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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O CRUZADO - P.2 / Michael Alexander
O CRUZADO - P.2 / Michael Alexander

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Depois da partida do batedor, o Barão Bernières cambaleou e inclinou-se perigosamente para a frente. O Tio Ramón agarrou-o a tempo de evitar que ele caísse no chão e sentou-o entre o seu séquito de hospitalários.

- Meu senhor, - disse Ramón - com vossa permissão, vou assumir o comando das forças até que estejais recuperado. - O Barão não respondeu. Os cavaleiros hospitalários que o rodeavam, incluindo os lugar-tenentes do Barão, corroboraram a sugestão de Ramón. Estavam todos de olhos no chão, embaraçados com o comportamento do seu comandante.

 

 

 

 

Ramón deu instruções ao Coronel Pierre Delacorte, primeiro lugar-te-nente do Barão, para que preparasse as equipas de hospitalários para entrarem em acção com a torre de assédio. A seguir tomou o comando dos infantes hospitalários que transportavam os potes de fogo grego para a linha avançada de catapultas.

O fogo grego foi inventado em Bizâncio há perto de seiscentos anos. Os nossos irmãos gregos guardaram ciosamente o segredo da sua composição, até que os muçulmanos o roubaram ou descobriram por acaso, no século passado. É feito de enxofre, salitre e azeite, tudo misturado em potes de barro. Em Calatrava, o Tio Ramón já nos tinha falado do seu poder de destruição. Ramón tinha sido sujeito à barragem de pedras e enxofre dessa mistura durante o fracassado cerco dos sarracenos a Margat. Nessa altura, Ramón era cavaleiro da Ordem que defendia o castelo contra um exército ido do Egipto. O cerco durou meio ano e os cavaleiros famintos viram-se obrigados a comer as suas próprias montadas e finalmente os seus próprios companheiros mortos. Segundo disse Ramón, um dos padres da ordem concedeu uma indulgência extraordinária que permitia o consumo de carne dos mortos para salvar os vivos. O padre recusou-se a comer carne cristã e morreu poucos dias depois, sendo o seu corpo e sangue vítimas do seu próprio édito.

Antes de avançarem sobre Margat, os sarracenos bombardearam o castelo à catapulta - com fogo grego que explodia no momento do impacto, produzindo uma nuvem de fogo e fumo. Vários camaradas de Ramón morreram nas chamas; outros sufocaram com o fumo. As forças de defesa estiveram quase a render-se. Os sarracenos tinham posicionado a sua torre de assédio a poucos pés de

distância de uma das torres do castelo. Os seus soldados começavam a escalar por escadas encostadas às muralhas do castelo. No momento em que Ramón murmurava uma última oração, o engenho sarraceno implodiu. As escadas caíram e os soldados infiéis que por elas trepavam foram estatelar-se no chão.

Os batedores cristãos tinham escavado um poço de mina debaixo das muralhas do castelo. Quando a torre de assédio chegou ao lugar do poço, enfiou-se pelo chão dentro. Com a chegada do calor de verão e o fim da época de campanha, os comandantes sarracenos decidiram retirar. O cerco foi levantado, e Margat continuou na posse dos cristãos. Dos cento e setenta e cinco cavaleiros que inicialmente guardavam o castelo, continuavam vivos vinte e um, e o Tio Ramón era um deles.

Não sei por que razão o Barão Bernières tinha prescindido do fogo grego no primeiro ataque. Talvez porque estivesse ansioso por romper a fortificação antes dos homens de Dom Fernando e terá pensado que os projecteis de pedra conseguiriam penetrar mais rapidamente nas muralhas do castelo.

O Tio Ramón declarou que ia retomar o plano de batalha inicial. As equipas de hospitalários que operavam as catapultas continuariam a lançar pedras numa tentativa de rebentar a muralha ocidental, mas fariam um intervalo para carregar potes de fogo grego. Esse intervalo precederia e daria cobertura a um assalto da torre de assédio contra uma das torres do castelo. Ramón dizia que o fogo grego iria gerar no interior do castelo agitação suficiente para distrair a atenção dos sarracenos do nosso ataque.

A partir do momento em que o fogo grego foi levado para a linha avançada de catapultas e lançado para dentro do castelo, o cariz da batalha alterou-se profundamente. Voando por cima das muralhas do castelo, o fogo grego explodia, soltando baforadas de fumo. Eclodiram pequenos focos de incêndio em vários pontos das muralhas do castelo em cuja construção tinha sido usada madeira. O barulho e o pânico gerados no interior do castelo levantaram o moral dos nossos soldados, arrancando-os ao torpor em que estavam mergulhados desde a chacina dos nossos irmãos.

A torre de assédio tinha sido empurrada até uma posição em que quase ficava ao alcance dos besteiros sarracenos quando o Tio Ramón deu ordens para que os cavaleiros de Calatrava subissem ao piso superior da torre. Seríamos nós os primeiros a assaltar os baluartes. Os cavaleiros hospitalários ocupariam os pisos inferiores, agindo como reforços. Antes de entrar com os seus homens na torre de assédio, o Tio Ramón passou o comando operacional do campo de batalha para o Coronel Delacorte, primeiro lu-gar-tenente do Barão.

- Coronel, - disse Ramón - ordeno-vos que vos mantenhais vivo para comandar a batalha.

- Ramón, - retorquiu o Coronel Delacorte - a minha sobrevivência, tal como a vossa, está nas mãos de Jesus Cristo. Espero que Ele olhe para nós com condescendência no dia de hoje.

Nós entrámos atrás de Ramón na torre de assédio, em fila, e subimos a escada de corda que ligava os vários pisos. A subida era difícil por causa do peso adicional da armadura e armamento que cada um de nós transportava - perto de sessenta libras. A escuridão aumentava à medida que subíamos e portanto nos afastávamos da entrada, única fonte de luz dentro da torre. A pele das palmas das nossas mãos roçava no entrançado tosco. Eu sentia as gotas de sangue quente que ficavam na corda. Quando ia a chegar ao último piso, Ramón pegou-me por um braço e encaminhou-me para o canto fronteiro esquerdo da máquina. Ali fiquei, sem ver nada, com a espada e o escudo bem agarrados.

O tempo que os outros cavaleiros levaram a preencher os pisos inferiores da torre parecia interminável. Ouvíamos o raspar das suas botas no chão de madeira. Ramón falou por cima do burburinho.

- Quando estiverdes dentro do castelo, homens, - disse ele - irão oferecer-vos toda a espécie de comida muçulmana. Sede cavalheiros, e comei o que vos puserem à frente. Não vamos querer ofender os nossos anfitriões recusando as suas mais preciosas iguarias.

Entre nós propagou-se um riso nervoso, um suspiro longo e anormal, um libertar de medos ocultos. A maioria de nós não iria certamente sobreviver ao assalto. Quando fosse baixada a prancha de assalto, os Cavaleiros de Calatrava seriam os primeiros soldados cristãos a entrar no castelo. As nossas baixas seriam pesadas - são sempre, na primeira linha de atacantes - normalmente cinquenta por cento, às vezes cem.

- Recebi informações - disse Ramón - do nosso espião sobre a existência secreta de um harém no castelo. Diz ele que nesse harém estão as mulheres mais bonitas de toda a Arábia. Talvez eu possa pedir uma indulgência especial ao Bispo de Acre para permitir que os cavaleiros vencedores tenham oportunidade de provar a fruta local. Parece que o Bispo é um homem muito compreensivo e aprecia esse tipo de coisas. Ou talvez melhor ainda seja pedir a bondosa intercessão do Papa. Que dizeis, Francisco?

Desta vez as gargalhadas foram mais fortes, mais demoradas, mais generalizadas - até os devotos se esqueceram de que o eram e alinharam com o grupo de Ramón.

- Eu digo - respondi eu - muito obrigado, Tio Ramón. Se sobreviver, vou visitar o dito harém. Se sobreviver.

- Francisco, - disse Ramón - sois um rapaz encantador. Mas preocupais-vos sem necessidade. Encarais a vida com demasiada gravidade. Acho que uma visita ao harém era o remédio ideal para vós. É, tenho a certeza disso. Bernard...

- Sim, Tio - respondeu Bernard.

- Lembra-me, - disse Ramón - quando tivermos tomado este castelo, de que o Francisco tem de ser o primeiro cavaleiro a entrar no harém.

Ramón continuou a falar, metendo-se com vários cavaleiros, gozando com o requintado guarda-roupa do Barão Bernières - Fiquei admirado por não ver o Barão usar as dragonas de ouro na batalha. Assentavam-lhe muito bem no refeitório, lá em Acre, não assentavam, Andrés? - falando de tudo menos da batalha em que estávamos prestes a ver-nos envolvidos. As palavras de Ramón não dissiparam o medo - o pânico que me apertava o coração quando pensava que tinha de descer por aquela prancha e saltar para a torre do castelo. Mas esses terríveis momentos de isolamento ficaram reduzidos, diluindo-se no fulgor da valentia de Ramón, no tom descontraído e destemido da sua voz.

Havia cavaleiros, veteranos, porventura tão corajosos como Ramón, que guardavam ciosamente para si o segredo da bravura, como se receassem que, ao revelá-lo ou partilhá-lo, ele perdesse força. Ramón franqueava a sua bravura como uma talha funda onde todos nós podíamos beber livremente.

Quando a lotação da máquina estava completa, os infantes hospitalários começaram a empurrar a torre, debaixo de um fogo cada vez mais intenso dos defensores sarracenos. As abas laterais, pregadas às ilhargas da torre de assédio durante a manhã, adejavam como um par de asas. Davam protecção a quem ia a pé, mas mesmo assim os sarracenos ainda conseguiam alvejar, a intervalos regulares, os soldados que iam a empurrar-nos. Ouviam-se bem os responsos de quem fazia tão grande esforço e os gritos lancinantes dos que eram atingidos, os pedidos insistentes de reforços à medida que iam aumentando as baixas sofridas. Havia alturas em que os sons da guerra abafavam o discurso de Ramón, mas ele continuava sempre a falar.

O avanço da torre era enervantemente lento. Por várias vezes a máquina ficou mesmo parada. Eu perdi a noção do tempo - tinham-se passado minutos, horas ou dias desde que tínhamos entrado naquela câmara escura? Não fazia a mínima ideia da posição em que estávamos relativamente ao castelo - se estávamos perto da batalha ou a muitos pés de distância dela. Ouvíamos o embate constante das setas contra a torre - e o estilhaçar da madeira. De vez em quando víamos a chispa de uma ponta de seta a perfurar a parede da máquina. O calor provocado pelas setas incendiárias fazia subir a temperatura a um ponto sufocante, quase intolerável. Escorria-me o suor das sobrancelhas para dentro dos olhos, mas o meu elmo mantinha-se no seu lugar, pronto para a batalha, e eu não me atrevia a tirá-lo para aliviar as picadas dolorosas. Doía-me a garganta, de tanta secura.

Se a máquina pegasse fogo, não tínhamos salvação possível. A torre transformar-se-ia numa colossal pira funerária para os Cavaleiros de Calatrava. Perguntei a mim mesmo como iriam noticiar em Espanha a nossa morte. Não podiam dizer que tínhamos morrido antes de enfrentar o inimigo - que depois de tanto treino, depois de o Rei Jaime ter pessoalmente pedido a nossa presença no Levante, nem um único infiel tinha morrido sob as poderosas espadas dos Calatrava. Não, iam com certeza imaginar um fim mais glorioso.

E os meus pais, como iriam receber a notícia? Ela ia, por certo, matar a minha mãe. Um filho morto pela água, o outro pelo fogo. Dois mártires na família. O meu pai ia fugir mais, viajar para mais longe, de torneio em torneio. Mas nem assim podia escapar à amarga realidade que era a extinção da sua semente.

Felizmente, o fogo não entrou no nosso compartimento. As peles embebidas em vinagre que revestiam a torre revelaram-se um antídoto eficaz contra as setas incendiárias. Mas não acredito que o inferno fosse mais quente do que o interior daquela torre.

As palavras sussurradas de um dos meus camaradas distraiu-me a atenção. Reconheci aquela voz. Era Enrique Sánchez, jovem amante de Esmeralda, que recitava a oração pelos mortos.

O Senhor é o meu pastor; nada me falta.

Antes que Enrique chegasse ao segundo verso, já a maioria dos meus vizinhos se tinha associado a ele. Eu não entoei a oração, embora sentisse algum conforto com aqueles versos que tão bem conhecia, murmurados ao ritmo da sua métrica calmante.

Guia-me a águas transparentes.

Refrigera a minha alma.

Às vezes as águas transparentes são turvas por baixo. Veio-me à ideia a luta de Isabel debaixo do gelo, os seus olhos cinzentos, as suas mãos macias, as suas lágrimas de prata. O seu lenço de seda que eu trago colado ao peito, empapado no meu suor, talvez em breve no meu sangue. E pensei no que estaria ela a fazer naquele momento - a treinar o tiro ao arco, a conversar com os servos.

Preparas uma mesa perante mim na presença dos meus inimigos...

Os meus inimigos - os soldados sem nome que esperaram por mim. A mente pode ficar encurralada no medo do julgamento que se aproxima, na corrosiva suspeita de que a morte está à nossa espera mesmo ali, ao pé de nós. A escuridão que fazia dentro do engenho seria para muitos dos meus camaradas a sombra da própria morte, que rapidamente caía sobre eles.

Os cavaleiros dos pisos abaixo do nosso acompanharam a oração de Enrique - um canto fúnebre - um canto de sóis que para sempre atingiam o ocaso. A torre inteira balançava ao ritmo daquela balada e das setas ameaçadoras dos infiéis.

Senti que Ramón, que estava mesmo atrás de mim, se agitava, desconfortável, na sua armadura. Acho que o desconforto lhe advinha da tristeza e pessimismo da oração que os outros diziam. Talvez porque achasse que ela iria contribuir para uma certa resignação que não era compatível com a disposição feroz, necessária para um assalto rápido e brutal à torre.

Mas Ramón não tentou interromper a balada. Nem creio que o tivesse conseguido, se tentasse. Pelo contrário, entrou na oração. A sua voz forte sobrepôs-se à entoação melancólica de Enrique e introduziu uma nota de desafio. De certo modo, sob a direcção de Ramón, a melodia dolente transformou-se em canção de combate. A oração transformou-se numa súplica não por nós mas pelos infiéis que em breve iriam morrer sob o poder das nossas espadas.

Percebemos que estávamos perto das muralhas do castelo quando ouvimos os berros dos infiéis, palavras estranhas e sedutoras, e sentimos o cheiro inconfundível do fumo sulfuroso das explosões de fogo grego que atingiam as defesas sarracenas. Tremia-me a espada entre as mãos, tilintando contra as pranchas de cedro. Apertei bem o punho com ambas as mãos, mas não consegui parar a tremura.

Vou morrer, pensei. Eu e o Andrés vamos fazer companhia ao meu irmão antes de o dia acabar. Se calhar, dentro de segundos. O que é que acontece se as minhas pernas não quiserem andar quando descer a prancha de desembarque? Terei de entrar na torre do castelo para redimir a alma do meu irmão? Terei de matar um infiel? Ou bastar-me-á morrer com honra? Isso será suficiente para que a alma do Sérgio suba ao paraíso? Será suficiente para a minha própria salvação? Senhor, peço que me dês forças para Te servir.

A prancha fez um grande estrondo ao bater na torre. Um sol encandean-te invadiu o nosso compartimento. Doíam-me os olhos do esforço de enxergar alguma coisa. Ouvi berros a toda a minha volta - Avançar, avançar, avançar! - Os homens que iam à minha frente encaminharam-se a medo para a saída. A primeira vaga de cavaleiros a descer a prancha foi recebida pelo som agreste de bestas a disparar, urros selvagens, guinchos horrorosos. O nosso santuário tinha sido profanado.

Quando os meus olhos se acomodaram à luz, vi a rampa. Descia ligeiramente, a grossa prancha de madeira - dez pés de largo por quinze de comprido. Uma passagem para a morte. Por cima dos ombros dos cavaleiros que iam à minha frente, via vários sarracenos. Estavam ajoelhados, de bestas apontadas para a abertura. A torre de pedra do castelo era redonda e guarnecida de ameias, pelo que os atiradores sarracenos podiam apontar as suas bestas por entre as frestas da fortificação.

Os nossos cavaleiros irromperam cá para fora, empurrados para a prancha, que desceram a correr, em alvoroço, acossados. Galindo Fánez empunhava a espada que poucas horas antes tinha encostado ao pescoço do nosso criado francês. Percorreu a prancha pesadamente. Segurou o escudo diante do corpo e ergueu timidamente a espada. As setas trespassaram-lhe o escudo, fazendo-o voar e pedaços, e depressa ele ficou só com a pega de couro na mão. As setas penetraram-lhe então na cota de malha, rangendo ao atravessar os elos da rede metálica. Galindo parou de repente e virou-se para a máquina, desorientado, como quem se tivesse esquecido de alguma coisa - tinha estampada no rosto uma expressão de dolorosa perplexidade.

Quando Pancho, El Cidiota, saiu para a prancha, hesitou por uma fracção de segundo, a observar os adversários. Nesse preciso momento, uma seta perfurou-lhe o pescoço. Da ferida jorrou um arco de sangue, que foi cair como chuva para além do limite da prancha. Pancho tombou para a frente e foi bater de chapa na prancha.

A seguir saiu Enrique Sánchez. Com o penduricalho de couro de Esmeralda a balançar-lhe do pescoço, avançou pela rampa abaixo.

- Por ti, Esmeralda - bramou Enrique - com toda a minha alma.

Enrique foi alvejado na barriga. Continuou pela prancha abaixo até ir esbarrar contra a torre.

Incessante, a ordem - Avançar, avançar, avançar! - continuava a ecoar do lado de dentro do engenho. Do lado de fora, os gritos lancinantes dos que avançavam para a morte.

Ramón e seus ajudantes estavam à minha direita. Avançavam lentamente para a abertura. Eu e o Andrés íamos mesmo atrás deles.

Estávamos mesmo a chegar à saída. Dentro de segundos seria a nossa vez. Ouviam-se lá mais atrás os cavaleiros hospitalários. Vinham a subir a escada para preencher os lugares deixados pelos nossos camaradas mortos.

E foi então que nos vimos de frente para a luz, para um céu azul sem nuvens. Estávamos completamente à vista do inimigo, uma companhia de alguns vinte besteiros muçulmanos posicionados a intervalos regulares, formando um círculo. Nenhum parecia estar ferido. Estavam quase todos em pleno acto de recarregar as bestas.

Era o momento de que Ramón nos tinha falado durante a instrução, em Calatrava - a "janela de vulnerabilidade". Era essencial, no entender de Ramón, encurtar o mais depressa possível o espaço entre os besteiros e nós. À distância, os sarracenos podiam alvejar-nos um a um. Em combate corpo a corpo, os sarracenos tinham grande dificuldade em defender-se das nossas pesadas espadas. Se conseguíssemos chegar ao pé deles antes de terem tempo de recarregar as armas, se conseguíssemos chegar ao pé deles antes de terem tempo de apontar as bestas, tínhamos boas hipóteses de sobreviver.

Levando os dois adjuntos atrás de si, Ramón avançou, tonitruante, pela prancha abaixo. Os sarracenos pareceram intrigados, surpreendidos pelos berros ferozes. Levantaram os olhos, das armas para os cavaleiros atacantes. A espada de Ramón desceu com a fúria de um tornado. A cabeça da sua vítima tombou, separada do corpo. O homem ficou direito, suspenso do acto de recarregar a besta, como se o facto de ter perdido a cabeça não passasse de um contratempo passageiro. Abrindo caminho à espadeirada, Bernard e Roberto caíram em cima de um trio de besteiros postados ao lado esquerdo, sem lhes dar tempo de levantarem as bestas.

O Andrés e eu avançámos a seguir. Ressoavam-me no coração os gritos ferozes de Ramón. Corri em frente, ansioso por encontrar um destinatário para os meus golpes de espada. Ao atravessar a ponte, olhei para o chão, cem pés mais abaixo. Os corpos desconjuntados dos meus irmãos jaziam esparramados no terreiro poeirento. Depois levantei os olhos e fixei-os num dos defensores infiéis. Estava em cima da torre, sobre o lado direito. Corri para ele. Ele estava a meter uma seta na câmara da sua besta. Ouvi a minha própria voz produzir um grito estranho, bárbaro. O sarraceno fixou a seta e puxou o arco para trás. Antes de levantar a arma, levantou os olhos para mim. Uns olhos negros e tristes. A minha espada caiu-lhe sobre a cabeça, abrindo-lhe o crânio a meio como um coco aberto ao cutelo. Os sucos quentes, cinzentos, esguicharam como mirra para a minha cara em brasa.

O homem caiu para a frente, desamparado. À minha esquerda, outro sarraceno apontou a besta para mim. Eu levantei o escudo para me defender. Ele disparou. A seta voou lentamente na minha direcção. Pareceu-me demorar vários segundos a atingir o meu escudo. Com facilidade perfurou a madeira. A lâmina da seta desacelerou e parou ao chegar-me mesmo ao peito. Eu desfiz-me do escudo e avancei para ele. Ele ia a agarrar na adaga que trazia à cinta quando eu o trespassei com a minha espada. A lâmina, bem afiada, entrou-lhe pela barriga com a mesma facilidade com que entraria pela água do mar.

Já retirar a espada foi mais difícil. Tentei puxá-la com uma das mãos. O morto resistia, prendendo o instrumento nas entranhas como se ele lhe pertencesse. Enquanto me debatia com a espada que não queria sair, vi pelo canto do olho um sarraceno que carregava sobre mim com um machado na mão. Achei que era melhor desistir da espada e usar o punhal para me defender do inimigo. Mas um punhal é fraca defesa contra um machado. E então achei que talvez conseguisse arrancar a espada a tempo de travar a machadada iminente. Agarrei-me ao punho com ambas as mãos. Pus um pé em cima do ombro do morto. E puxei com quanta força tinha.

O sarraceno foi mais rápido do que eu pensava. Saltou-me em cima antes que eu conseguisse recuperar a minha arma. Ergueu o machado no ar, pronto a trespassar-me com ele. Eu retesei-me à espera do embate, como se tivesse esperanças de que os meus músculos tensos rechaçassem o cutelo. Não senti medo. Nem então, nem depois. Não que o medo tivesse desaparecido. Tinha apenas sido posto de lado. Não havia espaço para ele.

Mas o machado não me atingiu. O atacante cambaleou. Largou a arma e caiu para a frente. Enlaçou os braços em volta de mim. Depois perdeu as forças e o corpo deslizou pelo meu abaixo. Por cima do seu ombro, vi que ele tinha nas costas um punhal espetado até ao punho. Ramón estava a uns dez pés de distância, com a mão direita aberta, como se estivesse a apontar para aquele amplexo inverosímil. Quando o sarraceno caiu ao chão, eu retomei a luta pelo resgate da minha espada. Até que consegui arrancá-la, com a lâmina coberta de um brilho escarlate.

Não vi nenhum sarraceno pela frente. Virei-me e olhei para a saída da torre de assédio - uma visão gloriosa. Aquela abertura tinha deixado de ser o foco de atenção das setas sarracenas. Os nossos cavaleiros avançaram sem medo. Os soldados que acabavam de entrar na refrega correram atrás dos sarracenos que restavam. Mataram uns a golpes de espada. A outros, atiraram-nos da torre abaixo. Os gritos dos condenados ecoaram pelo vale como um bando de gaivotas estridentes.

Eu caí de joelhos. Fechei os olhos. Os gritos de vitória dos meus camaradas envolveram-me.

Abençoado Sérgio. Estou vivo. Obrigado, Senhor. Obrigado por me dares a coragem de Te servir.

Quando abri os olhos, vi o Tio Ramón de joelho em terra. Afagava ao de leve a cabeça de um dos nossos cavaleiros caídos por terra. Era Roberto, seu adjunto. Morto.

Enrique jazia ao lado do cadáver de Roberto. Os seus gemidos chamaram a atenção de Ramón. Respirava com dificuldade, em pequenos sorvos de ar. Tinha sido atingido por duas setas na barriga. Os intestinos saíam-lhe por entre os elos da cota de malha e manchavam-lhe a túnica. Estava todo borrado, exalando um fedor insuportável a tripas e excrementos. Eu aproximei-me dele sem ser visto e fiquei de olhos pregados naquele rosto lívido. Ramón segurava-lhe a mão.

- Enrique, parece - disse Ramón em voz baixa - que ides entrar no harém antes de mim. Não fiqueis com as mulheres bonitas todas para vós.

Enrique tossiu e o sangue espirrou para a cara de Ramón.

Ramón debruçou-se sobre ele e apertou-lhe a mão com força. - Estou orgulhoso de vós - disse Ramón. - Lutastes com bravura, Enrique. Hei-de visitar a vossa família e contar-lhe do vosso heroísmo e sacrifício.

Não creio que Enrique tenha ouvido as palavras de consolação de Ramón. Tentava desesperadamente respirar e parecia olhar fixamente para as nuvens que se viam por trás de Ramón.

- Por favor dizei adeus por mim à Esmeralda - disse Enrique. Dai-lhe uma moeda ou duas. Nunca cheguei a fazer contas com ela.

O queixo de Enrique descaiu. As maçãs do rosto imobilizaram-se. Os olhos fixaram-se num esgar vago. Uma morte de mártir. As últimas palavras dedicadas a uma rameira, as próprias fezes como leito de morte, um cheiro tão pestilento que eu tive de virar a cara.

Ramón tocou-me no braço e perguntou: - Francisco, onde está o Andrés?

O ar esvaiu-se-me do corpo, deixando-me nas entranhas uma cavidade oca. Tinha-me esquecido do Andrés. A última vez que o vira fora a atravessar a rampa, de cenho fechado, espada erguida. E se está estropiado? E se está morto? O que é que eu vou fazer? O que é que vou dizer a Isabel?

Abri caminho pelo meio de um aglomerado de cavaleiros. Agarrei os meus camaradas pelas túnicas brancas. Virei-os para lhes ver as caras. Falavam-me de muito longe, talvez sobre a batalha, por palavras ininteligíveis. Olhei para os cadáveres espetados contra a parede da torre. Não, não pode ser. Por favor, meu Deus. Chamei-o. Não tive resposta. Até que olhei lá para cima e o vi.

O Andrés estava em pé no parapeito, a olhar para norte, para longe do castelo. Parecia que estava a estudar os penhascos de uma montanha distante, como se procurasse uma boa linha de escalada, uma vereda que o levasse para além do horizonte, para bem longe da carnificina de Toron. Uma rajada de vento veio preencher o vazio que eu sentia no estômago. Chamei pelo Andrés. Ele virou-se e olhou na minha direcção. Não pareceu reconhecer o seu amigo. Tinha os antebraços cobertos de sangue. O manto branco e a cara estavam raiados de negro, do fumo.

- Francisco - disse ele finalmente, quase em tom de pergunta, como se tivesse dificuldade em reconhecer-me.

O mundo tinha mudado - o ardor do combate, ver camaradas serem esquartejados como animais no matadouro, a facilidade e arrogância com que um homem mata outro, a excitação da vitória. A esperança e o medo à solta.

- Sim, sou eu - disse eu. - Estou aqui.

Deixei o Andrés no parapeito e encaminhei-me para o centro da torre, onde o Tio Ramón e vários adjuntos dos hospitalários estavam acocorados em círculo. Deitavam contas às baixas sofridas e discutiam o plano de batalha.

Ramón contava as nossas baixas pelos dedos ensanguentados. Trinta e nove cavaleiros da Ordem de Calatrava estavam mortos ou gravemente feridos em consequência do assalto. Restávamos quarenta e oito.

- Jesus Cristo - disse Ramón - foi misericordioso.

Ramón mandou que os adjuntos dos hospitalários encarregassem os seus soldados de evacuar os mortos e os feridos. Depois voltou de novo a atenção para a batalha. Traçou no chão de pedra um mapa imaginário do castelo, que passou a constituir a base do planeamento da defesa da torre, e todos os presentes apontavam para o diagrama invisível como se ele estivesse desenhado em pergaminho.

- Temos de obrigar os sarracenos a empenhar o máximo possível de recursos na contenção e tentativa de esmagamento da nossa intrusão - disse Ramón. - Vamos criar o máximo de perturbação que pudermos para aliviar a pressão deles sobre o ataque que Dom Fernando vai fazer a partir de leste.

Antes de dar ordens concretas, Ramón passou em revista a estrutura da torre do castelo. Havia três entradas, disse ele, três pontos a partir dos quais os sarracenos podiam contra-atacar - uma escada de caracol escavada na pedra, que descia até às entranhas do castelo, e duas escadas em túnel, uma de cada lado, que davam para galerias pelas quais os sarracenos patrulhavam as muralhas e mantinham comunicação com as outras torres.

Ramón deu instruções aos adjuntos dos hospitalários para que trouxessem vinte dos seus melhores arqueiros. - Ponde cinco arqueiros a defender cada poço de escada - disse Ramón. - As passagens são estreitas. Duvido que possam subir dois homens de cada vez, por isso não devem ser difíceis de defender. Os outros dez vão disparar da torre para o pátio do castelo. Os Calatrava mandam batedores pela escada do meio verificar as defesas dos sarracenos no interior da torre.

- Alguma pergunta? - inquiriu Ramón, mas não parecia disposto a responder a nenhuma e também ninguém perguntou nada.

Um dos hospitalários falou com um ajudante, que desceu rapidamente pelo interior do engenho com as instruções dadas por Ramón. Passados vários minutos, arqueiros hospitalários escalaram a torre e foram instalar-se no parapeito interior a disparar para o pátio do castelo, gerando um cenário de pandemónio. Soldados muçulmanos, a arrastar os companheiros feridos, correram à procura de refúgio atrás das arcadas e colunas que circundavam o pátio do castelo. Os outros arqueiros hospitalários formaram uma falange a cada uma das entradas da torre, disparando de vez em quando sobre os sarracenos que tentavam atacar a nossa posição.

Os cavaleiros de Calatrava que não tinham ouvido as ordens de Ramón foram rapidamente informados pelos seus camaradas sobre a missão que lhes estava confiada. Juntámo-nos à volta do centro da torre a espreitar para a abertura. Era uma passagem escura. De cá de cima só se viam os degraus estreitos do princípio da descida - a partir daí desapareciam em espiral para o desconhecido.

Enquanto pensávamos na situação em que nos encontrávamos e esperávamos pela ordem de Ramón para descermos as escadas, Marcos Vicens declarou solenemente: - Tio Ramón, o Alejandro e eu oferecemo-nos como voluntários para ser os primeiros cavaleiros a descer a escada de caracol.

Marcos e Alejandro eram gémeos verdadeiros. Muito poucos cavaleiros conseguiam distinguir um irmão do outro. Em Calatrava, Ramón obrigava-os a usar fitas de cores diferentes à volta do pulso para os distinguir. Marcos tinha uma fita azul, Alejandro vermelha. Alejandro disse-me uma vez que se sentia como se fosse gado com aquela fita. Segundo ele, o pai costumava recorrer a um expediente idêntico para saber que animais estavam doentes ou precisavam de reforço alimentar.

Eu via bem a diferença entre os dois irmãos. Marcos tinha as bochechas ligeiramente mais cheias que Alejandro. Marcos olhava a direito quando falava com uma pessoa, ao passo que Alejandro olhava sempre para o chão. Eu disse isto mesmo a Ramón na esperança de obviar à necessidade das fitas. Ramón respondeu com uma gargalhada afável.

- Tendes uma alma sensível, Francisco - disse Ramón. Talvez seja melhor perderdes alguma dessa delicadeza antes de chegarmos à Síria.

Do que eu não me apercebi foi de que nos dias seguintes Ramón ficou de olho nos dois irmãos. Uma semana depois da nossa conversa, Ramón disse a Marcos e a Alejandro que ficavam proibidos de usar fitas nos pulsos, ou em qualquer outro ponto do corpo.

Na torre do castelo, Ramón meneava a cabeça, surpreendido, olhando fixamente para Marcos. Todos nós ficámos um tanto ou quanto intrigados com a sua proclamação. Não me parece que Marcos alguma vez na vida se tenha oferecido como voluntário, nem mesmo para se alistar na Ordem de Calatrava. Os pais de Marcos e Alejandro tinham quatro filhos varões. O primogénito ficou como herdeiro. O pai destinou o segundo à Igreja e o terceiro e o quarto, os gémeos, ao exército de Cristo. Em Calatrava, Marcos e Alejandro não pareciam fadados para o combate. Cumpriam sempre as suas responsabilidades, mas quase sempre de uma forma mecânica. Quando os nossos instrutores viravam costas, Marcos e Alejandro abrandavam logo o ritmo do que estavam a fazer - tiro ao arco, luta, corrida. Marcos mostrava maior paixão pela flauta, que tocava e guardava debaixo da enxerga.

Apesar de não gostar do regime de vida marcial de Calatrava, Marcos acabava de se oferecer para uma perigosa expedição em Toron. Os primeiros soldados a penetrar num poço de escada inimigo têm pela frente uma jornada incerta. Funcionam muitas vezes como sacrifício necessário, exploração que dá aos que vão a seguir a posição das ratoeiras do inimigo - alçapões onde os sarracenos se acoitam e de onde disparam sobre os soldados inimigos através de uma abertura; escadas de madeira que facilmente se podem retirar na escuridão e fazer com que um cavaleiro vá ao encontro da morte estatelando-se no chão de pedra.

Talvez, pensei eu, Marcos tivesse levado um golpe violento na cabeça que lhe afectou o juízo. Ou talvez, num momento de fraqueza enquanto a torre de assédio se aproximava do castelo, tivesse feito ao Senhor a promessa de O servir com mais coragem, a troco de protecção divina.

Imediatamente antes da descida de Marcos e Alejandro, Ramón deu as instruções finais - ouvidos à escuta dos corredores que passam ao lado e por cima do túnel, muita atenção aos alçapões, dar cada passo com vagar e com grande cuidado. Marcos e Alejandro ouviram o nosso mestre com toda a atenção, mas já sabiam tudo o que ele estava a dizer. Todos nós sabíamos. Tínhamo-nos treinado para tais situações, simulando nas torres da fortaleza de Calatrava o assalto a castelos hostis.

Marcos e Alejandro encetaram a descida, pisando ao de leve o chão de pedra. Levavam as espadas em riste à sua frente. Iam de costas coladas à parede para ver o máximo possível de degraus que havia para baixo. Ao fim de alguns segundos, desapareceram da nossa vista.

Juntámo-nos à volta da entrada, à espera, à escuta ansiosa de qualquer ruído vindo do poço. Para além do clamor das escaramuças desencadeadas pelos hospitalários na defesa da torre, não se ouvia nada. O longo período de silêncio deu-nos esperanças acrescidas. Talvez, pensei eu, os sarracenos tivessem ficado tão desorientados com a conquista da torre que estavam a descurar a defesa do seu interior. Talvez os dois irmãos tivessem chegado incólumes às entranhas do castelo.

Quando finalmente ouvimos um ruído, não tivemos dúvidas - era o som de uma seta disparada à queima-roupa a perfurar malha metálica e a entrar em carne. Seguiu-se um gemido e a voz de Alejandro a chamar por Marcos. Deviam estar muito lá no fundo. As palavras eram quase inaudíveis.

- Marcos, - dizia Alejandro - não te mexas. Eu vou aí buscar-te.

Fez-se um silêncio e depois ouviu-se ao longe o ruído de líquido a esparramar-se, como se alguém tivesse despejado vários baldes de água pelo poço da escada abaixo.

- Não vejo nada! - Era a voz de Alejandro, aterrorizada, arrepiante. - Estou cego!

Aquilo só podia ser efeito do azeite. Os sarracenos recorriam muitas vezes a ele para deter sitiantes que tentassem escalar ou derrubar as muralhas da fortaleza. Mas nunca me tinha constado que o usassem no interior de um castelo. Pelos vistos, os infiéis queriam queimar vivos os invasores.

Ramón puxou Bernard pela túnica. - Bernard, vai buscar o Alejandro, - disse Ramón - e volta imediatamente para cima. Este buraco é uma ratoeira.

Na expressão de Bernard não se lia medo nem preocupação. Nunca percebi aquele homem. Ou escondia habilmente os seus sentimentos ou não os tinha - um soldado perfeito. Desceu as escadas sorrateiramente, em silêncio, como um fantasma.

- Alejandro, - gritou Ramón cá de cima - já vai ajuda a caminho.

Antes que Ramón tivesse acabado a frase, ouvimos a erupção de chamas, o sibilar do fogo, o crepitar das brasas, os gritos angustiados de Alejandro.

Ramón deu um murro violento no chão de pedra. - Porra! - disse. - Grandessíssima porra!

O som dos gritos lancinantes de Alejandro ecoava pelas entranhas do castelo como se fosse a voz de Jonas a chamar de dentro da grande baleia.

- Ajudai-me, Tio! - implorava ele. - Estou a ser queimado vivo!

- Alejandro, fica aí quieto - gritou Ramón de cá de cima. - Já aí vai chegar socorro.

Passados vários minutos mais, Ramón ficou inquieto. Pôs-se a palmilhar a torre num círculo pequeno e distraído, enervando todos os cavaleiros habituados à sua calma proverbial. Parou à entrada do poço da escada e chamou por Bernard. Não obteve resposta. Ao cabo de uma curta pausa, Ramón retomou o seu círculo confuso. De repente parou. Desembainhou o punhal que trazia atado à perna. Ia ele próprio resgatar os cavaleiros encurralados.

- Tio, - disse o Andrés - eu vou buscar o Alejandro. O vosso lugar é aqui, a comandar os soldados.

É claro que o Andrés tinha razão. Ramón estava a dirigir a defesa da torre. A sua falta, a sua morte, teria gerado uma inaceitável ausência de liderança. Mas Ramón não estava disposto a expor o Andrés ou qualquer dos seus outros cavaleiros com menos experiência aos perigos daquela passagem. Pelo menos por enquanto. Ramón ignorou as palavras do Andrés e prosseguiu com os preparativos, prendendo bem ao antebraço as correias do escudo de madeira.

- Tio, - disse o Andrés, levantando a voz - vou lá eu.

- Não - disse Ramón, sem sequer olhar para o Andrés. - Eu já estive dentro de passagens mais perigosas do que esta. Não me vou demorar.

- Tio Ramón, - disse eu - não podeis deixar aqui os vossos homens sozinhos. Eu e o André vamos lá buscar o Marcos e o Alejandro. Nós somos capazes. Foi para isso que fomos treinados.

Ramón olhou para mim com uma expressão de contrariedade.

- Tio, o Francisco tem razão - disse o André. - Não podeis deixar os homens sem comandante. Quereis pôr-nos nas mãos do Barão Bernières?

A pergunta do Andrés fez Ramón interromper os preparativos. Olhou em volta, pensativo, para o seu grupo de cavaleiros - os que tinham sobrevivido ao assalto. Ramón virou-nos as costas e dirigiu-se aos arqueiros, que disparavam uma barragem cerrada de flechas para dentro do castelo. Ficou a olhar fixamente para o pátio do castelo. Os Cavaleiros de Calatrava fixaram os olhos nas suas costas largas, à espera de uma decisão. Os gemidos de Alejandro continuavam, subindo pelo poço das escadas como uma bruma melancólica.

Ramón chamou um dos arqueiros da guarnição da torre e pegou-lhe na arma. Depois regressou ao círculo de cavaleiros. Entregou-me o arco e uma aljava de flechas.

- O ataque - disse Ramón - vem de cima, de uma fresta no tecto. Vais ter de matar de uma só flechada. Francisco, enfia a espada na bainha. O Andrés dá-te cobertura com isto. Se vos atirarem azeite de cima, mesmo que caia à vossa frente, correi pela escada acima e desisti.

Eu e o Andrés encaminhámo-nos para a abertura. Ramón agarrou-nos aos dois pelo ombro.

- Tio, - disse António de Figueres - deixai-os ir. Nunca vi arqueiro mais certeiro que o Francisco.

António fez o elogio no pretérito, como se fosse um epitáfio, como se estivesse a falar com apreço de um companheiro de armas que tivesse morrido havia muitos anos. Mas o seu apelo produziu o efeito desejado. Ramón largou-nos e nós iniciámos a descida.

A passagem era escura e fria. Uma camada de humidade revestia as paredes exteriores, brilhando à escassa luz que restava da que entrava lá por cima, pela abertura. O musgo encharcado que crescia entre as lajes de pedra transpirava um rastro bafiento. O Andrés e eu revezávamo-nos no comando da descida. Não tardou que estivéssemos a avançar na mais profunda escuridão. Deixámos de ouvir qualquer rumor da batalha. Do tecto caíam pingas de água que ressoavam no corredor. O meu arco estava esticado e pronto. Os nossos músculos retesados em vigilância. Estávamos à espera de uma emboscada a qualquer momento, vinda de qualquer direcção.

A cada passo que dávamos, parávamos e tentávamos perscrutar a escuridão. Procurávamos o caminho tacteando as paredes rugosas. Pouco depois, senti a presença de alguém ou de alguma coisa, talvez algum inimigo acocorado, à espera, talvez apenas um insecto ou uma teia de aranha. Estendi um braço, com muito cuidado. Só sentia o ar. Ainda assim, continuava com a sensação de que não estávamos sozinhos. Quando ia a mexer a bota para dar mais um passo, abriu-se mesmo por cima de mim um alçapão estreito. Um raio de luz entrou no corredor negro. Eu fiquei momentaneamente gelado, maldizendo em silêncio as pernas que não queriam andar.

Nesse instante, vi emanar do clarão uma corda. Caiu, solta, em redor do meu peito - como um daqueles laços que se usam para dominar um cavalo rebelde. Antes que eu tivesse hipótese de reagir, o nó fechou-se à volta do meu pescoço. O meu corpo ficou a balouçar no ar. Quis gritar pelo Andrés, que vinha atrás de mim. Mas não conseguia respirar. Esperneei, na tentativa de alcançar um ponto de apoio em alguma pedra saliente da parede. Ardia-me o pescoço. As minhas têmporas latejavam como se estivessem para rebentar. Reviravam-se-me os olhos.

Depois, senti-me cair. A pressão que me martelava nas têmporas acalmou. Bati no chão e tropecei nos degraus. Durante vários minutos, ofeguei e tossi violentamente. Quando recuperei o fôlego, vi o Andrés em pé diante de mim.

- Estás ferido? - perguntou.

Eu mexi os braços e as pernas. Pareceram-me intactos, inteiros. Mas estava tão desorientado que não tinha a certeza.

- Pelo menos, estou vivo - respondi, em voz rouca. - Como foi que a corda partiu?

Andrés apontou para a espada. - O teu corpo balançava - disse. - Tive de fazer três tentativas para a cortar.

Ajudou-me a pôr-me em pé. Continuámos, devagar, pela escada abaixo. O Andrés tomou a dianteira. Tinha dado meia dúzia de passos quando deu um salto para trás. Ergueu a espada em guarda. Eu preparei o meu arco. Ouvimos à nossa frente um som agudo, rangente, de corda a balouçar de um lado para o outro sobre um eixo ferrugento.

O Andrés tacteou com a ponta da espada. O que encontrou foi um corpo pendurado - Bernard. Identificámo-lo pela cruz bordada no peito da túnica, presente da irmã. Ramón tinha concedido ao seu adjunto essa excepção aos requisitos de conformidade em todos os aspectos do uniforme. Bernard estava enforcado - a morte que teria sido a minha se não fosse a intervenção do Andrés. Não tinha conseguido chegar até Alejandro e Marcos. Este guerreiro sem medo balouçava como uma bugiganga na alcova esquecida de uma qualquer catedral remota. Eu empunhei o punhal e fiz menção de cortar a corda que o prendia. O Andrés impediu-me.

- Deixa-o ficar - sussurrou-me. Se o corpo cair, os sarracenos ficam a saber exactamente onde nós estamos. - Fiz o que o Andrés me dizia, se bem que me parecesse que os infiéis já sabiam exactamente onde nós estávamos, conheciam cada passo que nós dávamos. Os gemidos de Alejandro levaram-nos a avançar. A sua voz estava cada vez mais perto.

Contornada mais uma volta de escada, deparámos com Marcos e Alejandro. Espectáculo arrepiante. Um raio de luz vindo de cima iluminava os corpos dos dois homens. Marcos já estava morto. Tinha sido trespassado nos ombros e no peito por várias flechas. Uma delas tinha-lhe entrado pela cabeça descoberta e ficado espetada como um ornamento de penas. Estava sentado no chão de pedra e segurava o elmo com ambas as mãos - provavelmente tinha-o tirado para ver melhor na galeria escura.

Alejandro estava deitado de barriga para cima. Tinha os cabelos em pé como finas escórias, e as sobrancelhas ainda fumegavam. Os lábios tinham desaparecido, totalmente queimados. Os olhos cobertos de pus, cegos, as orelhas deformadas, o manto um trapo de cinzas.

- Quem está aí? - perguntou, numa voz arrastada, sumida.

Nós não respondemos logo. Mais uma vez, receávamos alertar os sarracenos para a nossa posição. Mas Alejandro estava desesperado e aterrado, e o Andrés teve pena dele.

- Quem está aí? - voltou Alejandro a perguntar. - São Pedro ou Lúcifer?

- Nem um nem outro, Alejandro - disse o Andrés. - É o Andrés e o Francisco. Viemos para te levar de volta a lugar seguro.

