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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DEGOLADOR DE HYDE PARK / Anne Perry
O DEGOLADOR DE HYDE PARK / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Uma série de sanguinárias decapitações ocorridas no Hyde Park provocam o pânico na sociedade londrina. A lembrança das macabras façanhas do Jack o Estripador ainda está muito fresca na memória coletiva. Naturalmente, o espinhoso caso recai no recém promovido superintendente Pitt, e se não resolver em um breve prazo é mais que provável que isso lhe custe também à cabeça, profissionalmente falando, mas nem sequer as sutis pesquisas de sua esposa Charlotte jogam luz sobre os sinistros acontecimentos.

Conseguirá Pitt dissipar as brumas da Londres vitoriana para ver a luz em um de seus casos mais difíceis e eletrizantes?

 

 

 

 

-OH, George! - suspirou Millicent alvoroçada. -Que preciosidade. Nunca tinha estado no parque há esta hora. O amanhecer é tão romântico, não lhe parece? É o início de tudo! - George se limitou a tamborilar um pouco mais rápido sobre a erva úmida. -Observe a luz refletida na água - prosseguiu ela extasiada. -Parece uma bandeja de prata.

-Uma bandeja muito estranha, na verdade. - Murmurou George, contemplando a longa e estreita Serpentine com menos entusiasmo que ela.

-Será como estar no país das fadas. - Millicent não tinha o menor respeito pelo prático em momentos assim. Tinha ido ao parque a primeira hora da manhã para navegar a sós com George pelo lago. Recolheu as saias para que não lhe empapassem de orvalho, isso era mero bom senso. Ninguém gostava que o tecido grudasse úmido aos tornozelos.

-Não somos os primeiros - disse George aborrecido. Um dos botes estava a uns três metros da margem, mas a pessoa que ia a bordo estava estranhamente dobrada, como se procurasse algo no fundo da embarcação.

Millicent não pôde dissimular sua desilusão. Havendo alguém presente, alguém alheio ao idílio, não havia romantismo. Já não era possível imaginar que o Hyde Park, em pleno centro de Londres, era um bosque de algum arquiducado europeu e George um príncipe, ou um cavalheiro ao menos, aquela vulgar intromissão danificaria a cena. Sem contar que ela não devia estar ali sem acompanhante, e a última coisa que precisava era uma testemunha.

-Talvez parta - disse esperançada.

-Pois não se move - replicou George. Levantou a voz: -Você perdoe, encontra-se bem? - Franziu o sobrecenho. -Não posso lhe ver o rosto - acrescentou voltando-se para Millicent. -Espera aqui. Verei se é amável de afastar-se um pouco. - Pôs-se a andar para o embarcadouro sem pensar em que molharia os sapatos, mas ao chegar à borda escorregou e caiu à água com um forte chapinho.

-OH! - exclamou Millicent, sobressaltada e contendo a risada. -OH, George!

Correu pela erva enquanto ele removia o barro com um ruído de mil demônios sem que aparentemente fosse capaz de recuperar o equilíbrio. Curiosamente, o homem do barco não se deu conta de nada.

Por fim, à luz que ia ganhando rapidamente intensidade, Millicent compreendeu por que. Tinha suposto, como antes George, que o homem estava dobrado para frente. Não era assim. Em realidade lhe faltava a cabeça, não havia nada sobre seus ombros salvo o coto sanguinolento de seu pescoço.

Millicent perdeu a consciência e caiu na erva.

        -Sim, senhor - disse o agente. -O honorável capitão Oakley Winthrop, da Marinha Real. Encontraram-no decapitado em um desses botes de remos que há no Serpentine. Ao amanhecer. Dois apaixonados em busca de um pouco de romantismo. - Aplicou a esta última palavra um tom de infinito desprezo. - Os pobres desmaiaram ali mesmo, não tinham estômago para aquele espetáculo.

        -Não estranho - disse o superintendente Thomas Pitt. –Seria preocupante se tivesse sido de outro modo.

O policial, evidentemente, não o entendeu.

-Sim, senhor - disse com mansa obediência. -Chamaram os guardas, uma vez que o cavalheiro voltou a si e pôde sair da água. Deve ter caído de susto, imagino eu. - Seus lábios se contraíram ligeiramente, mas em sua voz não havia indício de humor. -O agente Wither foi quem acudiu. Estava de serviço no parque. Com uma olhada ao cadáver comprovou que aquilo era sério, de modo que avisou a seu sargento e os dois voltaram a examiná-lo. Tomou ar à espera de que Pitt dissesse algo.

-E então? - replicou-lhe este.

-Foi então que descobriram quem era o morto. Como se tratava de um membro importante da marinha, honorável para ser mais exato, pensaram que a este assunto devia levá-lo alguém de sua categoria, senhor. - Olhou satisfeito ao Pitt.

Pitt acabava de ser promovido a superintendente. Tinha ganho em pulso porque sabia que seu verdadeiro talento consistia em trabalhar tanto nos bairros pobres, com os pobres ou os criminosos autênticos, como nos quartos dos criados e salões da alta classe.

Em finais do outono do ano anterior, 1889, seu superior, Micah Drummond, tinha deixado o cargo para casar-se com a mulher a que amava, a do grande escândalo que acabou arruinando a seu marido e lhe custando a vida. Drummond tinha recomendado ao Pitt para o posto apoiando-se em que, apesar de não ser um cavalheiro, tinha muita experiência como policial, oficio para o que estava indubitavelmente dotado, tendo demonstrado ser capaz de resolver até os casos mais delicados, aqueles em que estavam envolvidas pessoas de alta classe social ou política.

E depois do fiasco dos assassinatos do Whitechapel, ainda por resolver, e a grande impopularidade do corpo de polícia, que estava perdendo credibilidade, tinha chegado o momento de uma mudança radical.

Na primavera de 1890, início de uma nova década, Pitt era pois o máximo responsável pela delegacia de polícia do Bow Street, muito especialmente para casos delicados que podiam resultar muito incômodos se não os dirigia com tato e extrema prontidão. Daí que o agente Grover estivesse no bonito escritório que Pitt tinha herdado do Drummond, lhe falando do decapitado e honorável capitão Oakley Winthrop, sabendo que Pitt estava obrigado a assumir o caso.

-Que mais sabe? - perguntou Pitt, olhando ao Grover e reclinando-se na poltrona que até agora continuava lhe parecendo de Drummond.

-Perdão?

-O que há dito o legista? - urgiu-lhe Pitt.

-Que morreu porque lhe cortaram a cabeça - respondeu Grover, erguendo um pouco o queixo.

Pitt ia dizer-lhe que não fosse insolente, mas de fato ainda estava medindo a seus novos ajudantes. Não tinha trabalhado estreitamente com eles, salvo em contadas ocasiões com algum sargento. Considerava-o mais um rival que um colega. Tinham obedecido ao Micah Drummond porque era de uma família distinta e enriquecida e tinha atrás dele uma carreira militar, por isso estava duplamente habituado a dar ordens. Pitt era filho de um guarda florestal e falava bem unicamente porque tinha sido educado, em trato de favor, com o filho do imóvel. Não tinha as maneiras nem a aparência de alguém nascido para mandar. Era alto, mas adotava freqüentemente uma postura estranha. Levava o cabelo desarrumado, inclusive nos melhores dias.

Nos piores, era como se tivesse saído de um vendaval. Vestia-se com grande abandono e levava nos bolsos um incrível sortimento de coisas que pensava podiam lhe ser úteis em algum momento.

O pessoal do Bow Street demorava para habituar-se a ele, e Pitt se dava conta de que não sabia mandar. Estava acostumado a descuidar-se do regulamento, e a ser tolerado porque lhe saíam bem as coisas. O comando supunha obrigações de outra aparência e exigia dar um exemplo menos excêntrico. De repente era o responsável por dar ordens a outros, de seus êxitos e seus fracassos, inclusive de sua segurança física.

Pitt lançou um frio olhar ao Grover.

-Hora da morte – disse. -Seria muito interessante sabê-lo. Mataram-no no barco ou foi levado ali depois?

Grover ficou boquiaberto.

-Parece-me que não sabemos, senhor. De momento. Mas é um pouco arriscado cortar a cabeça a alguém no meio do parque. Poderia havê-lo visto qualquer um que estivesse passeando por ali.

-E quantas pessoas havia passeando a essa hora, Grover?

O agente se apoiou na outra perna.

-Bom, pois parece que só as duas pessoas que o acharam. Claro que o assassino poderia ter contado com isso, não é? - Foi uma afirmação, mais que uma pergunta. -Pôdia ser qualquer um que tivesse ido dar uma volta –prosseguiu. -Ou inclusive alguém que voltasse para casa de alguma festa, ou que tivesse saído a tomar o afresco...

-Isso no caso de que o fizessem à luz do dia - indicou Pitt. –Possivelmente ocorreu muito antes. Souberam de alguém que estivesse no parque?

-Não, ainda não. Viemos lhe informar, senhor, tão logo vimos que se tratava de alguém importante. - Assim se justificava, mas sabia que não bastava isso.

-Bem - concordou Pitt. -A propósito, acharam a cabeça?

-Sim, senhor, estava ali mesmo no barco, ao lado do morto - replicou Grover, pestanejando.

-Entendo. Obrigado. Faça subir ao senhor Tellman, por favor.

-Em seguida. - Grover ficou firme. -Obrigado, senhor. - Girou sobre os calcanhares e saiu do escritório fechando a porta.

Tellman bateu com os dedos, e Pitt lhe disse que entrasse. Era um homem enxuto de rosto aquilino, faces afundadas e uma boca sarcástica. Tinha ido subindo a base de duro trabalho e uma implacável diligencia. Seis meses atrás tinha o mesmo posto que Pitt, mas agora era seu ajudante, e isso lhe doía profundamente. Ficou firme diante de Pitt, que estava sentado atrás da ampla escrivaninha com incrustações de couro.

-Sim, senhor - disse com frieza.

Pitt não fez caso de seu tom de voz. Olhou-o com olhos inocentes e disse sem alterar-se:

-Houve um assassinato no Hyde Park. A vítima é Oakley Winthrop, capitão honorável da Marinha Real. Encontraram-no pouco depois do amanhecer em um dos botes de remos do Serpentine. Decapitado.

-Que desagradável - respondeu Tellman lacônico. -Era importante, esse Winthrop?

-Não sei. Mas seus pais têm títulos, assim provavelmente o era, ao menos a olhos de certas pessoas.

Tellman torceu o gesto. Desprezava a quem considerava passageiros na sociedade. Os privilégios suscitavam nele uma cólera amarga que se remontava a uma infância de fome, frio, ansiedade e esgotamento, um pai vencido pelas circunstâncias até ficar sem orgulho e uma mãe que trabalhava até ficar sem forças para falar ou rir com seus filhos.

-Suponho que nos sairão buracos nas solas dos sapatos para pescar ao culpado - disse mal-humorado. -Me cheira que é coisa de algum louco. Quero dizer, para que ia alguém fazer algo tão... ? - Se deteve, procurando a palavra adequada. -A cabeça estava ali?

-Estava, com efeito. Não tentaram ocultar sua identidade.

Tellman torceu novamente o gesto.

-Um louco. E que diabos fazia um capitão da marinha em um bote de remos do Serpentine? - Seu rosto se iluminou de repente com um sorriso. -Que humilhação, não acha? Um tipo assim estaria acostumado a navios de guerra. - Pigarreou um pouco. -Ou seja se não tivesse companhia feminina. A mulher de outro, possivelmente.

-É possível - concedeu Pitt. -Mas de momento guarde suas especulações. Para começar, averigúe todos os fatos que possa. - Viu que Tellman resmungava ao ouvir algo que considerava evidente. Pitt fez caso omisso de sua expressão e prosseguiu: -Consiga todos os detalhes materiais. Quero saber quando o mataram, com o que, se foi de um golpe ou de vários, se o golpearam por diante ou por detrás, com a esquerda ou com a direita, e se estava ou não consciente nesse momento...

Tellman levantou as sobrancelhas.

-E como posso saber tudo isso, senhor? - inquiriu.

-Têm a cabeça. Saberão se o golpearam antes de matá-lo, e têm o corpo, poderão averiguar se estava drogado ou envenenado.

-Mas não se estava adormecido - indicou sentenciosamente Tellman.

Pitt passou por cima e prosseguiu.

-Averigúe a roupa que levava. E o estado de seus sapatos. Caminhou pela erva até o barco ou o levaram nos braços? E, por descontado, deveria determinar se lhe cortaram a cabeça uma vez a bordo ou em outra parte. -Olhou ao Tellman. –E depois faça que draguem o Serpentine para ver se aparece a arma do homicida!

Tellman avermelhou.

-Sim, senhor. Isso é tudo, senhor?

-Não, mas por algo se começa.

-Quer que leve comigo a alguém em particular? Já que o caso é tão delicado...

-Sim - disse Pitt com satisfação. -Leve Grange. - O Grange era um

jovem lisonjeador e de muita lábia cujo servilismo irritava ao Tellman incluso mais que ao Pitt. -Saberá ocupar-se muito bem das possíveis testemunhas.

A expressão de Tellman se anuviou, mas não disse nada, ficou firme um instante, deu meia volta e saiu.

Pitt se reclinou na poltrona e sumiu em seus pensamentos. Era o primeiro caso importante que se apresentava desde que ocupava o posto do Drummond. Tinha havido outros crimes, é claro, alguns deles graves, mas nada da categoria para a que tinha sido expressamente nomeado: casos que ameaçavam escândalos ou tragédias de proporções mais que privadas.

Não tinha ouvido falar do Winthrop, claro que ele não freqüentava nem estava familiarizado com as figuras descolantes das forças armadas. Conhecia alguns parlamentares, mas Winthrop não pertencia a esse corpo, e embora seu pai tinha sido membro da Câmara dos Lordes, isso não lhe tinha suposto saltar ao conhecimento público.

Com certeza, Micah Drummond devia ter algum livro de referência para a ocasião. Nem sequer ele podia ter armazenado em sua memória todo o pertinente a respeito dos homens e mulheres importantes de Londres.

Fez virar a poltrona e contemplou as bonitas estantes. Familiarizara-se já com muitos tomos. Era uma das primeiras coisas que tinha feito depois de seu traslado. Ali estava: o Who"s Who. Abriu-o sobre a mesa. O honorável capitão Winthrop não constava na lista. Entretanto, sim se falava de lorde Marlborough Winthrop, mais por sua herança que por seus lucros, não obstante o qual o livro oferecia um prometedor retrato de um homem orgulhoso, rico e com pouco senso de humor, cujos interesses eram tão tediosos como previsíveis. Tinha ocupado uma longa lista de cargos menores e estava aparentado com diversas famílias importantes, algumas bastante longínquas, mas tudo estava adequadamente explicado. Há quarenta anos havia desposado a uma tal Evelyn Hurst, terceira filha de um almirante e possuidora de um título de nobreza.

Pitt fechou o livro com um pressentimento. Certamente não seria fácil aplacar lorde e lady Winthrop se as respostas demorassem para chegar ou eram desagradáveis. Provavelmente era injusto, mas já imaginava.

Teria razão Tellman e haveria um louco solto pelo parque? O teria procurado Winthrop por cortejar a uma mulher alheia ou não pagar suas dívidas? Ou acaso estava informado de algum perigoso segredo? Eram perguntas que teriam que ser respondidas com sutileza e boa dose de tato.

Teria gostado de ir pessoalmente ao parque em busca de provas, mas isso era coisa do Tellman, e vigiar suas indagações teria sido uma perda de tempo e uma falta de cortesia.

Charlotte Pitt tinha ocupações bem distintas. A promoção de seu marido lhe tinha dado a oportunidade de mudar-se a uma casa maior, uma casa com jardim, ampla grama e dois grandes canteiros herbáceos, mas também uma cozinha exterior e três velhas macieiras, que agora mesmo mostravam em seus retorcidos ramos numerosos casulos a ponto de florescer. Charlotte se tinha apaixonado pela casa tão logo cruzou a porta de dupla folha do salão que dava ao terraço lajeado e viu ante ela o jardim.

Havia muitas reparações que fazer na casa antes de ocupá-la, mas Charlotte imaginava toda sorte de maravilhosas possibilidades. Tinha-a decorado mentalmente uma centena de vezes, pendurado cortinas, procurado tapetes, trocado uma e mil vezes os móveis de lugar.

Agora terei que trocar o papel das paredes, e o estuque estava tão deteriorado que seria necessário arranhá-lo de cima abaixo e engessar de novo. Havia coisas quebradas ou que faltavam, pedaços de cornijas, frisos e molduras. A roseta do teto da sala de jantar estava tão descascada que tinha que trocá-la. O abajur do vestíbulo carecia de vidro, assim como vários acendedores de gás de outros aposentos. O espelho de cima da cornija da lareira estava manchado no centro e rachado nas bordas, e a lareira do dormitório principal tinha perdido vários ladrilhos. Havia muito que fazer, mas Charlotte estava entusiasmada e, no momento, não lhe arredava a perspectiva.

Não sabia nada do assassinato no Hyde Park. De pé no meio do salão, imaginava o bonito que ficaria quando estivesse terminado. Na casa do Bloomsbury só tinham um salão, agradável sim, mas muito diferente deste, ou para ser mais exato, de como ia ficar este. Então poderia convidar a suas amizades para jantar, algo que não tinha podido fazer desde que estava casada, com a condição, é claro, de sua família mais direta.

Seus pais tinham vivido com folga, embora de jovem lhe parecesse insuficiente. Nunca houve dinheiro em mão para todos os vestidos que ela queria, nem para mais de uma carruagem. Mas quando escandalizou suas amigas casando-se com um policial, ao mesmo tempo que sua irmã mais nova, Emily, o fazia com um visconde, suas vidas tinham mudado radicalmente. Depois tinha morrido George Ashworth, convertendo Emily em uma viúva riquíssima, e ela se casara tempo depois com o bonito, encantador e paupérrimo Jack Radley.

Emily parecia muito feliz e isso era quão único importava. Seu filho de sete anos, Edward, agora lorde Ashworth, tinha uma irmãzinha chamada Evangeline, Evie para abreviar, e Jack tentava de novo ganhar um banco no Parlamento. Graças às adulações e a persuasão de Emily, ele se tinha decidido a fazer carreira. Sua primeira tentativa tinha fracassado, embora, tanto para Emily como para Charlotte, tinha sido uma vitória moral.

-Perdoe, senhora...

A voz do Gracie, sua criada, uma moça que estava com Charlotte desde que se mudara ao Bloomsbury, interrompeu seus pensamentos. Agora era uma jovem inteligente e decidida de dezoito anos que tinha encontrado seu lugar na vida como confidente e, em segundo termo, criada da esposa de um detetive. A mudança que tinha experimentado interiormente era quase milagrosa. Tinha um grande afã de aventura e continuava sendo tão miúda como um coelhinho. Toda a roupa que lhe davam lhe caia muito longa e tinha que cortá-la, mas tinha as faces rosadas e sabia enfrentar ao vendedor mais impertinente ou à criada mais presunçosa. Ao fim e ao cabo, ela tinha suas aventuras. As demais só faziam tarefas da casa.

-Sim, Gracie? - disse Charlotte.

-Veio o lixeiro e pergunta se leva os ladrilhos quebrados e se tira o linóleo da cozinha que está muito quebrado. Diz que só será um xelim e seis, e que também tirará o lixo do pátio de trás.

-Um xelim e ponto. E pode levar também os acendedores quebrados, se quer fazer o favor de pegá-los.

-Sim, senhora.

Gracie saiu para voltar poucos momentos depois com Emily lhe pisando os calcanhares. A irmã de Charlotte entrou com um revôo de saias rosas, maravilhosas mangas e um talhe de vespa como mandava a moda, muito diferente de como estava antes de ter a Evie, mas muito favorecedor. Seu cabelo loiro emoldurava seu rosto com uma auréola de cachos e sua expressão mostrava a maior perplexidade.

-OH, Charlotte! - olhou em redor e tragou saliva.

Charlotte a fulminou com o olhar.

-Poderia ficar muito bem - acrescentou Emily, mas na hora pôs-se a rir derrubando-se no velho sofá que tinham colocado junto às janelas da parte dianteira.

Charlotte abriu a boca para soltar algum impropério, mas compreendeu que teria sido absurdo. O salão era triste e degringolado. Do gesso quebrado caíam farrapos de papel, as janelas estavam sujas e uma delas estilhaçada, os acendedores de gás quebrados. O vetusto sofá tinha uma capa de pó que lhe dava um aspecto fantasmagórico. E o resto da casa não estava melhor. A única forma de engolir era compartilhar a risada.

-Já o arrumarei - disse ao fim, uma vez recuperada das gargalhadas.

-Terá que engessar de novo e depois empapelar - observou Emily, -antes de começar a escolher os móveis.

-Já sei. - Charlotte secou as lágrimas com a mão. -Aí está a graça de mudar-se. Terei reformado um desastre e o terei convertido em algo bonito.

-É tão feminina, querida - disse Emily com um largo sorriso. -Conheço muitas que passam a vida tratando de fazer isso, e não só com casas: a maioria com maridos. O problema dos maridos é que se não funcionar não pode se mudar! – ficou em pé e alisou as saias. -Me mostre o resto da catástrofe. Prometo que tentarei imaginar o bonito e senhorial que poderia ficar. Por certo, houve um horrível assassinato no Hyde Park, sabia?

-Não. Quando? - Charlotte a conduziu para o que seria a sala de jantar. -Como o soube? Saiu no jornal de hoje?

-Não. Acredito que acharam o cadáver esta mesma manhã, em um dos botes do Serpentine. - Olhou ao redor. -Esta sala está bem proporcionada, mas lhe faltaria um manto de lareira maior. Talvez poderia pô-la no dormitório. Aqui fica muito estreita. Ouvi-o quando paramos no Tottenham Court Road. Anunciavam-no a vozes os vendedores de jornais. Cortaram a cabeça a um oficial da marinha.

Charlotte se deteve bruscamente para olhar a sua irmã.

-Decapitado?

-Sim. Repulsivo, não é? Imagino que Thomas estará a cargo do caso, porque a vítima era capitão e seus pais são lorde e lady Winthrop.

-Não me soam de nada - disse Charlotte mostrando interesse.

Ambas as irmãs tinham conhecido ao Pitt quando investigava o assassinato da irmã mais velha delas, Sarah, e depois as duas tinham intervindo em seus casos mais graves na medida em que o permitia a oportunidade, e freqüentemente muito mais do que Pitt teria permitido se fosse consultado antes, em vez de inteirar-se a posteriori.

-Ora, nem novos ricos nem de rançosa ascendência - disse Emily com ar desdenhoso. - Gente não muito brilhante, mas bem relacionados e muito conscientes disso. - Encolheu os ombros. -Já sabe a que me refiro. Gente que não tem feito nada especial, mas que sempre quis ser importante. Sem imaginação, absolutamente seguros de que sabem tudo, amáveis a sua maneira, sinceros como a luz do dia e sem o menor senso de humor.

-Uma lata - resumiu sucintamente Charlotte. -E ainda por cima não pode dizer que não simpatiza com eles, embora lhe aborreçam e lhe tirem a calma.

-Nem mais nem menos - concedeu Emily indo para a porta. -A verdade é que nem lembro o aspecto de lady Winthrop. Poderia ser atirando a loira e um pouco gorda, ou poderia ser aquela um pouco morena e muito alta. Que tolice. Ou inclusive aquela peituda cujo rosto não consigo situar. Eu não costumo ser assim. Não posso me dar esse luxo, tendo Jack a um passo do Parlamento. - Fez uma careta. -Imagine que toma por esposa do primeiro-ministro a uma que não o é! - A careta piorou. -Que desastre! Nem sequer lhe quereriam no Foreign Office.

Estavam no corredor. Emily se deteve com um suspiro de apreciação.

-A escada eu gosto. Acho-a muito elegante, Charlotte. Este pilar de arranque é dos mais bonitos que jamais vi. Santo céu, o que terão demorado para esculpi-lo. - Elevou o queixo para seguir a linha do corrimão até o pilar do patamar. -Sim, muito elegante. Quantos quartos há?

-Já lhe disse isso, cinco, e um desvão amplíssimo para a Gracie –respondeu Charlotte. -Os dormitórios são muito agradáveis. Ela ficará com dois quartos e eu terei o traseiro e um aposento de sobra, no caso de...

-No caso do que? - Emily sorriu. -Outra criada fixa?

Sua irmã deu de ombros.

-Algum dia, por que não? Sabe algo do homem que foi assassinado? -Estava pensando no Pitt.

-Não. - Iluminaram-se os olhos de Emily. -Mas posso averiguá-lo.

-Acredito que não deveria dizer nada ao Thomas, ao menos de momento.

-É claro - concedeu Emily, assentindo com a cabeça e acariciando o corrimão enquanto começava a subir as escadas. -É verdadeiramente bonita. -deteve-se e olhou o teto. -Isso também o é. Eu adoro a armação de sustentação. O gesso está intacto, só necessita uma mão de pintura. Sim, já sei que terá que ir com cuidado, Thomas se tornou muito importante. - Dedicou a Charlotte um sorriso radiante. -Estou muito contente. Gosto muito de Thomas, suponho que já sabe.

-Pois claro que sei. Me alegro de que você goste do teto. Me pareceu muito fino. Dá dignidade ao corredor, não acha?

Chegaram em cima e começaram a olhar os aposentos. Emily soube fazer caso omisso dos ladrilhos quebrados nas lareiras e o papel que caía das paredes.

-Já há data para as escolhas parciais? - perguntou Charlotte.

-Não, mas sabemos que é apresentado pelos tories - respondeu Emily

Carrancuda. -Nigel Uttley. Muito respeitado e muito poderoso. Não sei que oportunidade pode ter Jack, pensando-o bem. Claro que isso não o disse a ele. - Sorriu tristemente. -Sobre tudo depois de que se passou a última vez.

Charlotte guardou silêncio. A "última vez" tinha estado tão carregada de dores e tragédias, que o fracasso político tinha ficado em segundo plano. Jack se tinha negado a comprometer-se e a ingressar na sociedade secreta Circulo Interno, o que teria garantido sua aceitação como candidato e o apoio de toda uma rede oculta de homens com influência, dinheiro e relações. Mas havia também o pacto do segredo, nomeações oferecidas aos membros da sociedade a custa dos intrusos, promessas de amparo, mentiras que ocultar, e o ostracismo para quem transgredisse as normas.

O que mais afligia ao Jack e assustava ao Pitt era o segredo em si, a dúvida, a suspeita e o temor que criava o não saber quem era membro e quem não, a que lealdades se aludia em escuros pactos secretos, que consciências estavam já cativas inclusive antes de formular as alternativas.

-Imagino que este será seu quarto - disse Emily, observando o amplo dormitório com uma janela que dava ao jardim. -Eu gosto. É o aposento maior, ou a de frente é um pouquinho mais?

-Parece-me que o é, mas dá na mesma. Sacrificaria o tamanho por ter essa janela - disse Charlotte. -E esse quarto - indicou o aposento que ficava a sua esquerda -será o quarto de vestir do Thomas. O aposento em frente servirá como quarto de brinquedos para Daniel e Jemima, os dois pequenos terão seus dormitórios.

-E a cor? - Emily olhou as paredes.

-Não estou certa. Pode ser que azul, ou verde.

-O azul é frio. E verde também ficaria frio.

-Eu gosto.

-Que orientação temos?

-Sudoeste - respondeu Charlotte. -Pela tarde o sol entra pelos vidros da sala de jantar.

-Então acredito que escolheu bem Charlotte...

-Sim?

-Sei que fui dura com você quando voltei do campo, de fato pode ser que até injusta...

-Por causa de mamãe? Certamente que sim. Não sei o que esperava que fizesse!

-Eu não estava ali - se defendeu Emily. -Só sei que alguma coisa se podia ter feito. Pelo amor de Deus, Charlotte, esse homem não só é um ator, além de judeu, mas também tem dezessete anos menos que mamãe!

-Ela sabe - concedeu Charlotte. -Também é encantador, inteligente, divertido, amável, leal a seus amigos, e parece que está muito por ela.

-Espero que tudo isso seja verdade. Mas com que objetivo? Mamãe não pode casar-se com ele! Até no caso que ele pedisse.

-Já sei!

-Estragaria sua reputação se é que não o tem feito já - prosseguiu Emily. -Papai se estará removendo na tumba. - Girou em redondo muito devagar. –Poderia pintá-lo de azul se não pôr móveis escuros. - Voltou a olhar a Charlotte. -O que vamos fazer com ela? A avó está fora de si.

-Faz meses que está furiosa - disse Charlotte despreocupada. - Ou anos. A adora. Se não fosse por isso seria por outra causa.

-Não compare - protestou Emily com preocupação. -Esta vez tem razão! O que mamãe está fazendo é perigoso e ridículo. Poderia ver-se marginalizada da boa sociedade. Ocorreu-lhe pensar nisso?

-Naturalmente que sim. E o disse montões de vezes, mas não serviu nada... Ela considera que vale a pena correr o risco.

-Então é que a cabeça lhe falha - disse asperamente Emily. -Não pode falar a sério.

-Eu o faria. - Charlotte falava mais com a vista que lhe oferecia a janela que a sua irmã Emily. -Acredito que preferiria passar uma temporada feliz embora fosse breve, e correr o risco, antes que adoecer de cinza respeitabilidade.

-A respeitabilidade não é cinza! - replicou-lhe Emily. E esboçou um sorriso. -É marrom.

Charlotte lhe lançou um olhar apreciativo.

-Bom, dá na mesma - prosseguiu Emily sem que a risada aparecesse em seus olhos. -A falta de respeitabilidade pode ser muito desagradável, sobre tudo se for velha. Deve ser muito duro que lhe fechem as portas, à margem da cor.

Charlotte sabia que era verdade e por que o dizia Emily. Se tivesse estado na situação de sua mãe, possivelmente também tivesse optado por um breve, doloroso e glorioso romance, mas ela era consciente do preço que tinha que pagar.

-Já sei - disse quedamente. -E a avó não deixará de recordar-lhe embora outros o esqueçam.

Emily contemplou pensativa o aposento. Charlotte lhe leu o pensamento.

-OH, não! - disse em cima -Aqui não! Não temos lugar!

-Ah, suponho que não - concedeu Emily, e depois sorriu outra vez. -Estava pensando em mamãe e na avó?

-Na avó, sim. Mamãe ficaria no Cater Street, naturalmente. É sua casa. Não sei o que seria pior, se viver com a avó queixando-se todo o santo dia, ou só sem ninguém com quem falar. Todo o dia esperando que alguém venha vê-la, e se, se atreve a ir de visita, tremer pensando que um criado lhe dirá que não estão em casa mesmo se vir que a carruagem está ali e sabe perfeitamente que não saíram.

-Basta - disse Emily como se tivesse recebido um golpe. -Não quero nem pensar. Teremos que fazer algo! Experimentou falar com ele? Se a quiser, embora seja um pouco, com certeza compreende o risco. Não pode ser tão tolo.

-É um ator - disse Charlotte com certa exasperação. -Vive em outro mundo. É possível que não perceba...

-Mas tentou explicar-lhe Pelo amor de Deus, Charlotte!

-Não! Mamãe não me perdoaria isso. Dizer a ela é uma coisa, dizer a ele é outra muito distinta. Isto não nos incumbe.

-Justamente o contrário! - exclamou Emily acalorada. -É pelo bem dela. Alguém tem que cuidar de mamãe.

-Emily! Dá-se conta do que diz? Como se sentiria se alguém, pelos motivos que fosse ou embora pensasse que é por seu bem, tratasse de advertir ao Jack que não se casasse com você por seu bem-estar?

-Isso é diferente. - Emily a olhou com olhos brilhantes. -Jack se casou comigo. Mas Joshua Fielding não vai casar se com mamãe.

-Já sei que o fez. Mas, querida, mamãe pôde pensar que Jack se casou com você por sua fortuna.

-Isso não é verdade! - Emily se ruborizou até as orelhas.

-Alguma vez disse que o fosse - se apressou a matizar Charlotte. –Eu acredito que Jack é um homem encantador e honesto, mas se mamãe pensasse o contrário, seria correto que interferisse pensando que era por seu bem?

-Ah. OH. - Emily ficou imóvel. –Pois...

-Exatamente. - Charlotte foi para o segundo dormitório.

-Não é o mesmo - disse Emily atrás dela. -O romance de mamãe não pode acabar bem em nenhum caso.

-Isso não justifica que vamos falar com o Joshua - insistiu Charlotte. -Teremos que continuar tentando com ela. Pode ser que te escute. A mim, certamente, não me fez o menor caso. - detiveram-se na soleira. -Acredito que a pintarei de amarelo. Ficará muito acolhedor. Daniel e Jemima poderiam brincar aqui no inverno, ou nos dias de chuva. Você o que acha?

-Amarelo ficaria muito bonito. Poderia lhe mesclar um pouquinho de verde para que não fique tão adocicado. - Olhou para o fundo da peça. -Essa lareira está muito danificada, teria que trocá-la e pôr uma nova.

-Já lhe disse que subirei a que há no salão.

-Sim, é verdade.

-Averiguará sobre capitão Winthrop, verdade?

-É claro. - Emily sorriu outra vez com repentino otimismo. -Me pergunto se neste caso poderemos dar uma mão. Perdi o mais excitante. Faz séculos que você e eu não fazemos coisas sérias.

No meio da tarde Pitt não pôde continuar suportando ser um mero espectador. Pegou seu chapéu do elegante cabideiro próximo à porta, vestiu a jaqueta e decidiu tirar dos bolsos ao menos uma bola de corda que já não necessitava, dois pedaços de lacre e um lápis bastante longo. Finalmente se dirigiu para a escada.

-Vou ver a viúva - informou ao sargento de guarda. -Que endereço tem?

- O sargento não teve que lhe perguntar a que viúva se referia. A delegacia de polícia inteira não falava de outra coisa desde a primeira hora da manhã.

-O 24 do Curzon Street, senhor - disse na hora. -Pobre mulher. Eu não gostaria de ter estado na pele do sargento que teve que lhe dar a notícia. Toda morte é ruim por si só, mas essa classe de surpresas não são boas para ninguém.

-Certo - concordou Pitt, envergonhado pelo alívio que sentia de não ter tido que fazer ele esse trabalho. A promoção supunha vantagens evidentes. Agora Tellman teria que passar os maus pedaços que só um mês atrás tinha tido que passar. Pitt estremeceu de repente. O rosto do Tellman não era precisamente apropriado para transmitir notícias tão graves. Segundo e como, até parecia um enterrador. Não devia ter enviado a ele.

Saiu ao Bow Street e pôs-se a andar para tomar um cabriolé no Drury Lanhe.

Pensasse o que pensasse do Tellman, a menos que este demonstrasse ser incompetente para o trabalho, não devia lhe privar de sua mordomia. Pitt alargou o passo com uma pressa que não conseguiu explicar.

Ao chegar ao Drury Lane parou uma carruagem, deu-lhe ao cocheiro o endereço dos Winthrop e se acomodou para o trajeto. Não esperava acrescentar outra coisa que suas próprias impressões à informação que já teria obtido Tellman. Mas às vezes a opinião pessoal era o elemento decisivo, a única coisa que nenhuma outra pessoa podia lhe dar, essa vozinha que lhe fazia olhar além do evidente.

Ninguém lhe tinha apresentado ainda um informe, coisa que não o surpreendeu. Tellman o deixaria para o último momento, raiando a insolência, mas evitando a insubordinação. E Pitt devia admitir que ele mesmo estava acostumado a informar a seus superiores no último momento. Desgostava-lhe ter que ouvir como devia levar um caso, e que por cima o dissesse alguém que passava o dia atrás de uma mesa, sem ver os rostos das pessoas envolvidas, alguém que nada sabia de seus sentimentos. Por mais que lhe incomodasse, não podia culpar ao Tellman de comportar-se da mesma maneira.

Assim agora se dispunha a fazer o que Drummond não tinha feito nunca: entrevistar à viúva no primeiro dia de uma investigação. Mas o caso era delicado. Este era o motivo pelo qual tivessem promovido a ele e não ao Tellman ou a algum oficial procedente de outra delegacia de polícia. Pitt sabia tratar com cortesia à classe abastada, sem que isso o impedisse de ler suas emoções, detectar suas mentiras e seguir instando até dar com a verdade oculta sob o verniz das idéias políticas, subterfúgios e arrogância.

Uma parte - e não precisamente pequena - de seu êxito se devia à ajuda de Charlotte, e isso era algo que admitia para si mesmo, mas não publicamente.

O cabriolé chegou ao Curzon Street, Pitt desembarcou da carruagem e pagou ao cocheiro. Depois, tirando o chapéu antecipadamente, subiu os degraus da porta principal do número 24 e fez soar a aldrava de latão.

Passados uns momentos, um mordomo de tez pálida foi à porta e olhou ao Pitt inexpressivamente.

-Boa tarde - disse Pitt com sobriedade. -Superintendente Thomas Pitt, do Bow Street. Queria falar um momento com a senhora Winthrop. - Tirou seu cartão, que agora mostrava seu novo status além de seu nome, e o deixou na bandeja de prata que lhe estendia o mordomo. -Sei que o momento é muito delicado, mas acredito que poderia me ajudar a achar ao causador da tragédia, e a rapidez é absolutamente essencial.

-Sim, senhor - concedeu relutante o mordomo. Olhou ao Pitt de cima abaixo, do cabelo alvoroçado até as bonitas botas que calçava. Em outras circunstâncias o teria feito esperar na porta, mas hoje era diferente. -Se quer passar à biblioteca, senhor, verei o que posso fazer. Por aqui, por favor.

Pitt lhe seguiu pelo elegante corredor até uma formosa biblioteca com painéis de carvalho em um lado, estantes em outras duas e a quarta parede orientada ao jardim, onde duas grandes janelas apareciam semi escurecidas por um matagal de rosas de cor coral. Pitt pensou fugazmente na nova casa que tanto gostava Charlotte, no gesso rachado e o papel descascado, e as muitas coisas que ela sonhava fazer ali. Voltou para o presente, às sombrias prateleiras de livros por ler e ao tapete de brilhantes cores, invulnerável às pegadas. A mesa do canto estava imaculada. Nem pó nem sinais de uso danificavam sua virginal superfície.

Que classe de homem tinha sido o capitão Winthrop? Olhou na sala procurando alguma pista sobre seu caráter, algum toque pessoal. Não viu nada. Era basicamente um aposento masculino, vermelhos e verdes escuros, tapeçaria de pele, livros, imagens de navios na parede, um suporte de lareira lavrada com estatuetas de bronze, leões em um lado e dois cães de caça no outro. Sobre o velador havia uma jarra para uísque de cristal Waterford, cheia até a metade. Teve a impressão de estar em um aposento pensado para um homem e não escolhida por esse mesmo homem.

O mordomo apareceu na porta.

-A senhora Winthrop lhe receberá agora, senhor, se quiser passar ao salão.

Pitt abandonou a biblioteca com uma sensação de deixar algo pela metade e seguiu ao mordomo até a parte posterior da casa, onde um longo salão se estendia em direção à grama e a uma rosaleda muito formal. Mal pôde apreciar suas excelentes proporções arquitetônicas, malogradas por umas cortinas muito carregadas, e uma cornija de lareira em mármore branco e cinza. Wilhelmina Winthrop vestia-se inteiramente de negro, como cabia esperar, mas houve algo que intrigou ao Pitt até que soube o porquê.

Era uma mulher muito esbelta, de fato outro teria dito simplesmente fraca.

Tinha o cabelo puxando ao loiro e recolhido em grossos cachos de cabelo, o que dava a seu pescoço um aspecto ainda mais frágil. O vestido negro incluía um lenço de seda que lhe cobria a garganta, e as mangas longas caíam em pontas de renda sobre o dorso de suas mãos, quase até os dedos. Era a indumentária mais lúgubre que Pitt jamais tinha visto, dava à viúva um aspecto vulnerável. A primeira vista pensou que era muito mais jovem do que tinha suposto, entre os vinte e os trinta. Mas ao aproximar-se reparou nas finas rugas de seu rosto. Afinou um pouco mais. Devia ter uns trinta e cinco anos.

Atrás dela havia um homem de estatura média, não corpulento mas sim atlético, cabelo castanho muito encaracolado e um rosto sutilmente aquilino, cuja pele tinha adquirido um tom quente e queimado em algum lugar onde os verões eram intermináveis.

-Boa tarde, senhora Winthrop - disse Pitt com gravidade. -me permita-lhe oferecer minhas mais sinceras condolências.

-Obrigado, senhor Pitt - respondeu ela, tinha uma voz suave e sua dicção era clara e agradável. Seu sorriso foi à mínima expressão das boas maneiras.

O homem franziu o sobrecenho.

-Suponho que sua visita terá alguma finalidade mais além de dar os pêsames – disse. -Compreenderá que nosso desejo é que isto dure o menos possível. Não é precisamente o momento mais oportuno para que minha irmã receba visitas, mesmo que sejam necessárias ou bem-intencionadas.

-Por favor, Bart - lhe interrompeu ela com um gesto. -Senhor Pitt, apresento a meu irmão, Bartholomew Mitchell. Veio para estar comigo neste momento tão... tão angustiante. Não tenha em conta sua brutalidade, só olha por meu bem-estar. Não quis ser grosseiro com você.

-Pode estar segura, senhora, de que não a incomodarei mais tempo do que o estritamente necessário - disse Pitt. O qual não era fácil, por muito que tivesse chegado depois do Tellman e não trouxesse más notícias, a não ser só perguntas. Entretanto, as perguntas eram dolorosas tendo em conta que ela quereria estar a sós para deixar que sua mente e seu coração assimilassem a nova situação, a realidade da morte, da solidão, o início do luto e o longo caminho que a partir de agora deveria percorrer sem companhia nem apoio.

-Você tem alguma notícia mais? - perguntou Bart Mitchell, inclinando-se sobre a cadeira de sua irmã.

-Temo que não. - Pitt continuava em pé. -O inspetor Tellman está interrogando a gente que esteve a essa hora no parque e que pôde ver alguma coisa, e é claro procurando provas materiais.

Mina Winthrop engoliu saliva, como se algo lhe obstruíra a garganta.

-Provas? - disse com voz entrecortada. -A que se refere?

-Será melhor que não escute, querida - disse Mitchell. -Quanto menos detalhe saiba do assunto, melhor para você.

-Não sou uma menina, Bart - protestou ela, mas antes que pudesse acrescentar algo, ele apoiou ambas as mãos em seus ombros e se inclinou um pouco para o fronte, olhando ao Pitt.

-É claro, querida, mas é uma mulher que acaba de sofrer uma grande perda, e eu devo a proteger de toda dor desnecessária, é meu privilégio e também meu dever. - Este último ia dedicado ao Pitt, a quem olhou com seus olhos azuis claros e um ar desafiador.

Mina se endireitou um pouco e levantou o queixo.

-De que modo podemos ajudá-lo, senhor Pitt? Se em algo posso colaborar, tenha como certo que farei quanto esteja em minha mão.

-Mas, querida - disse Bart meneando a cabeça, -já disse ao inspetor Tellman a que hora viu por última vez ao Oakley. - Voltou a olhar ao Pitt. –Foi ontem depois de jantar. Disse que ia dar um curto passeio, que lhe sentaria bem. E não voltou.

Pitt fez caso omisso do Bart Mitchell.

-Quando começou a lhe preocupar sua tardança, senhora Winthrop?

-Quando despertei esta manhã e desci para tomar o café da manhã. Oakley se levanta cedo, antes de mim. Vi que tinha o prato na mesa e que não havia tocado nada. - A viúva umedeceu os lábios. -Perguntei ao Bunthorne se o senhor não se achava bem, e Bunthorne me disse que não o tinha visto esta manhã. Naturalmente o fiz subir a ver o que acontecia, e voltou dizendo que o capitão Winthrop não tinha adormecido em sua cama. - deteve-se de repente, subitamente pálida.

Bart lhe apertou um ombro.

Pitt ia fazer a pergunta óbvia, sobre o fato de que marido e mulher tivessem quartos separados, mas lhe pareceu supérfluo. Sabia que em muitas famílias - se podiam permitir-lhe os cônjuges tinham quartos separados, com portas que se comunicavam. Era algo que nunca tinha gostado, ele se sentia a gosto em espaços pequenos, necessitava a intimidade, que era de fato um de seus maiores prazeres. Claro que muito pouca gente era tão afortunada em seu matrimônio, e Pitt sabia. Compartilhar inclusive a privacidade e a vulnerabilidade do sono com alguém a quem não queria devia ser uma tortura capaz de destruir o melhor de cada pessoa. E para alguém acostumado à liberdade de escolher se queria a janela fechada ou aberta, as cortinas corridas ou não, os móveis assim ou de outro jeito, respeitar os gostos de outro devia constituir uma estranha e incômoda limitação.

-Tinha acontecido alguma outra vez? - perguntou.

-Não que eu recorde. Quero dizer... - Olhou-o nervosa. -Não sem que dissesse onde ia estar e quando ia voltar para casa. Era muito meticuloso no referente a manter informado a todo mundo, sabe você. Imagino que é por sua experiência na marinha. - Abriu um pouco mais os olhos. -Me atreveria a dizer que não se pode capitanear um navio se a pessoa permitir que haja enganos, ou que a pessoa vá daqui para lá como tenha vontade.

-Suponho que não, embora careça de experiência a respeito - disse Pitt, deixando de lado a questão. -Devo entender que era um homem muito escrupuloso, acostumado a ter tudo sempre perfeitamente em ordem?

-Sim - respondeu rapidamente Bart, e fechou a boca formando uma linha fina.

-Com efeito.

-Não nos interprete mal. - Mina olhou ao Pitt. Tinha uns lindos olhos azuis com pestanas castanho escuro. -Também tinha senso de humor. Não quero que pense que meu marido era um suscetível.

Ao Pitt não lhe tinha ocorrido pensá-lo, mas o fato de que ela o negasse suscitou essa idéia em sua cabeça.

-Tinha amigos na vizinhança a quem tivesse podido ir visitar? - Perguntou-o não porque pensasse que era útil sabê-lo (Tellman já o teria feito), mas sim porque necessitava uma pista sobre o caráter do Winthrop. Era sociável, reservado? A quem considerava seus iguais?

Mina olhou a seu irmão e logo ao Pitt.

-Não sabemos de ninguém - respondeu Bart. -Oakley era capitão da marinha, superintendente. Passava grande parte do tempo a bordo. Quando estava em terra preferia estar em casa com sua esposa. Ao menos na aparência. Se tinha essa classe de conhecidos quem se visita ao cair a noite e só, minha irmã certamente não sabia.

-Disse que ia dar um passeio por razões de saúde - repetiu ela, olhando nervosa ao Pitt. -Tinha jantado com apetite. Eu suponho que se afastou mais do previsto e se achou com quem estava no parque, onde devem ter surpreendido alguém. - Mordeu o lábio. -Eu o que sei... um louco!

-É muito provável - disse Pitt, embora já começava a perceber alguma coisa de fundo, um temor misturado com a pena e a comoção, e outros sentimentos mais complexos e difíceis de definir. -Suponho que o inspetor Tellman lhe terá perguntado já se estava à corrente de alguma briga ou de que alguém guardasse rancor ao capitão.

-Sim, sim me perguntou isso. - A voz de Mina soou afogada, ficou pálida. –É uma pergunta que assusta. Ponho-me doente só de pensar que algum conhecido pôde sentir um ódio tão horrível para fazer uma coisa assim.

-Superintendente, está inquietando a minha irmã sem motivo - atravessou Bart com aspereza. -Se algum de nós conhecesse uma pessoa assim, já o haveríamos dito. Não temos nada que acrescentar ao que dissemos ao inspetor. Acredito que já é suficiente. Tratamos que ser o todo educados e solícitos que as circunstâncias nos permitem. Queria...

Não pôde continuar porque se ouviram umas batidinhas na porta e na hora apareceu o mordomo.

-Vieram a senhora Garrick e o senhor Victor Garrick, senhora - disse em tom sombrio. -Devo lhes dizer que não recebe visita?

-Nada disso - respondeu Mina com repentino alívio. -É Thora. A ela sempre gosto de vê-la, é tão... tão... Sim, Bunthorne, lhe diga que entre.

-Mas, querida, não acha que deveria descansar? - insistiu Bart.

-Descansar, diz? Como quer que descanse? Oakley foi assassinado ontem à noite. - Quebrou-se a voz. -Cortaram-lhe a cabeça! Quão último desejo neste momento é ficar deitada em um quarto às escuras com os olhos fechados e a imaginação desbocada! Prefiro mil vezes falar com a Thora Garrick.

-Se tão segura estiver...

-Não tenho a menor duvida! - insistiu ela em um tom vizinho ao pânico.

-Muito bem. Bunthorne, lhe diga que passe - consentiu Bart com expressão dolorida.

-Imediatamente, senhor. - Bunthorne se retirou imediatamente.

Momentos depois a porta se abriu de novo e entrou uma mulher formosa de brilhante cabelo loiro. Seguia-a um jovem de vinte e poucos anos com um rosto de fronte larga que a primeira vista parecia insulsamente afável mas que, mais de perto, expressava uma doçura e uma imaginação fora do comum. Não obstante, havia nela certa indisciplina, uma vulnerabilidade na boca, como se fora fácil feri-lo, suscitar sua ira. Possivelmente era igualmente fácil lhe fazer rir. Era um rosto muito interessante, e Pitt teve que afastar seu olhar por medo a ser insolente.

A mulher olhou em primeiro lugar a Mina Winthrop, cheia de compaixão, e depois de dar-se por inteirada da presença do Bart Mitchell se voltou para o Pitt, disposta a recebê-lo bem ou a somar-se à batalha, segundo como o apresentassem.

Bart tomou a iniciativa.

-Thora, apresento-a ao superintendente Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street. Está a cargo da investigação. - Olhou ao Pitt com as sobrancelhas levantadas. -Se não o entendi mau.

-Correto - disse Pitt enquanto dirigia uma vênia a Thora Garrick. -Como está, senhora. - Olhou ao homem. -Senhor Garrick.

Victor Garrick ficou olhando com seus grandes olhos cinza escuro. Ainda parecia muito afetado pelo fato, se não era que lhe incomodava a situação. Pitt pensou que provavelmente se tratava do segundo. Nunca é fácil dizer algo à pessoa aflita. E quando a morte tinha sido violenta e tão prenhe de escuridão como era o caso, ainda mais.

-Encantado - disse Victor, distante, e retrocedeu um par de passos para ficar atrás de sua mãe.

-São muito amáveis em ter vindo - disse Mina, inclinando-se com um frágil sorriso, primeiro a Thora, logo ao Victor. -Mas sentem-se. Hoje faz calor. Querem tomar algum refresco? Ficarão um momento, verdade? - Era mais que um cortês convite, era um pedido em toda regra.

-Pois claro, querida, se você quiser. - Thora recolheu suas saias e se hospedou graciosamente em uma poltrona estofada em vermelho. Victor permaneceu de pé a suas costas, adotando uma postura distendida.

-O superintendente nos estava perguntando se Oakley pôde ter ido visitar alguém ontem à noite - continuou Mina. -Mas como é natural, não sabemos a resposta.

Thora olhou ao Pitt com surpresa. Era uma mulher muito bonita, de feições regulares e cheia de humor e inteligência, que debaixo de tudo, pensou Pitt, havia uma força considerável.

-Não pensará que o capitão Winthrop podia conhecer alguém capaz de fazer uma coisa tão... tão insensata - disse Thora. -Se tivesse conhecido a ele um pouco, jamais lhe teria passado pela cabeça semelhante idéia. O capitão era um homem íntegro da cabeça aos pés.

Mina sorriu com nervosismo. Sua mão subiu para o rosto, mas se deteve no lenço negro que cobria sua garganta.

Bart deu um pulo e apertou o ombro de sua irmã, quase como se a estivesse sustentando, apesar dela estar sentada.

Victor não moveu nem um cabelo, como tampouco se alterou sua expressão.

-Era um oficial da marinha - continuou Thora, olhando ainda ao Pitt e aparentemente alheia à emoção que sobressaltava a outros. -Parece que não tem conhecimento da vida que levam essa classe de homens. Era bastante parecido a meu finado marido. - Endireitou um pouco os ombros. -O pai do Victor. Era tenente de navio, e teria chegado sem dúvida a capitão se não tivesse falecido de maneira tão inoportuna. - O rosto lhe iluminou. -São homens de grande valentia, com uma personalidade muito marcante. E folgo em dizer que não se pode ter o comando em situações perigosas, como as que preponderam em alto mar, se não se sabe julgar muito bem às pessoas. - Meneou a cabeça para desprezar fraqueza semelhante. -O capitão Winthrop nunca manteria amizade com alguém capaz de atacar outra pessoa de maneira tão detestável. Deve ter lhe agredido algum lunático, é a única resposta possível.

-Eu não pensava em um conhecido dele, senhora - disse Pitt, mentindo um pouco. -Me perguntava se pôde ter visto alguém mais, deste modo saberíamos onde estava e a que horas foi visto com vida na última vez.

-OH, entendo - disse ela, e franziu o sobrecenho. -Embora não sei do que lhe serviria isso. Duvido que haja hordas de assassinos loucos no Hyde Park. Já sei que atualmente Londres dá medo. - Não deixava de olhar ao Pitt. -A anarquia acampa por seus areredores, para não falar da rebelião, de esse conflito na Irlanda, com o Sinn Fein e gente parecida, mas ainda se pode caminhar tranqüilo pelas melhores ruas da cidade! Ou isso supunha eu.

-Estou segura de que assim é, querida - murmurou. -Isto Mina é um pesadelo. Ainda acredito que pôde ser um horrível acidente, ou talvez uns estrangeiros, - Olhou ao Pitt. -ouvi dizer que os chineses tomam ópio, e que isso lhes faz fazer toda classe de... bom...

-O ópio só lhes provoca sonhos - explicou Bart, -não atitudes violentas. - Lançou um olhar ao Pitt. -Não é assim, superintendente? - Sem esperar resposta, disse a Mina. -Eu, francamente, acredito que foi alguém do navio do Oakley que brigou com ele e que por ter bebido muito perdeu o controle. Sei que a bebida, em especial o uísque, é causa de violências irrefreáveis.

Mina se estremeceu.

-Suponho que é possível. - Seus olhos não deixavam de olhar ao Pitt. –Não posso ajudá-lo, superintendente. Oakley nunca falava comigo de sua vida profissional. Devia pensar que isso me aborreceria, suponho. Ou que não o entenderia. - Uma sombra de culpa cruzou por seu rosto. -Certamente não se equivocava. É uma parcela da vida que desconheço por completo.

Bart murmurou algo baixo.

Victor lançou um rápido olhar a Mina.

-Não se preocupe, tia Mina. Meu pai falava disso constantemente e, me acredite, só foi interessante a primeira vez, e faz tanto tempo que já nem o recordo.

-Victor! - A voz da Thora soou prenhe de surpresa e recriminação. -Seu pai foi um grande homem! Não deveria falar dele tão à ligeira. Foi um bom exemplo para todos nós, um homem de máxima excelência ética.

-Estou certa de que ninguém dúvida que o tenente Garrick foi um homem estupendo - disse Mina em tom pacificador, olhando para Pitt. Depois sorriu ao Victor. -Mas compreendo que até as melhores pessoas podem ser de vez em quando tediosas quando a gente já conhece a história. E que a familiaridade pode ser motivo de certa falta de respeito. É uma das cruzes que as famílias têm que suportar, querido.

Victor apertou as mandíbulas.

-Tem toda a razão, tia Mina. Ser aborrecido é uma insignificância, nem sequer é uma falta, só uma desgraça. Se tiver que ser crítico, reservarei-me para coisas realmente importantes.

-Será melhor não falar delas absolutamente - atravessou Thora com aparente satisfação.

Pitt gostaria de intervir, mas não podia perguntar ao Victor que faltas tinha na cabeça sem ficar em evidência. Além disso, Oakley Winthrop dificilmente tinha sido assassinado por ser um chato. Voltou-se para Mina.

-Senhora Winthrop, talvez poderia você me dar os nomes e endereços de alguns colegas do capitão, e a quem podia ter visto recentemente, especialmente, qualquer um que viva nesta parte de Londres.

Bart Mitchell levantou rapidamente a vista.

-Boa idéia. Se houve alguma briga, algum marinheiro que se considerou ofendido, eles com certeza saberão. Inclusive pode ser que tenha havido um conselho de guerra ou algo parecido. Alguém que foi despedido, ou castigado severamente, possivelmente alguma coisa que se viveu como uma injustiça.

-Você acha? - atravessou Mina, movendo-se em sua poltrona para olhar a seu irmão em vez de virar o pescoço. -Bom, a resposta é bastante razoável. Qual a sua opinião, senhor Pitt?

-É preciso investigar, sem dúvida.

Thora não parecia convencida. -Seriamente crie que um oficial da marinha se comportaria desse modo? São gente muito preparada, gente acostumada a mandar e à auto-disciplina.

-Isso não significa que não possam perder as estriberias. - Victor adiantou o lábio inferior e olhou para frente. Depois abriu a boca para continuar, mas mudou de opinião e apertou os lábios.

-Isso é uma tolice! - saltou Thora. -Os oficiais não são como o resto das pessoas. Se se conduzissem assim, Victor, não os nomeariam para postos de mando. - Falava cada vez com maior convicção. -Deveria ter ingressado na armada. Estou certa de que teria feito uma boa carreira. Tem tudo o que se necessita, e o sobrenome de seu pai teria bastado para que lhe dessem todas as oportunidades.

Victor se fechou em sua expressão, o olhar perdido à frente.

-Acredito que não é justa, Thora - disse Bart em voz baixa. -A arquitetura é uma profissão honrosa, e seria um pecado desperdiçar um verdadeiro talento. Victor, não há dúvida, está dotado para isso. Seus desenhos são realmente bons.

-Obrigado, senhor Mitchell - disse Victor com fria calma ressentida. –Mas desgraçadamente, parece que isso não é próprio de valentes.

-Não seja tolo, querido - disse Thora com um sorriso forçado, perdendo a paciência antes de chegar à segunda frase. -claro que sim. Só que é pouco seguro. E tenha em conta que há uma estupenda tradição naval na família, a Seu pai teria agradado muito. A tradição é importante, sabe. É a pedra angular de nosso país, o que nos faz ingleses.

Victor guardou silêncio.

Mina os olhou. Os outros pareciam haver-se esquecido do Pitt.

-Suponho que lhe teria agradado um bom edifício - disse a modo de ensaio. -E tenho certeza de que também teria gostado de o ouvir tocar. Victor, querido, quereria tocar para nós durante o funeral em memória do Oakley? Acredito que seria muito edificante. E você é quase da família, ao fim e ao cabo, o pobre Oakley era seu padrinho.

O rosto do Victor se abrandou e sorriu.

-É claro, tia Mina. Eu adoraria. Me diga o que quer que toque e estarei encantado de fazê-lo.

-Obrigado, querido. Pensarei nisso e depois lhe direi. - voltou-se para Pitt, movendo de novo a cabeça em um curioso ângulo. -Victor toca o violoncelo maravilhosamente, senhor Pitt. Parece capaz de fazer rir e chorar às cordas como se fossem uma voz humana. É capaz de lhes tirar toda a paixão e chegar à sua alma com seu instrumento.

-Certamente, seria um pecado estragar esse talento - disse sinceramente Pitt. -Eu preferiria fazer música antes a batalhar em alto mar.

Victor olhou-o com curiosidade, ligeiramente franzida a fronte com dúvida e interesse, mas não disse nada.

Thora teve a elegância de não continuar discutindo. Retomou o fio do objeto de sua visita.

-Podemos ajudá-la de alguma forma, querida? - perguntou a Mina. -vai ter que arrumar muitos assuntos. Se posso lhe servir em algo, deixá-la a minha cozinheira, ajudá-la com os convites ou as cartas, me avise, por favor.

-É muito amável - disse Mina sorrindo. -Sua mera companhia já é de agradecer. Reconheço que mal pensei nessas coisas. Ainda estou como atordoada pela notícia.

-É claro, querida - respondeu Thora. -É lógico. Já é um milagre que agüente tudo isto. É extraordinariamente valente. E digna dessa centenária irmandade das viúvas de marinheiros. Oakley estaria orgulhoso de você.

Uma expressão de inalcançável emoção cruzou o rosto de Bart Mitchell.

Victor suspirou muito devagar.

-Tinha mais família o capitão Oakley, além de seus pais? - perguntou Pitt aproveitando o silêncio.

Mina voltou para o presente.

-OH, não, somente lorde e lady Winthrop. - Utilizou seu próprios títulos, e Pitt teve a impressão de que assim os considerava ela, mais que uma mera formalidade derivada do fato de que ele não fosse de sua posição social.

-Existe seu navio, é claro - disse Bart. -Mas eu me ocuparei disso. Embora com a pressa que se dá a imprensa, não há dúvida que a estas horas já estarão à corrente. De qualquer forma, suponho que uma notificação por parte da família seria uma gentileza. - Torceu o gesto. -Ah, esquecia-me, superintendente, queria você os dados de outros oficiais que vivem na zona. Acredito que ele tinha uma lista daqueles com quem mantinha contato, estará em sua mesa, na biblioteca. Irei procurá-la. - desculpou-se e saiu da sala.

-Você perdoe, superintendente - disse Thora um pouco ruborizada. –Não queria lhe dizer como tem que fazer seu trabalho, mas aqui não tirará nada sobre a morte do pobre capitão. Deveria sair à rua ou perguntar no manicômio para ver se alguém escapou. Com certeza, uma pessoa capaz de semelhante ato deve ser fácil de identificar. Não pode estar lúcido de maneira nenhuma. - Arqueou suas sobrancelhas loiras. -Com certeza haverá mais de uma pessoa que o viu.

Victor mordeu o lábio e olhou o teto.

Mina olhou para Pitt.

-É possível, senhora, e certamente o vamos tentar - respondeu Pitt. -Mas eu não abrigo muitas esperanças. Nem todos os loucos têm aspecto de tais. Temo que em sua maioria parecem tão normais como você e eu.

-Seriamente? - disse Thora com incredulidade. -Eu pensava que seria fácil identificá-lo. Ninguém pode matar dessa maneira e parecer uma pessoa comum.

Pitt não discutiu, era inútil fazê-lo, e a volta do Bart Mitchell com uma caderneta de endereços lhe economizou ter que responder.

-Aqui tem, superintendente. Acredito que lhe será de muita utilidade. Há uma lista completa do pessoal do navio com os endereços. Quanto mais penso nisso, mais razão acredito que tem você, e que provavelmente houve uma briga ou alguém se sentiu tratado injustamente e, talvez com a ajuda da bebida, perdeu o controle. - Seu rosto se animou. -Isso explicaria o da arma. A fim e ao cabo, cabe supor que um oficial da armada dispõe de um alfanje ou espada de algum tipo.

