Criar uma Loja Virtual Grátis
Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CRIME DO PADRE MOURET / Emili Zola
O CRIME DO PADRE MOURET / Emili Zola

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CRIME DO PADRE MOURET

 

TEUSE entrou e encostou ao altar a vassoura e o espanador. Demorara-se a tratar da barrela da roupa do semestre. Depois, atravessou a igreja para ir tocar o Angelus, coxeando mais do que o costume, devido à pressa, e esbarrando com os bancos. A corda pendia do tecto, junto do confessionário, nua, puída, e terminava num grande nó que as mãos tinham ensebado. Pendurou-se nela com todo o seu peso, puxou-a em movimentos regulares e depois abandonou-se ao vaivém, com as saias em desalinho, a touca às três pancadas e o sangue a saltar-lhe das faces rubicundas.

Depois de endireitar a touca com uma palmadinha, Teuse, ainda ofegante, voltou a varrer diante do altar, onde o pó teimava em se juntar, todos os dias, entre as tábuas mal unidas do estrado, e a vassoura vasculhou os cantos com um ruído colérico. Em seguida tirou a cobertura do altar e irritou-se ao verificar que a grande toalha superior, já passajada em vinte lugares, tinha um novo buraco de uso, mesmo no centro, através do qual se via a segunda toalha, dobrada em duas, tão rala, tão transparente também, que deixava ver a pedra de ara, encaixada na madeira pintada do altar. Sacudiu o pó àqueles panos amarelecidos pelo uso, passou vigorosamente o espanador ao longo da tribuna e encostou a esta os quadros litúrgicos. Depois, subiu para uma cadeira e libertou a cruz e dois castiçais das suas coberturas de algodão amarelo. O cobre estava salpicado de manchas baças.

- Oh! - exclamou a meia voz.-Estão bem precisados de uma limpeza! Tenho de os esfregar com trípolis.

Em seguida, a correr numa perna, bamboleando-se e saracoteando-se como se quisesse partir as lajes, foi à sacristia buscar o missal e pô-lo na estante, do lado da Epístola, sem o abrir, com a frente virada para o meio do altar. Acendeu as duas velas, pegou na vassoura e olhou em torno, para se assegurar de que a casa de Deus estava em ordem. A igreja dormia; só a corda, junto do confessionário, balouçava ainda, da abóbada ao chão, num movimento longo e flexível.

O padre Mouret acabava de descer à sacristia, uma divisãozinha fria separada da sala de jantar apenas por um corredor.

- Bons dias, senhor cura - cumprimentou-o Teuse, largando o que trazia nas mãos. - Esta manhã levantou-se tarde, seu preguiçoso! Já são seis e um quarto...

E sem dar ao jovem padre, que sorria, tempo de responder, continuou:

- Tenho de lhe ralhar. A toalha está outra vez esburacada. Assim não pode ser! Só temos uma para mudar e dei cabo dos olhos durante três dias a remendá-la... Por esse andar, acaba por deixar o pobre Jesus nuzinho.

Sem deixar de sorrir, o padre Mouret redarguiu alegremente :

- Jesus não precisa de tanta roupa, minha boa Teuse. Está sempre quente e é sempre recebido regiamente quando se lhe tem amor.

Depois, dirigindo-se para um lavatòriozinho, perguntou:

- A minha irmã já se levantou? Ainda não a vi.

- Há muito tempo que a menina Désirée desceu - respondeu a criada, de joelhos diante de um velho guarda-louça de cozinha onde se guardavam os paramentos. - Já está a tratar das suas galinhas e dos seus coelhos... Esperava que nascesse ontem uma ninhada de pintos, mas enganou-se. Imagine que decepção!

Interrompeu-se e perguntou:

- A casula dourada, não é verdade?

O padre, que depois de lavar as mãos se recolhera e balbuciava uma oração, meneou a cabeça afirmativamente. A paróquia só tinha três casulas: uma roxa, uma preta e uma de tecido dourado. Esta última, usada nos dias em que estava prescrito o branco, o vermelho ou o verde, adquirira assim extraordinária importância. Teuse tirou-a religiosamente da prateleira forrada de papel azul onde a arrumava depois de cada cerimónia, pô-la em cima do guarda-louça e retirou com cuidado o pano de linho que protegia os bordados: um cordeiro sobre uma cruz, rodeado de grandes raios, tudo de ouro. O tecido, puído nas dobras, deixava escapar delgadas palhetas e os ornamentos em relevo desfaziam-se e desapareciam. Naquela casa vivia-se numa inquietação contínua a respeito da casula, num misto de ternura e terror por a verem desaparecer assim, palheta a palheta, pois o cura tinha de a usar quase todos os dias, e como haviam de a substituir, como comprar as três casulas cujas vezes aquela fazia, quando os últimos fios de ouro desaparecessem?

Teuse estendeu em cima da casula a estola, o manípulo, o cíngulo, a alva e o amicto e continuou a tagarelar enquanto punha o manípulo em cruz em cima da estola e dispunha o cíngulo em grinalda, de modo a traçar a inicial veneranda do santo nome de Maria.

- Este cíngulo também já não está grande coisa - murmurava ela. - Tem de se resolver a comprar outro, senhor cura... Mas a maior dificuldade não é essa; eu própria lhe faria um se tivesse cânhamo.

O padre Mouret não respondeu. Preparava o cálice em cima de uma mesinha, um grande cálice antigo, de prata dourada e pé de bronze, que fora buscar ao fundo de um armário de madeira branca, onde se guardavam os vasos e os panos sagrados, os santos óleos, os missais, os castiçais e as cruzes. Colocou em cima do cálice um purificador limpo, a seguir a patena de prata dourada com a hóstia e por fim cobriu-a com uma palazinha de linho. Quando tapava o cálice e vincava as duas pregas do pano dourado idêntico ao da casula, Teuse gritou:

- Espere, ainda não pus o corporal na bolsa!... Levei ontem à tarde todos os purificadores, as palas e os corporais sujos, para os lavar, à parte, claro, sem os meter na barrela... Ainda lhe não disse, senhor cura, mas acabo de fazer a barrela. Ficou tão boa! Melhor do que da última vez.

E, enquanto o padre metia um corporal na bolsa, ornada com uma cruz de ouro sobre fundo também de ouro, e a colocava em cima do pano que cobria o cálice, a mulher prosseguiu, vivamente:

- A propósito, já me esquecia! O velhaco do Vincent ainda não veio. Quer que o ajude à missa, senhor cura?

O jovem padre olhou-a severamente.

- Oh, não é pecado! - continuou ela, com o seu sorriso bondoso. - Já uma vez ajudei à missa, no tempo do padre Caffin. Ajudo melhor do que os gaiatos, que riem como pagãos quando vêem uma mosca a voar na igreja... Apesar de usar touca, ter sessenta anos e ser alta como uma torre, respeito mais Deus do que essa canalha de rapazes que ainda outro dia surpreendi a saltar o eixo atrás do altar.

O padre continuava a olhá-la e a abanar a cabeça negativamente.

- Esta aldeia é uma cafurna! - exclamou Teuse. - Não tem mais de cento e cinquenta habitantes... Há dias, como hoje, em que não encontraria vivalma nos Artauds. Até as crianças de mama vão para as vinhas! Muito gostava de saber que fazem nas vinhas, com a breca! Vinhas que brotam debaixo das pedras, secas como cardos! Uma terra de lobos, a uma légua de qualquer estrada!... A menos que um anjo desça das alturas para o ajudar à missa, senhor cura, só me tem a mim, garanto-lhe, ou um dos coelhos da menina Désirée, salvo o devido respeito!

Mas, justamente naquele momento, Vincent, o filho mais novo dos Brichets, empurrou suavemente a porta da sacristia. Os seus cabelos ruivos, emaranhados, e os seus brilhantes olhinhos cinzentos, irritaram Teuse.

- Ai o ímpio! - exclamou a mulher. - Aposto que acaba de fazer qualquer maroteira!... Vamos, entra, descarado.

pois o senhor cura tem medo que eu emporcalhe Nosso Senhor!

Ao ver o garoto, o padre Mouret pegara no amicto. A seguir, beijou a cruz bordada no meio, colocou um instante o pano por cima da cabeça e depois desceu-o sobre a volta da sotaina e cruzou e atou os cordões, com o direito por cima do esquerdo. Seguidamente enfiou a alva, símbolo de pureza, começando pelo braço direito. Vincent, que se agachara, andava em torno dele a ajeitar a alva, a compô-la para que caísse igualmente de todos os lados, a dois dedos do chão. Depois, apresentou o cíngulo ao padre, que com ele cingiu fortemente os rins, para recordar assim as cordas com que o Salvador foi amarrado na Paixão.

Teuse permanecia de pé, ciumenta, ofendida, esforçando-se por se conservar calada. Mas a língua pôde mais do que a sua vontade e depressa a obrigou a prosseguir:

- Frei Archangias esteve cá... Hoje não lhe apareceu nem um garoto na escola. Saiu daqui como um pé-de-vento para ir às vinhas puxar as orelhas à garotada... Devia falar com ele, pois creio que tem qualquer coisa para lhe dizer.

O padre Mouret impôs-lhe silêncio com a mão, sem abrir a boca. Rezava as orações apropriadas ao acto, enquanto pegava no manípulo - que beijou antes de o enfiar no braço esquerdo, por baixo do cotovelo, como sinal indicativo das boas obras - e cruzava no peito a estola, depois de a beijar também, símbolo da sua dignidade e do seu poder. Teuse teve de ajudar Vincent a fixar a casula, que prendeu por meio de cordões delgados, de modo a não descair para trás.

- Virgem Santa, esqueci-me das galhetas! - balbuciou, precipitando-se para o armário. - Vamos, depressa, rapaz!

Vincent encheu as galhetas, uns frasquitos de vidro grosseiro, enquanto a mulher se apressava a tirar de uma gaveta um manutérgio limpo. Com o cálice na mão esquerda, seguro pelo nó, e os dedos da mão direita pousados na bolsa, o padre Mouret inclinou-se profundamente, sem tirar o barrete, diante de um Cristo de madeira escura pendurado por cima do guarda-louça. O garoto inclinou-se também e depois passou para a frente, com as galhetas cobertas pelo manutérgio, e saiu da sacristia, seguido pelo padre, que caminhava de olhos baixos, numa devoção profunda.

A IGREJA, vazia, estava toda branca, naquela manhã de Maio. A corda, junto do confessionário, pendia de novo imóvel. A lamparina ardia num copo de cor e lembrava uma mancha vermelha, à direita do tabernáculo, junto da parede. Depois de colocar as galhetas em cima da credência, Vincent foi ajoelhar-se à esquerda, na base do degrau, enquanto o padre, depois de saudar o Santíssimo Sacramento com uma genuflexão nas lajes, subia ao altar e estendia o corporal, no meio do qual colocou o cálice. Depois, abriu o missal e tornou a descer, dobrou-se numa nova genuflexão, persignou-se em voz alta, juntou as mãos diante do peito e começou a reviver o grande drama divino, com o rosto muito pálido cheio de fé e amor.

- Introibo ad altare Dei.

- Ad Deum qui Icetificat juventutem mean - tartamudeou Vincent, que comeu os responsos da antífona e dos salmos, sentado nos calcanhares, ocupado a seguir Teuse, que cirandava pela igreja

A velha criada olhava um dos círios com ar inquieto e a sua preocupação pareceu redobrar quando o padre, profundamente inclinado, de novo com as mãos juntas, recitava o Confiteor. Deteve-se, bateu por seu turno no peito, de cabeça baixa, e depois continuou a examinar o círio. A voz grave do sacerdote e os balbuciamentos do acólito alternaram-se ainda durante um instante.

- Dominus vobiscwn.

- Et cum spiritu tuo.

E o padre, afastando as mãos e voltando a juntá-las, disse com comovente compunção:

- Oremtts...

Teuse não se pôde conter por mais tempo. Passou por detrás do altar, aproximou-se do círio e limpou-o com a ponta da tesoura. A cera escorria e já se tinham perdido duas grandes lágrimas. Na volta, endireitou os bancos e assegurou-se de que as pias de água benta não estavam vazias, enquanto o padre, que subira de novo ao altar, rezava em voz baixa, com as mãos pousadas à beira da toalha, e por fim beijava o altar

Atrás dele, a igrejinha conservavam triste à luz pálida da manhã. O sol ainda mal rasava as telhas. Os Kyrie eleison passaram como um arrepio por aquela espécie de estábulo caiado, de tecto baixo, com as vigas mal pintadas à vista. De cada lado, três janelas altas, de vidros transparentes, quase todos rachados ou estilhaçados, deixavam entrar uma claridade crua, leitosa. O vento penetrava ali brutalmente e punha a nu toda a miséria do Deus daquela aldeia perdida Ao fundo, por cima da porta principal, que nunca se abria e cuja soleira desaparecia debaixo das ervas daninhas, havia uma tribuna de tábuas, para a qual se subia por uma escada de mão, tribuna que ia de uma parede à outra e estalava debaixo dos tamancos nos dias de festa. Junto da escada encontrava-se o confessionário, com os painéis desconjuntados, pintado de amarelo-limão. Em frente, ao lado da portinha de serviço, ficava o baptistério, uma antiga pia de água benta colocada em cima de uma peanha de alvenaria. Finalmente, à direita e à esquerda, ao meio da nave, encostados à parede, viam-se dois modestos altares cercados de balaustradas de madeira. O da esquerda, consagrado à Virgem Santa, tinha uma grande Mãe de Deus, de gesso dourado, que ostentava majestosamente nos cabelos castanhos uma coroa de ouro fechada e segurava, sentado no braço esquerdo, um Menino Jesus nu e sorridente, cuja mãozinha erguia o globo estrelado do mundo. A Virgem caminhava no meio de nuvens e rodeavam-Lhe os pés cabeças de anjos aladas. O altar da direita, onde se diziam as missas de defuntos, era encimado por um Cristo de cartão pintado, disposto simetricamente à imagem da Virgem. O Cristo, do tamanho de uma criança de dez anos, agonizava de um modo horrível, com a cabeça atirada para trás, as costelas salientes, o ventre contraído e os membros torcidos, salpicados de sangue. Havia ainda o púlpito, uma caixa quadrada para a qual se subia por uma espécie de banco de cinco degraus, erguida defronte da caixa de nogueira de um relógio de pesos cujas pancadas surdas faziam vibrar toda a igreja, como se fossem as pulsações de um coração enorme oculto em qualquer parte debaixo das lajes. A todo o comprimento da nave alinhavam-se as catorze estações da via-sacra, catorze imagens grosseiramente iluminadas, encaixilhadas a preto, em que se reproduziam as cenas da Paixão, que manchavam de amarelo, azul e vermelho a brancura crua das paredes.

- Deo gratias - tartamudeou Vincent, no fim da Epístola.

Aproximava-se o mistério de amor, a imolação da vítima sagrada. O acólito pegou no missal e levou-o para a esquerda, para o lado do Evangelho, tendo o cuidado de não tocar nas folhas do livro. Todas as vezes que passava diante do tabernáculo fazia obliquamente uma genuflexão que lhe arqueava o corpo. Depois, voltou para a direita e ficou de pé, de braços cruzados, durante a leitura do Evangelho. O padre fez primeiro o sinal da cruz sobre o missal e a seguir na sua própria testa, para significar que nunca se envergonharia da palavra divina, depois na boca, para mostrar que estava sempre pronto a confessar a sua fé, e finalmente no peito, para indicar que o seu coração só a Deus pertencia.

- Dominus vobiscum - disse, voltando-se e olhando sem ver a brancura fria da igreja.

- Et cum spiritu tuo - respondeu Vincent, que voltara a ajoelhar-se.

Depois de recitar o Ofertório, o padre destapou o cálice e manteve um instante à altura do peito a patena que continha a hóstia, que ofereceu a Deus, por si, pelos assistentes e por todos os fiéis, vivos ou mortos. A seguir, fê-la deslizar à beira do corporal, sem lhe tocar com os dedos, e pegou no cálice, que limpou cuidadosamente com o purificador. Vincent, que fora buscar as galhetas à credência, apresentou-as uma após outra, primeiro a galheta do vinho e depois a galheta da água. O padre ofereceu então, pelo mundo inteiro, o cálice meio cheio, que tornou a pôr no meio do corporal e cobriu com a pala E, depois de orar mais uma vez, aproximou-se do acólito para que este lhe deitasse uns fiozinhos de água sobre as extremidades do polegar e do indicador de cada mão, a fim de se purificar das mais pequenas manchas de pecado. Quando se foi enxugar ao manutérgio, Teuse, que estava à espera, escorreu a bandeja das galhetas num balde de zinco, ao canto do altar.

- Orate, fratres - prosseguiu o padre, em voz alta, virado para os bancos vazios, afastando e juntando as mãos, num gesto de apelo aos homens de boa vontade.

Depois, de novo virado para o altar, continuou a orar em voz baixa, enquanto Vincent dizia entre dentes uma longa frase latina, na qual acabou por se perder. Foi então que ondas de luz douradas entraram pelas janelas. O sol, ao apelo do padre, vinha à missa e iluminava com grandes manchas douradas a parede esquerda, o confessionário, o altar da Virgem e o grande relógio. Um estalido despertou o confessionário; a Mãe de Deus, numa glória, no deslumbramento da Sua coroa e do Seu manto de ouro, sorriu ternamente ao Menino Jesus, com os lábios pintados; o relógio, reaquecido, deu as horas com pancadas mais vivas. Dir-se-ia que o sol povoava os bancos com a poalha que dançava nos seus raios. A igrejinha, o estábulo caiado, ficou como que a trasbordar de uma multidão calorosa Lá fora, soavam os suaves rumores do despertar feliz do campo, das ervas que suspiravam de contentamento, das folhas que se secavam ao calor, das aves que alisavam as penas e experimentavam o primeiro bater de asas. O próprio campo entrava na igreja com o sol. Uma grande sorveira que se erguia junto de uma das janelas meteu os ramos pelas vidraças partidas e estendeu os rebentos, como se quisesse observar o interior, ao mesmo tempo que através das fendas da porta principal as ervas do adro ameaçavam invadir a nave. Sozinho no meio daquela vida renascente, o grande Cristo permanecia na sombra, qual símbolo de morte, de agonia, com a carne manchada de ocre e salpicada de laca. Um pardal pousou à beira de um buraco, olhou e tornou a levantar voo, mas reapareceu quase imediatamente e, num voo silencioso, desceu entre os bancos, diante do altar da Virgem. Seguiu-o segundo pardal e, em breve, de todos os ramos da sorveira desceram pardais que começaram a passear tranquilamente, aos saltinhos, nas lajes.

- Sanctus, Sanctus, Sanctus, Dominus, Deus, Sabaoth - disse o padre, a meia voz, com as costas ligeiramente inclinadas.

Vincent tocou as três campainhadas e os pardais, assustados pelo súbito tilintar, levantaram voo com tal ruflo de asas que Teuse, que pouco antes entrara na sacristia, reapareceu e resmungou:

- Os velhacos! Vão sujar tudo . Aposto que, ainda por cima, a menina Désirée lhes vem dar migalhas de pão.

Aproximava-se o instante temível: o corpo e o sangue de um Deus iam descer sobre o altar. O padre beijava a toalha, juntava as mãos, multiplicava os sinais da cruz sobre a hóstia e o cálice. As preces de cânon saíam-lhe dos lábios num êxtase de humildade e reconhecimento. As suas atitudes, os seus gestos, as suas inflexões de voz, salientavam a sua pequenez, a comoção que experimentava por ser escolhido para tão grande missão. Vincent ajoelhou-se atrás dele, pegou na casula com a mão esquerda, levantou-a ligeiramente e preparou a campainha, enquanto o sacerdote, com os cotovelos apoiados na beira do altar, tomava a hóstia entre o polegar e o indicador de cada mão e pronunciava sobre ela as palavras da consagração: Hoc est enim corpus meum. Depois, fez uma genuflexão e ergueu-a lentamente, o mais alto possível, seguindo-a com os olhos, enquanto o acólito, prosternado, tocava três vezes a campainha. Em seguida consagrou o vinho: His est enim cálix. Com os cotovelos de novo no altar, inclinou-se, levantou o cálice e seguiu-o também com os olhos, com a mão direita a segurar o nó e a esquerda a amparar o pé. O acólito tocou três últimas campainhadas. O grande mistério da Redenção acabava de ser renovado, o Sangue adorável correra uma vez mais.

- Esperem, esperem que eu já lhes digo!...-ralhou Teuse, afadigando-se a espantar os pardais, de punho estendido.

Mas os pardais não tinham medo. Atrevidos, haviam regressado a meio dos toques de campainha e esvoaçavam por cima dos bancos. As badaladas repetidas tinham-nos até enchido de júbilo e responderam com uma chilreada que se sobrepôs às palavras latinas como o riso cristalino de garotos à solta. O sol aquecia-lhes as penas e a pobreza acolhedora da igreja encantava-os. Estavam ali tão em sua casa como num celeiro cuja lucarna tivesse ficado aberta, e pipilavam, lutavam, disputavam uns aos outros as migalhas que encontravam no chão. Um deles levantou voo e foi pousar no véu dourado da Virgem, que sorria; outro foi, lentamente, observar as saias de Teuse, a quem semelhante audácia pôs fora de si.

No altar, o padre, prostrado, de olhos postos na hóstia sagrada e o polegar e o indicador juntos, estava alheio àquela invasão da nave pela tépida manhã de Maio, à vaga crescente de sol, de verdura, de passarinhos, que se espraiava até junto do Calvário, onde agonizava a natureza condenada.

- Per omnia scecula scecularum - disse ele.

- Amen - respondeu Vincent.

Terminado o Pater, o padre colocou a hóstia em cima do cálice e partiu-a ao meio. Em seguida, tirou uma partícula de uma das metades e deixou-a cair no Sangue precioso, para sublinhar a união íntima que ia contrair com Deus pela comunhão. Disse em voz alta o Agnus Dei, rezou baixinho as três orações prescritas, fez o seu acto de contrição e, com os cotovelos no altar e a patena debaixo do queixo, comungou das duas partes da hóstia, simultaneamente. A seguir, depois de juntar as mãos à altura do rosto, em fervorosa meditação, recolheu no corporal, com o auxílio da patena, as partículas sagradas caídas da hóstia e deitou-as no cálice. Como uma partícula lhe ficasse pegada ao polegar, tirou-a com a ponta do indicador, antes de se persignar com o cálice e de colocar de novo a patena debaixo do queixo para beber três vezes o Sangue precioso, até ao fim, sem tirar os lábios da borda da taça, para que se consumasse até à última gota o Sacrifício divino.

Vincent levantara-se para ir buscar novamente as galhetas à credência quando a porta do corredor que dava para o presbitério se abriu de par em par e bateu contra a parede, para dar passagem a uma bonita rapariga de vinte e dois anos, de aspecto infantil, que trazia qualquer coisa escondida no avental.

- São treze! - gritou. - Todos os ovos estavam bons!

E, entreabrindo o avental, mostrou uma ninhada de pintos que piavam, cobertos de penugem nascente em que brilhavam os pontos negros dos olhos.

- Vejam! São tão pequeninos, os amores!... Oh, o branquinho a subir para as costas dos outros! E aquele, o mosqueado, já a bater as asas!... Os ovos eram muito bons. Nem um goro!

Teuse, que apesar de tudo também ajudava à missa, passando as galhetas a Vincent para as abluções, virou-se e disse em voz alta:

- Então, menina Désirée, não faça barulho! Bem vê que ainda não acabámos.

Um cheiro forte, a capoeira, entrava pela porta aberta e invadia a igreja como um fermento de eclosão, de mistura com o sol quente, que já chegava ao altar. Désirée ficou um instante especada, muito feliz com o pequeno mundo que trazia no avental, a ver Vincent deitar o vinho da purificação e o irmão a bebê-lo, para que nenhuma partícula das espécies sagradas lhe ficasse na boca. E ainda assim estava quando ele se virou, segurando o cálice com as duas mãos, a fim de receber sobre o polegar e o indicador o vinho e a água da ablução, que igualmente bebeu. Só quando a galinha apareceu à procura dos filhos, a cacarejar, e ameaçou entrar na igreja, Désirée se retirou a dirigir palavras maternais aos pintainhos, no momento em que o padre, depois de levar o purificador aos lábios, o passava pela borda e pelo interior do cálice.

Chegara-se ao fim das acções de graças devidas a Deus. O acólito foi buscar pela última vez o missal e voltou a colocá-lo à direita. O padre repôs em cima do cálice o purificador, a patena e a pala, vincou de novo as duas grandes pregas do véu e colocou a bolsa, na qual metera o corporal dobrado. Todo o seu ser trasbordava de ardente agradecimento. Pedia ao Céu a remissão dos pecados, a graça de uma vida santa, o mérito da vida eterna, abismado naquele milagre de amor, naquela imolação contínua que o nutria todos os dias com o sangue e a carne do seu Salvador.

Depois de ler as orações, virou-se e disse:

- Ite, missa est.

- Deo gratias - respondeu Vincent.

Depois de se virar mais uma vez para beijar o altar, tornou a girar sobre si mesmo, com a mão esquerda debaixo do peito e a direita estendida, e benzeu a igreja, cheia das graças do sol e da chilreada dos pardais.

- Benedicat vos omnipotens Deus, Pater et Filius, et Spiritus Sanctus.

- Amen - disse o acólito, benzendo-se.

O sol aumentara e os pardais mostravam-se cada vez mais atrevidos. Enquanto o padre lia, no quadro da esquerda, o Evangelho de S. João, que anuncia a eternidade do Verbo, o sol incendiava o altar, branqueava os painéis de falso mármore, empalidecia as chamas das duas velas, cujos curtos pavios projectavam apenas duas manchas escuras. O astro triunfante envolvia na sua glória a cruz, os castiçais, a casula, o véu do cálice, e todo aquele ouro empalidecia debaixo dos seus raios. Quando o padre pegou no cálice, fez uma genuflexão e se afastou do altar para regressar à sacristia, com a cabeça coberta, precedido do acólito que transportava as galhetas e o manutérgio, o astro ficou sozinho, único senhor da igreja. Pousado por seu turno na toalha, fazia resplandecer a porta do tabernáculo, celebrava as fertilidades de Maio. O calor subia das lajes. As paredes caiadas, a grande Virgem, o próprio Cristo, pareciam palpitar de seiva, como se a morte tivesse sido vencida pela juventude eterna da terra.

TEUSE apressou-se a apagar as velas, mas demorou-se a tentar enxotar os pardais. Por isso, quando chegou com o missal à sacristia já não encontrou o padre Mouret, que arrumara as vestes sagradas, depois de lavar as mãos, e estava já na sala de jantar, de pé, a quebrar o jejum com uma chávena de leite.

- Devia proibir a sua irmã de deitar pão na igreja - disse Teuse, mal entrou. - Apanhou esse mau hábito o Inverno passado. Dizia que os pardais tinham frio, que Deus bem os podia alimentar... Verá que ainda acaba por nos obrigar a dormir com as suas galinhas e os seus coelhos.

- Mais calor teríamos - respondeu alegremente o jovem padre.-A Teuse anda sempre a rabujar. Deixe a nossa pobre Désirée acarinhar os seus animais. Não tem outro prazer, a querida inocente.

A criada plantou-se no meio da sala.

- Oh! Também o senhor? O senhor era capaz de consentir que as próprias pegas construíssem os ninhos na igreja. Não vê mal nenhum, acha tudo perfeito... A sua irmã teve muita sorte em o senhor a ter trazido para a sua companhia quando saiu do seminário. Sem pai, sem mãe, gostaria de saber quem lhe permitiria patinhar numa capoeira.

Depois mudou de tom e prosseguiu, enternecida:

- Valha a verdade que seria tolice contrariá-la. Não tem malícia nenhuma. Parece não ter mais de dez anos, embora seja uma das mais robustas raparigas da região... Como sabe, ainda sou eu que a deito, à noite, e tenho de lhe contar histórias para a adormecer, como a uma criança.

O padre Mouret continuava em pé, a acabar de beber a sua chávena de leite, com os dedos um pouco avermelhados devido à frescura da sala de jantar, uma grande divisão quadrada, pintada de cinzento, sem mais móveis do que uma mesa e algumas cadeiras. Teuse levantou o guardanapo que estendera a uma ponta da mesa para o pequeno almoço e murmurou:

- O senhor não suja roupa nenhuma. Dir-se-ia que não se pode sentar, que está sempre prestes a sair... Ah, se tivesse conhecido o padre Caffin, o pobre cura defunto que veio substituir! Nunca vi homem mais pachorrento! Não seria capaz de digerir, se tivesse de comer de pé... Era um normando, de Canteleu, como eu. Oh, não lhe estou agradecida por me ter trazido para esta terra de lobos! Nos primeiros tempos, muito nos aborrecemos, meu Deus! O pobre cura tivera umas histórias bastante desagradáveis lá na terra... Mas agora reparo! Então o senhor padre Mouret não pôs açúcar no leite? Estão aqui os dois cubos...

O padre pousou a chávena e respondeu:

- Tem razão, creio que me esqueci.

Teuse fitou-o e encolheu os ombros. Embrulhou no guardanapo uma fatia de pão escuro que ficara também em cima da mesa e depois, como o cura se preparava para sair, correu para ele, ajoelhou-se e resmungou:

- Espere, não vê que tem os sapatos desatados?... Não sei como os seus pés aguentam estes sapatos de camponês. O senhor é tão delicado que até parece que o estragaram mimos em pequeno!... Se o bispo o conhecesse melhor, não lhe teria dado a paróquia mais pobre do departamento.

- Mas se fui eu que escolhi os Artauds... - disse o padre, sorrindo de novo. - Está muito maldizente, esta manhã, Teuse. Porventura não somos felizes aqui? Temos tudo o que precisamos, vivemos numa paz paradisíaca.

Então, ela conteve-se, riu por seu turno e respondeu:

- É um santo homem, senhor cura... Venha ver como a minha barrela está boa. Sempre é melhor do que estarmos para aqui a discutir.

Teve de a seguir, pois de contrário ameaçá-lo-ia de não o deixar sair se não a felicitasse pela sua barrela. Deixava a sala de jantar quando deparou com um pedaço de caliça, no corredor.

- Que é isto? - perguntou.

- Nada - respondeu Teuse, com o seu ar terrível. - É o presbitério que está a cair aos bocados. Mas o senhor sente-se bem aqui, tem tudo o que precisa... Ah, meu Deus, o que não falta são fendas! Veja-me esse tecto; está todo rachado! Se não ficarmos esmagados um destes dias, temos obrigação de oferecer uma grande vela ao nosso anjo-da-guarda. Enfim, se isto lhe agrada... É como a igreja: há dois anos que se deviam ter substituído os vidros partidos. No Inverno, Deus Nosso Senhor gela. Depois, isso impediria que os velhacos dos pardais entrassem. Acabarei por lá pôr papel, previno-o.

- Oh, é uma boa ideia! - exclamou o padre. - Podia-se colar o papel... Quanto às paredes, são mais sólidas do que se julga. No meu quarto, o chão só deu de si diante da janela. Esta casa ainda nos há-de ver enterrar a todos.

Chegado ao alpendrezinho, junto da cozinha, extasiou-se diante da excelência da barrela, para ser agradável a Teuse. No entanto, teve mesmo de a examinar, de meter os dedos lá dentro. Depois disso, a velhota, encantada, mostrou-se maternal, deixou de resmungar e correu a buscar uma escova, dizendo:

- Decerto não vai sair com a lama de ontem na sotaina! Se a tivesse deixado no corrimão, já estaria limpa... Ainda está boa, esta sotaina, mas deve levantá-la bem quando atravessar o campo. Os cardos rasgam tudo.

E obrigava-o a virar-se como se fosse uma criança e abanava-o dos pés à cabeça com as passagens vigorosas da escova.

- Pronto, pronto, já chega - disse ele, esquivando-se.- Não se esqueça de olhar pela Désirée. Vou dizer-lhe que saio.

Mas, naquele momento, uma voz cristalina chamou-o: - Serge! Serge!

Era Désirée que chegava a correr, rubra de contentamento, de cabeça descoberta, com os cabelos negros muito apertados na nuca e as mãos e os braços cobertos de esterco até aos cotovelos. Estava a tratar das galinhas. Quando viu o irmão pronto para sair, com o breviário debaixo do braço, riu alto e beijou-o em plena boca, com as mãos atrás das costas para não lhe tocar.

Não, não - balbuciou-,não te quero sujar... Oh, estou

tão contente! Hás-de ver a criação quando voltares - e desapareceu.

O padre Mouret disse que voltaria cerca das onze horas, para almoçar, e já se ia embora quando Teuse, que o acompanhara até à porta da rua, lhe gritou as últimas recomendações :

- Não se esqueça de falar com frei Archangias... Passe também por casa dos Brichets; a mulher veio cá ontem, ainda por causa do casamento... Senhor cura, ouça! Encontrei a Rosalie. Está mortinha por casar com o Fortune. Fale com o tio Bambousse; talvez o escute agora... E não venha ao meio-dia, como da outra vez. Às onze horas, ouviu? Às onze horas, não se esqueça!...

Mas o padre não se virou uma só vez e ela voltou para dentro, a dizer entre dentes:

- Se julgam que me ouviu!... Ainda não tem vinte e seis anos e só faz o que lhe vem à cabeça. A verdade é que em santidade nem um homem de sessenta anos lhe ganha; mas ainda pouco viveu, não sabe nada e, portanto, não lhe custa muito ser ajuizado como um querubim, pobre inocente.

QUANDO o padre Mouret deixou de ouvir Teuse atrás de si, parou, feliz por se encontrar finalmente só. A igreja erguia-se numa colina pouco elevada, cuja encosta descia suavemente até à aldeia, e prolongava-se, semelhante a um curral abandonado, furada pelas amplas janelas e alegrada pelo telhado vermelho. O padre virou-se e olhou o presbitério, um casebre acinzentado, pegado mesmo à ilharga da nave. Depois, como se temesse ser de novo perseguido pela inesgotável tagarelice que lhe zumbia aos ouvidos desde manhã, tornou a subir pela direita e só se julgou em segurança diante do grande portal, onde não podia ser visto do presbitério. A fachada da igreja, completamente desguarnecida, arruinada por sóis e chuvas, era sobrepujada por uma estreita torre de alvenaria, no meio da qual se via o perfil negro de um sinozinho e a ponta da corda que entrava pelo telhado. Seis degraus partidos, semienterrados de um lado, levavam à alta porta redonda, fendida, comida pela poeira e pela ferrugem, coberta de teias de aranha, de aspecto tão lamentável nos gonzos arrancados que as rabanadas de vento pareciam não ter dificuldade em entrar ao primeiro sopro. O padre Mouret, que dedicava grande ternura àquelas ruínas, foi encostar-se a um dos batentes, ao cimo da escada. Dali, abraçava-se num relance de olhos toda a região. Com as mãos em pala, olhou, perscrutou o horizonte.

Em Maio, uma vegetação formidável rompia o solo pedregoso. Alfazemas colossais, tufos de zimbro, camadas de ervas silvestres, trepavam até à entrada, implantavam maciços de verdura escura até no telhado. A primeira arremetida da seiva ameaçava levar de vencida a igreja, cruelmente assaltada pelas plantas nodosas. Àquela hora matinal, em pleno crescimento, notava-se por toda a parte um zumbido ardente, um longo esforço silencioso que soerguia e fazia estremecer as pedras. Mas o padre não tomava consciência do ardor daqueles partos laboriosos; julgando ser o degrau que oscilava, encostou-se ao outro batente da porta.

A região desdobrava-se por duas léguas, fechada por uma muralha de colinas amarelas que os pinhais salpicavam de negro; região terrível, de charnecas ressequidas, de arestas rochosas que rasgavam o solo. Os poucos recantos de terra arável eram cortados por pântanos sangrentos e campos vermelhos onde se alinhavam filas de amendoeiras raquíticas, copas cinzentas de oliveiras e trechos de vinha que riscavam o campo com as suas cepas trigueiras. Dir-se-ia que um grande incêndio passara por ali e cobrira as alturas com as cinzas das florestas, queimara as pradarias e deixara a sua desolação e o seu calor de fornalha nos valados. Apenas de longe em longe o verde-pálido de uma leiva de trigo dava à paisagem aspecto mais agradável. A perder de vista tudo era bravio, sem um fio de água, toda a terra morria de sede e se desfazia em nuvens de poeira à menor lufada de ar. Só muito ao longe, através de uma aberta nas colinas que delimitavam o horizonte, se distinguia uma réstia de verdura húmida, como que fugida do vale vizinho, fecundado pelo Viorne, um rio que descia das gargantas da Seille.

Deslumbrado, o padre baixou os olhos sobre a aldeia, cujas poucas casas se espalhavam a esmo em plano inferior à igreja - casas miseráveis, feitas de pedras soltas e de tábuas sobrepostas, erguidas ao longo de um caminho estreito, sem ruas demarcadas. Eram cerca de trinta, umas atascadas em esterco, negras de miséria, outras mais amplas, mais alegres, de telhados cor-de-rosa. Pedaços de horta conquistados à rocha exibiam tabuleiros de legumes divididos por sebes vivas. Àquela hora, os Artauds estavam desertos: nem uma mulher às janelas, nem uma criança atolada na poeira. Sozinhos, bandos de galinhas iam e vinham, debicando a palha, catando até as fendas das soleiras das casas, cujas portas deixadas abertas pareciam bocejar complacentemente ao sol. Um grande cão negro, sentado nas patas traseiras, à entrada da aldeia, parecia guardá-la.

A preguiça entorpecia pouco a pouco o padre Mouret. O sol nascente banhava-o de tal tepidez que não conseguia afastar-se da porta da igreja e continuava encostado, invadido por uma paz feliz. Pensava naquela aldeia dos Artauds, posta ali, no meio das pedras, como a vegetação nodosa do vale. Todos os habitantes eram parentes, todos usavam o mesmo nome, embora tomassem alcunhas desde o berço, para se distinguirem entre si. Um antepassado, um Artaud, viera um dia ter ali e fixara-se na charneca, como um pária. Depois, a sua família aumentara, com a vitalidade bravia das ervas que sugavam a vida dos rochedos. Essa família acabara por se converter numa tribo, numa comuna, cujos laços de sangue se perdiam na noite dos tempos, remontavam a séculos. Casavam-se entre si, numa promiscuidade sem reservas, e não havia exemplo de um Artaud ter trazido mulher de uma aldeia vizinha. Só as raparigas desertavam de vez em quando. Nasciam e morriam agarrados àquele pedaço de terra, multiplicavam-se no meio da sua miséria, lentamente, com a simplicidade de árvores que desabrocham da sua semente, sem terem ideia precisa da vastidão do mundo, do que ficava para lá das rochas amarelas entre as quais vegetavam. E, no entanto, já havia entre eles pobres e ricos. Para que as galinhas não desaparecessem, como já acontecera, as capoeiras fechavam-se à noite com grossos cadeados, e uma tarde, atrás do moinho, um Artaud matara outro Artaud. No fundo daquela cintura desolada de colinas vivia, pois, um povo à parte, uma raça nascida do solo, uma humanidade de trezentas almas que recomeçava os tempos.

Mouret guardava em si toda a sombra morta do seminário. Durante anos não soubera o que era o sol. Ignorava-o ainda, com os olhos fechados, fitos na alma, com soberano desprezo pela natureza maldita. Durante muito tempo, nas horas de recolhimento, quando a meditação o prostrava, sonhara com um deserto de eremita, com qualquer gruta numa montanha, onde nada da vida, nenhum ser, nenhuma planta, nenhuma água, o fosse distrair da contemplação de Deus. Era um arrebatamento de amor puro, um horror à sensação física. Num sítio assim, morto para si próprio, de costas voltadas à luz, esperaria o seu fim, desapareceria na soberana brancura das almas. O Céu aparecia-lhe todo branco, de uma brancura luminosa, como se nevasse lírios, como se todas as purezas, todas as inocências, todas as castidades flamejassem. Mas o confessor ralhava-lhe quando lhe contava os seus desejos de solidão, as suas necessidades de candura divina, e chamava-o às lutas da Igreja, às necessidades do sacerdócio. Mais tarde, depois de ordenado, o jovem padre viera para os Artauds, a seu próprio pedido, com a esperança de tornar realidade o seu sonho de aniquilamento humano. No meio daquela miséria, naquela terra estéril, poderia tapar os ouvidos aos ruídos do mundo e viver à sombra do sono dos santos. Efectivamente, havia muitos meses que andava contente. Apenas de longe em longe o afligia algum problema da aldeia, ou uma mordedura mais quente do sol o atingia na nuca quando seguia pelos carreiros, como o espírito no Céu, sem atentar à criação contínua por entre a qual caminhava.

O grande cão negro que guardava os Artauds acabara por se decidir a trepar até junto do padre Mouret e estava de novo sentado nos quartos traseiros, a seus pés. Mas o sacerdote continuava absorto na doçura da manhã. Na véspera, principiara as práticas do Rosário de Maria e atribuía o grande júbilo que o inundava à intercessão da Virgem junto do Seu Divino Filho. Como os bens terrenos lhe pareciam desprezíveis! Com que reconhecimento se sentia pobre! Quando tomara ordens, depois de perder pai e mãe no mesmo dia, em consequência de um drama cujas causas pavorosas ainda ignorava, deixara a um irmão mais novo toda a fortuna. Só a irmã o prendia ao mundo. Encarregara-se dela dominado por uma espécie de ternura religiosa pela sua cabeça fraca. A querida inocente era tão pueril, tão criança, que a via dotada da pureza dos pobres de espírito aos quais o Evangelho promete o reino dos céus. NO entanto, trazia-o preocupado havia algum tempo: tornara-se demasiado forte e saudável, sentia demasiado a vida. Isso, porém, não passava de uma leve contrariedade que não o impedia de viver dia a dia a existência interior que criara para si e da qual afastara tudo para se lhe dar inteiramente. Fechava a porta dos sentidos, procurava libertar-se das necessidades do corpo, pretendia ser apenas uma alma arrebatada pela contemplação. A natureza só lhe apresentava ciladas, imundícies, e ele punha a sua glória em a constranger, em a desprezar, em se desembaraçar da sua lama humana. O justo deve ser insensato, segundo o mundo. Por isso se considerava um exilado na Terra, só aspirava aos bens celestes e não podia compreender que se comparasse uma eternidade de ventura com algumas horas de prazer transitório. A sua razão iludia-o, os seus desejos mentiam-lhe, e, se avançava no caminho da virtude, era sobretudo graças à sua humildade e à sua obediência. Queria ser o último de todos, estar submetido a todos, para que o orvalho divino lhe caísse no coração como num areal árido. Considerava-se coberto de opróbrio e de confusão, indigno para sempre de ser salvo do pecado. Ser humilde é crer, é amar. Já nem sequer dependia de si mesmo, cego, surdo - carne morta; era a obra de Deus Assim, da abjecção em que se afundava, uma hosana transportava-o acima dos felizes e dos poderosos, no resplendor de uma felicidade infinita.

O padre Mouret encontrara deste modo nos Artauds os arrebatamentos do claustro, tão ardentemente desejados outrora, sempre que lia a Imitação. Em si, ainda não se travara nenhum combate; era perfeito, desde a primeira genuflexão, sem luta, calmamente, como se tivesse sido fulminado pela graça e se houvesse esquecido por completo da sua carne - êxtase da aproximação de Deus que alguns jovens padres experimentam, hora Ben-aventurada em que tudo se cala, em que os desejos não passam de uma imensa necessidade de pureza. Não depositara a sua consolação nas mãos de ninguém. Quando se crê que uma coisa é tudo, não se pode ser abalado, e ele cria que Deus era tudo e que a sua humildade, a sua obediência, a sua castidade, também eram tudo. Lembrava-se de ter ouvido falar da tentação como de uma tortura abominável que punha à prova os mais santos, e sorria. Deus nunca o abandonara. Caminhava dentro da sua fé como dentro de uma couraça que o protegesse contra os menores sopros maus. Recordava-se de aos oito anos chorar de amor pelos cantos. Não sabia então que já amava, mas chorava por amar Alguém que estava muito longe e por Quem sempre esperara. Mais tarde, quisera ser padre para satisfazer a necessidade de afeição sobre-humana que era o seu único tormento. Não via outra maneira de poder amar mais. Era a suprema ambição do seu ser, das suas predisposições de casta, dos seus sonhos de adolescente, dos seus primeiros desejos de homem. Se a tentação viesse, esperá-la-ia com a serenidade de seminarista ignorante. Em si, o homem morrera - sentia-o - e considerava-se feliz por se saber um ente à parte, uma criatura castrada, moldada, marcada pela tonsura como uma ovelha do Senhor.

ENTRETANTO, o sol aquecia a porta principal da igreja e moscas douradas zumbiam em torno de uma grande flor que crescia entre dois degraus da escada. Um pouco aturdido, o padre Mouret achou que era tempo de se retirar, quando o grande cão negro se levantou rapidamente e começou a ladrar com violência para os lados do portão do cemi’tèriozinho, situado à esquerda da igreja. Ao mesmo tempo, uma voz áspera gritou:

. - Ah, vadio! Faltas à escola e vens meter-te no cemitério?... Não digas que não! Há um quarto de hora que te observo

O padre avançou e reconheceu Vincent, que um irmão das escolas cristãs segurava rudemente por uma orelha. O garoto estava como que suspenso por cima do abismo que se abria ao longo do cemitério e ao fundo do qual corria o Mascle, uma torrente cujas águas cristalinas iam lançar-se no Viorne, a duas léguas dali.

- Frei Archangias! - exclamou suavemente o padre, como se convidasse o terrível homem à indulgência.

Mas o frade não largava a orelha do garoto.

- Ah, é o senhor cura?!... - trovejou. - Imagine que este tratante está sempre metido no cemitério. Não sei que maroteira anda a tramar por aqui... O que eu devia era largá-lo, para que fosse partir a cabeça lá em baixo, no fundo. Não seria mal feito...

O garoto não dizia palavra, aferrado às urzes, com os olhos manhosamente fechados.

- Tome cuidado, frei Archangias - insistiu o padre -; olhe que o rapaz pode escorregar.

E ele próprio ajudou Vincent a subir

- Vejamos, meu pequeno amigo, que fazias aí? Não se deve brincar nos cemitérios.

O garoto abriu os olhos, afastou-se medrosamente do frade e procurou a protecção do padre Mouret.

- Eu digo-lhe - murmurou, levantando a cabeça para o cura, com ar sabido. - Há um ninho de toutinegras nas silvas, debaixo desta rocha. Há mais de dez dias que o espreito... Então, como os passarinhos já nasceram, resolvi vir cá esta manhã, depois de ajudar à missa...

- Um ninho de toutinegras! - exclamou frei Archangias. - Espera aí, espera aí que eu já te digo!...

Afastou-se, procurou numa sepultura um torrão de terra e correu a atirá-lo contra as silvas. Mas não acertou no ninho. Só com segundo torrão, lançado mais certeiramente, deslocou o frágil berço e atirou os passarinhos à torrente.

- Assim - continuou, batendo com as mãos uma na outra para as limpar -, talvez já não voltes a rondar por aqui, como um pagão... Os mortos irão puxar-te os pés, à noite, se continuas a andar por cima deles.

Vincent, que se rira ao ver o ninho mergulhar no espaço, olhou à sua volta e encolheu os ombros, como se quisesse demonstrar que tinha espírito forte.

- Oh, não tenho medo! - replicou. - Os mortos não se mexem.

Com efeito, o cemitério nada tinha de assustador. Era um terreno árido cujas estreitas veredas desapareciam debaixo da invasão das ervas daninhas e onde a terra apresentava ondulações a intervalos regulares. Havia apenas uma lápide em pé, muito nova, a assinalar a sepultura do padre Caffin, e só a sua brancura quebrava a uniformidade circundante. O resto era constituído apenas por braços de cruzes arrancados, buxos secos e velhas lousas rachadas, comidas pelo musgo. Não havia mais de dois enterros por ano. A morte não parecia muito interessada em habitar aquele solo baldio onde Teuse ia todas as tardes encher o avental de erva para os coelhos de Désirée. Um cipreste gigantesco, plantado à porta, projectava a sua sombra sobre o campo deserto. Aquele cipreste, que se via três léguas em redor, era conhecido em toda a região pelo nome de Solitário.

- Isto está cheio de lagartos - acrescentou Vincent, olhando a parede rachada da igreja. -Brincava-se aqui bem...

Mas afastou-se de um pulo ao ver o frade avançar um passo. Frei Archangias chamou então a atenção do cura para o mau estado do portão. Estava todo roído da ferrugem, tinha um gonzo arrancado e a fechadura partida.

- Devia-se consertá-lo - sugeriu.

O padre Mouret sorriu, sem responder, e, dirigindo-se a Vincent, que brincava com o cão, perguntou-lhe:

- Dize-me cá, pequeno, sabes onde trabalha o tio barnbousse, esta manhã?

O garoto deitou uma vista de olhos ao horizonte e respondeu, com a mão estendida para a esquerda:

- Deve estar no seu campo das Olivettes. Mas o Voriau pode indicar-lhe o caminho, senhor cura. Sabe com certeza onde está o dono.

E, batendo as mãos, gritou:

- Eh, Voriau! Eh!

O grande cão negro hesitou um instante, a abanar o rabo, como se procurasse ler nos olhos do gaiato. Depois, ladrando de alegria, tomou o caminho da aldeia. O padre Mouret e frei Archangias seguiram-no, conversando. Cem passos volvidos, Vincent deixou-os sorrateiramente e tornou a subir para os lados da igreja, sempre com o olho neles, pronto a atirar-se para trás de uma moita se virassem a cabeça. Com uma flexibilidade de cobra, deslizou de novo para o cemitério, o paraíso dos ninhos, dos lagartos e das flores.

Entretanto, precedidos por Voriau no caminho poeirento, frei Archangias dizia ao padre, na sua voz irritada:

- Não diga mais, senhor cura! São da raça dos danados, esses sapos! Do que eles precisam é de uma boa sova nos lombos, para os tornar agradáveis a Deus. Crescem na irreligião, como os pais. Há quinze anos que estou aqui e ainda não fiz um cristão. Assim que os largo das mãos, boas noites! Só querem saber da terra, das vinhas, dos olivais... Nem põem o pé na igreja. São tão brutos como os seus campos pedregosos!... Leve-me isso à paulada, senhor cura, a paulada!

Parou, para tomar fôlego, e acrescentou, com um gesto terrível:

- Os Artauds são como as silvas que destroem as rochas, bastou aparecer uma pernada para que toda a região fosse invadida! Trepam, multiplicam-se, vingam de qualquer maneira. Só o fogo do Céu, como em Gomorra poderia limpar isto.

- Nunca se deve desesperar de converter os pecadores - contrapôs o padre Mouret, que caminhava a passos curtos, na paz da sua consciência.

- Não, estes são filhos do Diabo! - redarguiu mais violentamente o frade. - Fui camponês, como eles. Até aos dezoito anos cavei a terra. E mais tarde, no convento, varri, descasquei legumes, fiz os trabalhos mais grosseiros. Não é o seu rude mister que lhes censuro. Pelo contrário. Deus prefere aqueles que vivem modestamente... Mas os Artauds comportam-se como animais! São como os seus cães, que não assistem à missa, zombam dos Mandamentos de Deus e da Igreja. Gostam tanto dos seus pedaços de terra que, se pudessem, fornicavam com ela!

Voriau, a dar ao rabo, parava e retomava o trote, depois de se certificar de que os dois homens continuavam a segui-lo.

- Com efeito, há abusos deploráveis - reconheceu o padre Mouret. - O meu predecessor, o padre Caffin...

- Um pobre homem - interrompeu-o o frade. - Veio da Normandia devido a uma história escandalosa. Aqui, só pensou em viver bem; deixou correr tudo ao deus-dará.

- Não, o padre Caffin fez, certamente, o que pôde, mas deve-se reconhecer que os seus esforços foram pouco menos que estéreis. Mesmo os meus ficam quase sempre sem resultado.

Frei Archangias encolheu os ombros e caminhou um instante em silêncio, gingando o grande corpo magro, que parecia talhado a golpes de machado. O sol batia-lhe na nuca curtida como couro e deixava-lhe na sombra o duro rosto de camponês, afilado como a lâmina de um sabre.

- Escute, senhor cura - prosseguiu por fim. - Sou demasiado insignificante para lhe dirigir observações, mas tenho quase o dobro da sua idade, conheço a região e isto autoriza-me a dizer-lhe que não conseguirá nada com doçura... Convença-se de que o catecismo basta. Deus não tem misericórdia dos ímpios, queima-os. Não se esqueça disto.

E como o padre Mouret, de cabeça baixa, não abrisse a boca, continuou:

- A religião desaparece dos campos porque a têm apresentado como uma mulher excessivamente boa. Respeitaram-na enquanto falou de cátedra, sem indulgência... Não sei o que os senhores aprendem nos seminários, mas a verdade é que os novos curas choram como crianças com os seus paroquianos. Deus parece completamente mudado... Juraria, senhor cura, que já nem sequer sabe o catecismo de cor.

O padre, ofendido por ver a rudeza com que o outro procurava impor-lhe a sua vontade, ergueu a cabeça e disse um pouco secamente:

- Concordo que o seu zelo é louvável... Mas é tudo o que tem para me dizer? Esteve esta manhã no presbitério, não é verdade? Frei Archangias respondeu brutalmente:

- Tinha de lhe dizer o que lhe disse... Os Artauds vivem como porcos. Ainda ontem soube que Rosalie, a filha mais velha do tio Bambousse, está grávida. Todas esperam isso para se casar. Nestes quinze anos, não conheci uma que não se tivesse deitado no trigo antes de passar pela igreja... E gabam-se, rindo, que é o costume da terra!

- Sim - murmurou o padre Mouret-, é um grande escândalo... vou justamente à procura do tio Bambousse para lhe falar a tal respeito. Parece-me conveniente, agora, que o casamento se faça o mais depressa possível... Diz-se que o pai da criança é o Fortune, o filho dos Brichets. Infelizmente, os Brichets são pobres.

- Essa Rosalie! - prosseguiu o frade. - Tem exactamente dezoito anos. Começam a perder-se nos bancos da escola. Ainda há quatro anos lá andava e já era viciosa... Agora tenho a irmã dela, a Catherine, uma garota de onze anos, que promete ser ainda mais desavergonhada do que a mais velha. Encontra-se por todos os cantos com esse miseràvelzinho do Vincent... Mesmo que se lhes puxe as orelhas até sangrarem, a mulher manifesta-se sempre nelas. Trazem a danação nas saias. São criaturas boas para lançar na estrumeira, com as suas porcarias que empeçonham! Seria um grande alívio se se estrangulassem todas as raparigas à nascença.

A repugnância, o ódio à mulher, fizeram-no praguejar como um carroceiro. O padre Mouret, depois de o escutar com o rosto impassível, acabou por sorrir da sua violência e chamou Voriau, que se afastara para um campo vizinho.

- Veja! - gritou frei Archangias, mostrando um grupo de garotos que brincavam ao fundo de um barranco. - Aí tem os meus patifórios que faltam à escola a pretexto de virem ajudar os pais nas vinhas!... Estou certo de que a prostituta da Catherine anda no meio deles. Entretêm-se a experimentar... Ainda a havemos de ver com as saias por cima da cabeça. Ali! Que lhe dizia eu?... Até logo, senhor cura... Esperem, esperem aí, valdevinos!

E desatou a correr, com o capuz sujo a esvoaçar-lhe por cima dos ombros e o hábito amplo, ensebado, a arrastar pelos cardos. O padre Mouret viu-o cair no meio do bando de rapazes, que fugiram como pardais espantados. Conseguiu, porém, agarrar pelas orelhas Catherine e outro gaiato e tomou com eles o caminho da aldeia, levando-os firmemente seguros com os grossos dedos peludos e cobrindo-os de injúrias.

O padre retomou o seu caminho. Frei Archangias provocava-Lhe, às vezes, escrúpulos singulares. Aparecia-lhe, na sua vulgaridade, na sua crueza, como verdadeiro homem de Deus, sem prisões terrenas, perfeitamente identificado com a vontade do Céu, humilde, rude, sempre com uma palavra suja na boca contra o pecado. E desesperava-se por não se poder despojar ainda mais do seu corpo, por não ser disforme, imundo, e exalar o fedor a vermes dos santos. Quando o frade o revoltava com as suas palavras demasiado cruas ou com alguma brutalidade demasiado pronta, acusava-se em seguida das suas delicadezas, da sua natural altivez, como de autênticas faltas. Não devia estar morto para todas as fraquezas deste mundo? Sorriu mais uma vez, tristemente, ao lembrar-se de que estivera quase a zangar-se com a lição exaltada do frade. Era o orgulho, pensou, que procurava perdê-lo, levando-o a desprezar os simples. Mas, contra sua vontade, sentia-se confortado por estar só, por poder caminhar a passos curtos, lendo o breviário, liberto daquela voz áspera que perturbava o seu sonho de pura ternura.

O CAMINHO serpenteava por entre derrocadas de rochas, no meio das quais os camponeses tinham, de longe em longe, conquistado quatro ou cinco metros de terra gredosa, plantada de velhas oliveiras. Debaixo dos pés do padre a poeira dos trilhos profundos abertos pelas rodas dos carros estalava de vez em quando, levemente, como se fosse neve. Às vezes, ao receber na cara uma lufada mais quente, levantava os olhos do livro e procurava ver donde lhe viera tal carícia. Mas o seu olhar ficava indeciso, perdido, sem ver, no horizonte inflamado, nas linhas contorcidas daquele campo de paixão, ressequido, desmaiado ao sol, espojado como uma mulher ardente e estéril. Puxava o chapéu para a testa, a fim de escapar ao bafo tépido, e retomava a leitura, sossegadamente, enquanto a sotaina, atrás dele, levantava uma nuvenzinha de pó que se desenrolava rente ao caminho.

- Bons dias, senhor cura - cumprimentou-o um aldeão de passagem

O barulho das enxadas nas courelas por que ia passando quebrava de vez em quando o seu recolhimento. Virava a cabeça e divisava no meio das vinhas velhos altos, esgrouviados, que o saudavam. À torreira do sol, os Artauds fornicavam com a terra, no dizer de frei Archangias. Atrás das moitas apareciam testas suadas, peitos ofegantes endireitavam-se lentamente e por toda a parte havia um esforço ardente de fecundação, no meio do qual ele caminhava, no seu passo calmo de ignorância. Nada perturbante chegava à sua carne do grande labor amoroso que se apoderara da manhã esplêndida.

- Eh, Voriau, não julgues que comes alguém! - gritou alegremente uma voz forte, que fez calar o cão que ladrava com fúria.

O padre Mouret levantou a cabeça.

- Ainda bem que o encontro, Fortune - disse, aproximando-se da beira do campo em que o jovem aldeão trabalhava.-Queria justamente falar consigo.

Fortune era da idade do padre. Alto, de ar atrevido, com a pele já curtida, surribava um recanto de terra pedregosa. A respeito de quê, senhor cura? - perguntou.

- A respeito do que se passou entre a Rosalie e você - respondeu o padre.

Fortune desatou a rir. Devia achar divertido que um cura se ocupasse de semelhante coisa.

- Ora essa! - protestou. - Ela é que quis. Eu não a forcei... Tanto pior se o tio Bambousse não ma quer dar! Bem viu que até o cão está constantemente a querer morder-me. É ele que o açula contra mim.

O padre Mouret ia continuar, quando o velho Artaud, mais conhecido por Brichet, que a princípio não vira, saiu da sombra de uma moita atrás da qual estava a comer com a mulher. Era um homem baixote, ressequido pela idade, de expressão tristonha.

- Devem ter-lhe contado mentiras, senhor cura! - exclamou.- O rapaz está pronto a casar com a Rosalie... A gente nova é assim; entendem-se e depois... A culpa não é de ninguém. Outros têm feito o mesmo que eles e por isso não vivem pior... O caso não depende de nós. É necessário falar com o Bambousse. Ele é que nos despreza, por causa do seu dinheiro.

- Sim, somos demasiado pobres - gemeu a tia Brichet, uma mulher alta, choramingona, levantando-se por seu turno. - Só temos este pedaço de terra, onde o Diabo parece espalhar pedras como granizo. Pão é que não nos dá... Sem o senhor cura, a vida seria impossível

A tia Brichet era a única devota da aldeia. Depois de comungar, não largava o presbitério, pois sabia que Teuse lhe guardava sempre dois pães da última fornada. Às vezes, até apanhava um coelho ou uma galinha, que lhe dava Désirée.

- Os escândalos são contínuos - prosseguiu o padre.- É indispensável que se casem o mais depressa possível.

- Imediatamente, assim que os outros quiserem - disse a velha, muito inquieta a respeito das dádivas que recebia. - Não é verdade, Brichet? Não é verdade que seríamos maus cristãos se contrariássemos o senhor cura?

Fortune ria, trocista.

- Por mim, estou pronto - declarou -, e a Rosalie também... Vi-a ontem, atrás do moinho. Não estamos zangados, antes pelo contrário. Estivemos juntos, a rir...

O padre Mouret interrompeu-o:

- Está bem, vou falar ao Bambousse. Creio que anda lá para as Olivettes.

O padre ia afastar-se quando a tia Brichet lhe perguntou o que era feito do filho mais novo, Vincent, que saíra de casa ao romper da manhã para ir ajudar à missa. Era um vadio muito necessitado dos conselhos do senhor cura. E acompanhou o padre durante uma centena de passos, chorando-se da sua miséria, das batatas que faltavam, do frio que queimara as oliveiras, dos calores que ameaçavam dar cabo das magras colheitas. Só o deixou depois de lhe afirmar que o seu Fortune rezava as suas orações de manhã e à noite

Voriau ia agora à frente do padre Mouret. De súbito, porém, numa volta do caminho, desatou a correr através das terras. O padre teve de tomar um carreirinho que subia uma encosta. Estava nas Olivettes, o bocado mais fértil da região, onde o maire da comuna, Artaud, mais conhecido por Bambousse, possuía diversos campos de trigo, oliveiras e vinhas.

Entretanto, o cão atirara-se às saias de uma rapariga alta e trigueira, que riu satisfeita ao ver o padre

- Seu pai está cá, Rosalie? - perguntou-lhe o sacerdote.

- Está ali adiante - respondeu ela, estendendo a mão, sem deixar de sorrir.

Depois, deixou a leira que andava a mondar e caminhou adiante dele. A sua gravidez, pouco adiantada, notava-se apenas no leve engrossamento das ancas. Tinha o bamboleio poderoso das mulheres de trabalho habituadas a andar ao sol de cabeça ao léu, a nuca queimada e os cabelos negros espetados como crinas. As mãos, esverdeadas, cheiravam às ervas que andava a arrancar.

- Pai! - gritou. - Está aqui o senhor cura, que lhe quer falar

E, sem se virar, descarada, conservou o seu riso manhoso de animal impudico.

Bambousse, gordo, a suar, de rosto redondo, largou o trabalho para vir alegremente ao encontro do padre

- Juraria que me vem falar das reparações da igreja - disse, sacudindo a terra das mãos - Pois, senhor cura, não, não é possível! A comuna não tem um sou... Se Deus fornecer o gesso e as telhas, nós forneceremos os pedreiros.

Este gracejo de camponês incrédulo fê-lo soltar uma gargalhada. Bateu nas coxas, tossiu e quase sufocou.

- Não vim por causa da igreja-respondeu o padre Mouret.-Desejo falar-lhe a respeito da sua filha Rosalie...

- Rosalie? Que lhe fez ela? - perguntou Bambousse, piscando os olhos.

A camponesa olhava descaradamente o jovem padre, desde as mãos brancas ao pescoço delicado, desfrutando-o, procurando fazê-lo corar. Mas ele, cruamente, com o rosto impassível, como se falasse de uma coisa que lhe fosse indiferente, prosseguiu:

- O senhor sabe o que quero dizer, tio Bambousse. Ela está grávida, é preciso casá-la.

- Ah, é isso!... - murmurou o velho, com ar trocista

Obrigado pelo recado, senhor cura. Foram os Brichets que o mandaram, não é verdade? A tia Brichet vai à missa e o senhor dá-lhe uma ajudazinha para lhe casar o filho. É natural... Mas eu não entro nessas combinações. O negócio não me interessa, pronto!

O padre, surpreendido, explicou-lhe que era necessário por termo ao escândalo, que devia perdoar a Fortune, pois este desejava reparar a sua falta, enfim, que a honra da filha exigia um casamento rápido.

- Tá, tá, tá - redarguiu Bambousse, abanando a cabeça. - Deixemo-nos de palavreado! Não dou a minha filha, ouviu? O resto não me interessa... O seu Fortune é um pobretana que não tem onde cair morto. Seria cómodo se, para casar com uma rapariga, bastasse ter relações com ela. Era o que faltava! Por esse andar, não fazíamos outra coisa senão casar gente nova de manhã à noite... Graças a Deus, o estado de Rosalie não me preocupa. Todos sabem o que lhe aconteceu, o que não a deixou coxa nem marreca, e casará com quem quiser da região

- E o filho? - interrompeu-o o padre

- O filho? Ainda não nasceu, pois não? Talvez nem nasça... Se arranjou um filho, isso veremos.

Ao ver o caminho que tomava a diligência do cura, Rosalie julgou dever esfregar os olhos com os punhos e gemer. Deixou-se até cair no chão, sem se importar de mostrar as meias azuis que lhe subiam acima dos joelhos.

- Cala-te, cadela! - gritou-lhe o pai, furioso.

E tratou-a ignobilmente, com palavras reles, que, no entanto, a fizeram rir disfarçadamente, a coberto dos punhos fechados.

- Se te encontro com o teu macho, prendo-os um ao outro e mostro-os assim a toda a gente... Não te queres calar? Espera aí, velhaca!

Atirou-lhe violentamente, a quatro passos de distância, um torrão de terra que apanhou do chão e se desfez na nuca da moça, lhe deslizou pelo pescoço e a cobriu de pó. Aturdida, a rapariga levantou-se de um salto e fugiu com a cabeça entre as mãos, para a proteger. Mas Bambousse teve ainda tempo de lhe acertar com mais dois torrões: um, aflorou-lhe apenas o ombro esquerdo; o outro, acertou-lhe em cheio na espinha, com tanta força que a fez cair de joelhos.

- Bambousse! - gritou o padre, tirando-lhe um punhado de pedras que o outro acabava de apanhar - Não se assuste, senhor cura - disse o aldeão. - A terra é mole. Devia ter-lhe atirado as pedras... Vê-se bem que não conhece as raparigas. São rijas. Aquela, se a pusesse no fundo do poço e lhe quebrasse os ossos à paulada, nem mesmo assim deixava de fazer as suas indecências! Mas eu ando com o olho nela, e se a apanho!... Enfim, são todas iguais.

Resignado, bebeu um golo de vinho de uma grande garrafa achatada, envolta em esparto, exposta ao calor na terra ardente, e prosseguiu, retomando o seu riso grosseiro:

- Se tivesse um copo, senhor cura, dava-lhe uma pinga de boa vontade.

- Então, quanto ao casamento?... - perguntou de novo o padre.

- Não, isso não pode ser. Rir-se-iam de mim... A Rosalie é uma cabeça no ar, mas vale tanto como um homem, acredite. Teria de contratar um rapaz no dia em que ela se fosse... Voltaremos a conversar depois da vindima. Não quero ser roubado. Tem de ser toma lá, dá cá, não é verdade?

O padre ficou ainda uma boa meia hora a pregar a bambousse, a falar-lhe de Deus, a mostrar-lhe todos os inconvenientes que a situação comportava, mas o velho, que voltara ao trabalho, encolhia os ombros, gracejava e teimava cada vez mais na sua. Por fim, resmungou:

- Diga-me cá, se me pedisse uma saca de trigo não ma pagava?... Então, porque pretende que entregue a minha filha sem receber nada?

O padre Mouret retirou-se desanimado. Ao descer o carreiro, viu Rosalie a rebolar-se debaixo de uma oliveira, com Voriau, que lhe lambia a cara, o que a fazia rir. A rapariga dizia ao cão, com as saias em desalinho e batendo com as mãos na terra:

- Estás a fazer-me cócegas, grande estúpido. Acaba com isso!

Quando viu o padre, fingiu-se envergonhada, compôs as saias e levou de novo os punhos aos olhos. Ele procurou confortá-la, prometendo-lhe voltar a insistir junto do pai, e acrescentou que, no entretanto, devia mostrar-se obediente e cessar todas as relações com Fortune, para não agravar mais o seu pecado.

- Oh, agora já não há perigo! O que tinha de acontecer já aconteceu - redarguiu, sorrindo, com o seu ar descarado.

Ele não compreendeu aonde a rapariga queria chegar e descreveu-lhe o Inferno, onde ardiam as mulheres que praticavam acções vergonhosas. Depois, cumprido o seu dever, deixou-a, de novo entregue à serenidade que lhe permitia passar imperturbável por entre as imundícies da carne.

A MANHÃ tornara-se escaldante. Naquele vasto círculo rochoso, o sol brilhava desde os primeiros dias de Primavera, com um clarão de fornalha. Pela altura do astro, o padre Mouret calculou que tinha precisamente o tempo necessário para voltar ao presbitério, se queria lá estar às onze horas para que Teuse lhe não ralhasse. Lido o breviário, feita a sua diligência junto de Bambousse, regressava a passo estugado, olhando ao longe a mancha acinzentada da sua igreja e a alta barra negra que o grande cipreste, o Solitário, punha no azul do horizonte. Pensava, entorpecido pelo calor, na maneira mais rica como lhe seria possível decorar, à tarde, a capela da Virgem, para as práticas do mês de Maria. O caminho estendia-lhe diante um tapete de poeira em que os pés se lhe enterravam suavemente, de uma pureza, de uma brancura deslumbrante.

Na Cruz Verde, quando o padre ia a atravessar a estrada que liga Plassans a La Palud, um cabriole que descia a encosta obrigou-o a desviar-se para trás de um monte de pedras. Atravessava o cruzamento quando uma voz o chamou:

- Eh, Serge! Eh, meu rapaz!

O cabriole parara e um homem debruçava-se. Então, o jovem padre reconheceu um dos seus tios, o Dr. Pascal Rougon, que a gente de Plassans, onde tratava os pobres gratuitamente, designava apenas por “Sr. Pascal”. Embora contasse pouco mais de cinquenta anos, estava já todo branco e a longa barba e os cabelos compridos davam-lhe ao belo rosto regular uma delicadeza cheia de bondade.

- Então isto são horas de andares por aqui a patinhar na poeira? - perguntou alegremente, inclinando-se mais para apertar as duas mãos do padre - Não tens medo de apanhar uma insolação?

- Tanto como o tio - respondeu o padre, rindo.

- Oh, eu tenho a capota da carruagem e os doentes não esperam! Morre-se com qualquer tempo, meu rapaz.

E contou-lhe que ia a casa do velho Jeanbernat, o intendente do Paradou, acometido de congestão durante a noite, fora um vizinho, um camponês que ia ao mercado de Plassans, que o avisara.

- A esta hora já deve estar morto - continuou. - Mas é sempre bom ver... Estes velhos diabos têm sete fôlegos.

Levantou o chicote, mas o padre Mouret deteve-o:

- Espere... Que horas são, meu tio?

- Onze menos um quarto.

O padre hesitava. Feria-lhe os ouvidos a voz terrível de Teuse, gritando-lhe que o almoço estava a arrefecer. Encheu-se, porém, de coragem e prosseguiu acto contínuo:

- Vou consigo, meu tio... Talvez esse infeliz queira reconciliar-se com Deus na sua última hora.

O Dr. Pascal não pôde conter uma gargalhada.

- Quem? Jeanbernat? Ah, se fosses capaz de converter aquele!... Mas não faz mal, vem. Talvez só a tua presença seja capaz de o curar.

O padre subiu. O médico, que parecia arrependido dos seus gracejos, mostrou-se muito afectuoso, ao mesmo tempo que incitava o cavalo com leves estalidos de língua. Observava o sobrinho com curiosidade, de soslaio, com o ar penetrante dos entendidos quando tomam apontamentos. Interrogou-o em frases curtas, com bonomia, a respeito da sua vida, dos seus hábitos, da felicidade tranquila que desfrutava nos Artauds. E, a cada resposta satisfatória, murmurava, como se falasse consigo mesmo, em tom convicto:

- Óptimo, tanto melhor, perfeito.

Insistiu sobretudo no estado de saúde do jovem cura. Este, atónito, assegurou-lhe que passava maravilhosamente, que não tinha vertigens, nem náuseas, nem dores de cabeça.

- Perfeito, perfeito - repetia o tio Pascal. - Na Primavera, como sabes, o sangue trabalha. Mas tu és sólido, pelo que vejo... A propósito, vi o teu irmão Octaye, em Marselha, o mês passado. Ia para Paris, onde arranjou uma boa situação no alto comércio. Ah, o figurão leva uma rica vida!...

- Que vida? - perguntou o padre, ingenuamente.

Para evitar responder, o médico estalou a língua e depois prosseguiu:

- Enfim, estão todos bem, tanto a tua tia Felicite, como o teu tio Rougon e os outros... Isso não impede, porém, que tenhamos muita necessidade das tuas orações. És o santo da família, meu caro. Conto contigo para obter a salvação de todo o clã.

E ria-se, mas em tom tão amigável que o próprio Serge chegou a gracejar.

- Há alguns no nosso grupo - continuou - que não entrarão facilmente no Paraíso. Ouvirias bonitas confissões se escutasses cada um por sua vez... Por mim, não preciso que se confessem; conheço-os à légua, tenho em casa os seus dossiers, com os meus herbários e os meus apontamentos clínicos. Um dia, talvez faça uma lista muito interessante... Verás, verás!

Tagarelava sem descanso, tomado de um entusiasmo juvenil pela ciência. Uma olhadela à sotaina do sobrinho deteve-o de súbito.

- És cura - murmurou. - Fizeste bem, não há nada melhor que ser padre. Dedicas-te por completo ao teu ministério, não é verdade? Eis-te, portanto, todo entregue ao teu Deus.

Não podias ter escolhido nada que te proporcionasse mais satisfação. Os teus parentes, que abalaram como tu, fizeram boas patifarias, e ainda se estão a regalar... Tudo é lógico na nossa família, meu rapaz, um padre como tu, Era forçoso, aliás. O nosso sangue devia levar a isso... Tanto melhor para ti; foste o que tiveste mais sorte. Mas corrigiu-se, sorrindo estranhamente:

- Não, quem teve mais sorte foi a tua irmã Désirée. Assobiou, deu uma chicotada e mudou de conversa. Depois

de subir uma encosta bastante íngreme, o cabriole meteu por desfiladeiros desolados. A seguir, atingiu um planalto por um caminho aberto ao longo de um muro elevado, interminável. Os Artauds tinham desaparecido; estava-se em pleno deserto.

- Estamos perto, não é verdade? - perguntou o padre.

- Cá está o Paradou - respondeu o médico, indicando o muro. - Nunca vieste para estes lados? Pois olha que não estamos a uma légua dos Artauds... O Paradou deve ter sido uma propriedade soberba. O muro do parque, deste lado, tem bem dois quilómetros, mas há mais de cem anos que tudo isto anda ao deus-dará.

- Que belas árvores! - observou o padre, levantando a cabeça para admirar as massas de verdura que ultrapassavam o muro

- Sim, este sítio é muito fértil. O parque é uma autêntica floresta rodeada de rochas escalvadas... Além disso, o Mascle nasce lá. Creio que me falaram de três ou quatro nascentes.

E em poucas palavras, entrecortadas de pormenores estranhos ao tema, contou a história do Paradou, uma espécie de lenda que corria na região.

No tempo de Luís XV, um fidalgo construíra um palácio soberbo, com jardins imensos, lagos, águas a jorrarem por todos os lados, estátuas - um pequeno Versalhes perdido nas rochas, sob o escaldante sol do Meio-Dia. Mas só lá passara uma estação, em companhia de uma mulher adoràvelmente bela, que morrera na propriedade, sem dúvida, pois ninguém a vira sair. No ano seguinte, o palácio ardera, as portas do parque tinham sido pregadas e as próprias seteiras dos muros haviam sido entaipadas com terra, e desde essa época longínqua nem um olhar entrara no vasto recinto que ocupava todo um dos planaltos dos Garigues.

- Não devem faltar urtigas - disse, rindo, o padre Mouret - Cheira a humidade ao longo de todo este muro. Não nota, tio?

E, depois de um silêncio, perguntou:

- A quem pertence agora o Paradou?

- Ninguém sabe - respondeu o médico.-O proprietário apareceu por cá há uns vinte anos, mas ficou de tal modo assustado com este ninho de cobras que nunca mais se

viu... O verdadeiro senhor disto é o guarda da propriedade, o velho e original Jeanbernat, que encontrou maneira de se instalar num pavilhão cujas pedras ainda se mantinham de pé... Olha, vês aquele pardieiro cinzento, ali adiante, com as suas grandes janelas cobertas de hera?

O cabriole passou defronte de um portão senhorial todo comido pela ferrugem e reforçado interiormente com pranchas e argamassa. Os valados estavam cobertos de silvas. A uma centena de metros, o pavilhão habitado por Jeanbernat encontrava-se encravado no parque, para o qual deitava uma das suas fachadas, mas o guarda parecia ter barricado a sua habitação desse lado, ao passo que do lado da estrada arroteara um estreito talhão de horta, e vivia ali, ao sul, de costas voltadas para o Paradou, parecendo ignorar a vegetação luxuriante que trasbordava atrás de si.

O jovem padre saltou para o chão, olhou curiosamente à sua volta e interrogou o médico, que se apressava a prender o cavalo a uma argola chumbada ao muro.

- E esse velho vive sozinho, no fundo deste buraco perdido? - perguntou.

- Sim, completamente sozinho - respondeu o tio Pascal. Mas emendou:

- Quer dizer, tem com ele uma sobrinha que lhe caiu das nuvens, uma rapariga singular, uma selvagem... Mas despachemo-nos. Tudo nesta casa parece morto.

A CASA dormitava ao sol do meio-dia, com as persianas fechadas, e apenas se ouvia o zumbido dos moscardos que subiam ao longo da trepadeira até ao telhado. Uma paz agradável envolvia aquela ruína ensoalhada. O médico empurrou a porta do horto, que uma sebe viva, muito elevada, rodeava, e deparou com a alta figura de Jeanbernat, de pé, à sombra de um pano de muro, a fumar tranquilamente o seu cachimbo, no meio daquele grande silêncio, e a ver crescer os seus legumes.

- Como? Você está a pé, seu farsante?! - gritou o médico, estupefacto.

- Com que então vinha para me enterrar, hem?... - trovejou o velho, rudemente. - Não preciso de ninguém. Sangrei-me...

Calou-se de súbito, ao ver o padre, e fez um gesto tão terrível que o tio Pascal se apressou a intervir

- É o meu sobrinho - disse -, o novo cura dos Artauds, um excelente rapaz... Que diabo, não percorremos as estradas a semelhante hora para o comer, tio Jeanbernat!

O velho acalmou-se um pouco.

- Não quero padrecas cá em casa - murmurou. - Não é preciso mais para uma pessoa rebentar. Fique ciente, doutor: não quero drogas nem padres quando morrer. De contrário, temos o caldo entornado... Mas, apesar de tudo, ele que entre, visto ser seu sobrinho.

Interdito, o padre Mouret não soube que dizer. Ficou de pé no meio de um carreiro, a observar aquela figura singular, aquele eremita coberto de rugas, de rosto cor de tijolo e membros secos e nervudos como molhos de cordas, que parecia suportar os seus oitenta anos com um desdém irónico pela vida. Como o médico tentasse tomar-lhe o pulso, zangou-se de novo:

- Deixe-me tranquilo! Já lhe disse que me sangrei com a minha navalha! Acabou-se, pronto... Quem foi o bruto do camponês que o foi incomodar? Médico, padre... porque não trouxeram também os gatos-pingados?... Enfim, que lhes havemos de fazer? Esta gente é estúpida. Mas isso não nos impede de beber uma pinga.

Colocou uma garrafa e três copos em cima de uma mesa velha que puxou para a sombra, encheu os copos até à borda e brindou. A sua cólera fundia-se numa alegria zombeteira.

- Isto não o envenenará, senhor cura - disse. - Um copo de bom vinho não é pecado... Com a breca, é a primeira vez que bebo com uma sotaina, seja dito sem ofensa! O pobre padre Caffin, seu predecessor, evitava discutir comigo... Tinha medo.

Soltou uma gargalhada e continuou:

- Imagine que teimava em me provar que Deus existe... Por isso, sempre que o encontrava desafiava-o e ele safava-se de orelha murcha, garanto-lhe

- Então, Deus não existe?!-protestou o padre Mouret, saindo do seu mutismo.

- Oh, seja como o senhor quiser! - replicou Jeanbernat, zombeteiramente.- Podemos recomeçar juntos, se isso lhe dá prazer... Mas já o previno de que sou muito forte. Há lá em cima, num quarto, alguns milhares de volumes salvos do incêndio do Paradou, todos os filósofos do século XVII, um monte de alfarrábios sobre a religião. Aprendi boas coisas a esse respeito, depois de os ler durante vinte anos... Ah, garanto-lhe que encontrará com quem falar, senhor cura!

Levantara-se. Com um gesto amplo, mostrou o horizonte, a terra, o céu, e repetiu solenemente:

- Não há nada, nada, nada... Quando o Sol se apagar, acabou-se.

O Dr. Pascal dera uma leve cotovelada ao padre Mouret. riscava os olhos e observava curiosamente o velho, aprovando com a cabeça para o incitar a falar.

- Então, tio Jeanbernat, é materialista? - perguntou-lhe.

- Oh, sou apenas um pobre homem! - respondeu o velho, reacendendo o cachimbo. - Quando o conde de Corbière, de quem fui irmão de leite, morreu de uma queda de cavalo, os filhos encarregaram-me de guardar este parque da “Bela Adormecida” para se desembaraçarem de mim. Tinha então sessenta anos e julgava-me acabado. Mas a morte esqueceu-me e tive de arranjar um buraco... Como vê, quando se vive absolutamente só acaba-se por ver as coisas de uma maneira especial: as árvores deixam de ser árvores, a terra toma ares de pessoa viva, as pedras contam-nos histórias. Tolices, enfim. Conheço segredos que os espantariam. No fim de contas, que se há-de fazer neste maldito deserto? Li os alfarrábios, o que me entreteve mais do que a caça... O conde, que praguejava como um pagão, sempre me dissera: “Jeanbernat, meu rapaz, conto encontrar-te no Inferno, para me servires lá em baixo como me tens servido cá em cima.”

Voltou a fazer um gesto largo em torno do horizonte e acrescentou:

- Estão a perceber? Nada, não há nada... Tudo isso não é mais do que uma farsa.

O Dr. Pascal desatou a rir.

- Uma bela farsa, em todo o caso - disse. - Tio Jeanbernat, desconfio que está a fazer caixinha connosco. Suspeito que está apaixonado, apesar dos seus ares desiludidos. Ainda há pouco falava das árvores e das pedras com tanta ternura...

- Não estou, garanto-lhe - murmurou o velho - Isso já lá vai. Dantes, sim, é verdade. Quando o conheci e íamos juntos às ervas, ainda era bastante estúpido para amar toda a espécie de coisas destes campos imensos e falsos, mas, felizmente, os alfarrábios mataram tudo isso... Até queria que a minha horta fosse mais pequena e não saio à estrada duas vezes por ano. Vê este banco? Passo nele os meus dias a ver crescer as alfaces.

- E os seus passeios no parque? - interrompeu-o o médico.

- No parque! - repetiu Jeanbernat, com ar de profunda surpresa. - Mas se há mais de doze anos que não ponho lá os pés! Que queria que fizesse no meio daquele cemitério? É demasiado grande e estúpido, com aquelas árvores intermináveis, musgo por toda a parte, estátuas partidas e buracos em que se pode partir o pescoço a cada passo. Da última vez que lá fui, estava tão escuro debaixo das folhagens, as flores silvestres expeliam um veneno tão forte e nas alamedas soprava um ar tão esquisito que quase tive medo e barriquei-me para o parque não entrar aqui... Uma réstia de sol, três pés de alface diante de mim, uma sebe alta a fechar-me todo o horizonte, basta-me para ser feliz. Até é de mais. Nada, era o que desejava, absolutamente nada - qualquer coisa tão estreita que de fora nada me viesse incomodar. Dois metros de terra, digamos, bastam-me para rebentar de costas.

Deu um murro na mesa, levantou bruscamente a voz e gritou ao padre Mouret:

- Vamos, mais uma pinga, senhor cura! O Diabo não está

no fundo da garrafa. Vamos!

O padre estava constrangido e sentia-se sem forças para reconduzir até Deus aquele velho estranho, cuja razão lhe parecia singularmente transtornada. Naquele momento, recordava-se de certas tagarelices de Teuse acerca do “Filósofo”, como os camponeses dos Artauds chamavam a Jeanbernat. Pedaços de histórias escandalosas acudiam-lhe vagamente à memória. Levantou-se e fez sinal ao médico, desejoso de deixar aquela casa onde lhe parecia respirar um odor de danação No entanto, a despeito do seu receio latente, uma curiosidade singular o retinha ali. Em vez de se retirar, foi até ao fundo da horta e esquadrinhou o vestíbulo com a vista, como se quisesse ver através das paredes. Todavia, pela porta principal, aberta, só se divisava o vão escuro da escada. Voltou para trás e procurou descobrir qualquer buraco, qualquer abertura naquele mar de folhas cuja vizinhança se manifestava por meio de um longo murmúrio que parecia abater-se sobre a casa com um ruído de vagas.

- E a pequena está bem? - perguntou o médico, pegando no chapéu.

- Menos mal - respondeu Jeanbernat.- Nunca cá pára, desaparece durante manhãs inteiras... Talvez agora esteja nos quartos lá de cima.

Levantou a cabeça e chamou:

- Albine! Albine!

Depois, encolheu os ombros e comentou:

- Não está, claro. É uma grande galdéria... Até à vista, senhor cura. Sempre às suas ordens.

Mas o padre Mouret não teve tempo de aceitar o desafio do “Filósofo”. Bruscamente, abriu-se uma porta ao fundo do vestíbulo e surgiu uma abertura deslumbrante no pano negro do muro. Foi como que uma visão de floresta virgem, um desabar de árvores enormes, sob uma chuva de sol. No meio do clarão, o padre distinguiu nitidamente, ao longe, pormenores exactos: uma grande flor amarela no meio de um relvado, uma toalha de água que caía de uma rocha alta, uma árvore colossal carregada de pássaros - tudo imerso, perdido, chamejante no meio de tal amálgama de verdura, de tal orgia de vegetação, que o horizonte inteiro dir-se-ia em desabrochamento. Mas a porta bateu e tudo levou sumiço.

- Ah, vagabunda!-gritou Jeanbernat. - Ainda estavas no Paradou?

Albine ria, no limiar do vestíbulo. Trazia saia cor de laranja, com um grande lenço vermelho atado atrás da cintura, o que lhe dava um ar de cigana endomingada. E continuava a rir, com a cabeça inclinada e a garganta intumescida de alegria, feliz com as suas flores - flores silvestres entrançadas nos cabelos louros, atadas ao pescoço, ao corpete, aos braços esguios, nus e dourados - que lhe davam o aspecto de um grande ramo de aroma penetrante.

- Estás linda! - ralhava o velho. - Cheiras a erva que tresandas... Dir-se-ia que tem dezasseis anos, esta boneca!

Albine riu alto, descaradamente. O Dr. Pascal, seu grande amigo, deixou-se abraçar por ela

- Então, não tens medo do Paradou? - perguntou-lhe.

- Medo? De quê? - redarguiu a rapariga, de olhos atónitos. - Os muros são demasiado altos, ninguém pode entrar... Só lá estou eu. É o meu jardim, só meu, e tão grande que ainda lhe não encontrei o fim

- E os animais? - interrompera o médico.

- Os animais? Não são maus e já me conhecem bem.

- Mas debaixo das árvores não está escuro?

- Qual! Só sombra. Sem isso, o sol comia-me a cara... Está-se bem à sombra, nas folhas.

