro assassinato hipotético? Quem conseguiu a chave para a sala onde são guardadas as jóias e se apropriou das esmeraldas? Finalmente, quem deu fim a Bassett, e por quê?

Puxou baforadas do cigarro, pensativo, e relanceou o olhar em volta.

— De início — prosseguiu — Bassett parece ser a indicação lógica do segundo fator do enigma.

Os demais assentiram, concordando, e ele prosseguiu: — Se, ao menos, tivéssemos encontrado as esmeraldas com ele... ou em seu quarto...

— E foi dada uma busca completa? — indagou Carrington Rexon, cheio de esperanças.

Antes que Vance pudesse responder, o médico voltou a falar:

— Meu caro Rexon — dizia, quase como se se dirigisse a uma criança. — O homem não era criatura tão simplória a ponto de deixá-las de qualquer modo por aí. Poderia fazer delas um embrulho seguro e despachá-las para algum lugar, pelo correio.

— Uma sugestão razoável — concordou Vance. — Por outro lado, sou irresistivelmente levado à conclusão de que Bassett não poderia, de modo algum, ter tirado as esmeraldas.

Seguiu-se um murmúrio de discordância e surpresa.

— Por que não, Sr. Vance? — e a pergunta era feita por O’Leary.

— Pelo simples motivo, tenente, de que ele não teria tempo para tanto. O Sr. Rexon nos contou que ouviu o começo da sereia do meio-dia, exatamente quando foi golpeado e perdeu a consciência. Não é mesmo assim, velho amigo?

— Perfeitamente, Vance. Tenho absoluta certeza.

— Mas — interpôs o médico — eu só fui chamado após meio-dia e meia. Suponho que ninguém soubesse da situação do Sr. Rexon, até então.

— Tem toda a razão, doutor — observou Vance. — Ainda assim, persisto na opinião de que Bassett não teria conseguido... O hábito embota nossa percepção do ato ou som repetido. Quantos de nós temos consciência das batidas de um relógio, a menos que as estejamos esperando? Deixamos o tempo passar por nós, sem ser observado. Mas é bastante que um homem tenha de pegar um trem ou chegar à hora aprazada a um encontro, e o tique-taque de seu relógio adquire significado para ele... Acha isso psicologicamente correto, Dr. Quayne?

— Sem dúvida — concordou o médico e colocou a mão no ombro da mulher a seu lado, mas esta parecia imersa em seus próprios pensamentos.

— Muito bem, nesse caso... Bassett veio ter conosco na varanda, quase antes do eco da sirena ter acabado. Talvez o tenha observado.

— Não o posso afirmar — disse o médico, tossindo, com ar negligente.

— Talvez não. Ele era cidadão um tanto distante dos demais. Ficou em um dos extremos da varanda... sozinho. O singular é que eu não teria notado a sereia. Não havia observado, nos outros dias. O hábito, como afirmei, embota nossos sentidos, não é verdade? Mas embora não tivesse consciência do fato no momento, o som foi chamado à minha atenção. Pelo senhor mesmo, doutor. Lembra-se?

— É possível. Lembro-me de que estava com pressa. Fiquei mais tempo do que pretendia.

— Exatamente. Mas o importante é... e o senhor não podia saber,' doutor, porque nos deixou de imediato... que Bassett permaneceu na varanda pelo menos na meia hora seguinte... e isso esclarece o que quero dizer?

Novo murmúrio abafado se fez ouvir entre os demais.

— Eliminando assim Bassett dessa fase de nosso pequeno problema, quem podemos colocar em seu lugar?... Sydes, sem a menor dúvida, estava dizendo a verdade.

— Pode ser, Sr. Vance — reconheceu O’Leary. — Mas que me diz de Eric Gunthar? Estou prestes a prendê-lo, senhor.

Gunthar remexeu-se na cadeira, o jovem Rexon se adiantou.