Mina cobriu o rosto com as mãos.

Victor suspirou e se endireitou como se temesse perder o equilíbrio.

-Mas Bart - o repreendeu Thora. -Estou segura de que não foi sua intenção, isto é uma falta de delicadeza, querido. A idéia é inquietante, e não acredito que devamos seguir por esse caminho. Não cabe dúvida de que o superintendente está mais que habituado a esta classe de assuntos, não é preciso que lhe digamos por onde tem que procurar.

-OH, sinto muito. - Bart se voltou para sua irmã. -Mina, querida. Rogo-lhe me perdoe. - Logo olhou ao Pitt. -Acredito que não podemos fazer nada mais por você, superintendente. Bem, agora eu gostaria de me ocupar de minha irmã e pôr mãos à obra nas coisas mais indicadas nestas dolorosas circunstâncias.

-É claro - disse Pitt. -Obrigado por me dedicar seu tempo. Que tenham um bom dia, senhora Winthrop, senhora Garrick, senhor Garrick.

Com uma ligeira inclinação da cabeça, partiu, recolhendo o chapéu que lhe estendeu o pálido mordomo no saguão antes de sair ao ensolarado dia da primavera.

Em sua mente se mesclavam a angústia, a ansiedade, a dor da família e algo mais que ainda não via bastante claro para lhe pôr um nome.

Mais tarde, Pitt fez o que devia fazer-se no início de toda investigação por assassinato: a necessária e desagradável visita ao necrotério para ver por si mesmo o cadáver. Não esperava tirar da visita muito mais do que já tinha deduzido pelas explicações do Tellman. Mas sempre havia a remota possibilidade de observar algo que, chegado o momento, cobraria algum sentido.

Odiava os necrotérios, seu repugnante aroma e sua nudez, e sempre fazia frio até em pleno verão. Já estava tiritando quando informou ao zelador de seu propósito. Não teve que dar seu nome, ali o conheciam de sobra.

-Sim, senhor - disse alegremente o zelador. -Estávamos esperando-o. Já me parecia que este presunto faria vir você. Um feio assunto, não é? Muito feio. – E dando meia volta, acompanhou ao Pitt até a sala onde o corpo jazia sob um lençol, uma forma estranha e desumana ao faltar o vulto que teria formado sua cabeça.

- Aqui o tem, senhor. - O zelador afastou o lençol como um ilusionista. — Pitt havia visto muitos cadáveres e cada vez tratava de preparar-se, mas nunca o conseguia. Notou uma vertigem no estômago e sensação de enjôo. Os restos do Oakley Winthrop jaziam nus e brancos sobre a superfície de mármore. Sem cabeça, parecia desprovido de dignidade, inclusive de humanidade.

-O que fez com a cabeça? - disse involuntariamente Pitt, lamentando-o na hora. Isso deixava entrever sua confusão.

-Pois... - respondeu o zelador. -A deixei em cima do banco. Suponho que teria sido melhor pôr o corpo inteiro. - Foi ao banco em questão e pegou um objeto grande coberto por um pano, desembrulhou-o com a mão direita e o levou ao Pitt. -Tome senhor. É o que falta.

-Obrigado. - Pitt engoliu em seco.

Observou detidamente, mas não tirou claro mais do que já sabia pelo informe do Tellman, e pelo que haveria dito o legista. Winthrop tinha sido um homem robusto, de costas largas e tórax grande e musculoso, mas agora brando e com um início de gordura. Parecia bem alimentado, suave, as mãos muito limpas. Não tinha marcas nem machucados, à exceção da lividez que Pitt esperava como resultado da falta de bombeamento do coração. Quanto ao resto, não havia amostras de descoloração. Suas mãos estavam imaculadas, assim como suas unhas.

Depois observou a cabeça. Tinha o cabelo castanho claro e curto. No alto do crânio mal tinha cabelos. Observou os traços do rosto. Estavam irreconhecíveis, e sem expressão nem vida era difícil especular sobre seu caráter. Não pôde detectar sinais de humor ou imaginação, mas era difícil tirar conclusões.

Por último, fez o esforço de analisar a ferida, se é que assim podia chamar-se a aquele talho. Era um corte limpo, feito de um só e potente golpe com uma arma branca muito afiada. Devia havê-lo feito uma pessoa robusta, ou alguém que golpeasse de uma altura considerável e usando a força do peso e o impulso, como com um machado de carpinteiro.

O aroma do depósito lhe entupia na garganta, tinha muito frio.

-Obrigado. Isso é tudo, ao menos de momento.

-Sim, senhor Pitt. Quer ver a roupa? Ia elegantemente vestido, dizem que era capitão da armada. Bonito uniforme. Lástima o sangue. Nunca tinha visto tanto sangue.

-Havia algo nos bolsos?

-O normal, carteira e uma carta de seu fornecedor de vinhos, assim é como soubemos seu nome, acredito. Algumas chaves, suponho que da adega ou do escritório, de uso doméstico. Um lenço, um par de cartões de visita, um corta-charuto. Nada interessante, nenhuma carta ameaçadora. - Sorriu lúgubre mente. -Um feio assunto, senhor Pitt. Acredito que algum louco anda solto.

-Seriamente? Cubra-o e me avise quando tiver terminado o legista.

-Sim, senhor. Boa noite.

-Boa noite.

Pitt chegou em casa cansado. Tirou as botas e foi para a cálida e iluminada cozinha.

Charlotte não se voltou em seguida, estava removendo uma fumegante frigideira sobre o amplo e negro fogão econômico.

-Tem fome? - perguntou sem lhe olhar.

Pitt se sentou à mesa de madeira, deixando-se invadir pelo calor e respirando o aroma a roupa limpa, farinha, carvão e calor dos fogões, o piso bem esfregado.

Charlotte se voltou para falar, mas então lhe viu o rosto.

-O que? - disse amavelmente. -Algo mau, já o vejo.

-Assassinato. Um decapitado no Hyde Park.

-OH. - Ela inspirou fundo ao mesmo tempo que afastava uma mecha da testa. -Sopa?

-Como?

-Quer sopa? Tem cara de frio.

Ele assentiu sorridente, começava a relaxar.

Charlotte levantou a tampa da panela e serviu caldo em um prato. Deixou-lhe o prato diante, com pão fresco e um salgado, sentou-se e esperou que ele começasse a falar.

Não era por cortesia nem bondade, ele sabia. Charlotte estava muito interessada, como sempre. Não era preciso desculpa.

Brevemente, entre colherada e colherada, contou-lhe.

 

-Sim, senhor? - Tellman se apresentou no escritório do Pitt a primeira hora da manhã, seu rosto tinha a adustez da pedra, seus olhos enfocavam um ponto sobre o ombro esquerdo de Pitt. -Não cheguei a tempo de lhe apresentar meu informe, senhor. Eram dez e meia e você se foi para casa.

-O que soube? - perguntou Pitt. Ele mesmo o tinha feito tantas vezes ao Micah Drummond que não podia zangar-se pela crítica implícita nas palavras do Tellman.

-A juízo do doutor, morreu pouco antes da meia-noite. Não sabe com segurança. Por volta das onze. Não havia muito sangue no bote, assim não deve ter ocorrido a bordo. É impossível, a menos que o assassino limpasse as manchas.

-Os sapatos? - perguntou Pitt, imaginando-se arrastar um corpo sem cabeça pela erva até o Serpentine ao anoitecer, quando ainda haveria gente voltando para casa de alguma festa e cabriolés indo e vindo do Knightsbridge.

-Tinham erva, senhor - disse Tellman inexpressivamente.

-Quando cortaram a erva do parque por última vez?

Tellman alargou as narinas e sua boca se contraiu.

-Averiguarei-o. Mas não tem importância. Não pôde andar por ela sem cabeça.

-Talvez o levassem em outro bote - sugeriu Pitt, tanto para chatear ao Tellman como porque o considerava algo factível.

-Para que? Não tem sentido. Que importância teria um bote ou outro? E não é fácil levantar um cadáver em um bote. O mais provável é acabar de cabeça na água. – Sorriu. -Sua roupa estava seca à exceção da umidade devida ao orvalho. Mas debaixo estava mais seca que úmida, senhor.

Pitt não fez comentários.

-Que profundidade tem o Serpentine na margem? - perguntou.

Tellman captou sua intenção.

-Mais ou menos pelo joelho - disse, e o sorriso voltou para seus lábios. –Mas se notaria se alguém caminhasse pelo parque com as pernas empapadas, não crie?

As pessoas poderiam fixar-se.

-Também poderiam fixar-se em um homem com a cabeça cortada - disse Pitt lhe devolvendo o sorriso. Isso dá a entender que não havia ninguém perto. Você o que acha?

Era uma pergunta para a que Tellman não estava preparado. Queria discutir, zombar. Seu rosto se contraiu e olhou ao Pitt com desagrado.

-É cedo para dizê-lo... senhor.

-Quando se descarta o impossível, o que resta? - insistiu Pitt. -Seja concreto!

Tellman inspirou fundo e soltou o ar com um suspiro.

Pitt aguardou.

-Mataram-no em outro ponto do parque, ainda não sabemos onde –respondeu Tellman. -E o transladaram depois. Tenho Bailey e Grange examinando a margem. Suponho que alguém pôde arrastá-lo pela erva. Com uma tartana ou uma carreta, mas correria um grande risco... - Se deteve, esperando que Pitt fizesse a pergunta que a ambos lhes tinha ocorrido.

-Alguma idéia sobre se foi algo planejado ou fruto do momento? - adiantou-se Pitt.

-É muito cedo - replicou Tellman com um leve brilho no olhar. –Saberemos mais, ou talvez nada, quando tivermos penteado toda a zona. Mas parece ago planejado de antemão. Direi-lhe uma coisa, senhor, não me parece obra de um louco. E o comprovamos, nenhum maníaco escapou do Bedlam nem de nenhuma outra parte. E não há lembrança de nenhum crime parecido.

-Tem já o informe do legista?

-Tinha uma ferida na cabeça. Provavelmente lhe golpearam antes de decapitá-lo. Não o suficiente para matá-lo, mas sim para deixá-lo sem sentido. – Olhou inocentemente ao Pitt. -É um assunto feio, não acha, senhor?

-Com efeito. Isso é tudo?

Tellman abriu os olhos, esperando que Pitt continuasse.

-Não havia nada no resto do corpo, ao menos que eu pudesse ver - disse Pitt paciente. -Nem machucados nem arranhões nas mãos. O que me diz da roupa? Eu não a vi. Estava rasgada? Manchas verdes ou de barro?

-Não. Não, a vítima não ofereceu resistência.

-Que estatura calcula o legista que podia ter, com a cabeça? Um metro e oitenta?

-Mais ou menos, é muito corpulento.

-Sei. Vi o cadáver. E sim, o assunto é feio - concedeu Pitt. -Acredito que precisamos saber muito mais sobre o honorável capitão Oakley Winthrop.

Tellman esboçou um sorriso.

-Por isso lhe atribuíram o caso, senhor Pitt. Os chefes consideram que se dá bem com este tipo de coisas. Deveria mesclar-se com os Winthrop e demais. Ver quem odiava ao capitão e por que. - enrijeceu-se ressentidamente. -Nós seguiremos com a rotina de procurar testemunhas e essas coisas. É tudo, senhor?

-Não. - Pitt mal conseguiu reprimir um tom de desgosto. Devia recordar que ele estava no comando, não tinha sentido deixar-se levar por rixas pessoais. –O que disse o legista sobre a arma? Suponho que não achou nada, ou me teria dito já.

-Não, senhor, ainda nada. - adiantou-se à possibilidade de que Pitt repetisse suas ordens. -Dragaremos o Serpentine, por descontado, mas parece evidente que terá que procurar primeiro nos lugares mais acessíveis.

-O que lhe disse o legista?

-Um corte limpo. Deve ter sido uma arma pesada para fazer-lo de um só talho, certamente algum tipo de espada, um alfanje possivelmente.

Não sem repugnância, Pitt voltou a ver mentalmente o pescoço cerceado e sentiu o cheiro do desagradável ácido fénico.

-Um cutelo de açougueiro? - sugeriu.

Tellman tinha visto o mesmo que Pitt. Uma faísca de aborrecimento cruzou por seu rosto por não ter mencionado ele.

-Talvez. Enfim, saberemos quando a acharmos.

-O que tem sobre as últimas testemunhas?

Tellman olhou-o inexpressivamente.

-Como sugere você que o façamos? Não é fácil saber quem passa pelo Hyde Park ao entardecer. Poderia ser qualquer cidadão de Londres, ou de fora. Visitantes, estrangeiros... - Deixou no ar todas as possibilidades.

-Choferes - disse secamente Pitt. -Têm suas zonas. - Viu que Tellman avermelhava e continuou. -Coloque a um homem nos atalhos e no Rotten Row, também no Knightsbridge, veja quem passa por ali esta tarde. Há pessoa que está acostumada a fazer coisas com regularidade.

-Sim, senhor. - Tellman permanecia muito rígido. Era trabalho normal da polícia, e sabia perfeitamente. -Dê-o por feito, senhor. Alguma coisa mais?

Pitt pensou um momento. Era sua responsabilidade estabelecer o tom de sua relação e que não lhe escapasse das mãos, mas nunca tinha pensado que pudesse ser tão difícil. Aquele homem tinha uma personalidade mais forte do que ele tinha imaginado. Podia obrigá-lo a fazer algo, mas sua atitude era inexpugnável, como também sua capacidade para envenenar a mente do resto do pessoal. Havia formas de castigá-lo, é claro, mas isso teria sido uma estupidez e ao final Pitt teria sofrido as repercussões. Drummond tinha sabido conseguir um equilíbrio entre as diversas personalidades e aptidões fazendo disso um todo eficiente. Pitt não podia deixar-se vencer quando mal tinha começado.

-De momento, não- disse. -me mantenha à corrente de qualquer novidade em relação às testemunhas.

-Sim, senhor - disse Tellman, e saiu fechando a porta sem ruído.

Pitt se reclinou na poltrona e refletiu um momento, hesitando ao apoiar os pés na mesa. Não era tão cômodo como tinha pensado, mas dava uma sensação de mando e brandura muito satisfatória. Começou a revisar o que sabiam até o momento, e tudo sugeria que Winthrop não tinha sido assassinado por um demente nem por um ladrão, embora ele o tivesse descartado desde o primeiro momento. A única conclusão confiável era que tinha sido agredido por alguém a quem conhecia, alguém de quem não esperava nenhum ataque. Podia ser um colega ou um conhecido. Parecia mais provável que se tratasse de um membro de sua família imediata ou um amigo íntimo.

Até que Tellman voltasse com mais provas, só podia dedicar-se a procurar um móvel.

Baixou os pés da escrivaninha e se levantou. Não podia fazer nada de sua escrivaninha, e isto tinha que resolver quanto antes. Os jornais já estavam publicando grandes manchetes sobre o caso e o nome do Winthrop estava na boca de todo o mundo. Em alguns dias as pessoas exigiriam resultados e começariam a perguntar o que estava fazendo a polícia.

Duas horas depois Pitt se achava em um trem caminho do Portsmouth, sentado junto à janela vendo passar a verde campina, suas árvores gigantescas que começavam a jogar brotos e os nus ramos das aveleiras veladas já em uma suave bruma de cor. Os salgueiros se inclinavam sobre a água que arrastava serpentinas de um verde sedoso como mulheres inclinadas à frente com a cabeleira pelos olhos. Bandos de pássaros seguiam aos lentos arados, abatendo-se em busca dos vermes que a terra removida deixava a descoberto.

Três horas mais tarde se achava em uma pequena habitação próxima ao Arsenal da Marinha Real, esperando a chegada do tenente de navio Jones, segundo do capitão Winthrop. Tinha falado já com o capitão de porto sem tirar nada positivo.

Todo mundo estava emocionado e não faziam a não ser repetir as contritas expressões de aflição e raiva, e os comentários elogiosos que sem dúvida consideravam apropriados, mas que teriam podido pronunciar de qualquer outra pessoa.

Abriu-se a porta e entrou um homem magro próximo aos quarenta. Estava vestido de uniforme e trazia a boina na mão.

-Boa tarde. Sou o tenente Jones. No que posso lhe servir? - ficou firme e olhou com nervosismo para Pitt. Estava bem barbeado e seus cabelos loiros começavam a escassear.

-Superintendente Pitt - se apresentou. -Lamento incomodá-lo em um momento difícil para você, mas talvez possa me dar informações que nos ajude a achar ao responsável pela morte do capitão.

-Não imagino como, mas naturalmente tratarei de ajudá-lo no que possa. - Jones permaneceu firme. -Que deseja saber? - Seus olhos azuis mostravam uma confusão absoluta.

Pitt se sentou na cadeira de espaldar duro com braços de madeira que havia junto à mesa, e convidou Jones que fizesse outro tanto. O tenente pareceu surpreender-se um pouco, vendo que Pitt desejava uma entrevista longa.

-Quanto tempo serve com o capitão Winthrop?

-Nove anos - respondeu Jones, ocupando a cadeira em frente e cruzando as pernas. -Eu, bom, acredito que lhe conhecia bastante bem, se for isso o que me vai perguntar.

Pitt sorriu.

-É sim. Tenha em conta que sua lealdade para o capitão Winthrop não só consiste em falar bem dele, mas também em dizer a verdade a fim que possamos apanhar ao culpado... - Se deteve, vendo a surpresa no rosto do Jones.

-Certamente foi um roubo, não? - O tenente franziu a fronte. -Algum louco que andava pelo parque... É inconcebível que fosse um conhecido do capitão, como parece sugerir. Perdoe se o interpretei mau, superintendente.

-Não, entendeu-o bem e rápido. - Pitt sorriu brevemente. -Há provas que sugerem que o ataque o pegou despreparado. - Esperou a reação do Jones.

Foi a que ele esperava, sobressaltou-se, hesitou um pouco, e finalmente ficou muito sério ao compreender a situação.

-Entendo. E veio me perguntar se conheço alguém que pudesse lhe guardar rancor. - Meneou a cabeça. -Pois não. Era um homem muito popular, superintendente, franco, aberto, de extraordinário bom humor, amigável sem excessivas confianças, e não jogava nem tinha dívidas que não pudesse pagar. Como chefe não era injusto, como sem dúvida me perguntará. Não sei de ninguém que tenha tido alguma interdição com ele.

-Fala você dos oficiais, tenente Jones, ou inclui também aos marinheiros comuns?

-O que? - Jones abriu os olhos. -Bom, suponho que referia aos oficiais.

Duvido que conhecesse pessoalmente aos marinheiros. Fala você de algum tipo de ressentimento?

-Uma injustiça, real ou imaginada - explicou Pitt.

Jones pareceu hesitar. Reanimou-se um pouco.

-A maioria dos marinheiros aceita o castigo sem mais e com razoável elegância.

-Sorriu ligeiramente. -Já não passamos a ninguém pela quilha, sabe você. A disciplina não tem elementos de barbárie. Realmente não me ocorre que nenhum homem pudesse estar tão desequilibrado para seguir ao capitão Winthrop até Londres e agredi-lo dessa maneira. - Meneou novamente a cabeça. –Seria muito ridículo. Não, estou absolutamente convencido de que não é isso o que aconteceu. E quanto a outro oficial... - levantou ligeiramente um ombro - não sei que houvesse nenhuma briga. Imagino que os ciúmes não estão descartados, mas é altamente improvável. Tudo isto é um mistério para mim.

-Ciúmes? - perguntou Pitt. -Quer dizer rivalidade profissional, ou ciúmes pessoais, possivelmente por uma mulher?

Jones fez expressão de assombro.

-OH, não, não referia a isso. Não sei o que lhe dizer, superintendente. Estou dando paus de cego. Se estiver certo e não foi um louco nenhuma turma de ladrões, terá que supor que era algum conhecido dele. Me entenda, eu conhecia muito bem ao Oakley Winthrop. Trabalhamos juntos durante quase uma década. Era um oficial exemplar e um homem excelente. - Uma gaivota passou frente à janela, chiando. -Não só honesto, mas também realmente simpático - acrescentou com a maior seriedade. -Era um grande esportista, tocava o piano e tinha uma bonita voz com a qual costumava nos dar de presente os ouvidos. Possuía muito senso de humor, e eu mesmo fui testemunha de como nos fazia partir de risada.

-Às vezes isso é uma arma de dois gumes.

-Não era um engraçado, se a isso se refere. - Jones meneou a cabeça. -Nunca zombava da gente. Tinha um humor sensato e são. Inofensivo. Se me permite dizê-lo, superintendente, acredito que não está captando como era o capitão. Era um homem simples, quase brusco - Se deteve ao ver a expressão do Pitt. -Não me acredita? Informaram-lhe mau, asseguro.

-Não há ninguém simples - replicou Pitt com um sorriso irônico. -Mas aceito o que diz. Em realidade, não formei nenhuma idéia dele.

Jones esticou os lábios.

-Se o capitão Winthrop levava uma vida secreta, soube encobri-la com um brilhantismo e uma sutileza que não demonstrava normalmente. Me creia, tomara pudesse lhe oferecer algo mais consistente, mas não sei como.

-Também era popular com as mulheres?

Jones vacilou um momento. Os sons do exterior voltaram a invadir a sala, o repicar de correntes, o ranger dos cascos a mercê do vaivém das águas, homens gritando, e o constante grasnar das gaivotas.

-Não, não tanto como possivelmente deixei entrever - disse Jones. -Involuntariamente, quero dizer. Antes me referia estritamente a oficiais, não a mulheres. Ele era um marinheiro. Acredito que a companhia feminina não lhe era fácil. - ruborizou-se suavemente e desviou o olhar. -Temos muito pouca vida social, perde-se a prática dessa conversa corriqueira que às mulheres gostam tanto.

Pitt viu perfeitamente a imagem de um homem grosso, chato, franco, aparentemente seguro de si mesmo, controlando a situação, de risada pronta na superfície mas, sob a superficial afabilidade, cheio talvez de sentimentos escuros, medos, dúvidas, inclusive culpa, um homem que passou quase toda sua vida em um mundo decididamente masculino.

Havia uma amante? Olhou a aquele rosto sério que tinha diante. O tenente Jones não o diria embora soubesse. Mas se havia algum amor, ou algum ódio, teriam-no seguido até Londres em vez de cometer o crime em Portsmouth?

-Tenente, quando partiu para Londres o capitão Winthrop?

-Pois... há dez dias.

Não foi necessário que nenhum dos dois assinalasse que uma briga no Portsmouth dez dias antes dificilmente podia causar um assassinato violento na capital depois de nove dias.

-Enfim - continuou Pitt. -Quero que me diga tudo o que possa sobre os últimos dias que passou aqui, a quem via, algo que se saísse do normal. Houve decisões disciplinadoras insólitas nestes últimos meses?

-Nada que tivesse que ver com o capitão - respondeu Jones. –Se equivoca, superintendente. A resposta a esta tragédia não está em nada que tenha ocorrido aqui.

Pitt queria acreditar nele, e, depois de fazer um par de perguntas mais e lhe agradecer, despediu-se do tenente, mas ainda esteve em Portsmouth várias horas mais fazendo perguntas, visitando a polícia local, aos hospedeiros, inclusive um bordel. Depois tomou o trem de volta a Londres.

Na manhã seguinte achou Tellman esperando-o.

-Bom dia, senhor. Ssoube algo no Portsmouth? - Perguntou, procurando o rosto do Pitt com seus olhos duros e brilhantes.

-Algo - respondeu Pitt, subindo a escada com o Tellman atrás. –Winthrop partiu dali fazia onze dias. Nove dias antes de ser assassinado. Não parece que ninguém lhe seguisse os passos. Além disso, a maioria de seus colegas têm álibi para essa noite.

-Não estranho - disse Tellman enquanto Pitt abria a porta de seu escritório. -Para saber isso, podia ter enviado ali Grange. - Fechou a porta e se plantou ante a mesa do Pitt.

O superintendente se sentou e olhou-o nos olhos.

-Mande-o a Portsmouth para comprovar o que disseram todos. -concedeu. -Minha intenção era averiguar coisas do próprio Winthrop.

-Um tipo muito animado, segundo seus vizinhos - disse Tellman com satisfação. -Todos falavam bem dele. Costumava ser reservado, um homem muito caseiro. Gostava de seu lar quando não estava embarcado.

-Algum escândalo?

-Nada de nada. O perfeito cavalheiro em todos os sentidos. - Tellman parecia ligeiramente cheio de si mesmo.

-E o que soube você? - perguntou Pitt. -Onde o mataram? Conseguiu a arma homicida?

A satisfação do Tellman se extinguiu na hora e seus lábios se esticaram.

-Ainda não encontramos o lugar. Pôde ser em qualquer parte, procuramos a arma. Amanhã dragaremos o Serpentine. - Inclinou um pouco a cabeça. –Mas encontramos várias testemunhas. Um casal de apaixonados que passou por ali às dez e meia. Nesse momento não havia nada. Ainda havia luz suficiente para ver com clareza. Um cocheiro que passava pelo Knightsbridge caminho do Hyde Park Corner a meia-noite, de volta e a muito pouca velocidade, viu dois homens andando pelo Rotten Row. Não viu ninguém no lago, embora naturalmente era de noite e estava um tanto afastado do Serpentine, mas havia boa lua.

-E...? - Urgiu Pitt.

-E outro cavalheiro passou pelo mesmo lugar a caminho de sua casa em sua própria carruagem às duas da madrugada, e lhe pareceu ver um barco à deriva.

-Estava sóbrio?

-Isso diz ele.

-E você o que acha?

-Bom, sóbrio sim estava quando eu falei com ele.

-Encontrou-o você ou foi o homem quem acudiu?

Tellman contraiu de novo as feições.

-Veio ele. Mas se trata de um cavalheiro. É banqueiro da City.

-Onde tinha estado, que se achava tão longe de casa a essas horas?

-Não o perguntei, senhor - respondeu Tellman, cada vez mais tenso. -Suponho que era um assunto privado, talvez não esteja bem pressionar a um cavalheiro para lhe surrupiar onde esteve, senhor Pitt. Zangam-se facilmente. — Pitt notou a insolência em seu tom e viu em seu rosto a satisfação do desdém.

-Ao menos terá comprovado se era quem dizia ser, não?

-Não acredito que isso importe - replicou Tellman. -Viu um barco na água às duas da madrugada. Não é assunto da polícia que nos dê seu nome verdadeiro ou um falso. Se um cavalheiro se dedicar a deitar-se com a mulher de outro cavalheiro, é coisa sua, não tem que ver com nosso caso. Que eu saiba, esse homem era um cavalheiro. Não terá que ser detetive para notar a diferença.

-Também um cavalheiro pôde ter matado ao capitão Oakley Winthrop! –disse Pitt com sarcasmo. -Se esse informador tinha boa voz, boas maneiras e sapatos limpos, poderia ter sido o autor do assassinato.

Tellman corou e guardou silêncio.

-Suporemos que é verdade a menos que averigüemos o contrário – disse Pitt.

-Sempre é algo. O que descobriu no barco?

-Não havia sangue, salvo restos da hemorragia posterior à morte.

-Sinais de que houvesse outra pessoa a bordo?

-Como o que? São botes de prazer. Podiam ter subido uma centena de pessoas. Inclusive na última semana!

-Sei perfeitamente, Tellman. Possivelmente uma delas matou ao Winthrop.

-Sem deixar rastro de sangue, senhor? A esse homem cortaram a cabeça!

-E pela amurada?

-Como?

-E se inclinou-se pela amurada? - perguntou Pitt, levantando a voz ao imaginar essa possibilidade. -E se estavam juntos no barco e o assassino puxou algo à água que chamou a atenção do Winthrop? O capitão se inclinou para olhar, o assassino lhe golpeou na cabeça e depois a cortou e a puxou à água. O sangue teria caído fora do barco!

-É possível - admitiu Tellman a contra gosto, mas havia em sua voz um tom de admiração. -Poderia havê-lo feito assim!

-O cabelo estava úmido? Pense, homem! Você o viu! - disse Pitt.

-Não sei o que dizer. Não tinha muito. Estava quase calvo no alto da cabeça.

-Já sei. Mas do que conservava os flancos, as costeletas.

-Sim, acredito que usava costeletas. Mas não estou certo se havia água no fundo do barco, águas de quilha, - não se decidia a aceitar todas as implicações, mas não pôde evitar que sua voz denotasse obrigação.

-Em um bote de prazer? Tolices. - Pitt desprezou a idéia.

-Sim, senhor, as costeletas estavam molhadas, acredito.

-Sangue?

-Não, não muito. - Tellman não lhe tirava olho de cima.

-Não teria havido muito se a cabeça tivesse caído sem mais ali onde o mataram? — Tellman se manteve prudente.

-Não sei, senhor. Não tive nenhum caso igual. Acredito que sim. A menos que lhe seguraram a cabeça para matá-lo.

-Como?

-O que?

-Como lhe sustentaram a cabeça? Mal tinha cabelo na parte superior.

Tellman exalou com força e teve que render-se.

-Bom, suponho que tem você razão. Será que o mataram no barco, inclinado sobre a amurada, e a cabeça caiu à água. Nunca poderemos prová-lo.

-Examine o barco com cuidado - ordenou Pitt, reclinando-se na poltrona.

-Pode ser que haja sinais na madeira, um entalhe, uma raspadura. Deve ter sido um golpe muito forte, difícil de controlar. Isso demonstraria nossa hipótese.

-Sim, senhor - disse Tellman. -Alguma coisa mais, senhor?

-Não, a menos que tenha algo mais que me dizer.

-Não, senhor. O que quer que façamos depois?

-Quero que encontre a arma e logo averigúe o que possa sobre o que fez a vítima essa noite. Alguém pôde tê-lo visto.

-Sim, senhor. - Voltava para tom insolente, como se não pudesse evitá-lo. Seu ressentimento era muito grande. Acabou-se a trégua. -E a senhora Winthrop? Pensa investigá-la mais? Ver se tinha algum amante? Ou seria muito ofensivo para a família?

-Se descobrir algo importante o comunicarei - disse fríamente Pitt. -Seja ou não ofensivo. Agora vá dragar o Serpentine.

-Sim, senhor.

Pitt teria preferido dragar pessoalmente o Serpentine a fazer o que lhe

tocava fazer agora. Tinha estado meditando desde que saia do Portsmouth, pensando se era ou não necessário. Talvez resultasse inútil quanto a contribuir com nova informação, mas esse não era o único aspecto a considerar. Havia uma cortesia profissional e o fato de que se não o fizesse, essa omissão podia lhe sair cara. Teria feito Micah Drummond?, perguntava-se, e sabia perfeitamente qual era a resposta: sim.

Assim, por volta das doze, Pitt se achava na biblioteca de lorde Marlborough Winthrop na Chelsea, a menos de um tiro de pedra do Tâmisa. Era uma casa sólida e elegante, mas carecia de estilo, e a biblioteca em que Pitt esperava era pouco imaginativa em sua utilização de couro, frisos em ouro, mogno e maciço suporte de lareira com pilares. Com apenas uma olhada poderia haver descrito o resto do que ia ver sem temor a equivocar-se.

O próprio lorde Winthrop, uma vez fechada a porta e ficando diante de Pitt, era um homem de traços indefinidos, cabelo avermelhado e uma expressão muito lúgubre, embora não ficava claro se era pelas circunstâncias atuais ou algo natural nele. Não havia suavidade em seu rosto, nem linhas mais melífluas em torno dos olhos. Parecia que lhe custava rir. Pitt recordou o rosto que tinha visto no necrotério, as mesmas feições, a mesma tez manchada. Naturalmente, ia vestido de negro.

-Bom dia, senhor - Olhou ao Pitt tratando de fazer uma idéia de seu status social.

-Superintendente Pitt. - Ainda gostava de como soava o cargo, mas logo se sentiu coibido por havê-lo pronunciado. Aquele homem podia ser pomposo e superficial, mas tinha perdido a um filho de um modo espantoso. Sua angústia tinha que ser real. Julgar-lhe naquele momento teria sido a maior ofensa que Pitt podia cometer.

-Ah, sim - disse Winthrop como se recordasse de repente. Apesar de ser corpulento e de costas largas, seu aspecto não impunha. Sua compleição parecia mais um estorvo que um valor em si mesmo. -Me alegro de que tenha vindo. – Mas o tom sugeria que o agradecimento era mera cortesia. -É claro, lady Winthrop e eu estamos ansiosos por saber o que tem descoberto sobre este terrível assunto. - Olhou-o esperando uma resposta.

Pitt engoliu a vontade de explicar que tinha vindo para descobrir coisas. Depois lhe ocorreu que talvez era ele quem estivesse equivocado. Micah Drummond tinha utilizado sempre grandes dose de diplomacia. Era algo que ia ter que aprender se queria adaptar-se a seu novo cargo. Curiosamente, agora que era mais chefe, era também menos dono de si mesmo. Sua responsabilidade era maior em um sentido diferente.

-Temos testemunhas, senhor - disse. -Gente que passou pelo parque aquela tarde e a certas horas da noite, e acreditam que o crime pôde haver-se cometido por volta das doze.

-Quer dizer que alguém o viu? - Lorde Winthrop parecia desconfiado. –Mas homem de Deus! Aonde iremos parar se semelhante ato pode perpetrar-se em um lugar público da cidade e a pessoa o vê e não faz nada! O que acontece com todos? O rosto lhe escureceu. -Acreditam que a barbárie é coisa de nações pagãs nos limites do Império, mas não aqui no coração mesmo de um país civilizado. – Havia raiva e medo em sua voz, era um homem assustado e confuso apesar de estar rodeado de toda a segurança social e econômica. -Brutais assassinatos no Whitechapel faz um ano e meio, e a ninguém parecia lhe importar. – Estava levantando a voz. -Escândalos na família real, rumores por toda parte, a moral pelo chão, a vulgaridade na ordem do dia. - Estava perdendo o controle. -Anarquistas, irlandeses por toda parte. A sociedade inteira à beira da quebra. - Inspirou fundo algumas vezes. -Desculpe-me. Não devo permitir que meus sentimentos pessoais fiquem tão em evidência.

-Estou certo de que não é o único que pensa que vivemos tempos muito difíceis, lorde Winthrop - disse Pitt com tato. -Mas em realidade não quis dizer que alguém visse que se cometia um crime, mas sim não havia ninguém no Serpentine quando passou um jovem casal às dez da noite, que dois homens foram vistos no Rotten Row pouco antes das doze, e que às duas da madrugada aparentemente havia um bote à deriva. Posto que o capitão Winthrop faleceu entre as onze e as doze da noite, isso parece sugerir que a morte se produziu a meia-noite.

Lorde Winthrop fez um esforço por controlar sua voz.

-Ah. Entendo. Bem, e que isso prova? Não houve detenções! - Sua expressão se endureceu como se tivesse cheirado algo desagradável. -É evidente que há bandos de ladrões perigosos no coração de Londres. O que fazem vocês a respeito, pergunto eu. Não sou quem para criticar às autoridades, mas até o mais indulgente de nós pode dizer que o corpo de polícia está em um apuro se quer justificar sua atuação. - Estava em pé diante do aparador, onde descansava um tradicional vaso de Chelsea e, na parede, um quadro de uma serena e ordenada paisagem. –Terão muito trabalho para recuperar a reputação, senhor, depois do do Whitechapel – continuou. -O Estrangulador de Londres! O que me diz dos loucos que – engoliu em seco - decapitam a um homem por umas quantas libras?

-É improvável que o motivo fosse o roubo, senhor.

Lorde Winthrop soprou.

-Improvável? Bobagens, cavalheiro! Naturalmente que foi um roubo! Para que se não ia um bando de degenerados assaltar a um desconhecido que passeava pelo parque? Meu filho tinha um excelente físico, senhor Pitt, era muito bom esportista, especialmente nas nobres artes da defesa pessoal. "Mente sã em corpo são" era seu lema, e sempre o observou.

Pitt se lembrou do Eustace March, o tio por afinidade de Emily, homem insensível, presunçoso, dogmático e insuportável. Teria sido assim Oakley Winthrop? Em tal caso, não era de estranhar que alguém o tivesse assassinado.

-Devem ser vários, e bem armados, para vencê-lo - prosseguiu lorde Winthrop, levantando a voz para emparelhá-la a sua ira. -Gostaria de saber o que têm feito vocês para permitir que a situação chegue a tais extremos.

Pitt visualizou Micah Drummond, seu rosto alongado e bem grave, seu nariz aquilino e seus olhos cinzas e inocentes. Era a única forma de não perder a calma.

-O capitão Winthrop, com efeito, era um homem na flor da vida, gozava de excelente saúde e destacava-se nos esportes. Deve ter sido agredido por uma força superior, como a de várias pessoas juntas, possivelmente bem armadas, ou foi pilhado de improviso por alguém de quem não pensava que pudesse desconfiar.

Lorde Winthrop ficou imóvel.

-O que está sugerindo?

-Que aparentemente não houve luta, senhor - explicou Pitt, desejando poder mover-se para aliviar sua própria tensão, mas aquela sala parecia excluir todo o alheio à tragédia. -O capitão não tinha machucados no corpo ou braços – continuou. -Não havia arranhões nem outros sinais, nem contusões nos dedos, como tampouco tinha a roupa rasgada. Se tivesse havido resistência...

-Sim, sim, sim! Não sou imbecil, meu senhor - disse lorde Winthrop com impaciência. -Já o entendi. - afastou-se repentinamente da lareira e olhou pela

janela para a sebe de grandes louros, com os ombros erguidos e as costas rígidas. - A traição, isso é o que importa. O pobre Oakley foi atacado a traição. - voltou-se. -Bem, superintendente como se chamou, espero que descubra quem o fez e se ocupe de que o levem aos tribunais. Suponho que me explico com clareza.

Pitt teve que reprimir a resposta que foi a seus lábios.

-Sim, senhor. Naturalmente.

Lorde Winthrop não ficou de todo convencido.

-A traição. Santo Deus!

-A quem traíram? - A porta se abriu e uma mulher magra de cabelo escuro e grandes olhos azuis acabava de entrar. Seu porte era arrogante e seu rosto transbordava paixão, inteligência e ira. -De que traição fala, Marlborough?

Lorde Winthrop se voltou para ela com o rosto súbitamente suavizado pela emoção.

-Não se preocupe por isso, querida. É melhor que não conheça os detalhes. Quando houver alguma novidade lhe direi , por descontado.

-Tolices! - A mulher fechou a porta. -É algo relacionado com o Oakley, e tenho tanto direito a saber como você. - Olhou ao Pitt pela primeira vez. -E você quem é, jovem? Envia-lhe alguém para nos pôr à corrente?

Pitt inspirou fundo antes de falar.

-Não, lady Winthrop, estou a cargo deste caso e vim para lhes dizer que estamos fazendo todo o humanamente possível, e para lhes dar a pouca informação de que dispomos.

-Que meu filho foi atacado a traição, é isso? Embora, se não apanharam o assassino, como podem saber que atacou a traição?

-Evelyn, seria muito melhor... - começou lorde Winthrop.

Ela fez caso omisso.

-Como se pode saber algo semelhante? – perguntou de novo ao Pitt, avançando uns passos pelo grosso e carregado tapete. -Se você dirige a investigação, por que não está na rua fazendo algo? O que faz aqui? Nós não sabemos nada.

-Tenho vários homens trabalhando e fazendo perguntas, senhora - disse Pitt, paciente. -vim lhes informar do que sabemos até agora, e ver se podiam jogar alguma luz sobre certos aspectos do caso.

-Nós? A que diabos se refere? - Seus olhos eram muito grandes e muito fundos, talvez muito juntos para ser de todo formosos. -Por que disse "a traição"? Se estiver sugerindo uma infidelidade, equivoca-se de meio ao meio. - estremeceu um pouco fazendo ondular a seda de seu vestido. -Sua esposa adorava-o. A idéia de que ela pudesse ter tido algo com outros homens é completamente absurda. Não sei que classe de pessoas você acredita que somos.

-Ele não disse...- atravessou lorde Winthrop.

-Pertencemos à aristocracia rural - prosseguiu ela, ignorando a seu marido. -Não temos que ver com o comércio nem nos casamos com estrangeiros. Não somos avaros nem ambiciosos. Não procuramos posição, mas servimos com diligência e honra quando isso é preciso. Sabemos como nos comportar, senhor Pitt. Conhecemos nossas obrigações, e sempre as cumprimos com todo rigor.

Pitt descartou muitas das perguntas que pensava fazer. Ou não lhe entenderiam ou se considerariam insultados.

-Nada mais longe de minha intenção, senhora - disse com suavidade. -É só que o capitão Winthrop não ofereceu a menor resistência, o que é quase uma prova de que não esperava nenhum tipo de agressão por parte do autor do crime. Pegou-o totalmente despreparado, o que me induz a acreditar que foi alguém a quem ele conhecia.

-Não me diga! - Sua voz soou desafiante, com a mesma atitude rígida de seu corpo sob a seda negra.

-Quando alguém volta para casa andando de noite - explicou Pitt -é normal que vigie a qualquer desconhecido que se possa aproximar, que procure estar de frente a ele se se detiver, não lhe parece?

-A mim? - Estava surpreendida. Depois refletiu. -Bom, sim, suponho. - Foi para a janela e contemplou a luz que banhava a vegetação. -Possivelmente algum de seus vizinhos perdeu a cabeça. Ou você acha que é alguém do navio, alguém que se deixou levar pela inveja ou algo parecido? Pode ser que Oakley lhe vencesse em alguma competição, ou o fizesse sentir-se humilhado. Seja quem for, confio em que o encontre e faça que o pendurem de uma corda.

-Claro que o fará - disse lorde Winthrop. -Já falei isso com o senhor Pitt.

Já conhece qual é minha opinião a respeito.

-Pode ser que não saiba que o ministro dos Exteriores é nosso parente. -voltou-se para olhar ao Pitt com olhos penetrantes. -Como outras muitas pessoas influentes. É uma vulgaridade fazer ostentação das relações familiares, não obstante quero que tivesse presente que não descansaremos até que o assunto fique fechado e a meu pobre filho lhe tenha feito justiça. - Levantou um pouco o queixo. -Bem, agradecemos que tenha vindo a nos informar de suas intenções, mas será melhor que não perca mais tempo aqui. Aceite nosso agradecimento e continue com seu trabalho. - Voltou-se para seu marido, esquecendo-se do Pitt. -Marlborough, já escrevi a toda a parte Walsingham da família. Acredito que aos Thurlow e os Maybury do Sussex deveria escrever você.

-Já estarão inteirados, querida - disse ele, irritado. -Os jornais não falam de outra coisa! A estas horas todos os empregadinhos e lavadeiras de Londres conhecem até o último detalhe!

-Isso não importa - respondeu ela. -Nosso dever é informar devidamente à família. Ofender-se-iam se não o fizéssemos. Quererão nos escrever para expressar suas condolências. Além disso, terá que levar a conta das mortes na família. É importante. - Meneou a cabeça com impaciência, e as contas negras de seu colar refletiram a luz. -Ainda não escrevi aos Wardlaw do Gloucestershire, nem à primo Reginald. Terei que pedir mais papel com tarjeta negra. Para estas coisas não se deve usar papel comum.

-Mencionou-lhe o capitão Winthrop alguma rivalidade? - Pitt sentiu que interrompia, até tal ponto tinha ficado à margem da conversa.

-Não. - Lady Winthrop se voltou para ele com surpresa. -Nunca, que eu recorde. Escrevia-nos regularmente, claro, e vinha à casa cada vez que estava em terra, para jantar ao menos uma vez. Mas não recordo que jamais mencionasse inimizade alguma com ninguém. Todo mundo gostava dele. -Uma ruga se formou em sua testa. -Achei que já o havia dito.

-As pessoas que têm êxito e são populares podem suscitar inveja – observou Pitt.

-É claro. Entendo-o perfeitamente - replicou ela. -Não sei o que lhe dizer.

Suponho que seu trabalho consiste em averiguá-lo. Não é isso para o que lhe pagam?

-Oakley nunca mencionou nada - disse lorde Winthrop, estendendo uma mão para sua esposa, mas retirando-a ao pensar melhor. -Mas ao Oakley não gostava de falar mal de outros. Atrever-me-ia a dizer que nem sequer se dava conta dessas coisas.

-Pois claro que não - disse ela com brusquidão, juntando as sobrancelhas. –O superintendente disse que o pegaram despreparado. Se tivesse sido um homem ao que odiava, teria estado em guarda. Oakley não era nenhum idiota, Marlborough!

-Maldito seja, confiou em alguém em quem não devia! - disse ele explodindo de raiva.

Ela fez caso omisso e olhou ao Pitt.

-Obrigado, senhor Pitt. Suponho que nos manterá informados. Que tenha um bom dia.

-Igualmente, senhora - respondeu o superintendente, e passou por seu lado para sair da sala.

Pitt não lhes tinha comentado que aparentemente o crime se cometera no bote de remos, fato que foi confirmado no dia seguinte quando o sargento Grange se apresentou em seu escritório. Era um homem miúdo e robusto de cabelo castanho avermelhado e rosto agradável.

-Parece que o senhor Tellman tinha razão - disse plantando-se ante a mesa do Pitt com um sorriso nos lábios. -O crime foi cometido no mesmo bote, sobre o lado. Tudo muito limpo. O sangue foi parar à água. Por isso não se notava nada.

Pitt chiou os dentes. A idéia não era do Tellman, mas seria uma ridicularia fazer saber ao Grange, inclusive se este estava disposto a acreditar nele. E se não, teria sido Pitt quem ficaria em ridículo.

-Encontrou um entalhe recente na madeira - disse Pitt.

-Sim, senhor! Disse-o o senhor Tellman? Avisou-me que não tinha tempo para subir pra vê-lo, porque tinha que ir falar com alguém na Battersea.

-Não, não me disse ele. É o que eu teria procurado nessas circunstâncias. Suponho que você teria feito outro tanto.

-Bom, eu não, senhor, só porque ele me disse que o fizesse – admitiu modestamente o Grange.

-Por que foi Tellman a Battersea?

O Grange olhou à frente.

-Será melhor que o pergunte, senhor.

-Continuam procurando a arma?

-Sim, senhor. - Grange fez uma careta. -De momento não encontramos nada. Não sei onde mais procurar. Eu acredito que o assassino a levou consigo. Se a levava consigo na ida, digo eu que podia levá-la na volta.

Era provável que o assassino estivesse em posse da arma, ou que a tivesse jogado a um sem-fim de lugares possíveis. Não podiam dragar o Tâmisa.

-Dragaram o Serpentine? - Pitt não quis discutir.

-Sim, senhor. O senhor Tellman é muito meticuloso, senhor. Insistiu em que o fizéssemos, e a fundo. Aí dentro já não há nada. Não se acreditaria que coisas que encontramos! - Abriu um pouco mais os olhos. -Um par de botas em perfeito estado, ambas do pé esquerdo, uma pena, não sei como pôde perdê-las alguém. Três varas de pescar, isso é fácil de entender. Toda classe de caixas e bolsas, e um chapéu que parecia quase novo. É incrível! De dinheiro, nada, claro.

-Acredito em tudo o que me diga, sargento - afirmou Pitt sem pestanejar, e observou com satisfação a surpresa do Grange. -Que mais lhe há dito que faça o senhor Tellman?

-Que subisse para vê-lo, para ver o que tinha que fazer agora, já que está no comando. - Sua expressão tinha mudado ligeiramente desde sua entrada no escritório, mas preponderava a cautela do homem apegado a velhos preconceitos.

Pitt se esforçou em não fixar-se.

-Falou já com todos os vizinhos?

-Sim, senhor. Ninguém disse nada de utilidade. Uma senhora idosa viu-o quando saía para dar um passeio, mas como já sabemos pela senhora Winthrop que hora era então, não nos serve de muito.

-Ao contrário. Confirma-nos que ela diz a verdade.

-Não suspeitará dela, não é, senhor? - disse-lhe Grange com a incredulidade pintada no rosto e certo sarcasmo, tudo isso sob um verniz de respeito. -É uma mulher muito fraca. Alta, mas como pesará o que uma pena. Não tem carne por nenhum lado.

-Não que o fizesse ela mesma, sargento, mas existe a possibilidade de que estivesse implicada. Muitos crimes violentos têm origem doméstica.

-Ah. Sim, bom, suponho que tem razão - concedeu-lhe Grange. -Mas eu não teria pensado que uma senhora assim... Bom, suponho que você conhece às pessoas abastadas, senhor.

-É só uma possibilidade, Grange. Imagino que ninguém viu que se aproximasse outra pessoa.

-Não, senhor.

-E esses vizinhos e conhecidos, estavam todos em casa a essa hora?

-Perdão?

-Podem justificar onde estiveram de noite até as três, sargento?

-Não sei, senhor.

-Pois já tem trabalho. Averigúe-o!

-Sim, senhor. Alguma coisa mais, senhor?

-Até que venha com a resposta, não.

-À ordem! - Grange virou sobre os calcanhares e saiu do escritório, deixando ao Pitt de mau humor e consciente de que não podia fazer nada para remediá-lo.

Havia outros casos que requeriam parte de sua atenção: um roubo de importância, um incêndio que parecia premeditado, um desfalque de uma comissão de valores. No dia seguinte, pela tarde, o pálido e ofegante sargento disse ao Pitt que um cavalheiro do Home Office1 tinha vindo vê-lo, e depois de fazer-se a um lado com um olhar de desculpa, um homem alto e diferente entrou no escritório. O sargento optou por uma rápida retirada.

 

1 Ministério do Interior. (N. do T.)

 

-Sou Landon Hurlwood - anunciou o homem enquanto Pitt ficava em pé. –Boa tarde, superintendente. Perdoe que me tenha apresentado sem prévio aviso, mas se trata de um assunto urgente e tinha um momento livre.

-Encantado, senhor Hurlwood -disse Pitt sinceramente. -Fique a vontade, por favor. - Indicou a cadeira em que ele mesmo se sentara tantas vezes quando Micah Drummond ocupava o cargo. Enquanto Hurlwood tomava assento, Pitt se sentou em sua poltrona e olhou com expectativa ao recém-chegado.

Hurlwood era um homem alto, quase tanto como Pitt, de compleição magra mas, em boa forma embora Pitt lhe calculava cinqüenta anos. Tinha o cabelo de um impecável cinza estanho, espesso e encaracolado à altura das orelhas. Seus olhos eram muito escuros e seus traços, patrícios. Cruzou as pernas, sentindo-se perfeitamente à vontade.

-Este horrível assassinato do capitão Winthrop, superintendente – começou com um breve sorriso, -o que sabemos até o momento?

Pitt lhe resumiu os fatos, guardando-se qualquer tipo de conjetura ou dedução.

Hurlwood escutou-o atentamente.

-Entendo - disse por fim. -Confesso que é pior do que tinha pensado. Subestima-se o que diz a imprensa, pois parece que lhes interessa mais o impacto que a verdade, e fomentar os mais baixos instintos. Mas neste caso acredito que não se equivocam muito, embora escolham para expressá-lo uma linguagem ligeiramente desenquadrada. Me diga com franqueza, superintendente, que probabilidades vê de achar ao louco que fez isto?

-Se se tratar de loucura fortuita, muito poucas - respondeu Pitt. -A não ser que mate de novo e esta vez deixe mais provas.

-Santo céu! Que idéia tão espantosa. Entendo que você não acredita que fosse um bando de ladrões. Sim, também me parece improvável. Não lhe teriam deixado nada em cima, e diz você que havia moedas no bolso do colete, além de um relógio de ouro e uma corrente curta. - Meneou sua imperial cabeça. -Além disso, para que iriam decapitá-lo? Os ladrões costumam levar navalhas ou porretes, inclusive um pau, mas nunca um alfanje. Assim, em sua opinião, foi um louco ou um conhecido da vítima. - Esticou os lábios. -É muito desagradável.

-Menos terrível para o público em geral que um bando de ladrões decapitadores. - observou Pitt.

-Certo, certo. - Hurlwood esboçou um sorriso. -Em qualquer caso temos que resolver quanto antes. O que queria saber, se puder me dizer é se acredita que tem algo que ver com a armada. É lógico que o Almirantado deseje sabê-lo.

Pitt captou um tom de temor, o qual o preparou para uma negação e, por conseguinte, uma desautorização por parte do outro.

-Não há provas ainda nesse sentido - disse com cautela. -Estive no Portsmouth falando com seu lugar-tenente, quem afirma que não se produziu nenhuma briga, e o capitão não foi assassinado até oito dias depois de sua vinda a Londres.

Hurlwood assentiu, mais relaxado.

-Isso é muito tempo se a briga foi realmente séria. Já não há o calor do momento. Mas é algo que não podemos descartar. - Estava mais calmo, suas elegantes mãos já não se viam contraídas, mas não era tão ingênuo para aceitar a fuga sem razão.

-Também verifiquei se seus colegas e amigos estavam no Portsmouth na noite do crime - acrescentou Pitt. -Que se saiba, todos estavam no Portsmouth perto da meia-noite em questão, portanto não puderam estar em Londres nem sequer tomando o trem mais rápido.

-Entendo. Sim, isso seria definitivo. - Hurlwood ficou de pé com um gracioso movimento. Vestia roupa boa. Pitt se sentiu andrajoso a seu lado. Micah Drummond não sairia tão mal parado da comparação. Não era um dandy, mas possuía a elegância inata do genuíno cavalheiro.

Pitt se levantou também. Os bolsos da jaqueta lhe avultavam com notas que o sargento de recepção lhe tinha entregue, e uma bola de corda com o qual tinha feito um pacote fazia poucos dias.

-Fica pois um motivo pessoal - disse Hurlwood. -Seja como for, imagino que porá você toda a carne no assador, superintendente, em vista da natureza do crime e a distinta família da vítima. - Não era uma pergunta.

-Naturalmente. Mas não é um assunto no que se possa proceder com pressa.

Hurlwood lhe dedicou um sorriso luminoso. Sua dentadura era excelente e ele sem dúvida sabia mas se notava que era um homem bastante agudo para captar tudo o que Pitt não tinha chegado a dizer.

-É claro – disse. -Não o invejo, superintendente. Bem, foi muito amável me dedicando seu tempo. Que tenha um bom dia.

-O mesmo digo, senhor Hurlwood - respondeu Pitt, sorrindo ante o eufemismo, dificilmente ia ter alguém um bom dia.

Fazia só meia hora que Hurlwood tinha partido quando o sargento voltou, de novo com os olhos dilatados e a respiração entrecortada. Esta vez era Giles Farnsworth, o subchefe de polícia, quem aparecia por atrás. Ia recém barbeado e era uns dez anos mais jovem que Hurlwood. Parecia zangado e ansioso. Trazia uma imaculada camisa branca, com gola de passarinha um pouco apertada, seu cabelo castanho claro era espesso e o penteava para trás da ampla testa.

-Boa tarde, Pitt. - Fechou a porta ao entrar e permaneceu de pé.

Pitt rodeou a mesa.

-Boa tarde, senhor - disse.

-Este maldito assunto Winthrop - disse Farnsworth com um gesto de desagrado. -O que tem feito até agora? Não podemos dormir, a reputação da polícia já é bastante má. Não nos recuperamos desde o Estripador e todo o dano que nos fez. Terá que evitar outro episódio parecido!

-Não há motivo para supor que vá repetir se - disse Pitt.

O aspecto do Farnsworth estava à beira da ferocidade.

-Mas homem de Deus! Como quer que não se repita se tivermos a um louco solto pelo Hyde Park! Com certeza não se contentará com um só cadáver! – Sacudiu a cabeça com ira. -E se for um bando de ladrões vindos de Deus sabe onde, voltarão para lá enquanto possam sair impunes. O pânico se apropriará outra vez das ruas, a gente terá medo de sair de sua casa, meia cidade paralisada...

-Ao capitão Winthrop não roubaram.

-Então foi um louco!

-Tampouco ofereceu a menor resistência. - Pitt se esforçou em manter a calma. Compreendia por que Farnsworth tinha medo. A situação política era tensa.

O assunto do Whitechapel fazia aflorar manifestações de anarquia, uma violência que ameaçava irromper. Havia inquietação em muitas cidades, a velha chaga da questão irlandesa fazia tanto dano como sempre. A popularidade da monarquia estava em seu ponto mais baixo. Não era difícil que a faísca do medo se convertesse em uma labareda de destruição que podia queimar a muitos.

-Mataram-no no bote enquanto estava inclinado sobre a amurada, e de um só golpe - explicou.

Farnsworth seguiu de pé, rígido como uma pedra.

-O que pretende me dizer, Pitt? Que foi algum conhecido dele? Para que ia um capitão da armada subir a um bote no Serpentine com um homem armado de um machado ou algo assim? É ridículo. Eu não gosto nada disso, Pitt.

-Sei, senhor.

-Quem é? Que vida privada tinha esse homem? O que me diz de sua esposa? Se houver um escândalo, terá você que tampá-lo, se é que pode. Suponho que o compreende. - Fulminou-o com o olhar.

-Sempre procuro não desvendar os pecados privados das pessoas - replicou Pitt, mas era só uma forma de evadir-se, e Farnsworth sabia.

-Os Winthrop são uma família importante, estão muito bem relacionados - prosseguiu Farnsworth nervosamente. -Seja discreto, por que mais queira. E não faça essa cara, homem! Já sei que é você quem tem que resolver o caso! - mordeu o lábio, olhando ao Pitt com dureza enquanto baralhava alguma idéia.

Pitt aguardou.

-Isto vai ser complicado - disse Farnsworth.

O comentário era tão claro que Pitt não respondeu.

Farnsworth olhou-o de cima abaixo, meditando ainda.

-Necessitará contatos - disse. -Não é algo impossível. Você é um homem feito a si mesmo, sei, mas isso não descarta as influências, compreende?

Pitt sentiu uma pontada de temor, mas continuou sem dizer nada.

-Uns poucos amigos podem mudar muito as coisas - continuou Farnsworth. -Se forem peixes gordos.

O temor passou. Não era o que Pitt temera. Escapou-lhe um sorriso.

Farnsworth sorriu também.

-Isso lhe abrirá algumas portas - disse, assentindo com a cabeça, -redundará em benefício de sua carreira. Drummond o era, sabe você.

Pitt ficou gelado. Estava-se referindo ao Círculo Interno, aquela sociedade secreta, benévola por fora e maligna por dentro, em que Drummond tinha ingressado inocentemente para lamentá-lo depois. O preço da irmandade era a renúncia às lealdades, a perda da consciência a fim de que um exército secreto pudesse ir em sua ajuda, ao preço que fosse, quando a sociedade assim o decidisse. A ruína, quando não a morte, era o preço da traição. A pessoa conhecia meia dúzia de membros, se é que surgisse a necessidade. Não havia modo de saber a quem tinha jurado fidelidade nem por que causa.

-Não. - Pitt o disse antes de compreender que era uma estupidez, mas se sentia encurralado, como se a escuridão lhe estivesse rodeando a marchas forçadas. -Eu... - Conteve o fôlego e suspirou muito devagar.

Farnsworth tinha corado e seus olhos brilhavam de ira.

-Comete você um engano, Pitt - disse entre dentes.

-Eu não sou membro - disse Pitt com a máxima calma de que foi capaz.

-Pois se quer ir adiante, será melhor que o seja. - Farnsworth lhe olhou com cenho. -Do contrário lhe fecharão portas. E sei bem do que falo. Tem você que resolver isto quanto antes. - Assinalou a janela. -Tem lido os jornais? As pessoas já estão começando a sentir pânico. Não há tempo a perder. -dirigiu-se para a porta. -Lhe dou três dias, Pitt, será melhor que para então consiga algo sólido. E lhe recomendo que reconsidere essa outra questão. Necessita de amigos, me acredite. Dito isto, saiu deixando a porta aberta. Pitt ouviu como descia as escadas.

 

Charlotte tinha ouvido o menino dos jornais gritar a última conjetura sobre o assassinato do Hyde Park, mas prestou menos atenção que em outros casos de seu marido porque estava mentalmente muito ocupada com o gesso do teto da casa nova. Agora se achava no meio do que devia converter-se no salão, olhando para o alto. O construtor, um homem magro e lúgubre de trinta e poucos anos, olhar triste e nariz largo, estava diante dela meneando a cabeça.

-Não pode ser, senhora. É impossível. Está muito alto. Muito.

Charlotte olhou para a rachada cornija.

-Mas se não são nem três palmos no total. Não pode arrumar só essa parte?

-Não. - O homem voltou a menear a cabeça. -Se veria o remendo, senhora. Não ficaria bem. Não posso aceitar um trabalho assim, danificaria minha reputação.

-Está equivocado - protestou ela. -Só tem que fazer o mesmo desenho.

-Não se podem trocar garrafas velhas por odres velhos, senhora. É que não lê a Bíblia?

-Pois não, sobre tudo quando o que quero é reparar o teto - lhe replicou ela. -Bem, se não poder arrumar essa parte, o que me diz desse lado dali?

-OH, bom. - Olhou para cima inclinando a cabeça. -Não estou muito seguro. Pode que o desenho seja diferente…

-É que não pode fazer o mesmo desenho? Não me parece muito complicado.

-Porque não trabalha com gesso, minha senhora. Por que não pede a seu marido que o explique?

-Meu marido também não trabalha com gesso - disse ela cada vez mais irritada.

-Não, senhora, já vejo que não. Mas ele é um homem, sabe você, e os homens entendem destas coisas melhor que as mulheres, se não se importar que o diga. - Olhou-a com um sorriso sentencioso. -Eu não saberia como fazer uma prega ou cozinhar um bolo, mas de cornijas e isso sim sei. E certamente vai querer uma roseta nova para pendurar um lustre. Isso terá que ter muito em conta.

-E quanto me custará uma nova?

-Pois verá, isso depende de se o quiser em estuque de papel, que é muito leve e barato, e tem de três xelins a peça de dezenove polegadas de diâmetro, até uma de quarenta e nove polegadas, muito grande para esta sala, que sai por trinta e dois xelins e sete pennies. - Aspirou fundo e continuou. -Ou pode pôr o de gesso, liso ou perfurado, que sai de um xelim com seis pennies por peça de doze polegadas, até quatro xelins e seis pennies por peça de trinta polegadas. Tudo depende do que você queira.

-Ah. Bem, pensarei nisso. -O que me diz do abajur do vestíbulo?

-OH, bom, isso já é outra coisa. Poderia pôr um pingente de correntes, que sai a quatro xelins seis pennies, ou um dos grandes a sete com seis a peça. – Meneou a cabeça. -O preço não inclui o globo, claro está.

-Mas eu não a quero assim. Eu quero a que leva o tubo burilado.

-Ah, então lhe sairá muito mais caro senhora, cinqüenta e um xelins a peça, em bronze ou laqueada. E se quiser cristal polido, a coisa sobe a cinqüenta e sete xelins.

Ficou olhando.

-Da outra eu não gosto - insistiu Charlotte. -É vulgar.

