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O CZAR E A BAILARINA / Konsalik
O CZAR E A BAILARINA / Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O CZAR E A BAILARINA

 

Estava um magnífico dia naquele 15 de Outubro de 1893: cheio de sol, o céu azul sem nenhuma nuvem, uma temperatura agradavelmente benigna. Um dia que teria levado qualquer sampetersburguês, que naturalmente amasse a sua cidade acima de todas as coisas, a dizer, voltando reconhecido os olhos para o céu:

 

- Graças, Deus Todo-Poderoso, pelo dom que nos concedeste!...

 

A neve tinha começado a cair havia já dez dias, na verdade um pouco cedo naquele ano, mas também tinha acabado com o período das chuvas, com as ruas enlameadas, os pés eternamente encharcados, os fatos molhados e aquele cheiro acre e nauseabundo que exalavam ao serem enxutos no calor das casas. Os camponeses, que chegavam à cidade nos seus carros de duas rodas, tinham deixado de ter o aspecto de anões de barro enquanto desatrelavam os cavalos ou os libertavam das rédeas.

 

A camada branca dava à cidade um aspecto encantador, cobrindo-a de um manto de açúcar. Ainda não estava tanto frio que o Neva, o Moika, o Fontanka e todos os outros numerosos canais de Sampetersburgo pudessem gelar. Reluziam, azuis como o céu lá em cima, entre as casas e os palácios. Se se pudesse voar como um pássaro - mesmo que só em sonho -, então poder-se-ia admirar o esplendor da cidade lá do alto. Quem não ficaria comovido até às lágrimas face a tanta beleza, toda junta, na terra!

 

As amplas avenidas, os castelos e os palácios, as pontes lançadas com elegância sobre os canais, as cúpulas e as torres das catedrais e das igrejas, as ilhas, os imensos parques e, por fim, o mar cintilante... que sinfonia de cores... Viver em Sampetersburgo já era uma felicidade, mesmo quando se tinha de trabalhar até as mãos sangrarem, de costas curvadas, quando não se fazia parte do número dos eleitos, que percorriam as ruas a cavalo nos seus puros-sangues ou em velozes carruagens e aos quais se tinha de saudar com uma profunda reverência e de cabeça descoberta.


Naquele mesmo dia, na Escola Imperial de Bailado fervilhava uma certa agitação. Um mensageiro da corte tinha anunciado a chegada de uma visita, uma visita importantíssima. Devia ter sido uma surpresa, mas os funcionários da corte tinham preferido fazer alguns avisos.

 

- Não queremos que seja uma grande surpresa - disse o mensageiro com um ar importante. - Que ele apareça de improviso e diga: «É mesmo como eu tinha pensado! Tudo fora do lugar!» De modo a vos fazer corar e temer pelos vossos lugares!

 

- Na minha escola nunca está nada fora do lugar! disse Tâmara Jegorovna com voz arrogante. - Há nove anos que dirijo a Escola Imperial e nunca ninguém teve nada a censurar-me! - E enxugou a testa perlada de suor.

 

Na grande sala de ensaios ouvia-se a música de um piano: estudos franceses. O V Corpo de Baile - de que faziam parte crianças dos sete aos dez anos - estava a fazer exercícios ao longo da barra, à frente da parede de espelhos. A voz de comando de uma professora cobria as notas de música. A posição básica! Sempre e sempre de novo, durante meses e anos, á-bê-cê das bailarinas, até que cada som se transformasse num movimento.

 

- Quem vem visitar-nos?

 

- Nicolau Alexandre vi tch, o czaréviche...

 

Tâmara Jegorovna tinha fama de nada a surpreender. Quando, nove anos antes, abandonara a Ópera Imperial e fora honrada com a direcção da Escola de Bailado, mostrou ser uma mulher com nervos de aço.

 

Isto era tanto mais peculiar quanto se passava num mundo em que as raparigas da alta sociedade sofriam de enxaquecas, desmaiavam facilmente, especulavam com doenças insignificantes, e no entanto eram muito atraentes, e com as quais quem quer que fosse que usasse uma terapia que prometesse a cura podia ganhar rios de dinheiro. Era assim que os salões se apinhavam de médicos e curandeiros, de charlatães e taumaturgos, de monges que distribuíam bênçãos e de alquimistas que preparavam mistelas milagrosas, dos que esconjuravam as doenças e de pobres epilépticos, dignos de toda a compaixão, a quem todos chamavam os «santos idiotas». Quando estes últimos sofriam um ataque e se rebolavam no chão com a espuma na boca, eram rodeados respeitosamente por pessoas que esperavam o «olhar divino» que iria afastar todas as doenças.

 

Naquele mundo, em que o temor de Deus e a credulidade se misturavam inexplicavelmente, Tâmara Jegorovna mantinha a sua posição de relativa normalidade. Admirada pela habilidade com que dançava e pela sua delicada beleza, era cortejada pelos homens e convidada pelas mulheres; os primeiros andavam à sua volta como abelhas à volta de um pote de mel, as outras mal toleravam a liberdade do seu modo de vida.

 

Por volta de 1880, durante um Verão particularmente quente, tinha nadado nua no mar da Finlândia, que banha a costa sul da ilha de Krestovskij. Uma região selvagem, com ervas altas, brenhas cerradas, um bosque impenetrável e nenhuma via de acesso; mas o conde Kyrill Arkadjevitch Plesskov tinha seguido Tâmara, sem ser notado, a cavalo, e tinha visto tudo.

 

O que depois contara, logicamente na presença de alguns amigos, e que rapidamente se espalhara, era mais ou menos estonteante:

 

- Era Vénus, nascida de uma onda! - repetira Plesskov com os olhos extasiados. - Quando saiu do mar, a luz do sol tornou-se mais clara, enquanto as ondas se acalmavam e o vento se calava. A Natureza sustinha a respiração, tão bela ela era!

 

Que alguém nadasse voluntariamente no mar era já algo de insólito, mas que uma senhora - e ainda por cima completamente nua - se deixasse levar pelas ondas era completamente indigno!

 

A fama de que Tâmara era uma mulher com nervos de aço reforçou-se cada vez mais. Na Ópera nunca tinha dado motivos para qualquer escândalo, como era hábito com as outras primeiras-bailarinas, que muito facilmente cediam aos nervos; mas ela nunca havia tido altos e baixos ou crises pessoais, nunca se tinha envolvido em trágicas histórias de amor, nem fora nunca a causa de qualquer duelo entre homens que quisessem conquistar os seus favores - dançava como uma pluma, sem nunca se cansar.

 

Quando começou a envelhecer, disse francamente:

 

- Parece-me que as minhas piruetas se tornaram mais


lentas e que os meus saltos já não são tão altos. Já tenho quarenta e seis anos. É preciso saber parar.

 

Então foi nomeada directora da Escola Imperial de Bailado de Sampetersburgo, a escola de dança mais famosa do mundo, e cujos melhores bailarinos se exibiam nos teatros de ópera de Paris, Viena, Berlim, Dresda e Londres. Eram os mensageiros de uma Rússia sobre a qual ainda pairavam os véus de uma vida artística misteriosa, dificilmente compreensível mas contudo sedutora.

 

As palavras de Bismarck «Deixem que os ursos durmam!» tinham-se tornado um slogan. Tudo o que acontecia nas imensas planuras do Leste aparecia ao resto do mundo como qualquer coisa de lendário. É verdade que os arquitectos franceses e italianos tinham construído os faustosos castelos e palácios dos nobres; e é igualmente verdade que o espírito da Revolução Francesa também tinha deixado na Rússia alguns vestígios e que todos os que podiam escolhiam para os próprios filhos professores e governantas alemães e franceses - mas aquela sensação de misteriosa incomensurabilidade era difícil de apagar.

 

Alguns reflexos de Versalhes tinham chegado aos palácios russos, na alta sociedade era hábito introduzirem no discurso termos franceses e quem quisesse gozar de uma óptima reputação devia ter estado pelo menos uma vez em Paris e saber descrever o famoso estilo das mulheres daquela cidade.

 

Mas voltemos a Tâmara Jegorovna e à fama de severidade que a rodeava. O que em tempos exigira de si mesma, exigia agora dos seus alunos. «Só sabe verdadeiramente dançar aquele que exprime com o corpo a própria alma!», nunca se cansava de repetir. «Qualquer sabe atirar os braços para cima. Mas soltar um grito que toda a gente oiça apenas com um dedo estendido, isso é qualquer coisa que precisam de saber fazer! Tudo o resto é puro movimento de músculos!»

 

Naqueles nove anos em que tinha dirigido a Escola Imperial de Bailado tinha aparecido uma nova geração de bailarinos. A severidade de Tâmara era sentida em toda a parte. Não era possível nascer qualquer namorico entre as suas alunas e os jovens ricos e finos que tinham trazido de Paris a sentença «Quem quiser ser alguma coisa, tem de ter uma mademoiselle do ballet!»

 

- Enquanto estiverem comigo - dizia sempre Tâmara o vosso único amante ou amado será a música. Quem não estiver de acordo pode ir-se embora e dançar nas praças das feiras, como fazem os ursos amestrados.

 

Com Tâmara Jegorovna era preciso trabalhar duramente, suportar correntes de suor e dores musculares, esgotamento de todas as forças e desespero silencioso, pés em brasa e respiração ofegante. Mas qual era a recompensa de todo este cansaço? Em qualquer altura, todos os que frequentavam aquela escola teriam o mundo a seus pés... Primeiro, a Ópera Imperial de Sampetersburgo ou o Bolchoi de Moscovo, e mais tarde um daqueles fabulosos países dos quais se liam tantas coisas e dos quais existiam descrições magníficas: França, o Império Alemão, Inglaterra, Roma, cidade eterna, a esfuziante Dresda, a rica Amesterdão, a soberba Madrid, Lisboa, porta de acesso aos mares do mundo... Para um bailarino russo não existia naquele tempo qualquer fronteira...

 

- O czaréviche? - perguntou a Jegorovna. Estava no seu gabinete de trabalho, sentada num sofá de estilo francês, e olhava espantada para o mensageiro da corte. - Julgava que estava ocupado com a construção do caminho-de-ferro transiberiano.

 

- Quem pode saber do que se ocupam as Altezas Imperiais? - O mensageiro inclinou-se diante de Tâmara Jegorovna, porque era uma senhora e era-lhe devido respeito, embora se dissesse que provinha de uma baixa condição social. Parecia que o seu pai tivera um pequeno moinho em Novgorod.

 

- O que fará a senhora, Tâmara Jegorovna?

 

- Nada!

 

A resposta era clara e seca. O mensageiro olhou para a mulher com grande surpresa. «É dela», pensou. «Quem não tem medo do Diabo não pode temer o czaréviche.»

 

- Isso é pouco... - disse um tanto inseguro.

 

- As aulas prosseguirão como habitualmente. - Tâmara levantou-se e aproximou-se da escrivaninha. Folheou alguns papéis, dando uma olhadela rápida ao horário das aulas das várias classes. - Não sei porque deveria mudar alguma coisa. Quando virá Sua Alteza Imperial?

 

- Pelas três horas da tarde. Dentro de quatro horas. Tempo suficiente para pôr em ordem qualquer coisa ou proceder a qualquer mudança.

 

- O czaréviche vem para ver um ballet em pleno labor, e não para uma exposição de raparigas que fazem reverências e de rapazes em posição de sentido! Às três horas, todas as classes estarão a trabalhar: desde a ginástica dos mais pequenos ao ensaio de Tchaikovsky das alunas. O czaréviche ficará satisfeito. - Voltou-se para o mensageiro com a mesma graça com que, tempos antes, se voltava para o seu próprio parceiro no pás de deux. - Está com medo, não é verdade? Mas porquê? Porque têm todos tanto medo na frente dos senhores? No fundo, eles também são seres humanos...

 

- Mas podem ser muito maus! - disse o mensageiro. A senhora vive num outro mundo, Tâmara Jegorovna, onde nada a perturba. Está certamente entre as pessoas mais felizes da Terra... Mas a vida não é apenas a dança!

 

Abanou a cabeça, agarrou no chapéu emplumado e esboçou um sorriso.

 

- Esqueça aquilo que acabei de dizer-lhe. A senhora sabe que ontem o príncipe Sassanov quase matou à chicotada um camponês em Sadovaja porque o pobre, que tinha uma terrível tosse, tinha espantado o cavalo de Sua Alteza? E no entanto era um homem que estava doente e que tossia para limpar os pulmões... Agora está hospitalizado, cheio de feridas em todo o corpo, e os médicos ainda o reprovaram por ter tossido para o focinho do cavalo do príncipe. - O mensageiro pôs o chapéu na cabeça e dirigiu-se para a porta. - Mas isto é só uma pequena gota no mar do sofrimento diário, Tâmara Jegorovna.

 

- Como foi que o senhor soube desse episódio? - perguntou a mulher com voz tensa e alterada.

 

- Estava perto. - O homem agarrou na maçaneta da porta. - Tinham os dois baba na boca quando passaram na minha frente, o cavalo e o príncipe. E eu fiz como todos os outros: tirei o chapéu e inclinei-me numa reverência. Mas o czaréviche não é assim. Nicolau Alexandrovitch tem fama de ser um homem bom e amável...

 

Tâmara Jegorovna esperou até depois do almoço para dar a grande notícia. Mas então, indo de classe em classe, limitou-se a dizer, como se fosse uma coisa pouco importante:

 

- Cerca das três receberemos uma visita. O czaréviche. Não é motivo para se perturbarem. Ficará satisfeito convosco. - E acrescentou: - Dançareis Coppelia por ocasião da visita do czaréviche! Já conheceis este bailado bastante bem. Preparai-vos. Todas se devem apresentar de tutu. Vamos ensaiar mais uma vez o segundo quadro. No salão...

 

As raparigas inclinaram a cabeça. Os seus olhos mostraram medo. O czaréviche vinha visitá-las? Mas porquê o czaréviche. Quase não o conheciam em Sampetersburgo, quase não se mostrava em público e mesmo na corte aparecia raramente. Devia ser jovem e tímido. Sabia-se que preferia morar em Zarskoi Selo, no Palácio Alexandre, rodeado de enormes jardins e lagos; ali podia dedicar-se à leitura e estudar o projecto do caminho-de-ferro transiberiano.

 

E, de repente, que significava aquela viagem a Sampetersburgo e aquela visita à Escola Imperial de Bailado? Teria o herdeiro ao trono decidido dedicar-se à arte russa para minorar o tédio?

 

Tâmara Jegorovna pareceu ter ouvido a pergunta que as raparigas faziam em silêncio.

 

- Esta visita será apenas um acontecimento isolado disse num tom tranquilizador. - Um capricho e nada mais! Vocês devem dançar como sempre, não para os senhores que vos vêm ver, mas para a arte! - Bateu as palmas. Era o sinal de que ninguém se devia deixar prender pelos seus próprios pensamentos, mas apenas pelos sons e pelos movimentos. - Começaremos dentro de quinze minutos.

 

As raparigas correram rapidamente para fora, abandonando num segundo a sala de ensaio, como se alguém as empurrasse. Trocar de roupa, colocar o tutu, calçar os sapatos com pontas, um pouco de cor no rosto, afinal era o czaréviche quem ia chegar... Como passa depressa um quarto de hora! A falta de pontualidade era uma coisa que abalava até uma pessoa tão equilibrada como Tâmara Jegorovna.

 

«O alicerce da arte é a disciplina», repetia constantemente. «Quem não sabe o que isso é oscilará sempre e um belo dia sucumbirá.»

 

A voz da professora sobrepôs-se ao ruído das raparigas que corriam.

 

- Matilda! - gritou. - Espera um segundo...

 

Uma rapariga vestida com fato de ballet preto e umas grossas caneleiras nos joelhos parou junto da porta e esperou que todas as outras abandonassem a sala. Tinha longos cabelos negros, presos na nuca com uma grande fita vermelha.

 

De estatura média, delgada, Matilda tinha pernas compridas, pés miúdos e seios firmes, que a malha a custo continha. Entre tudo, o que mais sobressaía era o rosto: a simetria de um oval perfeito, como o de um anjo de Botticelli, era de repente interrompida pelas maçãs do rosto muito acentuadas e pelos olhos ligeiramente amendoados. Estes últimos, que pareciam comunicar uma espécie de sabedoria asiática, eram castanho-escuros, chegando, em algumas ocasiões, a ser negros.

 

Matilda fez um reverência, como era hábito quando a austera professora chamava alguém, e esperou em silêncio perto da porta.

 

- Vem cá - disse Tâmara. O tom da sua voz era maternal, sem qualquer ar de comando.

 

A rapariga aproximou-se com o andar típico das bailarinas, pousando um pé e depois o outro, como se o seu corpo apenas soubesse dançar. Parou diante de Tâmara, fixando-a com os olhos carregados de mistério e mantendo-se numa posição de expectativa.

 

- Hoje será a tua estreia oficial - disse a Jegorovna docemente. - Apresentar-te-ei ao grão-duque. Não te envaideças; isto é necessário porque irás, no Natal, dançar um solo pela primeira vez na Ópera. Sabes que ainda tens de corrigir muitos defeitos?

 

- Eu sei, Mamã - respondeu a rapariga com humildade. Todas ali tratavam Tâmara por «Mamã». Era como se fossem suas filhas, e aquilo que conseguissem ser na vida devê-lo-iam apenas a ela.

 

- Ainda estou muito insegura com o jeté passe.

 

- E não só! Não sejas tão presunçosa, Matilda! Vem cá, vamos ensaiar de novo todos os passos até às três. O czaréviche deve descobrir o encanto que pode ser encontrado no movimento humano.

 

E foi assim que o corpo de baile dançou, no salão, o segundo quadro de Coppelia, acompanhado por um pequeno e rabugento pianista que tocava muito contrariado. Estava irritado por ter de tocar mais duas horas extras de exercícios, por alguns copeques mais, quando depois, durante a visita do czaréviche iria tocar o pianista francês Pierre Lacombe, um janota convencido, que contava a toda a gente que tinha tido o próprio Liszt por mestre, mentindo despudoradamente.

 

Separada das outras, no ângulo de um espelho duplo, Matilda rodopiava e saltava sob as ordens de Tâmara Jegorovna, exibindo sempre uma figura mais difícil do que a outra. Um corpo que ganhava vida através dos músculos ágeis...

 

- Mais uma volta! - exigiu a professora, batendo as palmas. - Acompanha a melodia cantando, Matilda. Cambré... e passe... e fouetté... e révoltade... Demasiado pesado! Tens de ser como uma pluma, deixar-te elevar por um sopro de vento! Mais uma volta: jeté passe... grand jeté en tournant... e agora sissonne... e mais uma volta soubresaut... upa!... E também a capriole... Alto!

 

Matilda parou junto à parede de espelhos, com a respiração ofegante: o rosto suado, os músculos da barriga das pernas a tremer, as coxas ainda a pulsar.

 

O corpo de baile exercitava-se no salão sob os olhos distraídos de duas assistentes. Matilda já não ouvia a música do piano, mas apenas as ordens da Jegorovna e a melodia interior que guiava os seus saltos e as suas voltas. Respirava com dificuldade e sentia o coração a bater forte. Mas isto durou apenas um instante. O seu corpo, habituado àqueles exercícios, exercitado, ano após ano, a não conhecer momentos de fraqueza logo que lhe fosse ordenado que dançasse, acalmou-se de súbito depois do esforço feito, e apenas os lábios continuaram a mostrar uma leve tremura.

 

- Foi bastante bem - disse Tâmara Jegorovna. - O czaréviche ficará contente. Apenas a capriole ainda está um pouco fraca. As pernas devem ficar horizontais no ar, Matilda, horizontais! Vai, toma banho e muda de roupa. O czaréviche estará aqui dentro de vinte minutos. Ainda tens tempo para descansar um pouco...

 

- Vou repetir mais uma vez a capriole, Mamã - respondeu Matilda. - Sei que ainda não está perfeita, mas hei-de conseguir...

 

Inclinou-se de novo, voltou-se e correu para fora da sala.

 

A Jegorovna viu-a afastar-se em silêncio. «Quem poderá conseguir senão ela?», pensou. Era o maior talento que tinha ensaiado naquela sala nos últimos vinte anos. Um dia, o mundo inteiro falaria dela... O seu nome seria sinónimo de «maravilha da dança».

 

Matilda Felixovna Bondarev... Em breve aquele nome seria conhecido em todas as partes do mundo. Ela ainda não o suspeitava, ainda se exercitava como um simples soldado; mas iria ter uma noção daquilo que a esperava quando, no Natal, dançasse pela primeira vez um solo no Teatro da Ópera. Mas não se iria encher de vaidade ou de soberba. Apenas estimularia a sua ambição, conduzindo-a àquilo para que sempre estivera destinada. Mas Matilda permaneceria sempre modesta, humilde no seu virtuosismo - porque toda a sua vida era a dança! Era uma predestinada, mas ainda não sabia.

 

Tâmara Jegorovna voltou-se para o corpo de baile e interrompeu o rabugento pianista, que ainda estava a tocar.

 

- Basta! Vão refrescar-se! O czaréviche está quase a chegar. E nada de medos, lembrem-se que ele não sabe dançar tão bem como vocês...

 

As alunas saíram do salão, esvoaçando como um bando de pombas. Por outra porta entrou, com um ar muito digno, o pianista Pierre Lacombe, vestido com uma espécie de casaca.

 

- Madame - disse com deferência, ignorando o homenzinho que limpava o piano de cauda e punha ali as partituras. - A senhora tinha-me chamado? Para mim é uma honra poder tocar. Sua Alteza Imperial estima-me. Já toquei na sua presença o Capricho Italiano. Hoje trata-se de Coppelia?

 

- Sente-se e ensaie! - respondeu a Jegorovna com alguma dureza. - Ficaria muito aborrecida se o único ponto fraco da nossa apresentação fosse o senhor.

 

Lacombe estremeceu, como se tivesse sido atingido fisicamente, mas não disse nada. Era insensato contrariar Tâmara Jegorovna. Não tinha a menor hipótese. Baixou a cabeça em silêncio, enquanto ela passava por ele e batia com a porta atrás de si.

 

Um lacaio anunciou a chegada do grão-duque Nicolau Alexandrovitch. Às três em ponto, a carruagem com os ornamentos em talha dourada e o brasão do czar parou diante do edifício da Escola de Bailado. Doze guardas a cavalo rodearam-na, os lacaios abriram a portinhola e, em primeiro lugar, desceu uma criatura para a qual não se podia olhar sem se sentir um arrepio.

 

Uma gigantesca cabeça balançava sobre um corpo diminuto e franzino, que se equilibrava sobre duas pernas de aranhiço. A boca era enorme, o nariz comprido e carnudo - apenas os olhos tinham alguma coisa de humano. Com uma olhadela avaliou tudo o que estava em volta.

 

A criatura ostentava uma espécie de fato oriental. Um estranho fato, com tantos sininhos pendurados de cordões de ouro que ressoava, a cada passo, harmoniosamente. A enorme cabeça estava coberta por um turbante vermelho, ornamentado com um espelho redondo mesmo por cima da testa.

 

Quem pousasse os olhos no terrível anão veria imediatamente a sua própria imagem reflectida; uma espécie de lembrança de que o homem tem a possibilidade de assumir as formas mais incríveis.

 

Tâmara Jegorovna, que esperava no portão com alguns altos funcionários e administradores da Escola de Bailado, não conseguiu travar um gritinho de surpresa.

 

- Meu Deus, mas aquele não é de certeza o czaréviche! sussurrou-lhe em voz baixa um dos funcionários que estavam perto dela. - Tranquilize-se, Tâmara Jegorovna, aquele é o bobo da corte preferido pelo czaréviche! O anão e idiota Urasalin. Como pôde a senhora pensar que o herdeiro do trono tivesse aquele aspecto...

 

Depois de o anão ter olhado em volta e um tenente da guarda ter preparado a escolta, apareceu Nicolau Alexandrovitch. Desceu da carruagem com o uniforme simples de capitão, tinha uma estatura delicada, fina, olhos sonhadores, a barba aparada, o rosto melancólico, de uma beleza que quase não parecia humana. Até àquele momento só o tinham visto - mesmo Jegorovna - nos retratos pintados e nas fotografias. Os pintores, sem excepção, glorificavam-no segundo o tipo do herói; os fotógrafos fotografavam-no nas paradas, aprumado no seu cavalo, coberto de condecorações, galões e peles, um verdadeiro herdeiro do trono de que a Rússia se podia orgulhar.

 

E por outro lado não podia ser senão assim, uma vez que seu pai, o czar Alexandre III, era uma espécie de urso, um homem robusto, com os músculos de um lenhador.

 

Agora, a Jegorovna podia vê-lo na sua real delicadeza. A visão dos seus olhos tristes colheu-a e ela dobrou um joelho numa profunda reverência, daquelas que apenas como bailarina conseguia fazer, quando algum membro da Casa Imperial descia ao palco para lhe exprimir a sua própria admiração.

 

Nicolau parou, inclinou-se para a frente e ajudou Tâmara a erguer-se.

 

- Estou feliz, Madame, por poder visitar o Bailado Imperial. - disse ele. A sua voz era calma, com um tom quente, e bem adaptada aos olhos e ao resto do físico. Era a voz de um espírito de eleição, não de um homem que, um dia, teria nas mãos o maior império do mundo. - Vi-a dançar há doze anos, Madame. Naquele tempo tinha treze anos de idade. Que eu me lembre desse facto significa quanto a senhora me impressionou...

 

Os lacaios abriram de par em par as brancas portas da Escola de Bailado e o czaréviche entrou no edifício. Em seguida, a guarda a cavalo bloqueou a entrada, enquanto a polícia tentava manter os curiosos afastados do edifício.

 

Tinham bons motivos para temer um atentado desde que grupos de extremistas de recente formação tinham começado a acusar o czar de ser um déspota sanguinário e a fomentar a revolução entre o povo. Mês após mês, longas colunas de condenados eram conduzidas para a imensidão descomunal da Sibéria, para um exílio de que raramente regressavam.

 

Tâmara Jegorovna precedia o czaréviche de sala em sala. Começaram pelos mais pequenos, que ainda não sabiam ler nem escrever, mas já dominavam um battement ou um développé croisé derrière; crianças com a seriedade de adultos, que tornavam os próprios corpos elásticos na barra ou se exercitavam diante do espelho.

 

Depois visitaram as classes média e adiantada, que mostraram alguns passos e figuras e continuaram depois a sua lição, como Tâmara Jegorovna tinha estabelecido previamente.

 

- E agora, Alteza, as alunas e a classe principal - disse a professora, depois de os lacaios terem aberto as grandes portas brancas do salão nobre de ensaios.

 

Nicolau entrou no salão com um passo incerto e tímido. O corpo de baile estava perto da parede no fundo da sala, as raparigas com os tutus e os rapazes em malhas. Como se tivesse recebido uma ordem, a nuvem de tule inclinou-se ondulante, numa profunda reverência, e os rapazes inclinaram a cabeça; próximo do piano, Pierre Lacombe inclinou-se de uma forma exagerada e todos recearam que perdesse o equilíbrio e tombasse no chão encerado. Os criados levaram algumas poltronas de brocado, colocaram-nas em filas e desapareceram rapidamente. As portas fecharam-se. Estavam sós... o czaréviche, Tâmara Jegorovna, um jovem tenente e o anão.

 

Nicolau olhou à volta. Viu-se reflectido na grande parede de espelho, coisa que o irritou. Furtivamente, ajeitou a jaqueta da farda, depois pôs-se a tamborilar na frente do seu uniforme, enquanto esperava que acontecesse alguma coisa.

 

«Que devo eu dizer?», pensou Nicolau Alexandrovitch. «Demoiselles e Messieurs será muito íntimo? Ou bastará que eu faça um sinal? Poderei dizer ’Viemos aqui com grande expectativa; que quereis mostrar-me?’, ou deverei apenas sentar-me e fazer um sinal a Madame Jegorovna?»

 

Enquanto hesitava, captou um olhar no espelho. Uma rapariga, na primeira fila do corpo de baile, tinha levantado ligeiramente a cabeça e olhava com uns olhos grandes e profundos. Era a única que se atrevia a tanto... Sempre inclinada, numa atitude cheia de respeito, era contudo bastante corajosa para lhe mostrar uma parte do rosto. A testa enrugada traía o esforço que a rapariga devia estar a fazer para o poder observar daquela posição.

 

Aquele olhar perturbou Nicolau interiormente. A sua antiga maleita, a timidez, avassalou-o de novo. Voltou imediatamente as costas ao espelho e ao olhar da rapariga e, aborrecido com o seu próprio embaraço, sentou-se ruidosamente numa poltrona de brocado, batendo com as botas. O jovem tenente e o horrível anão postaram-se atrás dele.

 

Tâmara Jegorovna bateu as palmas, como sempre. Aquele som fez estremecer Nicolau, como se junto dele tivesse rebentado uma granada. O corpo de baile endireitou-se. Sentado ao piano, Pierre Lacombe estendeu os dedos como um verdadeiro virtuoso. Quase se podia ouvir o estalar seco dos ossos...

 

- Se Sua Alteza Imperial o permitir, apresentaremos o segundo quadro de Coppelia   - disse a Jegorovna com desenvoltura. - Espero que Sua Alteza Imperial fique satisfeito com o nível de dificuldades.

 

- Com certeza! - respondeu Nicolau, secamente. Comecem então.

 

Pierre Lacombe dedilhou as teclas. Embora fosse muito vaidoso, tinha de admitir-se que também sabia tocar. O som do piano parecia soar com uma orquestra inteira.

 

O corpo de baile tomou posição.

 

Nicolau Alexandrevitch encostou-se. Com o olhar procurou a rapariga que anteriormente o tinha fixado. Estava à parte, absorta, pronta para o seu solo.

 

«É linda», pensou o czaréviche. «Esplêndida! Lembra uma sílfide...»

 

Nesse momento, Matilda pensava: «Como é tímido! Tem os olhos aveludados! O olhar dele é tão sonhador... É muito mais atraente do que parece nos retratos. E eu vou ter a honra de dançar para ele...»

 

Tinha a agradável sensação, logo nos primeiros passos, de que estava leve como uma pluma.

 

 

No Palácio de Inverno, raramente habitado pelo czar Alexandre III, por ele preferir morar no Palácio Anitschkov, junto do Fontanka, onde tinha passado os seus momentos mais felizes como herdeiro do trono, encontravam-se naquele dia os seus amigos mais íntimos, reunidos no estúdio cheio de quadros. Ele era o único que condenava o fausto desmedido dos seus antepassados e considerava uma loucura a tentativa de imitarem Versalhes.

 

Tinha chegado o irmão, Nicolau Nicolaievitch, um homem alto e magro, a quem todos chamavam «o mais alto varapau da Rússia» e que, no entanto, tinha casado com a mulher mais bonita da Rússia, a grã-duquesa Stana. Todos o invejavam por este motivo, o que ele não compreendia. Todos viam apenas a beleza dela, mas quase nenhum sabia que preferia os rituais místicos e a prática de estúpidas magias aos deveres conjugais para com o marido.

 

Nos seus salões aglomeravam-se os curandeiros e os monges, os profetas e os charlatães, que vendiam estranhos medicamentos da China e do Tibete, com os quais tinham conseguido curar, de facto, dois cães doentes que pertenciam à grã-duquesa.

 

Depois de alguns anos trágicos, Nicolau Nicolaievitch tinha-se resignado e casara-se com a tropa. Esta tornara-se a única razão da sua vida; a guerra que havia de fazer da Rússia a dona do mundo era o seu único sonho.

 

Estavam também presentes Konstantin Petrovitch Pobedonoszev, senador e membro do Conselho de Estado, procurador supremo do Sínodo e por inerência do cargo um dos mais poderosos na administração eclesiástica, e Michail Nikiforovitch Katkov, que não exercia qualquer função estatal, mas era tão poderoso como um ministro: de facto, era amigo do czar.

 

Desde 1882 tinha-se ocupado da educação do czaréviche, enquanto Pobedonoszev tinha aparecido mais tarde e conquistara de súbito a confiança do herdeiro do trono, porque sabia falar muito bem sobre os homens e sobre Deus, sobre a filosofia e sobre o Estado. A formação do czaréviche estava ainda nas mãos daqueles dois homens. Eram os poucos eleitos com os quais Nicolau Alexandrovitcn podia ficar sentado a conversar durante horas no Palácio Anitschkov ou na residência de Zarskoi Selo.

 

Os criados - invariavelmente pequenos mouros vestidos com calções largos, casacos de seda e grandes turbantes na cabeça - serviram chá, pastéis amanteigados e o conhaque francês preferido do grão-duque Nicolau Nicolaievitch. Depois saíram, fechando a porta.

 

- Não quero ser incomodado, nem que o mundo vá a pique! - ordenou o czar.

 

Os quatro homens beberam o seu chá e saborearam os pastéis, enquanto o grão-duque bebia com evidente prazer o seu conhaque aquecido. Como era hábito, mantiveram-se calados, porque sabiam que seria o czar a iniciar a conversa.

 

- Estamos preocupados com o czaréviche! - disse finalmente, enquanto o grão-duque Nicolau acendia um cigarro. - Já tem vinte e cinco anos! Que Deus me ajude... Na sua idade, eu já era um verdadeiro homem! E ele? Quando o visito no seu gabinete do Caminho-de-Ferro Transiberiano, encontro-o sentado, mergulhado em mapas e projectos, lendo Voltaire com as faces coradas! Como irá acabar isto?

 

O czar lançou um olhar interrogativo para o seu irmão Nicolau. Era o único naquele círculo que não se importava com algumas regras da sociedade. Enquanto o czar Alexandre III era talvez o único dos soberanos russos que nunca havia tido uma amante, que nunca tinha traído a czarina e que considerava a castidade como uma das mais nobres virtudes, era sabido que o grão-duque não conseguiria contar todas as aventuras amorosas que tivera. Murmurava-se à boca pequena que era assim tão magro porque gastava cada grama de gordura na energia do amor.

 

- O meu filho tem alguma amante? - perguntou Alexandre III.

 

- E como poderia tê-la? - murmurou ironicamente Nicolau Nicolaievitch. Sob a barba, o seu rosto mostrava uma expressão de escárnio. - Ele cora quando uma rapariga o fixa. Há muitas damas na corte que levantariam as saias por causa dele, mas nem sequer as vê...

 

- Temos de lhe arranjar uma noiva! - o czar voltou-se para Katkov. - Michail Nikiforovitch, é preciso que seja uma mulher enérgica. Uma mulher ambiciosa! Meu Deus, quando penso na imensidade de grandes mulheres geradas pela Rússia! Tem alguma proposta?

 

- Nunca tinha pensado nisso. - Katkov olhou de lado para Pobedonoszev.

 

O homem influente, alto funcionário da Igreja, tomava a sua chávena de chá, empurrando para fora o lábio inferior. O problema do czar não era uma novidade para ele, como não era para ninguém naquela sala: o czaréviche era demasiado fraco para poder reger um dia aquele reino. É verdade que tinha a mesma opinião que o pai - hegemonia do czarismo absoluto, soberania indiscutível pelo direito divino -, mas temia-se que hesitasse em situações críticas, procurasse conselhos, e demorasse tanto tempo a arranjar soluções que depois só as pudesse impor através de derramamento de sangue. Era apenas isto que esperavam os grupos clandestinos que falavam de revolução e do poder para o povo. A anarquia estava a ser reforçada na clandestinidade. Mas o czaréviche nunca se tornaria no czar capaz de a anular.

 

- Diga alguma coisa! - insistiu o czar. - Konstantin Petrovitch, quase não consigo dormir com tantas preocupações! Cada vez que falo com o meu filho parece-me que ele não me ouve, mas segue uma sua música interior que eu não consigo escutar.

 

- Devemos ser pacientes - disse Pobedonoszev, que acabou de tomar o seu chá. - O czaréviche é de boa índole.

 

- Mas tem de vir cá para fora qualquer dia! - berrou o czar. - Às vezes, apetece-me fazer como os nossos antepassados. Mandavam os filhos caçar ursos apenas com uma lança! Mas tornavam-se verdadeiros homens!

 

- Mas o czaréviche tem demonstrado saber dirigir muito bem o Comité para a Construção do Caminho-de-Ferro Transiberiano - disse Katkov num tom calmo. - Gostam muito dele.

 

- Aí é que está! - O czar cerrou os punhos e bateu com eles na mesa. - Os czares não devem ser amados, devem ser temidos! O povo russo não quer carícias, só obedece à força. É isto que a História ensina! A Rússia tem sobrevivido através dos séculos porque primeiro padece, depois sacrifica-se sem hesitar e em seguida age no momento justo! É um povo tão grandioso como a natureza em que vive. Para tal povo, preciso de ter um bom filho! Meus caros amigos, ajudem-me a fazer de Nicolau, que já é chamado pejorativamente «Niki», um grande Nicolau. Ainda estamos a tempo... Ele tem só vinte e cinco anos! - O czar esperou que o grão-duque Nicolau bebesse o seu terceiro conhaque e depois acrescentou: - Temos de lhe encontrar uma boa mulher! Válida! Inteligente. Disto devemo-nos ocupar nós, Nicolau Nicolaievitch.

 

- Belas raparigas é o que nós temos mais! - O grão-duque riu com gosto. - Mas talvez não apreciem a timidez dele...

 

- Então ele precisa de saber quanto deve à Rússia! Alexandre III levantou-se de repente. - Será que Nicolau vai ser o último dos Romanov?

 

Ele nem podia imaginar a cruel profecia que tinha pronunciado...

 

O segundo quadro de Coppelia tinha terminado.

 

O corpo de baile foi de novo para junto da parede. Pierre Lacombe tinha suado como um cavalo de lavoura, mas não se atrevia a limpar o rosto com o lenço.

 

O czaréviche levantou-se. Bateu as palmas duas ou três vezes, mas interrompeu-se de repente, como se se envergonhasse de mostrar os seus sentimentos.

 

- Muito belo - murmurou. - Realmente, muito belo, Madame. Foi um acontecimento único.

 

- Sua Alteza Imperial permite-me que lhe apresente os solistas? - perguntou a Jegorovna. Ela também se sentia feliz. Tinha julgado até àquele momento conhecer perfeitamente Matilda, em cada um dos seus movimentos, em cada passo, em cada salto. Mas havia-se enganado. Quem tinha dançado era uma outra Matilda, uma criatura completamente desconhecida, que não parecia ser deste mundo, tanta era a sua graça, a sua leveza, em cada gesto do seu corpo. Tal como o czaréviche, Tâmara tinha olhado para ela, sustendo a respiração e sentindo acelerarem-se as palpitações do coração.

 

Agora que tudo tinha acabado, estava cheia de felicidade. Era como uma mãe que amava cada um dos seus bailarinos.

 

Nicolau disse que sim. Cruzou as pernas e fez um sinal a Tâmara Jegorovna, que começou a apresentar os solistas:

 

A loira e pequena Tonia, que tremia de excitação.

 

A elegante Vera de Kasan, alta e morena de pele, que se ajoelhou em frente do czaréviche como um cisne a morrer.

 

Boria, cujos músculos testemunhavam a sua proveniência dos bosques de Smolensk.

 

Yegor, meio asiático, único no salto com pirueta, o grand jeté en tournant.

 

Tikon, filho de um caçador da taiga, com um olhar sombrio e um físico ágil e flexível como o dos linces.

 

Elisabeta, a beldade de cabelos ruivos, destinada a não se tornar nunca uma bailarina, porque, longe da disciplina da Jegorovna, teria ido para a cama com todos e mais tarde teria casado com um rico comerciante.

 

O czaréviche acenava e elogiava, mas entretanto, sem conseguir vê-la, procurava com o olhar a rapariga que tinha dançado o mais longo e difícil solo. Matilda estava perto do grande espelho e compunha o tutu.

 

- E agora, Alteza... - disse a Jegorovna - quero apresentar-lhe a estrela da nossa escola de bailado. Estrear-se-á por ocasião da premiere do Natal no Teatro da Ópera Imperial. Matilda Felixovna...

 

Foi então que sucedeu qualquer coisa de extraordinário.

 

O czaréviche Nicolau Alexandrovitch levantou-se e deu três passos na direcção de Matilda. Como ela se tivesse inclinado na frente dele, curvou-se até ela e pegou-lhe na mão.

 

- Mademoiselle... - A voz era baixa e parecia inibida, mas de repente soou quente como um raio de sol. - Posso ser seu convidado para a premiere?

 

Não se ouviu qualquer resposta. O rosto inclinado de Matilda continha a tempestade desencadeada dentro de si, sem mostrar qualquer reacção. As pernas, na posição clássica, tremiam, fazendo-a oscilar. Matilda anuiu em silêncio.

 

A mão dele, que continuava a prender uma das suas, parecia-lhe um ferro em brasa, e era como se o seu calor lhe percorresse todo o corpo. Um calor que queimava tudo, que nada mais deixava dentro de si que a sensação de uma enorme solidão, na qual vibrava uma música selvagem. «Quando me largar», pensou ela, «desfaleço, transíormo-me em cinzas. Porque me terá tocado? O futuro czar esta a agarrar a minha mão... A mão da pobre Matilda Felixovna Bondarev, que não tinha pai, apenas porque a sua mãe Rosália Antonovna nunca tinha conseguido dizer qual dos camponeses com quem tinha feito amor era na realidade o seu verdadeiro pai...»

 

- Eu irei - disse o czaréviche baixinho. - Mademoiselle Matilda, esperarei ansioso por essa noite...

 

Levantou a mão dela, curvou-se um pouco e beijou-a.

 

Matilda sentiu o chão faltar-lhe debaixo dos pés. Sentiu os lábios de Nicolau Alexandrovitch nas costas da sua mão, mas precisou de algum tempo para compreender que o czaréviche lhe tinha beijado a mão; então desmaiou e pareceu-lhe ter sido conduzida ao infinito.

 

O futuro czar, o tenente da guarda e Tâmara Jegorovna levantaram a rapariga desmaiada e levaram-na para uma poltrona. Pierre Lacombe saiu do piano, trazendo um frasquinho de sais. Tinha-o sempre consigo: servia-lhe para se libertar do cheiro da plebe quando andava na rua.

 

Matilda pendia na grande poltrona, muito pálida, muito bela e ainda muito longe deste mundo.

 

O czaréviche mantinha os sais debaixo do nariz dela e acariciava-lhe as faces com grande ternura.

 

- Perdoe-a, Alteza! - balbuciava Tâmara Jegorovna. Que aborrecimento! Que aborrecimento! Nunca tinha sucedido isto. Não compreendo porque lhe aconteceu tal coisa...

 

Ao fundo da sala, perto da parede, o anão Urasalin puxou pela jaqueta do jovem tenente da guarda.

 

- Irmãozinho - cochichou. Em contraste com o seu horrendo corpo, tinha uma voz normal, quase melodiosa. Agrada-te?

 

- Que significa essa pergunta? - respondeu friamente o tenente.

 

- É preciso que te ocupes dela. Nicolau Alexandrovitch preocupa-me. Sei ler nos seus olhos como num livro. E neste momento está lá escrito: «Amo-a!» Isto não pode ser. Nicolau Alexandrovitch é a Rússia...

 

 

A área à volta da Sennaia Ploschtschad - a Praça do peno - e as ruas e vielas adjacentes eram consideradas os lugares mais mal-afamados e perigosos de Sampetersburgo. As recônditas vielas, que mais se assemelhavam a caminhos do Inferno, os pátios interiores das casas estreitas encostadas umas às outras, os mercados cobertos e os depósitos de coisas usadas, formigavam de homens com um braço amputado ou com uma perna de pau, um só olho ou o rosto cheio de cicatrizes. Pouquíssimas destas coisas eram de nascença; tratava-se quase tudo de recordações de brigas violentas, assaltos, viagens aventurosas a qualquer região desconhecida e desolada da Sibéria ou doenças não curadas. Quem tinha ali dinheiro para ir ao médico?

 

Qualquer deles tinha sido posto no mundo, de uma forma ou de outra, em cima de um enxergão, num quarto sujo, e tinha crescido no meio da imundície apodrecida e malcheirosa, dos ratos horríveis, dos gatos vagabundos, das montanhas de lixo, e tinha ido vivendo com os piores trabalhos, furtos, fraudes e mendicância, e por isso não tinha podido tornar-se senão aquilo: escória da humanidade, apenas capaz de vegetar e de viver, como os cães vadios, dos restos dos homens mais afortunados.

 

Precisamente naquele quarteirão das «almas mortas», cheio de prostíbulos e de lugares infames, asilo de chulos e de ladrões, onde o delito nocturno era um hábito, ali, o escritor russo Fedor Michailovitch Dostoievski escrevera, durante muitos anos, o seu romance Crime e Castigo. Tinha morado mesmo ali, na Rua Stoliarny, e o protagonista do seu romance, Rodin Raskolnikov, vivia no número 14. Não longe daquela casa, na estreita Rua Krasnogary, perto do bairro judeu dos Zabalkanski, no primeiro andar por cima da velha loja de coisas usadas do honrado Tikon Benjaminovitch Minaev, morava - temida por todos - Rosália Antonovna Bondareva.

 

De facto, ela era temida: acocorava-se diante de uma banca de hortaliças no mercado coberto da Sennaia Ploschtschade, e a sua especialidade eram os pepinos, as cebolas e os nabos. Era alta, com ancas largas, o peito enorme e os cabelos loiros e encrespados, quase a tornarem-se brancos. Quando se sentava de pernas abertas perto da sua bancada de madeira, tendo debaixo do avental três compridas saias e um casaco de lã, quer se gelasse com o frio ou se morresse de calor, o lenço a cair para as costas, as mãos vermelhas apoiadas nos quadris, então, quem quer que passasse perto sabia que tinha de ter cuidado.

 

Algumas vezes tinha havido brigas, mas só nos primeiros anos. Um homem com o rosto marcado pelas bexigas, com a alcunha de «o Aguilhão», servindo-se de um dos magníficos pepinos de Rosália, fizera-lhe gestos obscenos. Ela bateu-lhe com um cacete com tanta força que tiveram de levá-lo em braços; durante quatro semanas, o malandrim andou com a cabeça ligada e teve problemas de equilíbrio.

 

Rosália recordava também triunfalmente um incidente ligado à sua féria do dia. Quando voltava para casa, três jovens malandros que estavam à espreita, tinham-na assaltado por três lados. Nunca o deviam ter feito! O primeiro foi bater no punho dela, que tinha uma força prodigiosa, o segundo recebeu um pontapé no baixo-ventre e o terceiro, antes que pudesse alcançar a bolsa de couro com os rublos que a Bondareva escondia no seio -, apanhou um tal soco no meio do rosto que lhe pareceu ter sido atacado por um touro enraivecido.

 

Com o decorrer dos anos, Rosália Antonovna tinha-se tornado uma das pessoas mais respeitadas naquele tétrico bairro. Até a polícia se limitava a ouvir quando alguém fazia alguma queixa a seu respeito:

 

- Tinha ido à sua banca, porque queria comprar pepinos. Via-os ali, uns ao lado dos outros, luzidios, de tonalidade verde-escura, uma verdadeira maravilha! Mas sabe-se lá... às vezes por cima estão esplêndidos e por baixo estão podres. Então agarrei nos pepinos, examinei-os, olhei-os por todos os lados... e aquela mulher horrível começou a berrar: «Tira as patas, leproso!» Respondi-lhe com gentileza: «Mãezinha, ganhei honestamente os meus copeques a trabalhar no duro, não posso ser roubado. Quero ver bem antes o que vou meter na panela!» E, então, que fez ela? Bateu-me com um pau, enxotou-me dali e ainda me atirou com uma grande cebola podre. Quero queixar-me dela!

 

Aquela mulher é uma vergonha para qualquer mercado digno.

 

A polícia ouvia ao longo dos anos inúmeras queixas como esta. Depois de apaziguar os ofendidos com palavras de compreensão, mandava um agente ao mercado, o qual evitava irritar a Bondareva, preferindo beber com ela, dentro da barraca, uma garrafa de vodca ou um licor de bétula, feito por ela própria segundo antigas receitas da sua região.

 

O passado de Rosália Antonovna perdia-se na obscuridade. Tinha chegado dezoito anos antes a Sampetersburgo, em estado de gravidez adiantada. Toda a sua bagagem se compunha de um saco de pano colorido, com roupa interior, uma velha Bíblia, um pequeno e usado ícone de viagem, um pacote com açúcar e milho, um pedaço de toucinho fumado, uma faca afiada, um pequeno machado, uma corda de cânhamo e uma carta assinada pelo chefe da aldeia de Tatschenovo; nesta estava escrito que o seu nome era Rosália Antonovna e que era chamada Bondareva, porque estava em estado interessante e o pai devia ser um tal Bondarev.

 

Tatschenovo fica nas proximidades do lago Ladoga e é uma região no meio de imensos bosques, campos de couves e pântanos; é conhecida pelos seus vimes e juncos, com que são feitos cestos, bandejas, esteiras, assentos de cadeiras, quebra-luzes e até tampos de mesas.

 

Naquele tempo Rosália era uma rapariga graciosa e trabalhava como criada na casa do conde Seratzky. Era alta, com seios grandes e pernas robustas. Tinha cabelos loiros, cor de trigo maduro.

 

Era raro encontrar-se uma mulher tão bela na região do lago Ladoga e aconteceu tudo o que tinha de acontecer: primeiro foi o velho conde Seratzky, que reencontrou um pouco de juventude graças à exuberância de Rosália; depois coube a vez ao seu primo, e quando, finalmente, ela foi para a cama com o filho mais velho do conde, rebentou um grande escândalo.

 

Rosália foi despedida e a sua adolescência acabou. Mas uma rapariga como ela gostava de mais dos homens para andar muito tempo sozinha. Que vida aquela! De facto, não era muito moralista - e, aborrecido, o pope tinha-a mandado chamar bem umas quatro vezes para tentar convencê-la a mudar; tinha-a confessado e depois, com voz profunda, descrevera-lhe os tormentos do Inferno, repetindo com ela todos os actos de contrição. Mas quando, à quinta vez, ela abriu a blusa para mostrar ao pope onde tinha sido mordida pelo chefe de caça do conde, naquela vez no bosque de bétulas, e como era grande aquela mancha vermelha no seio, o velho padre cobriu o crucifixo, na sua sala atrás do altar, pedindo a Rosália para ficar mais um pouco.

 

O Diabo deve ser arrancado pela raiz!

 

Ninguém se admirou quando Rosália apareceu subitamente grávida; havia apenas muitas dúvidas de quem seria o pai. Podiam ter feito contas para incriminar o responsável, mas era difícil obter uma resposta certa por este método. O padre Ifanasy, o pope, foi o único que conseguiu libertar-se do jogo do empurra: explicou de forma resoluta que estava fora de qualquer suspeita com os seus quase setenta anos!

 

Rosália Antonovna decidiu finalmente que o pai devia ser um tal Felix Jevsejevitch Bondarev. No período fatal tinha vivido na propriedade do conde; era representante de máquinas agrícolas na cidade de Novgorod e tinha levado à experiência uma máquina automática, que funcionava a vapor, para a recolha dos nabos. Tinha-se encerrado durante oito dias nos braços macios mas fortes de Rosália e, quando se foi embora, Rosália chorou pela primeira vez por um homem.

 

Pouco tempo depois, teve a certeza de que estava grávida; a parteira de Tatschenovo foi vê-la e disse-lhe amigavelmente:

 

- Até que enfim! Todos estávamos à espera disso! E agora? Com quem é que vais casar?

 

Mas disso nem falar. Rosália resolveu, apenas por causa da criança, que tinha de mudar de vida e tornar-se uma coisa diferente de uma criada. Pediu a bênção ao padre Ifanasy e mudou-se do lago Ladoga para Sampetersburgo.

 

Era bastante natural que tivesse desembarcado naquele bairro de Sennaia Ploschtschad, onde, com os poucos rublos que pusera de lado, alugou um quartinho numa velha casa decrépita; foi ali que, estendida num enxergão, a 27 de Maio de 1875, vinte minutos antes das duas, deu à luz uma filha.

 

Foi assistida no parto pela mulher do ferro-velho Tikon Benjaminovitch Minaev, que naquele tempo ainda era viva, embora já estivesse tuberculosa. Mas onde é que estava o dinheiro para chamar uma parteira ou um médico? Estava habituada a desenrascar-se sozinha; embrulhou a recém-nascida nalguns farrapos e pediu a Deus que a deixasse viver.

 

Rosália deu à filha o nome de Matilda Felixovna.

 

Matilda, porque uma vez ouvira um contador de histórias vagabundo contar a lenda de Matilda e o alce - uma tristíssima lenda da taiga -, na qual um príncipe de gelo desempenhava o papel principal.

 

Naquela altura, Rosália tinha chorado muito. Nunca mais esquecera a lenda. Para ela, tinha representado uma grande emoção espiritual. Não sabia ler nem escrever, só sabia escutar, ver e falar.

 

Chamou à filha Felixovna, porque tinha os cabelos negros como o representante de máquinas agrícolas Bondarev, com a sua máquina para colher nabos. Para ela, aquela era a prova de que ele era o verdadeiro pai; e quando olhava atentamente para Matilda, parecia-lhe ver os olhos daquele Bondarev.

 

A vida de Rosália em Sampetersburgo era muito dura. Os primeiros anos foram de luta, porque os lugares do mercado estavam todos ocupados e não eram permitidas novas bancas - vender rendia-lhe muito pouco, permitindo-lhe apenas a sobrevivência. Para não morrer de fome com a sua menina, Rosália varria, durante o Verão, o caminho do cemitério de Tschvinski.

 

Estavam ali sepultadas personalidades famosas. Mas como se poderia esperar que Rosália as conhecesse? Levava Matilda consigo, metida num lenço que pendurava ao peito, depois punha-a a dormir atrás de qualquer sepultura, e quando ela chorava dava-lhe de mamar. Esta última operação era quase sempre feita junto ao túmulo do compositor Glinka, não porque ele tivesse escrito uma música magnífica, que disso ela não percebia, mas porque havia um banco de pedra nas proximidades onde podia sentar-se e dar de mamar calmamente.

 

Durante o Inverno raspava a neve dos passeios das amplas avenidas e, com uma picareta, quebrava o gelo do asfalto das pontes. Era um trabalho cansativo, pago com poucos copeques, e, no entanto, Rosália só o conseguira porque permitia a um chefe dos canteiros das estradas imperiais repousar de vez em quando nos seus belos seios.

 

Em 1879, morreu a viúva Maruta Diogenovna. Tinha uma banca de hortaliças no grande mercado coberto e sempre demonstrara em relação a Matilda, que contava então quatro anos, um profundo afecto. Rosália comprava pepinos e cebolas a Maruta e, quando era a altura das maçãs, esta metia sempre um presente no saquinho dos pepinos.

 

Numa manhã muito fria, Maruta desmaiou de repente e ficou estendida por terra junto da sua banca, com os olhos revirados. Levaram-na para a loja mais próxima - a do merceeiro Pjotijev -, puseram-na a um canto, junto a um saco de farinha, e chamaram um tal Sulchov; dizia-se dele que havia sido médico, mas que uma amante tinha-o levado para o álcool e dali para a ruína. Vivia agora numa viela suja e as pessoas recorriam a ele quando os remédios caseiros não davam resultado.

 

Era este o caso de Maruta Diogenovna. Sulchov diagnosticou-lhe uma apoplexia e aconselhou que a deixassem morrer em paz perto do saco de farinha.

 

Mas Maruta ainda viveu o suficiente para mandar chamar Rosália. Deixou-lhe de herança a banca e tudo o que lhe pertencia. Tratava-se de uma mesa de madeira, uma lona, quatro suportes, um pequeno fogão de ferro com o cano da chaminé incorporado, um carrinho com duas rodas e uma útil confidência: «Recorre sempre ao director do mercado, o Stepan Mironovitch! Ele ajudar-te-á. Diz-lhe só que soubeste por mim que ele é um grande larápio, e que vive a meter ao bolso o dinheiro dos outros. Ele engana a Administração!»

 

Em seguida, morreu, rodeada pelas quatro velas que o merceeiro Pjotijev tinha acendido à sua volta no chão. Os presentes rezaram acocorados e depois levaram-na dali. Rosália nunca soube se ela tinha sido enterrada em qualquer sítio ou se simplesmente a tinham jogado ao Neva. Mas isso não era muito importante...

 

De um dia para o outro, Rosália Antonovna passou a uma condição não só de prosperidade mas também de independência. Na madrugada do dia seguinte levou o seu carrinho para o mercado geral, onde os camponeses se juntavam com os seus produtos e onde enormes carros vinham buscar o fornecimento para toda a cidade de Sampetersburgo.

 

Logo naquele dia ficou demonstrado que Rosália era uma pessoa a respeitar: negociava e comprava, cobria de insultos os fornecedores, chamando-lhes «sacos vazios» ou «cabeças de vento», ou recorrendo a outros termos que exprimiam os mesmos conceitos, batia nos comerciantes que, a rir, tentavam tocar-lhe nos seios espetados e finalmente voltou para o mercado de Sennaia Ploschtschad com as melhores hortaliças que se podiam desejar. Eram hortaliças e legumes que normalmente só apareciam nas cozinhas dos nobres: sem manchas, sem partes podres, limpas e fresquíssimas. Até dava gosto olhar para elas!

 

Por causa da óptima qualidade, Rosália subiu todos os preços em meio copeque.

 

Começou a propagar-se no mercado uma certa inveja. Espalhou-se o boato de que ela só conseguia boas mercadorias porque era uma espia da famigerada polícia secreta imperial, a Ocrana, e que por isso habitava naquele bairro particularmente suspeito. Dizia-se também que Maruta não lhe tinha deixado de livre vontade as suas coisas de herança, mas sim que ela, no último minuto de vida da viúva, a tinha convencido a deixar-lhe a sua banca.

 

A testemunha ocular Pjotijev negou tudo isto resolutamente, mas depois de ter sido sovado por dois desconhecidosi a ponto de não conseguir quase respirar durante quatro dias, de repente esqueceu-se de tudo e deixou de cumprimentar Rosália Antonovna quando ela passava por ele.

 

Mas, como é evidente, ainda ninguém sabia de que tipo era Rosália!

 

Com grande ternura materna, vigiou o desenvolvimento da sua filhinha, e um dia reparou, admirada, que a miúda era dotada de uma graça que sensibilizava o coração. Logo que ouvia uma música - que em geral vinha de uma flauta ou da guitarra de qualquer tocador ambulante -, Matilda começava a mover-se com muita elegância; uma vez, ao som do acordeão de um saltimbanco, dançou com verdaeira habilidade, balançando as perninhas, movendo os braços como lírios ao vento e saltando nas pontas dos pés sem que nunca ninguém lho tivesse ensinado ou explicado como se fazia!

 

O coração de Rosália encheu-se de orgulho e de admiração. Decidiu que nos dias de mercado grande - quartas e sábados - iria mandar Matilda dançar na frente da sua banca.

 

Aquilo sim, era uma coisa sensacional!

 

Enquanto os clientes rodeavam a banca de Rosália e observavam a graciosa bonequinha de caracóis negros que dançava ao som da flauta, tocada por um bêbado vesgo do bairro, os lucros diários de Rosália aumentavam dez copeques, que ela gastava a beber, segundo diziam os outros vendedores à polícia, denunciando-a por os incomodar.

 

Mas tinham de resignar-se. Não havia nenhuma regra que proibisse a dança nos mercados, mesmo que este fosse um meio de atrair os clientes; e, além disso, a garota agradava aos polícias, os quais lhe davam alguns copeques para comprar rebuçados.

 

Com sete anos sabia dançar como uma ciganinha. Rosália decidiu organizar o seu negócio de uma forma diferente. Durante uma hora, vendia hortaliça... durante meia hora, apresentava um espectáculo de dança. Depois fazia girar um velho pratinho de lata entre a multidão, e Matilda ganhava mais com os seus graciosos movimentos que Rosália com os pepinos, as cebolas e as cenouras.

 

Um dia, no Verão de 1884, tinha Matilda nove anos, deu-se o encontro com Tâmara Jegorovna. Foi por puro acaso, em primeiro lugar porque estava previsto um espectáculo de dança para aquele dia, e em segundo lugar porque a Jegorovna acompanhada por dois oficiais hussardos, se tinha aventurado naquelas paragens ermas à volta do mercado, pois queria aperceber-se de todas as expressões da miséria humana. Por três vezes atiraram lixo contra a sua carruagem e prostitutas exageradamente maquilhadas levantaram as saias e gritaram obscenidades de todo o tipo à passagem da professora de ballet e do seu séquito, e só a intervenção de quatro polícias conseguiu impedir que parassem a carruagem, desatrelassem os cavalos, para os matar em plena rua, e roubassem e espancassem os senhores que estavam dentro dela.

 

Sem acreditar nos seus próprios olhos, a Jegorovna viu dançar a menina dos longos caracóis negros.

 

- Isto é um milagre! - disse. - Um milagre dançante! Veja aqueles movimentos, Kyrill Ivanovitch! A graça das mãos... música até à ponta dos dedos! E como a miúda coloca as pernas! Meu Deus, como consegue elevar-se! E tudo isto vai perder-se neste inferno? Tenho de falar com ela, ver a mãe! Aqui está sendo dissipado um talento preciosíssimo.

 

Satisfazer aquele desejo tornou-se extremamente difícil. Acompanhado por dois polícias, o capitão da cavalaria hussarda, príncipe Kyrill Ivanovitch Trubezkoi, conseguiu finalmente infiltrar-se por entre a multidão curiosa, enquanto o outro oficial e dois polícias ficavam de guarda à carruagem. A Jegorovna estava sentada perto do condutor, para continuar a seguir, olhando por cima das cabeças, a exibição da garota.

 

- Quem é que quer falar com ela? - perguntou Rosália Antonovna rudemente. Olhou para o capitão de cavalaria com evidente desprezo, voltando-se para o polícia, que era seu conhecido.

 

- Tenham vergonha! - berrou. - A minha menina só tem nove anos e vocês já a querem engatar? Como uma prostituta? Ah, que raça de polícias! Chega um distinto senhor, vê a minha Matilda, cria água na boca... e o que faz a nossa polícia? O papel do rufião! Por Deus, não pensem que eu não o vou impedir, ilustríssimo senhor...

 

- É o príncipe Trubezkoi - interrompeu-a o sargento da polícia em voz baixa, enquanto corava muito. - Rosália Antonovna, queira ouvir...

 

Nem que fosse o czar em pessoa, ainda é uma criança!

 

- Vem só a pedido de Tâmara Jegorovna - disse o polícia visivelmente constrangido. Envergonhava-se que o príncipe visse e ouvisse das pessoas tanta porcaria.

 

E quem é essa Jegorovna? - gritou de novo Rosália. Pôs as mãos nas ancas alargadas e voltou-se para a multidão. - Qual de vocês conhece a Jegorovna? Hem?

Quem e que conhece o bordel da Jegorovna? Apanha as meninas na rua para divertir os senhores...

 

Vamos embora - disse Trubezkoi irritado. - Isto é repugnante. Incrível, no que um ser humano pode tornar-se...

 

Naquele momento, Tâmara Jegorovna atravessou por entre a multidão. Com o seu enorme chapéu ornamentado com penas de avestruz, vestida com um vestido comprido de seda bordada, acocorou-se na lama junto de Matilda e fixou o seu rostinho magro, suado pelo esforço que tinha acabado de fazer. Os grandes olhos tranquilos devolveram o seu olhar. Aqueles olhos tinham mais de nove anos e olhavam com grande seriedade para o futuro, para o desconhecido.

 

Aquele olhar comoveu a Jegorovna, que tirou do decote do vestido um lencinho perfumado e enxugou o suor do rosto da garota. Esta ficou rígida, como se se tivesse de defender de alguém, e quando a Jegorovna recolheu o lencinho disse:

 

- Cheira tão mal! Agrada-te?

 

- Deixe estar a criança! - gritou, intrometendo-se, Rosália Antonovna. - Vem para aqui, meu tesouro, vem imediatamente para aqui! É verdade que cheira mal! Fixa bem este cheiro... é o cheiro dos exploradores!

 

- Como te chamas? - perguntou a Jegorovna calmamente. Continuava acocorada junto da miúda, contente por os polícias terem formado uma sólida barreira entre ela e a mãe.

 

Entre a multidão serpenteava um murmúrio de indignação. Não ousou olhar à volta. Parecia-lhe uma cena do Inferno.

 

- Matilda Felixovna - respondeu a criança. - E tu?

 

- Tâmara Jegorovna. Sou bailarina.

 

- Que bonito! - disse Matilda. - E em que mercado danças?

 

- Na Ópera.

 

- O que é a Ópera?

 

- Uma casa grande e solene, que tem dentro um palco e uma orquestra com muitos músicos, e quando se dança, vestem-se roupas sumptuosas, e entre a assistência estão o czar, a czarina, todos os grão-duques e grã-duquesas, os príncipes e os condes, os oficiais, os ministros... Estão milhares de velas acesas e no fim do bailado todos me vêm felicitar, levando-me enormes corbelhas de flores, convidando-me para cear e oferecendo-me deliciosos vinhos e champanhe gelado...

 

- Não sei que coisas são essas - disse Matilda. Ofereces-me um copeque?

 

- Um rublo de ouro, Matilda.

 

- Nunca vi nenhum...

 

- Vá buscar a minha filha! -gritou Rosália Antonovna para o polícia. - Será possível que ninguém me ajude? Velhacos! Vejam com os vossos olhos como procuram roubar-me a filha! Querem corrompê-la com um rublo de ouro! A minha única filha, a luz dos meus olhos, a minha alma! Como Satanás, tentador de Jesus Cristo no deserto, chegam e querem levar-me a minha filha! Ajudem-me, irmãos, ajudem-me...

 

Os lamentos ainda duraram algum tempo, até que a Bondareva tapou a sua banca e decidiu que o seu dia de trabalho tinha acabado. Arrumou as hortaliças todas no carrinho, atrelou-se ao timão com uma grossa correia de couro e fincou no chão as fortes pernas.

 

- Bem - disse à Jegorovna, que tinha ajudado, perante o horror do oficial, a guardar os legumes. - Venha connosco, ilustríssima. Moro na Krasnogary. Tenho um quarto por cima do ferro-velho Minaev. É só um quarto, mas tão limpo como um espelho! Vai ficar admirada, mas pode-se ser asseada mesmo vivendo na imundície. Se não lhe fizer muita diferença, venha connosco...

 

E foi assim que, naquele dia de Verão do ano de 1884, Tâmara Jegorovna entrou pela primeira vez no pequeno quarto em que Matilda tinha nascido. Sozinha, porque os dois oficiais tinham ficado na carruagem e, com os cortinados corridos, discutiam se ninguém no Governo ainda teria tido a ideia de reduzir a cinzas aquele bairro medonho e voltar a construir, sobre ruínas, casas novas.

 

E preciso eliminar a plebe! - afirmava o príncipe rubezkoi com uma certa excitação. - Transportá-la para qualquer outro sítio, para a periferia da cidade. Os ratos adaptam-se a qualquer parte onde haja imundície acumulada.

 

Nesse meio tempo, os polícias tinham bloqueado a viela, contra perigosos Grupos de figuras sinistras,que, armadas com machados e cacetes, haviam-se juntado no local. Tinha-se espalhado rapidamente a notícia de que era preciso libertar Rosália Antonovna, universalmente amada, de alguns grandes senhores.

 

- Sabe o que é o Teatro da Ópera Imperial? - estava a perguntar-lhe, nesse momento, a Jegorovna. Rosália fez um sinal negativo com a cabeça, e, entretanto, pôs na mesa dois copos e uma garrafa com um líquido verde-amarelado.

 

- Todo o ano, pico o gelo que se forma aí na frente respondeu rudemente. - A fim de que os ilustríssimos senhores não escorreguem e não partam os seus ossinhos delicados. Durante o Inverno, o mercado está quase deserto. E nunca deixei Matilda dançar no gelo, nem penso deixá-la! Não pode, portanto, arruinar os pulmões. Também tiro o gelo das avenidas e das pontes. - Deitou um pouco de líquido num copo, que empurrou na direcção de Tâmara Jegorovna.

 

- O que é isto? - perguntou a Jegorovna cautelosamente.

 

- Pensa que eu bebo veneno? É o meu licor de bétula... Essência de bétula e mel! Recebi a receita da minha mãe antes de um raio a fulminar. Justamente debaixo de uma bétula! O que as coisas são...

 

Beberam; o licor tinha um agradável sabor agridoce e fazia vir à mente a frescura dos prados floridos.

 

- Quero levar a Matilda comigo! - disse a Jegorovna sem mais rodeios.

 

Rosália sacudiu a cabeça com firmeza. Apontou para o pequeno machado que nove anos antes tinha trazido no saco de viagem e que estava pousado num banquinho junto à porta, pronto para qualquer eventualidade.

 

- Antes que isso aconteça, prefiro matá-la!

 

- Há dois meses que dirijo a Escola Imperial de Bailado, Rosália Antonovna. Quero ensinar a sua Matilda. Tornar-se-á uma grande bailarina, talvez uma das melhores que a Rússia gerou. A graça de Deus dotou a sua filha com um talento único! Sabia? Onde está o pai dela?

 

- Chamava-se Bondarev e vendia máquinas agrícolas para apanhar nabos! - Rosália voltou a encher os copos. - Na verdade, amei-o muito. Quando se foi embora, fartei-me de chorar, durante muitos e muitos dias. Desde então não voltei a ter lágrimas. Não tenho tempo de chorar, é preciso andar para a frente, lutar pela sobrevivência. Vivo só para a Matilda... e a senhora quer levar-ma?

 

- Mas ela continuará a viver aqui consigo! Viremos buscá-la todas as manhãs e trazê-la todas as tardes.

 

- Numa carruagem?

 

- Sim, na carruagem da Ópera Imperial.

 

- A senhora quer que eu seja apedrejada?

 

Rosália emborcou o seu copo como um carroceiro, deitando a cabeça para trás e engolindo de um trago todo o licor. - Não sei o que hei-de fazer!

 

- Matilda terá um dia o mundo a seus pés - disse a Jegorovna. - O seu nome dará a volta ao mundo: o milagre de Sampetersburgo! A senhora não pode impedi-lo.