E girava, enchia a hortazinha com o voo das saias, e espalhava o cheiro acre a verdura que trazia consigo. Sorrira ao padre Mouret sem o mínimo acanhamento, sem se preocupar com os olhares surpresos com que ele a seguia. O padre afastara-se. Aquela criança loura, de rosto afilado e estuante de vida, parecia-lhe filha misteriosa e perturbadora da floresta entrevista numa onda de sol.

- Ouça, tenho um ninho de melros; quer-o? - perguntou Albine ao médico.

- Não, obrigado - respondeu este, rindo. - É melhor dá-lo à irmã do senhor cura, que gosta muito de animais. Adeus, Jeanbernat.

Mas Albine aproximara-se do padre.

- O senhor é o cura dos Artauds, não é verdade? Tem uma irmã? Hei-de ir vê-la... Mas com a condição de não me falar de Deus. O meu tio não quer.

- Vai-te embora que nos estás a maçar - interveio Jeanbernat, encolhendo os ombros.

Num salto de cabra, a rapariga desapareceu, deixando uma chuva de flores atrás de si. Ouviu-se bater uma porta e depois risos atrás da casa - gargalhadas sonoras que se foram afastando, como que ao galope de um animal brincalhão solto na erva.

- Verão que ainda há-de acabar por dormir no Paradou - murmurou o velho, com o seu ar indiferente.

E acrescentou, enquanto acompanhava os visitantes:

- Doutor, se me encontrar morto uma destas manhãs, faça-me o favor de me atirar para dentro da estrumeira, ali, atrás das minhas alfaces... Boas tardes, meus senhores.

Deixou bater a cancela de madeira que fechava a sebe e a casa readquiriu a sua paz feliz, ao sol do meio-dia, no meio do zumbido dos moscardos que trepavam ao longo da hera até ao telhado.

ENTRETANTO, o cabriole seguia de novo pelo caminho aberto na encosta, ao longo do muro interminável do Paradou. Silencioso, o padre Mouret levantava os olhos e observava os ramos grossos que se estendiam por cima do muro, como braços de gigantes ocultos. Vinham ruídos do parque - ruflar de asas, estremecimentos de folhas, saltos furtivos que quebravam os ramos, grandes suspiros que vergavam os rebentos novos, todo um frémito de vida perpassava nas copas daquela imensidade de árvores -e às vezes, ao ouvir certo grito de ave semelhante a riso, o padre virava a cabeça com uma espécie de inquietação.

- Singular rapariga! - exclamou o tio Pascal, afrouxando um pouco as rédeas. - Tinha nove anos quando caiu em casa daquele pagão. Era filha de um irmão dele que se arruinou não sei em quê. A pequena encontrava-se como pensionista em qualquer parte quando o pai se suicidou. Era já uma autêntica menina, muito bem-educada, que lia, bordava, tagarelava e martirizava as teclas do piano E que elegância! Quando a vi, à chegada, trazia meias de renda, saias bordadas, véu, punhos arrendados e montes de folhos... Pois bem, os folhos não duraram muito tempo!

Ria-se. Um pedregulho quase fez virar o cabriole.

- Ainda um dia deixo uma roda do carro neste maldito caminho!-resmungou. - Segura-te bem, meu rapaz.

O muro nunca mais acabava. O padre escutava.

- Compreendes - prosseguiu o doutor-, o Paradou, com o seu sol, as suas pedras, os seus cardos, dava-lhe conta de um vestido por dia. Passado pouco tempo, os belos vestidos da pequena estavam feitos em farrapos. Às vezes, voltava quase nua para casa... Agora, veste-se como uma selvagem. Hoje, ainda estava menos mal vestida, mas em certas ocasiões só traz os sapatos e a camisa... Percebeste? O Paradou é dela. Logo no dia seguinte à sua chegada tomou posse de tudo e lá vive. Salta pela janela quando Jeanbernat fecha a porta, foge de todas as maneiras e feitios e vai não se sabe para onde, meter-se no fundo de buracos perdidos que só ela conhece... Deve levar uma bonita vida naquele deserto.

- Escute, meu tio - interrompeu-o o padre Mouret. - parece um animal a trote, atrás do muro...

O tio Pascal escutou.

- Não-disse passado um momento de silêncio-, é o barulho do carro nas pedras... Bom, agora a pequena já não martela as teclas do piano e creio até que já nem sabe ler. Imagina uma menina prendada reduzida ao estado de vadiagem sem peias, deixada à solta numa ilha deserta. Só conserva o seu fino sorriso de coquette, que exibe quando quer... Resumindo, se algum dia souberes de uma rapariga que se queira educar, não te aconselho a confiá-la a Jeanbernat. Tem uma maneira de deixar agir a natureza completamente primitiva. Quando uma vez me atrevi a falar-lhe de Albine, respondeu-me que não se devia impedir as árvores de crescer à vontade e que era partidário do desenvolvimento normal dos temperamentos... Enfim, deixá-los; são ambos muito curiosos. Nunca venho para estes lados que lhes não faça uma visita.

O cabriole saía finalmente do caminho escavado. Ali, o muro do Paradou fazia um cotovelo e seguia depois, a perder de vista, pela crista das colinas. No momento em que o padre Mouret virava a cabeça para deitar um último olhar àquela barreira acinzentada, cuja severidade impenetrável acabara por lhe causar singular excitação, ouviram-se ruídos de ramos violentamente agitados, ao mesmo tempo que um raminho de bétulas novas parecia saudar os viajantes do alto do muro.

- Bem me parecia que um animal corria lá atrás - disse o padre.

Mas sem que se visse ninguém, sem se divisar mais nada, no ar, além das bétulas agitadas cada vez mais vigorosamente, ouviu-se uma voz cristalina, entrecortada de risos, gritar:

- Adeus, doutor! Adeus, senhor cura!... Beijo esta árvore para que lhes envie os meus beijos.

- Olha, é Albine! - exclamou o Dr. Pascal. - Deve ter seguido o nosso carro a trote. Não se atrapalha a saltar os silvados, aquela fadazinha!

E gritou, por seu turno:

- Adeus, amiguinha!... Já estás muito crescida para nos cumprimentares dessa maneira!

As gargalhadas redobraram, as bétulas acenaram mais baixo e as suas folhas voaram até à capota do cabriole.

- Sou tão crescida como as árvores e todas as folhas que caem são beijos - replicou a voz, modificada pela distância, tão musical, tão confundida com o alento do parque que o jovem padre se sentiu comovido.

A estrada melhorava. Na descida, os Artauds reapareceram ao fundo da planície crestada. Chiando o cabriole tomou o caminho da aldeia, o padre Mouret não quis que o tio o levasse até ao presbitério. Saltou para o chão e disse:

- Não, obrigado. Gosto de caminhar, faz-me bem.

- Como queiras - acabou por responder o médico.

Depois, apertando-lhe a mão, acrescentou:

- Se todos os teus paroquianos fossem como o animal do

Jeanbernat não terias de te incomodar muitas vezes. Enfim tu é que quiseste lá ir... Desejo-te muita saúde, mas ao menor incómodo, de noite ou de dia, já sabes: manda-me chamar. Creio que não ignoras que trato toda a família de graça. Adeus, meu rapaz.

ASSIM que se encontrou sozinho na poeira da estrada, o padre Mouret sentiu-se mais à vontade. Aqueles campos pedregosos restituíam-no ao seu sonho severo, à sua vida interior vivida no deserto. Ao longo do caminho escavado, as árvores tinham-lhe deixado cair na nuca frescuras inquietantes que naquele momento o sol ardente secava. As amendoeiras enfezadas, os trigos pobres e as vinhas doentes, dos doislados do caminho, apaziguavam-no, tiravam-no da perturbação em que o haviam lançado os ares demasiado fortes do Paradou. E, no meio da claridade ofuscante que descia do céu sobre aquela terra nua, as blasfémias de Jeanbernat nem sequer punham uma sombra. Experimentou uma grande alegria quando, ao levantar a cabeça, distinguiu no horizonte o vulto imóvel do Solitário e a mancha do telhado cor-de-rosa da igreja.

Mas, à medida que avançava, o padre sentia-se dominado por outra inquietação: Teuse ia, com certeza, dispensar-lhe uma bonita recepção, com o almoço frio à espera havia bem duas horas. Já imaginava a cara terrível, a catadupa de palavras com que o acolheria e o barulho irritado de louça que teria de ouvir toda a tarde. Depois de atravessar os Artauds, o seu medo tornou-se tão intenso que hesitou, acobardado, e perguntou a si próprio se não seria mais prudente dar a volta e entrar pela igreja. Mas, enquanto se consultava, Teuse em pessoa apareceu no limiar do presbitério, com a touca às três pancadas e as mãos nas ancas. Inclinou-se para diante e teve de subir a encosta debaixo daquele olhar carregado de temporal, que sentia pesar-lhe nos ombros.

- Parece-me que venho um bocado atrasado, minha boa Teuse - balbuciou, ao virar a última curva do carreiro

Teuse esperou que chegasse diante dela, bem perto, e só então o fitou nos olhos, furiosa. Depois, sem dizer nada, virou-se e caminhou à frente dele até à sala de jantar, a bater com os saltos grossos, tão hirta de cólera que quase não coxeava.

- Tive tanto que fazer!... - começou o padre, a quem aquele acolhimento mudo assustava. - Desde manhã que não paro...

Mas ela cortou-lhe a palavra com um novo olhar, tão fixo, tão irritado, que ficou como se lhe tivessem quebrado as pernas. Sentou-se e principiou a comer. A criada servia-o com gestos bruscos, de autómato, arriscando-se a partir os pratos, de tal modo os pousava com violência. O silêncio era tão formidável que o padre não conseguiu engolir a terceira garfada, estrangulado pela comoção

- A minha irmã já almoçou? - inquiriu. - Fez bem. Nunca deve esperar por mim para almoçar quando me demoro lá fora.

Nenhuma resposta. Teuse, em pé, esperava que ele despejasse o prato para o levantar. Então, sentindo que não poderia comer debaixo daquele par de olhos implacáveis, que o esmagavam, pousou o talher bruscamente. Semelhante gesto de impaciência foi como que uma chicotada que tirou Teuse da sua rigidez obstinada. Explodiu:

- Ah, ele é isso?! Ainda por cima é o senhor quem se zanga! Pois bem, vou-me embora! O senhor vai pagar-me a viagem para eu regressar à minha terra. Estou farta dos Artauds, da sua igreja e de tudo!

Ao mesmo tempo, ia desatando o avental, com as mãos trémulas.

- O senhor bem devia ter visto que eu não queria falar... Isto é lá vida! Só os saltimbancos, senhor cura, procedem assim! Agora é que são onze horas, não é verdade? O senhor não tem vergonha de estar ainda à mesa quase às duas horas? Isso não é de um cristão, não. Não é de um cristão!

E prosseguiu, plantando-se diante dele:

- Enfim, de onde vem o senhor? Com quem esteve? Que assunto o demorou?... Se fosse uma criança, merecia que lhe dessem açoites. O lugar de um padre não é andar pelas estradas, à torreira do sol, como os mendigos sem tecto... Ah, está num bonito estado, com os sapatos todos brancos e a sotaina coberta de pó! Quem é que lhe conseguirá escovar a sotaina? Quem lhe comprará outra?... Mas fale, ande! Diga o que andou a fazer! Palavra, quem não o conhecesse havia de pensar bonitas coisas! E quer que seja franca? Pois bem, por si não poria as mãos no fogo! Quem almoça a semelhantes horas é capaz de tudo.

Resignado, o padre Mouret deixava passar a tempestade. Experimentava como que um alívio nervoso ao ouvir as palavras exaltadas da velha criada.

- Vamos, minha boa Teuse, ponha primeiro o avental...

- Não, não! - gritou ela. - Acabou-se, vou-me embora. Mas ele levantou-se e atou-lhe o avental à cintura, rindo,

apesar de a mulher se debater e protestar:

- Já lhe disse que não! .. O senhor é um embusteiro. Percebo-lhe o jogo, vejo perfeitamente que me quer intrujar com as suas palavras açucaradas... Aonde foi? Depois veremos.

O padre tornou a sentar-se à mesa, como homem que tem a vitória conquistada.

- Primeiro, dê-me licença que coma... Morro de fome.

- Sem dúvida - murmurou ela, compadecida. - O senhor

não tem juízo?... Quer que lhe estrele dois ovos? Não demora nada. Enfim, se isso lhe basta... E tudo frio! De que me serviu ter tanto cuidado com as suas beringelas? Estão frescas, agora! Parecem solas velhas... Felizmente, o senhor tem melhor boca do que o pobre padre Caffin... Oh, lá qualidades tem o senhor, não nego!...

Servia-o com atenções de mãe, sem deixar de tagarelar. Depois, quando acabou, correu à cozinha para ver se o café ainda estava quente. Acalmava-se, coxeava de modo extravagante, devido à alegria da reconciliação. Habitualmente, o padre Mouret temia o café, que lhe ocasionava grandes perturbações nervosas; mas naquelas circunstâncias, desejoso de selar a paz, aceitou a chávena que ela lhe trouxe. E como se atardasse mais um instante à mesa, a criada sentou-se diante dele e insistiu suavemente, como mulher torturada pela curiosidade:

- Aonde foi, senhor cura?

- Bom - respondeu o padre, sorrindo -, estive com os Brichets, falei com o Bambousse...

Teve de contar o que os Brichets tinham dito, o que decidira Bambousse, a cara que haviam feito, o lugar onde trabalhavam... Mas assim que Teuse tomou conhecimento da resposta do pai de Rosalie, não se conteve e barafustou:

- Meu Deus! Se a criança morresse, a gravidez não contaria para nada...

Depois, juntando as mãos com ar de admiração invejosa, acrescentou:

- Muito deve o senhor cura ter discutido! Mais de meio dia para chegar a esse belo resultado!... E regressou muito devagar? Devia estar um calor endiabrado na estrada...

O padre, que se levantara, não respondeu. Ia falar do Paradou, pedir informações, mas o receio de ser interrogado com demasiada vivacidade e uma espécie de vago acanhamento que a si próprio não ousava confessar, levara-o a guardar silêncio acerca da visita a Jeanbernat. Cortou cerce qualquer novo interrogatório, perguntando:

- E a minha irmã, onde está? Ainda a não ouvi.

- Venha cá, senhor cura - disse Teuse, rindo e pondo um dedo na boca.

Entraram na divisão contígua, uma sala rústica forrada de papel de grandes flores cinzentas, desbotadas, mobilada com quatro cadeirões e um canapé estofados de crina. Désirée dormia no canapé, deitada ao comprido, com a cabeça apoiada nos dois punhos fechados. As saias pendiam-lhe e descobriam-lhe os joelhos, ao passo que os braços levantados, nus até aos cotovelos, lhe salientavam as linhas poderosas da garganta. A respiração saía-lhe um pouco forte por entre os lábios mal fechados, rubros, através dos quais se lhe viam os dentes.

- Hem? Como ela dorme!-murmurou Teuse.- Nem sequer ouviu as tolices que há pouco lhe estive a gritar... Claro, devia estar muito cansada. Imagine que andou a limpar as capoeiras até quase ao meio-dia... Depois de comer, deitou-se e adormeceu como uma pedra, muito quietinha.

O padre olhou a irmã durante um instante, com muita ternura.

- Deixemo-la repousar o tempo que quiser - disse.

- Evidentemente... Só é pena que seja tão ingénua. Veja, que braços tão fortes! Quando a visto, penso sempre na bela esposa que poderia ser. Olhe que lhe daria ricos sobrinhos, senhor cura... Não lhe encontra parecenças com aquela grande senhora de pedra que está no mercado de Plassans?

Referia-se a uma Cibele deitada em molhos de trigo, obra de um discípulo de Puget, esculpida no frontão do mercado. Sem responder, o padre Mouret empurrou-a suavemente para fora da sala, recomendando-lhe que fizesse o menos barulho possível. E, até à tardinha, o presbitério permaneceu num grande silêncio. Teuse acabava a sua barrela, debaixo do alpendre, e o padre, ao fundo do jardinzinho, com o breviário caído nos joelhos, estava abismado em piedosa contemplação, enquanto pétalas cor-de-rosa choviam dos pessegueiros em flor.

POR volta das seis horas, tudo despertou bruscamente, ao som de portas a abrirem-se e fecharem-se, e, no meio de estrondosas gargalhadas que abalavam toda a casa, Désirée apareceu com os cabelos soltos e os braços sempre nus até aos cotovelos, a gritar:

- Serge! Serge!

Depois, quando viu o irmão no jardim, correu para ele, sentou-se um instante no chão, a seus pés, e suplicou-lhe:

- Anda ver a criação!... Ainda não os vistes, pois não? Não imaginas como estão bonitos, agora!

Ele fez-se muito rogado. A capoeira assustava-o um pouco Mas, ao ver lágrimas nos olhos de Désirée, cedeu. Então ela atirou-se-lhe ao pescoço, com a alegria súbita de um cachorro, e riu alto, sem mesmo limpar as faces.

- Como és amável! - balbuciou, puxando-o. - Quero que vejas as galinhas, os coelhos, os pombos e os patos, que têm água fresca, e a minha cabra, que tem agora o quarto tão limpo como o meu... Sabes, tenho três gansos e duas peruas. Anda depressa. Tens de ver tudo.

Désirée tinha então vinte e dois anos. Criada no campo, em casa de uma ama, uma camponesa de Santo Eutrópio, desenvolvera-se em plena natureza Com o cérebro vazio, sem pensamentos graves de nenhuma espécie, tirava o máximo partido do solo fértil e do ar puro dos campos, desenvolvia-se toda em carne, tornava-se um belo animal fresco, branco, de sangue rosado e pele aveludada. Dir-se-ia uma jumenta de raça à qual tivesse sido concedido o dom de rir. Embora patinhasse de manhã à noite, conservava os pés e as mãos delicados, as linhas flexíveis dos rins, o requinte burguês do seu corpo de virgem, o que a tornava uma criatura à parte, nem menina nem aldeã, uma rapariga alimentada pela terra, de ombros largos e fronte estreita de jovem deusa.

Fora, sem dúvida, a sua pobreza de espírito que a aproximara dos animais. Só estava à vontade na sua companhia, entendia melhor a sua linguagem do que a dos homens, tratava-os com carinhos maternais. À falta de raciocínio claro, possuía um instinto que a colocava ao nível deles. Ao primeiro queixume que soltavam, sabia logo onde estava o seu mal. Inventava gulodices sobre as quais caíam sofregamente, apaziguava com um gesto as suas querelas, parecia conhecer num relance de olhos o seu carácter bom ou mau, contava a seu respeito histórias intermináveis e alongava-se em pormenores tão abundantes, tão exactos, mesmo acerca do modo de ser do mais pequeno pinto, que causava profunda admiração a toda a gente, para quem um franganito não se diferençava de nenhuma maneira de outro franganito. A capoeira tornara-se, assim, um autêntico país onde ela reinava como senhora absoluta; um país de organização complicadíssima, perturbado por revoluções, povoado dos seres mais díspares, de que só ela conhecia os anais. O seu instinto certeiro ia tão longe que adivinhava os ovos goros de uma ninhada e anunciava antecipadamente o número de láparos que teria uma coelha.

. Aos dezasseis anos, na altura da puberdade, Désirée não tivera nenhuma das vertigens nem das náuseas das outras raparigas; adquirira a robustez de mulher feita, passara a sentir-se melhor e fizera brilhar os vestidos com o desabrochar esplendoroso da sua carne. Desde então, apresentava aquele corpo roliço e desempenado, aqueles membros esguios e firmes, de estátua antiga, todo aquele arrebatamento de animal vigoroso. Dir-se-ia que, na sua plenitude, nem um desejo carnal a dominava. Encontrava satisfação contínua em sentir à sua volta multiplicarem-se os animais e experimentava as alegrias da fecundação no meio do seu acasalamento e dos montes de estrume, dos quais pareciam evolar-se eflúvios reprodutores. Qualquer coisa nela lhe permitia contentar-se com a postura das galinhas e levar as coelhas ao macho com risinhos de bela rapariga calma, ou experimentar as venturas da mulher grávida ao ordenhar a cabra. Não havia nada mais são do que a forma como se impregnava inocentemente do cheiro, do calor da vida. Nenhuma curiosidade depravada a impelia àqueles cuidados de reprodução ou a espicaçava perante os galos a baterem as asas, as fêmeas em trabalhos de parto ou o bode a empeçonhar o curral acanhado. Conservava a sua tranquilidade de belo animal, o seu olhar límpido, a sua ausência de pensamentos, feliz por ver o seu pequeno mundo multiplicar-se, como se sentisse aumentar o seu próprio corpo e fosse ela a fecundada. Identificava-se assim com todas aquelas mães, das quais era como que a mãe comum, a mãe natural, que deixasse cair dos dedos, sem um estremecimento, o líquido fecundante.

Desde que estava nos Artauds, Désirée passava os dias em absoluta beatitude. Por fim, conseguira tornar realidade o sonho da sua existência, o único desejo que a atormentava no meio da sua puerilidade de espírito fraco. Possuía uma capoeira, um tugúrio que ninguém lhe disputava, onde podia multiplicar animais à sua vontade. Desde então, enterrara-se ali, construíra ela própria as coelheiras, escavara o tanque para os patos, pregara, carregara palha, tudo sem consentir que ninguém a ajudasse. Teuse tinha apenas o trabalho de a lavar. A capoeira encontrava-se atrás do cemitério e, algumas vezes, Désirée tinha de ir apanhar entre as sepulturas uma ou outra galinha curiosa que saltava por cima do muro. Ao fundo, havia um telheiro onde se abrigavam os coelhos e as galinhas, e à direita alojava-se a cabra, num curralzinho. No entanto, todos os animais viviam juntos, os coelhos misturados com as galinhas, a cabra com os patos, no meio dos quais se metia no tanque, e os gansos, os perus e os pombos em confraternização na companhia de três gatos. Quando ela aparecia junto da vedação de madeira que impedia a bicharada de entrar na igreja, saudava-a uma barulheira ensurdecedora.

- Estás a ouvi-los? - perguntou ao irmão, da porta da sala de jantar.

O bom e o bonito aconteceu, porém, quando, depois de o mandar entrar, Désirée fechou atrás de si a cancela: foi tão violentamente assaltada que quase desapareceu! Os patos e os gansos batiam o bico e puxavam-lhe as saias; as galinhas, glutonas, saltavam-lhe às mãos e davam-lhe grandes bicadas; os coelhos aninhavam-se-lhe nos pés e saltavam-lhe aos joelhos; os três gatos pularam-lhe para os ombros e a cabra desatou a balir ao fundo do curral, por não poder ir ao seu encontro.

- Deixem-me, brutos! - gritou a rapariga, dando livre curso ao seu belo riso, deleitada com as cócegas que lhe faziam todas aquelas penas, patas e bicos.

Mas não fazia nada para se libertar. Como dizia, deixar-se-ia comer, de tal modo tudo aquilo lhe era agradável e gostava de sentir aquela vida abater-se sobre si e envolvê-la no seu calor penugento. Por fim, só um gato teimou em querer ficar-lhe nas costas.

- É Moumou - disse ela. - Tem as patas macias como veludo.

Depois, orgulhosamente, mostrou a capoeira ao irmão e acrescentou:

- Vês como está limpa?...

De facto, a capoeira estava varrida, lavada e esfregada. No entanto, das águas sujas agitadas e das camas de palha revolvidas com a forquilha exalava-se um odor animal tão intenso que o padre Mouret se sentiu nauseado. O estrume acumulava-se junto do muro do cemitério, num monte enorme e fumegante.

- Olha para este monte! - prosseguiu Désirée, levando o irmão para junto do vapor acre. - Fui eu quem o fez, ninguém me ajudou... Vês? Não está sujo. Isto limpa... Olha para os meus braços.

E estendia os braços, que mergulhara apenas numa celha de água - braços reais, soberbamente torneados, desabrochados como rosas brancas e carnudas -, para a estrumeira.

- Sim, sim-murmurou o padre-, trabalhaste muito. Está tudo muito bonito, agora.

Ia a dirigir-se para a cancela, mas ela deteve-o.

- Espera! Tens de ver tudo. Não imaginas...-e arrastou-o para o telheiro, para defronte da coelheira. - Há láparos em todas as gaiolas - informou, batendo as mãos com entusiasmo.

Depois, pormenorizadamente, informou-o a respeito das ninhadas, e o padre teve de se agachar, de encostar o nariz à rede, enquanto ela lhe descrevia tudo com minúcia. As mães, com as suas grandes orelhas inquietas, olhavam-nos de esguelha, anelantes, imóveis de medo. Numa das coelheiras, ao fundo de um buraco de pêlos, fervilhava um monte de vida, uma massa negra, indistinta, que respirava ruidosamente, como um só corpo. Ao lado, os láparos arriscavam-se até à beira do buraco e exibiam as suas cabeças enormes. Mais longe, estavam os mais desenvolvidos, semelhantes a ratos novos, que furavam e saltavam de traseiro no ar, em que se destacava a mancha branca da cauda. Estes últimos davam curso às suas graças traquinas de crianças, galoPando em torno das gaiolas, os brancos com olhos de rubi Pálido, os negros com olhos brilhantes como contas de azeviche. E quando o pânico os dominava bruscamente mostravam a cada salto as patas delicadas, crestadas pela urina, e corriam a juntar-se num monte, tão estreitamente unidos que não se lhes viam as cabeças.

- És tu que lhes metes medo-dizia Désirée. - A mim conhecem-me bem.

Chamava-os, tirava da algibeira uma côdea de pão, e os coelhitos acalmavam-se e vinham um a um, obliquamente, de focinho franzido, pôr-se de pé encostados à rede. Désirée deixava-os estar assim um instante, para mostrar ao irmão a penugem cor-de-rosa do ventre dos animais. Depois, dava a còdea ao mais atrevido e todo o bando acorria, juntava-se e comprimia-se, na melhor camaradagem. Às vezes, três láparos mordiam a mesma côdea, fugiam e viravam-se para a parede, a fim de comerem mais à vontade. As mães, porém, continuavam a soprar lá ao fundo, desconfiadas, e recusavam as côdeas

- Gulosos! - gritava Désirée. - Eram capazes de ficar aqui a comer até amanhã de manhã!... De noite, ouço-os roer as folhas de couve que ficam esquecidas.

O padre levantara-se, mas ela não se cansava de sorrir aos seus queridos pequenitos.

- Vês aquele gordo, lá ao fundo, todo branco e de orelhas pretas?... Adora as papoilas. Escolhe-as muito bem, entre as outras ervas... Um dia destes, teve cólicas e ficou muito teso, em pé nas patas traseiras. Então, peguei-lhe, aqueci-o na minha algibeira... e pronto, ficou esperto como vês.

Meteu os dedos por entre as malhas da rede e acariciou-lhe o lombo, antes de prosseguir:

- Parece cetim. Vesten-se como príncipes e são vaidosos como ninguém! Olha, está ali um que anda sempre a lavar-se. Está constantemente a servir-se das patas... Não imaginas como são velhacos! Eu não digo nada, mas bem vejo as suas maldades. Por exemplo, aquele cinzento que está a olhar para nós detestava uma fêmeazinha que tive de pôr noutro lado. Havia entre eles questões terríveis que levariam muito tempo a contar. Enfim, da última vez que lhe bateu, como eu aparecesse furiosa, sabes o que vi? Aquele tratante agachado lá ao fundo, a arquejar como se estivesse a morrer. Queria convencer-me de que era ele que tinha razão de queixa dela...

Interrompeu-se e depois prosseguiu, dirigindo-se ao coelho:

- Escusas de disfarçar. Bem sei que me estás a ouvir, meu patife!

E, virando-se para o irmão, murmurou, piscando os olhos:

- Percebe tudo o que digo.

O padre Mouret já não podia suportar mais o bafo quente que se evolava dos animais. A vida que estuava debaixo dos pêlos arrancados do ventre das mães manifestava-se tão intensamente que lhe fazia latejar as fontes. Désirée, como se uma embriaguez se apoderasse dela pouco a pouco, estava cada vez mais alegre, mais rosada, mais apetitosa.

- Mas se nada te chama! - exclamou a rapariga. – Estás sempre com ar de quem quer fugir... E os meus pintainhos? Nasceram esta noite.

Pegou numa mão-cheia de arroz e atirou-a para diante de si. A galinha aproximou-se gravemente, cacarejando a chamar os filhos, seguida por todo o bando de pintos, que piavam e corriam loucamente como passarinhos assustados. Depois, quando se encontraram no meio dos bagos de arroz, a mãe debicou furiosamente os que apanhou a jeito e foi-os largando à medida que os partia, enquanto os filhos debicavam apressadamente os pedacinhos. Eram adoráveis na sua pequenez, seminus, de cabeça redonda, olhos vivos como pontinhos de aço, bico espetado graciosamente e a penugem arrepiada com tanta graça que pareciam brinquedos baratos. Désirée ria contente a vê-los.

- São uns amores! - balbuciou.

Pegou em dois, um em cada mão, e cobriu-os de beijos. E o padre teve de os admirar por todos os lados, enquanto ela dizia tranquilamente:

- Não é fácil reconhecer os galos. Mas eu não me engano... Olha, este é uma galinha e este também.

Pô-los no chão. Mas as outras galinhas aproximavam-se, para comerem o arroz, e um grande galo vermelho, de penas chamejantes, seguia-as, levantando as suas largas patas com uma majestade circunspecta.

- O Alexandre está a tornar-se imponente - disse o padre, para ser agradável à irmã.

O galo chamava-se Alexandre e fitava a rapariga com um olho coruscante, de cabeça virada e cauda aberta. Depois, foi colocar-se-lhe à beira das saias.

- Gosta muito de mim - disse ela - Só eu lhe posso tocar... É um bom galo. Tem catorze galinhas e nunca encontrei um ovo goro nas posturas... Não é verdade, Alexandre?

Baixara-se. O galo não fugiu à carícia, mas pareceu que uma onda de sangue lhe incendiou a crista. Bateu as asas, estendeu o pescoço e soltou um canto prolongado, que soou como se fosse soprado por um tubo de bronze. Cantou quatro vezes e todos os galos dos Artauds lhe responderam ao longe. Désirée divertiu-se muito com a cara espantada do irmão.

- Então? Quase te rebentava os ouvidos! Tem uma garganta formidável... Mas garanto-te que não é mau. As galinhas é que são más... Lembras-te daquela grande, pedrês,

que punha ovos amarelos? Anteontem, esfolou uma pata.

Assim que as outras viram o sangue, ficaram como loucas.

Elas a seguiam, a picavam, lhe bebiam o sangue, de forma que à noite lhe tinham comido a pata... Encontrei-a com a cabeça escondida atrás de uma pedra, como uma imbecil, muito calada, a deixar-se devorar.

A voracidade das galinhas fazia-a rir. Contou outras crueldades, calmamente: frangos com o rabo retalhado e sem entranhas, dos quais só encontrara o pescoço e as asas; uma ninhada de gatinhos comida no curral, em poucas horas...

- Se lhes desses um cristão - continuou-dariam cabo dele... E se são resistentes à doença! Vivem perfeitamente com uma perna partida e podem estar cheias de chagas, de buracos no corpo onde caiba um punho, que nem assim deixam de devorar a comida. É por isso que gosto delas. A carne sara-lhes em dois dias e têm o corpo sempre quente, como se tivessem uma provisão de sol nas penas... Quando as quero regalar, dou-lhes bocados de carne crua. E bichos? Vais ver como gostam deles!

Correu para o monte de estrume e tirou um verme, no qual pegou sem repugnância. As galinhas atiraram-se-lhe às mãos, mas ela manteve o verme muito alto e divertiu-se com a voracidade das aves. Por fim, abriu os dedos e as galinhas empurraram-se e caíram sobre o verme, até que uma delas fugiu, perseguida pelas outras com ele no bico. Foi assim apanhado, perdido e recuperado, e a luta só terminou quando uma galinha, com uma bicada mais lesta, o engoliu. Então, todas pararam de repente, com o pescoço virado e o olho redondo muito fito, à espera de outro verme. Désirée, muito feliz, chamava-as pelos seus nomes e dizia-lhes palavras amigas, enquanto o padre Mouret recuava alguns passos perante aquela intensidade de vida voraz.

- Não, não estou interessado - disse à irmã, que queria que ele tomasse o peso a uma galinha que andava a engordar. - Repugna-me tocar em animais vivos.

Tentava sorrir, mas Désirée chamou-lhe medroso.

- E então os meus patos, os meus gansos e os meus perus? Que farias se tivesses de tratar de todos eles?... Não imaginas como os patos são porcos. Não os ouves bater o bico na água? E quando mergulham, só se lhes vê a cauda, direita como uma quilha... Os gansos e os perus também não são fáceis de governar. Olha como é divertido vê-los andar, uns todos brancos, outros todos pretos, com os seus grandes pescoços. Dir-se-iam cavalheiros e damas... No entanto, não te aconselharia a confiar-lhes um dedo. Amputavam-to com toda a limpeza, de um só golpe... Mas a mim até os dedos me beijam, vê tu!

Cortou-lhe a palavra o balir alegre da cabra, que acabara por forçar a porta mal fechada do curral. Em dois saltos, o animal chegou junto dela, dobrou as pernas da frente e acariciou-a com os chifres. O padre achou-lhe um ar diabólico, com a sua barbicha pontiaguda e os seus olhos enviesados, mas Désirée agarrou-a pelo pescoço, beijou-a na cabeça, brincou com ela, às corridinhas, e falou em sugar-lhe o leite das tetas. Era o que fazia muitas vezes, declarou: quando tinha sede, no curral, deitava-se e mamava na cabra.

Olha, está cheia de leite - acrescentou, sopesando as enormes tetas do animal.

O padre pestanejou, como se lhe tivessem mostrado uma obscenidade. Recordava-se de ter visto no Mosteiro de S. Saturnino, em Plassans, uma cabra de pedra, que decorava uma gárgula, a fornicar com um monge. As cabras, quando lhes cheirava a bode, tinham caprichos e teimas de raparigas, ofereciam as tetas pendentes a quem se aproximasse delas e o padre considerava-as criaturas do Inferno, ressumantes de lubricidade. A irmã só conseguira que lhe desse uma depois de semanas de súplicas, e ele, quando ia ali, evitava o contacto com os longos pêlos sedosos do animal e defendia a sotaina dos chifres.

- Pronto, vou deixar-te em paz - disse Désirée, notando o crescente mal-estar do irmão. - Mas primeiro ainda te quero mostrar uma coisa... Prometes não me ralhar? Não te disse nada porque tive medo que não quisesses... Se soubesses como estou contente!

Mostrava-se suplicante, juntava as mãos e encostava a cabeça ao ombro do irmão.

- Mais outra loucura, com certeza - murmurou ele, sem poder deixar de sorrir.

- Queres ver? - prosseguia ela, com os olhos brilhantes de alegria. - Não te zangas?... É tão bonito!

E, correndo, abriu uma porta baixa, ao fundo do telheiro, donde saiu aos pulos um porquito

- Oh, o querubim! - exclamou Désirée, com ar profundamente enlevado, ao vê-lo fugir.

O porquito era encantador, muito rosado, apesar de ter o focinho lambuzado de lavadura e um círculo de sujidade em volta dos olhos, devido ao seu constante chafurdar na gamela. Trotava, dava encontrões nas galinhas, corria para comer o que lhe atiravam e açambarcava o estreito logradouro com as suas voltas bruscas. As orelhas batiam-lhe nos olhos e grunhia com o focinho rente ao chão. Nas suas Patas minúsculas, parecia um animal de rodas, e, visto por letras, a cauda lembrava uma ponta de cordel própria para o Pendurar.

- Não quero aqui este animal! - gritou o padre, muito contrariado.

- Serge! meu bom Serge - suplicou de novo Désirée-, - Vê como é inocente o querido porquinho. Hei-de lavá-lo e trazê-lo muito limpo!

Foi a Teuse que mo arranjou e agora não se pode devolver... Vê como olha para ti, como te cheira. Não tenhas medo que não te come.

Calou-se, porém, de súbito, presa de um riso louco. O porquito, pasmado, acabava de se atirar às pernas da cabra e de a derrubar. Depois, desatou novamente a correr, grunhindo, rebolando-se, pondo em alvoroço toda a capoeira. Para o acalmar, Désirée teve de lhe dar um alguidar de água de lavagem, onde ele mergulhou o focinho até às orelhas, a roncar, a grunhir, ao mesmo tempo que curtos arrepios lhe percorriam a pele rosada e a cauda lhe pendia, direita.

O padre Mouret sentiu uma derradeira náusea ao ver revolver aquela água suja. Desde que estava ali, sentia-se sufocar, escaldavam-lhe as mãos, o peito e o rosto. Pouco a pouco, virara a cabeça, para fugir ao bafo pestilencial, à tepidez fétida dos coelhos e das aves, ao odor lúbrico da cabra e às emanações adiposas do porco. Dir-se-ia que aquele ar carregado de fecundação se abatia pesadamente sobre os seus ombros virgens. Parecia-lhe que Désirée se desenvolvera, que se lhe tinham alargado as ancas, que agitava braços enormes e que varria com as saias o cheiro intenso que impregnava o solo e lhe causava tonturas. Teve apenas tempo de abrir a cancela de madeira. Os pés colavam-se-lhe ao pavimento ainda húmido de estrume, a ponto de se julgar preso por um amplexo da terra. E, de súbito, veio-lhe à memória o Paradou, com as suas grandes árvores, as suas sombras espessas, os seus aromas fortes, dos quais também não se pudera defender.

- Estás muito corado - observou Désirée, juntando-se-lhe do outro lado da cancela. - Não ficaste satisfeito por teres visto tudo?... Ouve-los gritar?

Ao vê-la partir, os animais atiravam-se contra a rede e soltavam protestos lamentosos. O porquito, sobretudo, emitia um gemido prolongado, semelhante ao afiar de uma serra. A rapariga limitava-se, porém, a fazer-lhes reverências, a enviar-lhes beijos nas pontas dos dedos, e ria por os ver todos em magote, como se estivessem apaixonados por ela. Depois, muito chegada ao irmão, disse-lhe ao ouvido, corando muito, enquanto o acompanhava ao jardim:

- Gostaria de ter uma vaca...

Ele olhou-a e recusou imediatamente, com um gesto.

- Não, não, não digo já!-atalhou a rapariga, com vivacidade.-Mais tarde, quando te voltar a falar nisso... Não falta lugar no curral. Uma bonita vaca branca, com malhas ruças. Verias como teríamos bom leite. Uma cabra é demasiado pequena... E quando a vaca tivesse um vitelinho!.

Dançava e batia as mãos, enquanto o padre voltava a encontrar nela o cheiro a capoeira que se lhe agarrava às saias. Por isso, deixou-a ao fundo do jardim, à torreira do sol, diante de um cortiço cujas abelhas lhe zumbiam como balas de ouro em torno do pescoço, ao longo dos braços nus e nos cabelos, sem a picarem.

FREI Archangias jantava no presbitério todas as quintas-feiras. Habitualmente, chegava cedo, para conversar acerca da paróquia. Era ele quem, havia três meses, punha o padre ao corrente dos acontecimentos, o informava de tudo o que se passava no vale. Naquela quinta-feira, enquanto esperavam que Teuse os chamasse, passeavam devagar diante da igreja Quando contou o seu encontro com Bambousse, o padre ficou muito surpreendido ao ouvir o frade dizer que achava natural a resposta do aldeão.

- Esse homem tem razão - dizia o ignorantinho (1).- Ninguém dá o que possui sem mais nem menos... A Rosalie não vale grande coisa, mas é sempre duro ver uma filha cair nos braços de um pobretana.

- No entanto - insistiu o padre Mouret -, só o casamento pode pôr termo ao escândalo.

O frade encolheu os ombros fortes e riu com impaciência.

- Se julga - exclamou - que curará a região com esse casamento!... Dentro de dois anos, Catherine estará grávida; depois, será a vez de todas as outras passarem pelo mesmo, e, uma vez casadas, riem-se do mundo... Estes Artauds brotam da bastardia como da sua esterqueira natural. Só haveria um remédio, como já lhe disse: torcer o pescoço às fêmeas, para não continuarem a empeçonhar a região. Nada de marido; paulada, senhor cura, paulada!

Acalmou-se e acrescentou:

- Deixemos cada um dispor do que lhe pertence como muito bem entender.

Falou de se regularem as horas do catecismo, mas o padre Mouret respondeu-lhe com ar distraído. Olhava a aldeia, a seus pés, ao sol poente. Os camponeses regressavam a casa, calados, a passo lento, como bois extenuados de retorno ao curral. Diante dos casebres, as mulheres, de pé, chamavam-se, tagarelavam ruidosamente de porta para porta, enquanto bandos de garotos atroavam a estrada com o bater dos tamancos grosseiros e se empurravam, rebolavam e espojavam. Daquele aglomerado de casas periclitantes evolava-se um odor humano que levou o padre a pensar que se encontrava ainda na capoeira de Désirée, diante de uma Multidão de animais incessantemente multiplicados. Voltava a encontrar o mesmo calor de geração, os mesmos Partos contínuos que tanto o haviam perturbado. Metido de manhã na história da gravidez de Rosalie, acabava

 

(1) Ignorantinhos ou ignorantins, nome adoptado por modésDormi Congregação dos frades de S. João de Deus e, por extensão v uiar, também usado para designar os Irmãos das escolas crls como era o caso de frei Archangias. (N. do T.)

 

por não se conseguir alhear do caso, nem das imundícies da existência, dos impulsos da carne e da reprodução fatal da espécie, que semeava os homens como grãos de trigo. Os Artauds eram um rebanho confinado entre as quatro colinas do horizonte, que procriava e aumentava cada vez mais naquele solo, a cada prenhez das fêmeas.

- Veja! - gritou frei Archangias, interrompendo-se para mostrar uma rapariga a deixar-se beijar pelo namorado, atrás de uma moita. - Mais uma desavergonhada! - e agitou os enormes braços morenos até pôr em fuga o parzinho.

Ao longe, por cima das terras vermelhas e das rochas peladas, o sol morria num derradeiro clarão de incêndio. Pouco a pouco, a noite caiu. O aroma quente das alfazemas tornou-se mais fresco e chegou até eles trazido pela brisa ligeira que se levantara. Por momentos, houve como que um longo suspiro, como se aquela terra terrível, toda abrasada de paixões, se fosse finalmente acalmar sob o manto cinzento do crepúsculo. De chapéu na mão, o padre Mouret, feliz com o fresco, sentia a paz do entardecer tombar sobre si.

- Senhor cura! Frei Archangias! - chamou Teuse. - Depressa, a sopa está na mesa.

Era uma sopa de hortaliça, cujo vapor espesso enchia a sala de jantar do presbitério. O frade sentou-se e despejou lentamente o prato enorme que Teuse lhe pusera diante. Comia muito, com gorgolejos de garganta que deixavam ouvir a comida cair-lhe no estômago, de olhos postos na colher e sem dizer palavra.

- A sopa não está boa, senhor cura? - perguntou a velha criada. - Está para aí a debicar no prato...

- Não tenho fome nenhuma, minha boa Teuse - respondeu o padre, sorrindo.

- Claro! Não admira, quando se leva vida desregrada!... Teria fome se não tivesse almoçado às duas horas.

Depois de apanhar com a colher algumas gotas de caldo que restavam no fundo do prato, frei Archangias disse gravemente :

- Deve ser regular nas suas refeições, senhor cura. Entretanto, Désirée, que também acabara de comer a

sopa, muito séria, sem abrir a boca, levantara-se para seguir Teuse à cozinha. O frade, que ficara sozinho com o padre Mouret, cortava grandes bocados de pão, que engolia enquanto esperava pelo outro prato

- Então, deu hoje uma grande volta? -perguntou.

O padre não teve tempo de responder. Um ruído de passos, exclamações, risos sonoros, elevou-se ao fundo do corredor! do lado do pátio, seguido de breve discussão. Uma voz aguda, que perturbou o padre, zangada, rápida, perdia-se no meio de um acesso de alegria.

- Que é? -perguntou, levantando-se da cadeira.

Désirée entrou precipitadamente, com qualquer coisa escondida debaixo da saia arregaçada, e disse vivamente:

- É louca! Não quis entrar. Agarrei-a pelo vestido, mas é muito forte e fugiu-me.

- E quem está a falar?-inquiriu Teuse, que vinha da cozinha com um prato de batatas, em cima das quais se via um naco de toucinho.

A rapariga voltara a sentar-se. Com infinitas precauções, tirou da dobra da saia um ninho de melros com três passaritos, que colocou no prato. Assim que as avezinhas viram a luz, estenderam os pescoços frágeis e abriram os bicos ávidos, a pedir comer. Désirée bateu as mãos, encantada, presa de extraordinária comoção, perante as avezitas que ainda não conhecia.

- É aquela rapariga do Paradou! - exclamou o padre, recordando-se bruscamente.

Teuse aproximara-se da janela.

- É verdade - disse. - Devia ter reconhecido a sua voz de cigarra... Ah, a cigana! Olhe, lá está ela a espiar-nos.

O padre Mouret avançou e julgou ver, com efeito, atrás de um junípero, a saia cor de laranja de Albine. Mas frei Archangias levantou-se precipitadamente, postou-se atrás dele e, de punho estendido e abanando a cabeça rude, trovejou :

- Que o Diabo te leve, filha de salteador! Se te apanho a trazeres para aqui os teus malefícios, arrasto-te pelos cabelos em volta da igreja!

Uma gargalhada fresca como a brisa nocturna chegou-lhes aos ouvidos, vinda dos lados do carreiro. A seguir, ouviu-se uma corridinha e o roçagar de um vestido a deslizar na erva, semelhante ao rastejar de uma cobra. O padre Mouret, de pé diante da janela, seguia com a vista, ao longe, uma mancha loura a deslizar entre os pinheiros, como se fosse um raio de luar. A brisa vinda dos campos estava impregnada do perfume intenso da verdura, do aroma de flores silvestres que Albine deixava cair dos braços nus, da cintura flexível e dos cabelos soltos

- Uma amaldiçoada, uma filha de perdição! - resmungou frei Archangias, voltando a sentar-se à mesa.

Comeu vorazmente o toucinho e engoliu as batatas inteiras tal como fizera com o pão. Teuse já não conseguiu que Désirée acabasse de jantar. A grande criança estava extasiada diante do ninho de melros e não se calava com perguntas; queria saber o que comiam, se punham ovos e como se reconheciam os machos naquela espécie de animais.

Mas a velha criada teve como que uma suspeita. Equilibrou-se na perna sã e, olhando o jovem padre nos olhos, Perguntou:

- Então o senhor conhece aquela gente do Paradou?

Ele disse simplesmente a verdade, contou a visita que fizera ao velho Jeanbernat, enquanto Teuse trocavaolhares escandalizados com frei Archangias. A princípio, não disse nada; limitou-se a andar à volta da mesa, coxeando furiosamente, batendo com os saltos no sobrado como se o quisesse partir.

- Nestes três meses já me podia ter falado dessa gente - acabou por dizer o padre. - Saberia ao menos em casa de quem me apresentava.

Teuse parou bruscamente, como se lhe tivessem quebrado as pernas.

- Não minta, senhor cura - gaguejou. - Não minta, pois isso só aumentaria o seu pecado... Como ousa dizer que não lhe falei do Filósofo, desse pagão que é o escândalo de toda a região? A verdade é que o senhor não ouve nada do que lhe digo. As palavras entram-lhe por um ouvido e saem-lhe por outro... Ah, se o senhor me ouvisse, evitaria muitos desgostos!

- Eu também lhe disse qualquer coisa acerca dessas abominações- afirmou o frade.

O padre Mouret encolheu levemente os ombros.

- Enfim, nunca mais me lembrei - redarguiu. - Só no Paradou me vieram à memória certas histórias... Aliás, teria do mesmo modo visitado esse infeliz, que julgava em perigo de morte.

Frei Archangias, com a boca cheia, bateu violentamente com a faca na mesa e gritou:

- Jeanbernat é um cão! Portanto, que rebente como um cão!

Depois, ao ver o padre protestar com um aceno de cabeça, cortou-lhe a palavra:

- Não, não, para ele não há Deus, nem penitência, nem misericórdia... Antes atirar a hóstia aos porcos do que levá-la a semelhante patife.

Voltou às batatas, com os cotovelos em cima da mesa e o queixo no prato, e mastigou com fúria. Teuse, com os lábios apertados, branca de cólera, limitou-se a dizer secamente:

- Deixe lá! O senhor cura só faz o que lhe vem à cabeça, o senhor cura tem, agora, segredos para nós.

Reinou um silêncio pesado. Durante um instante, só se ouviu o ruído dos maxilares do frade, acompanhado dos estranhos gorgolejos da garganta. Désirée, com os braços nus a rodearem o ninho dos melros que tinha no prato, e o rosto inclinado, sorria às avezinhas, falava-lhes longamente, baixinho, num murmúrio muito seu, mas que elas pareciam entender.

- Diz-se sempre o que se faz quando não se tem nada a esconder! - exclamou Teuse, bruscamente.

E o silêncio recomeçou.

O que exasperava a velha criada era o mistério de que o padre parecia ter rodeado a sua visita ao Paradou. Considerava-se uma mulher indignamente enganada. A sua curiosidade sangrava. Andava à volta da mesa, sem olhar para o padre, sem se dirigir a ninguém, a desabafar sozinha.

- Aí está porque se come tão tarde!... Anda-se a vadiar, sem dizer nada a ninguém, até às duas horas da tarde. Entra-se em casas tão mal afamadas que depois não se ousa contar o que se fez. Então, mente-se, atraiçoa-se toda a gente...

- Mas - interrompeu-a suavemente o padre Mouret, que se esforçava por comer, a fim de não fazer zangar mais Teuse - ninguém me perguntou se fora ao Paradou. Se me perguntassem, não teria nenhum interesse em mentir...

Teuse prosseguiu, como se não tivesse ouvido:

- Estraga-se a sotaina na poeira, volta-se para casa como um salteador. E se uma pessoa de bem se interessa pelo senhor e o interroga com a melhor das intenções, corre-se com ela, trata-se como uma mulher desprezível, indigna da sua confiança. Disfarça-se como um sonso, prefere-se rebentar a deixar escapar uma palavra, nem sequer se tem a atenção de distrair quem vive em sua casa, contando o que se viu.

Virou-se para o padre e olhou-o cara a cara.

- Sim, tudo isto é consigo... O senhor faz caixinha, é um mau homem!

Desatou a chorar e o padre teve de a confortar.

- O padre Caffin dizia-me tudo! - gritou ainda.

Por fim, lá se foi acalmando, enquanto frei Archangias devorava uma grande fatia de queijo, sem parecer de modo nenhum preocupar-se com a cena. Na sua opinião, o padre Mouret precisava de ser guiado com mão firme e Teuse procedia bem fazendo-lhe sentir o freio. Despejou um último copo de água-pé e recostou-se na cadeira a digerir.

- Enfim - perguntou a velha criada -, que viu no Paradou? Conte-nos, ao menos.

Sorrindo, o padre Mouret contou em poucas palavras a maneira singular como Jeanbernat o recebera. Teuse, que o apertava com perguntas, soltava exclamações indignadas. Frei Archangias cerrou os punhos e brandiu-os com fúria.

- Que o Céu os esmague! - exclamou. - Que os abrase, a ele e à sua bruxa!

Então, o padre procurou, por seu turno, saber novos pormenores a respeito da gente do Paradou e escutou com profunda atenção as coisas monstruosas que o frade contou.

- Sim, o diabo da rapariga foi uma manhã à escola, há muito tempo, devia então ter dez anos. Deixei-a entrar, pensando que o tio a mandava para fazer a primeira comunhão.

Durante dois meses, revolucionou a aula. Conseguiu fazer-se adorar, a velhaca! Sabia jogos, inventava enfeites com folhas de árvore e bocados de trapo e era inteligente, o demónio, como todas as filhas do Inferno! Era a mais forte no catecismo... Até que uma manhã o velho apareceu no meio das lições. Falava em partir tudo, gritava que os padres lhe tinham roubado a pequena. Foi preciso chamar a guarda rural para o pôr fora da porta. A garota fugira. Via-a pela janela, no campo fronteiro, a rir do furor do tio... Ia por sua própria iniciativa à escola, havia dois meses, sem que ele desconfiasse. Claro que o que queria era andar à solta pelos montes.

- Nunca fez a primeira comunhão? - perguntou Teuse, a meia voz, estremecendo ligeiramente.

- Não, nunca - respondeu frei Archangias. - Deve ter dezasseis anos. Cresceu como um animal. Vi-a correr a quatro patas numa mata, para os lados de La Palud.

- A quatro patas... - murmurou a criada, virando-se, inquieta, para a janela.

O padre Mouret esboçou um gesto de dúvida, mas o frade exaltou-se.

- Sim, a quatro patas! E saltava como um gato-bravo, com as saias arregaçadas, mostrando as coxas. Se tivesse uma espingarda, podia tê-la abatido. Matam-se animais que são mais agradáveis a Deus... Além disso, toda a gente sabe que vem miar todas as noites em torno dos Artauds. Mia como uma descarada com cio. Aquela, se um dia lhe cair um homem nas unhas, só o deixará, estou certo, quando não tiver nem um bocado de pele em cima dos ossos.

E todo o seu ódio à mulher apareceu. Abalou a mesa com um murro e gritou as injúrias do costume:

- Têm o Diabo no corpo; cheiram ao Diabo. Cheiram a ele nas pernas, nos braços, no ventre, em tudo... É o que enfeitiça os imbecis.

O padre aprovou com a cabeça. A violência de frei Archangias, a tirania palavrosa de Teuse, eram como correadas que gostava muitas vezes de sentir flagelarem-lhe as costas. Experimentava uma alegria piedosa em se enterrar na baixeza entre aquelas mãos cheias de grosserias reles. A paz do Céu parecia-lhe encontrar-se no termo do desprezo do mundo, do acanalhamento de todo o seu ser. Era uma injúria que se regozijava de aplicar ao corpo, um aviltamento em que se comprazia em mergulhar a sua natureza frágil.

- Só há imundície - murmurou, dobrando o guardanapo.

Teuse levantava a mesa e queria levar o prato em que Désirée pusera o ninho de melros.

- A menina não vai ficar aí a dormir toda a noite. Deixe esses malditos animais.

Mas Désirée defendia o prato, cobria o ninho com os braços nus, sem rir, irritada por a incomodarem.

- Espero que não conservem esses pássaros - resmungou frei Archangias. - Trariam desgraça... É necessário torcer-lhes o pescoço - e estendia já as mãos grossas.

A rapariga levantou-se e recuou, fremente de cólera, apertando o ninho ao peito. Olhava fixamente para o frade, com Os lábios arrepanhados e um ar de loba prestes a morder.

- Não toque nos passarinhos! - tartamudeou. - O senhor é feio!

Sublinhou a última palavra com tamanho desprezo que o padre Mouret se sobressaltou, como se a fealdade de frei Archangias o tivesse impressionado pela primeira vez. Este, porém, limitara-se a resmungar. Dedicava um ódio surdo a Désirée, cujo belo desabrochamento animal o ofendia. Quando a jovem saiu a recuar, sem tirar os olhos dele, encolheu os ombros e murmurou entre dentes uma obscenidade que ninguém ouviu.

- É melhor deixá-la ir deitar-se - disse Teuse. - Estaria constantemente a aborrecer-nos na igreja.

- Vieram?-perguntou o padre Mouret.

- Há que tempos as raparigas estão lá fora com braçadas de folhagem... Vou acender os candeeiros. Pode-se começar quando o senhor quiser.

Poucos segundos mais tarde, ouviam-na praguejar na sacristia, porque os fósforos estavam molhados. Frei Archangias, que ficara sozinho com o padre, perguntou, com voz de enfado:

- É para o mês de Maria?

- É - respondeu o padre Mouret. - Nos últimos dias as raparigas tiveram muito que fazer e não puderam vir, conforme o uso, adornar a capela da Virgem. A cerimónia ficou adiada para esta noite.

- Bonito uso - resmungou o frade. - Quando as vejo depor os ramos, apetece-me atirá-los ao chão e obrigá-las a confessar, ao menos, as suas poucas vergonhas, antes de tocarem no altar... É um escândalo consentir que as mulheres andem com os vestidos tão perto das sagradas relíquias.

O padre desculpou-se com um gesto. Estava nos Artauds havia pouco tempo e devia respeitar os usos.

- Quando quiser, senhor cura! - gritou Teuse.

Mas frei Archangias reteve-o ainda um instante.

- Vou-me embora - resmungou. - A religião não é nenhuma rapariga, para a porem entre flores e rendas.

Encaminhou-se lentamente para a porta, parou de novo, ergueu um dedo peludo e acrescentou:

- Desconfie da sua devoção à Virgem.

Padre Mouret encontrou na igreja cerca de uma dezena

de raparigas casadoiras, com ramos de oliveira, de loureiro

de rosmaninho. As flores de jardim não vingavam nas rochas dos Artauds e, portanto, era costume ornamentar o altar da Virgem com verdura resistente, que durasse todo o mês de Maio. Teuse juntava-lhe goivos, cujas hastes mergulhava em velhas garrafas bojudas, a servirem de jarras.

- Quer deixar-me tratar disto, senhor cura? - pediu.- O senhor não está habituado... Olhe, vá para ali, para diante do altar, e diga-me depois se a decoração lhe agrada.

Acedeu e foi ela quem dirigiu realmente a cerimónia. Empoleirada num banco, tratava rudemente as raparigas, que se aproximavam uma a uma com os seus ramos de folhagem.

- Não tenham pressa! Dêem-me ao menos tempo de atar os ramos. Vejam lá se querem que caia tudo em cima da cabeça do senhor cura... Vamos, Babet, é a tua vez! Não te ponhas a olhar para mim com esses olhos espantados! Está bonito, o teu rosmaninho! Amarelo como os cardos... Parece que todas as burras da região lhe passaram por cima!... Agora tu, Ruiva. Ah, ao menos trazes umas folhas de louro bonitas! Apanhaste-as nas tuas terras da Cruz Verde?

As raparigas pousavam os ramos no altar e beijavam-no. Depois, deixavam-se ficar um instante encostadas à toalha, a passar os ramos a Teuse, esquecidas do ar velhacamente recolhido com que tinham subido o degrau. Acabavam por rir, batiam com os joelhos nas esquinas, dobravam-se pela cintura à beira do altar, metiam os seios pelo tabernáculo dentro, e, por cima delas, a grande Virgem de gesso dourado inclinava o rosto pintado e sorria com os lábios rosados ao Menino Jesus nuzinho que amparava no braço esquerdo.

- Então, Lisa! - gritou Teuse. - O melhor é sentares-te no altar enquanto aí estás! Baixa as saias! É preciso mostrar as pernas dessa maneira?... Se alguma se lembra de se espojar, leva com os ramos na cara!... Não me podem dar isso sossegadas?

E, voltando-se:

- Está a seu gosto, senhor cura? Acha que assim fica bem?

Armava atrás da Virgem um nicho de verdura, com as pernadas mais compridas, que formavam berço e caíam como se fossem palmas. O padre aprovava com uma palavra, arriscava uma observação.

- Creio - murmurou - que não ficaria mal um ramo de folhas mais tenras, lá em cima.

- Pois claro! - trovejou Teuse. - Mas elas só trazem louro e rosmaninho... Qual de vocês tem aí oliveira? Nenhuma, já se vê! Têm medo de perder quatro azeitonas, estas hereges!

Mas Catherine subiu o degrau com uma enorme pernada de oliveira, debaixo da qual desaparecia.

- Ah! Tens tu, pequena? - prosseguiu a velha criada.

- Ora - disse uma voz -, roubou-a! Vi o Vincent partir o ramo, enquanto ela estava à espreita.

Furiosa, Catherine jurou que não era verdade. Voltara-se, sem largar o ramo, com a cabeça morena a espreitar através da folhagem. Mentia com uma desfaçatez extraordinária e inventou uma longa história para provar que a oliveira era dela.

- E no fim de contas - concluiu - todas as árvores pertencem à Virgem Santa.

O padre Mouret quis intervir, mas Teuse perguntou se estavam a zombar de si, deixando-a tanto tempo de braços no ar. Prendeu solidamente o ramo de oliveira, enquanto Catherine, empoleirada no banco, atrás dela, arremedava a dificuldade com que a criada virava a sua enorme estatura, apoiada na perna sã, o que fez sorrir o próprio padre.

- Pronto - disse Teuse, descendo para junto dele, a fim de dar uma vista de olhos à sua obra-, a parte de cima está terminada... Agora, vamos colocar tufos entre os castiçais, a não ser que o senhor prefira uma grinalda ao longo da tribuna do altar.

O padre decidiu-se pelos tufos.

- Vamos, mexam-se - continuou a criada, subindo de novo para o banco. - Parece que querem dormir aqui... Queres beijar o altar, Miette? Imaginas que estás no teu curral?... Senhor cura, veja o que estão a fazer lá ao fundo! Ouço-as rir como doidas.

Alguém levantou um dos dois candeeiros e iluminou a extremidade escura da igreja. Debaixo da tribuna, três raparigas brincavam, aos empurrões, e uma delas mergulhara a cabeça na pia de água benta, o que fazia rir tanto as outras que se tinham deixado cair no chão para rirem mais a vontade. Voltaram para o seu lugar, olhando o cura de cabeça baixa, com o ar despreocupado de quem não teme ralhos e as mãos a abanar e a baterem nas pernas.

Mas o que mais fez zangar Teuse foi ver, de repente, Kosalie subir ao altar, como as outras, com o seu molho. , -Queres fazer o favor de descer daí? - gritou-lhe. - Não é atrevimento que te falta, minha filha!... Vamos, depressa, leva-me daí o teu molho.

- Mas porquê? -perguntou Rosalie, descaradamente.- Com certeza não me vão acusar de o ter roubado...

As raparigas aproximaram-se, fazendo-se tolas, e trocavam olhares significativos.

- Vai-te embora - repetia Teuse. - O teu lugar não é aqui, entendes?

Depois, Perdendo a pouca paciência que lhe restava, pronunciou uma palavra indecente, que fez rir com gosto as camponesas.

- E então? -redarguiu Rosalie. - Sabe o que fazem as outras? Não foi lá ver, pois não?

E julgou dever desatar a soluçar.

Atirou os ramos e deixou-se acompanhar durante alguns passos pelo padre Mouret, que lhe falava com muita severidade. O cura tentara fazer calar Teuse, mas começava a sentir-se mal no meio daquelas raparigas descaradas, que enchiam a igreja com os seus braçados de verdura, se empurravam até ao degrau do altar, rodeavam-no de uma porção de floresta viva e traziam-lhe o perfume rústico dos bosques odoríferos como bafo evolado dos seus membros de vigorosas trabalhadoras.

- Despachemo-nos, despachemo-los!-impacientou-se, batendo levemente as mãos.

- Ora essa! Cá por mim, preferia estar na cama... -murmurou Teuse. - Se julga que é cómodo prender todos estes ramos!...

Entretanto, acabara por atar entre os castiçais altos penachos de folhagem. Fechou o banco e Catherine foi pô-lo atrás do altar-mor. Depois, teve apenas de colocar dois maciços de verdura, um de cada lado do altar. Os últimos ramos chegaram para acabar a ornamentação e ainda sobraram alguns, com que as raparigas juncaram o chão até à balaustrada de madeira. O altar da Virgem era um bosquezinho, um recanto de mata, com um tapete verde à frente.

Teuse consentiu então em ceder o lugar ao padre Mouret, o qual subiu ao altar e bateu de novo as mãos, levemente.

- Meninas - disse -, continuaremos amanhã as práticas do mês de Maria. As que não puderem vir deverão pelo menos rezar o terço em casa.

Ajoelhou-se, enquanto as aldeãs, com um grande ruído de saias, se instalavam no chão, sentadas nos calcanhares. Acompanharam a oração do padre com um murmúrio confuso, intercalado de risos. Uma delas, sentindo-se beliscada por detrás, deixou escapar um grito, que procurou disfarçar com um acesso de tosse, o que divertiu tanto as outras que ficaram um instante a torcer-se de riso, depois de dizerem Amen com o nariz nas lajes, sem se poderem levantar.

Teuse mandou sair as descaradas, enquanto o padre, que se persignara, ficava absorto diante do altar, como se não tivesse ouvido nada do que se passava atrás de si.

- Vamos, saiam agora - murmurou a criada. - Súcia de gente sem préstimo, nem sequer sabem respeitar Nosso Senhor... É uma vergonha, uma falta de respeito como nunca se viu, raparigas rebolarem-se pelo chão numa igreja como animais num prado... Que fazes aí atrás, Ruiva? Se te vejo beliscar mais alguma trato-te da saúde! Sim, sim, deita-me a língua de fora que eu já digo ao senhor cura! Rua, rua, corja de devassas! Empurrava-as pouco a pouco para a porta, saltitando à volta delas, coxeando de modo furibundo. Quando, por fim, conseguiu fazê-las sair até à última, foi encontrar Catherine tranquilamente instalada no confessionário com Vincent, a comerem qualquer coisa com o ar mais satisfeito deste mundo. Pô-los na rua. E como estendesse o pescoço fora da igreja antes de fechar a porta, viu Rosalie passar o braço pelos ombros de Fortune, que a esperava, e desaparecerem ambos na noite, para os lados do cemitério, deixando atrás de si um ruído abafado de beijos.

- E teve aquilo o arrojo de se aproximar do altar da Virgem! - resmungou, correndo os ferrolhos. - As outras não valem mais, bem sei. São todas umas marafonas que só vieram esta noite, com os seus ramos, para se rirem e deixarem abraçar pelos rapazes à saída! Amanhã, nem uma se incomodará a pôr cá os pés. O senhor cura bem se pode preparar para rezar as suas Aves sozinho... Só aparecerão as desavergonhadas que tiverem encontro marcado.

Empurrava as cadeiras, tornava a pô-las no seu lugar, verificava se nada suspeito ficava na igreja, antes de subir para se deitar. Apanhou no confessionário um punhado de cascas de maçã que atirou para trás do altar-mor. Encontrou igualmente um bocado de fita arrancado de alguma touca, com uma madeixa de cabelos negros, de que fez um pacotinho para abrir um inquérito. Por fim, a igreja pareceu-lhe em boa ordem. A lamparina tinha azeite que chegasse para a noite e as lajes do coro podiam ficar até sábado sem serem lavadas.

- São quase dez horas, senhor cura - disse, aproximando-se do padre, ainda ajoelhado -Acho melhor subir.

Em vez de responder, o sacerdote limitou-se a inclinar suavemente a cabeça.

- Bom, já sei o que isso quer dizer - continuou Teuse.- Quer dizer que vai ficar aí uma hora, na pedra, a arranjar cólicas .. Vou-me embora, para não o aborrecer. Cada vez tem menos juízo: almoça quando os outros jantam, deita-se à hora a que as galinhas se levantam!... Estou a aborrecê-lo, não é verdade, senhor cura? Boas noites. O senhor não é nada razoável!

Decidiu-se, por fim, a sair, mas ainda voltou atrás para aPagar um dos dois candeeiros, murmurando que rezar até tão tarde “era um roubo de azeite”. Acabou, finalmente, Por se ir embora, depois de limpar com a manga a toalha do altar-mor, que lhe pareceu cinzenta de poeira. O padre Mouret, com os olhos erguidos e os braços cruzados no Peito, ficou só.

ILUMINADA por um só candeeiro a arder no altar da Virgem, no meio das verduras, a igreja enchia-se, nas duas extremidades, de grandes sombras flutuantes. O púlpito projectava uma mancha tenebrosa até às traves do tecto e o confessionário era uma massa negra recortada debaixo da tribuna, com o perfil estranho de uma guarita arruinada. A luz, suave, como que enverdecida pela folhagem, incidia em cheio na grande Virgem dourada, que parecia descer com ar majestoso, transportada pela nuvem onde brincavam cabeças de anjos aladas. Dir-se-ia, ao ver o candeeiro redondo brilhar no meio dos ramos, que uma lua pálida se erguia à beira de um bosque e iluminava alguma soberana aparição, uma princesa do Céu coroada de ouro, vestida de ouro, que passeasse a nudez do seu divino filho ao fundo de alamedas misteriosas. Entre as folhas, ao longo dos altos penachos, no amplo berço ogival, e até nos ramos espalhados pelo chão, insinuavam-se raios de astros, adormentados, semelhantes à chuva leitosa que penetra nas matas em noites claras. Ruídos vagos, estalidos, vinham das duas extremidades sombrias da igreja; o grande relógio, à esquerda do coro, emitia o seu tiquetaque compassado, qual respiração forte de mecânica adormecida, e a visão radiosa, a Mãe de delicados bandós de cabelos castanhos, como que tranquilizada pela paz nocturna da nave, descia mais, mal curvava a erva das clareiras com o voo ligeiro da Sua nuvem.

O padre Mouret olhava-A; era a hora em que mais gostava da igreja. Esquecia o Cristo lamentável, o supliciado de ocre e de laca que agonizava atrás de si, na capela dos Mortos. Já não estava sujeito à distracção da claridade crua das janelas, das alegrias da manhã que entravam com o sol, da vida exterior, dos pardais e das ramagens que invadiam a nave através dos vidros partidos. Àquela hora da noite, a natureza estava morta, a sombra cobria de crepes as paredes caiadas, a frescura colocava-lhe aos ombros um cilício salutar. Podia aniquilar-se no amor absoluto sem que as brincadeiras de um raio de luz, a carícia de uma brisa ou de um perfume, o zumbido de uma asa de insecto, o arrancassem à sua alegria de amar. A missa da manhã nunca lhe dera as delícias sobre-humanas das suas orações da noite.

Com os lábios balbuciantes, o padre Mouret olhava a grande Virgem e via-A dirigir-se ao seu encontro do fundo do nicho verde, num esplendor crescente. Já não era o luar que deslizava sobre a copa das árvores; parecia-lhe vestida de sol, adiantara-Se majestosamente, gloriosa, colossal, tão omnipotente que, por momentos, esteve tentado a esconder o rosto no chão para evitar a claridade ofuscante daquela porta aberta para o Céu. Então, na adoração de todo o seu ser que lhe fazia expirar as palavras na boca, recordou-se da última frase de frei Archangias como de uma blasfémia. O frade censurava-lhe com frequência a sua devoção especial à Virgem, que dizia ser um autêntico roubo feito à devoção a Deus. Na opinião do frade, aquilo amolecia as almas, vestia saias à religião, originava toda uma pieguice devota, indigna dos fortes. Odiava a Virgem por ser mulher, por ser bela, por ser mãe, e conservava-se de sobreaviso contra Ela, dominado pelo receio instintivo de se sentir tentado pela Sua graça, de sucumbir à Sua doçura sedutora. “Ela levá-lo-á longe!”, gritara um dia ao jovem padre, considerando-A um começo de paixão humana, uma tendência para as delícias de belos cabelos castanhos, de grandes olhos brilhantes, do mistério de vestidos caindo do colo até à ponta dos pés. Era a revolta de um santo que separava violentamente a Mãe do Filho e perguntava como este: “Mulher, que há de comum entre ti e mim?” Mas o padre Mouret resistia, prosternava-se, procurava esquecer as palavras rudes do frade, pois só aquele arrebatamento perante a pureza imaculada de Maria o podia arrancar à baixeza em que procurava aniquilar-se. Quando, sozinho na presença da grande Virgem dourada, se alucinava a ponto de A ver inclinar-Se para lhe dar os bandós a beijar, sentia-se mais novo, melhor, mais forte, mais justo, completamente invadido por uma vida de ternura.

A devoção do padre Mouret pela Virgem datava da sua mocidade. Ainda criança, um pouco selvagem, refugiava-se nos cantos e comprazia-se a pensar que uma formosa senhora o protegia; que dois olhos azuis, muito doces e sorridentes, o seguiam por toda a parte. Muitas vezes, à noite, ao sentir um leve sopro passar-lhe pelos cabelos, dizia que a Virgem o viera beijar. Crescera sob a protecção daquela carícia feminina, em pleno ar de adejo de saia divina. Desde os sete anos que satisfazia as suas necessidades de ternura gastando todos os sous que lhe davam na compra de imagens de santos, que ocultava ciosamente para usufruir sozinho. E nunca fora tentado pelas imagens de Jesus com o cordeiro às costas, de Cristo na cruz, de Deus Pai com uma grande barba debruçado à beira de uma nuvem; era sempre atraído pelas ternas imagens de Maria, Pela Sua boquita sorridente, pelas Suas finas mãos estendidas. Pouco a pouco, coleccionara-as todas: Maria entre um fuso e uma roca, Maria com o Menino ao colo como uma irmã mais velha, Maria coroada de rosas, Maria coroada de estrelas. Para ele, tratava-se de uma família de formosas meninas dotadas de um ar de graça, do mesmo ar de bomdade, do mesmo rosto suave, muito jovens sob os véus e que, a despeito do Seu nome de Mãe de Deus, não lhe inspiravam medo como as pessoas crescidas. Pareciam-lhe ter a sua idade, serem as rapariguinhas que desejaria encontrar, as meninas do Céu com as quais os rapazinhos mortos aos sete anos deviam brincar eternamente num recanto do Paraíso. Mas já então era um rapaz grave e guardara, ao crescer, o segredo do seu amor religioso, dominado por delicados pudores de adolescente. Maria envelhecia com ele, sempre mais velha um ou dois anos, como convinha a uma amiga soberana. Contava vinte anos quando ele tinha dezoito e já não o beijava à noite na testa; conservava-Se a alguns passos de distância, de braços cruzados e com um sorriso casto, adoràvelmente doce. Ele só A evocava baixinho e experimentava como que um desfalecimento cada vez que o nome querido lhe assomava aos lábios nas suas orações. Não sonhava já com brinquedos infantis, ao fundo do jardim celeste, mas sim com uma contemplação perene, quando estava diante daquela figura branca, tão pura, na qual nem com um simples sopro se atreveria a tocar. Ocultava à própria mãe o seu amor profundo.

Depois, passados alguns anos, quando entrara no ’seminário, a ternura que dedicava a Maria, tão honesta, tão natural, causara-lhe profundas inquietações. O culto de Maria seria necessário à salvação? Não roubava a Deus, concedendo-a a Maria, uma parte do seu amor, a maior parte, os seus pensamentos, o seu coração, o seu todo? Perguntas perturbadoras, luta íntima que o apaixonava, que o prendia mais. Então, mergulhara nas subtilezas da sua afeição, experimentara delícias indescritíveis a discutir a legitimidade dos seus sentimentos. Os livros de devoção à Virgem desculparam-no, arrebataram-no, encheram-no de raciocínios que repetia com recolhimentos de oração. Fora assim que aprendera a ser escravo de Jesus em Maria. Chegava a Jesus por Maria. E citava todas as espécies de provas, distinguia, tirava conclusões: Maria, a Quem Jesus obedecera na Terra, devia ser obedecida por todos os homens; Maria conservava o Seu poder de mãe no Céu, onde era a grande distribuidora dos tesouros de Deus, a única que Lhe podia implorar, a única que distribuía os tronos; Maria, simples criatura junto de Deus, mas erguida até Ele, tornada assim o elo humano entre o Céu e a Terra, a intermediária de toda a graça, de toda a misericórdia... E a conclusão a que chegava era sempre que se devia amá-La acima de tudo, como o próprio Deus. Depois, assaltavam-no curiosidades teológicas mais complexas: o casamento do Esposo celeste, o Espírito Santo selando o vaso de eleição, metendo a Virgem Mãe num milagre eterno, oferecendo a Sua pureza inviolável à devoção dos homens. Era a Virgem vitoriosa de todas as heresias, a inimiga irreconciliável de Satã, a nova Eva anunciada como devendo esmagar a cabeça da serpente, a Porta Augusta da graça pela qual o Salvador entrara a primeira vez e pela qual entraria novamente no último dia profecia vaga, anúncio de um papel mais importante de Maria, que deixava Serge mergulhado no sonho de alguma imensa manifestação de amor. Aquela ascensão da mulher ao Céu cioso e cruel do Antigo Testamento, aquela figura alva colocada ao pé da Trindade temível, era para ele a própria graça da religião, o que o confortava do pavor da fé, o seu refúgio de homem perdido no meio dos mistérios do dogma. E quando conseguira provar a si mesmo, ponto por ponto, minuciosamente, que Ela era o caminho de Jesus, fácil, curto, perfeito, seguro, entregara-se-lhe de novo por completo, sem remorsos, e procurara a maneira de ser Seu verdadeiro devoto, morrendo para si mesmo, abismando-se na submissão.

Hora de volúpia divina. Os livros de devoção à Virgem ardiam-lhe nas mãos e falavam-lhe uma linguagem amorosa que cheirava a incenso. Maria já não era a adolescente velada de branco, com os braços cruzados, de pé a alguns passos da sua cabeceira; chegava no meio de um esplendor, tal como João A vira, vestida de sol, coroada por doze estrelas, com a Lua a Seus pés. Embalsamava-o com o Seu odor perfumado, inflamava-o do desejo do Céu, envolvia-o até no calor dos astros que lhe brilhavam na fronte. Prostrava-se diante d’Ela, considerava-se Seu escravo, e nada lhe parecia mais doce do que esta palavra - “escravo” - que repetia, que saboreava mais, com a boca balbuciante, à medida que se humilhava a Seus pés, para ser um objecto Seu, o Seu nada, o pó aflorado pelo voo do Seu vestido azul. Dizia, como David: “Maria nasceu para mim.” E acrescentava, como o Evangelista: “Tomei-A como meu único bem.” Chamava-lhe “minha querida senhora”, falto de palavras, balbuciante como uma criança ou um amante, sem mais do que o suspiro entrecortado da sua paixão. Era a Bem-Aventurada, a Rainha do Céu celebrada pelos nove coros de anjos, a Mãe da bela dilecção, o Tesouro do Senhor. As imagens vivas desdobravam-se, comparavam-Na a um paraíso terrestre feito de terra virgem, com canteiros de flores castas, prados verdes de esperança, torres impenetráveis de força, casas encantadoras de confiança. Era ainda uma fonte que o Espírito Santo selara, um santuário onde a Santíssima Trindade repousava, o trono de Deus, o altar de Deus, o templo de Deus, o mundo de Deus. E ele passeava nesse jardim, à sombra, ao sol, sob o encantamento das verduras, e suspirava junto da água dessa fonte, e habitava na bela intimidade de Maria, apoiado

N’Ela, oculto n’Ela, perdido n’Ela sem reserva, e bebia o amor infinito que caía gota a gota daquele seio

Todas as manhãs, assim que se levantava, no seminário, saudava Maria com cem reverências, de rosto virado para o Pedaço de céu que via da sua janela, e à noite despedia-se d’Ela inclinando-se o mesmo número de vezes, de olhos postos nas estrelas. Muitas vezes, perante as noites serenas, quando Vénus brilhava toda loura e sonhadora no ar tépido, esquecia-se, deixava cair dos lábios, como um leve canto, a Ave maris stella, o hino enternecido que lhe desdobrava ao longo de praias azuis um mar doce, apenas encrespado por um arrepio de carícia e iluminado por uma estrela sorridente tão grande como um sol. Recitava ainda a Salve Regina, a Regina caeli, a gloriosa Domina, todas as orações, todos os cânticos. Lia o Ofício da Virgem, os livros sagrados escritos em Sua honra, como o pequeno Saltério de S. Boaventura, de uma ternura tão devota que as lágrimas o impediam de voltar as páginas. Jejuava, mortificava-se, para Lhe ofertar a carne magoada. Desde os dez anos que usava a Sua libré, o santo escapulário, a dupla imagem de Maria, cosida na roupa, cujo calor sentia nas costas e no peito, na pele nua, com sobressaltos de felicidade. Mais tarde, passara a usar uma cadeiazinha, a fim de mostrar a sua escravidão amorosa. Mas o seu grande acto fora sempre a saudação angélica, a Ave Maria, a prece perfeita do seu coração. “Eu Vos saúdo, Maria”, e via-A avançar ao seu encontro, cheia de graça, bendita entre todas as mulheres, e lançava-Lhe o coração aos pés, para que Ela lhe caminhasse por cima, suavemente. Multiplicava esta saudação, repetia-a de cem maneiras diferentes, procurava inventar processo de a tornar mais eficaz. Dizia doze Ave para recordar a coroa de doze estrelas que cingia a fronte de Maria, catorze em memória das Suas catorze alegrias e sete dezenas em honra dos anos que vivera na Terra. Passava durante horas as contas do terço e depois, longamente, em certos dias de encontro místico, entregava-se ao ciciar infinito do rosário.

Quando, sozinho na cela, com tempo para amar, se ajoelhava no lajedo, todo o jardim de Maria desabrochava em torno dele com as suas altas florações de castidade. O rosário deixava-lhe correr entre os dedos a sua grinalda de Ave intercalada de Patres, como uma coroa de rosas brancas misturadas com os lírios da Anunciação, as flores sangrentas do Calvário e as estrelas da Coroação. Caminhava a passos lentos ao longo das alamedas embalsamadas e parava a cada uma das quinze dezenas de Ave, para repousar no mistério a que correspondiam, e ficava louco de alegria, de dor e de glória à medida que os mistérios se agrupavam em três séries: alegres, dolorosos e gloriosos. A história de Maria era para ele uma lenda incomparável, uma vida humana completa, com os seus sorrisos, as suas lágrimas e os seus triunfos, que revivia de ponta a ponta num instante. Primeiro, entrava na alegria, nos cinco mistérios sorridentes, banhados pelas serenidades da alva: a saudação do arcanjo, um raio de fecundidade escapado do Céu, que trazia o êxtase adorável da união sem mácula; a visita a Isabel, por uma clara manhã de esperança, à hora em que o fruto das Suas entranhas dava pela primeira vez a Maria o abalo que faz empalidecer as mães; o parto num estábulo de Belém, com a longa fila de pastores que vinham saudar a maternidade divina; o recém-nascido levado ao Templo nos braços da parturiente, que sorria, ainda cansada, mas já feliz por oferecer o Filho à justiça de Deus, aos beijos de Simeão, aos desejos do mundo; finalmente, Jesus crescido, revelando-se diante dos doutores, no meio dos quais se encontra a mãe, inquieta, orgulhosa d’Ele e consolada. Depois, em seguida a essa manhã de luz tão delicada, parecia a Serge que o céu se toldava bruscamente. Então, caminhava apenas sobre espinhos, esfolava os dedos nas contas do rosário, curvava-se sob o pavor dos cinco mistérios de dor: Maria agonizava com o Filho no Jardim das Oliveiras, recebia com Ele os açoites da flagelação, sentia na Sua própria fronte as dilacerações da coroa de espinhos, carregava o peso horrível da Sua cruz, morria a Seus pés no Calvário. Semelhantes necessidades de sofrimento, o martírio atroz de uma Rainha adorada por Quem daria o seu sangue como Jesus, causavam-lhe uma revolta de horror que dez anos das mesmas orações e dos mesmos exercícios não tinham podido acalmar. Mas as contas deslizavam sempre; abria-se de súbito uma clareira nas trevas da crucificação e a glória resplandecente dos cinco últimos mistérios brilhava com um regozijo de astro livre. Maria, transfigurada, cantava a aleluia da ressurreição, a vitória sobre a morte, a eternidade da vida; assistia, com as mãos estendidas, arrebatada de admiração, ao triunfo do Filho, que subia ao Céu Por entre nuvens de ouro franjadas de púrpura; reunia à Sua volta os Apóstolos, experimentava, como no dia da concepção, o abrasamento do espírito de amor que descia em chamas ardentes; era, por Sua vez, arrebatada por um voo de anjos, levada por asas brancas, como uma arca imaculada, e depositada suavemente no meio do esplendor dos tronos celestes; e aí, como glória suprema, numa claridade tão deslumbrante que ofuscava o Sol, Deus coroava-A com as estrelas do firmamento. A paixão só tem uma palavra; mas ao dizer a fio as cento e cinquenta Ave, Serge não as repetia uma só vez. Aquele murmúrio monótono, aquela Palavra incessantemente a mesma, que se repetia como o “amo-te” dos amantes, adquiria cada vez significação mais Profunda. Demorava-se nela, dialogava sem fim com o auxílio da única frase latina, conhecia Maria por completo, até que, ao escapar-se-lhe das mãos a última conta do rosário, sentia desfalecer perante a ideia da separação.

Muitas vezes o jovem seminarista passava assim a noite, rezando vinte vezes as dezenas de Avê, retardando o momento em que deveria separar-se da sua querida Senhora. O dia nascia e encontrava-o ainda a rezar. Era a Lua, dizia para se enganar a si próprio, que fazia empalidecer as estrelas. Os seus superiores tinham de o repreender por via das suas vigílias, das quais saía enfraquecido, tão branco que parecia exangue. Durante muito tempo conservara na parede da cela uma gravura colorida do Sagrado Coração de Maria, em que a Virgem, sorrindo serenamente, abria o corpete e mostrava no peito um buraco vermelho onde o Seu coração ardia, traspassado por uma espada e coroado de rosas brancas. Aquela espada desesperava-o, causava-lhe intolerável horror o sofrimento a que submetia aquela mulher, e a simples ideia desse sofrimento bastava para o revoltar contra toda a submissão piedosa Fizera-a desaparecer, conservara somente o coração coroado e chamejante, semiarrancado daquela carne delicada para se lhe oferecer. Fora então que se sentira amado. Maria dava-lhe o Seu coração - o Seu coração vivo - tal como Lhe pulsava no seio, a esvair-se em sangue rosado. Não havia ali uma imagem de paixão devota, mas sim uma imaterialidade, um prodígio de ternura que, quando orava diante da gravura, o fazia estender as mãos para receber religiosamente o coração prestes a saltar do colo sem mácula. Via-o, sentia-o palpitar, e era amado, pois aquele coração pulsava por ele! Experimentava como que um desvairamento de todo o seu ser, a necessidade de beijar o coração, de se fundir nele, de se deitar com ele no fundo daquele peito aberto. Ela amava-o activamente, a ponto de o querer na eternidade junto de Si, só para Si. Amava-o eficazmente, ocupava-se sem cessar dele, seguia-o por toda a parte, evitava-lhe as menores infidelidades Amava-o ternamente, mais do que todas as mulheres juntas, com um amor azul, profundo, infinito como o céu. Onde encontraria alguma vez uma amante tão desejável? Que carícia terrena se poderia comparar à emanação de Maria em que caminhava? Que união miserável, que prazer imundo, poderia ser comparado com aquela eterna flor do desejo, que crescia sempre sem nunca desabrochar? Então, como uma lufada de incenso, o Magnificat brotava-lhe dos lábios e entoava o canto de alegria de Maria, o seu estremecimento de júbilo à aproximação do Esposo divino. Glorificava o Senhor que derrubava os poderosos dos seus tronos e lhe enviava Maria a ele, pobre criança nua que morria de amor nas lajes geladas da sua cela

E depois de tudo dar a Maria -o seu corpo, a sua alma, os seus bens terrenos, os seus bens espirituais -, depois de se encontrar nu diante d’Ela, no fim das orações, as ladainhas da Virgem jorravam-lhe dos lábios abrasados, com os seus apelos repetidos, teimosos, obstinados, numa necessidade suprema de socorros celestes. Parecia-lhe trepar uma escada de desejo; a cada salto do seu coração, subia um degrau. Primeiro, dizia-A santa; em seguida, chamava-Lhe mãe puríssima, castíssima, amável, admirável. E retomava o seu arrebatamento gritando-Lhe seis vezes a sua virgindade, com a boca como que refrescada cada vez que pronunciava a palavra “virgem”, a que ligava ideias de poder, de bondade, de fidelidade. À medida que o seu coração o transportava mais alto, nos degraus da luz, uma voz estranha, vinda das suas veias, falava nele, desabrochava em flores brilhantes. Desejaria fundir-se em perfume, expandir-se em claridade, expirar num suspiro musical. Enquanto Lhe chamava Espelho de Justiça, Templo de Sabedoria, Fonte de Alegria - da sua alegria -, via-se pálido de êxtase nesse espelho, ajoelhava-se nas lajes tépidas desse templo, bebia a grandes haustos a embriaguez dessa fonte. E transformava-A ainda, dando rédea solta à sua loucura de ternura para se unir a Ela de modo cada vez mais estreito. Ela tornava-Se um Vaso de Honra escolhido por Deus, um Seio de Eleição onde ele almejava lançar o seu ser, dormir para sempre. Era a Rosa Mística, uma grande flor desabrochada no Paraíso, feita de anjos em torno da Sua Rainha, tão pura, tão aromática, que A aspirava do fundo da sua indignidade com uma dilatação de alegria que lhe estalava as costelas. Ela transformava-Se em Casa de Ouro, em Torre de David, em Torre de Marfim, de uma riqueza incalculável, de uma pureza capaz de fazer inveja aos cisnes, de uma compleição alta, forte, cheia, que desejaria cingir com os braços estendidos como um cinto de submissão. Conservava-Se de pé no horizonte, era a Porta do Céu que entrevia atrás dos Seus ombros, quando um sopro de vento Lhe desviava as pregas do véu. Crescia atrás da montanha, à hora em que a noite empalidece. Estrela da Manhã, socorro dos viajantes perdidos, alvorada de amor. Depois, chegado a este ponto, sem alento mas ainda não saciado, as palavras traíam-lhe as forças do coração e só A podia glorificar com o título de Rainha, que Lhe dirigia nove vezes, como se nove vezes a incensasse. O seu cântico morria de alegria nestas exclamações de triunfo final: “Rainha das virgens, Rainha de Todos os Santos, Rainha concebida sem Pecado!” Ela, cada vez mais alta, resplandecia; ele, no último degrau - o degrau que só os familiares de Maria Atingiam -, deixava-se ficar um instante, pasmado no meio do ar subtil que o atordoava, ainda demasiado longe para beijar a fímbria do vestido azul, mas sentindo-se já rolar, a despeito do eterno desejo de subir, de experimentar aquele gozo sobre-humano.