-Acabo de pôr uma dessas à senhora que vive na casa em frente. Um abajur muito bonito. E uma dama muito simpática. Sua prima está casada com o cunhado de lady Winslow. - Serve esta informação como se desse por resolvido o assunto.

-Então não vai gostar que eu faça o mesmo - replicou Charlotte. -O que me diz do florão do frontispício da asa oeste? Pode deixá-lo como os outros?

-Isso não sei - disse o homem, indeciso. -Seria melhor trocá-los todos...

-Sandices! - disse uma voz do portal. -Ou encontra um florão que faça jogo, jovenzinho, ou minha sobrinha procurará a outro operário!

Charlotte virou-se e teve uma surpresa muito agradável ao ver entrar a tia avó Vespasia na sala. Para falar a verdade era tia avó por afinidade de Emily, de seu primeiro matrimônio. Entretanto, a morte do George não tinha afetado o carinho que se tinham, de fato, o respeito de uma pela outra crescia à medida que avançava sua relação. Charlotte sentiu verdadeiro prazer ao ouvir-se chamar sobrinha pela Vespasia, apesar de não ter nenhum direito legal a esse parentesco.

-Tia Vespasia - disse. -Quanto me alegro de vê-la! Chega no momento mais oportuno para me dar seu conselho. Não posso lhe oferecer nenhum refresco. Sinto muito. Mal há lugar onde sentar-se. - Estava muito penalisada, apesar de não ter convidado Vespasia e portanto não era responsável pela situação.

Vespasia fez caso omisso e olhou ao construtor, que não tinha idéia de quem era mas tinha trabalhado em suficientes casas boas para saber que nesse momento estava perdido. A dama em questão era muito distinta a outras. Alta, de uma esbeltez vizinha à fraqueza, mas com um rosto delicioso que ainda conservava boa parte da beleza que a tinha feito famosa em todo o país durante sua juventude. Vespasia olhava-o como se o homem fosse o próprio pedaço de estuque em campo de batalha.

-O que pensa fazer com isso? - perguntou, olhando para a cornija quebrada.

-Vai reparar esse lado - disse Charlotte rapidamente. -Não é assim, senhor Robinson?

-Como diz, senhora - cedeu ele a contra gosto.

-Perfeito - disse Vespasia. -E tenho certeza de que se buscar bem. Achará uma roseta que renda satisfatoriamente. E sobre o friso? Está em muito mal estado. Terá que trocar tudo. - Olhou ao Robinson

- Será melhor que comece a procurar alguma solução. Vamos, mãos à obra. - voltou-se para Charlotte. -Bem, querida, aonde podemos ir deixar que este pobre homem trabalhe? Que tal o jardim? Está lindo.

-Certamente - assentiu Charlotte, abrindo a porta a Vespasia e fechando-a ao sair. No terraço o ar era agradável, a brisa trazia fragrância a erva e a jacintos.

Vespasia ia muito erguida, com sua inseparável bengala de ponteira de prata na mão direita, mas mais que apoiar-se nela, descansava a mão em cima.

-Necessitará de um jardineiro - observou. -Ao menos duas vezes por semana. Thomas não vai ter tempo de cuidá-lo. Como sente o novo cargo? Fazia tempo que não o promoviam.

À Charlotte não lhe ocorreu outra coisa que contar a verdade.

-Muito bem, em geral – respondeu. -Mas alguns de seus homens estão se pondo difíceis. Eles se aborrecem porque o preferissem a ele em vez de outros que se consideram igualmente bons. Com o Micah Drummond o compreendiam, era um cavalheiro, mas lhes custa aceitar ordens do Thomas. - Sorriu. -Não é que ele me explique grande coisa, sei por alguns comentários que peguei no ar, e às vezes pelo que não me diz. Mas com certeza com o tempo se arrumarão as coisas.

-Certamente. - Vespasia pisou na erva. -O que me diz deste último fato, esse pobre homem a quem decapitaram no parque? A imprensa não o disse, mas suponho que Thomas está à frente da investigação.

-Sim, com efeito - disse Charlotte, estranhando seu interesse.

Vespasia continuou olhando as árvores que havia ao fundo da grama.

-Lembrará-se do juiz Quade, suponho - começou à ligeira, como se não tivesse importância.

-Sim - respondeu Charlotte com a mesma despreocupação. O rosto ascético e sensível do juiz lhe veio à memória, sua integridade a toda prova no caso do Farriners Lane, as lembranças que trazia consigo de um passado que Charlotte não podia sequer adivinhar e, acima de tudo, as mudanças que tinha experimentado Vespasia, sua repentina vulnerabilidade, o modo em que se ruborizava (coisa que Charlotte nunca lhe tinha visto antes), a risada e as sombras em seus olhos.

-Pois claro que me lembro - repetiu. Ia perguntar como estava mas se absteve. Vespasia não era uma mulher com quem se pudesse brincar de coisas tão corriqueiras. Melhor guardar silêncio e esperar que ela dissesse algo.

-Conhece bastante a lorde e lady Winthrop - explicou a anciã, avançando um pouco mais pela erva, as saias lhe enganchavam nos caules sem cortar.

Charlotte teve que segui-la para continuar a conversa.

-Seriamente? - Surpreendia-lhe sabê-lo. Thelonius Quade era um homem de grande inteligência e calado talento. Pelo que dizia Emily, lorde Winthrop era justo o contrário. -Socialmente?

Vespasia esboçou um sorriso, seus olhos como de prata mostraram uma expressão divertida.

-Não será profissionalmente, querida. Marlborough Winthrop não faz nada de utilidade, claro que isso não é um delito, ou meia aristocracia estaria no banquinho dos acusados. Pois sim, socialmente, e não acredito que fosse porque Thelonius o desejasse. Esse homem é um chato incorrigível e sua mulher pior ainda. Tem opiniões violentas, que por cima nem sequer são delas,mas sim de outras pessoas. Contrai opiniões como outros contraem enfermidades.

-Conhecia o juiz ao capitão Winthrop? - perguntou Charlotte.

-Muito por cima. - Vespasia estava agora no meio da grama, a brisa fazia ondear a seda verde clara de sua saia. A luz exterior dava a sua blusa um delicado tom marfim, e as grandes pérolas que levava no pescoço pendiam mais abaixo de seus seios. Charlotte se perguntou se alguma vez alcançaria uma elegância tão natural.

-Sinto muito - disse em voz baixa. - Estará penalizada por eles.

-É claro. - Vespasia aceitou e desdenhou o tema com um leve gesto da cabeça. Avançou uns passos mais. -O enterro se celebrou em família mas amanhã haverá um funeral em memória do capitão. Thelonius assistirá. Pensei que talvez o acompanharei. - Olhou Charlotte com o primeiro vislumbre de um sorriso nos olhos. -Me perguntava se você gostaria de vir conosco.

Teria sido uma falta de delicadeza, de resto desnecessária, perguntar pelo objetivo de semelhante convite. Não pensava nos Winthrop, nem sequer no Thelonius Quade, e é claro tampouco em si mesma. Antigamente tinha estado envolvida em mais de uma cruzada social, sempre com incansável paixão. Em várias ocasiões tinha aplicado igual energia e devoção a intrometer-se no trabalho do Pitt, ajudando a Charlotte e Emily quando estas não tinham acesso a certos lugares e pessoas. Não podia dizer-se que desfrutasse com isso, mas o fulgor de seus olhos não o revelava.

-É um caso muito feio - disse Charlotte, contemplando os esbeltos narcisos.

-A imprensa lhe deu uma nota estridente - acrescentou Vespasia. –É indispensável que Thomas se afiance em seu posto o antes possível. Trata-se de um caso importante ou tem todos os traços de sê-lo. Devemos fazer tudo o que possamos.

-Os jornais falam de um louco solto - disse Charlotte, inquieta.

-Tolices! Se houvesse um lunático rondando pelo Hyde Park dedicado a cortar cabeças, a estas horas teríamos sabido mais coisas dele.

-Algum conhecido do capitão? - perguntou Charlotte. Esqueceu-se dos narcisos, e já mal percebia o vento que balançava os ramos e as brilhantes plantas em flor.

-Parece uma conclusão inelutável - concedeu Vespasia. -Me contou Thelonius que não o roubaram. Ou isso diz lorde Winthrop.

A imaginação de Charlotte começou a disparar. Sugeriu o que a seu entender era mais claro.

-Sua esposa tem um amante. Ou ele tem uma, e então o marido...

-Por favor! Pode ser que Oakley Winthrop não fosse um homem com muita imaginação, mas tampouco era um cretino. Se tivesse a desgraça de sair passear de noite pelo parque e encontrar o amante de sua mulher empunhando uma arma branca, a última coisa que faz é subir com ele a um bote. Para falar do que? Da partilha eqüitativa dos favores femininos?

Charlotte reprimiu a risada, mas continuou obstinada.

-Possivelmente era algum conhecido e Winthrop não sabia da missa a metade – sugeriu. -Se foi o amante de sua esposa, ela pode ter sido discreta. No final de contas, o capitão Winthrop passava fora de casa a maior parte do tempo. É possível que nunca lhe ocorresse que ela pudesse interessar-se em outro homem.

-Mas se Winthrop não estava à corrente da situação, por que diabos ia matá-lo     esse outro homem? - respondeu Vespasia, levantando ainda mais as sobrancelhas. -Me parece absurdo e de tudo desnecessário.

-O marido da amante, então? - disse Charlotte pensando em voz alta. –Pode ser que fosse muito ciumento.

-E para que ia estar Winthrop passeando com ele no bote em plena noite? - Golpeou um caule longo de erva com sua bengala.

-Possivelmente não... - começou Charlotte, mas antes de terminar se deu conta de que era uma estupidez.

       -Sua amante era uma candida? - disse Vespasia com um sorriso ao mesmo tempo tolerante e divertido. -Duvido. Não seria tão inocente para não conhecer seu próprio marido. - Deu meia volta e pôs-se a andar para a casa. -Não, quanto mais penso nisso, mais estranho me parece. Acredito que Thomas vai necessitar nossa ajuda. - Manteve a expressão quase sem entusiasmo, mas nem toda sua força de vontade pôde dissimular a energia interior que esse pensamento fazia brotar nela.

-Então a acompanharei ao funeral - disse Charlotte sem vacilar. -A que hora quer que esteja pronta?

-Mandarei uma carruagem às dez e quinze. E, querida, a próxima vez que comprar um vestido, eu se você o escolheria negro. - Brilharam-lhe os olhos. -Vai que nem luva ao ofício de seu marido.

Em realidade Charlotte enviou uma mensagem urgente a Emily para ver se podia lhe emprestar algo adequado para a ocasião. Charlotte não tinha mais dinheiro extra que o necessário para as coisas da casa. Com a perspectiva de engessar, trocar os florões e comprar alguns ladrilhos novos para a lareira, entre outros muitos gastos, não podia gastar nem meio penny.

Emily se alegrou de lhe fazer esse favor, com a condição de que Charlotte lhe contasse até o último detalhe do caso e a incluísse em futuras pesquisas. Em troca, lhe emprestava o vestido que quisesse enquanto durassem seus esforços.

Assim, Charlotte estava radiante, animada e com boa cor, quando Caroline Ellison se apresentou às dez da manhã com um revôo de saias cor chocolate e ouro e um chapéu que recordava um turbante.

-Bom dia, mamãe! - disse Charlotte surpreendida, tanto pelo chapéu como pela visita não anunciada. Não era preciso perguntar se algo andava mau: o rosto de Caroline irradiava bem-estar.

-Bom dia, céu - respondeu Caroline, bisbilhotando o dormitório de Charlotte, onde se achavam enquanto ela dava os últimos toques em seu penteado. -Está muito bem, embora temo que um pouco fúnebre. Não poderia pôr algo mais animado, ao menos ao redor do pescoço? Pode ser que tanta seriedade esteja em moda, mas se excedeu um pouco, não acha?

-Como vai estar na moda, mamãe - disse Charlotte. -Tudo de negro, e em abril!

Caroline afastou a questão com um gesto da mão.

-Ultimamente não estou muito a par das modas. De qualquer forma, falta-lhe um pouco de cor. Como ficaria com algo diferente, inesperado? vamos ver, o vermelho é muito ordinário. - Olhou em redor. -E se for o que a gente alguma as vezes combina com o negro? - Levantou uma mão para que Charlotte não a interrompesse enquanto pensava. -Já sei: açafrão. Não vi a ninguém de negro e açafrão.

-Ninguém que tenha espelho em sua casa, ao menos - disse Charlotte.

-Você não gosta? Pensava que seria bastante original.

-Originalíssimo, mamãe. Mas como vou a um funeral, acredito que a família não o veria com bons olhos. Disseram-me que são gente muito convencional.

Caroline ficou boquiaberta.

-OH. Não sabia. Quem são? Conheço-os? Não me tinha informado...

-Se tivesse lido o jornal. - Charlotte pôs a última forquilha e estudou o resultado.

-Já não leio as necrológicas. - Caroline se sentou na beira da cama, arrumando as saias a seu redor.

-Não, imagino que agora só as páginas de espetáculos e crítica teatral –disse Charlotte. Adorava ver sua mãe tão cheia de vitalidade e tão feliz, mas lhe preocupava o que ocorreria quando tudo aquilo acabasse, como tinha que acontecer. Por que não aceitava a velhice? Mas tanto ela como Emily o haviam dito em várias ocasiões. Não era o momento de começar com isso, sobre tudo quando estavam a ponto de virem procurá-la e era impossível que a discussão concluíra decentemente.

-É muito mais edificante para começar o dia que uma lista de pessoas que já se sabe que morreram - disse Caroline, desculpando-se pela metade. -E mais ainda se, se tratar de desconhecidos. A mim, as necrológicas me parecem repetitivas.

-Neste caso não - disse Charlotte desfrutando da função. -Cortaram-lhe a cabeça de um talho no Hyde Park.

Caroline deu um pulo.

-O capitão Winthrop! Mas você não o conhecia, verdade?

-É claro que não. Mas o amigo de tia avó Vespasia, o juiz Quade, sim.

-Quer dizer que Thomas leva o caso?

-Sim - admitiu Charlotte, levantando-se da penteadeira. -É um caso realmente complicado. É possível que me inteire de algo útil. Enfim, parto.

-Já vejo.

-Por que veio, mamãe? Algum motivo especial? - Começou a procurar na gaveta superior algumas coisas que necessitava: um lenço de renda, perfume, uma forquilha para o cabelo.

-Absolutamente. Faz várias semanas que não a vejo, e pensava que possivelmente quereria me acompanhar. Pensei que podíamos jantar no Marcello"S.

-Um restaurante? - Charlotte estava assombrada. -Não em casa?

-Em um restaurante, sim. E dos melhores. Deveria provar a cozinha continental de vez em quando. Experimentar este tipo de coisas alonga muito a mente, Charlotte.

-E a cintura, suponho - disse Charlotte sem olhar a figura de sua mãe. Fechou a gaveta.

-Bobagens - resmungou Caroline. -Desde que for dar um passeio a pé ou a cavalo pelo parque de vez em quando.

-Você não monta - sorriu Charlotte.

-Claro que monto! É um exercício excelente.

-Mas se você nunca...

-Em vida de seu pai, não. Mas agora sim! - Caroline se levantou. -Enfim, já vejo que hoje está comprometida. Não estou muito certa de que um funeral seja mais interessante, mas prometeu ir e já não pode trocar de opinião. - Sorriu com carinho. -Iremos jantar outro dia, quando não tiver compromissos. - Beijou ligeiramente Charlotte na face. -De qualquer modo, céu, ponha ao menos alguma coisa branca no vestido, ou de cor lavanda se tiver. Parece uma autêntica viúva, e isso não está bem, muito tem que agüentar essa mulher. Hoje lhe toca ser o centro da atenção. A gente esquecerá depressa, e a pobre terá que passar o resto de sua vida vestida de luto, a menos que seja bonita, claro, e rica. – E esquecendo que ela mesma era viúva, Caroline saiu com um sorriso nos lábios e uma expressão de alegre otimismo.

Charlotte chegou à igreja na carruagem da Vespasia e desceu com ajuda de um lacaio. Sentia-se mais que coibida, posto que ninguém a havia convidado e não conhecia nenhum dos ali pressentes, saudando conhecidos, fazendo predições sobre o estado da sociedade, assentindo com tom grave. Tinha que achar quanto antes a Vespasia e seu amigo Thelonius. Entretanto, estava muito bonita com o vestido negro de Emily, e era consciente disso. Isso lhe dava mais confiança do que tivesse tido em uma situação similar. Inclusive o chapéu, também de Emily, assentava-lhe maravilhosamente com sua aba longa e grosseiramente assimétrica, e seu penacho de penas negras. Notou que o chapéu atraía vários olhares, de admiração nos homens, de inveja nas mulheres.

Onde se teria metido Vespasia? Não podia ficar ali indefinidamente sem falar com alguém e ter que dar explicações. Começou a olhar ao redor, em parte com genuíno interesse, mas sobre tudo para dar a impressão de que esperava a alguém. Algumas daquelas pessoas seriam amigas do finado capitão Winthrop, outras estariam ali cumprindo uma obrigação social. Seria um deles, vestido decentemente de negro, com o chapéu na mão, que lhe tinha cortado a cabeça no Serpentine?

Viu vários oficiais da armada uniformizados, de aspecto esplêndido, destacando entre a gente vestida de civil. Um homem idoso, gordo, parecia presidir a tarefa de dar as boas-vindas às pessoas. Devia ser lorde Marlborough Winthrop, o pai. A mulher que estava a seu lado, com um denso véu, era esbelta e muito rígida, mas não se distinguia por nenhuma outra coisa. Charlotte acreditou ver nela um aura de cólera, uma ira reprimida que não sabia ainda para onde dirigir. Mas bem podia dever-se a que tratava de dominar sua dor, e ao fato de saber que ainda ficava pendente uma pública resolução a uma perda muito pessoal.

Nisso estava pensando quando Vespasia chegou pelo braço do Thelonius.

Não era momento de sorrir, mas assim o fez Charlotte ao ver a Vespasia tão graciosamente acompanhada. Estava viúva desde muito antes de que Charlotte a tivesse conhecido, anos atrás, durante o grotesco assunto do Resurrection Row. E depois a morte do George a tinha afetado profundamente. Não era mais que um sobrinho neto, mas ela não tinha muita família e, além disso, tinha estado muito afeiçoada a ele. À margem da consangüinidade, ser assassinado era uma maneira horrível de morrer.

Pelo braço de Thelonius, Vespasia se mostrava serena e confiante outra vez, suas costas erguida tal como o fora anos atrás, e sua forma de levantar magestosamente o queixo dava a entender que voltava a desafiar ao mundo em geral e à boa sociedade em particular, que estava preparada para abrir um caminho em qualquer direção que decidisse tomar. Os que queriam podiam segui-la, e os outros podiam ir aonde lhes tivessem vontade.

Magro, ascético e de lacônico humor, Thelonius ia a seu lado com um rosto quase formoso graças às lembranças que o iluminavam enquanto a conduzia entre a multidão. Cada vez chegava mais gente, desejosa de estar presente naquela ocasião, compassiva ou reverente, dando-se importância ou esperando algum escândalo.

Vespasia olhou para Charlotte apreciativamente, mas sem dizer uma palavra. Thelonius lhe sorriu e inclinou a cabeça, e os três juntos foram para a igreja, onde a lânguida música de órgão estava criando já uma atmosfera de morte e de algo próximo à podridão.

Charlotte estremeceu. Como outras vezes, seus pensamentos derivaram para a anômala situação de pessoas que acreditavam em uma gozosa ressurreição reunindo-se para formalizar o passo de alguém - a quem a maioria conhecia só levemente - de um vale de lágrimas a um reino de luz. Dizia muito pouco da estimativa de seus méritos o que o fizessem com tão irracional melancolia. Algum dia perguntaria a um pároco por que era assim.

Um meirinho de grosas costeletas lhes indicou com pressa seu desejo de que se movessem para os bancos respectivos. Ia trocando nervosamente o peso da perna.

-Senhor! Senhora... se me permite.

Thelonius lhe entregou seu cartão.

-É claro. - O meirinho assentiu com a cabeça. -por aqui, se forem amáveis. - E sem esperar para ver se o seguiam, dirigiu-se para o lugar atribuído. De caminho, Charlotte olhou para a direita e viu o rosto de Emily cheia de surpresa seguida de entendimento, não sem um vislumbre de prazer.

Vespasia e Thelonius ocuparam seus postos e, com mais pressa que graça, Charlotte ocupou o seu ao lado deles.

A música mudou de tom e se fez o silêncio. O ofício acabava de começar. Durante seu transcurso foi impossível a Charlotte voltar a cabeça para observar os rostos de quem tinha atrás, e os de frente lhe ofereciam tão somente as costas. Para não atrair uma desnecessária atenção para sua pessoa, inclinou a cabeça em oração e levantou os olhos para observar ao vigário e escutar seu tom sepulcral quando fez o elogio a Oakley Winthrop, como se este fosse um santo recém falecido, exortando a todos os pressentes a serem dignos de seu excelente exemplo. Charlotte não se atreveu a olhar a Vespasia se por acaso ela captava seu olhar e lhe lia o pensamento, não só sobre o finado, mas também sobre os afligidos.

Depois a coisa foi muito diferente. Todo mundo se levantou e desfilou para o ensolarado exterior murmurando o que for que considerassem apropriado, e então ela começou a investigar firme. Lorde e lady Winthrop eram fáceis de localizar pelo movimento da gente, à forma de diminuir o passo quando chegavam a eles, a pressa súbita, o apuro momentâneo e finalmente a liberação ao afastar-se deles.

Outro grupo, este menor e não tão diferente, movia-se sem ordem nem concerto ao redor de uma figura alta, rígida e esbelta. A mulher levava um véu muito diáfano e parecia estranhamente jovem e vulnerável. Charlotte deduziu que era a viúva.

Teria lhe encantado ver a expressão de seu rosto, mas o véu a impedia.

-É a senhora Winthrop? - perguntou a Vespasia.

-Acredito que sim.

-E o homem que está atrás?

-Ah, sim. - Vespasia assentiu levemente. -Um rosto difícil de esquecer. Olhar transparente, inteligência considerável, em minha opinião. Quem é, Thelonius? Um parente, um admirador?

Thelonius parecia divertido.

-Lamento-o, querida, a resposta é muito vulgar. É o irmão dela, Bartholomew Mitchell. Um homem de caráter irrepreensível, nem presunçoso nem empolado, conforme ouvi dizer. Retornou recentemente do Matabeleland. O mais longínquo a um suspeito que se possa achar.

-Mmm - Vespasia ficou pensativa.

-Mas há um homem do que não se pode dizer outro tanto. - Charlotte olhou para o personagem que sorria ao receber conhecidos por toda parte. -Esse sim é um homem presunçoso onde os haja. Quem é? - Compreendeu muito tarde que devia ser um amigo do Thelonius. -Quero dizer... - Calou. Já não podia arrumá-lo com palavras.

Vespasia mordeu o lábio reprimindo um sorriso.

-Merece que te diga que é um bom amigo – respondeu. -Entretanto, soube que é um possível candidato ao Parlamento, de fato enfrentará Jack nas eleições parciais. Chama-se Nigel Uttley.

-OH. - Charlotte pensou um momento antes de continuar. Observou Uttley avançando entre a gente, ainda risonho, até que chegou a Emily e Jack, momento em que sua expressão de afabilidade se converteu em máscara, deixando somente o semblante exterior. Era impossível saber no que era diferente, salvo que agora sua expressão carecia de vida. Não estavam bastante perto para que Charlotte pudesse ouvi-los, mas pareciam trocar trivialidades.

Emily estava tão bonita como sempre. O negro assentava muito bem à sua tez clara, e tinha um brilho interior como se estivesse esperando a que terminasse o ofício a fim de ir a algum lugar excitante. Dava a impressão de que o negro de seu traje podia explodir de repente em um sem-fim de cores.

-Acredito que deveríamos render nossos respeitos à viúva - disse Vespasia com decisão. Sorriu ao Thelonius. -Seria amável, querido, de nos apresentar?

Thelonius hesitou, sabendo perfeitamente quais eram suas intenções, embora não estivesse seguro do que esperava conseguir ela.

Vespasia se adiantou a sua decisão com um encantador sorriso de gratidão e pôs-se a andar decidida para Mina Winthrop.

Thelonius ofereceu o braço a Charlotte e a seguiram.

Mina aceitou suas condolências com elegância. Em todo momento Bart Mitchell esteve a seu lado, em silêncio salvo para o que ditava a cortesia.

A primeira impressão de Charlotte não fez senão reafirmar-se. A mulher era muito frágil, e inclusive através de seu véu era possível perceber a palidez de sua pele.

-São muito amáveis por ter vindo - disse. -Todos o agradecemos. Oakley tinha muitos amigos. – Sorriu. -Confesso que a muitos não os conhecia. É comovedor.

-Estou certa de que comprovará o muito que seu marido era estimado por todos - disse Vespasia com uma ambigüidade que talvez não pretendia mostrar.

-Certamente - acrescentou rapidamente Charlotte. -Às vezes as pessoas só expressam sua verdadeira preocupação em momentos como este. Surgem muitos sentimentos dos quais não fomos de todo conscientes.

-Conhecia você ao capitão Winthrop? - perguntou Bart Mitchell olhando a de cima abaixo.

-Não - respondeu Vespasia por ela. -Minha sobrinha veio para me servir de apoio.

Bart inspirou fundo, presumivelmente para perguntar até que ponto conhecia ela ao finado, mas ao captar o olhar da Vespasia mudou de opinião. O que tivesse sido uma pergunta razoável dirigida ao Charlotte, teria sido uma rabugice dirigida a Vespasia.

Charlotte agradeceu o estorvo, mais ainda havida conta do que implicava sua relação no assunto. Escapou-lhe um sorriso mais que inapropriado.

-Vão servir um pequeno lanche - disse Mina. -Quer nos acompanhar, lady Cumming-Gould?

-Eu adoraria. Possivelmente tenhamos oportunidade de nos conhecer todos um pouco mais.

Era um oferecimento pelo que muitas debutantes e aspirantes à boa sociedade teriam vendido suas pérolas. Mina podia não ter percebido o insólito do convite, mas percebia instintivamente seu valor.

-Obrigada. Será um verdadeiro prazer.

Vespasia tinha conseguido o que se propunha, e a etiqueta exigia que se retirasse para deixar que outros fossem render seus respeitos à viúva. Apenas se tinham afastado alguns metros quando toparam com lady Winthrop. Ela murmurou algo para lhes agradecer sua presença e Thelonius respondeu que se veriam no lanche.

-Seriamente? - disse lady Winthrop com certa surpresa e o rematou com um gélido sorriso. -Me alegro de que Wilhelmina os haja convidado. Estou encantada de que possam vir. - Mas o olhar que lançou a sua nora não foi precisamente de aprovação.

Bart Mitchell se aproximou um pouco mais a sua irmã, e seus olhos, quando olhou a Evelyn Winthrop, estavam cheios de prevenção.

-Que interessante - disse Vespasia quando estiveram sós na carruagem de Thelonius a caminho, não da casa do Oakley Winthrop, mas sim da de seus pais. -Com quanta freqüência a dor divide uma família. Qual será o problema, neste caso?

-Com muita freqüência, boa parte dessa dor é cólera, querida – observou Thelonius, que ia sentado em frente a ela, de costas ao cocheiro e com os dedos fechados sobre o punho de sua bengala. -Uma pessoa experimenta solidão, ressentimento pelo doloroso da situação, culpa por tudo aquilo que não fez ou disse e medo ante a enormidade da morte. Não se pode fazer nada contra ela. Essa cólera pode voltar-se contra aqueles a quem deveria estar mais perto. A pessoa costuma sentir-se isolada em sua perda, como se ninguém mais sofresse tanto como eles, ou como se não sofressem o suficiente.

Vespasia lhe sorriu com gentileza e calor.

-Tem toda a razão. Mas não pude evitar pensar que possivelmente lady

Winthrop sabe ou suspeita algo que desconhecemos.

Thelonius começava a divertir-se. Escorou-se para rebater o inclinação brusca da carruagem quando dobraram uma esquina e se endireitou de novo.

-Sim, é possível que saiba alguma coisa, mas duvido que inclusive ela possa suspeitar algo que você não tenha imaginado já - disse.

Vespasia teve a elegância de ruborizar-se levemente mas seguiu destemida.

-Com efeito - disse com secura. -O que sabe do casal Winthrop? Confesso que jamais tinha ouvido falar deles. Quem são os Mitchell?

Charlotte os olhou alternativamente.

-Gente muito comum, acredito - respondeu ele. -Evelyn Winthrop o considerou um enlace menos que satisfatório. Wilhelmina não tinha nada que oferecer salvo ela mesma e um pequeno dote. Quanto ao Bartholomew Mitchell, foi a África quando a guerra do 79 contra os Zulúes, e passou estes últimos onze anos seja na África meridional seja no Mashonaland ou algum lugar parecido. Para começar é soldado. E suponho que também aventureiro. - Uma sombra de diversão cruzou por seu rosto. -Mas nem por isso é pior, claro está. O certo é que não fez com que sua irmã subisse pontos com vistas ao matrimônio.

-Então o capitão Winthrop estava apaixonado? - disse Vespasia com um tom de surpresa.

Ele a olhou muito sério.

-Tomara pudesse dizer tal coisa, mas acredito que foi mais uma questão prática. Não lhe faltavam pretensões, mas foram mais no sentido da carreira naval e o poder pessoal. Os Winthrop não são muito... - Se deteve ao não achar uma palavra que não soasse tosca.

-De bom berço? - sugeriu Charlotte.

-Nem sequer isso - respondeu ele com humor.

-Mas não estavam relacionados com toda classe de gente?

-Querida, se uma pessoa distinta tem doze filhos, não é difícil que em algumas gerações a metade dos Home Counties tenha algo que ver com ela - indicou Vespasia. Voltou-se para Thelonius. -usemos o termo "prático". Foi um matrimônio de conveniência? Há filhos?

-Acredito que dois ou três, todas filhas. Alguém morreu muito jovem, as outras duas se casaram recentemente.

-Casado! - Charlotte não saía de seu assombro. -Mas se ela parece...

-Tinha dezessete anos quando se comprometeu com Oakley, e suas filhas casaram a uma idade parecida.

-Entendo. - figurou-se a um homem decepcionado por não ter filhos varões, embora talvez estivesse sendo injusta. Por que se tinham casado as duas tão jovens? Por amor? Por aquilo de aproveitar uma primeira oportunidade remotamente aceitável? Como teria sido aquela família a porta fechada, isenta das cortesias habituais?

Não houve tempo para mais especulações porque tinham chegado a casa de lorde e lady Winthrop. Desembarcaram da carruagem, sendo recebidos pelos criados de luto rigoroso, que os conduziu a uma ampla sala de recepção com uma mesa coberta de um delicioso jogo de mesa e esplêndida comida. Os talheres de prata reluziam discretos sob os lustres de luz, totalmente acesas apesar do dia ensolarado, pois as cortinas estavam meio corridas e as persianas descidas em sinal de luto. A mais conspícua ornamentação da sala eram uns molhos de lírios brancos, e o enjoativo perfume dos mesmos fazia pensar em uma estufa.

-Céus! Parece a casa do coveiro - disse Vespasia baixo, ao mesmo tempo que sorria ao ver o Emily e Jack Radley. -Não quero nem saber como devia ser o enterro! Olá, Emily, querida. Está fascinante, e transbordante de saúde pelo que vejo. Como está Evangeline?

-Crescendo, e se comporta muito bem - disse Emily com orgulho. -É um amor.

-Que surpresa! - Vespasia não quis dissimular seu bom humor. -Jack, que tal caminha sua campanha? Quanto falta para as eleições?

Jack tinha ganho postos na boa sociedade graças a seu aspecto e a seu muito considerável encanto antes de casar-se com Emily, mas Vespasia era uma pessoa com quem não teria ousado mostrar-se mais que absolutamente sincero. Sabia que tinha sido tia avó do finado George, e embora não tinha a menor duvida de que Emily o amava, em seus piores momentos ainda andava à sombra com George. Também este tinha sido bonito, com o encanto próprio de quem nasceu em bom berço. Que seus lucros pessoais não tivessem sido maiores se deveu só a sua morte prematura.

-Dentro de cinco semanas, lady Cumming-Gould - respondeu com seriedade. -Acredito que o governo o anunciará muito em breve. E quanto à campanha, não as tenho todas comigo. Meu adversário é muito forte.

-Seriamente? Sei muito pouco dele.

-Nigel Uttley - disse ele, observando-a para ver se desejava mais informação ou se simplesmente conversava por cortesia. Devia pensar o primeiro, pois passou a descrevê-lo-. Tem um pouco mais de quarenta anos, é o caçula de uma família da alta sociedade embora não muito relevante. Vem apoiando ao governo a muito tempo, e para falar a verdade eles esperam que ganhe. - Fez expressão triste. -Acredito que lhe deram esta oportunidade em recompensa por sua lealdade no passado.

-No que acredita? - perguntou com seriedade.

-Em si mesmo! - riu ele.

-Em que base então sua campanha? - corrigiu ela com um sorriso.

-Em restaurar os velhos valores que nos fizeram grandes - disse Jack. –Em concreto, impor a lei e a ordem nas cidades, modificar o corpo de polícia para que seja mais eficiente, sentenças mais duras para os criminosos...

-E a questão irlandesa? - inquiriu Vespasia.

-OH, não! - preparou-se a dizer Jack. -Não é tão idiota para meter-se em tais vespeiros! Isso foi o que fez cair Gladstone, e o mais provável é que acabe com todo aquele que apóie o auto-governo, que no fim de contas é a única solução.

Um grupo de cavalheiros de avançada idade passou por seu lado murmurando em voz baixa, olharam ao Thelonius, saudaram com a cabeça e seguiram seu caminho. Um oficial uniformizado falou muito forte em meio de um silêncio imprevisto e se ruborizou.

-Ao Uttley não há ninguém que lhe faça pronunciar-se sobre os grandes temas - continuou Jack. -Executaria tão tranqüilo a uns quantos fenianos e pronunciaria discursos contra a anarquia, mas isso podemos fazê-lo todos.

-É muito crítico com a polícia - apontou Emily olhando de esguelha a Charlotte. –Eu odeio - acrescentou alegremente.

-Querida, eu não estou surpreso com tudo. - Jack a rodeou com o braço. -Mas estou de acordo em que é uma excelente causa. E me dá uma base sólida sobre a qual me opor. – Suspirou. -Claro que este último assassinato não ajuda muito. Parece o segundo lunático que anda solto em Londres em dois anos, e ao primeiro não apanharam.

Emily olhou a sua irmã inquisitivamente.

-Sim - admitiu Charlotte.

-Thomas leva o caso? - perguntou Jack. -Se soube algo? É impossível perguntar à família, embora lorde Winthrop não pára de resmungar...

-Eu não acredito que seja um louco - replicou Charlotte, baixando muito a voz. -Pelo que sabemos até agora, é indubitável que foi um crime pessoal. Por isso estamos aqui, para ajudar ao Thomas.

-Ele não sabe? - perguntou Jack.

-Não seja tolo - disse Emily. -Diremos quando tivermos alguma informação interessante. Que será muito em breve. - De uma só frase, incluiu-se na tarefa. Vespasia percebeu, mas não fez o menor comentário.

Não puderam continuar falando porque Nigel Uttley em pessoa se aproximou. Não era tão alto como Charlotte tinha pensado ao vê-lo de longe, mas seus olhos azuis eram penetrantes e desprendia uma energia interior que a princípio ficava dissimulada por suas maneiras despreocupadas e uma segurança em si mesmo que dissimulava o esforço.

-Boa tarde, lady Cumming-Gould - disse fazendo uma ligeira inclinação. -Senhoria - disse ao Thelonius, dirigindo-se a ele como se estivesse no tribunal. -Senhora Radley... - Esperou que apresentassem à Charlotte.

-Minha irmã, a senhora Pitt - disse Emily.

-Encantado de conhecê-la, senhora Pitt. - Inclinou a cabeça levemente. - É muito amável acompanhando aos Winthrop neste momento de angústia. E temo que à medida que passem os dias a situação vai ser ainda pior. Tomara a polícia seja bastante competente para apanhar a esse desgraçado, mas o fato mesmo de que tão espantoso crime tenha podido acontecer no centro de Londres indica o lamentável estado em que temos caído. Embora melhoraremos a partir das eleições. - Olhou sorrindo ao Jack, mas a seriedade subjacente de sua afirmação era mais que evidente.

-Não sabe quanto me alegro - disse Charlotte com um tom azedo na voz e uma expressão pretendidamente séria. -Seria estupendo que estas coisas não voltassem a acontecer. Toda Londres lhe estaria agradecida, senhor Uttley, por não dizer toda a Inglaterra.

Uttley a olhou surpreso e arqueou suas loiras sobrancelhas.

-Obrigado, senhora Pitt.

-E como pensa fazê-lo? - prosseguiu ela observando-o com interesse.

Ele a olhou por sua vez, momentaneamente talhado.

-Bom, eu...

-Sim? - animou-lhe ela. -Mais agentes? Possivelmente uma patrulha noturna? Seria uma ofensa para a privacidade, temo. - Deu de ombros. –Claro que isso só preocuparia aos que estivessem fazendo algo que prefeririam passasse desapercebido.

-Não acredito que a resposta seja pôr patrulhas no parque - disse ele, aliviado de ter uma proposta concreta que denegar. -O que precisamos é maior efetividade quando há um crime, e assim a pessoa procurará não transgredir a lei.

-Talvez tenha razão - concedeu ela. -Alguém de sua perícia, de sua inteligência, seria a resposta adequada.

-Obrigado, senhora Pitt. É muito gentil, mas eu já tenho minha própria carreira.

-Como parlamentar se deseja.

-Se ganho - disse ele com um amplo sorriso, olhando de esguelha ao Jack.

-Mas antes de que chegue esse momento, senhor Uttley, poderia você nos conceder o benefício de saber o que proporia. O que faz alguém dotado de perspicácia e capacidade, de conhecimento da natureza humana e da sociedade, o que faz essa pessoa para apanhar a alguém que cometeu um espantoso crime?

Uttley pareceu incômodo outra vez, mas seu rosto se relaxou em seguida. Emily olhou ao Jack. Nem Vespasia nem Thelonius se moviam.

-Já se sabe que é muito difícil capturar a um louco, senhora Pitt - disse Uttley ao fim. -Só necessitamos que a polícia seja mais diligente, mais homens que trabalhem duro e que saibam melhor o que está passando, os elementos estranhos ou perigosos que pululavam em cada zona.

-E se não for um louco? - respondeu ela.

Mas desta vez ele estava preparado.

-Então necessitamos homens que tenham influência para levar o caso! Homens que possam suscitar a lealdade daqueles que têm poder em suas próprias esferas de atuação. - Falava cada vez mais seguro. -Suponho, senhora, que não será necessário que lhe explique com mais detalhe algo que deveria ficar entre nós.

Charlotte teve a súbita sensação de que sabia muito bem o que ele queria dizer. Olhou de esguelha ao Jack e viu que crispava as feições. Thelonius Quade trocou o peso de perna, um pouco mais pálido que antes.

O sorriso do Uttley voltava a ser radiante.

Charlotte ouviu sua própria voz lançando-se às cegas, quando sabia que possivelmente teria sido melhor não falar.

-Refere-se a que não está certo de que agora sejam leais, senhor Uttley?

O candidato dissimulou sua exasperação, esforçando-se por manter um tom cortês.

-Não, senhora Pitt, é claro que não. Refiro a gente que... - Não achou a palavra. -Outros poderes, uma influência que possivelmente não tinham pensado exercitar exatamente nessa forma. Um sentido da responsabilidade cívica e social mais profunda que o mero dever. - Seu rosto se relaxou, agradado pelo modo em que se explicou.

Na sala crescia o murmúrio da conversa. Ouvia-se entrechocar de copos e o discreto murmúrio dos criados oferecendo comida e vinho.

-Entendo - disse Charlotte. -Uma espécie de tácito entendimento no sentido de revelar certa informação que neste momento não revelariam. Uma mudança de lealdade?

-Não! - Uttley começava a acalorar-se. -Absolutamente! Interpretou-me mau, senhora Pitt.

-Quanto o sinto. - Tratou de parecer penalizada, em vão. –Possivelmente teria que me explicar isso outra vez. Acredito que sou um pouco lenta.

-Pode ser que o tema não lhe seja familiar - disse ele entre dentes, com um sorriso quase imperceptível. -Não é coisa que se preste a muitas explicações.

Charlotte baixou a vista, depois olhou ao Jack.

Jack sorriu, uma expressão encantadora e carente de malícia, mas sob sua aparente tranqüilidade estava muito atento.

-Terá você que fazê-lo melhor na campanha eleitoral se não quiser confundir aos votantes como tem feito com a senhora Pitt - observou com tom ligeiro. –Não quererá que ninguém pense que está advogando por uma espécie de sociedade secreta.

A cor abandonou as faces do Uttley e sua boca se endureceu. Vespasia observou-o. Thelonius engoliu em seco. Emily esperava os acontecimentos, olhando de um ao outro.

Caiu de alguém um copo no outro extremo da sala.

-Tolices, Jack! - disse Charlotte. -Como se pode advogar por uma sociedade secreta em uma carta eleitoral? Assim não seria muito secreta, digo eu. - Olhou ao Uttley. -Não é certo?

-Sim - respondeu ele a contra gosto. -É claro. Esta conversa está sendo muito absurda. Eu só estava dizendo que se os altos cargos da polícia fossem como devem ser haveria um maior respeito por parte de certas pessoas, respeito e cooperação. Eu acredito que até o mais ingênuo pode compreender o que digo.

-Eu sim posso - disse Charlotte zombando de si mesma.

Uttley teve a dignidade de ruborizar-se, balbuciou uma desculpa e logo ficou calado.

-Que classe de pessoa seria a ideal? - Charlotte não retrocedia em seu empenho. -O problema com os cavalheiros é que possivelmente custam detectar delitos comuns como o roubo ou a falsificação. - Olhou ao Uttley. -Ou seria conveniente ter duas espécies de polícia, uma para os criminosos comuns e outra para os mais especiais? Mas há um obstáculo: como saber que delito cometeu cada qual?

Uttley a olhou com dureza.

-Se me permite dizê-lo, senhora, isto ilustra de forma excelente por que as mulheres são tão idôneas para fazer do lar um lugar de beleza artística e espiritual, onde educar aos filhos e dar ao homem os recursos com os quais liberar as batalhas do mundo e ocupar-se dos exaustivos assuntos das finanças. Vocês têm um cérebro diferente, e assim o quis a natureza, e Deus mesmo, para o bem da humanidade. - Sorriu sem indício de humor, tão somente um automático franzir de lábios-. E agora, se me desculpar, tenho que falar com algumas pessoas mais. Vejo que ali está Landon Hurlwood. Foi um prazer conhecê-los, lady Cumming-Gould, senhor Quade, senhora Pitt. - E sem lhes dar ocasião a responder, fez uma inclinação e deu meia volta.

Charlotte soltou um ligeiro grunhido de fúria.

-Já vê, querida - disse Emily com aspereza. -Vá para casa costurar, assar o pão e não pense muito. Não é próprio de mulheres, e além seu cérebro não está feito para isso.

-Pois claro que o está! - disse Jack, abraçando impulsivamente Charlotte. -Escutando-a é claro que o debate político é um de seus talentos inatos. Se o fizer a metade de bem, acabarei com o Uttley.

-Fará dele um poderoso inimigo - disse Thelonius em voz baixa. -Não é homem que se deixe zombar facilmente. Mas vencê-lo nas eleições já é outro cantar. As pessoas rirão com você, mas não precisamente porque entendam o que quer dizer. E me acredite, sua ameaça não era em vão. Não há dúvida de que é membro do Círculo Interno, e irá a eles para derrotá-lo se achar necessário.

Jack deixou de sorrir e se afastou de Charlotte.

-Sei. Mas eu não aceitaria ser primeiro-ministro em troca de me unir a eles.

-Pode ser que não chegue a nada, em caso contrário - lhe advertiu Thelonius. -Não é para que se una a eles, a não ser simples realismo. - Seu olhar se tornou penetrante. -Mas te dou minha palavra de que se não o fizer, eu o apoiarei em tudo o que possa, se é que em algo posso lhe ser útil.

-Obrigado, senhor. Aceito.

Emily lhe apertou o braço com força.

Vespasia se aproximou do Thelonius. Havia em seus olhos um brilho que podia ser de orgulho, ou talvez simples afeto.

Charlotte observou ao Nigel Uttley aproximando-se da alta figura do Landon Hurlwood, que virou-se e lhe sorriu ao lhe reconhecer, como se visse um velho amigo. Uttley disse algo, mas ela não pôde ouvir suas palavras. Hurlwood sorriu assentindo com a cabeça. Ambos saudaram alguém que passava e logo reataram a conversa. Uttley riu, e Hurlwood pôs sua mão no ombro do outro.

Deixaram de falar em privado quando lorde Winthrop pediu silêncio para fazer um breve discurso de gratidão a quem tinha ido honrar a memória de seu filho, elogiando as excelências do finado para expressar a seguir que sua perda tinha sido um duro golpe para a família, para os amigos e, não se privou de dizê-lo, para o país.

Houve murmúrios de assentimento, assim como diversas expressões de problema.

Charlotte olhou à viúva com discrição, tirara o véu e estava muito pálida, com o queixo alto, ao lado de seu irmão. Seus traços mostravam serenidade, quase beleza em seu repouso, mas pareciam desprovidos de toda expressão. Estaria ainda dura pela dor? Era acaso uma mulher desapaixonada que nem sequer se comovia com a morte de alguém tão ligado a sua vida? Tinha possivelmente um domínio quase sobrenatural que lhe permitia ocultar seu eu interior? Ou havia outras emoções em conflito que se anulavam mutuamente, que a assustavam até o ponto de não atrever-se a mostrar nada por medo a trair-se?

O único vislumbre de que tinha prestado alguma atenção a seu sogro o viu Charlotte quando sua pálida mão se moveu devagar à altura da saia negra para pegar a mão grande e forte de seu irmão Bart.

Tampouco o rosto do Mitchell se deixava interpretar com facilidade. Seus olhos muito azuis e claros estavam fixos nos de lorde Winthrop, mas não havia neles a menor brandura e tampouco nada que pudesse tomar-se por aflição. Sua mão segurou com firmeza a de Mina.

Então outra mulher captou a atenção do Charlotte, seu cabelo loiro brilhava à luz, e a expressão de seu formoso rosto era de extasiada atenção. Lorde Winthrop não teria podido desejar um público mais derrubado, ou ninguém que parecesse identificar-se tanto com ele.

-Quem é? - perguntou Charlotte à Emily em voz baixa.

-Não tenho nem idéia. Vi-a antes com a viúva Winthrop e pareciam muito afeiçoadas, e certamente íntimas. Suponho que será uma amiga da família.

-Não parece que compartilhe os sentimentos da viúva, ou a falta deles.

-Possivelmente tinha mais carinho ao finado que a própria viúva – sugeriu Emily. -Poderia ser a que anda procurando. Ou a que está procurando Thomas.

-Uma amante?

-Ssh. - Uma mulher magra que estava diante delas se voltou e as olhou com cenho.

Emily levantou ligeiramente um ombro e lhe devolveu o olhar. A mulher soprou.

-Há pessoas que não sabem comportar-se! - disse para que Emily e Charlotte ouvissem.

-Ssh - pediu silêncio uma mulher que estava a sua esquerda.

-Vá! - grasnou a primeira, indignada.

Lorde Winthrop finalizou seu discurso e os lacaios começaram a passar entre as pessoas com bandejas de um madeira, doce e densa. Chegaram mais com vinho branco para as damas ou limonada para quem o preferisse.

Emily fez uma careta e pegou um copo de vinho branco. Charlotte hesitou, optando pela limonada. Precisava ter a cabeça limpa, não tinha ido para se divertir!

-Tenho que conhecer essa loira - disse muito séria. -Como podemos fazê-lo?

-Não me ocorre uma forma decorosa -disse Emily. -Eu iria ao ponto e nada mais.

-Como?

Em vez de explicá-lo, e dar a Charlotte ocasião de negar-se, Emily fez uma demonstração do que queria dizer. Desculpando-se ao passar entre um grupo de homens que falavam de seus dias no mar e do que recordavam ou não recordavam do Oakley Winthrop, aproximou-se da Thora Garrick. Charlotte lhe seguiu os passos.

-Senhora Waters! - exclamou Emily. -Não sabe quanto esperava a ocasião de voltar a vê-la, claro que não nestas circunstâncias! Como está você?

Thora parecia assustada. Olhou Emily com alarme e logo, ao ver seu rosto sorridente e alegre, com perplexidade.

-Temo que se confunde. Meu nome é Garrick. Meu marido era Samuel Garrick, tenente de navio na Armada Real. Terá ouvido falar dele.

-Meu deus, quanto o sinto - se desculpou Emily. -Cometi um lamentável engano. Céus, acredito que me falha a vista. Certamente que você não é ela. Claro, a senhora Waters é mais baixa e muito maior que você, embora é claro ela não me agradeceria por este comentário, assim confio que não o diga nunca. Suponho que é porque ela também tem uma cútis maravilhosa.

Thora se ruborizou de satisfação e incerteza.

-Rogo-lhe me perdoe, senhora Garrick - disse Emily, agarrando Charlotte pelo braço. -Conhece a minha irmã, Charlotte Pitt? Não, claro que não, em tal caso ela me teria evitado este ridículo.

-Como está você, senhora Pitt - disse Thora nervosa.

-OH. Agora que penso, se você não é a senhora Waters, então tampouco

me conhece . Meu nome é Emily Radley. É um prazer havê-la conhecido, bom, em caso de que você me considere conhecida dela...

-É claro. Estou encantada - disse Thora como única resposta possível.

Emily sorriu de orelha a orelha.

-Que gentileza de sua parte! Sobre tudo em um momento como este. Conhecia você bem ao pobre capitão Winthrop, ou é inoportuno perguntá-lo?

-Absolutamente - afirmou Thora. -Embora o conhecia há tempo. Serviu com meu finado marido, que era um homem muito extraordinário, como foi o capitão Winthrop. Ambos sobressaíam em toda classe de campos, tanto do corpo como da mente. Ambos tinham um profundo sentido do dever. Não sei se me entende.

-OH, é claro - se apressou a dizer Emily. -Há homens que jamais se separam do caminho correto, por mais tentações que lhes surjam ao passo.

O rosto da Thora se iluminou de repente.

-Exatamente. Vejo que me entendeu. No mar terá que ser inflexível. Os enganos podem custar vidas. Meu pobre Samuel sempre o dizia. Queria que as coisas se fizessem na hora. O capitão Winthrop era igual. Eu admiro os dotes de comando em um homem, você não? Como acabaríamos se todos fôssemos à boa de Deus, confiando em que a intuição solucionasse as coisas, como eu mesma tenho tendência a fazer em muitas ocasiões.

-Todos artistas, suponho - disse Emily, franzindo um pouco o sobrecenho. –E muito pouco confiáveis. Imagino que apreciava você muito ao capitão, se tinha tantas qualidades em comum com seu finado marido.

-Tinha-lhe em grande consideração - concedeu Thora, mas houve em sua resposta um muito ligeiro matiz de culpa. -De fato era o padrinho de meu filho, sabe você. - Sorriu virando um pouco à esquerda para indicar a um jovem com o mesmo cabelo loiro que ela, mas a semelhança superficial ficava oculta pela diferente expressão. Nela a visionária delicadeza era uma serena certeza, como se pudesse ver, mais à frente do presente, uma verdade superior em que acreditava de pé juntos. Nele havia ainda busca, a dor da culpa estava marcada em seus olhos e seus lábios. Ficava muito longe do refúgio de sabedoria em que ela parecia estar.

Naquele momento o jovem se achava em uma zona limpa sustentando um violoncelo em uma mão e um arco na outra.

-É ele - disse Thora em voz baixa.

-Vai tocar, seu filho? - perguntou Charlotte com interesse. Estava muito longe da imagem de um severo e dogmático oficial.

-Mina Winthrop o pediu - disse Thora. -Meu filho toca muito bem, mas acredito que ela o pediu porque Victor a tem em grande estima e sei que isso alivia sua tristeza ao poder contribuir de algum modo à ocasião.

-Uma gentileza por parte dela - observou Emily. -É extraordinário que em momentos assim mostre tanta sensibilidade para os sentimentos de outro. É de admirar.

-Com efeito - apostilou Charlotte. -Eu mal a conheço, mas sinto já afeto por ela.

-Apresentarei-as como é devido - disse Thora. -depois da música... – Calou ao notar que se fazia o silêncio e todo mundo olhava ao Victor, possivelmente mais por cortesia que por desejos de escutar.

Não obstante, quando ele aplicou o arco às cordas um estremecimento pareceu cruzar o ar e aquele som de extrema solidão fez que o que tinham sido boas maneiras se convertesse em absoluta concentração. Victor não lia uma partitura, mas sim tocava de cor, e parecia tirar a música das profundidades de uma angústia que lhe era própria.

Charlotte olhou à viúva e viu que esboçava um sorriso ao ouvi-lo tocar. Era uma peça dilaceradora, entretanto mais que lhe arrancar lágrimas parecia encher-la de serena gratidão. Possivelmente já tinha chorado tudo o que tinha por chorar. Ou estava ainda emocionada pela perda.

Lorde Winthrop, pálido, dava a impressão de que lhe custava reprimir suas emoções. Lady Winthrop o tentava sem sorte. Tinha o rosto inundado em lágrimas. Uma ou duas mulheres se aproximaram um pouco para protegê-la ou lhe dar certo suporte com sua pura proximidade física.

Thora Garrick, que estava ao lado de Charlotte, permanecia rígida e com o rosto brilhante de orgulho, como se estivesse escutando um toque de corneta em um funeral militar e não um lamento lírico para violoncelo só.

-Tem talento - disse Charlotte quando a última nota se extinguiu. -Toca com verdadeira inspiração.

-Confesso que nunca lhe tinha ouvido tocar tão bem - concedeu Thora. -Embora a maioria das vezes só o ouvi ensaiar. Tinha muito afeto ao capitão Winthrop. Oakley era muito parecido a seu querido pai, que morreu no cumprimento de seu dever faz vários anos. - Sua voz estava prenhe de emoção, seu olhar perdido na distância.

-O pobre Victor tinha só dezessete anos. Para um moço é terrível crescer sem pai, senhora Pitt. - Franziu o sobrecenho. -Terrível. O poder do exemplo é realmente grande, não acha? E é algo que uma mãe não pode dar a um menino embora o proponha. A dignidade, a honra, a desinteressada dedicação ao dever, o domínio da gente mesmo.

Charlotte nunca o tinha considerado nesses termos. Não tinha tido irmãos varões, e seu filho Daniel era muito pequeno para pensar nessas coisas.

Thora não parecia esperar uma resposta.

-O pobre Oakley lhe deu tudo isso na medida em que foi capaz. Sempre o estava animando, lhe contando histórias do mar, e é claro, se Victor tivesse querido, Oakley lhe teria ajudado a conseguir um grau de oficial. - Uma sombra de irritação cruzou por seu rosto.

-Devia querer você muito ao capitão Winthrop - murmurou Charlotte.

-OH, certamente - disse Thora com franqueza. -É inevitável, parecia-se tanto a meu pobre Samuel. As mulheres admiram aos que são como eles, não lhe parece? E eu me considero afortunada de ter tido a estima de dois homens assim em minha vida. Samuel se esforçava por nós. Devo recordar-lhe ao Victor, do contrário temo que com o tempo possa esquecê-lo.

Em outro caso, Charlotte teria tomado as observações da Thora como um indício de que sua relação com os dois homens tinha sido similar, mas havia tanta inocência em seu olhar que não acreditou que tivesse havido mais que uma admiração idealista.

Mas sabia Mina Winthrop? Podia ser que tivesse interpretado como amor tão ardente sentimento? Era, debaixo daquele frágil e frio exterior, uma mulher ciumenta? E o que dizer de seu irmão? Charlotte procurou Bart Mitchell com o olhar. Demorou apenas um momento em localizá-lo, estava a sós quase na sombra de uma das grandes colunas em que se apoiava uma pequena galeria contigüa à sala. Seus olhos, aparentemente, estavam fixos em Thora Garrick.

Equivocava-se Charlotte interpretando esse olhar como inocente? Teria sido aquela admiração muito embriagadora para que a vaidade do capitão Winthrop pudesse resistir? Era consciente disso Bart Mitchell?

Thora lhe tocou ligeiramente o braço.

-Vou apresentar lhe a Mina - disse em voz baixa enquanto soavam aplausos depois da segunda peça interpretada por Victor. -Estou certa de que a achará encantadora. É tão abnegada, sabe.

Efetivamente Mina Winthrop era muito afável, e pareceu agradada de conhecer Charlotte de um modo menos rotineiro que na vez anterior. E poucos momentos depois já estavam falando de mobiliário e decoração, tema no que Mina parecia estar muito em dia.

Não foi senão meia hora, depois de ter provado a excelente comida que abarrotava a mesa de carvalho maciço e o aparador, quando Charlotte se reuniu com Emily.

-Soube algo? - perguntou esta. -Quero dizer algo valioso.

-Acredito que não - respondeu Charlotte. -Impressões, nada mais. Não pude evitar que simpatizasse com Mina Winthrop.

-O que, por desgraça, não a exonera de culpa. Além de que algumas das pessoas mais tediosas e mais farsantes podem ser tão puras como o dia. Ao menos no referente ao crime que nos interessa. Claro que, indiretamente, podem ter sido origem de toda classe de catástrofes.

-Não quero entrar no tema da culpa e a inocência - replicou Charlotte. -Embora possa ser fascinante. E sou perfeitamente consciente de que Mina poderia ser culpada, por delegação ao menos, através de um amante. Oakley Winthrop parecia desses homens aos que alguém pode acudir pedindo socorro. Uma espécie de herói, se tivermos que fazer caso à senhora Garrick. - fez-se a um lado para deixar passar a uma mulher de idade que se apoiava pesadamente no braço de seu marido. -Brilham-lhe os olhos quando fala dele. Embora sempre em conjunção com seu finado marido e o fato de que o capitão Winthrop ocupasse seu lugar como tutor do Victor. Não acha que toca divinamente? Eu não o vejo na fortaleza de um navio gritando ordens, e você?

-Dificilmente poderia estar no comando de outra coisa que de um quarteto de corda - sugeriu Emily. -Me parece que não conseguimos grande coisa. – Olhou para trás. -Esse Uttley é odioso, tão seguro de si mesmo. Tomara me inteirasse de algum suculento escândalo relacionado com sua pessoa, algo que fizesse rir às pessoas e proclamá-lo aos quatro ventos.

-Procure não ser você quem o faça - lhe advertiu Charlotte. -Sairia-lhe o tiro pela culatra!

-Sim, sei. Mas é uma verdadeira pena. Claro que se fosse o senhor Hurlwood, dele sim tenho uma cosinha, embora não sei se é verdade!

-Importa isso? Ele não rivaliza com o Jack.

-Claro que não importa, mas o caso é que tem uma amante.

-Que ordinarismo - disse Charlotte. -É muito aborrecido. Embora não me surpreende, porque é um homem muito atraente. Acha que sua mulher se surpreenderia se soubesse?

-Morreu recentemente. Suponho que é uma intriga muito pouco interessante.

-Como é a mulher do senhor Uttley?

-Muito simpática, a sua maneira - concedeu Emily. -Suponho...

-Cuidado. - Charlotte pôs-se séria. -Jack disse não ao Circulo Interno uma vez. Isso não o vão perdoar. Imagino que o senhor Uttley está à corrente. Se não entendi mal as coisas, Uttley é membro da sociedade e usará sua influência para vencer ao Jack. Não lhe dê armas com as quais possa feri-la.

-Fique tranquila - disse Emily com igual seriedade. -E me acredite, Charlotte, Jack não é o único que corre perigo. Também não gostam nada da polícia, salvo aqueles que pertencem ao Círculo Interno. Vão pôr as coisas muito difíceis ao Thomas. E temo que o assassinato do Winthrop não se resolverá em muito tempo. Se foi alguém que o conhecia, um inimigo pessoal, então Thomas enfrenta a uma árdua tarefa. Nem a gente nem o governo terão misericórdia, e não lhe ajudará ninguém que seja do Círculo Interno, porque Thomas não é membro da sociedade.

-Tem razão. Possivelmente teríamos que nos esforçar um pouco mais.

-Conta comigo para o que for preciso. Algo que possa fazer, estou a sua inteira disposição.

-Obrigado, querida. Vamos falar com a gente a ver se nos inteiramos de algo mais sobre o honorável capitão Oakley Winthrop e sua família, e sobre os que afirmam ter vindo aqui para chorar sua perda.

E puseram-se em marcha dando-se os braços.

 

Tom Iles era um músico de moderada habilidade, mas intenso entusiasmo. Não havia nada que empanasse seu impulso natural, e enquanto cruzava Hyde Park a caminho do quiosque de música, ia cantarolando alegremente enquanto balançava em uma mão a capa de seu trompete. Levava as partituras no bolso, dobradas, o que as fazia mais difíceis de ler, mas mais fáceis de transportar. E isso lhe permitia andar com aquele rebolado que era expressão de seu jubiloso estado de ânimo.

Tinha a esperança de chegar primeiro, assim costumava ser. Embora hoje estava mais pontual que de costume. A luz da manhã tinha um tom turquesa sobre a erva coberta de orvalho, e nuvens de passarinhos tagarelavam nas árvores.

Viu o perfil octogonal do quiosque e acelerou o passo, cantando um pouco mais alto. Então se deteve com surpresa e uma estranha irritação ao observar que alguém tinha se adiantado a ele, em uma das cadeiras um homem, aparentemente dormindo. Isto sim era revoltante! Se os indigentes tinham que dormir ao ar livre, que procurassem outro lugar para fazê-lo.

-Bom dia! - disse Tom Iles alto a uma dúzia de metros. -Ouça, olhe, não pode ficar aqui. Isto é um quiosque de música e de um momento a outro nos poremos a ensaiar. Senhor! Ouça!

Aquele tipo estava sentado de maneira que não lhe via a cabeça.

-Ouça! - Tom Iles subiu de um salto a escadaria e tropeçou com algo que o fez cair de bruços. Pulsava-lhe o coração com tal violência que o sangue lhe amontoou nos ouvidos, tinha a boca seca e o estômago lhe deu um salto. - endireitou-se lentamente. Sim, ali estava. Tinha visto realmente a coisa horrível que estava gravada em sua mente. O homem sentado no quiosque não tinha cabeça. Mas a cabeça estava ali, no chão, um pouco a mão esquerda, o cabelo escuro com franjas prateadas, o rosto olhando ao chão. Menos mal!

Permaneceu de joelhos. Era ridículo, mas tinha ficado sem forças. Os braços lhe pendiam como se tivesse acabado de levantar um grande peso. Tinha náuseas.