 

- Posso, sim. Enquanto eu viver, ninguém passará por cima de mim.

 

- Ela ainda é muito jovem, mas quando tiver catorze ou dezasseis anos há-de compreender o dom que possui e então fugirá de si. Não conseguirá prendê-la. Não quererá criar mofo aqui na Sennaia Ploschtschad.

 

- Ela jamais se tornará a amante de qualquer distinto senhor. É para isso que eu aqui estou.

 

- Não sabe falar de mais nada?

 

- E há qualquer outra coisa para uma pobre rapariga quando cai nas redes de qualquer ilustríssimo? Tenho bons motivos para o dizer porque também passei por isso. Sei o que significa dormir na cama de um conde, entre lençóis de seda...

 

- Matilda será vestida e cuidada - disse a Jegorovna de modo resoluto. - Não passará mais nenhuma necessidade” ? a. administração do Bailado Imperial mandar-lhe-a, a si, cinco rublos por semana...

 

Isso é uma loucura! - disse Rosália, esfregando os olhos. Levou a garrafa à boca e bebeu um grande gole de licor. Cinco rublos por semana? Ouviste, Matilda? Uferecem-nos cinco rublos por semana, presenteiam-te com vestidos, poderás comer o que quiseres, vêm buscar-te e trazer-te e tudo isto porque sabes saltar para um lado e para outro como uma borboleta! Cinco rubros por semana! Não é uma loucura, Tilduschka? não quero! - Matilda acocorou-se perto da janela, olhou para fora e observou os cavalos na frente da carruagem resplandecente. O cocheiro, de libré, com um grande chapéu de plumas na cabeça, estava sentado na boleia e parecia aborrecido.

 

Nas duas extremidades da viela estava a juntar-se uma multidão, e cada uma daquelas pessoas trazia na mão qualquer coisa que servia para bater.

 

- A senhora disse que eu terei de beber champanhe? O que é isso?

 

- Um vinho ridículo que faz cócegas no nariz! - Rosália abanava a cabeça. - Bebem-no as pessoas finas, porque para elas a aguardente é muito vulgar. Mas, porque é que ela vai ter de beber champanhe?

 

- Um dia, Matilda fará parte da aristocracia - respondeu a Jegorovna. - Será uma rainha.

 

- Mas isso é uma verdadeira loucura! - gritou Rosália Antonovna, pondo-se na frente da filha e atirando o queixo para diante como se quisesse brigar.

 

- Vá-se embora, Tâmara Jegorovna - disse aos berros. - Por cinco miseráveis rublos por semana, não quero que o meu cisnezinho acabe no manicómio...

 

Três dias depois, às sete da manhã, uma carruagem discreta, puxada por um cavalo triste e ossudo, parou diante da casa do ferro-velho Minaev.

 

Matilda saiu da casa, saltou para o veículo e fechou rapidamente a porta atrás de si, como se tivesse medo que alguém ainda a pudesse prender... No corredor escuro da casa, Rosália Antonovna chorava amargamente, com o peito imponente sacudido pelos soluços. Limpando os olhos inchados e vermelhos com um trapo, apoiava-se no franzino Minaev, quase o esmagando contra a parede.

 

- A partir de hoje começa uma vida nova! - disse entre os soluços que pareciam dilacerar-lhe o coração. - Tikon Benjaminovitch, segure-me! O meu belo cisne foi-se embora. Para o Bailado Imperial! Em breve deixará de nos compreender. Envergonhar-se-á da mãe e quando voltar para casa começará a arrebitar o nariz. Falará de modo afectado, como as belas senhorinhas, e usará água-de-colónia francesa. Eu perdi-a...

 

- Quando voltar, tem de lhe dar uma surra! – disse Minaev sombrio. - Isso sempre ajudou, desde há séculos. Um vergãozito no traseiro convence mais que mil palavras. Mas acho que ela é uma boa menina. Nunca esquecerá tudo o que a mãe fez por ela.

 

Rezarei por ela. - Rosália Antonovna juntou as mãos. Lá fora, os cavalos começaram a andar e o estrépito dos cascos foi-se afastando lentamente. - Vou rezar: Meu Deus, que estás no Céu, vela por ela! Tu deste-lhe este talento... agora protege-a... Ouvir-me-á Ele, Tikon Benjaminovitch?

 

Com toda a certeza! - O velho Minaev libertou-se do peso opressivo de Rosália. - As orações das mães são as mais gratas para os Seus ouvidos...

 

Assim começou o caminho de Matilda Felixovna do pântano da viela Krasnogary para o sol da arte.

 

Um difícil caminho feito de suor, lágrimas, disciplina e abnegação, resignação, dúvidas, rebeliões e um infinito amor pela dança.

 

- Eu também era uma criança pobre - tinha dito a Jegorovna a Rosália Antonovna naquele dia do Verão de 1884. - Conta-se que o meu pai possuía um moinho em Novgorod. E eu nunca o neguei. Deveria talvez dizer que era um escravo da gleba e que apenas a partir de 1861 se tornou um homem livre e deixou de ser um animal com rosto humano? Pode orgulhar-se... Você era a criada de um conde! Mas eu, desde criança, não passava da cria de uma cadela. E no que foi que me tornei?

 

Depois destas palavras, qualquer coisa se tinha rompido no coração de Rosália Antonovna, até então tão vazio. Havia abanado a cabeça, puxara para si Matilda e dissera num tom muito sério:

 

- Está bem. Vai para o Bailado Imperial. Mas matá-los-ei a todos se ela se tornar amante de um desses distintos senhores...

 

Ppode-se portanto compreender porque Rosália ficou em pânico quando, num certo 15 de Outubro, Matilda foi levada a casa numa carruagem da corte, pálida e em estado de choque, incapaz de dizer palavra, o olhar vago, acompanhada até dentro de casa por um jovem tenente da guarda, que se limitou a dizer:

 

Ela deve ter repouso absoluto, Madame Rosalia ficou muito agitada, era a primeira vez que a tratavam daquele modo e não sabia muito bem se «Madame» era uma honra ou uma ofensa.

 

- A Demoiselle desmaiou. O czaréviche beijou-lhe a mão...

 

Faltou pouco para Rosália também desfalecer. Agarrou-se à borda da mesa, olhou para a filha, que, entretanto, havia sido deitada na cama comprada há pouco tempo e que tinha os olhos fechados como uma morta, e disse em voz abafada:

 

- O czaréviche? Beijou-a? Só falta o céu desabar! E quem é o senhor, ilustríssimo?

 

- Boris Davidovitch von Soerenberg, tenente da guarda. - O jovem oficial tirou o boné. - Posso ficar perto da Demoiselle até que ela acalme?

 

Rosália Antonovna disse que sim em silêncio. Tinha um nó na garganta, como quando dera conta de que estava grávida e não podia dar um nome ao filho.

 

- Porquê? - perguntou com um fio de voz.

 

- Fui encarregado por Sua Alteza Imperial de tomar conta de Demoiselle Matilda. - Boris Davidovitch sentou-se na beira da cadeira e olhou para Matilda. Esta jazia no leito, com o rosto muito pálido, mas de uma beleza indescritível, e mal respirava. - Estou às vossas ordens, Madame.

 

Naquele momento, Rosália Antonovna soube que a sua vida também tinha mudado. Era impossível continuar a vender pepinos, cebolas, cenouras e outros legumes no mercado de Sennaia Ploschtschad depois de o herdeiro do trono ter beijado a mão da sua filha.

 

 

Na mesclada multidão de aleijados e de ladrões, de entrevados e de esfarrapados, não se reparava que um horrível anão com uma cabeça enorme andasse por ali e fosse até perto da viela Krasnogary. Ligava-se tão bem com aquele ambiente imundo que nem sequer uma vez as crianças que brincavam na lama e construíam castelos de neve suja se viraram para olhar para ele ou ficaram admiradas com as suas pernas raquíticas.

 

O anão parou diante da casa do ferro-velho Minaev, olhou para a fachada e abanou a cabeça várias vezes. Minaev, que estava lá dentro atrás do balcão, ficou com os cabelos eriçados, como um cão que fareja um gato. Atravessou rapidamente a acanhada loja, correu para a rua tão depressa quanto as suas pernas lhe permitiam, e também a gota que o atormentava há mais de um ano, e agarrou o pequeno monstro no momento em que ele já estava a abrir a porta da casa.

 

Puxou o anão para trás e gritou-lhe:

 

- Onde é que tu vais, monstro? Estás enganado! Aqui não é de certeza a entrada para o Inferno!

 

- Não estou enganado - respondeu o anão delicadamente. - Deixa-me, velho carunchoso e malcheiroso. É precisamente aqui que mora Madame Bondareva...

 

- Qual Madame? - Minaev abriu a boca e passou a mão pelos cabelos grisalhos. - Desaparece, sapo de uma figa, antes que eu te esmague!

 

- Porque terão os homens normais de ser assim tão estúpidos? - perguntou o anão. Levantou o braço direito, os dedos transformaram-se em tenazes e agarrou Minaev pelos ombros. O velho soltou um grito agudo, recuou estonteado e, antes de poder pensar em defender-se, o pequeno monstro entrou em casa e começou a subir a escada de madeira.

 

Não se pode afirmar que Rosália Antonovna fosse uma mulher medrosa. Teria sido capaz de atravessar sozinha, de noite, um bosque cerrado e era quase certo que os fantasmas teriam fugido dela se se voltasse para trás. Mas quando bateram delicadamente à porta e, uma vez esta aberta, o anão entrou no quarto, Rosália sentiu um aperto no coração.

 

Abriu a boca, caminhou para a parede, benzeu-se várias vezes, caiu de joelhos e começou a gritar.

 

Senhor, tem piedade de mim! Eu sabia-o... sou uma pecadora, Senhor! Concede-me a Tua graça...

 

O anão continuava em pé perto da porta.

 

Madame - disse gentilmente. A sua voz era doce e harmoniosa e não tinha nada de infernal

 

A mente de Rosália enevoou-se. O Diabo chamava-lhe «Madame»? E desde quando é que se falava francês no Inferno? Abriu os olhos com cautela, voltando a benzer-se.

 

- O que quer Vossa Senhoria? - balbuciou.

 

- Sou um bobo da corte do grão-duque Nicolau Alexandrovitch, o czaréviche - disse o ser monstruoso. - O meu nome é Mustin Fedorovitch Urasalin. Pode ficar calma, Madame. Levante-se! Não fico ofendido por não lhe agradar. Também não me ofendo por o seu aspecto ser o de uma pessoa normal. Sente-se em condições de perceber aquilo que eu digo?

 

- Como o senhor quiser, Mustin Fedorovitch. - Rosália Antonovna levantou-se, mas continuou cautelosamente perto da parede. - O senhor... O senhor é mesmo só um bobo da corte?

 

- Não o pareço, por acaso? - Mustin, o anão, saltou para uma cadeira. Parecia uma aranha com uma cabeça enorme, apoiado a um canto do móvel. - Também posso ser engraçado. Sei dar cambalhotas, imitar as vozes dos animais, tocar flauta de cana e, se me pedirem, retorcer-me com convulsões ou adivinhar o futuro. Sei tudo o que um idiota deve saber para deleitar os ilustríssimos com as suas idiotices. É um prazer ver como as pessoas normais se arriscam a parecer idiotas. - Esfregou a cara larga e avermelhada pelo frio. Vim cá porque estou preocupado...

 

- Não percebo - balbuciou Rosália. Afastou-se da parede e aproximou-se da mesa, que era suficientemente larga para poder constituir uma barreira entre ela e Mustin.

 

- Sou a única pessoa à face da Terra capaz de ler no coração do czaréviche - disse ele com uma voz melodiosa. - E que vi eu? Uma violenta tempestade está a arrasar aquele coração. Uma paixão ardente por Matilda Felixovna!

 

- Que Deus me acuda! - disse Rosália, sentando-se pesadamente. - Longa vida ao czar!

 

- Tenmos de falar antes que a tempestade afaste a razão. - Mustin debruçou-se sobre a mesa. - Rosália Antonovna, o que é que nós podemos fazer? Ao ver pela primeira vez Matilda, Nicolau Alexandrovitch foi fulminado por um relâmpago. Tem de me ajudar...

 

Para uma mulher que toda a vida tinha sido serva de alguém e tivera de lutar com os dentes, os braços e as pernas, era impossível compreender o facto de vir uma pessoa do palácio imperial - mesmo que fosse um horrível anão pedir-lhe ajuda.

 

O que é que se pode dizer mais? Era como se lhe tivesse aparecido São Vladimiro em pessoa e lhe tivesse dito: «Cura-me as feridas!» Nada mais podia fazer que cair de joelhos e rezar...

 

Mas Rosália Bondareva não era mulher que se limitasse a rezar. A vida, como sabemos, tinha-a posto à prova duramente, e quem conseguiu sobreviver durante quase vinte anos no bairro mais infame de Sampetersburgo, superando todas as adversidades, só podia reagir como Rosália reagiu. Assim, depois de ter pensado um momento, disse, voltando-se para Mustin:

 

- É então assim? Pois deixem que ela volte para casa! Aqui estarei eu com a minha vassoura! Eu bem o tinha previsto! Todos a dizerem-me que não ia acontecer nada. Chega o czaréviche à Escola de Bailado, fazem-no ver quatro saltos e ele beija a mão da minha filha, porque é a que salta melhor. Claro! É assim que se portam os senhores finos. Eu bem o sei. Uma vez, quando era criada, no Norte, um conde foi visitar o meu patrão. Um tipo com uma barba loira, delicado com um elfo, com penetrantes olhos azuis. E que foi que ele fez depois de ter ido atrás de mim até ao palheiro? Primeiro, beijou-me a mão e depois pôs-me as mãos em cima!

 

- O grão-duque não fez isso! - disse Mustin com calma.

 

- Mas fará, se não trancarmos o ferrolho!

 

E disso que eu tenho medo. - O anão deixou baloiçar as perninhas magras. Parecia um insecto à procura do chão firme. - Mas a senhora não deve bater em Matilda! ~.Por acaso conhece algum método melhor? - Rosália dingiu-se para o armário, tirou de lá a garrafa com o seu lamoso licor de bétula e pô-la na mesa. Num canto da cozinha, limpou dois copos com um pano. Mustin Fedorovitch olhou para o líquido com a expressão de alguém a quem stivessem a preparar um veneno mortal. - Veio cá um jovem oficial... - continuou Rosália.

 

- O tenente Von Soerenberg?

 

- Exactamente! Boris Davidovitch, não é? Disse-me: «Tenho ordem para tomar conta da Demoisel1’-.» E que foi que ele fez quando a estúpida da minha filha perdeu de novo os sentidos? Sentou-se perto da cama, pegou-lhe na mão e fez uma cara cheia de admiração! Desde então, já voltou três vezes, sempre que ela regressa da escola. Segue a carruagem a cavalo, como se se tratasse de uma excelência. É espantoso! No mercado dizem-me: «Então, que história é essa? O que é que fazes ainda aqui? Porque é que não vais para a corte? Devias mandar pintar por cima dos teus pepinos a águia do czar!» Devíamos pensar em nos irmos embora de Sampetersburgo...

 

- Seria de facto uma solução! - disse Mustin, que pareceu surpreendido. Viu Rosália despejar a bebida e engolir de um trago o primeiro copo, como se quisesse demonstrar que não se tratava de nenhuma tragédia.

 

- Moscovo é uma grande e bela cidade, por exemplo. Ou então Odessa... - disse o anão pensativamente.

 

- Mas o ballet...

 

- Em Moscovo há uma óptima escola. E Odessa? Madame, sabe que Odessa tem o mais belo teatro de ópera da Rússia? Mas que digo eu... da Rússia? Do mundo inteiro! Uma verdadeira maravilha!

 

- Mas lá não há nenhuma Tâmara Jegorovna.

 

- Que fará pouca falta, porque em Odessa, Matilda eclipsará a fama da Jegorovna.

 

- Então, trá-la-ão de novo para Sampetersburgo, para o Bailado Imperial! Não conseguiremos evitar a viagem de regresso.

 

Depois do terceiro copo de licor de bétula, a lógica de Rosália parecia ter-se tornado particularmente brilhante. Mustin apoiou apenas os lábios no copo e começou logo a tossir. Estava habituado ao champanhe. Bastou-lhe um golinho para sentir a garganta a arder, como se tivesse sido cauterizada.

 

- Como é que consegue aguentar isto, Madame? perguntou o anão, enquanto respirava com dificuldade.

 

- O quê?

 

- Este licor.

 

- A gente habitua-se, Mustin Fedorovitch. A aguardente alarga o coração e estimula a circulação do sangue!

 

Tudo se torna mais claro à face da Terra! Pensa que eu poderia suportar esta vida sem a ajuda desta garrafa? Levo-a para a cama comigo. É mais segura que um homem e dá-me menos problemas. Despejou o quarto copo, coçando a cabeça.

 

- Mustin, um estranho nome para um ser humano...

 

- Sou natural do Azerbaijáo.

 

- Ah! E onde é que isso fica?

 

- Lá para o Sul. Onde estão os seguidores de Maomé.

 

- Oh, Céus! E você é um deles?

 

- Sou. - Mustin bebeu um outro gole, com cautela. À segunda vez queimava menos, e podia-se até sentir o sabor do mel. - Mas ninguém pensa nisso quando vê alguém com o meu aspecto. Vim para Sampetersburgo há cinco anos. Vivia na região de Schemacha, guardava as ovelhas do meu tio e alimentava os seus bichos-da-seda. Tínhamos uma seda maravilhosa! Os tecidos de Gizan são vendidos em todo o mundo. Um dia, passou uma delegação a cavalo por aquelas pastagens. Um dos chefes viu-me, parou o cavalo como se estivesse na frente de um precipício e disse-me: «Chega aqui, sapo!» E quando eu respondi «Sapo será você!», mandou-me prender e arrastou-me até à cidade. Ali fui retratado de todos os lados, deram-me um rublo de ouro e mandaram-me embora. Mas dois meses depois estavam lá de novo. E vi que me procuravam. Então fugi e escondi-me numa caverna subterrânea; mas eles tinham cães e, então, continuei até à montanha... Acossaram-me como se eu fosse um animal feroz, e depois de três semanas estava tão fraco que me meti numa caverna à espera de morrer. Mas com a ajuda de cães encontraram-me rapidamente. Prenderam-me e levaram-me para Schirvan. Ali, puseram-me uma coleira e, depois de me terem fechado numa gaiola de madeira, trouxeram-me para Sampetersburgo. E aqui me encontrei, um dia, na frente de um senhor alto, com um uniforme bordado a ouro. Ele olhou Para mim e começou a rir. Depois perguntou-me «Já alguma vez te viste ao espelho?» E eu respondi: «Basta-me olhar para ti para saber quão odioso se pode ser!» Então, ele nu mais ainda, mandou tirar-me as correntes e levou-me para uma casa, bonita como eu nunca tinha visto outra! Mostrou-me um rapaz, que me cumprimentou e disse-me:


«Este será o teu criado. Amanhã serás apresentado ao czar e ao czaréviche.» Depois deixaram-me sozinho. Eu comecei a olhar à volta: tapeçarias nas paredes, janelas para um jardim com uma fonte, maçanetas de ouro nas portas, até mesmo um quarto de banho, coisa que me agradou particularmente, visto que até então só tomara banho no rio. Daí a pouco chegou o meu criado com um fato feito de propósito para mim, de veludo, brocado e rendas. - Mustin sacudiu a cabeça várias vezes. - E foi assim que cheguei a Sampetersburgo... enjaulado como se fosse um animal exótico. A minha aparência foi a minha sorte...

 

- Uma história muito triste, Mustin Fedorovitch - disse Rosália Antonovna. - E suportou tudo isso sem a ajuda de uma boa aguardente?

 

- Contei-lhe isto tudo para lhe mostrar quanto é importante o aspecto físico! A minha fealdade tornou-me rico... Receio que a beleza de Matilda a torne pobre.

 

- Mais cedo ou mais tarde, fará um bom casamento.

 

- Não o fará se se tornar a amante do czaréviche.

 

- Nunca! - gritou a Bondareva. - Antes disso, torço o pescoço da pombinha.

 

- A senhora devia preocupar-se com Boris Davidovitch, Rosália Antonovna - disse Mustin. - É belo, valente e honesto. Mas tem pouco dinheiro. Tem uma pequena propriedade no Curdistão, mas essa vai ser herdada pelo irmão. É oficial, talvez chegue a general, mas só se houver uma nova guerra. E pode ter a certeza que vai haver...

 

- Nesse caso, Matilda depressa será viúva...

 

- Ou então mulher de um major, de um coronel, de um general! Quem sabe? Têm muitos anos pela frente e em muitos anos pode haver muitas guerras. E o homem quem as quer. Fica inquieto quando a paz é demasiado longa. Só está contente quando dispara e se mata. É uma criatura maravilhosa, o homem! Veja, Rosalia: Boris Davidoyitch fará a sua carreira. Um oficial tem sempre com que viver, para isso existem os governos. E Boris ama Matilda...

 

- Isso é verdade? - Rosália olhou incrédula para o anão. - Quando aqui vem, senta-se em qualquer lado e não diz uma palavra, parece um bacalhau. Fica a olhar para a minha filhinha durante horas, joga um pouco de xadrez ou de dominó e depois vai-se embora. E lá fora... é um inferno! Ficam todos ali, diante da porta, a insultá-lo. Ontem esfregaram com breu o cavalo. Mas também quem é que se lembra de vir a este bairro com arreios de prata? Sabe o que fez então Tikon Benjaminovitch, o meu senhorio, que tem a loja cá por baixo? Puxou o cavalinho para dentro de casa, colocou-o entre os fatos velhos e o resto da tralha, deu-lhe um bocado de pão e tentou tirar-lhe o breu do pêlo. E sabe o que disse o oficial quando foi buscar o cavalo? «Que Deus lhe pague, bom homem!» E foi tudo. Nem ao menos um copeque! Minaev quase gritou de raiva. «Da próxima vez, nem o vejo...» vociferou ele. «Meu Deus, e nem sequer me recompensou! Amanhã vai ver quando voltar! Poderá dar-se por feliz se encontrar os cascos!» Mesmo assim acha que é esse o melhor homem para Matilda?

 

- É o mais indicado para afastar Matilda do czaréviche disse o anão, saltando da cadeira. - Pense nisso, Madame. A Ópera de Odessa é a mais bela do mundo!

 

- E lá estará outro príncipe que correrá atrás da minha Matilda!

 

- Mas não o herdeiro do trono, Madame. E este é que é o problema. Quem herda um trono pertence ao seu povo e não só a uma pessoa. Nicolau Alexandrovitch casará com a filha de um rei. Fala-se de Alice, princesa de Hessen; a rainha Vitória é sua avó e o imperador alemão Guilherme II é seu tio.

 

Longa vida ao czar! - disse Rosália respeitosamente.

 

- E que acontecerá a Matilda? - Mustin colocou o chapéu na cabeça disforme. - Nicolau terá amantes, e ela será uma delas; mas isto desagrada-me em relação a Matilda:..

 

- Isso é verdade! - Rosália bateu com o punho na mesa. - Prometo-lhe, Mustin Fedorovitch: Matilda recusará qualquer proposta do czaréviche! Eu própria a controlarei de dia e de noite!

 

Satisfeito, Mustin desceu a escada rapidamente, entrou suavemente Por uma porta lateral e pousou uma bolsa de moedas en cima do balcão. Minaev, que estava sentado numa cadeira no meio da sua tralha, a ver tudo o que se passava na rua, pareceu ficar admirado.

 

- Impossível! - disse asperamente. -Não tenho nada que te sirva nesta loja! O mais que se podia fazer era transformar qualquer coisa...

 

- Na bolsa estão dez rublos. - disse Mustin. - Mandou-te o tenente Von Soerenberg pelo tratamento que deste ao seu cavalo. Ou pensavas que um nobre andava por aí com as algibeiras cheias de moedas? Um tal senhor, um barão alemão, nunca precisa de pagar as próprias contas. Percebes? Quando voltar da próxima vez, guarda de novo o cavalo na tua loja. E acautela-te para que não lhe falte nem um pêlo da crina! Venho aqui e arranco-te os dez rublos dos bolsos das calças!

 

Minaev faz algumas vénias e esperou que o anão saísse da loja. Depois abriu a bolsa com os dedos trémulos e contou as moedas. Eram de facto dez rublos. Meteu o dinheiro no bolso e correu para o quarto da Bondareva.

 

- Quem era aquele? - gritou quando ainda estava no corredor. - Rosália, deu-me dez rublos! O mundo enlouqueceu!

 

- Era Mustin, o bobo da corte do czaréviche. - Rosália Antonovna olhou para Minaev com um olhar vítreo. Até para ela, sete copos de aguardente era uma quantidade notável. - Tens de te ir habituando, Tikon Benjaminovitch; no futuro só nos vamos dar com ilustríssimos...

 

Falou-se durante muito tempo da visita do czaréviche à Escola Imperial de Bailado. Tâmara Jegorovna, mais do que qualquer outra pessoa, tinha dificuldade em reencontrar a paz.

 

- Como pôde isso acontecer? - tornava a perguntar a Matilda. - Desmaiar na frente do czaréviche, que burra! Só porque ele te beijou a mão!

 

- Eu não contava que ele me fosse tocar - respondia Matilda tranquilamente. Falava como se qualquer coisa dentro de si tivesse mudado, qualquer coisa leve, flutuante, como se não conseguisse acordar de um sonho. - Inclinei-me diante dele e ele beijou-me.

- A mão!

 

- Não basta?

 

- Não posso acreditar!

 

A Jegorovna mandou Matilda sentar-se num banquinho e colocou-se na sua frente. Estavam sozinhas, na pequena sala de ensaios, onde Tâmara treinava individualmente os melhores solistas.

 

Até mesmo a nova bailarina Liudmila Pitschnovskaia, que ia ali três vezes por semana e ensaiava as novas partes de solista, obedecia às duras ordens da Jegorovna e deixava-se insultar por ela. Ensaiava sem horário, impiedosamente, até ao limite das forças... Nenhuma preparação militar era comparável à que a Jegorovna exigia dos seus alunos.

 

Mas valia a pena.

 

Quem saísse da escola da Jegorovna, quem conseguisse aguentar aquele verdadeiro moedor de ossos, já não se assustaria com o que quer que fosse relacionado com o ballet. Até o grande Igor Vladimirovitch Potgan, que tinha ido dançar em Paris, dizia cheio de veneração:

 

- Quem for dirigido por Tâmara em Sampetersburgo sobreviverá ao tempo!

 

Naquele dia, Tâmara também tinha feito Matilda trabalhar até ao limite. Durante três horas, interrompidas apenas por uma pequena pausa para retomar fôlego, repetiram a parte que Matilda tinha de dançar no dia 23 de Dezembro, pela primeira vez como solista: a Princesa Aurora de A Bela Adormecida com música de Tchaikovsky.

 

O lema de Tâmara era: «As pedras preciosas precisam de ser lapidadas e polidas até brilharem por todos os lados.» Muitos já a tinham amaldiçoado por causa disto, mas depois repetiram as suas palavras como uma oração quando, depois da representação, os aplausos do teatro completamente cheio os fazia voltar de novo ao palco...

 

- O que foi que eu disse? - perguntou a Jegorovna a Matilda, que estava sentada no banquinho, muito suada e cabisbaixa. - Que dons deve ter um bailarino?

 

Persistência, disciplina e vontade férrea... - Matilda levantou o olhar para o alto. Os seus olhos pareciam febris com o esforço. - E fé.

 

- Para ti é preciso mais qualquer coisa: nervos! Um bailanno precisa de ter nervos de aço!

 

Matilda levantou a cabeça. - Tens de saber controlar os teus nervos, a ti própria! Pensas que o czaréviche ’já te esqueceu?

 

- Espero que sim - respondeu Matilda baixinho. - Sei que me comportei como uma idiota. Foi só um gesto simpático. - O seu olhar tornou-se suplicante. - Não pode dar o papel de Aurora a Alia Petrovna? Eu desistirei...

 

- Que parvoíce! Triunfarás! Serás tu a ser aclamada e não a Pitschnovskaia!

 

- Depois disso, ela odiar-me-á...

 

- Também te tens de habituar a isso, faz parte do êxito, da vida. Quanto mais corajosa fores, quanto mais famosa te tornares, mais te odiarão. Aplaudir-te-ão até ficarem com as mãos a doer, mas devorar-te-iam de boa vontade! No cúmulo da glória, estarás completamente só! Haverá milhares de pessoas aos teus pés, mas as suas almas estarão longe da tua, porque invejarão as tuas jóias, os teus vestidos, as tuas peles, os cavalos, a carruagem, a casa, o dinheiro. Mesmo que para tudo isto tenhas tido de dançar até fazeres sangrar os pés... Nunca te perdoarão que te tenhas tornado melhor que eles.

 

Tâmara Jegorovna bateu as palmas.

 

- Vais interpretar a Aurora! E se o czaréviche te beijar de novo a mão, vais ficar bem firme nas pernas, como se fosses uma coluna.

 

 

Era um dia cheio de sol. Sampetersburgo estava coberta de neve, o frio fazia com que as pessoas tiritassem a cada passo, o Moika havia começado a gelar, os pequenos canais já tinham uma camada de gelo à superfície e as cúpulas das igrejas cintilavam como se fossem cravejadas de diamantes.

 

Nas grandes avenidas havia grande actividade: os picadores de gelo libertavam as ruas para que os cavalos não escorregassem, juntavam a neve nas bermas e limpavam os passeios.

 

Nas esquinas das ruas, nas praças e nos mercados, à entrada dos jardins públicos, os fogareiros dos vendedores de castanhas fumegavam intensamente. O fumo pairava sobre eles como uma nuvem; os vendedores de castanhas, enrolados nas suas mantas, com barretes de pele e botas de feltro forradas de palha, sentados nos seus banquinhos, apregoavam a mercadoria quente e apetitosa: as castanhas assadas.

 

Cada saquinho custava dois copeques - e eram castanhas acabadas de assar, para aquecerem a boca, o estômago, para que as pessoas tivessem qualquer coisa quente dentro de si e pudessem deixar o frio lá fora.

 

Boris Davidovitch tinha sabido por Matilda que naquele dia só haveria ensaio de manhã; na véspera, a Jegorovna tinha sido chamada a Zarskoi Selo.

 

O corpo de oficiais dos hussardos estava a preparar um espectáculo de teatro privado, em que devia exibir-se também um pequeno ballet. Estava prevista a presença do tenor Sumavelitch, o famoso actor Juvalev contaria histórias picantes e a cantora Varenskaya cantaria cançonetas... Como a representação seria assistida pelos amigos do czar, os condes Scheremetiev e Voronzov-Daschkov, a Jegorovna sabia, por experiência, o que viria a seguir à parte oficial.

 

O corpo de oficiais da Guarda dos Hussardos constituía um dos círculos mais restritos, apenas para homens, de Sampetersburgo. Era frequentado apenas por nobres, filhos das melhores famílias, os quais provocavam grande admiração quando apareciam com os seus cavalos brancos nas paradas.

 

Jegorovna foi pessoalmente à residência do czar para preparar o espectáculo. Dadas as circunstâncias, arranjou vários grupos de ballet com raparigas que tinham a moral tão curta como as saias do tutu.

 

Boris Davidovitch teve de esperar até às duas horas antes de ver Matilda sair do portão da escola. Correu para ela, abraçou-a, apertou-a contra si e riu da sua atrapalhação. O rosto dela, emoldurado por um grande chapéu de pele de raposa, parecia tão delicado como a mais fina porcelana.

 

Os grandes olhos pareciam maiores do que nunca. - Finalmente! - gritou Boris Davidovitch von Soeren-apertando Matilda entre os braços como se quisesse aquecê-la, embora estivesse envolta numa capa de lã debruada com uma pele. - Finalmente! O Sol não espera!

 

- Estivemos a ensaiar até há dez minutos, Boris Dávido vi tch.

 

- Bem vejo! Reconheço-o pelos seus olhos, Matilda. Pela fadiga, que mal a deixa respirar! Uma mulher terrível, essa Jegorovna.

 

- Uma mulher maravilhosa!

 

Matilda riu, apoiou-se nele e ficou a olhar para a rua. Ali estava uma tróica, coberta de peles e puxada por pequenos e robustos cavalos. Das narinas dos animais brotava a nuvenzinha branca da sua respiração e as peles estavam cobertas de cristais de gelo. Um cocheiro gordo, tão embrulhado que só pelos braços podia ser reconhecido como um ser humano, estava sentado na boleia, inteiriçado pelo frio. Quando o cavalo do meio se mexia, as inúmeras campainhas de prata colocadas nos arreios tilintavam.

 

- Hoje vamos a pé? - perguntou Matilda, distraída.

 

- Aluguei uma tróica para nós. Está ali...

 

- É mesmo para nós? - Alegrou-se como uma menina, e o seu rosto cansado mudou de expressão. Brilhava como se estivesse iluminado por dentro. - Por acaso sabe, Boris Davidovitch, que durante toda a minha vida só andei cinco vezes de tróica? Contei-as bem e nunca mais me esqueci. E de cada vez foi uma aventura. São tantas as pessoas que andam de tróica, os camponeses no campo, aqui os senhores... mas como pode aspirar a tanto uma pessoa como eu? Quando era pequena, andei três vezes porque a minha mãe conhecia um cocheiro, eu chamava-lhe Tio Genika e ele vinha muitas vezes a nossa casa e trazia-nos carvão, pão, sêmola e farinha. Isto aconteceu antes de a mamã herdar a banca dela no mercado. Quando o Tio Genika tinha tempo, levava-me a passear por Sampetersburgo, por cima das pontes, em direcção a Petrogrado ou para a ilha de Jelagin, para o porto das velhas galeras ou para o Castelo de Nevski. Para mim, eram dias de festa! Quando tinha catorze anos, fui convidada por um barão que havia honrado a Escola de Bailado com a sua visita e, tal como você faz sempre, me esperava à saída. Mas tive de saltar da tróica...

 

O seu rosto endurecera de repente.

 

- Estou a perceber - disse Boris Davidovitch com os

lábios cerrados. - Ainda se lembra do nome dele? Desafiá-lo-ei para um duelo!

 

- Foi horrível! Quando tentei defender-me, ele bateu-me enquanto o cocheiro incitava os cavalos a andarem mais depressa, em direcção a Paljustrovo. Na Ponte da Fundição, consegui saltar da tróica; rebolei-me na neve e torci o tornozelo esquerdo. E que fez o senhor barão? Deu a volta à tróica e veio atrás de mim! Queria esmagar-me na neve com os cascos dos cavalos! Mas consegui fugir para debaixo da ponte, e o trenó não conseguiu lá chegar. Tive de estar de cama três semanas. À minha mãe só contei que tinha escorregado no gelo. Ninguém soube nada... O senhor é o primeiro a quem o digo, Boris Davidovitch.

 

- Qual era o nome dele? - O tenente colocou o braço à volta de Matilda como se quisesse protegê-la. - Deve tentar lembrar-se! Peço-lhe, pense bem! Pense muito bem.

 

- Já passaram quase cinco anos, Boris... - Olhou para ele, admirada. - O que é que lhe quer fazer?

 

- O que ele lhe fez a si... Irei atrás dele numa tróica.

 

- E depois matá-lo-á?

 

- Só se cair... Teria uma hipótese! Você não tinha nenhuma.

 

- Seria realmente capaz de matar um outro homem por minha causa?

 

- Em qualquer momento.

 

- E porquê, Boris Davidovitch?

 

Aquela era uma pergunta a que não era fácil responder no meio da rua, entre montes de neve suja e quase a gelar com o frio. Boris von Soerenberg fez um sinal na direcção da tróica.

 

O cocheiro, que parecia gelado, reagiu rapidamente, fez estalar o chicote e gritou:

 

--Querem mexer essas perninhas, seus madraços? arrancou os esquis de ferro riscaram a neve e o treno aproximou-se, fazendo uma grande curva.

 

Onde quer ir Matilda Felixovna? – perguntou. Tem algum desejo especial?

 

HoJe está um lindo dia.

 

Acrescentou matilda, feliz por ter conseguido evitar responder à pergunta.

 

- Talvez volte a nevar amanhã. A neve anda no ar. O termómetro desceu três graus.

 

A tróica parou. Matilda aproximou-se dela. O cocheiro fez uma saudação militar. A sua respiração tinha-se condensado na barba, em pequenas gotas de gelo. As duas pernas estavam enfiadas até aos joelhos em dois sacos cheios de palha.

 

Boris ajudou Matilda a subir e depois tapou-a com uma grande manta de peles. Eram peles de raposa e de marta, e Matilda meteu-se dentro delas, deixando apenas a cabeça de fora. Soerenberg enfiou-se, a seu lado, numa pele de lobo e fez-lhe um sinal com a cabeça.

 

- Está bem agasalhada?

 

- Maravilhosamente. Como se estivesse num forno. Matilda deitou a cabeça para trás e olhou para o céu, de um azul intenso, sem nuvens. Era muito raro um dia de Inverno como aquele, cheio de sol. Geralmente as nuvens vinham do mar e mar e céu confundiam-se num cinzento uniforme.

 

- A quinta vez que andei numa tróica tinha dezasseis anos - continuou Matilda como se alguém lhe tivesse pedido para acabar a sua história. - Tâmara Jegorovna levou-me consigo a visitar uma amiga, uma cantora. Tinha uma casa de campo em Sluzk, à beira do Slavanka, perto do castelo de Paviovsk. - Interrompeu-se, a rir. - Nunca lá chegámos, Boris! Logo que saímos de Sampetersburgo, a tróica capotou porque o cocheiro estava completamente bêbado. Um dos cavalos partiu uma perna na queda. Um polícia que tinha ido ajudar teve de matá-lo em seguida. Tínhamos tanto frio que tivemos de chamar um outro trenó para nos levar imediatamente para a cidade. Tâmara preparou um chá com rum... Foi a primeira vez que me embriaguei. A mamã nunca me deixara beber álcool. Dizia sempre: «Basta que eu beba. Não comeces também a beber, minha filha! Não se pode fugir da realidade...» Que irá acontecer na minha sexta viagem de tróica?

 

- Vamos até à ilha da Pedra. Há lá um restaurante cujo patrão é certamente o homem mais gordo do mundo, Vasja Kyrillovitch Tschuptikov. Parece que é também o melhor cozinheiro do mundo. Tem um viveiro de lagostas na costa atlântica da França. Por alguns rubles pode-se lá comer como na corte do czar! Mas não deixa que qualquer um entre no seu estabelecimento. Bate-se à porta, ele espreita por um buraquinho e, se a pessoa não lhe agrada, dá-lhe com o postigo na cara. Então, só se for ameaçado com armas...

 

- E a nós, deixa-nos entrar?

 

- Eu conheço-o muito bem.

 

- E vamos comer lagosta?

 

- Feita de propósito para nós, com um molho de manteiga.

 

- Nunca comi lagosta, Boris. Vou fazer uma triste figura. Já o vou prevenindo...

 

- Tschuptikov cairá aos seus pés, Matilda! - Boris pôs-lhe o braço à volta dos ombros. Quem passasse naquele momento na frente da tróica tomá-los-ia por um par de namorados. - Vamos?

 

- Só porque tenho curiosidade em saber como é o gosto da lagosta! - disse Matilda. - E porque não tenho nenhuma vontade de descer da tróica e de sair de baixo das peles.

 

- Vamos, então! - Boris Davidovitch deu um assobio. O cocheiro puxou as rédeas e gritou com voz rouca:

 

- Para a frente, cavalinhos! Querem andar? Partam o gelo com as vossas perninhas! Para a frente! Que vagar é este? Querem que eu use o chicote? Para a frente, então, para a frente!

 

As campainhas tilintaram, os esquis levantaram a neve toda à volta. Os cavalos levantaram a cabeça, fazendo ondular as crinas, os cascos bateram na estrada coberta de neve, e o trenó partiu, através de Sampetersburgo, passou pela ponte de Trutzkoi e dirigiu-se para Petrogrado, através de amplas planícies geladas e sobre os canais do Karpov e do Pequeno Neva até à ilha da Pedra.

 

Desta vez chegaram lá, o cocheiro não estava bêbado e a tróica não capotou - foi uma viagem maravilhosa, com o sol e a neve a cintilar. A luz era tão intensa que Matilda teve de tapar os olhos com as mãos para não ficar cega. Ao sentir o braço de Boris à volta dos seus ombros experimentou uma tão grande felicidade como quando a Jegorovna ”leaizia: «Fizeste bem, Matilduschka!»

 

dUrante a viagem quase não falaram. De vez em quando olhavam-se, os seus olhos sorriam, mas quase não emitiam palavras. Quando se é verdadeiramente feliz não se tem necessidade de falar. Então, as pessoas escutam o seu íntimo e descobrem lá muitos sons, música e notas nunca antes ouvidos... Deixam-se então ir nessa torrente, sendo transportadas para a terra da bem-aventurança.

 

Tal como Boris esperava, o restaurante de Tschuptikov estava fechado. De fora, parecia uma velha casa de campo em ruínas, com o telhado muito baixo, por causa das tempestades de neve, com persianas de madeira pintadas e uma grossa porta de madeira que dificilmente poderia ser arrombada.

 

Enquanto a tróica dava a volta à casa, à procura de um lugar onde pudesse estacionar, Boris Davidovitch bateu à porta.

 

Tinha libertado Matilda da manta de peles e levara-a ao colo até debaixo do alpendre. Quando ali chegou, depois daquele breve trecho de estrada, teve a impressão de caminhar para o destino. Boris descobrira-o de repente, quando Matilda pôs os braços à volta do seu pescoço. Tinha-se afastado da tróica muito lentamente, o mais lentamente possível, para a ter durante mais tempo nos braços, sentir o seu corpo, a sua respiração na face, os seus braços apoiados delicadamente à volta do pescoço.

 

«Sou um verdadeiro patife», pensou Boris Davidovitch. «Um miserável malandro! Preocupo-me com esta delicada criatura apenas porque me pediram que a mantivesse longe do czaréviche. E apenas um serviço - não pode ser mais nada. Uma protecção para o herdeiro do trono! Deve habituar-se a mim para não pensar no outro. Como isto tudo é vulgar! E como é desleal! Mas será mesmo, assim? Não é verdade que o mundo mudou para mim nestas duas semanas? O que é que eu penso quando a vejo? O que é que sinto quando a toco? O que é que sinto dentro mim quando ela ri? Não me sinto feliz quando ela vem ao encontro dos meus braços abertos?»

 

Boris Davidovitch reconheceu: amava-a! Ela estava sempre no seu pensamento! Quando se levantava de manhã, em que é que pensava? Talvez no seu posto nos Hussardos? No seu cavalo? Em Deus, no czar, no czaréviche? Talvez na pátria?

 

Não! Mal abria os olhos pensava: «Bom dia, Matilduschka! Quanto te verei de novo, meu anjo?»

 

E mais tarde, quando prestava informações a Sua Alteza Imperial? Quando falava com Mustin, o anão, que continuava a perguntar-lhe:

 

Ainda não a beijaste? Ainda não? És um grande banana! Oh, se eu tivesse o teu físico, a tua cara... Seria o homem mais feliz deste mundo e teria Matilda a meu lado! Desiludes-me, tenente dos Hussardos!

 

Nesses momentos pensava sempre: «Se vocês soubessem o que vai dentro de mim! Tu, poderoso czaréviche, mandar-me-ias preso para a Sibéria; e tu, anão espertalhão, darias cambalhotas de alegria.» E depois sentia-se avassalar pelo pavor: que coisas iria dizer Matilda quando soubesse que a sua presença não passava do cumprimento de uma ordem? O mínimo que poderia fazer era desprezá-lo...

 

Aconteceu como Boris Davidovitch tinha previsto. Na grossa porta abriu-se um postigo, através do qual uma cara redonda e dois olhos argutos examinaram os recém-chegados.

 

- Acorda, mamute! - gritou Boris a rir. - Quero provar as melhores lagostas que se comem em Sampetersburgo! - E acrescentou em voz baixa para Matilda: - Não se assuste muito quando vir Vasja Kyrillovitch! Nem vai rebentar nem é um balão prestes a voar pelos ares. Será sempre um mistério o facto de duas pernas normais poderem aguentar um corpo como o dele.

 

Boris não exagerava. O bom Tschuptikov era um verdadeiro gigante e as suas dimensões eram tais que qualquer pessoa teria dúvidas: como era possível que existisse um homem como aquele?

 

O conde Varvizky de Perm, um homem que se tinha tornado riquíssimo graças à criação de animais cujas peles vendia, fizera certa vez uma aposta sobre o peso de ischuptikov. Quando as apostas chegaram aos cinco mil rubles de ouro e os apostadores já suavam frio porque Varvizky continuava a manter a opinião de que, Vasjayniiovitch pesava pelo menos duzentos quilos, então o propno Tschuptikov perdeu a calma.

 

Aferrolhou as portas e as janelas até à porta das trasei-

rãs, levou os seus clientes, tensos quase até ao desespero, i até ao palheiro, onde estava uma balança para pesar o gado, despiu-se completamente - espectáculo que não era ; particularmente agradável - e subiu para a balança. Foi o • próprio conde quem colocou os pesos. Depois suspirou, juntou as mãos e deu-se por vencido. ’

 

O ponteiro parou nos cento e noventa e oito quilos e duzentos e noventa gramas. Quase não se podia acreditar, mas uma boa balança não mente... o máximo que podia acontecer era indicar menos, quando se tratava de comprar uma vaca. Há mistérios que se escondem nas balanças; mas ali não se podia duvidar mais: Tschuptikov era o homem mais pesado da Rússia. Era compreensível que não tivesse mulher, porque qualquer mulher fugia dele com medo de ser esmagada sob aquele bloco de pedra.

 

Vasja Kyrillovitch cumprimentou Boris como um amigo, piscou um olho a Matilda e levou-os para uma mesa de canto. Na parede, de madeira, atrás deles, estava pendurado um ícone de São Pima e uma corrente enferrujada serrada nas extremidades. Matilda olhou para ela admirada e Tschuptikov explicou com voz rouca:

 

- Fui libertado daquela corrente em Moscovo. Carreguei-a durante seis anos, até Tschita! Sou um dos poucos que conseguiram voltar da Sibéria.

 

Matilda sentou-se debaixo da corrente, sentindo calafrios.

 

- Ele não gosta muito de falar nisso - segredou Boris quando Tschuptikov se afastou. - Tinha sido condenado à morte e depois foi indultado e mandado para a Sibéria. Matou um capitão de cavalaria apenas com um murro, Abriu-Ihe a cabeça como se fosse um tomate murcho. Vasja tinha voltado do mercado, onde tinha ido fazer compras, e encontrou a mulher, Rajetschka, na cama com o capitão. Naquele tempo só pesava cento e quarenta quilos, mas evidentemente já era de mais para Rajetschka. Desde então nunca mais teve mulher e continuou a engordar sempre. Diz que é feliz, mas quem é que pode acreditar nisso?

 

Não é fácil comer lagosta. Há pessoas que batem com os punhos na lagosta e comem tudo o que sai cá para fora. Mas esses são bárbaros... As pessoas finas comportam-se perante a lagosta como cirurgiões que tivessem de analisar

 

um corpo, pedaço por pedaço. Partem-na a chupam-na, descascam-na e saboreiam-na, dividem-na e cortam-na com tal seriedade que parecem estar a participar num ritual religioso. As pessoas cultas têm o mesmo comportamento: consideram a lagosta como uma dádiva divina.

 

Matilda imitava escrupulosamente os gestos de Boris, mas quando já tinha comido uma boa parte da sua lagosta, disse em voz baixa:

 

- Isto é assim tão especial? Boris Davidovitch, tem de ir à minha casa um dia destes, quando a mamã cozinhar linguado com manteiga e presunto. Com batatas cozidas misturadas e avelãs picadas. Mas com certeza é um prato que não conhece, é muito simples para o senhor!

 

- Comê-lo-ei consigo, Matilda!

 

Boris levantou o copo; como acompanhamento da lagosta estavam a beber um vinho branco bastante áspero, de que Matilda não gostava muito. Mas fazia parte do ritual, como afirmara Boris.

 

- Provarei todos os pratos da sua mãe. É uma mulher fantástica!

 

Olhou para Matilda admirado. Tinha mudado de expressão de um momento para o outro. O seu rosto tornara-se pálido e os olhos tinham-se dilatado, como se tivesse visto qualquer coisa terrível. Estava sentada na cadeira, muito rígida e com os lábios cerrados.

 

- O que é que tem, Matilda? - perguntou Boris von Soerenberg assustado. - Ofendi-a? Disse algum disparate? Não sei o que possa ter sido, mas peço-lhe que me perdoe.

 

- Chegaram mais pessoas - disse ela a balbuciar. Tinha a voz presa. - Duas senhoras e dois senhores...

 

Boris endireitou-se. Atrás de si, ouviu vozes e risos.

 

- Conhece-os, Matilda?

 

-- Só um deles. É ele... Meu Deus, é mesmo ele! Vamos embora daqui, Boris Davidovitch. .       Pelo contrário, vamos ficar. Porque havíamos de nos

ir?

-a? Quem é ele? o czaréviche incógnito? Matilda abanou a cabeça.

 

---Suplico-lhe, Boris... vamos embora! Peço-lhe... então voltou-se com naturalidade e olhou para os novos clientes. Ainda mais admirado do que antes, voltou-se de novo para Matilda. A rapariga tremia, embora se esforçasse por escondê-lo.

 

«Deves ter nervos de aço», tinha-lhe dito a Jegorovna! «Nervos de aço! És tão bela que só assim conseguirás passar intacta pela vida...»

 

- O que é que a assusta tanto? - Boris despejou mais vinho. - São pessoas de bem. Vêm aqui muitas vezes, dia sim dia não...

 

- É ele - disse Matilda atónita. - Aquele com fato cinzento. É o conde...

 

Boris sentiu que gelava. Levantou os ombros, como se se sentisse congelar, e agarrou-se à borda da mesa.

 

- Aquele da tróica...?

 

- Sim.

 

- Não está enganada, Matilda?

 

- Nunca poderei esquecer aquela cara...

 

- Deve estar enganada...

 

- Impossível! Além disso, quando ri... Foi assim que ele riu quando lançou os cavalos a galope contra mim. Queria matar-me porque me tinha negado...

 

- Não é conde. - A voz de Boris estava monocórdica. É o príncipe Valentin Vladimirovitch Kramskoj... um dos melhores amigos do czaréviche.

 

- Vamos embora, Boris. Peço-lhe! - A voz de Matilda tornara-se um sussurro. - Eu sabia. As tróicas dão-me azar...

 

- Não aquela em que nós viemos!

 

Boris ergueu-se; os olhos de Matilda traíam o seu terror. Levantou as mãos num gesto de súplica. Mas Boris von Soerenberg sacudiu a cabeça, decidido, e depois disse:

 

- Vou só cumprimentá-lo. Não posso acreditar que tenha sido ele.

 

O príncipe Kramskoj estava de óptimo humor quando Boris se aproximou da sua mesa. Perto dele estava sentada a sua nova amante, uma costureira que habitava num subúrbio, uma deliciosa rapariga com longos cabelos loiros e nariz arrebitado.

 

O outro homem era o conde Sabarini, um italiano que vivia há três anos em Sampetersburgo, arranjando antiguidades romanas para a aristocracia russa. Kramskoj abriu os braços ao ver von Soerenberg e gritou imediatamente:

 

Boris Davidovitch! Meu bom amigo! Claro que o senhor também vem aqui! - Deu uma olhadela para o canto e inclinou-se para a frente. - Nada mal, nada mal! Uma pequena sílfide, não é verdade? Parabéns! Primeiro lagosta, depois vinho, e depois... Ah!

 

Queria falar consigo, Valentin Vladimirovitch.

 

- Agora?

 

- Sim!

 

É uma coisa assim tão séria?

 

- É.

 

- Está alguém para ser dilacerado? - Kramskoj levantou-se e ajeitou o casaco. - Comece a falar, meu amigo.

 

- Aqui não, se não se importa. Lá fora.

 

- Ao frio? Boris...

 

- É uma coisa rápida.

 

- Por favor.

 

Foram para o palheiro onde Tschuptikov tinha sido pesado. Kramskoj bateu os braços à volta do corpo; fazia um frio de rachar.

 

- De que se trata, Boris Davidovitch? Não seja tão sádico que me deixe gelar; a minha miúda podia não gostar. Qual é o problema?

 

- E verdade que há cinco anos tentou atropelar uma rapariga de catorze anos com a sua tróica só por ela não lhe ter cedido?

 

O príncipe Kramskoj olhou para Boris, primeiro incrédulo e depois com um ar zombeteiro. Finalmente deu uma gargalhada.

 

- Você gosta de fazer espírito, Soerenberg? Ou está mesmo bêbado?

 

- Foi você esse canalha, Valentin Vladimirovitch? O príncipe Kramskoj assustou-se:

 

- Está maluco? - perguntou a tremer. - Se o tomasse a serio, sabe o que isso significaria?

 

Boris repetiu:

 

Você é um canalha! - E, rápido como um raio, estendeu o braço e esbofeteou o rosto do príncipe. Este cambaleou, perdeu o equilíbrio e caiu desajeitadamente sobre uma pilha de madeira
- Louco! - balbuciou Kramskoj e levantou-se ainda um pouco a cambalear. - Bêbado!

 

- Mandar-lhe-ei os meus padrinhos! - disse Boris friamente. - Espadas! E não tente fugir... Encontrá-lo-ei onde quer que esteja, Valentin Vladimirovitch. Ninguém o salvará de mim, nem sequer o czaréviche.

 

Estiveram um momento frente a frente, expectantes, indecisos se se deviam bater naquele mesmo momento, usando as mãos ou armas improvisadas. Apenas a dois metros de Kramskoj, estava um machado cravado num cepo.

 

O príncipe deitou uma olhadela naquela direcção, ainda mal seguro nas pernas, enquanto com uma mão tirava os cabelos da testa e com a outra, com o punho cerrado, apertava o peito.

 

Boris von Soerenberg viu aquele olhar e abanou a cabeça.

 

- Não conseguirá alcançar o machado, Valentin Vladimirovitch. E, além disso, prefiro que a nossa discussão não tenha público por agora. A sua namorada está à espera. Concedo-lhe ainda algumas horas de intimidade. Uma despedida da vida, como se costuma dizer. No que diz respeito ao nosso duelo, acha bem o bosque da ilha da Pedra ou propõe outro lugar?

 

- O Palácio Jussupov. - O príncipe olhou para Boris com os olhos a faiscar de ódio. - Irei para lá imediatamente.

 

- Está bem. O príncipe Jussupov estará de acordo?

 

- É meu amigo.

 

- Não terá nada contra vê-lo reduzido a pedaços por mim?

 

- Felix dará uma sepultura decente ao seu cadáver. A altivez de Kramskoj despertara de novo. - Ou será que a sua família tem meios suficientes para o trasladar para o Curdistão? Você certamente não gostaria de ser apenas deitado ao Moika.

 

- Onde poderão os meus padrinhos encontrá-lo?

 

- Onde é que acha que será? - Kramskoj deu uma gargalhada breve e dura. - No Palácio Anitschkov, vizinho do do czaréviche. Não teme ser transferido para uma guarnição para lá dos Urales?

 

- Õ grão-duque Nicolau Alexandrovitch terá pouca

 

compreensão por um amigo que queria atropelar uma menina de catorze anos com uma tróica. E o czar ainda menos! Ou será que devemos pedir ao czar para servir de mediador?

 

Kramskoj calou-se. A rígida moral de Alexandre III, o seu austero modo de vida, o seu conceito de fidelidade conjugal eram conhecidos em toda a Rússia e motivo de escárnio num círculo restrito da alta sociedade. O príncipe Bussarin teria dito em determinada altura: «Cada vez que ele se quer aproximar da czarina, recolhe-se antes em oração na capela da casa...»

 

Era certo que se Alexandre III soubesse do acontecimento com a tróica, embora tivessem passado cinco anos, afastaria imediatamente o príncipe Kramskoj da corte. «Os pecados não prescrevem» costumava dizer o czar.

 

- Mande os seus padrinhos a Jussupov - disse Kramskoj com voz rouca. - Terei de pensar bem se me posso bater com um tenente enlouquecido.

 

- Fá-lo-á, Valentin Vladimirovitch! Mesmo que para isso eu tenha de mandar imprimir cartazes com a frase «Kramskoj é um canalha» e mandá-los colar nas paredes de todas as casas de Sampetersburgo até que o senhor resolva bater-se.

 

- Isso custaria a sua carreira, Soerenberg.

 

- Estarei disposto a renunciar a ela pela honra de uma senhora!

 

- Uma senhora? - respondeu Kramskoj ironicamente. Você merece uma recompensa, Boris Davidovitch. Diga-me: onde é que ainda se pode encontrar uma senhora em Sampetersburgo?

 

Boris voltou a entrar, em primeiro lugar, no restaurante. Sorriu para Matilda e levou-lhe a capa.

 

- Agora podemos sair daqui - disse, sorridente. Está mesmo um dia maravilhoso, o sol ainda brilha!

 

- O que é que aconteceu com o príncipe?

 

Matilda envolveu-se na capa e levantou a gola de pele, como se tivesse frio mesmo naquela sala aquecida.

 

- Não lhe devia ter contado, Boris. Você vai acabar por ser infeliz.


- Recomendei a Valentin Vladimirovitch que lhe enviasse um grande ramo de rosas. É um gesto de gentileza. Fá-lo-á.

 

- Não quero rosas dele.

 

- Uma pequena reparação!

 

Boris levou Matilda até à porta. O gordo Tschuptikov estava à entrada, com uma cara triste e quase a chorar. Torcia as mãos e respirava com dificuldade, como se precisasse soprar os pulmões para fora.

 

- As lagostas não estavam boas? - disse com uma voz pesarosa. - Ilustríssimos, eram as melhores que eu tive nos últimos dois anos. Cozinhei-as com o relógio na mão. Não quero nem a sombra de um copeque se vir que não gostaram delas mesmo assim.

 

- Estavam deliciosas, Vasja Kyrillovitch, acalme-se! E o vinho também. Mas a Demoiselle não se sente bem. Precisa de um pouco de ar fresco...

 

Tschuptikov inclinou a cabeça. Olhou para Matilda e abriu a porta. «Sim, sim», pensou ele, «vem por aí um menino! Um mal-estar repentino, a cabeça à roda, náuseas... Não se pode fazer nada senão respirar fundo e aguentar! A alegria dura pouco, ao passo que o martírio dura nove meses. A não ser que se decida pagar dez rubles a uma parteira para ela dar um jeito... Mas o tenente sabe de certeza todas estas coisas! Os senhores de boa família sabem sempre onde hão-de ir...»

 

Enquanto Boris e Matilda se afastavam na tróica, o príncipe Kramskoj voltou do palheiro, temporariamente recuperado, e sentou-se à mesa de mau humor. Com a testa enrugada, deitou uma olhadela ao amigo, que naquele momento estava a apalpar a sua acompanhante.

 

- Vamos para a minha casa! - gritou Kramskoj de repente.

 

Atirou cinco rublos para cima da mesa e levantou-se.

 

Tschuptikov já não percebia as pessoas. Os seus melhores clientes iam-se embora sem sequer terem comido. O que é que tinha acontecido? Por acaso cheiraria ele mal e não sentiria o cheiro?

 

- Quero embebedar-me! - gritou o príncipe Kramskoj, subitamente histérico. - E quero sentir nas minhas mãos um corpo, um corpo quente e branco!

 

Puxou para si a loira, que começou de repente a gritar, apenas porque sabia que isto ainda excitava mais o príncipe. Ele beijou-a com fúria e dobrou-a sobre a mesa, esmagando-a com o próprio corpo.

 

«Ora, ora» pensou Tschuptikov com amargura. «As minhas lagostas e os meus assados não podem competir com isto. De nada servem os melhores molhos e os condimentos mais exóticos.»

 

- Divirtam-se à vontade, ilustríssimos. Cinco rublos deitados à rua, mas não se esquecem tão depressa...

 

Em seguida, foi sentar-se junto ao seu bom e velho forno, um monstro feito das pedras do rio, tão grande como o próprio Vasja Kyrillovitch. Como todo o verdadeiro russo, durante o Inverno ele dormia na plataforma superior, e agora estava parado a olhar para as chamas, ali na cozinha.

 

«Assim vão as coisas», pensou filosofando, «com os senhores ricos. Um não pode comer em paz porque engravidou a namorada... O outro deixa a refeição de lado porque está cheio de pressa de voltar para a cama... Teremos mesmo de invejar estes senhores ricos? Não estarei eu melhor junto deste forno? Podia desabar o mundo inteiro que ele nem sequer se mexeria!»

 

A estalagem da família Burjev estava situada junto ao Grande Neva, perto do Palácio Menschikov, na ilha Vassilij, mesmo ao lado da Basílica de Santo André, famosa pelo seu estilo rococó.

 

Os cadetes que moravam no Palácio Menschikov paravam por ali depois das aulas; não os cadetes normais, mas os filhos da alta nobreza, destinados um dia a dirigir as Forças Armadas da Rússia. Assim, Burjev tinha-se tornado em pouco tempo um homem muito rico, porque os cadetes estavam habituados a gastar.

 

Boris Davidovitch conhecia Burjev do tempo em que ele próprio era cadete. Ele era um dos que mandavam sempre pôr na conta, sem que Burjev jamais lhe pedisse para pagar. Porque tinha um bom nome, mas não tinha dinheiro. Com Burjev podia-se falar de tudo. Não era apenas hospedeiro e capitalista, confessor e alcoviteiro, habituado a ver mas não a ouvir; mas também era para alguns um verdadeiro amigo. Boris, sobretudo, estava-lhe muito ligado.

 

- Você parece-se muito com o meu amigo Yegor Tupalov - dissera o hospedeiro certo dia. - Fazia parte dos «dezembristas». No dia 14 de Dezembro atacou com a cavalaria as tropas fiéis ao czar; era um homem valente, que não pensava noutra coisa senão em dar à Rússia um rosto novo, mais humano. Todos sabemos como tudo isso acabou. A insurreição foi esmagada e os chefes, e, antes de todos, o príncipe Trubezkoi, foram mandados para a Sibéria, mas Tupalov foi arrastado para a Fortaleza de Pedro e Paulo e sujeito a tudo aquilo que o czar Alexandre I tinha ameaçado fazer: deram-lhe oitocentas chicotadas e, quando ficou de novo em estado de caminhar, os seus passos levaram-no directamente ao muro junto ao qual foi fuzilado. Sim, você parece-se muito com esse Tupalov, Boris Davidovitch.

 

Quando pararam a tróica, diante da casa de Burjev, Matilda sacudiu a cabeça.

 

- Tenho uma espécie de nó na garganta, não posso comer mais nada...

 

- Uma chávena de chá quente. Depois desta viagem, temos muita falta dele.

 

Boris voltou a libertar Matilda das peles, enquanto o cocheiro levava os cavalos para o pátio da criadagem.

 

Burjev não fez qualquer pergunta quando viu entrar Boris acompanhado pela jovem senhora. Conduziu-os a um compartimento reservado, uma saleta revestida a veludo vermelho, sem janelas. O local era iluminado por uma velha lamparina de azeite.

 

Junto a uma mesa redonda e a duas confortáveis poltronas, havia na sala um amplo sofá, com almofadas de seda e uma coberta de pele de castor. Boris sacudiu a cabeça ao de leve quando, precedido por Matilda, entrou no compartimento. Burjev respondeu com um encolher de ombros. «Quem é que pode saber?», parecia querer dizer. Até então, tinha sempre sido utilizado aquele compartimento pelos jovens oficiais quando ali iam com qualquer rapariga. Porque não naquele dia?

 

- Duas chávenas de chá e uns bolinhos - disse Boris a Burjev, que tinha ficado parado junto da porta.

 

- Chá? E depois champanhe?

 

- Só chá, Matej Gregorovitch. - Curvou-se um pouco para Matilda e disse-lhe em boz baixa: - Um momento, Demoiselle... - Em seguida, empurrou Burjev para fora da saleta. No corredor, Burjev respirou fundo e estendeu o braço para a porta fechada.

 

- Isto é uma novidade, Boris Davidovitch. Quando vinha cá uma senhora, das outras vezes, então...

 

- Preciso de si, Burjev - disse Boris von Soerenberg muito sério. - Uma coisa importante. Tem de me jurar que não falará nisto a ninguém, nem sequer à sua mulher.

 

- Como posso jurar? - Burjev riu de soslaio. - Sabe, sou um anarquista, um livre-pensador, um ateu. Por que coisa é que eu posso jurar?

 

- Por aquilo que mais ama!

 

- A minha carteira do dinheiro...

 

- É um aldrabão! Não ama nada além disso?

 

- Posso jurar pela nossa amizade... - disse muito seria» mente. - Diga lá então de que se trata?

 

- Preciso de si como padrinho...

 

- Enlouqueceu, Boris!

 

- O duelo vai ser no Palácio Jussupov. Espadas.

 

- O príncipe Jussupov? Está fora da razão? - Burjev encostou-se à parede, como se as pernas não o aguentassem. - Desafiou mesmo o príncipe Jussupov?

 

- Não é ele. É um amigo dele. O príncipe Kramskoj...

 

- Pegue no seu cavalo e galope, o mais veloz que puder, para longe de Sampetersburgo! Procure alcançar a fronteira alemã!

 

- Sei o que você está a pensar. Atrás de Kramskoj está o czaréviche!

 

- A Sibéria espera por si! - Burjev esfregou as mãos. E naturalmente por causa de uma mulher. Não foi? Pelas barbas do Profeta... Essa mulher vale assim tanto? Não existem milhares de mulheres na Rússia, em todo o mundo, que lhe possam agradar? Porque há-de defender a honra apenas de uma em troca da própria vida? Boris, Kramskoj é um esgrimista. É um atirador excelente. E nunca perderá, mesmo que perca. Depois do duelo, será sempre você o aniquilado! Não conseguirá sair do local do duelo tão facilmente como lá chegou. Prendê-lo-ão.

 

- Será um encontro muito calmo. - Boris sacudiu a cabeça. - Kramskoj não se pode dar ao luxo de tornar o duelo conhecido.

 

- Pior ainda - disse Burjev. O tom da sua voz revelava uma grande preocupação. - Sabemos bem quem ele é! Mas o assassino que o irá receber a si, esse estará invisível. Fá-lo-ão desaparecer, sepultá-lo-ão em qualquer lugar...

 

- É isso mesmo que temos de evitar. Quantos homens conseguirá juntar?

 

- Quantos quiser. Oh, Céus, quer atacar o Palácio Jussupov com um exército completo?

 

- Dez homens bastam. Kramskoj deve perceber que não me pode fazer desaparecer tão facilmente. Os dez devem esperar na frente do palácio, na margem do Moika, até voltarmos.

 

Boris riu baixinho, mas parecia muito tenso.

 

- Não se preocupe, Burjev. O príncipe Jussupov é um homem que não se mete nesse tipo de coisas. O seu nome está impoluto. - Deu umas pancadinhas no ombro de Burjev e dirigiu-se para a porta do reservado. - Nem uma palavra a Matilda! Não sabe de nada...

 

- E no caso de Kramskoj o matar?

 

- Então, terei simplesmente desaparecido. Será um mistério que ela nunca conseguirá descobrir. Se Kramskoj vencer, levarão imediatamente o meu corpo. Não o impeça... Será preferível.

 

- Então serei eu a trazê-lo comigo - disse Burjev em voz abafada. - Dar-lhe-ei uma sepultura digna, como merece. Não posso permitir que seja enterrado como um cão.

 

O chá da China, leve e aromatizado com laranja, era delicioso. Burjev serviu-o pessoalmente, acompanhado por fofos bolinhos de mel, polvilhados com açúcar e verdadeiramente requintados.

 

Quando voltaram para casa já estava a entardecer; durante dois breves minutos, as torres e os telhados, as ruas e os canais, as casas e a camada de neve que cobria Sampetersburgo pareciam ter-se transformado, no vermelho do pôr do Sol, num jardim encantado. Atravessaram as pontes, passaram diante do Palácio do Senado e entraram na grande Avenida Vosnessenskij, uma das ruas mais luxuosas de Sampetersburgo. Atrás deles elevava-se o prédio alto e imponente do Almirantado, em cujas janelas se reflectia o vermelho dourado do Sol a pôr-se. A estátua equestre de Pedro, o Grande, colocada num alto bloco de granito, monumento à ferocidade e à força cantado por Puschkin no seu poema O Cavalo de Bronze; os jardins de Alexandre, com as suas grandes fontes cobertas de gelo; e, sobretudo, na praça Vorovski, a mais importante de Sampetersburgo, a enorme cúpula de oiro, com cento e dois metros de altura, da Catedral de São Isaac de Kiev, a qual era considerada ainda mais bela que a cúpula da Catedral de São Pedro, em Roma, tudo estava banhado pelo raio vermelho-sanguíneo do pôr do Sol de Inverno, tudo parecia inflamado num gélido incêndio, perdendo todas as semelhanças terrenas.

 

- Paremos, por favor, Boris Davidovitch - disse Matilda em voz baixa. Tinha apoiado a cabeça no ombro dele. Nunca vi Sampetersburgo assim. Não é maravilhosa?

 

- E tudo isto durará apenas alguns minutos!

 

Boris von Soerenberg deu uma ordem ao cocheiro. Este gritou qualquer coisa para os cavalos e puxou as rédeas. A tróica parou perto da catedral. As magníficas e imponentes colunas de granito lançavam sombras violentas sobre as numerosas estátuas e sobre os relevos da parede. Os grupos de anjos dos cantos tinham archotes que eram acesos apenas uma vez por ano, na noite de Páscoa, quando o grito de júbilo se estendia da igreja ao mundo inteiro: Cristo ressuscitou! Esses archotes brilhavam agora com os últimos raios do sol-poente. Parecia um mundo fantástico, sublime.

 

- Não disse ainda nem uma palavra, Boris - sussurrou Matilda. - De que serviriam aqui as palavras?