— Se me der licença, senhor, acho que posso confirmar as declarações de Gunthar. Pode acreditar nelas, ele contou a verdade.

— Sim, tenente — corroborou Vance. — Deixe-me dizer o seguinte, a respeito de Gunthar: ele tem sido fraco e tolo." Permitiu que sua vaidade e competência normais se transformassem em agressividades. Daí os inimigos que fez. Em seguida, começou a beber em demasia. Era para fortalecer-lhe a confiança. Atitude nada ajuizada. Não, de modo algum. Resultado: tanto ele quanto a filha se acham agora em grandes apuros. Ainda assim, não acredito que seja culpado. E acredito que venha a concordar comigo, dentro em breve, tenente. Alguns minutos a mais, por favor...

Olhou para O’Leary e recebeu dele um assentimento de má vontade. Fitou então o jovem Rexon.

— Que me diz de si, Sr. Richard? Podia ter tirado as esmeraldas de seu pai e feito um embrulho com elas... ?

Foi interrompido por um grito semi-abafado, dado por Mareia Bruce que, de súbito, levantou-se do sofá.

— Oh, meu Deus! — gemeu; e saiu correndo do aposento.

Quayne lançou-lhe um olhar de espanto.

A pergunta de Vance nos deixara, a todos, igualmente aturdidos. O jovem Rexon ficara lívido e sem fala, diante do acusador.

— Com base no que observei e ouvi — prosseguiu Vance, implacavelmente — e deixando de lado por enquanto a questão do móvel do crime, o senhor parece ter tido todas as oportunidades para...

Carrington Rexon deu um salto da cadeira e esmurrou a escrivaninha com o punho cerrado.

— Olhe aqui, Vance! — trovejou. — Já foi longe demais! Se vai transformar o caso em uma farsa, prefiro dizer que as esmeraldas se danem, e encerrar o assunto imediatamente.

— Rexon tem toda a razão — secundou Quayne, em tom imponente. — Pense só no escândalo...

— Estou pensando nele — retorquiu Vance, que continuara calmo. — Mas não se trata mais de uma questão de esmeraldas, apenas esmeraldas. Temos, com certeza, um assassinato a deslindar. Talvez dois. Acredito que o Sr. Rexon não diria "danem-se" a essas mortes.

O proprietário da mansão sacudiu a cabeça, desalentado. Deixou-se cair novamente na cadeira, e o filho, a um gesto de Vance, retomou o lugar no peitoril da janela.

 


XVI

 

Cortina final


(Domingo, 19 de janeiro — 14:45 horas)

 

 

Vance deu alguns passos pelo aposento, a atenção chamada por olhos que espiavam pela janela, atrás de Richard Rexon. Era o Eremita Verde. Ele não se moveu, enquanto Vance se aproximava da janela e a suspendia.

— É melhor que entre para cá, Jed — sugeriu Vance, em tom. casual. — Vai poder ver muito melhor, não acha? E ouvir, também. Será mais satisfatório, não é verdade?

Fechou então a janela, quando o ancião se afastava. Vance voltou à cadeira, cruzando as pernas ao sentar-se.

Higgins abriu a porta, tendo no semblante um ar de surpresa.

— É o velho Jed, senhor — murmurou, sem jeito.

— Sim... oh, sim. Mande-o entrar — e foi Vance quem falou.

O ancião, cabeça branca, entrou na sala arrastando os pés, olhando para um e outro lado, como a procurar onde pudesse esconder-se. Escolheu finalmente uma cadeira no canto mais perto de Vance e sentou-se, sem dizer uma só palavra.

— Em que pé estamos, agora? — recomeçou Vance. — Ah, sim. Ainda temos de encontrar a identidade das pessoas envolvidas em uma cena dramática de agressão física e roubo.

Ergueu-se da cadeira e se encostou nela, debruçado.

— O Sr. Rexon, me contou, Dr. Quayne, que está pensando em deixar Winewood.

Dizendo isso, Vance dedicava um olhar indolente ao médico.

