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Fui filho único e, por isso, tornei-me um homem solitário.
Chamo-me Joshua Bigg: uma partida que a vida me pregou, pois sou muito pequeno. Um metro e cinquenta e oito centímetros, para ser exacto. Num mundo de gigantes, todos os centímetros são importantes para o pigmeu.
Essa foi a primeira partida da sorte. Houve outras. Por exemplo, fiquei órfão aos três meses, quando os meus pais foram mortos pelo aluimento súbito de uma ponte sobre o rio Skunk, perto de Okaloosa, Iowa. Quando a sua furgoneta se empinou, fui arremessado e encontrado mais tarde caído numa moita de loureiros, a palrar todo contente e a chupar o dedo grande do pé.
As pessoas disseram que foi um milagre. Mas, claro, não eram elas o órfão. Anos mais tarde, quando me ensinava a ser investigador, Roscoe Dollworth teve alguma coisa a dizer sobre o assunto. Acabara de saber que tinha uma pequena úlcera gástrica, depois de passar meses a preocupar-se com receio de ter um cancro no estômago. Era apenas uma úlcera. Toda a gente lhe dizia que tinha muita sorte.
- A sorte - comentou Roscoe - é uma coisa que acontece aos outros.
Fui criado pelo irmão da minha mãe e pela sua mulher: Philo e Velma Washabaugh. Ele tinha uma maçã-de-adão e ela cheirava a sonhos fritos. Mas eram uma gente simpática e bondosa e deram-me compaixão e amor. Gostaria de poder dizer o mesmo dos seus três filhos e das suas duas filhas, todos mais velhos (e mais altos) do que eu. Creio que era natural tratarem-me como um intruso; nunca permitiam que esquecesse o meu tamanho reduzido nem o facto de não ter pais.
O meu tio tinha uma loja de ferragens em Ottuma, Iowa. Não era um estabelecimento próspero, mas havia sempre comida suficiente, e se eu tinha de usar a roupa que deixava de servir aos meus primos mais velhos e mais alentados, parecia-me ingratidão queixar-me.
Dadas as minhas notas no liceu e a minha carência financeira, consegui obter uma bolsa de estudo para Grenfall. Era uma bolsa de estudos muito pequena, para uma muito pequena e liberal faculdade de Letras. Durante os períodos de aulas, tinha uma variedade de empregos: criado de restaurante, arrumador de cinema, empregado de bomba de gasolina, instrutor auxiliar de jogadores de râguebi, etc. No Verão, trabalhava na loja de ferragens.
A minha ambição era ser advogado, mas quando me formei bacharel em Letras, com distinção- já tinha compreendido que uma formatura em Direito estava além dos meus meios.
Um homem baixo na alta América tem duas opções: pode tornar-se soturno, ácido e malévolo ou talentoso, jovial e entusiasta. Optei pela segunda alternativa, decidindo que nem a falta de cabedal nem a falta de fundos me impediriam de seguir o meu caminho num mundo em que era obrigado a comprar as minhas roupas em lojas para rapazes.
Por isso, meti na mala o meu único fato azul de sair, pus-me em bicos de pés para dar um beijo de despedida ao tio, à tia e aos primos, e meti-me no autocarro para Nova Iorque, em demanda da fortuna. Estava resolutamente alegre.
Os meus primeiros anos na metrópole passei-os na Associação Cristã de Jovens da Rua 23 e a trabalhar numa sucessão de empregos deprimentes: lavador de pratos, caixeiro de drugstore, demonstrador de máquinas de descascar batatas, etc. Levava uma vida solitária, quase desolada. Não tinha amigos. Passava as horas livres em museus (nessa altura não cobravam entrada) ou na biblioteca pública. Fui sempre um leitor omnívoro. Balzac, Hugo, Dumas e Theodore Dreiser são os meus autores preferidos. Também gosto de ler romances históricos, biografias e romances onde a lei desempenha um papel importante, como em Dickens.
Agora devo falar-lhes da minha vida sexual. Não tomará muito tempo.
é verdade que na nossa sociedade os homens pequenos se encontram decididamente em desvantagem no tocante a cortejar e conquistar mulheres desejáveis. Tenho lido os resultados de investigações comprovativos de que na América o êxito é equacionado com tamanho físico. Muitos dos executivos de empresas são homens fortes, imponentes. Muitos políticos bem sucedidos pertencem à escala do metro e oitenta. Até os mais conhecidos advogados e juristas, médicos e cirurgiões, parecem ser homens de peso. E depois há, claro, vendedores, polícias, jogadores de bola profissionais e empregados de bar. O tamanho e os quilogramas contam.
Por isso, acho muito natural que a maioria das mulheres relacione um homem de altura e peso impressionantes com determinação, agressividade, energia e eventual êxito. Um homem pequeno, e particularmente um homem pequeno e sem dinheiro, é muito frequentemente objecto de chacota, pena, desdém e rejeição automática.
No entanto, durante os quatro anos que passara na Faculdade de Grenfall (para ambos os sexos) aprendera uma verdade valiosa, ou seja, que se desejava tornar-me atraente às mulheres não devia tentar imitar a maneira de falar, as atitudes ou o comportamento enérgico dos homens corpulentos ou até de tamanho normal. Pelo contrário, só poderia ser bem sucedido se exagerasse a minha pequenez, a minha fraqueza física e a minha humildade.
Apesar do que algumas partidárias do movimento de libertação das mulheres possam dizer, acho que existe um "instinto maternal" muito
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forte na maioria das mulheres e que elas reagem visceral e ternamente ao desamparo, particularmente no macho da espécie. Por isso, durante os meus tempos da faculdade foi essa a corda que tangi. E quando elas me sentavam ao colo, a murmurar palavras de conforto, sabia que estava feito e podia ter esperança de ver as minhas mais queridas fantasias transformadas em realidade.
Seis meses antes da história que lhes vou contar começar, tinha estado a trabalhar como caixeiro provisório no Macy's, na época das festas. Depois do Natal fiquei de novo desempregado, mas tinha dinheiro no bolso e pude ter uma semana de férias sem preocupações. Comi algumas boas refeições, vagueei por Manhattan, visitei museus, li em bibliotecas, vi ballet e procurei uma jovem que conhecera enquanto trabalhava na secção de roupa interior masculina. Fomos a um restaurante chinês, vimos um filme e, mais tarde, subi-lhe para o colo.
Mas depois, como os meus fundos se aproximavam de novo e rapidamente do nível do pânico, comprei o Sunday Times e passei a tarde a fazer círculos encarnados à volta de anúncios da Secção de "Precisa-se". Comecei a procura na segunda-feira de manhã, a subir a metade oriental de Manhattan. O quarto anúncio da minha lista pedia um rapaz para a secção de correio de uma firma de advogados. com vinte e seis anos, não tinha a certeza de me qualificar como "rapaz". Se fosse necessário, pensei, poderia mentir a respeito da minha idade. Mas não me parecia que fosse necessário. Além de baixo, tenho ossos pequenos e sou delgado. O meu cabelo é quase cor de estopa, tenho olhos de um castanho suave e feições regulares. Barbeio-me dia sim, dia não. Achei que a minha aparência era suficientemente juvenil e avancei.
A TORT - a firma de advogados Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum- ficava na Rua 38, leste, na zona de Murray Hill de Manhattan. Ocupava um prédio de cinco andares reconvertido, e quando cheguei, ao fim da manhã, já encontrei uma longa bicha de homens que partia da porta, descia os degraus e seguia pelo passeio até meio do quarteirão. Eram homens de todas as idades, vestindo sobretudo, jaquetas de lã grossa tipo marinheiro, blusões, casacos de malha, o que calhava. Homens magros, homens gordos, homens altos e homens corpulentos. Eu era, claro, o mais pequeno de todos.
- É para o emprego da secção de correio? - perguntei ao último indivíduo da bicha.
Acenou tristemente com a cabeça e ocupei o meu lugar na bicha, atrás dele. Passados poucos momentos, havia meia dúzia de candidatos atrás de mim.
Apercebi-me então de um fenómeno intrigante: a bicha avançava rapidamente e os homens saíam do edifício tão depressa quanto entravam. O fluxo era constante: entravam os esperançados, saíam os rejeitados.
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O homem que estava à minha frente agarrou o braço de um dos rejeitados.
- Que se passa lá dentro? - perguntou.
O rejeitado abanou a cabeça, perplexo.
- Isso também eu gostaria de saber! Não fazem nenhuma entrevista, não preenchemos nenhum impresso e nem sequer nos fazem nenhuma pergunta. Um tipo todo empertigado olhou para mim e disse: "Lamento, não serve." Assim, sem mais nem menos. Um chalado!
Entretanto, fui avançando com a bicha pelo quarteirão fora, ao longo do passeio, pelos degraus acima e através da porta, e finalmente encontrei-me num átrio grande e imponente, com tecto abobadado e paredes apaineladas a nogueira. A bicha subia por uma larga escada alcatifada, tão depressa que quase não tive tempo de admirar o Currier emoldurado e as litografias de Ives que se encontravam nas paredes.
Cheguei num instante ao patamar do primeiro andar. Aí, a bicha seguia por um comprido corredor e terminava numa pesada porta fechada de carvalho trabalhado. Ao lado da porta estava uma pequena secretária e sentada nela uma mulher nova, séria, inexpressiva. À medida que cada candidato rejeitado saía pela porta de carvalho, ela dizia: "O seguinte!"
Enquanto a bicha avançava e eu ouvia: "O seguinte! O seguinte! O seguinte!", não podia afastar os olhos da atraente guardiã do sagrado portal. A minha reacção inicial, quando vejo mulheres bonitas, é geralmente de desespero. Parecem-me tão inatingíveis, tão distantes, quase tão estrangeiras!
A bicha avançava rapidamente e a breve trecho encontrei-me no lugar do espécime seguinte a ser apresentado do lado de dentro daquela assustadora porta de carvalho.
A porta abriu-se. O tipo tristonho que estivera à minha frente saiu. "O seguinte!", ouvi, e entrei na sala e fechei a porta devagarinho. Tive a impressão confusa de uma sala enorme e sombria, forrada de livros de Direito em estantes com portas de vidro. Havia poltronas, um globo e um grande dicionário num pedestal.
Mas o que dominava na sala era uma gigantesca secretária de mogno, toda cheia de floreados e arabescos entalhados. O tampo estava nu de papéis e nele viam-se, em perfeita arrumação, um candeeiro de estudante, uma pasta mata-borrão, um porta-canetas e uma tesoura- tudo envolto em cabedal ou orlado de cabedal. Havia um intercomunicador telefónico com filas e filas de botões e luzes. Até o auscultador do telefone tinha uma pega forrada de cabedal.
O homem sentado à secretária parecia ter sido forrado do mesmo material-ou talvez de carneira escura. Parecia muito velho; as mãos que repousavam, imóveis, no tampo da secretária dir-se-iam luvas vazias, e a cara tinha o aspecto mirrado de um balão esvaziado.
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Mas os olhos azuis brilhavam e quando ele disse: "Aproxime-se, por favor", a sua voz tinha vigor e ressonância.
Aproximei-me da secretária. O homem estava sentado numa cadeira giratória de costas altas. Era difícil calcular-lhe a altura, mas eu vi-lhe os ombros estreitos, o pescoço fino e os braços delgados.
- Qual é a sua altura? - perguntou-me, bruscamente. Perdi toda a esperança.
- Um metro e cinquenta e oito centímetros, senhor - respondi.
Ele acenou com a cabeça.
- Quando pode começar?
Não creio que tenha ficado boquiaberto. Não creio que tenha cambaleado, pestanejado e engolido em seco. Mas não posso garantir.
- Imediatamente, senhor - respondi.
Acenou de novo com a cabeça. Inclinou-se para a frente, ergueu uma das mãos mortas e com um indicador que parecia ter estado conservado em salmoura carregou num dos botões do intercomunicador telefónico.
- Miss Apattof - anunciou, em voz alta-, o lugar está preenchido. Agradeça aos outros e mande-os embora.
Depois recostou-se de novo na cadeira giratória e olhou-me gravemente.
- Nome?
- Joshua Bigg.
Não se riu, nem sorriu, sequer.
- De onde é?
- De Iowa.
- Habilitações?
- Bacharel em Letras. com distinção.
- Miss Apatoff, a senhora que está no vestíbulo, levá-lo-á ao nosso chefe de escritório, Hamish Hooter. Ele tratará da papelada necessária e informá-lo-á dos seus deveres.
- Muito obrigado.
- Salário?
- Ah, sim, bem... Qual é o salário?
- Cem dólares por semana - respondeu, ainda a fitar-me. - Satisfaz?
- Oh, sim, senhor!
Levantou um dedo da pasta-mata-borrão. Deduzi que estava a mandar-me embora e voltei-me para sair. Chegara à porta quando ele chamou:
- Mr. Bigg.
Voltei-me.
Ele levantara-se e eu pude finalmente ver o seu tamanho.
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- Eu - declarou orgulhosamente - tenho um metro e cinquenta e oito centímetros e meio de altura.
Só depois de sair do gabinete me lembrei de perguntar à formosa recepcionista com quem acabara de falar.
- Oh, é Mr. Teitelbaum, o sócio principal! E eu sou Yetta Apatoff - acrescentou, inclinando-se para a frente de modo que vislumbrei um sulco entre os seios que nunca mais esqueceria. - Bem-vindo à TORT.
E foi assim que comecei a trabalhar para a Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum.
Fiquei na secção do correio durante cerca de dois anos, período em que o meu salário foi aumentado quatro vezes até atingir uns gratificantes cento e cinquenta dólares semanais e a minha paixão sem esperança por Miss Yetta Apatoff, a nossa núbil recepcionista, cresceu em proporções ainda maiores.
Por fim, a minha oportunidade de promoção chegou, como eu sabia que aconteceria.
Um dos mais de cinquenta empregados da TORT era Mr. Roscoe Dollworth, que tinha o título de investigador-chefe. Tratava-se de uma amabilidade, pois ele era o único investigador. Dollworth era um ex-polícia de Nova Iorque, que se demitira do Departamento por "razões de saúde". Era um bêbedo enormemente gordo, mas nem o seu bojo nem a sua espantosa ingestão de vodka (de um termo mantido bem à vista, em cima da sua secretária) interferiam no desempenho eficiente das suas obrigações.
Um investigador assalariado de uma grande firma de advogados tem a seu cargo as mesmas tarefas que firmas similares mais pequenas podem delegar em investigadores particulares, à medida das suas necessidades. Encontrar testemunhas, confirmar os álibis dos clientes e da parte contrária, acompanhar testemunhas recalcitrantes ao tribunal, localizar peritos-técnicos cujo testemunho possa ser vantajoso, etc.
Além disso, houvera vários casos em que Roscoe Dollworth efectuara investigações acerca da culpabilidade de clientes acusados de crimes, embora a defesa criminal constituísse apenas uma pequena parte das actividades da TORT. Em todos esses casos a passada associação de Dollworth com o Departamento de Polícia da Cidade de Nova Iorque mostrara ser de grande valor. Talvez fosse esse o motivo por que continuava em funções, apesar do termo de vodka em cima da secretária. Além disso, o investigador-chefe tinha sessenta e um anos quando eu entrara para a Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum, e tornara claro que tencionava retirar-se para a Florida aos sessenta e cinco anos para jogar shuffleboard (*) e observar os pelicanos.
(*) Jogo em que se empurram discos de madeira com uma pá, para quadrados marcados numa superfície plana. (N. da T.)
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Creio que Roscoe Dollworth gostava de mim. Sei que eu gostava dele. Nunca fazia alusões maliciosas ao meu tamanho e tratava-me mais como amigo do que como o homem que ocupava a mais baixa posição do tóteme da TORT. Por isso, gostava de fazer os recados de que me encarregava: ir a correr comprar-lhe uma nova garrafa de vodka ou regressar à pressa do meu próprio almoço para lhe levar a pizza quente de pepperoni que ele comia todos os dias à sua secretária (a pizza inteira, com picles e malaguetas, e mais uma impressionante fatia de queijada de ananás).
Em troca, contava-me histórias de casos em que participara como polícia de giro uniformizado e, mais tarde, como detective de terceira classe. Ensinou-me também as técnicas e os truques de um investigador profissional, tudo coisas que eu achava fascinantes. Não imaginara que os métodos policiais fossem tão complexos, nem como poucos deles se encontravam em livros. Só se podiam aprender através da experiência pessoal ou da experiência de outros polícias.
Ocasionalmente, quando eu tinha tempo e sempre com a permissão de um dos três sócios principais da TORT (Sean Reilly morrera sete anos antes, asfixiado por um pedaço de grelhado londrino mal passado), Roscoe Dollworth encarregava-me de uma missão investigativa. Começou por pequenas coisas: averiguar o número do apartamento de Fulano, descobrir onde Sicrano arrumava o carro, tentar descobrir quando determinada mulher se divorciara do primeiro marido, etc.
Gradualmente, num período de meses, os pedidos de Dollworth tornaram-se mais complexos e mais intrigantes.
- Tens alguma coisa que fazer esta noite, Josh? Não? Óptimo. Segue este tipo. Ele diz que vai a um clube de xadrez todas as noites de quarta-feira. Não juraria... Não deixes que te descubra. Trata-se de uma acção de divórcio.
Ou:
- Descobre quem é realmente o dono deste clube nocturno, sim? Terás de começar pela Câmara, a conferir registos. Aprenderás como se faz.
Ou:
- Vê se esta senhora tem visitantes regulares. Vive sozinha... mas quem sabe? Talvez tenhas de untar as mãos ao porteiro. Mas não lhe dês mais do que uma nota de cinco dólares, pois de contrário não te respeitará. O caso está relacionado com a legitimação de um testamento.
Etc.
Cumpri todas as minhas missões com bons resultados e comecei a pensar se não teria um talento natural para a investigação. Achava que parte do meu êxito talvez se devesse ao meu aspecto físico. Era-me impossível entrar à bruta e a minha atitude tímida, hesitante, quase 15
desamparada, parecia despertar o tipo de simpatia que levava a pensar: "Vamos lá ajudar o rapaz." E assim saía-me bem com os mesmos métodos que me tinham ajudado na conquista de mulheres: o mundo inteiro queria sentar-me ao colo.
Estava na TORT havia quase dois anos quando Roscoe Dollworth me chamou ao seu gabinete e me mandou fechar a porta e entrar.
Desta vez, não se tratava exactamente de uma missão. Era muito mais do que isso.
Calado, observei Mr. Dollworth enquanto ele deitava vodka num copo de papel, do termo. Bebeu devagar, a fitar-me pensativamente através da secretária.
Era um homem rotundo, com uma barriga que lhe mantinha a cadeira giratória sessenta centímetros afastada da secretária. O cabelo rebelde, quase cor de palha, começava a rarear e deixava ver pedaços de couro cabeludo sardento. As sobrancelhas mais escuras eram tão hirsutas que já o tinha visto penteá-las, e era evidente que o nariz tinha sido partido diversas vezes: parecia não saber para que lado se virar. Os lábios eram glutinosos e os dentes manchados de tabaco, mas os olhos eram duros e arredondados. Ao olhar para eles, sentia-me feliz por ser amigo dele e não inimigo.
- Olha, rapaz - começou por fim, em voz profunda e eructante-, deixa-me dizer-te o que tem estado a acontecer. Como sabes, tenciono reformar-me daqui a uns dois anos, se esta maldita úlcera não me matar primeiro. Isso significa que terão de me substituir, não é verdade? Por isso, fui ter com o velho Teitelbaum. Ele gosta de ti, sabias? Contratou-te por seres o único tipo da casa mais pequeno do que ele. Sabias isso, não sabias?
- Sabia, sim.
- Bem... - continuou, entre sorvos de vodka-, saíste realmente bom. Quero dizer, és trabalhador, não roubas selos e és educado. Tens sempre um sorriso pronto. Toda a gente gosta de ti... excepto, talvez, o emproado do Hamish Hooter. Mas esse não gosta de ninguém. A não ser, provavelmente, de Yetta Apatoff. Hooter gostaria de gostar dela... aí numa extensão de quinze centímetros.
Acenei estupidamente com a cabeça.
- Por isso, disse ao Teitelbaum que tal lhe parecia promover o Josh Bigg a investigador. "Deixe-o trabalhar comigo os meus dois últimos anos", disse, "e garanto que lhe ensino os cordelinhos. Na altura em que me for embora, terão um jovem esperto preparado para ocupar o meu lugar, um tipo que percebe do assunto." Disse ao Teitelbaum como te tens saído bem destes pequenos trabalhos que te tenho confiado. "O miúdo", afirmei-lhe, "tem uma boa carola em cima dos ombros. Dê-lhe uma oportunidade e terá um investigador de primeira na sua organização."
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Senti-me excitado. Escorreguei para a beirinha da cadeira e inclinei-me avidamente para Dollworth.
- E que disse ele?
- Disse que não - respondeu o investigador-chefe, pesaroso.
Disse que eras muito novo, que não tinhas experiência. Disse que
queria outro ex-polícia para me substituir.
Fiquei desmoralizado.
- Espera lá - pediu Dollworth, e levantou uma mão que parecia um presunto fumado. - Nunca aceito um nega sem lutar. Disse-lhe que podias parecer muito novo, mas que quando eu me reformar terás trinta anos, -certo? - e que o teu cérebro é mais velho do que isso. Disse-lhe também que, no tocante a experiência, te posso ensinar a maior parte do que precisarás de saber, e que o resto irás aprendendo com o tempo. Quanto a contratar um ex-polícia, disse-lhe, se queria outro relaxado como eu, isso era com ele. Mas um investigador sai muito, contacta com o público, e deve causar boa impressão como representante da firma. E tu vestes bem, usas casaco e calças a condizer, e gravata e tudo o mais. Depois apresentei o argumento principal: "Além disso", disse a Teitelbaum, "se contratar um ex-polícia para me substituir, terá sorte se lhe pagar vinte mil dele por ano, ao passo que poderá conseguir que o Bigg faça o mesmo trabalho por metade."
- Que disse ele a isso? - perguntei, ofegante.
- Têm uma reunião esta tarde - respondeu Roscoe Dollworth. - Os três sócios principais. Depois digo-te o que decidirem. Entretanto, o meu termo está a ficar vazio. E se fosses num salto encher-mo, hem?
Mais tarde, nesse mesmo dia, fui informado de que os sócios principais da Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum, reunidos em solene conclave, tinham decretado que eu seria substituído na secção do correio e, durante um período de dois anos, seria colocado como aprendiz do inspector-chefe Dollworth. No fim desse período, os sócios principais aceitariam o critério de Dollworth quanto a se eu era ou não qualificado para assumir o seu lugar, após a sua retirada. Durante o meu aprendizado continuaria a ganhar cento e cinquenta dólares por semana.
- Não te preocupes com coisa nenhuma - recomendou-me Roscoe Dollworth, a piscar o olho. - Está no papo. Andarás numa fona comigo, mas aprenderás.
Vi e aprendi. Nos dois anos seguintes trabalhei mais do que julgara possível, chegando a aguentar dezoito horas por dia na minha determinação de dominar a nova profissão.
Dollworth ensinou-me tantas coisas que seria impossível indicá-las todas. Contava-se entre elas uma instrução básica sobre assuntos como lei criminal e cível, o direito à intimidade e as normas da evidência,
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além do ensino de matérias práticas como forçar uma fechadura, os melhores métodos de seguir alguém numa rua cheia de gente e o equipamento a levar quando se contava seguir alguém demoradamente. (A primeira coisa era um pacote de leite vazio, no qual um homem se pudesse aliviar.)
Além das lições de Dollworth e das investigações que me eram confiadas com frequência crescente, também estudei muito em casa. Os meus livros eram manuais da Academia de Polícia de Nova Iorque, que Dollworth me arranjava, assim como grossos volumes sobre leis, procedimentos judiciais e criminologia, que eu comprava ou pedia emprestados na biblioteca pública.
Ao fim dos dois anos de aprendizado, senti, com o meu infatigável optimismo, que dominara os profundos mistérios da minha nova profissão e estava qualificado para me tornar investigador-chefe da TORT. Devo ter deixado transparecer alguma da minha vaidade a esse respeito, pois alguns dias antes da sua reforma o meu mentor chamou-me ao seu gabinete, bateu com a porta e aliviou-se do seguinte:
- Julgas que sabes tudo, não julgas? Agonias-me, fica sabendo! Não sabes nada. Nada! Um criminoso esperto seria capaz de te fazer andar em círculos, a correr atrás da cauda. Espera até te aparecer pela proa um mentiroso, um bom mentiroso! Nem saberás se vais, se vens! Ainda estás no rés-do-chão, miúdo. Tens muito, mas muito que aprender. Reparei na maneira como olhas para a Yetta Apatoff. Se ela te mandasse atirar pela janela, atiravas-te. E que aconteceria se uma manhosa exactamente como ela fosse uma suspeita e tivesses de recolher material incriminativo contra ela? Merda, rapaz, só verias tetas e traseiro, e ela punha-se a passear. Adeus, passarinho. Josh, tens de aprender a desconfiar de toda a gente. Tens de suspeitar de toda a gente. O mundo lá de fora é duro e cruel, está cheio de gajos maus e de milhões de outros que também seriam maus se não tivessem medo de ser apanhados. Nunca, mas nunca, acredites no que as pessoas te disserem sem primeiro confirmares. Nunca, mas nunca, deixes os teus sentimentos pessoais interferir no teu trabalho. E sobretudo nunca acredites que pelo facto de uma mulher ser bonita e um homem ser simpático, bem sucedido e contribuir para a sua igreja, não podem ser os piores criminosos do mundo. A maioria das pessoas que vieres a conhecer estarão preparadas para te intrujar. Por isso, limita-te a sorrir e a dizer: "Sim, sim", e começa a investigá-los. Tens muitas coisas a teu favor, Josh. Tens cabeça, és capaz de convencer as pessoas a falar e tens uma boa imaginação. Talvez demasiado boa. Mas o que mais me preocupa a teu respeito é seres tão inocente, tão desgraçadamente inocente!
As minhas insuficiências não tinham, porém, coibido Roscoe Dollworth de me recomendar como seu sucessor. Uma semana depois partiu
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para a Florida com um jogo de malas a condizer, oferta dos patrões da TORT, um bónus de despedida de cinco mil dólares e um excelente binóculo alemão oferecido por mim.
- Para observar os pelicanos - disse-lhe.
- Claro, miúdo - respondeu, a socar-me de brincadeira o braço. - Muito bonito. Depois mando-te a minha morada, para me dares notícias. Se alguma vez te puder ajudar lá no Departamento, manda-me dizer.
- Obrigado, Mr. Dollworth - agradeci. - Por tudo.
Nos vinte e seis meses seguintes tive a triste consciência da diferença entre o treino para a profissão, sob a tutelagem de um investigador experiente, e ter de assumir toda a responsabilidade, sem supervisão, de todas as actividades investigativas da Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum.
Para começar, choviam-me no gabinete pedidos de investigação dos três sócios principais, dos sete sócios mais novos (incluindo o Tabatchnick II e os Orsini II e iII), de doze associados, funcionários judiciais e assistentes paralegais e do mesquinho chefe do escritório, Hamish Hooter. Precisei de algum tempo para organizar um sistema de prioridades e aprender a lidar com todos esses indivíduos cheios de vontade forte e temíveis. (A profissão jurídica parece ter o efeito de, primeiro, dilatar os egos e, depois, perpetuá-los em cimento armado.)
Toda a gente queria o seu pedido de informação atendido imediatamente, à frente de todos, e ao princípio vi-me aflito; mas depois de observar a velocidade de caracol com que a TORT deslindava a maioria dos litígios, apercebi-me da existência de dois tipos de tempo. Um tem horas de sessenta minutos, dias de vinte e quatro horas e avança a um ritmo rápido. O outro, o tempo judicial, arrasta-se tão lentamente que o movimento mal se nota.
Quando um executivo diz: "Mando-lhe essa carta amanhã", geralmente quer dizer amanhã, ou dentro de alguns dias, ou daqui a uma semana, no máximo. Quando um advogado diz: "Mando-lhe essa carta amanhã", geralmente quer dizer daqui a seis semanas, para Novembro próximo ou nunca. Na prática da lei encontra-se sempre a admoestação subjacente: "Para quê a pressa?" Shakespeare falou "da demora da lei", toda a gente tem consciência da letargia dos tribunais e até o mais jovem, mais inteligente e mais dinâmico advogado, acabado de sair da Faculdade de Direito, se adapta depressa à lentidão como modo de vida. A lei, senhor, é um glaciar. Tentar apressá-lo revela-se geralmente contraproducente.
Quando reconheci essa verdade fulcral, consegui descontrair-me, perceber que muito poucos pedidos envolviam uma crise e devotar toda a minha energia e inteligência ao domínio das técnicas da minha nova profissão. com toda a modéstia confesso estar convencido de que
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não funcionei muito mal. Pelo menos o meu vencimento subiu para doze mil e quinhentos dólares no fim do meu primeiro ano como investigador-chefe e para quinze mil no fim do segundo. Isso constituía sem dúvida prova de que a TORT estava satisfeita com o meu desempenho. O aumento permitiu-me mudar-me da Associação dos Jovens Cristãos para o meu próprio apartamento, restaurar o meu guarda-roupa e convidar Miss Yetta Apatoff para um jantar onde não faltou uma pequena garrafa de vinho francês. No entanto, em troca, ela não me convidou a sentar no seu colo.
Nem tudo foram rosas, porém. Cometi erros, naturalmente. Ou talvez não fossem erros, mas antes a falta de previsão de um possível curso dos acontecimentos. Por exemplo, fui encarregado de ir buscar uma testemunha supostamente amigável num caso de responsabilidade pessoal e assegurar a sua presença no tribunal no momento indicado. Quando me apresentei no seu apartamento do Bronx, o indivíduo recusou-se simplesmente a acompanhar-me.
Era um tipo abrutalhado, calmeirão, de camisola interior suja e a mascar um charuto espapaçado.
- Mas tem de vir - disse-lhe.
- Tenho de ir? - rosnou. - Eu não tenho de fazer nada. -Mas prometeu - argumentei, desesperadamente.
- Mudei de ideias - replicou, despreocupado.
- Insisto para que me acompanhe - volvi, embora receie que a minha voz se tenha tornado ligeiramente esganiçada.
- Você insiste? - repetiu, a rir com vontade. - E que tenciona fazer? Arrastar-me até lá, seu merdinha?
Tive de comunicar o meu falhanço ao advogado da TORT que tinha o caso a seu cargo. Por sorte, ele aceitou a minha ineficiência filosoficamente; o depoimento da testemunha não era de importância crucial, não era necessária uma intimação e ele não tardou a esquecer o incidente. Mas eu não esqueci; ficou a envenenar-me.
Da próxima vez fiz o meu trabalho de casa e aprendi tudo quanto pude acerca da testemunha potencial, indo ao ponto de a seguir durante alguns dias e tomar nota das suas actividades.
Como previra, o indivíduo também disse que mudara de ideias e recusou-se a depor.
- Mude outra vez, por favor - respondi-lhe. - Não desejo informar a sua mulher onde você passou três horas, ontem à tarde.
O homem vestiu o casaco.
E também disse: "Seu merdinha!"
Aprendi assim a estar à altura daqueles casos raros em que a falta de volume físico tornava mais difícil o desempenho da minha profissão. Claro que não era um investigador particular devidamente autorizado e não tinha desejo nenhum de tentar obter uma licença de porte de
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arma de fogo. Achava que conseguiria corresponder a todas as exigências do meu trabalho sem ter de recorrer à violência.
Mas de modo geral aqueles dois primeiros anos como investigador-chefe da Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum deslizaram sobre rodas. Aprendi a verdade de muitas das coisas que Roscoe Dollworht me gritara pouco antes de se reformar. As pessoas mentiam, frequentemente apenas pela razão de acharem que a verdade era tão valiosa que não devia ser revelada a um desconhecido sem recompensa. As pessoas tentaram realmente intrujar-me, e eu não tardei a aprender a reconhecer os sinais: um olhar franco, aberto, sem pestanejar, uma maneira de falar fluente e demasiado rápida.
Aprendi também a não me envolver pessoalmente com as pessoas com quem lidava, embora mantivesse uma atitude cortês, compreensiva e comedida. Aprendi igualmente que o trabalho de investigador requer infinita paciência, uma atenção quase minuciosa ao pormenor, tenacidade e a capacidade de suportar longos períodos de tédio.
Se alguma mágoa tinha, foi a de nunca terem surgido circunstâncias que exigissem uma investigação original, para descobrir a verdade num caso de certa importância. Tinha a sensação de haver demonstrado a minha capacidade para tratar de assuntos rotineiros, na sua maior parte questões que requeriam apenas alguns telefonemas, correspondência ou simples investigações que não exigiam qualquer talento dedutivo especial. Sentia a necessidade de desafios mais temerários.
A oportunidade de provar o que valia surgiu em Fevereiro do meu sétimo ano da TORT.
Capítulo segundo
Chegava todas as manhãs ao meu gabinete às oito e meia, com uma embalagem de café simples e uma rosca torrada e amanteigada. Gostava de chegar cedo a fim de organizar o trabalho do dia antes de o telefone começar a tocar. Na terça-feira de manhã, 6 de Fevereiro, encontrei na pasta da minha secretária uma nota de Leopold Tabatchnick: "Recebo-o no meu gabinete às dez horas desta manhã de 6 de Fevereiro. L. T."
Adiei uma investigação no exterior que tinha planeado fazer naquela manhã, e às 9.50 horas fui ao lavabo dos homens para me certificar de que tinha o cabelo bem penteado, o nó da gravata bem ao centro e as unhas limpas. Dei também uma rápida limpeza aos sapatos com uma toalha de papel.
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Os gabinetes particulares dos sócios principais ocupavam as maiores suites (da retaguarda) do primeiro, segundo e terceiro andares, uns por cima dos outros. Teitelbaum estava no primeiro andar, Orsini no segundo e Tabatchnick no terceiro. A secretária de Mr. Tabatchnick estava sentada a trabalhar no vestíbulo. Era Thelma Potts, uma solteirona de cerca de sessenta anos, de rosto juvenil e cabelo que lembrava natas batidas. Usava blusas de decote alto, com um camafeu a ajustar a gola. Dava conselhos, fazia pequenos empréstimos e nunca esquecia dias de anos ou outros aniversários. A gaveta do fundo da sua secretária estava cheia de remédios para as dores de cabeça, pós para o estômago, tranquilizantes, pensos rápidos, xaropes para a tosse, comprimidos para a constipação, etc., tudo ao dispor de quem precisasse. Tinha entre os remédios um pequeno copo de papel onde devíamos colocar umas moedas de vez em quando, para ajudar a manter a farmácia.
- Bons dias, Miss Potts - cumprimentei.
- Bons dias, Mr. Bigg. - Olhou para o relógio preso à blusa e comentou: - Chegou três minutos adiantados.
- Bem sei. Queria passá-los consigo.
- Seu atrevido!
- Pensava que me ia arranjar esposa, Miss Potts - disse, pesaroso.
- Alguma vez lhe prometi isso? - perguntou, corada. - Tenho a certeza de que é perfeitamente capaz de arranjar sozinho uma rapariga simpática.
- Até agora não tive essa sorte. Já posso entrar?
Ela consultou de novo o relógio.
- Trinta segundos - respondeu, firme.
Suspirei e esperámos em silêncio. Miss Potts de olhos fixos no relógio.
- Agora! - exclamou, como um director de pista a dar a partida aos corredores.
Bati uma vez à pesada porta, abri-a, entrei e voltei a fechá-la.
Ali, em vez de livros de Direito, as paredes estavam forradas de aquários de peixes tropicais. Havia tanques de todos os tamanhos e feitios, iluminados por trás. Subiam constantemente bolhas de ventiladores. A atmosfera do aposento era opressivamente quente e húmida. Nos aquários havia guppies, cavalos-marinhos, anjos, donzelas rosadas, enguias transparentes, peixes cor de fogo, rainhas púrpuras, rabos-de-espada e uma piranha.
Ofereciam todos um espectáculo cintilante, nos tanques claros e iluminados pela retaguarda, às corridinhas, a fazer bolhas, a beijar o vidro e a vir à superfície jorrar água.
Quando vira Mr. Tabatchnick pela primeira vez, ele perguntara -me se me interessava por peixes tropicais. Confessara-lhe que não.
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- Hum... - resmungara. - Nesse caso, não faz ideia nenhuma do conforto que se pode encontrar na companhia silenciosa dos nossos amigos de barbatanas.
Seguira-se um périplo de meia hora pelos tanques, um por um, com Mr. Tabatchnick a dissertar sobre os nomes latinos, os estilos de vida, a disposição, os hábitos alimentares, as tendências sexuais e as depravações dos seus amigos com barbatanas. Aparentemente, a maioria deles comia os filhos. Mais tarde vim a saber que a prelecção tinha de ser suportada por todos os novos empregados. Felizmente, era feita de uma só vez e nunca mais se repetia.
O homem sentado na cadeira giratória de cabedal, atrás da mesa de cavaletes, parecia andar pelo meio da década dos setenta. Tinha uma cabeça enorme, assente num arcaboiço largo, quadrado e sem pescoço, tão rigidamente direito que dava a impressão de se ter esquecido de um cabide de madeira nos ombros do casaco.
As suas mãos eram largas, com dedos espatulados e pele manchada pela queratose. Os braços pareciam desproporcionadamente compridos, e como ele tinha tendência para arrastar os pés, de ombros arqueados, cabeçorra inclinada para a frente e uma careta feroz nas feições carnudas, o pessoal jurídico e os assistentes paralegais chamavam-lhe "King Kong". Em voz muito baixa, claro.
Mas não havia nada de simiesco nas suas feições. Se algumas parecenças tinham, era com um atento cão de caça, todo pregas e rugas, barbelas e mandíbulas, beiços proeminentes (sempre húmidos) que pareciam de borracha e olhos tão lacrimosos que dir-se-ia estar ele constantemente na iminência de soluçar. A sua expressão normal era de triste pesar, e constava que a usara com grande efeito, no seu tempo de advogado de julgamentos, para captar a simpatia do júri.
- Bons dias, Mr. Tabatchnick - cumprimentei, alegremente.
Respondeu-me com a inclinação de cabeça característica do soberano ao servo e apontou uma poltrona ao lado da mesa.
- Sol Kipper - disse.
Tinha voz estentórea, trovejante. Uma voz que era um órgão. Tive pena de não frequentar o tribunal, para ouvir as suas alegações.
- Perdão ? - murmurei.
- Sol Kipper - repetiu. - Solomon Kipper, para ser exacto. O nome não lhe diz nada?
Pensei desesperadamente. Não era um nome que se esquecesse facilmente. Depois lembrei-me...
- Já sei, Solomon Kipper. Um suicídio há cerca de duas semanas. Do último andar da sua casa do East Side. Uma pequena história, no Times.
- Sim - as pregas de pele abanaram tristemente-, uma pequena história no Times. Desejo que saiba, meu jovem, que Sol Kipper foi
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meu amigo pessoal durante cinquenta e cinco anos e um estimado cliente desta firma durante quarenta.
Não me pareceu que houvesse qualquer resposta adequada para
aquilo.
- Trataremos da legitimação do testamento - prosseguiu Mr. Tabatchnick. - Sol Kipper era um homem rico. Não muito rico, mas rico. Tudo simples e claro. Não prevejo qualquer problema.
Fez uma pausa, inclinou-se para a frente e premiu um botão do intercomunicador que tinha na mesa.
- Miss Potts, quer fazer o favor de entrar? - disse. - Traga os seus apontamentos acerca da conversa que tive ontem ao fim da tarde com aquele desconhecido.
Recostou-se na cadeira e esperámos. Thelma Potts entrou silenciosamente, com um livro de estenografia daqueles em que as folhas são presas por uma espiral de arame. Mr. Tabatchnick não a convidou a sentar-se.
- Ocasionalmente - informou, em tom magistral-, considero apropriado, durante certas comunicações telefónicas, pedir a Miss Potts que escute pela sua extensão e tome apontamentos. Muito bem. Miss Potts, pode começar.
Thelma passou algumas páginas e começou a traduzir a sua estenografia, a olhar através dos óculos sem aros e a falar rapidamente, numa voz inexpressiva e com perfeita enunciação:
- às quatro horas e quarenta e seis minutos da tarde de segunda-feira, cinco de Fevereiro, deste ano, foi recebido um telefonema no posto telefónico principal, lá em baixo. Uma voz masculina disse que queria falar com o advogado encarregado do espólio Kipper. O telefonema foi ligado para mim. O homem repetiu o pedido. Perguntei-lhe o que queria, ao certo, mas ele respondeu que só revelaria isso ao advogado do caso. Como é costume em tais circunstâncias, aconselhei-o a escrever uma carta pedindo uma entrevista e expondo o seu interesse na questão. Declarou-me que não o faria e que se o advogado se recusasse a falar com ele viria a arrepender-se. As suas palavras exactas foram: "Mais tarde arrepender-se-á." Perguntei-lhe então se queria aguardar um momento. Concordou. Deixei-o à espera e falei com Mr. Tabatchnick pelo intercomunicador, explicando-lhe o que se passava. Ele concordou em falar com o indivíduo, mas pediu-me que ficasse na extensão e tomasse apontamentos.
Interrompi:
- Quanto à voz masculina que falava, Miss Potts: era jovem, velha?
Fitou-me alguns segundos.
- Média - respondeu por fim, e continuou a ler os seus apontamentos.
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- Mr. Tabatchnick perguntou qual era o objectivo do telefonema. O homem perguntou-lhe se era ele que estava a tratar do caso Kipper. Tabatchnick respondeu que sim. O homem perguntou-lhe como se chamava. Mr. Tabatchnick disse-lhe. Então o homem disse que tinha em seu poder informação valiosa que afectaria o espólio Kipper. Mr. Tabatchnick perguntou de que natureza era a informação. O homem recusou-se a revelá-la. Mr. Tabatchnick disse presumir, então, que a informação poderia ser obtida por um preço. O homem confirmou que assim era. As suas palavras exactas foram: "Em cheio na mouche, jóia!" Então Mr. Tabatchnick sugeriu-lhe que viesse ao seu gabinete, para discutirem particularmente o assunto. Mas o homem recusou e disse não ter nenhum interesse em que a sua conversa fosse secretamente gravada. Mas declarou que se encontraria com Mr. Tabatchnick ou com um seu representante num lugar por ele próprio escolhido. Mr. Tabatchnick perguntou-lhe como se chamava. O indivíduo disse que "Marty" seria suficiente. Mr. Tabatchnick perguntou-lhe a morada, que Marty se recusou a revelar. Então Mr. Tabatchnick disse que precisava de pensar no assunto, mas que contactaria com Marty se ele ou o seu representante desejassem encontrar-se com o indivíduo. Marty deu um número, mas estipulou que o telefonema teria de ser feito no espaço de vinte e quatro horas. Se não tivesse notícias de Mr. Tabatchnick até às cinco horas da tarde de terça-feira, seis de Fevereiro, presumiria que Mr. Tabatchnick não estaria interessado na sua, cito, valiosa informação acerca do espólio Kipper, fim de citação, e se consideraria livre para contactar outros compradores potenciais. A conversa terminou.
Miss Potts fechou o livro de apontamentos com um movimento rápido e levantou a cabeça.
- Não deseja mais nada, Mr. Tabatchnick? - perguntou.
- Não, obrigado - respondeu o advogado, e levantou também a pesada cabeça.
Ela saiu da sala e fechou a porta devagarinho.
Ele fitou-me sombriamente.
- Então? - perguntou-me. - Que pensa?
Encolhi os ombros.
- É impossível pronunciar-me. Não tenho bases suficientes para isso. Pode tratar-se de tentativa de chantagem, ou tentativa de extorsão, ou ser apenas vigarista barato a ver se abicha uns dólares com uma esperteza qualquer.
- Acha que devo comunicar com o homem e combinar um encontro com ele?
- Não, senhor. Acho que eu devo. Ele disse o senhor ou um seu representante.
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- Esta história não me agrada - confessou Leopold Tabatchnick, preocupado.
- a mim também não - admiti. - Mas parece-me sensato encontrar-me com ele e tentar descobrir que "valiosa informação" ele pensa que tem.
- Hum... sim... bem... - resmungou Tabatchnick, a tamborilar com os dedos no tampo da mesa.
Depois ficou um longo momento calado e eu tive a estranha impressão de que ele sabia qualquer coisa, ou desconfiava de qualquer coisa, que me não dissera, e debatia consigo mesmo se deveria ou não dizer-me. Por fim, decidiu calar-se.
- Está bem - acabou por dizer, a acenar vagarosamente com a pesada cabeça -, telefone-lhe e marque um encontro. Tente averiguar o que ele tem ao certo para vender. Recuse-se a comprar às cegas. E não comprometa a firma por qualquer importância, grande ou pequena.
- Claro que não.
- Informe-o de que me comunicará as condições dele. -Sim, senhor.
- Informe-o de que, nestas circunstâncias, só eu posso autorizar qualquer pagamento.
- Compreendo.
- E tente averiguar o seu nome completo e a sua morada. -Sim, senhor - respondi, a sufocar um suspiro: às vezes ainda me tratavam como a um rapaz da secção do correio.
Capítulo terceiro
Quando saí do santuário forrado de peixes de Mr. Tabatchnick, parei na secretária de Thelma Potts a fim de obter o número do telefone do misterioso Marty, e depois desci a escada principal.
Mr. Romeo Orsini estava a dar audiência no patamar do segundo andar, rodeado por uma corte de auxiliares, na sua maioria mulheres. Devia ter à volta de sessenta e cinco anos e era alto, erecto e tinha um cabelo de uma brancura de neve, basto e maravilhosamente penteado. Movimentava-se com o vigor e a graça de um homem com um terço da sua idade, e a sua pele rosada, os seus cintilantes olhos escuros, a sua saúde evidente, a meticulosidade com que se vestia e arranjava e a auto-satisfação que respirava, davam uma imagem perfeita do advogado do cinema ou da TV.
Especializado em acções de divórcio, Romeo Orsini tinha enorme
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êxito na obtenção de pensões para a divorciada e para o sustento dos filhos, muito para além das esperanças mais exageradas das suas clientes. Dizia-se também que era frequentemente o primeiro a consolar a nova divorciada.
Esperei conseguir esgueirar-me à volta do grupo do patamar sem darem por mim, mas a sua mão estendeu-se subitamente e fechou-se-me no braço.
- Josh! - exclamou alegremente. - Precisamente o homem que eu queria ver!
Puxou-me para junto de si e, não pela primeira vez, aspirei o perfume da sua água-de-colónia.
- Ouvi uma anedota de que deve gostar - disse, velhaco, a sorrir-me.
O coração caiu-me aos pés. Todas as anedotas que ele contava relacionavam-se com homens pequenos.
- Era uma vez um pigmeu - começou, a olhar em redor do seu círculo de auxiliares, que estavam a preparar os rostos para desatar a rir ao primeiro sinal e alguns deles até já sorriam - que casou com a mulher mais alta do circo. -Orsini fez uma pausa, para produzir efeito, e eu adivinhei o que se seguia. -Os amigos dele puseram-no onde era preciso! -concluiu, seguindo por frouxos de riso, gargalhadinhas, gargalhadas ruidosas e palmadas nas coxas dos seus auxiliares.
Para minha vergonha, ri-me tão alto como qualquer e, por fim, soltei-me e continuei a descer a escada, a amaldiçoar-me.
No rés-do-chão, vi-me confrontado com a irritante presença de Hamish Hooter, o chefe do escritório.
- Ouça lá, Bigg...
Era assim que Hooter iniciava todas as suas conversas: "Ouça lá." Deu-me vontade de tomar balanço e esmurrá-lo no focinho.
- Que se passa, Hooter? - perguntei, resignadamente.
- Que história é essa a respeito de uma secretária? - perguntou, a agitar diante da minha cara uma folha de papel que reconheci como um memorando que escrevera na semana anterior.
- Está tudo explicado aí - respondi. - Até agora tenho dactilografado toda a minha correspondência, mas a carga de trabalho está a tornar-se excessiva. Não posso pedir às secretárias e às dactilógrafas que me ajudem; todas elas têm o seu trabalho.
- O Dollworth não precisava de secretária - lembrou-me, sarcástico.
- O Dollworth era notoriamente fraco no capítulo de registar coisas. Ele próprio o admitia. Em consequência disso, temos histórias incompletas de investigações que fez e não temos cópias de cartas que porventura tenha escrito nem memorandos de telefonemas e conversas. Esses registos poderiam ser de importância vital se alguns casos
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vissem aceites os recursos ou fossem reabertos por qualquer razão. Preciso realmente de um arquivo completo e de o manter actualizado.
- Não acredito que esteja tão atarefado que não possa encarregar-se pessoalmente disso - disse, e acrescentou desagradavelmente: Parece não lhe faltar tempo para dar à língua com Yetta Apatoff.
Fitei-o. Era de facto um tipo desprezível. Mais, parecia um tipo desprezível.
De altura média, tinha um porte tão mau (ombros abaulados, costas curvadas e barriguinha espetada) que parecia mais baixo. Tinha uma pele palidíssima e olhos pequenos e aguados, muito afastados um do outro. Os lábios eram afectados e o nariz parecia uma fatia de queijo cheddar. Tinha cabelo negro de azeviche, um tanto ou quanto engordurado, e começava, agradou-me verificar, a ficar calvo no cocuruto. Penteava as madeixas gordurosas para o lado, a tentar ocultar a tonsura.
A sua voz era esganiçada e de cana rachada, uma espécie de cruzamento entre um ganido e um regougo. Tinha também o hábito de aspirar os dentes depois de cada frase, como se tivesse entalada neles uma fibrazinha de aipo que não conseguia tirar. Deixem-me ver que mais... Ah, sim! Tinha olhos para Yetta Apatoff (olhos ardentes, bugalhudos) e bastava isso para o condenar, na parte que me tocava. Sabia que almoçavam juntos, ocasionalmente, e só podia concluir que ela o acompanhava por pura bondade, como quem atira um amendoim a um orangotango particularmente repugnante e de rabo encarnado, no jardim zoológico.
- Deduzo, portanto, que não vou ter uma secretária - comentei.
- Deduz correctamente - redarguiu, a chupar ruidosamente os incisivos.
Olhei-o com asco. Mas se eu não fosse capaz de ser mais esperto do que aquela besta, devolveria o meu distintivo de Maquiavel. Girei nos calcanhares, afastei-me dele, entrei no meu gabinete e bati com a porta.
A primeira coisa que fiz foi marcar o número de Marty. Deixei o telefone tocar dez vezes, mas não obtive resposta. Por isso, peguei no livro de apontamentos, no cronómetro e no sobretudo e saí para uma investigação de rotina.
Yetta Apatoff estava à sua secretária, mas atarefada com um casal idoso que tentava explicar-lhe qualquer coisa num inglês com forte sotaque alemão. Acenou-me com os dedinhos deliciosos quando passei. Retribuí o aceno.
Passei a manhã a demonstrar que um jovem cliente não podia ter roubado uma loja de máquinas fotográficas no Terminal de Autocarros das Autoridades do Porto, na esquina da 8ª Avenida com a Rua 40, às 12.06 horas da tarde, e percorrido dezanove quarteirões a tempo de
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ser positivamente identificado numa exposição comercial de electrónica no Coliseu, em Columbus Circle, na esquina da 8ª Avenida com a Rua 59, às 12.14 horas.
Percorri a distância entre o Terminal e o Coliseu três vezes de táxi, três vezes de metropolitano e três vezes de autocarro (fazendo sempre a viagem de volta de táxi). Servi-me do cronómetro e cronometrei cada ida na direcção norte até à fracção de segundo, de tudo tomando notas muito cuidadosas.
Completei as experiências de tempo cerca das 2.30 horas da tarde. Comi um hamburger e liguei de uma cabina para o número de Marty. Continuei sem obter resposta. Comecei a ficar um bocadinho preocupado. Marty dissera que as cinco horas da tarde eram o limite.
Yetta Apatoff estava ao telefone quando entrei no edifício da TORT às 3.20 horas, aproximadamente. Sorriu-me (uma maravilha, aquele sorriso!) e, sem deixar de falar ao telefone, estendeu-me uma pequena folha de papel. Outro memorando. Este era da secretária de Mr. Teitelbaum a pedir-me que lhe telefonasse assim que voltasse.
Fui para o meu gabinete, despi o sobretudo e liguei para o número de Marty. Nada de resposta. Depois liguei para Ada Mondora, a secretária de Teitelbaum. Informou-me de que ele queria falar comigo o mais depressa possível, mas de momento estava ocupado com um cliente; ficou de me telefonar quando o advogado estivesse livre.
Despi o casaco, sentei-me à máquina de escrever e comecei a dactilografar um relatório sobre as experiências de tempo.
O meu gabinete, no rés-do-chão, não era tão pequeno como um armário de vassouras. Havia espaço para uma secretária em L, com a máquina de escrever no lado mais curto. Uma cadeira giratória de aço. Uma cadeira de braços de aço para as visitas. Um ficheiro de aço. Um cesto dos papéis, um cabide de braços e uma pequena estante de aço. E mais nada. Quando Roscoe Dollworth, com o seu bojo explosivo, o ocupara, aquele cubículo parecera cheio a trasbordar. Eu deixava livre um pouco mais de espaço, mas mesmo assim o gabinete ficava atravancado e deprimente. Não tinha janelas. Se conseguisse que me dessem a secretária, o meu projecto seguinte seria obter aposentos maiores, para a instalar. A minha ambição não tinha limites.
Estava quase a acabar de dactilografar o relatório quando Ada Mondora telefonou a dizer que podia subir. Vesti o casaco, fui ao lavabo dos homens para me tornar apresentável e subi a escada até ao primeiro andar.
- Olá, Josh - disse Ada, na sua trovejante voz de baixo; aproximava-se dos cinquenta e falava como se tivesse fumado Caronas toda a vida. -Ele passou o dia a tentar comunicar consigo. Pode entrar já.
- Obrigado, Ada.
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Adoptei o procedimento aprovado: bati uma vez, abri a porta, entrei e fechei a porta devagarinho.
Ignatz Teitelbaum era seis anos mais velho do que no dia em que me contratara, mas ninguém o diria. Aparentemente, atingira uma plataforma, um certo número de anos (setenta? setenta e cinco?), e depois não envelhecera mais. Iria para a cova exactamente com o aspecto que tinha naquele momento: pele a parecer couro, os olhos azuis brilhantes e a voz vigorosa.
- Sente-se, meu jovem.
Escolhi a poltrona mais próxima da secretária. A luz do candeeiro de estudante incidia em mim, mas deixava-lhe a cara na sombra.
- Um cliente - disse abruptamente. - Yale Stonehouse. Professor Yale Stonehouse. Um homem muito litigioso. Conhece o termo?
Murmurei sensatamente.
- Bem, o professor Stonehouse movia acções judiciais a toda a hora e por qualquer razão. Ou sem nenhuma razão. Processou canalizadores e electricistas que tinham feito reparações em sua casa. Processou o senhorio. Processou estabelecimentos comerciais. Processou taxistas e as empresas onde eram empregados. Processou jornais, revistas, fabricantes, hotéis, uma companhia dos autocarros, a Companhia dos Telefones, a Consolidated Edison, a Cidade de Nova Iorque, os Escuteiros da América, os fabricantes de roscas Tootsie e um pobre diabo que teve o azar de chocar acidentalmente com ele na rua. Numa ocasião, o professor Stonehouse processou os Estados Unidos da América.
- Ganhou alguma vez? - perguntei.
- Raramente - respondeu Mr. Teitelbaum, com um sorriso frio. - E quando ganhou as indemnizações que lhe foram atribuídas nunca foram suficientes para cobrir as custas do processo. Num caso de que me recordo, o juiz atribuiu-lhe um cêntimo. Mas o professor Stonehouse não se importava-ou dizia que não se importava. Insistia que os princípios envolvidos eram a única coisa que contava. - Mr. Teitelbaum fez uma pausa, para suspirar pesadamente. - Não tenho a certeza de que o professor Stonehouse fosse completamente são de juízo. Excêntrico era, sem dúvida.
- Era? - repeti. - O cavalheiro já não é nosso cliente? Ou faleceu?
Mr. Teitelbaum ignorou as minhas perguntas e continuou:
- Como estava a dizer, tentámos dissuadi-lo de tão injustificada litigação, mas ele insistia. As suas acções, enfim, proporcionavam boa experiência a alguns dos mais jovens e mais recentes membros da firma. Além dos seus processos, também nos encarregávamos da parte jurídica de diversos investimentos que o professor Stonehouse fazia em bens imobiliários e diversas outras propriedades. Era, diria, abastado.
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Não saberia dizer, no entanto, até que ponto era próspero, pois esta firma não preparou o seu testamento nem desempenhou qualquer papel nos seus investimentos gerais nem no planeamento dos seus bens. Numa ocasião em que lhe perguntei se fizera testamento, respondeu-me em tom hostil que esse assunto estava tratado. A sua reacção à minha pergunta foi tal que nunca ousei levar o caso mais longe. Limitei-me a presumir que tinha um testamento elaborado por outro advogado, o que não constitui prática incomum.
Dito isto calou-se, e fiquei também calado, a perguntar a mim mesmo aonde quereria ele chegar com tudo aquilo.
Ignatz Teitelbaum entrelaçou os pequenos dedos engelhados e apoiou-os na secretária. Baixou a cabeça para os olhar e mexeu um de cada vez. Pareceu surpreendido por ainda mexerem. De olhos fixos nas mãos, continuou a sua história em voz serena e sonhadora:
- Ontem, a mulher do professor Stonehouse veio visitar-me. Informou-me de que, uma noite depois do jantar, o marido saíra simplesmente de casa, sem dizer aonde ia, e nunca mais voltara. Até hoje, ainda não voltou.
- Deixou algum bilhete? Levou algumas roupas? Levantara algumas importâncias volumosas das contas bancárias? Dera a entender a sua intenção de partir?
Mr. Teitelbaum levantou lentamente a cabeça e fitou-me.
- Fiz a Mrs. Stonehouse exactamente as mesmas perguntas. As suas respostas foram todas negativas.
- Mrs. Stonehouse foi à Polícia, presumo?
- Claro. A Polícia perguntou nos hospitais e na morgue e verificou os relatórios de acidentes e coisas dessa natureza. Falou com os colegas do professor da Universidade de Nova Iorque. Stonehouse estava reformado, mas de vez em quando era convidado para palestras. A sua especialidade era a história marítima britânica do século dezassete. Havia meses que ninguém da universidade o via ou tinha notícias dele. O Departamento de Polícia de Nova Iorque inscreveu o professor Stonehouse como "pessoa desaparecida". Tenho alguns, enfim, contactos no Departamento e pude falar com o agente investigador. É sua opinião que o professor desapareceu de sua própria e livre vontade e reaparecerá eventualmente, por razões só dele conhecidas.
- O agente investigador tem algumas provas em que basear essa crença?
- Que eu pudesse determinar, não. Aparentemente, o agente baseou tal opinião na sua experiência e nas percentagens da análise do comportamento das pessoas desaparecidas.
- O senhor sabe se o agente investigador se informou junto de aeroportos, estações de autocarros e estações de caminhos-de-ferro?
- Informou, sim. Não existe nenhum registo de qualquer reserva
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em nome do professor, embora isso não seja conclusivo. As reservas podiam ter sido feitas sob outro nome e os bilhetes podem frequentemente ser adquiridos a dinheiro, sem qualquer reserva, como certamente sabe.
- Sim, senhor.
- Mas o agente investigador também mostrou uma fotografia do professor Stonehouse a empregados de aeroportos e estações de autocarros e caminhos-de-ferro. Sem qualquer resultado.
- O professor tinha automóvel?
- Tinha. Continuava na garagem no dia seguinte ao seu desaparecimento.
Respirei fundo.
- Bem, parece terem sido tomadas em conta todas as possibilidades. Mrs. Stonehouse pôde apresentar alguma razão que justificasse a ausência do marido?
Mr. Teitelbaum fez um gesto vago.
- Ela crê que o professor saiu para um passeio e talvez tenha tropeçado e caído, ou tido qualquer outro acidente de que resultasse uma amnésia, e que anda agora perdido pela cidade sem conhecimento da sua identidade.
- Hum... - murmurei. - Possível, mas pouco provável.
- Sim, pouco provável.
- Que idade tinha... que idade tem o professor Stonehouse?
- Setenta e dois anos.
- E Mrs. Stonehouse?
- Calculo que está no fim da casa dos cinquenta, talvez nos sessenta. Os filhos do casal, uma filha e um filho, têm trinta e um e vinte e oito anos respectivamente. Os Stonehouse casaram relativamente tarde.
- Os filhos são casados?
- Não, não são.
Ficámos de novo silenciosos. Meditei no que acabara de ouvir, mas não me ocorreram quaisquer ideias. O desaparecimento do professor era simplesmente inexplicável.
- Posso fazer uma pergunta? - indaguei, por fim.
Ignatz Teitelbaum acenou gravemente com a cabeça.
- Qual é o nosso interesse no desaparecimento do professor?
- Mrs. Ula Stonehouse deseja contratar-nos como consultores jurídicos- respondeu, em voz sem timbre. - O seu problema é triplo. Primeiro, gostaria que arranjássemos um investimento particular que aprofundasse mais o desaparecimento do marido. Creio tê-la convencido de que tal seria um gasto desnecessário. Não posso imaginar o que um investigador particular seria capaz de fazer que já não tivesse sido feito pelos agentes da Secção de Pessoas Desaparecidas. Concorda?
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- Sim, senhor. Parece-me que a Polícia fez um trabalho minucioso.
- Precisamente. No entanto, não consegui convencer Mrs. Stonehouse por completo a esse respeito. Por isso, garanti-lhe que o desaparecimento do marido seria examinado a fundo pelo nosso próprio departamento de investigação.
Havia quatro anos, eu era um rapaz da secção do correio. Agora era um departamento. Êxito!
Mr. Teitelbaum continuou:
- O segundo problema de Mrs. Stonehouse é de natureza financeira. Todos os bens do marido, incluindo os depósitos à ordem e a prazo, estão somente no nome dele. Por isso, Mrs. Stonehouse, que não tem bens pessoais, está a sentir, enfim, o aperto.
- É natural, se ele desapareceu há um mês.
- Sem dúvida. Neste momento, mandei analisar toda a questão relacionada com o estatuto dos bens de uma pessoa desaparecida. Creio que poderei apresentar uma petição em tribunal para que seja concedida à família uma importância para despesas de manutenção, até à altura em que o marido desaparecido seja declarado legalmente morto... se é que alguma vez virá a ser declarado como tal.
- Se for... quero dizer, se numa data futura for declarado morto, quem herda o dinheiro? Como está o espólio dividido?
- O terceiro problema - disse Mr. Teitelbaum, sombriamente:
- Mrs. Stonehouse não consegue encontrar o testamento do marido. Parece que desapareceu.
Capítulo quarto
Assim que regressei ao meu gabinete, voltei a ligar para Marty. Continuei a não obter resposta. Eram então 4.25 horas da tarde. Acabei o meu relatório sobre as experiências de tempo, li-o, pus o original no cesto para o exterior e a cópia no armário-arquivo. Depois abri duas novas pastas, a que pus os títulos de KIPPER e STONEHOUSE. De Bhomento, não tinha nada para pôr na última e para a primeira só tinha o número de telefone de Marty.
Descansei alguns momentos, pus os pés em cima da secretária e recordei a minha recente entrevista com Teitelbaum. Tudo quanto ele queria que eu fizesse era conhecer e entrevistar a família Stonehouse e os criados da casa, fazer-lhes quaisquer perguntas que me parecessem pertinentes em relação ao desaparecimento do professor
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e, de modo geral, bisbilhotar um pouco e fazer algumas deduções fundamentadas quanto ao que na realidade acontecera.
- Você é um jovem inteligente - dissera Mr. Teitelbaum. - Talvez lhe ocorra uma abordagem ou um ângulo que tenham escapado à Polícia.
Quando ele ou o advogado da TORT encarregado do assunto fossem ao tribunal requerer que fosse concedida à família Stonehouse uma importância retirada dos bens do homem desaparecido, Teitelbaum queria poder garantir ao juiz que tinham sido feitos todos os esforços possíveis no sentido de localizar o professor.
- Já podemos apresentar as diligências infrutíferas do Departamento de Polícia de Nova Iorque - dissera. - Além disso, quero demonstrar que Mrs. Stonehouse fez um esforço pessoal, por nosso intermédio como seus representantes jurídicos, no sentido de encontrar o marido. Quero que faça um registo cuidadoso do número de horas que dedicar a esta investigação. Quanto mais, melhor... sem descurar as suas outras responsabilidades, evidentemente. Além disso, tenciono publicar anúncios nos jornais locais oferecendo uma recompensa por informações acerca da sorte e do paradeiro actual do professor Stonehouse. Podemos até mandar imprimir prospectos e distribuí-los nas vizinhanças da casa da família, com a mesma oferta de recompensa. Pessoalmente, não creio que tais diligências dêem qualquer resultado, mas o objectivo é mostrar ao tribunal que fizemos um esforço verdadeiro para localizar o homem desaparecido antes de requerer autorização para fazer levantamentos sobre os seus bens sem a sua permissão.
Aquilo fazia sentido, para mim. Não constituía grande golpe para o meu amor-próprio saber que a minha investigação seria meramente parte de um estratagema jurídico e que não se esperavam quaisquer grandes resultados dela.
No meu gabinete, aos quatro minutos para as cinco, marquei de novo o número de Marty. Desta vez o auscultador foi levantado ao terceiro toque. Uma voz de homem respondeu:
- Estou.
- Marty?
- Sim. Quem fala?
- Estou a telefonar em nome de Mr. Leopold Tabatchnick. -Não era sem tempo! Telefonou mesmo à tabela. -Passei o dia todo a telefonar. -Sim? Bem, tenho andado a entrar e a sair. Era uma voz grossa, pastosa, com um sotaque grosseiro de Nova Iorque. O homem ficou calado, à espera de que eu falasse.
- Mr. Tabatchnick deseja que me encontre consigo - disse, cortesmente. - Quando lhe convier. Para discutirmos assuntos relacionados com o espólio de Solomon Kipper.
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- É para isso que aqui estou - respondeu-me, alegremente. - Eu vendo e você compra... certo?
- Bem, isso veremos - apressei-me a corrigir. - Quando e onde nos podemos encontrar?
Deixou passar uns momentos, antes de responder:
- Há um bar na Rua Quarenta e Seis oeste, entre a Oitava e a Nona, mas mais perto da Nona. Chama-se "Purple Cow". Encontra-se lá comigo às onze e meia da manhã. Entendido?
Eu tomara apontamentos rápidos. -Entendido - respondi. - Como o conhecerei? -Estarei sentado no último compartimento da esquerda. - A sua voz tornou-se gutural, ao perguntar: -Vai sozinho? -E videntemente.
- Óptimo. Nada de asneiras. E desligou.
Desliguei também, devagar, a olhar para os meus apontamentos. Tentei analisar como ele soara. Concluí que não parecera ameaçador, mas sim muito seguro de si.
Suspirei, acrescentei essa nota à pasta do caso Kipper e arrumei-a no armário de aço. Depois vesti o sobretudo e pus-me a caminho de casa, trocando "boas noites" com outros empregados que faziam o mesmo. A secretária de Yetta Apatoff estava desocupada e limpa; aparentemente ela já saíra.
Tinha estado um dia cinzento, agreste, com uma luz baça e o ar húmido, a cheirar a neve. Mas a temperatura abrandara um pouco; o vento ainda cortava, mas limpara e o céu nocturno apresentava manchas de azul-pálido. Em vez de tentar encaixar-me nos autocarros apinhados, resolvi ir a pé para casa, na zona da Rua 20, oeste.
Morava numa rua de Chelsea que em tempos fora ladeada por casas particulares. Muitas delas tinham gradeamentos de ferro forjado à frente e degraus de arenito de acesso às ornamentadas portas principais. As que não tinham sido esventradas ainda possuíam chaminés de mármore e tectos altos, com decorações de gesso.
O meu prédio tinha aquecimento e água quente porque a proprietária vivia lá. No rés-do-chão havia uma firma de arquitectos, a Armentrout & Pook, e outra de importadores de mercadorias diversas, a Hooshang Aboudi, Inc.
A proprietária e a filha, Hermione e Cleo Hufnagel, moravam no primeiro andar, em apartamentos separados. Eu compartilhava o segundo andar com Bramwell Shank, um ex-comandante idoso de ferryboat, agora confinado a uma cadeira de rodas. No último andar, o terceiro, ficavam os apartamentos de Madame Zora Kadinsky, que dizia ter em tempos trabalhado no Metropolitan e ainda praticava as escalas
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durante o dia. O apartamento do lado estava alugado a Adolph Finkel, vendedor retalhista de calçado.
Os apartamentos eram escuros, mas tinham tectos altos e lareiras que funcionavam. Eu pagava trezentos e cinquenta dólares por mês, fora água, luz, etc.
Na noite a que me refiro, Bramwell Shank estava à minha espera no patamar do segundo andar, com a garrafa de moscatel no colo, um copo limpo para mim e um copo meio do qual ia bebendo. Conduziu a cadeira de rodas para dentro do meu apartamento assim que abri a porta e lançou-se num relato das actividades televisivas diárias, sem querer me dar tempo a despir o sobretudo.
Na força da vida, devia ter sido um latagão de ombros sólidos, braços encordoados e punhos que pareciam espécimes geológicos. Agora, aprisionado numa cadeira de rodas e encharcado em álcool, ainda tinha uma presença de brigão agressivo e mandão. A sua voz fazia estremecer as janelas e todos os seus gestos eram exagerados e violentos.
Como era calvo, usava todo o dia um boné de comandante, sob cuja pala ficava uma cara polposa, que ia do rosa ao púrpura carregado. Usava camisolas pretas de gola alta e um casaco azul de oficial, de botões de latão.
Deixei-o barafustar acerca dos espectáculos que vira e quando ele se interrompeu para encher de novo os nossos copos perguntei-lhe se queria jantar comigo.
- Estava a pensar mexer uns ovos com salame - informei. - Talvez uma salada. E uma fatia de tarte. Se quer compartilhar, não faça cerimónia, comandante.
- Não. Já fiz a minha lavagem e já a comi. Onde arranjou a tarte? Foi a Possante Katrinka que lha deu ?
Era assim que ele tratava a nossa senhoria, Mrs. Hufnagel. A alcunha estava bem posta, pois ela media um metro e setenta e sete e era pelo menos um meio-médio, quanto a peso.
- Foi, foi ela. é tarte de maçã e muito boa. Feita em casa.
- Hum... - resmungou, a olhar para mim e a sorrir. - Ela é muito cordial consigo, não é?
- Não o é também consigo? -Não me faz tartes. Vai à festa? -A que festa?
- À de sábado à noite. Katrinka convidou os inquilinos todos. -Eu não fui convidado.
- Mas será. -Que vão festejar?
- O Dia de São Valentim... diz ela. Mas eu tenho cá as minhas ideias a esse respeito.
- Hoje está a falar por enigmas, comandante.
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Observou-me, enquanto eu reunia papel e aparas na lareira.
- Não está a fazer isso bem! -berrou. -Empilhe as aparas cruzadas.
- Eu faço assim. Dá sempre resultado.
O lume pegou, como de costume. Estávamos a olhá-lo, de copo na mão, quando bateram rapidamente à porta.
- Olá, olá! -cantarolou Madame Kadinsky. - Joshy? Está aí?
- Não a deixe entrar - rosnou o comandante.
- Madame Kadinsky - cumprimentei, a sorrir à mulher. - Prazer em vê-la. Entre.
Deu-me uma palmadinha na cara.
- Prometeu tratar-me por Zora, seu mauzão. - Entrou, com passinhos rápidos. - Oh, já tem companhia! O comandante Shink.
- Shank - rosnou ele.
- Venho interromper alguma coisa? - perguntou a mulher a rir alegremente.
- De maneira nenhuma - afirmei. - Estamos apenas a beber um copo de vinho. Eu vou buscar um para si.
- Joshy, vai à festa de sábado à noite?
- Não fui convidado.
Ela respondeu, como Bramwell Shank: "Mas será." E sorriram ambos.
- Que se passa com vocês dois?
Zora pôs uma das mãos na cara e revirou os olhos.
- Ele não sabe - disse Shank.
- Digam-me! - explodi.
- A Possante Katrinka trá-lo debaixo de olho para a Cleo - respondeu o comandante.
Saíram pouco depois e eu fui para a cozinha, a fim de fazer a minha omeleta. Suponho que me sentia um bocadinho orgulhoso; sou tão vaidoso como qualquer homem. Claro que tudo aquilo era ridículo. Cleo Hufnagel parecia uma jovem mulher simpática, de fala agradável. Sorríamos um ao outro e cumprimentávamo-nos. Mas mais do que isso era impossível. Cleo media pelo menos um metro e setenta e cinco. E de saltos ainda era mais alta.
Mas os meus pensamentos voltavam sempre ao Grande Complot Hufnagel. Quando bateram à porta, adivinhei logo quem era: Mrs. Hufnagel, que me trazia um prato tapado com um guardanapo.
- Mrs. Hufnagel! Que surpresa! Não quer entrar?
- Bem... só um minutinho. Não quero incomodá-lo.
- Não incomoda nada. Aceita uma chávena de café?
- Não, obrigada, não quero nada. Acabámos de jantar. E que excelente refeição a Cleo cozinhou! Bife suíço com puré de batata, feijão verde fresco e cá um molho! Já bebeu o seu café?
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Respondi com toda a verdade que não.
- Bem, a Cleo fez estes bolinhos com raspas de chocolate e pensámos que lhe saberiam bem alguns, com o café.
- Mrs. Hufnagel, é demasiado generosa.
- Prove um - ordenou-me.
Trinquei obedientemente um bolinho.
- Delicioso!
- Pois é - confirmou ela, a suspirar. - A Cleo... é tão talentosa na cozinha! Dará uma esposa maravilhosa.
- Estou certo que sim. Quer que lhe devolva agora o prato? Posso pôr os bolos numa lata.
- Não há pressa. Pode devolvê-lo quando quiser. Na verdade, Mr. Biggs, os bolinhos foram apenas uma das razões por que vim. Também queria convidá-lo para uma festa que a Cleo e eu damos no sábado à noite.
Capítulo quinto
O Purple Cow cheirava a cerveja entornada e a charutos baratos, mesmo às 11.30 horas da manhã. Os homens que estavam ao balcão inclinavam-se de olhos gulosos para as bebidas, como se estivessem à espera do fim do mundo. Encontrei Marty no último compartimento do lado esquerdo. Estava sentado voltado para a porta, com os dedos entrelaçados numa caneca de cerveja. À luz fraca, pareceu-me andar pelos quarenta e cinco anos. Era magro, tinha a cara bexigosa e um pequeno bigode claro.
Viu-me aproximar sem interesse. Parei ao lado do compartimento e perguntei:
- Marty?
- Sim.
- Venho da parte de Mr. Leopold Tabatchnick.
Mostrou os dentes.
- Quem é você, o mandarete do escritório?
Encaixei-me no compartimento, defronte dele.
- Sou o assistente executivo de Mr. Tabatchnick e estou aqui em seu nome.
- Isso é interessante.
- Pode dizer-me de que se trata? Alega que...
- Quer uma bebida? - interrompeu-me.
- Não, obrigado.
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- Obrigado de quê? Não seria eu que a pagaria.
- Alega que possui informação relacionada com o espólio de Solofflon Kipper. Correcto?
- Eu não alego, eu tenho.
- Pode dizer-me qual é a natureza dessa informação?
- Está a gozar? É isso que vendo.
Suspirei e recostei-me no lugar.
- Nesse caso, receio que estejamos num impasse. Certamente não espera que façamos uma oferta por uma coisa acerca da qual nada sabemos.
Inclinou-se para mim, por cima da mesa. Tinha um hálito muito desagradável. Os seus olhos pareciam quase incolores e notei que lhe faltava o lobo da orelha esquerda. Estava de boné de tweed, anorak verde, camisa castanha e gravata rosada e florida. O anorak tinha nódoas, a cara do indivíduo apresentava-se coberta de barba esbranquiçada de dois ou três dias e as unhas estavam orladas de preto. A voz era ainda mais pastosa do que parecera pelo telefone.
- Escute, rapazinho, não lhe vou pedir que faça uma oferta: vou-lhe dizer quanto quero. Por outro lado, não lhe vou dizer o que tenho, pois se dissesse ficaria sem nada para vender. Faz sentido, não faz? Mas posso-lhe dizer o seguinte: o que sei vai estragar o arranjinho todo. com o que tenho, o testamento Kipper não vale o papel em que está escrito.
- E quanto pede por essa informação?
- Cinquenta mil - respondeu prontamente. -É pegar ou largar.
Creio que consegui ocultar o abalo que sofri.
- Isso é muito dinheiro - comentei, devagar.
- Não é... é uma ninharia. Quanto vale o espólio? Quatro milhões? Cinco milhões? Vale a pena gastar cinquenta mil para ter a certeza de que vai parar às devidas mãos, não vale?
- Bem... Exporei o assunto a Mr. Tabatchnick assim que chegar ao escritório.
- Não me faça esperar, rapazinho. Tenho outro cliente interessado na coisa. Encontro-me com eles mais logo. Quem primeiro chegar, primeiro será servido.
- Contactarei consigo assim que Mr. Tabatchnick tomar uma decisão - garanti. - Importa-se de me dizer o seu nome completo? Não pode esperar que façamos um pagamento dessa importância a alguém que conhecemos apenas por Marty.
Pensou um momento, de olhos semicerrados e nariz franzido.
- Creio que não fará mal nenhum - decidiu. - Chamo-me Reape: R-e-a-p-e. Marty Reape. Como em "Rook before you Reape" (*), certo?
(*) Poder-se-á traduzir: "Faço roque antes que tu comas" xadrez. (N. da T.)
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Pode comunicar comigo pelo telefone que lhe indiquei. Estarei lá ao fim da tarde.
Acenei com a cabeça e saí do compartimento.
- Prazer em conhecê-lo, Mr. Reape.
- Claro.
Não evidenciou nenhuma intenção de sair comigo. Tratava-se, obviamente, de um estratagema para evitar ser seguido, mas subestimava o meu profissionalismo.
Fora do bar, virei para oeste, atravessei a Nona e escolhi imediatamente um portal para ficar de atalaia. Depois preparei-me para esperar, de mãos nas algibeiras. De vez em quando batia com os pés, para evitar que se transformassem em matacões de gelo. Ocasionalmente também, tirava as mãos das algibeiras para friccionar as orelhas. Por fim, ele saiu e parou à beira do passeio, a correr o fecho do anorak e a olhar em redor. Depois voltou-se e começou a andar para leste, na direcção da Times Square.
Estava do lado sul da Rua 46, oeste. Eu mantive-me do lado norte, bem atrás dele. O passeio começava a encher-se de gente com pressa de arranjar uma mesa para almoçar num dos restaurantes que ladeavam a rua, o que obrigava Marty Reape a andar devagar. Mesmo no meio da multidão, o boné e o anorak eram fáceis de localizar. Se ele suspeitava de que podia estar a ser seguido, não dava qualquer indicação disso. Não espreitou nem uma vez por cima do ombro nem olhou para o vidro de nenhuma montra, para ver se captava o reflexo de alguma imagem. Segui-o até algumas portas a leste da esquina da Oitava com a Quarenta e Nove, onde ele entrou num prédio que ficava ao lado de um cinema de filmes porno, que tinha Teenage Honey Pot no cartaz. Depois de lhe dar tempo para sair do átrio, atravessei a rua a trote e entrei também. Havia uma lista dos inquilinos na sebosa parede de mármore.
MARTIN REAPE: INVESTIGAÇÕES PARTICULARES.
Regressei ao escritório praticamente a correr, para apresentar o meu relatório a Mr. Tabatchnick, mas Thelma Potts disse-me que ele tinha ido almoçar e que me telefonaria quando o advogado voltasse.
Pedi que me trouxessem um hamburger de queijo e um pacote de leite e comi à minha secretária, enquanto dactilografava um relatório do meu encontro com Martin Reape. Arquivei-o na pasta do caso Kipper e depois pedi ligação para o gabinete de Mr. Teitelbaum. Ele nunca saía para almoçar; bebia uma chávena de chá e comia duas bolachas de farinha integral à sua secretária. Disse-lhe que gostaria de conhecer e interrogar a família Stonehouse e que me parecia que seria mais fácil se ele telefonasse primeiro e combinasse um encontro para uma altura em que a família e o pessoal estivessem todos presentes.
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- Está bem, está bem - respondeu, irritado. - Depois telefono-lhe. - E desligou bruscamente.
Talvez as bolachas estivessem velhas.
Mal pousara o auscultador, Thelma Potts telefonou. Meti-me no elevador para o terceiro andar, juntamente com dois empregados carregados com pilhas de livros de Direito até às sobrancelhas.
- Duas vezes em dois dias - disse Thelma Potts. - Meu Deus, que faria esta casa sem você?
- Mantenha-se do meu lado, pequena, e ainda usará diamantes.
Bati uma vez à porta e entrei. Ele estava a dar comida aos peixes, a esfarelar qualquer coisa branca que deitava nos tanques, ao mesmo tempo que emitia pequenos sons com a língua e os dentes. Parecia dizer: "Ok, ok, ok".
- Mr. Tabatchnick - informei-, encontrei-me com Marty a respeito do caso Kipper.
Continuou a alimentar os peixes.
- Sente-se e conte-me.
Quando mencionei os cinquenta mil dólares, a mão de Mr. Tabatchnick estremeceu e um dos seus amigos de barbatanas teve um banquete inesperado. Acabei de descrever o encontro e ele regressou à cadeira giratória atrás da mesa de cavaletes, a sacudir as mãos.
- Cada vez me agrada menos - declarou. - Se tivesse pedido quinhentos, ou mil, ou mesmo cinco mil, presumiria que se tratava apenas de um vigarista ordinário. Mas é óbvio que ele está convencido de que a sua informação possui um valor considerável. E se é investigador particular, pode realmente ter descoberto alguma coisa de importância. Repita exactamente o que ele disse a respeito da natureza da sua informação.
- Disse, cito: "O que sei vai estragar o arranjinho todo. com o que tenho, o testamento Kipper não vale o papel em que está escrito." Fim de citação.
- E disse que tinha outro cliente potencial?
- Sim, senhor. Disse que se encontraria com eles hoje, mais tarde. "com eles", foram as palavras que usou.
Ficámos calados durante muito tempo. Por fim, ele mexeu-se na cadeira e declarou:
- Desagrada-me isto intensamente. Como funcionário do tribunal, não me posso envolver em trampolinices destas. Ao mesmo tempo, porém, tenho uma responsabilidade para com o nosso defunto cliente e para com a distribuição adequada do seu espólio, como estipulado no seu testamento.
Fitou-me inexpressivamente. Não percebi logo, mas depois compreendi o que ele queria.
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- Mr. Tabatchnick, há alguma coisa de estranho nesse testamento?
- Não, não. É um documento relativamente breve e simples. Mas eu não fui completamente franco consigo, Mr. Bigg. Na manhã do dia em que se suicidou, Sol Kipper telefonou para cá e disse que queria fazer um testamento novo.
- Compreendo - murmurei, baixinho.
- Compreende? Eu, não. Agora aparece esse "Marty" a alegar que possui informação que pode invalidar o testamento existente.
- Sim, senhor. Quer pagar-lhe, Mr. Tabatchnick?
- Já lhe disse que não posso envolver-me nisso! -gritou.
- Claro que o senhor não pode. Mas eu não sou funcionário do tribunal; tenho latitude para agir nesta questão.
Era o que ele queria ouvir. Mr. Tabatchnick recostou-se na cadeira, entrelaçou os dedos sobre o ventre sólido e olhou-me gravemente.
- Que propõe, Mr. Bigg?
- Os fundos não podem provir desta firma. Não deve haver nenhuma relação nem constar nada dos livros. O dinheiro tem de vir de uma fonte exterior.
Pensou um momento, antes de responder:
- Isso pode-se arranjar.
- E eu devo ser o único contacto que o Reape conhece. Ninguém desta firma lhe deverá falar ou encontrar-se com ele.
- Concordo.
- A primeira coisa que tenho a fazer é telefonar ao Reape e dizer-lhe que aceitamos os seus termos. Antes de ele fazer negócio com os seus outros clientes. Depois combinarei uma data para a transferência, que protelarei o mais possível. Por fim entrego-lhe o dinheiro e ele entrega a informação, ou comunica-a oralmente.
- Porque deseja protelar a transferência o mais possível?
- Para ter tempo de gizar um plano qualquer para obter a informação sem pagar.
- Esplêndido, meu jovem! Se o conseguir. Mas o seu objectivo principal deve ser obter a informação. Espero que compreenda isso.
- Compreendo, sim, senhor.
- Óptimo. Mantenha-me informado. Precisarei de um dia ou dois para reunir os fundos.
- Mr. Tabatchnick, ajudaria se me pudesse dizer alguma coisa a respeito do testamento Kipper existente. Especificamente, quem herdará mais? E se o testamento fosse invalidado por qualquer motivo, quem mais lucraria com isso?
Olhou para as grandes mãos, que entretanto fechara e apoiara no tampo da mesa.
- De momento - disse em voz baixa-, preferia manter essa
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informação confidencial. Se chegar uma ocasião em que ela se torne vital para a boa conclusão da sua... investigação, então entregar-lhe-ei uma cópia do testamento.
Chegara a altura de me ir embora.
- Mr. Bigg...
Virei-me, já à porta.
- Esta conversa nunca se efectuou - disse, severamente.
- Que conversa, Mr. Tabatchnick?
Quase sorriu.
Capítulo sexto
Liguei para Marty Reape quando cheguei ao meu gabinete. Não obtive resposta. Perguntei a mim mesmo se estaria reunido com os outros clientes.
Despi o casaco e comecei a despachar consultas que tinham sido feitas por sócios menos importantes e por outros membros da firma. Na sua maioria, podiam ser resolvidas com um simples telefonema ou uma carta, ou com uma consulta à pequena biblioteca de Roscoe Dollworth de dicionários, atlas, almanaques, relatórios de recenseamentos, etc.
Qual era a população hispânica do Bronx em 1964?
Quanto tempo é necessário para pintar um carro?
Em que ano foi descoberta a penicilina?
Quem foi o último homem a ser electrocutado no estado de Nova Iorque?
Quais são os ingredientes de um cocktail Molotov?
Tentei por duas vezes falar com Marty Reape. Ada Mondora telefonou a dizer que eu tinha um encontro marcado com a família Stonehouse. Devia apresentar-me no seu apartamento do Central Park oeste e Rua 70 às oito da noite.
Eram então cerca de 4.30 horas da tarde. Achei que em vez de ir a casa seria melhor jantar no centro da cidade e depois seguir para a Rua
70, oeste. Verifiquei o conteúdo da minha carteira e liguei para Yetta Apatoff.
- Oh, Josh, que pena não ter telefonado mais cedo! Aceitaria com muito gosto, mas há uma meia hora o Hammy convidou-me para jantar com ele.
- O Hammy?
- O Hamish, Hamish Hooter.
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Ela tratava-o por Hammy.
- Bem, lamento que não possa aceitar, Yetta. Tentarei noutra ocasião.
- Promete? - perguntou, muito baixinho.
- Prometo.
Por isso, trabalhei no gabinete até às 6.30 horas da tarde. Liguei mais duas vezes para Marty, sem obter resposta. Tentei de novo antes de sair do restaurante onde comera sozinho. Nada. Comecei a recear que ele tivesse fechado negócio com os outros clientes.
Como dispunha de tempo, fui a pé até à Rua 42, meti-me num autocarro da Broadway e subi a Rua 70, oeste. O céu estava enevoado e começara a cair uma chuva leve. O vento soprava em lufadas suspirantes e cheirava vagamente a cinza. Uma noite apropriada para investigar um desaparecimento.
O prédio onde moravam os Stonehouses era uma enorme e piramidal pilha de tijolo. Muito velho, muito sossegado, muito dispendioso. O átrio era todo de mármore e espelhos. Aguardei, enquanto o porteiro fardado telefonava, para saber se me receberiam.
- Mr. Bigg para visitar Mrs. Stonehouse - anunciou e, pouco depois, desligou e voltou-se para mim: - Apartamento dezassete B.
O elevador tinha sido convertido para poder funcionar sem um empregado, mas as paredes e o tecto eram de nogueira polida, tinha espelhos ovais biselados e uma carpete oriental feita à medida.
O 17-B ficava do lado do Central Park. Toquei à campainha e esperei muito tempo. Por fim, a porta foi aberta por uma mulher nova e muito interessante, que sorriu.
- Mr. Bigg? Boas noites. Sou Glynis Stonehouse.
Pendurou o meu sobretudo num armário do vestíbulo. Depois conduziu-me por um corredor comprido e fracamente iluminado, com mapas antigos e cenas de batalhas navais nas paredes. Compreendi porque tinham levado tanto tempo para abrir a porta: era um estirão para a sala. O apartamento era enorme.
A rapariga entrou à minha frente numa sala de estar maior do que o meu apartamento. Tive uma impressão rápida de lume numa lareira de azulejos, cadeiras e sofás de veludo e janelas do chão ao tecto, voltadas para o parque. Depois Glynis Stonehouse conduziu-me a uma senhora pequenina, enroscada ao canto de um sofá demasiado estofado e a segurar um copo meio de vinho. Havia uma garrafa de xerez na mesa com tampo de vidro colocada à sua frente.
- A minha mãe - apresentou Glynis, que tinha uma voz baixa, abafada, quase sem timbre.
- Mrs. Stonehouse - murmurei, e fiz uma pequena vénia. - Sou Joshua Bigg, do cartório de Mr. Teitelbaum. Prazer em conhecê-la.
- O meu marido morreu, não morreu? Sei que morreu.
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As suas palavras surpreenderam-me, mas o que mais me abalou foi a sua voz, que era trémula e aflautada.
- Mãe - interveio Glynis-, não existem provas absolutamente nenhumas disso.
- Eu sei o que sei - redarguiu Mrs. Stonehouse. - Sente-se, Mr. Bigg. Ali, para eu o poder ver.
- Obrigado. - Ocupei a cadeira que ela indicou e senti-me grato por os meus pés tocarem no chão, embora apenas à justa.
- Já jantou? - perguntou-me a senhora. -Já, sim.
- Nós também - comentou ela, alegremente. - E agora estou a beber um cálice de xerez. A Glynis não. Ela nunca bebe. Pois não, querida ?
- Não, mãe - respondeu a filha, pacientemente. - Aceita alguma coisa, Mr. Bigg?
- Um cálice de xerez viria a calhar, obrigado.
Glynis foi buscar um copo a um carro-bar e encheu-o da garrafa da mãe. Estendeu-mo e depois sentou-se na outra extremidade do sofá. Era graciosa e controlava bem gestos e palavras.
- Mr. Teitelbaum disse à minha mãe que o senhor investigaria o desaparecimento do meu pai.
- É verdade - confirmei. - Estamos convencidos de que a Polícia fez tudo quanto era possível, mas certamente não fará mal nenhum repetir.
- Ele morreu - disse Mrs. Ula Stonehouse.
- Minha senhora, segundo Mr. Teitelbaum me disse, a senhora crê que o seu marido teve um acidente e ficou amnésico.
- Oh, pensei nisso! Mas já não penso. Ele morreu. Tive uma visão.
Glynis Stonehouse estava a examinar as unhas. Tirei da algibeira um livro de apontamentos e uma caneta.
- Custa-me falar de coisas que, estou certo, lhes são penosas - comecei. - Mas ajudaria se me soubessem dizer exactamente o que aconteceu na noite do desaparecimento do professor.
Quem mais falou foi Mrs. Stonehouse. A filha corrigiu-a algumas vezes, ou acrescentou qualquer coisa em voz serena. Tomei notas enquanto Mrs. Stonehouse falava, mas na realidade foi só por uma questão de efeito, para lhes demonstrar que a firma de Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum tomava o seu caso muito a sério.
Levantei com frequência a cabeça do livro de apontamentos, para fitar Mrs. Stonehouse.
Enquanto falava, a sorver golinhos de xerez - inclinou-se duas vezes para a frente a fim de encher o copo-, os seus olhos, claros como vidro leitoso, tremeluziam como chamas de vela. Tinha cabeleira loura
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frisada, pele de camurça e o hábito, ou talvez fosse um tique nervoso, de tocar na ponta do nariz arrebitado com o indicador esquerdo. Não carregava, tocava apenas como se quisesse certificar-se de que o nariz ainda lá estava.
Tinha gestos nervosos e era dada a mudanças súbitas de expressão - caretas, sorrisos e beicinhos de enfado ou pesar - que se sucediam tão velozmente que o seu rosto parecia em constante movimento. Vestia juvenilmente de chiffon. Devido à posição, mostrava uma boa quantidade de perna.
Falava depressa, como se estivesse ansiosa por despachar aquilo rapidamente. A sua voz gorjeadora não se cansava e, passado um bocado, adquiriu um tom monocórdico, como se declamasse o papel de uma criança, a ensaiar para uma peça escolar.
No dia 10 de Janeiro a família Stonehouse jantara às sete horas da noite. Estavam presentes o professor Yale Stonehouse, a sua mulher Ula, a filha Glynis e o filho Powell. A refeição tinha sido servida pela cozinheira-governanta residente, Mrs. Effie Dark. A criada, Olga Eklund, estava ausente, pois era o seu dia de folga.
Glynis Stonehouse levantara-se cedo da mesa, cerca das oito horas, para assistir a um espectáculo de Homem e Super-Homem, no Círculo da Praça. Depois do jantar a família passara para a sala de estar. Cerca das 8.30 horas, o professor Stonehouse tinha ido para o seu gabinete. Voltara à sala alguns minutos depois e anunciara que ia sair. Percorrera o comprido corredor para o vestíbulo. Mais tarde fora determinado que tinha tirado do armário o chapéu, o cachecol e o sobretudo. Mrs. Stonehouse e o filho tinham ouvido a porta bater. O porteiro do átrio lembrava-se de que o professor saíra do prédio às 8.45 horas, aproximadamente.
Não voltara a ser visto.
Concluído o recital, mãe e filha olharam para mim na expectativa, como se esperassem uma solução instantânea.
- O professor Stonehouse tentou comunicar com as senhoras depois do seu desaparecimento?
- Não - respondeu Glynis. - Nada.
- Tratava-se de uma ocorrência comum? Refiro-me ao facto de o professor sair àquela hora, digamos para um passeio?
- Não - respondeu Mrs. Stonehouse. - Ele nunca saía à noite.
- Raramente saía - corrigiu Glynis. - Uma ou duas vezes por ano ia a uma reunião profissional. Mas isso incluía geralmente um jantar e ele saía mais cedo.
- Ele não disse aonde ia quando saiu na noite de dez de Janeiro?
- Não - respondeu Mrs. Stonehouse.
- A senhora não lhe perguntou.
A mãe olhou para a filha, a pedir ajuda.
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- O meu pai era... - começou a rapariga, mas depois corrigiu: -O meu pai é um homem difícil. Não gostava de ser interrogado. Fazia o que queria, guardava segredo.
- Diriam que existiu alguma coisa fora do vulgar no seu comportamento, no jantar dessa noite?
Desta vez foi a filha que olhou para a mãe.
- Não... - respondeu Mrs. Stonehouse, devagar. - Falou pouco à mesa... mas nunca falava muito.
- Diriam então que o seu comportamento dessa noite foi inteiramente normal? Para o professor Stonehouse - apressei-me a acrescentar.
Acenaram ambas afirmativamente.
- Muito bem. Gostaria de voltar atrás e esclarecer certas coisas, mas primeiro desejo saber o que aconteceu depois de o professor sair.
A meu pedido, Mrs. Stonehouse reatou a sua história.
Ela e o filho, Powell, tinham ficado na sala, visto uma peça de Beckett no canal 13 e tomado algumas bebidas. Mrs. Dark viera dar as boas-noites cerca das 10.30 horas e depois fora para o quarto, que ficava ao fundo da casa.
Só começaram a sentir-se preocupados com o paradeiro do professor às onze horas. Ligaram para o porteiro do átrio, que soube dizer-lhes apenas que Stonehouse saíra do prédio às 8.45 horas e não voltara. Acordaram Mrs. Dark para perguntar se o professor lhe dissera alguma coisa a respeito de onde ia. Ela respondeu que não, mas também ficou preocupada e foi esperar com eles para a sala, com um robe por cima da camisa de dormir. Depois telefonaram a alguns colegas profissionais do professor, a quem pediram desculpa da hora tardia. Nenhum o vira ou tivera notícias dele. Stonehouse não tinha amigos além dos colegas de profissão.
Cerca das 11.30 horas estavam todos preocupados e sem saber que fazer. Hesitavam em telefonar à Polícia. Se telefonassem e ele regressasse poucos minutos depois, ficaria furioso.
- Tinha um génio violento - observou Glynis.
A jovem regressara do teatro pouco depois da meia-noite e fora informada da ausência do pai. Sugerira que telefonassem para a garagem, para saberem se Stonehouse fora buscar o carro. Powell telefonou e foi informado de que o carro lá continuava.
Os quatro tinham esperado até às duas horas da manhã e depois haviam telefonado à esquadra local. O agente que os atendera dissera que só seria um caso para a Secção de Pessoas Desaparecidas quando se perfizessem vinte e quatro horas de ausência do professor, mas prometera que entretanto iria verificar os relatórios de acidentes e pedir informações aos bancos dos hospitais. Depois telefonar-lhes-ia.
Esperaram, acordados e a beber café, até às 3.20 horas, altura em
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que o agente da Polícia telefonara e lhes comunicara não haver qualquer notícia de acidentes em que o professor Stonehouse tivesse estado envolvido, nem ele nem ninguém que correspondesse à descrição que dele tinham feito.
Parecera-lhes que não podiam fazer mais nada. No dia seguinte, fizeram mais telefonemas e Powell tocara à campainha dos vizinhos e andara até por ruas vizinhas, a perguntar em bancas de jornais e em restaurantes abertos toda a noite. Ninguém vira o seu pai nem alguém que com ele se parecesse.
Decorridas as vinte e quatro horas, tinham comunicado com o Departamento de Polícia de Nova Iorque e dado o professor como pessoa desaparecida. E pronto.
Respirei fundo.
- Desagrada-me roubar-lhes tanto tempo neste primeiro encontro- desculpei-me. - Espero que me permitam voltar ou telefonar à medida que me ocorram perguntas.
- com certeza - disse Glynis Stonehouse. - E demore-se o tempo que quiser. Estamos ansiosas por fazer tudo quanto pudermos para ajudar.
- Nesse caso, só mais umas perguntas - decidi, a olhar para ela. - O seu pai tinha inimigos? Alguém que pudesse ter contra ele suficiente má vontade para...
Deixei a frase incompleta, sugestivamente, mas ela nem estremeceu. Aliás, não parecia ser desse tipo.
Glynis Stonehouse era mais alta do que a mãe e tinha um corpo compacto, curvado com arte. O cabelo fulvo caía-lhe, liso, até aos ombros. Tinha rosto triangular, com olhos escuros, de cotim azul. Lábios grandes, bem desenhados e com um mínimo de bâton. Usava um vestido simples, de tecido fino que lhe tocava nos seios, nas ancas e nas coxas, e não trazia jóias.
Tive a impressão de que havia nela uma boa quantidade de paixão, mantida sob disciplinado controlo. Os olhos escuros não revelavam nada e ela raramente sorria ou franzia a testa. Tinha o hábito de fazer uma pausa muito breve, antes de responder a uma pergunta. Uma fracção de segundo, apenas, mas o suficiente para me convencer de que pensava antes de responder.
- Não, Mr. Bigg - disse, calmamente. - Não creio que o meu pai tivesse inimigos que o odiassem o suficiente para lhe fazerem mal.
- Mas tinha inimigos? - insisti.
- Há uma quantidade de pessoas que não gostavam dele. Não era homem de quem fosse fácil gostar.
- Oh, Glynis! - exclamou a mãe, tristemente.
- é melhor Mr. Bigg saber a verdade, mãe; pode ajudá-lo na sua investigação. O meu pai era... é um tirano, Mr. Bigg. Opinioso, obstinado,
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ditatorial, com um ponto de ebulição muito baixo. Andava constantemente a processar pessoas pelos motivos mais ridículos. Claro que tinha inimigos, na Universidade e aonde quer que fosse. Mas não sei de nenhum que antipatizasse com ele o suficiente para... para lhe fazer
mal.
Acenei com a cabeça e olhei para os meus apontamentos.
- Mrs. Stonehouse, disse que antes de sair de casa o professor foi ao seu gabinete.
- Sim, foi.
- Sabe o que foi lá fazer? -Não. O gabinete é o seu aposento privado. -Fora de limites para todos - explicou Glynis. - Raramente nos deixava lá entrar.
- A ti deixava-te entrar, Glynis - lembrou a mãe.
- Até era ele que o limpava, pessoalmente - prosseguiu a rapariga. - Andava a trabalhar num livro e não queria que lhe desarrumassem os papéis.
- Um livro? Que género de livro?
- Uma história do Prince Royal, um famoso barco de guerra britânico do século dezassete.
- O seu pai já tinha publicado alguma coisa antes?
- Algumas monografias e artigos em revistas eruditas. Também é habitual escritor de cartas para os jornais. Deseja mais xerez, Mr. Bigg?
- Não, obrigado. Era delicioso. Mrs. Stonehouse, o seu filho não está aqui esta noite?
- Não. Ele...
Em vez de acabar a frase, inclinou-se para a frente e encheu o copo.
- O meu irmão não vive aqui - informou Glynis, com naturalidade. - Powell tem a sua casa na Village. Ficou cá na noite em que o meu pai desapareceu por estarmos todos muito transtornados.
- O seu irmão e o seu pai não se entendiam? - perguntei.
- Entendiam-se relativamente bem. Powell vem cá jantar duas ou três vezes por semana. De qualquer modo, as relações entre o meu pai e o meu irmão não têm nada a ver com a sua investigação.
- - O Powell esforçou-se tanto! - comentou a mãe, pesarosa.
Glynis inclinou-se por cima do sofá, para pôr a mão no braço da mãe. Ò seu corpo ficou estendido, quase reclinado, e eu vi o ritmo ousado de coxa, quadril, cintura, seio, ombro...
- Esforçámo-nos todos muito, mãe - disse, suavemente.
Fechei o livro de apontamentos e guardei-o.
- Creio que lhes fiz perguntas suficientes para uma noite, minhas senhoras. Mas antes de partir, se me permitissem, gostaria de ver o
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gabinete do professor Stonehouse e de falar alguns minutos com a governanta.
- com certeza - disse Glynis, e levantou-se.
Segui-a até uma porta do fundo da sala, que dava para uma casa de jantar fria e austera, fracamente iluminada.
Na parede oposta havia duas portas, uma delas do tipo de correr usado nas cozinhas.
- Aquela dá para a cozinha? - perguntei. -Dá.
- E a outra para o gabinete do seu pai? -Exactamente.
- A sua mãe disse-me que o seu pai foi ao gabinete antes de sair. Mas a verdade é que não podiam ter visto aonde ele foi. Podia ter ido à cozinha.
- é muito arguto, Mr. Bigg. Mrs. Dark ainda estava aqui a levantar a mesa, depois do jantar, e viu-o entrar no gabinete.
Glynis abriu a porta do gabinete, estendeu o braço para acender a luz e desviou-se para o lado. Avancei, para olhar para o interior. Durante um momento fiquei perto dela. Aspirei o seu cheiro. Não era água-de-colónia nem perfume: era ela. Quente, feminil, excitante. Entrei no gabinete.
- Não mexerei em nada - prometi.
- Infelizmente, nós já mexemos. À procura do testamento do meu pai.
- Não o encontraram?
Abanou a cabeça, com o cabelo brilhante a oscilar.
- Encontrámos a caderneta bancária e o livro de cheques, mas não o testamento.
- O seu pai tinha um cofre de depósito?