 

Permaneceram calados na tróica, envoltos nas pesadas cobertas de peles, encantados com a caminhada do Sol, que estava a chegar ao fim.

 

Num segundo, o vermelho-incandescente perdeu a força, as sombras tornaram-se mais longas, o azul tornou-se cinzento, a escuridão avançou inexoravelmente. Apenas a grande cúpula de oiro da catedral brilhava ainda sobre o fundo do céu estriado.

 

- Neste mundo, tudo passa assim muito depressa - disse Boris baixinho. - Nenhum momento pode ser repetido, ninguém pode voltar atrás...

 

- Por favor, não diga isso. - Pousou a sua pequena mão na boca dele. - Foi tão bonito! Gostaria de entrar na igreja... Vem comigo?

 

Ele fez que sim com a cabeça, libertou-se da coberta de pele e ajudou Matilda a descer. De mão dada, atravessaram a praça e, passando através de uma das majestosas portas de bronze, encontraram-se no interior da catedral.

 

O fausto dominou-os. As paredes estavam revestidas por mármores coloridos, a iconoteca era suportada por colunas de malaquite e de lápis-lazúli, as pinturas dos tectos, dos altares laterais, das paredes e do interior da cúpula deixavam sem palavras todos aqueles que se apercebiam de quão pequenos eram perante aquele hino a Deus.

 

Na iconoteca, perto de um dos altares e entre uma enorme quantidade de colunas e de paredes de mármore, estava um coro masculino. Deviam ser monges que rezavam e cantavam antes de se retirarem para as suas celas. As suas vozes potentes elevavam-se para a vertiginosa altura da cúpula.

 

Matilda ajoelhou-se diante dos ícones e inclinou a cabeça. Boris observou-a. Um tufozinho de cabelo, o pescoço branco, os cabelos divididos em duas partes na nuca e a caírem sobre os ombros...

 

«Meu Deus, amo-a», pensou. Instintivamente juntou as mãos e voltou o rosto para um grande ícone incrustado de pérolas e pedras preciosas. Representava Cristo, enquanto ressuscitava Lázaro. Com as mãos erguidas e seguras por Jesus, o morto levantava-se do seu leito de morte.

 

«Quero viver», pensou Boris. «Meu Deus, estás a ouvir-me? Quero continuar a viver, mesmo depois de ter encontrado Kramskoj. Não, não te peço que me faças vencer a mim e morrer a ele, e até é possível que não ouças esta minha oração porque me conheces e sabes quando foi a última vez que entrei numa igreja. Voluntariamente...

 

Geralmente só aconteceu quando estava de serviço no séquito de Suas Majestades Imperiais. Mas agora estou aqui na tua frente e peço-te, tal como ressuscitaste Lázaro da morte, deixa-me viver! Não te peço só por mim, meu Deus... Mas por ela, por ela que está de joelhos na tua frente, só por ela... Tu criaste-a, deste-lhe beleza e talento, e só tu sabes o que a espera. Deixa-me continuar com ela, Senhor! Ajuda-me a estar a seu lado, aconteça o que acontecer na vida. Sabes que a amo? Meu Deus, dá-me tudo aquilo de que preciso para proteger um anjo...»

 

Esperou uns momentos, depois inclinou-se e ajudou Matilda a levantar-se. O seu pálido rosto aproximou-se do dele... Os lábios finos e cerrados, o pequeno nariz, os grandes olhos deslumbrados. Rodeou-a com um braço e apertou-a contra si. Atrás da iconoteca, o coro dos monges elevava o seu cântico, as vozes perdiam-se no gigantesco recinto da igreja.

 

- Mesmo que fuja de mim - disse Boris, sentindo um nó na garganta -, mesmo que me bata, me mande embora, me impeça de voltar a vê-la... Amo-a, Matilduschka... amo-a...

 

Ela inclinou a cabeça em silêncio, não o afastou, não fugiu, nem o proibiu de continuar com ela... Fechou os olhos quando ele a beijou, primeiro timidamente, hesitante, à espera da sua reacção; mas quando ele a beijou de novo, cheio de felicidade, cerrou os braços à volta do seu pescoço e retribuiu-lhe o beijo.

 

Era o seu primeiro beijo.

 

Uma sensação desconhecida, de bem-aventurança, que lhe tirava o fôlego - calor e frio, vertigem e clara consciência.

 

Mas depois, quando a ternura de Boris Davidovitch a envolveu toda, quando sentiu como sua a experiência daquele primeiro beijo, quando se apercebeu de que estavam numa das mais belas catedrais da Rússia diante de uma iconoteca perante a qual devia rezar humildemente e afastar-se de todos os pensamentos terrenos; quando ouviu as vozes dos monges que estavam a entoar o último salmo da noite para depois se retirarem de trás do altar e da igreja sem serem vistos; quando o cântico se tornou mais longínquo e depois parou sob a majestosa cúpula, naquele instan te de felicidade total e de grande comoção, encontrou-se a pensar em... Nicolau Alexandrovitch!

 

No seu rosto cheio de melancolia, nos seus olhos tristes, nas suas mãos macias e na voz insinuante. O raio que a tinha fulminado ainda estava dentro dela...

 

Sentia os lábios de Boris, sentia-se segura entre os seus braços, estava feliz, mas mais nada.

 

- Isto deve ficar entre nós - disse Matilda, quando deixaram a catedral e, passando por entre as colunas, se dirigiram para a tróica que os esperava. - Não vamos dizer nada à minha mãe. Temos de prepará-la. Não vai querer acreditar. Pensará que uma pessoa tão ilustre só pode querer divertir-se. Não será fácil, Boria...

 

- Casaremos! - disse Boris von Soerenberg, decidido. Matilda parou e olhou para ele, espantada.

 

- Mas isso não pode ser! - balbuciou. - É impossível.

 

- É impossível porquê? Não se quer tornar minha mulher?

 

- Nem sequer posso pensar em querê-lo. - Tapou o rosto com as mãos trémulas. - Tu não podes casar comigo.

 

- Quem me impedirá?

 

- A tua posição, Boria! És um oficial da Guarda dos Hussardos de Zarskoi Selo; é o posto mais alto a que se pode aspirar! És um nobre, um barão. A tua família repudiar-te-ia! O que é que eu sou?

 

- Um anjo! - respondeu Boris solenemente.

 

- Uma rapariga que cresceu no meio dos ratos.

 

- Conheço alguém que nasceu num estábulo e foi metido nu numa manjedoura cheia de palha...

 

- Oh Céus, não blasfemes!

 

Fez rapidamente o sinal da cruz no peito de Boris e olhou cheia de medo para um grupo de anjos com os archotes pascais. Já era quase de noite, na grande avenida reflectiam-se as luzes dos altos lampiões a gás.

 

O homem da tróica tinha acendido uma lanterna a petróleo e fumava cachimbo. Com o calor dele tentava aquecer os dedos. A neve à volta parecia suja, reduzida a um montão disforme.

 

A magia do pôr do Sol, o esplendor do Sol, que tinha transformado tudo numa maravilha, era apenas uma recordação. Um vento gélido começava a vir do mar.

 

Não tinha nevado de novo, estava muito frio, e a geada insinuava-se por toda a parte, paralisando a vida de todos os dias.

 

- Não podes casar comigo - repetiu Matilda, e disse-o sem qualquer amargura. Para ela era mais que natural.

 

- Amanhã vou pedir para ser recebido pelo meu comandante e vou pô-lo ao corrente de tudo. - Boris Davidovitch pôs de novo o braço por cima dos ombros de Matilda. - E escreverei aos meus pais a dizer-lhes que amo uma rapariga que para mim tem mais valor que qualquer título nobiliárquico! Importas-te se, em vez casares com um barão von Soerenberg, casares com um simples Soerenberg?

 

- E a tua carreira na corte do czar?

 

- Não seria maravilhoso termos um pedacinho de terra, uma casinha entre as bétulas, um lago com peixes, um pequeno bosque que dê lenha para o Inverno, um estábulo cheio de animais... e sermos livres como a águia por baixo das nuvens? Não seria uma boa vida, Matilduschka? Calou-se de repente, como se alguma coisa tivesse interrompido os seus pensamentos.

 

- Seria maravilhoso, Boria! - Viu-o confuso. - Porque não continuas?

 

- Sou um louco! - respondeu de modo brusco. - Diz-me lá que sou um verdadeiro idiota!

 

- Mas tudo aquilo que tu disseste podia acontecer, Boria...

 

- E a tua dança? Tu nasceste para a arte, Matilda. Devo ter enlouquecido! - Bateu com a mão na testa. - Terias então de dançar entre os sacos de cereais e de forragem? O Lago dos Cisnes na época da debulha... a Polonaise à volta do chiqueiro... Um pás de deux com o pastor...

 

- E se eu abandonasse a dança? - perguntou ela com um acento especial na voz. Mas Boris percebeu no tom a sua própria incredulidade.

 

- Nunca! - respondeu. - Nunca o poderias fazer. No dia vinte e três de Dezembro terás o teu grande triunfo diante do czar!

 

- Ou um desaire clamoroso...

 

- Isso nunca poderá acontecer...

 

- Tenho um medo enorme dessa noite, Boria. Preferirei fugir da frente dele!

 

- Trabalhaste durante nove anos, dia após dia, para alcançares esse objectivo. Não me esqueci ainda do que Tâmara Jegorovna disse ao czaréviche: «Matilda Felixovna, a estrela da nossa Escola de Bailado!» E isso significa a estrela do firmamento do ballet. No Natal, toda a Sampetersburgo apenas falará de ti!

 

Cobriu-a com a sua própria pele e apressaram-se em direcção à tróica. A neve gelada estilhaçava-se debaixo das suas botas como cristal.

 

- O que é um pequeno oficial da baixa aristocracia ao pé de uma primeira-bailarina com o mundo a seus pés? Eu é que devia ter medo, Matilda, e não tu!

 

- Amo-te - disse ela, sorrindo para ele. - Porque nos interrogamos tanto? Estaremos juntos para sempre, quer eu me encontre num palco quer num estábulo. E é só isto que conta.

 

Colocou-a de novo na tróica, tapou-a com as peles e beijou-a enquanto se dirigiam para o bairro onde ela morava, tão deserto à noite que qualquer pessoa prudente o teria evitado.

 

«Essa será a próxima coisa a fazer», pensou Boris quando alcançaram as vielas sujas, as casas em ruínas, cheias de hospedarias e de tabernas, de bordéis e de esconderijos de receptadores. «Ela tem de abandonar este sítio. Não pode continuar a viver aqui. É preciso que tenha uma casa bonita, um andar inteiro num dos luxuosos palácios junto ao Moika, ao Fontanka, aos canais ou fora da cidade, em Petrogrado, onde se podem alugar casas de campo com grandes jardins. Precisa de sair deste pântano de vielas, reino dos bandidos.»

 

Diante da casa do f erro-velho Minaev, os travões da tróica chiaram no gelo. Beijaram-se uma última vez, depois Matilda correu para a entrada escura sem se voltar para trás.

 

- Para onde vamos agora, ilustríssimo? - perguntou o cocheiro. - Para um café-concerto?      

- Para o Palácio Anitschkov!

 

- Às suas ordens...

 

Boris Davidovitch abandonou-se entre as cobertas de peles. Tinha uma urgente necessidade de falar com Mustin Fedorovitch.

 

Rosália Antonovna estava sentada no divã, impaciente, e olhava para a porta com olhos tristes, quando ouviu os passos da filha na escada. Perto dela, no chão, estava uma garrafa quase vazia. Uma mistura especial, mais forte quase duas vezes do que a vulgar aguardente de bétula. E, de facto, Rosália arrotava continuamente.

 

«O estômago», pensou com grande tristeza. «Trai-me! Tanta acidez! Céus, que belo estômago que eu tinha antigamente! Podia engolir pregos e reduzi-los a papinha no meu estômago! Mas agora prega-me a partida. Torna-se ácido... mais azedo que o vinagre! Tem piorado tanto que já é um suplício até para digerir um talo de couve!»

 

- Entra! - gritou Rosália Antonovna. - Entra depressa! Vem cá, minha pombinha!

 

Piscou os olhos, bateu na barriga e escarranchou as pernas. Depois apoiou os braços nas coxas gordas e grunhiu ao ver saltar um botão da blusa.

 

Uma vez tinha sido retratada naquela mesma posição pelo grande pintor Oleg Matvejevic Baldurian, um arménio esperto, e cujos retratos eram muito procurados pelas damas da alta sociedade de Sampetersburgo. Até a grã-duquesa Stana, mulher de Nicolau Nicolaievitch, irmão do czar, se tinha feito retratar por Baldurian deitada num divã, no estilo da famosa Maja de Goya. Com a única diferença de que estava vestida, pois o quadro destinava-se a uma parede do seu salão.

 

Este Oleg Matvejevic tinha, pois, pintado Rosália, retratando-a de pernas abertas, os braços apoiados nas coxas e os volumosos seios à mostra. Embora a Bondareva estivesse decentemente vestida, a fantasia dele tinha transformado a mulher em pose num monte de carne completamente nua, criando uma visão que teria feito Rubens morrer de inveja.

 

A exposição que Baldurian fez nessa altura foi um verdadeiro sucesso - mas também um escândalo, provocado pelo próprio pintor. O retrato da Bondareva estava exposto numa sala privada da galeria e quem saía dessa sala trazia - conforme o seu temperamento - um olhar ou ardente ou confuso, e em comum as faces coradas.

 

As senhoras ficavam naturalmente horrorizadas, embora entrassem naquela sala especial para poderem aperceber-se da personalidade «daquele diabo tentador» e para depois o condenarem excitadamente. Foi precisamente graças àquele quadro que Oleg Matvejevic se tornou o pintor da moda da sociedade de Sampetersburgo.

 

Entre os cavalheiros da cidade espalhou-se a moda, secreta e cara, de mandarem Baldurian pintar as amantes naturalmente nuas. Tudo acontecera há três anos e desde há um ano Oleg Matvejevic tinha um palacete junto ao Grande Neva.

 

Nunca deu um nome à sua musa de outrora, e Rosália continuou desconhecida e pobre. Para posar como modelo tinha recebido doze rublos, importância que lhe tinha parecido justa.

 

Matilda abriu a porta. Voltou para trás, tapando o nariz. Uma nuvem de perfume adocicado veio ao seu encontro, um cheiro tão forte que quase a impedia de respirar.

 

Olhou para a mãe, correu para a janela, escancarou-a e agitou os braços para afastar a nuvem de perfume.

 

- O que é isto, mamã? - exclamou. - O que é que aconteceu? De onde vem este horrível cheiro?

 

- De Paris! - Rosália teve de arrotar outra vez e ao mesmo tempo bateu com uma mão no estômago. - É perfume, não é? Um frasco cheio! Enorme! Directamente de Paris, juraram-me. - Estendeu a mão e agarrou num frasco de cristal finíssimo, conservando-o em contraluz. Depois balançou-o de um lado para o outro. - Aqui está! De Paris! Já alguma vez viste alguma coisa como esta? Já alguma vez cheiraste um perfume parecido a este? Até tem um nome: La Nuit dês Femmes... - Matilda encostou-se à janela aberta. O frio entrou na sala, mas não lhe foi fácil derrubar a barreira do denso perfume. Parecia quase que estava colado às paredes...

 

- Onde arranjou esse perfume, mamã?

 

- Só o recebi para o guardar. - Rosália Antonovna oscilou no assento. O ar fresco agrediu-a; sentiu o álcool a remoer lá dentro. - É teu, só teu, minha pombinha! Oh, deixa-me abraçar-te, luz dos meus olhos! É um presente, de cristal. Já alguma vez tinhas visto uma coisa como esta? Eu nunca. E no entanto estive ao serviço de um conde, e via os que as belas senhorinhas espargiam sobre os bustos. Nada que se comparasse a isto. Este é único. É só para ti. E também te mandaram lindas rosas! Nesta estação! Olha, minha pombinha!

 

Matilda voltou-se. No canto, debaixo do ícone onde ardia uma chama perpétua, estava pousado, em cima do banquinho, um vaso com um enorme ramo de rosas brancas. Uma fita branca e vermelha mantinha-as juntas.

 

- São quinze! - exclamou Rosália. - Contei-as, são mesmo quinze. Uma fortuna, minha querida. Sabes quanto custa uma rosa nesta altura?

 

- Quem é que as mandou? - Matilda não se tinha mexido do seu lugar. Sentia frio nas costas, por causa do vento que soprava pela janela aberta. - Quem é que as trouxe?

 

- Um cavaleiro com um uniforme com galões dourados. Por cima tinha um casaco de peles! Castor, dos melhores. E o que disse quando cá veio trazer o ramo de rosas? «Madame, peço-lhe que fique com isto!» E eu perguntei de repente: «Quem é que mandou essas rosas? O senhor está enganado. O bordel é duas portas mais à frente, à esquerda...» E o cavaleiro, muito gentil: «Madame, o endereço é mesmo este. Não é aqui que mora Matilda Felixovna?» O que é que eu havia de fazer? Ele deu-me as rosas, deu-me o frasco de cristal... logicamente, muito bem embrulhado, numa caixa de cartão coberta de seda. Mas eu abri-a, nunca se sabe que coisas é que nos trazem para casa... Depois ele fez uma reverência, mas eu notei que torcia o nariz. Atirei-lhe uma panela à cabeça. Acertei-lhe em cheio e ele saiu a correr! Foi assim que tudo aconteceu.

 

Olhou para Matilda com os olhos semicerrados.

 

- Posso experimentar um bocadinho, não é verdade, fIlhinha?

 

- Põe o perfume no lugar, mamã - disse Matilda, fechando a janela. Depois estendeu a mão para a frente. Onde está a carta?

 

- Qual carta?

 

- As rosas vinham acompanhadas por uma carta, mamã...


- Não vi nenhuma carta, minha pombinha.

 

- Não digas mentiras! - Agitou as mãos. - Passa-a para cá.

 

Rosália Antonovna suspirou profundamente, meteu a mão dentro da blusa e tirou um sobrescrito.

 

Ainda estava fechado.

 

Matilda abriu-o. Viu que era uma folha sem cabeçalho, na qual estava escrito, numa bela caligrafia inclinada:

 

«Penso muito em si, Matilda Felixovna. Se fecho os olhos, vejo-a. Espero ansiosamente o dia em que poderei reencontrá-la. Peço-lhe que pense em mim, do mesmo modo que está sempre na lembrança do seu

 

Nicolau Alexandrovitch Romanov.»

 

- Lê em voz alta! - pediu Rosália Antonovna. - Não escondas nem uma sílaba à tua pobre mamã! Ela tem feito tudo por ti, tu és tudo na sua vida...

 

Matilda pôs a carta debaixo do vaso das rosas, tirou a capa, arrancou o frasco de perfume das mãos da mãe e sentou-se ao lado dela no divã. Ficou calada durante muito tempo, num silêncio pesado e grave, que se tornava mais pesado minuto a minuto.

 

- É terrível, mamã - disse Matilda por fim. - O que é que eu devo fazer?

 

- Eu bem o pressenti! - A Bondareva deu umas pancadinhas na barriga, porque sentia que tinha de arrotar de novo. - Rosas brancas no Inverno! Perfume francês! Uma fita para atar o ramo... Aquele belo tipo de cavaleiro em casaco de peles de castor, tão distinto que até incomodava...

 

- Uma carta do czaréviche...

 

- Que Deus o abençoe e depois o fulmine! Rosas! É assim que eles começam, os ilustríssimos. Quando é que ele quer que vás ter com ele?

 

- Diz que pensa sempre em mim...

 

- Mas é claro! Sobretudo quando está sozinho na cama...

 

- Ama-me de verdade, mamã...      

 

- Assim falam as pessoas distintas!

 

- O czaréviche ama-me! Mamã! O czaréviche! Em toda a Rússia, ama-me só a mim!

 

Matilda deixou-se cair para trás no divã e tapou a cara com as mãos. Rosália olhou-a de soslaio. Depois disse em voz alta:

 

- Vamo-nos embora para Odessa! Matilda nem sequer a ouviu.

 

- «Seu Nicolau Alexandrovitch Romanov», escreveu ele. «Seu»... meu Deus, mamã, como posso dizer isto ao Boria?

 

- Boria? E quem é esse Boria?

 

- Boris Davidovitch.

 

- O belo cavaleirinho? E desde quando é que lhe chamas Boria? - Rosália começou a andar para frente e para trás. Agarrou Matilda pelo vestido, puxou-a para si e abanou-a. - Como é que começaste a chamar Boria àquele tipo?

 

- Estamos noivos. Desde há pouco, diante de Deus, na Catedral de São Isaac de Kiev. Enquanto os monges cantavam...

 

- Que desgraça! Que desgraça!

 

A Bondareva apertava a cabeça entre as mãos.

 

- Porque é que o Céu me castigou assim? Não fui sempre uma boa mulher? Noivos, dizes tu? Tu e um oficial dos Hussardos? E o czaréviche manda-te rosas brancas, quinze, e perfume francês.... É o naufrágio, meu anjo! Pode-se dizer que já estamos a pairar na frente de um abismo...

 

De repente começou a chorar. A boa e grande Rosália soluçava que metia dó, enquanto abraçava a filha, a apertava contra si, como fazia sempre quando Matilda era ainda uma menina e ia ter com a mãe por causa de qualquer desgosto. Ficaram assim abraçadas durante muito tempo, à luz da lamparina, olhando para as rosas brancas, envolvidas pelo perfume francês. Ambas tinham a sensação de estar à deriva num oceano em que ninguém podia ouvir os seus pedidos de socorro.

 

O duelo realizou-se na sexta-feira, às dez da manhã.

 

Dois dias antes, Burjev havia sido recebido, como padrinho de Boris von Soerenberg, pelo príncipe Jussupov. Todo vestido de negro, com um chapéu alto e uma gola de raposa negra, Burjev tinha-se apresentado de coche.

 

Quem o visse assim, pensaria que ele era, pelo menos, parente dos riquíssimos Stroganov.

 

O príncipe Jussupov não se fez esperar. Recebeu-o imediatamente no seu luxuoso gabinte. O sol de Inverno penetrava através das altas janelas que davam para o Moika. Jussupov indicou-lhe uma das preciosas poltronas de brocado lavrado com dourados; mas Burjev preferiu ficar de pé.

 

- Sei o que o senhor tem para me dizer - disse Jussupov, agitando as mãos. Era um homem delicado, com um fino rosto de aristocrata, que parecia esculpido. -Já assisti a muitos duelos... idiotas e insensatos. E este é o mais idiota de todos! Se eu pudesse servir de medianeiro entre Kramskoj e Soerenberg...

 

- O barão insiste nas espadas! - disse Burjev, rígido. Conhece o motivo, Alteza?

 

- Sim. Kramskoj teve de confessá-lo. Como se queria bater aqui... Não se pode desagravar de outro modo a jovem senhora? Kramskoj está pronto a fazê-la dona de uma pequena propriedade rural...

 

- Então, deve estar com medo! - disse Burjev ironicamente. - Não falemos mais sobre este assunto, Alteza. Como anfitrião, o senhor pode marcar a hora...

 

E o dia tinha chegado. Uma sexta-feira. Burjev tinha tentado convencer Boris a protelá-lo. Ele era supersticioso, Boris não.

 

- Uma espada não conhece datas! - dissera este a rir como um rapazinho. - Fere conforme a mão que a empunha!

 

Às nove e meia, dez homens envoltos em pesados casacos de pele reuniram-se à frente da estalagem de Burjev. Chegaram juntos, em três carruagens, beberam rapidamente uma chávena de chá com vodca e abriram os casacos. Burjev passou-lhes revista como se se tratasse de um pelotão. Pistolas nos coldres. Punhais e facas. Dois fuzis apertados ao peito. Os casacos, longos e grossos, escondiam tudo isto.

 

- Também preparei quatro cargas de dinamite - disse Burjev, que trajava um fraque, como se fosse para uma apresentação de gala na Ópera.

 

Boris Davidovitch tinha-se vestido a rigor. Em lugar de uniforme, tinha vestido um fato à civil, cinzento e discreto. Para ele era indiferente aquilo que tinha vestido... o duelo seria em tronco nu. O que perdesse afogar-se-ia no seu próprio sangue.

 

Pontualmente, dez minutos antes das dez, Burjev e Boris entraram com a sua tróica no pátio principal do Palácio Jussupov. Os lacaios correram para os veículos e libertaram-nos das cobertas de pele.

 

No último degrau da famosa escada do palácio, uma orgia de pompa neobarroca do arquitecto Monighetti, sob o gigantesco lustre de cristal, no qual se espelhavam os raios do frio sol de Inverno, para depois se reflectirem nas figuras de mármore dos nichos, esperava-os o príncipe Jussupov, vestido com uma sobrecasaca negra.

 

Soerenberg inclinou-se, em silêncio.

 

- Bem-vindo à minha casa, Boris Davidovitch - disse o príncipe Jussupov com voz velada. - Teria preferido acolher-vos como um amigo e conduzir-vos a um salão de festas.

 

- De facto, isto é uma festa para mim, Alteza, - Boris von Soerenberg olhou para o príncipe com orgulhosa determinação.

 

- O príncipe compreendeu o olhar e suspirou baixo. Jussupov parecia não ter pressa. Esperou que os lacaios

 

levassem os casacos dos hóspedes, e não deu qualquer sinal de querer sair da escada.

 

- Deveis estar enregelado pela viagem - disse. - Precisais de vos aquecer, meu amigo. Mandei preparar uma pequena refeição...

 

- Depois do duelo, Alteza! - Soerenberg sorriu gentilmente. - Estou bem aquecido. Os meus músculos já estão em movimento. Apenas preciso da minha arma e de Kramskoj.  

 

- Escolhi o meu pequeno teatro como local do encontro. - Jussupov fez um largo movimento com a mão, como se quisesse dizer que em determinado lugar do palácio também existia um teatrinho privado. - É o lugar que mais se presta para um duelo.

 

- O vosso teatro? - Boris Davidovitch estava surpreendido, mas Jussupov parecia radiante. - O vosso espírito é notável! Espero não vos desiludir e procurarei ser um bom actor. Mas não façamos esperar Kramskoj...

 

O príncipe percebeu que era inútil tentar atrasar o acontecimento. Voltou-se e precedeu os hóspedes.

 

Através dos corredores e dos salões, conduziu Soerenberg e Burjev para uma longa ala lateral construída há pouco tempo, que se abria para o jardim. No fim desta ala estava o teatrinho, composto por uma sala oval e por um palco bastante fundo.

 

A cortina estava aberta. O cenário representava um parque, pintado de forma tão perfeita que não se tinha a impressão de estar na frente de paredes de linho, mas sim num verdadeiro parque estival, com caminhos cheios de sombra, grandes esculturas de personagens da mitologia grega e, ao longe, uma fonte rumorejante.

 

Na frente do palco, no lugar da orquestra, rodeado por uma balaustrada de madeira, estavam à espera o príncipe Kramskoj, com um desconhecido que, tal como Burjev, vestia um fraque, e, um pouco mais longe, um homem de idade com grossas lentes no nariz.

 

Jussupov parou perto da porta que dava para a plateia e deixou que o espectáculo fizesse efeito em Boris von Soerenberg.

 

- Tentei criar uma certa atmosfera - disse. Parecia gentil, mas Soerenberg não compreendeu se ele estava a ironizar. Em todo o caso, o duelo começava a apresentar-se como qualquer coisa fora do vulgar.

 

Uma luta de vida ou de morte que se ia desenrolar num teatro, iluminado por lâmpadas eléctricas coloridas colocadas no proscénio, ao lado do cenário e no tecto. Jussupov estava muito orgulhoso por o seu teatro ter sido construído segundo os critérios mais avançados e, sobretudo, por nele se usar a electricidade.

 

- Se os senhores não virem bem, posso mandar iluminar mais o palco. Que seja um verdadeiro dia de sol, como no Verão...

 

- Já passa das dez, Alteza. - A voz de Soerenberg parecia um pouco encrespada. - Devemos começar.

 

Malograra a última tentativa de Jussupov para mudar as coisas. Encaminhou-se para a balaustrada da orquestra. Soerenberg e Burjev seguiram-no. O príncipe Kramskoj estava pálido, como se tivesse passado a noite sem dormir. Vestia um fato escuro de corte inglês. Fitou Soerenberg com um olhar inquieto e cortante. Tinha os músculos da cara contraídos. Não tinha o aspecto de um homem confiante na vitória.

 

- Os senhores Von Soerenberg e Burjev - apresentou Jussupov. Os senhores apenas fizeram uma reverência. Jussupov voltou-se para Von Soerenberg: - Este é o conde João Baptista Palladini, um amigo do príncipe. O doutor Janis Abramovitch Mrozek, o melhor cirurgião de Sampetersburgo.

 

O senhor com as lentes fortes inclinou-se respeitosamente. Tinha pousado a sua maleta na cadeira normalmente ocupada pelo primeiro-violinista da orquestra de Jussupov. Era a típica maleta rígida de couro negro, com abertura central e bolsas laterais. Para aquela ocasião, o doutor Mrozek tinha levado bisturis, pinças, o material de sutura, ligaduras e pensos para estancar o sangue.

 

- Uma derradeira tentativa... - disse o príncipe em voz alta.

 

- Não, por favor! - Soerenberg levantou a mão. - Estou noivo, há poucos dias, da senhora que Kramskoj queria atropelar com o próprio trenó.

 

- É um homem muito determinado, Boris Davidovitch. Jussupov encolheu os ombros resignado. - Em tais circunstâncias... - lançou um olhar a Kramskoj.

 

O príncipe tamborilou com os dedos na borda de uma estante.

 

- Está pronto, Valentin Vladimirovitch?

 

- Sempre! - respondeu Kramskoj com uma rosnadela. Atravessou Soerenberg com um olhar cheio de ódio. Burjev subiu para o palco e colocou-se perto do projector. Vestido de fraque, no meio do cenário bucólico, parecia que ia cantar uma ária.

 

O conde Palladini seguiu-o. O doutor Mrozek abriu a maleta. A título demonstrativo, colocou os pensos, as pinças e as tesouras em cima de um grande pano de musselina. Sobre o assento do flautista, colocou um frasco escuro com tintura de iodo.

 

Depois de uma breve hesitação, Jussupov também subiu para o palco, manejou os interruptores e iluminou tudo ainda mais. Um dia de sol de Verão!

 

Boris von Soerenberg esteve quase tentado a aplaudir. A ilusão era perfeita.

 

Sem dizer sequer uma palavra, Boris tirou o casaco, desabotoou a camisa e despiu-a. Em tronco nu, passou por Kramskoj e subiu a escada para o palco.

 

Jussupov olhou para ele admirado. Um corpo bem moldado, com músculos bem desenvolvidos, um tórax não muito largo, mas no conjunto uma imagem de força e de resistência.

 

O príncipe Kramskoj também se despiu, pendurando meticulosamente o casaco, dobrando a camisa e mostrando-se finalmente em tronco nu. Era mais entroncado que Soerenberg, mais baixo, mais maciço, com uma certa brutalidade. A sua força parecia concentrada na massa de todos aqueles músculos.

 

Os dois padrinhos, Burjev e o conde Palladini, disseram qualquer coisa em voz baixa. Compararam os próprios relógios e depois, de comum acordo, combinaram que o duelo continuaria até que um dos dois participantes fosse posto fora de combate ou desistisse espontaneamente, levantando para o alto a própria espada.

 

No pior dos casos, a morte de um dos dois poria fim ao duelo. Isso seria possível, por exemplo, no caso de um golpe no pescoço cortar a carótida ou de uma pancada mais forte esfacelar o crânio.

 

Foi o príncipe Jussupov quem trouxe as espadas. Vinham em duas almofadas de veludo negro onde estavam bordadas as armas do príncipe. Boris nunca tinha visto espadas como aquelas; os punhos, resultado de um finíssimo trabalho de cinzel, eram dourados; as lâminas, afiadíssimas, eram lavradas, de um lado, com belos desenhos orientais.

 

Kramskoj pegou na sua espada e tomou-lhe o peso.

 

Soerenberg volteou a sua lâmina no ar - e ouviu-se um sibilar, quase um assobio. «Até o ar parece espesso quando é fendido por uma lâmina como esta», pensou ele.

 

Kramskoj observava Boris como um falcão a um rato. Os seus olhos tinham-se tornado duas frestas... estava de pernas escarranchadas, girava a espada na mão, com a clara intenção de meter medo. O espectáculo havia começado a silenciosa guerra de nervos.

 

- Seguro-a bem na mão! - disse Boris satisfeito. - Há uma equilibrada distribuição do peso. Uma magnífica espada!

 

- O que diz torna-me feliz, Boris Davidovitch. -A voz de Jussupov soava ligeiramente amarga. - Agradar-me-ia poder oferecer-lha. Será do vencedor.

 

- Alteza, agradeço-vos! - Soerenberg inclinou-se um pouco. - Aceito o presente com alegria.

 

Kramskoj mordeu os lábios. Tinha os nervos muito tensos. A certeza de vencer de Soerenberg irritou-o desmedidamente.

 

- E então? - gritou de modo rude. - Os padrinhos já estão de acordo? O que é que esperamos? Há ainda mais alguma coisa para decidir? Tenho um encontro com o príncipe Trubezkoi ao meio-dia.

 

- Em guarda, por favor!

 

O conde Palladini endireitou o fraque. O príncipe Jussupov agarrou numa terceira espada, que tinha pousado ali perto, e foi para o meio do palco. À sua tarefa era a de separar os lutadores caso as regras não fossem cumpridas por qualquer dos dois lados; por exemplo, picando com a ponta em vez de bater de lado, ou se, segundo o seu parecer, algum dos dois não estivesse em condições de se defender.

 

Burjev aproximou-se de Boris, deu-lhe uma pancadinha no ombro nu e disse lentamente:

 

- Kramskoj encontra-se muito embaraçado. Já está a tremer! - Em seguida, afastou-se três passos, deixando o campo livre.

 

O conde Palladini também sussurrou algumas palavras a Kramskoj. Certamente eram palavras de apoio.

 

- Campo livre! - disse Jussupov em voz alta. Deu um salto para a posição inicial, com a espada direita para a frente e para baixo.

 

Boris Davidovitch olhou para o adversário. Kramskoj não tinha adoptado a clássica posição de guarda. Avançava lentamente para Soerenberg, com a espada levantada horizontalmente diante de si, a cabeça metida nos ombros largos. O seu aspecto materializava o seu pensamento: matá-lo!

 

Parou perto de Boris e volteou a arma. Não esperou pelo tradicional cruzar de espadas no ar para dar início à luta.

 

Jussupov queria dizer qualquer coisa, visto que a sua tarefa ali também era a de defender as regras do duelo.

 

Queria levantar a própria espada e interromper, mas não foi a tempo.

 

A lâmina de Kramskoj elevou-se no ar e caiu sobre Boris, desenhando uma ligeira mas perigosa curva. O golpe foi fulminante, surgindo sem qualquer gesto preparatório... a morte desviou-se por um triz.

 

Mas Boris Davidovitch respondeu ao golpe. Não tinha necessidade de ver a lâmina... bastava-lhe olhar a fundo nos olhos de Kramskoj para ver o que ele queria. Por uma fracção de segundo, os olhos tinham antecipado aquilo que poderia ter acontecido. As espadas encontraram-se, produzindo um som tilintante, Boris e Kramskoj andaram à volta com os braços erguidos, como se estivessem grudados um ao outro, depois Soerenberg conseguiu empurrar o príncipe e dar mais um golpe.

 

Kramskoj teve sorte. Conseguiu defender-se, mais por uma questão de reflexo, empurrou a espada de Boris e de repente passou ao ataque.

 

Foram duas dezenas de golpes recíprocos, até que, depois de uma estupenda finta em que Kramskoj, completamente suado, atacou Boris de lado, o príncipe se abateu rumorosamente sobre Soerenberg, golpeando selvaticamente à sua volta.

 

Jussupov ergueu imediatamente a sua própria espada, e meteu-se entre os dois, mas, com um golpe violento, Kramskoj afastou-o para o lado. Jussupov, que não o esperava, deixou cair a espada... Esta escorregou no palco e foi bater num dos bastidores do lado.

 

- Pára! - gritou Jussupov. - Valentin! Pára!

 

Kramskoj já não ouvia nada. Com os olhos injectados de sangue, avançou para Boris. O duelo clássico tinha-se tornado para ele um combate selvagem, como quando, na guerra, se procura aniquilar o inimigo.

 

Boris von Soerenberg continuava calmo. Recuou, evitou a espada e aparou as estocadas, mantendo-se numa posição de defesa, sem atacar.

 

Kramskoj arquejava de boca escancarada, continuando a esgrimir como um louco, chegando a agarrar a espada com as duas mãos para a fazer cair sobre o adversário.

 

Jussupov voltou a gritar, mas sentia-se impotente contra aquela louca erupção de uma vontade destrutiva. O suor corria como um rio pelo corpo de Kramskoj, que o sacudia do rosto como os cães quando estão molhados, e continuava a investir contra Boris.

 

Soerenberg tinha recuado. Estava debaixo da estátua de Palas Ateneia pintada no cenário do fundo e viu Kramskoj avançar impetuosamente para ele - cego pelo ódio, com os olhos semicerrados, o corpo completamente preparado para um novo golpe. Parecia gozar o triunfo da sua própria lâmina, a que o adversário não ia poder esquivar-se. Aquele golpe anularia qualquer defesa.

 

Boris Davidovitch esperava com rosto inexpressivo. Estava muito calmo, mesmo naquele momento cheio de perigo, em que até Burjev torcia as mãos e o doutor Mrozek brincava nervosamente com os próprios óculos.

 

A morte tem muitas faces - e nesse momento mostrava-se no rosto de Kramskoj.

 

No momento em que a lâmina fendia os ares, Boris desviou-se ligeiramente para o lado. A espada de Kramskoj trespassou o cenário, rasgou a tela onde estava pintada a deusa e abateu duas colunas de madeira.

 

Kramskoj berrou como um urso ferido e cuspiu contra o cenário. Em seguida pôde ainda ver como Boris Davidovitch, com um movimento elegante, fazia cair a própria espada na brecha aberta diante de si: o ombro direito de Kramskoj.

 

Já não era possível qualquer defesa.

 

A lâmina cortante entrou, pôde-se ouvir nitidamente o impacte contra a omoplata, depois a ferida abriu-se e uma cascata de sangue inundou o corpo do príncipe.

 

Kramskoj continuou de pé na frente de Boris, fitando-o incrédulo. Tentou dar um passo e ainda viu o conde Palladini e Burjev precipitarem-se para Boris e afastarem-no dele. Depois ouviu Jussupov gritar:

 

- Meu Deus, depressa, doutor Mrozek, depressa!

 

E naquele momento sentiu que não tinha mais forças. Foi invadido por uma grande felicidade, caiu, rolou no lago de sangue, sem sequer sentir a queda, e ficou estendido no próprio sangue.

 

O doutor Mrozek, ajoelhando-se ao lado do paciente, tentou estancar-lhe a ferida, feliz por Kramskoj ter desmaiado. Isto permitia-lhe trabalhar mais à vontade e voltar a coser as partes de carne divididas pelo golpe.

 

O príncipe Jussupov aproximou-se de Boris, que tinha ficado no lado esquerdo do palco; atrás dele, no cenário do fundo, estava pintada a figura de Hércules, com a mão numa enorme clava. Continuava a segurar na espada, enquanto Burjev lhe limpava o suor das costas com um pano.

 

O conde Palladini estava sentado num dos bastidores, em cima de um cepo feito de papelão, abanava-se com um lenço de rendas e evitava olhar para Kramskoj e para o sangue dele. Estava pálido. Tinha vontade de vomitar.

 

- Está satisfeito, Boris Davidovitch? - perguntou Jussupov sem nenhum ênfase na voz. - Desagravou a sua honra?

 

- Tentei pô-lo fora de combate da melhor forma. Boris deixou cair a espada. Tilintou aos pés de Jussupov. O príncipe abanou gravemente a cabeça.

 

- Eu vi. Teria podido decapitá-lo apenas com um golpe. A sua nuca descoberta estava ali diante si como num patíbulo. Agradeço-lhe... também em nome de Valentin Vladimirovitch.

 

- Ele não concordará com isso.

 

- Informá-lo-ei de que o senhor lhe poupou a vida. Apesar de tudo... Kramskoj é um homem de honra! - Jussupov olhou para a espada a seus pés. A lâmina estava manchada de sangue. - A arma pertence-lhe a si, Boris Davidovitch.

 

- Não a mereço, Alteza. Tem demasiado valor.

 

- Todavia, o senhor defendeu a sua vida com ela. Não creio que Kramskoj tivesse desviado o golpe se tivesse tido a sua nuca descoberta diante dele. Fique com esta espada como recordação. - Jussupov respirou fundo duas vezes. Aceita agora uma pequena refeição, Boris Davidovitch?

 

- Gostaria de saber antes o que diz o doutro Mrozek. Dirigiram-se para o ferido, ainda sem sentidos. Jazia no

 

seu lago de sangue e tinha um aspecto horrível. O doutor Mrozek tinha estancado o sangue, mas era evidente que a ferida de Kramskoj precisava de outro tratamento.

 

- Tenho um bom quarto para doentes - disse Jussupov antes que Mrozek exprimisse o seu diagnóstico. - Podemos apetrechá-lo com tudo o que for necessário. Podemos mandar vir os melhores cirurgiões. Mas é impensável que o príncipe possa ser internado numa clínica. Tudo isto deve ficar como se fosse um acidente.

 

- Os ligamentos dos músculos romperam-se. - O doutor Mrozek levantou-se com o fato cheio de sangue. Temo que o príncipe nunca mais consiga levantar o braço. Talvez com especialistas... Mas antes tem de se conseguir suturar os ligamentos. E há também os nervos... Só especialistas... - Mrozek calou-se. O príncipe Jussupov compreendeu.

 

- Mandaremos chamar os melhores especialistas, doutor Mrozek. Quem são eles?

 

- O professor Von Bergmann, do Hospital de Berlim, o professor Alain Ducroix, de Paris, e Sir Henry Baldwin, de Londres....

 

- Mandarei telegramas imediatamente. - Jussupov olhou para o amigo. O rosto estava muito branco e exangue. - Suportará a perda de sangue?

 

- Se Deus o ajudar... Sim.

 

- Então, é preciso que alguém reze! - respondeu Jussupov sarcasticamente. - Estou com curiosidade de ver quem lhe dará o próprio sangue...

 

Uma hora mais tarde, Boris Davidovitch tinha voltado para o Palácio Anitschkov. As carruagens com os dez homens, envoltos nos amplos casacos, tinham continuado na direcção do Grande Neva. Burjev tinha ido ter com eles, prometendo-lhes um bom almoço com muita vodca.

 

Ao chegar ao palácio, Boris foi primeiro ao quarto do anão Mustin. Estava situado na ala esquerda e dava para o Fontanka. O alojamento consistia em enormes salas com tectos estucados e pilastras pintadas, no meio das quais o anão parecia ainda mais pequeno e miserável: uma criatura minúscula dotada de voz humana.

 

Mustin Fedorovitch Urasalin estava estendido num divã, imerso na leitura de um livro de Puschkin. Isto provava a sua grande inteligência, pois só havia quatro anos que aprendera a ler e a escrever.

 

Deu um salto quando Boris entrou e atirou para o tapete, no meio do quarto, a espada que Jussupov lhe tinha dado de presente.

 

- Precisas de te esconder, não é? - grunhiu Mustin de repente. - Foge para o Azerbaijão. Lá os meus irmãos escondem-te! Ainda existem lugares que nunca foram devassados e de que os homens normais não conhecem a existência, a não ser nós, os pastores. Vou arranjar-te um cavalo bom e veloz. Ou preferes levar o teu cavalo de serviço? Talvez seja melhor! Estão habituados um ao outro...

 

- Dentro de duas horas tenho de acompanhar o grão-duque. - Soerenberg parou junto da janela e olhou para fora, na direcção do Fontanka. - Vim ter contigo apenas para fumar um dos teus esplêndidos charutos. Mas o grão-duque Sergei ainda não reparou que tu o roubas?

 

Mustin começou a saltar com as suas perninhas. A grande cabeça estava vermelha de aflição.

 

- Não mataste Kramskoj?

 

- Não.

 

- Boris! Meu filho, ainda não fugiste?

 

- Kramskoj ficará aleijado de hoje em diante. Nunca mais poderá usar aquele braço.

 

- Isso para ele ainda será pior que a morte -- disse Mustin lentamente.

 

- Não para Kramskoj. Além disso, ainda tem o braço esquerdo com os dedos completamente inteiros. Isso bastar-lhe-á para os seus ataques! - Boris apontou para a espada. - Um presente do príncipe Jussupov! O que hei-de fazer com ela?

 

- Matar Kramskoj, quando puderes! - respondeu o anão muito sério. -Tens de fazê-lo, filhinho, porque o seu ódio não te dará tréguas...

 

Konstantin Petrovitch Pobedonoszev, mestre e conselheiro do czaréviche e confidente do czar Alexandre III sobretudo quando se tratava de resolver qualquer problema absolutamente particular e secreto - apresentou-se no Palácio Anitschkov anunciando novidades.

 

Como sempre, o czar mandou-o entrar para o seu gabinete privado, uma sala cheia de quadros na qual o austero soberano se sentia melhor que em qualquer outro sítio. Arte e poder, dois mundos quase antagónicos, mas que Alexandre III sabia misturar com rara harmonia. Quando se sentava na frente das suas pinturas, vinham-lhe as melhores ideias para o exercício do seu poder absoluto.

 

A família do czar não era ali admitida, tal como o soberano preferia manter a sua vida privada longe da política; aos próprios filhos, sobretudo ao czaréviche, só repetia uma coisa: o czar tem sempre razão! O czar é absoluto! Para todos os russos, o czar vem imediatamente a seguir a Deus! O czar é a Rússia!

 

Pobedonoszev ia naquele dia ter com o seu soberano com uma óptima disposição. Levava consigo duas fotografias encaixilhadas em pequenas molduras de prata. Pousou-as na grande escrivaninha do czar e deu um passo atrás.

 

As fotografias mostravam o delicioso e inocente rosto de uma rapariga com compridos caracóis louros. O olhar era um pouco sonhador, o sorriso ia direito ao coração: um anjo de comovente pureza.

 

O czar olhou durante muito tempo para as fotografias, recostou-se para trás na sua poltrona e coçou o nariz.

 

- Se não fôssemos dois velhos asnos, Konstantin Petrovitch - disse com alegria -, perguntava-te: onde mora esta jovem senhora? Pode-se visitá-la sem dar muito nas vistas?

 

- Uma boa pergunta! - Pobedonoszev apoiou-se no espaldar da sua cadeira. - A jovem senhora chama-se Alice, princesa de Hessen, e não precisamos de entrar furtivamente em sua casa. Podemos visitá-la de carruagem e perguntar a seu pai, o grão-duque Ludwig, se concorda.

 

- Se concorda com o quê, seu burro velho?

 

- Em se tornar sogro do futuro czar Nicolau.

 

- Estás maluco, Pobedonoszev ! - gritos o czar. Perdeste completamente a razão! Queres acasalar o meu filho com este anjo?

 

- Não é preciso. - Pobedonoszev sorriu abertamente. O czaréviche já está completamente apaixonado.

 

- E isso faz-te feliz?

 

O czar inclinou-se para a frente. Observou as fotografias de Alice de Hessen com os olhos a piscar. Não a tinha reconhecido. Quando a viu pela primeira vez, em 1884, tinha doze anos: naquela altura estava de visita a sua irmã, a grã-duquesa Elisabeta, mulher do grão-duque Sergei.

 

Os Hessen desempenhavam um papel importante na família do czar... A mãe de Alexandre III, a czarina Maria Alexandrovna, era princesa de Hessen e Alexandre II fora muito feliz com ela, embora tivesse tido algumas amantes. Mas não se falava disto na corte do czar. Era vulgaríssimo.

 

Alice viera uma segunda vez a Sampetersburgo, para o faustoso baile de São Silvestre de 1889; revelara-se tímida e bela, mas fora observada com uma certa ironia pela aristocrática sociedade russa. Dizia-se que tinha uma bela voz e que havia tido lições em Darmstadt com a mulher do pastor Knispel e em Francoforte com o professor Herborn. Cantava sobretudo Mozart, e às vezes também Rossini e Verdi. A sua ópera preferida era La Traviata. Também sabia tocar piano muito bem e o seu professor era o director da orquestra de Hahn.

 

Depois do baile de Ano Novo de 1889, durante o qual o jovem czaréviche, indiferente às bisbilhotices, mostrara profundo interesse por Alice, os jornais ingleses tinham escrito sem rodeios que um casamento entre o herdeiro do trono russo e a princesa de Hessen, que também era neta da rainha Vitória, seria uma garantia para a aproximação entre a Rússia e a Inglaterra.

 

- Nem quero pensar nisso! - tinha dito então Alexandre III ao responder às subtis insinuações dos seus cortesãos. E esta resposta tinha posto fim a todas as discussões.

 

Quando, em 1891, Alice voltou de novo à Rússia, para visitar a sua irmã Elisabeta, que se encontrava em Ilinskoje, perto de Moscovo, o czar proibiu categoricamente Nicolau Alexandrovitch de vê-la.

 

«Não quero mais nenhuma alemã no trono russo!», terá rosnado então.

 

Também a czarina, princesa da Dinamarca, que tomara o nome de Maria Fiodorovna, tinha tentado impedir, por todos os meios próprios de uma mãe, que Niki, o seu amado filho mais velho, se apaixonasse por Alice.

 

Contudo era evidente que o tímido czaréviche gostara da princesa alemã, que, embora parecesse sonhadora, era muito ambiciosa, e até talvez estivesse apaixonado por ela.

 

Quando Nicolau Alexandrovitch soube que a czarina via com bons olhos, como mulher do próprio filho, a bela Hélène d’Orleans, filha do conde de Paris, escreveu no seu diário, cheio de tristeza:

 

«Encontro-me numa situação difícil, como perante uma encruzilhada: eu quero ir por um caminho, mas a minha mãe quer que eu vá por outro...»

 

Desse momento em diante não se voltou a falar de Alice de Hessen. Podia haver muitas princezinhas, belas e inteligentes, mas que não fossem alemãs! Mas agora Pobedonoszev vinha com aquelas duas fotografias, afirmando saber seguramente que o czaréviche ainda pensava em Alice.

 

O czar recostou-se, bebeu um gole de vinho, apesar dos seus cálculos renais, aos quais, para dizer a verdade, não prestava grande atenção, e mordeu o lábio inferior.

 

- Não serão só suspeitas, Konstantin Petrovitch? perguntou pensativo.

 

- Confidenciaram-me que, depois da visita de 1889, a princesa tem estudado o russo com grande dedicação...

 

- Com todos os diabos! - O czar bateu com uma mão na coxa. - A isso é que se chama precisão alemã. Ninguém sabe o que vai acontecer e ela estuda russo!

 

- Conversa muito com o sacerdote da embaixada imperial em Londres. Sua Majestade, a Rainha Vitória de Inglaterra sondou muito discretamente a grã-duquesa Elisabeta sobre se estavam a preparar Alice para uma conversão à Igreja Ortodoxa.

 

- Nunca! -- gritou o czar. - Nunca! Tudo isso nas minhas costas? Falarei com Nicolau. Aliás, a minha opinião é bem conhecida...

 

Pobedonoszev suspirou baixinho. De facto, era bem conhecida.


Começara com a santa Elizabeth von Thúringen, que o czar definia como louca, passara pela trágica Maria Stuart da Escócia e por último chegara à sinistra doença que afectava sem excepção os descendentes masculinos da rainha Vitória e que era incurável: a doença do sangue, a hemofilia. O pai de Alice tinha sofrido da doença, tal como os seus irmãos, o avô da parte do pai... uma hereditariedade assustadora que Alexandre III não queria ver implantada na Rússia através do próprio filho. Era tão adverso a tal coisa que, quando o seu ministro dos Negócios Estrangeiros lhe propusera o casamento entre o czaréviche e a irmã mais nova do imperador alemão Guilherme II, tinha exclamado:

 

- O que é que o senhor me está a propor? Eu estou bem informado! O sangue de toda essa família pode estar contaminado, e isso seria terrível.

 

O imperador Frederico III tinha morrido com um cancro na laringe que havia sido diagnosticado já tarde e tratado de maneira incorrecta; para Alexandre III, isto só piorava as coisas: a imperatriz era uma princesa inglesa! Não era por acaso que a rainha Vitória era chamada «a Avó da Europa».

 

- E preciso que o czaréviche recomece a viaj ar - disse então o czar. - Para bem longe! De novo para a China ou para seguir os trabalhos do caminho-de-ferro transiberiano, que o apaixonam de forma comovedora! Konstantin Petrovitch, de onde vêm as suas informações?

 

- O herdeiro do trono tem um diário, Majestade.

 

- E escreve tais idiotices?

 

- Os diários são os melhores confidentes dos homens.

 

- Ah! E os seus espiões frequentam o apartamento privado do czaréviche?

 

- Dentro dos desejos de Vossa Majestade, tenho-me ocupado a preparar o czaréviche para o cargo de czar. Por isso tenho também de conhecer os seus pensamentos mais secretos, os desejos ocultos, as aspirações insatisfeitas, as íntimas esperanças. Neste sentido, o czaréviche é um óptimo filho. Alguns pequenos affairs sem importância... até ao dia em que a princesa Alice atravessou o seu caminho, congregando a partir de então todos os seus pensamentos. Até hoje..    

 

- Mas nós vamos opor-nos, Konstantin Petrovitch disse o czar com voz arrastada. - Por todas as formas!

 

Observou de novo as fotografias nas molduras de prata, agarrou nelas e meteu-as numa das amplas gavetas, de rosto para baixo.

 

- A propósito, o que é que pensa de Hélène d’Orleans?

 

- Uma beleza fascinante, um espírito elevado. Contudo, quando se fala nela, o czaréviche fecha-se. Ama Alice desde que ela lhe cantou um trecho de La Tmviata.

 

- Fá-lo-emos mudar de ideias! - Alexandre III bateu com um punho no outro. - Avise os funcionários da Ópera da Corte que deve ser retirada do programa qualquer representação de La Traviatal Por Deus, há tantas outras óperas...

 

Era uma das típicas ordens do czar, sobre as quais ninguém reflectia durante muito tempo.

 

Uma semana mais tarde, desenrolava-se no primeiro andar da casa do ferro-velho Minaev, na casa de Rosália Antonovna Bondareva, uma conversa decisiva.

 

Boris Davidovitch havia chegado com um rolo de pergaminho, que desdobrara em cima da mesa, não muito limpa. Fixou-o com uma chávena de chá e uma jarra de flores, para que não se enrolasse de novo. Rosália olhava para o pergaminho com um ar bastante obtuso.

 

Parecia ser uma planta, mas de qualquer forma não sabia de que se tratava.

 

- Eis como será o novo apartamento! - disse Boris alegremente. - Grandes salas cheias de luz. Debaixo das janelas corre o Jekaterininski. É num grande palácio em estilo Renascimento e pertence a um comerciante riquíssimo de nome Stroitsky...

 

- O sol é sempre maravilhoso, quer para quem é abençoado por Deus quer para quem é um verdadeiro aldrabão.

 

Rosália estava sentada na frente do desenho, com uma tigela de barro no colo, dentro da qual estava a amassar farinha. Naquele dia Matilda estaria a ensaiar até à noite e Rosália queria que ela encontrasse um bom bolo quando voltasse a casa.

 

Como Boris tinha entretanto chegado estava a juntar um pouco mais de farinha à massa para ele também comer bolo; nem sempre se podia comer gansos e galinhas, caviar e lagosta.

 

Rosália ainda não se tinha habituado à ideia de ter um ilustríssimo por genro, e ainda não falara nisso a ninguém. Nem o faria nunca! Como se poderia saber quanto tempo iria durar aquele capricho? Um dia o senhorinho ia-se embora, quer fosse casado ou não, e elas seriam motivo de escárnio. O que é que podiam elas fazer, pobre gente? A razão está sempre do lado dos ricos...

 

- Conhece o honrado Stroitsky? - perguntou cautelosamente,

 

- Vassilij Arkadjevitch, o filho mais velho, serve na guarda a cavalo! Um dos poucos burgueses... tão ricos são os Stroitsky.

 

- Devem ser uns verdadeiros vigaristas! - Rosália amassou a farinha com mais energia. - O que é que vai fazer com este desenho?

 

- Vamos mudar na próxima semana, mãezinha... disse Boris alegremente.

 

- Quem é que se vai mudar? - Rosália olhou para a planta, esbugalhando os olhos.

 

- Nós! A senhora e Matilda. O que está a ver é a planta da nova casa.

 

- Esta? - Bateu com o rolo na massa. - A nossa casa? O que é que isso quer dizer?

 

- Aluguei-a a Stroitsky. Primeiro por um ano...

 

- Ah! Por um ano! - Olhou para Soerenberg de esguelha. - Está maluco, Boris Davidovitch?

 

- Matilda tem de sair deste sítio! - gritou-lhe ele, pegando na planta. -É inconcebível que continue a viver aqui...

 

- E inconcebível?

 

Rosália Antonovna colocou violentamente a tigela em cima da planta e limpou as mãos ao avental.

 

- Matilda nasceu e cresceu aqui! - disse em voz alta. Nunca teve raiva nem sarna, e o mais que teve foram algumas pulgas, mas isso todos nós temos por aqui. Não se vê nenhum percevejo nas paredes, exterminei todas as baratas desta sala e Minaev não deixa entrar aqui nem um piolho. Todos os fatos que compra limpa-os primeiro a seco e depois é que os vende. Aqui é tudo muito limpo, Boria, muito limpo. Aqui temos sido felizes, foi aqui que a minha pombinha começou a dançar e também a desconfiar dos homens. E isso é a coisa mais importante na vida! E agora temos de nos ir embora daqui? Eu, ir para uma tal casa? No canal Jekaterininski? Uma casa rica, mas rançosa...

 

- Estilo Renascimento, mãezinha! É um estilo luxuoso...

 

- Talvez para um Stroitsky, mas não para um Bondarev! Boris Davidovitch, não saio daqui! Tente, tente! Terá de me arrastar lá para fora! Mas eu gritarei na escada, na rua, no trenó: Vejam isto, vizinhos! É assim que eles me tratam! Esta casa já não agrada à filha e ao genro. Querem viver como príncipes, com tapetes no chão e pinturas no tecto! Ajudem-me, amigos! E eles formarão uma barreira, bloquearão a estrada, porão pimenta nas narinas do seu cavalo e Minaev fechará a sua loja e tocará a velha trombeta, como se tivesse de tomar de assalto uma fortaleza. Acontecerá tudo isto! Não me mudo para a casa de Stroitsky, tenho de deixar que se riam de mim? Prefiro esmurrar o nariz àqueles... àqueles ricaços!

 

Era difícil acalmar Rosália Antonovna. Não ouvia os argumentos e continuava a gritar:

 

- Tenho uma casa limpa! Parto a cabeça a quem duvidar disto!

 

Até o ferro-velho Minaev, atraído pela grande algazarra por cima dele e posto ao corrente dos projectos de Soerenberg, só conseguiu que Rosália lhe atirasse uma panela à cara.

 

Apenas o regresso de Matilda da Escola de Bailado acalmou um pouco a mãe. Estava sentada no divã como um pugilista cansado e respirava dificilmente.

 

- Ah! - gritou imediatamente, mal Matilda entrou. Vira-te! Ali na parede está um espelho. Olha para ti e saberás qual é o aspecto de quem renega a própria mãe...

 

- Mamã, fala baixo, por favor! Se Minaev te ouve...

 

- Tikon Benjaminovitch? Ah! - Riu estridentemente. Deve estar sentado atrás do balcão, a tratar o nariz com um pano embebido em vinagre! - Estendeu o braço, com o punho cerrado. - Já viste a planta?

 

- Sim. Boria levou-a à escola. Até Tâmara Jegorovna achou a casa maravilhosa.

 

- Achou? É natural! Ela mora num palácio! Será que ela também vai pagar o nosso aluguer?

 

- Isso não são perguntas que se façam, mãezínha - disse Boris energicamente.

 

- Pelo contrário, têm de ser feitas! Estou habituada a viver só com aquilo que posso. E agora, que estou eu a ouvir? Que o aluguer vai ser pago por si, que a carteira do barão Von Soerenberg está aberta! A sua clemência caiu sobre nós como uma tépida chuva de Primavera. O que é que tenho de fazer? Ajoelhar-me talvez? Ou não... Ao meu conde costumava-se beijar-lhe as botas. Venha aqui, Boria, meu genrozinho, para eu lhe beijar os sapatos. Ou então a bainha do seu uniforme! Diga-me o que é que eu devo fazer...

 

- Calar a boca! - disse Matilda. - Está uma tróica lá fora, vamos já ao canal para vermos a casa.

 

- Eu não vou! - Rosália encostou-se à parede. - Vou-me amarrar! E depois vou chorar! Hão-de ouvir os meus soluços! Gritarei para o céu: «Eduquei uma menina, tão querida, tão inteligente... e o que é que ela faz agora? Renega a própria mãe! Quer abandonar a própria casa, envergonha-se da casa da mãe, onde ela própria nasceu!» O Céu chorará comigo, já to posso dizer... chorará comigo e um anjo dirá: «Rosália Antonovna, espera só mais um pouco, depois subirás ao céu e terás um lugarzinho no paraíso, só para ti...» - E começou a soluçar.

 

- Amém - disse Boris em voz alta. Rosália assustou-se.

 

- Além de tudo, é um herege! O que será de nós...? A pergunta era apropriada, porque, uma hora depois,

 

uma tróica com Boris, Matilda e Rosalia Antonovna atravessava a cidade em direcção ao canal Jekaterininski e foi parar na frente de um grande portão entre colunas dóricas. Era um daqueles típicos palácios citadinos das famílias russas mais ricas, as quais, como os Stroganov, tinham conseguido fazer um certo nome graças ao comércio com os produtos da Sibéria e às propriedades na Nova Terra, a região para além de Tjumen, onde nascia a impenetrável taiga. Geralmente era o czar quem oferecia a estas famílias algumas terras na Sibéria, concedendo-lhes a possibilidade de a conquistarem, com um exército privado. Dessa forma as suas propriedades tornavam-se infinitas.

 

- Aqui? - perguntou a Bondareva. Deitou um olhar para a luxuosa fachada. - Siga em frente, seu cocheiro sarnento!

 

- A nossa casa ocupa metade do primeiro andar - explicou Boris Davidovitch. - Os Stroitsky moram em Sampetersburgo apenas três meses por ano... durante o resto do tempo vivem em Moscovo ou em Perm. Aos pés dos Urales têm o seu próprio Kremlin. Mas agora saiamos...

 

- Não! - disse Rosália Antonovna em voz alta. - Primeiro quero saber quem está naquela casa.

 

- Não é habitada. Neste momento é ocupada apenas por uma governanta, uma cozinheira, três criados e três criadas. No jardim e no laranjal trabalham dois jardineiros.

 

- Quer dizer, dez pessoas! - Rosália ofegou. - E diz que não está habitada!

 

- Aquelas pessoas também estão compreendidas no aluguer.

 

- Valha-me Deus! - Benzeu-se rapidamente. - Temos pessoal ao nosso serviço? Se eu me sentar e gritar «Olhem, tragam-me as pantufas»... um deles virá logo a correr?

 

- Para isso é que eles ali estão. É a sua profissão. Têm de satisfazer todos os desejos.

 

- Os meus também?

 

- A senhora é a mãe de Matilda. É a patroa. Terão um grande respeito, principalmente por si.

 

- Isso é que eu quero ver!

 

Deixou cair o casaco de pele, saltou da tróica e ajeitou o gorro na cabeça. No grande portão, apareceram dois criados, que pareciam indecisos, sem saber se aqueles seriam os novos patrões.

 

Rosália apontou para eles com o braço esticado.

 

- Esses aí são os nossos? - perguntou.

 

- Sim, mãezinha - respondeu Boris, piscando o olho a Matilda.

 

- Venham cá, seus desmiolados! - gritou Rosália, agitando os braços. - Querem correr ou não? Na frente da casa está escorregadio! Por que razão é que ainda não tiraram o gelo? Talvez queiram que nós partamos os ossos? Mas não, os senhores ficam sentados perto do fogão e não fazem nada o dia inteiro, em vez de tratarem do que é preciso! Mas isso acabou. Vão saber quem é Rosália Antonovna! Vão aprender com quantos paus se faz uma canoa. Venham aqui depressa! Não darei um passo nesse gelo escorregadio!

 

E assim entrou Rosália na nova casa.

 

Dois criados transportaram-na para dentro de casa, onde a governanta, que estava à espera, a fixou com um olhar atónito.

 

- Porque arregala tanto os olhos? - gritou a Bondareva.

 

Ficou sem fala na frente da imponente escadaria da casa. Nunca tinha visto nada assim, nem sequer sonhara com tal coisa. Os candeeiros eram sustidos por enormes figuras de mármore, mas o que mais a irritou foi o facto de aqueles homens estarem todos nus. Logicamente eram de pedra e privados de vida, mas em tudo o resto eram como os homens de carne e osso...

 

Rosália voltou-se para a filha, corou e disse baixinho:

 

- Filhinha, esta é uma casa de desavergonhados. Nunca pensei que Boris Davidovitch fosse tão pervertido... Nem sequer se pode olhar!

 

- São estátuas gregas, mamã...

 

- E então? Não parecem diferentes de Kulikov, o camponês, ou de Brendelev, o cocheiro. Ainda por cima naquela posição!

 

Nessa noite, Rosália Antonovna dormiu numa cama sobre a qual estava pendurado um enorme quadro: Leda com o Cisne. Antes de adormecer, e depois de ter recitado, como habitualmente, uma curta oração, voltou a olhar para o quadro.

 

- A isto nunca me habituarei - disse com grande decisão. - Nunca andarei nua, mesmo que isso faça parte de uma vida aristocrática.

 

Dormiu numa cama macia, debaixo de um céu de seda, e sonhou com Tikon Benjaminovitch Minaev. Estava nu, de pé, na enorme escadaria, com um castiçal na mão. Ria demoniacamente.

 

O próprio Minaev! Rosália cuspiu-lhe para cima - no sonho - e subiu, cheia de orgulho, os degraus de mármore.

 

A primeira visita que tiveram na nova casa foi a de Mustin, o anão. Apresentou-se com o seu traje da corte, em estilo oriental, trazendo na cabeça um turbante decorado com espelhos. Como presente pela nova casa, trouxe um papagaio branco.

 

Rosália Antonovna recebeu-o no Salão Azul, assim chamado por ter as paredes forradas de seda azul. Estava muito dignamente sentada numa poltrona. Trajava um vestido vaporoso, ornamentado com rendas, que disfarçava um pouco os seus enormes seios e a sua figura imponente.

 

- Mustin Fedorovitch, é um bom sinal que seja o senhor a fazer-nos a primeira visita! Um bobo! Quanta verdade há nisso! Este tipo de vida é uma burla completa. Imagine que eu tenho dez pessoas ao meu serviço! Puxo o cordão da campainha e aparece logo alguém. Posso mandá-lo correr de um lado para o outro que não dá nem um ai. Quando me levanto de manhã, tenho a meu lado uma criadinha que quer ajudar a lavar-me. Da cabeça aos pés, se eu quiser. As coisas estão assim. Então não ri?

 

- Tudo isso me parece muito sério - respondeu Mustin Fedorovitch. - Vim a pedido do czaréviche...

 

- Não quero nem ouvir falar nele! Em breve, a minha filha será a baronesa Von Soerenberg...

 

- Quem melhor do que eu pode sabê-lo? Mas deram-me uma ordem e tenho de cumpri-la, - Apontou para uma gaiola dourada em forma de pagode que dois criados tinham levado para a sala.

 

O papagaio branco saltava no poleiro central e olhava para Rosália com os olhos verdes a pestanejar.

 

- Um presente do czaréviche para a nova casa. Soube da vossa mudança na mesma noite em que a fizeram: o serviço de informações está muito bem organizado. O papagaio é para Demoiselle Matilda. Sabe falar...

 

- Então diz qualquer coisa! - gritou Matilda na direcção da gaiola, colocando-se na frente dela.

 

- Assim não! - Mustin aproximou-se. - Só responde com um código. Diga por favor: «Eu sou Matilda!»

 

- Eu sou Matilda! - gritou Rosália de repente.

 

O papagaio eriçou as penas, levantou bem alto a cabeça e respondeu:

 

- Eu chamo-me Niki! - Disse-o muito claramente e continuou a grasnar. - Chamo-me Niki... estou à tua espera... Niki está sempre contigo...

 

Rosália sentou-se na poltrona como que paralisada pela estupefacção e continuou a olhar para o pássaro de boca aberta.

 

Só quando Mustin voltou a falar é que ela compreendeu o que lhe tinham levado para casa. O anão disse:

 

- Não o pude impedir. Eu sou apenas o bobo... «Niki» ê o diminutivo do czaréviche...

 

O duelo entre o príncipe Kramskoj e Boris von Soerenberg permaneceu, de facto, em segredo.

 

Era um verdadeiro milagre, pois Sampetersburgo tinha a fama de ser um ninho de mexeriqueiros onde nada ficava oculto. Falava-se de tudo e de todos sob juramento de não ser contado nada a ninguém, mas os maiores segredos eram precisamente aqueles que todos sabiam. Nos salões da nobreza, o mexeriqueiro substituía o jornal e naqueles tempos eram muitas as notícias que se passavam de boca em boca, esbugalhando os olhos de surpresa.... Os temas em que se entretinham com mais prazer iam das novas histórias de amor até às conjuras políticas, dos segredos de alcova ao perigo ameaçador de uma nova revolução. Falava-se dos jovens ardentes e confusos que queriam que a Rússia fosse governada pelo povo em vez do czar, eleito por Deus... «A Rússia, a nossa santa Rússia na mão de um colectivo que loucura!» Nos salões não se levava muito a sério aquela jovem geração, que queria ser chamada comunista.