- Não, Andrés - disse Alejandro. - Eu já estou morto. Por favor, por favor deixai-me ir.

- Não sei o que estás a dizer - respondeu Andrés.

- Muitas dores - disse Alejandro. - Misericórdia. - Alejandro chorava, num lamento exausto.

- O que estás a pedir - disse o Andrés - não é possível.

Mas era possível. Eu estiquei a corda do meu arco. Fechei os olhos. Soltei a flecha. Alejandro parou de chorar. Um silêncio lúgubre voltou a invadir a passagem. A vida de Alejandro chegou ao fim - às minhas mãos. Mas eu não sinto remorsos. Não lamento o que fiz. Alejandro podia ter sobrevivido um dia ou dois, mas não muito mais. Não havia bravura nem misericórdia no facto de lhe prolongar a vida - ou a morte.

O raio de luz batia dez pés à nossa frente, mesmo por cima do poço da escada - entrava por um alçapão de correr a partir do qual os sarracenos tinham emboscado os gémeos. O corpo de Marcos estava agachado mesmo por baixo do raio de luz. Alejandro estava uns sete degraus mais acima.

Tinha tentado subir as escadas, qual tocha humana em movimento, mas tinham-lhe faltado as forças. Via-se a superfície viscosa em que o azeite tinha caído e o rastro dos passos penosos de Alejandro. Ainda havia nos degraus uma tocha a fumegar - o dispositivo incendiário que tinham atirado para cima de Alejandro, depois de o azeite o ter cegado.

Duas chapas metálicas pendentes do tecto tapavam-nos a vista daquela janela. Os raios de luz entravam pela abertura, proporcionando uma visão fantasmagórica do rosto desfigurado de Alejandro - a pele pardacenta cheia de bolhas, a derreter-se, ainda a arder. Da sombra, víamos o vapor que se levantava do chão onde o trilho de fogo tinha seguido Alejandro.

Vinham de cima grunhidos de esforço físico, pragas ininteligíveis de frustração. O alçapão tinha encravado e os sarracenos tentavam denodadamente voltar a fazê-lo deslizar sobre a abertura - para tapar a luz na passagem, que podia denunciar-nos a posição deles. Eu e o Andrés apercebemo-nos de que tínhamos pouco tempo para agir - os sarracenos só seriam vulneráveis enquanto o alçapão estivesse aberto. Quando ele se fechasse, o inimigo voltava a ficar escondido e nós cegos, indefesos.

Por sussurros e gestos, comunicámos um ao outro o nosso plano. O Andrés atravessava a correr para o lado de baixo da janela. Partimos do princípio de que a zona iluminada - aproximadamente oito degraus - marcava os limites da visibilidade dos sarracenos. Se o Andrés conseguisse galgar dois degraus de cada vez, estaria exposto, desprotegido, durante dois a três segundos. Era o tempo que calculávamos que lhe levaria a passar pela zona iluminada. A sua presença levaria os sarracenos a assomar à abertura para atirar ao alvo em andamento, e assim se tornariam eles próprios alvos. Esperávamos que a rapidez do Andrés apanhasse os nossos adversários de surpresa e as flechas que eles disparassem só acertassem nas pedras. Depois de os sarracenos dispararem as suas flechas, eu debruçava-me, já de arco em riste, para disparar para cima, para o buraco aberto. Um tiro, a vida de um sarraceno era suficiente - até ver, era suficiente. Depois, também eu descia a correr os poucos degraus que nos separavam do abrigo da escuridão.

Descemos os degraus muito devagar, parando imediatamente antes dos raios de luz. íamos os dois agachados, com muita atenção aos movimentos dos sarracenos lá em cima. Mas o barulho tinha parado, o que era mau sinal - sinal de que os sarracenos sabiam que nos aproximávamos da zona iluminada. Estavam à nossa espera. Eu armei o arco. O Andrés preparou-se para avançar pela escada abaixo, balançando a cabeça para cima e para baixo como quem quer tomar balanço antes de dar o salto em frente. Virou-se para trás e fez-me um aceno de cabeça. De repente avançou, saltando em direcção à luz. Pareceu ali suspenso durante vários segundos, qual veado a atravessar a neve luminosa, apanhado na mira de algum caçador cansado.

Quando o Andrés passou o limiar da luz, ouvi guinchos vindos de cima, o estalido de arcos a serem disparados, o som de impacto de flechas. Não vi se alguma das flechas tinha atingido o alvo. O Andrés continuou a descer as escadas, de novo engolido pela sombra protectora.

Terminada a chuva de flechas, eu avancei para a vertical da abertura superior. Servi-me da parede para equilibrar o corpo e firmar a mira. Olhando directamente para cima, para o sítio por onde entrava a luz, vi vultos difusos debruçados sobre a abertura. Disparei a flecha. Passou por entre as duas chapas metálicas. Levantei-me rapidamente e corri pelas escadas abaixo. Mesmo atrás de mim, várias flechas fizeram ricochete no chão de pedra. Passou-se mais um segundo antes de se ouvir um dos sarracenos soltar um gemido tranquilizador, um hino de vingança.

Mal passámos o poço da escada, levantou-se por cima das nossas cabeças uma grande algazarra. Ouvimos o ruído de passos apressados na passagem superior. Talvez fossem os sarracenos a avisar os seus camaradas lá de baixo da nossa intrusão, ou a chamar reforços. O melhor era não esperarmos por eles.

O Andrés estava ferido - tinha uma flecha espetada no antebraço. Nada de fatal - a menos que os sarracenos tivessem envenenado a flecha. Disparada a curta distância, a flecha tinha penetrado profundamente. Fazia um papo do outro lado do braço. Tanto melhor. Mais facilmente se empurrava a lâmina para a fazer sair, quando chegasse a altura.

O Andrés olhava para a flecha, perturbado mas firme. Era um homem estóico. Eu peguei-lhe na mão e cheirei a flecha à procura de veneno. Estava limpa. Fiz sinal ao Andrés para que se sentasse na escada. O Andrés encaixou o braço contra o ângulo formado por dois degraus. Com um golpe rápido da ponta do meu punhal, pus cá fora a ponta da flecha. O Andrés praguejou entre dentes cerrados. Eu rasguei uma tira do meu hábito e com ela apertei bem a ferida. Mais tarde trataríamos de extrair a lâmina.

Continuámos a descer, até que uma explosão nos fez dar um salto. Os blocos de pedra que forravam as paredes chiaram e rangeram uns contra os outros. Caíram pedregulhos do tecto. Parecia um tremor de terra. Era como se Deus estivesse farto do que via e decidisse sepultar os dois exércitos nos destroços das nossas máquinas de guerra.

Quando tudo parou de tremer, retomámos a descida a toda a pressa, ansiosos por sair daquele túmulo escuro que parecia estar prestes a desabar sobre nós. Chegámos a uma abertura, uma porta que havia ao virar de mais uma curva do poço da escada. Atirei o arco para cima do ombro. Empunhei o punhal e desci a investigar. Era um pequeno varandim que dava para o pátio do castelo. Tinha um sarraceno de guarda que olhava para longe, de mãos pousadas no parapeito. Voltei para junto do Andrés. Combinámos que o melhor que tínhamos a fazer era atrair o sarraceno a nós, ao interior das escadas. Com esse propósito, o Andrés atirou a espada para a soleira da porta aberta. Fez ricochete no chão de pedra e o tilintar ecoou pelo poço da escada. Tal como tínhamos previsto, o barulho despertou a atenção do sarraceno, que entrou a correr, vindo do varandim, de espada em riste. Primeiro olhou para baixo, depois para mim e o Andrés. Não parecia surpreendido. Pronunciou umas palavras estranhas, porventura de cumprimento. Eu alvejei-o no peito. Ele caiu para trás. Momentos depois, voltou-se e começou a rastejar em direcção ao varandim. Eu voltei a alvejá-lo, desta vez nas costas, entre as omoplatas. A cabeça tombou-lhe no chão de pedra.

Com a passagem desimpedida, encostámo-nos aos lados da entrada do varandim e espreitámos lá para fora. Víamos tudo até ao outro lado do castelo, de onde vinha o grande estrondo. O aríete de Dom Fernando tinha deitado por terra os portões do castelo. Cavaleiros do seu séquito franqueavam a fenda aberta, pisando os infantes sarracenos, esmagando cabeças, despedaçando carnes e tendões, despachando os nossos inimigos como insectos pisados pelo tacão de uma bota. As linhas muçulmanas dispersavam e os seus soldados corriam em busca de abrigo.

Dom Fernando em pessoa, com as pregas da capa roxa a adejar ao vento, comandava a brigada. Ia rodeado dos seus lugar-tenentes, mas cavalgava tão depressa que lhes passou à frente. Avançou a toda a brida, por entre uma horda de defensores do castelo, qual Moisés abrindo caminho por entre as águas do Mar Vermelho. Dom Fernando brandia a espada com uma perícia selvagem, esmagando, rasgando, cortando caminho por todas as frinchas do castelo.

Dom Fernando aproximou-se da mesquita, na perseguição aos infiéis que procuravam refúgio naquele santuário imaginado. Um dos sarracenos saltou do segundo andar para cima do cavalo do fidalgo. Eu vi o homem.

Dei um grito, a avisar o fidalgo. As minhas palavras perderam-se no vazio, no alarido da batalha. Foi um gesto destemido e destro da parte do sarraceno. Aterrou atrás de Dom Fernando e de imediato apontou-lhe o punhal ao pescoço.

Dom Fernando deve ter visto o atacante no ar. Com a mão direita, tinha erguido a espada diante de si para travar o punhal do sarraceno. Com a outra mão, desembainhou o seu próprio punhal. Espetou-a para trás, nas costelas do seu atacante. O sarraceno ainda foi um bocado em cima do cavalo do fidalgo antes de cair da montada e ficar no meio da poeira, atirado como destroços de naufrágio no mar alto.

Dom Fernando parecia um rei, imponente, invencível - Carlos Magno, Ricardo Coração de Leão, Rei Luís de França.

Eu e o Andrés não sentíamos necessidade de mais acção. Ficámos no varandim, a observar a multidão, incapazes de nos libertar das cenas macabras e da satisfação que sentíamos na destruição dos nossos inimigos - os carrascos dos meus camaradas - os assassinos que tinham transformado Alejandro numa tocha humana, deixando para mim o papel de algoz. No princípio do cerco, os nossos chefes tinham oferecido aos infiéis salvo-conduto a troco da rendição do castelo. Os chefes deles declinaram. Agora seriam os soldados a sofrer as consequências.

Não sei dizer em que altura se alteraram as características do tumulto - se por força de um acto concreto, de uma ordem oral, de um sinal, de um entendimento tácito. Sei que, ultrapassado o limiar, ele desapareceu para sempre num rio de gritos sussurrados e inefável tristeza. A conquista transformou-se em massacre, em morticínio. Eu sei, Irmão Lucas, porque assisti a tudo.

Atrás da cavalaria veio a infantaria, um dilúvio de raiva que varreu o pátio imundo. Os soldados muçulmanos que tentavam resistir foram rapidamente dominados e passados a fio de espada. Dos que não ofereceram resistência, alguns foram mortos na mesma. Os outros foram quase todos feitos prisioneiros, mãos atadas com cordões de pele, as armas, armaduras e medalhões arrancados, roubados, reivindicados pela multidão faminta como despojos de guerra.

Os nossos soldados formaram duas linhas paralelas a vários pés de distância uma da outra, duas colunas cristãs. Arrebanharam os seus congéneres muçulmanos, obrigando-os a passar por aquele impiedoso corredor de provações até ao extremo ocidental do castelo, mesmo por baixo do sítio onde nós estávamos. De vez em quando, a marca negra do destino caía sobre um dos prisioneiros - arrancado ao lúgubre cortejo, atacado, despedaçado como um coelho apanhado no meio de uma alcateia de lobos.

Finalmente, os prisioneiros vivos - uns sessenta - foram reunidos ao canto do castelo. Já não eram soldados, apenas uma mole de corpos amontoados, desgraçados. Os outros, os feridos e mortos, jaziam ao lado dos cavaleiros e dos cavalos da Ordem dos Hospitalários que tinham participado no primeiro ataque, fracassado. Montes de carne pejavam o pátio.

O sol do meio-dia projectava sobre os prisioneiros uma luz irreal. Eu e o Andrés continuávamos absortos no exíguo varandim, sentinelas aturdidas, pregados ao nosso posto como se tivéssemos tropeçado em algum coliseu antigo e profano. Éramos voyeurs, com uma janela perfeita para presenciar aquele espectáculo tenebroso.

Depois de ter tomado refrescos com os seus lugar-tenentes à sombra de um pequeno pomar de figueiras que havia no outro extremo do pátio do castelo, Dom Fernando dirigiu-se para o lugar onde estavam os cativos. Prisioneiros e guardas voltaram-se na direcção da real comitiva. Desceu sobre o castelo um silêncio terrível, pelo que os passos decididos do fidalgo se ouviam até no nosso posto de observação, num prenúncio iniludível de sentença impiedosa. Os lugar-tenentes dispuseram os prisioneiros em filas para a inspecção, enquanto o fidalgo, à parte, conversava com os seus homens. Houve apertos de mão, abraços, saudações, felicitações, "glórias a Deus".

Eram seis filas de prisioneiros dispostas no pátio - uma brigada de bárbaros esfarrapados. Dom Fernando caminhava despreocupadamente, examinando os homens um por um, parando de vez em quando para fazer perguntas por intermédio de um intérprete, um cristão árabe de Acre. Nós não ouvíamos a conversa, mas, a avaliar pela atitude amigável do fidalgo, era capaz de lhes estar a perguntar de onde eram e como se chamavam os pais. Seleccionou cinco muçulmanos, grisalhos, mais graduados que os outros. Foram levados para fora do castelo, reféns, que seriam mais tarde resgatados, ou mortos, no caso de estimativa exagerada do seu valor. Os outros prisioneiros ficaram em pé enquanto a comitiva do fidalgo instalava cadeiras em frente da formatura. O fidalgo sentou-se a meio, ladeado pelos seus lugar-tenentes. E eu pensei que talvez fôssemos assistir a mais um leilão de escravos. Ou então talvez o Padre Albar, confessor pessoal de Dom Fernando, que estava sentado à sua direita, fizesse um sermão violento aos infiéis sobre os perigos da condenação eterna que esperava aqueles que rejeitavam o Salvador. E ficámos à espera, nós e os prisioneiros.

Ouviram-se ordens, indecifráveis à distância a que nós estávamos. Um dos muçulmanos foi conduzido à presença do fidalgo, como se fosse prestar-lhe vassalagem. Obrigaram-no a ajoelhar-se, enquanto mexia os lábios num frenesim, porventura a pedir misericórdia ou a rezar a alguma divindade infiel. Um dos cavaleiros do fidalgo, de espada desembainhada, a reluzir, avançou lentamente pelas costas do cativo ajoelhado. O ar estava húmido e pesado, e eu respirava-o em sorvos curtos e ansiosos.

O castelo estava em silêncio absoluto quando o fidalgo ergueu o braço no ar, após o que a fez descer rapidamente, num movimento fulminante. A espada desenhou um arco semelhante. Um golpe certeiro, que separou a cabeça do pescoço. O sangue borbulhou, jorrou, esguichou como nascente de montanha que corre desgovernada. Um dos escudeiros, com um esgar de desprezo, apanhou do chão a cabeça, de olhos esbugalhados de incredulidade. O escudeiro levantou o braço num gesto triunfante, como se mostrasse um trofeu à multidão de cavaleiros e soldados, que irromperam em acaloradas manifestações de júbilo.

Mais dois muçulmanos eram entretanto conduzidos à presença do fidalgo. Dois a dois. Depois mais dois, os corpos decapitados arrastados dali e empilhados uns em cima dos outros, enlaçados num amplexo tímido e grotesco.

Um dos prisioneiros mais novos, um rapaz imberbe de túnica rasgada e expressão chorosa, ergueu os olhos na direcção do varandim quando o conduziam à presença do carrasco. Estaria a olhar para mim? Eu não tinha a certeza. Pensava que ninguém me via, mas o seu olhar, sem pestanejar, parecia perfurar o véu da minha invisibilidade. Naqueles olhos lia-se uma acusação inequívoca, como se eu fosse de algum modo responsável, como se o espectador se tivesse transformado em executor. Perante aquele veredicto espúrio, tentei proclamar a minha inocência.

Eu sou um servo de Deus, um soldado de Cristo. Luto pelo meu irmão, pela sua salvação. Diante de ti está o exército de Cristo, na santa missão de resgatar dos infiéis este chão sagrado, esta terra empapada no Seu sangue.

Abri a boca para pronunciar as palavras, para gritá-las. Mas faltou-me a voz, afogada numa onda de confusão que me subiu do estômago como uma flecha disparada de dentro de mim.

Meti a mão por baixo da cota de malha, à procura do lenço em que guardava as lágrimas de Isabel - para me lembrar de outro lugar; de outro mundo. Mas o lenço não estava lá, tinha-o perdido na luta.

Olhei para o sangue que me cobria a espada, as mãos, o manto. Sustive a respiração e cerrei os dentes até que a dor passasse, até que pudesse voltar a respirar.

Olhei de novo para a poça de lama, para o rapaz de joelhos, qual paroquiano à espera de que o padre lhe coloque na língua o corpo de Cristo. O padre feito carrasco. A espada entrou abaixo do pescoço, indo alojar-se no ombro do rapaz. Ele caiu para o lado, como um veado ferido, sem forças.

O cavaleiro voltou a levantar a arma e desferiu novo golpe. Voltou a falhar, indo bater na clavícula, que esmigalhou. O som reverberou como uma pedra lançada por uma catapulta que tivesse ido esmagar-se contra a muralha do castelo. O rapaz fez um esgar convulsivo. Gemeu. Uma gargalhada lúbrica, perversa, irrompeu de entre as tropas cristãs, que se punham em bicos de pés para ver o macabro espectáculo por cima dos ombros dos camaradas da frente. O carrasco enervou-se e desatou a golpear o pescoço do rapaz. A cada novo golpe, aumentava o volume dos urros da multidão.

Quando a cabeça do rapaz rolou para a frente, os soldados circunstantes troaram de júbilo. Dom Fernando, exibindo o sorriso altivo de um anfitrião condescendente, bateu animadamente as palmas. O escudeiro que fazia o papel de bobo enfiou os dedos pelos caracóis negros da cabeça do rapaz, levantando-a do chão. Fê-la rodopiar como as velas de um moinho, com o braço bem esticado. A cabeça do rapaz parecia suspensa no ar, como se fosse levantar voo. Mas foi cair no meio da multidão de cavaleiros e soldados.

Dois a dois. Depois mais dois. Eu assistia, siderado, extasiado, arrebatado.

Dom Fernando organizou uma Missa da meia-noite no castelo para comemorar o triunfo das nossas forças. O Tio Ramón recusou-se a assistir à cerimónia. Disse a Dom Fernando que a execução de prisioneiros muçulmanos desarmados maculava a reputação de todas as forças cristãs e incitava à retaliação contra prisioneiros cristãos em masmorras muçulmanas. Obedecendo a instruções do Tio Ramón, nós, os Cavaleiros de Calatrava recolhemos ao nosso acampamento. Sentámo-nos à volta de uma fogueira, a beber para comemorar a vitória. Bebemos para assinalar o facto de estarmos vivos e para esquecer as imagens de camaradas mortos e moribundos. Eu esfreguei as mãos para soltar delas o sangue seco, que parecia cristais de cobre acumulados nas palmas. Ainda com a armadura vestida, adormeci deitado no chão macio.

Acordei no meio da escuridão, o corpo tenso, pronto para a luta, o sabor metálico a sangue na língua. A um canto da tenda ardia uma lanterna. Os meus camaradas dormiam. Pareciam cadáveres, cinzentos, de boca aberta, ainda ensanguentados do combate. Tentei levantar-me. Tinha o pescoço rígido, doíam-me as costas. Vi o Andrés do lado de fora da tenda, sentado no chão, a balouçar-se, com os joelhos apertados contra o peito. Saí da tenda e acerquei-me dele.

O Andrés olhava fixamente para o castelo. Sentei-me ao lado dele.

- Foi assim que tu a imaginaste, Francisco? - perguntou ele.

- Imaginei o quê? - perguntei eu.

- A guerra - disse ele.

- Eu nunca imaginei coisa nenhuma, Andrés.

Apalpei o pescoço, sensível no sítio em que a corda me tinha queimado a pele.

- Vamos dar um passeio? - sugeriu ele.

Não escolhemos de nenhum destino concreto. Tomámos a direcção do castelo, local onde tudo se passou. Inexoravelmente atraídos a um campo de sangue. Atravessámos a entrada, fazendo um brusco aceno de cabeça aos cavaleiros de Dom Fernando, indiferentes aos seus olhares penetrantes.

Parecia de dia no pátio, tão brilhante era o fogo das tochas e o reflexo nas pedras amarelas. Fomos recolher-nos à sombra de uma arcada, atrás dos pilares que conduziam à mesquita do castelo.

O franzino e decrépito Padre Albar falava de cima de um palanque de madeira erigido à pressa no meio do pátio do castelo. Atrás do padre sentava-se Dom Fernando, que tinha a cara iluminada pelo clarão impiedoso das tochas.

Enquanto o Padre Albar recitava passagens das Escrituras, os infantes arrastavam os cadáveres decapitados e outras partes de corpos por um dos lados do castelo, passando pela mesquita, até uma fogueira que ardia do lado de fora das muralhas do castelo. O cortejo ininterrupto deixava na lama um trilho de sangue. O padre apontava para o fogo, pregando um aviso solene, um prognóstico grave, uma maldição bíblica.

Ele limpará a Sua eira e recolherá no celeiro o seu trigo, mas queimará a palha com fogo que nunca se apagará.

As chamas avivavam-se e crepitavam com o sangue fresco e exalavam um cheiro doce e enjoativo a cabelo e carne queimados, cheiro que nos ficou agarrado à roupa e à armadura durante vários dias. Nem eu nem o Andrés fomos capazes de comer carne na semana seguinte, tão pungente era a lembrança daquele cheiro carnal.

Terminado o sermão, o Padre Albar deu a comunhão aos cavaleiros cristãos, curvou-se e, silencioso, bebeu pelo cálice de prata o sangue de Cristo, escuro e viscoso. Os nossos camaradas, uma tribo de canibais, com Dom Fernando à cabeça, de lábios tingidos de vermelho pelo sacrifício.

Eu e o Andrés não participámos naquele ritual. Mas assistimos a ele. De trás das colunas de mármore que protegiam a mesquita, vislumbrámos as sombras mórbidas dos nossos camaradas, para sempre alteradas pela penumbra macabra do fumo acre e pela dança de mil fogos.

É possível que a descrição que Francisco faz da execução de prisioneiros infiéis perturbe o meu leitor impressionável. De resto, eu próprio, ao deixar ontem à tarde a cela de Francisco, tive dificuldade em comer a ceia. Os feijões vermelhos que cobriam o meu prato faziam-me lembrar cabeças minúsculas, restos sangrentos das decapitações de Toron.

O Abade Alfonso comentou a minha falta de apetite.

- Irmão Lucas - disse ele - não tocastes na vossa comida.

- De facto, Abade Alfonso, - respondi eu - não toquei.

Porém, não vá o meu leitor sentir compaixão pelas vítimas infiéis, é bom recordar as sistemáticas atrocidades perpetradas pelos muçulmanos não só contra soldados cristãos mas também contra civis, como aconteceu na Antioquia, onde os sarracenos assassinaram mulheres e crianças. Ouvi inúmeros relatos sobre hordas infiéis que caíram como abutres sobre caravanas de peregrinos, violando, torturando, matando novos e velhos.

Não quero com isto dizer que tais acções praticadas pelo inimigo justifiquem ou desculpem os excessos cometidos por exércitos cristãos. No entanto, os crimes dos infiéis ajudam-nos a compreender a justa raiva acalentada por certos cavaleiros cristãos e a forma zelosa, porventura excessivamente zelosa, como por vezes se desfazem dos seus cativos muçulmanos.

Mas não percamos de vista as cruéis realidades com que os nossos irmãos em armas se defrontam no Levante. Ontem à noite, depois da ceia, reproduzi ao Irmão Vial o relato que Francisco me fez das execuções. Ele ouviu-me pacientemente, acenando de vez em quando com a cabeça como se tudo aquilo lhe fosse familiar. Quando eu acabei de falar, ele levantou-se e pôs-se a andar num pequeno círculo no parlatório.

- Quando nós capturámos o castelo de Beaufort, - disse ele - prendemos mais de duzentos soldados sarracenos. Os comandantes cristãos convocaram uma reunião para decidir do destino dos prisioneiros. O segundo comandante dos hospitalários preconizou que eles fossem imediatamente executados. Seguiu-se uma discussão acalorada. Os outros generais, movidos por considerações mais práticas, preferiam que se fixassem resgates para os cativos. Eu achava a execução uma medida desnecessariamente severa e votei a favor da libertação mediante resgate. O contingente de hospitalários ficou em minoria. A contagem final determinou a autorização de negociações com os infiéis. Acabámos por trocar os nossos cativos por preciosos alimentos e dez mil dirrãs de prata, quantia que dava para sustentar o castelo durante um ano inteiro.

- Duas semanas depois, cinquenta cavaleiros hospitalários partiam para Acre, onde seriam redistribuídos pelos territórios do norte. Os muçulmanos montaram uma emboscada a menos de uma milha do castelo. Quando ouvimos ruídos de batalha, eu organizei uma patrulha de socorro. Chegados à planície, fomos encontrar quarenta e sete cavaleiros mortos. Os três sobreviventes disseram que tinham visto entre os seus atacantes os mesmos homens a que tinham montado guarda no cercado do castelo.

O Irmão Vial parou de andar em círculo e encarou com um olhar franzido a íngreme superfície de pedra que eu tinha pelas costas.

- Nunca mais na minha vida vou libertar um prisioneiro fisicamente válido - disse ele. - Um soldado que solta o inimigo para ter de o enfrentar no dia seguinte é um idiota.

Era francamente desconcertante ouvir o meu mentor, por norma tão sereno, falar em tom tão amargo sobre um assunto tão desagradável. Às vezes esqueço-me de que o Irmão Vial foi soldado durante a maior parte da sua vida.

Se há coisa que eu nunca entendi, é a guerra. Já li mil vezes os Dez Mandamentos. Não matarás. O mandamento parece-me muito simples. Depois de receberem esta ordem, os Israelitas foram por diante com a chacina dos seus inimigos - arrasando cidades inteiras e matando todos os respectivos habitantes - para conquistar e depois defender a Terra Santa. E fizeram-no com a bênção e a ajuda de Deus. Talvez matar seja legítimo quando serve um objectivo superior. Nós, os herdeiros dos judeus bíblicos, seguimos a mesma via - liquidamos os hereges em nome de Deus, redimindo a Sua terra com o nosso sangue.

Não há dúvida de que a guerra envolve questões complexas. Arrisco-me a dizer que nós, membros do clero, que compreendemos com toda a clareza os parâmetros espirituais da batalha entre Deus e Satã, devíamos pensar antes de impor os mesmos padrões de comportamento aos nossos irmãos em armas, que lutam num campo de batalha muito diferente. A compaixão e a misericórdia, que glorificam Deus no ambiente monástico, podem ter o efeito oposto num teatro de guerra. Se calhar, como diz o Irmão Vial, emancipar inimigos capturados não é sinal de misericórdia nem de compaixão, mas de estupidez pura e simples. Acho que Ricardo Coração de Leão deve ter percebido esta dura verdade. Depois da tomada de Acre, no Ano de Nosso Senhor de 1191, ordenou que fossem executados todos os prisioneiros muçulmanos, dois mil e quinhentos. O exército de Ricardo esquartejou os prisioneiros à vista de Saladino e seus exércitos muçulmanos.

Deus sabe que eu não sou perito em estratégias militares contra os infiéis. Parece-me, no entanto, que, desde o momento em que nos comprometemos a travar uma guerra santa contra os perseguidores de Cristo, temos de os matar. É evidente que este pormenor escapa a Francisco que, na sua descrição das execuções ocorridas em Toron, parece reprovar os actos de Dom Fernando. Não sei de que é que Francisco estava à espera quando decidiu tomar a Cruz. Acharia que o exército de Cristo ia convencer os muçulmanos a abandonar a Terra Santa ao cabo de meia dúzia de demonstrações de destreza militar? Acharia que, se Dom Fernando libertasse os prisioneiros, eles iam abandonar o território e trocar as espadas por enxadas? E que diferença faz matar o inimigo no assalto à torre de um castelo ou mais tarde, depois de vencida a batalha? Em ambos os casos, o objectivo em vista é o mesmo - matar soldados infiéis, libertando a Terra Santa dos filhos do diabo.

Para falar com toda a franqueza, fiquei bastante aborrecido com Francisco e com a sua atitude moralista para com o Príncipe Fernando, sob cujo competente comando se obteve uma vitória gloriosa para a Cristandade e para Aragão. Aliás, os actos do Príncipe Fernando, ao afastar os sarracenos da posição dos Calatrava, salvou provavelmente a vida de Francisco.

Quando, naquela manhã, entrei na cela de Francisco, não o cumprimentei. Tive de me conter para não despejar a dura prelecção que tantas vezes tinha ensaiado na véspera. Tratava-se, afinal, de uma lição sobre os perigos espirituais da hipocrisia e da ingratidão.

- Acho, Francisco, - disse eu enquanto me sentava na cadeira - que hoje devemos concentrar-nos nos vossos actos em vez de tentar lançar calúnias sobre os bravos homens que comandam a cruzada.

Francisco não respondeu. Estava sentado de frente para a parede, com os olhos fechados. Passado um minuto, levantou -se e foi até à extremidade da cela, onde se apoiou no peitoril da janela.

Eu e o Andrés regressámos furtivamente do castelo à nossa tenda. Do nosso acampamento, víamos as chamas vermelhas, a fogueira em que ardiam os nossos inimigos. O Andrés sentou-se na sua enxerga, cantarolando baixinho, quase em surdina. Eu pousei a cabeça e fechei os olhos. Em breve me vi perdido no meio do chispar e crepitar do fogo - uma noite quente e agitada.

Quando abri os olhos, a escuridão tinha dado lugar a um lusco-fusco húmido. Ouvi os pássaros, numa conversa sussurrada que se foi transformando em gemidos até ficar só o choro de crianças. Não era uma chamada de atenção, mas sim uma melodia acossada.

Sabíamos que as mulheres e crianças tinham fugido do castelo antes de o cerco começar. Olhei para os meus camaradas, à procura de alguma explicação na expressão dos seus rostos. Nenhum quis olhar-me nos olhos.

- Tio Ramón - chamei. Ele ainda dormia. - Tio Ramón. Ele abriu um olho.

- Espero que tenhas uma boa razão para me acordar, Francisco - disse ele. - Estava a dormir com uma beldade de cabelos negros.

- As crianças - disse eu.

Ramón olhou para mim muito sério. Depois tomou balanço para se sentar na cama e esticou o pescoço em tom de pergunta. Perpassou-lhe pelo rosto uma sombra negra. De um salto pôs-se em pé e pegou no saio.

- Francisco e Andrés, - disse ele - vamos voltar ao castelo. Vesti-vos para combate.

Ramón marcou uma cadência rápida. O Andrés e eu tivemos de correr para o apanhar. Eu amaldiçoei os dedos que me tremiam enquanto tentava afivelar o cinto. A espada batia contra o saio da minha cota de malha. Os gritos eram cada vez mais audíveis, gritos lancinantes de ruína e desgraça.

O trilho que conduzia ao castelo serpeava pelo meio da lama. A terra abria-se em escaras pretas, ainda fumegantes. Havia tufos de erva que ardiam como pequenas brasas. O Andrés parou de repente. Eu cheguei ao pé dele e empurrei-o para a frente. Ele ofereceu resistência, com um sorriso vago, apontando para baixo, para uma aparição incongruente. Uma flor azul, solitária, nascida por engano naquela terra inóspita.

Quando chegámos aos portões, eu tive de esfregar os olhos e fixá-los para ver, no meio do nevoeiro, as estranhas sentinelas que guardavam o castelo. Quatro cabeças espetadas em outras tantas estacas de madeira. Crianças, três rapazes e uma menina, com esgares ferozes que desmentiam a sua inocência, e olhos injectados de sangue que seguiam os nossos movimentos. Passei por aquela provação o mais depressa que podia. Mas o Andrés parou mesmo por baixo da rapariga e olhou para cima com ternura, como se fosse perguntar àquela cabecinha se tinha sede e depois lhe oferecesse de beber. Eu dei-lhe um berro, mas ele estava absorto naquela conversa imaginária. Vi-me obrigado a voltar atrás debaixo dos olhares atentos daquelas quatro sentinelas e puxar o meu amigo para dentro do portal do castelo.

No interior da fortaleza, o cheiro nauseabundo da batalha tinha-se infiltrado em todas as frinchas e fez-me tossir violentamente. As preces dos condenados rasgavam a neblina fétida. Os gritos lancinantes anulavam as cores, transformando o mundo em preto, branco e cinzento. Por breves instantes vi uma das meninas infiéis passar a correr nua, vislumbrei a pele branca, espectral, dos seus ombros delicados. Olhava para trás, para um perseguidor invisível. Depois desapareceu.

Ramón já tinha falado com um dos soldados que estavam à entrada. Este acompanhou-nos ao longo do muro lateral até à entrada de uma sala fortemente guardada. Um dos ajudantes de Dom Fernando reconheceu imediatamente Ramón e mandou-nos entrar.

A sala tinha como única mobília uma mesa rectangular comprida e bancos de madeira. As paredes caiadas de branco estavam despidas. Dom Fernando estava sentado à cabeceira da mesa com os seus lugar-tenentes aos lados. Bandejas de carne de veado exalavam um cheiro nauseabundo que parecia impossível de distinguir do cheiro a podridão e a morte que invadia o castelo.

- Tio Ramón, que grande prazer! - disse Dom Fernando. - Espero que tenhais sido devidamente saudados pelos nossos joviais anfitriões à entrada do castelo. - As gargalhadas dos lugar-tenentes do fidalgo contrastavam violentamente com os actos tenebrosos por eles perpetrados.

- Dom Fernando, se vos referis às quatro cabeças empaladas, nós vimos a exposição - disse Ramón em tom grave.

- As mulheres e as crianças - disse Dom Fernando -esconderam-se num túnel subterrâneo durante a batalha, a rezar aos seus deuses pagãos. Os meus soldados descobriram-nas na noite passada, depois da Missa.

- Jovens Francisco e Andrés, - continuou Dom Fernando - sede bem-vindos. Agora sois os adjuntos de Ramón? Tirastes partido da morte trágica dos vossos camaradas. Aplaudo a vossa iniciativa. Entrai, entrai.

Eu dei um passo em frente e escorreguei numa poça de sangue que havia no chão de pedra. Consegui recuperar o equilíbrio antes de cair mas os lugar-tenentes de Dom Fernando, apesar de terem a cabeça enfiada na comida que tinham à sua frente, tinham visto o meu passo em falso e estavam a gozar à minha custa. Homens treinados como aqueles não deixam escapar um movimento súbito, muito menos em tempo de guerra.

- Dom Fernando - disse Ramón - gostava de vos falar a sós sobre um assunto importante.

- Ramón, - retorquiu Dom Fernando - aos meus homens até a minha vida confio. Eles podem ouvir aquilo que vos preocupa. Mas antes tendes de vos juntar a nós neste banquete comemorativo. Depois disso falamos.

- Dom Fernando, - disse Ramón - é meu dever declinar o vosso convite. Estamos aqui em serviço.

- Mas que serviço é esse, meu amigo, num dia glorioso como este?

- Cumpre-me protestar - disse Ramón - contra a maneira como os vossos homens trataram as mulheres e as crianças muçulmanas. Peço-vos que deis ordens aos vossos adjuntos para que tratem de dar protecção a todos os prisioneiros à vossa guarda e ponham termo aos abusos contra civis.

- Abusos? - perguntou Dom Fernando. - Tendes conhecimento de alguns abusos, Pablo?

Pablo González, o primeiro lugar-tenente do fidalgo, estava sentado imediatamente à sua direita. Os seus inexpressivos olhos castanhos pareciam sem vida, incapaz de absorver luz ou mostrar emoção.

- Não, mestre, - disse Pablo - não tenho conhecimento de abusos nenhuns. - E recomeçou a comer.

- E vós, Francisco, - disse Dom Fernando - presenciastes esses alegados abusos?

- Dom Fernando, - disse eu - ouvi os gritos de inocentes.

Dom Fernando franziu os lábios, divertido, enquanto estudava a minha expressão facial.

- Inocentes? - disse Dom Fernando. - Essa palavra soa-me estranha,

Francisco. Pensava que não havia inocentes entre os infiéis. Talvez seja melhor consultarmos o Padre Albar sobre tão interessante questão teológica.

- Dom Fernando, - disse eu - estou a referir-me às mulheres e crianças muçulmanas. Não são combatentes.

- Dom Fernando, - disse Ramón - os actos dos vossos homens lançam a desonra sobre todas as forças cristãs.

- Não, Ramón, - disse Dom Fernando, num tom agreste - estais enganado. Eu honro os meus homens dando-lhes a liberdade que eles conquistaram com toda a justiça arriscando a vida nesta grandiosa luta.

- Dom Fernando, - disse Ramón - eu não posso tolerar tais actos.

- Então ide para casa, meu velho - disse Dom Fernando. - Esta guerra não é vossa.

Dom Fernando fez um gesto de mão como quem enxota uma mosca, após o que voltou a concentrar a atenção na refeição. Parecia ter-se esquecido da nossa presença. Mas os seus homens não. Esses aperceberam-se das potenciais consequências de dizer tais coisas ao Grão Mestre de Calatrava. Todos os lugar-tenentes pararam de comer e levantaram os olhos. O Tio Ramón tinha uma expressão fechada e sombria, a veia sinuosa da cabeça calva a latejar. Segurava firmemente o punho da espada. Quase em perfeita sincronia, os homens de Dom Fernando varreram da mesa pratos e canecas, produzindo um chocalhar frenético. Levaram a mão às armas, embora nenhuma estivesse desembainhada. Olharam para o Tio Ramón, expectantes, ansiosos, e deste para o seu mestre, à espera de um sinal, como cães obedientes à espera da distribuição de migalhas da mesa.

Senti os olhos dos lugar-tenentes de Dom Fernando assestados sobre a minha pessoa, examinando-me a armadura, à procura de pontos vulneráveis. Contei quantos eram - eram doze... e nós éramos três. O mais certo era sermos dizimados e os nossos corpos deixados a apodrecer naquela fossa infecta.

Levei a mão ao punho da espada.

A mastigação metódica de Dom Fernando era o único som, o único movimento que havia naquela sala. Continuava a comer a sua refeição pausadamente, como se estivesse no conforto do seu castelo, indiferente à explosão de violência que ameaçava irromper a qualquer momento.

- Ramón, - disse Dom Fernando, sem levantar os olhos do prato - a vida tornou-se para vós tão penosa que estais disposto a perdê-la para defender meia dúzia de rameiras infiéis?

No silêncio asfixiante que se seguiu, Ramón suportou sobre os ombros os destinos de todos nós. Olhou para o Andrés e para mim. Observou-nos detidamente como se estivesse a calcular quanto valiam as nossas vidas.

Depois abanou lentamente a cabeça e aliviou a força com que apertava o punho da espada.

O momento tinha passado. Os homens de Dom Fernando abrandaram a vigilância, embora continuassem a observar Ramón pelo canto do olho. Ramón voltou-se lentamente, desconcertado, impotente, e saiu da sala. Eu e o Andrés saímos atrás dele.

Regressámos à nossa tenda sem trocar uma palavra ou um olhar. Não falámos do confronto nem do que tínhamos visto no castelo, nem entre nós nem com os nossos camaradas.

Quando chegámos à tenda, Ramón deu ordens aos seus homens para que se preparassem para marchar de regresso a Acre. Deve ter pensado que, se criássemos uma distância entre a nossa força e Toron, conseguíamos dissociar-nos dos crimes cometidos pelo exército de Dom Fernando. Deve ter pensado que podia silenciar os gritos mudos daquelas crianças.

Partimos ao princípio da tarde, transportando os nossos feridos - quatro homens - numa carroça coberta. Dois deles morreram na viagem. Sepultámo-los de armadura completa à beira do caminho, assinalando os montes com ramos partidos à mão e atados em forma de cruz. Recitada a oração pelos mortos, seguimos caminho, deixando as sepulturas entregues aos abutres. Ninguém olhou para trás.

Dois dias depois de termos saído de Toron, chegámos a Acre. O sol ainda não tinha nascido. As ruas estavam desertas. Regressámos discretamente ao complexo dos hospitalários, fugitivos com o sabor amargo da fuga como película colada aos lábios.

Tive grande dificuldade em escutar a descrição que Francisco fazia dos acontecimentos sangrentos registados em Toron. O caso é, todo ele, muito perturbador. Devo dizer que até me senti febril e fraco quando saí da cela de Francisco. Ao descer a escada de caracol, por pouco não caí pelos degraus íngremes abaixo.

Quando tocaram os sinos, não fui para os serviços de oração. Passei toda a tarde nos meus aposentos, a ler e reler passagens deste manuscrito, que é um registo das confissões de Francisco, um mapa da sua alma. O que eu procurava era a origem da sua possessão, alguma pista, um trilho que me guiasse no meio de toda esta escuridão.

Mas não conseguia concentrar-me nas palavras escritas. Os meus pensamentos estavam sempre a voltar ao relato que Francisco me tinha feito dos acontecimentos de Toron. A tinta preta espalhava-se como sangue pelo pergaminho. Imagens da batalha misturavam-se com as letras. O negro poço de escada que Francisco desceu até às entranhas do castelo. Os soldados de Dom Fernando a irromper pelos portões, a espezinhar os infiéis em fuga. A cabeça da menina na ponta de uma estaca, o seu rosto cinzento e macilento, inocente.

Em suma, estava perturbado, confuso e perturbado. Fui pedir conselho ao Irmão Vial. Ele estava sozinho no parlatório a olhar para umas flores que tinha apanhado no pátio.

- Irmão Lucas - disse ele - parece que vistes um fantasma. Estais a sentir-vos mal?

- Irmão Vial, - disse eu - podemos falar sobre a confissão do Francisco?

- Com certeza, Irmão Lucas, dai-me conta do que vos preocupa.

- Receio bem, Irmão Vial, que o Francisco tenha perdido as referências - disse eu.

- Perdestes as referências, Irmão Lucas? - perguntou ele.

- Não, Irmão Vial, estou a falar do Francisco. Na descrição da batalha de Toron, não consegue fazer a destrinça entre cavaleiros cristãos e infiéis. Na versão dele, o horror mancha tudo e todos.

- A guerra é uma coisa muito desagradável, Irmão Lucas.

- Passei a tarde a ler e a reler a confissão do Francisco - disse eu. - Devo ter lido algumas dez vezes o relato da batalha de Toron. Procurava o mapa da sua alma, alguma réstia de luz. Não vi nenhuma. Mais parecia um mapa do inferno.

- Mas que história é essa dos mapas, Irmão Lucas? - perguntou o Irmão Vial.

- Perdão, Irmão Vial?

- Vós falastes num mapa, Irmão Lucas - disse ele. - O mosteiro recebeu de Barcelona algum carregamento novo de manuscritos?

- Refiro-me a questões mais ponderosas, Irmão Vial. Refiro-me ao mapa da alma do Francisco.

- Um mapa da alma do Francisco? - perguntou ele.

- Ó Irmão Vial, certamente que estais lembrado da conversa que tivemos ainda não há cinco meses, em que me dissestes qual a razão por que transcrevíeis as confissões dos vossos pacientes. E dissestes que descobríeis no pergaminho o mapa da alma do paciente, um mapa que revela a causa da possessão e o caminho para a salvação.

- Ah, sim, o mapa da alma - disse o Irmão Vial. - Já me estou a lembrar. Às vezes, a memória de um velho prega-lhe partidas. Desculpai-me, Irmão Lucas.

- Irmão Vial, - disse eu - procurei o mapa da alma do Francisco na sua confissão. Tudo o que encontrei foi negrume.

- Irmão Lucas, - disse ele - talvez eu me tenha explicado mal na conversa a que vos referis. Eu queria referir-me ao mapa da alma do exorcista. À vossa alma, Irmão Lucas, não à do Francisco.

- À minha, Irmão Vial?

- Sim, Irmão Lucas, - disse ele - à vossa alma.

- Deveis estar a brincar, Irmão Vial.

- Irmão Lucas, - disse ele - com a alma de um homem não se brinca.

- Tenho a certeza, Irmão Vial, a certeza absoluta de que vós faláveis do mapa da alma do possesso.

- É uma ideia interessante, Irmão Lucas, - disse ele - mas não é minha. É verdade que eu transcrevo as confissões dos meus pacientes mais obstinados. Quando leio o manuscrito, acontece-me muitas vezes ter a surpresa de descobrir no pergaminho o mapa da minha própria alma, a minha própria confissão. Há casos, Irmão Lucas, em que o exorcista tem de se examinar a si próprio, empreender a sua própria viagem espiritual através de florestas escuras, nunca antes percorridas.

- Irmão Vial, - disse eu - estou confuso.

- Irmão Lucas, - disse ele - há ocasiões em que temos de nos sentir confusos antes de encontrarmos o nosso caminho.