Quantas vezes as ladainhas da Virgem, rezadas em comum na capela, tinham deixado assim o jovem seminarista, com os joelhos quebrados e a cabeça oca, como depois de uma grande queda! Depois de sair do seminário, o padre Mouret aprendera a amar a Virgem ainda mais. Votava-Lhe o culto apaixonado em que frei Archangias farejava odores de heresia. Na sua opinião, seria Ela quem salvaria a Igreja por meio de algum prodígio grandioso cujo próximo aparecimento encantaria a Terra. Era o único milagre da nossa época ímpia, a Senhora azul que se mostrava aos pastorinhos, a brancura nocturna vista entre duas nuvens e cuja fímbria do véu adejava sobre as choupanas dos camponeses. Quando frei Archangias lhe perguntava brutalmente se alguma vez A vira, limitava-se a sorrir, com os lábios apertados, como que para guardar o seu segredo. Na verdade, via-A todas as noites. Já não lhe aparecia como uma irmã brincalhona, nem como uma rapariga ardente; surgia-lhe de vestido de noiva, com flores brancas nos cabelos e as pálpebras semicerradas, através das quais deixava deslizar olhares húmidos de esperança que Lhe iluminavam as faces. E ele bem compreendia que Ela se lhe dirigia, que lhe prometia não Se tornar a demorar, que lhe dizia: “Aqui estou, recebe-me.” Três vezes por dia, quando soava o Angelus, ao romper do dia, na maturidade do meio-dia e ao cair enternecido do crepúsculo, descobria-se, rezava uma Ave e olhava à sua volta como se quisesse certificar-se se o sino não lhe anunciaria, enfim, a vinda de Maria. Tinha vinte e cinco anos e esperava-A.

No mês de Maio, a expectativa do jovem padre enchia-se de uma esperança feliz. Nem sequer se preocupava com as reprimendas de Teuse. Se ficava até tão tarde a rezar na igreja era porque o dominava a ideia louca de que a grande Virgem dourada acabaria por descer. E, no entanto, temia aquela Virgem que parecia uma princesa. Não amava todas as Virgens da mesma maneira. Aquela gelava-o de um respeito soberano. Era a Mãe de Deus, tinha a amplitude fecunda, o rosto augusto, os braços fortes da Esposa divina que concebera Jesus. Imaginava-A assim no meio da corte celeste, a arrastar por entre as estrelas a cauda do Seu manto real, demasiado alta para ele, tão poderosa que cairia desfeito em pó se Ela se dignasse baixar os olhos até aos dele. Era a Virgem dos seus dias de desfalecimento, a Virgem severa que lhe restituía a paz interior por meio da temível visão do Paraíso.

Naquela noite, o padre Mouret ficou mais de uma hora ajoelhado na igreja deserta. De mãos postas, sem tirar os olhos da Virgem de ouro que se erguia como um astro no meio das verduras, procurava o entorpecimento do êxtase, o apaziguamento das perturbações estranhas que experimentara durante o dia. Mas não conseguia mergulhar na sonolência da oração com a facilidade ditosa costumada. A maternidade de Maria, por mais gloriosa e pura que se lhe revelasse, aquele corpo cheio, de mulher feita, aquela criança nua que segurava num braço, inquietavam-no, pareciam-lhe continuar no Céu o impulso trasbordante de geração no meio do qual se movera desde manhã. Como as vinhas das encostas pedregosas, como as árvores do Paradou, como o rebanho humano dos Artauds, Maria trazia a eclosão, engendrava a vida. E a prece demorava-se-lhe nos lábios, esquecia-se do que estava ali a fazer, distraía-se, via coisas que jamais vira, como a curva suave dos cabelos castanhos e a leve dilatação do queixo besuntado de cor-de-rosa. Naquela altura, Ela devia tornar-Se mais severa, aniquilá-lo sob o clarão da Sua omnipotência, para o reconduzir à frase da oração interrompida. Foi, porém, graças à Sua coroa de ouro, ao Seu manto de ouro, a todo o ouro que A transformava numa princesa terrível, que acabou por o esmagar, finalmente, numa submissão de escravo, com a prece a sair-lhe regularmente da boca e o espírito perdido no fundo de uma adoração única. Até às onze horas, dormiu acordado naquele entorpecimento extático, sem sentir os joelhos, julgando-se suspenso, embalado como uma criança que se adormece, deixando-se ir ao sabor do repouso, embora conservando a consciência de um peso que lhe esmagava o coração. À sua volta, a igreja enchia-se de sombra, o candeeiro enfarruscava o vidro da chaminé, as folhas altas ensombravam o rosto envernizado da grande Virgem.

Quando o relógio, antes de dar horas, rangeu como se lhe arrancassem a voz das entranhas, o padre Mouret teve um calafrio. Não sentira a frescura da igreja cair-lhe sobre os ombros, mas naquele momento tiritava. Ao persignar-se, uma súbita recordação atravessou o estupor do seu despertar : o bater dos dentes lembrava-lhe as noites passadas nas lajes da sua cela, diante do Sagrado Coração de Maria, com o corpo sacudido pela febre. Levantou-se penosamente, descontente consigo. Em regra, deixava o altar com a carne serena e a doçura do hálito de Maria na fronte. Naquela noite, quando pegou no candeeiro para subir ao seu quarto, parecia-lhe que as têmporas lhe estalavam. A oração fora ineficaz; reencontrava, depois de um curto alívio, o mesmo calor que desde manhã lhe subia do coração ao cérebro. Ao chegar à porta da sacristia, no momento de sair, virou-se, levantou o candeeiro num gesto maquinal e procurou ver Pela última vez a grande Virgem. Estava afogada nas trevas Que desciam das traves, mergulhada na folhagem e só se Lhe via a cruz de ouro da coroa.

O quarto do Padre Mouret, situado num ângulo do presbitério era uma divisão ampla, em duas paredes da qual se via outras tantas enormes janelas quadradas. Uma delas ficava por cima da capoeira de Désirée; a outra dava para a aldeia dos Artauds e dela via-se o vale, ao longe, as colinas, todo o horizonte. A cama, coberta de cortinados amarelos, a cómoda de nogueira e as três cadeiras de palha, perdiam-se debaixo do tecto alto, de traves caiadas. Um leve odor, o cheiro um pouco acre das velhas construções rústicas, desprendia-se da tijoleira do pavimento, vermelha de zarcão e brilhante como um espelho. Em cima da cómoda, uma grande estatueta da Imaculada Conceição punha uma suavidade acinzentada entre dois potes de faiança que Teuse enchera de lilases brancos.

O padre Mouret pousou o candeeiro diante da Virgem, à beira da cómoda. Sentia-se tão indisposto que resolveu acender o lume de galhos de vide, que estava sempre preparado E ficou ali, com as tenazes à mão, a ver arder os tições, com o rosto iluminado pelas chamas. Por baixo de si, notava o sono pesado da casa. O silêncio que lhe zumbia aos ouvidos acabava por tomar a aparência de vozes sussurrantes. Lenta, invencivelmente, as vozes invadiam-no, redobravam a ansiedade que, durante o dia, diversas vezes sentira apertar-lhe a garganta. Donde viria semelhante angústia? A que se deveria aquela perturbação desconhecida, que aumentara insensivelmente e acabara por se tornar intolerável? Contudo, não pecara. Parecia-lhe ter saído na véspera do seminário, com todo o ardor da sua fé, tão forte contra o mundo que caminhava no meio dos homens e só via Deus.

Então, julgou-se na sua cela, uma manhã, às cinco horas, no momento de se levantar. O diácono de serviço passava, batia com um pau nas portas e soltava o grito regulamentar :

- Benedicomus Domino!

- Deo gratias! - respondia-lhe, mal acordado, com os olhos inchados de sono.

E saltava para o estreito tapete, lavava-se, fazia a cama, varria o quarto e renovava a água do jarro. Aqueles insignificantes trabalhos domésticos causavam-lhe uma alegria que punha termo ao arrepio matinal que lhe percorria a pele. Ouvia os pardais dos plátanos do pátio levantarem-se ao mesmo tempo que ele, no meio de um bater de asas e de gorjeios ensurdecedores. Pensava que diziam as suas orações, à sua maneira. Descia à Sala das Meditações, onde, depois das preces, ficava cerca de meia hora ajoelhado, a meditar neste pensamento de Santo Inácio: “De que serve ao Homem conquistar o Universo, se perde a alma?” Era um tema fértil de boas resoluções que o fazia renunciar a todos os bens da Terra e entregar-se ao sonho, tantas vezes acariciado, de uma existência no deserto, sob a única riqueza de um grande céu azul. Ao cabo de dez minutos os joelhos, magoados pelas lajes, doíam-lhe de tal modo que experimentava pouco a pouco um desfalecimento de todo o seu ser, um êxtase no qual se via como grande conquistador, senhor de um império imenso, arremessar para longe a sua coroa, quebrar o seu ceptro, calcar aos pés um luxo inaudito, cofrezinhos de ouro, montes cintilantes de jóias e de estofos recamados de pedrarias, para se ir sepultar no fundo de uma tebaida, vestido de burel que lhe esfolava as costas. Mas a missa arrancava-o a semelhantes devaneios, dos quais saía como de uma bela história real que tivesse vivido em tempos passados. Comungava, cantava o salmo do dia com muito ardor, sem escutar outra voz que não fosse a sua, de uma pureza de cristal, tão límpida que a sentia voar até aos ouvidos do Senhor. E quando regressava ao quarto só subia um degrau de cada vez, como recomendavam S. Boaventura e S. Tomás de Aquino. Caminhava devagar, com ar recolhido e a cabeça levemente inclinada, entregue ao júbilo indescritível de seguir as menores prescrições. Em seguida vinha o almoço. No refeitório, as fatias de pão alinhadas ao longo dos copos de vinho branco encantavam-no. Como tinha bom apetite e era de temperamento alegre, dizia, por exemplo, que o vinho era bom cristão, forma muito audaciosa de aludir à água que o ecónomo era acusado de deitar nas garrafas. Isso não o impedia, no entanto, de retomar o seu ar grave para entrar na aula. Tomava apontamentos em cima do joelho, enquanto o professor, com os punhos à beira da cátedra, falava num latim vulgar, às vezes intercalado de uma palavra francesa, quando não encontrava melhor. Levantava-se discussão e os alunos argumentavam numa gíria estranha, sem se rirem. Seguia-se, às dez horas, a leitura da Sagrada Escritura, durante vinte minutos. Ia buscar o livro santo, ricamente encadernado, de folhas douradas, beijava-o com especial devoção, lia-o de cabeça descoberta e inclinava-se todas as vezes que encontrava os nomes de Jesus, Maria ou José. A segunda meditação achava-o ainda bem preparado para suportar, pelo amor de Deus, novo ajoelhamento, mais prolongado do que o primeiro. Evitava sentar-se, um só segundo, nos calcanhares. Saboreava aquele exame de consciência de três quartos de hora, esforçava-se por descobrir em que pecara e chegava a julgar-se condenado por se ter esquecido, na véspera à noite, de beijar as duas imagens do seu escapulário ou por ter adormecido virado para o lado esquerdo - faltas abomináveis que desejaria resgatar ficando até à noite de joelhos, faltas felizes que lhe ocupavam o espírito e sem as quais não saberia como entreter o seu coração cândido, adormecido pela vida Pura que levava. Entrava no refeitório completamente aliviado, como se tivesse desoprimido o peito de um grande crime. Os seminaristas de serviço, com as mangas da sotaina arregaçadas e avental de cotim azul atado à cinera, traziam a sopa de aletria, a carne cozida cortada aos Quadradinhos e as rações de perna de carneiro assada com feijões. Os maxilares faziam um ruído espantoso, estabelecia-se um silêncio glutão e verificava-se um encarniçamento de garfos somente interrompido por olhares invejosos lançados à mesa em forma de ferradura onde os directores comiam carnes mais tenras e bebiam vinhos mais puros enquanto a voz pastosa de algum filho de camponês, de pulmões sólidos, soletrava sem pontos nem vírgulas, por cima daquele apetite furioso, alguma leitura piedosa, cartas de missionários, pastorais de bispos ou artigos de jornais religiosos. Escutava, entre duas garfadas, aqueles bocados de polémicas, aquelas descrições de viagens longínquas que o surpreendiam, o assustavam até, e lhe revelavam a existência, para lá dos muros do seminário, de uma agitação, de um horizonte imenso em que nunca pensara. Ainda se comia quando a matraca anunciava o recreio. No pátio ensaibrado havia oito enormes plátanos que, no Verão, projectavam sombra fresca, e o muro virado ao sul, de cinco metros de altura e eriçado de fundos de garrafa, só permitia ver de Plassans a extremidade do campanário de S. Marcos, uma curta agulha de pedra recortada no céu azul. Passeava lentamente de uma ponta a outra do pátio, com um grupo de camaradas, numa só linha, e todas as vezes que se virava e olhava por cima do muro via o campanário, que para ele era toda a cidade, toda a Terra, sob o voo livre das nuvens. Ao pé dos plátanos, formavam-se círculos ruidosos, a discutirem, e os amigos isolavam-se, dois a dois, nos cantos, espiados por algum director escondido atrás das cortinas da sua janela. Organizavam-se violentas partidas de péla e de chinquilho que iam perturbar tranquilos jogadores de loto semideitados no chão diante dos seus cartões, que uma bola ou uma malha lançada com demasiada força cobria de saibro. Quando a sineta tocava, o barulho esmorecia, uma nuvem de pardais levantava voo dos plátanos e os alunos, ainda esbaforidos, dirigiam-se para a aula de cantochão, de braços cruzados e cabeça bem direita. E acabava o dia no meio daquela paz: voltava para a aula, merendava às quatro horas, retomava o seu eterno passeio diante da flecha de S. Marcos, jantava no meio do mesmo barulho de maxilares, sob a voz grossa que acabava a leitura da manhã, subia à capela para dizer as acções de graças da noite e deitava-se às oito horas e um quarto, depois de aspergir a cama com água benta para a preservar dos maus sonhos.

Que belos dias sempre iguais passara naquele antigo convento da velha Plassans, repleto de um cheirinho secular de devoção! Os dias tinham-se sucedido uns aos outros durante cinco anos, deslizado com o mesmo murmúrio da água límpida. Naquela altura, recordava-se de mil pormenores que o enterneciam. Lembrava-se do primeiro enxoval que fora comprar com a mãe: duas sotainas, dois cintos, seis cabeções, oito pares de meias pretas, uma sobrepeliz, um tricórnio... Como o coração lhe batera, naquela doce tarde de Outubro, quando a porta do seminário se fechara atrás de si! Recuava vinte anos, depois dos que passara no colégio, dominado pela necessidade de crer e amar. Logo no dia seguinte se esquecera de tudo, como que adormecera no fundo da grande casa silenciosa. Revia a cela estreita onde passara os seus dois anos de Filosofia, um cubículo mobilado com uma cama, uma mesa e uma cadeira, separado dos cubículos vizinhos por tábuas mal juntas, numa sala imensa que continha uns cinquenta retiros iguais. Revia a sua cela de teólogo, que habitara durante outros três anos, maior, com uma cadeira de braços, um toucador e uma estante, quarto ditoso cheio dos sonhos da sua fé. Ao longo dos corredores intermináveis, ao longo das escadarias de pedra, com certos recantos, tivera revelações súbitas, socorros inesperados. Dos tectos altos desciam vozes de anjos-da-guarda. Não havia uma laje das salas, uma pedra das paredes, um ramo dos plátanos que não lhe falasse das alegrias da sua vida contemplativa, dos seus balbuciamentos de ternura, da sua lenta iniciação, das carícias recebidas em troca do dom do seu ser, de toda a ventura dos primeiros amores divinos. Tal dia, ao acordar, vira um clarão ofuscante que o inundara de alegria; tal noite, ao fechar a porta da cela, sentira-se agarrado pelo pescoço por umas mãos tépidas, tão ternamente que, ao voltar a si, se encontrara prostrado por terra, a chorar no meio de grandes soluços. Depois, às vezes, debaixo da abòbadazinha que dava para a capela, abandonava o corpo a braços flexíveis que o arrebatavam. Todo o Céu se ocupava então dele, rodeava-o, introduzia nos seus menores actos, na satisfação das suas necessidades mais vulgares, um sentido especial, um perfume surpreendente do qual as suas roupas, a sua própria pele, pareciam conservar para sempre o longínquo odor. E ainda se recordava dos passeios às quintas-feiras. Saíam às duas horas para qualquer canto de verdura a uma légua de Plassans, a maior parte das vezes à beira do Viorne, na extremidade de um prado, onde havia salgueiros nodosos cujas folhas tocavam na superfície da água. Não via nada, nem as grandes flores amarelas do prado, nem as andorinhas que bebiam em pleno vôo, rasando com as asas a toalha líquida do nacho. Até às seis horas, sentados em grupos debaixo dos Agueiros, os seus camaradas e ele recitavam em coro o núncio da Virgem ou liam, dois a dois, as Pequenas Horas, o breviário facultativo dos jovens seminaristas. O padre Mouret esboçou um sorriso e juntou os tições, encontrava naquele passado uma grande pureza, uma obediência perfeita. Era um lírio cujo perfume encantava os seus mestres. Não se recordava de uma má acção. Nunca se aProveitava da liberdade absoluta dos passeios, enquanto os dois directores encarregados de os vigiar iam conversar com um cura das cercanias, para fumar atrás de uma sebe ou ir beber cerveja com qualquer amigo. Nunca escondia romances debaixo do colchão nem garrafas de licor de anis ao fundo da mesa-de-cabeceira. Durante muito tempo nem sequer suspeitara da existência de todos os pecados que o rodeavam, das asas de frango e dos bolos contrabandeados durante a Quaresma às cartas pecaminosas trazidas pelos criados e às conversas abomináveis mantidas em voz baixa em certos recantos do pátio. Chorara lágrimas de fogo no dia em que descobrira que poucos dos seus camaradas amavam Deus por Si próprio. Havia no seminário filhos de camponeses dispostos a tomar ordens para escaparem ao recenseamento militar, preguiçosos que sonhavam com uma vida de mandriice, ambiciosos a quem já perturbava a visão do báculo e da mitra. E ele, ao depararem-se-lhe as imundícies do mundo ao pé dos altares, concentraram ainda mais em si mesmo, dera-se mais a Deus, para O consolar do abandono a que O votavam.

Recordou-se, porém, de que um dia cruzara as pernas na aula e de que, ao ser repreendido pelo professor, corara muito como se tivesse cometido uma indecência. Era um dos melhores alunos, nunca discutia e aprendia os textos de cor. Demonstrava a existência e a eternidade de Deus por meio de provas extraídas da Sagrada Escritura, baseando-se na opinião dos doutores da Igreja e no consenso universal de todos os povos. Os raciocínios de tal natureza enchiam-no de uma convicção inquebrantável. Durante o seu primeiro ano de Filosofia, dedicara-se à disciplina de Lógica com tal aplicação que o professor lhe observara que os mais sábios nem sempre são os mais santos. Por isso, desde o segundo ano, desobrigara-se do estudo da Metafísica como se fosse um dever regulamentado que contribuísse com uma quota-parte muito insignificante para os exercícios do dia. Apoderara-se de si o desprezo pela ciência; queria ficar ignorante a fim de conservar a humildade da sua fé. Mais tarde, em Teologia, seguira apenas por submissão a disciplina de História Eclesiástica, de Rorbacher; fora até aos argumentos de Gousset, até à Instrução Teológica, de Bouvier, mas não ousara tocar em Belarmino, Liguori, Suarez e S. Tomás de Aquino. Somente a Sagrada Escritura o apaixonava. Encontrava nela o saber desejável, uma história de homens de boa vontade. Só aceitava as afirmações dos seus mestres. Descarregava sobre eles todas as preocupações de análise, considerava não necessitar de semelhantes bagatelas para amar e acusava os livros de roubarem tempo à oração. Conseguira até esquecer os seus anos de colégio. Não sabia nada, não era mais do que uma candura, do quê uma infância reconduzida aos balbuciamentos do catecismo.

E fora assim que subira, passo a passo, até ao sacerdócio.

A partir daí, as recordações precipitavam-se, enternecidas, ainda quentes de alegrias celestes. Cada ano o aproximava mais de Deus. Passava as férias santamente, em casa de um tio, confessava-se todos os dias, comungava duas vezes por semana, impunha-se jejuns e guardava no fundo da mala caixas de sal grosso no qual se ajoelhava horas a fio, com os joelhos nus. Deixava-se ficar na capela durante os recreios ou subia ao quarto de um director que lhe contava singulares histórias piedosas. Depois, quando se aproximava o dia da Santíssima Trindade, sentia-se recompensado, muito mais do que merecia, invadido pela comoção que enche os seminários em véspera de ordenações. Era a festa solene, o dia em que o Céu se abria para deixar os eleitos subir um novo degrau. Quinze dias antes, submetia-se ao regime de pão e água, fechava as cortinas da janela para nem sequer ver a luz do dia, prosternava-se nas trevas e suplicava a Jesus que aceitasse o seu sacrifício. Nos quatro últimos dias assaltavam-no angústias, escrúpulos terríveis que o faziam saltar da cama a meio da noite para ir bater à porta do padre estrangeiro que dirigia o retiro, algum carmelita descalço ou frequentemente um protestante convertido a respeito do qual corria uma história maravilhosa. Fazia-lhe minuciosa confissão geral da sua vida, com a voz entrecortada pelos soluços, e só a absolvição o tranquilizava, o refrescava, como se tivesse tomado um banho de graça. Via-se todo de branco na manhã do grande dia, com tão viva consciência dessa brancura que lhe parecia espalhar luz em torno de si. E o sino do seminário tocava com voz clara, enquanto os aromas de Junho, os goivos em flor, as resedas e os heliotrópios se debruçavam do alto do muro do pátio. Na capela, os parentes esperavam, em trajo de cerimónia, tão comovidos que as mulheres soluçavam debaixo dos véus. Depois, começava o desfile: os diáconos que iam receber o presbiterado, de casula de ouro; os subdiáconos, de dalmática; os minoristas e os tonsurados com a sobrepeliz a tremular nos ombros e o barrete preto na mão. O órgão ressoava, espalhava as notas aflautadas de um cântico de alegria. No altar, o bispo, acolitado por dois cónegos, oficiava de báculo na mão. Também estava o capítulo; os Párocos de todas as paróquias comprimiam-se, no meio de um luxo inaudito de trajos, de um cintilar de ouro iluminado pelo comprido raio de sol que descia de uma janela da nave. Depois da Epístola, principiava a ordenação...

Naquele momento, o padre Mouret recordava-se ainda do frio da tesoura, quando lhe tinham marcado a tonsura, no começo do seu primeiro ano de Teologia. Sentira um leve Arrepio, mas a tonsura era então muito pequena, somente do tamanho de uma moeda de dois sous. Mais tarde, a cada nova ordem recebida, fora aumentando, aumentando sempre, até o coroar com uma mancha branca do tamanho de uma grande hóstia. E o órgão ressoava mais suavemente, e os turíbulos subiam e desciam acompanhados do tilintar argentino das suas correntes e deixavam escapar uma nuvem de fumo branco que se espalhava como renda. Via-se de sobrepeliz jovem tonsurado, levado ao altar pelo mestre-de-cerimónias. Ajoelhava-se, baixava profundamente a cabeça e o bispo cortava-lhe, com uma tesoura de ouro, três madeixas de cabelo, uma na testa e as outras duas junto das orelhas. Mais tarde, passado um ano, via-se de novo na capela cheia de incenso a receber as quatro ordens menores. Ia, acompanhado por um arcediago, fechar com estrondo a porta principal, que reabria em seguida, para mostrar que lhe estava confiada a guarda das igrejas; tangia uma campainha com a mão direita, para anunciar que tinha o dever de chamar os fiéis aos ofícios divinos; por fim, voltava ao altar, onde o bispo lhe conferia novos privilégios, como os de cantar as lições, benzer o pão, catequizar as crianças, exorcismar o Demónio, servir os diáconos e acender e apagar os círios. Depois, recordava-se da ordenação seguinte, mais solene, mais temível, rodeada do canto dos órgãos, cujo ribombar parecia a própria cólera de Deus. Naquele dia, cobria-lhe os ombros a dalmática de subdiácono; comprometia-se para sempre pelo voto da castidade e toda a sua carne estremecia, a despeito da sua fé, ao ouvir o terrível Accedite do bispo, que punha em fuga dois dos seus camaradas, depois de empalidecerem a seu lado. Os seus novos deveres consistiam em acolitar o padre no altar, preparar as galhetas, cantar a Epístola, limpar o cálice e levar a cruz nas procissões. Por fim, desfilava pela última vez na capela, sob o esplendor do sol de Junho. Mas então seguia à frente do cortejo, tinha a alva atada à cintura, a estola cruzada no peito e a casula pendente do pescoço. Dominado por uma comoção suprema, via a figura esbatida do bispo dar-lhe o presbiterado, a plenitude do sacerdócio, por meio de tríplice imposição das mãos. Depois do seu juramento de obediência eclesiástica, sentia-se como que elevado das lajes quando a voz sonora do prelado dizia a frase latina: “Accipe Spiritum sanctum: quorum remiseris peccata, remittuntw eis, et quorum retineris, retenta sunt.”

ESTA evocação das grandes venturas da sua juventude produzira uma leve febre ao padre Mouret. Já não sentia frio. Largou a tenaz, aproximou-se da cama como se se fosse deitar, mas depois encostou a testa a uma vidraça e olhou a noite, sem a ver. Estaria porventura doente, visto sentir assim como que uma quebreira nos membros, ao passo que o sangue lhe queimava as veias? No seminário tivera, por

duas vezes, mal-estar semelhante, uma espécie de agitação física que o deixara muito abatido. Uma vez tivera até de se meter na cama, assaltado por um delírio violento. Pensou numa rapariga possessa, que frei Archangias contava ter curado com um simples sinal da cruz, num dia em que caíra inteiriçada diante dele. Tal acontecimento recordou-lhe os exercícios espirituais que um dos seus mestres lhe recomendara outrora: a prece, a confissão geral, a comunhão frequente, a escolha de um director ponderado, com grande autoridade sobre o espírito do penitente. E, sem transição, com uma brusquidão que a si próprio espantou, distinguiu no fundo da memória a figura gorducha de um dos seus antigos amigos, um aldeão, menino de coro aos oito anos, cuja pensão no seminário era paga por uma dama que o protegia. Andava sempre a rir e fruía ingenuamente, com antecipação, os beneficiozinhos do sacerdócio: os mil e duzentos francos de vencimento, o presbitério ao fundo de um jardim, os presentes, os convites para jantar, os lucros miúdos dos casamentos, dos baptismos e dos enterros... Aquele seria feliz na sua paróquia.

O pesar melancólico que lhe causou semelhante recordação surpreendeu extremamente o padre. Não era também feliz? Até àquele dia, nada lamentara, nada desejara, nada invejara. E mesmo naquele momento em que se interrogava não encontrava em si nenhum motivo de amargura. Estava - pelo menos assim o julgava - tal como nos primeiros tempos do seu diaconato, quando a obrigação de ler o breviário a horas determinadas lhe enchera os dias de uma oração contínua. Desde essa época, as semanas, os meses, os anos tinham deslizado sem lhe dar tempo para ter um mau pensamento. A dúvida não o atormentava de modo algum; humilhava-se perante os mistérios que não podia compreender, sacrificava alegremente a sua razão, que desdenhava. Ao sair do seminário, tivera a satisfação de se ver estranho entre os outros homens, de já não caminhar como eles, de trazer a cabeça de outro modo, de ter gestos, palavras e sentimentos de ser à parte. Sentia-se feminizado, reaproximado do anjo, purificado do seu sexo, do seu odor de homem, e isso tornava-o quase orgulhoso de já não estar preso à espécie, de ter sido elevado a Deus, cuidadosamente expurgado das imundícies humanas por uma educação zelosa. Parecia-lhe ainda ter permanecido durante anos num óleo santo, terem-no preparado segundo ritos que lhe haviam introduzido nas carnes um começo de beatificação. Alguns dos seus órgãos tinham desaparecido, tinham-se dissolvido a. pouco e pouco; os seus membros, o seu cérebro haviam-se empobrecido de matéria e enchido de alma, de modo tão subtil que, às vezes, o inebriava como uma vertigem, como se a terra lhe faltasse bruscamente debaixo dos pés. Manifestava medos, ignorâncias, canduras de rapariga enclausurada. Dizia às vezes, sorrindo, que continuava na infância, e imaginava ter ficado pequenino, com as mesmas sensações, as mesmas ideias, os mesmos juízos. Assim, aos seis anos conhecia Deus tanto como aos vinte e cinco, usava para Lhe orar inflexões de voz semelhantes, encontrava alegrias infantis em juntar as mãos muito exactamente. O mundo afigurava-se-lhe idêntico ao mundo que conhecera outrora, quando a mãe o passeava pela mão. Nascera padre e crescera padre. Quando dava provas, diante de Teuse, de qualquer grosseira ignorância da vida, a criada olhava-o estupefacta nos olhos e dizia, com um sorriso singular, “que era bem o irmão da menina Désirée”. Em toda a sua existência, só se recordava de um impulso vergonhoso. Fora durante os seus últimos seis meses de seminário, entre o diaconato e o presbiterato. Tinham-no mandado ler a obra do abade Craisson, superior do Seminário Maior de Valência, intitulada De rebus venereis ad usum confessariorum. Terminara a leitura espantado e a soluçar. Aquela casuística erudita do vício, aquele estendal da abominação do homem, que descia até aos casos mais monstruosos das paixões contra a natureza, violara brutalmente a sua virgindade de corpo e de espírito. Sentira-se para sempre conspurcado, como uma esposa iniciada de um momento para o outro nas violências do amor, e recordava-se fatalmente daquele questionário vergonhoso cada vez que se confessava. Se as obscuridades do dogma, os deveres do sacerdócio, a morte de todo o livre arbítrio o deixavam sereno, feliz por não ser mais do que o filho de Deus, conservava, mau grado seu, repugnância carnal por semelhantes imundícies, em que era obrigado a remexer, e tinha consciência de uma mancha indelével, em qualquer parte, no fundo do seu ser, que um dia poderia aumentar e cobri-lo de lama

A Lua ia-se elevando por detrás dos Garigues. O padre Mouret, a quem a febre abrasava cada vez mais, abriu a janela e debruçou-se para receber no rosto a frescura da noite. Não se lembrava já a que hora exacta se apoderara de si aquele mal-estar. Recordava-se, contudo, que de manhã, ao dizer a missa, estava muito calmo, muito repousado. Devia, portanto, ter sido mais tarde, talvez durante a sua longa caminhada ao sol, ou sob a impressão que lhe causara o arvoredo do Paradou, ou ainda devido ao calor asfixiante das capoeiras de Désirée. E passou mentalmente em revista todo o dia.

A vasta planície estendia-se diante dele, mais trágica sob a palidez oblíqua do luar. As oliveiras, as amendoeiras, as árvores enfezadas, punham manchas cinzentas no meio do caos das grandes rochas, até à linha sombria das colinas do horizonte. Viam-se grandes trechos de sombra, de arestas quebradas, de pântanos sangrentos, onde as estrelas vermelhas pareciam mirar-se, e brancuras gredosas semelhantes a roupas femininas abandonadas, que descobriam carnes afogadas em trevas, adormecidas nas depressões dos terrenos. À noite, a planície ardente adquiria um estranho espreguiçamento de paixão. Dormia descomposta, derreada, contorcida, com os membros afastados, e exalavam-se dela profundos suspiros mornos, aromas penetrantes de fêmea adormecida e suada. Dir-se-ia uma forte Cibele deitada de costas, de garganta descoberta e ventre ao luar, entontecida pelos ardores do sol e sonhando com a fecundação. Ao longo daquele grande corpo, à distância, o padre Mouret seguia com os olhos o caminho das Olivettes, uma estreita fita desbotada que se prolongava como a laçada esvoaçante de um carpete. Via frei Archangias levantar as saias das garotas, para as açoitar até fazer sangue, e cuspir na cara das mais crescidas, embora ele próprio tresandasse ao odor de um bode eternamente insatisfeito. Via Rosalie rir à socapa, com o seu ar de animal lúbrico, enquanto o tio bambousse lhe atirava torrões de terra aos rins, e recordava-se de que nessa altura-pelo menos assim julgava - ainda se sentia bem, apenas com a nuca aquecida pelo belo sol da manhã. Somente sentia um frémito atrás de si, o murmúrio confuso da vida que escutara vagamente logo de manhã, no meio da missa, quando o sol entrara pelas janelas quebradas. Nunca como àquela hora da noite a planície o desassossegara com o seu peito gigantesco, as suas sombras suaves, o seu brilho de pele ambarina, com toda aquela nudez de deusa mal oculta pela musselina prateada na lua. O jovem padre baixou os olhos e observou a aldeia dos Artauds, que parecia esmagada debaixo do sono pesado da fadiga, do nada em que mergulhavam os camponeses. Nem uma luz. As choupanas formavam massas negras cruzadas pelos riscos brancos das ruelas transversais, varridas pelo luar. Os próprios cães deviam ressonar na soleira das portas fechadas. Quem sabe se os Artauds não teriam empeçonhado o presbitério com qualquer calamidade abominável... Ouvia constantemente engrossar atrás de si o sopro cuja aproximação o deixava tão cheio de angústia. Naquele momento, surpreendia como que o tropel de um rebanho, uma nuvem de poeira que chegava até si impregnada das emanações sebáceas de uma manada de animais. Voltavam a assaltá-lo os seus pensamentos da manhã a respeito daquele punhado de homens que recomeçavam os tempos e cresciam entre rochas escalvadas como uma mão-cheia de cardos semeados pelos ventos, e sentia-se a assistir à eclosão lenta de uma raça. Em criança, nada o surpreendia nem o assustava mais do que as miríades de insectos que via surdir de qualquer fenda quando levantava certas Pedras húmidas. Mesmo adormecidos, extenuados no fundo da sombra, os Artauds perturbavam-no com o seu sono, cujo hálito notava no ar que respirava. Desejaria só ter rochas debaixo das janelas. A aldeia não estava suficientemente morta: os telhados de colmo distendiam-se como peitos, as frestas das portas deixavam passar suspiros, leves estalidos, silêncios vivos que revelavam a presença, em cada tugúrio, de uma ninhada pululante, sob o embalo negro da noite. Sem dúvida, era aquele cheiro que lhe causava náuseas, embora muitas vezes o tivesse já respirado tão forte sem experimentar outra necessidade que não fosse a de se refrescar na oração.

Com as têmporas suadas, foi abrir a outra janela, em busca de ar mais vivificante. Em baixo, à esquerda, estendia-se o cemitério, com a alta barra do Solitário, cuja sombra nem uma brisa agitava. Do campo deserto evolava-se um aroma de prado ceifado de fresco. A grande parede cinzenta da igreja - aquela parede repleta de lagartos e coberta de goivos - esfriava ao luar e uma das enormes janelas brilhava, como se os vidros fossem chapas de aço. A igreja adormecida só devia viver àquela hora a vida extra-humana do Deus da hóstia encerrado no tabernáculo. Pensava na mancha amarelada da lamparina, consumida pela sombra, e assaltava-o a tentação de voltar a descer para aliviar a cabeça enferma no meio daquelas trevas isentas de toda a mácula. Reteve-o, porém, um terror estranho: de súbito, com os Olhos fixos nas vidraças iluminadas pelo luar, julgou ver acender-se dentro da igreja um clarão de fornalha, um esplendor de festa infernal em que giravam, no mês de Maio, as plantas, os animais e as raparigas dos Artauds, que rodeavam furiosamente as árvores com os braços nus. Depois, inclinando-se, viu por baixo de si a capoeira de Désirée, completamente às escuras, a fumegar. Não distinguia bem as gaiolas dos coelhos, os poleiros das galinhas e a barraca dos patos; formava tudo uma só massa amontoada, malcheirosa, estagnada, que exalava o mesmo bafo pestilencial. O cheiro acre da cabra escoava-se por baixo da porta, e o porquito, espojado de barriga para o ar, resfolegava regaladamente junto da gamela vazia. Esticando o pescoço acobreado, o grande galo vermelho, Alexandre, soltou um cocorocó que despertou ao longe, um a um, os apelos apaixonados de todos os galos da aldeia.

Bruscamente, o padre Mouret recordou-se: a febre que o perseguia acometera-o na capoeira de Désirée, diante das galinhas ainda quentes do choco e das coelhas paridas que arrancavam pêlos do ventre. Foi quanto bastou para que experimentasse a sensação nítida de uma respiração no pescoço, que o obrigou a virar-se para ver quem lhe estaria a soprar para a nuca. Naquele momento lembrou-se de Albine a retouçar no parque do Paradou e da porta que se abrira com estrondo e lhe proporcionara a aparição de um jardim encantado. Recordou-a a correr ao longo do muro interminável, em seguimento do cabriole, e a lançar folhas de bétula ao vento, como se fossem beijos. Recordou-a ainda ao crepúsculo, a rir das injúrias de frei Archangias, com as saias a esvoaçarem rente ao chão e a levantarem uma nuvenzinha de pó arrastada pelo ar da tarde. Tinha dezasseis anos, era uma rapariga estranha, de rosto um pouco comprido, e cheirava a ar livre, a erva e a terra. Guardava dela uma recordação tão precisa que lhe parecia estar a ver um arranhão cor-de-rosa na pele branca de um dos seus pulsos flexíveis. Porque se riria daquela maneira, fitando-o com os olhos azuis? Ficara preso ao seu riso como a uma onda sonora que ressoasse por toda a parte e o atingisse na carne; respirava-a, sentia-a vibrar em si. Sim, todo o seu mal provinha daquele riso que bebera.

De pé no meio do quarto, com as duas janelas abertas, pôs-se a tremer, dominado por um medo que o fez esconder a cabeça entre as mãos. O dia inteiro terminava, pois, na evocação de uma rapariga loura, de rosto um pouco comprido e olhos azuis? E o dia inteiro entrava pelas duas janelas abertas. Ao longe, o calor das terras vermelhas, a moldura das grandes rochas, as oliveiras a brotarem das pedras, as vinhas de pernadas contorcidas à beira dos caminhos ; mais perto, o fartum humano que o ar trazia dos Artauds, os cheiros desagradáveis do cemitério, os aromas de incenso da igreja, corrompidos pelos odores de raparigas de cabelos gordurosos, e ainda as emanações do estrume e da lavagem da capoeira, e as fermentações sufocantes dos germes E todas aquelas baforadas afluíam simultaneamente, numa mistura asfixiante, tão impetuosa, engrossada com tal violência que o deixava sem fôlego. Enclausurava os sentidos, tentava aniquilá-los, mas Albine reaparecia diante dele como uma grande flor criada e embelezada naquele húmus. Era a flor natural daquelas imundícies, sensível ao sol, ao qual abria o botão juvenil das suas pétalas brancas, tão feliz por viver que saltava da haste e voava-lhe para a boca, perfumando-o com o seu prolongado riso.

O padre soltou um grito. Sentira queimar-se-lhe os lábios, como que um jacto ardente percorrer-lhe as veias. Então, em busca de um refúgio, caiu de joelhos diante da estatueta da Imaculada Conceição e exclamou de mãos postas:

- Santa Virgem das Virgens, rogai por mim!

EM cima da cómoda de nogueira, a Imaculada Conceição sorria ternamente com as comissuras dos lábios finos, sublinhados por um traço de carmim. Era pequena e toda branca, como branco era também o grande véu que A cobria da cabeça ao pé e que só tinha, na fímbria, um imperceptível fiozinho de ouro. O vestido caía-Lhe em longas pregas direitas sobre o corpo insexuado, cobria-A até ao pescoço e só Lhe deixava a descoberto a garganta flexível. Nem uma só madeixa dos Seus cabelos castanhos era visível. Tinha o rosto rosado, os olhos claros erguidos ao céu e juntas as mãos, também rosadas, mãos infantis de que apenas se viam as extremidades dos dedos sob as pregas do véu, por cima da faixa azul que parecia atar-Lhe à cintura duas pontas ondulantes do firmamento. De todas as Suas seduções de mulher nenhuma estava a descoberto, excepto os pés, pés adoràvelmente descalços que pisavam a roseira-brava mística. E por cima desses pés descalços cresciam rosas de ouro, como a floração natural da Sua carne duplamente pura.

- Virgem fiel, rogai por mim! - repetia desesperadamente o padre.

Aquela imagem nunca o perturbara. Não era ainda a da mãe, os Seus braços não lhe estendiam Jesus, a Sua cintura não adquirira ainda as linhas grossas da fecundidade. Não era a Rainha do Céu que descia coroada de ouro, vestida de ouro, como uma princesa terrestre, levada triunfalmente por um voo de querubins. Aquela imagem nunca se lhe mostrara terrível, nunca lhe falara com a severidade de uma soberana todo-poderosa, cuja simples presença bastasse para curvar as frontes até tocarem o pó. Atrevia-se a olhá-La, a amá-La, sem receio de se deixar comover pela curva macia dos Seus cabelos castanhos. Só o enterneciam os Seus pés descalços, os Seus pés amorosos, que floresciam como um jardim de castidade, demasiado miraculosos para que cedesse ao desejo de os cobrir de carícias. Aquela imagem perfumava o quarto com o Seu aroma de lírio, era o lírio de prata plantado num vaso de ouro, a pureza preciosa, eterna, impecável. No Seu véu branco, tão estreitamente cingido em torno d’Ela, não havia nada humano, nada, excepto uma chama virgem a arder num fogo sempre igual. À noite, ao deitar-se, e de manhã, ao levantar-se, encontrava-A ali, com o seu eterno sorriso extasiado. Despia-se diante d’Ela sem o menor constrangimento, como diante do seu próprio pudor.

- Mãe puríssima, Mãe castíssima, Mãe sempre virgem, rogai por mim! - balbuciou medrosamente, inclinando-se aos pés da Virgem, como se ouvisse atrás de si as correrias sonoras de Albine. - Vós sois o meu refúgio, a fonte da minha ventura, o templo da minha sabedoria, a torre de marfim em que encerrei a minha pureza. Entrego-me nas Vossas mãos imaculadas, suplico-Vos que me aceiteis, que me abrigueis sob uma ponta do Vosso véu, que me oculteis sob a Vossa inocência, atrás da muralha sagrada da Vossa roupa, para que nenhum sopro carnal me possa atingir aí. Tenho necessidade de Vós, morro sem Vós, sinto-me para sempre separado de Vós se não me levais nos Vossos braços protectores para longe daqui, para o meio da brancura ardente que habitais. Maria concebida sem pecado, aniquilai-me no fundo da neve imaculada caída de cada um dos Vossos membros. Vós sois o prodígio da eterna castidade. A Vossa linhagem brotou de um raio, como uma árvore maravilhosa que germe algum plantou. O Vosso Filho, Jesus, nasceu do sopro de Deus, Vós própria nascestes sem que o ventre da Vossa mãe fosse conspurcado e desejo crer que essa virgindade remonta assim de idade em idade, numa ignorância infinita da carne. Oh, viver, crescer, fora da vergonha dos sentidos! Oh, multiplicar, conceber sem a necessidade abominável do sexo, apenas pelo contacto de um beijo celeste!

Este apelo desesperado, este grito isento de desejo, tranquilizou o jovem padre. A Virgem, toda branca, de olhos erguidos ao céu, parecia sorrir mais docemente com os seus finos lábios rosados. E ele recomeçou, com voz enternecida:

- Desejaria ser ainda criança. Desejaria ser sempre uma criança caminhando à sombra do Vosso vestido. Gostaria de ser pequenino e de juntar as mãos para dizer o nome de Maria. O meu berço seria branco, o meu corpo seria branco, todos os meus pensamentos seriam brancos. Ver-Vos-ia distintamente, ouvir-Vos-ia chamar-me, iria ter Convosco sorrindo, sobre rosas desfolhadas. E mais nada. Não sentiria, não pensaria, viveria exactamente o bastante para ser uma flor a Vossos pés. Não se deveria crescer. Só teríeis em torno de Vós cabeças louras, uma multidão de crianças que Vos amariam, com as mãos puras, os lábios sãos, os membros tenros, sem uma mácula, como ao saírem de um banho de leite. Na face de uma criança beijar-se-lhe-ia a alma. Só uma criança pode proferir o Vosso nome sem O conspurcar. Mais tarde, a boca corrompe-se, as paixões envenenam-na. Eu próprio, que tanto Vos amo, que me dei a Vós, não me atrevo a chamar-Vos a toda a hora, por não querer que Vos encontreis com as minhas impurezas de homem. Orei, mortifiquei a minha carne, dormi sob a Vossa protecção, vivi casto; no entanto, choro ao ver hoje que não estou ainda suficientemente morto neste mundo para ser Vosso noivo. O Maria, Virgem adorável, como lamento não ter cinco anos, não ter ficado a criança que calava os lábios às Vossas imagens! Apertar-Vos-ia ao coração, deitar-Vos-ia a meu lado, beijar-Vos-ia como uma amiga, como uma menina da minha idade. Possuiria o Vosso vestido estreito, o Vosso véu infantil, a Vossa faixa azul, toda essa infância que faria de Vós uma irmã mais velha. Não procuraria beijar os Vossos cabelos, porque a cabeleira é uma nudez que se não deve ver; mas beijaria os Vossos pés descalços, um após outro, durante noites inteiras, até desfolhar com os lábios as rosas de ouro, as rosas místicas das Vossas veias.

 

Calou-se e esperou que a Virgem baixasse os olhos azuis e lhe aflorasse a testa com a fímbria do véu. Masa Virgem continuou envolta na musselina até ao pescoço, até às unhas, até aos tornozelos, toda entregue ao Céu, num arrebatamento corporal que A tornava fluida, desprendida já da Terra

- Pois bem - prosseguiu mais exaltado -, fazei que volte a ser criança, Virgem bondosa, omnipotente. Fazei que tenha cinco anos. Apoderai-Vos dos meus sentidos, tomai a minha virilidade. Que um milagre me arrebate o que de homem cresceu em mim. Vós reinais no Céu, nada Vos é mais fácil do que fulminar-me, do que secar os meus órgãos, do que deixar-me sem sexo, incapaz do mal, tão despojado de toda a força que não possa sequer levantar o dedo mínimo sem Vosso consentimento. Quero ser cândido, possuir uma candura igual à Vossa, que nenhum estremecimento humano é capaz de perturbar. Não quero sentir mais os meus nervos, nem os meus músculos, nem as pulsações do meu coração, nem o estuar dos meus desejos. Quero ser uma coisa, uma pedra branca a Vossos pés em que não deixeis mais do que um perfume, uma pedra que não se moverá do sítio para onde a atirardes, sem ouvidos, sem olhos, satisfeita por estar debaixo do Vosso calcanhar, impossibilitada de pensar em imundícies com as outras pedras do caminho. Oh, então que beatitude! Atingiria sem esforço, ao primeiro impulso, a perfeição com que sonho e proclamar-me-ia, enfim, Vosso verdadeiro sacerdote. Seria o que os meus estudos, as minhas orações, os meus cinco anos de lenta iniciação não conseguiram fazer de mim. Sim, nego a vida, digo que a morte da espécie é preferível à abominação contínua que a propaga. O pecado mancha tudo, é um fedor universal que corrompe o amor, envenena o quarto conjugal, o berço dos recém-nascidos, e até as flores que desfalecem ao sol, e as árvores que deixam rebentar os seus renovos. A terra chafurda nesta impureza cujas mais pequenas gotas desabrocham em vegetações vergonhosas. Mas para que seja perfeito, ó Rainha dos anjos, ó Rainha das virgens, escutai o meu apelo, exalçai-o! Fazei que seja um desses anjos que têm duas grandes asas atrás das faces; não quero ter tronco, não quero ter membros, quero voar para Vós se me chamardes. Não quero ser mais do que uma boca para Vos louvar, do que um par de asas imaculadas destinadas a embalar as Vossas viagens nos Céus. Oh, a morte, a morte, Virgem venerável, dai-me a morte por tudo! Amar-Vos-ei na morte do meu corpo, na morte do que vive e do que se multiplica. Consumarei Convosco o único casamento a que aspira o meu coração. Subirei mais alto, sempre mais alto, até alcançar o braseiro onde resplandeceis. Existe aí um grande astro, uma imensa rosa branca, cada folha da qual arde como uma lua, um trono de prata onde brilhais com tal clarão de inocência que a luz do Vosso véu basta para iluminar o Paraíso inteiro. Tudo o que existe de mais branco - as auroras, a neve dos cumes inacessíveis, os lírios acabados de desabrochar, a água das fontes ignoradas, o leite das plantas poupadas pelo sol, os sorrisos das virgens, as almas das crianças mortas no berço - chove sobre os Vossos pés brancos. Então, erguer-me-ei até aos Vossos lábios como uma chama subtil, entrarei em Vós pela Vossa boca entreaberta e as núpcias cumprir-se-ão, enquanto os arcanjos vibrarão com a nossa alegria. Ser virgem, amar virgem, conservar no meio dos mais doces beijos a brancura da virgindade ! Possuir todo o amor, reclinado nas asas dos cisnes, numa nuvem de pureza, nos braços de uma amante luminosa cujas carícias sejam gozos de alma! Perfeição, sonho sobre-humano, desejo de que os meus ossos estalem, delícias que me arrebatam ao Céu! Ó Maria, Vaso de eleição, castrai em mim a humanidade, fazei-me eunuco entre os homens, a fim de me entregardes sem receio o tesouro da Vossa virgindade !

E o padre Mouret, batendo os dentes, esmagado pela febre, desmaiou no pavimento.

 

Os cortinados de algodão, cuidadosamente corridos diante das duas amplas janelas, coavam a luz leitosa do amanhecer que entrava no quarto. Este era de tecto alto, muito vasto, e tinha móveis Luís XV, de madeira pintada de branco, com flores vermelhas rodeadas de folhagem. No tremo,por cima das portas e dos dois lados da alcova, as pinturas deixavam ainda adivinhar os ventres e as nádegas rosadas de Amorzinhos voando em bandos, entretidos em brincadeiras que já se não distinguiam, ao passo que nas guarnições das paredes, a enquadrarem painéis ovais, as portas de duplo batente e o tecto arredondado, outrora de fundo azul-celeste, com cercaduras de brasões, medalhões e laços de fitas cor de carne, se esbatiam num cinzento muito suave, um cinzento que ainda conservava a delicadeza daquele paraíso desbotado. Defronte da janela, abria-se a grande alcova, sob espirais de nuvens que Amores de gesso dispersavam, inclinados, de pernas para o ar, como se quisessem observar descaradamente a cama. A alcova, tal como as janelas, estava protegida por cortinados de algodão, toscamente armados e costurados, de uma inocência singular no meio daquele aposento que ainda conservava a tepidez de um longínquo aroma de voluptuosidade.

Sentada junto de uma consola, onde uma chaleira aquecia numa lamparina de álcool, Albine olhava atentamente os cortinados da alcova. Estava vestida de branco, tinha os cabelos cobertos por um lenço de renda velho e as mãos abandonadas no regaço e velava com o ar sério de uma rapariga crescida. Uma respiração fraca, um sopro de criança adormecida, ouvia-se no grande silêncio do quarto. Mas ela inquietou-se, passados alguns minutos, e, sem se poder conter, foi, em passos cautelosos, levantar uma ponta do cortinado. À beira da cama, Serge parecia dormir, com a cabeça apoiada num dos braços dobrados. Durante a doença, o cabelo e a barba tinham-lhe crescido. Estava muito pálido, tinha os olhos pisados e os lábios descorados e a graça de uma rapariga convalescente.

Enternecida, Albine ia deixar cair a ponta do cortinado quando Serge disse, em voz muito baixa:

- Não estou a dormir...

Ficou, no entanto, com a cabeça encostada, sem mexer um dedo, como que dominado por uma lassidão feliz. Abrira devagar os olhos e respirava levemente contra uma das mãos destapadas, cuja penugem loura eriçava.

- Ouvi-te andar suavemente - murmurou ainda.

Ela ficou radiante por a tutear, aproximou-se e agachou-se diante da cama, para ficar com o rosto à altura do dele.

- Como te sentes?-perguntou, saboreando por seu turno a doçura daquele “te” que lhe saía pela primeira vez dos lábios. - Oh, agora já estás bom! Sabes que chorei durante todo o caminho, quando voltei lá de baixo com tão más notícias? Disseram-me que deliravas, que essa maldita febre, se te poupasse a vida, te levaria a razão... Como beijei o teu tio Pascal quando te trouxe para aqui, a fim de convalesceres !

E não se afastava da cama, muito maternal.

- Como vês, não podias continuar no meio daqueles rochedos crestados. Precisavas de árvores, de frescura, de tranquilidade... O doutor nem sequer disse que te trazia para aqui. É um segredo entre ele e os que te amam. Julgou-te perdido... Sossega que ninguém nos incomodará. O tio Jeanbernat fuma o seu cachimbo diante das suas alfaces, os outros terão notícias tuas às escondidas e o próprio médico não voltará cá, pois agora o teu médico sou eu... Parece que já não necessitas de drogas; só precisas de ser amado, compreendes?

Ele parecia não a ouvir, ter ainda a cabeça oca. Como, sem mexer a cabeça, observasse os cantos do quarto, ela pensou que o preocupava o lugar onde se encontrava.

- É o meu quarto - informou. - Dei-to. É lindo, não achas? Escolhi os móveis mais bonitos que estavam no sótão e fiz estes cortinados de algodão para que a luz não me ferisse a vista... Não me incomodas nada. Dormirei no segundo andar, onde ainda há três ou quatro quartos vazios.

Mas ele continuava inquieto

- Estás sozinha? - perguntou.

- Estou. Porque perguntas isso?

Em vez de responder, murmurou, com ar contrariado:

- Sonhei, estou sempre a sonhar... Ouço sinos e isso fatiga-me.

Depois de um momento de silêncio, prosseguiu:

- Vai fechar a porta e corre os fechos. Quero que só cá estejas tu, que mais ninguém entre

Quando ela voltou, com uma cadeira, e se lhe sentou à cabeceira da cama, encontrou-o a dizer, com infantil alegria:

- Agora, não entrará ninguém, não tornarei a ouvir os sinos . Quando falas, sinto-me mais repousado.

- Tens sede? - inquiriu ela.

Fez-lhe sinal de que não tinha sede, sem tirar os olhos das mãos de Albine, com um ar tão surpreendido, tão encantado por as ver, que ela estendeu uma até à beira da almofada e sorriu. Então, ele deixou escorregar a cabeça e encostou o rosto àquela mão fresca. Riu-se levemente e disse:

- Ah, é macia como seda! Dir-se-ia que uma leve aragem me afaga os cabelos... Não a tires, suplico-te.

Em seguida, reinou um longo silêncio.

Fitavam-se com grande amizade. Albine via-se calmamente nos olhos mortiços do convalescente e Serge parecia escutar qualquer coisa vaga que a mãozinha fresca lhe confiava.

- É tão boa a tua mão - prosseguiu. - Não imaginas como me faz bem... Parece penetrar profundamente em mim e arrancar-me as dores que tenho nos membros. É uma carícia, um refrigério, uma cura, em todos os sentidos.

Passava-a suavemente pelo rosto e animava-se, como que ressuscitado.

- Dize, não me darás nada desagradável a beber, não me atormentarás com toda a espécie de remédios?... A tua mão basta-me, como vês. Só quero que a conserves assim, debaixo da minha cabeça.

- Meu bom Serge - murmurou Albine-, tens sofrido muito, não é verdade?

- Se tenho sofrido? Sim, sim; mas há muito tempo... Dormi mal, tive sonhos horríveis. Se pudesse, contar-te-ia tudo.

Fechou um instante os olhos e fez um grande esforço de memória.

- Vejo tudo negro - balbuciou. - É singular, parece que chego de uma longa viagem e nem sequer sei de onde parti. Tinha febre, uma febre que me galopava nas veias como um animal... É só do que me recordo. Sempre o mesmo pesadelo me fazia rastejar ao longo de um subterrâneo interminável. Quando sentia certas dores mais fortes, o subterrâneo fechava-se bruscamente; caía um monte de pedras da abóbada, as paredes estreitavam-se, ficava anelante, dominado pela raiva de querer passar para o outro lado, e atacava o obstáculo com os pés, as mãos, o crânio, desesperado por não conseguir atravessar aquele desmoronamento, cada vez mais considerável... Depois, de repente, bastava-me tocá-lo com o dedo, e tudo se desvanecia, caminhava livremente pela galeria alargada, sentindo apenas a lassidão da crise.

Albine quis detê-lo, pondo-lhe a mão na boca.

- Não, não me fatiga falar assim. Como vês, falo-te ao ouvido, parece-me que penso e que me entendes... O mais engraçado, no meu subterrâneo, é que não tinha a menor ideia de voltar para trás. Obstinava-me, pensando que precisaria de milhares de anos para desarulhar um só desmoronamento. Era uma empreitada inevitável, que devia executar sob pena de me acontecerem as maiores desgraças. Com os joelhos pisados, batendo com a cabeça na rocha punha uma concentração cheia de angústia em trabalhar com todas as minhas forças, para chegar o mais depressa possível. Chegar aonde?... Não sei, não sei... Fechou os olhos, cogitando, procurando. Depois, fez um gesto de indiferença e abandonou-se de novo na mão de Albine, ao mesmo tempo que dizia, rindo:

- Vês como sou estúpido? Não passo de uma criança. Mas a rapariga, para ver se ele estava bem consciente, se readquirira todas as suas faculdades, interrogou-o, rememorou-lhe recordações confusas que ele tentava evocar. De nada se lembrava, porém; estava realmente numa feliz infância, como se tivesse nascido na véspera.

- Oh, ainda estou fraco! Vê tu, a minha mais longínqua recordação é ter estado numa cama que me escaldava todo o corpo. A cabeça rolava-me na almofada como num braseiro, os pés gastavam-se-me de os esfregar continuamente um no outro... Não há dúvida que estive muito mal! Parecia-me que me trocavam o corpo, que me tiravam tudo, que me consertavam como uma máquina partida...

Esta frase fê-lo rir de novo antes de prosseguir:

- Agora vou ser outro, completamente novo. A doença limpou-me por completo... Mas que estavas a perguntar-me? Não, ninguém estava lá. Sofria sozinho, no fundo de uma caverna escura. Ninguém, ninguém. E do outro lado não havia nada, não via nada... Sou teu filho, queres? Tens de me ensinar a andar. Agora, só te vejo a ti. Garanto-te que não me lembro de nada. Vim, tomaste conta de mim e pronto.

E depois, mais calmo, adulador, acrescentou:

- Agora a tua mão está morna. É boa como o sol... Não falemos mais. Sinto-me excitado.

Um silêncio comovido pareceu cair do tecto azul do grande quarto. A lamparina de álcool acabava de se apagar e a chaleira lançava um fio de vapor cada vez mais fino. Albine e Serge, ambos com a cabeça na mesma almofada, olhavam os grandes cortinados de algodão corridos diante das janelas. Sobretudo os olhos de Serge não se afastavam deles, como se fossem a fonte cristalina da luz em que se banhava, como numa claridade pálida proporcionada às suas forças de convalescente. Adivinhava o sol atrás de um retalho mais amarelo do tecido e isso bastava-lhe para que se sentisse melhor. Ouvia ao longe restolhar a folhagem, enquanto na janela da direita a sombra esverdeada de um ramo alto, perfeitamente desenhado, lhe provocava o sonho inquietante daquela floresta que sentia tão perto de si.

- Queres que corra os cortinados?-perguntou-lhe Albine, induzida em erro pela fixidez do seu olhar.

- Não, não - apressou-se a responder.

- Está um lindo dia. Terias sol, verias as árvores...

- Não, suplico-te... Não quero nada lá de fora. Aquele ramo, ali, fatiga-me, a mexer-se, a crescer, como se estivesse vivo... Dá-me a tua mão; vou dormir. Está tudo tão claro... Que bom!...

E adormeceu candidamente, velado por Albine, que lhe soprava o rosto para lhe refrescar o sono.

No dia seguinte o bom tempo desaparecera e chovia. Serge, assaltado de novo pela febre, passou o dia amargurado, com os olhos desesperadamente fixos nos cortinados, que apenas coavam uma claridade baça, imprecisa, de um cinzento triste. Já não adivinhava o sol, procurava a sombra que lhe causara medo, o ramo alto que, envolto na cortina baça do aguaceiro, lhe parecia ter sido arrebatado pela floresta. À tarde, agitado por um leve delírio, gritou, soluçando, a Albine que o Sol morrera, que ouvira todo o céu, todo o campo chorar a morte do Sol. Teve de o apaziguar como se fosse uma criança, de lhe prometer o Sol, de lhe afirmar que voltaria e que lho daria. Mas ele lamentava também as plantas. As sementes deviam sofrer debaixo da terra, à espera da luz, ter pesadelos, sonhar que rastejavam ao longo de um subterrâneo, que eram detidas por desmoronamentos e que lutavam furiosamente para chegar ao sol. E começou a chorar baixinho, a dizer que o Inverno era uma doença da terra e que morreria ao mesmo tempo que a terra se a Primavera não curasse ambos.

Durante mais três dias o tempo conservou-se carregado. Bátegas contínuas desabavam sobre as árvores, num clamor longínquo de rio trasbordante. As rajadas de vento fustigavam as janelas com um encarniçamento de vagas alterosas. Serge pedira a Albine que fechasse hermeticamente as portas interiores das janelas. Com o candeeiro aceso já não o impressionava a mortalha dos cortinados baços, já não sentia o cinzento do céu entrar pelas mais pequenas fendas e escoar-se até junto de si como uma poalha que o sepultasse. Abandonava-se à inércia, com os braços emagrecidos, pálido, tanto mais fraco quanto mais doente estava o campo. A certas horas do dia, quando o céu se cobria de nuvens negras, as árvores torcidas estalavam e a terra deixava que os aguaceiros arrastassem as ervas como se fossem cabelos de afogadas, perdia até a respiração e desfalecia, como se ele próprio se encontrasse exposto à tempestade. Depois, assim que se abria a primeira clareira, logo que surgia o mais pequeno retalho de azul, entre duas nuvens, respirava, saboreava a quietude da folhagem enxuta, dos carreiros alvejantes, dos campos a beberem o seu último golo de água. Albine era então quem implorava o sol. Ia vinte vezes por dia à janela do patamar observar o horizonte e ficava feliz ao ver as mais pequenas manchas brancas ou preocupada perante as massas de nuvens sombrias, acobreadas, carregadas de saraiva, receosa de que alguma nuvem demasiado negra lhe matasse o seu querido doente. Falava em mandar chamar o Dr. Pascal, mas Serge não queria ninguém e dizia:

- Amanhã o sol iluminará os cortinados e ficarei bom. Uma tarde em que se sentiu pior, Albine deu-lhe a mão

para que pousasse nela a cara, mas como a mão o não aliviou, chorou por se ver impotente para o ajudar. Desde que ele recaíra na modorra do Inverno, já não se sentia bastante forte para o tirar sozinha do pesadelo em que se debatia; necessitava do auxílio da Primavera. Ela própria desesperava, com os braços gelados, arquejante, sem saber já como insuflar-lhe a vida. Durante horas, percorria o grande quarto, entristecida. Quando passava diante do espelho, via-se abatida e considerava-se feia.

Depois, uma manhã, quando lhe ajeitava as almofadas, sem se atrever a tentar novamente o encanto quebrado das mãos, julgou reencontrar o sorriso do primeiro dia nos lábios de Serge, cuja nuca acabava de aflorar com a ponta dos dedos.

- Abre as portas interiores das janelas - murmurou ele. Pensou que estivesse a delirar, devido à febre, pois uma

hora antes só vira da janela do patamar um céu fúnebre.

- Dorme - respondeu tristemente. - Prometi acordar-te assim que surgisse o primeiro raio de sol... Dorme, que o sol ainda não apareceu.

- Apareceu, sim; sinto-o... Abre as portas das janelas.

O SOL rompera, com efeito. Assim que Albine abriu as portas interiores das janelas, uma agradável claridade amarelada aqueceu de novo um retalho dos grandes cortinados de algodão branco. Mas o que fez Serge sentar-se na cama foi tornar a ver a sombra da pernada da árvore, o ramo que lhe anunciava o regresso à vida. Todo o campo ressuscitado, com as suas verduras, as suas águas, o seu amplo círculo de colinas, estava ali para ele, naquela mancha esverdeada que estremecia à menor aragem Já não o inquietava. Seguia a sua oscilação com avidez, como se necessitasse das forças da seiva que lhe anunciava, enquanto Albine o amparava nos braços e dizia, feliz:

- Ah, meu bom Serge, o Inverno acabou!... Estamos salvos.

Voltou a deitar-se, já com os olhos mais vivos e a voz mais clara.

- Amanhã - disse - estarei bastante forte... Correrás então as cortinas para eu ver tudo.

No dia seguinte, porém, apoderou-se dele um terror infantil e não consentiu que as janelas fossem abertas de par em par.

- Logo, mais tarde...-murmurava.

Conservava-se ansioso, temia a primeira chapada de luz que receberia nos olhos. Anoiteceu sem que se decidisse a encarar o sol. Permaneceu com o rosto virado para os cortinados, a seguir através da transparência do tecido a manhã pálida, a tarde ardente e o crepúsculo violáceo, todas as cores, todas as transformações do céu. Ali reproduzia-se até o estremecimento que o bater de asas de uma ave imprimia ao ar tépido, ou o júbilo dos aromas que palpitavam num raio de sol. Por detrás daquele véu, por detrás do sonho enternecido da poderosa vida exterior, ouvia desabrochar a Primavera, e por momentos chegava a sentir-se levemente sufocado, quando o afluxo do sangue novo da terra, a despeito do obstáculo dos cortinados, o alcançava com demasiada rudeza.

Na manhã seguinte ainda dormia quando Albine, precipitando a cura, lhe gritou:

- Serge! Serge! Olha o sol! - ao mesmo tempo que corria vivamente os cortinados e abria as janelas de par em par.

Levantou-se, ajoelhou-se na cama, sufocado, desfalecido, com as mãos a comprimirem-lhe o peito, para lhe impedirem o coração de estalar. Tinha diante de si a imensidão do céu, todo azul, infinitamente azul, no qual se purificava do sofrimento, ao qual se abandonava como se o embalasse suavemente, do qual bebia a doçura, a pureza da juventude. Apenas o ramo de que até ali só vira a sombra ultrapassava a janela e maculava o mar azul com a verdura vigorosa dos seus rebentos, demasiado fortes comparados com a sua fragilidade de enfermo a quem impressionava a mancha das andorinhas voando no horizonte. Renascia. Soltava gritinhos involuntários, inundado de luz, batido por vagas de ar quente, sentindo estuar em si uma lufada de vida. Estendeu as mãos, deitou-se e caiu na almofada desfalecido.

Que feliz e suave dia! O sol entrava pela direita, longe da alcova. Durante toda a manhã, Serge viu-o avançar vagarosamente, aproximar-se dele, amarelo como o ouro, quebrando-se nos velhos móveis, detendo-se nos cantos, deslizando às vezes pelo chão, semelhante a uma ponta de tecido desenrolado. Era uma marcha lenta, cautelosa, uma aproximação de amante que estendia os membros dourados e se alongava até à alcova num movimento ritmado, com uma lentidão voluptuosa que provocava um desejo louco de posse. Por fim, cerca das duas horas, o manto de sol deixou o último cadeirão, subiu ao longo da roupa da cama, instalou-se no leito como uma cabeleira desatada. Serge abandonou as mãos magras de convalescente àquela carícia ardente, semicerrou os olhos, sentiu correr por cada um dos dedos beijos de fogo e mergulhou num banho de luz, num amplexo de astro. E como Albine o observava inclinada e sorrindo, balbuciou, com os olhos completamente fechados:

- Deixa-me, não me apertes tanto... Como consegues ter-me assim completamente enlaçado nos braços?

Depois, o sol tornou a descer da cama e dirigiu-se para a esquerda, no seu passo lento. Então, Serge viu-o girar de novo, sentar-se de cadeira em cadeira, com pesar de não o ter podido reter no peito. Albine conservava-se à beira da cama, e ambos, abraçados pelo pescoço, viram o céu empalidecer pouco a pouco e, por momentos, um grande arrepio pareceu enlividecê-lo de súbita comoção. A languidez de Serge encontrava-se mais à vontade naquela atmosfera, descobria nela cambiantes delicados de que jamais suspeitara. O céu não estava completamente azul, mas sim de um azul-rosado, de um azul-lilás, de um azul-amarelo, como carne viva, como uma grande nudez imaculada que um suspiro fazia palpitar como um peito de mulher. A cada novo olhar, ao longe, descobria surpresas, recantos desconhecidos do ar, sorrisos discretos, redondezas adoráveis, véus que ocultavam no fundo de paraísos entrevistos grandes e esplêndidos corpos de deusas. Enlevava-se, com os membros aligeirados pelo sofrimento, no meio daquela seda cambiante, naquela penugem inocente do azul, e as suas sensações pairavam por cima do seu ser desfalecido. O sol descia, o azul fundia-se no ouro puro, a carne viva do céu amarelecia mais, mergulhava lentamente em todas as tonalidades da sombra. Nem uma nuvem, nem um retraimento de virgem que se deita, nem um desnudamento deixando apenas ver uma faixa de pudor no horizonte. O céu infinito dormia.

- Ah, o querido pequerrucho!-exclamou Albine, olhando Serge, que adormecera agarrado ao pescoço dela, ao mesmo tempo que o céu.

Deitou-se e fechou as janelas. Mas no dia seguinte, ao alvorecer, já estavam abertas. Serge já não podia viver sem o sol. Readquiria forças, habituava-se às lufadas de ar que faziam esvoaçar os cortinados da alcova. Até o azul, o eterno azul, começava a parecer-lhe enfadonho. Aborrecia-se de ser um cisne, uma brancura, e de nadar infinitamente no lago límpido do céu. Chegava a desejar um voo de nuvens negras, uma chuvada que quebrasse a monotonia daquela grande pureza À medida que recuperava a saúde, experimentava a necessidade de sensações mais fortes. Agora, passava horas a olhar o ramo verde. Desejaria vê-lo crescer, lançar-lhe pernadas até à cama. Já não lhe bastava vê-lo; apenas servia para lhe excitar desejos, falando-lhe das árvores cujos apelos profundos escutava, mas das quais não via as copas.

Distinguia um murmúrio infinito de folhas, um sussurro de águas correntes, de batimentos de asas, todo um vozear prolongado e vibrante.

- Quando te puderes levantar - dizia Albine -, sentar-te-ás diante da janela... Verás como o jardim está bonito.

Ele fechava os olhos e murmurava:

-Oh, vejo-o, ouço-o!... Sei onde estão as árvores, onde estão as águas, onde crescem as violetas. E depois prosseguia:

- Mas vejo-o mal, vejo-o sem luz... Preciso de estar mais forte para ir até à janela.

Outras vezes, quando o julgava adormecido, Albine desaparecia durante horas. E, quando regressava, encontrava-o com os olhos brilhantes de curiosidade, devorado de impaciência, e gritava-lhe:

- De onde vens?

E agarrava-a pelos braços e cheirava-lhe as saias, o corpete, as faces.

- Cheiras a toda a espécie de coisas agradáveis... Dize-me, andaste na erva?

Ela ria e mostrava-lhe as botinas orvalhadas.

- Vens do jardim! Vens do jardim!-exclamava, radiante. - Já sabia. Quando entraste, parecias uma grande flor... Trazes-me todo o jardim no vestido.

Retinha-a junto de si, aspirava-a como um ramalhete de flores. Às vezes, ela regressava com silvas, folhas e bocados de ramos presos à roupa. Então, tirava-lhe essas coisas e escondia-as debaixo da almofada como se fossem relíquias. Um dia, ela trouxe-lhe um ramo de rosas. Ficou tão comovido que desatou a chorar. Beijava as flores, deitava-as consigo, entre os braços. Mas, quando murcharam, sentiu tal desgosto que proibiu Albine de colher mais. Preferia-a, a ela, tão fresca, tão perfumada; e não murchava, conservava sempre o aroma das suas mãos, o perfume dos seus cabelos, o odor das suas faces. Acabou por a mandar ele próprio para o jardim, depois de lhe recomendar que não voltasse enquanto não passasse uma hora.

- Assim - dizia -, tenho sol, ar e rosas até amanhã. Muitas vezes, ao vê-la entrar, afogueada, interrogavam.

Em que alameda estivera? Embrenhara-se por debaixo das árvores ou seguira pela beira dos prados? Vira ninhos? Sentara-se atrás de alguma roseira-brava, debaixo de um carvalho ou à sombra de um ramo de álamo? Depois, quando ela respondia, quando tentava descrever-lhe o jardim, punha-lhe a mão na boca.

- Não, não, cala-te - murmurava. - Fiz mal, não quero saber... Prefiro ver com os meus próprios olhos.

E recaía no sonho fagueiro da vegetação que sentia perto de si, a dois passos. Durante muitos dias, apenas viveu desse sonho. Ao princípio, dizia, vira o jardim mais nitidamente, mas à medida que recuperava forças o sonho nublava-se sob o afluxo do sangue que lhe aquecia as veias. As suas hesitações aumentavam; já não era capaz de dizer se as árvores ficavam à direita, se as águas corriam ao fundo, se as grandes rochas não se amontoavam debaixo das janelas. Discorria a tal respeito sozinho, em voz baixa. Traçava planos maravilhosos baseados nos mais pequenos indícios que um canto de ave, o estalar de um ramo, um perfume de flor, o levavam a modificar, para plantar além um maciço de lilases ou substituir acolá um tabuleiro de relva por canteiros de flores. A toda a hora desenhava um novo jardim, perante as gargalhadas de Albine, que explicava, quando o surpreendia:

- Garanto-te que não é nada disso. Não podes imaginar. É mais belo do que tudo o que até agora viste... Não quebres a cabeça. O jardim é meu, mas dar-to-ei. Descansa que não desaparecerá.

Serge, que já tivera medo da luz, experimentou certa inquietação quando se encontrou bastante forte para se ir encostar à janela. Dizia de novo, todas as noites: “Amanhã.” Virava-se para a parede, trémulo, quando Albine entrava e lhe gritava que cheirava a pilriteiro, que arranhara as mãos ao transpor a abertura de uma sebe para lhe trazer todo o seu aroma. Uma manhã, teve de o tomar bruscamente nos braços, de o levar até à janela, segurá-lo e obrigá-lo a olhar.

- Não sejas cobarde! - gritou-lhe, com o seu belo riso sonoro, e apontando com uma das mãos para todos os pontos do horizonte, repetiu com ar triunfante, repleto de promessas ternas: - O Paradou! O Paradou!

Serge, sem voz, olhava.

UM mar de verdura, em frente, à direita, à esquerda, por todos os lados Um mar que espraiava o seu marulho de folhas até ao horizonte, sem o obstáculo de uma casa, de um pano de muralha, de uma estrada poeirenta. Um mar deserto, virgem, sagrado, que ostentava a sua doçura selvagem na inocência da solidão. Só o sol entrava ali. Estendia-se como uma toalha de ouro nos prados, atravessava as alamedas com a corrida desenfreada dos seus raios, deixava pender através das árvores os seus finos cabelos luminosos, bebia nas nascentes com os lábios dourados, que arrepiavam a água. Sob aquela poalha de chamas, o grande jardim entregava-se a extravagâncias de animal feliz abandonado longe do mundo, longe de tudo, livre de tudo. Era tal a abundância de folhagem, tão trasbordante a maré de ervas, que estava como que oculto de ponta a ponta, inundado, submerso. Só se viam encostas verdes, hastes que lembravam repuxos de fonte, massas encrespadas, cortinas de vegetação densa hermeticamente fechadas, mantos de plantas trepadeiras a arrastarem pelo chão, montes de ramos gigantescos espalhados por todos os lados.

Só ao cabo de algum tempo se conseguia reconhecer, debaixo daquela formidável invasão de seiva, o antigo traçado do Paradou Em frente, numa espécie de circo imenso, devia encontrar-se o jardim propriamente dito, com os seus lagos arruinados, as suas balaustradas partidas, as suas escadarias empenadas e as suas estátuas derrubadas, cuja brancura se divisava através da erva sombria. Mais longe, atrás da linha azulada de um lençol de água, estendia-se um emaranhado de árvores frutíferas. Mais longe ainda, um bosque de árvores gigantescas mostrava a parte inferior dos ramos violáceos, raiados de luz, árvores de uma floresta que voltara a ser virgem e cujas copas ondulavam sem fim, eternamente, manchadas de verde-amarelo, de verde-pálido, do verde pujante de todas as essências. À direita, a floresta escalava as alturas, entremeada de pinhaizinhos, e terminava em matagais raquíticos, enquanto um amontoado de rochas escalvadas formava uma rampa enorme, semelhante à derrocada de uma montanha que barrasse o horizonte. Vegetações ardentes fendiam o solo e expandiam-se em plantas monstruosas, imóveis ao calor como répteis entorpecidos, e um fiozinho argênteo, salpicado de pontinhos que pareciam, de longe, uma fieira de pérolas, indicava uma queda de água, a nascente das águas tranquilas que corriam indolentemente ao longo do jardim. Finalmente, à esquerda, o rio deslizava no meio de uma vasta pradaria, onde se separava em quatro ribeiros cujo curso caprichoso se podia seguir debaixo dos canaviais, entre os salgueiros e por detrás das grandes árvores. A perder de vista, tabuleiros de erva brotavam da frescura das terras baixas e proporcionavam uma paisagem suave, de transparência azulada, cujo brilho se fundia pouco a pouco no azul-esverdeado do poente. O Paradou, o jardim, a floresta, as rochas, as águas e os prados abrangiam todo o firmamento.

- O Paradou! -balbuciou Serge, abrindo os braços como se quisesse apertar o jardim inteiro ao peito.

Cambaleou e Albine teve de o sentar numa cadeira de braços onde ficou duas horas calado, com o queixo apoiado nas mãos, a olhar. De vez em quando, pestanejava e corava. Observava tudo detidamente, com profundo espanto. O quê o rodeava era demasiado vasto, demasiado complexo, demasiado forte.

- Não vejo, não compreendo!...-exclamou, estendendo as mãos a Albine, num gesto de suprema fadiga

A jovem encostou-se ao espaldar da cadeira, pegou-lhe na cabeça, obrigou-o a olhar de novo e disse-lhe a meia voz:

- Isto é nosso. Ninguém cá vem. Quando estiveres bom, iremos passear. Temos com que nos entreter durante toda a vida. Iremos aonde quiseres... Aonde desejas ir? Ele sorriu e murmurou:

- Oh, muito longe não! No primeiro dia, só até dois passos da porta. Bem sabes que cairia... Olha, irei para ali, para debaixo daquela árvore, ao pé da janela.

Ela prosseguiu, suavemente:

- Queres ir até ao jardim? Verás moitas de rosas, as belas flores que têm devorado tudo, até as antigas alamedas onde crescem prodigiosamente... Mas talvez prefiras o pomar, onde só consigo entrar de rastos, de tal modo os ramos se vergam ao peso dos frutos... Iremos ainda mais longe, se te sentires com forças. Iremos à floresta, onde há grutas sombrias, muito longe, tão longe que teremos de dormir fora de casa quando a noite nos surpreender... Ou então, uma manhã, subiremos ao cimo dos rochedos e verás plantas que metem medo, e nascentes de onde a água cai pulverizada, e divertir-nos-emos a receber essa poeira líquida na cara... Mas se preferires caminhar ao longo dos valados, à beira de um regato, teremos de ir para as pradarias. Está-se bem debaixo dos salgueiros, à tarde, ao pôr do Sol. Estendemo-nos na erva e entretemo-nos a ver as rãzinhas verdes saltar sobre os rebentos dos juncos.

- Não, não-protestou Serge-, estás a cansar-me, não quero ir tão longe... Darei dois passos e já será muito.

- Eu própria - continuou ela-ainda não consegui ver tudo. Há muitos recantos que ignoro. Há anos que percorro o Paradou e ainda pressinto a existência de cavernas desconhecidas em torno de mim, sítios onde a sombra deve ser mais fresca e a erva mais macia... Olha, sempre imaginei existir em qualquer parte uma caverna em que gostaria de viver toda a vida, e estou certa de que existe. Se calhar já passei perto dela ou talvez se encontre escondida tão longe que ainda a não pude descobrir até agora, nas minhas correrias contínuas... Não é verdade, Serge, que a procuraremos juntos para vivermos lá?

- Não, não, cala-te - balbuciou o jovem. - Não compreendo nada do que dizes. Matas-me com tudo isso.

Ela deixou-o chorar um instante nos seus braços, inquieta, desolada por não conseguir encontrar as palavras capazes de o acalmar.

- O Paradou não é tão belo como sonhaste, pois não? - perguntou-lhe ainda.

Ele respondeu, já com o rosto mais calmo:

- Não sei. Era pequenino, mas está sempre a crescer... Leva-me, esconde-me.

Ela tornou a levá-lo para a cama, tranquilizando-o como uma criança, iludindo-o com uma mentira.

- Tens razão. Não, não é verdade, não existe jardim. Foi uma história que te contei. Dorme tranquilo.

TODOS os dias o fazia sentar diante da janela, às horas mais frescas. Começava a arriscar alguns passos, apoiado nos móveis. As faces adquiriam-lhe um tom rosado e as mãos perdiam a sua transparência de cera. No entanto, a convalescença ocasionou-lhe tal embotamento dos sentidos que o levou à vida vegetativa de um pobre ser nascido na véspera. Não passava de uma planta que apenas sentia a impressão do ar que a rodeava. Conservava-se recolhido em si mesmo, ainda demasiado pobre de sangue para o desperdiçar lá fora, preso ao solo, deixando o corpo beber toda a seiva. Passava por uma segunda concepção, por uma lenta eclosão no ovo quente da Primavera. Albine, que se recordava de certas palavras do Dr Pascal, sentia-se apavorada por o ver assim como um rapazinho inocente, imbecilizado. Ouvira contar que certas doenças deixavam atrás de si a loucura, depois de curadas, e ficava horas a olhá-lo, tentando sorrir como as mães para o obrigar a sorrir também. Ainda não ria. Quando lhe passava a mão diante dos olhos, não via, não notava aquela sombra. Só quando lhe falava virava ligeiramente a cabeça para o lado do ruído. A jovem só tinha uma consolação: via-o desenvolver-se soberbamente, tornar-se uma bela criança.

Então, durante uma semana, rodeou-o de cuidados delicados, esperou pacientemente que crescesse. À medida que verificava certo despertar, tranquilizava-se, pensava que a idade faria dele um homem. Notava-lhe leves estremecimentos quando lhe tocava. Depois, uma tarde, viu-o sorrir pàlidamente. No dia seguinte, depois de o sentar diante da janela, desceu ao jardim e começou a correr e a chamá-lo. Desaparecia debaixo das árvores, atravessava retalhos de sol, e reaparecia, afogueada, a bater as mãos. Ele, com os olhos hesitantes, pareceu não a ver ao princípio; mas como ela recomeçasse a correr, a brincar de novo às escondidas, a surgir detrás de cada moita e a gritar-lhe, acabou por seguir com a vista a mancha branca da saia de Albine. E quando ela se plantou bruscamente debaixo da janela, com o rosto levantado, estendeu-lhe os braços e deixou transparecer no rosto o desejo de ir ao seu encontro. Ela subiu e abraçou-o, muito orgulhosa.

- Ah, tu viste-me, viste-me! - gritou - Queres ir comigo para o jardim, não é verdade?... Se soubesses como me afligiste durante alguns dias, feito bicho, sem me veres nem me ouvires!

Ele parecia escutá-la com leve amargura e inclinava a cabeça com expressão intimidada.

- No entanto, estás melhor - continuou ela.-Já estás bastante forte para desceres quando quiseres... Porque não dizes nada? Perdeste a língua? Criança! Querem ver que tenho de lhe ensinar a falar?...

E, com efeito, entreteve-se a dizer-lhe os nomes dos objectos em que tocava. Ele só balbuciava, soletrava as sílabas, não pronunciava nenhuma palavra com clareza. Apesar disso, começava a passeá-lo pelo quarto, amparava-o, levava-o da cama para a janela. Para ele era uma grande viagem, durante a qual quase caía duas ou três vezes, o que o fazia rir. Um dia, sentou-se no chão e ela viu-se em grandes apuros para o levantar. Em seguida, obrigou-o a dar a volta ao quarto, sentando-se ora no canapé, ora nos cadeirões, ora nas cadeiras, numa viagem à roda daquele pequenino mundo que demorou uma boa hora. Por fim, conseguiu que desse alguns passos sozinho. Punha-se diante dele, com as mãos abertas, e recuava chamando-o, de modo que o levava a atravessar o quarto para encontrar o apoio dos seus braços. Quando amuava e se recusava a andar, tirava a travessa do cabelo e estendia-lha como um brinquedo. Então, ia buscá-la e ficava muito sossegado a um canto, a brincar durante horas com a travessa, com a qual coçava suavemente as mãos.

Uma manhã, Albine encontrou Serge a pé. Até já conseguira abrir uma das portas interiores da janela e tentava caminhar sem se apoiar nos móveis.

- Ora vejam o valentão!...-exclamou alegremente.- Amanhã, se o deixarem, é capaz de saltar pela janela . Isso quer dizer que já te sentes com forças, agora?

Serge respondeu com um riso pueril. Os seus membros tinham recuperado o vigor da adolescência sem que, no entanto, sensações mais conscientes tivessem despertado nele. Ficava tardes inteiras a olhar o Paradou, com a sua expressão de criança que não vê nada, que só ouve a repercussão dos ruídos. Conservava as suas ignorâncias de rapazinho, o seu tacto, tão cândido ainda que não lhe permitia diferençar o vestido de Albine do estofo dos velhos cadeirões, e observava tudo sempre com os olhos muito abertos, num pasmo de quem não compreende, numa hesitação de gestos de quem não sabe para onde quer ir, num começo de existência puramente instintiva, alheio ao conhecimento do que o rodeava. O homem ainda não nascera.

- Bem, bem, não te faças tolo... - murmurou Albine. - Vamos lá ver outra vez...

Tirou a travessa do cabelo e apresentou-lha.

- Queres a minha travessa? Então, vem buscá-la. Depois, quando conseguiu fazê-lo sair do quarto, recuando, rodeou-lhe a cintura com um braço e amparou-o em cada degrau. Distraía-o, enquanto voltava a pôr a travessa na cabeça, e fazia-lhe cócegas no pescoço com a ponta dos cabelos, o que o impedia de compreender que descia. Mas, em baixo, antes de abrir a porta, ele teve medo nas trevas do corredor.

- Olha agora! - gritou ela, e abriu a porta de par em par.