 

O príncipe Jussupov tinha conseguido brilhantemente subtrair o duelo ao interesse público, uma vez que o considerava como um acontecimento absolutamente privado. O vencido Kramskoj jazia, rangendo os dentes e clamando por vingança, numa cama do primeiro andar do palácio, numa ala privada a que só iam dois criados que nunca falariam... Eram, de facto, surdos-mudos de nascença.

 

Jussupov servia-se deles para missões particularmente delicadas, que lhes exigiam que fossem mudos como dois autómatos e, todavia, servilmente devotos ao seu patrão. Quem teria dado trabalho a dois surdos-mudos na cidade de Sampetersburgo, onde a miséria e o desemprego coexistiam com a maior riqueza, da forma mais indigna?

 

À ala da mansão que Jussupov tinha destinado para clínica, tinham vindo, avisados por telegramas urgentes, os professores Ducroix, de Paris, e Henry Baldwin, de Londes, para examinarem o braço de Kramskoj. O professor Von Bergmann, de Berlim, tinha declinado o convite por estar ocupado num congresso de cirurgia do cérebro que se realizava em Genebra e ao qual ele não podia faltar.

 

Para os outros dois médicos, o convite do príncipe Jussupov significava uma grande honra, a qual também seria amplamente recompensada. Os honorários que o príncipe costumava pagar não eram inferiores ao que um professor de Medicina ganhava num ano.

 

As consultas tiveram como resultado que o braço de Kramskoj não tivesse ficado totalmente rígido, recuperando parte da sua autonomia. Aquilo que se temia tornara-se uma certeza: Kramskoj ficaria incapacitado para sempre.

 

- Matá-lo-ei! - disse ele abafadamente, quando foi feito o último diagnóstico.

 

O príncipe estava sentado na cama e Jussupov tinha acabado de brindar com champanhe pelo êxito das consultas, muito mais favoráveis do que se podia esperar.

 

- Felix, seguirei os seus passos como o lobo segue o cheiro do sangue. E logo que o encontre, mato-o! Um Kramskoj estropiado por causa de uma putéfia! O meu coração está cheio de ódio!

 

- Soerenberg será sempre mais forte que tu.

 

- Matá-lo-ei numa emboscada... Quero vingar-me, e nada mais. É-me indiferente como o vou conseguir!

 

- Isso seria um assassínio a sangue-frio, Valentin Vladimirovitch.

 

- E que me importa? Soerenberg é um homem a mais neste mundo!

 

O ódio de Kramskoj e o seu monstruoso desejo de matar cresciam com o passar dos dias, e com as suas melhoras.

 

Tinha sido operado pelo professor Ducroix, especialista nos casos complicados de sutura dos tendões. Ò doutor Mrozek tinha assistido. Ambos os médicos tinham aconselhado calorosamente que o doente fosse internado numa clínica especializada, mas Jussupov tinha-se oposto.

 

Uma clínica significaria indiscrição... e ele conhecia bem Sampetersburgo. As complicações com a corte do czar seriam imensas, visto que o príncipe Jussupov não se devia ter prestado a hospedar no seu próprio palácio o vencido de um duelo privado, em que tinha estado envolvido um oficial da Guarda. Por outro lado, o czar não teria mostrado muita compreensão por um príncipe Kramskoj disposto a atropelar com a sua tróica uma rapariga que não quisera satisfazer os seus desejos.

 

- E se a ferida infectar? - perguntou Ducroix.

 

- Isso também pode acontecer numa clínica! - respondeu Jussupov. - Na minha casa há, de certeza, mais asseio que num hospital.

 

Ducroix teve de admitir que não podia objectar contra esse argumento. As condições dos hospitais naquele tempo eram lamentáveis, necessitando de reformas para poderem ser considerados confortáveis. A única diferença é que, em caso de complicação, tinha-se tudo à mão.

 

A operação resultou bem. Esperaram-se ansiosamente os dias a seguir, mas Kramskoj teve sorte. Não houve nenhuma infecção, não se formou pus, nem gangrenou.

 

Para recuperar a perda de tanto sangue, o doente bebia vinho tinto de Borgonha, misturado com gemas de ovos. Às vezes, jazia embriagado em cima das almofadas, e então cerrava o punho e balbuciava:

 

- Boris Davidovitch, toma cuidado. Vou-te matar. Tenho o tempo todo para te procurar! Não me fugirás!

 

Ao ouvir estas ameaças, Jussupov achou melhor avisar Soerenberg. A ocasião apresentou-se-lhe num dos seus frequentes encontros no Palácio Anitschkov, onde ambos quer por causa do czar, quer por causa do czaréviche iam muitas vezes.

 

- Ele diz aquilo a sério - contou Jussupov a Soerenberg com alguma preocupação. - Está cheio de ódio!

 

Conheço-o bastante bem para saber que lhe fará uma emboscada como qualquer assassino. Não vejo qualquer moral da parte dele. E obrigado a estar na minha casa mais dois meses. Neste momento não está em condições de se mostrar em público, mas depois... Tem tempo suficiente, Boris Davidovitch...

 

- Para fazer o quê, Alteza? - perguntou Soerenberg sem perceber.

 

- Para procurar um esconderijo.

 

- Nem sequer penso nisso.

 

- Podia pedir para ir para a China como adido militar. Estaria suficientemente longe para fazer Kramskoj desistir de o perseguir. Seria fácil enviá-lo para a China devido às boas relações que temos com aquele país, sobretudo depois da visita do herdeiro do trono. Poderia falar eu mesmo com o czaréviche e programar tudo.

 

- Não fujo diante de um Kramskoj, Alteza!

 

- Em caso de necessidade, ele contrata assassinos...  

 

- O senhor pensa que eu tenho medo?

 

- É claro que não! - Jussupov sacudiu a cabeça. Conheço bem a sua coragem! Mas de que servirá ela contra uma bala disparada na escuridão? Se para si a China é muito longe... Que pensa de Londres ou de Roma?

 

- Fico em Sampetersburgo, Alteza! - Soerenberg abanou a cabeça. - Tenho muitas razões para isso.

 

- Número um: uma mulher!

 

- Sim.

Leve-a consigo, Boris Davidovitch.

- Isso seria impossível.

 

Soerenberg olhou para além das costas de Jussupov, para o pátio interior do palácio.

 

A carruagem imperial tinha acabado de passar. Alexandre III queria assistir a uma reunião do Almirantado. O czaréviche acompanhava-o, coisa bastante rara, porque o czar, em princípio, mantinha a política longe da sua vida familiar.

 

- A jovem senhora tem um futuro na sua frente...

 

- Ah! Não pensa casar com ela? - Jussupov sorriu maliciosamente... - Não leva o seu cavalheirismo muito a sério, meu caro...

 

- Casarei com a senhora, mas não serei um obstáculo no seu caminho. - Soerenberg ficou rígido.- Chegou o czar. Estou de serviço na sua escolta. Penso que dificilmente me compreenderia, Alteza.

 

- Desisto: o que diz é para mim um enigma.

 

- Amo esta rapariga mais que qualquer outra pessoa. E precisamente porque a amo é que a seguirei, ficando na sombra e fazendo tudo para lhe evitar os maus tratos e os desgostos da vida. O destino reservou-lhe a sorte de se tornar uma grande artista, mas também lhe reservou tarefas mais difíceis que tornar-se dona de casa ou mãe.

 

- Pouco posso entender do que diz. - O príncipe olhava para Soerenberg espantado. - Por acaso conheço a senhora em questão?

 

- Ainda não.

 

- Enche-me de curiosidade, Boris Davidovitch.

 

- Será admirada pelo mundo inteiro e tê-lo-á a seus pés.

 

- Nesse caso, tenho pena de si. a partir de hoje, Soerenberg - Jussupov agitou a mão. - Viverá num estado de medo permanente e será devorado pelos ciúmes. É isso vida para um homem como o senhor? Com a sua capacidade, os seus recursos? Siga o meu conselho, meu amigo: vá para a China como adido militar, consiga algumas doces concubinas por lá, as chinesas são famosas pelos seus jogos amorosos. Uma tradição de três mil anos, Soerenberg! Enquanto nós na Europa ainda agitávamos as clavas, vestidos com peles de urso, aquelas senhoras cobriam as suas alcovas com pétalas de rosas! E, sobretudo, Boris Davidovitch, lá estará protegido de Kramskoj!

 

- Acredito, Alteza, que o senhor tem mais medo dele do que eu deveria ter...

 

- É exactamente isso. Kramskoj é um lobo...

 

- Então porque o tratou?

 

- Também é meu amigo.

 

- Devia tê-lo mandado para a China.

 

Viu se o seu boné de hussardo estava no lugar. O czaréviche saiu de uma porta, olhou à volta, reconheceu Soerenberg e fez-lhe um sinal.

 

- Deve reflectir nessa eventualidade, Alteza! Porque será que na Rússia é costume mandar-se para o Extremo Oriente sempre a pessoa errada? O czaréviche está a chamar-me.

 

Preparou-se para se ir embora, mas voltou-se uma última vez para Jussupov.

 

- Se Kramskoj voltar a falar de mim, diga-lhe por favor que se ele é como um lobo acossado então deve proteger-se daqueles que o querem caçar para o eliminar. E eu sou um bom caçador, Alteza!

 

O príncipe Jussupov olhou para Soerenberg pensativamente, coçando o nariz. Esperou que Boris subisse para a carruagem com o czaréviche e dirigiu-se a seguir para a ala lateral do palácio.

 

Orgulho e coragem não lhe serviriam de nada se alguém lhe fizesse uma emboscada. O príncipe sentia-se impotente. Se Kramskoj chegasse a matá-lo, como poderia escondê-lo, apesar da amizade? Era impossível - a única solução era suprimir Kramskoj antes...

 

Jussupov encolheu os ombros, sentindo um frio repentino. Odiava a violência, amava a música e as mulheres belas, a arte e o teatro, a dança e tudo o que contribuía para difundir a beleza. O seu filho, o elegante e sofisticado Felix, tornar-se-ia exactamente como ele...

 

Quem poderia supor, então, que fosse aparecer um monge taumaturgo de nome Rasputine, que teria um dia tal poder sobre a família do czar que até o jovem e elegante Felix Jussupov fosse organizar o assassínio do monge, tornando-se uma figura imortal da História?

 

Quem podia prever que um dia todo o esplendor, riqueza e poder sucumbiriam e a Rússia se tornaria numa república popular, deixando de ser o teatro de uma aristocracia privilegiada...?

 

Quem não ficaria com os nervos à flor da pele a viver com um papagaio, o qual, para além de tudo, falava sem parar?

 

Para Rosalia Antonovna, a casa transformou-se num agitado campo de batalha. Até àquele momento tinha sido hábito comum que quem ficasse por mais de cinco minutos sujeito ao bombardeamento da voz da Bondareva não ousasse voltar a replicar-lhe. Não se tratava de submissão, mas de honrada capitulação, pois quem podia enfrentar Rosália?

 

No tempo do mercado, quando havia discussões em que Rosália estava envolvida, até a polícia imperial desistia de a interrogar, preferindo chamar de lado o adversário da Bondareva e aconselhá-lo de forma amigável, mas firmemente, a que calasse a boca e prosseguisse o seu caminho. Até os desgraçados que estavam manifestamente cheios de razão acabavam por compreender que era impossível meterem-se com aquela mulher e retiravam-se em silêncio.

 

Mas com o papagaio era outra coisa.

 

Ele era incrivelmente capaz de fazer frente a Rosália e de dizer sempre a última palavra.

 

- Um animal desprezível, um verdadeiro bocado de esterco! - gritava Rosália nos primeiros dias. - Vou estrangulá-lo! Aperto-lhe o pescoço! Vou cortar-lhe aquela cabeça odiosa! Já alguma vez se viu alguma coisa como esta? Eu digo: «Agora basta, zarolho de um raio!», e aquele diabo responde-me: «Estou à tua espera. Chamo-me Niki!» Como é que se pode suportar isto?

 

E, no entanto, tinha de o suportar. O papagaio podia dar-se a esse luxo porque tinha um seguro de vida: era um presente do czaréviche.

 

Não podia ser metido num canto escuro nem se lhe podia torcer o pescoço: era absolutamente impossível.

 

Que outra coisa restava a Rosália senão aceitar a luta com o bicho e expor-se assim a uma situação insustentável? Porque o papagaio, até então habituado a falar educadamente, tal como lhe tinha ensinado o guarda imperial, tinha começado a aprender coisas que nunca seriam ditas em qualquer palácio.

 

Um dia, Rosália foi cumprimentada de manhã, em voz alta, pelo papagaio com as palavras: «Burra velha!», e quase desmaiou.

- Isto é de mais! - dizia a Bondareva a resmungar. Não suporto mais isto! Que vá tudo para o Inferno, pássaro de Satanás!

 

- Boca torta! - respondeu-lhe o papagaio, agitando as asas. - Estou à tua espera! Chamo-me Niki! Niki está sempre contigo! Burra velha... aborto!

 

O papagaio atrapalhou-se um pouco ao pronunciar a última palavra, mas Rosália sabia exactamente o que é que ele queria dizer.

 

Até o anão Mustin estava fascinado com os progressos do pássaro. Quando, uma semana depois, voltou de visita e o papagaio o saudou com um «Burra velha!», olhou para a Bondareva com um ar de censura.

 

- Como podia eu saber que ele era um diabo destes? gritou mostrando o punho ao papagaio. - Repete tudo.

 

- E a característica destas aves - disse o anão. Aprendem tudo.

 

- Tudo? - Rosália corou.

 

- E vêem tudo.

 

- Ainda por cima!

 

- E percebem tudo o que vêem!

 

- Oh, Céus! - A Bondareva caiu pesadamente no divã. - Este pedaço de esterco é um macho ou uma fêmea?

 

- Um macho! - respondeu o anão sem hesitar, embora na realidade não soubesse de que sexo era o papagaio. Jamais alguém se tinha preocupado com este facto; havia sido escolhido para aquela missão apenas pela sua capacidade de aprendizagem.

 

Rosália Antonovna olhou atordoada para o pássaro. Envergonhou-se até ao mais fundo do seu coração. Mais de uma vez tinha corrido nua no apartamento, da casa de banho até ao quarto, pois o banho tinha-se tornado o seu maior divertimento.

 

Nunca durante toda a sua vida tivera oportunidade de se deitar numa banheira como os grandes senhores. Durante o Verão tinha-se banhado duas ou três vezes no Neva ou no mar, mas sempre em locais solitários; e dos tempos da sua juventude recordava um riozinho protegido por arbustos na margem; ali fazia amor, primeiro, e depois banhava-se na água fria para lavar dos pecados a própria carne.

 

Agora tinha uma casa de banho de mármore branco e uma enorme banheira com torneiras de ouro; podia deitar-se na água quente, relaxar-se e juntar à água sabão líquido perfumado ou lavar-se com sabonetes que cheiravam a jasmim, rosa ou cravo. Que delícia estar deitada na água durante uma hora, e depois, toda perfumada, andar nua pela casa! Quem poderia pensar que aquele danado pássaro era um macho e que via e percebia tudo como se fosse um ser humano?

 

- Burra velha! - disse o papagaio do mais fundo do peito. Disse-o e piscou o olho a Rosália como teria feito um compadre do seu velho bairro.

 

- Conhece muitas outras expressões deste género? perguntou Mustin Fedorovitch?

 

- Não sei - balbuciou a Bondareva. - Que Deus me perdoe, sinto-me mal do coração...

 

- Pode ser que o czaréviche venha de visita.

 

- Aqui? Eu morro, Mustin...

 

- E então dirá: «Ah, este é que é o meu amado papagaio? Como estás?» E que coisa responderia o querido pássaro?

 

- Aborto! - grasnou o papagaio. - Burra velha!

 

- O czaréviche ficará horrorizado.

 

A Bondareva empalideceu, inclinou-se para o anão e sussurrou-lhe ao ouvido:

 

- Talvez tenhamos de suprimi-lo...

 

- É impossível! É um presente do czaréviche!

 

- Um acidente! Diremos que comeu cereais estragados antes que o conseguíssemos impedir. Uma verdadeira desgraça! Chorarei e vestir-me-ei de luto, como se tivesse morrido uma parte de mim mesma. Mas ele deve desaparecer!

 

Claro que o papagaio ficou.

 

No princípio, Matilda também tinha insistido para que o papagaio fosse devolvido ao czaréviche. Sentara-se diante do pássaro com Boris Davidovitcrr e tinha ouvido tudo quanto ele sabia dizer: «Chamo-me Niki... Estou à tua espera...» Tinha sentido o coração a bater muito forte - era diferente de quando Boris a prendia entre os braços e a beijava. Era uma sensação completamente nova, que a percorria de cada vez que pensava no czaréviche, nos seus olhos cheios de melancolia, nos traços delicados, na mão macia e na voz profunda. «Estou à tua espera...»

 

Uma mensagem que era repetida todos os dias, como um aviso, como uma promessa. Uma presença contínua, mesmo só em pensamento.

 

- Vou mandá-lo de volta - tinha dito Matilda a Boris na segunda noite que o papagaio passava lá em casa. Estavam sentados na sala com lareira, abraçados um ao outro num sofá, iluminados apenas pelo bruxuleante brilho das chamas; a gaiola com o papagaio estava pousada numa mesinha de mármore na frente deles.

 

O pássaro estava em silêncio no seu poleiro, com o pescoço esticado, e olhava-os com os seus brilhantes olhos verdes a piscar.

 

- Não quero mais ouvir aquilo que ele diz. Só te amo a ti, Boris...

 

- Não podes devolver um presente do herdeiro do trono - disse Soerenberg.

 

O seu amor por Matilda era tão forte e cheio de vida que Boris se resignara em ter Nicolau Alexandrovich como rival. Até então nunca tinha pensado que semelhante coisa fosse possível: que se pudesse amar uma mulher e no entanto dividi-la com outro, sem reclamar, e atribuindo as culpas ao destino; e isto só porque o outro iria ser um dia o czar, o homem mais poderoso do mundo, perante o qual qualquer desejo individual era anulado.

 

Assim se era educado: para a obediência, para a tolerância, para o sacrifício. Era prestado um juramento, um juramento a que se tinha de permanecer fiel até à morte, e que abarcava tudo o que na Rússia significava vida. Uma vida na sombra do czar omnipotente...

 

Matilda Felixovna fazia parte deste juramento. Se o czaréviche a adorava, era o destino. Era também destino que fosse benévolo com ela. Se alguma coisa podia tornar o czaréviche feliz uma vez por semana, essa coisa era dele dia e noite. Naturalmente ele e Matilda podiam ter fugido da Rússia, ir para além do oceano, para o Novo Mundo, para a livre América - mas este pensamento limitava-se a aflorar a mente para logo se retirar.

 

- Que farei eu se o czaréviche me mandar chamar? perguntou ela baixinho.

 

- Acompanhar-te-ei até à porta dele.

 

- E depois?

 

- Não sei. - Boris Davidovitch ficou a olhar para as chamas que crepitavam. Sentia um grande peso no coração. - Terás de tomar uma decisão, Matilda.

 

O papagaio bateu as asas. Tinha ouvido a sua palavra de ordem: Matilda.

 

- Chamo-me Niki - grasnou. - Estarei sempre perto de ti...

 

- Vamo-nos embora para longe! - Matilda encostou o rosto ao peito de Boris Davidovitch. Ele pôs o braço à volta dos ombros dela e puxou-a para si. - Tenho medo...

 

- Amas por acaso o czaréviche? - perguntou Soerenberg agitado. - Sê sincera, Matilduschka.

 

- Amo-te a ti...

 

- Para não pensares nele...

 

Acariciou-lhe os cabelos, beijou-lhe o pescoço e percebeu pelo tremor do seu corpo que ela estava a chorar. Então calou-se; não tinha sentido consolá-la com palavras, porque para ela não havia consolo. Sentia o mesmo que Matilda, mas em sentido inverso: desde o início, o seu amor estava condenado a ter um fim trágico. Tal como o amor de Matilda pelo czaréviche era desesperado, o seu seria um verdadeiro sacrifício, sempre ensombrado pela irrealidade.

 

O papagaio ficou, mas Matilda recusou-se a continuar a ouvi-lo. Deixou-o completamente aos cuidados da mãe, que se empenhou corajosamente num verdadeiro duelo com o pássaro. Uma tarefa que Rosália Antonovna desempenhou brilhantemente até ao fim.

 

Em meados de Dezembro, o príncipe Valentin Vladimirovitch tinha melhorado tanto que Jussupov lhe permitiu que deixasse o seu palácio. Para tanto, encenaram uma pequena comédia em que toda a gente acreditou.

 

Envolto numa espessa pele, comodamente sentado num elegante trenó de passeio, seguido por dois trenós carregados de malas e de caixas, o príncipe voltou para Sampetersburgo como se estivesse de volta de uma viagem que tinha feito repentinamente. Parecia bastante fatigado com o longo percurso e com os incidentes da viagem e, por outro lado, como ele próprio contou, enquanto atravessava a Polónia tinha ficado ferido num acidente ocorrido no seu trenó, que capotara por causa de uma distracção do cocheiro. Por este motivo tinha o braço direito enfaixado. Depois de ter recebido os cumprimentos do seu pessoal, ao qual deixou beijar a orla do casado de peles, ordenou imediatamente que para aquela noite lhe procurassem dez homens, dos mais brutos que se pudessem encontrar em Sampetersburgo.

 

- Darei mil rublos de ouro ao que trouxer a mão direita de Boris Davidovitch von Soerenberg! - disse com voz trémula. - Só a mão direita: será mais que suficiente! A sua vida não me interessa. Preciso da sua mão direita porque quero vê-la embalsamada na minha escrivaninha! Mil rublos de ouro... e uma vida livre em França!

 

Os homens calaram-se. Já tinham realizado outras tarefas daquele género por recompensas menores. Para eles, a vida humana tinha o mesmo valor que o cacarejo de uma galinha antes de lhe cortarem o pescoço.

 

A mão direita, pensaram. Que tarefa! Porque não queria a cabeça? Podiam-lha trazer pelo mesmo dinheiro...

 

Kramskoj ficou muito satisfeito depois de os homens se terem ido embora. Não teria bebido com tanta satisfação o seu vinho se tivesse podido saber que os quatro mais sinistros do grupo tinham sido interceptados por dez sujeitos tão temerários como eles. Metidos em duas carruagens, os quatro foram levados para um lugar solitário do Pequeno Neva e ali, num pântano da ilha de Krestovskij, povoada de lobos e atravessada pelo uivo do vento, foram libertados e interrogados.

 

Três dos sujeitos calaram-se como se não tivessem língua.

 

Então foi decidido pôr de lado as boas maneiras; depois de os terem apunhalado nas costas, esmagaram-lhes o crânio com barras de ferro, para maior segurança. Isto convenceu o quarto homem a contar tudo acerca dos mil rublos de ouro e da mão direita como enfeite de escrivaninha.

 

Os dez desconhecidos elogiaram-no. No entanto, apunhalaram-no e depois deceparam-lhe a mão direita. A seguir deitaram os cadáveres para o Pequeno Neva, depois de terem feito um buraco no gelo com as barras de ferro.

 

Durante o Inverno era a melhor maneira de se desembaraçarem de um corpo que pudesse vir a dar aborrecimentos. Mesmo que na Primavera reaparecesse em qualquer parte, estaria irreconhecível.

 

Naquela mesma noite, o príncipe Jussupov foi acordado. O seu lacaio foi informá-lo de que um homem, que quis entrar a todo o custo, queria falar com ele com urgência.

 

Jussupov vestiu um roupão e foi para o gabinete de trabalho. Um indivíduo gelado pelo frio, com a cara vermelha e o nariz a pingar, inclinou-se diante de si. O casaco do homem gotejava, o que era um verdadeiro desastre para os preciosos tapetes que cobriam o chão da sala.

 

- O que é que isto significa? - perguntou o príncipe indignado. - Ò que é que é assim tão urgente?

 

- Fizemos malograr o primeiro plano, ilustríssimo anunciou Tulpanov humildemente. Vivia com quatro irmãos num quarto que mais parecia uma toca e estava naquele momento muito contente por ter servido para uma coisa grandiosa.

 

- Eram quatro sujeitos. Tinham-se comprometido a levar a mão direita de Boris Davidovitch ao príncipe Kramskoj.

 

Jussupov sentiu de repente um grande frio.

 

- E então? - perguntou.

 

- O príncipe vai receber a mão.

 

Jussupov sentia frio de facto. Não perguntou mais nada, mas passou as mãos trémulas pelo rosto. Depois disse com veemência:

 

- A vossa missão era só defender, mais nada.

 

- Não temos mais nada a comunicar ao ilustríssimo. Sempre às suas ordens!

 

- Podem ir buscar o vosso dinheiro, amanhã de manhã, à chancelaria. Trezentos rublos para cada um.

 

- Que Deus vos abençoe! - disse o homem com sinceridade. - Devemos continuar a tomar conta das coisas?

 

- Sim!

 

Jussupov voltou-se e saiu da sala. Parecia-lhe ter respirado o cheiro de uma cloaca. Passou pela frente do seu quarto e dirigiu-se à capela privada. Ali recolheu-se em oração num genuflexório, diante do ícone dourado colocado na parede. Dobrou a cabeça até apoiar a testa na estante do genuflexório.

 

- Deus, vós sois testemunha de que não era isto que eu queria! - balbuciou constrangido. - Até onde irá tudo isto? Como acabará? O que é que eu posso fazer? Deixai que um raio caia sobre Kramskoj! Suplico-vos, Deus...

 

Quem poderá saber se Deus o ouviu? Aconteceu, todavia, um facto estranho: no dia seguinte, logo de manhã, um mensageiro desconhecido levou ao Palácio Kramskoj uma lata embrulhada; desapareceu logo que a entregou.

 

O lacaio, que cheio de curiosidade tinha aberto o embrulho, depois de ter lançado um olhar ao conteúdo da lata, ré virou os olhos e desmaiou. O mesmo aconteceu a duas criadinhas e a uma gorda lavadeira que, por acaso, se encontravam perto do sensível lacaio.

 

Apenas o mordomo, um antigo sargento, conseguiu levar aquele embrulho ao patrão.

 

Kramskoj olhou para dentro da lata, reconheceu a falsificação e começou a rir histericamente. Riu durante alguns minutos, com a respiração ofegante e os olhos fora das órbitas. Estava sentado numa poltrona, mas batia com os pés no tapete e ria tão violentamente que até tinha baba na boca.

 

A partir dessa manhã, tinha-se podido observar uma mudança no comportamento do príncipe Kramskoj. Todas as suas manifestações faziam pensar que uma espécie de loucura se estava a instalar nele - mas ninguém ousava exprimir abertamente esta suspeita.

 

Ao príncipe Jussupov foi comunicado, com grande cautela, que o cão preferido de Kramskoj, um enorme dobermann, tinha devorado o conteúdo da malfadada lata na presença do príncipe. Kramskoj tinha voltado a rir como um louco quando os ossos estalaram entre os dentes do cão.

 

Isto foi motivo suficiente para Jussupov se precipitar de novo para o seu genuflexório.

 

Os últimos ensaios tinham terminado.

 

O Corpo de Baile da Ópera Imperial correu para os camarins. Ò director da apresentação de A Bela Adormecida, o terrível Leonid Ivanovitch Passukov, do qual se contava que, por ocasião de um ensaio geral, tinha comido, num acesso de fúria, a própria gravata de seda, estava sentado na quarta fila e enxugava o suor da testa. Bebeu um gole de água de uma garrafa de cristal, colocada perto de si, e estendeu as pernas.

 

No palco, no meio do cenário e ainda sob as luzes dos projectores, tinha ficado apenas Matilda Felixovna, que, parecendo ainda mais pequena, alisava o vestido utilizado no papel de Aurora.

 

O seu olhar vagueava na direcção dos bastidores laterais, em busca de ajuda. Ali estava Tâmara Jegorovna, que nem se mexeu.

 

- Muito bem! - disse o terrível Passukov. E isto já era muito.

 

Naquele dia não tinha destruído a própria gravata nem tinha saltado lá para cima a gritar: «O que é que eu estou a ver? O que é que eu estou a ver? Um bando de sapos a saltar! Dêem-me um bastão! Tenho absoluta necessidade de um bastão! Tenho de espancar este bando de sapos todos, sem nenhuma excepção!»

 

- Muito bem! - disse de novo. - Foi óptimo, Matilda. No fim devia ter recuado mais, mas é uma questão de opinião e deixo o julgamento para Tâmara Jegorovna. Se amanhã, durante a premiere, dançar assim, ofereço-lhe uma rosa! Acabou o ensaio geral. A orquestra tocou como um bando de bêbados! E isto é também para si, Arkadij Mironovitch. Regeu a orquestra como se estivesse a querer apanhar moscas! Agradeça ao céu por Tchaikovsky já ter morrido! Embora não seja menos culpável profanar os cadáveres! Não me conteste, Arkadij! Voltamos a falar amanhã, depois da premiere.

 

As luzes apagaram-se; ficou apenas a iluminação normal para os ensaios. Passukov abandonou o recinto. Matilda continuava imóvel no palco, atordoada com o raro elogio.

 

Desde há seis dias, sabia que tinha deixado de estar sob a tutela que Tâmara Jegorovna lhe tinha prodigalizado durante anos e anos com amoroso cuidado.

 

Acontecera quando, pela primeira vez, a Jegorovna a tinha levado com grande solenidade à Ópera, que ela já conhecia por ali ter dançado integrada no grupo de alunas. Mas em vez de a ter levado para o grande camarim destinado ao ballet, a Jegorovna tinha-a levado noutra direcção, até um dos camarins reservados às solistas.

 

Quem ali entrasse, fosse qual fosse o vestido que tivesse de envergar, fosse qual fosse a maquilhagem que lhe fizessem, sabia de certeza uma coisa: tinha o mundo à sua frente! Tratava-se de conquistá-lo com as próprias forças, as próprias capacidades.

 

- O teu camarim! - dissera a Jegorovna com a voz ligeiramente trémula de emoção. Recordava o momento da sua vida em que havia entrado pela primeira vez num camarim de solista e se tinha tornado a «Jegorovna».

 

Naquele dia estava certa de que, a partir da noite do dia seguinte, Matilda também se tornaria «a Felixovna», a nova estrela do ballet de Sampetersburgo e, consequentemente, do mundo inteiro.

 

- Entra, Matilda - tinha dito a Jegorovna baixinho. Entra lentamente e reza. Foi um longo caminho até chegares aqui, mas daqui para a frente pode ser muito curto, basta que desistas. Confia apenas em ti mesma, tens tudo o que Deus podia dar-te, minha filha, para brilhares ao lado das estrelas.

 

E Matilda entrara na sala com muita solenidade e, entretanto, rezara: «Deus, não me abandones agora! Deus, dá-me muita força!»

 

Depois do que se tinha sentado pela primeira vez na frente de um grande espelho, numa ampla poltrona em estilo barroco, e ao fixar o espelho vira como uma costureira tinha entrado no camarim com uma pequena reverência e a tinha cumprimentado como se já fosse «a Felixovna».

 

Tâmara Jegorovna tinha ficado perto da porta, com as lágrimas nos olhos. Estava tão comovida que quase não conseguia respirar.

 

«Está a chorar», pensou Matilda angustiada. «A Mamã Tâmara chora de felicidade. Por minha causa... a grande e terrível Jegorovna está a chorar.»

 

Depois tinham sido os ensaios, diante do temido Passukov, com uma sensação paralisante: «Não sei fazer nada! Não sei fazer nada! Salto estupidamente à volta, como um sapo!» E a seguir os elogios de Passukov:

 

- Muito bem, Matilda! Repita o pás de deux com Jefim. Não por sua causa, Matilda, mas por culpa de Jefim, esse patife paralítico! Parece que anda a correr no palco como se procurasse a saída! E tem de ser um príncipe!

 

Amanhã! A premiere na Ópera Imperial! No dia 23 de Dezembro de 1893! O ocaso de um sonho.

 

Todos tinham rido de Matilda Felixovna...

 

Ela estava ainda no palco, com as mãos cruzadas sobre o peito, o olhar fixo na escura plateia deserta. As poltronas vazias pareciam olhá-la hostilmente, como se fossem criaturas fantásticas que a quisessem devorar.

 

E amanhã estaria ali toda a alta sociedade de Sampetersburgo - e lá em cima, no camarote imperial, estaria o czar Alexandre III com a família...

 

Com Nicolau Alexandrevitch, o czaréviche, que todos os dias lhe mandava dizer pelo papagaio: «Estou à tua espera... Estou sempre junto de ti...»

 

Onde iria buscar forças para aguentar tudo aquilo, bom Deus?

 

Matilda tinha chegado à Ópera quatro horas antes do espectáculo. Estava sozinha no seu camarim, sentada na frente do grande espelho, e olhava para si própria a tremer. Ainda não tinha vindo ninguém, nem a cabeleireira, nem a costureira, nem as suas colegas. Apenas alguns operários trabalhavam ainda nos cenários: reparavam, retocavam, melhoravam algum pormenor, penduravam bambolinas, porque o cenógrafo, o conhecido pintor Valentin Dragonovitch Pluchjanin tivera uma nova ideia.

 

Já se sabia que mudava de cenário todos os dias, nunca estava satisfeito, tinha sempre novas inspirações, e se lhe davam carta branca podia-se ter a certeza que todas as representações seriam diferentes das que as precediam. Quando Passukov chegasse, o pintor abandonaria imediatamente o palco, mas até essa altura tinham de suportar a sua gritaria.

 

Nas vilas e nos palácios, nas casas patrícias e nas quintas de Sampetersburgo e dos arredores, as damas estavam a arranjar-se, as criadas davam os últimos retoques nos ricos vestidos de noite, eram abertos pequenos cofres cheios de jóias de inestimável valor e escovavam-se as preciosas peles. Os senhores vestiam os seus uniformes de gala ou os fraques, viam se as condecorações estavam no lugar, mandavam os criados dar-lhes a última aparadela na barba e, vaidosos, tal como as suas mulheres, miravam-se ao espelho, enquanto se borrifavam com perfumes franceses.

 

A premiere da Ópera Imperial, na noite da antevéspera de Natal, constituía desde sempre, em conjunto com o baile de São Silvestre no Palácio de Inverno, um dos acontecimentos mais importantes na vida da alta sociedade. Naquela ocasião reuniam-se todos, os grão-duques e as grã-duquesas, os príncipes da velha geração, conhecidos por todos, de Trubezkoi a Jussupov, de Orlov a Potemkin, de Menschikov a Scheremetjev. E também os mais ricos de toda a parte: do lendário Stroganov ao selvagem Voronzov, de que ninguém sabia exactamente que terras possuíam de um lado e doutro dos Urales. De qualquer maneira, como se poderia medi-las? A Sibéria era tão grande que todas as medidas não chegariam para dar uma ideia. O que é que significava dizer-se «Tem terras no Ussuri?» O Ussuri era a fronteira com a China... e só isto punha fim a qualquer eventual cálculo.

 

Também estavam lá os mais famosos generais, os embaixadores dos outros Estados, o Corpo Diplomático, os grandes cientistas, o Conselho de Estado, os melhores artistas, e também príncipes e princesas vindos de outros países... Nessas premieres, Sampetersburgo mostrava todo o esplendor e encanto da Rússia mais misteriosa: uma riqueza incomensurável, num país em grande parte coberto por gelos eternos e ainda inexplorado.

 

Rosália Antonovna não tinha recebido nenhum convite, embora fosse a mãe de Matilda. A Jegorovna e o anão Mustin tinham procurado obter um lugar para a Bondareva. Ninguém conseguiu, nem o influente director dos Bailados Imperiais, o bailarino e coreógrafo Marius Petipa, lendário já em vida, nem o bailarino solista e segundo-mestre de ballet Lev Ivanovitch Ivanov, que na temporada de 1892 tinha apresentado uma sensacional versão de O Quebra-Nozes, de Tchaikovsky. A todos era dito o mesmo:

 

- Precisávamos que a Ópera tivesse cinco mil lugares e mesmo assim não chegavam! Como é que podemos arranjar um bilhete para Rosália Antonovna se temos de recusar os pedidos de tantos príncipes?

 

- É melhor assim! - lamentava-se a Bondareva, benzendo-se e abalando o seu enorme peito com grandes soluços. - Deixem-me mesmo aqui! Eu morreria, sim, morreria se tivesse de ver a minha pombinha tropeçar e todos os ilustríssimos a rirem-se dela! O golpe abater-me-ia, cairia na minha cadeira e não teriam outro remédio senão levar-me dali. Não, deixem-me aqui! Vou rezar pela minha menina e acender algumas velas! Não se preocupem! No fundo, o que sou eu? Sou apenas a mãe, uma pobre mulher! O brilho cegar-me-ia. O coração saltar-me-ia da boca se eu visse a czarina. É justo que nem haja um bilhete para mim... Quando os passarinhos começam a voar, a mãe não pode fazer mais nada senão ficar para trás...

 

Depois recomeçou a chorar, com grande tristeza de todos, até que o terrível Passukov teve uma ideia genial. Podiam meter a Antonovna nos figurantes! Bastava ela vestir um vestido de camponesa, que aliás lhe ficaria mesmo bem. Depois teria de andar para a frente e para trás no palco com um cestinho cheio de legumes, e assim podia estar perto da filha e do corpo de baile durante toda a representação.

 

Teria sido melhor que aquela solução nunca tivesse sido encontrada!

 

Quando, mais tarde, Passukov ouvia falar nisso, rebolava furiosamente os olhos, cuspia contra a parede e dizia zangado:

 

- Nunca mais me deixarei comover pelas lágrimas de uma mãe. Antes quero que me castrem!

 

Quem conhecia Passukov podia avaliar o que significava para ele tal afirmação. A desordem devia ter sido de facto enorme.

 

Tudo tinha começado quando Rosália Antonovna, uma hora antes do espectáculo, disse às outras mulheres:

 

- Não olhem para mim tão estupidamente, velhas galinhas meio vesgas! Sou a mãe da nova bailarina! Matilda Felixovna: fixem bem este nome! Têm de se habituar a engoli-lo daqui em diante. Terá o mundo a seus pés!

 

Quando todas começaram a rir, porque os seus enormes seios não cabiam no vestido de camponesa, gritara:

 

- Olhem-se ao espelho! Vejam-se bem a andar de um lado para o outro com esses rabos gordos e as barrigas que chegam aos joelhos! Ao passo que eu ainda tenho que ver, sim senhor! Quando me dispo, os homens gritam como touros!

 

Como tivessem continuado a rir, ainda mais do que antes, tinha pegado furiosamente numa cadeira e tinha-a levantado e varrido com ela o camarim, que rapidamente ficou vazio; o contra-regra, que fora chamado para acudir, ficou com a cabeça partida. Ficou demonstrado que era completamente impossível afastá-la do teatro e levá-la para casa.

 

Pôs-se num canto da sala, e, plantada ali como um rochedo, disse com ar agressivo:

 

- Quem é que se atreve a tocar-me? Podem vir dez polícias. O meu genro é amigo do czaréviche, deve estar sentado ao lado dele no camarote. E a minha filha será, esta noite, a estrela. Venham, seus canalhas! Levem-me lá para fora! Mas antes disso protejam as cabeças!

 

Por fim, encontrou-se uma plataforma: foram-lhe pedidas oficialmente desculpas e ela perdoou-os a todos cheia de boa vontade. Não era rancorosa, nunca o tinha sido. De outra forma, como poderia ter obtido alguma coisa na vida? Saber esquecer tinha sido sempre um elemento básico da sua vida.

 

Para qualquer artista de teatro, os momentos que precedem a entrada em cena são uma espécie de inferno, sobretudo na estreia.

 

Vestir os fatos, maquilhar-se, ouvir discursos dos outros, tornam um pouco menos pesada a sensação de que a seguir nos farão em pedaços. Mas quando já está tudo feito, os fatos no lugar, a maquilhagem acabada, então começa a espera... Os minutos parecem horas, os mínimos rumores, os mais imperceptíveis, parecem trovões, e todo o corpo treme, o coração, os intestinos... Dá vontade de matar o contra-regra, que continuamente vem anunciar através da porta entreaberta:

 

- Faltam vinte minutos... Mais dez minutos... Está quase na hora...

 

E quase não se consegue mexer as pernas quando é a vez de ele dizer:

 

- Para cena! Boa sorte!...

 

E já se ouve, através da porta aberta, o som da abertura. Começou a representação, irremediavelmente, e sabe-se com toda a certeza que já não se pode voltar atrás. Apenas a morte nos poderá salvar! Temos de ir, sob a luz impiedosa dos projectores, para a frente de milhares e milhares de juizes prontos para tudo - para a frente do público!

 

Há cantores famosos que nesse preciso momento, de pé nos bastidores laterais, à espera da entrada em cena, começam a tremer por todo o corpo, completamente cobertos de suor e certos de ter perdido a voz. Há grandes actores que não se lembram nem sequer de uma palavra do seu texto, e sentem o cérebro absolutamente vazio. E há bailarinos e bailarinas que ficam paralisados e não conseguem mexer nenhum músculo. É um instante brevíssimo em que se odeiam a si mesmos profundamente.

 

Matilda Felixovna estava de pé, perto do lugar do primeiro contra-regra, e olhava para o resto do corpo de baile, que já tinha começado a dançar. Atrás dela, Tâmara Jegorovna massajava-lhe o pescoço e os ombros com dedos leves. Era quase uma carícia, um gesto materno de conforto. Dez minutos antes tinha-lhe dito:

 

- Lembra-te, Matilda, que não te podes enganar em nada. Lembra-te da grande Fanny Essler. Ao dançar aqui em Sampetersburgo em 1859, fez um passo errado na Giselle e quando, no intervalo, o seu professor a repreendeu por esse motivo, ela respondeu-lhe aturdida: «O que é queria, Monsieur? Não foi um passo errado, foi novo! Tive aquela ideia naquele momento!» Seja o que for que fizeres, Matilda, isso terá de ser superior a tudo!

 

Contudo, a Jegorovna estava tão nervosa como Matilda. Mesmo na sua frente, mas do outro lado do palco, estava, entre os bastidores, o famoso Enrico Cecchetti, um dos melhores professores da Escola Imperial de Bailado, o qual vivia em Sampetersburgo desde 1887 e era considerado um dos maiores bailarinos do seu tempo. A pedido da Jegorovna e para ajudar Matilda, naquela noite iria dançar o papel do apaixonado - o Carabosse de A Bela Adormecida.

 

Cecchetti também estava nervoso e parecia repentinamente febril. Notava-se na forma como mexia a cabeça, como se tivesse o pescoço completamente desengonçado. A posição das suas pernas tinha qualquer coisa de grotesco para um bailarino, pois mais parecia um cocheiro com as pernas tortas, trôpego e aleijado. Mas depois, uma vez em cena, os espectadores ficariam estupefactos, porque nunca antes se tinha visto tamanha leveza...

 

- Agora! - sussurrou a Jegorovna ao ouvido de Matilda.

 

Matilda disse que sim com a cabeça. Os seus músculos ficaram soltos. O seu corpo transformou-se em música presa que queria libertar-se no movimento. Sentiu-se completamente fria, nenhum ardor, nenhum medo, nenhum desejo de morrer. A música transportou-a de repente para o mundo da fábula colorida que iria dançar daí a pouco.

 

- Agora! - disse baixinho a Jegorovna. A sua voz vibrava de excitação. Estava a mandar para a cena dez anos da sua vida. Dez anos de lágrimas e de suor, dez anos de duros exercícios, dez anos de privações...

 

- Agora! - mordeu o lábio inferior e conteve a respiração.

 

Como uma pluma, como um floco de neve soprado pela brisa, Matilda Felixovna ondulou no palco. A luz iluminava-a toda... parecia uma figura de sonho.

 

Passukov, que estava ao lado do trémulo e febril Cecchetti, seguiu com o olhar o corpo em voo e enxugou o suor da testa.

 

- Que entrada! - balbuciou. - Meu Deus, que passo! É um verdadeiro perigo... com a sua graça ofuscará todas as outras bailarinas! Só espero viver bastante para o poder ver...

 

A Jegorovna apoiou-se à cadeira do contra-regra, torcendo as mãos.

 

Esta Aurora - Matilda Felixovna - dominava a cena a partir do primeiro passo.

 

O contra-regra tinha metido na boca as pontas dos seus bigodes e mordia-as nervosamente.

 

- Meu Deus! - sussurrou para a Jegorovna. - Nos ensaios limitou-se a um simples apontamento! A senhora sabia que ela era capaz de dançar assim?

 

- Imaginava-o! - respondeu Tâmara Jegorovna. - E isto é apenas o princípio...

 

Era como se a música de Tchaikovsky soasse num espaço suspenso no ar. Nada se mexia no círculo dourado da plateia da Ópera Imperial, até o ciciar dos leques com que as senhoras se abanavam tinha sido interrompido. No camarote do czar, o czaréviche havia-se chegado para trás para que o pai não visse o seu rosto corado.

 

Alexandre III, como de costume, estava sentado muito direito na sua poltrona e seguia a música com o movimento da mão direita. Era um verdadeiro entusiasta e chegava a discutir com os directores da Ópera quando não estava de acordo com a interpretação.

 

No camarote imperial estava também Boris Davidovitch Von Soerenberg. Estava ao fundo, perto da porta, vestia uniforme de gala e tinha vindo por expresso desejo do herdeiro do trono. Entre eles não havia qualquer problema. Simplesmente, evitavam falar em Matilda como noiva de Boris Davidovitch. Ela estava viva e o czaréviche amava-a. E era tudo.

 

O resto eram especulações inúteis.

 

Depois do primeiro solo de Matilda, o teatro explodiu numa ovação. Um rápido olhar para o camarote do czar revelava que o austero Alexandre III aplaudia cheio de entusiasmo, e que o mesmo era feito pela czarina, pelo czaréviche, pela grã-duquesa, pelo príncipe...

 

E este era o sinal para que o público mostrasse o seu próprio contentamento em relação à actuação da pequena e até então desconhecida Matilda Felixovna.

 

Ela fez uma profunda reverência e baixou a cabeça num gesto de humildade que só uma primeira-bailarina teria sabido fazer.

 

Evitou-se por pouco um escândalo em cena. Rosália Antonovna, com o seu fato de camponesa, soluçava violentamente e tinha toda a intenção de ir abraçar a sua filhinha. Quatro homens robustos tiveram de a segurar, enquanto um lhe punha a mão na boca quando ela quis gritar para toda a gente que, como mãe, tinha o direito de ir beijar a filha.

 

Quando a música voltou a tocar e o corpo de baile voltou esfuziante para os camarins, a Bondareva foi arrastada para trás dos bastidores e encostada à parede. Um dos operários, um homem gigantesco, aproximou-se com uma longa corda na qual estava a dar um nó corredio.

 

- Querem-me enforcar! - balbuciou Rosália Antonovna aterrorizada. - Querem-me enforcar! Têm inveja da filha que eu tenho! Que canalha! Bando de assassinos! Cobardes! Quatro homens contra uma mulher indefesa! Por que razão ninguém me ajuda? É possível que se possa enforcar uma pessoa boa ao som da música de Tchaikovsky e com o palco todo iluminado? Ninguém quer mesmo ajudar-me?

 

Não houve quem se condoesse com os seus lamentos.

 

Foi amarrada a uma coluna e um dos figurantes mais velhos - um homem que tinha a missão de levar uma cadeira para o palco quando este estava todo iluminado, coisa que o punha em posição de privilégio em relação aos outros disse-lhe:

 

- Se fizeres sair mais um só som da tua maldita boca, mãezinha, amarro-a também a ela. Ficas avisada!

 

Rosália Antonovna anuiu gravemente, olhou para cima e respondeu:

 

- Que ardas esquecido de todos nas chamas do Inferno, rato sujo!

 

A certa altura chegou Passukov, o terrível. Parou um momento na frente dela, olhou-a e abanou a cabeça satisfeito.

 

- É preciso ter ideias! - disse com agrado. - Só assim se consegue manter de pé o teatro.

 

A Bondareva evitou responder, mas cuspiu e rangeu os dentes de uma forma horrível.

 

Passukov olhou para ela assustado e foi-se embora.

 

Durante o intervalo, Matilda sentou-se, completamente fechada em si mesma, diante do grande espelho do seu camarim, e tomou um copo de limonada. A costureira enxugou-lhe os ombros com uma toalha.

 

Logo que a cortina caíra, Passukov tinha acolhido Matilda entre os braços abertos e estreitara-a contra si. Nada mais... Não tinha dito nem uma palavra. Mas que o maior intriguista e crítico de Sampetersburgo tivesse mostrado o seu agrado de um modo tão evidente - sem dizer uma palavra - era um facto verdadeiramente sensacional. A notícia espalhou-se pelo teatro como se fosse um rastilho. Passukov tinha abraçado a Felixovna! Sem uma palavra! Sim senhor, completamente mudo! Não se tinha ouvido nenhuma frase como «Parecia que tinhas os pés chatos!» ou então «A peça chama-se A Bela Adormecida e não O Patinho Feio»; nada, não se tinha ouvido absolutamente nada! Passukov parecia completamente satisfeito. Devia estar doente...

 

- Falhei duas vezes! - disse Matilda mal Tâmara Jegorovna entrou no camarim.

 

A Jegorovna tinha tentado libertar Rosália Antonovna, mas dois dos figurantes continuavam ao lado dela, prevendo um escândalo se a deixassem ir de novo para o palco.

 

Matilda ignorava tudo isto. Tinha apenas visto como o czaréviche se havia levantado da sua poltrona para a aplaudir. O czar Alexandre III tinha-o imitado, enquanto a czarina se abanava com o leque, e isto significava um aplauso silencioso.

 

Uma empregada do teatro tinha recolhido os primeiros cartões-de-visita enviados a Matilda. Passukov - velho homem do mundo - barrara a entrada para os camarins e só deixava entrar quem conhecia, e nunca as visitas. Não valia de nada ter um título...

 

- Vejam isto! - disse Passukov quando começou a ler os cartões-de-visita. - Os príncipes Raspolnikov, Tschemkass, Vobroniev e Batanoj! Nem mais nem menos. Um desfile de galanteadores que gostam de comer a fruta fresca! Mas não aqui, não connosco! Ah, olhem para isto, o conde Poltonovsky. Viúvo há dez dias! E o general Vanurian, o touro de Tbilise! Ah, o que é que eles fariam por ti, pequena Felixovna? Já têm, com certeza, água na boca... Se soubessem a minha missão... depois, no fim do espectáculo! Suplicariam a gaguejar que não contasse nada e fugiriam daqui...

 

- Dois erros! - repetiu Matilda. - Uma vez perdi o equilíbrio nas pontas dos pés...

 

- Não se notou nada. - A Jegorovna apoiou-se à parede do camarim. - Estiveste muito bem, minha filha!

 

- De verdade?

 

- Muito bem, mas não basta! Deves ser maravilhosa! Deves ser inimitável! Única! Muito bem vão muitos. Mais tarde Petipa virá ter contigo. No átrio encontrei Virgínia Zucchi. Quase não me falou! O que é que queres mais?

 

Matilda abanou a cabeça em silêncio. A grande Zucchi, a bailarinha do Teatro Maria de Sampetersburgo, o mais famoso teatro de ballet do mundo. Estava invejosa! Temia a

concorrência! Como é que isso podia ser? Quem é que sabia dançar como a Zucchi? Talvez Olga Preobrajenska! E, comparada com ela, o que era uma Matilda Felixovna?

 

- Petipa? - Matilda olhou para a Jegorovna reflectida no espelho. - Vem ter comigo?

 

- Quer-te no seu novo ballet...

 

- Impossível! - Cruzou as mãos sobre o peito. Os olhos brilharam assustados. - Eu... eu não sei dançar... Não, com o Petipa! No máximo, poderia ser integrada no corpo de baile.

 

- Como solista! - A Jegorovna sorriu feliz. - Tens de te habituar, Matilda: a partir de hoje, o mundo muda para ti! Já não precisas de correr atrás do Sol... será ele a vir ter contigo! Aproveita logo... a vida dura um momento...

 

Na segunda parte do ballet, sobretudo no final, Sampetersburgo assistiu ao nascimento de uma nova estrela.

 

Petipa e o suado Enrico Cecchetti, que cada vez que vinha aos bastidores se fazia limpar por um pajem com uma toalha perfumada, estavam quase de mãos dadas e seguiam dos bastidores, com os olhos esbugalhados, o corpo leve que ondulava pelo palco.

 

- Incrível! - disse Petipa baixinho. - Simplesmente incrível! Até hoje julgava que sabia o que quer dizer dançar...

 

- Deve estar enfeitiçada. - Cecchetti tossiu e bebeu um gole de água. - Quando é levantada nem se deve sentir. Deve parecer que temos as mãos vazias! Isto é bruxaria... Existe alguma coisa assim?

 

- Eu sei apenas que a Preobrajenska roeu as unhas, que a Zucchi foi para a cama com um ataque de bílis e que eu terei de sustentar uma dura luta com Lev Ivanovitch Ivanov para que não me leve a Felixovna! Mas ela há-de dançar no meu próximo ballet nem que eu tenha de pedir ajuda ao czar. Esta Matilda Felixovna será um dia a bailarina de Sampetersburgo, se ninguém ma roubar! Terei de a vigiar como se vigia um diadema de diamantes e de rubis!

 

- Está noiva! - disse Cecchetti, fazendo-se de novo limpar com a toalha perfumada.

 

- É o que se diz.

 

- É mesmo assim. Com um oficial da Guarda dos Hussardos. Um dos favoritos do czaréviche, ainda por cima!

 

- Como é que sabes?

 

- Pela Jegorovna. Desde há três meses que vai buscar Matilda à escola e vai levá-la de manhã; há três semanas alugou para ela um apartamento no Palácio Stroitsky e comprou-lhe uma tróica com excelentes cavalos...

 

- Ainda há mais notícias tão más como essas? - grunhiu Petipa. - Falarei com o noivo! Uma mulher como Matilda não pode andar atrás dos filhos nem ficar junto do fogão! Uma mulher como ela pertence aos palcos do mundo inteiro. Não se pode encarcerar um milagre...

 

Ouviram-se os últimos compassos do ballet.

 

Cecchetti fez a sua última entrada em cena, enquanto Petipa passava as mãos pelo rosto.

 

Matilda Felixovna abandonou-se numa pirueta. Quem não se lembrasse que ela estava em pontas, acreditaria que estava suspensa no ar - como um pião num espaço infinito.

 

- É inacreditável! - balbuciou Petipa, impressionado. Incompreensível! Uma pessoa assim não pode casar!

 

As últimas notas triunfais, a apoteose musical do famoso júbilo final de Tchaikovsky, soaram no teatro.

 

Seguiram-se alguns segundos de completo silêncio, um prender de respiração, depois um suspiro e finalmente um aplauso, forte como uma explosão. Era como se todo o edifício da Ópera desabasse, como se as paredes se partissem. O sumptuoso público da alta sociedade levantou-se das poltronas, unido numa ovação. O czar Alexandre III batia as palmas como um urso amestrado que agradecesse aos seus próprios espectadores.

 

- Como se chama a bailarina? - perguntou ao filho, que a seu lado aplaudia sem parar.

 

- Matilda Felixovna Bondareva.

 

O czaréviche tinha as faces coradas como se tivesse feito uma longa corrida. Aplaudia e continuava a gritar com ímpeto:

 

- Bravo! Matilda, bravo! Matilda! - Estava com o coração apertado e tinha a respiração ofegante. Mordeu os lábios e continuou a bater palmas.

 

- Fantástico! - gritou Alexandre III. - E pensar que tal criatura vem precisamente da minha Escola de Bailado! Fantástico! Uma mulher assim será melhor embaixador da Rússia que qualquer hábil diplomata. Lembra-te disto, Nicolau! O mundo está pronto a acusar-nos de deportarmos para a Sibéria milhares de homens... mas também está disposto a esquecer e a perdoar-nos se depois lhes mandarmos uma Matilda Felixovna. A máxima latina panem et circenses é válida também neste caso.

 

- Tem de se ver política em tudo, papá? - disse o czaréviche, que continou a aplaudir incansavelmente. Matilda inclinou-se, todos os projectores estavam apontados para ela, o que irritou muito Cecchetti.

 

Passukov, director incontestável, corria de um lado para o outro entre os bastidores, berrando mal a cortina descia:

 

- O corpo de baile numa só fila! Matilda... aqui... sozinha à frente! Mais luz! Subam a cortina! Cortina!

 

Alexandre III riu sonoramente.

 

- Tudo o que diz respeito à Rússia deve ser político, meu filho! - exclamou com alegria. Era raro estar de tão bom humor como estava naquela noite.

 

A czarina observou-o - quando Alexandre ria com Nicolau era sinal de que teriam uma noite em família, um dos poucos momentos de harmonia.

 

- Deves habituar-te a pensar sempre «A Rússia é uma potência mundial» e a agir em consequência disso! O equilíbrio de tudo o que existe e coexiste na Terra dependerá sempre da Rússia! Quem não acredita será obrigado a acreditar, até os meus primos da Alemanha e da Inglaterra! A Rússia é o único facho que não pode ser apagado! Se a Rússia sucumbisse, todo o mundo estaria destinado a desaparecer!

 

Nicolau Alexandrevitch sacudiu a cabeça.

 

- Seria triste, papá - disse - se o destino da Rússia dependesse de uma rapariga...

 

- Poderia até depender de uma pulga, se esta pudesse mudar uma pessoa. Os maiores danos são sempre causados por coisas secundárias! Manda dizer àquela pequena lá em baixo que venha até mim...

 

- Quer receber Matilda, papá? - O czaréviche olhou para o pai, espantado. - E porquê?

 

- Quero dizer-lhe que deve ir dançar em Berlim, Viena, Paris, Londres, Nova Iorque, Roma, Tóquio, Bruxelas, Madrid, Cidade do México... sempre acompanhada pelas palavras: «Isto é um presente da Rússia para o mundo!»

 

- Ela já deve saber isso. Já alguém lho deve ter dito.

 

- Quero dizer-lhe pessoalmente. - Alexandre III bateu as palmas com mais força. A cortina levantou-se de novo. Matilda Felixovna inclinou-se profundamente e com humildade perante esta ovação. - Encarrego-te de fazeres isso.

 

- Quando é que a quer ver, papá?

 

- Quando ela puder.

 

Incrédulo, Nicolau Alexandrovitch fitou o pai, depois levantou-se e ficou de pé ao fundo, perto de Boris Davidovitch, que naquele momento aplaudia com grande ardor. O czar não ordenava, pedia! Era uma coisa absolutamente nova, desconhecida...

 

- Está tudo preparado, Boris Davidovitch? - perguntou o czaréviche.

 

Soerenberg continuou em posição de sentido, olhando para o palco por cima da cabeça do herdeiro do trono. Matilda estava agora rodeada por flores, levadas por lacaios que tinham saído dos bastidores laterais. Enormes corbeIhas com magníficas flores, vindas das estufas de Sampetersburgo, e que deviam custar tanto como o que um operário ganhava num ano.

 

- Está tudo preparado como Vossa Alteza Imperial deseja - disse Boris com voz firme. Era um oficial, um dos confidentes do czaréviche... Pensamentos e sentimentos pessoais não tinham qualquer importância.

 

- Está assegurada a máxima discrição?

 

- Absolutamente.

 

- Posso confiar em si, Boris Davidovitch. - O czaréviche deu uma pancadinha amigável no braço de Soerenberg. Se alguma vez tiver algum problema, venha ter comigo, ajudá-lo-ei em qualquer momento.

 

- Eu sei, Alteza, obrigado. - Soerenberg devolveu o sorriso amigável do herdeiro do trono. - Mas não tenho nenhum problema.

 

«Matilda vai tornar-se amante dele», pensou nesse instante. Não podia ignorá-lo. Mas era o destino. E o destino não é um problema pessoal... O destino não se pode mudar. «Não, Nicolau Alexandrovitch, não tenho nenhum problema...»

 

A cortina desceu de novo, mas o público continuou a aplaudir, inclusive o czar e a czarina.

 

Nunca se tinha visto nada assim... Poucos, no Teatro da Ópera, se lembravam de uma coisa como aquela. Uma delicada rapariga de cabelos negros tinha conquistado Sampetersburgo.

 

Ainda amarrada à coluna, Rosália Antonovna ouvia o trovão dos aplausos, enquanto trabalhadores, figurantes, bailarinos e técnicos de palco passavam na sua frente sem dar-se conta da sua existência. Finalmente, Passukov passou por ela, suado, cheio de alvoroço por causa daquele triunfo, num evidente estado de nervos, já sabendo o que se iria passar nos camarins.

 

- Eh! - gritou a Bondareva. - Eh, pare aí, seu cretino!

 

Passukov parou de repente, como se alguma coisa lhe tivesse batido no peito. Ah, a velha! Com os olhos injectados de sangue, voltou-se. Limitou-se a dizer um «Ah!» e nada mais.

 

- Os aplausos são para a minha filha? - gritou a Antonovna.

 

- É claro que sim!

 

- O czar também está a aplaudir? ,

 

- Todos...

 

- Este júbilo é por causa do meu cisnezinho? Os grandes senhores batem as palmas diante da minha Matilduschka? É verdade, é mesmo verdade? É mesmo pelo sangue do meu sangue, seu macaco de uma figa?

 

- Como pode um anjo como Matilda ser filha deste ser infernal? - perguntou Passukov agitado. - Isto é o segundo milagre de Matilda Felixovna...

 

- Desamarre-me, seu verme! - gritou Rosália Antonovna. - Toda a gente pode admirar a minha pombinha, e à mãe mantêm-na longe! Diabos! Libertem-me! - Levantou a cabeça e começou a gritar na direcção da multidão que lhe passava pela frente. - Bons homens, libertem-me! Desatem-me! Não têm pena de uma pobre mãe? Como é que podem ver uma coisa destas sem que o sangue lhes ferva nas veias? Atam uma mãe só porque quer abraçar a sua filha vitoriosa! Vocês, gentes, não passem assim pela minha frente!...

 

Passukov estremeceu como se tivesse acabado de sair do Neva e foi-se embora. Os outros nem sequer olhavam para Rosália. Se a tinham atado daquela forma, deviam ter tido um motivo. Que necessidade havia de fazer perguntas?

 

A Bondareva parou de gritar e começou a chorar silenciosamente e, pouco a pouco, foi caindo num estado tal que poucos poderiam deixar de ter pena dela. No fundo, era a mãe de Matilda e não tinha culpa de não ter nascido em berço de ouro, de nunca ter tido um preceptor, de não saber falar francês e de nunca ninguém lhe ter ensinado a comportar-se na alta sociedade. Mas ela e a sua menina, sozinhas, tinham conseguido chegar àquele êxito, àquele triunfo, e isto tinha de ser reconhecido! Certamente, preferiam ser malditos, filhos de cães, a falarem com Rosália Antonovna...

 

Só foi desamarrada quando os projectores se apagaram e se começou a desmontar o cenário.

 

- Obrigada - disse ela gentilmente. - Que Deus vos pague! - Depois deu um pontapé nas canelas de cada um dos dois operários e, com a cabeça erguida, cheia de orgulho, dirigiu-se para o camarim.

 

Mas o seu ímpeto encontrou de repente um obstáculo: quatro soldados da guarda barravam a entrada.

 

- Porquê? - perguntou a Bondareva amigavelmente.

 

- Isso não é da tua conta, velha caduca! - respondeu um subalterno. - Desaparece!

 

Rosália Antonovna sacudiu a cabeça. Compreendia aquela linguagem. Soube repentinamente porque estava ali a guarda imperial a barrar a entrada. O coração comprimiu-se fundo, enquanto a assaltava um medo profundo, materno... Só medo, nem um pouco de orgulho por estar nas graças da família imperial.

 

- Vou-me embora, rato nojento! - disse alto para o espantado subalterno. - Se tiveres uma filha, desejo-te que a tua casa seja assediada como o covil de uma cadela com cio! E então, vais lembrar-te de mim...

 

Voltou-se, abandonou o Teatro da Ópera, chamou uma tróica e mandou seguir para o Palácio Stroitsky.

 

- Boa ideia - disse o cocheiro. - Assim ganhas o dobro, não é verdade? De dia com os senhores e à noite no teatro. Sim, sim, é justo preocuparmo-nos por ter sempre o rabo quente.

 

Rosália estava já para lhe saltar em cima quando se apercebeu de que ainda tinha o fato de camponesa vestido. Como podia ofender-se com o que o cocheiro lhe dissera?

 

Desceu diante do palácio e tocou a campainha. Dois lacaios vieram cá fora, olharam para ela e fizeram-lhe uma vénia.

 

- Dêem um rublo a esse pobre torturador de cavalos disse em voz alta, e entrou no «seu» palácio.

 

«Ninguém se teria admirado» pensou alegremente, «se o pobrezinho tivesse caído da boleia ou se tivesse pensado que estava bêbado...»

 

O camarim tinha-se tornado muito apertado. Sobrava pouquíssimo espaço entre as enormes corbelhas de flores para se poder chegar à mesa de maquilhagem. O biombo, atrás do qual se mudava de roupa, tinha sido posto de lado para dar lugar a uma mesinha redonda com duas poltronas. A mesa estava sumptuosamente decorada com pratas maciças, porcelanas finíssimas e copos de cristal francês. Matilda recuara assustada com o denso perfume das flores.

 

Depois do bloqueio tinha ficado sozinha. Antes, todos a tinham beijado calorosamente: a Jegorovna, Petipa, a grande Zucchi, com o rosto muito vermelho, Cecchetti, ainda a transpirar abundantemente, o irreconhecível Passukov e, naturalmente, o rival de Petipa, o primeiro-bailarino e coreógrafo Ivanov, do famoso Teatro Maria.

 

Mas depois dos beijos tinham deixado Matilda sozinha...

 

Entre as flores, ela reconheceu um uniforme, o uniforme de gala da Guarda dos Hussardos. Parou e riu cheia de felicidade e cansaço.

 

- Boris, porque te escondes? Reconheci-te imediatamente! Viste como estavam todos tão entusiasmados? O czar levantou-se e debruçou-se no camarote! Até me acenou! O czar, a mim! Onde está a mamã? Porque não está aqui? Porque é que está tudo bloqueado?

 

Boris Davidovitch avançou lentamente, ao lado das flores. Inclinou-se para Matilda e beijou-a, quase fraternalmente, na testa. Depois levou-a até à mesinha, festivamente posta. Ela olhou espantada para ele, e rapidamente pegou-lhe na mão e beijou-a. Soerenberg não teve hipóteses nem de a retirar nem de impedir que ela o fizesse.

 

- Champanhe... - disse surpreendida. - Champanhe francês. Boris, onde foste buscar tudo isto? Estes maravilhosos copos? Vamos festejar os dois aqui no camarim? Porque não em casa? Estou cansada, meu querido, cairei por terra, com certeza, a seguir ao primeiro copo! Já nem sinto os ossos, estou muito maçada.

 

- Neste momento faço parte da decoração, Matilda disse Soerenberg com a voz repentinamente velada. - Sou um acessório... como as flores e os laços. Tenho antes de tudo a missão de te perguntar se estás disposta a aceitar um convite...

 

Ela fitou-o incrédula e depois bateu-lhe com o indicador no peito.

 

- O que é que está a acontecer contigo, Boris, meu amor?

 

- O czaréviche pede, por meu intermédio, que lhe concedas a graça de poder festejar aqui contigo a tua premiere... - disse Soerenberg em sentido.

 

- Não... - balbuciou Matilda. O rosto dela tinha-se tornado primeiro vermelho e depois branco. - Não...

 

- Recusas?

 

- Sim... Quer dizer: não! Não! Não posso dizer ao czaréviche... Boris, ajuda-me! Eu não posso dizer ao czaréviche...

 

- Não, não podes - respondeu Boris Davidovitch muito sério. O coração martelava-lhe o peito e foi acometido por uma vertigem nunca antes sentida. - O grão-duque está à espera, aqui ao lado, de uma palavra tua...

 

- Aqui ao lado? Meu Deus! - Apoiou-se a ele. Boris, o que devo fazer?

 

- Eu dir-lhe-ei que ficas feliz por festejares com ele o teu primeiro triunfo.

 

- Boris! - Agarrou-se com mais força a ele. - E tu, Boris? Peço-te... Não me deixes sozinha com ele... Fica perto... Boris, eu queria estar contigo e com a mamã...

 

- Eu não tenho importância, Matilda. E a tua mãe compreenderá. Agora vou buscar o czaréviche.

 

Inclinou-se para ela, beijou-lhe os cabelos negros e disse baixinho:

 

- Que Deus te acompanhe, Matilduschka. Amo-te muito. Só porque te amo muito, só porque te amo assim, é que consigo suportar isto. Que Deus te abençoe!

 

Saiu a passo rápido.

 

Um minuto depois, o czaréviche entrou na sala. Trazias orquídeas brancas nas mãos.

 

Capítulo décimo

 

Na vida de cada indivíduo - mais cedo ou mais tarde chega sempre o momento em que ele sente que atingiu o ponto culminante da sua existência. Quase sempre este reconhecimento é inesperado, fatal e fulminante; mas às vezes é o fim de um longo caminho, o alcançar de um objectivo, o resultado de um trabalho. Mas sempre, quando se sente que não se pode dar nada mais do que aquilo, se fica como que tolhido por uma paralisia total.

 

Quando se desperta do êxtase, a vida continua, mas com um rosto diferente.

 

Matilda fez uma profunda reverência quando Nicolau Alexandrovitch entrou. Ouviu a porta fechar-se lentamente, reconheceu os seus passos, sentiu a sua presença, mas não se atrevia a levantar a cabeça e a olhá-lo. A voz dele soou doce e levemente embaraçada quando disse:

 

- Matilda Felixovna, tinha-lhe prometido estar presente no seu triunfo. Que, desde o início, eu tinha a certeza que seria um triunfo. Hoje não conquistou só Sampetersr burgo, conquistou-me também a mim. E também o czar! O meu pai pede-lhe (pede-lhe!) que vá até ele. E com isto acabo de cumprir a minha missão.

 

O palpitar do coração de Matilda quase parou. «Vou morrer», pensou com grande lucidez. A morte deve ser mesmo assim... Um grande silêncio, depois nenhuma sensação no peito, tudo a perder o espaço e o som. Esperou pela escuridão, mas tudo à sua volta continuou claro.