Era preciso dizer a alguém. Com certeza por ali haveria algum guarda! Tinha que ir em sua busca. Tinha que ficar em pé, mas ainda não. Melhor esperar que a cabeça deixasse de lhe dar voltas e o estômago se acalmasse.

        -Arledge, senhor - disse Tellman, olhando ao Pitt. -Aidan Arledge. –Estava diante da mesa do superintendente. Eram oito e meia da manhã e já se via cansado. Tinha as faces afundadas em seu rosto longo e rugas de cansaço em torno da boca e olhos. - Acharam-no no quiosque de música do Hyde Park por volta das sete menos quarto desta manhã. Um trompetista que ia ensaiar.

Chegou antes dos outros e o achou ali.

-Decapitado, suponho - disse Pitt, -já que veio tão rápido me contar isso

-Sim, senhor, a cabeça cortada e deixada ali mesmo no chão - disse Tellman com algo que não estava longe da satisfação. O lábio lhe tremeu ao ver o olhar do Pitt.

-Quem é a vítima? Sabe você que classe de homem era? - perguntou Pitt.

-Alto, de aspecto distinto, uns cinqüenta e cinco anos. Magro. Um cavalheiro. Mãos cuidadas. Nunca tinha trabalhado com elas.

-Como soube o nome?

-Levava cartões de visita. Em um bonito estojo de prata, com o nome gravado e meia dúzia de cartões dentro.

-Endereço?

-Não, só nome e sobrenome. Ah, e uma pequena nota musical. Muito brega - disse Tellman com desdém. -Para que ia alguém pôr uma nota musical em seu cartão de visita?

-Um cantor? Um compositor, possivelmente?

-Mas não de music-hall - riu Tellman. -Vestia roupa cara, dos melhores alfaiates, Savile Row, camisas do Gieves.

- Levava dinheiro consigo?

-Nem um penny.

-Nada? Nem sequer carteira?

-Nem isso. Só um lenço, um lápis e dois jogos de chaves. Com certeza roubaram-o. Ninguém sai sem dinheiro para ao menos comprar o jornal, uma caixa de fósforos ou tomar um cabriolé. - Tellman olhou ao Pitt nos olhos, desafiante. –Mas é curioso que não levassem o estojo de prata. Será que queriam que soubéssemos quem era a vítima? Por certo, as abotoaduras continuavam na camisa.

-Talvez os interrompeu alguém. Provavelmente não queriam o estojo de cartões. É difícil vender uma coisa assim.

-Muito cordato me parece este louco do parque - disse Tellman torcendo a boca. -Sabe o que lhe convém e o que não. Mas me pergunto por que na primeira vez não levou o dinheiro, refiro ao Winthrop.

-Eu me pergunto ainda mais coisas - replicou Pitt. Olhou-o nos olhos e decidiu adiantar-se às críticas que supunha entesourava Tellman e dizê-lo ele mesmo: -Eu achava que Winthrop fosse algo pessoal. Agora começo a pensar que realmente é coisa de um lunático.

-Isso parece, não é? - Tellman levantou um poquinho o queixo, quase inexpressivo. -No final, se verá que é um trabalho policial rotineiro, não? A menos, claro, que nosso louco seja um cavalheiro. - Um brilho de humor cruzou seus olhos. Aguardou a réplica do Pitt.

-Imagino que a loucura pode afetar a gente de toda condição - disse Pitt, sabendo que isso não tinha nada que ver com o que insinuava Tellman. -Mas é menos provável, embora só seja porque cavalheiros não há muitos. O que diz o médico legista? Houve resistência?

-Não, senhor. Nem feridas nem contusões. Só o talho na cabeça, como Winthrop.

-E a roupa?

-Úmida em alguns lugares. Como se, se tivesse deitado no chão. Um pouco de barro, mas nenhum rasgão, nem tampouco manchas de sangue salvo ao redor do pescoço, como era de esperar.

-Assim tampouco resistiu - disse Pitt.

-Isso parece, ao menos. Bem, deixará de levar o caso pessoalmente, senhor? - Perguntou-o com um ar de forçada inocência.

Aquilo era absurdo. A frase tinha sido ambígua, mas bastante receosa para que não lhe pudesse acusar de insolência, enquanto que debaixo das palavras, sua verdadeira expressão era desafiadora, rancorosa, e incitava ao Pitt a cometer um deslize profissional bastante sério para lhe custar o posto. Ambos sabiam, embora Tellman o teria negado com um sorriso se alguém lhe tivesse acusado disso.

-Eu adoraria - disse Pitt, olhando-o com a mesma dureza. -Infelizmente, duvido muito que o subchefe me permitisse isso. Parece que lorde e lady Winthrop são de algum jeito importantes, e isso requer nosso máximo esforço, não só objetivamente mas também nas aparências. Entretanto... - Recostou-se um pouco mais e olhou ao Tellman plantado ante a mesa. -Não vou tirá-lo do caso. É muito importante para mim. – Sorriu. -Além do que não seria inteligente afastar alguém do caso tratando-se de uma série de assassinatos. Poderia ter visto algo possivelmente muito pequeno ou sutil para pô-lo em suas notas, e entretanto importante. Nunca se sabe. Pode ser que um dia você veja algo e então tudo renda.

Tellman o fundiu com o olhar.

-Sim, senhor - disse com um sorriso que era mais um mostrar os dentes,uns dentes estranhamente irregulares em seu simétrico rosto de farol. -Estou seguro de que resolverei, seja como for.

-Estupendo. Será melhor que averigúe quem era esse Aidan Arledge, e se há alguma conexão possível com o Oakley Winthrop

-Só o lugar do crime, certamente. Os loucos não costumam perguntar se a gente se conhece de algo.

- Disse uma conexão - lhe corrigiu Pitt. -Não concretamente uma relação. Pareciam-se? Vestiam igual? Passaram pelo mesmo lugar à mesma hora? Tinham algum hábito em comum? Tem que haver uma razão para que nosso louco os matasse a eles dois e não a qualquer outro habitual do parque a essas horas.

-Dele tempo - disse Tellman lacônico. -Foram dois em duas semanas. A este ritmo poderia carregar-se a cinqüenta em um ano. Isso se houver cinqüenta pessoas passeando pelo parque. O que não parece muito provável. Eu agora não passaria por ali só, ao menos de noite. - Olhou ao Pitt, e este soube o que estava pensando. Ambos sabiam da crescente atmosfera de medo, os rumores, as piadas agoureiras, e já se começava a olhar mal a qualquer pessoa nova em um bairro. Havia quem recordava os fatos do Whitechapel e aquele outro louco que nunca foi encontrado.

-A que distância está o quiosque do lugar em que foi achado Winthrop? - perguntou.

-A menos de meia milha.

-Mataram-no no quiosque onde o achou esse trompetista?

-Não. Não havia sangue, ao menos digno de menção, e se houvesse feito ali teria estado tudo perdido. Tampouco havia erva nos sapatos, claro que pelo visto não a cortaram há uns dias. A mim não pegou aos sapatos quando passei por ali. Mas naturalmente irei ver o guarda do parque - acrescentou antes que Pitt lhe adiantasse.

-Uma ferida limpa, suponho.

-Não, muito mais incompetente que a primeira. Necessitou dois ou três golpes, ao que parece. - O rosto do Tellman se contraiu de asco a seu pesar. -Para lhe cortar o pescoço a alguém precisa golpear muito forte. Possivelmente a primeira vez teve mais sorte.

-Também o golpearam primeiro na cabeça?

-Sim. Tinha um grande hematoma na nuca.

-Suficiente para que perdesse a consciência?

-Não sei. Isso tem que dizê-lo o legista.

-Sabe-se a que hora morreu?

Tellman encolheu os ombros.

-Mais ou menos à mesma as doze da noite, ou pouco mais.

-Testemunhas?

-Ainda não, mas os acharemos. - Havia na voz do Tellman um tom de férrea decisão, e ao olhá-lo no rosto Pitt sentiu pena da pobre testemunha que se negasse a jurar que sabia algo.

-Para começar, encarregue disso outro agente – ordenou. -Averigúe quem era Arledge, tudo o que possa, onde vivia, a que se dedicava, a quem conhecia, se devia dinheiro, se tinha uma amante, o que seja.

-Sim, senhor. Porei ao Grange.

-Não! Fará-o você.

-Mas se é muito fácil, senhor – protestou. -E certamente não importa muito. A nosso louco importa um nada quem era o morto. Provavelmente não o tinha visto nunca, e estou certo de que nem sequer sabia como se chamava.

-Pode ser - concedeu Pitt. -Mas quero que seja um oficial quem vai falar com a viúva.

-Encarregar-me-ei disso. - Tellman voltou a mostrar os dentes. -A menos que considere que a vítima era importante e prefira fazê-lo você mesmo, senhor.

-Talvez. Assim que você averigúe alguma coisa!

-Sim, senhor - disse Tellman. E sem esperar para ver se Pitt tinha mais instruções para ele, deu meia volta e se foi deixando ao outro aborrecido e preocupado.

Pitt ficou ali um momento tratando de assimilar o impacto daquele novo crime, de que forma alterava suas conclusões prévias. Tinha estado muito seguro de que o assassinato do Winthrop era um assunto pessoal, mas os fatos provavam que não era assim. Nenhum amante, por mais cruel que pudesse ser, assassinava a seu rival e depois a um completo desconhecido. E se, se tratava de algo relacionado com sua vida profissional, nenhum marinheiro, por mais ressentido ou maltratado que se sentisse - com ou sem justificação - matava tampouco como quem deixa uma macabra gorjeta.

Por que não tinham roubado ao Winthrop? Era tão simples quanto se viram surpreendidos e puseram pés na poeira?

Mas Arledge não tinha morrido no quiosque. Então onde? E, sobre tudo, por que?

No escritório era difícil pensar. Muita tranqüilidade, muita comodidade, muitas interrupções.

Levantou-se e, sem incomodar-se em tomar seu chapéu nem sua jaqueta, saiu, desceu a escada avisando de passada ao sargento de guarda e saiu à rua.

O bulício o rodeou imediatamente e Pitt teve uma entristecedora sensação de familiaridade. Era o que estava acostumado a ver e ouvir, gente corrente apertando se contra ele, camelôs, vendedores ambulantes, pequenos comerciantes, mulheres a caminho do mercado para comprar ou vender, marreteiros loquazes apregoando com voz cantante umas improvisadas rimas sobre a última novidade.

Desviando-se do Bow Street para o Drury Lane, cruzou-se com vendedores de bolos e sanduíches, uma mulher que oferecia bebidas mentoladas, outra com flores frescas, todos tratando de convencê-lo, alguns inclusive lhe chamando por seu nome. Pitt saudou com o braço, mas não se deteve. Os cabriolés abriam passagem entre carruagens mais lentas com toldo descoberto para que as damas pudessem ver os pontos de interesse, e ser vistas também.

Continuou ao sul pelo Strand. Três cercas anunciavam teatro, music-hall, concertos e recitais. Nomes mágicos apareciam escritos em grandes letras: Ellen Terry, Enjoe Lloyd, Sarah Bernhardt, Eleonora Duse, Lillie Langtry.

Quem era Aidan Arledge e por que o tinham matado de maneira tão brutal? Seria unicamente por ter ido passear só? Não. No Hyde Park não, não necessariamente. Era preciso averiguar onde o tinham matado. Isso era o mais importante agora. Se tratava-se de uma coincidência de lugar, tinham que saber qual era exatamente esse lugar.

Alguém se chocou com ele, desculpou-se friamente e seguiu seu caminho.

-Né, ouça, quer o jornal? -gritou-lhe um jovem esfarrapado. –Outro horrível crime no Hyde Park! Um cadáver mutilado no quiosque de música! Homicida solto nas ruas de Londres! A volta do Jack o Estripador! O que faz a poli? Bom, ouça, quer ou não? Aqui poderá ler tudo!

-Obrigado. - Pitt deu uma moeda ao jovem.

Retirou-se um pouco da passagem e abriu o jornal apoiando-se contra a parede. O texto era tão nefasto como as manchetes: horror sensacionalista, colunas de especulações e a inevitável crítica pela polícia. De momento não mencionavam o nome da segunda vítima. Ao menos Tellman tinha sido bastante rápido para ficar com o estojo dos cartões. A viúva, se é que a havia, não devia descobrir o ocorrido através de um amigo ou um criado que tivessem lido as estridentes manchetes.

Dobrou outra vez o jornal e seguiu andando pelo Strand. Se era um louco, um lunático sem conexão alguma com o Winthrop nem com o Arledge, apanhariam-no com os métodos habituais da polícia. Tellman sabia disso. Que diabos, era melhor que ele mesmo! Conhecia bem os bairros pobres, aos ladrões de pouca monta, os pederastas, os jogadores profissionais e os trapaceiros que sem dúvida saberiam algo de um elemento como o que procuravam.

Mas essa confiança lhe durou pouco. Ninguém tinha apanhado ao Estripador, ninguém se tinha aproximado sequer de consegui-lo. Sim, suspeitou-se de várias pessoas, mas ao final o Estripador não era nenhuma delas. A história recordaria aquele nome com um estremecimento, mas o superintendente que tinha levado a investigação era conhecidíssimo por seu fracasso. Até o chefe de polícia Warren tinha tido que demitir.

Sentiu ferventes desejos de que Micah Drummond estivesse ainda em seu posto.

A promoção era uma arma de dois gumes. Se tinha êxito, Tellman podia atribuir o mérito com toda facilidade, se fracassasse, o subchefe lhe jogaria a culpa, e com razão. Ele dava as ordens, ele tomava as decisões.

Retornou para o Bow Street, cruzando-se de caminho com um vendedor de relógios a quem conhecia. Por que diabos se colocou Winthrop em um bote com um desconhecido? Não tinha sentido. Tinha que haver ao menos uma conexão entre o Winthrop e seu assassino, embora não a houvesse com o Arledge. E sobre este tinha que saber mais coisas.

Acelerou o passo e chegou à delegacia de polícia com uma sensação de obrigação.

O sargento de guarda olhou-o com nervosismo.

-Senhor Pitt, veio vê-lo o senhor Farnsworth, senhor. E senhor Pitt...

-O que.

-Parece muito zangado, senhor.

-Imagino - disse Pitt. -Mas obrigado por me avisar. - deteve-se um momento para sossegar-se e tratar de preparar-se.

Chegou a seu escritório com a mente ainda em branco. Abriu a porta.

Farnsworth se tinha sentado na poltrona. Não se levantou o entrar Pitt, só o olhou.

-Bom dia, senhor. - Pitt fechou a porta e foi para a outra cadeira.

-De bons nada! - replicou-lhe Farnsworth. -Não viu os jornais? Sai em primeira página, e não estranho. Já são dois cadáveres decapitados em duas semanas. Temos a outro Estripador, Pitt, e o que faz você? Direi-lhe uma coisa, não penso perder meu posto porque você não apanha a esse louco. Mas sente-se de uma vez, homem! Estou tendo torcicolo de olhá-lo torcendo o pescoço.

Pitt o fez.

-Bem, o que estão fazendo? - inquiriu de novo Farnsworth. -Quem era esse Arledge, por certo? Que fazia no parque no meio da noite? Estava procurando uma mulher? É essa a chave? Os dois procuravam prostitutas e a algum demente levado de um afã puritano lhe meteu na cabeça uma espécie de desforra homicida? - Torceu o gesto, seu olhar expressava cólera e dúvida. -Embora os que têm essa fixação costumam matar às mulheres, não aos homens.

-Ignoro-o - admitiu Pitt. -enviei ao Tellman para que averigúe tudo o que possa sobre o Arledge.

Farnsworth tinha os ombros rígidos.

-Tellman, diz? É bom? Conheço esse nome.

-É excelente - disse Pitt com sinceridade.

-Ah, sim. - Farnsworth pareceu recordar. -Drummond falava sempre bem dele. Um pouco tosco, mas inteligente, se dá bem com a rotina policial, conhece o pano. De acordo. Que mais? - Olhou ao Pitt acusadoramente com seus olhos azul claros.

-Tenho outros homens revistando o parque, procurando possíveis testemunhas, embora esta noite será melhor ocasião.

-Esta noite? Não se pode perder o tempo até a noite. O que lhe passa? Pelo amor de Deus, Pitt, não vê que estamos à beira de outra explosão de violência? As pessoas estão assustadas. Fala-se de anarquia, de insegurança, correm inclusive rumores de república. Bastará outra rajada de assassinatos sem resolver para que algum revolucionário pegue a mecha e acenda toda a cidade. Não pode ficar aqui esperando que lhe cheguem provas. - Farnsworth esmurrou o braço da poltrona com o punho e se inclinou para frente. -Tampouco resta tempo!

-Dou-me perfeita conta, senhor - disse Pitt paciente. -Mas a maneira mais fácil de achar uma testemunha é provar com gente que tem hábitos concretos. À pessoa que passou por ali casualmente não a vamos achar se ela não vai a nós. Mas os que vão ao parque com regularidade a essa hora da noite é muito provável que voltem hoje.

-Sim, compreendo. - Farnsworth não conseguia relaxar. -Que mais? Tem que fazer algo. Não acredito que ninguém visse nada de utilidade. Este louco é sem dúvida um retorcido, um malvado, mas isso não significa que seja tolo. Terá que fazer algo mais que confiar, Pitt. - Sua voz subiu. -Abilene atuou assim com o Estripador, e já vê o que lhe passou!

-Fez tudo o que pôde - replicou Pitt. Não tinha conhecido pessoalmente ao inspetor Abilene, mas respeitava seu trabalho e sabia que tinha feito tudo que era possível para apanhar ao assassino do Whitechapel.

-E será melhor que você faça o mesmo. - Farnsworth olhou-o. -Para não dizer algo mais. Se quer conservar este escritório, apanhe a esse louco.

-Tenho vários homens tratando de averiguar onde se produziu o crime - acrescentou Pitt, mas Farnsworth não atendia a razões.

Embora Pitt compreendesse o medo que o impulsionava, isso lhe punha furioso apesar de estar em condições de demonstrá-lo. A situação lhe resultava incômoda. Não estava bem pôr a um homem em situação de abusar de sua valentia ou sua inteligência e deixá-lo sem recursos para desforrar-se, inclusive para defender-se. Agora que tinha certo poder, devia assegurar-se de que Farnsworth não o deixasse tão fácil, à margem de que Tellman pudesse lhe provocar. Considerava-lhe Farnsworth tão pesado?

-A que se refere? - inquiriu o subchefe. -Não o mataram onde foi encontrado o cadáver?

-Não havia sangue - respondeu Pitt. -De momento não sabemos se foi em outro ponto do parque ou em um lugar diferente, que poderia ser qualquer parte.

Farnsworth se levantou e começou a passear pelo escritório.

-O que tem sobre Winthrop? Mataram-no no bote. Não me havia dito você isso?

-Sim, com efeito. Não podemos demonstrá-lo, mas é altamente provável.

-Por que? - Farnsworth se deteve em seco.

-Porque havia um entalhe recente na madeira do barco que correspondia em tamanho, posição e profundidade com o lugar onde um fio teria chocado se tivesse cortado a cabeça de alguém tendo-o contra a amurada. Também havia fragmentos de erva nos sapatos. Winthrop estava virtualmente seco, mas a cabeça estava molhada.

-Bem, bem. Então não há dúvida. Winthrop foi assassinado no bote e Arledge foi em outra parte, mas você não sabe onde. Continuo pensando que poderia ter que ver com uma prostituta. Será melhor que interrogue a todas as que trabalham na zona, e não me venha com que são centenas. Sei que há mais de oitenta mil prostitutas em Londres. Uma delas pôde ver algo, pode ser inclusive que conheça esse louco. Faça-o, Pitt!

-Sim, senhor.

Em realidade a idéia era boa. No momento, parecia a conexão mais provável. As prostitutas tinham suas próprias zonas, e de fato não teria que ver mais que a um pequeno número delas. Winthrop podia ter ido ao parque com esse objetivo, ou inclusive pensado nisso a posteriori, quando se apresentou a oportunidade. Era uma possível resposta a difícil pergunta de por que tinha subido acompanhado a um bote de recreio. Poderia havê-lo feito com uma prostituta se ela tivesse expresso esse desejo como preâmbulo a seus favores. Winthrop não teria suspeitado nada, menos ainda sendo um marinheiro. Certamente teria achado divertido.

-Bem - disse Farnsworth, -que mais? O que dizemos à imprensa? Não pensará que podemos lhes dizer que o finado capitão Winthrop abordou a uma prostituta no Hyde Park. Entre outras coisas, processar-nos-iam. Lorde Winthrop foi ao ministro do Interior para queixar-se de que se está fazendo muito pouco.

-Diga-lhe que o subchefe de polícia tem feito uma lúcida sugestão e que a polícia está seguindo essa hipótese - propôs Pitt sem alterar-se. -Que a imprensa descubra por si mesmo do que se trata. Diga-lhes que não pode afirmar nada até que esteja demonstrado, para não cometer uma injustiça com terceiros.

Farnsworth lhe olhou com cenho, sem saber até que ponto havia sarcasmo na resposta.

Pitt se salvou de dar mais explicações quando o agente Bailey bateu na porta.

Era um policial alto, de rosto muito triste e aficionado às pastilhas de hortelã. Olhou com apreensão ao subchefe de polícia.

-O que há, Bailey?

-Averiguamos quem era Arledge, o pobre - respondeu o agente, olhando ao Pitt e ao Farnsworth alternativamente.

Ambos falaram de uma vez. Bailey optou por responder ao Pitt.

-Era músico, senhor. Dirigia ocasionalmente uma orquestina e visitava gente muito diversa. Bastante diferente, dentro de seu círculo, quero dizer.

-Bom trabalho. - Pitt o olhou atentamente. -Como o soube tão rápido? — Bailey corou.

-Verá, senhor, sua mulher diz que ele não foi a casa ontem à noite. Não soube até esta manhã, mas quando se inteirou de que tinham descoberto um cadáver, inquietou-se e decidiu nos chamar. O guarda sabia que o morto era seu marido, claro, porque ela se chama Arledge, Dulcie Arledge, pobrezinha.

Farnsworth estava muito erguido na poltrona.

-Que mais? Que classe de mulher é esta senhora Arledge? Onde vivem? Que fazia ele, além de tocar? Com certeza tinha dinheiro.

-Isso não sei, senhor, mas parece que em seu terreno era bastante famoso. Era um bom diretor, ou isso dizem. Quanto à mulher, parece uma dama de verdade, muito educada, vestida com muita discrição, embora não de negro ainda, claro.

-Que idade lhe calcula você? - inquiriu Farnsworth.

Bailey se viu em um apuro.

-Não é fácil saber a idade de uma dama, senhor.

-Vamos, homem! Mais ou menos. Terá você alguma idéia. Não vai ouvir! - disse Farnsworth com impaciência. -Quarenta, cinqüenta?

-Mais para quarenta, senhor, acredito eu, mas muito bem conservada. Tem um rosto desses com os quais alguém pode viver, você já me entende.

-Eu não entendo nada! - replicou-lhe Farnsworth.

Bailey se ruborizou.

-Quer dizer agradável sem chegar a ser de tudo formosa? - sugeriu Pitt. –Que vai ganhando à medida que a gente conhece a pessoa?

-Sim, senhor. - O rosto de Bailey se iluminou. -Isso é o que queria dizer. Um rosto que não chega a cansar, porque é o melhor que tem senhor.

-Uma mulher muito atraente - resumiu Farnsworth mal-humorado. -Mas isso não quer dizer que seu marido não decidisse ir atrás de prostitutas.

Bailey guardou silêncio, mas sua desdita estava impressa em suas feições.

-Averigúe-o, Pitt! - disse Farnsworth esquecendo-se de Bailey. -Averigúe que hábitos tinha esse Arledge, aonde ia em busca de prazer, com que freqüência ia passear pelo parque... - hesitou um pouco -qualquer inclinação privada que pudesse ter tido. Possivelmente abusava das mulheres, ou tinha um comportamento sádico, algo que teria feito intervir a um alcoviteiro.

Pitt torceu o gesto.

-Não seja afetado - disse Farnsworth. -Mas homem de Deus, já sabe como estão as coisas! As pessoas começam a ficar histéricas. Grandes manchetes por toda parte, artigos sobre a incompetência policial. Aproximam-se eleições parciais, e os candidatos já estão tirando suco ao caso.

-Não é que não queira fazê-lo - explicou Pitt. -Mas duvido que as inclinações privadas, inclusive o sadismo, forçassem um alcoviteiro a decapitar a um cliente. Não lhes importa enquanto cobrem, e enquanto a garota não fique inutilizada por marcas.

Farnsworth olhou-o entrecerrando os olhos.

-Seriamente? Bom, suponho que nisso o perito é você. Eu não sei grande coisa sobre o assunto. - Apertou os lábios. -De todo modo, acredito que a resposta está aí. Indague, Pitt. Faça todo o resto, é claro. Terá que averiguar onde o mataram e procurar testemunhas, se é que os há, mas encontre a essas mulheres!

-Sim, senhor.

-Faça-o. - Farnsworth se levantou, sem fazer caso de Bailey, e foi para a porta. Ajustou a jaqueta para que lhe caísse melhor e saiu sem mais.

-Quer que diga ao senhor Tellman que se ocupe disso? - ofereceu Bailey, serviçal, uma vez que Farnsworth se foi. Tirou do bolso uma bolsa de papel e meteu uma pastilha de hortelã na boca.

-Não. - Pitt estava decidido. -Obrigado. Farei-o eu mesmo. Você continue

procurando onde o mataram. Haverá muito sangue por toda parte. Ah, e como moveram o cadáver, se puder.

Bailey fez expressão de sobressalto.

-Como o moveram? OH, bom, suponho que o carregaram de uma maneira ou outra. Um pouco chato, sim, mas se acabaram de fatiar a cabeça a um tipo, suponho que se manchar com um pouco de sangue não é muito aborrecimento.

-É arriscado transladar um cadáver sem cabeça pelo parque. E para que movê-lo? por que não o deixou onde estava? A menos que esse lugar pudesse nos dar uma pista sobre o assassino. Averigúe-o, Bailey.

-Sim, senhor - disse o agente. -Alguma coisa mais, senhor Pitt?

-De momento não.

-Bem, senhor. Então porei mãos à obra.

        No meio da tarde Pitt havia tornado já a sua casa no Bloomsbury para pôr roupa velha: uma jaqueta que lhe assentava mau, camisa com duas voltas de gola e punhos, e umas botas maltratadas com solas desvencilhadas. As calças tinham as pregas desfiadas e o gasto chapéu lhe tampava meio rosto. Encaminhou-se para o Edgware Road, ao norte do Hyde Park, e o labirinto de ruelas onde sabia que ia achar aos homens e, sobre tudo, as mulheres que procurava.

Era um esplêndido dia de finais da primavera e um vento quente fazia correr as nuvens no céu. Os últimos narcisos brilhavam ainda dourados em meio da erva. Babás com vestido engomado empurravam carrinhos pelos atalhos seguidos obedientemente pelas crianças, algumas providas de bengalas com cabeça de cavalo ou bonecas de porcelana. Duas crianças jogavam aro e uma terceira brandia uma espada de madeira.

Deveria ter assumido ir daquela vez atrás de alcoviteiros e prostitutas, e entretanto Pitt andava com brio e sensação de liberdade pelo fato de estar fora da delegacia de polícia e ao ar livre, e mais ainda por não ter a ninguém olhando o que fazia e disposto a criticá-lo injustamente.

Virou à esquerda para Cambridge Street. A meiao-bloco desceu uns degraus até um pátio de porão e bateu na porta. Esperou uns instantes e voltou a chamar com mais ênfase.

A porta se abriu deixando ver um olho e um nariz.

-O que quer? Ah, mas e é o senhor Pitt. Desceu aos infernos, não? Inteirei-me que agora é um peixe gordo. Promoveram-lhe, né? O merece! Ninguém deveria dar-se ares e sair de onde nasceu. Eu o teria dito. Você não nasceu cavalheiro, e nunca o será. Além disso, os cavalheiros odeiam a inteligência, e você é preparado. De maneira que de volta aos casos sujos, né? - A porta continuava sem abrir de todo.

-Não sei - disse Pitt evasivamente. -É possível. Mas sim, tenho um caso sujo.

O olho o olhou de cima abaixo.

-Já vejo. Grande pinta traz. O que quer de mim? Eu não tenho feito nada. Não me coloquei em nenhuma confusão.

-Mulheres. Algumas de suas pupilas trabalham no parque.

-Não direi nem que sim nem que não. Mas o que lhe passa? Elas não cortam a cabeça de ninguém. Além disso, seria mau para o negócio. Não tem sentido. Se acredita que foram elas, será melhor que volte a fazer a ronda.

-Vai deixar me entrar ou tenho que levar a todas suas garotas a delegacia de polícia para as interrogar?

-É muito duro, senhor Pitt, e injusto - se queixou o outro, mas abriu a porta.

Pitt entrou em uma sala de agradáveis proporções, lotada de cadeiras, sofás, escrivaninhas e tamboretes estofados. Toda a tapeçaria era vermelha ou rosa forte. O ambiente era asfixiante e Pitt teve a sensação de que em qualquer momento algo ia cair, embora de fato tudo parecia descansar comodamente sobre seus pés.

O homem que ocupava agora o pequeno espaço no meio do tapete vermelho e dourado era de meia estatura e tinha barba e bigode. Seu rosto magro de nariz aquilino não parecia encaixar-se - no resto das feições. Tinha os ombros caídos, e o flanco direito parecia encolhido, o braço desse lado era vários centímetros mais curto que o esquerdo. Olhou ao Pitt com a cautela de seus olhos ardilosos.

-A vida não é justa - disse Pitt. -Mas deve-se lhe tirar partido. Se quer posso mandar ao senhor Tellman…

O homem cuspiu e esgotou os olhos.

-Esse é um bode. Eu gostaria de o ver no fundo do rio e dançar sobre sua tumba.

Pitt se absteve de indicar a impossibilidade de semelhante gesto.

-Sem dúvida - disse secamente. -Que garotas tem trabalhando agora no parque? E não se esqueça de nenhuma, porque se o descubro farei que o acusem de todo o acusável.

-A promoção lhe subiu à cabeça – respondeu o homem torcendo a boca. –Você sempre se comportou mal comigo.

-Tolices. Nunca lhe fiz nada que não merecesse. Mas se prepare se não me disser quem estava no parque. E já que falamos disso... - Pitt se sentou em uma cadeira estofada. Era mais cômoda do que esperava. Cruzou as pernas. –Alguma nova na zona?

O homem sorriu e passou um longo indicador pela garganta, mas ao ver que Pitt punha cenho, empalideceu.

-Não, senhor! Eu não fiz nada! Posso acabar com meus rivais sem necessidade de me expor tanto. - Fez uma careta. -Além disso, se tivesse pensado fazer algo assim, que a meu modo de ver é totalmente vulgar e desnecessário, não o faria no parque. Se os cavalheiros não se atreverem a vir sós ao parque por medo, o que aconteceria a meu negócio, né? Não sou tão estúpido. E se pensar que eu tenho feito algo...

-A única coisa que penso - interrompeu Pitt -é que suas garotas podem ter visto alguma coisa. Mais ainda, poderiam saber se há algum estranho rondando por aí, alguém com gostos excêntricos, alguém que leve consigo uma faca.

-Não. Nada fora do normal. Os cavalheiros que vão ao parque em busca de prazer têm seus próprios gostos.

-Mas poderiam passar dos limites - disse Pitt levantando as sobrancelhas com ar inquisitivo. -E possivelmente uma garota nova poderia resistir.

-Sim, né? E lhes cortar a cabeça?

-Não com suas próprias mãos.

-Olhe, eu não sigo a minhas garotas. Os cavalheiros não gostam. - Riu com uma aflautada gargalhada. -Esses bastardos acreditam que ninguém conhece suas preferências e querem que tudo seja muito privado. - Mostrou uns dentes sujos. -E como vou cortar eu algo se não levar uma machadinha comigo? Você perdoe, mas às garotas não gostam dessas coisas, como dizer: faça o favor de inclinar-se um pouco para que possa lhe cortar a cabeça, só para dar uma lição aos outros cavalheiros com idéias perversas.

-Golpearam-nos primeiro na cabeça - disse Pitt, que compreendia que ao homem não lhe faltava razão.

-Se eu o tivesse deixado sem conhecimento, que necessidade tinha de lhe cortar a cabeça? - Fez uma careta de desprezo.

-Alguém o fez! Qual de suas garotas esteve no parque essas noites?

-Enjoe, Gert, Cissy e Kate.

-Tragá-as - ordenou Pitt bruscamente.

O homem hesitou um momento e depois partiu.

Em pouco tempo entraram quatro mulheres com aspecto cansado, esvaídas à luz do dia. Talvez a meia-noite ou sob uma luz teriam tido certo atrativo, mas agora estavam pálidas, o cabelo deslustrado e cheio de nós, os dentes manchados, e a algumas faltava mais de uma peça. Kate, que parecia a chefa, era uma mulher alta e magra, ruiva. Olhou ao Pitt com desdém. Aparentava uns quarenta anos, mas talvez não tivesse mais de vinte e cinco.

-Bert diz que anda procurando o porco que matou a esses dois no parque. Pois não sabemos nada disso.

As outras assentiram com a cabeça, uma delas se embrulhou em seu roupão manchado, outra afastou dos olhos umas mechas loiras.

-Mas estiveram no parque as duas noites.

-Um momento, sim - concedeu Kate.

-Não viram ninguém no Serpentine por volta das doze?

-Não.

A mulher começava a divertir-se. Pitt tinha falado com ela anteriormente em algumas ocasiões. Kate tinha sido costureira antes de ficar grávida. Costurando a sete pennies e meio a peça e trabalhando quinze horas ao dia podia ganhar dois xelins e seis pennies, dos quais tinha que pagar três pennies para que lhe fizessem as casas e outros quatro pelos acessórios. Nem trabalhando dezoito horas diárias podia manter a seu filho e a si mesma. Jogou-se na rua para ganhar em uma hora o que cobrava antes em um dia. Como havia dito ao Pitt, do que serve o futuro se não passa de hoje?

-Os cavalheiros querem intimidade, sabe, embora gostem do ar livre e tenham um pouco de pressa. Alguma vez o provou em um desses botes? Derrubam-se com muita facilidade.

Pitt sorriu.

Tinha que perguntá-lo.

-Viu alguma vez ao capitão Winthrop?

-Quer dizer se era cliente?

-Por exemplo. Ou se lhe viu andando pelo parque.

-Sim. Algumas vezes o vi, mas ele não era cliente.

Pitt não sabia se lhe dizia a verdade. A garota o tinha olhado com candura, e precisamente por isso ele duvidava.

-Ouça, senhor Pitt - disse ela, ficando séria, - isto não tem nada que ver com nenhuma de nós, juro por Deus. Alguma vez houve tipos que saíram cravados. Wee Georgie sabe de facas, mas não é bom para o negócio ficar violento. A pessoa esfria, e então não comemos. Não foi nenhuma de nós, mas um tio que se tornou louco de arremate. E não nos pergunte quem é, porque não sabemos. - Olhou às outras. Cissy afastou de novo as mechas e assentiu com a cabeça.

-Tampouco nós gostamos disto - disse, escavando um dente cariado. –A gente tem medo e já não quer sair. Todo mundo está assustado. E esta zona é a nossa.

-Sim - disse outra. -Nós não podemos nos transladar para os subúrbios. FAT George jogaria a pontapés se entrássemos na zona de suas garotas. -Tremeu ao pensá-lo. -E Wee Georgie, esse sim me dá medo. É um porco com todas as letras. Eu acredito que está mal da cabeça. Olhe de uma maneira...

-Brrrr. - Cissy fez uma careta e se abraçou a si mesma.

-Mas ele não ganharia nada cortando a cabeça de alguém - insistiu Kate. -E, a verdade, senhor Pitt, nós não conhecemos ninguém por aqui que esteja louco de arremate. Que nós saibamos, não há ninguém que durma ao léu. Verdade? - Olhou às outras.

Todas negaram com a cabeça, olhando ao Pitt.

-Dormir à intempérie no parque? - sugeriu Pitt.

-Ora. Terá-os que dormem na rua, ou o tentam - disse Kate. -Mas o guarda do parque é bastante severo. Vai e os tira dali. E além disso há policiais fazendo a ronda. É outra das razões pelas quais os cavalheiros não gostam de fazer suas coisas no parque. Faria-o sentir-se idiota que o pegue um policial de ronda. Ali só fazemos amizades.

Não tinha sentido perguntar se tinham visto o Aidan Arledge. Sua descrição correspondia a de centenas de pessoas.

-Viram algo estranho a noite do segundo assassinato? - perguntou.

-Uma aficionada quis meter-se em nossa zona - disse Kate, - e Cissy puxou seus cabelos.

-Não, senhora! - protestou a aludida. -Eu só lhe fiz uma educada advertência.

-Com certeza era aficionada? - perguntou Pitt. -Não teria um fanfarrão detrás vigiando e depois? - Calou. Era muito improvável para seguir especulando.

Kate olhou-o com ironia.

-Não vimos ninguém além dos cavalheiros de sempre - disse com uma careta.

-Ninguém mais? - insistiu ele.

-Um policial, duas ou três vezes, mas nunca nos diz nada se nos levarmos bem e não abordamos - utilizou a palavra com sarcasmo - a nenhum cavalheiro que esteja dando um tranqüilo e respeitável passeio. Não é mau tipo. Sabe que nós temos que comer, como todo mundo. E ao cavalheiro que paga não gostaria que lhe privassem de seu pouquinho de prazer.

-Quem mais? Pensa, Kate! Há alguém, um homem armado de uma a machadinha ou um alfanje?

- Deus do céu! - Ele chorou. -Pare de dizer essas coisas! Vi apenas senhores normais, um ou dois com uma taça a mais, o policial, o guarda que estava indo para casa em sua maquina ou qualquer outra coisa. Foi uma noite muito tranqüila.

-Ah, pois mais tranqüila vai ser agora - disse Gert de mau humor, olhando ao Pitt. -Não podem agarrar a esse lunático de merda e deixar que nós sigamos com os nossos? Já não estamos seguras no parque. Eu pensava que para isso havia os malditos policiais. Para que seja um lugar tranqüilo!

-Não acredito que os cavalheiros do governo tivessem em mente fazer do parque um lugar seguro para as mulheres da rua - ironizou Pitt. -Claro que, por outra parte...

Kate lançou uma gargalhada. Gert torceu o gesto.

-Estavam perto do quiosque de música? - perguntou Pitt, olhando as de uma em uma.

Todas negaram com a cabeça. Uma vez mais era impossível saber se diziam a verdade, mas pensou que certamente assim era. Se alguém tivesse visto o cadáver teria havido gritos, comoção. Teria deslocado a voz. - Depois de lhes agradecer se foi deixando ao Bert zangado e preocupado. Temia pelo negócio, a única coisa clara em sua mente. Pitt saiu à rua. Não lhe desgostavam aquelas mulheres. Conhecia muitas histórias de prostitutas, mas a bebida, a enfermidade, a vulgaridade, a manipulação e a avareza não alteravam o fato de que em sua maioria não tinham outra maneira de sobreviver em Londres. Não podiam trabalhar como empregadas domésticas, embora muitas tinham começado assim. Tinham que ter referências. Uma acusação de imoralidade, fundada ou não, uma acusação de roubo, embora a senhora tivesse extraviado uma forquilha para o cabelo, um pente, um pendente, isso dava no mesmo, uma garota sem recomendação não podia conseguir outro emprego. Não havia compensação econômica, e raramente uma segunda oportunidade. Mais de uma bonita criada se achou fazendo a rua porque o senhor não lhe tirava as mãos de cima.

Para outras eram muito duras as fábricas ou os mercados, pouco dinheiro para tanto esforço. O risco de enfermidade na rua era grande, mas também o era em geral. Ao menos as possibilidades de morrer de fome eram menores.

Homens como Bert ou o outro alcoviteiro, FAT George, tinham uma opinião muito distinta. E teriam se encantado ver morto ao sádico do Wee Georgie.

Mas o que diziam elas tinha sentido. Esteve-o pensando enquanto voltava pelo Edgware Road, cruzando-se com camelôs e marreteiros. Parou a comprar um sanduíche em uma barraca, e um copo de chá. Caminhou devagar escutando o falatório, as discussões e os insultos que iam e vinham como uma maré. De vez em quando o saudavam pelo nome, e ele respondia conciso.

Ouviu em duas ocasiões a expressão "o Verdugo", e soube de quem estavam falando. O terror estava ali, o súbito silêncio, e o frio até com o sol no alto e o bulício das ruas. Havia medo, um medo frio e cinza, sob a jactância e os esforços de rir disso.

Havia um louco solto, ou existia uma conexão entre o honorável capitão Oakley Winthrop e o diretor Aidan Arledge, algo pessoal e tão horrível que lhes havia custado a vida?

Acelerou o passo até que, de tão rápidas que eram suas passadas, as pessoas se afastavam a sua passagem resmungando por suas más maneiras.

-Ei! - gritou um homem indignado. -O incêndio o apagaram em 1660! Chega você tarde!

-Foi em 1666! - gritou por sua vez Pitt, satisfeito de corrigir esse dado histórico.

De volta em Bow Street, achou Grange esperando-o. Assim que viu o traje do Pitt, seu rosto se encheu de surpresa e incompreensão.

-Encontra-se bem, senhor? Parece um pouco

-Sim, estou perfeitamente bem, obrigado - respondeu Pitt, rodeando ao Grange para sentar-se à sua escrivaninha. -Traz alguma informação?

-Sim, senhor. Bom, em realidade o senhor Tellman me há dito que viesse lhe dizer que não há nenhuma novidade, senhor.

-Seriamente? - Pitt estava zangado. Ele nunca tinha cometido o deslize protocolar de enviar um sargento ao Micah Drummond. Ou não lhe tinha feito caso ou tinha ido vê-lo pessoalmente. -De maneira que o senhor Tellman não conseguiu nada, não é?

-OH, não, senhor. - Grange parecia desconfortável. -Tampouco quis dizer isso. Esteve muito ocupado todo o tempo. Foi ver o músico que achou ao Arledge, mas não sabia nada. Má sorte, poderia-se dizer. E é claro interrogou ao guarda do parque, o mesmo da outra vez, mas também não sabia nada. Isso sim, estava morto de medo.

-Pelo Tellman ou pelo louco? - perguntou Pitt com um tom de sarcasmo.

Grange sopesou a resposta.

-Acredito que do senhor Tellman, senhor- disse por fim. -Porque ele estava ali, e o louco não.

-Muito pragmático.

-O que, senhor?

-Uma boa escolha. Que mais?

Grange olhou-o Com cautela. Inspirou fundo antes de falar.

-Se não se importar que o diga, senhor, não deveria ir interrogar pessoalmente a elementos criminosos. Não há nenhuma necessidade. E o senhor Tellman é um perito nisso. Não perde o tempo com delicadezas e ninguém lhe conta mentiras, isso seguramente. Eu acredito, senhor, que há coisas que um cargo importante como o seu não tem por que fazer.

-Não me diga. - Pitt se sentiu ofendido e excluído de uma vez. Grange lhe estava dizendo claramente que Tellman era melhor polícia.

-Verá, senhor - Grange era insensível ao perigo, -eu acredito que isso é rebaixar-se, não?

-Equivoca-se. Soube coisas muito interessantes de certas prostitutas. Elas não acreditam que se trate de um demente.

-Não? - disse-lhe Grange com incredulidade. -Pois eu não faria muito caso do que diz essa gentinha. Não se distinguem por sua sinceridade, parece-me. O senhor Tellman sempre diz que venderiam a sua mãe por uma moeda, senhor, e, se me desculpar outra vez, senhor, comporta-se muito bem com elas. Acabarão se excedendo muito.

-Isso diz o senhor Tellman? - respondeu Pitt.

Grange ficou branco.

-Bom, sim, mais ou menos. Este caso é muito difícil, senhor. Não temos tempo para andar com pequenas, e menos ainda com essa quinquilharias.

-Você acredita que elas sabem quem matou a esses homens?

-Pois...

-Não acredita que estariam mais que dispostas a ajudar se pudessem?

O rosto do Grange se abrandou.

-Nada disso, senhor. Aqui se equivoca você. Elas odeiam à polícia. Se pudessem não nos dariam nem a hora.

-Olhe, Grange, é você o que se equivoca, e Tellman também, se é que estão de acordo nisso. Nós não lhes importamos nada. O que sim lhes preocupa é o negócio. E me acredite, o Verdugo do Hyde Park é mau para o negócio, muito mau.

Grange tragou saliva ao compreender a situação de maneira paulatina, o que suscitou nele um respeito por Pitt.

-OH. Sim, entendo. Suponho que sim.

-Com certeza que sim. Já pode dizer ao senhor Tellman quando o vir. Achou alguma testemunha?

-Nada que valha a pena. - Grange, que tinha as faces quase vermelhas, trocou o peso de perna. -Arledge não esteve ali às dez da noite. Temos uma que levou um cliente ao parque, e jura que por ali não havia ninguém, porque se não ela não teria...enfim. - O Grange não achava a palavra.

-Bem. É tudo?

-Não, senhor. O senhor Tellman foi ver a pobre viúva.

-E?

-Verá, senhor, diz que é uma mulher muito decente...

-Mas homem de Deus! E o que esperava? Que saísse à porta em calcinhas cor escarlate e uma pena no cabelo?

O Grange lhe olhou consternado.

-Pois claro que é uma mulher decente - disse Pitt. -O que soube Tellman? A que hora saiu Arledge de casa? Ia só? Aonde disse que ia e a fazer o que? De passeio, reunir-se com alguém, de visita...

Grange parecia doído.

-A mulher disse que saiu por volta das dez e quinze, senhor, só a tomar o afresco. Fazia isso de vez em quando. Ela não se preocupou porque são coisas que costumam fazer os cavalheiros as tardes da primavera, sobre tudo se viverem perto do parque.

-Qual é o endereço? Não me disse isso.

-Mount Street.

-Que mais disse a senhora Arledge?

-Não se inquietou ao ver que não chegava, porque essa noite estava muito cansada e assim que se deitou ficou adormecida. Já era de manhã quando começou a se preocupar que ele não descesse para tomar o café da manhã.

-Sabia sobre o capitão Winthrop?

O Grange ficou boquiaberto.

-O senhor Tellman não o perguntou? - Pitt arregalou os olhos.

-Não, senhor. Não recordo que o dissesse. Mas se é um lunático, o que importaria isso?

-Nada absolutamente. Mas se não o é, então é o que mais importa, Grange.

-Com certeza o é. Com um morto, talvez não. Mas dois, isso só pode ser obra de um louco, senhor. - Grange estava radiante de segurança em si mesmo.

-É a opinião do Tellman?

-Sim, senhor. - Sabia que Pitt estava irritado e, pela primeira vez, isso o fazia sentir-se incômodo. -Pode ser que no final Wee Georgie passou dos limites - sugeriu. –É um ser realmente repugnante. O senhor Tellman sempre diz que um dia acabará pendurado de uma corda.

-Isso espero. Mas não por decapitar ao Winthrop. Espere que tenhamos uma prostituta com uma adaga nas costas.

-Possivelmente o fez FAT George. É mais forte que um urso.

-Ao menos deve pesar o mesmo, mas para que ia decapitar a dois cavalheiros comuns que passavam pelo parque?

-E se não fossem tão comuns? -disse-lhe Grange. -O senhor Tellman diz que esses cavalheiros tão elegantes às vezes têm gostos muito estranhos. Sabe de um ao que gostava que sua mulher o...

-E o assassinaram? - interrompeu Pitt.

-Pois não, senhor. De momento, não.

-Então a trabalhar!

-Sim, senhor! É tudo, senhor?

-Sim.

Grange se retirou apressadamente, enquanto Pitt se perguntava se o agente seria capaz de mudar sua lealdade por Tellman. Até que ponto estava contra ele o resto do pessoal? A sensação de bem-estar com que Pitt tinha cruzado o parque murchou de tudo. Sentia-se cercado. Por um lado, Farnsworth tinha medo pela reputação do corpo de polícia e sem dúvida notava a pressão da gente que começava a exigir alguma prisão, e pelo outro, Tellman estava cada vez mais aborrecido pela promoção de Pitt, seu desdém aumentava dia a dia. Não se incomodava em ocultá-lo a outros, de fato parecia inclusive que desfrutava fazendo-os partícipes disso.

O que tinha feito ao Pitt aceitar a oferta do Micah Drummond? Não era trabalho para ele. Não tinha nem o caráter nem a posição social necessários. Não era diplomático e, certamente, tampouco um cavalheiro.

Iria ver pessoalmente à senhora Arledge. Tinha que haver uma conexão entre as duas vítimas, a não ser que o assassino fosse um louco e nada mais.

Ia andando pelo Bow Street quando duas damas se esquivaram ao passar. Então recordou que não ia vestido de superintendente da delegacia de polícia do Bow Street, e que tampouco tinha humor para visitar a viúva de um cavalheiro.

Retornou a casa pouco depois das seis, cansado e desanimado, com vontade de sentar-se na cozinha, comer bem, contar à Charlotte o que havia de novo e, sobre tudo, compartilhar seus temores e suas dúvidas sobre si mesmo e o cargo que ocupava. Animaria-o, com certeza diria que era perfeitamente idôneo para o posto. Suas palavras seriam fruto mais da lealdade que do entendimento do que supunha aquele trabalho, não obstante o que ele se sentiria incomensuravelmente bem ao ouvi-la as dizer.

—Mas quando chegou à cozinha viu que só estava Gracie, a criada.

-Olá, senhor - disse ela alegremente, seu rosto iluminado de prazer. Ia vestida bem, o pescoço limpo, o avental engomado e impecável, as fitas bem atadas atrás da cintura de vespa. Parecia recém lavada e se sentia importante.

-Tem o jantar pronto, senhor, e posso lhe trazer uma bacia com água quente e outra para os pés, se quiser.

-Obrigado. Bastará uma.

Olhou-o de cima abaixo.

-E se tomasse um banho, senhor? - Tornou a meter-se nesses lugares tão infectos, não é?

-Sim. - sentou-se em uma cadeira, e ela se abaixou para lhe tirar as botas. - Onde está a senhora Pitt?

-Ah, ainda está na casa nova, senhor. Certamente passará ali toda a tarde, não estranharia - respondeu Gracie, indo por uma bacia de água fumegante. –Há muitíssimo que fazer, senhor, e ela me disse que lhe preparasse o jantar, isso se é que vinha para jantar, claro. Guisei-lhe um pouco de cordeiro, senhor, com batatas e cebolas e umas ervas do jardim novo. - Estava muito orgulhosa disso.

Pitt teve que engolir sua decepção. Charlotte passava tanto tempo fora ultimamente que ele começava a tomar a mau. E sabia que não tinha motivo algum. Ela trabalhava na casa nova com os pedreiros, decoradores, encanadores, etcétera, coisas que teria feito ele mesmo se tivesse tempo, mas nada disto conseguia apagar seu mal-estar.

-Obrigado, Gracie - disse sombrio. -Me faz água na boca. E as crianças?

-Vamos, senhor. Disse-lhes que não o incomodem até que tenha acabado de jantar. - Enrugou o rosto e olhou-o. -Parece um pouco fatigado, senhor. Quer que lhe traga algo de comer antes de trocar de roupa? Não acredito que importa, que esteja assim na cozinha, quero dizer.

Pitt sorriu a pesar de tudo.

-Obrigado – aceitou. -Boa idéia.

Gracie fez expressão de alívio. Charlotte lhe tinha feito responsável por uma coisa importante. Ela não era cozinheira, só uma criada para todo que com o tempo se estava convertendo em uma mescla de governanta, criada e cozinheira, com muito de babá, além disso. Desejava agradar ao Pitt, e lhe tinha muito respeito. Ela estava mais orgulhosa de sua promoção que alguns membros da família de Charlotte. Preparou um purê de batata e o serviu com um guisado que cheirava maravilhosamente e depois se sentou ao extremo da mesa esperando instruções. Olhava ao Pitt fixamente, sem poder evitar um ligeiro cenho.

-Quer um pouco de pudim, senhor? - perguntou ao fim. -Há bolacha de melaço.

-Pois sim. - A bolacha de melaço era uma de suas sobremesas favoritas, como ela devia saber.

Gracie se animou de novo, esquecendo comportar-se com a dignidade que tinha assumido. Saltou da cadeira para ir atrás da bolacha, que serviu com um floreio.

-Obrigado - disse ele.

Estava realmente bom, e assim o disse a ela. Gracie se ruborizou com gosto.

-Vai caçar logo ao Verdugo? - perguntou.

-Duvido-o. - Pitt continuou comendo, mas logo acreditou que tinha sido um pouco brusco. -Perguntei às prostitutas da zona se sabiam de alguém que estivesse abusando das garotas e tivesse provocado a algum alcoviteiro, mas me disseram que não. Nenhuma viu nada, ninguém que viva no parque nem que ronde por ali.

-E acredita nelas? - respondeu Gracie.

-Não sei o que dizer - respondeu ele sorridente. -É muito difícil que um fanfarrão mate a um cliente, sobre tudo se paga. Mas dois, já é quase impossível.

-Mas o faria se o cliente marcava à garota, não? A isso lhe chama danificar a mercadoria. Se for a uma loja e quebra algo, tem que pagá-lo.

-É certo - concedeu ele com a boca cheia de bolacha.

-Quer uma xícara de chá?

-Sim. Por favor.

Gracie foi até o fogão. Em poucos minutos voltou com uma xícara de chá e a deixou sobre a mesa. Não parecia haver lhe ocorrido trazer o bule.

-Gracie? - disse ele.

-Sim, senhor? Está muito forte?

-Não, o chá está bem. No que pensa, nas garotas do parque?

Olhou-o, passado o susto, com olhos inocentes.

-Em nada, em nada. Suponho que lhe disseram a verdade. Por que iriam mentir?

A resposta lhe soou insatisfatória, mas ele não sabia por que. Bebeu o chá, agradeceu-lhe outra vez e se desculpou. Tinha que ir a seu quarto e vestir roupa boa. Já que Charlotte não estava em casa, iria visitar a viúva do Aidan Arledge.

Entardecia já quando entregou seu cartão ao mordomo do Dulcie Arledge e foi conduzido a um agradável salão que dava para um jardim com grama que se alongava em ligeiro declive para um muro velho. A esquina de uma estufa aparecia pelo bordo de um arbusto de açucenas e seus vidros captavam a última luz do sol. Dulcie Arledge ia totalmente vestida de negro, o qual não malograva a delicadeza de sua pele nem a suavidade de seus cabelos castanhos. Era tal como Bailey havia dito. Uma mulher cheia de graça e simpatia, com feições que sem ser ostensivamente formosas tinham uma agradável simetria. Não havia nela nada ofensivo. Era em todos os sentidos gentil e feminina.

-É muito amável vindo pessoalmente, senhor Pitt - disse com expressão de agradecimento. -Entretanto, temo que pouco posso acrescentar ao que já disse a seus homens. — Acompanhou-lhe até uma poltrona estofada com um desenho de rosas cor damasco e braços de madeira esculpida. Havia outro em frente, a jogo com o vermelho escuro das cortinas e o rosa apagado do papel estampado das paredes. As proporções da sala eram perfeitas e, nos poucos momentos que Pitt teve para fixar-se nessas coisas, pensou ver que os móveis eram de palisandro.

Indicou-lhe uma das poltronas e ela se sentou na outra.

-Não obstante, senhora Arledge - disse ele, -agradeceria-lhe que me relatasse o que ocorreu essa tarde, tal como o recorda.

-Certamente. Meu pobre marido saiu para dar um passeio e tomar o afresco, seriam pouco mais das dez. Não disse que esperasse encontrar-se com alguém nem que demoraria mais de vinte ou trinta minutos. Nem sempre nos deitamos à mesma hora. - Sorriu a modo de desculpa. -Verá você, Aidan saía bastante de noite porque dirigia concertos e recitais. Às vezes chegava a casa passadas as doze, ou inclusive mais tarde se o tráfego era denso e não achava facilmente um cabriolé.

Apesar do horror das circunstâncias, sua maneira de falar recordou ao Pitt os comentários de Bailey.

-Esperar é algo muito frustrante, não lhe parece? - perguntou em voz baixa. -Muitas vezes não o esperava levantada. Queria fazê-lo, sabe, mas -Conteve o fôlego. -Ele era muito considerado.

-Entendo - disse rapidamente Pitt, esperando achar a maneira de aliviar a angústia da viúva. -Senhora Arledge, meu sargento diz que o senhor Tellman não lhe perguntou se você conhecia o capitão Oakley Winthrop.

-Céus. - A mulher olhou-o com alarme e logo compreendeu. -É verdade, mas não teria servido muito. Nunca tinha ouvido falar dele até que morreu. Significa isso algo, superintendente?

-Não sei, senhora.

-Naturalmente, meu marido conhecia muitas pessoas desconhecidas para mim, admiradores de seu trabalho, músicos. Acredita que o capitão Winthrop era uma delas?

-É possível. Terá que perguntar à senhora Winthrop.

Ela desviou o olhar.

-Pobre mulher – disse. -Sei que a morte pode chegar a qualquer idade, mas uma pessoa não espera enviuvar antes dos quarenta. Soube que ela não os completou ainda. A verdade é que não leio o jornal, meu marido não gostava muito que o fizesse, mas sempre se ouvem coisas, inclusive entre a criadagem.

-Sim, acredito que a senhora Winthrop deve rondar essa idade. Parece que tem duas filhas que se casaram recentemente. A senhora Winthrop ainda é jovem.

-Quanto o lamento. - Esticou as mãos sobre o regaço.

Pitt teria dado algo por não ter que fazer nada salvo formular perguntas óbvias e lhe oferecer um pouco de compaixão. Admirava sua compostura, a ausência de azedume, ira ou autocompaixão, coisas que teriam sido perfeitamente compreensíveis. Mas o dever empurrava-o a entrar em um terreno mais pessoal, e quanto antes o fizesse, melhor. Era uma intrusão que lhe doía mais que nunca.

-Senhora Arledge, temos que examinar os efeitos pessoais de seu marido para ver se achamos algo que nos proporcione uma conexão entre ele e o capitão Winthrop. Dou-me conta de que é desagradável, e o sinto muito, mas é inevitável fazê-lo. Não resta outra alternativa.

-É claro. Compreendo-o. Não se sinta na obrigação de desculpar-se. – Franziu o sobrecenho, empapados os olhos. -Não dizem que foi um louco? Em tal caso, não terei que procurar motivos razoáveis.

-Ainda não sabemos, senhora Arledge. De momento temos que investigar todas as possibilidades.

-Entendo. - Olhou para um vaso de narcisos cujo penetrante perfume chegava até onde estavam sentados. -É lógico. Que deseja ver primeiro? O policial, não recordo como se chama, olhou já, mas pode ter passado algo por alto.

-O inspetor Tellman.

-OH, sim, agora o recordo - disse ela sem mais. -Não esteve muito tempo. Pelo que ele disse parecia ser coisa de... - engoliu em seco - de um maníaco.

-Eu gostaria de ver seus papéis. - Pitt ficou de pé. Tinha vontade de desculpar-se outra vez, mas isso só teria feito mais aparente a intromissão. A elegância dela, sua silenciosa coragem, despertavam nele respeito e um carinho instintivo, o que fazia mais desagradável sua tarefa oficial. -Tinha um estúdio? - perguntou ao levantar-se ela com extraordinário equilíbrio, como se de jovem tivesse sido bailarina. E depois, possivelmente veria seu quarto de vestir.

-Certamente. Se me acompanhar o mostrarei eu mesma. Saíram do salão e cruzando o vestíbulo com chão de parquet entraram em um amplo e ventilado estúdio com muito poucos livros, não mais de cinqüenta ou sessenta, sem a recarregada ornamentação que tinha visto em outras tantas habitações que aparentavam ser estúdios, mas eram mais lugares onde receber às visitas ou as impressionar com a riqueza ou os gostos de uma pessoa. Deu-lhe a impressão de um espaço pensado para trabalhar.

-Aqui o tem, superintendente. Pode olhar tudo que achar oportuno.

Pitt lhe agradeceu ao desculpar-se ela, e se sentiu ainda pior. Era normal examinar os efeitos de uma pessoa assassinada, mas se tinha sido vítima de um demente, aquilo era uma afronta sem sentido. Contudo, agora que estava ali devia seguir adiante. Quão único justificava sua busca era o fato de que Winthrop tivesse sido achado no bote. Não podia ser que tivesse subido voluntariamente a ele com um desconhecido que abordou-o na escuridão da noite. E, a julgar por seus sapatos, tinha ido andando até ali. E não tinha havido resistência.

Tampouco Arledge resistiu. Deveriam lhe ter agredido por detrás e sem prévio aviso, ou conhecia seu atacante.

Começou pelo que havia na escrivaninha e leu tudo sistematicamente. Era muito interessante. Arledge tinha sido um homem de gostos sofisticados, mas sem pomposidade. Certas cartas lhe mostravam como alguém generoso tanto com seus meios como em elogios a seus colegas. Quanto mais lia Pitt, mais sentia a perda de um homem que teria gostado, um sentimento bem diferente de que tinha suscitado nele o que sabia do capitão Winthrop.

O que podiam ter em comum?

Havia muitos livros de música, montões de esboços de composições, ao menos cinqüenta partituras de obras que iam de óperas do Gilbert e Sullivan a concertos para teclado de Bach e as últimas peças de câmara do Beethoven. Não havia nada que pudesse relacioná-lo com o Oakley Winthrop ou sua família.

Depois, a criada o acompanhou ao quarto de vestir do Aidan Arledge, e depois de perguntar se desejava alguma coisa mais, deixou-o só.

Sobre a cômoda alta havia uma escova com cabo de prata, aparelho de barbear e artigos de penteadeira. Na gaveta superior achou um punhado de botões de colarinho e de camisa, abotoaduras e um anel de heliotrópio, uma coleção excessivamente modesta para um homem que fazia freqüentes aparições em público em traje de gala.

Revistou o armário. Havia uma fileira de trajes e nas gavetas ao menos vinte camisas, a maioria das quais para usar de dia. Continuou examinando o resto do aposento. Havia algumas lembranças, uma fotografia de Dulcie em uma moldura de prata. Ia vestida de amazona, mas com essa elegância intemporal da mulher de campo que caça a cavalo com cães. Sorria à câmara, confiante e feliz. Atrás dela havia um grupo de árvores desfocadas. Em uma cômoda achou roupa branca, lenços e meias, o que cabia esperar.

Não tinha visto nenhum diário, tampouco no estúdio. Faltava o casal da escova de prata. Não havia abotoaduras de noite para as camisas.

Revistou tudo com atenção, fechou as gavetas e desceu a escada para bater na porta do salão.