O Irmão Vial levantou-se com muito vagar, pousou a mão sobre o meu punho fechado e saiu do parlatório. Eu, por minha vez, sentei-me por momentos. Mas não me senti descansado. Pelo contrário, fiquei muito irritado com o Irmão Vial. Acho que fui injusto nos meus sentimentos. Não posso culpar o Irmão Vial pelas suas falhas de memória. Talvez ele esteja a ficar senil. Mas está com certeza a dizer um disparate. Que utilidade ia ter um mapa da minha alma? Eu não estou possesso; Francisco é que está. Tomei nessa mesma altura a decisão de nunca mais voltar a consultar o Irmão Vial, passando a procurar na oração as respostas de que preciso. Pus-me em pé e atravessei o pátio em direcção à igreja.

Num recanto escuro da capela, ajoelhei diante de uma imagem da Virgem. Ergui os olhos para a escultura de madeira de Maria. A Mãe de Deus - a contemplar a criação do Senhor, a chorar a perda do Filho, a sofrer pelos inocentes. O veio da madeira a ver-se por baixo da tinta estalada.

Foi então que tudo aconteceu. Um incidente profundamente lamentável. Apenas um instante. Talvez mais. Não sei. Olhei para o esmalte azul dos olhos de Maria, raiados, tristes, a ficar cinzentos. Imaginei que através do vidrado via as ondas do oceano - e o horizonte, porventura a mesma vista que Francisco teve na viagem para a Terra Santa. Parecia estar a formar-se ao longe uma tempestade. O céu fundia-se no oceano, as vagas saltavam ao encontro das nuvens cinzentas. Os limites entre os elementos diluíam-se. Eu já não conseguia distinguir entre terra e água, entre céu e mar. Sentia-me tonto, desorientado, perdido no vórtice daquele espaço pardacento, no apocalipse. As nuvens a correr ao encontro do oceano. O bem a misturar-se com o mal.

Limpei o suor da testa. Mal podia respirar. O ar abafado asfixiava-me. Levantei-me e saí para o pátio. Mas a linha recta da nave começou a torcer-se. A porta começou a mudar de sítio. Fui contra um candelabro de ferro, escapando por pouco à chama que dele caiu. Quando cheguei à porta, um dos meus irmãos fez menção de me ajudar.

- O que foi, Irmão Lucas? - perguntou ele.

Eu afastei-o e avancei pelo pátio a cambalear. Fui abrigar-me debaixo do telheiro da cisterna. Borrifei com água a nuca e o pescoço. Ou melhor, meti a cabeça na água fria e agarrei-me à balaustrada até me passarem as tonturas.

Quando olhei para cima reparei num pequeno ajuntamento de monges que me observava do outro lado do pátio. Devo ter sido para eles um grande espectáculo. Tive de agir rapidamente para refrear a curiosidade dos meus ansiosos irmãos. Apesar de sentir as pernas bambas, consegui endireitar-me. Lavei as mãos com todo o vagar, alisei o hábito e caminhei muito direito até ao banco mais próximo. Sentei-me e pus as mãos em pose de fingida oração silenciosa. Depressa os meus irmãos perderam interesse pelas minhas actividades e dispersaram.

Quando, finalmente, fiquei só, pus-me a respirar fundo e devagar. O ar fresco reanimou-me. Passado pouco tempo já me sentia muito melhor, igual a mim mesmo. O desconforto tinha passado. Já conseguia reflectir com mais lucidez sobre o relato que Francisco me fizera dos acontecimentos de Toron.

Durante anos e anos, ouvi histórias sobre a batalha de Toron - sobre a bravura das forças cristãs, o barbarismo e crueldade dos defensores muçulmanos, que usavam os civis como escudos para que os nossos cavaleiros não pudessem disparar, com medo de atingir uma mulher ou uma criança. Diria mesmo que não era fácil encontrar um súbdito fiel que não soubesse a letra de pelo menos uma das várias cantigas feitas para celebrar a bravura dos cavaleiros catalães, com realce para o Príncipe Fernando. Foi no regresso triunfante de Fernando a Barcelona que o Rei Jaime deu ao filho o título de "El Conquistador de Toron, Defensor da Fé, Príncipe de Barcelona".

Escusado será dizer que as memórias de Francisco não coincidiam com a versão mais divulgada. Na forma como relatava o tratamento dado aos civis muçulmanos, Francisco despojava o exército de Cristo da sua autoridade espiritual e moral, obliterando a distinção entre soldados cristãos e infiéis. Narrada por Francisco, a batalha de Toron parecia um abismo tenebroso e ímpio.

Como hei-de interpretar a discrepância entre a versão dos acontecimentos dada por Francisco e a caracterização mais conhecida que o meu venerável leitor certamente conhece? É claro que há uma explicação simples - os demónios que possuíam Francisco trataram de propalar mentiras e blasfémias para semear a dúvida no seio dos fiéis.

E, no entanto, não posso negar que Francisco foi testemunha presencial da batalha. Como não posso negar que a descrição que ele fez do cerco coincide, em certos aspectos, com as versões mais divulgadas. É sabido que os Cavaleiros de Calatrava capturaram a torre noroeste do castelo antes de as forças do Príncipe Fernando terem tomado de assalto o portão leste.

Outra característica do relato de Francisco foi o seu realismo e vivacidade. Enquanto ele descrevia a fogueira que consumia os cadáveres dos muçulmanos, eu quase conseguia sentir o cheiro a carne esturricada, cheiro de que tinha uma memória remota mas familiar. Era eu ainda criado em Santes Creus, antes da chegada de Francisco, quando houve um surto de febre no mosteiro. Quinze irmãos sucumbiram à doença. Para pôr termo ao contágio, o Abade mandou os criados cremar os cadáveres. Os corpos nus dos mortos eram arrastados de carroças e atirados para a fogueira que ardia na praça fronteira aos portões do mosteiro. Um cheiro fétido invadiu a praça. O crepitar das chamas crescia a cada novo corpo que recebiam, até formar um gemido baixo e constante que chegava a todos os recantos do mosteiro e se sobrepunha mesmo aos lamentos dos sobreviventes.

Mas por que é que eu me entregava a tão negras recordações? Por que é que me sentia incomodado com a versão de Francisco? Depois de ouvir o relato de Francisco, dei comigo, por momentos, a pôr em dúvida a virtude dos cruzados do Príncipe Fernando, sem dúvida um pequeno grupo no contexto da totalidade das forças cristãs.

E então caí em mim e lembrei-me da advertência do Irmão Vial, advertência que ele me fez antes de eu partir para Poblet, para arrancar Francisco às garras do Padre Adelmo. Era a mão do diabo - a insinuar a tentação sob a forma de dúvida. Dúvida sobre a virtude do exército de Cristo. Posso garantir a quem me lê que foi um momento humilhante - a constatação de que até eu, filho da Igreja, filho de Deus, o segundo mais jovem prior alguma vez nomeado para Santes Creus, era vulnerável à sedução do demónio.

Preocupado com estes pensamentos perturbadores, ia a passar no pátio que conduzia aos meus aposentos quando vi Isabel. Estava sentada no parlatório a conversar com o Irmão Vial.

 

                                     ISABEL

Para poupar o meu mentor a mais embaraços, tentei evitar um confronto com a rapariga. Quanto menos atenções se concentrassem no espectáculo da presença de uma fêmea no parlatório, mais provavelmente se minimizava o escândalo. Apesar de ter muita experiência do mundo, o Irmão Vial dá às vezes provas de pouco discernimento.

Puxei o capuz branco do hábito para cima dos olhos e acelerei o passo a caminho da igreja. Mas mesmo assim o Irmão Vial reconheceu-me.

- Irmão Lucas, - chamou - hoje temos uma visita especial.

- Chamastes, Irmão Vial?

- Chamei, sim, Irmão Lucas, vinde cumprimentar a nossa hóspede.

Não tinha por onde fugir. Dirigi-me ao parlatório pelo caminho de pedras que atravessa o pátio. Sem querer, desviei-me do caminho e fui pisar o tapete de relva. Senti as lâminas frias roçar-me na pele, pelos intervalos das sandálias.

- Dona Isabel Corrêa de Girona, apresento-vos o Irmão Lucas.

- Bem-vinda a Santes Creus - disse eu.

- O Irmão Lucas é o prior do mosteiro, - disse o Irmão Vial - e confessor do Francisco.

- Fizestes boa viagem, Dona Isabel? - perguntei.

Ela levantou-se e fez uma ligeira vénia. Verifiquei que era exactamente da minha altura, pelo que os nossos olhares se cruzaram directamente. Claro que ela não ouviu a minha pergunta. Ou então não achou necessário responder-me.

- Com vossa licença, Dona Isabel, - disse o Irmão Vial - eu retiro-me para o serviço da tarde.

Eu agarrei o Irmão Vial pela manga quando ele se virava para se ir embora.

- Com certeza, Irmão Vial, que não ides deixar uma mulher sozinha no parlatório.

- Não, Irmão Lucas, não vou. Deixo-a nas vossas mãos competentes. Assim podeis falar os dois da situação do Francisco.

- Mas, Irmão Vial, - disse eu - ver o prior a falar a sós com uma mulher pode causar consternação entre os membros do rebanho.

- Dais demasiada importância às aparências, Irmão Lucas.

Fiquei a ver as costas largas do Irmão Vial atravessar o pátio, até desaparecer pela coluna do canto. Voltei-me para encarar Isabel. Muito embaraçoso.

- Espero que o nosso mensageiro se tenha revelado um guia fiel - disse eu.

O seu olhar era directo, os olhos penetrantes, a postura altiva. Dava a impressão de não ter consciência de que a sua presença naquele lugar consagrado não era curial. Mas também não se sentiu na obrigação de pronunciar frases de circunstância.

- Irmão Lucas, como está o meu primo?

Francisco tinha dito que ela tinha olhos cinzentos, da cor da pedra tumular do seu irmão Sérgio. Uma pedra tumular muito especial, não haja dúvida. Apesar do meu privilegiado ponto de observação, não conseguia dizer de que cor eram os seus olhos. Ora pareciam verdes, ora azuis, ora amarelos.

- O diabo é muito teimoso - disse eu. - Não abre mão da presa facilmente. No entanto, estamos a fazer progressos.

Umas ténues sardas castanhas polvilhavam-lhe a cana do nariz e atenuavam a claridade da sua pele branca.

- Então o Francisco fala? - perguntou ela. A expressão de sobressalto que acompanhou a pergunta desmentia a tranquilidade do tom em que era feita. Eu demorei um pouco antes de responder.

- Sim, Isabel, o Francisco fala.

Isabel afastou os olhos sem me dar tempo de avaliar o impacto da notícia relativa aos progressos de Francisco.

- Espero que o vosso marido tenha concordado com a vossa visita a Santes Creus - disse eu.

- Eu não sou casada, Irmão Lucas.

- Peço desculpa.

- Já me basta ter de me ocupar do meu pai.

- Ele está doente?

- Ficou doente com a morte do meu irmão. Conhecestes o Andrés?

- Conheci-o há muitos anos, no mosteiro. Um excelente rapaz. Dedicado, à sua maneira.

- Dedicado à aventura, Irmão Lucas. Sem vocação para a vida monástica.

- Cada qual é para o que nasce, Isabel.

- Morreu no Krak des Chevaliers. O meu pai recebeu uma carta do Príncipe Fernando, que comandava as forças cristãs do castelo, a elogiar a coragem do meu irmão. O Andrés morreu na véspera da queda do castelo.

Tive de refrear o desejo de lhe limpar um fragmento de crosta amarela que ela tinha ao canto do olho. Era óbvio que não se tinha arranjado para o nosso encontro. Caracóis de cabelo despenteados, iridescentes, saíam-lhe do capuz e iam cair-lhe a um dos lados da cara. O Irmão Vial disse um dia que as mulheres ajudam os homens a reconhecer a beleza da criação de Deus. Dizia ele que as mulheres fazem o azul mais azul, o verde mais verde; "o vermelho pega fogo". Uma hipótese curiosa. Eu inclino-me mais para considerar que só pela oração podemos aproximar-nos da completa apreciação da generosidade do Senhor.

- Não desespereis, minha filha - disse eu. - O Andrés morreu ao serviço do Senhor.

- Às vezes pergunto-me, Irmão Lucas, - disse Isabel - se o Senhor olha com benevolência para aqueles que erguem a espada contra um inimigo tão distante.

- Minha filha, - disse eu - o vosso irmão morreu por Cristo. Foi um dos escolhidos, um membro do exército de Deus.

- Deus tem um exército, Irmão Lucas?

- Claro que tem. Cavaleiros, monges e padres que combatem os agentes do diabo onde quer que os encontrem. Um exército justiceiro formado por homens fortes e corajosos - os guardiões da herança divina.

- Não são os mansos que herdarão a terra, Irmão Lucas?

A rapariga sabia ser irritante.

- Sim, Isabel, mas serão os fortes a garantir a herança.

O sol da tarde projectou-lhe no rosto uma sombra de melancolia. Uma tristeza marcada pelas linhas ténues que lhe ornavam a testa, provavelmente imperceptíveis antes da expedição do irmão ao Levante. Fez um sorriso enfastiado, como se achasse a minha conversa enfadonha.

- Tendes de ter fé no plano divino, Isabel.

- Não vejo que papel é que a morte do meu irmão desempenha nesse plano. Para mim, não faz sentido nenhum.

- Eu compreendo o vosso desespero, minha filha - respondi eu, com ternura. - Compreendo mais do que possais imaginar.

Não contei a Isabel que também eu tinha sido vítima de injustiça, trazido ao mundo quase de certeza com sangue nobre, mas sem nome. Num vulgar criado me tornei. Não está ao nosso alcance compreender o caminho que o Senhor para nós escolheu.

- Lembrai-vos, minha filha, - disse eu - de que são os nossos padecimentos que nos aproximam de Cristo. As nossas lágrimas correm para o rio de sangue que brota dos estigmas. É aí que vamos encontrar a comunhão e a paz. O vosso irmão, tal como Cristo, morreu por vós.

- Perdoai-me, Irmão Lucas. Eu não estudei as Escrituras nem passei as horas de devoção espiritual que vós passastes. Sei que sou uma leiga nessas matérias. Mas não percebo por que é que esses dois homens tiveram de morrer por mim. Se eu pudesse escolher, teria preferido que eles continuassem vivos.

- E continuam, Isabel. O vosso irmão vive no paraíso. Está neste momento a ver-vos de lá de cima.

Eu falava com entusiasmo, mas a rapariga não parecia estar a ouvir-me. Tinha a atenção concentrada num tufo de ervas que irrompiam por entre duas lajes de pedra do chão do parlatório. Uma distracção embaraçosa. Ia ter de chamar a atenção do Irmão Eduardo, que é o responsável pela conveniente manutenção dos pisos do mosteiro. O trabalho do Senhor exige uma disciplina inflexível, e esta tem de ser extensiva a todos os elementos do mosteiro e a todas as funções, dos ofícios sagrados às tarefas mais comezinhas.

- Às vezes, Irmão Lucas, - disse ela - sinto que me deve faltar aquele discernimento crítico que explica estas questões. Parece-me que a morte de um mártir só traz angústia a quem cá fica. Pode ser que ele vá para o paraíso. Mas a quem lhe sobrevive só deixa sofrimento. É o caso do próprio Jesus Cristo. Imaginai, Irmão Lucas, a Virgem Maria a ver o seu Filho contorcer-se na Cruz. Se Ele tivesse escolhido a vida, podia transformar a água em vinho até ser velho, curar os doentes, dar vista aos cegos.

Uma ténue amargura toldava-lhe a suavidade do tom de voz. Isabel fazia um reparo maternal, repreendendo o irmão por ter tomado a Cruz. Como se Isabel fosse Maria, a repreender o filho pela imprudência, para não lhe chamar egoísmo, da Sua opção.

- Agora não estais a pensar com clareza, Isabel - respondi eu. - Cristo escolheu a Cruz para poder comungar da nossa condição, para poder indicar-nos o caminho que, passando pelo sofrimento e pela morte, conduz à vida eterna. Para poder assumir os nossos pecados.

- Eu nunca Lhe pedi para assumir os meus pecados, - disse ela - e não sei bem de que serviu Ele tê-los assumido.

- Isabel, pronunciais palavras perigosas. Não sabeis o que estais a dizer. Quando voltardes a falar destes assuntos, o melhor é reflectirdes primeiro.

A jovem estava a precisar de ser avisada. O seu próximo interlocutor podia não ser tão compreensivo como eu. Além de que algum monge podia tê-la ouvido. Não seria a primeira vez que um dos meus irmãos se punha a escutar uma conversa privada e ia contá-la ao Abade Alfonso ou, pior ainda, a algum inquisidor excessivamente zeloso que estivesse de passagem por Santes Creus.

- Peço desculpa, Irmão Lucas. Falo desta forma imprudente porque sinto muito a falta do meu irmão.

Eu tirei de dentro da sotaina um lenço e limpei as bagas de suor da testa. Ainda tentei sorrir para a rapariga, mas palpita-me que o que me saiu foi mais um esgar do que um sorriso. E árduo o trabalho do Senhor.

Tocaram os sinos para os ofícios divinos, obrigando a uma oportuna pausa naquele difícil diálogo e dando à rapariga a oportunidade de recuperar a compostura. Lamentavelmente, foram muitos os meus irmãos que não conseguiram resistir ao impulso de olhar para a nossa visitante quando atravessavam o parlatório. Provavelmente, alguns deles nunca tinham posto os olhos numa fêmea da graciosidade de Isabel. O Irmão Mário ficou especado e de olhos arregalados a olhar para a rapariga.

- Irmão Mário, - disse eu - o Senhor chama-vos para a oração. Ele continuou siderado, de boca aberta, como um tolo de aldeia.

- Talvez, Irmão Mário, - disse eu - vos fizesse bem passar uma temporada num dos mosteiros dos novos territórios da Catalunha. A Igreja está a precisar de voluntários que semeiem a Palavra do Senhor entre os camponeses mouros. Acho que vós dáveis um bom semeador.

O rapaz correu a juntar-se aos companheiros, e logo a seguir fecharam-se as portas da capela. Eu e Isabel ficámos sozinhos.

- Imagino, Isabel, que queirais saber por que razão eu vos mandei chamar.

Ela enrolava entre os dedos uma madeixa de cabelo e de vez em quando metia a ponta na boca. Parecia concentrar-se intensamente na tarefa, como se estivesse a encanastrar um cesto. Eu pigarreei alto, de propósito. Isabel tirou o cabelo da boca e entalou as madeixas molhadas atrás da orelha.

- Talvez, Isabel, vos tenhais interrogado sobre a razão pela qual aqui estais.

- Eu sei por que razão estou aqui, Irmão Lucas. A rapariga sabia ser impertinente.

- Então dizei-me, Isabel, por que razão estais aqui?

- Quando é que vou poder ver o Francisco, Irmão Lucas?

- Tende paciência, minha filha. Estávamos a falar da vossa visita ao nosso humilde santuário. Do propósito da vossa presença aqui.

- Estou aqui para visitar o meu primo - disse ela.

- Sim, é verdade, Isabel, mas não tendes plena consciência da situação. Santes Creus não é nenhum castelo, e o vosso primo não costuma receber visitas. Embora tenhamos feito progressos na luta contra Satanás, o Francisco continua possesso do senhor das trevas. A sua alma e o seu corpo continuam a correr perigo de morte. Não me surpreenderia se ele não vos reconhecesse. Estou convencido de que, se não fossem os nossos esforços, ele já estaria provavelmente morto. A mais leve influência negativa pode deitar toda a sua recuperação a perder.

- Que tipo de influência sou eu, Irmão Lucas?

- Espero que boa, Isabel. Chamámos-vos para ajudar no exorcismo do Francisco. Para tentar o Francisco com a vida.

Foram estas as palavras do Irmão Vial quando sugeriu que mandássemos vir a rapariga - "tentar o Francisco com a vida". Para dizer a verdade, o meu cepticismo mantinha-se. Isabel talvez tentasse Francisco, mas com que objectivo? Eva não tentou Adão com a maçã? Isabel podia ter o seu próprio objectivo ao vir a Santes Creus. Seria insensato descartar a possibilidade de ela querer tirar partido do estado de debilidade em que Francisco se encontrava para conseguir um casamento. Qualquer rapariga, para mais solteira e com vinte e quatro anos, cobiçaria a fortuna de Francisco, independentemente do estado dele. Achei melhor inquirir Isabel sobre as suas intenções.

- Isabel, sei que deveis estar cansada depois de tão longa viagem. Será que vos posso maçar com mais umas perguntas?

- Com certeza, Irmão Lucas.

- Como caracterizaríeis as vossas relações com o Francisco?

- Somos primos direitos.

- Pois, eu sei, Isabel. Mas como caracterizaríeis os vossos sentimentos para com o Francisco?

- Gosto do meu primo, Irmão Lucas.

- Gostais mesmo muito, ou gostais apenas?

- Não sei se percebo o que quereis dizer, Irmão Lucas.

- Talvez pudésseis, Isabel, descrever os antecedentes do vosso relacionamento com o Francisco.

- Lamento muito, Irmão Lucas, mas não faço a mínima ideia do que estais a querer dizer-me.

A rapariga não estava a ser tão colaborante como eu desejaria.

- Muito bem, Isabel. Vamos então começar pelo princípio. Onde conhecestes o Francisco?

- No domínio do meu pai, em Girona.

- E foi aí que passastes a gostar do Francisco, como vós dizeis?

- Foi, sim, Irmão Lucas.

- E ele passou a gostar de vós?

- Sim.

- Como sabeis? Perguntastes-lhe?

- Não.

- Foi ele que vos disse?

- Não. Pelo menos por palavras.

Eu já estava a imaginar Francisco na propriedade do pai dela - antes da cruzada. O seu ar pensativo, a tristeza nos limites do seu sorriso calmo, um sorriso que facilmente podia ser mal interpretado.

- Às vezes, minha filha, temos por outra pessoa uma afinidade que não tem retorno.

- O Francisco disse-me uma vez que há um momento que segura a noite e o dia.

- Agora sou eu que não vejo onde quereis chegar, Isabel.

- Cinco horas da manhã. Talvez mais. O segundo que antecede o nascer do dia.

- Não estou a perceber, Isabel.

- O Francisco disse-me que nesse momento via às vezes o irmão.

- Tendes a certeza, Isabel? - perguntei eu.

- A imagem do Sérgio ao lusco-fusco - disse ela.

- O Francisco nunca me falou dessa imagem.

- Um dos olhos fixava-se no Sérgio, - disse ela - o outro no dia a nascer ne horizonte.

- De facto, parece coisa do Francisco.

- Naquele silêncio, nós reconhecemo-nos mutuamente.

- Onde, Isabel?

- Num lugar onde a vida e a morte se cruzam.

Vieram-me à memória as circunstâncias do nascimento de Isabel - dada à luz em cima de uma sepultura. A mãe morreu do parto. Uma herança cruel, sem dúvida.

- Estais a sentir-vos bem, minha filha?

- Uma solidão sem descanso - disse ela.

- Os nossos corações não têm descanso, Isabel, enquanto não descansam no Senhor. Palavras de Santo Agostinho.

- E então o Francisco veio a Girona - disse ela.

- Sim, ele falou-me da visita que fez ao domínio da vossa família.

- O Francisco compreendeu.

- Compreendeu o quê, Isabel?

- A desolação que a morte deixa atrás de si.

- Estais a falar do Francisco ou de vós própria, Isabel?

- Ela tinha-nos marcado aos dois.

- Debaixo do gelo, quereis vós dizer? - perguntei eu. - É isso que quereis dizer com essas vossas referências enigmáticas? O Francisco contou-me o acidente que tivestes no lago. Que mergulhou na água gelada. Que vós dois íeis a rastejar para lugar seguro quando a superfície se quebrou.

- O Francisco projectou uma luz pálida - disse ela.

- Uma luz? - perguntei eu.

- No meio desta morte - disse ela.

- O Francisco projectava luzes?

- Uma luz pálida que trespassou a minha solidão - disse ela.

- O Francisco salvou-vos - disse eu. - Talvez agora queirais vós salvá-lo a ele. É isso que quereis dizer?

- Um olho fixo na noite, o outro no dia.

- Isabel, estais a ouvir o que eu estou a dizer?

- Até à morte do Andrés.

- Isto nem parece uma conversa - disse eu.

- A luz pálida apagou-se - disse ela.

Este discurso sincopado estava a mexer-me com os nervos.

- A propósito de luz pálida, - disse eu - parece que o sol já se está a pôr. Talvez esteja na altura de nos retirarmos, Isabel.

- E depois a noite, Irmão Lucas. Uma longa noite para o Francisco. Uma longa conversa. Ou melhor, um longo solilóquio.

- Agora só eu seguro a vela - disse ela.

- Para dizer a verdade, Isabel, vós estais de mãos vazias. Deveis estar cansada da viagem.

Isabel olhava com uma expressão algo dramática as sombras em tom pastel que invadiam o parlatório. Eu dei uma palmada nos joelhos e pus-me em pé. Só então ela ergueu os olhos.

- Vamos então, Isabel? Estais a precisar de dormir. Encontramo-nos com o Francisco amanhã de manhã.

Isabel levantou-se devagar e saiu atrás de mim do parlatório.

Não há dúvida de que ela tinha propensão para a morbidez. Eu percebia agora por que razão ela e Francisco sentiam uma atracção mútua. Ambos revelam um doentio fascínio pelo macabro.

- Irmão Lucas, posso fazer-vos uma pergunta? - disse Isabel quando íamos a atravessar o pátio.

- Claro, minha filha.

- Estais aqui para cumprir uma obrigação?

- Não, filha, eu sirvo ao Senhor por amor, não por obrigação.

- O Irmão Vial disse-me que estais com o Francisco quase há cinco meses.

- Pois estou - respondi eu.

- Obrigada, Irmão Lucas, pela vossa devoção ao Francisco.

- Os servos do Senhor não esperam gratidão - disse eu. - O trabalho proporciona a sua própria compensação.

Ao atravessar a estreita passagem por entre os canteiros do pátio, vi-me obrigado a aproximar-me de Isabel, tanto que sentia o suave roçagar do seu vestido de seda contra o meu hábito branco.

- Posso fazer outra pergunta, Irmão Lucas?

Pelos vistos, a rapariga não sabia quando era altura de se calar.

- Podeis, sim, minha filha.

- Se calhar estou a ultrapassar os meus limites, Irmão Lucas, mas a vossa presença aqui tem alguma coisa a ver com a recompensa que o Barão de Monteada ofereceu pela salvação do filho?

- Não sei bem a que estais a referir-vos, Isabel.

- Diz-se que o Barão de Monteada ofereceu uma terça parte dos seus bens à Igreja a troco da salvação do filho.

- Diz quem, minha filha?

- Talvez eu esteja mal informada - disse ela. - Girona está cheia de boatos.

Isabel não tem nada que saber dos complexos mecanismos da Igreja, muito menos do conteúdo de uma combinação privada entre a diocese e um membro do seu rebanho. Pura e simplesmente, a rapariga não tem capacidade para compreender todos os meandros e implicações de tais assuntos. Ainda assim, eu expliquei a situação o melhor que podia e sabia, para dissipar quaisquer ideias erradas em que ela pudesse estar a laborar.

- Isabel, - disse eu - vós não estais mal informada. O Barão Monteada fez de facto essa oferta. É o apelo desesperado de um pai que já sacrificou um filho à glória de Deus. Não estáveis à espera de que a Igreja ignorasse a situação desesperada do Barão, pois não?

- Era isso que queríeis dizer quando dissestes que o trabalho proporciona a sua própria compensação?

- Não me parece que o caminho que estais a dar às vossas perguntas fosse do agrado dos inquisidores, Isabel. A Igreja respondeu ao apelo de um dos seus filhos mais devotos, o Barão Monteada. Os meus superiores enviaram-me para aqui ao serviço do Senhor. Para expulsar os demónios que atormentam a alma do filho do Barão.

Com a referência à inquisição, não era minha intenção ameaçar a rapariga, mas apenas avisá-la, para seu próprio bem. Se não passasse a ter mais cuidado com o que dizia, Isabel podia muito bem ver-se confrontada com um dos tribunais da inquisição. Eu pensava que o assunto ficava encerrado. Engano meu.

- E o que é que vós tendes a ganhar, Irmão Lucas, - perguntou Isabel - se o Francisco se salvar?

- Perdão, minha filha? - disse eu. Que grande atrevimento o dela!

- Que tentação, - continuou Isabel - vos prende durante tanto tempo a tratar do meu primo, Irmão Lucas?

Parámos os dois e olhámo-nos nos olhos, a menos de dois pés de distância um do outro. A rapariga tinha os olhos fixos e os dentes cerrados. A nossa dança tinha acabado. Isabel tinha deitado ao chão o manto de boas maneiras da nossa diplomacia. A sua insolência provocou em mim uma raiva que me apanhou de surpresa. Foi com um esforço e com a graça de Deus que resisti ao impulso de lhe dar uma bofetada na cara. Quando, na manhã seguinte, ela visse os progressos que o Francisco tinha feito desde que estava entregue aos meus cuidados, de certeza que se iria arrepender amargamente da forma como tinha posto em dúvida as minhas intenções. Mas naquele momento não fazia ideia dos meus sacrifícios. Não compreendia a intensidade das minhas emoções nesta questão.

E no entanto a sua expressão não era de simples desafio insolente. Nas sombras negras que lhe sublinhavam os olhos, no leve franzir de sobrancelha, eu li as marcas de uma solene e doentia introspecção. Não há dúvida de que a rapariga também teve o seu quinhão de sofrimento. Quando o pai morrer, Francisco será o seu mais íntimo, porventura o único, elo de ligação ao passado. Senti uma ponta de compaixão que se sobrepôs a raiva e me impeliu para a rapariga. Fiquei tão perto de Isabel que lhe sentia o suave aroma a lavanda - as folhas secas que lhe perfumavam a roupa. Esqueci-me por completo de mim e fiz menção de consolá-la, acariciando-lhe o braço. Passaram-se vários segundos antes que eu desviasse os olhos, distraído pelos meus irmãos que iam a sair da igreja. Quando voltei a olhar para ela, já Isabel tinha virado costas em direcção ao portão principal, atravessando o pátio. Tive de me apressar para apanhar a rapariga. Conduzi-a a um dos aposentos privados que estavam reservados aos nobres que nos visitavam.

Quando regressei aos meus aposentos, detive-me um pouco na antecâmara do quarto de dormir, a pensar na conversa que acabava de ter com Isabel. As perguntas da rapariga indicavam que eu tinha sido muito pouco frontal no que toca à oferta do Barão Monteada e aos potenciais benefícios que para mim poderiam advir da eventual salvação de Francisco. Mas não fiz segredo da preocupação do Arcebispo Sancho com o bem-es-tar de Francisco, ou do apreço por ele demonstrado pela dificuldade da minha missão.

Faltaria à verdade se dissesse que me é indiferente estar ou não nas boas graças do Arcebispo. Duvido que haja alguém completamente imune às tentações materiais. O próprio Irmão Vial o disse por várias vezes. Que mal há em eu querer subir na hierarquia eclesiástica? A minha ambição não é compatível com o trabalho de Deus? O êxito da minha missão - a salvação da alma de Francisco - não é consentâneo com os meus planos de carreira clerical? Afinal de contas, quanto mais alto eu subir melhor posso praticar o bem.

E que direito tem Isabel a falar-me de tentação? Alguma vez sentiu ela no estômago um vazio que não seria preenchido nesse dia, nem no seguinte, nem no outro? Eu senti, e não me esqueci. Nasci órfão, fui um criado raso. Levei uma existência miserável, de sujidade e fome. E de servidão a essa mesma gente, a gente da laia dela, que era indiferente às minhas privações, que me tratava como se eu fosse apenas mais um animal dos seus estábulos. Não me esqueci.

Depois, no meio desse quotidiano de degradação, o Senhor acena-nos não só com comida e com um lugar quente para dormir, mas com muito mais - uma vida de privilégios, a vida que Isabel, Andrés e Francisco des-preocupadamente assumiram como direito de nascença para depois se mostrarem indiferentes aos seus benefícios, manifestando desprezo por quem procurasse idênticas benesses.

Que mal havia em eu querer uma migalha da mesa deles? Deus ia condenar-me por isso? Deus ia julgar-me por querer melhorar a minha situação? Quem não iria escolher uma vida assim e segui-la até à sua conclusão lógica, cada vez mais alto, cada vez mais longe daquela maldita pobreza?

Na manhã seguinte, fui ter com Isabel aos seus aposentos. Encontrei-a sentada na cadeira, tal como a tinha deixado. O colchão da cama estava intacto, o cobertor dobrado a um lado.

- Bom dia, Isabel. Em Santes Creus arrefece bastante durante a noite. Espero que não tenhais sentido frio.

Falei-lhe com modos amáveis, decidido a mostrar-lhe que as suas observações insultuosas não tinham produzido qualquer efeito em mim. Ela retribuiu a minha amabilidade, mas cortou cerce uma troca de palavras sobre o estado do tempo. Não parecia minimamente interessada em conversas. E não tocou no chá e biscoitos que o camareiro, Irmão Dominic, para ela tinha preparado segundo as minhas instruções.

Meti pés à mesma caminhada solitária que fazia todos os dias desde que Francisco tinha chegado a Santes Creus, uns cinco meses atrás. Só que, desta vez, ouvia uma batida suave de passos atrás de mim. Com Isabel no meu encalço atravessei o pátio, subi as escadas e percorri o longo corredor. Quando chegámos à cela de Francisco, fiz com a cabeça um aceno encorajador na direcção da rapariga.

- Deus nos acompanhe, minha filha - disse eu.

Mal abri a porta, Isabel tentou entrar na cela à minha frente. Eu travei-a, prendendo-lhe com força o braço logo abaixo do ombro. Não queria sobressaltar Francisco com a visão súbita da prima.

Ele estava de costas para a porta, sentado no meio da cela, a olhar para fora da janela.

- Francisco, - disse eu - tendes uma visita. Está aqui a meu lado Isabel Corrêa de Girona.

Francisco não se mexeu. Não deu qualquer sinal de que me tivesse ouvido.

- Francisco, - disse eu, levantando a voz - Isabel Corrêa, vossa prima, veio de Girona para vos visitar.

Francisco continuava sem reagir. Muito estranho.

Eu larguei o braço de Isabel. Ela avançou devagar e foi pôr-se diante dele. Eu segui-lhe atentamente os movimentos. Francisco continuava a olhar lá para fora, ignorando a rapariga. Ela fez-lhe uma festa na cara, enquanto lhe estudava a expressão. As emoções de Isabel acabaram por sobrepor-se à sua fria reserva. Caiu de joelhos e pousou a cabeça no colo de Francisco. Abraçou-lhe firmemente as pernas como se ele fosse um fantasma que podia desaparecer a qualquer momento. A rapariga soluçava baixinho, fungando para a capa de Francisco, vestida de lavado.

Francisco cerrou os pulsos e fechou os olhos com força - numa expressão de dor, como se os dedos de Isabel fossem cacos de vidro. Levantou os braços acima da altura da cabeça, Pensei que se preparava para bater na rapariga. Mas ele afastou-se dela, rodando o tronco de um modo pouco natural, quase violento.

Isabel apercebeu-se do desconforto de Francisco. Aliviou o amplexo e levantou os olhos, confusa. Indefesa. Com as lágrimas a aflorar-lhe aos olhos.

- Francisco, - disse ela - sou eu.

O seu tom de voz pareceu exacerbar o estado de Francisco, que voltou a fazer uma expressão contorcida, de dor. Ela largou-lhe as pernas, retirando as mãos, mas continuou ajoelhada diante dele.

- Francisco, - disse eu - não cumprimentais Isabel? Ela fez uma viagem de muitas milhas para vir visitar-vos.

O nó dos lábios dele desfez-se.

- Ela veio ver o cadáver, Irmão Lucas?

- Francisco, - disse eu - de que estais a falar?

- Irmão Lucas, dizei a Isabel que o Francisco de Monteada morreu há anos, na Síria. Uma morte ignóbil.

- Francisco, não é hora de brincar.

- Também acho, Irmão Lucas - disse Francisco. - Isabel tem de saber a verdade.

- Isabel, - disse eu - não ligueis a este disparate momentâneo. A confissão do Francisco está a andar muito depressa. Posso garantir-vos que temos feito enormes progressos na luta pela expulsão dos demónios. Espero um dia escrever ao Barão Monteada a dar-lhe a notícia do completo restabelecimento do seu filho.

- Irmão Lucas, - disse Francisco - eu não sou Lázaro, e vós não tendes o poder de ressuscitar os mortos.

Francisco, quando queria, era muito ingrato. Senti o sangue subir-me às maçãs do rosto.

- Pela graça de Deus, Francisco, estais vivo - disse eu.

- Posso garantir-vos, Irmão Lucas, que o Senhor não me acha digno da Sua graça.

- A graça do Senhor - disse eu - dá esperança aos que sofrem, fé aos que duvidam.

- A minha fé já desapareceu há muitos anos, - disse Francisco - afogada no sangue de crianças.

- Um homem pode viver sem fé - reagiu Isabel. Francisco virou-se de rompante para a rapariga.

- Talvez possa, Isabel. Mas não pode viver sem fé nem honra.

- Falastes-me uma vez do vosso irmão Sérgio - disse Isabel. - Dissestes-me que a alma dele estava no limbo. Tomastes a Cruz em nome da sua salvação. Isso não é louvável, Irmão Lucas?

- É, sim, Isabel, - disse eu - muito louvável.

- Assassinar não é louvável - retorquiu ele.

- Francisco, - disse eu - eu ouvi com atenção o relato que vós fizestes da batalha de Toron. Registei todas as vossas palavras. Cometeram-se excessos. Os actos isolados de camaradas demasiado zelosos não mancham a nobreza da vossa missão, nem da missão do conjunto das forças cristãs.

- Qual nobreza? Ainda sinto o cheiro repugnante a carne queimada da nossa vitória. Daquelas cinzas não se ergueu a alma do Sérgio.

- Mas ergueu-se do vosso serviço ao Senhor - disse eu. - Por certo que São Miguel teve em conta a vossa bravura quando pesou a alma do vosso irmão.

- Um cobarde não influencia a balança de São Miguel - disse Francisco.

- Um cobarde - disse eu - não viajava mil milhas para ir combater os inimigos de Cristo. Vós participastes numa cruzada gloriosa, Francisco. Não percebo como podeis falar assim da vossa própria pessoa.

- Mas ides perceber, Irmão Lucas. Ides perceber tudo. Vinde à minha cela amanhã de manhã. Convido-vos também a vós, prima, se o Irmão Lucas estiver de acordo. A morte do vosso irmão Andrés - é esse o tema da sessão de amanhã, uma história muito trágica. Uma história de cobardia e vergonha. Minhas.

Isabel estendeu os braços e agarrou-se ao hábito de Francisco.

- Estais a mentir - disse ela.

Ele ficou a olhar para ela durante vários segundos. Depois riu-se. Ou seria um demónio a rir-se por ele, tão estridente lhe saiu o som da gargalhada?

Isabel recuou como se tivesse sido atingida por uma estocada. Agarrou-se ao peito com as mãos.

- Amanhã, Isabel, ides ver-me tal qual eu sou, e eu não sou como vós imaginais. Depois ireis sair daqui a correr e deixar-me entregue aos meus demónios.

Disse-me o Irmão Vial que, às vezes, o sofrimento dos outros ajuda-nos a ultrapassar as nossas próprias dificuldades. Isabel estava profundamente abalada. Ao vê-la, prostrada no chão, esqueci o desânimo que me causava o estado de Francisco. Reuni todas as minhas forças para levantar do chão a rapariga, pondo o braço dela por cima do meu ombro e levando-a para fora da cela e pelo corredor.

- Isabel, - disse eu - não ligueis ao que o Francisco diz. É o diabo a falar pela boca dele.

Enquanto caminhávamos, Isabel tropeçava no empedrado irregular. Tive de chamar o Irmão Dominic para me ajudar a levar a rapariga pelas estreitas escadas abaixo.

Deixei Isabel nos seus aposentos e regressei ao pátio. Passei o resto do dia em oração e meditação silenciosas. Quando voltei aos meus aposentos, já o sol se tinha posto. Tinha a ceia em cima da mesa da antecâmara. Mas não tinha fome. Não conseguia estar quieto. Fechei as mãos atrás das costas e dei voltas à antecâmara. Parei diante do pedaço de espelho que tinha pousado no caixilho de uma das janelas. Por vezes, quando me sinto desanimado com os progressos de Francisco, vejo-me ao espelho. A imagem conhecida, que vejo reflectida no espelho, dá-me um certo conforto - a sua certeza, a determinação que leio na minha expressão, a ruga cavada que tenho entre os olhos. De vez em quando, imagino-me vestido com as longas vestes carmim de um bispo ou de um cardeal. Ensaio a bênção aos meus súbditos com dois dedos esticados. Sim, penso, este é o meu futuro. Este sou eu.

Mas nessa noite foi diferente. A minha imagem reflectida pareceu-me distante, estranha. Até parecia que estava a olhar para um estranho. Virei as costas ao espelho. Afivelei o sorriso confiante de sempre que me lembrava dos meus planos, das minhas esperanças, das minhas ambições. De repente, voltei a encarar o espelho. Porém, o efeito foi o mesmo. O meu olhar tinha qualquer coisa de estranho - uma insegurança persistente, um medo vago, incontrolável. A pairar por trás da minha imagem reflectida, via aquele panorama cinzento - o céu a esvair-se no oceano, o preto no branco. Comecei a sentir o estômago às voltas. Ajoelhei-me diante do crucifixo de ferro que tinha em cima do parapeito da janela e enlacei as mãos. Ajudai-me, Senhor, que eu estou perdido.

Quando estava quase na hora de tocar para as matinas, adormeci. Acordei quando alguém me bateu à porta com força. Tentei ignorar o barulho, na esperança de que o visitante desistisse, mas os murros à porta eram cada vez mais fortes. Acendi a vela que tinha ao pé da cama e arrastei-me até à porta. Era o Abade Alfonso.

- Posso dar-vos uma palavrinha, Irmão Lucas? - perguntou.

- Claro, Abade Alfonso - respondi eu. - Entrai, por favor.

- O Príncipe Fernando pede um prazo, na sua última carta - disse o Abade Alfonso.

- Um prazo para quê? - perguntei eu.

- O Príncipe - disse o Abade Alfonso - quer saber quando o Francisco estará completamente restabelecido. Quer uma data certa. O Francisco ainda está a fazer progressos, não é verdade?

- Sim, sim - respondi eu. Os acontecimentos do dia anterior eram uma espécie de pesadelo. Era evidente que eu não estava preparado para discutir aquele encontro, nem as implicações que ele podia ter no estado de Francisco.

- O Príncipe - disse o Abade Alfonso - pergunta se o Francisco se lembra das experiências que teve no Levante - as batalhas, o cativeiro - dos pormenores.

O Abade Alfonso ficou a olhar para mim com ar expectante, mas eu tinha a cabeça ocupada com pensamentos relativos à entrevista que ia ter com Francisco.

- O Príncipe Fernando - continuou o Abade Alfonso - perdeu muitos homens ao serviço do Senhor. Preocupa-se muito com o bem-estar dos sobreviventes e reserva para o Francisco um lugar especial no coração. O mínimo que podemos fazer é enviar-lhe um relatório. Com boas notícias, espero eu.

O Príncipe Fernando - o homem que presidiu ao massacre de mulheres e crianças no castelo de Toron - estava preocupado com o bem-estar de Francisco.

- Sim, - disse eu - claro, podemos mandar um relatório que sossegue as preocupações do Príncipe.

- O quê, então? - perguntou o Abade Alfonso.

- Peço-vos que escrevais ao Príncipe Fernando - disse eu - que o Francisco se lembra de tudo o que se passou na cruzada como se fosse ontem. Guarda uma memória impressionante, mesmo dos mais pequenos pormenores. Dizei ao Príncipe que o Francisco está a melhorar, mas ainda não posso dar uma data certa para a sua total recuperação. O trabalho do Senhor está semeado de incertezas e perigos, Abade Alfonso.

- Irmão Lucas, - disse o Abade, francamente irritado - poupai-me ao sermão. Uma previsão aproximada já me chega.

- Abade Alfonso, - respondi eu - Deus não trabalha com prazos.

- Estais a sentir-vos bem, Irmão Lucas? - perguntou ele. - Não estareis a precisar de fazer uma pausa nas vossas obrigações, um intervalo no vosso trabalho com o Francisco?

- E o diabo, - perguntei - também faz uma pausa, Abade Alfonso? O Abade Alfonso tirou-me a vela da mão e pô-la mesmo junto à minha cara. Eu sentia o calor nas maçãs do rosto.

- Estou preocupado convosco, Irmão Lucas - disse ele. - Neste último mês, mudastes consideravelmente. Passei mais de uma vez por vós no corredor sem vos reconhecer, como se estivésseis possuído por magia negra. Até a vossa fisionomia se alterou. Tendes as maçãs do rosto macilentas, a pele pálida. Passais o tempo todo na cela do Francisco ou a andar de um lado para o outro no pátio. Descurastes as vossas obrigações de prior de Santes Creus. Chego a recear que o vosso trabalho com o Francisco tenha abalado a vossa fidelidade ao mosteiro.