 

Aspirou o perfume das orquídeas, ouviu o czaréviche a mexer em qualquer coisa, percebeu um martelar ao longe. Os operários estavam no palco a desmontar os últimos cenários.

 

- Alteza Imperial - disse baixinho. - Como pude merecer esta honra...

 

- Vim como Nicolau Alexandrovitch e gostaria de beber uma taça de champanhe com a senhora para brindar ao seu triunfo. Não nos deixemos incomodar por uma Alteza Imperial... Não vejo nenhuma nesta sala...

 

Matilda estremeceu. A mão do czaréviche tomou-a pelo cotovelo e levantou-a da sua profunda reverência. Ela levantou a cabeça... e o que aconteceu foi o mesmo que no seu primeiro encontro, em Outubro, quando os doces olhos dele a tinham fixado, timidamente, através do espelho sobre a barra para os exercícios. Aquele olhar penetrou-a, abalando-a intimamente.

 

Ergueu-se e recebeu as orquídeas brancas que Nicolau lhe oferecia. Depois ficaram um na frente do outro sem saberem o que dizer, porque qualquer palavra teria soado estúpida e vazia.

 

- Eu... Eu pensei - disse finalmente Nicolau - que o melhor lugar para festejar o seu triunfo seria precisamente o seu camarim. Além disso, aqui estaremos protegidos dos olhares indiscretos. Sampetersburgo é um ninho de mexeriqueiros... Quando me acontece tropeçar com a ponta da bota numa pedra, em qualquer jardim, num abrir e fechar de olhos são informados o Ministério do Interior, o chefe da polícia, o director dos serviços secretos e o da clínica cirúrgica. «O herdeiro do trono tropeçou numa pedra! Como é possível semelhante coisa? Quem meteu a pedra no seu caminho? Procurem e encontrem os culpados...»

 

Matilda riu.

 

Aquele riso libertou-a do que tinha dentro de si. De repente tudo se tornou cómico e incrível. Voltou-se, colocou as orquídeas numa jarra dourada que estava em cima da mesa de maquilhagem e olhou o czaréviche através do espelho.

 

- Eu não poderia viver dessa maneira - disse francamente.

 

- Eu tenho de viver, Matilda. Muitas vezes invejo aquelês que puderam crescer livres como as águias. Herdar a coroa russa não é uma felicidade, mas sim um peso...

 

- E, no entanto, deve ser magnífico sentir-se o homem mais poderoso do mundo.

 

- Pensa que o czar o é?

 

- É o que toda a gente diz.

 

- E dizem também como o poder isola um homem? Dizem também como é frio estar lá em cima no trono quando nenhum calor humano consegue lá chegar? O grande czar? A maior parte dos meus antepassados viveram com um irmão gémeo: o medo! Com a única excepção do meu pai. Não, Alexandre Alexandrovitch é como uma rocha. Vai ter oportunidade de o conhecer, Matilda.

 

O czaréviche foi até à porta, abriu-a um pouco e bateu as palmas.

 

Parecia que estava alguém no corredor à espera. Três criados com uniformes orientais entraram em fila, trazendo pratos de prata, travessas cobertas, baldes de gelo com garrafas de champanhe, e colocaram tudo em cima da mesa de maquilhagem.

 

Nicolau Alexandrovitch examinou tudo e depois fez um sinal com a cabeça, sem acrescentar qualquer palavra.

 

Os três criados desapareceram silenciosamente, e só a porta fez um leve ruído ao fechar-se. Matilda sacudiu a cabeça, sobretudo quando o czaréviche ergueu uma tampa e cheirou o conteúdo da travessa.

 

- Para quem é tudo isto? Só para nós dois?

 

- Um pouco de caviar com creme de trufas, esturjão fumado, peito de faisão com cogumelos silvestres e um bolo de nozes... tudo acompanhado com vinho da Georgia e champanhe da Crimeia. Tudo isto! Uma ceia relativamente modesta para a nova rainha do palco de Sampetersburgo!

 

- Nunca provei nenhuma dessas coisas. Talvez uma: o caviar! Quando tinha doze anos, foi à nossa casa um sujeito meio esquisito. Era baixo, tinha um chapéu enfeitado e uma longa barba negra. Ofereceu um grande frasco de caviar à minha mãe e disse: «Tenho uma proposta, Madame Bondareva. Eu forneço-lhe caviar, a senhora abre um negócio e, em pouco tempo, será rica. Quem poderia recusar tal oferta? Em troca, dá-me a sua filha, eu cubro-a de veludo e de seda e será a alegria da minha velhice.»

 

- Esse velhaco merecia ser chicoteado - disse o czaréviche furioso. - E que resposta deu a sua mãe?

 

- Nenhuma!

 

- Nenhuma? - gritou o czaréviche irritado.

 

- O pequeno homenzinho com o chapéu enfeitado teve de estar três semanas no hospital. Os médicos pensavam que ele tivesse partido a espinha dorsal... Tinha rolado pelas escadas como uma acha de lenha.

 

- Tenho de conhecer rapidamente a sua mãe. - Nicolau levantou a tampa da travessa que continha o caviar. Quero agradecer-lhe por tudo aquilo que fez por si, Matilda. .. Posso servi-la?

 

- Mas, Alteza Imperial... - Sentou-se junto da mesinha. Tinha o rosto corado. Cruzou as mãos enquanto o czaréviche lhe servia o caviar como um hábil criado de quarto e abria uma das garrafas de champanhe.

 

- Os amigos chamam-me Niki - disse o czaréviche enquanto enchia os copos. - Consegue-se imaginar a fazer o mesmo?

 

- Não, Alteza Imperial.

 

- E se eu lhe pedisse ardentemente?

 

Agarrou nas mãos de Matilda, levou-as aos lábios e beijou-as. O olhar melancólico dos seus olhos sonhadores provocou nela uma desesperada confusão.

 

- Espero que esta não seja a nossa última noite. Isto, se não me achar insuportável, Matilda.

 

Ele sentou-se na frente dela, levantou a sua taça de champanhe e sorriu-lhe. Era um sorriso cauteloso, quase triste. Uma melancolia transformada, por assim dizer, em tranquila felicidade.

 

«Não é feliz», pensou Matilda. «Este homem, que governará um dia um dos maiores reinos do mundo, que estará entre os mais poderosos, que terá um poder absoluto, este homem é, no seu íntimo, uma pessoa triste.. Porque será tão diferente daquilo que se espera que um czar seja? Que é que o oprime?»

 

Inesperadamente, Matilda teve pena do czaréviche; uma pena a que se juntava uma sensação desconhecida. Mas ambas as coisas provocaram nela uma fatal simpatia por

 

aquele homem belo e sofisticado, com olhos de gazela, que bebia em sua honra.

 

- Estou muito feliz por estar aqui consigo... Niki - disse Matilda com alguma dificuldade.

 

O czaréviche levantou mais alto a sua taça.

 

- Obrigado. O som do seu «Niki» é o mais belo que eu já ouvi. Bebamos ao destino, que desta vez foi tão benévolo comigo.

 

Brindaram; depois começaram a comer caviar frio e com bastante sal, e ficaram calados durante algum tempo. De repente, Matilda disse:

 

- Posso perguntar uma coisa, Niki? O czaréviche estremeceu.

 

- O meu coração exulta quando diz «Niki»...

 

- Este caviar é a comida dos ricos...

 

- Entre outras coisas.

 

- Não percebo porquê. - Pousou a colher de prata e bebeu um gole da sua taça. - Para mim, não passa de pequenas bolinhas salgadas com sabor a peixe. Ò que é que tem de tão extraordinário?

 

- É quase impossível explicá-lo. - Nicolau Alexandrovitch reflectiu. - A delicadeza das ovas, a arte de salgá-las, a raridade... - De repente começou a rir, pôs-se de pé, tirou a travessa de caviar da mesa e pô-la na mesa de maquilhagem. - Sou um estúpido - disse. - Ralhe então comigo, Matilda! Talvez preferisse uma sopa de legumes? Diga-o sinceramente. O que faço agora ao creme de trufas?

 

- Vamos prová-lo, Niki...

 

Nesse momento pareceu-lhe fácil chamar «Niki» ao herdeiro do trono russo. Aquele diminutivo ficava-lhe a matar. Nicolau Alexandrovitch Romanov soava duro, era um nome de Czar. Niki, pelo contrário, era um companheiro para as horas alegres e para as mais melancólicas; em Niki reflectia-se o desejo de tudo o que Nicolau teria querido ser, sem sequer o poder tentar: simplesmente um homem normal!

 

Provaram o creme de trufas: Matilda gostou do creme, mas não das trufas.

 

- Sabem a bolor! - disse.- Mas talvez seja esse o seu sabor...

 

- São cogumelos muito raros, que apenas se encontram numa região de França, o Périgord. Usam-se os porcos para os procurar.

 

- Porcos? Niki, está a brincar comigo.

 

- É verdade. Os camponeses soltam os porcos e, quando estes metem o focinho e começam a esgravatar, ali são encontradas trufas. Mas isto só acontece na região do Périgord.

 

- E é por esse motivo que têm tanto valor?

 

- Sim.

 

- Mesmo com sabor a mofo?

 

- Matilda! Prometo-lhe que a nossa próxima ceia será à base de... sopa de cebola.

 

O czaréviche apontou para a tampa de prata de uma grande travessa.

 

- Posso servi-la de peito de faisão? Mas já aviso: é cor-de-rosa. Posso confiar no meu cozinheiro francês. Mas tenho medo de que você diga: «A carne ainda está meio crua!»

 

- E está mesmo?

 

- Está apenas au point...

 

- E o que é isso?

 

- Assada no ponto justo! Um minuto a mais, e alguns franceses sentir-se-iam ofendidos se lhes puséssemos na frente semelhante coisa.

 

- Vamos provar, Niki.

 

Matilda riu e esfregou as mãos. O champanhe tinha-a posto alegre e havia afastado todo o embaraço que antes sentira na frente do czaréviche.

 

- Vejamos de que se trata...

 

- E também vamos beber vinho da Georgia. Tinto, brilha corno um rubi ao sol.

 

- E pesa como chumbo na cabeça, não é?

 

- Beberemos com cuidado, Matilda.

 

Nicolau Alexandrovitch encheu dois pratos com peito de faisão, deitou-lhe por cima um pouco de molho, e completou o prato com raminhos de couve-flor, feijão verde e cebolinhas fritas em manteiga; abriu a seguir a garrafa de vinho e despejou-o com tal perfeição que parecia nunca ter feito outra coisa na vida; ninguém teria pensado que era o czaréviche, habituado a estar rodeado por um pequeno exército de criados e de lacaios, que o ajudavam em tudo, e que eram vigiados por um mordomo muito distinto que até tinha um título nobiliárquico.

 

De novo sentados um na frente do outro, provaram o forte vinho tinto e olharam-se de maneira diferente.

 

- A minha mãe contou-me uma vez a história de uma mulher - começou a dizer Matilda. O primeiro copo de vinho tinto começava a aquecer-lhe o corpo todo. - Deve ter sido no Norte, numa propriedade chamada Novo. Pertencia ao conde Michail Leontonovitch Probinsky. Tinha sido um dos últimos a libertar os escravos da gleba. A rapariga chamava-se Maruta... Lembro-me bem porque a mamã me disse: «Nunca o esqueças. Pode-te acontecer o mesmo a ti neste mundo danado!» Então, Maruta era jovem e bonita, filha de um lenhador do conde. Um dia, o conde Probinsky encontrou por acaso Maruta no campo, quando ela estava a recolher rabanetes. Chamou-a, fê-la subir para o coche, e levou-a através das suas terras; quando ela tentou ir-se embora para que ele não lhe tocasse, deu-lhe vinho tinto a beber. Maruta não sabia o que aquilo era e acreditou no que o conde lhe disse... que se tratava de um sumo de fruta do Sul. Quando Maruta voltou a si, estava deitada na sua cama na cabana do bosque, e, ao seu lado, o pai chorava amargamente; mostrou-lhe um rublo de ouro e disse: «Se pudesse matar-te! Se ao menos pudesse! Mas não se pode matar à paulada o próprio sangue e a própria carne!» Maruta morreu quando o seu filho nasceu, o pai estrangulou o recém-nascido e, em seguida, foi enforcado por este motivo. A minha mãe disse-me: «Lembra-te, Matilda! Se um grande senhor te convidar para beberes vinho, tens de saber uma coisa: se beber contigo, quer atordoar-te, não tem mais nada em mente. E depois, quando partir, nem sequer te agradece, deixando-te sozinha com o teu destino!»

 

Levantou o copo e brindou ao czaréviche.

 

- A esta noite, Niki! Não tenho medo...

 

- Não é assim, Matilda! - Nicolau brincava com * comida que tinha no prato. - Preciso de falar com a sua mãe urgentemente.

 

- Porque estamos aqui esta noite? - perguntou ela. O czaréviche assustou-se.

 

- Que pergunta!

 

- O futuro czar ceia secretamente com uma pequena bailarina do seu ballet. Não se pode dizer que uma coisa deste género seja muito habitual... nem mesmo depois de uma premiere.

 

O herdeiro do trono colocou o seu talher no prato e fixou Matilda durante alguns minutos com o seu olhar sonhador. Depois disse:

 

- O que é que quer que eu diga, Matilda?

 

- Aprendi a dizer sempre a verdade. «Diz a verdade, mesmo que depois te tenha de matar por causa disso...»

 

- Um conselho da sua mãe... Deve ser uma mulher maravilhosa.

 

- A mamã? Maravilhosa? Não sei. Toda a vida teve de se preocupar com qualquer coisa. Teve de lutar pela sobrevivência. Somos duas das centenas de milhares de pessoas que constituem o seu povo, Niki, e que rezam de cada vez que podem encher o estômago porque nenhuma consegue saber se no dia seguinte comerá de novo. A mamã vê o mundo de uma forma muito diferente do senhor... Talvez por isso seja maravilhosa, será?

 

- Tenho pensado em si desde o nosso primeiro encontro - disse o czaréviche. - Desde aquele dia tenho-a sempre diante dos meus olhos... sei sempre tudo o que faz.

 

- Deve ser o anão Mustin que vos informa de tudo.

 

- E Boris Davidovitch. Sei, logicamente, que foi morar para o Palácio Stroitsky, que Soerenberg lhe comprou uma tróica... Tenho de lhe dizer... Tremi de ciúmes.

 

- Niki! - Olhou-o espantada.

 

- Nos meus pensamentos, na minha alma, nos meus sonhos, tem estado sempre comigo, Matilda. Basta-lhe isto como resposta para a sua pergunta acerca da razão por que estamos esta noite aqui? Isto é apenas o princípio... Desejo passar muitas outras noites consigo, Matilda. Mas não no camarim do teatro... A seu lado, no Palácio Stroitsky, ou então junto dos meus amigos em Zarskoi Selo. Eu... eu tenho de a voltar a ver! - De repente, pôs o prato para o lado. - É idiota falar de coisas deste género diante de um peito de faisão! Pode rir de mim, Matilda... eu mesmo o mereci.

 

- E o que é que dirá a corte? - disse ela, balbuciando. - O czar? Os grão-duques?...

 

- Por acaso, trata-se da vida deles?    

 

- Mas vós sois a Rússia, Niki!

 

- Isso é o que se exige de mim - Nicolau Alexandrovitch olhou para Matilda com olhos quase suplicantes. Consegue imaginar quão desumano pode ser semelhante peso? Libertar-me dele, fugir-lhe ao menos durante algumas horas, ser apenas um homem, feliz como o último dos mujiques... Por isso quero estar consigo. Peço-lhe: alivie-me da minha atroz espera, porque quando for czar...

 

- Eu? Justamente eu? Como posso fazê-lo, Niki?

 

- Basta que esteja presente... mesmo por poucas horas... seja para mim um refúgio, um lugar onde ninguém me possa encontrar... Preciso de si, Matilda Felixovna.

 

Quase três horas depois, Boris Davidovitch acompanhou Matilda a casa na tróica nova.

 

O czaréviche já se tinha ido embora, abandonando o Teatro da Ópera por uma porta lateral. Ninguém que se encontrasse naquele momento na rua teria imaginado que naquela modesta carruagem, que avançava lentamente pelas ruas geladas, ia sentado o herdeiro do trono da Rússia.

 

O seu séquito era apenas o anão Mustin Fedorovitch Urasalin.

 

Matilda Felixovna estava sentada, envolta em mantas de peles, e tinha recostado a cabeça para trás. O céu estava cheio de estrelas e o ar era frio. Ó seu gorro de pêlos longos só deixava ver os olhos e o nariz. A boca estava tapada por um lenço de lã; a respiração gelava de repente, transformando-se em cristais brancos.

 

- Ele ama-me, Boria... - disse Matilda baixinho.

 

- Eu sei.

 

Soerenberg cravou o olhar nas costas do cocheiro. As campainhas que adornavam o veículo tilintavam, os cavalos trotavam e deitavam fumo pelo nariz. Boris estava sentado ao lado de Matilda, metido numa pele de lobo.

 

- Ele disse que precisa de mim.

 

- Se o czaréviche o disse, temos de o acreditar.

 

- Mas, de qualquer forma, é um homem infeliz. Preferia nunca chegar a ser czar.

 

- Mas chegará!  

 

- Não tens mais nada a dizer? E, no entanto, também me amas...

 

- É uma coisa completamente diferente, Matilda. O nosso amor será eterno...

 

Ela abanou a cabeça e apoiou-a no ombro dele.

 

- Entendo...

 

A sua voz ouvia-se mal entre o rumor do gelo debaixo do trenó, o tilintar das campainhas e o trotar dos cavalos.

 

- Eu serei apenas... um episódio.

 

- Não sei se o amo, Boria.

 

- Mas eu sei.

 

- E podes tolerá-lo? Podes dizê-lo simplesmente assim?

 

- Nós somos um pedaço de terra, Matilda. A terra vive de chuva e de sol, de vento e de secura, de calor e de frio, primeiro floresce e depois fecha-se sobre si mesma, fica inerte e cinzenta, e de novo torna a ficar verde, deixando que as tempestades soprem sobre ela como um incêndio devastador... Mas mesmo assim tem sempre força para produzir novos frutos. Até um deserto nunca está completamente morto: basta que receba um pouco de água, e renasce uma nova vida.

 

Inclinou-se para ela, beijou-lhe as pálpebras e dominou-se para não gritar: «Tudo isto é uma mentira! Palavras à toa! Gostaria de trespassar o czaréviche com a minha espada de cada vez que penso que ele te beijou...»

 

Mas não gritou nada, encostou-se para trás, fixou o céu estrelado e disse:

 

- Só quero que sejas feliz. Hoje, amanhã, sempre. Essa será a missão da minha vida.

 

- Nunca te poderei retribuir tudo isto.

 

- Basta-me que estejas aí...

 

No Palácio Stroitsky reinava um grande alvoroço.

 

Rosália Antonovna precipitou-se para Matilda, soltou um verdadeiro uivo e apertou a filha contra si.

 

- O que é que te fizeram, meu cisnezinho? - gritou. Devo amaldiçoá-lo? Nós, os pobres súbditos, não podemos fazer mais nada senão obedecer-lhes, até na cama! Boris, o que é que faz aí a olhar para tudo estupidamente? Parece um carneiro! Faça qualquer coisa, prepare uma revolução, rebente com todos os descendentes do czar! Ah, se eu fosse um homem! Vem para aqui, minha pequenina, acalma-te, minha pombinha, fica tranquila! Não vêem que ela sofreu um choque? O czaréviche destruiu uma jovem vida! Como é que começou, meu passarinho? Conta-me, livra-te desse peso que tens lá dentro...

 

- Com caviar e champanhe... - disse Matilda com voz débil. Sentou-se num sofá e tirou o gorro de pele.

 

Os cristais de gelo começaram a derreter com o calor. A água pingava dos cabelos para o rosto. Parecia mesmo que estava a chorar...

 

Boris Davidovitch atirou o seu casaco de pele para um canto e dirigiu-se para uma mesa em cima da qual estavam pousadas garrafas de cristal que continham vinho doce, licor e conhaque. Despejou vinho do Porto para si e para Matilda e depois levou-lhe o cálice.

 

A Bondareva arrancava os cabelos.

 

- Caviar e champanhe! É assim que começa sempre. É a melhor estratégia, conquistar uma rapariga a partir do estômago. Boris, e a mim não me dá nada a beber?

 

- Só posso trazer dois cálices, mãezinha. - Boris meteu-se entre Matilda e Rosália Antonovna. - O czaréviche ceou com Matilda, nada mais! - acrescentou em seguida com alguma dureza.

 

- Nada mais? Também estava presente? »

 

- Estava na sala ao lado. »>’

 

- Tinha algum buraco na parede?

 

- Seria melhor, mãezinha, que fosse dormir. É muito tarde...

 

- Ah! Querem-me pôr à parte! Oiçam-me bem: não o vão conseguir! Não me podem esconder a verdade, a mim, uma mãe desesperada! Caviar e champanhe, e depois mais nada? Só comer e conversar? Quem acredita nisso? E, se fosse verdade, oh, Céus, já teriam acabado os homens! Então eu fico aqui à espera, ando de um lado para o outro a arrancar os cabelos, vou para a capela e rezo de joelhos pela salvação da alma, estou à janela à espera para ver quando chegam e finalmente eis o trenó, o meu coração de mãe está despedaçado, a minha alma arde, e entretanto penso: «Em breve o saberei! Muito em breve! Sou a sogra secreta do czaréviche!» E o que é que eu ouço? «Não houve nada, só um pouco de caviar e de champanhe.» Oh, sinto-me morrer! O meu coração está a falhar! Como poderei sobreviver a esta desilusão?

 

Deixou-se cair numa grande poltrona, estendeu as pernas para a frente e bebeu do vinho de Boris, como se não se pudesse mexer.

 

- É um homem tímido, mamã - disse Matilda pensativa. - É difícil de explicar... Mas quando olho para os seus olhos ponho-me triste. E sinto que não deve ter uma vida feliz quando for czar. Sabe o que pensei quando ele me contou como gosta de viver em Zarskoi Selo, onde pode caminhar sozinho pelo parque e sentar-se em qualquer parte ao sol? Deus queira que não aconteça, mas pensei: «Tu não chegarás a velho, Nicolau Alexandrovitch!»

 

- Que coisa! - gritou a Bondareva. - Que desgraça! O futuro czar ama-a e ela pensa que ele nunca chegará a velho! É essa a tua preocupação? Boris, como se pode explicar a esta menina que uma mulher envelhece muito mais depressa que um homem, sobretudo quando é a amante dele?

 

- Não se pode explicar! - respondeu Boris rudemente. O czaréviche virá aqui de visita nos próximos dias. Temos de nos preparar.

 

- Aqui? - gritou Rosália Antonovna. - Se me apertar a mão, cairei por terra como um farrapo. Santo Deus, que vem ele cá fazer?

 

- Virá beber chá, comer um pedaço de bolo, conversar, distrair-se. Talvez traga consigo alguns dos amigos. Dançaremos e cantaremos. Deve sentir-se à vontade aqui entre nós...

 

- Justamente na minha casa?

 

- Na casa de Matilda! Tu nem sequer o verás, mãezinha.

 

- Sou algum espantalho? Tenho de ficar escondida ou fechada em qualquer parte só porque vem cá de visita um tal senhor? Sabes o que te digo, Boris? Que quando tu ainda andavas de fraldas, já eu andava com o belo conde! Olha para aqui!

 

Deu um passo atrás e fez uma profunda reverência, na verdade um pouco mal conseguida.

 

Boris viu-a cair no chão, sem dizer nada. A Bondareva levantou-se e ajeitou o vestido sobre o enorme seio.

 

- Arrancaram-te a língua, diz qualquer coisa! - gritou. Se calhar foi. Eu exercitei-me na frente de um espelho. Com uma certa Madame Lapèche, uma que aluga fraques e conhece muita gente da alta sociedade! Ela também fez, uma vez, uma vénia à czarina.

 

Rosalia Antonovna pôs as mãos nas ancas largas e olhou para a filha com um olhar triunfante.

 

- Estou preparada para qualquer eventualidade acrescentou com orgulho. - Deixa-o vir, o grão-duque, o herdeiro do trono. Preparo-lhe uma salada de pepino tão saborosa que no dia seguinte dá um pontapé no rabo do seu melhor cozinheiro! Vou fazê-lo arrotar de prazer...

 

Ficaram a conversar até de madrugada.

 

Na manhã seguinte, pelas dez horas, uma carruagem imperial trouxe quatro enormes corbelhas de flores. Dois lacaios do czaréviche levaram-nas para dentro de casa, entregando também uma carta para Demoiselle Matilda Felixovna.

 

O czaréviche escrevera: «Que noite! Não consegui dormir. Estava completamente envolto pela tua voz, pelo teu olhar, pelo movimento das tuas mãos, pelo ondular do teu corpo, pelo som das tuas gargalhadas. Tudo à minha volta é música, tudo é tão incrível e distante deste mundo pardacento! Matilda, de onde é que vieste realmente? Não serás um presente do Céu? Como pode uma criatura como tu ser humana? O mundo para mim... Tornou-se tão belo como só era nos desejos e nos sonhos...»

 

Uma carta cheia de exageros.

 

Matilda leu-a na frente da mãe, que de repente começou a chorar e disse muito comovida:

 

- Como escreve bem! Qual de nós podia imaginar que se pudessem dizer tantas coisas com as palavras? Oh, Senhor, quando mudará também a nossa vida...

 

À hora do almoço, chegou o anão Mustin Urasalin. Cumprimentou Rosália Antonovna com um beijo na mão, gesto que ela acolheu um pouco envergonhada, como se fosse uma adolescente. Depois sentaram-se um na frente do outro, o anão com as suas perninhas de aranha e a enorme cabeça e a dona da casa com as suas ancas largas e os seios imponentes. Nem sequer um contador de histórias teria sido capaz de criar um casal tão diferente, mas às vezes a realidade supera a fantasia.

 

O pessoal em serviço no Palácio Stroitsky, que tivera de habituar-se à nova situação e à nova patroa - de facto havia grande diferença entre a afectada e distinta Valerie Maximovna Stroitskaya e a esganiçada e nem sempre muito conveniente Bondareva -, levou o almoço para a mesa, admirando em silêncio a solidez íntima de Rosália Antonovna, que conseguia não perder o apetite na frente de semelhante monstro.

 

Boris Davidovitch tinha o dia livre. Aproveitou-o para comprar alguns presentes de Natal para Matilda e para ir visitar o príncipe Jussupov, que lhe queria falar com urgência.

 

O príncipe Valentin Vladimirovitch Kramskoj, a quem ninguém ousara ainda dizer que a sua loucura se tornava mais evidente de dia para dia, tinha visto «a Felixovna» como já todos lhe chamavam em Sampetersburgo - por ocasião da premiere; fazia parte daquele círculo restrito de pessoas que tinham recebido convite.

 

Ainda de braço ao peito, vestido com um fraque sobre o qual estavam colocadas várias condecorações, tinha tomado lugar num camarote; olhando através do seu binóculo de teatro, reconhecera, de repente, a bailarina. Até àquele momento tinha ignorado o nome da rapariga cuja honra lhe custara tão caro; mas agora, finalmente, sabia a causa pela qual tinha ficado aleijado! Durante o intervalo tinha afastado o seu amigo Jussupov para o lado e, com voz perturbada, dissera:

 

- A minha vida arruinada por uma rata de bailéu Uma galdéria habituada a passar de uma cama para outra como os saltimbancos nas praças!

 

- Não creio que a Felixovna seja desse género - respondeu Jussupov cautelosamente. Puxou Kramskoj para um canto onde ninguém o pudesse ver. - Valentin Vladimirovitch, deve esquecer o mais rapidamente possível tudo o que aconteceu.

 

- Esquecer? Com um braço completamente inutilizado? E uma cicatriz em todo o ombro? Esquecer? Só serei feliz no dia em que puder estar na frente do túmulo de Soerenberg!

 

- Tens de tornar os teus propósitos mais brandos aconselhou Jussupov com uma certa insistência. - Temo que doutro modo entres em conflito com a corte.

 

- O que tem o czar a ver com a minha vida privada?

 

- Nada. A tua pessoa é de facto completamente desinteressante. Mas ainda se ouvirá falar muito e muitas vezes da Felixovna. Se for verdade tudo o que me disseram, depois do intervalo o camarim de Matilda Felixovna será transformado num jardim florido. Uma pequena visita do czaréviche!... Kramskoj, ele parece-me um adversário demasiado forte para ti.

 

O príncipe Kramskoj calou-se pensativamente. Depois retirou-se para o seu camarote e deixou sozinho o seu amigo Jussupov.

 

Durante a segunda parte do ballet não tirou os olhos dos binóculos, olhando para a Felixovna com os lábios a tremer.

 

Jussupov seguia-o, com o olhar, do seu próprio camarote. Temia o pior.

 

- O que podemos nós fazer? - perguntou o príncipe Jussupov ao seu convidado Soerenberg. Estavam sentados na biblioteca do palácio, saboreando um licor de café e fumando um charuto. - Não vai deixar Sampetersburgo de livre vontade. Uma denúncia anónima não adiantaria nada, o chefe da polícia evitaria perturbar um homem como Kramskoj! Contar tudo ao czar repugna-me. Por um lado, considero Kramskoj meu amigo; por outro, sinto-me comprometido consigo, sabendo que a vida de Kramskoj tem apenas um objectivo: a sua morte. Que posso eu fazer? Dê-me um conselho. Mas peço-lhe que não diga que é possível fazer desaparecer um homem sem deixar rasto. Acabaram-se os tempos do czar Ivan IV.

 

- Não se pode fazer mais nada senão estar sempre alerta. Estar atentos até ao ar que respiramos – respondeu Soerenberg pensativo. - Talvez tenha de pedir a Kramskoj que me receba.

 

- Enlouqueceu, Boris Davidovitch? Não sairia vivo do palácio dele.

 

- Quando um homem se quer vingar a todo o custo, ninguém consegue impedi-lo. Encontrará cem ou mais maneiras de o fazer. Há uma única hipótese: eliminá-lo à primeira tentativa.

 

- Sim, é isso mesmo o que tem de fazer, Boris. Não posso ajudá-lo nisso: posso apenas mante-lo informado sobre tudo o que se for passando. É verdade o que se diz: que o czaréviche mostrou um certo interesse pela Felixovna?

 

- Quem é que lhe disse?

 

- A sua pergunta é já uma resposta. - Jussupov sorriu. Também seria capaz de desafiar Nicolau Alexandrovitch para um duelo?

 

- Nunca tentaria obter nada pela violência.

 

- Suponhamos que o fazia! (

 

- Impossível!

 

- Tente imaginá-lo...

 

- Dispararia contra ele. Seria fácil para mim. Ele considera-me um dos seus amigos...

 

- Faria semelhante coisa por Matilda Felixovna?

 

- Apenas por ela.

 

- Meu Deus, como deve amar essa rapariga, Boris Davidovitch! E que coração precisa você de ter para conseguir olhar para a cara do czaréviche?

 

- O coração não tem nada a ver com isto, Alteza. É preciso apenas ter nervos de aço para conseguir suportar tal destino! Talvez, graças a Matilda e a Nicolau, alguma coisa possa mudar na história da Rússia...

 

- Você acredita nisso?

 

- Um novo casal como César e Cleopatra...

 

- Oh, Céus, não evoque tal coisa! César foi assassinado, António suicidou-se com a própria espada, Cleopatra deixou-se morder por uma serpente venenosa - e naufragaram dois impérios: Roma e Egipto! É isto o que augura para a Rússia?

 

Os muros do Palácio Stroitsky foram sacudidos por uma explosão ao meio-dia do dia seguinte.

 

O trenó pedido por Matilda, que queria ir visitar Tâmara Jegorovna, saltou pelos ares e desfez-se em mil bocados, que se dispersaram pelo pátio interior. O cocheiro ficou com a barriga aberta, os cavalos caíram um sobre o outro, relinchando de uma forma que fazia gelar o sangue, debatendo-se loucamente e sangrando da carne em pedaços.

 

Entretanto, Rosália Antonovna, que estava na entrada, desmaiou, não sem antes ter gritado:

 

- O mundo está a desabar! Senhor, tem piedade de mim!

 

Não havia qualquer dúvida: tinham posto uma bomba no trenó.

 

A primeira pergunta era: o que é que se faz quando explode uma bomba? A maioria das pessoas responderia: corre-se para o abrigo, deitamo-nos sobre a barriga, mete-se a cabeça entre os ombros, empalmamo-nos o mais possível, ninguém se deve mexer e devemos esperar com calma o que ainda pode vir.

 

Uma reacção assim é natural, porque ninguém é herói quando se trata de uma bomba.

 

Na Rússia, e sobretudo em Sampetersburgo, naquele tempo, as pessoas já se tinham habituado a que extremistas, comunistas, demagogos, críticos do regime, fanáticos, religiosos loucos ou indivíduos simplesmente insatisfeitos exprimissem o seu próprio mau humor através de uma ou mais explosões.

 

Isto não significa que todos os dias rebentassem bombas em todos os cantos de Sampetersburgo, como se a existência quotidiana se tivesse transformado num único fogo-de-artifício; mas quando explodia uma bomba em qualquer parte, a polícia tinha logo pronta uma brigada especial que sabia como enfrentar este acontecimento; e também estava de prevenção uma divisão de cossacos e um batalhão de infantaria pronto a marchar contra quem quer que fosse.

 

Na maior parte das vezes, eram implicadas pessoas que não tinham nada a ver com o assunto e a quem não cabia nenhuma responsabilidade.

 

Bastava um pequeno ruído para que todos aqueles que, com palavras ou panfletos, se tinham insurgido contra o regime, ou eram suspeitos de terem posto bombas, fossem presos. Tratava-se em geral de inovadores políticos, gente que falava de modo confuso da liberdade, ou então hostis ao czar e, sobretudo, de socialistas; tudo pessoas com ficha na Ocrana, a terrível polícia secreta. Bastava uma pequena suspeita para que fossem condenados e enviados para a Sibéria.

 

Por esta razão, a explosão de uma bomba era sempre motivo de pânico para algumas centenas de cidadãos russos, os quais se apressavam a passar à clandestinidade durante um certo tempo, mesmo que nada tivessem a ver com a dita bomba.

 

Os que estavam perto não procuravam um abrigo - desapareciam imediatamente! Sabia-se por experiência que onde tivesse havido uma explosão não haveria segunda; aqueles que haviam estado na guerra também diziam que na cratera formada pelo rebentamento de uma granada dificilmente caía outra. No caso de um ataque inesperado, o mais seguro era saltar para uma cratera recém-formada, e assim se ganhava pelo menos algum tempo.

 

Mal detonara a bomba no pátio do Palácio Stroitsky, fazendo em mil pedaços o trenó que Matilda Felixovna pedira, e já o mordomo, os dois lacaios e o tratador de cavalos tinham corrido para o monte ensanguentado e barulhento formado por cavalos, cocheiro e fragmentos ainda fumegantes do trenó. Imediatamente procuraram remediar a desgraça. Em primeiro lugar, abateram os cavalos disparando mais tiros de pistola do que eram necessários -, pondo assim fim ao seu horrível lamento e obtendo um pouco de paz. Quem já ouviu o gemido de um cavalo ferido sabe que nunca mais o esquecerá na vida - é como se alguma coisa ficasse gravada na mente.

 

Depois tiraram dos destroços o pobre cocheiro, cujo corpo dilacerado causava impressão. Levaram-no para um canto e examinaram-no.

 

Não era necessário ser medido para poder diagnosticar que o forte e robusto Sem j on Ivanovitch Tulpinev nunca mais se sentaria na boleia de uma carruagem. A bomba tinha-o esventrado completamente, os intestinos estavam todos de fora, era um espectáculo arrepiante. Tulpinev tinha perdido a consciência, já não sentia dores, mas o que restava do seu corpo ainda tremia. Era pura loucura pensar-se que poderia sobreviver.

 

O mordomo, durante algum tempo sargento na artilharia do czar, ajoelhou-se junto ao cocheiro, benzeu-se e disse com voz comovida:

 

- Semjon Ivanovitch, que o Senhor esteja contigo. Foste sempre um bom homem, todos o podemos testemunhar. Mereces o paraíso. Quando lá chegares não te esqueças de nós, os teus bons amigos.

 

Depois apontou a pistola à têmpora do moribundo e disparou. Não se pode negar a um ser humano o que se concede a um cavalo: a libertação das suas dores.

 

Dois lacaios levaram o cadáver para o estábulo e depositaram-no em câmara-ardente, mesmo em cima da mesa onde Semjon Ivanovitch costumava untar os arreios com sebo.

 

Nesse meio-tempo, a criada cuidava de Rosália Antonovna, que ainda estava desmaiada.

 

Sendo demasiado pesada para ser levantada do chão do átrio, tinham-na puxado até às escadas e apoiado contra a parede. Ficara sentada no chão, com a cabeça pendida, enquanto a criada a abanava com o avental. A cada tiro de pistola, proveniente do pátio interior, Rosália Antonovna tremia, afundando-se de novo numa posição horizontal.

 

Matilda Felixovna acabara de vestir o casaco de peles quando a bomba explodira. Já ia a sair do quarto quando ouviu o estrondo. As janelas partiram-se em mil bocados, choveram estilhaços de vidro e Matilda, soltando um grito, procurou abrigo, atrás de uma grande poltrona. Depois ouviu o terrível relinchar dos cavalos, tapou os ouvidos com as mãos, depois de ter puxado o casaco de peles para a cabeça, e enrolou-se por terra como um cãozinho prestes a morrer.

 

Uma hora mais tarde, o Palácio Stroitsky parecia uma fortaleza ocupada por militares.

 

O esquadrão especial contra os atentados à bomba da polícia de Sampetersburgo tinha bloqueado todas as entradas e estava a interrogar o pessoal de serviço. Alguns peritos procuravam, entre os restos do trenó, fragmentos da bomba. Mustin, o anão, estava sentado à cabeceira de Rosalia Antonovna e segurava na sua mão exangue, confortando-a e tentando amenizar o seu choque.

 

Boris Davidovitch viera imediatamente do Palácio Anitschkov com uma companhia de hussardos. Estava ali com duas missões: o czar em pessoa tinha-lhe confiado a tarefa de proteger a vida da bailarina Matilda Felixovna e o czaréviche, que empalidecera até à raiz dos cabelos ao saber do atentado, implorara a Soerenberg que não perdesse Matilda de vista.

 

- Esses abutres! - tinha dito preocupadamente. - Já não têm respeito por nada! Agora até querem matar a beleza para atingir a Rússia! Que tipo de homens são esses? O que é que lhes pode ter feito uma mulher como Matilda? E tais indivíduos podem pensar que estão predestinados para governar a Rússia? Deus do Céu, o que é que acontecerá a esta nossa terra? Estará este meu maravilhoso país destinado a tornar-se um coió de bandidos e malfeitores? Boris Davidovitch, temos de encontrar esses terroristas e exterminá-los.

 

Na Rússia era costume pensar-se imediatamente em termos políticos. Um hábito deste género é difícil de mudar.

 

Matilda recebeu uma carruagem cheia de flores enviada pelo czaréviche. Eram acompanhadas por uma pequena carta:

 

«Minha adorada, Deus protegeu-te. Como poderei expressar em palavras o horror que sinto perante este acto tão perverso? Farei tudo para te defender. Só pode ter sido o gesto de um louco: não há outra explicação. N.»

 

Capítulo décimo primeiro

 

Com excepção dos participantes, a única pessoa que sabia a verdade, ou que pelo menos podia imaginá-la, calou-se profundamente perplexo. Tratava-se do príncipe Jussupov.

 

Em seguida, dirigiu-se ao palácio do príncipe Kramskoj e, chegado lá, nem sequer se fez anunciar. Empurrou o mordomo para o lado e entrou apressado no salão.

 

Kramskoj estava deitado numa chaise langue a ler o jornal. Tinha um ar contente e pareceu ficar feliz ao ver Jussupov. Uma vez que não podia levantar o braço direito, mandara fazer uma estante na qual era posto o jornal, podendo assim folheá-lo com a mão esquerda.

 

- Chegou mesmo a tempo do chá! - foi o seu cumprimento. - Sente-se! Porque está tão sério? Más notícias da sua propriedade? Tem de se habituar! Os melhores e os mais honestos administradores consideram hoje um desporto tomar conta das terras. Meu amigo, os costumes estão a ruir sob os nossos olhos...

 

O príncipe sentou-se.

 

- Há cerca de meia hora explodiu uma bomba em casa de Matilda Felixovna! - disse por fim Jussupov em voz rouca.

 

Kramskoj recostou-se.

 

- Isso é terrível! E onde foi exactamente? Mesmo dentro de casa? Ficou alguém ferido?

 

- A bomba tinha sido posta na tróica. Explodiu antes da hora.

 

- Ah! - Kramskoj fixou o tecto do salão. Estava decorado com uma série de frescos de pintores italianos. - A nova estrela de Sampetersburgo saiu ilesa?

 

- Imagina... Que azar para o autor do atentado! Só apanhou os cavalos e o cocheiro. Matilda ainda estava em casa.

 

Jussupov aproximou-se e afastou a estante para o lado. Obrigou Kramskoj a sair da chaise longue, puxando-o pela camisa.

 

- Não tens nada a dizer? - perguntou-lhe friamente. Os olhos de Kramskoj faiscaram.

 

- Também quer um duelo? - perguntou o príncipe a Jussupov. - Infelizmente já não posso bater-me com uma espada. E com a mão esquerda não sei disparar muito bem: seria uma luta desigual. Mas podemos cuspir um contra o outro a certa distância...

 

- É isso mesmo que eu vou fazer! - Jussupov largou Kramskoj. - Abandona a Rússia... o mais depressa possível.

 

- Está louco? E por que motivo?

 

- Esta será a última vez que ficarei calado.

 

- Não tem a mais pequena prova.

 

- O relojoeiro Kyrill Abramovitch Stepura entregou ontem uma caixa aqui na tua casa. Queres que o interroguemos?

 

- Stepura consertou um pequeno relógio de sala.

 

- Pensas que diria o mesmo se fosse submetido a um interrogatório da polícia secreta?

 

Jussupov foi até à janela e olhou para fora. Um homem convenientemente agasalhado estava a limpar a neve da ponte, deitando-a para o canal gelado.

 

- O czar interessou-se pessoalmente pelo acontecimento! Valentin Vladimirovitch, hoje ainda sou teu amigo! Mas cada vez me é mais difícil sê-lo e é de prever que em breve me será impossível. Queres ir preso para a Sibéria? Se a verdade se tornar conhecida, ninguém te poderá proteger!

 

Kramskoj calou-se, mas os seus olhos, que de vez em quando se tornavam vagos e inexpressivos, estavam cheios de ódio.

 

- Será que um Kramskoj tem de arruinar-se por causa de uma bailarina vinda do nada? - perguntou em voz baixa.

 

Jussupov voltou para o meio do quarto. «É o começo da loucura», pensou. Disse:

 

- O esquadrão especial já começou as investigações. O que é que esperas ainda? Que encontrem uma pista.

 

- Não há nenhuma.

 

- A bomba não foi parar à tróica sozinha!

 

- O senhor quer obrigar-me a deixar a minha pátria, a renunciar às minhas propriedades, a deixar o meu palácio arruinar-se, só porque quero ter o direito de me vingar?

 

- O que foi que Matilda te fez?

 

- Tudo começou por causa dela...

 

- Só porque não quis estar à tua disposição...

 

- À minha disposição? - Kramskoj deu uma gargalhada forçada. - Quem é que ela pensa que é? Uma flor dos pântanos das vielas de Sampetersburgo! A filha de uma serva. Pai incógnito! Existe pessoa menos digna de respeito? A única coisa que pode oferecer está debaixo da sua saia!

 

- Estava à espera que me respondesses assim!

 

Jussupov aproximou-se decididamente de Kramskoj e, antes que aquele o pudesse impedir, bateu-lhe com o punho de prata da própria bengala.

 

Kramskoj caiu na chaise langue com um gemido e levou a mão esquerda à testa. Imediatamente se formou ali um galo perceptível ao tacto.

 

- Cão! - disse Kramskoj entre dentes. - Bater num aleijado. Mas os Jussupov também não são imortais.

 

- Saberei preparar-me para isso. Perdeste o último amigo que tinhas. Não podes ficar na Rússia!

 

- Sobreviverei a todos! - disse Kramskoj com violência. - A vocês todos! Os Jussupov e os Trubezkoi, os Orlov e os Voronzov, os Seremetjev e os Putjatins! E até ao czar! Um dia, não haverá mais nenhum Romanov, mas ainda aqui estarão os Kramskoj!

 

- Isso parece a profecia de um louco! - disse Jussupov abalado.

 

- Só tem de esperar! -- Kramskoj recostou-se, mas a sua mão continuava a comprimir o inchaço. - Hei-de aliar-me aos comunistas para vos destruir! Abandone a minha casa, Felix! Já não o conheço!

 

- Vais passar a ser vigiado, Valentin Vladimirovitch! A voz de Jussupov soava fria e inexpressiva. - Não mais me calarei se fizeres outra coisa que não seja abandonar a Rússia.

 

Foi-se embora sem se despedir.

 

Kramskoj seguiu-o com o olhar, cerrando o punho. Depois .tocou para chamar o seu criado e voltou-lhe as costas para que não visse o inchaço da testa.

 

- Tens de tratar do relojoeiro Stepura - disse Kramskoj friamente. - Kyrill Abramovitch é um homem que gosta de falar. É capaz de conversar até com os relógios dele. Estou interessado nisso. Talvez fosse caso para irmos saber o que tem ele a dizer...

 

Nessa mesma noite, o relojoeiro Stepura foi encontrado estendido, entre os seus relógios, com a cabeça esmagada. Alguém lhe tinha partido o crânio... com o martelo que o próprio Stepura usava para experimentar o som dos seus relógios de mesa.

 

A polícia, todavia, encontrou qualquer coisa: através do interrogatório do pessoal da casa soube que nenhum estranho tinha entrado no palácio, excepto três trabalhadores que não pertenciam à casa, mas que ali tinham ido para fazer algumas reparações.

 

O mordomo, responsável por todas essas coisas, corou até às orelhas com os nervos; depois teve de se deixar insultar pelo comissário da polícia, que se chamava Tschumkassy, e que lhe disse que ele era um banana mas que ia ver como elas cantavam...

 

Boris Davidovitch aconselhou uma certa moderação, porque dificilmente se faria falar pessoas num tal estado de nervos, e até Mustin, o anão, se intrometeu no interrogatório e ordenou a todos que olhassem para o espelho colocado no seu turbante; depois berrou em tom profético:

 

- Ai dos que mentirem! O espelho ficará imediatamente negro! Assim saberei quem são os culpados! Um olhar para o espelho, e estarão apanhados! A mínima mentira, e o espelho escurece!

 

Esse interrogatório já era por si só um grande acontecimento.

 

O próprio comissário Tschumkassy não estava completamente convencido que o espelho do turbante de Mustin fosse na verdade um objecto mágico, mas não tinha dúvidas do grande efeito que produziria nos delinquentes.

 

Foi assim que se soube mais qualquer coisa sobre os três trabalhadores: um carpinteiro que consertara a perna de uma cadeira, um tecelão que tinha retocado uma tapeçaria na sala verde e um serralheiro que havia levado uma fechadura para a porta do depósito.

 

Os funcionários da polícia lançaram-se ao trabalho.

 

A cadeira consertada não escondia qualquer bomba, atrás da tapeçaria do salão não havia nenhum buraco que pudesse fazer pensar numa nova armadilha e a fechadura da porta funcionava normalmente, sem que algo estalasse dentro dela.

 

Contudo, um dos três homens tinha de ser o culpado, aquele que metera a bomba na tróica.

 

Tschumkassy mandou embora os seus homens e, duas horas depois, os trabalhadores ainda estavam acorrentados no estábulo do palácio.

 

Os interrogatórios são sempre acontecimentos absolutamente dependentes de quem os faz, se não forem regulados por leis ou disposições especiais que limitem toda a injustiça nos confrontos com os interrogados. Na Sampetersburgo do czar havia um regulamento judiciário, mas apenas os advogados tinham conhecimento dele. O vulgar cidadão ou o camponês aceitava sem reclamar o que lhe era apresentado pelas autoridades, principalmente se estivessem fardadas.

 

Servia de alguma coisa protestar? Um protesto acabava sempre por cair como um martelo em cima dos próprios pés.

 

De facto, o comissário Tschumkassy tinha os seus métodos de interrogatório.

 

Jamais houvera uma reclamação contra esse método, não era criticado, nem proibido, e tudo isto porque com ele se obtinha assinalável êxito!

 

O êxito faz realmente calar quaisquer escrúpulos.

 

Primeiro, o carpinteiro, o tecelão e o serralheiro foram desancados na frente da entrada do estábulo. Depois foram esbofeteados e apanharam pontapés, puxaram-lhes as barbas, torceram-lhes as orelhas, deram-lhes umas palmadinhas nas costas e depois disseram-lhes muito gentilmente: «Esperemos que se tenham clarificado as vossas ideias. Como é que fizeram para meter a bomba no trenó? Mostrem-nos...»

 

Naturalmente nenhum deles podia mostrar. Mas, logicamente, Tschumkassy já esperava isso. Gente como aquela estava habituada a ser torturada - aquele não era o melhor modo de saber a verdade.

 

Portanto, sempre com as mãos acorrentadas, foram arrastados, um por um, para o estábulo.

 

Ainda ali estava, estendido numa mesa, o cadáver feito em bocados, enrolado no casaco de peles, do pobre Semjon Ivanovitch Tulpinev. O médico da polícia tinha estabelecido a causa da morte sem se importar com o facto de, além da barriga aberta, ter um buraco numa têmpora. O aspecto do corpo martirizado tinha-lhe chegado para escrever no relatório: «Morto por causa da explosão de uma bomba.»

 

Semjon Ivanovitch jazia na mesa de madeira, ensanguentado, esfarrapado, e o espectáculo que oferecia só podia deixar indiferente um polícia com nervos de aço.

 

O carpinteiro demonstrou que não os tinha. Começou a soluçar, vacilou, teve de ser amparado, foi encorajado com uma pancada no cachaço e confessou numa torrente de lágrimas que tinha vigarizado o cunhado, seu sócio nos negócios, não contabilizando cento e trinta e quatro rublos. Com o cadáver de Tulpinev não tinha nada a ver.

 

O tecelão olhou embasbacado para o morto, depois começou a soluçar e desmaiou. A quem trata só com sedas e veludos é permitido desmaiar. O comissário mandou que o levassem lá para fora e deu ordem para lhe levarem o serralheiro.

 

Este, um homenzinho de nome Dragonetz, benzeu-se na frente do morto, revirou os olhos e vomitou. Tendo saído lá para fora, começou a chorar, e ainda chorou mais quando os dois polícias, que naquele meio-tempo tinham ido passar uma busca à sua casa, voltaram com uma bolsa de pele. Traziam também a mulher, Dragonetzkaya, que balbuciava que nunca soubera que o marido tinha escondida na oficina uma bolsa contendo duzentos rublos.

 

O comissário, que acreditou nela imediatamente, gritou-lhe que ficasse no seu lugar e mandou despir o trémulo Dragonetz. Magro, raquítico e completamente nu, e também acorrentado, foi posto lá fora ao frio, depois de lhe terem despejado um balde de água pela cabeça abaixo. A água gelou imediatamente, formando cristais de gelo de formas esquisitas à volta da cabeça, dos ombros e do ventre de Dragonetz.

 

- Procura lembrar-te... - disse Tschumkassy com gentileza. Também aqui parecia que os seus métodos iriam ser bem-sucedidos. - Quem é que te deu os duzentos rublos e como é que fizeste para meter a bomba no trenó? Quem te deu o dinheiro deu-te também a bomba, não é verdade? Basta-me saber isto, nada mais. Peço-te, Dragonetz, procura lembrar-te...

 

Daí a duas horas, Dragonetz, completamente gelado, estava já morto. O seu coração tinha deixado de bater, talvez porque o sangue tivesse gelado. Nem sequer chegou a cair no chão, porque a água que tinham deitado por cima do seu corpo, ao gelar, o tinha prendido ao chão. Pequeno e nu, coberto de gelo, brilhava no pátio.

 

- Leva-o daqui! - disse Tschumkassy à viúva. - É ele o culpado! Foi ele quem pôs a bomba! Os duzentos rublos estão confiscados! Â recompensa de Judas!

 

Se se encontrara o autor, não se tinha feito luz para o seu mandante. E para a polícia o enigma do motivo continuava por resolver. Quem poderia ter interesse em matar Matilda Felixovna?

 

Restava uma única explicação, a que na Rússia todos davam crédito: a política! Fanáticos extremistas que queriam mandar pelos ares tudo o que fortalecesse a ordem interna. O objectivo era destruir os valores, até mesmo os culturais. E a nova estrela do ballet russo representava um desses valores. A polícia concluiu, portanto, que o motivo era político, colhendo assim de surpresa os suspeitos habituais, que foram presos e levados para a Fortaleza de Pedro e Paulo.

 

Na noite desse dia cheio de acontecimentos foram levadas para o Palácio Stroitsky novas corbelhas de flores, mas desta vez endereçadas a Rosália Antonovna. O czaréviche pedia-lhe a honra de ser recebido no dia seguinte.

 

A Bondareva ficou novamente em pânico, sem no entanto desmaiar, até mesmo porque ainda estava na cama.

 

- O czaréviche vem até mim? É mesmo verdade? No dia de Natal! Socorro! Tenho de me esconder! Matilda, diz-lhe que se suspeita que estou doente com peste. Assim ninguém me incomodará.

 

- Impossível mamã. Vai ser preciso preparar um bom chá para Nicolau Alexandrovitch. Amanhã terei de dançar. O czar organizou para a família e para alguns amigos íntimos uma soiree no seu teatro privado. Depois o czaréviche virá trazer-me a casa..

 

- E eu morrerei! - estertorou Rosália Antonovna. E isto é que será uma festa de Natal? Antigamente, na nossa viela, cozinhava bolos para nós e cantávamos juntas; éramos muito pobres mas felizes e contentes. Ninguém atirava bombas para cima de nós, ninguém deixava morrer de frio os terroristas na frente da minha janela, e apenas o bom velho Minaev ia ter connosco e nos oferecia as melhores coisas do seu negócio de ferro-velho.

 

- Amanhã também pode fazer bolos e depois cantar connosco...

 

- Com o czaréviche? Cantar? Oh, meu Deus! - Revirou os olhos, puxou a colcha para cima da cabeça e ficou imóvel como se tivesse morrido.

 

Mais tarde, levantou-se, observou a corbelha de flores que estava no seu quarto e decidiu que no dia seguinte faria para o czaréviche um bolo amanteigado, um daqueles que se comiam pelo Natal no lago Ilmen.

 

Não se pode dizer que a explosão não tivesse produzido alguns efeitos em Matilda. Nas primeiras horas a seguir ao acontecimento, Boris Davidovitch tinha procurado com muito esforço acalmá-la, mas os primeiros resultados só foram notados quando chegaram as flores e a carta do czaréviche e depois de Soerenberg lhe ter dado conhaque francês.

 

- O que foi que eu fiz? - continuava ela a perguntar. Boria, diz-me por favor o que foi que eu fiz! Não pode ser verdade que me tenham querido matar só porque sei dançar bem, porque sou bela, como todos dizem, e porque tenho êxito. Talvez agora, depois de cada apresentação, deva pensar: «Voltarei viva para casa? Estará alguém pronto para me matar logo que saia à rua?»

 

- Não acredito que este episódio se repita - disse Soerenberg. Também ele não conseguia encontrar explicação: nem sequer tinha pensado em Kramskoj. - É um verdadeiro enigma!

 

Com a sua morte, o pequeno Dragonetz levara consigo um segredo, que, se o tivesse revelado, lhe teria permitido continuar a viver.

 

Mas assim tudo ficava obscuro.

 

Na tarde do dia de Natal, a carruagem do czar foi buscar Matilda para a soiree que tinha sido organizada, seguida por uma escolta reforçada da Guarda dos Hussardos. Boris Davidovitch ia sentado a seu lado, com a pistola engatilhada sobre os joelhos. O anão Mustin, que tinha ido na carruagem para o Palácio Stroitsky, ficara a fazer companhia a Rosália Antonovna.

 

- O senhor é um verdadeiro cavalheiro, Mustin Fedorovitch - dissera-lhe a Bondareva de modo retumbante. Estava levantada desde manhã cedo. Tinha dispensado a criadagem durante todo o dia e levara a cozinheira ao desespero, porque esta queria preparar um bolo de mel para o czaréviche e não o bolo amanteigado, como era uso na região do lago Ilmen. Era um bolo para gente pobre, coberto de açúcar e canela... Rosália Antonovna, decidida, atirou a massa do bolo de mel à parede, disse à cozinheira que era uma porcalhona e ordenou-lhe que fizesse um bolo como devia ser. - É verdade que me quer ajudar? - disse depois ao anão. - A isto é que se chama verdadeira amizade. Comecemos por enxotar esse bando de criados. Oh, Mustin, como o mundo seria belo se houvesse mais gente como nós!

 

Formavam um par esquisito, mas ninguém se atrevia a rir nas suas costas.

 

E enquanto Matilda ia ao encontro do czar, no Palácio Stroitsky começaram a fervilhar mil actividades que, embora não tivessem em si nada de natalício, conseguiram produzir, durante algumas horas, uma atmosfera verdadeiramente natalícia... Da entrada até à sala de jantar foi feita uma decoração com flores e ramos de abeto, e as velas foram enfeitadas com fitas de veludo de várias cores.

 

Este último pormenor tinha sido uma ideia de Rosália Antonovna. Nem Mustin tivera a coragem de a contrariar, vendo quanto ela estava orgulhosa.

 

Matilda, a caminho do teatro do czar, foi buscar Tâmara Jegorovna. Esta abraçou a rapariga e beijou-a como uma mãe que voltasse a ver a própria filha depois de passados muitos anos.

 

- Toda a gente em Sampetersburgo não fala em mais nada senão no atentado - disse-lhe. - O teu nome anda na boca de todos. Estão a ser feitas numerosas prisões! Todos dizem que não havia nenhum motivo para quererem a tua morte! Os extremistas mais conhecidos já condenaram o ataque. Meu tesouro, como deves ter ficado aflita! Estás em condições de dançar esta noite?

 

- É o czar quem o quer... - disse Matilda baixinho. Portanto, tenho de poder à força....

 

- E se te faltassem as forças?

 

- Não! - Um sorriso iluminou o seu rosto. - Ele também está lá! Tâmara... dançarei para ele... Niki...

 

Foi o próprio czaréviche quem veio recebê-la; ajudou-a a descer da carruagem e conduziu-a para o teatro privado do czar através de numerosos corredores com paredes e estátuas de mármore. Iam uns passos à frente, seguidos por Boris Davidovitch, a Jegorovna e outros acompanhantes.

 

- Como te sentes? - perguntou Nicolau Alexandrovitch. - Tentei opor-me a isto, disse ao meu pai que estavas à beira de uma crise de nervos, que devíamos adiar a representação... Mas nada, o czar, esse urso, quer a todo o custo a sua soirée. Durante semanas inteiras andaram a ensaiar para esta ocasião, chegando ele a levar o contrabaixo até para o quarto de dormir.

 

- O que é que ele fez? - perguntou Matilda espantada.

 

- Deixa que te explique. É um capricho do meu pai, pouquíssimos na corte estão ao corrente. Vamos entrar no teatro pela galeria e... tu própria verás.

 

Abriu uma porta forrada a veludo, entraram num camarote e avançaram até ao parapeito. Diante deles estava o pequeno teatro do czar, todo vermelho e dourado. As poltronas ainda estavam vazias, embora a orquestra estivesse no seu lugar, a ensaiar mais uma vez O Lago dos Cisnes.

 

Naquele momento tinham todos os olhos postos no maestro, Vladimir Jevsejevitch Marabov, que estava a explicar qualquer coisa a propósito de um compasso errado. Fazia as suas críticas sem usar palavras ásperas e sem gritar, como fazem normalmente os maestros, mas falando em voz baixa e gentil, e curvando-se de vez em quando.

 

Porque esta era uma orquestra muito especial e ninguém invejava Marabov pela honra de poder dirigi-la.

 

- Vê, então, do que se trata! - disse o czaréviche baixinho. Depois explicou: - O primeiro-violino é o grão-duque Vladimir, o segundo-violoncelo é o príncipe Bartyscht. A flauta é tocada pelo grão-duque Ivan, a viola pelo conde Novrotschky. E no contrabaixo, aquele que está a coçar a cabeça com o arco, é o meu pai, o czar Alexandre III. O melhor músico, no entanto, é o gordo dos timbales. Sim, aquele com a barbinha pontiaguda e os olhos de mongol. É o general Gengis Khan, um dos últimos descendentes do famoso terror dos povos. Quando toca os timbales, parece que o céu está a trovejar! O meu pai é admirador dele. Há anos que procura um compositor que lhe escreva uma peça para contrabaixo e timbales. Mas até hoje ninguém se atreveu a fazê-lo. - O czaréviche rodeou com o braço os ombros de Matilda e puxou-a para si. Esta é a nossa orquestra imperial! Hoje tocará para ti, acompanhará a tua dança. O pobre Marabov bateu com a batuta na sua estante.

 

- Mais uma vez, a partir do compasso número trinta e dois, por favor! - disse, levantando o braço. - Majestade, por favor não vá tão depressa no trinta e seis. Toque devagar. E lembre-se que no compasso trinta e oito o contrabaixo se limita a sublinhar o deslizar do primeiro-violino.

 

- Não concordo! - gritou Alexandre III. - Vladimir Jevsejevitch, se Tchaikovsky estivesse aqui, dava-me sem dúvida razão! O senhor ainda duvida? O meu contrabaixo deve expressar as mais altas emoções, não deve ser apenas um acompanhamento como o senhor pensa. Senhores, peço-lhes que julguem: quem tem razão?

 

A situação era tal que fazia ter pena do pobre Marabov pelo seu título de maestro da orquestra da corte.

 

A orquestra calou-se, ninguém se queria arvorar em juiz porque neste caso teria de dar razão a Marabov: o contrabaixo do czar era naquela passagem apenas um acompanhamento... O general Gengis Khan fez cair as suas baquetas sobre os timbales, que trovejaram fortemente.

 

- O que é que isso significa? - grunhiu o czar.

 

- Marabov tem razão - respondeu Gengis Khan decidido. - Majestade, deve ficar apenas como pano de fundo. Assim quereria Tchaikovsky. Assim está escrito na partitura.

 

- Podem-se emendar as coisas erradas! - disse Alexandre III ofendido. - Os compositores também se podem enganhar! Mas o czar não! Percebem?

 

- Não n’O Lago dos Cisnes, Majestade! - O general Gengis Khan fez um gesto de encorajamento na direcção do pobre maestro. - Continuemos, Vladimir Jevsejevitch! Tem alguma coisa a dizer sobre os meus timbales?

 

- Não, nada, general...

 

- Ah! - Gengis Khan olhou para o czar com ar de triunfo. - É preciso ter sensibilidade para este tipo de coisas.

 

Só não começaram de novo porque o czaréviche riu em voz alta. Marabov pousou a batuta resignado.

 

- Quem é que se está a rir? - grunhiu o czar, olhando para o camarote.

 

- O teu filho, papá!

 

- Niki? - O czar pôs o arco de lado. - Também ouviste? Estão todos contra mim, até na orquestra! Rebeliões por toda a parte! Nem sequer me deixam ter a minha própria interpretação no contrabaixo. A que ponto nós chegámos, filho... Estás sozinho?

 

- Não. Matilda Felixovna está aqui comigo, pai.

 

- Venham os dois aqui. - O czar olhou na direcção do camarote. - Onde estão?

 

- Atrás do parapeito, pai! Ela está neste momento a fazer-lhe uma vénia! - Nicolau riu de novo. - Assustou-a, pai.

 

- Venham cá. - O czar gesticulou com as duas mãos. No solo dela, o meu contrabaixo vai fazer tremer as almas. Gostem ou não Marabov e Gengis Khan! Eu gosto com certeza. Se pudesse falar com Tchaikovsky, ele voltava a escrever esta passagem. Senhores, continuemos o ensaio.

 

Matilda e o czaréviche desceram até à orquestra ao som de O Lago dos Cisnes.

 

O czar acariciou as cordas do seu instrumento e sorriu para eles.

 

Foi um dos raros momentos em que o homem mais poderoso do mundo se sentiu quase feliz.

 

A poucos mortais era concedida a honra de serem recebidos pelo czar e poderem falar com ele. A poucos homens tinha apertado a mão e dito «Sente-se a meu lado!», e a quase nenhum tinha confessado «Estou entusiasmado!»

 

O czar Alexandre III era o tipo de homem que se definia como um urso. Alto, forte como um touro, raivoso, consciente do seu poder, um deus em roupagem humana, ditador absoluto com testa de ferro, mas, no fundo, um coração bondoso, conhecido por poucos, e não só pelos seus parentes mais próximos.

 

Dominava a Rússia com severidade e justiça, como ele entendia, era profundamente religioso, dava grande importância à família e à fidelidade conjugal, não tinha amantes como os seus antecessores nem lhes construía maravilhosos castelos na vizinhança: a ideia de «favorito» era-lhe desconhecida - aquele género de indivíduos viciosos e ambiciosos que dão conselhos ao czar para terem como recompensa propriedades e terras - porque Alexandre III confiava mais no seu próprio instinto, rodeava-se de pouquíssimos conselheiros, e mesmo assim decidia sempre só pela sua cabeça. Isto fazia enfurecer a Duma, que se considerava o único verdadeiro órgão político e queria reduzir o czar a simples figura representativa.

 

Sobretudo os políticos jovens e progressistas sustentavam uma forte oposição aos Romanov e falavam de uma nova liberdade: o poder nas mãos do povo, que tinha eleito os seus legítimos representantes.

 

O czar Alexandre III, o grande urso no trono, seguia estas movimentações com serenidade ou com raiva, conforme o seu humor. Os que levantavam demasiado a voz ganhavam um bilhete de ida para a Sibéria e desapareciam na imensidão da taiga... Nada tinha mudado nos milhares de anos de história da Rússia.

 

Quem podia dizer se o czar era amado pelo povo?

 

O povo russo nunca tinha amado um czar, tinha-o respeitado sempre muito, temido, suportado, aceitando-o como um enviado de Deus, uma praga do Céu, contra a qual era totalmente impotente. Como é que se podiam opor a uma tempestade? Quem é que podia fechar o céu para que deixasse de nevar? E quem é que se atrevia a destronar o czar? Melhor seria acender uma enorme vela pela própria alma...

 

Matilda sentou-se ao lado do czar numa das cadeiras da orquestra, depois de ele a ter ajudado a levantar-se da sua profunda vénia.

 

Vladimir Jevsejevitch Marabov interrompeu o ensaio de novo, enxugou o suor da testa e perguntou a si próprio como poderia começar o concerto daí a uma hora. O grão-duque Ivan, que tocava flauta, não conseguia acertar com o tom, coisa que para Marabov, a quem todos reconheciam um óptimo ouvido musical, constituía um verdadeiro tormento. Mas quando se tem um czar entre os membros da orquestra não se pode gritar «Mas o que é isto? Quem é que está a conversar durante o ensaio? Saiam todos os que não estão aqui para tocar!»

 

A única consolação era que o público daquela soirée aplaudiria mesmo que a orquestra interpretasse Tchaikovsky a seu modo.

 

- Danças como uma sílfide - disse Alexandre III a Matilda. - Não és a primeira bailarina que eu vejo e posso garantir-te que tens na frente um grande futuro. - Tratava-a por tu com grande naturalidade, era uma filha do seu povo, ele era o pai de todos! Nunca lhe tinha vindo à mente chamar-lhe Demoiselle, como fazia o czaréviche. - Contribuirás para que a Rússia seja amada no mundo inteiro. Onde os diplomatas falharem, tu serás êxito com a tua carreira! Em honra da verdade, os nossos diplomatas deviam ser os cantores, os bailarinos, os escritores, os arquitectos, os pintores e os actores. São os únicos em condições de representar o valor genuíno de um povo.

 

- Vossa Majestade esqueceu os músicos - disse Marabov timidamente.

 

- E os militares! - acrescentou o general Gengis Khan com um murmúrio que mal se ouvia.

 

- Estás a ouvi-los? - O czar acariciou a luva de Matilda. - Todos têm alguma coisa a dizer! Onde é que isto irá parar? É uma sorte que eu fale mais alto que todos eles! - Agarrou de novo no seu contrabaixo, piscou um olho a Matilda e levantou o arco. - Continuemos! - ordenou. - Marabov, espécie de gralha, porque continua a perseguir-me? Não ouviu a tremenda fífia do grãq-duque Ivan?

 

Nicolau Alexandrovitch fez um sinal a Matilda. A audiência tinha terminado. Deixaram a orquestra e o czaréviche acompanhou Matilda ao seu camarim. Antes de se ir embora, beijou-lhe as pálpebras.

 

- Então, estamos de acordo? - perguntou. - Vamos a tua casa depois do espectáculo?

 

- A mamã ficará muito contente. Será o dia mais belo da sua vida.

 

A interpretação não era lá muito exacta, se se quiser ser rigoroso. Não se pode dizer que Rosália Antonovna estivesse a rebentar de felicidade - era mais um vulcão de desespero pronto a explodir.

 

No Palácio Stroitsky nada estava no sítio certo.

 

O prato forte de uma carreira de longos anos, aquele que tinha valido à Bondareva os aplausos de todos, não estava a sair lá muito bem: o bolo amanteigado tinha ficado pegajoso e pouco apresentável.

 

O bolo de mel da cozinheira estava, no entanto, uma obra de luxo! Como podia suportar semelhante coisa?

 

Apenas a presença de Mustin Fedorovitch impediu Rosália Antonovna de esbofetear a cozinheira, culpada de se ter saído bem. Mas o anão não conseguiu impedir que Rosália chamasse ao mordomo «um burro castrado».