- Em qualquer dos bancos onde tinha as suas contas à ordem e a prazo, não tinha.
- Miss Stonehouse, tem a certeza de que existe um testamento?
- Oh, existe! Ou existiu. Vi-o. Não quero dizer que o tenha lido. Vi-o apenas na secretária, uma noite. Tinha quatro ou cinco páginas e uma capa azul-clara. Quando o meu pai me viu a olhá-lo, dobrou-o e meteu-o num sobrescrito comprido. "O meu testamento", disse. Por isso, sei que existiu.
- A sua mãe sabe o que contém?
- Não. O meu pai nunca discutia questões de dinheiro com ela. Limitava-se a dar-lhe uma mesada e mais nada.
- O seu pai também lhe dava uma mesada, Miss Stonehouse? Olhou-me francamente.
- Dava, sim. -E ao seu irmão?
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- Não. Desde que ele se foi embora, não dava. - Depois perguntou, irritada: - Que tem tudo isto a ver com o desaparecimento do meu pai?
- Não sei - respondi com sinceridade e voltei a prestar atenção ao gabinete.
Era um aposento quadrado, com um tecto alto de madeira. Havia outra lareira de azulejos, estantes metidas nas paredes, grandes armários para livros de tamanho excepcional, revistas, jornais e mapas enrolados.
Havia uma poltrona forrada de cabedal castanho, com um escabelo a condizer. Ao lado estava uma mesa cilíndrica, com tampo de cabedal e entalhes de folha de ouro. Na mesa encontrava-se uma bandeja de prata com uma garrafa por abrir, ainda selada, de conhaque Rémy Martin e dois balões de brande. Atrás da cadeira havia um candeeiro de pé, com quebra-luz verde.
No centro do gabinete via-se uma grande secretária com tampo de cabedal e ornamentos de bronze, cheia de papéis, mapas, livros e lápis e canetas de diversas cores. Havia também uma lupa, um compasso de bicos e um instrumento que parecia uma bússola antiga.
Mas o que prendeu a minha atenção foi a parede do fundo. Estava coberta, da altura das cadeiras até ao tecto, de modelos de cascos de barcos. Não sei se alguma vez viram modelos de cascos de barcos. São feitos de madeira dura e cortados longitudinalmente. A parte plana é fixada numa placa e cada placa tem uma chapa de latão com o nome do barco e a data da construção. Aproximei-me mais, para os examinar. Nunca vira tantos reunidos no mesmo lugar, nem tão bonitos.
Glynis apercebera-se do meu interesse.
- O meu pai mandava-os fazer a um homem de Mystic, Connecticut. Quando ele morrer, não haverá ninguém no país capaz de fazer modelos de cascos a partir das plantas de arquitectos navais.
- São bonitos - elogiei.
- E caros.
Mas se aquela sala tinha alguma coisa para me dizer, não consegui ouvir nada. Voltei-me para a porta.
- O seu pai não tinha um cofre?
- Não. E as gavetas da sua secretária não estavam fechadas à chave.
- Ele deixava-as geralmente assim?
- Francamente, não sei. Mrs. Dark talvez saiba.
Perguntei a mim mesmo se ela quereria estar presente enquanto eu interrogava Mrs. Dark, mas escusava de me ter preocupado. Conduziu-me à cozinha brilhantemente iluminada e disse à mulher que lá estava:
- Effie, este é Mr. Bigg. Anda a investigar o desaparecimento do
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meu pai para os advogados. Faça favor de responder às suas perguntas e de lhe dizer o que ele quiser saber. Mr. Bigg, esta é Mrs. Effie Dark. Quando acabar, estou certa de que saberá encontrar o caminho de regresso à sala. -Depois virou-se e deixou-nos.
Mrs. Dark era uma mulher corpulenta, com três queixos e um seio que a contornava como um pneu. Tinha braços enchouriçados e tornozelos que pareciam trasbordar dos sapatos de enfermeira. Espetados na cara bolachuda tinha dois olhos pequenos e brilhantes como mirtilos numa tarte. As suas ancas eram tão avantajadas que tive a certeza de que tinha de passar pelas portas de lado.
- Espero não vir incomodá-la, Mrs. Dark?
- Oh, não! Estou só à espera de que a água ferva para tomar uma rica chávena de chá. Também quer?
- Adoraria uma chávena de chá
Levantou-se e dirigiu-se para o balcão da cozinha. Enquanto o chá abria, dispôs chávenas, pires e colheres para nós. Levantei o meu pires para a luz e admirei a sua translucidez.
- Lindo - observei.
- Tudo do melhor. Quando se tratava do seu próprio conforto, não era sovina.
- Há quanto tempo está com a família Stonehouse, Mrs. Dark?
- Desde sempre. Fui cozinheira e governanta do professor enquanto estive casada e antes de ele casar. Depois o meu marido foi desta para melhor e o professor casou, e eu vim viver com ele e a família.
Observei-a, enquanto enchia as chávenas de chá cor de ferrugem. Segurou na sua chávena com ambas as mãos e aspirou o aroma, antes de beber um golo. Fiz o mesmo.
- Mrs. Stonehouse e Glynis contaram-me o que aconteceu na noite em que o professor desapareceu - comecei. - Disseram que não notaram nada de invulgar no comportamento dele, nessa noite. E a senhora?
Pensou um momento.
- Não - respondeu, a arrastar a palavra. - Achei-o mais ou menos o mesmo do costume. Era um demónio. - Saboreou a palavra nos lábios gordos, pareceu gostar e repetiu-a con ênfase: - Um demónio! Mas eu não lhe admitia disparates, e ele sabia-o. Gostava dos meus cozinhados e eu mantinha-lhe a casa em ordem e confortável. Ele sabia que a mulher não seria capaz de dirigir esta menagerie e que a filha não estava interessada. Por isso, era macio como um veludo, na parte que me tocava. E devo dizer que pagava bem.
- Tudo isso do seu ordenado de professor?
- Oh, não! Não, não. Ele vem de gente de dinheiro velho. O avô e o pai tinham negócios de barcos. Ele herdou um balúrdio.
- Porque era tão antipático? Parece ter odiado o mundo.
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Encolheu os ombros volumosos.
- Vá lá uma pessoa saber uma coisa dessas! Sei que teve algumas decepções na vida, mas quem as não tem? Sei que lhe passaram à frente para a promoção, na Universidade - foi por isso que se reformou- e que uma vez, quando era mais novo, levou uma tampa. Mas não tenho conhecimento de nada suficientemente importante para o transformar no género de homem que era. Para dizer a verdade, acho que gostava apenas de ser mau. Mais chá?
- Por favor.
Vi-a deitar o chá e diluí-lo com água quente.
- Têm andado à procura do testamento do professor - observei. - Desapareceu. Sabia disso?
- Se sabia? Viraram-me a cozinha do avesso, à procura! Até procuraram na arca da farinha. Levei horas para pôr outra vez tudo em ordem.
- Glynis disse-me que o pai limpava pessoalmente o seu gabinete. Não deixava lá entrar ninguém. É verdade?
- Recentemente. No mês antes de desaparecer. Antes disso, deixava-me entrar para limpar o pó e dar uma arrumação. Temos uma equipa de limpeza que vem uma vez por semana para dar uma boa volta à casa: aspirar as carpetes, lavar as paredes das casas de banho, coisas assim. Ele deixava-os entrar no gabinete se eu estivesse presente. Depois, cerca de um mês antes de desaparecer, passou a não deixar entrar ninguém. Disse que ele próprio limpava.
- Apresentou alguma razão para tal mudança?
- Disse que andava a trabalhar num livro, tinha lá documentos valiosos e não os queria fora do lugar.
- Mrs. Stonehouse e a filha disseram-me que momentos antes de sair, na noite de dez de Janeiro, ele foi ao gabinete e demorou-se lá alguns minutos. A senhora viu-o?
- Vi. Eu estava na sala de jantar. Como era a noite de saída da Olga, estava a levantar a mesa, depois do jantar. Ele veio da sala de estar, entrou no gabinete e saiu passados poucos minutos. Foi a última vez que o vi.
- Ele fechou a porta do gabinete depois de entrar?
- Fechou.
- Ouviu alguma coisa, lá dentro? -Que género de coisa?
- Qualquer coisa. Qualquer coisa que me possa dar uma ideia do que ele esteve a fazer. Andou de um lado para o outro? Deslocou móveis?
Ficou calada, a tentar lembrar-se. Eu esperei pacientemente.
- Não sei... Foi há um mês. Talvez o tenha ouvido fechar uma gaveta da secretária com força. Mas não poderia jurá-lo.
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- Esse é outro pormenor. As gavetas da secretária. Ele tinha-as fechadas à chave?
- Tinha - respondeu, sem hesitar. - Tinha-as fechadas à chave quando não estava lá. Lembro-me porque uma vez perdeu as chaves e tivemos de chamar um serralheiro para abrir a secretária.
- Ninguém mais tinha uma chave da secretária?
- Que eu saiba, não.
- Effie, que aconteceu entre o professor e o filho?
- O pobrezinho! - exclamou, pesarosa. - Powell foi expulso de casa.
- Porquê?
- Não arranjava emprego, não queria voltar para a Universidade a fim de se formar e andava com uma malta brava em Greenwich Village. Depois o professor surpreendeu-o a fumar erva no quarto, e pronto.
- Powell tem emprego, agora?
- Que eu saiba, não. -Então de que vive?
- Creio que tem um pouco de dinheiro seu, que a avó lhe deixou. E também me parece que Mrs. Stonehouse e Glynis o ajudam de vez em quando, sem o professor saber.
- Quando aconteceu isso?
- A expulsão de Powell? Há mais de um ano. -Mas ele ainda cá vem jantar?
- Só passou a vir nos últimos dois ou três meses. Mrs. Stonehouse chorou, barafustou e disse que Powell passava fome, e Glynis também insistiu com o pai a esse respeito. Por fim, ele disse que o filho poderia vir cá jantar, se quisesse, mas que não o deixava mudar-se de novo para cá.
- Muito bem. Agora a respeito de Glynis. Ela trabalha?
- Já não. Trabalhou um ano ou dois, mas despediu-se.
- Onde trabalhou?
- Creio que foi secretária num laboratório clínico. Qualquer coisa desse género.
- Mas agora não faz nada?
- Trabalha como voluntária, três vezes por semana, numa clínica da baixa. Mas não tem emprego certo.
- Tem muitos amigos?
- Parece que sim. Sai muito. Teatro, ballet, etc. Há semanas que sai todas as noites.
- Algum namorado especial? -Que eu saiba, não.
- Alguma vez convida os amigos a vir cá? Recebe?
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- Não - respondeu Mrs. Effie Dark, tristemente. - Nunca vi nenhum dos seus amigos. E nesta casa não se recebe muito. Há anos. Fez um gesto com a mão gorducha, a abarcar as prateleiras, os Utensílios, as latas de géneros e de especiarias, o fogão, o forno metido na parede, o frigorífico e a arca congeladora.
- Vê tudo isto? Não utilizo metade destas coisas meses a fio. Mas quando os garotos estavam a crescer, era diferente. O professor passava a maior parte do dia na Universidade e esta casa enchia-se com os amigos dos pequenos. Havia festas e bailes. Até Mrs. Stonehouse dava chás e organizava jogos de brídege e reuniões de amigas. Meu Deus, o trabalho que eu tinha! Mas nessa altura tínhamos outra criada, que vivia cá, e eu não me importava. Havia barulho e toda a gente ria. Uma verdadeira paródia. Depois o professor reformou-se e passou a estar em casa todo o dia. Pôs ponto final às festas e aos bailes. Pouco a pouco, as pessoas deixaram de aparecer, por ele ser tão mesquinho. Depois começámos a viver como eremitas, a andar em bicos de pés para não o incomodar. Nada como antigamente.
Acenei com a cabeça e levantei-me.
- Effie, obrigado pelo chá e pela conversa.
- Gosto de falar - redarguiu, a rir-, como provavelmente reparou. Aqui, uma pessoa às vezes até tem vontade de amarinhar pelas paredes, por falta de alguém com quem falar.
- Bem, eu gostei de conversar consigo e fiquei a saber muitas coisas. Espero que me deixe voltar e conversar de novo consigo.
- Quando quiser. Tenho o meu próprio telefone. Quer que lhe dê o número?
Ela ditou e eu escrevi-o no meu livro de apontamentos.
- Effie - perguntei, para rematar-, que lhe parece que aconteceu ao professor Stonehouse?
- Não sei - respondeu, perturbada. - E o senhor?
- Também não.
Quando voltei à sala, Mrs. Stonehouse estava sozinha, ainda enroscada num canto do sofá. A garrafa de xerez estava vazia.
- Olá - saudou-me, com a sua voz aflautada, enquanto tentava tocar no nariz e errava o alvo.
- Olá - respondi.
- Glynis foi fazer oó - informou-me, às gargalhadinhas.
Olhei para o relógio. Faltavam alguns minutos para as dez. Era cedo para fazer oó.
Meti-me no metropolitano em Central Park, oeste, apeei-me na Rua 23 e percorri a pé os três quarteirões até casa. Segui pela beira do passeio e não perdi tempo. Quando me encontrei no interior do prédio experimentei aquela sensação de soturna satisfação que todos os nova-iorquinos experimentam ao chegar a casa em segurança. Agora, se
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um intruso mascarado não estivesse a esperar-me na minha sala, a beber o meu brande, tudo estaria bem.
Não me esperava um candidato a ladrão, mas sim o comandante Bramwell Shank, que estava a beber o seu próprio moscatel. Tinha a porta da sua casa aberta e conduziu a cadeira de rodas para o patamar, quando me ouviu subir a escada.
- Onde diabo esteve você? - perguntou, agressivo. - Entre, beba um copo e veja o noticiário das onze horas comigo.
- Acho melhor não aceitar, comandante. Tive um dia duro e quero deitar-me cedo. - Mas apesar disso entrei, tirei a roupa lavada que estava numa cadeira e sentei-me a olhar para o televisor a cores de sessenta centímetros.
- Já foi convidado para a festa? - perguntou-me o comandante Shank, a encher outro copo de vinho.
- Já, já fui.
- Eu sabia que seria - comentou, quase a rir. - Aconteceu exactamente como eu disse, não aconteceu?
Bebi um golo de vinho, inclinei a cabeça para trás e fechei os olhos.
Deram as notícias locais e ouvimos mais previsões funestas do destino financeiro de Nova Iorque. Vimos um fogo numa casa, no Bronx, que matou três pessoas. Vimos o prefeito entregar uma chave da cidade a um campeão de enrolamento de pizzas.
Calculava quando me poderia ir embora decentemente quando ouvi a notícia. O locutor principal leu algumas pequenas notícias de interesse local, que me prenderam a atenção. Depois disse:
"Esta noite esteve interrompido o serviço no IRT da Lexington Avenue enquanto o corpo de um homem era retirado dos carris do expresso na estação da Rua Catorze. Aparentemente, caiu ou saltou para a morte do lado sul da estação, no momento em que o comboio chegava. A vítima foi provisoriamente identificada como Martin Reape, de Manhattan. Por enquanto, não dispomos de mais pormenores. E agora, um recado para todos os portadores de dentaduras postiças..."
- O quê? - perguntei, como se despertasse. -Que disse ele?
Capítulo sétimo
Li a história no Times, de manhã, no autocarro da Rua 23 que atravessava a cidade. Ocupava apenas um parágrafo na coluna de "A Cidade":
"A Polícia procura testemunhas da morte de Martin Reape, de
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Manhattan, que caiu ou saltou na estação da Rua 14 do metropolitano do IRT da Lexington Avenue. O acidente ocorreu na hora de ponta do princípio da noite e causou atrasos de mais de uma hora. O condutor do comboio em questão disse à Polícia que tinha acabado de entrar na estação e de meter travões quando "o corpo apareceu de repente a voar"."
Rook before you Reape.
Cheguei ao escritório alguns minutos antes das nove, liguei para Thelma Potts e disse-lhe que precisava de falar com Mr. Tabatchnick o mais depressa possível.
- Está a tornar-se uma visita regular - comentou.
- é apenas um pretexto para a ver. -Oh, tem cada uma!
Passei uma hora a dactilografar um relatório das minhas conversas com as Stonehouses e Mrs. Dark. Tentei não me esquecer de nada, pois naquela altura ainda não fazia nenhuma ideia do que era importante e do que não passava de lastro. Depois de ler o relatório, não detectei nenhum padrão, nem sequer uma vaga pista que pudesse levar ao esclarecimento do desaparecimento do professor. Nesse instante, Thelma Potts telefonou a dizer que Mr. Tabatchnick me podia receber. Quando entrei no gabinete encontrei-o de pé atrás da mesa de cavaletes, a beber de uma caneca que tinha pintada a palavra "Avô". Estava mal-humorado.
- Que há de tão urgente que não pôde esperar que tivesse tempo de ver os meus peixes?
Pus a coluna do Times em cima da mesa. Contornara a notícia da morte de Reape com um risco de lápis grosso, encarnado.
Mr. Tabatchnick tirou da algibeira do peito um par de grossos óculos de aros de massa preta, pegou num lenço lavado e bem passado a ferro e começou a limpar lentamente as lentes, depois de as bafejar. Pôs os óculos e, ainda de pé, começou a ler. Leu uma vez, levantou a cabeça para me fitar e leu segunda. A sua expressão não se modificou, mas ele sentou-se devagar na cadeira giratória.
- Sente-se, Mr. Bigg - convidou-me; a voz já não estava irritada; pelo contrário, parecia até um pouco trémula. - Que lhe parece que aconteceu ?
- Penso que foi assassinado. Empurrado para os carris pelo outro cliente, ou pelos outros clientes, com quem ficara de falar.
- Tem uma imaginação muito viva, Mr. Biggs.
- Tudo se ajusta, Mr. Tabatchnick.
- Nesse caso, ele não deveria ter o dinheiro consigo, se vendera a informação? O jornal não diz nada a esse respeito. Ou, se não fizera o negócio, não deveria ter a informação na sua pessoa?
- Não era forçoso que tivesse. Antes de mais nada, não sabemos
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se a informação era evidência física. Podia tratar-se apenas de qualquer coisa que ele sabia. E é possível que tenha ido encontrar-se com os outros clientes somente para discutir os pormenores no negócio e não se tenha verificado nenhuma troca antes da morte. Mas depois de terem falado com ele os clientes podem ter receado que o pagamento fosse apenas a primeira de uma série de exigências e achassem, por isso, que a sua morte era a única solução.
Mr. Tabatchnick exalou ruidosamente.
- Muito elaborado - comentou. - E sem provas absolutamente nenhumas.
- Sim, senhor, admito que assim é. Mas durante o meu encontro com Reape eu disse que cinquenta mil dólares eram muito dinheiro e ele respondeu-me: "Vale a pena pagar cinquenta mil para ter a certeza de que vai parar às mãos devidas, não vale?" Estava a referir-se ao espólio. Por isso, talvez as mãos dos seus outros clientes não fossem as devidas. Está a compreender, Mr. Tabatchnick?
- Claro que estou a compreender! -replicou, furioso. -Está a dizer que, com Reape fora de cena, as mãos indevidas lucrarão. Isso significa que os beneficiários nomeados no testamento existente podem incluir as pessoas indevidas.
A ideia não lhe agradava nada. Inclinou-se para a frente, para ler a notícia pela terceira vez. Depois afastou o papel, furioso.
- Gostava de poder ter a certeza de que esse tal Reape tinha de facto o que alegava. Pode ter lido apenas a notícia do suicídio de Sol Kipper e gizado este estratagema para beneficiar com a morte do pobre homem. Podia tratar-se somente de uma intrujice, de uma vigarice.
- Mr. Tabatchnick, a notícia do suicídio de Sol Kipper mencionava o valor do seu espólio?
- Claro que não!
- Durante o meu encontro com Reape ele disse, cito: "Quanto vale o espólio? Quatro milhões? Cinco milhões?" Fim de citação. Foi um cálculo aproximado do espólio, Mr. Tabatchnick?
- Bastante aproximado - respondeu, em voz baixa. - é de cerca de quatro milhões e seicentos mil.
- Como poderia o Reape saber isso se não tivesse estado intimamente relacionado com a família Kipper, de qualquer modo? Sem dúvida o seu conhecimento do valor dos bens é uma indicação relativamente sólida de que ele tinha a informação que alegava ter.
Leopold Tabatchnick suspirou profundamente. Depois ficou sentado a pensar, de cabeça baixa. Começou a puxar o lábio inferior e eu senti-me tentado a dar-lhe uma palmada na mão e a lembrar-lhe que já tinha os lábios suficientemente salientes.
Não sei quanto tempo permanecemos silenciosos. Por fim,
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Tabatchnick suspirou de novo e endireitou-se. Pôs as mãos grossas no tampo da mesa, de palmas para baixo.
- Está bem - murmurou. -Compreendo o que está a dar a entender. Acha que, se Martin Reape falou verdade e tinha provas para arranjar complicações ao testamento de Sol Kipper, se justifica uma investigação do suicídio de Kipper.
- Do alegado suicídio. Sim, senhor, é isso que sinto.
- Muito bem. Pode efectuar uma investigação discreta. Repito, uma investigação discreta. Para evitar prejudicar a sua investigação, não lhe revelo neste momento quais são os principais beneficiários do testamento de Sol Kipper.
- Como o senhor desejar. Mas ajudar-me-ia muito se me indicasse alguns antecedentes do homem e da sua família. Disse que ele tinha sido seu amigo pessoal durante cinquenta e cinco anos.
- É verdade. Fomos condiscípulos de faculdade. Depois eu cursei Direito e o Sol foi trabalhar no negócio de têxteis do pai. Mas mantivemo-nos em contacto e víamo-nos frequentemente. Ele foi padrinho do meu casamento e eu do dele. As nossas mulheres eram boas amigas. Refiro-me à primeira mulher do Sol. Ela morreu há seis anos e ele voltou a casar.
Haveria de facto, como me pareceu, uma nota de desaprovação na sua voz?
- Sol foi um homem de negócios com muitíssimo êxito. Depois da morte do pai tornou-se presidente da Kipmar Textiles, expandiu-se e a firma passou a abranger também fábricas de malhas em Nova Inglaterra, Carolina do Sul, Espanha e Israel. Há dez anos passaram a sociedade anónima e Sol tornou-se um homem rico. Teve três filhos e uma filha da primeira mulher. Todos os seus filhos são adultos, claro, e estão casados. Sol tinha onze netos. Pouco depois do seu segundo casamento, semi-reformou-se e entregou as operações do dia-a-dia da Kipmar Textiles a dois dos seus filhos. O terceiro filho é médico em Los Angeles e a filha vive em Boca Raton, na Florida. Que mais gostaria de saber?
- A segunda mulher... Que me pode o senhor dizer a seu respeito?
- É mais nova do que o Sol era... consideravelmente mais nova. Creio que trabalhou no teatro. Pouco tempo. Chama-se Tippi.
Desta vez tive a certeza de ouvir a nota de desaprovação na sua voz.
- Muito bem. E agora o homem. Como era ele?
- Sol Kipper foi um dos homens mais queridos, mais simpáticos que já tive a sorte de conhecer. De uma generosidade sem limites. Um excelente e terno marido, um pai e um avô compreensivo. Os filhos adoravam-no. Sentiram muito a sua morte.
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- Porque se suicidou ele... se é que se suicidou? Houve alguma razão para isso?
Tabatchnick abanou tristemente a cabeça.
- Sol era o maior hipocondríaco que já conheci ou de que ouvi falar. Andava constantemente a consultar médicos por causa de imaginárias doenças físicas. O caso servia de paródia à sua família e aos seus amigos, mas nunca o conseguimos convencer de que estava de excelente saúde, mesmo quando médico após médico lhe dizia a mesma coisa. Bastava-lhe ler um artigo acerca de qualquer doença obscura para ter a certeza de que tinha os sintomas indicados. Enfrascava-se com toda a espécie de panaceias e, segundo o meu conhecimento pessoal, tomava mais de cinquenta comprimidos de vitaminas e minerais por dia. Já era assim em novo e com a idade piorou. Em consequência disso, por vezes ficava num estado de extrema depressão. Presumo que se suicidou numa coisa dessas.
- Depois de marcar uma entrevista consigo para redigir um novo testamento?
- Foi assim que as coisas se passaram - respondeu-me, irritado.
- Creio que é praticamente tudo - murmurei, e levantei-me. - informá-lo-ei, se houver alguma coisa que o senhor deva saber.
- Faça favor. Se houver algo em que eu possa ajudar, queira dizer-me. Pode telefonar-me para casa, se se tornar necessário. O número vem na lista. Conto consigo, Mr. Biggs, para efectuar a sua investigação discreta e diplomaticamente.
- Sim, senhor, compreendo. Gostaria de começar por falar com o agente que investigou a morte de Mr. Kipper. Lembra-se por acaso do seu nome?
- Assim de repente, não, mas Miss Potts tem o nome e o número do telefone dele. Dar-lhe-ei instruções para lhos comunicar.
- Mr. Tabatchnick, é provável que o detective queira saber a razão do nosso interesse. Posso falar-lhe de Martin Reape? Pensou um instante, antes de responder:
- Não - disse, por fim. - Prefiro que não fale. Se nada resultar disto, o papel de Reape não terá qualquer significado e eu não quero que mais ninguém saiba da disposição em que estávamos de negociar com ele. Se o detective perguntar qual é a razão do nosso interesse, diga-lhe apenas que se relaciona com o espólio e o seguro. Tenho a certeza de que isso lhe bastará. Pode levá-lo a almoçar ou a jantar. Desconfio de que se mostrará mais inclinado a colaborar diante de umas bebidas e uma boa refeição. Assinarei quaisquer vales de despesas. Quaisquer vales de despesas razoáveis.
O detective de segunda classe Percy Stilton era o polícia encarregado do caso Kipper. Thelma Potts deu-me o número do seu telefone e eu liguei para ele assim que voltei para o meu gabinete. Mas o homem
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que atendeu disse que o detective Stilton só entraria de serviço às quatro horas da tarde. Respondi que voltaria a ligar nessa altura.
Comecei a dactilografar apontamentos da minha conversa com Mr. Tabatchnick, mas sem incluir qualquer menção a Martin Reape. Quando acabei, telefonei para casa dos Stonehouses. Respondeu-me uma voz muito gutural. Presumi que era a criada, Olga Eklund. Depois atendeu-me Mrs. Stonehouse, com a sua voz gorjeante. Fiz-lhe algumas perguntas acerca da saúde do marido. Aquando do desaparecimento estava bem, mas recentemente estivera doente.
- Começou no fim do Verão - informou-me-, mas agravou-se progressivamente. Outubro e Novembro foram muito maus. Mas depois passou-lhe de repente. Sabe, ele era do Escorpião.
- Outubro e Novembro? - repeti.
Isso significava que se devia ter refeito cerca de um mês antes do seu desaparecimento.
- Qual era a natureza da sua doença, Mrs. Stonehouse?
- Oh, não sei, realmente! - respondeu, despreocupada. - O meu marido era muito calado a respeito de coisas desse género. Suponho que se tratou de gripe, ou de um vírus renitente. Ele recusou-se a ir ao médico, mas sentiu-se tão fraco e indisposto que finalmente teve de ir. Foi diversas vezes, até, e o médico fez toda a espécie de análises. Deve ter descoberto o que era, pois Yale curou-se muito depressa.
- Pode dizer-me o nome do médico, Mrs. Stonehouse?
- O nome? Ora deixe ver, como se chama ele?... Morton, creio, ou coisa parecida.
Ouvi-a chamar: "Olga!", e uma conversa confusa e distante. Depois Mrs. Stonehouse voltou ao telefone:
- Stolowitz - disse-me-, doutor Morris Stolowitz.
Procurei o número do telefone do Dr. Morris Stolowitz. O consultório era na Rua 74, oeste, a pouca distância a pé da casa dos Stonehouses. Liguei e fui atendido por uma mulher: "Consultório", anunciou. O doutor estava a atender um doente. Deixei o meu nome e o meu número de telefone e pedi que ele me telefonasse.
Tinha as minhas dúvidas de que o Dr. Stolowitz retribuísse o meu telefonema. Pensava se seria sensato pedir a Mrs. Stonehouse que intercedesse por mim quando Hamish Hooter irrompeu pelo gabinete e atirou com o sobrescrito do meu ordenado para cima da secretária.
- Ouça lá...
- Que temos agora, Hooter?
- Tenho tentado dizer-lho de modo agradável - respondeu, a chupar ruidosamente os dentes-, mas aparentemente você não tem percebido. A Yetta Apatoff e eu somos uma coisa à parte. Quero que deixe de a incomodar.
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- Se a incomodo, do que duvido sinceramente, ela própria que mo diga.
Resmungou qualquer coisa em tom ameaçador, saiu apressado e bateu com a porta.
Claro que tive de telefonar imediatamente a Yetta.
- Olá, é o Josh - anunciei, a perguntar a mim mesmo por que motivo a minha voz se tornava tão gutural e... enfim, íntima, quando falava com ela.
- Olá, Josh - respondeu, na sua voz sussurrante, de rapariguinha. -Há muito tempo que não nos vemos.
Tais palavras poderiam ser de uma mulher a quem eu andava a incomodar?
- Que tal almoçarmos hoje os dois? - sugeri. - Para festejar o dia de pagamento.
- Oh, maravilhoso! Vamos ao restaurante chinês da Terceira.
Quando, ao meio-dia, me dirigi à sua secretária de recepcionista, estava à minha espera de casaco no braço e fofa boina azul-pólvora encantadoramente empoleirada nos caracóis louros. Vestia um fato de malha justo, de um azul ligeiramente mais escuro, e quando vi aquela divina topografia senti a habitual contracção da respiração e as minhas rótulas pareceram excessivamente lubrificadas.
Enquanto nos dirigíamos a pé para a 3ª Avenida, deu-me o braço, a tagarelar inocentemente e aparentemente alheia ao que a suave pressão do seu contacto estava a fazer ao meu ritmo cardíaco e à minha respiração. Como sempre que estava com ela, tornara-me cego e surdo ao que nos rodeava. Todos os meus sentidos estavam concentrados nela, e quando a certa altura tremeu de frio, disse "brrr!" e apertou o meu braço contra o seio, quase solucei de ventura.
No restaurante, o meu único desejo era olhar para ela, ver aqueles perfeitos dentes brancos morder um bolinho frito, observar como a suave coluna da sua garganta se mexia quando engolia e como ela batia delicadamente na boca, com um guardanapo de papel, quando um arrotozinho lhe subia aos lábios.
- Oh, Josh - disse, entre dentadas e engolições-, já lhe falei da camisola absolutamente maravilhosa que vi numa loja da Madison? Gostava de a comprar, mas é tão cara e tem também um decote tão grande! Quero dizer, a linha do pescoço é realmente acentuada, desce, e eu teria de usar um lenço, qualquer coisa que me cobrisse um pouco, se a levasse para o trabalho, ou talvez uma blusa por baixo, embora isso lhe prejudicasse as linhas, porque é muito justa. É de um verde-floresta. Gosta de verde, Josh?
- Adoro verde - respondi, em voz rouca.
- É muito cara, mas talvez desta vez, só desta vez, eu gaste mais do que deva, pois acho que quando queremos realmente uma coisa
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devemos adquiri-la, custe o que custar. Costumo dizer: "Não quero nada, a não ser o melhor." É assim que sinto, realmente... e penso que você acha que sou terrível!
- Claro que não penso tal coisa. Você merece o...
- Oh - interrompeu-me-, talvez a compre como um presente de aniversário de mim para mim própria!
- Faz anos?
- Ainda não, Josh. Só para a semana. Mas espero sinceramente que não pense, enfim, que lho estou a dizer com qualquer intenção premeditada, a fazer-me a um presente ou qualquer coisa, pois eu não sou de modo nenhum desse tipo.
- Bem sei, Yetta.
Estendeu o braço por cima da mesa, para colocar brevemente a mão na minha.
Pedimos bolinhos da sorte com o sorvete. A sina de Yetta era: ESPERA O UMA NOVA VIDA. A minha dizia: ESPERA-O UMA NOVA VIDA.
Yetta fitou-me, subitamente solene.
- Josh, não é a coisa mais estranha que já lhe aconteceu? Quero dizer, vamos ambos ter uma nova vida. Eu acho estranho. Não supõe que...?
Calou-se e olhou para o relógio.
- Meu Deus, o tempo! Tenho realmente de regressar. O dever chama-me!
Regressámos juntos ao escritório. Pouco antes de chegarmos, perguntei:
- Yetta, essa loja onde viu a camisola de que gostou...?
- Entre a Trinta e Seis e a Trinta e Sete - respondeu, sem me deixar acabar. - Do lado ocidental. Está na montra.
Permaneci resolutamente no meu gabinete toda a tarde e trabalhei com afinco em consultas de rotina dos sócios mais novos e de outros membros da firma. Poucos minutos depois das quatro telefonei ao agente que investigara o suicídio de Sol Kipper. Ele atendeu-me formalmente:
- Detective Percy Stilton.
- Chamo-me Joshua Bigg e trabalho para a firma de advogados de Tabatchnick. Orsini, Reilly e Teitelbaum. Mr. Tabatchnick deu-me o seu nome e morada. Disse que o senhor investigou o suicídio de Solomon Kipper.
- Kipper? Ah, sim, é verdade! Calhou-me esse.
- Gostaria de poder falar consigo a esse respeito. Trata-se de uma questão do espólio e do seguro.
- Não lhe posso mostrar o processo.
-Oh, não! - apressei-me a exclamar. - Não se trata de nada
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desse género. Quero dizer, não é nada oficial. Muito informal. Não lhe será pedido que deponha. Desejo apenas fazer-lhe algumas perguntas.
- Diz que se relaciona com o seguro?
- Sim, senhor.
- Hum... - Ficou um momento silencioso e depois acrescentou:
- Bem, creio que não faria mal nenhum. Quer vir até cá?
- Estava a pensar se nos poderíamos encontrar em qualquer lado. Jantar, talvez?
- Jantar? Tem uma conta de despesas?
- Tenho, sim, senhor.
- óptimo. Estou a ficar cansado de pizza. Pode ser esta noite?
- Seria esplêndido.
- Tenho de fazer um trabalho mais tarde, na Midtown Precint North. É na Rua Cinquenta e Quatro, oeste. Devo estar despachado por volta das oito horas e depois terei algum tempo livre. Encontro-me consigo cerca das oito no Cheshire Cheese da Rua Cinquenta e Um, oeste, entre a Oitava e a Nona. É muito britânico.
Estava a arrumar a secretária, a preparar-me para sair, quando o meu telefone tocou. Era agradável, para variar.
- Joshua Bigg - respondi.
- Um momento, Mr. Bigg - pediu uma voz de mulher. - Fala o doutor Morris Stolowitz.
Quando o doutor falou, foi em voz alta e irascível:
- Que história vem a ser essa a respeito do professor Stonehouse?
Disse-lhe quem era e para quem trabalhava e expliquei-lhe que queria falar com ele. Quis saber como tivera conhecimento do seu nome e rosnou que a relação médico-doente era confidencial. No fim, disse que me podia dispensar cinco minutos no dia seguinte. Pousou o auscultador com força e eu decidi dar o dia por findo.
Como o meu caminho para casa passava pela Madison Avenue, procurei a loja que Yetta Apatoff tinha mencionado. A camisola... verde estava na montra, num manequim. Yetta não exagerara: o decote não descia, mergulhava. E o meu ânimo também mergulhou quando vi o preço: $59.95. Talvez ela gostasse de um lenço bonito, em vez da camisola... Resolvi pensar no assunto; no fim de contas, ela só fazia anos para a semana. Continuei a descer a Madison até à Rua 23, meti-me num autocarro para a 9ª Avenida e daí fui a pé para casa. O comandante Shank não estava no patamar do segundo andar para me cumprimentar, mas eu ouvi o barulho do televisor atrás da sua porta fechada. Entrei sorrateiramente no meu apartamento e fechei a porta. Gostava do velho, sinceramente, mas não tinha nenhuma simpatia especial pelo moscatel.
Às 7.30 horas meti-me no autocarro da 8ª Avenida para a periferia e cheguei à Rua 51 antes da hora. Encontrei o Cheshire Cheese,
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alguns degraus abaixo do passeio. Era, como Stilton dissera, um restaurante de estilo inglês, com um balcão comprido à esquerda de quem entrava e pequenas mesas para dois ao longo da parede da direita. Ao fundo, vi uma grande sala de jantar com mesas para quatro.
Era penumbrosa e agradável, rescendente a odores de cozinhados que abriam o apetite e decorada com peças de arreios de latão e cotas de armas. A multidão do teatro já partira e estava pouca gente a jantar: dois homens juntos, dois casais e um quarteto. Não estava ninguém sozinho, que pudesse ser o detective Stilton.
Esperei perto da entrada, até que um homem magro, de comprido avental branco, saiu detrás do balcão e se me dirigiu, a dar brilho a um copo de vinho com um pano.
- Estou à espera de um cavalheiro - expliquei-lhe. - Talvez ocupe uma mesa e tome uma bebida, enquanto espero.
- Muito bem - observou, a olhar em redor. - Que tal a do canto? Foi aí que me sentei, depois de ter pendurado o sobretudo. Estava
de costas para a parede e podia observar a entrada. Pedi um uísque com água ao criado que se aproximou.
Bebera apenas um golo quando um negro alto entrou no Cheshire Cheese e olhou à volta. Despiu o sobretudo e tirou o chapéu, que pendurou no cabide, e caminhou direito a mim com uma passada larga e elástica. Levantei-me da cadeira para lhe apertar a mão.
- Mr. Bigg? Sou Stilton.
Quando ele tirou a cadeira livre da minha direita para se sentar à minha frente, o criado veio imediatamente colocar a bandeja de estanho, o guardanapo, os talheres e o copo de água defronte do detective.
- Está à espera há muito tempo?
- Acabei de chegar. Estou a tomar uma bebida. Também quer? Pediu um martini seco simples, sem casca de limão nem azeitona,
o qual lhe foi servido com extrema rapidez.
- Está bem? - perguntei.
- Perfeito. Há quanto tempo é investigador-chefe?
Sorriu da minha surpresa e eu consegui recuperar a compostura.
- Há dois anos. Mas antes fui assistente durante outros dois anos, de um homem chamado Roscoe Dollworth. Ele pertenceu à Polícia. Conheceu-o?
- Ao Dolly? Oh, claro! Era um polícia porreiro antes de se meter nos copos. Ainda vive?
- Reformou-se e foi viver para a Florida.
- Acho melhor pedirmos o que queremos. Podemos falar enquanto comemos. Disponho aí de uma hora, antes de o tenente começar a ficar em pulgas. Sei exactamente o que quero. Rosbife muito mal passado, pudim Yorkshire e o vegetal que eles estiverem a servir. E uma salada. E uma caneca de cerveja branca.
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Eu pedi pudim de carne e rim, salada e cerveja branca.
- A respeito do tal Kipper - disse Stilton, de súbito. - Disse que o seu interesse era o seguro, não foi?
- A indemnização - confirmei, a acenar com a cabeça. - Temos de justificar o requerimento da indemnização junto da companhia em que ele estava seguro.
- Que companhia é?
- A... a Metropolitan Life.
- É estranho. Cerca de uma semana depois de Kipper morrer recebi uma visita de um avaliador de indemnizações da Prudential. Disse que tinham segurado Kipper.
Olhou-me bem de frente. Creio que corei. E devo ter baixado a cabeça, incapaz de sustentar o seu olhar.
- Não se importa que o trate por Josh, pois não? - perguntou-me Stilton, brandamente.
- Não, não me importo.
- Pode tratar-me por Perce. Sabe, Josh, dois anos neste trabalho, ou mesmo quatro, não chegam para aprender a ser um bom mentiroso. A primeira regra é mentir apenas quando não pode deixar de ser. E quando mentir, arranje uma mentira tão próxima da verdade quanto possível. e simples. Não tente elaborar, complicar, pois se o fizer é mais que certo que se mete em sarilhos. Quando lhe perguntei se o seu interesse era o seguro, devia ter respondido que sim, ponto final. Provavelmente eu teria engolido. É lógico os advogados encarregados de lidar com o espólio interessarem-se pelo seguro de um tipo que morreu. Mas você começou a embelezar, falou da necessidade de justificar a indemnização, e eu percebi que estava a intrujar-me.
- E eu nem sequer sabia o nome da companhia! -exclamei, tristemente.
Ele inclinou a cabeça para trás e riu tão alto que os outros clientes se voltaram para olhar.
- Oh, Josh, eu também não sei que companhia segurou o Kipper! Nunca recebi a visita de nenhum avaliador. Falei da Prudential apenas para ver a sua reacção. Como você se foi abaixo, percebi que me estava a meter a escova.
Serviram-nos a comida e não voltámos a falar enquanto o criado não se afastou.
- Quer dizer que não me vai falar do caso Kipper? - perguntei.
- Por que diabo não hei-de falar? - replicou, admirado. - Estou disposto a colaborar. Está tudo nos arquivos. O seu patrão, o tipo dos peixes, talvez até conseguisse dar uma vista de olhos ao processo se exercesse a pressão suficiente. Como está o pudim de carne e rim?
- Delicioso. Está a saber-me muito bem. E o seu rosbife, está mal passado como pediu ?
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- Se estivesse mais mal passado ainda estaria a respirar. Bem, agora deixe-me falar-lhe do caso Kipper. Dei uma vista de olhos ao processo antes de sair, para refrescar a memória. O que aconteceu foi o seguinte...
Enquanto ele falava e comia desembaraçadamente, levantei diversas vezes a cabeça do prato para o olhar.
Calculei que devia estar no princípio da casa dos cinquenta. Media cerca de um metro e oitenta e tinha ombros e quadris estreitos. Muito esbelto. Vestia com grande cuidado e esmero. Casaco azul às riscas, tipo jaquetão, abotoado no último botão e com um curvar gracioso de lapelas largas. A camisa era de um tecido fino e de uma brancura de neve, com colarinho estreito e de bicos presos por botões. Usava laço tipo borboleta às pintinhas e um relógio de ouro num dos pulsos e uma pulseira de identificação, também de ouro, no outro. Se trazia arma
- e presumo que trazia- não se notava.
A sua cor era difícil de distinguir na luz fraca, mas pareceu-me que era castanho-escuro com uma tonalidade avermelhada, não completamente cordovão, mas quase. O cabelo era negro de azeviche e assentava-lhe no crânio em ondas muito juntas. Tinha mãos compridas, de unhas arranjadas.
Os olhos eram afundados nas órbitas e afastados um do outro. Tinha nariz um pouco achatado e lábios grossos revirados para fora. Zigomas salientes, como um índio, queixo maciço, quase quadrado, e um pescoço surpreendentemente grosso e encordoado. As orelhas eram pequenas e coladas à cabeça.
Não lhe chamaria um homem bonito, mas as suas feições eram agradáveis. Parecia bem disposto, seguro de si e competente. Quando pensava, ou tentava encontrar a palavra ou a frase certa, tinha o hábito de encostar a língua ao interior da face, que ficava mais saliente.
Creio que o que mais me impressionou foi a serena elegância do indivíduo, totalmente contrária ao que eu imaginava seria característico de um detective da Polícia de Nova Iorque. O que ele parecia, realmente, era um executivo comercial ou um vendedor confiante. Pensei que devia tratar-se de uma imagem projectada deliberadamente, para o ajudar no seu trabalho.
- Comecemos pela sequência do tempo - disse. - O caso passou-se em vinte e quatro de janeiro, uma quarta-feira. O primeiro telefonema foi feito para o novecentos e onze e registado como tendo chegado às três horas e seis minutos. Da tarde. A Esquadra Dezanove mandou um carro-patrulha, que chegou ao local às três e catorze. Nada mau, hem? No carro iam dois polícias. Deram uma vista de olhos ao que acontecera e ligaram para a sua esquadra. Isto foi às três e vinte e um. Toda a gente estava a fazer o seu trabalho. Não engenhamos o tempo todo, acredite. O aviso chegou à Zona de Homicídio, onde eu
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trabalho, às três e vinte e nove. Não parecia um homicídio, mas estas coisas têm de ser verificadas. Cheguei ao cenário às três e quarenta e três. Ia com o meu parceiro, o detective Lou Emandola. Mal acabáramos de chegar, o tenente telefonou e mandou o Lou para outro lado. Um chalado qualquer tinha feito reféns num supermercado da Primeira Avenida e tinham pedido socorro.
"Por isso, o Lou foi-se embora e deixou-me sozinho. Quero dizer, eu era o único agente de homicídios presente. Havia muitos polícias, os tipos da ambulância, o médico, os técnicos do carro-laboratório, um fotógrafo, etc. Uma multidão. Nessa altura interroguei as testemunhas, mas estavam tão aparvalhadas que não me disseram muito. Por isso, fui-me embora. Voltei nessa noite e mais duas vezes. Também falei com vizinhos, com o médico que fez a autópsia, com o seu Mr. Tabatchnick, com o médico de Kipper e com os filhos de Kipper. Depois de tudo isso, parecia um caso evidente de suicídio e foi assim que o encerrámos. Algumas perguntas, até agora?
- Quem fez a primeira chamada para o novecentos e onze?
- Já lá vamos. Ainda mal comecei.
Fez uma pausa, despejou a caneca de cerveja e olhou para mim. Chamei o criado e pedi mais duas. O detective continuou:
- Aqui vai a história... Primeiro que tudo, tem de compreender o cenário do crime, embora não tenha havido nenhum crime, a não ser que queira chamar crime a um suicídio. De qualquer modo, aquela casa é um palácio. Grande? Nem acreditaria. Podia lá dormir metade do Harlém Oriental. Tem cinco andares, uma cave dupla e um elevador. Nunca consegui contar as divisões todas. Trinta pelo menos, creio, e a maior parte delas vazias. Quero dizer, estão mobiladas, mas não vive lá ninguém. Um terrível desperdício de espaço. O último andar, o quinto, é uma grande sala voltada para a rua. Ocupa metade da fundura do edifício. A parte de trás é um terraço aberto. a sala da frente é utilizada para festas. Tem um televisor de écran grande, bar, equipamento de alta fidelidade, projector de filmes, etc. O terraço da retaguarda tem plantas, árvores e mobiliário de exterior. Sol Kipper deu o seu mergulho desse terraço. Tem um muro à volta com noventa e cinco centímetros de altura - eu medi -, mas isso não seria difícil de subir, mesmo por um tipo velho como o Kipper."
Fez outra pausa, para beber um golo da nova cerveja. Aproveitei a interrupção para dar uma avançada no jantar. Estivera tão interessado em ouvir a sua história, e tão atento para não perder pitada, que me esquecera de comer. Ele acabara praticamente o rosbife e estava a raspar os bocadinhos agarrados ao osso, a usar a faca com a destreza de um cirurgião.
- Quanto mais perto do osso, mais tenra é a carne - comentou. - Bem, ouça o que averiguei: às duas e meia da tarde dessa
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quarta-feira estavam cinco pessoas em casa. Sol Kipper, a mulher, Tippi - é uma beldade-, e os três criados. Sol e Tippi estavam no quarto, o quarto principal do quarto andar. Os criados estavam no rés-do-chão, na cozinha e nas imediações. Tippi esperava uma visita, um pastor protestante chamado Knurr. Era visita frequente e geralmente serviam-lhe uma bebida ou duas e algumas pequenas sanduíches. Os criados estavam a preparar-lhe o prato.
"Mrs. Kipper desceu cerca das dez para as três, a fim de se certificar de que estava tudo preparado para o reverendo Knurr. Temos portanto quatro pessoas no rés-do-chão e só Sol Kipper lá em cima, não é verdade? Nas traseiras da casa há um pátio. Quase todo ele é pavimentado com mosaicos e está arranjado com móveis de alumínio: uma mesa de cocktails, cadeiras, uma mesa com chapéu-de-sol, coisas assim. Mais ao fundo, há um pequeno jardim: uma árvore, arbustos, flores no Verão, etc. Mas na sua maior parte o pátio é pavimentado com mosaicos. Há duas maneiras de lá chegar: por uma porta da cozinha e por portas-janelas da sala de jantar.
"Poucos minutos depois das três, as quatro pessoas ouviram um tremendo estrondo e um baque pesado no pátio. Ouviram isso todas elas. Correram para a porta da cozinha, olharam, e viram Sol Kipper. Estava esborrachado nos mosaicos. O baque que tinham ouvido fora o corpo dele a bater no chão. Uma das suas pernas atingira a mesa com o chapéu-de-sol, amolgara-a e derrubara-a. Fora o estrondo que tinham ouvido. Correram todos para o pátio, olharam e compreenderam que Sol Kipper não poderia estar mais morto do que estava."
Stilton acabou de jantar. Empurrou a cadeira para trás, cruzou as pernas e endireitou o vinco das calças. Acendeu um cigarro e bebeu o que restava da sua cerveja.
- Histeria instantânea - prosseguiu. - Mrs. Kipper desmaiou, a cozinheira começou a berrar e precisamente nesse instante a campainha da porta principal tocou.
- O visitante? - perguntei.
- Exactamente, o reverendo Knurr. O mordomo foi abrir, deixou-o entrar e gritou-lhe o que acabava de acontecer. Creio que nessa altura o tal Knurr tomou mais ou menos conta da situação. é um daqueles tipos que sabem pôr as coisas nos eixos. Ligou para o novecentos e onze, reanimou Tippi Kipper e os outros acalmaram-se. Quando eu cheguei, já tinham encontrado o bilhete do suicida. Que tal um café?
- Certamente. Sobremesa? Um brande?
- Um brande seria excelente. Posso sugerir Rémy Martin? Pedi dois brandes Rémy Martin e uma cafeteira de café.
- Tenho uma quantidade de perguntas... - disse, hesitante. -Já calculava. Dispare.
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- Tem a certeza de que estavam apenas quatro pessoas lá em casa, além de Sol Kipper?
- Absoluta. Revistámos todas as divisões, quando chegámos. Ninguém. E as testemunhas juram que ninguém saiu.
- A sequência de tempo que indicou... Obteve-a de Mrs. Kipper?
- E dos criados. E do reverendo Knurr. As histórias de todos condiziam, com diferenças de cerca de um minuto. Nenhuma delas me pareceu ter sido ensaiada. E se está a pensar que talvez estivessem todos conluiados, esqueça essa ideia. Porque haviam de se conluiar todos contra o velho? Segundo os criados, ele tratava-os bem. E não era nada agarrado aos dólares. A mulher diz que o casamento era feliz. Nenhum deles mostrava quaisquer sinais de luta. Nem arranhões, nem equimoses, nada do género. E se um deles, ou todos, tivessem querido livrar-se de Sol, teria sido muito mais fácil meter qualquer coisa num dos seus frascos de comprimidos. Só queria que visse o armário de remédios dele. Tinha uma farmácia lá em casa. E, claro, não nos podemos esquecer do bilhete de suicídio. Escrito com a letra dele.
- Lembra-se do que dizia? Exactamente?
- Estava dirigido à mulher. E dizia: "Querida Tippi: Por favor perdoa-me. Lamento todos os aborrecimentos que causei." E estava assinado: "Sol."
Suspirei. Os nossos cafés e os conhaques chegaram. Ficámos um momento calados e depois bebemos um golo de Rémy Martin. Muito diferente do brande da Califórnia que eu bebia em casa.
- Examinou o muro do terraço? Stilton olhou-me inexpressivamente.
- Você percebe do assunto - comentou. - O Dolly fez bom trabalho consigo. Sim, examinámos o muro do terraço. É de cimento toscamente acabado, pintado de cor-de-rosa. Estava raspado no topo, para onde Kipper subiu. E havia resíduos de cimento cor-de-rosa nas biqueiras dos sapatos dele, enterrados na vira. Mais perguntas?
- Não - respondi, deprimido. - Talvez me ocorram algumas mais tarde, mas agora não me lembro de mais nenhumas. Portanto, o caso foi encerrado como tratando-se de suicídio?
- Que remédio, não acha? - perguntou o detective Percy Stilton, quase zangado. -Temos de trabalhar numa quantidade incrível de homicídios por resolver. Quero dizer, de homicídios claros, de caras. Quanto tempo podemos dedicar a um caso que parece um suicídio, seja qual for a perspectiva de que o vejamos? Por isso, encerrámos o processo Kipper.
Bebi um golo de brande maior do que deveria e engasguei-me. Stilton olhou-me, divertido. -Foi para o goto? Acenei com a cabeça.
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- E este suicídio - observei, ainda sem fôlego - também me custa a passar pela garganta. Perce, que sente você a respeito do caso? Pessoalmente, claro. No seu espírito, está absolutamente convencido de que Sol Kipper se suicidou?
Fitou-me e esticou a bochecha com a língua, como se tentasse tomar uma decisão. Depois serviu-se de mais café. -O momento é de troca - disse, suavemente. -O quê? Não compreendo.
- Uma troca - explicou. - Entre você e mim. Você diz-me qual é o seu interesse na maneira como Sol Kipper morreu e eu digo-lhe o que penso, pessoalmente.
Respirei fundo e desejei nunca ter perguntado a Mr. Tabatchnick se podia falar ao detective de Marty Reape. Tabatchnick dissera definitivamente que não. Se lhe não tivesse perguntado, poderia ter transaccionado com Stilton sem rebates de consciência. Tentei decidir a quem pertencia a minha lealdade. E cheguei a uma conclusão.
- Se alguma coisa do que vou dizer constar, o meu emprego fica em risco - expliquei.
- Da minha boca ninguém o saberá - garantiu-me Stilton. -Está bem, confio em si. Tenho de confiar em si. Lá vai...
E contei-lhe tudo a respeito de Marty Reape. Tudo, a começar pelo telefonema para Mr. Tabatchnick, passando pelo meu telefonema para ele, pelo nosso encontro, pelo que ele e eu disséramos e pela decisão de pagar o preço que pedira, e terminando na sua morte na quarta-feira à noite, sob as rodas de uma composição do metropolitano.
Stilton escutou atentamente a minha narrativa, sem mudar de expressão. Mas não desviou os olhos de mim e reparei que acendia os cigarros uns nos outros, enquanto eu falava. Preparava-se para acender outro cigarro quando acabei. Partiu o cigarro em dois e deitou-o fora.
- Fumo de mais - comentou, aborrecido.
- Que lhe parece? - perguntei, e inclinei-me ansiosamente para a frente. - A respeito do Marty Reape?
- O seu patrão pode ter razão - respondeu-me, devagar. - Reape podia ter sido um intrujão ordinário, a tentar impingir uma vigarice.
- Mas ele foi morto! -lembrei veementemente.
- Foi? Você não sabe isso. E mesmo que tenha sido, esse facto não prova que tivesse a informação que alegava ter. Talvez tenha tentado impingir a vigarice a quaisquer outras pessoas que não fossem tão civilizadas como o seu patrão e lhe tratassem da saúde.
- Mas ele sabia o montante do espólio de Kipper - argumentei. - Isso não prova que conhecia a família ou tinha quaisquer ligações com ela?
- Talvez. Ou talvez Sol Kipper tenha dito a alguém o conteúdo do seu testamento e esse alguém tenha dito a Marty Reape. Ou talvez
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Reape se tenha limitado a conjecturar acerca do montante do espólio e tenha tido a sorte de acertar.
Era muito importante para mim convencer aquele detective particular de que as minhas suspeitas acerca da morte de Sol Kipper tinham mérito e justificavam o reatamento da investigação. Por isso, como já abusara da confiança de Mr. Tabatchnick até àquele ponto, achei que podia ir até ao fim.
- Há outra coisa - acrescentei. - Na manhã do dia em que morreu, Sol Kipper telefonou a Tabatchnick e marcou uma entrevista. Disse que queria modificar o testamento.
Stilton, que estivera a girar o isqueiro nos dedos compridos e a olhá-lo, deixou de o fazer e levantou lentamente os olhos até me fitar.
- Jesus - murmurou-, as coisas complicam-se.
- Pronto - disse eu, e recostei-me na cadeira. - Já dei tudo quanto tinha para dar. Agora é a sua vez. Pensa realmente que Sol Kipper se suicidou?
Não hesitou:
- É esse o veredicto oficial e o processo está encerrado. Mas houve coisas que me intrigaram desde o princípio. Pequenas coisas. Insuficientes para justificar que se considerasse um homicídio, mas coisas- três, para ser exacto - que me não pareceram bater certas. A primeira: suicidar-se atirando-se de um quinto andar está longe de ser um método de resultados garantidos. Pode saltar-se de mais alto ainda e sobreviver.
"É por isso que muitos suicidas sobem mais alto do que cinco andares. Querem matar-se, mas não querem correr o risco de ficar aleijados para toda a vida. Kipper tinha uma empresa têxtil. Estava semi-reformado e os filhos dirigiam a empresa, mas ele ia lá durante algumas horas, três ou quatro dias por semana. O escritório fica no trigésimo terceiro andar de um edifício situado no centro do vestuário. Podia ter-se atirado de uma janela de lá e teriam de lhe apanhar os restos com um mata-borrão."
- Perce, que foi que realmente o matou, quando se atirou do terraço do quinto andar?
- Aterrou de cabeça. Esmagou o crânio. Está bem, o quinto andar chegou. Mas ele também podia ter fracturado ambos os braços e ambas as pernas, sofrido lesões internas e mesmo assim sobrevivido. Isso era igualmente possível. Mas já o não era se saltasse do trigésimo terceiro andar. Foi essa a primeira coisa que me intrigou: um suicídio do quinto andar. é como tentar estoirar os miolos com uma arma de pressão de ar.
"A segunda coisa foi a seguinte: quando os suicidas se lançam de uma janela, uma plataforma, uma varanda, ou seja, o que for, geralmente deixam-se pura e simplesmente cair. Quero dizer, limitam-se a
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dar um passo de gigante para o espaço. Não saltam, na verdade. Praticamente todos os suicidas deste tipo que tenho visto aterraram a cerca de um metro e oitenta do lado do edifício. Geralmente esborracham-se no passeio. Quando saltam de um lugar realmente alto, é possível que o seu corpo comece a girar sobre si mesmo. Mas mesmo assim caem no passeio ou no máximo esmagam-se no tejadilho de um automóvel estacionado. Mas nunca vi nenhum que fosse parar a mais, digamos, de um metro e oitenta e dois metros e dez do lado do edifício. O corpo de Kipper estava quase a três metros de distância. Fiquei a pensar naquilo.
- Percy, quer dizer que alguém o atirou?
- Quem? Estavam quatro pessoas naquela casa, lembra-se? Kipper pesava cerca de setenta e dois quilos e meio. Nenhuma das mulheres presentes poderia tê-lo levado para o alto do muro do terraço e atirado de maneira que ele aterrasse a três metros de distância do lado do edifício. E o único homem presente, o mordomo, é tão gordo que nem sei como se aguenta em pé. Talvez Kipper tenha saltado em voo.
- Um velho como ele?
- É possível - insistiu, obstinadamente. - A terceira coisa ainda é menos consistente do que as duas primeiras. Trata-se do bilhete. Dizia: "Lamento todos os aborrecimentos que causei." Está a compreender? Causei. Por favor, perdoa-me qualquer coisa que fiz. O bilhete dá-me a impressão de que ele se referia a qualquer coisa que fez no passado, e não a uma coisa que planeava fazer dali a poucos momentos. Além disso, o bilhete é perfeitamente legível, está escrito a direito e com mão firme. A caligrafia não é a que seria de esperar num tipo com a cabeça tão baralhada que dali a minutos se ia lançar do terraço da sua casa. No entanto, e mais uma vez, é possível. Como lhe disse, é pouco consistente. Todas as coisas que me causam confusão são pouco consistentes.
- Não concordo - afirmei, veemente. - Creio que são importantes.
Esboçou um meio sorriso, olhou para o relógio e começou a guardar a cigarreira e o isqueiro.
- Ouça - insisti, desesperadamente-, que fazemos a partir daqui?
- Não faço a mínima ideia.
- Não pode...
- Reabrir o caso? Não tenho possibilidade nenhuma de o fazer com as provas de que dispomos. Bastaria que o sugerisse, apenas, para que o meu tenente me mandasse internar no manicómio. Você é o investigador-chefe... pois investigue.
- Mas não sei por onde começar! - explodi. - Sei que devia falar
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com a família Kipper e com os seus criados, mas não sei que pretexto lhes posso apresentar para lhes fazer perguntas.
- Diga-lhes o que me disse a mim - aconselhou-me. - Diga que anda a recolher informações para justificar a reclamação do seguro. Eles embarcam.
- Você não embarcou - salientei.
- Eles não são tão cínicos como eu - respondeu, a sorrir. - Acreditarão no que lhes disser. Lembre-se apenas do que lhe disse a respeito da mentira. Mantenha-a simples, não tente adorná-la. Enquanto você andar a bisbilhotar, eu verei o que consigo saber acerca do modo como Marty Reape morreu. Pelo que me disse, é possível que o caso tenha sido arquivado como acidente... mas nunca se sabe. Dê notícias. Se acontecer alguma coisa, pode falar comigo pelo número que tem ou deixar recado que eu depois telefono-lhe. Posso falar-lhe para a Tabatchnick, etc.?
Pensei no assunto, antes de responder:
- É melhor não, Percy. Prefiro manter as nossas... relações confidenciais.
- Claro. Compreendo.
- Vou-lhe dar o número do meu telefone de casa. Estou lá quase todas as noites.
- Serve perfeitamente.
Anotou o número do meu telefone num livrinho de apontamentos de pele de foca preta com cantos dourados. Como todas as suas coisas, tinha um ar elegante e dispendioso.
Paguei a conta, deixei uma gorjeta e dirigimo-nos para a porta.
- Continuo a pensar que não foi suicídio - declarei.
- Pode ser que tenha razão. Mas há uma grande diferença entre pensar uma coisa e prová-la. Como qualquer polícia lhe poderá dizer.
Vestimos os abafos e saímos para o passeio. Stilton usava sobretudo largo, azul-marinho, e chapéu preto. Um janota. -Obrigado pelo jantar, Josh. Foi muito bom.
- Tive muito gosto.
- Para que lado vai?
- Para a Nona Avenida. Apanho um autocarro que vá para a Baixa. Moro em Chelsea.
- Acompanho-o a pé - prontificou-se, e encaminhou-se para oeste. - Não desista, Josh - recomendou, subitamente insistente. - Eu não posso fazer nada; tenho o prato cheio. Mas tenho a sensação de que anda alguém a levar-nos, e isso não me agrada.
- Não desistirei.
- Óptimo. E obrigado por se ter encontrado comigo e me ter esclarecido. - Depois acrescentou, hesitante: - Escute, se não está enganado no que pensa e alguém liquidou Sol Kipper e empurrou Marty Reape
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para debaixo de um comboio, não se trata de gente nada simpática, compreende? Portanto, tenha cuidado. -Oh, com certeza! Terei cuidado.
- Traz artilharia?
Precisei de alguns segundos para compreender a que se referia.
- Oh, não! Não acredito na violência. Suspirou profundamente.
- E uma criancinha conduzi-los-á - murmurou. - Boas noites, Josh.
Capítulo oitavo
Na manhã seguinte acordei de olhos brilhantes e todo entusiasmado. Embora o detective Stilton tivesse insistido em que tínhamos apenas suspeitas não fundamentadas, o que ele me dissera confirmara a minha convicção de que a morte de Sol Kipper não se devera a suicídio. Estava convencido de que, apesar das suas discordâncias cautelosas, Stilton pensava o mesmo que eu.
Nevara ligeiramente durante a noite; uma leve poalha cobria os passeios e os carros. Mas derretia-se rapidamente, à medida que o sol jovem aquecia. O céu estava muito azul e o ar cintilava. O tempo coadunava-se perfeitamente com o meu estado de espírito, e enquanto me dirigia para o encontro que tinha marcado com o médico do desaparecido Yale Stonehouse considerei esse pormenor como um augúrio para um dia bem sucedido.
O Dr. Stolowitz tinha o consultório no rés-do-chão de um prédio de tijolo, que se erguia muito acima das casas de arenito vizinhas. Cheguei às 8.15 horas. A recepcionista era alta, magra e tinha uma trunfa de caracóis ruivos frisados. As suas feições delgadas pareciam congeladas numa expressão de permanente descontentamento. Reparei-lhe nas unhas compridíssimas e pintadas de vermelho e vi-lhe no pulso ossudo uma pulseira com uma dúzia de berloques que tilintavam a cada movimento. Cumprimentou-me muito pouco calorosamente.
- Joshua Bigg para falar com o doutor Stolowitz - informei, a sorrir, esperançado.
- Chegou cedo - redarguiu secamente. - Sente-se e espere. Por isso, sentei-me e esperei, de sobretudo e chapéu no colo.
Às 8.25 horas, em ponto, apareceu outra enfermeira - desta vez uma rapariga pequenina -, que me fez sinal.
- O doutor atende-o agora - informou-me.
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O homem sentado à secretária atravancada era de altura mediana, atarracado, com uma grande barriga debaixo do casaco branco curto. Usava óculos sem aros e de lentes grossas, que lhe davam aos olhos o ar de esbugalhados. Fumava um charuto preto. A atmosfera do consultório tresandava a fumo velho.
- bom dia, doutor - cumprimentei.
- Cinco minutos - volveu-me secamente. - Nem mais um.
- Compreendo, doutor.
- Qual é ao certo a sua relação com Yale Stonehouse?
- Como lhe expliquei pelo telefone - respondi, pacientemente-, ando a investigar o desaparecimento do professor.
- É um detective particular? - indagou, desconfiado.
- Não, senhor. Sou empregado dos advogados do professor. Pode pedir a Mrs. Stonehouse que lho confirme, se desejar. Rosnou. Não me convidara a sentar.
- Muito bem, faça as suas perguntas. Poderei responder ou não responder.
- Pode dizer-me quando o professor Stonehouse o consultou, doutor?
Pegou numa pasta que tinha em cima da secretária e folheou-a rapidamente, ainda com o charuto apertado entre os dentes.
- Sete vezes em Outubro e Novembro do ano passado. Quer as datas exactas dessas visitas?
- Não, doutor, não é necessário. Mas Mrs. Stonehouse disse-me que a doença do marido começou no fim do Verão...
- E depois?
- Ele só o consultou em Outubro?
- Acabo de lho dizer - respondeu, irritado.
- Sabe se o professor Stonehouse consultou qualquer outro médico antes de o procurar a si?
- Como diabo quer que eu saiba isso?
- Ele não mencionou nenhum tratamento anterior? -Não.
- Doutor, não espero que me diga a natureza da doença do professor, mas...
- Pode ter a certeza absoluta de que não direi!
- Mas pode-me dizer se a doença do professor poderia ser fatal, no caso de não tratada?
Os seus olhos cintilaram. Depois baixou a cabeça e começou a esmagar a ponta do charuto num enorme cinzeiro de cristal. Quando falou, a sua voz tornara-se surpreendentemente branda:
- Uma unha encravada pode ser fatal, se não for tratada.
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- Mas quando o professor Stonehouse deixou de o consultar estava curado?
- Estava a refazer-se - respondeu, com a nota de mau génio a voltar-lhe à voz.
- A sua doença era contagiosa?
- Que vem a ser isto? - perguntou, irritado. - Um jogo de vinte perguntas?
- Não lhe estou a pedir que me informe da doença específica, doutor. Apenas lhe perguntei se era ou não contagiosa. Olhou-me com ar manhoso, ao responder:
- Não, não era uma doença venérea. Era isso que estava realmente a perguntar, não era?
- Era, sim, doutor. Na sua opinião, qual era, de modo geral, a atitude mental do professor?
- Tratava-se de um paciente difícil e rabugento - Diz o roto ao nu... - Mas se o que pretende saber é se ele apresentava quaisquer sintomas de incapacidade mental não relacionados com a sua doença, a resposta é não.
Não se apercebeu do que acabava de me revelar: que havia sintomas de perturbação mental relacionados com o mal do professor.
- Ele alguma vez lhe deu, de alguma maneira, a impressão ou a indicação de que tencionava deserdar a mulher e a família?
- Não.
- Caracterizaria o mal do seu paciente como uma doença, doutor? Olhou para o relógio da parede e disse-me:
- Os seus cinco minutos acabaram. Adeus, Mr. Bigg.
Vesti o sobretudo na sala de espera. Já estavam três ou quatro pessoas à espera de consultarem o médico.
- Muito obrigado - disse à recepcionista, com o meu sorriso de rapazinho: nem sempre funciona, mas desta vez deu resultado e ela degelou.
- Ele é um urso, não é? - perguntou, baixinho.
- Pior - respondi, no mesmo murmúrio. - É sempre assim?
- Sempre - respondeu a rapariga, a revirar os olhos. - Escute, posso fazer-lhe uma pergunta pessoal?
- Um metro e cinquenta e oito centímetros - respondi, e acenei-lhe a despedir-me.
Parei na primeira cabina que encontrei e telefonei para o escritório. Deixei um recado a Thelma Potts, a dizer-lhe que estava ocupado com trabalho no exterior e que voltaria a ligar mais tarde, para lhe dizer quando regressaria.
Meti-me no autocarro da Broadway até à Rua 49 e fui a pé até ao prédio decrépito onde Marty tivera o escritório. O nome dele ainda estava na lista do átrio, mas quando cheguei ao nono andar a Sala 910
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estava aberta e um homem de bata e fato-macaco sujo de tinta estava ocupado a raspar, com uma lâmina, o lado de fora do painel de vidro fosco. Metade das palavras: MARTIN REAPE, INVESTIGAÇÕES PARTICULARES, já tinha desaparecido.
Parei atrás do pintor e espreitei pela porta aberta. A sala estava completamente vazia. Não havia secretária, nem cadeira, nem ficheiro, nem nada. Só paredes sujas, uma janela coberta de pó e oleado estalado no chão.
- Quer alguma coisa? - perguntou-me o pintor.
- Sabe o que aconteceu à mobília deste escritório? - pergunte ao gerente.
- O escritório está para alugar?
- Pergunte ao gerente.
- E onde encontrarei o gerente? -Lá em baixo.
- Sabe dizer-me como ele se chama ? Não me respondeu.
Ao fundo do átrio havia uma porta de aço com um quadrado de cartão preso por tachas, que dizia: ESCRITÓRIO DO GERENTE. Abri a porta com algum esforço. Um lanço de degraus de aço descia, íngreme. Desci cautelosamente, bem agarrado ao ensebado corrimão. Um corredor soturno, de paredes de cimento, seguia para a retaguarda do edifício. O tecto era um labirinto de canos e tubos. Ao fundo desse túnel, havia uma porta de madeira toda riscada.
Foi como entrar na cela de um preso. Só faltavam as grades. Tecto, paredes e chão de cimento. Ausência de janelas. O mobiliário parecia composto por coisas deitadas fora pelos inquilinos. Estavam duas pessoas no cubículo. Uma rapariga oriental muito atraente martelava numa velha Underwood e parava de vez em quando para afastar do rosto o comprido cabelo preto. Um homem baixo, escuro, estava sentado à secretária maior e falava rapidamente ao telefone, numa língua que não consegui identificar. Em cima da sua secretária havia uma barra de latão, que dizia: CLARENCE NG, GERENTE.
Nenhum dos ocupantes olhara para mim quando eu entrara. Esperei pacientemente. Mr. Ng continuou a tagarelar na sua língua incompreensível e, de súbito, mudou para inglês:
- O mesmo para você seu idiota! - gritou, e desligou o telefone com força.
Depois olhou para mim.
- Posso ser-lhe útil? - perguntou suavemente.
- Talvez me possa ajudar. Procuro Martin Reape, sala novecentos e dez. Mas o escritório está completamente vazio.
- Ah, Mr. Reape já não está connosco!
- Não? Sabe dizer-me para onde se mudou?
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- Mr. Reape não se mudou. Mr. Reape morreu.
- Morreu?! -exclamei. -Meu Deus! Quando aconteceu isso?
- Há dois dias. Mr. Reape foi colhido por uma composição do metropolitano. Era amigo dele?
- Cliente. O que me diz é terrível. Ele tinha alguns documentos muito importantes, que me pertenciam. Sabe o que aconteceu ao seu arquivo?
A sua... viúva - respondeu Mr. Ng. - Esteve aí ontem e levou tudo.
- E o senhor deixou ?
O gerente voltou as palmas das mãos para cima e encolheu os ombros.
- A viúva de um homem tem direito ao que era dele.
- Mas tem a certeza de que ela era a viúva?
- Mr. Reape devia dois meses de renda atrasados... - informou Mr. Ng, suavemente. - A mulher pagou.
- Isso não prova que fosse realmente a sua viúva - observei, irritado.
A rapariga oriental parou de escrever à máquina, mas não se voltou para olhar para mim.
- Era realmente ela - informou. - Vi-os uma vez, no átrio, e ele apresentou-ma.
- Está a ver? - perguntou Mr. Ng, triunfante. - A viúva.
- Tem, por acaso, o número de telefone dela?
- Infelizmente, não tenho.
- Então a morada?
- Também não.
- Certamente está no contrato de arrendamento dele?
- Não há nenhum contrato de arrendamento. Alugamos ao mês. -Nesse caso, procurarei na lista telefónica. Mr. Ng deixou passar apenas um segundo, antes de responder, tristemente:
- Ah, não! O telefone de Mr. Reape não vinha na lista. Agradeci a Mr. Ng e saí. Segui pelo túnel húmido e estava quase a
chegar à escada quando ouvi chamar:
- Eh, você!
Voltei-me. A rapariga oriental corria na minha direcção.
- Dez dólares - disse. -O quê?
- Dez dólares - repetiu. -Pela morada dos Reapes.
Tirou-me a nota dos dedos e corria já pelo túnel abaixo quando gritou:
- Vem na lista telefónica.
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Fiquei com poucas dúvidas de que Mr. Ng receberia a sua parte do dinheiro.
Tive de percorrer dois quarteirões para encontrar uma lista telefónica de Manhattan. Abri-a com algum nervosismo, receoso de ter sido ludibriado duas vezes. Mas estavam lá: a morada do escritório da Rua
49 e outra da Rua 93.
Na 8ª Avenida meti-me num autocarro para a parte alta da cidade, ainda furioso com a facilidade com que me tinham sido levados os dez dólares.
Os Reapes moravam na Rua Triste, entre a Sombria e a Desolada. O edifício mais alto do quarteirão parecia ser um hotel da assistência. A maioria das casas de arenito tinham sido convertidas em casas de aluguer, com as persianas das janelas descidas em vez de cortinas; e as lojas do andar térreo tinham todas montras com um emaranhado de hera poeirenta, fetos de folhas caídas e filodendros esqueléticos. Havia grafitos por toda a parte, muitos deles em espanhol. Perguntei a mim mesmo o que significaria a palavra "puta".
A casa dos Reapes era uma das melhores construções, uma estrutura de três andares de pedra cinzenta, que o tempo tornara ensebada e lascada. Pouco restava da sua elegância primitiva: uma padieira de pedra esculpida, vidro biselado nos painéis da porta e um espelho de latão trabalhado à volta do puxador.
Toquei o botão da porta ao lado do nome de M. REAPE e esperei. Nada. Tentei de novo. Continuei sem obter resposta. Tentei terceira vez, sem resultado. Quando retrocedia para o passeio, uma senhora idosa, de cabelo azulado, começava a subir os degraus. Vinha carregada com dois pesados cestos de géneros de mercearia.
- Posso ajudá-la, minha senhora? - perguntei. Olhou-me, assustada e desconfiada.
- Só até à porta da frente - expliquei. -Depois vou-me embora.
- Obrigada, meu rapaz - agradeceu, em voz fraca.
Peguei-lhe nos cestos e coloquei-os ao lado da porta interior. Quando saí, ela subira apenas três degraus, parando em cada um para tomar fôlego.
- Asma - disse, a agarrar o peito. - Está mau, hoje.
- Sim, minha senhora - murmurei, pesaroso. - A senhora saberá...
- Às vezes é como uma faca - acrescentou, a ofegar. - Corta-me de lado a lado.
- Deve ser muito doloroso, sem dúvida. Ando à procura... -Não preguei olho toda a noite. Sempre a tossir, a tossir.
- Mrs. Reape - disse, desesperado. - Mrs. Martin Reape. Mora aqui. Ando a ver se a encontro. A desconfiança voltou.
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- Que quer dela? É muito curto para ser chui.
- Não sou chui - garanti-lhe. - é a respeito do seguro do marido.
Mordeu.
- Ele deixou muito? - perguntou, num sussurro.
- Lamento, mas não lhe posso dizer. Estou certo de que compreenderá. Mas penso que Mrs. Reape ficará contente por me ver.
- Bem... - a idosa senhora fez um trejeito desdenhoso.
- Segundo me consta, ela não está o que se chama pesarosa... Ou me engano muito, meu rapaz, ou encontra-a no Dirty Shame. É um bar no quarteirão seguinte, na direcção da Broadway.
O Dirty Shame constava de uma sala comprida e razoavelmente limpa, com algumas mesas e compartimentos ao fundo. Mas a maior parte da acção passava-se ao balcão. Quando entrei, não me restaram dúvidas de que havia festa. Estavam presentes pelo menos quarenta homens e mulheres.
O ar estava coalhado de fumo e o barulho era constante - gritos, gargalhadas, fragmentos de canções - e parecia travar uma competição com a máquina de discos automática, que tocava uma ruidosa jiga irlandesa. Dois empregados atendiam a freguesia e o tampo do balcão estava encharcado. Um corpulento celebrante, de rosto avermelhado, passou um braço pelos meus ombros.
- Amigo do Marty? - perguntou.
- Bem, na realidade, estou...
- Venha para aqui - gritou, a empurrar-me para o balcão. - é por conta da Blanche.
Estenderam-me um copo de cerveja por cima das cabeças dos que se encontravam à minha frente. O meu novo amigo deu-me uma cordial palmada nas costas e metade da minha cerveja entornou-se. Depois afastou-se, para dar as boas-vindas a outro recém-chegado.
Era uma malta barulhenta, a que enchia o Dirty Shame. Pareciam conhecer-se todos uns aos outros. Andei lentamente pelo meio da multidão, à procura da viúva.
Encontrei-a finalmente, rodeada por um círculo de pranteadores que tentavam lembrar-se da letra de When Irish Eyes are Smiling. Era uma mulher gorda, com uma trunfa cor de cenoura e muito pintada. Naquele momento tinha um bigode branco de espuma de cerveja. O seu trajo de viúva era de um tecido fino e brilhante, que parecia prestes a rebentar pelas costuras e tão decotado que revelava a onda exuberante de um seio sardento fartamente empoado.
- Mrs. Reape - disse eu, quando ela fez uma pausa para respirar. -Gostaria de lhe exprimir os meus...
- O quê? - gritou ela, inclinando-se para mim do tamborete onde estava sentada. -Não consigo ouvi-lo com este caraças deste barulho.
- Desejo dizer-lhe quanto lamento...
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- Claro, claro - interrompeu-me, a dar-me palmadinhas no ombro. - Muito simpático. Mas o seu copo está vazio! Tim, traz uma grande para aqui! Era amigo do Marty?
- Bem, na verdade era seu cliente.
Talvez fosse imaginação minha, mas pareceu-me que o sorriso dela se petrificou e transformou numa careta, de lábios húmidos esticados a revelar uns dentes tão perfeitos que não deviam ser naturais.
- Um cliente? - repetiu. -Bem, ele não tinha muitos. Começou a voltar-se e eu continuei a falar impetuosamente, com
medo de perder a sua atenção:
- Mrs. Reape, fui ao escritório do seu marido, mas foi tudo...
- Sim, eu limpei aquilo - interrompeu-me, com naturalidade. - Ele tinha lá uma data de tralha que me rendeu uns dólares no trapeiro.
- Mas e os registos, os arquivos? - perguntei. - Ele tinha lá um importante documento meu.
- Sério? - perguntou, de olhos muito abertos. - Jesus, sinto muito. Deitei tudo para o lixo, a noite passada.
- Nesse caso, deve estar nos latões do lixo, defronte da sua casa? - perguntei, esperançado.
- Não está nada - respondeu, a olhar para mim. - Recolheram tudo esta manhã, cedo. A esta hora, toda aquela papelada já está no incinerador municipal.
- Lembra-se se...
Mas nessa altura fui afastado do caminho, por alguém que avançava à força de ombros.
Deixei a caneca em cima de uma mesa e saí do Dirty Shame tentando dar o menos possível nas vistas.
Telefonei para o escritório. Yetta Apattof informou-me de que ninguém me procurara.
- Josh, viu a camisola de que lhe falei por acaso? - perguntou. Respondi-lhe que a vira e achara encantadora.
- Mas é tão atrevida - disse, às gargalhadinhas. - Quero dizer, não deixa trabalho nenhum à imaginação.
- Oh, não concordo. Escute, Yetta, se alguém perguntar por mim, só volto depois do almoço. Está bem?
- com certeza, Josh. O verde é realmente a minha cor, não acha?
Consegui, por fim, largar o telefone.
Cheguei à Rua 74, oeste, adiantado. Instalei-me do lado da rua oposto ao do consultório do Dr. Morris Stolowitz e mais para baixo, na direcção da Columbus Avenue. A recepcionista ruiva saiu poucos minutos depois do meio-dia. Atravessei a rua num instante e caminhei direito a ela.
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Levantei a cabeça, com um sobressalto de surpresa. Depois parei e levei a mão ao chapéu.
- Voltamos a encontrar-nos - comentei, a sorrir. Ela parou também e olhou para mim.
- Oh, é Mr. Bigg! - exclamou. - Espero que não tenha ficado ofendido, esta manhã... Quando lhe fiz uma pergunta pessoal, lembra-se?
- Não fiquei nada ofendido - garanti-lhe. - As pessoas fazem constantemente comentários a respeito do meu trabalho. De certo modo, é uma vantagem... Nunca se esquecem do meu apelido.
- Nem do meu. Não que o meu seja tão importante... Mas as pessoas estão sempre a gracejar por causa dele.
- Qual é o seu apelido? -Peacock, Ardis Peacock.
- Ardis Peacock? É um nome encantador. E o pavão é uma bonita ave.
- Pois é, com um grande rabo. Mora por aqui?
- Não, andei apenas a tratar de uns negócios. Mas comecei a ficar com fome e pensei em comer qualquer coisa. Há alguns lugares bons para comer nas imediações?
- Muitos. Há um McDonald's na esquina da Rua Setenta e Um com a Amsterdam, e um Bagel Nosh do lado oriental da Broadway. Mas eu geralmente contorno a esquina para a Columbus Avenue. Há lá toda a espécie de restaurantes: mexicanos, indianos, chineses, tudo.
- Parece tentador. Importa-se que a acompanhe?
- Faça favor.
Seguimos na direcção da Columbus.
- Já pensou em usar sapatos especiais, elevadores?
- Oh, pensar já pensei! Mas só me aumentariam uns três a cinco centímetros, o que não chegaria para fazer verdadeira diferença. Do que preciso é de umas andas.
- Sim, é uma pena. Quero dizer, para aqui estou eu com uma altura destas, que considero uma chatice. Você devia ser mais alto e eu devia ser mais baixa. Mas que havemos de fazer?
- Você suporta bem a altura. Tem uma boa postura e é esbelta. Como um manequim.
- Acha? - perguntou, satisfeita. - Não está a brincar? Comemos no Cherry Restaurante, na Columbus Avenue, entre a
Rua Setenta e Cinco e a Rua Setenta e Seis. Ardis pediu creme de camarão e lagosta e eu comi presunto e ovos mexidos com fritos.
- O seu patrão fez-me passar um mau bocado, esta manhã- observei, casualmente.
- Não se preocupe com isso. Ele é assim com toda a gente. Especialmente comigo. Às vezes penso que anda com ardores por mim...
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- Mostra que tem mais juízo do que eu pensava - comentei.
- Eh, eh! - exclamou, ao mesmo tempo que se virava e me empurrava de brincadeira, quase me fazendo cair do banco. - Mas afinal do que se trata? Daquele tal Stonehouse que mencionou pelo telefone?
- Exactamente. Foi doente do doutor Stolowitz em Outubro e Novembro do ano passado. Lembra-se dele?
- Se me lembro dele! Era cá um chato! Sempre a queixar-se por tudo e por nada. Ou porque tinha de esperar, ou porque na sala estava demasiado frio, ou porque os charutos do doutor empestavam tudo... Era mesmo chato.
- Stolowitz pode considerar-se feliz por não ter sido processado. O tipo anda sempre a processar alguém.
- Processou-o a si?
- A mim não, pessoalmente, mas talvez processe a firma para quem trabalho. - Depois lancei-me na descrição do cenário que tinha inventado: - Sou investigador da secção de indemnizações de uma companhia de seguros de saúde. A Isley Insurance. Já ouviu falar de nós?
- Não posso dizer que tenha ouvido...
- Somos uma firma pequena - admiti. - Especializámo-nos na cobertura do ramo de saúde dos corpos docentes de instituições educacionais. Sabe a que me refiro: escolas, faculdades, universidades... Apólices de grupo. Bem, o tal Stonehouse ensinava na Universidade de Nova Iorque. Agora está reformado, mas continua coberto pela apólice, pois paga os prémios pessoalmente. Está a comprender?
- Oh, com certeza! Preencho todos os impressos da Medicare do Stolowitz. É uma grande chatice.
- Concordo. Como deve saber, quando preenche esses impressos tem de indicar a natureza da doença... Não é verdade?
- Claro. Sempre.
- Pois o tal Stonehouse recusa-se a dizer o que teve. Afirma que o assunto só a ele diz respeito e que perguntar-lhe semelhante coisa é uma invasão da sua intimidade.
- é chalado! -explodiu.
- Absolutamente. Não tenha dúvidas a esse respeito. Recusou-se a dizer à Medicare e, por isso, rejeitaram-lhe o pedido de indemnização. Agora está a processá-los.
- A processar a Medicare? - perguntou, aparvalhada. - Mas isso é o Governo dos Estados Unidos!
- Exactamente. E é ao Governo dos Estados Unidos que ele está a processar. Pode-se acreditar em semelhante coisa?
- É irreal.
- De qualquer modo, também pediu uma indemnização à minha companhia, a Isley Insurance. Mas não quer igualmente dizer-nos qual
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foi a sua doença. Por isso, naturalmente, o pedido foi rejeitado e ele agora vai processar-nos. Vamos defender-nos, claro, mas a coisa arrastar-se-á e custará uma quantidade de dinheiro. com advogados e tudo o mais. Por esse motivo, preferíamos chegar a um acordo com ele. Quer alguma sobremesa?
- Mousse de chocolate - respondeu imediatamente.
Bebi outra chávena de café e depois de ela ter devorado a mousse acendi-lhe um cigarro. Trago sempre fósforos comigo, para os cigarros dos outros.
- Por isso, fui ter com o Stolowitz - prossegui-, na esperança de que talvez me dissesse o que teve o Stonehouse. Mas levei uma grande sopa.
- Claro. é confidencial, entre ele e os doentes. Eu e as enfermeiras temos ordens rigorosas para não falar a respeito dos cadastros dos doentes. Como se alguém quisesse falar disso! Aquele consultório causa-me calafrios. Acredite, não tem graça nenhuma trabalhar sempre com gente doente.
O criado colocou contas separadas à nossa frente, mas eu agarrei nas duas.
- Eh - protestou Ardis Peacock, com pouco entusiasmo-, pagamos a meias!
- Nem pensar nisso - respondi, indignado. - Convidei-a para almoçar.
Regressámos a pé, devagar, na direcção do consultório.
- Esta história do Stonehouse tem-me encalhado - queixei-me, a abanar a cabeça. - Só precisamos de saber a natureza da doença que ele teve. Quando soubermos, poderemos andar para a frente com a questão da indemnização. Ainda por cima, agora teremos de nos defender da acção que intentou contra nós.
Olhei-a de soslaio, mas ela não parecia ter percebido.
- Quem me dera que houvesse uma maneira qualquer de dar uma olhadela à sua ficha - continuei, preocupado. - É só disso que precisamos. Não precisamos da ficha; só temos necessidade de a ver, para sabermos qual foi a sua doença.
Bastou. Ela agarrou-me no braço.
- Isso pouparia muito dinheiro à sua companhia? - perguntou, em voz baixa. -Saber, apenas, porque esteve o Stonehouse doente?
- Sim, é só disso que precisamos.
- Seria, enfim, confidencial?
- Eu seria o único a saber de onde viera a informação - afirmei. - A minha companhia não quer saber como nem onde arranjo as informações, desde que as arranje.
Demos mais alguns passos em silêncio.
- Pagaria para a obter? - perguntou, hesitante. - Quero dizer,
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estou constantemente a mexer naquelas fichas, faz parte do meu trabalho.
Queria quinhentos dólares. Respondi-lhe que a minha companhia não iria além dos cem dólares, alheia à inflação e ao facto de as pessoas terem de viver, fosse como fosse.
- Tudo quanto quer saber é qual foi a doença dele, não é verdade? -Exactamente.
- Está bem - acedeu. - Sejam cem. Agora?
- Cinquenta agora e cinquenta quando me der a informação.
- Combinado. - Sorriu, quando lhe entreguei discretamente a primeira prestação. -Terá notícias minhas.
com um aceno alegre, Ardis seguiu para o trabalho e eu fiz sinal a um táxi para me levar ao East Side.
Capítulo nono
Parei no passeio defronte da residência Kipper na Rua 82, leste, entre a 5ª Avenida e a Madison. A oeste, via-se o Museu Metropolitano. A leste, a rua prolongava-se numa imponente sucessão de fachadas de residências, embaixadas, consulados e fundações prestigiosas. Ali não havia problemas de recolha de lixo. Estava tudo limpo. Também não havia grafitos.
A residência Kipper era uma estrutura impressionante de pedra cinzenta, com uma entrada emoldurada por ferro forjado. Tinha grandes janelas de sacada curva no segundo e no terceiro andares, com os vidros arqueados. Perguntei a mim mesmo quanto custaria substituir um vidro. Acima do quinto andar havia uma cornija pesadamente ornamentada e, acima dela, um telhado de mansarda, de cobre baço.
Um beco estreito separava a residência Kipper do edifício seguinte, do lado leste. Tinha uma cancela de ferro e uma pequena chapa de latão brilhante, que dizia: ENTREGAS. Pensei se não me mandariam ir ' de volta, pela entrada de serviço.
Apesar do conselho do detective Stilton, decidira não tentar alegar que a minha visita se relacionava com o seguro de Sol Kipper. Isso seria com certeza tratado por investigadores da respectiva companhia, e eu não tinha nem a documentação nem os conhecimentos necessários para tentar a personificação com êxito.
Toquei à campainha existente do lado de fora da porta de ferro gradeada. O homem que abriu a porta interior de carvalho trabalhado quase enchia a abertura. Era imenso, um dos homens mais gordos que
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jamais vira. Não era nem branco nem preto, mas sim de uma tonalidade bege. Parecia o homem de pneus da Michelin ou um daqueles bonecos de borracha inflados que, quando os atiramos ao chão, voltam a pôr-se de pé - um sempre-em-pé. Não me pareceu, porém, que tal lhe acontecesse se o atirassem ao chão. Seria necessário um guindaste para o levantar.
- Que deseja o senhor? - A sua voz era suave, líquida, com a cadência característica das índias Ocidentais.
- Chamo-me Joshua Bigg e sou empregado da firma Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum, que são os advogados de Mrs. Kipper. Ficaria grato se Mrs. Kipper me dispensasse um pouco do seu tempo, se estivesse em casa.
Fitou-me com olhos metálicos, salientes como colheres de chá. Aparentemente, concluiu que eu não era um assassino ou terrorista potencial, pois...
- Queira esperar, senhor. Um momento...
Fechou a porta e eu fiquei à espera, ao frio. Fiel à sua palavra, voltou passado um momento e desceu a pequena escada, para abrir a porta de ferro. Tinha pés e mãos inesperadamente pequeninos e movia-se de modo lento e fastidioso, como se considerasse ordinária a acção física.
Conduziu-me a um átrio de entrada de mosaicos, que tinha a altura de dois andares e tamanho suficiente para acomodar o pessoal de um circo. Uma escada larga subia, curva, à esquerda. Havia portas duplas de ambos os lados e um corredor que conduzia às traseiras da casa. O átrio estava decorado com árvores vivas, em grandes vasos, e um enorme Cupido de bronze com a seta apontada para mim.
O mordomo aceitou o meu sobretudo e o meu chapéu, mas eu não larguei a pasta. Levou-me depois para a esquerda, bateu uma vez, abriu as portas e mandou-me entrar.
Não se tratava obviamente da sala de estar formal; devia ser uma sala onde a família se reunia, ou coisa no género. Era impossível tornar um aposento daquele tamanho aconchegado ou íntimo, mas o decorador tentara-o, recorrendo ao estratagema de colocar mesas e cadeiras em grupos. O mais que conseguira fora dar-lhe o aspecto de uma sala de jogos de um clube popular. Mas era alegre, com cores vivas, gravuras de flores nas paredes e o que pareceu, ao meu olhar destreinado, um Cézanne original por cima da prateleira da chaminé.
Naquela caverna encontravam-se duas pessoas. Quando me encaminhei na sua direcção, o homem levantou-se e a mulher continuou sentada, a enfiar um cigarro numa boquilha de ouro.
Repeti o meu nome e os dos meus patrões. O homem deu-me um aperto de mão firme e seco.
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- Mr. Bigg, é um prazer - afirmou. - Eu sou Godfrey Knurr e esta senhora é Mrs. Kipper.
Pus no chão a pasta que carregara todo o dia e avancei para acender o cigarro à dama.
- Prazer em conhecê-la, minha senhora - murmurei.
- Obrigada - respondeu, e estendeu a mão esguia e branca. - Não se quer sentar, Mr. Bigg? Não, aí não. Essa cadeira é do Godfrey.
- Oh, Tippi! - protestou o homem, em voz risonha. - Qualquer cadeira serve. O que não falta são cadeiras.
Mas eu não me sentei na cadeira dele. Escolhi uma mais perto do pequeno lume que ardia na lareira e que estava colocada de modo que poderia olhar para ambos sem me voltar.
- Tem uma linda casa, Mrs. Kipper - elogiei. - Tira a respiração!
- Parece mais a estação Grand Central - observou Knurr, com o seu jeito irónico, e depois acrescentou exactamente o que Perce Stilton dissera: - Um terrível desperdício de espaço.
Mrs. Kipper soltou uma gargalhada breve, que soou quase como um ladrido.
- Sabe, Mr. Bigg, Mr. Knurr é pastor, o reverendo Godfrey Knurr. Trabalha muito com os pobres e já insinuou diversas vezes que seria um acto de caridade cristã se eu consentisse que uma tropa fandanga dos seus maltrapilhos vivesse na minha encantadora casa.
- A começar por mim - disse Knurr, solenemente, e riram-se ambos; eu sorri cortesmente.
- Minha senhora, espero que me perdoe não ter telefonado antes, mas encontrava-me nas imediações, a tratar de outros assuntos da firma, e aproveitei a oportunidade para a visitar. Se deseja a confirmação de que sou quem alego ser, sugiro-lhe que telefone a Mr. Tabatchnick.
- Oh, não creio que seja necessário! - respondeu, indolente. - Como está o querido Leonard?
- Leopold, minha senhora. Está bem de saúde e cheio de trabalho, como sempre.
- -com aquele seu estranho passatempo? De que se trata?... Selos de correio, criação de peixes ou coisa parecida?
- Peixes tropicais, minha senhora - respondi, vencendo sem dificuldade os seus testes.
- Ah, claro! Peixes tropicais. Que estranho passatempo para um advogado. Seria natural que preferisse mascotes mais enérgicas.
- Alguns deles são muito agressivos, Mrs. Kipper. Beligerantes, mesmo.
Apercebi-me de que o reverendo Knurr me observava atentamente, como se perguntasse a si mesmo se as minhas palavras significariam
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mais do que diziam. Claro que não era essa a minha intenção. não sou tortuoso a tal ponto.
- Bem - redarguiu Mrs. Kipper-, estou certa de que não veio cá para falar dos peixes de Mr. Tabatchnick. Porque veio ao certo, Mr. Bigg?
- A minha visita relaciona-se com o espólio do seu falecido marido, minha senhora - respondi, e olhei na direcção de Godfrey Knurr.
- Tippi, prefere que eu não esteja presente? - perguntou o reverendo. - Se se trata de alguma coisa confidencial, assuntos de família, posso transferir-me para a cozinha e tagarelar um bocado com o Chester e a Perdita.
- Que disparate! Estou certa de que não se trata de nada que não possa ouvir. Mr. Bigg, Godfrey é um amigo íntimo há muitos anos e tem ajudado muito desde a morte do meu marido. Pode falar à vontade na sua presença.
- Sim, minha senhora - concordei, submisso. - Aliás, não se trata de nada de confidencial. Presentemente, os seus advogados estão a tentar atribuir um valor global provisório ao espólio do seu defunto marido. Esse valor inclui acções, obrigações, investimentos vários, bens pessoais, etc. O objectivo de tal esforço é apresentar às competentes autoridades federais e estaduais um número para computação do imposto de transmissão.
- Godfrey? - perguntou, a olhar para o reverendo.
- Sim, está correcto - confirmou ele. - Entregar a César o que é de César. Neste caso, Tippi, receio que vá ficar desagradavelmente surpreendida com as exigências de César.
- Bem, gostaríamos que o nosso cálculo dos bens fosse tão exacto quanto possível - continuei. - Às vezes sucede que o Serviço de Rendimento Interno e o Departamento de Impostos Estadual fazem cálculos do valor de um espólio que estão, digamos, em contradição com os dos advogados que apresentam o testamento para ser executado.
- Quer dizer que são mais elevados - comentou o pastor Knurr, com o seu riso bem disposto.
- Frequentemente - concordei. -Como é natural, na nossa qualidade de advogados dos interessados, desejamos manter os impostos de transmissão no seu mínimo legal. Foi-me confiada a tarefa de determinar o valor desta casa, do seu mobiliário e dos bens pessoais do seu falecido marido.
Knurr recostou-se na poltrona. Tirou um cachimbo e uma bolsa de tabaco da algibeira lateral do casaco. Começou a encher o fornilho e a comprimir o tabaco com a ponta romba do indicador.
- Isso é interessante - comentou. - Como determina o valor de uma casa como esta, Mr. Bigg?
Aquela era fácil.
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- Pelo valor corrente do mercado - respondi prontamente. - Quanto seria lícito esperar receber se ela fosse posta à venda. Outros factores seriam a tributação de propriedades corrente e a comparação com o valor de outras casas das imediações. No tocante a mobiliário, as coisas tornam-se um pouco mais complicadas. Gostaríamos de basear a nosa avaliação no preço de custo original menos a depreciação- compreendem, para manter o valor total o mais baixo possível-, mas o SRI geralmente insiste em basear-se no valor de substituição. E esse, nestes tempos de inflação, pode às vezes ser muito mais elevado do que o custo original.
- Também me parece - disse Mrs. Kipper, vivamente. - Muitas das minhas bonitas coisas não poderiam ser agora compradas pelo dobro do que paguei por elas. E algumas não podem pura e simplesmente ser substituídas por preço nenhum.
- Tippi - aconselhou Knurr, a puxar com força o fumo do cachimbo, para o acender bem-, não diga isso à gente dos impostos!
Fiz uma pausa, a olhá-lo, enquanto ele continuava às voltas com o cachimbo, até obter plena satisfação. Consumiu nisso três fósforos. O seu tabaco cheirava a frutos e vinho.
O reverendo Knurr media poucos centímetros menos do que um metro e oitenta. Era um homem atlético, que enchia bem os ombros e as mangas do grosso casaco de tweed. Usava calças de flanela cinzentas e mocassins castanho-avermelhados, e vestia camisa de xadrez de algodão sem gravata, mas toda abotoada, o que não a impedia de revelar um pescoço forte e encordoado. Tinha mãos quadradas, de dedos curtos.
O cabelo e a barba eram cor de ardósia. A segunda cobria-lhe apenas o bigode e o queixo, era cortada a direita, na base, e cuidadosamente aparada à volta dos lábios cheios e quase rosados. Tinha olhos castanhos firmes e nariz ligeiramente arqueado. Não era um rosto convencionalmente belo, mas antes atraente, de uma maneira máscula e agreste. Um rosto vivido. Calculei que teria quarenta e poucos anos, sendo portanto cerca de dez anos mais novo do que Mrs. Kipper. Movimentava-se bem, quase atleticamente, e tinha porte erecto e gestos enérgicos.
Dediquei de novo a minha atenção à viúva.
- A missão de que fui incumbido torna necessário que proceda a um inventário completo do mobiliário. Não espero fazer isso hoje, evidentemente. Pode levar alguns dias. Farei todo o possível para lhe não causar inconvenientes, minha senhora, e tentarei passar o mais despercebido possível enquanto cá estiver. Hoje espero apenas proceder a uma avaliação preliminar, contar o número de divisões e avaliar qual será a melhor maneira de proceder ao inventário. Acha aceitável, Mrs. Kipper?
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- Que maçada! - exclamou, aborrecida. - Quem me dera ver tudo isto acabado.
Tirou outro cigarro de uma caixa de porcelana que estava em cima da mesa, a seu lado. Levantei-me logo e apressei-me a acender-lho.
- Obrigada - agradeceu, a olhar-me, divertida. - É muito cortês. Não fuma ?
- Não, minha senhora.
- Bebe?
- Ocasionalmente. Sobretudo vinho.
- Por amor do teu estômago - comentou Knurr, no seu vozeirão.
- Aceitaria um copo de vinho agora, Mr. Bigg?
- Oh, não, Mrs. Kipper, obrigado! Do que gostaria realmente era de iniciar a minha inspecção preliminar.
- Daqui a bocadinho - respondeu-me ela. - Há quanto tempo trabalha com Mr. Tabatchnick?
- Há cerca de seis anos.
- Casado?
- Não, minha senhora.
- Não? - repetiu, e arregalou os olhos, teatralmente. - Temos de fazer alguma coisa para remediar isso!
- Tippi - disse Godfrey Knurr, a gemer-, não comeces outra vez a armar em casamenteira.
- Que mal há nisso? - perguntou, agastada. - O Sol e eu fomos tão felizes juntos, que quero que toda a gente também o seja.
Godfrey Knurr piscou-me o olho.
- Acautele-se connosco, Mr. Bigg - recomendou-me, a rir. - A Tippi reúne-os e eu caso-os. É uma sociedade.
- Oh, Godfrey! - murmurou Mrs. Kipper. - Faz com que pareça tudo tão... tão a sangue-frio.
- Sangue-frio... casamento quente - comentou ele. - Um antigo provérbio grego.
- Que você acaba de inventar.
- É verdade - concordou ele, e desta vez riram-se ambos. -Gostaria de saber se posso... - comecei a dizer.
- Se não toma uma bebida, Mr. Bigg - interrompeu-me a viúva-, creio que o reverendo e eu tomamos. O costume, Godfrey?
- Se fizer o favor.
Olhei para ele e pareceu-me que encolheu os ombros com certa resignação.
Não acreditei que Mrs. Kipper estivesse deliberadamente a levantar obstáculos. Deixar-me-ia inspeccionar a casa, mas quando muito bem entendesse. Queria tornar-me perfeitamente claro que era a dona da sua casa e que os seus desejos eram leis, por muito pateta ou caprichosa
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que os outros pudessem julgá-la. Por isso, esperei pacientemente, enquanto serviam as bebidas.
Mrs. Kipper premiu um botão existente ao fundo de uma comprida extensão de fio. Esperámos em silêncio que o obeso mordomo entrasse serenamente na sala.
- Minha senhora? - perguntou.
- Bebidas, Chester. O costume para o reverendo e para mim. Mr. Bigg não bebe.
- Sim, minha senhora - disse o homem, gravemente, e saiu em silêncio. Atendendo ao seu tamanho, andava com uma leveza extraordinária e os seus movimentos eram quase delicados.