-Entre, superintendente - disse a senhora Arledge.

-Tinha seu marido camarins nas salas de concertos? - perguntou ele, fechando as portas. Odiava isto. Tinha já uma negra intuição e se sentia doído pela viúva.

-Não, superintendente. - Sorriu-lhe apenas, com uma sombra nos olhos, apesar de sua voz soar calma. -Como pode ver, ele dirigia em muitos lugares diferentes. Em realidade, raramente o fazia na mesma sala duas semanas seguidas.

-Então onde se trocava para atuar?

-Pois aqui, é claro. Era muito meticuloso com seu aspecto. É lógico quando a pessoa é observada por tanta gente. - Sua voz se reduziu a um sussurro. -Aidan sempre dizia que era uma grande descortesia ir mal vestido como se não acreditasse que o público merece o melhor.

-Entendo.

-Por que o pergunta, superintendente?

Pitt evitou a resposta.

-Se tinha um concerto a última hora, seu marido vinha a casa ou ficava com os amigos ou com outros músicos?

-Bom, acredito que o fez algumas vezes. - Agora a notava vacilante, sua expressão tinha um toque de nervosismo, o início do medo. -Como lhe disse antes, nem sempre esperava-o levantada. - mordeu o lábio. -Lhe parecerá pouco apropriado por minha parte, mas não me é fácil estar levantada altas horas da noite e como Aidan certamente voltaria muito cansado, desejaria retirar-se ao chegar. Ele me pedia que não me incomodasse em esperá-lo. Por isso não... - Agora lhe custava dominar-se. -Por isso não senti falta dele aquela noite.

Pitt sentiu tanta pena dela que ficou sem fôlego. Estava muito confuso. Como podia um homem tão sensível como o que sugeriam as cartas do estúdio

ter enganado a uma mulher assim?

-Compreendo-o, senhora. Parece-me perfeitamente lógico – disse. -Eu não pretendo que minha mulher me espere levantada se chegar tarde. De fato me sentiria culpado se o fizesse.

Sorriu, mas o medo de seu olhar continuava ali, se é que não tinha aumentado.

-É muito gentil. Obrigado por dizê-lo.

-Dirigiu o senhor Arledge aquela noite?

-Não. - Negou com a cabeça. -Passou a tarde em casa, trabalhando em uma partitura difícil. Inclino-me a pensar que por isso quis ir dar um passeio, a fim de limpar um pouco a cabeça antes de deitar-se.

-Tinha um criado de quarto, senhora?

-Sim, certamente. Deseja falar com ele?

-Rogo-o.

A mulher se levantou.

-Ocorre algo mau, superintendente? Descobriu algo... algo relacionado com os Winthrop?

-Absolutamente.

-Vejo que prefere não me dizer isso. Peço-lhe perdão por perguntar. Não estou acostumada a...

Pitt desejou poder dizer algo reconfortante e amável, algo remotamente próximo à verdade que mitigasse a dor daquela mulher, e a ferida adicional que sem dúvida estava próxima a produzir-se.

-Poderia ser que não tivesse nenhuma importância, senhora Arledge. Preferiria não tirar conclusões. - Foi inútil, e soube assim que teve pronunciado aquelas palavras.

-É claro. O criado de quarto - concedeu ela, sem lhe olhar nos olhos. Tocou a campainha e quando chegou a criada lhe disse que avisasse ao criado de quarto para que fosse ao estúdio.

Mas suas respostas não fizeram senão turvar ainda mais as coisas. Ou não tinha a menor idéia de onde estava a outra escova de prata ou se negava a dizê-lo.

Tampouco sabia onde achar as abotoaduras de noite. Parecia confuso e envergonhado, mas Pitt não deduziu que houvesse sentimento de culpa.

Enquanto voltava pelo Mount Street em direção ao parque, teve a desagradável sensação de que apesar da sua cortesia e humor, Aidan Arledge era muito mais complicado do que lhe tinha parecido a princípio. Havia algo oculto, algo pendente de explicação.

Aonde ia depois dos concertos? Onde estavam os objetos que Pitt tinha esperado achar? Por que tinha dois jogos de chaves? Tinha Aidan Arledge outro lugar do qual sua esposa não sabia nada?

Por que? Para que ia um homem ter uma casa secreta?

Só lhe ocorria uma resposta, a mais óbvia, dolorosa e evidente: tinha uma amante. Em alguma parte havia outra mulher chorando sua morte, uma mulher que não ousava fazer pública sua angústia nem tampouco sua relação com a vítima.

Gracie se tinha decidido enquanto estava sentada à mesa da cozinha observando Pitt com o prato de bolacha, mas era já passada a meia-noite quando pôs em marcha seu plano. Tinha que estar segura de que todos estivessem dormindo. Se a pilhavam bisbilhotando, não poderia dar nenhuma desculpa plausível, e toda sua aventura ficaria abortada. E depois da última vez, Pitt iria às nuvens e podia ser que a despedisse. Isso lhe era insuportável de pensar. Mas também o era o saber que a imprensa o criticava, gente que não sabia do que estava falando e que não era digna de arejar suas opiniões sobre o senhor.

Assim não ficava outra alternativa que descobrir algo. Além disso, com a senhora tão ocupada na nova casa, e miss Emily com as mãos atadas pelo assunto das eleições, quem mais podia lhe ajudar?

Uma vez na calçada caminhou a passo vivo para a avenida. Tinha dinheiro suficiente para ir em um cabriolé até o parque, e é claro voltar. Tinha-o pego do dinheiro para comprar peixe, o que não era muito honesto. Mas se ela não comia peixe amanhã, então tampouco era roubar.

Não tinha aspecto de prostituta. As garotas que faziam a rua não saíam vestidas de criada, abotoadas até o pescoço, com mangas longas e uniforme de cor azul cinza. Mas ela tampouco pretendia seduzir a ninguém. O que procurava era informação, não comércio. Existia também o perigo de ser vista como uma possível rival e afugentada, possivelmente com violência, por algum alcoviteiro.

Desta vez dificilmente podia suscitar esses sentimentos. Brincadeira, talvez, risadas, inclusive piedade, mas não temor.

Demorou vários minutos em conseguir uma carruagem e convencer ao condutor de que tinha dinheiro para pagar, e outro quarto de hora para chegar ao parque.

A carruagem se afastou com os cascos do cavalo ressoando na rua deserta para o Knightsbridge. A escuridão se abateu sobre ela, abraçando-a, cheia de estranhos sons, qualquer dos quais podia ser o de alguém que se aproximava, um transeunte, alguém que tinha saído para um último passeio, um homem em busca de mulher, uma prostituta em busca de cliente, um fanfarrão vigiando seu território, o Verdugo do Hyde Park...

-Basta - se disse a si mesma em voz alta. -Serene-se e não seja estúpida.

E com essa admoestação pôs-se a andar a passo vivo pela calçada. O ruído de seus passos soava como um coração pulsando na noite, e Gracie se deu conta de que parecia muito decidida para atrair a atenção das pessoas.

Em realidade demorou quase uma hora, então já tinha frio, medo e estava a ponto de abandonar, quando uma mulher alta e angulosa com o cabelo cor de palha e um vestido barato se aproximou e a olhou com receio e desdém.

-Por aqui não passam ônibus, encanto – disse. -E com essa rosto que traz, não acredito que vá subir a nada mais.

Gracie levantou o queixo, olhou ao redor e logo disse:

-Como você, né?

-Eu terei o meu, garota descarada - respondeu a outra, - mas você não tirará nem para alimentar a um coelho. Diria-se que não fincaste o dente há uma eternidade, não tem carne nos ossos. Os homens não gostam de mortas de fome, sem quadris nem tetas. - Fez uma careta. -A menos que sejam retorcidos. Ande com cuidado, esses podem tornar-se difíceis porque de entrada já estão mal da cabeça. - Deu de ombros. -Além disso, esta é minha zona, sabe, e eu não gosto dos caçadores furtivos. Se não a jogar eu daqui, fará-o meu fanfarrão.

Gracie sentiu um calafrio de medo e excitação. Inspirou fundo e soltou o ar muito devagar.

-Eu não sei nada de retorcidos - disse, procurando soar muito indecisa. -Nunca aceito ofertas de gente suja.

-Ah. - A mulher era mais que pálida a distante luz de gás, de modo que era difícil saber se lhe tinha mudado a cor, mas sua expressão indicava temor. -Não me referia ao Verdugo. Deus nos livre, não nos incomodou de momento. Acredito que só procura tios.

-Não quero saber nada desse! - disse Gracie com um estremecimento teatral. Ali de pé, às escuras sob as árvores, com o vento gelado que lhe penetrava pela roupa e só uma réstia de luzes na distância, o medo era fácil de imaginar. –Teria que despachar a nós também, só porque o vimos fazer alguma maldade.

-Tem razão - disse a mulher, aproximando um passo, como se a proximidade física pudesse protegê-las da violência.

-Você acha que alguma de nós poderia chegar a ser sua presa? –perguntou Gracie com toda a inocência de que foi capaz. Em realidade lhe tremia a voz, de modo que sua atuação falhou desde o começo.

-Como? - A mulher olhou calçada abaixo para as sombras. -É, parece-me que há um cliente à vista. Não me danifique o negócio, desgraçada, ou te deixo o rosto irreconhecível.

Gracie ia espetar-lhe que ela não pensava degradar-se, mas recordou a tempo o papel que representava.

-Tenho que viver de algo - disse lastimosa. -Não se preocupe. É bonita.

A mulher sorriu sem alegria mostrando uns dentes escuros e manchados.

-Que bajuladora – disse. -Bom, uma coisa é certa: tenho mais do que você terá nunca. Farei-te um favor, se gostar, coisa que não é provável, pode ficar com isso. E se voltar a vê-la em minha zona Mato você.

-Eu mesma me buscarei um cliente.

-Algum fugido? - A mulher riu. -Quem vai querer a ti se não vale nada?

-Claro que sim. Há cavalheiros que gostam de pequenas, como meninas. - Gracie sabia pelo que tinha ouvido dizer a parentes de má reputação quando não sabiam que seus ouvidos infantis estavam ao estorvo, antes de entrar para trabalhar para Charlotte.

-Tem de tudo - concedeu a mulher. -A alguns gostam que lhes diga baixarias, outros querem que solte os piores palavrões e que finja que os odeia, outros gostam que os tratem como a crianças… e depois há os que desejam muito machucar você. Com esses terá que vigiar, alguns são perigosos. Por aqui ronda um que gosta de dar surras às garotas, é um verdadeiro porco, um tio grande, fala suave como se fosse um cavalheiro, muito educado ele, mas depois a deixa cheia de hematomas. Esse é um bode de verdade. Nem que pagasse muito valeria a pena. É melhor que não se aproxime nunca de você.

Gracie engoliu em seco, tinha a garganta tão tensa que quase não lhe saía a voz.

Seria essa a pista que procurava Pitt? Possivelmente aquele homem tinha dado  uma surra a uma garota, o alcoviteiro o tinha matado e a segunda vítima tinha sido assassinada porque sabia algo do assunto.

-Tem razão - disse engasgada. -Não sei, possivelmente deveria experimentar em uma rua mais iluminada. Não quero tropeçar com um tipo como esse.

- Fique tranqüila, girina. Esse gosta das mulheres, não de crianças. – Riu. -Enfim, vejo que vem um cliente. Este é meu. Boa sorte, criatura, vai necessitar dela. – E agitando o braço, deu meia volta e foi rebolando para as sombras com um vaivém de quadris.

Gracie esperou até que se perdeu de vista na escuridão e logo e pôs-se a correr.

 

Emily ia vestida como correspondia à ocasião. Usava seu vestido favorito, o de cor verde nilo, muito elegante e debruado com contas de prata e perolas. A cintura era minúscula e, ela mesma o admitia, menos que cômoda, e a blusa cruzada na parte dianteira com o decote longo. As anquinhas quase desapareciam, substituída sua plenitude por uma nova plenitude no alto da manga, que ia decorada com penas no ombro. O efeito era surpreendente, e Emily era consciente disso pelos generosos olhares dos cavalheiros, os sorrisos congelados das damas e o subseqüente cochicho.

Tinha sido um jantar suntuoso servido em grande estilo. Os convidados estavam agora nas diversas salas de recepção, conversando, rindo e intercambiando intrigas pessoais e políticas em pequenos grupos, embora é claro o pessoal fosse o mais político de tudo. As eleições se aproximavam, a atmosfera era muito quente.

Emily estava de pé, não porque assim o desejasse, mas sim porque seu espartilho - que tinha comprimido seu delicioso talhe lhe impedia de sentar-se muito tempo sem sentir-se incômoda. Tinha tido bastante com o jantar.

-Quanto me alegro de vê-la, querida senhora Radley, e com um aspecto tão excelente. - Lady Malmsbury mostrou um luminoso sorriso contemplando Emily friamente. Lady Malmsbury tinha deixado atrás os quarenta, era morena, mas bem gorda e ardente partidária dos tories e, por conseguinte de Nigel Uttley, o rival de Jack. Sua filha Selina era da idade de Emily, de quem tinha sido amiga anteriormente.

-Estou muito bem de saúde, obrigada - respondeu Emily com um sorriso igualmente deslumbrante. -Espero que também o esteja. Certamente, assim o parece.

-Pois sim - disse lady Malmsbury, estudando discretamente Emily e julgando-a negativamente. -Como está sua mãe? Não a vejo há um século. Espero que bem. Isto de ficar viúva é horrível para qualquer mulher, tenha a idade que tiver.

-Está muito bem, obrigada - disse Emily um pouquinho mais à defensiva. Não desejava entrar nesse tema.

-A outra noite tive uma experiência muito estranha, sabe você –continuou lady Malmsbury, movendo-se de forma que suas saias roçaram as de Emily. –Saía eu de um recital, um estupendo recital de violino. Gosta de violino?

-É claro - se apressou a dizer Emily, perguntando-se o que quereria lhe dizer tão confidencialmente. O brilho de seus olhos não augurava nada bom.

-Eu também. E este era muito fino. Que prodígio. Um instrumento muito elegante - continuou, sem deixar de sorrir. -E enquanto eu descia pelo Strand para tomar o afresco antes de subir a minha carruagem, vi um grupo de pessoas saindo do Gaiety Theatre, e uma delas me recordou muito a sua mãe. - Abriu um pouco mais os olhos. -Teria jurado que era ela, a não ser por aquele vestido e a companhia em que se achava.

Emily não tinha mais alternativa que esquivar-se, não quisesse responder a inevitável pergunta.

-Seriamente? Que estranho. Seria um efeito óptico, suponho. Às vezes as luzes produzem impressões muito estranhas.

-Como diz?

-Digo que as luzes podem causar estranhas impressões - repetiu Emily com um sorriso artificial. Negou-se a perguntar quem acompanhava a sua mãe.

Mas lady Malmsbury não estava disposta a capitular.

-Não acredito que pudessem criar uma ilusão como aquela. Estava com um grupo de atores, querida! E estava muito à vontade entre eles. Não era casualidade que saíssem juntos. E nada menos do Gaiety. Sua mãe alguma vez teria ido a esse lugar, não é? - riu ante o absurdo da idéia, uma gargalhada dura e vibrante. -E com semelhante gente!

-Acredito que eu não distinguiria um grupo de atores se os tivesse diante - respondeu friamente Emily. -Me leva vantagem.

Lady Malmsbury endureceu a expressão e levantou as sobrancelhas.

-Sei que esteve afastada da boa sociedade durante sua gravidez, querida, mas tenho certeza de que reconheceria ao Joshua Fielding. Agora está muito bem. Um rosto interessante, feições notáveis, nada mais longe do que alguém chamaria comum, e muito expressivas.

-OH, se era Joshua Fielding, imagino que iria ao Gaiety como espectador, não que tivesse atuado ali - disse Emily forçando ao máximo seu cândido papel. -É um ator muito sério, não é?

-É claro - disse lady Malmsbury. -Mas isso não significa que seja boa companhia para uma dama, socialmente ao menos. - Voltou a rir sem deixar de olhá-la.

-Pois não sei - disse Emily, agüentando o olhar. -Não tenho o gosto. – Era mentira, pois se tinham conhecido em privado, de modo que lady Malmsbury não podia sabê-lo.

-É um ator - repetiu lady Malmsbury. -ganha a vida no cenário.

-Também a senhora Langtry - observou Emily. -E parece que o príncipe de Gales a acha perfeitamente aceitável, quero dizer socialmente.

Lady Malmsbury endireitou as mandíbulas.

-Não é o mesmo, querida minha.

-Não sei até que ponto pode dizer-se que a senhora Langtry consiga a maior parte de seus ganhos no cenário, atuando possivelmente sim, mas em uma posição muito distinta e em lugares menos públicos. Ao menos em geral.

Lady Malmsbury se ruborizou.

-Será possível! Devo lhe dizer que considero esse comentário do pior gosto.

Desde que se tornou a casar, querida, mudou muito, e não para melhor. Agora entendo por que sua pobre mãe não se deixa ver em sociedade tanto como antes. Embora seja com um turbante de seda e um vestido sem cintura.

Emily se esforçou por parecer perplexa, embora interiormente fervia de prevenção.

-Não imagino a ninguém em sociedade com semelhante traje - disse.

-E no Gaiety Theatre - disse lady Malmsbury. -Muito peculiar.

-Certamente. - Emily já não tinha nada que perder, e disse o que lhe veio à cabeça: -Espero que passara uma noite agradável. Um bom jantar, excelente, possivelmente? - Levantou as sobrancelhas. -E muito festiva - Pronunciou devagar a palavra, olhando-a sem contemplações.

Outra ascendente onda de cor cobriu a rosto de lady Malmsbury. A insinuação era deliciosa, mas não tão sutil que a ela tivesse escapado.

-Agradável, mas não indulgente - disse entre dentes.

Emily sorriu como se não acreditasse uma palavra.

-Foi um prazer, lady Malmsbury, voltar a vê-la tão robusta.

A mulher procurou algo igualmente vexatório e, ao não encontrá-lo, afastou-se com um frufrú de tafetá verde e negro.

Emily tinha ganho a batalha verbal, não obstante o que estava muito preocupada. Nem por um instante tinha duvidado que fora Caroline a mulher a quem tinha visto lady Malmsbury, vestida de modo extravagante e em companhia do Joshua Fielding e seus amigos. Teria que fazer algo a respeito, mas de momento não lhe ocorria o que.

Agora lhe tocava ser encantadora e dar a todo mundo a impressão de que nada a inquietava salvo de que maneira apoiar ao Jack enquanto ele se  ocupava de ganhar a eleição, apesar de não estar nada segura de que Jack saísse vitorioso.

Os tories os tinham muito apoio na zona. Jack era um recém-chegado à política e Nigel Uttley tinha muitos amigos influentes, além da ajuda secreta e onipresente do Círculo Interno.

Adotou uma expressão de inteligente interesse e zarpou a apresentar batalha.

        No dia seguinte teve que preparar-se para um problema de muito distinta ordem.

Desta vez não havia necessidade de vestir de um modo especial, o armamento era meramente emocional e mental. Assim, usava um vestido comum de musselina branca quando desembarcou da carruagem no Cater Street e se plantou em casa de sua mãe.

-Bom dia, Maddock - disse quando o mordomo abriu a porta. Conhecia-o desde que era uma menina e não andava com formalidades. -Está mamãe? Bem. Tenho que vê-la.

-Temo que não desceu ainda, senhorita Emily. - Maddock não sei negou a deixá-la entrar, mas sim lhe bloqueou o passo ao chegar ao pé da escada.

-Então lhe diga que estou aqui e pergunte se posso subir. – Nesse momento uma idéia espantosa a sobressaltou. Caroline tinha que estar sozinha! Ou não? Não podia ter perdido a cabeça até o ponto de... Céu santo. Emily ficou gelada e as pernas lhe fraquejaram.

-Encontra-se bem, senhorita Emily? - disse Maddock. -Quer que lhe traga um pouco de chá, uma limonada, possivelmente?

-Não. Obrigado, Maddock. - Tinha que confrontar, fosse qual fosse a verdade. -Diga a mamãe que desejo vê-la urgentemente.

-Passa-se algo de mau, senhorita Emily?

-Isso está por ver. Mas sim, receio que há ao menos um problema.

-De acordo, se quiser sentar-se, avisarei à senhora que está aqui. - E sem dizer mais subiu a escada.

A espera se fez interminável para Emily. E se Caroline estava tendo um romance em toda regra com Joshua? Era melhor não pensar nisso. Tinha que ter se tornado louca de arremate. A viuvez a tinha desequilibrado, não havia outra resposta possível. A submissa, previsível e ordinária mãe se desajustara por completo.

-Senhorita Emily.

-Oh, - Deu meia volta.

Maddock tinha descido a escada sem que lhe ouvisse.

-A senhora Ellison a receberá, se fizer o favor de subir ao quarto – disse Maddock com muita fleuma.

-Obrigado. - Emily recolheu rapidamente as saias, prescindindo de toda elegância feminina, subiu a escada a correr, dobrou a esquina ao chegar ao patamar e sem mal bater se precipitou no quarto de sua mãe.

Deteve-se em seco. Estava tudo muito mudado. Os velhos tons sóbrios café com leite tinham desaparecido, assim como os móveis de madeira escura. Em seu lugar havia um verdadeiro colapso de rosas, vermelhos e amarelos mesclados, uma cuja de latão com botões reluzentes e móveis pálidos feitos a saber do que. O quarto parecia duplamente grande, e como se a tivessem transportado fora da casa para depositá-la no meio de um jardim. Se por acaso não bastava as cortinas, e o dossel floreados, havia também um enorme vaso de cristal cheio de rosas sobre a penteadeira, e como ainda estavam a primeiros de maio, tinham que proceder de alguma estufa.

Caroline estava sentada na cama, envolta em um penteador de seda cor damasco e com o cabelo solto sobre os ombros, seu aspecto era de verdadeira felicidade.

-Você gosta? - perguntou, vendo o rosto de surpresa de sua filha.

Emily estava horrorizada, tudo lhe era diferente e muito pouco familiar, mas devia confessar honestamente que o achava agradável.

-É... é lindo - disse à força. -Mas por que? Além disso, terá lhe custado uma fortuna.

-Não acredite - disse Caroline com um sorriso. -O que caramba, passo muito tempo aqui, eu diria que a metade de minha vida.

-Dormindo - protestou Emily com uma vertigem no estômago.

-Enfim, eu gosto assim. - Caroline estava contente. -É meu quarto. Sempre quis ter um quarto cheio de flores. E é muito acolhedor, embora esteja em pleno inverno.

-Se não sabe - argumentou Emily. - Vim vê-la em março e ainda não tinha mudado nada.

-Pois quando chegar - disse sua mãe sem arredar-se. -Além disso, março pode ser pior que o inverno. Muitas vezes neva em março. E quero gastar o dinheiro como tiver vontade.

Emily se sentou na cama. O certo era que Caroline estava radiante. Tinha uma pele luminosa e seus olhos brilhavam de vitalidade e entusiasmo. Emily fazia cruzes de quando Joshua se cansasse dela e a deixasse plantada. De repente odiou-o.

-O que acontece? - perguntou Caroline. -Maddock me disse que queria me falar de algo urgente, e a verdade é que a vejo um pouco nervosa. Tem que ver com o Jack e as eleições?

-Bom, em realidade não.

-Não se explica muito bem - indicou sua mãe. -Será melhor que me conte e já decidiremos depois com o que ou com quem tem que ver.

Emily olhou para a janela, suas formosas flores brilhantes.

-Ontem estive em um jantar - começou, mas se interrompeu, agora que se decidira, parecia-lhe muito corriqueiro. Procurou a melhor maneira de dizê-lo.

-E? - urgiu-a Caroline, erguendo-se um pouco sobre os travesseiros. -Conheceu ali a alguém importante?

-Várias pessoas. Mas esta em concreto não o era absolutamente.

Sua mãe franziu o sobrecenho.

-Foram as coisas que me disse - continuou Emily. -Bom, trata-se de lady Malmsbury.

-A mãe da Selina Court? - Caroline pareceu surpreendida. -Por certo, viu a sir James ultimamente? Era um homem muito agradável, agora se tornou gordo e está ficando sem cabelo. Sempre pensei que Selina podia haver-se casado melhor, mas Maria Malmsbury não queria esperar.

-Sim, nunca me pareceu grande coisa. Enfim, lady Malmsbury me contou que a viu sair do Gaiety Theatre vestida com um turbante rosa e um vestido sem cintura digna desse nome, acompanhada do Joshua Fielding e outros atores. Ou, para ser mais exata, disse que era impossível que fosse você. Mas naturalmente quis dizer que sim o foi.

-Ah, sim, passamo-lo divinamente! - exclamou Caroline com entusiasmo ao recordar. -Foi muito divertido. Nunca pensei que algumas canções pudessem ser tão pegajosas. E fazia anos que não ria tanto. Rir é muito bom, sabe. Sobre tudo para o rosto.

-Mas com um turbante rosa...

-Por que não? A seda é um tecido delicioso, e os turbantes favorecem muito.

-Mamãe! E um vestido sem cintura! Se é que tinha que ir, não podia ter posto algo mais normal? Já ninguém usa essas coisas.

-Minha querida Emily, não tenho a menor intenção de deixar que María Malmsbury me diga como tenho que vestir, nem onde devo me divertir ou em companhia de quem. E me importa um rabanete a moda. Por mais que queira a você e à Charlotte, tampouco deixarei que me dêem instruções. - Pôs uma mão sobre a de Emily. -Se isso a envergonha, sinto muito, mas houve momentos em que você mesma me fez passar vergonha. Por exemplo, quando se mete nas coisas do Thomas.

-Você também o fez - respondeu Emily indignada. -Não passaram nem seis meses. Como pode ser tão...?

-Sei - se apressou a dizer Caroline. -E se as circunstâncias me brindassem a oportunidade, faria-o outra vez. A experiência me ensinou que me equivoquei ao me sentir envergonhada. Pode ser que com o tempo você aprenda o mesmo.

Emily soltou um gemido de frustração.

-É isso o único que a preocupa? - perguntou sua mãe.

-Pelo amor de deus, mamãe, parece-lhe pouco? Minha mãe sai com um ator que tem a metade de seus anos, e o que isso a exclua da boa sociedade parece não lhe importar. Vêem-na pelo Strand vestida quem sabe como!

-Querida, se isso assustar a seus respeitáveis votantes, possivelmente me granjeará as simpatias de outros menos respeitáveis - disse Caroline alegremente.

-Confiemos em que percam os dissimulados. Mas se quiser que fique em casa vestida de arroxeado para que Jack saia vitorioso, temo-me que não lhe farei esse favor, e não será porque eu não queira que ganhe.

-Não estava pensando no Jack. Preocupa-me você - protestou Emily, e o dizia a sério, pois não confiava em que Jack saísse eleito. -O que acontecerá quando tudo isto acabar? Pensaste nisso?

A alegria se desvaneceu do rosto de Caroline. Agora parecia tão vulnerável que Emily sentiu vontade de abraçá-la como teria feito de menina.

-Estarei velha e só e recordarei os bons momentos em que fui feliz e amada - respondeu Caroline com calma, olhando a colcha rosa. -Terei tido risadas, imaginação e amizade como poucas mulheres jamais tiveram, e conservarei minhas lembranças sem amargura. - Olhou a sua filha. Isso é o que acontecerá. Não penso me deixar vencer, nem espero que você ou Charlotte me façam companhia enquanto choro por isso. Sente-se melhor assim?

Emily notou que os olhos se enchiam de lágrimas e se sentiu ridícula.

-Não. Eu... me saberá muito mal por você! - Fungou e procurou um lenço sem encontrá-lo.

Caroline lhe deu o que tinha sob o travesseiro.

-É o preço do carinho, querida - disse. -Normalmente são os pais os que se afligem, mas às vezes acontece o reverso. A única maneira de evitá-lo é não querer muito a ninguém para que depois não lhe doa. Mas isso é como ter uma parte morta de você.

Emily soltou um longo suspiro. Não havia nada que dizer a aquilo, nada que objetar.

-Me fale da campanha - propôs Caroline, recuperando o lenço. -E da casa nova de Charlotte, viu-a?

-Sim. De momento é horrível. Mas acredito que poderá ficar muito bem, reparando muitas coisas e gastando ao menos uma centena de libras, possivelmente inclusive duzentas. - E passou a contar a Caroline.

Quando se dispunha a partir, meia hora depois, topou-se com sua avó no vestíbulo. A velha dama ia vestida de negro, como era seu costume, achava que uma viúva devia comportar-se como tal. Apoiada pesadamente em sua bengala observou Emily descer a escada até a andar térreo antes de falar.

-Ah - disse, -de maneira que veio ver sua mãe. Isto parece o lugar de trabalho de uma rameira! Afrouxou-se um parafuso, claro que sempre os teve um pouco frouxos. Foi meu pobre Edward o que conseguiu que não perdesse a dignidade enquanto viveu. Com certeza estará removendo-se na tumba ao ver este antro. - Maltratou o chão com sua bengala. -Não acredito que possa ficar aqui mais tempo. Não há quem o agüente. Acredito que irei viver com você. - Girou furiosa para o vestíbulo. -Com a Charlotte é impossível. Sempre foi. casou-se com quem não devia. Isso não poderia suportar.

Emily estava horrorizada.

-Tudo porque mamãe decorou de novo seu quarto? - Sua voz denotava incredulidade. -Se você não gostar, basta que não entre.

-Não seja ridícula! - disse a anciã, olhando-a de novo. -Acaso acha que o fez só para ela? Tem intenção de colocar aí a esse homem. Está mais claro que a água.

Emily não acreditou que pudesse suportar ter a sua avó vivendo em casa. Nem sequer Ashworth House, com sua enorme amplitude, era bastante grande para compartilhá-la com a avó.

-Não penso viver em uma casa de gente imoral e escandalosa - disse a anciã com veemência, erguendo a voz. -Que tenha que agüentar isto na minha idade! - Seus olhinhos refulgiam. -Acabarei morrendo de pena.

-Tolices! - disse Emily. -Ainda não aconteceu nada, e possivelmente não aconteça nunca. - Embora não acreditava de todo, e por isso procurou evitar o olhar de sua avó.

-Não me diga "tolices"! - A anciã voltou a golpear furiosamente com a bengala, arranhando o piso de madeira. -Eu vi o que vi, e sei muito bem quando uma mulher é uma perdida.

-Não é uma mulher, é mamãe. Além disso, você nunca viu uma perdida nesta casa, de modo que não sabe de que fala.

-Acaso sabe com quem está falando, moça? - replicou-lhe a anciã. E enquanto Emily ia para a porta, acrescentou -E fique quieta enquanto lhe falo.

Não tem coragem?

-Não há mais que falar, avó. Tenho que voltar para casa. Tenho obrigações que cumprir.

A anciã soltou um grunhido de aborrecimento, golpeou novamente o chão com sua bengala, deu meia volta e se afastou coxeando. Emily aproveitou a ocasião para fugir.

Não contou nada ao Jack. Não ia tirar nada disso, e a idéia de que a avó pudesse ir viver ao Ashworth House, embora muito improvável, teria sido suficiente para distrair seu marido da tarefa mais imediata.

Emily foi diretamente ao piso de cima e entrou no quarto da menina. Surpreendeu à velha ama sentada em sua cadeira de balanço com a menina nos braços, quase adormecida. A babá jovem, Susie, deixou a roupa que estava dobrando, e Edward abandonou o que restava de arroz com leite e se levantou da mesa sem permissão.

-Mamãe! - exclamou, correndo a saudá-la. -Mamãe! Hoje me explicaram a história do rei Enrique VI. Sabia que teve oito esposas e que a todas cortou a cabeça? Você acha que a rainha cortará a cabeça ao príncipe Alberto se, se cansar dele? - deteve-se diante de Emily, rígido, magro, o rosto radiante de entusiasmo, seu cabelo loiro muito parecido ao dela, caindo sobre a fronte. Levava uma blusa branca folgada de colarinho largo e uma calça a riscas. Não estava quieto. –Seria emocionante, verdade?

-Absolutamente - disse Emily surpreendida, estendendo a mão para acariciá-lo. Queria tomá-lo nos braços e estreitá-lo contra ela, mas sabia que não ia gostar nada. Edward considerava coisa de bebês, e suportava o beijo de boa noite sempre com protestos. -Além disso era Enrique VIII - lhe corrigiu. - Só teve seis esposas, e só cortou a cabeça a algumas.

Edward pareceu decepcionado.

-Ah. E o que aconteceu com as outras?

-Alguém morreu, de outras duas se divorciou, e a última viveu mais que ele.

-Mas, às demais as decapitou?

-Isso acredito. Que mais tem feito hoje?

-Somas. E geografia.

A senhorita Roberts, a preceptora, apareceu na porta do quarto de estudo. Era filha de clérigo, magra, vulgar e de uns trinta anos, muito velha para confiar em um matrimônio. Via-se obrigada a ganhar a vida, e este era um modo aceitável de fazê-lo.

Emily gostava dela e esperava com ilusão o momento em que se faria encarregada da educação de Evie.

-Boa tarde, senhorita Roberts - disse. -Aprende bem?

-Sim, senhora Radley - disse a preceptora com uma ligeira careta. -Interessam-lhe mais as intrigas e as batalhas que as leis e tratados. Mas suponho que é natural. Eu gosto da rainha Isabel.

-E eu também - disse Emily.

Edward as olhou alternativamente, mas era bastante educado para não interromper.

-Não terminou o arroz com leite - lhe disse a preceptora.

O menino a olhou.

-Esfriou.

-E quem tem a culpa? - perguntou ela.

Edward pensou em discutir, mas a olhou um momento e decidiu que era melhor não fazê-lo. Não era honroso discutir e acabar perdendo, sobre tudo ante uma mulher, e como jovem visconde era muito sensível a sua dignidade nobiliária, que já era difícil de manter para um menino de sete anos rodeado de mulheres. Voltou para a mesa, subiu à cadeira e pegou a colher.

Emily olhou à senhorita Roberts e ambas dissimularam um sorriso.

A senhorita Roberts voltou para quarto de estudo.

A babá partiu com a pilha de roupa para guardar em seu lugar.

Emily se voltou para ama e estendeu os braços para que lhe desse o bebê.

-Acaba-se de dormir, pobrezinha - protestou o ama.

Era uma mulher grande e confortável que tinha sido babá em sua juventude. Levava os bebês de nobre berço a sua própria casa para lhes dar o peito durante o primeiro ano ou inclusive mais, e depois os devolvia a suas casas e aos cuidados das babás, criadas e finalmente preceptoras e tutores. Gostava sobre tudo até os três anos de idade, embora era propenso a afeiçoar-se de um menino em particular e depois lhe custava desprender-se dele. Emily não pensava admitir uma negativa.

Queria ter à menina nos braços, sentir seu peso, tocar sua sedosa pele e olhar seu rosto diminuto. Seguiu com os braços estendidos.

A ama também sabia quando não devia discutir. Levantou-se e lhe entregou o bebê.

Evie não se moveu quando Emily a tomou nos braços e a balançou suavemente. Depois de uns instantes durante os quais a ama se ocupou de outras coisas, embora em realidade não havia nada que fazer, Emily começou a acariciar a cabeça do Evie e ao final conseguiu despertá-la. Sentou-se na cadeira de balanço e começou a lhe dizer coisas, coisas sem sentido, e ao cabo de um quarto de hora - durante o qual tudo ficou em suspense, a babá não podia recolher, a ama não tinha nada útil que fazer, Edward terminou o chá e já se fazia tarde para seu conto de ir dormir. Evie rompeu a chorar.

Desta vez a ama não teve paciência. Agarrou Evie sem dizer uma palavra, introduziu um pouco de algodão em água açucarada e o meteu na boca, dizendo a Emily com firmeza que seria melhor que cada qual voltasse para suas obrigações.

Obediente, Emily deu boa noite ao Edward sem beijá-lo, o qual de entrada satisfez enormemente ao menino, mas logo lhe deixou com um pingo de insegurança. Seria preferível não mostrar-se tão digno? Entretanto, já que tinha tomado aquela decisão, agora não podia voltar atrás, sobre tudo diante de Roberts, cuja opinião valorizava ele muito. Amanhã poria a face para que a beijassem, e desse modo a iniciativa teria sido dela. Era uma excelente solução. Foi à cama mais que satisfeito. Além disso, o conto do dia, que ia sobre o rei Artur, era dos melhores.

Emily observou-o com emoção e depois de umas breves palavras ao pessoal, desceu para esperar Jack.

Jack chegou por volta das sete depois de ter passado o dia inteiro ocupado em assuntos políticos, e se alegrou de poder esquecer-se de tudo embora fosse só um momento, já que esperava a um grupo ao qual devia persuadir ou convencer durante o jantar. No prazo de três semanas justas se celebrariam as eleições, e sua mente estava totalmente absorvida nos preparativos.

Na manhã seguinte se achava Emily na sala do café da manhã, um dos lugares que mais gostava da casa, quando entrou seu marido trazendo dois jornais. A sala era octogonal e tinha três portas, uma das quais dava ao sombreado jardim orientado ao este, e o sol da manhã penetrava pelo vidro daquela porta iluminando o chão de parquet e as vitrines com delicadas peças de porcelana que ocupavam duas paredes.

-Não se fala de outra coisa - disse Jack muito sério, deixando o jornal em um canto da mesa. -O Time o põe na primeira página.

Emily não teve que perguntar a que se referia. A última coisa que tinham comentado antes de ir à cama tinha sido o assunto do Hyde Park, o que evitava toda explicação por parte dele.

-O que diz a imprensa? - perguntou ela.

-O Time trata de manter certa calma - respondeu Jack. -Um articulista fala de loucura, e diz que a coisa vai crescendo. Segundo um dos correspondentes do jornal existe em Viena uma escola de medicina que explica tudo em termos de acontecimentos da infância, falam de sonhos, repressão, coisas assim. - Sentou-se à mesa e alcançou a campainha, mas antes de que pudesse acioná-la apareceu o mordomo. -Ovos, beicon e batatas, Jenkins, por favor - disse Jack.

-Há uns rins picantes muito bons, senhor - sugeriu Jenkins. -Ponho-lhe uma torrada recém feita?

-Significa que se terminaram os ovos? - disse Jack.

-Não, senhor, restam ao menos três dúzias. - Jenkins seguia imperturbável. -Então lhe trago ovos, senhor?

-Não, os rins me parecem bem - respondeu Jack, e olhou Emily inquisitivamente.

-Compota e torradas - respondeu Emily.

-Não se aborrece disso? - Jack juntou as sobrancelhas, mas seu olhar era afável.

-O que vai.

- De damasco, Jenkins, se ainda ficarem ao cozinheiro. -Não podia permitir que Jack soubesse, e menos ainda a criadagem, mas se tinha proposto recuperar a figura que tinha antes da última gravidez, e mantê-la.

-Sim, senhora. - Jenkins continuava custando não chamá-la "milady", como tinha feito em vida do George, quando ela era lady Ashworth. Retirou-se em silêncio.

-Certamente não há baicon - disse Emily com um sorriso. -Que mais?

Jack estava habituado a sua maneira de pensar. Sabia que estava falando dos jornais. Havia tema para momento.

-Um eminente doutor opina sobre como se cometeram os crimes - prosseguiu. -Pouco interessante. Um jornalista está convencido de que foi uma mulher, não sei por que. E outro escreve sobre as fases da lua e dá uma predição sobre o próximo assassinato.

-Pobre Thomas! - exclamou Emily.

Jack a olhou muito sério.

-Mas o que mais abunda são críticas à polícia, a seus métodos e inclusive a sua existência mesma. – Suspirou. -Uttley escreveu um longo artigo, sai no Time, e devo dizer que é muito duro com o Thomas, embora não alude diretamente a ele. Naturalmente só pretende tirar partido político de tudo isto, não lhe importa a quem possa ferir no intento.

Emily alcançou o diário, e nas mãos o tinha quando Jenkins voltou com os rins para o Jack e sua compota de frutas. O mordomo a olhou de esguelha e dissimulou mal sua desaprovação. Em sua época as damas não liam do jornal mais que aquilo que seus maridos lhes ditavam, por regra geral noticiários da corte, bodas e necrológicas, e, com um pouco de sorte, críticas e resenhas teatrais. Opiniões e comentários políticos não eram apropriados para as mulheres. Essas coisas excitavam o sangue e turvavam a imaginação. Jenkins tinha sido bastante ousado para destacar assim em uma ocasião a lorde Ashworth, mas por desgraça não lhe tinham feito conta.

-Obrigado, Jenkins - disse Jack distraído, e Emily repetiu suas palavras mais distraída ainda. Jenkins se retirou suspirando.

-Já sei - disse Emily, começando a ler sem prestar atenção à comida. -"Não há dúvida de que quando o governo de sua majestade criou um corpo de polícia ao serviço dos cidadãos de Londres, deu um passo decisivo para o bem estar de todas as pessoas que habitam este populoso coração do Império. Mas era isto o que aqueles homens tinham em mente ao fundar a polícia? No outono de 1888 houve uma série de arrepiantes assassinatos no Whitechapel que ficaram nos anais como uns dos mais selvagens. Também passaram à história por ser assassinatos não resolvidos. E a nossa polícia, depois de meses e meses de investigação, só lhe ocorre dizer: "Não sabemos." Merecemo-nos isto, é isso o que estamos pagando com nosso dinheiro? Eu acredito que não. Necessitamos um corpo mais profissional, homens que além de dedicação tenham capacidade e cultura para impedir que estes crimes se repitam. Nosso império se estende a todos os limites do mundo. Conquistamos e submetemos nações selvagens, colonizamos o gelado norte, o sul abrasador, as planícies do oeste e as selvas e desertos do Oriente. Plantamos a bandeira em todos os continentes e levamos a todos os povos a lei, o governo, a religião e a língua. Não somos capazes de controlar aos elementos revoltosos de nossa própria capital? Cavalheiros, terá que fazer algo. Devemos trocar esta lamentável historia de inépcia e fracasso. Devemos reorganizar as forças da lei e nos assegurar de que são as melhores do mundo antes de que nos convertamos no bobo, em sinônimo de incompetência, e nos caiam em cima todos os criminosos da Europa. Não nos servem as brandas opções do partido liberal. O que é preciso é firmeza e determinação."

Emily deixou o jornal desgostada. Não devia lhe surpreender o lido e não a surpreendia, mas não pôde evitar uma raiva interior. Olhou ao Jack.

-Que estupidez. – disse -Isto são só palavras. De fato não propõe nada em concreto. Que mais quer que faça Thomas?

-Não sei. - admitiu ele. -Se soubesse seria o primeiro em ir dizer se o. Mas não se trata só de achar a solução. - Saboreou com deleite seus rins picantes.

Esperou engolir o primeiro bocado para seguir falando. -É achar a solução que quer a boa sociedade - concluiu.

-E qual é? Que escapou um louco do manicômio, alguém que nada tem que ver conosco? - replicou, removendo com fúria a compota. -Em tal caso, não vejo que culpa pode ter Thomas.

-Emily, querida, as pessoas culparam ao mensageiro pelo conteúdo da mensagem ao longo de toda a história. Eles culparão ao Thomas, não tenha dúvida.

-É muito infantil. - Emily engoliu saliva e foi por onde não devia. Quase se engasgou antes de fulminar ao Jack com o olhar.

-Pois claro - concedeu ele, lhe servindo chá. -O que tem isso que ver? Não se necessita muita experiência em política para saber que as reações de muitas pessoas podem ser infantis, e normalmente transigimos com o pior uma vez que começamos a brigar uns contra os outros.

-O que vai dizer contra Uttley? Algo terá que dizer. Não pode deixar que isto fique assim.

-Não acredito que Thomas me agradecesse que saísse em sua defesa - começou Jack.

-Thomas não - lhe interrompeu ela. -Você! Não pode ficar quieto enquanto Uttley lhe apresenta batalha. Deve atacar.

Jack refletiu uns instantes, enquanto ela esperava com impaciência, comendo a compota sem saboreá-la.

-Falar de cifras às pessoas não tem sentido - disse pensativo Jack, dando por terminado seu café da manhã. -Carece de emoção.

-Não se defenda - replicou ela. -Além disso, não tem forma de te defender. Todos os criminosos apanhados não significam nada em comparação com os que ainda andam soltos, ao menos para a gente em geral. - Tragou saliva. -Não é bom mostrar-se na defensiva. Não é culpa sua que a polícia seja ineficiente. E não deixe que ele ponha em uma posição que faça pensar isso às pessoas. - Agarrou o bule de prata. -Quer mais?

Ele adiantou sua xícara e lhe serviu.

-Ataque-o - insistiu Emily. -Quais são seus pontos fracos?

-Assuntos fiscais, a economia nacional...

-Isso não servirá. São coisas aborrecidas e além disso as pessoas não as entendem.

Não pode falar de xelins e peniques em certos bairros. As pessoas não o escutarão.

-Sei - concedeu ele com um sorriso. -Você me perguntou por seus pontos fracos.

-Por que não faz como Charlotte? Faça-se de inocente e lhe peça que se explique. Já sabe que não suporta que as pessoas riam dele.

-Isso seria muito perigoso.

-Também o são seus ataques à polícia, e indiretamente a você. O que pode perder?

Jack a olhou pensativo até que seu rosto foi relaxando e seus olhos brilharam de entusiasmo.

-Não diga que a culpa é minha se a bomba me explodir na cara - lhe advertiu.

-Claro que não. Mas que seja uma batalha em toda regra. - Emily se inclinou para lhe pegar as mãos. -Tirem todas as bandeiras e disparemos todos os canhões.

-Pode ser que depois deva me retirar ao campo.

-Depois, possivelmente - concedeu ela. -Mas não antes.

Jack viu a oportunidade no dia seguinte. Uttley estava falando ante uma considerável multidão no Hyde Park Corner e Jack se aproximou ali dando braço à Emily. As pessoas iam em todas as direções, muitos com bolos, sanduiches ou bebidas mentoladas. O homem do teatro de fantoches abandonou sua barraca, sabendo que o teatro da vida era cada dia mais apaixonante. Uma babá com um carrinho diminuiu o passo e um moço que vendia jornais e um moleque que estava varrendo prestaram atenção.

-Damas e cavalheiros! - começou Uttley, embora dirigir-se às damas era mera cortesia. As mulheres não tinham voto, assim que sua opinião era supérflua. -Damas e cavalheiros! Nossa cidade se encontra em uma grave encruzilhada. Depende de vocês decidir que direção vamos tomar. Gostam como está ou desejam algo melhor? - Uttley vestia uma jaqueta escura cruzada e com lapelas de seda, e uma calça mais clara com listas . O sol iluminava sua tez bronzeada e seu cabelo loiro.

-Melhor! - gritaram várias vozes.

-É claro - disse Uttley com entusiasmo. -Querem dinheiro no bolso, comida na mesa e poder passear tranqüilamente pelas ruas da cidade. - Fez um gesto significativo em direção ao parque que se estendia a suas costas. Houve um murmúrio de assentimento.

-Como vai conseguir dinheiro? – sussurrou - Emily ao Jack. -Anda, lhe pergunte.

-Deixa-o - sussurrou Jack. -Os pobres não têm voto.

Emily soltou um grunhido.

-O que me diz dos parques públicos? - gritou um homem gordo com avental de mascate. -São lugares seguros para passear?

Houve uma gargalhada entre o público e alguém lançou um assobio.

-Já não! - Uttley olhou ao homem. -Já não, meu amigo. Mas poderiam sê-lo se a polícia fizesse seu trabalho!

Houve uma ou duas exclamações de conformidade.

-Querem patrulhas no parque? - atravessou Jack.

-Boa idéia, senhor Radley - respondeu Uttley, lhe assinalando com o dedo para que todos se fixassem nele. -Por que não o disse em seu último discurso? Não o fez, sabe você, nem o mencionou sequer!

Todos olharam ao Jack.

Jack examinou os rostos de quem lhe estava olhando.

-Seriamente querem patrulhas de polícia no parque? - perguntou com candura.

-Sim! - gritaram dois ou três, mas em geral houve silêncio.

-E o que fariam? - seguiu Jack. -Parar às pessoas? Perguntar o que estão fazendo ali? Com quem vão ou deixam de ir? - Houve um murmúrio de desaprovação. -Revistá-los em busca de armas? - prosseguiu Jack. -agarrar os os dados?

-Por exemplo, impedir que alguém os agrida, roube ou assassine - disse Uttley.

A multidão expressou com gritos sua aprovação, e depois com risadas.

-Vá. Não tinha pensado nisso - disse Jack, ainda com ar inocente. -Seguir às pessoas. Pois claro. E então, quando alguém se aproximasse, eles estariam ali para impedir que alguém nos desse uma porrada ou um empurrão. E se resultar que a pessoa é só um conhecido... - Se deteve em meio de murmúrios de ira. -OH, não, de nada serviria, porque não sabemos se foi ou não um conhecido quem matou ao capitão Winthrop e ao senhor Arledge. Seja quem for, a polícia deveria estar ali para intervir em caso de que fosse necessário.

-Não seja ridículo - atravessou Uttley, mas foi silenciado por barulhos e assobios.

-Mas para isso seriam precisos muitíssimos policiais - disse Jack. -Em realidade, um por cada pessoa que queria ir dar um passeio. Possivelmente teríamos que chamar à delegacia de polícia e esperar que chegasse a escolta. Seria terrivelmente caro. Os impostos dobrariam ou triplicariam...

Houve exclamações de brincadeira e desaprovação, um homem riu a gargalhadas.

-Isto é absurdo! - gritou Uttley entre a gritaria. -Reduziu a questão a um absurdo! Há maneiras absolutamente razoáveis de consegui-lo.

-Ouçamo-las. - convidou Jack.

-Sim! - clamou a multidão, olhando alternativamente a um e a outro. -Vamos, queremos ouvi-las!

Uttley fez um esforço por definir sua postura, mas ficou em evidência que só tinha pensado nisso a grandes traços e não lhe era possível dar soluções concretas. A gente assobiava e protestava, e Jack não teve que contribuir à derrota de seu adversário. Finalmente, vermelho de ira, Uttley se voltou para ele.

-Tem uma solução melhor, Radley? nos dê uma resposta!

As pessoas se voltaram para Jack como movidos por uma mola, disposta com as mesma vontades a mofar-se dele.

-A culpa é dos irlandeses! - gritou uma mulher, vermelha de fúria. -Com certeza foram eles!

-Bobagens! - exclamou um homem de cabelo negro. -Foram os judeus!

-À forca com eles! - gritou um homem de verde, levantando o braço. -À forca!

-Voltemos para a deportação! - gritou alguém. -A Austrália com eles! Nunca devemos renunciar à deportação, isto é o que acontece.

-Eu proponho um policial mais profissional - disse Jack. -Homens adestrados para fazer seu trabalho, não cavalheiros que falam finamente e que se vestem bem mas são incapazes de apanhar a um ladrão embora estejam encerrados no mesmo aposento.

-Bem dito! Tem razão! - gritou alguém. Uma mulher magra agitou o braço em sinal de conformidade. Um homem corpulento com bigodes encerados lançou vários assobios.

-O que tem contra os cavalheiros? De maneira que é anarquista, é? Seguro que é desses que quer desfazer-se da rainha, não?

-É claro que não - replicou Jack, mantendo a equanimidade. -Sou um leal súdito de sua majestade. E alguns de meus melhores amigos são cavalheiros. De fato, às vezes eu mesmo o sou.

Houve um coro de gargalhadas.

-Mas o que não sou é polícia - prosseguiu. -Não sirvo para isso e sei. Tampouco servem a maioria dos cavalheiros.

-E tampouco alguns de nossos policiais! - gritou o vendedor de bolos, para maior regozijo geral. -Quem é o Verdugo do Hyde Park? Por que não o apanha ninguém?

-Apanharão-o! - disse impulsivamente Jack. -Há um profissional de primeira classe a cargo do caso, e se o Home Office dá uma mão em vez de lhe pôr a rasteira, esse homem apanhará ao Verdugo! - Assim que o disse, Emily soube que se arrependia de havê-lo feito, mas as palavras já estavam no ar.

As pessoas murmuraram com cepticismo e várias pessoas olharam para o Uttley.

-O superintendente Pitt- disse Uttley com um sorriso zombador. -Filho de um guarda-florestal. Eu sei por que o senhor Radley confia tanto nele, são cunhados! Sabe você algo, senhor Radley, que não se fez público? Algum segredo possivelmente? O que está fazendo a polícia? O que faz esse Pitt?

As pessoas olharam receosas ao Jack. A situação tinha mudado outra vez.

-Consta-me que é um bom polícia, trabalha tudo o que pode e mais! –gritou Jack. -E se o Home Office e o governo não lhe entorpecem tratando de proteger-se a si mesmos, estou certo de que apanhará ao Verdugo.

Houve um murmúrio irado e de novo os maus olhares tomaram como objetivo ao Uttley.

-Sim! - disse um homem obeso. -Queremos policiais de verdade, não janotas incapazes de sujar as mãos.

-É verdade - acrescentou a mulher das bebidas mentoladas. -nos liberem dos que se protegem a si mesmos. Esse Verdugo talvez não seja um pobre louco, ao fim e ao cabo. Possivelmente é um cavalheiro polido que tinha algo contra um de seus colegas.

-Talvez fosse uns pervertidos que fizeram algo horrível às garotas e seu fanfarrão acabou com eles.

Uttley abriu a boca para negá-lo, mas viu os rostos e trocou rapidamente de opinião.

-É nossa polícia e é nossa cidade - disse Jack. -Terá que lhes dar todo o apoio possível e eles se ocuparão do culpado, seja quem for: cavalheiro ou demente, ou ambas as coisas.

A multidão prorrompeu em vivas e pouco a pouco se desagregou.

Uttley saltou da carruagem onde tinha subido e se aproximou dos Radley

com olhos entrecerrados e expressão dura.

-Um pouco de risada muda - disse entre dentes. -Meia dúzia de homens que podem votar, no máximo. O resto é escória.

-Se não valerem para nada, que fazia você aqui? - disse Emily sem parar para pensar.

-Há assuntos, senhora, dos que você não sabe absolutamente nada. –Olhou ao Jack sem pestanejar. -Mas você sim sabe, Radley. Sabe muito bem quem está de minha parte e quem da sua. - Separou os lábios em um esboço de sorriso. -Cometeu um grave engano a última vez, e pagará as conseqüências. Criou inimigos. Já o comprovará.

Dito isto, deu meia volta, voltou para sua carruagem e montou de um só movimento.

Depois gritou ao cocheiro e os cavalos se puseram em marcha fustigados pelo látego.

-Refere-se ao Círculo Interno, não é? - perguntou Emily com um estremecimento, como se o sol tivesse desaparecido de repente, embora de fato brilhava igual a um momento. -Realmente é tão importante?

-Não sei - disse Jack. -Mas se o for, este é um dia negro para a Inglaterra.

Charlotte estava na cozinha depois que Pitt partira e os pratos do café da manhã tinham sido retirados. Daniel e Jemima se dispunham a ir à escola e Gracie estava junto à pia.

Daniel, de cinco anos, tossiu teatralmente e, ao ver que ninguém fazia caso, pois Charlotte estava ocupada penteando a Jemima, de sete, fez-o outra vez.

-Daniel tem tosse - disse Jemima.

-É verdade - disse na hora Daniel, e para demonstrá-lo interpretou um verdadeiro ataque.

-Deixa de fazer isso ou te doerá a garganta de verdade - disse Charlotte sem olhar.

-Já me dói - disse ele, assentindo com a cabeça e olhando-a com seus grandes olhos.

Charlotte lhe sorriu.

-Sim, querido, e eu deduzo que esta manhã lhe toca aritmética, verdade?

Daniel era muito pequeno para saber como responder.

-Parece-me que não estou muito bem para ir à aula - disse. O sol penetrava pela janela iluminando seus cabelos, do mesmo tom dourado que os de sua mãe.

-Passará - disse ela alegremente.

Daniel parecia inconsolável.

-Claro que - prosseguiu ela, atando uma fita ao cabelo da Jemima – se estiver tão doente, o melhor seria que ficasse em casa.

-Sim! -disse ele com entusiasmo.

-Na cama - acrescentou ela. - Depois veremos se amanhã já se pode levantar. Gracie preparará-lhe um pouco de caldo de enguia, e umas papa leves.

Daniel fez cara de desolação.

-Já recuperará a aritmética quando estiver bem - acrescentou Charlotte. - Jemima te dará uma mão.

-Isso - atravessou Jemima. -Sei somar muito bem.

-Bom, tampouco me encontro tão mal - disse Daniel, olhando com inflamo a sua irmã. -Esforçarei um pouco.

Charlotte lhe dedicou um grande sorriso e lhe acariciou a cabeça.

-Sabia que o faria - disse.

Quando se tiveram ido e Gracie teve terminado de lavar os pratos, Charlotte se concentrou em suas obrigações. Havia vários objetos que requeriam uma lavagem especial, concretamente uma camisa do Pitt que tinha um par de manchas de sangue produto de um barbeado apressado. Um pouquinho de massa de amido, deixada secar antes de escovar a fundo, bastaria para tirar a marca. Álcool forte saturado de cânfora serviria para tirar a mancha de azeite na manga da jaqueta. O clorofórmio era melhor para a graxa. Teria que averiguar do que era.

E o babado negro do vestido que pusera para o funeral estava um pouco embolorado, e era preciso arrumá-lo antes de devolver a roupa. Empregaria álcool e bórax. Renunciou a fazer subir do açougue um pouco de chaga de novilho para pô-la em água quente, remédio que lhe haviam dito era o melhor. Arrumar umas penas danificadas, coisa que normalmente se fazia com tenazes de frisar, ela preferia fazê-lo sobre o cabo de marfim de uma faca. Era uma tarefa pesada, mas necessária se pensava seguir pedindo em empréstimo os custosos e muito elegantes objetos de seus parentes. E não podia esquecer as luvas negras que devia esfregar com casca de laranja e depois azeite vegetal.

-Gracie - disse, mas se deu conta de que Gracie não a estava escutando.

-Gracie?

-Sim, senhora. - A criada se virou com as faces ruborizadas.

-O que lhe passa? - perguntou Charlotte.

-Nada, senhora.

-Bem. Então esquenta as tenazes, por favor, e eu começarei com esse lenço. Depois poderia se encarregar das camisas do senhor e tirar essas manchinhas de sangue, já sabe como.

-Sim, senhora. - E Gracie, obediente, começou a tirar as pranchas e as pôr sobre o queimador.

Charlotte subiu por causa das penas e, de volta, pegou uma faca com cabo de marfim. Só tinha duas, uma de carne e muito pequena, e outra para bolos que serviria.

-Senhora? - começou Gracie.

-Sim?

-Bom, dá na mesma. - E serviu uma generosa quantidade de álcool.

Charlotte começou a frisar as penas com cuidado, mas então reparou em que Gracie estava derramando o álcool sobre as manchas de sangue, não as de graxa, e se tinha esquecido por completo da cânfora.

-Gracie! Mas o que lhe passa esta manhã? Conta-me antes de que faça um desastre!

Gracie tinha as faces de um rosa subido e os olhos cheios de temor. Todo seu rosto era uma careta de obrigação. Mas não achava as palavras.

Charlotte sentiu também uma pontada de medo. Tinha muito afeto por Gracie, mas possivelmente até esse momento não percebera de quanto.

-O que ocorre? - disse com mais urgência do que pretendia expressar. –Está doente?

-Não! - Gracie mordeu o lábio. -Sei algo do cavalheiro esse que vai ao parque e persegue as garotas. - Engoliu saliva. -Um dia estive falando com uma das que trabalham ali. - Seu olhar era de suma desdita. Estava mentindo, ao menos em parte, e detestava fazê-lo. -Me disse que havia um cavalheiro que gostava de bater nas garotas, mas bater muito forte. Eu acredito que poderia ser o capitão Winthrop. Disse-me que era muito robusto. E que possivelmente foi um fanfarrão o que o matou. E o outro cavalheiro sabia. Talvez viu tudo, não sei, e por isso o mataram também.

Por um momento Charlotte não pôde menos que pensar em que o que dizia Gracie podia ser certo. Seu ânimo se levantou imediatamente.

-Claro - concedeu imediatamente. -Poderia ser assim!

Gracie sorriu brevemente.

Mas então Charlotte caiu na conta de outra coisa.

-Gracie! estiveste bincando de detetives outra vez! me diga a verdade!

Gracie olhou ao chão em silêncio, esperando que caísse o golpe.

-Foi ao parque de noite em busca de uma dessas prostitutas, não? –Gracie não o negou. -Estúpida menina! Não se dá conta do que poderia lhe ter passado?

-vão brigar muito com o senhor se não apanhar ao Verdugo - disse Gracie sem levantar a vista.

Charlotte sentiu alarme - justificado, se o que dizia Gracie era verdade e logo uma pontada de culpa pessoal por suas freqüentes ausências.

-Teria que bater em você eu mesma por correr esse risco - disse com fúria. –E juro que o farei se isto voltear a repetir-se! E como vou dizer ao senhor o que sabe sem explicar como o averiguou? O que responde a isso? -Gracie guardou silêncio. -Terei que procurar alguma solução.

Gracie assentiu com a cabeça.

-Não fique aí parada meneando a cabeça. Será melhor que trate de pensar, você também. E enquanto isso, saca essas manchas de graxa. O mínimo que podemos fazer é lhe deixar a roupa bem limpa.

-Sim, senhora! - Gracie levantou a cabeça e lhe dedicou um leve sorriso.

Charlotte o devolveu com a intenção de que fosse igual a minúscula, mas lhe acabou saindo grande e cheio de cumplicidade.

Charlotte passou a tarde na casa nova. Cada dia surgia novos desastres ou tinha que tomar decisões importantes. O construtor não abandonava uma expressão de permanente nervosismo e meneava a cabeça, mordendo o lábio, cada vez que ela tentava lhe fazer uma pergunta.

Entretanto, graças à compra de um excelente catálogo do Young & Marten, Charlotte pôde rebater a maioria de seus argumentos com bastante precisão, o que pouco a pouco lhe estava ganhando um relutante respeito por parte do construtor.

—O principal problema era o tempo. A casa do Bloomsbury já estava vendida e deviam deixá-la livre antes de quatro semanas, enquanto que à casa nova faltava muito para que pudessem mudar-se. O mais importante já parecia. Tinham seguido ao pé da letra as instruções de tia Vespasia, uma imaculada cornija de estuque substituía à velha. Inclusive havia uma perfeita roseta de teto. Mas ficava por pintar ou empapelar, e o assunto dos tapetes não tinha sido abordado sequer. A cada momento tinha que decidir alguma coisa.

Ao falar disso com Emily tinha acreditado saber muito bem que cor desejava para cada aposento, mas na hora de entrar em detalhe sobre papéis e pinturas, já não esteve tão segura. E para ser sincera, não estava de todo concentrada no assunto. Não podia evitar fixar-se nas manchetes dos jornais e no tom dos artigos que criticavam à polícia em geral e ao homem que levava o caso Hyde Park em particular. Era uma injustiça. Pitt estava padecendo as conseqüências dos assassinatos do Whitechapel, os atentados fenianos e outra dúzia de coisas mais.