Este pareceu surpreso.

— Francamente, sim — respondeu. — Embora não me lembre de ter mencionado o assunto. De qualquer modo, não vejo o que meus planos para o futuro têm a ver com essa questão.

— Logo verá, doutor.

Vance extraiu do bolso um cartão de visitas e um lápis. Escreveu apressadamente algumas palavras e brincou com o cartão por alguns momentos.

— O nosso problema começa a ficar muito bem enunciado — disse então, olhando os demais. — Eu disse que Bassett não podia ter obtido as jóias. Mas podia... e provavelmente pôde — atacar o Sr. Rexon e conseguir a chave para a Sala das Gemas... Sim, teria tempo exatamente para isso... Esta minha suposição atribui a ele metade do segundo papel. Mas nosso elenco continua lamentavelmente incompleto... Permita mais uma pergunta, Dr. Quayne. Por que fez questão de me lembrar que eram doze minutos após meio-dia, ontem?

— Repilo o que quer dizer, senhor. Eu estava simplesmente com pressa.

— É como diz. Com pressa de entrar na Sala das Gemas e sair novamente, doutor?

Quayne não respondeu, limitando-se a sorrir, como faria diante de alguma criança precoce.

A porta foi aberta de repente e Mareia Bruce voltou, entrando afobadamente no aposento. Tinha o rosto rubro, as mãos arrancavam com fúria o envoltório de papel de um pequeno embrulho. Lançou então um olhar de asco ao homem sentado no divã.

Na confusão momentânea que se formou, Vance passou o cartão que tinha na mão ao tenente O’Leary. Este último saiu do aposento e regressou quase em seguida. Caminhou então, devagar, para o divã, sentando-se ao lado de Quayne.

Mareia Bruce já retirara os últimos fragmentos de papel e agora ostentava nas mãos trêmulas uma pequena bolsa de camurça, de confecção tosca, atada com fio dental. Seus olhos verdes e cheios de fúria fitavam Quayne.

— Seu charlatão! Seu ladrão! — vituperava. — Acha que eu poderia ser enganada com tanta facilidade? Pensou que por causa de suas palavras melosas podia contar comigo para ajudá-lo, protegê-lo em sua hora de aperto?... Sua hora de aperto! — repetiu cheia de desdém. — Hora de vergonha! Hora de perfídia!

Voltou-lhe as costas e estendeu a bolsinha para Vance, que a recebeu, colocando-a sobre a escrivaninha.

Carrington Rexon, os dedos trêmulos, conseguiu abrir a bolsinha. Esvaziou seu conteúdo e as jóias brilhantes formaram uma figura de luz tremelicante no mata-borrão que tinha à frente. O filho voltou a tomar seu lado e, juntos, examinaram as pedras.

— Acho que estão todas aqui, Vance — afirmou o proprietário da mansão, tirando do bolso um lenço e colocando as pedras, uma por uma, em suas dobras.

No divã, Quayne permanecia sentado, com lividez cadavérica. Parecia ter envelhecido muitos anos em questão de minutos. O’Leary aproximou-se um pouco mais dele.

Vance voltou-se para a zeladora.

— Posso perguntar como essa bolsinha chegou a seu poder, madame?

— Ele a trouxe para mim — foi a resposta, com o dedo desdenhosamente apontado para o médico. — Ontem à noite. Para que eu guardasse. Estava tudo embrulhado. Ia ser uma surpresa, uma surpresa que eu partilharia com ele, quando estivéssemos casados e... — Ela cessou abruptamente de falar.

Vance fez uma mesura para a mulher.

— Obrigado, madame. Era a prova concreta de que eu precisava... Uma sorte, para o Sr. Rexon, que os bancos estivessem fechados ontem... não acha, doutor?

Quayne deu de ombros, com ar indefeso.

— Sua teoria não estava muito errada, doutor... Agora, se atribuirmos ao Dr. Quayne o papel de elemento que obteve as jóias, como sugerem de modo tão irresistível as circunstâncias, o problema deixa de existir.