Foi uma aurora súbita, uma cortina de sombra corrida bruscamente, que deixou ver o dia na sua glória matinal. O parque abria-se, desdobrava-se, de uma limpidez verde, fresca e profunda como um manancial. Serge, encantado, parara no limiar, com o desejo hesitante de tactear com o pé aquele lago de luz.

- Parece que tens medo de te molhar - disse Albine. - Vamos, a terra é sólida.

Ele arriscou um passo, surpreendido com a suave resistência do saibro. Aquele primeiro contacto com a terra causava-lhe um abalo, um recrudescimento de vida que o deixou um instante especado, de pé, direito, a suspirar.

- Vamos, coragem - insistiu Albine. - Bem sabes que me prometeste dar cinco passos. Vamos até àquela amoreira que está debaixo da janela... Descansarás lá.

Levou um quarto de hora a dar os cinco passos. A cada esforço parava, como se fosse preciso arrancar as raízes que o prendiam ao solo. A jovem, que o amparava, disse-lhe ainda, rindo:

- Pareces uma árvore a andar.

Encostou-o à amoreira, debaixo da chuva de sol que caía dos ramos, deixou-o e afastou-se de um salto, depois de lhe gritar que não se mexesse. Serge, com as mãos pendentes, virou lentamente a cabeça para o lado do parque. Que desabrochar! A vegetação pálida mergulhava num leite de juventude, banhava-se numa claridade dourada. As árvores tinham aspecto pueril, as flores possuíam carnações infantis e as águas mostravam-se azuis, de um azul cândido de belos olhos arregalados. Notava-se até, debaixo de cada folha, um despertar adorável.

Serge estava parado numa clareira dourada e diante dele abria-se uma alameda ampla, no meio de uma espessa massa de folhagem. Ao fundo, do lado do nascente, prados encharcados de ouro pareciam o campo de luz onde o Sol nascia. Esperava que a manhã entrasse na alameda e deslizasse até ele. Sentia aproximar-se uma aragem morna muito fraca a princípio, mal lhe aflorando a pele, mas que depois aumentava pouco a pouco, tão viva que o fazia estremecer dos pés à cabeça. Saboreava-a à medida que se aproximava, encontrava-lhe um sabor cada vez mais acentuado, o amargor saudável do ar puro, que lhe punha nos lábios o regalo dos aromas açucarados, dos frutos ácidos, das madeiras resinosas. Respirava-a enquanto lhe trazia os perfumes que colhia na sua corrida, o odor da terra, o odor dos bosques sombrios, o odor das plantas quentes, o odor dos animais vivos, todo um amálgama de odores tão penetrantes que causavam vertigens. Ouvia-a vir como o voo ligeiro de uma ave a rasar a erva, quebrando o silêncio de todo o jardim, dando vozes a tudo em que tocava, fazendo-lhe soar aos ouvidos a música das coisas e dos seres. Via-a vir do fundo da alameda, dos prados afogados em ouro, do ar rosado, tão alegre que lhe iluminava o caminho com um sorriso, ao longe, do tamanho de uma mancha de luz convertida em poucos instantes no próprio esplendor do sol. E a manhã acabou por atingir a amoreira a que Serge se encostava, e Serge nasceu na infância da manhã.

- Serge! Serge! -gritou a voz de Albine, oculta atrás das sebes altas do jardim. - Não tenhas medo que eu estou aqui!

Mas Serge já não tinha medo. Nascia ao sol, naquele banho de luz que o inundava. Nascia aos vinte e cinco anos, com os sentidos bruscamente despertos, maravilhado com a amplidão do céu, com a felicidade da terra, com o prodígio do horizonte que se estendia à sua volta. Aquele jardim, cuja existência ignorava na véspera, proporcionava-lhe um gozo extraordinário. Tudo o extasiava, mesmo as folhinhas de erva, mesmo as pedras das alamedas, mesmo os bafos que não via e lhe afloravam as faces. Todo o seu corpo entrava na posse daquele pedaço de natureza, abraçava-o com os seus membros. Os seus lábios bebiam-no, as suas narinas aspiravam-no. Trazia-o nos ouvidos, ocultava-o no fundo dos olhos. Pertencia-lhe. As rosas do jardim, os ramos altos das árvores da mata, os rochedos sonoros da queda das nascentes, os prados onde o sol plantava as suas espigas de luz, eram seus. Depois, fechou os olhos e entregou-se à volúpia de os reabrir lentamente, para ter o deslumbramento de um segundo despertar.

- Os pássaros comeram os morangos todos - disse Albine, que se aproximava a correr, desolada. - Olha, só encontrei estes dois.

Mas deteve-se a alguns passos de distância e olhou Serge com uma admiração extasiada, ferida no coração.

- Como és belo! - exclamou.

Aproximou-se mais e parou, sem poder tirar os olhos dele.

- Nunca te tinha visto assim... - murmurou.

Ele crescera, sem dúvida. Envergava um fato largo, estava muito direito, ainda um pouco fraco, e tinha os membros delgados; mas o peito era firme e os ombros redondos. O pescoço branco, trigueiro na nuca, girava livremente e sustentava-lhe a cabeça um pouco inclinado para trás. A saúde, a força, a pujança, retratavam-se-lhe no rosto. Não sorria; estava em repouso, tinha a boca grave e doce, as faces firmes, o nariz grande e os olhos cinzentos, muito claros, soberanos. Os seus longos cabelos, que lhe ocultavam todo o crânio, caíam-lhe sobre os ombros, em madeixas negras, ao passo que a barba, ligeira, frisada na boca e no queixo, deixava ver a brancura da pele.

- És belo, és belo! -repetia Albine, lentamente, agachada diante dele, fitando-o com olhar carinhoso. - Mas porque estás tão sério agora? Porque não me dizes nada?

Ele, sem responder, permanecia de pé. Olhava para longe e não via aquela criança a seus pés. Como se falasse para si, disse, olhando o sol:

- Como a luz é boa!

E dir-se-ia que esta frase era uma vibração do próprio sol. Saiu-lhe dos lábios num murmúrio, como um sopro musical, um estremecimento do calor e da vida. Havia alguns dias já que Albine não escutava a voz de Serge e encontrou-a mudada, como ele. Pareceu-lhe que se espalhava no parque com mais doçura do que a chilreada dos passarinhos, com mais autoridade do que o vento que curvava os ramos. Era rainha, mandava. Todo o jardim a ouviu, embora tivesse passado como um sopro, e todo o jardim estremeceu de alegria ao escutá-la.

- Fala-me - implorou Albine. - Nunca me falaste assim. Lá em cima, no quarto, antes de emudeceres, tagarelavas como uma criança... Que te aconteceu que já não reconheço a tua voz? Há pouco, julguei que a tua voz descia das árvores, que me vinha de todo o jardim, que era um desses suspiros profundos que me perturbavam de noite, antes da tua vinda... Escuta, tudo se cala para te ouvir falar mais.

Mas ele continuava a não dar pela presença da rapariga, e ela tornava-se mais terna:

- Não, não fales se isso te fatiga. Senta-te a meu lado. Ficaremos aqui, na relva, até o Sol dar a volta... Olha, encontrei dois morangos. Tive um grande desgosto, acredita! Os pássaros comem tudo... Um é para ti, ou os dois, se quiseres. Ou então comemos metade de cada um, para os provarmos ambos... e quando me agradeceres poderei ouvir a tua voz.

Ele não se quis sentar e recusou os morangos, que Albine deitou fora, despeitada. Ela própria não abriu mais os lábios. Preferi-lo-ia doente, como nos primeiros dias, quando lhe dava a mão para lhe servir de almofada e o sentia renascer sob o sopro com que lhe refrescava o rosto. Amaldiçoava a saúde, que lhe permitia manter-se naquela altura a pé à luz do dia, como um jovem deus indiferente. Iria ficar sempre assim, sem a olhar? Não melhoraria o suficiente para a ver e amar? E ela que sonhara ser a sua cura, acabar, graças apenas ao poder das suas mãozinhas, aquele tratamento da segunda juventude. Bem via que faltava uma chama no fundo dos seus olhos cinzentos, que tinha uma beleza pálida, semelhante à das estátuas caídas no meio das urtigas do jardim. Então, levantou-se, amparou-o pela cintura e soprou-lhe na nuca para o animar. Mas naquela manhã Serge nem sequer pareceu notar a aragem que lhe agitava a barba sedosa. O Sol dera a volta e era necessário regressar a casa. No quarto, Albine chorou.

A partir daquela manhã, o convalescente deu todos os dias um curto passeio no jardim. Ultrapassou a amoreira, foi até à beira do terraço, diante da ampla escadaria cujos degraus quebrados desciam até ao jardim. Habituava-se ao ar livre, parecia desabrochar à medida que os banhos de sol se sucediam. Um castanheiro novo, nascido de uma semente caída entre duas pedras da balaustrada, rompia a resina dos seus botões e abria o seu leque de folhas com menos vigor do que ele. Um dia, até quis descer a escada, mas, traído pelas forças, teve de se sentar num degrau, no meio das parietárias que cresciam entre as lajes fendidas. Em baixo, à esquerda, entrevia um maciçozinho de rosas. Era aí que desejava ir.

- Espera mais um pouco - dizia-lhe Albine. - O perfume das rosas é demasiado forte para ti. Nunca me sento debaixo das roseiras que não me sinta cansada, de cabeça esvaída, com uma vontade muito agradável de chorar... Bem, levar-te-ei para debaixo das roseiras e chorarei, porque a verdade é que me entristeces bastante...

POR fim, uma manhã, amparou-o até ao fundo da escada e foi calcando a erva com o pé diante dele e abrindo-lhe caminho por entre as roseiras-bravas que barravam os últimos degraus com as suas pernadas flexíveis. Depois, lentamente, dirigiram-se para o maciço de rosas. Era um bosque de árvores de grande porte cobertas de altas roseiras de pé que espalhavam em todas as direcções tufos de folhagem frondosos como árvores, dos quais pendiam enormes cachos de rosas, num conjunto semelhante a uma mata impenetrável de carvalhos novos. Outrora, houvera ali a mais admirável colecção de plantas que se possa imaginar, mas desde o abandono do jardim tudo crescia ao acaso, formara-se uma floresta virgem, as pernadas de roseiras tinham invadido os carreiros, carregadas de rebentos silvestres, e as variedades haviam-se misturado de tal forma que nos mesmos pés pareciam desabrochar rosas de todos os aromas e de todas as espécies. Roseiras rastejantes cobriam o solo de tapetes de musgo, ao passo que roseiras trepadeiras se enroscavam noutras roseiras como heras vorazes, subiam em girândolas de verdura e deixavam cair, ao menor sopro, a chuva de pétalas das suas flores desfolhadas. Através do bosque tinham-se traçado alamedas naturais, carreiros estreitos, largas avenidas e adoráveis caminhos cobertos, pelos quais se caminhava à sombra e rodeado de perfumes. Chegava-se assim a encruzilhadas, a clareiras, sob caramanchões de rosinhas vermelhas e entre muros revestidos de rosinhas amarelas. Certos recantos batidos pelo sol brilhavam como retalhos de seda verde, salpicados de relevos não menos brilhantes, e certos recantos de sombra possuíam aconchegos de alcova, um aroma de amor, uma tepidez de ramalhete murcho no seio de uma mulher. As roseiras tinham vozes ciciantes; as roseiras estavam repletas de ninhos que cantavam.

- Temos de tomar cuidado para não nos perdermos - recomendou Albine, embrenhando-se no bosque. - Eu perdi-me, uma vez, e o Sol já se tinha posto quando consegui desembaraçar-me das roseiras que me prendiam pelas saias a cada passo.

Caminhavam, porém, havia apenas alguns minutos quando Serge, vencido pela fadiga, se quis sentar. Deitou-se e adormeceu profundamente. Albine, sentada a seu lado, ficou pensativa. Estavam à saída de um atalho, à beira de uma clareira. O atalho desaparecia muito ao longe, cruzado pelos raios de sol, e surgia na outra extremidade a céu aberto, por uma estreita abertura redonda e azulada. Outros caminhos mais pequenos abriam corredores de verdura. A clareira era formada por grandes roseiras escalonadas que trepavam com uma exuberância de ramos, um amálgama de lianas espinhosas tão cerrado, que espessos mantos de folhagem tecidos no ar se aguentavam suspensos e se estendiam de um arbusto a outro como panos de uma tenda móvel. Entre aqueles retalhos de vegetação, recortados como fina renda, só se viam buracos de luz quase imperceptíveis, um crivo de azul que deixava passar a claridade numa impalpável poalha de sol. E da abóbada pendiam, como girândolas, ramos soltos, grandes tufos suspensos pelo fio verde de uma haste, e braçados de flores que desciam até ao solo ao longo de algum rasgão pendente do tecto como um pedaço de cortina arrancada.

Entretanto, Albine contemplava Serge adormecido. Nunca o vira em semelhante estado de prostração de membros, com as mãos abertas na relva e o rosto imóvel. Parecia morto; tão morto para ela, pensou, que o poderia beijar na cara sem que sequer sentisse o seu beijo E triste, distraída, ocupava as mãos ociosas a desfolhar as rosas que encontrava perto de si. Por cima da cabeça caía-lhe uma pernada enorme, que lhe aflorava os cabelos e lhe cobria de rosas as tranças, as orelhas e a nuca, e que por fim lhe lançava sobre os ombros um manto de rosas. Mais acima, ao alcance dos seus dedos, as rosas desfaziam-se em grandes pétalas delicadas, deliciosamente arredondadas, de uma pureza apenas tingida pelo rubor de um seio de virgem. Como um nevão vivo, as rosas ocultavam-lhe já os pés dobrados na erva, subiam-lhe aos joelhos, cobriam-lhe a saia e submergiam-na até à cintura, enquanto três pétalas perdidas, que lhe haviam voado para o corpete e ficado presas ao princípio do seio, pareciam adorná-lo com as extremidades da sua nudez adorável.

- Oh, o preguiçoso! - ’murmurou, aborrecida, e apanhou dois punhados de pétalas que atirou à cara de Serge para o despertar.

Acordou entorpecido, com as pétalas a taparem-lhe os olhos e a boca, o que fez rir Albine, que se inclinou e lhe beijou amorosamente os olhos e a boca, soprando os ’beijos para fazer voar as pétalas. Mas estas ficaram-lhe coladas aos lábios e ela riu mais alto, muito contente com a carícia das flores.

Serge erguera-se lentamente e olhava-a atónito, como que espantado por a encontrar ali.

- Quem és tu, de onde vens, que fazes ao pé de mim? – perguntou-lhe.

Ela continuou a sorrir, satisfeita por o ver acordar assim. Então, ele pareceu recordar-se e acrescentou, com um gesto de confiança feliz:

- Já sei: és o meu amor, pertences à minha carne e esperas que te tome nos braços para nos tornarmos um só... Estava a sonhar contigo. Encontravas-te no meu peito e eu dava-te o meu sangue, os meus músculos e os meus ossos, sem sofrer. Tomavas metade do meu coração, tão suavemente que sentia extraordinária volúpia em me dividir assim. Procurava o que tinha de melhor, de mais belo, para te dar. Mesmo que me levasses tudo, ficar-te-ia agradecido... Acordei quando saíste de mim, pelos olhos e pela boca, e senti-te sair. Estavas muito tépida, muito perfumada, e tão meiga que foi o próprio estremecimento do teu corpo que me fez sentar.

Albine ouvia-o extasiada. Finalmente, via-a; finalmente, acabava de nascer, de se curar. Com as mãos estendidas, suplicou-lhe que continuasse.

- Como consegui viver sem ti?-murmurou ele.-Mas eu não vivia, assemelhava-me a um animal sonolento... Agora, porém, és minha, és parte de mim mesmo! Escuta, quero que nunca mais me deixes. És o meu alento e, se me deixasses, arrebatar-me-ias a vida. Ficaremos em nós. Estarás na minha carne como eu estarei na tua. Se um dia te abandonar, que seja maldito, que o meu corpo seque como uma erva inútil e daninha!

Pegou-lhe nas mãos e exclamou, com voz fremente de admiração:

- Como és ’bela!

Envolta na poalha de sol que caía sobre ela, a carne de Albine parecia leitosa, apenas dourada por um reflexo de luz. A chuva de pétalas que caíra em torno dela e sobre ela mergulhara-a num banho de rosas. Os seus cabelos louros, que a travessa mal conseguia prender, toucavam-na como um astro no poente, cobriam-lhe a nuca com o desalinho das últimas madeixas chamejantes. Trazia um vestido branco que a desnudava, de tal modo a envolvia de vida, lhe descobria os braços, o colo, os joelhos, e lhe revelava a pele inocente, exibida sem acanhamento, como se fosse uma flor almiscarada de perfume imaculado. Era esguia, mas de modo nenhum excessivamente alta, e flexível como uma serpente. Possuía formas arredondadas, suaves, linhas amplas e voluptuosas, toda a graça de um corpo nascente ainda mal saído da infância, mas já com a turgidez da puberdade. No seu rosto comprido, de fronte estreita e boca um pouco carnuda, resplandecia toda a vivacidade terna dos seus olhos azuis, mesmo quando estava séria, como naquele momento, com as faces ingénuas e o queixo cheio, tão naturalmente bela como belas são as árvores.

- Como eu te amo! - exclamou Serge, atraindo-a a si.

Ficaram nos braços um do outro, sem se beijarem, enlaçados pela cintura, face contra face, unidos, mudos, encantados por serem um só. Em torno deles, as roseiras floresciam, numa floração louca, amorosa, repleta de risos vermelhos, rosados e brancos. As flores vivas abriam-se como corpos nus, como corpetes que deixassem ver os tesouros do seio. Havia ali rosas amarelas que desfolhavam peles douradas de raparigas cruéis, rosas cor de palha, rosas cor de limão, rosas cor de sol, de todos os matizes das nucas ambaradas pelos céus ardentes. Depois, as carnes tornavam-se mais delicadas e as rosas-chá adquiriam afogueamentos adoráveis, ostentavam pudores ocultos, exibiam recantos de corpo que nunca se mostram, de uma delicadeza de seda, levemente azulados pela rede das veias. A vida ridente da rosa desabrochava em seguida: o branco-rosado, apenas colorido por uma pincelada de laca, neve de um pé de virgem que tacteia a água de uma nascente; o rosa-pálido-, mais discreto do que a brancura quente de um joelho apenas entrevisto, do que a aparição fugidia de um braço jovem a iluminar uma manga larga; O rosa puro do sangue sob cetim, das espáduas nuas, das ancas nuas, de toda a nudez da mulher, acariciado pela luz; o rosa-vivo, flores em botão do colo, flores entreabertas dos lábios, que exalavam o perfume de um hálito tépido, e as roseiras trepadeiras, as grandes roseiras donde choviam flores brancas que vestiam todas as rosas, todas as carnes, com a renda dos seus cachos, com a inocência da sua musselina leve, enquanto, aqui e ali, rosas roxas, quase negras, sangrentas, quebravam aquela pureza de desposada com um frémito de paixão. Bodas do bosque perfumado que levavam as virgindades de Maio às fecundidades de Julho e Agosto; primeiro beijo ignorante colhido como um ramalhete na manhã do casamento. Até na erva as rosas-de-musgo, com os seus vestidos afogados, de ’lã verde, esperavam o amor. Ao longo do carreiro raiado de sol, rondavam flores, avançavam rostos que chamavam os ventos ligeiros à sua passagem. Debaixo da tenda da clareira brilhavam todos os sorrisos. Mas nenhum dos desabrochamentos se parecia com outro. As rosas tinham a sua maneira de amar. Umas só consentiam em entreabrir o botão, muito tímidas, com o coração ruborizado, ao passo que outras, com o corpete desatado, palpitantes, completamente abertas, pareciam enxovalhadas, loucas pelo próprio corpo prestes a morrer. Havia-as pequeninas, solertes, alegres, que caminhavam em fila com um penacho no toucado; enormes, repletas de encantos, com redondezas de sultanas engordadas; descaradas, com ar de meretrizes, num desalinho de vestuário atrevido, que exibiam pétalas branqueadas a pó-de-arroz; honestas, burguêsmente decotadas, correctas; aristocráticas, de uma elegância flexível e de uma originalidade aceitável, que inventavam maneiras sedutoras de se despirem. AS rosas abertas como taças ofereciam o seu perfume em cristais preciosos; as rosas invertidas, em forma de urna, deixavam-no correr gota a gota; as rosas redondas, semelhantes a couves, respiravam com a regularidade de flores adormecidas; as rosas em botão fechavam as folhas, só deixavam sair o vago suspiro da sua virgindade.

- Amo-te, amo-te - repetia Serge, em voz baixa.

E Albine era uma grande rosa, uma das rosas pálidas abertas de manhã. Tinha os pés brancos, os joelhos e os braços cor-de-rosa, a nuca loura, a garganta adoràvelmente atravessada de veias, pálida, de uma languidez delicada. Cheirava bem e estendia os lábios, nos quais oferecia como numa taça de coral o seu perfume ainda pouco intenso. E Serge aspirava-o, enchia com ele o peito.

- Oh! - exclamou ela, rindo. - Não me fazes mal, podes-me tomar toda.

Serge ficou deslumbrado com aquele riso que parecia o gorjeio cadenciado de uma ave.

- Só tu gorjeias assim - disse ele. - Nunca ouvi riso tão suave... És a minha alegria.

E ela ria cada vez mais sonoramente, em gradações perladas de notazinhas de flauta muito agudas, que morriam em pianos de sons graves. Era um riso sem fim, um arrulho de garganta, uma música agradável, triunfante, que celebrava a volúpia do despertar. Tudo ria naquele riso de mulher nascente para a beleza e para o amor: as rosas, o bosque perfumado, o Paradou inteiro. Até ali, faltara um encanto ao grande jardim, uma voz graciosa que fosse a alegria viva das árvores, das águas, do sol. A partir daquele momento, porém, o grande jardim (possuía o encanto do riso.

- Quantos anos tens? - perguntou-lhe Albine, depois de terminar o seu gorjeio numa nota longa e moribunda.

- Quase vinte e seis anos-respondeu-lhe Serge.

Ela admirou-se. Como, já tinha vinte e seis anos?! Ele próprio estava muito surpreendido por ter respondido à pergunta tão facilmente. Parecia-lhe não ter um dia, uma hora.

- E tu, quantos anos tens? - inquiriu, por seu turno.

- Eu? Dezasseis.

E continuou, toda vibrante, a repetir a sua idade, a cantar a sua idade. Ria-se de ter dezasseis anos, com um riso muito agudo, que deslizava como um fio de agua num ritmo trémulo de voz. Serge olhava-a muito de perto, maravilhado com a vivacidade daquele riso que lhe resplandecia no rosto infantil Quase não a reconhecia com aquelas covinhas nas faces, os lábios arqueados, mostrando o rosado húmido da boca, e os olhos semelhantes a retalhos de céu azul, iluminados como um astro nascente. Quando se inclinava, aquecia-o com o queixo dilatado de riso, que lhe encostava ao ombro.

Estendeu a mão e procurou-lhe qualquer coisa atrás da nuca, com um gesto maquinal.

- Que queres? - perguntou-lhe ela. E, recordando-se, gritou:

- Queres a travessa! Queres a travessa!

Deu-lha e deixou cair as pesadas tranças do carrapito. Foi como se se desdobrasse um tecido de ouro. Os cabelos cobriram-na até aos rins e algumas madeixas que lhe deslizaram pelo peito acabaram de a vestir regiamente. À vista daquele clarão brusco, Serge soltou um leve grito. Beijava-lhe cada madeixa, queimava os lábios naquela radiação de Sol poente

Mas Albine estava resolvida a desforrar-se do seu longo silêncio. Falava, perguntava sem nunca se deter.

- Ah, como me fizeste sofrer! Já não era nada para ti, passava os dias inútil, impotente, desesperada com a minha falta de préstimo... E, no entanto, nos primeiros dias a minha presença confortava-te Vias-me, falavas-me... Não te lembras, quando estavas deitado, de adormeceres encostado ao meu ombro a murmurar que te fazia bem?

- Não - respondeu Serge-,não me lembro... Nunca te tinha visto. Acabo de te ver pela primeira vez, bela, radiante, inolvidável.

Ela bateu as mãos, impaciente, e soltou um grito de surpresa.

- E a minha travessa? Recordas-te com certeza que te dava a minha travessa para estares quieto, quando eras criança? Ainda há pouco a procuravas.

- Não, não me recordo... Os teus cabelos são de pura seda. Nunca te beijara os cabelos.

Ela zangou-se, precisou certos pormenores, contou-lhe a sua convalescença no quarto de tecto azul. Mas ele, sempre a rir, acabou por lhe pôr a mão nos lábios e dizer, com uma prostração inquieta:

- Não, cala-te; não sei nem quero saber... Acabo de despertar e encontrei-te aqui coberta de rosas. Isso me basta.

E tornou a tomá-la nos braços, longamente, a devanear em voz alta:

- Talvez já tenha vivido, mas foi com certeza há muito tempo... Amava-te, num sonho doloroso. Tinhas os teus olhos azuis, o teu rosto um pouco comprido, o teu ar de criança, mas escondias cuidadosamente os cabelos debaixo de um pano, e eu não ousava desviar esse pano, porque os teus cabelos eram temíveis e matar-me-iam... Hoje, os teus cabelos são a própria doçura da tua pessoa. São eles que conservam o teu perfume, que me entregam por completo nas mãos a suavidade da tua beleza. Quando os beijo, quando mergulho neles o rosto, assim, bebo-te a vida.

Fazia girar as longas tranças nas mãos, apertava-as aos lábios, como se quisesse sugar através delas todo o sangue de Albime. Ao cabo de um momento de silêncio, continuou:

- É estranho, antes de se ter nascido sonha-se que se vai nascer... Estive enterrado em qualquer parte. Tinha frio. Ouvia agitar-se por cima de mim a vida exterior, mas tapava os ouvidos, desesperado, habituado ao meu buraco tenebroso onde saboreava alegrias terríveis, sem procurar sequer desembaraçar-me do monte de terra que me pesava no peito... Onde estava? Quem me restituiu por fim à luz?

Fazia esforços de memória, enquanto Albine, ansiosa, receava então que já não se lembrasse. Pegou, sorrindo, num punhado de cabelos, atou-lhos ao pescoço e prendeu-o deste modo a si. Esta brincadeira arrancou-o ao seu devaneio.

- Tens razão - disse. - Sou teu, que importa o resto?... Foste tu, não é verdade, que me tiraste da terra? Devia estar debaixo deste jardim. O que ouvia eram os teus passos rolando as pedrinhas do carreiro. Procuravas-me, derramavas sobre a minha cabeça cantos de aves, aromas de cravos, calores de sol... E tinha a certeza de que acabarias por me ’encontrar. Esperava-te havia muito tempo, como vês. Mas o que não esperava era que te entregasses a mim sem o teu véu, com os cabelos desatados, com os teus cabelos temíveis tornados tão suaves.

Puxou-a para si, deitou-a nos joelhos e encostou o rosto ao dela

- Não falemos mais. Estamos sós para sempre. Amamo-nos.

Ficaram inocentemente nos braços um do outro e durante muito tempo esqueceram-se de que se encontravam ainda ali. O Sol subia e uma poalha de luz mais quente caía dos ramos altos. As rosas amarelas, as rosas brancas, as rosas vermelhas, eram apenas um reflexo da sua alegria, uma das suas maneiras de sorrirem. Tinham decerto feito desabrochar botões à sua volta. As rosas coroavam-nos, lançavam-lhes grinaldas à cintura. E o perfume das rosas tornava-se ’tão penetrante, tão cheio de ternura amorosa, que parecia ser o próprio perfume do seu hálito.

Depois, foi Serge quem compôs os cabelos de Albine. Tomou-os às mãos-cheias, com uma falta de jeito encantadora, e espetou a travessa obliquamente, no enorme carrapito que lhe amontoou na cabeça. Contudo, ela ficou adoràvelmente ’penteada. Em seguida levantou-se, estendeu-lhe as mãos e amparou-a pela cintura para que se pusesse em pé. Ambos continuavam a sorrir, sem falar. Devagarinho, afastaram-se pelo carreiro.

ALBINE e Serge entraram no jardim. Ela olhava-o com uma solicitude inquieta, com receio de que se fatigasse, mas ele tranquilizou-a com uma gargalhadinha. Sentia-se bastante forte para a acompanhar aonde quisesse ir. Quando se encontrou em pleno sol, soltou um suspiro de satisfação. Finalmente, vivia, já não era a planta sujeita às agonias do Inverno. Que enternecido reconhecimento ela lhe merecia por isso! Desejaria evitar aos pèzinhos de Albine as asperezas das alamedas e pensava que talvez devesse pegar-lhe ao colo, como uma criança a quem a mãe adormece. Agora, protegia-a como um guarda ciumento, desviava as pedras e as silvas, velava para que o vento não cobrisse os cabelos adorados de carícias que só a ele pertenciam. Aninhada no ombro dele, Albine abandonava-se cheia de serenidade.

Foi assim que Albine e Serge caminharam ao sol pela primeira vez. Ambos deixavam atrás de si um aroma agradável que fazia estremecer o atalho, enquanto o sol desenrolava um tapete de ouro sob os seus passos. Caminhavam como que enlevados, entre os grandes maciços floridos, tão desejáveis que as alamedas solitárias, ao longe, os chamavam e saudavam com um murmúrio de admiração, como as multidões saúdam os reis longo tempo esperados. Eram ambos um só ser soberanamente belo. A pele branca de Albine era apenas a brancura da pele morena de Serge. Passavam vagarosamente, vestidos de sol; eram o próprio sol. As flores, inclinadas, adoravam-nos.

No jardim, experimentaram uma grande comoção: o velho jardim escoltava-os, rodeava-os aquele vasto campo onde a vegetação crescia ao abandono havia um século, aquele recanto paradisíaco em que o vento plantava as flores mais raras. A paz feliz do Paradou, adormecido à torreira do sol, impedia a degenerescência das espécies. Havia ali uma temperatura constante, uma terra que cada planta adubara durante muito tempo, para nela viver no silêncio da sua pujança. A vegetação era enorme, esplêndida, poderosamente inculta, repleta de acasos que ostentavam florações monstruosas, ignoradas da enxada e dos regadores dos jardineiros. Entregue a si própria, podendo crescer livremente, sem pudor, no meio de uma solidão protegida por abrigos naturais, a natureza entregava-se mais a cada Primavera, dedicava-se a folguedos formidáveis, rejubilava por oferecer todas as estações ramalhetes estranhos que nenhuma mão deveria colher. E parecia aplicar-se com raiva na destruição do que o esforço do homem erguera. Revoltava-se, atirava flores a esmo para o meio das alamedas, atacava as rochas com as vagas alterosas dos seus musgos, prendia pelo pescoço os mármores que derrubava com o auxílio da corda flexível das suas plantas trepadeiras, quebrava as lajes dos tanques, das escadas e dos terraços, nas fendas das quais plantava arbustos, rastejava até se apossar dos mais pequenos recantos cultivados, moldava-os a seu bel-prazer e colocava neles, como estandarte de rebelião, alguma semente apanhada no caminho, uma verdura humilde que transformava em verdura gigantesca. Outrora, o jardim, conservado por um dono que tinha a paixão das flores, exibia em platibandas, em canteiros cuidados, uma maravilhosa colecção de plantas. Presentemente, encontravam-se as mesmas plantas, mas perpetuadas, multiplicadas em famílias tão inumeráveis e de tal forma disseminadas pelos quatro cantos do jardim, que este se convertera num labirinto cerrado, num viveiro selvagem de plantas que amarinhavam pelos muros, num lugar suspeito em que a natureza ébria tinha arrotos de verbena e de cravo.

Era Albine quem guiava Serge, embora parecesse abandonar-se-lhe, fraca, amparar-se-lhe no ombro. Primeiro, levou-o à gruta. Ao fundo de um renque de choupos e salgueiros, numa rocha escavada, fragmentada em blocos caídos na taça de uma fonte, corriam fios de água através das pedras. A gruta desaparecia debaixo do assalto da folhagem. Em baixo, fileiras de malvas-rosas pareciam barrar a entrada com uma grinalda de flores vermelhas, amarelas, cor de malva e brancas, cujas hastes mergulhavam em urtigas colossais, de um verde-bronze, que ressumavam tranquilamente as ardências do seu veneno. Seguiam-se, num arranque prodigioso que lhes permitia amarinhar em poucos saltos, os jasmins estrelados, com as suas flores suaves; as glicínias de folhas delicadamente arrendadas; as heras espessas, que pareciam recortadas em chapa envernizada; as madressilvas flexíveis, crivadas de rebentos de coral pálido; as clematites amorosas, que estendiam os ’braços enfeitados de penachos brancos, e outras plantas mais frágeis que, entrelaçadas naquelas, as ligavam mais, as prendiam numa trama odorífera. Capuchinhas de carnação esverdeada e nua abriam bocas de ouro-avermelhado. Feijoeiros-escarlates, fortes como cordéis finos, ateavam a intervalos regulares o incêndio provocado pelas suas centelhas vivas. Plantas volúveis dilatavam o coração recortado das suas folhas e tocavam com os seus milhares de campainhas um carrilhão silencioso, de cores delicadas. Ervilhas-de-cheiro, semelhantes a asas de borboletas pousadas, dobravam as pétalas fulvas e cor-de-rosa, prontas a deixarem-se levar para mais longe pelo primeiro sopro de vento. Cabeleiras de verdura imensas, salpicadas de flores, cujas tranças trasbordavam por todos os lados, escapavam-se em desordem louca, lembravam alguma rapariga gigantesca desfalecida ao longe, vergada pelos rins, com a cabeça derrubada num espasmo de paixão num espadanar de crinas soberbas esparsas como um lago perfumado.

- Nunca ousei penetrar em tanta escuridão-disse Albine ao ouvido de Serge.

Ele encorajou-a, transportou-a por cima das urtigas, e como um bloco fechava o limiar da gruta, manteve-a um instante direita, entre os braços, para que se pudesse inclinar sobre o buraco escancarado a alguns pés do solo.

- Lá em baixo - murmurou ela - está uma mulher de mármore deitada ao comprido no meio da corrente. A água comeu-lhe a cara.

Então, ele ’também quis ver. Ergueu-se a pulso e uma lufada de ar fresco bateu-lhe nas faces. No meio dos juncos e das lentilhas-d’água, iluminada pelo raio de luz que se insinuava pelo buraco, a mulher estava de costas, nua até à cintura, coberta por roupagens que lhe ocultavam as coxas. Dir-se-ia alguma afogada que tivesse caído ali havia cem anos, o lento suicídio de um mármore que algum desgosto tivesse precipitado no fundo da nascente. O lençol de água cristalina que corria sobre ela convertera-lhe a cara numa pedra lisa, numa brancura sem feições, mas os dois seios, como que erguidos fora de água por um esforço da nuca, permaneciam intactos, vivos ainda, entumecidos pela antiga voluptuosidade

- Vamos, não está morta!-exclamou Serge, voltando a descer -Um dia, havemos de a tirar de lá

Mas Albine, que sentira um calafrio, levou-o dali. Voltaram para o sol, para a orgia das platibandas e dos canteiros. Caminhavam através de um prado coberto de flores, ao acaso, sem caminho definido. Os seus pés tinham como tapete plantas encantadoras, as plantas anãs que orlavam outrora as alamedas e que presentemente se desdobravam em mantos sem fim. De vez em quando, enterravam-se até aos tornozelos na seda mosqueada das silénias cor-de-rosa, no cetim empenachado dos cravos, no veludo azul dos miosótis, crivado de olhinhos melancólicos. Mais adiante atravessavam resedas gigantescas que lhes subiam até aos joelhos como um banho de perfumes. Atalharam por um campo de lírios-do-vale, para não estragarem um campo de violetas vizinho, tão delicadas que recearam pisar-lhes o mais pequeno tufo. Depois, cercados por todos os lados, isolados no meio das violetas, viram-se forçados a caminhar por entre elas com passos cautelosos, a transpor aquela frescura embalsamada, no meio da própria respiração da Primavera. Para lá das violetas, desenrolava-se a lã verde das tabeliãs, um pouco áspera, salpicada de malva-clara, e as estrelas matizadas das selagináceas, as taças azuis das nemófilas, os cachos amarelos das saponárias e os cachos cor-de-rosa e brancos das julianas-de-mahon desenhavam cantos de tapeçaria rica e estendiam até ao infinito, diante deles, o luxo real de uma carpete pela qual Serge caminhava sem fadiga na alegria do seu primeiro passeio. Mas as violetas reapareciam sempre, espalhavam-se como um mar por toda a parte, lançavam-lhes aos pés aromas preciosos e acompanhavam-nos com o bafo das suas flores escondidas sob as folhas.

Albine e Serge perdiam-se naquele labirinto. Mil plantas de hastes mais altas formavam sebes, traçavam carreiros estreitos que ambos se compraziam em percorrer. Os atalhos embrenhavam-se em desvios bruscos, confundiam-se, enredavam-se em troços de floresta inextricável em que abundavam os agératos de penachos azuis-celestes; as aspérulas de delicado aroma de almíscar; os mímulos de colos acobreados, salpicados de cinábrio; os flosculos escarlates e cor de violeta, soberbos, com as suas rocas de flores muito direitas, que o vento fiava; os linhos vermelhos, de rebentos finos como cabelos, e os crisântemos semelhantes a luas cheias, luas de ouro que dardejavam curtos raios extintos, esbranquiçados, violáceos e rosados. O par saltava os obstáculos e continuava a caminhar, feliz, entre as duas sebes de verdura

À direita, trepavam, ligeiras, as fraxinelas, os centrantos desfaziam-se em neve imaculada e os cinoglossos acinzentados conservavam uma gota de orvalho em cada uma das taças minúsculas das suas flores. À esquerda, ficava uma comprida rua de ancólias - de todas as variedades de ancólias -, brancas, cor-de-rosa-pálidas e cor de violeta-escuras. Estas últimas quase negras, de uma tristeza de luto, deixavam pender de um ramo de altas hastes as pétalas plissadas e enrugadas como crepes. E mais longe, à medida que avançavam, as sebes mudavam, alinhavam os troncos floridos de esporas-bravas enormes, perdidas no meio das folhas frisadas, deixavam passar as goelas abertas das bocas-de-lobo fulvas e erguiam a folhagem esguia dos chizantos, cheia de flores semelhantes a borboletas de asas cor de enxofre mosqueadas de laca. As campânulas retouçavam e lançavam as suas campainhas azuis para longe, a esmo, até ao cimo de grandes asfódelos, cujas hastes douradas lhes serviam de campanários. Num canto, um funcho gigante lembrava uma dama vestida de renda fina, com a sua sombrinha de cetim verde-mar inclinada. Depois, bruscamente, encontraram-se ao fundo de um caminho sem saída, impossibilitados de avançar mais, porque um monte de flores fechava o atalho, numa tal exuberância de plantas que parecia uma meda com o seu penacho triunfal Em baixo, os acantos formavam um pedestal em que se enlaçavam ervas-bentas escarlates, rodantos cujas pétalas secas apresentavam fracturas de papel pintado e clárkias de grandes flores brancas, lavradas, semelhantes a rosetas de alguma ordem bárbara. Mais acima, expandiam-se viscaria cor-de-rosa, leptosiphon amarelos, colinsia brancos e lagurus que arvoravam entre cores vivas borlas cinzentas-esverdeadas. Mais alto ainda, as dedaleiras vermelhas e os tremoços azuis elevavam-se em colunetas delgadas e suspendiam uma capa cor-de-rosa, violentamente pintalgada de púrpura e azul, enquanto mesmo no topo um rícino colossal, de folhas sanguíneas, se assemelhava a um grande zimbório de cobre polido.

Ao ver que Serge estendia já as mãos para passar, Albine suplicou-lhe que não fizesse mal às flores.

- Quebravas os ramos, davas cabo das folhas - disse ela. - Vivo aqui há anos e tomo sempre muito cuidado para não destruir nada Anda, quero mostrar-te os amores-perfeitos.

Obrigou-o a voltar para trás e levou-o para fora dos carreiros estreitos, para o meio do jardim, onde se encontravam antigamente grandes lagos que, com o tempo, se tinham enchido de terra e não passavam agora de vastas jardineiras com as bordas de mármore esboroadas e partidas

Num dos maiores, uma rabanada de vento semeara um maravilhoso açafate de amores-perfeitos. As flores de veludo pareciam vivas, com os seus bandós de cabelos cor de violeta, os seus olhos amarelos, as suas bocas mais pálidas e os seus delicados queixos cor de carne.

- Quando era mais nova, metiam-me medo - murmurou Albine.- Olha para eles. Não parecem milhares de rostinhos a fitarem-nos rentes à terra?... E viram todos a cara ao mesmo tempo. Dir-se-iam bonecos enterrados, com a cabeça de fora.

Arrastou-o de novo, para contornarem os outros lagos. No lago vizinho tinham desabrochado amarantos, eriçados de cristas monstruosas em que Albine não ousava tocar, pois lembravam-lhe gigantescas lagartas sangrentas. Balsaminas de um amarelo palha e flores de pessegueiro enchiam outro tanque, onde as sementes, ao abrirem, davam pequenos estalidos secos. A seguir, no meio das ruínas de uma fonte, uma colecção de cravos esplêndidos: cravos brancos trasbordavam do bebedouro coberto de musgo, cravos empenachados exibiam entre as fendas das pedras a miscelânia das suas rendas de musselina recortada e ao fundo das fauces do leão, por onde outrora esguichava a água, florescia um grande craveiro vermelho, de rebentos tão vigorosos que o velho leão mutilado parecia expelir golfadas de sangue. E, ao lado, o tanque principal, um antigo lago em que tinham nadado cisnes, agora convertido em bosque de lilases à sombra do qual goivos de várias cores, verbenas e bons-dias protegiam a pigmentação das suas pétalas delicadas, semiadormecidos e trasbordantes de perfume.

- E ainda não atravessámos metade do jardim!-exclamou Albine, orgulhosamente. - Lá ao fundo é que se encontram as grandes flores campestres, onde desapareço por completo, como uma perdiz numa seara.

Lá foram. Desceram uma larga escadaria em cujas urnas derrubadas chamejavam ainda altas labaredas cor de violeta dos íris. Ao longo dos degraus corria um riacho de goivos semelhante a uma toalha de ouro líquido e, dos dois lados, os cardos tinham erguido candelabros de bronze verde, esguios, eriçados, recurvados como bicos de aves fantásticas, de uma arte estranha e de uma elegância de turíbulo chinês. Os sedum deixavam pender entre as balaustradas partidas tranças louras, cabeleiras esverdeadas como limos, cobertas de manchas de mofo. Depois, em baixo, estendia-se um segundo jardim dividido por buxos fortes como carvalhos, antigos buxos correctos, outrora talhados em ’bolas, pirâmides e torres octogonais, hoje magnificamente desordenados, com grandes farrapos de verdura sombria, por cujos buracos se viam pedaços de céu azul.

Albine levou Serge para a direita, para um campo que era como que o cemitério do jardim, a que as escabrosas emprestavam o seu luto. Cortejos de papoulas corriam à desfilada, como se fugissem do cheiro da morte, e abriam as pesadas flores numa ostentação febril. Trágicas anémonas formavam multidões desoladas, de aspecto mortificado, terroso, como se tivesse passado por elas um sopro epidémico. Datura trapus abriam as suas cornetas violáceas onde os insectos, cansados de viver, iam ’beber o veneno do suicídio. Maravilhas-bastardas sepultavam as flores sob as folhas emaranhadas, como corpos de estrelas agonizantes que exalassem já a peste da sua decomposição. E havia ainda outras tristezas: os ranúnculos carnudos, de uma cor baça de metal enferrujado; os jacintos e as tuberosas, que exalavam a asfixia, morriam vitimados pelo próprio’ perfume, e as cinerarias, que se sobrepunham a tudo, atacavam tudo, dominavam tudo e passeavam o luto aliviado dos seus vestidos cor de violeta e brancos, de veludo listrado ou de veludo liso, de uma severidade rica. No meio do campo melancólico, um Amor de mármore conservava-se ainda de pé, mutilado, com o braço que empunhava o arco caído nas urtigas, mas apesar de tudo sorridente debaixo dos líquenes que faziam tiritar a sua nudez infantil.

Depois, Albine e Serge entraram até à cintura num campo de peónias. As flores brancas desfaziam-se, convertiam-se numa chuva de pétalas largas que lhes refrescavam as mãos, semelhantes às gotas pesadas de uma chuvada tempestuosa. As flores vermelhas dir-se-ia possuírem rostos apoplécticos cujo riso alvar os assustava. Alcançaram, à esquerda, um campo de brincos-de-princesa, uma mata de arbustos flexíveis, delgados, que os entusiasmaram como brinquedos japoneses guarnecidos por um milhão de campainhas. Atravessaram em seguida campos de verónicas, de cachos cor de violeta, e campos de gerânios e de pelargónios sobre os quais pareciam correr centelhas ardentes, o vermelho, o rosa, o branco incandescente de um braseiro que os mais pequenos sopros de vento reavivavam sem cessar. Tiveram, de abrir cortinados de gladíolos, tão altos como canaviais, e de erguer hastes de flores que, abrasadas de luz, despediam clarões ofuscantes como archotes acesos. Erraram por entre um bosque de girassóis, uma floresta de troncos tão grossos como a cintura de Albine, obscurecida por folhas enormes, tão grandes que poderiam servir de berço a uma criança, povoada de rostos gigantescos, de rostos de astro, resplandecentes como sóis, e chegaram por fim a outro bosque, um bosque de rododendros, de flores tão cerradas que não deixavam ver os troncos nem as folhas, e em que •se ostentavam ramalhetes monstruosos, braçados de cálices delicados que se amontoavam a perder de vista

- Vá, que ainda não chegámos ao fim! - gritou Albine. - Caminhemos, continuemos a caminhar.

Mas Serge deteve-a. Estavam então no meio de uma antiga colunata em ruínas. Fustes de colunas faziam de bancos entre tufos de primaveras e de pervincas. Ao longe, entre as colunas que restavam de pé, estendiam-se outros campos de flores: campos de tulipas, com penachos vivos de faiança pintada; campos de calceolárias semelhantes a leves bolhas de carne pontilhadas de sangue e ouro; campos de zínias idênticas a grandes malmequeres irritados; campos de petúnias de pétalas macias como a cambraia de linho de uma camisa de mulher exibindo a pele rosada; e campos, sempre mais campos, até ao infinito, de flores impossíveis de identificar, dispostas em tapetes, ao sol, num amálgama confuso de tufos exuberantes, e afogadas nos verdes delicados das ervas.

- Nunca conseguiremos ver tudo-disse Serge, com a mão estendida, sorrindo. - Deve ser agradável ficar aqui sentado a aspirar o aroma que exalam estas flores.

Ao lado havia um campo de heliotrópios dos quais se desprendia um cheiro a baunilha tão suave que dava ao vento uma carícia de veludo. Sentaram-se numa das colunas derrubadas, no meio de um maciço de lírios soberbos ali desabrochados. Havia mais de uma hora que caminhavam. Tinham vindo das rosas até aos lírios através de todas as flores Os lírios ofereciam-lhes um refúgio cândido, depois do seu passeio de amantes no meio da solicitação ardente das madressilvas suaves, das violetas almisearadas, das verbenas que exalavam o aroma fresco de um beijo e das tuberosas que insinuavam o desfalecimento de uma volúpia mortal. Os lírios rodeavam-nos com as suas hastes elegantes, metiam-nos num pavilhão branco, debaixo do tecto nevado dos seus cálices, a/penas animados pelas leves gotas douradas dos pistilos, e eles deixavam-se ficar ali como noivos infantis, soberanamente pudicos, como se se encontrassem no centro de uma torre de pureza, de uma torre de marfim inatacável, onde só se amavam ainda com todo o encanto da sua inocência.

Albine e Serge ficaram junto dos lírios até ao cair da noite. Sentiam-se ’bem ali; acabavam de nascer naquele recanto. Ali, Serge sentia desaparecerem-lhe das mãos os últimos sinais de febre e Albine tornava-se completamente branca, de um branco leitoso que nenhum rubor tingia de cor-de-rosa. Não notavam que tinham os braços nus, o pescoço nu, os ombros nus, e os seus cabelos já não os perturbavam como corpos nus estendidos Encostados um ao outro, riam com um riso cristalino e encontravam frescura no seu contacto estreito. Os seus olhos conservavam uma calma límpida de água nascente e nada impuro lhes ressumava da carne que lhes embaciasse o cristal. AS suas faces eram frutos aveludados ainda mal amadurecidos que não pensavam sequer em morder. Quando deixaram os lírios, não tinham dez anos; parecia-lhes que acabavam de se encontrar, sozinhos no fundo do grande jardim, para nele viverem numa amizade e numa brincadeira eternas. Ao atravessarem de novo o jardim, que o crepúsculo começava a ocultar, as flores pareceram tornar-se discretas, felizes por os verem tão jovens, como se não quisessem corromper aquelas crianças. Os bosques de peónias, os açafates de cravos, os tapetes de miosótis, os renques de clematites, não abriam já diante deles uma alcova de amor submersa àquela hora num ambiente nocturno, adormecida numa infância tão pura como a deles. Os amoresjperfeitps olhavam-nos como camaradas com os seus rostinhos cândidos. As resedas, enlanguescidas, tocadas pela saia branca de Albine, pareciam condoídas e evitavam aumentar-lhes a febre com o seu hálito.

No dia seguinte, logo que amanheceu, Serge apressou-se a chamar Albine. Ela dormia num quarto do andar superior, onde nem sequer pensou subir. Debruçou-se da janela, viu-a abrir as persianas, depois de saltar da cama, e riram muito por se encontrarem assim.

- Hoje não sais-disse Albine, quando desceu.-Temos de descansar... Amanhã, quero-te levar longe, muito longe, a um sítio onde estaremos completamente à vontade.

- Mas assim vamo-nos aborrecer -murmurou Serge.

- Oh, não!... Contar-te-ei histórias.

Passaram um dia encantador. Como as janelas estavam escancaradas, o Paradou entrou e riu-se com eles no quarto. Serge tomava, finalmente, posse daquele belo quarto, onde julgava ter nascido Quis ver tudo, que tudo lhe fosse explicado. Os Amores de gesso, virados de pernas para o ar à beira da alcova, pareceram-lhe tão engraçados que subiu para uma cadeira a fim de atar o cinto de Albine ao pescoço do mais pequeno, uma migalha de gente de traseiro no ar e cabeça para baixo, muito traquinas. Albine batia as mãos, gritava que lhe parecia um besouro preso por um fio. Depois, num assomo de piedade, suplicou:

- Não, não, solta-o... Isso impede-o de voar.

Mas foram principalmente os Amores pintados por cima das portas que mais atraíram a atenção de Serge. Aborrecia-o que as pinturas desbotadas não lhe permitissem adivinhar a que estavam a brincar Ajudado por Albine, empurrou uma mesa e subiram ambos para cima dela. Albine explicou:

- Olha, estes estão a atirar flores. Debaixo das flores só se vêem três pernas nuas. Se não me engano, quando cá cheguei ainda consegui distinguir uma dama deitada; mas depois, com o tempo, desapareceu.

Deram a volta aos painéis sem que aquelas encantadoras indecências de boudoir lhes despertassem qualquer pensamento impuro. As pinturas, que se esboroavam como um rosto arrebicado do século xvni, estavam tão mortas que só deixavam adivinhar os joelhos e os cotovelos dos corpos desfalecidos numa luxúria amável Os pormenores demasiado crus em que parecia ter-se comprazido o antigo amor de que a alcova conservava o longínquo aroma, tinham desaparecido, comidos pelo ar puro, de modo que o quarto, assim como o parque, readquirira naturalmente a sua virgindade, sob a glória tranquila do sol.

- Ora, não passam de garotos que se divertem! - exclamou Serge, descendo da mesa. - Sabes jogar ao pão quente?

Albine sabia todos os jogos; mas, para jogar ao pão quente, eram precisas, pelo menos, três pessoas, o que os fez rir. Serge replicou, porém, que estavam muito bem os dois sozinhos e juraram que não quereriam mais ninguém com eles.

- A casa é mais nossa quando não se ouve ninguém - insistiu o jovem, deitando-se no canapé. - Os móveis têm um cheiro a velhice que sabe bem... Tudo isto é confortável como um ninho Aqui está um quarto onde há felicidade.

A rapariga abanava gravemente a cabeça.

- Se fosse medrosa - murmurou -, ter-me-ia deixado dominar pelo medo nos primeiros tempos... É justamente essa história que te quero contar. Ouvi-a na região. Tem talvez o seu bocadinho de exagero, mas, enfim, distrair-nos-á

Sentou-se ao lado de Serge e prosseguiu:

- Foi há muitos anos... O Paradou pertencia a um fidalgo rico que se veio encerrar aqui com uma dama muito bela. As portas do palácio estavam sempre tão bem fechadas, os muros do jardim eram tão altos que nunca ninguém conseguiu ver a mais pequena ponta das saias de tal dama.

- Já sei - interrompeu-a Serge. - A dama nunca mais se tornou a ver.

Como Albine o fitasse muito surpreendida, desolada por verificar que a sua história já era conhecida, ele continuou a meia voz, também muito admirado:

- Já me contaste essa história.

Ela protestou. Depois, pareceu mudar de ideias e deixou-se convencer, o que não a impediu de terminar a narrativa nestes termos:

- Quando se foi embora, o fidalgo tinha os cabelos brancos e mandou entaipar todas as aberturas para que ninguém viesse importunar a senhora... Ela morreu neste quarto.

- Neste quarto!-exclamou Serge. - Isso é que não me tinham ainda dito... Tens a certeza de que morreu neste quarto?

Albine zangou-se. Repetia o que toda a gente sabia. O fidalgo mandara construir aquele pavilhão para nele instalar a desconhecida, que parecia uma princesa. Mais tarde, os criados do palácio garantiram que passava ali os dias e as noites. Às vezes, também o viam numa alameda guiando os pèzinhos da desconhecida nos sítios onde a mata era mais espessa. Mas por nada deste mundo se teriam atrevido a espreitá-los e o casal percorria o parque durante semanas inteiras.

- E foi aqui que ela morreu - repetiu Serge, impressionado - E tu apoderaste-te do seu quarto, serves-te dos seus móveis, deitas-te na sua cama...

Albine sorria.

- Bem sabes que não sou medrosa. E depois todas estas coisas são tão velhas... Ainda há pouco dizias que o quarto te parecia cheio de felicidade.

Calaram-se, olharam um instante a alcova, o tecto alto, os recantos de sombra acinzentada. Havia como que uma ternura amorosa nas cores desbotadas dos móveis, como que um suspiro discreto do passado, tão resignado que dir-”se-ia ainda um agradecimento tépido da mulher adorada.

- Sim - murmurou Serge-, não há motivo para se ter medo. É tudo tão tranquilo...

E Albine prosseguiu, aproximando-se dele:

- O que poucas pessoas sabem é que descobriram no jardim um recanto de felicidade perfeita, onde acabaram por viver todas as suas horas. Sei isto de fonte segura... Um recanto de sombra fresca, oculto ao fundo de silvados impenetráveis, tão maravilhosamente belo que nele se esquece o mundo inteiro. A tal dama deve ter sido lá enterrada.

- É no jardim? - perguntou Serge, curiosamente.

- Oh, não sei, não sei! - respondeu a rapariga, com um gesto desalentado. - Procurei por todos os lados e ainda não consegui encontrar em parte alguma essa feliz clareira... Não é nem nas rosas, nem nos lírios, nem no tapete de violetas.

- Talvez seja naquele canto de flores tristes, onde me mostraste uma criança em pé, com um braço partido...

- Não, não.

- Ou talvez seja ao fundo da gruta, junto da água transparente, onde está afogada aquela grande mulher de mármore que não tem cara

- Não, não.

Albine ficou um instante pensativa e depois continuou, como se falasse consigo mesma:

- Desde os primeiros dias que a procuro. Passei dias inteiros no Paradou, explorei os mais pequenos recantos de verdura, só para me sentar uma hora no meio da clareira. Quantas manhãs perdidas inutilmente a deslizar por debaixo das silvas, a visitar os recantos mais distantes do parque!... Oh, depressa reconheceria esse retiro encantado, com a sua árvore imensa que o deve cobrir como um tecto de folhas, com a sua erva fina como pelúcia de seda e com as suas muralhas de sarças verdes que nem as próprias aves conseguem transpor!

Rodeou com um braço o pescoço de Serge e ergueu a voz, suplicante:

- Dize, agora que somos dois, havemos de o procurar e de o encontrar, sim?... Tu, que és forte, desviarás os ramos grossos diante de mim, para eu ir até ao fundo das moitas, pegar-me-ás quando estiver cansada, ajudar-me-ás a saltar os regatos e subirás às árvores se nos perdermos no caminho... E que alegria quando nos pudermos sentar ao lado um do outro debaixo do tecto de folhas, no meio da clareira! Contaram-me que se vive lá, num minuto, uma vida inteira... Dize, meu bom Serge, a partir de amanhã iremos à descoberta, bateremos o parque moita a moita, até encontrarmos o que desejamos, sim? Serge encolheu os ombros e sorriu.

- Para quê? - redarguiu. - Não se está melhor no jardim? Para se ser feliz, basta ficar com as flores, não é preciso ir procurar tão longe uma felicidade maior.

- É lá que está enterrada a morta - murmurou Albine, recaindo no seu devaneio. - Foi a alegria de se ter sentado ali que a matou. A árvore projecta uma sombra encantada que mata... Não me importaria de morrer assim. Deitar-nos-emos nos braços um do outro, como se estivéssemos mortos, e ninguém nos tornará a encontrar.

- Não, cala-te, estás-me a afligir! - interrompeu-a Serge, inquieto. - Quero que vivamos ao sol, longe dessa sombra mortal. As tuas palavras perturbam-me, como se nos impelissem para alguma desgraça irreparável. Devia ser proibido as pessoas sentarem-se debaixo de uma árvore cuja sombra produz semelhante angústia.

- Sim, é proibido - declarou Albine, gravemente. - Toda a gente da região me disse que era proibido.

Reinou um momento de silêncio. Serge levantou-se do canapé onde se deitara. Ria, pretendia que as histórias não o entretinham. O sol desaparecia no horizonte quando Albine consentiu, por fim, em descer um instante ao jardim. Levou-o pela esquerda, ao longo do muro de vedação, até um campo de ruínas todo eriçado de silvas. Era o antigo local do palácio e ainda estava negro do incêndio que abatera as paredes. As pedras crestadas pelo fogo fendiam-se e montes de vigamentos de madeiras apodreciam debaixo das silvas. Dir-se-ia um recanto de rochas estéreis, cortado de barrancos e lombas e coberto de ervas bravias e lianas trepadeiras que deslizavam em cada fenda como cobras. Divertiu-os percorrer em todos os sentidos aquele emaranhado, descer ao fundo dos buracos, devassar as ruínas e procurar adivinhar alguma coisa daquele passado convertido em cinzas. Sem ousarem confessar a sua curiosidade, perseguiam-se por entre os pavimentos quebrados e as paredes derrubadas, mas, na verdade, só pensavam nas lendas daquelas ruínas, naquela dama mais bela do que o dia que arrastara a saia de seda por aqueles degraus onde, presentemente, só os lagartos passeavam preguiçosos.

Serge acabou por subir ao monte de escombros mais alto, donde observou o parque que desdobrava diante dele os seus imensos tapetes de verdura, e procurou entre as árvores a mancha cinzenta do pavilhão. Albine, calada, de pé a. seu lado, estava muito séria.

- O pavilhão fica ali, à direita - informou, sem que a interrogasse. - É tudo o que resta das construções... Não o vês, ao fim desse manto de tílias?

Guardaram de novo silêncio. E como se retomasse em voz alta as reflexões que ambos faziam mentalmente, ela prosseguiu:

- Quando a ia ver, devia descer por esta alameda. Depois, contornava os grandes castanheiros e entrava por debaixo das tílias... Precisava apenas de um quarto de hora.

Serge não abriu os lábios. Quando regressaram, desceram a alameda, contornaram os grandes castanheiros e seguiram por debaixo das tílias. Era um caminho de amor. Pareciam procurar passos na erva, um laço de fita caído, um resto de perfume antigo, qualquer indício que lhes mostrasse claramente que estavam de facto no carreiro que os levaria à alegria de estarem juntos. A noite caía e o parque chamava-os do fundo da vegetação com a sua grande voz moribunda.

- Espera - disse Albine quando chegaram diante do pavilhão. - Sobe apenas daqui a três minutos.

Correu alegremente e fechou-se no quarto de tecto azul. Em seguida, depois -de deixar Serge bater duas vezes à porta, entreabriu-a discretamente e recebeu-o com uma reverência à moda antiga.

- Bons dias, meu querido senhor - disse, abraçando-o. Isto divertiu-os muito. Brincavam aos namorados com uma puerilidade de garotos, balbuciavam a paixão que outrora ali agonizara, aprendiam-na como uma lição que soletravam adoravelmente. Como não sabiam beijar-se nos lábios, beijaram-se nas faces e acabaram por dançar um diante do outro, rindo às gargalhadas, por a ignorância não lhes permitir mnifestar de outro modo o prazer que saboreavam em se amar.

NA manhã seguinte, Albine quis partir ao nascer do Sol, para dar o grande passeio que projectava desde a véspera. Batia alegremente os pés e dizia que naquele dia não voltariam para casa.

- Aonde me levas? - perguntou Serge.

- Verás, verás!...

Mas ele segurou-a pelos pulsos e olhou-a no rosto.

- É preciso ter juízo, compreendes? Não quero que procures nem a tua clareira, nem a tua árvore, nem a tua erva onde se morre. Bem sabes que é proibido.

Ela corou levemente, protestando, dizendo que nem sequer pensava nessas coisas, e depois acrescentou:

- No entanto, se as encontrássemos sem as procurarmos, por acaso, não te sentavas?... Gostas assim tão pouco de mim?

Partiram. Atravessaram o jardim a direito, sem se deterem a ver despertar as flores, nuas no seu banho de orvalho. A manhã tinha um tom rosado, um sorriso de criança calma ao abrir os olhos no meio das alvuras do travesseiro.

- Aonde me levas? - repetiu Serge.

E Albine riu-se, sem querer responder.

Mas ao chegarem diante do lençol de água que cortava o jardim ao fundo do parque, ficou muito consternada, pois a ribeira estava ainda cheia devido às últimas chuvas.

- É impossível passar - murmurou. - Costumo descalçar os sapatos e arregaçar as saias, mas hoje teríamos água até à cintura.

Andaram um instante ao longo da margem, à procura de um vau. A jovem dizia que era inútil, que conhecia todas as passagens. Antigamente, havia ali uma ponte, uma ponte que abatera e semeara a ribeira de grandes pedras por entre as quais a água passava em turbilhões de espuma.

- Põe-te às minhas cavalitas - disse Serge.

- Não, não, não quero! Se escorregasses, daríamos ambos um grande mergulho... Não imaginas como essas pedras são traiçoeiras.

- Apesar disso, põe-te às minhas cavalitas.

Acabou por se deixar convencer. Tomou balanço e saltou como um rapaz, tão alto que se encontrou às cavalitas no pescoço de Serge. Ao senti-lo cambalear, gritou que ele não estava ainda suficientemente forte e que queria descer. Depois, saltou de novo, por duas vezes. A brincadeira divertia-os.

- Quando tiveres acabado... - disse o jovem, rindo.- Agora, segura-te bem. Chegou o momento decisivo... e atravessou a ribeira em três saltos ágeis, molhando apenas as pontas dos pés.

No entanto, quando ia a meio, Albine teve a impressão de que ele escorregava. Soltou um grito e agarrou-se-lhe ao queixo com ambas as mãos, mas ele levava-a já, num galope de cavalo, pela areia fina da outra margem.

- Hu! Hu! - gritava ela, já confiante e muito contente com a nova brincadeira.

Serge correu assim até se fartar, batendo com os pés para imitar o ruído dos cascos. Ela estalava a língua, agarrava-se-lhe a duas madeixas de cabelo e puxava-as como rédeas, a fim de o guiar para a direita ou para a esquerda.

- Aí, aí, já cá estamos!-exclamou por fim, dando-lhe palmadinhas nas faces, e saltou para o chão enquanto ele, a suar, se encostava a uma árvore para tomar fôlego.

Então, ela ralhou-lhe, ameaçou-o de não o tratar se tivesse uma recaída.

- Não te preocupes, isto faz-me bem - redarguiu ele. - Quando recuperar todas as minhas forças, levar-te-ei assim manhãs inteiras... Para onde vamos agora?

- Para aqui - respondeu ela, convidando-o a sentar-se consigo debaixo de uma pereira gigantesca.

Estavam no antigo pomar do parque. Uma sebe viva de pilriteiros, uma muralha de verdura com algumas brechas, formava ali um recanto de jardim à parte. Era uma floresta de árvores de fruto em que a podoa não entrava havia um século. Alguns troncos poderosamente vergados cresciam de esguelha, tal como os deixara a fúria dos temporais que os dobrara, enquanto outros, cobertos de nós enormes e esventrados por cavidades profundas, pareciam presos ao solo apenas pelas ruínas gigantescas da casca. As altas pernadas que o peso dos frutos curvava todas as estações prolongavam-se em ramos desmedidos, e até aquelas que o excesso de carga partira tocavam no chão sem deixarem de produzir, consertadas por abundantes enxertos de seiva. As árvores amparavam-se umas às outras como escoras naturais, como se fossem apenas pilares torcidos a sustentarem uma abóbada de folhas que se abria em compridas galerias, se projectava bruscamente em corredores estreitos e se rebaixava quase até ao solo em esconsos profundos. Em torno de cada colosso, rebentos bravos formavam espessas moitas, acrescentavam o amálgama das suas hastes novas à vegetação luxuriante que os rodeava e ofereciam as suas bagazinhas de uma acidez agradável. À luz esverdeada que escorria como água transparente, no meio do grande silêncio do musgo, apenas se ouvia a queda surda dos frutos que o vento colhia.

Havia ali damasqueiros patriarcais que suportavam galhardamente a sua idade avançada, já paralíticos de um lado e cobertos de uma floresta de pernadas mortas que lembravam a arquitectura de uma catedral, mas tão vivos do outro lado, tão jovens, que rebentos tenros lhes furavam por todos os lados a casca grosseira, e abrunheiros veneráveis, todos cobertos de musgo, que cresciam ainda para irem beber o sol ardente, sem que uma só das suas folhas amarelasse, e cerejeiras que construíam cidades completas com casas de vários andares, erguiam escadas e assentavam pavimentos de ramos tão amplos que chegariam para alojar dez famílias. Seguiam-se macieiras vergadas pelos rins, de membros disformes como grandes inválidos e pele rugosa, maculada pelo míldio; pereiras de casca lisa que erguiam a prumo a mastreação dos seus altos troncos delgados, enormes, como se se preparassem para largar de um porto, com os quais traçavam no horizonte linhas sombrias, e pessegueiros rosados que se esforçavam por conquistar uma aberta para não serem esmagados pelos vizinhos, a fim de exibirem o seu riso amável e o desabrochar lento dos seus ramos, que lembravam belas raparigas extraviadas no meio de uma multidão. Algumas cepas, outrora dispostas em latadas, tinham derrubado os muros baixos que as sustentavam e expandiam-se, livres dos engradados, cujas ripas arrancadas lhes pendiam ainda dos braços. Agora cresciam à vontade e só conservavam do seu aspecto característico um pouco da forma de todas as árvores, a despeito de arrastarem na vagabundagem os farrapos do seu trajo de gala. Por cada tronco, por cada ramo, de uma árvore para outra, corriam em debandada pernadas de vinha. As cepas trepavam no meio de risos loucos, agarravam-se um instante a qualquer nodosidade mais alta e depois dividiam-se numa girândola de risos mais sonoros e salpicavam toda a folhagem com a feliz embriaguez dos pâmpanos, de um verde suave, dourado pelo sol, que iluminava com uma pontinha de embriaguez as cabeças devastadas dos grandes velhos do pomar.

Depois, para a esquerda, árvores mais espaçadas: amendoeiras de folhagem delicada que deixavam o sol amadurecer na terra abóboras semelhantes a luas caídas do céu. Havia também, à beira de um regato que atravessava o pomar, melões cobertos de verrugas, perdidos entre camadas de folhas rastejantes, bem como melancias de casca envernizada, de um oval perfeito de ovos de avestruz. A cada passo, barravam as antigas alamedas moitas de groselheiras que exibiam os cachos tímidos dos seus frutos, semelhantes a rubis em que, em cada grão, brilhava uma gota de luz, e sebes de framboeseiros desdobravam-se como silvados bravios, enquanto o solo parecia um tapete de morangueiros, um relvado completamente coberto de morangos maduros, cujo aroma tinha um leve perfume de baunilha.

Mas o recanto encantado do pomar ficava mais à esquerda ainda, junto da montanha de rochedos que começava ali a escalar o horizonte. Entrava-se em plena terra ardente, numa estufa natural em que o sol caía a prumo. Primeiro, era necessário atravessar figueiras gigantescas, desengonçadas, que estiravam os ramos como braços cinzentos enlanguescidos de sono, tão obstruídos pelo couro felpudo das suas folhas que, para passar, era necessário partir as hastes novas e afastar as pernadas secas pela idade. Em seguida caminhava-se entre ramos de medronheiros, de uma verdura de buxos gigantes, cujas bagas vermelhas lembravam maçarocas de milho ornadas de borlas de seda escarlate. Depois, vinha uma mata de lódãos, de azaroleiras e de juju’beiras, à beira da qual as romãzeiras formavam uma cercadura de tufos eternamente verdes. As romãs, do tamanho de punhos de criança, mal se viam, e as flores cor de púrpura, pousadas na extremidade dos ramos, pareciam bater as asas como se fossem aves das ilhas, que não vergam as ervas em que vivem. Finalmente, chegava-se a um bosque de laranjeiras e limoeiros, que cresciam vigorosamente em Pleno descampado, e cujos troncos direitos pareciam fileiras de colunas acastanhadas, de folhas brilhantes, que confundiam a alegria dos seus tons claros com o azul do céu e recortavam a sombra em perfeitas e delgadas lâminas pontiagudas que desenhavam na terra milhões de palmas de um estofo indiano. Aquela era uma sombra de encanto muito diferente, ao pé da qual as sombras do pomar de Europa pouco valiam: uma alegria tépida de luz peneirada numa poalha de ouro muito fina, uma certeza de verdura perene e uma pujança de aromas perpétuos, formados pelo perfume penetrante da flor e pelo perfume mais discreto do fruto, que dava aos membros a flexibilidade lânguida dos países quentes.

- E agora vamos tomar o pequeno almoço! - gritou Albine, batendo as mãos. - Devem ser pelo menos nove horas e estou cheia de fome!

Levantou-se de rompante e Serge confessou que também comeria de boa vontade.

- Grande idiota!-exclamou. - Então não percebeste que te trouxe aqui para almoçarmos? Vês? Aqui não morreremos de fome, nem? É tudo para nós.

Meteram-se debaixo de uma árvore, afastaram os ramos e deslizaram até onde os frutos eram mais abundantes. Albine, que ia à frente, com as saias entaladas entre as pernas, virou-se e perguntou ao companheiro, com a sua voz aflautada:

- De que gostas mais? De pêras, de damascos, de cerejas, de groselhas?... Previno-te que as pêras ainda estão verdes, mas mesmo assim são boas.

Serge decidiu-se pelas cerejas e Albine concordou que, com efeito, se podia começar por aí. Mas como ele se preparava para ir estupidamente trepar pela primeira cerejeira que se lhe deparara, ela obrigou-o a caminhar ainda uns bons dez minutos no meio de um espantoso emaranhado de ramos. Depois, foi a escolha: aquela cerejeira dava umas cerejas que não prestavam para nada, as cerejas desta eram demasiado azedas e as daquela outra só estariam maduras dentro de oito dias. Ela conhecia todas as árvores.

- Olha, sobe àquela - disse, por fim, parando diante de uma cerejeira tão carregada de frutos que os cachos pendiam até ao chão, como colares de coral.

Serge instalou-se comodamente entre dois ramos e começou a almoçar. Já não ouvia Albine; julgava-a noutra árvore, a alguns passos de distância. Mas quando, de súbito, baixou os olhos, viu-a tranquilamente deitada de costas debaixo da cerejeira. Deslizara até ali e comia sem sequer se servir das mãos: apanhava com os lábios as cerejas que a árvore lhe colocava ao alcance da boca.

Quando se viu descoberta, riu muito, prolongadamente, saltou na erva como um peixe branco saído da água, deitou-se de bruços, rastejou apoiada nos cotovelos e contornou a cerejeira, sem deixar de continuar a colher com os lábios as cerejas maiores.

- Imagina que me fazem cócegas! - gritou. - Olha, cá está uma que me veio cair em cima do pescoço. Estão muito frescas!... Caem-me nas orelhas, nos olhos, no nariz, em toda a parte! Se quisesse, esmagava uma para fazer bigodes.. . As de baixo são mais doces do que as de cima.

- Pois sim! - redarguiu Serge, rindo. - Não te atreves é a subir...

Ela ficou muda de indignação.

- Eu? Eu? - balbuciou.

E, depois de arregaçar a saia e de a prender adiante, à cintura, sem reparar que mostrava as coxas, agarrou-se à árvore nervosamente e içou-se para cima do tronco, a pulso, de uma só vez.

Assim que se empoleirou, correu ao longo dos ramos, evitando até servir-se das mãos. Estirava-se com movimentos flexíveis de esquilo, girava em volta dos nós, largava os pés e mantinha-se em equilíbrio apoiada apenas na cintura. Quando chegou ao topo, à ponta de um ramq delgado que o peso do seu corpo abanava furiosamente, gritou:

- Então, quem é que não se atreve a subir?

- Fazes favor de descer imediatamente! - exclamou Serge, cheio de medo. - Suplico-te. Ainda acabas por te magoar...

Mas, triunfante, ela subiu ’ainda mais alto, agarrou-se mesmo à extremidade de outro ramo, encavalitada, e avançou pouco a pouco por cima do vácuo, agarrada com ambas as mãos a tufos de folhas.

- Olha que o ramo quebra-se - insistiu Serge, assustado. - Pois que se quebre! - respondeu ela, rindo muito.

Poupava-me o trabalho de descer...

E o ramo partiu-se, com efeito, mas lentamente, desfibrou-se a todo o comprimento e abateu-se pouco a pouco, como se quisesse depositar Albine no chão muito suavemente. Nada assustada, a jovem deixava-se descer, agitava as coxas seminuas e repetia:

- É muito gentil, este ramo. Parece que vou de carruagem...

Serge saltara da árvore, a fim de a receber nos braços. Ao vê-lo muito pálido da comoção que acabava de experimentar, ela gracejou:

- Todos os dias caio das árvores e nunca me magoei... Vamos, ri, grande estúpido! Olha, põe-me um bocadinho de saliva no pescoço. Arranhei-me.

Ele pôs-lhe a saliva, com a ponta do dedo.

- Pronto, já estou curada! - gritou, fugindo aos pulos como uma maria-rapaz. - Vamos brincar às escondidas, queres?

Não facilitou a procura. Desaparecia, gritava lhe, já! Ih, já!” do fundo de verduras que só ela conhecia e onde Serge não a podia encontrar. Mas o jogo das escondidas não a impedia de fazer uma devastação terrível nos frutos. O pequeno almoço continuava nos recantos onde ’as duas crianças grandes se perseguiam. Enquanto corria por debaixo das árvores, Albine estendia a mão e trincava uma pêra verde ou enchia a saia de damascos. Às vezes, em certos esconderijos, descobria coisas que a levavam a sentar-se no chão e a esquecer-se da brincadeira, ocupada a comer gravemente. Durante um momento, deixou de ouvir Serge e resolveu-se a procurá-lo por seu turno. Com grande surpresa, quase com zanga, foi encontrá-lo debaixo de uma ameixoeira, uma ameixoeira cuja existência ali ela própria ignorava e cujas ameixas maduras tinham um delicado aroma a almíscar. Increpou-o bruscamente. Tencionava comer tudo sem dizer nada !a ninguém? Armava em tolo, mas tinha o nariz fino, farejava de longe as coisas boas... Estava sobretudo furiosa com a ameixoeira, uma árvore manhosa que ninguém jamais vira e que devia ’ter crescido de noite para aborrecer as pessoas. Como ela amuasse e recusasse colher uma só ameixa. Serge lembrou-se de abanar a árvore violentamente Caiu uma chuvada, uma saraivada de ameixas, e Albine, apanhada pelo aguaceiro, recebeu ameixas nos braços, no pescoço e até no meio do nariz. Então, não conseguiu conter o riso; deixou-se ficar debaixo do dilúvio e gritou: “Mais! Mais!”, divertida com as bolas redondas que ressaltavam em cima dela, estendendo a boca e as mãos, com os olhos fechados, e enovelando-se no chão para se fazer pequenina.

Era uma festa de crianças, uma travessura de garotos deixados à solta no Paradou. Albine e Serge passaram ali horas pueris de rapazes em férias, a correr, a gritar, a baterem-se, sem que as suas carnes inocentes experimentassem o mais pequeno estremecimento. Tudo aquilo era apenas a camaradagem de dois doidivanas que talvez só mais ’tarde pensassem em se beijar nas faces, quando as árvores já não tivessem sobremesa para lhes dar. Que belo recanto da natureza tinham descoberto na sua primeira escapada! Era uma gruta de folhagem cheia de excelentes esconderijos, de carreiros ao longo dos quais era impossível ficar indiferente, tantos eram os risos gulosos que se desprendiam das sebes. Naquele venturoso pomar o parque tinha gaiatices de moitas que corriam à desfilada, uma frescura sombria que despertava o apetite, uma velhice de boas árvores semelhantes a avós cheias de indulgência. Mesmo ao fundo dos retiros verdes de musgo, debaixo dos troncos partidos que os forçavam a rastejar um atrás do outro e nos corredores de folhas, tão estreitos que Serge se agarrava, rindo, às pernas nuas de Albine, não encontravam o devaneio perigoso do silêncio. Nada perturbante lhes vinha do ’bosque em repouso.

E quando se fartaram ,de damasqueiros, de ameixoeiras e de cerejeiras, correram debaixo das amendoeiras delicadas e comeram as amêndoas verdes, ipouco maiores do que ervilhas, procuraram os morangos entre o tapete de ervas e irritaram-se por as melancias e os melões não estarem maduros. Albine acabou por correr com todas as suas forças, seguida por Serge, que não conseguia apanhá-la. Meteu-se por entre as figueiras, saltou os ramos grossos e arrancou as folhas, que atirou para trás, à cara do companheiro. Em poucos saltos, atravessou os ramos dos medronheiros, provou de passagem os pomos vermelhos e desapareceu da vista de Serge na mata de lódãos, azaroleiros e jujubeiras. Primeiro, julgou-a escondida atrás de uma romãzeira, mas em breve verificou que tomara duas flores em botão ipelos laços cor-de-rosa dos punhos da rapariga. Então, bateu o laranjal, maravilhado com ’a excelente temperatura que havia ali, imaginando entrar no reino das fadas do Sol. No meio do laranjal descobriu Albine que, não o julgando tão perto, furava vivamente através das folhas e investigava com a vista as profundezas verdes.

- Que procuras aí? - gritou-lhe ele. - Bem sabes que isso é proibido.

Ela sobressaltou-se e corou levemente, pela primeira vez naquele dia. Depois, sentou-se ao lado de Serge e falou-lhe dos dias felizes em que as laranjas amadureciam. O laranjal ficava então todo dourado, todo iluminado por aquelas estrelas redondas que enchiam de globos amarelos a abóbada verde.

Por fim, quando se retiraram, Albine deteve-se junto de cada rebento silvestre e encheu as ’algibeiras de perinhas verdes e de ameixas azedas, dizendo que era para comerem pelo caminho. Na sua opinião, aqueles frutos eram cem vezes melhores do que tudo o que tinham provado até ali. Serge teve de os comer, apesar das caretas que fazia a cada dentada. Voltaram contentes, felizes, tão fartos de rir que lhes doía o peito. Naquela noite, Albine nem sequer teve coragem de subir ao seu quarto; adormeceu aos pés de Serge, atravessada na cama, e sonhou que subiam às árvores e que acabava de trincar, enquanto dormia, os frutos silvestres que escondera debaixo da colcha, a seu lado.

OITO dias mais tarde efectuaram de novo uma grande excursão pelo parque. Tratava-se de ir mais longe do que ao pomar, para a esquerda, para o lado da grande planície atravessada por quatro regatos. Teriam de andar algumas léguas em plena erva e viveriam da pesca se se perdessem.

- Levo a minha faca-disse Albine, e mostrou uma faca de mato de lamina grossa.

Meteu tudo nas algibeiras: linhas, pão, fósforos, uma garrafinha de vinho, panos, um pente e agulhas. Serge teve de levar um cobertor; mas ao fim das tílias, quando chegaram diante dos escombros do palácio, o cobertor embaraçava-o já a tal ponto que o escondeu debaixo de uma parede desmoronada.

O sol estava muito quente. Albine demorara-se nos preparativos. Na manhã soalheira, lá foram ao lado um do outro, quase com juízo. Chegavam a dar vinte passos sem se empurrarem, só para rirem, e conversavam.

- Nunca acordo - disse Albine. - Dormi bem, esta noite. E tu?

- Também - respondeu Serge. Ela prosseguiu:

- Que significa sonharmos com um pássaro que nos fala?

- Não sei... E que te dizia o tal pássaro?

- Oh, já me esqueci!... Dizia coisas extraordinárias, muitas coisas que me pareciam tolices... Olha, vês aquela grande papoula, lá em baixo? Não a apanharás! Não a apanharás!

Tomou balanço, mas Serge, graças às suas longas pernas, ultrapassou-a e colheu a papoula, que agitou vitoriosamente. Então, ela apertou os lábios, sem dizer nada, com uma grande vontade de chorar, e ele deitou fora a flor. Depois, para fazerem as pazes, perguntou-lhe:

- Queres ir às cavalitas? Levar-te-ei como no outro dia.

- Não, não.

Continuava amuada. Mas ainda não dera trinta passos e já se voltava, toda risonha. Uma silva retinha-a pela saia.

- Olha, julgava que me vinhas a pisar a saia, de propósito!... E não me quer largar! Desprende-me!

Depois de a soltar, caminharam de novo ao lado um do outro, com muito juízo. Albine pretendia que era mais divertido passearem assim, como pessoas sérias. Acabavam de entrar na planície. Diante deles, até ao infinito, estendiam-se enormes tabuleiros de erva, apenas interrompidos, de longe em longe, pela folhagem tenra de um renque de salgueiros. Os tabuleiros de erva penugenta pareciam peças de veludo verde-escuro, mais claro ao longe, e amarelo-vivo à beira do horizonte, sob o incêndio do sol. Os renques de salgueiros, muito afastados, pareciam de ouro puro, no meio de grandes clarões de luz. Uma espécie de poalha irrequieta depositava nas extremidades da erva átomos de claridade, ao mesmo tempo que uma ou outra aragem, ao passar livremente por cima daquela solidão nua, imprimia às ervas uma ondulação que lembrava o estremecimento de plantas acariciadas. E ao longo dos prados mais próximos multidões de pequenos malmequeres brancos, aos montes, ia esmo, em grupos, como magotes de gente tagarela no terreiro de alguma festa pública, enchiam com a sua alegria esfuziante o tom escuro dos relvados, e os seus botões de ouro tinham a graça de guizos de cobre polido que o afloramento de uma asa de mosca em breve faria tilintar. Grandes papoulas isoladas rebentavam como petardos vermelhos e as suas pétalas voavam para longe, em bandos, e formavam charcos festivos como fundos de cuba ainda purpúreos de vinho. Grandes acianos balouçavam leves toucas aldeãs, guarnecidas de folhos azuis, e ameaçavam voar por ares e ventos à menor aragem. Seguiam-se tapetes de gramíneas lanosas, de fluvas odoríferas, de trevos penugentos, e mantos de fétucas, de agróstis e de poas. O sanfeno erguia os longos cabelos delicados, o trevo recortava as folhas brilhantes, a tanchagem brandia florestas de lanças e a luzerna formava leitos macios, edredões de cetim verde-mar bordados de flores violáceas. E isto à direita, à esquerda, em frente, por todos os lados, cobrindo o solo plano, rodeando a superfície musgosa como um mar estagnado, adormecido debaixo do céu, que ainda parecia mais vasto. Na imensidade das ervas havia recantos em que os rebentos se apresentavam tão limpidamente azulados como se reflectissem o azul do céu.

Entretanto, Albine e Serge caminhavam pelo meio do campo, enterrados na verdura até aos joelhos, como se avançassem através de água fresca que lhes batesse nas barrigas das pernas. De vez em quando, parecia-lhes atravessarem verdadeiras torrentes em que a água que se escoava era constituída por altos caules inclinados que sentiam deslizar-lhes rapidamente por entre as pernas. Em seguida, surgiam lagos calmos, como que adormecidos, e tanques de erva curta que mal lhes chegavam aos tornozelos. Brincavam enquanto caminhavam assim, não já desenfreadamente, como no pomar, mas, pelo contrário, com calma, como se os dedos flexíveis das plantas lhes prendessem os pés e experimentassem nisso uma pureza, uma carícia de regato que lhes acalmasse os ímpetos da mocidade. Albine afastou-se, escondeu-se atrás de um tufo gigantesco, que lhe chegava ao queixo. Só se lhe via a cabeça. Deixou-se estar um instante muito quieta e chamou Serge:

- Vem tu também! Está-se aqui como num banho. Há água verde por todos os lados.

Depois, deu um salto e fugiu, sem ao menos esperar por ele, e seguiram o primeiro riacho que lhes barrou o caminho. A água era lisa, pouco profunda, e corria entre margens de agriões silvestres. Deslizava suavemente, em sinuosidades caprichosas, tão límpida, tão transparente, que reflectia como um espelho o mais pequeno junco das margens. Albine e Serge desceram durante muito tempo o riacho, que deslizava mais devagar do que eles, até encontrarem uma árvore cuja sombra se banhava na torrente preguiçosa. Tão longe quanto os seus olhos alcançavam, viam a água nua, deitada no seu leito de ervas, estirar os membros puros, adormecer à torreira do sol numa modorra lânguida, semiestendida como uma cobra azulada. Por fim, chegaram junto de um grupo de três salgueiros, dois dos quais mergulhavam os troncos na água e o outro fora plantado um pouco mais atrás, mas todos escavacados, esboroados pela idade, e coroados por louras cabeleiras de criança. A sombra que projectavam era tão clara que apenas cobria de leves manchas ralas a margem batida pelo sol. Apesar disso, a água, tão uniforme a montante como a jusante, ’tinha ali um curto arrepio, uma turvação na sua pele límpida, que demonstrava a surpresa que lhe causava sentir-se coberta por aquela ponta de véu. Entre os Ires salgueiros descia em declive quase imperceptível um retalho de prado cuj’as papoulas penetravam até nas fendas dos velhos troncos rachados. Dir-se-ia uma tenda de verdura armada sobre três estacas, à beira-d’água, no deserto de ervas errantes.

- É aqui, é aqui! - gritou Albine, deslizando por debaixo dos salgueiros.

Serge sentou-se ao ’lado dela, com os pés quase na água, olhou à sua volta e murmurou:

- Conheces tudo, sabes onde ficam os melhores sítios... Dir-se-ia uma ilha de dez pés quadrados descoberta em pleno mar.

- Sim, estamos em nossa casa - redarguiu ela, batendo com o punho na erva, muito contente. - Estamos em nossa casa, podemos fazer o que quisermos...

Depois, como que assaltada por uma ideia triunfante, lançou-se-lhe ao pescoço e disse-lhe sem rodeios, numa explosão de alegria:

- Queres ser meu marido? Eu serei a tua mulher.

Ele ficou encantado com a ideia e respondeu-lhe, rindo ainda mais alto do que ela, que estava pronto a fazer .de marido. Então, Albine pôs-se de súbito muito séria e afectou um ar apressado de dona de casa.

- Nesse caso-disse-, quem manda sou eu... Almoçaremos quando puseres a mesa.