Enquanto ele esteve ausente, Mrs. Kipper começou a falar da antestreia de uma exposição de arte numa galeria da Madison Avenue a que assistira na noite anterior. Embora olhasse de vez em quando para mim, a incluir-me ostensivamente na conversa, a maioria das suas observações eram dirigidas a Knurr. Por outras palavras, não me ignorava, mas esforçava-se pouco para me tratar de maneira diferente da que era devida a um empregado pago, com quem se podia ser cortês sem ser cordial. Não me importei nada com isso; deu-me a possibilidade de a observar.
Era loura-prateada, bonita de uma maneira espampanante, com o cabelo meticulosamente penteado para cima. Não se via uma ponta solta, nem um só cabelo fora do lugar. Tinha uma figura verdadeiramente excelente e juvenil: braços delgados e belas pernas, artificiosamente revelados pelo vestido curto e sem mangas, de veludo castanho-claro. O nariz era pequeno e perfeito e os olhos de gata, de uma tonalidade esverdeada. Os lábios finos tinham sido habilmente pintados com dois tons de carmim, para parecerem mais cheios.
Era um rosto fresco, sem rugas, com a pele esticada sobre os pómulos salientes. Perguntei a mim mesmo se aquele rosto sem vincos e aquele nariz perfeito deveriam alguma coisa à perícia de um cirurgião plástico. Ela mantinha o queixo pontiagudo ligeiramente elevado, e mesmo quando se ria parecia ter cuidado, não fosse alguma coisa partir-se.
Pensei que deveria ser uma inimiga brutal e vingativa.
Chester entrou com as bebidas. Pareceram-me ser um uísque com soda para Knurr e um martini seco simples para Mrs. Kipper. Ela falou antes de o mordomo sair da sala:
- Chester, Mr. Bigg deseja inspeccionar a casa, de alto a baixo. Quer fazer o favor de o acompanhar? Mostre-lhe tudo quanto ele desejar ver.
- Sim, minha senhora.
Levantei-me apressadamente e peguei na pasta.
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- Mrs. Kipper, obrigado pela sua amabilidade e pela sua hospitalidade. Aprecio a sua colaboração. Mr. Knurr, foi um prazer conhecê-lo.
Ele levantou-se, para me apertar a mão.
- Espero voltar a vê-lo, Mr. Bigg- disse. - Felicidades no seu inventário.
- Muito obrigado.
Saí da sala atrás do volume montanhoso de Chester. Ele fechou as portas depois de sairmos, mas não antes de eu ouvir o riso, rapidamente abafado, de Mrs. Tippi Kipper e do reverendo Knurr.
O mordomo parou no átrio de entrada e voltou-se para mim.
- O senhor deseja ver todas as divisões?
- Por favor. vou fazer um inventário do mobiliário. Não hoje, mas sim durante vários dias. Por isso, vai ver-me muitas vezes. Tentarei não incomodar muito.
Olhou-me, intrigado.
- Para avaliar o valor dos bens - expliquei. - Por causa dos impostos.
- Ah, sim! - murmurou, a acenar com a cabeça. - Muitas coisas bonitas e caras. Verá. Por aqui, faça favor.
Conduziu-me ao longo de todo o corredor do fundo do átrio. Parou diante de uma porta convencional e abriu-a. Deparou-se-me uma porta de aço articulada e um pequeno elevador. Chester abriu a porta articulada, deixou-me entrar e entrou a seguir. Fechou a porta articulada e a exterior fechou-se automaticamente. Apercebi-me logo do cheiro adocicado da sua água-de-colónia. O mordomo premiu um botão, acendeu-se uma luz e começámos a subir devagar.
- Há quanto tempo está com os Kippers? - perguntei, curioso.
- Há dezassete anos, senhor.
- Então conheceu a primeira Mrs. Kipper?
- Conheci, de facto. Uma senhora encantadora. As coisas... Calou-se, porém, e não disse mais nada, de olhos fixos na porta articulada.
O elevador parou bruscamente. Chester correu a porta de aço e abriu a exterior. Saiu e segurou-a para eu passar.
- O quinto andar, senhor. Olhei à minha volta.
- A escada principal não chega cá acima?
- Não, senhor. A escada principal pára no quarto andar. Mas há, uma escada de serviço, mais pequena, que sobe até cá acima. E o elevador, claro.
Abri a pasta, tirei o livro de apontamentos e preparei-me para começar a tomar o que esperava parecessem apontamentos oficiais.
Estava na sala de festas que o detective Stilton me descrevera, uma
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única divisão que ocupava toda a metade da frente do edifício. Reparei na existência de mesas e cadeiras de bar, um televisor gigante, equipamento de alta fidelidade, uma área central desimpedida obviamente para dançar, um projector de filmes, etc.
- Esta sala é utilizada para receber? - perguntei. -Exactamente, senhor.
- E aquelas duas portas?
- Aquela dá para a escada de serviço e aquela para um lavabo- respondeu-me, e disse labavo.
- Mrs. Kipper recebe muito?
- Desde que Mr. Kipper faleceu, não, senhor. Mas já disse que vai recomeçar. Está planeado um jantar volante para a semana que vem.
Pareceu-me detectar uma nota de desaprovação na sua voz, mas quando olhei para ele encontrei-o a fitar o espaço, com aqueles olhos opacos, inexpressivos como os de um cego.
Dirigi-me para o fundo da sala. Dois conjuntos de portas-janelas abriam para o terraço. Vi as plantas envasadas, as árvores e o mobiliário de exterior que Stilton mencionara. Experimentei o puxador de uma das portas. Estava fechada à chave.
- Mrs. Kipper ordenou que essas portas se mantivessem fechadas à chave - explicou Chester, em tom sepulcral. - Depois do acidente.
- Posso dar uma rápida vista de olhos lá fora, por favor? Só por um momento.
Hesitou, mas depois resolveu-se:
- Como o senhor desejar.
Trazia uma pesada argola de chaves presas a uma corrente fina, suspensa do cinto. Escolheu sem hesitar uma chave de latão e abriu a porta. Saiu para o terraço atrás de mim. Dei uma volta, enquanto tomava apontamentos rápidos: 4 mesas de ext., 8 cad., mesa de cockt., 2 cad. de rep., 2 mes, lat, plantas, árvores, etc.
Dirigi-me para o fundo do terraço. O muro de cimento tinha sido pintado de novo, recentemente.
- Foi aqui que se deu o acidente? - perguntei.
Acenou estupidamente com a cabeça. Pareceu-me que empalidecera, mas devia ter sido a crua luz exterior que lhe batera no rosto.
Inclinei-me cautelosamente e olhei para baixo. Ignorei o que Perce me tinha dito. Pareceu-me muito alto e que ninguém sobreviveria a uma queda daquela altura.
Directamente em baixo ficava o pátio do rés-do-chão, com mais mobiliário de exterior, e ao fundo via-se um pequeno jardim, agora seco e desolado. O pátio estava pavimentado com mosaicos, como me fora descrito. Vi a área onde Sol Kipper aterrara, pois os mosaicos partidos pela sua queda tinham sido substituídos por outros reluzentemente novos.
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Creio que compreendi pela primeira vez o que estava a fazer. Não estava apenas a tentar deslindar um quebra-cabeças abstracto; estava a tentar determinar como um ser humano encontrara a morte. Aquele jardim emurchecido, aqueles mosaicos partidos, a queda através do espaço vazio... Tudo isso me parecia agora real. A figura escura a cair com um movimento giratório, de braços e pernas estendidos, o vento a bater-lhe no vestuário, o solo a subir rapidamente, o choque terrível...
- Ele gritou? - perguntei em voz baixa.
- Não, senhor - respondeu Chester, em voz tão baixa como a minha. -Não ouvimos nada até o pobre homem embater no chão.
Tive um arrepio.
- Está frio cá fora - disse. -Vamos para dentro. Aparentemente, Chester não gostava de utilizar escadas, para subir
ou descer, pois fomos de elevador para o quarto andar.
- Neste andar - informou o mordomo - temos o quarto principal, com duas casas de banho, e o quarto de vestir de Mrs. Kipper. A criada também tem os seus aposentos neste andar, para poder servir melhor Mrs. Kipper. Além disso, Mr. Kipper tinha aqui um pequeno gabinete particular. Como o senhor pode ver, a escada principal termina aqui.
Percorremos todas as divisões, ou pelo menos demo-lhes uma vista de olhos, enquanto eu tomava notas apressadas. Interessou-me especialmente o quarto principal, uma enorme sala com mobiliário rústico francês cor de creme, decorado com trepadeiras e flores pintadas. Duas casas de banho comunicavam com o quarto e outra porta dava acesso ao quarto de vestir de Mrs. Kipper.
Este último era uma área mais ou menos quadrada com um espelho triplo de corpo inteiro, uma cadeira de repouso forrada de cetim cor-de-rosa, um toucador cheio de coisas e com o espelho contornado por lâmpadas eléctricas, um telefone antigo numa mesa dourada e um carro de bronze com uma pequena selecção de garrafas, copos e diversos acessórios de bar. Duas das paredes do quarto eram constituídas por portas articuladas, tipo gelosia.
- O guarda-vestidos de Mrs. Kipper - informou Chester.
- O senhor deseja vê-lo?
- Oh, não! -apressei-me a responder. - Não é necessário. -Cem pares de sapatos - observou o mordomo, secamente.
No quarto andar havia dois quartos não utilizados. Um, explicou Chester, tinha sido o quarto das crianças, e o outro tinha sido a sala dos brinquedos.
- Antes do seu tempo, suponho - comentei.
- Sim, senhor - confirmou Chester, gravemente. - Nessa altura, o meu pai estava ao serviço da família Kipper.
Olhei-o com novo interesse.
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- Qual é o seu último nome, Chester?
- Heavens (*).
Ao princípio supus que se tratara de uma exclamação de surpresa, mas depois ele disse: "Chester Heavens, senhor", e eu compreendi que tínhamos mais alguma coisa em comum.
- A criada é Perdita Schug- prosseguiu - e Mrs. Bertha Nekcin é a nossa cozinheira e governanta. Este é o pessoal permanente. Temos, os três, os nossos aposentos aqui. Além disso, vem duas vezes por semana uma equipa de limpeza e todas as manhãs, durante algumas horas, um porteiro vem recolher o lixo, tratar de trabalhos de manutenção e outras coisas dessa natureza. Contrata-se pessoal temporário à medida das necessidades, em ocasiões especiais: grandes jantares, festas, bailes, etc.
- Obrigado, Chester. - Depois, para o convencer de que não estava interessado em informações ou mexericos estranhos à minha missão, acrescentei:
- O mobiliário dos aposentos do pessoal permanente pertence a Mrs. Kipper?
- Oh, sim, senhor! A mobília é dela. Nós temos alguns objectos pessoais: retratos, rádios, bricabraque... coisas desse género.
- Compreendo - declarei, enquanto tomava notas rápidas. Descemos, via elevador, ao terceiro andar. Esse piso, segundo
Chester me disse, estava totalmente desabitado. Mas todas as divisões estavam mobiladas e todas as portas fechadas apenas no trinco. Havia quatro quartos de cama (cada qual com a sua casa de banho privativa) que tinham sido utilizados pelos filhos de Kipper. Além disso, havia dois grandes quartos de hóspedes, também, com casas de banho. Havia igualmente uma sala de costura, uma câmara escura completamente equipada, que tinha sido utilizada por um dos filhos de Kipper que se interessara por fotografia, e uma sala que parecia ter sido concebida e mobilada sem qualquer actividade particular em vista.
- Que sala é esta? - perguntei.
- Apenas uma sala, senhor - respondeu Chester, casualmente, e eu dei comigo a repetir, em silêncio, o que o detective Stilton e Godfrey Knurr já tinham dito: "Um terrível desperdício de espaço."
O segundo andar parecia ser mais vivido. Incluía uma confortável biblioteca-gabinete apainelada a madeira que, no dizer de Chester, tinha sido frequentemente utilizada pelo falecido Sol Kipper para jogar às cartas com velhos amigos ou simplesmente para um brande e um charuto depois do jantar.
Nesse andar ficavam também os aposentos da cozinheira-governanta, Mrs. Bertha Neckin. Era um apartamento aconchegado, com tapetes índios de cores vivas no chão de parque encerado e uma
(*) Céus. (N. da T.)
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grande quantidade de panos de chita. Havia fotografias emolduradas por toda a parte, principalmente de crianças.
No segundo andar havia mais dois quartos de hóspedes e uma sala comprida, que atravessava a frente da casa, iluminada por duas janelas de sacada. Chamavam-lhe a "Sala de Verão" e era mobilada com móveis de verga branca, tinha cartazes de circos e viagens nas paredes e, numa das extremidades, um pequeno palco para espectáculos de fantoches, dos quais, segundo Chester me afirmou, todos os filhos de Kipper tinham sido entusiastas quando eram jovens. Gostei da sala.
O primeiro andar constava de uma grande sala de baile com espelhos e uma plataforma numa das extremidades, para uma banda ou qualquer função do género. Cadeiras de espaldar direito ladeavam as paredes e havia duas casas de banho e um pequeno quarto de vestir para senhoras.
Chester Heavens tinha os seus aposentos nesse andar: um quarto, um pequeno escritório e uma casa de banho. O mobiliário não revelava mais do que o próprio homem. Tudo limpo, arrumado, simétrico. Quase com precisão. Ausência de fotografias. Poucos livros. Um rádio e um pequeno televisor portátil. Os quadros das paredes representavam paisagens desertas.
- Muito agradável - observei, cortesmente.
Depois perguntei ao mordomo se a casa alguma vez se enchia, se todos aqueles quartos eram alguma vez usados. Disse que tinham sido, quando a primeira Mrs. Kipper era viva, na época das férias. Então todos os filhos do casal, e os filhos deles e por vezes primos, primas, tios e tias, iam ali passar uma semana ou mais. Havia grandes jantares, bailes, festas. Havia confusão, barulho e riso.
- Mas depois de Mr. Kipper voltar a casar, não?
- Não, senhor - respondeu, com o rosto inexpressivo. - A família já não se reúne.
No rés-do-chão, além do átrio de entrada e da sala que eu já tinha visto, havia a sala de estar formal, a sala de jantar, a cozinha e a copa. Lancei um olhar rápido ao pátio, através das portas-janelas da sala de jantar. Parecia ainda mais triste do que visto de cinco andares acima.
Depois Chester Heavens conduziu-me, ao longo do corredor, à área da cozinha e da copa. A cozinha da casa dos Stonehouses parecera-me grande; esta era enorme, com uma área de chão que devia andar pelos quatro e meio por sete e meio metros. Parecia a cozinha de um hotel ou de um restaurante, com equipamento de aço inoxidável e utensílios de cobre e ferro fundido suspensos de grades.
Na cozinha havia quatro portas. Uma era a do corredor, que usáramos. Uma porta de correr dava acesso à sala de jantar. Uma porta das traseiras dava para o pátio. A quarta porta estava protegida por uma
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fechadura de segurança e uma corrente, e tinha um ralo. Chester informou-me que abria para o beco e era utilizada para as entregas.
- Hoje Mrs. Neckin está de folga - informou-me o mordomo, na sua voz suave-, mas talvez o senhor queira conhecer os outros membros do nosso pessoal.
Conduziu-me à copa, que era suficientemente grande para acomodar uma mesa de carvalho quadrada e quatro cadeiras de carvalho de espaldar alto. Sentada numa das cadeiras, a folhear indolentemente o Post da tarde, estava uma jovem vibrante, que levantou vivamente a cabeça quando entrámos.
- Mr. Bigg - disse Chester formalmente-, permita que lhe apresente a nossa criada, Miss Perdita Schug. Perdita, este cavalheiro é Mr. Joshua Bigg. Deves levantar-te, rapariga, quando estás a ser apresentada a uma visita desta casa.
Ela levantou-se preguiçosamente e sorriu-me.
- Como vai, Miss Schug? - cumprimentei.
- vou muito bem - respondeu-me, atrevida. - Pode tratar-me por Perdita, como toda a gente. Excepto aqui o Chester, e eu não lhe digo como ele me trata!
O mordomo olhou-a com o primeiro vestígio de emoção que já o vira revelar: desprezo.
- Olha-me essa língua, rapariga - ordenou-lhe ele, irado, e em resposta ela deitou a dita de fora.
Chester voltou-se e eu inclinei a cabeça a Perdita, a sorrir, e comecei a segui-lo. Mas depois tocou um besouro e ouvi um estalido forte. Chester olhou para o monitor existente na cozinha e que tinha duas séries de indicadores numa caixa envidraçada. Quando algum empregado era chamado de qualquer parte da casa, o besouro do monitor tocava e um indicador subia com um estalido e mostrava um quadrado branco. Havia um número colado no vidro por cima de cada quadrado, a indicar em que divisão a campainha tinha sido tocada. Contei os rótulos: trinta e dois.
- Agora devem querer o chá - disse Chester. - Dê-me licença por um momento, Mr. Brigg. Prepara a bandeja, Perdita.
Eu estava parado à entrada da copa. Havia espaço suficiente, mas Perdita roçou-se por mím, ao passar.
- Perdão - disse, jovialmente. -O dever chama-me.
Tirou um prato do frigorífico e levantou o pano húmido que o cobria. As sanduíches não tinham côdea e eram mais ou menos do tamanho de selos de correio. A rapariga pôs o prato num napperon que se encontrava numa grande bandeja de prata de servir e depois acrescentou um bule de prata, chávenas e pires de porcelana, colheres, leiteira e açucareiro de prata. Acendeu o bico do fogão debaixo de uma chaleira e, enquanto a água levantava fervura, deitou quatro colheres de chá
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do bule, sem fazer nenhum esforço para as medir com exactidão. Todos os seus movimentos eram ágeis e seguros. Chester voltou e examinou a bandeja.
- Guardanapos - rosnou.
Perdita abriu o armário e pôs na bandeja dois pequenos guardanapos de tecido cor-de-rosa.
- Mr. Bigg - disse-me o mordomo-, Mrs. Kipper perguntou se o senhor ainda cá estava e quando lhe respondi que sim mandou-me perguntar-lhe se queria uma chávena de chá ou de café.
- É muito amável da parte dela - respondi. - Saber-me-ia bem uma chávena de café. Se não for muita maçada.
- Não é maçada nenhuma, senhor. Perdita, faz que chegue para todos nós. Volto assim que os tiver servido.
A chaleira de cobre fumegava e o mordomo encheu o bule. Depois levantou a bandeja à sua frente, com ambas as mãos. Tinha de a levar um pouco afastada, por causa da proeminência do ventre. Seguiu pelo corredor fora, em passo imponente.
Perdita devia ser apenas uns três a cinco centímetros mais alta do que eu. Uma migalha de mulher, morena e esfuziante. Cabelo preto reluzente, curto e atrevido como o de uma garota. Olhos cintilantes. Língua comprida, que espreitava constantemente entre os dentes pequenos e brancos e os lábios húmidos. Observei-a, enquanto preparava o nosso petisco nos aposentos do pessoal.
A sua constituição era a de uma Vénus em miniatura. Quase tão rechonchuda como o Cupido de mármore do átrio de entrada. Pele cremosa. Fantasiei-a de breve saia de cetim, minúsculos avental e touca de renda, sapatinhos rasos e um decote indecente - a clássica criada francesa das páginas de La Vie Parisiènne. A sua energia animal assustava-me, mas ao mesmo tempo sentia-me atraído por ela.
Entrou na copa com um prato de bolinhos de amêndoa. Deixou-se cair na cadeira que ficava defronte da minha, apoiou um cotovelo no tampo da mesa e o queixo na palma da mão. Fitou-me, de olhos a brilhar.
- Você é giro.
- Obrigado, Perdita - redargui, a tentar rir. -É muito amável.
- Não sou nada amável - protestou. -Estou apenas a dizer a verdade. Digo sempre o que sinto, de caras. E você não?
- Bem... nem sempre - respondi, judiciosamente. - Às vezes é difícil fazê-lo sem magoar as pessoas.
- Que pensa de mim? De caras!
Salvou-me o regresso de Chester Heavens, que se sentou pesadamente à mesa de carvalho. Comeu de enfiada três bolinhos de amêndoa: um, dois, três.
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- O café está pronto - anunciou. - Perdita, queres fazer as honras?
A rapariga levantou-se e passou por trás da cadeira dele.
Passou-lhe a mão pelo cabelo escorrido da nuca. Ele levantou a mão para lhe dar uma palmada, mas Perdita já estava na cozinha.
- Queira desculpar a rapariga. Ela tem uma certa rebeldia de espírito.
Perdita voltou com a máquina de fazer café e nós sentámo-nos a tomá-lo e a comer bolinhos de amêndoa. Pensei numa maneira de suscitar uma discussão do mergulho de Sol Kipper.
- Tristes tempos, senhor - disse Chester, a abanar lastimosamente a grande cabeça. -Mr. Kipper era o melhor dos patrões.
- Um querido - corroborou Perdita.
- Foi uma tragédia - declarei. - Não conheço os pormenores, mas deve ter sido terrível para todos vós. ;
Começaram então a recordar aqueles momentos de horror, a principiar pelo instante em que tinham ouvido o estrondo e o baque no pátio. Disseram-me o que Percy Stilton já me tinha dito. Como ele, tive a convicção de que estavam a dizer a verdade que sabiam.
- E só estavam os quatro em casa, quando isso aconteceu ? - perguntei.
- Cinco, senhor - emendou Chester. - Contando com o pobre Mr. Kipper.
- Quer dizer que o porteiro não estava?
- Oh, não, senhor! Foi de tarde e ele só vem de manhã.
- Terrível - murmurei. - Uma experiência pavorosa. E Mrs. Kipper desmaiou, não foi o que disseram?
- Perdeu os sentidos - confirmou Perdita, a acenar com a cabeça. - Foi-se completamente abaixo. E Mrs. Neckin desatou a guinchar.
- A chorar, rapariga - emendou o mordomo, reprovadoramente.
- Ou isso - recalcitrou a criada. - Fez uma barulheira.
- Devem ter ficado todos transtornadíssimos quando ouviram o barulho, foram a correr e o viram.
O mordomo suspirou.
- Alguns maus momentos, senhor. Rapariga, há mais bolinhos de amêndoa? Se não houver, há um bolo de nozes. Podes trazê-lo. Sim, senhor, foram alguns maus momentos. O senhor estava morto, Mrs. Kipper tinha desmaiado, Mrs. Neckin chorava... Era um problema, sem sabermos que fazer.
- Mas depois o reverendo Knurr tocou à campainha, não foi? - perguntei.
- Exactamente. Esse cavalheiro que esperava à porta foi a nossa salvação. Tomou conta da situação, Mr. Bigg. Telefonou à Polícia,
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reanimou Mrs. Kipper, levou-nos a todos para a sala e serviu-nos brande. Não sei o que teríamos feito sem ele.
- Parece muito competente.
A minha atenção divagou, porque Perdita trouxera o bolo de nozes para a mesa e estava de pé a meu lado, a cortá-lo em fatias, com a anca macia comprimida contra o meu braço.
- É isso mesmo - comentou Chester, a escolher a fatia com mais nozes em cima e a metê-la na boca. - Um excelente cavalheiro.
- Oh, excelente! - confirmou Perdita, às gargalhadinhas. Mesmo excelente!
- Olha-me essa língua, rapariga - repetiu o mordomo em tom de admoestação, e ela voltou a deitar a língua de fora, como se fosse um ritual.
- Presumo que o reverendo é uma visita frequente - observei pensativamente, enquanto deitava mais meia chávena de café. - Onde é a igreja dele?
- Ele não tem uma paróquia regular - explicou o mordomo. -Dá conselhos pessoais e trabalha com os jovens pobres de Greenwich Village. Bandos de rua e coisas assim.
- Mas é uma visita frequente da casa? - insisti.
- Oh, sim! Há vários anos. - O mordomo inclinou-se mais para mim e murmurou:
- Creio que Mrs. Kipper anda agora a receber instrução religiosa. Do reverendo Knurr. Desde a morte do marido.
- O choque... - murmurei.
- O choque - concordou, a acenar com a cabeça. - Deve ter compreeendido quanto é curta a vida nesta terra e a eternidade da outra vida. E só aqueles que procuram o amor do Grande Deus Jeová terão bênçãos nessa vida. Sim, está escrito que só pelo sofrimento e pela tortura do espírito conquistaremos a verdadeira redenção e o perdão dos nossos pecados.
Compreendi então qual era a sua paixão.
O besouro do monitor soou de novo e eu agradeci mentalmente. Levantei-me.
- Tenho realmente de ir andando - disse. - Chester, estou-lhe muito grato pelo seu valioso auxílio. Como lhe disse, voltarei. Mas primeiro telefonarei. Se não for conveniente para si ou para Mrs. Kipper, faça o favor de me dizer e ficará para outra ocasião.
Perdita precedeu-me pelo corredor fora até ao átrio de entrada. Observei-lhe os movimentos. Ajudou-me a vestir o sobretudo.
- Agasalhe-se bem - recomendou, a aconchegar-me a gola. - Não apanhe frio.
- Sim, obrigado.
- Quinta-feira é o meu dia de folga. -Sim?
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- Todos nós temos o nosso telefone particular. Venho na lista. Schug. S-c-h-u-g.
Nessa noite, em casa, sentado na minha cadeira favorita a comer esparguete, garatujei uns apontamentos para acrescentar à pasta de Kipper e redigi o esboço de um relatório da minha conversa com o Dr. Stolowitz e Ardis Peacock.
Um telefonema interrompeu-me o trabalho. Fiquei encantado ao ouvir a voz do detective Percy Stilton. O facto de telefonar provava a sinceridade da sua promessa de colaborar. Fui quase efusivo nos meus cumprimentos.
- Acalme-se lá, homem! Não tenho nada de espectacular para lhe dizer. Investiguei o caso do Marty Reape. Como supunha, encerraram o assunto como acidente. Não se apresentaram nenhumas testemunhas a dizer o contrário. Que esperavam? Nesta cidade ninguém quer intrometer-se. Mas fiquei a saber uma coisa interessante: ele tinha cadastro. Nada de grave, pois nesse caso ter-lhe-iam apreendido a licença de investigador particular. Mas foi acusado diversas vezes. Agressão simples, queixa retirada. Tentativa de extorsão, queixa retirada. Entrada ilegal, não existe nenhum registo do destino da queixa. Isto diz-lhe alguma coisa?
- Não.
- Bem, fiz umas perguntas. Aparentemente, o tal Reape era um tipo nojento. Mas não encontraram no cadáver nenhuma grande importância em dinheiro. E também não encontraram nada que parecesse qualquer espécie de prova. E pronto. E você, soube alguma coisa?
Contei-lhe a minha ida ao escritório de Reape, à procura da tal prova, mas omiti o modo como tinha sido intrujado por Mr. Ng. Descrevi os pranteadores do Dirty Shame. Riu-se.
Disse-lhe ter a impressão de que alguém falara com Blanche Reape antes de mim, pois ela tivera dinheiro para pagar a renda do escritório e a conta da festa do funeral.
- Bem... assim parece - observou Stilton, cauteloso. - Não me custa a acreditar. Se o caso ainda estivesse aberto, iria ter com a dama e, com jeito, veria se conseguia descobrir de onde vieram as notas. Mas não posso, Josh. Ela parece uma pequena esperta e se eu fizesse valer o meu peso era capaz de dar à dica. A coisa acabaria por chegar aos ouvidos dos meus superiores e o meu tenente quereria saber que ideia era a minha de andar a trabalhar num caso encerrado. Então eu ficaria em maus lençóis. Compreende?
- Claro que compreendo.
Disse-lhe não me parecer que pudéssemos fazer alguma coisa a respeito de Mrs. Reape, a não ser revistar-lhe a casa na esperança de que ela ainda tivesse a prova que valera a morte ao marido. E a entrada ilegal numa casa estava fora de questão.
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Depois falei a Stilton da minha visita daquela tarde à residência Kipper. Escutou-me com atenção, sem me interromper, até eu mencionar o facto de ter perguntado a Chester Heavens se Sol Kipper gritara enquanto caía e de ele me ter respondido que não ouvira nada até aos horríveis sons feitos pelo corpo ao embater na terra.
- Filho da mãe - comentou Percy.
- Que se passa?
- Nada, a não ser que eu devia ter feito essa pergunta e não fiz. Você é bom, Josh.
Fiquei satisfeito. Terminei o relato e concordámos que não tinha descoberto nada que lançasse mais alguma luz sobre o caso.
- Excepto o ângulo religioso - observou Percy. - O facto de Knurr ser pastor e o mordomo gordo parecer um fanático religioso.
- Que significa isso? - perguntei.
- Não faço a mínima ideia - confessou, alegremente. - Mas é interessante. Vai continuar, Josh?
- Oh, com certeza! Voltarei lá as vezes que puder. Quero falar com a cozinheira-governanta e gostaria de dar por lá mais uma vista de olhos. Que tal lhe parece o disfarce que arranjei?
- Fantástico. Está a tornar-se um mentiroso de arromba. -Obrigado - agradeci, baixinho.
Capítulo décimo
Dormi até tarde, no sábado, e quando acordei descobri que estava a nevar: caíam grandes flocos que cobriam rapidamente tudo. Mas a rádio anunciou que deixaria de nevar cerca do meio-dia e que se esperava que as temperaturas subissem de negativas para positivas.
Tomei um grande pequeno-almoço e passei o dia em casa, a fazer limpezas e a pensar nos casos.
Ao princípio da noite tomei banho e, em honra da ocasião, barbeei-me. Vesti camisa branca com gravata de repes castanho, casaco azul-marinho e calças de flanela cinzenta, e calcei mocassins pretos engraxados. Parecia um estudante de escola preparatória, mas já estava habituado a isso.
Estava a meter um lenço branco na algibeira do peito quando me bateram à porta principal.
- Quem é? - perguntei, antes de abrir.
- Finkel - responderam-me.
Abri a porta, a sorrir, e fiz sinal a Adolph Finkel para entrar. Era o
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inquilino do terceiro andar, que morava ao lado de Madame Zora Kadinsky.
- Boas noites. Bigg - cumprimentou-me. - Creio que esperam que ajudemos o Shank a descer.
Olhei para o relógio.
- Dispomos de alguns minutos. Que tal uma bebida para nos dar força?
- Bem... não quero incomodá-lo - respondeu, mas deixou-me servir-lhe um uísque.
- Dias felizes - desejei.
- Você está todo janota - observou, tristemente. - Hoje trabalhei e não tive tempo de mudar de roupa.
- Está muito bem assim - garanti-lhe.
Olhou para baixo, para ele próprio.
- O gerente disse-me que não devia usar sapatos castanhos com fato azul. Que não parecia bem um vendedor de sapatos usar sapatos castanhos com fato azul. Claro que trabalho numa sapataria de senhoras, mas mesmo assim... Que lhe parece, Bigg?
- Talvez sapatos pretos condissessem melhor.
- Podia ir lá acima trocá-los - disse, ansioso. - Tenho um par de sapatos pretos.
- Oh, não se incomode com isso! Duvido que alguém repare.
Finkel era alto, pelo menos um metro e oitenta e dois, e magríssimo, tinha ombros descaídos, pescoço inclinado e cabeça estendida para a frente, como uma ave esfomeada. Tinha uma cabeleira rebelde, frisada e cor de pêlo de rato, e testa baixa. A sua pele era pálida e manchada, deslavada, e os olhos eram magoados.
A sua voz e a sua atitude eram as de quem pede constantemente desculpa. Há uma história antiga acerca de dois homens condenados a serem fuzilados. Um deles cospe na cara do executor. O companheiro reprova-o e diz: "Não arranjes problemas." Este era Adolph Finkel.
- Acha que a festa será em casa de Mrs. Hufnagel ou na de Cleo? - perguntou-me.
- Francamente, não sei. Provavelmente será na de Mrs. Hufnagel.
- Suponho que sai com muitas mulheres, Bigg... Ri-me.
- Que lhe deu essa ideia, Finkel? Não, não saio com muitas mulheres. - Madame Kandinsky tivera razão: ele estava a tentar descobrir se eu tinha algum interesse em Cleo Hufnagel. - Saio com uma rapariga do meu escritório. É encantadora.
Sorriu, encantado-ou tentou. Foi um erro, pois o sorrir revelou-lhe os dentes.
Finkel e eu levámos o comandante Shank para baixo, na cadeira de rodas. Não foi tão difícil como eu receara: bastou inclinarmos a cadeira
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para trás, apoiada nas grandes rodas, e empurrá-la um degrau de cada vez. Finkel segurava as pegas, atrás, e eu ia à frente, a tentar levantar o apoio dos pés o suficiente para amortecer os solavancos, quando a cadeira descia. Teria sido muito mais fácil se não fossem as ordens berradas por Shank. O comandante levava vinho que eu tinha comprado.
Quando chegámos ao patamar do primeiro andar, as três mulheres tinham ouvido a ruidosa descida e estavam à nossa espera. Enganara-me. A porta de Cleo Hufnagel estava aberta e era evidente que a festa seria em casa dela.
- Você disse... - começou Finkel a murmurar.
- Esqueça - interrompi-o, determinado a manter-me o mais afastado dele possível.
Estendi o vinho a Mrs. Hufnagel e disse-lhe que era uma oferta de Shank e de mim.
- Que amabilidade! - exclamou ela. - Olha para isto, Cleo. Olha o que Mr. Bigg trouxe!
- E o comandante - recordei.
- Olá, olá, Joshy e comandante Shink! - entoou Madame Zora Kadinsky.
- Shank-corrigiu o comandante.
A casa de Cleo, obviamente mobilada segundo o gosto da mãe, era soturna, atravancada, asfixiante. O Grande Complot Hufnagel estava a ser posto em prática.
A festa era à base de ponche e bolinhos. Senti-me grato por ter comido uma sanduíche de presunto ao fim da tarde. O ponche sabia a sumo de fruta.
- Que diabo é isto? - perguntou o comandante Shank. - Não dá coice nenhum. Despeje aí para dentro metade do moscatel.
Obedeci e passados momentos fui num instante a casa buscar vodka e brande para acrescentar. Os convidados tinham estado rígidos e a tentar imitar os estilos de festa de Mrs. Hufnagel e Madame Kadinsky. Mas menos de uma hora depois da nossa chegada as coisas começaram a animar-se.
Madame Kadinsky cantou Ah, Sweet Mystery of Life e outras selecções suboperáticas. O comandante berrava e batia no braço da cadeira de rodas. Instigados por Madame Kadinsky e por Mrs. Hufnagel, Cleo e eu dançámos pacatamente ao som de Stardust, tocado num piano vertical por Madame K. Finkel. Evidenciou sinais de querer intrometer-se, mas Mrs. Hufnagel agarrou-o para dançar com ela.
As coisas progrediram e a certa altura Mrs. Hufnagel dançou uma jiga, de saias no ar a revelar as grossas meias de descanso. A terminar, sentimentalmente tocado, o Auld Lang Syne. Um Finkel muito taciturno e eu tivemos grande dificuldade em levar Bramwell Shank para cima.
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Eu estava muito agitado para tentar adormecer imediatamente. Por isso, sentei-me na sala às escuras, a olhar para a lareira apagada. Devia ser uma e meia e dormitava regaladamente, a tentar arranjar forças para me levantar e ir deitar-me, quando ouvi bater leve e timidamente à porta.
- Quem é? - perguntei, num murmúrio rouco. Um momento de silêncio. Depois:
- Cleo. Cleo Hufnagel.
Abri a porta e soltei a corrente. Ela ainda estava com o vestido da festa.
- Ia-me deitar - informei, com uma voz que me pareceu desnecessariamente esganiçada.
- Desejo falar-lhe apenas um minuto.
- Oh, com certeza! -exclamei e mandei-a entrar.
Sentou-se na minha poltrona favorita e eu sentei-me à sua frente, muito direito, com os joelhos bem unidos e o roupão apertado.
- Antes de mais nada - disse Cleo, em voz baixa-, quero agradecer-lhe o que fez. A festa foi ideia da minha mãe. Eu pensei que seria horrível. E foi, até você ajudar. Afinal, depois tornou-se divertida.
Esbocei um gesto vago.
- Não me agradeça. Foi o ponche.
Ela sorriu tristemente.
- Fosse o que fosse, gostei verdadeiramente.
- Também eu. Foi de facto divertido. Estou satisfeito por me ter convidado.
- A ideia foi da minha mãe - repetiu, e depois respirou fundo. - Compreende, tenho quase trinta anos e ela receia que eu...
A voz apagou-se-lhe.
- Sim - respondi brandamente-, eu compreendo. Olhou-me, esperançada.
- Compreende? Claro que compreende. É inteligente. Sabe o que ela está a fazer. A tentar fazer. Queria que soubesse que não fui metida nem achada. Estou certa de que deve ser muito embaraçoso para si e desejo pedir desculpa. Pela minha mãe.
- Oh, Cleo! Ouça, podemos tratar-nos por Cleo e Josh, não podemos?
Acenou com a cabeça, silenciosamente.
- Bem, Cleo... claro que sei o que a sua mãe anda a fazer. A tentar fazer. Mas é assim tão horrível? Não a censuro, nem a si nem a ela.
- Mas é tão... tão ordinário! -explodiu. - E queria que soubesse que a ideia não foi minha, que eu nunca faria semelhante coisa.
- Bem sei - respondi, a tentar consolá-la. - Deve ser muito
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aborrecido para si. Mas não condene a sua mãe, Cleo. Ela só quer o que pensa ser melhor para si. -Eu sei.
- Ama-a e quer que seja feliz.
- Também sei isso.
- Portanto, seria assim tão terrível se a deixássemos fazer o que deseja fazer? Quero dizer, agora que você e eu sabemos, não seria uma coisa horrível deixá-la pensar que está a ajudá-la, pois não?
- Creio que não.
Ficámos um bocado sentados em silêncio, sem olhar um para o outro.
- E a respeito do Adolph Finkel? - perguntei, por fim.
- Oh, não! - exclamou imediatamente. - Não. Reparou que ele tinha calçados um sapato castanho e outro preto, esta noite? -Não, não reparei. -Mas não é só isso. É tudo.
- Há alguém em quem esteja interessada? Não quero ser bisbilhoteiro, mas estamos a ser tão francos...
- Não, não há mais ninguém.
Disse-o em tom tão vazio, tão sem esperança, que parei momentaneamente de respirar. Olhei-a. Na realidade, era uma beldade alta e esbelta, quase espanhola na sua reserva e no seu mistério. Era criminoso não ser desejada.
- Escute, Cleo - pedi, desesperado-, isto não quer dizer que não possamos ser amigos, pois não?
Ergueu os olhos luminosos e fitou-me com franqueza. Não li neles nenhuma implicação velada. Eram apenas olhos, olhos profundos, insondáveis.
- Gosto da ideia - disse, finalmente a sorrir. - Sermos amigos. Tornou-se tudo mais leve.
- Podemos aprender alguns novos passos de dança. O Peabody...
- O Maxixe - acrescentou, e riu-se um bocadinho.
Antes de sair para o patamar, inclinou-se para me beijar na cara. Uma beijoquinha.
- Obrigada - agradeceu, docemente.
Quando fechei a porta à chave e coloquei a corrente de segurança, estava esgotado, cambaleante. Não queria pensar nem sequer sentir. Só queria dormir, deixar o corpo castigado refazer-se e esperar que um excesso de impressões, recordações e conjecturas perdesse a acuidade.
Deixei-me cair na cama. Estava quase a meio caminho de um sono profundo, sem sonhos, quando o meu telefone tocou.
- Estou...
- Josh?
- Sim. Quem fala?
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- Ardis. Ardis Peacock. Lembra-se? Acordei bruscamente.
- Claro que me lembro - afirmei, entusiasmado. - Como está, Ardis?
- Onde esteve? Passei a noite a telefonar. -Tive um encontro tardio.
- Seu galdério! Escute, tenho o que queria saber a respeito do Stonehouse.
- Maravilhoso! Que doença tinha ele?
- Recebo os outros cinquenta dólares?
- Claro que recebe. Que era? -Nunca imaginaria.
- Que era? - implorei.
- Envenenamento por arsénico.
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PARTE SEGUNDA
Capítulo primeiro
Na segunda-feira de manhã estava à espera de ser recebido por Mr. Ignatz Teitelbaum e, entretanto, tagarelava à porta do seu gabinete com Ada Mondora. Ela fitou-me, calculista.
- Não sei que fazer - disse.
- A respeito de quê? - perguntei, inocentemente.
- A seu respeito. E de Yetta Apatoff.. E de Hamish Hooter.
- Ah, isso! -exclamei com um sentimento de vergonha por verificar que os meus assuntos íntimos eram do conhecimento público.
- Há uma aposta no escritório - continuou ela. -Não sabia? Abanei a cabeça.
- Apostamos um dólar em quem julgarmos que casará com a Yetta: você ou o Hooter. Neste momento, as apostas entre um e outro estão mais ou menos equilibradas, de modo que tudo quanto se pode ganhar é outro dólar.
- Em quem aposta? Fitou-me de olhos semicerrados.
- Não sei. Ainda não decidi. O que sente por ela é sério, Josh?
- Claro que é.
- Hum... A ver vamos, a ver vamos...
A porta do gabinete de Mr. Teitelbaum abriu-se e Hamish Hooter saiu, carregado com uma pesada pasta.
Olhou para mim, depois olhou para Ada Mondora e depois afastou-se. Sem dizer palavra.
- Mr. Personalidade - comentou Ada. - Pode entrar, Josh.
Ele parecia mais pequeno do que nunca. Lembrava uma bola de futebol vazia, com o cabedal granuloso e enrugado. Estava sentado imóvel à grande secretária e os seus olhos vivos seguiram-me quando entrei e me aproximei. Inclinou o queixo na direcção de uma poltrona.
- Relatório? - disse, num tom que era meio de pergunta, meio de ordem.
- Mr. Teitelbaum, a respeito do caso Stonehouse... Espero que aprove um gasto de cem dólares. Por uma informação confidencial.
- Que informação?
- Durante um período de cerca de seis meses, que terminou um mês antes do seu desaparecimento, o professor Stonehouse sofreu de envenenamento por arsénico.
Se esperava uma reacção, fiquei decepcionado: não houve nenhuma.
- A informação foi obtida de tal modo que o nome da firma não poderá ser relacionado com ela. E creio que é válida. O professor começou a ser vítima de envenenamento por arsénico a partir do fim
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do Verão do ano passado. Por fim, os sintomas tornaram-se tão agudos que consultou um médico. Depois de uma série de análises foi feito o diagnóstico correcto.
- Sabe tudo isso? - perguntou. - Factualmente?
- Estou a extrapolar de informação recebida de várias fontes. Depois de tomar conhecimento do que se passava, aparentemente o professor tomou as providências necessárias para pôr cobro ao envenenamento. De qualquer modo, refez-se. Encontrava-se num estado de saúde razoavelmente bom quando desapareceu.
Começou a rodar vagarosamente na cadeira giratória, e de cada vez que girava voltava ligeiramente a cabeça para continuar a ver-me.
- Pensa que ele esteve a ser deliberadamente envenenado, Mr. Bigg?
- Penso, sim, senhor.
- Por um membro da família?
- Ou pessoal da sua casa. Há duas criadas. Não vejo de que outro modo poderia ter sido feito. É impressão minha que raramente comia fora. Se andou a ingerir arsénico, só pode ter sido na sua própria casa.
- Mais ninguém lá de casa adoeceu?
- Não, senhor, que eu saiba. É uma coisa que terei de investigar.
Pensou demoradamente.
- Asqueroso - disse, por fim, mas sem nenhuma repugnância na voz, sem nenhuma nota de decepção pela conduta da espécie humana: tratou-se apenas de uma opinião judiciosa: "Asqueroso."
- Sim, senhor.
- Qual seria o motivo? Presumindo que é verdade o que pensa, por que razão quereria alguém da família Stonehouse envenená-lo?
- Não sei. Talvez tivesse alguma coisa a ver com o testamento. com o testamento desaparecido. Mr. Teitelbaum, uma pessoa pode redigir o seu próprio testamento?
Fitou-me.
- Um testamento hológrafo? Pelo punho do testador? Devidamente redigido e devidamente testemunhado? Sim, tal testamento seria válido. com diversos embargos. Um marido, por exemplo, não poderia deserdar totalmente a sua mulher. Um testador não poderia fazer legados contrários à política pública. Financiar o assassínio de um presidente, por exemplo. Etc. Há outros requisitos, que ficariam melhor entregues à perícia de um advogado. Mas um testamento simples, composto pelo testador, poderia ser legal.
- Sabendo o que sabe a respeito do professor Stonehouse, considera que ele seria capaz de redigir tal documento? Não hesitou: -Considero, sim. Seria capaz. Na realidade, seria até natural que
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o fizesse, atendendo ao género de homem que era. Acha que foi isso que ele fez?
- Confesso que não sei - admiti. - Mas é certamente possível. Perguntou a Mrs. Stonehouse se o marido tratava com quaisquer outros advogados ?
- Perguntei - respondeu, a acenar com a cabeça. - Ela disse que não tinha conhecimento de nenhum outro. Isso não significa necessariamente que não tratasse, claro. Ele era um homem muito reservado. Acho todo este assunto cada vez mais inquietante, Mr Bigg. Disse-lhe que receava que o professor Stonehouse estivesse morto. Não tinha nada em que basear tal convicção além de uma impressão, um instinto, o resultado de ter levado uma vida inteira a lidar com as fraquezas de seres humanos muito falíveis. A sua informação de que o professor foi vítima de envenenamento só vem confirmar a minha convicção. - Fez uma pausa. - Empregámos ambos o termo "vítima". Não supõe que o envenenamento possa ter sido acidental, pois não ?
- Não, senhor. - Ficámos um momento silenciosos. - Mr. Teitelbaum, deseja que continue a investigar?
- Sim - respondeu em voz tão baixa que não passou de simples murmúrio.
- E não acha que a questão do envenenamento por arsénico devia ser comunicada à Polícia ?
Agitou-se um pouco e sentou-se mais direito na cadeira.
- Não, ainda não. Continue a investigar.
Desci ao andar principal, na esperança de dispor de um momento para dois dedos de conversa com Yetta Apatoff. Mas Mr. Orsini vinha precisamente a transpor a entrada principal, com um auxiliar adorador a segurar-lhe a porta e outros dois a seguir-lhe extasiados na esteira.
- Josh! - gritou ele, e agarrou-me o braço. - Sei uma nova que vai adorar.
Puxou-me para mais perto de si e os ajudantes juntaram-se à sua volta, aos risinhos.
- Era uma vez um homem muito baixo, que estava sentado num bar - começou Orsini. - E na outra extremidade do balcão viu uma grande loura deliciosa, sozinha. Está a ver o quadro?
Quando acabou, voltei aos tropeções para o meu gabinete, telefonei a Ardis e pedi-lhe que se encontrasse comigo na 74 e Amsterdam dentro de vinte minutos, cerca da 1.45 horas. A seguir liguei para a residência Stonehouse e perguntei se podia passar por lá cerca das duas horas da tarde, para falar com a criada, Olga Eklund, e obter uma fotografia do professor para ser utilizada nuns prospectos a oferecer uma recompensa. Tratava-se de um estratagema para entrar de novo lá em casa. Falei com Glynis Stonehouse, que me disse que ela e a mãe teriam prazer em ver-me.
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Comi uma sanduíche e bebi uma Coca, no caminho para o encontro com Ardis. Ela estava na esquina noroeste, à minha espera.
- Graças a Deus chegou a tempo! Pedi a uma das enfermeiras que me substituísse, mas se o Stolowitz chegar e não me vir à secretária, fica doido.
- Obrigado, Ardis - agradeci em voz baixa e estendi-lhe um sobrescrito. -Ajudou-me muito.
- Às ordens - redarguiu, e guardou rapidamente o sobrescrito. -Quando estiver nas proximidades, dê-me uma telefonadela. Poderemos almoçar, ou qualquer coisa.
- Assim farei.
Segui para sul, pelo Central Park oeste, a caminho da casa dos Stonehouse, e identifiquei-me ao homem que se encontrava cá em baixo, à secretária.
A porta do 17-B foi aberta por uma valquíria. Só lhe faltava um capacete com chifres. Tratava-se sem dúvida de Olga Eklund. Era quase trinta centímetros mais alta do que eu, tinha ombros e ancas largos e braços e pernas nodosos. A sua cabeça não parecia maior do que o pescoço forte e por baixo da farda preta imaginei um torso duro, de músculo sobre músculo, e pele esticada e rosada de saúde.
Fantasiara tranças louras. Existiam, pois tinham sido reunidas numa só, grossa como uma amarra de navio e enrolada à volta do alto da sua cabeça numa coroa brilhante, que lhe acrescentava mais quinze centímetros à já de si impressionante altura. Os olhos, como eu fantasiara, eram de um azul de mar profundo, com a esclerótica tão branca como leite. Não usava maquilhagem, mas os lábios cheios eram rosados e a tez de um tom de creme porcelânico.
Dava uma tal impressão de excelente saúde, força e vitalidade, que me encolhi só de olhar para ela. Parecia pertencer a uma espécie diferente, alguém vindo do planeta 4x-5-6-Gb para nos demonstrar a nós, terrestres, as nossas tristes insuficiências.
- Mr. Bigg? - perguntou na voz opressiva e vibrante que tinha conjurado todas as minhas excitantes impressões a seu respeito quando a ouvira pelo telefone.
- Sim. Deve ser Miss Eklund?
- Sou. Chapéu? Sobretudo?
Pendurou as minhas coisas no armário da parede. Segui-a pelo comprido corredor fora. Andava com um passo certo e elástico. Abaixo da saia, viam-se-lhe as barrigas das pernas, musculosas e lisas. Tinha a musculatura de uma artista de trapézio: mármore sob camurça. Senti-me grato por me não ter estendido a mão, para apertar a minha.
Mrs. Ula Stonehouse e Glynis esperavam por mim na sala. Estava um serviço de chá disposto numa das pequenas mesas, e por insistência
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de ambas aceitei uma chávena de chá, que me foi servida pela eficiente Olga Eklund.
- Lamento não ter notícias para dar - disse à mãe e à filha. - Não descobri nada de novo relacionado com o desaparecimento do professor.
- A minha mãe disse que o senhor perguntou pela saúde do meu pai - observou Glynis. - A sua doença do ano passado. Falou com o médico ?
Estava aninhada numa das extremidades do comprido sofá, com as esplêndidas pernas debaixo do corpo.
- Sim, falei com o doutor Stolowitz- disse, a dirigir-me a ambas. -Não me quis revelar a natureza exacta da doença, mas eu deduzi que se tratou de uma espécie qualquer de gripe ou de um vírus. Mais alguém da família esteve doente, ao mesmo tempo que o professor?
- Deixe-me pensar - disse Mrs. Stonehouse, e inclinou a cabeça para o lado. - Foi o ano passado. Oh, sim! Eu apanhei uma constipação que durou muito tempo e a pobre da Effie andou a fungar pelo menos uma semana. Glynis, estiveste doente?
- Provavelmente - respondeu a filha, em voz abafada. - com franqueza, não me lembro, mas geralmente constipo-me pelo menos uma vez quando chega o Inverno. Isso tem alguma coisa a ver com o desaparecimento do meu pai, Mr. Bigg?
- Oh, não! - apressei-me a responder. - Quis apenas certificar-me de que ele estava de boa saúde em dez de Janeiro. E pelo que as senhoras e o doutor Stolowitz me disseram, aparentemente estava.
Glynis Stonehouse olhou-me um momento. Pareceu-me intrigada, mas depois o seu rosto desanuviou-se
- Está a tentar determinar se ele poderia ter tido amnésia? Ou sofrido de alguma espécie de abalo mental temporário?
- Sim, trata-se mais ou menos disso. Mas é óbvio que podemos riscar essa hipótese. Mrs. Stonehouse, importa-se que fale alguns momentos com a sua criada? Quero apenas ver se ela se lembra de alguma coisa que possa ajudar.
- Faça favor - disse Glynis Stonehouse, antes que a mãe pudesse responder. - Ela está provavelmente na cozinha ou na sala de jantar. Sabe o caminho; pode ir. Já dei instruções à Olga para lhe dizer o que o senhor quiser saber.
- Obrigado - agradeci, e levantei-me. - São muito amáveis. Não devo demorar muito tempo. Depois gostaria de discutir com as senhoras mais umas coisas, se mo permitissem.
Encontrei a criada na sala de jantar, sentada a uma extremidade da mesa comprida. Estava a ler Prevention.
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- Olá - disse, alegremente. -Miss Stonehouse disse que eu podia falar consigo em particular. Posso tratá-la por Olga?
- Pode.
Estava sentada erecta, sem tocar com as costas direitas no espaldar da cadeira. Mesmo sentada, era mais alta do que eu.
- Olga, sou empregado dos advogados da família e ando a investigar o desaparecimento do professor. Talvez me possa ajudar.
Fitou nos meus os olhos de turquesa. Foi como se uma broca de dentista me penetrasse nas pupilas. Quero dizer, fui perfurado.
- Como ? - indagou.
- Tem alguma ideia do que lhe aconteceu ? -Não.
- Sei que não estava cá na noite em que ele desapareceu, mas notara alguma coisa estranha no professor? Quero dizer, ele tinha andado a proceder de modo diferente do habitual ?
- Não.
- Na altura em que desapareceu estava de boa saúde?
Encolheu os ombros.
- Mas o ano passado tinha estado doente, não é verdade? O ano passado esteve muito doente?
- Esteve.
- Mas depois melhorou ?
- Sim.
Suspirei. Estava a sair-me muito bem! Sim, não e um encolher de ombros.
- Olga, trabalha aqui da uma da tarde às nove da noite, seis dias por semana. Correcto?
- Sim.
- Serve a merenda da tarde e o jantar?
- Sim.
- Ele comia alguma coisa especial, que mais ninguém comesse?
- Não.
Desisti. A Sueca Silenciosa. A Garbo era uma tagarela comparada com ela.
- Está bem, Olga - disse, e comecei a levantar-me. - Foi muito amável e eu quero...
De súbito, estendeu a mão e fechou-a no meu braço, interrompendo instantaneamente a circulação. Puxou-me para si e eu resisti instintivamente. Foi como resistir a um rebocador Moran. Puxou-me mesmo para junto dela e chegou os lábios ao meu ouvido. Quero dizer, eu senti os seus lábios na minha orelha, de tal maneira ela me agarrava.
- Ele estava a ser envenenado - murmurou.
O hálito quente fez-me cócegas no ouvido, mas eu estava tão atordoado que não reagi. Teria encontrado a aberta de que precisava?
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- Por quem? - perguntei.
- Eu podia tê-lo salvado. Fitei-a.
Como resposta à minha pergunta muda, levantou solenemente a revista de saúde e dieta e apontou-a.
Queria dizer que Stonehouse estava doente em consequência do processamento comercial dos alimentos, como toda a gente.
Na sala, encontrei Glynis e a mãe como as deixara. Mrs. Stonehouse lambia a borda de um copo cheio.
- Nada - disse-lhes, a suspirar. - É muito frustrante. Enfim... continuarei a esforçar-me. O único membro da família com quem não falei, Mrs. Stonehouse, foi com o seu filho. Ele estava aqui na noite em que o pai desapareceu. Talvez se lembre de alguma coisa...
Deram-me a morada e o número de telefone -que não vinha na lista- do rapaz. Em seguida pedi que me mostrassem algumas fotografias da família que porventura tivessem e, pouco depois, estava nervosamente sentado no sofá entre as duas mulheres, a examinar devagar a rima de fotografias. Era uma experiência estranha. Eu tinha a certeza de estar a ver fotografias de um morto. Yale Stonehouse era, ou tinha sido, um homem azedo, de rosto magro, faces encovadas e lábios como arestas de cartão. Os olhos acusavam e o nariz era uma faca. Nas fotografias de corpo inteiro parecia um esqueleto de fato de tweed, todo ângulos agudos e desengonçado. Era alto, tinha ombros descaídos e a cabeça agressivamente inclinada para a frente.
- Altura ? - perguntei.
- Um metro e oitenta e dois - respondeu Mrs. Stonehouse.
- Era um bocadinho mais baixo, mãe - corrigiu Glynis, serenamente. - Não chegava ao metro e oitenta.
- Cor do cabelo?
- Acastanhado - respondeu Ula.
- Quase todo grisalho - acrescentou Glynis.
Acabámos por escolher uma fotografia brilhante, de oito por 3. Agradeci a Ula e a Glynis Stonehouse e prometi mantê-las informadas dos progressos da minha investigação.
No átrio do prédio, perguntei ao homem sentado à secretária se estivera de serviço na noite em que Yale Stonehouse saíra para nunca mais ser visto. Respondeu que não, que quem devia ter estado de serviço era Bert Lord, que fazia o turno das quatro da tarde à meia-noite. Bert geralmente chegava por volta das três e meia, para vestir o uniforme na cave, e se eu voltasse dentro de quinze ou vinte minutos talvez pudesse falar com ele.
Por isso, dei uma volta pelas imediações, a tentar determinar os possíveis caminhos seguidos pelo professor Stonehouse, depois de ter saído do prédio.
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Havia uma estação de metropolitano IND na esquina de Central Park oeste com a Rua 72. Ele podia ter ido para a parte alta ou para a parte baixa da cidade.
Podia ter-se metido num autocarro da Rua 72 que o levaria à Rua
57, à Madison Avenue do outro lado, e depois para cima, à Rua 72, este.
Podia ter ido a pé até à Columbus Avenue e tomado um autocarro para a baixa.
Podia ter tomado um autocarro para a parte alta da cidade na Amsterdam.
Um autocarro da Broadway tê-lo-ia levado à Rua 42 e para leste.
Um autocarro da 5ª Avenida, tomado na esquina da Broadway com a Rua 72, tê-lo-ia levado para baixo, via 5ª Avenida, para Greenwich Village.
O IRT da 7ª Avenida podia tê-lo levado ao Bronx ou a Brooklyn.
Mas também podia ter estado um carro à espera, para o levar a qualquer lado.
Quando voltei ao prédio, precisamente dezassete minutos depois, estava outro funcionário uniformizado sentado à secretária.
- Mr. Lord?
- O próprio.
Expliquei-lhe quem era e que estava a investigar o desaparecimento do professor Stonehouse em nome dos advogados da família.
- Já disse aos polícias - declarou. - disse-lhes tudo quanto sabia.
- Naturalmente. Ele saiu do prédio cerca das oito e quarenta e cinco da noite de dez de Janeiro. Certo?
- Certo.
- Usava chapéu, sobretudo, cachecol? -Sim.
- Não lhe disse nada? -Nem uma palavra.
- Mas isso não era invulgar, pois não? Quero dizer, ele não era exactamente aquilo a que se chama um homem sociável, pois não?
- Pode dizê-lo.
- Mr. Lord, lembra-se como estava o tempo, nessa noite?
Olhou para mim. Tinha grandes olhos azuis, inocentes.
- Não me lembro. Foi há um mês.
Tirei uma nota de cinco dólares da carteira e empurrei-a por cima do tampo de mármore da secretária. Estendeu uma manápula gretada e fez desaparecer a nota.
- Agora lembro-me - declarou Mr. Bert Lord. - Estava uma noite de cão. Fria. Caía uma chuva gelada, quase saraiva. Lembro-me de pensar que ele devia ser idiota, para sair numa noite daquelas.
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Frio - repeti. - Chuva gelada. Mas ele não lhe pediu que chamasse um táxi?
- Ele? - Riu desdenhosamente. - Nem pensar! Tinha medo que esperasse que me desse vinte cinco cêntimos por acender a luz do toldo.
- Portanto, limitou-se a sair?
- Exactamente.
- Não viu para que lado foi?
- Não. Não me interessava nada.
- Obrigado, Mr. Lord.
- Não tem de quê.
Fui directamente para casa. Cheguei pouco depois das cinco horas, mudei de roupa e, de calças de sarja grossa e velho casaco desportivo, saí para jantar. Lá estava o comandante Bramwell Shank na cadeira de rodas, no patamar, voltado para a escada. Girou habilmente a cadeira, quando ouviu a minha porta abrir-se.
- Mas que diabo...? Tenho estado aqui à espera que você chegasse, e afinal estava lá dentro!
- Cheguei cedo - expliquei. - Não há muito tempo.
- Tenho estado à espera - repetiu.
- Comandante, estou com fome e vou comer qualquer coisa. Posso bater à sua porta quando voltar? Daqui a uma hora, mais ou menos?
- Depois das sete - respondeu. - Estão a repetir o Ironsides e eu quero ver. Depois das sete está bem. Não há nada bom até às nove.
O Woody's da Rua 23, oeste, pertencia a Louella Nitch -que também o dirigia -, uma senhora viúva cujo marido lhe deixara o restaurante e pouco mais. Não tinha filhos e creio que às vezes considerava a clientela como família. Na sua maioria, os fregueses eram das imediações e conheciam-se uns aos outros. Era quase um clube. Todos a tratavam por Nitchy.
Quando cheguei, na ventosa noite de segunda-feira, só estavam uns doze bebedores na sala da frente e seis pessoas a jantar na do fundo. Mas a casa estava quente, os pequenos candeeiros das mesas brilhavam, com uma luz encarnada, a máquina de discos tocava uma gravação antiga e rara de Bing Crosby (Just a Gigolô), e por tudo isso o restaurante pareceu-me um paraíso que me recebia de braços abertos.
Louella Nitch tinha cerca de quarenta anos e era a mulher mais magra que já vira. Tinha pele morena e usava o cabelo cortado curto, aconchegado à cabeça como um capacete preto. Pintava-se liberalmente, com "sombra" escura nos olhos e bâton aplicado com minúcia nos lábios. Usava argolas nas orelhas, anéis vitorianos e colares com medalhões barrocos e amuletos.
Quando entrei, estava sentada do lado da frente de balcão, a conferir
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uma rima de contas com uns óculos de meias lentes que lhe faziam a cara parecer ainda mais pequena, como a de uma criança.
- Josh! -exclamou. -Por onde tem andado? A noite passada sonhei consigo.
- Obrigado.
Sentei-me no tamborete ao lado dela e pedi uma cerveja. Ela contou-me o sonho: estava a assistir a um casamento e eu esperava que a noiva descesse a nave. Eu era o noivo.
- E quem era a noiva? - perguntei-lhe. -Não a viu?
Abanou desconsoladamente a cabeça.
- Acordei antes de ela entrar. Mas a si vi-o perfeitamente, Josh. Não está a pensar em casar, pois não?
- É pouco provável. Quem quereria um anão como eu? Pôs a mão no meu braço.
- Pensa demasiado nisso, Josh. É um homem bem-parecido, tem um emprego seguro... Não faltam raparigas desejosas de uma sorte dessas.
- Indique uma.
- Fala a sério? - perguntou, a olhar-me com atenção. - Se fala a sério, posso resolver isso imediatamente. Não me refiro a um arranjinho para uma noite. Refiro-me a uma simpática, saudável e bondosa rapariga da vizinhança que quer arrumar-se e ter filhos. Que me diz? Posso fazer um telefonema?
- Bem... para já, não, Nitchy. Ainda não estou preparado.
- Que idade tem? Vinte e oito?
- Trinta e dois - confessei.
- Meu Deus, só dispõe de dois anos! As estatísticas provam que se um homem não casa até aos trinta e quatro anos, as probabilidades são de nunca casar. Quer transformar-se num desses velhos solteirões rabugentos, que vejo por aí a resmungar com a caneca da cerveja?
- Oh, creio que casarei um destes dias!
Suponho que ela se apercebeu do meu constrangimento, pois mudou bruscamente de assunto:
- Veio tomar uma bebida ou quer jantar, Josh? Não estou a querer impingir, mas o chefe fez uma rica carne guisada, e se você quer jantar vou pedir que ponham alguma de parte para si, antes que chegue a malta toda e se acabe.
- Está-me a apetecer carne guisada - respondi. - Vou comer já. Podem servir-me aqui, no balcão?
- Porque não? vou dizer à Hettie que o sirva. Olhe, ali está uma rapariga para si, Josh, a Hettie.
- Só que ela pesa quase mais vinte e cinco quilos do que eu.
- Tem razão - concordou, e deu uma gargalhada rouca. - Teriam de o despegar do tecto!
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O guisado estava excelente.
Estava a vestir a canadiana quando Louella Nitch se aproximou, apressada.
- Tão cedo?
- Tenho trabalho para fazer - menti, a sorrir.
- Escute, Josh, eu não falei só por falar. Se quiser conhecer uma rapariga decente, diga-me. A sério.
- Sei que é a sério, Nitchy. É muito amável. Mas eu próprio arranjarei a minha.
- Espero que sim - redarguiu, tristemente; mas depois animou-se:
- Claro que arranjará. Lembra-se do meu sonho? Todas as vezes que cá tem vindo tem sido sozinho. Mas um destes dias vai en trar a valsar por aquela porta, com uma princesa pelo braço. Uma princesa!
- Exactamente.
Capítulo segundo
A sacudir comida de peixes dos dedos, Mr. Tabatchnick olhou para mim como se esperasse o pior.
- e exactamente como, Mr. Bigg - perguntou, com o seu vozeirão-, conseguiu entrar na residência Kipper?
Desejei que ele não tivesse feito aquela pergunta. Mas não lhe podia mentir, não fosse dar-se o caso de Mrs. Tippi Kipper telefonar para verificar se a minha história era verdadeira. Por isso, admiti que alegara estar encarregado de fazer um inventário dos bens de Kipper. Receara que ele ficasse furioso ao conhecer o meu subterfúgio. Ao invés, porém, pareceu divertido. Pelo menos todas as pregas e regos da sua cara de cão de caça pareceram distender-se ligeiramente numa careta que poderia ser de divertimento.
Mas quando falou fê-lo em voz grave:
- Mr. Bigg, quando um inventário completo de um espólio é submetido às autoridades competentes, deve ser assinado pelo advogado disso encarregado e, neste caso, pelo co-executor. Que por coincidência sou eu. A não indicação de bens, quer deliberadamente, quer por inadvertência, pode constituir delito. Tem conhecimento disso?
- Agora tenho - respondi, tristemente. - Mas eu não pretendia fazer o inventário definitivo, legal. Eu só queria...
- Sei perfeitamente o que queria - interrompeu-me, impaciente. - Queria entrar na casa. Não foi um mau estratagema. Mas
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sugiro-lhe que, se Mrs. Kipper ou qualquer outra pessoa o interrogar, de futuro, quanto às suas actividades, diga que está a fazer um inventário preliminar. O inventário definitivo, ao qual terei de apor a minha assinatura, será compilado por advogados e avaliadores experimentados neste género de trabalho. Ficou entendido?
- Sim, senhor. Só uma coisa, Mr. Tabatchnick. Além deste caso Kipper, estou também a tratar de um assunto para Mr. Teitelbaum. O desaparecimento de um cliente, o professor Yale Stonehouse.
- Estou ao corrente disso - declarou, com ar importante.
- Além do meu trabalho regular - recordei-lhe. - Até agora, tenho conseguido desempenhar-me das missões de rotina. Mas os casos Kipper e Stonehouse estão a levar-me cada vez mais tempo. Ajudar-me-ia muito se dispusesse dos serviços de uma secretária. Alguém que se encarregasse de escrever à máquina e arquivar.
Fitou-me.
- Não terá necessariamente de ser a tempo inteiro - apressei-me a acrescentar. - Talvez uma assistente temporária ou a meio tempo, que viesse alguns dias por semana ou algumas horas por dia. Não peço uma empregada permanente. Nada do género, Mr. Tabatchnick.
Suspirou ruidosamente.
- Mr. Bigg, ficaria surpreendido com a inevitabilidade com que assistentes em tempo parcial ou temporárias se tornam empregadas permanentes. No entanto, acho que o seu pedido tem algum mérito. Discutirei o assunto com os outros sócios principais.
Estive quase a pedir também um gabinete maior, mas arrepiei caminho. Construiria o meu império lentamente.
- Obrigado, Mr. Tabatchnick - agradeci, e peguei na pasta. - Um último pormenor: agradecia a sua permissão para falar com os dois filhos de Kipper, os que gerem a empresa têxtil.
- Porque não?
- E que história sugere que lhes conte? Como pretexto para lhes falar da morte do pai?
- Oh... - murmurou, quase sonhadoramente. - Deixo isso consigo, Mr. Bigg. Parece estar a sair-se muito bem... por enquanto.
Telefonei a Powell Stonehouse. Era a segunda vez que tentava comunicar com ele naquela manhã. Uma mulher atendera a primeira chamada e dissera-me que ele estava a meditar e não podia ser interrompido. Desta vez consegui apanhá-lo. Identifiquei-me, expliquei o meu interesse no desaparecimento do pai e perguntei-lhe quando podia vê-lo.
- Não sei que utilidade teria isso - respondeu-me, em voz seca. Já disse aos polícias tudo quanto sei.
- com certeza, Mr. Stonehouse, estou ao corrente. Mas há algumas
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informações de fundamentação que só o senhor poderá dar. Não demorará muito tempo.
- Não podemos tratar disso pelo telefone?
- Prefiro não o fazer. Relaciona-se com alguns... enfim, com alguns assuntos confidenciais.
- Tais como? - perguntou, desconfiado. Não me estava a facilitar as coisas.
- Bem... relações familiares que podem estar ligadas ao desaparecimento do seu pai. Gostaria de facto de falar pessoalmente consigo, Mr. Stonehouse.
- Pronto, está bem - acedeu, contrafeito. - Mas não quero perder muito tempo com o assunto.
O filho enlutado.
- Não demorará muito - garanti-lhe de novo. - Escolha a altura que melhor lhe convier.
- Esta noite - decidiu, brusco. - Medito das oito para as nove. Concedo-lhe uma hora depois das nove. Não chegue antes; teria um efeito destruitivo.
- Estarei lá depois das nove - prometi. - Tenho a sua morada. Obrigado, Mr. Stonehouse.
- Paz.
Fui apanhado de surpresa. Paz. Julgava que tivesse desaparecido com os "Filhos das Flores" da década de 1960.
O meu telefonema seguinte foi para o mordomo Chester Heavens da residência Kipper. Disse-lhe que gostaria de passar por lá por volta das duas da tarde, para continuar o meu inventário, se não causasse inconveniente. Respondeu-me estar certo de que não causaria, que a "madame" deixara ordens para eu ser admitido sempre que o pedisse.
Fui almoçar à uma hora e comi um cachorro-quente acompanhado por uma cerveja fraca num restaurante de pratos rápidos da 3ª Avenida. Depois retrocedi para a Madison e fui ver de novo a montra da loja de vestuário. A camisola verde ainda lá estava.
Cheguei à residência Kipper antes da hora e dei uma volta pelo quarteirão até às duas horas. Depois toquei à campainha da porta de ferro gradeada. Levava na pasta canetas, livro de apontamentos e o esboço de plantas, feito de memória, dos vários andares da casa.
Chester Heavens abriu-me a porta, com o ar de um cangalheiro muitíssimo bem alimentado. Informou-me de que Mrs. Kipper estava na sala com o reverendo Knurr e alguns outros amigos íntimos. Mrs. Bertha Neckin e Perdita Schug estavam na cozinha a preparar o chá para a pequena reunião.
- Teremos muito gosto em receber lá o senhor, se desejar uma chávena de café ou de chá - acrescentou.
Agradeci-lhe, mas disse-lhe que preferia acabar primeiro o meu
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trabalho do inventário. Depois juntar-me-ia com prazer ao pessoal, na cozinha. Inclinou-se gravemente e disse-me que estivesse à vontade. Se precisasse de alguma ajuda, poderia tocar a chamá-lo de quase todas as divisões da casa.
Tinha uma ideia na cabeça. Na tarde em que Sol Kipper se lançara para a morte, a mulher dissera que estivera com ele no quarto principal do quarto andar e depois descera para o rés-do-chão. Os criados tinham-no confirmado. Minutos depois, o corpo de Kipper caíra ruidosamente no pátio de mosaicos.
O que me interessava era como Mrs. Kipper descera. De elevador, presumia. Não era mulher para descer a pé cinco compridos lanços de escadas.
Se descera de elevador, então este devia encontrar-se no rés-do-chão aquando da morte do marido. A não ser, claro, que Kipper tivesse carregado no botão de chamada, esperado que o elevador viesse do rés-do-chão e depois o utilizasse para subir ao terraço do quinto andar.
Mas isso não parecia provável. Parei dentro do quarto principal e consultei o meu relógio. Depois caminhei com passo firme para o corredor, segui para leste, para a escada das traseiras, subi-a até ao quinto andar, entrei na sala de festas e dirigi-me para as portas-janelas fechadas à chave que davam para o terraço. Olhei de novo para o relógio. Não chegara a um minuto completo. Isso não significava necessariamente que um homem decidido a matar-se não esperasse por um elevador lento. Provava apenas que ia uma breve distância do quarto principal, onde a nota de suicídio fora encontrada, ao salto para a morte.
Passei a hora seguinte às voltas pelos andares superiores da residência, a aperfeiçoar as minhas plantas e a tomar notas sobre móveis, carpetes, quadros, etc., mas principalmente a tentar familiarizar-me com a disposição do edifício.
Examinei a porta do elevador de cada andar. Não se tratava apenas de curiosidade mórbida da minha parte; eu tinha realmente a percepção de que o funcionamento do elevador desempenhava um papel importante nos acontecimentos daquela tarde fatal.
As portas do elevador eram idênticas: portas convencionais de pesado carvalho, com almofadas. Todas as almofadas eram sólidas, com excepção de uma de vidro ao nível dos olhos, que permitia ver quando o elevador chegava. Estavam todas fechadas e só se podiam abrir quando o elevador parava ao nível de cada uma. Então abríamos a porta de madeira, corríamos a porta de aço articulada e entrávamos no elevador.
Fixo ao batente do exterior de cada porta do elevador havia um mostrador não muito maior do que um relógio de pulso grande. Os mostradores encontravam-se sob pequenas abóbadas de vidro e andavam
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para a frente ou para trás conforme o elevador subia ou descia. Por outras palavras, consultando o mostrador de qualquer andar podia-se determinar a localização exacta do elevador e dizer se estava ou não em movimento.
Na altura, não fiquei a saber que significado isso podia ter, mas resolvi tomar nota do pormenor para futura referência.
Quando descia para o rés-do-chão, ouvi sons de conversas e risos vindos das portas abertas da sala. Perdita Schug passou apressada, com uma bandeja das tais minúsculas sanduíches. Mal teve tempo para me piscar o olho. Chester Heavens seguiu-a com passo mais imponente, com uma pequena salva de prata contendo um único copo de brande, segundo me pareceu.
Segui na direcção da cozinha e da copa. Chegado à porta da cozinha virei-me e olhei para trás. Daquele ponto, podia ver a extensão do corredor, a porta do elevador, as portas da sala e uma pequena parte do átrio de entrada. Não podia ver a porta de entrada.
Entrei na cozinha desarrumada e daí passei à copa. Uma mulher alta e angulosa estava sentada numa das cadeiras de espaldar alto, a beber uma chávena de chá. Usava um avental de cotim por cima da farda preta com gola e punhos brancos.
- Mrs. Neckin? - perguntei.
Olhou-me com uma expressão de certa antipatia.
- Sim. - A sua voz lembrou-me um pau de giz mal assente num quadro.
- Sou Joshua Bigg - apresentei-me, com o meu sorriso mais insinuante.
Expliquei-lhe quem era e o que estava a fazer na residência Kipper, e disse-lhe que Chester Heavens me convidara a passar pela cozinha antes de me ir embora.
- Ele está ocupado - informou-me secamente.
- Para uma chávena de chá - continuei significativamente, a fitá-la. -Para uma agradável e cordial chávena de chá.
Quase a pude ver debater consigo mesma até onde podia levar a sua antipatia.
- Nesse caso, sente-se - acabou por dizer. - Está aqui uma chávena e está aqui o bule.
- Obrigado. É muito amável.
A ironia não produziu nenhum efeito. O mau génio já a azedara por completo.
- Uma tarde atarefada para si? - perguntei agradavelmente, enquanto me sentava e deitava uma chávena de chá.
- Oh, eles! -exclamou, com grande irritação.
- Talvez seja benéfico para Mrs. Kipper receber de novo - observei. -Depois da tragédia.
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- Oh, sim! -resmungou, ácida. - Ele ainda não está frio e ela já a dar festas. E não me importo a quem vá dizer que eu o disse.
- Não tenho nenhuma intenção de o dizer a ninguém - garanti-lhe. - Não sou mexeriqueiro.
- Ah, não? - perguntou, a olhar-me desconfiadamente.
- Está com os Kippers há muito tempo, Mrs. Neckin? - indaguei, a sorver o chá, que era bom, mas não tanto como o de Mrs. Dark, da casa dos Stonehouses.
- Estive com Mr. Sol desde que comecei a trabalhar - respondeu, agastada. -Muito antes de ela aparecer. - A governanta acompanhou a última frase com um polegar apontado, por cima do ombro, na direcção da sala.
- Sei que anteriormente ela esteve no teatro - observei, em tom casual.
- No teatro! - exclamou, mas pronunciou triato. - Uma corista, foi o que ela foi.
Depois, como que grata por eu lhe ter proporcionado ensejo de dar vazão à malícia, levantou-se, foi à cozinha e voltou com um pequeno prato de petit-fours. E voltou a encher-me a chávena do chá sem eu lhe pedir.
Mrs. Neckin era uma camponesa ossuda, toda linhas duras e ângulos agudos. A figura de peito raso que se encontrava por baixo do avental e da farda movia-se aos sacões bruscos e aos safanões. Enquanto deitava o chá, tive a desagradável sensação de que gostaria muito mais de estar a torcer o pescoço a um frango.
- Ele era um santo - disse, ao voltar a sentar-se, desta vez numa cadeira mais próxima da minha. - Nunca viveu um homem melhor. Agora está no Céu, aposto.
Emiti um ruído de pesar.
- Vou-me embora - informou-me, num murmúrio áspero. - Não trabalharei para aquela mulher sem Mr. Sol.
- Custa a crer que um homem como ele acabasse com a própria vida - observei.
- Oh, sim! - exclamou, desdenhosamente. - Acabar com a própria vida! Isso é o que eles dizem.
Olhei-a, cheio de espanto.
- Mas ele saltou do terraço! Não saltou?
- Pode ter saltado - admitiu, a recostar-se na cadeira. - Não digo o contrário. Mas que o levou a isso? Responda-me lá, ande: que o levou a isso?
- Ela? - perguntei, em voz baixa. - Mrs. Kipper?
- Ela? - repetiu, desdenhosa. - Na! Ela tem leite nas veias. É muito pacholas. Foi ele.
- Ele?
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- Chester Heavens - respondeu-me, a acenar com a cabeça.
- Ele levou Mr. Kipper ao suicídio? - perguntei, e ouvi a minha própria voz hesitar.
- Claro que sim - confirmou Mrs. Bertha Neckin com grande satisfação. - Aquilo foi praga da Igreja dele. Bebem sangue humano, sabia? Calculo que o Chester lhe fez um encantamento e foi isso que levou Mr. Sol a saltar. Levou-o a isso.
Bebi de um trago o resto do chá. Queimou-me.
- Porque faria Chester uma coisa dessas?
Chegou-se mais para mim, ficou tão perto que aspirei o seu hálito a cheirar a anis.
- é fácil de ver - garantiu. -Eu sei o que se passa. Vivo aqui, vejo. - Fez um círculo com o indicador e o polegar esquerdos e depois fez entrar e sair do círculo o indicador direito, num gesto tão obsceno que me agoniou. -É isso que ele quer. É negro. Pode ser muito claro, mas para mim continua a ser um negro. E ela é uma senhora branca, por muito reles que possa ser. Foi por isso que lançou a praga a Mr. Sol. Oh, foi!
Empurrei a cadeira para trás.
- Mrs. Neckin, muito obrigado pelo chá. Foi muito amável. E pode ficar descansada que não repetirei o que disse a ninguém.
No corredor, desviei-me para o lado ao ver Perdita vir na direcção da cozinha com um tabuleiro cheio de copos altos e copos de vinho. Ela parou e sorriu-me.
- Quinta-feira - lembrou-me. - Estou livre na quinta-feira. O meu número vem na lista, como lhe disse.
- Pois disse.
- Experimente. Vai gostar.
Ainda estava a gaguejar quando ela seguiu o seu caminho para a cozinha.
Chegara ao átrio de entrada quando Chester Heavens saiu da sala, à frente de Mrs. Tippi Kipper e do reverendo Godfrey Knurr. Através das portas abertas vi diversas senhoras sentadas num círculo, a tagarelar enquanto bebiam chá e mordiscavam pequenas guloseimas.
- Então, Mr. Bigg - disse-me Mrs. Kipper, na sua voz fria e irónica-, já acabou, por hoje?
- Creio que sim, minha senhora. Ainda há muito que fazer, mas creio que estou a progredir.
- Chester ofereceu-lhe alguma coisa?
- Ofereceu, sim, minha senhora. Bebi uma agradável chávena de chá, pela qual estou grato.
- Quem me dera ter tomado só isso - comentou Godfrey Knurr a dar palmadinhas no estômago. - Tippi, se continua a servir aqueles pastéis tenho de deixar de cá vir.
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- Precisa de conservar a sua força - murmurou ela, e ele riu-se. Estavam parados ao lado um do outro quando o mordomo trouxe
os agasalhos de Knurr e os meus, do armário. Estendeu ao reverendo uma trincheira suja e um chapéu irlandês de tweed, um daqueles modelos amachucados, com a aba descaída a toda a volta.
- Posso dar-lhe uma boleia, Mr. Bigg? - ofereceu-me Knurr. -Tenho o meu carro lá fora.
O seu carro era uma velha baratinha Volkswagen, que tinha sido pintada muitas vezes.
- O irradiador está avariado - informou-me, quando entrámos. - Tem de ter paciência. Mas não está muito frio, pois não? Talvez desçamos a Quinta e depois cortemos na Trinta e Oito. Está bem?
- Óptimo - respondi.
Depois fiquei calado enquanto ele abria caminho através do trânsito e chegava à 5ª Avenida.
- Mrs. Kipper parece estar a suportar bem - observei. - Refiro-me à morte do marido.
- Sim, está a refazer-se bem - concordou, enquanto se adiantava a uma luz e guinava para a esquerda na 5ª Avenida. - Os primeiros dias foram difíceis. Muito difíceis. Cheguei a pensar que teria de ser hospitalizada. Meu Deus, foi praticamente uma testemunha ocular! Ouviu o embate do corpo.
- Foi uma sorte o senhor estar lá.
- Bem, eu não estava lá. Apareci alguns minutos depois. Que cena! Gritos, choros, toda a gente a correr de um lado para o outro... Uma balbúrdia. Fiz o que pude. Chamei a Polícia, etc.
- Conhecia-o, pastor?
- O Sol Kipper? Conhecia-o bem. Um belo homem. Generoso. Tão generoso! Tão interessado no trabalho que eu faço!
- Importa-se que faça perguntas a esse respeito? Quero dizer, a respeito do seu trabalho. Sinto curiosidade.
- Se me importo? - repetiu, e soltou a sua gargalhada viva. - Encanta-me falar disso. Bem... Ouça, posso tratá-lo por Joshua?
- Josh, se desejar.
- Prefiro Joshua. Soa agradavelmente ao Velho Testamento. Bem, Joshua, a respeito do meu trabalho... Alguma vez ouviu o termo "fazedores de tendas"?
- Fazedores de tendas? Como Omar?
- Não é bem isso. Mais como São Paulo. De qualquer modo, o problema é fundamentalmente financeiro. Há milhares e milhares de clérigos protestantes e as igrejas não chegam para todos. Por isso, são cada vez mais os que se dedicam a actividades seculares, para o que existe um honroso precedente. São Paulo fazia tendas para se poder manter e pregar. é por isso que nos intitulamos "fazedores de tendas".
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Encontrará clérigos nos negócios, nas artes, a trabalhar na recolha de fundos, a escrever livros e até na política. Eu sou um fazedor de tendas. Não tenho uma igreja regular, embora de vez em quando substitua pastores em tempo integral que estão de férias, doentes, com ressaca ou em retiro. Mas mantenho-me principalmente pedindo.
- Olhou-me brevemente, de soslaio. - Escandaliza-o?
- Não, francamente. Creio lembrar-me que também existe um honroso precedente para isso.
- Exactamente. Existe - confirmou, aprovador. - Com a breca, não quero dizer que percorro as ruas como um mendigo, de púcaro na mão... mas vai dar no mesmo. Hoje viu-me a trabalhar. Encontro-me com uma quantidade de gente rica, geralmente mulheres, e com outras pessoas menos ricas. Cravo-lhes os dentes. Em troca dou-lhes conselhos ou escuto-as apenas com compreensão. Nove em cada dez querem somente quem as ouça. Se pedem conselho, dou-o. Algumas vezes é espiritual, mas mais frequentemente é prático. Simples bom senso. As pessoas com problemas geralmente estão tão transtornadas que não conseguem pensar com clareza.
- Isso é verdade, creio.
- Isto é, portanto, uma parte das minhas actividades de fazedor de tendas: conselheiro espiritual dos ricos. Garanto-lhe que são tão carecidos dele como os pobres.
- Acredito.
- Mas quando oferecem uma contribuição, aceito. com os diabos, se aceito! Não apenas para me poder manter, mas também para financiar a outra parte do meu trabalho. Não se trata exactamente de uma igreja na frente de uma loja. Nada tão elaborado como a Sociedade do Cordeiro Sagrado, no Harlém, do Chester Heavens. E também não é um clube social. Uma combinação de ambas as coisas, talvez. Fica na Carmine Street, em Greenwich Village. Eu moro nas traseiras. Trabalho com rapazes dos oito aos dezoito anos. com os que estão em apuros, com os que estiveram em apuros e com os que vão estar em apuros. Dou-lhes conselhos pessoais ou uma espécie de terapia de grupo e muito e duro exercício físico num pequeno ginásio que instalei do lado da frente da casa, para darem vazão a parte do seu excesso de energia e violência.
Entretanto, chegáramos à Rua 59, onde o trânsito era verdadeiramente pavoroso. Knurr fazia malabarismos com a sua baratinha, ultrapassava outros motoristas e abria caminho por nesgas de espaço tão estreitas que eu fechava os olhos.
- De onde é você, Joshua? - A pergunta inesperada sobressaltou-me.
- Do Iowa. Originalmente.
- Sério? Eu nasci mesmo na porta ao lado, no Illinois. Mas passei
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a maior parte da minha vida em Indiana, perto de Chicago, antes de vir para Nova Iorque. É uma grande cidade, não é?
- Chicago?
- Nova Iorque. É o único lugar para se estar. O centro. Ou vencemos aqui, ou na realidade nunca vencemos. O contraste! A riqueza e a pobreza. A fealdade e a beleza. Não sente isso?
- Oh, sim! Sinto.
- A oportunidade. Creio que foi o que mais me impressionou a respeito de Nova Iorque: a oportunidade. Aqui um homem pode ir para as estrelas.
- Ou para o Inferno - comentei.
- Oh, sim! Também para aí. Escute, gostaria que fizesse uma coisa. Se disser não, compreenderei. Mas gostaria que visitasse a minha casa em Greenwich Village. Desse uma vista de olhos, visse o que estou a fazer... ou melhor, a tentar fazer. Faz isso?
- com certeza - respondi logo. -com prazer. Muito obrigado.
- Desconfio de que ando à procura de aprovação - confessou, e lançou-me de novo um olhar rápido, a sorrir. -Mas gostaria que visse o que se passa. E, para ser absolutamente franco, existem uns pequenos problemas jurídicos a respeito dos quais espero que me possa ajudar. O meu arrendamento é de propriedade residencial e eu tenho lá a tal igreja ou clube, como preferir chamar-lhe. Alguns bons vizinhos apresentaram queixa.
Fiquei horrorizado.
- Não sou advogado, Mr. Knur.
- Não é? - perguntou, intrigado. - Pensei que trabalhava para os advogados de Mrs. Kipper...
- E trabalho. Numa categoria paralegal. Mas não sou advogado, não sou formado em leis.
- Mas está a fazer o inventário do espólio...
- Um inventário preliminar - especifiquei. - Terá de ser conferido e autenticado pelo advogado titular antes de o inventário final dos bens ser apresentado às autoridades competentes.
- Ah! Bem, o convite mantém-se. Expor-lhe-ei os meus problemas e talvez você possa perguntar a opinião a um dos advogados da sua firma e conseguir-me conselhos jurídicos grátis.
- Terei muito gosto em fazê-lo. Qual é a melhor altura para lá ir?
- Qualquer altura é boa. Não, espere... é melhor telefonar-me primeiro. Estou na lista. Da parte da manhã é mais conveniente. Geralmente passo as tardes com os meus amigos ricos da parte alta da cidade, A escutar os seus problemas e a beber as suas bebidas.
Parou defronte do escritório da TORT e inclinou-se para examinar o edifício através da janela do carro.
- Bonito - comentou. - Uma residência citadina reconvertida.
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Custa a acreditar que lugares assim foram em tempos residências particulares. A riqueza! Irreal.
- Mas ainda existe - lembrei-lhe. - Refiro-me à riqueza. Como a residência Kipper.
- Oh, sim, ainda existe! -Deu-me uma palmada no joelho e declarou: - Não tenho nada a opor. Só quero participar.
- Claro - respondi tristemente. - Eu também.
- Escute, Joshua, falei a sério a respeito do convite. Para o diabo com os conselhos jurídicos grátis. Gosto de si e gostaria de o ver mais vezes. Dê-me uma telefonadela e vá visitar-me.
Agradeci-lhe o convite, prometi vagamente contactá-lo, despedi-me e dirigi-me para o meu gabinete.
Acrescentava laboriosamente qualquer coisa aos meus relatórios, enquanto me perguntava se estaria a chegar a algum lado, quando o telefone tocou. Era Percy Stilton. Parecia tenso, quase zangado.
Perguntou-me se tinha descoberto alguma coisa de novo e eu falei-lhe da minha recente visita à residência Kipper. Riu sem vontade quando lhe relatei o que Mrs. Neckin dissera a respeito de Chester Heavens ter rogado uma praga a Sol Kipper.
- Devia tê-lo avisado a respeito dela, Josh. Uma megera. Estão-nos sempre a aparecer pela proa. Fazem sentido até certo ponto e depois deixam-nos de mãos a abanar. com que opinião ficou de Godfrey Knurr?
- Gosto dele - respondi sem hesitar. - Para clérigo, pragueja como um tropa, mas é muito franco. Convidou-me para ir a Greenwich Village ver o que está a fazer com delinquentes juvenis. Francamente, não me pareceu um homem que tenha alguma coisa a esconder.
- Foi também essa a impressão com que fiquei - disse Percy. - E foi tudo? Mais nada?
- Uma patetice. A respeito do elevador.
Expliquei-lhe que se Mrs. Kipper tivesse descido no elevador, este deveria encontrar-se no rés-do-chão quando o marido mergulhara para a morte. A não ser que ele o tivesse chamado de novo para cima, a fim de o levar do quarto principal, no quarto andar, para o terraço do quinto andar.
- Podia ter chamado - comentou Stilton.
- Decerto - concordei. - Mas eu medi o tempo do quarto para o terraço, percorrendo o corredor a pé e subindo a escada das traseiras. Menos de um minuto.
Não precisei de soletrar para ele entender.
- Compreendo. Quer que eu fale com os primeiros polícias a chegarem ao local e veja se algum deles se lembra onde estava o elevador quando chegaram?
- Exactamente.
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- E se estava no rés-do-chão isso demonstra que Mrs. Kipper o levou para baixo, o que não prova absolutamente nada. E se estava no quinto andar só indica que talvez Sol Kipper tenha subido nele para o seu grande salto do terraço. O que não prova absolutamente nada. Zero mais zero igual a zero.
Suspirei.
- Tem razão, Percy. Estou a agarrar-me a bagatelas, a tudo e mais alguma coisa.
- Eu pergunto aos polícias - prometeu-me. -É interessante.
- Suponho que sim.
- Josh, você parece em baixo.
- Não estou exactamente em baixo, mas intrigado.
- Começa a pensar que Sol Kipper foi realmente um suicida?
- Não sei... - respondi, devagar. - Creio apenas que começo a ter algumas dúvidas a respeito das minhas bonitas teorias. -Não tenha.
- O quê?
- Não tenha dúvidas. Eu disse-lhe que pensava que andava alguém a intrujar-nos. Lembra-se? Agora tenho a certeza disso. Esta manhã, cedo, as autoridades do porto pescaram um corpo do North River, nas imediações da Rua Trinta e Quatro. Uma mulher caucasiana, dos seus cinquenta anos. Não estava na água havia muito tempo. Doze horas, no máximo.
- Percy, não se trata... ?
- Oh, sim! - exclamou, em voz sem timbre. - Trata-se de Mrs. Blanche Reape. Identificação positiva a partir das impressões digitais. Ela tinha cadastro. Gamanço e um velho caso de prostituição. Não restam dúvidas, é a viúva de Marty.
Fiquei calado, a recordar a mulher ruidosa e espalhafatosa do Dirty Shame, a pagar bebidas a toda a gente.
- Josh? - perguntou o detective Stilton. - Está? -Estou, sim.
- O veredicto oficial é morte por afogamento. Mas encontrou-se no sangue um nível alcoólico muito elevado. Caiu ao rio sob os efeitos do álcool. É assim que vai ficar nos livros. Acredita?
- Não.
- Eu também não. Sol Kipper cai de um quinto andar, Marty Reape cai à frente de uma composição do metropolitano e a sua viúva cai ao rio. É muita queda.
- Pois é - concordei, baixinho.
- O quê? Não ouvi o que disse.
- Disse que sim - respondi, mais alto. - Concordo consigo.
- Pode apostar de caras! - exclamou furiosamente, e depois, de súbito, desatou a gritar, quase a engasgar-se na bílis:
- Não gosto que
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me baralhem - gritou. - E há um filho da puta espertalhão e vivaço que anda a baralhar-me. Não gosto disso. Não gosto disso de maneira nenhuma!
- Percy, acalme-se, por favor.
- Sim... sim, agora estou calmo. Estou sereno. -Pensa que os três...?
- Oh, sim! Porque não? Kipper foi o primeiro. Depois Marty, porque tinha a prova. Depois a viúva. Ajusta-se. Alguém pagou à mulher os arquivos. A prova que Marty tinha a respeito do espólio Kipper. Depois ela tornou-se sôfrega e quis cravar os dentes em mais. Adeus, Blanche.
- Mas alguém faria uma coisa dessas? Matar três pessoas?
- com certeza. É fácil. O primeiro corre tão bem, tão suavemente, com tanta limpeza! Depois não pode haver azar. São donos do mundo. Digo-lhe tudo isto, Josh, para saber que não está a perder o seu tempo com o caso Kipper. Não conseguirei que o reabram apenas com o que temos; você terá de seguir para a frente. Só quero que saiba que estou aqui e pode contar comigo, que estou por si.
- Obrigado, Percy.
- Dê notícias, velho amigo. Averiguarei essa história do elevador para si. O grandíssimo sacana! - gritou, vingativo. - Havemos de fritá-lo!
Powell Stonehouse morava na Jones Street, logo à saída da Bleecker. Não se tratava de um edifício imponente: era uma estrutura alta de dois andares e sótão, de tijolo vermelho gasto, com uma cornija a desfazer-se e um gradeamento de ferro torcido e ferrugento à volta. Cheguei alguns minutos depois das nove da noite, toquei à campainha com a indicação de Chard-Stonehouse e a porta da rua abriu-se quase imediatamente. Subi ao último andar.
Fui acolhido à porta do sótão por uma mulher jovem, muito escura, delgada e de altura mediana. Indiquei o meu nome e ela apresentou-se como Wanda Chard, num murmúrio tão baixo que não tive a certeza de ter ouvido bem e lhe pedi que repetisse.
Levou-me para uma sala enorme que aparentemente constituía o apartamento todo, com excepção de uma pequena casa de banho e uma cozinha ainda mais pequena. Havia uma cama de plataforma: uma placa de espuma de borracha em cima de uma porta de madeira compensada assente em blocos de cinza. Havia almofadas espalhadas por toda a parte e de todos os tamanhos, formatos e cores. Mas não havia cadeiras, nem sofás, nem mesas. Presumi que os moradores comiam no chão e, supus, se recostavam em almofadas ou na cama, para descansarem.
A sala era grande e nua. Era óbvia a opção de renunciar a coisas. Não havia nem rádio, nem televisor, nem livros. Uma lâmpada fraca.
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Não havia decorações nem bricabraque. Havia uma cómoda pintada de branco e um armário sem portas onde estava pendurado algum vestuário masculino e feminino. Praticamente não havia mais nada para olhar a não ser Miss Chard.
Ela aceitou o meu sobretudo e o meu chapéu, que depositou na cama, e depois indicou um conjunto de almofadas. Obedientemente, dobrei as pernas e deixei-me afundar numa posição semi-reclinada. Wanda Chard cruzou as pernas e sentou-se no chão nu, voltada para mim.
- Powell vem já- disse-me.
- Obrigado.
- Está na casa de banho.
Como me pareceu que não havia nada que responder a tal informação, fiquei calado. Observei-a, enquanto introduzia um comprido cigarro escarlate numa boquilha de marfim amarelado. Tentei levantar-me, à procura de um fósforo, mas ela fez-me sinal para não me incomodar.
- Não vou fumá-lo - disse-me. -Pelo menos agora. Quer um?
- Não, obrigado.
Fitou-me.
- Incomoda-o ser muito pequeno? - perguntou numa voz profunda e abafada, que parecia um murmúrio.
Talvez me devesse ter irritado com a impertinência da pergunta; no fim de contas, acabáramos de nos conhecer. Mas tive a impressão de que ela estava sinceramente interessada.
- Incomoda-me, sim. Frequentemente. Acenou com a cabeça.
- Sou dura de ouvido, sabe? Praticamente surda. Estou a ler os seus lábios.
Olhei-a cheio de espanto.
- Não pode ser!
- Oh, sim! Diga uma frase sem produzir som. Mexa apenas os lábios a formar as palavras.
Perguntei: "Como está esta noite?" Mas sem falar, realmente, mexendo apenas os lábios.
- Como está esta noite? - repetiu ela.
- Mas isso é maravilhoso! - exclamei. - Quanto tempo levou a aprender?
- Toda a minha vida. É fácil quando as pessoas estão directamente voltadas para mim, como o senhor. Quando se voltam, mesmo que fiquem apenas de lado, perco-me. Num restaurante cheio e barulhento consigo compreender conversas travadas do lado oposto da sala.
- Isso deve ser divertido.
- Algumas vezes. Outras é terrível. Assustador. As coisas que as pessoas dizem quando pensam que ninguém as pode ouvir! A maior
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parte das pessoas com quem travo conhecimento nem sequer se apercebem de que sou surda, A si estou a dizer-lho porque pensei que o seu tamanho podia incomodá-lo.
- Compreendo. Obrigado.
- Somos todos iguais na nossa fraqueza - disse, melancolicamente.
O seu cabelo era cor de azeviche, brilhante, e nas costas caía-lhe até à cintura. Tinha risco ao meio e envolvia-lhe o rosto numa espécie de asas curvas que formavam um escuro arco gótico. As ondas quase lhe obscureciam as feições pálidas. Nas sombras brilhavam dois olhos luminosos. Tive a impressão de estar perante um rosto sem pintura, de queixo pontiagudo e lábios finos e exangues.
Usava um quimono de seda berrantemente estampada, cheio de papoilas e papagaios. Quando se sentara no chão nu, não me tinham passado despercebidos os seus movimentos felinos e suaves. Não sabia se ela estava nua debaixo do quimono, mas tive a sensação de algo lúbrico no modo como o seu corpo se movia. Havia um ténue murmúrio de seda contra carne. Tinha os pés descalços, com as unhas pintadas de prata fosca, e usava uma pulseira de escrava no tornozelo esquerdo: uma corrente de elos surpreendentemente pesados. Tinha uma tatuagem no peito do pé direito: uma pequena borboleta azul.
- Que faz, Miss Chard?
- Que faço?
- Quero dizer, trabalha?
- Trabalho. Num laboratório médico. Sou assistente de pesquisas.
- Isso é muito interessante - comentei, a perguntar a mim próprio que diabo estaria Powell Stonehouse a fazer na casa de banho havia tanto tempo.
Como se tivesse feito a pergunta em voz alta, a porta da casa de banho abriu-se e ele avançou direito a nós, em passo rápido e desconjuntado. Tentei mais uma vez levantar-me do meu casulo de almofadas, mas ele estendeu a mão e fez-me sinal para me deixar estar. Foi quase como uma bênção.
- Deseja uma laranja? - perguntou-me.
- Uma laranja? Oh, não! Obrigado.
- Wanda?
Ela abanou a cabeça, com o cabelo comprido a oscilar-lhe através do rosto, e estendeu-lhe o cigarro escarlate na boquilha de marfim. Ele tirou uma carteira de fósforos da cómoda, inclinou-se e acendeu-lhe o cigarro. Aspirei o odor: mais incenso do que tabaco. Depois ele foi à cozinha e voltou com uma pequena laranja. Sentou-se no chão nu ao lado dela, voltado para mim, dobrou-se sem nenhum esforço físico aparente. Começou a descascar a laranja, enquanto olhava para mim, a pestanejar.
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- Afinal de que se trata ? - perguntou. ;
Expliquei mais uma vez que tinha sido encarregado pelos advogados da sua família de investigar o desaparecimento do seu pai. compreendia, observei, que estava a pisar caminho já percorrido pela Polícia, mas esperava que ele fosse paciente e me dissesse por palavras suas exactamente o que acontecera na noite de 10 de Janeiro.
Pareceu-me então que olhou rapidamente para Wanda Chard. Se trocaram algum sinal, não o captei. Mas ele começou a relatar os acontecimentos da noite em que o pai desaparecera, interrompendo-se apenas para meter um gomo de laranja na boca, mastigá-lo muito bem e engoli-lo.
O seu relato não diferia em nenhum pormenor significativo do que eu já ouvira à mãe e à irmã. Fingi que tomava apontamentos, mas na realidade não havia nada que apontar.
- Mr. Stonehouse - perguntei, quando ele acabou-, acha que a disposição e a conduta do seu pai nessa noite foram normais?
- Foram normais para ele.
- Nada do que ele fez ou disse lhe deu a impressão de que estaria preocupado ou sob qualquer pressão fora do usual? De que estaria talvez a pensar abandonar a família de sua livre vontade?
- Não. Não tive nenhuma impressão desse género.
- Conhece alguém que pudesse, enfim, albergar ressentimento contra o seu pai? Que não gostasse dele? Que o odiasse, mesmo?
Captei de novo o rápido desviar dos seus olhos para o lado, para Wanda Chard, como que a consultá-la.
- Lembro-me de uma dúzia de pessoas - respondeu. - De cem pessoas. Que sentiam ressentimento contra ele, que não gostavam dele ou que o odiavam. - Depois acrescentou com uma pequena gargalhada, uma meia tosse: - Incluindo eu.
- Qual era exactamente o seu relacionamento com o seu pai, Mr. Stonehouse?
- Ouça - redarguiu-me, abespinhado-, disse pelo telefone que queria falar das "relações da família". Que tem isso a ver com o desaparecimento dele?
Inclinei-me para a frente da cintura para cima, tanto quanto mo permitia a minha posição semi-reclinada. Creio que devo ter parecido interessado, sincero, preocupado.
- Mr. Stonehouse, não conheci o seu pai. Vi fotografias dele e a sua mãe e a sua irmã descreveram-mo fisicamente. Mas estou a tentar compreender o homem em si. Quem e o que era. Os seus sentimentos pelos que lhe eram mais chegados. Tento-o na esperança de, conhecendo o homem, conhecendo-o melhor, poder encontrar alguma pista acerca do que lhe aconteceu. Não tenho absolutamente nenhuma suspeita de ninguém e muito menos qualquer intenção de acusar alguém
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de alguma coisa. Estou apenas a tentar informar-me. Qualquer coisa que me saiba dizer poderá ser útil.
Desta vez a consulta com Wanda Chard foi óbvia, sem qualquer tentativa para a ocultar. Ele voltou-se e olhou-a. Os seus olhos fitaram-se. Ela acenou uma vez com a cabeça.