- Lamento, Abade Alfonso, se vos desiludi - disse eu. - A única coisa que vos posso dizer é que a minha devoção ao exorcismo do Francisco é apenas o reflexo da minha fidelidade à Igreja.

- Assim seja, Irmão Lucas. Mas tende cuidado. Se puserdes a mão no fogo, queimais-vos. Se lá puserdes a alma, arriscais-vos à condenação eterna.

Tocou a matinas no momento em que o Abade ia a sair dos meus aposentos. Vesti-me à pressa, enfiando o hábito pardo por cima da cabeça e apertando as sandálias.

Quando ia no corredor a caminho dos aposentos de Isabel, pensei que ela era capaz de se recusar a ir outra vez à cela de Francisco. Para mim, ouvir o relato da morte de André não era nada de entusiasmante. Mas para Isabel, imaginava eu, essa perspectiva devia ser assustadora. Se Isabel me pedisse conselho espiritual, eu tê-la-ia aconselhado a ir-se embora de Santes Creus e nunca mais voltar.

Mas Isabel não tinha a mínima intenção de se ir embora. Já estava arranjada quando eu cheguei.

- Estou pronta, Irmão Lucas - disse ela.

Mais uma vez a guiei pelas escadas acima até à cela de Francisco. Parámos à porta. Eu respirei fundo. Não ficaria surpreendido se Satanás em pessoa estivesse atrás da porta.

- Fé, Irmão Lucas - foram as palavras que Isabel me disse enquanto eu corria o ferrolho e abria a porta.

Sim, fé, Isabel Corrêa.

 

                         O KRAK DES CHEVALIERS

Francisco tinha mudado a cadeira para mais perto da janela, talvez no intuito de ter melhor vista para o jardim do mosteiro. Ou talvez para nos excluir, a Isabel e a mim, da sua linha de visão. Com efeito, não dava a ideia de que estivesse a olhar lá para baixo, mas sim para uma mancha cinzenta de céu. Agarrava-se com força aos braços da cadeira e as veias azuis eram bem visíveis nas costas das suas mãos. Não respondeu ao meu cumprimento nem deu sinal de registar a nossa presença. Isabel e eu sentámo-nos na pedra fria por trás de Francisco. Trocámos umas palavras. Eu perguntei-lhe se estava confortável. Ela respondeu que sim. Depois ficámos à espera. À medida que o sol subia, a sombra de Francisco alastrava pelo chão. Vi a sombra avançar pedra a pedra, passar por Isabel, por mim. Uma hora, duas, três - não sei quanto tempo passou até que Francisco retomasse a sua confissão.

Perto de quarenta cavaleiros de Calatrava tinham sido mortos em Toron, incluindo os dois adjuntos de Ramón - Roberto e Bernard. Eu e o Andrés assumimos os seus lugares. Éramos os oficiais mais graduados abaixo do posto máximo - primeiros tenentes. Tínhamos conquistado essa distinção ganhando a corrida pelo trilho da montanha durante a instrução, em Calatrava.

A nossa Ordem ocupava menos de metade do espaço da nossa camarata. Mas ninguém se dera ao cuidado de recolher as enxergas vazias, e a presença destas acentuava a ilusão de que os nossos camaradas mortos estavam apenas atrasados e em breve voltariam.

As feridas do Andrés sararam rapidamente, mas não o seu espírito combativo. Falou pouco durante as escassas semanas que passámos em Acre, e nunca saiu do perímetro das muralhas. De dia dava voltas ao pátio, de olhos vidrados, cabelo em desalinho caído sobre os ombros.

O Barão Bernières e Dom Fernando chegaram a Acre uns dias depois de nós. Os homens de Dom Fernando regressaram ao seu acampamento nos arredores da cidade. Os nossos camaradas hospitalários estavam instalados em frente de nós, na ala leste do complexo. Para assinalar a nossa vitória em Toron, organizaram comemorações diárias depois da Missa matutina. No Grande Salão, havia barris de vinho de espiche abertos de sol a sol. Os cavaleiros divertiam-se até de madrugada.

Na nossa qualidade de hóspedes no quartel general dos hospitalários, nós, os Cavaleiros de Calatrava, não podíamos declinar o convite dos nossos anfitriões para participar nas festividades. Na sua folia estridente, os meus irmãos esforçavam-se por afogar as memórias de Toron. Mas eu não podia esquecer. O Padre Albar diante de uma pilha de cadáveres em chamas, no pátio do castelo. A Palavra de Deus proclamada num campo de sangue.

A alegria dos meus camaradas agredia-me como o som de uma faca a raspar a pedra. Sentia a cabeça a latejar. Tive de desapertar o colarinho para respirar melhor. Ao quarto dia de comemorações, deixei o quartel general dos hospitalários. Fui sozinho, sem pedir autorização a Ramón, sem informar ninguém, nem mesmo o Andrés.

Vagueei pelas ruas, perdido no anonimato da cidade. Quando cheguei ao porto, sentei-me no cais, com os pés a balançar mesmo por cima das ondas que batiam contra as pedras. Fiquei a olhar para a enseada, para os marinheiros que carregavam os navios - os mesmos produtos exóticos que havia no mercado, para mandar para a Europa cristã. Os homens rolavam barris carregados por rampas de madeira, até ao porão do navio. Um dos barris escapou-lhes das mãos e veio a rodopiar pela rampa abaixo. Os marinheiros saltaram para a água para não serem atropelados. O barril foi espatifar-se contra o cais. Pérolas amarelas, brancas, pretas, espalharam-se como berlindes pelo empedrado.

Ao anoitecer, regressei ao quartel. Enquanto percorria as ruas, veio atrás de mim um grupo de monges, que me empurravam e apertavam de ambos os lados. Tinham os hábitos castanhos puídos e esfarrapados do uso. Os cintos de corda mantinham os andrajos agarrados ao corpo. Andavam descalços e tinham os pés cheios de bolhas cobertas de crostas de sangue seco e sujidade. Eram peregrinos a caminho da cidade de Jerusalém sob ocupação muçulmana, fiados na protecção do Senhor e no seu patrono - um tal Francisco de Assis. Eu lembrava-me de ter ouvido aquele nome em Santes Creus. Tinham chegado a Aragão relatos dos seus padecimentos, que inspiraram outros a seguir-lhe o exemplo. Estes homens, que responderam à chamada do santo, fundaram uma nova Ordem monástica e adoptaram o nome do mestre - Franciscanos.

Turíbulos a queimar incenso balançavam para trás e para a frente. O perfume intenso invadia a ruela. Um dos monges carregava uma Cruz de madeira, gemendo sob o seu peso. O líder do grupo, de feições severas, berrava em italiano, narrando os milagres de Francisco. Falava das cinco chagas que apareceram no corpo do santo - os estigmas de Cristo. As cicatrizes enegreceram, ficando da mesma cor que os pregos que trespassaram o Nosso Salvador.

São Francisco de Assis, falecido há menos de cinquenta anos. Mesmo depois de morto continuavam a brotar-lhe gotas de sangue de uma das ilhargas. O monge realçava a prova, descrevendo o estado do seu mestre como se tivesse visto o sangue com os seus próprios olhos. Apontava com o dedo em comerciantes, em passantes, em mim. Olhava de lado, por cima do ombro, pelo braço comprido, como se fosse um inquisidor a questionar-nos sobre as nossas dúvidas, os nossos actos.

- Em contrapartida - testemunhava - um dos doze companheiros de São Francisco, que se chamava Frei Giovanni Capella, apostatou e acabou por se pendurar pelo pescoço. - A voz do monge ressoava, esganiçada e estridente. - Isto é razão suficiente de humildade e temor, mesmo entre os eleitos. - Acenou com a cabeça, severo e sabedor. - Ninguém pode ter a certeza de que vai perseverar até ao fim na graça de Deus.

Uma semana depois de ter chegado a Acre, o Barão Bernières convocou o Tio Ramón para uma reunião. Na nossa qualidade de novos adjuntos de Ramón, eu e o Andrés acompanhámo-lo.

Quando entrámos nos seus aposentos, o Barão Bernières estava majestosamente sentado num cadeirão dourado. Tinha uma faixa de seda traçada por cima do ombro e uma grinalda de folhas na cabeça.

- Ramón - disse o Barão - sede bem-vindo. Parabéns aos Cavaleiros de Calatrava pela nossa gloriosa vitória.

- Parabéns também a vós, Barão Bemières, e aos vossos homens - respondeu Ramón.

- Ramón, - disse o Barão - infelizmente, chamei-vos aqui para falarmos de umas notícias muito preocupantes. Recebi ontem uma carta do Krak des Chevaliers. Nela Dom Lorgne, o castelão, comunica-me que Baibars, o comandante muçulmano, montou cerco ao castelo. A situação é bastante desconcertante. Seria de pensar que, com aquela imponente fortificação, eles estavam protegidos.

O Barão mandou avançar o seu primeiro ajudante, Coronel Delacorte, que vez uma vénia ao Tio Ramón e desenrolou um pergaminho. Começou a recitar:

"Saudações do Krak des Chevaliers, Barão Bemières. Infelizmente, escrevo em circunstâncias desesperadas. As forças de Baibars rodearam o castelo. Nos últimos dias, os infiéis têm estado a transportar catapultas para montar cerco a fortaleza. Se não chegarem reforços significativos, o castelo cai antes do Verão.

Nesta conformidade, venho solicitar-vos que venhais para o Krak à frente de todos os cavaleiros hospitalários. A nossa sobrevivência depende da vossa rápida viagem para norte. Se Deus quiser, ver-nos-emos em circunstâncias mais favoráveis.

Dom Lorgne, castelão do Krak des Chevaliers, ao vigésimo dia de Março do Ano de Nosso Senhor de 1271."

O Coronel Delacorte voltou a enrolar o pergaminho.

- Ramón, sabeis desde há quantos anos os hospitalários ocupam o Krak? - perguntou o Barão.

- Não sei - respondeu Ramón.

- Há cento e trinta - disse o Barão. - Em sucessivas construções e reconstruções, que se prolongaram por décadas, erguemos uma fortaleza impenetrável. Duas andadas de muralhas protegem o castelo - uma fortaleza dentro de outra fortaleza. Dezoito torres guardam os acessos. Até tem um moinho de vento. Uma cidade completa para o exército de Deus. Sabeis de que espessura são as muralhas? Doze pés. Doze pés de pedra sólida.

- Sabíeis, Ramón, que o castelo já resistiu a quatro terramotos violentos? Sabíeis que os cavaleiros hospitalários que defendem o Krak repeliram doze ataques dos muçulmanos? Saladino, depois de ter conquistado Jerusalém em escassos treze dias, comandou uma expedição ao Krak des Chevaliers para montar cerco à fortaleza. Ele reconhecia a importância do castelo. Quem ocupar o Krak controla o movimento de mercadorias entre o Mediterrâneo e as cidades do interior. Sabeis o que fez Saladino depois de observar as defesas do castelo? Virou costas e foi-se embora. Nunca mais lá voltou. Até o grande Saladino percebeu que era inútil atacar uma fortaleza como aquela.

- E agora temos um castelão que entra em pânico porque uns regimentos de infiéis rodearam a fortaleza. É lamentável. Estou certo, Ramón, de que compreendeis a minha hesitação em trocar correspondência interna que lança uma luz desfavorável sobre outro oficial hospitalário. Porém, não tenho alternativa. Com o Grão Mestre do Hospital fora do país, sou eu o responsável pela defesa dos nossos castelos e, embora ache que o castelão está um bocado histérico, não posso ignorar o seu apelo. Se não formos em socorro do castelão, receio bem que ele entregue o castelo sem oferecer resistência.

- O problema, Ramón, é que eu deixei quase todos os cavaleiros em Toron, de guarda ao castelo. Fiquei reduzido a uns cem - é tudo o que tenho à minha disposição, no que toca a homens fisicamente aptos. É perfeitamente ridículo pensar em mandar uma força tão diminuta em socorro do nosso nervoso castelão. O meu pequeno contingente pouca influência iria ter no rumo de qualquer batalha.

O Barão continuava a observar Ramón.

- Se nós conseguíssemos reunir a poderosa conjugação de forças que conquistou Toron... bem... aí já a probabilidade de apoiar o nosso castelão e salvar a fortaleza aumentaria consideravelmente. Hoje ao fim da tarde vou encontrar-me com Dom Fernando para pedir o seu apoio. Tenho esperanças de que vós dois aceiteis combater sob o meu comando. Não me parece que tenhais alternativa. Se o Krak cair, ninguém mais no Levante cristão estará livre dos soldados de Baibars.

Ramón, pensativo, cofiava a barba, e não deu a anuência com a rapidez que o Barão parecia esperar.

- Não me digais, Ramón - insistiu o Barão - que vos estais a preparar para usufruir da nossa hospitalidade, comer a nossa comida, beber o nosso vinho, enquanto nós lutamos para proteger o vosso bem-estar!

- Barão Bernières, - respondeu Ramón - os Calatrava não viram as costas a camaradas em dificuldade. Vamos combater ao vosso lado. Todavia, como é de prever que Dom Fernando participe na expedição, sinto-me no dever de protestar contra a forma como os seus soldados trataram os prisioneiros muçulmanos no castelo de Toron. Presumo que estejais a par do modo como o exército de Dom Fernando lidou com a população civil. Os actos dos seus homens mancharam todos os soldados cristãos que participaram no cerco.

- Ramón, - disse o Barão - não é este o momento nem o local indicados para virdes com conflitos ou ciúmes mesquinhos entre vós e Dom Fernando.

- Não se trata de um assunto mesquinho. Nem tem nada a ver com aquilo que pessoalmente sinto por Dom Fernando. O tratamento dado pelos soldados de Dom Fernando aos civis em Toron é incompatível com a nossa missão.

- Ramón, - retorquiu o Barão - acho de muito mau gosto virdes levantar uma questão tão trivial numa altura tão crítica como esta. Como irá Dom Fernando receber este vosso ataque?

- Esperemos, Barão, - disse Ramón - que Dom Fernando o receba como um convite a uma mudança de comportamento, dele e do regimento que comanda.

- A avaliar pelos resultados, eu diria que o regimento de Dom Fernando se portou bastante bem em Toron.

- Barão Bernières, - disse Ramón - como vejo que estais relutante em discutir este assunto com Dom Fernando, não me resta outra saída que não seja apresentar o meu protesto ao vosso superior, o Grão Mestre do Hospital, e ao Rei Jaime, pai de Dom Fernando, quando regressar a Aragão.

- Ramón, - disse o Barão Bernières - até podeis ir queixar-vos a Jesus Cristo, que isso a mim pouco me importa. Desde que prepareis os vossos homens para a expedição!

Eu e o Andrés reunimos os nossos irmãos a um canto do pátio, para o Tio Ramón lhes comunicar a nossa nova missão.

- Os infiéis - disse ele - montaram cerco ao grande castelo do Krak des Chevaliers. A captura deste castelo seria um golpe devastador para os exércitos de Cristo. Dentro de dias vamos marchar para norte, para irmos socorrer os nossos irmãos hospitalários que estão na fortaleza.

- Ficámos praticamente reduzidos a metade em Toron. Outros vão morrer dentro das muralhas do castelo dos hospitalários. É bom que saibais isso. O Senhor mede cada gota de sangue derramado na defesa do Seu Reino.

Nessa tarde, cruzei-me no pátio com Dom Fernando, que vinha do encontro com o Barão. Identifiquei-o ao longe pela capa roxa e procurei evitar o encontro com uma mudança de direcção. Mas ele chamou-me antes que eu conseguisse escapar.

- Ah, Francisco - disse ele. - Como está o herdeiro da fortuna Monteada?

- Estou bem, Dom Fernando.

- Dizei-me, Francisco, - disse ele - como está a Princesa?

- Não conheço nenhuma princesa por estas paragens.

- Não estais vós ao serviço da ilustre, da famosa Princesa Ramón de Calatrava?

- Não conheço tal pessoa.

- Os meus espiões - disse Dom Fernando - dizem que o vosso mestre tem uma história sobre o meu comportamento em Toron que quer contar ao meu pai. Se Ramón pensa que eu vou ficar de braços cruzados enquanto ele denigre a minha reputação, é sinal de que me conhece mal.

Eu não respondi. Tinha visto o suficiente para poder tirar as minhas próprias conclusões quanto ao carácter de Dom Fernando.

- Muito bem, Francisco - disse Dom Fernando - tenho boas notícias sobre outra frente. Há uma vaga no meu pessoal. Convido-vos a entrar para o meu séquito. Tenho planos para vós, Francisco.

- A vossa prova de consideração por mim é muito lisonjeira, Dom Fernando, mas eu continuo fiel a Calatrava e ao meu mestre, Ramón.

- Admiro a vossa lealdade, Francisco. Espero um dia vir a beneficiar dela. Mas pensai na minha proposta. Receio bem que o nosso Tio Ramón não tenha grande futuro.

Três dias depois partimos da cidade ao nascer do dia. O Tio Ramón explicou que a nossa saída à socapa era motivada pelo desejo de não alarmar os residentes de Acre, que na sua generalidade consideravam o Krak des Chevaliers invencível, um símbolo do poderio cristão no Levante. Se o apelo vindo do Krak lhes chegasse aos ouvidos podia espalhar-se o pânico pela cidade, que já fervilhava de boatos sobre avanços dos infiéis.

O Krak ficava na fronteira setentrional dos territórios cristãos, a cerca de cento e sessenta e cinco milhas de Acre. Segundo o Coronel Delacorte, os cavaleiros hospitalários faziam geralmente a viagem de Acre ao Krak em duas semanas. Dada a situação desesperada que se vivia no castelo, nós iríamos fazer a viagem em cinco dias.

Só soldados a cavalo podiam viajar a tal velocidade. Por isso mesmo não foram incluídos na expedição infantes e arqueiros. Ainda assim, a convergência de esforços permitiu reunir uma força impressionante - mais de duzentos e cinquenta cavaleiros, várias centenas de escudeiros montados, e mais uma centena de soldados de cavalaria profissionais recrutados entre a população local, de religião cristã ortodoxa e etnia árabe. Os nativos eram parecidos com os homens que pouco antes tínhamos combatido em Toron. E falavam a mesma língua - dois factos que causavam desconforto entre os meus irmãos. Eu conhecia histórias de guias cristãos nativos que tinham levado cavaleiros nossos a cair em emboscadas. Mas também conhecia histórias de cavaleiros hospitalários e templários que tinham dizimado aldeias árabes inteiras para depois virem a descobrir que os habitantes eram cristãos ortodoxos ou jacobitas. Por isso não condenava certos nativos por se sentirem mais fiéis aos seus vizinhos do que aos seus camaradas cristãos. Mas esta minha relutância em condená-los não diminuía a minha preocupação ou a minha vigilância. De noite, nunca voltávamos as costas aos cristãos árabes.

Um destes nativos cristão aproximou-se de mim e do Andrés às portas de Beirute. Estacou diante de nós, a balançar o peso do corpo para trás e para a frente. Andrés levou a mão ao punho da adaga.

- Um dia ides para casa - disse o homem.

- Se Deus quiser, - disse eu - vamos todos para casa.

Ele sorriu, quase com timidez, olhando para trás, para as luzes da cidade.

- Eu estou em casa.

Cavalgávamos doze horas por dia para norte, em direcção à costa, acampando nos arredores das cidades setentrionais - Tiro, Sídon, Beirute, Tripoli. Ramón contou que quando os primeiros cruzados chegaram ao Levante, os residentes cristãos disputavam entre si o privilégio de alimentar e albergar os cavaleiros que chegavam para combater. Os sentimentos tinham mudado. A população local fornecia comida e dormida para nós e água e penso para os cavalos. Mas nós pagávamos tudo em dinheiro, de ouro e de prata, que os comerciantes contavam cuidadosamente na nossa presença.

Comíamos as nossas refeições à volta de fogueiras. Em vez de olhar para as cinzas incandescentes, olhávamos para as luzes da cidade distante, escutando com inveja os sons da noite, o chamamento de um amigo, uma zaragata à porta de uma taberna, o riso de uma rapariga. Dormíamos - imóveis, sem sonhos - como mortos, demasiado cansados para nos pormos a pensar num futuro incerto. Acordávamos de madrugada e partíamos antes de os comerciantes montarem as suas tendas, sem deixar pistas da nossa presença. Os habitantes da cidade deviam pensar que tinham sido visitados por soldados peregrinos ou por fantasmas. Ao fim de umas horas de cavalgada, eu já não sabia debaixo de que estrelas nos tínhamos deitado, ou mesmo se tínhamos de facto dormido.

A chegada a Tripoli, recebemos um dos batedores dos hospitalários vindos do Krak. Tinha conseguido passar despercebido pelas linhas dos infiéis e chegado à cidade umas horas antes de nós. O Coronel Delacorte promoveu imediatamente uma reunião de ponto de situação, em que participaram o Barão Bernières, o Tio Ramón, Dom Fernando e respectivos ajudantes, entre os quais o Andrés e eu. Reunimo-nos no gabinete do condestável da cidade, que duvidava da exactidão do relato de Dom Lorgne e parecia ansioso por nos ver pelas costas.

- Nem um exército de cinquenta mil dos melhores soldados de Baibars - disse ele - era capaz de conquistar o Krak. Estais a perder o vosso tempo.

O condestável nem esperou pelas notícias que o batedor trazia. Disse que tinha assuntos a tratar no porto - um mercador de Veneza que se recusava a pagar impostos - e partiu à pressa.

O batedor vindo do Krak sentou-se na cadeira do condestável e todos nós o rodeámos. Com os olhos postos nas mãos entrançadas, ele parecia relutante em encarar os seus examinadores.

- Em que ponto está a batalha, batedor? - perguntou o Barão.

- Num ponto mau, senhor - respondeu ele. - Eles não param. Não param de chegar.

- Mas a guarnição repeliu os ataques? - perguntou o Barão.

- Repeliu, sim, senhor, acho que sim - disse o batedor. - Quer dizer, não, senhor. Tivemos de retirar para as muralhas interiores do castelo. Os sapadores dos infiéis escavaram por baixo dos alicerces das muralhas exteriores. Uma das torres ruiu. Os soldados deles apressaram-se a aproveitar a brecha. Muitos dos nossos homens foram apanhados de surpresa e não tiveram tempo de se refugiar na cerca interior.

- Quantos homens foram apanhados? - perguntou o Coronel Delacorte.

- Muitos, senhor - respondeu ele. - Nenhum saiu de lá vivo.

- Tens alguma ideia do tamanho da força de Baibars? - perguntou Dom Fernando.

- É muito grande, senhor - foi a resposta.

- Muito grande é um elefante - disse Dom Fernando. - Quantos soldados estão a cercar o castelo?

- Quatro mil, cinco mil - disse o batedor. - Tantos que não é possível contá-los, senhor.

- Em que estado se encontram as muralhas interiores - perguntou o Coronel Delacorte.

- Ainda lá estavam quando eu parti, senhor, mas os muçulmanos estavam a içar as catapultas para cima das muralhas exteriores. Dessa posição, as máquinas deles vão poder rebentar com a cerca interior até o castelo ficar reduzido a quase nada.

- Quantos cavaleiros hospitalários estão a defender o castelo? - perguntou Ramón.

- Pelo menos sessenta e cinco, senhor... quando eu de lá saí. Com mais uns cem infantes e arqueiros. Há muitos feridos, mas alguns irão combater quando Baibars tomar de assalto o castelo.

Quando Baibars tomar de assalto o castelo...

Eu olhei para Ramón, que parecia não ligar importância à gravidade deste prognóstico. Tinha estendido a mão e tocava ao de leve no sangue seco que manchava a túnica do batedor.

- Foi uma flecha? - perguntou Ramón.

- Perdão, senhor?

- O teu braço - disse Ramón. - Foi uma flecha?

- Sim, senhor. Foi por isso que Dom Lorgne me escolheu para mensageiro. Só com um braço, de pouco servia em combate. Mas dá para andar a cavalo.

Ramón concordou, com a cabeça.

- Senhor, - disse o batedor - lamento muito.

- Talvez seja melhor - disse o Barão Bernières - nós repensarmos a nossa missão. Isto não é bem...

- Estás dispensado, mensageiro - disse Ramón, interrompendo o Barão. - Os meus homens vão tratar desse ferimento e dar-te de comer.

Fizemos os possíveis por manter as más notícias circunscritas ao pequeno grupo de oficiais que tinham ouvido o relato do batedor. Mas houve fugas de informação. Quando, na manhã seguinte, nasceu o sol, grande parte do nosso exército tinha desertado, desaparecendo nas ruas apinhadas de gente de Tripoli - todos nativos cristãos, a maioria dos escudeiros. Os hospitalários, numa missão destinada a socorrer os seus próprios irmãos, perderam metade do contingente. O exército de Dom Fernando só conseguiu recuperar dois cavaleiros. Dom Fernando condenou à morte os dois desertores. Disse que se encarregaria pessoalmente da execução da sentença depois de ter repelido o ataque de Baibars ao Krak.

Só a força de Calatrava ficou intacta. A nossa devoção à Cruz não era maior que a dos nossos irmãos hospitalários. Era antes uma questão de lealdade ao Tio Ramón e aos meus camaradas - os homens com os quais tínhamos vivido, dormido, comido e combatido. Se a morte nos esperava no Krak des Chevaliers, que assim fosse. Eu preferia conhecer a morte a sofrer a vergonha de desertar dos meus irmãos.

Depois do encontro com o Barão Bernières e Dom Fernando, o Tio Ramón mandou formar os seus cavaleiros em círculo.

- Como já sabeis, - disse ele - ficámos sem alguns dos nossos amigos hospitalários. Eram os mais fracos de todos nós. Passamos melhor sem eles.

Ramón falava alto, talvez demasiado alto, como se quisesse compensar com volume o que lhe faltava em convicção. Alguns dos meus irmãos olharam ansiosos para mim e para o Andrés, como se Ramón nos tivesse designado para escutar os seus apelos. Outros batiam os pés no chão e olhavam distraidamente para as colinas fronteiras. Ramón recuou e passou os olhos pelos cinquenta e oito cavaleiros que tinha sob seu comando.

- Lembrai-vos do que eu vos disse quando chegastes a Calatrava - disse ele, baixando a voz. - Um pequeno grupo de cavaleiros famintos, cansados e mal armados, avançou pela costa da Síria abaixo e conquistou Jerusalém no Ano de Nosso Senhor de 1099. Com a graça de Deus, conseguimos levar de vencida um exército de demónios.

Partimos para leste, em direcção às colinas da Síria. Reduzidos a meia dúzia de escudeiros, cada um de nós prendeu a sua armadura à garupa do cavalo. Vários hospitalários, incluindo o Coronel Delacorte, tinham já prestado serviço no Krak. Foram eles que nos serviram de guias. Era uma viagem de dezasseis horas, de Tripoli ao castelo. Tínhamos planeado fazer a última etapa da nossa expedição em dois dias. Depois de ouvirem o relatório do batedor, os comandantes entenderam que era melhor cavalgar sem paragem até ao forte. Ainda tínhamos uma força de duzentos cavaleiros.

Conduzimos os nossos cavalos por entre vales cobertos de neblina. Encostas de vegetação luxuriante quase nos faziam esquecer o nosso destino. Ouvíamos as melodias de grilos e pombos, o sussurro de um riacho a correr. Passámos por uma colónia furtiva de flores amarelas, caules fustigados pelo vento fresco. Os olhos espantados de um coelho brilhavam por entre a erva alta. Uma rapariguinha árabe, debruçada sobre o rio, lavava roupa. Os seus cabelos negros e compridos, soltos, varriam ao de leve a superfície da água. Nem sequer levantou os olhos para ver os cavaleiros que passavam na margem. Eu não pensava na batalha que nos esperava no Krak. Era coisa que não podia imaginar ali, naquelas colinas, onde se respirava placidez.

A noite caiu como um manto macio. Eu cavalgava ao lado do Andrés, o que me trouxe à ideia as nossas corridas em Monteada, quando ele nos visitou depois da morte do Sérgio. O meu irmão Sérgio. O meu irmão Andrés. Pensei no meu pai, provavelmente a participar em algum torneio de cavalaria, algures em França ou na Alemanha, e na minha mãe, ainda vestida de luto, sete anos depois de o Sérgio ter morrido.

Um ruído estranho e distante interrompeu as minhas meditações. A princípio parecia trovoada. Quando nos aproximámos mais do castelo, identifiquei claramente o troar da artilharia.

- Pelos vistos, - disse Ramón, que vinha mesmo atrás de mim - o Baibars não quer deixar dormir os nossos amigos do Krak, não vão eles sonhar que estão em outro lugar.

Não passou muito tempo até começarmos a ouvir o som de pedra contra pedra - os projécteis lançados pelas catapultas a esmagar-se de encontro à fortaleza. A barragem parecia cada vez mais forte, de tal maneira que os riachos, os grilos, os outros animais - a própria natureza - faziam silêncio, como quem rende homenagem à grande tempestade ou receia desencadear a sua ira. Só nós prosseguíamos naquele caminho, direitos ao olho da tempestade - indiferentes aos protestos dos nossos fiéis cavalos, que relinchavam assustados e se empinavam nas patas traseiras quando a terra tremia. Eu apertava as rédeas entre as mãos.

Quando os sons de batalha se tornaram mais ferozes, os comandantes avançaram para a cabeça da nossa força. Os respectivos adjuntos, entre os quais eu e o Andrés, tomaram posição atrás deles. O Coronel Delacorte falou com cada um dos três homens à vez. Eu não ouvia o que eles diziam. Ainda assim observava-os com atenção, na tentativa de captar alguma informação sobre aquilo que nos esperava. Depois de ouvir o Coronel, o Barão Bernières agarrou a mão do seu adjunto e sacudiu-a vigorosamente. Dom Fernando benzeu-se e beijou o punho fechado. Ramón olhou para trás, para mim e Andrés. Mas eu não consegui ler-lhe nada na expressão.

A uma ou duas milhas da fortaleza, atrás de um penhasco que nos escondia do inimigo, o Coronel Delacorte mandou os homens desmontar. Com os comandantes e seus oficiais reunidos em círculo, o Coronel Delacorte deu instruções aos cavaleiros para que vestissem as armaduras. Entre nós e com a ajuda dos escudeiros que nos restavam, conseguimos vestir-nos para a batalha enquanto o Coronel Delacorte explicava o plano de acção. O troar da artilharia obrigava o Coronel a suspender intermitentemente o seu discurso, mas ele continuava quando o barulho abrandava. A precisão e clareza das ordens do Coronel Delacorte levava muitos de nós a pensar, com tristeza, como era possível termos como comandante um homem como o Barão Bernières, e não o seu adjunto.

- Não vamos atacar a força de Baibars no exterior do castelo - disse o Coronel Delacorte. - A uma milha do castelo, há uma passagem subterrânea secreta que vai dar à cerca interior. Mantivemos o túnel em segredo, mesmo para os nossos soldados de maior confiança. Só o Grão Mestre e os cavaleiros hospitalários que já estiveram estacionados no castelo sabem da sua existência. Se fordes capturados, não deveis, em circunstância alguma, revelar o segredo.

- A entrada está assinalada por um monte de pedras soltas em cima de uma laje também de pedra. Baibars não sabe do túnel. O monte de pedras continua no mesmo sítio, a passagem continua secreta.

- O corredor é estreito e não cabem lá as montadas. Deixamo-las aqui. A pé, avançamos rapidamente, de punhal em baixo, até à entrada do túnel. Devemos chegar lá em dez a quinze minutos.

- Ramón, quero que os vossos homens se encarreguem de quaisquer sentinelas infiéis que nos possam aparecer.

- Assim faremos, Coronel - respondeu Ramón.

- Depois de o último soldado entrar em segurança na passagem subterrânea, - continuou o Coronel Delacorte - eu próprio volto a pôr no sítio a laje que tapa a entrada.

- Antes do nascer do sol estaremos dentro do castelo. Os infiéis não vão perceber de onde lhes aparecem soldados frescos. Baibars vai pensar que foi Deus que mandou um bando de anjos para defender o forte.

O Coronel Delacorte partiu imediatamente, em corrida cautelosa para o penhasco. O Barão Bernières e os outros cavaleiros hospitalários seguiram-no em fila simples. Nós incorporámo-nos na fila, largando com relutância as rédeas dos nossos cavalos e assim abandonando o último vestígio de uma secreta esperança de que, de alguma maneira, o nosso caminho passasse ao lado do castelo cercado.

Contornámos o penhasco sem fazer barulho. Pela primeira vez vislumbrei o castelo. O Krak erguia-se, desafiador, no meio dos seus inimigos, rechaçando a artilharia muçulmana numa sinfonia de chispas e chamas que transformava a noite em dia. A pedra cinzenta que irrompia da terra como se fosse parte integrante daquela mesma pedra que cobria a paisagem do Gólgota. Um monumento aos mártires - àqueles que tinham tombado em sua defesa e aos que ainda iriam tombar. As torres redondas erguiam-se a grande altura. Cada bloco de pedra conspirava para rasgar o firmamento, gemendo sob o fardo da nossa virtude.

Eu ia a correr instintivamente, fascinado pelo porte majestoso do castelo, quando Ramón me deu uma palmada nas costas. Com a outra mão tinha agarrado o Andrés pelo ombro. Apontou para o vulto de um homem, uma sentinela muçulmana, que estava a menos de trinta pés de distância de nós. A sentinela caminhava rapidamente na direcção das linhas infiéis. Tínhamos sido descobertos.

Eu e o Andrés fomos atrás do homem. Apanhámo-lo tão depressa que até parecia que ele estava parado. O Andrés passou-lhe uma rasteira. Ele ia a berrar, na tentativa de chamar a atenção dos seus camaradas. O tumulto da batalha abafava-lhe a voz. Enquanto o Andrés o manietava, eu enfiei-lhe o meu punhal no pescoço. A lâmina penetrou sem dificuldade. Caíram-me nos dedos pingos de sangue, como pingos de chuva. Eu e o Andrés batemos rapidamente a zona à procura de outras sentinelas, mas não havia mais nenhuma. Regressámos a correr ao grupo e fomos tomar lugar ao pé de Ramón.

Entretanto, o Coronel Delacorte já tinha chegado à entrada do túnel. Um a um, os nossos camaradas desapareceram, engolidos pela terra. Eu fui o primeiro dos Calatrava a entrar no túnel. Saltei para dentro do buraco e a minha queda foi amortecida pelo chão barrento. Um dos adjuntos dos hospitalários ajudou-me a avançar. Os restantes soldados depressa encheram o túnel.

Quando o Coronel Delacorte puxou a laje para tapar a abertura, a escuridão envolveu-nos. A noite era total. Eu respirava fundo, cansado do esforço, e não conseguia conter a respiração. O cheiro a barro bafiento e o ar húmido eram sufocantes. Aquele túnel mais parecia uma cripta, que se fechava sobre nós. Apertei o braço do Andrés.

Dois dos homens do Barão acenderam tochas que empurravam a escuridão pelo comprido corredor abaixo. Os meus receios foram-se acalmando enquanto eu olhava para o perfil decidido do Tio Ramón, que ia mesmo ao meu lado. Os cavaleiros encostavam-se uns aos outros, de ouvido atento aos sons abafados da barragem de artilharia.

- Bem-vindos ao Krak des Chevaliers, homens - disse o Coronel Delacorte. - Quero que mantenhais a cabeça baixa e caminheis sempre em frente. Vamos pôr um archote de dez em dez homens.

Encabeçados pelo Coronel Delacorte e pelos hospitalários, iniciámos o trajecto pelo túnel. As dimensões da passagem pareciam variar com frequência. Havia sítios em que podíamos pôr-nos de pé. Outros em que tínhamos de nos ajoelhar e mesmo rastejar pelo rego de água fria que corria pelo chão do túnel. Eu não tirava os olhos do archote transportado por um dos adjuntos de Dom Fernando, exactamente cinco homens à minha frente.

À medida que avançávamos, ia-se intensificando o estrondo da artilharia. Quando os projecteis batiam no chão por cima das nossas cabeças, todo o túnel abanava. Se estávamos em pé, éramos atirados ao chão. Choviam do tecto do túnel pedras e porcaria, o que nos obrigava a parar e a cobrir a cabeça com as mãos ou, se fôssemos rápidos, com os escudos. Os safanões eram tão frequentes que nós já nem nos púnhamos em pé, mesmo que tivéssemos espaço para isso. Rastejávamos pelo chão de lama e barro em direcção ao interior do castelo do Krak, em direcção ao turbilhão do combate.

Quando chegámos ao fim do túnel, estavam dois cavaleiros hospitalários da guarnição do castelo a ajudar-nos a subir para uma alcova soturna. Os meus camaradas mantinham-se em pé com dificuldade, tossindo para expulsar o pó de barro dos pulmões, à espera de ordens dos nossos anfitriões. Tínhamos conseguido entrar no castelo.

Apareceram mais cavaleiros hospitalários. Não pareciam surpreendidos nem satisfeitos com a nossa chegada, recebendo-nos como quem recebe convidados para um funeral. Dividiram os recém-chegados em grupos de três e conduziram-nos para fora daquele compartimento frio e húmido.

Ramón, Andrés e eu formámos um grupo. O nosso guia subiu à nossa frente um lanço de escadas, por túneis cobertos e corredores abobadados, e mais escadas. O bombardeamento era consecutivo. Eu não conseguia ouvir os meus próprios passos. De vez em quando, os projecteis de pedra caíam perto da nossa posição, pelo que choviam pedras e destroços exactamente no sítio onde, momentos antes, nós tínhamos estado. Mas o cavaleiro que nos guiava não dava sinais de preocupação e nunca alterava o passo. Nós íamos colados a ele. Quando chegámos ao limiar de uma grande sala, o nosso guia abandonou-nos, desaparecendo por um corredor escuro.

Nós demos um passo em frente. Tínhamos entrado numa capela, em si mesma uma fortaleza robusta, com pesadas abóbadas a cingir-lhe o tecto alto. O ruído da batalha diminuiu quando atravessámos o santuário, verdadeiro refúgio da luta. O aroma intenso a incenso anulava o fumo acre que invadia a cidade fortificada. Archotes iluminavam as paredes pintadas - coloridas cenas de batalha - vitórias militares dos cristãos misturadas com imagens de mártires e santos. Entre os frescos pendiam escudos e espadas.

Um frade encapuzado fez-nos sinal de que avançássemos até à abside, onde estava um cavaleiro ajoelhado aos pés de uma cruz de madeira. Estava de cabeça curvada, em oração.

Os nossos restantes camaradas foram chegando em grupos e depressa encheram a igreja. Juntámo-nos em silêncio à volta do homem em oração, receosos de lhe perturbar a concentração. Até que ele se levantou. O cabelo castanho chegava-lhe aos ombros. Tinha umas patilhas compridas a enquadrar um rosto tenso e vincado. Bordada na túnica preta, a Cruz branca dos Hospitalários.

A minha atenção concentrou-se no colar que tinha ao pescoço, uma fiada de formas circulares translúcidas. Pareciam conchas marinhas, ou as hóstias de pão que os padres dão na Missa. Deviam ser algumas vinte.

Olhei mais detidamente para aqueles estranhos ornamentos que lhe balançavam diante do peito. Esfreguei os olhos e firmei-os, por entre a névoa de incenso.

Não havia na terra nenhum mar que desse à costa tais berloques. Nenhuma igreja os benzia. Dom Lorgne usava um colar de orelhas. Orelhas de infiéis.

Quando ele começou a falar, os meus camaradas que estavam mais perto dele recuaram. Devem ter ficado admirados por verem que o selvagem sabia falar.

- Aquele escudo, - disse ele, apontando para um ponto alto da parede - foi usado por Sir Geoffroy de Joinville. Se observardes de perto, podeis ver as marcas das flechas. Há cem anos, Sir Geoffroy comandou uma pequena companhia de cavaleiros que saíram do castelo para ir cobrar tributo a uma aldeia da região. Depararam com um regimento inteiro de soldados infiéis que iam a atravessar o território. Apesar de estarem em inferioridade numérica e impreparados para combater, Sir Geoffroy preferiu enfrentar os infiéis a fugir de regresso aos limites seguros do castelo. A luta foi feroz. Sir Geoffroy molhou a espada no sangue de cem infiéis.

Os soldados muçulmanos acabaram por levar de vencida os defensores do Krak. Sir Geoffrey e toda a sua companhia foram mortos no campo de batalha. Em sinal de respeito pelo seu valoroso adversário, os muçulmanos deixaram o corpo e a armadura de Sir Geoffroy à entrada do castelo, na manhã seguinte à batalha. Os seus restos mortais estão debaixo dos vossos pés.

A sua voz baixa não denunciava esperança nem medo. O tom de voz nunca subia nem descia.

- Eu sou Nicolas Lorgne, castelão do Krak des Chevaliers. Há dez anos que vivo entre estas paredes - dez anos de luta contra os infiéis. Dez anos no meio do deserto, a defender dos bárbaros o Reino de Cristo. Estudei-lhes as tácticas e aprendi a conhecer-lhes os pontos fortes e fracos.

- Barão Bernières e Coronel Delacorte, Ramón de Calatrava, - disse Dom Lorgne - Jesus Cristo há-de recompensar a vossa coragem, e a dos vossos soldados, que arriscaram a vida para vir em nosso auxílio. O desespero da nossa situação está à vista. Ouvistes a força da barragem de artilharia dos muçulmanos. Mesmo contando convosco, a superioridade numérica dos soldados deles é na proporção de dez para um.

- Baibars exige uma rendição incondicional. Isso significaria a morte ou a escravidão para todos e cada um dos cavaleiros que estão no castelo. Para evitar tal destino, temos de convencer Baibars de que tem pela frente um cerco demasiado longo e demasiado caro. - O abastecimento das suas forças implica o transporte de comida e bebida para cinco mil bocas até ao seu destacamento no deserto. Ao mesmo tempo, permite que os seus outros inimigos - cristãos e muçulmanos - se passeiem à vontade pelos territórios. Se conseguirmos aguentar até aos meses quentes de Verão, pode ser que Baibars chegue à conclusão de que não pode manter o cerco. Com a ajuda de Deus, pode ser que ele mande retirar o seu exército.

- A artilharia muçulmana constitui a mais séria ameaça à nossa sobrevivência. Todos os dias, as suas catapultas aumentam a destruição das fortificações do castelo. Se os muçulmanos conseguirem romper a muralha interior, a batalha está perdida.

- Servimo-nos de passagens secretas para desencadear várias surtidas nocturnas, tendo conseguido desmantelar dez catapultas. Nos últimos dias, os infiéis tentaram levar catapultas até à terra de ninguém que fica entre as muralhas interior e exterior. A essa distância, os projécteis teriam uma força devastadora - mesmo contra as grossas muralhas do Krak.

Felizmente, conseguimos destruir essas catapultas. A zona está ao alcance dos nossos atiradores.

- Para dar protecção a uma catapulta na terra de ninguém, os infiéis estão a construir um abrigo em pedra. Nós temos tentado sabotar o trabalho dos operários - atirando azeite a ferver para dentro do abrigo, lançando sobre ele as nossas pedras mais pesadas - sem resultado. Apesar de todos os nossos esforços, os infiéis conseguiram, há duas noites, empurrar uma catapulta para dentro do abrigo. Em breve a catapulta estará pronta a funcionar, talvez já amanhã, e está virada para o sector mais vulnerável da muralha interior. Não nos resta outra solução que não seja eliminar essa posição.

- De madrugada vamos fazer uma surtida para destruir a catapulta e matar os infiéis que estão dentro do abrigo. Em frente ao sítio onde eles fizeram o abrigo há uma poterna com uma porta de pedra deslizante. Eu vou comandar um grupo de doze homens que vai pela galeria. Deitamos fogo à catapulta e regressamos à cerca interior. Toda a operação durará menos de cinco minutos.

- Os nossos restantes soldados farão uma salva de flechas para cobrir a força atacante, mas os soldados envolvidos na missão serão vulneráveis aos arqueiros muçulmanos que guarnecem as muralhas exteriores e vão deparar com resistência dos soldados que guardam a catapulta. Preciso de doze voluntários para formar a minha equipa.

Entre alguns dos presentes, gerou-se um inquieto arrastar de pés. Houve mesmo cavaleiros que afastaram os olhos de Dom Lorgne e os pousaram nas paredes decoradas da capela, como se não tivessem ouvido o apelo.

- Eu quero lutar ao vosso lado, Dom Lorgne - disse Ramón. - Quem mais, dos Calatrava, me quer acompanhar?

O Andrés, eu e mais três cavaleiros da nossa Ordem pusemos a mão no ar. Os outros membros de Calatrava, ao verem os camaradas, seguiram o nosso exemplo, uns mais renitentes que outros. Ramón escolheu onze - entre os quais o Andrés e eu.

Don Lorgne tinha descrito a missão em termos dramáticos. As hipóteses de sobrevivência pareciam pouco animadoras. Mas oferecia também a oportunidade de uma morte nobre. De resto, se nós ficássemos, morreríamos de qualquer maneira. Mais valia morrer ao lado do Andrés e do Tio Ramón como guerreiros do que acocorados no castelo, à espera de que um míssil caísse no sítio onde estávamos ou, pior ainda, capturados pelos muçulmanos para morrer mais devagar.

- Dentro de poucos minutos, ao primeiro sinal de sol nascente, - continuou Dom Lorgne - os muçulmanos param de disparar para rezar as suas orações. Isso dá-nos trinta minutos de trégua. Temos muitas coisas para vos mostrar e para fazer nesse curto período.