E deu-lhe ordens imperiosas. Serge teve de guardar tudo quanto ela tirou das ’algibeiras na cavidade de um salgueiro, a que Albine chamou “o armário”. Os trapos eram a roupa de casa, o pente representava o estojo de toucador e as agulhas e as linhas destinavam-se a consertar as roupas dos exploradores. Quanto a provisões de boca, consistiam na garrafinha de vinho e nalguns bocados de pão da véspera. Além disso, tinham ainda os fósforos, para cozerem o peixe que pescassem.

Quando acabou de pôr a mesa, com a garrafa no meio e os três bocados de pão à volta, Serge ’arriscou a observação de que o repasto seria frugal. Mas ela encolheu os ombros, com ar de mulher superior, meteu os pés na água e disse, com severidade:

- Quem pesca sou eu. Tu ficas a ver-me.

Durante cerca de meia hora, teve um trabalho infinito para apanhar alguns peixinhos à mão. Arregaçara as saias e atara-as com uma ponta de fio. Avançava prudentemente, com infinitas precauções, a fim de não agitar a água, e depois, quando estava ’muito perto do peixinho, entalado entre duas pedras, estendia o braço nu, fazia um estardalhaço tremendo e agarrava apenas um punhado de areia. Serge ria a bandeiras despregadas, o que a levava a correr para a margem, encolerizada, e a gritar-lhe que não tinha o direito de se rir.

- Mas - acabou ele por dizer - com que cozerás o teu peixe? Não tens lenha...

Isto acabou por a desencorajar. Por outro lado, aquele peixe não lhe parecia grande coisa. Saiu da água sem pensar em calçar as meias e correu pela erva, com as pernas ao léu, para as secar. Reencontrava o seu riso, pois as ervas faziam-lhe cócegas nas plantas dos pés.

- Olha, pimpinela! - exclamou bruscamente, caindo de joelhos. - Isto é que é bom! Vamos regalar-nos.

Serge teve de pôr em cima da mesa um molho de pimpinelas, que comeram com pão. Albine afirmava que eram melhores do que avelãs Tomava muito a sério o seu papel de dona de casa, cortava o pão a Serge e recusou-se terminantemente a confiar-lhe a faca.

- Eu é que sou a mulher - respondia com toda a seriedade sempre que ele tentava revoltar-se

Depois, mandou-o guardar no “armário” as poucas gotas de vinho que restavam no fundo da garrafa e até o obrigou a varrer a erva antes de passarem da sala de jantar para o quarto de dormir. Albine foi a primeira a deitar-se, muito direita, e disse:

- Compreendes, agora vamos dormir... Deves deitar-te a meu lado, muito encostado a mim

Estendeu-se exactamente como ela lhe ordenava e ficaram ambos muito direitos, a tocarem-se desde os ombros até aos .pés, com as mãos enlaçadas, por cima da cabeça. As mãos eram o que mais os embaraçava. Conservavam uma gravidade convicta e olhavam para o ar, com os olhos muito abertos, dizendo para consigo que estavam a dormir e que se sentiam assim muito bem.

- Vês-murmurou Albine-, quando se está casado tem-se calor... Não me sentes?

- Sim, és como um edredão... Mas não devemos falar, visto estarmos a dormir. É melhor calarmo-nos.

Permaneceram durante muito tempo silenciosos, sempre com a maior gravidade. Tinham virado a cabeça e haviam-se afastado insensivelmente, como se o calor da respiração os incomodasse. Depois, no meio do grande silêncio que os rodeava, Serge acrescentou apenas estas palavras:

- Amo-te muito.

Era o amor que se manifesta antes do sexo, o instinto de amar que detém os homenzinhos de dez anos à passagem das pequenitas vestidas de branco. Em torno deles, os prados imensos acalmavam-lhes o leve medo que experimentavam um pelo outro. Sabiam-se observados por todas as ervas, pelo céu azul que os espreitava através da folhagem delicada, mas isso não os perturbava. A tenda formada pelos salgueiros por cima das suas cabeças era um simples pedaço de fazenda transparente, como se Albine tivesse pendurado ali uma ponta do vestido. A sombra era tão clara que não lhes insuflava a languidez das matas profundas, as solicitações das cavernas perdidas, das alcovas verdes. Da extremidade do horizonte chegava até eles uma aragem pura, um vento saudável que lhes trazia a frescura daquele mar de vegetação em que se erguia uma vaga de flores, enquanto a seus pés a ribeira dir-se-ia uma outra infância, uma candura cujo fio de voz fresca lhes parecia a voz longínqua de algum companheiro a rir. Feliz solidão repleta de serenidade, cuja nudez se exibia com uma impudência adorável de ignorância! Campo imenso no meio do qual a relva basta que lhes servia de primeiro leito possuía uma ingenuidade de berço.

- Pronto, acabou-se - disse Albine, erguendo-se. - Já dormimos.

Ele ficou um pouco surpreendido por aquilo acabar tão depressa. Estendeu o braço e puxou-a pela saia, como se quisesse atracá-la a si. Ela caiu de joelhos, a rir, e redarguiu:

- Que queres? Que queres?

Não sabia. Fitava-a, segurava-a pelos cotovelos, e por um instante agarrou-a pela cabeleira abundante, o que a fez gritar. Depois, quando ela se pôs novamente em pé, mergulhou o rosto nas ervas, que conservavam ainda a tepidez do corpo de Albine.

- Pronto, acabou-se - disse, levantando-se por seu turno.

Correram pelos prados até cair a noite, sempre em frente] em exploração. Visitavam o seu jardim. Albine caminhava adiante, farejando como um cachorro, sem dizer nada, sempre em busca da clareira prodigiosa, embora ali não houvesse as grandes árvores com que sonhara. Serge tinha para com ela toda a espécie de galantarias desajeitadas: precipitava-se tão bruscamente para afastar as ervas altas que quase a derrubava; rodeava-lhe a cintura tão estreitamente quando a queria ajudar a transpor os riachos, que a magoava. Saltaram de alegria quando encontraram as outras três ribeiras. A primeira deslizava num leito de seixos, entre duas filas ininterruptas de salgueiros, tão bastos que tiveram de passar às apalpadelas através dos ramos, com risco de caírem nalgum buraco mais fundo. Uma das vezes que isso aconteceu, Serge caiu primeiro, mas ficou com água apenas pelos joelhos e pôde receber Albine nos braços e transportá-la para a margem oposta sem que ela se molhasse. A outra ribeira estava completamente coberta de sombra e corria languidamente debaixo de um túnel de folhagem, com o ruído ligeiro e as rendas brancas de uma saia de cetim arrastada por alguma dama sonhadora embrenhada num bosque. Era uma toalha de água profunda, gelada, inquietante, que tiveram a sorte de poder atravessar com o auxílio de um tronco abatido que ligava uma margem à outra. Percorreram-no escarranchados, primeiro devagar, entretidos a embaciar com o pé o espelho de aço polido, e depois mais depressa, assustados pelos olhos estranhos que as mais pequenas gotas abriam, ao saltar, na corrente adormecida. De todas, porém, a que mais lhes atraiu a atenção foi a última ribeira. Essa era brincalhona como eles: atardava-se em certos cotovelos, partia depois à desfilada no meio de risos orvalhados, por entre grandes pedras, acalmava-se ao abrigo de um tufo de arbustos, esbaforida, ainda vibrante, e manifestava todos os estados de espírito imagináveis enquanto corria, alternadamente, ora por um leito de areia fina, ora galgando placas rochosas, ora através de seixos polidos ou de terras férteis, que as rãs, ao saltarem, ’levantavam em nuvenzinhas amarelas. Albine e Serge chapinharam nela adoràvelmente e voltaram a subi-la descalços, no regresso, preferindo o caminho da água ao das ervas e detendo-se em todas as ilhas que lhes barravam a passagem. De vez em quando desembarcavam, conquistavam países selvagens ou descansavam no meio de grandes juncos, de grandes canaviais que pareciam edificar expressamente para eles cabanas de náufragos. Foi um regresso encantador, abrilhantado pelo desenrolar do espectáculo proporcionado pelas margens e pela excelente disposição das águas vivas.

Mas quando deixaram a ribeira, Serge adivinhou que Albine continuava a procurar qualquer coisa, ao longo das margens, nas ilhas e até entre as plantas adormecidas à beira da torrente. Teve de a ir buscar ao meio de um tapete de nenúfares cujas folhas largas lhe rodeavam as pernas como folhos de sombrinha. Não lhe disse nada, mas ameaçou-a com o dedo, e regressaram por fim ’a casa, muito satisfeitos com o prazer que o dia lhes proporcionara, de braço dado como um casal de recém-casados de regresso de uma escapadela. Entreolhavam-se, achavam-se mais ’belos e mais fortes e, sem dúvida nenhuma, riam de modo diferente do de manhã.

- QUANDO voltamos a sair? - perguntou Serge, passados alguns dias.

E ao vê-la encolher os ombros com ’ar cansado, acrescentou, como se zombasse dela:

- Desististe de procurar a tua árvore?

O caso serviu-lhes para trocarem um do outro durante todo o dia. A árvore não existia, era uma história da carochinha. Apesar disso, não se lhe referiam sem um leve estremecimento, e no dia seguinte decidiram dar um passeio até ao fundo do parque, debaixo das árvores gigantescas, que Serge ainda não conhecia. Na manhã da partida, Albine não quis levar nada; estava pensativa, até mesmo um pouco triste, e sorria melancolicamente. Almoçaram e desceram bastante tarde. O sol, já quente, amodorrava-os, fazia-os caminhar lentamente ao lado um do outro e procurar as réstias de sombra. Nem o jardim, nem o pomar, que tiveram de atravessar, os retiveram. Quando chegaram à frescura das grandes sombras, afrouxaram ainda mais o passo e mergulharam no recolhimento impressionante da floresta sem proferirem uma só palavra, com um grande suspiro, como se experimentassem enorme alívio em deixarem a luz do dia. Depois, quando só viram folhas à sua volta, quando nenhuma aberta nas ramarias lhes permitiu ver os longes do parque inundados de sol, entreolharam-se sorridentes e vagamente inquietos.

- Como se está bem aqui!...-murmurou Serge. Albine meneou a cabeça, sem poder responder, de tal modo sentia a garganta opressa. Já não se abraçavam pela cintura, como costumavam; caminhavam sem se tocar, de cabeça baixa, e com os braços caídos e as mãos abertas. Serge parou ao ver as lágrimas correrem pelas faces de Albine e perderem-se no seu sorriso

- Que tens? - perguntou-lhe, impaciente. - Sofres? Magoaste-te?

- Não, rio-me, garanto-te - respondeu ela. - Não sei porquê, o cheiro de todas estas árvores faz-me chorar...

Olhou-o e observou:

- Tu também choras. Bem vês como é bom...

- Sim - murmurou ele-, toda esta sombra nos esmaga. Dir-se-ia que entramos em qualquer coisa tão extraordinariamente doce que nos acabrunha, não achas?... No entanto, se tinhas algum motivo para estares triste devias ter-me dito. Não te contrariei, não estás zangada comigo, pois não?

Ela jurou que não. Sentia-se até muito feliz.

- Nesse caso, porque não te divertes?... Queres fazer uma corrida?

- Oh, não, nada de corridas! - redarguiu, com expressão de rapariga mimalha.

E como ele lhe propusesse outras brincadeiras, como subir às árvores à procura de ninhos, colher morangos ou violetas, acabou por dizer, um pouco impaciente:

- Já somos demasiado crescidos para isso. É tolice andar sempre a brincar. Não te agrada mais caminhar assim, a meu lado, tranquilamente?

Com efeito, caminhava de modo tão agradável que ele experimentava extraordinário prazer em ouvir o ruído das suas botinas na terra dura da alameda. Nunca prestara atenção ao meneio das ancas de Albine, nem à forma como arrastava vivamente a saia, que a seguia rastejando como uma cobra. Sentia uma alegria indescritível ao vê-la caminhar assim pausadamente a seu lado, tantos encantos novos descobria na mais pequena flexibilidade dos seus membros.

- Tens razão - confessou. - Não há nada mais agradável. Acompanhar-te-ei até ao fim do mundo, se quiseres.

No entanto, alguns passos adiante perguntou-lhe se não estava cansada e insinuou que ele próprio não se importaria nada de descansar um bocado.

- Podíamos sentar-nos um bocadinho... - balbuciou.

- Não - respondeu ela -, não quero!

- Porque não nos deitamos como no outro dia, ino meio do prado? Estaríamos quentes e mais à vontade...

- Não quero! Não quero!

Afastara-se de um pulo, com medo daqueles braços de homem que se estendiam para ela. Chamou-lhe grande tola e quis agarrá-la, mas assim que lhe tocou com as pontas dos dedos, Albine soltou um grito tão desesperado que parou, muito trémulo.

- Fiz-te mal?

’Ela não respondeu imediatamente, como se o seu próprio grito a ’tivesse assustado, e acabou por sorrir, já sem receio.

- Não, deixa-me, não me atormentes... Que faríamos sentados? Gosto mais de andar.

E acrescentou com ar grave, fingindo gracejar: -’Bem sabes que procuro a minha árvore. Então, Serge desatou a rir e ofereceu-se para a ajudar a procurá-la. Mostrava-se muito dócil, para não a assustar mais, pois bem via que estava ainda trémula, apesar de ter retomado o seu andamento vagaroso ao lado dele. O que tinham vindo fazer ali era proibido e não lhes traria felicidade. Tal como ela, sentia-se dominado por um terror delicioso que o sobressaltava cada vez que ouvia a floresta suspirar profundamente. O cheiro das árvores, a luz esverdeada que se projectava através dos ramos altos e o silêncio ciciante dos silvados enchia-os de tanta angústia como se fossem encontrar, na curva do primeiro atalho, uma felicidade temível.

Durante horas, caminharam por entre as árvores, sempre no mesmo passo vagaroso, de passeio, trocando apenas algumas palavras, sem se separarem um minuto e seguindo-se um ao outro debaixo dos mais escuros maciços de verdura. A princípio embrenharam-se em matas cujos troncos novos não chegavam a ter a grossura de um braço de criança. Tinham de os afastar, de abrir caminho por entre os rebentos tenros que lhes tapavam os olhos com a renda movediça das folhas. Atrás deles, o sulco que traçavam desaparecia, o carreiro aberto tornava a fechar-se, e avançavam ao acaso, perdidos, desorientados, deixando apenas como sinal da sua passagem a oscilação dos ramos mais altos. Albine, cansada de não ver nada a três passos de distância, sentiu-se contente quando pôde saltar para fora daquela mata interminável, cujo fim procuravam havia tanto tempo. Estavam no meio de uma clareira da qual partiam estreitos caminhos. Por todos os lados, por entre as sebes vivas, distribuíam-se alamedazinhas que se contornavam a si próprias, ou se entrecruzavam, contorciam e prolongavam caprichosamente. Punham-se em bicos de pés para poderem espreitar por cima das sebes, mas como nada os apressava de bom grado se deixariam ficar ali, entregues a desvios contínuos, saboreando o prazer de caminharem sempre sem nunca chegarem, se não tivessem diante de si a linha altiva do arvoredo. Entraram por fim na floresta, religiosamente, com uma pontinha de terror sagrado, como se entra sob a abóbada de uma igreja. Os troncos, direitos, branqueados pelos líquenes de um cinzento deslavado de pedra velha, subiam desmedidamente, alinhavam até ao infinito perspectivas de colunas. Ao longe, abriam-se naves imponentes, ladeadas por outras mais pequenas, naves singularmente arrojadas, sustentadas por pilares muito finos, arrendados, lavrados, tão finamente abertas que deixavam entrar por todos os lados o azul do céu. Pairava debaixo das ogivas gigantescas um silêncio religioso, e uma nudez austera dava ao solo o aspecto de lajes gastas, tornava-o duro, sem uma erva, apenas coberto pelo pó avermelhado das folhas mortas. Ressoavam-lhes aos ouvidos os ecos dos seus próprios passos, dominados pela grandiosa solidão daquele templo.

Era ali, decerto, que se devia encontrar a árvore tão procurada, cuja sombra proporcionava a felicidade perfeita. Sentiam-na perto, devido ao encanto que derramava sobre eles na penumbra das altas abóbadas. As árvores afiguravam-se-lhes seres bondosos, cheios de força, de silêncio e de imobilidade feliz. Olhavam-nas uma a uma, amavam-nas todas, esperavam da sua soberana tranquilidade qualquer sinal que os fizesse crescer como elas, no júbilo de uma vida poderosa. Os bordos, os freixos, as carpas, os cornisos, pertenciam a uma raça de colossos, a uma multidão dotada de uma doçura altiva, de bonacheirões heróicos que viviam em paz, apesar de a queda de um só deles bastar para ferir e matar todo um recanto do bosque. Os olmos possuíam corpos enormes, membros grossos, trasbordantes de seiva, quase ocultos pelos tufos delicados das suas folhinhas. As toétulas e os amieiros, alvos como donzelas, arqueavam as cinturas delicadas e abandonavam ao vento as suas cabeleiras de grandes deusas, já semimetamorfoseadas em árvores. Os plátanos erguiam torsos regulares, de cuja pele lisa, tatuada de vermelho, pareciam desprender-se placas de tinta coberta de escamas. Os larícios, semelhantes a um bando de bárbaros, desciam uma encosta, envoltos nos seus saios itecidos de verdura, perfumados por um bálsamo feito de resina e incenso. E os carvalhos eram reis - os carvalhos enormes, curvados sem cerimónia sobre o ventre rechonchudo, de braços estendidos, dominadores, que tomavam todo o lugar ao sol, árvores titãs, fulminadas, inclinadas em atitudes de lutadores invictos e cujos membros dispersos plantavam só por si uma floresta inteira.

Não seria um daqueles carvalhos gigantescos? Ou um daqueles belos plátanos, uma daquelas betulas brancas como mulheres, um daqueles olmos cujos músculos estalavam? Albine e Serge embrenhavam-se cada vez mais, perdiam-se, mergulhavam no seio daquela multidão. Por um instante, julgaram tê-la encontrado, no meio de um quadrado de nogueiras, debaixo de uma sombra tão fria que os fez tiritar. Mais longe, tiveram outro sobressalto, quando penetraram num bosquezinho de castanheiros todos verdes de musgo e cujos ramos se alargavam de forma caprichosa, tão vastos que se poderiam erguer neles aldeias suspensas. Mais longe ainda, Albine descobriu uma clareira, para a qual correram ambos, ofegantes. No centro de um tapete de erva fina, uma alfarrobeira lembrava uma cascata de verdura, uma babel de folhagem cujas ruínas se cobrissem de vegetação extraordinária. Viam-se pedras envolvidas pelas pernadas, arrancadas do solo pela vaga alterosa da seiva. Os ramos altos curvavam-se e iam prender-se mais longe, rodeavam o tronco de arcadas profundas, de uma prole de novos troncos incessantemente multiplicados; e na casca, toda crivada de golpes sangrentos, amadureciam as vagens. O próprio fruto do monstro só a custo conseguia romper-lhe a pele. Contornaram lentamente a alfarrobeira, penetraram sob os ramos arqueados onde se cruzavam as ruas de uma cidade e esquadrinharam com a vista as fendas gigantes das raízes desnudadas. Depois, afastaram-se, sem terem experimentado ali a felicidade sobre-humana que procuravam.

- Onde estamos? - perguntou Serge.

Albine ignorava-o, pois nunca viera para aquele lado do parque. Encontravam-se então num maciço de citisos e de acácias, cujos cachos impregnavam a atmosfera de um aroma muito suave, quase adocicado.

- Estamos perdidos - murmurou ela, sorrindo. - Tenho a certeza de que não conheço estas árvores...

- No entanto - insistiu ele-, o jardim deve terminar em qualquer parte. Conheces bem onde acaba o jardim?

Ela esboçou um gesto amplo e respondeu:

- Não.

Ficaram mudos, pois até ali ainda não haviam experimentado sensação tão feliz da imensidade do parque. Maravilhava-os estarem sós no meio de um domínio tão grande que até eles próprios deviam renunciar a conhecer-lhe os extremos.

- Com que então estamos perdidos?...-repetiu Serge, alegremente. - Tem os seus encantos não se saber para onde se vai

Aproximou-se dela e perguntou-lhe, humildemente:

- Tens medo?

- Oh, não! Só tu e eu estamos no jardim... De quem queres que tenha medo? Os muros são demasiado altos. Não os vemos, mas guardam-nos, compreendes?

Serge murmurou, muito chegado a ela:

- Há pouco tiveste medo de mim...

Ela fitou-o nos olhos, serena, sem pestanejar, e redarguiu:

- Estavas a fazer-me mal. Agora, porém, estás a ser muito ’bom. Porque havia de ter medo de ti?

- Então, permites-me que te agarre assim? Vamos passear outra vez debaixo das árvores?

- Está bem. Podes apertar-me, porque com isso dás-me prazer. Mas caminhemos devagar, sim? Não quero achar o nosso caminho demasiado curto.

Ele passara-lhe um braço em volta da cintura, e foi assim que tornaram a penetrar debaixo das árvores gigantescas, cujas copas majestosas contribuíram para que atardassem ainda mais o seu passeio de crianças grandes que despertavam para o amor. Ela disse que estava um pouco cansada e encostou a cabeça ao ombro de Serge. Nem um nem outro falou, porém, em se sentarem. Não pensavam nisso, mas se pensassem a ideia não lhes teria agradado. Que alegria poderia proporcionar-lhes um repouso na erva, comparada com o prazer que saboreavam em caminhar sempre lado a lado? A árvore lendária estava esquecida. Só procuravam aproximar as faces, para se sorrirem mais de perto, e eram as árvores -os bordos, os olmos, os carvalhos-que lhes segredavam as primeiras palavras de ternura debaixo da sua sombra clara.

- Amo-te! - dizia Serge em voz baixa, agitando os cabelinhos dourados das têmporas de Albine.

Gostaria de encontrar outra palavra, mas só sabia repetir:

- Amo-te! Amo-te!

Albine escutava-o com um sorriso encantador. Aprendia aquela música.

- Amo-te! Amo-te! - suspirava ela mais deliciosamente, com a sua voz orvalhada de rapariga.

Depois, levantando os olhos azuis, onde crescia uma alvorada luminosa, perguntou:

- Amas-me como?

Então, Serge concentrou-se. O arvoredo tinha uma doçura solene, as naves profundas retinham a ressonância dos passos abafados do piar.

- Amo-te mais do que tudo - respondeu ele. - És mais bela do que tudo quanto vejo de manhã, ao abrir a janela. Quando te olho, não sinto necessidade de mais nada; tu bastas-me. Desejaria só te ter a ti e já me consideraria bastante feliz.

Ela baixava as pálpebras e abanava a cabeça como se a embalassem.

- Amo-te - continuou ele. - Não te conheço, não sei quem és, não sei de onde vens; não és minha mãe nem minha irmã, mas amo-te a ponto de te dar todo o meu coração, de nada guardar para o resto do mundo... Escuta: amo as tuas faces macias como cetim, amo a tua boca que recende a rosas, amo os teus olhos nos quais me revejo com o meu amor, amo até os teus cílios e essas veiazinhas que azulam a palidez .das tuas têmporas... Digo que te amo, que te amo, Albine.

- Também te amo - redarguiu ela. - Tens uma barba tão fina que não me arranha quando encosto a ’testa ao teu pescoço. És forte, és grande, és belo. Amo-te, Serge.

Calaram-se por um momento, extasiados. Parecia-lhes que os precedia um canto de flauta, que as palavras lhes vinham de uma orquestra suave que não viam. Já só caminhavam em passinhos curtos, inclinados um para o outro, girando sem destino por entre os troncos gigantescos. À distância, ao longo das colunatas, viam-se réstias de sol poente semelhantes a um desfile de raparigas vestidas de branco, a entrarem na igreja para os esponsais ao som abafado dos órgãos.

- Amas-me... Porquê? - perguntou-lhe de novo Albine. Ele sorriu e não respondeu imediatamente. Depois, disse:

- Amo-te porque vieste. Isto diz tudo... Agora, estamos juntos, amamo-nos, e parece-me que não continuaria a viver se não te amasse. És o meu alento.

Baixou a voz e prosseguiu, sonhador:

- Estas coisas não se sabem logo; nascem em nós como o nosso coração, crescem e fortalecem-se... Amávamo-nos mas não o dizíamos, lembras-te? Éramos crianças, éramos tolos. Depois, um belo dia, tudo se torna absolutamente claro e a revelação surpreende-nos... Em resumo, a verdade é esta: amamo-nos porque o nosso destino é amarmo-nos.

De cabeça baixa e com as pálpebras completamente fechadas, Albine retinha a respiração, saboreava o silêncio ainda quente daquelas palavras acariciadoras.

- Amas-me? Amas-me? - balbuciou sem abrir os olhos. Ele ficou mudo, muito infeliz por não encontrar mais

nada que lhe dizer para lhe demonstrar que a amava. Observou lentamente as faces rosadas de Albine, que se abandonavam como que adormecidas. As pálpebras possuíam uma delicadeza de seda viva; a boca formava uma prega adorável, humedecida por um sorriso; a testa, muito pura, terminava na linha dourada da raiz dos cabelos. Serge desejaria ofertar todo o seu ser na palavra que lhe aflorava aos lábios, mas que não era capaz de pronunciar. Por isso, inclinou-se mais e pareceu procurar-lhe no rosto o lugar mais delicado, para depor a palavra suprema. Depois, sem dizer nada, apenas num sopro, beijou-a nos lábios.

- Albine, amo-te!

- Amo-te, Serge!

E detiveram-se, dominados pelo frémito daquele primeiro beijo. Ela abrira muito os olhos; ele mantinha-se com a boca levemente estendida, e ambos se olhavam, sem corar, invadidos pelo que quer que fosse de poderoso, de soberano. Dir-se-ia um encontro longo tempo esperado, no qual se reviam adultos, talhados um para o outro, para sempre unidos. Ficaram um instante atónitos, ergueram a vista para a abóbada religiosa da folhagem e pareceram interrogar a multidão tranquila das árvores, como se quisessem reencontrar o eco do beijo. Mas perante a serena complacência da floresta, sentiram a alegria de apaixonados impunes, uma alegria .prolongada, ruidosa, repleta da eclosão tagarela da sua ternura.

- Ah, conta-me desde que dia me começaste a amar! Diz-me tudo... Amavas-me já quando dormias encostado à minha mão? Amavas-me já daquela vez que caí da cerejeira e me esperavas em baixo, muito pálido, com os braços estendidos? Amavas-me já no meio dos prados, quando me pegavas pela cintura para eu saltar os ribeiros?

- Cala-te, deixa-me dizer a mim. Sempre te amei... E tu, amavas-me? Amavas-me?

Até cair a noite, viveram daquela palavra - amar -, que repetiam constantemente com uma doçura sempre nova. Procuravam-na, intercalavam-na nas frases, pronunciavam-na fora de propósito, pelo simples prazer de a proferirem. Serge não pensou em depositar segundo beijo nos lábios de Albine; à sua ignorância bastava conservar o aroma do primeiro. Tinham reencontrado o caminho, sem se terem de modo algum preocupado com os atalhos. Quando saíram da floresta já caíra o crepúsculo e a Lua erguia-se no horizonte, amarelada, entre as verduras quase negras. Foi um regresso adorável, através do parque, seguidos pelo astro discreto que os observava por todas as aberturas das grandes árvores. Albine dizia que a Lua os seguia. A noite estava muito suave, recamada de estrelas. Ao longe, o arvoredo entregava-se a um grande murmúrio, que Serge escutava pensando: “Estão a falar de nós.”

Atravessaram o jardim envoltos num perfume singularmente agradável, no perfume que as flores têm à noite, mais lânguido, mais acariciante, que é como que a própria respiração do seu sono.

- Boas noites, Serge.

- Boas noites, Albine.

Estavam de mãos dadas no patamar do primeiro andar, sem entrarem no quarto, onde habitualmente se despediam. Não se abraçaram. Quando ficou só, sentado à beira da cama, Serge escutou durante muito tempo as idas e vindas de Albine, a preparar-se para se deitar no quarto que ficava por cima do dele. Sentia um cansaço feliz, que lhe entorpecia os membros.

MAS nos dias seguintes Albine e Serge sentiram-se embaraçados diante um do outro e evitaram fazer a menor alusão ao seu passeio debaixo das árvores. Parecia que não haviam trocado um beijo nem dito que se amavam. Não era a vergonha que os impedia de falar a tal respeito, mas sim o temor, o receio de estragarem a sua alegria. Quando não estavam juntos, só viviam daquela boa recordação; engolfavam-se nela, reviviam as horas que tinham passado abraçados pela cintura a acariciarem o rosto um do outro com o hálito Semelhante ideia fixa acabou por lhes provocar um estado de excitação febril. Fitavam-se com os olhos mortiços, muito tristes, e conversavam de coisas que não lhes interessavam nada. Em seguida, depois de longos períodos de silêncio, Serge perguntava a Albine, com voz inquieta:

- Sofres?

Mas ela abanava a cabeça e respondia:

- Não, não. Tu é que não estás bom; as tuas mãos escaldam.

O parque causava-lhes uma inquietação íntima que não sabiam explicar. Havia como que um perigo oculto nos meandros dos atalhos, que os espreitava, pronto a agarrados pela nuca e a deitá-los ao chão para lhes fazer mal. Nunca abriam a boca a respeito de tais coisas; mas, por meio de certos olhares desconfiados, deixavam transparecer a angústia que os tornava estranhos, quase inimigos. Contudo, uma manhã, Albine arriscou, depois de uma longa hesitação:

- Fazes mal em estar sempre fechado. Acabarás por voltar a adoecer.

Serge riu forçadamente.

- Ora - murmurou -, já fomos a toda a parte, conhecemos o jardim de ponta a ponta!...

Ela negou com a cabeça e depois insistiu, baixinho:

- Não, não... Não conhecemos os rochedos, ainda não fomos às nascentes. É lá que me aqueço, no Inverno. Existem recantos onde as próprias pedras parecem viver.

No dia seguinte, sem terem acrescentado uma só palavra, saíram. Subiram pela esquerda, por detrás da gruta onde dormia a mulher de mármore. Quando puseram o pé nas primeiras pedras, Serge disse:

- Era isto que nos trazia inquietos. Temos de ver tudo. Talvez depois fiquemos tranquilos.

O dia estava abafado e sentia-se um calor pesado, de tempestade. Não se tinham atrevido a abraçarem-se pela cintura; caminhavam atrás um do outro, debaixo do sol escaldante. Ela aproveitou um alargamento do carreiro para o deixar passar-lhe adiante. A respiração de Serge perturbava-a, enervava-a senti-lo atrás de si, tão perto das suas saias. Os rochedos elevavam-se em torno deles, dispostos em largos socalcos; as rampas suaves formavam patamares cobertos de lajes enormes, eriçados de vegetação bravia. Encontraram primeiro giestas douradas e tapetes de tomilho, de salva e de alfazema, de todas as plantas aromáticas, além de zimbros e alecrins de um aroma tão forte que os embriagava. De vez em quando, de ambos os lados do carreiro, os azevinhos formavam sebes que lembravam delicadas obras de serralharia, grades de bronze escuro, de ferro forjado e de cobre polido, de ornamentos complicadíssimos, muito floridos de rosáceas espinhosas. Depois, tiveram de atravessar um pinhal para chegar às nascentes, e aí a sombra rala pesou-lhes nos ombros como se fosse de chumbo. As agulhas secas estalavam-lhes debaixo dos pés e os seus passos levantavam uma leve poeira resinosa, que lhes queimava os lábios.

- Deste lado, o teu jardim não é nada agradável - disse Serge, virando-se para Albine.

Sorriram. Estavam à beira das nascentes, cujas águas cristalinas foram para eles um alívio, pois não se escondiam debaixo da vegetação, como as nascentes das planícies, que faziam brotar à sua volta folhagens espessas, a fim de dormirem preguiçosamente à sombra. Nasciam à torreira do sol, num buraco da rocha, sem um rebento de erva a esverdear-lhes a água azulada. Pareciam de prata, completamente encharcadas de luz. Ao fundo, o sol batia na areia e levantava uma poalha brilhante, viva, que parecia respirar. As águas escorriam do primeiro tanque natural, dividiam-se em braços de uma transparência cristalina, saltavam como alegres crianças nuas e desaguavam bruscamente numa cascata cuja curva suave parecia o busto reclinado de uma mulher loura.

- Mergulha as mãos na água!-gritou Albine.-No fundo, está gelada.

De facto, puderam refrescar as mãos. Depois, atiraram água à cara um do outro e deixaram-se ficar ali ia apanhar a poalha de chuva que subia da cascata, que dir-se-iia molhar até o próprio sol.

- Olha! - exclamou Albine de novo. - Ali está o jardim, e ali a pradaria, e ali a floresta.

Durante um momento, admiraram o Paradou, que se lhes estendia aos pés.

- Vês - continuou ela-, não se divisa a mais pequena pontinha de muro. A terra é toda nossa até aos confins do horizonte.

Tinham-se finalmente abraçado pela cintura, sem darem por isso, num gesto natural e confiante. As nascentes acalmavam-lhes a febre. Mas quando se afastavam dali, Albine pareceu recordar-se de qualquer coisa, puxou por Serge e disse-lhe:

- Uma vez vi o muro dali, da base dos rochedos. Foi há muito tempo.

- Mas não se vê nada... - murmurou Serge, levemente pálido.

- ’Sim, sim... Deve ficar por detrás da alameda dos castanheiros, junto dos silvados

Depois, sentindo que o braço de Serge a apertava mais nervosamente, acrescentou:

- Talvez esteja enganada. . No entanto, lembro-me de o ter visto uma vez, de repente, ao sair da alameda. Barrava-me o caminho e era tão alto que tive medo... Depois de dar alguns passos, fiquei muito surpreendida: estava derrubado, tinha uma brecha enorme pela qual se via toda a região deste lado

Serge fitou-a, com uma súplica inquieta nos olhos, e ela encolheu os ombros para o tranquilizar.

- Oh, mas eu tapei o buraco! Sossega, já te disse que estamos completamente sós... Tapei-o logo. Trazia a minha faca, cortei silvas e rolei grandes pedras. Desafio até um pardal a passar por lá... Se quiseres, iremos lá ver, um destes dias, para ficares tranquilo.

Ele disse que não com a cabeça e afastaram-se dali, abraçados pela cintura. Mas sentiam-se novamente ansiosos. Serge baixava a vista, de soslaio, para o rosto de Albine, que sofria e pestanejava por ele a olhar assim. Ambos desejariam tornar a descer, fugirem ao mal-estar de um passeio mais prolongado, mas, mau grado seu, como se cedessem a uma força que os impelisse, contornaram um rochedo e chegaram a um planalto onde os esperava de novo a embriaguez da torreira do sol. Não sentiam já a languidez agradável das plantas aromáticas, do almíscar, do tomilho, do incenso, da alfazema; agora, pisavam ervas malcheirosas: o absinto, de uma embriaguez amarga; a arruda, que exalava um cheiro a carne putrefacta; a valeriana ardente, completamente humedecida pela sua transpiração afrodisíaca. Das mandrágoras, das cicutas, dos helóboros, das beladonas, subia-lhes uma vertigem às têmporas, um torpor que os fazia cambalear nos braços um do outro, ofegantes.

- Queres que te pegue? - perguntou Serge a Albine, sentindo-a desfalecer encostada a ele.

Apertava-a já nos braços, mas ela soltou-se, com a respiração entrecortada.

- Não, sufocas-me- respondeu. - Deixa-me. Não sei o que tenho. O chão parece mover-se debaixo dos meus pés... Creio que é isso que me faz sentir mal.

Pegou na mão de Serge e pô-la no peito. Então, ficou completamente branco, mais desfalecido do que ela. Ambos tinham os olhos rasos de lágrimas, por se verem assim, sem encontrarem remédio para o seu grande infortúnio. Iriam morrer ali, daquela doença desconhecida?

- Vem para a sombra, anda sentar-te - disse Serge. - São estas plantas que nos incomodam com o seu cheiro.

Levou-a pela ponta dos dedos, pois ela estremecia só de lhe tocar no pulso. O bosque de árvores verdes onde Albine se sentou era formado por um magnífico cedro cujos ramos planos se estendiam como um tecto num raio de mais de dez metros. À retaguarda espalhavam-se as essências exóticas das coníferas, cuprésseas de folhagem mole e achatada como uma renda espessa, abetos direitos e graves semelhantes a antigas pedras sagradas ainda negras do sangue das vítimas, teixos vestidos de folhagem sombria franjada de prata e todas as plantas de folhagem persistente, de vegetação atarracada e verdura escura como couro envernizado, salpicada de amarelo e vermelho, tão exuberante que o sol deslizava sobre ela sem a amaciar. Tornava-se principalmente notada uma auracária estranha, com os seus grandes braços regulares semelhantes a uma arquitectura de répteis enxertados uns sobre os outros, que lhe eriçavam as folhas imbricadas como escamas de serpentes enfurecidas. Ali, debaixo daquelas sombras espessas, o calor provocava um sono voluptuoso e o ar dormia, sem um bafo, numa transpiração de alcova. Um perfume de amor oriental, o perfume dos lábios pintados da Sunamita, exalava-se dos bosques odoríferos.

- Não te sentas? - perguntou Albine, desviando-se um pouco para lhe dar lugar.

Mas ele recusou e deixou-se ficar de pé. Depois, como ela o convidasse de novo, dobrou as pernas até se ajoelhar, a alguns passos de distância, e murmurou:

- Não, tenho mais febre do que tu e queimar-te-a...

Escuta: se não receasse fazer-te mal, tomar-te-ia nos braços e apertar-te-ia tanto, tanto, que não sentiríamos mais os nossos sofrimentos.

Arrastou-se de joelhos e aproximou-se um pouco.

Oh, ter-te nos meus braços, ter-te na minha carne!...

Só penso nisto. De noite, acordo agarrado ao vácuo, abraçado ao meu sonho. Desejaria só te pegar primeiro pela ponta do dedo mínimo; depois, tomar-te-ia toda inteira, dentamente, até nada restar de ti, até te tornares minha dos pés ao último dos teus cílios. Guardar-te-ia para sempre. Deve ser um bem delicioso possuir assim quem se ama. O meu coração fundir-se-ia no teu.

Aproximou-se mais. Bastar-lhe-ia estender as mãos para lhe tocar na fímbria das saias.

- Mas, não sei porquê, sinto-me longe de ti... Ergue-se entre nós uma parede que os meus punhos fechados seriam incapazes de deitar abaixo. E, contudo, hoje sinto-me forte; poderia rodear-te com os braços, atirar-te para cima dos ombros e levar-te como uma coisa minha. Mas não daria resultado, não serias suficientemente minha. Quando as minhas mãos te tomam, agarram apenas um nada do teu ser... Onde estás toda inteira para te ir lá buscar?

Deixara-se cair apoiado nos cotovelos, prosternado, numa atitude de humilde adoração, e depositou um beijo na fímbria da saia de Albine. Então, como se tivesse recebido o ’beijo na pele, ela levantou-se e ficou muito direita. Com as mãos nas têmporas, balbuciou, transtornada:

- Não, suplico-te. Continuemos a andar.

Não fugia; deixava-se seguir por Serge, devagar, desesperadamente, tropeçando com os pés nas raízes e com a cabeça sempre entre as mãos, para sufocar o clamor que a invadia. Quando saíram do bosquezinho, deram alguns passos nos degraus dos rochedos, onde se aninhava uma multidão ardente de plantas repletas de seiva. Debaixo delas ouviam-se rastejar e esgueirarem-se animais sem nome, visões de pesadelo, monstros híbridos resultantes do cruzamento da aranha, da lagarta e do bicho-de-conta, extraordinariamente aumentados, de pele lisa e glauca, eriçada de pêlos imundos, que se arrastavam por meio de membros frágeis, de pernas de aborto e braços alquebrados, uns inchados como ventres obscenos, outros cobertos de espinhos acrescentados pelo pululamento de gibosidades, e outros ainda desengonçados, andrajosos, como esqueletos desarticulados. As mamilárias pareciam montes de pústulas vivas, um fervilhar de tartarugas esverdeadas, terrivelmente barbudas, de longas crinas mais duras do que pontas de aço; os equinocactos, de pele mais visível, pareciam ninhos de viborazinhas entrelaçadas; os equinópedes lembravam uma escova, uma excrescência de pêlos ruivos, um insecto gigantesco enovelado; as opúncias erguiam em galhos as folhas carnudas, salpicadas de agulhas avermelhadas, semelhantes a enxames de abelhas microscópicas, com as bolsas repletas de vérmina e os olhos rebentados; os gastros projectavam patas reviradas como as das grandes aranhas dos-campos e tinham membros negros, pontilhados, estriados, adamascados, e os ceréus desabrochavam em vegetações vergonhosas, em polipeiros enormes, doenças daquela terra demasiado quente, devassidões de uma seiva envenenada. Mas eram sobretudo os aloés que desabrochavam em grande número os seus corações de plantas ardentes. Havia-os de todos os tons de verde: claros, viçosos, amarelados, acinzentados, acastanhados de ferrugem e orlados de ouro desbotado; e de todas as formas: de folhas largas, recortadas como corações; de folhas delgadas semelhantes a lâminas de gládios, uns denteados em espinhas e outros finamente debruados; enormes, com a alta haste florida, de onde pendiam fieiras de coral cor-de-rosa, colocada às três pancadas, e pequenos, nascidos em cachos na. mesma haste, como florações carnudas que pareciam dardejar em todos os sentidos línguas ágeis de cobras.

- Voltemos para a sombra - implorou Serge. - Sentar-te-ás como há pouco e ficarei de joelhos a conversar contigo.

Choviam ali grandes gotas de sol. O astro triunfava, apoderava-se da terra nua, apertava-a ao peito abrasado. Atordoada pelo calor, Albine cambaleou e virou-se para Serge.

- Segura-me - disse, com voz desfalecida.

Logo que se tocaram caíram, com os lábios nos lábios, sem um grito. Parecia-lhes nunca mais pararem de cair, como se a rocha se enterrasse debaixo deles, indefinidamente. As suas mãos errantes procuravam o rosto, a nuca, desciam ao longo das roupas. Mas era uma aproximação tão cheia de angústia que se levantaram quase imediatamente, exasperados, incapazes de levarem mais longe a satisfação dos seus desejos. E fugiram, cada um por um carreiro diferente. Serge correu até ao pavilhão, atirou-se para cima da cama, com a cabeça em fogo e o coração desesperado. Albine só entrou à noite, depois de chorar todas as suas lágrimas num recanto do jardim. Pela primeira vez não regressavam juntos, cansados da ventura dos longos passeios. Durante três dias evitaram-se, arrufados. Sentiam-se horrivelmente infelizes.

No entanto, naquele instante o parque inteiro pertencia-lhes, tinham tomado posse dele soberanamente. Não havia um bocadinho de terra que não lhes pertencesse. Era para eles que o roseiral floria, que o jardim se enchia de aromas suaves, enlanguescentes, cujas lufadas lhes entravam à noite pelas janelas abertas e os adormeciam. O pomar alimentava-os, enchia de frutos as saias de Albine e refrescava-os com a sombra almiscarada dos seus ramos, debaixo dos quais sabia tão bem tomar o pequeno almoço depois de nascer o Sol. Nos prados, tinham as ervas e as águas: as ervas que alargavam o seu reino, que desenrolavam incessantemente diante deles tapetes de seda; as águas que eram a melhor das suas alegrias, a sua grande pureza, a sua grande inocência, a torrente fresca onde gostavam de banhar a sua juventude. Possuíam a floresta, desde os carvalhos enormes que dez homens não poderiam abraçar, até às delgadas bétulas que uma criança quebraria sem esforço - a floresta com todas as suas árvores, com toda a sua sombra, as suas alamedas, as suas clareiras, as suas grutas de verdura desconhecidas dos próprios pássaros; a floresta de que dispunham a seu bel-prazer, como de uma tenda gigantesca em que podiam abrigar, à hora do meio-dia, a sua ternura nascida de manhã. Reinavam por toda a parte, incluindo os rochedos, as nascentes e aquele solo terrível, com as suas plantas monstruosas, que estremecera debaixo do peso dos seus corpos e de que gostavam mais do que das outras camas fofas do jardim, devido ao estranho calafrio que nele tinham experimentado. Agora, eram senhores de tudo o que abarcavam em frente, à esquerda e à direita, tinham conquistado o seu domínio e caminhavam no meio de uma natureza amiga, que os conhecia, os saudava rindo à sua passagem e se oferecia aos seus prazeres como serva submissa. E desfrutavam ainda o céu, o amplo manto azul aberto por cima das suas cabeças, que não se encontrava encerrado dentro dos muros, mas que pertencia aos seus olhos, participava da sua alegria de viver, de dia com o seu sol triunfante, à noite com a multidão quente das estrelas. O céu maravilhavaos de minuto a minuto, durante o dia, cambiante como carne viva, mais branco de manhã do que uma rapariga ao levantar-se, dourado ao meio-dia como um desejo de fecundidade, extasiado à noite na lassidão feliz das suas ternuras. Nunca tinha o mesmo rosto. Maravilhava-os sobretudo à noite, à hora das despedidas. O Sol, ao sumir-se no horizonte, encontrava sempre um novo sorriso. Às vezes, retirava-se no meio de uma paz serena, sem uma nuvem, mergulhava pouco a pouco num banho de ouro. Outras vezes, expandia-se em raios cor de púrpura, rasgava o seu vestido vaporoso, escapava-se em vagas de chamas que riscavam o céu como caudas de cometas gigantescos, cujas radículas incendiavam as copas das árvores de maior porte. Depois, sobre as praias de areia vermelha, sobre os bancos alongados de coral cor-de-rosa, via-se o astro desaparecer ternamente e recolher um a um os seus raios; ou então ocultar-se, discreto, atrás de alguma grande nuvem, como que coberto por um cortinado de alcova feito de seda cinzenta, através do qual apenas se vislumbrava um rubor de lamparina no fundo da sombra crescente; ou então, ainda, converter-se num ocaso apaixonado, cheio de manchas brancas dispostas a esmo, gradualmente ensanguentadas pelo disco abrasado que as mordia e com o qual acabavam por rolar atrás do horizonte, no meio de um caos de membros contorcidos que se convertia em luz.

Só as plantas não tinham feito o seu acto de submissão. Albine e Serge caminhavam majestosamente por entre a multidão de animais que lhes prestavam vassalagem. Quando atravessavam o jardim, as borboletas levantavam voo para prazer dos seus olhos, abanavam-nos com os seus batimentos de asa, seguiam-nos como o tremeluzir vivo do sol, como flores que levantassem voo para espargir o seu perfume. No pomar, encontravam-se no alto das árvores com os passarinhos gulosos, e os pardais, os tentilhões, os verdelhões e os piscos indicavam-lhes os frutos mais maduros, cobertos de cicatrizes das suas bicadas, tudo no meio de uma algazarra de escolares na hora do recreio, de uma alegria turbulenta de mariolas que em bandos descarados vinham roubar-lhes as cerejas aos pés, enquanto almoçavam encavalitados nos ramos. Albine divertia-se ainda mais nos prados, a apanhar as rãzinhas verdes agachadas ao longo das hastes dos juncos, com os seus olhos dourados, a sua doçura de animais contemplativos, enquanto Serge, com o auxílio de uma palha seca, obrigava os grilos a saírem dos buracos, fazia cócegas no ventre das cigarras para as induzir a cantar e apanhava insectos azuis, cor-de-rosa e amarelos, que em seguida pousava nas mangas como se fossem botões de safira, de rubi e de topázio. Depois, era a vida misteriosa das ribeiras: os peixes de lombo escuro que deslizavam na água, as enguias adivinhadas graças ao leve estremecimento das ervas, os cardumes de peixinhos da última desova dispersando-se ao menor ruído como uma nuvem de areia escura, as moscas armadas de grandes patins, com os quais encrespavam a água estagnada e abriam largos círculos prateados... Enfim, todo o pulular silencioso que os retinha ao longo das margens e muitas vezes lhes dava vontade de se plantarem, com as pernas nuas, bem no meio da corrente, para sentirem o deslizar sem fim daqueles milhões de existências. Noutros dias - nos dias de terna languidez - era debaixo das árvores da floresta, à sombra sonora, que iam escutar as serenatas dos seus músicos, a flauta de cristal dos rouxinóis, a trompetazinha argentina dos melharucos e o acompanhamento longínquo dos cucos. Maravilhavam-se com o voo brusco dos faisões, cuja cauda parecia um raio de sol a espreitar por entre os ramos, e paravam, sorridentes, para deixarem passar a alguns passos um bando alegre de cabritinhos ou um casal de veados muito sérios, que afrouxavam o trote para os observar. Noutros dias ainda, quando o céu parecia incendiado, subiam às rochas e achavam graça às nuvens de gafanhotos que os seus pés faziam levantar dos campos de tomilho, com a crepitação de uma braseira a apagar-se. As cobras estendidas à beira das moitas crestadas, os lagartos esparramados nas pedras escaldantes, seguiam-nos com olhar amistoso. Os flamingos cor-de-rosa, que mergulhavam as patas na água das nascentes, não levantavam voo à sua aproximação e tranquilizavam com a sua gravidade confiante as galinholas amodorradas no meio do tanque.

Albine e Serge só tomaram consciência de que a vida do parque crescera à sua volta no dia em que eles próprios se sentiram viver num beijo. Agora, aquela vida atordoava-os por instantes, falava-lhes uma linguagem que não entendiam, dirigia-lhes solicitações que não sabiam como satisfazer. Aquela vida, todas aquelas vozes e todas aquelas ardências animais, todos aqueles aromas e todas aquelas sombras de plantas, perturbavam-nos a ponto de os irritar um contra o outro. E, contudo, só encontravam no parque uma familiaridade afectuosa. Cada erva, cada animalzinho tornara-se um amigo. O Paradou convertera-se numa grande carícia. Antes de chegarem, durante mais de cem anos, só o Sol reinara ali, como senhor absoluto, e emprestara o seu esplendor a cada ramo. Então, o jardim só o conhecia a ele. Via-o todas as manhãs saltar o muro de vedação com os seus raios oblíquos, sentar-se a prumo ao meio-dia na terra extasiada e ir-se embora à tardinha, pelo lado oposto, depois de rasar as folhas num beijo de adeus. Por isso o jardim não se sentia agora envergonhado e acolhia Albine e Serge como durante muito tempo acolhera o Sol: como bons camaradas com os quais se está à vontade. Os animais, as árvores, as águas e as pedras comportavam-se com um despropósito adorável: falavam muito alto e viviam completamente nus, sem um mistério, ostentando a impudência inocente, a encantadora ternura dos princípios do mundo. Aquele (recanto da natureza ria-se discretamente dos terrores de Albine e de Serge, mostrava-se mais terno, estendia-lhes debaixo dos pés as suas camas de relva mais fofas e aproximava os arbustos para lhes tornar os atalhos mais estreitos. Se ainda os não lançara nos braços um do outro era porque se comprazia em vê-los passear os seus desejos e se divertia com os seus beijos desajeitados, que soavam debaixo do arvoredo como pios de aves enraivecidas. Mas eles, a quem a grande voluptuosidade que os rodeava fazia sofrer, amaldiçoavam o jardim. Na tarde em que Albine se (desfizera em lágrimas, em seguida ao passeio nos rochedos, gritara ao Paradou, ao senti-lo tão vivo e ardente em torno de si:

- Se és nosso amigo, porque nos afliges?

A PARTIR do dia seguinte, Serge barricou-se no quarto. O cheiro do jardim exasperava-o. Correu os cortinados de algodão, para não ver o parque e para o impedir de lhe entrar no quarto, na esperança de reencontrar a paz da infância, longe daquela vegetação cuja sombra lhe provocava como que um formigueiro na pele. Depois, durante as longas horas que passavam juntos a conversar, não tornaram a referir-se nem às rochas, nem às águas, nem às árvores, nem ao céu. O Paradou deixara de existir; procuravam esquecê-lo. No entanto, sentiam-no, apesar de tudo, omnipotente, enorme, atrás dos cortinados finos. O cheiro das ervas penetrava pelas fendas do madeiramento, vozes prolongadas faziam vibrar os vidros, toda a vida exterior ria, ciciava, emboscada debaixo das janelas. Então, pálidos, elevavam a voz e procuravam qualquer distracção que lhes permitisse não o ouvir.

- Já viste? - disse Serge, uma manhã, numa daquelas horas perturbantes. - Por cima da porta está pintada uma mulher parecida contigo.

Riu ruidosamente e voltaram a examinar as pinturas. Arrastaram de novo a mesa ao longo das paredes e procuraram distrair-se.

- Oh, não! - murmurou Albine. - É muito mais gorda do que eu... Além disso, não se pode saber se nos parecemos ou não; está deitada de uma maneira tão esquisita, de cabeça para baixo!...

Calaram-se. A pintura desbotada, comida pelo tempo, reproduzia uma cena que ainda não tinham visto. Dir-se-ia uma ressurreição de carnes delicadas prestes a saltarem da parede acinzentada, uma imagem restaurada cujos pormenores pareciam reaparecer um a um ao calor do Estio. A mulher deitada dobrava-se sob o amplexo de um fauno com pés de bode. Distinguiam-se perfeitamente os braços atirados para trás, o torso abandonado, a cintura flexível daquela jovem mulher nua, surpreendida em cima de molhos de flores ceifadas por Amorzinhos, os quais, de foice na mão, acrescentavam constantemente ao leito novos punhados de rosas. Distinguia-se também o esforço do fauno, o seu peito convulso, inclinado. Na outra extremidade só se viam os pés da mulher, erguidos no ar como duas pombas cor-de-rosa que tivessem acabado de levantar voo.

- Não - repetiu Albine-, não se parece comigo... É feia. Serge não disse nada. Olhava a mulher, olhava Albine,

como se as quisesse comparar. A rapariga arregaçou uma das mangas até ao ombro, para mostrar que tinha os braços mais brancos, e calaram-se segunda vez, voltaram a observar a pintura, para evitar perguntas que lhes acudiam aos lábios mas que não desejavam formular. Contudo, os grandes olhos azuis de Albine pousaram um instante nos olhos cinzentos de Serge, onde luzia uma chama...

- Tornaste a pintar todo o quarto? - indagou ela, saltando da mesa. - Dir-se-ia que toda esta gente desperta...

Desataram a rir, mas com um riso inquieto, acompanhado de olhadelas aos Amores que traquinavam e aos corpos que exibiam quase por completo a sua nudez. Quiseram tornar a ver tudo, por alarde, e extasiaram-se diante de cada painel, chamaram-se para mostrar um ao outro membros de personagens que sem dúvida não estavam ali no mês passado. Viam-se rins flexíveis dobrados por braços nervosos, pernas que se exibiam até às ancas, mulheres reaparecidas nos braços de homens cujas mãos estendidas anteriormente só abraçavam o vácuo. Os próprios Amores de gesso da alcova pareciam cabriolar com maior descaramento. Albine já não falava de crianças a brincar e Serge também já não arriscava hipóteses em voz alta. Demoravam-se, com ar grave, diante das cenas e desejavam que as pinturas readquirissem de repente todo o seu esplendor, cada vez mais enlanguescidos e perturbados pelos últimos véus que ocultavam as cruezas dos quadros. Aqueles fantasmas da voluptuosidade acabavam de lhes ensinar a ciência do amor.

Albine assustou-se e fugiu de Serge, cujo hálito sentia escaldar-lhe o pescoço. Sentou-se à ponta do canapé e murmurou :

- Para dizer a verdade, causam-me medo. Os homens parecem bandidos e as mulheres têm os olhos mortiços de pessoas que estivessem a matar.

Serge sentou-se a alguns passos dela, numa cadeira de braços, e falou de outras coisas. Estavam ambos muito cansados, como se tivessem feito uma longa corrida, e experimentavam certo mal-estar só de imaginarem que as pinturas os observavam. Os cachos de Amores retouçavam fora dos lambrins com uma exuberância de carnes amorosas, numa revoada de garotos sem vergonha, atiravam-lhes flores e ameaçavam prendê-los juntos com o auxílio das fitas de seda azul com que tinham enlaçado estreitamente dois amantes num canto do tecto. Os pares animavam-se, reviviam a história da jovem mulher nua amada por um fauno, história que podiam reconstituir desde o momento em que o fauno a espreitava detrás de uma sebe de rosas até ao abandono da mulher no meio das rosas desfolhadas. Iriam descer todos? Os seus suspiros e o seu hálito não enchiam já o quarto com o odor da voluptuosidade que ali reinara outrora?

- Abafa-se aqui, não achas? - perguntou Albine. - Por mais que o areje, o quarto cheira sempre a velho.

- A noite passada - contou Serge - fui acordado por um perfume tão penetrante que te chamei, julgando que acabavas de entrar no quarto. Dir-se-ia o aroma tépido dos teus cabelos quando neles se introduzem hastes de heliotrópio... Nos primeiros dias, o cheiro vinha de longe, como uma amostra de aroma, mas agora já não consigo dormir, pois o perfume aumenta até me sufocar. À noite, sobretudo, a alcova está tão quente que ainda acabarei por me deitar no canapé. Albine pôs um dedo nos lábios e murmurou:

- É a morta. Como sabes, ela viveu aqui...

Foram cheirar a alcova, gracejando, mas no fundo muito sérios. Sem dúvida, nunca a alcova exalara cheiro tão perturbante. As paredes pareciam ainda impregnadas do perfume deixado pelo contacto de uma saia almisoarada, o parque conservava a suavidade embalsamada de duas pantufas de cetim caídas diante da cama e no próprio leito, na madeira de cabeceira, Serge pretendia ter encontrado a impressão de uma mãozinha que ali deixara o perfume persistente das violetas. Naquele instante, parecia evolar-se de todos os móveis o fantasma perfumado da morta.

- Olha, aqui está o cadeirão onde se devia sentar! - gritou Albine. - Notam-se os seus ombros no estofo.

E sentou-se e disse a Serge que se ajoelhasse para lhe beijar a mão.

- Lembrasse do dia em que te recebi e do que te disse? Foi assim: “Bons dias, meu caro senhor...” Mas eles não deviam dizer só isso, pois não? Ele beijava-lhe as mãos, depois de fecharem a porta... Aqui tens as minhas mãos; são tuas.

Então, tentaram recomeçar as suas antigas brincadeiras, para esquecerem o Paradou, cujo riso crescente lhes chegava aos ouvidos, para não verem as pinturas e para não cederem à tepidez da alcova. Albine fazia caretas, inclinava-se e ria da figura tola que Serge fazia a seus pés.

- Grande estúpido, agarra-me pela cintura e diz-me coisas amáveis. Não combinámos que serias o meu apaixonado?... Não sabes amar-me?

Mas logo que a segurava, que a levantava brutalmente, ela debatia-se e fugia-lhe muito zangada.

- Não! Deixa-me, não quero!... Sufoca-se neste quarto. A partir daquele dia, tiveram medo do quarto, como

tinham medo do jardim. O derradeiro asilo convertia-se num lugar temível, onde não podiam estar juntos sem se vigiarem com olhares furtivos. Albine quase já não entrava lá; ficava no limiar, com a porta escancarada atrás de si, como se estivesse sempre pronta para fugir. Serge vivia só, numa ansiedade dolorosa, cada vez mais sufocado. Dormia no canapé e procurava fugir aos suspiros do parque, ao cheiro dos velhos móveis. À noite, a nudez das pinturas provocava-lhe sonhos loucos, dos quais, ao despertar, só conservava uma inquietação nervosa. Julgou-se novamente enfermo; a sua saúde tinha uma derradeira necessidade para se restabelecer por completo, a necessidade de uma plenitude suprema, de uma satisfação inteira que não sabia aonde ir procurar. Passava os dias silencioso, com os olhos mortiços, e só despertava, num leve sobressalto, às horas em que Albine o visitava. Ficavam diante um do outro, nessas ocasiões, ia fitarem-se gravemente, e trocavam apenas algumas palavras muito doces, que os enchiam de nervosismo. Os olhos de Albine apresentavam-se ainda mais mortiços do que os de Serge, e implorantes.

Passada uma semana, Albine apenas se demorava alguns minutos. Parecia evitá-lo. Chegava muito pensativa, ficava de pé e estava sempre cheia de pressa. Quando a interrogava e a censurava por já não ser sua amiga, virava a cabeça para não responder. Nunca queria contar-lhe como empregava as manhãs que passava longe dele. Abanava a cabeça com ar constrangido e falava da sua preguiça. Se ele insistia mais, retirava-se de um pulo e à noite atirava-lhe um simples adeus através da porta. No entanto, Serge notava que devia chorar com frequência. Seguia-lhe no rosto as fases de uma esperança sempre frustrada, a revolta contínua de um desejo encarniçado em se satisfazer. Certos dias, via-a mortalmente triste, com o rosto abatido e o andar vagaroso de quem hesita em experimentar por mais tempo a alegria de viver. Noutros dias, tinha dificuldade em conter o riso, transparecia-lhe no rosto radiante um pensamento triunfal de que não queria ainda falar, e não conseguia estar quieta no mesmo lugar, como se tivesse pressa de correr em busca de uma derradeira certeza. Mas no dia seguinte recaía nas suas angústias e parecia esperar com impaciência o dia imediato. O que em breve se lhe tornou impossível ocultar foi uma enorme fadiga, uma lassidão que lhe quebrava os membros. Mesmo nos instantes de confiança, curvava-se e parecia adormecer com os olhos abertos.

Serge deixara de a interrogar quando compreendera que não lhe queria responder. Agora, assim que ela entrava, fitava.-a com ansiedade, receoso de que, uma tarde, Albine não tivesse forças para se aproximar dele. Onde se cansaria assim? Que luta constante a deixava ora tão angustiada, ora tão feliz? Uma manhã, sobressaltaram-no uns passos ligeiros que ouviu debaixo das janelas. Supôs, a princípio, que fosse algum cabrito, mas nenhum cabrito se arriscaria a ir até ali. Além disso, conhecia muito bem aquele andar ritmado, que mal pisava as ervas. Albine percorria sem ele o Paradou. Era do Paradou que lhe trazia desânimos e esperanças, era no Paradou que travava aquela luta que a deixava exausta, semimorta. Tinha quase a certeza do que procurava, sozinha, debaixo das árvores, sem uma palavra, com a teimosia muda de mulher que jurou a si própria encontrar o que busca. Desde então, começou a escutar-lhe os passos. Não se atrevia a levantar o cortinado, a segui-la de longe através dos ramos; mas experimentava uma singular comoção, quase dolorosa, em adivinhar se ia para a esquerda ou para a direita, se se embrenhava no jardim e até onde a levavam as suas correrias. No meio da vida ruidosa do parque, da voz retumbante das árvores, do deslizar das águas, da canção contínua dos animais, distinguia o ruído ténue das botinas de Albine, tão nitidamente que poderia dizer se caminhava pela areia das ribeiras, pela terra solta da floresta ou pelas lajes das rochas escalvadas. Chegou até a conseguir identificar, no regresso, as alegrias ou as tristezas de Albine pelo bater nervoso dos saltos. Logo que ela subia a escada, retirava-se da janela, para não lhe confessar que a acompanhara assim por toda a parte. Mas ela devia-lhe adivinhar a cumplicidade, pois a partir de certo dia passou a contar-lhe as suas buscas, com o olhar.

- Fica aqui, não saias mais - pediu-lhe Serge, de mãos postas, numa manhã em que a viu ainda estafada da véspera. - Desesperasse.

Ela fugiu, irritada, e ele sentiu que o seu sofrimento aumentava cada vez que o jardim lhe trazia o eco dos passos de Albine. O ruído leve produzido pelas botinas era mais uma voz que o chamava, uma voz dominadora cuja ressonância o ensurdecia. Tapou os ouvidos, não quis ouvir mais, mas os batimentos do seu coração reproduziam-lhe, como um eco, os passos longínquos. À noite, quando Albine regressava, todo o parque entrava atrás dela, com as recordações dos seus passeios e o lento despertar das suas ternuras no meio da natureza cúmplice. ’Parecia mais alta, mais grave, como que amadurecida pelas suas correrias solitárias. Já nada restava nela da criança brincalhona, e isso fazia-o, às vezes, ranger os dentes, ao olhá-la e vê-la tão desejável.

Um dia, ao princípio da tarde, Serge ouviu Albine regressar à desfilada. Proibira a si próprio ficar à escuta quando ela partira. Habitualmente, só voltava à tardinha. Surpreendeu-o, porém, ouvi-la saltar, como se corresse a direito, quebrando os ramos que lhe barravam o caminho.

Albine parou debaixo das janelas, a rir. Quando chegou à escada, resfolegava tão fortemente que ele julgou sentir no rosto o calor do seu hálito. A rapariga abriu a porta de par em par e gritou:

- Achei!

Sentou-se e repetiu suavemente, sufocada:

- Achei! Achei!

Mas Serge pôs-lhe a mão nos lábios, desesperado, e balbuciou:

- Suplico-te que não me digas nada. Não quero saber nada. Morreria se falasses.

Então, ela calou-se, com os olhos ardentes, e apertou os lábios para que as palavras não lhe escapassem sem querer. Deixou-se ficar no quarto até à tardinha, procurando o olhar de Serge para lhe confiar um pouco do que sabia, como conseguira encontrá-lo. Tinha o rosto como que iluminado e cheirava tão bem, estava tão trasbordante ’de vida com a respiração agitada, que Serge se sentia reviver e penetrar por ela tanto pelo ouvido como pela vista. Todos os seus sentidos a sugavam, apesar de se defender desesperadamente contra aquela posse lenta do seu ser.

No dia seguinte, assim que desceu, Albine instalou-se novamente no quarto.

- Não sais? - perguntou-lhe ele, sentindo-se incapaz de a impedir de ficar.

Ela respondeu que não, que não sairia. À medida que se acalmava, sentia-se mais forte, mais triunfante. Em breve poderia pegar-lhe no dedo mínimo e levá-lo para aquele leito de ervas cuja doçura o seu silêncio lhe descrevia tão expressivamente. Naquele dia ainda não disse nada; limitou-se a obrigá-lo a sentar-se-lhe aos pés, numa almofada. Só no dia seguinte se arriscou a dizer:

- Porque te encerras aqui? Está-se tão bem debaixo das árvores!

Ele levantou-se, com os braços estendidos, suplicante, mas ela riu-se.

- Pronto, não iremos, visto não quereres... A verdade, porém, é que este quarto tem um cheiro muito esquisito... Estaríamos melhor no jardim, mais ’à vontade, mais abrigados. Não tens motivo para querer mal ao jardim...

Serge voltara a sentar-se-lhe aos pés, mudo, de olhos baixos, com o rosto convulso.

- Não iremos, pronto - repetiu ela. - Escusas de te zangar. Mas não preferes as ervas do parque a estas pinturas? Não te lembras de tudo o que vimos juntos?... Estas pinturas entristecem-nos e são impertinentes, sempre a olharem para nós.

E como ele se lhe abandonasse pouco a pouco, Albine passou-lhe um traço pelo pescoço, deitou-lhe a cabeça nos Joelhos e murmurou ainda, em voz mais baixa:

- Assim é que se estaria bem num recanto que eu conheço. Lá nada nos perturbaria. O ar livre curar-te-ia a febre.

Calou-se ao senti-lo estremecer. Receava que alguma palavra demasiado brusca despertasse nele os antigos terrores. Conquistava-o lentamente, graças apenas à expressão acariciadora com que os seus olhos azuis lhe percorriam o rosto. Serge reabrira as pálpebras e repousava sem estremecimentos nervosos, todo entregue à sua jovem companheira.

- Ah, se soubesses!... - ciciou-Lhe ela docemente ao ouvido.

Animou-se, ao ver que ele não deixava de sorrir.

- É mentira, não é proibido - murmurou. - És um homem e não deves ter medo... Se lá fôssemos e algum perigo me ameaçasse, defender-me-ias, não é verdade? Saberias levar-me ao colo, não saberias? Quando estou contigo, sinto-me tranquila... Os teus braços são fortes. Que se pode recear quando se têm braços tão fortes como os teus?...

Acariciava-o longamente com a mão, nos cabelos, na nuca, nos ombros.

- Não, não é proibido - repetiu. - Essa história é boa para os tolos. Os que a espalharam, noutro tempo, ’tinham interesse em que ninguém os fosse incomodar no sítio mais delicioso do jardim... Acredita que assim que te sentares naquele tapete de erva te sentirás completamente feliz. Só então conheceremos tudo e seremos os verdadeiros senhores do Paradou... Escuta, vem comigo.

Ele recusou com a cabeça, mas sem se irritar, como homem a quem aquele entretenimento divertia. Depois, ao cabo de um momento de silêncio, desolado por a ver amuada e desejoso de que o continuasse a acariciar, abriu finalmente os lábios e perguntou:

- Onde é?

Ela não respondeu logo. Parecia olhar para longe.

- É lá em baixo - murmurou. - Não te posso indicar. Tem de se seguir pela alameda grande, depois vira-se à esquerda e mais adiante outra vez à esquerda. Passámos lá perto mais de vinte vezes... No entanto, por mais que procurasses não serias capaz de o encontrar se não te levasse pela mão. Mas posso ir lá direita, embora me seja impossível ensinar-te o caminho.

- Quem te guiou?

- Não sei... Esta manhã, as plantas tinham todas o ar de me impelir para aquele lado. Os ramos mais compridos fustigavam-me por detrás, as ervas aplanavam-me o caminho, os próprios carreiros se me ofereciam. E creio que os animais também tomavam parte no jogo, pois vi um veado galopar adiante de mim como se <me convidasse a segui-lo, enquanto um bando de piscos ia de árvore em árvore avisar-me, por meio de pequenos pios, quando ia tomar por caminho errado.

- E é muito bonito?

De novo ela não respondeu. Inundava-lhe os olhos profundo êxtase que só pouco depois lhe permitiu falar.

- É ’belo como não sou capaz de te explicar... Fiquei de tal modo encantada que apenas tive consciência de uma alegria sem nome que parecia cair da folhagem e dormitar nas ervas. E voltei a correr, para te levar comigo, a fim de não saborear sem ti a felicidade de me sentar debaixo daquela sombra.

Rodeou-lhe o pescoço com os braços e suplicou-lhe ardentemente que a acompanhasse, com o rosto junto do dele, com os lábios quase nos seus lábios.

- Oh, tens de ir! - balbuciou. - Lembra-te de que ficaria desolada se não fosses... É um desejo que sinto, uma necessidade longínqua que tem crescido dia a dia em mim e que nesta altura me faz sofrer. Não queres que sofra, pois não?... Mesmo que tivesses de morrer, mesmo que aquela sombra nos matasse a ambos, hesitarias, terias o menor pesar? Ficaríamos deitados juntos ao pé da árvore, dormiríamos eternamente ao lado um do outro. Seria muito bom, não achas?

- Sim, sim - balbuciou ele, conquistado pelo desvario daquela paixão vibrante de desejo.

- Mas não morreremos! - prosseguiu ela, erguendo a voz, com um riso de mulher vitoriosa. - Viveremos para nos amarmos... É uma árvore da vida, uma árvore debaixo da qual seremos mais fortes, mais saudáveis, mais perfeitos. Verás que tudo se nos tornará mais fácil. Poderás tomar-me como sonhavas, tão estreitamente que nem um bocadinho do meu corpo fique fora do teu. Então, creio que algo celeste descerá sobre nós... Queres?

Serge empalidecia e pestanejava como se uma grande claridade o deslumbrasse.

- Queres? Queres? -repetiu ela, mais ardente, já semilevantada.

Ele pôs-se em pé, seguiu-a, primeiro cambaleante, depois agarrado à sua cintura, sem se poder separar dela. Ia para onde Albine ia, arrastado pelo ar quente que se desprendia dos seus cabelos. E como caminhava um pouco atrás, ela voltava-se de vez em quando para ver se a seguia. O seu rosto resplandecia de amor e a sua boca e os seus olhos eram uma tentação. Chamavam-no com tal império que a teria acompanhado assim por toda a parte como um cão fiel.

DESCERAM e caminharam pelo meio do jardim sem que Serge deixasse de sorrir. Não via a vegetação; só via os espelhos cristalinos dos olhos de Albine. Ao vê-los, o jardim teve como que um riso prolongado e um murmúrio satisfeito voou de folha em folha até ao fim das alamedas mais profundas. Havia dias que os esperavam assim, enlaçados pela cintura, reconciliados com as árvores, dispostos a procurar nos leitos de erva o seu amor perdido. Um silêncio solene correu por debaixo dos ramos. O céu das duas horas tinha uma modorra de braseiro. As plantas levantavam-se para os ver passar.

- Ouve-las? - perguntou-lhe Albine, a meia voz.-Calam-se quando nos aproximamos, mas esperam-nos ao longe, escutam-nos, segredam umas às outras o caminho que nos devem indicar... Bem te disse que não teríamos de nos preocupar com os carreiros. As árvores mostram-nos o caminho com os braços estendidos.

De facto, o parque inteiro impeliaos suavemente. Parecia que atrás deles se eriçava uma barreira de silvas, para os impedir de recuar, ao passo que à sua frente se desenrolavam tapetes de relva, tão comodamente que já nem sequer viam onde punham os pés ou sentiam os declives suaves do terreno.

- E os passarinhos acompanham-nos - prosseguia Albine. - Desta vez são melharucos. Vê-los?... Voam ao longo das sebes, param em todas as esquinas, vigilantes, para não nos perdermos. Ah, se compreendêssemos o seu canto saberíamos que nos convidam a ir mais depressa!...

Depois, acrescentou:

- Todos os animais do parque nos acompanham. Não os sentes? Segue-nos um grande ruído: são os passarinhos nas árvores, os insectos nas ervas, os cabritos e os veados nas matas, e até os peixes agitam com as barbatanas as águas adormecidas... Não te voltes, para não os assustares; estou certa, porém, de que temos um belo cortejo.

Continuaram a caminhar com ligeireza, sem fadiga. Albine só falava para encantar Serge com a música da sua voz, e este obedecia à menor pressão da mão da companheira. Tanto um como outro ignoravam por onde passavam, mas estavam certos de ir direitos aonde queriam. E, à medida que avançavam, o jardim tornava-se mais discreto, retinha o suspiro das suas sombras, a tagarelice das suas águas, a vida ardente dos seus animais. Havia apenas <um grande silêncio, fremente, uma expectativa religiosa.

Então, instintivamente, Albine e ’Serge levantaram a cabeça. Por cima deles erguia-se uma folhagem colossal. E, como hesitassem, um cabrito que os fitava com os seus baios olhos meigos, pulou para a espessura do arvoredo.

- É ali - disse Albine.

Foi a primeira a aproximar-se, com a cabeça de novo voltada, e puxou Serge para si. Depois, desapareceram por detrás das folhas remexidas e tudo se acalmou. Entravam numa paz deliciosa.

Ao centro, encontrava-se uma árvore imersa em sombra tão espessa que se lhe não podia distinguir a espécie. Era de porte gigantesco, o seu tronco parecia respirar como um peito e os seus ramos estendiam-se até muito longe, como membros protectores. Uma bela árvore, robusta, potente, fecunda, o decano do jardim, o pai da floresta, o orgulho das ervas, o amigo do Sol, que nascia e morria todos os dias na sua copa. Da sua abóbada verde descia todo o júbilo da criação: perfumes de flores, cantos de passarinhos, gotas de luz, despertares frescos de aurora, tibiezas adormecidas de crepúsculo. A sua seiva possuía tal força que lhe escorria pela casca, a inundava de um bafo de fecundação, a convertia na própria virilidade da terra. Bastava, só por si, para tornar a clareira encantadora As outras árvores que a rodeavam erguiam à sua volta o muro impenetrável que a isolava ao fundo de um tabernáculo de silêncio e meia-luz. Ali havia apenas verdura, sem um retalho de céu, sem uma réstia fugidia de horizonte, uma rotunda coberta por todos os lados pela seda macia das folhas e atapetada pelo veludo acetinado dos musgos. Entrava-se ali como na água cristalina de uma nascente, de uma limpidez esverdeada, toalha de prata adormecida debaixo de um reflexo de canaviais. Cores, perfumes, sonoridades, estremecimentos, tudo ficava vago, transparente, inominado, absorto numa felicidade que ia até ao desvanecimento das coisas. Uma languidez de alcova, um clarão de noite de Estio extinguindo-se no ombro nu de uma apaixonada, um balbuciamento amoroso, quase indistinto, convertiam-se bruscamente num grande espasmo mudo, arrastavam-se na imobilidade dos ramos que nem uma aragem agitava. Solidão nupcial repleta de seres abraçados, câmara vazia em que se sentia em qualquer parte, atrás das cortinas corridas, numa cópula ardente, a natureza saciada nos braços do sol De vez em quando, os rins da árvore estalavam, os membros inteiriçavam-se-lhe como os de uma mulher em trabalhos de parto, o suor de vida que lhe escorria da casca derramava-se mais abundantemente na relva que a rodeava, exalava a moleza de um desejo, inundava o ar de abandono, fazia a clareira empalidecer de gozo Então, a árvore desfalecia como a sua sombra, os seus tapetes de erva, a sua cintura de mata espessa, e não era mais do que uma voluptuosidade.

Albine e Serge estavam extasiados. Desde que a árvore os tomou sob a doçura dos seus ramos sentiram-se curados da ansiedade intolerável que tanto os fizera sofrer. Já não experimentavam o medo que os levara a evitarem-se, nem as lutas ardentes, desesperadas, em que se martirizavam, sem saberem contra que inimigo se batiam tão furiosamente Pelo contrário, apoderara-se deles uma confiança absoluta, uma serenidade suprema Abandonavam-se um ao outro, deslizavam lentamente para o prazer de estarem juntos, muito longe, ao fundo de um retiro milagrosamente oculto. Sem desconfiarem ainda do que o jardim exigia deles, deixavam-lhe a liberdade de dispor da sua ternura, esperavam imperturbáveis que a árvore falasse. E a árvore cegava-os de tal forma de amor que a clareira desaparecia, imensa, real, transmudada numa ilusão perfumada.

Tinham parado, com um leve suspiro, presos pela frescura almiscarada.

- O ar tem o sabor de um fruto - murmurou Albine. E Serge disse, por seu turno, muito baixo:

- A erva está tão -viva que tenho a impressão de caminhar sobre uma ponta do teu vestido.

Baixavam a voz, dominados por um sentimento religioso, e nem sequer tiveram curiosidade de erguer a vista para verem a árvore; sentiam-lhe demasiado a majestade sobre os ombros. Albine perguntou, com um olhar, se exagerara o encanto da vegetação. Serge respondeu com duas lágrimas cristalinas, que lhe correram pelas faces. Sentiam uma alegria indizível por estarem finalmente ali.

- Vem - disse-lhe ela ao ouvido, com voz mais ligeira do que um sopro, e foi a primeira a deitar-se mesmo ao pé da árvore.

Estendeu-lhe as mãos, sorrindo, enquanto ele, de pé, sorria também e lhe dava as suas. Assim que as agarrou, Albine puxou-o para si, lentamente. Ele caiu a seu lado e apertou-a, de súbito, ao peito, num abraço que os encheu de ventura.

- Lembras-te daquele muro que parecia separar-nos? - perguntou Serge. - Agora, sinto-te, já não há nada entre nós... Sofres?

- Não, não - respondeu ela. - Sinto-me bem. Guardaram silêncio, sem se separarem. Invadia-os uma comoção deliciosa, calma, suave. Depois, Serge passou as mãos ao longo do corpo de Albine e prosseguiu:

- O teu rosto é meu, assim como os teus olhos, a tua boca, as tuas faces... Os teus braços são meus, desde as unhas até aos ombros... Os teus pés são meus, os teus joelhos são meus, toda tu és minha.

E beijava-lhe o rosto, os olhos, a boca, as faces. E beijava-lhe os braços, em beijinhos rápidos, dos dedos aos ombros. E beijava-lhe os pés, e beijava-lhe os joelhos. Inundava-a de uma chuva de beijos que caíam em grandes gotas, tépidas como as gotas de um aguaceiro de Verão, e a atingiam por todos os lados, no pescoço, nos seios, nas ancas, nos flancos. Era uma tomada de posse sem arrebatamento, contínua, que se estendia até às mais pequenas veias azuis, visíveis através da pele cor-de-rosa.

- . É para me dar que te tomo - prosseguiu ele. - Quero dar-me a ti por completo, para sempre, pois agora já não tenho dúvida de que és a minha senhora, a minha soberania, aquela que devo adorar de joelhos. Estou aqui para te obedecer, para ficar a teus pés, para adivinhar os teus desejos, para te proteger com os meus braços estendidos e afastar com um sopro as folhas soltas que perturbem a tua paz... Oh, digna-te permitir que desapareça, que me absorva no teu ser, que seja a água que ’bebes, o pão que comes! És o meu fim. Desde que despertei no meio deste jardim que caminho para ti, que cresço para ti. A tua graça foi sempre o meu alvo, a minha recompensa. Passeavas ao sol com a tua cabeleira dourada, eras a promessa anunciadora de que me farias conhecer, um dia, a necessidade desta criação, desta terra, destas árvores, destas águas, deste céu, cuja palavra suprema ainda me escapa... Pertenço-te, sou teu escravo, ouvir-te-ei com os lábios nos teus pés.

Dizia tudo isto curvado para o chão, adorando a mulher. Albine deixava-se adorar, orgulhosa, e estendia os dedos, os seios, os lábios, aos beijos devotos de Serge. Sentia-se rainha ao vê-lo tão forte e tão humilde diante de si. Vencerão, tinhao à sua mercê, podia com uma só palavra dispor dele. E o que a tornava todopoderosa era ouvir em volta de ambos o jardim regozijar-se com o seu triunfo, festejá-lo com um clamor que aumentava lentamente.

Serge já só balbuciava. Os seus beijos tornavam-se desvairados. Murmurou ainda:

- Ah! Desejaria saber... Desejaria tomar-te, guardar-te, morrer talvez, ou volatizar-nos, não sei...

Ficaram ambos deitados, mudos, sem fôlego, com a cabeça esvaída. Albine teve ainda força para levantar um dedo, como se convidasse Serge a escutar.

Fora o jardim que os incitara a pecar. Durante semanas, prestara-se à lenta aprendizagem da sua ternura. depois, naquele dia, acabara por os trazer à alcova verde. Agora, era o tentador que com todas as suas vozes os ensinava a amar. Dos canteiros vinham aromas de flores desfalecidas, um prolongado cicio que contava as núpcias das rosas e as volúpias das violetas, e nunca as solicitações dos heliotrópios se tinham manifestado com ardor mais sensual Do pomar, o vento trazia lufadas de frutos maduros, um cheiro prenhe de fecundidade, a baunilha dos damascos, o almíscar das laranjas. Dos prados erguia-se uma voz mais profunda, feita dos suspiros de milhões de ervas que o sol beijava, prolongado queixume de inumerável multidão em cio, enternecida pelas carícias frescas das ribeiras, pela nudez das águas correntes, à beira das quais os salgueiros deliravam de desejo. A floresta soprava a paixão gigantesca dos carvalhos, os cantos de órgão das árvores de grande porte, música solene que acompanhava o casamento dos freixos, das bétulas, das carpas e dos plátanos, ao fundo dos santuários de folhagem, enquanto os silvados e as árvores novas se entregavam a travessuras adoráveis, a uma vozearia de amantes perseguindo-se mutuamente, que se deitavam à beira dos valados e se roubavam o prazer no meio de grande restolhada de ramos. E naquele acasalamento do parque inteiro ouviam-se ao longe os abraços mais rudes, nas rochas, justamente onde o calor rachava as pedras ingurgitadas de paixão e as plantas espinhosas amavam de modo ’trágico, sem que as nascentes vizinhas as pudessem dessedentar, pois também elas próprias estavam incendiadas pelo astro que lhes descia no leito.

- Que dizem eles? - murmurou Serge, desvairado.-Que querem de nós, que nos suplicam com tanto empenho?

Albine, sem falar, apertou-o a si.

As vozes tinham-se tornado mais distintas. Por seu turno, os animais do jardim gritavam-lhes que se amassem, as cigarras cantavam de ternura até morrer, as borboletas distribuíam beijos com os batimentos das asas e os pardais tinham caprichos de um segundo, carícias de sultões que passeassem vivamente no meio de um serralho. Nas águas cristalinas os peixes, extasiados, desovavam ao sol, ouviam-se apelos ardentes e melancólicos de rãs, toda uma paixão misteriosa, monstruosamente saciada na insipidez glauca dos canaviais. Ao fundo dos bosques, os rouxinóis soltavam risos perlados de volúpia e os veados bramavam, ébrios de tal concuspicência que expiravam de prostração ao lado das fêmeas quase esvantradas. E nas lajes dos rochedos, à beira dos silvados raquíticos, as cobras, unidas aos pares, silvavam docemente, enquanto grandes lagartos chocavam os ovos, com a espinha vibrante e um leve ronquido de êxtase. Dos recantos mais ocultos, dos lençóis de sol, dos buracos sombrios, vinha um odor animalesco, uma ardência de cio universal. Toda aquela vida pululante tinha estremecimentos de procriação. Debaixo de cada folha concebia um insecto; em cada tufo de erva proliferava uma família, e até as moscas, voando coladas umas às outras, não esperavam pousar para se fecundarem. As parcelas de vida invisível que povoavam a matéria, os próprios átomos da matéria, amavam, copulavam, davam ao solo um impulso voluptuoso, tornavam o parque uma grande fornicação.

Então, Albine e Serge compreenderam. Ele não disse nada; limitou-se a envolvê-la nos braços ainda mais estreitamente. Rodeava-los a fatalidade da geração. Cederam às exigências do jardim e foi a árvore que confiou ao ouvido de Albine o que as mães murmuram às desposadas na noite de núpcias.

Albine entregou-se. Serge possuiu-a.

E o jardim inteiro afundou-se com eles, num último grito de paixão. os troncos vergaram-se como debaixo de um grande vendaval; as ervas deixaram escapar um soluço de embriaguez; as flores, desfalecidas, de lábios abertos, exalaram a alma; o próprio céu, todo abrasado como num poente, se cobriu de nuvens imóveis, de nuvens desmaiadas, das quais jorrava um arrebatamento sobre-humano. Consumava-se a vitória dos animais, das plantas, das coisas, que tinham desejado a entrada daquelas duas crianças na ’eternidade da vida. O parque aplaudia freneticamente.

QUANDO Albine e Serge acordaram da estupefacção da sua felicidade, sorriram. Voltavam de um país de luz, desciam de muito alto. Depois, apertaram as mãos, para se agradecerem. Reconheceram-se e disseram:

- Amo-te, Albine.

- Serge, amo-te.

E nunca a expressão “amo-te” tivera para eles sentido tão soberano. Significava tudo, explicava tudo. Durante um espaço de tempo que não puderam calcular, ficaram ali, num repouso delicioso, ainda abraçados. Experimentavam a perfeição absoluta do seu ser. Inundava-os a alegria da criação, igualava-os às potências mães do mundo, tornava-os as próprias forças da terra... Havia ainda, na sua felicidade, a certeza de uma lei cumprida, a serenidade do fim logicamente encontrado, passo a passo.

Serge dizia, voltando a rodeá-la com os braços fortes:

- Vês? Estou curado. Restituiste-me por completo a saúde.

E Albine respondia-lhe, abandonando-se:

- Toma-me toda, toma a minha vida.

A plenitude trazia-lhes a vida aos lábios. Serge acabava de encontrar finalmente, na posse de Albine, o seu sexo de homem, a energia dos seus músculos, ia coragem do seu coração que até ali faltara à sua longa adolescência. Agora, sentia-se completo. Tinha os sentidos mais apurados, a inteligência mais aberta. Era como se, de repente, acordasse convertido em leão, de posse da realeza da planície, da amplidão do céu. Quando se levantou, os seus pés firmaram-se solidamente no solo e o seu corpo aprumou-se, orgulhoso dos seus membros. Pegou nas mãos de Albine e ajudou-a a levantar-se por seu turno. Ela cambaleava um pouco e teve de a amparar.

- Não tenhas medo - disse-lhe. - És aquela a quem amo. Agora, era ela a serva. Encostava a cabeça ao ombro de Serge e olhava-o com ar de reconhecimento inquieto. Querer-lhe-ia mal algum dia por o ter levado ali? Não lhe censuraria mais tarde aquela hora de adoração, durante a qual se dissera seu escravo?