- Diz-lhe - aconselhou.
Ele começou a falar. Não tomei apontamentos. Sabia que não esqueceria o que dissesse.
Esforçou-se muito por manter a voz controlada. Sem êxito. Alternou entre uma hostilidade franca e uma tímida deficiência, pontuada por aquelas pequenas gargalhadas que pareciam uma meia tosse. Às vezes a voz transformava-se-lhe num guincho de fúria. Os seus gestos eram nervosos. Olhava frequentemente de lado para a companheira e depois voltava a fitar-me ferozmente. Não se podia dizer que se mostrasse exactamente furioso, mas havia nele uma incoerência, uma discordância.
Tinha o rosto magro e a constituição angulosa do pai, de arestas suavizadas pela juventude. Tratava-se mais de um rosto de declives claros, com um ralo bigode louro e uma esperança de barba suficientemente mal semeada para deixar ver um queixo fraco. Tinha a cabeça completamente rapada. Talvez fosse isso que estivera a fazer na casa de banho. Fosse ou não, a careca captava a luz fraca e reflectia-a palidamente. Orelhas grandes, flácidas como fatias de carne, pendiam-lhe do crânio rapado.
Tinha olhos cor de casca de tartaruga, nariz afalcoado e lábios ternos de rapariga. Uma expressão vulnerável. Tudo no seu rosto parecia trémulo, como se esperasse ser magoado. Enquanto falava, os seus dedos sujos não paravam: alisavam o bigode, cofiavam a barbicha, puxavam as orelhas carnudas ou acariciavam freneticamente a careca. Vestia um roupão de musselina crua, com uma corda a fazer de cinto. E pendia-lhe um capuz pelas costas abaixo. Um hábito de monge. Tinha os pés descalços e sujos. Os seus dedos incansáveis mexiam nos dedos dos pés e, passados momentos, deixei de poder observar-lhe os olhos e senti-me compelido a acompanhar aquelas mãos agitadas, a pensar que poderiam ser aves acorrentadas que eventualmente se libertariam dos pulsos e voariam.
A história que me contou não era original, mas isso não a tornou menos interessante.
Nunca conseguira satisfazer o pai. Nunca. As únicas coisas que recordava da sua infância eram críticas mesquinhas e azedas. A mãe e a irmã tentavam actuar como pára-choques, mas era ele que aguentava a maior parte do mau génio do pai. As suas notas escolares eram inaceitáveis; não era suficientemente activo nos desportos; as suas maneiras à mesa eram desleixadas.
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- Até a minha maneira de andar! - gritou-me Powell Stonehouse. -Ele não gostava sequer da maneira como eu andava!
A constante litania de queixas nunca parava. Pelo contrário, aumentou à medida que Powell cresceu. O pai odiava-o, pura e simplesmente. Não havia nenhuma outra explicação para o seu despeito; o pai odiava-o e desejava que desaparecesse. Estava convencido disso.
Neste ponto do seu relato, pareceu-me que estava à beira das lágrimas e senti-me grato ao ver Wanda Chard aprisionar nas suas uma daquelas mãos loucamente agitadas e apertá-la com força.
A irmã, Glynis, tinha sido sempre a preferida do pai, continuou Powell. Compreendia que na maioria das famílias normais o pai tem um fraco pela filha e a mãe pelo filho. Mas os Stonehouses não eram uma família normal. O mau génio do pai afastara os amigos da sua casa, fizera da mulher uma alcoólica meio louca e forçara a filha a uma vida solitária, longe de casa.
- Eu teria dado em chalado - disse Powell Stonehouse furiosamente. -Estava a dar em chalado! Até que encontrei a Wanda.
- E Zen - murmurou ela.
- Sim, e Zen. Agora, lentamente, através do instinto e da meditação, estou a refazer-me. Tenho de dizer a verdade, Mr. Bigg, o que sinto. Não me importo que nunca encontre o meu pai. Penso que estou melhor sem ele. E a minha irmã também. E a minha mãe. E o mundo. Deve ver, deve compreender que sinto este ódio enorme. Estou a tentar libertar-me dele.
- O ódio é veneno - disse Wanda Chard.
- Sim - concordou ele, a acenar violentamente com a cabeça-, o ódio é um veneno e eu estou a esforçar-me muito para o expulsar da minha mente e da minha alma. Mas todos aqueles anos, aquelas cenas cruéis e brutais, aquelas discussões aos gritos... Vai levar tempo. Sei isso: vai levar muito, muito tempo. Mas já estou melhor. Melhor do que estava.
- Oh, perdoa-lhe! -exclamou Wanda Chard, docemente.
- Não, não, não! - recusou, ainda furioso. - Nunca. Nunca poderei perdoar-lhe o que me fez. Mas talvez um dia, com sorte, possa esquecê-lo. É tudo quanto quero.
Fiquei calado, a dar ao seu veneno uma oportunidade para arrefecer. E a dar a mim próprio, também, uma oportunidade para meditar no que acabava de ouvir. Ele não fizera nenhum esforço para ocultar a sua hostilidade pelo pai. Tratar-se-ia de uma expressão sincera do que sentia, ou seria calculado? Quero dizer, julgaria que me despistaria exibindo abertamente a sua indignação?
"Duvida de toda a gente", dissera Roscoe Dollworth. "Suspeita de toda a gente."
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Mas dissera-me mais do que isso. Dissera-me que a única coisa mais difícil do que obter a verdade era fazer as perguntas certas. "Ninguém dirá nada de livre vontade!" Dollworth dissera que às vezes o investigador tinha de disparar em todas as direcções, de fazer toda a espécie de perguntas extrínsecas, na esperança de que uma delas revelasse um ângulo nunca antes considerado. Chamava a isso "caçar moscas".
Pareceu-me que era altura de "caçar moscas".
- A sua irmã era a preferida do seu pai? - perguntei. Acenou afirmativamente.
- Quais eram os sentimentos dele em relação à sua mãe?
- Tolerava-a.
- com que frequência jantava em casa do seu pai? Quero dizer, depois de ter de lá saído?
- Umas duas vezes por semana, em média.
- Sabe qual era a doença do seu pai? O ano passado, quando ele estava doente?
- A minha mãe disse que era gripe. Ou um vírus. -Conhece alguns dos amigos da sua irmã?
- Francamente, não. Pelo menos os recentes. Ela segue o seu caminho.
- Mas ela sai muito?
- Sim. Frequentemente.
- Aonde vai?
- Ao teatro, creio. Cinema. Bailado. Pergunte-lhe. -É uma mulher bonita. Porque não casou?
- O meu pai nunca achou ninguém suficientemente bom.
- Ela é maior. Pode fazer o que lhe apetecer.
- Sim - interveio Wanda Chard. -Tenho pensado nisso.
- Não quis deixar a minha mãe - disse Powell. - É devotada à minha mãe.
- Mas não ao seu pai? Encolheu os ombros.
- Sabe dizer-me alguma coisa a respeito das criadas?
- O quê?
- Confia nelas? -Claro que confio.
- Acerca de que discutiram, você e o seu pai? A última discussão?
- Ele apanhou-me a fumar erva. Dissemos ambos coisas que não deveríamos ter dito. Por isso, vim-me embora.
- Tem rendimento pessoal?
- O suficiente - interveio Wanda Chard, muito depressa.
- A sua irmã não tem um amigo especial? Refiro-me a um homem. Alguém que ela veja muito?
- Não sei. Pergunte-lhe.
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- O seu pai tinha uma dieta especial?
- O quê?
- Ele comia alguns alimentos especiais ou bebia qualquer coisa que mais ninguém lá de casa comesse ou bebesse?
- Que eu soubesse, não. Porquê?
- No último mês, ou nos últimos dois meses, antes do seu pai desaparecer notou alguma mudança gradual no seu procedimento? Pensou alguns segundos, antes de responder.
- Talvez se tenha tornado mais reservado. -Reservado?
- Rabugento. Mesquinho. Falava ainda menos do que era hábito. Jantava e ia logo para o gabinete.
- O testamento dele desapareceu. Sabia disso?
- A Glynis disse-me. Não me interessa. Não quero um cêntimo dele. Nem um cêntimo! Se me deixou alguma coisa, dá-la-ei.
- Porque continuou a sua mãe a viver com um homem como esse que me descreveu?
- Que podia ela fazer? Para onde ir? Não tem família sua. Não seria capaz de funcionar sozinha.
- A sua mãe e a sua irmã podiam ter partido juntas. Como você partiu.
- Porquê? A casa também é delas. -Nunca viu o testamento do seu pai? -Não.
- Viu o livro que ele andava a escrever? Uma história do Prince Royal, um barco de guerra britânico.
- Não, nunca vi. Nunca entrava no seu gabinete. -O seu pai bebia? Refiro-me a álcool.
- Talvez um uísque com água antes do jantar. Um pouco de vinho. Um brande antes de se deitar. Nada forte.
- Toma algumas drogas, agora?
- Fumo um charro de vez em quando, mais nada. Não tomo drogas pesadas.
- A sua mãe ou a sua irmã?
- A droga da minha mãe é o xerez, como provavelmente notou.
- A sua irmã?
- Nada, que eu saiba.
- O seu pai?
- Está a gozar, com certeza.
- Qualquer das criadas?
- Ridículo.
- Ama a sua mãe?
- Tenho uma afeição muito profunda por ela. E piedade. Ele arruinou-lhe a vida.
140
- Ama a sua irmã?
- Muito. É um anjo. Wanda Chard emitiu um som.
- Disse alguma coisa, Míss Chard? - perguntei. - Não compreendi.
- Não disse nada.
Nada era o que eu tinha conseguido até ali. Continuei a caçar moscas:
- O seu pai alguma vez veio aqui? A este apartamento? -Uma vez. Eu não estava. Mas a Wanda conheceu-o. -Que pensou dele, Miss Chard?
- Tão infeliz - murmurou ela. - Tão azedo. A devorar-se a si mesmo.
- Quando foi que ele veio? Quero dizer, quanto tempo antes de desaparecer?
Entreolharam-se.
- Talvez duas semanas - respondeu ela. - Talvez menos.
- Apareceu inesperadamente? Sem telefonar primeiro? -Sim.
- Indicou alguma razão para a sua visita?
- Disse que queria falar com o Powell. Mas o Powell estava em Brooklyn, a estudar com o seu mestre. Por isso, o professor Stonehouse foi-se embora.
- Quanto tempo se demorou ?
- Não muito. Dez minutos, talvez.
- Não disse a respeito de que desejava falar com Powell?
- Não.
- E não voltou?
- Não - respondeu Powell Stonehouse. -Não voltou.
- Quando o viu mais tarde, na sua casa, ele mencionou a visita ou disse de que lhe queria falar?
- Não, não disse nada. E eu também não.
Pensei um momento.
- Não podia tratar-se de uma reconciliação, pois não? sugeri. - Teria vindo cá para lhe pedir perdão?
Fitou-me. O seu rosto petrificou-se lentamente. O golpe que esperara tinha-o atingido.
- Não sei - respondeu-me, em voz baixa.
- Talvez - murmurou Wanda Chard.
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Capítulo terceiro
Olga Eklund acedeu a encontrar-se comigo numa cafetaria de comida saudável em Irving Place. A salada, cheia de sementes germinadas, era realmente muito boa. Afoguei-a com um sumo completamente natural.
Escutei com toda a paciência possível a prelecção de Olga acerca de saúde e dieta. Quando ela fez uma pausa, perguntei-lhe:
- Por isso, quando me disse que o professor Stonehouse estava a ser envenenado, referia-se à comida diariamente servida em casa dele?
- Sim. Alimentos prejudiciais. Estou-lhes sempre a dizer, mas não me dão ouvidos. Aquela Mrs. Dark, a cozinheira... Para ela tudo leva manteiga e natas. Demasiados óleos. Comida demasiado rica.
- Mas lá em casa comem todos a mesma coisa?
- Menos eu. Eu como cenouras cruas, saladas verdes com um fiozinho de sumo de limão. Fruta fresca. Não me enveneno.
- Olga, serve o jantar todas as noites? -Excepto no meu dia de folga.
- Lembra-se de o professor Stonehouse comer ou beber alguma coisa que os outros não comessem ou bebessem?
Pensou um momento.
- Não - acabou por responder, e depois acrescentou: - A não ser à noite, depois de eu sair.
- Sim? E o quê?
- Ele trabalhava todas as noites no seu gabinete. Já tarde, tomava uma chávena de cacau e um brande, antes de se deitar.
Senti-me de novo vivo.
- De onde vinha o cacau ?
- De onde vinha? - perguntou, perplexa. -Da Holanda.
- Não, o que queria saber era quem o fazia todas as noites para o professor Stonehouse.
- Ah! Mrs. Dark fazia-o antes de se deitar e antes de eu ir para casa. Depois, quando o professor o queria, mais tarde, Glynis aquecia-o, coava-o e levava-lho ao gabinete.
- Todas as noites? -Creio que sim.
- Mais ninguém lá de casa bebia desse cacau? -Não sei.
Cada vez parecia melhor.
- Vejamos se entendi bem. Todas as noites Mrs. Dark fazia cacau. Fazia-o antes de você ir para casa e de ela ir para a cama. Depois, mais tarde, quando o professor o queria, Glynis aquecia-o e levava-lho ao gabinete. Certo?
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- Certo - confirmou placidamente, nada interessada nos motivos por que me preocupava tanto com o cacau.
- Obrigado, Olga. Ajudou-me muito.
- Sim? - perguntou, surpreendida.
- Glynis sai muito? Quero dizer, à noite?
- Oh, sim!
- Tem um namorado? Pensou antes de responder.
- Creio que sim - disse, a acenar com a cabeça. - Antes andava muito triste, muito calada. Agora sorri. Às vezes ri-se, mesmo. Veste de modo diferente. Sim, creio que tem um homem que a torna feliz.
- Há quanto tempo se verifica isso? Quero dizer, quando começou ela a ser feliz?
- Talvez há um ano, talvez mais. Além disso, uma noite, disse que ia ao teatro. Mas eu vi-a nessa noite num restaurante da Rua Vinte e Um. Ela não me viu e eu não lhe disse nada.
- Ela estava com alguém?
- Não. Mas pensei que estivesse à espera de alguém.
- Que horas da noite eram?
- Nove, nove e meia, talvez. Se tivesse ido ao teatro, como dissera, não estaria no restaurante a essa hora.
- Alguma vez lhe mencionou esse incidente?
- Não - respondeu, a encolher os ombros. - Não é da minha conta.
- Que pensa de Powell Stonehouse, Olga?
- Envenena-se com cigarros de marijuana - pronunciou "méri-tiu-ana". - Faz muito mal. Tenho pena dele. O pai era muito mau para ele.
Despejei o resto de toda a riqueza natural que tinha no copo e levantei-me.
- Mais uma vez obrigado, Olga, pelo seu tempo e pela maçada. A comida aqui é deliciosa. Talvez me tenha convertido.
Estava a tornar-me um grande mentiroso.
Quando voltei à TORT, fui defrontado por Hamish Hooter, o patife chupador de dentes.
- Ouça lá - disse-me indignadamente, a fulminar-me com os olhos aguados-, que história é esta de uma secretária?
- Precisava de uma - respondi-lhe. - Falei do assunto a Mr. Tabatchnick.
- Eu sou o chefe do escritório - lembrou-me, furioso. - Porque não falou comigo?
- Porque você teria recusado de novo - redargui-lhe, num tom que me pareceu razoável. - Só quero uma assistente temporária,
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alguém que me ajude a fazer os trabalhos de máquina e arquivo até eu concluir umas investigações importantes e complexas.
Sempre considerara a expressão "ele rangeu os dentes" um exagero literário. Mas Hamish Hooter rangeu os dentes. Foi uma coisa fascinante e terrível de observar.
- É o que vamos a ver - rosnou, e girou nos calcanhares.
Assim que cheguei à minha secretária, telefonei a Yetta Apatoff e convidei-a para almoçar na sexta-feira. Depois voltei ao trabalho.
A sede da Kipmar Textiles ficava num edifício da esquina da
7ª Avenida com a Rua 35. Quando telefonei, respondeu-me uma voz melodiosa: "Obrigado por telefonar à Kipmare Textiles", e perguntei a mim mesmo qual seria a reacção se eu gritasse que ia processar a Kipmar por seis milhares de milhões de dólares. Depois de me passarem para duas outras extensões, cheguei finalmente a uma senhora que declarou ser Miss Gregg, secretária de Mr. Herschel Kipper.
Abstive-me de comentar a respeito do acerto do seu nome e da sua ocupação e limitei-me a identificar-me e aos meus patrões e a perguntar se seria possível ver Mr. Herschel Kipper e ou Mr. Bernard Kipper em qualquer hora daquela tarde que mais lhes conviesse. Perguntou-me qual era o objectivo do meu pedido e eu respondi-lhe que se relacionava com um inventário do espólio do falecido pai das pessoas em questão, inventário que tinha de ser feito para efeitos de impostos.
Mandou-me esperar, e esperei quase cinco minutos. Mas não me aborreci. Tinham um daqueles aparelhos que ligam uma pessoa que fica à espera ao telefone a uma estação de rádio local e, por isso, ouvi o fim do noticiário, um boletim meteorológico e o princípio da versão de um cantor country de Want to Destroy you, Baby antes de Miss Gregg voltar à linha. Informou-me de que os irmãos Kipper me poderiam receber "num espaço de tempo muito breve" às três horas da tarde. Deveria apresentar-me directamente no escritório dos executivos, no trigésimo quarto andar, e perguntar por ela. Agradeci-lhe a amabilidade, e ela agradeceu-me de novo por ter telefonado à Kipmar Textiles. Foi uma conversa muito civilizada.
Saí do edifício da TORT às duas e meia e segui para oeste, pela Rua
38. Desci a 5ª Avenida para a Rua 35, onde virei à direita para o centro do vestuário e prossegui na direcção da 7ª Avenida. O centro do vestuário de Manhattan é essencialmente Nova Iorque. Desde manhã cedo até altas horas da noite está congestionado, superlotado, a abarrotar. O ritmo é frenético. Carros de mão e peões compartilham os passeios. Carros de mão, peões, táxis, autocarros, carros particulares e semi-reboques compartilham as ruas. Há uma cacofonia que entorpece a mente: gritos, pragas, buzinadas, guinchos de travões, sereias, campainhas, assobios, o barulho do punk rock que sai das portas abertas
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das lojas de música, os pregões dos vendedores de rua e os gritos dos mendigos.
Suponho que na antiga Roma havia ruas similares a estas, e talvez também nas cidades medievais europeias em dias de mercado. É uma confusão, um tumulto louco que nos arrasta e transporta, de tal modo que damos connosco a trotar, a correr através do trânsito em desobediência às luzes, a abrir caminho pelo meio da multidão numa pressa sem tréguas. Insensato e revigorante.
Os escritórios dos executivos da Kipmar estavam decorados em tons neutros de branco-ostra e cinzento-pomba, para melhor realçar os fusos de fios alegremente coloridos e as peças de tecidos expostos em nichos iluminados das paredes. Havia bobinas de algodão, fios sintéticos, lãs, sedas e rayon e peças de tecidos sólidos, xadrezes, riscas, quadrados, espinhados, cetins e metalizados, e uma peça incrível de um tecido fino como teia de aranha e salpicado de minúsculas imitações de diamantes. Pregado a este tecido estava um casto cartão que dizia: MARAVILHA DE ESTRELAS. Encomenda Especial. Consultar Mr. Snodgrass.
Ao fundo do átrio, estava uma jovem senhora sentada a uma secretária com um pequeno letreiro: RECEPCIONISTA. Ria-se ao telefone, quando me aproximei, e ouvi-a dizer: "Oh, Herbie, és terrível!" Tapou o bocal com a mão, quando parei defronte da secretária.
- Queira dizer - pediu, sorridente. - Como posso ajudá-lo?
- Joshua Bigg para ver Mr. Kipper - informei. - Disseram-me que perguntasse por Miss Gregg.
- Qual Mr. Kipper, por favor?
- Ambos.
- Um momento, senhor. - Depois acrescentou, sotto você: - Não desligues, Herbie.
Carregou nalguns botões e disse, gravemente:
- Mr. Joshua Bigg para ver Mr. Kipper. Os dois Mr. Kippers. - Escutou um momento e em seguida voltou-se para mim com um sorriso divinal: - Queira fazer o favor de se sentar. Miss Gregg vem já aí.
Sentei-me numa cadeira baixa, de cabedal. Fiel à sua palavra, Miss Gregg não tardou a vir reclamar-me. Era alta, esgrouviada e eficiente. Percebi que era eficiente porque as hastes dos seus óculos estavam presas a uma fita preta que lhe pendia do pescoço.
- Mr. Bigg? - perguntou, com um sorriso vítreo. - Queira seguir-me.
Precedeu-me através de um labirinto de corredores até uma porta com uma pequena placa de latão: H. KIPPER, PRES.
- Obrigado - agradeci-lhe.
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- Obrigada eu - redarguiu-me, mandou-me entrar e depois fechou silenciosamente a porta atrás de mim.
Era um gabinete de gaveto. Duas das paredes eram formadas por janelas panorâmicas que proporcionavam uma vista maravilhosa da parte alta de Manhattan. O chão tinha uma alcatifa quase indecente de tão fofa. A secretária era uma placa de mármore preto assente numa base de crómio-mais mesa do que secretária. Atrás dela encontravam-se dois homens.
Tive a impressão inicial de que estava com visão dupla ou então a ver dois gémeos verdadeiros. Na realidade, eram apenas irmãos, mas Herschel e Bernard Kipper pareciam iguais, vestiam de igual, compartilhavam os mesmos padrões orais, os mesmos maneirismos e os mesmos gestos; durante a entrevista que se seguiu senti-me constantemente confuso, e por fim passei a olhar para o espaço entre os dois, quando fazia as minhas perguntas, e a deixar que respondesse aquele a quem a resposta competia.
Eram ambos homens de altura média e fortes. Tinham ambos compridas madeixas de cabelo ralo, penteado a puxar as reservas sobre o escalpo rosado. Os compridos charutos que fumavam eram idênticos.
Vestiam ambos à moda elegante da zona do vestuário, fatos de seda natural cinzento-aço. Só as gravatas não eram idênticas. Quando falavam, a sua voz era áspera, catarrosa, com a rouquidão dos fumadores, e a sua maneira de falar rápida e positiva. Convidaram-me a sentar, embora permanecessem levantados, de pés firmemente assentes, a fumar os seus charutos e a fitar-me com olhos duros e cautelosos.
Expliquei mais uma vez que estava encarregado de fazer um inventário preliminar do espólio do pai e viera saber se ele deixara alguns pertences pessoais nos escritórios.
- Consta-me que mantinha aqui um gabinete - acrescentei brandamente. -Mesmo depois de se reformar.
- Bem... com certeza - confirmou um deles. - O pai tinha aqui um gabinete.
- Mas nenhuns pertences pessoais - acrescentou o outro. - Quero dizer, a secretária e as cadeiras do pai, os móveis, pertencia tudo à firma.
- Nenhuns pertences pessoais? - insisti. - Jóias? Uns botões de punho que conservasse na gaveta da secretária? Fotografias? Molduras de prata?
- Sim - disse um deles-, o pai tinha fotografias.
- Ficámos com elas - acrescentou o outro. - Eram da nossa mãe e dos pais do nosso pai.
- E de todos nós, seus filhos - voltou o outro a dizer. - E dos seus netos. Em molduras simples. Nada de prata ou coisa semelhante. E uma fotografia dela. Pode ficar com ela.
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- A cabra! - disse o outro Kipper, irado.
Tinha pensado na maneira de introduzir os assuntos de Tippi e do testamento sem parecer estar a intrometer-me. Escusava de me ter preocupado.
- Presumo que estão a referir-se à viúva ?
- Eu disse cabra - insistiu um deles - e é cabra que quero dizer! -Escute - interveio o outro-, não nos estamos a queixar.
- Não nos sentimos lesados - concordou o irmão. - Mas dói saber que aquela chupista vai ficar com uma parte da companhia.
- Quem sabe o que aquela cabeça de passarinho pode fazer?
- É capaz de vender as suas acções.
- De desestabilizar o mercado.
- Ou de entrar por aí a saracotear-se e começar a bisbilhotar. -Ela não percebe peva do negócio.
- Era capaz de arranjar uma data de sarilhos, a impostora.
- Constou-me - observei, cautelosamente - que anteriormente trabalhou no teatro?
- No teatro! -exclamou um deles.
- Essa dá vontade de rir! -exclamou o outro.
- Foi dançarina de clube nocturno.
- Corista.
- Tudo quanto fazia era dar ao cu. -E não o fazia muito bem.
- Provavelmente, à margem, ia arranjando clientes.
- Que esperavas? Rigorosamente, um talento horizontal.
- Pescou-o como a um peixe.
- Conhecia uma coisa boa, quando via alguma, e deitou-lhe a fateixa.
- E tornou-lhe a vida desgraçada.
- Uma vez o contrato assinado, acabaram-se as delicadezas.
- A não ser que obtivesse o que queria.
- A casa, de que não necessitavam, e roupas, automóveis, cruzeiros, jóias... tudo. Filou-o bem.
- Magoava-nos ver o que se passava.
- Mas ele não nos ouvia. Não queria simplesmente ouvir-nos.
- Consta-me - intervim de novo - que ela também persuadiu o vosso pai a fazer contribuições para obras de caridade. Um certo reverendo Godfrey Knurr... ?
- Oh, esse!
- O safado!
- Centenas!
- Milhares!
- Para o seu reles clube de vadios.
- O pai não estava a pensar como devia ser.
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- Não via como estavam a levá-lo.
- E como continuam a levá-lo mesmo depois de morto.
- Mas você provavelmente sabe isso.
Eu não sabia. Não sabia a que se referiam. Mas não quis revelar a minha ignorância fazendo perguntas.
- Bem... - observei, judiciosamente -... não é a primeira vez que acontece. Um viúvo idoso, uma mulher mais nova... Ela tem família ?
- Quem diabo o sabe? - perguntou um deles.
- Surgiu do nada - disse o outro. - À deriva. Veio de Chicago, suponho. De qualquer lado perto de lá.
- Ela não fala disso.
- Ele conheceu-a em Las Vegas.
- Foi lá numa daquelas excursões de jogo e voltou com uma noiva. E que noiva! E que excursão!
- Perdeu! -Perdemos todos. -Uma ordinária. -Uma prostituta.
- Toda a gente o via menos ele. Ela deu-lhe água de cu lavado.
- Um velho daqueles. O nosso pai. Água de cu lavado.
- Doeu.
Fitaram-me acusadoramente. Baixei a cabeça e escrevi umas garatujas no livro de apontamentos, a fingir que a sua cólera era digna de nota. Embora tivesse sabido mais do que esperara, havia algumas perguntas que desejava desesperadamente fazer, mas não me queria arriscar a despertar-lhes suspeitas.
- Bem - murmurei-, creio que está esclarecida a questão dos pertences pessoais do vosso pai. Há mais uma coisa em que talvez me possam ajudar. Um indivíduo chamado Martin Reape reivindicou uma importância de mil dólares, a retirar do espólio. Não conseguimos contactar com Mr. Reape e lembrámo-nos de que talvez um dos senhores o conhecesse ou soubesse a razão da sua reivindicação.
Voltaram a olhar um para o outro. Depois abanaram a cabeça.
- Martin Reape?
- Nunca ouvi falar dele.
- Pensámos que talvez fosse uma despesa de negócios. Há alguma maneira?
- com certeza, pode ser verificado.
- Temos tudo microfilmado.
- Podemos dizer-lhe se ele era um fornecedor, um cliente ou qualquer outra coisa. Heshie, dá uma apitadela ao Al Baum.
Heshie pegou num telefone cor de prata.
- Ligue-me ao Al Baum - ordenou e, passados momentos,
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prosseguiu: - Al? Herschel. Vou-lhe mandar um advogado, que quer uma informação acerca de um certo indivíduo. Para ver se ele está nos livros. Compreendeu? Exactamente. Al, dê-lhe toda a cooperação possível. Desligou.
- Al Baum é o nosso controlador - informou-me. - Trabalha no trigésimo primeiro andar. Se tivermos esse tipo... como se chama ele?
- Martin Reape.
- Se tivermos esse Martin Reape nos nossos livros, o Al põe-no no écran e vê se lhe devemos alguma coisa. Está bem?
Levantei-me.
- Cavalheiros, foram muito amáveis e estou-lhes grato.
- Já pediram a legitimação?
- Bem... acho melhor perguntarem isso a Mr. Tabatchnick. Ele está a tratar pessoalmente do assunto.
- Claro, nem podia ser de outra maneira. O tio Leo e o pai eram velhos amigos. Uma amizade de muitos anos.
- Apresente ao tio Leo os nossos melhores cumprimentos.
- Assim farei. Mais uma vez obrigado pelo tempo que me dispensaram e pela maçada que lhes dei.
Saí do gabinete. Eles continuavam de pé, lado a lado, atrás da secretária, ainda furiosos. Os seus charutos estavam muito mais curtos. O tampo de mármore da secretária estava cheio de cinza.
O trigésimo primeiro andar era diferente do enclave dos executivos do trigésimo quarto andar. Chão de madeira com passadeiras puídas, paredes de tom verde banal, maltratadas e com a tinta a cair. Não havia recepcionista: o labirinto de periclitantes cubículos metálicos começava mesmo defronte dos elevadores. O barulho era constante, pancadas e matraquear, perguntas e respostas gritadas e gente a andar incessantemente de um lado para outro. Grandes máquinas de escritório, algumas com teclado, outras com ruidosas engrenagens ocultas e outras silenciosas e vomitando a intervalos irregulares uma ou duas folhas de papel.
Aproximei-me de uma secretária onde um jovem negro verificava uma enorme pilha de folhas impressas de computador. Usava óculos de aros metálicos e tinha um pente de aço espetado na basta carapinha.
- Faz-me o favor - pedi, timidamente.
Continuou a conferir a rima de papel dobrado que tinha à frente.
- Faz-me o favor - repeti, mais alto. Levantou a cabeça.
- Que quer?
- Procuro Mr. Baum. Será possível...
- Al! -berrou. - Eh, Al! Está aqui alguém para si!
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Recuei, assustado. Sem saber o que me acontecia, senti agarrarem-me o cotovelo. Um homenzinho baixinho tinha-me aprisionado.
- Diga, diga, diga? - perguntou, apressado. - Al Baum. Que deseja, que deseja, que deseja?
- Joshua Bigg, Mr. Baum. Sou o...
- Quem, quem, quem? De Lupowitz?
- Não, não, não - respondi; pegava-se. - De Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum. Mr. Herschel Kipper acaba de lhe telefonar e...
- Certo, certo, certo. Siga-me. Por aqui. Não tropece nos fios.
Saiu disparado e eu saí disparado atrás dele. Entrámos apressados numa enorme sala onde se encontravam alinhados contra as paredes altos módulos cinzentos, todos com bobinas de fita a girar ou a girar e a parar.
- Computadores - disse, estupidamente.
- Não, não, não - corrigiu Baum muito depressa. Processamento de dados e recuperação. Folhas de pagamento, impostos, etc., mas principalmente inventário. Centenas de fios, centenas de tecidos, tudo codificado. Como se chama esse tipo?
- Reape. Martin Reape. R-e-a-p-e.
Fui às corridinhas atrás dele para um atravancado gabinete de gaveto, onde uma mulher nova estava sentada diante de um teclado e do que parecia um grande écran de televisão.
- Josie - pediu Baum-, procure um Martin Reape. R-e-a-p-e.
- Voltou-se para mim e perguntou: - Que é ele? Fornecedor? comprador? O quê, o quê, o quê?
- Não sei - respondi, a sentir-me como um idiota. - É possível que lhe tenham pago qualquer coisa. Fornecedor. Digamos que é fornecedor.
Os dedos de Josie movimentaram-se, céleres, no teclado. Mr. Baum e eu inclinámo-nos por cima do seu ombro, a olhar para o écran. De súbito, começaram a aparecer caracteres, letra por letra, palavra por palavra, da esquerda para a direita e virando depois para a linha seguinte, ruidosamente. Por fim a máquina parou. No écran estavam descriminados sete pagamentos de quinhentos dólares cada. Tinham sido feitos a Martin Reape e a morada indicada era a do seu escritório da Rua 49. O primeiro pagamento tinha sido feito em Agosto do ano anterior. O último, uma semana antes da morte de Sol Kipper.
- Cá está ele! -exclamou Al Baum. -Era isto que queria?
- Era - respondi, com um sentimento de forte exaltação.
- Seria possível ver os cheques cancelados?
- Porque não? Temos tudo filmado. Josie?
Ela carregou em novos botões. O écran apagou-se e depois encheu-se com reproduções de cheques da Kipmar Textiles passados a Martin
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Reape. Inclinei-me mais, para ver melhor. Todos os cheques tinham sido assinados por Albert Baum, controlador. Voltei-me para ele.
- Assinou os cheques? - perguntei-lhe.
Devo ter falado em tom acusador, pois ele olhou-me com comiseração.
- Claro que assinei. E então, e então, e então?
- Lembra-se do que foram? Quero dizer, porque se pagou a Martin Reape esse dinheiro? Encolheu os ombros.
- Assino mil cheques por semana. Pelo menos. Como me hei-de lembrar? Josie, vamos lá ver as facturas.
Ela carregou em mais botões e as facturas apareceram no écran. Não tinham cabeçalho impresso, mas apenas o nome e a morada dactilografados de Martin Reape. Era cada uma de quinhentos dólares e dizia somente: "Por serviços prestados."
- Está a ver, está a ver, está a ver? - perguntou-me Al Baum. - Ali em baixo, no canto de cada factura? OK/SK. São as iniciais de Sol Kipper e é a sua caligrafia. Ele autorizou o pagamento, assinando as facturas, e eu paguei.
- Não faz nenhuma ideia dos serviços que Martin Reape prestou? -Nenhuma, nenhuma, nenhuma.
- Há alguma possibilidade de me arranjar uma cópia das facturas e dos cheques cancelados?
- Porque não? Mr. Heshie disse que lhe desse toda a cooperação. Certo, certo, certo? Josie, tire uma cópia de tudo: totais, facturas, cheques, tudo.
- Obrigado - agradeci. - Foi muito...
- Tive muito gosto, muito gosto, muito gosto - desbobinou, e foi-se embora.
Esperei enquanto Josie carregava em mais botões e as cópias saíam de uma máquina auxiliar. Observei, fascinado, enquanto a máquina imprimia reproduções a preto e branco das facturas de Martin Reape, dos cheques pagos por Kipper Textiles e uma discriminação alinhada de datas de facturação, datas de pagamento e totais. Josie separou a folha de papel e deu-ma. Dobrei-a cuidadosamente e meti-a na algibeira interior do casaco.
- Muito obrigado - agradeci.
- Não tem de quê, boneco.
Encontrei uma cabina telefónica no átrio do rés-do-chão e procurei um número na minha agenda. Ela respondeu ao primeiro toque.
- Sim?
- Perdita? - perguntei. - Perdita Schug? -Sim. Quem fala?
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- Joshua Bigg. Provavelmente não...
- Josh! -interrompeu-me. -Que giro! Estava à espera de que telefonasse.
- Sim... bem... como está?
- Chateada, chateada, chateada - respondeu-me, e eu perguntei a mim mesmo se ela conheceria Al Baum. - Do que preciso é de um bocadinho de excitação. Um novo amor.
- Hum... sim... Telefono porque... lembrei-me de que tinha dito que o seu dia de folga era a quinta-feira. Não me enganei?
- Nada. Saio amanhã ao meio-dia e só tenho de voltar na sexta-feira ao meio-dia. Não é giro?
- com certeza que sim - respondi, corajosamente. - Que costuma fazer no seu dia livre?
- Oh, uma coisa e outra... Tenho de ir visitar a minha querida e velha mãe a Weehawken. Tem algumas ideias mais giras?
- Bem, tinha pensado se lhe agradaria jantar comigo amanhã à noite.
- Aceito - respondeu imediatamente.
- Podemos jantar cedo - sugeri-, para ter tempo de ir a Nova Jérsia.
Riu-se, divertida.
- É tão engraçado, Josh! Palavra, é um grito.
- Obrigado. Há algum lugar onde deseje ir? Quero dizer, jantar. Algum lugar onde nos possamos encontrar?
- Mother Tucker's - respondeu-me. - Segunda Avenida, perto da Rua Sessenta e Nove. Vai gostar. vou lá sempre. Sete ou oito horas, mais coisa menos coisa, está bem?
Enquanto seguia para casa, na minha rua, vi Cleo Hufnagel vir em sentido oposto, com os braços carregados de compras. Apressei-me a ajudá-la.
- Obrigada, Josh. Não fazia ideia de que fosse tão pesado.
Trazia um casaco de xadrez encarnado e um chapéu justo puxado até aos olhos. O vento e a rapidez do andar haviam-lhe ruborizado as faces. Os seus olhos cintilavam. Parecia muito atraente, e eu disse-lho. Sorriu timidamente.
- Volta do trabalho tão cedo? - perguntei, enquanto subíamos os degraus.
- Pedi licença, hoje, mas terei de trabalhar no sábado. Você tam bem volta para casa cedo.
- Uma pequena gazeta - respondi, e peguei no outro saco de mercearias enquanto ela procurava as chaves.
Abriu as portas e segurou-as para entrar.
- Posso levar-lhe isto para a cozinha? - perguntei.
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- Oh, não! - recusou, muito depressa. - Obrigada, mas a maior parte das coisas são para a minha mãe.
por isso, pousei o saco no patamar, do lado de fora do apartamento de Mrs. Humagel, depois de ter subido, carregado, até ao primeiro andar.
- Muito obrigada, Josh. Foi muito amável. Fiz um gesto depreciativo com a mão.
- Não é necessária nenhuma gorjeta - disse, e rimo-nos ambos.
Depois ficámos parados, a olhar um para o outro. Não me incomodou o facto de ter de levantar a cabeça para a olhar nos olhos. De repente, perguntei:
- Cleo, gostaria de ir a minha casa beber um copo de vinho depois do jantar?
- Obrigada - agradeceu, em voz baixa. - Com muito gosto. A que horas?
- Por volta das oito, está bem?
- Às oito é óptimo. Até logo.
Subi para o meu apartamento, a pensar no que tinha feito. Ao verificar a minha garrafeira descobri que não estava muito bem fornecido. Por isso, depois de tomar duche e mudar de roupa, fui numa corrida à loja de bebidas. Bramwell Shank estava no patamar à minha espera, com a garrafa do vinho no colo.
- Raios partam! - praguejou. - Tenho estado aqui à sua espera e você já lá estava dentro!
A culpa era obviamente minha. Expliquei que regressara a casa cedo, e porquê, e ofereci-me para lhe trazer alguma coisa que precisasse das lojas - além de lhe prometer beber um copo com ele quando voltasse. Pareceu-me boa ideia, pois de contrário ele era capaz de aparecer mais tarde e interromper o meu tête-à-tête com Cleo.
Ela chegou às oito horas em ponto e bateu devagarinho à porta. Levantei-me de um pulo e entornei o que restava de um copo de vinho que tinha no braço da poltrona. Felizmente o copo caiu na carpete sem se partir e o vinho não me salpicou.
- vou já! -gritei.
Apressadamente, apanhei o copo e desloquei a poltrona, de modo que tapasse a nódoa da carpete. Depois tive de deslocar também a mesa lateral, para a pôr ao lado da poltrona, e ao fazê-lo o candeeiro voltou-se. Apanhei-o antes que fosse parar ao chão, endireitei-o e corri para a porta.
- Entre, entre! - convidei, todo entusiasmado, e conduzi-a para a poltrona. -Sente-se aqui. É a mais confortável.
- Bem... - murmurou Cleo Hufnagel, com certas dúvidas. - Não está um bocadinho chegada de mais para a lareira? Pode puxá-la um nadinha para trás?
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Olhei-a e desatei a rir. Contei-lhe o que acontecera instantes antes de lhe abrir a porta e ela riu-se também e garantiu-me que uma carpete manchada não a ofenderia. Por isso, voltámos a pôr tudo no seu lugar.
- Assim está muito melhor - comentou, ao sentar-se. - Estou sempre a fazer isso. Quero dizer, a entornar coisas. Não se devia ter incomodado a tapar a mancha.
Sentámo-nos a beber. Satisfeito, perguntei-lhe se notara alguns sinais de reaproximação entre o comandante Shank e Madame Kadinsky. Houvera sinais de romance. Isso desanuviou o ambiente. Passados momentos, ela descalçara os sapatos e estávamos a dar desalmadamente à língua.
Pouco depois ouvi-me dizer:
- Mas se eles casassem, esfrangalhavam-se um ao outro. Discutiriam, brigariam, você sabe.
- Mesmo isso seria melhor do que tinham antes, não seria?
A conversa estava a deixar-me pouco à vontade. Fui à cozinha buscar novas bebidas.
- Cleo - disse, quando voltei-, na verdade sei muito pouco a respeito do que você faz. Sei apenas que trabalha numa biblioteca. Correcto?
- Correcto - respondeu, e endireitou o queixo. - Sou bibliotecária.
Levei cinco minutos a garantir-lhe que admirava bibliotecárias, que algumas das horas mais felizes da minha vida tinham sido passadas em bibliotecas, que as bibliotecas eram o teatro dos pobres, uma porta para um mundo de maravilha, e que ela tinha uma profissão nobre e honrosa, etc., etc. Não fui nada parco em elogios, mas o estranho é que acreditava em cada palavra que dizia.
- É muito amável - declarou, duvidosa. - Mas no fim de contas tudo se resume numa dona de casa entediada que aparece à procura do novo livro sobre a Jackie Onassis ou de um romance cor-de-rosa histórico. Você trabalha numa firma de advogados, não é?
- Trabalho, mas não sou advogado. Sou apenas investigador. Expliquei-lhe o que fazia e falei como se tivesse corda. Ela pareceu
sinceramente interessada e fez perguntas muito pertinentes. Quis saber quais eram as minhas fontes de investigação e como tratava de investigações abstrusas. Contei-lhe algumas histórias que a divertiram: como passara uma manhã de domingo a tentar comprar cerveja em lojas da 2ª Avenida (ilegalmente); como manipulara testemunhas recalcitrantes; como as pessoas me mentiam e como, para vergonha minha, me estava a tornar um exímio mentiroso.
- Mas não tem outro remédio - observou. - Para fazer o seu trabalho.
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- Bem sei, mas tenho medo de acabar por mentir também na minha vida particular. Não gostaria que isso acontecesse.
- E não acontecerá. Posso tomar outra bebida?
Voltei da cozinha com novas bebidas e ela estendeu languidamente a mão para pegar no seu copo. Estava praticamente reclinada na poltrona, estendida, com a cabeça toda para trás e os pés em palmilhas de meias estendidos para o lume quase a apagar-se.
Vestia uma saia de lã justa, cor de caramelo, cingida com um cinto estreito, e uma camisola preta também justa, que lhe deixava o pescoço nu. Tudo muito diferente dos vestidos soltos, esvoaçantes, que costumava usar. As últimas chamas trémulas projectavam-lhe manchas de luz rosada na garganta, no queixo e na fronte. Soltara o comprido cabelo castanho, que pendia pelas costas da cadeira abaixo. Apeteceu-me afagá-lo.
Fiquei surpreendido ao ver como parecia bonita, como era bela aquela figura flexível estendida na luz fraca. As suas feições pareciam suavizadas, os olhos cor de avelã estavam fechados e os lábios ligeiramente entreabertos. Parecia completamente descontraída.
- Cleo - murmurei docemente. Abriu os olhos.
- Acabo de pensar numa coisa. Tenho um favor a pedir-lhe.
- com certeza - respondeu, e endireitou-se na poltrona. Expliquei-lhe que uma das minhas investigações se relacionava
com um homem que tinha sido vítima de envenenamento por arsénico. Precisava de saber mais coisas a respeito do arsénico: o que era, como afectava o corpo humano, como podia ser obtido, como era administrado, etc. Poderia ela descobrir os títulos de livros adequados ou sugerir outros lugares onde me fosse possível obter essa informação?
- Eu posso tratar disso - prontificou-se sem hesitar. - Não estou assim tão atarefada. Quando precisa de saber essas coisas?
- Bem... o mais depressa possível. Confesso que não sei por onde começar. Pensei que se você me pudesse indicar as fontes eu poderia avançar a partir daí.
- Terei muito gosto. Ele morreu?
- Não, mas desapareceu. Penso que o envenenamento teve alguma coisa a ver com o desaparecimento.
- Quer dizer que quem o andava a envenenar decidiu... enfim, tomar medidas mais directas?
Olhei-a com admiração.
- é muito perceptiva.
- Sei que tenho uma boa cabeça. - Não era gabarolice; ela estava apenas a apresentar um facto. -Só é pena nunca ter oportunidade de a utilizar.
- Nasceu em Nova Iorque, Cleo?
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- Não. Nasci em Rhode Island.
Contou-me a história da sua família. Um dia, o pai desaparecera de Newport e Mrs. Hufnagel trouxera a pequena Cleo para Chelsea, a fim de viverem na casa que tinha sido comprada com o dinheiro que lhes restava, como investimento.
Contei-lhe também a minha pequena história - pequena em dois sentidos, pelo menos. Disse-lhe que tinha sido criado por um tio e uma tia e o que sofrera às mãos dos meus primos.
- Mas não me queixo - afirmei. - Eram boa gente.
- Claro que eram, para o terem aceitado. Mas mesmo assim...
- Sim, mesmo assim...
Ficámos um momento calados, num silêncio íntimo e penumbroso.
- Outra bebida? - perguntei, por fim.
- Acho que não. Bem, talvez uma muito pequena. Só um golinho.
- Para chamar o sono?
- Isso mesmo! -exclamou, aprovadora. -Eu vou beber um pouco de brande.
- Soa-me bem. Também bebo um pouco de brande.
Por isso, cada um de nós bebeu um pouco de brande. Pensei no pai dela, um homem tímido, que lançava papagaios de papel antes de desaparecer. Tais pensamentos pareciam coadunar-se com as brasas amodorradas do lume.
- Nunca lancei um papagaio - confessei. - Nem mesmo quando era miúdo.
- Creio que gostaria.
- Também eu. Escute, Cleo, se eu comprar um papagaio podemos ir ao Central Park um destes dias, num domingo, e lançá-lo? Ensina-me como se faz?
- com certeza, com muito prazer. Mas não precisamos de ir ao Central Park. Podemos ir para aqueles cais antigos do rio e lançá-lo daí.
- Que género de papagaio devo comprar?
- O mais barato que encontrar. Simples, em forma de diamante. Precisará apenas de um novelo de fio. Eu rasgo uns trapos, para a cauda.
- De que cor gostaria? - perguntei, a rir.
- Vermelho - respondeu logo. - É mais fácil de ver recortado no céu e é mais bonito.
Uma camisola verde para Yetta e um papagaio de papel vermelho para Cleo.
Calámo-nos, a beber o nosso brande. Passados momentos, a mão livre de Cleo estendeu-se e agarrou a minha mão livre. A dela estava tépida e era macia. Ficámos assim, de mãos dadas. Era perfeito.
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Capítulo quarto
Quando acordei o dia estava soturno, com o céu enevoado cheio de rajadas de saraiva e chuva. Um vento forte, que soprava de oeste, fustigava os transeuntes, que estugavam o passo e baixavam a cabeça. O edifício TORT não apresentava a habitual azáfama das manhãs. Muitos dos seus funcionários moravam nos arredores e as estradas estavam inundadas ou bloqueadas por árvores derrubadas, e os comboios de ligação viajavam atrasados.
Tinha comprado uma embalagem de café simples e uma strudel de maçã. Fiz alguns telefonemas, enquanto comia o segundo pequeno-almoço. O reverendo Knurr acedeu a mostrar-me o seu clube naquele dia e Glynis Stonehouse disse que me receberia. Informou que a mãe estava indisposta, de cama com um vírus (um vírus de xerez, pensei, mas não o disse).
Apesar do tempo desgraçado, pus-me na Rua 70, oeste, em meia hora. Glynis Stonehouse abriu-me a porta. Percorremos de novo o comprido corredor e entrámos na sala. Reparei que alguns dos mapas emoldurados e algumas cenas de batalhas navais tinham desaparecido das paredes, substituídos por coloridos cartazes e gráficos alegres. Havia alguém que não esperava que o professor regressasse.
Sentámo-nos em extremidades opostas do comprido sofá, meio voltados a fim de podermos olhar um para o outro. Glynis disse que Mrs. Stonehouse estava a descansar, confortavelmente. Recusei uma chávena de café e tirei o livro de apontamentos.
- Miss Stonehouse, falei demoradamente com o seu irmão.
- Espero que ele tenha sido... colaborante?
- Oh, sim! Completamente. Deduzi que existiu muita... enfim, muita inimizade entre Powell e o pai.
- Ele transformou a vida do meu irmão num inferno. Powell é tão bom rapaz! O meu pai destruiu-o!
Surpreendeu-me a virulência da sua voz abafada e olhei-a vivamente.
O rosto triangular, de olhos de gata azul-cotim, estava inexpressivo, com os lábios bem desenhados, firmemente comprimidos. O cabelo fulvo estava penteado para trás, liso e brilhante. Era uma mulher extraordinariamente bonita, com os seus segreJos. Fazia-me sentir um amador desastrado. Desesperava de conseguir alguma vez penetrar naquela carapaça de pessoa segura de si e descobrir... o quê?
- Miss Stonehouse, sabe dizer-me alguma coisa acerca da... companheira de Powell, Wand Chard?
- Não a conheço muito bem. Só me encontrei com ela uma vez.
- Qual é a sua impressão?
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- Trata-se de uma mulher muito serena. Profunda. Introvertida. Powell diz que ela é muito religiosa. Zen.
- O seu pai conheceu-a duas semanas antes de desaparecer. A notícia surpreendeu-a. Ficou admirada.
- O meu pai conheceu-a? Conheceu Wanda Chard?
- Foi o que ela disse. Foi ao apartamento do seu irmão, mas ele não estava em casa. Demorou-se cerca de dez minutos a falar com Miss Chard. O seu pai nunca mencionou a visita?
- Não. Nunca.
- Não faz. ideia do motivo que o levaria a visitar o seu irmão... ou a tentar visitá-lo?
- Absolutamente nenhuma. É tão incaracterístico do meu pai!
- Não poderia tratar-se de uma tentativa de reconciliação com o seu irmão?
Pensou um momento.
- Gostaria de poder pensar que foi isso - acabou por responder, devagar.
- Miss Stonehouse, desejo fazer uma pergunta que espero não a ofenda. Julga o seu irmão capaz de violência física contra o seu pai?
Os olhos azuis voltaram-se para os meus. Decorreram alguns instantes até responder. Mas não pestanejou.
- Podia ter sido - disse, em voz sem timbre. - Antes de sair de casa. Mas desde que tem a sua própria casa o meu irmão adaptou-se maravilhosamente. Teria sido capaz de violência física na noite em que o meu pai desapareceu? Não. Além disso, ele estava aqui quando o meu pai saiu.
- Claro. Pensa que Wanda Chard teria sido capaz de violência física?
- Não sei. Francamente, não sei. Mas é possível, suponho. Gente comum, perfeitamente normal, é capaz dos actos mais incríveis.
- Sob pressão - concordei. - Ou paixão. Ou ódio. Ou qualquer emoção forte que origine a perda do autodomínio. Amor, por exemplo.
- Talvez - admitiu. Sem se comprometer.
- Miss Stonehouse - perguntei, a suspirar-, Mrs. Dark está em casa?
- Está, sim. Está na cozinha.
Uma resposta concreta. Que alívio!
- Posso falar um momento com ela?
- com certeza. Sabe o caminho, não sabe?
Quando entrei na cozinha, Effíe estava sentada à mesa do centro, a fumar um cigarro e a folhear o Daily News da manhã. Levantou a cabeça, ao sentir-me, e os seus pequenos olhos brilhantes franziram-se de satisfação.
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- Olá, Mr. Bigg! - cumprimentou, e as placas soltas dos seus dentes entrechocaram-se. - Que surpresa agradável.
- Prazer em voltar a vê-la, Effie. Como tem passado?
- Oh, não tenho razão de queixa! - respondeu alegremente. - Que faz. cá por fora, numa manhã tão desagradável? Sente-se aqui, ande.
- Obrigado. Bem, Effie, queria fazer-lhe mais algumas perguntas. Coisas idiotas que provavelmente não têm nada a ver com o desaparecimento do professor. Mas tenho de perguntar, para satisfazer a minha própria curiosidade.
- Claro - redarguiu, e encolheu os ombros gordos. - compreendo isso muito bem. Sou tão curiosa como qualquer... ou mais.
- Effie, a que horas da noite costuma deitar-se?
- Bem, geralmente vou para o meu quarto cerca das nove e meia, dez horas. Mais ou menos a essa hora, depois de ter arrumado a cozinha. Em seguida leio um pouco, ou vejo um bocadinho de televisão. Escrevo uma carta ou duas... Em geral às onze horas estou na cama.
Ri-me.
- Felizarda. Deixa alguma coisa aqui na cozinha para a família? Para o caso de quererem petiscar?
- Eles sabem servir-se - respondeu, despreocupada. - Sabem onde está tudo. - Depois, quando eu tentava encontrar uma maneira de abordar o assunto, acrescentou: - Claro que quando o professor cá estava lhe deixava sempre uma cafeteirinha de cacau.
- Cacau? Não sabia que as pessoas ainda bebiam cacau.
- Claro que bebem. é delicioso.
- E servia uma chávena de cacau ao professor antes de se ir deitar?
- Oh, não! Eu fazia-o, apenas. Depois deixava-o a arrefecer. Por volta da meia-noite, Miss Glynis chegava e aquecia-o. Mesmo que tivesse ido ao teatro ou a algum outro lado, regressava a casa, aquecia o cacau e levava uma chávena ao pai, ao gabinete.
- Compreendo. Glynis levava ao professor a sua chávena de cacau todas as noites?
- Exactamente.
- E mais ninguém da casa o bebia?
- Mais ninguém - respondeu, e o meu coração saltou, mas ela acrescentou logo a seguir: - excepto eu. De manhã bebia o que sobrava.
- O que sobrava?
- Sim, o que ficava na cafeteirinha. Gosto de uma chávena de cacau quente antes de começar a fazer o pequeno-almoço.
Aquilo parecia demolir a "Grande Conjura do Cacau". Mas demoliria?
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- Effie, quem lavava a chávena do cacau do professor, de manhã?
- Eu. ele deixava-a sempre no lava-louça da cozinha.
- Por que demónio bebia ele cacau tão tarde?
- Alegava que o ajudava a dormir melhor - respondeu, e deu uma pequena gargalhada. - Aqui entre nós que ninguém nos ouve, desconfio que era o brande que tomava com o cacau que o ajudava a dormir.
- Também acho. Bem, Effie, creio que é tudo. Só lhe queria pedir mais um favor. Quero dar outra vista de olhos ao gabinete do professor.
- às ordens. A porta não está fechada à chave.
- Não quero ir sozinho.
- Ah! -olhou-me astutamente. - Quer ter uma testemunha de que não mexeu em nada?
- Exactamente - respondi, agradecido.
O gabinete apresentava o mesmo aspecto da outra vez. Parei mais ou menos no centro do aposento, de olhos semicerrados, e virei-me devagar, a inspeccionar.
A mesa forrada de cabedal. Garrafa de brande e dois pequenos balões numa bandeja de prata eduardina. A garrafa de Rémy Martin era nova, ainda estava fechada.
Onde escondera ele o testamento? Não o metera pela chaminé acima. Nem na secretária atravancada. Nem atrás de um painel secreto. Ula e Glynis teriam espreitado na chaminé, revistado a secretária, batido nas paredes, procurado em todos os livros e mapas.
Mas julguei saber onde o testamento estava escondido.
Glynis parecia não se ter mexido desde que eu a deixara. Continuava naturalmente reclinada num canto do sofá. Não estava às voltas com o lenço do pescoço, nem a passar a mão pelo cabelo penteado para trás, nem a inspeccionar as unhas. Tinha o dom do repouso completo.
- Miss Stonehouse, pode dispensar-me mais alguns minutos?
- Decerto.
- Tenho uma informação muito perturbadora. Uma coisa que penso dever dar-lhe a conhecer. Esperava informar a sua mãe, mas como ela está indisposta - temporariamente, espero - devo dizer-lhe a si.
Inclinou a cabeça para um lado, com ar intrigado.
- Quando o seu pai esteve doente o ano passado, durante um período de meses, sofreu de envenenamento por arsénico.
Aconteceu-lhe qualquer coisa à cara, que mirrou. A carne pareceu diminuir e a pele esticou-se sobre os ossos, esbranquiçada e tensa. Surpresa genuína ou o choque de ter sido descoberta?
- O que?
- O seu pai estava a ser envenenado. Por arsénico. Finalmente, ainda a tempo, consultou um médico. Refez-se. Isso significa que deve
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ter descoberto como lhe era administrado o arsénico. E por quem.
- Impossível - afirmou numa voz tão abafada que mal se distinguia.
- Lamento, mas é verdade. Não existem quaisquer dúvidas a esse respeito. E como o seu pai raramente jantava fora, deve ter ingerido o arsénico aqui, na sua própria casa, em qualquer alimento ou bebida que mais ninguém da casa comia ou bebia, já que mais ninguém sofreu os mesmos efeitos. Devo apresentar-lhe desculpas, Miss Stonehouse. Durante um breve período pensei que o arsénico lhe era administrado na chávena de cacau que lhe servia todas as noites. Uma coisa que julgava mais ninguém da casa beber. Mas Mrs. Dark acaba de me dizer que todas as manhãs bebia o resto do cacau e não sofreu nada com isso. Portanto, peço-lhe desculpa das minhas suspeitas. E agora tenho de tentar descobrir de que outra maneira era o seu pai envenenado.
Foi um abalo para ela. O repouso dissipou-se. Começou a abotoar e a desabotoar o casaco de gabardina preta. Usava soutien, mas eu tinha vislumbres rápidos da pele lisa e macia da sua cintura.
- Pensou que eu... - tartamudeou.
- Por favor, peço desculpa. Agora sei que não era o cacau. Estou a dizer-lhe isto porque quero que pense muito bem e tente lembrar-se se o seu pai comia ou bebia alguma coisa que mais ninguém da casa partilhava.
- Tem a certeza absoluta de que ele esteve a ser envenenado? - perguntou, em voz fraca.
- tenho! Não há quaisquer dúvidas a esse respeito.
- E pensa que isso teve alguma coisa a ver com o seu desaparecimento?
- Parece lógico, não parece?
O seu rosto começou a encher-se de novo. A cor voltou ao normal. Olhou-me de frente, deixou os botões em paz e voltou à posição primitiva. Respirou fundo.
- Sim - disse, suavemente-, creio que tem razão. Se alguém andava a tentar matá-lo...
- É óbvio que alguém andava.
- Mas porquê?
- Miss Stonehouse, confesso que não sei. A minha investigação ainda não progrediu até esse ponto. Por enquanto -Mas está a fazer progressos? Foi a minha vez de não me comprometer.
- Descobri diversas coisas que podem ou não ser significativas. Mas voltando à minha pergunta, imagina alguma maneira pela qual o seu pai possa ter sido envenenado? Sem ser pelo cacau?
Fitou-me longamente, mas sem me ver.
- Não, não imagino. Comemos todos as mesmas coisas, bebemos
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as mesmas coisas. O meu pai comprava água engarrafada, mas todos a bebíamos.
- Ele não tinha nenhuma dieta especial?
- Não.
- Bem... se se lembrar de alguma coisa, faça favor de me informar.
- Mr. Bigg - murmurou, devagar-, disse que suspeitou de que eu envenenava o cacau do meu pai.
- Não foi exactamente isso. Durante algum tempo, pensei que o cacau que servia ao seu pai podia estar envenenado. Mas qualquer pessoa da casa podia ter feito isso. Compreendi, no entanto, que estava enganado quando Mrs. Dark me disse que todas as manhãs bebia o cacau que sobrava da véspera.
- Ela disse-lhe - observou Glynis Stonehouse, em voz firme. - Nunca vi Mrs. Dark beber uma chávena de cacau de manhã e não creio que qualquer outra pessoa da casa tenha visto.
Os nossos olhos fitaram-se de novo, mas desta vez ela estava realmente a olhar para mim, a olhar provocadoramente, sem pestanejar.
A saraiva diminuíra, mas ainda chovia. Corri para uma cabina telefónica da beira do passeio da Columbus Avenue, liguei para o escritório e tagarelei com Yetta Apatoff. Recordei-lhe que nos encontrávamos para almoçar na sexta-feira. Ela não se tinha esquecido. Yetta disse-me que o chefe do escritório me deixara um recado: contratara uma ajudante temporária para mim. Estaria no meu gabinete às três horas, o que me dava tempo de dar um pulo à parte baixa da cidade e visitar o bom reverendo Knurr.
Meti-me no IRT local da 7ª Avenida para Houston Street e subi a pé para a Carmine Street. Parei numa taberna, no caminho, e comprei uma embalagem de seis latas de cerveja. Tinha a morada, mas estava alguns minutos adiantado e, por isso, passei pelo outro lado da rua, a observar o ambiente. A casa não era mais pequena nem maior do que qualquer das outras frentes de lojas da rua. Mas a janela de vidro e a porta tinham sido pintadas de verde-escuro. Um letreiro feito por um amador dizia: CLUBE DOS FAZEDORES DE TENDAS. Atravessei a rua e entrei. A porta tocava uma campainha, quando se abria.
- Quem é? - gritou a voz de Knurr, das traseiras. -Joshua Bigg - respondi.
- vou já ter consigo, Joshua. Faça de conta que está em sua casa.
Havia um pequeno espaço aberto, quando se entrava. Aparentemente, era utilizado como escritório, pois tinha uma secretária de madeira esmocada, um velho ficheiro em mau estado, três cadeiras (todas
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desirmanadas), um cabide e diversas caixas de cartão empilhadas no chão. Estas pareciam todas cheias de livros brochados, usados.
A seguir ao improvisado escritório havia a abertura de uma porta coberta por alguns metros de tecido barato, pregado à padieira. Afastei a cortina, passei e encontrei-me numa grande sala vazia, com lâmpadas fluorescentes no tecto. Nas paredes desbotadas havia mapas com a indicação de posições e golpes de judo, jiujhsu e karate. Havia também alguns cartazes a anunciar torneios de luta desarmada.
A um canto encontrava-se uma confusão de casacos de artes marciais, bastões e máscaras de kendo e halteres. Encostado a uma parede, um tapete de luta, enrolado.
Estava a ver um cartaz ilustrado de posições e movimentos de kung fu, pregado à parede, quando o reverendo Godfrey Knurr entrou por uma porta do fundo, também com uma cortina.
- Prazer em vê-lo, Joshua. Obrigado por ter vindo.
- Tome - disse, e estendi-lhe o saco de papel castanho, húmido. - Trouxe seis latas frescas. Para o almoço.
Espreitou para dentro do saco.
- Maravilhoso - comentou. - Venha lá para dentro. Eu meto a cerveja no frigorífico e você pode despir os agasalhos.
Havia um corredor curto, que desembocava na cozinha e no quarto.
A cozinha tinha apenas o tamanho necessário para conter uma mesa de madeira e quatro cadeiras, o frigorífico, o lava-louça, os armários e um pequeno fogão. As paredes estavam cobertas de inúmeras camadas de tinta. Havia uma pequena janela que dava para um patiozinho triste, que a chuva tornava esquálido. Desfrutava-se a mesma vista da janela do quarto, que era uma cela de monge: cama, armário, cómoda, cadeira de espaldar direito, mesa-de-cabeceira com candeeiro e telefone e uma estante.
- Não é exactamente a residência Kipper, pois não? - perguntou Knurr.
O reverendo estava a pôr a cerveja no frigorífico quando ouvimos o barulho da campainha da porta.
- Eles devem estar a chegar. Vamos lá para a frente. Acompanhei-o ao ginásio. Knurr vestia um fato de treino cinzento,
coçado nos cotovelos e nos joelhos. As alparcatas estavam sujas e rotas e tinham os atacadores partidos e aos nós.
Estavam três rapazes a despir agasalhos molhados no escritório. Atiraram-nos para a secretária e depois dirigiram-se para a sala maior, onde descalçaram os sapatos e despiram camisolas, camisas e calças, que atiraram para um canto.
Knurr apresentou-me em tom casual:
- Joshua, estes brutos são o Rafe, o Tony e o Walt. Este é o Josh.
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Inclinámos todos a cabeça. Os rapazes pareceram-me entre os treze e os quinze anos e tinham corpos magricelas e brancos, todos articulações. O acne marcava-lhes a cara e o pescoço.
A campainha tocou de novo e entraram mais rapazes. Por fim, Knurr tinha uma dúzia de rapazes às voltas pelo ginásio, em cuecas e de peúgas.
- Acabem com essa merda! - gritou o reverendo. - Formem e vamos começar.
Dispuseram-se em duas filas, virados para ele. A uma ordem de Knurr, iniciaram uma série do que supus serem exercícios de aquecimento, a imitar o reverendo. Este estava de pé com a perna esquerda adiantada, o braço esquerdo estendido, a mão fechada e os nós dos dedos para baixo. O pé direito estava puxado atrás, o braço direito dobrado e o punho direito fechado. Depois, a um grito de "Ah!", toda a gente deu um passo em frente com o pé direito, atacou um adversário imaginário com o punho direito, ao mesmo tempo que dobrava o braço esquerdo e encostava o punho do mesmo lado ao ombro. Ao segundo "Ah!" deram todos um passo para trás, para a posição primitiva.
Revi o meu cálculo do seu grupo etário e inclinei-me para os doze aos dezassete anos. Alguns deles eram muito crescidos, incluindo um preto com um metro e oitenta de altura. Havia quatro pretos, um oriental e dois que me pareceram latinos. Eram todos extraordinariamente magros, alguns mesmo penosamente, e a maioria tinha o tom de pele doentio dos garotos dos bairros de lata. As cicatrizes e as equimoses abundavam e um jovem desengonçado tinha uma pala preta num olho.
Knurr conduziu-os através de uma sequência de exercícios de violência crescente, que culminaram numa série de pontapés altos, para a frente e para trás.
Terminado o período de exercício, Godfrey Knurr distribuiu-os por pares e os rapazes entregaram-se ao que me pareceu um combate simulado. Não se trocavam golpes autênticos, nenhuns dos garotos eram derrubados, mas era evidente que estavam todos a empenhar-se muito a sério, dando socos e contra-socos, desferindo pontapés e voltando-se rapidamente para evitarem os dos adversários. Enquanto eles lutavam, Knurr andava de par em par, observava-os atentamente, detinha-os para demonstrar como se aplicava um soco ou para lhes corrigir a posição dos pés. Tinha sempre algumas palavras para dizer a todos eles.
- Está bem, chega - disse, por fim. - Desenrolem o tapete. Vamos terminar com um derrubamento.
O tapete de luta foi estendido no centro do chão de madeira nua. Os rapazes juntaram-se à sua volta e eu aproximei-me mais. Knurr dirigiu-se para o tapete e fez sinal a um dos rapazes.
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- Anda, Lou. Vais ser a minha primeira vítima.
Soaram risos, piadas e alguns comentários grosseiros quando o preto de um metro e oitenta se foi colocar defronte de Knurr.
- Muito bem - disse o reverendo-, ataca-me com uma direita dura. Mas não te contraias, mantém-te solto. Pronto?
Lou colocou-se na posição clássica do karate e avançou com os nós dos dedos da mãos direita para a garganta de Knurr. O pastor executou um movimento tão rápido e fluido que mal o pude acompanhar. Agarrou o punho negro no ar, ergueu-o enquanto se voltava, curvou-se, encostou um ombro à axila do rapaz, puxou o braço, fez força e os pés de Lou levantaram-se no ar, numa cambalhota por cima da cabeça de Knurr. Ter-se-ia estatelado no tapete se ele o não tivesse agarrado pela cintura e depositado cuidadosamente no chão.
Houve mais gritos, risos e exclamações de encantada surpresa. O reverendo ajudou Lou a levantar-se e depois executaram o lançamento muito devagar, com Knurr a parar frequentemente para explicar exactamente o que estava a fazer, chamar a atenção dos alunos para a posição dos seus pés, para a distribuição do seu peso e para o modo como aproveitava o ímpeto do atacante para o ajudar a imobilizá-lo.
- Pronto, isto foi apenas uma demonstração - disse. - Amanhã vamos trabalhar neste lançamento. E hão-de trabalhar nele até todos serem capazes de o fazer bem feito. Depois mostrar-lhes-ei a defesa contra ele. E agora quem vai aparecer à sessão de conversa fiada desta noite? - Olhou em redor da sala, mas as cabeças estavam baixas e ninguém se ofereceu como voluntário. - Vamos lá, vamos lá - insistiu Knurr, impaciente. - Têm de pagar o divertimento, não pode ser só gozo. Quem vem para a conversa?
Levantaram-se hesitantemente algumas mãos e depois mais algumas. Por fim, quase metade dos rapazes estava de mão no ar.
- E tu, Willie? - perguntou Knurr, dirigindo-se ao rapaz desengonçado, de pala preta no olho. - Há semanas que não apareces. Deves ter um grande carregamento de pecados para confessar. Desejo especialmente a tua presença.
As suas palavras foram acolhidas com risos e gritos dos outros.
- Assim mesmo é que é!
- Dê-lhe, pastor!
- Faça-o vomitar tudo!
- Ele tem sido um maaaau rapaz!
- Está bem - disse Willie, com um sorriso amarelo. - Eu venho.
- Muito bem - disse Knurr. - Agora arrefeçam, todos vocês, e sumam-se daqui para fora. O ginásio estará aberto logo à tarde, das cinco às oito, se algum quiser treinar. Até amanhã.
Os rapazes começaram a tirar a roupa do chão, com o barulho e as brincadeiras que seriam de esperar. Knurr enrolou o tapete e atirou-o
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contra a parede. A camisola do seu fato de treino estava ensopada em suor debaixo dos braços, nas costas e no peito. Enquanto ele tomava duche, sentei-me à mesa da cozinha a beber cerveja da lata e a ouvir os gritos e as gargalhadas dos rapazes que partiam. Espreitei pela janela. Na casa que ficava do outro lado do pátio, uma velha, com um periquito empoleirado num dedo, dava-lhe a comer sementes, que segurava entre os lábios.
Godfrey Knurr voltou à cozinha de roupão turco, a enxugar a cabeça e a barba com uma toalha. Depois pôs a toalha ao pescoço e tirou uma cerveja do frigorífico. Sentou-se à minha frente.
- Então? - perguntou. - Que lhe parece?
- Muito impressionante. Fala-lhes na sua própria linguagem e eles parecem respeitá-lo. Obedecem-lhe. A única coisa que me perturba...
- Eu sei o que o perturba - interrompeu-me. - Pergunta a si mesmo se não estarei a ensinar estes monstros a serem agressores especializados.
- Sim, é mais ou menos isso.
- É um risco - admitiu. - Sei que existe. Estou-lhes sempre a recordar que estão a aprender as artes marciais apenas para defesa própria. E Deus sabe que precisam disso, considerando o que são as suas vidas. E também precisam de exercício físico.
- Mas tem de ser karate? Não poderia ser basquetebol?
- Ou jogar às cinco pedrinhas? - perguntou, ácido. - Também lhes poderia ler as odes de Píndaro. Escute, Joshua, a maior parte destes rapazes tem cadastro. A violência atrai-os. Eu tento apenas capitalizar sobre isso. Todas as vezes que eles esmurram o ar e gritam "Ah!", estão a esmurrar a sociedade estabelecida. Tento encaminhar essa revolta para um canal mais pacífico e construtivo.
- Pode-se matar com o karate, não pode?
- Eu não lhes ensino golpes que matam - respondeu secamente. - Além disso, o que acaba de ver é apenas metade do meu programa. A outra metade é terapia de grupo e conselhos pessoais. Esforço-me por ser uma figura paterna. Na maioria, os seus pais naturais são bêbedos, drogados ou desapareceram. Piraram-se. Portanto, eu sou realmente o único pai que eles têm e faço tudo quanto posso para lhes pôr os pequenos cérebros nos eixos. Alguns destes brutos estão tão baralhados que você nem acreditaria. Mens sana in corpore sano. É essa verdadeiramente a minha esperança para estes garotos. É para isso que trabalho. Vamos comer.
Tinha feito uma salada de alface migada coberta com montinhos de maionese. As sanduíches de carne assada tinham sido visivelmente compradas numa charcutaria; eram redondas, com a fatia de carne no meio e também barradas de maionese. Knurr abriu mais duas cervejas para nós e comemos e bebemos. E ele falou.
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Era um homem muito inteligente e lógico e falava bem. O que mais me impressionava nele era a sua energia animal. Atacou a sanduíche com uma fome de lobo, meteu grandes garfadas de salada na boca e bebeu a cerveja em golos avantajados.
- Mas tudo custa dinheiro - estava a dizer. - Dinheiro, dinheiro, dinheiro: o nome do jogo. Não há nenhuma igreja disponível para mim, nem para nenhum dos fazedores de tendas. Por isso, temos de arranjar maneira de nos safar, de ganhar o suficiente para fazermos o trabalho que queremos fazer.
- Talvez isso seja uma vantagem - observei. Olhou-me surpreendido.
- É muito perceptivo, Joshua. Se quer dizer o que penso, e estou convencido de que quer. Sim, é uma vantagem na medida em que nos mantém em contacto mais estreito com a vida secular, nos dá uma melhor compreensão dos problemas e das frustrações quotidianas do trabalhador comum. Um pastor que passa anos e anos na mesma igreja cria musgo. Vê as mesmas pessoas todos os dias até ficar farto e quase chalado. Lá fora há um mundo grande, cruel, maravilhoso e lutador, mas o comum dos pastores está encalhado no seu remanso com sermões semanais, música de órgão e o terrível problema de arranjar fundos para uma nova toalha do altar. Não admira que muitos deles se metam nos copos ou fujam com a soprano do coro.
- Como conheceu Tippi Kipper? - perguntei.
Passou-lhe rapidamente qualquer coisa pelos olhos. Tornou-se um pouco menos loquaz.
- Uma amiga de uma amiga de uma amiga. Joshua, os ricos de Nova Iorque são uma cidade dentro da cidade. Conhecem-se todos uns aos outros. Vão às mesmas festas. Tive a sorte de penetrar no círculo mágico. Vão-me passando de uns para os outros. Uma amiga de uma amiga de uma amiga. Foi assim que conheci a Tippi.
- Ela trabalhou no teatro? Sorriu.
- Isso é o que ela diz. Mas não importa. Se quer representar o papel de "Dama Generosa", eu sou o tipo que lhe vai ensinar como. Não me interprete mal, Joshua. Estou grato a Tippi Kipper e estarei eternamente grato ao seu amável e generoso marido, que recordarei nas minhas orações durante o resto da minha vida. Mas sou um realista, Joshua. O caso dos Kippers tratava-se de uma coisa relacionada com o ego, suponho. Como acontece com todos os meus patronos. E patronas.
- Sol Kipper contribuía para as suas... actividades?
- Oh, sem dúvida! Regularmente. com os diabos, tirava-o dos impostos! Estou registado no estado de Nova Iorque. Rigorosamente sem
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fins lucrativos. Não por opção, claro! - acrescentou, com uma gargalhada áspera.
- Quando aconselha os seus patronos - disse, devagar, a tentar fazer a pergunta correctamente-, os patronos ricos, como Tippi Kipper, quais são os principais problemas deles? Quero dizer, parece-me irreal que pessoas tão ricas tenham problemas.
- Têm problemas muito reais - respondeu-me, sério. - Antes de mais nada, sentimento de culpa pela sua riqueza quando vêem pobreza e sofrimento à sua volta. E depois têm os mesmos problemas que todos nós temos: solidão, necessidade de amor, uma noção da nossa própria insignificância.
Fitava-me de frente, francamente. Era muito difícil sustentar aquele olhar duro, desafiador.
- Ele deixou um bilhete de suicida. Sabia?
- Sabia. A Tippi disse-me.
- No bilhete, pedia desculpa à mulher. De qualquer coisa que tinha feito. Que teria sido?
- Ora, quem diabo poderá sabê-lo? Nunca perguntei à Tippi e ela nunca me deu a informação de moto próprio. Pode ter sido, sei lá, tudo. Ou qualquer coisa ridícula. Sei que eles estavam a ter... problemas sexuais. Pode ter sido isso ou uma dúzia de outras coisas. Sol era o pior hipocondríaco que já conheci. Estou certo de que outros já lho disseram.
- Quando o viu pela última vez? - perguntei, casualmente.
- No dia antes de ele morrer - respondeu, sem hesitar. - Numa terça-feira. Tivemos uma grande conversa no seu gabinete e ele deu-me um cheque muito grande e generoso. Depois teve de ir a qualquer lado, a uma reunião.
Ficámos alguns momentos calados. Acabámos de beber a segunda cerveja cada um. Em seguida olhei para o relógio.
- Meu Deus, não fazia ideia que fosse tão tarde! Preciso de voltar para o escritório, enquanto ainda tenho emprego. Pastor, obrigado por um almoço delicioso e muito instrutivo. Apreciei todos os minutos.
- Volte - convidou. - E com frequência. Você sabe ouvir. Já alguém lhe tinha dito isso? E traga os seus amigos... e diga-lhes que tragam os livros de cheques!
Cheguei ao edifício da TORT às 2.50 horas, debaixo de uma chuva fina que ameaçava transformar-se em neve. Yetta Apatoff acolheu-me com uma gargalhadinha.
- Ela está à sua espera - segredou.
- Quem?
Inclinou a cabeça e depois tapou a boca com a palma da mão. Estava uma mulher à minha espera no corredor, à porta do meu gabinete. Tinha pelo menos um metro e noventa e cinco de altura e usava
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um casaco de pele de macaco sintética que lhe dava o aspecto de um gorila erecto. Quando me aproximei, pensei que se tratava de uma graça de muito mau gosto de Hamish Hooter e perguntei a mim mesmo quantas candidatas ele tinha entrevistado antes de encontrar aquela.
Mas, mais de perto, verifiquei que não se tratava de nenhuma górgona. Por sinal era muito simpática, tinha um sorriso calmo e uma placidez resignada que reconheci: todas as pessoas muito baixas, muito altas ou muito gordas a têm.
- Viva - cumprimentei. -Sou Joshua Bigg. Está à minha espera?
- Estou, Mr. Bigg - respondeu, sem pestanejar sequer perante o meu reduzido tamanho - talvez tivesse sido avisada - e entregando-me um talão de admissão do gabinete de Hooter. - Chamo-me Gertrude Kletz.
- Entre - convidei. - Deixe-me ver o seu casaco.
Sentei-me à secretária e ela sentou-se na cadeira das visitas. Conversámos durante quase meia hora e, enquanto conversávamos, o meu entusiasmo por ela aumentou. Hooter vira apenas o seu tamanho avantajado, mas eu achava-a sensata, calma, aparentemente qualificada e com um singular sentido do humor.
Era casada com um funcionário dos serviços de sanidade e, como os seus três filhos já eram crescidos e podiam olhar por si mesmos, resolvera tornar-se temporariamente secretária-dactilógrafa, trabalho que já desempenhara antes de casar. Se possível, não desejava trabalhar para além das três horas da tarde, a fim de poder estar em casa, em Brooklyn, a horas de fazer o jantar. Combinámos que trabalharia quatro horas por dia, das onze da manhã às três da tarde, sem intervalo para almoço, às segundas, quartas e sextas-feiras.
Era uma mulher corada, com feições cavalares e inocentes olhos de donzela. O seu cabelo era cinzento-ferro e fino, e para uma mulher de tal tamanho tinha uma voz de surpreendente leveza. Vestia desajeitadamente, embora na verdade eu não pudesse conceber como uma mulher de tal estatura poderia vestir elegantemente. Usava uma saia cinzenta, ampla, que tinha fazenda suficiente para um fato para mim (com colete), uma sóbria blusa branca aconhegada no pescoço por uma estreita fita preta e um casaco de tweed de um xadrez de cores berrantes, que ficaria melhor numa medusa. Meias opacas e sapatos práticos completavam o conjunto. Nas mãos competentes, apenas uma delgada aliança de ouro.
Expliquei-lhe o melhor que pude a natureza do meu trabalho na Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum. Depois disse-lhe o que esperava dela: que arquivasse, completasse as minhas minutas resumidas e as passasse à máquina, atendesse o telefone, tomasse conta de recados e efectuasse investigações simples e básicas a partir de fontes que eu forneceria.
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- Acha que é capaz de fazer isso, Mrs. Kletz?
- Oh, sim! - respondeu, confiante. - Deve esperar que eu cometa erros, mas não cometerei o mesmo erro duas vezes. Cada vez a achava melhor.
- Há outra coisa. Muito do meu trabalho e, portanto, do seu trabalho envolverá casos em litígio. É tudo estritamente confidencial. Não pode levar o emprego para casa consigo. Não pode discutir o que souber aqui com mais ninguém, incluindo marido, família e amigos. Tenho de contar com a sua inteira discrição.
- Pode contar - respondeu, quase carrancuda. - Não sou linguareira.
- Óptimo - disse, e levantei-me. - Pode começar amanhã ou prefere começar na segunda-feira?
- Amanhã está bem - respondeu, e levantou-se também. - O senhor estará cá?
- Provavelmente - respondi, a pensar na minha agenda para sexta-feira. - Se não estiver, deixo-lhe instruções na minha secretária. Acha bem?
- com certeza - redarguiu, bonacheirona.
Pus-me em bicos de pés para a ajudar a vestir o ridículo casaco. Depois trocámos um aperto de mão, a sorrir, e ela foi-se embora. Considerei-a uma mulher muito serena e tranquilizadora e senti-me grato a Hamish Hooter. Claro que nunca lho diria, porém.
Assim que Mrs. Kletz saiu, liguei para o gabinete de Hooter. Ele não estava, felizmente, mas expliquei à sua ajudante o que precisava: secretária, cadeira, máquina de escrever, cesto de papéis, papel timbrado e outro material do género, telefone, etc. Queria tudo instalado no corredor, logo a seguir à porta do meu escritório, às onze horas da manhã seguinte.
- Mr. Bigg! - exclamou, horrorizada. Eu conhecia-a: era uma mulher assustada, com cara de coelho, completamente tiranizada pelo seu chefe. -Não podemos fornecer isso tudo amanhã de manhã.
- O mais cedo possível, então - disse, em tom firme. - A minha assistente foi contratada com a aprovação dos sócios principais e, obviamente, precisa de um lugar para trabalhar.
- Sim, Mr. Bigg - respondeu, submissa.
Desliguei, satisfeito. Hoje, uma assistente temporária. Em breve, uma secretária em tempo integral. Um gabinete maior. Depois... o munnndo!
Passei o resto da tarde sentado à secretária. No exterior, a neve engrossara. Funcionários da TORT que tinham rádios nos gabinetes informaram que estavam previstos oito a treze centímetros de neve antes de a tempestade abrandar por volta da meia-noite. De cima veio a comunicação de que, em virtude de estar a nevar, quem desejasse
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sair mais cedo poderia fazê-lo. Gradualmente, o escritório foi ficando vazio até que, cerca das cinco da tarde, estava praticamente deserto e silencioso, de corredores vazios. Eu deixei-me ficar. Parecia-me idiota ir para casa, em Chelsea, e depois ter de me dirigir à parte alta da cidade para me encontrar com Perdita Schug no Mother Tucker's às sete horas da noite. Por isso, resolvi ficar no escritório até serem horas para o meu encontro com ela.
Levantei-me e espreitei para o corredor principal. As luzes já tinham sido diminuídas e o guarda de segurança da noite estava sentado à secretária de Yetta Apatoff. Para lá dele, através das portas de vidro da entrada, vi uma cortina de neve ocasionalmente rasgada por fortes rajadas de vento.
Voltei para o meu gabinete, desejando que Roscoe Dollworth se tivesse esquecido de uma garrafa de vodka escondida na secretária ou no ficheiro. Um desejo sem esperança, sabia. Além disso, numa noite daquelas, um golo de brande seria mais a meu gosto. Se eu tivesse uma...
Sentei-me devagar na cadeira, compreendendo de súbito o que me intrigara no gabinete do professor Stonehouse: a garrafa de Rémy Martin que se encontrava na bandeja de prata era nova, estava fechada e ainda selada. Isso significava, aparentemente, que lá se encontrava desde a noite em que o professor desaparecera.
Claro que havia uma explicação perfeitamente inocente: ele acabara a garrafa anterior na véspera à noite e pusera na bandeja uma garrafa nova, com intenção de voltar quando saíra de casa na noite de 10 de Janeiro e abri-la.
Havia outra explicação, não tão inocente. E essa era que o professor não tinha sido envenenado através do cacau, mas sim por arsénico acrescentado ao seu brande. Ele bebia cacau e brande todas as noites antes de se deitar. As doses letais podiam ter sido adicionadas a qualquer das bebidas. E se ele descobrira a fonte do envenenamento, isso podia explicar a garrafa selada no seu gabinete.
Consultei o relógio. Passavam poucos minutos das cinco e meia - uma má hora para telefonar. Mas eu tinha de saber. Marquei o número do apartamento dos Stonehouses.
- Sim? - atendeu Olga Eklund.
- Olá, Olga. Fala Joshua Bigg. -Sim.
- Como está?
- Não está agradável. O tempo.
- Não, parece que temos uma desagradável tempestade. Olga, POSSO falar um momento com Mrs. Dark, se não der muita maçada?
- vou chamá-la.
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Esperei impacientemente quase três minutos, até ouvir a voz alegre de Mrs. Dark:
- Olá, meu querido.
- Effie, desculpe incomodá-la a esta hora. Sei que deve estar atarefada com o jantar.
- Não incomoda nada. Está tudo ao lume. Agora é só uma questão de esperar.
- Tenho mais umas perguntinhas para fazer. Vai achá-las malucas, mas na realidade são importantes e você poderia dar uma grande ajuda na descoberta do que aconteceu ao professor.
- Sério? - perguntou, agradavelmente surpreendida. - Bem, farei o que puder.
- Effie, quem compra as bebidas para a família - o uísque, o vinho, a cerveja, etc.?
- Eu. Telefono para a loja de bebidas da Columbus Avenue e eles vôm cá trazer o que peço.
- E depois de fazerem a entrega, onde guarda as garrafas?
- Bem, certifico-me sempre de que o bar da sala está fornecido de tudo quanto é preciso. Muito xerez sabe para quem. A reserva guardo-a aqui na cozinha, no armário de baixo.
- E o brande do professor? O que ele bebia todas as noites?
- Tinha sempre uma ou duas garrafas a mais, à mão. Deus nos valesse se não houvesse brande quando ele o queria!
- Quanto tempo lhe durava uma garrafa, Effie? Quero dizer, a garrafa que ele tinha no gabinete.
- Uns dez dias, talvez.
- Portanto, consumia umas três garrafas de brande por mês?
- Mais ou menos.
- E essas garrafas eram guardadas no armário da cozinha?
- Exactamente.
- Quem punha uma garrafa nova no gabinete do professor?
- Ele próprio a vinha buscar. Ou eu levava-lha, se via que a anterior estava vazia. E Glynis também lha podia levar, uma vez por outra.
- Também havia geralmente uma garrafa de Rémy Martin no bar da sala?
- Oh, não! - respondeu, a rir. - O brande que lá está é italiano. O professor reservava o bom para si.
Naturalmente, pensei, encantado com o que soubera.
- Mais uma pergunta, Effie. é muito importante. Peço-lhe que pense bem e tente recordar-se, antes de responder. Lembra-se de, no espaço de mais ou menos um mês antes de o professor desaparecer, lhe ter levado ao gabinete uma garrafa nova de brande?
Ficou calada.
- Não - respondeu, por fim. - Não lhe levei nenhuma. Talvez a
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filha lhe tenha levado, ou ele próprio tenha vindo buscar à cozinha, quando precisou. Espere um momento. Estou a falar na extensão da cozinha e basta apenas um minuto para verificar.
Demorou-se pouco tempo.
- É estranho - disse, quando voltou. - Fui ver ao armário, onde me lembrava de ter duas garrafas. Agora está lá uma e está outra fechada no gabinete do professor.
- Lembra-se de ter comprado garrafas de Rémy Martin no mês ou mês e meio anterior ao desaparecimento do professor?
De novo silêncio.
- É estranho - repetiu. - Não me lembro de comprar nenhuma, mas se ele bebia três por mês devia ter comprado. No entanto, não me lembro de ter encomendado uma única garrafa. Tenho de conferir as facturas, para me certificar.
- Pode fazer isso, Effie?
- com prazer - respondeu logo. - Mas agora tenho de desligar; está qualquer coisa a começar a queimar-se.
- Foi muito prestável - apressei-me a dizer. - Deu-me uma grande ajuda.
- Sério? Ainda bem.
Desligámos.
Se eu tivesse sido o professor Stonehouse e tivesse sabido que estava a ser vítima de envenenamento por arsénico, trataria de descobrir como a coisa estava a ser feita e por quem. E eu tinha a certeza de que ele descobrira quem andara a fazê-la.
Eram quase seis horas da tarde. Como não fazia ideia do tempo que levaria a chegar à parte alta da cidade com aquela tempestade, calcei galochas, levantei a gola do sobretudo para cima, baixei a aba do chapéu e saí do gabinete. Dei as boas-noites ao guarda de segurança e saí do edifício.
O vento quase atirou comigo. Não se tratava de uma daquelas suaves quedas de neve, com grandes flocos a cair em silêncio e a brilhar à luz dos candeeiros de iluminação pública e dos letreiros a néon. Era um temporal desfeito, com o mundo inteiro em tumulto. A neve caía em remoinhos, era soprada para os lados e até subia em pequenas nuvens dos montes que começavam a formar-se nas esquinas das ruas.
Estavam pelo menos vinte pessoas à espera do autocarro da 3ª Avenida. Após uma espera que pareceu interminável, mas que provavelmente não durou mais de um quarto de hora, surdiram da brancura redemoinhadora não um, mas sim quatro autocarros. Meti-me no último. A viagem pareceu levar uma eternidade. Na Rua 69 apearam-se cinco outros passageiros, que me levaram a reboque. Segui para leste, contra o vento, quase dobrado ao meio para proteger o rosto da neve.
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De súbito, logo a seguir à esquina, na 2ª Avenida, um letreiro brilhava, vermelho, através da neve: MOTHER TUCKER'S.
- Deus a abençoe, mãe - disse, em voz alta.
Perdita estava no canto da frente do bar, empoleirada num tamborete e de vestido preto muitíssimo decotado. Tinha a cabeça inclinada para trás, o pescoço reluzente exposto, e ria-se com vontade de qualquer coisa que o homem que se encontrava de pé a seu lado acabava de dizer. A casa estava cheia, apesar do tempo, mas Perdita era fácil de encontrar.
Viu-me quase no mesmo instante em que a vi. Deixou-se escorregar do tamborete com um movimento muito provocante, correu para me abraçar com um gritinho de prazer e enterrou-me praticamente no seu embonpoint.
- Josh! - exclamou, e emitiu aquele som profundo, rosnador e gutural que significava prazer. - Nunca, nunca, nunca pensei que aparecesse! Não posso acreditar que tenha saído com esta merda deste tempo para ver cá a pequenina! - Os seus olhos redondos cintilavam e a sua língua espreitava de vez em quando entre os lábios húmidos. - Pobre querido, temos de o descongelar. Cor, veja se consegue que o Harry sirva um copo.
- Que deseja o senhor tomar? - perguntou delicadamente-o companheiro da rapariga.
- Uísque com água, por favor.
Apresentámo-nos. Ele era Clyde Manila - coronel Clyde Manila. Perdita tratava-o por Cor, que tanto podia significar coronel como outra coisa.
Um empregado de bar barbudo, que trabalhava freneticamente, ouviu o pedido da rapariga, parou, e levou a mão à orelha, a olhar para o coronel Manila.
- Mais do mesmo, Harry, e um uísque com água.
Harry acenou com a cabeça e passados momentos colocou as bebidas à nossa frente. Levei a mão à carteira, mas Harry extraiu rapidamente a quantia necessária do monte de notas e moedas que estavam no balcão, defronte do coronel.
- Obrigado - agradeci. - A próxima pago eu.
- Esqueça isso - disse-me Perdita. - O Cor está cheio dele. Não está, queridínho?
- Faço tenção de estar - respondeu o coronel, e despejou metade do copo num enorme golo. -É inútil tentar chegar a casa numa noite destas, não é? - Fechou os olhos pequenos, encantado.
Apresentava-se num desarranjo simpático: bigode branco de morsa, nariz batatudo de beberrão, casaco de tweed peludo e áspero e um capachinho ruivo, mal ajustado.
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- Estou terrivelmente esfomeado - declarei. - Perdita, acha que há alguma possibilidade de arranjarmos uma mesa?
- com certeza - respondeu-me. - Cor, fale com o Max.
O coronel afastou-se obedientemente, a abrir caminho pelo meio da clientela.
- O lugar é agradável - disse a Perdita, que estava a piscar o olho a alguém que se encontrava mais abaixo, no balcão.
- Esta baiuca? - perguntou ela. - Um lar longe do lar. Aqui pode-se sempre mandar assentar, Josh. Lembre-se disso: no Mother Tucker's pode-se sempre pôr na conta. Aí vem o Cor.
Voltei-me e vi o coronel Manila a acenar-nos com grandes gestos.
- Arranjou uma mesa - disse Perdita. - Vamos.
- Ele vai jantar connosco? - perguntei.
- O Cor? Nem pensar. Ele nunca come.
Quis agradecer-lhe por nos ter arranjado mesa, mas perdi-o na confusão.
À mesa, Perdita disse:
- Quero outra bebida e depois quero uma salada, esparguete com azeite e alho, camarões grandes e um parfait para sobremesa.
Encolhi-me todo, com medo de não ter comigo dinheiro suficiente para pagar aquilo tudo. Não acredito em cartões de crédito.
- Que está a beber? - perguntei.
- Sei lá! Estou aqui desde a uma da tarde.
Apareceu uma criada com uma T-shirt que dizia "Chato É Bonito". Escolhemos uma bebida para Perdita e a criada afastou-se.
- Não se preocupe com a conta - tranquilizou-me Perdita, sorridente. - O Cor Manila paga.
- De modo nenhum - protestei, indignado. - Fui eu que a convidei. Ele não tem de pagar o nosso jantar.
- Não seja pateta. Ele gosta de me comprar coisas. Já lhe disse que está cheio dele. Acenda-me o cigarro.
Falar com ela não constituía problema nenhum; era apenas necessário ouvir. Tagarelou durante a segunda rodada de bebidas e durante a gargantuesca refeição, acompanhada por uma garrafa de chianti. Tentei diversas vezes desviar a conversa para a residência Kipper, dizendo coisas como: "Suponho que esta comida é melhor do que a feita por Mrs. Neckin." Mas Perdita não mordeu nenhuma das iscas; nada conseguia interromper o seu monólogo. Desisti e pedi a conta, mas a criada respondeu-me: "Já está pago."
- Eu bem lhe disse - comentou Perdita, a rir. - O Cor está-me sempre a fazer coisas destas. Pensa que assim consegue comprar alguma coisa.
- E consegue?
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- com certeza - respondeu, alegremente. - Que julga você? Voltemos para o bar.
Na verdade não era necessário, pois ela já estava completamente embriagada. Juntámo-nos ao coronel e foi levantada a ideia de irmos a Holoboken, às amêijoas. Eu disse que não ia. Dois homens novos aproximaram-se e segredaram ao ouvido de Perdita. Ela mandou-os passear e eles desapareceram rapidamente. O barulho era incrível.
O coronel Clyde Manila estava sentado, de lado, no tamborete de Perdita. Assim que nos viu, desceu e fez uma vénia à rapariga.
- Estive a conservá-lo quente para si, querida senhora - informou, em voz estrangulada.
- Coronel - gritei-, desejo agradecer-lhe a amabilidade. O jantar estava excelente.
Os pequenos olhos claros pareciam ter-se tornado vítreos.
- Boa marca - respondeu-me.
- Posso oferecer-lhe uma bebida?
- Boa marca.
- Oh, não seja tão parvo, Josh! - protestou Perdita. - Venha dançar comigo.
Apertou-me nos braços, fechou os olhos e começou a arrastar-me.
- Adoro valsas vienenses - disse Perdita Schug, sonhadoramente.
- Parece-me que estão a tocar Beautiful Ohio - observei.
- Antipáticos brutos - disse o coronel Manila, que estava junto do meu ombro e nos seguia, cambaleante, à volta da minúscula pista de dança. - Cheiram mal, sabe? Alguma vez observou uma tosquia? Tinha desconfiado de que ele era australiano.
- A última vez que vi Paris - cantarolou Perdita ao meu ouvido. - Vamos fazer ium-ium os dois.
- Perdita, francamente, eu...
- Podemos ir para sua casa? - sussurrou.
- Oh, não! Não, não, não. Sério. Receio que não seja...
- Onde é a sua casa?
- A quilómetros daqui. Lá para a parte baixa, lado ocidental. -Onde é a sua casa? - repetiu. - Ium-ium.
- Lá para a parte baixa... -recomecei.
- Cor! -gritou. -Vamo-nos embora. -Boa marca - replicou ele.
Saímos do Mother Tucker's e voltámos as costas a um vento vingativo, que nos fustigava com a neve que arrastava consigo. Manila fez um gesto e nós fomos atrás dele e contornámos a curva para a 69. Parou junto de um carro e começou a procurar as chaves nas algibeiras do casaco. Encaixámo-nos todos à frente, com Perdita no meio.
- Uma passa - disse o coronel.
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- Achei o restaurante muito agradável - observei, sem compreender.
Perdita, que já estava à procura na mala, tirou um grosso cigarro enrolado à mão, com ambas as extremidades torcidas.
Acendeu-o, aspirou profundamente e estendeu-o ao coronel. Ele deu-lhe uma chupadela tremenda e metade do cigarro pareceu desaparecer numa chuva de faúlhas.
O coronel devolveu o cigarro a Perdita e dedicou a sua atenção a interruptores e botões. Em poucos momentos tinha os faróis acesos, o motor a vibrar e o irradiador ligado. A neve das janelas começou a derreter-se.
- Uísque - ordenou o coronel, como um sargento instrutor a gritar uma voz de comando.
Perdita virou-se, pôs-se de joelhos no banco da frente e debruçou-se para a retaguarda, de rabo no ar. O coronel Manila deu-lhe uma pequena palmada.
- Isto é que é uma pequena! -exclamou, afectuoso.
A rapariga voltou à sua posição primitiva com uma garrafa cheia e três copos, tudo de cristal lapidado. Deitou bebidas para todos- generosas-e depois pôs a garrafa no chão, entre os pés.
Tive a certeza de que nos mandariam parar. Tive a certeza de que a Polícia nos prenderia. E imaginava quais seriam as acusações. Talvez, pensei esperançado, me conseguisse safar com três anos, por causa da minha aparência juvenil e do meu cadastro exemplar.
Não aconteceu nada do género. O coronel conduziu com perícia. Mesmo depois de ligar o rádio para um posto que transmitia rock'n'rol! e de começar a bater no volante, com uma das mãos, a acompanhar o ritmo da música, continuou a fumar, a beber, a parar em obediência às luzes do trânsito e a fazer as curvas habilmente. Por fim, parou mesmo defronte da minha porta, quase afundando a limusina num monte de neve. Ri-me esganiçadamente.
- Não há dúvida de que foi uma noite memorável! - exclamei, a ouvir a tremura da minha própria voz. - Quero agradecer...
- Saia - resmungou Perdita Schug, a empurrar-me. - Vamos.
Saí atarantada e apressadamente para a neve. Ela seguiu-me. Olhei para trás, para o coronel Clyde Manila. Ele disse-me adeus com os dedos. Retribuí-lhe. Perdita bateu com a porta do carro e depois agarrou-me no braço com firmeza de proprietária.
- Vamos embora - ordenou, alegremente.
Devia ser perto de meia-noite. Creio. Mas também podiam ser dez horas. Ou duas. Fossem lá as que fossem, desejei que Mrs. Hermione Hufnagel, Cleo, o comandante Bramwell Shank, Adolph Finkel e Madame Zora Kadinsky estivessem todos atrás das portas fechadas à chave e a dormir inocentemente nas respectivas camas quentes.
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- Psiu! - disse a Perdita Schug, enquanto a conduzia pela escada acima, e ri-me nervosamente.
- Que história é essa dopsiu?
Meti-a no apartamento. Entretanto, ela começara a mover-se com deliberada e exagerada cautela.
Acendi a luz do tecto. Pus os nossos abafos e chapéus nas costas de uma cadeira. Ela olhou à volta da sala e eu aguardei a sua reacção. Não teve nenhuma. Deixou-se cair na minha poltrona.
- Venha sentar-se no meu colo - ordenou, com um sorriso vulpino.
Comecei a gaguejar, mas ela agarrou-me no pulso, puxou-me com força surpreendente e sentou-me nas coxas macias.
Beijou-me. Os dedos dos pés encaracolaram-se-me. Dentro dos sapatos e das galochas que me esquecera de tirar.
- Mmm! - exclamou, deliciada. - Assim é melhor. Muito melhor.
Mudou de posição e aconchegou-me bem no colo. Tinha um braço musculoso à volta do meu pescoço. Juntou as nossas faces e comprimiu-as. "A última vez que vi Paris...", cantarolou.
- Perdita - comecei, decidido a tentar a sorte também pela última vez-, não compreendo como suporta fazer o trabalho que faz. Quero dizer, tem tanta personalidade e... enfim, talento e experiência... Porque continua a ser criada de Tippi Kipper?
- Porque é uma canja - respondeu sem hesitar. - O ordenado é bom, como e tenho os meus próprios aposentos. E o meu próprio telefone. Que outra coisa poderia fazer? Vender luvas no Macy's?
- Mesmo assim, deve ser maçador.
- Umas vezes é, outras não. Como em qualquer outro emprego. -Mrs. Kipper é... você sabe, enfim... compreensiva?
- Oh, com certeza! - respondeu, a rir. -Safo-me com cada uma! O Chester Heavens gostaria de correr comigo e Mrs. Neckin chamou-me "rebento do demónio". Gostariam ambos de me ver na rua, mas a Tippi nunca me despedirá. Nunca.
- Porquê?
- Dê cá mais um beijinho.
Dei-lhe mais um beijinho.
- Está à aprender. Escute, a Tippi diverte-se tanto como eu. E sabe que eu sei.
- Diverte-se agora ou divertia-se antes? Quero dizer, quando o marido estava vivo?
- Ora merda, Josh, ela divertiu-se sempre. Desde que lá estou. Faz quatro anos em Abril.
- Como sabe?
- Como sei? Oh, pobre, querido, inocente cordeirinho! Julga que
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ela não me cheira a erva, e não lhe vejo a roupa de baixo, e não reparo que vem penteada de maneira diferente quando regressa a casa do que diz ter sido um jogo de brídege? Uma mulher sabe essas coisas. Especialmente uma criada. Arranhões nas costas. Dedadas negras no cu. Oh, anda na farra, não me restam dúvidas a esse respeito! Escute, Josh, estou nas lonas. Tem por aí uísque?
- Bem... com certeza. Mas acha mesmo que quer...
- Prepare-me um uísque - ordenou-me.
Fiz-lhe a vontade.
- Onde está o seu?
- Compartilhamos este.
- Uma taça de amantes - comentou. - E depois... ium-ium. Onde está a cama?
- No quarto.
- Ainda não - disse, a admoestar-me com um dedo reprovador. - Não esteja com tanta pressa, seu tigre.
- Palavra que não estou - garanti-lhe. - Quero dizer, não é o que...
Agarrou-me o braço e puxou-me outra vez para o colo. Aceitei o meu destino de boa mente.
- Tão giro - disse, sonolenta. - Você é realmente giro.
- A Tippi não anda a fazê-lo com o Knurr, pois não?