Havia, se por acaso fosse pouco, a inquietação geral ante uma mudança política, os milhões de pobres, as idéias anarquistas que chegavam da Europa além das dissensões nascidas no próprio país, a instabilidade do trono com aquela rainha anciã e azeda que não saía de seu fechamento lutuoso, e um herdeiro que esbanjava tempo e dinheiro com cartas, corridas de cavalos e mulheres. Os decapitados do Hyde Park não eram mais que o foco onde se concentrava o medo e o descontentamento da população.

Isso podia lhe apaziguar a consciência, mas absolutamente não servia a modo de defesa. Thomas era novo em seu cargo. Micah Drummond o teria compreendido, ele era um cavalheiro, membro do Círculo Interno que rompeu com eles a pesar do risco que tal ação implicava, e amigo pessoal de muitos de seus iguais e superiores.

Thomas não era nenhuma dessas coisas nem o seria nunca.

Teria que ganhar a pulso cada passo que desse e ficar a prova uma e outra vez.

Contemplou a sala, incapaz de concentrar-se em sua tarefa. Era boa idéia pintá-la de verde? Não seria muito fria? A quem podia consultar? Caroline estava ocupada com seu Joshua e, além disso, Charlotte não tinha vontade de vê-la e lembrar-se de seu problema.

Emily estava muito ocupada com o Jack e a batalha política que já estava em cima.

Pitt trabalhava tanto que ela mal o via quando chegava a casa de noite, faminto e extenuado. Claro que hoje teria que fazer uma exceção, fossem quais fossem as circunstâncias, para lhe dar a notícia de Gracie. Mas antes tinha que pensar em como fazê-lo. De todo modo não valia a pena lhe complicar a vida com problemas domésticos, Pitt não tinha a menor idéia de cores nem decoração. No que levavam de casados, ele nunca tinha expresso outra observação que não fosse se gostava ou não de um aposento.

Então lhe veio à memória um fragmento de conversa durante o funeral de Oakley Winthrop. Tinha estado falando de interiores com Mina, a viúva. Não tinha sido algo intencional, mas aparentemente Mina não só desfrutava falando disso, mas também tinha certo talento para a decoração. Iria vê-la, e desse modo mataria dois pássaros de um tiro: o relativamente insignificante de decidir se empapelava de verde ou não, e o muito mais urgente de tentar ajudar ao Thomas. O achado de Gracie fazia mais premente o conhecer mais a fundo a vida do capitão, e se fosse possível seus hábitos.

Não teve que pensar. Estava decidida. Embora não estava vestida para ir de visita, não podia perder tempo indo ao Bloomsbury para trocar-se e depois ter que tomar um ônibus até o Curzon Street. Pedir um cabriolé seria uma extravagância. Mas lavou o rosto e se arrumou rapidamente o penteado antes de sair ao sol e dirigir-se a passo vivo à parada mais próxima.

Não lhe ocorreu pensar na inconveniência que ia cometer até que esteve diante da porta da casa do finado capitão, viu as cortinas corridas e a braçadeira de luto negro na porta, e se perguntou que desculpa plausível podia dar.

-Senhora? - disse a criada com um fio de voz.

-Boa tarde - respondeu Charlotte, consciente de que ficou ruborizada. - Há uns dias a senhora Winthrop teve a amabilidade de me dar uns bons conselhos. Necessito que me dê alguns mais, e me perguntava se seria amável de me conceder uns minutos. Entendo que não é um momento muito apropriado. E estou morta de calor por não havê-la avisado de minha visita. Foi tão amável comigo que esqueci minhas maneiras.

-Perguntarei, senhora - disse indecisa a criada. -Mas duvido que diga que sim, tendo em conta que a casa está de luto e isso.

-É claro.

-A quem anúncio, senhora?

-Oh, A senhora Pitt. Conhecemo-nos no funeral. Eu estava com lady Vespasia Cumming-Gould.

-Sim, senhora. Irei ver. Se tiver a bondade de esperar aqui.

E partiu deixando Charlotte no vestíbulo.

Não foi a criada quem voltou, mas a própria Mina Winthrop, vestida com o que parecia o mesmo vestido negro de gola muito alta e punhos de renda. Era tão alta como Charlotte, mas muito mais magra, parecia quase uma enjeitada com sua pele branca e aquela gola impossível. Estava cansada, com olheiras, como se na intimidade de seu quarto tivesse chorado até esgotar-se, mas sua expressão foi de prazer quando viu Charlotte.

-Quanto me alegro – disse. -Não sabe que só me sinto aqui colocada dia após dia, sem mais visita que as próprias do luto, e não está bem que eu saia a nenhuma parte. - Sorriu timidamente, envergonhada quase, procurando que Charlotte a entendesse. -Possivelmente não deveria pensar estas coisas, nem muito menos dizê-las, mas estar sozinha em uma casa tão escura não ajuda nada.

-Estou convencida disso - concedeu Charlotte com um gesto de alívio e simpatia. -Tomara a boa sociedade permitisse que a gente levasse suas penas da maneira que encontre mais fácil, mas duvido que chegue esse dia.

-Seria um milagre - se apressou a dizer Mina. -Eu não esperaria algo tão... tão extremamente improvável. Mas eu adoro que você haja vindo. Se me acompanhar, iremos ao salão. - voltou-se pela metade, disposta a tomar a dianteira. -Ali dentro brilha o sol e me neguei a descer a persiana, a não ser que se apresente minha sogra. Embora isso não seja muito provável.

-Parece-me uma idéia estupenda. Deve ser uma sala muito bonita – disse Charlotte, seguindo-a para o corredor. Reparou que Mina andava muito erguida, quase como se a rigidez a impedisse de dobrar-se. -Em realidade, necessito seu conselho sobre algo relacionado com isso.

-Seriamente? - Mina lhe indicou uma cadeira tão logo estiveram no salão, que era efetivamente muito agradável e nesse momento estava inundado de sol. – Me diga no que posso lhe ser de utilidade. Quer de um chá enquanto falamos?

-Oh, agradeceria muito - disse Charlotte, tanto porque gostava de beber algo depois do trajeto em ônibus quanto porque isso lhe economizava procurar uma desculpa para prolongar sua visita.

Mina fez soar com brio a campainha e pediu chá, sanduiches, massas e bolachas. Quando a criada se retirou, dispôs-se a prestar a máxima atenção à Charlotte. Estava sentada no bordo da cadeira com as mãos sobre o regaço, meio ocultas pela renda negra, mas seu rosto demonstrava o máximo interesse.

Charlotte percebeu claramente a tragédia que tinha invadido a casa, aquele silêncio antinatural, a fadiga que se escondia mal sob a compostura da viúva. Entretanto, explicou que mudava de casa e que ficavam muitas coisas por fazer antes de que a mudança pudesse realizar-se de modo satisfatório.

-Não consigo estar segura se, se a sala ficaria muito fria se a faço empapelar de verde - concluiu.

-O que diz seu marido? - quis saber Mina.

-Pois nada. Não o perguntei. Normalmente não dá sua opinião até que está tudo acabado, e só se não lhe parecer agradável. Embora me atreveria a dizer que nunca sabe por que diz que não gosta.

Mina deu ligeiramente de ombros.

-Meu marido era de opiniões muito contundentes. Qualquer mudança devia fazer-se com a máxima prudência. - Uma sombra de culpa cruzou por seu rosto, surpreendentemente dolorosa. -Temo que meus gostos eram às vezes um pouco vulgares.

-Não diga isso - se apressou a afirmar Charlotte. -Possivelmente o que acontece era que os gostos dele eram muito tradicionais. Há homens que não suportam as mudanças, por muito que possam significar uma melhora.

-É muito gentil, mas estou certa de que devia me equivocar. Fiz empapelar o sala do café da manhã enquanto ele estava navegando. Não devia fazê-lo sem consultá-lo antes. Incomodou-se muito quando chegou a casa e o viu.

-Estava muito diferente? - inquiriu Charlotte, indecisa de se aprofundar em um tema que parecia doloroso. Recordar retrospectivamente uma briga, possivelmente sem resolver, quando a outra pessoa já não vivia e a reconciliação era pois impossível, tinha que ser por força um dos aspectos mais dolorosos daquela situação. Ansiava confortar à viúva, mas não sabia como.

-Sim, temo que muito - disse Mina em voz baixa ao recordá-lo, mas havia prazer em sua voz a pesar da dor de fundo. -Fiz tudo em amarelo suave. Parecia que a sala estava toda banhada de luz. Eu adorava.

-Parece bonito - disse Charlotte. -Mas fala você como se já não estivesse assim. Insistiu ele em que o trocasse?

-Assim é. - Mina voltou um momento o rosto. -Foi isso o que disse que era vulgar, em diferentes matizes da mesma cor, além do mobiliário, claro. Tudo de mogno, como estava antes. De fato - mordeu o lábio como se inclusive agora precisasse dar algum tipo de justificação, -ainda está como a deixei eu. Oakley fechou a porta com chave e disse que não voltaríamos a entrar até que tudo estivesse como antes. Gostaria de ver a peça?

-OH, certamente. - Charlotte se levantou. -Eu gostaria muito. - Disse-o tanto pelo fato de ver como ficava uma sala assim e averiguar o que Oakley Winthrop tinha considerado tão ofensivo para estar disposto a brigar com sua esposa por algo que ao que parecia não tinha ficado resolvido.

Mina a conduziu de novo pelo corredor até sair pelo lado oposto do vestíbulo. A porta do quarto do café da manhã parecia estar aberta. Mina a abriu e se fez a um lado.

O que contemplou Charlotte foi uma das habitações mais bonitas que jamais tinha visto. Como dizia Mina, parecia banhada de luz, mas era algo mais o que lhe agradava, era a sensação de espaço e de elegância, a simplicidade ao mesmo tempo sossegada e acolhedora.

-Sabe você muitíssimo – disse. -Isto é lindo!

-Voltou-se para olhar a Mina, que seguia na soleira, mas agora com rosto de perplexidade.

-Sim? - disse sem confiança. E logo, mais contente. -Seriamente acha?

-Certamente que sim. Eu adoraria ter uma sala como esta. Se o inventou você, não há dúvida de que tem um grande talento. Me alegro de havê-la conhecido quando minha casa está ainda de pernas para o ar, porque se me dá sua permissão, vou pôr eu também um aposento de amarelo. Posso? Não tomará como uma rabugice?

Mina estava radiante, como uma menina com um brinquedo novo.

-Tomarei como um cumprimento, senhora Pitt. E por favor, não acredite nem por um momento que me importa. Acho que é o mais bonito que podia ter me dito.

Afastou-se da porta como excitada e virou sem perceber a criada que nesse momento passava por detrás dela. Charlotte gritou, mas já era tarde. A mão de Mina Winthrop se chocou com o bule. A criada lançou um grito e soltou a bandeja que foi parar ao chão. A criada gritou de novo e tampou a rosto com o avental. Mina gritou também.

Charlotte percebeu em seguida o que tinha passado pela mancha escura no pulso de Mina, justo onde o chá quase fervendo a tinha molhado.

-Rápido! -Charlotte a pegou sem contemplações. -Onde está a cozinha?

-Ali. - Mina olhou a sua esquerda, o rosto contraído de dor. A criada seguia griando mas ninguém fazia caso.

Charlotte quase empurrou a Mina para o corredor, mas logo lhe ocorreu algo melhor. Sobre a mesa do vestíbulo havia um vaso cheio de lírios. Deu meia volta, levou a Mina para ali e, assim que pôde as alcançar, pegou as flores, espalhou-as sobre a mesa e colocou a mão de Mina na água fresca do vaso.

-Ah - disse Mina com assombro e alívio. -OH, que bem.

Charlotte sorriu e logo olhou à criada.

-Basta-lhe ordenou sem olhar. -Ninguém a está culpando de nada. Foi um acidente. Não fique aí gemendo, vá à cozinha e envie à criada para que limpe tudo isto, e de passagem traga uma bolsa com gelo e um pano molhado com água fria e uma solução de bicarbonato bem escorrido, ah, e outro que esteja limpo e seco. Vamos.

-Sim, senhorita. Em seguida - disse a moça olhando Charlotte com o rosto sujo de lágrimas e sem mover-se de lugar.

-Vá, Gwynneth - a apressou Mina. -Faz o que lhe dizem.

A criada se afastou e Charlotte fez que Mina tirasse a mão da água.

-Vamos à luz para vê-lo melhor. - aproximou-se com ela ao lustre central que estava aceso devido às persianas baixadas. Sem lhe pedir permissão, desabotoou os botões dos punhos de Mina e retirou o tecido negro.

-OH! - exclamou a viúva.

Charlotte conteve o fôlego, não pela escaldadura vermelha que esperava ver, mas sim pelo grande hematoma com seus pontos escuros como sinais de dedos sobre a carne. Havia além certa irritação rosada, devido à queimadura, mas nada que pudesse considerar-se de gravidade, e não fizera bolhas.

Mina estava imóvel, paralisada de horror.

Charlotte a olhou nos olhos.

Mina se ruborizou até as orelhas e sua expressão foi de se desesperada vergonha, e logo depois de entristecedora culpa.

-Necessita ajuda? - disse Charlotte. Uma dúzia de perguntas passou por sua mente, mas nenhuma delas podia formular: a intriga de Gracie, o ar protetor do Bart Mitchell, o medo nos olhos de Mina.

-Ajuda! Não... não, tudo está... - Deixou a frase em suspense.

-Tem certeza? - Charlotte morria de vontade de perguntar se tinha sido o capitão o autor daquilo, e se Bart sabia: quando soube, antes ou depois da morte do Winthrop?

-Sim. - Mina tragou saliva e conteve a respiração. -Estou perfeitamente bem, obrigada. Agora me dói muito pouco.

Charlotte não sabia se falava da queimadura ou dos hematomas. Desejava lhe ver o outro pulso para ver se estava igual, e mais ainda olhar sob o lenço negro que lhe rodeava o pescoço e os ombros. Seria por isso que andava tão rígida? Mas não havia modo de fazê-lo sem incorrer em uma imperdoável rabugice e romper os mínimos laços de amizade que tinha estabelecido.

-Acredita que deveria vê-la um médico? - acrescentou preocupada.

A outra mão de Mina subiu a sua garganta enquanto ela negava com a cabeça. Outra vez fingia, ao menos na superfície.

-Não, não. Acredito... acredito que se curará só, muito obrigado. – Sorriu languidamente. -Sua rápida intervenção me salvou. Estou-lhe extremamente agradecida.

-Se não tivesse vindo ver esta bonita sala, não teria acontecido nada - replicou Charlotte seguindo a farsa. -Que tal parece sentar-se um momento e tomar alguma infusão? Foi uma desagradável experiência.

-Sim, acredito que seria uma excelente idéia - concedeu Mina. -Espero que ficará. Sinto-me como uma má anfitriã por minha estupidez.

-Será um prazer - aceitou Charlotte.

Estavam a ponto de entrar no salão quando se abriu a porta principal e apareceu Bart Mitchell. Olhou primeiro a Mina, percebeu seu pulso e o punho da manga aberto, e depois à Charlotte, súbitamente nervoso e tenso. Curiosamente, não disse nada.

-A senhora Pitt veio ver-me, Bart - disse Mina no silêncio que seguiu. –Foi muito considerada, não é verdade?

-Boa tarde, senhora Pitt. - Os olhos azuis do Bart estavam muito abertos, sondando o rosto de Charlotte. Olhou Mina.

-Escaldei-me - disse ela devagar, como se lhe devesse alguma explicação. –A senhora Pitt agiu muito depressa...

Nesse instante, para apoiar suas palavras, apareceu Gwynneth com as toalhas. Olhou para Charlotte.

Mina estendeu o braço, que começava a estar outra vez rosado ali onde não tinha machucados.

-Traz, deixa que te ajude. - Bart deixou sua bengala e o chapéu em cima do divã e se adiantou com a toalha úmida, aplicando a à queimadura enquanto Charlotte a envolvia com o pano seco. Bart tinha as mãos morenas do sol, umas mãos fortes e esbeltas, mas tocou o braço de sua irmã como se pudesse romper-se a menor pressão.

-Obrigado, senhora Pitt - disse quando tiveram terminado. -Acredito que em vista do desagradável incidente, a senhora Winthrop deveria deitar um momento. Não está muito forte...

-Não foi nada - começou Mina, mas calou outra vez com uma expressão de temor. Olhou de esguelha para Bart e depois para Charlotte. -Nem sequer pude oferecer chá à senhora Pitt - disse indecisa, abordando o insignificante problema de etiqueta quando era evidente que sua cabeça estava em outra coisa de muito maior magnitude. -Foi o chá que me caiu na mão.

-Eu me encarregarei disso, querida - respondeu Bart. -Você vá deitar te um momento. Será-lhe muito mais fácil sustentar essa bandagem em seu lugar se descansar o braço em um travesseiro. Se insistir em estar sentada no salão é certo que se afrouxará.

-Eu... Suponho que tem razão - concedeu ela a contra gosto, mas não se movia dali. Olhou aos dois com ansiedade.

-Vai chamar a um médico? - perguntou Charlotte.

-Não, não - disse Bart com firmeza. -Estou certo de que não será necessário. Acho que o fez muito bem. - Esboçou um sorriso, formoso e repentino como o sol em abril. -Agora, se Mina for deitar um momento, estarei encantado de lhe oferecer chá, senhora Pitt. Faça o favor de passar ao salão.

Não havia outra alternativa educada que fazer o que lhe diziam, enquanto que Mina, obedecendo também, subiu a seu quarto para descansar.

Charlotte foi com o Bart ao salão e se sentou onde lhe indicava. Aparentemente, Gwynneth tinha captado já que devia lhes levar o chá, ou era normal que o fizesse a aquela hora, pois só transcorreram uns momentos antes de que aparecesse de novo com uma bandeja. Depois de deixá-la com cuidado em cima da mesa, fez uma reverência e se retirou com mais pressa que graça.

Completadas as formalidades de servir e passar as xícaras, Bart se recompôs e estudou atentamente Charlotte com olhos inteligentes.

-Não é comum ter a amabilidade de visitar alguém que está de luto, senhora Pitt - observou.

Ela já esperava algum comentário daquele tipo.

-Eu também passei por isso, senhor Mitchell - disse um tanto à ligeira. - E me foi muito difícil de levar, apesar de eu então ter em casa a minha mãe e minha irmã. Desejava com ardor poder conversar de algo não relacionado com o morto e em um tom mais normal. - Sorveu um pouco de chá. -Naturalmente, não podia saber se a senhora Winthrop sentia o mesmo, mas me pareceu justo lhe dar essa oportunidade.

-Surpreende-me você - disse ele com candura. Sua expressão era despreocupada, mas seus olhos não deixavam de olhá-la. -Mina era muito afeiçoada ao Oakley. Acredito que algumas pessoas não consigam entender o valor que requer manter essa aparência externa de calma.

Até que ponto estava mentindo? Não lhe cabia dúvida de que Mitchell tinha visto alguns daqueles hematomas. Quantos mais haveria? Sabia ele?

-Cada qual tem sua própria maneira de viver a angústia. - Charlotte lhe sorriu sem que suas palavras conseguissem dissimular a tensão. -A alguns ajuda o fato de reatar a vida normal. A senhora Winthrop me mostrou a sala do café da manhã, pareceu-me delicioso. Acredito que é uma das mais bonitas que vi.

Bart crispou as feições.

-Sim. Mina tem muito bom gosto para a cor. - Estava-a observando atentamente, sopesando sua reação para saber por que tinha decidido tirar esse tema a tona.

-Estou certa de que o capitão Winthrop teria visto quão bonito é assim que se acostumou um pouco - continuou ela, olhando-o com a mesma franqueza.

Entre ambos, tácitos, mas quase evidentes, estavam os horríveis hematomas, a humilhação e a vergonha de Mina. O que havia dito a ele? E, mais importante ainda, quando? Antes da morte do capitão ou depois?

Bart começou a dizer algo, mas se interrompeu.

-Eu estou em plena mudança - disse Charlotte para romper o silêncio. -É uma das coisas mais fatigantes que jamais fiz. Há um sem-fim de detalhes que resolver.

-Suponho que a ajudará um construtor - disse ele. Era uma conversa corriqueira e ambos sabiam, mas de algo tinham que falar. Que pensamentos estariam passando por sua cabeça?

-É claro. Mas me deixa os aspectos da decoração. Precisamente agora estou indecisa entre escolher uma cor porque eu gosto e escolher outro porque pode ser mais prática.

-Um dilema - concedeu ele. -O que decidiu?

Produziu-se um novo silêncio. Embora parecesse ridículo, a pergunta parecia encerrar algo mais que um simples problema de cor, era como se lhe estivesse perguntando o que pensava fazer em relação aos machucados, voltar sobre o assunto ou esquecê-lo por completo.

Charlotte pensou um pouco na resposta. Depois olhou nos olhos com absoluta candura.

-Acho que consultarei meu marido - disse.

Bart não deixou entrever nada.

-Imagino que é o lógico - disse como se pensasse tal coisa.

Charlotte se debatia entre sentimentos em conflito. Ira contra Oakley Winthrop, porque parecia ter sido um homem violento e, se Gracie estava certa, inclusive um sádico, compaixão por Mina porque ela tinha tido que suportá-lo e agora devia estar horrorizada em caso de que Bart o tivesse matado e pudessem descobri-lo. Temor por Bart e inclusive medo por si mesma agora que estava diante dele.

O silêncio começava a perturbá-la.

-Já que também é sua casa, é o mais adequado - disse.

Ele apertou os lábios divertido.

-Devo deduzir de suas palavras que não aceitará você necessariamente sua decisão, senhora Pitt?

-Sim, isso acredito.

-É uma mulher muito teimosa, e possivelmente valente.

Ela ficou de pé esboçando um sorriso.

-São qualidades de duvidoso atrativo - respondeu com ligeireza. -Mas foi muito gentil, senhor Mitchell, e generoso com sua hospitalidade, sobre tudo em tão penosas circunstâncias. Agradeço.

Ele se levantou e inclinou ligeiramente a cabeça.

-Obrigado pela amizade que demonstrou por minha irmã, foi muito considerada e atenta.

-Honro-me com isso - respondeu Charlotte sem comprometer-se, e inclinou a cabeça.

Ele a acompanhou até a porta, que a criada abriu lhe entregando sua capa, e Charlotte se afastou rapidamente pelo Curzon Street para a parada do ônibus com um sem-fim de perguntas na cabeça.

Pitt chegou tarde a casa. Gracie se tinha deitado e Daniel e Jemima dormiam desde há tempo. A impaciência consumia Charlotte, que se via incapaz de sentar-se e fazer algo de proveito. Tinha coisas por remendar na caixa de costura, mas não se decidia. Havia certas cartas que escrever.

Esteve rondando pela cozinha fazendo isto e o outro, limpando pela metade os fogões, esvaziando coisas de um pote a outro, derramando a caixinha para o chá por todo o chão. Ninguém pôde vê-la varrendo-o rapidamente e pondo as coisas em seu lugar. O chão estava limpo e, de todo modo, escaldaria-o com água.

Quando por fim ouviu chegar seu marido, arrumou-se as saias pela enésima vez, afastou o cabelo do rosto e desceu correndo ao vestíbulo para recebê-lo.

A primeira reação do Pitt foi de alarme, acreditando que passava algo mau, mas ao ver seu rosto a estreitou entre seus braços até que uns momentos depois afastou-a de si.

-Thomas, hoje averigüei algo muito importante.

-Da casa nova? - Pitt fingiu interesse, mas ela notou cansaço em sua voz.

-Não, isso não é tão importante, não. Fui ver Mina Winthrop, bom, a respeito de empapelar a sala de jantar.

-O que? - perguntou Pitt desconfiado. -Que diabos quer dizer? Não me venha com tolices!

-Sobre que cor escolhia - disse ela impaciente, levando-o para a cozinha. Não que o fizesse ela.

Pitt não entendia nada.

-Como ia ela saber que cor devia pôr?

-Tem muitos dotes para essa classe de coisas.

-E você como sabe? - sentou-se à mesa da cozinha. -No chão há folhas de chá.

-Me terá caído um pouco. - Charlotte lhe tirou importância. -Falei com ela durante o funeral de Oakley Winthrop. Fui vê-la hoje... Quer fazer o favor de escutar? Isto é importante.

-Estou escutando. Pode pôr a chaleira enquanto fala? Faz horas que não tomo uma xícara.

-Está posto. Ia preparar chá. Tem fome?

-Não. Estou muito cansado para isso.

Charlotte encheu uma terrina de água, jogou-lhe algo que Pitt não pôde ver e a deixou no chão diante dele.

-Os pés - disse distraída.

-Já não faço rondas - disse ele com um sorriso. - esqueceu que agora sou superintendente? - inclinou-se para desabotoar as botas, das quais extraiu os pés com imenso alívio.

-Aos superintendentes não lhes esquentam os pés dentro das botas?

Pitt sorriu e introduziu cautelosamente os pés na água fria.

-O que lhe colocaste?

-Sais do Epsom, o de sempre. Bateram na senhora Winthrop. E Oakley Winthrop poderia ter sido um sádico que gostava de dar surras nas mulheres. Bom, quero dizer prostitutas, já sabe.

-O que? - Olhou-a nos olhos. -Como sabe? Contou-lhe isso ela?

-Claro que não. Queimou o pulso com água quente e eu lhe desabotoei o o punho para ver a queimadura. Está cheia de hematomas.

-Um acidente...

-Nada disso. Havia sinais de dedos. E estou convencida de que o pescoço está igual, e talvez outras partes do corpo. Por isso leva punhos largos e golas altas, para ocultar os hematomas.

-Isso o supõe você.

-É certo! E ainda lhe direi mais, estou quase segura de que Bart Mitchell também sabe.

-Como?

-Falei com ela, estive-a observando. Parecia envergonhada, e não me disse como lhe tinha ocorrido. Se tivesse sido um acidente me teria explicado. Fez-lhe seu marido. O honorável capitão Oakley Winthrop batia em sua mulher.

-Por que está tão segura de que Mitchell sabe?

-Porque também viu os hematomas e não disse nada, claro. Se não o tivesse sabido se teria horrorizado ao vê-lo!

-E se fosse ele quem lhe batia?

-Por que razão? Além disso, lhe tem medo, estou certa. Teme que seja Bart quem matou ao Winthrop.

-Quererá dizer que não tem certeza - corrigiu-a Pitt. -A gente sempre diz o que tem certeza quando em realidade só acha que tem. A água está fervendo.

-Não importa - disse ela desprezando o assunto. -Thomas, Mina tem medo de que Bart tenha matado ao Oakley Winthrop por sua maneira de tratá-la.

-Entendo - disse ele pensativo. -E de onde tirou a informação do homem que bate nas prostitutas no parque? Não lhe terá isso dito Mina Winthrop, verdade?

-É claro que não.

-E então?

Charlotte inspirou fundo antes de responder.

-Não se zangue, Thomas. Fez isso porque teme por você. Se não a perdoar, eu tampouco o perdoarei.

-Me perdoar a mim? Por que?

-Por não perdoar a ela, naturalmente!

-A quem? É Emily?

-Possivelmente seria melhor não dizê-lo. - Não lhe tinha ocorrido jogar a culpa em sua irmã, mas era uma excelente idéia. Emily não era responsabilidade do Thomas.

-E como demônios soube? - perguntou ele. -Ao menos não me minta nisso.

-Foi uma noite ao parque e uma prostituta o disse. Bom, ficaram a falar, tão normal...

-Muito normal - disse ele lacônico. -Jack está informado? Não acredito que isso melhore suas possibilidades de conseguir uma cadeira.

-Nem lhe ocorra dizer-lhe.

-Não me passaria pela cabeça.

-Promete-o?

-Sim. - Sorriu, mas com um sorriso de duplo fio.

-Obrigada. - Charlotte preparou o chá, deixou-o repousar uns instantes e logo lhe serviu uma xicára cheia. Viu que Pitt tirava os pés da água e lhe entregou uma toalha morna.

-Obrigado - disse ele momentos depois.

-Pelo chá ou pela toalha?

-Pela informação. Pobre Mina.

-O que pensa fazer?

-Tomar o chá e me colocar na cama. Hoje não posso pensar mais.

-Perdoa. Deveria ter esperado.

Pitt estirou o pescoço para beijá-la, e por uns instantes Mina Winthrop e seus problemas ficaram muito longe.

Na manhã seguinte, muito cedo, Billy Sowerbutts conduzia lentamente sua carreta pelo Knightsbridge em direção ao Hyde Park quando se viu obrigado a deter-se devido a um congestionamento de tráfego. Isso o incomodou, para falar a verdade, zangou-se muito. Que sentido tinha madrugar com a vontade que se tinha de ficar na cama e continuar dormindo, se depois passava horas mais quieto que o monumento ao Nelson porque algum imbecil se decidia parar e não deixava passar ninguém?

As pessoas começaram a gritar impropérios. Um cavalo relinchou e se empinou, duas carretas chocaram, travando-as rodas. Isso foi a gota que encheu o copo. Sowerbutts atou as rédeas e pôs pé na terra.

A grandes passadas chegou até o veículo causador do engarrafamento. Era uma caleche, e estranhamente não tinha nenhum animal entre as varas, como se alguém tivesse levado o veículo até ali à mão e o tivesse abandonado em plena rua, inclinado e com a parte posterior bastante metida no meio-fio para ter ocasionado um problema.

-Idiota! - disse com sanha. -Tem que ser imbecil para deixar uma caleche em um lugar como este. Mas que diabos lhe passa? Aqui não se vem a sová-la! - Deu a volta até onde havia alguém recostado entre umas pilhas de roupa velha. -Acorda, maldito idiota! Saia daí! Tem toda a rua paralisada! -Sacudiu-o pelo ombro e notou a mão úmida. Retirou-a, e à luz do dia pôde ver que os dedos lhe tinham ficado escuros. Inclinou-se de novo e olhou ao homem mais devagar.

Faltava-lhe a cabeça.

-Meu deus! - exclamou, desabando-se sobre a vara.

 

Pitt estava sentado a sua mesa olhando ao Tellman. Sentia-se intumescido, como se tivesse recebido um golpe físico e não conseguisse reagir.

-No Knightsbridge, ao lado do parque - repetiu Tellman. -Decapitado, claro. - Seu rosto de farol não mostrava triunfo nem superioridade. -Ainda está solto, senhor Pitt e não avançamos nada.

-Quem era a vítima? Sabemos algo mais?

-Nada. - Tellman enrugou o rosto. -Um cobrador de ônibus.

-Como! - exclamou Pitt. -Não era um cavalheiro?

-Absolutamente. Só um muito comum e muito respeitável cobrador de ônibus.

Voltava para casa depois de seu último trajeto, bom, a sua casa não, isso é o estranho. - Olhou ao Pitt. -Vive perto do final da linha, que é pela zona do Shepherd"s Bush. Ao menos isso disse a companhia de transportes.

-E que fazia no Knightsbridge do lado do parque? - Pitt fez a pergunta óbvia. É aí onde o mataram?

Tellman pareceu recordar passadas conversas, a insistência do Pitt e sua própria incapacidade para averiguar onde tinha sido assassinado Arledge.

-Ao menos isso parece - respondeu. -Não há maneira de cortar a um tipo a cabeça sem deixar rios de sangue ao redor, e na caleche havia muito pouca.

-Caleche? Que caleche?

-Pois uma normal e comum. Mas sem cavalo.

-O que quer dizer, uma caleche sem cavalo? - disse Pitt levantando a voz. –Ou é um veículo para ir montado dentro ou uma carreta para empurrá-la!

-Quero dizer que o cavalo não estava - explicou Tellman irritado. –Ninguém deu com ele.

-Quer dizer que o Verdugo o deixou solto?

-Isso parece.

-Que mais? - Pitt se reclinou em sua poltrona, embora estava claro que hoje não estaria cômodo de maneira nenhuma. -Temos a cabeça, suponho, já que sabe quem era e onde vivia. Golpearam-no antes? Imagino que não levaria consigo nada de valor, não é verdade?

-Sim, golpearam-no primeiro, bastante forte, antes de lhe cortar a cabeça limpamente. Muito melhor que com o Arledge, pobre diabo. Voltava do trabalho, levava o uniforme posto e tinha três xelins e seis pennies no bolso, e um relógio que valerá umas cinco libras. Mas para que roubar a um pobre cobrador?

-Certo - concedeu Pitt. -Foi ver a família?

A boca do Tellman se estirou.

-Só são oito e meia. - Omitiu o "senhor". -Grange está a caminho para informar à mulher. Não acredito que ela possa nos ser de ajuda. - Colocou as mãos nos bolsos e permaneceu ante a mesa, olhando ao Pitt. -Temos outro louco. Parece que ataca a todo mundo quando tem o arrebatamento. Vou ao Bedlam experimentar a sorte outra vez. Possivelmente rechaçaram a alguém ou deixaram solto uns dias a algum lunático... - Mas seus olhos escuros não registravam a menor esperança de que sua sugestão pudesse dar frutos. De repente explodiu. -Alguém tem que conhecê-lo! – exclamou. -Toda Londres está saltando, a pessoa se assusta por uma sombra, ninguém confia em ninguém, mas alguém sabe quem é. Alguém viu seu rosto e sabe que não está bem, ou viu a arma ou sabe algo dela. Tem que ser assim por força!

Pitt fez caso omisso do exabrupto. Sabia que era verdade, ele mesmo tinha notado o medo das pessoas, o tom crispado das vozes, a desconfiança, a atitude precavida.

-De onde saiu essa caleche? Quem é o dono?

Tellman pareceu pilhado em falta, mas soube ocultá-lo imediatamente.

-Ainda não sabemos, senhor. Não há sinais fáceis de identificar.

-Muito em breve saberemos se a caleche era sua - disse Pitt pensativo, -

embora não imagino a um cobrador de ônibus voltando para casa em sua caleche. O qual nos leva a pergunta de por que estava ali.

-Seria muita sorte se a carruagem pertencesse ao louco. - Tellman apertou os lábios. -É muito esperto para isso!

Pitt se afundou mais na poltrona. Sem pensar disse ao Tellman que tomasse assento.

-Outra pergunta: por que utilizar uma caleche? – prosseguiu. -Suponhamos que era roubada, se não pertencia a nenhum dos dois. Para que queria o assassino um veículo?

-Para mover o cadáver. Isso significa que pôde matá-lo em qualquer parte. Igual à o Arledge.

-Sim, mas provavelmente em alguma parte que de um modo ou outro podia delatá-lo, ou algum lugar onde não era conveniente deixá-lo - disse Pitt, pensando em voz alta.

-Onde podiam encontrá-lo antes do tempo, possivelmente?

-Possivelmente. Onde teria deixado o último ônibus?

-No terminal do Shepherd"s Bush, Silgate Lane.

-Muito longe do Hyde Park - observou Pitt. -É ali onde vivia?

-A escassa distância.

-Então não era preciso uma caleche. Averigúe se nesse bairro roubaram alguma. Não lhe levará muito tempo.

Tellman se adiantou a seguinte pergunta.

-Ainda não sabemos onde o mataram, mas teve que ser perto dali. A menos que golpeasse ao pobre diabo na cabeça e o levasse a algum lado na caleche, para poder terminar o trabalho na intimidade. Não é fácil decapitar a um homem, é preciso muita força. - Meneou a cabeça. -Com certeza não o fez na caleche. Pôde havê-lo levado a qualquer parte, decapitá-lo fora do veículo e depois colocar a cabeça e o corpo outra vez na caleche e conduzir até o Hyde Park. Mas por que? Não tem nenhum sentido, olhe-se como se olhe.

-Então há algo que não sabemos - raciocinou Pitt. -Averigúe o que é, Tellman.

-Sim, senhor. - Tellman ficou de pé e hesitou.

Pitt ia perguntar-lhe o que queria, mas mudou de parecer.

-Verá - disse, -eu não estou muito certo de que seja um louco. Até um demente precisa estar um pouco cordato para escolher a alguém, um lugar, um ofício, algo que o motivasse. E não foi no mesmo lugar, isso sabemos. - apoiou-se no espaldar da cadeira. -Os dois primeiros se pareciam um pouco, possivelmente, embora Winthrop fosse corpulento, Arledge muito magro e uns dez ou quinze anos mais jovem. Mas o cobrador era um indivíduo calvo, de costas largas e uma boa barriga. E ainda tinha posto seu uniforme, qualquer um teria visto que não era um cavalheiro. De fato, ninguém teria podido confundi-lo com outra coisa. - Franziu o sobrecenho. -Para que quereria alguém matar um cobrador de ônibus?

-Não sei. A não ser que visse algo relacionado com os assassinatos. Mas como soube o louco é algo que me escapa.

-Chantagem?

-Como? - Pitt se reclinou de novo. -Embora tivesse presenciado um dos assassinatos, como ia saber quem era o louco ou onde achá-lo?

-Possivelmente sabia - disse Tellman pausadamente. -Possivelmente o louco era alguém a quem podia identificar, alguém a quem reconheceria todo mundo!

Pitt se ergueu um pouco.

-Um personagem conhecido?

-Isso explicaria por que teve que matar ao cobrador! - A voz do Tellman soou firme.

-E os outros? Winthrop e Arledge.

-Há uma conexão - se obstinou Tellman. -Não sei qual, mas está aí. Em sua mente perturbada há algum motivo!

-Que me crucifiquem se souber o que pode ser - admitiu Pitt.

-Descobrirei-o - disse Tellman entre dentes. -E farei que pendurem a esse bastardo.

Pitt se absteve de fazer comentários.

A tormenta explodiu com os jornais do meio-dia. O Verdugo do Hyde Park estava em primeira página de todas as edições, e todos os artigos incluíam um tom de pânico. Era pouco mais da uma quando a porta do escritório do Pitt se abriu violentamente e apareceu o subchefe Farnsworth deixando que as duas folhas balançassem sobre suas dobradiças. Estava lívido, à exceção de duas manchas vermelhas nas faces.

-Que diabos está fazendo você, Pitt? – inquiriu. -Este louco vai por toda Londres matando gente com prazer. Três cadáveres decapitados, e você ainda não tem a menor idéia de quem é nem nada de nada. -Inclinou-se sobre a escrivaninha e fulminou ao Pitt com o olhar. -Faz com que o corpo de polícia pareça um rebanho de incompetentes. Veio ver-me outra vez lorde Winthrop para me perguntar que passos demos para descobrir ao assassino de seu filho. E eu não soube o que lhe responder. Tive que agüentar ali como um idiota e lhe dar toda classe de desculpas.

Todo mundo fala do mesmo, na rua, nos clubes, nas casas, teatros, escritórios, disseram-me que inclusive se cantam refrões alusivos. Somos o bobo da cidade, Pitt. - Fechava e abria os punhos ao compasso de suas emoções. -Confiei em você, e você me defraudou. Acreditei em Drummond quando me disse que era a pessoa ideal para o posto, mas começo a pensar que lhe é muito. Não está à altura, Pitt!

Pitt não podia defender-se. Essas mesmas dúvidas tinham começado a assaltá-lo a ele, embora não lhe ocorria o que tivesse podido fazer outro, e menos ainda alguém como Drummond, que jamais tinha sido detetive. E, para o caso, tampouco Farnsworth.

-Se deseja encarregar a investigação a outra pessoa, senhor, é melhor que o faça - disse friamente. -Lhe facilitarei toda a informação que temos e as pistas que pensávamos seguir.

Farnsworth o encarou com surpresa. Pelo visto, não era a resposta que esperava.

-Não diga ridicularias. Não pode renunciar tão facilmente a sua responsabilidade! - replicou dando um passo atrás. -Que informação tem? Pelo que diz Tellman, parece que muito pouca coisa.

Era, com efeito, mas ao Pitt mortificou que Tellman tivesse falado disso com o subchefe. Embora Farnsworth lhe tivesse perguntado, Tellman deveria haver dito ao Pitt. Era amargo comprovar que não podia esperar lealdade nem sequer de seu imediato inferior. Isso também era um fracasso.

-Winthrop foi assassinado em um barco, o que indica que não temia seu atacante. - Enumerou os poucos fatos que tinha. -Lhe golpearam por detrás e depois o decapitaram apoiado na amurada, por volta da meia-noite. Arledge também foi golpeado antes, mas não o mataram no quiosque de música onde foi encontrado. Não sabemos se conhecia assassino, mas isso indica que o transladaram. Se pudermos averiguar em que lugar o assassinaram, esclareceríamos muitas coisas. Tenho meia dúzia de homens investigando.

-Não pôde ser muito longe, não lhe parece? Como vai um louco a transportar um cadáver sem cabeça por toda Londres, embora seja a meia-noite? Como o fez? Em uma carruagem, uma caleche, a cavalo? Use a cabeça, homem de Deus!

-Não havia rastros de cascos nem de rodas perto do quiosque - disse Pitt. -Revistamos o terreno em detalhe, e não se via nada que chamasse a atenção.

-Bem, e o que havia então? -disse Farnsworth. -Não o levaria nas costas, digo eu.

-Nada que chamasse a atenção - repetiu Pitt, pensando a toda pressa. –O que significa que o fez utilizando algo que ali era totalmente normal.

-Por exemplo? - inquiriu o subchefe.

-Material de jardinagem.

-O que? Vá, uma máquina de cortar grama. - A expressão do Farnsworth foi de brincadeira.

-Ou um carrinho de mão. - Pitt recordou que Grange tinha mencionado algo sobre um homem que tinha visto um carrinho de mão. -Sim - continuou cada vez mais excitado. -Uma testemunha viu um carrinho de mão. - ergueu-se um pouco mais na poltrona. -Não puderam matá-lo muito longe. Ninguém pode levar um cadáver em um carrinho de mão como se tal coisa...

-Encontre-o-o ordenou Farnsworth. -Que mais? O que tem esse cobrador? O que tem que ver com as outras vítimas? Que fazia ele no parque?

-Não sabemos que estivesse no parque.

-Pois claro que estava, homem. Por que o mataram, se não? Onde foi visto por última vez?

-Ao final de seu trajeto, no Shepherd"s Bush.

-Shepherd"s Bush? - A voz do Farnsworth subiu, quase uma oitava. Isso é muito longe do Hyde Park.

-O que sugere a pergunta de por que o Verdugo o levou ao Hyde Park.

-Porque sua loucura tem algo que ver com o parque, naturalmente –replicou Farnsworth entre dentes, esgotada quase sua paciência. -Deve tê-lo deixado sem sentidos, e depois o levou ao parque para lhe cortar a cabeça. É evidente.

-Se não o achou no parque, que necessidade tinha de o matar? - perguntou Pitt com calma, olhando-o nos olhos.

-Não sei - disse zangado Farnsworth. -Mas homem de Deus, não pagam a você para isso? Pois não se dá muita pressa, que digamos. - Voltou a lhe olhar, desta vez dominando sua agitação. -As pessoas tem direito a esperar mais de você, Pitt, e eu igualmente. Aceitei o conselho do Drummond e o promovi contra minha opinião, e devo dizer que ao que parece cometi um engano.

Agarrou o jornal que tinha arrojado sobre a mesa e, exclamando "Viu isto?", abriu-o na página onde saía uma caricatura de dois policiais com as mãos nos bolsos olhando ao chão, enquanto a gigantesca figura de um mascarado com um cutelo de verdugo se abatia sobre uma Londres aterrorizada.

Não havia mais que dizer. Farnsworth não tinha outra idéia melhor, mas afirmá-lo teria carecido de sentido. Ele já sabia, razão pela qual estava zangado. Via-se impotente para responder às pressões políticas de cima. Este fracasso podia pôr fim a sua carreira. A seus superiores não interessavam as desculpas, nem sequer as razões. Julgavam só pelos resultados. Eles respondiam ante o público, e o público era um amo veleidoso e assustadiço que esquecia rápido, perdoava muito pouco e compreendia só o que tinha vontade.

Golpeou a mesa com o diário.

-Resolva-o, Pitt. Espero saber algo definitivo amanhã pela manhã. - E dito isto, virou sobre os calcanhares e saiu deixando a porta aberta.

Assim que se tinham extinto os passos do Farnsworth na escada, a cabeça de Bailey apareceu pela porta, pálido e com expressão de desculpa.

-O que há? - disse Pitt.

Bailey fez uma careta.

-Caso omisso, senhor – disse. -Ele não poderia fazê-lo melhor, e todos sabemos.

-Obrigado, Bailey. Mas algo teremos que fazer se tivermos que apanhar a esse animal.

- Acredita que está louco, senhor Pitt - disse Bailey com um ligeiro estremecimento, -ou que é algo pessoal? O que não entendo é sobre o pobre cobrador de ônibus. Dos cavalheiros se entende. Poderia ser que tivessem feito algo.

Pitt sorriu a pesar dele.

-Não sei, mas tenho que averiguar. - levantou-se. -De momento, vou ver o que abrem essas chaves do Arledge.

-Sim, senhor. Digo ao senhor Tellman? Melhor não, como não sei em realidade aonde vai, senhor... Tampouco recordo o que me disse.

-Pois se eu não o repetir, não saberá, equivoco-me? - perguntou Pitt risonho.

-Não, senhor- disse contente Bailey.

        Pitt pegou os dois jogos de chaves e se encaminhou ao Mount Street. Parou um cabriolé e se dispôs a pensar enquanto o cocheiro enfrentava o tráfego, parando e arrancando, entre palavras de ânimo e insultos.

Dulcie Arledge o recebeu com cortesia, e se a surpreendia vê-lo dissimulou com a sensibilidade que ele já esperava nela.

-Bom dia, senhor Pitt. - Não se levantou do sofá em que estava instalada. Estava ainda completamente de negro, mas com um vestido mais ajustado e na moda, com picos na ponta do ombro.

Tinha um delicioso broche de luto na garganta e um anel de luto em sua esbelta mão. Estava serena, inclusive conseguiu sorrir.

-Em que mais posso ajudá-lo? Ouvi dizer que houve outra morte. É certo isso?

-Sim, senhora. Temoque sim.

-Deus santo. É espantoso. - Engoliu em seco. -Quem... quem morreu?

-Um cobrador de ônibus, senhora.

Dulcie se sobressaltou.

-Um cobrador? Mas por que ia alguém...? Quero dizer, - Desviou a vista como envergonhada de sua confusão. -Ai, não sei nem o que digo. Outra vez no Hyde Park?

Pitt odiava ter que contar-lhe. Era uma ofensa acrescentada para uma mulher de tal coragem e sensibilidade.

-Muito perto – disse. -Ao menos foi ali onde o acharam. Não sabemos ainda onde se produziu a morte.

Ela levantou os olhos, escuros e aflitos.

-Sente-se, superintendente. Me diga o que acredita que posso fazer. Não me ocorre nenhuma conexão entre meu marido e um cobrador de ônibus. Espremi os miolos tratando de recordar se Aidan mencionou a algum capitão Winthrop, mas em vão. Conhecia muitíssima gente, mas só me tinha apresentado a algumas pessoas.

-Relacionadas com a música? - perguntou Pitt aceitando o convite a sentar-se.

-Assim é. Tinha muito talento, e constantemente lhe encarregavam trabalhos. - Seus olhos se encheram de lágrimas. -Era um homem extraordinário, superintendente. Não sou a única que lhe sentirá falta.

Pitt não soube o que dizer. Os choros, os desmaios, a histeria eram chatos e o deixavam a uma pessoa sem saber o que fazer, mas esta calada e digna angústia tinha algo singularmente comovedor e, além disso, punha a ele em uma situação mais que incômoda.

Ela deve ter notado sua consternação.

-Sinto-o - se desculpou. -Não sou justa com você. Peço-lhe desculpas. Não devia deixar que meus sentimentos se intrometessem nisto. - Cruzou as mãos. -Que mais posso lhe dizer?

Pitt tirou as chaves do bolso e as estendeu.

A mulher olhou alternativamente os dois jogos e franziu o sobrecenho.

-Estas são as chaves de casa - disse separando o primeiro jogo. -Uma é da porta principal. Às vezes chegava tarde e não queria que a criadagem estivesse levantada esperando-o. - Sorriu languidamente. -As pequenas são de gavetas e demais. Acredito que esta é da adega. Às vezes gostava de ir abaixo procurar pessoalmente uma garrafa sem dizer ao Horton. - Olhou o segundo jogo com cenho. -Mas estas não sei. Não reconheço nenhuma. - Sustentou em alto os dois jogos, um ao lado do outro. -Não parecem iguais, não é?

-Não, senhora - concedeu ele, vendo em seus olhos o mesmo que lhe tinha ocorrido a ele. Parecia outro jogo de chaves de casa.

-Lamento-o. - Dulcie lhe devolveu as chaves. -Vejo que não lhe sirvo de nada.

-Justamente o contrário - lhe assegurou rapidamente Pitt. -Sua sinceridade é muito apreciável. Poucas pessoas teriam a coragem que demonstra em tão tristes circunstâncias, para não falar de sua clareza mental. Para mim já é uma pena ter que recorrer a você em busca de ajuda. - Dizia muito a sério.

Sorriu-lhe, um pouco mais reconfortada.

-É muito generoso, superintendente. Embora com alguém tão compassivo como você, falar do Aidan e de toda a tragédia não é tão duro como você imagina. Penso nisso todo o tempo, e a possibilidade de ser franca é quase um alívio. - Fez um gesto de triste impaciência. -A gente tenta ser amável, mas lhe falam de algo tratando de esquivar o tema, quando todos sabemos que não estamos pensando em outra coisa.

Pitt era muito consciente do que ela queria dizer, tinha-o presenciado inumeráveis vezes: o problema, olhares de soslaio, a dúvida, para logo ficar a falar de coisas irrelevantes.

-Me pergunte o que queira - lhe disse ela.

-Obrigado. Queria repassar os movimentos do senhor Arledge em sua última semana de vida, existe a possibilidade de que conhecesse quem lhe matou ou tivesse alguma relação com essa pessoa, por muito remota que fosse.

-Parece-me boa idéia. Nisso com certeza posso ajudá-lo. Posso lhe trazer sua agenda de compromissos. Guardei-a porque queria saber que concertos tinha pendentes, e como é lógico terei que escrever um montão de cartas. – Deu delicadamente de ombros e fez uma careta de desgosto. -Suponho que todo mundo o leu na imprensa ou se inteirou de algum modo, mas não é o mesmo.

- Agradeceria. - Não o tinha pedido antes porque os compromissos profissionais do Arledge pareciam muito desconectados de uma morte violenta em mãos de um louco.

-Em seguida. - Ela ficou de pé e ele a imitou, sem pensar, mas ficou como um gesto de cortesia.

A senhora Arledge foi a uma pequena escrivaninha de nogueira com trabalhos de marchetaria, abriu-a e tirou dela um livro encadernado em couro verde escuro.

Pitt abriu a agenda ao acaso e pôde ver a entrada correspondente ao dia da morte do Arledge. Havia uma anotação de um ensaio pela tarde e nada mais. Olhou para Dulcie.

-Nesse dia só tinha essa entrevista? - perguntou.

-Não sei com segurança - respondeu ela. -Aí só há uma escrita, mas às vezes, em realidade muito freqüentemente, meu marido saía assim pelas boas. Essa agenda era sobre tudo para assuntos de trabalho.

-Entendo. - Retrocedeu uma semana e começou a ler para frente. Ensaios, atuações e compromissos para jantares e almoços com diversas pessoas sobre futuros projetos apareciam escritos em uma letra pulcra e firme, maiúsculas em negrito e um itálico claramente legível. Era uma caligrafia elegante, mas não florida. -Se me permitir, levarei isto para ver se consigo um pouco de interesse.

-É claro - disse ela. -Posso lhe proporcionar os nomes de várias pessoas com as que trabalhava regularmente. Sir James Lismore, por exemplo, e Roderick Alberd. Eles conhecerão muitas mais, sem dúvida. - levantou-se de novo e foi à escrivaninha. -Tenho seus endereços por aqui. Lady Lismore é amiga minha de muito tempo. Lhe ajudará em tudo o que possa.

-Obrigado - disse Pitt, não muito seguro de que servisse de algo, cindido entre o desejo de conhecer melhor ao Aidan Arledge e a decepção de descobrir que tinha uma amante. Para aquela mulher seria uma carga impossível de agüentar, somada à tragédia. Decidiu que, se não era importante para o caso, manteria-o em segredo. Estava disposto a lhe devolver as chaves e mentir a respeito, dizer que não tinha encontrado as portas que aquele jogo abria.

—Voltou a agradecer e ficou ali tratando de achar algo mais que lhe dizer

para lhe dar esperança ou consolo, mas não lhe ocorreu nada. Ela sorriu e se despediu.

-Dirá-me o que tenha averiguado, não é, superintendente? - disse ao chegar quase à porta.

-Se averiguar algo que conduza a esclarecer o mistério, não duvide que a farei saber - prometeu, e antes que ela pudesse pensar se era essa a resposta que procurava, Pitt deixou que a criada o acompanhasse até a saída.

Começou pelos nomes que lhe proporcionou. Roderick Alberd resultou um excêntrico de cabelos alvoroçados e costeletas à maneira do Franz Liszt, o estúdio em que recebeu ao Pitt estava presidido por um piano de cauda. Vestia uma jaqueta de veludo granada e um lenço de seda grande e sedosa. Sua voz era áspera e inesperadamente aguda.

-Aflito, superintendente - disse com um gesto expansivo. -Desolado, acrescentaria. Que maneira mais insensata de morrer. - voltou-se para olhar ao Pitt com olhos de uma surpreendente inteligência. -Essas coisas costumam acontecer a valentões e libertinos, gente violenta e sem cultura, não a um homem como Aidan Arledge. Não era nada grosseiro nem agressivo. Isto é uma afronta à civilização. O que estão fazendo a respeito? - Entrecerrou os olhos. -Por que veio?

-Estou tratando de averiguar onde esteve e a quem viu nos últimos dias - começou Pitt, mas Alberd lhe interrompeu.

-Santo céu, e para que? Acaso supõe que esse louco o conhecia pessoalmente?

-Seus caminhos podem ter-se cruzado. Não acredito que o escolhessem totalmente ao acaso. Você pode me ajudar? A viúva do Arledge me proporcionou seu nome.

-Ah, sim, pobre criatura. Pois - Se sentou ao piano e flexionou os dedos fazendo ranger os nós. Tinha umas mãos extraordinariamente longas e uns dedos espatulados e longos que fascinavam ao Pitt. Mãos adequadas para estrangular.

Pitt esperou.

-Se não recordo mal o mataram uma terça-feira e o acharam na quarta-

feira pela manhã, não? - começou Alberd, e prosseguiu sem esperar resposta. -Sim, eu o vi na segunda-feira no meio da tarde. Estivemos falando do recital do mês que vem. Agora terei que achar outro diretor. Reconheço que nem sequer tinha pensado nisso. - Os dedos voltaram a ranger. -Ao despedirme disse que ia ver um amigo. Já não recordo quem. Não era ninguém a quem eu conhecesse, e diria que tampouco era do mundinho musical.

-Se pudesse recordar o nome...

-Céu santo, superintendente, não acreditará que...? Não, isso o posso assegurar, era um amigo de muito tempo. Um amigo íntimo. - Olhou ao Pitt divertido.

-Quem mais pode saber o que fez Arledge aquela semana, senhor Alberd?

-OH, pois me deixe ver - Pensou uns instantes, cabisbaixo, e finalmente entregou ao Pitt uma lista de seus próprios compromissos naquela data, e todas as ocasiões em que tinha coincidido com o Arledge, além de lugares e funções aonde Arledge teria ido com segurança. Em conjunto, foi um panorama muito completo.

-Obrigado. - Pitt se despediu e partiu com renovadas esperanças.

Foi ver também a lady Lismore, e, a sugestão dela, a várias pessoas mais. Três dias depois sabia já onde tinha estado Aidan Arledge durante a maior parte de sua última semana. Alguns nomes de lugares e pessoas se repetiam. Decidiu investigar tudo.

Enquanto isso voltava para o Bow Street, freqüentemente já de noite, para ver o que tinha averiguado Tellman.

-Não sei onde mataram ao Arledge - admitiu Tellman, olhando-o zangado. -Fiz revistar o parque de ponta a ponta, e todos os homens que fazem a ronda em um raio de uma milha têm ordem de manter os olhos bem abertos. Mas nada!

-O que tem sobre Yeats, o cobrador? - Pitt lhe olhou sem esperança.

-Tampouco sabemos onde o mataram. - Tellman se sentou de lado na cadeira. -Mas há alguns lugares prováveis no Shepherd"s Bush. Ao menos sabemos de onde veio a caleche. Um tal Arbuthnot disse que a roubaram de sua casa no Silgrave Road.

-Imagino que foi investigar ali - disse Pitt.

Tellman fulminou-o com o olhar.

-É claro. Um dos lugares mais prováveis era a estação da ferrovia. O chão está tão empapado de azeite e tão coberto de cinzas e coisas assim, que é difícil dizer se havia sangue ou não.

-Alguém viu o Yeats depois de deixar o veículo?

Tellman negou com a cabeça.

-Ao que parece não. Depois de despedir do condutor, parece que Yeats se foi pelo Silgrave Road. Vive no Osman Gardens, a umas quatro ou cinco ruas do terminal.

-Desceu-se alguém mais a essa mesma hora?

-Meia dúzia de pessoas. - Tellman fez uma careta. -O homem diz que não se lembra de nenhuma porque esteve de costas durante todo o trajeto, e que ao final só tinha vontade de voltar para casa e colocar os pés em água com sais do Epsom.

-Os passageiros habituais? - perguntou Pitt. -Terão notado se havia alguém estranho. O que dizem eles?

-Só pude dar com um - se lamentou Tellman. -Não são horas para gente que trabalha ou vai a alguma parte por negócios ou diversão. Os teatros já fecharam a essa hora. Além disso, quem vai aos teatros do centro desde o Shepherd"s Bush e em ônibus?

Pitt começava a perder a paciência.

-O que disse esse passageiro? Vamos, fale.

-Segundo ele, havia seis ou sete pessoas no ônibus quando chegaram ao Shepherd"s Bush. Ao menos quatro eram homens, um jovem, três mais velhos e, que ele recorde, todos bem corpulentos. Não recorda a nenhum porque estava cansado e lhe doía um molar. - Tellman ergueu o queixo e esticou as feições. -E o que soube você, senhor? Alguma coisa que esclareça um pouco a situação?

-Acredito que Arledge tinha uma amante, e confio em encontrá-la antes de um par de dias - respondeu Pitt com aspereza.

-Oh! - A exclamação do Tellman não afirmava nem negava seu interesse. -Poderia explicar a morte do Arledge, se a dama era casada, mas e Winthrop? Ou ele também tinha a mesma amante?

-Não saberei até que dê com ela - respondeu Pitt, ficando em pé e indo para a janela. -E antes de que o pergunte, não sei o que tem que ver nisto Yeats, a menos que se inteirasse de algo e fosse um chantagista. - Abaixo na rua se deteve um cabriole do qual agora descia com dificuldade um homem obeso. O menino que varria a calçada não se incomodou em ocultar a risada.

Tellman arqueou as sobrancelhas.

-E a dama vivia no Shepherd"s Bush? - perguntou com sarcasmo.

-Tampouco tem o menor sentido um louco que mata sem ater-se a nenhuma pauta - replicou Pitt.

-É algo relacionado com o parque. Para que levar até ali ao Yeats em uma caleche? Era mais simples deixá-lo no Shepherd"s Bush.

-Talvez não queria deixá-lo onde estava - sugeriu Pitt, indo sentar se no canto da mesa. -Talvez o levou ao Hyde Park porque é ali onde vive nosso assassino.

Tellman se dispunha a discuti-lo, mas mudou de parecer.

-Possivelmente. A amante do Arledge e o marido dela, não? Pode ser que ela seja uma mulher de princípios muito despendiosos, além de ser a amante do Winthrop. Mas não desse pobre cobrador, claro. - Seu rosto de farol se quebrou em um sorriso de aço. -eu adoraria conhecer essa mulher.

-Então será melhor que me ponha para buscá-la - disse Pitt. Você averigúe onde mataram ao Yeats e Arledge.

-Sim, senhor. - E sorrindo ainda para si mesmo, Tellman ficou em pé e foi para a porta.

Mas tiveram que transcorrer dois largos dias de extenuante trabalho com pequenos detalhes de bate-papos, entrevistas, conversas caçadas ao vôo e pessoas vistas ao acaso, antes de que Pitt tivesse localizado a dez ou doze conhecidos do Arledge e começado a tacha los da lista de possíveis suspeitos.

Estava desanimando. Eram gente de irrepreensível reputação e tinham bons álibis.

Cansado e com os pés doloridos, Pitt se apresentou em casa de um respeitado homem de negócios que tinha contribuído economicamente à pequena orquestra que Aidan Arledge dirigia freqüentemente. Talvez o senhor Jerome Carvell tivesse uma bonita esposa.

Abriu a porta um mordomo alto com um largo nariz curvo e uma boca altiva.

-Boa tarde, senhor. - Olhou ao Pitt inquisitivamente.

Aparentemente não dava crédito a seus olhos. A expressão abatida, mas confiante do Pitt contrastava com o abandono de sua indumentária e suas botas poeirentas.

-Boa tarde - respondeu Pitt, lhe entregando seu cartão. -Lamento vir a estas horas, mas se trata de um assunto urgente. Poderia falar com o senhor ou a senhora Carvell?

-Perguntarei ao senhor Carvell se pode recebê-lo, senhor - disse o mordomo.

-Queria falar também com a senhora - insistiu Pitt.

-Impossível, senhor.

-É importante.

O mordomo arqueou as sobrancelhas.

-Não há nenhuma senhora Carvell.

-OH. - Pitt se sentiu irracionalmente defraudado. Embora Carvell tivesse sido tão amigo do Arledge como Pitt tinha pensado, e tivesse informação sobre sua vida privada, não ia contá-la agora à polícia.

-Deseja ver o senhor Carvell, senhor? - O mordomo se impacientava um pouco.

-Com efeito - disse Pitt, irritado.

-Faça o favor de me acompanhar, senhor, verei se for possível.

-O mordomo conduziu-o até um elegante estúdio de pequenas proporções com painéis de madeira e prateleiras de livros encadernados em couro, dispostos por temas e aparentemente lidos.

Pitt esteve a sós uns cinco minutos, durante os quais repassou os títulos. As áreas de interesse iam da exploração, teatro clássico e entomologia à arquitetura medieval e o cultivo de rosas. Então se abriu a porta e entrou um homem de uns quarenta e cinco anos. Seus cabelos loiros começavam a encanecer nas têmporas e seu rosto era de uma grande singularidade e inteligência. Ninguém lhe teria chamado de bonito - tinha sinais de uma antiga enfermidade, talvez varíola, e seus dentes não estavam bem alinhados - mas transmitia tanta perspicácia que Pitt gostou dele.