Dom Lorgne deu instruções ao seu adjunto para que levasse os novos soldados a dar uma pequena volta ao castelo, para ficarem com uma ideia geral da sua topografia e do "tipo de cerco dos infiéis" antes que o retomar da artilharia impossibilitasse essa volta.

- A equipa de voluntários reúne-se na capela daqui a vinte minutos. Daí partimos para a poterna e lançamos o nosso ataque. Os que cá ficam serão distribuídos por diversos pontos da muralha, para reforçar as nossas defesas.

Quando saímos da capela, a noite tinha-se esgotado, deixando atrás de si um cinzento cansado. Tal como Dom Lorgne previra, o bombardeamento muçulmano tinha parado. Caminhámos direitos por ruas e becos vazios do Krak. Pequenas fogueiras ardiam sem ninguém a vigiá-las. Eu passei por cima da carcassa de um cão morto, com a caixa torácica meio enterrada na terra.

Atravessámos um pátio, por um trilho sinuoso entre crateras ainda fumegantes. Erguia-se cinza azul dos sítios onde as pedras dos infiéis tinham esburacado o chão. Por uma passagem estreita por baixo de um arco ia-se dar à cozinha. Atravessámos rapidamente esse compartimento, mas não sem que nos viesse ao nariz o cheiro a pão velho deixado nos fornos abertos, provocando-nos no estômago uma guinada de fome. Havia dois dias que eu não comia uma refeição digna desse nome.

Subimos uma escada e atravessámos um passadiço. Havia vários cavaleiros encostados às ameias. Quase todos tinham a cara pintada. De sangue e carvão, segundo nos explicou o nosso guia. Miraram-nos com expressão carrancuda, sem dizer palavra. Um dos soldados assestou os olhos em mim. Com um sorriso misto - meio de saudação, meio de troça. Quem és tu? Tinha as maçãs do rosto e a testa untadas de sangue. Julgavas que vinhas encontrar algum sentido aqui, neste inferno, que vinhas encontrar a luz nesta escuridão? Era isso que julgavas?

Ao percorrer o corredor das ameias, enfiei o pé esquerdo por um buraco no chão. Olhei para baixo e vi a terra de ninguém pejada de cadáveres. Ramón agarrou-me pela gola da cota de malha e içou-me.

- Vede onde pondes os pés - disse o nosso guia. - Esses buracos servem para lançar azeite a ferver, não para lançar soldados. O azeite derrete num instante a cara de um homem.

Entrámos por uma torre e subimos a escada de caracol. Quando chegámos ao fim da escada, o guia voltou a falar.

- Quando o cerco começou, atirámos vários infiéis desta torre a baixo. Eram espiões de Baibars que tínhamos admitido para trabalhar na cozinha escassas semanas antes do início do cerco. Dom Lorgne apanhou um deles a desenhar uma planta do forte.

Daquele posto de observação privilegiado, tínhamos uma visão clara das montanhas da Síria, uma cordilheira de cumes cobertos de neve. Nos vales acumulava-se uma leve neblina. Pequenas aldeias, ainda adormecidas, polvilhavam a paisagem. Manchas de floresta espalhavam-se pelos contrafortes. Para oeste, via-se tudo até ao mar - nem navios, nem porto, apenas um fogo azul a cintilar à luz do alvorecer. Mais perto da torre, tendas brancas - os acampamentos muçulmanos - rodeavam o castelo. Estavam concentradas no flanco sul, onde as defesas naturais eram mais fracas - não havia declives íngremes que impedissem um assalto. Os muçulmanos ocupavam a muralha exterior e empurravam as catapultas para o cimo das torres dessa muralha. Grupos de soldados muçulmanos curvavam a cabeça para o chão, como se prestassem homenagem ao poder das suas máquinas.

Olhei para trás e vi o castelo em todo o seu esplendor, uma cidade esculpida em pedra. Ruas desertas serpeavam por entre edifícios que, aos primeiros raios de luz da manhã, refulgiam como prata. As pedras eram tão bem talhadas que não se via a argamassa. Torres, redondas e quadradas, erguiam-se como uma falange de sentinelas contra os nossos inimigos. As sentinelas cristãs estacionadas no parapeito faziam lembrar esculturas de guerreiros antigos esculpidas na pedra tosca.

Olhei para leste. O sol estava a nascer, os tons laranja e púrpura escorriam pelos ombros poeirentos das colinas. Uma brisa fria fustigava-me a cara.

- Contemplai, Francisco, - disse Ramón, que estava atrás de mim - a beleza da criação de Deus. Nem Baibars tem força para impedir o sol de se erguer.

Ainda Ramón não tinha acabado de falar quando se levantou do acampamento muçulmano um som plangente. Som que, ao aproximar-se, se transformou num silvo estridente. Eu olhei para cima e vi o enorme mata-cão. Parecia o sol a despenhar-se do céu.

O impacto projectou-me contra a parede. O mundo ficou preto. Eu flutuava, pairando tranquilamente entre as nuvens. Via a fila interminável de soldados infiéis montados em camelos corcovados. Turbantes vermelhos esvoaçavam-lhes à volta das cabeças. O pano, dobrado pelo vento, serpeava como uma cobra cuja cauda lhes batia na cara. Deviam vir da Arábia, como abutres que tivessem previsto a queda da grande fortaleza cristã.

Se a cavalaria árabe existia de facto, não sei dizer. Uma forte dor de cabeça atirou-me de costas contra a parede da torre. Sentia-me tonto. Na tentativa de me levantar, consegui encaixar as costas entre os dentes de pedra. O Andrés estava ajoelhado diante de mim. Gritava-me e eu não o ouvia. Só ouvia o eco suave das palavras de Ramón - "a beleza da criação de Deus".

Olhei por entre o fumo e a fuligem, à procura dos meus outros irmãos de Calatrava. Diego Ponso aproximou-se de mim aos tropeções. Tinha o ombro e braço direitos arrancados do corpo, a malha ensanguentada e rota a adejar ao vento. Com uma sobrancelha levantada, lia-se no rosto de Diego uma expressão de justificada indignação, de quem achava que os infiéis tinham desrespeitado um acordo tácito, disparando sem aviso prévio as suas catapultas contra a torre. Diego caiu de joelhos. Depois tombou para o lado como árvore acabada de cortar.

Eu olhei para as minhas pernas e reparei que tinha no joelho uma partícula brilhante. Parecia um pedaço de tecido, talvez veludo. Inclinei-me para a tirar, mas estava agarrada à perna. Examinei-a mais detidamente. Era uma madeixa negra de cabelo oleoso, agarrada a um pedaço de couro cabeludo esbranquiçado, como uma casca de ovo esmagada. Reconheci a madeixa de cabelo fino como pertencendo ao Barão. Era tudo o que restava dele. O Barão Gustav Bernières, aperaltado até ao fim.

O Andrés continuava a berrar-me. Eu reconhecia-lhe a voz, mas parecia vinda de longe.

- Os infiéis estão de olho na torre - disse ele. - Temos de sair daqui antes que caia a próxima pedra.

Ajudou-me a levantar. Entretanto tinham chegado outros soldados para transportar os feridos pelas escadas da torre. Eu desci-as a pé com o braço pelo ombro do Andrés. Quando chegámos ao fundo, consegui continuar sem ajuda. Os cavaleiros com quem nos tínhamos cruzado no passadiço estavam agora abrigados atrás dos muros de pedra, à espera da próxima salva dos muçulmanos. Os cavaleiros de Calatrava seguiram o Tio Ramón até à capela, onde Dom Lorgne os esperava.

Além do Barão Bernières e do Coronel Delacorte, morreram na torre onze membros de Calatrava - onze irmãos meus. Uma perda devastadora. Cinco dos mortos tinham-se oferecido como voluntários para a missão contra a catapulta. O Tio Ramón escolheu os substitutos de entre os cavaleiros restantes.

Reunimo-nos na nave da igreja. Dom Lorgne escolheu dois homens para o transporte de cântaros de azeite, mais dois para o transporte de archotes. Se algum destes homens fosse abatido antes de atingir o alvo, disse Dom Lorgne, o que estivesse mais perto dele seria responsável pela conclusão da tarefa do homem abatido.

- Eu e Ramón vamos guiar-vos até saída da poterna - continuou Dom Lorgne. - De espadas desembainhadas, depressa alcançaremos as posições dos infiéis. Não tomamos instalações nem fazemos prisioneiros.

Dom Lorgne fez uma vénia antes de continuar. - Senhor, - disse ele - dai-nos a força e a coragem de que precisamos para desempenhar esta missão. Se não voltarmos ao castelo, concedei-nos a graça de irmos hoje mesmo reunir-nos aos nossos irmão no paraíso.

- Amen - disse Ramón.

Dom Fernando e seus adjuntos juntaram-se a nós quando íamos a sair da capela. Seriam responsáveis por levantar e baixar a poterna. Cabia-lhes também dar cobertura com as suas bestas ao grupo atacante. Descemos umas escadas atrás de Dom Lorgne e depois por um corredor até à poterna. A porta era de pedra maciça - devia pesar umas trezentas libras. Com uma corda a correr por uma roldana com manivela, um homem bastava para a fazer subir e descer. O primeiro adjunto de Dom Fernando, Pablo, estava encarregado da manivela.

Parámos ao pé da porta. Os meus camaradas murmuravam orações individuais. De cenho franzido, Ramón olhava para os seus homens com ar preocupado, como se se tivesse esquecido de lhes transmitir uma informação essencial. Dom Lorgne examinava atentamente a lâmina da sua espada.

A porta abriu-se lentamente, rangendo. Eu achava que, depois das provações por que passara em Toron, estaria imune aos medos que antecedem o combate. Estava enganado. Sentia um vazio no peito. Inspirei fundo, sedento de ar, mas o ar que inspirei era insalubre, rarefeito.

Dom Lorgne foi o primeiro a atravessar o passadiço, seguido do Tio Ramón. Quando transpus a porta, vi a catapulta a cerca de quarenta passos de distância. Uma cobertura de pedra sustentada por toros de madeira nos quatro cantos protegia dos nossos arqueiros a máquina e seus operadores. Na parte traseira da plataforma de pedra havia uma abertura - o orifício por onde disparavam projécteis.

Dom Lorgne e o Tio Ramón avançavam sem problemas. Tínhamos apanhado os muçulmanos desprevenidos. Pela audácia do plano, ou pela estupidez. Na minha corrida pela terra de ninguém, tive de saltar por cima do cadáver em decomposição de um soldado. Não reparei se era muçulmano ou cristão. Só me lembro do cheiro nauseabundo. As minhas pernas aguentaram-me galhardamente e eu percorri em poucos segundos a distância que me separava da catapulta. Debaixo da cobertura estavam alguns vinte soldados muçulmanos. Metade estava sentada no chão a trabalhar na catapulta. Dom Lorgne e Ramón caíram-lhes em cima de repente. Os infiéis não tiveram tempo para se levantar nem para se defender. Enquanto brandia a espada, Dom Lorgne soltava um grito estridente, uma harmonia infernal que despertou em mim uma fúria desconhecida. Raiva contra os infiéis. Raiva contra todos os povos da Arábia.

Do outro lado da cobertura estava um muçulmano de pé. Levava um pote à boca. Ainda tinha os lábios a reluzir de néctar quando eu o trespassei com a minha espada. O homem caiu. Eu pus-lhe o pé em cima do corpo, que se contorcia. Ele choramingava, murmurando palavras incompreensíveis, pedindo misericórdia. Eu levantei a espada e esmaguei-lhe o crânio.

Vários muçulmanos tentaram escapar ao massacre fugindo do abrigo que a cobertura lhes dava. Os adjuntos de Dom Fernando, que estavam postados à entrada da poterna com as suas bestas, liquidaram-nos rapidamente.

- Pedro e Miguel, - gritou Ramón - arriar a catapulta.

Ainda os meus camaradas não tinham esvaziado os cântaros de azeite e já Ramón atirava uma tocha para cima da catapulta. Nós ficámos a contemplar o fogo, enfeitiçado pelas chamas. Eu passei o braço pela cara; fiquei com os lábios cobertos de sangue quente.

Don Lorgne quebrou o feitiço.

- Nove de vós avançam para o portão - disse ele, apontando para os meus camaradas. - Dais uma corrida até à poterna. Não olhais para trás. Nós vamos a seguir.

Correu tudo conforme planeado - uma missão executada na perfeição. Os meus camaradas largaram em direcção ao castelo, em passada larga e confiante.

Um momento depois, estavam mortos, cortados em pedaços. Pedaços pequenos. Os nossos irmãos jaziam esparramados na terra de ninguém, a menos de meio caminho da poterna. Nós tínhamos apanhado os muçulmanos de surpresa. Eles acabavam de responder à letra, emboscando a nossa retirada.

- Cristo se compadeça de nós, - disse o Tio Ramón, olhando para os corpos dos seus homens - Jesus Cristo.

O Tio Ramón, Dom Lorgne, o Andrés e eu éramos os únicos cavaleiros participantes na missão que continuávamos vivos. Enquanto tomávamos consciência da nossa nova situação e ouvíamos o crepitar das chamas que consumiam a catapulta, ouvimos um baque por cima da cobertura. Depois outro. Os infiéis estavam a mandar soldados para cima da plataforma, com a missão de acabarem connosco. Ouvíamo-los mesmo por cima das nossas cabeças, a sussurrar, a rastejar, a planear a nossa liquidação.

Os muçulmanos concentraram a barragem das suas catapultas e arqueiros contra as ameias do castelo e a porta aberta da poterna. A intensidade do bombardeamento obrigou os nossos arqueiros a abrigar-se e deu cobertura aos soldados muçulmanos encarregados do assalto à nossa posição. Nós estávamos sozinhos.

- Meus senhores, as visitas que estão lá em cima vão cair-nos em cima a qualquer momento. - Dom Lorgne falava calmamente, como se estivesse a contar a história de algum bravo cavaleiro há muito falecido. - Felizmente, as exíguas dimensões da abertura só permitem a entrada de dois ou três de cada vez. Vão mandar primeiro uma equipa - provavelmente nove ou dez homens - para avaliar a nossa posição. Depois, se nós sobrevivermos, vão esperar, dar-nos a possibilidade de nos rendermos, antes de lançarem outro assalto, mais forte.

- Se queremos sobreviver, temos de apanhar alguns infiéis vivos. Vivos. - Dom Lorgne repetiu a palavra, pausadamente, e depois cuspiu para o fogo, como se a ideia fosse um anátema. - Vamos usá-los como escudos para atravessar o passadiço de regresso ao castelo. Não os da primeira leva. É muito difícil fazer prisioneiros e repelir um ataque ao mesmo tempo.

Dispusemo-nos estrategicamente debaixo da abertura da cobertura e ficámos à espera. A catapulta não tardou a ficar reduzida a meia dúzia de pedaços de madeira fumegante. A barragem de fogo contra o Krak prosseguia, ininterrupta. Os muçulmanos continuavam em cima da cobertura do abrigo, mesmo por cima de nós. Devem ter pensado que, se ficassem à espera, talvez nós tentássemos dar uma corrida até ao castelo. Mas bastava olhar para os nossos camaradas mortos para excluir qualquer tentação que pudéssemos ter nesse sentido.

Finalmente, saltaram três soldados pela fenda da cobertura. Dois deles foram feridos antes de chegarem ao chão. A espada de Dom Lorgne varreu o ar, rasgando a cara de um e o pescoço do outro. O Andrés encarregou-se de desferir os golpes finais com a sua espada. O terceiro soldado escorregou ao pôr os pés no chão. Ramón espetou-lhe um punhal no peito.

Vieram logo mais três. Tropeçaram nos camaradas mortos e eu enfiei a espada pela barriga de um. Ainda com um punhal preso entre os dentes, ele agarrou com ambas as mãos o punho da minha espada. Ramón e Dom Lorgne despacharam os outros dois.

- Vivos - disse Dom Lorgne. - Vamos apanhar os próximos vivos.

Ficámos quietos quando os três muçulmanos aterraram. Eram, conforme Dom Lorgne previra, os últimos soldados do grupo de assalto. Enquanto eles tentavam pôr-se de pé, nós mantivemo-nos imóveis - obedecendo relutantemente às instruções de Dom Lorgne. Nenhum dos lados atacou o outro. Os três intrusos, lado a lado, balançavam o corpo e brandiam os punhais diante de si.

Dom Lorgne, Ramón, o Andrés e eu não nos mexemos. A vaga premonição que eu tivera à entrada da poterna tinha-se evaporado no decorrer da luta. Olhámos para os infiéis como se eles fossem inofensivos coelhos que estávamos prontos para abater mal Dom Lorgnon nos desse ordem. Os muçulmanos olharam de soslaio para as poses horríveis dos seus camaradas mortos e outra vez para nós. E que linda vista nós devíamos ser. Quase conseguíamos ver a nossa imagem bestial reflectida nos olhos deles, no pânico que exprimiam.

Dom Lorgne pôs-se a falar com eles na sua língua natal - arábico. Eu não esperava ouvir aquela língua estranha sair da boca do castelão do Krak. Mas os infiéis não mostraram surpresa, como se estivessem à espera de que os demónios que tinham pela frente fossem capazes de comunicar em qualquer língua, morta ou viva.

É claro que não percebi nenhuma palavra do que Dom Lorgne disse nas negociações que se seguiram. Mas percebi o essencial do diálogo. Dom Lorgne propunha-se poupar-lhes a vida se eles depusessem as armas. Eles começaram por recusar. Categoricamente.

Dom Lorgne não parecia preocupado com o tom enfático em que eles se exprimiam. Falou com eles durante um minuto, talvez. As sílabas daquela língua estranha enrolavam-se-lhe na língua, as frases encadeavam-se como se tivesse pronunciado uma única palavra apaziguadora, de lógica irrefutável.

A recusa dos muçulmanos começava a perder convicção. Puseram-se a discutir uns com os outros. Dom Lorgne esperou, pacientemente, sabiamente, enquanto eles discutiam a proposta que lhes tinha feito.

Quando os três homens atiraram os punhais ao chão, aos pés de Dom Lorgne, ele voltou a falar-lhes. Imagino que estivesse a reafirmar a promessa que lhes tinha feito e a felicitá-los por terem tomado a decisão mais avisada.

Dom Lorgne não tinha mentido àqueles homens. Pelo menos, não completamente. Eles não iam morrer às nossas mãos. Ele tinha-lhes prometido isso, e nós íamos cumprir a sua palavra. Mas estavam mortos de qualquer maneira. Desde o momento em que caíram pela fenda da cobertura, estavam mortos. Ramón disse uma vez que um náufrago se agarra a qualquer ramo, por mais frágil que seja, que lhe passe a boiar à frente. O que Dom Lorgne ofereceu aos nossos cativos foi uma breve pausa antes do inevitável.

Dom Lorgne voltou a dirigir-lhes a palavra. Os três muçulmanos protestaram timidamente, mas já tinham dado o seu acordo. Obedeceram às instruções que ele lhes dava, despindo pela cabeça o que traziam vestido. Atiraram a roupa para o chão, à frente dos nossos pés. Um dos homens vestia uma cota de malha. Os outros dois não tinham armadura. Ombros nus curvados para a frente, esguios braços escuros cruzados sobre o peito para esconder a nudez.

- Ramón, - disse Dom Lorgne - vós e os vossos homens ides vestir a roupa dos infiéis.

Nós pegámos nas vestimentas dos muçulmanos e enfiámo-las por cima dos nossos mantos. O Andrés teve de rasgar as mangas para poder arranjar espaço para os ombros musculosos.

- E vós, Dom Lorgne, - disse Ramón - não vos disfarçais?

- Eu sou o castelão do Krak - disse Dom Lorgne. - Não posso vestir-me de muçulmano no meu próprio castelo.

Dom Lorgne deu um passo em direcção aos muçulmanos. Eles recuaram, pondo as mãos no ar em atitude submissa. Dom Lorgne riu-se baixinho, como se estivesse a ralhar com crianças travessas. Atravessou a barreira que separava as duas partes sem abrandar o passo. Quando chegou junto dos muçulmanos, voltou a falar-lhes em arábico. Os três homens hesitaram, mas depois viraram-se para o outro lado da cobertura, de costas para nós.

- Ramón, - disse Dom Lorgne - pegai num dos vossos adjuntos e vinde até aqui.

Ramón olhou para o Andrés. Os dois aproximaram-se de Dom Lorgne, que mandou que cada um deles se pusesse atrás de um muçulmano.

- Desembainhai os punhais devagar - disse Dom Lorgnon. Quando eu encostar o meu ao pescoço do homem que tenho à minha frente, fazei exactamente o mesmo. Não façais sangue. Precisamos destes homens vivos.

Dom Lorgne sussurrou qualquer coisa ao ouvido dos muçulmanos enquanto sacava da arma. De repente, os nossos três prisioneiros sentiram a lâmina afiada de um punhal encostada à garganta. Seguiu-se um breve estrebuchar. Mas Dom Lorgne voltou a sussurrar naquela língua incompreensível, até que os muçulmanos ficaram quietos.

- Cavaleiro, - disse Dom Lorgne, dirigindo-se a mim - ide buscar quatro escudos dos infiéis mortos.

Eu apanhei rapidamente os escudos, soltando-os dos dedos rígidos dos mortos. Entreguei-os a Dom Lorgne.

- Vamos caminhar até ao Krak, - disse Dom Lorgne - num círculo compacto. Cada um de nós leva um escudo dos infiéis. Isso deve chegar para baralhar completamente os soldados de Baibars.

- Pode ser que o truque não chegue para nos deixar fazer o caminho todo até ao Krak. Mas vai baralhar os muçulmanos e deixar-nos chegar em segurança pelo menos a meio caminho. Quando eles começarem a disparar, usai aqui os nossos amigos e os escudos muçulmanos para desviar as flechas. Quando chegarmos perto dos portões, damos uma corrida e entramos.

Dom Lorgne, Ramón e o Andrés puxaram os seus prisioneiros uns para os outros, formando um círculo. À ordem de Dom Lorgne, eu avancei para o meio do grupo, com o escudo infiel a cobrir-me a cabeça. Dom Lorgne voltou a dizer qualquer coisa em arábico e os muçulmanos engancharam os braços, fechando o círculo.

Naquela posição desconfortável, saímos do abrigo que a cobertura nos dava e iniciámos a caminhada incerta até à poterna. Parecia que tínhamos milhões de olhos em cima de nós. Em cada passo que dávamos pisávamos os corpos dos nossos irmãos mortos.

Mais uma vez, Dom Lorgne sussurrou aos muçulmanos. Eles começaram a falar em voz alta e depois, sentindo mais forte a pressão do punhal de Dom Lorgne, a berrar na sua língua estranha.

Eu espreitei pela ilharga do meu escudo os baluartes muçulmanos. Os muçulmanos tinham as armas apontadas ao círculo que nós formávamos mas não atiravam. Até as catapultas muçulmanas pararam de disparar, apanhadas de surpresa. Os soldados de Baibars que guarneciam a muralha exterior começaram a berrar perguntas cá para baixo, na tentativa de identificar os componentes, o objectivo e o significado daquela estranha cabala que passava a rastejar mesmo por baixo das suas posições.

Não menos confusos estavam os meus camaradas cristãos. Aproveitando o hiato na barragem de fogo dos muçulmanos, tinham regressado às ameias. Juntaram-se ao coro que se formara por cima das nossas cabeças, berrando imprecações contra os muçulmanos que estavam do outro lado e contra o nosso círculo enigmático, que lentamente se aproximava do castelo.

O nosso círculo alterou-se e por momentos eu deixei de conseguir distinguir entre os dois exércitos. Estávamos na linha de fogo das duas muralhas, vulneráveis em todas as direcções. Rostos crispados, dentes cerrados. Olhos azuis, olhos negros - o mesmo ódio.

Estávamos a dois terços do caminho para o castelo quando do lado muçulmano foi disparada uma flecha sobre o nosso círculo. Foi acertar no pescoço do homem que Dom Lorgne agarrava. O prisioneiro caiu para a frente. Rapidamente, Dom Lorgne puxou o corpo para cima e segurou-o à sua frente.

O tiro representou para ambos os lados o sinal de que tinham acabado as tréguas. Os muçulmanos não tinham a mínima intenção de permitir que qualquer inimigo alcançasse o Krak, ainda que para isso tivessem de matar homens seus. Quando se tornou claro que os infiéis se tinham voltado contra o nosso círculo, os cristãos que estavam nos parapeitos passaram a defender-nos. A pausa no fogo de artilharia tinha dado aos nossos cavaleiros tempo para se posicionarem de forma a alvejar os muçulmanos que guarneciam a muralha oposta. Os cristãos dispararam uma rajada de flechas que desviou do nosso círculo a atenção da maioria dos infiéis. Eu olhei para cima e vi as flechas colidirem umas nas outras, em voo de um exército para o outro, escurecendo o céu.

Quase todas as flechas disparadas contra a nossa posição foram espetar-se no chão. Mas as que nos acertaram foram suficientes para matar em pouco tempo os três prisioneiros. As flechas rasgaram e dilaceraram a carne dura dos infiéis. Dom Lorgne, o Tio Ramón e Andrés mantinham em pé os corpos sem vida, que se contorciam ao impacto de cada flecha como marionetas esfarrapadas.

Estávamos quase a chegar à poterna quando Dom Lorgne tropeçou. Seguiu-se um instante, um momento tranquilo, em que ambos os lados pararam de disparar. Toda a gente ficou a olhar cá para baixo, para o homem caído que acabava de sair do círculo. Dom Lorgne empurrou para o lado o cadáver do seu prisioneiro. Não tentou levantar-se. De qualquer maneira, teria sido inútil. Olhou para cima, para a muralha onde estavam os seus homens. Com ambas as mãos abriu a camisa para que ambos os exércitos vissem a Cruz branca que tinha no peito. O colar de orelhas ensarilhou-se-lhe no manto.

- Cristo é Rei - gritou.

Não sei se os homens de Dom Lorgne ouviram as suas últimas palavras. Entretanto, já os muçulmanos tinham desencadeado uma torrente de flechas que envolveram o corpo de Dom Lorgne num sudário esfarrapado.

Ramón deve ter-se apercebido da oportunidade, da distracção que o infortúnio de Dom Lorgne proporcionava. Mandou-nos dar uma corrida para a poterna. Ramón e Andrés largaram os seus prisioneiros mortos e disparámos a correr na direcção do portão.

Eu corri, de respiração suspensa, preparado para sofrer o golpe de alguma flecha. Cristo é Rei, Cristo é Rei - eram as palavras que eu repetia a cada passo que dava na direcção da poterna, como se Dom Lorgne, com o seu sacrifício, tivesse revelado o mantra mágico capaz de produzir o milagre da minha sobrevivência. Os adjuntos de Dom Fernando estavam à porta, aparvalhados, espantados por verem três camaradas vestidos de muçulmanos avançar na sua direcção.

Eu já estava debaixo da poterna quando senti nas costas uma dor lancinante. Tinha uma flecha enterrada num ombro. Caí para a frente nos braços de um dos homens de Dom Fernando. O Andrés entrou no Krak logo atrás de mim.

Eu olhei para trás, à procura de Ramón. Tinha sido atingido numa perna e num braço, mas estava perto. Tão perto que eu lhe vi a tremura nos lábios quando a porta de pedra deslizou para fechar a poterna.

O Andrés atirou-se para a frente e tentou levantar a pedra gigantesca. Gemeu, implorou, blasfemou. A porta não se mexeu. Ele puxou da espada e brandiu-a contra a pedra. O impacto quebrou a lâmina, que se estilhaçou como um relâmpago.

Tarde de mais. Ouvi do outro lado da porta os últimos suspiros sussurrados do Tio Ramón.

Olhei para cima e vi Dom Fernando, de espada desembainhada, de pé sobre a roldana que comandava a porta. A corda estava cortada e balançava de um lado para o outro.

- Ele já estava morto - disse Dom Fernando. O Andrés virou as costas lentamente.

- Francisco, - disse Dom Fernando - dizei ao Andrés que Ramón já estava morto. Dizei-lhe.

As suas palavras soaram cavas, como uma pedra lançada para um poço de água.

- Andrés, - disse Dom Fernando - vou recompensar-vos pelos bravos serviços que aqui prestastes. Talvez com um novo castelo em Aragão ou um lugar no Conselho do Rei.

O Andrés estava de cabeça baixa. Punhos cerrados. Veias dos antebraços a latejar.

- As emoções exacerbam-se depois da batalha - disse Dom Fernando. - Ides precisar de tempo, Andrés, para arrumar as ideias.

Dom Fernando fez menção de se afastar. Olhou de soslaio para os ajudantes, depois fez um aceno ao Andrés. Mas os adjuntos olharam com indiferença para o mestre.

Dom Fernando deu uns passos e subiu as escadas a correr. O Andrés apanhou-o ainda ele não tinha subido metade dos degraus. Atirou-se a Dom Fernando, que deitou a mão ao punhal que trazia atado à perna. Apontou-o ao Andrés. Com a lâmina a roçar-lhe a cota de malha, o Andrés agarrou o pulso do fidalgo. Bateu com ele contra a pedra até largar o punhal. Nessa altura, o Andrés deitou as mãos ao pescoço do fidalgo e tentou esganá-lo.

Quando eu vi os ajudantes de Dom Fernando correr em socorro do mestre, tentei levantar-me do chão. Mas voltei a cair. A dor no ombro queimava, como se a flecha tivesse voltado a penetrar nele. Um dos adjuntos de Dom Fernando pegou no escudo e deu com ele na cabeça do Andrés, por trás. O Andrés caiu para a frente. Os outros adjuntos de Dom Fernando arrastaram-no e empurraram-no pela escada abaixo. Pontapearam-no violentamente. Eu, deitado no chão, assistia impotente ao espancamento do meu amigo. Ao fim de vários minutos, os homens de mão do fidalgo aperceberam-se de que o Andrés já tinha ultrapassado os limites do sofrimento. Deixaram-no ficar deitado de borco, com a cara enfiada na terra.

Dom Fernando estava sentado no chão, a tossir convulsivamente, agarrado à garganta. Os ajudantes debruçaram-se para ele, solícitos. Ele recusou a ajuda e levantou-se sozinho.

- Despejai-o no hospital - disse Dom Fernando, apontando para o Andrés. - Ao amigo também. E tirai-lhes as armas. A todos eles.

Não me lembro de nada das horas que se seguiram. Enquanto os adjuntos de Dom Fernando se revezavam na missão de me transportar e de me insultar, eu desmaiei.

Quando acordei, senti uma dor penetrante no ombro. Tentei chegar à flecha. Já lá não estava. Tinham-me coberto a ferida com uma apertada ligadura de pano, que o sangue empapava. Era noite. Eu estava a um canto da Ala dos Cavaleiros - o hospital. Mais parecia uma morgue, tantos eram os mortos que me rodeavam. A luz dos archotes iluminava-lhes os corpos. Fixava-os nos seus momentos de morte e projectava sombras trémulas contra as paredes.

O Andrés estava sentado no meio dessas sombras. A luz tremeluzia-lhe na cara. Tinha um olho fechado de inchaço.

- O Tio Ramón morreu? - A minha intenção era mais fazer uma observação do que uma pergunta. As palavras desmentiram quem as pronunciava, fazendo a pergunta sozinhas. O Andrés não respondeu.

- Quem foi que me tirou a flecha? - perguntei.

O Andrés olhou para mim com o único olho que podia abrir. - Foi o médico dos hospitalários. Tivemos sorte. A lâmina não atingiu o osso. Limpámos a ferida e enfaixámo-la com um bocado de pano da opa dos muçulmanos.

Um completo silêncio enchia a enfermaria e permitia-me ouvir o Andrés com clareza. O bombardeamento muçulmano tinha cessado.

- Que aconteceu, Andrés? A batalha acabou?

- Dom Fernando assumiu o comando - disse o Andrés. - Quando cortou a corda da poterna, matou o único rival que lhe restava - o tio Ramón. Esta tarde, saiu do castelo à frente de uma comitiva para ir negociar com Baibars. O cessar-fogo começou antes de ele regressar.

Eu voltei a mergulhar no sono. Quando acordei de madrugada, os cadáveres hirtos estavam empilhados contra a parede. Os vivos estavam reunidos em pequenos círculos, tentando ouvir os últimos rumores do que tinha transpirado durante as negociações. Um dos cavaleiros disse que Dom Fernando e seus adjuntos tinham regressado ao forte antes do nascer do sol, mas não tinham revelado o resultado da sua missão diplomática. E especulou que a reticência da comitiva do fidalgo não podia deixar de ser um mau sinal. Outro cavaleiro era mais optimista e sustentava que a prolongada ausência de disparos da artilharia muçulmana só podia significar que Dom Fernando tinha chegado a acordo com Baibars.

Quando Dom Fernando apareceu à porta da capela, fez-se silêncio entre os outros cavaleiros. Rodeado pelos seus adjuntos, entrou na Ala dos Cavaleiros e subiu para um dos bancos.

- Irmãos, - disse - choramos a perda do Barão Bernières, de Dom Lorgne, de Ramón de Calatrava e dos outros bravos cavaleiros que morreram na defesa do castelo neste último mês. Neste chão não será derramado mais sangue cristão. Tenho aqui uma carta do Grão Mestre do Hospital, Hugo Revel - Dom Fernando mostrou um rolo de pergaminho. - Chegou ontem à tarde, no regresso da heróica surtida contra a catapulta muçulmana. Na carta, o Grão Mestre dá instruções a Dom Lorgne para que negoceie a rendição do castelo a troco de um salvo-conduto para os seus habitantes. Com a morte de Dom Lorgne, passei a ser eu o comandante do castelo. Como servo obediente que sou, cumpri as instruções do Grão Mestre.

- Graças a Deus, - prosseguiu Dom Fernando - a surtida realizada pelos mártires convenceu Baibars de que os defensores do Krak nunca aceitariam uma rendição incondicional. De que ia ter de se sentar à mesa connosco em pé de igualdade. Esta manhã, ao cabo de horas de difíceis negociações, conseguimos chegar a um acordo. O rei infiel barafustou. Ameaçou-nos com o fogo do inferno. Mas nós não recuámos. Como soldados de Cristo, olhámos Baibars nos olhos. Quando ele percebeu que não conseguia intimidar-nos, mudou de tom. Meus amigos, quero dizer-vos que conseguimos arrancar dele importantes concessões. Os exércitos de Cristo vão ter salvo-conduto para Tripoli. Baibars aceitou fornecer-nos cavalos para os feridos e para os oficiais, e nós vamos continuar na posse das relíquias cristãs que estão na capela.

- Eu sei que alguns de vós se sentem frustrados, ou mesmo humilhados - por terem de abandonar nas mãos dos infiéis este grande posto avançado da Cristandade. Mas lembrai-vos das palavras do Senhor: Coloco diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição; escolhe, pois, a vida, para que vivas, tu e a tua semente.

- O vosso Grão Mestre manda que vivais, que continueis a servir a Deus e a combater por Jesus Cristo. A vários títulos, morrer aqui como mártires seria a alternativa mais fácil - a mais egoísta. O Senhor exige mais de vós.

Acho que todos nós ficámos convencidos de que Dom Fernando estava a mentir. Ninguém tinha visto nenhum mensajeiro enviado pelo Grão Mestre. E a escolha do momento da sua chegada não podia ser mais oportuna. Ainda assim, todos optámos por aceitar como boa a história de Dom Fernando. Tratava-se de uma conspiração da exaustão e da esperança, consolidada pela eloquência de Dom Fernando.

Eu não condeno Dom Fernando por ter forjado uma missiva do Grão Mestre do Hospital - não é por isso. Talvez tivéssemos conseguido resistir mais uns dias. Mas a queda do Krak era inevitável. Sem uma rendição negociada, o mais provável era que os muçulmanos tivessem massacrado os cavaleiros sobreviventes. Os infiéis desprezavam os hospitalários, mais do que todos os outros cavaleiros presentes no Levante - acima de tudo pelo seu impressionante currículo de vitórias militares sobre os muçulmanos. As ambições de Dom Fernando não se compadeciam com uma morte no pátio poeirento do Krak des Chevaliers.

Na medida em que se pode dizer que um homem como Dom Fernando tem um momento supremo, o seu discurso foi esse momento supremo. Todos os presentes queriam viver, mesmo o mais piedoso dos cavaleiros hospitalários. Dom Fernando deu a todos a justificação de que precisavam para pôr de lado qualquer sentimento de culpa ou dúvidas que pudessem sentir pelo abandono do seu santuário. Seria, no dizer de Dom Fernando, uma rendição honrosa.

Escassas duas horas depois, os cristãos que tinham sobrevivido ao cerco atravessaram o pátio a caminho dos portões do castelo. Os cavaleiros hospitalários que marchavam à frente empunhavam o estandarte da Ordem - uma Cruz branca cosida numa bandeira preta.

Atrás dos cavaleiros hospitalários seguiam os feridos, em cima de cavalos. Eu era um destes, montado numa égua mansa gentilmente cedida por Baibars, cujos soldados já iam a entrar no castelo. O Andrés tinha recusado a oferta de uma montada. Segurava as rédeas da minha. Tínhamos acabado de nos pôr a caminho quando se aproximaram de nós quatro adjuntos de Dom Fernando.

- Francisco e Andrés, - disse Pablo - o vosso comandante, Dom Fernando, quer falar convosco na capela.

- Dizei a Dom Fernando - disse o Andrés - que agora estamos ocupados.

Os quatro cavaleiros cortaram-nos a passagem. O Andrés tentou romper com a minha montada a cortina cerrada que eles formavam. Empurrou um dos adjuntos, que caiu para trás e deitou a mão ao punho da espada.

- Andrés, - disse eu - acho que devíamos ir visitar Dom Fernando antes de deixarmos o castelo.

- Bem pensado. Francisco - disse Pablo.

Os adjuntos de Dom Fernando escoltaram-nos até à capela. O Andrés ajudou-me a desmontar, e entrámos no edifício. Pablo entrou atrás de nós e foi postar-se, de pé, ao lado do mestre. Dom Fernando estava sentado num tamborete. De mãos postas em oração, tinha os olhos pregados na Cruz.

- Deveis estar a pensar - disse Dom Fernando - no que pede um homem como eu nas suas orações.

O Andrés não arriscou nenhum palpite.

- Pede a vitória - disse Dom Fernando. - Reza pela sua vitória e pela derrota dos seus inimigos, os inimigos de Cristo.

- Pelos vistos, - disse o Andrés - Cristo não tem atendido as vossas preces.

- Pelo contrário. Ramón morreu, e aqui estais vós, Francisco e Andrés.

- Nós somos vossos inimigos, Dom Fernando? - perguntei eu.

- Vou contar-vos uma história, Francisco - disse o fidalgo. - É um episódio pessoal, mas é relevante para a vossa situação.

- Tal como vós, Francisco, também eu tive um irmão, Miro Sánchez. Éramos gémeos verdadeiros.

- Lucinda, uma das amas reais, tomava conta de nós no palácio, em Barcelona. Dormia na mesma cama que nós, dava-nos de mamar quando éramos pequeninos, cantava-nos quando havia trovoadas. Eu dormia do seu lado direito, o meu irmão do esquerdo, aconchegados às pregas fofas da sua pele escura.

- Todas as noites, a Lucinda deixava na nossa mesa de cabeceira duas canecas de leite, leite espesso e acre que ela espremia do seu próprio peito.

- Tínhamos acabado de festejar o nosso décimo aniversário. A Primavera estava no princípio. O frio do Inverno começava a dissipar-se. Víamos os pequenos rebentos verdes das árvores do lado de fora da nossa janela. As flores amarelas irrompiam por entre as juntas das pedras do castelo.

- Nessa noite, o meu irmão bebeu as duas canecas de leite. Eu adormeci com sede e com raiva, praguejando contra o meu irmão.

- Acordei a meio da noite. O Miro estava a gemer e a Lucinda não estava na cama. Pensei que a culpa do sofrimento do meu irmão era minha - da praga que lhe tinha rogado. Descalço, saí a correr pelas salas de chão de pedra fria, à procura da Lucinda. Tinha-se sumido.

- Quando regressei para junto do meu irmão, ele estava a tremer e a tossir sangue. Eu cantei-lhe para o distrair da dor. Disse-lhe que aquilo ia passar.

- Quando a luz da manhã começou a entrar pela janela, eu segurava a mão do Miro, que tinha o corpo pálido e rígido. Saía-lhe um bafo quente pelos lábios azulados.

- Levei vários anos até descobrir a Lucinda. Um dos meus meios-ir-mãos, Nunyo Rodríguez, tinha-lhe pago uma grossa quantia para ela nos matar aos dois. O Nunyo queria a toda a força eliminar os seus concorrentes ao trono. Apesar de não ter levado a sua missão a bom termo, a Lucinda encontrou refúgio na propriedade que o Nunyo tinha em Palau, como ama dos filhos dele.

- Quando eu tinha quinze anos, insinuei-me na casa do meu meio-ir-mão disfarçado de peregrino. Representei bem o papel. A cheirar mal depois de semanas de caminhada, levava vestido um balandrau castanho todo roto.

- Descobri a Lucinda num dos quartos do piso superior. Trauteava uma velha melodia enquanto olhava por uma criança adormecida, um dos meus primos. Senti inveja da inocência da criança. Na sua ignorância, aceitava os carinhos daquela mulher.

- Quando eu me aproximei, ela ergueu os olhos. Sorriu para mim. Não pôde evitá-lo. É que continuava a gostar de mim. Depois desviou os olhos, pensativa. Eu vi perfeitamente que ela estava a recordar, ou mesmo a reviver aquela noite, cinco anos antes. O reconhecimento. Depois o terror. O seu menino já era um homem.

- Eu amordacei-a e a seguir decepei-lhe as mãos. A Lucinda ficou a fitar-me enquanto morria esvaindo-se em sangue. Estendeu para mim um dos cotos, como se quisesse pegar-me na mão. A criança acordou. O seu choro sobrepôs-se aos gritos abafados da Lucinda. Já ela estava morta e as suas mãos ainda sofriam sob o peso do seu crime. Os mesmos dedos que tinham deitado o veneno contorciam-se agora no chão de pedra cinzenta.

- Esperei pelo meu meio-irmão na capela. Tinha ouvido dizer que ele era muito devoto. Estava eu ajoelhado nos bancos quando ele chegou, de tarde. Vinha sozinho. Era melhor do que eu teria esperado. Dei graças a Deus por mo entregar.

- Palpita-me que por uma ou duas moedas me cantas uma cantiga brejeira, estrangeiro - disse ele - És um menestrel ambulante, não?

- Não, senhor - disse eu.

- Então aceita as minhas desculpas - disse ele - És então um peregrino a caminho do túmulo de Santiago de Compostela?

- Também não, senhor - disse eu.

- Nesse caso és um mistério, estrangeiro. - Diz-me, por favor, que te traz a estas paragens?

- Vim reparar o passado.

- Melhor será - disse ele - que deixes o passado nas mãos do Senhor - disse ele, soltando uma gargalhada despreocupada. Depois pousou-me a mão nas costas. - Estás a precisar de um padre, amigo. Se quiseres, eu posso mandar chamar um.

Sorriu-me. Um sorriso amável. Em circunstâncias diferentes, podíamos ter sido aliados.

- Olhas para mim com uma familiaridade inesperada - disse ele. - Eu conheço-te, estrangeiro?

- Sou Fernando Sánchez, teu irmão - disse eu.

- O sorriso dele desvaneceu-se. Abriu a boca para falar, mas achou melhor desistir.

- Eu desferi-lhe um golpe no peito. Depois outro, e mais outro, até não ter mais onde espetar o punhal.

Dom Fernando brandiu o punho vazio, como se estivesse a repetir o acto relatado.

- É uma história encantadora, Dom Fernando - disse o Andrés. - Não quero parecer indelicado, mas eu e o Francisco temos de ir andando.

Dom Fernando ergueu os olhos com uma expressão soturna.

- Francisco, vós e o Andrés ireis muito em breve, - disse ele - mas não para onde estais a pensar. Eu sei bem a fidelidade que vós dois sentis pelo Tio Ramón. - Se eu vos deixasse viver - a qualquer de vós - faríeis por Ramón o mesmo que eu fiz pelo meu irmão. Eu até ficava desiludido se vós ainda não estivésseis a planear a minha destruição.

- Mas tal nunca irá acontecer. Pelo menos às vossas mãos. Eu não sou a Lucinda e não vou cair no mesmo erro. Baibars pediu-me umas recordações para levar quando voltar a Alepo, para mostrar ao seu povo que o poderoso Krak des Chevaliers caiu mesmo. Eu tomei a liberdade de lhe oferecer os vossos serviços. Afinal de contas, vós estais sob meu comando desde a trágica morte de Ramón, não é verdade?

- É, sim, Mestre, - interrompeu Pablo - a guarnição inteira está sob o vosso comando.

- Cala-te, Pablo - disse Dom Fernando.

- Tendes de ver a questão - prosseguiu - do meu ponto de vista. Eu esperei cinco anos para matar a Lucinda. Se vos deixasse viver, ia ficar sempre à vossa espera.

Enquanto Dom Fernando falava, entrou na capela um grupo de soldados muçulmanos. Dom Fernando apontou para o Andrés e para mim. Os muçulmanos rodearam um e outro.