- Oh, oh, oh! - exclamou Perdita Schug. - Se anda! Duas, três vezes por semana, pelo menos. Ele é muito importante na sua vida, neste momento. Até lá em casa, imagine. Palavra! E quando o Sol estava vivo também. Os dois no elevador. Que lhe parece, nem? Alguma vez fez a coisa no elevador, Josh?
- Não, nunca.
- Eu também não - confessou, com pesar. - Mas fiz uma vez num armário - acrescentou, mais animada. - O engraçado é que... -A voz extinguiu-se-lhe.
- O engraçado é o quê?
- Eu podia tê-lo assim... - disse, a tentar estalar os dedos, mas conseguindo apenas que deslizassem uns pelos outros. - Refiro-me ao Knurr. Está interessado na minha figura, anda sempre a atirar-se. A dar uma apalpadela quando ela não está a olhar. O tipo é um garanhão. Um garanhão religioso. Agora estou pronta para fazer ium-ium.
Encontrou o quarto. Não acendi o candeeiro da mesa-de-cabeceira; vinha do átrio luz suficiente. Ela olhou em redor estonteadamente e encostou uma das mãos à parede, para se equilibrar. Virou as costas para mim.
- Abra o fecho.
Obedientemente, puxei a pega do comprido fecho até à cintura. Mexeu os ombros e o vestido desceu-lhe pelo corpo e caiu no chão
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Levantou um pé de cada vez. e saiu de dentro dele. Usava soutien, cuequinhas e finíssimos collants pretos. Sacudiu subitamente a cabeça, fazendo girar o cabelo curto.
- Estou pifada - anunciou.
Deixou-se cair bruscamente na cama e levantou as pernas.
- Descasque-me - pediu.
Desejava fazer-lhe muitas outras perguntas acerca de Tippi Kipper e do reverendo Godfrey Knurr, mas o momento não me pareceu adequado. "Descasquei-lhe" os collants.
Ela meteu-se debaixo da roupa e puxou o lençol e o cobertor até ao queixo. Um momento depois, pôs de fora um braço magro e branco e atirou o soutien e as cuequinhas para o chão.
- Pronto, tigre - disse, ensonada. - É agora. O momento da verdade.
Baixei-me para lhe apanhar o vestido. Sacudi-o, para o endireitar, e pendurei-o no armário. Depois apanhei a roupa interior, dobrei-a e pu-la em cima da cómoda.
Quando me voltei para a cama ela estava a dormir, a respirar regularmente, com a cabeça de lado na almofada.
Fui buscar-lhe os sapatos à sala e coloquei-os ao lado um do outro, junto da cama.
Na manhã seguinte, acordei com cãibras no pescoço, nos ombros, nos quadris, nas coxas e nos tornozelos, da cama que improvisara com duas cadeiras. Às vezes a pequena estatura é vantajosa. Levantei-me e, em trajes menores, comecei a movimentar os braços, a sacudir as pernas, a girar o pescoço, etc. O vigor da juventude é tal que em breve conseguia andar direito, apenas a coxear ao de leve.
Perdita continuava a dormir tranquilamente, de cabeça de lado nas almofadas, roupa puxada até ao queixo e joelhos dobrados, como eu a deixara. Só o lento subir e descer do cobertor provava que não falecera.
Fui para a casa de banho o mais ruidosamente que pude, bati com a porta e cantei no duche. Lavei os dentes, achei desnecessário barbear-me e saí revigorado da casa de banho, com uma toalha enrolada à cintura.
- Olá, olá, olá! -chamei, e depois espreitei no quarto. Continuava a dormir.
Vesti-me de lavado, a esforçar-me por fazer o máximo barulho possível. Acabado de vestir, fui à cozinha e por lá cirandei, a ferver água para fazer café instantâneo. Levei duas chávenas cheias para o quarto e pu-las na mesa-de-cabeceira. Eram quase oito e meia.
Sentei-me na cama e sacudi devagarinho o ombro de Perdita. Depois sacudi-o com mais força. E depois, envergonha-me dizê-lo, violentamente. Abriu de súbito os olhos e fitou-os na parede oposta.
- Que é ? - perguntou.
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- Perdita - disse, brandamente-, sou eu, Joshua Bigg, e você está no meu apartamento em Chelsea. O coronel Clyde Manila trouxe-nos cá de carro. Lembra-se?
- Claro que lembro! - respondeu vivamente, ao mesmo tempo que se sentava de repelão na cama, deixando cair a roupa até à cintura, e estendia os braços para me abraçar; abracei-a desajeitadamente.
- Sente-se bem? - perguntei-lhe.
- Maravilhosamente. Uma maravilha.
- Está aqui café. Quer uma chávena?
- Porque não? Tem brande?
- Tenho.
- Enfrasque-me.
Fui à sala buscar a garrafa do brande. Quando voltei, já tinha saído da cama e vestido a roupa de baixo. Bebeu um golo de café e eu acabei de encher a chávena com brande. Meteu um indicador na chávena, mexeu e lambeu o dedo.
Sentou-se na borda da cama, a beber o café. Sentei-me a seu lado. Virou-se, para olhar para mim.
- Josh, fui boa para si? - perguntou, ternamente.
- Foi maravilhosa para mim.
- Não fiz demasiado barulho, pois não?
- De modo nenhum - tranquilizei-a. - Foi perfeito.
- Para mim também - declarou, a suspirar. - Perfeito. Sinto-me tão tranquila e descontraída! Temos de repetir.
- Absolutamente.
- Estou sempre no Mother Tucker's às quintas-feiras. Passe por lá.
- Passarei. -Promete?
- Prometo - respondi, e beijei-lhe a ponta do nariz.
Acabou de beber o café, pegou na mala e correu para a casa de banho, onde se demorou um bocado. Saiu com um ar radiante, olhos a brilhar e lábios húmidos. Vestiu-se rapidamente. Enfiámos os abafos e pusemos os chapéus.
- Beijinho - disse, e virou a cara para mim.
Abri a porta, saímos para o patamar... e estava lá Adolph Finkel. Fitou-nos e tossiu uma vez, num acesso breve e explosivo.
- Bons dias, Finkel - saudei.
- Bons dias, Bigg.
Olhou arregaladamente para Perdita Schug.
- Olá - disse-lhe ela, alegremente.
- O... olá. - Finkel acenou loucamente com a cabeça, para cima e para baixo, e depois correu pela escada abaixo à nossa frente.
- Um vizinho - expliquei.
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- Irreal - murmurou Perdita.
Tencionara apanhar um táxi, mas quando chegámos à rua deparou-se-me um Rolls-Royce cor de chocolate e o coronel Clyde Manila sentado ao volante, com a gola de pele virada para cima até às orelhas e o boné de cabedal preto enfiado na cabeça, a cobrir o capachinho ruivo. Sorvia uísque de um copo lapidado.
Na véspera, não me apercebera de que era um Rolls. Voltei-me para Perdita, incrédulo.
- Ele ainda aqui está? A sua espera?
- Claro. Que lhe parece?
Capítulo quinto
Yetta Apatoff estava a telefonar, mas sorriu-me ternamente e acenou-me com os dedos quando passei. Retribuí-lhe o aceno. Estavam trabalhadores atarefados do lado de fora do meu gabinete, no corredor, a colocar uma secretária, uma cadeira giratória, um candeeiro e outros acessórios. Um instalador de telefones estava de joelhos no chão, a estender um fio para fazer uma ligação ao telefone do meu gabinete.
Sentei-me à secretária e passei em revista as últimas adições feitas à minha pasta de assuntos pendentes para investigação. Dividi a rima de papéis em duas: os que me parecia poderem ser atendidos por Mrs. Kletz e os que precisavam de ser tratados por mim. Depois voltei aos que delegara na minha assistente e garatujei nas margens as fontes onde ela podia obter as informações requeridas.
Começara a percorrer as Páginas Amarelas de Manhattan, mas o número de laboratórios de produtos químicos que encontrei deixou-me desalentado. Decidi, por isso, confiar à minha nova assistente uma missão delicada. Deixei-lhe uma nota dactilografada a pedir que telefonasse a cada um dos laboratórios da lista e dissesse que representava os advogados que tratavam do espólio do falecido professor Yale Stonehouse. Surgira um problema relacionado com um cheque que o professor passara ao laboratório sem preencher o talão. Ela devia pedir a cada laboratório que consultasse os seus arquivos a fim de determinar a data da factura e o fim a que se destinara o pagamento.
Quando ia a sair, parei junto da secretária de Yetta Apatoff para lhe dizer que a minha assistente chegaria às onze horas. Deu uma gargalhada.
- Oh, Josh, ela é tão grande e você é tão pequeno! É tão divertido vê-los juntos!
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- Sim, sim - redargui, impaciente. -Mas estou certo de que você e toda a gente do escritório acabarão por se habituar.
- Tão divertido! - repetiu, com o rosto franzido de riso, e eu desejei que não o tivesse feito, pois dava-lhe o aspecto de um porco convulsionado.
Disse-lhe que voltaria com muito tempo para a levar a almoçar à uma hora. Acenou com a cabeça, ainda às gargalhadinhas, e eu saí. Pareceu-me que ela demonstrara uma notável falta de sensibilidade.
Meti-me num táxi para a residência Kipper, a pensar no que haveria de dizer a Tippi se tivesse oportunidade disso e na maneira de desviar a conversa para assuntos não relacionados com o meu alegado inventário do espólio do seu falecido marido. Não consegui congeminar nenhum plano diabolicamente inteligente e achei que a melhor abordagem seria armar em inocente de olhos arregalados.
Chester Heavens acorreu quando toquei à campainha da porta de ferro exterior.
- Bons dias, senhor - saudou-me, amigavelmente.
- Bons dias, Chester. Espero não causar nenhum inconveniente por ter vindo sem telefonar primeiro?
- De modo nenhum - assegurou-me, enquanto me conduzia ao enorme átrio de entrada e estendia as mãos para o meu sobretudo e o meu chapéu. - A senhora está a tomar o pequeno-almoço na sala de jantar. Se aguardar um momento, talvez a possa informar da sua chegada.
Esperei, de pé, até ele regressar.
- A senhora pergunta se deseja tomar uma chávena de café com ela.
- Terei muito gosto.
Mrs. Kipper estava sentada à cabeceira de uma mesa comprida, em cujo centro havia uma jarra de prata com camélias e lírios. Estendeu a mão, quando eu entrei.
- Bons dias, Mr. Bigg - cumprimentou, sorridente. - Saiu cedo, esta manhã.
- É verdade, minha senhora - concordei, enquanto avançava rapidamente para lhe apertar a mão. - Estou ansioso por acabar. Quase tão ansioso, imagino, quanto a senhora por me ver pelas costas.
- De modo nenhum - murmurou. - Já tomou o pequeno-almoço?
- Sim, minha senhora.
- Mas faz-me companhia numa chávena de café?
- Obrigado, terei muito gosto.
- Chester, leve estas coisas, por favor, e traga uma chávena para Mr. Bigg. E mais café quente.
- Sim, minha senhora.
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- Sente-se a meu lado, Mr. Bigg - convidou Tippi, e indicou a cadeira à sua direita. - Sempre gostei de um pequeno-almoço tardio, tomado com vagar. É na verdade a melhor refeição do dia, não acha? - A sua atitude parecia copiada de Loreta Young ou Greer Garson.
Devo admitir que oferecia uma imagem bonita, ali sentada erecta à cabeceira da mesa comprida e polida: "Retrato de Uma Senhora." Em tons pastel. Vestia uma camisa de dormir-peignoir de duas camadas, fina e adejante, com gardénias claras estampadas.
Parecia ter nascido para aquele esplêndido cenário. Se os irmãos Kipper tinham dito a verdade, se ela tinha os antecedentes que eles afirmavam, efectuara uma transformação maravilhosa. O cabelo louro-prateado estava puxado para cima e penteado com a mesma arte do costume. Não havia rugas naquele rosto de meio século; a sua lisura de máscara sugeria a mão de um cirurgião plástico. Os olhos castanhos com palhetas esverdeadas mostravam uma esclerótica limpa e branca, o nariz era absolutamente patrício e o queixo direito e alto.
Senti um desejo vergonhoso de macular aquele exterior seguro de si desafiando-lhe a ira.
- Mrs. Kipper, surgiu uma pequena questão relacionada com o espólio do seu defunto marido e esperamos que nos possa ajudar a esse respeito. Durante um inventário às coisas do gabinete do seu marido, na firma, foi encontrada uma conta no montante de quinhentos dólares apresentada por um certo Martin Reape. Tem apenas a indicação de: "Por serviços prestados." Não conseguimos contactar com o referido Mr. Reape nem determinar a natureza dos serviços por ele prestados. Esperamos que nos possa ajudar.
Enquanto falava, observei-a atentamente. À minha primeira menção do nome de Martin Reape, baixou subitamente os olhos. Estendeu a mão para a chávena do café e levou-a firmemente aos lábios. Não olhou para mim enquanto eu concluía a pergunta, e depositou a chave na lenta e cuidadosamente no centro do pires, quase sem fazer ruído.
Foi uma exibição notável, mas calculada. Não deveria ter bebido um golo de café no meio da minha pergunta, e devia, pelo menos, ter olhado para mim enquanto eu falava. Roscoe Dillworth dissera-me: "Tomarão uma bebida, acenderão um cigarro, inclinar-se-ão para atar os sapatos - enfim, farão tudo para protelar, para terem tempo de pensar, de mentir convincentemente."
- Reape? - repetiu por fim Mrs. Kipper, a sustentar-me o olhar. -Martin Reape? Como se escreve isso?
- R-e-a-p-e. Pensou um momento.
- Não... o nome não significa nada para mim. Encontrou-o em mais algum lado, nos papéis do meu marido?
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- Não, minha senhora.
Vi alívio nos seus olhos ou desejei apenas tê-lo visto, como prova de culpa?
- Lamento não poder ajudá-lo - declarou, a abanar a cabeça. - O meu marido estava metido em tantas coisas e conhecia tanta gente com quem eu não estava relacionada...
Adorei aquilo: "...gente com quem eu não estava relacionada." Muito mais aristocrático do que: "...gente que eu não conhecia." Senti-me tentadíssimo a perguntar-lhe como estava Las Vegas da última vez que a vira, mas em lugar disso observei:
- Consta-me que o seu marido era muito activo em obras de caridade, Mrs. Kipper.
- Oh, sim! - confirmou, com tristeza. -Dava generosamente.
- Foi o que Mr. Knurr me disse.
Não tive dúvida nenhuma de que foi novidade para ela e constituiu uma espécie de choque. Bebeu outro golo de café. Desta vez a chávena bateu, ao regressar ao pires.
- Sim? - perguntou, em voz sem timbre. - Não sabia que o senhor e Godfrey tinham discutido as obras de caridade do meu marido.
- Oh, sim! - confirmei, todo sorridente. - O reverendo teve a amabilidade de me convidar a ir a Greenwich Village, a fim de testemunhar as suas actividades, lá. É um homem notável.
- Sem dúvida - concordou, sem entusiasmo.
Pegou na cigarreira, tirou um cigarro e bateu-o com movimentos curtos e irritados. Cheguei-lhe o fósforo no momento exacto. Meteu o cigarro na boca e aspirou fumaças rápidas, bruscas. Agora era Betty Da vis.
- De que mais falaram, o senhor e Godfrey?
- Principalmente dos rapazes com quem estava a trabalhar e dos seus esforços para lhes encaminhar a energia física e a violência para canais socialmente aceitáveis.
- Ele disse alguma coisa a meu respeito? - A máscara caíra, vi perfeitamente a mulher.
Hesitei o tempo suficiente para a convencer de que estava a mentir:
- Não, minha senhora - respondi brandamente e com os olhos o mais abertos possível. - O reverendo Knurr não disse nada a seu respeito, a não ser que o seu marido fez contribuições generosas para o programa dele.
Algo muito ténue, mesquinho e vitriólico avassalou aquele rosto isento de rugas, que se tornou mais duro e de certo modo ameaçador. Só fui capaz de pensar na cara de Glynis Stonehouse quando lhe dissera que sabia do envenenamento do pai.
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- Oh, sim! - exclamou friamente. - Contribuímos. Dê uma vista de olhos aos cheques cancelados do Sol e verá.
Não compreendi a sua cólera. Não me parecia justificada simplesmente pelo facto de eu ter tido uma conversa particular com o reverendo Knurr. Resolvi excitar de novo aquela ponta nervosa exposta.
- Ele disse como tinha sido difícil para a senhora - murmurei, pesaroso. -Refiro-me à morte do seu marido.
- Afinal, falaram a meu respeito - acusou.
- Brevemente. Só de passagem. Espero que um dia, Mrs. Kipper, me fale das suas experiências no teatro. Tenho a certeza de que devem ter sido fascinantes.
Quase a ouvi silvar.
- Ele disse-lhe isso? Que eu estive no teatro?
- Oh, não! Mas é um assunto do conhecimento comum, não é? -Bem... talvez - admitiu, contrafeita.
- Na realidade - continuei, inocentemente-, creio que quem primeiro me falou disso foram Herschel e Bernard Kipper.
- Falou com eles? - perguntou, horrorizada.
- Só no desempenho do meu dever - apressei-me a afirmar. - Para fazer um inventário preliminar dos pertences pessoais do seu defunto marido no escritório. Mrs. Kipper, lamento se a ofendi. Mas o facto de ter trabalhado no teatro não me parece que seja degradante. Muito pelo contrário.
- Sim - admitiu de má vontade-, tem razão.
- Além disso, como empregado de uma firma de advogados que representa os seus interesses, pode contar com a minha probidade.
- com a sua quê?
- Não dou à língua, Mrs. Kipper. Seja o que for de que tomo conhecimento em relação a um cliente, não passa de mim.
Fitou-me de olhos tão semicerrados que estavam reduzidos a duas fendas.
- Sim. O que um cliente diz a um advogado é confidencial, não é?
- Exactamente, Mrs. Kipper. Chama-se informação privilegiada. O advogado não pode ser obrigado a divulgá-la.
Os olhos abriram-se e fitaram o tecto.
- Informação privilegiada - repetiu, docemente. - Era o que eu pensava.
Como sabia que me julgava advogado, esperei ouvir alguma confissão espantosa. Mas ela não queria mais nada comigo. Talvez Knurr lhe tivesse dito que eu não pertencia à classe. De qualquer modo, levantou-se, silenciosa, e eu apressei-me a levantar-me também e a afastar-lhe a cadeira para trás.
- Bem, estou certa de que quer continuar com o seu trabalho, Mr. Bigg - disse, de mão estendida, outra vez uma senhora.
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- Quero, sim, obrigado - redargui, a apertar-lhe calorosamente a mão. -Obrigado também pelo café. Gostei da nossa conversa. Saiu da sala sem me responder, com a fina vestimenta a flutuar atràs dela.
- Desejo-lhe que tenha um bom dia - acrescentei, mas não creio que me tenha ouvido.
Achei que tinha de passar algum tempo na residência, para dar credibilidade à minha história, e por isso meti-me no elevador para o quinto andar. Entrei na vazia e ecoante sala de festas e andei de um lado para o outro, com os tacões a bater no chão nu. Sentia-me atraído por aquelas portas-janelas fechadas à chave. Parei junto delas, a olhar para o terraço de onde Sol Kipper dera o mergulho fatal. Ainda espreitavam nas sombras pequenos e sujos montes de neve. Bocados de neve derretiam-se nas mesas e cadeiras. As plantas estavam castanhas e torcidas. Era um cenário triste, um cenário morto, de inverno.
"Ele subiu até aqui, ou foi trazido até aqui, e atirou-se, ou foi atirado, para o espaço. Membros agitados. Um boneco sem ossos, a cair." Suicídio ou assassínio, nenhum homem merecia semelhante morte. O pensamento provocou-me um gosto amargo na boca, como quando mordemos um bocado de folha de estanho.
Sentia, sabia, que lho tinham feito, mas não conseguia compreender como. Quatro pessoas em casa, todas no rés-do-chão. Quatro pessoas aparentemente sinceras. E mesmo que mentissem todas, qual delas era suficientemente forte, e suficientemente resoluta? E como o tinham feito? Além disso, havia o bilhete de suicídio...
Deprimido, desci ao rés-do-chão. Espreitei pela porta da cozinha e vi Chester Heavens e Mrs. Bertha Nickin sentados à mesa da copa. Estavam a beber café do mesmo serviço de prata que pouco antes adornara a mesa da sala de jantar.
Chester deu pela minha presença, levantou-se imediatamente e acompanhou-me ao átrio de entrada, onde reavi o chapéu e o sobretudo.
- Obrigado, Chester. Espero não o incomodar durante muito mais tempo.
- O senhor não incomoda nada. - Olhou-me gravemente e perguntou: -Está a chegar ao fim do seu trabalho?
O seu olhar era tão imperscrutável que por momentos perguntei a mim mesmo se ele sabia, ou imaginava, o que eu andava a fazer.
- Em breve acabarei - respondi. - Está a correr bem. Mais uma visita ou duas e devo acabar.
Acenou em silêncio com a cabeça e acompanhou-me, tendo o cuidado de experimentar a fechadura da porta exterior, depois de eu sair. Mandei parar um táxi na 5ª Avenida e disse ao motorista que me
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deixasse na esquina da Madison Avenue com a Rua 34. Daí, percorri a pé o par de quarteirões para a loja de artigos de senhora, a fim de comprar a camisola verde para Yetta Apatoff. Descrevi o físico de Yetta o melhor que pude, sem gestos, e a simpática empregada escolheu o tamanho que lhe pareceu melhor, afirmando-me que com uma camisola daquele género mais pequeno era melhor do que maior e que, se não servisse, podia ser trocada. Pedi que embrulhassem como presente e depois metessem num saco que ocultasse eficazmente o conteúdo.
Quando voltei ao escritório, Mrs. Gertrude Kletz estava sentada à sua nova secretária no corredor. Telefonava e tomava apontamentos. Pensei, satisfeito, que parecia realmente muito eficiente. Fui para a minha secretária, sentei-me de sobretudo e chapéu e garatujei umas notas rápidas da minha conversa com Mrs. Tippi Kipper. Os meus apontamentos não davam uma ideia do sabor da nossa conversa, mas eu queria deixar registadas a sua negação de que conhecia Martin Reape, a sua admissão de que tinham dado grandes contribuições ao reverendo Godfrey Knurr e a cólera que ela manifestara quando soubera do meu encontro com Knurr.
Estava a acabar quando a minha nova assistente entrou no gabinete com um bloco de estenógrafa, de folhas presas por uma espiral de arame.
- Bons dias, Mrs. Kletz - saudei.
- Bons dias, Mr. Bigg.
Sorrimos um ao outro. Ela vestia uma saia inteira de flanela, tipo tenda, por cima de uma blusa camiseira. Perguntei-lhe se a secretária, a cadeira, o telefone e o resto das coisas estavam bem e respondeu-me que sim.
- Viu as minhas notas todas? - perguntei-lhe. - Faziam sentido?
- Oh, sim! Não houve problemas. Encontrei o laboratório que transaccionou com o professor Stonehouse.
- Encontrou? - indaguei, surpreendido e encantado. - Quantos telefonemas teve de fazer?
- Catorze - respondeu, como se fosse uma bagatela. Era um tesouro, aquela mulher! -Fizeram duas análises químicas para o professor Stonehouse. - Estendeu-me um bilhete. - Está aqui toda a informação: data, custo, etc. Não me disseram de que análise se tratava.
- Não faz mal. Eu sei que análises foram. Julgo saber. Obrigado. Mrs. Kletz.
- Quanto aos outros pedidos de informação, estou a trabalhar agora neles.
- Muito bem. Se quiser saber alguma coisa, não tenha medo de me perguntar.
- Oh, não terei medo!
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Também achei que não teria - de nada. Tomei uma decisão súbita. Guiado pelo instinto, não pela razão.
- Mrs. Kletz, à uma hora saio para almoçar e provavelmente voltarei mais ou menos uma hora depois. Se tiver tempo, dê uma vista de olhos às pastas Kipper e Stonehouse. Estão na gaveta de cima do armário. Gostaria de conhecer a sua reacção.
- Está bem - respondeu, placidamente. - Este trabalho é interessante, não é?
- Oh, sim! - concordei entusiasticamente. - É interessante. Despi o sobretudo e tirei o chapéu o tempo suficiente para me lavar
no lavabo dos homens. Voltei a vestir-me, peguei no saco das compras e saí para levar Yetta Apatoff a almoçar.
Um quarto de hora depois estávamos sentados a uma mesa para dois no restaurante chinês da 3ª Avenida. Pedi crepes, sopa won íon, camarões com creme de lagosta e arroz frito. No fim de contas, era um almoço de aniversário. Antes de servirem os crepes, tirei o embrulho enfeitado do saco e entreguei-o a Yetta.
- Conte muitos com felicidade - desejei-lhe.
- Oh, Josh - exclamou, com os olhos como duas luas-, não devia... Eu não fazia nenhuma ideia!
Atirou-se ao embrulho com dedos frenéticos e quando viu o que continha a sua boca desenhou um O de encantada surpresa.
- Josh, como adivinhou?
Compreensivelmente triunfante devido ao avanço que acabava de conquistar a Hooter na Corrida Apatoff, mesmo assim consegui sorrir modestamente e cortejá-la timidamente durante o resto da refeição. O calor do aperto de mão de Yetta, quando nos despedimos, prometia uma escalada nas nossas relações num futuro muito próximo.
Quando me aproximava do meu gabinete, reparei que Mr. Kletz lia o conteúdo de uma pasta, na sua secretária do corredor. Estava tão absorta na leitura que só deu pela minha presença quando parei junto dela.
- Qual delas é? - perguntei, a apontar para a pasta.
- O caso Keeper. Estou quase a acabar. As pessoas! -exclamou, com um meio sorriso docemente triste.
Não queria dizer "O horror que as pessoas são", mas antes "a maravilha, o espanto que as pessoas são".
- Compreendo - murmurei. - Quando acabar, faça o favor de ir ao meu gabinete.
Pendurei o sobretudo e o chapéu, telefonei a Ada Mondora e pedi-lhe que me arranjasse uma reunião com Mr. Teitelbaum. Ficou de me telefonar a dizer qualquer coisa.
Mrs. Kletz deixara na minha secretária as perguntas a que respondera, utilizando as fontes que eu lhe indicara. Fizera um trabalho
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perfeito e eu fiquei satisfeito. Dactilografei rascunhos de memorandos para os advogados e associados que tinham pedido as informações, e deixei-os para Mrs. Kletz fazer as respostas definitivas. Ela entrou com a pasta Kipper quando eu estava a acabar.
- Sente-se, Mrs. Kletz - convidei, e apontei a cadeira das visitas. - Só me falta fazer mais uma minuta e fico despachado. A propósito, fez bom trabalho nisto.
- Obrigada, senhor.
Foi uma das poucas vezes em que me tinham tratado por "senhor" na minha vida e achei a experiência agradável.
Acabei a minuta e empurrei o conjunto por cima da secretária para a minha assistente.
- Preciso de duas cópias da redacção final - disse-lhe. - Faça o que puder hoje e deixe o resto para segunda-feira. - Puxei a pasta Kipper para mim e bati-lhe com os nós dos dedos. -Rigorosamente confidencial - lembrei, a olhá-la bem.
- Sim, compreendo.
- Que pensa do assunto?
- Mr. Bigg, é sempre aquele de quem menos se suspeita?
Ri-me.
- Não tente convencer o Departamento de Polícia de Nova Iorque disso. Eles estão convencidos de que é sempre aquele de quem mais se suspeita. E geralmente têm razão. De quem suspeita?
- Acho que a viúva e o pregador estão conluiados - respondeu, séria. - Acho que andavam metidos um com o outro antes de o marido morrer. Ele desconfiou e contratou o detective particular para ter a certeza. Quando obteve as provas, resolveu modificar o testamento. Por isso, eles mataram-no.
Olhei-a com admiração.
- Sim - declarei, a acenar com a cabeça-, essa é a minha teoria, e é uma... é uma excelente teoria, que explica muitos dos factos conhecidos. Depois de Sol Kipper morrer, Marty Reape tentou fazer chantagem. Mas subestimou a determinação deles, no desespero que sentiram. Por isso, foi morto. A sua viúva herdou os arquivos, incluindo as cópias das provas Kipper. Vendeu as provas, ou parte delas, ou talvez tenha feito cópias, convencida de que tinha uma mina de ouro. Tornou-se ávida e, por isso, teve também de ser eliminada. Faz sentido?
- Oh, sim! Tippi e Knurr só estavam interessados no dinheiro de Mr. Kipper. Mas com as provas que tinha ele podia obter o divórcio e a pensão dela teria sido muito inferior ao que herdará agora. Por isso, assassinaram o pobre homem.
- É uma excelente teoria - repeti. - Só há uma coisa errada nela: eles não podiam tê-lo feito.
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- Também estive a pensar nisso - confessou, de testa franzida. -Existe a certeza absoluta de que não estava mais ninguém lá em casa?
- Um assassino contratado? Os criados dizem que não entrou ninguém e não viram ninguém sair. A Polícia chegou pouco depois de Sol morrer e revistou minuciosamente a casa sem encontrar ninguém.
- Terão mentido? Refiro-me aos criados. Por dinheiro?
- Não acredito que estejam a mentir e o detective que fez a investigação policial também não. Se estivessem metidos no caso, teriam de estar todos. Isso significaria cinco pessoas implicadas numa conspiração para assassinar. Não me parece. Quanto mais pessoas envolvidas, mais fraca a corrente. Excessivas oportunidades para chantagem continuada. Tippi e Knurr são demasiado espertos para caírem nisso. Creio que aconteceu como eles disseram: quatro pessoas no rés-do-chão quando Sol Kipper se despenhou para a morte.
Mrs. Kletz suspirou.
- Deixando um bilhete de suicida - observou.
- Sim, também há isso.
- Que vai fazer agora?
- Bem, eu... - Calei-me, de súbito. Que ia fazer? - Não sei - confessei a Mrs. Kletz. - Não sei que mais posso fazer. Posso seguir Tippi ou o reverendo Knurr. Posso estabelecer definitivamente que são amantes. Mas de que me servirá? Não me permitirá saber melhor como foi engendrado o assassínio de Sol Kipper. E eu estou tão convencido como a senhora de que foi assassínio.
- Chicago - disse ela.
- O quê?
- Está nos seus apontamentos, Mr. Bigg. O reverendo disse-lhe que era da área de Chicago. Depois os irmãos Kipper disseram-lhe julgar que Tippi viera de Chicago.
Respirei fundo.
- Obrigado, Mr. Kletz - agradeci fervorosamente. - Esse era exactamente o género de coisa que esperava a senhora localizasse. Eu tenho estado demasiado perto de todos os pormenores, mas para a senhora foi tudo novidade. Muito bem, talvez sejam ambos da área de Chicago. Que prova isso? Provavelmente nada. Talvez que se conheceram antes de virem dar a Nova Iorque. E mesmo isso pode não significar nada, a não ser...
- A não ser que tenham estado envolvidos ambos em qualquer coisa semelhante.
- Em Chicago? -Sim.
- Sim - admiti. - Não é muito, mas poderia ser suficiente para convencer o Departamento de Polícia de Nova Iorque a reabrir a
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investigação. Eles têm recursos e técnicas para deslindar esta meada muito mais depressa do que eu. Entretanto, tentarei desenterrar o mais que puder acerca dos antecedentes de Chicago de Tippi e Knurr. Pode não dar nada, mas tenho de...
O telefone tocou. Mr. Teitelbaum estava livre.
Ada Mondora fez tilintar as jóias ciganas e sorriu-me maliciosamente quando parei diante da sua secretária.
- Sei de alguém que teve hoje um bom almoço - disse, maldosa.
- As notícias correm depressa, não correm?
- De que havíamos de falar? De delitos? A Yetta adora a camisola.
Gemi.
- Creio que a minha aposta está garantida - continuou Ada, complacente. - Aposto em você. - A Thelma morrerá quando souber da camisola.
- A Thelma Potts? Ela está a apostar no Hooter?
- Não sabia? - perguntou Ada inocentemente, abrindo muito os olhos luminosos e mostrando os dentes brancos e brilhantes. - Por sinal, a Thelma e eu temos uma aposta entre as duas. Almoço no Four Stattions. Já sei exactamente o que vou pedir.
Quando entrei no gabinete de M r. Teitelbaum ele estava sentado, como de costume, à enorme secretária, com as mãos acastanhadas entrelaçadas em cima do tampo. Indicou-me uma poltrona e pediu-me um relatório sobre a investigação Stonehouse.
Consultei os meus apontamentos e sintetizei os resultados das minhas investigações o mais breve e sucintamente possível. Disse-lhe que começara por suspeitar de que a chávena nocturna de cacau era o meio através do qual envenenavam o professor Stonehouse, mas depois compreendera que, afinal, era o brande que se encontrava no gabinete do professor. Informei que Stonehouse mandara analisar duas substâncias num laboratório.
- Tentarei obter cópias dessas análises - prometi. - Quase apostava que o arsénico era posto no brande do professor.
- por quem?
Falei-lhe da minha conversa com Powell Stonehouse e Wanda Chard e do meu último encontro com Glynis Stonehouse. Disse-lhe que Powell parecia ter mais fácil acesso ao veneno, via Wanda Chard, mas como ele estivera banido da casa de seu pai durante o período de envenenamento, parecia improvável que fosse o culpado, a não ser que tivesse trabalhado conluiado com um ou mais dos outros membros da casa.
- Acha isso provável? - perguntou-me Mr. Teitelbaum, na sua voz surpreendentemente vigorosa.
- Não, senhor.
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- Certamente não foi a mulher? Agindo sozinha? -Não, senhor.
- As criadas?
- Não, senhor - repeti, a suspirar. - A filha. Mas devo dizer que não tenho absolutamente nenhuma prova a apoiar essa suspeita. Não sei onde poderia ela obter o arsénico. Não sei qual poderia ter sido o seu motivo.
- Considera a mentalmente desequilibrada?
- Não, senhor, não considero. Mr. Teitelbaum, talvez me ajudasse se pudesse explicar-me o que acontece legalmente neste caso. Quero dizer, que acontece aos bens do homem desaparecido?
Foi a sua vez de suspirar. Entrelaçou os dedos coriáceos e olhou para as mãos apoiadas no tampo da secretária como se fossem um animal de dez patas, talvez uma espécie de lagarto que não tinha nada a ver com ele.
- Mr. Bumble disse que a lei é uma burra - comentou. - Eu corrigi-lo-ia e diria que a lei é geralmente meio burra.
Um gracejo de advogado. Ri-me obedientemente.
- As leis respeitantes aos bens de uma pessoa desaparecida são um tanto ou quanto complicadas - continuou, vivamente. - O Direito Comum, de acordo com o que foi aprovado pelo Supremo Tribunal em
1878 no caso de Davie versus Briggs, estabelece uma presunção de morte ao fim de sete anos. No entanto, o caso Stonehouse deve ser julgado segundo os estatutos do estado de Nova Iorque, dos quais dois se aplicam a esta situação particular.
Sufoquei um gemido e afundei-me um bocadinho mais na poltrona. Ia ouvir uma prelecção, quando tudo quanto desejava era uma resposta de uma frase.
- A Lei de Espólios, Poderes e Fideicomissos autoriza uma presunção de morte após cinco anos de ausência contínua, desde que - e esta foi uma das razões pelas quais lhe recomendei que fizesse uma investigação completa -, desde que a pessoa desaparecida estivesse exposta a um perigo específico de morte e que uma procura diligente tenha sido efectuada antes do requerimento no sentido de o tribunal emitir uma declaração de morte presumível. Neste caso, decorridos cinco anos, e desde que as duas condições que enunciei tenham sido observadas, a pessoa desaparecida pode ser considerada como morta e o seu testamento submetido à legitimação. Mas se, depois desses cinco anos, ela aparece subitamente, pode reclamar legalmente os seus bens. Por isso, a "procura diligente" é da máxima importância na presunção da morte. Está a acompanhar-me, Mr. Bigg?
- Sim, senhor. Creio que sim.
- Por outro lado - disse Mr. Teitelbaum com grande satisfação e eu apercebi-me de que, para um advogado, a expressão "por outro
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lado" contém tanto impacte emocional como "amo-te" para um leigo. - Por outro lado - prosseguiu-, a Lei de Procedimento do Tribunal de Legitimação de Testamentos, que se relaciona com a administração dos espólios de pessoas desaparecidas, estipula que só decorridos dez anos após o desaparecimento a pessoa desaparecida perde todo o interesse nos seus bens. Estes são então distribuídos pelos seus herdeiros de acordo com o testamento ou com a lei dos intestados. Isto é simplesmente um estatuto de limitação ao tempo durante o qual uma pessoa desaparecida pode reclamar os seus bens. Volvidos esses dez anos, ela é, para todos os efeitos, considerada legalmente morta, embora ainda possa estar viva. Se aparecer em pessoa ao fim desses dez anos, não tem nada.
- E durante esses dez anos? Os seus dependentes podem fazer levantamentos sobre os seus bens?
- Um administrador provisório, nomeado pelo tribunal, protege os bens do espólio, paga os impostos devidos, mantém a família da pessoa desaparecida, etc. Mas, mais uma vez, é necessária uma procura diligente para localizar a pessoa desaparecida.
- Fiquei confuso. Aparentemente, de acordo com a primeira lei que o senhor mencionou, uma pessoa desaparecida pode ser declarada morta ao fim de cinco anos. De acordo com a segunda, são precisos dez anos antes de o espólio poder ser dividido pelos seus herdeiros.
- Boa observação - comentou Mr. Teitelbaum. - Uma observação, aliás, que tem ocasionado alguns debates acalorados entre os nossos advogados mais jovens e funcionários a quem tenho apresentado o problema. A minha opinião pessoal é que os dois estatutos não são necessariamente contraditórios. Por exemplo, no segundo caso, ao abrigo da Lei de Procedimento do Tribunal de Legitimação de Testamentos, durante os dez anos de administração do espólio o administrador ou qualquer pessoa interessada pode requerer a legitimação do testamento se apresentar prova suficiente da morte. Considero - acrescentou secamente- que a descoberta do corpo constituiria prova suficiente.
- Hum... - murmurei, a tentar digerir tudo aquilo. - Que vai acontecer ao certo à família Stonehouse?
- Diria - declarou, no seu tom mais judicial-, depois de passar em revista as opções existentes, que procederiam sensatamente se requeressem auxílio ao abrigo da Lei de Procedimento do Tribunal de Legitimação de Testamentos e aceitassem de boa mente a nomeação de um administrador provisório do espólio do professor Stonehouse. é essa a linha de acção que tenciono aconselhar a Mrs. Stonehouse. No entanto, devo confessar com toda a franqueza, Mr. Bigg, que não tenho actuado expeditamente nesta questão. Mrs. Stonehouse e os filhos, embora dificilmente se possam considerar individualmente ricos, têm contudo bens que lhes permitem manter-se durante algum tempo
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sem receio de sérias privações. O seu apartamento, por exemplo, foi construído por uma cooperativa, está totalmente pago e exige despesas de manutenção relativamente modestas. Em certo sentido, tenho andado a arrastar os pés, digamos, quanto ao requerimento da nomeação de um administrador provisório até podermos provar ao tribunal que foi realmente feita uma busca diligente para encontrar o professor Stonehouse. Além disso, sinto-me muito perturbado com o que me disse a respeito da tentativa de envenenamento. Gostaria de ver esse assunto esclarecido antes de ser apresentado um requerimento ao tribunal. Não desejaria que fosse paga uma pensão a um membro da família que pode ter estado, enfim, criminosamente envolvido no desaparecimento do professor.
- Evidentemente - concordei. - Eu tão-pouco. Outro ponto: suponhamos que é nomeado um administrador para um período de dez anos e durante esse tempo não há notícias nenhumas a respeito do professor Stonehouse. Sendo assim, o seu testamento será apresentado para legitimação?
- Correcto.
- E se não for encontrado nenhum testamento? -Então a divisão dos bens será feita ao abrigo das leis dos intestados.
- Ele poderia deserdar a mulher? Quero dizer, se deixasse testamento?
- Duvido. Deserdar o cônjuge não é considerado de interesse público. No entanto, podia deserdar a mulher se apresentasse uma razão clara, capaz de ser provada em tribunal.
- Como ter tentado envenená-lo?
- Isso podia ser razão suficiente para a deserdar - admitiu cautelosamente. - Desde que fossem apresentadas provas incontroversas.
- O mesmo se aplica ao filho e à filha, presumo? Mr. Ignatz Teitelbaum respirou fundo.
- Mr. Bigg, as leis da herança não são invioláveis. Nem mesmo um testamento redigido por peritos é um documento sagrado. Qualquer pessoa pode ir para tribunal contra ele, e geralmente é o que acontece. Pergunte a qualquer advogado. Estes assuntos são em geral resolvidos por compromisso, por um dar e receber. A litigação resulta frequentemente. Quando isso acontecesse, os acordos feitos fora do tribunal são correntes.
- Posso apresentar uma questão hipotética?
- Pode - respondeu, magistralmente.
- Suponhamos que a esposa ou um filho tenta infligir graves danos físicos ao chefe da família. Este tem provas da tentativa e deserda a esposa ou o filho num testamento holográfico que inclui prova da tentativa feita contra a sua vida. O chefe da família desaparece. Mas o testamento
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nunca é encontrado. Ao fim de dez anos, ou antes se o corpo for encontrado, o espólio é repartido ao abrigo das leis dos intestados. A pessoa culpada herdaria então a sua parte?
- Evidentemente - respondeu sem hesitar. - Se o testamento nunca fosse encontrado nem nunca fosse descoberta prova da acção criminosa.
- Se o corpo fosse descoberto amanhã, quanto tempo seria necessário para legitimar o testamento?
- Talvez um ano... talvez mais, se não existisse nenhum testamento.
Depois ficou calado. Desentrelaçou os dedos e abriu as mãos castanhas no tampo da secretária. Estava de cabeça baixa, mas os seus olhos fitavam-me vivamente.
- Pensa que o corpo será descoberto amanhã, Mr. Bigg?
- Penso que será descoberto em breve. Não acredito que quem fez isto tenha paciência para esperar dez anos.
- Presume que foi feito um segundo testamento - observou. - Mas talvez o chefe da família nunca o tenha feito, talvez o seu testamento primitivo ainda exista e ainda seja válido.
Não considerara essa possibilidade, que me atordoou. Mas, depois de meditar uns momentos, pareceu-me improvável. Após obter os resultados das análises químicas, o professor Yale Stonehouse redigiria com certeza um segundo testamento ou emendaria o anterior. Estava de acordo com a sua maneira de ser fazê-lo. Era um homem de mau génio, vingativo, que não aceitaria de ânimo leve uma tentativa de envenenamento contra ele.
- Um último pedido, Mr. Teitelbaum. Estou convencido de que, quando saiu de sua casa na noite de dez de Janeiro, o professor Stonehouse foi a qualquer lado num táxi ou num carro que o esperava. Estava uma noite agreste e caía granizo; não acredito que esperasse pelo autocarro ou fosse a pé para a estação do metropolitano. Não posso fazer nada se foi um carro que o esperou, mas posso tentar localizar o táxi que poderá ter tomado. Todos os taxistas são obrigados a elaborar folhas dos serviços que fazem, mas seria uma enorme trabalheira conferir todas as folhas de serviços dessa noite, mesmo que os donos dos táxis mo permitissem, e provavelmente não permitiriam. O que eu gostaria de fazer era de mandar imprimir cartazes com a fotografia do professor Stonehouse e oferecendo uma recompensa modesta ao motorista que se lembrasse de o ter recolhido à sua porta, ou perto, na noite de dez de Janeiro. Admito que as probabilidades de êxito não são muitas. Os cartazes só poderiam ser colocados nas garagens de donos de vários táxis, e há muitos taxistas independentes que nunca os veriam. Mesmo assim, existe a possibilidade de descobrirmos um motorista que se lembre de ter levado o professor a algum lado nessa noite particular.
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- Faça-o - ordenou imediatamente. - Aprovo. Fará parte da "busca diligente" que a lei exige.
Ia a dizer mais alguma coisa, mas desistiu. Levou os dois indicadores engelhados aos lábios finos e comprimiu-os, a pensar.
- Mr. Bigg - disse, por fim-, acho que conduziu esta investigação de uma maneira profissional e desejo cumprimentá-lo.
- Obrigado, Mr. Teitelbaum.
- No entanto - acrescentou, em voz sonora-, há limites. A responsabilidade desta firma é, evidentemente e antes de mais nada, para com os nossos clientes. Neste caso, representamos o desaparecido professor Stonehouse e a sua família. Não posso protelar indefinidamente a apresentação de um requerimento para a nomeação de um administrador provisório dos bens do professor. Não seria justo para a família. Pode calcular de quanto tempo mais precisará para completar a sua investigação?
- Não, senhor - respondi, desconsolado. - Não posso sequer garantir que alguma vez a completarei.
Acenou com a cabeça, tristemente.
- Compreendo. Mas não me é possível desviar-me da nossa responsabilidade fundamental. Mais uma semana, Mr. Bigg. Lamento, mas é tudo quanto lhe posso dar. Depois terei de lhe pedir que abandone a sua investigação deste... deste caso intrigante e muito desagradável.
Desejei argumentar, dizer-lhe que seguisse para a frente com os trâmites legais, mas me deixasse continuar a esgaravatar. com toda a franqueza, porém, não sabia que mais poderia fazer a respeito do caso Stonehouse depois de distribuir os cartazes pelas garagens de táxis. A partir daí, que caminho seguiria? Não sabia.
Mrs. Gertrude Kletz deixara um bilhete no rolo da minha máquina de escrever. Dizia:
"Mr. Bigg, os seus apontamentos sobre o caso Kipper perguntam porque teria Tippi ficado tão transtornada quando lhe disse que tinha tido um encontro particular com o reverendo Knurr. Bem, se estão os dois metidos no assunto, como o senhor pensa, seria natural ela ficar transtornada, porque são ambos culpados e como tal precisam de confiar um no outro. Mas visto nenhum deles ser parvo, como o senhor diz, devem desconfiar muito um do outro, receando que o outro seja capaz de revelar alguma coisa ou até de conspirar para denunciar o outro, como acontece aos ladrões quando se zangam. Penso que se duas pessoas estão associadas num crime horrível, devem começar a olhar-se mutuamente com novos olhos e a duvidar. Por dependerem tanto uma da outra, começam a duvidar e a pensar. Espero que compreenda o que quero dizer, pois não me exprimo muito bem. G.K."
Compreendi o que ela queria dizer e pensei que talvez tivesse razão.
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Se Tippi e Knurr estavam a começar a olhar um para o outro com "novos olhos", talvez isso fosse a fenda que eu poderia alargar, uma oportunidade que poderia explorar.
Liguei para Percy Stilton. O agente que me atendeu disse formalmente: "O detective Stilton não está disponível." Indiquei-lhe o meu nome e pedi-lhe que dissesse ao detective Stilton que me telefonasse assim que pudesse.
O meu segundo telefonema foi para Mrs. Effie Dark. Conversei um bocadinho com a agradável senhora e ela deu-me a informação que eu pretendia:
- Mr. Bigg, conferi as minhas facturas da loja de bebidas e o professor Stonehouse não encomendou nenhuma garrafa de Rémy Martin durante quase dois meses antes de desaparecer. Não sei porquê, mas não encomendou.
- Obrigado, Effie - agradeci. - É apenas mais um tijolo para a parede, mas é um tijolo importante.
Despedimo-nos e desligámos. Isto passou-se na sexta-feira ao fim da tarde, quando o mundo dos negócios estava já a desacelerar, a andar mais devagar. Há um estado de espírito característico da sexta-feira à tarde, no Inverno, em Nova Iorque. O crepúsculo chega cedo, e com ele o sossego. Tudo se esbate. A melancolia invade-nos. Lembramo-nos de oportunidades perdidas.
Sentado na minha amostra de gabinete, com as pastas dos casos Kipper e Stonehouse na secretária, pus-me a olhar para elas com olhos tristes e vítreos. Tanta paixão e turbulência. Não podia avaliá-los. Pior, dir-se-ia que estava seco de inspiração e vigor. Todas aquelas pessoas envolvidas em conspirações desesperadas. Que eram elas para mim ou eu para elas? Era uma coisa singular, com a qual não podia avir-me, algo estranho à minha natureza.
Eu, um homem pequeno, tranquilo, metido comigo e não violento. De súbito, pela sorte e pelo acaso que governam a vida, vira-me mergulhado naquela terra estranha, naquela terra incógnita. O que mais me perturbava, creio, era o facto de não ter uma bússola para aquele terreno. Avançava à toa, aos tropeções, e mais do que descobrir a verdade desejava saber o que me impelia e não me deixava pôr de lado toda aquela sordidez.
Por fim, fiz um esforço para me afastar do desespero no qual estava rapidamente a mergulhar, meti as pastas dos casos Kipper e Stonehouse na mala, vesti o sobretudo, pus o cachecol e o chapéu, apaguei as luzes e afastei-me do edifício TORT. A escuridão exterior pareceu-me muito menos negra do que a interior, menos assustadora e agourenta.
Cheguei a casa em segurança. Vesti-me mais à vontade e acendi um pequeno lume na lareira. Não tinha fome, depois do grande almoço que comera, mas bebi uma chávena de café e comi uma fatia de
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bolo de café com nozes. Deixei-me ficar sentado, a olhar fixamente para as chamas. As pastas dos casos Kipper e Stonehouse estavam no chão, em cima uma da outra, aos meus pés. A depressão apoderava-se de novo de mim. Não estava a chegar a lado nenhum com a minha primeira grande investigação. Era um pigmeu brando, deslocado, num mundo onde toda a gente empurrava e abria caminho fosse como fosse. E estava só.
Estava só, numa noite de sexta-feira, a perguntar a mim mesmo, como nos acontece a todos, quem era e o que era, quando bateram tímida e hesitantemente à minha porta. Levantei-me, ainda com a testa franzida do devaneio melancólico, abri a porta e encontrei Cleo Hufnagel, de rosto tão triste como o meu. Creio que, naquele momento, não seria preciso muito para cairmos nos braços um do outro a chorar.
- Tome - disse ela, secamente, e meteu-me nas mãos um sobrescrito de tela, fechado.
- Que é isto? - perguntei, intrigado.
- A informação que desejava sobre o arsénico. Apalpei a espessura do sobrescrito.
- Oh, Cleo, eu não queria que você fizesse a investigação! Só queria as fontes, para saber onde procurar.
- Bem, eu resolvi fazê-la - respondeu, e levantou o queixo. - Pensei que talvez... talvez o ajudasse. Boas noites.
Voltou-se para se ir embora, mas eu estendi apressadamente a mão e agarrei-lhe o braço. Ela parou, mas não olhou para mim.
- Que é, Cleo? Parece estar zangada comigo.
- Desiludida - corrigiu, em voz baixa.
- Está bem... desiludida. Ofendi-a de algum modo? Se ofendi, peço desculpa com toda a sinceridade. Mas não tenho consciência de...
Calei-me bruscamente. Adolph Finkel!
- Cleo - recomecei-, dissemos que queríamos ser amigos. Eu sei que fui sincero e penso que você também foi. Deve haver sinceridade e franqueza entre amigos. Por favor, entre, sente-se e deixe-me contar-lhe o que aconteceu. Dê-me essa oportunidade. Se, depois de eu ter
explicado, continuar a querer ir-se embora e não voltar a falar-me, será essa a sua decisão. Mas pelo menos assentará em factos.
Concluí o argumento de advogado, puxei-a devagarinho para dentro de casa, fechei a porta e dei a volta à chave. Instalei-a na poltrona, onde ficou de costas direitas e mãos apertadas no regaço, a olhar pensativamente para as chamas que iam morrendo.
- Podemos tomar uma bebida? - perguntei. - Por favor. Penso que poderá ajudar.
Inclinou muito ligeiramente a cabeça e eu deitei dois golinhos de brande em dois copos pequenos. Puxei uma cadeira de espaldar direito
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para diante dela e sentei-me, inclinado para a frente, com o copo apertado nas mãos, nos joelhos.
- Presumo que está desiludida a meu respeito por causa de qualquer coisa que Adolph Finkel deve ter dito acerca da minha... enfim, da minha visita desta manhã. É isso?
De novo o frio e breve aceno de cabeça.
- Cleo, a jovem em questão é uma testemunha importante de um caso que estou a investigar e eu precisava que ela me desse informações. Ouça o que aconteceu, exactamente...
Creio que posso dizer, sem receio de me autoglorificar, que estava num dos meus momentos mais convincentes. Falei lentamente, em voz grave e intensa, e disse a Cleo apenas a verdade, nada mais do que a verdade. Descrevi a minha viagem de autocarro para a parte alta da cidade, na tempestade, a atmosfera que reinava no Mother Tucker's e o meu encontro com Perdita Schug e com o coronel Clyde Manila.
- Parece um lugar divertido - observou Cleo baixinho, quase invejosamente.
- Oh, é! - confirmei, encorajado. - Havemos de lá ir, qualquer dia.
Depois expliquei a minha incapacidade de extrair de Perdita qualquer coisa significativa, durante o jantar, e como decidira considerar a noite perdida e regressar a casa sozinho por quaisquer meios possíveis. Descrevi como Perdita e o coronel tinham insistido em trazer-me no Rolls-Royce cor de chocolate, o muito que todos tínhamos bebido e os charros que eles tinham fumado no caminho. Não ocultei nada.
- Nunca experimentei - disse Cleo Hufnagel, pensativamente. - Gostaria de experimentar.
Tentei ocultar o meu espanto com semelhantes palavras. Descrevi como Perdita Schug teimara em entrar no meu apartamento e como, depois de uma bebida, me revelara informações de inestimável valor a respeito do caso em investigação.
- E depois...
- E depois? - perguntou Cleo, vivamente.
O mais delicadamente possível, expliquei-lhe o que aconteceu depois.
Durante esta parte da minha confissão, Cleo começou a sorrir, e quando lhe descrevi a cama improvisada onde dormira e como acordara todo partido, atirou a cabeça para trás e riu com gosto. E a minha repetição da terna conversa havida de manhã, imediatamente antes de Perdita se ir embora, desencadeou-lhe um ataque de gargalhadas, que a lançaram toda para a frente, a sacudir a cabeça e a limpar os olhos cheios de lágrimas com o nó de um dedo.
- Depois saímos para o patamar e deparou-se-nos o Adolph Finkel.
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Juro-lhe pela nossa amizade, Cleo, que foi exactamente o que aconteceu.
- Acredito, Josh - afirmou, ainda com os olhos a chorar. Ninguém inventaria uma história dessas. Como a levou a casa?
Contei-lhe que encontráramos o coronel Manila ainda à espera no monte de neve, que me tinham levado ao escritório e depois partido juntos.
- Voltará a vê-la? - perguntou, subitamente séria. Pensei antes de responder.
- Cleo, não lhe posso prometer que não a voltarei a ver. Podem surgir na investigação coisas que tornem necessárias mais conversas com ela. Mas garanto-lhe que o único motivo que me levará a procurar a sua companhia será o profissional. Não tenho absolutamente nenhum interesse pessoal em Perdita. Quer outro brande?
- Por favor - respondeu, e eu fui, grato, reencher os copos, receoso de que ela detectasse qualquer sinal de culpa no meu rosto: dissera-lhe a verdade, mas não toda a verdade.
Voltei com as bebidas, puxei a cadeira para mais perto da sua e segurei-lhe na mão livre.
- Estou perdoado? - perguntei.
Estava com um aspecto invulgarmente atraente naquela noite. Mas a verdade era que cada vez que a via descobria nela nova beleza. O cabelo comprido que ao princípio considerara apenas castanho reluzente parecia-me ter agora o fascínio agitado das chamas. O sorriso que descrevera como agradável, mas distante, parecia-me agora misterioso e cheio de promessa. O nariz fino tornara-se aristocrático, a fronte alta revelava inteligência e a boca grande, em vez de meramente curva, passara a ser sensual e loucamente desejável.
Quanto à sua figura, não podia acreditar que a considerara magricela. Agora via que era elegante, dúctil como uma vara de salgueiro, e que os braços e as pernas compridos e as mãos e os pés delgados eram flexíveis e fluidos. Havia uma fluidez em todo o seu corpo e já não pensava nela como sendo uma cabeça mais alta do que eu. Éramos iguais: era assim que pensava.
- Claro que lhe perdoo - respondeu em voz maravilhosamente baixa e doce. - Embora não haja nada a perdoar. A culpa foi minha. Não tenho quaisquer direitos sobre você, pode viver como lhe agradar. Fui apenas estúpida.
- Não, não! - protestei em voz alta. - Não foi estúpida, não é estúpida.
- Aconteceu apenas que... - murmurou, hesitante. - Bem, senti-me... senti-me magoada. Não sei porquê, mas senti.
- Nunca faria nada para a magoar - jurei. - Nunca! E também
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não me esqueci do papagaio. vou realmente comprar um papagaio vermelho para nós. E o fio. Riu-se.
- Agrada-me que não se tenha esquecido, Josh - disse, e tirou suavemente a mão da minha. - Quer falar agora do que descobri? A respeito do arsénico?
Acenei afirmativamente, embora naquele momento preferisse falar de nós.
Apanhou o sobrescrito do chão e abriu-o. Aproximei mais o candeeiro da mesa lateral.
- Deixar-lhe-ei isto tudo, para ler - prometeu. - A maioria consta de fotocópias e reproduções de jornais médicos e manuais de empresas de drogas. É tremendamente técnico, Josh. Talvez seja melhor explicar-lhe os pontos principais, talvez isso lhe chegue e não precise de ler tudo. Esse homem que disse ter andado a ser envenenado por arsénico foi morto? Quero dizer, foi-lhe dada uma grande quantidade de arsénico de uma vez e ele morreu? Ou ingeriu pequenas quantidades durante um período de tempo?
- Pequenas quantidades, suponho. E não creio que tenha morrido. Pelo menos do arsénico.
- Bem, o arsénico apresenta-se numa quantidade de diferentes compostos químicos. Pós, cristais e líquidos. Há até um tipo que se vaporiza no ar. Crê-se que o papa Clemente VII e o rei Leopoldo I, da Áustria, foram assassinados por arsénico misturado em cera de velas. Os fumos das velas eram venenosos e quem os respirava morria.
- é incrível! - murmurei e, sem poder evitá-lo, ajoelhei-me no chão ao lado da sua cadeira e agarrei-lhe de novo uma das mãos compridas e delgadas; ela deixou-me.
- Creio que o que procura, Josh, é trióxido de arsénico. É a forma comum e a componente principal de todos os compostos de arsénico.
- Sim - concordei, e encostei os lábios às pontas dos seus dedos. - Trióxido de arsénico.
- Apresenta-se em torrões brancos ou transparentes ou num pó cristalino. É solúvel se misturado lentamente e utilizado com a máxima parcimónia. Não tem nem cheiro nem gosto. Uma pequena pitada pode ser uma dose venenosa. Nesses casos pode deixar um leve gosto.
- Um leve gosto - repeti, a beijar-lhe os nós dos dedos e as costas da mão, que virei para lhe beijar o pulso cor de pérola, com as veias azuis a latejar levemente.
- Bastam dois ou três décimos de grama de trióxido de arsénico para matar um adulto em quarenta e oito horas; por isso, pode imaginar a minúscula quantidade que chega para causar doença. - Era evidente que tencionava terminar a prelecção, apesar das distracções. - Se interpretei correctamente estes dados clínicos, o arsénico
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afecta os glóbulos vermelhos e os rins. Os sintomas variam muito, mas uma vítima de envenenamento arsenical fatal pode ter dores de cabeça, vertigens, espasmos musculares, delírio e entorpecimento. A morte ocorre em consequência de colapso circulatório. Em doses mais pequenas, durante um período de tempo, verifica-se provavelmente febre baixa, perda de apetite, palidez, fraqueza e inflamação do nariz e da garganta. Como deve ter reparado, estes sintomas são muito semelhantes aos da gripe ou de uma virose, e é por esse motivo que o envenenamento arsenical é por vezes erradamente diagnosticado. Em doses minúsculas durante um período de tempo prolongado, geralmente não há delírio nem entorpecimento.
- Entorpecimento - disse, e toquei com a ponta da língua na palma da sua mão. Todo o seu braço estremeceu, mas a sua voz continuou firme:
- Depois de envenenamento prolongado, pode verificar-se queda do cabelo e das unhas, acompanhada de rouquidão e de tosse seca. O arsénico deposita-se no cabelo, nas unhas e na pele. Existem alguns indícios de que Napoleão poderá ter sido envenenado com arsénico em Santa Helena. Anos depois, encontrou-se arsénico numa madeixa de cabelo seu.
- Pobre Napoleão! - murmurei.
Estiquei-me, para aspirar o perfume do seu cabelo, para mergulhar o rosto na doce junção do pescoço e do ombro, para a respirar. A ela, que não tolerava distracções.
- Um médico atento pode às vezes detectar como que um odor a alho no hálito e nas fezes. - Não evidenciou nenhuma intenção de abrandar. -Além disso, as análises de urina e as lavagens gástricas revelam geralmente a presença de arsénico. Mas os sintomas são por vezes tão semelhantes a uma indisposição estomacal que muitos médicos só suspeitam de envenenamento arsenical quando é demasiado tarde.
- Demasiado tarde - gemi, enquanto lhe afastava suavemente o cabelo para lhe beijar com ternura a orelha divina.
Ela tremeu um bocadinho, mas continuou a ler os apontamentos:
- O arsénico já não é geralmente utilizado em medicina, pois foi substituído por compostos mais eficientes. Anteriormente era empregado no tratamento de infecções, doenças das articulações, lesões cutâneas, incluindo a sífilis, bronquite crónica, anemia, psoríase, etc. Ainda é usado pelos veterinários, mas com muito menos frequência do que já foi. Hoje em dia, o arsénico é principalmente usado na indústria. Emprega-se para endurecer cobre, chumbo e ligas, para fazer tinta e vidro, na curtimenta de couros e na estampagem e na tingidura de tecidos. Também é usado como pigmento na pintura, no controlo das ervas daninhas, para matar roedores e insectos e na pirotecnia.
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- Pirotecnia - sussurrei, a tocar na seda fina do seu cabelo, tão suave e evanescente como teias de aranha.
- Agora quanto à sua disponibilidade... É proibido em alimentos e drogas e está a ser excluído por fases como controlador de ervas daninhas. Pode encontrar-se em raticidas e conservantes de madeira, que também seriam venenosos por causa dos seus outros ingredientes. O arsénico vende-se comercialmente em grandes quantidades. É utilizado no fabrico de peças de baterias de automóveis, por exemplo. Para essas utilizações é comprado às toneladas e o Governo exige a indicação do uso a que se destina. Sendo assim, que pode um pobre envenenador fazer? Seria difícil adquirir um produto contendo arsénico num viveiro de plantas de jardim, numa loja de ferragens ou numa farmácia. Provavelmente seria mesmo impossível.
- Impossível - gemi.
Estava de joelhos, com um braço passado pelos seus ombros. Os dedos dessa mão tocavam-lhe no pescoço, na orelha e nas madeixas soltas do cabelo que lhe caía em cascatas pelas costas. A minha outra mão afagava o braço mais chegado a mim, tocava-lhe timidamente. Senti-a estremecer, mas não tardou a recuperar o autodomínio.
- No entanto, o trióxido de arsénico é frequentemente utilizado em laboratórios clínicos e químicos, na investigação. Nesses casos, é obtido em armazéns de produtos químicos por encomenda escrita, e os fornecedores têm de saber com quem estão a negociar. Quero dizer, um desconhecido não pode passar uma encomenda de meio quilograma de arsénico, e pronto. As encomendas habituais de um laboratório variam de cem a quinhentos gramas de cada vez. Na sua forma mais em bruto, custa cerca de dez dólares cada duzentos e cinquenta gramas. O trióxido de arsénico de elevado grau de pureza custa cerca de um dólar por grama. Parece-me que a maneira mais fácil de um envenenador obter o produto seria roubar uma pequena quantidade de trióxido de arsénico do armazém de um laboratório de investigação ou de um laboratório químico, numa universidade. A quantidade necessária para matar uma pessoa é tão pequena que o roubo provavelmente nunca seria detectado e... Oh, Josh! -exclamou.
Deixou cair os papéis, deslizou da cadeira, pôs-se de joelhos e lançou-se nos meus braços. Nessa posição, ambos ajoelhados, éramos quase da mesma altura e abraçámo-nos sofregamente. Beijámo-nos. Os nossos dentes entrechocaram-se. Beijámo-nos. Murmurámos coisas como "Nunca...", e "Eu não...", e "Não posso...", e "Não devia..." Coisas que em breve se transformaram em "Queria..." e "Esperava..." e "Desejava...", e, finalmente, "Amo..."
Nem uma frase foi concluída. Nem foi preciso. Passados momentos, enfraquecidos pelas nossas explorações osculatórias, deixámo-nos simplesmente cair no chão com um baque e ficámos deitados chegados
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um ao outro, na realidade de nariz com nariz, a fitar-nos nos olhos e a sorrir, a sorrir, a sorrir...
- Não quero saber - disse Cleo Hufnagel na sua voz baixa e hesitante. - Não quero simplesmente saber.
- Eu também não - afirmei. - Não quero saber de nada além de nós.
- De nós - repetiu, maravilhada.
- De nós - insisti.
Afastei-lhe o cabelo das têmporas e toquei-lhe na pele lisa da fronte. Quando lhe comprimi as costas, ela chegou-se mais para mim e ficámos colados um ao outro. Comecei a coçar-lhe suavemente a espinha, através da flanela do vestido. Fechou os olhos e ronronou de contentamento.
- Não pare - pediu. -Por favor.
- Não tenciono parar - respondi, e continuei a coçar sistematicamente, alargando a base das minhas operações de modo a abranger as omoplatas e as costelas.
- Oh! -suspirou. - Oh, oh, oh! É virgem, Josh?
- Não.
- Eu sou.
- Sim?
- Mas não quero ser. - Abriu os olhos e olhou para mim, assustada. - Mas não esta noite - acrescentou muito depressa.
- Compreendo - tranquilizei-a, gravemente. - Isto é formidável. Só estar consigo.
- E senti-lo coçar-me as costas é formidável - suspirou. - É belo. Obrigada.
- Obrigado eu. Outro brande?
- Acho que não - respondeu, pensativa. - Sinto-me bem assim. Que idade tem, Josh?
- Trinta e dois.
- Eu tenho trinta e quatro - disse, tristemente.
- E depois?
- Sou mais velha do que você.
- E eu sou mais baixo do que você.
Mexeu-se de maneira a poder segurar o meu rosto entre as palmas das suas mãos. Fitou-me bem nos olhos.
- Mas isso não faz diferença nenhuma, pois não? Eu ser mais velha ou você ser mais baixo? Isso não é importante, pois não?
- Não - respondi, admirado. - Não.
- Tenho de lhe dizer uma coisa horrível.
- O quê?
- Preciso de me levantar e utilizar a sua casa de banho. Quando demos um beijo de boas-noites, tive de me pôr em bicos de
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pés, enquanto ela se inclinava para baixo. Mas não me importei com isso e nenhum de nós se riu.
- Obrigado por uma noite deliciosa - agradeci.
Em vez de responder, passou docemente as pontas dos dedos pela minha cara. Depois foi-se embora.
Capítulo sexto
Lembro-me muito bem do dia seguinte, pois teve uma influência muito grande no que depois se passaria. Era o primeiro sábado de Março, um dia agreste e carrancudo, com uma luz de aço a descer de um céu borrascoso. O ar tinha o cheiro vivo da neve e eu apressei-me a despachar as minhas tarefas de fim-de-semana e armazenei comida suficiente, para poder saborear dois dias calmos e descontraídos em casa, mesmo que a cidade ficasse bloqueada pela neve.
Levei à lavandaria a roupa para lavar e limpar a seco e fiz as compras. Comprei vinho e brande. Limpei o apartamento. Em seguida tomei duche e barbeei-me, vesti umas calças confortáveis, uma camisola e um casaco desportivo, e calcei sapatos de trazer por casa. Pouco depois do meio-dia, sentei-me com o Times da manhã e a terceira chávena de café do dia.
Creio que fiquei irritado quando o telefone tocou. Estava a apreciar a minha solidão aconchegada e o retinir da campainha recordou-me desagradavelmente o mundo agreste que ficava do lado de fora das minhas janelas.
- Estou - disse, cauteloso.
- Josh! - exclamou o detective Percy Stilton. - O meu homem principal! Estou aqui sentado em cuecas, a minha velha está na cozinha a fazer qualquer coisa a um frango e eu vou arrancando fumaças a um charro grosso como um charuto e, ao mesmo tempo, "investigando" um belo jarro de chablis branco da montanha de Almaden, vintage da última terça-feira, e Deus está no Seu Céu, está tudo bem no mundo, e que posso fazer por si, homem? Informaram-me de que telefonou.
- Parece muito bem disposto, Percy.
- Bem disposto? Nem acreditaria se lhe dissesse! Estou com uma boa disposição de chefe. Arranjei umas doces quarenta e oito horas de ripanço e nada nem ninguém me conseguirá arrancar da lareira e da casa até segunda-feira de manhã. Quer saber a respeito do chalado do elevador, não é? Muito bem, estava no quinto andar quando os primeiros
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pulas chegaram à residência Kipper. Juraram-no ambos. E depois, que prova isso? O Sol podia ter-se servido dele, para ir dar o grande salto.
- Podia, admito. Custa a crer que um homem emocionalmente perturbado, resolvido a suicidar-se, esperasse por um elevador para subir um andar, quando poderia ter subido a pé em menos de um minuto. Mas admito que podia tê-lo feito.
- Presumamos que o fez - disse Stilton. - Não tentemos encaixar factos numa teoria. Conheço uma quantidade de bons homens que lixaram tudo ao fazer isso. O truque consiste em ajustar a teoria aos factos. Como se vai você safando? Tem algumas grandes novidades a comunicar?
- Tenho duas coisas.
Falei-lhe das facturas de Martin Reape que encontrara na Kipmar Textiles. As facturas que tinham sido rubricadas para pagamento por Sol Kipper. E dos cheques cancelados endossados por Reape.
Aguardei a sua reacção. Mas só obtive silêncio.
- Percy? Ainda aí está?
Recomeçou a falar e, de súbito, tornou-se sério.
- Josh, faz ideia do que encontrou?
- Faço, com certeza. Estabeleci uma ligação definitiva entre Sol Keeper e Marty Reape.
- Seu escoteiro do caraças! - gritou-me. - Você tem uma prova, uma prova concreta. Tem papel. Uma coisa que podemos apresentar em tribunal. Até agora, só temos tido fumo. Mas agora temos papel. Meu Deus, é maravilhoso!
A mim não me parecia assim tão maravilhoso, mas supus que os oficiais da Polícia tinham prioridades judiciais das quais eu não estava ao corrente. Segui em frente e disse ao detective Stilton o que soubera acerca de Tippi Kipper e do reverendo Godfrey Knurr, que andavam metidos um com o outro e que o caso já vinha de antes da morte de Sol Kipper.
- Como soube isso? - perguntou, curioso. Hesitei um momento.
- Soube-o por intermédio da criada - respondi, por fim. Riu-se.
- De "Miss Horizontal" em pessoa? Não lhe vou perguntar como conseguiu que ela falasse: imagino. Bem, pode ser verdade.
- Explicaria a relação Kipper-Reape - argumentei. - Sol teve suspeitas e contratou Marty para descobrir a verdade. Reape obteve provas de que Knurr e Tippi eram, enfim, íntimos. Foi então que Sol telefonou a Mr. Tabatchnick a dizer que queria modificar o testamento.
- Sim, percebo. Sol foi afastado da competição antes de poder modificar o testamento. Talvez os amantes tenham encontrado e
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destruído as provas. Mas o espertalhão do Reape tinha feito cópias e experimentou fazer chantagem. Adeus, Marty.
- E depois de ele ser afastado a sua pesarosa viúva tentou fazer a mesma coisa.
- Bate certo - admitiu Stilton. - Sentir-me-ia mais excitado se pudesse imaginar como conseguiram liquidar o Sol. E apresentar o bilhete a confirmar o suicídio. Mas pelo menos sabemos mais do que sabíamos antes. Quando regressar, na segunda-feira, vou dar uma vista de olhos ao passado de Knurr.
- E de Tippi - pedi. -Por favor.
- Porquê dela?
Disse-lhe o que os irmãos Kipper me tinham dito acerca dos antecedentes de Las Vegas da mulher e que ela viera primitivamente de Chicago, que também fora a terra de Knurr.
- Talvez isso não signifique nada ou talvez signifique alguma coisa- comentou Stilton. - Está bem, passarei também a Tippi pela peneira e veremos. Aguente, Josh, que está a sair-se bem.
- Estou? - perguntei, surpreendido. - Pensava que estava a sair-me mal. Por sinal, uma das razões por que lhe telefonei foi para lhe perguntar se podia sugerir uma nova abordagem. Qualquer coisa que eu ainda não tenha experimentado.
Seguiu-se um breve momento de silêncio.
- A criança é sua - disse, por fim. - Mas se eu estivesse a investigar o caso seguiria Tippi Kipper e o reverendo Knurr durante uns tempos.
- Para quê?
- Só pelo gozo. Josh, a minha velha está a gritar e acho melhor desligar. Suponho que ela me quer pôr a trabalhar. Dê notícias. Eu informo-o do que a máquina disser a respeito de Knurr e Tippi.
- Obrigado por ter telefonado.
- Não tem absolutamente de quê - respondeu com irónica formalidade, e riu-se. - Até depois, Josh. bom fím-de-semana.
Acabei de ler o Times e de beber o café frio mais ou menos ao mesmo tempo. Depois preparei um uísque com água, fraco, liguei o rádio, baixo, e comecei a reler os meus apontamentos acerca do caso Stonehouse. Voltei ao princípio, à minha primeira conversa com Mr. Teitelbaum. Depois li o registo da minha primeira entrevista com Mrs. Ula Stonehouse, Glynis e Mrs. Effie Dark. Descobri uma coisa interessante. Estivera na cozinha com Mrs. Darke e o interrogatório decorrera mais ou menos do seguinte modo:
P.: E a respeito de Glynis? Ela trabalha?
R.: Já não. Trabalhou durante um ano ou dois, mas despediu-se.
P.: Onde trabalhou?
R.: Creio que era secretária num laboratório clínico.
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P.: Mas agora não faz nada?
R.: Faz trabalho voluntário três dias por semana numa clínica grátis da parte baixa do East Side.
Fechei a pasta devagarinho e fitei a lareira apagada. Secretária de um laboratório clínico. Agora trabalhava numa clínica.
Era possível.
Mas Mr. Teitelbaum só me dera mais uma semana.
Levei mais algumas horas a ler o conteúdo das pastas e a planear linhas de acção. Depois de um jantar solitário, saí para comprar as primeiras edições do Times e do News. Eram cerca de 8.30 horas e não estava a cair neve, saraiva ou chuva, mas o ar estava tão saturado de humidade que eu a sentia, gelada, na cara. Estuguei o passo, de cabeça baixa. As ruas estavam desertas. Muito pouco trânsito. Não vi peões enquanto não contornei a esquina para a 10ª Avenida.
O Sunday News já chegara e eu comprei-o. Mas o Sunday Times ainda não chegara. Estavam umas doze pessoas a aquecer-se na loja, enquanto esperavam que chegasse a furgoneta dos jornais. Resolvi não esperar e voltar de manhã para comprar o Times. Iniciei o caminho de regresso ao apartamento.
A minha casa ficava quase no meio do quarteirão. Do lado oposto da rua havia um candeeiro de iluminação pública que projectava uma fraca claridade alaranjada. A lâmpada estava envolta numa espécie de nuvem trémula.
Percorrera cerca de metade do caminho quando dois homens saíram de um espaço entre prédios, algumas casas depois da minha, e começaram a andar direitos a mim. Vinham pelo passeio, muito separados, e pareciam trazer bastões de basebol.
Lembro-me de pensar, ao afrouxar o passo, que o que ia acontecer me ia acontecer a mim. Quase ao mesmo tempo, pensei que se tratava de uma estranha espécie de agressão: geralmente os atacantes aproximam-se da vítima por trás. Parei e olhei por cima do ombro. Havia um terceiro atacante atrás de mim, a avançar tão rápida e decididamente como os dois da frente.
Olhei desvairadamente em meu redor. A rua estava deserta. Talvez devesse começar a gritar, e continuar a gritar, até se abrirem janelas, espreitarem cabeças e alguém ter a compaixão de chamar a Polícia. Mas não pensei em gritar. Enquanto aquilo acontecia, só pensava em fugir.
Os dois homens da minha frente já estavam suficientemente perto para eu ver que usavam máscaras de malha, de esqui, com buracos nos olhos e na boca. Brandiam as armas ameaçadoramente e eu compreendi, soube, que não ia tratar-se de uma agressão e roubo convencionais. A sua intenção era infligir graves ferimentos físicos, se não a morte.
Lancei outro rápido olhar para trás. O atacante isolado continuava
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a aproximar-se, mas mais devagar do que os dois da frente. A sua função parecia ser a de bloqueador, para me impedir de fugir de um ataque frontal. Brandia o bastão de basebol com as duas mãos, como um jogador na posição, à espera do primeiro lançamento. Também usava máscara de esqui, mas embora o tenha visto apenas brevemente, reparei que um dos buracos dos olhos da máscara parecia opaco. O indivíduo usava uma pala preta debaixo da máscara.
Carros estacionados, pára-choque com pára-choque, impediam-me de fugir para a rua. Não me atrevi a galgar os degraus mais próximos e tocar freneticamente a campainhas estranhas, na esperança de obter socorro antes de aqueles assassinos me caírem em cima. Fiz o que me) pareceu melhor. Virei-me e corri direito ao rufião isolado que vinha atrás de mim. Pensei que as minhas probabilidades seriam maiores contra um do que contra dois. E cada passo acelerado que eu dava na sua direcção me aproximava mais da segurança brilhantemente iluminada e cheia de gente da 10ª Avenida. Creio que ele se assustou com a minha viragem abrupta e a velocidade da minha aproximação. Parou, mudou esitantemente a posição dos pés e agarrou no bastão horizontalmente, com uma das mãos em cada extremidade.
Creio que esperava que eu tentasse fintá-lo ou contorná-lo, por isso' estava desprevenido e desequilibrado quando eu corri simplesmente contra ele, a toda a velocidade. Não houve qualquer esperteza ou perícia especial no meu ataque; corri apenas contra ele com toda a força que pude e senti o bastão bater-me com força através do peito, mas mantive as pernas a movimentar-se e os joelhos a subir e a descer.
Ele saltou para o lado, cambaleou para trás e eu continuei o meu ataque frontal, a ouvir os passos pesados dos outros dois atacantes aproximarem-se atrás de mim. Depois o meu adversário tropeçou. Quando ele se estatelou de costas, com a respiração a fugir-lhe, aproveitei a oportunidade e corri como louco.
Corri literalmente por cima dele, sem me importar com o que as minhas botas pisavam: joelhos, sexo, barriga, peito ou cara. Servi-me apenas dele como turfa para arranjar um bom apoio para os pés e, como um sprinter a arrancar dos blocos, voei na direcção da 10ª Avenida, ciente de que estava safo e agora nem o Diabo me poderia agarrar.
Contornei a esquina com o corpo inclinado, e lá estava a furgoneta do Times de Nova Iorque a descarregar maços da edição de domingo, com vendedores, comerciantes e compradores a toda a volta: uma multidão que se comprimia e empurrava. Uma confusão deliciosa, barulhenta, no meio da qual mergulhei, sem fôlego. Fiquei surpreendido ao verificar que, além do meu corpo continuar intacto, ainda segurava debaixo do braço a edição dominical do News que comprara antes.
Esperei que os suplementos do Times fossem reunidos, para formar
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números completos. Comprei um e aguardei mais um bocadinho até dois outros compradores meterem pela minha rua com os seus jornais. Segui-os de perto, a olhar cautelosamente à volta. Mas não havia nenhum sinal dos meus atacantes.
Quando cheguei à minha casa, tinha as chaves na mão. Galguei os degraus, abri a porta da rua, corri pela escada acima, entrei no apartamento e fechei e tranquei a porta. Acendi as luzes todas e revistei a casa. Sabia que estava a ser idiota, mas não me importei. Até espreitei no armário. Tremia todo.
Deitei um brande reforçado, mas nem sequer o provei. Sentei-me de anorak e boné, de olhos fitos na lareira onde já só brilhavam uns pontinhos vermelhos, como pirilampos que se acendiam e apagavam.
A pala preta que vislumbrara debaixo da máscara de esqui do meu assaltante perseguia-me.
Pensei que havia em Nova Iorque uma quantidade de homens que usavam palas pretas nos olhos e eram da mesma altura e constituição do jovem que tinha visto no Clube dos Fazedores de Tendas da Carmine Street. Mesmo assim...
Era evidente que Tippi Kipper comunicara a Knurr os pormenores da nossa conversa. Talvez lhe tivesse dito que eu lhe referira o nome de Martin Reape. Talvez lhe tivesse dito que eu fizera perguntas intrometidas, duplamente suspeitas por virem de um empregado de uma firma de advogados supostamente encarregado, apenas, de fazer um inventário do espólio do marido.
Por isso, os dois deviam ter decidido que eu tinha de ser retirado de cena. Ou, pelo menos, afugentado.
Seria isso?
Tive de admitir que a teoria não me agradava nada. Se eu sabia o nome de Martin Reape, era de presumir que os meus patrões também o soubessem, e o facto de me imobilizarem no hospital não deteria uma investigação das alegadas facturas do detective particular. E quanto às minhas "perguntas intrometidas", eu não perguntara nada que não pudesse ser atribuído a interesse compreensivo.
Não sabia por que motivo Godfrey Knurr organizara o ataque contra mim. Mas estava convencido de que tinha sido ele. Isso entristeceu-me. Admirava o homem.
Vi as horas. Passava pouco das dez. Se fosse a casa de Knurr, na Carmine Street, talvez visse os três vadios entrar ou sair do clube e confirmasse assim as minhas suspeitas.
Ignorando a dúzia de razões que tornavam semelhante decisão uma conduta estúpida, apaguei as luzes, puxei o capuz do anorak para cima do boné, certifiquei-me de que tinha as luvas quentes e saí de novo para a escuridão. Não foi a coisa mais fácil que fiz na minha vida.
Quando um táxi me deixou na esquina da Carmine Street com a
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7ª Avenida, descobri que me esquecera de reabastecer a carteira. Tinha o suficiente para pagar ao motorista e gratificá-lo, mas ficava apenas com uns dez dólares em notas e trocos, o"que deveria chegar à justa para regressar a casa.
Caminhei para leste na Carmine Street, de cabeça baixa, encapuzada e mãos enluvadas enfiadas nas grandes algibeiras do anorak. Segui pelo passeio oposto ao do clube do reverendo Knurr, que inspeccionei de passagem.
Ao princípio pareceu-me que estava completamente às escuras. Mas depois, através da janela pintada, vi brilhar uma luz baça. Claro que podia tratar-se apenas da luz que ficava acesa durante a noite. o clube podia estar deserto, o pastor algures e eu podia estar a perder o meu tempo.
Mas lembrei-me das instruções de Roscoe Dollworth a respeito da paciência de santo que era preciso ter para vigiar alguém e, por isso, continuei a descer o quarteirão, depois virei e retrocedi. Devo ter subido e descido aquele quarteirão uma dúzia de vezes.
Nessa altura, já cansado da patrulha, parei à entrada sombria de uma lavandaria chinesa, não exactamente defronte do Clube dos Fazedores de Tendas, mas numa posição que me permitia observar-lhe a entrada sem ser facilmente visto.
Continuei a vigília durante aproximadamente uma hora, umas vezes encolhido no portal, outras a subir e descer a rua, mas sempre com o clube de Knurr debaixo de olho. A rua não estava cheia de gente, mas também não estava deserta. Nenhum dos outros transeuntes parecia interessado nas minhas actividades, mas eu aproveitava-me dos grupos que passavam para me colocar logo atrás deles, dando a impressão - ou assim o esperava - de fazer parte de um grupo que regressava tardiamente de jantar.
Estava de novo à porta, a bater devagarinho com os pés, quando a luz se tornou mais forte atrás da janela pintada do Clube dos Fazedores de Tendas. Confundi-me melhor com as sombras e esperei. Por fim, a porta da frente abriu-se. Um feixe de luz amarelada projectou-se no passeio.
Godfrey Knurr saiu. Não me restaram dúvidas nenhumas de que era ele; vi-lhe claramente as feições, em especial a barba cor de ardósia, quando se virou para fechar a porta à chave. Estava em cabelo, mas vestia um sobretudo escuro, com a gola levantada.
Experimentou a porta, guardou as chaves na algibeira das calças e começou a andar para leste, na direcção da 6ª Avenida. Caminhava com boa passada e eu acompanhei-o do outro lado da rua, um bom bocado atrás e cosido com as sombras mais profundas das fachadas de lojas e dos prédios.
Atravessou a 6ª Avenida e parou na borda do passeio, a olhar para
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sul. Levantava a mão quando via aproximar-se um táxi e baixava-a quando via que estava ocupado. Estuguei o passo, pela 6ª Avenida fora, e parei um quarteirão abaixo de Knurr. Depois atravessei a avenida a correr e parei na borda do passeio.
Apanhei o primeiro táxi que passou.
- Para onde? - perguntou-me o motorista.
- Ligue o taxímetro e deixe-se ficar onde está - respondi-lhe. - Tenho cerca de dez dólares. Quando lhe dever oito, diga-me que eu dou-lhe os dez dólares e saio do táxi. Está bem?
- Porque não? - redarguiu, amigavelmente. - Poupo gasolina. Problemas conjugais?
- Coisa do género.
- Não nos acontece a todos? - perguntou tristemente, e calou-se.
O cartão de matrícula dizia que ele se chamava Abraham Pincus. Era um homem grisalho de meia-idade, de testa enrugada debaixo do boné ensebado e linhas profundas dos cantos da boca para o queixo, Como um boneco de ventríloquo.
- Importa-se que fume? - perguntou-me.
O compartimento dos passageiros estava cheio de letreiros que diziam: É FAVOR NÃO FUMAR, MOTORISTA ALÉRGICO AO FUMO e outros no género.
- E estes letreiros? - indaguei.
- São por causa do motorista de dia. Eu sou o motorista de noite. Eu estava sentado no banco da retaguarda, inclinado para a frente e
a tentar espreitar pelo pára-brisa baço para não perder o reverendo Knurr de vista. Ele ainda não arranjara táxi. Passados uns três minutos, passou um com as luzes do tejadilho acesas e começou a encostar ao passeio onde Knurr estava a fazer-lhe sinal.
- Muito bem, vamos andar - disse eu. - Siga para norte.
- Porque não? - redarguiu Mr. Pincus tranquilamente, enquanto acabava de acender o charuto. - O senhor é que manda, enquanto durarem os oito dólares.
Vi Knurr entrar no táxi e seguir para norte, pela 6ª Avenida. O meu motorista arrancou e seguimos também para norte, mantendo-nos cerca de um quarteirão atrás do táxi de Knurr. Na Rua 14, Knurr virou para a esquerda.
- Vire para a esquerda - disse ao meu motorista.
- Vamos a seguir o táxi da frente? -Vamos.
- Porque não o disse? Toda a minha vida tenho esperado que alguém entre no meu táxi e diga: "Siga aquele carro!" Como nas fitas e na TV, sabe? Esta era a minha grande oportunidade e você estragou-a. É ele o tipo que anda metido com a sua patroa?
- É.
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- Não o perco - prometeu-me. - Até oito dólares, não o perco.
O táxi de Knurr ziguezagueou para norte e oeste, com o nosso um quarteirão atrás, mas às vezes mais perto, quando o meu motorista receava ser detido por uma luz do trânsito. Por fim encontrámo-nos na
11ª Avenida, a seguir directamente para norte.
- É de Nova Jérsia? - perguntou-me A. Pincus.
- Não. Porquê?
- Pensei que talvez ele estivesse a seguir para a Ponte George Washington e Jérsia. Não se pode lá chegar por oito dólares.
- Não, não creio que ele vá para Nova Jérsia.
- Talvez você e o seu fofinho de creme possam voltar a juntar-se- consolou-me Mr. Pincus. - Como diz a velha canção, "Experimente um pouco de ternura"...
- bom conselho - comentei, inclinado para a frente, a observar os farolins do carro que seguíamos.
Estávamos na West End Avenue, ainda a viajar para norte.
- Ele está a abrandar - avisou Pincus. - Vai parar. Olhei para o letreiro de uma rua. Estávamos na Rua 66.
- Passe-lhe um quarteirão à frente, por favor - pedi. - Depois pare para eu sair.
- Porque não?
Enquanto me encolhi no lugar, passámos pelo táxi parado de Knurr e parámos um quarteirão mais para norte.
- O taxímetro marca à volta de seis dólares - informou-me o meu motorista. - Mais coisa, menos coisa. Quer que espere?
- Não, obrigado. Saio aqui.
Dei-lhe nove dólares e calculei que poderia ir de autocarro ou metropolitano para casa.
- Desejo-lhe muita sorte - disse Pincus.
- Obrigado. Foi muito amável.
- Porque não? - redarguiu, e o seu táxi afastou-se ruidosamente.
Encontrava-me do lado oriental da West End Avenue, num quarteirão ladeado por árvores nas proximidades de um enorme parque residencial. Havia edifícios altos, largos espaços relvados, arbustos e árvores por toda a parte. Devia ser agradável à luz do dia. Àquela hora da noite era sombrio, deserto e vagamente sinistro.
Observara Knurr, através do vidro da retaguarda do meu táxi, enquanto ele esperara por uma acalmia do trânsito para atravessar a avenida a correr. Dirigi-me rapidamente para onde o seu táxi parara.
Enquanto avançava para sul, vi-o do lado ocidental da West End. Encaminhava-se para a entrada brilhantemente iluminada de uma garagem pública subterrânea, na cave de um dos prédios altos que ladeavam o rio. Havia grandes anúncios, à frente, a indicar as tabelas de estacionamento à hora, ao dia, à semana e ao mês.
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Parei do outro lado da rua, defronte da garagem, na sombra profunda de um plátano de grosso tronco. Vi Knurr avançar rapidamente para a entrada iluminada. Quando se aproximava da guarita do guarda, uma mulher saiu das sombras e ela e o reverendo trocaram um beijo breve. Depois apareceu um empregado que falou um momento com Knurr. O pastor entregou-lhe qualquer coisa. O empregado voltou-se e desapareceu. Knurr e a mulher ficaram onde estavam, muito juntos e a conversar. Ele tinha o braço sobre os ombros dela.
A mulher usava o que me pareceu um casaco de marta que lhe chegava um pouco abaixo da barriga da perna. Era muito amplo e tinha um capuz que lhe cobria a cabeça e envolvia as feições em sombra.
Por fim, avançou para a área iluminada da entrada da garagem um carro comprido e pesado. Era um Mercedes-Benz preto, reluzente, sólido e muito elegante. O empregado da garagem saiu do lugar do motorista e entregou qualquer coisa a Godfrey Knurr. O reverendo deu também qualquer coisa ao empregado.
Knurr abriu a porta do lado do passageiro. Ajudou a senhora a entrar e depois deu a volta para o lugar do motorista, entrou, bateu com a porta - ouvi o barulho, onde estava - e lenta e cuidadosamente conduziu para a West End Avenue. Virou para norte. Vi os farolins da retaguarda desaparecerem ao longe.
Não fiquei a pensar para onde ele iria. Nada me poderia importar menos. Estava pasmado.
É que, quando ele ajudara a mulher a entrar no carro, ela empurrara para trás o capuz do casaco de peles. As suas feições tinham sido momentaneamente reveladas pela luz forte. Vira-a claramente.
Não era Tippi Kipper.
Era Glynis Stonehouse.
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PARTE TERCEIRA
Capítulo primeiro
Nessa noite acordei frequentes vezes, readormeci outras tantas e por fim perdi toda a capacidade de saber se estava completamente consciente ou a sonhar. Lembro-me perfeitamente de ter perguntado a mim mesmo se tinha de facto visto Glynis Stonehouse e Godfrey Knurr juntos.
O meu cérebro não me deu descanso toda a noite e as coisas não correram melhor quando me levantei cedo, no domingo de manhã, tomei duche, vesti-me e comi desconsoladamente um prato de corn flakes espapaçados. Não sabia simplesmente o que fazer. Parecia-me que tudo aquilo era demasiada areia para a minha camioneta e que precisava muito de conselhos sensatos.
Custava-me incomodar Percy Stilton, mas o que soubera era de tamanha importância que queria que o detective também o soubesse imediatamente. Marquei o único número dele de que tinha conhecimento e informaram-me de que só voltaria à esquadra na segunda-feira de manhã.
- Não seria possível telefonarem-lhe para casa e pedirem-lhe que contactasse comigo? - Tentei dar ao agente que me atendia uma ideia da urgência da situação.
- Mais ninguém o pode ajudar? - perguntou-me, ainda reticente.
- Não - respondi, com firmeza. - Tem de ser Stilton. É de facto muito importante, acredite, importante para mim e para ele.
Silêncio.
- Trata-se de um caso que ele está a investigar? - perguntou o agente, por fim.
- Trata - respondi, a mentir valentemente. - Basta que lhe telefone e peça que ligue para Joshua Bigg. O mais depressa possível.
De novo um breve silêncio. Depois: -Que nome disse? Pigg?
- Bigg. B-i-g-g. Joshua Bigg. Diga-lhe que é uma questão de vida ou de morte.
- Dir-lhe-ei - prometeu o agente.
Tentei ler os jornais de domingo. Vi um bocado de televisão, mas não consegui concentrar-me. Por fim, o telefone tocou, pouco antes do meio-dia.
- Estou - disse, ofegante.
A voz era baixa, rouca, apaziguadora:
- Mr. Bigg? -Sim.
- Fala Maybelle Hawks - informou agradavelmente. - Sou a adulta aquiescente de Percy Stilton.
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- Sim, minha senhora.
- Mr. Bigg, Percy recebeu o seu recado, mas neste momento não se encontra em condições de falar inteligivelmente consigo.
- Está doente? - perguntei, inquieto.
- Pode-se dizer isso - respondeu, pensativamente. - Nada fatal, porém. Creio que recuperará, com o tempo. Mas agora, nesta altura, está um tanto ou quanto perturbado. É domingo de manhã... Espero que compreenda.
- Sim, minha senhora - disse, tristemente. - Está com ressaca.
- Oh, Mr. Bigg, essa é a galhofa do ano! -exclamou alegremente. - Está comatoso, Mr. Bigg. Co-ma-to-so. Pediu-me que retribuísse o seu telefonema e lhe explicasse a razão por que seria melhor telefonar-lhe amanhã para a esquadra.
- Miss Hawks...
- Trate-me por Belle.
- Obrigado. Belle, não há nenhuma possibilidade de eu a ver hoje? É realmente urgente. Eu não a incomodaria se não fosse. com certeza o Percy, e a senhora também, claro, têm de comer hoje, a qualquer hora. Dar-me-ia grande prazer se ambos me fizessem companhia para jantar. Em qualquer sítio.
- Mr. Bigg, parece-me um homem sério, razoável. -Sim, minha senhora. É o que desejo ser.
- Então deve compreender que neste momento, neste segundo, se falar em comer ao Percy ele é muito capaz de me dar um tiro nos queixos.
- Oh, não, minha senhora! - apressei-me a protestar. - Não me referia a este momento. O que estava a pensar era que lá para a tardinha, digamos por volta das seis horas, ele poderia estar perfeitamente refeito e ambos com fome suficiente para jantarem comigo.
- Hum... Está a comunicar comigo, Mr. Bigg. Está bem, verei o que posso fazer aqui com o Incrível Hulk. Onde quer comer?
Combinámos que seria no Woody's, por volta das seis da tarde.
Passei o resto do dia a ler os jornais de domingo e depois a reler a pasta Stonehouse. Saí do apartamento às cinco e meia e fui a pé para o Woody's. Ainda não estava escuro, mas mesmo assim observei a rua antes de sair do vestíbulo e a minha cabeça não parou de se virar para um lado e para outro durante o rápido trajecto para a Rua 23.
Nitchy saudou-me, depois de eu pendurar o sobretudo e o chapéu no cabide da frente.
- Não traz nenhuma princesa esta noite, Josh? -Esta noite, não, Nitchy.
- Mas há-de trazer - afirmou, confiante. - Uma destas noites entrará por aquela porta com uma princesa no braço. Verá.
Como de costume, estava carregada de pulseiras, argolas e amuletos.
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O capacete negro do seu cabelo brilhava perversamente e a sombra carregada dos olhos e os lábios minuciosamente pintados acentuavam o seu ar de feiticeira. Indicou-me uma mesa de onde eu podia observar a porta da frente.
Não chegaram muito atrasados - não mais de um quarto de hora. No momento em que Maybelle Hawks entrou no restaurante e a cabeça de toda a gente da sala da frente começou a virar-se, compreendi quem ela era.
Era um dos mais famosos manequins da grande moda de Manhattan. As suas feições clássicas tinham adornado dúzias de revistas de haute couture, posara nua para muitos artistas e fotógrafos e um erudito crítico de arte escrevera uma muito citada monografia a respeito da sua "beleza de Nefertiti" e da sua "sensualidade etérea". Era mais alta do que Stilton, que espreitava atrás dela. Calculei que devia medir um metro e noventa ou um metro e noventa e dois de altura. Usava uma trincheira de cabedal preto maleável, forrada de marta, a qual, aberta, revelava um vestido estilo camiseiro de lã macia, cor de ameixa. Envolvia-lhe a haste forte do pescoço uma bela corrente de ouro.
Compreendi por que motivo o crítico de arte pensara em Nefertiti. A sua cabeça parecia alongada, prolongada atrás, de tal maneira que tinha a forma de um ovo inclinado. O cabelo era uma touca de caracóis pretos, cerrados. Olhos orientais, lábios semíticos e uma fina cimitarra como nariz. Todas as feições pareciam esculpidas, polidas, oleadas. Os dentes eram incrivelmente brancos.
Dirigiram-se para a minha mesa e sentaram-se. Visto de perto, Percy não estava com muito bom aspecto. Vestia tão elegantemente como da primeira vez que o tinha visto, mas os olhos estavam profundamente afundados nas órbitas e papudos. A esclerótica estava avermelhada e ele pestanejava frequentemente. A sua pele de cordovão tinha uma tonalidade doentia.
Nitchy perguntou se tomávamos uma bebida. Belle viu o meu copo de vinho branco e optou pelo mesmo. Percy ergueu os olhos raiados de sangue para ela.
- Por favor, pequena - pediu, rouco, lamentosamente.
- Nitchy - disse Belle, de uma maneira que era mais canto do que fala-, por favor traga a este caso perdido um golo de conhaque e aí um litro de água gelada para acompanhar.
- Trago já - redarguiu Nitchy, a olhar pesarosamente para Percy. -Está com a ressacazinha?
- Ressacazinha? - repetiu Belle, a rir desdenhosamente. - Este é o tipo que jurou que podia misturar erva, martinis, vinho, bourbon e cocktails de brande. "Eu aguento", disse.
- Belle - implorou Stilton-, não grites.
Quando nos serviram as bebidas, Percy ficou a olhar fixamente
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para o copo. Respirou fundo e depois inclinou-se para a frente, para ter de levantar o copo apenas poucos centímetros, a fim de o levar aos lábios. Bebeu metade do conhaque de um trago. Em seguida fechou os olhos e cerrou os dentes.
- Jesus! -exclamou, por fim. -Ouviram o barulho que fez? Voltou a respirar fundo, recostou-se na cadeira e despejou o copo
de água gelada. Nitchy estava a postos com um jarro para lho encher de novo.
- Ora pronto - disse Percy Stilton, a olhar-nos com um sorriso amarelo. -Era isto que eu devia ter feito há oito horas.
- Eu queria que tu sofresses - comentou Maybelle Hawks. Stilton acabou de beber o conhaque e estendeu o copo vazio a
Nitchy.
- Outro plasma, enfermeira, por favor.
Quando Belle e eu acabámos de beber o nosso vinho branco, o detective parecia refeito, acendia um cigarro com dedos firmes, ria e brincava e olhava em redor com interesse.
- O lugar é agradável e confortável - observou, a acenar com a cabeça. -Que tal é a comida?
Nitchy continuava perto, orgulhosa de ter Maybelle Hawks no seu estabelecimento. Tinha-a visto vangloriar-se noutras mesas.
- Para si - disse a Stilton-, sugiro um bife do lombo mal passado, uma salada mista e mais nada.
- Case comigo - redarguiu ele.
- O mesmo para mim, por favor - pediu Belle. -A salada temperada com azeite e vinagre.
Eu pedi um hamburger e outra rodada de bebidas.
- Muito bem, Josh, que história vem a ser essa? - perguntou Percy.
Olhou rapidamente na direcção de Maybelle Hawks. Stilton reparou e disse:
- Ela sabe tudo. Acha interessante. -Fascinante - corrigiu Belle.
- Conhece todas as pessoas envolvidas? - perguntei-lhe. - Tippi Kipper? Godfrey Knurr? Marty Reape?
Acenou afirmativamente.
- Óptimo. Mas o que tenho a dizer será novo para ambos. Tenho muito que contar.
- Fale - convidou Percy Stilton. - Estamos a ouvir.
Falei-lhes do caso Stonehouse: o envenenamento por arsénico, como tinha sido feito, a personalidade das pessoas envolvidas e como estava a tentar localizar um taxista que porventura tivesse transportado o professor Stonehouse na noite em que desaparecera. Escutaram-me com atenção.
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Quando lhes falei da tentativa de agressão de que fora vítima na noite anterior, o detective Stilton parou, com a última garfada de bife a caminho da boca, e fitou-me. Depois devorou o bocado de bife, afastou o prato e tirou a cigarreira.
Contei-lhes que seguira Godfrey Knurr, que ele se dirigira para a garagem da West Side, se encontrara com uma mulher e que tinham seguido os dois para norte num Mercedes-Benzz preto.
- Mas não era Tippi Kipper - informei. - Era Glynis Stonehouse.
Acabei de comer o meu hamburger e levantei a cabeça. O detective Percy Stilton acendera o seu cigarro. Fumava calmamente, a olhar para o espaço por cima da minha cabeça. Maybelle Hawks também acabara de jantar, apesar da minha notícia sensacional. Limpava delicadamente os lábios com o guardanapo.
- bom bife - foi tudo quanto disse.
Stilton baixou lentamente os olhos até me fitar.
- Macacos me mordam! - exclamou, baixinho. - Macacos me mordam e remordam!
- Café? - perguntou a criada.
Respondemos que sim e pedimos também brande. Ninguém disse nada enquanto a criada não se afastou. Depois o detective Stilton deu uma palmada na mesa. Os talheres saltaram.
- Aquele sacana! -gritou Stilton. - Aquele grande sacana!
- Calminha, rapaz - recomendou Maybelle Hawks. - Não armes em bruto.
- Pensa... - perguntei.
- Merda - resmungou o detective, furioso. - É ele. Tem de ser ele. Não sei como conseguiu apagar o Kipper nem o que fez ao Stonehouse, mas é ele, tem de ser ele. E julga que vai safar-se, que vai ficar a rir-se.
- Até agora tem-se saído muito bem - comentou Belle, secamente.
- Sim - concordei, a acenar com a cabeça. - Mas são tudo hipóteses, conjecturas.
Stilton esmagou o cigarro meio fumado e acendeu logo outro.
- Sim, conjecturas. Não há nenhuma prova concreta. É certo. Mas acredite, Josh, que às vezes acontece assim mesmo. Temos o tipo desmascarado, mas não podemos provar nada.
- Que fazem então?
Inclinou a cabeça muito para trás e soprou fumo para o tecto.
- Bem... - disse, devagar. - Conheço uns tipos que estão em dívida para comigo. Não são chuis - apressou-se a esclarecer. - Apenas amigos do meu sítio antigo. Gostam de ir à caça.