 

Quando o caos começou a tornar-se incontrolável e Rosália Antonovna disse a Mustin «Antes que o czaréviche chegue, terei um colapso! Mustin, meu amigo, será que eu mereço tal fim?», chegaram duas carruagens imperiais que traziam um samovar dourado, porcelanas finíssimas, gigantescos bolos de nata e de creme - verdadeiras obras de arte que pareciam criação de um arquitecto -, pesadas toalhas de damasco e copos de cristal da Boémia.

 

Tudo isto tinha sido trazido para o palácio por quatro criados imperiais de libré, às ordens de um distinto funcionário da corte num fraque de seda. O grupo era acompanhado por um cozinheiro todo vestido de branco e com o clássico barrete na cabeça, também ele bastante distinto, de poucas palavras e muito distante.

 

Inspeccionou a cozinha, achou-a aceitável, cheirou o bolo de mel da cozinheira e disse:

 

- Menina, devia pô-lo a arrefecer. A experiência ensinou-me que os cães ficam mal do estômago quando lhes damos sopa quente... - E desta forma «elegante» livrou-se da cozinheira, que fugiu a chorar para o quarto.

 

- Muito bem! - disse Mustin satisfeito, depois de em tempo muito curto tudo ter ficado arrumado à boa maneira de Zarskoi Selo. - O czaréviche nunca terá ocasião de provar qualquer dos teus pratos, Rosália Antonovna! Chegam sempre a tempo de fazer tudo à sua maneira!

 

- Não na próxima vez! - rosnou a Bondareva. – Hoje levaram a melhor, mas para a próxima ponho-os fora de casa!

 

Não falava em vão. E de facto Mustin levou a Bondareva muito a sério.

 

Naquela tarde do dia de Natal do ano de 1893, começou para Matilda e para Nicolau um período de felicidade.

 

O czaréviche passou a ir cear quase todas as noites ao Palácio Stroitsky e Rosália Antonovna cozinhava para ele pratos muito simples, desde a sopa de cevada ao esturjão recheado; e quando ela mesma servia à mesa, com o avental à volta das ancas largas, o rosto corado pelo fogo da fornalha, os vapores da cozinha atrás de si, então dizia, sentando-se à mesa cheia de orgulho:

 

- Niki, esta é uma lebre especial. Comprei-a a Vitja Leontinovitch, o aldrabão que tem uma loja na esquina da Krasnogary! Tem as melhores lebres, as mais frescas! Queria dar-me uma velha, com a carne dura, mas andei atrás dele por toda a loja até que ele foi lá atrás buscar esta lebre aqui, muito fresca!

 

Com esta música de fundo começava a ceia e o czaréviche sentia-se verdadeiramente feliz.

 

Passaram assim semanas e semanas daquele longo Inverno.

 

Matilda coleccionava na Ópera um êxito atrás doutro e, quando tinha uma noite livre, sentava-se à janela, porque sabia que o czaréviche viria. Esperava impaciente, até sentir o relinchar do seu cavalo, e via-o já na rua. Então corria a recebê-lo à entrada do palácio e lançava-lhe os braços ao pescoço. A felicidade deles era verdadeira, capaz de abater qualquer obstáculo. Rosália Antonovna, que como mulher vivida olhava para o futuro, perguntava de vez em quando ao seu amigo Mustin:

 

- Como é que isto irá acabar? Como?

 

- Não podemos fazer mais nada senão seguir os acontecimentos.

 

- Um dia, ele tornar-se-á o czar, mas Matilda não poderá nunca ser a czarina.

 

- Isso é impossível.

 

- Todos cairemos em desgraça, digo-te eu. No passado, deixaram-me grávida, mas isso não conseguiu abater-me. A Matilda farão pior e ela não sobreviverá! Céus, vinde em nosso auxílio! Que podemos nós fazer?

 

Não havia nada a fazer.

 

Nas noites em que Matilda não dançava, o czaréviche convidava para o Palácio Stroitsky os seus melhores amigos. Depois da ceia, tocavam música e dançavam, um famoso tenor cantava árias, acompanhado ao piano pelo próprio czaréviche, cantavam em coro velhas canções populares, ou então faziam sessões de mímica ou mascaravam-se, premiando depois quem mostrava ter mais imaginação, ou então poetas ainda desconhecidos liam as suas obras e no fim eram generosamente recompensados com rublos de ouro, que lhes permitiam não morrerem de fome durante alguns meses.

 

Matilda Felixovna tornou-se «a Grande Dama» de Sampetersburgo - logicamente «em segredo».

 

Quando a ia visitar, o czaréviche levava-lhe jóias. Tinha o seu próprio camarote nos vários teatros e uma guarnição para a carruagem, um cocheiro que era o melhor atirador de pistola e quando, na Primavera, o gelo se derretia e o Neva e o mar voltavam a estar livres também tinha à sua disposição uma luxuosa barca à vela com um capitão, cinco marinheiros, um cozinheiro e uma criada de quarto.

 

De vez em quando iam à caça nos arredores de Sampetersburgo. Matilda permanecia numa tenda aquecida, enquanto o czaréviche, os seus amigos, primos e oficiais andavam na caça. Uma vez conseguiram caçar uma alcateia inteira.

 

Em pouco tempo, Nicolau Alexandrovitch mudou totalmente. Até então tinha sido um jovem tranquilo, introvertido, quase tímido, enquanto agora era capaz de atacar, amadurecera e sobretudo tinha-se atrevido a fazer uma coisa até àquele momento impensável: contrariar o próprio pai!

 

O czar veio a saber mais tarde o que toda a alta sociedade de Sampetersburgo já sabia há semanas. Coube a Pobedonoszev, amigo e conselheiro do czar, avisar Alexandre III quando se tornou claro que não havia mais nada a fazer.

 

O amor entre o herdeiro do trono e a bailarina tinha tomado tais proporções que o facto começou a ser considerado do ponto de vista político. Até mesmo o antigo tutor de Niki, agora seu confidente, o reservado Katkov, tinha de admitir que Matilda Felixovna desempenhava na vida do czaréviche um papel maravilhoso, que não o impedia de se tornar um dia czar.

 

Alexandre III zangou-se, mandou chamar Nicolau e disse-lhe rudemente:

 

- Ela deve dançar, nasceu para isso! Mas que deixe imediatamente em paz o futuro czar!

 

Nicolau Alexandrovitch atreveu-se a responder, pela primeira vez, ao pai:

 

- Estou farto, papá. Trata-me como se eu fosse ainda uma criança! E trata todos como se fôssemos atrasados mentais. Não deixarei de ver Matilda!

 

- Então, mandá-la-ei para o exílio! - gritou o czar.

 

- Irei com ela para onde tu a mandares...

 

Depois deste diálogo, Alexandre III tinha ficado furioso e desconcertado.

 

- O meu filho deve ter qualquer coisa na cabeça que não funciona! - disse a Pobedonoszev. - Como poderá reinar na Rússia se rasteja atrás das saias de uma bailarina? Konstantin Petrovitch, temos de fazer qualquer coisa! Não se poderá opor nada a esta Matilda?

 

- Há apenas uma mulher que poderia conseguir qualquer coisa - respondeu Pobedonoszev. - E de quem o czaréviche está também enamorado: Alice, princesa de Hessen!

 

- Aquela alemã! - grunhiu o czar. - É sangue doente!

 

- Não está provado que a hemofilia seja hereditária; mas, entre as princesas disponíveis neste momento, Alice é a única que causou alguma impressão no czaréviche.

 

- Apalpemos o terreno... que mais podemos fazer? Prepare para Niki, na Primavera, uma viagem à Alemanha. Meu Deus, temos de fazer qualquer coisa para que a dinastia não seja extinta.

 

- Tanto quanto sei, parece-me esta a única maneira. Pobedonoszev já sabia há semanas dos encontros do czaréviche com Matilda. - Alice de Hessen é a única mulher pela qual o czaréviche trocará Matilda Felixovna... se o conseguirmos convencer de que está em causa a sobrevivência da Rússia! Apesar de tudo, é um Romanov!

 

- Que Deus nos acuda! - disse o czar com ar solene. Resta-me pouco tempo para ver tudo isso.

 

Pobedonoszev ficou gelado.

 

Era a primeira vez que Alexandre III falava de uma doença de que ninguém sabia nada.

 

Depois da trágica explosão no Palácio Stroitsky e do horrível fim do serralheiro Dragonetz, depois do misterioso assassínio do pobre relojoeiro Stepura, que tinha construído a bomba para o príncipe Kramskoj, o príncipe Jussupov apresentou-se pela última vez no Palácio Kramskoj.

 

- Vim - disse com dureza - para pôr fim à amizade entre nós, Valentin Vladimirovitch. Não temos mais nada em comum. E, se se lembrar de me mandar matar, tenho a certeza que falhará. Tenho vinte homens que estão lá fora à espera, prontos a assaltarem o seu palácio e a fazê-lo em pedaços.

 

O príncipe Valentin Vladimirovitch Kramskoj sacudiu a cabeça. Sabia que tinha procedido mal e que o menos que o seu amigo Jussupov podia fazer era abandoná-lo.

 

O seu outro amigo, o czaréviche, evitava-o havia dias, nunca mais o tinha convidado, tinha-o excluído da sua escolta oficial; quando encontrava, por acaso, alguém do Palácio Anitschkov era tratado com visível frieza.

 

Kramskoj sabia a que era devida aquela mudança. Niki nunca estava sozinho, tinha sempre Boris Davidovitch a seu lado, e se era verdade o que toda a gente dizia, que o herdeiro do trono passava grande parte do dia com Matilda Felixovna, então muito em breve deixaria de haver em Sampetersburgo espaço para Kramskoj.

 

- Para onde devo ir? - perguntou, olhando de lado para Jussupov.

 

- Para qualquer lugar... longe da Rússia.

 

- Será uma morte lenta - respondeu Kramskoj com voz trémula. - Um russo longe da própria pátria...

 

- Stepura morreu depressa, com o crânio esmagado, e Dragonetz gelou mais rapidamente do que teria querido. Talvez ambos preferissem uma morte lenta longe da pátria.

 

- Não fui eu quem os matou! - gritou Kramskoj.

 

- Quer discutir sobre intenções? Quem é o assassino? O autor ou o que manda? Desprezo-o, Valentin Vladimirovitch. Devia ser deitado aos cães!

 

Depois de Jussupov ter deixado o palácio, Kramskoj chorou e soluçou, rasgando com as unhas as almofadas de seda da sua poltrona.

 

Quatro dias mais tarde, o príncipe Kramskoj partia de carruagem com um pequeno séquito. O seu objectivo era o porto de Dantzig.

 

Ninguém sentiu a sua falta em Sampetersburgo.

 

Apenas três raparigas ficaram desesperadas ao olhar para o futuro. Estavam grávidas e ele tinha-se ido embora sem se preocupar com elas.

 

No fim de Fevereiro de 1894, o urso Alexandre também já não conseguia suportar a situação. Em grande segredo, chamou o médico da família ao seu gabinete e colocou-se-Ihe na frente. Gordo, alto, um homem de peso, que com a sua figura podia esmigalhar um rochedo.

 

- Que tal pareço? - perguntou em voz alta. - Qual é o seu diagnóstico se eu lhe pedir que julgue o meu aspecto?

 

- Parece invencível como a Rússia! - respondeu o médico cautelosamente. Com Alexandre nunca se sabia como reagir.

 

- Seria triste se assim fosse - resmungou o czar. Não nota nada então?

 

- Direi que não. - O médico tornou-se ainda mais cauteloso. Olhou para o czar com atenção, mas o homem que estava na sua frente, com as pernas abertas, transpirava saúde por todos os poros. - Vossa Majestade, tem algum problema?

 

- É normal sentir pontadas nas costas? l

 

- Majestade...

 

- Silêncio! É normal que tenha dores em todo o corpo quando me curvo para urinar?

 

O médico empalideceu.

 

- Desde quando tem Vossa Majestade essas dores? perguntou com voz rouca.

 

- Há semanas... meses... - Com um amplo gesto, Alexandre III impediu o médico de falar, mesmo antes de ele abrir a boca. - Eu sei: porque é que só fala agora? A frase mais imbecil de todos os médicos! Um fantástico álibi!

 

- Todos conhecemos a vontade de Vossa Majestade de nunca ficar doente.

 

- E quando é que eu estive doente? Poucas vezes tive uma constipação, tosse ou diarreia. Vocês, os médicos, tiveram uma vida fácil comigo. Mas agora as coisas são diferentes! Há quatro dias que não consigo estar parado, com dores. É como se me dilacerassem! Aqui - disse, apontando um sítio nas costas - e aqui - com as mãos desenhou um círculo no baixo-ventre -, com espasmos terríveis nos intestinos. É normal?

 

- Precisamos examiná-lo a fundo, Majestade. Uma consulta...

 

- Para que toda a gente saiba? Nunca! - O czar desabotoou as calças e tirou o casaco. - Vá, examine-me! Já! Para que serve chamarem-lhe professor?

 

«O velho ódio-amor para com os médicos», pensou o clínico. Conhecia-o bem. «Quando alguma vez um médico me examinar», tinha dito em tempos Alexandre III, «é porque estou acabado.» Todos tinham rido. E agora o czar despia-se de boa vontade e estendia-se no divã.

 

A visita durou vinte minutos. No fim, o médico já tinha uma ideia da doença que afligia o czar. Os rins estavam ambos inchados... Ao apalpá-los o czar tinha gemido e cerrado os dentes.

 

O médico dirigiu-se, muito pálido, para a bacia da água, que estava num canto do quarto, e lavou as mãos. Alexandre III levantou-se... nu e pesado. O seu físico era robusto e parecia precisar de tudo menos de assistência médica.

 

Ou não seria assim?

 

- O que é que eu tenho? - perguntou o czar.

 

-- Tenho de pedir a Vossa Majestade que me deixe convocar uma junta médica. Um urologista, um cirurgião, um cardiologista...

 

- E porque não um ginecologista? - grunhiu o czar. Que coisa se esconde dentro de mim? Fale, depressa...

 

- Tem cálculos nos dois rins. Estes geraram uma nefrite bilateral, que, se não for controlada e não se tirarem os cálculos, podem causar anúria e consequentemente um estado urémico.

 

- Porque faz tantos rodeios? - O czar bateu com os punhos no divã. - Diga-me claramente: tenho os dois rins arruinados...

 

- Não disse isso, Majestade. Posso estar enganado. Temos de ouvir um urologista...

 

Alexandre III fez um sinal negativo com a cabeça. O médico começou a admirá-lo em silêncio. As dores que aquele homem suportou durante semanas, sem nunca se lamentar, tinham sido com certeza horríveis. Uma cólica renal consegue esfrangalhar os nervos...

 

- Quanto tempo me resta para viver? - perguntou o czar de repente.

 

- Primeiro vamos tentar acalmar a inflamação com lavagens e depois vamos estimular a expulsão dos cálculos.

 

- Uma operação?

 

- Uma nefroctomia? Nos dois rins? Impossível! O ser humano precisa, pelo menos de um rim.

 

- Mas os meus dois rins estão destroçados, não é verdade?

 

O médico calou-se.

 

O que é que podia responder? Se o diagnóstico estava certo, precisavam preparar depressa o czaréviche para o seu novo papel de czar. Uma nefrite bilateral...

 

A qualquer outro doente que não fosse o czar poder-se-ia dizer: «Prepare-se! O Senhor já está à sua espera...»

 

Três dias mais tarde, Alexandre III foi visitado por uma junta médica. Também chegaram os resultados das análises. O primeiro diagnóstico foi confirmado: os rins do czar eram agora incuráveis.

 

O velho urso estava acabado.

 

Quem se atrevia a dizê-lo ao czar?

 

Havia uma única possibilidade... O médico reuniu a família.

 

O tio do czar, grão-duque Michail, filho de Alexandre I e o mais idoso da família, aceitou o encargo de dizer a cruel verdade a Alexandre III.

 

Uma tarde de Fevereiro sentaram-se um na frente do outro. O czar acolheu calmamente a notícia, quase com resignação. Já esperava e era suficientemente honesto para confessar que tinha contribuído muito para isso - com a obstinação em não reconhecer que estava doente, mesmo quando tivera os primeiros sintomas e tinha preferido suportá-los, cerrando os dentes.

 

- Niki tem de casar! - disse o grão-duque Michail muito sério. - Deve subir ao trono ao lado de uma digna czarina.

 

- Alice Hessen?

 

- É uma boa ocasião. Ernst, grão-duque de Hessen, vai casar em Abril com a princesa Vitória de Coburg. Será o casamento do século. Temos de enviar Niki como representante da coroa russa. Lá encontrará Alice. - Michail olhou para o sobrinho com um olhar interrogativo. - Já conversámos sobre isso em família. Niki está ao corrente.

 

- Uma conspiração à beira de um cadáver ainda quente! - disse o czar com amargura. - E que pensa Niki disso?

 

- Recusa. Ama Matilda Felixovna...

 

- Como czaréviche! Mas não poderá continuar a fazê-lo como czar!

 

Alexandre III levantou-se. O grão-duque Michail olhou para ele cheio de espanto... era aquele o físico de um homem condenado a morrer dentro de pouco tempo? Incrível! Impossível!

 

- Tenho uma ordem para o czaréviche: pretendo que o herdeiro do trono, por ocasião do casamento do grão-duque de Hessen, peça a mão de Alice de Hessen.

 

- Mandaremos Sergei e Vladimir à frente, para prepararem o ambiente - disse o grão-duque Michail. Quando Niki lá chegar, encontrará tudo pronto à sua espera.

 

O czar sacudiu a cabeça satisfeito. «Portanto», pensou, «vamos estreitar os laços familiares. Isto será um bem para a paz no mundo. Em breve seremos todos parentes: a Casa Real Inglesa, o Império Alemão, a alta aristocracia de toda a Europa...»

 

O pior era que, frequentemente, os parentes se odeiam com mais intensidade do que as pessoas comuns! Que Deus estivesse com a Rússia!

 

Uns dias mais tarde, Niki disse a Matilda:

 

- O meu pai está muito doente. Guarda esta notícia só para ti. Ninguém sabe! Dentro de alguns dias terei de ir à Alemanha para participar num casamento. Quando voltar de Hessen, terei muitas coisas para te dizer.

 

Beijaram-se. E nos olhos do czaréviche reapareceu a melancolia que Matilda pensava superada para sempre.

 

Saudou-o uma última vez da janela, enquanto ele se embrenhava na noite, seguido por Boris Davidovitch, o grande resignado.

 

Ninguém conseguia compreender Soerenberg. Apenas o anão Mustin tinha dito, um dia, a Rosália Antonovna:

 

- Onde é que existe outro homem assim tão nobre, tão fiel? Pressinto que vai ser recompensado por tudo isto. Em breve terá Matilda completamente para si...

 

A 4 de Abril de 1894, Nicolau Alexandrovitch chegou a Hessen. Era acompanhado por Boris Davidovitch, que comandava uma escolta da Guarda dos Hussardos.

 

A atmosfera estava muito tensa. Uma parte do destino do mundo tinha acabado de chegar à Alemanha na pessoa do herdeiro do trono russo.

 

«De repente, estive ao mesmo nível que muitos reis», escreveu o czaréviche no seu diário.

 

Não era um exagero. Quando o czaréviche entrou no palácio, a 5 de Abril, já estavam todos presentes e só o esperavam a ele: a matriarca absoluta de todas estas casas reais, a velha rainha Vitória de Inglaterra, «a Avó da Europa», como era chamada; o imperador Guilherme II da Alemanha no seu magnífico uniforme, de poucas palavras, em posição de sentido na presença do primo russo. Também estava o grão-duque Vladimir e a mulher, os duques de Coburg e Gotha, os príncipes da Saxónia, o duque de Wúrttemberg, os príncipes de Glucksburg e Holstein, o grão-duque de Baden, príncipes e princesas...

 

O príncipe apertou muitas mãos, conversou amavelmente e depois foi puxado para o lado pelo grão-duque Vladimir.

 

- Dentro de meia hora, verás Alice - disse, acentuando as palavras. - Ela saberá falar contigo. Há cinco anos que estuda russo! Se ela quiser, pode conversar contigo na nossa língua! Mas, senhor, como é afectada! Além disso, há anos que tem contactos frequentes com padres ortodoxos... e que faz ela? Recusa converter-se, condição fundamental para se tornar czarina! Quer que sejas tu a pedir-lhe! Logicamente, sabes o que tudo isto significa. Terás de declarar-te. E sabes quem é que insiste mais, quem é que a quer obrigar a converter-se à religião ortodoxa? Guilherme II, o defensor da Igreja Protestante! O Kaiser julga que se trata de uma questão meramente política e nem se apercebe de que Alice te ama de verdade. Mesmo assim, vai fazer-se rogada. Mas não te deixes enganar: ela está apenas à espera de uma palavra tua!

 

O grão-duque Vladimir tinha razão.

 

O imperador Guilherme II foi avisado, a rainha Vitória juntou as mãos. Alice estava à espera num dos salões... Guilherme aproximou-se de Nicolau no esplendor do seu uniforme e disse-lhe:

 

- Caro primo, sei onde estão os teus pensamentos. A tua felicidade é a nossa: vai em frente!

 

Em seguida, foi à sua frente, com o sabre a bater-lhe na anca e o bigode repuxado para cima, até uma porta. Abriu-a e empurrou Nicolau para dentro. Depois, fechou-a satisfeito. Um bom exemplo da discrição da política alemã.

 

Estavam um na frente do outro, silenciosos e embaraçados, olharam-se nos olhos e tentaram esboçar um sorriso.

 

«Como é bela», pensou Nicolau. «Tão delicada e adorável! Será a mulher mais bela que já passou pelo trono da Rússia.»

 

«Que homem se fez», pensou Alice. «A sua barba está mais forte, os olhos radiantes. Parece também mais forte. E mais seguro, muito mais seguro! Oh, Céus, como gostaria de correr ao seu encontro e de me lançar nos seus braços...»

 

Mas limitaram-se a aproximar-se um do outro. Nicolau beijou-lhe a mão e ela disse-lhe, com voz quase infantil:

 

- Sentemo-nos, Niki...

 

Nessa noite, o czaréviche escreveu no seu diário: «Mais ou menos às dez da manhã, apareceu com o seu rosto triste. Deixaram-nos sozinhos e começámos a conversa, o que eu há muito temia e desejava. Falámos até ao meio-dia, mas sem chegarmos a qualquer resultado. Continua a opor-se a uma conversão. Pobrezinha, quanto chorou! Estava mais calma quando nos separámos.»

 

- É tal e qual como eu te disse! - exclamou o grão-duque Vladimir quando Nicolau o informou. - Tens de convencê-la! O Kaiser Guilherme anda de um lado para o outro como se tivesse sido pessoalmente ofendido. Niki, amanhã tens de falar de novo com ela! Chegou uma mensagem do teu pai: «Aguardo a notícia!» Niki, no fundo também a amas...

 

A 6 de Abril de 1894, o czaréviche escreveu no seu diário:

 

«Alice chegou. Pouco toquei no assunto de ontem. Já foi bom ela querer ver-me e falar comigo.»

 

Naquele dia fizeram um pouco mais do que limitar-se a falarem um com o outro. Beijaram-se. Alice chorou de felicidade, depois saíram do salão, de mãos dadas, os rostos cheios de alegria, e o grão-duque Vladimir disse a um canto do salão:

 

- Finalmente! Posso deixar de me preocupar com a Rússia...

 

Mas aquelas palavras não chegaram aos ouvidos do Senhor. Quem podia, então, prevê-lo?

 

A 7 de Abril de 1894, foi tornado oficial o noivado entre o herdeiro do trono russo e a princesa Alice de Hessen.

 

Ao telegrama enviado para a Rússia a 6 de Abril seguiu-se o anúncio publicado nos jornais russos a 7 de Abril.

 

Mustin Fedorovitch Urasalin e Tâmara Jegorovna precipitaram-se para Matilda para a confortarem. Esperavam, sobretudo, poder falar com ela antes que soubesse a notícia pelo jornal.

 

Chegaram demasiado tarde.

 

Rosália Antonovna recebeu-os na entrada do Palácio Stroitsky: Olhou para Mustin furiosa, brandindo uma pesada espada.

 

- Farei uma excepção para ti! - gritou. - Podes passar! Mas se alguém da corte se atrever a vir aqui, abro-lhe a cabeça! Juro por Deus que os faço em pedaços!

 

- Onde está Matilda? - perguntou a Jegorovna aflita.

 

- Lá em cima! No quarto dela. Deámaiada! Deu um grito, rasgou o jornal e caiu por terra!

 

De repente, a Bondareva deixou cair a espada, soltou um uivo e atirou-se para cima do anão.

 

- O meu pobre cisnezinho! A minha pombinha destruída! Vai morrer! Isto destroçar-lhe-á o coração! Oh, se tivéssemos ido para Odessa, se o tivéssemos feito! Maldita Sampetersburgo! Maldita raça dos czares! Que venha uma revolução! Uma revolução sangrenta! Que os czares sejam afogados no mar! Que sejam enforcados!

 

Só com muito esforço conseguiu Tâmara evitar que Rosália Antonovna fosse para a rua incitar as gentes à revolução.

 

A Jegorovna sentou-se ao lado de Matilda, que estava de cama; refrescou-lhe a testa com panos húmidos e apertou-Ihe a mão gelada. O médico tinha-lhe dado um tranquilizante para a fazer dormir um pouco, mas, mesmo durante o sono, o seu corpo continuava a tremer.

 

A 8 de Abril de 1894, o czaréviche escreveu no seu diário a propósito dos dias passados:

 

«Dias inesquecíveis, maravilhosos! Estou noivo da minha amada Alice... Declarámo-nos um ao outro. Meu Deus, que peso me tiraram dos ombros! Que bela notícia posso levar aos queridos pais! Andei a vaguear todo o dia como num sonho, sem saber o que me estava a acontecer...»

 

Nessa noite escreveu à mãe, a czarina Maria Fiodorovna, nascida princesa Dagmar da Dinamarca:

 

«Entreguei-lhe a vossa carta e de repente renunciou a discutir mais. O mundo mudou para mim: a natureza, as pessoas; numa palavra, tudo me parece belo e digno de ser amado...»

 

No mesmo dia, 8 de Abril, o médico disse à Jegorovna:

- O choque foi muito grande. Tenho dúvidas se poderá voltar a dançar! Se voltará a ser quem era. Não posso dizê-lo, mas vejo-o nos seus olhos, ouço as batidas do seu coração; ela quer morrer! Não tem vontade de viver. - Levantou os braços resignado. - Que mais pode fazer um médico?

 

O regresso do czaréviche da Alemanha foi bastante calmo.

 

Os jornais deram uma breve notícia, mas a corte imperial não adiantou qualquer outra informação; ficaram-se pelas suposições. Todavia, filtraram-se algumas indiscrições e chegaram mesmo a circular fotografias da princesa alemã; mas na Rússia, naquele momento, havia pouco interesse pelo futuro do grão-duque herdeiro do trono.

 

O czar ainda estava vivo, aquele homem forte e rude como um urso. Ninguém sabia que tinha um mal incurável. Não transpirou nada, embora o muro que circundava a corte tivesse muitos buracos. Os segredos pareciam feitos para serem logo divulgados, mas a grave doença de Alexandre III permaneceu na clandestinidade.

 

Boris Davidovitch, depois de ter chegado a Sampetersburgo com o czaréviche e de se ter despedido dele com um abraço, galopou até ao Palácio Stroitsky.

 

Nicolau sentia-se muito feliz. Apressou-se a ir ter com o pai ao quarto e abraçou-o. Era um gesto do qual poucos podiam recordar-se... Desde que Nicolau tinha deixado de ser criança, nunca tinham visto o pai e o filho num contacto tão amigável, se não mesmo afectuoso. Os seus contactos eram quase sempre frios, bruscos e cheios de ordens da parte do pai. Alexandre III fazia-o de forma consciente: em sua opinião, o czaréviche era demasiado sensível, muito sonhador e muito influenciável.

 

No entanto, o czar devia ser um homem capaz de dobrar o ferro! E nunca se poderia esperar tal coisa de Niki apenas uma certa dureza nos confrontos com todos aqueles que procurassem exercer o seu poder sobre a Rússia sem terem sido investidos por Deus.

 

Chegado ao Palácio Stroitsky, Boris Davidovitch encontrou-se primeiro com a Bondareva. Esta acolheu-o com as mãos nas ancas e com o peito para a frente, o que revelava de imediato a sua violenta indignação.

 

- Ah! Você ainda se atreve a dar um passo nesta casa? gritou imediatamente. - Volta da Alemanha, acompanhou o czaréviche até aos braços da outra, talvez até tenha ficado de guarda diante da porta para que ninguém os incomodasse! Continua impassível enquanto a sua noiva é insultada, a sua alma despedaçada, ela própria destruída para o resto dos seus dias! O senhor oficial no seu belo uniforme! Mas o que está por detrás disso? Um velhaco! Olhem-no bem! Eu fiz qualquer coisa, mexi-me! Há quatro dias que não paro! Todo o povo, ao qual pertenço, está do meu lado! Faremos uma revolução, sim senhor, uma revolução!

 

- Que o Céu a faça cair sobre si! - disse Soerenberg friamente. - As coisas são de outra maneira.

 

- É verdade que Niki ficou noivo? - gritou Rosália Antonovna.

 

- Sim...

 

- Com isso não deixou, por acaso, o meu cisnezinho na lama?

 

- Não!

 

- Ah! Você é um criado do czar! Ele deixou-a ou não?

 

- Porque berra dessa forma, mãezinha? Não contávamos todos com isto? Não tinha ficado bem claro desde o princípio que Matilda Felixovna nunca poderia ser a czarina? Um dia ou outro, teria de se dar a separação!

 

- Mas... assim? Vem aqui, bebe o meu chá, come o meu bolo, diz «As horas que passo convosco são as mais belas, madame!», oferece-me uma cruz de ouro com pérolas e rubis, e um dia depois parte para a Alemanha e fica noivo de uma princesa! Isto é coisa que se faça? Não podia dizer honestamente «Mãezinha, há qualquer coisa. Fique calma, agarre a Matilda entre os seus braços e console-a... eu tenho de ficar noivo!» Não podia tê-lo dito? Teria sido muito triste, mas teria preparado a minha pombinha com todo o cuidado. «Escuta, minha filha», teria eu dito. «Os homens são todos iguais. Representantes de máquinas ou czaréviches, são todos iguais! Não serve de nada chorarmos ou ficarmos desesperadas por causa deles! E se um deles se tem de tornar czar... Então tem de pensar no seu próprio povo, ter filhos adequados ao seu posto, e nunca te poderá querer a ti, porque tu não passas de uma bailarina, não és de sangue aristocrático... e, sobretudo, deves pensar: ’Eu tenho o meu querido Boris Davidovitch, um homem adorável, o qual está pronto a casar comigo.’ E isto já é alguma coisa. Tornar-te-ás baronesa. Baronesa de Soerenberg! E assim também serás uma aristocrata, portanto não é necessário aspirares ao máximo!» - Rosália Antonovna retomou fôlego com um grande suspiro. - Não acha que assim teria sido melhor? Matilda teria compreendido! Mas assim!? Foi-se embora e ficou noivo! - Bateu com os pés no chão. - Tem de haver uma revolução!

 

- Onde está Matilda? - perguntou Soerenberg.

 

- No quarto. Não quer ver ninguém, à excepção do médico e... de mim, naturalmente!

 

- Tenho de falar com ela!

 

- Só se passar primeiro sobre o meu cadáver!

 

- Sou o noivo dela, mãezinha, não o esqueça! ;

 

- Quem foi que o esqueceu? - A Bondareva soprou como uma caldeira a vapor sob pressão. - Porque é que Niki ainda está vivo? Qualquer homem de honra tê-lo-ia morto na Alemanha e ter-lhe-ia colocado na testa um bilhete com isto escrito: «É assim que acabam os que desprezam uma rapariga honesta!» Mas não, os senhores bebem champanhe, brindando à felicidade, e talvez até dancem! E, entretanto, o meu cisnezinho chora todas as suas lágrimas!

 

- O czaréviche vai explicar-lhe tudo.

 

- Ainda pensa pôr os pés nesta casa? - Rosália ficou vermelha que nem um tomate. - Atrever-se-á a ver-me ainda na frente dos olhos? Que venha, que venha calmamente... O bolo que lhe preparei estará cheio de veneno! Saberá a mel, mas rebentar-lhe-á com as tripas!

 

- Posso ir então ver Matilda? - perguntou Boris. Nem sequer pensa que vou finalmente poder tê-la só para mim? Poderei pular de felicidade!

 

- O que é que eu dizia? Os homens são todos iguais! Para que lhes serve ter uma cabeça? Só para usar um barrete? Pense um pouco: é óbvio que agora vai ter a Matilda toda para si, mas o que é feito dela? Está reduzida a uma boneca inerte, com os nervos despedaçados! Foi o que disse o médico! De nada serve a medicina! - Finalmente, a Bondareva deixou livre a passagem e, com um gesto teatral, apontou para a escada. - Vá então lá acima! Vá ver como ela está! Depois vá ter com o seu Niki e mate-o!

 

Matilda já não estava na cama, encontrava-se sentada numa poltrona de espaldar alto, metida num roupão enfeitado de pele, como se tivesse muito frio, e folheava um jornal.

 

Quando Boris Davidovitch entrou, deixou cair o jornal no chão e olhou para ele como se viesse de outro planeta. Ele aproximou-se dela, abraçou-a e apertou-lhe a cabeça contra o próprio peito. Sentiu-a gelada, com se estivesse coberta de gelo. Até àquele momento tinha acreditado que Rosália Antonovna estivesse a exagerar como era hábito, mas nesse momento apercebeu-se horrorizado de que Matilda parecia ter perdido todo o interesse na vida e apenas esperar a morte.

 

Durante muito tempo não disseram nem uma palavra... Limitava-se a acariciá-la, a beijar as suas pálpebras fechadas, os lábios cerrados e gelados; só então pôde compreender a Bondareva na sua simplicidade, clamando por uma revolução e querendo destruir tudo o que tivesse algo a ver com o palácio imperial.

 

Matilda foi a primeira a falar. Cansada, disse:

 

- Há quanto tempo chegaram a Sampetersburgo?

 

- Chegámos há duas horas.

 

- Como é ela? - perguntou baixinho. Os seus olhos suplicavam uma resposta sincera.

 

- Quem? - Soerenberg mordeu os lábios.

 

Quando se deu conta de quanto a sua pergunta era estúpida já a tinha feito.

 

- É mesmo como nas fotografias? Ou estão retocadas? -Alice de Hessen é uma mulher atraente - disse Boris

 

Davidovitch com cautela. - Bonita... não se pode dizer. Mas nela agrada o sorriso, o carácter, a melancolia, a inteligência, a ambição.

 

- Tem tudo o que é preciso para se tornar uma czarina...

 

- Isso ainda não se pode dizer.

 

- É mais bonita do que eu?

 

- Como poderia ser, Matilda? n

 

- Tem de casar com ela? É o czar quem o quer?

 

- O caso é complicado, meu amor.

 

- Explica-mo!

 

- Não estou autorizado a fazê-lo. - Boris Davidovitch sentou-se na frente dela e tirou um sobrescrito da sua jaqueta de hussardo. Ela seguiu com o olhar o movimento da mão dele e cerrou os dedos. - Dentro de dois meses saberemos mais coisas... Peço-te, não me perguntes nada, eu não posso falar. - Amarrotou a carta na mão. - Tenho isto para ti.

 

- Da parte dele?

 

- Sim.

 

- Queres que a abra e a leia?

 

- Deves ser tu a resolver.

 

- O que é que preferes, Boria?

 

- Que tu me dissesses: «Deita-a fora.» Matilda sacudiu a cabeça debilmente. Com voz trémula, repetiu:

 

- Deita-a fora.

 

Soerenberg levantou-se, deitou a carta do czaréviche no fogo e deixou que as chamas a consumissem. Depois voltou para junto de Matilda, beijou-a e apertou-lhe a mão fria.

 

- É um erro o que estás a fazer, Matilda - disse com ternura. - Tu não queres viver mais, estás apenas à espera que o teu coração pare. Mas isso é errado! Deves fazer precisamente o contrário: cerra os punhos e os dentes, junta toda a tua energia e... vive! Vive com feroz teimosia, opõe-te ao destino, fá-lo pela tua arte, pelos milhares de pessoas que querem ver Matilda Felixovna.

 

Vive pela tarefa que Deus te deu: traduzires a música em movimento, transformares em gesto a alma da melodia! Deves repetir a ti mesma: «Eu sou Matilda Felixovna... Um dia serei a maior bailarina do mundo... E esta é a minha vida! Não as horas passadas com um homem que não poderá voltar a pertencer-me!» Sê orgulhosa! Ele é o czar de um povo... tu és a rainha da dança e tens poder sobre milhões de pessoas! O que é que vale mais? Di-lo! Quem é maior? Nicolau Alexandrovitch ou Matilda Felixovna?

 

- O que é que eu devo fazer, Boria?

 

- Dançar, dançar, dançar sempre! Que os homens fiquem sem fôlego quando te virem dançar!

 

- Não consigo dar nem um passo.      

 

- Porque não queres.

 

- Estou paralisada.

 

- Porque nunca te disseram que tens o mundo inteiro entre as tuas duas mãos! Tu e não o czar! Demonstra-lho!

 

Foi até ao pequeno piano branco que estava no canto, junto à janela, abriu-o e apoiou as mãos no teclado. Matilda abanou violentamente a cabeça:

 

- Não posso, Boria!

 

- O que é que queres que eu toque? O solo de O Lago dos Cisnes?

 

- Não! Por fazor, não! Gritarei se o tocares. Boris Davidovitch tocou-o.

 

Não era absolutamente fiel à partitura, não sabia de memória O Lago dos Cisnes, mas conseguiu tocar melodias de Tchaikovsky em toda a sua sedutora beleza.

 

Matilda não gritou. Estava sentada, rígida, na poltrona, a olhar para o vazio.

 

- Levanta-te! - disse Soerenberg.

 

Uma vez que não reagia, repetiu a ordem como se se encontrasse na frente do seu pelotão:

 

- De pé! Em posição! De pé!

 

- Boria! - gritou ela, desesperada. - Peço-te!...

 

- Sai dessa danada poltrona! Até hoje sempre acreditei que uma bailarina era mais disciplinada que um soldado! Talvez estivesse enganado! Queres pôr-te de pé ou não?

 

Recomeçou de novo a mesma melodia.

 

Matilda levantou-se, mantendo os olhos fechados, tirou o roupão e ficou parada no meio do quarto, vestindo apenas a camisa de noite, comprida e bordada.

 

- Agora, começa, agora! - ordenou Boris. - Não devia haver aí um salto? Alto! Recomecemos! Esta deveria ser a melhor bailarina do mundo? Fazes-me rir... Uma camponesa move-se com mais graça quando dá de comer aos gansos! Agora! Começa de novo...

 

Matilda dançou.

 

O rosto como uma máscara, absolutamente privado de expressão, os olhos sempre fechados... mas o seu corpo, as pernas, os braços, os dedos já exultavam ao som da melodia e pareciam libertos de tudo o que fosse terreno.

 

A meio da dança, Rosália Antonovna entrou no quarto de repente. Tinha ouvido o som do piano e pensara que Boris Davidovitch estivesse a acompanhar com as suas melodias a lenta agonia de Matilda.

 

Como se tivesse sido fulminada por um relâmpago, ficou imóvel à entrada, olhando espantada para a filha, que, na camisa de noite ondulante, como ressuscitada do próprio túmulo, flutuava através do quarto ao som da melodia de O Lago dos Cisnes.

 

- Mataste-a! - gritou. - O meu pobre cisnezinho! Estava paralítica e agora está a quebrar os ossos! Quem é que me pode ajudar?

 

Depois ficou ali parada, toda a tremer, em completa confusão mental, enquanto a filha dançava com uma leveza nunca vista.

 

Era como se dançando fizesse sair do corpo todo o desespero que ela tinha dentro, a sua enorme desilusão e o fim de um amor condenado desde o princípio à renúncia.

 

Quando Boris Davidovitch pousou as mãos sobre o piano, Matilda não se aguentou. Caiu no leito, como se tivesse sido atingida por um golpe, e abriu os braços.

 

A Bondareva disse aflita:

 

- Boria, és um assassino!

 

Claro que Matilda sobreviveu.

 

No dia seguinte estava mudada. Desceu para o pequeno-almoço, sentou-se à mesa e pediu chá, pão acabado de fazer e manteiga fresca.

 

Rosália Antonovna nem conseguia comer com os soluços, corria à volta da mesa, beijava primeiro a filha e depois Boris Davidovitch, benzia-se na frente de um ícone de São Vladimiro, e pedia-lhe que agradecesse à Virgem Maria aquele milagre, e, num excesso de alegria, beijou o anão Mustin na enorme cabeça, uma vez que ele tinha aparecido inesperadamente logo de manhã.

 

Mas a alegria durou pouco.

 

Mustin abanava as orelhas, gesto que geralmente significava alegria - no fundo ele era um bobo -, mas naquele momento revelava, antes de tudo, o seu embaraço. Estava ali como mensageiro: Sua Alteza Imperial, o Grão-Duque Nicolau Alexandrovitch, viria nessa tarde ao Palácio Stroitsky.

 

- Não! - gritou de repente a Bondareva. - Não te devia ter beijado, meu grande monstro! Fora! Fora daqui! Quem traz uma tal notícia não pode estar do nosso lado! Esborrachar-te-ei de boa vontade contra a parede!

 

- É sempre assim! - lamentou-se o anão, voltando-se para Soerenberg. - Porque não compreendem que eu não valho nada, que sou um zero absoluto e que venho aqui apenas como mensageiro?

 

- Quiseste vir aqui! - continuou Rosália Antonovna. Foste muito corajoso. Mesmo muito corajoso! Vou espancá-lo com o meu batedor dos bifes! Ninguém poderá impedir-me de o fazer.

Quando, nessa tarde, o czaréviche chegou a cavalo, completamente sozinho - seguiam-no a distância quatro hussardos também a cavalo -, Boris Davidovitch disse a Rosália Antonovna:

 

- Decide-te, mãezinha: preferes ficar fechada numa despensa ou ser gentil com o futuro czar?

 

A Bondareva revelou-se muito razoável; não se deixou fechar na despensa mas retirou-se para o seu próprio quarto e deixou que a criada lhe lavasse a cabeça.

 

O czaréviche que envergava o uniforme da Guarda dos Hussardos, abraçou Soerenberg, gesto que reservava para os amigos mais íntimos.

 

- Como está ela? - perguntou em voz baixa.

 

- Está à espera na biblioteca.

 

- Está muiío triste?

 

- É como se estivesse de luto.

 

- Não lhe explicaste tudo?

 

- Nos limites do que me era possível, Alteza Imperial.

 

- Quais são os limites?

 

- Bem! A doença do czar é um segredo. Prestei juramento...

 

- Então Matilda não sabe nada?

 

- Absolutamente nada! - Soerenberg olhou para o czaréviche com um olhar interrogativo. - Quereis pô-la a par do segredo?

 

- Tenho de o fazer. Qualquer outra explicação seria uma mentira e não posso mentir a Matilda. Ela, mais do que ninguém, tem o direito de saber como estão as coisas na realidade.

 


- Também que Vossa Alteza Imperial ama a princesa de Hessen?

 

O czaréviche concentrou-se num ponto das próprias botas. O belo rosto com a barba tratada e o «melancólico olhar de gazela» - como um amigo de Niki, Konstantin de Griinwald, o tinha descrito uma vez - mostrou uma certa insegurança, a mesma que fazia enfurecer Alexandre III e o tornava demasiado brusco nos contactos com o filho.

 

- Como é que posso explicar semelhante coisa? - perguntou Niki. - Poderá uma mulher compreender que se pode amar duas mulheres e não querer perder nenhuma? Eu próprio não o consigo compreender, Soerenberg.

 

- Então é preciso evitar falar nisso e também é preciso tomar uma decisão.

 

- Renunciar a Matilda?

 

- A princesa de Hessen não ficará entusiasmada com a ideia de que Vossa Alteza Imperial vem beber chá e jantar todos os dias ao Palácio Stroitsky.

 

- Mas Alice ainda não está em Sampetersburgo...

 

- Chegará muito em breve! E, além disso, Vossa Alteza Imperial é esperado em Londres, para onde foi convidado pela rainha Vitória.

 

O czaréviche disse que sim.

 

O mundo inteiro queria dele uma decisão que se opunha à sua natureza. Teria preferido um acordo, um compromisso - o rigor era qualquer coisa que o atormentava quando tinha de o adoptar.

 

- Como se comportaria, Soerenberg, se Matilda quisesse abandonar a Rússia?

 

- Já fiz essa pergunta muitas vezes a mim mesmo. Só há uma resposta possível: pediria para ser desligado do serviço e iria com Matilda para onde ela quisesse.

 

- Como o invejo, Boris Dayidovitch - respondeu Nicolau em voz baixa e triste. - É um homem feliz, não tem que se tornar um czar!

 

Nicolau Alexandrovitch ficou três horas com Matilda. Serviram-lhes o chá e depois deixaram-nos sós. Rosália Antonovna e Boris ficaram à espera na sala de estar; Rosalia estava preparada para desaparecer por uma porta lateral logo que o czaréviche aparecesse.

 

- Fala, fala, fala! - disse Rosália. - Sei como estas coisas são: momentaneamente fica-se embriagado com as palavras, depois já não se compreende nada, não se sabe mais nada. Limitamo-nos a dizer sempre «sim», e ficamos felizes por termos sobrevivido! Mas o que é que ele lhe pode explicar? Que ficou noivo, que vai casar. Que irá ser o czar, que tem já a sua czarina. E chega! Precisa de três horas para explicar tão pouco? Boria, vai ter com eles. Diz-lhe: «Já chega!» E manda embora o czaréviche! O que é que te pode acontecer? Dará um profundo suspiro e basta! Como sempre! Quando é que resolvem fazer a revolução?

 

Daí a pouco ouviram passos provenientes da biblioteca.

 

A Bondareva desapareceu pela porta lateral, Soerenberg foi ao encontro do czaréviche.

 

Encontraram-se no salão sentral. Nicolau estava sozinho.

 

Não era bom sinal, mas o rosto do czaréviche não mostrava nenhuma tristeza nem perturbação... Sorriu para Soerenberg.

 

- Foi uma boa conversa, Boris Davidovitch - disse rapidamente. - Trata-se do desejo de meu pai... Oh, Soerenberg, se soubesse como estou confuso! Que grande atrapalhação vai dentro de mim! Agora que voltei a ver Matilda... e ao mesmo tempo tenho de pensar em Alice... espero que nunca se encontre em semelhante conflito.

 

- Nunca terei essa possibilidade - respondeu Soerenberg decidido. - Amo apenas uma mulher...

 

- Não esteja assim tão certo! O mundo está cheio de belas mulheres! Conhece aqueles raios que caem inesperadamente? Não podemos fugir deles porque são mais rápidos e mais fortes que nós. - O czaréviche rodeou os ombros de Soerenberg com um braço. - Boris Davidovitch, quando me tornar czar, vou fazê-lo príncipe. Oferecer-lhe-ei terras na zona de Tobolsker. Um amigo como você é raro...

 

- Quando Vossa Alteza Imperial for czar - respondeu Soerenberg muito sério -, eu deixarei a Rússia.

 

- Não me pode fazer semelhante coisa! Impedi-lo-ei!

 

- Estarei sempre ao lado de Matilda! O senhor acha que ela vai continuar a dançar para um czar ao lado de quem vai estar Alice como czarina?

 

- Sim, acho que sim. - Nicolau Alexandròvitch aproximou-se de Soerenberg. - É uma grande artista, única. Dançará sempre. Conheço-a melhor do que você. No próximo domingo, dançará de novo. Vejo que está espantado, nunca teria acreditado, não é verdade?

 

- Não, Alteza Imperial.

 

Boris Davidovitch acompanhou o czaréviche até à saída.

 

«Oxalá que, quando for czar, não lhe mintam nem o enganem como agora», pensou. «Pobre Rússia, que será de ti se a este czar basta tão pouco para se satisfazer e não é capaz de enxergar a verdade nos olhos...»

 

Em Junho de 1894, o czaréviche viajou no iate imperial Nordstern de Sampetersburgo para Inglaterra, a fim de ir visitar a sua noiva, Alice de Hessen.

 

O czar Alexandre III, rígido como um rochedo, mas minado por dentro por dores e cólicas, não se opôs; era preciso que o mundo visse quanto Niki amava a sua Alice.

 

Depois do anúncio de noivado, a princesa tinha ido viver com a avó, a rainha Vitória, na residência de Walton, e esperava ansiosamente voltar a ver o czaréviche. Niki foi acolhido de braços abertos - naturalmente com a reserva devida às circunstâncias - e, em seguida, os noivos foram deixados sós.

 

Fizeram longos passeios pelo parque e pelo campo, acompanhavam a rainha Vitória nos seus passeios diários pelos jardins, e, uma vez que a rainha já tinha dificuldade em andar, tinham-lhe feito um carrinho puxado por um pónei.

 

Foi um quadro que depressa deu a volta ao mundo: a idosa e venerável rainha, sentada no carrinho baixo, com uma sombrinha aberta para se proteger do sol, tendo à frente o esperto cavalinho com a crina esvoaçante e, a seu lado, um digno cocheiro com a barba muito branca. Um sofisticadíssimo namoro...

 

Foram dias felizes.

 

Alice e Nicolau foram a Windsor, foram aos palácios de Frogmore e de Osborne, passaram algumas horas tranquilas nos jardins de Balmoral e deixaram-se envolver pelas mil maravilhas de Londres.

 

Nicolau escreveu no seu diário: «Quanto me divirto a viajar de comboio com Alice numa carruagem só para nós!»

 

E como deixava sempre à mão o próprio diário, Alice também ali escrevia algumas coisas, embora ainda não estivesse em condições de compreender e escrever os caracteres russos. Mas misturava as suas próprias palavras às de Niki, escrevia páginas e páginas de declarações de amor, orações ao Senhor para que protegesse a saúde e a felicidade de Niki, fazia citações de escritores alemães, ingleses e franceses, quase tudo com conteúdo moralizante e religioso.

 

Durante uma noite calma na residência de Walton, Nicolau aproveitou a ocasião para confessar a Alice os seus terríveis - como ele próprio definia - «pecados de juventude». Falou também de Matilda Felixovna, mas só de fugida. Dada a franqueza com que se tinha proposto falar com Alice, parecia-lhe quase uma traição nem sequer mencionar Matilda.

 

A princesa ouviu o czaréviche com os olhos a brilhar.

 

Depois beijou-o e mais tarde escreveu no diário, que ele continuava a deixar por todo o lado, palavras que Nicolau havia de voltar a ler, nas horas mais difíceis da sua vida de czar, para que lhe dessem a força de que precisava:

 

«Ainda o amo mais, depois de me ter contado toda a sua história. Faltam-me palavras para lhe expressar todo o meu amor e toda a minha admiração. O passado é o passado. Todos caímos em tentações quando somos jovens.»

 

Durante aquele período, Matilda tinha continuado a dançar em Sampetersburgo, aclamada como nenhuma bailarina tinha sido antes dela.

 

Até o grande Marius Petipa já não se atrevia a dançar com ela em Coppelia, para não ser ultrapassado pelo seu talento.

 

Os seus partenaires permanentes eram Nicola Legat e Enrico Cecchetti, dois verdadeiros astros do ballet. Dois aspirantes a primeiros-bailarinos, Nicolas Sergeev e Michail Mordkin, ficavam a olhar para Matilda com os olhos cheios de admiração, ou então atreviam-se a partilhar com ela algumas passagens durante os ensaios.

 

Era como se Matilda estivesse permanentemente em estado de êxtase.

 

Tâmara Jegorovna estava ainda mais exigente e não concedia aos alunos qualquer possibilidade de erro; continuava a ensaiar Matilda, como tinha feito durante quase dez anos, mas às vezes dizia-lhe:

 

- Acalma-te um pouco, filhinha. Não dances como se quisesses que a alma te saísse do corpo. Ainda tens de viver muito! Assim arriscas-te a queimar-te rapidamente! E isso não é bom...

 

- Tenho de esquecer! - continuava a repetir Matilda. E como posso fazê-lo senão através da dança?

 

Ninguém sabia responder àquela pergunta.

 

O regresso do czaréviche de Inglaterra foi ensombrado por dois acontecimentos.

 

Em Londres tinha encontrado o seu amigo de outros tempos, Kramskoj, adversário de Soerenberg no famoso duelo. O príncipe abrira um escritório comercial, importava caviar, vinho da Crimeia, conhaque e artesanato da Rússia.

 

Esta actividade estava ainda em fase de estruturação. O principal interesse de Kramskoj parecia circunscrito a um pequeno exército de graciosas raparigas que tinha conseguido juntar à volta dele, rico príncipe russo.

 

Nicolau cumprimentou-o friamente e o contacto entre Boris Davidovitch, que era logicamente do séquito do príncipe, e Kramskoj também foi frio.

 

- Você aqui? - perguntou Kramskoj com a voz cheia de ódio. - O destino parece que é nosso amigo, Boris Davidovitch!

 

No dia em que o czaréviche acompanhou a princesa Alice a Balmoral, Soerenberg foi atacado de surpresa durante um passeio a cavalo nos arredores de Walton.

 

Alguém quis atingi-lo pelas costas. O autor do disparo falhou o golpe e pôs-se em fuga. Boris Davidovitch esporeou o cavalo e lançou-se em perseguição do desconhecido. Agarrou-o um momento antes de ele saltar para a sela do seu cavalo, que tinha deixado na orla do bosque.

 

- Você era e continua a ser um canalha, Valentin Vladimirovitch! Sempre o disse! - gritou Soerenberg friamente. - Esconder-se numa emboscada e disparar pelas costas! Como um salteador de estrada. Será tratado como o vagabundo que é!

 

Pegou no chicote e bateu na cabeça de Kramskoj. O príncipe deu um berro, saltou na direcção do seu cavalo e tirou uma grande pistola de uma bolsa da sela.

 

O chicote voltou a sibilar no ar, encontrou o braço de Kramskoj e a pistola oscilou enquanto o príncipe apontava para Boris...

 

Naquele momento, o cavalo de Soerenberg empinou-se e deu um coice com as patas dianteiras na direcção do príncipe.

 

Kramskoj foi impelido para trás, tropeçou e perdeu o equilíbrio... Nesse momento foi golpeado no ventre por uma das patas do cavalo, caiu e ficou imóvel por terra com os olhos esbugalhados.

 

Duas horas mais tarde, Kramskoj morria no gabinete do cirurgião Sir Henry Blynten, que estava de serviço no palácio, preparado para intervir caso fosse necessário.

 

Salvar o príncipe foi impossível. Tinha os intestinos esfacelados, e estava fora de questão o transporte para a clínica mais próxima.

 

O czaréviche ficou muito amargurado quando soube do acontecido. Abraçou Soerenberg, felicitou-o e mandou que levassem do palácio o cadáver do príncipe.

 

A princesa Alice chorou durante horas.

 

- Será que os meus sonhos se vão tornar verdadeiros? perguntou a sua irmã Elisabeta, que tinha casado com o grão-duque Sergei. - Tenho sonhado que a Rússia fica mergulhada em sangue e que a terra treme... Meu pobre Niki...

 

O segundo acontecimento deu-se quando Nicolau Alexandrovitch estava a pôr o pai ao corrente dos pormenores da sua viagem a Inglaterra


O czar, que não queria ser lamentado, tinha um aspecto miserável: a cor pálida a cara inchada, os olhos amarelos. Com as mãos trémulas, estava sentado na frente do czaréviche.

 

Recusava teimosamente meter-se na cama. Sentava-se numa ampla poltrona ou então vagueava sem parar pelo quarto. Quando tinha ataques, fechava-se no quarto para que ninguém visse quanto sofria com as dores. Tomava remédios contra a inflamação dos rins, outros para expelir os cálculos, outros ainda contra as dores; bebia por dia pelo menos cinco litros de água mineral, mas tudo era inútil. Os cálculos eram muito grandes para serem expulsos e nenhum cirurgião no mundo se atrevia a extraí-los com uma operação. Não se pode extirpar nem operar os dois rins ao mesmo tempo... Também há limites para a medicina...

 

- Talvez dentro de dez, vinte ou cem anos! - tinham dito os médicos. - Talvez alguém consiga descobrir uma máquina que permita viver sem rins! Mas provavelmente isto não passará de uma utopia! Como é possível substituir os rins por uma máquina? Impossível...

 

- Querem mandar-me para a Crimeia, Niki! - disse o czar com uma certa angústia. Quanto mais sentia aproximar-se a morte mais se agarrava ao filho. Nicolau tinha sido sempre o seu preferido, e precisamente por esse motivo é que tinha sido tão severo com ele durante todos aqueles anos. - Como se o ar conseguisse purificar os meus rins! A tua mãe também está de acordo. Os médicos dizem que a água daquele sítio, os banhos diários, as massagens (no caso de diminuir a inflamação) poderiam fazer-me bem! O que é que achas, Niki?

 

- Não sou médico, papá. Mas penso que deve ouvir os seus conselhos. Não me parece que esteja bem.

 

- Posso ver isso sozinho! Há ocasiões em que me apetece bater com a cabeça na parede. Niki, desejo-te que nunca sofras de cólicas de rins! É um verdadeiro suplício, garanto-te! - O czar deixou-se cair na poltrona embutida. Que sucederá se eu morrer? - perguntou depois de uma pausa.

 

- Não devemos pensar agora nisso, papá - respondeu o czaréviche comovido.

 

- Só devemos pensar nisso, Niki! Reinei doze anos, tinha pensado que seriam mais! Mas pelo menos consegui que não houvesse nenhuma guerra! - Endireitou-se, orgulhoso. - Sou um dos poucos czares que não declararam guerra a ninguém. Sabes como as pessoas me chamam? «Mirotworjez» (aquele que conserva a paz). Isto alegra-me muito e sinto-me bastante orgulhoso. Niki, digo-te de todo o coração: quando um dia fores czar, lembra-te sempre, deixa que a Rússia permaneça em paz! Não te deixes arrastar para nenhuma guerra. Todos os conflitos podem ser resolvidos com negociações. Todos! Não há necessidade de recorrer à morte. E se as outras potências mundiais brandirem as suas espadas, tu pensa nisto: a Rússia é tão grande, poderosa e rica que nunca ninguém poderá vencê-la! Os outros também o sabem, mas atrevem-se a comportar-se como se fossem eles os mais fortes. Nunca te deixes influenciar pelas aparências, Niki!

 

- Nunca o esquecerei, papá! - Nicolau Alexandrovitch beijou a mão do czar. - Mas todos nós esperamos e rezamos para que o nosso «Mirotworjez» possa viver ainda muito tempo...

 

Em Agosto, as dores tornaram-se insuportáveis. De tempos a tempos, vindos do quarto onde Alexandre III permanecia fechado, ouviam-se gritos que pareciam os de animal ferido de morte.

 

- É horrível! - disse Nicolau a Matilda. Visitava-a muito menos, uma ou duas vezes por semana,

 

e completamente em segredo. O chefe da polícia recebera ordem para vigiar o Palácio Stroitsky. A ordem era da czarina.

 

Tinham-lhe dito que o czaréviche, mesmo depois do anúncio do noivado com Alice de Hessen, ainda ia ver Matilda Felixovna. Isto criava, em sua opinião, uma situação insustentável no futuro, e por isso tinha mandado vigiar o palácio. Toda a gente que ali ia de visita ficava registada.

 

- O meu pai está a morrer - disse o czaréviche a Matilda com voz comovida. - Todos os dias morre mais um pouco. É horrível assistir a uma coisa destas. É terrível ouvir os seus gemidos. Deve sofrer muito na realidade; mas quando o vejo parece-me sempre uma árvore que nunca cairá. Quando tempo durará ainda?

 

No Outono de 1894, Alexandre III deixou-se convencer finalmente a ir para a Crimeia. Tinha decidido esperar a própria morte no seu belo palácio junto ao mar, rodeado de jardins floridos.

 

Quando um czar morria de morte natural - eventualidade bastante rara - à sua volta estavam não só os médicos, mas também alguns sacerdotes e, à frente deles, o metropolita. Grupos de monges entoavam os seus cânticos diante do quarto do moribundo e rezavam pela alma do czar, que se preparava para se apresentar na frente do Supremo Juiz.

 

Um czar era escolhido por Deus para guiar o grande povo russo - isto toda a gente sabia e toda a gente devia acreditar -, mas evidentemente a fé na graça celeste não era absoluta. As preces duravam até ao último suspiro do moribundo. Depois transformavam-se em altos gritos. O czar estava diante do Altíssimo e cabia-lhe a ele, convencê-lo de que, apesar de todos os pecados, tinha sido um homem temente a Deus.

 

Mas com Alexandre III não se passou nada disto.

 

Logicamente recebeu os chefes da Igreja, deixou-se abençoar e rezou com eles, mas ninguém falou em morte. O czar nem sequer estava na cama, como os médicos queriam a todo o custo. Mas um urso não morre a pouco e pouco - termina em toda a sua grandeza! Um leito de morte era para o czar um verdadeiro horror, uma coisa inconcebível e vergonhosa; com muito esforço, tinham conseguido que ele se sentasse numa cadeira de espaldar alto. Ali, dilacerado pelas dores, continuava a reinar e a comportar-se como se fosse imortal.

 

Entretando, toda a família se tinha reunido à sua volta. Até Alice de Hessen tinha vindo de Inglaterra para estar presente no momento da sua morte. Juntamente com a czarina, tratava dele, até onde Alexandre III permitia, lia-Ihe algumas coisas, tocava piano e cantava-lhe árias de Mozart com a sua bela voz.

 

- Fui chamado ao meu pai - disse o czaréviche a Matilda Felixovna num dia de Outubro de 1894, em que, vestido à civil, tinha ido fazer uma visita.

 

O disfarce não o ajudava, no entanto, a passar despercebido, porque os espiões da polícia o tinham logo reconhecido e haviam contado aos seus chefes. Pode-se calcular com que aflição estes últimos tinham recebido a notícia!

 

A czarina tinha pretendido que a relação com a bailarina terminasse - mas como consegui-lo? Não se podia com certeza impedir o czaréviche de frequentar o Palácio Stroitsky e muito menos se podia pensar em mandar Matilda para o exílio, embora houvessem ordens expressas para evitar aquela relação o mais possível.

 

O chefe da polícia em pessoa tivera uma conversa com Matilda, mas passadas três horas deixou o palácio extenuado e suado como um homem vencido. Podia compreender o czaréviche: Matilda Felixovna era uma mulher maravilhosa! Não se podia fazer nada senão amá-la! Mas aquilo era impossível se Nicolau Alexandrovith se tornasse czar dali a pouco...

 

O que é que se podia fazer?

 

Naquela noite, o czaréviche disse a Matilda:

 

- Acabou, meu amor. Amanhã vou para a Crimeia. Voltarei... como czar... Não há mais esperanças para o meu pai...

 

Depois chorou, apoiando a cabeça ao peito de Matilda, enquanto ela lhe acariciava os cabelos. Ela também sabia que com aquela viagem a sua vida mudaria completamente.

 

«Voltarei como czar...» queria dizer o fim do seu grande, único amor.

 

Naquele noite, dançou apenas para Nicolau o seu bailado preferido: a morte do cisne de O Lago dos Cisnes, de Tchaikovsky.

 

A música foi tocada num estranho aparelho que o czaréviche levara naquela noite e oferecera a Matilda. Chamava-se fonógrafo e tinha sido inventado por um americano chamado Edison. O aspecto e o funcionamento tinham qualquer coisa de miraculoso e nem sequer o czaréviche estava em condições de explicar exactamente como era possível ouvir o som da música.

 

- As vibrações sonoras são transformadas em sulcos, que estão neste disco, e depois a agulha que gira sobre ele transforma-os de novo em sons... e este é o segredo! disse Nicolau Alexandrevitch.

 

Mas quem o teria percebido?

 

Quando Mustin, o anão, deu pela primeira vez volta à manivela do fonógrafo e soaram, um pouco metálicas, as notas de uma valsa, Rosália Antonovna caiu de joelhos e, benzendo-se, gritou:

 

- Te esconjuro, Satanás!

 

Durante dois dias não conseguiram acalmá-la. Colocou perto do fonógrafo duas velas, para afastar o espírito maligno, e só quando ela própria se decidiu a rodar a manivela e do prato do instrumento saíram as notas de uma alegre cançoneta é que Rosália começou a mudar de ideias, até se deixar conquistar por completo e correr constantemente para o aparelho para pôr um novo disco, sobretudo quando sabia que ninguém estava a ver.

 

Naquela noite, portanto, Matilda dançou só para o czaréviche, ao som da música da última cena de Ò Lago dos Cisnes. Rosália Antonovna ocupou-se a rodar a manivela do fonógrafo, enquanto tentava reprimir os soluços dentro de si, e depois saiu a correr do quarto.

 

Com mãos trémulas, o czaréviche levantou do chão «o cisne morto»... Matilda tinha ficado estendida, tal como o cisne a morrer parecia ter sucumbido depois da última nota.

 

- Meu amor... - balbuciou o czaréviche. - Meu Deus, tu és a minha vida... deves continuar a viver! Deves viver para todos nós! Tu não és a rainha dos cisnes... és a melhor bailarina do mundo inteiro! Não podes renunciar precisamente agora. Deves continuar a dançar.

 

Abraçaram-se e choraram juntos. Uma parte das suas vidas desaparecia com aquelas lágrimas, sabiam-no bem talvez a parte mais bela, em qualquer caso a mais feliz.

 

Na vida de um czar não há lugar para a felicidade.

 

No dia seguinte, Nicolau Alexandrovitch partiu para a Crimeia.

 

Matilda sabia a hora da partida. Sentou-se perto da janela, olhou para o céu cheio de nuvens e rezou.

 

«Que o Senhor te acompanhe, Niki», disse. «Tenho medo por ti. A Rússia é um peso demasiado grande para ti...»

 

Na Crimeia, Nicolau tornou a ver a sua noiva Alice. Encontrou-a pálida, muito preocupada com o czar; logo que o

viu, correu a abraçá-lo, a soluçar. Um pouco mais tarde, disse-lhe:

 

- Agora tens de mostrar a todos que és o futuro czar! O teu pai está rodeado por muitos homens que só esperam que ele morra para poderem impor a sua política! Deves desembaraçar-te deles, Niki!

 

Era a primeira vez que a grande ambição de Alice de Hessen se manifestava de um modo tão explícito. O czaréviche não se apercebeu disso; limitou-se a abanar a cabeça preocupado. Depois foi ter com o pai, preparado para o pior.

 

Não encontrou aquilo que esperava. Alexandre III estava majestosamente sentado na sua poltrona, de rosto amarelado e inchado... bastante marcado pela uremia, que tinha tomado posse da sua vida. Todos os dias era submetido, com grande sofrimento, a cate teres e sondas de todos os tipos, mas nada podia travar o completo envenenamento do seu sangue.

 

O seu próprio corpo estava a envenená-lo.

 

Alexandre III saudou o filho mais velho com grande afecto, misturado com dureza. Observou-o com um olhar crítico e achou-o, como sempre, pouco compenetrado do seu papel.

 

- Choraste - disse rudemente.

 

- Papá...

 

- Um czar não chora! Um czar só chora diante de Deus ou pelo seu povo, pois só a este pertence a sua vida! Percebeste?

 

- Sim, papá.

 

- Eu sei que tenho de morrer! Lamento-me? Gemo? Invoco a graça de Deus? Não! Ponho em ordem o meu império, que tu vais herdar! Ouve-me bem, Niki! Não deixes que me vá embora com a preocupação de que a Rússia mudará alguma coisa! Tens de estar atento, sobretudo aos comunistas e aos socialistas! Lembra-te: quem transportar uma bandeira vermelha é teu inimigo! As ideias que se agitam sob aquela bandeira são perigosas e motivo de desordem. Querem derrubar o sistema existente, sem proporem um novo! Querem criar o caos com as suas ideias loucas e as suas frases violentas! O povo russo tem necessidade de uma mão forte! Tens de endurecer, Niki


Eram as mesmas palavras, ditas de forma ainda mais clara, que tinha ouvido de Alice. Nessa noite, Niki escreveu no seu diário a propósito da noiva:

 

«Meu Deus, que alegria encontrá-la aqui, na minha pátria, e tê-la aqui comigo! Pelo menos metade das minhas preocupações e das minhas tristezas parecem ter desaparecido...»

 

E Alice escreveu no diário de Niki, que ela mesma, como sempre, podia ler.

 

«Meu querido menino, amo-te tão ternamente! Deves ser forte; ordena aos teus conselheiros que te visitem todos os dias... Tu és o filho preferido do teu pai e é preciso que te digam tudo e que sejas consultado sobre todos os problemas. Mostra qual é a tua vontade e não permitas que os outros esqueçam quem tu és...»

 

Completamente explícito.

 

Alice de Hessen preparava-se para o seu futuro de czarina. Queria que a força de espírito de Alexandre III não acabasse com ele...

 

Quem poderia prever, então, que seria exactamente ela quem fraquejaria de um modo tão deplorável, entregando-se a práticas tão discutíveis como as sessões espíritas, confiando num taumaturgo como Rasputine, abandonando-se a um fanatismo quase paralisante?

 

O czar morreu a 20 de Outubro de 1894.

 

Também nesse dia se tinha recusado a ficar na cama. Estava sentado na sua sólida poltrona; um urso prestes a exalar o último suspiro. Quando o coração cedeu, parado pelo veneno que os rins destruídos tinham espalhado por todo o corpo, quase pareceu que o czar tinha inclinado a cabeça para dormitar um pouco.

 

Foi uma morte muito suave. A czarina juntou-lhe as mãos, o médico da família confirmou a morte, os familiares e os monges rezaram.

 

Isolado, como se tivesse sido abandonado por todos, Nicolau Alexandrovitch ficou imóvel diante do morto.

 

O novo czar.