— Mas como, de que jeito, Vance... — e Carrington Rexon já não sabia o que dizer.

— Se o nosso bom médico me ajudar a elucidar mais o assunto... O aparecimento de Bassett na varanda, ontem, foi a deixa de que ele executara metade do plano. Estou certo, doutor?

Quayne não deu qualquer sinal de ter ouvido aquelas palavras.

— E tendo formado para si um álibi inatacável naquela hora perigosa do meio-dia, só foi preciso entrar na casa, tirar a chave de onde sabia que ele a tinha deixado para o senhor, e o resto não podia ser mais simples. Sua presença em qualquer outro lugar, no andar térreo, não teria causado desconfiança alguma... Mas pode contar-nos, doutor, que forma de chantagem Bassett empregou para induzi-lo a participar desse plano?

Quayne permanecia em silêncio completo.

— Nesse caso, tenho de recorrer novamente ao nosso limitado elenco — prosseguiu Vance. — O senhor foi de imensa valia, um pouco antes, doutor. Não resta dúvida de que estava a ajudar a si próprio. Sugeriu a existência de uma testemunha ocular no assassinato de Wallen. Pois bem, quem poderíamos colocar nesse papel e que fosse mais adequado do que o Sr. Bassett?... está claro que isso não passa de adivinhação. Mas, a meu ver, ele satisfazia todos os requisitos...

Seguiu-se uma interrupção inesperada, feita pelo Eremita Verde.

— Não é adivinhação, moço. Se está falando da noite em que Lief Wallen morreu, eu estava lá. Estava lá, porque tinha ido cuidar da Srta. Ella. A Srta. Ella não devia vir aqui tão tarde... Eu vi o doutor caminhar em companhia de Lief. E vi o Sr. Bassett seguir atrás deles. Tudo muito quietinho e sossegado. Eu não sabia que eles pretendiam fazer o mal...

Vance voltou-se de súbito para O’Leary, com ar indagador. O tenente se pôs em pé, com movimento brusco do braço, parecendo-se muito ao de um mágico, quando está a ponto de se sair com alguma surpresa. Descendo gradualmente de sua manga, veio uma chave pesada, com cerca de trinta centímetros de comprimento, aberturas quadradas e variadas em cada extremidade. Ele a estendeu a Vance.

— Por Deus! — disse Vance, sem se alterar. — Uma chave de boca! Em geral, faz parte das ferramentas de um automóvel... não acha, doutor?

Quayne enrijou o corpo, os olhos se esbugalharam e prenderam-se na chave reveladora que Vance tinha à mão.

— Uma pena que sua primeira tentativa de entrar na Sala das Gemas não tenha obtido mais êxito, doutor.

Vance olhou friamente para o homem sentado no divã e aduziu: — Com que, então, Bassett foi mesmo testemunha ocular. Deve ter imposto condições pesadas, doutor.

Quayne falava agora, pela primeira vez. A voz era constrangida, cheia de amargor.

— Metade do que eu poderia obter. E só correu riscos mínimos.

— E o senhor tomou, então, a precaução adicional de deixar o colar no pavilhão, na esperança de assim prejudicar ainda mais Gunthar, que já parecia estar sob suspeita.

O médico estendeu as mãos, em gesto de quem estava indefeso.

— Mas, mesmo assim, achou que não podia confiar em seu sócio? Julgou mais seguro... e mais proveitoso... tirá-lo da manobra, de uma vez por todas?

Quayne se inclinou à frente, o corpo rígido.