Olhei-o, intrigado.
- Podiam levar o Knurr à caça com eles - acrescentou. - Na floresta.
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Há muitas árvores no interior do estado. Há constantemente acidentes. Acidentes de caça. - Não - declarei.
- Porque não? - perguntou, asperamente.
- Percy, não acredito em força bruta nem em moralidade bruta. Não acredito que governem o mundo. Não acredito que sejam o que faz a História e forma o futuro. Não acredito pura e simplesmente nisso. Não posso acreditar, Percy. Olhe para mim. Sou um pigmeu. Se o importante é a força bruta, então não tenho a mínima probabilidade. Já estou morto. E também não quero acreditar. Se a moralidade bruta é a lei da sobrevivência, então quero estar morto. Não quero viver num mundo desse género, porque não seria nada, sem esperança nem alegria.
Stilton fitou-me, de olhos muito abertos.
- É um cagarola - acusou, por fim.
- Disse o que sinto.
Maybelle Hawks estendeu a mão por cima da mesa e pô-la no meu braço.
- Estou consigo, rapaz - disse, docemente.
O detective recostou-se na cadeira e acendeu outro cigarro.
- E os humildes herdarão a Terra - sentenciou, em voz sem timbre.
- Eu não disse isso! - protestei, irritado. - Tenho tanta vontade como você de filar Godfrey Knurr. Ou talvez mais. Ele fez de mim parvo. Não me sinto nada humilde a esse respeito. Não vou deixá-lo escapar.
- E como tenciona exactamente filá-lo?
- Tenho uma boa cabeça. Sei que tenho. Knurr não se safará. Neste momento, não sei dizer-lhe exactamente como o filarei, mas estou certo de que o filarei. Esperteza e astúcia. É o que vou usar contra ele. São essas as únicas armas de uma minoria perseguida. E é isso que eu me considero: membro da minoria dos baixos.
- Está bem, Josh - concordou Stilton. - Jogaremos à sua maneira... por enquanto. Amanhã verei o que tem a máquina a dizer a respeito do reverendo Godfrey Knurr.
- E de Tippi Kipper - lembrei-lhe.
- Certo. Você vai para a frente com a ideia dos cartazes?
- Logo de manhã.
- Aceite o meu conselho: não descreva o Stonehouse nos cartazes. Se o fizer, receberá um milhão de telefonemas de espertalhões. Limite-se a pôr a fotografia dele e a morada. Depois, se receber telefonemas, poderá avaliar a sua legitimidade pedindo à pessoa que descreva o Stonehouse.
- Faz sentido.
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- Investigue também as análises químicas que o Stonehouse mandou fazer. Vá ao laboratório, espalhe um pouco de fumo. Obtenha cópias das análises. Pensa que o arsénico era posto no brande e talvez tenha razão. Mas precisa de papel a comprová-lo. Descubra a clínica onde Glynis trabalha como voluntária. Veja se têm lá arsénico.
Tomei apontamentos rápidos na minha agenda.
- Mais alguma coisa? - perguntei.
- Se não obtiver resultados na clínica, tente descobrir onde ela trabalhou anteriormente. Talvez tivessem arsénico.
- Nem sequer sei quanto tempo lá trabalhou - lembrei. - Talvez um ano ou dois, ou mais.
- E então? - perguntou Percy Stilton. - É possível.
- Sabe quando Glynis conheceu Geofrey Knurr? - inquiriu Maybelle Hawks.
- Não, não sei - confessei. - Tentarei descobri-lo.
- Isso - concordou Stilton. - E enquanto estiver com a mão na massa, tente arranjar-nos uma fotografia recente de Glynis.
- Para quê?
- Para ser franco, não sei - respondeu, indolente.
Tomei mais um apontamento: Foto de Gly.
- Mais alguma coisa?
- Não sei quanto tempo pode dedicar a esta coisa - respondeu Percy-, mas ajudaria se pudesse seguir o Knurr. Só para fazermos uma ideia do programa do tipo. Aonde vai, com quem se encontra... Especialmente aonde vai quando ele e Glynis saem no tal Mercedes preto da garagem da West Side. Essa é outra coisa: tente descobrir se o carro é dele.
- Não é. Knurr tem um velho Volkswagen,
- Claro - comentou Stilton, sorridente. - Tinha de ser. Coaduna-se com a sua imagem de homem da Igreja pobre, mas honesto. Provavelmente tem uma carteira de títulos de alta cotação que o deixariam de olhos arregalados. E pronto, não me lembro assim de mais nada, Josh. - Olhou para Maybelle Hawks. - Lembras-te de alguma coisa, pequena?
- De momento, não. Sentir-me-ia muito mais segura a respeito desta história se pudéssemos imaginar como Knurr e Tippi atiraram Sol Kipper do quinto andar. E também se percebesse o bilhete de suicídio.
- És uma velha raposa sabida - redarguiu ele. - Pensa no assunto. Aposto que te sairás com alguma coisa.
- Gostaria de poder dizer o mesmo de ti - murmurou ela. - Esta noite.
- Experimenta-me.
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- Tenciono fazê-lo. Josh, muito obrigado pelo jantar. E siga em frente. Vai deslindar a meada. Sei que vai.
- Obrigado. Percy, importa-se de me dar o número do telefone da sua casa?
- Não me importo nada - respondeu imediatamente, e deu-mo. Esperei com eles até arranjarem um táxi. Maybelle inclinou-se para
me beijar na face.
- Quero vê-lo mais vezes, Josh. Promete?
- com certeza.
- Uma noite destas vá jantar connosco. Acredite que sou muito boa cozinheira. Não é verdade, Percy?
Ele inclinou a mão para a frente e para trás.
- Assim, assim.
- Pulha - acusou Belle.
Regressei a pé a casa, devagar e envergonhado. Sentia-me embaraçado por ter confessado que me via como um membro da minoria perseguida dos baixos.
Mas era verdade. São capazes de julgar que estava obcecado pelo meu tamanho. Deixem-me explicar o que sentia. Já aludi às recompensas que a sociedade oferece aos homens de alta estatura física. Os altos são tratados com respeito; os baixos despertam desdém e riso. Mas isto só se aplica aos homens. "A mulher e a sardinha querem-se pequeninas", continua a ser um elogio à mulher. A nossa língua reflecte esse preconceito. Costuma-se dizer de uma pessoa digna que, para ela, tem de se olhar para cima. Um homem sem dinheiro, está em "baixo" de finanças. Curto-circuitar é frustrar ou impedir. Um indivíduo indigno é um "tipo baixo", etc.
Assim reflecte a nossa maneira de falar os nossos preconceitos. E a filosofia que eu, num momento de fraqueza, revelara a Belle e a Percy, reflectia os meus mais profundos sentimentos a respeito de ser um pigmeu. Do meu tamanho, ou falta dele, provinham as minhas crenças, os meus sonhos, as minhas ideias, emoções, fantasias e reacções. E todas essas coisas iam ser postas à prova, quer me agradasse, quer não, na tormentosa semana que ia começar.
Capítulo segundo
Na manhã seguinte, cheguei à TORT antes das nove horas. O meu cesto estava cheio de pedidos de investigações e informações, mas depois de lhes passar uma vista de olhos achei que a maioria podia ser resolvida por Mr. Kletz e o resto podia esperar.
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Pouco antes das dez horas, telefonei a Gardner & Weiss, que se encarregavam de todo o trabalho de tipografia para a Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum. Falei pessoalmente com Mr. Weiss e expliquei-lhe o que queria no tocante aos cartazes de recompensa do Stonehouse.
- Não há problema nenhum - garantiu ele. - Mando aí um empregado buscar a fotografia e o modelo. Quantos quer?
Respondi, sem fazer nenhuma ideia:
- Cem.
- Quarta-feira.
- Esta tarde - exigi.
- Oh! -exclamou tristemente. -Oh, oh, oh!
- É um caso muito urgente. Pagaremos.
- Escusado seria dizê-lo. Quer ver uma prova primeiro?
- Não. Confio em si. -Confia?
- Pode ser para a uma hora desta tarde?
- Tentarei. Só porque disse que confiava em mim. O empregado vai a caminho.
Tirei da pasta a fotografia do professor Stonehouse e dactilografei as palavras que deveriam constar do cartaz: RECOMPENSA! Será paga uma generosa recompensa em dinheiro a qualquer taxista que possa provar ter recolhido este homem nas imediações da Central Park West e da Rua 70 na noite de 10 de Janeiro deste ano. Depois acrescentei o número do telefone da TORT e o da minha extensão.
Como de costume, Thelma Potts estava severamente sentada à secretária, do lado de fora do gabinete de Mr. Leopold Tabatchnick.
- Miss Potts, esta manhã está com um aspecto extraordinariamente encantador! -exclamei.
- Oh, oh! Quer qualquer coisa.
- Quero, de facto. Tenho um amigo que precisa de se aconselhar com um advogado. Pode arranjar-me um dos cartões de Mr. Tabatchnick, para eu lhe dar?
- Mentiroso. O que quer é fingir que é Mr. Tabatchnick. Fiquei pasmado.
- Como adivinhou?
- Quantos quer? - indagou, ignorando a minha pergunta.
Quando me preparava para a deixar, cravou-me com um dólar para a farmácia. Dei-lho.
- Continua a apostar no Hamish Hooter? - perguntei-lhe.
- Só aposto em coisas certas - respondeu, altivamente.
Quando Gertrude Kletz chegou, chamei-a ao meu gabinete e mostrei-lhe a fotografia do professor Stonehouse e a oferta de recompensa. Expliquei-lhe que os cartazes deveriam ser entregues pela
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Gardner & Weiss ao princípio da tarde. Entretanto, podia começar a compilar uma lista de garagens de táxis, que encontraria nas Páginas Amarelas.
- Ou na Associação dos Taxistas. Olhei-a com admiração.
- Exactamente.
Disse-lhe que os cartazes teriam de ser levados pessoalmente às garagens e, com a autorização dos gerentes, colocados nas paredes ou nos quadros destinados a boletins e outras coisas.
- Preciso de fita gomada e de tachas - disse alegremente.
O caso Kipper tinha-a fascinado e o Stonehouse não ficara atrás. Li-lho nos olhos brilhantes. O seu rosto estava corado de entusiasmo.
Informei-a de que ia ao laboratório a fim de me informar a respeito das análises do Stonehouse e que, quando regressasse, provavelmente ela estaria ausente, a distribuir os cartazes. Vesti o sobretudo, pus o chapéu, agarrei na pasta e saí apressado. De passagem, acenei a Yetta.
Ela estava com a camisola verde que eu lhe dera, mas curiosamente isso não me excitou.
O laboratório químico ficava na 11ª Avenida, perto da Rua 55. Meti-me num táxi para lá. Bommer & Son, Inc., ocupava o terceiro andar de um prédio despretensioso, entre um bar de marinheiros (BEBIDAS PARA RAPAZES CRESCIDOS, 75 CÊNTIMOS DURANTE A HORA FELIZ, DAS 9 ÀS DUAS DA TARDE) e o estabelecimento de uma cigana que lia a sina (SINAS, PASSADO, PRESENTE E FUTURO. DOENÇA). Como o elevador tinha a indicação de SÓ PARA CARGA, fui a pé até ao terceiro andar, com o cheiro forte dos produtos químicos a tornar-se mais intenso à medida que subia.
A recepcionista do escritório de entrada, que escrevia à máquina numa Underwood, parou.
- Desejava falar com Mr. Bommer, por favor.
Passados poucos momentos, um homem atarracado, de bata branca manchada, apareceu no escritório.
- Que é? - perguntou, em voz de cana rachada.
A recepcionista apontou para mim. Ele aproximou-se, a perscrutar-me desconfiadamente o rosto. Pensei que devia andar na casa dos sessenta - possivelmente na dos 1860...
- Que deseja?
- Mr. Waldo Bommer? -Sim.
Apresentei o meu cartão de Mr. Tabatchnick. Ele segurou-o a poucos centímetros dos olhos e leu em voz alta:
- "Leopold H. Tabatchnick. Advogado."-Baixou o cartão. - Quem está a processar? - perguntou-me.
- Ninguém. Pretendo apenas um momento do seu tempo. Represento o espólio do professor Yale Stonehouse. Entre os seus papéis foi
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encontrado um cheque cancelado passado a Bommer & Son, sem o talão respectivo. O Governo mandou efectuar um exame aos bens, por causa dos impostos, e ajudaria se eu pudesse apresentar cópias da factura.
- Venha comigo - disse, bruscamente.
Segui-o através de uma porta do fundo e entrámos num enorme sótão-laboratório onde cinco pessoas - três homens e duas mulheres -, todas idosas e de bata manchada, estavam sentadas em bancos altos, a bancadas de trabalho com tampo de pedra. Pareciam atentas ao que estavam a fazer. Nenhuma levantou a cabeça quando passámos.
Mr. Waldo Bommer conduziu-me a um gabinete encolhido num canto e fechou a porta depois de entrarmos.
- Como aguenta? - perguntei-lhe.
- Como aguento o quê?
- O cheiro.
- Qual cheiro? - Aspirou profundamente, através das narinas. - Sulfureto de hidrogénio, ácido hipocloroso, anidrido sulfuroso, um bocadinho disto, um bocadinho daquilo... Um cheiro? Adoro-o. Os cheiros são o meu pão com manteiga. Como julga que faço uma análise química? Primeiro, cheiro. Tem à sua frente um nariz instruído.
Bateu na cana do pequeno nariz arrebitado, de narinas dilatadas.
- Um nariz instruído - repetiu orgulhosamente. - Primeiro, cheiro. Às vezes, isso diz-me tudo quanto preciso de saber.
De súbito, agarrou-me nos ombros e puxou-me para si. Pensei que tencionava beijar-me. Mas limitou-se a cheirar-me a boca e as faces. -O senhor não fuma - declarou. - Certo?
- Certo - confirmei, a chegar-me para trás.
- E esta manhã, ao pequeno-almoço, tomou café e um bolo. Qualquer coisa com fruta. Talvez figos.
- Ameixa dinamarquesa.
- Viu? Um nariz instruído. O meu pai tinha o melhor nariz do ramo. Era capaz de dizer a uma pessoa quando mudara de peúgas. Sente-se.
Waldo Bommer procurou numa gaveta de um velho armário-ficheiro de carvalho.
- Stacy, Stone, Stonehouse - leu. - Aqui está. Professor Yale Stonehouse. Duas análises químicas de Vuidos desconhecidos. Catorze de Dezembro do ano passado.
- Posso ver? -Porque não?
Dei uma vista de olhos às duas cópias a papel químico. Continham uma quantidade de termos químicos; um deles incluía trióxido de arsénico.
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- Sabe dizer-me que líquidos eram, por favor? - perguntei. Arrancou-me os papéis da mão e leu-os rapidamente.
- Simples. Este, era cacau simples. Este era brande.
- O brande tinha o trióxido de arsénico?
- Tinha.
- Não achou isso invulgar?
Encolheu os ombros.
- Meu caro, limito-me a fazer as análises. O que os produtos contêm não é da minha conta. A semana passada, uma mulher trouxe um tubo de pasta de dentes carregada de estricnina. - Pasta de dentes? - perguntei, admirado. - Como conseguiram lá pô-la?
Encolheu de novo os ombros.
- Quem sabe? Uma agulha hipodérmica através da abertura, talvez. Não me interessa. Limito-me a fazer a análise.
- Pode dar-me cópias desses relatórios, Mr. Bommer? Para o Governo. A questão dos impostos...
Pensou um momento.
- Não vejo porque não - decidiu, por fim. - Disse que este tal professor Stonehouse morreu?
- Sim, senhor. Faleceu no princípio deste ano.
- Nesse caso, não me pode processar por dar cópias de coisas de sua propriedade.
Dez minutos depois descia rapidamente a velha escada com fotocópias na pasta. Prontificara-me a pagá-las e Bommer pegara-me na palavra. Aspirei profundamente o ar puro, diversas vezes, e depois subi a 11ª Avenida como se tivesse asas. Não há no mundo sensação que se compare à verificação de que acertámos numa conjectura. Resolvi tirar proveito da sorte e entrei na primeira cabina telefónica não vandalizada que encontrei.
- Estou - respondeu Olga Eklund.
- Olga, fala Joshua Bigg.
- Sim?
- Miss Glynis está? -Não. Está na clínica. Era o que eu esperara ouvir.
- Mas Mrs. Stonehouse está em casa? -Está.
- Bem, talvez passe por aí uns momentos. Ela já se refez da sua... indisposição? -Já.
- Pode receber visitas?
- Pode.
- Sigo para aí. Pode dizer-lhe que lhe roubarei um ou dois minutos.
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Esperei que ela dissesse alguma coisa, mas limitou-se a desligar o telefone. Pouco depois, Olga em carne e osso recebia o meu sobretudo no vestíbulo dos Stonehouses.
- Tenho pena de Miss Glynis não estar em casa - disse a Olga. -Acha que poderei falar-lhe na clínica?
- Oh, pode! É a Clínica Infantil de Olhos, Ouvidos, Nariz e Garganta, no East Side.
- Obrigado - agradeci, sinceramente. - Irei lá falar com ela.
Ula Stonehouse estava reclinada no sofá de veludo. Estendeu-me, sorridente, a mão. Como de costume, estava um copo de vinho e uma garrafa de xerez na mesa com tampo de vidro.
- Que agradável! -gorjeou. -Estava desejosa de ter companhia e o senhor apareceu!
- É verdade, minha senhora, apareci - volvi, a pegar-lhe na mão mole. - Tive muita pena de saber que estava indisposta, mas agora parece maravilhosamente bem.
- Oh, sinto-me tão bem! -afirmou, a dar palmadinhas no sofá, a seu lado, onde me sentei obedientemente. - O meu signo mudou e agora sinto-me uma nova mulher.
- Encanta-me sabê-lo.
Vi-a estender a mão trémula para encher o copo. Recuou devagarinho o corpo para trás e bebeu um golo, a olhar-me por cima da borda do copo com aqueles olhos de vidro opaco a bruxulear. A trunfa de caracóis louros parecia mais frisada do que nunca. Tocou na ponta do nariz, como quem explora cuidadosamente uma equimose.
- Deseja alguma coisa, Mr. Bigger? Uma bebida? Café? Outra coisa qualquer?
- Bigg, minha senhora - corrigi-a. - Joshua Bigg. Não, obrigado, não desejo nada. Somente alguns minutos do seu tempo, se não está ocupada.
- Todo o tempo do mundo - respondeu, a rir alegremente. Usava um vestido camiseiro estampado, de cores vivas, com uma
fita larga a servir de cinto. O vestido, os sapatos, a maquilhagem e as jóias de fantasia, era tudo demasiado juvenil para ela. E os olhos bruxuleantes, a voz gorjeadora e os gestos trémulos davam uma impressão febril: era uma mulher sob tensão. Tive a certeza de que estava consciente do que se passava.
- Mrs. Stonehouse, gostaria de ter boas notícias para lhe dar acerca do seu marido, mas infelizmente não tenho.
- Oh, não falemos disso! O que está feito, está feito. Fale-me de si. Olhou-me alegremente, de olhos muito abertos. Se não ia falar do
marido, eu estava encalhado. No entanto, para começar, pareceu-me melhor fazer-lhe a vontade.
- Que gostaria de saber a meu respeito, minha senhora?
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- É Virgem, não é?
- Peixes.
- Claro - comentou, como se a minha resposta confirmasse a sua suposição. -Casado?
- Não, Mrs. Stonehouse, não sou.
- Oh, mas devia ser! - exclamou, veemente. - E tem de me dar ouvidos. Tem de me dar ouvidos porque eu fui tão feliz no casamento. Uma família é um pequeno mundo. Tenho o meu marido e o meu filho e a minha filha. Somos uma família muito unida e amiga, como sabe.
Olhei-a desalentado. Piorara desde a primeira vez que a vira; agora estava quase totalmente fora da realidade. Pensei desesperadamente numa maneira de utilizar a sua disposição presente para obter o que queria.
- Sou órfão, Mrs. Stonehouse - informei, humildemente. - Os meus pais morreram num acidente quando eu era bebé.
Surpreendentemente, chocantemente, as lágrimas inundaram aqueles olhos esbranquiçados. Sufocou um soluço e apertou-me freneticamente um braço.
- Pobre criança! - gemeu, e depois estendeu a mão para o copo de xerez.
- Fui criado por parentes - prossegui. - Boa gente. Não fui maltratado. Mas mesmo assim... Por isso, quando fala de uma família unida e amiga, de um pequeno mundo, não sei nada a tal respeito. As recordações...
- As recordações... - repetiu, a acenar com a cabeça como uma boneca partida. - Oh, sim, as recordações!
- Tem um álbum de família, Mrs. Stonehouse? - perguntei suavemente e, para minha surpresa, ela apresentou-me o álbum com inesperada rapidez.
O que se seguiu foi uma hora verdadeiramente horrível. Vimos as velhas fotografias uma por uma, enquanto Ula Stonehouse ia fazendo comentários, de mistura com anedotas sem qualquer pertinência. Pelo meu lado, murmurava constantes frases de apreço e emitia frequentes ruídos significativos de admiração e satisfação.
Fotografias nupciais: o noivo alto e magro, dominando a noiva-boneca, toda enfeitada. Uma velha casa em Boston. Glynis recém-nascida, nua numa pele de urso. Instantâneos da infância. Powell Stonehouse aos dez anos, a olhar de testa seriamente franzida para a câmara. Piqueniques. Saídas. Amigos. Depois, gradualmente, tudo isso a desaparecer: os grupos de família, os amigos, os piqueniques, as saídas. Fotografias formais. Retratos individuais: Yale, Ula, Glynis, Powell. Olhos sem vida. Uma família a caminho da dissolução.
Quando Mrs. Stonehouse se inclinou para a frente a fim de reencher
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o copo, tirei rapidamente do álbum um instantâneo recente de Glynis e meti-o na pasta antes de ela voltar a recostar-se no sofá.
- Notável - disse, como se a minha atenção estivesse fascinada pelo álbum. -Verdadeiramente notável. Tempos felizes.
Olhou para mim sem me ver.
- Oh, sim! Tempos felizes. Foram uns bebés tão bons! A Glynis nunca chorava. Nunca. O Powell chorava, mas ela não. Acabou-se.
Não ousei perguntar-lhe o que queria dizer.
- Emanações - prosseguiu. - E visitas ao além. Sei que se acabou.
- Mrs. Stonehouse, sente-se bem? - perguntei, preocupado.
- O quê? Bem - respondeu, a passar a mão trémula pela fronte-, talvez me deva deitar uns momentos. Tantas recordações!
- com certeza - concordei, e levantei-me. - vou chamar a Olga. Encontrei-a sentada na comprida casa de jantar, a folhear a Popular
Mechanics.
- Olga, creio que Mrs. Stonehouse precisa de si. Suponho que gostaria de descansar um bocado.
Levantou-se, bocejou e espreguiçou-se.
- Eu vou lá.
Na cozinha, Effie estava junto do enorme fogão, a mexer qualquer coisa com uma comprida colher de pau. O seu rosto porcino franziu-se num sorriso.
- Mr. Bigg! -exclamou. -Que agradável surpresa!
Pôs a colher de lado, tapou o tacho e limpou as mãos ao avental. Apontou para a mesa pintada de esmalte branco e puxámos ambos cadeiras.
- Como está, Effie? É bom voltar a vê-la.
Era verdade, e reconfortava-me voltar a ser sincero. Era uma mulher tão alegre e bem disposta!
- Cá vou andando. O senhor é que está assim com uma cara... Não está doente, pois não?
- Não, estou bem. Mas estive a falar com Mrs. Stonehouse e fiquei um pouco abalado.
- Sim - murmurou, a abanar tristemente a cabeça. - Compreendo o que quer dizer. Piora de dia para dia.
- Porquê? Que lhe está a acontecer? Franziu a testa. '
- Não sei bem. O desaparecimento do marido, suponho. A saída de Powell de casa. E a maneira como Glynis se tem comportado. Creio que é demasiado para ela.
- Como se tem Glynis comportado?
- De modo estranho. Irritadiça. Fria. Mete-se no quarto e não sai de lá. Nunca sorri.
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- Isso é recente?
- Oh, sim! Começou depois da sua última visita.
Olhou-me astutamente e eu decidi dar o mergulho. Se ela repetisse a Glynis o que eu lhe ia dizer, tanto melhor. Por isso, contei a Effie a respeito do arsénico. Ela ouviu-me com atenção e acenou com a cabeça, quando acabei.
- É detective? - perguntou-me.
- Mais ou menos. Sou investigador-chefe da firma de advogados que representa o professor Stonehouse.
- Não suspeita que eu o tenha envenenado, pois não?
- Jamais. Nem um minuto - menti.
- Glynis?
Fitámo-nos. Perguntei a mim mesmo se o seu silêncio quereria significar consentimento e resolvi proceder como se quisesse.
- Preciso de estabelecer que Glynis dispôs dos meios. Não se pode ir naturalmente comprar arsénico ao Rexall's, por exemplo. Para isso, preciso do nome do laboratório médico onde ela trabalhou como secretária.
- Prefiro não dizer - declarou muito depressa.
- Tencionava perguntá-lo a Mrs. Stonehouse, mas ela não está em condições de responder a perguntas. Effie, preciso do nome.
Fitámo-nos mais uma vez.
- É uma coisa que tem de ser feita - observei.
- Sim - concordou tristemente.
Passados instantes, levantou-se e saiu da cozinha. Voltou poucos minutos depois com um papel, a que dei uma vista de olhos rápida. Atlantic Medical Research, morada e número do telefone.
- Estava na minha agenda - explicou Effie. - Para o caso de precisarmos de comunicar com ela no emprego.
- Quando deixou de lá trabalhar? Pensou um momento, antes de responder:
- Talvez em Junho ou Julho do ano passado.
Mais ou menos quando o professor Stonehouse adoecera.
- Despediu-se ou foi despedida?
- Despediu-se, segundo nos disse. Era um trabalho muito enfadonho.
- Effie, alguma vez a ouviu mencionar um homem chamado Godfrey Knurr? É um pastor da Igreja.
- Godfrey Knurr? Não.
- Glynis é religiosa?
- Nem por isso. Eles são episcopais. No entanto, nunca pensei que fosse religiosa. Mas é muito viva.
- Oh, sim, é muito viva! - concordei. -Antes do desaparecimento do pai andava bem disposta?
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Mrs. Dark voltou a pensar antes de responder:
- Acho que sim - acabou por dizer. - Começou a mudar depois de o professor desaparecer e a semana passada tornou-se muito pior.
- É por minha culpa. Ando a perturbá-la. Disse-lhe que sabia que o pai tinha sido envenenado.
- Não!
- Disse, sim. Claro que não lhe disse que pensava que tinha sido ela.
- Que vai fazer agora?
- Esgaravatar um pouco mais fundo. Tentar descobrir o que aconteceu ao professor. Effie, de que género é o carro dos Stonehouses?
- Um Mercedes.
- Têm-no numa garagem das imediações da Rua Sessenta e Seis e da West End?
- Têm, sim. O pessoal da garagem trá-lo quando precisamos dele. Como soube?
- Tenho andado à procura.
- Não há dúvida de que tem. Ainda não encontrou o testamento? -Não. Mas julgo saber onde está.
- Não compreendo porque é tão importante. Se ele morreu e não deixou testamento, o dinheiro vai para a mulher e para os filhos, não vai?
- Vai. Mas se ele deixou testamento pode ter deserdado um deles. -Ele podia fazer isso?
- Provavelmente. Desde que tivesse boas razões. Como uma tentativa de assassínio.
- Ah! -exclamou, baixinho. - Não tinha pensado nisso.
- Effie, posso contar com a sua discrição a respeito de tudo isto? Levou um indicador gordo ao nariz ainda mais gordo.
- Silêncio é a palavra de ordem - declarou.
Levantei-me e depois baixei-me rapidamente e beijei-lhe a face de maçã.
- Obrigado. Sei que não é agradável, mas concordámos ambos que tinha de ser feito. Uma última pergunta: Miss Glynis estará em casa esta noite? Ela disse alguma coisa a esse respeito?
- Disse que ia ao teatro. Pediu que fizesse o jantar cedo.
- Isso quer dizer que sairá mais ou menos a que horas? -Sete e meia - respondeu Mrs. Dark. -O mais tardar. -Muito obrigado. Foi muito amável.
Comi um Big Mac e bebi uma cola antes de regressar ao escritório. Yetta Apatoff estava ao telefone quando entrei no edifício TORT. Atirou-me um beijo. Confesso que respondi com um gesto pouco entusiástico. O lenço do pescoço descompusera-se e o decote cavado da camisola verde revelava o saboroso sulco entre os seios. Perguntei a mim
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mesmo, nervosamente, quando Mr. Teitelbaum ou Mr. Tabatchnick instruiriam as respectivas secretárias para ordenarem a Yetta que se cobrisse.
Mrs. Kletz tinha deixado um bilhete na minha secretária. Saíra para distribuir os cartazes pelas garagens de táxis e deixara-me uma cópia do cartaz. Parecia perfeito.
Passei o resto da tarde a dactilografar relatórios das minhas actividades matinais e a juntá-los à pasta do caso Stonehouse, juntamente com as fotocópias das análises químicas. Depois despachei trabalhos de rotina até cerca das quatro horas, altura em que marquei o número da Clínica Infantil de Olhos, Nariz, Ouvidos e Garganta, que vinha na lista de Manhattan, e pedi para falar com o director.
- Quem fala, por favor? - perguntou a recepcionista.
- Gabinete Metropolitano de Controlo de Venenos - respondi solenemente. - O meu telefonema relaciona-se com o vosso inventário de drogas.
Ouviu-se quase instantaneamente uma voz forte:
- Faça favor! Em que posso ser útil?
- Fala o inspector Waldo Bommer do Gabinete Metropolitano de Controlo de Venenos. Devido ao recente aumento dos assaltos a consultórios médicos, clínicas, hospitais, laboratórios, etc., estamos a tentar fazer um inventário dos estabelecimentos que têm em armazém substâncias venenosas.
- Narcóticos? Não temos nada desse género. Isto é uma clínica para crianças menos privilegiadas.
- O que nos interessa são venenos - informei. - Arsénico, estricnina, cianeto, coisas assim.
- Céus, não! - exclamou, enormemente aliviado. - Não temos nenhuma dessas coisas em armazém.
- Desculpe tê-lo incomodado. Obrigado pela atenção.
O meu segundo telefonema, para a Atlantic Medical Research, teve menos êxito. Recitei a história do Gabinete Metropolitano de Controlo de Venenos, mas o homem replicou-me:
- com certeza não espera que eu revele essa informação pelo telefone a uma pessoa completamente desconhecida? Se aparecer por cá com identificação, teremos muito gosto em colaborar.
E desligou.
Ainda não eram cinco horas, mas meti as pastas dos casos Kipper e Stonehouse na mala, peguei no chapéu e no sobretudo e saí. Yetta não estava a telefonar. Estendeu a mão, para me deter.
- Josh, nem reparou - disse-me, amuada.
- Isso é que reparei. A camisola fica-lhe maravilhosamente, Yetta.
- Gosta? - perguntou, a espetar o peito.
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- Muito - respondi, a engolir em seco. - E o lenço condiz muito bem.
- Oh, é tão velho! -riu-se e afastou-o um pouco mais. - Só serve para me atrapalhar quando escrevo à máquina. Acho que o vou tirar.
E tirou. Olhei furtivamente em redor. Estava gente no corredor. Seria eu um puritano? Era muito capaz disso.
- Josh - continuou ela, entusiasmada-, disse que uma noite destas podíamos sair juntos, lembra-se?
- Pois, pois com certeza que sairemos - prometi, com mais confiança do que sentia. - Jantar e depois talvez teatro ou bailado. - A imagem de Yetta Apatoff numa representação do Lago dos Cisnes contraiu-me a alma. - Mas tenho tido muito que fazer, Yetta. Não só durante o dia, mas também à noite, em casa.
- Hum... -resmungou, especulativamente.
Ficou um momento calada, enquanto eu continuava especado, constrangidamente, sem saber como sair dali para fora. Era evidente que ela estava a avaliar-me e a chegar a uma conclusão..
- Almoço, talvez ? - sugeriu.
- Oh, absolutamente! Posso arranjar tempo para almoçarmos.
- Amanhã - exigiu, com firmeza.
- Amanhã? - repeti, a pensar desesperadamente numa maneira de me safar. - Bem, sim. Tenho de ver na minha agenda. Quero dizer, fica já combinado, mas depois, se eu tiver de adiar, você compreende, não é verdade?
- Oh, decerto!
Frieza. Frieza inequívoca.
Acenei um adeus e saí. Sentia-me culpado. Tinha-a enganado. Mas depois enfureci-me contra o meu próprio sentimento de culpa. Que tinha feito, na realidade? Tinha-lhe pago alguns almoços. Dado uma prenda de anos. Afirmei a mim mesmo que nunca lhe dera nenhuma razão para pensar que estava... É verdade que a olhara fixamente, muitas vezes, mas com os seus atributos físicos e com o seu hábito de usar fatos de malha um número abaixo do seu, isso era compreensível.
Eram estes os meus conturbados pensamentos quando saí do escritório naquele fim de tarde de segunda-feira. A caminho de casa, comprei um frango assado, salada de batata e uma garrafa de uísque. Em casa, comi e bebi atento ao relógio. Tinha de estar no passeio oposto ao da casa dos Stonehouses às sete e um quarto, o mais tardar, e tencionava seguir para Upper West Side a um passo menos apressado do que o utilizado ultimamente.
Metido no meu anorak forrado de lã, cheguei com antecedência e instalei-me no meu posto. Estava uma noite fria, com o ar carregado de electricidade. Às vezes temos noites assim em Nova Iorque, geralmente entre o Inverno e a Primavera, ou entre o Verão e o Outono,
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noites em que a cidade parece subitamente estar a rebentar de promessa e o horizonte brilha com cristalina claridade.
Enquanto percorria o quarteirão para trás e para diante, sem perder o prédio dos Stonehouses de vista, distinguia as torres iluminadas do East Side, do outro lado do parque, e o clarão róseo do centro da cidade. Trânsito apressado, barulho de buzinas e o som de aviões, no céu. Parecia tudo muito vivo. Recordava constantemente a mim próprio que andava a investigar o que se estava a revelar rapidamente como uma morte violenta, mas era difícil acreditar.
Esperava havia exactamente vinte minutos quando ela saiu, com o comprido casaco de marta com capuz com o qual a vira na garagem.
Quando parou um momento do lado de fora do átrio iluminado do prédio, pude vê-la nitidamente, enquanto levantava e ajustava o capuz. Depois começou a andar depressa. Julguei saber aonde ia. Apesar do que Mrs. Dark me dissera, não era ao teatro. Segui-a. Nem de muito perto, nem de muito longe. Exactamente como Roscoe Dollworth me tinha ensinado, mantendo-me do outro lado da rua sempre que possível e passando-lhe até à frente. Era uma tarefa fácil, tanto mais que, percorridos alguns quarteirões para oeste e sul, me fui tornando pouco a pouco mais certo de que ela me ia levar àquela garagem da Rua 66 oeste.
Ao atravessar a Broadway, continuou para oeste pela Rua 69, a coberto dos caminhos sombrios de um parque residencial. Um homem que vinha em sentido contrário parou e disse qualquer coisa, mas ela não o olhou nem abrandou o passo. Quando atravessou a West End Avenue, na direcção da garagem iluminada, estuguei o passo para a alcançar, mas mantive-me do outro lado da rua e segui cerca de meio quarteirão para sul. Vi-a à espera à entrada da garagem. Mandei parar o primeiro táxi livre que passou.
- Para onde? - perguntou o motorista, que era um negro de meia-idade, enquanto pegava na folha de serviços, presa a uma tábua fina.
- Para lado nenhum. Faça favor de ligar o taxímetro e esperar. Ele pôs a folha de serviços de parte e voltou-se para olhar para mim
através da rede metálica.
- Que vem a ser isto? - indagou.
- Vê aquela mulher ali? Do outro lado da rua, à nossa frente? De casaco de peles?
O homem espreitou.
- Vejo.
Eu tinha aprendido com a minha anterior experiência e disse-lhe:
- é a minha mulher. Quero ver para onde ela vai. Desconfio que alguém a virá buscar.
- Ah! -exclamou. - Não vai haver sarilho nenhum, pois não?
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- Não, nenhum sarilho.
- Óptimo. Presentemente, já tenho a minha conta deles.
Ficámos os dois a olhar para a figura de Glynis Stonehouse, do outro lado da rua. O taxímetro ia contando.
Passados três ou quatro minutos chegou Knurr. Esperara que ele aparecesse num táxi e depois mudasse para o Mercedes, mas em vez disso dirigiu-se para a entrada da garagem, perto do lugar onde Glynis esperava, e abriu a porta do seu velho Volkswagen.. Assim que ela entrou, saiu depressa em marcha atrás, virou e dirigiu-se de novo para norte, metendo-se no fluxo do trânsito.
- Seguimos? - perguntou o meu motorista.
- Por favor.
- Aquele tipo parece um cowboy. Conduz como quem se está nas tintas para o que pode acontecer.
- Creio bem que está - comentei.
Seguimo-los para norte. Knurr virou à esquerda na Rua 79 e depois começou a contornar o quarteirão.
- Procura um lugar para estacionar - informou o taxista, entendido na matéria. - Se ele parar, que quer que eu faça?
- Desça até à próxima esquina e espere.
Foi o que aconteceu. Knurr encontrou um lugar para estacionar na Rua 77, oeste, perto de Riverside Drive. Nós ultrapassámo-lo e parámos perto da esquina. Através do vidro da retaguarda vi-os apearem-se, ambos, e começarem a andar. Passaram pelo meu táxi estacionado, mas conversavam de tal maneira que nem repararam em mim.
Deixei-os virar para norte, pela Riverside Drive, antes de pagar ao motorista e de sair do táxi.
- Obrigado - agradeci.
- Não faça nenhuma asneira - recomendou-me.
Enquanto seguia Glynis Stonehouse e Godfrey Knurr pela Riverside Park, reparei com alívio que alguns tipos em fato de treino e grupos de barulhentos adolescentes ainda desafiavam a área escurecida. No entanto, o meu nervosismo aumentou à medida que nos embrenhámos mais profundamente por caminhos solitários e a descer, na direcção oeste. Eu orientava-me o melhor que podia entre as sombras das árvores nuas, a tentar pisar com leveza. Mas estava a ser excessivamente cauteloso, pois o par que caminhava à minha frente de braço dado ia tão absorto na sua conversa que parecia ignorar por completo quem em segredo compartilhava o seu passeio, na sua peugada.
Contornaram a rotunda, uma grande fonte circular cercada por um passeio que por sua vez era cercado por um anel de arcadas de estilo vagamente romano. A fonte deixara havia muito de funcionar; a bacia secara e estalara. Todos os globos brancos das lâmpadas estavam partidos e às escuras. As arcadas estavam cobertas de grafitos. Vidros partidos
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e bocados de alvenaria rangiam debaixo dos pés. O chão desfazia-se.
Parei momentaneamente, pois não queria seguir Glynis e Godfrey por um daqueles caminhos cheios de ecos, com receio de que ouvissem os meus passos. Esperei que chegassem ao outro lado da fonte, antes de reatar a perseguição.
Em frente ficava o rio, uma faixa de mercúrio a ondular suavemente à luz nocturna. Do outro lado, viam-se as luzes trémulas da margem de Jérsia. Mais perto, via-se a extensão de água preta. Procurei desesperadamente, até que voltei a localizá-los a aproximarem-se do cais de embarcações da Rua 79. Deixei-me ficar para trás, nas sombras, enquanto Glynis e Knurr pisavam as tábuas do cais. Pararam momentaneamente a falar com alguém que me pareceu ser um guarda. Depois continuaram a andar por um dos caminhos, até descerem cuidadosamente para a coberta da vante do que me pareceu um barco-habitação.
Acenderam-se luzes dentro do barco. Quando vi cortinas corridas através das largas janelas, voltei-me e retrocedi apressado pelo caminho que trouxera.
Capítulo terceiro
Na terça-feira de manhã cheguei ao edifício da TORT antes das nove horas. O guarda de segurança da noite ainda estava de serviço, sentado à secretária de Yetta Apatoff.
- Telefonaram para si há cerca de quinze minutos, Mr. Bigg - informou-me o homem. - O tipo não quis dizer o nome nem deixar recado, mas disse que voltaria a telefonar.
- Obrigado.
O meu telefone tocou antes de eu ter tempo de despir o sobretudo. Levantei o auscultador e uma voz desagradável perguntou:
- Foi você que mandou pôr os cartazes? - Respondi-lhe que sim. -De quanto é a recompensa?
Nem sequer tinha pensado nisso. Cinquenta dólares pareciam-me insuficientes; cem podiam atrair muitas informações fraudulentas. No entanto, eu preferia ter respostas a mais do que a menos.
- Cem dólares - respondi.
- Merda - rosnou o tipo, e desligou.
A segunda chamada verificou-se dez minutos depois. Mais uma vez a primeira pergunta foi:
- Quanto?
- Cem dólares - respondi, em tom firme.
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- Bem, eu transportei o homem. Recolhi-o na esquina da Central Park West e da Rua Setenta, na noite de dez de Janeiro.
- Qual era o aspecto dele?
- Enfim, era um tipo de tamanho médio. Não o vi bem, mas acho que era médio.
- A atirar para o baixo, gordo, tristonho?
- Sim, acho que era isso.
- De camisola e casaco?
- Sim, era esse o tipo. '
'-Não, não era.
- Vá-se lixar - replicou, e desligou.
Suspirei, acabei de comer a strudel de morango e de beber o café e comecei a responder maquinalmente a alguns dos pedidos rotineiros de investigação. Perguntei a mim mesmo se deveria incomodar Percy Stilton com o que descobrira - o barco-habitação da Rua 79 - e com o que começava a conjecturar a respeito do modo como Godfrey Knurr tinha assassinado Sol Kipper.
Stilton resolveu o problema telefonando-me ele cerca das dez horas:
- Ouça, Josh - disse, a falar muito depressa-, sei que não queria que eu telefonasse para o seu escritório, mas isto é importante. Só disponho de um minuto. Pode encontrar-se comigo no átrio do edifício da Newsweek? Madison, quatrocentos e quarenta e quatro, entre a Quarenta e Nove e a Cinquenta?
- Posso, com certeza. Mas eu queria...
- Cerca de cinco minutos antes das quatro da tarde.
- Lá estarei, Percy - prometi, enquanto tomava apontamentos rápidos. -Mas há algumas coisas que...
- Estou cheio de pressa - interrompeu-me. - Até logo.
Desligou, e eu desliguei também, intrigado. O telefone voltou a tocar quase imediatamente e eu levantei o auscultador, na esperança de que fosse outra vez Stilton.
- Josh - disse Yetta Apatoff, a rir-, não se esqueceu do nosso almoço de hoje, pois não?
- Claro que não - menti corajosamente. - A que horas?
- Ao meio-dia. Tenho muito que lhe dizer. -Óptimo - respondi, de coração triste. Outro telefonema:
- Sim, transportei o tipo nessa noite. Um sujeito alto e magro, não era?
- Talvez. E onde o levou?... À bilheteira das Eastern Airlines da Quinta Avenida?
- Sim, aí mesmo.
- Esperou por ele e depois conduziu-o de novo à esquina da Central Park West com a Rua Setenta?
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- Sim...
- Não - declarei. - Não creio. Sugeriu-me uma impossibilidade anatómica.
Desliguei, a amaldiçoar intimamente a venalidade da espécie humana, e depois liguei para a residência Kipper. Atendeu-me Chester Heavens.
Cumprimentámo-nos cortesmente, indagámos do estado de saúde um do outro e falámos gravemente do tempo que, concordámos, estava simultaneamente agradável e estimulante para aquela época do ano.
- Chester, Mr. Kipper faleceu na quarta-feira, vinte e quatro de Janeiro, não foi?
- Foi, sim, senhor - respondeu tristemente. - Nunca esquecerei essa data.
- Acredito que não. Sei que Mr. Godfrey Knurr chegou poucos minutos depois da tragédia. Agora a minha pergunta é a seguinte: lembra-se se ele esteve aí em casa na terça-feira, vinte e três de Janeiro, na véspera da morte de Mr. Kipper?
Silêncio. Depois...
- Não me lembro, mas se tiver a bondade de aguardar um momento consultarei o livro.
- Espere, espere! -pedi. - Que livro?
- O diário da casa. A primeira Mrs. Kipper exigia-o. Era um dos deveres do meu pai. Depois de a primeira Mrs. Kipper e de o meu pai terem falecido, continuei a encarregar-me do diário com a aprovação da segunda Mrs. Kipper. Trata-se de um diário onde são registadas as visitas, a entrega de encomendas, reparações na casa, encontros marcados, etc. Há muitas grandes casas que têm um diário destes. É valiosíssimo quando se torna necessário enviar cartões de boas-festas, bilhetes de agradecimento, convites, ou perguntar aos comerciantes por entregas prometidas e coisas dessa natureza.
- Muito eficiente - afirmei, com um começo de esperança.
- Pode consultar o diário, Chester, e ver se o reverendo Knurr visitou a casa na terça-feira, vinte e três de Janeiro?
- Um momento, por favor.
Demorou-se mais do que um momento. Eu estava a fazer figas com as duas mãos e a tentar fazê-las também com os pés, dentro dos sapatos, quando o mordomo voltou ao telefone.
- Mr. Bigg? Está lá?
- Estou, sim.
- Sim, senhor. O diário regista que o reverendo Knurr visitou a casa na terça-feira, vinte e três de Janeiro. Chegou às três e meia da tarde, aproximadamente.
- Tem alguma indicação de quando saiu?
- Não, senhor, não há nenhuma indicação a esse respeito.
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- Obrigado, Chester - agradeci, a desfazer as figas. - Por uma questão de curiosidade, onde é guardado esse diário?
- Na cozinha. Atrás de uma das gavetas dos talheres.
- Será capaz de me fazer um favor. Chester? Gostaria que levasse o diário para os seus alojamentos e o escondesse bem. Compreendo que se trata de um pedido estranho, mas é muito importante.
Não falou durante um bocado. Depois disse, brandamente: -Muito bem, Mr. Bigg. Farei o que pede. -Obrigado.
- Não tem de quê.
O meu caso parecia-me cada vez melhor. Pensava que tinha o Knurr filado e recusava-me a preocupar-me com a maneira como conseguiria prová-lo.
- Passo por aí mais tarde - disse a Chester, conspirativamente.
- Fico à espera do senhor - redarguiu, e desligou.
Os pontos altos da minha comprida e enfadonha manhã foram mais duas chamadas inconcludentes de taxistas. Poucos minutos antes do meio-dia fui ao lavabo, a fim de me preparar para o almoço com Yetta. Num lavatório ao lado, Hamish Hooter estava a pentear o cabelo preto e gordurento para o lado, num esforço vão para ocultar a crescente tonsura.
Viu-me reflectido no espelho e sugou os dentes ruidosamente.
- Ouça lá, Bigg - disse, em voz de cana rachada, mas não ofendida; pelo contrário, até dava a impressão de que estava satisfeito consigo próprio. -Consta-me que hoje vai almoçar com Yetta Apatoff.
- Consta-lhe bem - redargui friamente.
Enxugou cuidadosamente as mãos com uma toalha de papel. Cerca de um ano antes fizera circular uma nota a respeito do desperdício que era enxugar as mãos a mais de uma toalha de papel.
Hooter observou-se ao espelho, com todos os indícios de aprovação. Passou a palma da mão pelo cabelo escorrido. Tentou endireitar os ombros descaídos. Inalou profundamente, o que lhe fez desaparecer a barriga até exalar.
- Bem, divirta-se - desejou, enquanto se voltava para olhar para mim. - Aproveite enquanto pode. - Depois lançou-me um sorriso vulpino e saiu.
Quando saí para me encontrar com Yetta, vi imediatamente que estava ataviada e se mostrava particularmente resplandecente e atraente. Pensei que se tratava de um tributo ao almoço comigo e inchei de satisfação masculina. Ao mesmo tempo, imaginei como ficaria destroçada quando ouvisse o discurso sobre o tema de "não podemos ser amigos?" que eu tinha em mente. Sobretudo depois de ter tido tanto trabalho a arranjar-se.
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Em lugar do habitual fato de malha, usava um vestido de um tecido furta-cores qualquer, com um brilho metálico.
À volta dos caracóis louros levava um lenço de chiffon azul-claro. A combinação eléctrica de azul e verde realçava-lhe a pele cor de creme, os lábios de curva suave e a expressão de inocência dos límpidos olhos castanhos. Estaria a ser demasiado apressado ao querer colocar as nossas relações numa base de pura amizade?
Fomos a pé para o restaurante chinês, enquanto Yetta tagarelava descontraidamente acerca de um filme com criaturas do espaço exterior, que tinham descido à terra e transformado toda a gente em cogumelos venenosos. Garantiu-me que tinha sido um dos filmes mais arrepiantes que já vira.
- Além de fazer uma pessoa pensar - acrescentou.
Depois falou de um carro usado que o irmão estava a pensar comprar e de uma antiga colega de liceu que arranjara recentemente emprego na companhia dos telefones. Até para Yetta, foi uma proeza de tomo.
Tornou-se tudo claro enquanto comíamos a sopa won ton.
- Josh - disse, ofegante-, não o magoaria por nada deste mundo.
Fitei-a, perplexo.
- Em primeiro lugar, quero que fique definitivamente assente que você e eu podemos continuar a ser amigos.
A tirada desagradou-me, naturalmente. Era o meu discurso.
- Em segundo lugar - prosseguiu Yetta-, gostei realmente de o conhecer, destes almoços e de tudo. Nunca o esquecerei, Josh.
- Que... - comecei.
- E em terceiro lugar - acrescentou, muito depressa-, Hamish Hooter pediu-me que casasse com ele e eu aceitei. Compreendo que deve ser um grande abalo para si, Josh, mas quero que saiba que penso estar a tomar a decisão acertada e que pensei muito antes de a tomar. Ele não é tão giro como você, Josh, admito-o francamente, mas ama-me e precisa de mim, segundo diz. Josh, você não precisa de mim, pois não?
Não havia resposta para aquilo. Olhei para o meu prato da sopa, vi-o ser levado e substituído por um "Combinado Número Três".
- Josh, não leve o caso demasiado a peito - rogou Yetta. - é melhor para todos nós.
Poderia dizer-lhe que o meu coração retouçava, contente, como um veado dementado?
- Você tem o seu trabalho - continuou - e eu sei quanto é importante para si. Passe-me o molho doce e amargo, por favor. Por isso, pensei - o Hamish e eu pensámos - que esta seria a melhor maneira de lhe dizer, francamente e sem rodeios. Ele queria estar presente, mas
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eu expliquei-lhe que seria melhor ser eu a dizer-lhe, pessoalmente- continuou Yetta Apatoff, a fitar-me com aqueles olhos inocentes. -Josh, espero que não me deteste.
- Detestá-la? - perguntei, afastando da voz qualquer indício de satisfação. - Como poderia detestá-la? Só desejo para si o que a faça feliz. Desejo-lhe todas as felicidades, Yetta. O Hooter é um felizardo.
- Oh, Josh - suspirou-, é tão simpático e compreensivo! Eu já sabia que seria. Disse ao Hammy - é assim que o trato: Hammy-, disse-lhe: "Hammy, ele poderá ficar com o coração despedaçado, mas desejar-me-á as maiores felicidades." Foi isso mesmo que disse ao Hammy. Josh, o seu coração está despedaçado? Passa-me a mostarda, por favor?
Resisti à tentação de sugerir a Yetta que pagássemos a meias, e a hora do almoço passou numa atmosfera razoavelmente amigável, tendo em conta as circunstâncias.
A minha primeira visita, depois do meu regresso à TORT, foi Hamish Hooter.
- Ouça lá, Bigg, suponho que a Yetta lhe deu a novidade? -Deu, e quero desejar aos dois as maiores felicidades.
- Sim? - perguntou, surpreendido. - Bem... obrigado.
- Desejo que sejam muito felizes os dois - continuei, entusiasticamente. -Tenho a certeza de que serão. Parabéns.
- Bem... obrigado - repetiu. - Ouça, Bigg, está a ser muito decente a respeito deste assunto.
Fiz um gesto que significava: "Não é nada."
- Se houver alguma coisa que eu possa fazer... - continuou, humildemente.
- De facto há uma coisa. Sabe que tenho uma assistente. Temporária, de momento, mas a minha carga de trabalho parece aumentar de dia para dia. Por isso, se ficar disponível um gabinete maior, agradecer-lhe-ei se se lembrar de mim.
- Bem, com certeza - prometeu. -Não deixarei de me lembrar.
- Obrigado - agradeci humildemente. - E mais uma vez lhe desejo todas as felicidades.
A seguir fiz o que a maioria dos empregados da TORT fazia quando tinha um problema interno, de trabalho: fui ter com Thelma Potts.
A notícia já correra e ela acolheu-me com um sorriso de simpatia.
- Lamento, Mr. Bigg.
- Ganhou o melhor homem - declarei.
Foi então que ela disse uma coisa tão inesperada que me deixou boquiaberto.
- Tretas! - afirmou Thelma Potts. - Foi uma sorte para você. A rapariga é uma atrasada mental. Não lhe servia.
- Bem... pelo menos a senhora ganhou.
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- E você também - garantiu-me com certa aspereza. - Veio aqui à procura de consolo?
- Não se trata bem disso. Tenho um problema. Mas não tem nada a ver com a Yetta - apressei-me a acrescentar.
- Qual é o problema?
- Quero reunir-me com Mr. Teitelbaum e Mr. Tabatchnick numa espécie de conferência. Tenho muito a dizer-lhes e é muito importante, mas não quero dizer-lhes separadamente. Penso que talvez a senhora possa falar com Ada Mondora e as duas consigam arranjar qualquer coisa.
- É assim tão importante?
- É, na verdade, Miss Potts. Não lho pediria se não fosse. Diz respeito a um caso de que cada um deles está a tratar, e os dois casos uniram-se de uma maneira muito peculiar.
- Kipper e Stonehouse?
- Há alguma coisa que a senhora não saiba, Miss Potts?
- A Ada e eu almoçamos juntas quase todos os dias - informou. - Quando deseja encontrar-se com os dois Mr. T's?
- O mais depressa possível - respondi, a pensar no meu encontro com o detective Percy Stilton. - Hoje não, mas amanhã, se puder arranjar as coisas.
- Falarei com a Ada e veremos o que podemos fazer. Depois digo-lhe.
- Obrigado - agradeci, sinceramente. - Não sei o que faríamos sem a senhora.
Fez um gesto depreciativo.
Inclinei-me rapidamente para lhe beijar a face macia.
- Agora que levei tampa, estou disponível - declarei. -Seu atrevido!
Regressei ao meu gabinete e atendi mais dois telefonemas de dois taxistas, um deles bêbedo. Depois fiz trabalho de rotina até serem horas de sair para o meu encontro com Stilton. Meti na pasta surrada a papelada de que precisava, vesti o sobretudo, pus o chapéu e espreitei cautelosamente para o corredor.
Yetta Apatoff estava sentada no seu lugar de recepcionista com as mãos apertadas uma na outra em cima da secretária. Meti-me rapidamente para dentro e aguardei alguns momentos. Quando voltei a espreitar, ela estava na mesma posição, imóvel como uma estátua. Mas quando espreitei pela terceira vez estava ocupada a falar ao telefone. Saí imediatamente e passei por ela com um sorriso triste e um aceno de mão resignado.
Conduta cobarde, bem sei.
Cheguei cedo ao edifício da Newsweek, Poucos minutos antes das quatro. Percy Stilton aproximou-se por trás de mim e espetou-me um dedo nas costelas.
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- Percy, tenho de lhe dizer. Eu...
- Pois sim, mas mais tarde - interrompeu-me. - Temos um encontro marcado para as quatro horas com o bispo Harley Oxman. Tem a seu cargo o pessoal da Igreja a que o reverendo Godfrey Knurr pertence. Fale o menos possível e aproveite as minhas deixas. Neste esquema faz de advogado.
- Tenho um cartão profissional de Mr. Tabatchnick - informei. -Belo! Exiba-o.
A sede do pessoal da igreja era um escritório bem iluminado, cómodo e com um ar de eficiência num edifício comercial de quatro ou cinco andares da Rua 49, entre a Madison e a Park. As paredes estavam pintadas de um bege sóbrio, o chão coberto de práticos mosaicos de vinilo e os tabiques entre os gabinetes individuais eram de aço. Não estavam à vista quaisquer quadros de natureza religiosa. Máquinas de escrever matraqueavam alegremente. Os homens e as mulheres que passavam pelos corredores estavam todos à paisana. Percy e eu aproximámo-nos da recepcionista com ar de matrona e o detective identificou-se. A mulher não pareceu surpreendida com o facto de o bispo ir encontrar-se com um detective do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Falou brevemente por um intercomunicador e depois dirigiu-se-nos, com um sorriso frio:
- Podem entrar. Lá fora virem à esquerda, sigam até ao fim e virem à direita. É o último gabinete.
Encontrámos o gabinete do bispo sem dificuldade. A porta abriu-se antes de termos tempo de bater. O homem que nos saudou era alto, um pouco curvado e corpulento. Usava um fato antiquado de cheviote cor de ferrugem e um colete de pele de corça cinzento debruado de branco. O seu laço às bolinhas estava posto às três pancadas.
Tinha um rosto muito cheio, quase inchado, cuja tonalidade ia do rosa-lívido ao púrpura-carregado. Os grossos lábios húmidos, de um rosa muito brilhante, entreabriam-se para revelar uns dentes de tal brancura, tamanho e regularidade que só podiam ser "de compra". Naquele pudim de sangue que era a sua cara estavam cravados dois vivos olhos azul-gelo, de esclerótica branca. Tinha uma grande trunfa de cabelo grisalho-aço, penteado de lado, em ondas ricas.
- Sou o bispo Oxman - apresentou-se em voz profunda e ressonante. - Queiram fazer o favor de entrar, cavalheiros.
Indicou-nos poltronas de cabedal, defronte da secretária de tampo de vidro. Perce Stilton empurrou a identificação por cima da secretária, sem que tal lhe fosse pedido, e eu tirei apressadamente a carteira e fiz o mesmo com o cartão profissional de Mr. Tabatchnick.
Enquanto o bispo examinava as nossas credenciais, vagarosamente e com interesse, aproveitei para observar o pouco mobilado gabinete, com uma estante simples, uma planta de borracha artificial e uma fotografia
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encaixilhada atrás do bispo. Pareceu-me ser um retrato da turma finalista do seminário que ele frequentara.
Devolveu-nos os documentos de identificação, recostou-se na cadeira giratória, mexeu-se um pouco até se sentir confortável e depois cruzou as mãos sapudas em cima do ventre. Não perdeu tempo com amabilidades.
- Detective Stilton - disse, no seu atroante baixo-barítono-, quando falámos pelo telefone informou-me de que surgira uma situação relativamente a um dos nossos pastores e que lhe parecia melhor discuti-la pessoalmente comigo. - Olhou um instante para mim e acrescentou:
-E em particular.
- Sim, senhor - confirmou Percy, firme, mas com deferência. - Antes de ser tomada qualquer acção oficial.
- Valha-me Deus - disse o bispo Oxman, com um sorriso frio-, isso parece ominoso. -Ele porém não parecia nada perturbado.
- Trata-se de um assunto que considero necessário trazer ao seu conhecimento - prosseguiu Stilton, a falar sem nenhuma hesitação. - Mr. Tabatchnick representa uma jovem senhora que alega ter sido defraudada das suas economias e de uma herança - pouco mais de dez mil dólares - por um dos seus pastores que lhe prometeu duplicar-lhe o dinheiro em seis meses.
- Valha-me Deus - repetiu o bispo, num murmúrio.
- A referida jovem alega ainda ter sido persuadida a entregar o dinheiro pela promessa do pastor de que casaria com ela assim que lho duplicasse.
- Como se chama a jovem senhora?
- Não creio que isso esteja no âmbito desta discussão, no momento presente - respondeu Percy Stilton.
- Que idade tem ela? Certamente pode dizer-me isso? Stilton voltou-se para mim:
- Mr. Tabatchnick, que idade tem a sua cliente?
- Vinte e três anos - respondi prontamente. Oxman voltou para mim os olhos penetrantes. -Já foi casada antes?
- Não, senhor. Que eu saiba.
O bispo levantou as duas mãos, comprimiu-as numa atitude de oração e depois encostou os dois indicadores aos lábios cheios. Pareceu ruminar. Finalmente, indagou:
- A sua cliente está grávida? Stilton olhou para mim.
- Sim, senhor - respondi suavemente-, está. Vi o relatório do médico. A minha cliente tentou contactar com o referido pastor, a fim de o informar, mas não conseguiu.
- Ligou para o número telefónico que ele lhe dera - interveio Stilton.
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-, um número para onde já tinha falado anteriormente, mas tinha sido desligado. Tanto ela como Mr. Tabatchnick foram ao apartamento do pastor, no bairro Murray Hill de Manhattan, mas aparentemente ele tinha-se mudado e não deixara nenhuma morada. Então Mr. Tabatchnick comunicou o caso à Polícia e eu fui encarregado da investigação. Não tenho conseguido localizar o indivíduo nem contactar com ele. Achei, e Mr. Tabatchnick concordou, que seria melhor pô-lo ao corrente da situação antes de serem dados passos mais drásticos.
- E como se chama o tal pastor?
- Reverendo Godfrey Knurr - respondeu Percy. - K-n-u-r-r.
O bispo acenou com a cabeça e puxou o telefone para mais perto. Marcou um número de três algarismos e esperou.
- Timmy? Faça o favor de ver se encontra uma ficha de Godfrey Knurr. Escreve-se K-n-u-r-r.
Desligou, voltou-se de novo para nós e acrescentou, com solenidade:
- Infelizmente, a situação não é única. Mas devo dizer-lhes que, com frequência, o pastor envolvido na questão está inteiramente inocente. Uma jovem interpreta mal simpatia e compreensão. Quando o pastor tenta convencê-la de que o seu interesse é espiritual, ela torna-se histérica e, na sua perturbação, faz toda a espécie de acusações.
- Sim, senhor, posso imaginar que assim seja - admitiu Stilton. - Mas foi apresentada uma queixa e tenho de averiguar.
- Pois claro, valha-me Deus! De qualquer modo, estou grato por me ter procurado antes de tomar outras providências. É possível que o pastor em questão o não seja de modo algum e se trate de um vigarista que desempenhe esse papel para intrujar mulheres solitárias.
Mas tal não era o caso. Mal o bispo acabara de falar, bateram ligeiramente à porta do gabinete, abriram-na e um homem novo entrou com uma pasta. Colocou-a cuidadosamente na secretária de Oxman e voltou-se para sair.
- Obrigado, Timmy - agradeceu o bispo, e depois pegou na pasta e leu o rótulo.
Olhou-nos.
- Valha-me Deus - disse tristemente-, receio que seja um dos nossos. Godfrey Mark Knurr. Bem, vejamos o que temos aqui...
Começou a examinar os documentos da pasta. Nós permanecemos silenciosos, a observá-lo. Uma das coisas que examinou era uma fotografia brilhante.
- Homem interessante - comentou.
Aguardámos pacientemente, enquanto o bispo examinava todos os documentos. Depois fechou a pasta.
- Valha-me Deus, valha-me Deus - murmurou, com um sorriso amarelo. -Parece que Mr. Knurr voltou a ser um rapaz mau.
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- Voltou a ser? - perguntou Stilton. O bispo Oxman suspirou.
- Às vezes acho que devia haver limites para a caridade cristã. O reverendo Knurr veio de Chicago, onde serviu como ajudante de pastor. Parece ter sido muito popular junto da congregação e parece também que se tornou muito... íntimo com a filha de vinte e dois anos de um dos membros do conselho paroquial. Quando a gravidez não pôde continuar a ser ocultada, ela acusou Mr. Knurr e alegou que ele lhe prometera casamento. Além disso, declarou, fizera-lhe diversos empréstimos substanciais. Empréstimos que nunca foram pagos, escusado seria dizê-lo. O caso parece ter sido abafado. Knurr, que continuou a protestar a sua inocência apesar de algumas provas muito condenatórias contra ele, foi banido de Chicago e mandado para cá.
- Isso pode-se fazer? - perguntei, com curiosidade. - A igreja de outra cidade pode lançar para os ombros de Nova Iorque um dos seus problemas?
- Bem, Knurr pode ter sido parte de, enfim, de um programa de troca, por assim dizer. Uma das maçãs estragadas deles por uma nossa. Claro que não havia possibilidade de Knurr obter aqui uma igreja. Já estamos sobrecarregados com um excesso de pastores, e o número aumenta todos os anos. Mas garanto-lhes que a grande maioria dos nossos pastores são homens honrados e tementes a Deus, profundamente conscientes dos seus deveres e das suas responsabilidades.
- Mas que fizeram a Knurr? - indagou Stilton.
- Conservou a volta - respondeu Oxman - e foi-lhe permitido seguir o seu próprio caminho, mas com a condição de que, devido ao seu cadastro, a nomeação para uma paróquia estava fora de causa. Segundo estes documentos, a última comunicação que recebemos do reverendo Godfrey Knurr foi uma carta sua a pedir autorização para abrir uma espécie de clube social para jovens menos privilegiados em Greenwich Village. Ele achava que podia reunir sozinho os fundos necessários. Foi-lhe concedida a autorização. Mas não há nada na sua ficha que indique se realmente levou a cabo o que pretendia. E, lamento dizê-lo, também não temos nenhuma indicação de qualquer morada ou número de telefone.
- De onde foi enviada a carta? - perguntou o detective Stilton. - Aquela em que pedia autorização para abrir o clube social?
- Valha-me Deus, não indicava nenhuma morada.
- E quanto a parentes chegados? Têm indicação disso?
- Sim, isso sei que temos - respondeu o bispo, a remexer nos papéis. - Cá está. Uma irmã, Goldie Knurr, que reside em Athens, Indiana. Desejam a morada?
- Por favor - pediu o detective.
Percy e eu descemos sozinhos no elevador.
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- Safou-se bem - disse-me Stilton.
- Obrigado.
- Mas eu já sabia que safaria, pois de contrário tê-lo-ia ensaiado. Este estratagema foi necessário, Josh, porque se me tivesse limitado a entrar ali e a pedir para ver a ficha de Knurr, sem um mandato nem coisa nenhuma, o bispo ter-me-ia mandado passear. Parece ensonado, mas não é nenhum parvo.
No átrio, Stilton parou para acender um cigarro.
- Percy, como descobriu a existência deste escritório? Eu nem sequer sei a que seita ele pertence.
- Procurei-o na lista telefónica e encontrei a morada do tal clube de rapazes de Greenwich Village. Depois telefonei para os Arquivos Municipais, na Baixa, e obtive o nome do proprietário do edifício. Fui visitá-lo e dei uma vista de olhos ao arrendamento de Knurr. Como calculara, quando o reverendo assinou o aluguer teve de indicar uma morada permanente ou anterior. Deu a da sede da sua Igreja. Telefonei para lá e mandaram-me comunicar com o escritório do pessoal do bispo Oxman. Foi o que fiz.
Abanei a cabeça, estupefacto.
- É muito mais fácil quando podemos mostrar o nosso cartão. - Olhou para o relógio e acrescentou: - Disponho de uma meia hora. Tem alguma coisa para me dizer? Há um bar ali à esquina. Vamos beber uma cerveja enquanto o ouço.
Ao canto de um pequeno bar da Rua 48 leste, perguntei:
- Percy, aquela história que inventou acerca de o Knurr ter vigarizado uma rapariga em Nova Iorque é quase, palavra por palavra, o que ele fez em Chicago. Como sabia?
Encolheu os ombros.
- Não sabia - respondeu-me. - Josh, a sorte não vai toda para os rapazes maus. Às vezes nós também temos sorte. Pensei que se não estávamos enganados a respeito dele, a história acerca da sua cliente estaria a carácter. Agora pergunto a mim mesmo se teremos coisas suficientes contra o tipo para eu ir ter com o meu tenente e pedir-lhe que reabra o caso Kipper. - Pensou um momento. - Mas não, creio que não temos. O que aconteceu em Chicago há um par de anos é apenas pano de fundo. Não tem nadíssima a ver com a maneira como o Sol morreu. Tem coisas para me dizer?
Falei-lhe dos cartazes da recompensa e dos telefonemas que recebera e do modo como arranjara cópias das análises químicas do brande do professor Stonehouse.
- Bom - comentou Stilton, num resmungo. - Mais papel.
Disse-lhe que tinha arranjado uma fotografia de Glynis Stonehouse e sabia o nome da clínica onde ela trabalhava agora como voluntária e o nome do laboratório clínico onde estivera empregada havia um ano.
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- Telefonei à clínica e afirmaram-me que não têm stocks de venenos. Parece-me lógico, pois trata-se de uma clínica infantil de olhos, ouvidos, nariz e garganta. Não tive sorte nenhuma com o laboratório clínico.
- Dê-me o nome e a morada - pediu o detective. - Faço-lhe uma visita.
Copiou a informação no seu elegante livrinho de apontamentos.
Por fim, contei-lhe que seguira Glynis Stonehouse até ao seu encontro com Geofrey Knurr e depois os seguira os dois até ao cais de barcos da Rua 79.
- Isso é interessante - comentou Stilton, pensativo. - Está a sair-se muito bem, Josh.
- Obrigado. Guardei o melhor para o fim. Julgo saber como ele matou Sol Kipper.
O detective fitou-me, um momento, e depois disse: -Bebamos mais uma cerveja.
- Conheço um velho que mora no apartamento defronte do meu. Está preso a uma cadeira de rodas e sente-se muito só. Às vezes, quando regresso a casa do trabalho, encontro-o à minha espera no patamar, na sua cadeira. Só para conversarmos, compreende? Bem, no último mês cheguei diversas vezes a casa mais cedo e ele não deu por isso, e quando mais tarde saí encontrei-o no patamar à minha espera, sem saber que eu já estava em casa.
Stilton olhou-me, intrigado.
- E então?
- Foi isso que me deu a ideia da maneira como o Knurr matou Sol Kipper. O facto de eu já estar dentro do apartamento.
Ele tinha começado a beber um grande trago de cerveja, mas de súbito pousou o copo no balcão e ficou imóvel, a olhar a direito, em frente.
- Sim... - murmurou baixinho. - O espertalhão! Foi isso que fez. Deixe-me dizer-lhe: esteve sempre dentro de casa. Provavelmente escondido num daqueles quartos vazios. Só Tippi sabia que ele lá estava. Ela deixou o marido e desceu. Knurr subiu para o quarto principal, no quarto andar, e apagou Sol Kipper. Talvez com um dos seus golpes de karate ou com o famoso instrumento contundente - quem sabe? Depois transportou...
- Não - interrompi-, não me parece. Sol Kipper não era um homem pesado, mas seria tarefa difícil transportá-lo por aquela estreita escada das traseiras até ao quinto andar. Creio que Knurr chamou o elevador e levou nele o corpo de Kipper.
- Certo - concordou Stilton, sem hesitar. - Os primeiros polícias a chegar à cena encontraram o elevador no quinto andar. Muito bem, ele leva o corpo de Sol para o terraço e atira-o de lá abaixo. Quero
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dizer atira-o literalmente. Isso explica que o corpo tenha ficado tão afastado da base da parede.
- Depois Knurr desceu... Como desceu ele?
- Pela escada, pois no andar principal a porta do elevador pode ser vista da cozinha. E, além disso, o elevador foi encontrado no quinto andar pelos primeiros polícias que chegaram.
- Tippi desmaiou - recordei-lhe-, ou fingiu que desmaiou.
- Claro. Para dar a Knurr tempo de descer. Depois ele saiu pela porta principal, voltou atrás, tocou à campainha e esperou que o mordomo lhe abrisse a porta.
- é o que penso - concordei, a acenar com a cabeça. - Não se pode ver a porta principal da cozinha. Por isso, mesmo que eles estivessem na cozinha quando ele saiu, estava em segurança. Percy, creio que ele ficou lá em casa toda a noite. O mordomo tem um diário de visitas, entregas, etc. Está lá registado que o reverendo Godfrey Knurr chegou na terça-feira, dia vinte e três, ou seja, na véspera da morte de Kipper.
- Oh, isso é belo! Detesto admiti-lo, mas tenho de admirar o tipo. A coragem!
- Pensa então que foi assim que as coisas se passaram? - perguntei, ansioso.
- Teve de ser assim - confirmou Percy. - Teve de ser! Tudo se ajusta. Foi tudo uma questão de planeamento e sincronização. O gajo é um finório. Quando o apanharmos, levarei comigo um regimento de fuzileiros navais. E o bilhete do suicídio?
- Não consigo explicá-lo - confessei. - Neste momento, não consigo. Mas vou pensar no assunto.
- Faça isso - recomendou, a dar-me palmadinhas no braço. - Pensei no assunto. Começo a crer que Roscoe Dollworth sabia perfeitamente o que estava a fazer quando lhe arranjou esse lugar. Investigador-chefe? É melhor acreditar nisso! Josh, julgo ter agora o suficiente para pedir ao meu tenente que reabra o caso Kipper. Apresentar-lhe-ei o esquema todo, como se relaciona com o desaparecimento de Stonehouse e como...
- Percy, podia aguentar mais um ou dois dias?
- Bem... com certeza. Mas porquê?
- Estou a tentar ter uma conferência com Mr. Tabatchnick e Mr. Teitelbaum. Teitelbaum é o sócio principal que representa a família Stonehouse. Quero dizer aos dois tudo quanto descobrimos e demonstrar-lhes como os dois casos estão ligados. Quero que eles me deixem dedicar todo o meu tempo a esta investigação e continuar com ela independentemente do tempo que possa levar. Gostaria que você assistisse à conferência. Eles têm um certo peso, não têm? Peso político?
- Creio que sim.
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- Bem, se os conquistarmos primeiro para o nosso lado isso não o ajudará a conseguir que o caso Kipper seja reaberto e talvez a ser encarregado de dedicar todo o tempo a ele?
- Talvez - admitiu, devagar. - Sim, talvez. - Despenteou-me com as pontas dos dedos. - É um anãozinho com uma grande cachola.
Não me senti nada ofendido.
Estávamos de novo no passeio, prontos para nos despedirmos, quando Stilton deu um estalo com os dedos.
- Jesus, esqueci-me de lhe dizer! Não havia nada em arquivo a respeito de Knurr, e foi por isso que arquitectei aquele esquema do escritório da Igreja. Só para obter alguns antecedentes do tipo. Mas Tippi Kipper... é outra história. Ela tem cadastro. Remonta há quase vinte anos, mas existe.
- Cumpriu pena? - perguntei, incrédulo.
- Oh, não! Foi apenas acusada. Não há nenhum registo de julgamento ou sentença.
- Acusada? De quê?
- De vadiar tendo como objectivo a prostituição.
Capítulo quarto
Antes de sair para o trabalho na quarta-feira de manhã, meti um bilhete por baixo da porta de Cleo: "Mr. Joshua Bigg solicita respeitosamente o prazer da companhia de Miss Cleo Hufnagel no apartamento de Mr. Bigg, para jantar, esta noite, quarta-feira, às oito horas. Trajo opcional. RSVP (*)."
Fui para o trabalho a pensar na ementa.
Encontrei em cima da secretária um memorando de Ada Mondora a informar que Mr. Teitelbaum e Mr. Tabatchnick se encontrariam comigo na biblioteca às duas horas da tarde. Telefonei a Percy, mas não estava. Deixei recado a pedir-lhe que me telefonasse o mais depressa possível. Depois comecei a passar à máquina apontamentos do nosso encontro com o bispo Harley Oxman, para a pasta do caso Kipper.
Fui interrompido por um telefonema nervoso de Mrs. Gertrude Kletz: partira um dente e o dentista só a podia atender às onze horas. Não faria diferença se trabalhasse do meio-dia às quatro? Respondi-lhe que não faria diferença nenhuma. Telefonou um motorista a dizer que tinha transportado o professor Stonehouse na noite de 10 de Janeiro.
(*) Abreviatura de rRépondez s'il vous plaït, ou seja, "Queira responder". (N. da T.)
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Descreveu o passageiro como baixo, com idade à volta dos quarenta e cinco anos e bastante coxo.
- Lamento, mas não é esse o homem.
- Não se perde nada em experimentar - redarguiu-me alegremente, e desligou.
O telefonema seguinte foi de Percy Stilton. Falei-lhe da reunião com Teitelbaum e Tabatchnick às duas da tarde e ele prometeu fazer o possível para assistir. Depois disse-me que, de manhã, visitara os antigos patrões de Glynis Stonehouse, a Atlantic Medical Research.
- Têm em stock veneno suficiente para liquidar metade de Manhattan- informou-me. - E têm um sistema de controlo muito descuidado. O armário do veneno tem uma fechadura ordinária, capaz de ser aberta com um sopro forte. O supervisor é o único a ter chave, mas mantém-na à vista, pendurada numa tábua da parede e devidamente etiquetada. Entra e sai do escritório cem vezes por dia. Qualquer pessoa que trabalhe no laboratório pode pegar na chave, utilizá-la e repô-la no seu lugar sem ninguém dar por isso. Todas as vezes que um investigador levanta qualquer veneno, deve, ou deveria, assinar um registo que se encontra no armário dos venenos, e indicar a quantidade levantada, a data e o nome. Por isso, pedi ao supervisor que apurasse um total do trióxido de arsénico retirado e o conferisse com a quantidade inicial e com a que tinham esta manhã. Faltavam mais de duas onças. Declarou não compreender como tal era possível.
- Eu compreendo - declarei. - Duas onças! Ela tirou o suficiente para matar o velho dez vezes.
- Assim parece - concordou Stilton-, mas não há nenhuma maneira de o provar. Agora vão apertar o seu sistema de controlo de venenos. A propósito, Glynis Stonehouse não foi despedida; despediu-se voluntariamente. Numa sexta-feira limpou a secretária e na segunda-feira seguinte telefonou a dizer que não voltava. Nem sequer apresentou qualquer razão ou pretexto. Despediu-se, e pronto. Tenho de ir andando, Josh. vou ver se chego ao cais da Rua Setenta e Nove por volta do meio-dia. E, se possível, encontrar-me-ei consigo às duas horas.
Acabei de dactilografar os apontamentos da entrevista com o bispo Oxman e tentei elaborar o esboço de uma agenda para o encontro daquela tarde com os dois sócios principais. Sabia que produziria melhor impressão se a minha apresentação dos assuntos fosse organizada, breve e sucinta.
Estava a garatujar apontamentos quando o telefone tocou de novo. Era outro taxista e a conversa obedeceu ao padrão já habitual:
- Bem, não é muito, mas é melhor do que nada - disse o homem, depois de perguntar quanto era a recompensa. - Creio que transportei o tipo por volta do dia 10 de Janeiro. Pode ter sido nessa data. Recolhi-o
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na Central Park West talvez nas imediações da Rua Setenta ou Setenta e Um. Por aí. -Horas?
- Enfim, talvez nove horas da noite. Mais ou menos. Nessa altura andava a trabalhar de noite. Agora estou de dia.
- Lembra-se como estava o tempo?
- Nessa noite? Estuporado. Era difícil conduzir. Caía granizo. Estava disposto a recolher quando esse tipo se atirou praticamente para debaixo das rodas, a agitar os braços.
- Lembra-se do aspecto dele?
- Só me lembro por ele me ter moído tanto o juízo. Eu não ia suficientemente depressa. Eu ia pelo caminho mais comprido. A parte de trás do táxi estava suja e cheirava mal. Etc. Um rabugento de fazer perder a paciência a um santo, se compreende o que quero dizer.
Pus a caneta de lado e respirei fundo. Começava a parecer encorajador.
- É capaz de o descrever fisicamente?
- Chapéu, cachecol e sobretudo. Era um tipo velho, alto e magricela. Curvado. Geralmente não reparo muito em quem viaja no meu táxi, mas este tipo era tão chato que me lembro dele.
Parecia cada vez melhor.
- E para onde o levou? - perguntei, e fechei os olhos, esperançado.
- Para o cais da Rua Setenta e Nove - respondeu o taxista. - E ele deu-me vinte cinco cêntimos de gorjeta. com um tempo daqueles! Já imaginou uma coisa assim?
Abri os olhos e deixei sair a respiração num longo suspiro.
- Importa-se de me dizer o seu nome, por favor?
- Bernie Baum.
- De onde está a telefonar. Mr. Baum?
- Da bomba de gasolina da Décima Primeira Avenida.
- A nossa morada é na Rua Trinta e Oito, leste. Se estiver disposto a vir até cá e assinar uma breve declaração atestando o que acaba de me dizer, pode receber os seus cem dólares.
- Quer dizer que era esse o tipo?
- Era, era esse o tipo.
- Está claro, com certeza que assino a declaração. É a verdade, não é? Mas, escute, não terei de ir a tribunal nem nada do género, pois não?
- Oh, não, não! -apressei-me a tranquilizá-lo. -Nada do género. é apenas para os nossos arquivos.
Talvez um dia ele tivesse de repetir a sua declaração em tribunal, mas eu não estava disposto a dizer-lhe isso.
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- Bem, primeiro vou almoçar qualquer coisa, mas depois sigo directamente para aí.
- Óptimo! - exclamei, satisfeito. - Tente chegar antes das duas horas.
Dei-lhe a nossa morada e disse-lhe que perguntasse por Joshua Bigg. Desliguei, sorridente. Percy Stilton tivera razão. A sorte não ia toda para os rapazes maus.
Dactilografei uma breve declaração para ser assinada por Bernie Baum, a qual dizia apenas que ele recolhera no seu táxi um homem que mais tarde identificara a partir de uma fotografia do professor Yale Stonehouse. Recolhera-o aproximadamente às nove horas da noite de 10 de Janeiro nas vizinhanças do Central Park West e da Rua 70 e conduzira-o ao cais da Rua 79. Redigi o documento o mais breve e factual possível.
Mrs. Kletz chegou quando eu estava a acabar. Disse que se sentia melhor do dente e capaz de fazer as suas quatro horas de trabalho.
Falei-lhe de Bernie Baum e ela ficou tão satisfeita como eu.
- Aconteceram muitas coisas desde que leu as pastas dos casos Kipper e Stonehouse - acrescentei. - Sente-se um momento, para a pôr em dia.
Escutou atentamente e conteve bruscamente a respiração, quando lhe falei de Glynis e Knurr.
- E foi aí que o taxista levou o professor Stonehouse na noite em que ele desapareceu - terminei, triunfante.
Mas ela estava a pensar noutra coisa. Aqueles olhos juvenis pareciam ter obtido um alcance visual de mil metros.
- Acha, Mr. Bigg - perguntou, na sua voz leve, cadenciada-, que qualquer das duas mulheres, Tippi Kipper ou Glynis Stonehouse, sabe da existência da outra?
Olhei-a, a pestanejar. Nunca pensara naquilo, e sentia-me furioso comigo mesmo por não ter pensado.
- Não sei, Mr. Kletz - confessei. - Mas diria que não, que nenhuma tem conhecimento da existência da outra. Se há uma coisa de que Knurr não precisa neste momento, é de uma mulher ciumenta e com desejos de vingança.
Acenou com a cabeça, pensativamente.
- Creio que tem razão, Mr. Bigg.
Voltou para a sua secretária e começou a responder a alguns dos pedidos de rotina. Quanto a mim, mandei vir pastrami (*) com pão de centeio, pepinos de conserva kosher (**) e chá de uma charcutaria da Madison Avenue. Bernie Baum apareceu: era um homem atarracado,
(*) Carne de vaca fumada e muito temperada. (N, da T.)
(**) Preparado de acordo com as leis dietéticas judaicas. (N. da T.)
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de meia-idade, com uma barba grisalha de dois dias e um charuto empapado em saliva. Usava um casaco grosso de xadrez, sujo, e um boné de cabedal preto.
Entreguei-lhe a declaração que tinha escrito à máquina e ele tirou uns óculos da algibeira interior da camisa. Faltava-lhe uma das hastes e ele teve de encostar as periclitantes lentes aos olhos, para ler.
Depois levantou a cabeça e olhou para mim.
- Que fez este tipo? - perguntou em voz áspera e rouca. - Assaltou algum banco?
- Qualquer coisa desse género.
- Não me admira - comentou, a acenar com a cabeça. - Desde que falei consigo pelo telefone tenho tentado lembrar-me melhor do tipo. Parece-me agora que estava nervoso, compreende? Como se alguma coisa o chateasse e fosse por isso que ele me chateava a mim.
- é possível.
- Bem - declarou Bernie Baum, judiciosamente-, se ele tinha um iate naquele cais, provavelmente a esta hora já está em Hong Kong.
- Também é possível - admiti. - Se assinar essa declaração, Mr. Baum, poderá receber o seu dinheiro.
Ele assinou com o nome de Bernard J. Baum e escreveu a morada, e eu passei um vale de cem dólares. Trocámos um aperto de mão e mandei-o à tesouraria com Mrs. Kletz. Ela voltou passados cinco minutos e disse-me que Bernie Baum recebera a recompensa e partira todo contente. Disse-me também que Hamish Hooter rubricara o vale sem qualquer objecção. Na vitória, magnânimo...
Percy Stilton chegou a tempo. Agradou-me verificar que vestia muito conservadoramente; fato azul-marinho, camisa branca e gravata preta. Sem jóias. Nem espampanância. Avaliara com correcção a sua audiência. Mostrei-lhe a declaração que o taxista assinara.
Percy ficou um momento pensativo, de perna traçada, a puxar devagarinho o lábio inferior.
- Hum... - murmurou, por fim. - Estamos a preencher as lacunas... lentamente. Sabe o que penso? O professor Stonehouse está no lodo do rio Hudson, na Rua Setenta e Nove, com uma âncora atada aos pezinhos. É isso que eu penso. Fiz uma investigação no cais há uma hora. Há um barco-habitação registado em nome de um Mister Godfrey Knurr. Mister e não reverendo. É um Gibson de fibra de vidro de quinze metros, e o tipo com quem falei disse-me que se trata de um palácio flutuante. Todos os confortos do lar e mais alguns.
Suspirei.
- Faz sentido - declarei. - O que não fazia sentido era pensar que um homem como Knurr se contentaria em viver nas traseiras de uma loja miserável da Carmine Street.
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Percy estava calado e eu olhei nervosamente para o relógio. Dispúnhamos de poucos minutos.
- Preocupa-o alguma coisa? - perguntei.
- Pensa realmente que Knurr apagou o Kipper e o Stonehouse? - inquiriu, em voz sem timbre.
- O Kipper, com certeza. O Stonehouse, provavelmente.
- é também o que eu penso - declarou, a acenar, carrancudo, com a cabeça. - O que me preocupa é o seguinte: nós sabemos de dois. Quantos mais haverá de que nós não sabemos?
Reuni as pastas e os livros de apontamentos e metemo-nos no elevador para a biblioteca. Nenhum de nós falou enquanto subíamos.
Na porta da biblioteca estava um aviso colado com fita gomada: "Fechada das 14 às 15 horas." O aviso destinava-se também a mim, dizia-me claramente que disporia de uma hora e não mais. Stilton e eu entrámos e sentámo-nos em cadeiras de cabedal, ao lado uma da outra, no centro de um dos lados compridos da mesa.
- Percy, é capaz de aguentar isto sem fumar? -com certeza.
- Tente.
Dispus as pastas e os papéis à minha frente. Dei uma vista de olhos aos meus apontamentos relacionados com a apresentação da questão. Depois fiquei calado.
Quando Ignatz Teitelbaum e Leopold Tabatchnick entraram juntos, às duas horas em ponto, Stilton e eu levantámo-nos. Pensei, tresloucado, que deveria ter havido uma fanfarra de trombetas para os saudar.
Ambos os sócios usavam fato cor de terra, com colete, e camisa e gravata sem qualquer estilo ou características especiais. Mas a semelhança entre os dois chegava aí e parava. Tabatchnick, com a sua postura simiesca, erguia-se acima de Teitelbaum, que comparado com ele parecia particularmente frágil e mirrado.
Tive consciência, com um certo abalo, que aqueles dois homens tinham vivido um total de quase século e meio e compartilhado um século de experiência jurídica. Foi uma percepção assustadora e eu precisei de alguns segundos para reunir a coragem necessária para dar o mergulho.
- Mr. Tabatchnick, creio que já conhece o detective Percy Stilton do Departamento de Polícia de Nova Iorque. O detective Stilton participou na investigação inicial da morte de Solomon Kipper.
Tabatchnick concedeu a Percy um frio aceno de cabeça e a mim um olhar zangado, ao verificar que eu tinha desobedecido à sua ordem de não compartilhar os resultados da minha investigação com a Polícia.
Apresentei Percy a Mr. Teitelbaum. Houve de novo uma troca de
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gelados acenos de cabeça. Nenhum dos sócios fizera qualquer menção de se sentar. A minha ansiada conferência estava a começar mal.
- Detective Stilton - perguntou Mr. Tabatchnick, na sua voz mais bombástica-, devemos compreender que está presente na sua capacidade oficial?
- Não, senhor - respondeu Percy, sem hesitar. - Estou aqui como observador interessado e talvez para contribuir na medida das minhas possibilidades para a solução do dilema que os senhores enfrentam.
Apeteceu-me beijá-lo. As sobrancelhas dos dois sócios ergueram-se e eles entreolharam-se. Obviamente, não se tinham apercebido de que estavam perante um dilema e, também obviamente, queriam ouvir falar mais a esse respeito, naturalmente. Puxaram cadeiras defronte de nós. Esperei que estivessem todos sentados e quietos.
- Cavalheiros - comecei-, pouparíamos todos muito tempo se me pudessem dizer se cada um está ao corrente da minha investigação do caso do outro. Quero dizer, Mr. Teitelbaum, foi informado das circunstâncias que rodearam a morte de Sol Kipper? E, Mr. Tabatchnick, está...
- Prossiga - interrompeu-me Tabatchnick, irritado. - Estamos ambos ao corrente do que se passa.
- Depois dos seus últimos relatórios - acrescentou Mr. Teitelbaum, com as mãos coriáceas abandonadas na mesa, à sua frente-, presumo que tem alguma coisa a aduzir?
- Muitas coisas - respondi, e comecei a falar, servindo-me de frases curtas e declarativas e falando o mais depressa possível, sem atropelar as palavras.
Lisonjeou-me verificar que conseguia falar de improviso e com firmeza, sem consultar os apontamentos. Assim podia fitar os olhos de ambos os homens enquanto falava, desviando o olhar de um para o outro consoante me referia a assuntos relacionados com Kipper ou com Stonehouse.
Era como dirigir-me a dois monólitos de pedra, tão carrancudos e inexplicáveis como as cabeças da ilha da Páscoa. Nem uma única vez se mexeram ou mudaram de expressão. Mr. Teitelbaum estava recostado na cadeira, parecendo amparado para se manter erecto, e com os braços hirtos e delgados esticados para a frente e as mãos espalmadas no tampo da mesa. Mr. Tabatchnick estava inclinado para a frente, corpulento, de ombros arqueados sobre a mesa, cabeça meio baixa e a habitual expressão de zanga nos lábios que pareciam de borracha.
Até ao ponto em que disse ter reconhecido um dos vadios de Knurr entre os meus atacantes, nenhum dos advogados fizera quaisquer perguntas ou evidenciara sequer grande interesse pela minha narrativa.
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Nem o evidenciou nessa altura. Mas quando falei do encontro que presenciara na garagem da Rua 66, tudo mudou.
Primeiro, mudaram ambos subitamente de posição: Tabatchnick recostou-se e quase caiu para trás na cadeira, de tão incrédulo, e Teitelbaum inclinou-se bruscamente para a frente, para cima da mesa.
- Tem a certeza disso, Mr. Bigg? - perguntou vivamente. - O reverendo Godfrey Knurr encontrou-se com Glynis Stonehouse? Não tem dúvida nenhuma a esse respeito?
- Absolutamente nenhuma - respondi, com firmeza. Expliquei que depois disso pedira um encontro ao detective Percy
Stilton e lhe contara tudo quanto ocorrera.
- Era necessário, cavalheiros - afirmei, com veemência-, pois precisava da cooperação do detective Stilton para determinar se algum dos implicados tinha cadastro criminal. O detective Stilton dir-lhes-á os resultados dessa investigação. Voltando à sua pergunta, Mr. Teitelbaum, quanto a se tenho a certeza de que Knurr se encontrou com Glynis Stonehouse. Tenho a certeza, sim, pois voltei a vê-los juntos há duas noites.
Contei-lhes então que seguira Glynis Stonehouse a um rendez-vous com Knurr e depois seguira os dois até um barco-habitação ancorado no cais da Rua 79.
- Percy - pedi-, quer continuar a partir daqui?
A sua exposição foi muito mais curta do que a minha e feita em sereno tom policial oficial: "o alegado perpetrador", e "o suspeito", etc. Foi um depoimento estilo sala de tribunal e ambos os advogados pareceram completamente familiarizados com as frases e impressionados por elas.
Ele disse-lhes que nunca se sentira totalmente convencido com o veredicto de suicídio no caso Kipper, e explicou porquê. Por isso, acrescentou, vira com agrado a minha investigação independente e colaborara de todas as maneiras possíveis, especialmente desde que se apercebera da minúcia e da perícia imaginativa do meu trabalho.
Baixei a cabeça e olhei para a mesa, enquanto ele continuava.
Disse que a sua esperança tinha sido que eu descobrisse indícios suficientes que justificassem a reabertura do processo Kipper pelo Departamento de Polícia de Nova Iorque. com esse objectivo, fornecera os nomes de Godfrey Knurr e Tippi Kipper ao computador e ficara a saber da prisão de Tippi. Falou-lhes da nossa entrevista com o bispo Harley Oxman e da revelação do anterior delito de Knurr, em Chicago.
Determinara também, depois de eu lhe fornecer a pista, a provável origem do arsénico administrado ao professor Stonehouse: um laboratório de investigação médica onde Glynis Stonehouse estivera empregada havia menos de um ano.
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Finalmente, descobrira que Godfrey Knurr tinha um barco-habitação ancorado no cais da Rua 79.
Em seguida voltou-se para mim e eu disse-lhes que um motorista de táxi se apresentara naquela manhã e dissera lembrar-se de conduzir o professor Stonehouse ao cais referido, na noite do seu desaparecimento.
Empurrei a declaração de Baum por cima da mesa, para os dois sócios, mas nenhum deles lhe tocou. Estavam ambos a fitar Percy.
- Detective Stilton - perguntou Mr. Tabatchnick, na sua voz magistral-, como oficial da Polícia com muitos anos de experiência, acredita que Godfrey Knurr assassinou Solomon Kipper?
- Acredito, sim, senhor. Assassinou-o com premeditação.
- Mas como? - indagou Mr. Teitelbaum, em voz suave, quase sonhadora.
- O Josh que lho diga - respondeu Percy. '! Por isso eu disse-lhes. Mr. Tabatchnick foi o primeiro a voltar-se de novo para mim. '! -E o bilhete de suicídio? - perguntou-me.-Não, senhor, ainda não encontrei explicação para isso - respondi, pesaroso. - Mas estou certo de que o senhor admite que a redacção do bilhete se presta a diversas interpretações. Não é necessariamente um bilhete de suicídio.
- E presumindo que o homicídio ocorreu do modo como sugere, presume também que Tippi Kipper e o reverendo Godfrey Knurr estavam conluiados numa conspiração criminosa? Presume que eles planearam e executaram o assassínio de Solomon Kipper em virtude de ele ter descoberto, através dos serviços de Martin Reape, que a mulher lhe tinha sido infiel com Godfrey Knurr, e decidiu modificar o seu testamento de modo a deserdá-la na medida do consentido pela lei? Presume tudo isso?
- Sim, senhor - respondi, com firmeza.
Seguiu-se a vez de Mr. Teitelbaum:
- Presume ainda - disse, em voz sedosa - que o professor Stonehouse, depois de descobrir que a filha tentara envenená-lo, descobriu mais que ela tinha uma ligação com Godfrey Knurr? E presume que Stonehouse soube da existência do barco-habitação de Knurr, não sabemos por que meios, e resolveu fazer frente à filha e ao amante na noite em que desapareceu? E suspeita, sem quaisquer provas, que ele pode muito bem ter sido assassinado nessa noite? É esta a sua presunção?
- Sim, senhor - respondi, com menos firmeza do que anteriormente. - É.
Ficámos todos calados. O silêncio pareceu nunca mais acabar,
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embora creia que decorreu apenas um minuto ou dois antes de Mr. Teitelbaum se desviar da mesa e recostar na cadeira.
- E que sugerem, precisamente - perguntou, numa voz inesperadamente forte-, seja feito a seguir quanto a este desagradável assunto?
- Pela parte que me respeita- respondeu Percy Stilton-, vou contar toda a história ao meu tenente e ver se consigo que o processo Kipper seja reaberto. Os cavalheiros poderão ajudar-me nesse sentido... se dispõem de alguma influência que possam utilizar.
- Qual seria a vantagem de reabrir o processo? - perguntou Leopold Tabatchnick.
- Tenho esperança de que a investigação do caso me seria confiada, em tempo integral - respondeu o detective. - Com mais pessoal, consoante fosse necessário. Para manter o barco-habitação vigiado, a fim de evitar que Knurr fuja. Para aprofundar mais os antecedentes e as relações das pessoas implicadas. Para examinar a conta bancária de Knurr, etc. Enfim, para fazer todas as coisas que seriam feitas na investigação de um homicídio.
Os dois sócios entreolharam-se de novo, e de novo eu tive a percepção de haver comunicação entre eles.
- Não somos totalmente desprovidos de alguma influência - admitiu Ignatz Teitelbaum, cautelosamente. - Faremos o que pudermos para o ajudar a reabrir o processo Kipper. Mas devo dizer com toda a franqueza que não estou optimista quanto às possibilidades de conduzir este caso a uma solução coroada de êxito, mesmo com a mais rigorosa investigação.
- Sou da mesma opinião - declarou, em voz forte, Mr. Tabatchnick.
Mr. Teitelbaum afastou mais a cadeira da mesa e, não sem alguma dificuldade, cruzou as pernas. Ficou um momento imóvel, a fitar o espaço entre Percy e mim, sem na realidade nos ver. Estava, pensei, a compor o resumo final para apresentar ao júri.
- Primeiro que tudo - disse, por fim-, gostaria de os cumprimentar-e principalmente a si, Mr. Bigg-pela inteligência e persistência que dedicaram a esta investigação.
- Imaginativa - interveio Mr. Tabatchnick, a acenar com a cabeça. - Criativa.
- Exactamente - concordou Teitelbaum. - Apresentaram uma hipótese que explica todos os factos importantes conhecidos.
- Uma hipótese que pode ser correcta - admitiu Tabatchnick, quase contrafeito.
- Pode muito bem ser. Francamente, creio que é. Creio que as suas presunções são correctas - disse Teitelbaum.
- Mas não deixam de ser presunções - insistiu Tabatchnick.
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- Dispõem de pouco que possa ser provado em tribunal - aduziu Teitelbaum.
- E certamente não dispõem de nada que possa justificar acção judicial - disse Tabatchnick, com firmeza.
- Nenhuma testemunha ocular, obviamente. Nenhuma arma. Na realidade, não dispõem de nenhuma prova clara, de valor judicial. - Teitelbaum foi ainda mais firme.
- Meramente provas circunstanciais em apoio do que é, essencialmente, uma teoria - acrescentou Tabatchnick.
- Não queremos ser exageradamente pessimistas, mas não nos disseram nada indicador de que a continuação da investigação possa descobrir provas justificativas de uma acusação criminal - afirmou Teitelbaum.
- Neste caso, estão perante uma conspiração criminosa. - A opinião foi de Tabatchnick, mas o golpe de misericórdia foi desferido por Teitelbaum, do seguinte modo:
- Na realidade, de duas conspirações criminosas, com um indivíduo- Knurr - comum a ambas.
Percy olhou-os atordoado. Eu estava esfrangalhado. Pensei que aquele rápido diálogo tinha sido um prelúdio para me ordenarem que abandonasse a investigação. Lancei um olhar de soslaio a Percy Stilton, que fitava atentamente os dois advogados. Parecia fascinado, como se estivesse a ouvir qualquer coisa que eu não conseguia ouvir, como se gostasse de ser uma bola de ténis no Open Jurisprudencial.
- é um problema invulgar - sentenciou Mr. Tabatchnick, a inspeccionar as costas manchadas das suas mãos fortes. - Às vezes, os problemas invulgares exigem remédios invulgares.
- Quando mais de uma pessoa está implicada num empreendimento criminoso importante - disse Mr. Teitelbaum, enquanto descruzava as pernas e endireitava o vinco das calças-, é por vezes possível...
Deixou a frase inacabada.
- Os senhores revelaram até agora uma tal iniciativa - Mr. Tabatchnick pegou-lhe na palavra - que seguramente existe a possibilidade de...
Deixou também a frase inacabada.
Depois, para meu espanto, os advogados olharam um para o outro, trocaram, aparentemente, um sinal e levantaram-se ao mesmo tempo. Percy e eu levantámo-nos também. Estenderam as mãos por cima da mesa e apertaram as nossas.
- Fico à espera dos vossos progressos - disse Tabatchnick severamente.
- Tenho toda a confiança - acrescentou Teitelbaum num tom mais amável.
Ainda atordoado, vi-os dirigirem-se para a porta. Sentia-me intrigado,
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pois tinha a certeza de que nos tinham dito qualquer coisa. O quê, não sabia.
Mr. Teitelbaum já abrira a porta de acesso ao corredor quando se virou para trás e se me dirigiu:
- Mr. Bigg- perguntou suavemente-, Tippi Kipper é mais velha do que Glynis Stonehouse?
- O quê? - perguntei em voz rouca. - Oh, sim, senhor! - acabei por responder, a acenar com a cabeça como um demente. - Pelo menos dez anos. Provavelmente mais.
- Isso poderá ser uma possibilidade - comentou, em tom agradável.
E afastaram-se.
Deixámo-nos cair nas cadeiras. Esperei que Percy acendesse um cigarro, chupasse duas grandes fumaças e se recostasse na cadeira. Empregados e ajudantes de advogados começaram a entrar na biblioteca e a dirigir-se para as rimas de livros de Direito.
Inclinei-me para Stilton e falei em voz baixa:
- Que conversa foi aquela? - perguntei-lhe, ainda intrigado. - Aquelas últimas coisas que eles disseram? Não percebi patavina. Estou às aranhas.
Percy inclinou a cabeça mais para trás e lançou para o tecto um anel de fumo perfeito. Depois, para reafirmar a sua habilidade, soprou outro anel grande e meteu-lhe um mais pequeno no meio.
- Eles não são advogados - disse, quase sonhadoramente-, eles são piratas. Pi-ra-tas.
- De que está a falar?
- Incrível - declarou, a abanar a cabeça. - Incrível como o caraças. Teitelbaum e Tabatchnick: eles não são T & T, são TNT! Se alguma vez estiver em apuros, quero aqueles dois piratas do meu lado.
- Percy, quer fazer o favor de me dizer o que se passa? Endireitou-se na cadeira e depois inclinou-se na minha direcção, de
modo que as nossas cabeças ficaram muito perto uma da outra.
- Josh, creio que eles têm razão. O que você descobriu acerca da maneira como o Knurr apagou Sol Kipper, foi um grande desarrincanço. E provavelmente certo. Mas como vamos prová-lo? Nunca o conseguiremos. A não ser que verguemos Knurr ou Tippi Kipper. Que levemos um a dar a dica acerca do outro. E que temos contra Glynis Stonehouse? Nem sequer podemos provar que ela tentou envenenar o pai. Dorme com o Knurr num barco-habitação. E depois? Não é crime punível por lei. Os seus patrões perceberam logo que a única maneira de esclarecermos este caso é fazermos uma das principais personagens cantar.