-O senhor Carvell?

-Eu mesmo. - Carvell entrou um pouco nervoso. -Superintendente Pitt? Fiz algo de mau? Não sabia eu que...

-Duvido que haja algo, senhor. Só vim para ver se sabia algo que pudesse me ser de ajuda.

-Mas sobre o que? - Carvell lhe indicou que tomasse assento. Pitt se sentou em uma poltrona. -Não acredito que tenha nenhuma informação que possa ser útil à polícia. Sou um homem de negócios. Não sei nada de crimes. Houve algum desfalque?

Parecia tão inocente que Pitt esteve a ponto de deixá-lo. Foi só a necessidade de justificar sua presença o que lhe fez continuar.

-Que eu saiba não, senhor Carvell. Trata-se da morte do Aidan Arledge. Soube... – Calou-se. Carvell tinha empalidecido e parecia tão perturbado que Pitt temeu por ele. Dava a impressão de que lhe custava respirar. Pitt tinha estado a ponto de dizer "Soube que você o conhecia", mas semelhante observação era já absurda. -Quer um copo de água? - disse, ficando de pé. -Ou de brandy. – Olhou em busca de alguma garrafa.

-Não, não, você desculpe - balbuciou Carvell. -Eu... - Se interrompeu sem saber o que dizer. Não havia explicação possível. Piscou várias vezes.

Pitt divisou a garrafa. Parecia conter madeira, mas era melhor isso que nada. Não viu nenhum copo, assim aproximou a garrafa aos lábios do Carvell.

-A verdade, eu... - balbuciou Carvell. Depois bebeu um gole e ficou sentado respirando com esforço. Seu rosto recuperou um pouco de cor e Pitt deixou a garrafa sobre a mesinha e voltou a sentar-se.

-Obrigado - disse Carvell aniquilado. –Lhe devo uma desculpa. Eu... não sei o que me passou. - Mas a expressão angustiada falava as claras do que o tinha privado de toda compostura.

-Não tem do que desculpar-se - disse Pitt com uma estranha sensação de piedade. -Sou eu quem deveria lhe pedir perdão. Foi uma estupidez por minha parte abordar o tema tão bruscamente. Entendo que sentia muito afeto pelo senhor Arledge.

-Sim, certamente, fazia muitos anos que éramos bons amigos. Foi uma morte horrível. - Sua voz soou amortecida pela emoção.

-Com efeito. Mas posso lhe assegurar que não sentiu nada. Certamente o golpearam e perdeu o conhecimento. Mas é terrível para quem agora conhece todos os pormenores.

-É muito considerado. Queria... - Carvell se deteve em seco. -Não sei o que posso lhe contar superintendente. - Olhou ao Pitt. -Não tenho a menor idéia do que aconteceu. E, como é lógico, tenho espremido os miolos para ver se eu teria podido fazer algo para impedi-lo, para prever tão abominável ato, mas foi em vão. Foi uma absoluta surpresa! Não havia nada que pudesse pressagiar esse final. Tudo está como estava, os prazeres que alguém dá por sentados, o sol, a terra que volta para a vida, gente jovem por toda parte cheia de esperança e ambição, anciões cheios de lembranças, boa comida, bom vinho, boa companhia, bons livros e música deliciosa. - Suspirou brevemente. -O mundo segue seu curso. E de repente... – Os olhos se umedeceram e Carvell voltou a cabeça, envergonhado, piscando para dissimular seu problema.

Pitt se compadeceu dele.

-Todos estamos comocionados – disse. -E assustados. Essa razão me obriga a me misturar na vida das pessoas. E tudo o que você me diga poderia nos ajudar a apanhar ao culpado. Conhecia ao capitão Winthrop? Falou-lhe dele alguma vez o senhor Arledge? - Estava evitando o tema principal, mas queria dar tempo ao Carvell para que recuperasse a calma. E enquanto o fazia, era consciente de que incorria em um engano tático. Tellman não teria vacilado.

-O capitão Winthrop? - Carvell fez expressão de perplexidade. -Ah, sim, o primeiro homem que assassinaram. Não, acredito que nunca tinha ouvido falar dele até então. OH, um momento. Sim, ouvi mencionar seu nome por Bartholomew Mitchell, com o qual tive alguns contatos. Em realidade acredito que ele mencionou à senhora Winthrop, que é sua irmã, se não me engano.

-Posso perguntar que classe de contatos?

-O senhor Mitchell comprou umas ações em nome dela. Não me ocorre que possa haver nenhuma conexão.

-Não, a mim tampouco. Quando viu o senhor Arledge por última vez?

Carvell empalideceu de novo.

- No dia antes de que o assassinassem, superintendente. Jantamos juntos depois de uma atuação. Era tarde e ele sabia que em sua casa se teriam deitado já.

-Entendo. - Pitt tirou do bolso o jogo de chaves. Ia perguntar ao Carvell se sabia o que eram quando sua expressão evitou toda resposta.

-Onde... ? - começou, e logo olhou impotente ao Pitt.

-Estas chaves são desta casa, senhor Carvell?

-Sim - admitiu Carvell engolindo em seco.

Pitt pegou a maior.

- A porta principal?

-Não, a de trás. Parece que...

-É claro. E estas? - Mostrou-lhe as outras duas.

Carvell guardou silêncio.

-Rogo. Seria muito indecoroso ter que recorrer a uma ordem de revista e comprovar todas as portas e cômodas da casa.

Carvell empalideceu mais.

-É que... tem que revistar tudo? - balbuciou desesperado.

-Que coisas guardava ele nesta casa? - perguntou Pitt a pesar dele. Era uma intromissão, mas não podia evitá-la.

-Artigos pessoais de toucador. - Carvell o disse a trancos e barrancos, como se arrancasse cada palavra de sua memória. -Roupa interior, traje de gala, algumas abotoaduras e botões de colarinho. Nada que possa lhe servir de muito, superintendente.

-Uma escova de prata, talvez?

-Sim, acho que sim.

-Entendo.

-Acredita de verdade? Eu lhe queria, superintendente. Não sei se é capaz de entender o que isso significa. Toda minha vida adulta... - inclinou a cabeça, e cobriu o rosto com as mãos. -Que importa? Pensava que seria um alívio compartilhá-lo com outra pessoa. Ser capaz ao menos de admitir que me sinto triste. - A dor lhe quebrou a voz. -Tinha que guardar o segredo, fingir que éramos simplesmente amigos, que ele só significava isso para mim. Tem idéia do que é perder à pessoa que mais se ama no mundo e ter que fingir que era simplesmente um amigo? - Levantou a cabeça com o rosto sulcado de lágrimas, totalmente fora de seus sentimentos.

-Não - disse Pitt com franqueza. -Seria uma rabugice de minha parte afirmar que sei como se sente. Mas sei de que deve ser muito duro. Acompanho-o no sentimento, embora saiba que isso não tem nenhum valor.

-Equivoca-se, superintendente. Já é algo que ao menos uma pessoa o compreenda.

-Estava a senhora Arledge à corrente de sua relação?

Carvell lhe olhou horrorizado.

-Céu santo, não!

-Tem certeza?

-Aidan o estava. A ela não vi mais que uma vez, brevemente, em ocasião de um concerto e por casualidade. Não queria que... Você me compreende.

-Já. - Pitt só se fazia uma idéia dos sentimentos de ciúmes, culpa e medo que podiam estar passando por sua cabeça.

-Sim? - disse Carvell com apenas um toque de acrimonia.

Via-o totalmente destroçado. Pitt se deu conta de que estava muito só. Não tinha ninguém que pudesse consolá-lo, ninguém que estivesse à corrente de seu infortúnio.

-Quem o fez, superintendente? Há um louco solto em Londres tão sedento de sangue? Por que teve que matar ao Aidan? Ele não fazia mal a ninguém.

-Não sei, senhor Carvell. Quantos mais dados reúno, menos entendo o que significam. - Não havia mais o que acrescentar, nenhuma pergunta cuja resposta pudesse ter algum significado. Tinha vindo em busca de uma amante, de uma razão de ciúmes, alguma conexão com o Winthrop. E se tinha encontrado com um homem afável e eloqüente, devastado por uma aflição muito pessoal e privada.

Despediu-se e saiu ao entardecer primaveril sob um céu em calma onde a lua começava a sair antes que o sol se pusesse.

-Encontrou-a! -disse Farnsworth na manhã seguinte, saltando da cadeira no escritório do Pitt. -O que há sobre o marido? Como é? O que disse? Reconheceu alguma relação com o Winthrop? Não importa, já o averiguará depois. Prendeu já ao marido? Quando teremos algo que dizer à imprensa?

-Chama-se Jerome Carvell, e é um respeitável e reservado homem de negócios - começou Pitt.

-Mas Pitt! - explodiu Farnsworth. -Como se é o rei da Malásia! Sua mulher tinha uma confusão com Arledge, e ele o descobriu e tomou a vingança em sua mão. Com certeza você achará as provas.

-Não há nenhuma senhora Carvell.

Farnsworth ficou de pedra.

-Então para que me conta isso? Achei que havia dito que achou onde encaixavam essas chaves. Se não tinha uma amante, para que diabos tinha as chaves dessa casa?

-Amante sim havia - disse Pitt lentamente, odiando ter que explicar ao subchefe.

-Fale claro, Pitt - disse Farnsworth entre dentes. -Tinha uma confusão com a mulher, a irmã ou o que seja do Carvell, ou não tinha uma confusão? Me está acabando a paciência.

-Tinha uma confusão com o próprio Carvell - respondeu Pitt. -Se é que lhe pode chamar "confusão". Parece que se queriam há mais de trinta anos.

Farnsworth ficou estupefato até que conseguiu assimilá-lo, então estalou de ira.

-Mas homem de Deus, fala você como... como se fosse...

Pitt não disse nada, só olhou ao Farnsworth friamente enquanto pensava no rosto torturado do Jerome Carvell.

Farnsworth deixou a frase em suspense sem saber muito bem por que.

-Pois será melhor que vá em seguida prendê-lo! - exclamou, levantando-se da cadeira. -Não sei o que faz aqui sentado.

-Não posso prendê-lo. Não há provas de que matasse ao Arledge, e menos ainda de que conhecesse Winthrop.

-Pelo amor de Deus, não vê que tinha uma relação ilegal com o Arledge. Inclinou-se sobre a escrivaninha.

-Que mais necessita? Brigaram e então esse homem, como se chamo, matou-o. Não é preciso que lhe recorde que muitos assassinatos são de ordem doméstica, ou fruto de brigas entre apaixonados. Já tem ao culpado.

Detenha-o antes de que volte a assassinar. - endireitou-se como dando por resolvida a questão.

-Não posso - repetiu Pitt. -Não há provas.

-O que é o que quer, uma testemunha? – inquiriu Farnsworth com cólera. - Certamente matou-o em sua casa, por esse motivo não puderam achar o lugar do crime. Revistou a casa, Pitt?

-Não.

-Maldito incompetente! - explodiu Farnsworth. -O que lhe passa, homem de Deus? Está doente? Já me parecia que sua promoção era inoportuna, mas isto é muito. Envie imediatamente ao Tellman, e logo prenda a esse homem.

Pitt notou que o rosto lhe ardia de raiva e certa vergonha, tanto pela ignorância do Farnsworth como pelos demolidores sentimentos do Carvell.

-Não há motivos para revistar sua casa - disse com frieza. -Arledge ficava ali às vezes. Isso não é nenhum crime. E não há nada que relacione ao Carvell com o Winthrop nem com o cobrador de ônibus.

Farnsworth apertou os lábios.

-Se for um sodomita provavelmente abordaria ao Winthrop e, como Winthrop o rechaçou, foi às nuvens e acabou matando-o - disse muito decidido. -Quanto ao Yeats, possivelmente soubesse algo. Possivelmente estava no parque e foi testemunha da briga. Tratou de chantagear ao Carvell e isso lhe supôs a morte. A chantagem é um delito repugnante.

-Não há provas de nada - protestou Pitt. -Não sabemos onde estava Carvell na noite em que mataram ao Winthrop. Poderia ter estado jantando em casa do vigário.

-Pois averigúe-o! - replicou-lhe Farnsworth. -Faça seu trabalho. Espero que me informe de algum prendo antes de quarenta e oito horas. Direi ao ministro do Interior que já temos ao homem, que é só questão de reunir provas irrefutáveis.

-Não, é questão de reunir ao menos uma prova - replicou Pitt. -Quão único sabemos até agora é que Carvell queria ao Arledge. Santo céu, se isso provasse um assassinato, deveríamos deter o marido ou a mulher de todas as vítimas que se dão no país.

-Não é o mesmo - instou Farnsworth. -Estamos falando de uma relação antinatural, não de um matrimônio normal e comum!

-Não havia dito que a maioria de assassinatos são de ordem doméstica? - disse Pitt com certo sarcasmo.

-Saia para fazer seu trabalho. - Farnsworth lhe apontou com o dedo. –Agora mesmo. - E cortando qualquer possível objeção saiu deixando aberta a porta.

Pitt saiu atrás dele.

-Tellman! - gritou da escada, com mais brutalidade do que tinha sido sua intenção.

Grange apareceu no corredor justo quando Farnsworth saía à rua.

-Sim, senhor? Perguntava pelo senhor Tellman? - disse com estudada inocência.

-Naturalmente que sim! Para que diabos acredita que lhe chamava? –replicou-lhe Pitt.

-Senhor, acredito que está ocupado com uns papéis. Pedirei-lhe que suba, senhor.

-Não o peça, diga-lhe.

O Grange desapareceu imediatamente, mas Pitt teve que esperar dez minutos para que Tellman entrasse em seu escritório e fechasse a porta com expressão agradada.

Sem dúvida meia delegacia de polícia tinha ouvido os gritos do Farnsworth ao Pitt.

-Sim, senhor? - disse Tellman, e Pitt teve a segurança de que sabia perfeitamente para que o tinha chamado.

-Vá a por uma ordem de revista e dirija-se ao numero onze do Green Street.

-Green Street?

-Esquina Park Lañe, duas quadras ao sul de Oxford Street. É a residência de um tal senhor Jerome Carvell.

-Sim, senhor. O que devo procurar, senhor?

-Provas de que Aidan Arledge foi assassinado ali, ou de que o proprietário conhecia o Winthrop ou ao cobrador de ônibus.

-Sim, senhor. - Tellman foi para a porta e logo se voltou olhando ao Pitt com os olhos muito abertos. -Que classe de prova demonstra que alguém conhece um cobrador?

-Uma carta onde apareça esse nome, ou uma nota com sua letra, qualquer referência ao Yeats - disse Pitt sem alterar-se.

-Bem, senhor. Conseguirei a ordem. - antes que Pitt pudesse acrescentar algo, e dizer o que tinha na ponta da língua, Tellman se tinha ido. Pitt foi ao patamar e lhe gritou:

-Tellman!

Este virou na escada e olhou para cima.

-Sim, senhor Pitt?

-Seja cortês com ele. O senhor Carvell é um respeitável homem de negócios e não cometeu nenhum delito. Não o esqueça!

-Muito bem, senhor. É claro - disse Tellman sorridente, e seguiu descendo a escada.

Pitt se dispôs a fazer outra coisa que aborrecia. Passou dez minutos frente ao espelho retocando o lenço de seda e ajustando-a jaqueta e organizando o conteúdo de seus bolsos, em um intento de adiar o momento. Mas era inevitável, assim pegou o chapéu e desceu a escada. O sargento de guarda olhou-o com surpresa e respeito ao lhe ver tão elegante.

-Vou ver a senhora Arledge - disse Pitt. -Se o inspetor Tellman voltar antes que eu, lhe diga que me espere. Quero saber o que achou.

-Sim, senhor! Senhor...

-Sim, sargento?

-Você acredita que o fez esse Carvell, senhor?

-Não, não acredito, mas suponho que cabe essa possibilidade.

-Sim, senhor. Perdoe senhor, mas tinha que perguntá-lo.

Pitt lhe sorriu e saiu em busca de um cabriolé.

-Sim, superintendente? - disse Dulcie Arledge com sua habitual cortesia, e sem aparente surpresa. Ia ainda vestida de negro e, como as anteriores vezes, era um vestido de fino corte, nesta ocasião com as mangas adornadas com laços de veludo à altura dos ombros, um traje bonito e nada ostentoso. - averiguou algo?

Pitt odiava ter que dizer-lhe mas devia lhe fazer algumas perguntas e ela sem dúvida veria que atrás das mesmas se ocultava algo sujo e suspeito. O fato de que já se cheirasse algo facilitou um pouco as coisas. Estavam no salão e Pitt esperou que ela voltasse a sentar-se antes de fazê-lo ele no elegante sofá em frente.

-Sei aonde pertencem aquelas chaves, senhora Arledge - começou.

-Sim? - respondeu ela em voz rouca.

-Sinto muito, mas são de outra casa.

Olhou-o sem piscar. Seus olhos azuis eram serenos. Sobre o regaço, suas mãos se juntaram até deixar os dedos brancos.

-Uma mulher? - perguntou com um fio de voz.

Pitt desejou ter podido dizer que sim. Teria sido melhor. Teria querido não ter que lhe revelar nada, mas era muito possível que o assunto saísse à luz, e muito em breve, se Farnsworth fazia das suas.

-Você acha que seu marido podia ter estado... podia ter querido a outra pessoa? -perguntou.

A mulher, pálida, evitou lhe olhar e fixou a vista em um desenho do tapete.

-É algo que toda mulher aprende a agüentar, senhor Pitt. Tratamos de não dar crédito, mas - de repente olhou nos olhos. -Sim, para falar a verdade, me passou pela cabeça. Havia pequenos detalhes, ausências que não explicava, presentes, coisas que eu não lhe tinha dado. Não havia necessidade de dizer que a relação tinha durado trinta anos. Isso podia economizar à viúva.

-Superintendente.

-Senhora?

-É uma mulher casada?

O motivo da pergunta era mais que evidente, o mesmo tinha ocorrido ao Farnsworth.

-Por que dúvida, senhor Pitt? - Agora estava nervosa. -É que... é muito jovem? - A palavra a fez balbuciar. -Tem um pai, possivelmente um irmão? - Não pôde continuar.

-Essa casa pertence a um homem, senhora Arledge.

Ela franziu o sobrecenho.

-Não entendo. Achei que havia dito...

Pitt não pôde adiar mais.

-Seu marido queria a um homem.

-Um um homem? ficou totalmente confusa.

-Lamento-o. - Pitt se sabia portador de uma horrível noticia.

-Mas isso é impossível! - de repente ela se ruborizou e seus olhos se arregalaram. -Não pode ser. Trata-se de um engano. É... não!

-Tomara o fosse, senhora, mas não há nenhum engano.

-É impossível - repetiu ela. -Com certeza se engana.

-Ele o reconheceu em seguida, e as coisas de seu marido, entre elas uma escova de prata como o que há acima em seu quarto, estavam no quarto de vestir.

-Mas é... – disse ela, negando furiosamente com a cabeça. -por que teve que me dizer esta... esta monstruosidade?

-Tomara não tivesse tido que fazê-lo, senhora Arledge. Se tivesse podido fazer que o segredo morresse com ele, o teria feito, não o duvide. Mas tenho que fazer mais perguntas, e teria deduzido que havia algo. - Pitt a olhou muito sério, desejando que lhe acreditasse. -Teria sofrido todo o horror e todo o medo e no final possivelmente se teria informado pelos jornais.

Olhou-o impotente, sem conseguir.

-A que perguntas se refere? - disse ao cabo. A voz lhe quebrou, mas ao menos estava claro que sua inteligência voltava a funcionar, apesar da angústia e dessa nova dor inimaginável.

-Seu marido tinha outros amigos da mesma índole? Talvez poderia me mostrar os presentes que você não lhe fez ou cuja procedência desconhecia. Recorda que seu marido se mostrasse preocupado nas últimas três ou quatro semanas? Momentos em que a seu julgamento pudesse ter estado envolvido em uma discussão ou passando por uma situação de grande ansiedade.

-Quer dizer, pensa que pôde brigar com esse homem… por uma terceira pessoa? - Dulcie compreendeu rapidamente tudo o que a pergunta implicava.

-É possível, senhora Arledge.

-Sim, claro, suponho que o é. E agora que o penso, tudo encaixa de uma forma espantosa. - cobriu-se o rosto com as mãos. Pitt viu que os ombros lhe subiam e baixavam com a respiração, era claro que tratava de manter o domínio de si.

Pitt se levantou e se aproximou do chiffonnier em busca de alguma garrafa de xerez ou madeira para ela. Encontrou uma e voltou com um copo. Esperou a que viúva levantasse a cabeça.

-Obrigado - disse quedamente, aceitando a bebida com mãos trêmulas. – É muito amável, superintendente. Lamento saber me dominar tão pouco. Para

mim foi uma comoção que jamais imaginaria, nem sequer em meus piores pesadelos. Vou demorar um pouco em me fazer à idéia. -Olhou o copo e tomou um gole de xerez. -É preciso que acredite, não é?

Pitt estava em pé junto a ela.

-Temo que sim, senhora Arledge. Mas isso não invalida tudo de bom que havia nele, sua generosidade, seu amor e reverência para todo o belo, seu humor.

-Como pode você? - começou, mas mordeu o lábio. -Pobre Aidan. - Elevou os olhos. -É necessário que se saiba? Não poderíamos deixar que descansasse em paz? Não é culpa sua que o assassinassem. Se tivesse morrido enquanto dormia ninguém o teria sabido.

-Tomara pudesse prometer-lhe Mas se esse homem está comprometido em sua morte, tudo se saberá tão logo seja detido. E por descontado no julgamento.

Foi como se lhe tivessem batido. Demorou uns segundos em ter a suficiente concentração para formular sua seguinte pergunta, e ele, enquanto, aguardou de pé desejando poder aliviar a carga que ela padecia.

-Você acredita que este... que este homem matou ao Aidan? - disse ela por fim, tensa a voz pelo esforço de controlar suas emoções.

-Não sei. - Pitt foi franco. -Me inclino a pensar que não. Não há provas de que o fizesse, mas parece provável que haja uma relação com a amizade que mantinham.

Ela tratou de compreender sem consegui-lo.

-Mas o que tem que ver o capitão Winthrop com isto? Ou essa outra pessoa, o cobrador de ônibus.

-Não sei. Acredito que há algum outro comprometido cujo nome desconhecemos ainda.

Ela desviou a vista para a janela e o ensolarado jardim.

-É tudo tão repulsivo que não consigo entender. - Começou a tremer de maneira convulsiva. -Mas procurarei lhe ajudar no que possa. Assim, não conhecia o Aidan tão bem como imaginava. Mas do que sei, só tem que perguntar e lhe direi o que seja.

-Obrigado, senhora Arledge. Agradeço sua franqueza e sua coragem.

Olhou-o sorrindo fragilmente.

-Pode perguntar, superintendente.

Pitt investiu outras três horas fazendo perguntas sobre os menores detalhes da vida privada do Arledge, rebuscando de novo em seus pertences, agarrando alguns pertences pessoais que ela afirmou não lhe ter dado nem recordar que ele as tivesse comprado para seu uso.

Dulcie lhe mostrou quanto ele pediu ver e respondeu a tudo com simples candura, como se aquela revelação a tivesse deixado tão aturdida que nem sequer as lembranças mais queridas e privadas ofereciam resistência na hora de sair à luz.

-Estávamos há vinte anos casados - disse pensativa, olhando um velho programa de mão. -Não sabia que ele conservasse isto. Foi o primeiro concerto ao que me levou. Eu então era muito pouco refinada. Acabava de chegar do campo. – Deu voltas e mais voltas ao gasto papel. -Você me teria considerado muito ingênua, superintendente.

-Duvido-o, senhora - disse ele, amável. -Eu também cresci no campo.

Olhou-o com calidez nos olhos.

-Seriamente? Onde? OH, perdoe, isto é...

-Não se apure. No Hertfordshire, em uma propriedade grande da qual meu pai era guarda. - Por que o havia dito? Era algo que nunca mencionava a ninguém, parte de um passado que lhe recordava uma perda dolorosa, uma injustiça que jamais ficou remédio.

-Então você também gostará do campo, - Seus olhos, de um azul escuro,

estavam cheios de um interesse isento de crítica, -compreenderá sua beleza e às vezes sua crueldade, a economia da sobrevivência, Sim, estou certa. -voltou-se para olhar os telhados e mesmo o céu. -Parece muito mais limpo.

não acha? Mais sincero.

Pitt tratou de ficar em sua pele, de compreender a raiva por todos aqueles anos que agora pareciam desperdiçados, cheios de infidelidade. recuperaria-se da morte de seu marido, sim, era uma ferida limpa, mas o engano lhe doeria para sempre, levou consigo o futuro, mas também o passado. Toda sua vida adulta, vinte anos, convertidos em uma impostura.

-Sim - disse Pitt. -Muito mais sincero. A morte rápida de um animal à mãos de outro é uma necessidade da natureza e algo honroso.

Olhou-o com assombro e admiração.

-É um homem extraordinário, superintendente. É uma grande sorte que esteja a cargo deste terrível assunto. Não achei que ninguém pudesse me fazer tudo isto fácil, mas você o conseguiu.

Pitt não soube o que dizer. Qualquer comentário pareceria corriqueiro, assim sorriu em silêncio e olhou outro papel, um convite a um baile de caçadores. Ela, recordou a ocasião.

Pitt se foi no meio da tarde mais triste que cansado. Pelo que tinha averiguado, houve numerosas oportunidades para outras aventuras amorosas. Oakley Winthrop era um candidato, ou Bart Mitchell, entre outros.

Ao chegar ao Bow Street achou ao Tellman esperando diante de seu escritório. Seu rosto alongado parecia muito enrugado. A julgar por sua expressão, levava muito tempo esperando.

-O que averiguou? - perguntou Pitt ao chegar ao alto da escada.

-Nada de nada - respondeu Tellman. Seguiu-o até a porta e logo entrou atrás do Pitt sem esperar que lhe convidassem a fazê-lo. -Zero! Ele e Arledge eram amantes, isso está claro, mas embora isso é um delito não poderíamos processá-los sem pilhá-los com as mãos na massa, a não ser que alguém os denunciasse. E como Arledge morreu, isso já não é possível.

-Não o mataram ali?

-Não.

- Tem certeza?

-A menos que tirasse a cabeça pela banheira e Carvell esfregasse tudo depois meticulosamente - ironizou Tellman. -Sim, ficava a dormir, e não estranharia que tivesse passado mais tempo em casa do Carvell que na própria. Mas não o mataram ali.

-Imagino que examinou você o jardim.

-Pois claro! E antes de que o pergunte, está tudo cheio de ladrilhos, canteiros de flores e erva, e faz anos que ninguém remove a terra. Revistei inclusive o quarto do carvão e o abrigo do jardineiro. Nada. - Olhou ao Pitt com os lábios apertados, refletindo. -Pensa prendê-lo?

-Não.

Tellman suspirou devagar.

-Bem – disse. -Eu não estou seguro de que não o fizesse. Mas em troca estou muito seguro de que não temos nenhuma prova apontodora de que o fez. – Deu um pulo. -Eu não gosto de prender a alguém e que depois não haja condenação.

Pitt lhe olhou tratando de ver mais à frente. Tellman sorriu sem expressão.

-E tampouco quero me equivocar de homem – acrescentou. –Embora não saiba quem é o culpado.

Emily estava concentrada em duas coisas de uma vez. Era de vital importância dar toda a ajuda possível ao Jack, embora fosse provável que seus esforços caíssem em saco rasgado. Mas também lhe preocupava a situação do Pitt. Tinha ouvido comentários de pessoas relacionadas com círculos de poder, e conhecia o clima predominante de temor e receio. Ninguém sugeria idéias, mas o incessante clamor geral os tinha feito temer por seus cargos, e em conseqüência jogar as culpas a outros.

Anunciada já a data das eleições, havia discursos e artigos que preparar, de vez em quando alguma aparição em público de caráter social, um baile ou um concerto. Em alguns casos eram coisas muito oficiais, como recepções de embaixadores estrangeiros ou dignatrios de visita no país, e outras mais informais como o evento daquela noite. Posto que Mina Winthrop estava de luto, não podia ser convidada, assim como Dulcie Arledge, mas Emily tinha optado por pedir ao Victor Garrick que tocasse o chelo para os convidados, e, já que ele estaria ali, pelo menos convidar também a Thora Garrick. Emily não sabia o que podia tirar disso, mas não era necessário ver o fim para pôr os meios adequados.

Quase todos os convidados o eram por motivos de índole política, gente de maior ou menor influencia, e a noite ia levar lhe muito trabalho. Não ficaria tempo para entreter-se em fofocas. Tinha que sopesar cada palavra. Emily contemplou da escada aquele mar de cabeças, os vários penteados femininos, muitos dos quais cheios de penas, tiaras e forquilhas de pedras preciosas. Tratou de serenar-se. Havia possivelmente tantos amigos como inimigos, não só inimigos do Jack, mas também do Pitt. Muitos seriam membros do Círculo Interno, alguns periféricos como Micah Drummond em seu momento, sem saber quase o que isso significava. Outros estariam no mais alto escalão, gente capaz de pôr em perigo carreiras e futuros se achasse necessário, capaz de dispor castigos terríveis contra todo suspeito de traição ou desobediência. Mas ninguém sabia onde se ocultava o perigo, podia ser qualquer rosto inocente e risonho, qualquer cavalheiro que tagarelasse educadas trivialidades, qualquer homem de aparência inofensiva, cabelo branco e sorriso benévolo.

Estremeceu-se, não só de medo mas também de ira.

Viu os loiros cabelos do Victor Garrick sob lustre e começou a descer para saudá-lo.

-Boa tarde, senhor Garrick - disse ao chegar ao pé da escada e aproximar-se de Victor, que segurava com amor seu instrumento. Era um formoso violoncelo de madeira polida de uma cor como o xerez à luz do dia, e um primoroso desenho. Suas curvas lhe provocaram vontade de tocá-lo, mas sabia que isso seria uma indiscrição. Victor segurava seu violoncelo como se fosse a mulher amada. -Lhe agradeço muito que tenha aceito vir – prosseguiu. -depois de lhe ouvir tocar no funeral pelo capitão não pude pensar em ninguém mais.

-Obrigado, senhora Radley. - Victor olhou-a nos olhos com franqueza. Parecia procurar sob a superfície para saber se o dizia a sério, se entendia um pouco de música, de suas texturas e valores, ou se só tratava de ser educada. Um sorriso se formou em seus lábios. -Eu adoro tocar.

Emily procurou algo mais que dizer, a situação parecia pedi-lo.

-É um formoso instrumento, o seu. Muito antigo?

Victor corou de repente e uma expressão de profunda dor cruzou seu rosto.

-Sim – disse. -Não é um Guarnerius, claro, mas é italiano e mais ou menos da mesma época.

Ela não conseguia entender.

-Não é bom?

-Mais que isso - disse ele em um suave sussurro. -É um instrumento de valor incalculável, o dinheiro não significa nada ante algo tão formoso. O dinheiro não é mais que papel, e isto é paixão, eloqüência, amor, pena, tudo o que significa alguma coisa. É a voz da alma de um intérprete.

Emily ia perguntar-lhe se alguém o tinha insultado lhe atribuindo um valor monetário quando reparou em um defeito na perfeita lisura da madeira, um racho. Sentiu-se repentinamente inquieta. Aquele instrumento tinha muitas das qualidades de uma coisa viva, mas não o dom de curar-se a si mesmo. Aquela marca estaria ali para sempre.

Olhou em seus olhos e os viu cheios de uma terrível raiva. Não foi necessário dizer nada. Desde aquele momento compartilhou com ele a impotência e o ódio do artista cara a cara com o vândalo, com a insensata deterioração da beleza.

-Isso afeta ao som? - perguntou, quase segura de que não era assim.

Ele negou com a cabeça.

Uniu-se a eles Thora, extraordinariamente formosa com aquelas cascatas loiras marfim dos ombros aos cotovelos e sobre o pronunciado decote. A saia era lisa e trazia só uma mínima anquinha. Todo o conjunto era muito elegante. Thora olhou ao Victor franzindo o cenho.

-Não estará incomodando à senhora Radley com esse desventurado acidente, não é verdade, querido? O melhor é esquecê-lo. Não podemos fazer nada, já sabe.

Ele a olhou impertérrito.

-Sei, mamãe. Uma vez recebido o golpe não se pode voltar atrás. – E acrescentou olhando ao Emily. -Não é certo, senhora Radley? A carne fica machucada, e também a alma.

Thora abriu a boca para falar, mas decidiu não fazê-lo. Olhou ao instrumento e depois a seu filho. Victor parecia esperar uma resposta.

-É claro - disse apressadamente Emily. -Não há volta atrás.

-Você acredita que deveríamos fazer como se isto não tivesse acontecido? - perguntou Victor sem deixar de olhá-la. -Quando os amigos nos perguntem, sorriremos com valentia e diremos que tudo vai bem, inclusive diremos a nós mesmos que não havia para tanto, que curará logo, que sem dúvida foi um acidente e ninguém quis causar o menor dano. - A voz se endureceu e havia nela uma nota de pânico interior.

-Não sei se está de acordo - replicou Emily, procurando uma resposta de compromisso entre a sinceridade e o tato. -Armar um revôo excessivo não ajuda a ninguém, mas eu acredito que quem fez isso a seu chelo, acidentalmente ou não, está em dívida com você, e não vejo razão alguma para que deva fingir que não é assim.

Victor pareceu sobressaltar-se.

Thora se ruborizou e a olhou carrancuda como se não tivesse entendido de tudo.

-Às vezes se produzem acidentes por negligência - explicou Emily. -Mas, pelo resto é preciso que cada qual se faça responsável por seus atos. Não lhes parece? Não podemos deixar que outros carreguem com o peso.

-Nem sempre é tão simples - atravessou Thora.

Victor dirigiu à Emily um cálido sorriso.

-Obrigado, senhora Radley. Expressou-o você com toda exatidão. Foi um descuido. Terá que ser responsável. Para falar a verdade, essa é a chave de tudo.

-Não sabe quem lhe danificou o violoncelo - perguntou Emily.

-OH, sim. Claro que sei.

Thora fez expressão de perplexidade e disse. -Victor - antes que ele pudesse reagir, uma mulher gordinha de extraordinário cabelo negro interrompeu-os.

-Desculpe, senhora Radley, só queria lhe dizer quanto eu gostei do discurso do senhor Radley. Esteve muito acertado sobre a atual situação na África. Fazia anos que não escutava a alguém com as idéias tão claras. Ignorou ao Victor como se fosse um criado, e pelo visto não se percebeu que Thora formava parte do grupo. -Necessitamos homens assim no governo, como estava dizendo agora mesmo a meu marido. - Assinalou com o braço a um homem alto e magro de nariz proeminente. Emily teve uma visão repentina de um abutre. Levava uniforme militar.

-O brigadeiro Gibson-Jones, já sabe. - A mulher parecia supor que esse nome tinha que lhe soar.

Em realidade Emily não recordava nada do brigadeiro nem da sua esposa, assim agradeceu que ela tivesse revelado seu sobrenome. Ia dizer alguma coisa adequada e lhes apresentar ao Victor e Thora, mas como se, se desse conta de que tinha sido descortês, a senhora Gibson-Jones se voltou para o Victor.

-Vai tocar para nós? Que bom. Eu acredito que a música sempre anima, não é assim - E sem esperar resposta, afastou-se ao ver outra pessoa com a que sem dúvida queria conversar.

Emily olhou ao Victor.

-Sinto muito - sussurrou.

Victor sorriu de maneira encantadora e deslumbrante, um raio de sol.

-O que pensará que vou tocar, uma giga?

- A imagina você dançando a giga? - respondeu Emily em voz muito baixa.

O sorriso do Victor se alargou. Parecia ter esquecido temporariamente o assunto do arranhão no violoncelo.

Emily se desculpou ante os dois e se dedicou à tarefa de ser encantadora. Ia de grupo em grupo saudando gente, perguntando pela saúde, conversando de moda, de filhos, do tempo, da corte e a boa sociedade, os temas habituais em toda conversa civilizada. Viu o Jack falando com homens ricos e de boa família, com amplas relações, tão abertas como discretas. Perguntou-se quantos deles seriam membros do Círculo Interno, quais deles sabiam quem o eram, quais padeciam do medo e da culpa, quais estavam disposto a trair. Procurou pensar em outra coisa.

-Necessitamos mudanças - ouviu dizer um homem muito magro que ajustava uns óculos. -Este corpo de polícia não é o bastante bom. Senhor, quando um homem da classe do Oakley Winthrop pode cair assassinado em pleno Hyde Park, é que estamos a um passo da anarquia. Da absoluta anarquia.

-Quem leva o caso é um incompetente - concedeu seu robusto acompanhante, pendurando ambos os polegares das cavas de seu colete. -Penso apresentar uma pergunta na Câmara. Terá que fazer algo. Tal como estão as coisas, um homem decente já não pode sair para passear de noite. Há rumores de todas as classes, fala-se de agitadores, de bombas, de irlandeses, suspeita-se até do vizinho. Todo mundo está muito agitado.

-Para mim, a culpa é dos manicômios - acrescentou um terceiro com veemência. -Que lunático pode fazer coisas como essas e estar em liberdade? Isso é o que eu gostaria de saber. Ninguém faz nada para arrumá-lo.

-Ouviram o que diz Uttley? - perguntou o primeiro, olhando a seus companheiros. -Pois tem razão, sabem. É preciso mudanças. Embora eu não acredito que seja coisa de um demente, mas sim de um homem perfeitamente cordato e muito malvado. Digam o digam, seguro que há alguma relação entre as vítimas, e se não já o veremos.

-Você acha, Ponsonby? - disse o mais robusto. - Não era músico o segundo que mataram? E bastante bom, dizem. Conhecia você ao Winthrop? Não pertencia à Marinha Real?

-Um tipo estranho - disse Ponsonby torcendo o gesto. -Embora a família fosse bastante decente. O pai armou um escândalo, mas não lhe pode culpar, um filho é um filho.

-Conhecia-o você?

-Ao Marlborough Winthrop?

-Não, homem, ao Oakley. O filho!

-Falamos algumas vezes. Não me era especialmente simpático. Era um pouco altivo, sabem.

-Como? Muito marinheiro é isso? Dos que sempre acreditam estar subidos à fortaleza?

-Bom, não - duvidou Ponsonby. -Mas gostava de ser o centro, sempre estava falando e expressando suas opiniões. Só lhe vi algumas vezes. A quem conheci foi a seu cunhado. Acredito que se chama Mitchell. Um indivíduo interessante. Muito sagaz. Esteve na África até muito recentemente, conforme soube.

-Por que diz muito sagaz?

-Pensava mais do que dizia, já me entendem. Não agüentava a seu cunhado. Em troca, deu-me um excelente conselho financeiro. Pôs-me em contato com um homem da city, um tal Carvell. Comprei umas ações estupendas que saiu muito bem.

-Sim, isso sempre é útil.

-O que?

-Que é útil. Ter um bom assessor financeiro.

-Certamente. E falando de finanças, o que opina de...?

Emily se afastou, tratando de encaixar mentalmente retalhos de conversa, idéias pela metade, pensamentos que transmitir depois a Charlotte.

 

-Naturalmente que tenho lido os jornais todo dia - disse Micah Drummond.

Estava de pé junto à janela da biblioteca da casinha que tinha comprado seis meses atrás, antes de casar-se, por não considerar sua velha residência adequada a seu novo status. A casa que tinha compartilhado com sua primeira mulher e onde tinham crescido suas filhas, tinha-a vendido ao enviuvar. Suas filhas já estavam casadas então, e ele se sentia muito só e acossado pelas lembranças.

Mas agora tudo era diferente. Tinha demitido-se de seu cargo a fim de casar-se com Eleanor Byam, uma mulher tocada pela tragédia e, involuntariamente, pelo escândalo. Drummond estava tão apaixonado por ela que tinha considerado seu retiro do cargo um preço insignificante a pagar pelo constante prazer de sua companhia.

Olhou ao Pitt com preocupação em seu rosto longo e sensível, de olhos sérios e boca ascética.

-Tomara tivesse algo útil que dizer, mas com cada novo fato me sinto ainda mais confuso. - Afundou as mãos nos bolsos. -Descobriu alguma conexão entre o Winthrop, Arledge e o pobre cobrador?

-Não. É possível que Winthrop e Arledge se conhecessem, ou mais exatamente que o cunhado do Winthrop, Bart Mitchell, conhecesse-os ambos - respondeu Pitt, sentado confortavelmente na poltrona verde. -Mas o do cobrador, é todo um mistério. A gente como Winthrop não toma o ônibus. Arledge possivelmente, embora acredito improvável.

Drummond estava de costas para a lareira. Olhou ao Pitt com nervosismo.

-Por que? O que lhe faz pensar que Arledge pudesse ter utilizado um ônibus? Para que ia fazer tal coisa um homem de sua posição?

-Só é uma possibilidade remota - disse Pitt. -Arledge tinha um amante.

-Tinha o que? - Um esboço de sorriso dançou nos lábios do Drummond.

-Quer dizer uma amante?

-Não - suspirou Pitt. -Quero dizer um amante. Algo que não podia permitir-se que ninguém soubesse. É possível que tomasse um ônibus.

-Mas você não acredita - terminou Drummond por ele. -Uma briga talvez? – Olhou ao Pitt procurando resposta. -Tudo isso não lhe satisfaz, verdade?

Pitt tinha pensado muito nisso e a resposta fácil não o convencia.

-Se não o tivesse conhecido – disse. -Mas o homem estava desolado. Sim, já sei que isso não impede que pudesse fazê-lo, não seria a primeira vez que alguém mata à pessoa amada e depois se consome de pena e remorso. Mas não acredito que ele seja desses.

Drummond mordeu o lábio.

-Estranho muito que Farnsworth o veja deste modo.

Pitt soltou um risinho.

-É claro. Mas de momento não há a menor prova que relacione ao Carvell com o Winthrop ou Yeats, assim de momento posso me negar a agir.

Drummond lhe olhou com atenção e Pitt se sentiu incômodo.

-Por agora não há conexão alguma entre eles - prosseguiu Pitt. -Só um pequeno assunto de negócios. E não acredito que tudo isto seja por dinheiro.

-Eu tampouco - admitiu Drummond. -Aqui há paixão, uma loucura que surge de algo que, graças a Deus, é menos comum que a cobiça. Mas não me ocorre o que. - Olhou ao Pitt.

-Sim?

-Talvez seja muito estranho - disse Drummond e calou.

Pitt sabia que ia continuar. Viu o esforço refletido em seu rosto, o esforço de achar as palavras que expressassem isso que um momento antes tanto o tinha preocupado.

-Não terá algo que ver com o Círculo Interno? - disse ao cabo esbugalhando os olhos. -Já sei que no caso do cobrador é improvável, mas não impossível.

-Uma traição? - disse Pitt com surpresa. -Algum tipo de castigo interno? Não lhe parece um pouco...?

-Exagerado? Pode ser. Mas acredito que às vezes não compreende você quão poderosos são e quão desumanos podem ser.

-Uma espécie de execução? - Pitt ainda não via claro. Pensava que Drummond se estava deixando levar por sua própria implicação. -Eu achava que essa sociedade estava mais na linha de destruir à pessoa, lhe dar bola negra em todos os clubes, cancelar sua conta de crédito, reclamar toda dívida e empréstimo. Há gente que por menos disso se suicidou.

-Já sei - disse Drummond. -Mas Winthrop era um homem da armada. Possivelmente era imune a eles.

Pitt sabia que sua expressão era cética, mas não pôde fazer nada para ocultá-lo.

-Me escute, Pitt - Drummond deu um passo à frente, a expressão tensa, o olhar sério. -Sei muito mais que você sobre o Círculo. Você só conhece os degraus inferiores, homens como eu que acabaram dentro da sociedade sem conhecer nada mais que as obras de beneficência que todo mundo pode ver e algumas das regras mais superficiais. Esses são só os cavalheiros Verdes.

Drummond se ruborizou um pouco, mas ia muito a sério para deixar que a vergonha o impedisse de falar.

-Eu era isso – prosseguiu, -um cavalheiro Verde, alguém ligado a eles, mas noviço ao fim e ao cabo. Depois vem os cavalheiros Escarlate. São os que já passaram a prova, os iniciados, se você quiser, pessoas comprometidas de maneira irrevogável. Depois seguem os lordes da Prata. Eles têm faculdade para castigar e recompensar. Mas, atrás deles há ainda um homem, o Senhor Púrpura.

-Viu a rosto que punha o outro. -Está bem! - disse com um repentino toque de ira que Pitt não lhe tinha ouvido nunca. -Pode rir. A coisa tem seu lado ridículo. Mas o poder que esse homem tem em suas mãos não o é absolutamente. É algo secreto e total. Se ele pronunciasse uma sentença de destruição ou de morte, essa sentença se levaria a cabo. E me creia, Pitt, os perpetradores iriam à forca sem o delatar.

Naquela bonita habitação de georgiana simplicidade, cálida e familiar, mas sem complicações, uma conversa semelhante não deveria ter passado de ser um entretenimento bem macabro e fantástico. Mas vendo o rosto do Drummond, a tensão em todo seu corpo, o horror em seu olhar, Pitt começou a sentir um medo frio.

Drummond observou que suas palavras tinham impregnado fundo.

-Poderia ser que não – disse. -Poderia não ter que ver com o Círculo absolutamente. Mas recorde o que lhe digo Pitt. Quem quer que seja, você o terá incomodado já uma vez, quando pôs ao descoberto a lorde Byam e lorde Anstiss. Ele não o terá esquecido. Vá com cuidado e procure fazer amigos além de inimigos.

Pitt sabia que não devia perguntar se lhe estava sugerindo que se retirasse. Não era próprio do Drummond pensar uma coisa assim. Tinha chegado a considerar o Drummond um tipo orgulhoso, alguém que mal compreendia o que era a pobreza ou o desespero, como conseqüência de sua carreira militar e sua linhagem aristocrática. Tinha chegado a perguntar-se se era capaz de rir de verdade ou de sentir autêntica paixão. Mas em nenhum momento tinha chegado a duvidar de sua coragem ou sua honra. Era aquela classe de inglês tímido, às vezes antipático, exageradamente cortês, mas tímido, elegante e de um humor lacônico, capaz de confrontar o impossível sem pronunciar uma queixa e de morrer em seu posto, mas que jamais o abandonaria embora fosse o último homem sobre a terra.

-Obrigado pela advertência - disse Pitt. -Não descartarei a possibilidade, embora neste caso me parece improvável.

Drummond começou a relaxar-se. Dispunha a falar de outro assunto quando alguém bateu na porta e ambos se voltaram.

-Sim? - perguntou Drummond.

Entrou Eleanor Drummond. Pitt não a via desde o dia das bodas, a que tinha assistido com Charlotte. Estava mudada. Sua felicidade parecia agora mais funda e serena, como se ao fim acreditasse nela e não se sentisse inclinada a aferrar-se o se por acaso se desvanecia. Estava vestida de azul, uma cor que lhe sentava bem a seu cabelo escuro com toques de cinza e a Sua pele oliva e olhos cinzas. Havia em seu rosto uma quietude que pra Pitt foi muito agradável.

-Boa tarde, senhora Drummond - disse levantando-se. -Lamento lhe roubar seu tempo, mas procurava um pouco de assessoramento.

-É claro, senhor Pitt - disse ela na hora, entrando na sala e sorrindo a ambos. -Faz muito que não lhe vemos. Lamento que seja esse horrível assunto do Hyde Park o que lhe traz por aqui. É isso, não é verdade?

-Temo que sim. - Pitt se sentiu culpado, e entretanto ele nunca iria de visita de cortesia. Drummond tinha sido seu superior e só em certo sentido seu amigo.

-Então aceitarão você e a senhora Pitt jantar quando tudo tenha terminado? Assim poderemos falar de coisas mais agradáveis. - Sorriu. -Me alegro de que você seja agora o superintendente, e de que tudo isto não tenha que ver com Micah. Senti muito o do Aidan Arledge. Era um homem encantador. Pelo capitão Winthrop não sinto tanta pena como possivelmente deveria.

-Conheceu-o? - perguntou Pitt surpreso.

-OH, não. Em realidade não. Mas a boa sociedade é muito pequena. Sei quem são lorde e lady Winthrop, é claro, mas não posso dizer que os conheça bem. - Olhou-o como desculpando-se. -Não são pessoas com as que seja fácil ter uma relação fora do superficial, as trivialidades de sempre quando se encontra eles ano após ano nas mesmas ocasiões. São como lhe diria, muito previsíveis, muito corretos. Estou certa de que como indivíduos devem ter algo mais, mas... – Se deteve. Ambos sabiam o que ia dizer, era inútil continuar.

-E o capitão? - perguntou ele.

-Encontrei-me algumas vezes com ele. - Meneou a cabeça. -Era a classe de homem que me fazia sentir condescendente com ele, mas não sei por que. Talvez porque na armada não há mulheres. Deu-me a sensação de que considerava os civis uma espécie inferior. Era absolutamente educado, isso sim. Mas com essa educação que se reserva para os ajudantes, não sei se me explico.

-Você acha que ele conhecia o Arledge? - perguntou Pitt.

-Não. Eram dois homens que dificilmente se teriam se achado agradáveis um ao outro.

Drummond olhou ao Pitt, que lhe sorriu. Não tinha intenção de falar dos assuntos amorosos do Arledge diante de Eleanor, e menos ainda de sua natureza.

Eleanor se aproximou do Drummond, e com certo acanhamento ele a rodeou com o braço. A liberdade de poder fazê-lo era ainda nova para ele, e muito prazenteira.

-Tomara pudesse lhe ajudar, Pitt - disse muito sério. -Mas bem poderia ser obra de um demente, e para averiguá-lo deverá você saber o que tinham esses homens em comum. - Olhou fixamente ao Pitt, o que tinham falado antes sobre o Círculo Interno flutuava no ar. -Parece altamente improvável que seja um conhecido de algum deles - prosseguiu. -Mas pode ser que haja alguém a quem os três conheciam. Suponho que terá pensado na chantagem. - Rodeou a Eleanor com o braço.

-Pensava que Yeats podia ter sabido algo - respondeu Pitt, com o mesmo cuidado. -Mas como?

-O ônibus passa pelo parque? - perguntou Drummond. -Faz um trajeto noturno, do contrário não teria terminado no Shepherd"s Bush no meio da noite.

-Sim, mas o ônibus não passa pelo Hyde Park. Tellman o comprovou.

Drummond fez uma careta.

-Como vai com o Tellman?

Pitt tinha decidido de antemão guardar-se de comentários.

-É muito preparado – disse. -E diligente. Ele tampouco quer prender o Carvell.

Eleanor os olhou alternativamente, mas não interrompeu.

-Acredito. - Drummond sorriu. -Se houver algo que Tellman não suporta é prender a alguém e depois deixá-lo em liberdade. Quererá ter provas para lhe pendurar antes de comprometer-se a algo. É um osso duro de roer, mas um bom amigo.

-Estou certo - disse de maneira ambígua.

-E tem as qualidades de um líder - continuou Drummond, vigiando ao Pitt com o olhar divertido e como pedindo desculpas. -Se você lhe deixar, outros seguirão a ele.

-Sei - respondeu secamente Pitt, pensando no Grange.

Drummond continuou sorrindo, mas não disse nada.

-Posso lhe oferecer alguma coisa, senhor Pitt? - perguntou Eleanor. -É cedo para almoçar, mas quer um copo de vinho? Ou prefere uma limonada?

-Limonada, obrigado - aceitou Pitt. Já tinha decidida sua próxima visita, e qualquer coisa que o demorasse, que lhe fortificasse um pouco, era mais que bem - vinda. -eu adoraria.

Depois de despedir uma hora depois, Pitt tomou um cabriolé ao outro lado do Lambeth Bridge, passado Lambeth Palace, onde tinha sua residência oficial o arcebispo do Canterbury, e subiu pelo Lambeth Road até a imponente

porta do manicômio do Bethlehem, popularmente conhecido como Bedlam. Já tinha estado antes ali, e o edifício lhe trazia lembranças de medo, confusão e piedade.

Desembarcou da carruagem, pagou ao condutor e se aproximou da grade. Foi recebido com cautela e só depois de mostrar suas credenciais obteve permissão para entrar. Teve que esperar durante um quarto de hora em um mal iluminado escritório repleto de livros escuros e que cheirava a pó e a fechamento, até que vieram para acompanhá-lo aos escritórios do encarregado do asilo.

Era um homem baixo de olhos redondos e enormes costeletas. Umas mechas de cabelo grisalho cobriam sua cabeça. Estava aborrecido.

-Informei já a seu inferior, superintendente Pitt, de que não tivemos nenhuma fuga no centro - disse muito rígido, sem levantar-se de sua poltrona. -É algo que não acontece. Dispomos de um excelente sistema, e inclusive se algum interno se for sem autorização, saberíamos imediatamente. E caso se tratasse de alguém perigoso, teríamos informado imediatamente às autoridades. Não sei que mais posso lhe dizer. Meus esforços parecem ter sido em vão até o momento. - Sua mão direita descansava sobre uma pilha de papéis na escrivaninha que tinha ao lado, possivelmente trabalho pendente.

Pitt teve que recordar-se para que tinha ido ali. Responder a aquele homem com a mesma brutalidade teria anulado seu propósito.

-Não duvido, doutor Melchett – disse. -É seu conselho o que vim procurar.

-Seriamente? - respondeu Melchett cético, lhe indicando por fim que tomasse assento. -Pois essa não é a impressão que deixou seu inspetor. Absolutamente. Deu a entender claramente que nossos métodos eram relaxados e que ou fugiu algum louco perigoso, ou tínhamos deixado em liberdade a algum que devia permanecer aqui, e com grilhões.

-É um pouco tosco - admitiu Pitt, sem lamentá-lo muito. Aceitou sentar-se. - Era uma pergunta necessária. -Alguém bastante louco para cortar a cabeça a três pessoas pôde ter passado por aqui em algum momento?

Melchett ficou de pé, tintas as faces.

-Se estava tão perturbado para decapitar a três perfeitos desconhecidos, Pitt, não teria passado por aqui! - disse furioso. -Lhe asseguro que não o teríamos deixado partir! Venha comigo. - Rodeou a escrivaninha. -Teria levado a esse imbecil do inspetor, mas duvido de que tivesse tido cérebro para assimilar o que ia ver. Me acompanhe e dê uma olhada. - Foi até a porta, abriu-a de má maneira e pôs-se a andar pelo corredor, no caso de Pitt lhe seguir.

Pitt odiava aquele lugar e tinha esperado não ter que voltar. Agora seguia ao ofendido Melchett por aqueles corredores com seus largos silêncios, seus súbitos gritos, os gemidos e os soluços, as gargalhadas e de novo o silêncio.

Melchett lhe levava vantagem e Pitt teve que apressar-se. Lhe ocorreu inclusive não fazê-lo, dar meia volta e voltar-se por onde tinha vindo. Mas não o fez. Apressou o passo e Melchett lhe esperava já com a porta aberta.

-Por aqui! - disse com os dentes apertados e o olhar arregalado.

Pitt passou por seu lado e entrou em uma longa sala de teto alto. Em torno das paredes havia uma espécie de estreita passarela a quase um metro do chão, criando a impressão de uma parede cheia de gente, a maioria sentados em cadeiras ou no chão mesmo, muitos acocorados, outros balançando-se ritmicamente e murmurando coisas ininteligíveis. Entre eles havia um homem de cabelo condensado pinçando uma crosta na perna até fazê-la sangrar. Tinha os braços cobertos de feridas similares, umas meio curadas, outras recentes. Nos pulsos e antebraços mostrava sinais de dentadas. Nem sequer reparou no Pitt de pé a seu lado, tão absorto estava.

Outro olhava ao vazio, babando sem cessar. Um terceiro estendeu o braço para eles, caçando o ar ao vôo, tratando de dizer alguma coisa sem consegui-lo. Um quarto estava sentado com os pulsos rodeados por correntes acolchoadas, lutando

com bruscos movimentos como se estivesse serrando um madeiro. Também ele parecia ensimesmado em sua dolorosa e inútil tarefa, de forma que nem viu o Pitt nem ouviu que Melchett falava.

-Quantos quer ver? - perguntou Melchett com uma mescla de cólera e ultraje. -Os há a dúzias, todos muito parecidos com estes, todos tristes. Você acha que alguém assim é o louco que anda procurando? Acredita que acidentalmente nos escapou algum e que se apoderou de um cutelo e começou a decapitar às pessoas que passeavam pelo Hyde Park?

Pitt se dispunha a negá-lo, mas Melchett não o deixou falar. Sua ira ainda aumentava.

-Onde está, Pitt? – inquiriu. -Vivendo no parque? Onde dorme? O que come? Toda a polícia penteando a zona, procurando pistas, e não podem achar a esse pobre diabo?

Não havia resposta.

A idéia parecia ridícula à vista daquela gente perturbada, patética, feroz. Se Tellman tivesse entrado até aquela sala, teria mordido a língua antes de fazer aqueles comentários.

O silêncio do Pitt pareceu abrandar ao Melchett. Pigarreou um pouco.

-Se o homem que busca for um demente, sua obsessão não alcançou ainda a fase em que seria ingressado em um lugar como este. Em geral, seu aspecto seria o de qualquer pessoa comum, isso se é que realmente está louco. - Levantou os ombros e voltou a endireitá-los. -Está certo de que este açougue não é obra de uma pessoa corda?

-Certo não - respondeu Pitt. -Mas não parece haver conexão entre as vítimas, ao menos nada que tenhamos podido averiguar. - afastou-se do pobre homem que tinha ao lado que agora tratava de lhe tocar até onde lhe permitia a camisa de força.

Melchett viu que tinha deixado as coisas mais que claras. Saíram da sala grande ao corredor e retornaram a seu escritório.

-Se estivesse louco - continuou Pitt, -que tipo de obsessão é a que deveria procurar, doutor Melchett? Que classe de passado empurra a um homem a uma violência tão fortuita?

-Não, de fortuita nada - disse Melchett. -Em sua mente não. Haverá uma conexão: tempo, lugar, aspecto exterior, algo que alguém disse ou fez e que provocou sua fúria, o medo ou o sentimento que lhe tenha impulsionado. Poderia tratar-se de algo religioso. Muitos dementes têm um profundo sentido do pecado. - Levantou de novo os ombros e os deixou cair. -Já sei que é uma pergunta desagradável, mas não será que essas três pessoas cometeram todas algum ato que a julgamento do louco pudesse ser pecaminoso? O que sei eu, provocar às mulheres, por exemplo. É muito comum a idéia de que o acoplamento sexual com as mulheres é algo mau, que debilita, uma armadilha do diabo. - Enrugou o nariz. –E repugnante, claro. É algo que surge das curvas da mente, que justo agora começamos a explorar. No estrangeiro se está levando a cabo um muito interessante trabalho a esse respeito, sabe. Não, por que ia você a... - Meneou a cabeça e apressou o passo.

Pitt não tentou lhe pressionar mais até que estiveram de novo no escritório e com a porta fechada, rodeados de livros e papéis e toda a parafernália da administração. Era um marco impessoal, saneado da confusão e o desespero que acabava de presenciar e que ainda não o tinha abandonado, como esse sabor penetrante que fica pego à garganta.

-Que classe de homem deveria procurar, doutor, se se tratasse desse tipo de obsessão? – perguntou. -Que personalidade? Que tipo de família? Que passado pôde ter tido que impulsionasse a isto? - Olhou fixamente ao Melchett. -Que coisa pôde lhe haver instigado a fazer o que fez justamente então, nem antes nem depois?

Melchett voltou a encurvar as costas com aquele gesto seu tão característico.

-Sabe Deus. Poderia ser de uma tragédia real, como uma morte na família, até algo tão corriqueiro como um insulto. Poderia surgir da lembrança. Alguém disse algo que o transportou violentamente a uma comoção passada, e de repente se desconectou, por assim dizer, da realidade. Olhe, sinto muito, não serve de muito que eu faça conjeturas. Inclino-me por algum tipo de paixão moral ou religiosa. Quando perguntei se suas vítimas podiam estar solicitando a mulheres, não me respondeu. Por discrição, possivelmente?

-Poderia ser - concedeu Pitt. -Mas não seria a resposta. Uma das vítimas teve uma longa relação com um amante.

-Quererá dizer uma amante - lhe corrigiu Melchett. -Isso não impede que...

-Não. Expressei-me bem.

-OH. Ah, entendo. Sim, então seria altamente improvável que estivesse

solicitando a uma mulher. O que tem sobre os outros? Passa-lhes o mesmo?

-Não há razão para pensar isso. Mas imagino que poderia ter suscitado as mesmas reações violentas. - Pitt estava indeciso e achava que lhe notava no rosto.

-Poderia ser algo - disse Melchett com um risinho. -Algo que disseram, algo que fizeram, um gesto, um objeto, um lugar... Eu estudaria a possibilidade de que seu homem esteja tão cordato como a maioria e tenha perfeito uso de razão. Sinto não poder lhe ajudar. - Estendeu-lhe a mão. Era uma despedida, e Pitt não podia fazer outra coisa que aceitá-la. Era absurdo seguir procurando uma informação que nem Melchett nem ninguém podia lhe dar.

Pouco depois de chegar ao Bow Street, Farnsworth entrou na delegacia de polícia, olhou ao sargento - que ficou firme - e depois ao Pitt, Tellman e Grange.

-Consigam algo - disse muito sério, olhando-os por turnos.

O Grange trocou o peso de perna e desviou a vista. Não era sua responsabilidade dizer nada.

O sargento se ruborizou.

-O superintendente acaba de voltar do Bedlam - disse Tellman com aspereza.

Farnsworth foi às nuvens.

-Para que demônios foi ao manicômio? - voltou-se para o Pitt. -Se esse maldito louco tivesse estado encerrado no Bedlam, agora não teríamos este

pandemónium! - Girou para o Tellman. -Não tinha ido já você para certificar-se de que não havia fugas?

-Sim, foi o primeiro que fiz, senhor.

-Pitt? -A voz do Farnsworth subia de volume ao compasso de sua ira, e de tom ao compasso do nervosismo.

-Queria ver se o doutor Melchett podia me dizer que classe de homem estamos procurando - respondeu Pitt, mordendo o lábio para não perder as estribeiras.

-Eu acredito que é muito simples! - replicou-lhe Farnsworth pondo-se a andar para a escada e o escritório do Pitt. -Procuramos o Jerome Carvell! Tem um motivo, carece de álibi, e cedo ou tarde acharemos a arma. Que mais necessita?

-Uma razão para que matasse ao Winthrop e ao cobrador - disse Pitt entre dentes. -Não há nenhuma conexão que faça supor que conhecia sequer a esses dois homens, nem que os odiava ou temia por motivo algum.