- Adeus, cavalheiros - disse Dom Fernando. - Ia a dizer boa sorte, mas no sítio para onde ides de nada vos serve a sorte. Darei conhecimento às vossas famílias da vossa coragem diante da morte. Talvez isso lhes sirva de consolo.

- Ainda um dia - disse o Andrés - hei-de ajustar contas convosco, Dom Fernando.

- Enquanto não chega esse dia, - disse Dom Fernando - aproveitai bem a hospitalidade do Sultão.

Dom Fernando e os seus homens passaram por nós quando saíam da capela. Ao chegar à porta, Dom Fernando virou-se para nós.

- Os meus adjuntos são ferozmente fiéis, - disse Dom Fernando - mas são idiotas. Eu bem teria gostado de ter um adjunto com a vossa sensatez e fortuna, Francisco. E com a vossa coragem, Andrés. É uma pena.

 

                                 A CIDADELA

Tocaram os sinos para a sexta. Havia quatro horas que estávamos na cela. Francisco estava em pé, esguio, recortado nas sombras da tarde. De olhos no vazio, parecia nem dar pela nossa presença. Isabel estava sentada a meu lado. Corpo imóvel, boca ligeiramente aberta como quem se prepara para fazer uma pergunta.

- É uma pena - disse Francisco, repetindo as últimas palavras de Dom Fernando. Num tom de voz firme, como se fosse sua intenção relatar um incidente sem atribuir culpas a ninguém.

- O Andrés morreu no Krak des Chevaliers - disse Isabel. Francisco fez de conta que não tinha ouvido.

- Francisco - disse Isabel.

Francisco olhou para longe, para fora da janela. Isabel levantou-se e foi postar-se diante dele. Agarrou-o pelo cotovelo do braço livre.

- O meu irmão morreu no Krak des Chevaliers.

Francisco tapou, com força, os olhos com as palmas das mãos, como se quisesse apagar a imagem do acontecido.

- Dom Fernando escreveu uma carta ao meu pai, a dar-lhe conta da bravura do Andrés durante o cerco. Ele morreu na defesa do castelo. - A sua voz foi-se sumindo até se tornar praticamente inaudível. Não se percebia se a rapariga estava a fazer uma afirmação ou uma pergunta.

- Não, Isabel - disse Francisco.

Talvez o meu estimado leitor pense que a resposta de Francisco fez nascer em Isabel a esperança de que o irmão ainda estivesse vivo. Mas não. Um silêncio premonitório ficou no ar depois destas duas palavras. Um sinal de horror.

- Isabel, é melhor irmo-nos embora agora. Está quase na hora da ceia.

Com os olhos cinzentos pregados em Francisco, Isabel ignorou as minhas palavras. Eu fiz menção de lhe dar a mão para a conduzir para fora da cela. Ela recusou. Não havia nada que eu pudesse fazer. A decisão era sua. E ela queria saber a verdade, fosse ela qual fosse. Queria conhecer as circunstâncias da morte do irmão.

De resto, é minha convicção que o comportamento cruel de Francisco para com Isabel era calculado para evitar precisamente este momento - para afastar Isabel de Santes Creus. Talvez tivesse querido poupá-la aos pormenores dolorosos, ou então eximir-se a relatá-los.

Seguimos na cauda do exército de Baibars, em viagem para norte, a caminho de Alepo. Uma companhia de homens armados rodeava a carroça que nos transportava, a mim e ao Andrés, acorrentados um ao outro pelos pulsos. Davam-nos de comer à noite, depois da caminhada do dia. O Andrés dividia as nossas provisões - um pão, uma tigela de grão de bico e uma caneca de água. Dia sim, dia não, punha de parte um pouco de água para me lavar a ferida. Depois fazia o penso com uma tira nova de pano rasgada da túnica de um de nós.

Ao terceiro dia, apareceu uma cidade infiel à primeira luz da manhã. Um templo muçulmano - em mármore azul - com uma torre esguia, como um junco que brota de um pântano. Um velho de barbas subia lentamente os degraus em caracol da torre. Quando chegou ao cimo, começou a cantar, uma melodia dolente. Os soldados mandaram parar a caravana e ajoelharam-se e curvaram-se para o chão com as mãos espalmadas.

- Nunca ninguém lhes deve ter dito que existem umas coisas chamadas sinos - disse o Andrés.

Outros homens, de outras torres, juntaram-se ao coro de lamentações, anunciando o novo dia.

O Andrés pôs-se em pé em cima da carroça, olhando em volta, muito atento. As correntes chocalharam.

- De qualquer maneira, eram capazes de não ouvir, disse ele.

Só uma vez os nossos captores nos dirigiram a palavra. Eu acordei a meio da noite, com o ombro a latejar. O vento frio e cortante entrava pelo manto de lã que nos servia de cobertor. As moscas produziam um zumbido fino a rondar o sangue que trespassava o pano. Ouvi um sussurro atrás de mim. Virei a cabeça e olhei para o outro extremo da carroça. Um dos nossos guardas falava em voz baixa e em tom de urgência. Olhou para a esquerda e para a direita. Depois meteu a mão no balandrau e tirou de lá uma maçã. Estendeu o braço com a oferenda na mão fechada. Eu via o brilho vermelho por entre os dedos dele. Hesitei, desconfiado. E se ele tivesse envenenado a maçã, mergulhando-a em alguma peçonha árabe? E depois, pensei eu, qual era o problema? Absolutamente nenhum. De qualquer maneira, éramos uns homens mortos.

O guarda fingiu que mordia a maçã, como se quisesse dizer que era para isso que ela servia. Sussurrando palavras estranhas, voltou a estender o braço. O Andrés tinha acordado entretanto e olhava para o nosso benfeitor com desconfiança. Eu estendi a mão. O guarda pousou a maçã na palma da minha mão e foi-se embora. Eu e o Andrés passávamos a maçã de um para o outro, disfarçadamente. Quando a caravana retomou a marcha, já eu enrolava na língua a polpa doce.

Às portas de Alepo, vieram uns soldados apear-nos da carroça. Nós avançámos a pé por entre uma guarda montada, em cortejo pelas ruas. Vieram árabes a correr das suas casas, do bazar, das mesquitas. Vitoriavam os seus soldados, atirando pétalas de flores cor-de-rosa à sua passagem.

Eu e o Andrés caminhávamos de cabeça baixa, olhando para a sujidade que cobria o chão, tentando ignorar as provocações, as pedras arremessadas pela multidão. Eu caí quando uma das pedras me acertou na cabeça. O sangue quente correu-me livremente pela cara e pescoço. Quando abri os olhos, olhei para os civis que se apinhavam aos lados do caminho. Novos e velhos. Riam-se, gritavam, cuspiam.

Vi o Sérgio em pé ao lado de uma velha. Ele parecia novo - um soldado - e usava a mesma armadura que levava no dia em que zarpou do porto de Barcelona. Ele olhava fixamente para mim. Eu chamei-o pelo nome. Ele esticou o pescoço na minha direcção. Quem és tu? Sou eu, Sérgio - disse eu - o teu irmão. Os guardas levantaram-me. De novo em marcha, passei a pente fino os espectadores, à procura do meu irmão. Chamei por ele, aos berros. A multidão ignorante ria-se mais alto de cada vez que eu chamava pelo meu irmão.

- O Sérgio não está aqui - disse o Andrés, que caminhava a meu lado.

Foi então que voltei a vê-lo. Estava debruçado à janela de um segundo andar. Tinha o cabelo grisalho. Rugas fundas desciam-lhe pelos dois lados da face. Tinha a armadura enferrujada. O Sérgio abanou a cabeça, contristado. Pensavas que vinhas encontrar aqui a salvação? Uma pedra acertou-me no peito. Eu cambaleei, tossindo violentamente. Consegui a muito custo manter-me em pé. Tomei a Cruz por ti, Sérgio - disse eu - pela tua salvação. Com o ruído da chacota e o tumulto do cortejo, o Sérgio não me ouvia. Olhou cá para baixo. Olha só a que ponto tu chegaste. Sorriu-me, um sorriso condoído. Isto é a tua salvação, irmão. Senti uma pontada no peito. Encheram-se-me os olhos de lágrimas ardentes.

- Francisco - disse o Andrés - lembras-te de quando te fui visitar a Monteada? Daqueles cavalos que nós montávamos? Qual era o nome da tua égua? Era Pancho, não era?

- Era - disse eu.

- Que estará ela a fazer a esta hora? - disse ele. - Provavelmente a comer erva nalgum campo.

- Provavelmente.

- Num prado verde.

Eu olhei para a janela aberta. Não estava lá ninguém, apenas uma cortina a adejar ao vento.

Caminhámos até ser noite. Eu via as mesmas faces na multidão. Os novos e os velhos. Apontavam todos para a Cidadela, com ar entendido. Todo o dia tínhamos visto aquela fortaleza, uma gigantesca vela de pedra suspensa sobre a cidade. Estava pacientemente à espera de que nós chegássemos, eu e o Andrés.

Finalmente, a rua desaguou na fortaleza imponente. O povo, insaciável, quis atravessar a ponte levadiça com o cortejo. Rompeu os cordões de soldados. Quem nos protegeu foram os nossos guardas. Repeliram a multidão. Mas o estalar de ossos só contribuiu para excitar a multidão, que avançou para a ponte. No embate, alguns árabes caíram ao fosso. Foram mergulhar na água lodosa, esbracejando freneticamente na tentativa de se manter à superfície. Os seus esforços distraíram a turba e nós entrámos na Cidadela atravessando a ponte.

Quando estávamos a observar as portas da fortaleza a fecharem-se, vieram uns guardas do palácio na nossa direcção. Agarraram-nos à bruta e empurraram-nos por um corredor escuro. Os gritos da multidão foram-se desvanecendo. Fomos levados a dobrar esquinas, subir escadas, descer escadas, a atravessar salas e de novo para o ar livre, para um pátio imundo.

No pátio havia um grupo de soldados a conversar, apoiados às suas lanças. Pararam de conversar quando nós nos aproximámos. E dispersaram quando um elemento do grupo avançou para nós.

Estudou-nos com muita atenção. Depois de ter dado duas voltas a cada um de nós, soltou um chorrilho de palavras agrestes e incompreensíveis. Gesticulava com os dois punhos no ar, dentes amarelos arreganhados, e cuspia-me perdigotos para a cara.

Quando acabou a sua tirada de impropérios, o homem arfava. Com uma sobrancelha franzida de indignação, olhava impacientemente para nós dois, como quem espera um pedido de desculpas. Uma situação embaraçosa. Duas partes, dois pontos de vista diferentes sobre as circunstâncias que ali nos juntavam.

- Saudações também para vós - disse o Andrés, manietado por dois guardas. - É bom ver finalmente alguma hospitalidade por estas bandas. Se não vísseis inconveniente, aqui o meu amigo Francisco e eu gostávamos de tomar um banho antes da ceia. É que um homem sente-se imundo depois de uma viagem tão longa.

Cofiando a barba hirsuta, o chefe dos guardas pôs-se a pensar na resposta do Andrés. O seu olhar irrequieto saltitava entre mim e o Andrés. O seu sorriso era indeciso. O homem não tinha entendido uma única palavra do que o Andrés tinha dito. Os outros soldados mantinham-se atentos, à espera do veredicto do seu superior.

O veredicto não se fez esperar. O homem sacou de um bastão de madeira que tinha à cinta e vibrou com ele uma paulada na barriga do Andrés. Os outros seguiram o exemplo do comandante. Choveram pontapés, bofetadas e murros de todas as direcções. Eu tentei defender a cabeça com os braços, mas tive de os baixar quando comecei a levar pauladas nas costelas.

Levei um murro em cheio na cara, tão forte que senti no sobrolho todos os nós dos dedos do agressor. Caí ao chão. Ali estendido, olhei e não vi o Andrés. Tinha desaparecido. Os soldados que o tinham cercado dispersavam em diversas direcções, sacudindo dos punhos o sangue do Andrés, alisando as túnicas.

Dois soldados enfiaram os braços pelos meus sovacos e arrastaram-me pelo pátio, em direcção ao lugar por onde o Andrés tinha desaparecido - uma porta que abria para o subterrâneo. Fazia lembrar a escotilha de um barco, de acesso aos porões.

Depois voei, em voo picado. A luz e as vozes foram ficando mais distantes, sumidas. Caí de lado. Doía-me o corpo todo, o que me impedia de identificar a origem da dor. A voz do Andrés atravessou o ar putrefacto.

- Francisco, lembra-me de nunca mais pôr os pés em Alepo.

Eu tinha a cabeça pousada numa poça de lama. O lodo era uma cama fofa. O cansaço apoderou-se de mim. Fechei os olhos.

Acordei com uma mão a mexer-me na cabeça. Outras mãos percorriam-me o corpo e, com cuidado, tiravam-me a roupa pela cabeça. Alguém tentava descalçar-me as botas. Quando eu me soergui, as mãos recuaram. Vi sombras que se esgueiravam pelo chão de lama. Pus-me em pé e firmei os olhos que, franzidos, se adaptaram lentamente à escuridão. O Andrés estava deitado de costas, a escassos pés de distância. Mesmo por detrás dele, viam-se vultos em movimento furtivo.

- O meu nome é Francisco de Monteada - disse eu. - O meu amigo é Andrés de Girona. Somos Cavaleiros da Ordem de Calatrava e súbditos do Rei Jaime de Aragão.

A minha voz ecoou pelo subterrâneo, regressando fraccionada, irreconhecível. As minhas palavras, o meu nome, vinham misturados com gargalhadas estridentes, infantis. À nossa volta, os vultos pareciam uma alcateia de lobos - de olhos brilhantes, ameaçadores.

Entretanto, o Andrés tinha-se levantado e vindo para junto de mim.

- Então isto é que é o inferno - disse ele. - Imaginava-o mais quente.

- Os guardas refrescam-no quando chegam prisioneiros novos. - Era a voz de um estranho, a pouca distância de nós. Falava um catalão fluente.

- Então tu é que és o diabo, não? - perguntou o Andrés.

- Nem o diabo entrava neste abismo - disse o estranho. Guinchos estridentes rasgaram a escuridão. Eram os outros prisioneiros a deplorar aquela tentativa de conversa civilizada.

- Parece que não gostam de nós - disse o Andrés.

- Eles não têm opinião sobre os vossos méritos - disse o estranho. - Tratam assim todos os que vão chegando. Cobiçam os vossos haveres. Muitos deles vestem andrajos ou não vestem nada. As roupas desintegram-se durante o cativeiro. Querem uma camisa nova, se possível um par de botas. Se não quereis ficar sem as vossas, vinde atrás de mim.

O Andrés foi primeiro, tentando não perder de vista o nosso novo aliado. Eu fui atrás, sempre com a mão a agarrar o ombro do Andrés. Rompemos pela lama, passando pelo meio de um cacho de prisioneiros, que gemiam e se agarravam a nós. Eu ia olhando de lado, tentando perceber que tipo de lugar era a nossa nova morada - uma caverna, uma masmorra, um inferno. O nosso guia parou junto de uma parede de pedra. Eu passei a mão pela superfície áspera.

- Bem-vindos, Cavaleiros de Calatrava. - Eu só conseguia perceber a silhueta do homem que assim falou. Estava sentado contra a parede. - O meu nome é Salamago de Huesca. Já conheceis o Manuel. Somos Cavaleiros da Ordem do Templo. Lamento a situação em que vos encontrais. Mas para nós é um prazer ter a companhia de mais dois cavaleiros de Aragão. - Falava numa voz rouca e com uma respiração sibilante. Mas isso não impedia que as palavras lhe saíssem fortes, num registo grave que transmitia convicção. - Partimos de Aragão há sete anos - cinco anos a combater os infiéis, quase um ano neste buraco - trezentos e quarenta e oito dias. Oxalá tenhais notícias da nossa terra. O Manuel tem muitas saudades de Barcelona. Dizei-nos, as mulheres de Aragão continuam lindas?

- As mais lindas do mundo - disse o Andrés.

- De que cor têm o cabelo? - perguntou ele.

- Castanho, preto, ruivo, loiro - disse eu - todas as cores que possas imaginar.

- Exactamente - disse o Salamago. Soltou um longo suspiro. O Manuel grunhiu a sua concordância. Ambos saboreavam a minha resposta, deleitando-se nas visões que conseguiam convocar.

- Onde é que nós estamos? - perguntou o Andrés.

- No antigo palácio de Alepo - disse o Salamago. - Mais exactamente, na cozinha. Pelo menos é o que o Manuel acha. Estais a ver essa pedra? O Manuel garante que é o que resta de um forno. Eu acho que é onde o Imperador se aliviava das tripas. Estais a ver as manchas? Qual é a vossa opinião? - Fez uma pausa, pigarreou e escarrou. - Bem, a seu tempo ireis formular a vossa opinião. Onde é que eu ia, Manuel?

- No palácio antigo transformado em prisão.

- Pois - disse o Salamago. - Os infiéis descobriram estas ruínas há décadas. Diz-se que um dos filhos do Sultão estava a pôr-se numa rameira do harém quando o chão ruiu. O rapaz teve morte imediata. A rameira sobreviveu. O corpo do rapaz amorteceu-lhe a queda. Ela achou que tinha sobrevivido por milagre e logo ali fez voto de castidade em agradecimento aos deuses infiéis. Mas nem eles conseguiram protegê-la da ira do Sultão, que a culpou pela morte do filho e a executou pessoalmente. No rescaldo, o Sultão transferiu o harém para chão mais firme e transformou este subterrâneo em prisão. São os caprichos da vida. Uma rameira escapa miraculosamente a uma grande queda e depois é executada. O Sultão perde um filho mas ganha uma prisão à prova de fuga, para receber os inimigos.

- À prova de fuga? - perguntou o Andrés. - Como é que sabes? Salamago riu-se, uma gargalhada breve e desconsolada.

- Muitos homens muito mais espertos do que eu - cavaleiros, assassinos, monges, ladrões, peregrinos - já estudaram a questão - disse ele.

- Por isso quero poupar-vos trabalho. Deveis estar lembrados da vossa descida para esta prisão. Passastes pela única entrada ou saída que existe - lá em cima, a mais de trinta pés de altura - uma abertura estreita no tecto. Se vós soubésseis voar, podíeis levantar voo daqui e abrir caminho por entre a guarnição de dois mil infiéis. Ou podíeis passar os próximos dez anos a escavar um túnel. Mas íeis dar ao fosso e afogáveis-nos a todos cá dentro.

- Belo quadro - disse o Andrés.

- Podia ser pior - disse o Salamago. A prisão não deixa de ter as suas virtudes. Manuel, destapa aí o mosaico.

O Manuel pôs-se de joelhos e curvou-se para o chão. Com as mãos afastou para os lados a lama que cobria o chão diante dos nossos pés. O Salamago tirou da parede duas varas e espetou-as na fissura de uma grande pedra. Depois pôs-se a fazer rodopiar as varas entre as palmas das mãos. Cada vez mais depressa, até produzir chispas. Uma das varas pegou fogo. O Salamago protegeu a chama ténue com a mão em concha e aproximou-a do chão.

- Ora vede - disse o Salamago. - Até neste inferno há beleza.

As chamas dançavam contra a pedra perlada. Um rio azul bruxuleava pelo chão entre os pés do Andrés e os meus. Floriam flores vermelhas e azuis. Palmeiras delicadas vergavam-se ao peso dos seus frutos. O sol era uma explosão de amarelo, um reflexo brilhante que me aquecia a cara.

- Foi um homem que esculpiu cada um destes cubos minúsculos. - O Salamago segurava entre o polegar e o indicador uma pedrinha quadrada. Tinha uma barba desgrenhada que era negra de suja. As costelas pontiagudas quase lhe furavam o peito. - Esta é de marfim - continuou o Salamago. - Algumas pedras têm ouro, prata, rubis. Os guardas dão muito valor às pedras preciosas. Nós trocamo-las por comida.

Ô Salamago apagou a chama com a mão nua. As flores e as árvores desapareceram; o sol sumiu-se.

- E os outros prisioneiros, - perguntou o Andrés - deixam-vos em paz, a vós e ao vosso mosaico? Vós sois só dois.

- Já fomos sete - disse o Salamago. - Cinco dos meus homens foram resgatados há semanas. Os templários mandaram um representante à Cidadela. Pagou vinte moedas de ouro por cabeça. Infelizmente, só trazia cem moedas consigo. Um dia destes volta para nos buscar, a mim e ao Manuel. Às tantas, ainda os Calatrava vos vêm resgatar a vós antes de nós.

- Ninguém nos vem resgatar - disse eu.

- O Sultão faz um rico negócio com a prisão - disse o Salamago. - Convida representantes de todas as ordens de cavalaria a virem a Alepo e a pagarem o resgate dos seus homens que aqui estão presos.

- A nós ninguém nos vem buscar - disse o Andrés.

- Por que é que dizes isso? - perguntou o Salamago.

- Quase todos os nossos camaradas de Calatrava estão mortos - disse eu. - Morreram no cerco do Krak des Chevaliers.

- O grande castelo caiu? - perguntou o Salamago. - Quando?

- Há poucas semanas. Eu e o Andrés fomos feitos prisioneiros.

- Só vós dois? E os outros?

- Os defensores do Krak receberam salvo-conduto a troco da rendição do castelo - disse eu.

- Salvo-conduto para esta masmorra?

- Eu e o Francisco fomos traídos por Dom Fernando, filho do Rei Jaime - disse o Andrés. - Foi ele o responsável pela morte do Grão Mestre de Calatrava, Ramón. Nós assistimos à traição. Entregou-nos aos infiéis para manter em segredo a sua perfídia.

- Com certeza - disse o Salamago - que algum dos vossos camaradas que sobreviveram vai dar parte do vosso desaparecimento. Alguém há-de investigar o vosso paradeiro.

- Dom Fernando - disse eu - há-de encarregar-se de lhes tirar todas as hipóteses de seguirem a nossa pista.

- Nesse caso vão ter de ser os templários a comprar também a vossa liberdade. Eu e o Manuel fazemos questão de que sejais incluídos em qualquer transacção.

- Eu e o Francisco íamos ficar em dívida para convosco - disse o Andrés.

- Nós é que estamos em dívida para convosco - respondeu o Salamago. - Já estávamos fartos da companhia um do outro. Além disso, a vossa presença vai levar os teutónicos a desistir de nos atacar. Desde que os outros templários se foram embora, os nossos irmãos germânicos têm estado de atalaia, à espera da oportunidade de lançar o golpe. Podeis vê-los a espreitar por cima do entulho da parede do parlatório.

Eu olhei na direcção indicada pelo Salamago. A única coisa que vi foi uma neblina negra.

O Salamago gritou para o meio da escuridão. - Ei, sacaninhas. Já deveis ter dado pela chegada dos Cavaleiros de Calatrava - Francisco e Andrés - que acabam de vir das linhas da frente.

- Os oito alemães ocupam uma das antecâmaras do Sultão - disse o Manuel. - Há lá madeira que dá para aquecer o subterrâneo todo durante vários invernos. Uns ingleses descobriram o chão de madeira quando escavavam à procura de ouro. Tentaram esconder a descoberta, negociando a madeira à peça. Mas um batedor alemão foi dar com os ingleses a arrancar uma das tábuas. No dia seguinte, os alemães saíram do seu abrigo, que fica na outra ponta do subterrâneo, e atacaram. Nós assistimos daqui à batalha. Os ingleses só resistiram uns minutos. Os alemães vendem pedaços de madeira para lenha a todas as facções da prisão.

- Como todos os ricos, - disse o Salamago - estes nunca estão satisfeitos. Estão sempre a pensar na próxima conquista. Se os alemães vierem tentar roubar-nos o mosaico, nós vamos resistir até à morte.

- Salamago, - disse o Manuel - não se fala mais de morte. Vamos mostrar o resto da prisão ao Andrés e ao Francisco.

- A grande visita guiada - disse o Salamago - para ajudar os nossos amigos a entender como se passam as coisas no submundo. Vai tu com eles, Manuel. Eu fico a guardar a fortaleza.

Salamago deu-nos umas pedras, a mim e ao Andrés. - Nunca se sabe - disse.

Fomos por um corredor largo - uma frente de três, com o Manuel ao meio. Os nossos passos não produziam qualquer ruído no chão de barro mole. Os nossos companheiros de prisão tornavam-se visíveis na escuridão. Uma galeria de espectadores silenciosos, postados em ambos os lados, observava-nos com atenção, avaliando e reavaliando as implicações da nova aliança de cavaleiros. O Salamago e o Manuel devem ter previsto as consequências do nosso passeio - desencorajar nos outros prisioneiros eventuais ideias de vulnerabilidade dos dois templários e dos seus dois compatriotas acabados de chegar.

Eu fiz o meu papel, caminhando em pose vigilante, militar. Ia passando a pedra dura entre as mãos, sentindo-lhe a textura áspera. De mão para mão e desta para a primeira.

- Estes à esquerda são os turcos - disse o Manuel.

Eram cinco homens sentados em círculo. Levantaram os olhos à nossa passagem, como se nós tivéssemos interrompido alguma conversa ou um jogo de dados. Cinco cabeças que se viraram para ver para onde íamos.

- Também prendem aqui infiéis? - perguntou o Andrés.

- Toda a espécie de gente - disse o Manuel. - Muçulmanos, cristãos, judeus. Franceses, alemães, turcos, mongóis. Cavaleiros, monges, criminosos. Cada facção forma um grupo. Os grupos maiores ocupam uma sala, constróem um abrigo. Guerreamo-nos pelos magros recursos que representam a diferença entre viver e morrer.

Encontrámos um homem no meio do caminho. Estava nu. O seu corpo, coberto de lama e excrementos, tresandava. Retorcia com uma das mãos uma barba esparsa, tinha a outra mão à cinta. Resmungava para dentro em tom estridente.

- É um monge franciscano, - disse o Manuel - capturado numa peregrinação a Jerusalém. Nós oferecemos-lhe refúgio quando éramos sete. Ele recusou. Disse que tinha de suportar sozinho todo o peso da sentença do Senhor. Vai morrer, não tarda muito.

Ignorou-nos quando passámos por ele. Falava italiano e parecia embrenhado numa discussão acalorada. Nós três acelerámos o passo para nos afastarmos do cheiro nauseabundo.

À direita, passámos por um abrigo. As paredes velhas de uma sala do palácio ainda estavam intactas de dois lados. Dos outros dois havia pedras empilhadas até uma altura considerável, fechando o espaço.

- Marinheiros venezianos - disse o Manuel, apontando para a estrutura. - Pensamos que serão uns doze - a facção mais numerosa que há na prisão. Construíram uma pequena fortaleza no meio da prisão. Passam o dia lá dentro, só saindo para procurar comida ou para se aliviar. Cavaram uma latrina numa das extremidades do subterrâneo, a poucos pés da entrada. São muito civilizados. Devem estar à espera de que os mercadores de Veneza lhes paguem o resgate.

Passámos adiante e eu baralhei-me com os diferentes grupos que Manuel ia apontando. Mongóis, judeus, árabes, os dois ingleses que tinham fugido do ataque germânico. Brandiam varapaus, como tribos primitivas, e rosnavam se nos aproximávamos muito.

Reparei na silhueta de um homem que avançava lentamente na nossa direcção. A única coisa que trazia vestida era um pano à volta da cintura. Aproximou-se sorrateiramente, erguendo na mão um pau, uma pequena lança. Eu levantei o braço com a pedra na mão, na tentativa de o intimidar. Mas ele não parou. Quando o vi avançar para nós, armei o braço. Manuel segurou-me a mão antes que eu atirasse a pedra. O homem soltou a lança. Ela fez um voo oblíquo, com um som curto e estridente. Ele recolheu a lança com um baraço que trazia agarrado ao pulso. Um pequeno roedor pendia da ponta da lança. Ainda mexia as mandíbulas.

- Belo tiro - disse o Manuel. - Francisco e Andrés, não perdíeis nada em aprender esta técnica.

- Onde é que ele arranjou a arma? - perguntou o Andrés.

- Nós cá talhamos lanças e facas com pedras, às vezes com as unhas e os dentes.

- Para caçar ratos? - perguntou o Andrés.

- Ratos, ratazanas, cobras, insectos.

- Há muitos? - perguntou o André.

- Não chegam para as necessidades.

O caminho abria para ambos os lados. Um grande círculo árido.

- Olhai para cima - disse o Manuel.

Pérolas de luz insinuavam-se no mundo subterrâneo.

- As portas do inferno - disse o Manuel. Foi dali que os guardas vos atiraram cá para baixo.

O alçapão era quase da altura da torre sineira do mosteiro de Santes Creus. Eu olhei para o chão e vi a marca do meu corpo na terra barrenta que me tinha amortecido a queda.

- Todos nós entrámos pela mesma passagem - disse o Manuel. - Como disse o Salamago, é a única entrada e a única saída.

- Dia sim, dia não os guardas atiram comida por aquela abertura - disse o Manuel. - Os restos daquilo que eles comem - uma côdea de pão seco, um osso de frango, fruta e verduras podres. Mal sentem entrar a luz, os prisioneiros atropelam-se para tomar posição por baixo do buraco. Até os venezianos saem da sua fortaleza. A coisa pode tornar-se muito perigosa. Às vezes, para se divertirem, os guardas disparam flechas sobre o ajuntamento. Os prisioneiros esgatanham-se por causa de uma migalha. Eu e o Salamago ficamos de lado, deixamos os outros guerrear-se e depois lança-mo-nos sobre algum bocado extraviado.

- Vê-se o céu pelo alçapão? - perguntei eu.

- Já vi o sol e a lua - respondeu o Manuel.

- Os guardas abrem o alçapão dia sim, dia não? - perguntou o Andrés.

- Abrem. É assim que nós contamos o nosso tempo de cativeiro - trezentos e quarenta e oito dias.

Andámos mais umas passadas até ao fim do caminho, o limite do subterrâneo - à volta de duzentos passos desde o mosaico até ao outro extremo. Chegou-me aos ouvidos um gotejar de água, que fazia lembrar o murmúrio vivo de uma flauta. Pousei a mão na parede de pedra. A água correu-me pelo antebraço. Juntei as mãos em concha e apanhei-a. Levei as mãos à cara. A água fria picou-me os olhos e escorreu-me pelas maçãs do rosto até ao pescoço.

- O Salamago diz - disse o Manuel - que são as pedras a chorar as lágrimas que nós já não podemos derramar.

Eu pus a cabeça de lado e deixei que a água me entrasse para a boca. Molhou-me os lábios como um aguaceiro molha um campo ressequido.

- A água é para todos - disse o Manuel. A nascente subterrânea abastece-nos. Corre o ano inteiro.

Depois de eu e o Andrés nos termos saciado, iniciámos o caminho de regresso pelo mesmo corredor. Os outros prisioneiros já tinham perdido o interesse pelos novos companheiros. Retomaram as suas actividades - esgravatar à procura de paus, pedras, um resto de comida em que os outros prisioneiros não tivessem reparado.

O Salamago estava a arrancar uma das pedras do mosaico quando nós chegámos.

- Isto é ouro puro - disse ele. - Esta vale um pão inteiro.

Valia mais do que isso. Eu e o Andrés estávamos sentados contra a parede do subterrâneo quando a luz rompeu a noite sem se fazer anunciar. Seguimos os templários até ao outro extremo do subterrâneo, ao alçapão aberto. Olhei para cima e vi o céu azul, os raios de sol formando uma auréola no chão da prisão. O Salamago colocou-nos, a mim e ao Andrés, por forma a que o nosso grupo fizesse um círculo à volta da auréola. Quando os guardas despejaram o que traziam nos baldes, nós defendemos o nosso território e ficámos a ver a luta dos outros. Na presença de comida, as facções desmembravam-se. Era cada um a lutar por si. Excepto nós. Sem se afastarem do círculo, o Salamago e o Manuel deitaram a mão aos pedaços de comida que caíam perto de nós. Repartiram os despojos com o Andrés e comigo. Não era muito, e sabia a estrume de cavalo. Mas nós comemos na mesma, agradecidos por tudo o que nos pudesse apaziguar as dores causadas pela fome.

Depois de terem passado o chão a pente fino, à procura de migalhas de comida, os prisioneiros dispersaram. Quase todos regressaram aos respectivos abrigos. Os outros recuaram para as sombras, mas não se afastaram muito da fonte de luz. O Salamago manteve o nosso grupo na orla da luz.

Havia três prisioneiros em fila, cada qual exibindo uma oferta. O Salamago era o segundo. Os guardas desceram um balde preso por uma corda grossa. O primeiro prisioneiro avançou para o meio do círculo de luz, mesmo por baixo do alçapão. Pousou uma pedra no fundo do balde e ficou a vê-lo subir. De mãos entrelaçadas, murmurou uma oração.

Enquanto o homem se mantinha em posição de súplica, os guardas passavam a pedra de mão em mão, como joalheiros a calcular-lhe o valor. Quando atiraram a pedra de volta cá para baixo, o homem saltou para fora do círculo no momento em que um dos guardas disparava uma flecha pela abertura. A haste da flecha ficou espetada no chão, como se ali tivesse sido plantada havia muito tempo.

Foi então a vez do Salamago. Deu uns passos em frente e foi pôr o cubo de pedra no balde, entretanto regressado ao fundo. Os guardas puxaram a corda e examinaram a pedra. Enquanto estudavam a pedra, os guardas olhavam atentamente cá para baixo, para o Salamago, como se quisessem avaliá-lo também a ele. Para decidir se ele merecia viver ou morrer. Depois voltaram a descer o balde. O Salamago meteu a mão e tirou metade de uma carcassa de frango. O cheiro apetitoso atraiu uma multidão. Correram suspiros pelo subterrâneo inteiro. O Manuel puxou-nos, a mim e ao Andrés, para dentro do círculo, para proteger o Salamago dos prisioneiros mais destemidos. O Salamago já tinha entretanto arrancado a flecha do chão e brandia-a em gestos ameaçadores. A multidão dispersou, defendendo-se dos propósitos belicosos do Salamago. Ainda assim, quando rompemos pelo meio do ajuntamento, foram vários os prisioneiros que tentaram deitar a mão ao trofeu. O Salamago rechaçava-os com golpes curtos e rápidos. As vítimas gritavam e batiam em retirada, lamentando-se e praguejando na língua que lhes dava mais jeito.

Ao verem o Salamago brandir a flecha, os outros prisioneiros dispersaram. Nós regressámos ao nosso abrigo como um exército vitorioso. Sentámo-nos em cima do mosaico e passámos o frango de mão em mão. Um ténue sabor a carvão, que me era familiar, escorreu-me pela garganta, fazendo-me reviver o passado, uma imagem já apagada. Logo abaixo das costelas, senti um vazio que me roía por dentro, trazendo-me à memória a saudade de outro lugar, numa noite diferente. Antes de o meu irmão tomar a Cruz, demos uma festa em sua honra no Grande Salão. O meu pai encarregou o Sérgio de trinchar o frango assado. O meu irmão, cavaleiro do exército de Deus. O seu sorriso amável esfumou-se, dissipou-se, engolido pela terra.

Depois daquele episódio, todos os grupos da prisão nos abordaram propondo-se comprar pedrinhas de mosaico. Conseguimos assim adquirir ratazanas, cobras, lenha, paus afiados e outras pedras preciosas.

O incidente espicaçou o interesse pelo nosso abrigo. Os outros prisioneiros não esqueciam com facilidade o cheiro suculento daquele frango. O Salamago detectou espiões dos grupos mais numerosos que vinham estudar a nossa posição, os nossos hábitos. Mandou-nos esgravatar a lama do chão à procura de um pequeno arsenal de calhaus, que mantínhamos empilhado no meio do nosso grupo. Nunca nos afastávamos muito uns dos outros. Havia sempre pelo menos um acordado, para avisar os outros em caso de ameaça de ataque iminente.

Talvez por causa da proximidade, os alemães não conseguiram resistir à tentação. Na altura, estava eu de sentinela. De repente, surgiram-me os olhos deles como estrelas de cristal no céu da meia noite. As estrelas aproximavam-se. Eu abanei os outros para os acordar. Pegámos nas pedras maiores que havia no monte.

- Eles vão tentar separar-nos, - disse o Salamago - matar-nos um a um. Mantende-vos juntos. Se vos virdes isolados, fazei tudo para voltar ao grupo.

Os oito alemães dividiram-se em duas linhas de quatro. Brandiam no ar pesados varapaus. Uma das linhas recuava enquanto a outra atacava. Eu não tinha um segundo para respirar. Os intrusos carregavam e depois recuavam, sem me dar tempo para contra-atacar. Eu ameaçava fantasmas com a minha pedra. Levei uma paulada na cara. O nariz ficou esmigalhado. Deitei a pedra ao chão e lutei de mãos vazias. Fiquei com os punhos ensanguentados e parti a mão direita na queixada dura de um dos atacantes.

- Mantende-vos unidos - berrou o Salamago.

Novo ataque em força dos invasores. A ponta de um pau perfurou-me a barriga. Eu curvei-me para a frente, agarrado às tripas. Levantei-me no momento em que descia um calhau sobre a minha cabeça. Lembro-me do brilho azulado da mica. Depois não senti mais nada, nenhuma dor, senti-me apenas a pairar num céu sem estrelas.

Acordei a deslizar de costas pelo corredor de lama que dividia as duas facções. íamos a afastar-nos do nosso abrigo, a caminho do extremo oposto do subterrâneo. Tentei fincar as mãos no lodo negro. Não encontrei nada a que pudesse agarrar-me. Soergui a cabeça e olhei em frente. Três alemães, às arrecuas, puxavam-me pelas pernas. Mesmo por trás dos meus atacantes, vi um homem em pé no meio do caminho. Tinha uma barba desgrenhada. Segurava uma pedra numa das mãos e uma flecha na outra. Era o Salamago. Não sabia como ele tinha conseguido chegar ali. Só se tivesse voado por cima de nós para o outro lado do subterrâneo. Ou então conhecia algum caminho secreto que lhe tinha permitido contornar os meus atacantes. A distância que nos separava encurtava-se rapidamente. Eu deixei cair a cabeça e senti nas costas das mãos o frio da lama.

O calhau do Salamago entrou em choque com a cabeça de um dos alemães. Voaram chispas e a vítima saiu disparada em direcção às sombras. Os outros largaram-me as pernas. Quando me levantei, já o Salamago tinha cravado a flecha no peito de outro alemão.

- Vamos embora - disse o Salamago.

Correu para junto dos nossos camaradas. Eu corri atrás dele.

No nosso abrigo estavam dois alemães mortos - deitados de barriga no mosaico. Mas o Andrés e o Manuel estavam em apuros. Os alemães que restavam tinham-nos encurralado contra o muro de pedra.

Corri a socorrê-los e investi com um ombro contra um dos alemães. Ele não tinha dado pela minha chegada. Desequilibrou-se e bateu com a cabeça na parede de pedras pontiagudas. Caiu desamparado no chão.

Com o embate, também eu perdi o equilíbrio. Rastejei até junto do alemão ferido. Passei por cima dele. Tacteei no chão uma pedra grande. Peguei nela e senti-lhe o gume. O alemão gemia. Tinha uma grande ferida na testa, a sangrar. Eu levantei a pedra e bati-lhe com ela com quanta força tinha. Ficou com a cara esmigalhada. Parou de gemer.

Quando levantei os olhos, os outros alemães tinham fugido. Os meus camaradas estavam em pé à entrada do nosso abrigo. O Salamago e o Manuel arrastaram os três corpos que estavam no nosso abrigo para o corredor comum. Eu encostei-me à parede de pedra. A tremer das pernas, deslizei para o chão e adormeci.

Acordei com um barulho estranho. Parecia pano rasgado à mão. O Salamago estava sentado no chão. Tinha varrido com as mãos a sujidade do chão e olhava para o mosaico. O Andrés e o Manuel dormiam. Os cadáveres tinham desaparecido do corredor.

- Eles enterraram os mortos? - perguntei.

- Não - respondeu ele.

Um cheiro acre a sangue invadia o nosso abrigo.

- Comedores de carne humana - disse o Salamago. - Neste buraco, até os cristãos são bárbaros.

Membros renitentes eram arrancados sem pressas, desossados e despedaçados. Os ossos partidos como galhos de árvore. A carne dura era metodicamente mastigada. O ruído, arrepiante e sacrílego, reverberava pelo subterrâneo.

Depois daquela fuga perigosa, passámos a observar uma rotina - dormir por turnos, reforçar o arsenal escavando à procura de pedras maiores e mais afiadas: mas eles não voltaram a atacar-nos. Nem os alemães, nem nenhum outro grupo.

O equilíbrio de forças alterou-se depois do ataque. Tínhamos liquidado cinco alemães. Os três que sobravam eram insuficientes para defender a antecâmara ou as reservas de lenha que tinham em seu poder. Horas depois da nossa batalha, os venezianos aventuraram-se a sair da sua fortaleza de pedra e desalojaram os nossos vizinhos. Os alemães nem sequer esboçaram resistência.

A partir daí, Os venezianos fizeram rotação de pessoal entre os dois abrigos. O Salamago costumava dizer que os venezianos tinham um castelo na cidade - a fortaleza no meio do subterrâneo - e uma quinta no campo - a antecâmara ao lado do nosso abrigo.

Semanas depois, entraram na prisão mais quatro venezianos. Com estes reforços, os venezianos passaram a ser dezasseis, mais do dobro de qualquer outro grupo - uma força de combate superior, que controlava o abastecimento de lenha.

Serviam-se do poder que tinham para melhorar a sua situação e as condições de vida na prisão. Uma vez por mês, os venezianos cobravam um imposto de cada uma das outras facções. Dividiam entre si a responsabilidade de receber a taxa. O tipo de encargo variava de grupo para grupo, conforme as reservas de que os venezianos dispunham, os recursos do grupo e o humor do cobrador do imposto.

Salamago fez amizade com o cobrador de imposto que nos calhou - um velho marinheiro chamado Giovanni. Era antigo comandante de um navio mercante, um ancião que se gabava de conhecer todos os portos do mundo. No subterrâneo, era um dos chefes da facção veneziana. O Salamago e o Giovanni falavam um com o outro em catalão. Pelos vistos, o Giovanni falava todas as línguas que o homem inventou.

Giovanni tentava normalmente cobrar ao Salamago dois cubos de pedra do mosaico. A barganha podia durar uma semana, já que nenhum dos homens tinha pressa de voltar à triste monotonia da vida na prisão.

- Deves estar a brincar, meu velho - costumava dizer o Giovanni, depois de examinar a nossa oferta. - Se calhar, confundes os venezianos com os genoveses. Os nossos primos talvez se deixassem enrolar na vossa conversa, mas os venezianos não. Nós somos sofisticados, viajamos pelo mundo inteiro. Mostra-me antes alguma turquesa do rio do mosaico.

- Andar entre os dois abrigos que tendes neste subterrâneo - dizia o Salamago - não é viajar pelo mundo inteiro, Giovanni.

As conversas entre os dois desembocavam invariavelmente na discussão sobre qual dos dois tinha visto mais mundo, ou qual país produzia os melhores marinheiros, ou outro assunto vagamente relacionado com estes. Só passadas muitas horas, ou mesmo dias, voltavam à questão do imposto. Eu e o Andrés assistíamos àquelas discussões. Em raros momentos, aquelas picardias faziam-nos esquecer a situação em que nos encontrávamos. De vez em quando, o Giovanni virava-se para o Andrés ou para mim, como se tivesse acabado de reparar na nossa presença.

- Quem são estes, Salamago? - perguntava então o Giovanni. - O teu Rei Jaime manda rapazinhos para a guerra?

- Eu tenho vinte e um anos - disse eu, mais de uma vez.

- Eu também tenho vinte e um anos - dizia o Andrés logo a seguir.

- Então, desculpai - dizia o Giovanni. - Ainda me lembro de quando tinha a vossa idade. - Depois contava uma história das suas viagens - uma prostituta por quem se tinha apaixonado na Sicília, uma batalha com um navio de piratas ao largo de Chipre, uma pérola cinzenta que tinha encontrado numa praia do Norte de África.

Depois de contar inúmeras histórias e resmungar durante umas horas, o Giovanni acabava sempre por aceitar a oferta inicial do Salamago.

- O problema - costumava dizer o Giovanni - é que eu sou muito generoso. De agora em diante, vou mandar o Paolo cobrar os vossos impostos. Ides gostar dele. Come a cabeça das ratazanas vivas. Boa sorte, Salamago. Para vós também, Cavaleiros de Calatrava.

Mas todos os meses o Giovanni voltava.

Os venezianos foram a pouco e pouco consolidando o domínio do subterrâneo, impondo uma ordem que se aplicava a vários aspectos da vida na prisão. Periodicamente, o Giovanni postava-se a meio do corredor para proclamar novas regras. Normalmente dava exemplos e citava os castigos aplicáveis a várias infracções. Depois repetia o mesmo num mínimo de cinco línguas diferentes.

Com vista a melhorar as condições de higiene, os venezianos promoviam e vigiavam a abertura de latrinas no extremo do subterrâneo.

- Ao contrário daquilo que os infiéis pensam - declarava o Giovanni - vós não sois animais. Embora às vezes vivais como animais - porque andais e dormis em cima dos vossos próprios excrementos. Mas isso acabou. Daqui em diante, aliviais-vos em latrinas - e só em latrinas.

Quem violava a ordem pela primeira vez era multado - uma barata, uma ratazana, uma cobra. Quem reincidia recebia dez açoites com um varapau.