 

A seu lado estava Alice; procurou-lhe cautelosamente a mão, estava gelada. Ele apertou os dedos dela. Embora durante toda a vida se tivesse preparado para aquele momento, não podia deixar de sentir uma aguda sensação de angústia: era o senhor e dono de um reino como a Rússia.

 

Naquele mesmo dia, o czaréviche, que em breve seria o czar Nicolau II escreveu no seu diário:

 

«A cabeça anda-me à roda, tão improvável me parece a terrível realidade. Estou muito aflito. Senhor Deus, assisti-me nestes dias difíceis...»

 

De repente, sentia a pesada carga ligada à sua nova condição de czar; o mundo inteiro esperava um sinal de Nicolau II.

 

Ele deu-o. Queria casar imediatamente, e em total segredo, com Alice; escolheu o Palácio de Livadia para o casamento.

 

Encaixou a primeira derrota: a família imperial, com a sua mãe à cabeça, opôs-se ao seu desejo.

 

Primeiro deviam ser os funerais, com exéquias solenes em Sampetersburgo e em Moscovo; depois, a corte poderia interromper o luto por um dia e permitir que o casamento fosse celebrado no Palácio de Inverno. Como data, podiam pensar num dia do mês de Novembro, mas ainda era preciso discutir esse assunto.

 

O czaréviche submeteu-se à vontade da família, e aconteceu exactamente aquilo que sempre se tinha temido: a morte do pai tinha-o perturbado muito e passava longas horas, mergulhado em sombrios pensamentos, nas margens do mar Negro.

 

Pouco tempo depois, recebeu o governador militar da Crimeia, o conde Mussin-Puschkin, um dos poucos dignitários do reino que estavam presentes em Livadia por ocasião da morte do czar.

 

- Tomei uma decisão - disse Nicolau Alexandrovitch com voz velada. - Vou renunciar à coroa.

 

Mussin-Puschkin respondeu: í:

 

- Vossa Alteza Imperial não pode fazê-lo! Herdou o destino de uma dinastia

 

- Só porque sou o primogénito? >’

 

- Sim! É a vontade de Deus! vossa Alteza Imperial entre os Romanov, aquele que tem mais direito e mérito ao trono! É um dever...


Naquele mesmo dia, o czaréviche falou com um dos seus amigos de infância, o grão-duque Alexandre Michailovitch.

 

- O que é que eu faço? - perguntou Nicolau desesperado. - Não estou preparado para reinar. Não percebo nada dos negócios de Estado. Não tenho a mínima ideia do que hei-de dizer aos ministros. Nunca quis ser czar. O meu maior desejo era tornar-me oficial da marinha e viajar pelo mundo inteiro. Nunca quis, nunca desejei reinar neste país com cem milhões de súbditos. O que é que eu faço?

 

Foi Alice quem o confortou e aconselhou. Nicolau agarrou-se com verdadeiro desespero à ajuda que ela lhe oferecia.

 

- O que faria eu se não fosses tu, agora, nestes momentos tão difíceis? - disse-lhe um dia, antes da partida para Sampetersburgo. - Como poderei aguentar tudo aquilo que me espera?

 

Estava um dia frio mas cheio de luz quando se realizou o cortejo fúnebre através das ruas da capital. A multidão estava de pé dos dois lados das ruas, e havia quem rezasse e quem se pusesse de joelhos enquanto o carro funerário avançava lentamente; as pessoas benziam-se e olhavam com curiosidade para a princesa alemã que ia sentada ao lado do czaréviche na carruagem imperial.

 

Era então aquela a futura soberana!

 

Toda vestida de negro, envolta num véu de luto, com os olhos vermelhos de chorar, os lábios apertados, Alice atravessou pela primeira vez Sampetersburgo. Ainda na Crimeia, antes da partida, tinha-se convertido à fé ortodoxa. Agora o seu nome era Alexandra Fiodorovna.

 

Fez-se um estranho silêncio à passagem da carruagem com o czaréviche e com a sua noiva Alexandra Fiodorovna, rígida e digna na sua dor, envolta nos negros véus ondulantes.

 

A voz da Bondareva soou bastante clara, emergindo do mais fundo do seu coração:

 

- Meu Deus, perdoai-me! Aquele é um pássaro de mau agoiro...

 

Dois dias mais tarde, apareceu Mustin, o anão.

 

Como todas as pessoas da corte, também tinha um sinal de luto, mas não à volta do braço. Tapara com uma fita negra o espelho do turbante. Era de esperar isso do pequeno bobo: negava aos homens a sua contemplação.

 

- Niki quer ver-te - disse a Matilda. - Está a receber permanentemente delegações e visitas de condolências, governadores e membros do Parlamento, ministros e chefes militares, senadores e embaixadores. Em breve chegarão as rainhas da Sérvia e da Roménia, que o horrorizam particularmente, porque são verdadeiros emplastros! Mas amanhã tem o dia livre, quer ir à caça. Irá encontrar-se contigo perto do lago Volkonskykom. Há ali um campo com um celeiro... ele estará lá!

 

- Matilda não irá! - gritou Rosália Antonovna num tom de voz mordaz. - Não é nenhum cachorrinho para acorrer ao primeiro assobio!

 

- Quando? - perguntou Matilda baixinho.

 

- Tu não vais! - gritou a Bondareva.

 

- Mais ou menos às dez da manhã...

 

- Irei...

 

- Vou amarrá-la! - berrou Rosália Antonovna. - O que é que há mais para dizer? A noiva já entrou de serviço... Que diabo quer da bailarina?

 

- Acredito que Nicolau nunca consiga esquecer Matilda! - disse o anão com grande seriedade. - Deve querer despedir-se da forma que lhe parecer mais correcta.

 

- Terá talvez ainda um pouco de moral? - gritou a Bondareva. - Ah!

 

- Quanto a mim, tenho. Eu não te abandonei...

 

- Ah, maldito sapo!

 

- Desiste de uma vez por todas, velha regateira! Rosália Antonovna resmungou, mas a ordem pareceu fazer efeito. Era o único modo de ela entender.

 

Fez chá, mandou buscar bolos e deixou que Mustin, que já sabia manejar a manivela do diabólico fonógrafo, a fizesse ouvir uma melodia muito triste.

 

Na manhã seguinte, Matilda foi de carruagem ao sítio do encontro.

 

Boris Davidovitch Soerenberg acompanhava-a a cavalo. Nesses dias andava muito taciturno e reservado; quase não aparecia em público. Estava quase sempre ao lado de Nicolau e dissera a Matilda que, por causa do luto de Estado,

tinha de estar permanentemente de serviço. Haveria mais alguma coisa? E que coisa?

 

Rosália Antonovna queria saber a todo o custo de que se tratava. Procurou provocá-lo:

 

- És um noivo ou um estúpido idiota? Gostas mesmo da Matilda? Ah, como os homens são desmiolados hoje em dia!

 

Mas Boris continuou calado. Vinha muito espaçadamente; ficava muito pouco tempo e dormia todas as noites na caserna ou no Palácio Anitschkov.

 

Naquela manhã foi buscar Matilda. Agora estava ao lado dela, nos momentos talvez mais difíceis da sua curta vida.

 

Sobre o extenso campo pairava uma ligeira neblina; esta não impediu Matilda de encontrar finalmente o grande celeiro com telhado de palha. Toda a zona à volta do lago era desabitada, tendo sido escolhida pelo czar como sua reserva de caça. A carruagem ultrapassou uma barreira, depois de Boris se ter dado a conhecer.

 

Sozinho, no extenso campo, envolto em neblina, debaixo do céu cerrado, um cavaleiro esperava perto do celeiro. A imagem era simbólica: o novo czar, abandonado por todos, imóvel num espaço ilimitado, onde ele era apenas um pontinho. Um pequeno, pobre homem numa Rússia que agora lhe pertencia...

 

Boris, que cavalgava ao lado da carruagem, debruçou-se para a janelinha. Matilda, com o rosto colado ao vidro, olhava para o cavaleiro solitário.

 

- Eu vou ficar para trás - disse Soerenberg.

 

- Deixas-me só?

 

- Pela última vez, Matilduschka. - Boris estava muito sério. Até o seu sorriso, com o qual costumava encorajá-la, lhe tinha gelado nos lábios. Para ele, aquela manhã iria constituir uma mudança na sua vida, exactamente como para ela. Tinha-se preparado para tudo nas longas horas que se tinham seguido à morte do czar. -Tem coragem...

 

- Eu tenho, Boria!

 

Fez um sinal, o cocheiro fez estalar o chicote e conduziu lentamente a carruagem para campo aberto, em direcção ao celeiro.

 

Parou a alguns metros do cavaleiro solitário que estava à espera; o cocheiro saltou da boleia, tirou o chapéu, inclinou-se até ao chão e foi-se embora na direcção do lago, até uma distância em que não podia ouvir nada. Ali, parou, de costas para o celeiro, puxou para cima a gola do casaco e ficou à espera. Parecia um espantalho, rodeado pelo nevoeiro.

 

Nicolau Alexandrovitch aproximou-se da carruagem a cavalo, depois saltou para o chão e continuou a pé; Matilda, entretanto, tinha aberto a portinhola. Olharam-se e continuaram calados. Tinham muitas coisas para dizer um ao outro, mas tudo coisas tão difíceis que o nó que lhes apertava a garganta impedia que saltassem cá para fora. Entre todas as que queriam dizer, algumas delas eram demasiado penosas...

 

Não havia mais palavras, nem expressões, nem sons. Falar não chegaria para exprimirem tudo aquilo que pensavam, sentiam e queriam explicar um ao outro.

 

- Matilda - começou o czar em voz baixa. - Oh, Céus, Matilda...

 

- Era o nosso destino desde o princípio - disse ela, balbuciando. - Nós... nós sabíamos, Niki...

 

- Eu queria evitá-lo.

 

- É impossível.

 

- Queria renunciar à coroa.

 

- Não podes fazê-lo! Tu pertences ao povo russo, eu pertenço à arte... Ambos temos um reino para governar...

 

- É essa a tua resposta?

 

- É a única resposta possível, Niki. É a resposta da razão.

 

- És um anjo! Estás acima de todos os outros seres humanos...

 

- Não, Niki. Não sou um anjo. Sou uma rapariguinha, tu sabes quanto sou pequena. E isto é tudo, Niki. Passámos juntos alguns meses felizes... Porque havemos de estar tristes? Poderemos nós ser ingratos para com um destino que nos ofereceu tantas horas maravilhosas? Porque havemos de chorar se a vida segue o seu curso, aquele que, mais cedo ou mais tarde, teria de seguir? Niki, eu... eu amei-te muitíssimo...

 

- Eu amar-te-ei sempre, Matilda! - Nicolau Alexandrovitch pegou nas mãos dela e beijou-as. - Peço-te que me perdoes.


- Porquê? Por causa de Alice? Ela pertence-te, será uma boa czarina. E tu também a amas!

 

- Matilda, não tenho qualquer saída!

 

Viu os olhos dele encherem-se de lágrimas e também ela se interrogou como era possível que aquele homem pudesse reinar no maior país do mundo. Tinha nascido para a beleza e para a arte, não para a política e para a intriga.

 

- Eu... eu casarei muito em breve. A família decidiu-se pelo dia 14 de Novembro.

 

- Rezarei por ti, Niki - disse ela em voz baixíssima.

 

- Se fosse só isso! - O czaréviche meteu o rosto entre as mãos dela. - Haverá uma representação especial na Ópera. Terás de dançar para nós...

 

Percebeu que ela tinha ficado rígida, mas ouviu-a dizer com grande tranquilidade:

 

- Também farei isso, Niki. Logicamente, tratar-se-á de O Lago dos Cisnes...

 

- Sim! - Estrangularam-se-lhe as palavras na garganta. É um desejo de Alice.

 

- Alexandra Fiodorovna.

 

- Não sabe nada do nosso amor.

 

- Tens a certeza?

 

- Sim. Tenho a certeza. Expressou esse desejo sem ter a mínima ideia do que ele significava para mim. Mas tu podes adoecer... podes abandonar Sampetersburgo... ir para o estrangeiro... Paris... Londres... Roma...

 

- Achas que sou assim tão cobarde, Niki? Eu dançarei.

 

- Posso ajudar-te em tudo aquilo que quiseres... mandar-te levar para qualquer sítio...

 

- Não, Niki. Ficarei em Sampetersburgo. Quero ficar perto de ti. Pelo menos... poderei ver-te de tempos a tempos. Na Ópera, nos concertos, nos desfiles, nas manobras militares, nas festas e nas visitas oficiais... Haverá muitas ocasiões em que te poderei ver! E quando te vir, Niki, então direi baixinho para mim mesma: «Pensa, Matilda. Ele é o grande czar Nicolau! Em tempos, amou-te.» Fomos muito felizes juntos. Que Deus proteja o czar! E serei sempre feliz, enquanto tu o fores!

 

- Oh, Deus! A tua infinita bondade despedaça-me!

 

O czaréviche beijou-lhe de novo as mãos; depois apertou-a contra si e beijou-lhe os lábios gelados; era a última vez, e ambos o sabiam muito bem. Ela lançou-lhe os braços ao pescoço e ficaram assim muito tempo... como se estivessem petrificados naquele abraço.

 

De repente, Niki soltou-se, virou-se bruscamente e dirigiu-se para o seu cavalo.

 

Saltou para a sela, picou o cavalo e fê-lo galopar durante alguns metros. Depois puxou as rédeas, fê-lo andar a passo e começou a cavalgar tão lentamente que parecia arrastar uma enorme carga. De vez em quando, olhava à sua volta.

 

Ela ficou parada, sozinha no meio do descampado, pequena e frágil, atrás do celeiro e da carruagem... Estava ali parada envolta na sua capa de peles, como uma espiga que alguém se tivesse esquecido de ceifar.

 

Não se mexia. Estava imóvel e seguia-o com o olhar. Ele continuava a puxar as rédeas: tinha o coração despedaçado pelo desgosto; lutava contra o desejo de voltar para trás, mas ao mesmo tempo sabia que isso não faria sentido... Assim, continuou a cavalgar. Â silhueta na frente do celeiro tornou-se cada vez mais pequena; o nevoeiro começou a envolvê-la, tornando a sua forma indistinta, elevando-a da terra, levando-a para longe...

 

Nessa altura esporeou o cavalo com decisão, dobrou o busto para a frente e deixou-se levar num galope selvagem, para longe do passado.

 

Matilda continuou a segui-lo com o olhar, até que Nicolau se perdeu no nevoeiro. Então voltou-se, subiu para a carruagem, fechou a portinhola e encolheu-se a um canto. Não chorou, mas rasgou o lencinho com os dentes, respirando fundo; por fim, sentiu os passos do cocheiro, que voltava para a boleia, e depois ouviu o barulho das rodas e percebeu o lento movimento da carruagem, que rolava pelo campo.

 

«Acabou... acabou... acabou...» rangiam as rodas. É assim que acabam as coisas da vida. O ser humano morre de repente e aos poucos; compreendia pela primeira vez o que aquilo queria dizer.

 

Perto do lago, Boris Davidovitch pôs-se ao lado da carruagem. Limitou-se a cavalgar - compreendia que naquele momento era melhor não dizer nada. Nem sequer olhou para ela. Matilda, pelo contrário, observava-o. Tinha o rosto contraído e avançava completamente direito no cavalo.

 

«Oh, Boris», pensou Matilda, «quanto me deves amar! Que posso eu fazer por ti? Como poderei agradecer-te tudo o que tens feito por mim? Quantas dores deves ter suportado por minha causa, sem nunca te poderes lamentar.»

 

Encostou-se para trás, puxou o barrete para a testa e fechou os olhos. Ardiam-lhe, mas nem uma lágrima veio apagar aquele fogo.

 

«Estou completamente vazia», pensou Matilda. «De tudo. Sou como uma das bonecas de Coppelia. Só danço se alguém me der corda. Meu Deus, ajuda-me a ultrapassar tudo isto!»

 

Capítulo décimo quarto

 

O casamento do herdeiro ao trono com Alexandra Fiodorovna realizou-se a 14 de Novembro de 1894 na capela do Palácio de Inverno de Sampetersburgo.

 

Toda a corte se reuniu na ocasião, todos os grão-duques e grã-duquesas, a mais alta aristocracia do mundo. O jovem casal foi abençoado ao som de profundos coros de sacerdotes.

 

A festa que se seguiu foi maravilhosa. Nicolau vestia um uniforme vermelho de coronel da Guarda dos Hussardos; sobre os ombros tinha o branco dólman guarnecido a ouro. O herdeiro ao trono estava muito sério; no momento da bênção, o seu olhar teve um lampejo de melancolia.

 

Alexandra Fiodorovna resplandecia com uma beleza de que ninguém tinha suspeitado. O seu vestido de casamento, de seda branca bordada a prata, era completado por uma capa de brocado dourado. A cauda era tão comprida que tinha de ser levada por cinco pajens. Sobre os cabelos, penteados de modo solene, brilhava o diadema de diamantes da czarina: uma coroa de valor inestimável.

 

Com ar austero e orgulhoso, ciente do perturbante efeito que tinha sobre os presentes, caminhou ao lado de Nicolau entre os dois cordões de convidados, entrou na catedral ao som do Te Deum e finalmente percorreu as ruas de Sampetersburgo ao lado do marido.

 

O povo exultou perante o maravilhoso casal, agitando bandeiras e lenços, ajoelhando-se e pedindo a bênção do Senhor. Um novo czar! Um czar belo e bom... como se podia ver.

 

Soprariam novos ventos sobre a Rússia? Haveria mais liberdade? Teria início uma política mais clara? Conseguiria a Rússia despertar do imobilismo em que o déspota Alexandre III a tinha mergulhado, achando que ele era necessário para a saúde do país?

 

- Irá tudo sair mal!

 

A profecia foi feita naquele mesmo dia pelo anão Mustin. Encontrava-se, junto de Rosália Antonovna, ao fundo da enorme catedral e escutava o Te Deum. Formavam um par verdadeiramente estranho: o anão com a sua enorme cabeça e a grande mulher com o seio imponente...

 

- Hoje estamos todos dispostos a dar vivas... Até que nos apercebamos de que, dos vinte conselheiros do novo czar, pelo menos vinte e um são uns patifes!

 

Entretanto, no bairro junto ao mercado, os comunistas faziam uma das suas reuniões e estavam todos de acordo num facto: a Rússia devia mudar. Aquele czar seria corrido de uma forma que não se podia dizer...

 

Nessa mesma noite, Matilda obteve o seu maior êxito ao dançar O Lago dos Cisnes.

 

Os convidados da Ópera olhavam sem fôlego para o palco, onde estava a acontecer uma coisa incrível: ninguém parecia muito disposto a acreditar que estivesse a dançar uma criatura humana. Talvez uma sílfide, um anjo, um ser extraterrestre.

 

Quando o cisne morreu, quando os movimentos dos braços cessaram lentamente, quando o último tremor atravessou o gracioso corpo e o amor pôs fim à vida... um profundo suspiro percorreu as filas do teatro.

 

Nicolau Alexandrevitch estava sentado, com o rosto fechado, no seu camarote, e a sua jovem esposa, Alexandra Fiodorovna, tinha as faces cobertas de lágrimas.

 

- É um milagre - continuava a repetir - um milagre! Niki, como é possível dançar desta maneira? Meu Deus, parecia mesmo que estava a morrer a sério...

 

Mas Matilda Felixovna não morreu.

 

Depois de a cortina se ter fechado e de terem soado as últimas notas da maravilhosa música, levantou-se, acenou para o lado e esperou que levantassem de novo a cortina. Foi até à ribalta e afundou-se numa longuíssima vénia, submersa pelas aclamações e pelos irrefreáveis aplausos. Pôs uma mão à volta do pescoço e olhou para cima, na direcção do camarote do czar. Só então todos notaram que tinha posto um colar de pérolas. Grandes pérolas de um rosa pálido, de uma beleza que fazia perder o fôlego...

 

Tinha sido talvez um gesto desajeitado ou um movimento provocado pelas grandes ovações dirigidas a si... De repente, arrancara o colar, as pérolas tinham rolado da sua mão para o palco até caírem no fosso da orquestra.

 

O rosto de Matilda continuava sem expressão. Abriu a mão e deixou cair as poucas pérolas que ainda ali tinham ficado... Só então esboçou um débil sorriso, fez de novo uma profunda vénia, dobrando a cabeça na frente do casal imperial. A cortina desceu de novo.

 

Nicolau Alexandrevitch parecia paralisado. Tinha percebido. Conhecia bem aquele colar de pérolas. Tinha-o oferecido ele a Matilda na noite em que viveram juntos o seu momento de extrema felicidade.

 

Uu colar para a eternidade! Agora ela tinha-o arrancado, espalhado as pérolas pelo palco.

 

Aquele gesto significava um adeus. Adeus para sempre! «Tu és o czar, eu sou a bailarina. Não há mais nenhum laço entre nós. Nenhuma cadeia nos liga. Olha para as pérolas a rolarem como eu já rolei antes! Até as nossas recordações se vão desvanecer depressa, uma após outra, e eu nunca deixarei que se recomponham. Adeus Niki!»

 

Apesar dos contínuos aplausos, Matilda não voltou ao palco. Não podia, porque se tinha fechado no seu camarim e havia arrancado em silêncio, com o rosto petrificado, o seu fato de rainha dos cisnes.

 

Tâmara Jegorovna estava encostada à parede, com o rosto pálido, limitando-se a olhar para ela sem dizer nada. Não se tratava de fúria devastadora, de desejo autodestrutivo ou de um estado de loucura... Era o lúcido balanço de uma parte da sua vida. O fim de um belo sonho. O regresso à cruel realidade.

 

- Assim está bem! - disse a Jegorovna quando Matilda acabou de reduzir a pedacinhos o vestido e espalhou à sua volta os farrapos. - Sentes-te melhor agora?

 

- Sim! - Matilda Felixovna abriu os braços. - E agora quero beber champanhe. Um mar de champanhe! Onde está Boria neste momento?

 

- Está no camarote do czar. Onde é que podia estar sem ser aí?

 

- Vá buscá-lo! Ele tem de vir. E se Niki não lhe der licença para vir, então comunique ao czar que sou em quem o quer. E já! Quero que Boria venha aqui já...

 

- Matilda! - A Jegorovna dirigiu-se para a porta. - É mesmo preciso dar um escândalo? Já o que aconteceu com as pérolas...

 

- Um acidente, Tamarenka...

 

- A mim não me enganas! Eu conheço-te!

 

- Vá, vá buscar Boria! E traga também champanhe. Diga também à minha querida mãezinha que venha cá. E também a Mustin... Hoje há uma boa razão para comemorar! É um baptismo, um baptismo com champanhe! Nasceu um novo ser! Matilda Felixovna, a estrela mundial!

 

Deixou-se cair na cadeira perto da mesa de maquilhagem, seminua no seu apertado collant. Os cabelos caíram-Ihe, de modo descomposto, para a cara. Atirou para longe as sapatilhas de dança com as pontas quase gastas.

 

- Corra, traga todos aqui...

 

Dez minutos depois estavam no camarim Mustin, Rosália Antonovna - a chorar depois de ter seguido o espectáculo dos bastidores por não haver lugar para ela no teatro - e também Boris.

 

Tal como o czar, Soerenberg vestia o uniforme de gala da Guarda dos Hussardos, acompanhado pelo dólmen enfeitado a pele. Não tinha sido necessário pedir ao czar que o dispensasse. O próprio Niki, no momento de deixar o camarote, tinha-lhe sussurrado:

 

- Vai depressa ter com Matilda! Já! Tenho medo por ela! - Quem não tivesse ouvido exactamente aquilo que Nicolau disse teria pensado que ele dera uma ordem muito grave ao seu oficial.

 

- Cá estão todos! - gritou Matilda eufórica. Tinha posto sobre os ombros um xaile de renda e esfregava as plantas dos pés nus uma contra a outra. -Tâmara, abra as garrafas! Não temos taças? E que é que isso importa? Estamos habituados a beber directamente da garrafa, não é verdade, mãezinha?

 

- Não sejas ordinária! - disse Rosalia Antonovna com voz severa. (Logo ela!) - Fazes-me ter vergonha de ti...

 

- Abram as garrafas! - repetiu Matilda, batendo as palmas.

 

Mustin abriu a primeira garrafa de champanhe, ouviu-se um grande estalo e o champanhe jorrou a grande altura. Matilda arrancou a garrafa da mão do anão, levou-a aos lábios e bebeu. A Bondareva levou as mãos à cabeça.

 

- Eu não sou responsável! - gritou. - Este não é de certeza o resultado da minha educação! Coro de vergonha!

 

- E agora tu, Boria! - Matilda estendeu a garrafa a Soerenberg. - Bebe um belo gole, meu amor! Brinda comigo. Poisa os teus lábios onde eu poisei os meus e bebe! Bebe! Mustin, entretanto, abre outra garrafa! Hoje é um grande dia de festa! Estou decidida a deixar Sampetersburgo! Irei em tournée por todo o mundo! Dançarei em todos os sítios onde me quiserem... Nasci hoje para uma nova vida...

 

- Oh, Deus, perdoa-a! - disse a Bondareva em voz abafada. - Despejem-lhe o champanhe por cima, meus amigos, porque me parece que a minha filhinha enlouqueceu.

 

- À tua saúde, Matilduschka - Boris Davidovitch bebeu. Depois acrescentou, enquanto passava a garrafa à Jegorovna: - Já está tudo preparado. Amanhã virá ter connosco Chamitja Maximovitch Aronov. O grande empresário Aronov, que conhece todos os teatros do mundo. Espera apenas um sinal teu! Já tem um primeiro contrato para a Ópera Real de Estocolmo...

 

De repente, fez-se silêncio no quarto. Apenas Matilda disse baixinho:

 

- Boria, és o melhor homem do mundo. Mas que será feito de ti?

 

- Vou contigo.

 

Soerenberg tirou o dólman dos ombros. Era um gesto simbólico.

 

- Hoje pedi a minha demissão do Exército. Será o próprio czar a decidir. Penso que poderei prever qual será a decisão tomada...

 

Quem visse Chamitja Maximovitch Aronov pela primeira vez ou quem o encontrasse por acaso na rua não saberia bem se devia evitá-lo ou atirar-lhe um copeque para que se barbeasse ou compasse um naco de pão. Tinha um aspecto miserável, era magro, desnutrido e baixo de estatura. A expressão do seu rosto era sofredora e uma tosse crónica atormentava-o há uns tempos, sem que fosse para ele motivo de preocupação. Os médicos tinham-lhe chamado uma «tosse alérgica», mas não conseguiam descobrir a que coisa é que Aronov reagia de forma tão sensível. Tinha de haver uma explicação, mas ninguém acertava nela.

 

Aronov tinha o cuidado de repetir:

 

- Sou alérgico aos seres humanos! Qualquer ser humano me provoca tosse! Se estiver entre os cães ou entre os pássaros, então estou muito bem! - Aronov tinha oito cães e uma gaiola cheia de pássaros exóticos. A sua desgraça e o seu «destino deprimente», como ele dizia, era a sua própria profissão, que o fazia estar quase sempre entre os seres humanos.

 

E ainda por cima com os artistas, gente que ele tinha considerado como completamente doida!

 

E, contudo, tinha-se tornado um dos mais famosos agentes, um empresário que nenhum cantor ou bailarino interessado em actuar nos palcos dos grandes teatros de todo o mundo podia ignorar. Quem era recomendado por Aronov tinha sempre um lugar no teatro. Todos sabiam: Aronov não representava maus profissionais. Quem fosse protegido por ele seria sem dúvida uma estrela da Ópera.

 

Agora estava sentado no Palácio Stroitsky, na frente de Rosália Antonovna, pálido, vítima dos ataques de tosse, miseravelmente vestido; por outro lado, a sua alergia tinha notáveis sintomas de agravamento face ao olhar perscrutador daquela mulheraça de peito enorme.

 

A primeira frase de Rosália já o tinha perturbado bastante:

 

- O quê? O senhor é que é Chamitja Maximovitch?

 

A minha filha não tem nada a ver com teatrinhos de segunda ordem! Quer um caldinho, bom homem?

 

Aronov tossiu violentamente, abanou a cabeça e encostou-se para trás na ampla poltrona.

 

- Costumam ser os idiotas quem se veste com roupas mais luxuosas - disse com a sua voz áspera. - Rosália Antonovna, a senhora dá mais importância ao aspecto exterior ou ao conteúdo?

 

- Mas que pergunta!

 

- A mim, o luxo não me interessa nada! Moro num palácio com trinta e nove divisões e um grande jardim! Mas eu ocupo o quarto mais pequeno! Os outros estão vazios ou são ocupados pelos meus animais. É assim mesmo! E ainda tenho três pessoas para me tratarem dos animais, uma cozinheira, um jardineiro e um criado de quarto que em tempos era lutador. Depois tornou-se barítono, cantava Verdi e Wagner, até que partiu os ossos ao amante da mulher e voltou a ser lutador. Então tomei-o ao meu serviço... As voltas da vida chegam a ser cómicas!

 

Passados dez minutos, tinham começado a entender-se. Rosália Antonovna preparou chá e serviu o seu famoso bolo.

 

Aronov comeu - seria melhor dizer que devorou - sete fatias, e de repente disse:

 

- Ao seu lado, arrisco-me a esquecer a minha tosse! Quem conhecia Aronov sabia que aquele era o maior

 

cumprimento que ele podia fazer.

 

Depois do chá, começou a contar a sua actividade e declarou que se sentia muito feliz por poder ser manager de Matilda Felixovna...

 

Rosália Antonovna nunca tinha ouvido aquela palavra e pensou logo que se tratava de alguma coisa imoral, até que Aronov lhe explicou que a palavra era inglesa e que não havia nada de obsceno naquele termo.

 

E depois comunicou-lhe que a Ópera Real de Estocolmo já estava à espera de Matilda e que a seguir viriam Londres e Roma, Milão e Berlim - e, para acabar em beleza, naturalmente, o grande Teatro da Ópera de Paris. A sua filha tinha o mundo inteiro diante de si...

 

Antonov era um homem razoável e prudente. Muito de fugida, entre uma conversa e outra, perguntou:

 

- Pensa vir também, Rosália Antonovna?

 

- Não! - respondeu a Bondareva convictamente. - O que faria eu por lá ? Sou russa, pertenço à Rússia! Fico aqui!

 

- Parece-me uma decisão muito inteligente! - disse Aronov em tom de apreço e aliviado de uma certa preocupação interior. - Irá ser uma vida muito agitada. Mas Boris Davidovitch virá connosco?

 

- Se tiver autorização do czar...

 

Matilda voltou duas horas mais tarde dos ensaios. Soerenberg vinha com ela. Vestia ainda o uniforme da Guarda dos Hussardos; Nicolau Alexandrovitch tinha-se recusado a ler o pedido de demissão.

 

Matilda também ficou momentaneamente admirada com o aspecto de Aronov, mas quem já se tinha habituado ao anão Mustin não podia ficar espantado durante muito tempo face a um Aronov. Chamitja Maximovitch mostrou imediatamente o contrato para a Ópera Real de Estocolmo e um segundo contrato, que comprometia Matilda a fazer-se representar por Aronov. Como honorários pretendia dez por cento de todos os cachets.

 

- É uma verdadeira tolice! - disse Aronov. - Todos os meus protegidos pagam mais. Mas porque hei-de querer mais dinheiro de vós, a rainha da dança? Que farei com o maldito dinheiro? Poderei talvez mandar decorar a cama com rubles? Ou então pendurar quadros pelas paredes? Não tenho nenhum herdeiro! Será que os meus cães poderiam apreciar um verdadeiro Renoir? Ou então um Rembrandt? O dinheiro... - Abanou a cabeça. - Fico feliz só por levar tantas maravilhas para os teatros! Estou lá em todas as premieres Atrás dos bastidores! Não me fazem ir para a plateia, nunca tive um fraque! Mas sem um fraque os porteiros consideram-nos um zero à esquerda...

 

Aronov ficou até à meia-noite, comeu os pastéis de carne de Rosália Antonovna e os morangos com natas, bebeu vinho da Crimeia e contou algumas histórias, cada uma mais picante que a outra. Por exemplo, a propósito do famoso tenor checo Bogumil Zacek, para quem tinha conseguido um contrato na Ópera da Corte de Viena. Uma vez, Zacek estava a cantar o Tristão; e quando, no segundo acto, ia começar o mais belo dueto de amor de toda a literatura de ópera («Desce sobre nós, noite de amor...») escapou-lhe qualquer coisa de muito humano. Não era a primeira vez que o seu estômago fazia aqueles barulhos... A cantora que tinha o papel de Isolda, uma sueca famosa, quase caiu sem sentidos e ficou nauseada, tão intolerável era o cheiro, mas depois - ópera é ópera - ele e ela tinham superado dignamente o acidente. Atrás dos bastidores, depois de a cortina ter descido, esbofeteou Zacek à sua vontade! Um dos dentes da frente dele ficou a abanar, mas, graças às cenas de paixão previstas na partitura do terceiro acto, ninguém se apercebeu disso...

 

Rosália Antonovna riu até às lágrimas. Ela tinha algumas anedotas para contar a Aronov; depois, todos juntos, acompanharam-no até à carruagem que o ia levar para casa.

 

- É um bom homem - disse a Bondareva, batendo as palmas divertida. - Não tem medo de chamar as coisas pelos nomes...

 

- Partiremos daqui a quatro dias! - disse Boris Davidovitch quando voltaram a entrar na sala. Sentaram-se e beberam vinho do Porto em cálices de cristal. - Ao largo está um navio a vapor à nossa espera, porque a água do porto está prestes a congelar. Iremos para lá num barco à vela. Partirá do porto das antigas galeras.

 

- Nesse dia já estarás dispensado, Boria? - perguntou ela com uma voz cheia de medo. Tinha voltado a ser uma pobre rapariguinha perdida. - Sozinha, não parto...

 

- Se Nicolau não me der a licença, fujo! Irei contigo aconteça o que acontecer!

 

- Pensas em desertar? Mas isso dá pena de morte!

 

- Fora da Rússia, estarei seguro. Basta que nunca mais cá volte.

 

- E poderias suportar isso, Boria? Nunca mais voltar à Rússia...

 

- Mas eu tenho-te a ti, Matilda! Tu és a pátria para mim!

 

- Nunca te poderei agradecer tudo isto, Boria. Hei-de repetir-to sempre.

 

- Basta-me estar ao teu lado. - Sorriu timidamente. Quando a «ferida» do czaréviche estiver curada... então talvez haja um lugar para mim no teu coração.      

 

Não havia palavras para descrever aquele amor... Matilda notou-o e calou-se. Procurou a mão de Soerenberg e apertou-a com força.

 

O czar Nicolau II, como já todos lhe chamavam, embora a coroação ainda não se tivesse realizado, só na véspera da partida de Matilda se pronunciou acerca da demissão de Boris Davidovitch Soerenberg.

 

Recebeu-o no Palácio Anitschkov, no gabinete de seu pai, Alexandre III, exactamente com o mesmo aspecto de antes de ele ter morrido. Estava sozinho... e ordenou que todos permanecessem lá fora quando Soerenberg entrou.

 

Nicolau parecia muito triste... Olhou para Boris com olhos melancólicos, voltou-se para a janela e fixou o jardim. A sua delgada silhueta, vista em contraluz, parecia frágil, transparente. Um homem que tinha de reinar sobre meio mundo...

 

- Permito-te que abandones a Guarda só porque vais acompanhar Matilda - disse por fim. - Só por esse motivo. De outra forma, ter-te-ia transferido para outra guarnição. Talvez na Sibéria. Comandante de um campo de prisioneiros! i

 

- Teria desertado e fugido, Majestade.

 

- E ainda mo vens dizer?

 

- Estamos os dois sozinhos. Por isso, atrevo-me a fazê-lo... sei que podeis compreender-me.

 

- O que é que eu posso compreender, Boria?

 

- Que por uma mulher como Matilda se pode fazer qualquer sacrifício!

 

- De verdade?

 

- Conheço alguém que queria renunciar à coroa... Calaram-se.

 

Depois o czar disse, com uma voz quase imperceptível:

 

- Quando partem?

 

- Amanhã, ao meio-dia. Há ainda uma via navegável, liberta de gelo, do porto das antigas galeras até ao barco a vapor. No fim desta semana, o gelo voltará a cobrir tudo. Preferimos evitar a viagem por terra, que é muito cansativa.

 

- Posso arranjar-lhes um comboio especial!

 

- É mais simples ir por mar.

 

- Quero falar com Matilda, uma última vez.

 

- Para quê? As feridas que se reabrem continuamente nunca mais se curam.

 

- Queres ensinar ao teu czar o que ele deve fazer?

 

- Não. Quero... ser útil a um amigo. E quero poupar um desgosto a Matilda. Depois do vosso último encontro, Matilda tem estado muito calma. Está muito feliz por ir para Estocolmo. Majestade, por favor... deixai-nos partir por mar, amanhã.

 

Nicolau II disse que sim com a cabeça, em silêncio. Continuava de costas voltadas para Soerenberg e olhava para fora através da janela.

 

- Têm dinheiro que chegue? - perguntou de repente.

 

- Matilda tem os seus cachets e em Estocolmo põem-lhe uma casa à disposição. Eu tenho os rendimentos das minhas propriedades.

 

- E chega? Far-vos-ei um crédito na Tesouraria!

 

- Não precisamos de dinheiro, Majestade.

 

- No caso de terem falta, podes pedir qualquer quantia, Boria. - O czar voltou-se. Os seus olhos tristes estavam sem expressão. - Tinha pensado que nunca nos separaríamos, Boris Davidovitch. Que apenas a morte o poderia fazer. Já te via como general, sempre ao meu lado. Iríamos juntos à caça, andaríamos pelo mundo, ouviríamos boa música nas horas calmas ou então jogaríamos partidas de xadrez. Ajudar-me-ias a educar os meus filhos! E, em vez disto, pedes a demissão do Exército e pões-te a viajar de um teatro para o outro! Mas isso será vida para um soldado?

 

- Sim... se for vivida ao lado de Matilda!

 

- Venceste. - Nicolau II encolheu os ombros. - Que Deus te acompanhe, Boria! Que o Céu vos abençoe a ambos!

 

Voltou-se de novo e foi até à janela. Baixinho, com a voz a tremer, depois de uma longa pausa, disse:

 

- Agora, a minha solidão vai ser ainda maior... Soerenberg deixou o gabinete nas pontas dos pés. Estava quase a chorar, mas não se envergonhava. Para Rosalia Antonovna era inconcebível ir ao porto das antigas galeras ver a sua filha subir para um barco à vela e dizer-lhe adeus enquanto a conseguisse ver a afastar-se. Não, era mesmo inconcebível!

 

Depois de quatro dias passados a fazer malas, a correr de um lado para o outro, a gritar e a gemer à direita e à esquerda, a Bondareva estava à beira de uma crise de nervos. Chorou um pouco, rasgou o xaile, como fazem geralmente as viúvas, e depois ficou como que paralisada. Era evidente que, naquelas condições, não a podiam levar ao porto, porque uma vez ali só poderia escolher entre duas possibilidades: ou deixar que o coração se despedaçasse ou então saltar para a água e ir a nadar atrás do barco de Matilda. Em ambos os casos, isto significava a sua morte.

 

Mustin, o anão, tomou conta dela de uma forma comovente. Preparou-lhe chá com muito rum dentro e ainda lhe juntou vodca; pode-se imaginar o efeito. Em breve, Rosália Antonovna ficou completamente embriagada, e era assim que estava quando Matilda e Boris se foram despedir.

 

- Era a única solução - disse Mustin. - Não conseguiríamos segurá-la nem que a prendêssemos com correntes! Que Deus vos acompanhe! Prometo-vos que tomarei conta dela. Estou em condições de a aguentar. Quem é que lhe resta no mundo? Pode insultar-me à vontade: eu tapo os ouvidos! Que Deus vos abonçoe!

 

Matilda beijou a mãe nos cabelos grisalhos, abraçou-a, parou de repente e correu para fora.

 

Durante a curta viagem de carruagem pararam ainda uma vez diante da catedral, rezaram ambos diante do ícone dourado e pediram a um sacerdote, que não os conhecia, para os abençoar, como se fossem um casal de mujiques. Quando, a seguir, meteram dez rublos na caixa das esmolas, o pope, espantado, voltou a abençoá-los.

 

Nesse momento, o czar Nicolau H, que tinha acabado de fazer uma visita oficial à Escola de Oficiais do Palácio Menschikov, dirigia-se para o porto das antigas galeras.

 

Mandou parar perto de um armazém e entrou nele sozinho. Aproximou-se de uma janela, limpou as teias de aranha e, curvando-se para a frente, olhou para o molhe.

 

Descobriu um pequeno barco com a vela ainda descida. Alguns marinheiros estavam a descarregar uma carruagem que tinha chegado com malas e sacos: era a bagagem de Matilda Felixovna. Caminhando sobre uma pequena prancha, levaram tudo para bordo.

 

O czar respirou fundo. Esfregou os olhos, encolheu os ombros e puxou para cima a gola do casaco de peles.

 

Um vento frio soprava do mar. A julgar pelas aparências, aquele devia ser o último dia em que a via navegável ainda estava aberta. Durante a noite, iria gelar com certeza.

 

Pouco depois chegou uma outra carruagem.

 

Nicolau II curvou-se ainda mais para a frente. Viu Matilda descer; vestia uma longa capa de peles. O comandante do barco recebeu-a, e depois subiram juntos, rapidamente, para bordo. Boris Davidovitch subiu imediatamente atrás. A seu lado, subiu um homenzinho com um grosso capote e um barrete de lã na cabeça. Tinha também um tapa-orelhas. Era o grande Aronov.

 

Desapareceram todos no barco, depressa de mais para Nicolau.

 

A prancha foi puxada para bordo, os cabos foram desamarrados, a vela começou a abanar e o barco afastou-se lentamente do molhe. Só então, já ao largo, as velas incharam em toda a sua grandeza e potência, resplandecendo ao sol: eram vermelhas, um vermelho tão insólito que Nicolau II ainda se inclinou um pouco mais para a frente na janela em ruínas, continuando a olhar para a embarcação.

 

Esta deslizou majestosamente no sulco aberto no gelo. Destacando-se no fundo azul do céu, a vela vermelha parecia uma enorme mancha de sangue, que se reflectia na água e no gelo.

 

«É sangue do meu coração», pensou Nicolau com grande mágoa. «Uma gota do meu sangue vai contigo, Matilduschka!»

 

O czar pôde finalmente chorar, como uma criança que cai e vê correr o próprio sangue. «Matilda, que o Senhor te proteja...»

 

Embaraçado, levantou a mão; e saudou a vela que se afastava. «Isto é tudo o que me resta de ti», pensou. Uma mancha vermelha. «Esta cor jamais me abandonará. Tornar-se-á o meu próprio destino! Tenho um pressentimento... O meu fim tingir-se-á de vermelho...»

 

Matilda estava de pé debaixo da vela. Procurou abrigar-se do vento dentro da cabina e, entretanto, continuava a olhar para trás, para a cidade, que se ia tornando cada vez mais pequena. Os perfis das torres e das cúpulas destacavam-se no céu, os grandes palácios e os edifícios públicos, o Grande e o Pequeno Neva, com as numerosas pontes, as ilhas com os seus imensos bosques... Aquela cidade era chamada «a Veneza de Leste». A sua beleza não se podia descrever.

 

Um hino à eternidade da Rússia.

 

Ao seu lado, estava Boris Davidovitch, que a tinha abraçado.

 

Aronov estava sob a coberta e tossia. Tinha já partido tantas vezes daquela forma de Sampetersburgo que não experimentava qualquer emoção perante o espectáculo da cidade que lentamente desaparecia. Estava sentado no seu beliche, bebia chá quente e preparava-se para o inevitável e insuportável enjoo.

 

Conhecia-o bem. Todas as vezes que tinha de viajar por mar - coisa inevitável quando tinha de ir a Inglaterra daí a nem sequer uma hora começava a sentir-se mal, com náuseas que quase lhe provocavam a morte. Por este motivo, odiava o mar e tinha escrito no próprio testamento que, depois de morto, o lançassem à água.

 

«Desta forma molestá-lo-ei!», tinha escrito. «E para mim será um verdadeiro prazer sujar com o meu corpo esta água maldita!»

 

- Voltaremos a Sampetersburgo, não é verdade, Boria? - perguntou Matilda baixinho. - Mais cedo ou mais tarde...

 

- Sim. Mais cedo ou mais tarde. Com certeza...

 

- No fundo, vamos apenas viajar! A nossa pátria será sempre a Rússia...

 

- Sempre, Matilduschka.

 

- Vai levar muito tempo antes que regressemos?

 

- Quem sabe? Certamente não será no próximo ano.

 

- Não? - Olhou para Boris, espantada. Ele abanou a cabeça. - Em 1895 estaremos em Roma, Viena, Milão, Berlim, Londres e Paris...

 

- E onde moraremos? Sempre em hotéis?

 

- Chamitja Maximovitch alugará uma casa na Riviera. Nos arredores de São Remo. Ali há um clima temperado.

 

.Palmeiras nas calçadas sobre o mar, camélias nos jardins, perfume de jasmim no ar, e na tua frente o mar azul. Verás como te vais sentir bem!

 

- Longe da Rússia? Sem a Rússia? Como é possível, Boria?

 

- Habituar-nos-emos, meu amor... - Apertou-a contra si com mais força.

 

Ela encostou a cabeça ao peito dele e deitou um último olhar à cidade. O porto das antigas galeras já quase se não via. Só as torres das igrejas, com as suas cruzes douradas, ainda resplandeciam ao sol.

 

- Pode-se viver em qualquer lado quando se é feliz.

 

- E eu serei feliz?

 

- Farei tudo para que o sejas.

 

- Será difícil, Boria. Agora tu és tudo para mim, tens de ser tudo: pai e mãe, amigo e amiga, Sampetersburgo e a Rússia... não te parece de mais?

 

- Esqueceste qualquer coisa.

 

- Que coisa, Boria?

 

- Amante e marido...

 

- Pensei nisso, embora não o tivesse dito. - Levantou ambas as mãos e acenou à cidade. - Dá-me só um pouco de tempo, querido...

 

- Todo o que quiseres, Matilda. Estarei sempre contigo.

 

O pequeno barco tinha apanhado bom vento e deslizava velozmente. A margem estava cada vez mais longe.

 

Nicolau II ainda estava à janela e não tirava os olhos da embarcação. Já não conseguia distinguir o casco, mas apenas a mancha vermelha, que como um ponto no céu azul, parecia cintilar na sua direcção.

 

O czar levantou a mão pela última vez, num gesto de despedida. Depois voltou-se, pôs o chapéu na cabeça, tirou-o de novo, limpou as teias de aranha com a manga do casaco e foi uma última vez até à janela.

 

Havia ainda um pontinho, longe, muito longe, no horizonte.

 

Da felicidade que podia ter dado novo rumo aos acontecimentos ficava apenas uma vela vermelha. Nicolau saiu da casa, subiu para a sua carruagem e olhou para o cocheiro com ar grave.

 

- Para o Palácio Menschikov! - disse com dureza. O que é que você sabe desta última hora que passou?

 

- É como se nunca tivesse existido, Majestade! - respondeu o cocheiro com uma expressão impenetrável.

 

Capítulo décimo quinto

 

Matilda ficou uma temporada completa em Estocolmo.

 

O mundo inteiro seguia entusiasmado os triunfos que a acompanhavam por toda a parte. Os maiores teatros competiam para ter no cartaz o nome da Felixovna.

 

Chamitja Maximovitch esfregava as mãos. Aumentou os cachets e anunciou a todos os directores de teatro que seria uma sorte se tivessem a Felixovna nos seus programas.

 

A agenda de 1895 estava completamente cheia, os pedidos para 1896 estavam em lista de espera, que a cada dia se tornava mais longa. Nova Iorque fizera o seu pedido e preparava-se para receber a Felixovna como uma rainha; mas Aronov tinha subitamente dito que não.

 

- A América pode esperar! - disse com firmeza. Em 1896, estaremos de novo em Sampetersburgo!

 

- O quê? - perguntou Boris espantado.

 

- Dançaremos na Ópera Imperial! Em Sampetersburgo e em Moscovo! Tenho ouvidos espalhados por toda a parte. E alguém lhes sussurrou: «No próximo ano será a coroação oficial do czar!» O que seria uma coroação sem Matilda? Será o ponto culminante da sua vida artística!

 

- Ela já sabe? - perguntou Soerenberg.

 

- Não! Ainda não deve saber. Oh, Céus, ainda temos, um ano na nossa frente e amanhã a nossa menina pode partir uma perna! Ficaríamos afastados para sempre! Não devemos desafiar o destino, Boria! Mas também não devemos ficar demasiado tempo no estrangeiro. Sempre pela Europa. Devemos estar preparados para regressar à Rússia em qualquer momento. Se fôssemos para a América... teríamos aquele maldito oceano de permeio! Deixemos passar a coroação primeiro... e depois para a América! - Olhou Boris Davidovitch de soslaio. - Quando é que se casam?

 

- Nunca falamos nisso, Chamitja Máximovitch.

 

- E no entanto, dormem juntos.

 

- Não quero pressionar Matilda!

 

- Quem é que pode compreender isso? - Aronov esfregou as mãos. - Procura um pouco de calor na tua cama, como um passarinho doente, e depois voa para longe. O que é que poderá alterar isso?

 

- Matilda considera o casamento uma ligação indissolúvel.

 

- Pensa que, um dia, ela vai deixá-lo?

 

- Não! Mas para Matilda um matrimónio significa também fidelidade absoluta.

 

- Sabe bem que é o único homem dela!

 

- Também o serei no seu coração? Nos seus pensamentos?

 

- Niki - disse Aronov sem quaisquer reticências. Mas isso, agora, é uma coisa acabada! Você pensa que se pode viver com uma sombra? Que se possa estar casado com uma recordação?

 

- Não sei, Chamitja Maximovitch. Matilda é tão honesta que prefere calar-se, mesmo que a recordação ainda esteja dentro dela. Recentemente, quando leu num jornal que a czarina está grávida, perguntou-me com uma voz absolutamente calma: «O que teria Niki feito se eu tivesse ficado grávida?»

 

- Sim, o que é que ele teria feito? - repetiu Aronov. Os czares nunca foram muito delicados em casos desse tipo, e a pobre mãe normalmente desaparecia. Não acredito que Niki fosse capaz de fazer isso... Provavelmente teria comprado para Matilda uma propriedade em qualquer parte, ter-lhe-ia conferido um título nobiliárquico e... Olhou para Soerenberg com outros olhos. - Sim, provavelmente ter-lhe-ia pedido que casasse com ela e perfilhasse a criança! E o senhor tê-lo-ia feito.

 

- Sim! - respondeu Boris com voz firme.

 

- Se morrer antes de mim, mandar-lhe-ei abrir a cabeça com um bisturi, para ver se aí dentro há de facto um cérebro! Idiota! Parece mesmo que tem a cabeça vazia!

 

- Nenhum de vós me pode compreender! - disse Boris Davidpvitch. - É mesmo difícil.

 

- É incrível! - Aronov cerrou os olhos. - Tenho de ir ao oculista! Estou a ficar míope! Não consigo ver nenhuma auréola à volta da sua cabeça!

 

Diálogos como este desenrolavam-se muitas vezes entre os dois homens, mas não perturbavam a harmonia que se tinha criado entre eles e também Matilda.

 

Matilda Felixovna dançou em privado para a família real no Palácio de Estocolmo e recebeu inúmeras corbelhas de flores e presentes de todas as espécies. Estes eram acompanhados por bilhetinhos com convites ou então com propostas de casamento...

 

Um nababo indiano, que tinha ido a Estocolmo para consultar um especialista em gastrenterologia, ofereceu-lhe a sua imensa riqueza. Como antecipação enviou-lhe um elefante de ouro, do tamanho de um palmo, coberto de rubis, pérolas e diamantes. Só aquele objecto tinha mais valor que a casa alugada por Matilda na Riviera.

 

- E isto é só o princípio! - repetia, eufórico, o ávido Chamitja Maximovitch. - Esperem até chegarmos a Paris! E até irmos a São Remo e a Monte Cario! Os velhos ricaços farão bicha diante da tua porta... E quanto mais tu disseres que não... tanto mais eles abrirão os seus bolsos! Os homens conseguem ser incrivelmente imbecis! Isso, sim, isso é que vai ser uma vida...

 

Uma vez que era impensável que um agente como Aronov se dedicasse só à Felixovna, o velho vagabundo continuava a viajar frequentemente para colocar, aqui e além, os seus representados. Era agente de quatro tenores, três barítonos, três baixos, seis sopranos, um meio-soprano e dois contraltos, e ainda três soubrettes; e, além disso, quatro bailarinos e duas bailarinas, todos muito famosos, mas que estavam longe de alcançar a categoria de Matilda.

 

Entre todos, aqueles que Aronov menos suportava eram os tenores. Embora as cantoras costumassem dar-se muitos ares, os tenores ultrapassavam-nas a todas. Chamitja Maximovitch lamentava-se muito destes «artistas» e nunca parava de repetir:

 

- Quando o Céu dá a alguém de presente uma voz divina, ao mesmo tempo paralisa-lhe o cérebro! Estes tenores! Olhem para Batista Capucci - gordo como uma barrica, e com dois metros de altura. Mas quando canta quase parece que os bastidores e os cenários se vão desmoronar. E o que quer ele? O papel de Siègmund na Valquíria. O papel de um herói jovem e corajoso... ele, que deve pesar uns cento e cinquenta quilos e é todo gordura e nada de músculos! E porque quer aquele papel? Porque no fim do primeiro acto tem de beijar Eugenia Labroche, que tem o papel de Sieglinda, e gerar com ela um filho... naturalmente apenas na ficção da ópera! O enérgico Siègmund! A Labroche é uma mulher maravilhosa e bem casada. Neste ponto não há nada a fazer. E este Capucci ficou completamente louco por ela depois de terem cantado juntos no Otelo e ela ter aparecido diante dele em camisa de noite para ser estrangulada. E ainda não tinha descido completamente a cortina e já a Labroche dizia a Capucci: «Afaste-se, está todo suado!» Mas eu pergunto: que tenor não suaria no papel de Otelo, todo pintado de negro, e à vista da Labroche? E qual foi a consequência de tudo isto? Capucci quer que eu lhe arranje maneira de cantar, em Roma, com a Labroche. Com ele no papel de Siègmund! Só por causa da cena em que a pode apertar com força! O Siègmund com toda aquela gordura... Envergonho-me só de pensar nisso!

 

Batista Capucci não era o único tenor que tinha o condão de enervar Chamitja Maximovitch. Havia um outro que, onde quer que se encontrasse, exigia um medicamento especial com mentol para fazer gargarejes, que misturava com sumo de ananás fresco. Com aquela mistura, refrescava a garganta antes de cada entrada em cena e depois engolia tudo. Se faltava o medicamento ou o ananás, era uma verdadeira tragédia. O tenor ficava sem voz e pedia que lhe levassem uma corda para se enforcar...

 

- A minha vida é terrível - disse, uma vez, Aronov, no regresso de Paris para Estocolmo. - Mas também maravilhosamente bela! Consegui que Tino Mandula cantasse O Trovador na Ópera! Um verdadeiro triunfo, digo-vos eu! E o que fez Tino? Nem sequer esperou que a cortina baixasse para se dirigir ao intérprete do conde Luna, o magnífico Piero d’Angela, dar-lhe um pontapé nas canelas e dizer-Ihe: «Você fez durar a nota final um segundo mais que a minha!» Deixo-vos imaginar o que aconteceu quando a cortina se fechou! Mas foi belo...

 

Durante aqueles meses, Matilda viveu na sua casa branca perto do mar. Levava uma existência muito reservada; Boris tinha-a ensinado a andar a cavalo e quando tinham tempo livre cavalgavam ao longo da costa, atravessando bosques luminosos, passando as dunas de areia, com o mar sempre na sua frente.

 

Recebiam algumas cartas de Mustin, cheias de notícias sobre Sampetersburgo. Contava novidades, mas nada que se relacionasse com o czar.

 

Rosália Antonovna, que não sabia ler, pediu a Mustin que escrevesse também por ela e contasse o que lhe tinha acontecido. O chefe da polícia tinha ido em pessoa ter com ela para lhe exprimir a sua gratidão pela discrição com que Matilda se tinha ido embora e ela aproveitara a ocasião para expulsá-lo de casa.

 

«Foi uma coisa tremenda», escreveu Mustin, logicamente sem que a Bondareva, que não sabia ler, o soubesse. «Penso que o chefe da polícia só agora conhece todas as palavras que vulgarmente se usam no mercado! Uma verdadeira enxurrada! Um rio imparável! Nunca teria acreditado que houvesse tanta imaginação na língua russa! Toda a Sampetersburgo diz que Rosália Antonovna é uma pessoa original, porque todos a conhecem mas ninguém a convida para uma soiree. Mas também quem se atreveria a fazê-lo? Com a retumbante franqueza que lhe conhecemos, faria explodir todos os salões! Mas eu admiro-a muito! No fundo, é melhor na minha tarefa que eu: ela é o verdadeiro bobo da corte. Diz a todos como são e quem são... e não há nada mais cómico que a sacrossanta verdade!»

 

No ano de 1895, Matilda dançou em Roma e em Viena, em Londres e em Berlim, em Monte Cario e em Dresda.

 

O rei da Saxónia recebeu-a depois do espectáculo no seu camarote e acariciou-lhe as faces.

 

- Dançou muito bem! - disse-lhe com grande afabilidade. - Comoveu-me muito. Volte quando puder...

 

Chamitja Maximovitch, por sua vez, foi condecorado. Pôs a medalha junto a todas as outras que já possuía. Não ficavam muito bem sobre o seu fato e não ligavam com a cara mal barbeada.

 

Em Abril de 1896, Matilda Felixovna, que se encontrava na Ópera de Madrid, recebeu um telegrama de Sampetersburgo. Vinha da Casa Imperial e tinha sido enviado pelo novo ajudante-general do czar.

 

«A 9 de Maio do ano corrente realizar-se-á a coroação de Sua Majestade o Czar. Para esse dia está prevista uma representação especial de O Lago dos Cisnes na Ópera de Sampetersburgo. Sua Majestade desejaria que Matilda Felixovna tomasse parte no ballet.»

 

Boris Davidovitch entregou o telegrama a Matilda, sem dizer nada. Ela leu-o e olhou em silêncio para Soerenberg.

 

«Cá está», queria dizer aquele olhar. «Sampetersburgo chama-me. A Rússia chama-me. O czar chama-me. Niki...»

 

- O que devo fazer, Boria? Ajuda-me, peço-te... Devo dançar de novo para Niki?

 

- Partiremos no comboio expresso de 22 de Abril disse Soerenberg com voz calma. - É natural que tu dances por ocasião da coroação. O czar chama-nos... Nós somos russos e devemos obedecer-lhe. - Tirou o telegrama da mão frouxa de Matilda e dobrou-o. - Estás contente?

 

- Eu... eu não sei, Boria...

 

- É um espectáculo como qualquer outro - disse Boris Davidovitch. - Casualmente realiza-se em Sampetersburgo. É isso que deves pensar, Matilduschka! E, por outro lado, Chamitja pedirá o mais alto cachet que já foi pago a uma bailarina! Não oferecerás nada ao czar...

 

O regresso de Matilda Felixovna não deu muito brado. Apenas sua mãe, Rosália Antonovna, muito mais magra, e o anão Mustin estavam na gare da estação quando chegou o comboio, um expresso vindo de Varsóvia.

 

Matilda, Boris e Chamitja tinham gasto quatro dias de viagem para irem de Madrid a Sampetersburgo.

 

Cansada, mas muito feliz, Matilda atirou-se ao pescoço da mãe e chorou de alegria. Boris Davidovitch notou repentinamente quanto a Bondareva estava mudada.

 

Enquanto a mãe e a filha se abraçavam e beijavam, sussurrou para Mustin:

 

- O que é que lhe aconteceu? Está muito mudada. Muito mais magra! É devido à tristeza por Matilda estar tão longe?

 

- Não foi só por isso. - O rosto de Mustin estava sério e preocupado. - O médico já a visitou três vezes. Disse-Ihe que era uma espécie de consumição. E logo ela! E que não há nada a fazer... É como se dentro dela, no seu estômago, estivesse qualquer coisa que vai sempre crescendo e lhe tira toda a energia. O médico disse que se trata de um cancro! Operá-la não faz sentido. É já muito tarde. No princípio não se dá por nada e, quando se têm os primeiros sintomas, o mal está já tão avançado que já não se pode fazer nada para o curar. E nem sequer se pode falar de alívio! Foi o que o médico me disse. - Mustin tinha uma expressão magoada no rosto. - Ela não sabe nada! Foi-lhe dito que se trata de uma questão nervosa. Ela acreditou. Está quase completamente convencida. Por outro lado, não há nada que não a excite e a faça andar furiosa!

 

No Palácio Stroitsky, os quartos estavam todos enfeitados com flores. O velho cocheiro beijou a mão de Matilda e chorou de alegria por voltar a vê-la.

 

Do czar não havia nenhuma notícia. Nenhuma corbelha de flores, nenhuma carta.

 

- Sabe que voltaste - disse Mustin. - Pediu para ser informado. Neste momento não pode fazer mais nada. A preparação para a coroação, o nascimento da primeira filha...

 

Matilda abanou a cabeça em silêncio. Tinha lido no jornal quando estava em Roma: em Novembro de 1895 tinha vindo ao mundo a grã-duquesa Olga. As fotografias mostravam um czar radiante e uma pálida, bela e sorridente czarina. Um casal maravilhoso.

 

Matilda olhara para a fotografia durante muito tempo e depois tinha posto de parte o jornal. Estranhamente, a visão do czar feliz já não lhe fazia mal... Ficou feliz pela pequenina Olga, foi à Basílica de São Pedro e acendeu uma grande vela pela recém-nascida.

 

Tâmara Jegorovna continuava a dar aulas na Escola de Bailado com a sua costumada severidade e conhecido afecto materno.

 

Havia por lá mais talentos, que prometiam grandes carreiras se os jovens tivessem a necessária força interior para considerarem o ballet como um sacrifício sublime. Isto significava exercitarem-se de todos os pontos de vista, sem nunca se concederem uma folga, até ao esgotamento, até terem os músculos trémulos e os ossos quebrados. Ninguém se podia tornar um grande artista sem sofrer!

 

A Jegorovna levou Matilda a visitar a sua Escola de Bailado, mostrou-lhe com orgulho as futuras bailarinas e pediu a algumas que dessem uns passos de dança.

 

Delgada e tímida como sempre tinha sido, mas agora rainha da dança, Matilda sentava-se na pequena poltrona dourada e olhava para os jovens bailarinos.

 

A sua memória recuou até àquela tarde em que o czaréviche visitou a escola e uma jovem aluna dançou na sua frente, depois imobilizou-se numa profunda vénia e desmaiou quando o herdeiro do trono lhe beijou a mão.

 

Só tinham passado três anos?

 

Não teria passado um século?

 

«Oh, Niki, como podem tornar-se longos três anos na memória quando se resolveu acabar com o passado!» Aquilo que aconteceu perde os contornos e até a recordação de felicidade passada se esfuma...

 

«Eu amo Boria, amo-o de verdade, mas nunca casarei com ele. Sei que é absurdo, mas penso que sou o tipo de pessoa que nunca poderá casar-se. Não posso explicar... sinto-o apenas.»

 

Na manhã seguinte, Matilda foi visitar a Ópera Imperial.

 

Ali também foi recebida como a grande artista que se dignava dançar por ocasião da coroação do czar.

 

No gabinete do director submeteram à sua aprovação os esquemas e o esboço da coreografia; o guarda-roupa agradou-lhe muito. Enrico Cecchetti, o professor da Escola de Bailado, pô-la diante de uma longa lista de nomes. Podia exprimir os seus desejos e dizer abertamente com quem preferiria dançar.

 

O grande Marius Petipa tinha apenas acompanhado os trabalhos de preparação da coreografia. Depois partiu para Moscovo, onde o esperava a preparação da segunda parte das festas da coroação.

 

Como a coroação do czar continuava a ser segundo os ritos de Bizâncio, adoptados em Moscovo na coroação de Basílio III no século XV, a cidade já vivia há semanas num estado de febril agitação.

 

As igrejas do Kremlin tinham sido ornamentadas, o Kremlin brilhava no seu maior esplendor, estudavam-se planos para a distribuição das pessoas que estariam presentes. Calculava-se que mais de um milhão de russos iriam acorrer para aclamar o seu czar... Uma festa imponente, com a qual as duas últimas coroações não podiam entrar em confronto.

 

Petipa pensava fazer representar também em Moscovo O Lago dos Cisnes e queria verificar pessoalmente as possibilidades que havia para um grande sucesso.

 

- Por mim está tudo bem... - disse Matilda com modéstia. - Tenho um único desejo: quero ficar em Sampetersburgo...

 

Aquelas palavras tiveram o mesmo poder que uma carga explosiva.

 

Não serviam de nada as portas fechadas: na Rússia dos czares, os espiões da polícia estavam sempre, e em toda a parte, em actividade; e, porque ninguém confiava em ninguém, ao difundirem-se as ideias revolucionárias, e sobretudo porque a corte imperial estava cada vez mais insegura de dia para dia, esta observação da Felixovna foi imediatamente relatada a quem de direito e interpretada com muita preocupação.

 

Na manhã seguinte, parou uma carruagem na frente do Palácio Stroitsky e um homem robusto, vestido à civil com um chapéu alto na cabeça, entrou em casa.

 

Quando o viu, o mordomo manifestou algum pânico e apressou-se a ir anunciar o visitante.

 

- O senhor chefe da polícia acabou de chegar - disse com ar contrariado.

 

Rosália Antonovna, que estava naquele momento a beber o seu chá e a comer a custo uma fatia de bolo mil-folhas há semanas que tinha perdido a sua sagrada alegria de comer, coisa que a deprimia bastante - atirou o bolo à parede, pôs as mãos nas ancas e berrou:

 

- Que venha! Aquilo que perdeu na outra vez pode reavê-lo hoje tranquilamente: sairá a voar da minha casa!

 

O chefe da polícia, que se lembrava muito bem da última visita à Bondareva, tinha-se prevenido. Levava uma grande caixa de bombons, que segurava diante de si como um escudo, mas não se sentia muito tranquilo apesar de ir atrás daquela doce defesa.

 

Era sabido que se conseguia chegar mais facilmente junto da Bondareva quando, antes de se falar com ela, se lhe oferecia qualquer coisa de comer. Foi por isso que o chefe da polícia ficou muito surpreendido quando a ouviu berrar:

 

- Os bombons não servem de nada, seu vagabundo de uma figa! Sinto-me mal só de olhar para eles. O meu estômago está assim tão sensível por culpa vossa. O que é que quer desta vez?

 

- A vossa ajuda materna, Rosália Antonovna!

 

- Não se perca em rodeios...

 

- Matilda Felixovna ameaça tornar-se de novo um problema...

 

- Já sabia que ia parar aí! Mas desta vez é o senhor que vai ter de sujar as próprias botas, meu caro! Matilda veio por expresso desejo do czar! De outra forma nunca teria regressado! Nunca! Também já está farta de caras como a sua!

 

- Terá de dançar na coroação...

 

- Não me diga que já sabe! gritou Rosália, sarcástica. Ai, como trabalha bem a nossa polícia!

 

- E depois tem de voltar para Madrid...

 

- Irá para Nova Iorque! - corrigiu-o Rosália com orgulho. - Sim, vai conquistar a América!

 

- E não sabe mais nada? - perguntou o chefe da polícia com expressão triste.

 

- O que é que eu devo saber?

 

Rosália Antonovna inclinou-se para a frente. Há já semanas que tinha grandes dores no estômago. A dor não era insuportável, não ardia, mas estava ali como um peso, como se tivesse engolido uma pedra.

 

Cada vez com mais frequência, a Bondareva tinha de arrotar e depois ficava-lhe um amargo na boca, que ela procurava disfarçar bebendo chá ou então aguardente. O médico tinha-lha proibido totalmente, mas Rosália dizia que ele era um verdadeiro idiota e de vez em quando bebia um belo gole da garrafa, que lhe dava mais alívio que qualquer dos remédios que ela tinha de comprar a um farmacêutico vesgo. De facto, ele não lhe era simpático, e esse era mais um motivo para Rosália deitar fora os medicamentos.

 

- Parece que Matilda Felixovna manifestou o desejo de ficar em Sampetersburgo. - O chefe da polícia deixou escapar um grande suspiro. - A coisa encontra-se já tão adiantada que o seu agente, Aronov, está a tentar fazer um contrato com o director da Ópera. Se não o impedirmos... pode ser uma verdadeira catástrofe! A czarina viria a saber o que tinha acontecido no passado...

 

- E o que é que aconteceu, verme? - começou a gritar a Bondareva. - O que foi? Tome conta, senão faço-o em pedaços...

 

- Matilda Felixovna tem de voltar a partir imediatamente a seguir à festa da coroação! - disse o chefe da polícia com obstinação. - Tem de dissuadi-la de ficar em Sampetersburgo.

 

- Eu? Logo eu? A sua mãe, que só estava à espera do momento em que pudesse rever a própria filha? Desde que se foi embora já acendi quarenta e nove velas e amanhã vou acender a quinquagésima, uma vela tão grande como um obelisco!

 

- Temos de a afastar antes que possa perturbar a felicidade do czar...

 

Da parte do chefe da polícia, foi um verdadeiro erro ter dito assim directamente à Bondareva o que pensava.

 

Apercebeu-se disso de repente, quando viu voar para cima dele a chávena de chá, que só conseguiu evitar por graça do Espírito Santo.

 

- Fora! - gritou Rosália Antonovna. - E se a sua polícia quiser invadir a minha casa, porei canhões no telhado e mandá-los-ei disparar para que toda a Sampetersburgo saiba o que está a acontecer aqui dentro! Oh, o meu estômago!

 

Dobrou-se toda, com as duas mãos a apertar o estômago, e olhou para o chefe da polícia com os olhos a faiscar:

 

- Estas emoções não me fazem bem! Ai, os meus pobres nervos! Querem que eu morra, vocês todos! É por isso que traz uma cartola preta. Veio para me matar...