- Não estás zangado? - perguntou-lhe humildemente. Ele sorriu, prendeu-lhe os cabelos e afagou-a com a ponta dos dedos, como a uma criança Albine prosseguiu:

- Oh, verás que me farei muito pequenina! Nem sequer darás pela minha presença. Mas terás de me deixar estar assim, nos teus braços, pois preciso que me ensines a andar... Sim? Parece-me que já não sei andar, agora...

Depois, muito séria, continuou:

- Conserva-me sempre o teu amor e serei obediente, esforçar-me-ei por te fazer feliz, renunciarei a tudo, até aos meus mais íntimos desejos.

Serge experimentava como que um recrudescimento de poder ao vê-la tão submissa, itão terna. Perguntou-lhe:

- Porque tremes? Que te posso censurar?

Ela não respondeu, mas olhou quase tristemente para a árvore, para a vegetação, para a erva que haviam calcado.

- Criança! - prosseguiu ele, rindo. - Tens então medo que te guarde rancor pelo dom que me fizeste? Vamos, isto não pode ser pecado. Amámo-nos como nos devíamos amar... Desejaria beijar as pegadas deixadas pelos teus passos ao trazeres-me aqui, tal como ’beijo os teus lábios, que me tentaram, tal como beijo os teus seios, que acabam de terminar a cura começada - lembras-te? - pelas tuas mãozinhas frescas.

Ela abanou a cabeça, desviou os olhos, para não ver mais a árvore, e disse em voz baixa:

- Leva-me daqui.

Serge levou-a, devagar, depois de olhar longamente a árvore pela última vez. Agradecia-lhe. A sombra tornava-se mais escura na clareira; um arrepio de mulher surpreendida ao deitar-se percorria a vegetação. Quando, ao saírem da folhagem, tornaram a ver o sol, cujo esplendor enchia ainda um recanto do horizonte, ficaram mais tranquilos, sobretudo Serge, que descobria um significado novo em cada ser, em cada planta. Em torno deles tudo se inclinava, tudo prestava homenagem ao seu amor. O jardim não passava de um acessório da beleza de Albine e parecia-lhes que crescera, que se embelezara graças ao beijo dos seus senhores. Mas o júbilo de Albine continuava inquieto. Deixava de rir para apurar o ouvido, com sobressaltos bruscos.

- Que tens? - perguntou-lhe Serge.

- Nada - respondeu ela, mas continuou a olhar furtivamente para trás de si.

Não sabiam em que canto perdido do parque se encontravam. Habitualmente, isso divertia-os - ignorarem aonde o acaso os levara -, mas daquela vez sentiam uma perturbação, um embaraço singulares. Pouco a pouco, aceleraram o passo, embrenharam-se cada vez mais no meio de um labirinto de silvas.

- Não ouviste? - perguntou Albine, medrosamente, parando ofegante.

E como ele escutasse, dominado, por seu turno,, pela ansiedade que ela não conseguia esconder, prosseguiu:

- A mata está cheia de vozes. Dir-se-ia pessoas a escarnecerem... Olha, não é uma risada que vem desta árvore? E ali, aquelas ervas não murmuraram qualquer coisa quando as rocei com o vestido?

- Não, não - redarguiu ele, para a tranquilizar. - O jardim amannos. Se falasse, não seria para te assustar. Não te lembras das palavras amigas sussurradas pela folhagem?... Estás nervosa, imaginas coisas. Mas ela abanou a cabeça e murmurou:

- Bem sei que o jardim é nosso amigo... Então, é que entrou alguém. Garanto-te que ouvi alguém. Toda eu tremo. Ah, suplico-te, leva-me, esconde-me!

Recomeçaram a andar, vigiando o arvoredo, julgando ver rostos aparecerem por detrás de cada tronco. Albine jurava que ouvia passos ao longe que os procuravam.

- Escondamo-nos, escondamo-nos - insistia em tom suplicante.

E corava muito. Era um pudor nascente, uma vergonha que se apoderava dela como uma doença, que lhe maculava a candura da pele, onde até ali não se verificara a menor agitação de sangue. Serge teve medo, ao vê-la assim tão corada, com as faces confusas e os olhos cheios de lágrimas. Desejaria tornar a abraçá-la, acalmá-la com uma carícia, mas ela afastou-se, fez-lhe sinal, com um gesto desesperado, de que não estavam sós. Olhava para todos os lados, cada vez mais corada, com o vestido desapertado a mostrar a sua nudez, os braços, o pescoço, o colo. As madeixas irrequietas dos cabelos, caídas sobre os ombros, pareciam causar-lhe calafrios. Tentou arranjar o carrapito, mas depois receou descobrir a nuca. Agora, o simples roçar de um ramo, o leve toque da asa de um insecto, o menor sopro de vento, faziam-na estremecer, como se fosse tocada desonestamente por mão invisível.

- Tranquiliza-te - implorava-lhe Serge. - Não há ninguém no jardim... Estás vermelha de febre. Descansemos um instante, suplico-te.

Ela não tinha febre; só queria voltar depressa para casa, para que ninguém a visse e se risse de si. Apressava cada vez mais o passo e colhia ao longo das sebes verduras com que ocultava a nudez. Colocou nos cabelos um ramo de amoreira, enrolou nos braços molhos de campainhas, que prendeu nos pulsos, e pôs ao pescoço um colar feito de hastes de viburno, tão compridas que lhe cobriam o peito como um véu de folhas.

- Vais ao baile? - perguntou-lhe Serge, que procurava fazê-la rir.

Mas ela atirou-lhe as folhas que continuava a colher e disse-lhe em voz baixa, com ar assustado:

- Não vês que estamos nus?

E ele teve também vergonha e cingiu as folhas sobre as roupas em desalinho.

Contudo, não podiam sair das moitas. De súbito, ao fim de um carreiro, encontraram-se diante de um obstáculo, de uma massa cinzenta, alta, grave. Era o muro.

- Anda, anda! - gritou Albine.

Queria arrastá-lo dali, mas mal deram vinte passos encontraram de novo o muro. Então, seguiram-no a correr, dominados pelo pânico. O muro permaneceu, porém, imutável, sombrio, sem uma fenda que desse para o exterior. Por fim, à beira de um prado, pareceu desmoronar-se subitamente: uma brecha abria para o vale vizinho uma janela de luz. Devia ser o buraco de que Albine falara um dia, o ’buraco que dissera ter fechado com silvas e pedras. Mas as silvas estavam espalhadas pelo chão, como cordas cortadas, as pedras tinham sido atiradas para longe e o buraco parecia ter sido alargado por mão furiosa.

- AH, já pressentia isto! - disse Albine, num grito de supremo desespero. - Supliquei-te que me levasses... Serge, por piedade, não olhes!

Mas Serge olhava, mau grado seu, especado à beira da brecha. Em baixo, ao fundo da planície, o sol poente iluminava com um manto de ouro a aldeia dos Artauds, semelhante a uma visão surgida do crepúsculo em que os campos vizinhos estavam já mergulhados. Distinguiam-se perfeitamente os pardieiros erguidos a esmo ao longo da estrada, os pàtiozinhos cheios de estrume, as hortas estreitas plantadas de legumes. Mais acima, o grande cipreste do cemitério alçava o seu perfil sombrio e as telhas rubras da igreja pareciam um braseiro por cima do qual o sino, completamente negro, lembrava um rosto de desenho subtil. Ao lado, o velho presbitério abria as portas e as janelas ao ar da noite.

- Por piedade - repetia Albine, soluçando -, não olhes, Serge!... Lembra-te de que prometeste amar-me sempre. Ah, agora nunca o teu amor por mim será bastante! Ouve, deixa-me fechar-te os olhos com as minhas mãos Bem sabes que foram as minhas mãos que te curaram... Não me podes repelir.

Ele afastava-a lentamente. Depois, enquanto Albine lhe abraçava os joelhos, passou as mãos pelo rosto, como se quisesse afastar dos olhos e da testa um resto de sono Era então aquele o mundo desconhecido, a terra estranha em que nunca pensara sem um medo secreto? Onde vira aquela aldeia? De que sonho acordava para sentir subir-lhe à garganta a angústia pungente que pouco a pouco lhe oprimia o peito, até o sufocar? A aldeia animava-se com o regresso dos campos. Os homens regressavam de jaqueta atirada para cima do ombro, a passo de animais estafados; as mulheres, no limiar das casas, faziam gestos de chamamento, e os rapazes, em bandos, perseguiam as galinhas à pedrada. No cemitério, dois patifórios, um rapaz e uma rapariga, deslizavam de gatas ao longo do murozinho, para não serem vistos. Revoadas de pardais instalavam-se, para dormir, debaixo das telhas da igreja. Uma saia de algodão azul acabava de aparecer no alpendre do presbitério, tão ampla que tapava a porta.

- Ah, pobre de mim - balbuciou Albine-, ele olha!... Escuta-me. Ainda há pouco juravas obedecer-me. Suplico-te, volta a ti, olha para o jardim... Não tens sido feliz no jardim? Foi ele que te deu o meu corpo. E que dias felizes, que longa felicidade, agora que conhecemos toda a ventura da sombra!... Pelo contrário, a morte entrará por esse buraco se não fugires, se não me levares contigo. Vês? Os outros, toda essa gente acabará por nos separar. Estávamos tão sós, tão escondidos, tão ’bem guardados pelas árvores!... O jardim é o nosso amor. Olha para o jardim, suplico-te de joelhos.

Mas Serge tremia dos pés à cabeça. Recordava-se. O passado ressuscitava. Ouvia perfeitamente a vida na aldeia, ao longe. Aqueles camponeses, aquelas mulheres, aquelas crianças, eram o medre Bambousse que regressava do seu campo das Olivettes a deitar contas à próxima vindima; eram os Brichets, o homem a arrastar os pés e a mulher a choramingar a sua miséria; era Rosalie, atrás de um muro, a deixar-se beijar por Fortune. Reconhecia também os dois garotos do cemitério: o vadio do Vincent e a desavergonhada da Catherine, preparados para espreitar os grandes gafanhotos que saltavam por entre as sepulturas. Até tinham consigo o Voriau, o cão negro, que os ajudava a espiolhar as ervas secas e farejava as fendas das velhas lajes. Debaixo das telhas da igreja, os pardais lutavam, antes de adormecerem. Os mais atrevidos voltavam a descer e entravam a bater as asas pelos vidros partidos, de modo que, seguindo-os com os olhos, se recordava do alarido que faziam debaixo do púlpito, no degrau do estrado, onde havia sempre pão para eles. E, à porta do presbitério, Teuse, de vestido de algodão azul, parecia mais gorda. A velha criada virava a cabeça e sorria a Désirée, que voltava da capoeira a rir às gargalhadas, seguida por toda a sua bicharada. Depois, desapareceram ambas. Então, Serge, transtornado, estendeu os braços.

- É demasiado tarde. Vai! - murmurou Albine, deixando-se cair no meio das silvas cortadas. - Nunca me terás bastante amor.

Soluçava. Ele escutava ardentemente, procurando apanhar os menores ruídos longínquos, à espera que uma voz o despertasse por completo. O sino dera um leve salto. E, lentamente, no ar sonolento da tarde, as três badaladas do Angelus chegaram até ao Paradou. Eram suspiros argentinos, apelos muito suaves, regulares. Agora, o sino parecia vivo.

- Meu Deus! - exclamou Serge, caindo de joelhos, dominado pelos suspirozinhos do sino.

Prosternava-se, sentia os três toques do Angelus passarem-lhe por cima da nuca, repercutirem-se-lhe no coração. O sino elevava a voz, insistia, implacável, e isto durante alguns minutos que lhe pareceram durar anos. O sino evocava toda a sua vida passada, a sua infância piedosa, as suas alegrias de seminarista, as suas primeiras missas no vale escaldante dos Artauds, onde sonhara encontrar a solidão dos santos. O sino sempre lhe falara assim. Serge reencontrava até as mais pequenas inflexões daquela voz da igreja, que lhe soara incessantemente aos ouvidos, semelhante à voz grave e doce de uma mãe. Porque deixara de a ouvir? Outrora, prometia-lhe a vinda de Maria. Fora Maria que o levara para o fundo das verduras felizes, onde a voz do sino não chegava? Nunca a teria esquecido se o sino não tivesse deixado de tocar. E, como se curvasse mais, a carícia da barba nas mãos juntas fez-lhe medo. Não conhecia em si aqueles pêlos compridos, sedosos, que lhe davam uma beleza animalesca. Torceu a barba, agarrou os cabelos com ambas as mãos e procurou a nudez da tonsura. Mas os cabelos tinham crescido abundantemente e a tonsura desaparecera tragada por uma vaga viril de grandes anéis de cabelos lançados da testa para a nuca. Toda a sua carne, dantes barbeada, se transformara num matagal fulvo.

- Ah, tinhas razão!-exclamou, lançando um olhar de desespero a Albine. - Pecámos, merecemos um castigo terrível... Eu tranquilizava-te, não ouvia as ameaças que te transmitiam os ramos.

Albine tentou rodeá-lo com os braços e murmurou:

- Levanta-te e fujamos juntos... Talvez ainda seja tempo de nos amarmos.

- Não, já não tenho forças; o menor grão de areia me faria cair... Escuta, estou espantado comigo mesmo. Não sei que homem existe em mim. Matei-me e tenho as mãos cheias do meu próprio sangue. Se me levasses contigo, os meus olhos só te dariam lágrimas.

Ela beijou-lhe os olhos chorosos e insistiu, arrebatadamente :

- Não importa! Amas-me?

Ele, aterrado, não pôde responder. Passos pesados, atrás do muro, faziam rolar as pedras. Dir-se-ia a aproximação de um resmungar colérico. Albine não se enganara; estava ali alguém que .perturbava a paz da mata com a sua respiração invejosa. Então, ambos quiseram ocultar-se atrás de um silvado, envergonhadíssimos, mas já de pé, no limiar da brecha, frei Archangias os observava.

O frade permaneceu um instante com os punhos fechados, sem falar. Olhava o par, sobretudo Albine, refugiada no pescoço de Serge, com a expressão de nojo de uma pessoa que encontrasse um monte de porcaria à beira de um fosso.

- Bem me parecia - resmungou entre dentes - que devia ter sido aqui que o esconderam...

Deu alguns passos e gritou:

- Vejo-o, sei que está nu!... Que abominação! É porventura um animal para andar a correr pelos bosques com essa fêmea? Levou-o longe, não negue! Arrastou-o para a podridão e ei-lo coberto de pêlos como um bode... Arranque um ramo e quebre-lho nas costas!

Albine insistia baixinho, com voz ardente:

- Amas-me? Amas-me?

Serge, de cabeça baixa, calava-se, sem a repelir ainda.

- Felizmente, encontrei-o - continuou frei Archangias.- Descobri este buraco... O senhor desobedeceu a Deus, destruiu a sua paz. Daqui em diante, a tentação há-de mordê-lo sempre com os seus dentes de fogo e, infelizmente, já não terá a sua ignorância para a combater... Foi essa desavergonhada que o tentou, não é verdade? Não vê a cauda da serpente contorcer-se-lhe entre as madeixas dos cabelos? Basta olhar-lhe para os ombros para se sentir vómitos .. Largue-a, não lhe toque mais, pois ela é o começo do Inferno... Em nome de Deus, saia desse jardim!

- Amas-me? Amas-me? - repetia Albine.

Mas Serge desviara-se dela, como se na verdade o queimassem os seus braços e os seus ombros nus.

- Em nome de Deus! Em nome de Deus! - gritava frei Archangias, com voz trovejante.

Invencivelmente, Serge caminhava para a brecha. Quando frei Archangias o puxou, com um gesto brutal, para fora do Paradou, Albine, que ficara caída por terra, com as mãos loucamente estendidas para o seu amor, que lhe fugia, levantou-se, com a garganta despedaçada pelos soluços, e fugiu, desapareceu no meio das árvores, cujos troncos fustigava com os cabelos soltos.

 

DEPOIS do Pater, o padre Mouret inclinou-se diante do altar e dirigiu-se para o lado da Epístola. Em seguida, desceu e fez o sinal da cruz por cima de Fortune e de Rosalie, ajoelhados ao lado um do outro, à beira do estrado.

- Ego conjungo vos in matrimoniwn in nomine Patris, et Filii, et Spirítus sancti.

- Amen - respondeu Vincent, que ajudava à missa, olhando com curiosidade, pelo rabo do olho, para a cara do irmão mais velho.

Fortune e Rosalie baixaram a cabeça, um pouco comovidos, embora se tivessem acotovelado ao ajoelharem, com ar de troça. Entretanto, Vincent fora buscar a bandeja e o hissope e Fortune pôs a aliança na bandeja, um grosso anel de prata maciça, que o padre benzeu, ’aspergindo-o em cruz, e restituiu a Fortune, que o meteu no anular de Rosalie, cuja mão ainda estava esverdeada de manchas de erva que o sabão não conseguira tirar.

- In nomine Patris, et Filii, et Spirítus sancti - murmurou de novo o padre Mouret, dando-lhes a última bênção.

- Amen - respondeu Vincent.

Era de manhã cedo e o sol ainda não entrava pelas amplas janelas da igreja. Lá fora, nos ramos da sorveira, cuja vegetação parecia ter arrombado as vidraças, ouvia-se o despertar ruidoso dos pardais. Teuse, que ainda não tivera tempo de arrumar a casa do Senhor, espanava os altares, firmava-se na perna sã para limpar os pés do Cristo pintalgado de ocre e laca e alinhava as cadeiras o mais discretamente possível, inclinando-se, persignando-se, batendo no peito e seguindo a missa, tudo isto sem interromper as espanadelas. Sozinha ao pé do púlpito, a poucos passos dos noivos, a tia Brichet assistia ao casamento e rezava de maneira tão exagerada, de joelhos, balbuciava as orações com tal energia, que a nave parecia cheia de moscas zumbidoras. Do outro lado, ao pé do confessionário, Catherine tinha nos braços uma criança de mama que a certa altura desatou a chorar. Então, a rapariga virou as costas ao altar, fez saltar a criança e procurou entretê-la com a corda do sino, que lhe pendia mesmo por cima do nariz.

- Dominus vobiscum - disse o padre, virando-se com as mãos afastadas.

Et cum spirítu tuo - respondeu Vincent.

Naquele momento entraram três raparigas espigadas que se empurraram umas às outras para ver, sem no entanto ousarem avançar demasiado. Eram três amigas de Rosalie que iam para o campo e tinham dado uma saltada à igreja, curiosas por ouvir o que o senhor cura diria aos noivos. Traziam grandes tesouras pendentes da cintura e acabaram por se esconder atrás do baptistério, beliscando-se, torcendo-se de riso, saracoteando-se como grandes desavergonhadas e abafando o riso nos punhos fechados.

- Bem - disse a Ruiva a meia voz, uma rapariga soberba, de cabelos e pele cor de cobre-, hoje não haverá zaragata à saída...

- Olha, p tio Bambousse é que tem razão - murmurou Lisa, miudinha, muito trigueira, de olhos muito brilhantes. - Quando se tem vinhas, cuida-se delas... Já que o senhor cura teimou em casar a Rosalie, pode muito bem casá-la sozinho.

A outra, Babet, corcunda, ossuda, caçoava.

- AO menos a tia Brichet nunca falta - dizia. - Aquela é devota pela família toda... Vejam como ronca! Com aquilo já ganhou o dia. Sabe o que faz, olá!

- Está a imitar o órgão - replicou a Ruiva. E desataram todas três a rir.

Teuse ameaçou-as de longe com o espanador. No altar, o padre Mouret comungava. Quando se dirigiu para o lado da Epístola e Vincent lhe deitou por cima do polegar e do indicador o vinho e a água da ablução, Lisa disse mais suavemente :

- Está quase a acabar. Não deve tardar a falar-lhes.

- Assim - observou a Ruiva-,o Fortune ainda pode ir para o campo e a Rosalie não perderá o seu dia de vindima. É cómodo casar de manhã... O Fortune está com cara de parvo.

- Pudera! - murmurou Babet. - O rapaz deve estar aborrecido por o obrigarem a ficar tanto tempo de joelhos. Com certeza não se ajoelhava desde que fez a primeira comunhão.

Mas foram de súbito distraídas pelo petiz, que Catherine entretinha. Queria a corda do sino e estendia as mãos, roxo de cólera, sufocado de gritar.

- Olhem, está ali o pequeno - disse a Ruiva.

A criança chorava cada vez mais alto e debatia-se como um diabo.

- Deita-o de barriga para baixo e dá-lhe de mamar - segredou Babet a Catherine

Esta, com todo o seu descaramento de sabidona de dez anos, levantou a cabeça e desatou a rir.

- Isto já me está a aborrecer-disse, sacudindo a criança.

- Vê lá se te calas, meu bacorinho!... A minha irmã entregou-me este impecilho.

- Claro - redarguiu Babet, maldosamente. - Se calhar querias que o desse a guardar ao senhor cura!

Desta vez, a Ruiva quase caiu de costas, tanto se riu. Encostou-se à parede, com os punhos nas ilhargas, a rir perdidamente. Lisa agarrou-se a ela, para rir mais à vontade, e encheu-lhe as costas e as nádegas de beliscões. Babet ria também, com um riso de corcunda que lhe passava por entre os lábios apertados como um ruído de serra.

- Se não fosse o garoto - prosseguiu-, o senhor cura perdia a sua água benta... O tio Bambousse estava decidido a casar a Rosalie com o filho do Laurent, das Figueiras.

- Sim - disse a Ruiva, entre duas gargalhadas. - Sabem o que fazia o tio Bambousse? Atirava torrões de terra às costas da Rosalie, para impedir o pequeno de nascer.

- Apesar disso, ele aí está rijo e forte - murmurou Lisa.

- Os torrões fizeram-lhe bem.

De súbito, desataram as três a beliscar-se, no meio de um acesso de hilaridade louca, quando Teuse avançou para elas a coxear furiosamente, depois de ir buscar a vassoura atrás do altar. As três raparigas atemorizaram-se, recuaram e puseram-se muito sérias.

- Brejeiras! - gaguejou Teuse. - Ainda se atrevem a vir para aqui dizer as suas porcarias?... Não tens vergonha, Ruiva? O teu lugar era ali, de joelhos diante do altar, como a Rosalie... Ponho-as na rua, se não estão sossegadas, ouviram?

As faces acobreadas da Ruiva cobriram-se de leve rubor quando Babet lhe olhou para o ventre, com ar de chacota.

- E tu - continuou Teuse, virando-se para Catherine -, vê se deixas a criança tranquila! Estás a beliscá-la para a fazer gritar. Não digas que não!... Dá-ma.

Pegou-lhe, embalou-a um instante e pousou-a numa cadeira, onde o pequenito adormeceu numa paz de querubim. A igreja recaiu na sua calma triste, apenas perturbada pelo pipilar dos pardais na sorveira. No altar, Vincent levara o missal para a direita e o padre Mouret acabara de dobrar o corporal e de o meter na bolsa. Agora, dizia as últimas orações, num recolhimento severo que nem o choro da criança nem os risos das raparigas logravam perturbar. Parecia não ouvir nada, estar todo entregue aos votos que dirigia ao Céu pela felicidade do casal cuja união abençoara. Naquela manhã o céu estava cinzento, carregado de uma poalha de calor que asfixiava o sol. Pelos vidros quebrados entrava apenas uma espécie de humidade avermelhada que pronunciava um dia de temporal. Ao longo das paredes, as gravuras cruamente iluminadas da Via-Sacra desvendavam a brutalidade sombria das suas manchas amarelas, azuis e vermelhas. Ao fundo da nave, o madeiramento ressequido da tribuna estalava e as ervas do adro, tornadas gigantes, introduziam por debaixo da porta principal compridas praganas maduras inçadas de pequenos gafanhotos acastanhados. Na sua caixa de madeira o relógio teve um arranco de mecânica tísica, como se aclarasse a voz, e bateu surdamente a pancada das seis e meia.

- I te, missa est - disse o padre, virando-se para a igreja.

- Deo gratias - respondeu Vincent.

Em seguida, depois de beijar o altar, o padre Mouret voltou-se de novo e murmurou por cima da cabeça inclinada dos noivos a oração final:

- Deus Abraham, Deus Isaac, et Deus Jacob vobiscum sit...

A voz perdia-se-lhe numa suavidade monótona.

- Olhem, vai falar-lhes-sussurrou Babet às amigas.

- Está muito pálido - observou Lisa. - Não é como o padre Caffin, cujo rosto gordo parecia estar sempre a rir... Rose, a minha irmã mais nova, contou-me que não se atreve a dizer-lhe nada na confissão.

- Não tem importância - murmurou a Ruiva. - Como homem, não é feio. A doença envelheceu-o um pouco, mas isso fica-lhe bem. Tem os olhos maiores e duas pregas aos cantos da boca que lhe dão o ar de um homem feito... Antes da febre que o atacou parecia uma rapariga.

- Pois a mim parece-me que teve algum desgosto - redarguiu Babet.-Dir-se-ia consumido. O rosto parece morto, mas os olhos brilham... Reparem! Não notam, quando baixa lentamente as pálpebras, como se quisesse apagar o fogo dos olhos?

Teuse agitou a vassoura.

- Caluda!-sibilou tão energicamente que pareceu ter entrado um pé-de-vento na igreja.

Depois de se concentrar, o padre Mouret começou, quase em voz baixa:

- Meu querido irmão, minha querida irmã, estais unidos em Jesus. A instituição do casamento é a imagem da união sagrada de Jesus com a Sua Igreja. É um laço que nada pode quebrar, que Deus quer eterno, para que o homem não separe o que o Céu juntou. Ao tornar-vos o osso dos vossos ossos, Deus ensinou-vos que tendes o dever de caminhar lado a lado, como um casal fiel, e de seguir os caminhos abertos pela Sua omnipotência. Deveis amar-vos no próprio amor de Deus. O mais pequeno azedume entre vós seria uma desobediência ao Criador que vos tirou de um só corpo. Ficai, pois, para sempre unidos, à imagem da Igreja que Jesus desposou, dando-nos a todos a Sua carne e o Seu sangue.

Fortune e Rosalie escutavam-no com o nariz curiosamente levantado.

- Que diz ele? - perguntou Lisa, que ouvia mal.

- Ora, o que se diz sempre! - respondeu a Ruiva. - Fala pelos cotovelos, como todos os padres.

Entretanto, o padre Mouret continuava a sua prédica, com os olhos inexpressivos fitos, por cima da cabeça dos noivos, num canto ignorado da igreja. Pouco a pouco, a voz foi-se-lhe suavizando e as suas palavras adquiriram uma ternura que outrora aprendera com o auxílio de um manual destinado aos jovens sacerdotes. Ligeiramente voltado para Rosalie, dizia, acrescentando frases comovedoras quando lhe falhava a memória:

- Minha querida irmã, submetei-vos ao vosso marido como a Igreja se submete a Jesus. Lembrai-vos de que deveis abandonar tudo para o seguir como serva fiel. Abandonareis o vosso pai e a vossa mãe, unir-vos-eis ao vosso esposo e obedecer-lhes-eis, a fim de obedecerdes ao próprio Deus. E o vosso jugo será um jugo de amor e de paz. Sede o seu repouso, a sua felicidade, o perfume das suas boas obras, a salvação das suas horas de desfalecimento. Que vos encontre constantemente a seu lado, como uma graça. Que só tenha de estender a mão para encontrar a vossa. Será assim que caminhareis ambos, sem nunca vos transviardes, e que encontrareis a felicidade no cumprimento das leis divinas. Oh, minha querida irmã, minha querida filha! A vossa humildade está repleta de frutos suaves; ela fará florescer em vós as virtudes domésticas, as ’alegrias do lar, as prosperidades das famílias piedosas. Tende para com o vosso marido as ternuras de Raquel, a prudência de Rebeca e a longa fidelidade de Sara. Dizei para convosco que uma vida pura leva a todos os bens. Pedi a Deus todas as manhãs a energia necessária para viverdes como mulher respeitadora dos seus deveres, pois a punição seria terrível e perderíeis o vosso amor. Oh, viver sem amor, arrancar a carne da nossa carne, não pertencer mais àquele que é a metade de nós mesmos, agonizar longe de quem se amou! Estenderíeis os braços e ele desviar-se-ia de vós. Procuraríeis as vossas alegrias e só encontraríeis a vergonha no fundo do vosso coração. Ouvi-me, minha filha: é em vós, na submissão, na pureza e no amor que Deus deposita a firmeza da vossa união.

Naquele momento, ouviu-se rir na outra extremidade da igreja. A criança acabava de acordar na cadeira onde Teuse a deitara. Mas já não estava rabugenta; conseguira tirar do cueiro os pèzinhos rosados e agitava-os no ar. Eram eles que a faziam rir.

Rosalie, a quem a alocução do padre começava a aborrecer, virou vivamente a cabeça e sorriu à criança. Mas quando a viu espernear na cadeira, teve medo e deitou um olhar terrível a Catherine.

- Podes olhar para mim à vontade - murmurou esta que não o vou buscar... Para quê? Era capaz de recomeçar a gritar .

E foi para debaixo da tribuna espreitar um buraco de formigas aberto no canto quebrado de uma laje.

- O padre Caffin não falava tanto - observou a Ruiva. - Quando casou a Miette limitou-se a dar-lhe duas palmadinhas na cara e a recomendar-lhe que tivesse juízo.

- Meu querido irmão - prosseguia o padre Mouret, meio virado para Fortune-, Deus concede-vos hoje uma companheira, pois não quer que o homem viva solitário. Mas se decidiu que ela seja vossa serva, também exige que sejais um senhor cheio de doçura e afeição. Amá-la-eis, porque é a vossa própria carne, o vosso sangue e os vossos ossos. Protegê-la-eis, porque Deus deu-vos braços fortes para os estenderdes por cima da cabeça dela nas horas de perigo. Lembrai-vos de que vos é confiada, de que é a submissão e a fraqueza de que não poderíeis abusar sem crime. Oh, meu querido irmão, que feliz orgulho não deve ser o vosso! Doravante, não mais vivereis no egoísmo da solidão. A toda a hora tereis um dever adorável. Não há nada melhor do que amar e proteger aqueles que se amam. O vosso coração dilatar-se-á, as vossas forças de homem centuplicar-se-ão. Oh, ser um sustentáculo, receber uma ternura a guardar, ver uma criança aniquilar-se em vós e dizer: “Toma-me, faz de mim o que te aprouver, tenho confiança na tua lealdade!” Que sejais condenado às penas eternas se alguma vez a abandonardes! Seria o mais cruel abandono que Deus teria de punir. Desde que ela se deu, é vossa para sempre. Levai-a de preferência nos vossos braços e pousai-a no chão só quando puder ficar aí em segurança. Abandonai tudo, meu querido irmão...

Com a voz profundamente alterada, o padre Mouret deixava apenas ouvir um murmúrio indistinto. Baixara completamente as pálpebras, tinha o rosto todo branco e falava com tão dolorosa comoção que o próprio Fortune chorava sem saber porquê.

- Ainda não está restabelecido - disse Lisa. - Faz mal em se fatigar... Olhem, o Fortune está a chorar!

- Os homens comovem-se mais facilmente do que as mulheres- murmurou Babet.

- Em todo o caso, falou bem - concluiu a Ruiva. - Estes padres vão buscar um monte de coisas de que ninguém se lembra.

- Caluda! - gritou Teuse, que já se aprestava para apagar as velas.

Mas o padre Mouret continuava a balbuciar, procurava encontrar as frases finais.

- É por isso, meu querido irmão, minha querida irmã, que deveis viver na fé católica, a única capaz de assegurar a paz do vosso lar. As vossas famílias ensinaram-vos, certamente , a amar Deus, a rezar-Lhe de manhã e à noite, a contar apenas com os dons da Sua misericórdia...

Não acabou. Voltou-se para tomar o cálice -do altar e dirigiu-se para a sacristia, com a cabeça inclinada, precedido de Vincent, que por pouco não deixou cair as galhetas e o manutérgio quando procurava ver o que Catherine fazia ao fundo da igreja.

- Oh, que rapariga sem coração! - exclamou Rosalie, deixando o marido especado para ir tomar o filho nos braços,

A criança ria-se. Beijou-a, ajeitou-lhe o cueiro e ameaçou Catherine com o punho fechado.

- Se tivesse caído, apanhavas um par de sopapos bem puxados!

Fortune aproximava-se, gingão. As três raparigas tinham-se adiantado, com risinhos malévolos.

- Vejam como está presunçoso, agora - murmurou Babet ao ouvido das outras duas. - Aquele pobretana ganhou o dinheiro do tio Bambousse no feno, atrás do moinho... Eu bem o via ir ter todas as noites com a Rosalie, de gatas, ao longo do murinho.

Chacotearam. Fortune, de pé diante delas, chacoteou ainda mais alto. Beliscou a Ruiva e deixou que Lisa lhe chamasse estúpido.

Era um rapaz robusto e estava-se nas ’tintas para as bocas do mundo. O cura aborrecera-o.

- Eh, mãe! - chamou, com a sua voz grossa.

Mas a velha Brichet mendigava à porta da sacristia, muito chorosa e magra diante de Teuse, que lhe metia ovos nas algibeiras do avental. Fortune, nada envergonhado, piscou os olhos e disse:

- A mãe é esperta! Mas também se o cura quer ver gente na igreja...

Entretanto, Rosalie acalmara-se. Antes de se irem embora perguntou a Fortune se pedira ao senhor cura que lhes fosse à noite benzer o quarto, segundo o uso da terra. Então, Fortune correu à sacristia, atravessando a nave a bater muito com os tacões, como se atravessasse um campo, e reapareceu pouco depois a gritar que o cura iria. Teuse, escandalizada com o barulho que fazia aquela gente, que parecia julgar-se no meio de uma estrada, batia levemente as mãos e impelia-os para a porta.

- Acabou-se - dizia. - Retirem-se, vão trabalhar.

E julgava-os já todos fora da igreja quando reparou em Catherine, com quem Vincent viera ter. Estavam ambos ansiosamente inclinados por cima do buraco das formigas e Catherine esgaravatava-o tão violentamente com uma palha comprida que uma vaga de formigas assustadas espalhava-se pela laje. E Vincent dizia que era preciso esgaravatar bem no fundo, para encontrar a rainha.

- Ai os bandidos! - gritou Teuse. - Que estão vocês a fazer aí? Deixem os bichos tranquilos! É o buraco das formigas da menina Désirée. Havia de ficar muito contente se os visse...

Os garotos fugiram.

O PADRE Mouret, de sotaina e com a cabeça descoberta, voltara a ajoelhar-se ao pé do altar. À claridade baça que entrava pelas janelas a tonsura abria-lhe nos cabelos uma mancha pálida, muito grande, e o leve calafrio que lhe arrepiava a nuca parecia vir da friagem que devia sentir na cabeça. Rezava ardentemente, de mãos postas, tão absorto nas suas preces que nem ouvia os passos pesados de Teuse em volta dele, sem ousar interrompê-lo. Esta parecia sofrer ao vê-lo assim esmagado, com os joelhos trémulos. Em dado momento, pareceu-lhe que chorava. Então, passou por detrás do altar para o espreitar. Desde o seu regresso que não queria deixá-lo ficar sozinho na igreja, .pois uma noite fora encontrá-lo desmaiado por terra, com os dentes cerrados e as faces geladas, como morto

- Entre, menina-disse a Désirée que aparecera a espreitar à porta da sacristia. - Ainda ali está, a fazer mal a si mesmo... Bem sabe que só dá ouvidos ao que a menina lhe diz.

Désirée sorria.

- Meu Deus, precisamos de tomar o pequeno almoço - murmurou. - Estou cheia de fome.

Aproximou-se do padre em bicos de pés e quando chegou junto dele rodeou-lhe o pescoço e beijou-o.

- Bons dias, mano. Queres deixar-me morrer de fome, hoje?

Ergueu um rosto tão doloroso que ela beijou-o de novo, nas duas faces. Saía de uma agonia. Depois reconheceu-a e procurou afastá-la suavemente, mas ela segurava-lhe uma das mãos, que não largava. Apenas lhe permitiu que se persignasse antes de o levar consigo.

- Anda, estou com fome, e tu também deves estar. Teuse preparara o pequeno almoço ao fundo do jardin zito, debaixo de duas grandes amoreiras cujos ramos estendidos formavam ali um tecto de folhagem. O sol vencera, por fim, a humidade tempestuosa da manhã e aquecia os canteiros de legumes, enquanto as amoreiras estendiam um grande manto de sombra sobre a mesa coxa, onde estavam servidas duas chávenas de leite acompanhadas de grossas fatias de pão.

- Olha como isto é bonito - disse Désirée, encantada por comer ao ar livre.

Cortava já enormes bocados de pão, que molhava no leite e trincava com excelente apetite. Como Teuse ficasse de pé diante deles, perguntou-lhe:

- Então, não comes?

- Já como - respondeu a velha criada. - Tenho a minha sopa a aquecer.

E, ao cabo de um silêncio, maravilhada com o apetite daquela criança grande, acrescentou, dirigindo-se ao padre:

- É um prazer, ao menos... Isto não lhe abre o apetite, senhor cura? É quase preciso obrigá-lo a comer.

O padre Mouret sorria e olhava a irmã.

- Oh, ela é saudável! - murmurou. - Engorda a olhos vistos...

- Claro, mas porque como! - exclamou Désirée. - Se comesses, também engordavas... Ainda estás doente? Tens um ar tão triste... Não quero que isso recomece, ouviste? Aborreci-me muito enquanto estiveste ausente para te tratarem.

- Ela tem razão - interveio Teuse. - Não tem juízo nenhum, senhor cura. Isso não é vida, meter duas ou três migalhas na boca por dia, como um passarinho. Assim, valha-nos Deus, nunca mais cria -sangue novo! É por isso que está tão pálido... Não tem vergonha de estar mais magro do que um cão, enquanto nós estamos gordas, a/pesar de mulheres? Hão-de dizer que não lhe deixamos nada nos pratos.

E ambas, cheias de saúde, ralharam com ele amigavelmente. Tinha os olhos muito grandes, muito claros, atrás dos quais se via como que um vácuo, mas sorria sempre.

- Não estou doente - respondeu. - Já quase bebi o meu leite.

Bebera apenas dois golinhos e nem sequer tocara no pão.

- Os animais - disse Désirée, pensativa - têm mais saúde do que as pessoas.

- Oh, acaba de fazer uma descoberta muito agradável para nós! - exclamou Teuse, rindo.

Mas aquela querida inocente de vinte anos não tinha nenhuma malícia

- Claro-prosseguiu Dósirée.-As galinhas não têm dores de cabeça, pois não? E podemos engordar os coelhos à vontade. Quanto ao meu porquito, não podes dizer que alguma vez o viste triste.

Depois, virou-se para o irmão e prosseguiu muito contente :

- Pus-lhe o nome de Mateus, pois parece-se com aquele homem gordo que traz as cartas. Não imaginas como se tornou bonito, forte... Não é amável da tua parte estares sempre a recusar ir vê-lo. Um destes dias pedes-me que to mostre, sim?

Ao mesmo tempo que se mostrava carinhosa ia tirando as fatias destinadas ao irmão e trincando-as com os seus belos dentes. Acabara uma e ia encetar a segunda quando Teuse deu por isso.

- Mas esse pão não é seu! Agora até lhe tira o ’bocado da boca!

- Deixe-a - atalhou o padre Mouret, suavemente. - Não tencionava tocar-lhe... Come, come tudo, minha querida.

Désirée ficara um instante confusa, a olhar o pão e a conter-se para não chorar. Depois, desatou a rir e acabou de comer a fatia.

- A minha vaca também nunca está triste como tu .. - prosseguiu. - Não estavas cá quando o tio Pascal ma deu, depois de me obrigar a prometer que teria juízo. Se estivesses, verias como ficou contente quando a beijei pela primeira vez.

Pôs-se à escuta. Ouviu-se na capoeira um canto de galo, seguido de barulho crescente: bater de asas, grunhidos, gritos roucos, um autêntico pandemónio de animais assustados.

- Ah, ainda não sabes! - exclamou bruscamente, batendo as mãos. - Ela deve estar prenhe... Levei-a ao touro, a três léguas daqui, ao Béage. Meu Deus, não se encontram touros com facilidade!... Então, enquanto esteve com ele, deixei-me ficar, para ver.

Teuse encolhia os ombros e olhava o padre, com ar contrariado.

-A menina faria melhor se fosse acalmar as suas galinhas... Parece que os bichos se querem matar uns aos outros.

Mas Désirée estava presa à sua história.

- Ele pôs-se em cima dela e prendeu-a entre as patas... Toda a gente se ria, embora o caso não fosse para rir; era natural. É preciso que as mães tenham filhos, não é verdade?... Dize, achas que terá um filho?

O padre Mouret esboçou um gesto vago. Baixara as pálpebras diante dos olhos claros da irmã.

- Acuda-lhes, acuda-lhes! - gritou Teuse. - Olhe que se comem uns aos outros.

A zaragata, tornara-se (tão violenta, na capoeira, que Désirée ia já a correr, com grande ruído de saias, quando o padre a chamou:

- E o leite, querida, não acabas o leite?

E estendia-lhe a chávena, na qual mal tocara.

Ela voltou atrás e bebeu o leite sem o menor escrúpulo, apesar dos olhos irritados de Teuse. Depois, retomou a corrida para a capoeira, onde em breve a ouviram restabelecer a paz. Devia estar sentada no meio dos animais e cantava-lhes suavemente, como que para os embalar.

- AGORA, a minha sopa está demasiado quente - resmungou Teuse, que voltava da cozinha com uma malga dentro da qual se equilibrava de pé uma colher de pau.

Parou diante do padre Mouret e começou a comer com a ponta da colher, cautelosamente. Esperava animá-lo, tirá-lo do silêncio acabrunhado em que o via. Desde que regressara do Paradou, dizia-se curado, nunca se queixava. Às vezes até sorria de modo tão meigo que, na opinião da gente dos Artauds, a sua santidade parecia ter aumentado. Havia, porém, ocasiões em que o dominavam crises de silêncio, durante as quais dava a impressão de se revolver numa tortura que empregava todos os esforços para não confessar, e era então uma agonia muda que o quebrava, que durante horas o deixava como que estupidificado, presa de alguma abominável luta interior cuja violência só se adivinhava pelo suor angustiado que lhe cobria o rosto. Nessas ocasiões, Teuse não o deixava só; aturdia-o com uma catadupa de palavras, até recuperar pouco a .pouco o seu ar doce, sinal de ter vencido a revolta do sangue. Naquela manhã, a velha criada pressentia um ataque ainda mais rude do que os outros. Desatou, por isso, a falar abundantemente, enquanto esperava que a colher não lhe escaldasse a língua.

- Na verdade, é preciso viver enterrado numa terra de lobos para ver semelhantes coisas. Nas aldeias decentes será costume casar à luz das velas? Isto mostra bem que todos esses Artauds não valem grande coisa... Na Normandia vi bodas que punham toda a gente em polvorosa duas léguas em redondo. Comia-se durante três dias, assistia o cura e o maire, e no casamento de uma das minhas sobrinhas até foram convidados os ’bombeiros. Toda a gente se divertia!... Mas fazer levantar um padre antes de nascer o Sol para casar à hora em que as próprias galinhas ainda estão deitadas, não tem senso nenhum! No seu lugar, senhor cura, teria recusado... Meu Deus, o senhor dormiu pouco e se calhar até apanhou frio na igreja. Vai ver que foi isso que lhe fez mal. E, bem vistas as coisas, seria mais agradável casar animais do que a Rosalie e o seu maltrapilho, já com um fedelho que até deixou uma cadeira toda mijada... Faz mal em não me dizer onde lhe dói. Podia arranjar-lhe qualquer coisa quente... Então, senhor cura, responda!

Respondeu com voz fraca que estava bem, que só precisava de um pouco de ar Acabava de se encostar a uma das amoreiras, com a respiração entrecortada, abatido.

- Bem, bem, o senhor só faz o que lhe vem à cabeça...

- redarguiu Teuse.- Continue a casar gente mesmo sem ter forças e ainda que possa cair doente. Para mim não é surpresa; já ontem lho tinha dito... Se me desse ouvidos, também não estaria agora aqui, uma vez que o cheiro da capoeira o incomoda. E se cheira mal, agora! Não sei em que mais porcarias poderá ainda a menina Désirée remexer. Mas canta, brinca e tem boas cores... Ah, já me esquecia de lhe dizer!... Como deve calcular, fiz tudo para a impedir de estar presente quando levou a vaca ao touro; mas é como o senhor, de uma teimosia!... Felizmente, o caso para ela não tem consequências; o que lhe interessa é ver os animais com os filhos... Vamos, senhor cura, seja razoável: deixe-me levá-lo para o seu quarto. Precisa de se deitar e repousar um pouco... Não quer? Pois bem, depois não me venha dizer que sofre! Não devia guardar assim o seu mal na consciência, até o sufocar.

E, irritada, engoliu uma grande colherada de sopa, com risco de escaldar a garganta. Batia com o cabo de madeira na tigela, resmungava e falava sozinha:

- Nunca se viu um homem como este. É mais fácil rebentar do que dizer uma palavra... Ah, mas pode calar-se à vontade! Sei o bastante e não é preciso ser-se muito esperto para adivinhar o resto... Sim, sim, cale-se. É o melhor que pode fazer.

Teuse era ciumenta. O Dr. Pascal tivera de travar com ela um autêntico combate para lhe levar o doente, quando julgara o jovem sacerdote perdido se o deixasse no presbitério. Tivera de lhe explicar que o toque do sino lhe aumentava a febre, que as imagens de santos que enchiam o quarto lhe povoavam o cérebro de alucinações, que necessitava, enfim, de um esquecimento completo, de outro ambiente onde pudesse renascer na paz de uma existência nova. Mas ela abanava a cabeça e dizia que em parte alguma “a pobre criança” encontraria melhor enfermeira. No entanto, acabara por consentir; resignara-se até a vê-lo partir para o Paradou, embora protestasse contra a escolha do doutor, que a confundia. E o seu ódio ao Paradou firmara-se em bases sólidas. Melindrava-a sobretudo o silêncio do padre Mouret a respeito do tempo que lá passara. Por mais de uma vez, mas em vão, tentara puxar-lhe pela língua... Naquela manhã, exasperada por o ver tão pálido e teimoso em sofrer sem um queixume, acabou por agitar a colher como se fosse um pau e gritou:

- Pode voltar para lá, senhor cura, se era no Paradou que se sentia bem!... Ainda lá deve estar uma pessoa que o tratará melhor do que eu!

Era a primeira vez que se atrevia a fazer uma alusão directa. Mas o golpe foi tão cruel que o padre deixou escapar um leve grito e ergueu o rosto sofredor. A boa alma de Teuse arrependeu-se imediatamente.

- Mas a culpa foi do seu tio Pascal - murmurou. - Também, disse-lhe das boas... As pessoas instruídas são muito agarradas às suas ideias. Há quem não se importe de matar as pessoas para ver depois como são por dentro... A mim isso irritou-me tanto que nunca mais quis falar a tal respeito com ninguém. Sim, senhor, foi graças a mim que ninguém soube onde estava o senhor cura, de tal modo isso me pareceu abominável. Quando o padre Guyot, de Santo Eutrópio, que o substituiu durante a sua ausência, vinha aqui dizer a missa, ao domingo, eu contava-lhe histórias, jurava-Lhe que o senhor estava na Suíça, embora não tenha a mais pequena ideia de onde fica a Suíça... Não quero desgostá-lo, mas foi com certeza no Paradou que apanhou essa doença. Trataram-no bem, não haja dúvida. Teria sido bem melhor deixarem-no comigo, que não me passaria pela cabeça dar-lhe volta ao miolo.

O padre Mouret, com a cabeça de novo inclinada, não a interrompia. Teuse sentara-se no chão, a poucos passos dele, e esforçava-se por lhe encontrar os olhos. Depois, prosseguiu maternalmente, encantada com a complacência com que parecia escutá-la:

- O senhor nunca quis conhecer a história do padre Caffin. Logo que começava, mandava-me calar... Bem, o padre Caffin também teve os seus aborrecimentos, na nossa terra, em Canteleu, apesar de ser um santo homem e de possuir um coração de ouro. Mas, veja o senhor cura, era muito piegas e gostava das coisas delicadas. Ora, certo dia começou a rondá-lo uma rapariga, filha de um moleiro, que os pais tinham internado num colégio, e em breve aconteceu o que tinha de acontecer. O senhor cura compreende o que quero dizer, não é verdade?... Então, quando o caso se soube, toda a gente se indignou contra o padre. Chegaram a procurá-lo para o matar à pedrada. Fugiu para Ruão e foi desabafar com o arcebispo. Foi então que o mandaram para aqui. O pobre homem bem castigado ficou por ter de viver neste buraco... Mais tarde, tive notícias da rapariga: casara com um negociante de gado e era muito feliz.

Encantada por ter conseguido contar a sua história sem interrupção, Teuse julgou-se encorajada pela imobilidade do padre. Aproximou-se mais e prosseguiu:

- Excelente padre Caffin! Não era nada orgulhoso comigo ; falava-me muitas vezes do seu pecado e tenho a certeza de que isso o não impediu de ir para o Céu! Pode dormir tranquilo aqui ao lado, debaixo da erva, porque nunca fez mal a ninguém... Não compreendo que se possa odiar um padre quando perde a cabeça. É tão natural! Não é bonito, sem dúvida, trata-se de uma porcaria que deve irritar Deus, mas antes isso que roubar. Confessa-se e pronto!... Não é verdade, senhor cura, que quando o arrependimento é sincero não se perde o direito à salvação?

O padre Mouret endireitara-se lentamente. Graças a um esforço supremo, conseguira dominar a sua angústia. Ainda pálido, disse com voz firme:

- É necessário não pecar nunca, nunca!

- Ora vejam!-exclamou a velha criada. - O senhor é demasiado orgulhoso, e o orgulho também não é bonito, também é pecado!... No seu lugar, não seria tão obstinada. Toda a gente fala dos seus desgostos, ninguém retalha o coração em quatro partes, de repente... Enfim, todos nos habituamos à separação; são coisas que esquecem pouco a pouco... Mas o senhor cura até evita pronunciar o nome das pessoas, e proíbe que se fale delas, como se tivessem morrido. Desde o seu regresso que não me atrevo a dar-lhe a mais pequena notícia. Pois bem, falarei agora, direi o que sei, pois bem vejo que o silêncio lhe pesa no coração.

Fitou-a severamente e levantou um dedo para a fazer calar.

- Sim, sim - continuou ela -, tenho notícias do Paradou, com muita frequência, até, e vou dar-lhas... Em primeiro lugar, a tal pessoa não é mais feliz do que o senhor.

- Cale-se! - ordenou-lhe o padre Mouret, que encontrou a energia suficiente para se erguer, a fim de se afastar.

Teuse levantou-se também e barrou-lhe a passagem com a sua massa enorme. Zangada, gritou-lhe:

- Ora vejam, já se queria ir embora!... Mas há-de ouvir-me. Sabe muito bem que não gosto nada dessa gente, não é verdade? Portanto, se lhe falo dela é para seu bem... Dizem que tenho ciúmes. Pois bem, tenciono levá-lo lá um dia. Como estará comigo, não terá ’receio de proceder mal... Quer?

Desviou-a com um gesto e respondeu, já calmo:

- Não quero nada, não sei nada... Temos missa cantada, amanhã. É preciso arranjar o altar.

Depois de dar alguns passos, acrescentou, com um sorriso: -Não se preocupe, minha boa Teuse. Sou mais forte do que julga. Curar-me-ei sozinho.

Afastou-se com ar firme, de cabeça direita, como vencedor, com a sotaina a arrastar suavemente ao longo dos canteiros de tomilho. Teuse, que ficara especada no mesmo sítio, pegou na malga e na colher de pau, sempre resmungando, entre dentes, palavras que acompanhava de grandes encolhimentos de ombros.

- Arma em valente, julga-se feito de massa diferente dos outros homens, lá .porque é cura... Bem, na verdade é rijo. Conheci alguns a quem não seria preciso tentar durante tanto tempo. É capaz de esmagar o coração como quem esmaga uma pulga. É Deus que lhe dá tanta força.

Dirigia-se para a cozinha quando viu o padre Mouret parado diante da cancela da capoeira. Désirée detivera-o para o fazer tomar o peso a um capão que andava a engordar havia algumas semanas. Ele dizia complacentemente que estava muito pesado, o que fazia rir de contentamento a grande criança.

- Os capões também esmagam o coração como uma pulga - resmungou Teuse, muito furiosa-, e têm razões para isso... Assim, não é grande glória viver santamente.

O PADRE Mouret passava os dias no presbitério. Evitava os grandes passeios que dava antes de adoecer. As terras ressequidas dos Artauds, as ardências daquele vale em que só medravam as vinhas retorcidas, inquietavam-no. Tentara por duas vezes sair de manhã, para ler o breviário ao longo dos caminhos, mas não fora além da aldeia; voltara perturbado pelos cheiros, pelo sol, pela amplidão do horizonte. Só à tardinha, quando se aproximava a frescura da noite, se arriscava a dar alguns passos diante da igreja, na esplanada que se estendia até ao cemitério. À tarde, para se distrair, dominado por uma ânsia de actividade que não sabia como satisfazer, entregava-se à tarefa de colar vidros de papel nos caixilhos partidos da nave. Assim, durante oito dias, viram-no empoleirado numa escada a colocar os vidros com muita atenção, depois de recortar o papel com delicadezas de bordado e de espalhar a cola de modo a não ressumar. Teuse tomava conta da escada e Désirée reclamava que não se deviam tapar todos os caixilhos, a fim de os pardais poderem entrar, e para não lhe ver lágrimas o padre esquecia-se de dois ou três em cada janela. A seguir, terminada esta reparação, apoderou-se dele o desejo de embelezar a igreja sem recorrer aos préstimos de pedreiro, marceneiro ou pintor. Faria tudo sozinho. Dizia que semelhantes trabalhos manuais o distraíam, lhe davam forças. Sempre que passava pelo presbitério, o tio Pascal encorajava-o, assegurava-lhe que aquela fadiga valia mais do que todas as drogas do mundo. Desde então, o padre Mouret tapou os buracos das paredes com punhados de gesso, repregou os altares com grandes marteladas e preparou as tintas para dar uma demão no púlpito e no confessionário. Foi um acontecimento na região, falado duas léguas em redor. Os camponeses iam, com as mãos atrás das costas, ver trabalhar o senhor cura, o qual, de avental azul atado à cintura e com os pulsos doridos, se absorvia naquela tarefa rude que lhe dava pretexto para não sair. Passava os dias no meio das obras, mais tranquilo, quase sorridente, esquecido do exterior, das árvores, do sol, do ar tépido, que o perturbavam.

- O senhor cura faça o que quiser, desde que isso não custe nada à comuna - dizia o tio Bambousse, rindo em ar de chalaça, quando todas as tardes ia verificar o andamento das obras.

O padre Mouret gastou naquilo as suas economias do seminário. Aliás, tratava-se de melhoramentos cuja simplicidade desajeitada era de molde a fazer sorrir O trabalho de pedreiro depressa o aborreceu. Limitou-se a rebocar as paredes à volta da igreja, até à altura de um homem. Teuse amassava o gesso. Quando a criada falou em se reparar também o presbitério, que receava sempre, conforme dizia, ver cair-lhes um dia em cima da cabeça, o padre explicou-lhe que não sabia, que seria necessário chamar um operário, o que deu origem a terrível discussão entre ambos. Teuse gritava que não era razoável pôr tão bonita uma igreja onde ninguém dormia, quando havia ao lado quartos nos quais os encontrariam, sem dúvida nenhuma, mortos uma daquelas manhãs, esmagados pelos tectos.

- Por mim - gritava - ainda acabarei por vir fazer a cama aqui, atrás do altar! Tenho muito medo, de noite!

Quando o gesso acabou, não tornou a falar mais no arranjo do presbitério. Andava deslumbrada com as pinturas do senhor cura, o grande encanto de todo aquele trabalho. O padre colocara bocados de tábua por toda a parte e entretinha-se a pintar todas as madeiras de uma bela cor amarela, com um pincel grosso. O pincel andava num vaivém suave, muito suave, que o embalava e adormecia um pouco, o deixava vazio de pensamentos durante horas, a seguir as linhas grossas da tinta. Depois de tudo pintado de amarelo - confessionário, púlpito, estrado e até a caixa do relógio -, arriscou-se a fazer imitações de mármore no altar-mor, e por fim, enchendo-se de coragem, repintou tudo de novo. O altar-mor, de branco, amarelo e azul, ficou soberbo, a tal ponto que pessoas que não assistiam à missa havia cinquenta anos, foram em procissão à igreja para o ver.

Com as pinturas secas, o padre Mouret só tinha de contornar os painéis com um filete castanho. Por isso, logo depois do meio-dia deitou mãos à obra. Queria que ficasse tudo pronto naquela mesma tarde, visto no dia seguinte haver missa cantada, conforme lembrou a Teuse. Esta esperava que tudo estivesse pronto para arranjar o altar, e já colocara em cima da credencia os castiçais e a cruz de prata, bem como os vasos de porcelana com rosas artificiais e a toalha guarnecida de rendas das grandes solenidades. Mas os filetes eram um trabalho tão delicado que demorou até à noite, e só quando a luz do dia desapareceu por completo o padre deu por concluído o último painel

- Isto vai ficar demasiado bonito - disse uma voz rude, saída da poalha acinzentada do crepúsculo que enchia a igreja.

Teuse, que se ajoelhara para seguir melhor o traço do pincel ao longo da régua, teve um sobressalto de medo.

- Ah, é frei Archangias! - exclamou, virando a cabeça.

- Entrou pela ’sacristia?... Olhe que me ia deixando sem pinga de sangue. Julguei que a voz vinha de baixo das lajes.

O padre Mouret voltara a entregar-se ao trabalho depois de cumprimentar o frade com uma leve inclinação de cabeça. Este ficou de pé, silencioso, com as mãos grossas entrelaçadas diante do hábito. Por fim, depois de encolher os ombros ao ver o cuidado com que o padre procurava que os filetes ficassem bem direitos, repetiu:

- Isto vai ficar demasiado bonito.

Teuse, que estava de novo extasiada, estremeceu pela segunda vez.

- Oh, já me tinha esquecido que estava aí!-exclamou.

- Podia tossir antes de falar. O senhor tem uma voz que soa bruscamente, como a de um morto.

Levantara-se e recuava para admirar a obra do padre.

- Demasiado bonito porquê? Não há nada demasiado bonito quando se trata de Deus... Se o senhor cura tivesse ouro, seria mesmo com ouro que pintaria isto! Olá!

Assim que o padre acabou, apressou-se a mudar a toalha, com todo o cuidado, para não borrar os filetes. A seguir, dispôs simetricamente a cruz, os castiçais e os vasos. O padre Mouret fora encostar-se ao lado de frei Archangias, junto da balaustrada de madeira que separava o coro da nave. Não trocaram nenhuma palavra. Olhavam a cruz de prata que, na sombra crescente, conservava gotas de luz nos pés, ao longo do flanco esquerdo e na têmpora direita do Crucificado. Mal acabou, Teuse aproximou-se, triunfante.

- Então, não está bonito? Hão-de ver a gente que vem amanhã à missa! Estes ímpios só vêm à casa de Deus quando o julgam rico... Agora, senhor cura, é preciso fazer o mesmo ao altar da Virgem.

- Dinheiro deitado à rua! - trovejou frei Archangias. Mas Teuse zangou-se. E como o padre Mouret continuasse

calado, levou ambos para diante do altar ida Virgem, empurrando-os e puxando-os pelas vestes talares.

- Ora vejam isto! Não pode ficar assim, agora que o altar-mor está limpo. Este nem se sabe se alguma vez foi pintado. Por mais que o limpe, de manhã, o pó está tão entranhado na madeira que já não sai. Que negro, que feio!... Sabe o que se dirá, senhor cura? Que o senhor não gosta da Santa Virgem, pronto!

- E depois? - perguntou frei Archangias. Teuse ficou sufocada.

- Depois - murmurou-, seria um grande pecado, meu Deus!... O altar está como uma dessas sepulturas que se abandonam nos cemitérios. Se não fosse eu, as aranhas já lá tinham feito as suas teias e estaria tudo coberto de ’bolor.

De tempos a .tempos, quando posso pôr um raminho de parte, venho dá-lo à Virgem... Antigamente, todas as flores ,do nosso jardim eram para Ela.

Subira para diante do altar e tirara dois ramos secos esquecidos nos degraus.

- Bem vêem que é como nos cemitérios - acrescentou, atirando-os aos pés do padre Mouret.

Este apanhou-os, sem responder. Anoitecera por completo. Frei Archangias embaraçou-se no meio das cadeiras e por pouco não caiu. Praguejava, mastigava frases surdas em que apareciam os nomes de Jesus e Maria. Quando Teuse, que fora buscar um candeeiro, voltou à igreja, perguntou simplesmente ao padre:

- Então, posso guardar as tintas e os pincéis no sótão?

- Pode - respondeu ele. - Por ora, acabei. Veremos mais tarde o resto.

Teuse saiu à frente deles, levando tudo, calada, com receio de falar de mais. E como o padre Mouret conservava ainda na mão os dois ramos secos, frei Archangias gritou-lhe, ao passarem diante da capoeira:

- Deite isso fora!

O padre deu ainda alguns passos, com a cabeça inclinada. Depois, atirou as flores para o buraco da estrumeira, por cima da cancela.

O FRADE, que já tinha comido, deixou-se ficar a cavalo numa cadeira, durante o jantar do padre. Desde que este último regressara aos Artauds, instalava-se assim quase todas as noites no presbitério. Nunca impusera a sua presença tão rudemente. Os seus sapatos grossos pisavam com força os mosaicos, a sua voz trovejava e os seus punhos abatiam-se sobre os móveis, enquanto ia contando os açoites que dera de manhã às garotas ou resumia a sua moral em fórmulas duras como bastonadas. Depois, como se aborrecia, lembrara-se de jogar às cartas com Teuse; mas como esta nunca fora capaz de aprender outro jogo, jogavam interminavelmente “à batalha”. O padre Mouret, que sorria quando as primeiras cartas eram batidas raivosamente na mesa, caía pouco a pouco num devaneio profundo, e durante horas esquecia-se de tudo evadia-se dali, debaixo dos olhares desconfiados de frei Archangias.

Naquela noite, Teuse estava tão mal-humorada que falou em se ir deitar assim que levantasse a mesa. Mas o frade queria jogar. Deu-lhe palmadinhas nas costas e acabou por a sentar, mas tão violentamente que a cadeira estalou. Depois, começou a baralhar as cartas. Désirée, que o detestava, desaparecera com a sobremesa, que quase todas as noites levava para o quarto, a fim de a comer na cama.

- Quero as encarnadas - disse Teuse, e a luta começou. Teuse foi a primeira a apanhar algumas boas cartas ao frade. Depois, caíram ao mesmo tempo dois ases na mesa.

- Batalha! - gritou ela, com uma emoção extraordinária. Jogou um nove, o que a consternou; mas como o frade só jogou um sete, Teuse apanhou as cartas, triunfante. Ao cabo de meia hora, só tinha de novo dois ases e as probabilidades de ganhar eram idênticas. Passados cerca de três quartos de hora, Teuse estava a perder um ás. O vaivém dos valetes, das damas e dos reis tinha toda a fúria de um morticínio.

- Excelente partida!-exclamou frei Archangias, virando-se para o padre Mouret.

Mas viu-o tão distraído, tão longe dali, e com um sorriso tão inconsciente nos lábios, que ergueu brutalmente a voz:

- Então, senhor cura, não lhe interessa ver-nos jogar? Isso não é delicado... Jogamos só por sua causa, procuramos distraí-lo... Vamos, olhe para o jogo. Sempre lhe fará melhor do que estar para aí a malucar. Onde estava agora?

O padre estremeceu e, sem responder, esforçou-se por seguir o jogo, pestanejando. A partida continuava encarniçadamente. Teuse recuperou o seu ás e voltou a perdê-lo. Havia noites em que disputavam assim os ases durante quatro horas, e muitas vezes até se iam deitar furibundos, sem um nem outro ter ganhado.

- Mas eu estou a sonhar! - gritou, de súbito, Teuse, que tinha muito medo de perder. - O senhor cura devia sair esta noite... Prometeu ao Fortune e à Rosalie ir benzer-lhes o quarto, como é de uso... Depressa, senhor cura! Frei Archangias acompanhá-lo-á.

O padre Mouret estava já levantado e procurava o chapéu. Mas frei Archangias, sem largar as cartas, zangou-se:

- Deixe lá! Que necessidade tem de ser benzida aquela pocilga de porcos? Para as coisas asseadas que vão fazer no quarto!... Aí está um uso que o senhor devia abolir. Um padre não deve meter o nariz nos lençóis dos recém-casados... Fique. Acabemos a partida. Sempre será melhor.

- Não - redarguiu o padre-, prometi. Aquela boa gente poderia melindrar-se... Fique o senhor, acabe a partida enquanto lá vou.

Teuse, muito inquieta, olhava para frei Archangias.

- Pois bem, fico!-gritou este último.-Que coisa tão estúpida!

Mas ainda o padre Mouret não abrira a porta e já ele se levantava para o seguir, ao mesmo tempo que atirava violentamente com as cartas. Mas antes de sair ainda disse a Teuse:

- Estava quase a ganhar... Deixe ficar as cartas como estão. Continuaremos a partida amanhã.

- Oh, agora já está tudo baralhado! - respondeu a velha criada, que se apressara a misturar as cartas. - Se calhar julgava que lhe ia guardar as cartas numa redoma! Além disso, eu ainda podia ganhar; ainda tinha um ás...

Em poucas passadas, frei Archangias alcançou o padre Mouret, que descia o estreito carreiro que levava aos Artauds. Tomara à sua conta a tarefa de velar por ele. Rodeava-o de uma espionagem constante, acompanhava-o por toda a parte e mandava-o seguir por um garoto da escola, quando não se podia desempenhar pessoalmente desse cuidado. Dizia, com o seu riso terrível, que era o “gendarme de Deus”. E, na verdade, o padre parecia um criminoso aprisionado na sombra negra do hábito do frade, um criminoso de quem se desconfia, que se julga suficientemente fraco para recair no crime, desde que se perca de vista um minuto que seja. Era de uma severidade de solteirona ciumenta, de um cuidado minucioso de carcereiro que leva o seu dever até ocultar os retalhos do céu entrevistos pelas lucarnas. Frei Archangias estava sempre presente, a tapar o sol, a impedir um aroma de transpor a entrada, a vedar tão completamente a masmorra que nada de fora nela podia entrar. Espiava as mais pequenas fraquezas do padre, reconhecia-lhe no brilho do olhar os pensamentos ternos que o assaltavam e esmagava-os com uma palavra, sem piedade, como animais daninhos. Os silêncios, os sorrisos, os desfalecimentos da fronte, os calafrios dos membros, tudo lhe pertencia. Fora isso, evitava falar claramente do “crime”; a sua simples presença bastava como censura. O modo como pronunciava certas frases equivalia a uma chicotada. Punha num gesto toda a imundície que escarrava sobre o pecado. Como os maridos enganados que vergam as mulheres debaixo de alusões sangrentas cuja crueldade só eles saboreiam, não se referia à cena do Paradou; limitava-se a evocá-la com uma palavra para aniquilar, nas horas de crise, aquela carne rebelde. Também fora enganado por aquele padre, completamente maculado pelo seu adultério divino. Por culpa dele, traíra os seus votos e trouxera em si carícias proibidas cujo cheiro longínquo bastava para exasperar a sua continência de bode jamais satisfeito.

Eram perto de dez horas. A aldeia dormia, mas na outra extremidade, do lado do moinho, ouvia-se barulho num dos casebres, vivamente iluminado. O tio Bambousse cedera à filha e ao genro um canto da casa e reservara para si as melhores divisões. Bebia-se o último copo, enquanto o cura não chegava.

- Estão bêbedos! - trovejou frei Archangias. - Não os ouve chafurdar?

O padre Mouret não respondeu. A noite estava soberba, toda azul do luar que transformava ao longe o vale num lago adormecido Afrouxava o passo, como se aquela claridade suave o inundasse de bem-estar, chegava mesmo a parar diante de certos tapetes de luz, com o arrepio delicioso que provoca a proximidade da água fresca. O frade continuava a caminhar em grandes passadas, rezingando com ele, chamando-o:

- Venha daí... Não faz bem à saúde andar a correr pelo campo a esta hora. Teria feito melhor metendo-se na cama.

Mas bruscamente, à entrada da aldeia, parou no meio da estrada. Olhava para cima, onde as linhas brancas dos carreiros desapareciam nas manchas negras dos pinhaizinhos. Dir-se-ia rosnar como cão que fareja o perigo.

- Quem será que desce lá de cima tão tarde?...-murmurou.

O padre, que nada ouvia nem via, quis por seu turno fazê-lo estugar o passo.

- Deixe ver quem é - redarguiu vivamente frei Archangias. - Acaba de virar o cotovelo... Olhe, a lua ilumina-o. Agora já se vê bem... É um homem alto, traz um cajado.

Depois, passado um momento de silêncio, prosseguiu, com a voz rouca, estrangulada pelo furor:

- É ele, aquele bandido! .. Já me tinha cheirado . então, como o recém-chegado já acabara de descer a colina, o padre Mouret reconheceu Jeanbernat. A despeito dos seus oitenta anos, o velho batia com tanta força com os tacões que os seus grossos sapatos ferrados provocavam faíscas no sílex do caminho Marchava direito como um carvalho, sem mesmo se servir do cajado, que trazia ao ombro como uma espingarda

- Ah, o danado!-gaguejou o frade, pregado ao chão, incapaz de continuar o seu caminho. - Que o Diabo lhe atire todas as brasas do Inferno para debaixo dos pés.

O padre, muito perturbado, desejoso de se ver livre do companheiro, voltou as costas para continuar o seu caminho, ainda esperançado em poder evitar Jeanbernat, se se apressasse a alcançar a casa de Bambousse. Mas ainda não dera cinco passos quando a voz zombeteira do velho se ergueu quase atrás de si:

- Eh, cura, espere por mim! Não me diga que lhe meto medo...

E como o padre Mouret parasse, aproximou-se e prosseguiu:

- Demónio, as sotainas que vocês usam são pouco cómodas, impedem-nos de correr... Além disso, mesmo de noite toda a gente os reconhece ao longe... Ainda vinha lá em cima e já dizia para comigo: “Olha, é o curazinho que vai lá em baixo!” Oh, ainda tenho bons olhos!... Então, nunca mais nos quis visitar?

- Tenho andado tão ocupado...-murmurou o padre, muito pálido.

- . Bem, bem, toda a gente é livre. O que lhe digo é para lhe mostrar que não lhe guardo rancor pelo facto de ser cura. Nem sequer falaríamos do seu Deus, pois esse assunto é-me indiferente... A pequena imagina que o impeço de lá ir, mas eu respondi-lhe: “O cura é um animal.” E é o que penso. Incomodei-o, porventura, durante a sua doença? Nem sequer subi a visitá-lo... Toda a gente é livre.

Falava com a sua desconcertante indiferença, afectando não dar pela presença de frei Archangias. Mas como este soltasse um grunhido mais ameaçador, exclamou:

- Eh, cura, anda a passear o seu porco?!...

- Espera aí, bandido! - berrou o frade, com os punhos fechados.

Jeanbernat, com o cajado erguido, fingiu reconhecê-lo.

- Baixa as patas!-gritou. - Ah, és tu, padreca?... Devia ter-te farejado pelo cheiro do couro... Temos umas contas a ajustar juntos. Jurei cortar-te as orelhas no meio dos teus alunos, para divertir os garotos que envenenas.

O frade recuou diante do cajado, engasgado com as injúrias que lhe subiam à garganta. Balbuciava, não encontrava as palavras.

- Hei-de mandar-te os gendarmes, assassino! Escarraste na igreja, que bem te vi! Provocas doenças incuráveis a esta pobre gente só de lhes passares diante das portas. Em Santo Eutrópio, fizeste abortar uma rapariga forçando-a a mastigar uma hóstia consagrada que tinhas roubado. No Béage, desenterraste crianças e levaste-as às costas para as tuas abominações... Toda a gente sabe isto, miserável! És o escândalo da região. Quem te estrangulasse ganharia imediatamente o Paraíso.

O velho escutava, chacoteando e brandindo o cajado. Entre cada duas injúrias do outro, repetia a meia voz:

- Vamos, vamos, desabafa, serpente! Não tarda nada que te não quebre a lombeira...

O padre Mouret quis intervir, mas frei Archangias repeliu-o, gritando:

- O senhor está feito com ele! Então eu não sei que o fez caminhar sobre a cruz? Desminta-me, se é capaz!

E virando-se de novo para Jeanbernat:

- Ah, Satanás, muito deves ter rido quando te apanhaste com um padre em teu poder! O Céu esmague aqueles que te ajudaram nesse sacrilégio! Que fazias de noite, enquanto ele dormia? Não é verdade que ias molhar-lhe a tonsura de saliva, para que os cabelos lhe crescessem mais depressa? E sopravas-lhe no queixo e nas faces, para que a barba lhe crescesse um dedo por noite. E esfregavas-lhe o corpo com os teus malefícios, insuflavas-lhe na boca a raiva de um cão e provocavas-lhe o cio... Foi assim que o transformaste em animal, Satanás!

- É estúpido - disse Jeanbernat, descansando o cajado no ombro. - Aborrece-me

O frade, mais afoito, brandiu os dois punhos diante do nariz do antagonista.

- E a desavergonhada que lá tens em casa? - gritou. - Foste tu que a meteste toda nua na cama do padre!

Mas soltou um berro e deu um pulo para trás. O cajado do velho, lançado com gana, acabava de se lhe partir na espinha. Recuou mais, apanhou de um monte de pedras, à beira da estrada, um sílex do tamanho de dois punhos e atirou-o à cabeça de Jeanbernat, o qual teria ficado com a testa fendida se não se agachasse tão depressa E, de um monte para outro, travou-se um combate terrível. As pedras choviam como granizo. A lua, muito clara, recortava nitidamente as sombras.

- Sim, meteste-lha na cama - repetia o frade, enfurecido. - E puseste um Cristo debaixo dos lençóis para que a porcaria lhe caísse em cima Ah! Ah! Admiras-te de saber tanto? Esperas algum monstro desse acasalamento? Todas as manhãs fazes treze sinais do Inferno no ventre da tua prostituta para ela parir o Anticristo. . Queres o Anticristo, bandido!... Toma, oxalá esta pedra te vaze um olho!

- E esta te feche a boca, padreca! - respondeu Jeanbernat, já mais calmo. - É estúpido, o animal, com as suas histórias!... Querem ver que tenho de lhe rachar a cabeça para continuar o meu caminho? Foi o catecismo que te deu volta ao miolo?

- O catecismo? Queres saber o catecismo que se ensina aos réprobos da tua espécie? Sim, hei-de ensinar-te a fazer o sinal da cruz... Esta pelo Pai, esta pelo Filho e esta pelo Espírito Santo... Ah, ainda estás de pé?! Espera, espera!... Amen!

E atirou-lhe uma saraivada de pedrinhas, como se fossem metralha

Jeanbernat, atingido num ombro, largou as pedras que tinha na mão e avançou tranquilamente, enquanto frei Archangias apanhava no monte novas mãos-cheias de pedras e resmungava:

- Extermino-te. É Deus que assim o quer. O meu braço é dirigido por Deus...

- Cala-te! - gritou-lhe o velho, agarrando-o pela nuca. Então, travou-se breve luta na estrada poeirenta, azulada pelo luar. O frade, ao ver que era mais fraco, procurava morder o antagonista. Os membros secos de Jeanbernat eram como feixes de cordas; ligavam-no tão apertadamente que sentia os nós enterrarem-se-lhe na carne. Calava-se, Sufocado, magicando qualquer patifaria, Depois de o colocar debaixo de si, o velho prosseguiu, escarnecendo:

- Sinto ganas de te partir um braço para partir também o teu Deus... Bem vês que não é o mais forte, o teu Deus. Eu é que te extermino... Agora, vou-te cortar as orelhas. Já me aborreceste demasiado.

E tirou calmamente uma navalha da algibeira.

O padre Mouret, que tentara em vão, por diversas vezes, lançar-se entre os combatentes, interpôs-se naquela altura tão vivamente que Jeanbernat acabou por consentir em deixar a operação para mais tarde.

- Está enganado, cura - murmurou. - Esse espertalhão precisa de uma sangria. Enfim, já que isto lhe desagrada, esperarei por outra oportunidade. Não me faltarão ocasiões de o apanhar a jeito...

Como o frade deixasse escapar um grunhido, interrompeu-se para lhe gritar:

- Não te mexas ou corto-tas já!

- Olhe que está sentado em cima do peito dele - disse o padre. - Saia daí, deixe-o respirar.

- Não, não; recomeçaria com os mesmos insultos. Largá-lo-ei quando me for embora... Dizia eu, cura, quando este tratante se lançou entre nós, que seria bem-vindo no Paradou. A pequena põe e dispõe de tudo, como sabe. Contrario-a tanto como às minhas alfaces. Tudo se desenvolve... Só imbecis como este padreca vêem maldade em tudo... Onde viste o mal, patife? Foste tu que o inventaste, bruto!

E voltou a sacudir o frade.

- Deixe-o levantar-se - suplicou o padre Mouret.

- Já vai... A pequena não anda boa de há uns tempos para cá. Eu não dava por nada, ela é que mo disse. Por isso, vou prevenir o seu tio Pascal, a Plassans. De noite, está tudo sossegado, não se encontra ninguém... Sim, sim, a pequena não está nada boa.

O padre não soube que dizer. Hesitava, de cabeça baixa.

- Andava tão contente quando o tratava! - continuou o velho. - Ouvia-a rir enquanto fumava o meu cachimbo e isso bastava-me. As raparigas são como os pilriteiros: quando dão flor, dão tudo o que podem... Enfim, apareça por lá, se o coração lho ditar. Talvez isso alegrasse a pequena... Boas noites, cura.

Erguera-se devagar, sem largar os punhos do frade, com receio de alguma tratantada, e afastou-se sem virar a cabeça, no seu passo firme e estugado. O frade rastejou em silêncio até ao monte de pedras e esperou que o velho se distanciasse. Depois, com ambas as mãos, começou a apedrejá-lo (furiosamente, mas as pedras rolavam na poeira da estrada. Jeanbernat, sem se dignar zangar-se, afastava-se, direito como uma árvore, ao fundo da noite serena.

- Maldito! Que Satanás o persiga! - balbuciou frei Archangias, fazendo ressoar uma derradeira pedra. - Um velho que um piparote devia fazer em fanicos! Foi cozido no forno do Inferno. Senti-lhe as garras.

Na sua raiva impotente, calcava com os pés as pedras espalhadas. De súbito, virou-se contra o padre Mouret.

- A culpa é sua! - gritou. - Se me tivesse ajudado, facilmente o estrangularíamos.

Do outro lado da aldeia, o barulho aumentara em casa de Bambousse. Ouvia-se distintamente o bater dos copos na mesa. O padre recomeçara a andar, sem levantar a cabeça, e dirigia-se para a luz clara que vinha da janela, semelhante à chama de um fogo de sarmentos. O frade seguiu-o, sombrio, com o hábito sujo de pó e uma face a sangrar, devido ao raspão de uma pedra. Depois de um momento de silêncio, frei Archangias perguntou, com a sua voz dura.

- Irá?

E como o padre Mouret não respondesse, continuou:

- Acautele-se! Olhe que recairá no pecado... Bastou aparecer esse homem para que toda a sua carne estremecesse. Bem o vi, ao luar, pálido como uma rapariga... Acautele-se, ouviu? Desta vez. Deus não lhe perdoaria; deixá-lo-ia cair na última podridão... Ah, lama miserável, é a imundície que o atrai!

Então, o padre levantou finalmente o rosto. Chorava grossas lágrimas, em silêncio, e disse com uma doçura pungente :

- Porque me fala assim?... O senhor está sempre presente, conhece as minhas lutas de todas as horas. Não duvide de mim, deixe-me a energia de que preciso para me vencer.

Estas palavras tão simples, banhadas de lágrimas mudas, adquiriram na noite tal carácter de dor sublime que frei Archangias, a despeito da sua rudeza, se sentiu perturbado. Sem dizer palavra, sacudiu o hábito e limpou a face ensanguentada. Quando chegaram diante da casa dos Bambousses, recusou entrar; sentou-se a alguns passos na caixa virada de uma velha charrete, onde ficou à espera com uma paciência de cão.

- Cá está o senhor cura! - gritaram todos os Bambousses e todos os Brichets sentados à mesa.

E de novo se encheram os copos. O padre Mouret teve de aceitar um Não houvera boda; apenas à noite, depois do jantar, se pusera em cima da mesa um garrafão de cinquenta litros, que se entretinham a despejar antes de irem para a cama. Eram dez e o tio Bambousse já emborcava com uma só mão o garrafão, do qual corria apenas um delgado fio roxo. Rosalie, muito alegre, mergulhava o queixo >do pequeno no próprio copo, enquanto Fortune fazia habilidades, levantando cadeiras com os dentes. Toda a gente entrou no quarto dos noivos. O uso exigia que o cura bebesse ali o vinho que lhe fora servido, pois era a isso que se chamava benzer o quarto. A cerimónia destinava-se a atrair a felicidade e a impedir que o casal se desentendesse. No -” tempo do padre Caffin, as coisas passavam-se alegremente, pois o velho sacerdote gostava de rir e era até famoso pela forma como despejava o copo, sem deixar uma gota no fundo, tanto mais que as mulheres, nos Artauds, pretendiam que cada gota era um ano de amor a menos entre os esposos. Com o padre Mouret gracejava-se mais baixo. No entanto, bebeu o vinho de um trago, o que pareceu lisonjear muito o ’tio Bambousse. A velha Brichet é que olhou amuada para o fundo do copo, onde ficara um pouco de vinho. Diante da cama, um tio que era guarda campestre arriscava graçolas muito brejeiras, de que se ria Rosalie, a quem Fortune, à maneira de carícia, já atirara de costas à beira do colchão. E depois de todos dizerem a sua graçola, voltaram para a sala, onde Vincent e Catherine tinham ficado sozinhos Vincent, empoleirado numa cadeira, com o enorme garrafão inclinado entre os braços, acabava de o despejar na boca aberta de Catherine.

- Obrigado, senhor cura! - gritou Bambousse, acompanhando o padre até à porta. - Pronto, já estão casados. Está satisfeito? Ah, os velhacos! Se julga que vão dizer o Pater e a Ave depois disto... Boas noites, durma bem, senhor cura.

Frei Archangias, que se levantara lentamente da caixa da charrete virada em que se sentara, murmurou:

- Que o Diabo lhes atire pàzadas de carvão para dentro da pele até rebentarem!

Não tornou a abrir os lábios. Acompanhou o padre Mouret ao presbitério, esperou que fechasse a porta por dentro para se retirar e chegou mesmo a voltar-se, por duas vezes, para verificar se não tornava a sair Assim que chegou ao quarto, o padre atirou-se completamente vestido para cima da cama, com as mãos nos ouvidos, e escondeu a cara na almofada, para mais nada ouvir, para mais nada ver. Aniquilado, adormeceu num sono de morte.

O DIA seguinte era domingo. Dado a Exaltação da Santa Cruz cair num dia de missa cantada, o padre Mouret resolvera celebrar semelhante festa religiosa com especial brilhantismo. Tomara-se de uma devoção extraordinária pela Cruz; substituíra no quarto a estatueta da Imaculada Conceição por um grande crucifixo de madeira preta, diante do qual passava longas horas em adoração. Exaltar a Cruz, colocá-la diante de si, acima de todas as coisas, numa glória, como fim único da sua vida, dava-lhe forças para sofrer e lutar. Sonhava pregar-se nela no lugar de Jesus, ser nela coroado de espinhos, ter nela os membros perfurados e o flanco aberto. Como era cobarde por se atrever a queixar-se de uma ferida ilusória, quando o seu Deus sangrava ali por todo o corpo, com o sorriso da Redenção nos lábios! E, a despeito de ser talvez o último dos miseráveis, oferecia a sua ofensa em holocausto, acabava por deslizar no êxtase, por acreditar que o sangue lhe escorria realmente da fronte, dos membros e do peito. Eram horas de refrigério aquelas em que todas as impurezas se lhe escoavam das chagas. Castigava-se com heroísmo de mártir, desejava torturas terríveis para as suportar sem um só sobressalto da carne.

Desde o romper do dia que estava ajoelhado diante do crucifixo e que a graça o inundava, abundante como orvalho. Não fez qualquer esforço; bastou-lhe dobrar os joelhos para a receber no coração e mergulhar nela até aos ossos, de modo deliciosamente doce. Na véspera, agonizara sem que ela descesse até si. Ficava durante muito tempo surda às suas lamentações de condenado às penas eternas, mas também o auxiliava muitas vezes quando, com um gesto de criança, só sabia juntar as mãos. Naquela manhã foi para si uma bênção, um repouso absoluto, uma fé completa. Esqueceu as angústias dos dias precedentes e entregou-se todo à alegria triunfal da Cruz. Sentia nos ombros uma armadura tão impenetrável que o mundo se embotava nela. Quando desceu, caminhava com ar de vitória e serenidade. Teuse, maravilhada, foi procurar Désirée para o vir abraçar. Ambas batiam palmas e gritavam que havia seis meses não o viam com tão bom aspecto.

Na igreja, durante a missa cantada, o padre acabou de reencontrar Deus. Havia muito tempo que não se aproximava do altar com semelhante enternecimento. Teve de se conter para não romper a chorar, com a boca colada à toalha. Era uma missa cantada, solene. O tio de Rosalie, o guarda campestre, cantava no coro, com uma voz de baixo cuja ressonância enchia como um canto de órgão a abóbada do templo. Vincent, paramentado com uma sobrepeliz muito larga que pertencera ao padre Caffin, balouçava um velho turíbulo de prata, prodigiosamente divertido com o ruído das correntes, e incensava bastante alto para fazer muito fumo, ao mesmo tempo que olhava para trás, a fim de ver se alguém tossia. A igreja estava quase cheia, pois toda a gente quisera vir ver as pinturas do senhor cura. As mulheres riam porque tudo aquilo cheirava bem, e os homens, ao fundo, de pé debaixo da tribuna, abanavam a cabeça a cada nota mais profunda do cantor. Pelas janelas entrava o sol claro das dez horas, coado pelos vidros de papel, e desdobrava nas paredes restauradas grandes reflexos ondeados, engraçadíssimos, em que a sombra das toucas das mulheres parecia enormes borboletas a voar. E os ramos artificiais postos nos degraus do altar tinham também a alegria húmida de flores naturais colhidas de fresco. Quando o padre se voltou para abençoar os assistentes, experimentou enternecimento ainda mais vivo ao ver a igreja tão limpa, tão cheia, tão inundada de música, de incenso e de luz.

Depois do Ofertório, correu um murmúrio entre os camponeses. Vincent, que levantara curiosamente a cabeça, por pouco não atirou as brasas todas do turíbulo para cima da casula do padre. E como este o fitasse severamente, murmurou, como se se desculpasse:

- Foi o tio do senhor cura que acabou de entrar...

De facto, ao fundo da igreja, encostado a uma das delgadas colunas de madeira que sustentavam a tribuna, o padre Mouret avistou o Dr. Pascal. Este não tinha agora o seu belo rosto sorridente, um pouco irónico; estava descoberto, grave, zangado e acompanhava a missa com visível impaciência. O espectáculo do padre no altar, o seu recolhimento, os seus gestos comedidos, a serenidade perfeita do seu rosto, pareceram irritá-lo pouco a pouco cada vez mais. Não teve paciência de esperar pelo fim da missa; saiu e pôs-se a passear em torno do cabriole e do cavalo, que prendera a uma das persianas do presbitério.

- Então quando é que aquele figurão acaba de se fazer incensar? - perguntou a Teuse, que voltava da sacristia.

- Já acabou - respondeu a criada. - Entre para o salão... O senhor cura está a despir-se. Já sabe que o senhor está cá.