— É melhor que eu conte tudo — disse, fatigado. — Quando estive no exterior, faz dois anos, Richard apresentou-me a Jacques Bassett. Foi um conhecimento dos mais infelizes, para mim. Desde o início o homem me desagradou, embora eu tentasse não dar a perceber. Por mais curta que fosse nossa ligação, senti sua influência má. Em momento de fraqueza, fui persuadido a contrabandear um volume com jóias, trazendo-o a este país, para ele. Consegui bastante êxito. Embora ficasse sob suspeita por algum tempo, a investigação federal foi finalmente cancelada. Quando enviei ao patife a parte que lhe cabia na transação, julguei que o tinha arredado para sempre da minha vida. Foi quando Richard veio para casa e trouxe Bassett em sua companhia. Fiquei angustiado ao ver que a amizade deles prosseguira. Mas não podia dizer coisa alguma... Como afirmei antes, a viagem de Bassett para cá foi motivada unicamente pelo seu desejo de apanhar as esmeraldas de Rexon. Ele não perdeu tempo em restabelecer o contato comigo. Tornou bem claro que tivera a sorte de descobrir um aliado, contra a vontade, e que se achava sob suas ordens. Ofereceu-me a escolha de fazer o que mandava ou de ser denunciado na questão do contrabando. Pintou tudo em cores muito boas para mim, se eu fizesse o que ele queria... Há anos que tenho querido casar-me com Mareia Bruce...

Lançou um olhar de súplica à mulher, que estava do outro lado do aposento. Ela recobrara o controle de si mesma, retribuindo com olhar gelado.

— Mas nunca tive rendimentos suficientes para sustentá-la — prosseguiu Quayne. — Minha clínica decaíra a tal ponto que só os honorários pagos por Rexon eram o que restava. Nos muitos anos de minha ligação com esta casa, não me ocorreu por um só instante a idéia de roubar as esmeraldas. O plano foi de Bassett. Mas eu fui presa fácil de seus desígnios... Wallen interrompeu nossa primeira tentativa e tornou-se necessário que nos livrássemos dele. Eu tinha a chave de boca comigo, usei-a para fraturar-lhe o crânio. Depois o arrastamos até o penhasco e o jogamos de lá. Parecia que estávamos a salvo, e eu queria desistir, naquele momento. Mas Bassett se valeu desse segundo crime para aumentar as ameaças. Não pude fazer outra coisa senão prosseguir...

Fez uma pausa curta e prosseguiu: — Adivinhou com muita argúcia, sr. Vance, o modo pelo qual Bassett obteve a chave para mim... Ontem à noite, em hora avançada, eu o encontrei perto da casa, a fim de dividirmos as jóias. Desconfiando dele, levei a chave de boca como precaução. Travamos uma discussão violenta, ele me ameaçou, e eu voltei a utilizar a chave... O resto, vocês já sabem...

Quando se ergueu inesperadamente, O’Leary o imitou, já com um par de algemas na mão. Vance fez-lhe um gesto negativo. O médico olhou em volta, os olhos nublados. Uma de suas mãos foi vagarosamente do bolso interno à boca...

No mesmo instante era lançado de volta ao divã, o corpo em convulsões horríveis. Em questão de segundos, imobilizava-se.

— Cheiro de amêndoas amargas — comentou Vance, calmamente. — Cianureto... Mais inteligente do que eu pensava. Isso nos deixa sem qualquer problema, elimina o segundo ator, no papel duplo.

O silêncio invadiu o aposento por um ou dois minutos.

Foi O’Leary quem o rompeu: — Mas, Sr. Vance, como imaginou que fosse aquela chave de boca?

— Não houve grande dificuldade — explicou Vance, a voz arrastada. — Havia dois fatores faltando no conjunto. O elemento de tempo e a arma do crime. O primeiro se esclareceu, quando percebi a artimanha inteligente dos dois, baseada no apito da sereia. O segundo ocorreu-me quando Quayne voltou em sua companhia esta tarde, após examinar o corpo de Bassett. Trazia um perceptível cheiro de gasolina. E eu me recordei daquela outra noite, quando ele falou em injetar gasolina no motor do carro, em vez de usar o arranque. Há duas ferramentas com as quais retirar as velas para fazê-lo... uma chave-inglesa, ou uma chave de boca... devem lembrar-se da natureza dos ferimentos no crânio de Wallen e no de Bassett. Uma fratura linear e de depressão, sobre o osso fino da têmpora. Um golpe forte com uma chave de aço serviria para a encomenda. Mencionei exatamente uma arma assim como possibilidade, no momento em que Wallen foi encontrado.