 

Não fazia sentido continuar a discutir com a Bondareva. O chefe da polícia atirou a caixa de bombons para cima de um sofá, pôs o chapéu alto na cabeça e saiu rapidamente da sala.

 

Ouviu atrás de si a Bondareva, que soluçava e gemia.

 

Parecia realmente doente, e isto desorientava-o. Tinha-lhe dado sempre prazer pensar que a Bondareva era indestrutível, como os muros dos palácios de Sampetersburgo.

 

Nessa noite, quando Matilda e Boris voltaram de um passeio a Petrogrado, foram acolhidos por qualquer coisa parecida com um conselho de família. Como Rosália Antonovna conjugava todas as instâncias na sua impetuosa pessoa, o tribunal era o mais pequeno possível, mas de grande força combativa. A presença de Mustin Fedorovitch não era uma surpresa - agora pertencia à família.

 

O anão e a mulher formavam o casal mais incrível que alguma vez fora visto na turbulenta Sampetersburgo.

 

- Informaram-te bem, mãezinha! - disse Matilda sem hesitar, logo que Rosália Antonovna acabou de contar a novidade com voz chorosa, mas também com um rancor encoberto. - Se for possível, fico em Sampetersburgo. Estão dispostos a fazer de mim a primeira-bailarina absoluta. O que posso eu querer mais?

 

- Mas o mundo inteiro está à tua espera! - gritou a Bondareva.

 

- Posso viajar sempre a partir de Sampetersburgo. Há comboios, navios. Quem sabe se um dia os homens não poderão também voar pelos ares...

 

- Estás louca! - balbuciou Rosália, que olhou para Boris Davidovitch à procura de ajuda. - Estás completamente louca! Vamos chamar um médico! Agora acha que os homens vão poder voar! Talvez para Moscovo, não é?

 

- Para Londres, para Paris, para a América...

 

- Socorro! Ela tem de ser amarrada! O meu pobre cisnezinho...

 

- Por que motivo é que não posso ficar em Sampetersburgo?

 

- Perguntas-me isso a mim?

 

- Por causa do czar?

 

- Tu o dizes! É casado, tem uma filha, há-de ter outros filhos...

 

- Quem é que o impede?

 

- Estão a ouvir esta insubordinação? - A Bondareva gemeu de novo. Aqueles espasmos, aquelas pontadas. Cada vez que te vir no palco, a recordação atormentá-lo-á! Cada olhar que te dirigir é uma infidelidade para com a czarina! E depois não ficará pelos olhares, vão encontrar-se de novo... Não se pode nem pensar nisso!

 

- Só quero dançar, mais nada! - disse Matilda Felixovna. - Já tenho experiência, mamã: o mundo é grande e belo, mas um russo só consegue viver na Rússia. E... tinha uma grande saudade onde quer que me encontrasse. Desviou o olhar da mãe para Mustin, e depois do anão para Boris. - Fico na Rússia, a menos que me queiram exilar...

 

- Pode acontecer - disse Mustin.

 

- Sem a vontade do czar?

 

- Sim. Existem tribunais que dão sentenças em nome do czar. Estão autorizados a fazê-lo. Têm plenos poderes. O czar nem chegaria a saber para onde te tinham mandado. Nenhuma carta, nenhuma petição chegaria até ele! Far-te-iam desaparecer em completo silêncio.

 

- Mas toda a Sampetersburgo ouviria a minha voz! gritou a Bondareva.

 

- Seria a primeira a ser calada! E Boris Davidovitch também se iria juntar às «almas mortas» em qualquer parte da Sibéria. A mim, esmagar-me-iam como uma pulga. Quem iria sentir a minha falta em Sampetersburgo? Mustin olhou tristemente para os seus braços compridos. Nicolau Alexandrovitch raramente me recebe. A nova czarina nem me pode ver e quer que ele se liberte de mim. Ela tem os seus protegidos e os seus conselheiros. Quando me encontra fica com cara de quem viu um sapo. Acabaram-se os meus dias felizes no Palácio Anitschkov. Dou conta disso de dia para dia. Os amigos abandonaram-me. Os bajuladores desapareceram, à procura de novos benjamins. Puseram-me a um canto, um objecto de decoração, como os velhos uniformes e as armas. Se ficasse petrificado, ninguém daria por isso. Assim vão as coisas, meus caros! O czar? A mão forte? O czar fica contente quando o deixam em paz. Espera poder reinar como o pai, o urso, e não se apercebe de que à sua volta as coisas estão a mudar. Sobretudo as novas gerações querem qualquer coisa de novo, que sejam concedidos mais direitos ao povo. - Mustin balançou a cabeça de um lado para o outro. Continuou:

 

Eu amo o meu senhor. Poderei morrer por ele... mas, embora fiel, não sou cego. Foi um erro fazerem-no czar. Era melhor terem-no deixado ir viajar pelo mundo como representante dos Romanov. Não teria feito nada útil, mas pelo menos viveria feliz e contente. Coisa que nunca conseguirá a partir de agora!

 

- E que tem isso a ver com Matilda? - perguntou Rosália Antonovna.

 

- Muito, mãezinha! - Mustin esfregou as mãos. - Podem suprimir Matilda mesmo sem o czar estar de acordo! Há tantas formas de matar uma pessoa...

 

- O que pensas disto, Boria? - perguntou a Bondareva.

 

- Só quero que Matilda seja feliz - respondeu Boris Davidovitch. - Nada mais. E se ela só pode ser feliz em Sampetersburgo, então deve ficar aqui. Estejamos a postos para a proteger.

 

- Assim seja, então! - Mustin esfregou o grande nariz e fez uma cara muito séria. - Estamos cercados por um exército de inimigos. A Rússia está destinada a mudar... Julgo que assim como está já não dura muito tempo!

 

Os ensaios decorreram sem acidentes. Desde o primeiro bailado, Petipa apercebeu-se de que não tinha nada para ensinar a Matilda. Ocupou-se apenas dos outros solistas e do corpo de baile. O partenaire da Felixovna, o jovem bailarino Vladimir Eugenovitch Samkaijn, também aluno de Tâmara Jegorovna e para o qual se previa uma carreira maravilhosa, era igualmente perfeito. Embora fosse um indivíduo musculoso, dançava com uma leveza incrível, elevando-se no ar e voltando a cair com um toque muito delicado.

 

Os preparativos para as festas continuavam em ritmo acelerado. A cidade ia ficando enfeitada, enquanto de todas as direcções as pessoas se metiam a caminho de Sampetersburgo. É em Moscovo passava-se o mesmo...

 

Para a entrada de Nicolau II no Kremlin estava prevista uma festa de tal esplendor que iria conquistar um lugar seguro na história da Rússia. A lista das festas e das cerimónias tinham como data de início o dia 9 de Maio e como dia do encerramento 25 de Maio de 1896. Para cada dia estava prevista uma coisa nova, demonstrando a inesgotável riqueza da Rússia.

 

O 18 de Maio seria um dia de grande esplendor. De acordo com a tradição, a grande feira de Moscovo começava precisamente naquele dia. Nessa ocasião, a Praça das Manobras era posta à disposição dos vendedores; tratava-se de uma área enorme que tinha como única desvantagem ser atravessada por profundos buracos que serviam às tropas quando se exercitavam na luta corpo a corpo ou quando fingiam acções de guerra, com construção de refúgios ou emboscadas em trincheiras.

 

A polícia de Moscovo ordenou que fosse cavada uma vala com quinze metros de largura e oito de profundidade entre a zona destinada à feira e o campo aberto, para impedir que as multidões tomassem de assalto as tendas dos vendedores.

 

O czar Nicolau II tinha muito desejo de mostrar ao seu povo quanto se sentia ligado a ele. Tinha prometido um presente a todos os que viessem a Moscovo para a sua coroação: comida e cerveja, mais um prato e uma taça de estanho onde estavam gravadas a águia imperial e as iniciais do casal de soberanos. Um presente no valor de milhões, uma vez que era esperado pelo menos um milhão de visitantes.

 

As autoridades já trabalhavam há semanas para que todo o programa fosse cumprido.

 

O governador-geral de Moscovo, o grão-duque Sergei, irmão do defunto czar Alexandre III, tinha assumido o encargo de coordenar as várias manifestações. Preocupara-se também em reforçar as forças policiais, porque conhecia muito bem o seu povo. As festas do czar Nicolau I, havia setenta anos, tinham-se transformado numa tragédia, tantos tinham sido os mortos e os desaparecidos. E naquela altura, em comparação, as festas eram de pequenas dimensões. Só nos últimos tempos é que se tinham transformado em verdadeiras festas do povo, e não tinham paralelo no mundo inteiro. Assim como a Rússia era gigantesca, a festa de Maio tinha de ser igualmente um acontecimento imponente.

 

Enquanto tudo se preparava para aquelas semanas de festa, relizou-se o ensaio geral de O Lago dos Cisnes, a 7 de Maio. O camarim de Matilda encheu-se de flores. O elegante mundo de Sampetersburgo, e em primeiro lugar os jovens representantes da alta aristocracia, responsáveis por terem introduzido na sociedade russa um estilo «parisiense», tinham enviado corbelhas com as mais raras flores; as suas homenagens eram acompanhadas por cartões-de-visita em que se pedia «a honra de uma ceia» num dos lugares mais requintados, onde se comiam manjares dignos de um rei e nunca se perguntava o preço do champanhe.

 

Matilda Felixovna estava habituada a tudo isto; as coisas não eram diferentes em Roma, Londres, Milão ou Berlim. Ela estava habituada a dar a Boris as cartas que recebia, as quais nem sequer lia; ele encarregava-se de lhes responder.

 

Cada um daqueles senhores, ávidos de amor, recebia a mesma resposta, que, tanto quanto parecia, produzia sempre um notável efeito. De facto, nunca mais se ouvia falar daqueles homens de bem...

 

Boris Davidovitch mandava o seu secretário escrever:

 

«Ilustre Senhor Jefim Ivanovitch Voronoveev, conde de Tjilma.

 

O vosso convite a Matilda Felixovna passou para a minha competência. Com grande alegria aceitamos o convite para cear, mas queremos propor-lhe como lugar e horário do encontro não o Palácio Lila às onze da noite, mas o campo de Kamennij Ostrov, na margem do Grande Neva, amanhã de manhã, às seis horas.

 

Para ir ao seu encontro, proponho uma distância de vinte passos. Um oficial da guarda absolutamente neutro levará as pistolas,

 

Ò meu nome é Boris Davidovitch von Soerenberg, durante algum tempo capitão da Guarda Imperial dos Hussardos e quatro vezes condecorado com a medalha de ouro para o melhor atirador de pistola. Matilda Felixovna é a minha noiva.

 

Para mim será um prazer e uma honra ser o artífice, amanhã às seis horas, do vosso encontro com a Eternidade.

 

Com os meus cumprimentos

  1. D. VON SOERENBERG.»

 

Até então nenhum cavalheiro se tinha apresentado ao encontro das seis com Boris. Até em Berlim, onde Boris tinha esperado uma reacção absolutamente prussiana e uma prova de um heroísmo fanático, a sua carta tinha ficado sem resposta.

 

Apenas em Madrid lhe tinham respondido a uma carta, três dias mais tarde. No sobrescrito vinha uma enorme orelha, coberta de pêlos negros e de sangue seco; era a orelha de um toiro. O remetente escrevia:

 

«Em vez de matar o cavalheiro, preferi matar o meu touro mais bonito. Saí bastante ferido deste encontro, mas por fim consegui vencê-lo. A orelha pertence-lhe, Senor, como recordação de um homem que, à sua maneira, salvou a própria honra.»

 

Durante o ensaio geral, Matilda recolheu os cartões-de-visita que acompanhavam as corbelhas de flores que tinha recebido. Impressionou-a sobretudo um ramo de tulipas vermelhas armado com um ramo de espinheiro vermelho. O ramo era tão insólito e parecia tão simples no meio das orquídeas e das rosas que Matilda foi levada a abrir e ler a carta que o acompanhava.

 

Tratava-se de um manifesto de um grupo revolucionário desconhecido, que dizia chamar-se «Base Rússia Iluminada», e onde era preconizado o fim do domínio dos czares.

 

«A Rússia libertar-se-á do jugo dos ricos que estão agora no Governo. A propriedade privada será abolida e os pobres terão finalmente o direito de viver. Liberdade para o povo! Morte aos exploradores!»

 

E no fim desta proclamação, que estava impressa, alguém tinha acrescentado à mão:

 

«Admiro a sua arte, Matilda Felixovna. Mas será desprezada se se tornar a boneca bailarina dos ricos. E será isso que lhe acontecerá se ficar neste país podre! Deixe a Rússia logo após a coroação! Não quero que lhe seja feito mal! Não deve ser sacrificada no altar da revolução! E a revolução está à porta! Muito mais perto do que todos pensam. Já hoje podemos afirmar: a coroação do parasita Nicolau II será a última coroação de uma czar na Rússia! Matilda... espere fora da Rússia! Chamá-la-emos de volta...»

 

Matilda dobrou o manifesto e levou-o a Boris, que estava no gabinete do director à espera do começo do ensaio geral. Leu a carta, mantendo um ar sério, depois passou-a a outro e esperou que todos os que estavam no gabinete tivessem lido a carta.

 

- Que impertinência! - disse o grão-duque Alexey indignado. Estava ali incógnito, preso de um certo interesse por uma bailarina do corpo de baile, uma graciosa rapariguinha que alegrava a sua velhice. - Devíamos passá-los todos a ferro e fogo! Niki é muito fraco! Devíamos engaiolar essa canalha, metê-la num vagão bem seguro e mandá-la para a Sibéria! Podia desbravar os bosques, secar os pântanos, partir pedra... Pelo menos serviria para alguma coisa! Que corja!

 

- Não creio que resultasse! - Soerenberg voltou a pegar na carta. - É como a hidra: corta-se-lhe uma cabeça, nasce logo outra nova! Receio que não baste mandá-los para a Sibéria para impedir que as suas ideias se espalhem!

 

- Soerenberg, parece-me que já o contagiaram a si também! - exclamou o grão-duque surpreendido. - A hidra também foi derrotada... depois de lhe terem queimado as feridas! E não lhe cresceu mais nenhuma cabeça! E nós faremos exactamente da mesma maneira! Expulsaremos os vermelhos um a um! Exterminá-los-emos! O Exército está do nosso lado!

 

Boris Davidovitch calou-se. Sabia que as coisas não eram bem assim. Em vários regimentos conspirava-se em segredo. Na Marinha, a palavra de ordem dos vermelhos passava de navio para navio. Não se podia prever como reagiria o Exército se rebentasse de repente uma revolução entre o povo...

 

- Pensa que Matilda cederá face a esta terrível ameaça? perguntou o director da Ópera Imperial.

 

- Não! Ficamos em Sampetersburgo.

 

- Bravo, Boris Davidovitch! - O grão-duque Alexey bateu as palmas. - Você merece uma condecoração!

 

- É a Matilda que a devem dar. - Soerenberg não temia nunca dizer a verdade. - Ela ficará! É só isso que conta! Concedamos-lhe (se Deus e a polícia o permitirem) alguns anos de felicidade.

 

- Mas isso é um mau presságio! - disse o grão-duque com voz rouca mas perfeitamente audível. - Dê-me essa porcaria de carta, Soerenberg. Quero levá-la ao meu primo! É preciso que falemos deste assunto e comecemos a preparar as nossas armas....

 

O ensaio geral foi um verdadeiro desastre.

 

Matilda Felixovna estava pouco concentrada, enganou-se no pás de deux, tropeçou e dançou a morte do cisne sem o mínimo sentimento. Petipa, que tinha voltado de Moscovo para ficar por dois dias, absteve-se de a censurar, como era seu hábito... Sabia da carta e, para espanto de todo o corpo de baile, fez de conta que não tinha percebido os seus erros.

 

- Peço-te que me perdoes - disse Matilda muito baixinho. - Sei que dancei muito mal. Mas estou um pouco nervosa...

 

- No palco?

 

- Farei muito melhor, Marius. Não tenhas medo! Quando o ensaio geral sai mal...

 

- Eu sei, eu sei! - Petipa sacudiu a cabeça.

 

A representação de O Lago dos Cisnes, que se efectuou a 9 de Maio de 1896, ficou memorável na história do ballet.

 

«A Felixovna», como então todos a chamavam, deixara de ser uma criatura humana para se transformar num cisne: era mesmo a rainha dos cisnes, que morre pelo amor de um homem.

 

- Nunca ninguém dançou assim - disse Petipa, que geralmente era muito crítico. - Meu Deus, esta mulher é uma verdadeira bênção!

 

O czar Nicolau II estava sentado no camarote, ao lado da czarina, cheia de jóias, bastante bonita, mas repassada por uma evidente melancolia. Tinha oferecido um filho à Rússia, mas era uma menina e não o herdeiro ao trono. E, entretanto, era só isso que esperavam dela. O destino da dinastia dos Romanov residia no seu regaço; dela dependia que o domínio dos czares continuasse...

 

Olhou para o palco, mas os seus pensamentos estavam muito distantes da sorte que esperava a rainha dos cisnes. O ballet agradava-lhe, mas nada mais.

 

Pensava na coroação, na sua entrada em Moscovo, no momento em que o imperador se iria ajoelhar na catedral do Kremlin e receber das mãos do metropolita a coroa de czar...

 

Então todos os sinos tocariam a rebate e milhões de pessoas se benzeriam para depois aclamarem o seu czar. Em que parte do mundo se passaria algo de semelhante?

 

A santa Rússia pertencer-lhes-ia a eles... A ele, o seu Niki, e a ela, a czarina Alexandra Fiodorovna.

 

Deus, protege-nos!...

 

Nicolau II, sentado na sua poltrona, olhava para o palco. Os músculos do rosto pareciam petrificados. Ninguém poderia adivinhar o que estava a pensar e a sentir naquele momento, ele, o homem mais poderoso do mundo, que já sentia sobre a própria cabeça o peso de uma coroa que ainda não usava.

 

O grão-duque tinha-lhe dado o manifesto recebido por Matilda. Mostrara-o ao seu séquito e ao seu amigo e conselheiro Pobedonoszev, que lera o texto entre dentes.

 

Nessa mesma noite, os espiões da polícia andaram por Sampetersburgo e por Moscovo a tentar descobrir alguma coisa sobre aqueles revolucionários. Na manhã seguinte já tinham sido presos trinta e sete suspeitos. Todos negavam, embora tivessem sido torturados e espancados.

 

Matilda obteve uma enorme ovação.

 

Depois todo o público se voltou para o camarote do czar e os presentes aplaudiram Nicolau II. Ele agradeceu, com o rosto sério e cheio de dignidade.

 

Só sorriu quando o seu ajudante-de-campo lhe sussurrou:

 

- Na frente da Ópera estão mais de dez mil pessoas. A cidade parece estar mergulhada em felicidade. O povo ama Vossa Majestade.

 

«Ama-me», pensou Nicolau. «Porquê?»

 

No camarim, invadido por uma maré de flores, Matilda não encontrou qualquer corbelha da parte do czar. Um oficial da Guarda estava à sua espera e logo que a viu entregou-lhe um sobrescrito, desaparecendo imediatamente. Com os dedos a tremer, abriu-o.

 

A letra dele!

 

«Foi um erro chamar-te! Teria sido melhor que nunca tivesses vindo! Peço-te: volta imediatamente para a Riviera. Fica o mais longe possível da Rússia. Receio por ti e pela tua segurança. A última imagem que tenho de ti é enquanto desaparecias sob a vela vermelha...»

 

Quando Boris entrou no camarim, Matilda deu-lhe a carta, sem dizer nada. Ele leu-a, restituiu-lha e perguntou:

 

- E agora?

 

- Eu sou russa - respondeu Matilda decidida. - Russa como milhões de outras pessoas. Fico em Sampetersburgo!

 

Capítulo décimo sexto

 

A decisão de Matilda Felixovna revelou-se sensata, visto que não houve qualquer revolução.

 

Mas a paz era ilusória.

 

Falava-se cada vez mais, e em mais lados, dos bolchevistas, um grupo radical guiado por um certo Lenine, mais tarde exilado na Suíça, donde dirigia todo o movimento.

 

Organizavam manifestações em Londres e Bruxelas; manifestos feitos chegar à Rússia através de canais clandestinos incitavam o povo à revolta contra a aristocracia no Poder e contra os grandes latifundiários.

 

Nos bairros mais pobres da cidade, numerosos agitadores andavam a sublevar a população, bandeiras vermelhas eram desfraldadas em todas as ocasiões festivas, nas praças dos mercados os homens reuniam-se para ouvirem p que lhes prometiam:

 

«Todos devemos ter que chegue para comer. A terra tem de ser dividida entre os camponeses. Os ricos têm de ser apeados do Poder. A monarquia deve ser abolida e deve ser formado um Governo do povo...»

 

«Têm muita razão», pensava Rosalia Antonovna, a qual de tempos a tempos ia ver o seu velho amigo Tikon Benjaminovitch Minaev. A viela não mudara, viam-se os mesmos rostos patibulares do passado - só Minaev é que tinha emagrecido muito; ficava sentado num banquinho na parte de dentro do seu balcão e tossia muito.

 

- Vou morrer como a minha querida mulher - disse à Bondareva. - A santa mulher que era Natalia também cuspia sangue e tossia até quase pôr os pulmões cá fora. O que é que eu posso fazer? O médico auscultou-me e disse-me: «Quantos anos tens?» E eu respondi: «Não sei bem. Ninguém se deu ao trabalho de registar a data do meu nascimento. Nasci e basta. Em seguida decidiram escolher o dia 15 de Maio como o dia dos meus anos. Maio é um belo mês e o dia do meio ainda é mais bonito. E o ano? Bem, digamos que tenho setenta e seis anos, ilustríssimo.» E sabes o que me disse o médico? «Parece-me uma linda idade! Quem é que quer chegar a velho? É natural que tussa e cuspa sangue. Deve estar contente por estar ainda vivo... mas pense na Eternidade!» Foi isto que ele me disse. Não me deu nenhuma pílula, nem xarope, nada de nada. Os jovens de hoje são assim: «Já viveu bastante!» Portanto, aqui estou eu, sentado à espera, até que, de tanto tossir, acabe por morrer...

 

Vendo-o assim, Rosália levava-lhe todas as semanas boas coisas para ele comer, carne assada, natas, bolos feitos em casa. Minaev devorava tudo. Engordou... e deixou de tossir.

 

Alguns meses mais tarde, começou a vender, em segredo, bandeiras vermelhas e um dia disse à espantada Bondareva:

 

- Sabes o que tu és? Uma porca capitalista! Agarra nos teus assados e some-te! Têm de pagar por tudo aquilo que nos têm feito passar!

 

Rosália Antonovna fê-lo repetir duas vezes; à terceira, deu-lhe uma tal bofetada que o pobre velho embateu contra a parede, enquanto a Bondareva gritava:

 

- Mas donde é que tu julgas que eu venho? Já te esqueceste que eu morei aqui contigo quase uma vida? Num quarto fedorento? Já não te lembras? Eu lembro-me muito bem, fica a saber!

 

O velho piscou os olhos, ofegou e disse:

 

- Agora reconheço a minha Rosália! O teu chapéu de plumas, p teu vestido de seda, as tuas bolinhas brancas... Ai, que horror!

 

Assim tinha acontecido com Minaev.

 

E de cada vez que a Bondareva voltava para casa, deixando atrás das costas o seu sombrio passado, sentava-se de mau humor numa das salas do seu luxuoso palácio e dizia a Mustin:

 

- Deus meu, somos verdadeiros parasitas! Sabes que uma família inteira podia comer durante dois meses se vendesse o meu chapéu? Os nossos cavalinhos têm a barriga cheia... e à nossa volta, milhares de crianças morrem de fome! É uma verdadeira injustiça! A riqueza não é repartida de modo justo!

 

- Assim disse Lenine! - O anão estava sentado num sofá do chamado Salão das Damas e comia uma maçã assada coberta de mel. - Mas que sejas tu a dizer tais coisas... no teu palácio!

 

- Eu envergonho-me de morar neste palácio!

 

- Mas não te sacrificaste uma vida inteira para chegar a isto? Como foi que criaste Matilda? Repousaste nem que fosse uma hora durante toda a tua vida? Não estiveste atrás da banca do mercado com qualquer tempo, chuva e tempestade, calor e frio? Não trabalhaste muito mais do que todos aqueles que hoje falam de revolução? Os copeques que hoje tens ganhaste-os honestamente, um a um... E agora envergonhas-te porque os ganhaste?

 

- Se se virem as coisas dessa maneira... - disse a Bondareva com um tom pouco convencido.

 

Na visita seguinte, levou a Minaev uma sopa de couves, que parecia ter dentro mais água que couve.

 

Minaev cheirou a panela, meteu um dedo lá dentro, lambeu-o e voltou-se para Rosália Antonovna com um olhar consternado.

 

- Mas isto é coisa para dar aos leitões! - disse. Nunca o devia ter dito.

 

A Bondareva gritou que tinha regressado à miséria, que tinha vivido de sopas feitas como aquela durante vinte anos

- e ainda estava viva! - e agora tinha-se tornado bolchevista e comia só os que os pobres podiam comer. Depois mergulhou a cabeça de Minaev na tigela e obrigou-o a engolir a sopa toda.

 

Depois daquela refeição do povo, o pobre velho tinha ficado tão aborrecido que se tinha deitado num divã das traseiras e quase não conseguia respirar. Rosália cobriu-o com a sua bandeira vermelha, levantou o punho fechado e gritou:

 

- A classe operária vencerá!

 

E depois de ter dito isto foi-se embora, deixando Minaev com os olhos esbugalhados.

 

Quatro semanas depois, o pobre velho estava morto.

 

O médico disse que fora uma hemorragia e admirou-se que Tikon Benjaminovitch tivesse vivido tanto tempo, com os pulmões naquele mísero estado. A Bondareva fez-lhe um funeral de senhor, numa urna toda de talha, em cima de um coche puxado por dois cavalos. O sacerdote que pronunciou a oração fúnebre chamou a Minaev uma alma santa. Como recompensa recebeu uma oferta de duzentos e cinquenta rubles para a sua igreja.

 

E assim foi passando o tempo.

 

Matilda era a primeira-bailarina absoluta de Sampetersburgo e ao mesmo tempo viajava pelo mundo inteiro, desejada pelos homens, invejada pelas mulheres, odiada pelas colegas por causa dos seus êxitos. Onde quer que dançasse, era coberta de flores e de presentes.

 

Chamitja Maximovitch Aronov, o empresário, quanto mais ganhava com Matilda mais amarrotado ia ficando. As percentagens que retirava para si dos altos cachets tornavam-no cada vez mais rico, mas aumentavam o seu mau humor. A maldição nem sequer o abandonou quando decidiu gastar o seu dinheiro jogando em Monte Cario: ganhava sempre!

 

A ligação entre Matilda e o czar tinha acabado completamente. Nunca mais houve mensageiros com cartas ou notícias, nem corbelhas de flores ou caixas com maravilhosos presentes. Agora viam-se apenas no teatro...

 

Nicolau II sentava-se no seu camarote, sério, fechado em si mesmo, cada vez mais isolado do mundo que o cercava... Matilda Felixovna, no palco, resplandecia de beleza, dançava muito leve, era aclamada, era a estrela mais brilhante do céu de Sampetersburgo!

 

Sob a direcção do grande Petipa, dançava nos papéis principais de Coppelia, Giselle, A Bela Adormecida, Raimonde, O Corsário, A Sílfide e, sempre, O Lago dos Cisnes.

 

Os únicos olhares que ela e o czar trocavam entre o camarote e o palco eram enquanto explodiam os aplausos e se ouviam as aclamações... Então Nicolau II aproximava-se do parapeito e batia palmas, ao lado da bela czarina; Matilda inclinava-se profundamente na frente do casal imperial. Às vezes, Matilda pensava: «Niki não tem bom aspecto. Não parece feliz.» E, no entanto, devia sê-lo. Já tinha três filhas: Olga, Tatiana e Maria. E a czarina estava outra vez grávida. «Porque estão os teus olhos de gazela tão melancólicos? Eu sei que amas Alexandra Fiodorovna! Pensas talvez no passado? O czaréviche e a bailarina? Eram outros tempos... Um capítulo da nossa vida: a fábula de Sampetersburgo...»

 

Quando nasceu a quarta filha do czar, à qual foi dado o nome de Anastasia, acabaram-se os bons tempos para o anão Urasalin. Apresentou-se no Palácio Stroitsky, sentou-se no seu lugar preferido, no sofá do Salão das Damas, e ficou a balançar as pernas. Rosália Antonovna, que ultimamente tinha emagrecido e continuava a lutar contra o «nervoso» do seu estômago, olhou para ele interrogativamente.

 

- O que foi que aconteceu? - Até a sua voz trovejante, de que todos tinham medo, tinha enfraquecido. Agora soava um pouco cansada, amável, como se viesse de muito longe. - Quer comer alguma coisa?

 

- Estou livre! - As palavras de Mustin fizeram parar Rosália diante da parede forrada a seda. - O czar concedeu-me a graça da minha liberdade! Já não precisam de mim. Já estou a mais. Há tantos bobos estúpidos à sua volta que podem dispensar pelo menos um inteligente. E, além disso, foi um desejo da czarina. Meto-lhe nojo. Diz que as filhas sonham comigo durante a noite e gemem durante o sono. As grã-duquesas têm medo de mim! O meu aspecto é tão intolerável que tenho de me ir embora! E, portanto, o czar abraçou-me e despediu-me. E isto é tudo!

 

Mustin recostou-se, poisou a cabeça numa almofada e olhou para o tecto por cima de si. Depois começou a chorar. Era um espectáculo indescritível: grandes lágrimas rolavam pelo rosto contraído do homem mais feio do mundo.

 

A ingratidão, um dos vícios mais espalhados entre os que reinavam, era desconhecida pelo czar Nicolau II. Por isso, embora obrigado pela czarina a despedir Urasalin, ninguém o podia impedir de recompensar o anão com grande generosidade.

 

A família Stroitsky tinha perdido todo o interesse pelo palácio de Sampetersburgo; os vários membros da família preferiam viver nas suas terras, longe da política, não vigiados, como reis dos seus domínios com bosques, campos, pântanos... Também eles, como os Stroganov, dispunham de um pequeno exército privado, cujos componentes tinham o aspecto de camponeses; ninguém se ocupava das suas actividades e viviam absolutamente à vontade.

 

Mesmo o colector de impostos, que ia ao castelo com mil mesuras e cortesias de todo o género, era geralmente convidado a jantar e faziam-no beber muito: o resultado era que na manhã seguinte o bom homem se ia embora muito satisfeito, mas sem ter podido controlar se as taxas devidas tinham sido efectivamente pagas.

 

O czar Nicolau II comprou o palácio de Sampetersburgo aos Stroitsky e ofereceu-o a Mustin, como prova de reconhecimento pelo fiel serviço que ele tinha prestado.

 

- Mereceste-o - tinha-lhe dito durante a interminável despedida. - Toma bem conta da casa. Tens herdeiros?

 

- Talvez o deixe a Rosália Antonovna Bondareva, se tiver tempo de fazer testamento. E, depois dela, ficará para Matilda Felixovna...

 

O czar sacudiu a cabeça satisfeito.

 

«Era isto o que ele queria ouvir», pensou o bobo Mustin. «Graças a mim, o presente chegará às mãos da pessoa para quem tinha sido destinado desde o princípio! Está bem! O que faria um anão tão feio como eu com um palácio?»

 

Beijou a mão do czar, que ainda tentou tirá-la, porque experimentava sempre um certo embaraço perante estes actos de submissão.

 

Mustin, quando acabou tudo, precipitou-se para a Bondareva, correu pelo salão e pôs as mãos nas ancas:

 

- Fora! - gritou. - Rosália Antonovna, faça depressa a sua mala! O czar ofereceu-me este palácio! Sou o novo senhorio! Vou chamar a polícia aqui para dentro e a primeira coisa que põem fora é você! Levante-se desse sofá, sua preguiçosa, e vá tratar das malas!

 

Rosália Antonovna continuou tranquilamente sentada. Deitou a Mustin um olhar amigável, bebeu um golinho do seu chá de hortelã-pimenta - aconselhado para o «nervoso» do estômago - e disse calmamente:

 

- Seu sapo fedorento! O que seria de si se eu me fosse embora?

 

- Faria de mim um homem feliz!

 

- Pelo contrário, serias o homem mais triste do mundo! Vem para aqui beber o teu vinho! O czar ofereceu-te o Palácio Stroitsky! Deve ter a consciência muito pesada! E tu de certeza que lhe beijaste a mão e te curvaste em mil agradecimentos! Devias ter-lhe dado um soco, ele merecia-o! Primeiro corre com o seu melhor amigo e depois espalha-lhe mel nas feridas! Como se isso pudesse curar...

 

Indicou o sofá a Mustin, ele sentou-se e esperou que o criado levasse o seu vinho preferido, um vinho doce e dourado da Georgia.

 

- E agora que tens o palácio - continuou ela - de que é que vais viver?

 

- O czar vai-me pagar uma pensão de seis mil rublos de ouro por ano!

 

- Muito generoso!

 

A Bondareva sacudiu a cabeça. Parecia-lhe que ele se tornara mais pequeno e mais ressequido. Ela, por sua vez, tinha grandes problemas com o seu estômago; arrotava continuamente, de vez em quando vomitava, e não conseguia digerir bem; a comida no estômago tornava-se pesada com um rochedo.

 

O médico tinha-a mandado tomar pozinhos e gotas de vários tipos, mas, ao falar com Mustin, tinha dito:

 

- Tem uma constituição verdadeiramente robusta. Um cancro como o que ela tem já teria levado à morte qualquer outro ser humano. Seria interessante poder fazer-lhe a autópsia, pois... talvez se descobrissem aspectos do corpo humano desconhecidos da medicina...

 

- Onde está Matilda neste momento? - perguntou a Bondareva.

 

- Penso que esteja em São Francisco...

 

- Tantos lugares que ela conhece! Já escreveu?

 

- Boris mandou um telegrama. A América deve ser um país maravilhoso. Ele está entusiasmado. Há lá casas que, para se olhar para o telhado, se tem de pôr a cabeça completamente para trás. Novas torres de Babel! Ele trará fotografias...

 

- Então ele que se apresse! - disse a Bondareva sempre muito calma.

 

Mustin sentiu-se gelar. De repente percebeu que ela sabia. Sabia exactamente de que sofria. E continuava tranquilamente à espera. Que mulher!...

 

Aconteceu tudo inesperadamente. Foi a 20 de Junho de

1904, às dez horas da manhã.

 

Rosália Antonovna gemeu, já sem forças para tocar a campainha, e desmaiou.

 

Quando Mustin e a criada entraram no quarto, preocupados porque a Bondareva ainda não tinha descido, encontraram-na atravessada na cama, muito pálida, e já moribunda. Quando o médico chegou, meia hora mais tarde, não chegou sequer a abrir a maleta...

 

Sentou-se ao lado dela, pegou-lhe nas mãos e esperou.

 

Ao meio-dia tudo estava acabado. O coração tinha parado de bater. Mustin ajoelhou-se ao lado da cama e rezou, depois de ter pousado a cabeça na mão já fria de Rosália.

 

- Tinha tido dores ontem? - perguntou ainda o médico. - Lamentou-se de algum modo especial?

 

Mustin sacudiu a cabeça.

 

- A última coisa que sei dela é que ontem à noite comeu carne de porco assada...

 

- Oh, meu Deus!

 

- Não tinha muita vontade. E depois bebeu três copos de vodca!

 

- Um verdadeiro suicídio!

 

- «Sinto-me como um cão sem pulgas!» disse-me a Bondareva. E estava muito satisfeita! Há semanas que não tocava num pedacinho de carne! Por isso estou contente que o tenha feito! Pelo menos morreu contente...

 

Rosália Antonovna foi sepultada no cemitério de Tschvinski. Foi mérito de Mustin o facto de a Bondareva ficar com o seu lugar para a eternidade entre os mais eminentes cidadãos russos, não longe de Tchaikovsky e de Mussorgsky e muito perto de Alexandre Borodin. O funeral foi muito reservado.

 

Matilda e Boris estavam em Nova Orleães e mesmo que tivessem interrompido a tournée não chegariam a tempo para o último adeus. Apesar dos apoios influentes de que gozava, Mustin não conseguiu que o corpo de Rosália fosse conservado em gelo até ao regresso de Matilda.

 

- Quando pensa que Matilda Felixovna estará cá? perguntou o funcionário encarregado do serviço, já bastante surpreendido pelo estranho pedido. - Não antes de três semanas? E o cadáver de um cristão pode ficar assim tanto tempo por enterrar? Mustin Fedorovitch, o senhor não se dá conta de que isso é uma blasfémia? É totalmente impossível! Tem de ser razoável...

 

E foi assim que, no funeral, o féretro foi acompanhado por uma enorme coroa que simbolizava a presença de Matilda. Na coroa havia uma fita preta com letras douradas que tinha inscritas as seguintes palavras: «À minha mãe.»

 

O czar também mandou flores. Um cesto cheio de rosas vermelhas. Embora não trouxesse nenhum cartão de pêsames, todos sabiam que tinha sido mandado por Nicolau II.

 

Seis semanas mais tarde, Matilda Felixovna e Boris Davidovitch voltaram a Sampetersburgo. A primeira coisa que fizeram foi ir à sepultura de Rosália Antonovna.

 

- Foi-se embora com todas as honras! - anunciou Mustin, enquanto caminhavam para a saída depois de terem estado cerca de uma hora a falar em silêncio com a amada defunta.

 

- Mesmo como ela queria: feliz porque tinha a barriga cheia! As suas últimas palavras foram: «Estou muito melhor, seu cabeça dura! Amanhã, vou mandar fazer outro assado...» - Mustin esfregou o nariz. - Não devemos chorar, ela não teria querido. Penso que teria preferido que fôssemos beber uma taça de champanhe para brindar a sua felicidade celeste! Por outro lado, ela estava habituada a fazê-lo. Nos últimos tempos, bebia todas as noites alguns copos e, muito satisfeita, dizia-me: «É uma coisa diabólica, Mustin! Isto faz-me bem ao estômago! Levo menos tempo a arrotar... e, depois, sinto-me melhor!» E o médico tinha-me dito: «Deixe-a fazer o que quiser. É preciso que ela possa gozar tudo o que a torne feliz. É inútil proibir-lhe o que quer que seja, é tarde de mais.» Vamos beber champanhe à sua saúde?

 

Pararam num dos locais mais elegantes, um daqueles em que o porteiro só deixava entrar quem conhecia.

 

Enquanto ali estavam encontraram por acaso o velho Petipa, director do ballet, que não sabia ainda que Matilda tinha voltado da América.

 

- Um milagre! - gritou, efusivo. - Um verdadeiro milagre! Sonhei ontem mesmo contigo! Dançavas a Giselle guiada por mim! E agora estás aqui em carne e osso! Serás tu a minha próxima Giselle!

 

Beijou-a, sem notar que estava vestida de luto, e, sem parar, continuou a conversar - sempre de teatro.

 

Capítulo décimo sétimo

 

Os anos passaram depressa, medidos pelos ininterruptos triunfos da grande Felixovna.

 

Viajava pelo mundo, sempre acompanhada por Boris Davidovitch e por Chamitja Maximovitch’; levava também consigo uma criada, um cabeleireiro particular e uma secretária. Chamitja tinha-lhe explicado que toda essa gente era necessária, por motivos de representação.

 

- Se chegares sozinha, as pessoas pensam: «Oh, a pobrezinha! Tem um aspecto tão infeliz!» Mas se te apresentares com a pompa de uma rainha e um criado te anunciar dizendo: «Matilda Felixovna estará aqui dentro de dois ou três minutos!», então toda a gente ficará excitada e te fará vénias.

 

Matilda tinha aceite isso de má vontade, mas Chamitja não a tinha enganado; onde chegavam eram recebidos como visitas de Estado. A «rainha da dança» dava a honra...

 

No dia l de Agosto de 1914, quando estavam em Londres, souberam que tinha começado a guerra.

 

O embaixador russo entregou a Boris Davidovitch uma carta do Ministério da Guerra na qual lhe pediam que voltasse imediatamente para Sampetersburgo a fim de ir comandar um regimento. A Rússia precisava, naquele momento, de todos os seus oficiais.

 

A carta tinha sido expedida duas semanas antes, mas nesse meio-tempo tinha-se tornado bastante actual: os jornais anunciavam em edições extras que a Alemanha, através do seu embaixador Pourtales, tinha entregue a declaração de guerra ao Ministro dos Negócios Estrangeiros russo. A ameaça que tinha pairado sobre toda a Europa durante semanas e meses, como uma nuvem carregada de electricidade, tornara-se de súbito real: o incêndio deflagrava em todo o mundo.

 

As várias nações começaram a atacar-se.

 

A mortandade começou a espalhar-se.

 

E tudo tinha começado com aclamações, marchas militares, cerimónias e grinaldas de flores.

 

- Estão todos loucos! - disse Chamitja, arrancando os cabelos. - Guerra! E ainda por cima cantam de alegria! Pode-se ser mais idiota do que isto? No que diz respeito aos Alemães, ainda se compreende, são os mais alegres perante a morte... Mas nós, os Russos! O que é que lhes deu a todos? Será que andámos tão mal até agora que tenhamos de ser punidos? Centenas de milhares de pessoas vão morrer... para quê? Por causa desse arquiduque que mataram em Sarajevo? E a vida de um homem vale tanto como a de milhões de indivíduos? Isto é pura loucura!

 

- O que vai fazer, Boria? - perguntou Matilda, enquanto lia mais uma vez a carta que havia chegado de Sampetersburgo. A ordem era clara: tinha de regressar! Tomar posse do comando de um regimento...

 

- Não sei... Enquanto estiver no estrangeiro, ninguém me pode obrigar. Mas sou um oficial! Perderei a minha honra...

 

- Ou então a vida! - Chamitja Maximovitch andava, no quarto, para trás e para frente. - Fugiremos. Iremos para qualquer parte onde estejamos ao abrigo de todas as guerras! Uma ilha no mar das Caraíbas! E lá esperaremos até que tenham esmigalhado as cabeças uns contra os outros! Vou informar-me sobre o modo mais rápido de abandonar a Europa!

 

Havia um barco e eles tomaram-no - tanto Chamitja tinha dito e feito, evocando até os santos do céu para mostrar a todos que ele não era nenhum idiota.

 

Mas o barco partiu exactamente na direcção oposta daquela que Aronov queria: de Londres para Oslo. De Oslo iriam de comboio até Estocolmo e dali para Helsínquia. Para continuarem depois até Sampetersburgo...

 

Era uma noite quente quando chegaram ao Neva. Regimentos que marchavam, longas filas de carros, imensos comboios cheios de soldados e de canhões... Toda a Rússia parecia em marcha para a frente ocidental, pronta a esmagar a Alemanha e a Áustria.

 

Qual tinha sido a proclamação do czar Nicolau II? «Combateremos com a espada na mão e a cruz no coração!»

 

E quando o czar, depois da declaração de guerra, apareceu à varanda do Palácio de Inverno, dezenas de milhares de pessoas, que tinham estado à espera na praça, caíram de joelhos e cantaram o hino nacional. A Rússia eterna estava ali de novo... Era talvez ainda a Idade Média, mas o povo curvou-se diante do czar.

 

E a czarina chorou de emoção.

 

Enquanto Matilda se refazia da longa viagem e Mustin discutia com Chamitja por não ter obrigado Matilda a ficar no estrangeiro, Boris Davidovitch apresentou-se ao comandante supremo das forças militares russas, o grão-duque Nicolai Nicolaievitch, tio do czar.

 

Nem sequer conseguiu vê-lo... estava para começar a primeira grande ofensiva e o Estado-Maior estava reunido de dia e de noite. Em vez dele, encontrou um general conhecido, o qual o abraçou, o beijou nas faces e lhe disse:

 

- Boria, o facto de aqui estares demonstra que és um verdadeiro russo, apesar de o teu nome ser Soerenberg! Dentro de quatro dias estarás na frente. Foste colocado no exército do general Samsonov. Estarás entre os valentes que vão expulsar os alemães da Prussia Oriental. Dar-lhes-emos uma boa corrida! Ao longo do Narev vai ficar o exército de Samsonov, ao longo do Njemen o exército de Rennenkampf! Não podem escapar! Temos um adversário muito fraco. O comandante do Oitavo Exército alemão é Von Hindenburg. Quem é que o conhece? E o chefe do Estado-Maior é um tal Von Ludendorff. Personagem absolutamente de segundo plano. Para vocês será um passeio!

 

Boris Davidovitch nunca mais voltou daquele «passeio». Quando os exércitos russos já estavam vencidos e enquanto os poucos que não tinham sido feito prisioneiros escapavam pela fronteira da Prussia Oriental, o estilhaço de uma granada alemã tinha arrancado a Boris Davidovitch o braço esquerdo. Foi no dia 29 de Agosto de 1914, durante a derrota de Tannenberg.

 

Abandonado por todos, sentado à beira da estrada, com a mão direita a pressionar o braço ferido, Boris estava a morrer por hemorragia.

 

Quase não sentia a dor, estava lúcido como sempre e continuou a pensar em Matilda e nas suas últimas palavras, até ao derradeiro momento, quando o oceano da Eternidade o submergiu.

 

Quando o comboio que o levava partira da estação de Sampetersburgo, Matilda começara a correr ao lado do seu vagão, dizendo-lhe adeus com um ramo de flores que tinha na mão; e, enquanto corria, tinha-lhe gritado:

 

- Quando voltares, Boria, casar-nos-emos! Toma conta de ti! Casaremos com certeza, Boria, depois de termos vencido os Alemães...

 

Depois o comboio começara a andar mais depressa, e ela tinha ficado para trás, entre os outros vagões, cheios de soldados que cantavam, que continuavam a passar... Ele debruçara-se da janela, agitando a mão, até que a tinha visto desaparecer entre o nevoeiro da manhã e os vapores das locomotivas, cada vez mais pequena, o único motivo da sua existência.

 

A retirada das tropas russas foi tão apressada que ninguém teve tempo de recolher o cadáver do comandante Soerenberg ou, pelo menos, de lhe dar sepultura. Mais tarde, soldados alemães reuniram os mortos russos e atiraram-nos todos juntos para uma vala comum. Os oficiais, entre eles Boris, foram metidos em caixões, mas como não sabiam os seus nomes - os russos tinham levado todos os documentos - sobre a nua cruz de madeira foi escrito: «Comandante russo desconhecido.»

 

Matilda Felixovna acolheu a notícia da morte de Boris Davidovitch sem qualquer reacção. O ajudante-de-campo do czar veio em pessoa comunicar-lha, trazendo uma carta do imperador.

 

Nicolau II escrevia:

 

«A tua dor é a minha. É horrível tudo o que o meu povo já sofreu nestas primeiras semanas de uma guerra que eu nunca desejei. Deus é testemunha de que me atraiçoaram. Perdoa-me, Matilda. Niki.»

 

As vitórias e as derrotas alternaram-se e os Russos habituaram-se à evidência de que por cada inimigo morto havia quase sempre dez russos abatidos. Os homens não faltavam e a estratégia russa consistia em fazer avançar vagas de soldados, umas atrás das outras, com a ilusória esperança de que o adversário não conseguiria defender-se face a semelhante multidão.

 

Em Sampetersburgo, os senhores continuavam a frequentar a Ópera, o ballet e os concertos.

 

Matilda Felixovna dançava não só para o czar mas também para os feridos em recuperação nos hospitais. Exibia-se quase diariamente, representando cenas dos seus bailados mais famosos e, também, danças populares das diferentes regiões russas.

 

Os feridos aplaudiam-na extasiados, embora os seus pensamentos fossem muito diferentes uns dos outros... Uma vez, um jovem primeiro-tenente internado no Lazareto de Pavlovsk disse-lhe:

 

- Gostámos muito de a ver dançar para nós; mas teríamos preferido que nos trouxesse um carro cheio de pão, marmelada e legumes... Para nós, um bocado de carne é um sonho. Nem vale a pena falar nisso, mas um naco de pão seria muito melhor que o mais belo Lago dos Cisnes...

 

Matilda via o czar cada vez menos.

 

Depois de ter recebido das mãos do seu tio Nicolai Nicolaievitch o comando supremo das tropas russas e de ter começado a comandar pessoalmente o seu exército, Nicolau tinha rompido definitivamente a sua ligação com Matilda.

 

Agora habitava no quartel-general de Mogilev. Ele pessoalmente não o desejava, mas tinha sido obrigado pela czarina. Para ela, Niki era o herói genial que iria salvar a Rússia.

 

A influência do monge Rasputine tornava-se cada dia mais notória.

 

Desde que o monge salvara da morte o pequeno czaréviche, impondo-lhe as mãos, a czarina parecia não poder fazer nada sem ele. A terrível herança da rainha Vitória não tinha poupado o herdeiro ao trono: o menino era hemofílico.

 

Matilda levava uma vida muito reservada. O anão Mustin, depois da morte de Rosália Antonovna, tinha-se tornado muito calmo; permanecia horas e horas junto da sepultura da Bondareva, onde, sentado num banquinho de madeira, tinha começado a escrever as suas memórias. Um olhar de baixo. Considerações de Um Anão era o título do seu livro. Escreveu também uma dedicatória:

 

«Para Rosália Antonovna, talvez a única pessoa que me compreendeu.»

 

Depois da derrota de Tannenberg e da retirada até ao lago Masúria, Chamitja Maximovitch desapareceu subitamente de Sampetersburgo. Tinha deixado uma curta carta dirigida a Matilda:

 

«A Rússia está destinada a uma morte lenta mas certa. Não te esqueças das minhas palavras: não falta muito tempo para que os bolchevistas tomem o Poder e façam um verdadeiro extermínio de pessoas como tu e eu. Qualquer revolução tem de ser sanguinária... só assim se pode fazer uma limpeza. Mas terei eu de me deixar matar só porque fui eficiente e economizei durante toda a minha vida? Procurarei chegar a Tânger. Ali vive um amigo meu, o xeque Ornar Abduman ibn Rahndan. Ficarei lá até que a guerra acabe. Depois irei para Paris. Acredita-me, Matilduschka: se for obrigado a viver fora da Rússia, um russo só consegue viver em Paris! Porquê? Não sei. É uma coisa que se sente, que se tem no sangue. Espero que o Senhor permita que nos voltemos a ver, um dia, em Paris...»

 

- Esta guerra está a dar cabo da nossa época - disse Mustin quando Matilda soube, através dos bons amigos que tinha no Estado-Maior, que Nicolau II se sentia muito infeliz como comandante supremo das tropas e que se chamava a si mesmo o «bode expiatório» da Rússia. - E a nova época começará com o terror. Não preferes abandonar a Rússia?

 

- Não. O czar ir-se-á embora?

 

- Isso é uma coisa impensável!

 

- E porque hei-de eu pensar? É melhor que nem falemos nisso.

 

Durante toda a guerra, enquanto cada vez mais homens morriam nas frentes e mais feridos enchiam os hospitais e os lazaretos, tanto que por fim as escolas tiveram de ser requisitadas para substituir os hospitais que tinham sido danificados, Matilda Felixovna continuava sempre a dançar.

 

A primeira-bailarina absoluta dançava agora quase exclusivamente para os feridos.

 

Só raramente havia algum espectáculo em Sampetersburgo. E era um absurdo ver-se como a nobreza e a alta sociedade continuavam a ignorar a guerra.

 

Naquelas ocasiões ostentavam os brilhantes e as pedras preciosas, os vestidos de seda e as peles raras, as condecorações e os uniformes...

 

Eram os últimos baluartes da riqueza do reino do czar, os últimos antes que tudo sucumbisse.

 

E, finalmente, tudo o que secretamente se esperava acabou por acontecer: às primeiras horas da manhã de 23 de Fevereiro de 1917, um longo cortejo de mulheres atravessou Sampetersburgo. Todas em coro, gritavam em altas vozes os seus protestos: «Dêem-nos pão! Chega de guerra! Queremos a paz! Queremos a paz!»

 

Os cordões de polícia que protegiam o Palácio de Inverno foram derrubados.

 

Durante aquele Inverno, o frio fora particularmente agudo. Em Sampetersburgo, a temperatura tinha descido a quarenta graus abaixo de zero; não se encontrava em parte alguma carvão ou lenha para queimar, faltavam os géneros de primeira necessidade, retidos nos comboios atolados em gigantescas montanhas de neve. Pelo menos metade das padarias, leitarias e talhos estavam fechados. Os preços dos alimentos subiram em flecha, o mercado negro floresceu, enquanto o povo, faminto, assaltava de noite as lojas ou se dispunha a matar por um naco de pão; a situação era verdadeiramente horrível. As estatísticas diziam que até àquele momento, entre mortos, desaparecidos, feridos e prisioneiros, a Rússia já tinha perdido quase quatro milhões de soldados!

 

As munições estavam a acabar, a indústria bélica não tinha condições para produzir o necessário, deixara de haver reabastecimentos. A única coisa que havia ainda em abundância eram os homens!

 

O bloqueio dos Alemães no mar Báltico e no mar Negro evitava que chegassem à Rússia os reabastecimentos que podiam vir dos Aliados... O enorme país tinha-se tornado uma ilha, na qual milhões e milhões de pessoas não via mais nada na sua frente senão a morte pela fome.

 

Depois da marcha das mulheres, a desilusão e o desespero das massas explodiram. Oitenta mil operários entraram em greve e invadiram a cidade para aderir às manifestações. Por toda a parte se agitavam bandeiras vermelhas, por toda a parte cortejos de pessoas atravessavam a cidade.

 

O regime respondeu com a autoridade. Sabia que podia contar com um certo número de forças policiais, mas sobretudo com os seus cento e cinquenta mil homens, da guarnição, os batalhões de reserva da Guarda, a própria Guarda, o Destacamento de Cossacos e a Marinha.

 

Que erro!

 

A 25 de Fevereiro - já ninguém trabalhava em Sampetersburgo - centenas de milhares de pessoas manifestaram-se nas ruas da cidade com bandeiras e braçadeiras vermelhas, gritando: «Acabem com a guerra! Dêem-nos pão!»

 

A este pedido, juntou-se uma nova exigência: «Mandem embora a czarina alemã!»

 

O comandante supremo da cidade, general Chabalov, mobilizou os cossacos. Mas estes, em vez de atacarem os manifestantes e de os reduzirem a nada, abraçaram as mulheres e os homens, juntaram-se à volta das bandeiras vermelhas e tomaram parte nos cortejos que atravessavam a cidade.

 

Na Avenida Nevski, a artéria mais luxuosa de Sampetersburgo, as forças da ordem dispararam pela primeira vez contra o povo.

 

Um após outro, os regimentos abandonaram as casernas e juntaram-se ao rio de manifestantes: «Abaixo a guerra! Abaixo o czar! Dêem-nos pão!»

 

As prisões foram abertas, o Palácio da Justiça foi incendiado e o Comissariado da Polícia foi atacado e destruído. Soldados com bandeiras vermelhas, transportados pelos carros do Exército, assaltaram a sede da polícia secreta, o tribunal e os vários ministérios, matando, saqueando, incendiando, fazendo explodir tudo...

 

A revolução, que devia trazer a liberdade, como todos tinham pensado, acabou, pelo contrário, no caos. As palavras de Chamitja tornaram-se uma terrível realidade: todas as revoluções têm de ser sanguinárias! O presidente da Duma, o agora impotente Rodzianko, telegrafou ao czar:

 

«Nas ruas, dispara-se à toa. É preciso arranjar alguém em quem o país confie para formar um novo Governo. É impossível continuar a esperar! O mínimo atraso pode ser fatal! Suplico a Deus para que num momento como este a responsabilidade não recaia sobre o monarca!»

 

O czar, que só tinha deixado Zarskoi Selo, a 24 de Fevereiro, para ir para o quartel-general, não queria acreditar na revolta dos seus soldados. Leu o telegrama de Rodzianko e pô-lo de lado, nauseado.

 

- Mais tolices daquele pateta do Rodzianko! - disse, mas ao mesmo tempo fez chegar ao general Chabalov a ordem de pôr imediatamente fim às insubordinações.

 

Já era demasiado tarde!

 

Em Sampetersburgo, o povo e o exército marchavam abraçados sob a mesma bandeira vermelha. Era a anarquia. Já não havia ordem, nem poder legislativo, nada que conseguisse travar a derrocada nacional.

 

A revolução serpenteava pelas ruas... era a erupção de um vulcão feito de fome, necessidades, luta pela sobrevivência, cansaço da guerra.

 

Pelo menos quatro milhões de pessoas mortas ou desaparecidas e nenhum pão, nenhum leite, nenhuma carne, nenhuma farinha.

 

Deus, abandonaste mesmo a Rússia. Agora não podemos pensar senão em nós próprios!

 

- Foi a isto que chegámos! - disse Mustin a Matilda. Estavam ainda no Palácio Stroitsky, enquanto na rua o cortejo de manifestantes parecia não ter fim, os slogans se ouviam à mistura com tiros e o céu cinzento de Inverno se tingia de um vermelho vivo.

 

Matilde e o anão sabiam que o seu palácio não seria atacado pelos vermelhos.

 

O mordomo, com o qual Rosália Antonovna tinha brigado desde a chegada ao palácio numa luta diária e infatigável, a qual se tornara a razão de viver de ambos, tinha aparecido, na manhã de 24 de Fevereiro, na sala do pequeno-almoço e servira, como sempre, o chá com pão, marmelada e mel. A única novidade era constituída pela braçadeira vermelha que trazia à volta do braço. Respeitoso como sempre, tinha dito:

 

- Não se preocupe, Matilda Felixovna, não lhe acontecerá nada. A sua casa está sob a protecção do Comité Revolucionário.

 

Para que isso fosse evidente tinha içado uma bandeira vermelha à porta da entrada.

 

A cozinheira também participou nas manifestações, mas só depois de ter servido o almoço e ter prometido que estaria de volta a tempo de preparar o jantar.

 

- Se a nossa Rosália ainda aqui estivesse! - disse Mustin com uma grande tristeza. - Teria marchado à frente de todos com uma bandeira vermelha. Amanhã vou ter com ela ao cemitério e conto-lhe tudo...

 

A 28 de Fevereiro de 1917, um ajudante-de-campo do czar apresentou-se no Palácio Stroitsky vestido à civil.

 

A princípio não queriam deixá-lo passar, mas depois de ele ter declarado a sua identidade o mordomo convenceu-se de que não era um espião e deixou-o ir ter com Matilda. Era um jovem major, um dos poucos que permaneciam fiéis ao czar e que participavam na defesa do Palácio de Inverno.

 

Trazia uma mensagem de Nicolau II, dirigida a Matilda. A mensagem dizia:

 

«Está para acontecer o pior! É preciso que abandones a Rússia sem hesitações! Leva contigo apenas o necessário. Amanhã de manhã estará uma carruagem à tua espera na frente da tua casa. Tens de te ir embora! Ordeno-te! Niki.»

 

- Irei - disse Matilda, dando a mensagem a Mustin. Se ele mo ordena, eu obedeço. Até agora, nunca me tinha dado ordens. Mustin, vamos preparar as nossas coisas.

 

- Eu fico - disse Urasalin. - O que é que faria um anão em Paris? Um feio e odioso anão? Fico aqui de guarda, Matilduschka. Para defender a casa. Quando voltares para Sampetersburgo, ou como então se chamar, estará tudo como deixaste. A nossa época ensina a viver depressa. As mudanças realizam-se num tempo muito curto. Não demorará muito para que possas voltar, mas para uma nova Rússia. Matilda Felixovna está para além do tempo...

 

Como a música que a acompanha quando dança. Quem quer que seja que amanhã governe a Rússia, não poderá deixar de reconhecer a Felixovna como a rainha do bailado. E eu esperarei até esse dia, sinto que o devo a Rosália. Fico aqui a guardar isto para ti...

 

Durante toda a noite se fizeram e desfizeram malas. Não podia levar senão coisas de pouco valor... Matilda limitou-se a levar consigo uma fotografia da mãe, numa moldura de prata, uma fotografia de Boris Davidovitch, uma carta em que Boris tinha escrito, quatro anos antes, «Amar-te-ei para sempre, mesmo depois de morto, do alto do céu!» e a última mensagem do czar. Juntou a isso alguma roupa interior que lhe iria servir durante a longa viagem... A casa de São Remo estava completamente apetrechada e portanto não precisava de levar nada da Rússia a não ser a saudade...

 

No longínquo Mogilev, a centenas de quilómetros de distância, Nicolau II acabou por compreender a envergadura da revolução. A czarina continuava a escrever-lhe através dos mensageiros: «Estamos a ser incomodados por um movimento de canalhas, arruaceiros de rua e estúpidos rapazolas que procuram fomentar a desordem, andando de um lado para o outro a gritar que não têm pão. Tens sido muito bom para com todos eles, agora chegou a altura de fazeres sentir o teu punho. Os Russos precisam disso!»

 

E Nicolau respondeu de volta: «Tens razão, mas nem por isso é necessário mostrar os dentes ao mínimo pretexto.»

 

A tragédia da sua vida era continuar a acreditar no seu povo, nos seus soldados, nos seus camponeses, nos seus operários e em todos os seus homens, em todos aqueles para quem sempre quisera apenas o bem. Nunca se tinha apercebido de que os seus ministros tinham procurado fazer exactamente o contrário, nem se apercebera de que naquele momento todas as culpas recaíam sobre ele: o czar Nicolau II.

 

Na madrugada de l de Março de 1917, Matilda Felixovna deixou Sampetersburgo numa carruagem modesta, que pouco dava nas vistas. Na boleia ia um velho cocheiro do czar. Mustin tinha preferido esconder-se, para evitar a dor da despedida... Deixou que Matilda o procurasse durante meia hora; depois foi obrigada a partir. Mustin só abandonou o seu esconderijo, num canto da adega, precipitando-se para a janela e ficando a olhar para a rua atrás da cortina, quando a carruagem saiu do pátio interior. Fez uma cruz no ar e disse: «Senhor, não a abandones nunca!»

 

A carruagem foi levada até à fronteira com a Finlândia. Parou numa aldeia, e depois de alguns dias souberam por um jornal que o czar tinha abdicado.

 

A 28 de Fevereiro, Nicolau II tinha deixado o seu quartel-general de Mogilev e havia ido no seu comboio especial para Zarskoi Selo. Nunca lá chegou.

 

A linha tinha sido ocupada, perto da estação de Liubana, por duas companhias de revolucionários. Pararam o comboio do czar com a ameaça de canhões e metralhadoras. Se tivesse chegado ao destino, talvez o czar se tivesse salvo...

 

O comboio continuou até à pequena estação de Dno, que em russo significa «precipício» - um verdadeiro símbolo! -, e ali foi desviado para Pskov. Foi o fim da linha.

 

O fim da linha do czar, da monarquia, do império.

 

O caminho para Sampetersburgo estava cortado. O último monarca absoluto da Europa teve de se curvar à vontade de um «conselho de soldados». O povo, saído dos bairros mais pobres da cidade para começar uma nova época, tinha na mão o destino da Rússia.

 

Quando, a 2 de Março, uma delegação da Duma lhe foi apresentar o documento de abdicação, encontrou um czar tranquilo e senhor de si. Surgiu no seu vagão-sala amável como sempre, mais taciturno, mas digno. Sentou-se à mesa, leu o documento de abdicação e assinou-o com uma simples pena negra que o delegado da Duma, Gutskov, lhe passara.

 

O czar tinha acabado o seu mandato.

 

Nessa mesma noite, depois de um jantar silencioso no mesmo vagão, na companhia do general Russkij, comandante supremo da frente norte, disse como se tivesse um pressentimento:

 

- Agora temos de nos abandonar à clemência dos vencedores.

 

Os vencedores eram os operários e os camponeses, os soldados e os trabalhadores que enchiam as ruas, caçando a polícia do czar, saqueando os palácios, fechando nas prisões os nobres e os ricos que ainda não tinham dado à sola; os mesmos que instituíram o novo regime do Soviete dos Trabalhadores.

 

A velha Rússia naufragou. O início da nova era apresentava-se sob o signo do caos. Nada mais restava que um grito: «Paz! Liberdade! Pão!»

 

Matilda Felixovna seguiu viagem para a Suécia. Esperou o fim da revolução num pequeno apartamento de Estocolmo. Embora tivesse muitos convites, não voltara a exibir-se... Seguia de longe o destino do czar.

 

- Mais tarde - disse ao director da Ópera de Estocolmo. - Como posso dançar enquanto a minha Rússia sangra? Dê-me tempo.

 

Na noite de 16 para 17 de Julho de 1918, o czar, a czarina, as suas quatro filhas, o czaréviche, o médico da família, doutor Botkin, três criados e um cachorrinho foram fuzilados na adega da vila Ipatjev, em Jekaterinburg.

 

Um comando de bolchevistas comandado pelo comissário Jurovskij disparou sobre o grupo, encostado à parede da adega, até todos se terem deixado de mexer. Depois levaram os cadáveres para a Mina dos Quatro Irmãos, esquartejaram-nos, cobriram-nos de ácido sulfúrico e queimaram-nos numa única fogueira.

 

Não podia subsistir nada dos Romanov; Jurovskij queria a destruição total da estirpe. Era também o triunfo de uma vingança pessoal; Jurovskij tinha nascido numa prisão da Sibéria, onde depois a mãe morrera miseravelmente.

 

Depois de ter sabido a notícia da morte da família do czar, Matilda Felixovna não quis ver ninguém durante três dias.

 

No quinto dia dançou Giselle no Teatro da Ópera de Estocolmo; Chamitja Maximovitch mandou-lhe um telegrama de Paris:

 

«Vem juntar-te a mim! Paris está à tua espera! Viste como eu tinha razão? Tu estás viva, e depressa terás o mundo inteiro a teus pés! Começa uma nova vida...»

 

Matilda tentou inutilmente ter notícias do anão Mustin, que havia ficado em Petrogrado, nome que Sampetersburgo tinha agora. Fora visto pela última vez a 26 de Outubro: um grupo de bolchevistas tinha-o prendido para o interrogar. Mustin nunca mais voltou, e o Palácio Stroitsky foi saqueado e devastado.

 

- Não voltarei mais à Rússia - disse Matilda Felixovna durante uma entrevista, quando se preparava para deixar Estocolmo em direcção a Paris. As suas palavras foram repetidas em vários jornais. - Se revolução significa assassínio, se as bases da nova Rússia têm de assentar no medo e no terror, então o resto do mundo deve tomar cuidado para que não lhe aconteça o mesmo. A peste é uma doença contagiosa...

 

O seu ódio era implacável. Para Matilda, o perdão era inconcebível. Tinham morto o seu Niki... como o poderia esquecer?

 

Em Paris, Chamitja estava à sua espera na estação. Chorava e, no carro que os levava para o Hotel Ritz, disse-lhe:

 

- Eu não queria acreditar, Matilduschka. Mas agora, que não posso voltar a ver a minha Rússia, tenho o coração despedaçado pela saudade.

 

No ano de 1971, a 2 de Maio, morreu em Cluny, perto de Paris, uma velhota de quem teria sido difícil saber a idade, tão pequena e enrugada era, e que habitava sozinha numa velha casa com jardim.

 

Viviam com ela três gatos e um cão, um rafeiro, que estava sentado na cama dela a rosnar e a mostrar os dentes, impedindo quem quer que fosse de se aproximar da morta. Foi necessário chamar a polícia e apanhá-lo com um laço.

 

- Tinha noventa e seis anos - disse um vizinho. Todos nós nos admirávamos como esta mulher ainda estava viva. Nunca saía, estava sempre sentada no jardim e vivia praticamente do pouco que a sua hortazinha lhe dava. Tinha comprado esta casa logo a seguir à guerra, em 1945... Nunca falava com ninguém. Nem uma vez em todos estes anos... Devia ter sido muito bonita em nova. É verdade que ela era russa?

 

Um advogado, cujo endereço foi encontrado entre os documentos da falecida, apresentou-se como seu testamenteiro.

 

- Foi uma grande bailarina, chamava-se Matilda Felixovna - disse à polícia. - Hoje já ninguém a conhece, mas naquele tempo... Não deixou quase nada, teve de vender quase tudo em 1928, quando partiu as duas pernas num acidente de automóvel e não pôde voltar a dançar. Tinha-lhe ficado só esta casa de Cluny... A sua vontade era que fosse vendida. O seu último desejo era que com o produto da venda fosse construída uma sepultura digna para ela e que os gatos e o cão fossem mandados para o melhor hospício de animais de Paris. E há um último pormenor, bastante extravagante: que o seu caixão seja envolvido numa grande vela vermelha. A excentricidade de uma velha senhora! Está escrito no seu testamento e nós temos de o fazer, quer queiramos quer não.

 

Matilda Felixovna Bondareva foi sepultada em Paris num dia de Maio cheio de sol. Só dois homens seguiam o féretro: o pároco e o advogado. O caixão ia envolvido numa vela de cor vermelha como o sangue (tinha dado muito trabalho encontrar alguém que pintasse de vermelho uma vela).

 

Quando o caixão desceu à terra e o sol de Maio fez brilhar o vermelho da vela, o pároco disse:

 

- Era uma russa! Mas amava assim tanto a bandeira vermelha? Era talvez uma revolucionária famosa!

 

- Não sei - respondeu o advogado. - Só sei que era uma grande bailarina. Nada obsta a que fosse também uma bolchevista. Simpatizante do czar de certeza que não era, senão não teria pedido para ser enterrada envolvida neste pano vermelho...

 

Só muito mais tarde, quando fizeram o inventário das coisas da casa de Cluny, encontraram, numa caixinha esmaltada, algumas cartas ilegíveis e um telegrama.

 

Também lá estava uma carta com poucas palavras:

 

«O destino obriga-me a viver de forma diferente daquela que eu queria. Mas aconteça o que acontecer, estarás sempre no centro do meu coração. Niki.»

 

Mas quem poderia saber quem era aquele niky?

 

                                                                                Konsalik  

 

                      

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