Os venezianos proibiram também o consumo de carne humana, morta ou não. Determinaram que cada grupo sepultasse os seus mortos. Os venezianos disponibilizavam um sacerdote - o Padre Gabrio - para dizer umas orações durante o enterro.

Não era preciso ter formação monástica para perceber que o Padre Gabrio não era padre nenhum. Pelo menos no sentido clerical. Tinha uns antebraços musculosos, mais próprios de quem levanta mastros do que de quem distribui o pão da comunhão. Tinha um andar hesitante, desequilibrado, como se não se sentisse à vontade em terra firme.

Mas os prisioneiros não se importavam. O Padre Gabrio sabia meia dúzia de frases em latim e conhecia a toada geral das orações, muito embora assassinasse a generalidade da liturgia. O Giovanni confidenciou-nos, meses depois da investidura do Padre Gabrio nas suas funções sacerdotais, que o capelão da prisão tinha sido serviçal num mosteiro dos arredores de Veneza quando era rapaz. Era aí que tinha aprendido a mímica das orações dos monges.

- No mar - disse Giovanni - o Gabrio gritava durante o sono. Uma vez, perguntei-lhe que negras visões o tinham apoquentado. O Gabrio disse-me que todas as noites sonhava que era pastor e tentava guiar o rebanho de regresso a casa no meio de uma grande tempestade.

- Um homem pode correr mundo - continuou o Giovanni - mas no fim tem de encarar o destino.

Apesar de o Padre Gabrio não ser um sacerdote a sério, as suas palavras davam às cerimónias um ar de solenidade, como se o Senhor tomasse devida nota da vida e da morte de cada prisioneiro do subterrâneo. Ao fim e ao cabo, quase todos os prisioneiros assistiam aos funerais, independentemente da identidade do falecido, só para ouvir o serviço religioso celebrado entre dentes pelo Padre Gabrio.

Os venezianos proibiram também as lutas entre facções e dentro delas. Quando surgiam conflitos, as partes tinham de apresentar o problema ao tribunal da prisão, isto é, ao Giovanni, que envergava uma toga preta para as suas mediações. Escutava pacientemente os litigantes, após o que tomava uma decisão. Da sua decisão não cabia recurso. Se a parte vencida resistia à execução da sentença do Giovanni, dezasseis venezianos armados de pedras e paus depressa os convenciam de que o Giovanni tinha tomado a decisão correcta.

Os venezianos davam as boas vindas aos recém-chegados, alimentavam-nos, tratavam-nos dos ferimentos e explicavam-lhes as regras da prisão. Ao fim de uma ou duas semanas, apresentavam o novo prisioneiro ao respectivo grupo de conterrâneos ou confissão religiosa, que o recebia.

O Giovanni anunciou a instituição de um código penal para a prisão - proibindo o roubo, a violência física e o homicídio. Em função da gravidade do crime, os prevaricadores estavam sujeitos a penas severas, incluindo a amputação de dedos ou mãos, ou mesmo a morte.

Só se registou um homicídio desde que os venezianos assumiram a autoridade no subterrâneo. Um turco matou um alemão numa disputa por causa da comida. O julgamento foi público, tendo-se realizado junto à nascente de água. Cada grupo levou um archote para a audiência. O réu estava em pé, em cima de um estrado de pedra, rodeado de guardas recrutados pelos venezianos em diversas facções.

O turco declarou que a sua vítima lhe tinha tentado roubar uma cobra que ele tinha apanhado. Depois da explicação do turco e sua tradução para as várias línguas faladas no subterrâneo, a galeria de prisioneiros voltou as atenções para o Giovanni, que subiu ao estrado e se virou para o réu.

- Morte por enforcamento - proclamou.

Um dos venezianos começou imediatamente a trepar pela parede de pedra. Levava ao ombro uma corda enrolada. A uma certa altura, atou a corda a uma pedra que sobressaía da parede. Deixou cair a outra ponta, em que já tinha feito um nó corredio. Um dos guardas enfiou-o no pescoço do condenado. Depois empurrou-o para fora do estrado.

Pelos vistos, alguém tinha torcido a corda. O corpo do turco rodopiou. Esbarrou várias vezes contra a parede de pedra. O condenado esperneava freneticamente, tentando apoiar-se em algum lado. Quando desistiu, o corpo ficou a balouçar suavemente. As chamas dos archotes bruxuleavam contra as pedras húmidas. O pingar da água era o único som que se ouvia no subterrâneo.

A corda tinha sido comprada semanas antes aos guardas do Sultão. No fim de um reabastecimento, o Giovanni tinha-se posto na fila de prisioneiros que tentavam trocar uma pedra preciosa ou um pedaço de metal valioso por algum resto de comida. Quando chegou a sua vez, o Giovanni pousou um cálice dourado. Um dos seus compatriotas tinha descoberto o objecto quando escavava uma latrina. O Giovanni tinha-no-lo mostrado no dia anterior. Tinha uma inscrição em latim: "Cidadão de Roma, cidadão do mundo".

Enquanto os guardas examinavam o estranho objecto, o Giovanni gritava-lhes em arábico. Depois traduzia para nós o essencial das negociações.

- Cinco mantas - disse ele.

A princípio, os guardas riram-se da presunção do Giovanni.

- Tu recebes aquilo que nós quisermos dar-te - respondeu um deles, aos berros - se resolvermos poupar-te a vida.

- Nós descobrimos mais tesouros - berrou o Giovanni de volta. - E ainda vamos desenterrar mais. Isto é, se vós quiserdes.

A galhofa lá em cima parou. Os guardas estudavam o cálice e trocavam impressões.

Acabaram por dar ao Giovanni duas mantas e a corda que depois serviu para enforcar o alemão. O Giovanni não recebeu exactamente aquilo que tinha pedido, mas tinha instituído uma nova prática, uma nova fonte de receita para a prisão. Em breve os venezianos iam conseguir adquirir muitos outros artigos de utilidade - canecas, roupas, navalhas e mesmo pedras de sílex para acender o lume, e azeite para fazer archotes.

- Pelo preço certo, - dizia o Giovanni - até posso passar a noite com a filha do Sultão.

Os venezianos trocavam muitas das coisas que recebiam dos infiéis com os outros prisioneiros, por ouro, prata e pedras preciosas. E o processo repetia-se. Com a perspectiva de conseguir acesso a produtos vindos de fora do subterrâneo, os outros grupos intensificavam esforços de escavação do velho palácio, em busca de tesouros.

Eu, quando não estava a dormir ou a caçar roedores, passava o tempo a vazar terra com as mãos para um monte de esterco que se ia acumulando à entrada do nosso abrigo. Esgravatávamos na porcaria durante várias semanas até descobrir alguma coisa de valor - pedacinhos de ouro e prata. Até que um dia o Salamago descobriu uma estatueta ornada de rubis vermelhos - talvez a Virgem Maria, ou então algum ídolo pagão.

Nós não tínhamos com os infiéis as relações que o Giovanni e os venezianos tinham conseguido criar. Além disso, não falávamos arábico. Em vez de tentar a sorte directamente com os guardas, negociávamos as nossas descobertas e as pedras do mosaico com o Giovanni e os venezianos, trocando-as por coisas que eles recebiam dos infiéis. As visitas mensais do Giovanni tinham-se transformado em oportunidades de negócio, intercalado com as histórias do costume sobre o seu passado de marinheiro. Ao fim de pouco tempo, ele deixou pura e simplesmente de nos cobrar qualquer imposto.

Estávamos na prisão havia sete meses quando chegou o Inverno. O Giovanni disse que aqueles eram os meses mais frios que alguma vez tinha passado no Levante. O chão não se cobria de geada e a nascente não gelava. Mas parecia que a humidade fria me cortava a pele e me enregelava os ossos. Doíam-me as têmporas quando bebia a água frígida.

Apesar de o Inverno ter chegado de repente, nós estávamos preparados para o receber. Tínhamos passado os meses de Outono a abastecer-nos de roupas mais quentes, mantas e botas. E o mais importante de tudo é que tínhamos acumulado lenha que chegava para manter uma fogueira acesa nos dias mais frios. Enfiávamos no corpo todas as peças de roupa que tínhamos.

A comida foi escasseando. Tínhamos poucas coisas para dar em troca. Não podíamos escavar a terra à procura de tesouros, porque estava muito dura. E o Salamago fazia questão de guardar o melhor do mosaico para uso futuro. Continuámos a caçar, e aprendemos com os turcos a armar ratoeiras para os roedores com ínfimos restos de comida. Mas o essencial da nossa dieta eram as baratas. Entravam no subterrâneo por tudo o que era frincha e até parecia que se sentiam bem no meio dos prisioneiros - pelo menos até se sentirem no meio dos dentes de algum.

Para o fim do Inverno, o Andrés adoeceu. A disenteria afligia-nos a todos, mas o caso do Andrés foi mais grave. Durante semanas, tudo quanto comesse ou bebesse saía-lhe imediatamente pelo outro lado. Ficava deitado, imóvel, no chão, a suar ou a tiritar, às vezes as duas coisas. Mas nunca se queixava.

Salamago dizia que a doença do Andrés ia acabar por passar.

- O teu primo - dizia o Salamago - é forte. Tens de ter fé, Francisco.

- Fé em quê, meu velho? - retorquia eu.

Mas o Salamago tinha razão. A pouco e pouco, o Andrés foi-se recompondo. Perdeu muito peso, mas sobreviveu.

Nesse Inverno assistimos ao primeiro resgate. Eu estava ao pé da nascente, a encher uma caneca de água para levar ao Andrés, quando o alçapão se abriu inesperadamente - o reabastecimento tinha sido horas antes. Em condições normais, os outros prisioneiros ter-se-iam precipitado para a luz à espera da distribuição de comida. Mas daquela vez não. Toda a gente ficou quieta. As conversas foram interrompidas a meio.

- Michel Gilbert - berrou um guarda para dentro do subterrâneo.

Só houve um movimento - de um homem do contingente francês que se encaminhou cautelosamente para a luz. Parou a escassos pés de distância de mim.

- Je suis Michel Gilbert - disse ele, numa voz pouco mais que sussurrada.

- Michel - disse um dos homens que olhavam lá de cima, do alçapão - eu sou Louis de Toulouse, fiel vassalo de vosso pai. Ele enviou-me a Alepo com a incumbência de pagar o vosso resgate.

Os guardas atiraram uma corda com um grande nó na ponta. Quando ela bateu no chão, o francês pegou nela e pôs os pés em cima do nó. Corriam-lhe pelas faces duas fiadas de lágrimas que marcavam um sulco na sujidade.

Vários guardas ajudaram a içar a corda. A atenção de todos os prisioneiros concentrava-se naquela figura ascendente, e eu próprio tinha os olhos presos de inveja ao futuro de outro homem. Qual lua cheia a brilhar na noite escura.

Estava eu a ver os dois franceses abraçar-se quando o alçapão se fechou.

Mais cinco prisioneiros foram resgatados no Verão. Três turcos, mais um francês e um inglês.

Às vezes, era como se a nossa existência no subterrâneo tivesse a duração de um longo crepúsculo, intercalado de momentos de lucidez quando os guardas abriam o alçapão. Não víamos o nascer nem o pôr do sol. Não sabíamos se era dia ou noite.

Porém, sem sabermos como, o tempo avançava. Medíamos esse avanço pelo ritmo dos reabastecimentos - dia sim, dia não - como se a contagem do tempo transformasse a nossa sentença numa distância palpável, lhe desse uma duração finita.

Essa duração era essencialmente consumida nas tarefas de sobrevivência - caçar, dormir, escavar à procura de ouro e prata, negociar com os venezianos e os restantes grupos.

Mas continuava a haver muitas horas de vazio para preencher. Perguntas que se repetiam. Perguntas sem resposta. Alguma vez eu e o Andrés iríamos sair daquele subterrâneo? Quanto tempo conseguiríamos sobreviver naquela prisão? Alguma vez eu voltaria a ver-vos, Isabel?

As perguntas ressoavam de encontro às paredes de pedra e, no regresso, colidiam umas com as outras. Às vezes, eu tapava os ouvidos com as palmas das mãos para não deixar entrar o eco.

Um dia, Salamago perguntou-me por que razão eu tapava os ouvidos. Eu contei-lhe das perguntas.

- Maus espíritos - disse ele. - A mim também me visitam.

Por vezes, a conversa ajudava a afastar os espíritos. Nós esforçáva-mo-nos por prolongar as visitas do Giovanni, as suas histórias de mulheres e de portos exóticos. Quando ele se ia embora, contávamos uns aos outros as nossas próprias histórias. Nunca falávamos da nossa terra, Aragão. Os pormenores íntimos debatiam-se penosamente com a incerteza da nossa situação. Era ouvir por palavras aquilo que talvez nunca chegássemos a ver.

Em vez disso, falávamos de batalhas que tínhamos travado no Levante - repetindo episódios até que cada um de nós soubesse de cor todos os pormenores. Acabámos por esgotar as histórias e voltar a contar as mesmas, mudando um facto ou dois, para prender a atenção de quem nos ouvia. Dois soldados infiéis passavam a três, depois a quatro. Uma escada direita passava depois a íngreme e em espiral.

Contámos ao Manuel e ao Salamago o que se tinha passado em Toron, a execução de soldados infiéis, o massacre de civis. Contámos-lhes o que se tinha passado no Krak - o castelão Dom Lorgne, o êxito da nossa surtida contra a catapulta dos muçulmanos. Contámos-lhes a nossa viagem até Alepo e o cortejo pelas ruas da cidade.

O Salamago e o Manuel, por sua vez, relataram-nos muitas batalhas. Quando foram feitos prisioneiros já levavam cinco anos de combates no Levante. Mas nunca contaram como tinham sido capturados.

Eu estava a dormitar quando o Andrés perguntou ao Salamago como tinham sido capturados, ele e o Manuel. Abri os olhos e sentei-me na cama, ansioso por ouvir a resposta. Mas a resposta não veio. O Salamago levantou-se e foi para o outro extremo do subterrâneo. O Andrés nunca mais voltou a fazer a pergunta.

No entanto, acabámos por ficar a saber em que circunstâncias eles tinham sido capturados. O Salamago andava à caça de insectos noutra zona do subterrâneo quando o Manuel nos contou a história, em voz sussurrada, interrompendo o relato por várias vezes quando outros prisioneiros se aproximavam do nosso abrigo. Só retomava quando os intrusos já estavam suficientemente longe.

- Salamago e eu comandávamos um grupo de doze cavaleiros templários - contou. - Estávamos baseados na fortaleza da Ordem, em Antioquia. Os príncipes e os sultões tinham chegado a acordo sobre a concessão de salvo-conduto aos peregrinos cristãos para irem até Jerusalém, sob ocupação muçulmana. Os chefes das duas comunidades tinham conseguido uma paz precária na região. A nossa companhia escoltava peregrinos até à Cidade Santa, servindo-lhes de guia e protegendo-os dos ladrões, cristãos e muçulmanos, que atacavam civis.

- Aquela era a sétima missão a Jerusalém em que eu acompanhava o Salamago. Nas primeiras seis, tivemos escaramuças com salteadores locais, mas nada de grave. À sétima, um grupo de bandidos montou-nos uma emboscada. Nós protegemos os peregrinos, mas perdemos um dos nossos - o segundo comandante, que eu substituí. O Salamago sentiu muito a morte dele. Eram grandes amigos.

- Nunca tivemos de enfrentar um exército organizado de muçulmanos. Até à oitava viagem. Sabíamos que já por duas vezes os muçulmanos tinham enviado delegações ao Príncipe Boemundo de Antioquia, com queixas de que havia cavaleiros cristãos que pilhavam as aldeias. Como o príncipe cristão não pôs termo aos ataques, um dos comandantes muçulmanos decidiu retaliar. A nossa companhia ia a caminho de Jerusalém na altura do diferendo. Levávamos na caravana trinta peregrinos - na sua maioria mulheres e crianças.

- A quinta noite de viagem, acampámos num vale fundo, protegido dos elementos. Acordámos de madrugada e vimos o nosso acampamento cercado por um contingente muçulmano - vinte e quatro soldados.

- Os civis entraram em completa histeria. Os cavaleiros prepararam-se para o combate. Eles estavam em vantagem de dois para um - mas os templários já tinham saído vitoriosos de situações bem piores.

- O Salamago achou que podia evitar um conflito. Mandou a nossa companhia embainhar as espadas. Dizia ele que conseguia chegar a uma solução pacífica com os infiéis e salvar as vidas dos peregrinos e dos cavaleiros.

- Com esse objectivo, o Salamago e eu cavalgámos em direcção às linhas muçulmanas empunhando uma bandeira de tréguas. O comandante muçulmano, acompanhado da sua delegação, cavalgou ao nosso encontro. O Salamago explicou o objectivo da nossa missão. Referiu-se aos acordos em vigor entre os nossos respectivos chefes e às garantias de salvo-conduto para peregrinos.

- Quando o Salamago acabou, o comandante muçulmano disse que nos ia deixar passar na condição de os cavaleiros templários deporem as armas - espadas, punhais, escudos. E disse mais, que enquanto não acabassem os ataques cristãos às aldeias muçulmanas, as caravanas cristãs que atravessassem território muçulmano seriam desarmadas. Deu a sua palavra de que nada de mal aconteceria a nenhum elemento do nosso grupo se nós cumpríssemos a condição. O Salamago acreditou nele.

- No regresso à nossa caravana, eu lembrei ao Salamago que os templários estavam proibidos de entregar as armas. Antes morrer mártir que depor a espada na presença do inimigo. E disse-lhe que, se regressássemos a Acre sem as nossas espadas, o Grão Mestre o puniria severamente e muito provavelmente o expulsaria da Ordem. Que, no mínimo, a sua reputação ficaria para sempre manchada.

"- E tu achas - disse o Salamago - que Jesus Cristo era capaz de colocar a Sua reputação acima do bem-estar dos seus fiéis?”

- Uma vez chegados ao acampamento, o Salamago explicou a negociação que tínhamos feito com o comandante muçulmano. Gerou-se preocupação entre os civis e confusão entre os meus camaradas. Mas cumprimos com o acordado, atirando as armas para um monte, sob os olhares atentos dos soldados muçulmanos.

- Montámos nos nossos cavalos e retomámos o caminho de Jerusalém. Ainda não tínhamos andado uma milha quando a caravana estacou. Os soldados muçulmanos estavam espalhados pela planície, de espadas erguidas, prontos para carregar.

Manuel pegou numa pedra e atirou-a para o meio da escuridão.

- Os infiéis dizimaram os peregrinos, crianças incluídas. Os templários lutaram de mãos vazias, decididos a, ao menos, morrer com os peregrinos. O comandante muçulmano recusou-nos tal dignidade, dando ordens aos seus homens para que prendessem os cavaleiros vivos. Queria trazer-nos de presente ao Sultão de Alepo. Cinco dos meus camaradas lutaram com tal ferocidade que os muçulmanos se viram obrigados a matá-los. Os outros sete templários, feridos e todos partidos, foram trazidos para aqui.

- Os templários mandaram um enviado resgatar cinco camaradas meus. A mim e ao Salamago, deixaram-nos a apodrecer neste maldito buraco. - Manuel, - disse o Andrés - um dia destes os templários mandam alguém resgatar-vos. Não foste tu mesmo que disseste que o enviado só trazia consigo cem moedas? Se tivesse trazido mais ouro, já tu e o Salamago estáveis em Acre a esta hora.

- Ou talvez mesmo em Aragão - disse eu.

- Eu menti ao Salamago - disse o Manuel. - Com as moedas que trazia na bolsa, o enviado dos templários tinha dinheiro que dava para resgatar metade dos prisioneiros que estão neste subterrâneo. Mas trazia instruções para não resgatar o Salamago nem o seu adjunto.

- O que o Salamago fez foi tentar salvar as vidas dos peregrinos - disse eu. Eles não podem atirar-vos as culpas pelo que aconteceu.

- Tanto podem, que atiram - disse Manuel. Eu cheguei a estar incluído no grupo dos resgatados. Os guardas içaram-me do subterrâneo e fecharam o alçapão. Mas a minha liberdade foi sol de pouca dura. Como tinha sido pouco tempo antes promovido pelo Salamago, o enviado não sabia do meu novo cargo. Eu estava já no pátio, a proteger os olhos do sol intenso, quando ele perguntou a todos nós - os seis - qual era o nosso posto na companhia. Quando eu lhe disse que era o segundo comandante, ele mandou os guardas infiéis voltar a atirar-me para a prisão. Disse que um dos peregrinos que iam na nossa caravana tinha sobrevivido. Tinha regressado a Acre e feito ao Grão Mestre da Ordem o relato do massacre.

"- Salamago e tu pusestes o vosso critério à frente dos princípios da Ordem - disse o enviado. - Por isso tendes nas mãos o sangue das crianças." - Eu implorei ao enviado que reconsiderasse. Disse-lhe que a decisão tinha sido do Salamago. E que eu tinha tentado dissuadi-lo.

- Não acredito no que estás a dizer - declarou o Andrés. - Tu nunca farias uma coisa dessas ao Salamago.

- Passa o tempo que eu já passei enfiado neste subterrâneo, Andrés, - disse Manuel - e depois me dirás o que eras ou não eras capaz de fazer para te veres livre deste inferno.

- Mas de nada me serviram os protestos - continuou o Manuel. - O representante dos templários abanou a cabeça e fez sinal aos guardas infiéis. Quando eles me levavam de volta ao subterrâneo, eu perguntei ao enviado o que iria ser de mim. Ele disse que o Grão Mestre ainda não tinha tomado uma decisão sobre o meu destino, nem sobre o do Salamago.

- Então ainda há uma esperança, Manuel - disse eu. - Os vossos camaradas hão-de testemunhar a vosso favor.

- Eles não podem fazer nada por nós - retorquiu o Manuel. - Eu e o Salamago vamos morrer neste buraco.

Manuel estava enganado. Ele e Salamago não morreram no subterrâneo. Vários meses depois de o Manuel ter feito o seu vaticínio, o alçapão abriu-se e um dos guardas chamou pelos nomes dos dois templários.

Nem o Salamago nem o Manuel se mexeram. Devem ter pensado que estavam a dormir e tiveram medo de acordar e estragar o sonho.

- Salamago e Manuel - voltou o guarda a berrar. Eu e o Andrés espicaçámos os nossos camaradas.

- Estais livres - disse o Andrés.

Fomos com eles até ao enfiamento do alçapão e pusemo-nos debaixo da luz. O primeiro a ser içado foi o Salamago.

- Em breve estarás em Acre, Salamago - disse eu.

Ele não me ouviu. Estava a olhar para a abertura do alçapão. Eu franzi os olhos para olhar na direcção da luz. Vi vários guardas. E um homem vestido de preto. Batia com o pé no aro do alçapão, fazendo cair cá para baixo fragmentos de lama.

- É ele - disse o Manuel. - O enviado dos templários. Ele voltou. O Grão Mestre perdoou-nos.

Quando o Salamago chegou à superfície, os guardas voltaram a atirar a corda. O Manuel pousou os pés no nó. Enquanto a corda subia, o Manuel olhou cá para baixo, para o Andrés e para mim.

- Não nos vamos esquecer de vós - disse ele. - Logo que cheguemos a Acre, eu e o Salamago vamos pedir o vosso resgate e voltamos cá. A vossa hora também há-de chegar, Andrés e Francisco.

Quando o alçapão se fechou, o espaço foi invadido por um tipo diferente de escuridão. O negrume era diáfano. Eu via claramente a expressão do Andrés - um sorriso largo, ausente, total.

- Eu sempre soube que havíamos de sair desta prisão - disse o Andrés. - Eu sempre soube. Logo que cheguemos a Barcelona, vamos visitar os teus pais a Monteada e passar lá uma semana, antes de seguirmos para Girona.

- É preciso ter paciência, Andrés - disse eu. - Ainda nada está resolvido.

Mas eu também não estava com paciência. Ouvi o som do vento - o suave marulhar da relva alta nas encostas de Monteada. Pela primeira vez desde que entrara na prisão, vi o vosso rosto, Isabel.

- Muito em breve irás estar junto dela, Francisco - disse o Andrés. Os meus sentimentos estavam à vista. Senti-me corar.

- Junto de quem, primo? - perguntei eu, fingindo desinteresse.

- Eu posso ser ingénuo, Francisco, - disse o Andrés - mas não sou cego.

No momento em que o Andrés me dava uma palmada nas costas, o subterrâneo encheu-se de luz. Ouvi uma pancada surda no chão. A seguir outra. Dois corpos atirados pelo buraco. Sem cabeça.

Em pé junto da abertura estava um guarda. De braços cruzados, olhou cá para baixo e falou. Mais tarde, o Giovanni traduziu as palavras do guarda.

- Salamago e Manuel, expulsos dos Cavaleiros do Templo por cobardia. O enviado dos templários pagou-nos uma quantia generosa para nós os executarmos. Deu-nos moedas de ouro precioso. Ele levou as cabeças para Acre, para mostrar ao Grão Mestre. O Sultão oferece-vos os corpos.

Por insistência do Andrés, o Salamago e o Manuel foram enterrados dentro do nosso abrigo. Atou dois paus a formar uma Cruz, que espetou em cima das campas. Todos os prisioneiros do subterrâneo assistiram ao funeral. O Padre Gabrio foi o celebrante.

- Ao fim de vários anos de cativeiro, - disse o Padre Gabrio - o Salamago e o Manuel sentiram o sabor da liberdade. Damos graças ao Senhor pelos breves momentos em que eles sentiram o sol afagar-lhes o rosto.

Eu não dei graças ao Senhor. Graças por quê? Pela ilusão de um momento? Pelas esperanças acalentadas e logo aniquiladas?

Estávamos no subterrâneo havia um ano e quatro meses quando o Manuel e o Salamago foram assassinados. A partir daí, deixámos de contar os dias.

O Andrés pôs-se a escavar uma trincheira nova ao pé das campas dos nossos camaradas. Estava sempre a trabalhar. Quando já não podia mais, deitava-se na cova e dormia. Logo que acordava retomava a escavação. Acho que nunca descobriu nenhum tesouro. Também não me parece que fosse isso que procurava. O que ele queria era ficar com as vistas para o subterrâneo tapadas. Ou isso, ou enterrar-se vivo.

Eu, de vez em quando, ia à caça. Fora isso, ficava sentado no nosso abrigo, a ouvir os esforços do Andrés, a olhar para a escuridão. Se ficarmos muito tempo a olhar, acabamos por ver o nosso reflexo a olhar para nós.

Giovanni continuava a visitar-nos. Conseguia fazer o Andrés sair do buraco dirigindo-lhe alguma pergunta sobre uma pedra do nosso monte de lixo. Nós não tínhamos nada de valor para negociar com ele. O Giovanni arranjava sempre maneira de nos deixar uma pequena provisão de comida, a troco de alguma pedra sem valor.

Andrés estava a tirar lixo da trincheira quando um dos guardas chamou pelo nome de um alemão. A luz que entrava pelo alçapão chegava ao limite do nosso abrigo. Ninguém respondeu à chamada.

O guarda repetiu a chamada. Ninguém respondeu. O Andrés tinha entretanto interrompido a escavação e espreitava por cima do rebordo da trincheira.

Quando o guarda chamou pela terceira vez, o Andrés saltou para fora do buraco. Passou os olhos pelos outros prisioneiros.

- Se calhar já morreu - disse eu.

Andrés acenou com a cabeça e saiu do nosso abrigo. Eu dei-lhe um berro, mas ele não olhou para trás. Caminhava devagar, em passo decidido, para a fonte de luz. Quando chegou à vertical do alçapão, fez sinal lá para cima, para os guardas. A cara, o cabelo loiro, o corpo nu, todo ele estava negro, coberto de lama. Só se viam os olhos azuis, em que a luz do sol acendia um brilho feroz.

Os outros prisioneiros ficaram a espreitar dos seus abrigos, observando atentamente o Andrés, na tentativa de lhe adivinhar as intenções. Intenções que eu também desconhecia. Pensei que talvez ele quisesse morrer. Quando os guardas o içassem e percebessem que ele não era o homem a resgatar, matavam-no sem contemplações.

Mas fiquei quieto. A morte instantânea era capaz de ser melhor que a lenta decomposição na prisão. Achei que o Andrés tinha feito a sua opção.

O Andrés deitou a mão à corda. Um dos guardas debruçou-se e segurou-a pela outra ponta. Enquanto o guarda espreitava pelo alçapão, o Andrés esticou os braços e agarrou-se à corda com ambas as mãos. Com o corpo enroscado, o Andrés soltou um grito selvagem e puxou a corda com força. O guarda desequilibrou-se e caiu pelo buraco, vindo estatelar-se no chão imundo. Levantou-se e sacudiu a porcaria que se lhe tinha agarrado à túnica verde. Riu-se e tentou apanhar a corda. Os outros guardas juntaram-se à volta do alçapão, a espreitar para o subterrâneo e a gozar com a situação do companheiro.

Os prisioneiros perceberam o que os guardas não perceberam. Desataram a berrar, a gritar por sangue. O guarda caído olhou o Andrés de soslaio. Parou de sorrir. Deve ter visto no Andrés um olhar assassino. Largou a corda e deitou a mão ao punhal, como quem tira um lenço do bolso para se proteger de uma tempestade.

Eu ouvi a minha própria voz como se ela viesse de muito longe. - Mata-o, Andrés. Arranca-lhe os olhos.

Era como se aquele homem personificasse todos os nossos opressores - os guardas, a degradação, as trevas, o enviado dos templários, Dom Fernando.

Quando o Andrés se atirou ao soldado muçulmano, os guardas lá de cima apressaram-se a carregar os arcos e apontá-los para dentro do subterrâneo. Mas nenhum dos tiros acertou no alvo. O Andrés e o guarda rolavam na lama. Os prisioneiros fizeram um círculo à volta dos lutadores, gritando e atirando pedras para os guardas lá de cima, que tiveram de se afastar do alçapão. Eu abri caminho por entre a multidão e vi o Andrés em cima da vítima. Dava-lhe dentadas na cara e cuspia a carne que assim arrancava. Aquele espectáculo espicaçou os outros, que caíram em cima do guarda, aos pontapés e aos murros a uma massa informe que se contorcia.

Até que os guardas conseguiram despejar uma rajada compacta de flechas para dentro do buraco. Os prisioneiros dispersaram para os recantos escuros e abrigados do subterrâneo. O corpo ensanguentado do guarda, só reconhecível pela túnica verde, jazia no chão mesmo por baixo do alçapão.

- Tendes aqui o vosso ouro precioso - berrou um prisioneiro em francês. - Vinde cá buscá-lo, sacanas.

Mesmo que tivessem percebido aquela língua estranha, os guardas não tinham a mínima intenção de se arriscar a descer ao covil. Fecharam o alçapão, deixando para trás o corpo do camarada.

Andrés voltou para o nosso abrigo. Vinha ofegante. Passou por mim sem dizer palavra. Depois desceu à trincheira e recomeçou a cavar.

Uma fila de prisioneiros passou ordeiramente diante do nosso abrigo, como se fossem cavaleiros à espera de fazer a saudação ao seu comandante. Um acto de desafio tinha expiado uma vergonha colectiva, transformando cativos em rebeldes. Muitos dos homens traziam pedras, que foram depor sobre a campa do Salamago. Passaram pela trincheira do Andrés, na esperança de ver o líder. Ele continuou a escavar, sem prestar atenção aos visitantes.

Prestado o tributo, os outros prisioneiros recolheram aos respectivos abrigos. Sem sono, nós ficámos à espera do castigo do Sultão, a ouvir o crepitar de pequenas fogueiras, a sussurrar recordações que julgávamos perdidas. Por algumas horas, sentimo-nos outra vez soldados, na véspera de uma grande batalha.

Era noite quando se abriu o alçapão. Desceram guardas por cordas. Vinham de cara coberta com um lenço, para não respirar o ar fétido. Armados de espadas e chicotes, avançaram pelo corredor fora.

Um grupo de genoveses emboscou os intrusos, saltando das paredes de pedra que ladeavam o corredor. Os guardas infiéis despacharam os seus atacantes com a maior facilidade. Atravessou-se no caminho uma fila de venezianos. Foram retalhados com a mesma facilidade. Os outros prisioneiros observavam a batalha, reavaliando uma decisão para logo a abandonarem. Abandonaram-se paus e pedras. Baixaram-se cabeças. A resistência foi efémera.

Os guardas muçulmanos espiolharam todos os cantos do subterrâneo. A chama dos archotes iluminou a zona circundante do nosso abrigo, desvendando as paredes inclinadas e irregulares e os pequenos nichos em que os vários grupos de prisioneiros se abrigavam. O estalido dos chicotes ecoava enquanto os soldados empurravam os prisioneiros pelo corredor, para debaixo do alçapão.

Pensei que a ideia deles era matar-nos ali mesmo. Mas o Sultão tinha outros planos. Os soldados passaram uma corda pelos sovacos de um prisioneiro e içaram-no para a superfície. Um a um, foi depois a vez de todos os outros. Eu interpus-me entre o Andrés e os soldados, com medo de que eles reconhecessem nele o homicida. Se bem que eles dessem a ideia de que não conseguiam distinguir-nos uns dos outros, ou não estavam interessados nisso. Nós estávamos praticamente todos cobertos de lama e sangue.

Eu subi à frente do Andrés. Enquanto me içavam pelo ar, a corda roçava-me no tronco nu. Os meus pés balançavam. Olhei para cima e vi o céu limpo e claro, cheio de estrelas amarelas que pareciam lanternas brilhantes.

Quando aflorei à superfície, um soldado agarrou-me pelos cabelos. Puxou-me para uma fila de prisioneiros. O Andrés chegou logo a seguir. Inspiramos o ar frio da noite.

- Que estranho néctar - disse o Andrés.

Estávamos num pátio poeirento com esparsos rufos de erva. De frente para um dos edifícios do palácio. Por trás de nós erguia-se uma muralha do castelo. Os lados do pátio estendiam-se a perder de vista, o suficiente para comportar uma fila de cinquenta prisioneiros.

Formávamos um grupo andrajoso - imundos, a tiritar de frio. Muitos de nós estavam completamente nus. Alguns tapavam os órgãos genitais com as mãos, numa desajeitada manifestação de pudor.

Um dos franceses trauteava em surdina uma canção alegre, sorrindo com ar apatetado para os guardas infiéis. O pobre diabo devia estar a pensar que o tinham resgatado.

Giovanni estava a cerca de dez homens de distância de mim, para a esquerda. Falava sozinho, tão alto que nós ouvíamos. Identifiquei algumas palavras, sobre o Senhor, sobre a salvação. Palavras sem sentido. Um guarda deu-lhe uma paulada que o fez calar.

Devia haver uns quatro soldados por prisioneiro. Vestiam belas túnicas verdes, de um verde esmeralda como a floresta. Brandiam as espadas, como se estivessem diante de um exército e não de um bando de homens decrépitos.

Do lado direito, um pequeno grupo de soldados acocorava-se à volta de uma fogueira, a aquecer as mãos ao lume.

Eu firmei os olhos nas pedras cinzentas que tinha em frente de mim. Quem moraria naquele edifício? Os guardas? Talvez uma família. Parentes do Sultão. Talvez dois irmãos, na ignorância das forças, boas e más, que se acoitam debaixo de tudo o que eram e viriam a ser.

Um grande bloco de madeira ao centro do pátio reteve a minha atenção. Estava manchado de sangue e a madeira estava lascada e gasta. Tinha um arco recortado no meio.

Por detrás do cepo, em pé, estava um soldado, de machado em meia lua ao ombro. A lâmina prateada brilhava à luz das estrelas, do fogo.

Três homens, vindos do edifício adjacente, entraram no pátio. Os guardas puseram-se em sentido. Berraram aos prisioneiros. Ouviu-se o estalar dos chicotes. Os três encaminharam-se lentamente para o local onde estavam os prisioneiros. Ao meio, o comandante, um homem gordo, deu um passo em frente. Cobria-lhe o peito uma couraça dourada, definindo uma musculatura que não era a sua.

Quando chegou ao fim da fila, o comandante parou. Inspeccionou os prisioneiros. Depois apontou para um deles. Os guardas agarraram o homem e puxaram-no para fora da fila. Conduziram-no ao cepo de madeira.

Era o Alberto, um dos venezianos. Não ofereceu resistência. Eles viraram-no de modo a ficar de frente para nós. Ajoelhou-se por sua própria iniciativa e pousou a cabeça no cepo. Os seus caracóis castanhos eram do mesmo tom que o sangue que manchava os sulcos formados pelos veios da madeira.

A lâmina ceifou-lhe o pescoço e foi enterrar-se na terra mole. A cabeça caiu para a frente e rolou para junto dos prisioneiros.

Dois guardas arrastaram o corpo decapitado para a fogueira. Enquanto isto, já outro prisioneiro tomava o caminho do cepo. Soltou-se dos guardas que o seguravam e correu para o alçapão. Ia procurar refúgio naquela masmorra. Os guardas interceptaram-no e levaram-no para o cepo de madeira.

A força do machado fez projectar a cabeça. Olhos e orelhas foram arrancados das respectivas raízes. Da fissura jorraram fibras ensanguentadas que se retorciam como vermes postos a descoberto pelo levantar de um tronco de árvore morto.

Uma terceira, uma quarta. As cabeças espalhavam-se ao acaso.

Outra. Mais outra.

Os antebraços possantes do carrasco estavam mais ensanguentados que os de um carniceiro. A cara e a capa pintalgadas de vermelho.

Olhei para o fim da fila. O comandante apontou para os homens que ladeavam Giovanni, deixando para trás o nosso amigo veneziano.

- É um sim, um não - disse o Andrés.

Tinha razão. Os guardas estavam a executar metade dos prisioneiros. Sem nenhum critério especial. Era tudo uma questão de posição na fila.

Dois, quatro... dez, doze.

O comandante aproximava-se da nossa posição. Os infiéis só queriam a cabeça de um de nós. Não tinham qualquer preferência, qualquer sanha pessoal.

Era uma selecção mesquinha, uma morte feia, ignóbil, a meio mundo de distância de Aragão, indigna de um cavaleiro. Os corpos eram arrastados pelo chão, empilhados em cima de outros cadáveres, à espera de arder na fogueira. Um esgar imóvel tornava público um momento privado de premonição.

Para mim e para o Andrés, antes tivéssemos morrido no Krak. Assim, tínhamos sido enterrados juntos debaixo dos escombros do castelo.

O Andrés pousou a mão no meu ombro. Beliscou-me até eu me virar para ele.

- Francisco, o que vi já me chega - disse ele.

- Já te chega - repeti eu.

- Estás a perceber? - Falava com grande calma.

Puxou-me para si. Um abraço breve. Uma chicotada nas minhas costas interrompeu a nossa despedida. O Andrés desviou-se para fugir ao chicote e puxou-me para o lado. Uma leve rotação. Quase imperceptível.

Quase.

O comandante infiel passou à minha frente e apontou para o Andrés. Dois guardas agarraram-no pelos braços.

A caminho do cepo, ele virou-se a olhar para mim. Sorriu, um sorriso penetrante, íntimo, como se estivéssemos em Santes Creus, a partilhar uma piada secreta sobre o Abade. Como se eu fosse seu cúmplice.

Quando o último prisioneiro pousou a cabeça no cepo ensanguentado, rompia a madrugada no pátio. As cabeças cortadas aureolavam-se de um brilho pálido. Os soldados bocejavam. Os prisioneiros suspiravam pela escuridão.

Os infiéis forneceram duas cordas para a descida ao subterrâneo. No entanto, a maioria dos prisioneiros preferiu saltar directamente para o chão de barro mole, na ânsia de deixar aquele maldito pátio.

Eu regressei ao nosso abrigo e fui sentar-me ao pé da campa do Salamago e do Manuel. Nunca mais de lá saí. Se não fosse o Giovanni, tinha morrido à fome. Era ele que me levava comida e água, várias vezes por semana. Eu só comia e bebia para ele me deixar em paz.

Alguns meses depois das execuções, chegou à prisão um mercador veneziano. Vinha resgatar o Giovanni e sua tripulação. Já só havia metade dos marinheiros. Os outros tinham sido executados. O Giovanni escolheu compatriotas seus para os substituir. Escolheu-me também a mim.

Viajei de barco com Giovanni até Itália. Quando chegámos a Veneza, ele comprou-me passagem para Barcelona num navio mercante.

Como eu não estava habituado ao sol forte, passava os dias no porão. À noite, subia ao convés. Um número reduzido de marinheiros manobrava as velas. Eu deitava-me nu no chão de tábuas do navio, estendia os braços e ficava a ouvir o soprar da brisa fresca que varria a proa e a imaginar a lâmina metálica a atravessar-me o pescoço.

Aquele golpe era para mim. O Andrés tinha trocado de lugar comigo. Tinha percebido o esquema. Um sim, um não. Eu também.

Penso naquele momento, no nosso abraço. Imagino um final diferente. Às vezes odeio o Andrés.

Quando eu parti de Girona, Isabel, dissestes-me que trouxesse o vosso irmão de volta. Eu não trouxe. Mas se olhardes bem para o reflexo na pedra amarela ao cair da noite, vedes o seu ténue sorriso. Eu vejo.

E pronto. Francisco tinha chegado ao fim. Graças a Deus. Eu já tinha a perna esquerda dormente, de estar sentado durante horas na mesma posição. Sentia o sangue a latejar nas têmporas.

Aliás, também Francisco parecia exausto. Encostou-se à parede da cela. Deixou-se escorregar devagar até ficar sentado no chão de pedra. A cabeça tombou-lhe para a frente. Fechou os olhos.

- Francisco, - disse Isabel - O Senhor tem compaixão.

As suas palavras eram ditas numa cadência suave, a voz saía-lhe toldada de tristeza.

Francisco abriu os olhos. Virou-se para a jovem, com um esgar nos lábios.

- Eu vi de perto a Sua compaixão, Isabel, - disse ele - nos campos de batalha do Levante, no pátio da Cidadela de Alepo, nas docas de Barcelona, onde vi desaparecer o navio do Sérgio. Achais que o Senhor vai ter compaixão deste pecador?

- Fostes vós que vos julgastes e condenastes - disse Isabel. Francisco retesou as costas. Fechou os dedos num punho cerrado.

Eu achei que devia intervir, para consolar Isabel e Francisco, para os defender um do outro.

- Francisco, - disse eu - misteriosos são os caminhos do mundo. Tão misteriosos que às vezes não conseguimos entender as nossas próprias intenções.

- Não estais a perceber? - perguntou ele.

Isabel não se mexeu. Aliás, pareceu-me que a persistência do seu olhar exacerbava ainda mais a raiva de Francisco.

- Ele tomou o meu lugar - berrou Francisco. - Era o Andrés que devia ter sido resgatado, e não eu.

- Francisco, - disse eu - um homem pode ser o mais severo juiz de si próprio. Eu sei isso muito bem.

Tinha mais coisas para dizer. Palavras sábias que talvez tivessem aliviado o fardo de Francisco. Mas ele interrompeu-me.

- Ouvistes o que eu disse, Isabel? Sou eu o responsável pela morte do vosso irmão.

Isabel afastou finalmente o olhar de Francisco e olhou pela janela, para o horizonte. Levantou os braços e tapou os ouvidos com as mãos.

Francisco avançou para ela e agarrou-a pelos pulsos. Ela tentou resistir, mas ele tinha muita força. Arrancou-lhe as mãos dos ouvidos. Os rostos dos dois quase se tocavam.

- Tanto quanto o machado que separou a cabeça do corpo do Andrés, - disse Francisco - eu fui o instrumento da sua morte.

Isabel parou de se debater. Francisco soltou-a. Ela curvou-se e cruzou os braços diante da barriga. Depois vomitou para o chão de pedra fria.

Eu tentei segurar-lhe a cabeça. Ela repeliu-me, saiu da cela e disparou pelo corredor fora.

 

                                   UMA VISITA

Isabel não ceou nesse dia. Nem tomou o pequeno almoço na manhã seguinte. À tarde, estava com febre alta. Transferimo-la para um quarto da enfermaria. Eu fui vê-la depois do ofício de vésperas.

Quando entrei no quarto, Isabel estava deitada na cama. Tinha a cabeça pousada numa almofada. Tinha as faces congestionadas. Melenas de cabelo suado caíam-lhe pela testa febril.

Tentei entabular conversa com a rapariga. Ela não respondeu. Aliás, nos dois dias que se seguiram, Isabel não falou nem mudou de posição.

Fui falar com o Irmão Vial sobre o estado da rapariga. Sentámo-nos os dois frente a frente no parlatório. Ele quis saber o essencial da confissão de Francisco. Eu contei-lhe o que tinha acontecido a Francisco e a Andrés no Krak. E relatei-lhe as circunstâncias da morte de Andrés na Cidadela.

Ele ouviu-me com paciência. Quando eu acabei o meu relato, pôs-se a andar de um lado para o outro no corredor. Vários monges que percorriam o pátio "em oração silenciosa" faziam constantes incursões pelo parlatório, para espreitar o Irmão Vial. Eu enxotava-os com palavras severas. Até que o Irmão Vial interrompeu a deambulação e se foi sentar ao meu lado.

- Muito preocupante - disse ele.

Fomos os dois visitar Isabel. O Irmão Vial sentou-se na borda da cama. Molhou um pano numa bacia de água e pô-lo na testa da jovem. A água fria pareceu reanimá-la. Isabel levantou a mão e agarrou o pulso do Irmão Vial.

- Por que é que ele me despreza? - perguntou ela. Eram as suas primeiras palavras em dois dias.