Vance fez uma pausa e acendeu o cigarro.

— De modo comum, naturalmente, a arma assassina é eliminada o mais depressa possível. Mas, nesse caso, tem de ser mantida à mão, a fim de afrouxar as velas do motor. Convenci-me de que seria encontrada com facilidade... no chão do seu automóvel, talvez... Não é assim, tenente?

O’Leary assentiu, exprimindo admiração.

— Mas, Sr. Vance, — contrapôs, um tanto encabulado — suponhamos que o senhor não estivesse na varanda, quando aquela sereia tocou? Quayne não podia contar com a sua presença, no momento exato.

— Obviamente que não. Mas não teria importado. Ele contava com a Srta. Joan e com a Srta. Ella. Isso vinha servir-lhe admiravelmente ao intuito. Talvez fosse ainda melhor. Ainda assim... não sei. Ele teria insistido em fazer-se ver. Achava que era a sua "saída" irrefutável, percebe?

— E como — perguntou Carrington Rexon — Bassett conseguiu entrar aqui sem que eu o visse?

— Você não disse que esteve fora da sala, amigo velho? —contrapôs Vance, inalando profundamente seu Régie. — O homem era paciente, tinha grandes objetivos...

Carlotta Naesmith irrompeu então no aposento.

— A pobre garota está cansada, Sir Galahad. Mas disse que recebeu instruções suas para continuar patinando.

Vance passou rapidamente diante da figura inerte de Quayne, estendida no divã.

— Obrigado, Srta. Naesmith. Dentro de instantes direi a ela que tudo vai bem, agora. Logo estaremos lá, todos nós.

— Por favor, Sir Galahad, deixe que eu conte a ela. — E a Srta. Naesmith saiu da sala, antes que Vance pudesse responder.

 

 

Os convidados deixaram a mansão Rexon na manhã seguinte. Também Richard Rexon ia partir de automóvel para Nova York, mais tarde, em companhia de Vance e de mim. Carlotta Naesmith e Stanley Sydes foram os últimos a se despedir. Formavam um grupo um tanto silencioso na varanda, enquanto Higgins levava as malas para fora.

A Srta. Naesmith se deteve no terraço.

— Você vai mandar-me seu novo endereço pelo correio, Dick? — perguntou, falando a distância. — E eu lhe mandarei cartões-postais da ilha dos Cocos. Espero que goste, Dick.

Um sorriso de compreensão foi trocado entre os dois, enquanto Carrington Rexon franzia as sobrancelhas.

Sydes, ainda na varanda, fez a pergunta entusiasmada: — Está falando sério, minha deusa?

— Mais do que sério — replicou ela, correndo para o automóvel. — Quando é que partimos?

— Assim que chegarmos ao iate, querida. — E Sydes foi em seu encalço.

Pouco depois Vance se achava no gabinete de Carrington Rexon, despedindo-se.

— A ingratidão dos jovens — queixava-se Rexon, com amargura. — Não sei em que o mundo vai dar.

— Ora, a coisa não é tão má assim — retorquiu Vance compreensivo. — E não foi você, Rexon, quem falou a respeito do coração humano que deseja a felicidade dos outros?

Rexon fitou-o: uma nova expressão veio devagar a seu olhar.

Richard entrou.

— Você vai dizer ao Higgins para despachar minhas malas, Papai?

— É claro, meu filho. Cuide bem de si... E... antes que se vá, filho, pode trazer Ella aqui, para conversarmos?

Retirando-se com um sorriso nos lábios, Vance os deixou a sós.

 

 

                                                   S. S. Van Dine         

 

 

 

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