- E como vamos conseguir isso?
- Oh, os T & T foram tão giros! - exclamou, a sorrir e a acender
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outro cigarro. - Não sei se reparou, mas nem uma vez nenhum deles disse qualquer coisa que pudesse ser interpretada como uma ordem ou como instruções para fazermos algo ilegal. Limitaram-se a fazer algumas vagas insinuações.
- Mas que disseram eles? - perguntei, desesperado.
- Caluda, fale baixo. Eles querem que metamos uma rasteira ao Knurr. Que lhe façamos uma sacanice.
Olhei-o, admirado.
- Como vamos fazer isso?
- Meter-lhe um cagaço. A ele e às damas. Agitá-los. Deixá-los saber que são suspeitos e estão a ser vigiados. Atirar uns contra os outros. Bulir-lhes com os nervos. Desgastá-los. Induzi-los a cometer qualquer acção estúpida, Luta de guerrilha. Apanhá-los na ratoeira. Julga que Knurr, Tippi e Glynis são mais espertos do que nós? Eu não acho. Meteram-se nalguns jogos de sorte e até agora as coisas têm-lhes corrido bem. Mas nós somos capazes de estratagemas igualmente inteligentes. Ou mais. Foi isso o que T & T nos disseram. Façam um jogo com essa gente e dividam-na. E têm razão: é a única maneira.
- Percebo - declarei. - Tomem a ofensiva.
- Certo!
- E aquela última coisa que Teitelbaum disse a respeito de Tippi Kipper ser mais velha do que Glynis Stonehouse?
- Ele sugeriu que informássemos Tippi acerca de Glynis.
Antes de Percy e eu nos separarmos, decidíramos o que faríamos pelo menos no respeitante à primeira jogada do nosso plano de jogo revisto. Tratei de pô-la em prática assim que voltei para o meu gabinete.
Mrs. Kletz e eu sentámo-nos a redigir uma carta que ela depois copiaria à mão, em papel sem timbre. O teor da missiva final foi o seguinte:
Querida Mrs. Kipper:
Encontrámo-nos casualmente diversas vezes, mas julgo saber mais a respeito da sua vida privada do que a senhora imagina. Verificará que não assino esta carta. Os nomes não são importantes e eu não desejo envolver-me mais. Escrevo-lhe apenas com a melhor das intenções, porque não quero que sofra o que eu sofri numa situação comparável. Mrs. Kipper, por acaso sei quanto é íntimo o seu relacionamento com o reverendo Godfrey Knurr. Espero que me perdoe se lhe digo que a sua "ligação" é do conhecimento geral e por vezes objecto de mexeriquices maliciosas nos círculos que ambas frequentamos.
Lamento informá-la de que o reverendo tem presentemente outra "ligação" clandestina com uma bonita jovem, Glynis Stonehouse.
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Acredite que tenho provas irrefutáveis da ligação de ambos, que dura há já vários meses.
Têm sido vistos juntos por testemunhas cuja palavra não pode ser posta em dúvida, Os seus frequentes encontros amorosos, sempre a altas horas da noite, ocorrem a bordo do barco-habitação dele, ancorado no cais da Rua 79. Sabia que o reverendo Knurr tinha um barco-habitação ricamente mobilado e que o utiliza para encontros à meia-noite com esta jovem e bonita mulher? E possivelmente com outras?
Como já disse, Mrs. Kipper, estou a escrever-lhe apenas para lhe poupar a angústia que recentemente sofri numa situação semelhante. lamento agora que uma amiga sincera me não tenha escrito como lhe estou a escrever, a tempo de evitar que eu procedesse estupidamente e abandonasse um marido e uma família ternos por amor de um infiel valdevinos.
Consegui obter uma fotografia da outra mulher, Glynis Stonehouse, e junto-a a esta carta.
Perdoe escrever-lhe acerca de assuntos que, estou certa, lhe devem ser penosos. Mas não podia suportar ver uma mulher com o seu gosto e o seu refinamento sofrer como eu sofri, como ainda sofro.
UMA AMIGA.
Quando Mrs. Kletz acabou de copiar a carta, metemo-la, com o instantâneo de Glynis Stonehouse, num sobrescrito simples, que Mrs. Kletz endereçou pelo seu punho.
- Toque à campainha da porta de ferro da frente - recomendei-lhe, ao enviá-la em tão importante missão. - O mordomo, um homem forte, virá abrir. Diga-lhe que tem uma carta para Mrs. Kipper, entregue-lha e afaste-se o mais depressa possível.
- Não se preocupe, Mr. Bigg. Afastar-me-ei depressa.
Pôs a boina justa de xadrez, vestiu um casaco largo como uma tenda e saiu. Meia hora depois, fechei as pastas dos casos Kipper e Stonehouse à chave e saí também do escritório. Contrariamente aos meus hábitos, meti-me num táxi para casa, tão ansioso estava por encontrar a resposta de Cleo. Ela metera-a por baixo da minha porta: "Miss Cleo Hufnagel aceita com prazer o amável convite de Mr. Joshua Bigg para jantar no seu apartamento às oito horas da noite."
Sorridente, troquei o sobretudo e o chapéu por um anorak e um boné e depois passei revista à despensa, ao frigorífico e ao armário das bebidas. Elaborei uma lista cuidadosa das coisas de que precisava e pus-me a caminho com o meu carrinho de compras de duas rodas. Estava uma noite fria e enevoada e por isso não perdi tempo. comprei dois bons bifes, batatas para cozer, creme ácido já misturado com cebolinhas, manteiga (no caso de ela a preferir ao creme ácido),
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uma alface, um belo tomate cor de plasma, um pepino do tamanho de um valente pequeno submarino, e igualmente escorregadio, uma garrafa de tempero de salada com alho e uma queijada de mirtilo congelada. Comprei também dois pequenos cocktails de camarão, fornecidos com pequenos boiões de molho que mais tarde poderiam ser utilizados como copos de sumo. Uma toalha de papel. Guardanapos de papel. Uma cebola.
Comprei ainda uma embalagem de seis latas de cerveja Ballantine, duas garrafas de chianti metidas em cestos de ráfia e uma garrafa de brande da Califórnia. E duas compridas velas encarnadas. Obedecendo a um impulso, passei por uma florista e comprei uma rosa amarela de haste comprida.
Ela bateu-me à porta alguns minutos depois das oito e entrou sorridente. Inclinou-se rapidamente, para me beijar na face. Trouxera-me um cacete de estaladiço pão de centeio da padaria judaica local. Foi uma prenda perfeita, pois eu esquecera-me por completo de comprar pão. Felizmente tinha manteiga.
Dei-lhe a rosa amarela, que quase lhe trouxe lágrimas aos olhos e me valeu outro beijo na face, desta vez mais terno. Conduzi-a à minha poltrona favorita e perguntei-lhe se queria que acendesse a lareira.
- Talvez mais tarde.
Enchi um copo de vinho tinto para ela e outro para mim.
- A si - brindei.
- A nós - redarguiu ela. Disse-lhe o que tínhamos para jantar.
- Acho maravilhoso - afirmou na sua voz baixa, segredada. - Gosto de tudo.
De súbito, devido às suas palavras, à sua voz ou ao seu sorriso, lembrei-me de uma coisa.
- Que foi? - perguntou Cleo, preocupada. Suspirei.
- Comprei um papagaio, um novelo de fio e um carreto, mas deixei tudo no escritório. Esqueci-me de os trazer para casa.
Ela riu-se.
- Não vamos soltar o papagaio esta noite. Mas agrada-me que se tenha lembrado.
- É um papagaio vermelho. Ouça, tenho de ir à cozinha preparar as coisas. Sirva-se de vinho.
- Não posso ir consigo? - perguntou, docemente. - Prometo não atrapalhar.
Não me lembrava de me ter sentido tão contente na minha vida. Creio que o que sentia -além dos efeitos balsâmicos da comida e da bebida - provinha de ter tomado consciência do que era o lar. Nunca tivera um verdadeiro lar. Meu. E ali estávamos nós numa minúscula
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cozinha desarrumada, fragrante dos odores dos cozinhados e do fumo das velas, tranquilos e reconfortados, protegidos e escudados.
Era uma nova experiência para mim, estar com uma mulher de quem gostava. Gostava? Bem... com quem queria estar. Não precisava de conversar. Nem ela. Podíamos estar gostosamente silenciosos juntos. Era alguma coisa, não era?
Depois do jantar, ela ofereceu-se para me ajudar a arrumar a cozinha.
- Oh, deixemos ficar tudo como está! - respondi, o que estava em contradição com a minha maneira de ser, pois sou um homem muito arrumado.
- Assim arranja baratas - avisou-me.
- Já as tenho - disse tristemente, e sorrimos ambos; os seus dentes grandes e salientes não me ofenderam: achei-os encantadores.
Apagámos as velas e voltámos para a sala. Achámos que seria supérfluo acender a lareira; o apartamento estava bastante quente. Ela sentou-se na poltrona e eu sentei-me no chão a seus pés. Os seus dedos afagaram-me distraidamente o cabelo. Eu afaguei-lhe os compridos e preênseis dedos dos pés. Descalços. Ela gemeu de prazer.
- Gosta de mim, Cleo?
- Claro que gosto de si.
- Então, se gosta de mim, é capaz de se levantar da sua confortável cadeira, procurar a garrafa do brande no bar e servir um cálice de brande a cada um? Os cálices estão no armário da cozinha.
- Os seus desejos são ordens, senhor - respondeu humildemente.
Voltou momentos depois com cálices de brande e quando me estendeu o meu inclinou-se e beijou-me o alto da cabeça. Depois voltou a estiraçar-se na poltrona e eu voltei a afagar-lhe os dedos dos pés.
- Foi um jantar maravilhoso - disse, a suspirar.
- Obrigado.
- Sou virgem - declarou, exactamente no mesmo tom de voz com que dissera: "Foi um jantar maravilhoso."
Como podia eu responder, a não ser com um igualmente casual:
- Eu sei, mencionou-o da última vez.
- Também mencionei que não o quero ser? - acrescentou, séria.
- Ah! -exclamei, a desejar desesperadamente ser capaz de contribuir com algo melhor do que monossílabos.
Quando me ocorreu, quase imediatamente, que uma investida se podia qualificar como algo melhor, o gelo quebrou-se.
Já lhes disse que ela era alta. Muito alta. E esbelta. Muito esbelta. Mas eu não estava preparado para a elegância sinuosa do seu corpo, para o seu vigor flexível. Nem para a doçura da sua pele. Era uma corda mergulhada em mel.
Creio que inicialmente houve um certo embaraço, uma reticência
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tanto da minha parte como da sua. Mas a reserva não tardou a desaparecer, substituída por vigorosos arrebatamentos. Ela experimentava novas sensações, entrava num mundo novo, e queria saber tudo.
- Que é isto? - perguntava avidamente. - E isto?
O facto de os mamilos dos homens serem capazes de erecção deixou-a estupefacta. Ficou encantada ao saber que muitas das coisas que a excitavam me excitavam também; que podia haver tanto (ou maior) prazer no dar como no receber. Queria saber tudo imediatamente, explorar, sondar, compreender.
- Estou a fazer isto bem? - perguntava ansiosamente. E: - Não faz mal se fizer isto? - E: - Que devo fazer agora ?
- Calar-te - respondi.
Talvez tenhamos rugido. Gritámos com certeza os dois e eu lembro-me vagamente de ter olhado para um rosto transformado, extasiado e primitivo. Quando acabou, ficámos a tremer de ventura, tão apertados um ao outro que os braços me doíam de a puxar para mim, cada vez mais para mim, como se quisesse absorvê-la, e sentia o tremor muscular daquelas pernas compridas e flexíveis, a envolverem-me.
- Amo-te - disse ela mais tarde.
- Amo-te - respondi-lhe.
Enterrei o rosto na cavidade macia da junção do pescoço e do ombro. Os dedos dos meus pés acariciaram as suas canelas de marfim.
Nessa noite, só interrompi o nosso idílio por razões de trabalho uma vez. Achando que devia ser franco, informei Cleo de que precisava de telefonar à ordinária que tinha sido vista a sair do meu apartamento pelo diabólico Finkel. Acrescentei mesmo que poderia parecer que combinava um encontro, embora na realidade se tratasse de um interrogatório. Se Cleo concluísse disso, erradamente, que estava a ficar farto dela, teria muito prazer em provar-lhe o contrário assim que acabasse de telefonar. Ela riu-se e beijou-me alegremente.
O telefone tocou três vezes antes de Perdita Schug atender.
- Sim?
- Perdita?
- Sim. Quem fala?
- Joshua Bigg. -Josh!
- Desculpe telefonar tão tarde, Perdita. Espero não a ter acordado. -Não seja pateta. Só agora vim para o quarto. Esta noite tivemos
um jantar para sete. Uma trabalhadeira.
- Sim? Mr. Knurr esteve presente?
- Não, o que foi estranho. Primeiro disseram-nos que seriam oito pessoas a jantar, mas ele não apareceu. Geralmente passa todo o tempo aqui. E você, vai ao Mother Tucker's amanhã à noite?
- Garanto-lhe que tentarei - menti. - Escute, Perdita, preciso de
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lhe fazer uma pergunta invulgar. Quando Sol Kipper era vivo, costumava escrever bilhetes à mulher? Você sabe o que quero dizer, pequenos bilhetes que deixava em lugares onde ela os encontraria.
- Oh, com certeza! - respondeu sem hesitar. - Ele estava constantemente a escrever-lhe bilhetes. Ela andava sempre na giraldinha e ele, quando tinha de sair, deixava-lhe um bilhete. Li alguns. Tratava-se de bilhetinhos de amor ou apenas de recados.
- Acha que ela os guardava?
- A Tippi? Acho que guardou alguns. Ou melhor, sei que guardou. Lembro-me de ter encontrado uma rima deles numa caixa de roupas interiores, no seu quarto de vestir. Alguns davam vontade de rir. O pobre homem estava mesmo apaixonado. Ela tinha-o filado, e você sabe como.
- Pois sei. Muito obrigado, Perdita. Desculpe tê-la incomodado.
- Vejo-o amanhã à noite?
- Pode ter a certeza de que vou tentar. - Cada vez se tornava mais fácil.
Capítulo quinto
Quinta-feira de manhã: eufórico, cheio de vida, risonho. Cleo não quisera ficar toda a noite, para não preocupar a mãe, mas eu acordara impregnado da sua presença recente. Cantei no duche (O Sole Mio), olhei para a janela e acenei aprovadoramente com a cabeça ao ver a chuva que caía, oblíqua e firme. Nada seria capaz de perturbar a minha disposição. Fui de impermeável e galochas para o trabalho e levei o chapéu-de-chuva. Era do tipo automático, dos que se abrem carregando num botão do cabo. Muito eficiente. Só tinha um contra: quando soprava uma rajada forte de vento abria-se sozinho e parecia levantar-me alguns centímetros do chão.
No entanto, cheguei sem acidentes ao edifício TORT e sentei-me a planear as minhas actividades para aquele dia.
O meu primeiro telefonema foi para Glynis Stonehouse. Quando finalmente me atendeu não pareceu encantada por me ouvir. Armei em investigador jovem, inocente, optimista e entusiasta, e disse-lhe que tinha descoberto informações novas a respeito do desaparecimento do pai, informações essas que gostaria de compartilhar com ela. Contrafeita, respondeu que me poderia dispensar uma hora, se fosse imediatamente a sua casa.
Agradeci-lhe efusivamente, saí da TORT a correr e, por milagre,
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dado o mau tempo, arranjei táxi mesmo defronte do edifício.
No átrio da casa dos Stonehouses a formidável Olga Eklund aliviou-me do impermeável, do chapéu, das galochas e do chapéu-de-chuva e conduziu-me à sala bege onde Glynis Stonehouse estava reclinada a um canto do sofá de veludo, a folhear vagarosamente uma revista. Nada na sua posição nem na sua atitude denunciava preocupação.
Se cometeu algum erro, foi na maneira como me acolheu:
- Ah, Mr. Bigg! Queira sentar-se. Demasiado casual.
Sentei-me, abri a pasta e pus-me a remexer na papelada.
- Miss Stonehouse - comecei, entusiasticamente-, creio que estou a fazer verdadeiros progressos. Lembra-se de lhe ter dito que o seu pai sofrera de envenenamento arsenical antes de desaparecer? Bem, estabeleci em definitivo como foi envenenado. O arsénico era-lhe administrado no brande!
Estendi-lhe as cópias das análises químicas. Olhou-as, mas não creio que as tivesse lido. Tirei-lhas das mãos e guardei-as de novo na pasta.
- Não é maravilhoso? - perguntei, eufórico. - Que grande aberta!
- Suponho que sim - concordou, na sua voz abafada e baixa. - Mas que significa?
- Bem, significa que sabemos agora como o veneno foi administrado.
- E que vai fazer a seguir?
- é óbvio, não é? - perguntei, sorridente. - Encontrar a fonte do veneno. Não se pode comprar arsénico na drogaria da esquina, como sabe. Por isso, terei de investigar todas as pessoas relacionadas com o caso, a fim de descobrir quem teve acesso a trióxido de arsénico.
Fitei-a, convencido de que haveria uma reacção da sua parte. Não houve.
Soltou um suspiro fundo.
- Sim, creio que terá de continuar a esgaravatar até descobrir o... como costuma a Polícia dizer? ...o perpetrador, não é? Nunca desistirá, pois não, Mr. Bigg?
- Oh, não! - afirmei, veemente. - vou seguir para a frente. Miss Stonehouse, posso falar alguns momentos com Effie Dark? Gostaria de averiguar quem tinha acesso ao brande do seu pai.
Olhou-me antes de responder, inexpressivamente:
- Sim, fale com Mrs. Dark. Acho bem.
Sorri, agradecido, e inclinei-me para fechar a pasta. Antes de me levantar, ela perguntou-me:
- Mr. Bigg, porque faz isto?
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Abanei a cabeça, a fingir que não compreendia.
- Porque faço o quê, Miss Stonehouse?
- Todas estas perguntas. Esta... investigação.
- Estou a tentar encontrar o seu pai.
O corpo dela tornou-se frouxo. Derreteu-se. É a única maneira como consigo descrever o que se passou. Subitamente, deixou de haver qualquer contorno definido à volta dela. Não só no seu rosto, que descaiu, mas também nos seus membros, na sua carne. Toda ela se tornou frouxa e sem forma. Era uma coisa que assustava ver. Uma dissolução.
- Ele era um homem horrível - disse em voz baixa.
Creio que fiquei furioso. Tentei disfarçar, mas não estou certo de ter conseguido.
- Sim, tenho a certeza de que era. Toda a gente o diz. Uma pessoa horrível. Mas isso não é importante, pois não?
Fez um gesto, um aceno de mão. O gesto pequeno e gracioso de quem abandona um assunto. Derrotada.
Effie Dark estava sentada à mesa pintada de esmalte branco, com uma chávena de café vazia à sua frente. Notei uma redolência especial, que levei alguns segundos a identificar: o ar cheirava levemente a brande.
Levantou distraidamente a cabeça quando eu entrei e depois sorriu, triste.
- Mr. Bigg - disse, a puxar uma cadeira para mim-, é agradável ver uma cara alegre.
- Que se passa, Effie? - perguntei, enquanto me sentava. - Problemas?
- Oh!... - exclamou, suspirosa. - Já não há luz nesta casa. A senhora meteu-se na cama e não quer de lá sair.
- Ela está doente?
- Xerez. Quanto a Miss Glynis, nunca a vi tão em baixo. Até telefonei ao Powell, pensando que uma visita sua talvez animasse as coisas. Mas ele respondeu que tem de evitar vibrações negativas. Quer dizer com isso que tem medo de que a tristeza seja contagiosa. Bem... - suspirou de novo. - Pensava reformar-me daqui a um ano ou dois. Talvez o faça mais cedo. (-
- Que irá fazer, Effie? - perguntei, brandamente.
- Oh, cá me arranjarei! - respondeu, e respirou fundo. - Tenho o suficiente. Não é o dinheiro que me preocupa: é a solidão.
- Mude-se para uma terra agradável - aconselhei-lhe. - Onde haja calor e sol. Talvez a Florida ou a Califórnia. Arranjará novos amigos.
Animou-se, subitamente. Os olhinhos de mirtilo cintilaram na cara de bolacha. Levantou um braço gordo e enfiou os dedos na cabeleira
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branco-amarelada, tingida com marcela. Juraria que lhe ouvi as placas dos dentes postiços entrechocar-se.
- Posso até arranjar um marido - disse, a olhar-me brejeiramente. - Que lhe parece, Mr. Bigg? Acha-me demasiado gorda?
- "Agradavelmente roliça" é a expressão, Effie. Há muitos homens que apreciam mulheres bem dotadas.
- Bem dotadas? - repetiu. - Onde você já vai! É um remédio para mim, acredite que é verdade. Vê? Estou a rir-me pela primeira vez nalguns dias. Mas não creio que tenha passado por aqui só para tornar feliz uma velha idiota. Precisa de alguma ajuda?
- Obrigado - agradeci-lhe, e baixei a voz: - Effie, a porta do gabinete do professor Stonehouse está fechada à chave?
Acenou afirmativamente, a fitar-me com os olhos brilhantes.
- Tem uma chave? Novo aceno de cabeça. Pensei um momento.
- O que gostaria que fizesse é o seguinte: espero aqui enquanto vai abrir a porta do gabinete e depois volta. Em seguida vou ao gabinete. Você ficará aqui e, por isso, não me verá entrar. Demorar-me-ei alguns minutos, apenas. Não mais de cinco. Juro-lhe que não tirarei nada do gabinete. Depois voltarei aqui para me despedir e a senhora poderá fechar de novo a porta do gabinete. Deste modo, se alguma vez a interrogarem, poderá dizer sem faltar à verdade que não me viu no gabinete, que não me viu lá entrar nem de lá sair.
Pensou uns momentos no assunto.
- A Glynis está cá - disse. - Na sala, creio. E a Sueca Sexy também anda por aí. Qualquer delas o poderia surpreender lá.
- Bem sei.
- Espero proceder acertadamente.
Depois de entrar no gabinete, fechei a porta devagarinho. Dirigi-me logo para a parede onde estavam dispostos os modelos dos cascos de navios. Percorri a fila de baixo, a bater levemente nos cascos com o nó de um dedo. Uns soavam a sólido, outros a oco. Encontrei o Prince Royal no meio da terceira fila. Pus-me em bicos de pés para tirar a placa do Prince Royal dos ganchos pregados na parede.
Levei o modelo para a secretária e coloquei-o em cima da papelada e dos mapas. Acendi o candeeiro da secretária. Peguei num lápis e bati duas vezes no casco. Soou a oco. Por enquanto, tudo bem.
Agarrei no casco e levantei-o com cuidado. Soltou-se. Assim, com toda a facilidade. Soltou-se pura e simplesmente. Fiquei admirado e olhei à procura do que o segurava à placa. Oito pequenos magnetos, barras com dois centímetros e meio de comprimento, quatro aplicados no casco e quatro na placa. Chegavam para prender o casco quando a
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placa estava na parede, mas bastava um pequeno puxão para o desprender.
Claro que me interessaram mais os papéis dobrados no interior. Na sua maioria eram folhas finas, do tipo usado para cópias a papel químico. Desdobrei-as cuidadosamente, a pegar-lhes pelos cantos. As primeiras quatro folhas não estavam dactilografadas e, sim, escritas à mão. Demorei um bocado a lê-las. A caligrafia era tão retorcida, complicada e ruim como o homem tinha sido.
Eu, Yale Emerson Stonehouse, no pleno uso das minhas faculdades mentais...
Estava tudo ali: o último testamento holográfico do desaparecido professor Stonehouse. Começava por fazer legados específicos em dinheiro. Cinquenta mil dólares para a Universidade onde estudara e, com prazer o vi, vinte mil dólares para Mrs. Effie Dark. Seguia-se uma dúzia de legados em dinheiro a primos e parentes distantes, nenhum dos quais recebia mais de mil dólares - e um dos quais herdava apenas cinco. A Olga Eklund estavam reservados cem.
O grosso dos seus bens deveria ser dividido igualmente entre a sua mulher, Ula Stonehouse, e o seu filho, Powell Stonehouse. O testamento proibia especificamente a sua filha, Glynis Stonehouse, de compartilhar dos seus bens porque, "deliberadamente e com premeditação criminosa", tentara causar-lhe a morte adicionando trióxido de arsénico ao seu brande. A prová-lo, juntava ao testamento cópias de análises químicas feitas por Bommer & Son e uma declaração do Dr. Morris Stolowitz em como o professor Stonehouse sofrera de facto de envenenamento por arsénico.
Além disso, continuava o testamento, se o testador fosse encontrado morto por violência ou pelo que parecesse um acidente, exigia que a Polícia efectuasse uma investigação minuciosa às circunstâncias da sua morte, com o conhecimento prévio de que a filha tentara assassiná-lo uma vez e possivelmente voltaria a tentar, com maior êxito.
O testamento tinha sido testemunhado por Olga Eklund e Wanda Chard. Admitia que a viga da criada assinasse qualquer coisa que o professor lhe mandasse e o esquecesse prontamente. Mas Wanda Chard?
Dobrei cuidadosamente os papéis, pelos vincos primitivos, voltei a metê-los no casco do Prince Royal, uni o casco à placa e limpei ambos com o lenço. Depois, a segurar a placa pelas arestas, com as pontas dos dedos, voltei a pendurá-la na parede, endireitei-a e regressei à cozinha.
- Obrigado, Effie - agradeci, e inclinei-me para lhe beijar uma das faces.
Ela olhou para mim e pareceu-me ver-lhe lágrimas nos olhos.
- É o fim de tudo, não é? - perguntou-me.
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Não lhe pude mentir.
- É quase o fim.
Voltei à sala. Glynis Stonehouse estava de pé junto de uma das janelas altas, a olhar para a rua fustigada pela chuva. Voltou-se quando me ouviu entrar na sala.
- Acabou ? - perguntou-me.
- Acabei. Mrs. Dark disse-me que a sua mãe não se sente bem. Lamento, Miss Stonehouse. Queira transmitir-lhe os meus melhores votos de rápidas melhoras.
- Obrigada.
Continuou de pé, alta e erecta. Recuperara a compostura. Olhava-me firmemente, sem que nada no seu aspecto sugerisse que sabia quanto estava próxima da tragédia.
- Mantê-la-ei informada do progresso da minha investigação, Miss Stonehouse.
- Sim, por favor - respondeu, serenamente.
Era forte. Oh, como era forte! Se enfraquecera momentaneamente, essa fraqueza já passara. Estava resoluta, determinada a ir até ao fim. Admirei-a. Era uma mulher inteligente e devia saber que corria perigo, que se equilibrava no gume de uma lâmina. Desejei-lhe um bom dia, muito dignamente, e depois atravessei a cidade a caminho da mansão Kipper.
Chester Heavens saudou-me com o aprumo habitual, mas eu adivinhei uma certa reticência, quase um nervosismo nas suas respostas às minhas perguntas de circunstância acerca da sua saúde, do tempo, etc. Estávamos parados no grande átrio de entrada quando ouvi o som de vozes elevadas, que se coava através das portas fechadas da sala.
- A senhora está em casa - informou-me o mordomo gravemente, a olhar por cima da minha cabeça.
- Estou a ouvi-la. E Mr. Knurr? Acenou lentamente com a cabeça. Ocultei o meu contentamento.
- Chester, não me demoro. Esta poderá ser a minha última visita.
- Sim? Lamento ouvi-lo dizer isso.
- Venho só verificar umas pequenas coisas.
Inclinou-se ligeiramente e afastou-se na direcção da cozinha. Eu fiquei parado junto da porta principal e olhei para a parte traseira da casa. A porta não se via da cozinha. Depois dirigi-me para o elevador, que ficava bem à vista de quem se encontrasse na cozinha ou na copa.
Vi Mrs. Bertha Neckin parada junto do lava-louça. Levantou a cabeça e eu acenei-lhe, mas não me correspondeu.
Meti-me no elevador para o quarto andar e entrei imediatamente no quarto de vestir de Tippi Kipper. Pousei a pasta e comecei a procurar. Não foi difícil de encontrar: uma caixa de madeira trabalhada a
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cheirar a cedro e com cantos de latão. Parecia uma peça de artesanato indiano. Estava debaixo de um monte de finíssima roupa interior, numa gaveta do fundo da cómoda. Devo ter corado quando mexi naquelas delicadas peças de vestuário.
A caixa, que não se encontrava fechada à chave, estava cheia de um monte de bilhetes, que pareciam ali ter sido postos sem qualquer cuidado especial. Havia bilhetes escritos no papel de cartas particular de Sol Kipper, em folhas de livros de apontamentos, em simples bocados de papel e um até num cheque de Solomon A. Kipper, passado em nome de Tippi Kipper pela importância de "Dez triliões de dólares e todo o meu amor", e tendo como assinatura "Teu Sol".
Dei uma rápida vista de olhos aos bilhetes. O meu coração amarfanhou-se. Na sua maioria eram cartas de amor de um velho obviamente obcecado ao ponto da demência por uma mulher muito mais nova, cujas habilidades de sedutora os bilhetes descreviam em explícito pormenor.
E havia bilhetes a pedir desculpa.
"Lamento, querida, se te aborreci." Não era mau, para começar. Mas a seguir encontrei outro: "Perdoa, por favor, o modo como me comportei a noite passada. Compreendo que te doía a cabeça, mas estavas tão bonita que não pude conter-me." À medida que fui lendo, foi-se delineando um padrão de crescente desespero, dependência e humilhação.
"Poderás alguma vez perdoar-me?" E depois: "Aqui tens uma pequena lembrança para te compensar do que disse a noite passada. Estou perdoado?"
Era um tormento ler aquelas revelações de um homem morto. Roubei dois bilhetes:
"Tippi, espero que me perdoes o sofrimento que te causei." E: "Minha querida mulher, perdoa-me por favor tudo o que fiz. Prometo que nunca mais terás qualquer razão para duvidar do meu eterno amor por ti."
Estes dois bilhetes poderiam servir de bilhete de suicídio tão bem como o que fora encontrado em lugar proeminente no quarto principal, depois do salto de Sol Kipper.
Meti os bilhetes na pasta, fechei e arrumei a caixa no seu lugar e depois subi pela escada das traseiras ao quinto andar. Entrei no salão de festas e parei de costas para as portas-janelas fechadas à chave, que davam para o terraço.
Olhei para o relógio. Calculei quinze segundos para o acto de atirar Kipper por cima do muro. Depois comecei a correr. Desci a escada das traseiras o mais depressa que pude e meti pelo corredor do quarto andar para a escada principal. Continuei a descer rapidamente, a descrever as curvas como um louco. Cheguei ao átrio de entrada e corri para
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a porta principal. Olhei, ofegante, para o relógio. Cerca de noventa segundos. Ele podia tê-lo feito. Facilmente.
Não estava ninguém perto e não vinham quaisquer sons da sala. Vesti o impermeável, calcei as galochas e saí para a chuva gelada sem me despedir de Chester. Fui a pé na direcção da 5ª Avenida com a intenção de apanhar um táxi. Estava quase a chegar quando uma pessoa começou a andar ao meu lado. Quem havia de ser? O reverendo Godfrey Knurr em pessoa!
- Joshua! - exclamou, e abrigou-se debaixo do meu chapéu-de-chuva. -Que agradável! O Chester disse-nos que estava lá. Se me vai dizer que está bom tempo para os patos, sou capaz de lhe dar um pontapé!
Estava de novo bem disposto, alegre.
Não entrei em pânico. Sabia que ele tinha estado à minha espera, mas, embora o não compreendesse, agradava-me o confronto. Talvez o considerasse um desafio.
- Prazer em voltar a vê-lo, pastor. Não o quis interromper, nem a Mrs. Kipper.
Revirou os olhos, numa expressão de cómico desânimo.
- Mas que discussão! - exclamou, e deu-me o braço. - Quer que lhe conte?
- Claro. Olhou em redor.
- Depois da esquina - disse. - Mais ou menos um quarteirão abaixo. Há um hotel chique, com um agradável bar de cocktails. Sossegado. Podemos falar... e ficar secos. Pelo menos exteriormente.
Poucos minutos depois estávamos junto do balcão almofadado, de vinilo preto, da sala acolhedora do Stanhope. A sala estava fracamente iluminada pelas janelas riscadas de chuva, nas quais o Museu Metropolitano luzia como um Monet. Éramos os únicos clientes e o estabelecimento estava impregnado do ambiente secreto característico de um bar de Manhattan num dia chuvoso, um ambiente confortável e abrigado que convidava a que se fizessem confissões.
Knurr pediu um martini com uma casca de limão. Eu pedi uma garrafa de cerveja nacional. Quando nos serviram, ele olhou à volta da sala vazia e disse:
- Vamos para uma mesa.
Pegou na bebida e dirigiu-se à minha frente para uma pequena mesa, a um canto afastado. Segui-o com a minha garrafa de cerveja e um copo.
Era essa a diferença entre nós: eu teria perguntado ao empregado do bar: "Podemos ir para uma mesa?"
Devo admitir que era mais confortável estar sentado nas cadeiras fofas, com paredes atrás das costas. Sentámo-nos em ângulo recto
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relativamente um ao outro, mas voltámo-nos um pouco, para ficarmos de frente.
Knurr tagarelou um bocado, principalmente acerca de coisas sem importância, como o tempo, uma constipação de que estava a tentar livrar-se, como todos os anos naquela época começava a ansiar por climas mais quentes, sol, uma praia arenosa, etc.
Fitei-o nos olhos, enquanto ele falava. Acenei uma vez por outra com a cabeça. Sorri. Causava a mais estranha sensação do mundo estar ali sentado a beber e a conversar ociosamente com um assassino.
Como pudera pensar que um assassino seria diferente? Talvez desfigurado com uma cicatriz? Isso seria demasiado fácil. Assim, tinha de recordar constantemente a mim mesmo quem Knurr era e o que tinha feito. Mas do que tinha absolutamente consciência era da normalidade da nossa conversa, da sua banalidade. "Que dia desgraçado!" "Sim, mas disseram que talvez limpasse ao anoitecer."
Por fim, deixou de falar por falar. Apoiou ambos os cotovelos na mesa, passou as palmas das mãos pela cara, suspirou e olhou para o vazio da sala.
- Aconselho uma quantidade de pessoas - disse, a falar para o vácuo. - Como lhe disse, principalmente mulheres. De vez em quando, dá-se o caso de se convencerem de que o meu interesse por elas não se concentra puramente na sua alma imortal. Presumem que sinto um... um interesse mais pessoal. Compreende?
- Claro. Deve conduzir a dificuldades.
- Conduz, de facto - confirmou, a suspirar. - A toda a espécie de dificuldades. Por exemplo, exigem-me mais tempo do que eu estou disposto a dar-lhes, ou posso dar-lhes, até.
Emiti alguns ruídos de compreensão.
- Acredita que algumas das minhas... bem, ia a dizer patronas, mas nem todas o são. À falta de melhor palavra, chamemo-lhes clientes.
- Que tal dependentes? - sugeri.
Olhou-me vivamente, para ver se eu estava a ser sarcástico. Não estava. Deu-me um pequeno soco no antebraço.
- Muito bem, Joshua. Dependentes. Gosto. é muito melhor do que clientes. Mas, como ia dizendo, de vez em quando algumas das minhas dependentes têm ciúmes de outras, convencem-se de que lhes dedico demasiado tempo. Não quero dizer que haja egoísmo da parte delas, mas, na sua maioria, as pessoas infelizes, mulheres e homens, têm tendência para serem egocêntricas, e quando se lhes manifesta um interesse compreensivo querem mais e mais. A compreensão torna-se um vício, e elas não gostam que a compartilhemos com outros. Foi essa a origem do meu desacordo com Mrs. Kipper. Presentemente
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aconselho outras mulheres, claro, e ela achou que não andava a dedicar-lhe, e aos seus problemas, tempo suficiente.
Não era uma mentira grosseira, mas pareceu-me desnecessariamente complexa. Não tinha necessidade nenhuma de me dar sequer explicações. Mas uma vez que começara, deveria ter optado pela simplicidade.
Olhei-o enquanto ele fazia sinal ao empregado para servir outra rodada de bebidas. Fê-lo com uma atitude imperiosa, com uma das mãos levantadas e gestos secos.
- Como vai o seu clube social?
- O quê? - perguntou vagamente. - Ah, óptimo, óptimo! O tipo pôs um nadinha a mais de vermute no último martini, Espero que este esteja mais seco.
O empregado veio trazer as bebidas à nossa, mas não se demorou. Knurr bebeu avidamente um golo.
- Muito melhor. - Sorriu de satisfação, descontraiu-se e deixou-se escorregar um pouco na cadeira. -Seco como poeira.
Era sem dúvida um homem virilmente atraente, ardente e intenso. Eu compreendia por que motivo as mulheres se sentiam atraídas para ele; irradiava vigor e segurança. O nariz ligeiramente curvo e os firmes olhos castanhos davam-lhe a aparência daquilo a que se chama "um homem homem", mas a barba cor de ardósia enquadrava uns lábios rosados, quase ternos, que sugeriam uma suave vulnerabilidade.
- Espero que o senhor e Mrs. Kipper tenham continuado amigos.
Soltou uma gargalhada curta e dura e respondeu, a sorrir:
- Oh, creio que persuadi a senhora!
Não gostei daquele sorriso, que me pareceu impregnado de maldade. Significaria que a fotografia de Glynis Stonehouse e a carta de Mrs. Kletz não tinham servido para nada ?
Pensei no que ele sabia -ou imaginava- a meu respeito. Achei que o meu falso papel no caso Kipper continuava intacto, que ele aceitava a minha identidade de empregado de uma firma de advogados que fazia um inventário preliminar do espólio. No caso Stonehouse, Glynis deveria ter-lhe falado da minha investigação do desaparecimento do pai. Ele sabia que eu descobrira o envenenamento por arsénico. O que não sabia, estava certo, era que eu estava ao corrente do seu relacionamento íntimo com Glynis.
- Esta foi a minha última visita à residência Kipper - informei. - Agora começarão a trabalhar os avaliadores especializados.
- Sim? - redarguiu, em tom de grande desinteresse. - Bem, suponho que tem muitas outras coisas que o ocupem.
- Se tenho! - exclamei, entusiasmado. - Recebi ordens para dedicar todo o meu tempo a um caso relacionado com um homem que desapareceu sem deixar testamento.
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- Parece interessante - comentou casualmente, e bebeu um golo de martini. -Fale-me disso.
Imaginei que a esgrima devia ser aquilo: bote, parada, ataque.
- Não há muito que dizer. Apenas o que já disse: um homem desapareceu-já lá vão dois meses-e não foi encontrado nenhum testamento. As ramificações jurídicas é que tornam o caso tão fascinante. Todos os bens estão apenas em nome dele. Por isso, tornar-se-á necessário apresentar um requerimento ao tribunal a fim de libertar o necessário para as despesas de manutenção da família.
- E se ele não voltar a aparecer?
- Aí é que está o problema - confessei com um sorriso amarelo, enquanto tentava lembrar-me do que Mr. Teitelbaum me dissera acerca das leis aplicáveis. - Creio que têm de decorrer cinco anos antes de o espólio de uma pessoa desaparecida poder ser legitimado.
- Cinco anos! -exclamou.
- No mínimo - especifiquei, a rir alegremente. - Seria muito mais simples se o corpo do homem desaparecido aparecesse. Se ele está realmente morto, como toda a gente começa a suspeitar, claro. Mas estou a maçá-lo com tudo isto.
- De modo nenhum - afirmou, bem disposto. - É uma conversa interessante para uma tarde chuvosa. Portanto, se o homem desaparecido aparecesse morto, os seus bens poderiam ser distribuídos imediatamente aos seus legítimos herdeiros?
"Apanhei-o", pensei, com alguma satisfação.
- Exactamente - respondi, despreocupado. - Uma vez estabelecida definitivamente a prova da morte, o testamento do homem pode ser apresentado para legitimação.
- E se não existe, ou não se encontra, nenhum testamento?
- Nesse caso, os bens são divididos de acordo com as leis dos intestados. No caso presente, iriam para a mulher, para a filha e para o filho do indivíduo.
- São bens chorudos? - perguntou, devagar.
"Sacana ganancioso!"
- Suponho que sim. Não faço ideia da quantia exacta em dólares, mas pelo que me consta é volumosa.
Tirou o cachimbo e a bolsa do tabaco da algibeira do casaco e estendeu-os na minha direcção.
- Importa-se?
- De modo nenhum. Fume à vontade.
Observei-o e esperei enquanto ele se entregava ao cerimonial de encher o cachimbo, calcar o tabaco com a ponta do indicador, acender o cachimbo, inclinar a cabeça para trás e soprar uma comprida pluma de fumo para o tecto.
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- A lei é uma coisa maravilhosa - comentou, a sorrir. - Uma mina de dinheiro. Quero dizer, a prática da lei.
- Sim, sem dúvida.
- Às vezes penso que a justiça é um conceito impossível - continuou, enquanto ia expelindo fumo. - Por exemplo, no caso que descreveu eu imaginaria que o simples facto de o homem estar desaparecido há dois meses seria suficiente para permitir que a sua família compartilhasse dos seus bens. Ele partiu voluntariamente?
- Tanto quanto sabemos.
- Não mandou nenhuma carta nem nenhum recado ao seu advogado?
- Não, nada do género. E não há nenhum indício de ter havido violência. Por tudo quanto sabemos, pode muito bem estar vivo. É por isso que a lei exige uma procura diligente e um período de espera de cinco anos. No entanto, não deixa de ser um tormento para a família.
- Certamente - murmurou, com um nadinha de fervor excessivo.
- Contudo - prossegui, a enterrar o anzol tão profundamente quanto podia-, se o corpo for descoberto, independentemente de ele ter morrido de morte natural, acidente ou violência, o testamento será apresentado para legitimação. - Achei que tinha dito o suficiente e mudei bruscamente de assunto:
- Pastor, disse-me que era oriundo de Chicago, não disse?
- Não propriamente da cidade - respondeu, a sustentar o meu olhar. -De um subúrbio. Porque pergunta?
- Tenho um primo que vive lá e me convidou para uma visita. Nunca estive em Chicago e não sei se gostarei.
- Encontrará lá muito que fazer - declarou, em voz sem timbre.
- O senhor gostava de lá estar? - persisti.
- Durante algum tempo, gostei. Devo confessar, Joshua, que me aborreço facilmente. Por isso, vim para Nova Iorque.
- Novos mundos para conquistar?
- Exactamente - concordou, com um sorriso dúbio.
- E não se arrependeu ?
- Uma ou duas vezes - respondeu, ainda a sorrir. - Às três da manhã.
Era-me difícil resistir ao encanto do indivíduo. Durante um breve momento duvidei de tudo quanto soubera a respeito dele, de tudo quanto imaginara.
Tentei analisar porquê, porque lutava contra a admiração que sentia por ele. Grande parte dessa admiração devia-se, pareceu-me, à sua presença física. Ele era alto, forte, robusto: tudo coisas que eu não era. E era decidido, ousado, resoluto.
Mais do que isso, possuía realmente uma força elementar. Atrás do riso franco, da bonomia, da inteligência e do espírito, havia força pura,
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força bruta. Tive consciência do muito que queria que ele gostasse de mim.
O que significava que o temia. Não foi uma descoberta reconfortante.
Acabámos de beber sem aludir de novo aos casos Kipper ou Stonehouse. Knurr insistiu em pagar as bebidas. Deixou uma gorjeta de avarento.
Disse que tinha um encontro na parte alta da cidade e, como eu regressava à TORT, despedimo-nos debaixo do toldo do hotel. Trocámos um aperto de mão e dissemos que daríamos notícias um ao outro.
Vi-o afastar-se pela 5ª Avenida acima, erecto debaixo da chuva. Parecia indómito. Tentei arranjar um táxi, mas acabei por desistir e meti-me num autocarro para a parte baixa da cidade. O veículo estava apinhado, húmido e cheirava a bolas de naftalina. Cheguei ao meu gabinete pouco depois da uma hora, despi o impermeável molhado e tirei o chapéu e as galochas. Meti o chapéu-de-chuva a pingar no cesto dos papéis.
Telefonei a Stilton e disseram-me que de momento não podia atender. Deixei o meu número, para ele fazer o favor de me telefonar. Depois fiquei a olhar para a parede vazia, alheio aos pedidos de investigação que me enchiam o cesto do trabalho.
Continuava a pensar no reverendo Godfrey Knurr. Admiti que o ressentimento que nutria contra ele podia ser atribuído à minha impressão de que me tomava de ânimo leve, de que se sentia condescendente a meu respeito. As mentiras descaradas e os pequenos socos no braço, as alegres palmadas nas costas e nos joelhos e aquele riso radiante, insolente. O facto de ele me considerar um peso pluma, um aborrecimento, talvez, mas sem nenhuma importância, avivou os meus piores receios a respeito de mim próprio. Esforcei-me por não esquecer que, ao atacar o meu amor-próprio, ele tentava obter controlo sobre mim.
Abri as pastas Kipper e Stonehouse e reli apenas os apontamentos relacionados com Godfrey Knurr. Parecia movimentar-se através de ambos os casos como um fantasma. Suspeitei que era ele o principal impulsionador, a fonte, o instigador de todos os acontecimentos desesperados que tinham ocorrido. Tinha muitos apontamentos acerca do indivíduo: a sua força, a sua determinação, o seu encanto, etc. Tinha até algumas coisinhas a respeito dos seus antecedentes.
Mas não sabia quase nada quanto ao próprio homem, quem era, a que impulsos obedecia, o que lhe dava prazer, o que lhe causava sofrimento. Era uma sombra. Não havia nada que me permitisse manobrá-lo. Não sabia explicar o que tinha feito ontem nem prever o que poderia fazer amanhã.
Procurava um rótulo para lhe aplicar e não encontrava nenhum. E ao compreender isso duvidava cada vez mais de que conseguíssemos
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apanhá-lo na ratoeira com os nossos truques e os nossos estratagemas ardilosos. Ele não era um bandido de meia-tigela nem um vigarista cínico. Não sabia, simplesmente, o que ele era. Por enquanto.
O telefonema de Percy Stilton interrompeu o meu devaneio. Falou rapidamente, quase zangado:
- O caso Kipper não foi reaberto - anunciou. - Ainda não foi. O tenente não achou que eu tivesse material suficiente para o reabrir e passou a bola ao capitão. Sabe Deus a quem este a passará por sua vez, mas não conto com nenhuma decisão antes de amanhã, e mesmo isso já será uma sorte. Espero que os seus patrões estejam a servir-se da sua influência. A noite passada mandei o meu parceiro telefonar a Knurr e fingir que era o taxista que conduziu Stonehouse ao cais dos barcos. Knurr não mordeu. Por sinal, desligou. Está a aguentar.
- Sim, também me começa a parecer que não vamos conseguir que entre em pânico - observei.
Informei Stilton de que descobrira o testamento de Stonehouse e dei-lhe pormenores do conteúdo.
- bom trabalho. Isso arruma a Glynis. Mas, Jesus, não trouxe o testamento, pois não? Destruí-lo-ia como prova.
- Não - tranquilizei-o-, deixei-o onde estava. Mas roubei outra coisa.
Descrevi os bilhetes que Sol Kipper escrevera à mulher e disse-lhe que os dois que fanara podiam ter servido perfeitamente como bilhetes de um suicida.
- Excelente, Josh! Você está realmente a fazer um trabalho de profissional, a ligar todas as pontas soltas.
Fiquei satisfeito com os seus elogios.
- Outra coisa: tive uma longa conversa com Knurr. Tomámos umas bebidas juntos.
Relatei a substância da nossa conversa.
- Não creio que a fotografia de Glynis Stonehouse e a carta venenosa tenham servido para alguma coisa.
- Não - concordou Stilton-, também me não parece. Ele acalmou Tippi Kipper e ela segue o alegre caminho do reverendo.
- Mais outra coisa... - e disse ao detective como transmitira a Knurr informações acerca das leis relacionadas com a disposição do espólio de um homem desaparecido.
- Estou a perceber - comentou Percy. - Calcula que isso o levará a abandonar o corpo? Se o tem, claro.
- Foi essa a minha esperança, quando lhe falei. Agora já não estou certo de que reaja do modo como nós queremos. Percy, o Knurr é um homem misterioso. Duvido que consigamos manipulá-lo.
- Compreendo - redarguiu, a suspirar. - Se não se acagaça e se consegue manter as suas mulheres na linha, estamos tramados.
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- Há uma possibilidade - observei. - Uma vaga possibilidade. -Qual?
- Tenho estado a rever todos os meus apontamentos sobre o Knurr. Lembra-se da entrevista que tivemos com o bispo Oxman? Ele deu-nos o nome da parente mais chegada dele, Goldie Knurr, uma irmã.
- E se ela não for irmã? Se for mulher? Um momento de silêncio.
- Tem razão - disse Stilton, por fim. -Uma vaga possibilidade.
- Temos de tentar - insisti. - Tem a morada? Creio que era em Athens, Indiana.
Encontrou a morada no livro de apontamentos e eu escrevi-a cuidadosamente, enquanto ele ma ditava.
- Vai-lhe telefonar? - perguntou Percy.
- Isso não serviria de nada. Se ele a mencionou como irmã, ela provavelmente tem ordens para confirmar o parentesco, se alguém perguntar.
- E então?
- Então - respondi, e tomei a minha decisão naquele preciso momento - acho melhor ir lá e falar com a senhora.
Era o que tinha de fazer. Soube-o instintivamente. Reservei um lugar na American, para Chicago, por intermédio da agência da firma. Não tinha tempo para pedir autorização a Teitelbaum ou a Tabatchnick. Nem teria tempo para ouvir Orsini, quando saísse apressado do escritório.
Nem de propósito, ele vinha a entrar quando eu saí, rodeado pelo seu séquito. Tentei passar despercebido, mas os olhos cintilantes de Orsini viam tudo. Estendeu a mão e agarrou-me no braço. Olhei para o diamante que faiscava no seu mindinho. Olhei para as brilhantes unhas tratadas. Os meus olhos subiram e viram a pequenina orquídea que trazia na lapela: uma flor exótica, cor de alfazema mosqueada.
- Josh! - exclamou alegremente. - Precisamente o homem que eu queria ver! Sei uma anedota que vai adorar.
Olhou sorridente para o seu círculo de sicofantas e eles aproximaram-se mais, já a compor as feições em expressões de insuportável troça.
- Era uma vez um tipo pequenino - começou Romeo Orsini-, que se dirigiu a uma loura alta, bonita, escultural. E ele disse-lhe: "Vou-te foder." E ela disse...
- Já ouvi contar - interrompi, bruscamente. - É uma anedota velha e não presta.
Soltei o braço com um esticão, abri caminho pelo círculo de
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ajudantes e saí do edifício. Não olhei para trás, mas apercebi-me do tremendo silêncio que deixara na minha retaguarda.
Não perdi tempo a tentar compreender por que lidara tão rudemente com Orsini nem como tal facto poderia afectar a minha carreira na TORT. Só pensava em chegar ao meu banco antes de fechar e tentava calcular o saldo da minha conta e quanto dinheiro seria necessário para a viagem a Chicago. Felizmente o saldo chegava e pouco depois encontrava-me num táxi que atravessava o Midtown Tunnel na direcção do Aeroporto Kennedy, depois de uma ida apressada a casa, para fazer uma mala com o necessário.
O voo para Chicago foi a única oportunidade que tive para me descontrair, ao fim de demasiado tempo de tensão, e resolvi aproveitá-la. Até me ri com o mau filme e devorei a carne mistério. Aterrámos em Chicago sem incidentes e, enquanto caminhava pelo terminal, verifiquei que o Aeroporto O'Hare estava tão apinhado e era tão barulhento e louco como o Mother Tucker's da Rua 69, leste, em Manhattan. Onde, pensei com melancólica pena, àquela hora Perdita Schug e o coronel Clyde Manila estavam lançados na sua Walpurgisnacht (*).
Andei um bocado pelo terminal, a tocar constantemente na minha carteira recentemente engrossada e a ver se tinha o bilhete de regresso, a intervalos regulares. Por fim, encontrei o caminho para o local onde se encontravam táxis, limusinas e autocarros. Obviamente, um táxi para Athens devia custar muito caro. Abordei um motorista uniformizado, que se encontrava encostado ao guarda-lama de um monstro preto, que parecia ter o dobro das janelas que qualquer veículo a gasolina merecia.
O indivíduo olhou-me sem interesse, com os olhos sonolentos a avaliar o meu sobretudo amarrotado, o chapéu informe e a maleta ensopada que tinha debaixo do braço. A sua única reacção foi passar um palito do canto direito da boca para o esquerdo.
- Vai para Athens? - perguntei-lhe.
- Para onde?
- Athens. é em Indiana. - Tinha procurado no atlas do escritório.
- Nunca ouvi falar - respondeu-me.
- Fica entre Gary e Hammond.
- Entre Gary e Hammond, onde? -Não sei - confessei.
- Então não vou para lá.
O palito voltou para o lado direito. Sei quando correm comigo. Encaminhei-me para a área dos autocarros. Estava outro motorista
(*) Alemão (Noite de Sta. Walpurga). Véspera do 1º de Maio, que na Europa medieval se julgava ocasião de um Sabate de bruxas. (N. da T.)
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fardado encostado a um autocarro que dizia Gary-Hammond. O homem olhava em redor com total desinteresse. Disse para comigo que gostaria de ter a concessão de venda de palitos do Aeroporto O'Hare. Este motorista, pelo menos, não mudou o palito de posição quando lhe falei:
- Sabe dizer-me se posso tomar este autocarro para ir a Athens?
- onde?
- Athens, Indiana.
- Onde fica isso?
- Entre Gary e Hammond. É uma aldeia incorporada.
Olhou-me, desconfiado.
- Três mil e setenta e nove habitantes em mil novecentos e trinta e nove - acrescentei, para facilitar.
- Não está a gozar? Entre Gary e Hammond? Acenei afirmativamente.
- Deixe-se ficar aqui. Não se mexa, pois são capazes de o roubar. Eu volto já.
Dirigiu-se à secretária do expedidor e falou com um homem que mascava um palito. O condutor do autocarro fez diversos gestos. Voltaram-se ambos para olhar para mim. Depois o expedidor desenrolou um mapa. Inclinaram-se ambos para ele. Juntou-se-lhes outro condutor de autocarro e depois outro e outro. Por fim estavam cinco homens a consultar o mapa, a agitar os braços e a discutir em voz alta, com os respectivos palitos numa dobadoura.
O motorista voltou para junto de mim.
- Sim - informou-me-, passo por Athens.
- Todos os dias aprendemos alguma coisa - comentei alegremente.
- Nada de importante - resmungou.
Uma hora depois, tentava espreitar através de uma janela embaçada, enquanto o autocarro seguia velozmente para sudeste. Vi sobretudo escuridão, alguns aglomerados de luzes e letreiros a néon a piscar. E depois, ao atravessarmos a linha de fronteira para Indiana, vi brilhos rosados no céu, súbitos clarões, imagens de fábricas iluminadas e uma extensão de auto-estrada que parecia ladeada apenas por tabernas, pátios de ferro velho e lojas de livros para adultos.
Cerca de noventa minutos depois de deixar o Aeroporto O'Hare, com frequentes paragens para deixar sair passageiros, parámos fora da estrada numa rua que parecia desprovida de iluminação ou habitação.
- Athens - gritou o motorista.
Levantei-me, tirei a mala da rede e cambaleei pela coxia fora, na direcção da porta.
Inclinei-me, para espreitar para fora.
- Isto é Athens? - perguntei ao motorista.
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- Exactamente. Garantido.
- Obrigado.
- Não tem de quê.
Parei numa esquina escura e vi o autocarro arrancar, não sem me ter salpicado todo dos joelhos para baixo. Só fui capaz de sentir uma coisa: pena de não ter continuado no autocarro até ao fim da linha, voltado nele a O'Hare e regressado no primeiro avião a Manhattan. Estava frio, molhado, desconfortável.
Depois de uma longa e desesperante caminhada, cheguei ao que se poderia chamar, com muito boa vontade, uma zona comercial. Na sua maioria, as lojas estavam fechadas, com portas de aço corridas. Mas passei por um drugstore que estava aberto, por uma mercearia de tipo familiar e finalmente - Ó Deus, graças! -por uma loja de bebidas.
- Uma garrafa pequena de brande, por favor - pedi ao caixeiro negro.
O homem observou-me.
- Nacional?
- Qualquer coisa. Qualquer coisa serve.
Ele estava a contar o troco quando lhe perguntei se havia alguns hotéis nas proximidades.
- Um quarteirão para baixo - respondeu-me, a apontar - e depois dois quarteirões para a direita. O New Frontier Bar and Grill.
- É um hotel?
- com certeza. Na parte de cima. Quer lá dormir esta noite? -Claro.
- Que loucura - comentou, a abanar a cabeça.
Segui as suas instruções até chegar ao New Frontier Bar and Grill. Era uma cervejaria miserável, com uma montra suja, alguns clientes ao balcão com a cara azulada por causa do televisor e uma pequena sala ao fundo, com mesas.
- Uísque e água, por favor - pedi.
- Uísque de bar?
- Está bem.
Pareceu-me que me deitou uma grande dose, até reparar que o fundo do copo era vidro sólido com pelo menos centímetro e meio de grossura.
- Disseram-me que têm aqui um hotel...
O homem olhou-me e depois inclinou-se por cima do balcão para me observar de mais perto e prestou particular atenção aos meus sapatos.
- Um hotel? Bem, pode chamar-lhe isso.
- Sabe dizer-me quanto levam?
Olhou para um ponto a meia distância e respondeu:
- Cinco dólares.
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- Parece razoável.
- É na porta ao lado. Suba um andar. O dono está na recepção. Diga-lhe que foi o Lou quem o mandou.
Despejei o uísque num trago insatisfatório, paguei, saí e subi o estreito lanço de escada da porta ao lado. O dono-recepcionista, também negro, estava sentado a uma secretária protegida por rede de arame com um guiché à frente.
O homem era robusto, dos seus cinquenta anos, e vestia uma camisola leve, com um retrato de Beethoven estampado na frente. Estava a fazer um problema de palavras cruzadas num jornal dobrado. Não levantou a cabeça.
- Cinco dólares por hora - informou. - Lençóis lavados e água canalizada. Pagamento antecipado.
- Gostava de ficar toda a noite - esclareci. - Para dormir. Foi o Lou que me mandou.
Continuou sem levantar a cabeça.
- Que é um boi com três letras, rabo comprido e crina curta?
- Gnu - respondi. - G-n-u. Olhou finalmente para mim.
- Sim, isso dá. Obrigado. Vinte dólares pela noite. Pagamento adiantado.
Abriu o guiché para receber a nota e empurrou-me uma chave com uma chapa de latão.
- Dois-zero-nove - informou. - Ao fim do corredor. Não tenciona abafar-se, pois não?
- Abafar-me?
- Cometer suicídio.
- Oh, não! -protestei. - Nada do género.
- Óptimo. Palavra de quatro letras que significa uma criança pequena ?
- Puto - sugeri.
Oh, que quarto horrível! Tão triste, tão miserável! Tinha uns três metros por três e uma cama de ferro que em tempos fora pintada de branco. Parecia ter os prometidos lençóis lavados - puídos, mesmo no fio, no entanto limpos -, mas no terço inferior da cama, o lençol e um fino cobertor de algodão tinham sido cobertos com uma tira de oleado preto. Precisei de um bom bocado para descobrir a que se destinava aquilo. Era para os clientes que estavam tão bêbedos ou tão apressados que não descalçavam os sapatos.
Certifiquei-me imediatamente de que a porta podia ser duplamente fechada à chave do interior e que tinha um ferrolho, ainda que barato. Havia um lavatório manchado a um canto, uma cadeira de cozinha de espaldar direito e uma pequena mesa de bordo, com o tampo cheio de queimaduras de cigarros. Não havia armário; tinham sido aparafusados
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alguns camarões nas paredes, para compensar, e deles pendiam alguns cabides de arame.
Fui ao corredor dar uma vista de olhos. Encontrei uma casa de banho que tresandava a desinfectante e tinha uma sanita, um lavatório e uma banheira com chuveiro. Servi-me da sanita depois de ter fechado a porta no único fecho barato existente, mas decidi evitar o lavatório e a banheira.
Voltei para o quarto e pendurei o chapéu e o sobretudo em dois dos camarões. Depois de muitos esforços, consegui abrir a única janela. Entrou uma brisa húmida e fria, ainda a cheirar a enxofre. Não tardei a compreender que não ganhava nada em estar metido naquela esqualidez e, por isso, tirei o sobretudo e o chapéu dos respectivos camarões e voltei para baixo.
- vou arranjar qualquer coisa para comer - disse ao dono-recepcionista, a tentar ser cordial e frio ao mesmo tempo.
- Um animal tipo macaco - disse ele. - Seis letras.
- Lémure.
O New Frontier Bar and Grill vira a clientela aumentada durante a minha ausência. A maior parte dos tamboretes do balcão estava ocupada e encontravam-se diversos pares, incluindo alguns brancos, sentados a mesas da sala do fundo. Todos os homens eram altos, robustos, com mãos ásperas, gargalhadas roucas e cóleras furiosas, que pareciam serenar assim que explodiam.
Fiquei satisfeito ao verificar que o empregado do bar se lembrava do que eu bebia.
- Uísque? - perguntou, mas como quem apresenta um facto.
- Por favor. com água à parte.
Quando me trouxe a bebida, perguntei-lhe quais eram as possibilidades de arranjar sanduíches e um pacote de batatas fritas.
- Neste momento estou um bocado apertado com serviço- respondeu-me. - Quando tiver uma oportunidade, faço-lhas. Está bem?
- Perfeitamente. Não há pressa.
Olhei em redor, a beber o meu uísque aos golinhos. Os monstros que me ladeavam estavam a beber uísque com cerveja, silenciosa e determinadamente, de olhos fixos no espelho manchado do fundo do bar. Não tentei entabular conversa; eles pareciam homens ressentidos.
Voltei-me para a minha própria bebida e passados momentos senti um braço pesado atravessar-se-me nos ombros.
- Olá, filhinho - disse alegremente uma voz de mulher.
- Boas noites - cumprimentei, e levantei-me. - Deseja sentar-se?
- Senta-te aqui, Sal - ofereceu o homem que estava a meu lado. -Estive a aquecer o lugar para ti. vou para casa.
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- Vai, sim, Joe - respondeu a mulher, ou melhor, a mulheraça. -Para variar.
Riram-se ambos. Joe piscou-me o olho e foi-se embora.
- Oferece uma bebida a uma pequena? - perguntou Mr. Sal e içou com perícia uma pesada nádega para cima do tamborete.
- com prazer - respondi.
- Posso beber um uísque?
- O que quiser.
- Um uísque. A cerveja faz-me gases. Acenei com a cabeça, compreensivamente.
- Lou! - gritou tão alto e tão subitamente que dei um salto. - O costume. Tenho aqui um vivinho.
Tirou um amarrotado maço de cigarros da mala muito cheia. Risquei um fósforo para lhe dar lume.
- Obrigada, filhinho. - Aspirou profundamente e o fumo desapareceu; quero dizer, não o vi sair por lado nenhum.
Era uma mulher inchada, empastelada, de quarenta e tal anos. Parecia o tipo de pequena que nunca ficaria surpreendida, escandalizada ou magoada; tinha visto tudo-pelo menos duas vezes.
O empregado trouxe-lhe a bebida: um uísque com uma cerveja pequena para acompanhar.
A mulher olhou-me de alto a baixo.
- Trabalha na siderurgia, filhinho?
- Essa Sal - disse-me o empregado - é uma bisca.
- Oh, não! - respondi à pergunta. -Não sou daqui. Sou de Nova Iorque.
- Ia-me enganando. Juraria que era fundidor.
- Então, Sal? - admoestou-a o empregado.
- Não há novidade - intervim. - Sei que a senhora está a mangar comigo. Não me importo.
Ela deu-me uma palmada nas costas que quase me atirou do tamborete abaixo.
- É fixe, filhinho - declarou, em voz grossa. -Gosto de si.
- Obrigado.
- Que diabo está a fazer em Gary?
- Gary? - repeti, a sentir o medo invadir-me. - Julgava que isto era Athens. Não é Athens, Indiana?
- Athens? - Riu-se ruidosamente, a balançar-se para a frente e para trás tão violentamente que estendi um braço para a ajudar, no caso de cair para trás. - Jesus, filhinho - acrescentou, a limpar os olhos com as costas da mão-, este lugar não se chama Athens há anos e anos! Foi absorvido por Gary há muito tempo.
- Mas foi Athens? - insisti.
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- Oh, com certeza! Foi Athens quando eu era miúda, já lá vão mais anos do que desejo recordar. Que diabo está a fazer em Athens?
- Trabalho para uma firma de advogados de Nova Iorque. Estou aqui por causa de um testamento. Tento localizar um beneficiário cujo último endereço foi dado como Athens, Indiana.
- A sério? - perguntou, interessada. - Uma herança? -Oh, sim!
- Muito dinheiro?
- Depende do que considera muito dinheiro - respondi, cauteloso.
- Para mim, tudo quanto seja mais de vinte dólares é muito dinheiro.
- São mais de vinte dólares. -Qual é o nome?
- Knurr. K-n-u-r-r. Trata-se de uma mulher: Goldie Knurr.
- Goldie Knurr? - repetiu. - Não - declarou, a abanar a cabeça-, nunca ouvi falar. - Lou! - gritou e, quando o empregado acorreu, perguntou-lhe: - Alguma vez ouviste falar de uma mulher chamada Goldie Knurr?
Ele pensou um momento, de testa franzida. -Não, acho que não - acabou por responder.
- Pague-me um duplo e eu perguntarei por aí - propôs-me Sal. Quando voltou, empoleirou-se de novo no tamborete e bateu com
o copo vazio no balcão.
- Como diabo se chama você? - perguntou-me. -Josh.
- Eu chamo-me Sal.
- Bem sei. Posso oferecer-lhe outra bebida, Sal? Fingiu considerar a oferta.
- Bem... pode, se insiste. - Fez sinal ao empregado, com dois dedos levantados. - Bingo! - exclamou. - Encontrei um tipo que conhece a Goldie Knurr. Ou diz que conhece. Vê aquele velho morenaço na sala do fundo? O de carapinha grisalha, sentado sozinho?
Virei-me.
- Vejo.
- Chama-se Ulisses Tecumseh Jones. Um ano mais novo do que Deus. Anda por aí desde que o aí existe. Diz que conheceu a família Knurr.
- Acha que falará comigo?
- Porque não? Está a beber cerveja.
- Mr. Jones? - chamei, parado ao lado da sua mesa, com a minha bebida numa das mãos e uma caneca de cerveja na outra.
Levantou a cabeça e olhou-me devagar. Sal tinha razão: ele devia ter pelo menos noventa anos. Uma múmia sem faixas. Pele de papel
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alcatroado enrugado, olhos remelosos, mãos que pareciam qualquer coisa atirada à praia pelo mar e que secara na areia quente.
- Senhor? - perguntou, em voz baixa.
- Mr. Jones, chamo-me Joshua Bigg e...
- Joshua - interrompeu. - Travou a batalha de Jericó.
- Sim, senhor. Ficaria grato se pudéssemos compartilhar uma bebida e me permitisse falar alguns momentos consigo.
Estendi a caneca de cerveja.
- é muito amável - respondeu-me, de mão estendida para a caneca. - Sente-se. A Sal disse-me que anda a perguntar pelos Knurrs?
- Ando, sim, senhor - respondi, enquanto me instalava na banqueta ao lado dele.
O ancião começou a beber a cerveja aos sorvos. Contou-me uma história acerca do seu antigo sargento do exército e soltou uma casquinada.
- Em que guerra foi isso? - indaguei.
- Oh... numa ou noutra qualquer! - respondeu, gravemente.
- A respeito dos Knurrs?...
- Foi por volta de cinquenta e oito - disse, sem se dar ao trabalho de especificar o século. - Na Sherman Street. Não estarei enganado? Era na Sherman Street?
- Está absolutamente certo - assegurei-lhe. - A morada que tenho é Sherman Street, cento e treze.
- Se nomeado, não me candidatarei - recitou-, se eleito, não servirei.
- é maravilhoso - observei, de facto maravilhado. - Quero dizer, é maravilhoso que se lembre.
- Ainda tenho os parafusos todos no lugar - afirmou, a acenar com a cabeça, satisfeito.
Sorriu, de súbito. Não tinha dentes nem dentadura postiça. Apenas gengivas cor-de-rosa.
- Isso foi em mil novecentos e cinquenta e oito?
- Mil novecentos e cinquenta e oito - confirmou. - Talvez muito antes. Vou-lhe dizer uma coisa engraçada acerca dessa família. Começavam todos por G. Toda a gente daquela família tinha um nome começado por G.
- Goldie Knurr. Godfrey Knurr...
- Exactamente. O pai, George Knurr; a mãe, Gertrude Knurr. Três outros catraios. Dois filhos: Gaylord Knurr e Gordon Knurr. Outra filha: Grace Knurr.
- O senhor tem uma memória incrível.
- Pois tenho. Os parafusos estão todos no seu lugar.
- Que lhes aconteceu? À família Knurr?
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- Oh!... Os velhos, George e Gertrude, morreram, como era de esperar. Os filhos foram-se todos embora, também como era de esperar. Ouvi dizer que a Goldie é a única que ainda está por cá.
Boa notícia. Se a memória daquele velho era de facto de fiar, Goldie Knurr era realmente a irmã do meu alvo.
- Mr. Jones, por que motivo sabe tantas coisas a respeito da família Knurr?
- Costumava fazer umas coisitas lá por casa... Biscates, compreende? E a minha terceira mulher, a Emily... não, a Wanda. Sim, a terceira foi a Wanda. A minha terceira mulher foi como uma mãe para os pequenos.
- Lembra-se de alguma coisa acerca de Godfrey Knurr, Mr. Jones? Um dos filhos?
- Godfrey Knurr? - repetiu, e os olhos nublaram-se-lhe. - Devia ser o terceiro rapaz. Tornou-se pregador. Deixou a cidade. Não o posso censurar por isso.
- Não, realmente - concordei, fervoroso. - Eu também não. Não se lembra de mais nada a respeito de Godfrey? Qualquer coisa especial?
- Jovem esperto. Alto e forte. Gostava de garotas. Jogava râguebi. Houve qualquer coisa...
Calou-se, de súbito.
- Qualquer coisa? - insisti. -Não me lembro bem.
- Qualquer coisa boa ou qualquer coisa má?
Fitou-me com olhos que se tornaram subitamente límpidos, penetrantes e firmes.
- Não me lembro bem - repetiu.
Capítulo sexto
Quando abri os olhos, na sexta-feira de manhã, fiquei momentaneamente intrigado, antes de me lembrar onde estava. Levantei-me e, com pouco entusiasmo, fiz alguns exercícios de extensão. Procurei em vão sabonete, luva de banho e toalha. Remediei-me esfregando o corpo com um lenço molhado em água do lavatório do canto do quarto. Era água canalizada, como me fora prometido. Fria. Mas revigorante.
Depois vesti-me. Claro que o meu fato estava muito amarrotado, mas isso era apenas uma pequena contrariedade.
O dono-recepcionista continuava na sua gaiola de rede de arame, a beber café de uma embalagem de cartão e a ler o Architectural Digest.
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- Qual é a hora de saída, por favor? - perguntei-lhe.
- Todas as horas, ao fim de uma hora. Ah, é você! A hora de saída, para si, será à volta das oito ou nove da noite.
Saí e verifiquei que a chuva parara, mas o sol estava escondido atrás de um céu cor de ostra. Dava uma tonalidade baça ao mundo. Percorri alguns quarteirões. Precisei de todo o meu optimismo para conservar o moral. Quarteirão após quarteirão de filas de casas miseráveis e algumas árvores enfezadas.
Por fim, encontrei uma luncheonette que parecia estar a fazer bom negócio, entrei e tomei um pequeno-almoço razoavelmente comestível. Quando paguei, pedi e obtive informações acerca da Sherman Street.
A Sherman Street não era absolutamente nada diferente de qualquer outra rua de Athens; duas sólidas correntezas de casas encostadas umas às outras, todas do mesmo modelo sem inspiração, todas de dois andares, quer de tábuas sobrepostas, quer cobertas de imitação de tijolo.
Encontrei o número 113. Subi os três degraus, toquei à campainha, ouvi-a tocar dentro de casa e esperei.
A porta abriu-se apenas uma fresta, cautelosamente.
- Miss Goldie Knurr? - perguntei, e tirei o chapéu. -Não quero comprar nada - respondeu-me, irritada.
- Não a censuro, minha senhora - declarei, com um sorriso tão rasgado que a cara me doeu. - Com os preços como estão... Mas eu não ando a vender nada. Trata-se do seu irmão, Godfrey Knurr.
A porta escancarou-se.
- Morreu! -gemeu a mulher.
- Oh, não! - apressei-me a tranquilizá-la. - Não, não, não. Nada que se pareça. Ainda o vi ontem, e estava de saúde e em excelente forma.
- Senhor - murmurou, a comprimir um punho contra o peito mole-, pregou-me um destes sustos! Entre.
Entrei para o vestíbulo enquanto ela parava para fechar a porta à chave e colocar a corrente de segurança. Depois virou-se para mim.
- Viu o Godfrey, ontem? - inquiriu numa voz maravilhada: Robert Browning a perguntar: "Ah, uma vez viu Shelley perfeitamente...?"
- Vi, sim, minha senhora.
- E ele está bem?
- Que me parecesse, está de excelente saúde. Agora usa barba. Sabia?
- Barba?! - exclamou. - Imaginem! Ele deu-lhe algum recado para mim?
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- Não... - respondi suavemente. - Mas apenas porque eu lhe não disse que vinha visitá-la. Posso explicar-lhe do que se trata?
- Claro que pode! -exclamou em voz alta, e recordou-se dos seus deveres de dona de casa, com uma visita à porta. -Deixe-me ver o sobretudo e o chapéu. Venha para a sala, para termos uma conversa agradável. Uma chávena de chá? Toma uma boa chávena de chá?
- Obrigado, minha senhora, mas acabei de tomar o pequeno-almoço.
Esperei enquanto ela pendurava o meu sobretudo e o meu chapéu em cabides de bronze que se projectavam de um bengaleiro de carvalho vitoriano, com um comprido espelho prateado, um banco de tampa e lugares para chapéus-de-chuva com recipientes pouco fundos, para recolher os pingos. Depois apresentei-lhe o meu cartão:
- Leopold Tabatchnick, minha senhora, de Nova Iorque. Advogado.
- Ele não se meteu em sarilhos, pois não? - perguntou ansiosamente, quase sem olhar para o cartão.
- De maneira nenhuma - afirmei-lhe, e guardei o cartão. - Por favor deixe-me dizer-lhe de que se trata.
- Oh, Senhor! - exclamou, e comprimiu de novo um punho contra o seio. -Estou mesmo atarantada. Há tanto tempo que não tenho notícias do Godfrey! Entre e sente-se, Mr... Como disse que era o seu nome?
- Tabatchnick. Leopold Tabatchnick.
- Bem, entre e sente-se, Mr. Leopold-, diga-me o que o trouxe a Gary.
Conduziu-me à sala, onde se encontravam as cores vivas que faltavam ao exterior de Gary. Vermelho, verde, azul, amarelo, púrpura, cor-de-rosa, cor de laranja, violeta: tudo numa loucura de panos de chita. O sofá, as cadeiras, as almofadas e até as toalhas das mesas, era tudo flores e pássaros, borboletas e sóis-nascentes. Papagaios na carpete e peónias no papel da parede. Tudo ofuscante e contrastante. Demasiado estofado e avassalador. A sala atordoava os olhos e chocava os sentidos: era uma casa cómica de tonalidades berrantes em estampados, riscas, quadrados e xadrezes. Custava a respirar.
Goldie Knurr era tão estofada e avassaladora como as poltronas e os sofás. Não era gorda, mas sim uma mulher grande, sólida e mole, tão alta e tão robusta como Godfrey. Vestia como se fosse a um garden party, um vestido amplo cheio de pregas, folhos, ramos de cerejeira, que a fazia parecer duas vezes maior e duplamente imponente.
Calculei que devia ter pelo menos sessenta e cinco anos, com aquela tez rosada e penugenta de que algumas matronas são dotadas: uma luminosidade que só desaparece quando a tampa do caixão é pregada. Apercebi-me da semelhança de família. Ela tinha os lábios cheios e
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ternos de Godfrey, os seus olhos castanhos firmes e sérios e até a escabrosidade masculina das suas feições.
Tinha os ombros quase tão largos como o irmão, mas a sua figura era mais suave, roliça. As mãos eram sapudas. O cabelo, que podia ser uma peruca -embora eu desconfiasse que ela lhe chamaria uma "transformação" - era branco-azulado, complicadamente penteado e estava coberto por uma rede quase invisível.
Mandou-me sentar numa cadeira de braços tão macia que me senti engolido. Quando se aproximou de mim, aspirei o perfume suavemente nauseante do saquinho de alfazema. Desejei que não se sentasse numa cadeira demasiado perto da minha, mas foi isso mesmo que aconteceu. Sentou-se muito direita, de espinha erecta, tornozelos cruzados e mãos enlaçadas no colo.
- Então, Mr. Leopold? - perguntou, sorridente.
- Tabatchnick, minha senhora - murmurei. - Leopold Tabatchnick. Miss Knurr, represento uma firma de advogados que estão contratados pela Fundação Stilton, de Nova Iorque. Já ouviu falar da Fundação Stilton, naturalmente?
- Naturalmente - respondeu, ainda a sorrir; a sua voz era quente, borbulhante, cheia de sons aspirados; uma voz muito jovem e cheia de esperança.
- Bem, como provavelmente sabe, a Fundação Stilton atribui frequentes bolsas de avultadas importâncias a candidatos qualificados no ramo de ciências sociais, para projectos que nos parecem capazes de beneficiar a humanidade. O seu irmão, o reverendo Godfrey Knurr, solicitou uma dessas bolsas. Deseja investigar as causas e as curas da delinquência juvenil. Parece bem qualificado para dirigir um tal projecto de investigação, mas como a importância em causa é considerável, naturalmente temos de fazer todos os esforços no sentido de averiguar os antecedentes, a competência e o carácter do candidato. E é por isso que estou aqui hoje.
- Claro - murmurou, ofegante. - Se eu puder ajudar nalguma coisa...
- Consta-me que a vossa família era uma família grande, Miss Knurr. Cinco filhos e...
- Cinco filhos felizes - interrompeu-me - e cinco filhos bem-sucedidos. Nenhum de nós vive de qualquer pensão do Estado!
- Muito meritório - murmurei. - A respeito de Godfrey, sabe dizer-me se...
- O melhor - declarou, com firmeza. - Absolutamente o melhor! Todos nós o sabíamos. Não havia inveja nem ciúme, compreenda. Orgulhávamo-nos todos muito dele. Era o mais alto, o mais forte e o mais escorreito dos rapazes. Estrela da equipa de râguebi, chefe da sua turma do liceu, chefe do grupo de debate, boas notas em todas as disciplinas...
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Toda a gente o amava, e não apenas a família. Toda a gente! Verificará que ninguém tem uma má palavra a dizer a respeito de Godfrey Knurr. Todos nós sabíamos que estava destinado para grandes coisas, e foi precisamente isso que aconteceu.
Recostou-se na cadeira, sorridente, a acenar com a cabeça e a ofegar ligeiramente, satisfeita com o panegírico que acabava de proferir.
Mas eu não podia deixar ficar as coisas por ali. Aquela mulher tinha instintivamente pensado numa morte súbita quando eu mencionara o nome do irmão, aquela mulher perguntara se o irmão não se metera em sarilhos quando soubera que eu era advogado e, aparentemente, aquela mulher não via o irmão preferido havia anos. Nenhuma destas coisas se coadunava com o sonho que acabara de recordar.
- Então ele nunca esteve metido em nenhum... bem, em nenhum sarilho, quando era rapaz?
- Absolutamente nenhum! - afirmou, com ênfase, e depois resolveu corrigir:
- Enfim, houve algumas coisitas que seriam de esperar num jovem fogoso. Mas nada de grave, garanto-lhe.
- Ele tinha amigos?
- Muitos! Muitos! Era muito popular.
- Tanto entre os professores como entre os condiscípulos?
- Oh, meu Deus, sim! - afirmou entusiasticamente. - Era muito bom estudante, compreende? Aprendia com muita facilidade. Os outros rapazes falavam em ir para as fábricas e coisas assim, mas Godfrey nunca se teria contentado com isso. Aspirava a coisas mais elevadas. Aquele rapaz tinha ambição. ;
Era o amor sem reservas de uma irmã pelo belo e talentoso irmão mais novo. Tornava-se-me difícil abrir caminho através daquela adoração.
- Miss Knurr, a respeito da escolha de pastor que Godfrey fez, como carreira... Ele era muito religioso, em rapaz?
Um tiro feliz. Até àquele momento as respostas dela tinham sido imediatas e fluentes. Desta vez fez uma pausa antes de responder. Era; evidente que pensava na maneira de elaborar a resposta, e quando falou o timbre da sua voz tinha mudado. Achei-a hesitante, se não receosa.
- Bem... - disse, por fim - ...a nossa família era temente a Deus. Igreja todos os domingos de manhã, sem falta! Não posso dizer que Godfrey fosse diferente de qualquer de nós, no tocante à religião. Mas quando anunciou que ia estudar para ser pastor, ficámos todos muito contentes. Naturalmente.
- Naturalmente - concordei. - E os outros rapazes, os irmãos de Godfrey, foram realmente para as fábricas?
- Não, não foram - respondeu, secamente. -Foram ambos para a
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tropa, claro, e Gaylord decidiu continuar no exército. Gordon tem uma estação de serviço no Kentucky.
- E Godfrey tornou-se ministro - comentei, encorajadoramente. -A vossa igreja fica nas imediações?
- Dois quarteirões para sul, na Versailles Street - respondeu, e pronunciou "Ver-sales". - É a Igreja de São Paulo. Na altura, o pastor era o reverendo Stokes. Agora está reformado.
- E quem o substituiu?
- O reverendo Dix - redarguiu, com dureza. - Um preto. - Depois sorriu e perguntou: - Gostaria de ver o nosso álbum de família? Retratos de todos nós?
Levantou-se, saiu da sala e voltou com o álbum. Depois sentou-se num sofá forrado de chita aos ramalhetes e fez-me sinal para me sentar a seu lado.
Que haverá de tão triste nas fotografias antigas? Aqueles momentos de luz do sol, captados para sempre, deveriam inspirar felicidade e recordações ternas. Mas não inspiram. Envolve-as como que uma apreensão, um temor. Os instantâneos da família Knurr eram mais memento mori do que fotografias.
Chegámos ao fim do álbum e eu voltei à parte dedicada às fotografias de Godfrey.
- Quem é este que está com ele? - apontei para uma fotografia de dois jovens desempenados, com equipamento de râguebi, parados ao lado um do outro de pernas abertas e mãos nos quadris; o companheiro de Godfrey era um negro.
- Oh, esse é o Jesse Karp - respondeu, pareceu-me que desdenhosamente. - Imagine, agora é o director do liceu!
- Eram amigos íntimos?
- Bem... creio que eram amigos.
- E este sacerdote que está com Godfrey, é o reverendo Stokes?
- Exactamente. Ajudou o Godfrey a entrar no seminário. Ajudou-o, de resto, de muitos modos. Pobre homem...
Levantei a cabeça.
- Disse que ele estava reformado, não disse?
- Disse. Mas vive mal, enfim...
- Lamento.
- Não tenciona falar com ele, pois não? -Não tencionava, não, minha senhora. -Bem, ele não está todo cá... se compreende o que quero dizer.
- Ah, que pena! Senil?
- Não é exactamente isso - respondeu, a examinar as unhas rosadas dos dedos gordos. - Creio que o reverendo Stokes bebe um pouco mais do que seria bom para ele.
- Mas que pena!
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- Não é? - perguntou, sinceramente. - E era um excelente homem. Acabar os seus dias assim... Por isso, se falar com ele, Mr. Leopold, queira ter esse facto em conta.
- Tabatchnick - murmurei. - Decerto que terei.
Virei para uma página de seis instantâneos, cada um representando um jovem e confiante Godfrey com um braço musculoso passado pelos ombros de uma rapariga diferente e bonita. A pose era possessiva.
- Parece ter sido muito popular entre as raparigas.
- Oh, Senhor! - exclamou Miss Knurr. - Não faz ideia! - Procuravam-no a todas as horas, rondavam a casa, mandavam-lhe bilhetinhos e tudo. Popular? Se era! Para elas Godfrey Knurr não tinha defeitos.
Uma das seis fotografias mostrava Godfrey com uma rapariga mais baixa e mais nova do que as outras. O louro cabelo comprido caía-lhe até à cintura. Apesar da ligeira desfocagem do instantâneo, parecia terrivelmente vulnerável, de uma fragilidade incrível. Olhei melhor. Tinha um pesado aparelho de ferro numa das pernas.
- Quem é esta rapariga? - perguntei casualmente, a apontar.
- Essa? - disse Goldie Knurr, demasiado depressa. - Apenas uma das amigas do Godfrey. Não me lembro do seu nome.
Era a primeira vez que me mentia, de facto. Não era uma mulher que tivesse prática de mentir e aconteceu-lhe qualquer coisa à voz: enfraqueceu, tornou-se um bocadinho trémula.
Fechei o álbum.
- Bem, foi sem dúvida interessante e eu agradeço-lhe muito a sua colaboração, Miss Knurr. Creio que tomei conhecimento do que necessitava.
- E Godfrey obterá o dinheiro? - perguntou-me, ansiosamente.
- Não me compete a mim tomar essa decisão, Miss Knurr. Mas confesso que hoje não descobri nada que possa servir de obstáculo. Obrigado pelo seu tempo e pela sua hospitalidade.
Ajudou-me a vestir o sobretudo, estendeu-me o chapéu e entregou-se à tarefa complicada de abrir a porta. Antes de eu sair, disse:
- Se voltar a ver o Godfrey, Mr. Leopold...
- Sim?
- Diga-lhe que me deve uma carta - concluiu, a rir alegremente.
A seguir dirigi-me ao Liceu McKínley. Ocupava um quarteirão inteiro, com os seus recreios e os seus campos de basquete. Quando eu subia os degraus da frente, a porta de vidro abriu-se e um guarda da segurança negro, uniformizado e armado de bastão, veio ao meu encontro.
- Que deseja?
- Sabe dizer-me se Mr. Jesse Karp é o director desta escola? - perguntei-lhe.
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- É, sim.
- Desejava falar com ele, se fosse possível.
- Tem entrevista marcada? -Não, não tenho - confessei.
- é melhor telefonar ou escrever a marcar - aconselhou-me. -Assim eles saberão da sua vinda, compreende? E poderá entrar logo.
- É a respeito do cadastro de um antigo aluno do Liceu McKinley - expliquei, desesperado. - Não poderá perguntar?
Fitou-me. Às vezes é uma vantagem ser de via reduzida. Era óbvio que eu não constituía nenhuma ameaça para ele.
- vou telefonar lá para cima. Fique aqui.
Voltou para dentro e serviu-se de um pequeno telefone fixo na parede. Voltou decorridos poucos momentos.
- Disseram que escrevesse uma carta - informou-me. - Os cadastros de antigos alunos podem ser enviados, se quem os quer tiver uma boa razão para isso. Junte à carta um sobrescrito selado e com o seu nome e morada.
Suspirei.
- Ouça, sei que estou a ser insistente e peço desculpa. Mas não podia fazer outro telefonema? Por favor? Tente falar com Mr. Karp, ou o seu assistente, ou a sua secretária. O aluno acerca do qual me quero informar é Godfrey Knurr. K-n-u-r-r. Gostaria de falar pessoalmente com Mr. Karp a respeito de Godfrey Knurr. Por favor, tente apenas mais uma vez.
- Oh, homem, está a apertar de mais!
- Se disserem que não, vou-me embora e escrevo uma carta. Prometo.
O homem respirou fundo, tomou uma decisão e voltou para dentro, para telefonar. Desta vez a conversa foi mais demorada e eu vi-o à espera, enquanto mudava de um telefone para outro. Por fim, desligou e veio ter comigo.
- Parece que acertou no alvo - comentou.
Decorridos poucos momentos, vi uma senhora alta e magra transpor uma porta de vidro e vir na nossa direcção. O guarda abriu a porta para me deixar entrar, quando ela se aproximou.
- Para ver-Me. Karp? - perguntou, ríspida.
- Sim, minha senhora - respondi, a tirar o chapéu. - Gostaria de...
- Siga-me - ordenou-me.
O guarda piscou o olho e eu fui atrás daquelas costas tesas através de um corredor de oleado encerado e depois por dois lanços de escada acima. Não trocámos nem uma palavra. De algures chegou-me aos ouvidos um coro desafinado de vozes juvenis a cantar Frère Jacques.
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Entrámos numa grande sala em cuja porta de vidro opaco se lia: GABINETE DO DIRECTOR. A minha condutora passou por três secretárias, que escreviam velozmente à máquina, e levou-me à porta de acesso a um gabinete interior. O homem que lá se encontrava, de pé atrás de uma secretária carregada de pastas e papéis, levantou vagarosamente a cabeça.
- Mr. Karp? - perguntei.
- Exactamente. E o senhor? Eu tinha o meu cartão a postos:
- Leopold Tabatchnick - apresentei-me. - Advogado. Cidade de Nova Iorque.
Pegou no cartão que eu estendia e observou-o com atenção.
- Deseja informações acerca de Godfrey Knurr? -Desejo, sim, senhor.
Contei a história da Fundação Stilton. Olhou-me com firmeza, enquanto falei, e no fim perguntou:
- Ele está em apuros, não está?
Fui-me abaixo quase por completo. Mas devia ter sabido que aquilo teria de se dar, eventualmente.
- Está - respondi, a acenar estupidamente com a cabeça. - Está em apuros.
- Graves?
- Bastante graves.
- Tinha de acontecer.
Foi fechar a porta do gabinete e depois pediu-me o sobretudo e o chapéu e pendurou-os num bengaleiro antiquado. Indicou-me uma velha cadeira de braços de carvalho e sentou-se também atrás da secretária atravancada, numa cadeira giratória que se queixou sob o seu peso. Recostou-se, com as mãos entrelaçadas na nuca, e olhou-me gravemente.
- Qual é o seu verdadeiro nome? - indagou.
Resolvi deixar-me de truques.
- Joshua Bigg. Não sou advogado, mas trabalho realmente para essa firma de advogados do cartão. Sou o investigador-chefe.
- Investigador-chefe - repetiu, a acenar com a cabeça. - Deve ser uma coisa importante, para o mandarem de Nova Iorque até aqui. Qual é o problema com Godfrey Knurr?
- Bem, envolve mulheres...
- Tinha de envolver. E dinheiro?
- Sim, e dinheiro. Mr. Karp, se insistir, contar-lhe-ei em pormenor no que está metido o reverendo Godfrey Knurr e de que é suspeito. Mas, por causa das leis da difamação, preferia não o fazer. Ele não foi acusado de quaisquer crimes. Por enquanto.
- Crimes? - repetiu. - Chegou a isso, hem? Não, Mr. Bigg,
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na realidade não desejo saber. O senhor não estaria aqui se não fosse grave. Bem... que lhe posso dizer?
- Tudo quanto souber que seja susceptível de me ajudar a compreender o homem.
- A compreender Godfrey Knurr? - perguntou com um sorriso duro, totalmente desprovido de alegria. - Impossível! Além disso, não lhe poderei falar do homem. Perdemos o contacto quando ele partiu para o seminário.
- Não o viu depois disso?
- Uma vez. Quando ele voltou para visitar a irmã, há anos e anos. Procurou-me e tomámos algumas bebidas juntos. Não foi o que se chamaria uma reunião alegre.
- E acerca do rapaz, sabe falar-me? Talvez me ajude a compreender aquilo em que ele se tornou.
- Talvez - admitiu, duvidoso. - Mr. Bigg, quando a minha família veio do Mississipi para cá, fomos uma das primeiras famílias de cor da localidade. Não foi fácil, garanto-lhe. Mas o meu pai e os meus irmãos mais velhos arranjaram emprego nas fábricas de aço e, por isso, podíamos comer. O que já era alguma coisa. Matricularam-me aqui, na escola secundária. A maioria dos alunos eram irlandeses, polacos e ucranianos. Eu era o único preto da minha turma. Teria sido pior se não fosse Godfrey Knurr.
Devo ter parecido surpreendido.
- Oh, sim! Ele salvou-me o couro mais de uma vez, asseguro-lhe. Estávamos na oitava classe e ele era o rapaz mais alto, mais forte, mais inteligente e mais bem-parecido da escola. Os professores estimavam-no. As raparigas seguiam-no na rua, escreviam-lhe bilhetinhos e davam-lhe os biscoitos que faziam na aula de economia doméstica. Creio que se podia dizer que era o herói da escola.
- Era assim que o via?
- Oh, sim! - respondeu, muito sério. - Garanto-lho. Ele também era o meu herói. Protegia-me. Podia-se dizer que me acolhia debaixo da sua asa. Eu julgava-me o miúdo mais felizardo do mundo por ter um amigo como Godfrey Knurr. Adorava-o.
- E depois?
- Depois entrámos juntos no liceu - aqui mesmo, no velho e querido McKinley-e o Godfrey começou a cobrar. Sabe o que isso quer dizer?
- Sei.
- Começou gradualmente. Por exemplo, tínhamos de escrever um tema e ele pedia-me que redigisse o seu porque o guardara para a última hora e queria levar uma rapariga ao cinema. Tinha uma saída espantosa com as raparigas. Ou então tínhamos um exercício de
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matemática e ele arranjava maneira de se sentar perto de mim, para que eu lhe pudesse passar as respostas, se ficasse encravado.
- Pareceu-me ouvi-lo dizer que ele era inteligente.
- E era. O mais inteligente de todos. Se se aplicasse e estudasse, poderia ter feito o liceu com uma perna às costas e chegado ao fim como o primeiro da turma. Mas não tinha disciplina. Havia sempre uma dúzia de coisas que preferia fazer aos trabalhos de casa - girar à volta das raparigas, jogar basebol num terreno vago, ir a Chicago ver uma parada, enfim, qualquer coisa. Por isso, começou a apoiar-se cada vez mais a mim, até eu praticamente carregar com ele.
- E o senhor não se opunha a isso?
Jesse Karp girou a queixosa cadeira giratória até ficar a olhar por uma janela. Vi-o de perfil. Uma grande calva castanha. Uma expressão dura, pensativa.
- Não me opus - respondeu, em voz forte. - Ao princípio. Mas depois comecei a crescer. Quero dizer, fisicamente. Desenvolvi-me muito. Só na décima classe aumentei dez centímetros e quase quinze quilogramas. Passado pouco tempo, era tão alto, tão forte e tão rápido como o Godfrey. E fui-me tornando também mais sensato. Compreendi que ele me estava a utilizar. Ainda lhe fazia o jogo, mas isso aborrecia-me. Não queria ser apanhado a ajudá-lo a fazer batota. Não queria continuar a mentir por ele. Não queria fazer-lhe os trabalhos de casa nem escrever os seus temas. Comecei a aborrecer-me com as suas exigências.
- Pensa que... - perguntei, hesitante. - Quando veio do Sul para cá e ele o acolheu sob a sua asa, como disse, acha que logo a partir do princípio, quando os dois ainda eram miúdos, ele viu em si alguém que podia utilizar? Talvez não imediatamente, mas no futuro?
Jesse Karp virou-se para mim, para me fitar carrancudamente.
- Não nasceu para idiota, pois não? Tenho pensado muito nessa pergunta e a resposta é "sim", penso que foi exactamente isso que ele fez. Tinha o dom - se assim se lhe pode chamar - de seleccionar os amigos que podia usar. Se não imediatamente, pelo menos no futuro. "Depositava" gente, era como se tivesse uma conta bancária de economia, da qual podia fazer levantamentos quando tinha necessidade. Senti-me magoado quando compreendi isso. Ainda dói, passados tantos anos. Pensava que ele gostava de mim. Quero dizer, por mim próprio.
- E provavelmente gostava - tentei tranquilizá-lo. - Provavelmente, no seu espírito, não distingue a diferença. Só gosta de pessoas que pode utilizar. As duas coisas são inseparáveis.
- O que está a dizer é que ele o não faz deliberadamente? Que não planeia conscientemente?
- Creio que se trata mais de um instinto do que de outra coisa.
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- Talvez. De qualquer modo, depois de me aperceber do que ele fazia, não optei por uma ruptura brusca. Não queria confrontá-lo, ou lutar com ele, ou qualquer coisa do género. Mas deixei arrefecer gradualmente as nossas relações, abandonei gradualmente a minha posição de inferioridade.
- Como aceitou ele isso?
- Bem. Continuámos amigos, garanto-lhe. Mas ele percebeu. Deixou de me pedir que lhe escrevesse os temas e lhe passasse as respostas, nos exames. Não lhe fez diferença nenhuma. Nessa altura já tinha uma dúzia de outros amigos íntimos, alguns rapazes, mas principalmente raparigas, que se sentiam encantados por ajudá-lo. Ele tinha um encanto tão grande! Já em rapaz tinha tanto encanto que nem acreditaria.
- Acredito - afirmei. - Ainda o tem.
- Sim? Bem, no nosso último ano aconteceram umas coisas que me convenceram de que era realmente má peça. Ele tinha um emprego de uma hora por dia depois da escola, no drugstore local. Aviava refrescos e entregava compras, coisas do género. Trabalhou durante um mês, mais ou menos, e depois foi despedido. Correram boatos de que tinha sido apanhado com a mão na caixa. Pode ou não ter sido verdade. Conhecendo o Godfrey como conheço, acho que deve ter sido verdade. Depois ingressámos na equipa de râguebi do liceu. Éramos por assim dizer competidores, pois ambos queríamos jogar como meios-médios, embora às vezes o treinador nos pusesse os dois a jogar ao mesmo tempo, com um de nós como médio. Mesmo assim, cobiçávamos ambos o lugar. Mas o que eu queria dizer era que, na nossa última época, três dias antes do grande jogo com o Liceu Edison, alguém me empurrou pelos degraus de cimento do vestiário abaixo. Não vi quem foi e, por isso, não posso jurar, mas irei para a sepultura convencido de que foi Godfrey Knurr. Felizmente a coisa saldou-se por um tornozelo partido.
- Mas ele jogou a meio-médio no grande jogo? -Exactamente.
- O Liceu McKinley ganhou?
- Não - respondeu Jesse Karp com triste satisfação. - Perdemos.
- Quem acabou como o primeiro da turma? No capítulo de notas?
- Eu. Mas garanto-lhe que se Godfrey Knurr se tivesse aplicado, se tivesse tido alguma disciplina, eu nunca poderia ter-lhe passado à frente. Ele era brilhante. Não havia nenhuma outra palavra para o qualificar: era brilhante.
- Que quer ele? - perguntei, desesperado. - Porque faz semelhantes coisas? Qual é o seu móbil?
O director brincava com um abre-cartas de ébano que tinha na secretária, olhava-o de cabeça baixa e virava-o e revirava-o.
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- Que quer ele? - repetiu, a ruminar na minha pergunta. -Quer dinheiro, mulheres bonitas e as coisas boas deste mundo. Você e eu queremos provavelmente o mesmo, sem tirar nem pôr, mas o Godfrey quer obtê-lo da maneira mais fácil. Para ele, isso significa uma espécie de força animal. Roubar a caixa registadora de um drugstore. Empurrar um competidor por um lanço de degraus de cimento abaixo. Cortejar mulheres inocentes para que elas façam o que quer. O que precisa. Abre o seu caminho na vida à bruta, todo cotovelos e ombros. E Deus proteja quem se lhe atravessar à frente. Tem um mau génio dos demónios, sabia? Um génio verdadeiramente violento. Aprendeu a controlá-lo, mas uma vez vi o que ele fez a um rapaz, no râguebi. O tal rapaz obrigara Godfrey a fazer má figura, num passe. Na formação seguinte, vi Godfrey ir atrás dele. Foi violência crua, pura; é a única maneira como posso descrever o que se passou. Verdadeira brutalidade. O rapaz teve sorte em ficar vivo.
Fiquei calado, a pensar em Solomon Kipper e no professor Yale Stonehouse. Esses não tinham saído vivos da formação.
- Que quer ele? - repetiu, pensativo, Jesse Karp. - Vou-lhe contar uma coisa estranha. Quando o Godfrey e eu éramos miúdos, quase toda a gente coleccionava cartões de basebol. Você sabe o que é, aquelas fotografias de jogadores que vinham nos pacotes de pastilha-elástica. O Godfrey nunca os coleccionou. Sabe o que coleccionava? Uma vez mostrou-me a sua colecção. Modelos e estrelas de cinema. iates e mansões. Joalharia e antiguidades. Quadros e escultura. Queria ter tudo aquilo.
- O sonho americano?
- Bem... talvez. Mas deformado, tornado mau. Queria ter tudo imediatamente.
- Porque foi ele para pastor? Levantou os olhos e fitou-me.
- Que lhe parece?
- Para evitar o recrutamento?
- É o que julgo - respondeu Jesse Karp, com um encolher de ombros. -Posso estar enganado.
- Knurr alguma vez casou?
- Que eu saiba, não - respondeu muito depressa.
- Consta-me que um tal reverendo Stokes o ajudou...
- É verdade. Ò reverendo Ludwig Stokes. Agora está reformado.
- Goldie Knurr insinuou que ele está baralhado, que bebe de mais.
- é um homem muito, muito velho - disse Jesse Karp, em tom duro. -Tem esse direito.
- Sabe dizer-me onde poderei encontrá-lo?
- A última vez que tive conhecimento do seu paradeiro, estava a
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viver numa casa de madeira branca, duas portas a sul da Igreja de São Paulo, na Versailles.
Olhou ostensivamente para o relógio e eu levantei-me logo, Agradeci-lhe a amável cooperação. Ele ajudou-me a vestir o sobretudo e acompanhou-me à porta.
- Informá-lo-ei do que acontecer - prometi-lhe.
- Não se incomode - redarguiu-me friamente. - Confesso que não estou interessado em saber.
Entristeceu-me o azedume da sua voz. Acontecera tudo havia muitos anos, mas ele ainda conservava as cicatrizes. Tinha sido intrujado e armado em idiota. Julgara que tinha um amigo que gostava dele pelo que era e o amigo revelara-se apenas mais um explorador branco. Perguntei a mim mesmo em que medida essa descoberta mudara a vida de Jesse Karp.
À porta, lembrei-me de outra coisa e voltei-me para ele:
- Lembra-se de uma rapariga com quem o Knurr saía, provavelmente no liceu... uma rapariga baixa e encantadora com comprido cabelo louro? Tinha um pesado aparelho de metal numa perna. Poliomielite, talvez.
Fitou-me e depois olhou através de mim, de testa franzida.
- Sim - respondeu devagar. - Lembro-me. Coxeava muito. Era muito magra.
- com um ar frágil - acrescentei. - Melancólico.
- Lembro-me dela, sim. Mas não me recordo do seu nome. Espere um momento.
Dirigiu-se à estante com portas de vidro, encostada à parede do fundo. Abriu uma das portas, procurou e tirou um volume encadernado castanho. De plástico estampado, para parecer cabedal.
- O livro do nosso ano - explicou, a sorrir timidamente. - Do ano em que o Godfrey e eu nos formámos. Ainda o conservo.
Fiquei a gostar muito dele, naquele momento.
Coloquei-me a seu lado, enquanto ele pousava o grande volume em cima da desarrumação da secretária e começava a folheá-lo rapidamente. Chegou à secção que procurava, com pequenas fotografias individuais de finalistas, retratos, da cabeça e dos ombros. Começou então a virar as páginas devagar, enquanto um indicador largo descia pelas colunas de fotografias, nomes e biografias escolares.