- Por Deus, a menos que seja cego!-exclamou o doutor, seguindo-a até à divisão fria, de móveis desconfortáveis, a que Teuse chamava pomposamente “o salão”.

Percorreu-o durante alguns minutos de uma ponta à outra. O aposento, de uma tristeza cinzenta, aumentava-lhe o mau humor. Enquanto passeava, dava com a ponteira da bengala pancadinhas na crina coçada das cadeiras, que tinham o som quebradiço da pedra. Depois, fatigado, parou diante da chaminé, onde um grande S. José abominàvelmente pintalgado ocupava o lugar de um relógio.

- Até que enfim! - exclamou quando ouviu o ruído da porta.

E, avançando para o padre:

- Sabes que me fizeste ouvir metade de uma missa? Há muito tempo que isso não me sucedia... Enfim, precisava absolutamente de falar contigo hoje, porque...

Não acabou. Olhava o padre, com surpresa. Houve um silêncio.

- Estás melhor? - inquiriu por fim, noutro tom de voz.

- Sim, estou muito melhor - respondeu o padre Mouret, sorrindo. - Só o esperava na quinta-feira. O domingo não é o seu dia de fazer visitas... Tem alguma coisa a comunicar-me?

Mas o tio Pascal não respondeu imediatamente; continuava a examinar o padre. Este encontrava-se ainda completamente impregnado da tepidez da igreja, trazia nos cabelos o cheiro do incenso, conservava no fundo dos olhos a alegria da Cruz. O tio abanou a cabeça perante aquela paz triunfante.

- Venho do Paradou - disse bruscamente. - Jeanbernat foi procurar-me esta noite... Vi Albine e fiquei preocupado; precisa de muitos cuidados.

Enquanto falava, ia observando o padre e nem sequer o viu pestanejar.

- Enfim, ela cuidou de ti - acrescentou mais rudemente. - Sem ela, meu rapaz, a estas horas talvez estivesses numa cela das Tulettes, com um colete-de-forças... Pois bem, prometi que irias visitá-la. Levo-te comigo. É uma despedida. Ela vai-se embora.

- Tudo o que posso fazer é rezar pela pessoa a quem se refere - disse o padre Mouret, suavemente.

E como o doutor se irritasse e batesse com força no canapé, com a bengala, concluiu simplesmente, com voz muito firme:

- Sou padre e só tenho as minhas orações.

- Ah! Claro, tens toda a razão! - gritou o tio Pascal, deixando-se cair numa cadeira de braços, desalentado. - Eu é que sou um velho louco, uma criança... Eis o resultado de viver no meio dos alfarrábios: conseguem-se magníficas experiências, mas comportamo-nos como pessoas indignas... Podia lá adivinhar que isso acabaria tão mal?

Levantou-se e recomeçou a passear, desesperado

- Sim, sim, devia ter adivinhado; era lógico. E contigo tornava-se abominável. Não és um homem como os outros... Mas, escuta, garanto-te que estavas perdido Só o ambiente que ela criou em volta de ti te salvou da loucura. Enfim, sabes muito bem o que quero dizer, não preciso de te explicar em que situação te encontravas. Foi uma das minhas mais belas curas, da qual, aliás, não me orgulho, pois agora quem corre o risco de morrer é a pobre rapariga!

O padre Mouret conservava-se de pé, muito calmo, com a sua tranquila auréola de mártir que nada humano seria capaz de destruir

- Deus terá misericórdia dela - disse.

- Deus, Deus... - murmurou o doutor, surdamente.- Faria melhor se não se metesse na vida alheia. Cá nos arranjaríamos sem Ele.

Depois, elevando a voz, prosseguiu:

- Calculei tudo, julguei que lá era o mais forte. Oh, que imbecil!... Estiveste um mês em convalescença. A sombra das árvores, a aragem fresca da infância, toda aquela juventude te pôs de pé. Por outro lado, a criança perdia a sua selvajaria, tu humanizava-la, ambos faríamos dela uma menina que em qualquer parte arranjaria casamento. Era perfeito... Mas como podia imaginar que o velho filósofo do Jeanbernat não abandonaria as suas alfaces por nada deste mundo?! Verdade seja que, pela minha parte, também não me mexi do meu laboratório. Andava com uns estudos entre mãos... E aqui está a minha falta! Sou um homem indigno!

Abafava, queria sair. Procurou por toda a parte o chapéu, que tinha na cabeça.

- Adeus - balbuciou - Vou-me embora... Recusas vir comigo? Vamos, fá-lo por mim; bem vês como sofro. Juro-te que ela partirá em seguida. Está combinado... Tenho o meu cabriole; dentro de uma hora estarás de volta... Vem, suplico-te.

O padre esboçou um gesto largo, um daqueles gestos que o doutor o vira fazer no altar.

- Não - disse-, não posso

E enquanto acompanhava o tio acrescentou:

- Diga-lhe que ajoelhe e implore a Deus... Deus ouvi-la-á como me ouviu a mim; confortá-la-á como me confortou a mim Não há outra salvação.

O médico olhou-o no rosto e encolheu os ombros.

- Adeus - repetiu. - Estás bem, já não precisas de mim. Mas quando desprendia o cavalo, Désirée, que acabava de

lhe ouvir a voz, chegou a correr. Adorava o tio. Quando era mais nova, ouvia-a tagarelar durante horas sem se aborrecer. Mesmo agora, amimava-a, interessava-se pela capoeira, não se importava de ficar uma tarde inteira com ela, no meio das galinhas e dos patos, a sorrir-lhe com os seus olhos perspicazes de sábio Chamava-lhe “grande pateta” em tom de admiração acariciadora e parecia colocá-la muito acima das outras raparigas. Por isso, assim que o viu, Désirée saltou-lhe ao pescoço, num transporte de ternura, e gritou:

- Ficas? Ficas para almoçar?

Mas ele beijou-a, recusou, desembaraçou-se do abraço com ar carrancudo Rindo, com o seu riso cristalino, Désirée pendurou-se-lhe de novo ao pescoço

- Fazes mal - insistiu. - Tenho ovos fresquinhos... Vigiei as galinhas e só esta manhã puseram catorze .. E comeríamos um frango, o branco, aquele que pica nos outros. Não estavas cá, na quinta-feira, quando vazou um olho ao pedrês?

O tio conservou-se carrancudo. Irritava-se contra o nó da rédea, que não conseguia desatar. Então, Désirée pôs-se a saltar em volta dele, a bater as mãos e a cantarolar, com voz aflautada:

- Sim, sim, ficas... Comê-lo-emos, comê-lo-emos!

E a cólera do tio não resistiu por mais tempo. Levantou a cabeça e sorriu. Ela era muito saudável, muito viva, muito verdadeira; possuía uma graça generosa, natural e franca, como o manto de sol que lhe dourava a carne nua.

- Grande pateta! - exclamou, encantado

Depois, segurando-a pelos pulsos, enquanto ela continuava a saltar, acrescentou:

- Escuta, hoje não. Tenho uma pobre rapariga doente, à minha espera. Mas voltarei outra manhã... Prometo-te.

- Quando? Quinta-feira - insistiu ela. - Sabes, a vaca está prenhe e parece que não anda lá muito boa há dois dias Como és médico, talvez lhe possas dar um remédio.

O padre Mouret, que assistia tranquilamente à cena, não pôde conter uma leve gargalhada. O doutor subiu alegremente para o cabriole e disse:

- Claro que tratarei da vaca... Aproxima-te para te dar um beijo, grande pateta! Cheiras bem, cheiras a saúde, e vales mais do que a maioria das pessoas. Se toda a gente fosse como a minha grande pateta, o mundo seria mais belo

Incitou o cavalo com um leve estalido de língua e continuou a falar sozinho, enquanto o cabriole descia a encosta:

- Sim, brutos, brutos é que fazem falta. Brutos belos, brutos alegres, brutos fortes Oh, que sonho! .. Isto acabou bem para a rapariga, que é tão feliz como a sua vaca, mas acabou mal para o rapaz, que agoniza na sua sotaina. Um pouco mais de sangue, um pouco mais de nervos, e vai tudo por água abaixo, estraga-se a vida... Estas crianças são autênticos Rougons, autênticos Macquarts, a cauda do rebanho a degenerescência final ..

E incitando o cavalo, subiu a trote a colina que levava ao Paradou.

 

O DOMINGO era um dia muito ocupado para o padre Mouret. Tinha as vésperas, que dizia geralmente diante das cadeiras vazias, pois a própria Brichet não levava a devoção ao ponto de voltar de tarde à igreja Depois, às quatro horas, frei Archangias aparecia com a garotada da escola para que o senhor cura a fizesse recitar a sua lição de catecismo, recitação que, por vezes, se prolongava até bastante tarde. Quando as crianças se mostravam demasiado irrequietas, chamava-se Teuse, que lhes metia medo com a vassoura.

Naquele domingo, por volta das quatro horas, Désirée encontrava-se sozinha no presbitério. Como se aborrecia, foi cortar erva para os coelhos, ao cemitério, onde cresciam papoulas soberbas, que os coelhos adoravam Arrastava-se de joelhos entre as sepulturas e enchia aventais de verduras apetitosas, sobre as quais toda a bicharada caía gulosamente

- Oh, que bela tanchagem! - murmurou, agachando-se diante da lousa do padre Caffin, encantada com a sua descoberta.

De facto, tufos de excelente tanchagem saíam da própria fenda da pedra e ostentavam as suas folhas largas. Acabara de encher o avental quando lhe pareceu ouvir um ruído singular vindo das bandas do precipício que se abria ao longo de um dos lados do cemitério e ao fundo do qual corria o Mascle, uma torrente que descia das alturas do Paradou. O ruído provinha dos ramos quebrados e da queda de pedrinhas, mas daquele lado o barranco era tão íngreme, tão impraticável, que Désirée pensou tratar-se de algum cão perdido ou de allguma cabra fugida. Avançou vivamente e, quando se debruçou para ver do que se tratava, ficou estupefacta ao descobrir no meio das silvas uma rapariga que, para subir, se agarrava às mais insignificantes saliências da rocha, com extraordinária agilidade.

- Eu vou dar-lhe a mão! - gritou. - Cautela, olhe que pode partir o pescoço!

Ao ver-se descoberta, a rapariga teve um sobressalto de medo e pareceu disposta a voltar para trás. Mas levantou a cabeça e acabou por aceitar a mão que lhe estendiam.

- Oh, estou a conhecê-la! - exclamou Désirée, feliz, largando o avental para a segurar pela cintura, com a sua meiguice de criança grande. - Foi a menina que me deu os melros. Morreram, coitadinhos. Tive um grande desgosto... Espere, sei o seu nome, já o ouvi... Teuse di-lo muitas vezes, quando Serge não está, mas proibiu-me de o repetir... Espere que hei-de lembrar-me.

Fazia esforços de memória que a punham muito séria. Depois, quando se lembrou, ficou muito contente e saboreou diversas vezes a musicalidade do nome.

- Albine! Albine!... É muito suave. Primeiro, julguei que fosse o nome de um passarinho, pois tive um passarinho que se chamava assim, pouco mais ou menos, já não me recordo bem.

Albine não sorria; estava muito branca e tinha um brilho de febre nos olhos. Algumas gotas de sangue rolavam-lhe pelas mãos. Quando readquiriu o fôlego, disse rapidamente:

- Não, deixe. Vai sujar o lenço a limpar-me. Isto não é nada, não passam de uns arranhõezitos... não quis vir pela estrada, para não me verem. Preferi seguir a torrente... Serge está cá?

Este nome, pronunciado familiarmente, com um ardor contido, não causou a menor impressão a Désirée, a qual respondeu que o irmão estava na igreja a dar o catecismo.

- Não se deve falar alto - acrescentou, pondo um dedo nos lábios. - Serge proibiu-me de falar alto quando está a dar o catecismo. Se fizermos barulho, vem ralhar connosco... Vamos para o estábulo, quer? Estaremos mais à vontade para conversar.

- Quero ver Serge - disse, simplesmente, Albine.

A grande criança baixou ainda mais a voz. Lançava olhares furtivos à igreja e murmurava:

- Sim, sim... Serge não dará por nada. Venha comigo. Esconder-nos-emos, não faremos barulho. Oh, que divertido!

Tornara a apanhar o monte de ervas que lhe escorregara do avental. Saiu do cemitério e entrou em casa com infinitas precauções, recomendando muito a Albine que se escondesse atrás dela, que se fizesse muito pequenina. Quando se refugiaram, a correr, na capoeira, avistaram Teuse que atravessava a sacristia e que pareceu não as ver.

- Caluda! Caluda! - repetia Désirée, encantada, quando se esconderam ao fundo do estábulo. - Agora, ninguém nos encontrará... Há aí palha; deite-se.

Albine teve de se sentar num molho de palha.

- E Serge? - perguntou, com a obstinação de uma ideia fixa.

- Escute, não ouve a sua voz?... Quando bater as mãos, a catequese acabou e os pequenos vão-se embora... Olhe, lá está ele a contar-lhes uma história.

De facto, ouvia-se a voz do padre Mouret, muito suave, através da porta da sacristia, que Teuse acabava, sem dúvida, de abrir. Foi como que uma lufada religiosa, um murmúrio em que por três vezes perpassou o nome de Jesus. Albine estremeceu. Levantou-se disposta a correr para aquela voz amada, cuja doçura reconhecia, mas o som pareceu evolar-se, abafado pela porta que voltara a fechar-se. Então, tornou a sentar-se e pareceu esperar, com as mãos apertadas uma na outra, toda entregue à ideia ardente que chamejava no fundo dos seus olhos claros. Désirée, deitada a seus pés, fitava-a com ingénua admiração.

- Quê, a menina é bela! - murmurou. - Parece-se com uma imagem que Serge tinha no quarto. Também era toda branca e tinha grandes caracóis que lhe flutuavam sobre os ombros, e mostrava o coração, muito vermelho, exactamente no sítio onde sinto bater o seu... Não me ouve, pois não? Está triste... Vamos brincar, quer?

Interrompeu-se e gritou entre dentes, contendo a voz:

- As descaradas! Como sabem vir de surpresa!...

Não largara o avental em que trouxera as ervas e os animais tomavam-na de assalto. As galinhas tinham acorrido em bando e cacarejavam, chamavam-se, debicavam os talinhos verdes que pendiam do avental. A cabra passava-lhe sorrateiramente a cabeça por debaixo do braço e mordia as folhas largas. A própria vaca, presa à parede, puxava a corda, estendia o focinho e soprava o seu bafo quente.

- Ai, as ladras! -repetia Désirée. - É para os coelhos!... Fazem favor de me deixar tranquila? Vais apanhar um tabefe! E tu, se te apanho a jeito, torço-te o rabo... Pestes! Se as deixasse, comiam-me as mãos!

Dava tabefes na cabra, dispersava as galinhas a pontapé, batia com toda a força dos punhos no focinho da vaca. Mas os animais sacudiam-se, voltavam mais glutões, saltavam sobre ela, submergiam-na, arrancavam-lhe o avental. E Désirée piscava os olhos e murmurava ao ouvido de Albine, como se os animais a pudessem ouvir:

- São muito engraçados, estes amores! Espere, vai vê-los comer.

Albine olhava, com ar grave.

- Vamos, tenham juízo - insistia Désirée. - Todos terão a sua parte, mas cada um por sua vez... Primeiro, a Lise. Gostas de tanchagem, hem?...

Lise era a vaca. Remoeu lentamente um punhado de folhas colhidas na sepultura do padre Caffin. Pendia-lhe do focinho um delgado fio de baba e os seus grandes olhos castanhos tinham uma doçura gulotona.

- Agora tu - continuou Désirée, virando-se para a cabra. - Oh, bem sei que queres papoulas! E prefere-las floridas, não é verdade? Com botões que te rebentem nos dentes como carvões em brasa... Toma, aqui as tens ’bem bonitas. São do canto da esquerda, em que o ano passado se faziam os enterros.

E ao mesmo tempo que falava ia apresentando à cabra um ramo de flores sangrentas, que o animal mastigava. Quando só tinha hastes nas mãos, meteu-lhas também na boca. Atrás dela, as galinhas, furiosas, davam-lhe bicadas nas saias. Atirou-lhes chicória brava e dentes-de-leão que colhera em volta das velhas lajes enfileiradas ao longo do muro da igreja, e as galinhas disputaram-se sobretudo os dentes-de-leão, com tal voracidade, com tal fúria de asas e de esporões que os outros animais se deram conta do que se passava. Então, foi uma invasão. O primeiro a aparecer foi Alexandre, o grande galo fulvo, que debicou um dente-de-leão, o cortou em dois e o deixou ficar. Depois, cucuricou, para chamar as galinhas que tinham ficado lá fora, e recuou para as convidar a comer. Entrou uma galinha branca, depois uma preta e a seguir uma fila de galinhas que se empurraram e quase subiram para cima umas das outras, e acabaram por se espalhar como uma vaga de penas loucas. Atrás das galinhas vieram os pombos, e os patos, e os gansos, e por fim os perus. ’Désirée ria no meio daquela onda viva, submersa, perdida, e explicava:

- Todas as vezes que trago erva do cemitério é isto. Seriam capazes de se matar para a comerem... A erva deve ter um gosto muito especial.

E debatia-se, levantava os últimos punhados de verdura, a fim de os salvar daqueles bicos glutões que se erguiam para ela, e repetia que era preciso guardar alguma para os coelhos, que se ia zangar e pôr todos a meia ração. Mas fraquejava. Os gansos puxavam-lhe pelas pontas do avental tão rudemente que quase a faziam cair de joelhos, os patos pareciam querer devorar-lhe os tornozelos, dois pombos tinham-lhe voado para a cabeça e algumas galinhas saltavam-lhe para os ombros. Era uma luta feroz de animais que cheiravam a carne, a tanchagem apetitosa, a papoulas sanguíneas, a dentes-de-leão trasbordantes de seiva, onde havia um pouco da vida dos mortos. Désirée ria muito, sentiam-se prestes a ceder, a largar da mão os dois últimos punhados de erva, quando um ’grunhido terrível espalhou o pânico em torno dela.

- És tu, meu gorducho?-disse, enlevada.-Olha, come-as, livra-me delas.

Apareceu o porco. Já não era o porquito rosado como um brinquedo novo, de traseiro de onde rompia a cauda semelhante a uma ponta de cordel, mas sim um porco gordo, bom para a matança, redondo como uma pança de cónego e com o lombo coberto de cerdas ásperas, que ressumavam gordura. Tinha o ventre cor de âmbar por ter dormido na esterqueira. De focinho espetado e rolando sobre as patas, atirou-se para o meio dos ’animais, o que permitiu a Désirée fugir e correr a dar ’aos coelhos as poucas ervas que defendera valentemente. Quando regressou, estava estabelecida a paz. Os gansos balouçavam molemente o pescoço, estúpidos, calmos; os patos e os perus caminhavam ao longo das paredes, com bamboleios prudentes de animais enfermos ; as galinhas cacarejavam baixinho e debicavam um ou outro grão invisível no solo duro do estábulo, ao passo que o porco, a cabra e a vaca, como se o sono os assaltasse pouco a pouco, piscavam os olhos. Lá fora começou a cair uma chuva de tempestade.

- Pronto, cá temos um aguaceiro! - exclamou Désirée, tornando a sentar-se na palha, com um arrepio. - Farão bem em ficar aí, meus amores, se não querem que a chuva os ensope.

Virou-se para Albine e acrescentou:

- Olhe para aquele ar de lonpas! Só espertam para cair sobre o comer, os grandes animais!

Albine mantivera-se silenciosa. Os risos da formosa rapariga a debater-se no meio daqueles pescoços vorazes, daqueles bicos glutões que lhe faziam cócegas, a beijavam e pareciam querer comê-la, tinham-na deixado ainda mais pálida. Tanta alegria, tanta saúde, tanta vida, desesperavam-na. Fechava os braços febris, apertava o vácuo ao peito, seco pelo abandono.

- E Serge? -perguntou com voz Clara e obstinada.

- Caluda! - atalhou Désirée. - Acabo de o ouvir, sinal de que ainda não terminou. Há bocado fizemos muito barulho e ninguém nos veio ralhar. Até parece que a Teuse está surda, esta tarde... Deixemo-nos estar tranquilas, agora. É tão bom ouvir cair a chuva!

O aguaceiro entrava pela porta deixada aberta e caía na soleira em grandes pingos. As galinhas, inquietas, tinham recuado para o fundo do estábulo, depois de tentarem em vão sair. Todos os animais se refugiavam ali, em torno das saias das duas raparigas, com excepção de três patos que tinham ido passear tranquilamente debaixo da chuva. A frescura da água que corria lá fora parecia fazer refluir para o interior as baforadas ardentes da capoeira. A palha estava muito -quente. Désirée puxou para si dois grandes molhos e recostou-se neles como se fossem almofadões, abandonou-se-lhes. Sentia-se bem assim, todo o seu corpo experimentava uma grande sensação de prazer.

- Isto é bom, é bom... - murmurou. - Deite-se como eu. Enterro-me, fico amparada por todos os lados e a palha faz-me cócegas no pescoço... E, quando nos esfregamos, corre-nos ao longo dos membros, parece ratinhos a saltarem-nos debaixo do vestido.

Esfregava-se, ria sozinha e batia com as mãos para a direita e para a esquerda, como se quisesse defender-se dos ratos. Depois, ficava com a cabeça em baixo e os joelhos levantados, muito quieta.

- Lá na sua quinta não se rebola na palha? - perguntou, de súbito. - Não conheço nada melhor... Às vezes, faço cócegas, nos pés; também é divertido... Diga-me, costuma fazer cócegas a si mesma?

Mas o grande galo fulvo, que se aproximara gravemente, saltou-lhe para o peito, ao vê-la deitada.

- Vai-te embora daqui, Alexandre!-gritou ela.-É parvo, este animal! Não sou senhora de me deitar que não salte logo para cima de mim... Pesas muito e arranhas-me com as unhas, ouviste?... Não me importa que fiques, mas tens de te portar com juízo e de não me picar os cabelos ouviste?

E não se preocupou mais. O galo mantinha-se firme em cima do corpete, com ar de lhe espreitar de vez em quando para debaixo do queixo, com um olho em brasa. Os outros ’animais aproximaram-se-lhe das saias. Depois de se rebolar mais um bocado na palha, Désirée acabou por desfalecer, numa atitude feliz, com os membros afastados e a cabeça reclinada.

- Ah, é tão bom!... Mas fico logo cansada. A palha faz sono, não faz?... Serge não gosta disto, e a menina também não, talvez. De que é que gosta? Diga lá, para eu saber.

Adormecia lentamente. Por um instante, conservou os olhos muito abertos, como se procurasse um prazer que ignorava. Depois, baixou as pálpebras, com um sorriso tranquilo, como se estivesse plenamente satisfeita. Parecia dormir quando, passados alguns minutos, reabriu os olhos e disse:

- A vaca vai ter um filho... Isso também é bom. Nada me poderá dar mais prazer.

E mergulhou num sono -profundo. Os animais tinham acabado por subir para cima dela e por a cobrir como uma onda de penas. As galinhas pareciam chocar-lhe os pés e os gansos estiravam-lhe o pescoço coberto de penas macias ao longo das coxas. Á esquerda, o porco aquecia-lhe o flanco, enquanto a cabra, à direita, estendia a cabeça barbuda até lha aninhar debaixo do braço. Um pouco por todos os lados, acomodavam-se pombos, nas mãos abertas, na concavidade da cintura, atrás das espáduas caídas. Estava muito rosada, a dormir, acariciada pela respiração forte da vaca, sufocada debaixo do peso do grande galo agachado um pouco abaixo da garganta, com as asas frementes e a crista afogueada, e cujo ventre fulvo a abrasava como uma chama acariciadora através das saias.

Lá fora, a chuva caía mais fina e uma réstia de sol escapava-se pela nesga de uma nuvem e encharcava de ouro a poalha de água suspensa no ar, Albine, que se conservava imóvel, via dormir Désirée, a formosa rapariga que satisfazia a carne rebolando-se na palha. Desejaria estar também assim cansada e desfalecida, dormente de gozo por algumas palhinhas lhe terem feito cócegas na nuca. Invejava aqueles braços fortes, aqueles seios rijos, aquela vida toda carnal rodeada do calor fecundante de um rebanho, aquele desabrochamento puramente animal que fazia da criança apetitosa a irmã tranquila da -grande vaca branca e ruça. Sonhava ser amada pelo galo fulvo e amar ela própria como as árvores crescem, naturalmente, sem vergonha, abrindo cada uma das suas veias ao jacto da seiva. Era a terra que saciava Désirée, quando esta se espojava de costas. Entretanto, a chuva cessara por completo e os três gatos da casa, um atrás do outro, esgueiraram-se para o pátio, ao longo do muro, com infinitas precauções para não se molharem. Espreitaram para dentro do estábulo, foram direitos à adormecida, ronronando, e deitaram-se encostados a ela, com as patas em cima de um pouco da sua pele. Moumou, o gatarrão preto, que se lhe agachara junto de uma das faces, pôs-se a lamber-lhe suavemente o queixo. - E Serge? - murmurou Albine, maquinalmente. Onde estava o obstáculo? Quem a impedia de se satisfazer assim, feliz, em plena natureza? Porque não amava, porque não era amada, à luz do Sol, livremente, como as árvores crescem? Não sabia, sentia-se abandonada para sempre, para sempre espezinhada. E tinha uma obstinação feroz, uma necessidade de retomar o seu bem nos braços e de o esconder, de o fruir ainda. Então, levantou-se. A porta da sacristia acabava -de se abrir novamente; ouviu-se um leve bater de -mãos, seguido da algazarra de um bando de tamancas que matraqueavam -as lajes. o catequismo terminara. Deixou suavemente o estábulo, em que esperara durante uma hora, no meio do bafo quente da capoeira. Quando deslizava ao longo do corredor da sacristia, avistou as costas de Teuse, que entrava na cozinha sem virar a cabeça. Certa de não ser vista, empurrou a porta e acompanhou-a com a mão, para que se abrisse sem ruído. Estava na igreja.

A PRINCÍPIO não viu ninguém. Lá fora a chuva caía de novo, uma chuva miudinha, persistente. A igreja pareceu-lhe toda cinzenta. Passou por detrás do altar-mor e avançou até ao púlpito. A meio da nave só se viam bancos deixados em desordem pelos garotos da catequese. O pêndulo do relógio batia surdamente no meio de todo aquele vácuo. Então, desceu para ir bater no confessionário, que divisou do outro lado. Mas ao passar -diante da capela dos Mortos encontrou o padre Mouret prosternado aos pés do grande Cristo ensanguentado. Estava imóvel e assim continuou, talvez por supor que o ruído provinha dos passos de Teuse, que andasse a arrumar os bancos atrás dele. Albine pôs-lhe a mão no ombro.

- Serge - disse -, venho buscar-te.

O padre levantou a cabeça, muito pálido, sobressaltado. Permaneceu de joelhos, persignou-se e os seus lábios continuaram a balbuciar a prece.

- Esperei-te- prosseguiu ela. - Todas as manhãs, todas as tardes, ficava a ver se chegavas. Contei os -dias e depois deixei de os contar. Passaram-se semanas... Então, quando me convenci de que não irias, resolvi vir eu. Disse para comigo: vou buscá-lo...” Dá-me as tuas mãos e vem-e estendia-lhe as mãos, como se quisesse ajudá-lo a levantar-se.

Persignou-se de novo e continuou a rezar, de olhos postos nela. Acalmara o primeiro impulso da carne. Hauria forças sobre-humanas na graça que o inundava desde manhã, como um banho celeste.

- O seu lugar não é aqui - disse, gravemente. – Retire-se... Está a agravar os seus sofrimentos.

- Já não sofro - redarguiu ela, sorrindo. - Estou melhor, sinto-me curada desde que te vejo... Escuta: fazia-me mais doente do que estava para que te viessem buscar. Confesso agora que foi um expediente, como a promessa de partir, de deixar a região, depois de te ver. Como decerto calculas, não a poderia cumprir. Que ideia! Mais depressa >te levaria às costas... Os outros ignoram-no, mas tu sabes ’bem ” já não poderia viver longe de ti.

Readquiria o seu ar feliz, aproximava-se com as suas carícias de criança expedita, sem ver a rigidez fria do padre. Impaciente, bateu alegremente as mãos e gritou:

- Vamos, decide-te, Serge! Estás a fazer-me perder muito tempo aqui! Não é preciso pensar tanto; levo-te comigo e pronto! É simples... Se não quiseres ser visto, iremos pelo Mascle. O caminho não é cómodo, mas vim sozinha por lá e agora, os dois, ajudar-nos-emos um ao outro... Conheces o caminho, não é verdade? Atravessamos o cemitério, descemos até à beira da torrente e depois só temos de a seguir até ao jardim. Estaremos lá como em nossa casa, sem ninguém nos incomodar! Apenas encontraremos silvados e bonitos seixos arredondados, pois o leito do rio está quase seco. À vinda, pensava: “Logo, quando voltar comigo, caminharemos devagar, abraçados...” Vamos, despacha-te. Estou à tua espera, Serge.

O padre parecia já não a ouvir. Entregara-se de novo às suas orações e pedia ao Céu a coragem dos santos. Antes de travar a luta suprema, armava-se com as espadas flamejantes da fé. Por instantes, receara fraquejar; necessitara de um heroísmo de mártir para permanecer com os joelhos .pregados à laje enquanto cada palavra de Albine o chamava. O seu coração voava para ela, todo o seu sangue se alvoroçava e o lançava nos seus braços, com o irresistível desejo de lhe beijar os cabelos. Graças apenas ao aroma do seu hálito, Albine despertara-lhe e fizera-lhe recordar num segundo a sua ternura, o enorme jardim, os passeios debaixo das árvores, a alegria da sua união. Mas a graça inundou-o com o seu orvalho cada vez mais abundante, experimentou apenas a tortura de um momento, ao sentir o sangue fugir-lhe das veias, e nada humano ificou depois em si. Voltara a ser tão-só uma coisa de Deus.

Albine teve de lhe tocar de novo no ombro, cada vez mais inquieta e irritada.

- Porque não respondes? Não podes recusar, tens de me seguir... Lembra-te de que morreria se recusasses. Mas não, isso não é possível. Recorda-te: estávamos juntos, nunca nos deveríamos separar, deste-te vinte vezes e dizias-me que te tomasse por completo, que tomasse os teus membros, a tua respiração, a tua vida... Não sonhei, com certeza. Não existe nenhuma parte do teu corpo que não me tenhas dado, um dos teus cabelos de que não seja dona. Tens um sinal no ombro esquerdo; beijei-o, é meu. As tuas mãos pertencem-me; apertei-as durante dias nas minhas. E o teu rosto, os teus lábios, os teus olhos, a tua fronte, tudo isso é meu, de ’tudo isso dispus para as minhas carícias... Ouves, Serge?

Erguia-se diante dele, soberana, de braços estendidos. E repetiu mais alto:

- Ouves, Serge? És meu!

Então, lentamente, o padre Mouret ergueu-se, encostou-se ao altar e disse:

- Não, engana-se, pertenço a Deus.

Estava cheio de serenidade. O seu rosto glabro assemelhava-se ao de um santo de pedra a quem não perturba nenhum calor vindo das entranhas. A sotaina caía-lhe em pregas direitas, semelhantes a um sudário negro, sem nada deixar adivinhar do seu corpo. Albine recuou à vista do fantasma sombrio do seu amor. Não lhe encontrava já a barba nem a cabeleira soltas. Agora, no meio dos cabelos cortados, notava-lhe uma mancha lívida, a tonsura, que a assustava como uma doença desconhecida, uma chaga maligna nascida ali para destruir a memória dos dias felizes. Não lhe reconhecia as mãos, outrora tépidas de carícias, nem a garganta flexível, da qual saíam gargalhadas sonoras, nem, os pés nervosos, cujo galope o transportava ao fundo da vegetação. Era aquele o rapaz de músculos fortes, colarinho aberto que deixava ver a penugem do peito, pele dilatada pelo sol e rins vibrantes de vida, em cujos braços vivera uma estação? Naquela altura parecia descarnado, os pêlos tinham-lhe caído vergonhosamente e toda a sua virilidade murchava debaixo daquele vestido de mulher que o deixava sem sexo.

- Oh - murmurou, causas-me medo!... Vestiste luto por me julgares morta? Despe essa vestimenta preta e veste uma blusa. Quero que arregaces as mangas para pescarmos mais lagostins-do-rio... Os teus braços eram tão louros como os meus.

Levara a mão à sotaina, como se lha quisesse arrancar. Ele repeliu-a com um gesto, sem lhe tocar. Fitava-a, firmava-se contra a tentação, sem a perder de vista. Parecia-lhe mais crescida. Já não era a garota dos ramos silvestres que lançava aos ventos as suas gargalhadas ladinas, nem a apaixonada de saias brancas que dobrava a cintura flexível e afrouxava o passo enternecido atrás das sebes. Agora, alourava-lhe o lábio uma penugem de fruto, as ancas arredondavam-se-lhe livremente e o peito desabrochava-lhe como uma flor obscena. Tornara-se mulher, com o seu rosto comPrido, que lhe dava um grande ar de fecundidade. A vida dormia nos seus flancos dilatados, e nas suas faces, à flor da Pele, notava-se-lhe a adorável maturidade da carne. ComPletamente envolvido pelo seu aroma apaixonado de mulher feita, o padre sentia o prazer amargo de arrostar a carícia da sua boca vermelha, o riso dos seus olhos, o apelo do seu olhar, a embriaguez que fluía dela ao menor movimento, a temeridade a ponto de procurar nela os sítios que loucamente outrora ignorava, os cantos dos olhos, os cantos dos lábios, as fontes estreitas, macias como cetim, e a nuca, sedosa como veludo. Nunca, mesmo no colo de Albine, saboreava as venturas que experimentava naquele momento em se martirizar, olhando cara a cara aquela paixão que recusava. Depois, receou ceder ali a qualquer nova armadilha da carne, baixou os olhos e disse com doçura:

- Não posso ouvi-la aqui. Saiamos, se tem de aumentar os nossos mútuos pesares... A nossa presença neste lugar é um escândalo. Estamos em casa de Deus

- Quem é esse Deus? -gritou Albine, transtornada, voltando a ser a rapariga criada em plena natureza. - Não conheço o teu Deus, nem o quero conhecer, se te rouba a mim, que nunca lhe fiz mal. O meu tio Jeanbernat tem razão, pelo que vejo, para dizer que o teu Deus é uma invenção maldosa, uma maneira de aterrorizar as pessoas e de as fazer chorar... Mentes, já me não amas e o teu Deus não existe.

- Está em Sua casa - insistiu o padre Mouret, com energia. - Blasfema. De um sopro. Ele poderia reduzi-la a pó.

Albine riu com arrogância, levantou os braços e desafiou o Céu.

- Então - disse - preferes o ’teu Deus a mim? Julga-lo mais forte do que eu, imaginas que te amará mais do que eu... Não passas de uma criança! Deixa-te de tolices. Vamos regressar juntos ao jardim e amar-nos, e sermos felizes e livres. Isto é que é a vida.

Desta vez, conseguira agarrá-lo pela cintura e arrastava-o.

Mas ele desprendeu-se, todo trémulo, daquele abraço, voltou a encostar-se ao altar e, distraído, tratou-a por tu, como antigamente.

- Vai-te embora - balbuciou. - Se ainda me tens amor, vai-te embora Oh, Senhor, perdoai-lhe e perdoai-me macularmos a Vossa casa! Se transpusesse a porta atrás dela, talvez a seguisse; mas aqui, em Vossa casa, sou forte. Permiti que fique e Vos defenda.

Albine permaneceu um instante silenciosa e depois disse, com voz calma:

- Está bem, fiquemos aqui... Quero falar contigo. Não podes ser mau e hás-de compreender-me. Não me deixarás partir sozinha... Não, não negues. Não te tocarei mais, visto isso te fazer mal. Como vês, estou muito calma. Vamos conversar tranquilamente, como quando nos perdíamos e não procurávamos o caminho para conversarmos durante mais tempo.

Sorriu e continuou:

- Ignoro tudo. O tio Jeanbernat proibia-me de vir à igreja e dizia-me: “Estúpida, tens um jardim para que queres ir meter-te num pardieiro onde se abafa?...” Cresci contente. Olhava os ninhos sem tocar nos ovos e não colhia as flores com receio de fazer sangrar as plantas. Bem sabes que nunca apanhei um insecto, com medo de o magoar... Então, por que motivo se encolerizaria Deus contra mim?

- É necessário conhecê-Lo, rezar-Lhe, prestar-Lhe constantemente as homenagens que Lhe são devidas - respondeu o padre.

- Contentar-te-ias com isso? - inquiriu ela. – Perdoar-me-ias, continuarias a amar-me?... Pois bem, quero tudo o que quiseres! Fala-me de Deus e acreditarei nele, adorá-Lo-ei. Cada uma das tuas palavras será uma verdade que escutarei de joelhos. Alguma vez tive um pensamento diferente do teu?... Reataremos os nossos longos passeios, ensinar-me-ás, farás ’de mim o que te aprouver. Oh, diz que sim, suplico-te!

O padre mostrou a sotaina.

- Não posso - ’disse simplesmente. - Sou padre.

-Padre!-repetiu ela, deixando de sorrir. - Sim, o tio afirma que os padres não têm mulher, nem irmã, nem mãe, e, pelos vistos, é verdade... Então, porque foste ’ter comigo? Porque me tomaste como tua irmã e como tua mulher? Mentis-te?

Ele levantou o rosto pálido, perlado de um suor de angústia.

- Pequei - murmurou.

- Quando te vi tão livre - prosseguiu Albine-, julguei que já não eras padre, pensei que tinhas renunciado, que ficarias para sempre no Paradou, para mim, comigo... E agora que queres que faça, se te apoderaste de toda a minha vida?

- O que eu faço - respondeu ele. - Ajoelhar-se, morrer de joelhos, não se erguer sem Deus lhe ter perdoado.

- És então um cobarde? - ’redarguiu ela, ainda, dominada pela cólera, com os lábios arrepanhados de desprezo.

Serge hesitou e guardou silêncio. Apertava-lhe a garganta um sofrimento abominável, mas continuava a ser mais forte do que a dor. Conservava a cabeça ’direita, quase sorria com os cantos da boca a tremerem. Durante um momento, Albine desafiou-o com o seu olhar fixo. Depois, num novo arrebatamento, insistiu:

- Vamos, responde, acusa-me, dize-me que fui eu que te ’tentei! Seria o cúmulo... Anda, ainda consinto que te desculpes. Podes bater-me; preferiria as tuas pancadas a essa ’rigidez de cadáver. Já não tens sangue? Não ouves que te chamo cobarde? Sim, és um cobarde. Não me devias amar, visto não poderes ser um homem... É esse vestido negro que te constrange? Arranca-o. Quando estiveres nu, talvez te lembres.

Lentamente, o padre repetiu as mesmas palavras:

- Pequei, não tenho desculpa, Penitencio-me do meu erro sem esperar perdão. Se arrancasse a minha batina, arrancaria a minha carne, pois dei-me completamente a Deus, com a minha alma, com os meus ossos. Sou padre.

- E eu?! E eu?! - gritou Albine, pela última vez.

Ele não baixou a cabeça.

- Que os seus sofrimentos me sejam contados como outros tantos crimes! Que seja eternamente punido pelo abandono em que a devo deixar! É justo... Apesar de toda a minha indignidade, rezo por si todas as noites.

Ela encolheu os ombros, com indescritível desânimo. A sua cólera desaparecia; estava quase dominada pela compaixão

- Estás louco - murmurou. - Guarda as tuas preces. É a ti que quero... Nunca me compreenderás. Tinha tantas coisas para te dizer! E tu estás aí, a irritares-me constantemente com as tuas histórias da carochinha... Vamos, sejamos ambos razoáveis, esperemos até estarmos mais calmos. Depois conversaremos. . Não é possível que tenha de me ir embora assim. Não te posso deixar aqui, pois é aqui que estás como morto e tens a pele tão fria que nem me atrevo a tocar-te... Não falemos mais; esperemos.

Calou-se e deu alguns passos. Examinava a igrejinha. A chuva continuava a cobrir os vidros de uma capa de cinza fina e uma luz fria, saturada de humidade, parecia encharcar as paredes De fora vinha apenas o barulho monótono do aguaceiro. Os pardais deviam estar abrigados debaixo das telhas e a sorveira erguia ramos vagos, submersos na poalha de água. Deram cinco horas, arrancadas uma a uma do peito fendido do relógio, e depois o silêncio aumentou, tornou-se mais surdo, mais cego, mais desesperado. As pinturas, mal secas, davam ao altarmor e as madeiras um ar lavado triste, de capela de convento onde nunca entrasse o sol. Uma agonia lamentável enchia a nave, pintalgada do sangue que escorria dos membros do grande Cristo, e ao longo das paredes as catorze imagens da Paixão exibiam o seu drama atroz, lambuzado de amarelo e vermelho, transpirando horror Ali, a vida agonizava, no arrepio da morte, por cima daqueles altares semelhantes a túmulos, no meio daquela nudez de carneiro fúnebre. Tudo falava de morticínio, de noite, de terror, de esmagamento, de nada. Um derradeiro aroma de incenso pairava no ar como o último alento comovido de alguma defunta ciosamente guardada debaixo das lajes

- Ah, como era bom estar ao sol! - suspirou Albine, por fim. – Lembras-te?... Uma manhã brilhava à esquerda do jardim e nós caminhávamos ao longo de uma sebe de grandes roseiras Recordo-me da cor da erva: era quase azul, com tonalidades verdes. Quando chegámos ao fim da sebe, voltámos pelo mesmo caminho, de tal modo o sol tinha ali um perfume suave. E foi todo o nosso passeio, naquela manhã, vinte passos para diante, vinte passos para trás, um recanto de felicidade do qual não querias sair. As abelhas zumbiam, um melharuco não nos deixou mais, saltando de ramo em ramo, e à nossa volta cortejos de animais iam à sua vida. E tu murmuravas: “Como a vida é bela!” A vida eram as ervas, as árvores, as águas, o céu, o sol que nos tornava completamente louros e nos cobria os cabelos de ouro. Devaneou ainda durante um momento e prosseguiu:

- A vida era o Paradou. Como nos parecia grande! Nunca seríamos capazes de lhe encontrar o fim. A folhagem desdobrava-se até ao horizonte, livremente, com o ruído das vagas. E tanto azul por cima das nossas cabeças! Poderíamos crescer, voar, correr como as nuvens, sem encontrar mais obstáculos do que elas. O ar era nosso.

Deteve-se e indicou com um gesto as paredes opressivas da igreja.

- Aqui, estás numa cova, não podes estender os braços sem esfolares as mãos nas pedras, e a abóbada oculta-te o céu, rouba-te o ’teu quinhão de sol. É tão pequena que dentro dela os membros ancilosam-se-te, como se estivesses sepultado vivo na terra.

- Não - replicou o padre-, a igreja é grande como o Mundo, pois Deus cabe nela por completo.

Com um novo gesto, Albine designou as cruzes, os Cristos moribundos, os suplícios da Paixão.

- Vives no meio da morte. As ervas, as árvores, as águas, o sol, o céu, tudo agoniza à tua volta.

- Não, tudo revive, tudo se depura, tudo regressa à fonte da luz.

Endireitara-se, com uma chama nos olhos, e afastou-se do altar, dali em diante invencível, abrasado por tal fé que desprezava os perigos da tentação. Pegou na mão de Albine, tratou-a por tu, como uma irmã e levou-a diante das imagens dolorosas da Via-Sacra.

- Vê - disse-lhe. - Aqui tens o que o meu Deus sofreu... Jesus a ser azorragado, com as espáduas nuas, a carne retalhada, o sangue a escorrer-lhe até aos rins... Jesus a ser coroado de espinhos: gotas rubras rolam-Lhe da fronte perfurada e um grande golpe fende-Lhe a têmpora... Jesus a ser insultado pelos soldados: os Seus algozes puseram-Lhe aos ombros, por escárnio, um pedaço de púrpura, e cobrem-lhe o rosto de escarros, esbofeteiam-no e enterram-Lhe a golpes de cana a coroa na fronte...

Albine virava a cabeça para não ver as imagens grosseiramente coloridas, onde cutiladas de laca cortavam as carnes cor de ocre de Jesus. O manto de púrpura que Lhe cobria os ombros parecia uma tira da Sua pele dilacerada.

- Para que serve sofrer, para que serve morrer? - redarguiu ela. -Oh, Serge, se te lembrasses!... Dizias-me, naquele dia, que estavas fatigado, e eu bem sabia que mentias, pois o tempo estava fresco e nós não tínhamos andado mais de um quarto de hora. Mas tu querias sentar-te para me tomares nos braços. Bem sabes que havia ao fundo do pomar uma cerejeira à beira de um regato, diante da qual não podias passar sem experimentares a necessidade de me beijar as mãos, de mas cobrires de beijinhos que me subiam ao longo dos ombros até aos lábios. Como a época das cerejas já passara, devoravas-me os lábios... As flores que murchavam faziam-nos chorar. Um dia, encontraste uma toutinegra morta na erva, empalideceste muito e apertaste-me ao peito, como se quisesses proibir a terra de se apoderar de mim.

O padre arrastava-a para diante das outras estações.

- Cala-te! - gritou. - Vê mais, ouve mais. Tens de te prosternar de dor e piedade... Jesus sucumbe sob o peso da cruz. A subida do Calvário é difícil. Cai de joelhos. Nem sequer limpa o suor do rosto; levanta-Se e continua a caminhar... Jesus sucumbe de novo sob o peso da cruz, cambaleia a cada passo. Desta vez, cai de flanco tão violentamente que fica um momento sem fôlego. As Suas mãos esfoladas largam a cruz, os Seus pés magoados deixam atrás dele pegadas ensanguentadas. Esmaga-O uma fadiga abominável, pois leva às costas os pecados do mundo...

Albine olhou Jesus, de túnica azul, estendido debaixo da cruz desmedida, cuja cor negra quebrava e maculava o ouro da Sua auréola. Depois, com o olhar perdido, murmurou:

- Oh, as veredas das pradarias!... Já não tens memória, Serge? Já não conheces os caminhos da erva tenra que atravessam os prados por entre grandes tapetes de verdura?... Na tarde de que te falo, saímos só por uma hora, mas depois caminhámos sempre em frente, andámos tanto que ainda não tínhamos parado quando as estrelas brilharam no céu. Era tudo tão suave, tão macio como a seda aquele tapete sem fim! Os nossos pés não encontravam um grão de areia. Dir-se-ia um mar verde cuja água musgosa nos embalasse. E nós sabíamos bem aonde nos levavam aqueles carreiros tão fofos que não iam dar a parte alguma: levavam-nos ao nosso amor, à alegria de viver com as mãos a rodearem-nos a cintura, à certeza de um dia de felicidade... Voltámos para casa sem fadiga. Estavas mais leve do que à partida, pois tinhas-me dado as tuas carícias e eu não pudera restitui-las todas.

Com as mãos trémulas de angústia, o padre Mouret indicava as últimas imagens e balbuciava:

- Jesus está pregado na cruz. A golpes de martelo, os cravos traspassam-Lhe as mãos abertas. Um só cravo basta para Lhe pregar os pés, cujos ossos estalam. Enquanto a Sua carne estremece, sorri, com os olhos <no céu... Jesus está entre dois ladrões. O peso do corpo abre-Lhe horrivelmente as feridas. Da’Sua fronte, dos Seus membros, ressuma um suor de sangue. Os dois ladrões injuriam - O, os que passam escarnecem-no, os soldados dividem entre si a Sua túnica. As trevas caem, o Sol oculta-se... Jesus morre na cruz: solta um grande grito e entrega o espírito. Que morte terrível! O véu do Templo rasgou-se ao meio, de alto a baixo, a terra tremeu, as pedras fenderam-se, as sepulturas abriram-se...

Caíra de joelhos, com a voz embargada pelos soluços e os olhos postos nas três cruzes do Calvário, onde se contorciam corpos macilentos de supliciados que o desenho grosseiro descarnava medonhamente. Albine colocou-se diante das imagens para que ele não continuasse a vê-las e prosseguiu, por seu turno:

- Num fim de tarde, durante um longo crepúsculo, reclinara a cabeça nos teus joelhos... Estávamos na floresta, ao fim daquela grande alameda de castanheiros que o sol poente iluminava com um último raio. Ah, que despedida acariciadora! O sol atardava-se-nos aos pés e dizia-nos até à vista com um sorriso amigo. O céu empalidecia lentamente. Eu contava-te, rindo, que ele estava a despir o seu vestido azul e a envergar o seu vestido preto, salpicado de flores douradas, para ir a uma festa nocturna. Tu espreitavas a sombra, impaciente por ficares só, sem o sol a importunar-nos. E o que se aproximava não era a noite, mas sim uma doçura discreta, uma ternura velada, uma ponta de mistério semelhante a um daqueles atalhos mais sombrios, debaixo da folhagem, nos quais nos embrenhávamos para nos escondermos um momento, com a certeza de encontrarmos, na outra extremidade, a alegria da plenitude da luz. Naquela tarde o crepúsculo trazia, na sua palidez serena, a promessa de uma esplêndida madrugada... Então, fingi adormecer, ao ver que o dia não se ia embora tão depressa como desejavas. Posso agora dizer->te que não dormia enquanto me beijavas os olhos. Saboreava os teus beijos, continha-me para não me rir e tu bebias a minha respiração regular. Depois, quando escureceu por completo, afigurou-se-nos tudo uma prolongada ilusão. As árvores, vê tu, dormiam tanto como eu... e à noite - lembras-te? - as flores tinham um aroma mais forte.

E como ele permanecesse de joelhos, com o rosto inundado de lágrimas, ela agarrou-o pelos .pulsos, ergueu-o e continuou, com ardor:

- Oh, se soubesses, pedir-me-ias que te levasse, rodear-me-ias o pescoço com os braços para que não pudesse ir-me embora sem ti!... Ontem, quis tornar a ver o jardim. Achei-o maior, mais profundo, mais insondável. Descobri nele aromas novos, tão suaves que me fizeram chorar. Encontrei nas alamedas chuvas de sol que me encharcaram de calafrios de desejo. As rosas falaram-me de ti e os piscos admiraram-se de me verem sozinha. Todo o jardim suspirava... Oh, se visses, nunca as ervas formaram leitos mais macios! Marquei com uma flor o recanto escondido aonde te quero levar. Fica ao fundo de uma moita, numa gruta de verdura do tamanho de uma grande cama. Dali, ouve-se o jardim viver, com as suas árvores, as suas águas e o seu céu. A própria respiração da terra nos embalará .. Oh, vem! Amar-nos-emos no amor de tudo.

Mas ele repeliu-a. Voltara para diante da capela dos Mortos, colocara-se defronte do grande Cristo de papelão pintado, do tamanho de uma criança de dez anos, que agonizava com um realismo arrepiante. Os cravos imitavam o ferro e as chagas pareciam gigantes, atrozmente dilaceradas.

- Jesus que morrestes por nós - exclamou - dizei-lhe que não somos nada! Dizei-lhe que somos pó, imundície, danação! Oh, olhai e permiti que cubra a cabeça com um cilício, que descanse a fronte a Vossos pés e fique aí, imóvel, até a morte me apodrecer! A Terra deixará de existir, o Sol apagar-se-á e não verei, não sentirei nem ouvirei mais nada. Assim, coisa alguma deste mundo miserável virá desviar-me a alma da Vossa adoração.

Exaltava-se cada vez mais e dirigiu-se ao encontro de Albine com as mãos levantadas.

- Tinhas razão: é a morte que está aqui, é a morte que quero, a morte que liberta, que salva de todas as podridões... Escuta! Nego a vida, recuso-a, cuspo nela. As tuas flores fedem, o teu sol cega, a tua erva transmite a lepra a quem nela se deita, o teu jardim é um carneiro onde se decompõem os cadáveres das coisas. A terra ressuma abominação. Mentes quando falas de amor, de luz, de vida bem -aventurada ao fundo do teu palácio de verdura. Nele só há trevas. As tuas árvores destilam um veneno que transforma os homens em feras, os teus bosques estão enegrecidos pelo veneno das víboras, as tuas ribeiras transportam a peste nas suas águas azuis. Se arrancasse à tua natureza a sua saia de sol e a sua cintura de folhagem, vê-la-ias hedionda como uma megera esquelética completamente corroída de vícios... E ainda que falasses verdade, ainda que tivesses as mãos repletas de gozos, ainda que me levasses para um leito de rosas, a fim de nele me proporcionares a visão do Paraíso, ainda assim defender-me-ia desesperadamente dos teus braços. É a guerra entre nós, secular, implacável. Bem vês como a igreja é pequenina; é pobre, é feia, tem um confessionário e um púlpito de pinho, um baptistério de gesso e altares feitos de quatro tábuas que eu próprio repintei. Que importa! É maior do que o teu jardim, do que o vale, do que toda a Terra. É uma fortaleza temível que nada derrubará. Os ventos e o Sol, as florestas e os mares, tudo o que vive, enfim, em vão tentariam tomá-la de assalto; permaneceria de pé sem sequer experimentar o menor abalo. Sim, mesmo que as silvas cresçam e ataquem as paredes com os seus braços espinhosos; mesmo que os insectos pululem e saiam das fendas do solo para lhe virem corroer as paredes, a. igreja, por mais arrumada que esteja, nunca será arrastada nesse trasbordamento da vida! É a morte inexpugnável... E queres saber que acontecerá um dia? A igrejinha tornar-se-á tão colossal, lançará tal sombra, que toda a natureza fenecerá. Ah, a morte, a morte de tudo, com o céu hiante para receber as nossas almas, por cima das ruínas abomináveis do mundo!

Gritava, empurrava violentamente Albine para a porta. Ela, muito pálida, recuava passo a passo. Quando ele se calou, com a voz estrangulada, disse gravemente:

- Então, está tudo acabado, expulsas-me?... E, contudo, sou tua mulher, foste tu que me tornaste tua mulher. Ora, depois de ter permitido isso, Deus não me pode castigar a tal ponto.

Já no limiar, acrescentou:

- Escuta: todos os dias, ao pôr do Sol, irei ao fundo do jardim, ao sítio onde o muro está desmoronado, e esperarei lá por ti...

Afastou-se e a porta da sacristia fechou-se com um suspiro abafado.

A IGREJA estava silenciosa. Somente a chuva, que redobrava de intensidade, ecoava na nave com vibrações de órgão. No meio daquela calma brusca, a cólera do padre desapareceu e, em vez dela, sentiu invadi-lo um grande enternecimento. Foi com o rosto banhado de lágrimas e os ombros sacudidos pelos soluços que voltou a lançar-se de joelhos diante do grande Cristo e que os seus lábios deixaram escapar palavras de ardente reconhecimento.

- Oh, obrigado, meu Deus, pelo socorro que Vos dignastes enviar-me! Sem a Vossa graça, teria escutado a voz da minha carne e reincidido miseravelmente no meu pecado. A Vossa graça cingiu-me os rins como um cinto de combate; a Vossa graça foi a minha armadura, a minha coragem, o sustentáculo íntimo que me manteve de pé, sem um desfalecimento. Oh, meu Deus, Vós estáveis em mim, fostes Vós que falastes por mim, pois nas palavras que disse não reconheci a minha cobardia de criatura e senti-me com forças para cortar todos os laços do meu coração! Aqui tendes agora este mesmo coração, completamente ensanguentado, mas que já não é de ninguém, é apenas Vosso. Por Vós, arranquei-o ao mundo. Não julgueis, porém, meu Deus, que pretendo tirar alguma vaidade desta vitória; sei que nada sou sem Vós. Por isso rogo a Vossos pés a minha “umildade.

Estava sucumbido, semi-sentado no degrau do altar, incapaz de continuar a falar, de encontrar novas palavras, e a respiração saía-lhe dos lábios entreabertos como uma nuvenzinha de incenso. A abundância da graça inundava-o de êxtase inefável. Curvado sobre si mesmo, procurava Jesus no (fundo do seu ser, no santuário de amor que preparava a cada minuto para O receber dignamente. E Jesus estava presente, sentia-O ali devido à doçura extraordinária que o inundava.

Então, travou com Jesus um dos seus diálogos íntimos durante os quais se sentia arrebatado da Terra e conversava frente a frente com o seu Deus, balbuciando os versículos do cântico: “O meu bem-amado é meu e eu sou dele; repousa entre os lírios até nascer a aurora e as sombras declinarem.” Meditava nas palavras da Imitação: “É uma grande arte saber conversar com Jesus e uma grande virtude saber retê-Lo junto de nós.” -Depois, numa familiaridade adorável, Jesus descia até ele, entretinha-o durante horas com as Suas necessidades, as Suas venturas e as Suas esperanças. Dois amigos que, após uma separação, se reencontram e detêm à beira de um rio solitário não se entregam a confidências mais enternecidas. Porque Jesus, naquelas horas de intimidade divina dignava-Se ser seu amigo, o melhor, o mais fiel, o que nunca o traía, o que lhe dava em troca de um pouco de afeição todos os tesouros da vida eterna. Daquela vez, sobretudo, o padre quis possuí-lo por mais tempo. Por isso, quando soaram as seis horas na igreja emudecida ainda estava a escutá-Lo no meio do silêncio das criaturas.

Confissão de todo o ser, conversa franca, sem acanhamentos de linguagem, efusão natural de um coração que levantava voo antes do próprio pensamento. O padre Mouret dizia tudo a Jesus como a um Deus que tivesse penetrado na intimidade da sua ternura e tudo pudesse ouvir. Confessava que ainda amava Albine e admirava-se de a ter podido maltratar e expulsar sem que as entranhas se lhe revoltassem. Isto maravilhava-o e levava-o a sorrir serenamente, como se estivesse perante um acto miraculosamente forte praticado por outrem. E Jesus respondia-lhe que isso não o devia admirar, que os maiores santos eram com frequência armas inconscientes nas mãos de Deus. Então, o padre exprimia uma dúvida: não teria havido menos merecimento da sua parte pelo facto de se haver refugiado junto do altar e até na Paixão do seu Senhor? Não seria ainda fraca a sua coragem, visto não ousar combater sozinho? Mas Jesus mostrava-Se tolerante, explicava-lhe que a fraqueza do homem era a constante preocupação de Deus e dizia-lhe preferir as almas sofredoras, junto das quais se sentava como um amigo à cabeceira de um amigo. Seria crime amar Albine? Não, se esse amor estava para além da carne, se acrescentava uma esperança ao desejo da outra vida. Nesse caso, como a devia amar? Sem uma palavra, sem dar um passo ao encontro dela, deixando que aquela ternura tão pura se evolasse como um bom aroma agradável ao Céu? Neste passo, Jesus ria levemente, com benevolência, aproximava-Se, incitava-o a entrar em confidências, e pouco a pouco o padre atrevia-se a pormenorizar a beleza de Albine Tinha cabelos louros, como os anjos, pele muito branca e olhos grandes, suaves, como as santas aureoladas. Jesus calava-Se, mas ria sempre. E como estava desenvolvida! Parecia uma rainha, agora, com a cintura redonda e os ombros soberbos. Oh, toma-la pela cintura, ainda que apenas por um segundo, e senti-la inclinar os ombros para trás, vergar-se sob a pressão do abraço!... Então, o riso de Jesus empalidecia, morria como um raio de astro à beira do horizonte. Agora, o padre Mouret falava sozinho. Na verdade, mostrara-se demasiado duro. Porque expulsara Albine sem uma palavra de ternura se o Céu lhe permitira amá-la?

- Amo-a, amo-a! -clamou muito alto, em voz desvairada, que encheu a igreja.

Ainda a via ali. Estendia-lhe os braços, tão desejável que por ela se sentia capaz de quebrar todos os votos. E ele lançava-se-lhe ao pescoço, sem respeito pela igreja, abraçava-a e possuía-a sob uma chuva de beijos. Ajoelhava-se diante de Albine, implorava-lhe misericórdia, pedia-lhe perdão das suas brutalidades e explicava-lhe que a certas horas havia em si uma voz que não era a sua. Maltrataram alguma vez? Se assim acontecera, fora a voz estranha que falara em seu lugar, e não ele, que jamais teria, sem um calafrio, tocado num só dos seus cabelos. Contudo, expulsaram e a igreja ficara completamente vazia! Para onde devia correr ao seu encontro, a fim de se fazer perdoar e de lhe enxugar as lágrimas com as suas carícias? A chuva caía com mais força, os caminhos estavam convertidos em charcos lamacentos. Imaginava-a fustigada pelo aguaceiro, a cambalear ao longo dos valados, com as saias encharcadas, coladas à [pele. Não, não, não fora ele, fora outro, a voz invejosa que tivera a crueldade de querer a morte do seu amor.

- Oh, Jesus, sede bom e restituí-ma! - exclamou mais desesperadamente.

Mas Jesus já não estava ali... Então, o padre Mouret despertou como que em sobressalto e tornou-se horrivelmente pálido. Compreendia: não soubera prender Jesus, perdera o seu amigo e ficara indefeso contra o mal. Em vez da claridade interior que o iluminara por completo e na qual recebera o seu Deus, só encontrava em si trevas e uma exalação maligna que lhe exasperava a carne. Jesus, ao retirar-Se, privara-o da graça, e ele, tão forte desde manhã devido ao socorro do Céu, sentia-se de repente miserável, abandonado, fraco como uma criança. Que queda atroz, que imensa amargura! Lutara heroicamente, ficara de pé, invencível, implacável, enquanto a tentação estivera ali, viva, com a sua cintura redonda, os seus ombros soberbos e o seu perfume de mulher apaixonada, para depois sucumbir vergonhosamente, suspirar por um desejo abominável, logo que a tentação se afastara deixando apenas atrás de si um adejo de saia, um perfume evolado de uma nuca loura! Agora, trazida somente pelas recordações, regressava todo-poderosa e invadia a igreja.

- Jesus! Jesus! - gritou o padre pela última vez. - Voltai, reentrai em mim, continuai a falar-me!

Mas Jesus permanecia surdo. Por um instante, o padre Mouret implorou ao Céu que o socorresse, com os braços desesperadamente erguidos, e os seus ombros pareceram estalar devido ao esforço extraordinário com que formulava as suas súplicas. Mas em breve as mãos lhe caíram ao longo do corpo, desalentadas. Havia no Céu um daqueles silêncios sem esperança que os devotos conhecem. Então, sentou-se de novo no degrau do altar, esmagado, com o rosto terroso, e apertou os flancos com os cotovelos, como se pretendesse comprimir a própria carne, esquivar-se à mordedura da tentação.

- Meu Deus, abandonais-me!-murmurou. - Seja feita a Vossa vontade!

E sem pronunciar nem mais uma palavra, ficou arquejante, como um animal acossado, imóvel perante o pavor das mordeduras.

Desde que cometera o seu pecado, tornara-se joguete dos caprichos da graça, que se recusava aos apelos mais ardentes ou aparecia de súbito, encantadora, quando já só esperava possuí-la passados anos. Das primeiras vezes, revoltara-se, falara como amante traído, exigira o regresso imediato dessa consoladora cujo beijo o tornava tão forte. Em seguida, depois de estéreis crises de cólera, compreendera que a submissão o martirizava menos e que só ela o poderia ajudar a suportar o abandono. Então, durante horas, durante dias, humilhava-se, na expectativa de um alívio que não vinha. Por mais que se entregasse nas mãos de Deus, por mais que se aniquilasse diante dele e repetisse até à saciedade as preces mais eficazes, não sentia já a presença de Deus: a sua carne, liberta, sublevava-se de desejo e as preces atropelavam-se-lhe nos lábios e terminavam num balbuciamento ignóbil. Era a agonia lenta da tentação, em que as armas da fé lhe caíam uma a uma das mãos desfalecidas, em que ele não passava de uma coisa inerte nas garras das paixões, em que assistia apavorado à sua própria ignomínia sem ter a coragem de levantar o dedo mínimo para escorraçar o pecado. Tal era a sua vida presentemente. Conhecia todos os assaltos do pecado, não se passava um dia sem que fosse posto à prova. O pecado tomava mil formas, entrava-lhe pelos olhos, pelos ouvidos, agarrava-se-lhe cara a cara à garganta, saltava-lhe traiçoeiramente para os ombros, torturava-o até aos ossos. O seu crime estava sempre presente, representado pela nudez de Albine, brilhante como um sol que iluminasse a vegetação do Paradou. Só deixava de a ver nos raros instantes em que a graça se dignava fechar-lhe as pálpebras com as suas carícias refrescantes. Ocultava o seu mal como se fosse uma enfermidade vergonhosa, encerrava-se em silêncios lívidos que ninguém sabia como levá-lo a quebrar, enchia o presbitério com o seu martírio e com a sua resignação e exasperava Teuse que, por detrás dele, ameaçava o Céu com o punho.

Daquela vez estava só, podia agonizar sem vergonha. O pecado acabava de o abater com tal violência que nem forças tinha para abandonar o degrau do altar em que se deixara cair. Continuava ali, a arquejar, com ’a respiração sibilante, abrasado de angústia, sem derramar uma lágrima. Pensava na sua vida serena de outrora. Ah, que paz, que confiança, aquando da sua chegada aos Artauds! A salvação parecia-lhe então uma bela estrada. Nessa época, ria-se quando se falava da tentação. Vivia no meio do mal sem o conhecer, sem o recear, com a certeza de ser capaz de o vencer. Era um padre perfeito, tão casto, tão ignorante diante de Deus que Deus o levava pela mão como se fosse uma criancinha. Mas agora toda essa puerilidade estava morta. Deus visitava-o de manhã e imediatamente o punha à prova, a tentação tornava-se a sua existência na Terra. Com a idade, com o erro, entrava no combate eterno. Seria isso indício de que Deus o amava mais naquela altura? Todos os grandes santos tinham deixado pedaços do corpo nos espinhos da via dolorosa. Tentava encontrar consolação em tal crença e a cada dilaceração da sua carne, a cada estalido dos seus ossos, prometia a si mesmo recompensas extraordinárias. Nunca o Céu o castigaria o suficiente. Chegava a desprezar a sua antiga serenidade, o seu fáci] fervor, que o levava a ajoelhar-se num êxtase de donzela e a nem sequer sentir o solo magoar-lhe os joelhos. Esforçava-se por encontrar voluptuosidade no fundo do seu sofrimento, para nela se deitar e adormecer, mas, enquanto glorificava Deus, batia os dentes com mais pavor e a voz do seu sangue revoltado gritava-lhe que tudo aquilo era mentira, que a única alegria desejável era entregar-se nos braços de Albine, atrás de uma sebe florida do Paradou.

No entanto, trocara Maria por Jesus, sacrificara o coração a fim de vencer a carne e sonhara revestir de virilidade a sua fé. Maria perturbava-o demasiado com os seus finos bandós, as suas mãos estendidas, o seu sorriso feminino. Não se podia ajoelhar diante dela sem baixar os olhos, receoso de Lhe ver a fímbria da saia. Além disso, acusava-A de ter sido, outrora, demasiado terna para com ele. Conservara-o tanto tempo guardado nas pregas do vestido que ele se deixara escorregar dos Seus braços divinos para os seus braços humanos, sem ao menos se aperceber que mudava de ternura. E recordava-se das brutalidades de frei Archangias, da sua recusa em adorar Maria, do olhar desconfiado com que parecia observá-La. Não esperava levar tão longe a sua rudeza; contentava-se simplesmente com abandoná-La, esconder as Suas imagens, desertar do Seu altar. Mas Ela permanecia no fundo do seu coração como um amor inconfessado, sempre presente. O pecado, por um sacrilégio cujo horror o aniquilava, servia-se dela para o tentar. Quando ainda A invocava, em certas ocasiões de invencível enternecimento, era Albine que lhe aparecia, com o véu branco e a faixa azul atada à cintura, e rosas de ouro nos pés descalços Todas as Virgens - a Virgem de manto real dourado, a Virgem coroada de estrelas, a Virgem visitada pelo anjo da Anunciação e a Virgem tranquila entre um lírio e uma roca - lhe traziam reminiscências de Albine, nos olhos sorridentes, na boca delicada ou na curva suave das faces. A sua falta matara a virgindade de Maria. Então, num esforço supremo, expulsava a mulher da religião e refugiava-se em Jesus, cuja doçura também às vezes o inquietava. Precisava de um Deus cioso, de um Deus implacável, do Deus da Bíblia, rodeado de trovões, que só se mostrasse para castigar o ’mundo apavorado. Já não havia santos, nem anjos, nem mãe de Deus; só havia Deus, um senhor omnipotente que exigia para Si todos os alentos. Sentia a mão desse Deus esmagar-lhe os rins, tê-lo ’à Sua mercê no espaço e no tempo, como um átomo culpado. Não ser nada, ser condenado às penas eternas, sonhar com o Inferno, debater-se estèrilmente contra os monstros da tentação- isso, sim, é que era bom. De Jesus só tomava a cruz. Tinha a loucura da cruz que tantos lábios tem consumido no crucifixo. Tomava a cruz e seguia Jesus. Tornava-a mais pesada, mais opressiva, a sua ’maior ventura consistia em sucumbir debaixo dela, em a levar de joelhos, com a espinha vergada. Via nela a força da alma, a alegria do espírito, a consumação da virtude, a perfeição da santidade. Tudo se encontrava nela, tudo se resumia em morrer nela. Sofrer, morrer, eram palavras que lhe soavam constantemente aos ouvidos, como o fim da sabedoria humana. E quando se amarrava à cruz encontrava a consolação sem limites do amor de Deus. Já não amava Maria com ternura de filho nem paixão de amante; amava por amar, na liberdade do amor. Amava Deus acima de si mesmo, acima de tudo, no fundo de um deslumbramento de luz. Era como que um archote que se consome em claridade. A morte, quando a desejava, era a seus olhos apenas um grande transporte de amor.

Que negligenciava, pois, para ser submetido a tão rudes provas? Enxugou com a mão o suor que lhe escorria das têmporas e lembrou-se de que ainda naquela manhã fizera o seu exame de consciência e não achara em si nenhuma ofensa grave. Não levava uma vida austera e de penitências? Não amava apenas Deus, cegamente? Ah, como O exaltaria se Deus lhe restituísse, enfim a paz e o considerasse bastante castigado pela sua falta! Mas talvez essa falta jamais pudesse ser expiada... E, mau grado seu, tornava a Albine, ao Paradou, às recordações pungentes. Primeiro, procurou desculpas. Uma noite, caiu no pavimento do quarto, fulminado por uma febre cerebral, e durante três semanas ficou dependente daquela crise da sua carne. O sangue lavou-lhe furiosamente as veias até à ponta dos membros, bramiu através dele com um tumulto de torrente transvazada; o seu corpo, desde o crânio à planta dos pés, ficou ’limpo, renovado, de tal modo batido pelo labor da doença que muitas vezes, no seu delírio, julgou ouvir os martelos dos operários repregarem-lhe os ossos. Por fim, uma manhã, acordou como novo. Nascia segunda vez, liberto do que durante vinte e cinco anos a vida depositara sucessivamente em si. As suas devoções de criança, a sua educação de seminarista, a sua fé de jovem padre, tudo desaparecera, submergira-se, fora arrebatado e deixara o seu lugar limpo. Sem dúvida, só o Inferno o preparara assim para o pecado, o desarmara, lhe convertera as entranhas num leito fofo onde o mal podia entrar e dormir. E ele permanecera inconsciente, abandonara-se àquele lento caminhar para o crime. No Paradou, quando abria os olhos, sentia-se mergulhado na infância, sem memória do passado, sem ter já nada do sacerdócio. Os seus órgãos experimentavam um gozo suave, um arrebatamento de surpresa, um recomeço de vida, como se não a reconhecessem e encontrassem enorme alegria em a aprender. Oh, a aprendizagem deliciosa, as descobertas encantadoras, os adoráveis achados! O Paradou proporcionava-lhe indizível felicidade. Ao introduzi-lo lá, o Inferno sabia-o indefeso. Jamais saboreara semelhante volúpia na sua primeira mocidade, nessa primeira mocidade que, quando agora a evocava, lhe aparecia completamente negra, passada longe do sol, estéril, lívida, enferma. Por isso, como saudara o sol, como se maravilhara com a primeira árvore, com a primeira flor, com o mais pequeno insecto entrevisto, com o mais pequeno seixo apanhado! As próprias pedras o encantavam. O horizonte era um prodígio extraordinário e os seus sentidos uma manhã clara que lhe enchia os olhos, um aroma de jasmim aspirado, um canto de cotovia escutado, que lhe causavam emoções tão fortes que os seus membros desfaleciam. Experimentara um grande prazer em ensinar a si próprio até os mais insignificantes estremecimentos da vida. E a manhã em que Albine nascera a seu lado, no meio das rosas?... Ainda ria de êxtase ao acudir-lhe à memória essa recordação. Ela nascera assim como se fosse um astro necessário ao próprio Sol, iluminara tudo, esclarecera tudo, completara-o. Então, recomeçava com ela os seus passeios aos quatro cantos do Paradou. Recordava-se dos cabelinhos que lhe esvoaçavam na nuca quando corria diante dele. Cheirava bem, agitava as saias tépidas cujo roçagar lembrava carícias. Quando o tomava nos braços nus, flexíveis como cobras, esperava vê-la, de tal modo era delgada, enroscar-se-lhe no corpo e adormecer colada à sua pele. Era ela quem caminhava à frente, que o conduzia por um carreiro afastado, onde se atardavam para não chegarem demasiado depressa. Albine dava-lhe a paixão da terra, aprendia a amá-la vendo como se amavam as ervas, com uma ternura durante muito tempo hesitante e de que uma tarde haviam, finalmente, surpreendido a grande alegria, debaixo da árvore gigantesca, à sombra ressumante de seiva. Ai, tinham chegado ao fim do seu caminho. Albine, reclinada, com a cabeça aureolada pelos cabelos revoltos, estendia-lhe os braços e ele estreitava-a a si. Oh, toma-la, possuí-la outra vez, sentir-lhe o ventre (palpitar de fecundidade, gerar a vida, ser Deus!

De súbito, o padre soltou um gemido surdo, endireitou-se como se acabasse de ser mordido por dentes invisíveis e deixou-se cair de novo A tentação abocanhara-o mais uma vez. Em que imundícies se extraviavam as suas recordações? Ignorava, porventura, que Satanás possui todas as manhas, que se aproveita até dos momentos de exame íntimo para insinuar até à alma a sua cabeça de serpente? Não, não, nada de desculpas! A doença não justificava de modo algum o pecado. Era a si que competia guardar-se, reencontrar Deus ao sair da febre, mas pelo contrário sentira prazer em se submeter à sua carne. Que prova dos seus apetites abomináveis! E não podia confessar a sua falta sem deslizar, mau grado seu, na necessidade de a cometer amais uma vez em pensamento. Não conseguia impor silêncio à sua abjecção! Desejaria esvaziar o crânio para deixar de pensar, abrir as veias para que o seu sangue culpado o não atormentasse mais. Por instantes, permaneceu com o rosto oculto nas mãos, trémulo, como se quisesse ocultar os mais pequenos retalhos da pele para que os monstros que rondavam à sua volta não lhe eriçassem a penugem com o seu hálito quente.

Mas apesar de tudo pensava e apesar de tudo o sangue palpitava-lhe no coração. Os olhos, que fechava com os punhos, viam no negrume das trevas as linhas flexíveis do corpo de Albine, traçadas a fogo; viam-lhe o seio nu, deslumbrante como um sol; e quanto mais se esforçava por os enterrar nas órbitas para expulsar semelhante visão, mais ela se tornava luminosa, mais ela se lhe oferecia com requebros de rins e apelos de braços estendidos que arrancavam ao padre estertores de angústia. Abandoná-lo-ia Deus por completo, já não haveria refúgio para si? E, a despeito da tensão da sua vontade, o pecado recomeçava sempre, precisava-se com assustadora nitidez. Tornava a ver os mais insignificantes rebentos de erva à beira das saias de Albine; reencontrava-lhe, presa aos cabelos, uma florzinha de cardo na qual se lembrava de ter picado os lábios, e até os aromas, os açúcares um pouco ácidos das hastes quebradas lhe vinham à memória, tal como os sons longínquos que ainda ouvia, o pio regular de uma ave, um grande silêncio e depois um suspiro a perpassar por cima das árvores. Porque não o fulminava o Céu imediatamente? Sofreria menos. Desfrutava a sua abominação com uma voluptuosidade de condenado e estremecia de raiva ao escutar as palavras pérfidas que pronunciara aos pés de Albine, as quais lhe ecoavam naquele momento aos ouvidos para o acusarem perante Deus. Reconhecera a mulher como sua soberana, entregara-se-lhe como escravo, beijara-lhe os pés, desejara ser a água que ela bebia e o pão que ela comia. Compreendia agora por que motivo não era senhor de si; Deus deixava-o à mulher. Mas ele bater-lhe-ia, partir-lhe-ia os membros para que o largasse, pois a escrava era ela, a carne impura à qual a Igreja deveria ter recusado uma alma. Então, endireitou-se e ergueu os punhos para Albine. Mas os punhos abriram-se-lhe e as mãos deslizaram-lhe ao longo das espáduas nuas da rapariga, numa carícia suave, enquanto a boca, cheia de injúrias, se lhe colava aos cabelos desatados e balbuciava palavras de adoração.

O padre Mouret abriu os olhos e a visão ardente de Albine desapareceu. Sentiu um alívio brusco, inesperado, e conseguiu chorar. Lágrimas lentas refrescaram-lhe as faces e respirou profundamente, sem se atrever ainda a mexer-se, com receio de ser novamente agarrado pela nuca Continuava a ouvir um bramido selvagem atrás de si. Mas depois tornou-se tão agradável deixar de sofrer tanto que se esqueceu de tudo e ficou a saborear aquele inesperado bem-estar. Lá fora, a chuva cessara e o Sol ocultava-se no meio de um grande clarão vermelho que parecia cobrir as janelas de cortinas de cetim cor-de-rosa. Agora, a igreja estava tépida, muito animada por aquele derradeiro bafejo do sol, e o padre agradecia vagamente a Deus as tréguas que Se dignara conceder-lhe. Um grande raio de sol, uma poalha de ouro que atravessava a nave alumiava o fundo da igreja, o relógio, o púlpito, o altar-mor. Seria a graça que lhe voltava por aquele trilho de luz que descia do céu? Interessavam pelos átomos que iam e vinham ao longo do raio com uma rapidez prodigiosa, semelhantes a uma multidão de mensageiros afadigados que trouxessem incessantemente notícias do Sol para a Terra. Mil círios acesos não teriam enchido a igreja de tal esplendor. Atrás do ’altar-mor, pendiam panejamentos dourados; nas banquetas havia cintilações de ourivesaria, os castiçais abriam-se em girândolas de luz, os turíbulos queimavam brasas de pedras preciosas e os vasos sagrados alongavam-se pouco a pouco com irradiações de cometas; e, por todos os lados, caía uma chuva de flores luminosas no meio de rendas adejantes, de colgaduras, de ramos e de grinaldas de rosas, cujos corações, ao abrirem-se, deixavam cair estrelas. Nunca ele aspirara a semelhante riqueza para a sua pobre igreja. Sorria e sonhava reter ali aquelas magnificências, dispunha-as a seu gosto Por si, preferiria ver os cortinados tecidos de ouro presos mais acima; os vasos pareciam-lhe também colocados com demasiada negligência; além disso, apanhava as flores perdidas, atava melhor os ramos e dava às grinaldas uma curva mais suave. Que maravilha ver toda aquela pompa, aquela ostentação! Era o pontífice de uma igreja de ouro. Os bispos, os príncipes, mulheres que arrastavam mantos reais, multidões devotas com a fronte inclinada até tocar no pó, visitavam-na, acampavam no vale, esperavam semanas à porta antes de poderem entrar. Beijavam-lhe os pés, pois os seus pés também eram de ouro e obravam milagres. O ouro subia-lhe até aos joelhos e um coração de ouro pulsava-lhe no peito de ouro, com um som musical tão claro que era ouvido pelas multidões apinhadas lá fora. Então, arrebatava-o um orgulho imenso: era um ídolo.

O raio de sol continuava a subir, o altar-mor chamejava e o padre persuadia-se de que era, sem dúvida nenhuma, a graça que lhe voltava, pois só assim se compreendia que experimentasse semelhante regozijo íntimo. O bramido selvagem, atrás de si, tornava-se carinhoso. Já só sentia na nuca a suavidade de uma pata de veludo, como se um gato o acariciasse.

E continuou entregue ao seu devaneio. Nunca vira as coisas a luz tão deslumbrante. Agora, tudo lhe parecia fácil, de tal modo se julgava forte. Uma vez que Albine o esperava, iria juntar-se-lhe. Era tudo quanto havia de mais natural. De manhã, casara Fortune com Rosalie; portanto, a Igreja não proibia o casamento. Via-os ainda a sorrirem um ao outro, empurrarem-se com o cotovelo debaixo das suas mãos que os abençoavam. Depois, à noite, tinham-lhe mostrado o leito. Cada uma das palavras que lhes dirigira soava-lhe mais alta aos ouvidos. Dizia a Fortune que Deus lhe enviava uma companheira porque não queria que o homem vivesse solitário e dizia a Rosalie que se devia unir ao marido, nunca o deixar, ser sua serva submissa. Mas dizia também estas coisas para si e para Albine. Não era ela a sua companheira, a sua serva submissa, aquela que Deus lhe enviava a fim de a sua virilidade não estiolar na solidão? Além disso, estavam ligados, e ficava muito surpreendido por não ter compreendido logo coisa tão evidente, por não ter ido com ela, como o dever lhe exigia. Mas agora estava assente. iria juntar-se-lhe na manhã seguinte.

Não precisaria de mais de meia hora para ir ter com ela. Atravessaria a aldeia e tomaria o caminho da colina, que era o mais curto. Podia tudo, era o senhor, ninguém lhe diria nada. Se o olhassem, obrigaria, com um gesto, a baixarem-se todas as cabeças. Depois, viveria com Albine, chamar-lhe-ia sua mulher e seriam muito felizes. O ouro subia de novo, escorria-lhe por entre os dedos. Mergulhava num banho de ouro, apoderava-se dos vasos sagrados para acorrer às necessidades do seu lar e via-se a viver luxuosamente, a pagar aos seus criados com fragmentos do cálice que quebrava entre os dedos com pouco esforço. Colocava no seu leito de núpcias os cortinados tecidos de ouro do ’altar e dava à mulher, como jóias, os corações de ouro, os rosários de ouro e as cruzes de ouro suspensas do pescoço da Virgem e dos santos. A própria igreja, se lhe acrescentasse um andar, poderia servir-lhe de palácio. Deus nada teria que dizer, visto lhe permitir amar. Além disso, que lhe importava Deus? Naquele momento não era ele o Deus, com os seus pés de ouro que a multidão beijava, o Deus cujos pés obravam milagres?

O padre Mouret levantou-se e fez o gesto largo de Jeanbemat, o gesto de negação que abarcava todo o horizonte. - Não há nada, nada, nada - disse - Deus não existe Um grande calafrio pareceu percorrer a igreja. Assustado, mortalmente pálido, o padre escutava. Quem falara? Quem blasfemara? Bruscamente, a carícia aveludada cuja suavidade sentia na nuca tornara-se feroz. Sentia a carne dilacerada por umas garras e o seu sangue correr uma vez mais. No entanto, ficou de pé, a lutar contra a crise Injuriava o pecado triunfante que lhe gargalhava em torno das têmporas, onde todos os martelos do mal recomeçavam a bater. Ignorava porventura as perfídias do Demónio? Não sabia que, muitas vezes, tinha prazer em se aproximar com pèzinhos de lã para depois enterrar as garras, como facas, até aos ossos das suas vítimas? E a sua raiva redobrava só de pensar que fora apanhado na armadilha como uma criança. Ficaria sempre por terra com o pecado a oprimir-lhe vitoriosamente o peito? Agora, até Deus negava! Encontrava-se na rampa fatal. A fornicação (matava a fé. A seguir, desmoronava-se o dogma. Uma hesitação da carne, advogando a causa da sua imundície, bastava para varrer o Céu de ponta a ponta. A regra divina exasperava, os mistérios faziam sorrir; as pessoas aninhavam-se num recanto da religião abalada e aprofundavam o seu sacrilégio até o converterem no covil de um animal enterrado nos próprios excrementos. Então, vinham as outras tentações: o ouro, o poder, a vida desregrada, uma necessidade irresistível de gorar que encaminhava tudo para a mais desbragada luxúria, espojada num leito de riqueza e orgulho. E roubava-se Deus, e quebravam-se as custódias para as pendurar na impureza de uma mulher. Pronto, estava condenado às penas iternas! Agora, já nada lhe interessava, o pecado podia falar alto e bom som em si, já não valia a pena lutar. Os monstros que lhe tinham rondado a nuca lutavam-lhe agora nas entranhas e ele dilatava-as para lhes sentir os dentes durante mais tempo, abandonava-se-lhes com uma alegria horrível. A revolta fazia-o erguer os punhos contra a Igreja. Não, já não acreditava na divindade de Jesus, já não acreditava na Santíssima Trindade; só acreditava nos seus músculos, nos apetites dos seus órgãos. Queria viver, tinha necessidade de ser um homem. Ah, correr ao ar livre, ser forte, não depender de um senhor ciumento, ’matar os inimigos à pedrada, arrebatar ao colo as raparigas que passavam! Ressuscitaria do túmulo onde mãos austeras o ’tinham depositado, despertaria a sua virilidade, que devia estar apenas adormecida. E que expirasse de vergonha se encontrasse a sua virilidade morta! E que Deus fosse maldito se o tivesse retirado de entre as criaturas ao tocar-lhe com o dedo a fim de o reservar para Seu exclusivo serviço!

O padre estava de pé, alucinado, e julgou que perante esta nova blasfémia a igreja se desmoronasse. A mancha de sol que inundava o altar-mor aumentara lentamente e iluminava as paredes com um clarão rubro de incêndio. Algumas chispas subiram um pouco mais, lamberam o tecto e extinguiram-se numa labareda sangrenta, de brasa. Bruscamente, a igreja ficou negra, como se o fogo daquele pôr de astro acabasse de estalar o vigamento, de fender as paredes, de abrir por todos os lados brechas gigantes acessíveis aos ataques de fora. A carcaça sombria vacilava, na expectativa de algum assalto formidável, e a noite descia rapidamente.

Então, muito ao longe, o padre ouviu um murmúrio subir do vale dos Artauds. Dantes, não compreendia a linguagem ardente daquelas terras crestadas onde apenas se contorciam pés de vinha nodosos, amendoeiras descarnadas e velhas oliveiras se bamboleavam nos membros enfermos. Passava por entre aquela paixão com as serenidades da sua ignorância. Mas presentemente, conhecedor da carne, compreendia até os mais pequenos suspiros das folhas desfalecidas ao sol. Primeiro, nos limites do horizonte, as colinas, ainda quentes do adeus do poente, estremeceram e pareceram abaladas pelo tropel surdo de um exército em marcha; depois, as rochas esparsas, as pedras dos caminhos, todos os seixos do vale, ergueram-se também, rolaram, trovejaram, como se fossem impelidos para diante pela necessidade de se moverem. Em seguida, os pântanos de terra vermelha, os raros campos conquistados a golpes de picareta, começaram a deslizar e a trovejar, como rios em plena liberdade, ’transportando na torrente do seu sangue concepções de sementes, eclosões de raízes, cópulas de plantas.

E em breve tudo estava em movimento: as cepas das vinhas rastejavam como grandes insectos; os trigos magros e as ervas secas formavam batalhões armados de compridas lanças; as árvores desgrenhavam-se a correr e estiravam os membros, semelhantes a lutadores que se aprestassem para o combate, e as folhas caídas marchavam, tal como marchava também o pó dos caminhos. Dir-se-ia uma multidão que recrutasse a cada passo novas forças, um povo em cio cujo bafo se aproximasse, uma tempestade de vida com hálito de fornalha que arrebatasse tudo diante de si, no turbilhão de um parto colossal. Bruscamente, deu-se o ataque. Do extremo do horizonte, todo o campo investiu contra a igreja: as colinas, os seixos, as terras, as árvores. Ao primeiro choque, a igreja estalou; as paredes fenderam-se, as telhas voaram. Mas o grande Cristo, apesar de sacudido, não caiu.