- Ele não vos despreza, Isabel - disse o Irmão Vial. Depois pegou no pano e espremeu para o chão o excesso de água. Voltou a mergulhá-lo na bacia e pôs-lho na testa.

- O Francisco não consegue suportar sozinho o fardo que tem sobre os ombros - disse ele. - Por isso procura alguém que o ajude a carregá-lo.

A isto se resumiu a conversa entre os dois. Antes de sair do quarto, o Irmão Vial benzeu a jovem. Depois inclinou-se e beijou-lhe a mão. Às vezes penso que o Irmão Vial se esquece de quem é e da forma discreta como é que nós, servos de Deus, devemos conduzir-nos perante o sexo oposto.

- Não temais pela sua saúde, Irmão Lucas - disse o Irmão Vial enquanto contornávamos o pátio a caminho do refeitório. - Apertou-me o pulso com a força de um soldado.

De facto, no dia seguinte, a febre de Isabel tinha cedido. À ceia, bebeu um pouco de vinho e comeu uma fatia de pão.

Quando, no outro dia, visitei Isabel, fui encontrá-la em pé no quarto, a olhar lá para fora pela janela. Virou-se para mim.

- Irmão Lucas, - disse ela - quero agradecer-vos o vosso cuidado.

- Estou ao vosso serviço - disse eu.

A conversa que se seguiu versou sobre as instalações, sobre o tempo - coisas agradáveis. Ela não falou em Francisco nem em Andrés. Sugeri-lhe um passeio curto para desentorpecer as pernas. Ela enfiou o braço no meu e saímos da enfermaria.

Ela caminhava muito devagar, respirando fundo o ar húmido do princípio da manhã. Tinha parado para apreciar uma árvore de copa larga que havia do lado de fora dos portões do mosteiro quando nos apercebemos de um noviço que corria para nós como quem trazia um recado urgente.

Havia três dias que eu não via Francisco - desde o fim da confissão. Preocupado com Isabel, tinha descurado a atenção ao meu amigo. Era a primeira vez em cinco meses, desde que Francisco chegara, que eu passava mais de um dia sem o ver. Lembrei-me das palavras do Irmão Vial sobre a incapacidade que Francisco tinha de carregar sozinho o seu fardo. Imediatamente imaginei o pior. Infelizmente, deixei escapar um suspiro audível, que teve o efeito de alarmar Isabel. Deu-me um apertão forte no braço.

- Irmão Lucas, - disse o noviço - chegaram dois cavaleiros ao mosteiro. Lutaram ao lado de Francisco no Levante. Vieram visitar o seu camarada.

Imaginando que os Cavaleiros de Calatrava teriam com Andrés o mesmo relacionamento que tinham com Francisco, tentei sem êxito dissuadir Isabel de ir cumprimentar as visitas. Não me parecia que nada de bom pudesse resultar da presença dela. Achava que o melhor que Isabel tinha a fazer era esquecer o passado. Mas ela não me deu ouvidos.

Fomos ter com os dois homens à antecâmara de entrada da abadia - uma sala confortável com várias cadeiras e uma mesa feita pelos monges do mosteiro. Os dois soldados estavam sentados quando nós entrámos. O que estava mais longe tinha o punhal fora da bainha e parecia tentar pô-lo em pé sobre a mesa de carvalho. Não pude deixar de reparar com tristeza nos golpes deixados pela ponta da lâmina no tampo da mesa.

O homem que estava mais próximo de nós levantou-se.

- Presumo que sejais o Irmão Lucas - disse ele.

- Eu mesmo.

- Nesse caso, sois vós o responsável pelo exorcismo dos demónios do Francisco - disse ele. - É uma grande honra para mim. - Tinha a pele curtida pelo sol, queixo saliente, olhos negros muito próximos que pareciam furar-me a pele. A fisionomia de um guerreiro, não fora o nariz delicado, aquilino.

- Devemos dar graças ao Senhor - disse eu.

- Ouvi dizer que o Francisco se lembra de acontecimentos passados e fala das batalhas do Levante. - A aspereza do tom de voz contrastava com a delicadeza dos modos.

- O Francisco - disse eu - fala com grande precisão das experiências por que passou durante a cruzada.

O outro visitante deixou cair o punhal em cima da mesa. Levantou a cabeça. Tinha um nariz adunco, uns olhos inexpressivos. Olhou de relance para o companheiro e retomou os esforços de equilibrar a lâmina em pé em cima da mesa.

- Vós fazeis milagres, Irmão Lucas - disse o visitante, afagando a capa roxa.

- Só o Senhor faz milagres. Eu sou Seu humilde servo.

- Bem, - disse ele - irei providenciar para que a Coroa recompense generosamente este humilde servo.

- A Coroa? Os Cavaleiros de Calatrava têm assim tanta influência nos palácios de Barcelona?

- Peço desculpa, Irmão Lucas, por não me ter apresentado. Eu sou o Príncipe Fernando, filho de meu pai, o Rei de Aragão. Este é o meu fiel adjunto Pablo. Não sou membro dos Calatrava, mas lutei mais de uma vez ao lado deles no Levante.

Dom Fernando. El Conquistador de Toron. Defensor da Fé. Príncipe Coroado de regresso triunfante a Aragão.

O meu corpo retesou-se. As minhas pernas fincaram-se como colunas ao chão de pedra.

De facto, o Príncipe Fernando combateu lado a lado com os Calatrava. Segundo Francisco, presidiu ao massacre de civis em Toron. Depois traiu o Tio Ramón no Krak e entregou Francisco e Andrés aos infiéis.

O Príncipe Fernando estendeu a mão, em cujo dedo médio ostentava um anel de ouro com o selo real.

- Quereis prestar homenagem ao vosso Príncipe, Irmão Lucas? Eu dobrei o joelho e beijei o anel.

- O Abade Alfonso - disse ele - foi-me mantendo ao corrente dos progressos do Francisco, enviando-me relatórios periódicos. Ele não vos falou no meu interesse pelo caso?

O Abade Alfonso tinha falado no Príncipe Fernando. Mas tinha sido antes de Francisco ter feito o relato do cerco do Krak, relato esse em que traçava do Príncipe um retrato muito desfavorável. Mesmo muito desfavorável. O Príncipe Fernando não devia encarar com muito bons olhos a perspectiva de um regresso de Francisco ao seio da sociedade de Barcelona.

- Irmão Lucas, estais a sentir-vos bem? - perguntou o Príncipe. - Ficastes muito pálido de repente.

- Estou um pouco cansado e um tanto ou quanto surpreendido com tão distinta visita. Vou chamar o Abade Alfonso, para podermos prestar-vos a recepção que um Príncipe de Aragão merece.

- Não, Irmão Lucas. Eu e o Pablo não queremos incomodar o Abade ou os outros monges. Estamos de passagem por Santes Creus e resolvemos parar. Eu só cá vim para vos manifestar a minha gratidão.

- Quer dizer então que não ides ficar muito tempo, Príncipe Fernando?

- Os meus deveres chamam-me de volta a Barcelona, Irmão Lucas. Desenganchei os dedos. Pelos vistos, os meus receios eram infundados.

O Abade Pedro costumava dizer que eu tinha uma imaginação desenfreada.

- Guardarei para sempre memória da vossa visita, Príncipe Fernando, e das vossas amáveis palavras. Transmitirei ao Francisco os vossos cumprimentos e os vossos votos de melhoras.

- Acho que não percebestes o que eu vos disse, Irmão Lucas. O vosso trabalho chegou ao fim. Eu estou aqui para levar o Francisco para Barcelona.

- Mas, Príncipe Fernando, eu não posso... O Francisco não pode fazer essa viagem. Ainda está muito doente.

- Tendes assim tão pouca confiança no clero real, Irmão Lucas? Eu tenho na minha casa um exorcista experiente que pode muito bem completar o vosso trabalho inspirador.

- Mas eu conheço o Francisco como ninguém. Sei bem em que estado ele está, Príncipe Fernando. Preciso de passar mais tempo com ele.

- Não vos preocupeis por não terdes levado o trabalho até ao fim, Irmão Lucas. Sereis recompensado como se tivésseis.

Enquanto eu pensava numa resposta adequada, ouvi nas minhas costas o som fugaz de um punhal a ser desembainhado. Achei que talvez o adjunto do Príncipe já estivesse farto dos meus protestos. Virei-me e enfrentei o meu atacante. Mas Pablo estava de mãos vazias. Isabel tinha-lhe deitado a mão ao punhal. Empunhava-o no ar. Durante a minha discussão com o Príncipe, eu tinha-me esquecido por completo de que ela estava presente. Estava lívida, o queixo retesado, o braço flectido pelo cotovelo. Considerando que estivera doente muito recentemente, a maneira como avançou para o Príncipe Fernando era surpreendentemente ágil.

O Príncipe agarrou-a pelo pulso no momento em que ela fazia menção de lhe espetar a lâmina. Torceu-lhe o braço até ela deixar cair o punhal, que tilintou contra o chão de pedra. Esbofeteou a rapariga com as costas da mão. Mesmo assim, ela conseguiu manter-se em pé e fincar os dentes no antebraço do Príncipe Fernando.

- Maldita - berrou ele. Puxou do seu próprio punhal e deu com o punho na cabeça de Isabel. A jovem caiu ao chão com um baque. E ali ficou prostrada, imóvel.

O Príncipe Fernando sangrava. Rasgou uma tira de tecido da capa roxa e com ela atou o braço.

- Quem é a rapariga, Irmão Lucas? - Fixou em mim um olhar penetrante que parecia conter uma acusação, como se eu estivesse a dar guarida a uma fugitiva.

- Dona Isabel Corrêa de Girona - respondi eu, de pronto. O Príncipe Fernando fez um esgar de desprezo.

- Tem o feitio do irmão - disse ele, antes de fazer um sinal ao adjunto. Pablo curvou-se para apanhar o seu punhal do chão. Pegou nele e passou-lhe os dedos pelo fio. Ficou acocorado ao pé da rapariga. Contemplou o corpo prostrado de Isabel. Tacteou-lhe as madeixas de cabelo fino. Afagou-lhe a cabeça ao de leve. Depois agarrou-a pelos cabelos com a mão que tinha livre e levantou-lhe a cabeça do chão, apontando-lhe o punhal ao pescoço.

- Não. - O grito saiu-me sem eu querer. Um ruído dissonante no meio da serenidade do mosteiro. Muito esquisito. De facto, não me lembro de alguma vez, no passado, ter levantado a voz.

Fiquei com a ideia de que a veemência do meu tom de voz tinha irritado o Príncipe Fernando. Coçou a nuca e fez um esgar de contrariedade. Pablo, ainda com a cabeça da rapariga presa pelos cabelos, olhou para o amo à espera de ordens.

- Não, Pablo - disse o Príncipe Fernando. - O Irmão Lucas tem razão. Deixemos a rapariga para mais tarde. Para depois de o Irmão Lucas nos ajudar a cumprir a missão que aqui nos trouxe. Não é verdade, Irmão Lucas?

- Não sei bem o que quereis dizer, Príncipe Fernando.

- Tenho ouvido boas referências a vosso respeito, Irmão Lucas. O Abade Alfonso deu-me garantias pessoais de que vós compreendeis e respeitais os privilégios dos vossos superiores. Além disso, confidenciou-me que acalentais esperanças que podem levar-vos para longe dos confins rurais de Santes Creus.

- Se calhar, - disse eu - o Abade Alfonso avaliou-me mal. - Fui eu que disse estas palavras? E logo ao Príncipe de Aragão?

Ele fitou-me com uns olhos negros como carvão. Exactamente como Francisco o tinha descrito.

- Seria uma grande tragédia para vós, Irmão Lucas. A verdade é que eu vim a Santes Creus para tratar de um assunto importante.

- Que tipo de assunto, Príncipe Fernando?

- Um assunto delicado, Irmão Lucas. A vossa colaboração seria largamente recompensada.

- O trabalho do Senhor já tem as suas recompensas, Príncipe Fernando.

- Sim, Irmão Lucas, mas o que eu tenho em mente é uma recompensa muito mais palpável. E um castigo palpável se optardes por não cumprir as vossas obrigações para com a Coroa.

- Castigo, Príncipe Fernando?

- Um futuro rei não pode permitir que os seus súbditos ignorem as suas vontades. O meu pai está sempre a lembrar-me a sua primeira regra de governo - desobediência equivale a morte.

- De facto, Príncipe Fernando, esse castigo é bem palpável.

- Mas tendes a alternativa de colaborar e ganhar direito à minha gratidão.

- Uma opção dos diabos, Príncipe Fernando.

- Culpa vossa, Irmão Lucas. Se tivésseis deixado o Francisco em Poblet com o Padre Adelmo, nunca esta situação difícil tinha acontecido.

- Eu sou um homem de Deus, Príncipe Fernando.

- Um homem de Deus nem por isso deixa de ser homem, Irmão Lucas.

- Claro que não, Príncipe Fernando.

- Até os santos mais venerados tiveram preocupações temporais, Irmão Lucas.

- Calculo que sim, Príncipe Fernando.

- Não foi Jesus Cristo quem mandou dar a César o que é de César?

- Ele disse isso, de facto, Príncipe Fernando.

- Preocupações temporais e desejos temporais, Irmão Lucas.

- Desejos, Príncipe Fernando?

- Aspirações, Irmão Lucas. Vós, por exemplo, podíeis viver o resto dos vossos dias em Santes Creus. Mas palpita-me que estaríeis melhor nos palácios de Barcelona, ou porventura nos salões cravejados de pedrarias do Vaticano.

- O custo de tais aposentos parece-me exorbitante, Príncipe Fernando.

- Pelo contrário, Irmão Lucas. Eu não estou a sugerir-vos que ajais de modo que entre em conflito com os vossos votos solenes. Só vos peço que me leveis à presença do Francisco. E o vosso trabalho fica completo.

- Eu é que sou o confessor de Francisco.

- Convosco ou sem vós, Irmão Lucas, eu vou cumprir a missão que aqui me trouxe. A vossa colaboração só serviria para tornar a minha tarefa mais cómoda e discreta.

- Eu diria que a discrição é uma qualidade rara e valiosa, Príncipe Fernando.

- Mais uma razão para eu apreciar e compensar os vossos serviços, Irmão Lucas. Com o patrono certo, um monge capaz como vós pode atingir os mais altos níveis do clero de Aragão.

- Altos, como, Príncipe Fernando?

- Consta-me que o Bispo de Barcelona está muito doente, Irmão Lucas. Que podia eu fazer? O Príncipe Fernando afirmou terminantemente que iam levar a cabo a missão de que vinham incumbidos, com a minha ajuda ou sem ela. Se eu me recusasse a colaborar, estava simplesmente a condenar-me à morte. E para quê? Não resolvia nada. Ao, menos se continuasse vivo, podia fazer em Barcelona o trabalho do Senhor - ajudar os pobres, os oprimidos. E podia tentar ajudar Isabel.

- E a irmã do Andrés? - perguntei.

- A avaliar pela forma como nos recebeu, eu diria que ela está de posse de informação sensível. Informação essa, Irmão Lucas, que eu só confiaria aos meus aliados mais próximos.

- A Isabel ficou muito afectada com a morte do irmão, Príncipe Fernando. A rapariga é histérica. Ninguém vai acreditar nas suas histórias fantasiosas. Para mais contra a palavra do Príncipe Fernando e do Irmão Lucas ou, ousaria dizer, do Bispo de Barcelona.

- Se assim é, talvez poupemos a vida da rapariga.

- O Senhor favorece os misericordiosos, Príncipe Fernando.

- Então estamos entendidos, Irmão Lucas.

- Sem dúvida, Príncipe, estamos entendidos.

O Príncipe Fernando não queria de maneira nenhuma perturbar as orações dos monges. A pedido do Príncipe, levei-o, e ao seu adjunto Pablo, pelos jardins exteriores. Era um caminho sinuoso até à cela de Francisco, que evitava a passagem pela igreja e pelo pátio. Entrámos no mosteiro por uma janela das traseiras. Pablo trepou para o parapeito e ajudou-me a subir. Lamentavelmente, o Irmão Eduardo tinha-se esquecido de limpar o parapeito e eu sujei o meu hábito branco.

Vencido o parapeito da janela, conduzi-os até às escadas. Aí chegados, o Príncipe Fernando fez-me sinal de que subisse à frente. Assim fiz, e o Príncipe pousou a mão no meu ombro. Ia tão perto de mim que eu lhe sentia o bafo tépido no cachaço.

Quando íamos quase a chegar ao cimo das escadas, o Príncipe Fernando desembainhou a espada. O brilho da lâmina encandeou-me. Os degraus começaram a fundir-se uns nos outros, a parede de pedra a andar à volta, a enrolar-se, a formar o panorama cinzento que eu já tinha visto ao espelho. O céu a fundir-se com o oceano. A direita com a esquerda. Fechei os olhos. Depois desequilibrei-me e caí para trás.

O Príncipe Fernando agarrou-me, mas deixou cair a espada. Pablo tentou em vão interceptá-la. Na queda, a espada pareceu bater em todos os degraus da escada de caracol. O eco ressoou pelos corredores.

- Idiota - invectivou-me o Príncipe Fernando. - Não tinha sido mais fácil anunciar a nossa chegada?

Pablo já ia pela escada abaixo para apanhar a espada do amo. Regressou num instante e entregou-a ao Príncipe Fernando.

Chegámos ao corredor e avançámos. As pernas pesavam-me, não queriam colaborar. O Príncipe Fernando empurrava-me para a frente. As mãos tremiam-me. Parecia que ia a caminho da minha execução.

Passámos por sete celas vazias até que eu parei à porta da de Francisco. A porta estava entreaberta. O Príncipe Fernando espreitou lá para dentro. Depois fez sinal ao adjunto para que escancarasse a porta. O Príncipe Fernando deixou-se ficar para trás, de músculos tensos. A porta rangeu nos gonzos ao abrir. Os dois homens irromperam pela cela dentro.

Senhor, não me abandoneis.

- Raios partam! Raios partam isto tudo! - As pragas do Príncipe Fernando contrastavam com o trabalho sacro desenvolvido naquela cela.

Eu entrei. A cela estava vazia. O Príncipe Fernando estava em pé a meio do quarto. Pablo remexia os magros haveres de Francisco.

O Príncipe Fernando fitou-me nos olhos. Tinha os nós dos dedos brancos, de tanto apertar o punho da espada.

- Onde é que ele está, Irmão Lucas? Senhor, tende piedade de mim.

- Onde raio é que ele está?

- Não sei - disse eu.

- Se calhar evaporou-se. Terá sido isso, Irmão Lucas? Para vosso bem, rezai para que nós encontremos rapidamente o vosso amigo.

- Pablo, procura em todas as celas por que passámos - daqui até às escadas. Se descobrires o Francisco, mata-o. Eu e o Irmão Lucas vamos procurar do outro lado do corredor.

Francisco não estava na parte do corredor em que o Príncipe Fernando e eu procurámos. Vasculhámos dez celas, uma por uma. Ou melhor, o Príncipe, de espada em riste, escondia-se à entrada e mandava-me abrir a porta. Depois irrompia pela cela dentro. De todas as vezes regressou ao corredor a gritar por Francisco.

- Não ides poder esconder-vos, Francisco. O melhor é aparecerdes.

- Francisco, estais a tornar as coisas mais difíceis para vós, sem necessidade.

- Eu só quero conversar, Francisco, esclarecer as coisas.

Contornámos uma esquina do corredor e o Príncipe Fernando procurou nas duas últimas celas. Quando acabou, soltou um chorrilho de impropérios. Eu encolhi-me, com medo de que o Príncipe despejasse a ira para cima de mim. Mas tal não aconteceu e regressámos os dois ao ponto de partida. Quando nos aproximávamos da cela de Francisco, o Príncipe

Fernando chamou pelo adjunto.

- Pablo! Pára lá de surripiar bens do mosteiro e vem cá. Enquanto o Príncipe falava, eu dei uma olhada à cela de Francisco. Vi raios de luz que apanhavam pó no ar. Ouvi o chilrear de um pássaro nas proximidades da janela. Vi Pablo. Estava de frente para o céu azul, sentado na cadeira de vime de Francisco.

- Príncipe Fernando - disse eu, apontando para o seu adjunto.

- A descansar - disse o Príncipe Fernando, dirigindo-se ao adjunto - quando eu estou farto de te dizer que esta missão é importantíssima. Francisco de Monteada pode acabar com a minha reputação. E, se assim for, que achas que te vai acontecer a ti?

O Príncipe Fernando entrou na cela, levando-me preso pelo cabeção. Pablo não respondeu à reprimenda do amo.

Nem podia responder, porque Pablo estava morto. Quando contornámos o corpo para o ver de frente, vimos o punhal dele, o mesmo com que tinha vandalízado a mesa da antecâmara de recepção. Para falar a verdade, só se via o punho do punhal. A lâmina estava toda enterrada no peito. A bainha balouçava-lhe, vazia, do cinto. Da espada, nem rasto. O rosto de Pablo ostentava na morte o mesmo olhar vidrado que tinha em vida. Tinha os olhos em alvo, sem brilho, a boca escancarada.

O Príncipe Fernando arrastou a ponta da sua espada pelo chão da cela. Enquanto estudava a expressão do seu adjunto, foi ele próprio ficando cada vez mais pensativo. Franziu os olhos e mordeu o lábio inferior.

- Este assunto está a ficar muito desagradável - disse ele. Agarrou-me pelas abas da sotaina e empurrou-me para a porta da cela.

Quando chegámos ao corredor, atirou-me ao chão de pedra. Esfolei os joelhos na superfície áspera.

Francisco estava a uns trinta pés de distância. No seu hábito branco, parecia um monge como outro qualquer. Com a diferença de que tinha a espada à cinta.

- Estais a desiludir-me, Francisco - disse o Príncipe Fernando.

O Príncipe tinha o punhal numa das mãos e a espada na outra. Avançou cautelosamente para Francisco.

- Eu até gosto de vós, Francisco. Da vossa teimosia. Da vossa coragem. O Príncipe Fernando parou a dois pés de Francisco. Os dois homens tomaram posição de luta.

- Não me agrada nada matar uma pessoa de quem gosto. Para mais, gostando eu de tão poucas pessoas.

O Príncipe Fernando simulou um avanço com a espada. Francisco desviou-se com um passo atrás.

- Os reflexos sofrem muito quando estamos longe do campo de batalha, Francisco.

O Príncipe investiu para Francisco, que aparou o golpe. Os dois homens ficaram outra vez cara a cara.

- Esses reflexos, Francisco.

Enquanto falava, o Príncipe agachou-se. Esticou a espada na direcção de Francisco, que a desviou com a sua. Então o Príncipe passou pela esquerda de Francisco, empunhando o punhal com a lâmina para trás.

- Perde-se um passo, disse o Príncipe - mas esse passo é a diferença entre a vida e a morte.

O hábito de Francisco levou um golpe na coxa. Os fios brancos ficaram escuros de sangue.

- Dizei-me, Francisco, que achastes do Pablo? É um guerreiro de mão cheia.

Francisco atacou com a espada. O Príncipe Fernando travou o avanço da lâmina. As duas armas rasparam uma na outra com um som metálico.

- Calculo que lhe tenhais montado uma ratoeira numa das celas vazias. O Pablo nunca foi muito esperto. Mesmo assim, estou impressionado.

O Príncipe Fernando sorriu. Os dois homens voltaram a rondar-se.

- É o vosso sentido dramático. Nunca me tinha apercebido dessa vossa qualidade, Francisco. Carregar o corpo do Pablo para a vossa cela!

Francisco brandiu a espada na direcção do Príncipe, que se esquivou. A lâmina da espada de Francisco foi esbarrar na pedra. O Príncipe Fernando deu uma cotovelada no estômago de Francisco. Francisco gemeu.

- Eu nunca senti nenhuma animosidade contra vós, Francisco. Foi o que se passou com Ramón que me obrigou a isto. O vosso Grão Mestre era um fraco.

O Príncipe Fernando deu um passo à esquerda, mudou de direcção e passou pela direita de Francisco. Francisco bloqueou-lhe o movimento da espada e tentou dar um salto atrás para se esquivar ao punhal do Príncipe. Mas não foi suficientemente rápido. A lâmina rasgou-lhe a outra coxa.

- Mole e convencido, o vosso Tio Ramón. Nunca entendeu o levante. As rapariguinhas crescem e fazem-se mulheres, que dão à luz rapazinhos, que crescem e se fazem homens. Os homens fazem-se soldados que tentam matar-nos. Por que não travar o processo logo ao princípio, com a rapariguinha?

O Príncipe Fernando passava punhal e espada de mão para mão. Jogava as armas de um lado para o outro com tal velocidade que as lâminas começaram a confundir-se.

- Achais que o Senhor dá mais valor à vida da rapariguinha do que aos soldados que vós matastes em combate, Francisco?

Francisco esquivou-se e recuou. O Príncipe Fernando saltou para a frente. Francisco desviou o corpo e investiu contra o Príncipe. A lâmina enterrou-se no ombro do Príncipe. O sangue derramou-se-lhe pela capa. O Príncipe dobrou o braço. Depois voltou a rondar o adversário, indiferente ao ferimento.

- Vou chorar a vossa morte, Francisco. Em breve ireis juntar-vos ao vosso primo Andrés. Como foi que ele morreu?

O sangue das feridas de Francisco corria-lhe pelas pernas abaixo e escorria para o chão de pedra.

- O Baibars disse-me que ia mandar os seus guardas levar-vos para a Cidadela de Alepo. Ouvi histórias arrepiantes contadas por prisioneiros resgatados. É verdade que os cristãos comem os seus próprios mortos? Foi isso que aconteceu ao corpo do Andrés?

Francisco riscou o chão de pedra com a espada.

- Não tendes sequer o direito de pronunciar o seu nome - disse Francisco.

- Quer dizer então que é verdade - disse o Príncipe Fernando. - Podeis falar. Pedis-me que não fale dos mortos. O Andrés está morto, não é verdade? Não me está a apetecer nada ter de fazer outra viagem como esta.

Francisco avançou para o Príncipe Fernando brandindo a espada. O Príncipe desviou-se, rodou o corpo e espetou o punhal na barriga de Francisco. Um rasgão no hábito, mais sangue nas fibras de pano branco. Francisco soçobrou sobre um joelho. Respirava com dificuldade.

- Já não falta muito, Francisco. Até chego a desejar que tivésseis morrido em combate com os infiéis. Era uma morte mais digna de um guerreiro.

O Príncipe fez uma esquiva. Francisco cambaleou para trás.

- Não tendes mais nada a dizer, Francisco? Um epitáfio, talvez? Umas palavras de afecto que o Irmão Lucas possa transmitir à vossa família? Ele vai para Barcelona, para o pé de mim. Prometi ao Irmão Lucas um cargo de prestígio, em recompensa por me ter trazido até vós.

- Eu não tive alternativa, Francisco - gritei eu. - Foi ele que me obrigou. Eu nunca vos trairia.

Senti um nó no estômago. Correram-me pelas maçãs do rosto lágrimas quentes.

- Deixai-vos dessas coisas, Irmão Lucas - disse o Príncipe. - Está um homem a morrer. É a hora da verdade.

Francisco não olhou para mim. Estavam os dois a rondar-se outra vez. Francisco tropeçou nas pedras irregulares, mas depressa recuperou o equilíbrio.

- Cuidado, Francisco.

O Príncipe Fernando fingiu atacar com a espada e investiu com o punhal sobre o abdómen de Francisco. Francisco guinou o corpo para se esquivar à lâmina.

- Ao menos, vós e o Andrés manchastes as vossas espadas com sangue infiel. Do vosso irmão, nem tanto se pode dizer. Qual era o nome dele? Daquele que se afogou ao largo de Barcelona?

Ao ouvir falar do irmão, Francisco gemeu. Investiu, brandido a espada para trás e para a frente. O Príncipe Fernando prendeu a espada de Francisco contra o chão. Acto contínuo espetou a ponta do seu punhal na mão de Francisco. Ouviu-se o esmigalhar dos ossos. Francisco largou a espada.

Francisco ficou de mãos vazias. Os dois homens rondaram-se à volta da espada caída. Francisco fez menção de se baixar para apanhar a espada mas tirou a mão quando o Príncipe Fernando ergueu a sua no ar e abanou a cabeça.

Francisco mudou o peso do corpo de um pé para o outro e baixou-se de repente para apanhar a espada. O Príncipe Fernando pôs um pé em cima da lâmina e com o outro deu um pontapé na cara de Francisco. Francisco caiu para trás. Ficou estendido na pedra, a olhar para cima, para o Príncipe Fernando. O Príncipe encostou a ponta da espada à garganta de Francisco.

- Eu e o Pablo viemos visitar um velho camarada. Possuído pelo demo, ele mata o meu adjunto. Não me restava outra alternativa que não fosse matá-lo a ele. A morte do Pablo vem trazer uma certa autenticidade ao trágico desenlace. Estou certo, Francisco, de que até o vosso pai irá compreender as circunstâncias difíceis que me impuseram tão cruel decisão.

O Príncipe Fernando ergueu a espada. Eu corri para o Príncipe. Atingi-o no meio das costas no momento em que ele fazia descer a espada. Senti-me como se tivesse esbarrado de frente com um muro de pedra. Retraí-me. O Príncipe Fernando foi projectado ligeiramente para a frente, mas não perdeu o equilíbrio. Recompôs-se rapidamente e tentou manter o movimento da espada. Francisco tinha entretanto aproveitado o interregno proporcionado pela minha intervenção para apanhar a sua espada. Ainda no chão, travou com ela o golpe desferido pelo Príncipe Fernando. Depois espetou-a, de baixo para cima, nas tripas do Príncipe Fernando. O Príncipe deixou cair a espada e foi como se tivesse ficado escorado pela espada de Francisco, com o tronco paralelo ao de Francisco. Depois a ponta da lâmina rompeu pelas costas do Príncipe Fernando. O Príncipe soltou um suspiro enquanto o seu corpo deslizava lentamente pela espada, até ficar cara a cara com Francisco.

O Príncipe Fernando tinha os lábios franzidos e ligeiramente revirados. Parecia sorrir, como se estivesse divertido com as circunstâncias em que ia morrer. Deixou cair a espada e levou a mão à cara de Francisco. Fechou a mão e exalou um último suspiro, antes de deixar cair a cabeça.

Francisco largou a arma que tinha na mão e virou-se de lado. O corpo do Príncipe Fernando caiu para o chão de pedra, empalado na espada de Francisco.

Francisco rastejou até à parede e içou-se por ela até ficar sentado.

- Está morto, Francisco - disse eu. - O Príncipe Fernando está morto. Francisco olhou para as palmas das mãos. Passou um dedo por uma das linhas, continuando para as costas da mão. O seu sangue misturou-se com o do Príncipe Fernando.

O sol da manhã entrava no mosteiro pelas janelas estreitas e ia fracturar-se contra a pedra cinzenta. Uma sombra que descia sobre os mortos, uma luz ténue que se projectava sobre os vivos.

- Onde está Isabel, Lucas?

- Referis-vos à rapariga, Francisco? Francisco pôs-se em pé, apoiado à parede.

- Onde é que ela está?

- Está lá em baixo, na antecâmara.

Ele correu pelo corredor fora. Ou melhor, arrastou-se, pingando sangue a cada passo que dava.

Poder-se-ia pensar que se teria justificado uma expressão de gratidão para comigo, um pequeno reconhecimento pelos meus sacrifícios ao longo de cinco meses extenuantes passados com ele. Ou talvez Francisco pudesse simplesmente ter-me agradecido pelo facto de lhe ter salvo a vida. Felizmente, o trabalho do Senhor tem as suas próprias recompensas.

 

                            GIRONA

                             14 DE ABRIL DE 1293

Passaram dezoito anos desde o dia em que peguei numa pena para escrever este manuscrito. Foi depois disso que eu e Francisco saímos de Santes Creus. Eu nunca mais voltei. Mas lembro-me daqueles meses passados na cela de Francisco. Aliás, sonho muitas vezes com o mosteiro. Há um sonho que agora me visita todas as noites, Eu estou na cela de Francisco, sentado a seu lado. Ele sorri, depois faz um sinal ao amigo - Andrés, vivo, a dormir sossegadamente, o cabelo loiro a brilhar levemente sob a brisa de Verão. Fico ali um bocado sentado. Francisco, Andrés e eu. Depois acordo.

Os ferimentos com que Francisco ficou da luta com o Príncipe Fernando revelaram-se muito graves. Nos primeiros dias, não se sabia se iria ou não sobreviver. Depois, o seu estado melhorou, mas ele continuava extremamente fraco. Para seu conforto, eu cedi-lhe o meu quarto. Passei a dormir na cela de Francisco, na sua enxerga de palha, enquanto Isabel cuidava dele.

Nos dez dias que se seguiram aos trágicos acontecimentos, chegaram a Santes Creus três embaixadas. Do Rei Jaime, do Arcebispo Sancho de Tarragona e do pai de Francisco, Barão Monteada. Tinham convergido para Santes Creus os homens mais poderosos do reino. Vinham investigar a morte do Príncipe Fernando. Vinham julgar-nos, a mim e a Francisco.

Dado o seu estado de debilidade, Francisco não pôde depor perante as delegações. Na sua ausência, coube-me a mim o encargo de apresentar os factos. Durante quatro dias, as delegações montaram tribunal no Grande Salão. Eu sentava-me no meio da sala. As partes alternavam-se no interrogatório. Os diversos inquiridores faziam as mesmas perguntas. À mínima incoerência da minha parte, sujeitavam-me a impiedosos contra-interrogatórios.

Quando não estavam a interrogar-me, as partes envolviam-se em acesas discussões entre si. O ambiente era tenso. No meio da agitação, um dos noviços entornou uma caneca de vinho sobre as vestes do Arcebispo. Sua Santidade serviu-se do ceptro para desferir uma forte pancada na cabeça do rapaz. Aliás, se não fosse a intervenção de um dos assistentes do Arcebispo, o pobre do noviço talvez tivesse encarado naquela altura o seu juízo final.

A discussão do tribunal incidiu sobre destino a dar a Francisco e a mim. O representante da coroa advogava a morte dos "perpetradores". Para ele, quaisquer pormenores relacionados com a morte do Príncipe Fernando eram irrelevantes.

- O Príncipe morreu - disse o representante real. - Esse é o único facto relevante. A punição do homicida e do seu cúmplice - alusão à minha pessoa - tem de ser rápida e brutal.

O Barão Monteada, como é óbvio, opunha-se à execução de Francisco - o único herdeiro que lhe restava.

- O depoimento do Irmão Lucas revela as circunstâncias que obrigaram o meu filho a matar o Príncipe Fernando. O Francisco é um homem inocente, um veterano da cruzada, cujo único crime foi defender-se. Se este tribunal executar o meu filho, organizo um exército capaz de abalar os alicerces da monarquia.

O Barão Monteada dominava um impressionante contingente de cavaleiros. Havia mesmo quem dissesse que o Rei governava Aragão à mercê dos Monteada. Claro que se tratava de uma afirmação que exagerava a influência da família. Mas a verdade é que a Coroa não se podia dar ao luxo de ignorar as preocupações sinceras do mais poderoso dos seus vassalos.

A Igreja tentou introduzir uma nota de razão no meio das paixões, concentrando-se em questões mais técnicas. Para começar, o Arcebispo procurou esclarecer se a execução de Francisco anulava a doação, feita pelo Barão Monteada, de um terço da sua riqueza a troco da salvação do filho.

- Na minha opinião, - declarou o Arcebispo - o Francisco foi salvo antes de o Príncipe Fernando ter sido morto. Portanto, a oferta do Barão Monteada está garantida, seja qual for o resultado das actuais diligências.

Vários clérigos eruditos produziram desenvolvidas e doutas opiniões em apoio do ponto de vista do Arcebispo.

Porém, o Barão Monteada abreviou tais alegações. As suas palavras sobre o assunto foram concisas e inequívocas - sem Francisco, não há recompensa.

Resolvida a questão técnica, a Igreja voltou a sua atenção para matérias mais espirituais.

O Arcebispo citou as Escrituras: Minha é a vingança; eu darei a recompensa, diz o Senhor. - Todos os homens, - disse o Arcebispo - mesmo os reis, têm de fazer os possíveis por perdoar a quem os ofende e deixar para o Senhor o castigo.

Terminados os depoimentos, o tribunal iniciou negociações. Cá de fora, do pátio, ouviam-se as discussões. Ânimos exaltados, recriminações, acusações.

Ao fim de dois dias, o Rei mandou chamar os suspeitos - Francisco e eu - para ouvir a decisão do tribunal. Tal como da primeira vez, eu sentei-me a meio da sala. Francisco sentou-se a meu lado. Isabel tinha ajudado Francisco a deslocar-se até à sala de audiências e não saiu de junto dele.

O Rei levantou-se para proferir a sentença.

- Ouvi atentamente o depoimento do Irmão Lucas - disse o Rei. - É um depoimento que respira verdade. Há muito tempo que eu sabia que o meu filho Fernando não ia pelo bom caminho.

- Choro pelo meu filho. Os meus conselheiros acham que eu não devo ser clemente. Mas não quero aliviar a minha dor impondo o mesmo preço cruel ao meu amigo e vassalo Barão Monteada. Que vivam Francisco de Monteada e o Irmão Lucas.

- Porém, e apesar das circunstâncias atenuantes, os autores da morte do meu filho não podem passar sem castigo. Francisco de Monteada e Irmão Lucas, pela vossa participação na morte do Príncipe Fernando, sereis exilados de Barcelona e arredores, incluindo Monteada, para o resto das vossas vidas. Francisco, ireis viver em Girona, no domínio do vosso tio, Barão Corrêa. Em atenção à amizade que me liga a vosso pai e aos serviços prestados pela vossa família ao reino, os vossos descendentes herdarão o manto dos Monteada e poderão voltar a Barcelona. Irmão Lucas, vós sois expulso do mosteiro de Santes Creus. Deus se compadeça das vossas almas.

Quando o Rei se sentou, levantou-se o seu representante.

- Mais duas questões administrativas - disse o representante. - Primeira, de acordo com documentos assinados pelo Barão Monteada e pelo Arcebispo Sancho, e testemunhados pelo Rei Jaime, considera-se Francisco exorcizado. Declara-se a sua alma salva dos demónios que dela se apossaram no Levante.

- Segunda, em respeito pela memória dos falecidos, a Coroa elaborou uma versão oficial dos trágicos acontecimentos ocorridos em Santes Creus, nos seguintes termos: o Príncipe Fernando descobriu que o seu adjunto Pablo era agente do Rei de Navarra. Enfrentou Pablo. No conflito assim gerado, o Príncipe Fernando matou o traidor, mas foi mortalmente ferido por ele. A Coroa considera ofensa capital a propagação de qualquer informação em contrário.

- Ainda há mais uma questão, Rei Jaime. - A voz de Isabel sobrepôs-se ao burburinho que invadia a sala de audiências. - Vivem no domínio dos Corrêa, em Girona, trezentos servos. Todos a precisar de orientação espiritual. Sua Majestade e Sua Santidade prestariam um grande serviço se permitissem que o Irmão Lucas exercesse o seu ministério em Girona.

O Arcebispo fez uma vénia na direcção do Rei.

- Assim seja - disse o Rei.

O mais jovem prior jamais nomeado para Santes Creus muda-se para o campo, para tomar conta de um rebanho de servos. A alteração do meu destino deve ter merecido dos meus irmãos uma longa e sonora gargalhada. Se bem que me pareça que a alternativa ainda era pior - vaguear pelos campos como peregrino mendicante.

Não falei neste manuscrito às delegações que nos visitaram. De bom grado o teria entregue ao tribunal, mas tive medo de revelar a sua existência. O julgamento tinha acabado e eu sentia-me aliviado por continuar vivo. Não queria fazer nada que pudesse reabrir o processo ou perturbar a Coroa. Achei que o silêncio era a via mais segura. Escondi o manuscrito no fundo da minha arca de madeira, que foi levada para Girona. O pergaminho ficou intacto durante dezoito anos.

Quando, passadas duas semanas sobre o veredicto, Francisco se tinha recomposto o suficiente para poder viajar, partimos para Girona. Um grupo de cavaleiros da comitiva do Barão Monteada acompanhou-nos até ao domínio da família Corrêa.

Eu tornei-me pároco em Girona. Sagrada comunhão, sermões, baptizados, casamentos, funerais, mediação de desavenças familiares. Dias muito ocupados. Os anos confundem-se uns com os outros.

Mantive uma correspondência assídua com o Irmão Vial, que se manteve em Santes Creus até morrer, há seis anos. Na sua última carta, ele escrevia: "Ao cabo de uma longa viagem, Irmão Lucas, encontrastes finalmente um caminho de verdadeiro serviço ao Senhor."

Um caminho de verdadeiro serviço ao Senhor. Foram exactamente estas as suas palavras. Guardo a carta na minha mesa de cabeceira.

Fiz-me próximo de muitos dos meus paroquianos. Mas de nenhum tanto como de Andrés de Monteada. É para ele que guardo este manuscrito. Para que um dia, depois da minha morte, Andrés possa ficar a conhecer as lutas espirituais por que passou seu pai e a natureza da união em que foi concebido.

Andrés é a única pessoa no domínio que não me trata por Irmão Lucas. Chama-me tio, desde que aprendeu a falar. Tem agora quinze anos. Tem os mesmos olhos cinzentos e prescientes da mãe, e força de homem, de estatura idêntica à do seu homónimo e tio de sangue, Andrés.

Eu fui pai e mãe do rapaz. Francisco morreu quando Andrés tinha apenas dois anos. Apesar das atenções que Isabel lhe dispensava, Francisco nunca se recompôs por completo dos ferimentos que o Príncipe Fernando lhe tinha infligido. Passava bem durante uma semana, ou mesmo um mês, para a seguir passar mal outra vez. A ferida da barriga foi a mais renitente em sarar e acabou por ser aquela que o matou. Isabel morreu um ano depois, quando a peste varreu a província e ceifou a vida a um quarto do meu rebanho.

A Coroa nomeou-me tutor de Andrés quando ele tinha cinco anos, depois da morte do Barão Corrêa. Passei muito tempo com o rapaz. Ensinei-o a ler e a escrever. No último ano, discutimos todo o tipo de questões filosóficas e teológicas. Aliás, as horas que passei com Andrés foram uma pausa sempre desejada no rigor habitual dos meus deveres paroquiais. O rapaz herdou a argúcia e a sensibilidade dos pais.

Andrés é herdeiro de duas fortunas, os domínios dos Corrêa e dos Monteada, embora esta última sem a fatia de um terço dos bens cobrada pela Igreja a troco da salvação de Francisco. Mesmo assim, as terras na posse dos Monteada são mais vastas que as de qualquer outro vassalo do reino.

Em breve, Andrés vai ter de decidir em qual dos domínios quer viver. Poder-se-ia pensar que a escolha recairia naturalmente em Monteada. Mas o rapaz parece imune às atracções materiais e sente-se perfeitamente bem em Girona.

O Barão Monteada escreve com frequência a Andrés, a explicar-lhe as vantagens de residir em Monteada. Há seis meses, o Barão veio visitar o neto. Eu estive presente no encontro entre os dois, no parlatório principal. O Barão Monteada mandou Andrés fazer as malas e preparar-se para viajar para Monteada. Lamentavelmente, o Barão avaliou mal o temperamento de Andrés. O rapaz consegue ser muito teimoso, teimoso e independente. O Barão Monteada partiu sem o neto, algumas horas depois de ter chegado.

O tempo não diminuiu a generosidade do Barão Monteada. Nem o seu espírito de iniciativa. De facto, o Barão aprecia o modo como os representantes do Senhor se esforçam por glorificar o Seu Nome. Propôs-se financiar a construção de um mosteiro em Pedrables, perto da capital. Fez depender o financiamento da mudança de Andrés para Monteada.

Desde a visita do Barão Monteada, reatou-se a amizade entre mim e o Arcebispo Sancho de Tarragona. Aliás, trocámos correspondência a propósito da escolha de residência de Andrés.

- Consta-me que Andrés deposita grande confiança no seu tutor - dizia-me o Arcebispo Sancho numa das suas cartas. - Certamente que essa confiança vos permite ter influência sobre o rapaz.

- Agradeço as vossas amáveis palavras - escrevi eu, em resposta ao Arcebispo Sancho. - De facto, Andrés dá mostras de grande afeição por mim. Chego a pensar que a relutância de Andrés em sair de Girona é fruto da afinidade que se gerou entre nós.

O Arcebispo Sancho respondeu de imediato.

- Para obstar à dolorosa separação entre um tutor e o seu pupilo, - escrevia o Arcebispo - talvez seja possível levantar o vosso exílio de Barcelona e arredores.

O Arcebispo Sancho referia-se à possibilidade de criar um episcopado mesmo junto aos limites da cidade de Barcelona, a meia hora de percurso a cavalo do domínio dos Monteada. Claro que o episcopado proposto compreenderia para cima de mil hectares de terra e a posse de quinhentos servos. Bispo Lucas de Santes Creus.

Girona proporcionou um ambiente propício ao crescimento de Andrés. Mas chega a altura em que um homem tem de pôr de lado considerações infantis. Tem de se ver tal como é.

Oxalá eu consiga dar conselhos avisados quando chegar a altura de Andrés tomar uma decisão.

 

 

                                                                                Michael Alexander Eisner 

 

 

 

                                         

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