- Aqui estou eu! - exclamou, a rir. - Meu Deus, que fera! Inclinei-me para ver. Jesse Karp não era fera nenhuma, mas sim
um rapaz vivo e constrangido, de colarinho branco engomado e uma gravata horrenda. A maioria dos outros rapazes usava casaco de fato, mas Karp não. Abstive-me de comentar a esse respeito.
- Nada mal - observei, a olhar para as feições ainda não vincadas
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pela idade. -Está com um ar como se fosse o momento mais solene da sua vida.
- E foi - respondeu, a fitar o livro. -Fui o primeiro da minha família a formar-me pelo liceu. Foi qualquer coisa. Aqui está o Godfrey.
Logo por baixo da fotografia de Karp estava a de Knurr, de casaco desportivo de padrão berrante. Sorria para a câmara, de queixo levantado. Perfeito, forte, arrogante. Um Rapaz de Ouro. Escrevera uma frase no livro, logo abaixo da biografia de Karp: "A Jesse, o meu melhor amigo de sempre. Godfrey Knurr." Calculei que tinha exprimido os mesmos sentimentos em muitos outros livros semelhantes do Liceu McKinley.
Cada estudante tinha um motto ou previsão impressa em itálico sob a sua biografia. A de Jesse Karp dizia: Um vencedor lento, mas seguro.
A de Godfrey Knurr era: Ouviremos falar dele durante muitos anos, no futuro.
O director continuou a passar as páginas de pequenas fotografias. Finalmente o seu dedo parou.
- Esta? - perguntou, a olhar-me.
Olhei para baixo. Era a rapariga que tinha visto no álbum de Goldie Knurr. A mesma beleza pálida e dourada, a mesma suave vulnerabilidade.
- Sim - respondi, a ler o nome: - Sylvia Wiesenfeld. Sabe alguma coisa a respeito dela?
Fechou o livro com as duas mãos e com uma veemência que me pareceu pouco natural. Voltou à estante, para arrumar o volume no seu lugar e fechar a porta de vidro.
- Porque faz perguntas a respeito dela? - indagou de costas para mim; pareceu-me que havia um elemento novo na sua voz: uma nota de hostilidade.
- Por simples curiosidade. Ela é tão bonita!
- O pai tinha um drugstore - informou, contrariado. - Já morreu... refiro-me ao pai. A ela não sei o que aconteceu.
- O drugstore era o mesmo onde Godfrey Knurr trabalhava depois das aulas?
- Era - respondeu secamente.
Insistiu em acompanhar-me pessoalmente através dos escritórios, dos corredores e das escadas até à entrada principal do Liceu McKinley. Não percebi se estava a ser cortês ou se queria certificar-se de que me não demorava no edifício.
Agradeci-lhe de novo a amabilidade e deixei-o. Não me empurrou exactamente para fora da porta, mas assegurou-se de que saí. Não me pareceu que estivesse arrependido do que me dissera a respeito de Godfrey Knurr. Mas achei que estava envergonhado e irritado por causa
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do que revelara a respeito de si próprio. Eu pusera as antigas feridas a latejar de novo.
No passeio, virei-me e olhei para trás, para o liceu, um amontoado de tijolos vermelhos tão feio que impressionava. Assaltaram-me breves e sentenciosos pensamentos dos milhares - talvez milhões! - de jovens alunos que tinham percorrido aqueles soturnos corredores, se tinham sentado naquelas carteiras gastas e naquele edifício tinham rido, chorado, brincado e descoberto o desespero.
Encontrei a casa de madeira branca duas portas a sul da Igreja de S. Paulo, na Versailles Street. Talvez em tempos tivesse sido de facto branca, mas agora era de um cinzento pulverulento, fustigada pela chuva e pelo vento e requeimada pelo sol. Olhava para o mundo com olhos cegos: janelas sem cortinas, com persianas verdes, rasgadas, descidas a vários níveis. A cerca de ferro forjado estava ferrugenta e o pequeno pátio da frente tinha lixo aqui e ali. Admirou-me que os paroquianos permitissem que a casa do seu antigo pastor mergulhasse em semelhante decrepitude.
Subi cautelosamente os degraus da frente e procurei uma campainha. Não encontrei nenhuma, embora descobrisse quatro furos de parafusos na ombreira da porta, um buraco maior aberto no meio e a marca quase apagada de qualquer coisa quadrada que envolvera o conjunto. Aparentemente, existira uma campainha, mas tinha sido tirada.
Bati com força na porta com a tinta a cair e aguardei. Ninguém respondeu. Tentei de novo. Continuei sem obter resposta.
- Continue a tentar - aconselhou alguém com voz de cana rachada. - Ele está lá dentro.
Virei-me. No passeio estava um negro idoso, com um barrete de lã esburacado e luvas sem dedos. Pareceu-me exorbitantemente inchado, até que compreendi que vestia pelo menos três casacos e o que me pareceram diversas camisolas e pares de calças. Empurrava um velho carrinho de bebé cheio de jornais e garrafas, latas, uma velha máquina de fazer café, revistas amarrotadas, dois chapéus-de-chuva torcidos e outras coisas.
- É aqui a casa do reverendo Stokes? - perguntei-lhe.
- É, é - respondeu, a acenar vigorosamente com a cabeça e a mostrar a boca cheia de restos de dentes amarelos. - Tem de continuar a bater. Ele está lá dentro. Agora nunca sai. Bata, continue a bater que ele acabará por vir à porta.
- Obrigado - agradeci, mas a estranha aparição afastava-se já pela rua fora, a arrastar os pés.
Por isso, continuei a bater à velha porta. Parecia-me que tinham decorrido pelo menos cinco minutos quando ouvi uma voz trémula perguntar do interior:
- Quem é?
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- Reverendo Stokes? - gritei. - Posso falar um momento consigo? Por favor?
Seguiu-se uma pausa tão grande que julguei tê-lo perdido. Mas depois ouvi os sons de uma tranca a ser retirada e da chave a girar na fechadura. A porta abriu-se.
Vi à minha frente um estranho homem. Calculei que andaria perto dos oitenta anos. Era alguns centímetros mais alto do que eu, mas as suas roupas pareciam demasiado grandes para o seu tamanho, o que dava a impressão de ter mirrado, em peso e altura, até ficar frágil e pequeno.
O cabelo despenteado lembrava uma massa de penas cinzentas e nas faces chupadas crescia-lhe barba de pelo menos três dias, uma penugem esbranquiçada. As têmporas estavam afundadas e a pele da fronte era tão fina e transparente que se via a rede dos vasos sanguíneos. Olhos remelosos tentaram fitar-me, mas não conseguiram concentrar-se. O nariz era um simples osso.
Vestia o que outrora fora um elegante smoking de veludo, mas o pêlo gastara-se e os cotovelos brilhavam, de sebo. Por baixo do casaco via-se uma camisa de trabalho azul, suja e sem gravata, com o colarinho desabotoado a revelar um esquelético pescoço de frango. As calças sem vinco eram de um tecido qualquer preto e lustroso, com manchas mais escuras e um rasgão num joelho. A braguilha estava aberta. Usava chinelos de feltro no fio, com os saltos partidos e cambados. Os tornozelos nus não estavam limpos.
Eu encontrava-me no exterior, no alpendre, e ele dentro de casa. No entanto, apesar da distância, captei o odor - dele, da casa, ou de ambos. Era um cheiro ácido de velhice mal lavada, de humidade, de bebidas alcoólicas entornadas, de camas por fazer e roupa por arejar, de mistura com um bafo a incenso tão cediço como o restante.
- Reverendo Stokes? - perguntei.
A cabeça de pássaro acenou afirmativamente, como se debicasse.
- Chamo-me Joshua Bigg - informei, em tom desembaraçado. - Não venho tentar vender-lhe nada. Gostaria apenas de falar alguns minutos com o senhor.
- A respeito de quê? - perguntou, em voz fina.
- A respeito de um antigo paroquiano seu, agora também pastor ordenado. Godfrey Knurr.
O que se passou a seguir foi totalmente inesperado e desanimador.
- Não aconteceu nada! - gritou-me, e estendeu a mão para me fechar a porta na cara.
Mas uma palidez esverdeada alastrou-lhe pelo rosto, a mão escorregou-lhe pela aresta da porta e ele começou a cair, lentamente, com os joelhos ossudos a dobrar-se, os ombros a descair e o velho corpo a dobrar-se como uma vela amolecida.
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Dei um salto para a frente e segurei-o por baixo dos braços. Não pesava mais do que uma criança e não tive dificuldade em ampará-lo, enquanto fechava a porta com o calcanhar. Depois, meio a carregá-lo, meio a arrastá-lo, levei-o para o interior da casa penumbrosa e malcheirosa.
Cheguei a uma divisão que em tempos devia ter sido uma sala atraente. Pu-lo num sofá velho, com o cabedal castanho estalado e rasgado. Deitei-lhe a cabeça num dos braços do sofá e levantei-lhe as pernas e os pés, de modo que ficasse estendido.
Endireitei-me, a respirar pela boca, para não ter de aspirar o cheiro dele ou da casa. Olhei-o de mãos nos quadris, sem saber o que havia de fazer.
Tinha os olhos fechados e a respiração superficial, mas firme. Pareceu-me que a sua cara estava a perder um pouco da tonalidade esverdeada que tanto me assustara. Decidi que não chamaria a Polícia nem os serviços de saúde. Tirei o chapéu e despi o sobretudo e pu-los desajeitadamente numa poltrona com uma cobertura de pôr e tirar de bombazina castanha desbotada, com uma enorme mancha vermelha na almofada. Vinho ou sangue.
Voltei ao interior da casa e encontrei uma pequena cozinha da qual pareciam dimanar quase todos os odores. E não admirava: era um chavascal. Apanhei do chão uma toalha da louça suja e meti-a debaixo da torneira da água fria, no lava-louça encardido. Os canos fizeram barulho, a água correu enferrujada e depois clareou, e eu embebi a toalha e torci-a e voltei a embebê-la e a torcê-la.
Levei-a comigo para a sala. Puxei uma cadeira de espaldar direito para junto do sofá, sentei-me e inclinei-me para o reverendo Stokes. Humedeci-lhe devagarinho a cara, com a toalha molhada. Abriu subitamente os olhos e fitou-me, atordoado. Os seus olhos lembravam leite estragado, coalhado.
Estendeu uma das mãos semelhantes a uma garra e afastou a toalha. Dobrei-a e coloquei-lha atravessada na testa pergaminhada. Deixou-me fazê-lo e não tirou a toalha. ,
- Desmaiei? - perguntou em voz traça.
- Mais ou menos. Começou a ir-se abaixo e eu agarrei-o e trouxe-o para aqui.
- No escritório - murmurou-, do outro lado do corredor, uma garrafa de uísque e um copo meio. Traga-os para aqui.
Olhei-o, perturbado.
- Por favor - rogou, ainda mais baixo.
Fui ao escritório, um aposento sombrio cheio de livros, jornais e revistas, tudo velho. Dominava no aposento uma grande secretária de nogueira, com o tampo forrado de cabedal castanho rasgado e cheio de
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riscos. O uísque e o copo estavam em cima da secretária. Peguei-lhes e preparei-me para sair.
Numa pequena coluna com tampo de mármore, perto da porta, estava uma réplica de gesso branco do David, de Miguel Angelo. Era o único objecto limpo, reluzente e bonito que vira naquela casa em deterioração. Não tinha visto nada de natureza religiosa: nem gravuras, nem quadros, nem ícones, nem estatuária, nem crucifixos, nada.
Levei-lhe o uísque. Ele levantou a mão trémula e eu cheguei-lhe o copo aos lábios. Bebeu avidamente e fechou os olhos. Passados instantes, reabriu os olhos, tirou a toalha da testa e lançou-a ao chão. Tirou-me o copo da mão. Os nossos dedos tocaram-se. A sua pele tinha a frialdade da morte.
- Há outro copo na cozinha - disse-me.
A sua voz tornara-se mais forte, mas conservava um estranho som áspero e rouco.
- Obrigado, mas não quero - respondi. - é um bocadinho cedo para mim.
- Sim? - perguntou, sem interesse.
Voltei a sentar-me na cadeira de espaldar direito e observei-o enquanto despejava o copo do uísque. Tornou a enchê-lo da garrafa que estava no chão. Não reconheci o rótulo. Devia ser um produto barato.
- Disse-me como se chamava? - perguntou-me.
- Disse, sim, senhor. Joshua Bigg.
- Sim, agora lembro-me. Joshua Bigg. Não o conheço, Mr. Bigg. De onde é?
- De Nova Iorque.
- Nova Iorque - repetiu, e depois acrescentou, num esforço patético para se mostrar alegre: - East Side, West Side, a toda a volta da cidade.
Tentou sorrir-me. Quando entreabriu os lábios finos e esbranquiçados, vi-lhe a dentadura manchada. As suas gengivas pareciam ter mirrado, pois os dentes postiços estavam soltos e ele tinha de cerrar frequentemente os queixos, para os repor no seu lugar. Parecia uma careta dolorosa.
- Fui uma vez a Nova Iorque - disse, sonhador. - Há anos e anos. Fui ao teatro. Uma peça musical. Como se chamava?... Daqui a momentos lembro-me.
- Pois claro.
- Que o traz à nossa bonita cidade, Mr. Bigg?
Tive medo de repetir o nome. Receei provocar-lhe a mesma reacção. Mas tinha de tentar.
- Queria falar consigo acerca do reverendo Godfrey Knurr, pastor- respondi, brandamente.
Fechou de novo os olhos.
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- Godfrey Knurr? Não, não me lembro desse nome. A minha memória...
Mas eu não o deixaria safar-se com aquela facilidade toda.
- é estranho que não se lembre. Falei com a irmã dele, Miss Goldie Knurr, e ela disse-me que o senhor o ajudou a entrar no seminário, que o ajudou de muitas maneiras. E vi uma fotografia sua com o jovem Godfrey.
De súbito, desatou a chorar. Foi horrível. Lágrimas baças corriam-lhe daqueles olhos de leite coalhado. Escorriam-lhe para os lados, para as têmporas afundadas, e depois para o cabelo semelhante a penas.
- Ele morreu? - perguntou, ofegante.
Primeiro Goldie Knurr e agora o reverendo Stokes. Fariam a pergunta com uma certa esperança? Desejá-lo-iam morto?
Desviei os olhos, pois não queria estar ali sentado a ver aquele homem destroçado chorar. Passado um momento, ouvi-o fungar algumas vezes e beber um golo do copo que segurava em cima do peito magro. Voltei a olhá-lo.
- Não, senhor - respondi-, não morreu. Mas está em apuros, em graves apuros. Represento uma firma de advogados. Um cliente tenciona apresentar graves queixas contra o reverendo Knurr. Estou aqui para efectuar uma investigação preliminar...
Calei-me, pois ele não me estava a ouvir. Os seus lábios moviam-se e eu inclinei-me mais para ele, a fim de ouvir o que estava a dizer.
- Demoníaco - dizia baixinho o reverendo Ludwig Stokes. - Demoníaco, demoníaco, demoníaco...
Recostei-me na cadeira. Parecia tarefa sem esperança tentar obter informações daquele velho. Goldie Knurr tivera razão: estava tarouco. Mas logo a seguir falou clara e inteligivelmente:
- Conhece-o? Viu-o?
- Sim, senhor. Falei com ele ontem. Parece estar bem de saúde. Agora usa barba. Dirige uma espécie de clube social para rapazes pobres, em Greenwich Village, e também aconselha indivíduos... dependentes. Principalmente mulheres ricas.
Franziu o rosto e cerrou os queixos para colocar as placas dentárias no seu lugar. Escorreu-lhe pelo canto da boca um fiozinho de uísque, que ele limpou devagar com as costas da mão.
- Mulheres ricas - repetiu, em voz sem timbre. - Sim, sim, isso é próprio do Godfrey.
- Reverendo Stokes, sinto curiosidade em saber por que motivo Knurr escolheu a carreira de pastor. Não encontro nada na sua mocidade que indique qualquer grande religiosidade. - Fiz uma pausa, a fitá-lo. - Foi para fugir ao recrutamento? - perguntei, quase brutalmente.
- Em parte, foi - respondeu em voz baixa. - Se a família tivesse
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tido dinheiro, gostaria de ter ido para uma faculdade moderna, da costa oriental. Essa era a sua preferência, mas impossível de realizar. Nem mesmo eu tinha dinheiro para isso.
- Ele pediu-lho? A si?
Não respondeu.
- Soube que ele teve boas notas no liceu. Talvez pudesse conseguir uma bolsa de estudo, trabalhar para ajudar a manter-se nos estudos...
- Não era essa a sua maneira de ser.
- Então podia ter ido para uma faculdade de propinas baratas, mantida pelo Estado. Porquê o ministério?
- Oportunidade - respondeu o reverendo Stokes, sem expressão.
- Oportunidade? De salvar almas? Não posso acreditar nisso, em Godfrey Knurr. E também não foi, com certeza, por causa das compensações monetárias de ser um pastor ordenado.
- Oportunidade - repetiu teimosamente. - Era assim que ele via
o caso.
Pensei no assunto, a tentar ver as coisas como o jovem e ambicioso Godfrey Knurr devia ter visto.
- Paroquianos ricos? - Deitei-me a adivinhar. - Especialmente paroquianas ricas? Talvez viúvas e divorciadas? Foi assim que a mente dele trabalhou?
Voltou a não me responder. Despejou a garrafa no copo e esvaziou-o em dois tragos.
- Há outra na cozinha - disse-me. - No armário debaixo do lava-louça.
Encontrei a garrafa. Encontrei também um copo razoavelmente limpo, para mim, e passei-o diversas vezes por água, a esfregar-lhe o interior com os dedos. Levei a garrafa e o copo para a sala, sentei-me, enchi-lhe meio copo e deitei uma gota para mim.
- À sua saúde, reverendo - disse, e ergui o copo, antes de molhar apenas os lábios.
- Ele era um rapaz bem-parecido? - perguntei, a tossir. - Refiro-me a Godfrey Knurr.
Emitiu um som estranho, antes de responder, com a sua voz esganiçada:
- Sim, muito bem-parecido. E forte. Um bonito rapaz. Fisicamente.
Peguei na deixa:
- Fisicamente? Mas a sua personalidade, o seu carácter? Seguiu-se outro dos seus irritantes silêncios.
- Encanto - disse, e levou o copo aos lábios. Repetiu, depois de beber:
- Encanto. Um encanto muito especial. Havia uma auréola dourada à volta dele.
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- Deve ter sido muito popular - comentei, na esperança de que as suas reminiscências continuassem a fluir.
- Tínhamos de o amar - disse, entre suspiros. - Na sua presença sentíamo-nos felizes. Mais vivos. Ele prometia tudo.
- Prometia? - repeti, sem compreender.
- Eu sentia-me mais jovem - continuou, em voz baixa. - Mais esperançoso. A vida parecia mais luminosa. Só por tê-lo perto.
- Ele alguma vez o visitou aqui, em sua casa?
Recomeçou a chorar e eu desesperei de saber alguma coisa de importância por intermédio daquele homem destroçado.
Esperei que os seus olhos deixassem de chorar. Desta vez não se deu ao trabalho de limpar as lágrimas. A humidade brilhava-lhe como óleo no rosto gasto. Bebeu um grande golo, que despejou o copo, e a mão trémula tacteou debilmente, à procura da garrafa. Servi-o. Nunca tinha visto um homem beber com uma determinação tão maníaca, como se ansiasse pela inconsciência.
Continuava deitado, de dedos de cera cerrados à volta do copo pousado no peito ossudo. Olhava para o tecto sem pestanejar. Tive a sensação de estar a velar um cadáver, à espera de que os cangalheiros viessem e o levassem.
- Sei que ele esteve em apuros quando era rapaz - continuei, teimosamente. - Num drugstore onde trabalhava. Foi acusado de roubar.
- Restituiu - disse o velho, quase sem mexer os lábios finos. - Repôs tudo.
- O senhor deu-lhe o dinheiro para isso? Mal ouvi o ténue: "Sim." Depois:
- Dei-lhe tanto! - exclamou numa voz tão alta que me assustou. - Não apenas dinheiro, mas também a mim próprio. Dei-me a mim próprio! Ensinei-lhe poesia e beleza. Amor. Ele disse que compreendia, mas não compreendia. Brincava comigo. Provocava-me. Passava o tempo todo a provocar-me, isso dava-lhe prazer.
Senti-me subitamente mal, ao começar a vislumbrar as proporções daquela tragédia. Agora compreendi aquele guinchado Não aconteceu nada! E a estátua de David. E o "demoníaco, demoníaco, demoníaco..."
- Amava-o? - perguntei, suavemente.
- Tanto! - respondeu, em voz estrangulada. - Tanto... Levantou a cabeça para despejar o copo e depois estendeu-mo com
mão trémula. Voltei a enchê-lo sem compunção. -Nunca casou, reverendo?
- Não, nunca. - Estava de novo a olhar para o tecto, a ver coisas que lá não estavam.
- Disse a Godfrey o que sentia por ele?
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- Ele sabia.
- E...?
- Usou-me. Usou-me! A rir. O demónio feito gente. Eu só via a auréola dourada. E depois o negrume que existia debaixo dela.
- Sabendo isso, pastor, porque o ajudou a tornar-se um homem de Deus?
- Fraqueza. Não tinha a força de alma necessária para lhe resistir. Ele ameaçou-me.
- Ameaçou-o? Como? O senhor disse que não aconteceu nada.
- E não aconteceu. Mas eu tinha-lhe escrito. Bilhetes. Poemas. Ter-me-iam arruinado. A Igreja...
Outra vez os bilhetes. Estava mergulhado em bilhetes, falsos e verdadeiros.
Respirei fundo, a tentar compreender a extensão de tal perfídia. O padrão da vida de Geofrey Knurr estava a tornar-se mais claro. Uma ambição tão grande que a sua disciplina a não podia conter: eis o motivo por que explorava o seu encanto. Passava sorridente de traição para traição, deixando atrás de si uma esteira de cicatrizes, feridas e vidas destroçadas.
E por fim - estava disso convencido - dois assassínios que não significavam mais para ele do que uma caixa registadora roubada ou aquele destroço humano atraiçoado.
- Fazia então o que ele exigia? - perguntei, a revolver a faca na ferida. - Tirou-o de apuros, meteu-o no seminário? Deu-lhe dinheiro?
- Tudo. Tudo. Dei-lhe tudo. A minha alma. A minha pobre e mirrada alma.
As palavras "mirrada alma" saíram arrastadas e entarameladas, quase perdidas entre a língua solta pelo uísque e as largas placas dentárias. Achei que não estava longe do esquecimento temporário que procurava.
- Sylvia Wiesenfeld - disse. -Conheceu-a?
Não respondeu.
- Conheceu - prossegui. -O pai dela era o dono do drugstore onde Godfrey roubou o dinheiro. Uma rapariga encantadora. Tão vulnerável! Tão condescendente! Vi a sua fotografia. Ela também amava Godfrey?
Voltara a fechar os olhos. Mas os seus lábios mexiam-se levemente, tremulamente. Levantei-me, inclinei-me e encostei o ouvido à sua boca, como se tentasse verificar se um moribundo ainda respirava.
- O quê? - perguntei vivamente. - Não ouvi o que disse. Repita, por favor.
Dessa vez ouvi: -Casei-os.
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Endireitei-me e respirei fundo. Olhei para o corpo vazio, mirrado e indefeso. E só consegui pensar: "Isto é obra de Godfrey Knurr."
Tirei o copo do uísque dos dedos sem força e pu-lo no chão, ao lado do sofá. O reverendo parecia estar a respirar lenta, mas regularmente. As lágrimas tinham-lhe secado no rosto, mas uma matéria esbranquiçada juntara-se-lhe aos cantos dos olhos e da boca. Ocasionalmente, o corpo estremecia e escapavam-se-lhe dos lábios pequenos gemidos, como gás libertado por qualquer coisa corrompida.
Percorri o andar inferior da casa. Encontrei um xaile de malha no armário do vestíbulo, levei-o para a sala e tapei com ele o reverendo Ludwig Stokes. Uma mortalha de cores vivas para um homem cinzento.
Depois voltei ao escritório e dei uma vista de olhos. Acabei por encontrar uma lista telefónica na gaveta inferior da velha secretária de nogueira. Havia um S. Wiesenfeld na Sherman Street, não muito longe da casa de Goldie Knurr. Parecia-me estranho que acontecimentos tão tumultuosos tivessem ocorrido numa área tão pequena.
A mulher que me atendeu, quando toquei à campainha, não era com certeza Sylvia Wiesenfeld; era uma negra gargantuesca, não tanto pela altura como pelo descomunal bojo. As suas feições, pensei, deviam ser agradáveis em repouso, mas quando abriu a porta estava carrancuda e a bater com uma frigideira de ferro numa coxa que parecia de madeira de sequóia. Olhou-me de alto.
- Não queremos comprar nada - disse-me.
- Oh, eu também não vendo nada! - apressei-me a assegurar-lhe. - Chamo-me Joshua Bigg e represento uma firma de advogados de Nova Iorque. Fui encarregado de proceder a investigações acerca dos antecedentes de Godfrey Knurr. Desejo conversar alguns momentos com Miss Wiesenfeld.
Olhou-me com desconfiança.
- Você é quem? Vocês, de Nova Iorque, falam tão depressa!
- Joshua Bigg - respondi, devagar. - Esse é o meu nome. Ando a tentar obter informações a respeito de Godfrey Knurr. Gostaria de falar com Sylvia Wiesenfeld durante alguns momentos.
- é da autoridade?
- Não, não sou exactamente da autoridade. Represento advogados que, por sua vez, representam um cliente que vai apresentar queixa contra o reverendo Godfrey Knurr. Ando apenas a fazer uma investigação preliminar, mais nada.
- Vão enforcá-lo? Espero que sim.
Tentei sorrir.
- Bem... Estou certo de que o nosso cliente gostaria que isso acontecesse. Posso falar uns momentos com Miss Wiesenfeld?
Lançou-me um olhar zangado, enquanto tentava tomar uma decisão.
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A pesada frigideira de ferro continuava a bater-lhe na volumosa coxa, pormenor de que não conseguia alhear-me.
- Bem... - disse, por fim. - Pois sim. - Mas acrescentou logo, veemente: -Apoquente a minha querida e desanco-o!
- Não, não! - apressei-me a tranquilizá-la. - Não a apoquentarei, prometo.
Voltou a olhar-me de alto e comentou, ameaçadora:
- Se você e eu chegarmos a vias de facto, acho que quem leva a melhor sou eu.
- Absolutamente - concordei. - Não podem restar dúvidas a esse respeito. Mas acredite que me portarei bem.
Sorriu inesperadamente: um sorriso maravilhoso e humano, cheio de calor e compreensão.
- Acredito. Entre, homem de advogados.
Conduziu-me a um vestíbulo de entrada muito arrumado e pendurou o meu sobretudo e o meu chapéu num bengaleiro de carvalho exactamente igual ao da casa de Miss Goldie Knurr.
- Posso saber como a senhora se chama?
- Mrs. Harriet Lee Livingston - respondeu, com uma rica voz de contralto. -Trato da casa de Miz Sylvia.
- Há quanto tempo trabalha para ela?
- Há mais tempo do que você respira.
O enorme volume da mulheraça infundia respeito. Tive a certeza de que nunca vira um traseiro tão grande num ser humano; e as restantes partes do corpo estavam em proporção com ele: braços e pernas como cinturas e um pescoço que parecia tão grosso como a cabeça.
Mas as feições eram surpreendentemente nítidas e delicadas, com olhos oblíquos, uma boca simpática e um queixo firme com uma fenda profunda mesmo no centro. Podia-se introduzir uma moeda naquela fenda. As mãos e os pés eram inesperadamente pequenos e elegantes e ela movia-se com leveza e graça.
A sua cor era um castanho de torgo. Vestia uma bata imensa, uma tenda informe com algibeiras e verdadeiramente caleidoscópica quanto a tonalidades: manchas vermelhas, amarelas, purpúreas, azuis e verdes- tudo num padrão berrante, que ofuscava os olhos.
- Fique aqui - ordenou-me, severa-, exactamente neste lugar. vou dizer a Miz Sylvia que tem uma visita. Se o levo sem a avisar, é capaz de ficar transtornada.
- Não sairei daqui.
Abriu umas portas de madeira de correr, passou por entre elas e fechou-as. Não via portas daquelas desde que saíra de casa do meu tio, em Iowa. Eram apaineladas, enceradas e muito brilhantes, e tinham adornos de latão: belezas de uma era passada.
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As portas voltaram a abrir-se e Mrs. Livingston fez-me sinal para entrar.
- Fale com delicadeza - sussurrou-me. -Esteja descansada.
- Eu ficarei aqui mesmo, para ter a certeza - advertiu-me, severamente.
A mulher que se encontrava voltada para mim do outro lado da sala era pequena e magra e tinha comprido cabelo prateado que lhe dava um aspecto juvenil, embora eu soubesse que devia ter pelo menos quarenta anos. Não lhe vi o aparelho da perna. Envergava um vestido sem gola, de veludo verde-garrafa, que lhe chegava aos tornozelos.
Era uma migalhinha de gente, ainda com aquele ar de trémula vulnerabilidade que me prendera a atenção nas fotografias do álbum da família Knurr e no livro dos finalistas de Jesse Karp. Parecia fisicamente débil, ou pelo menos frágil, tinha pulsos delicados, um pescoço que parecia uma haste branca e uma cabeça que dava a impressão de estar puxada para trás -com o queixo levantado- pelo peso do cabelo.
Havia nela uma espécie de luminosidade: pele pálida, grandes olhos verde-azulados (pareciam ágatas) e lábios docemente arqueados. Não vi rugas, nem pés-de-galinha, nem sulcos - nada que no seu rosto assinalasse a passagem dos anos. Se tinha sido magoada, não se notava. A fronte lisa era serena, o leve sorriso plácido.
Mas havia nela como que uma dissonância que perturbava. Parecia distante. Os olhos encantadores estavam vazios, ou fixos em qualquer coisa que mais ninguém via. O meio sorriso era, não tardei a compreender, a sua expressão normal; não significava nada.
Reconheci Ofélia a olhar para o seu rio.
- Mr. Bigg? - perguntou.
A voz era jovem e completamente sem timbre. A voz de uma criança.
- Miss Wiesenfeld - redargui, com uma inclinação de cabeça-, sei que estou a cometer uma intrusão e estou-lhe grato por me conceder alguns momentos do seu tempo.
- Oh, oh! - exclamou, com uma pequena gargalhada. - Como fala bonito! Não fala bonito, Harriet?
- Sim - respondeu pesadamente Mrs. Livingston. - Bonito. Mr. Bigg, sente-se ali naquela cadeira de braços. Eu sento-me aqui no sofá. Querida, quer descansar?
- Não - respondeu-lhe a senhora. - Prefiro ficar de pé. Sentei-me nervosamente. A minha cadeira de braços ficava perto
do canto do grande sofá onde Mrs. Livingston se empoleirara, sem se recostar e a equilibrar o corpanzil na borda do sofá. Não me restaram dúvidas de que estava preparada para se me atirar ao pescoço se me atrevesse a apoquentar a sua querida.
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- Miss Wiesenfeld, não tenho nenhum desejo de despertar antigas recordações que possam causar-lhe sofrimento. Se eu fizer uma pergunta a que não deseje responder, faça o favor de me dizer e eu não insistirei. No entanto, informo-a de que se trata de um assunto de certa importância. Relaciona-se com o reverendo Knurr. Represento uma firma de advogados de Nova Iorque. Um dos nossos clientes, por sinal uma jovem mulher, deseja apresentar graves acusações contra o reverendo Knurr. Estou a efectuar uma investigação preliminar numa tentativa de descobrir se Knurr tem no passado uma história do tipo de... enfim, de actividades de que é acusado.
- Bonito - murmurou ela. - Tão bonito. É agradável encontrar alguém que usa frases completas, quando fala. Sujeito, predicado, complemento directo. Todas as suas frases são gramaticalmente correctas, Mr. Bigg?
A pergunta foi feita seriamente, mas eu ri-me.
- Gostaria que fossem, mas receio não poder fazer tal afirmação. Começou a andar através da sala, à minha frente. Vi então que
coxeava muito, a arrastar a perna esquerda. Por baixo do vestido comprido vi o pé cingido pelo estribo de um aparelho metálico.
Aproximou-se de uma gaiola suspensa de uma coluna de latão. Dentro da gaiola, um canário amarelo começou a saltar de poleiro para poleiro, à medida que ela se aproximava.
- Canarinho - disse, docemente. - Querido canarinho bonito. Como estás hoje, canarinho? Vais cantar para o nosso convidado? Vais cantar uma canção encantadora? Como me encontrou, Mr. Bigg?
A pergunta abrupta sobressaltou-me.
- Vi a sua fotografia no álbum da família Knurr, minha senhora. com Godfrey. Mr. Jesse Karp indicou-me o seu nome e o reverendo Ludwig Stokes deu-me mais informações.
- Tem estado muito atarefado, Mr. Bigg.
- É verdade, minha senhora - confessei humildemente.
- O Atarefado Mr. Bigg - disse, e soltou a sua pequena gargalhada. - O Atarefado Bigg. - Enfiou um dedo pálido pelas grades da gaiola. - Canta para o Atarefado Bigg, canarinho. De que é Godfrey acusado?
Eu tinha decidido utilizar o esquema de Percy Stilton. O que dera resultado com o bispo Oxman.
- é acusado de, alegadamente, ter defraudado uma jovem senhora das suas economias, prometendo-lhe duplicar o seu dinheiro.
- E prometendo casar com ela? - perguntou Sylvia Wiesenfeld.
- Sim.
- É culpado - declarou, calmamente. - Fez exactamente isso. Mrs. Livingston emitiu um grunhido baixo.
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- Gostava de o ter aqui - afirmou, no seu suave contralto. - Nas minhas mãos.
- Miss Wiesenfeld, posso perguntar-lhe o seguinte: foi casada com Godfrey Knurr?
- Canarinho, porque não cantas? - perguntou ao pássaro. - Não te sentes bem, canarinho?
Deixou a gaiola e voltou para o comprido sofá. A governanta levantou-se e ajudou Sylvia a sentar-se ao canto, com a perna esquerda estendida coberta pela saia do vestido comprido. Mrs. Livingston estendeu a mão e, ternamente, alisou para trás as madeixas de cabelo louro que tinham caído para o rosto pálido da sua senhora.
- Oh, oh! - exclamou Miss Wiesenfeld. - Há muito tempo. Que é feito das neves do ano passado? O reverendo Stokes disse-lhe isso?
- Disse, sim, minha senhora.
- Aconteceu noutro mundo. Noutro tempo.
Os seus olhos bonitos fitavam-me, mas ela estava desprendida, ausente em qualquer outro lado.
- Mas foi casada? - insisti. - Legalmente?
- Legalmente. Um bocado de papel. Tenho-o.
- Quanto tempo foi casada, Miss Wiesenfeld? Voltou os olhos vazios para a enorme negra:
- Harriet?
- Catorze meses - respondeu Mrs. Livingston. - Mais coisa, menos coisa.
- E depois?
- E depois? - repetiu a minha pergunta, perplexa.
- Separaram-se? Divorciaram-se?
- Harriet? - perguntou de novo.
- Ele foi-se embora - disse-me Mrs. Livingston, furiosamente. - Foi-se simplesmente embora. Levando todas as coisas da minha querida a que pôde deitar as mãos. Mas o pai dela foi mais esperto do que ele, deixou à minha querida uma espécie de fundo em que aquele cachorro não pôde tocar.
Tentei lembrar-me da última vez que ouvira chamar "cachorro" a um homem. Não consegui recordar-me de nenhuma ocasião.
- Portanto, continua casada com Godfrey Knurr? - perguntei, brandamente.
- Oh, não! - respondeu Sylvia Wiesenfeld com a sua perturbadora gargalhada infantil. - Não, não, não. Tenho um papel. Não tenho, Harriet? Tantos papéis! Papéis, papéis, papéis...
Olhei suplicante para Mrs. Livingston.
- Recebemos uma carta de um advogado do México - informou-me, desgostosa. - Dizia que fora concedido a Godfrey Knurr um divórcio da sua mulher, Sylvia.
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Voltei-me, indignado, para Miss Wiesenfeld:
- com certeza consultou um advogado, minha senhora? Não conheço muito bem a lei do divórcio, mas essa carta pode ser falsa. Ou os divórcios mexicanos sem o consentimento de ambas as partes podem não ser reconhecidos no estado onde casou. Espero que tenha procurado aconselhar-se juridicamente?
Olhou-me de olhos arregalados.
- Para quê? - perguntou, espantada. - Eu queria que ele desaparecesse. Queria-o morto. Magoou-me
Engoli em seco.
- Fisicamente, minha senhora? - perguntei, em tom brando.
- Uma vez - respondeu Mrs. Livingston, furiosa. - Eu disse-lhe que o mataria se voltasse a pôr as mãos nela. Disse-lhe isso. Mas não é a isso que ela se quer referir quando diz que ele a magoou. Ele despedaçou o coração da minha querida.
Falava da patroa como se ela não estivesse presente. Mas Miss Wiesenfeld não se opunha. Continuava com o mesmo sorriso vazio, o rosto sereno e os olhos fixos a meia distância.
- Oh, despedaçou o coração da pobre Sylvia! -exclamou.
Não tive a certeza da profundidade da sua demência. Dir-se-ia que um interruptor a ligava e desligava, às vezes no decorrer da mesma frase. Mostrava-se lúcida no falar e controlada na atitude e, de repente, fugia, deixava de estar presente.
- Minha senhora - perguntei, a detestar-me a mim próprio-, que fez Godfrey Knurr ao seu dinheiro? Quando eram casados?
- Oh, comprou coisas! Coisas bonitas.
Mrs. Livingston inclinou-se para mim e explicou, em voz rouca:
- Mulheres. Vida à grande. Espatifou-o.
As palavras foram ditas com tal veneno que eu pensei que Godfrey Knurr tivera sorte em escapar à vingança de Mrs. Harriet Lee Livingston. Ela tê-lo-ia chacinado.
- Harriet - disse Sylvia em voz petulante, de criança mimada-, quero levantar-me outra vez.
- com certeza, querida - respondeu a governanta serenamente, enquanto se levantava e ajudava a patroa a deixar o sofá.
Miss Wiesenfeld voltou para a gaiola do pássaro.
- Canarinho... Cantas para mim?
Queria fazer outras perguntas. Queria sondar mais profundamente, explorar o relacionamento que existira entre Sylvia e Knurr, descobrir como se dera o casamento, quando e porquê se dissolvera. Mas não tive simplesmente estômago para isso.
Tinha a sensação de haver passado o dia todo a esgaravatar nos detritos humanos que Godfrey Knurr deixara na sua esteira. Estava certo de que Roscoe Dollworth teria persistido na investigação, mas falta-me
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a implacabilidade necessária para tanto. Ele dissera-me que não deixasse nunca os meus sentimentos pessoais interferir no meu trabalho, mas não estava na minha mão evitá-lo. Gostava de todas aquelas vítimas, compartilhava o seu sofrimento, as suas tristes recordações, e parecia-me que não poderia suportar mais do que já ouvira. Sondar velhas feridas não era, na realidade, uma nobre missão.
Quando saí da sala, Sylvia Wiesenfeld ainda estava junto da gaiola, com o indicador enfiado entre as grades.
- Canarinho? - dizia. - Querido canarinho, canta-me uma canção.
Nem sequer me despedi nem lhe agradeci.
No vestíbulo, Mrs. Livingston ajudou-me a vestir o sobretudo.
- Vai esmagá-lo? - perguntou-me.
Fitei-a um momento.
- Ajuda-me?
- Em tudo quanto puder.
- Preciso da licença de casamento. E da carta do advogado do México, se conseguir encontrá-la. Mas a licença de casamento é mais importante. Tentarei obter cópias dela esta tarde e devolver-lhe os originais. Se não conseguir obter as cópias, terei de levar os originais comigo para Nova Iorque. Mas depois devolvo-lhos, juro.
- Como posso ter a certeza disso? - perguntou, desconfiada.
- Dou-lhe dinheiro. Deixo-lhe cinquenta dólares. Quando eu devolver a licença, a senhora devolve-me o dinheiro.
- O dinheiro não significa nada. Tem algum penhor que signifique qualquer coisa para si?
Olhei para baixo, para mim mesmo.
- O meu relógio de pulso! Os meus tios deram-mo quando me formei. Significa muito para mim, mas é um relógio barato. Não vale nem cinquenta dólares.
- Fico com ele. Venha devolver a licença de casamento, ou mande-a pelo correio, e reaverá o seu relógio.
Concordei logo e tirei o relógio do pulso. Ela meteu-o numa das suas grandes algibeiras.
- Espere aqui - ordenou-me. - Não se mexa nem um passo.
- Não mexo - prometi e cumpri, a vê-la subir os degraus alcatifados que levavam ao primeiro andar: tinha realmente um traseiro que era um colosso!
Regressou passados poucos minutos, com dois documentos dobrados. Lancei-lhes um olhar rápido. Uma licença de casamento passada a Sylvia Wiesenfeld e a Godfrey Knurr pelo estado de Indiana e datada de 6 de Fevereiro de 1959, e uma carta de um advogado mexicano, datada de catorze meses depois, a informar Sylvia de que tinha sido
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concedido o divórcio a Knurr. Dobrei ambos os documentos e guardei-os na algibeira interior do casaco.
- Reavê-los-á - prometi mais uma vez.
- Tenho o seu relógio - disse, e depois voltou a envolver-me naquele maravilhoso, quente e humano sorriso de cumplicidade.
- Obrigado por toda a sua ajuda - agradeci-lhe.
- Não sei porquê, mas confio em si. Se me pregar a partida, nunca mais cá volte, senão estraçalho-o!
No avião do princípio da noite para Nova Iorque, descontraí-me agradavelmente, com um uísque com água na mão. Os lugares de ambos os lados do meu estavam vazios e eu pude estiraçar-me confortavelmente. Imitei o passageiro do outro lado da coxia e descalcei os sapatos. Mexi os dedos debaixo das peúgas, o que proporciona uma sensação muito agradável a trinta e três mil pés de altitude, e planeei a maneira de derrotar Godfrey Knurr.
Pareceu-me que a nossa primitiva avaliação da situação tinha sido correcta; na falta de provas físicas adequadas, a única esperança de dar soluções satisfatórias aos casos Kipper e Stonehouse era tirar partido das fraquezas individuais dos participantes culpados. Se até então nos não tinha sido possível rasteirá-los, isso devia-se ao facto de não termos material suficiente para os agitar, para atirar um contra o outro, para identificar o elo mais fraco e torcê-lo até se partir.
Quando iniciámos a descida para o Aeroporto de La Guardia, em Nova Iorque, pareceu-me ter já gizado um plano que permitiria alcançar o objectivo desejado. Seria um jogo, mas não tão perigoso como os riscos que Godfrey Knurr correra.
Por outro lado, exigiria que eu enganasse diversas pessoas, incluindo o detective Percy Stilton.
Lamentava que assim tivesse de ser, mas consolei-me ao recordar que no nosso primeiro encontro ele me dera valiosas indicações quanto à maneira de ser um mentiroso convincente. com certeza não levaria a mal que eu seguisse os seus conselhos.
Cheguei ao meu apartamento em Chelsea pouco depois das onze horas da noite. Achei-o agradável. Estava desesperadamente esfomeado e ansioso por um duche quente, mas primeiro queria contactar com Percy Stilton, enquanto a minha resolução ainda era firme. Ensaiara desavergonhadamente o meu papel e sabia que deveria mostrar-me decidido, optimista e entusiástico. Tinha de o convencer, uma vez que, como agente da autoridade, ele poderia acrescentar o peso da sua posição a um estratagema que cairia com certeza a pique se tentasse executá-lo sozinho.
Liguei para a esquadra, mas disseram-me que ele não estava de
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serviço. Depois liguei para sua casa. Não obtive resposta. Por fim, marquei o número do apartamento de Maybelle Hawks. Foi ela que atendeu:
- Estou.
- Miss Hawks?
- Sim. Quem fala? -Joshua Bigg.
Seguiu-se uma breve pausa, e depois: -Josh! Que prazer em ouvi-lo! Como está, querido? -Muito bem, obrigado. E você?
- Feliz e empanturrada: acabámos de comer um tacho de chili, O Percy disse-me que você tinha ido a Chicago. Está a telefonar de lá? -Não, já estou em Nova Iorque. Miss Hawks, eu... -Belle.
- Belle, peço desculpa de telefonar a esta hora, mas estou a tentar localizar o Percy. Ele está...
- com certeza - interrompeu alegremente-, sua majestade está aqui. Tem alguma coisa a dizer-lhe acerca desses casos?
- Tenho, sim! - afirmei, com vigor.
- Vou-lhe passar o telefone. Importa-se se eu ouvir na extensão? -De modo nenhum. São boas notícias.
- Óptimo. Só um momento.
Houve um bater de telefones, vozes distantes e depois Stilton atendeu:
- Josh? Como vai isso?
- Muito bem. Lamento incomodá-lo.
- Ainda bem que ligou. O jantar miserável, uma tipa chata... -Mete isso no cu - disse Maybelle Hawks pela extensão.
- Tenho uma boa notícia para si, Josh. Reabriram o caso Kipper. Os seus patrões fizeram um bocado de força.
- Excelente! - exclamei, satisfeito. - é uma boa notícia, de facto. Agora ouça as minhas novidades...
Apresentei um relatório o mais curto e sucinto possível. Disse-lhe que Goldie Knurr era realmente irmã de Godfrey. Fiz um relato breve do meu encontro com Jesse Karp e do que ele me tinha dito da mocidade de Godfrey Knurr. Fui mais pormenorizado na descrição das minhas entrevistas com o reverendo Ludwig Stokes e Sylvia Wiesenfeld. Disse a Stilton que regressara com o original da licença de casamento. Não mencionei a carta do advogado mexicano.
Não me interromperam a não ser uma vez, quando estava a descrever a agressão física de Knurr a Sylvia Wiesenfeld, que exagerei. Maybelle Hawks saiu-se com um furioso: "O grande sacana!"
Quando acabei, esperei pelas perguntas de Stilton. Que não tardaram.
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- Comecemos por cima - disse. - Esse sacerdote... Que idade tem?
- Aí uns setenta e cinco anos. Mais ou menos.
- E o Knurr exerce chantagem sobre ele há vinte e cinco anos?
- Aproximadamente.
- Porque não se queixou ele há mais tempo?
- Vergonha pessoal. E o mal que poderia fazer à sua Igreja.
- Que lhe apanhou o Knurr?
- Não sei o montante exacto em dólares. Uma quantidade de dinheiro. Mais arranjar-lhe entrada no seminário. E efectuar a cerimónia do casamento, provavelmente sem conhecimento do pai da noiva.
- E você diz que esse Stokes está disposto a apresentar queixa agora ?
- Foi o que ele disse. Afirmou que era um velho e desejava ficar em paz com Deus.
- Hum... Que género de tipo é ele? Tem os parafusos todos?
- Oh, sim! - respondi a fazer figas, num gesto infantil. - É um velho cavalheiro muito digno, muito erudito, que vive sozinho e tem tempo suficiente para pensar na sua vida passada. Diz que quer penitenciar-se dos seus pecados.
- Talvez tenha oportunidade disso. Muito bem, a respeito da mulher... A licença de casamento é legítima?
- Absolutamente.
- Não existe nenhum registo de divórcio, separação judicial, qualquer coisa do género?
- Ela diz que não. Vive de um fundo que o pai lhe deixou. Depois da maneira como Knurr a tratou, sentiu-se grata por se ver livre dele e voltar a usar o nome de solteira.
- Ele abandonou-a?
- Exactamente - respondi, em tom definitivo. - Ficou satisfeita por saber onde ele está. Não creio que fosse muito difícil convencê-la a apresentar queixa. As razões são económicas. O tal fundo, que parecia uma quantidade de dinheiro há vinte anos, não é grande coisa agora. Está furiosa.
- E que género de mulher é ela? Chanfrada?
- Oh, não! - protestei. - É uma mulher muito madura e inteligente.
Seguiram-se alguns momentos de silêncio. Depois o detective Stilton disse:
- O que temos são duas possibilidades fora do Estado. As queixas teriam de ser apresentadas em Indiana. Mas temos a extradição. Se isso for por diante, perdemo-lo na questão dos homicídios.
- Correcto - concordei. - As queixas de chantagem e abandono
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são apenas munições de pequeno calibre. Mas as grandes armas são a licença de casamento... e a ligação dele com Glynis Stonehouse. Percebeu imediatamente o que eu queria dizer.
- Quer converter a Tippi Kipper?
- Isso mesmo, Percy. Ser absolutamente franco com ela. Contar-lhe tudo quanto sabemos. Mostrar-lhe a licença de casamento. Creio que ela fará um acordo.
- Hum... talvez. Belle, que te parece? Achas que dará resultado?
- Tem boas probabilidades disso - respondeu a rapariga, pela extensão. - Aposto a maminha esquerda em como Knurr nunca lhe disse que era casado. Um tipo como ele não cometeria tal estupidez. E quando lhe falarem de Glynis Stonehouse, isso confirmará o que ela leu na carta anónima que o Josh lhe escreveu. Ficará pior do que estragada. Ele armou-a em trouxa. Tippi é uma mulher que conhece a vida de cor e salteado. O seu ego não permitirá que faça de parva. Aposto que lhe tira o tapete de baixo dos pés.
- Sim - admitiu Stilton, devagar. - E nós podemos sempre experimentar nela o ângulo da publicidade, mencionar por acaso que sabemos da sua prisão por prostituição. Agora é uma grande senhora; morreria se isso viesse nos jornais.
- Atiremo-nos a ela - incitei. - Demos-lhe uma boa torcidela.
Ele decidiu-se:
- Pois sim, está bem. Vamos cedo, antes de ela ter tempo de se controlar. Josh, encontro-me consigo à porta da residência Kipper às nove da manhã. Entendido? Leve a papelada toda, especialmente a licença de casamento.
- Lá estarei - prometi.
- Havemos de quebrá-la - garantiu, também já a começar a ficar excitado com a ideia. - Nada de dureza. Luvas de pelica. Muita sinceridade e calminha. Tratando uma prostituta como uma senhora e uma senhora como uma prostituta. Quem foi que disse isto, Josh?
- Não tenho a certeza. Soa-me a Lorde Chesterfield.
- Fosse lá quem fosse.
- Se acreditas nisso, Percy - disse Maybelle Hawks-, o dito faz de mim uma senhora.
Rimo-nos todos, falámos um momento de como nos vestiríamos para o nosso confronto com Tippi Kipper e depois despedimo-nos.
Fui imediatamente para a cozinha e comecei a comer esfaimadamente. Limpei o frigorífico. Devorei três ovos fritos, uma sanduíche de sardinha e cebola, quase um litro de leite e uma embalagem de sorvete de chocolate. Depois, ainda esfomeado, aqueci uma lata de sopa de talharim, que comi com dois bolos de baunilha e meio pepino.
A arrotar, despi-me e meti-me debaixo do chuveiro. A água estava
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abençoadamente quente. Ensaboei-me e desensaboei-me três vezes, lavei a cabeça, barbeei-me e encharquei-me com água-de-colónia.
A gemer de contentamento, meti-me na cama por volta da uma hora. Fosse pela excitação, fosse por causa da sanduíche de sardinha com cebola, o certo é que não adormeci logo. Deitado de costas, pensei no que faríamos de manhã, no que diríamos a Tippi Kipper, em como era importante conseguirmos vergá-la.
Não rezei a Deus, embora seja um homem religioso, porque não acredito muito na oração. Para que serve ela, se Deus deve saber o que nos vai no coração? Mas senti que as minhas mentiras e os meus ardis seriam perdoados se conseguissem deitar abaixo Godfrey Knurr.
Ele era uma abominação. Como Jesse Karp dissera, Knurr tinha aberto caminho à bruta na vida, todo ombros e cotovelos. Estava-se positivamente marimbando, e eu não lhe podia perdoar isso. Era um exemplo de força bruta e moralidade bruta. Não me sentia culpado por causa do que tentava fazer-lhe.
Pouco antes de adormecer, lembrei-me de Cleo Hufnagel. Pensei, a gemer, que ela estivera fora dos meus pensamentos durante dias. Acerca disso, sim, sentia-me culpado.
Capítulo sétimo
No sábado, o céu de Março estava duro, de um azul de gelo embranquecido por um sol enevoado e, a oeste, por uma fatia deslavada de lua matinal. Nem uma nuvem. Mas soprava um vento agreste, que assobiava nas ruas.
Meti-me num táxi para a parte alta e maravilhei-me com a nitidez da cidade, toda bem recortada e clara de contornos. O ar estava lavado, limpo, e cortava.
Tinha vestido o meu melhor fato às riscas, com colete e camisa branca, e pusera uma gravata escura. Stilton e eu combináramos vestir-nos como cangalheiros: conservadores, solenes, mas compreensivos. Homens merecedores de confiança.
Um Plymouth azul-escuro estava estacionado defronte da residência Kipper. Ao volante encontrava-se um calmeirão descuidadamente vestido, com um hirsuto bigode que lhe cobria a boca. Percy, sentado a seu lado, parecia um juiz. Apontou-me o banco de trás. Eu entrei, fechei a porta e pus a pasta riscada nos joelhos.
- Josh - apresentou Percy-, este brutamontes é o meu parceiro, Lou.
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- Bons dias, Lou - cumprimentei.
- Traz a papelada toda? - perguntou-me Stilton.
- Tudo - respondi, a sentir-me ligeiramente indisposto.
- Muito bem. Quando entrarmos, deixe-me falar e oriente-se por mim. Limite-se a acenar com a cabeça. Você é o espectador inocente. Percebeu?
- Percebi.
- Finja sinceridade. É capaz de fingir sinceridade, não é?
- Claro que sou - respondi, em voz baixa.
- Claro que é. - Percebi que estava a tentar encorajar-me e senti-me grato. -Não se preocupe, Josh, vai correr bem. Vai ser a maior vigarice de que há memória humana. Um clássico.
Lou falou pela primeira vez:
- O mundo é composto por cinco elementos: terra, ar, fogo, água e tretas.
- Estás a cantar a nossa canção, filho - comentou Percy. - Muito bem, Josh, vamos a isto.
Chester Heavens abriu a porta.
- Cavalheiros? - perguntou, soturno. -Bons dias, Chester - murmurei.
- Bons dias - repetiu Percy, apressado. - Sou o detective Percy Stilton do Departamento de Polícia de Nova Iorque. Creio que já nos conhecemos. Aqui tem a minha identificação.
Abriu a carteira da identificação e levantou-a. Chester olhou-a.
- Sim, senhor, lembro-me. Em que posso ser útil?
- é importante que falemos com Mrs. Kipper - respondeu-lhe Stilton. -O mais depressa possível. Ela está em casa?
Chester hesitou um momento, mas depois rendeu-se:
- Queiram entrar. Eu vou falar com a senhora.
Esperámos no alto átrio de entrada. Heavens desaparecera na sala de jantar e fechara a porta. Esperámos o que me pareceu muito tempo. Eu mexi-me, agitado e nervoso, mas Stilton aguentou serenamente. Por fim, Chester voltou.
- A senhora recebe-os agora - informou, inexpressivamente. - Está a tomar o pequeno-almoço. Querem dar-me os abafos?
Recebeu os nossos sobretudos e chapéus e pendurou-os. Depois abriu a porta da sala de jantar e desviou-se para o lado. Percy entrou primeiro. Quando eu me preparava para entrar, Chester colocou a mão mole no meu braço e perguntou, num sussurro:
- Mau, senhor?
Acenei afirmativamente.
Ele acenou também. Tristemente.
Ela estava sentada à cabeceira da mesa comprida e reluzente. com um ar de realeza. Envergava um roupão solto, verde-alface, mas tinha
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o cabelo caído e não muito arranjado. Além disso, quando me aproximei, reparei que tinha a cara ligeiramente deformada, opada. Olhei fixamente e verifiquei que a face esquerda, do olho ao queixo, estava inchada, descolorada. Ela tentara cobrir a equimose com maquilhagem compacta, mas sem êxito.
Compreendi então o comentário cínico de Godfrey Knurr: "Penso que persuadi a senhora."
Stilton e eu parámos lado a lado. Ela fitou-nos sem pestanejar e não nos mandou sentar.
- Minha senhora - começou Percy, humildemente-, sou o detective...
- Sei quem o senhor é - interrompeu-o bruscamente. - Já nos conhecemos. Que quer?
- Fui encarregado de uma investigação oficial do reverendo Godfrey Knurr - informou Stilton, ainda como quem se desculpa. - Espero que esteja disposta a colaborar com o Departamento de Polícia de Nova Iorque e forneça as informações que puder.
Ela olhou para mim e perguntou:
- E você, que faz aqui?
- Mr. Bigg pediu para me acompanhar, minha senhora - respondeu Percy por mim, muito depressa. - O pedido de investigação partiu da firma de advogados onde ele trabalha.
Tippi ficou a pensar naquela resposta. Não acreditava por completo, mas também não desacreditava totalmente. Queria saber mais.
- Sentem-se, então - disse friamente. - Os dois. Café?
- Para mim, não, Mrs. Kipper, obrigado. E você, Mr. Bigg?
- Também não, obrigado.
Puxámos cadeiras, Stilton à direita de Tippi Kipper e eu à esquerda. Tínhamo-la cercada, isolada. Não creio que ela tivesse esperado isso.
Tirou um cigarro de um maço quase vazio. Stilton estendeu-lhe o isqueiro aceso, antes que eu me pudesse mexer. Suponho que a cortesia dele a tranquilizou. Soprou fumo para o tecto.
- Bem, de que se trata afinal?
- Trata-se, minha senhora - respondeu Stilton, e inclinou-se para a frente, de rosto muito sério-, de uma história muito complicada. Espero, por isso, que tenha paciência comigo. Há cerca de duas semanas, o Departamento de Polícia de Nova Iorque recebeu da Polícia de Gary, Indiana, o pedido de que verificássemos se o reverendo Godfrey Knurr estava na nossa área. Tinha sido passado um mandato para a sua captura. Ou melhor, dois mandatos.
- Para a sua captura? Mas porque?
- Um por chantagem, Mr. Kipper. Há muitos anos que,
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alegadamente, Knurr tem exercido chantagem sobre um clérigo idoso da localidade onde cresceu. O outro mandato foi por abandono.
Estávamos ambos a observá-la atentamente. Ela podia ter sido uma actriz, mas não conseguiu ocultar a sua reacção àquelas notícias. A mão que segurava o cigarro começou a tremer; Tippi apoiou o pulso na mesa, para deter a tremura. O seu rosto empalideceu e a equimose viu-se melhor, tornou-se de um azul feio. Inclinou-se para a frente, a fim de se servir de mais café.
Maybelle Hawks tivera razão: ela não sabia.
- Abandono? - perguntou em tom casual, e eu pensei que a acusação de chantagem a não perturbara nada.
- Oh, sim! - confirmou Stilton. - Knurr casou há cerca de vinte anos e nunca se divorciou nem se separou judicialmente. Mr. Bigg, trouxe a licença?
Tirei-a da carteira e estendi-a à frente de Tippi Kipper, mas atento para que o papel não saísse das minhas mãos. Ela inclinou-se para a frente, para ler.
- Sim - comentou em voz sem timbre-, estou a ver.
Percy reclinou-se na cadeira e cruzou as mãos no tampo da mesa.
- Bem - continuou-, o pedido da Polícia de Gary, Indiana, foi distribuído e foi-me parar uma cópia à secretária. Em circunstâncias normais, ter-me-ia limitado a arquivá-lo e esquecê-lo. Estou certo de que avalia o muito que temos que fazer e quanto é baixa a prioridade de um pedido de outro estado no nosso esquema de trabalho. compreende isso, não é verdade, Miss Kipper?
Admirei a maneira como ele ia conquistando a sua confiança, chegando ao ponto de lhe confessar uma pequena fraqueza, com um riso leve.
- Oh, sem dúvida! - concordou, ainda atordoada. - Claro que compreendo.
- Mas o nome prendeu-me a atenção - continuou o detective. - Apenas pelo facto de eu ter entrevistado Godfrey Knurr relativamente à lamentável morte do seu marido. Por isso, soube quem ele era e onde o podia encontrar.
Ela não disse nada. Para se controlar, ia bebendo golinhos de café e acendia outro cigarro. Fazia pequenos gestos, pequenas coisas, tudo enfim quanto podia para evitar olhar para nós.
- Depois - continuou Stilton, a falar suavemente e quase pensativamente-, antes de termos oportunidade de responder ao pedido da Polícia de Gary, Bigg contactou-nos, em representação dos advogados para quem trabalha. Queriam que aprofundássemos mais o caso de um seu cliente desaparecido. Um tal professor Yale Stonehouse, desaparecido em circunstâncias misteriosas. Bem, nós investigámos o assunto e
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descobrimos que, antes do seu desaparecimento, o professor tinha sido vítima de envenenamento por arsénico. Mr. Bigg?
Tirei as análises químicas e coloquei-as à frente dos olhos dela. Não creio que as tenha sequer lido, mas ficou impressionada. Eram documentos oficiais. Comecei a apreciar a insistência do detective Stilton em tais provas. Podiam ser verdadeiras ou falsas, mas o papel almaço impresso tinha peso.
- Por isso - prosseguiu Percy, a suspirar-, aprofundámos mais e descobrimos que o veneno tinha aparentemente sido administrado por Glynis Stonehouse, a filha do homem desaparecido. Além disso, descobrimos também que Glynis tinha uma ligação - e continuava a ter - com o reverendo Godfrey Knurr. Não temos a certeza, mas suspeitamos de que o professor foi assassinado e Knurr está profundamente envolvido no assassínio. Por isso, estamos aqui, Mrs. Kipper, para lhe pedirmos que nos ajude, dizendo-nos o que souber acerca de tal homem. Ele já está acusado de chantagem e abandono da mulher. É apenas uma questão de tempo para podermos também acusá-lo de assassínio premeditado.
Por momentos, pensei que a tínhamos apanhado. Levantou-se, contornou a cadeira e começou a sentar-se de novo. Depois dirigiu-se para um canto afastado da sala, a torcer as mãos. Observámo-la. Parou, voltada para a parede vazia, e em seguida virou-se e veio para junto de nós. Sentia-se o ar vibrar.
Não pude deixar de a admirar. Ficara abalada, a esse respeito não havia dúvidas, mas voltara a reunir as suas forças. Ocorreu-me a palavra "genica".
Tornou a sentar-se, desta vez descuidadamente, estiraçada. Já não a rainha. Tirou um último cigarro do maço amarrotado. Mais uma vez, Percy Stilton estava a postos com o isqueiro. Ela aspirou profundamente e deixou o fumo sair devagar pelas narinas.
O cabelo louro-prateado estava húmido e despenteado. O perfil perdera a perfeição de contornos; a equimose aumentava-lhe todo um lado da cara. Os olhos pareciam baços, os lábios finos estavam apertados e tensos. O queixo que costumava apresentar tão levantado descera; havia uma matéria escura nos refegos do seu pescoço. O corpo tornara-se-lhe frouxo, os seios pendiam sob o roupão, as coxas tinham-se espapaçado.
Será possível sofrer de um excesso de compreensão? Naquele momento tive pena dela. Estava a ser cruelmente agredida, mas estava longe de se render.
- Isto é muito... perturbador - declarou, por fim.
- Faço ideia - concordou o detective Stilton. Eu acenei com a cabeça como um pateta. Fitámo-la ambos, de novo silenciosos.
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- Muito bem - quase explodiu-, o homem era um... um...
- Um seu amigo íntimo? - sugeriu Percy.
- Não se tratava exactamente disso - discordou ela muito depressa, já a tentar reduzir as suas baixas. - Mais como um... um...
- Conselheiro espiritual? - perguntei inocentemente. Olhou-me, com vivacidade.
- Sim, conselheiro espiritual. Foi-o durante alguns anos. Muito bem, más notícias. Agora descobre-se que é um salafrário. Procurado pela Polícia. Mas que tem isso a ver comigo?
A maneira de falar e o emprego do "salafrário" foram a primeira indicação que tive de que estava a resvalar para as origens. A grande dama esfumava-se.
Stilton, o cavalheiro, continuava porém a tratá-la com suave cortesia, a inclinar-se para ela numa atitude de grande solicitude.
- Deixe-me informá-la do que temos, Mrs. Kipper - pediu. - Foram passados mandados para a prisão de Knurr e da sua amante, Glynis Stonehouse. Além disso, temos mandados de busca à casa dela e ao barco-habitação dele. Mais tarde ou mais cedo vamos apanhá-lo.
- E depois? Apanhem-no. Isso não tem nada a ver comigo. Percy recostou-se na cadeira, cruzou os joelhos, escolheu um cigarro na cigarreira e acendeu-o, tudo com gestos lentos e deliberados.
- Creio que tem - declarou, a olhá-la firmemente. - Creio que tem muito a ver consigo. Além das queixas de fora do Estado e de cumplicidade no desaparecimento do professor Stonehouse, o reverendo Godfrey Knurr também será acusado do assassínio de Martin Reape.
- De quem? - perguntou, rouca. - Nunca ouvi falar dele.
- Não? O seu falecido marido teve-o ao seu serviço. -Olhou para mim: - Mr. Bigg, os cheques cancelados, por favor.
Voltei a abrir a pasta e tirei as cópias das facturas de Martin Reape e dos cheques cancelados. Mostrei-os a Tippi Kipper. Ela olhou-os com olhos turvos.
- Martin Reape era um detective particular - prosseguiu Stilton, inexoravelmente. - Foi empurrado para debaixo das rodas de uma composição do metropolitano e morreu. Temos o depoimento de duas testemunhas oculares que localizam o reverendo Knurr no cenário do homicídio, na hora em que ele ocorreu. A viúva de Reape também foi assassinada. Temos indicações que provam a cumplicidade de Knurr igualmente nesse homicídio.
Mentia com tanta habilidade que eu quase não podia acreditar. As suas mentiras eram ditas casualmente, tão sem ênfase como se ele dissesse: "Hoje está frio na rua." Eram absolutamente críveis. Dizia falsidades
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e não lhes atribuía nenhuma importância. Dizia: "Estas coisas existem; toda a gente o sabe."
Tippi Kipper tornara-se rígida. Estava imóvel. Gelada. Creio que se lhe tivesse dado um piparote na carne, teria feito ping! Encontrava-se num estado quase catatónico. Todas as vezes que se ajustara a um golpe, que pensara tê-lo aparado, Stilton atacara de novo. Perseguia-a, alimentando-lhe a confusão.
- Por isso - prosseguiu-, com base nestes e noutros indícios, a investigação das circunstâncias da morte do seu marido foi reaberta, Mrs. Kipper. Se duvida, aconselho-a a telefonar para o Departamento de Polícia de Nova Iorque e a confirmar o que digo. Estamos agora convencidos de que o seu marido foi assassinado.
- Assassinado? - gritou. - Impossível! Ele deixou um bilhete de suicida.
O detective Stilton estendeu a mão. Eu dei-lhe os bilhetes que tinha tirado do quarto de vestir de Tippi Kipper. Percy estendeu-os à frente dela.
- Como estes? - perguntou, com dureza.
Ela olhou os bilhetes e o seu rosto desfez-se.
- Onde arranjou esses bilhetes? - gritou. -Eu... enfim, obtive-os - respondi. Voltou-se lentamente e fulminou-me com o olhar. -Seu salta-pocinhas!
Baixei a cabeça.
- Como disse - continuou Percy, implacável-, a investigação do assassínio do seu marido foi reaberta. Sabemos como foi cometido o crime: Knurr passou a noite num quarto vazio, subiu ao andar de cima, matou a vítima, correu pela escada abaixo, saiu, tocou à campainha e entrou de novo enquanto estavam todos junto do corpo, no pátio das traseiras.
- Ridículo! Nunca conseguirão prová-lo.
- Oh, creio que conseguiremos! - afirmou Stilton. - Requeremos um mandato de busca desta casa. com base no que já temos, creio que o obteremos. Viremos cá e voltaremos tudo do avesso. Os rapazes passarão o aspirador por cada centímetro. Encontrarão provas de Godfrey Knurr ter passado a noite num quarto lá de cima. Poeira dos seus sapatos, parte de uma impressão digital, um fio do seu tabaco de cachimbo, talvez até a arma que usou. Porventura apenas um ou dois cabelos. É impossível um homem passar uma noite seja onde for sem deixar qualquer sinal da sua presença. E confiscaremos o diário da casa que o mordomo faz e que regista que Godfrey Knurr chegou na tarde do dia anterior à morte do seu marido e não tem nenhum registo da sua partida. Oh, sim! Acho que temos o suficiente para uma incriminação,
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Mrs. Kipper. Godfrey Knurr por homicídio e a senhora como sua cúmplice. Vão os dois pelo cano abaixo.
Ela emitiu uns sons estranhos, como se tivesse dificuldade em engolir. Stilton continuou:
- E mesmo que não consigamos prová-lo, há a publicidade- avisou, em voz sem timbre. - Tablóides, rádio, TV. A elegante Mrs. Tippi Kipper, activa na vida social e em obras de caridade, com uma prisão antiga por prostituição.
Eu quase não podia ouvi-lo. Ela tinha a cabeça baixa, mas dizia:
- Pulha, pulha, pulha...
Percy Stilton olhou em redor. Viu o bonito aparador com tampo de mármore e uma colecção de garrafas de cristal. Aproximou-se, viu o que havia e escolheu uma garrafa cujo rótulo de porcelana dizia: BRANDE. Levou a garrafa para a mesa, deitou um bom golo em cima das borras da chávena do café de Tippi Kipper e ordenou-lhe:
- Beba.
Ela bebeu tudo, a segurar a chávena com mãos trémulas. Ele deitou mais um golo e pôs a garrafa em cima da mesa, junto dela. Tippi meteu um dedo trémulo no maço de cigarros vazio. Percy estendeu-lhe a sua cigarreira e depois voltou a acender-lhe o cigarro com o isqueiro. Não olhou para mim. Não havia nenhuma nota de triunfo na sua atitude.
- Mrs. Kipper, não podia ter sido mais franco consigo do que fui. Neste momento, não existe nenhum mandado para a sua captura. Mas parece-me que é altura de falarmos de si, da sua situação perante a justiça e do seu futuro.
- Agora vem a estocada final - comentou ela, amargamente.
- Correcto - concordou o detective, sereno. - Agora vem a estocada final. Vamos apanhar Godfrey Knurr; a senhora sabe-o. Vamos apertá-lo. Pensa verdadeiramente que ele se vai manter firme e leal? Deixe-se disso, Mrs. Kipper, a senhora não é parva. Ele vai cantar, vai despejar tudo quanto tem no podre coraçãozinho. Antes de acabar, tudo o que se passou terá sido ideia sua. A senhora seduziu-o, a senhora planeou o assassínio do seu marido; ele foi apenas o espectador inocente. Sabe, Mrs. Kipper, que será assim que ele vai jogar. Ele pertence a esse tipo de homem.
Ela levantou-se bruscamente, a arrastar a cadeira no soalho encerado. Parou, inclinada para a frente, com os nós dos dedos apoiados na mesa - como o presidente da administração a dirigir-se a um grupo de executivos hostis. Mas não olhava para nós. Olhava fixamente pelo espaço entre nós, para toda a extensão da mesa reluzente, para a porcelana translúcida e para os castiçais de prata. Riqueza. Aristocracia. Segurança.
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- O primeiro a apresentar-se faz o melhor negócio - disse suavemente o detective Percy Stilton.
Os olhos dela pousaram-se devagar nele.
- Fale de negócios - ordenou, rouca.
Compreendi que a tínhamos na mão, mas Percy não mudou de expressão nem modificou a sua atitude cortês e solícita.
- Sugiro que as coisas se façam do modo seguinte: não fomos nós que a procurámos; foi a senhora que nos procurou. Telefonou a Mr. Bigg, à firma de advogados que representava o seu falecido marido, e depois Mr. Bigg contactou comigo. Mas o gesto inicial foi da senhora. De sua livre vontade. Mr. Bigg e eu testemunhá-lo-emos.
Olhou para mim e eu acenei violentamente com a cabeça.
- Qual foi o meu motivo para chamar os chuis? - perguntou Tippi.
- Queria que fosse feita justiça - respondeu-lhe Stilton. Ela abanou a cabeça.
- Não pegará.
- Brutalidade - intervim. - Agressão física. Knurr ameaçou-a. Por isso, colaborou no seu plano. Mas agora receia pela sua vida.
Percy olhou-me com admiração.
- Sim, foi exactamente assim - declarou Tippi Kipper. - Ele disse que me matava se eu não concordasse. Tirarei a maquilhagem e vocês poderão tirar uma fotografia colorida disto - apontou para a equimose inchada da cara. - Ele esmurrou-me - declarou furiosamente. - Tem um mau génio terrível, e essa é a verdade. Receei pela minha vida.
- Belo - disse Percy. - Joga tudo bem.
- Acha que o promotor de justiça acreditará? - perguntou, ansiosa.
Stilton recostou-se, voltou a cruzar as pernas e acendeu outro cigarro.
- Claro que não - respondeu. - Ele não é nenhum idiota. Mas aceitará. A senhora será a estrela das suas testemunhas, permitirá solucionar três homicídios ou até quatro, provavelmente. Por isso, ele fará o jogo. Nós vamos dar-lhe qualquer coisa.
- Que pensa que apanharei? - perguntou Tippi.
- Pena suspensa e liberdade condicional. Ficará à solta.
- E a prisão por prostituição?
- Enterrada. Nada para a Imprensa. Tem a minha palavra a esse respeito.
Ela respirou fundo e olhou em redor da sala encantadora como se corresse o risco de nunca mais a ver.
- Bem... acho melhor pormos o espectáculo a caminho. Posso vestir-me?
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- com certeza - respondeu Percy. - Mas tenho de subir consigo. Espero que compreenda.
Dirigimo-nos todos para o átrio de entrada. Chester Heavens, Perdita Schug e Mrs. Neckin estavam reunidos num pequeno grupo no corredor de acesso à cozinha. Olharam, escandalizados, quando a patroa e o detective entraram no elevador. Eu peguei no chapéu e no sobretudo e saí apressadamente. Não queria responder às suas perguntas.
Lou, sentado ao volante do Plymouth azul, viu-me chegar. Inclinou-se para o lugar do passageiro e desceu o vidro.
- Como correu ? - perguntou. -Bem. Devem estar quase a sair. -Ela vai cantar?
Acenei afirmativamente.
- Tinha de ser. Aquele Percy é qualquer coisa. Ainda bem que estamos os dois do mesmo lado! Se ele estivesse do lado mau, acabaria por ser dono da cidade.
Depois esperámos em silêncio. Eu não queria entrar no automóvel. Queria olhar para o céu puro, aspirar profundamente o ar cortante e forte. Não queria pensar no que acabara de acontecer. Queria saborear o vasto, vasto mundo.
Saíram passados cerca de quinze minutos. Tippi Kipper vestia um casaco de marta com cinto que parecia dar-lhe a volta três vezes. Não trazia chapéu e segurava uma enorme mala de mão de crocodilo preto. Tirara a maquilhagem. A equimose revelava-se em toda a sua fealdade. Percy Stilton transportava uma pequena maleta amarelada de pele de porco.
Abriu a porta de trás do Plymouth para ela entrar. Tippi entrou sem olhar para mim. Percy colocou a maleta no banco da frente. Depois segurou-me no cotovelo e afastou-se um pouco comigo.
- Fim da linha para si, Josh.
- Não posso... - comecei a perguntar, mas ele abanou pesadamente a cabeça e interrompeu-me:
- Doravante é tudo oficial. Telefono-lhe assim que tivermos alguma coisa. Onde o encontrarei?
- Ou no escritório ou em casa. Percy, prometa que telefona.
- Absolutamente! Mantê-lo-ei informado. Você merece todo o crédito.
- Obrigado - agradeci, em voz fraca. Fitou-me, de olhos semicerrados.
- Eles estavam divorciados, não estavam? - perguntou. - Knurr e Sylvia? E ela e o velho sacerdote são um par de chalados. Certo?
Acenei tristemente com a cabeça.
Ele riu-se e deu-me uma palmada nas costas.
- Você é bom, mas não tanto. Nunca tente aldrabar um aldrabão.
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Vi o Plymouth arrancar, com Stilton sentado ao lado de Tippi Kipper no banco de trás. Depois de o carro contornar a esquina e desaparecer, fui a pé para a 5ª Avenida e virei para sul. Resolvi ir a pé até ao edifício da TORT.
Devia sentir-me exultante, mas não sentia. O que me incomodava era a moralidade do que fizera. Toda aquela chicana, todas aquelas mentiras. Teria cometido praticamente qualquer pecado para destruir Godfrey Knurr, mas contribuir para que Tippi Kipper escapasse à justiça era mais do que contara fazer. E a verdade é que tinha sido conivente nisso. Trabalhara quase tanto quanto Percy Stilton para a convencer a trair Knurr. Tivera de ser. Mas, como Percy dissera, ela ficaria à solta. Uma cúmplice de assassínio. Era justo? Era isso justiça?
Apercebi-me de que não sabia realmente o que "justiça" significava. Não era um absoluto. Não era uma cor, um mineral, uma espécie. Era um conceito humano (que sabem os animais da justiça?) e estava sujeito a todos os caprichos e a todas as contradições de qualquer esperança humana. Como se pode definir a justiça? Parecia-me que era uma situação de constante compromisso moldado pela circunstância.
Cheguei à conclusão de que daria um péssimo juiz.
A caminhada desembaraçada para a parte baixa da cidade refrescara-me o espírito. O ar cortante e o exercício eram purificadores. Quando assinei o livro de entradas, junto do guarda da segurança, no edifício da TORT, estava conformado com o que tinha feito. Ainda o lamentava, mas o sentimento de culpa dissipava-se. Calculava que, se tudo corresse bem, dentro de poucas semanas me sentiria orgulhoso do papel que desempenhara para entregar o reverendo Godfrey Knurr à justiça - fosse esta o que fosse.
Mrs. Gertrude Kletz deixara-me um montinho de apontamentos e uma rima de pedidos de investigações e informações. Comecei a trabalhar com prazer, afastando resolutamente o espírito dos casos Kipper e Stonehouse e concentrando-o no meu trabalho de secretária.
Labutei toda a tarde sem parar, excepto ocasionalmente para dar um passeio no corredor, a fim de desentorpecer as pernas. Despachei uma quantidade de trabalho: limpei a secretária da maioria dos assuntos rotineiros e fiz uma lista muito certinha dos que exigiriam investigação pessoal.
Pouco antes das cinco da tarde, e depois de ter tentado resistir à tentação, liguei para Percy Stilton. Disseram-me que ele estava "em conferência" e não podia atender o telefone. Presumi, por isso, que o interrogatório de Tippi Kipper continuava.
Arrumei os processos Kipper e Stonehouse e despejei a minha velha pasta. Pensei em comprar uma nova. Talvez uma moderna attaché case, esbelta e elegante. Mas aquela velha pasta tinha-me sido deixada
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por Roscoe Dollworth e eu era suficientemente supersticioso para acreditar que tinha propriedades mágicas: sorte e sabedoria.
Saí do edifício da TORT cerca das 5.50 horas e não me esqueci de levar comigo o papagaio encarnado embrulhado, o fio e o carreto. Assinei no livro a minha saída, fui a pé até à Broadway e meti-me num autocarro para a Rua 23, oeste. Fui directamente ao restaurante Woody's, a tentar lembrar-me havia quanto tempo não saboreava um jantar decente.
Como de costume, Nitchy estava presente e parecia particularmente atraente, à sua maneira exótica e aciganada. Disse-lho e ela bateu-me com os dedos na cara.
- Nenhuma princesa esta noite, Josh?
- Esta noite, não - respondi, a sorrir, fatigado.
Creio que compreendeu o meu estado de espírito, pois conduziu-me a uma sossegada mesa de canto e deixou-me só. Bebi dois uísques com água e jantei um bom bife, batatas assadas, feijão verde, uma salada, uma garrafa de cerveja, café e brande.
Quando saí sentia-me sereno, pensativo, satisfeito. Levei o papagaio para o apartamento e dispus-me a esperar. Tentei ler, mas acabei por dar comigo com um exemplar de Silas Marner (*) no colo, a fitar a lareira apagada e a tentar compreender tudo quanto acontecera no último mês.
Não cheguei a quaisquer grandes conclusões, nem tive quaisquer grandes revelações. Tentei entender que motivos, que paixões, podiam impelir homens e mulheres aparentemente sãos de espírito ao cometimento do acto de assassinar. Não conseguia compreender e receava que a culpa fosse minha. Não era suficientemente emotivo, nem tinha sentimento suficiente, para apreender que outros de sangue mais quente, de desejos mais fortes, pudessem ser levados a matar.
Era um homenzinho brando, moderado, pensativo. Nada na minha vida era dramático, a não ser o que constituía contribuição de outros. Parecia incrível que conseguisse sobreviver num mundo de quereres tão ardentes e apetites tão insaciáveis.
Quando o telefone tocou, às 8.20 horas, não fui a correr atendê-lo: fui devagar, calmamente. Creio que receava o que esperava ouvir.
- Josh? - perguntou a voz de Stilton.
- Sim.
- Percy. Ela cantou. Tudo. Passou-se como você calculou. Ela não sabe exactamente como ele o fez - um golpe de karate ou um bocado de cano. Não perguntou. Não queria saber. Idem, Martin Reape e a mulher. Knurr limitou-se a dizer-lhe que não se preocupasse, que ele se encarregaria de tudo.
(*) Romance de George Eliot, escritora inglesa (1819-1880). (N. do E.)
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- E encarregou - comentei.
- Sem dúvida. Jesus, estou cansado. De qualquer modo, agora estamos organizados. Está uma equipa no apartamento dos Stonehouses, à procura do testamento. Outra está em casa de Knurr, na Village, e outra de guarda ao seu barco-habitação. Vamos também para a residência Kipper. Não creio que lá se encontre alguma coisa, mas nunca se sabe.
- Nenhum cabelo? Nenhuma poeira? Fios de tabaco?
- Não goze - pediu Stilton, a rir. - Sabe que isso foram tudo tretas.
- Claro.
- Enfim, temos um punhado de mandados. O Lou e eu vamos para o barco-habitação. Quer acompanhar-nos?
Ressuscitei.
- Claro que quero!
- Vamos buscá-lo a sua casa - prometeu Percy. - Josh, faz-nos um favor?
- com certeza. O que quiser.
- Estamos esfomeados. Arranje-nos umas sanduíches, sim? E talvez uma embalagem de seis cervejas.
- É fácil. Que género de sanduíches?
- Qualquer. Nós pagamos-lhe.
- Disparate! Será por conta de Tabatchnick, Orsini, Reilly e Teitelbaum.
- Tem a certeza?
- Absoluta.
- Estaremos à porta da sua casa daqui a meia hora.
Tinha arranjado as sanduíches e esperava no passeio quando o Plymouth azul parou, com Lou ao volante. Entrei para o banco de trás.
Estendi o cartucho de papel pardo a Stilton, que estava à frente.
- Comprei-as numa charcutaria da Décima Avenida - informei. - Pão branco com rosbife e maionese e chouriço fumado com pão de centeio e mostarda. Duas de cada. E uma embalagem de seis cervejas Miller 's frescas. Está bem?
- Plasma! -gemeu Lou. -Plasma!
Meteram a mão no saco de papel e abriram latas de cerveja. Percy virou-se de lado, para falar comigo enquanto comia:
- Temos o testamento do Stonehouse. Agora estão a revistar as coisas pessoais de Glynis. Ela não estava em casa. A mãe diz que foi a uma matinée, esta tarde. Provavelmente está com o Knurr. Não há sinais dos dois, por enquanto. Se não os tivermos apanhado até à meia-noite, alertaremos todas as esquadras e depois expandiremos gradualmente o âmbito da busca, se for necessário.
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- Estão a revistar o clube social do Knurr na Carmine Street? - perguntei.
- Oh, com certeza! - confirmou Stilton. - Encontrámos uma quantidade de registos oficiais. Ele estava a safar-se bem. Que lhe parece meio milhão?
- Incrível!
- Bem - murmurou Lou, que começou a comer outra meia sanduíche-, ele trabalhava duramente.
- E a respeito do diário da casa de Chester Heavens?
- Apreendemo-lo - respondeu Percy. - Assim como a colecção da Tippi de bilhetes que o marido lhe escreveu. Josh, o promotor de justiça quer todo o papel que está em seu poder. Terá tempo na segunda-feira de manhã.
- A Tippi tem advogado?
- Agora já tem. Não é nenhum da sua firma. Trata-se de um advogado criminal de renome. Ele e o promotor de justiça estão neste momento a elaborar o acordo. com muita gritaria.
- Acha realmente que ela ficará em liberdade?
- Provavelmente - respondeu-me, sem interesse, e depois olhou-me atentamente. - Josh, acontecem coisas destas a toda a hora. Dá-se um pouco, recebe-se um pouco... É assim que o sistema funciona.
Acabaram de comer as sanduíches e de beber quatro das cervejas.
- Delicioso - comentou Lou, a limpar o bigode com um guardanapo de papel. - Agora estou pronto para uma luta ou uma farra. Obrigado, amigo.
- Vamos para o cais dos barcos - disse-me Stilton. - Temos um mandado de busca para o barco-habitação. Está um carro com dois homens na Riverside Drive, nas imediações da Rua Setenta e Nove, e um tipo na doca. Nós três vamos entrar no barco. Ficaremos em contacto com os outros por tualkie-talkie, para o caso de Knurr aparecer. Se os rádios funcionarem.
- Não funcionarão - declarou Lou, com toda a naturalidade. -Vamos.
Seguimos para norte pela 10ª Avenida, entrámos na Amsterdam e virámos para oeste na Rua 79. Os dois detectives levaram a maior parte do trajecto a falar de basebol. Eu não contribuí para a conversa.
Estacionámos numa área de abastecimento de autocarros perto da West End Avenue. Apeámo-nos, Percy e Lou com os respectivos rádios em caixas de cabedal. Não olharam à procura do carro que estava de vigia. Atravessámos o parque, descemos um caminho de terra e chegámos à área pavimentada e à rotunda.
Era um lugar fantasmagórico, deserto àquela hora. Pensei de novo numa estação arqueológica: colunas lascadas, chão seco e estalado e
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corredor sombrio conduzindo ao rio lodoso. Tudo velho e em ruínas. Grafitos antigos. Fendas na pedra. Um mundo a desmoronar-se.
Descemos os degraus para o passeio junto ao rio. Alguns praticantes de jogging tardios, pares de amantes estreitamente enlaçados, maricas solitários sentados em bancos, um homem idoso a passear o seu fox terrier, diversos patinadores a fazer arabescos e alguns ciclistas. Não estava apinhado, mas também não estava deserto.
Stilton sacudiu a cancela, a chamar, e quando o encarregado da marina saiu do seu barracão para nos atender, Percy e Lou mostraram-lhe a identificação. Stilton estendeu o mandato de busca, para o homem o ler através do gradeamento. Deixou-nos entrar e apontou o barco-habitação de Godfrey Knurr a sul da entrada.
Percorremos cuidadosamente caminhos de tábuas a flutuar em pontões, que oscilavam suavemente sob os nossos passos.
- Disse que tinham um homem na doca, não disse? - perguntei, inquieto.
Os detectives riram-se.
- O tipo do cão - esclareceu Lou.
- Al Irving - disse Stilton. - Traz sempre o cão quando vem fazer um trabalho destes, de vigilância. Quem vai pensar que um tipo com um cão é um chui? Aquele cachorro tem a melhor ficha de assistência do Departamento.
Descemos do molhe para a coberta da vante do barco-habitação de fibra de vidro de Knurr. Um cabo grosso levava a um contador eléctrico na doca. As portas de correr de acesso à cabina estavam fechadas à chave. Lou inclinou-se para as examinar.
- Uma canja - comentou. Tirou da algibeira do casaco um estojo de cabedal de gazuas."
Utilizou-as um momento e depois empurrou as portas. Chegou-se para o lado.
- Façam favor de entrar - convidou.
Notei, no entanto, que desabotoara o sobretudo e o casaco e tinha a mão no coldre do quadril. Percy Stilton entrou primeiro. Levava o revólver na mão caída ao longo do corpo. Encontrou o interruptor e acendeu as luzes.
- Belo - comentou.
E era. Inspeccionámos. Cadeiras, mesas, sofás. Cortinados e estofos de xadrez alegre. Bastante altura. Luzes no tecto. Banheira e chuveiro. Esquentador de água. Retrete. Diversos tipos de armários. Alcatifa de parede a parede. Camas. Lavatórios. Maior do que o meu apartamento, e mais luxuoso. Uma casa flutuante.
Percorremos o barco-habitação todo, olhámos para os motores duplos e para a bomba de esgotamento, subimos ao convés do sol, maravilhámo-nos com o camarote da vante e com o painel de instrumentos
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da cabina do piloto. Por fim fomos ter à cozinha, onde se nos depararam um fogão-forno eléctrico e um frigorífico vertical.
E uma arca congeladora horizontal.
Não parecia equipamento padrão. Tinha sido encaixada num canto, bem apertada entre uma antepara e o frigorífico. A tampa estava apetrechada com um fecho barato e um pequeno cadeado.
Os dois detectives entreolharam-se.
- Queres apostar? - perguntou Lou. -Não - respondeu Percy.
Lou inclinou-se, para examinar o cadeado.
- Quinze cêntimos - comentou. - Vi algumas ferramentas na casa das máquinas.
Esperámos, em silêncio. Lou voltou volvidos poucos momentos com uma pequena alavanca de orelhas. Enfiou a extremidade curva na argola do cadeado e puxou para cima. Abriu-se com um ruído metálico.
- Uma limpeza - comentou e fez um gesto na direcção de Percy:
- A honra é tua.
Stilton aproximou-se e abriu a tampa da arca congeladora.
Estendemos todos a cabeça para a frente. Ele estava lá, embrulhado no que pareciam sacos de tinturaria de limpeza a seco. Consegui distinguir as letras: ESTE SACO NÃO É UM BRINQUEDO.
Tinha lá sido metido de braços cruzados e joelhos para cima. O plástico gelara, apertado à volta da sua cabeça. Distingui o rosto pouco nítido e gelado. Um rosto comprido, chupado, ossudo, descarnado e furioso.
- O professor Stonehouse, presumo - disse Percy Stilton, e tirou o chapéu.
- Fecha o raio da arca antes que ele descongele - pediu Lou. Virei as costas, a lutar contra a náusea. Percy tentava contactar
pelo walkie-talkie a equipa de Riverside Drive e o homem da doca. Tudo quanto obtinha em troca era estática que arrepiava os ouvidos. -Merda! - resmungou.
- Eu bem te disse - lembrou Lou. - São formidáveis até precisarmos deles.
Estávamos parados a discutir quem iria ao telefone mais próximo quando ouvimos barulho de passos na coberta exterior e o barco-habitação oscilou suavemente. Antes que eu compreendesse o que estava a acontecer, os dois detectives estavam acocorados junto da porta da cozinha, de armas em punho.
- Josh - chamou Stilton, num murmúrio sibilante-, baixe-se. Caí de gatas, todo encolhido perto da terrível arca congeladora.
Percy espreitou cautelosamente pela abertura da porta. Depois sorriu, levantou-se e fez-nos sinal para nos levantarmos também.
- Aqui - gritou Stilton a alguém que se encontrava do lado de fora.
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Glynis Stonehouse entrou devagar. Vestia o comprido casaco de peles, com o capuz descido, a repousar nos ombros. Seguia-a o reverendo Godfrey Knurr, vestido como um janota: sobretudo feito por medida, camisa de colarinho largo, gravata larga de brocado e coco preto inclinado na cabeça.
Atrás deles vinha Al Irving, a sorrir. Segurava o fox terrier pela trela e na outra mão empunhava um revólver de cano curto. O cão rosnava baixo.
- Olhem o que encontrei - disse o detective Irving. - Caíram-me nos braços com toda a limpeza. Tentei contactar com vocês, mas estes rádios novos encravam-se.
- Que significa isto? - gritou Godfrey Knurr.
Foi uma pergunta tão banal, tão melodramática, que me senti envergonhado dele.
Percy Stilton brindou-o com um sorriso de caveira, deu dois passos rápidos para a arca congeladora e levantou a tampa.
- Que significa isto? - perguntou por sua vez.
Depois ninguém teve nada a dizer. Estávamos todos presos, congelados num quadro teatral. A fitar-nos uns aos outros.
Só a palidez do rosto denunciava a agitação de Glynis Stonehouse. As suas mãos não tremiam, o seu olhar estava firme e frio. Nada lhe faria mossa? Mantinha-se erecta, altiva e distante. O pai estava ali, congelado em plástico, um pacote de carne de supermercado, e ela conservava-se serena, a olhar para todos nós com um curioso desdém.
Godfrey Knurr estava a sentir mais - ou pelo menos a evidenciar mais que sentia alguma coisa. Os seus olhos pestanejavam a olhar de um lado para o outro, a sua boca agitava-se. Dedos nervosos mexiam nos botões do sobretudo. O seu corpo tornou-se ligeiramente frouxo, até dar a impressão de estar meio encolhido, numa atitude quase simiesca, tenso e a vibrar.
O seu olhar fixou-se em mim. Tão indignado, tão furioso! Olhou-me de alto a baixo, como se não acreditasse que uma criatura tão humilde, tão minúscula, pudesse ser responsável pela sua ruína. Emitiu um som. Pareceu um gemido, mas não foi bem um gemido. Um protesto. Um som que dizia: "Não é justo..."
- Escute, Joshua - disse, rouco-, quero que saiba uma coisa...
Nenhum de nós se mexeu, atento ao que ele dizia, à espera de ouvir o que queria que eu soubesse.
- Penso que você... - continuou e depois, subitamente, entrou em acção.
Foi tão rápido, tão rápido!
Girou sobre o pé esquerdo, virou-se bateu com o cutelo da mão no braço armado do detective Al Irving. Ouvimos todos o estalar do osso. Knurr completou uma volta, numa mancha de movimento veloz, e
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abriu caminho à bruta através de Glynis e Lou, todo ombros e cotovelos.
Num instante estava na cabina principal, a correr.
Stilton foi o primeiro a refazer-se.
- Vigia a mulher! -gritou a Lou e iniciou a perseguição.
Fui a correr atrás dele.
Godfrey Knurr saltou para o molhe e virou à esquerda, no pontão. Este inclinou-se e balançou sob o peso das suas passadas velozes.
Um casal jovem aproximava-se a conversar e a rir. Ele correu contra eles, através deles, por cima deles. Os jovens foram parar, aos gritos, à água fétida.
Stilton e eu continuámos atrás dele. Eu não sabia o que estava a fazer, só sabia que não queria que Percy estivesse só.
Knurr transpôs a cancela e correu para a escada do lado sul que levava à rotunda. Stilton tinha a arma na mão, mas havia gente no passeio, peões e ciclistas. Desviaram-se todos quando nos viram aproximar, mas Percy não quis arriscar um tiro.
Godfrey Knurr subiu os degraus a dois e dois. Lembro-me de que o seu coco caiu e ressaltou pela escada abaixo. Depois foi a nossa vez de subirmos. Eu julgava-me rápido, mas Percy era mais forte, aproximava-se de Knurr enquanto eu ia ficando para trás.
Lançámo-nos todos três ruidosamente através do corredor arqueado, uma cripta. Dois peões, ao ouvirem-nos e verem-nos, encostaram-se aterrorizados à parede manchada.
Desembocámos na rotunda. Knurr contornou para a sua esquerda, a correr desabaladamente, na esperança de chegar à saída. O seu sobretudo desabotoado adejava atrás dele.
Percy Stilton tinha finalmente um campo de tiro desimpedido. Parou, flectiu os joelhos, agarrou o revólver maciço com as duas mãos, de braços estendidos e cotovelos ligeiramente dobrados.
- Pare imediatamente! -gritou.
Súbita e inesperadamente, Knurr contornou a bacia da fonte e correu na nossa direcção. O cabelo esvoaçava-lhe e tinha o rosto barbudo contorcido, reluzente de cólera.
- Ah! - gritou, levantando uma das mãos numa posição clássica de karate, com os dedos unidos e a palma transformada num cutelo.
- Oh, Deus nos valha! - exclamou Percy Stilton, contrariado, ao mesmo tempo que apontava cuidadosamente e disparava para a perna direita do reverendo Godfrey Knurr: vi a pesada bala arrepanhar as calças alguns centímetros acima do joelho.
O impacte obrigou Knurr a rodopiar. Fez uma pirueta, tão graciosamente como um bailarino. O balanço que trazia e a força da bala mantiveram-no a girar de braços abertos. Uma expressão de espanto estampou-se-lhe nas feições transtornadas.
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Girou, a inclinar-se, e caiu para trás por cima da borda da fonte em ruínas. O seu corpo desceu pesadamente. Ouvi o barulho que a sua cabeça fez ao entrar em contacto com o cimento estalado. As suas pernas e os seus pés ficaram espetados para cima, na borda da bacia. A cabeça, os ombros e o tronco estavam no interior.
Aproximámo-nos cautelosamente, Stilton de arma empunhada estendida. Knurr começava a sangrar do ferimento da perna e de um ferimento na cabeça. Olhou-nos, atordoado.
- Idiota! -gritou-lhe Stilton. - Idiota do caraças!
A visão de Godfrey Knurr desanuviou-se.
Olhou-me cheio de fúria.
Voltei-me, afastei-me para uma das colunas lascadas e comprimi a testa contra o cimento frio.
Passados momentos, Percy juntou-se-me e passou-me um braço pelos ombros.
- Josh - disse, brandamente-, ele não era um homem decente.
- Bem sei - murmurei, triste. - Mesmo assim...
Capítulo oitavo
Havia uma festa na casa de Chelsea. A última tinha tido tanto êxito que tinham todos querido outra.
Foi uma festa maravilhosa. Todos os inquilinos estavam presentes, claro, assim como um grupo ruidoso do mundo da música: os amigos de madame Zora Kadinsky. O comandante Bramwell Shank tinha convidado alguns compinchas dos seus tempos de marinheiro noferry da Staten Island. Eram uns velhos briguentos, que passaram a maior parte do tempo às duas mesas de jogo onde estavam dispostos comes e bebes.
A festa já estava bem lançada, ruidosa de conversas e risos, quando eu cheguei. No último momento, saíra a correr e comprara uma caixa de quilograma de ginjas cobertas de chocolate no drugstore local. Ofereci-a a Mrs. Hufnagel e recebi em troca um beijo terno na face. Madame Kadinsky insistiu em apresentar-me a todos os seus amigos. Não me lembro de nenhum dos nomes, que pareciam ser compostos apenas por consoantes.
Enquanto andávamos pelo apartamento, os meus olhos procuravam Cleo. Terminadas as apresentações, acabei por encontrá-la na cozinha, a falar com Adolph Finkel. Ou melhor, ele estava a falar e ela estava a
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escutar, com uma expressão confusa no rosto. Seguravam ambos copos de papel de vinho.
Observei-a alguns momentos antes de me aproximar. Parecia-me tão limpa! Fisicamente limpa, claro, mas mais do que isso. Havia nela uma pureza inocente. Parecia nunca ter sido tocada pela violência nem sequer pelo mal. Era incapaz de imaginá-la a proceder inspirada pela maldade ou pelo ódio, pela ganância ou pela inveja.
Vestia um camiseiro solto de lã fina, que parecia ter uma floresta estampada. Não tinha maquilhagem, o seu rosto estava limpo e sereno. Como pudera eu tê-la julgado feia? Era bonita! Aquela fronte alta e nobre; os encantadores olhos cor de avelã; o nariz de sonho, e os lábios delicadamente esculpidos. Os dentes não eram nada grandes nem protuberantes; eram pedras preciosas a cintilar. O cabelo castanho caía livre e solto, reluzente. E quando lhe recordei o corpo elegantemente esbelto, naquele momento oculto pelo camiseiro, subiu-me uma onda de sangue à cara, fiquei sem respiração e os meus joelhos pareceram feitos de água.
Aguardei mais um momento, até a minha respiração regressar ao normal, e depois dirigi-me para a cozinha. Cleo levantou a cabeça e viu-me aproximar. Os seus olhos dilataram-se, o seu rosto ficou animado, toda ela pareceu brilhar.
- Josh! -exclamou, feliz. -Onde esteve?
- Fora da cidade. Como está, Cleo? Prazer em vê-lo, Finkel.
- Olá, Bigg - redarguiu ele.
Cleo, a falar no seu murmúrio tímido e suave, começou a dizer-me que estivera preocupada -que todos os inquilinos tinham estado preocupados- porque ninguém me vira nem me ouvira em casa desde quinta-feira de manhã, e haviam receado que me tivesse acontecido alguma coisa.
Garanti-lhe que estava bem de saúde, que corria tudo bem e que tinha muito que contar-lhe acerca de assuntos de que anteriormente faláramos.
Adolph Finkel assistira ao nosso diálogo íntimo com algum constrangimento, com as faces pálidas a tornarem-se cada vez mais acabrunhadas. Receei que irrompessem lágrimas daqueles olhos fracos. Parecia mais atarantado do que nunca, tinha o cabelo baço todo despenteado e um sorriso de condenado deixava ver-lhe os dentes manchados, de pedra tumular.
- Bem, Bigg - interrompeu-nos, subitamente-, creio que venceu o melhor homem.
Despejou o vinho do seu copo de papel, lançou-nos um olhar tão martirizado que tive vontade de lhe dar um pontapé nas canelas e afastou-se, de ombros descaídos. Seguimo-lo com o olhar, cheios de espanto. Depois voltei-me para Cleo.
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- O melhor homem? - repeti, a lembrar-me de Hamish Hooter e de Yetta Apatoff.
Cleo e eu desatámos às gargalhadinhas, inclinados um para o outro e com as cabeças a tocarem-se.
- Ouve, podes sair o mais depressa possível? - perguntei-lhe. -Tenho tantas coisas para te dizer!
Olhou-me com firmeza.
- Aonde queres ir?
Respirei fundo, antes de responder, em tom casual:
- Há um restaurante agradável na Rua Vinte e Três, o Woody's. Está aberto aos domingos. Boa comida. Conheço a mulher que o dirige. Podemos jantar e tomar bebidas em copos a sério.
- Tens a certeza de que queres sair comigo? - perguntou, ainda a fitar-me nos olhos. Sabia que eu tivera receio de ser visto com ela: Mutt e Jeff.
- Absoluta - respondi corajosamente.
- Adoraria ir contigo ao Woody's - declarou, a sorrir.
Saí do apartamento com o sobretudo e o chapéu e esperei por Cleo no átrio de entrada. Momentos depois ela corria pela escada abaixo, de casaco e boina, e pusemo-nos a caminho.
Estava um dia luminoso e cheio de sol, mas o vento soprava com força, fustigava-nos os abafos e deixava-nos as faces a arder. Cleo deu-me o braço e eu olhei nervosamente para os transeuntes, à procura de sinais de gozo por verem aquela mulher alta e delgada com o pigmeu do seu acompanhante.
Mas ninguém nos olhou e passados momentos deixei de me preocupar com o que as pessoas pensavam.
- Levei o papagaio para casa - disse a Cleo. - E o fio e o carreto.
- Hoje está demasiado vento. Mas podemos soltá-lo noutro dia. -Claro - concordei.
Pendurámos os abafos e os chapéus no bengaleiro à entrada do Woody's. Aguardámos um momento e depois Nitchy veio ao nosso encontro da sala de jantar do fundo.
- Cleo - disse eu-, gostaria de te apresentar Nitchy, uma amiga. Nitchy, apresento-lhe Cleo.
As duas mulheres trocaram um aperto de mão. Nitchy olhou perscrutadoramente o rosto de Cleo. Depois voltou-se para mim, a sorrir, e pôs a mão macia no meu braço.
- Finalmente! - exclamou.
Lawrence Sanders
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