Houve um curto compasso de espera. Lá fora, as vozes elevavam-se, mais furiosas. Agora, o padre distinguia vozes humanas. Era a aldeia, os Artauds, aquele punhado de bastardos nascidos na rocha, obstinados como as silvas, que sopravam por seu turno um vento carregado de pululamento de seres. Os Artauds fornicavam por terra, plantavam pouco a pouco uma floresta de homens cujos troncos devoravam em torno deles todo o espaço. Subiam até à igreja, arrombavam-lhe a porta com um encontrão, ameaçavam obstruir a nave com os ramos invasores da sua espécie. Atrás deles, na confusão dos silvados, acorriam os animais: os bois procuravam derrubar as paredes com os cornos, rebanhos de burros, cabras e ovelhas fustigavam a igreja em ruínas como vagas vivas e formigueiros de bichos-de-conta e de grilos atacavam os alicerces e esboroavam-nos com os seus dentes de serra. E havia ainda, do outro lado, a capoeira de Désirée, cuja estrumeira exalava baforadas asfixiantes. O grande galo, Alexandre, tocava ao assalto com o seu clarim, as galinhas desprendiam as pedras às bicadas, os coelhos cavavam tocas até debaixo dos altares, a fim de os minarem e derrubarem, e o porco, gordo a ponto de se não poder mexer, grunhia, esperava que os ornamentos sagrados se convertessem num punhado de cinzas quentes para nelas se espojar. Ecoou um rumor formidável; ia dar-se o segundo assalto. A aldeia, os animais, toda aquela maré viva, trasbordante, engoliu num ápice a igreja, submergiu-a numa fúria de corpos que faziam vergar as traves. No meio da peleja, as fêmeas deixavam escapar das entranhas ninhadas contínuas de novos combatentes. Desta vez, a igreja ficou com um pano de parede deitado abaixo. O tecto cedia, o madeiramento das janelas desaparecia e o fumo do crepúsculo, cada vez mais negro, entrava pelas brechas e espalhava-se medonhamente. Na cruz, o grande Cristo estava apenas preso pelo cravo da mão esquerda.

O desmoronamento do pano de parede foi saudado com um olamor. Mas a igreja ainda permanecia sólida, a despeito das suas feridas Obstinava-se com ferocidade, muda, sombria, agarrada às mais pequenas pedras dos seus alicerces. Dir-se-ia que, para se manter de pé, aquela ruína só necessitava do mais delgado pilar que sustentava, por um prodígio de equilíbrio, o vigamento estalado. Então, o padre Mouret viu as plantas rudes do planalto lançarem-se ao ataque, as terríveis plantas endurecidas pela aridez das rochas, nodosas como serpentes, de madeira rija, cheias ’de vigor. Os líquenes cor de ferrugem, semelhantes a uma lepra inflamada, devoraram primeiro os rebocos de gesso. Em seguida, os tomilhos cravaram as raízes entre os tijolos, como cunhas de ferro. As alfazemas insinuaram os seus longos dedos aduncos por debaixo de cada alvenaria abalada, puxaram-nas para si e arrancaram-nas com um esforço lento e contínuo. Os zimbros, os rosmaninhos e os azevinhos espinhosos subiam mais alto, tinham arremetidas incontáveis. E até as próprias ervas, as ervas cujos rebentos secos se insinuavam por debaixo da porta principal, se inteiriçavam como piques de aço, arrombavam a porta e avançavam até à nave, onde levantavam as lajes com as suas pinças poderosas. A insurreição vitoriosa, a natureza revolucionária, erguia barricadas com os altares derrubados e demolia a igreja que havia séculos lhe fazia demasiada sombra. Os outros combatentes deixavam as ervas, os tomilhos, as alfazemas e os líquenes actuar à vontade, pois o ataque dos roedores pequenos era mais destruidor do que os golpes de clava dos fortes e minava a base num silencioso trabalho de sapa que acabaria por abalar todo o edifício. Depois, bruscamente, foi o fim: a sorveira, cujos altos ramos penetravam já debaixo da abóbada pelos caixilhos partidos, entrou violentamente, num jacto de verdura formidável, plantou-se no meio da nave e cresceu aí desmedidamente. O seu tronco tornou-se tão colossal que fez rebentar a igreja como se fosse um cinto demasiado apertado e as suas pernadas estenderam em todos os sentidos ramos enormes, cada um dos quais levou adiante de si um bocado de parede ou um pedaço de tecto. E multiplicavam-se sempre, cada ramo ramificava-se até ao infinito, de cada nó desabrochava uma árvore nova, e tudo isto com tal furor de crescimento que as ruínas da igreja, esburacada como um crivo, voaram em estilhas e espalharam em todas as direcções um pó fino. Agora, a árvore gigantesca tocava nas estrelas e a sua floresta de ramos era uma floresta de membros, de pernas, de braços, de torsos, de ventres que ressumavam seiva. Pendiam dela cabeleiras de mulher, cabeças de homem faziam rebentar a casca com risos de botões nascentes e lá no alto os casais de amantes desfalecidos à beira dos seus ninhos enchiam o ar com a música do seu prazer e o aroma da sua fecundidade. Um derradeiro sopro de tempestade que se abateu sobre a igreja varreu-lhe a poeira, o púlpito e o confessionário pulverizados, as imagens santas laceradas, os vasos sagrados derretidos, todos aqueles escombros em que debicavam avidamente os pardais que dantes se abrigavam debaixo das telhas. O grande Cristo, arrancado da cruz, que por momentos ficara suspenso de uma das cabeleiras flutuantes de mulher, foi arrebatado, envolvido, perdido na noite escura, no fundo da qual caiu com estrépito. A árvore da vida acabava de romper o céu e ultrapassava as estrelas.

O padre Mouret aplaudiu freneticamente, como um réprobo, esta visão. A igreja estava vencida; Deus já não tinha casa e, portanto, já não o incomodaria mais. Podia ir juntar-se a Albine, a triunfadora. Como ria agora de si mesmo, ele que uma hora antes afirmava que a igreja devoraria a terra com a sua sombra! Pois a terra vingara-se devorando a igreja. A gargalhada louca que soltou arrancou-o em sobressalto à sua alucinação. Estupefacto, olhou a nave, que o crepúsculo inundava lentamente. Pelas janelas, viam-se retalhos de céu recamados de estrelas. Estendia os braços, com a ideia de tactear as paredes, quando a voz de Désirée o chamou do corredor da sacristia:

- Serge! Estás aí?... Fala! Há meia hora que te procuro.

Entrou, com um candeeiro, e então o padre viu que a igreja ainda se conservava de pé. Sem compreender nada, ficou numa dúvida terrível, hesitante entre a igreja invencível, renascida das próprias cinzas, e Albine, todo-poderosa, que abalava Deus com um só dos seus sopros.

DÉSIRÉE aproximava-se, com a sua alegria ruidosa.

- Estás aí! Estás aí! - gritou. - Andas então a brincar às escondidas?... Chamei-te mais de dez vezes, com todas as minhas forças. Julguei que tivesses saído.

Perscrutava os recantos sombrios com a vista, com ar curioso. Foi mesmo até ao confessionário, sorrateiramente, como se esperasse surpreender alguém ali escondido, mas voltou decepcionada.

- Estás então sozinho? - prosseguiu. - Dormias, talvez? Em que te podes entreter, tão só, no meio desta escuridão?... Vamos, anda comigo para a mesa.

Ele passava as mãos febris pela testa, como se quisesse apagar pensamentos que com certeza toda a gente adivinharia, e procurava maquinalmente abotoar a sotaina, que lhe parecia em desalinho, rasgada, numa desordem vergonhosa. Depois, seguiu a irmã, com o rosto severo, sem um estremecimento, firme na sua vontade de padre que oculta as agonias da carne debaixo da dignidade do sacerdócio. Désirée nem sequer reparou na sua perturbação; limitou-se a dizer quando entraram na sala de jantar:

- Dormi regaladamente. Tu é que deves ter conversado muito; estás tão pálido...

À noite, ’depois do jantar, frei Archangias apareceu para jogar a sua partida de batalha com Teuse. Naquela noite estava muito alegre, e quando o frade estava alegre dava palmadas nas costas de Teuse, que lhas retribuía com sopapos que estalavam no ar. Depois, soltavam grandes gargalhadas, que faziam estremecer o tecto e o frade inventava ’brincadeiras extraordinárias: partia com o nariz pratos pousados de chapa, apostava que era capaz de arrombar com o traseiro a porta da sala de jantar, deitava todo o tabaco da tabaqueira no café da velha criada ou então trazia uma mão-cheia de seixos que lhe metia no seio e empurrava com a mão até à cintura. Semelhantes acessos de alegria manifestavam-se sem motivo, no meio das suas cóleras costumadas, e muitas vezes um acontecimento de que ninguém se ria provocava-lhe autêntico ataque de loucura ruidosa que o fazia bater os pés, girar como um pião e apertar o ventre.

- Então, não me quer dizer porque está tão alegre? - perguntou-lhe Teuse.

Não respondeu. Sentara-se às cavalitas numa cadeira e galopava à roda da mesa.

- Sim, sim, faça-se tolo - continuou ela. - Meu Deus, parece parvinho!... Se Deus Nosso Senhor o vê, deve estar muito contente consigo!

O frade acabava de se deixar cair para trás, com as costas no pavimento e as pernas no ar. Sem se levantar, disse gravemente:

- Ele vê-me e está contente por me ver. É Ele que me quer satisfeito... Quando resolve proporcionar-me alguns instantes de divertimento, toca o sino na minha carcaça. Então, rebolo-me no chão e todo o Paraíso ri.

Caminhou de costas até à parede e depois, firmando-se na nuca, tamborilou com os calcanhares o mais alto que pôde. O hábito, arregaçado, descobria-lhe as calças pretas, remendadas nos joelhos com retalhos de pano verde.

- Senhor cura, veja aonde chego - prosseguiu. - Aposto que não é capaz de fazer isto... Vamos, ria-se um pouco. Vale mais arrastarmo-nos de costas do que desejarmos ter por colchão a pele de uma desavergonhada. O senhor bem me entende... Uma pessoa é bicho por um momento, esfrega-se e larga a sua vérmina. Isto acalma. Eu, quando me esfrego, imagino ser um cão de Deus e é isso que me leva a ’dizer que todo o Paraíso se põe às janelas e ri de me ver... Também pode rir, senhor cura; faço isto para os santos e para si. Olhe, aqui tem uma cambalhota por S. José, outra por S. João, outra por S. Miguel, uma por S. Marcos, uma por S. Mateus...

E continuou a desfiar todo um rosário de santos, enquanto dava cambalhotas à roda da sala.

O padre Mouret, que estava silencioso, com os punhos à beira da mesa, acabou por sorrir. Habitualmente, as brincadeiras do frade inquietavam-no. Depois, como este passasse junto de Teuse, ela deu-lhe um pontapé e inquiriu:

- Vejamos, jogamos ou não jogamos, afinal?

Frei Archangias respondeu com grunhidos. Andava a quatro patas e foi direito a Teuse fingindo ser um lobo. Quando chegou junto dela, meteu-lhe a cabeça debaixo das saias e mordeu-lhe o joelho direito.

- Faça favor de me deixar! - protestou a mulher. - Querem lá ver que lhe deu agora para fazer porcarias?...

- Eu? - balbuciou o frade, tão divertido com semelhante ideia que ficou parado, sem se poder levantar. - Olha, sinto-me enojado só de provar o teu joelho! É demasiado salgado... Mordo as mulheres e depois escarro-lhes, vês?

Tratava-a por tu e cuspia-lhe nas saias. Quando conseguiu pôr-se em pé, resfolegou um instante e esfregou as costas. Arquejos de contentamento agitavam-lhe ainda o ventre, como um odre acabado de despejar. Por fim, disse, com voz grossa e séria:

- Vamos lá jogar... Se rio, cá tenho as minhas razões, e a Teuse não tem necessidade de saber porquê.

E a partida começou, terrível. O frade jogava as cartas com grandes murros na mesa e quando gritava “Batalha!” os vidros tilintavam. Teuse estava a ganhar. Havia muito tempo que tinha três ases e esperava o quarto com os olhos brilhantes. Entretanto, frei Archangias entregava-se a outros gracejos. Levantava a mesa, com risco de partir o candeeiro, e fazia batota descaradamente, ao mesmo tempo que procurava justificar-se por meio de mentiras enormes, tudo por brincadeira, segundo dizia. Bruscamente, entoou as Vésperas, com voz grossa de cantor de coro, e nunca mais se calou. Roncava lugubremente, acentuava cada versículo e ’batia com as cartas na palma da mão esquerda. Quando a sua alegria atingia o auge, quando já não encontrava outra maneira de a exprimir, cantava assim as Vésperas durante horas. Teuse, que o conhecia bem, inclinou-se para lhe gritar, no meio do bramido com que enchia a sala de jantar:

- Cale-se, não seja insuportável!... Está muito contente, esta noite.

Então, encetou as Completas. O padre Mouret fora sentar-se junto da janela e parecia não ver nem ouvir o que se passava à sua volta. Durante o jantar, comera como de costume e chegara até a responder às eternas perguntas de Désirée. Naquele momento, porém, abandonava-se, já sem forças, e deixava-se ir, alquebrado, aniquilado, ao sabor da disputa furiosa que continuava dentro de si, sem tréguas. Faltava-lhe até a coragem para se -levantar e subir ao seu quarto e receava que, se virasse a cara para o lado do candeeiro, lhe vissem as lágrimas que não conseguia reter. Encostou a testa à vidraça, olhou as trevas do exterior e adormeceu pouco a pouco, deslizou num torpor de pesadelo. Frei Archangias piscou os olhos, sem deixar de salmodiar, e indicou o padre adormecido, com um movimento de cabeça.

- Que é? - perguntou Teuse.

O frade repetiu o jogo de pálpebras, mais expressivamente.

- Eh, veja lá se desengonça o pescoço!-gritou-lhe a criada. - Fale de maneira que o entenda... Olhe, um rei! Bom, levo-lhe a dama.

Ele ipousou por um instante as cartas, curvou-se por cima da mesa e soprou-lhe no rosto:

- A desavergonhada esteve cá.

- Bem sei - respondeu ela. - Vi-a entrar com a menina na capoeira.

O frade fitou-a com ar terrível e estendeu os punhos.

- Viu-a e deixou-a entrar? Devia ter-me chamado para a pendurarmos -pelos pés num prego da cozinha.

Mas ela zangou-se e baixou a voz para não acordar o padre Mouret.

- Ora adeus! - murmurou. - O senhor sempre me saiu uma boa peça! Atreva-se a vir pendurar alguém na cozinha!... Claro que a vi, e até voltei as costas quando foi ter com o senhor cura à igreja, depois da catequese. Tiveram ’tempo de fazer o que quiseram. Julga que tenho alguma coisa a ver com isso? A mim só me compete pôr os feijões ao lume... Detesto essa rapariga, mas desde o momento que é a saúde do senhor cura... pode vir a todas as horas do dia e da noite. Até os fecharei juntos, se quiserem.

- Se fizesse isso, Teuse - redarguiu o frade, com uma raiva fria-, estrangulava-a.

Ela desatou a rir e tratou-o por sua vez por tu.

- Não digas asneiras, pequeno! Bem sabes que as mulheres te estão vedadas como o Pater aos burros. Experimenta estrangular-me um dia e verás o que te faço... Tem juízo e acabemos a partida. Olha, mais um rei.

Ele, com a carta levantada, continuou a resmungar:

- Deve ter vindo por algum caminho só conhecido do Diabo para me conseguir escapar hoje, pois todas as tardes me vou postar lá em cima, no Paradou. Se os surpreendo outra vez juntos, farei a desavergonhada travar conhecimento com um pau de sanguinho que cortei de propósito para ela... Agora, vigiarei também a igreja.

Jogou, deixou Teuse ganhar-lhe um valete e depois recostou-se na cadeira, sem poder conter o riso. Naquela noite neto podia zangar-se seriamente.

- Pouco importa se o viu - murmurou -, uma vez que bateu com as ventas no chão... No fim de contas, sempre lhe vou contar o que se passou, Teuse. Como sabe, chovia. Eu estava à porta da escola quando a vi descer da igreja. Caminhava muito direita, com o seu ar orgulhoso, apesar do aguaceiro. De repente, ao chegar à estrada, estatelou-se ao comprido no chão, que devia estar escorregadio. Oh, como eu ri, como eu ri! E como bati as mãos de contente... Quando se levantou, tinha sangue num pulso. Fiquei com alegria para oito dias. Não consigo lembrarme de que a vi por terra sem sentir na garganta e no ventre cócegas que me fazem rir a bandeiras despregadas.

E, enchendo as bochechas de ar, passou a prestar mais atenção ao jogo e cantou o De profundis duas vezes seguidas. A partida acabou no meio deste canto lamentoso, que ele exagerava por vezes, como se o quisesse saborear melhor. Perdeu, mas nem por isso experimentou a menor contrariedade. Quando Teuse o pôs na rua, depois de acordar o padre Mouret, ouviram-no repetir o último versículo do salmo enquanto desaparecia na escuridão ’da noite, em tom extraordinariamente jubiloso: Et ipse redimet Israel ex omnibus iniquitatibus ejus.

O PADRE Mouret dormiu um sono de chumbo. Quando abriu os olhos, mais tarde do que o costume, encontrou o rosto e as mãos banhados de lágrimas; chorara toda a noite, enquanto dormia. Não disse missa naquela manhã. A despeito do seu prolongado repouso, a prostração da véspera à noite tornara-se de tal ordem que ficou até ao meio-dia no quarto, sentado numa cadeira, ao pé da cama. O entorpecimento que o invadia cada vez mais tirava-lhe até a sensação do sofrimento. Sentia um grande vácuo; encontrava-se como que aliviado de um peso, amputado, aniquilado. Só à custa de um esforço supremo conseguiu ler o breviário; o latim dos versículos parecia-lhe uma língua bárbara da qual nem sequer era capaz de soletrar as palavras. Depois, atirado o livro para cima da cama, passou horas a olhar o campo pela janela aberta, sem forças para se ir encostar ao parapeito. Avistava ao longe o muro branco do Paradou, um fino traço claro que corria pela crista das alturas, por entre as manchas sombrias dos pinhaizinhos. À esquerda, atrás de um dos pinhais, encontrava-se a brecha. Não a via, mas sabia que era ali; recordava-se dos mais pequenos tufos de silvas espalhados no meio das pedras. Na véspera, nem sequer se teria atrevido a levantar assim a vista para aquele horizonte temível; mas naquele momento esquecia-se sem querer a seguir, depois de cada maciço de verdura, o fio interrompido do muro, semelhante à barra de uma saia presa em todas as moitas. Contudo isso não chegava sequer a acelerar-lhe as pulsações das veias; a tentação, como se desdenhasse a pobreza do seu sangue, abandonara-lhe a carne indolente, deixara-o incapaz de lutar, privado da graça, da própria paixão do pecado, pronto a aceitar como idiotice ’tudo o que repelira furiosamente na véspera.

Surpreendeu-se em dado momento a falar alto. Uma vez que a brecha continuava a existir, iria ter com Albine ao pôr do Sol. Não lhe agradava por aí além semelhante decisão, mas entendia que lhe seria impossível proceder de outro modo. Ela esperava-o, era a sua mulher. Quando queria evocar o seu rosto, via-o apenas muito pálido, muito distante. Depois, inquietava-o a maneira como viveriam juntos. Ser-lhes-ia difícil ficar na região, teriam de fugir sem que ninguém soubesse para onde, e, uma vez escondidos em qualquer parte, necessitariam de muito dinheiro para serem felizes. Tentou vinte vezes traçar um plano de rapto, estabelecer a sua existência de amantes felizes, mas não encontrou nenhuma solução satisfatória. Agora que o desejo já não o desvairava, o lado prático da situação apavorava-o, colocava-o com as suas mãos débeis perante uma tarefa complicada em que era completamente leigo. Onde arranjariam cavalos para fugir? Se fossem a pé, não os prenderiam como vagabundos? Além disso, conseguiria empregar-se, descobrir uma ocupação qualquer com que pudesse assegurar o pão da mulher? Nunca lhe tinham ensinado tais coisas. Ignorava tudo da vida, só encontrava, rebuscando na memória, pedaços de oração, pormenores de cerimonial, páginas da Instrução Teológica, de Bouvier, aprendidas outrora de cor no seminário. Até coisas sem importância o embaraçavam muito. Perguntou a si mesmo se ousaria dar o braço à mulher, na rua. Decerto não saberia andar com uma mulher pelo braço; pareceria tão desajeitado que toda a gente se voltaria para o observar. Adivinhariam que era padre, insultariam Albine. Em vão procuraria apagar em si os sinais do sacerdócio; traria sempre consigo a palidez triste, o cheiro do incenso. E se tivesse filhos, um dia? Este pensamento inesperado fê-lo estremecer e experimentou uma (repugnância estranha. Achava que não os poderia amar. E, contudo, eram dois, um menino e uma menina... Afastava-os dos joelhos, sofria só de sentir-lhes as mãos pousadas no fato e de modo algum experimentava a alegria dos outros pais ao fazerem os filhos saltar-lhes nos braços. Não se habituava àquela carne da sua carne, que lhe parecia ressumar sempre a sua impureza de homem. A menina, sobre tudo, perturbava-o com os seus grandes olhos, no fundo dos quais brilhavam já ternuras de mulher. Mas não, não teria filhos, evitaria esse horror que experimentava logo que o assaltava a ideia de ver os seus membros renascerem e reviverem eternamente. Então, a esperança de ser impotente causou-lhe uma grande (tranquilidade. Sem dúvida, toda a sua virilidade desaparecera durante a sua longa adolescência. Isso decidiu-o: à noite, fugiria com Albina.

À noite, porém, o padre Mouret sentiu-se demasiado cansado e adiou a partida para o dia seguinte. E no dia seguinte deu a si próprio novo pretexto: não podia abandonar assim a irmã, sozinha com Teuse, a não ser que deixasse uma carta recomendando que a levassem para casa do tio Pascal. Durante três dias, prometeu a si próprio escrever essa carta; a folha de papel, a pena e a tinta estavam prontas, em cima da mesa, no quarto. Mas no terceiro dia foi-se embora sem escrever a carta; pegou de súbito no chapéu e partiu para o Paradou, sem querer saber de mais nada, obcecado, resignado, como se fosse cumprir um dever enfadonho ao qual ignorava como se furtar. A imagem de Albine apagara-se novamente. Já não a via; limitava-se a obedecer a antigos desejos, naquela altura já mortos em si, mas cujo impulso persistia no grande silêncio do seu ser.

Lá fora, não tomou nenhuma precaução para se ocultar. Deteve-se à saída da aldeia, a conversar um instante com Rosalie, a qual lhe participava que o filho tinha convulsões, mas sem deixar de rir pelas comissuras dos lábios, como era seu hábito. Depois, embrenhou-se por entre as rochas e caminhou direito à brecha. Por hábito, levava o breviário. Como o caminho era longo e começava a sentir-se aborrecido, abriu o livro e leu as orações regulamentares. Quando o tornou a meter debaixo do braço já esquecera o Paradou. Caminhava sempre em frente, a pensar numa casula nova que queria comprar para substituir a casula dourada que, decididamente, se estava a desfazer. Havia algum tempo que amealhava moedas de vinte sous e calculava que dentro de sete meses teria dinheiro suficiente. Chegava ao planalto quando o cantar de um camponês, ao longe, lhe recordou um cântico que aprendera outrora no seminário. Procurou lembrar-se dos primeiros versos do cântico, mas não conseguiu e ficou aborrecido por ter tão pouca memória. Por fim, quando acabou por se recordar, experimentou uma alegria muito suave em cantar a meia voz as palavras que lhe acudiam ao espírito uma a uma. Era uma homenagem a Maria e o cântico acabou por o fazer sorrir, como se recebesse no rosto uma lufada de ar fresco da sua juventude. Como era feliz naquele tempo! Claro que ainda poderia ser feliz; estava longe de ser velho e as suas ambições sempre se tinham resumido numa paz serena, num recanto de capela onde o lugar dos seus joelhos ficasse marcado e numa vida solitária alegrada pelas puerilidades adoráveis da infância. Elevava pouco a pouco a voz, entoava o cântico com sons agudos de flauta, quando viu a brecha, bruscamente, diante de si.

Por um instante, pareceu surpreendido. Depois, deixou de sorrir e murmurou com simplicidade:

- Albine deve estar à minha espera; o Sol começa a pôr-se.

Mas quando ia a desviar as pedras para passar, depois de subir para a abertura do muro, assustou-o uma respiração terrível. Teve de voltar a descer e por pouco não pôs o pé em cheio na cara de frei Archangias, estiraçado no chão, a dormir profundamente. O sono surpreendera-o, sem dúvida, enquanto montava guarda à entrada do Paradou, que barrava sozinho, estendido a todo o comprimento, com os membros afastados, numa postura vergonhosa. A sua mão direita, atirada para trás da cabeça, não largara o pau de sanguinho, que parecia brandir como uma espada chamejante. E ressonava no meio das silvas, com a cara iluminada pelo sol, sem que a sua pele, semelhante a couro curtido, tivesse o mais pequeno arrepio. Um enxame de moscardos voava-lhe por cima da boca aberta.

O padre Mouret observou-o durante um momento. Invejava aquele sono espojado na poeira. Pretendeu enxotar as moscas, mas estas, teimosas, voltavam, colavam-se aos lábios violáceos do frade, que nem sequer as sentia. Então, o padre saltou por cima daquele grande corpo e entrou no Paradou.

ALBINE estava sentada num tapete de erva, atrás do muro, a alguns passos de distância, e ergueu-se ao ver Serge.

- Finalmente, vieste!-exclamou, toda trémula

- Sim-respondeu ele, calmamente-, vim.

Ela lançou-se-lhe ao pescoço, mas não o beijou; sentira o frio dos botões do cabeção no braço nu e observava-o, inquieta.

- Que tens? - perguntou-lhe. - Não me beijaste nas faces, como antigamente, quando os teus lábios sorriam... Lembras-te? Vamos, se estás doente, curar-te-ei outra vez. Agora que estás aqui, podemos recomeçar a nossa felicidade. Já não há motivo para tristezas... Bem vês que sorrio. É necessário sorrir, Serge.

E como ele permanecesse grave:

- Também tive um grande desgosto, acredita. Ainda estou muito pálida, não estou? Há oito dias que vivia aqui, na erva onde me encontraste Só queria uma coisa: ver-te entrar pelo buraco do muro. Logo que ouvia algum ruído, levantava-me e corria ao teu encontro. Mas não eras tu, eram as folhas que o vento levava... No entanto, tinha a certeza de que virias e esperaria anos, se fosse preciso. Depois, perguntou-lhe:

- Amas-me ainda?

- Sim - respondeu ele -, ainda te amo

Ficaram diante um do outro, um pouco constrangidos, e um pesado silêncio caiu entre eles. Serge, tranquilo, não procurava quebrá-lo; Albine abriu a boca por duas vezes, mas tornou a fechá-la imediatamente, surpreendida com as coisas que lhe acudiam aos lábios. Só encontrava palavras amargas e sentia as lágrimas humedecerem-lhe os olhos. Por que motivo não se sentia feliz com o regresso do seu amor?

- Escuta - disse por fim -, não devemos ficar aqui. Este buraco gela-nos... Voltemos para nossa casa. Dá-me a tua mão.

E embrenharam-se no Paradou.

O Outono aproximava-se e as árvores estavam melancólicas, com as copas amarelecidas a despirem-se folha a folha. Nos carreiros acumulavam-se já camadas de verdura morta, saturada de humidade, onde os passos pareciam abafar suspiros. Ao fundo dos campos relvados a neblina que pairava no ar cobria de luto o horizonte azulado, e o jardim inteiro calava-se, soltava apenas suspiros melancólicos que passavam semelhantes a arrepios.

Serge tiritava na alameda coberta pelas grandes árvores pela qual tinham tomado e disse a meia voz:

- Como faz frio, aqui!

- Tens frio - murmurou Albine, tristemente. - A minha mão já não te aquece. Queres que te cubra com uma ponta do meu vestido?. Anda, vamos reviver todas as nossas carícias.

Levou-o para o jardim. O roseiral continuava recendente; as últimas flores exalavam perfumes acres, ao passo que a folhagem, desmedidamente crescida, cobria a terra como um pântano adormecido. Mas Serge manifestou tal repugnância em entrar naquele matagal que ficaram à beira do caminho e procuraram de longe as alamedas onde tinham passado a Primavera. Ela recordava-se dos mais insignificantes recantos; mostrava-lhe com o dedo a gruta onde dormia a mulher ’de mármore, as cabeleiras pendentes das madressilvas e das olematites, os campos de violetas, a fonte que bolçava cravos vermelhos, a grande escadaria coberta de tufos de goivos fulvos e a colunata em ruínas no meio da qual os lírios formavam um pavilhão branco. Fora ali que tinham nascido ambos, ao sol. E Albine recordava os mais pequenos pormenores desse primeiro dia, o modo como tinham caminhado, o cheiro que o ar tinha à sombra. Ele parecia escutá-la, mas depois, com uma pergunta, demonstrava que não compreendera nada do que ela dissera. O leve arrepio que o empalidecia não havia meio de o deixar.

Levou-o ao pomar, do qual nem sequer se puderam aproximar. O rio engrossara e Serge já não pensava em pegar em Albine às cavalitas e transportá-la em três saltos para a outra margem E, no entanto, as macieiras e as pereiras estavam ainda carregadas de frutos, e a vinha, de folhas mais raras, vergava ao peso dos cachos dourados, em que cada bago conservava a mancha arruivada do sol. Como tinham retouçado à sombra lambareira daquelas árvores veneráveis! Então, não passavam de garotos travessos. Albine sorria ainda do modo descarado como mostrava as pernas quando os ramos se quebravam Lembrava-se ao menos das ameixas que tinham comido? Serge respondia com acenos de cabeça. Parecia já cansado O pomar, com a sua espessura esverdeada e o seu amalgama de hastes musgosas, semelhante a uma construção esventrada e arruinada, inquietava-o, afigurava-se-lhe um lugar húmido, povoado de urtigas e serpentes.

Levou-o aos prados. Aí, teve de dar alguns passos por entre as ervas, que lhe chegavam agora aos ombros e lhe pareciam braços delgados que procuravam rodear-lhe os membros para o fazerem cair e o afogarem no fundo daquele mar verde, interminável. Suplicou a Albine que não o levasse mais longe, mas ela, que caminhava à frente, não se deteve. Depois, ao vê-lo sofrer, conservou-se de pé a seu lado, invadida pouco a pouco por uma grande tristeza, e acabou por ser acometida de arrepios como ele. Apesar disso, porém, continuou a falar. Com um gesto largo indicou os regatos, as fileiras de salgueiros e os tapetes de erva desdobrados até aos confins do horizonte. Tudo aquilo lhes pertencera, outrora; tinham passado ali dias inteiros Acolá, entre aqueles três salgueiros, à beira-d’água, tinham brincado aos apaixonados. Então, desejariam que as ervas fossem mais altas do que eles, a fim de se perderem na sua superfície movediça, de estarem mais sós, longe de tudo, como toutinegras a saltitarem na espessura de uma seara de trigo. Por que motivo, então, Serge tremia agora, só de sentir a ponta do pé enterrar-se e desaparecer na relva?

Levou-o à floresta, mas as árvores ainda assustaram mais Serge. Já não as reconhecia naquela gravidade de troncos negros. Mais do que em qualquer outro lado, o passado parecia-lhe morto no meio daquele arvoredo severo, onde a luz penetrava livremente. As primeiras chuvas tinham-lhes apagado os passos no saibro das alamedas e os ventos haviam levado tudo o que restava deles nos ramos baixos das sarças. Mas Albine, com a garganta opressa de tristeza, protestava com o olhar; ainda encontrava no saibro os mais pequenos vestígios dos seus passeios. Em cada silvado, subia-lhe ao rosto o calor que outrora lá tinham deixado ao passarem por ele e, com os olhos suplicantes, procurava mais uma vez evocar as recordações de Serge. Tinham caminhado em silêncio ao longo daquele carreiro, muito comovidos, sem se atreverem a dizer um ao outro que se amavam. Naquela clareira, tinham-se esquecido, uma noite, até ’muito tarde, a olhar as estrelas, que choviam sobre eles como gotas de calor. Mais longe, debaixo daquele carvalho, tinham trocado o seu primeiro beijo. O carvalho conservava o aroma desse beijo, o próprio musgo continuava a falar dele. Era mentira dizer que a floresta se tornara muda e vazia. E Serge voltava a cabeça para evitar os olhos de Albine, que o fatigavam.

Levou-o às grandes rochas. Talvez ali ele não tremesse com aquele ar fraco que a desesperava. Àquela hora, só as grandes rochas estavam ainda quentes da brasa rubra do Sol poente. Conservavam pelo menos a sua paixão trágica, os seus leitos de seixos ardentes em que se espojavam plantas pletóricas de seiva, monstruosamente acasaladas. E sem falar, sem mesmo voltar a cabeça, Albine arrastava Serge ao longo da rústica encosta, desejosa de o levar mais alto, cada vez mais alto, para lá das nascentes, até ambos se encontrarem de novo ao sol. Reencontrariam o cedro debaixo do qual tinham experimentado a angústia do primeiro desejo e deitar-se-iam no chão, nas lajes ardentes, à espera que o cio da terra os dominasse. Mas em breve os pés de Serge se detiveram cruelmente. Não podia caminhar mais. Caiu pela primeira vez de joelhos. Com um esforço supremo, Albine levantou-o, ajudou-o a andar um instante. Mas ele tornou a cair, ficou caído no meio do caminho. Na sua frente, por baixo dele, estendia-se o Paradou imenso.

- Mentiste!-gritou Albine.-Já me não amas!

E chorava, de pé a seu lado, sentindo;se impotente para o levar mais acima. Ainda não sentia cólera; chorava apenas os seus amores agonizantes. Ele estava esmagado.

- O jardim está morto, continuo a ter frio - murmurou Serge.

Mas ela agarrou-lhe a cabeça e mostrou-lhe o Paradou, com um gesto.

- Vê!... Ah, os teus olhos é que estão mortos, como os teus ouvidos, os teus membros, todo o teu corpo! Atravessaste todas as nossas alegrias sem as veres, sem as ouvires, sem as sentires. Andaste aos tropeções até vires cair aqui de fadiga e aborrecimento... Já me não amas.

Ele protestava suave, calmamente. Então, ela teve o primeiro acesso de cólera.

- Cala-te! O jardim nunca morrerá! Dormirá durante o Inverno, mas acordará em Maio para nos restituir tudo quanto lhe confiámos com as nossas carícias. Os nossos beijos reflorirão no jardim e as nossas juras renascerão com as ervas e as árvores... Se o visses e ouvisses, verificarias que está mais profundamente comovido, que o seu amor é mais suave e (pungente nesta estação de Outono, quando adormece na sua fecundidade... Mas tu já me não amas e, portanto, não podes saber.

Ele erguia os olhos para ela e suplicava-lhe que não se zangasse. Tinha o rosto emagrecido e estava pálido como uma criança cheia de medo. Um tom de voz mais alto fazia-o estremecer. Acabou por conseguir que ela descansasse um instante junto dele, no meio do caminho. Conversariam calmamente, explicar-se-iam. Juntos, diante do Paradou, sem mesmo se tocarem com a ponta dos dedos, falaram do seu amor.

- Amo-te, amo-te - disse ele com a sua voz inexpressiva. - Se não te amasse, não teria vindo... É verdade, estou cansado, não sei porquê. Gostaria de reencontrar aqui aquele calor agradável cuja recordação era só por si uma carícia. Tenho frio, o jardim parece-me escuro e não encontro nele nada do que cá deixei. Mas a culpa não é minha. Esforço-me por ser como ’tu e desejaria não te decepcionar.

- Já me não amas - repetiu Albine, mais uma vez.

- Sim, amo-te. Sofri muito, no outro dia, depois de te mandar embora... Oh, amava-te com tanto ardor que te esmagaria contra o peito se voltasses a lançar-te nos meus braços. Nunca te desejei tão furiosamente. Durante horas, ficaste viva diante de mim a atormentares-me com os teus dedos flexíveis. Quando fechava os olhos, acendias-te como um sol e envolvias-me na tua chama... Então, deixei tudo e vim.

Fez uma curta pausa, pensativo, e depois continuou:

- E agora os meus braços estão como que quebrados. Se quisesse apertar-te ao peito, não seria capaz de te segurar, deixar-te-ia cair... Espera que este calafrio me passe e da-me depois as tuas mãos para as beijar outra vez. Sê boa, não me fites com esses olhos irritados. Ajuda-me a sondar o meu coração.

Manifestava uma tristeza tão verdadeira, um desejo tão evidente de recomeçar a sua vida amorosa, que Albine se comoveu. Por instantes, tornou-se muito meiga e interrogou-o com solicitude.

- Onde sofres? Qual é o teu mal?

- Não sei. Parece-me que todo o sangue me foge das veias... Ainda há pouco, quando caminhava, tive a impressão de que me lançavam sobre os ombros um manto gelado, que se me colava à pele e que da cabeça aos pés, me convertia num corpo de pedra . Já uma vez senti esse manto nas costas, mas não me recordo quando...

Ela interrompeu-o com um riso amistoso:

- Criança!... Apanhaste frio, foi o que foi... Escuta não sou eu que te meto medo, pois não? No Inverno não ficaremos fechados no jardim, como dois selvagens; iremos para onde quiseres, para qualquer grande cidade. Amar-nos-emos no meio das pessoas tão tranquilamente como no meio das árvores. E verás que não sou apenas uma maria-rapaz que só sabe desencantar ninhos e andar horas sem se cansar Quando era pequena, usava saias bordadas, meias de renda, véus e folhos. Nunca ninguém te contou isto?

Serge, que não a escutava, soltou bruscamente um gritinho:

- Ah, agora me recordo!

Mas quando ela o interrogou não quis responder. Acabava de se lembrar da sensação da capela do seminário nos ombros; era esse o manto gelado que lhe tornava o corpo de pedra. Então, sentiu-se invencivelmente atraído pelo seu passado de padre As vagas recordações que haviam despertado em si ao longo do caminho, dos Artauds ao Paradou, acentuaram-se, impuseram-se-lhe com soberana autoridade. Enquanto Albine continuava a falar-lhe da vida feliz que levariam juntos, ouvia a campainha do acólito tocar na altura da elevação e via custódias traçarem cruzes de fogo por cima de grandes multidões ajoelhadas.

- Pois bem - disse ela -, por ti, voltarei a usar as minhas saias bordadas... Quero que estejas contente. Procuraremos o que te puder distrair. Amar-me-ás mais, talvez, quando me vires bela, vestida como uma senhora. Não voltarei a usar a travessa às três pancadas, nem os cabelos em desalinho no pescoço. Também nunca mais arregaçarei as mangas até aos cotovelos e abotoarei o vestido para não mostrar os ombros. Ainda sei cumprimentar e caminhar com elegância, meneando levemente a cabeça. Verás que serei uma linda mulher pelo teu braço, na rua

- Alguma vez entraste nas igrejas, quando eras pequena? - perguntou-lhe ele, a meia voz, como se continuasse alto, mau grado seu, o devaneio que o impedia de ouvir - Eu não podia passar diante de uma igreja sem entrar. Logo que a porta se fechava silenciosamente atrás de mim, parecia-me estar no próprio Paraíso, ouvir vozes de anjos contarem-me ao ouvido histórias cheias de ternura e sentir por todo o corpo a carícia do hálito dos santos e das santas... Sim, desejaria viver assim para sempre, mergulhado nessa beatitude.

Ela fitou-o, com os olhos fixos, enquanto um breve clarão se acendia no seu olhar terno. No entanto, prosseguiu, ainda submissa:

- Serei como mais agradar aos teus caprichos. Dantes, tocava música, era uma menina instruída, conhecedora de todas as seduções... Voltarei à escola, dedicar-me-ei outra vez à música. Se desejares ouvir-me tocar uma ária de que gostes, bastará que ma indiques e aprendê-la-ei durante meses, para a ouvires uma noite, em nossa casa, num quarto bem fechado, despido de adornos. E recompensar-me-ás apenas com um beijo... Queres? Um beijo nos lábios, como tributo do teu amor. Depois, se quiseres, esmagar-me-ás entre os teus braços.

- Sim, sim - murmurou ele, respondendo apenas aos seus pensamentos -, os meus grandes prazeres foram, primeiro, acender as velas, preparar as galhetas e levar o missal, de mãos postas. Mais tarde, saboreei a aproximação lenta de Deus e julguei morrer de amor... Não tenho outras recordações, não sei mais nada Quando levanto a mão, é para abençoar; quando estendo os lábios, é para beijar o altar. Se procuro o coração, não o encontro; ofereci-o a Deus, que o aceitou.

Ela empalideceu muito e os olhos brilharam-lhe como brasas. No entanto, continuou, com voz trémula:

- E quero que a minha filha nunca me deixe. Poderás, se assim o entenderes, mandar o rapaz para o colégio, mas a minha querida pequenina não sairá de ao pé das minhas saias. Serei eu quem lhe ensinará a ler. Oh, hei-de recordar-me e tomar mestres se tiver esquecido o que aprendi!... Viveremos com todo o nosso pequenino mundo agarrado às pernas. Serás feliz, não é verdade? Vamos, responde, diz-me que te sentirás agasalhado, que sorrirás, que não lamentarás nada!...

- Tenho pensado muitas vezes nos santos de pedra que se incensam há séculos no fundo dos seus nichos - disse ele em voz muito baixa. - Com o tempo, devem estar saturados de incenso até às entranhas... Sou como um desses santos: estou repleto de incenso até ao último escaninho dos meus órgãos. É este embalsamamento que forja a minha serenidade, a morte tranquila da minha carne, a paz que saboreio por não viver... Ah, que nada perturbe a minha imobilidade! Permanecerei frio, rígido, com um sorriso perene nos lábios de granito, incapaz de descer entre os homens. É este o meu único desejo

Ela ergueu-se, irritada, ameaçadora, sacudiu-o e gritou:

- Que dizes? Que estás a sonhar em voz alta?... Não sou a tua mulher? Não vieste para seres o meu marido?

Serge, cada vez mais trémulo, recuou.

- Não, deixa-me, tenho medo - balbuciou.

- E a nossa vida em comum, e a nossa felicidade, e os nossos filhos?

- Não, não, tenho medo. Depois, soltou o seu grito supremo: - Não posso! Não posso!

Então, durante um instante, ela ficou muda diante do infeliz que tiritava a seus pés. Tinha o rosto incendiado. Abrira os braços, como se o quisesse envolver, apertar a si, num transporte de desejo furioso. Mas pareceu reflectir e limitou-se a pegar-lhe na mão e a levantá-lo.

- Vem! - disse.

E levou-o para debaixo da árvore gigantesca, para o mesmo sítio em que se lhe entregara e ele a possuíra. Reinava ali a mesma sombra de felicidade, aquele era o mesmo tronco que respirava como um peito, aqueles eram os mesmos ramos que se estendiam até longe, semelhantes a membros protectores. A árvore continuava a ser boa, robusta, poderosa, fecunda. Como no dia das suas núpcias, uma languidez de alcova, uma claridade de noite de Estio extinguindo-se nos membros nus de uma amante, um balbuciamento amoroso quase indistinto, convertido bruscamente num grande espasmo mudo, percorria a clareira inundada de uma transparência esverdeada. E ao longe o Paradou, a despeito do primeiro arrepio do Outono, reencontrava também os seus sussurros ardentes, tornava-se cúmplice daquela febre de amor. Do pomar, dos prados, da floresta, das tgrandes rochas, do vasto céu, vinha de novo um riso voluptuoso, um vento que semeava à sua passagem uma poalha de fecundação. Nunca o jardim tivera, nas mais tépidas noites de Primavera, carícias tão profundas como nos derradeiros dias de bom tempo, quando as plantas adormeciam e se despediam umas das outras. O aroma dos germes amadurecidos carregava uma embriaguez de desejo através das folhas cada vez mais raras.

- Ouves, ouves? - balbuciava Albine ao ouvido de Serge, que se deixara cair na erva, ao pé da árvore.

Serge chorava.

- Bem vês que o Paradou não morreu, que nos grita que nos amemos, que ainda deseja o nosso casamento... Ôh, lembra-te, toma-me nos braços, sejamos um do outro!

Serge chorava.

Ela não disse mais nada; atraiu-o a si num abraço feroz e os seus lábios colaram-se àquele cadáver para o ressuscitar. Mas mais uma vez Serge só soube chorar.

Ao cabo de um grande silêncio, Albine falou. Estava de pé, desdenhosa, resoluta.

- Vai-te embora! - disse em voz baixa.

Serge levantou-se com um esforço, apanhou o breviário que caíra na erva e afastou-se.

- Vai-te embora! - repetiu Albine, que o seguia, expulsando-o diante de si, erguendo a voz.

E empurrou-o assim, de silvado em silvado, até à brecha, por entre as árvores impassíveis. E aí, como Serge hesitasse, de cabeça baixa, gritou-lhe violentamente:

- Vai-te embora! Vai-te embora!

Depois, devagar, reentrou no Paradou, sem virar a cabeça. A noite caía e o jardim era apenas um grande túmulo sombrio.

FREI Archangias, já acordado e em pé na brecha, batia com o pau nas pedras e praguejava abominàvelmente.

- Que o Diabo lhes quebre as coxas! Que os grude ao rabo um do outro como os cães! Que os arraste pelos pés, com o nariz na própria imundície!

Mas quando viu Albine expulsar o padre, ficou por momentos surpreendido. Depois, bateu com mais força com o pau e foi assaltado por um riso terrível

- Adeus, desavergonhada! Boa viagem! Vai fornicar com os teus lobos! Um santo é pouco para ti; precisas de rins mais sólidos Faz-te falta um carvalho. Queres o meu pau? Toma, deita-te com ele! Aqui tens o valentão capaz de te satisfazer.

E, apesar do crepúsculo, atirou o pau com toda a força atrás de Albine. Depois, olhando o padre Mouret, resmungou:

- . Sabia-o lá dentro. As pedras estavam fora do seu lugar... Escute, senhor cura: o seu pecado torna-me seu superior. Deus diz-lhe pela minha boca que o Inferno não tem tormentos bastante medonhos para os padres atolados na carne Se se dignar perdoar-lhe, será bom de mais, corromperá a Sua justiça.

Ambos desciam a passo lento para os Artauds. O padre não abrira os lábios. Erguia pouco a pouco a cabeça, já não tremia. Quando avistou ao longe, no céu violáceo, a barra negra do Solitário e a mancha vermelha das telhas da igreja, sorriu dèbilmente e nos seus olhos claros transpareceu uma grande serenidade

Entretanto, de vez em quando, o frade dava um pontapé numa pedra, voltava-se e apostrofava o companheiro:

- Acabou, desta vez? Quando tinha a sua idade, andava possesso; um demónio roía-me os rins. Por fim, aborreceu-se e deixou-me em paz. Já não tenho rins; vivo tranquilo... Oh, eu bem sabia que o senhor viria! Havia três semanas que o vigiava. Espreitava o jardim pelo buraco do muro Se pudesse, teria cortado as árvores, e muitas vezes lhes atirei pedras. Quando conseguia partir um ramo, ficava muito contente... Diga-me cá, é assim tão extraordinário o que se saboreia lá dentro?

Detivera o padre no meio do caminho e fitava-o com os olhos brilhantes de inveja terrível. As delícias entrevistas no Paradou torturavam-no. Havia semanas que se deitava à entrada, no chão, e farejava de ’longe os prazeres condenáveis. Mas o padre permaneceu mudo e o frade recomeçou a andar, troçando, resmungando palavras equívocas. Por fim, ergueu a voz:

- Não se esqueça de que quando um padre faz o que o senhor fez, escandaliza todos os outros padres... Eu próprio já não me sentia casto quando caminhava a seu lado.

O senhor envenenava o sexo... Mas agora vejo-o razoável. Vamos, não tem necessidade de se confessar; sei o que são essas coisas. O Céu aniquilou-lhe os rins como aos outros. Tanto melhor! Tanto melhor!

Triunfava, batia as mãos. O padre não o escutava, absorto nos seus pensamentos. O seu sorriso aumentara. E quando o frade o deixou diante da porta do presbitério, deu a volta e entrou na igreja. Esta estava muito sombria, como naquela terrível tarde de chuva em que a tentação o sacudira tão duramente, mas continuava pobre e recolhida, sem esplendores de ouro, sem sopros de angústia vindos do campo, mergulhada num silêncio solene. Apenas um bafo de misericórdia parecia enchê-la.

Ajoelhado diante do grande Cristo de papelão pintado, chorando lágrimas que deixava correr pelas faces como gotas de júbilo, o padre murmurava:

- Oh, meu Deus, não é verdade que não tenhais piedade! Sinto que já me perdoastes. Sinto-o na Vossa graça, que há horas voltou a descer sobre mim, gota a gota, trazendo-me a salvação de modo lento e seguro... Oh, meu Deus, foi no momento em que Vos abandonava que me protegestes com mais eficácia! Escondeste-Vos de mim para melhor me arrancardes ao mal. Deixastes a minha carne ir para diante a fim de me fazerdes esbarrar contra a sua impotência... E, agora - oh, meu Deus!-, vejo que me tínheis marcado para sempre com o Vosso selo, esse selo tremendo, cheio de delícias, que coloca um homem fora dos homens e cuja impressão é tão indelével que reaparece mais tarde ou mais cedo nos membros culpados! Destruistes-me no pecado e na tentação, devastastes-me com a Vossa chama, quisestes que em mim só houvesse ruínas para nelas descerdes em segurança. Sou uma casa vazia onde podeis habitar... Sede bendito, meu Deus!

Prostrava-se, balbuciava com os lábios no pó. A igreja estava vitoriosa; permanecia de pé, por cima da cabeça do padre, com os seus altares, o seu confessionário, o seu púlpito, as suas cruzes, as suas imagens sagradas. O mundo já não existia. A tentação extinguira-se como um incêndio dali em diante inútil à purificação daquela carne. O padre entrava na paz sobre-humana e soltava este grito supremo:

- Fora da vida, fora das criaturas, fora de tudo, pertenço-Vos, meu Deus, só a Vós, eternamente!

ÀQUELA hora, Albine vagueava ainda pelo Paradou, arrastando a agonia muda de um animal ferido. Já não chorava; tinha o rosto branco, atravessado na testa por uma grande ruga. Porque sofria toda aquela morte? De que falta era culpada para que, bruscamente, o jardim deixasse de cumprir as promessas que desde a infância lhe fazia? E interrogava-se, caminhando sempre em frente, sem ver as alamedas, onde a sombra se insinuava pouco a pouco. Contudo, sempre obedecera às árvores e não se lembrava de ter cortado uma flor. Conservara-se a filha amada da vegetação, escutara-a submissa, abandonara-se-lhe, cheia de fé nas venturas que lhe reservava. Quando, no último dia, o Paradou lhe gritara que se deitasse debaixo da árvore gigantesca, deitara-se, abrira os braços e repetira a lição segredada pelas ervas. Portanto, se não encontrava nada de que se censurar, era porque o jardim a traía, a torturava, só pelo prazer de a ver sofrer.

Parou e olhou em volta de si. As grandes massas sombrias de folhagem mantinham um silêncio recolhido; os carreiros, onde se erguiam paredes negras, tornavam-se impasses de trevas; os tabuleiros de relva, ao longe, adormeciam os ventos que os afloravam - e ela estendeu as mãos desesperadamente e soltou um grito de protesto. Aquilo não podia acabar assim! Mas a sua voz foi abafada pelas árvores silenciosas. Três vezes conjurou o Paradou a responder-lhe, sem receber uma explicação dos adtos ramos, sem que uma só folha tivesse compaixão de si. Depois, quando recomeçou a andar, sentiu-se caminhar na fatalidade do Inverno. Agora que já não interrogava a terra como criatura revoltada, ouvia uma voz baixa correr rente ao chão, a voz de despedida das plantas que desejavam umas às outras uma morte feliz. Ter bebido o sol de toda uma estação, ter vivido sempre em flor, ter exalado um perfume contínuo e depois morrer ao primeiro tormento, com a esperança de renascer em qualquer parte, não era uma vida bastante longa, uma vida bem preenchida, que a obstinação em viver mais estragaria? Ah, como devia ser bom estar morta, com uma noite sem fim diante de si para sonhar com o curto dia vivido, para lhe fixar eternamente as alegrias fugidias!

Deteve-se de novo, mas já não protestou no meio do grande recolhimento do Paradou. Julgava compreender, naquela altura. Sem dúvida, o jardim preparava-lhe a morte como um gozo supremo; era à morte que a conduzia de modo tão terno. Depois do amor, só havia a morte. E nunca o jardim a amara tanto. Mostrara-se ingrata acusando-o, ela que era a sua filha mais querida. A folhagem silenciosa, os carreiros mergulhados em trevas, os tabuleiros de relva em que o vento se amodorrava, só se calavam para a convidar a entregar-se à alegria de um longo silêncio. Queriam-na com eles no repouso do frio; sonhavam levarem-na consigo, de mistura com as folhas secas, com os olhos gelados como a água das nascentes, os membros rígidos como os ramos nus e o sangue adormecido no sono da seiva. Viveria a sua existência até ao fim, até à morte. Talvez até já tivessem resolvido que na próxima estação seria uma roseira do jardim, um salgueiro louro das pradarias ou uma jovem bétula da floresta. Era a grande lei da vida: devia morrer.

Então, pela última vez, reatou a sua corrida através do jardim, em busca da morte. Que planta odorífera precisava dos seus cabelos para aumentar o perfume das suas folhas? Que flor lhe pedia o dom da sua pele acetinada, a brancura imaculada dos seus braços, a laca delicada do seu colo? A que arbusto enfermo devia oferecer o seu sangue jovem? Desejaria ser útil às ervas que vegetavam à beira das alamedas, matar-se aí, para que nascesse de si uma verdura soberba, viçosa, repleta de aves em Maio e ardentemente acariciada pelo sol. Mas o Paradou ficou mudo durante muito tempo ainda, sem se decidir a confiar-lhe em que último beijo a levaria. Teve de regressar por todos os recantos, de reconstituir a peregrinação dos seus passeios. A noite caíra quase por completo e parecia-lhe que entrava pouco a pouco na terra. Subiu às grandes rochas, interrogou-as, perguntou-lhes se era nos seus leitos de seixos que devia expirar. Atravessou a floresta à espera, dominada por um desejo que lhe afrouxava o passo, que algum carvalho se abatesse e a sepultasse na majestade da sua queda. Correu ao longo dos regatos dos pratos, inclinando-se quase a cada passo para olhar o fundo das águas e ver se lhe estava preparada alguma cama entre os nenúfares. Em parte alguma a morte a chamava ou lhe estendia as mãos frescas. Contudo, não estava de modo algum enganada: era sem dúvida nenhuma o Paradou que a ia ensinar a morrer, como a ensinara a amar, Recomeçou a bater as moitas, mais ansiosa do que nas manhãs tépidas em que procurava o amor. E, de súbito, no momento em que chegava ao jardim, surpreendeu a morte nos perfumes da noite. Correu e riu com volúpia: devia morrer com as flores.

Primeiro, correu para o roseiral Ali, à derradeira claridade do crepúsculo, esquadrinhou os maciços e colheu todas as rosas que feneciam à aproximação do Inverno. Colhia-as do chão, sem se importar com os espinhos; colhia-as na sua frente, com ambas as mãos, e colhia-as por cima de si, pondo-se em bicos de pés e vergando os arbustos. Impelia-a tal sofreguidão que partia os ramos e não respeitava Os mais pequenos rebentos de erva. Em breve tinha os braços cheios de rosas e estas formavam um fardo debaixo do qual cambaleava. Em seguida, entrou no pavilhão, depois de despir o roseiral e de levar até as pétalas caídas; e mal deixou cair a sua carga de rosas no pavimento do quarto de tecto azul, desceu outra vez ao jardim

Então, procurou as violetas. Fazia ramos enormes, que apertava um a um ao peito. Em seguida, procurou os cravos e cortou-os todos, incluindo os botões. E fez molhos gigantescos de cravos brancos, semelhantes a repuxos de leite, e molhos gigantescos de cravos vermelhos, semelhantes a repuxos de sangue. Procurou ainda os goivos, as boas-noites, os heliotrópios e os lírios. Apanhava às mãos-cheias as últimas hastes desabrochadas dos goivos, cujas rendas de cetim amarrotava sem piedade; devastava os canteiros de boas-npites, que abriam apenas ao pôr do Sol; ceifava o tabuleiro de heliotrópios e amontoava a sua colheita de flores, e metia debaixo dos braços molhos de lírios. Quando ’achou que estava suficientemente carregada, subiu ao pavilhão e atirou para junto das rosas as violetas, os cravos, os goivos, as boas-noites, os heliotrópios e os lírios. E tornou a descer, sem sequer tomar fôlego.

Desta vez dirigiu-se para o canto melancólico que era como que o cemitério do jardim. Um Outono escaldante fizera desabrochar ali segunda camada de flores da Primavera. Encarniçou-se sobretudo nos canteiros de tuberosas e de jacintos, de joelhos no meio das ervas, e juntou as flores colhidas com cuidados de avarento. As tuberosas pareciam-lhe flores preciosas capazes de destilarem gota a gota ouro, riquezas e bens extraordinários. Quanto aos jacintos, todos cobertos de cachos floridos, dir-se-iam colares de pérolas prontas a derramar sobre ela, uma a uma, alegrias ignoradas dos homens. E embora desaparecesse debaixo da braçada de jacintos e tuberosas que cortara, devastou mais adiante um campo de papoulas e ainda encontrou maneira de arrasar um campo de maravilhas - papoulas e maravilhas que foram amontoar-se por cima das tuberosas e dos jacintos. Voltou a correr ao quarto de tecto azul, a fim de largar a carga, tomando o cuidado para que o vento lhe não roubasse nem um pistilo, e tornou a descer.

Que havia de colher agora? Ceifara o jardim inteiro. Quando se punha em bicos de pés, já via, ao lusco-fusco, o jardim morto, privado dos olhos ternos das suas rosas, do riso vermelho dos seus cravos e dos cabelos perfumados dos seus heliotrópios. No entanto, não podia regressar com os braços vazios... E então atirou-se às ervas e às verduras, e rastejou, com o peito colado ao solo, como se procurasse, num supremo amplexo de paixão, levar consigo a própria terra. Chegara a vez de ceifar as plantas aromáticas - as ervas-cidreiras, as hortelãs-pimentas, as verbenas-, com as quais encheu a saia. Encontrou uma cercadura de baisamitas e não deixou nem uma folha, e até se apoderou de dois grandes funchos, que pôs às costas como se fossem duas árvores. Se pudesse, arrastaria atrás de si, preso nos dentes apertados, todo o manto de verdura do jardim. Depois, no limiar do pavilhão, virou-se e deitou um derradeiro olhar ao Paradou. Estava às escuras; a noite, que caíra por completo, lançara-lhe um pano negro sobre o rosto. E ela subiu, para não mais descer.

Em breve o grande quarto ficou ornamentado. Colocara um candeeiro aceso em cima da consola, separava as flores amontoadas no meio do pavimento e fazia grandes ramos que distribuía por todos os cantos. Primeiro, por detrás do candeeiro, em cima da consola, colocou os lírios, a formarem um alto fundo arrendado que suavizava a luz com a sua pureza branca. Depois, levou mãos-cheias de cravos e de goivos para cima do velho canapé, cujo estofo pintado estava já coberto de ramos vermelhos, desbotados havia cem anos; e o estofo desapareceu debaixo de um maciço de goivos eriçados de cravos, que subia pelo espaldar do canapé encostado à parede. Enfileirou então os quatro cadeirões diante da alcova e encheu o primeiro de maravilhas, o segundo de papoilas, o terceiro de boas-noites e o quarto de heliotrópios. Os cadeirões ficaram submersos, apenas com as pontas dos braços à vista, como se fossem marcos floridos. Por fim, cuidou da cama; puxou para junto da cabeceira uma mesinha e colocou-lhe em cima um grande monte de violetas. E, às braçadas, cobriu por completo o leito com todos os jacintos e todas as tuberosas que trouxera, numa camada tão espessa que trasbordava pelos lados, pelos pés e pela cabeceira e pendia em grandes cachos A cama parecia estar em plena floração. Mas ainda restavam as rosas, que espalhou ao acaso, um pouco por todos os lados, sem sequer ver onde caíam. A consola, o canapé e os cadeirões, todos receberam a sua parte e um canto da cama ficou inundado de rosas. Durante alguns minutos choveram rosas em catadupas, foi um autêntico dilúvio de flores pesadas como pingos de tempestade, que formavam charcos nos buracos do pavimento. E como, apesar de tudo, o monte não diminuía, acabou por tecer grinaldas que pendurou pelas paredes. Os Amores de gesso que traquinavam por cima da alcova tiveram grinaldas de rosas ao pescoço, nos braços e em volta dos rins, e os seus ventres e as suas nádegas nus foram vestidos de rosas. O tecto azul, os painéis ovais enquadrados por laços de fita cor de carne e as pinturas eróticas comidas pelo tempo, tudo foi coberto com um manto de rosas. O grande quarto estava ornamentado; agora, podia morrer.

Por um instante, ficou de pé, a olhar à sua volta Pensava, procurava adivinhar se a morte estaria ali. Depois, juntou as verduras aromáticas - ervas-cidreiras, hortelãs-pimentas, verbenas, balsamitas e funchos -, torceu-as, dobrou-as e fabricou tampões com os quais calafetou as fendazinhas, os mais pequenos buracos da porta e as janelas; correu os cortinados de algodão branco, grosseiramente pespontados, e muda, sem um suspiro, deitou-se na cama, em cima da floração dos jacintos e das tuberosas.

Experimentou ali a derradeira volúpia. Com os olhos muito abertos, sorria ao quarto. Como amara naquele quarto! Como morria feliz ali! Naquele momento, já nada impuro lhe sugeriam os Amores de gesso, nada perturbante descia já das pinturas onde membros de mulher se ofereciam. Debaixo do tecto azul só havia o perfume sufocante das flores. E dir-se-ia que esse perfume não era mais do que o aroma do antigo amor que para sempre impregnara a alcova e a deixara tépida, um aroma aumentado, centuplicado, tornado tão forte que a asfixiava. Talvez fosse o hálito da dama que morrera ali havia um século, hálito que por seu turno agora a empolgava... Imóvel, com as mãos juntas sobre o coração, continuava a sorrir, escutava os perfumes que lhe sussurravam na cabeça e a atordoavam. Tocavam-lhe uma música estranha em que havia cheiros que a adormeciam devagar, muito suavemente. Primeiro, foi um prelúdio alegre, infantil: as suas mãos, que haviam torcido as verduras aromáticas, exalavam o cheiro áspero ’das ervas esmagadas, narravam-lhe as suas correrias de garota através do parque bravio do Paradou. Em seguida, ouviu-se um canto de flauta, pequeninas notas ’musicais dedilhadas pelo monte de violetas postas em cima da mesa, junto da cabeceira da cama; e aquela flauta desfiava a sua melodia sobrepondo-se ao sopro calmo, ao acompanhamento regular dos lírios da consola, cantava os primeiros encantos do seu amor, a primeira confissão, o primeiro beijo debaixo das grandes árvores. Sentia-se, porém, cada vez mais sufocada, à medida que a paixão se manifestava por meio da explosão brusca dos cravos de aroma apimentado, cuja voz de cobre dominava por momentos todas as outras. Imaginava-se agonizante no meio da frase doentia das maravilhas e das papoilas, que lhe recordava os tormentos dos seus desejos, mas bruscamente tudo se acalmava, respirava mais livremente, mergulhava numa doçura maior, embalada pela gama de sons descendentes dos goivos, que se prolongavam e convertiam em surdina até se confundirem com o cântico adorável dos heliotrópios, cujo aroma de baunilha assinalava a aproximação das núpcias. As boas-noites contribuíam, por seu turno, aqui e ali, com um trilo discreto. Depois, houve um silêncio e as rosas entraram, languidamente, na sinfonia. Do tecto deslizaram vozes de um coro longínquo, num conjunto amplo que, ao princípio, escutou com um leve calafrio. Mas o coro foi subindo de tom e em breve se tornou vibrante, cheio de sonoridades prodigiosas, que a envolveram nas suas ressonâncias. Chegara o momento das núpcias e as fanfarras de rosas anunciavam o instante temível. Com as mãos a comprimirem-lhe cada vez com mais força o coração, Albine desfalecia, moribunda, arquejante. Abria a boca, à procura do beijo que a devia asfixiar, quando os jacintos e as tuberosas irromperam e a envolveram num último suspiro, tão profundo que se sobrepôs ao coro das rosas. Albine acabava de morrer no soluço supremo das flores.

No dia seguinte, por volta das três horas, Teuse e frei Archangias, que conversavam no alpendre do presbitério, viram o cabriole do Dr. Pascal atravessar a aldeia a todo o galope do cavalo. Chicotadas violentas partiam da capota descida.

- Aonde irá a correr daquela maneira? - murmurou a velha criada. - É capaz de partir o pescoço...

O cabriole chegou à base do cabeço onde se erguia a igreja. Bruscamente, o cavalo empinou-se, parou, e a cabeça do doutor, toda branca e desgrenhada, apareceu debaixo da capota.

- Serge está aí? - gritou com voz furiosa.

Teuse, que avançara até à beira do cabeço, respondeu: -’O senhor cura está no quarto. Deve estar a ler o breviário... Deseja dizer-lhe alguma coisa? Quer que o chame? O tio Pascal, cujo rosto parecia transtornado, fez um gesto terrível com a mão direita, que empunhava o chicote, e redarguiu, inclinando-se mais, com risco de cair:

- Ah, está a ler o breviário?!... Não, não o chame. Estrangulá-lo-ia, o que seria inútil... Diga-lhe que Albine morreu, ouviu? Diga-lhe da minha parte que morreu!

E desapareceu, chicoteou o cavalo com tal brutalidade que o animal se encabritou. Mas, andados vinte passos, parou de novo, deitou mais uma vez a cabeça fora da capota e gritou com mais força:

- Diga-lhe também da minha parte que ela estava grávida! Estou certo de que a notícia lhe dará prazer.

O cabriole retomou a sua correria louca e começou a subir, com solavancos inquietantes, a estrada pedregosa da vertente que levava ao Paradou. Teuse ficara completamente sufocada. Frei Archangias ria, escarninho, e fitava-a com olhos onde brilhava uma alegria feroz. Por fim, ela empurrou-o e quase o fez estatelar-se nos degraus da escada.

- Desapareça daqui! - gaguejou, zangando-se por seu turno e descarregando o seu mau humor sobre ele. - Acabarei por o detestar!... Parece impossível, regozijar-se com a morte de uma pessoa! É verdade que nunca gostei da rapariga, mas morrer na sua idade não é caso para se ficar alegre... Ande, vá-se embora! E não continue a rir-se assim, ou atiro-lhe com a tesoura à cara!

Fora apenas por volta da uma hora que um camponês, ao ir a Plassans vender as suas hortaliças, anunciara ao Dr. Pascal a morte de Albine e acrescentara que Jeanbernat lhe pedia que fosse lá. Naquele momento, o médico sentia-se um pouco aliviado pelo grito que soltara ao passar pela igreja. Desviara-se do seu caminho para ter essa satisfação. Censurava-se por via daquela morte como se fosse um crime em que tivesse participado. Durante todo o caminho não cessara de se cobrir de injúrias, sempre a limpar os olhos a fim de poder ver por onde conduzia o cavalo e sem se importar de levar o cabriole por cima dos montes de pedras, dominado pelo desejo instintivo de virar a carruagem e partir um braço ou uma perna. Quando meteu pelo caminho que seguia ao longo do muro interminável do parque, assaltou-o uma esperança: talvez Albine tivesse tido apenas uma síncope. O camponês contara-lhe que se asfixiara com flores. Ah, se chegasse a tempo, se a pudesse salvar! E fustigava ferozmente o cavalo, como se se fustigasse a si mesmo.

O dia estava lindo. Tal como nos belos dias de Maio, o pavilhão apareceu-lhe todo inundado de sol. Mas a hera que amarinhava até ao telhado tinha as folhas manchadas de ferrugem e as abelhas já não zumbiam em volta dos goivos que cresciam entre as fendas. Prendeu precipitadamente o cavalo e empurrou a cancela do jardinzinho. Reinava ali o grande silêncio de sempre, no meio do qual Jeanbernat gostava de fumar o seu cachimbo. Simplesmente, o velho não estava no seu pouso habitual, sentado no banco, diante das suas alfaces.

- Jeanbernat! - chamou o doutor.

Ninguém lhe respondeu. Então, quando entrou no vestíbulo, viu uma coisa que nunca vira: ao fundo do corredor, debaixo da caixa da escada, estava aberta uma porta que deitava para o Paradou. O jardim imenso estendia-se iluminado pelo sol pálido, coberto de folhas amarelecidas, absorto na sua melancolia outonal. Franqueou o limiar daquela porta e deu alguns passos na erva húmida.

- Ah, é o doutor! - exclamou a voz calma de Jeanbernat. O velho estava a abrir uma cova, a grandes golpes de enxada, ao pé de uma amoreira. Endireitara a alta estatura ao ouvir passos e depois entregara-se de novo à sua tarefa, arrancando a caída enxadada um enorme torrão de terra fértil.

- Que está a fazer? - perguntou-lhe o Dr. Pascal. Jeanbernat endireitou-se novamente e enxugou o suor da testa à manga da jaqueta.

- Estou a abrir uma cova - respondeu com simplicidade. - Ela sempre gostou muito do jardim e sentir-se-á bem aqui.

O doutor sentiu que a comoção o estrangulava e ficou um instante à beira da cova, sem conseguir falar, a ver Jeanbernat cavar com energia.

- Onde está ela? - perguntou por fim.

- Lá em cima, no seu quarto. Deixei-a em cima da cama. Quero que lhe ausculte o coração, antes de a meter aqui dentro... Eu já a auscultei, mas não ouvi nada.

O médico subiu. Ninguém tocara no quarto. Apenas uma janela estava aberta. As flores, murchas, asfixiadas no próprio perfume, espalhavam apenas o cheiro cediço da sua carne morta. Ao fundo da alcova, porém, notava-se um calor asfixiante que parecia pairar no quarto e evolar-se ainda em ténues fiapos de vapor. Albine, muito branca, com as mãos pousadas no coração e um sorriso nos lábios, dormia no meio do seu leito de jacintos e tuberosas. Parecia muito feliz, assim morta. De pé diante da cama, o doutor olhou-a longamente, com a fixidez dos sábios que às vezes tentam ressurreições. Depois, nem sequer quis tocar-lhe nas mãos juntas; beijou na na testa, no lugar em que a sua maternidade pusera já uma leve mancha escura. Em baixo, no jardim, a enxada de Jeanbernat continuava a cavar com golpes surdos e regulares.

No entanto, passado um quarto de hora, o velho subiu. Terminara a sua tarefa. Encontrou o médico sentado diante da cama, de tal modo absorto que nem parecia sentir as lágrimas grossas que lhe corriam uma a uma pelas faces. Os dois homens trocaram apenas um olhar e, depois de um silêncio, Jeanbernat disse lentamente, repetindo o seu gesto largo:

- Como vê, eu tinha razão: não há nada, nada, nada... Tudo isso é uma farsa.

Estava de pé e de vez em quando apanhava as rosas caídas da cama, que atirava uma a uma para cima das saias de Albine.

- As flores só vivem um dia - disse ainda-, ao passo que as urtigas daninhas, como eu, até roem as pedras onde desabrocham... Agora, boas noites, já posso rebentar. Apagaram-me o meu último raio de sol. Que farsa!

Sentou-se, por seu turno. Não chorava, mantinha o desespero rígido de um autómato cujo mecanismo se tivesse avariado. Estendeu maquinalmente a mão e pegou num livro que estava na mesinha coberta de violetas.

Era um dos alfarrábios do sótão, um volume desirmanado de Holbach, que estivera a ler desde manhã, enquanto velava o corpo de Albine. Como o médico continuasse calado, abatido, começou a folhear as páginas. Mas, de súbito, assaltou-o uma ideia:

-Se me ajudasse - disse ao doutor-, poderíamos descê-la e enterrá-la com todas estas flores.

O tio Pascal estremeceu e explicou-lhe que não era permitido conservar assim os mortos.

- Como não é permitido?! - gritou o velho. - Pois bem, permiti-lo-ei a mim próprio!... Então ela não é minha? Julga que deixarei os padres levarem-na? Que experimentem, se querem ser recebidos a tiro!

Levantara-se e brandia terrivelmente o seu livro. O doutor pegou-lhe nas mãos, apertou-as nas suas e pediu-lhe que se acalmasse. Depois, falou durante muito tempo, disse tudo o que Lhe veio aos lábios. Acusou-se, deixou escapar fragmentos de confidências, referiu-se vagamente aos que haviam morto Albine.

- Escute - disse por fim-, ela já não lhe pertence, tem de a entregar.

Mas Jeanbernat abanava a cabeça, recusava com acenos. Estava, porém, abalado e acabou por dizer:

- Está bem. Levem-na, mas oxalá ela lhes quebre os braços! Desejaria que saísse da terra onde a querem sepultar e que os matasse a todos de pavor... Por outro lado, tenho um assunto a tratar lá em baixo, aonde irei amanhã... Adeus, doutor; a cova será para mim

E depois de o médico se retirar, voltou a sentar-se à cabeceira da morta e retomou gravemente a leitura do seu livro.

NAQUELA manhã, havia grande rebuliço no pátio da capoeira do presbitério. O magarefe dos Artaiids acabava de matar Mateus, o porco, debaixo do alpendre. Désirée, entusiasmada, segurava os pés de Mateus, enquanto o sangravam, beijava-o no lombo para que sentisse menos a faca e dizia-lhe que tinham de o matar, agora que estava tão gordo. Ninguém como ela cortava de um só golpe, com um cutelo, a cabeça de um ganso, ou abria a goela de uma galinha com uma tesoura O seu amor pelos animais, aceitava muito alegremente semelhante morticínio. Era necessário, dizia, para dar lugar aos outros que nasciam. Estava contentíssima.

- Menina - resmungava Teuse, de minuto a minuto-, isso vai fazer-lhe mal. Que falta de senso pôr-se em semelhante estado só porque se matou um porco!... Está afogueada como se tivesse dançado uma noite inteira.

Mas Désirée batia as mãos, não parava quieta, afadigava-se. Quanto a Teuse, tinha as pernas “enterradas no corpo”, como ela dizia, pois desde as seis horas da manhã que não parava, sempre a cirandar da cozinha para a capoeira, para fazer os enchidos. Foi ela quem bateu o sangue em duas grandes terrinas, à torreira do sol, embora correndo o risco de nunca mais acabar, visto Désirée estar sempre a chamá-la, por tudo e por nada. É necessário dizer que mesmo na altura em que o magarefe sangrava Mateus, Désirée teve uma grande comoção ao entrar no estábulo: Lise, a vaca, estava prestes a parir. Então, dominada por uma alegria extraordinária, a jovem acabou de perder a cabeça.

- Vai-se um, vem outro! - gritou, saltando, girando sobre si mesma. - Anda ver, Teuse!

Eram onze horas. De súbito, saiu um cântico da igreja e ouviu-se um murmúrio confuso de vozes desoladas, de orações balbuciadas, às quais se sobrepuseram bruscamente fragmentos de frases latinas ditas em voz alta.

- Anda! - repetiu Désirée pela vigésima vez.

- Tenho de ir tocar o sino - murmurou a velha criada. - Assim nunca mais acabo... Que quer agora, menina?

Mas não esperou pela resposta. Correu para o meio de um bando de galinhas que bebiam gulosamente o sangue das terrinas e enxotou-as a pontapé, furiosa. Depois, .tapou as terrinas e gritou:

- Olhe, em vez de me estar sempre a chamar, era melhor que tomasse conta destas ladras!... Se as deixa à solta, fica sem enchidos, ouviu?

Désirée riu-se. Olha o grande mal, as galinhas terem bebido um pouco de sangue! Até as engordava... Depois, quis levar Teuse para junto da vaca, que estava muito agitada.

- Tenho de ir tocar o sino... O enterro vai sair. Não ouve? Naquele momento, na igreja, as vozes aumentavam e arrastavam-se num tom moribundo, acompanhadas do ruído de passos, muito nítido.

- Não, anda ver - insistia Désirée, empurrando-a para o estábulo. - Diz-me o que é preciso fazer.

A vaca, estendida na palha, voltou a cabeça e seguiu-as com os seus grandes olhos. Désirée teimava que ela tinha, com certeza, necessidade de alguma coisa. Talvez a pudessem ajudar, para que sofresse menos... Teuse encolhia os ombros. Então os animais não sabiam tratar de si mesmos naquelas circunstâncias? O que era preciso era não a atormentar; mais nada! Dirigia-se, por fim, para a sacristia quando, ao passar junto do alpendre, soltou novo grito:

- Veja, veja!-exclamou, com o punho estendido.-Ah, a velhaca!

Enquanto esperava que o chamuscassem, Mateus estava estendido de costas, debaixo do alpendre, com as patas no ar. O buraco aberto pela faca, no pescoço do animal, ainda se encontrava fresco e dele caíam gotas de sangue, como pérolas. Pois uma franganita branca entretinha-se a debicar uma a uma as gotas de sangue, com ar muito delicado.

- Ora essa, está-se a regalar! - disse Désirée, simplesmente.

Inclinou-se, deu palmadas no ventre inchado do porco e acrescentou:

- Então, ’meu gorducho, roubaste-lhes tantas vezes a comida que é justo que te comam agora um pouco do pescoço...

Teuse tirou rapidamente o avental e embrulhou nele o pescoço de Mateus. Em seguida, apressou-se a entrar na igreja. A porta principal acabava de chiar nos gonzos ferrugentos e o cântico ecoou ao ar livre, debaixo do sol calmo. E, de súbito, o sino pôs-se a tocar, em badaladas regulares. Désiree, que ficara ajoelhada diante do porco, sempre a dar-lhe palmadas no ventre, levantou a cabeça e escutou, sem deixar de sorrir. Depois, ao ver-se sozinha, olhou sorrateiramente à sua volta e esgueirou-se para o estábulo, cuja porta fechou atrás de si. Ia ajudar a vaca.

O portãozinho do cemitério, aberto de par em par para deixar passar o corpo, pendia encostado ao muro, meio arrancado. No recinto deserto, o sol dormitava nas ervas secas. O cortejo entrou, com os presentes a saLmodiarem o último versículo do Miserere. Depois, silêncio.

- Requien ceternam dona ei, Domine - prosseguiu, em voz grave, o padre Mouret.

- Et lux perpetua luceat ei - acrescentou frei Archangias, com um mugido de chantre.

Vincent caminhava adiante, de sobrepeliz, com a cruz, uma grande cruz de cobre, meio desprateada, que segurava com as mãos, muito alta. Á seguir caminhava o padre Mouret, pálido na sua casula preta, de cabeça direita, a cantar sem um tremor de lábios, com os olhos fixos ao longe, diante de si. A vela acesa que empunhava dir-se-ia uma gota de luz quase invisível à claridade do dia. E a dois passos dele, quase a tocar-lhe, vinha o caixão de Albine, que quatro camponeses traziam numa espécie de padiola pintada de preto. O caixão, mal coberto por um pano muito curto, mostrava, do lado dos pés, as tábuas de pinho novo, em que as cabeças dos pregos punham centelhas de aço. A meio do pano amontoavam-se muitas flores, mãos-cheias de rosas brancas, de jacintos e de tuberosas, trazidos do próprio leito da morta.

- Prestem atenção! - exclamou frei Archangias, dirigindo-se aos camponeses, quando estes inclinaram um pouco a padiola para que ele pudesse passar sem ficar preso no portão. - Ainda acabam por deitar tudo por terra!

E segurou o ataúde com a manápula.

Transportava a caldeirinha da água benta, à falta de um acólito, e substituía igualmente o cantor, o guarda campestre, que não pudera vir.

- Entrem também - disse, virando-se.

Era outro enterro, o do pequeno de Rosalie, que morrera na véspera, numa crise de convulsões. Estavam presentes a mãe, o pai, a velha Brichet, Catherine e duas raparigas, a Ruiva e Lisa. Estas últimas transportavam o caixão do pequenito, cada uma por uma ponta

Bruscamente, as vozes calaram-se e reinou de novo o silêncio. O sino continuava a tocar, a intervalos regulares, de modo confrangedor. O cortejo atravessou todo o cemitério e dirigiu-se para o canto formado pela igreja e pelo muro da capoeira. Os gafanhotos saltavam e os lagartos esgueiravam-se rapidamente para os seus buracos. Um calor pesado abatia-se ainda sobre aquele recanto de terra bem adubada. Os estalidos das ervas quebradas pelos passos dos acompanhantes lembravam um murmúrio de soluços sufocados.

- Parem aí - disse o frade, barrando o caminho às duas raparigas que transportavam o pequenito. - Esperem a sua vez. Não ’têm necessidade nenhuma de se nos meterem à frente das pernas.

E as raparigas pousaram o pequeno no chão.

Rosalie, Fortune e a velha Brichet pararam no meio do cemitério, mas Catherine seguiu sorrateiramente frei Archangias. A cova de Albine fora aberta à esquerda da sepultura do padre Caffin, cuja pedra branca parecia, ao sol, coberta de palhetas prateadas. A cova, fresca da manhã, abria-se entre espessos tufos de erva e à beira dela pendiam hastes de plantas altas meio arrancadas. No fundo, uma flor caída manchava a terra negra com as suas pétalas vermelhas. Quando o padre Mouret se adiantou, a terra mole cedeu debaixo dos seus pés e ele teve de recuar para não cair dentro da cova.

- Ego sum... - entoou, com voz clara e firme, que dominou as lamentações do sino.

E, durante a antífona, os assistentes lançaram instintivamente olhares furtivos para o fundo da cova, ainda vazia.

Vincent, que espetara a cruz ao pé da sepultura, diante do padre, empurrava com o pé bocadinhos de terra, que se entretinha a ver cair, o que provocava o riso ’de Catherine, inclinada por detrás dele para ver melhor. Os camponeses tinham pousado a padiola na erva e estiravam os braços, enquanto frei Archangias preparava o hissope.

- Aqui, Voriau l - chamou Fortune.

E o grande cão negro, que fora farejar a padiola, voltou a rosnar.

- Porque trouxeram o cão? - perguntou Rosalie.

- Ora, veio atrás de nós... - respondeu Lisa, rindo desfarçadamente.

Todos falavam a meia voz em volta do caixão do pequenito. O pai e a mãe esqueciam-no de vez em quando, mas depois calavam-se assim que reparavam nele, ali entre os dois, a seus pés.

- O tio Bambousse não quis vir? - perguntou a Ruiva. A velha Brichet ergueu os olhos ao céu.

- Falava em quebrar tudo, ontem, quando o pequeno morreu - murmurou. - Não, não é um bom homem, desculpa que o diga diante de ti, Rosalie... Pouco faltou para me estrangular, gritando que o tinham roubado, que teria dado um dos seus campos de trigo se o pequeno morresse três dias antes do casamento...

- Ninguém podia adivinhar... - observou Fortune, com ar manhoso.

- Que importa que o velho se zangue? - acrescentou Rosalie.- De toda a maneira já estamos casados...

Sorriram-se por cima do caixãozinho, com os olhos brilhantes, e Lisa e a Ruiva acotovelaram-se Depois, puseram-se todos muito sérios e Fortune pegou num torrão de terra para enxotar Voriau, que andava a rondar por entre as velhas lousas.

- Olha, está quase a acabar... - sussurrou a Ruiva.

De facto, o padre Mouret terminava o De profundis diante da cova. Depois, aproximou-se do caixão, a passos lentos, endireitou-se e olhou-o um instante sem sequer pestanejar. Parecia mais alto e a serenidade do seu rosto transfigurava-o. Baixou-se e apanhou um punhado de terra que espalhou em cruz em cima do caixão. A seguir recitou, em voz tão clara que nem uma sílaba se perdeu:

- Revertitur in terram suam unde erat, et spirítus redít aã Deum qui dedit illum.

Um calafrio percorreu os assistentes. Lisa, pensativa, disse com ar aborrecido:

- Não tem graça nenhuma lembrarmo-nos de que também havemos de passar por isto...

Frei Archangias estendera o hissope ao padre, que o sacudiu por cima do corpo, diversas vezes, e murmurou:

- Requiescat in pace.

- Amen - responderam ao mesmo tempo Vincent e o frade, um em tom tão agudo e o outro em tom tão grave que Catherine teve de pôr a mão na boca para não soltar uma gargalhada.

- Não, não tem graça nenhuma - continuava Lisa. - Não veio ninguém a este enterro. Sem nós, o cemitério estaria vazio.

- Diz-se que foi ela que se matou - interveio a velha Brichet.

- É verdade, bem sei - atalhou a Ruiva. - O frade nem queria que fosse enterrada junto dos cristãos. Mas o senhor cura respondeu que a eternidade era para toda a gente. Eu estava lá... Apesar disso, o Filósofo podia ter vindo.

Mas Rosalie fê-las calar, murmurando:

- Olhem, vem aí o Filósofo!

Efectivamente, Jeanbernat acabava de entrar no cemitério e caminhava direito ao grupo que rodeava a cova. O seu passo era ainda firme, e tão leve que nem fazia barulho. Adiantou-se e parou atrás de frei Archangias, cuja nuca pareceu querer, por instantes, devorar com os olhos. Depois, quando o padre Mouret acabava as orações, tirou tranquilamente uma navalha da algibeira, abriu-a e cortou, de um só golpe, a orelha direita do frade.

Ninguém teve tempo de intervir. O frade soltou um urro.

- A esquerda fica para a outra vez - disse, calmamente, Jeanbernat, atirando a orelha para o chão.

E tornou a sair.

O espanto foi tal que ninguém se lembrou de o perseguir,

 

Frei Archangias deixara-se cair no monte de terra fresca retirada da cova e tapava o ferimento com o lenço. Um dos quatro homens da padiola quis levá-lo dali, acompanhá-lo a casa, mas ele recusou com um gesto. Deixou-se ficar, com ar feroz, à espera, pois queria ver descerem Albine à sepultura.

- Enfim, chegou a nossa vez - disse Rosalie, com um leve suspiro.

Entretanto, o padre Mouret demorava-se junto da cova, a ver os homens passarem cordas em volta do caixão de Albine, para o descerem suavemente. O sino continuava a tocar, mas Teuse devia estar fatigada, pois as badaladas eram cada vez mais irregulares, como que irritadas com a demora da cerimónia. O sol tornava-se mais quente. A sombra do Solitário girava lentamente no meio das ervas, cheias de altos e baixos provocados pelas sepulturas. Quando o padre Mouret teve de recuar, a fim de os coveiros poderem trabalhar mais à vontade, os seus olhos pousaram na lápide do padre Caffin, um sacerdote que amara e -que dormia ali, calmamente, debaixo das flores silvestres.

Depois, de repente, enquanto o caixão descia, sustentado pelas cordas, cujos nós lhe arrancavam estalidos, ouviu-se grande alvoroço para os lados da capoeira, atrás do muro. A cabra balia; os patos, os gansos e os perus batiam o bico e as asas; as galinhas cantavam em coro, como se tivessem acabado de pôr o ovo, e o galo fulvo, Alexandre, soltava o seu grito de clarim. Ouviam-se até os pulos dos coelhos, que abalavam as tábuas das barracas. E, sobrepondo-se a toda aquela vida ruidosa da arraia-miúda dos animais, soavam grandes gargalhadas. No meio de um roçagar de saias, apareceu Désirée, desgrenhada, com os braços nus até aos cotovelos e o rosto afogueado de triunfo, agarrada ao espigão do muro. Devia estar empoleirada no monte de estrume.

- Serge! Serge! - chamou.

Naquele momento, o caixão de Albine chegava ao fundo da cova. Retiraram as cordas e. um dos camponeses lançou a primeira pàzada de terra.

- Serge! Serge! - gritou com mais força, batendo as mãos. - A vaca teve um vitelo!

 

                                                                                 Emili Zola  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

           Voltar à Página do Autor