-Se assassinou ao Arledge, está claro que matou aos outros dois. – Farnsworth olhou-os de cima abaixo. -Não terá que demonstrá-lo. Talvez tentou abordar ao Winthrop e este o rechaçou. Inclusive pode que Winthrop lhe ameaçasse fazendo-o público. Isso seria suficiente para que acabasse decapitado. -Sua voz ia ganhando convicção. -Tinha que matá-lo para sossegá-lo. A sodomia não é só um delito, meu senhor, também é uma ruína social. - Soprou e olhou ao Tellman.

O rosto de farol tinha uma expressão sardônica. Tellman olhou ao Pitt sorrindo, e, que Pitt recordasse, era a primeira vez que o fazia sem animosidade. Justamente o contrário, era um sorriso vagamente conspiratório.

-E então? - disse Farnsworth.

-Eu não acredito, senhor - respondeu Tellman endireitando-se.

-Ah! Não me diga! - Farnsworth se voltou para o Pitt. -E por que não? Será que tem alguma razão, alguma prova que eu ainda não conheço.

Pitt dissimulou um sorriso. A situação não tinha nada de divertida, o fato de que fosse ridícula não fazia senão aumentar a magnitude da tragédia.

-O lugar - disse sem mais.

-Como?

-Se Winthrop não o queria, para que estava em um bote á meia-noite no Serpentine? Além disso, ia Carvell levar consigo um cutelo se por acaso o outro o rechaçava?

Farnsworth se acendeu.

-Alguém no Serpentine com um cutelo? - saltou com fúria. -Isso tampouco sabe. Em realidade, não achou você muitas respostas, não é? E me diga, lê a imprensa? Viu o que esse maldito Uttley diz de você em particular e de todos nós em geral? - Sua excitação roçava o pânico. -Isso me ofende, Pitt! Ofende-me muito, e não sou o único. Está-se julgando a todos os policiais da cidade pela mesma medida que a você, culpa-os por sua incompetência Pitt, o que lhe passou? Antes era um bom policial, caramba. - Decidiu que não valia a pena falar na intimidade do escritório. Era consciente de que Grange e o sargento estavam escutando, e agora também Bailey estava firme à escassa distância do grupo. Tomaria a revanche em público. -Há provas suficientes. Utilizem-nas, pelo amor de Deus, antes que esse bastardo volte a matar! -Olhou ao Pitt. -Farei a você responsável se não lhe prender e se produz outro assassinato.

Produziu-se um silêncio de expectativa. Farnsworth não estava disposto a retirar nenhuma só palavra. Grange punha expressão de preocupação, mas por uma vez não se mostrou indeciso. A acusação era injusta, e Grange apoiava Pitt.

-Não podemos prendê-lo, senhor - disse Tellman. -Nos processaria, porque não temos provas. Teríamos que soltá-lo em seguida, e só conseguiríamos parecer mais estúpidos que antes.

-Isso será difícil - murmurou Farnsworth. -E o cobrador de ônibus? O que se sabe dele? Tem antecedentes penais? Devia algum dinheiro? Jogava, bebia, fornicava, tinha más companhias?

-Não há antecedentes - respondeu Tellman. -Pelo que dizem em seu bairro, era um homem comum, respeitável e um tanto vaidoso.

-Já me dirá você onde está a vaidade em ser cobrador de ônibus ironizou Farnsworth.

-Têm certa autoridade, suponho - observou Tellman. -Dizem às pessoas se podem subir ou não, se devem ir sentados ou de pé.

Farnsworth revirou os olhos e seu rosto expressou um grande despeito.

-Sim, claro. Nenhum vício secreto?

-Se os tinha, continuam sendo secretos.

-Pois algo tinha que haver! O que dizem na delegacia de polícia local?

-Não sabem nada - respondeu Tellman. -Ia regularmente à igreja, era uma espécie de coroinha. Está visto que gostava de dizer às pessoas onde tinha que sentar-se - acrescentou, fazendo uma careta, mas rindo com o olhar. –Precisava fazê-lo também nos domingos.

Farnsworth olhou-o.

-Ninguém corta a outro a cabeça porque seja um canalha SEM importância - disse, e se dirigiu para a porta. -Devo pensar algo a respeito a esse Uttley. – Olhou ao Pitt e baixou a voz. -Deve me fazer caso, Pitt. Fiz-lhe uma boa proposta, e se tivesse seguido meu conselho agora não estaria neste apuro.

Tellman os olhou alternativamente, só tinha captado a metade da frase, e estava claro que não entendia seu significado. Bailey ainda ria para si mesmo ante a imagem do Winthrop e Carvell no bote, separados pelos remos e o cutelo. Não gostava de Farnsworth. Grange esperava que alguém lhe desse alguma ordem e não parava de trocar o peso de perna.

Pitt sabia exatamente o que Farnsworth queria dizer. Era outra vez o Círculo Interno. Recordou de repente as palavras do Micah Drummond. Mas Farnsworth certamente sabia que Uttley era membro da sociedade, e que Jack não.

Ou acaso o ignorava devido ao mesmo segredo em que estava envolta a sociedade, a seus múltiplos níveis? Mas inclusive se atacava e recorria a quem eram leais, talvez não podia predizer o resultado de semelhante prova de força. E o que era mais perigoso, a prova de lealdade, os cavalheiros iniciados contra os noviços.

Quem mais estava comprado por um pacto, comprometido a uma batalha da qual não iriam tirar nenhum proveito e, em troca, seriam castigados mortalmente se apoiavam o lado perdedor?

Farnsworth estava esperando, como se pensasse que Pitt podia ter mudado de opinião.

-Possivelmente não - disse Pitt em tom amável, olhando-o nos olhos com decisão.

Farnsworth hesitou só um momento mais e logo deu meia volta e partiu.

Bailey suspirou e Grange se relaxou. Tellman voltou para o Pitt.

-Não podemos prender o Carvell de momento, mas se pressionarmos um pouco mais tiraremos algo. Como diz o senhor Farnsworth, tem que haver uma conexão, e eu juraria que ele sabe qual é, ou imagina.

Grange estava muito atento.

-O que pensou você? - perguntou Pitt.

Tellman levantou o queixo e disse:

-É culpado de um delito, como ele mesmo admite. Por sodomia lhe podem cair vários anos. Possivelmente não sabe que não podemos demonstrar nada. Acredito que terei que afundar um pouco. - Franziu o lábio com tácito desdém. -Duvido que o senhor Carvell agüentasse toda a condenação em um lugar como Pentonville ou Coldbath Fields.

-É verdade, senhor - disse-lhe Grange.

Pitt não lhe fez caso e olhou ao Tellman com certa repugnância.

-Não há nenhuma prova.

-Ele o confessou - insistiu Tellman.

-Não a você, inspetor.

Tellman endureceu o gesto e olhou ao Pitt sem pestanejar.

-Está-me dizendo que você o negaria, senhor?

Pitt sorriu.

-Eu não afirmo nada, inspetor. O único que me disse foi que queria ao Arledge. Isso pode interpretar-se de muitas maneiras. O sentimento não é um crime. Imagino que isso é precisamente o que dirá Carvell, antes de que seus advogados o processem por perseguição.

-É muito afetado - disse Tellman com aversão. -Não se pode ir com tantos melindres. Vai se exceder.

Bailey pigarreou.

Tellman não fez caso e seguiu olhando ao Pitt.

-Não podemos nos permitir delicadezas se queremos apanhar a esse bastardo que vai por aí cortando cabeças e aterrorizando meia Londres. As pessoas não se atrevem a sair de noite se não ir em grupo. Há caricaturas por toda parte. Está-nos convertendo no bobo. Acaso isso não lhe incomoda? - Seu olhar roçava o ódio. -Não lhe provoca raiva?

Grange assentiu com a cabeça, olhando ao Tellman.

-É justamente o que parece - respondeu Pitt lacônico. -Coisas dão raiva, não uma reação meditada ou serena, a violência instintiva de alguém temente por sua própria reputação e que atua sempre pendente de ver o que pensam outros dele.

-Esses "outros" nos pagam o maldito salário! - disse Tellman, sem deixar de olhar ao Pitt. Nem Bailey nem Grange lhe interessavam, e o sargento de guarda tinha deixado de existir fazia tempo. - O seu e o meu - prosseguiu. Já não podia voltar atrás. -E não estão satisfeitos com você. A ninguém interessa quão brilhante pôde ser você há tempos, o que importa é agora. Está deixando a reputação de suas senhorias pelo chão. Parecem tolos, e isso não o perdoarão.

-Se quiser que prenda o Carvell, demonstre que teve algo que ver - exigiu Pitt, subindo também o tom de voz. -Onde estava Carvell quando mataram ao Yates?

-Em um concerto, senhor - saltou-lhe Grange. -Mas não há ninguém que possa confirmá-lo. Pode nos dizer que música tocavam, mas isso poderia buscá-lo qualquer em um programa de mão.

-E quando mataram ao Arledge?

-Em sua casa, só.

-Serventes?

-O que importa isso. No estúdio há uma porta-janela. Poderia ter saído por ali sem que ninguém se inteirasse. E voltar pelo mesmo lugar.

-Winthrop?

-Alega que foi dar uma volta pelo parque - respondeu Tellman, sem confiança.

-Sozinho?

-Sim.

-Não viu ninguém?

-Que ele recorde não. De todo modo, terá que passar muito perto de alguém para que o reconheçam. Ultimamente as pessoas não freqüentam o parque de noite, não como antes.

-As mulheres tampouco? - perguntou Pitt.

-Que remédio fica - disse Tellman encolhendo os ombros. -Não podem ir para casa, mas estão muito assustadas.

-Então vá ver se acha a alguma que viu o Carvell. E na rua, a caminho de sua casa? Alguém poderia nos dizer que passou por ali a determinada hora. Os criados não recordam a que hora retornou a casa?

-Não, senhor. Tinha um horário bastante estranho e preferia que a criadagem fosse deitar. - Tellman afastou os lábios em um gesto de ironia. -Será que não queria que vissem o Arledge entrando e saindo. Que o pilhassem a última vez, se é que esteve ali.

-Prove com outra gente do parque - repetiu Pitt. -As garotas do FAT George trabalham nessa zona.

-O que provaria isso? - disse Tellman sem ocultar seu descontentamento. –Que ninguém o visse não demonstra que não estivesse ali. E não encontramos ninguém que diga que o viram no Shepherd"s Bush. Comprovei-o com os passageiros do último trajeto.

-E suponho que tampouco terá averiguado onde mataram ao Arledge –respondeu Pitt, sarcástico. -Me parece que tem você muito que fazer. Será melhor que ponha mãos à obra.

E dito isto subiu a seu escritório e fechou a porta, mas as recriminações do Tellman lhe rondavam pela cabeça. Estava levando o caso com excessiva delicadeza? Estava deixando que o fato de que gostasse de Carvell influi-se em sua valorização das provas? Não podia deixar-se cegar pela compaixão. Se não tinha sido Carvell, quem, então? Bart Mitchell, para vingar a sua irmã? Mas para que matar ao Arledge? Já Yeats? Ou era realmente um lunático obsesso que matava ao acaso motivado por seu caos mental?

Tinha que saber mais coisas do Winthrop, de seu matrimônio e do Bart Mitchell.

Emily via a casa nova de Charlotte cada vez com maior agrado. O fato de achar uma casa em estado ruinoso e arrumá-la e decorá-la ao gosto tinha que proporcionar uma grande satisfação. Ao casar-se com o George se mudara ao Ashworth House, uma casa em perfeita ordem onde tudo estava como tinha estado durante gerações. Acrescentaram-se aposentos até que, por volta de 1882, já não havia espaço para melhoras. Inclusive seu próprio quarto conservava os espelhos e cortinas do anterior inquilino, e trocar tudo teria sido um esbanjamento. Com efeito, era tudo tão luxuoso e bonito que não se podia melhorar, simplesmente teria sido a escolha de Emily e não a de outra pessoa.

Agora, é claro, Ashworth House era propriedade dela e ela a compartilhava com o Jack, mas continuava havendo pouco de sua colheita, embora seja certo que não lhe via nenhum defeito na casa. Alegrava-se muito por Charlotte, não sem uma pequena dose de inveja.

Estavam no dormitório que dava ao jardim. Finalmente Charlotte tinha optado pelo verde e hoje, com o sol radiante e as árvores cheias de folhas novas, o quarto tinha um ar de caramanchão cheio de luz e sombras e o suave som das folhas ao mover-se. Que aspecto teria no inverno estava por ver-se, mas agora mesmo não poderia ter sido uma peça mais encantadora.

-Eu gosto dele - afirmou Emily. -Até diria que é maravilhoso. - Enrugou o cenho, suas mãos de impressionantes anéis agarraram as saias de musselina.

-Mas? - interveio Charlotte sentindo-se decepcionada. Estava tão contente com o quarto, era justo o que tinha confiado em conseguir, mas lhe doía que Emily pudesse ter alguma reserva e, a julgar por sua expressão, era bastante grave.

Emily suspirou

-Viu recentemente o quarto de mamãe? - voltou-se para o Charlotte com os olhos muito abertos. -Tive ocasião de subir ao piso de cima. E você? É tão... Não sei como chamá-lo. Não é próprio de mamãe! É como se se tornasse outra pessoa. Pior que romântico, é exuberante. Sim, isso, exuberante.

-Continua pensando que se trata de algo passageiro - disse Charlotte, indo à janela e acotovelando-se ali para contemplar o jardim. A grama recém cortada se estendia ao pé das árvores até o muro repleto de rosas. -E não o é, sabe. Eu acredito ter assumido. Lhe quer de verdade.

Emily se aproximou e olhou também para o jardim.

-Mas isto acabará mal - disse quedamente.

-Mamãe poderia casar-se com ele.

-E depois o que? - Emily se voltou. -Ela não poderia seguir na boa sociedade, e tampouco encaixaria no mundo do entretenimento Não seria nenhuma coisa nem outra. E quanto acha que poderia durar, a felicidade, quero dizer.

-Quanto acha que dura normalmente?

-OH, vamos! Eu sou muito feliz, e não me diga que você não o é, porque não acreditarei em você.

-Sou, é certo. E observe quanta previu que eu acabaria mau.

-Isso é muito diferente.

-Absolutamente - objetou Charlotte. -Me casei com alguém que segundo todas as minhas amigas era muito inferior a mim, e ainda por cima não tinha dinheiro.

-Mas Thomas é de sua idade. Bom, só uns anos mais velho, que é o que deve ser. E é cristão!

-Reconheço que é um problema o que Joshua seja judeu – concedeu Charlotte. -Mas também o era Disraeli. Isso não o impediu de chegar a primeiro ministro, e à rainha parecia encantador. Tinha-lhe muito afeto.

-Porque ele a adulava de má maneira, e o senhor Gladstone não. Era um velho resmungão, sempre estava falando da virtude. - Seu rosto se iluminou. –Embora digam que gostava muito de mulheres, muitíssimo. Em realidade me contou isso Eliza Harrogate. - Baixou a voz até um sussurro. -Disse que sabia de boa fonte que Gladstone não podia conter-se em presença de uma mulher bonita, fosse qual fosse sua idade ou seu estado civil. Isso muda as coisas, não acha?

Charlotte a olhou sem saber se o dizia em brincadeira ou a sério. Logo se pôs a rir. A idéia era divertida e sem dúvida nova.

-Possivelmente fez alguma proposta íntima à rainha - seguiu Emily, começando a rir também. -Pode ser que por isso ela não gostasse.

-Isso é um disparate - disse Charlotte. -E não tem nada que ver com o que estávamos falando.

-Ah, suponho que não. - Emily ficou séria. -O que podemos fazer? Nego-me a ficar de braços cruzados vendo como mamãe vai direta ao desastre.

-Acredito que não tem outra alternativa. Quão único cabe esperar é que a coisa feneça de morte natural antes de que se produzam danos irreparáveis.

-Isso é pedir muito. Não podemos ser tão... tão ineficazes - protestou Emily, afastando-se da janela.

-Ineficazes não, trata-se de não interferir na vida de mamãe.

-Mas...

-Como se apresentam as eleições? - cortou deliberadamente Charlotte, com um sorriso.

Emily deu de ombros.

-Está bem, rendo-me por agora, pois a coisa vai surpreendentemente bem. - Levantou suas delicadas sobrancelhas. -Nos dois últimos dias saíram vários artigos muito bons na imprensa. Não o entendo, mas pelo visto alguém mudou de opinião e agora está do lado do Jack, ou para ser mais exata, contra Uttley.

-Que estranho - disse Charlotte, pensativa. -Tem que haver alguma razão.

-Jack não entrou no Círculo Interno, se isso está pensando. Posso jurar.

-Não o duvido - a tranqüilizou Charlotte. -Mas isso não significa que a mudança não tenha algo que ver com o Círculo. Eles podem ter suas próprias razões.

-Por que? Jack não vai lhes dar nada.

-Referia a outra coisa. - Charlotte inspirou fundo. -Uttley esteve atacando à polícia. Não lhe parece que pode haver alguém nas altas esferas policiais que também pertença ao Círculo Interno, e que Uttley foi bastante torpe para não dar-se conta?

-OH! Subchefe de polícia, possivelmente? - Emily pareceu sobressaltar-se, um tanto sem confiança.

-Micah Drummond era membro - lhe recordou Charlotte.

-Sim, mas isso é diferente. Ele não o utilizou. - Emily ficou calada. -Já entendo. Claro, isso não significa que Giles Farnsworth não o tenha feito. Poderia lançar mão deles para defender-se. Pois claro.

-Além disso - prosseguiu Charlotte, -não sabemos quem mais pertence à à sociedade.

-Não a entendo. Em quem está pensando?

-Em qualquer um. O ministro do Interior, por exemplo. O problema com o Círculo Interno é que não sabemos nada. Não sabemos a quem devem fidelidade. Poderiam existir alianças que desconhecemos.

Emily a olhou muito séria.

-Então Uttley poderia haver-se defendido atacando à polícia. Mas não sabe o risco que corre fazendo-o?

-Não, em caso de que não soubesse que Farnsworth pertence ao grupo. Ou se estiverem em distintas seções. Mas não tê-lo previsto é uma estupidez de sua parte.

-Devia pensar que estava a salvo. Acha que poderia haver rivalidades dentro do Círculo Interno? Passam essas coisas?

-Imagino que sim. Ou talvez seja tão secreto que Uttley nem sequer sabia - disse Charlotte. -Conforme diz Micah Drummond, ele só conhecia uns poucos membros, os de seu próprio nível. Fazem-no para proteger-se, acredito. Só os membros importantes conhecem todos os nomes. Deste modo quem renuncia à sociedade não pode trair a ninguém.

-Então como sabem quem é membro e quem não?

-Acredito que têm um sistema secreto para reconhecer-se em caso necessário.

-Parece muito idiota - disse Emily com um sorriso. De repente estremeceu. -Detesto este tipo de coisas. O poder dos membros importantes deve ser enorme, têm centenas, se não milhares de homens distribuídos por todo o país em cargos de importância, e todos prometeram ser leais sem fazer perguntas, inclusive ignorando a razão.

-Podem passar anos sem que lhes peça nada - indicou Charlotte. -Suponho que a muitos nunca lhes pedem nada. Quando Micah Drummond entrou, acreditou que o fazia em uma sociedade secreta que dava dinheiro e promovia causas benéficas. Não foi senão até o assassinato do Clerkenwell, quando lhe pediram que ajudasse a lorde Byam, que começou a compreender qual era o preço ou a perguntar-se até que ponto o tinham promovido porque era membro do grupo. Possivelmente ao Uttley acontece o mesmo.

-Duvido que seja inocente. Posso acreditar sobre Micah Drummond. Ele é bastante ingênuo. Os homens confiam em pessoas que nenhuma mulher em seu são juizo sonhariam confiar algo. Mas Uttley é uma pessoa arrevesada, e muito ambiciosa. As pessoas que utilizam a outros esperam que estes tratem de fazer o mesmo. - À medida que refletia sobre isso lhe parecia mais possível. -Não é um homem muito agradável, sempre está disposto a aproveitar-se de qualquer vantagem, mas sem compreender que está brincando com fogo. Poderia ser. - estremeceu de novo, a pesar do sol. -Quase sinto pena dele.

-Eu se fosse você guardaria a compaixão até o final - lhe advertiu Charlotte.

-Tem medo? - perguntou-lhe Emily.

-Só um pouco. Eu gostaria de pensar que estão defendendo à polícia por alguma razão honrosa, mas acredito que é porque alguém superior ao Uttley pertence ao corpo, possivelmente o subchefe de polícia, embora poderia ser qualquer um.

Emily suspirou.

-E suponho que Thomas continua sem ter pistas sobre o Verdugo do Hyde Parlk.

-Isso parece.

-Nós não estamos ajudando muito, não é verdade? - disse Emily em plano crítico. -Tomara me ocorresse algo!

-Nem sequer sei por onde começar. - Charlotte se mostrava cada vez mais pessimista. -E não é que não tenhamos idéia de quem poderia ser. Só que... –Se deteve.

-Não é muito interessante - terminou Emily por ela. -Porque não conhecemos às pessoas. A loucura é algo aterrador e triste, mas de fato não é.

-Interessante. - Charlotte sorriu desolada.

Pitt redobrou seus esforços para achar alguma relação entre o Winthrop e Aidan Arledge. Isso o levou a visitar de novo à viúva Arledge. Dulcie recebeu-o com a mesma cortesia de sempre, mas Pitt percebeu que parecia cansada e nervosa. A primeira vez que se viram, seu rosto lhe tinha parecido viçoso apesar da lógica comoção. Agora dava a sensação de que os dias e as noites a tinham esgotando. Ainda se vestia com esmero, sempre de feminino negro com toques de renda e os mesmos alfinetes e anéis de luto.

-Boa tarde, senhor Pitt - disse com um sorriso lânguido. -Vem me informar de algum novo descobrimento? - Disse-o sem esperança, mas seus olhos, afundados pela aflição, olharam-no inquisitivos.

-Nada cujo significado conheçamos de momento - respondeu Pitt. A inquietação da viúva lhe doía mais que os insultos do Farnsworth ou as críticas que apareciam nos jornais.

-Nada absolutamente? - insistiu ela. -Não tem a menor idéia de quem está fazendo isto? - Estavam no salão, sempre tão acolhedor, com um vaso de flores sobre a mesa do fundo.

-Ainda não encontramos nada que relacione a seu marido com o capitão Winthrop - respondeu ele. -E menos ainda com o cobrador de ônibus.

-Sente-se, por favor, superintendente. – Indicou a cadeira próxima a ele e tomou assento em uma poltrona, dobrando as mãos sobre o regaço. Era uma pose elegante, com as costas perfeitamente retas, como sem dúvida lhe tinham ensinado desde que era pequena. Charlotte lhe tinha explicado que as boas preceptoras costumavam castigar com uma regua ou outro instrumento duro as costas encurvadas das moças menos diligentes.

Pitt se sentou cruzando as pernas. Apesar das circunstâncias, e do recado que o tinha levado ali, havia algo na presença da viúva que lhe era extremamente agradável, que aguçava seus sentidos ao mesmo tempo que lhe proporcionava uma sensação de bem-estar. As confidências que tinham compartilhado a última vez eram uma quente lembrança compartilhada.

-Que mais posso lhe contar? - perguntou ela. - Estive puxando em minha memória mas, verá você, grande parte da vida do Aidan me era alheia. - Sorriu e mordeu o lábio. -E muito mais do que pretendi dizer. Estava pensando na música. Eu gosto muito de música, mas me era impossível ir cada vez que havia um concerto dele, e é claro tampouco podia assistir a todos os ensaios. - Olhou-lhe para ver se ele entendia e não a achava culpada dessa omissão.

-Nenhuma mulher acompanha a seu marido a seu lugar de trabalho, seja artístico ou de outra índole - lhe assegurou Pitt. -Muitas mulheres não sabem sequer a que se dedicam seus maridos, menos ainda onde trabalham ou com quem se relacionam.

Ela relaxou um pouco.

-Tem razão, é claro - disse com um sorriso agradecido. –Possivelmente disse uma tolice. Sinto muito. Só pensava, OH Deus, rogo-lhe que me perdoe, senhor Pitt, acredito que pareço uma confusão. O réquiem me está inquietando muito. Será dentro de dois dias e ainda não sei muito bem o que fazer.

Pitt queria ajudar, mas a presença da polícia teria sido inadequada.

-Sem dúvida ele tinha muitos amigos que se sentirão honrados de ajudar no possível - disse.

-Sim, sim, naturalmente - concedeu ela. -Lady Lismore se está levando maravilhosamente. É uma mulher muito forte. Sir James sabe a quem se deve convidar. E o senhor Alberd também. Ele pronunciará umas palavras. É um homem muito respeitado, sabe você.

-De todo modo, imagino que será um momento angustiante - disse ele, imaginando a entristecedora emoção que lhe suporia escutar a música de seu marido interpretada por seus amigos, totalmente alheios ao terrível segredo que talvez muito em breve apareceria em todos os jornais.

Ela engoliu em seco, como se algo lhe obstruísse a garganta.

-Sim, isso temo. Minha mente está muito confusa. - Olhou-o com repentina candura. -Me envergonho das coisas que penso, superintendente, mas por mais que o tento, parece que não sou capaz de controlar meus pensamentos. - dirigiu-se para a janela e continuou falando de costas com ele. -Me envergonho de minha debilidade, mas me dá medo. Não sei quem é o homem a quem Aidan… não me atrevo a dizer a palavra "amava", e com certeza acabarei olhando a todo mundo me perguntando qual deles é. - voltou-se. -Isso está mau, não acha? - Não disse nada do escárnio e o desprezo que sobreviriam quando prendessem a alguém e tudo se soubesse, mas nenhum dos dois o expressou com palavras.

-Sim, mas é muito compreensível, senhora Arledge – disse. -Acredito que a todos passaria o mesmo.

-Seriamente acha? - Um indício de sorriso aflorou a seus lábios. Bailey estava certo, aquele rosto era tão mais agradável quanto mais a conhecia uma pessoa. -Agradeço suas palavras. Assistirá você, senhor Pitt? Eu gostaria muito que o fizesse, como um amigo. Como meu amigo, se acreditar que lhe será possível.

-Esteja certa disso, senhora Arledge. - sentiu-se culpado ao dizê-lo, mas ao mesmo tempo agradecido. Estava obrigado a assistir como encarregado do caso. Ela talvez o entendesse. Pensou que o pedia só para lhe fazer sentir melhor, mas o saber o não diminuiu seu afeto por ela.

-Haverá uma pequena recepção depois - prosseguiu ela. -Não quero fazê-lo aqui, não me sinto capaz. - Estava olhando as flores que havia na mesa. –Sir James sugeriu que fosse em casa de um dos amigos do Aidan. Acredito que isso seria o melhor para todos e menos problemático para mim. Desse modo não me sentirei tão responsável, e se quiser partir cedo, posso fazê-lo e voltar para casa para estar a sós com minhas lembranças. - Um triste sorriso cruzou por seu rosto e se desvaneceu. -Embora não sei se é isso o que desejo.

Pitt não podia dizer nada que não soasse corriqueiro.

-Vai ser em casa do senhor Jerome Carvell, no Green Street – acrescentou ela. -Sabe onde é?

Por um momento Pitt ficou sem fala.

-Sim, conheço Green Street - respondeu por fim, falando com dificuldade. Confiou intensamente em que não lhe notasse. -Acredito que será muito apropriado. E como você diz, economizará-lhe muitas responsabilidades. - Era sua resposta tão carente de sentido como pareceu a ele?

-Eles se ocuparão do lanche, e é claro haverá música no próprio réquiem.

Ocuparam-se disso também. - Trocou uma ou duas flores de lugar, tocando alguma folha, arrancando um caule que estava fora de lugar. -Aidan conhecia músicos excelentes. Haverá muitos onde escolher. Adorava especialmente do chelo. Que instrumento tão triste. Soa mais escuro que um violino. Muito apropriado para a ocasião, não acha?

-Sim. - Imediatamente lhe veio à memória o rosto do Victor Garrick tocando no funeral pelo Winthrop. -Quem vai tocar? Sabe já?

Ela se afastou das flores.

-Um jovem que Aidan tinha em grande estima, acredito que lhe ajudou muito - respondeu ela olhando-o com repentino interesse. -Gosta de violoncelo, senhor Pitt?

-Sim. - Era mais ou menos certo. Tinha gostado muito nas poucas ocasiões que tinha tido oportunidade de escutá-lo.

-Acredito que esse jovem tem um grande talento. É um aficionado, mas conforme me disse sir James possui uma grande técnica e um enorme sentimento.

E respeitava muito ao Aidan devido ao tempo que meu marido dedicou a ajudá-lo.

-E como se chama?

-Vincent Garrick, acho. Ou não, não era Vincent, mas Victor. Sim, esse era o nome.

-Conhecia-o bem seu marido? - Pitt procurou apagar de sua voz um repentino tom agudo, mas ela ficou em guarda. A linha de seu ombro podia adivinhar-se tensa.

-Conhece-o você, senhor Pitt? Significa alguma coisa? - inquiriu ela. -Porque o pergunta?

-Pode ser que nada, senhora. Victor Garrick era o afilhado do capitão Winthrop.

-Seu afilhado? - Pareceu confusa, e depois decepcionada. -Lhe parecerá ridículo, mas ao ver que isto lhe chamava a atenção, pensava que teria encontrado, não sei, alguma pista.

-Conhecia bem o senhor Arledge o Victor Garrick? - voltou a perguntar.

-Temo que não sei a resposta. Terá que perguntar a sir James. Ele saberá. De fato animava mais aos músicos jovens que o próprio Aidan. Em realidade, para lhe ser franca, superintendente, pode ser que a sugestão viesse de sir James, porque o senhor Garrick é uma espécie de protegido.

-Entendo. - Pitt se sentiu bobamente desiludido. De qualquer modo iria ver sir James Lismore, embora a conexão pudesse ser muito remota. E por descontado que assistiria ao réquiem. -Obrigado, senhora Arledge. Foi muito paciente comigo e muito clemente também. - Era dizer pouco. Nenhuma pessoa em similares circunstâncias tinha despertado nele tanta admiração.

-Avisará-me se descobrir algo, não é, superintendente? - disse ela com certa ansiedade.

-É claro. Tão logo haja algo que não seja mera conjetura. - Pitt ficou em pé.

Ela fez outro tanto e acompanhou-o até a porta, lhe agradecendo.

Ele se despediu e foi em busca de um cabriolé para ir a casa de sir James Lismore. Mas o rosto dela seguia em sua mente. Pitt compadecia-se de Aidan Arledge por sua morte prematura e violenta, e porque tinha amado lá onde era impossível, mas ao mesmo tempo sentia uma cólera incontida porque Aidan tinha traído a uma mulher extraordinária que agora não tinha outra coisa que dignidade e pesar.

-Victor Garrick? - disse surpreso sir James Lismorre. Era um homem de aspecto comum, estatura média e quase completamente calvo. Mas seu olhar tinha algo que chamava a atenção, e todas as linhas de seu rosto denotavam inteligência e bom caráter.

-Um jovem chelista aficionado - disse Pitt.

-Ah, sim, agora recordo - disse Lismore. -Um grande talento, um intérprete de grande intensidade. Qual é o problema, superintendente?

-Conhecia ele ao finado Aidan Arledge?

-Certamente. O pobre Aidan conhecia muitos músicos, tão aficionados como profissionais. - Franziu o sobrecenho. -Não estará pensando que um deles teve algo que ver em sua morte, não é? Isso seria absurdo.

-Não estou pensando em culpados, sir James. Pode-se estar comprometido muito de diversas maneiras. Trato de achar alguma conexão entre o capitão Winthrop e o senhor Arledge.

Lismore parecia estranhar.

-Entendo a diferença, superintendente. Desculpe que tenha tirado uma conclusão injustificada. - Colocou as mãos nos bolsos e estudou Pitt com interesse. -E tem certeza de que o capitão Winthrop conhecia o Victor Garrick? Soube que o capitão não era amante da música, e me consta que Victor não se interessava pela marinha. É um jovem muito pacífico, um sonhador, não um homem de ação. Detesta toda sorte de violência ou crueldade, para não falar da disciplina física e a ordenada agressividade próprias da vida em um navio de guerra.

-O seu não era amizade - explicou Pitt, sorrindo ante a descrição que Lismore fazia da vida na armada, uma descrição que Victor teria aprovado, -mas uma relação de família.

-Eram parentes? - Lismore não cabia em si de assombro. -Achava que o pai do Victor tinha morrido e que sua mãe não tinha muita família, ao menos ninguém com quem tem mantido contato.

-Parentes consangüíneos não. O capitão Winthrop era seu padrinho.

-Ah. -Lismore pareceu aliviado. -Já entendo. Isso explica tudo.

-Perdoe, sir James, mas fala como se conhecesse o capitão.

-Terá que me desculpar outra vez, superintendente. Sem querer, despistei-o. Em realidade nunca o conheci. É à senhora Winthrop a quem tratei alguma vez, embora só levemente. Uma mulher encantadora, e muito amante da música.

-Conhece a senhora Winthrop? -Pitt aproveitou a ocasião sem saber se havia algo atrás, mas até o menor indício era de incalculável valor. -E sabe você se ela conhecia o senhor Arledge?

Lismore parecia surpreso.

-É claro que sim. Bom, não sei se se conheciam muito bem ou desde quando, ou se só compartilhavam seu amor pela música e uma bondade espontânea por parte do Aidan. Era um homem muito afável, e muito dado à compaixão.

-Compaixão? Acaso a senhora Winthrop estava passando algum apuro?

-Com efeito - assentiu Lismore, observando-o com curiosidade. -Não sei qual pôde ser a causa, mas em uma ocasião a vi muito preocupada com algo. Estava chorando e Aidan se esforçava por consolá-la. Temo que não o conseguiu de tudo. A senhora Winthrop partiu com um jovem cavalheiro de tez bronzeada. Acredito que era seu irmão. Também ele parecia muito perturbado pelo acontecido, e bastante furioso.

-Seu irmão. Bartholomew Mitchell? - perguntou Pitt.

-Sinto muito, não recordo seu nome. Nem sequer estou certo de que nos tenham apresentado alguma vez. Aidan comentou algo depois. Acredito que é assim como me inteirei de que era o irmão dela. Parece preocupado, superintendente. Acredita que significa algo?

-Não tenho certeza - disse Pitt com franqueza. Entretanto seu pulso se acelerou. -Pode ser que o senhor Arledge e a senhora Winthrop estivessem em desacordo sobre alguma coisa? Ou que o senhor Mitchell chegasse a supor que era assim?

-Aidan e a senhora Winthrop? - Lismore estava perplexo. -Duvido.

-Mas seria possível?

-Imagino que sim. - Lismore se mostrou remisso. -Ou, ao menos, que o senhor Mitchell interpretasse mal a situação. Parecia furioso, isso o recordo muito bem.

-Pode recordar algo mais, sir James, algum detalhe? - insistiu Pitt. –Uma palavra, um gesto.

Lismore estava desconfortável.

-Rogo! - exclamou Pitt.

Lismore inspirou fundo e mordeu o lábio inferior antes de falar.

-Pude ouvir algumas coisas, superintendente. Detesto ter que repetir o que sem dúvida alguma era uma conversa muito privada, mas vejo que você o considera de vital importância. - Pitt ofegava de impaciência. -Ouvi aquele homem, suporei que era o irmão, dizendo com veemência: "Não é sua culpa!" Pôs muita ênfase na negativa. Depois acrescentou: "Não permitirei que o diga. É absurdo, e além disso não é verdade. Se Thora for bastante idiota para pensar assim, pior para ela, mas você não. Você não fez nada. Nada, ouve-me, nada. Deve tirar isso da cabeça e começar de novo." Pode ser que não fossem exatamente essas palavras, mas foi algo muito parecido, e certamente o sentido era esse. - Lismore olhou ao Pitt com expectativa.

Pitt estava confuso. Referia-se Mitchell à morte do Winthrop? O que sabia Thora Garrick de tudo aquilo?

-E então? - disse Lismore.

-Ouviu a resposta?

-Só uma parte. Ela parecia angustiada, não falava com coerência.

-E essa parte que ouviu?

-OH, ela insistiu em que era culpa dela, que por sua estupidez tinha provocado vá ou seja o que, e que ele não tinha por que ficar tão furioso, não era uma coisa tão insólita, ou algo assim. Sinto muito. A verdade é que me senti muito desconfortável tendo ouvido já a primeira parte da conversa.

-Viu o senhor Mitchell com o senhor Arledge? - instou Pitt. -Que atitude tinham?

-Não, em realidade não. Se mal não recordar, Aidan se tinha ausentado para dirigir a segunda parte do recital quando vi que o senhor Mitchell levava à senhora Winthrop para a porta, imagino que para partir. Deu-me a impressão de que tinham resolvido já suas diferenças. Ao que parece ele a tinha convencido de que tinha razão, e ela parecia satisfeita.

-Obrigado. Foi-me você de grande ajuda. - Pitt se levantou. -Obrigado por seu tempo e sua franqueza. - Virou-se para a porta. -Que tenha um bom dia, sir James.

-O mesmo digo, superintendente. - Lismore ficou confuso e intrigado.

Emily tinha desfrutado da festa apesar de ser um ato meramente político. Havia muitos aspectos da campanha que não gostava. Falar na rua umas vezes era divertido, outras extenuante, perigoso inclusive. Ajudar ao Jack a escrever artigos e discursos para públicos concretos era um trabalho rotineiro, que só aceitava por lealdade por ele e porque queria que brigasse com todas as vantagens que ela pudesse contribuir, mesmo que quase ninguém apostasse por sua vitória.

Mas isso tinha mudado significativamente nos últimos dias. A princípio ocorreu de um modo muito sutil. Uma ligeira mudança de tom por parte de um importante colunista do Time, uma suave censura das motivações do Uttley para criticar à polícia, inclusive a insinuação de que Jack Radley oferecia perspectivas mais de acordo com a junta política. Expor-se a questão do patriotismo.

Mas a noite tinha sido divertida. Emily tinha dançado e conversado, adulado e rido, e inclusive um par de vezes, como correspondia à ocasião, tinha sido ardilosa em seus comentários políticos para assombro e deleite de vários homens influentes de meia idade e mais que peso médio. Em conjunto, o êxito tinha sido terminante.

Eufórica, Emily saiu dali pendurada no braço do Jack para percorrer a curta distância até o Ashworth House sob a balsâmica noite primaveril. A lua estava alta, uma lanterna de prata sobre as árvores, e o ar cheirava a flores. As carruagens passavam com suas luzes acesas, deixando-os agasalhados na escuridão que mediava entre duas luzes.

Jack ia cantando baixo e andava com um ligeiro rebolado que não era resultado da embriaguez, mas simples júbilo somado a um grande bem-estar.

Emily ficou a cantar ao uníssono.

Deixaram a ampla e bem iluminada avenida e tomaram uma rua mais silenciosa, com árvores que apareciam nos altos muros dos jardins dando sombra às luzes em seus finos postes.

De repente Jack lançou um grito e se precipitou sobre ela, fazendo-a cair de lado na calçada antes de cair ele mesmo de bruços, evitando no último momento dar-se de cara contra o pavimento.

Emily soltou um grito de alarme que em seguida se tornou de pânico. Havia uma figura escura abatida sobre o Jack, levava a cabeça coberta e empunhava uma enorme folha em forma de cunha. Emily gritou com toda a força de seus pulmões.

Jack estava estendido sobre o chão e o desconhecido perto dele.

Emily não dispunha de nenhuma arma para defender-se ou defender ao Jack.

O desconhecido levantou o braço.

Jack rodou de flanco e lhe lançou dois chutes. Teve sorte, um pontapé alcançou ao atacante por cima do tornozelo, fazendo-o perder o equilíbrio. O homem cambaleou para trás.

Emily não parava de gritar. Alguém tinha que ouvi-la pelo amor de Deus!

O assaltante se recuperou e se aproximava outra vez. Jack não se endireitou de todo. O atacante levantou o enorme fio.

Jack se deu impulso com mãos e joelhos e se lançou contra o agressor, alcançando-o no plexo solar com a cabeça. O homem gritou e chocou de costas contra o muro. A arma produziu um som metálico ao cair ao chão.

Jack ficou em pé cambaleante.

Alguém se aproximava pela rua gritando. Seus passos ressoavam na pavimentação.

O atacante empreendeu a fuga coxeando, mas com assombrosa velocidade. Ao dobrar na esquina se perdeu de vista.

Um cavalheiro entrado em anos chegou a toda pressa, mostrando a camisa de dormir branca sob as saias do roupão.

-OH, Meu deus! Céu santo! – ofegou. -Mas que diabos? Senhora! Senhor, está ferido? - ajoelhou-se ao lado do Jack, que se tinha estendido de novo no chão depois de perder o equilíbrio ao jogar-se sobre seu agressor. -Senhor!, está ferido? Quem era? Um ladrão? Roubaram a vocês?

-Não, não, parece-me que não - respondeu Jack a ambas as perguntas. Logo, com ajuda do homem ficou de novo em pé e se voltou para Emily.

-Senhora - disse o homem com obrigação. -Se machucou?

-Não. Não estou machucada - se apressou a dizer ela. -Obrigada por acudir tão depressa, senhor, e por ter vindo acudir. Temo que se não tivesse sido por você...

-Nos teriam roubado com toda segurança - a interrompeu Jack.

Outro homem chegou correndo e se deteve em seco.

-O que acontece? - quis saber. -Quem está ferido? encontra-se bem, senhora? Esses homens - Olhou ao Jack e depois ao cavalheiro idoso. - OH, está segura?

-Sim, muito obrigada - lhe assegurou Emily sem fôlego. -atacaram a meu marido, mas ele pôde desfazer do homem, e ao chegar este cavalheiro o atacante pôs pés na poeira.

-Graças a Deus. Não sei como vai acabar este país. - O homem estava realmente agitado. -Por toda parte igual. Querem vocês vir a minha casa? Está a um passo daqui, meus criados estarão encantados de atendê-los.

-Não, obrigado - disse Jack. -Vivemos relativamente perto. Mas lhe agradeço muito o oferecimento.

-Tem certeza? E você, senhora?

-Certamente. Obrigada. - Jack tomou Emily pelo braço. Ela notou que estava estranho, que lhe tremia o corpo.

-Sim, muito obrigado – disse. -Foi uma sorte que aparecesse você. Sem dúvida nos salvaram que uma terrível experiência.

-Bem, se insistirem... Vocês decidem, claro. Boa noite, senhor. Boa noite, senhora.

Jack e Emily voltaram a lhes agradecer e puseram-se a andar a passo vivo, ansiosos de afastar-se dali.

-Não era um ladrão - disse Emily com voz rouca.

-Sei - murmurou Jack. -Esse homem queria me matar!

-Tinha um cutelo - acrescentou ela. -Era o Verdugo, Jack. O Verdugo do

Hyde Park!

 

No dia seguinte Emily tinha trocado o medo por uma furiosa irritação. Ainda lhe durava o tremor, sentada à mesa do café da manhã diante do Jack, que estava muito pálido.

-O que vai fazer a respeito? – perguntou. -É monstruoso! Um membro do Parlamento atacado em plena rua por um lunático homicida!

Jack se tinha sentado com supremo cuidado, como se qualquer gesto de mais pudesse lhe causar uma grande dor.

-Não sou membro do Parlamento - disse devagar, franzindo o sobrecenho como se falar lhe custasse um grande esforço. -E não há motivo algum para que eu deva estar isento de...

-Claro que há o disse Emily. -Você não tem nada que ver com o capitão Winthrop nem com o senhor Arledge nem com o condutor de ônibus, e nem sequer estávamos no Hyde Park.

-É o que eu estava pensando. - Jack contemplou seu prato.

Ouviu passar um dos criados além da porta.

-O que quer dizer? - inquiriu Emily. -A ver se o entendo. Chamou à polícia? Continuo pensando que devia chamá-los ontem à noite. Já sei que não teriam podido apanhar a ninguém, mas isso não tira que terei que informá-los quanto antes do acontecido.

-Queria pensar...

Antes de que terminasse a frase, a criada entrou com chá e torradas para Emily e perguntou ao Jack o que desejava tomar, oferecendo abadejo defumado, ovos, salsichas, baicon e batatas ou chuletas. Jack agradeceu e escolheu peixe.

-Pensar sobre o que? - inquiriu Emily tão logo estiveram a sós. -O Verdugo atacou-o, não o entende? Que mais tem que pensar? -inclinou-se para frente. -Jack, está doente? É que te fez mal?

Ele fez uma careta zombadora, embora estava longe de sentir-se bem.

-Claro que não - disse. -Estou um pouco machucado, isso é tudo.

-Tem certeza?

-Sim. - Sorriu, mas seu semblante continuava pálido. -Quero pensar bem antes de decidir o que se deve fazer.

-O que quer dizer com o que se deve fazer! Avisa à polícia, melhor se for ao Thomas. Ele deve saber. - apoiou-se nos cotovelos olhando-o fixamente.

-Thomas. Sim, é claro. Mas só a ele.

-Não o entendo. Por que só a ele? Que lhe agridam na rua não é algo de caráter privado! - Serviu o chá e lhe estendeu uma xícara.

-Opino que seria preferível não mencioná-lo - replicou Jack, agarrando o chá e uma torrada.

-Que diabo quer dizer? - Emily não conseguia acreditar nele. Ninguém o vai culpar por dizê-lo! Justamente o contrário, todo mundo se solidarizará.

-Comigo talvez - disse ele, pensativo. -Embora possa haver alguém que se pergunte se eu tinha alguma conexão secreta com os assassinados, e sem dúvida isso levantaria muitas conjeturas. Meus inimigos poderiam...

-Não pode guardar silêncio se por acaso alguém fala má de ti! - disse ela. –os dessa índole o fariam de todo modo. Você não pode impedi-lo.

-Não estava pensando nisso. Estava pensando no Thomas.

-Isso poderia ajudá-lo - protestou Emily razoavelmente. -Quanto mais informação tenha, mais possibilidades terá que apanhe ao Verdugo.

A criada voltou com o peixe, perguntou se queriam algo mais e, ao receber uma negativa, retirou-se.

-Não estou tão seguro de que fosse o Verdugo - disse Jack.

Emily ficou de pedra.

-O que quer dizer? Eu o vi. Tinha um cutelo. Eu o vi, Jack!

-Sim, sei. Viu um homem com uma tocha, mas isso não significa que fora o Verdugo. Como você mesma acaba de dizer, não tenho nenhuma conexão com o Winthrop ou Arledge ou o condutor, nem tampouco estava perto do parque. – Provou o peixe. -E me atacou quando eu ia acompanhado. O Verdugo não atua assim.

-O que saberá você! - disse Emily.

-O direi ao Thomas, - respondeu ele com seriedade, - mas acredito que não direi nada à delegacia de polícia local. Isso seria pôr as coisas fáceis ao Uttley.

-OH. - Emily piscou. -Sim, é claro. Não tinha pensado nisso. Não podemos lhe dar nenhuma vantagem. Utilizaria-o como arma contra você, não é?

-Enviarei uma mensagem ao Thomas. - Jack deu por terminado seu café da manhã e se levantou retirando a cadeira.

O mordomo entrou atrás dele com um maço de jornais. Tinha um aspecto sombrio.

-Darei uma olhada mais tarde. - Jack fez gesto de passar ao lado. -Devo escrever uma nota para o superintendente Pitt.

-Acredito que já deve estar informado do incidente, senhor - disse o mordomo.

-Não vejo como - replicou Jack, indo para a porta. -Ao homem que veio a nos ajudar não lhe disse nada salvo que vivíamos perto. Estava muito escuro para que pudesse me reconhecer, inclusive se estava disposto a contar-lhe a alguém, coisa que não parecia.

O mordomo pigarreou e deixou os jornais na mesa.

-Sinto dizer isto, senhor, mas se equivoca respeito a ele. Sai em primeira página de vários jornais, especialmente no Time. O senhor Uttley escreveu um artigo extremamente crítico sobre a atuação da polícia.

-Como? - Jack voltou e pegou o jornal que estava em cima. Leu horrorizado. -Mas isto é absurdo! Como pôde sabê-lo Uttley a tempo de escrever isto? E mais, como se inteirou?

-Receio que não sei, senhor. Ainda quer que lhe mande uma nota ao superintendente Pitt?

-Sim, Não. - Jack se sentou outra vez. Isto é abominável!

Antes que Emily pudesse dizer algo bateram na porta e entrou a criada.

-O superintendente Pitt veio vê-lo, senhor. Digo-lhe que está em casa?

-Sim. Claro que estou em casa - disse Jack de mau humor. -Traga outra xícara e mais chá. E um pouco de peixe, se ele quiser.

-Sim, senhor.

Pitt entrou poucos segundos depois. Parecia cansado e muito preocupado.

-Estão bem? - perguntou olhando os de um em um. -O que passou ontem à noite? Por que diabos não me avisaram?

-Sente-se. - Jack lhe indicou uma cadeira não longe da mesa. -Agora trazem mais chá. Quer comer algo? Peixe defumado, ovos?

-Não, obrigado. - Pitt rechaçou a comida, mas aceitou sentar-se.

Jack continuou falando.

-Não lhe disse nada porque ontem à noite não o disse a ninguém -explicou. -Viemos diretamente a casa e nos deitamos. Só sabem os criados. -Sorriu com uma careta. -É difícil evitar que o notem, mais ainda quando está cheio de hematomas e coxeia como um ancião. Mas ia mandar lhe uma nota agora mesmo, quando Jenkins trouxe os jornais e me disse que saía em manchetes. Que me crucifiquem se o entendo.

-O que aconteceu?

Com luxo de detalhes e sem que Emily interrompesse em nenhum momento, Jack relatou os fatos da véspera desde o momento em que ambos saíram da recepção até chegar a sua casa e deixar atrás a rua com sua inexplicável e repentina violência.

A criada havia trazido outra xícara e Emily tinha servido o chá, que Pitt bebeu enquanto escutava o relato. Finalmente olhou ao Jack com cenho.

-Tem certeza que não esquece nada?

Jack olhou a Emily.

-Nada - disse ela. -Assim aconteceu.

-Quem era o homem que foi em sua ajuda?

-Não sei - disse Emily. -Não lhe perguntei o nome, nem tampouco lhe dei o meu.

-Conheceriam-no se voltassem a vê-lo?

-É possível. - Agora foi Jack quem respondeu. -Não estou seguro. A rua estava pouco iluminada e além disso o homem não ia vestido como costuma estar alguém quando o apresentam.

-Como iam vocês?

-Eu de fraque - respondeu Jack. -Não levava casaco, porque a noite era temperada. Emily com um vestido verde escuro, mas levava capa, com o capuz posto.

-Pôde tê-la reconhecido, Emily? - perguntou Pitt.

-Não o tinha visto nunca. Que eu recorde, ao menos. De todo modo,

como ia ele reconhecer a mim? Eu não sou candidata ao Parlamento. - Negou

com veemência. –Não, estive no chão parte do tempo, e enquanto ele ajudava ao Jack levantei-me, mas tinha o rosto voltado para Jack. Acredito que nem sequer olhei a aquele homem.

-Então como se explica que soubesse quem eram? Seguro que não havia ninguém mais?

-Bom, quando partíamos acudiu outro homem correndo - disse Jack. -Mas só lhe dissemos que estávamos bem.

-Aproximaram-se algumas pessoas mais - acrescentou Emily. -Eu tinha gritado com todas minhas forças. Suponho que isso atraiu a atenção, estou segura. A verdade é que gritei muito forte.

-Mas nem sequer estávamos perto do Hyde Park - indicou Jack. -E não sei nada do Winthrop ou do Arledge. Por que a mim?

-Não sei. - Pitt parecia desalentado, e Emily sentiu tanta pena por ele que por um momento esqueceu sua irritação.

-Jack pensa que possivelmente não fosse o Verdugo - disse muito séria. –Mas o homem empunhava um cutelo, porque eu o vi com toda clareza. Supõe que pode ter que ver com a política?

Pitt ficou olhando-a.

Emily se sentiu envergonhada. Possivelmente era uma pergunta estúpida.

Pitt se levantou e agradeceu o chá.

-Preciso averiguar como se inteirou Uttley – disse. -Isto não tem sentido.

Esperava ter algum problema para localizar Nigel Uttley, tendo em conta que a campanha política estava em pleno apogeu, mas ao final resultou muito simples. Uttley estava em sua casa junto ao Manchester Square e recebeu ao Pitt sem evasivas, escolhendo sair a recebê-lo em vez de lhe convidar a entrar no estúdio ou a biblioteca.

-Bom dia, superintendente - disse com aspereza, sorrindo com as mãos nos bolsos. -O que posso fazer por você? Temo que o que sei sobre o incidente de ontem à noite é muito de segunda mão, e não acredito que tenha nada que lhe dizer que não possa averiguar por si mesmo.

-É possível, senhor Uttley. Entretanto, queria conhecer diretamente por você que fatos comentou no Time, com os que parece tão familiarizado.

Uttley arqueou as sobrancelhas.

-Percebo certo tom de sarcasmo em suas palavras, senhor Pitt. - Sorria ao falar, balançando-se. O vestíbulo era bonito, muito clássico, com um friso românico na parte alta das paredes. A porta principal continuava aberta e o sol penetrava até o interior. Fora havia um jovem esperando ao que parecia as instruções do Uttley.

Pitt teria preferido tratar o assunto em privado, mas Uttley tinha decidido o contrário. Pensava tirar disso a maior vantagem política.

Pitt fez caso omisso de seu sarcasmo.

-Como se inteirou, senhor Uttley?

-Como? - disse ele, divertido. -O mencionou o guarda da zona. Por que o pergunta? Não pensará que isso importa algo, não é, superintendente?

Pitt estava furioso. Que polícia irresponsável tinha falado do caso com um civil?

Mau seria mencioná-lo a qualquer, mas ter escolhido a um político que apoiava sua campanha em acusar de incompetência à polícia era uma indesculpável falta de lealdade.

-Como se chamava, senhor Uttley?

-Quem? O guarda? - Uttley esbugalhou os olhos. Não tenho nem idéia. Não o perguntei. Sério, superintendente, não acredita que está perdendo o tempo? Possivelmente não deveria me dizer nada, mas é muito possível que esteja tão preocupado como o público em geral pela violência nas ruas. – Encurvou os ombros e afundou as mãos nos bolsos. Sua voz soou forte e clara quando continuou. -Me parece que não percebe até que ponto estendeu o alarme. As mulheres têm medo de sair e muitas temem por seus maridos e irmãos, rogam-lhes que não saiam ao cair a noite. Os parques estão desertos. Até os teatros se queixam de que perdem dinheiro porque ninguém quer voltar para casa de noite.

Ao Pitt lhe ocorreram numerosas respostas, mas nenhuma que rebatesse o fato de que o medo era real, por mais que exagerado. Ele mesmo tinha notado que o pânico começava a apropriar-se da rua.

-Sou consciente disso, senhor Uttley - respondeu com educação. Não era o fato de que Uttley o dissesse o que lhe punha furioso, senão o prazer que denotava o olhar do outro. -Estamos fazendo todo o possível para apanhar ao culpado.

-Pois está claro que não é suficiente.

Um segundo homem se uniu ao jovem que aguardava fora.

-O que lhe disse o guarda, senhor Uttley? - Pitt não conseguiu dissimular de todo seu mau humor.

-Que Radley tinha sido atacado por um homem armado com um cutelo e que tratou de matá-lo - respondeu Uttley olhando para dos dois que estavam fora. -Em seguida estou com vocês, cavalheiros! - Voltou a olhar ao Pitt, sorrindo mais que antes. -A verdade, superintendente, está perdendo o tempo. Um homem de seu status terá sem dúvida algo mais proveitoso a fazer que me

perguntar por uma informação de segunda mão, e não posso menos de pensar que seu objetivo é castigar a um ajudante por me haver dito o que você possivelmente deseja manter em segredo.

Os dois jovens se aproximaram.

-Se o achar, senhor Uttley - disse Pitt entre dentes, -tenha por certo que o censurarei por haver-lhe dito a você e não a mim. É uma negligência que requer algo mais que uma explicação!

-E não a você? - Uttley lhe olhou assombrado. -Santo Deus! - Estava mais agradado que surpreso, até o ponto de que quase riu. -Quer dizer que veio a inteirar-se do acontecido porque seus próprios homens não o explicaram? Meu deus! Sua incompetência ultrapassa todo o imaginável. Se pensa que até agora estive criticando-o, meu senhor, asseguro-lhe que isto não fez mais que começar.

-Não, senhor Uttley, não vim para me inteirar dos fatos - lhe replicou Pitt. –Sei pelo senhor Radley, incluindo o que ele não disse seu nome a ninguém e tampouco chamasse à polícia.

-Que não chamou à polícia? - Uttley ficou perplexo. -A que se refere? Foi agredido na rua e por pouco o matam. Pois claro que avisou à polícia.

-Foi agredido, sim. - Pitt também subiu o tom de voz. -Mas se achava perfeitamente esta manhã, e sei pela senhora Radley que se desfez rapidamente de seu atacante. Só sofreu uns leves machucados.

-Isso diz ele? - A expressão do Uttley voltou a ser de mofa. -Que valente e que leal a sua excêntrica postura de defender à polícia.

-Não é a verdade? - inquiriu Pitt suavemente.

-Disseram-me que foi atacado pelo Verdugo do Hyde Park – argumentou Uttley. -O lógico é que um homem minimamente responsável informe imediatamente à polícia, tanto se resultou ferido como se não.

-Informou-me - replicou Pitt, forçando a verdade dos fatos.

Uttley deu de ombros, torcendo o gesto.

-Então suponho que sabe tudo o que necessita. Isso deixa desagradavelmente claro que me está interrogando só para castigar a esse maldito guarda, não é assim?

-Se era o agente que estava na cena do crime, é importante que eu fale com ele - disse Pitt, confiante cada vez mais. -Dado que o senhor Radley partiu imediatamente depois de ver-se livre de seu atacante, depois de assegurar ao homem que os ajudou que não estava ferido, é possível que o guarda encontrasse algo, por exemplo o cutelo.

Uttley pareceu sobressaltar-se, mas recuperou rapidamente a compostura.

-Então seria melhor que fosse para lhe buscar. Suponho que um funcionário como você, com sua experiência, não terá dificuldade em descobrir onde se colocou um de seus homens. - Riu a gargalhadas. -Grande farsa! Gilbert e Sullivan poderiam escrever uma canção graciosa sobre você, mais divertida ainda que a de Piratas. Espere que os jornais se inteirem de que o superintendente que leva este caso está penteando Londres em busca de um de seus guardas. quão bem o vão passar os caricaturistas!

-Deduzo que você dá por sentada essa dificuldade, senhor Uttley - disse Pitt com toda a acuidade que o outro tinha empregado um momento antes. -Não vai ser tão simples como ir à delegacia de polícia adequada e averiguar quem estava de serviço ontem à noite?

-Não tenho a menor idéia - replicou Uttley, mas suas faces se ruborizaram ligeiramente e seus olhos já não olharam ao Pitt com tanto descaramento. Desviou a vista. -Bem, se não posso fazer nada mais por você, tenho outros assuntos que atender. Sinto não poder ajudá-lo quando parece que tanto o necessita.

-Ajudou-me mais do que acredita - disse Pitt.

E acrescentou com um toque fanfarrão. -Em realidade, resolveu-me você o caso. Bom dia. - Saiu pela porta e ao passar junto aos dois jovens que esperavam, tocou o chapéu dizendo: -bom dia, cavalheiros.

Viram-no descer a escadaria até a calçada e depois se olharam o um ao outro com assombro.

Pitt tinha intenção de ir diretamente à delegacia de polícia de onde devia ter saído uma patrulha, mas antes de chegar estava cruzando uma rua muito transitada, entre o carrinho de mão de um peixeiro e uma carreta cheia de batatas e couves, quando foi abordado por um homem muito gordo de cabelo cinzento e cacheado. Seus olhos verdes estavam bulbosos no rosto inchado. Vestia-se de maneira impecável e uma longa corrente de ouro cruzava de lado a lado seu amplo abdômen. Estava junto a outro homem que apenas lhe chegava ao cotovelo, baixo, cara afiada e perversa, e dente descoloridos e bicudos.

-Bom dia, George - disse Pitt ao grandalhão. Depois olhou ao comparsa de FAt George. -Bom dia, Georgie.

-Ah, senhor Pitt - disse FAT George com voz aguda, estranhamente triste. -Nos defraudou você. O parque já não é lugar seguro para os cavalheiros. O negócio está se ressintindo muito.

-Não se comporta bem conosco, senhor - acrescentou Wee Georgie em um tom de voz que arremedava o de seu companheiro, a mesma acuidade pegajosa, mas com algo sibilante que o fazia mais áspero e mais feio. -E isso nós não gostamos. Estamos perdendo muito dinheiro, senhor Pitt.

-Se soubesse quem é o Verdugo, asseguro-lhes que o prenderia - disse Pitt procurando manter a calma. -Fazemos tudo o que podemos para dar com ele.

-Pois não é suficiente, senhor Pitt - disse Wee Georgie fazendo uma careta. -Não, senhor.

-São muitos os cavalheiros que têm medo de ir ao parque para recrear-se um pouco, senhor Pitt - acrescentou

FAT George, fincando no chão a ponteira de sua bengala. -Não estão contentes, sabe você, nada contentes.

-Então aconselho-os que tentem descobrir quem é o Verdugo - replicou Pitt. Têm mais olhos e ouvidos no parque que eu.

-Nós não sabemos nada - disse FAT George. -Acredito que já o havíamos dito. Do contrário não estaríamos aqui lhe fazendo recriminações, senhor Pitt. Teríamos solucionado por nossa conta. Agora bem, se pensa que isto tem algo que ver com nosso negócio, está muito equivocado.

-Acredita que nós gostamos do que está acontecendo? - exclamou Wee Georgie. -Se um dos nossos começasse a cortar cabeças, apunhalaríamo-lo pelas costas e o jogaríamos no rio. Daríamos uma boa lição ao que se metesse onde não o chamam, mas nunca tocaríamos a um muda de alface. É mau para o negócio, e uma estupidez! - Apalpou algo que levava a altura da perna, sob a

jaqueta. Pitt soube que era uma faca. O homenzinho se lambeu e olhou ao Pitt sem pestanejar.

-O que diz Georgie é verdade, senhor Pitt - sussurrou FAT George, resfolegando um pouco. -Não fomos nós. Isto é coisa de cavalheiros, verá como tenho razão.

-Será um louco de algum… - começou Pitt.

FAT George negou com a cabeça:

-Você sabe que não, senhor Pitt. Decepciona-me. Estamos perdendo o tempo. Não há nenhum lunático escondido no parque, você e eu sabemos.

Wee Georgie se moveu inquieto. Uma sucessão de carruagems e carretas passou por seu lado. Pitt não replicou. Nunca tinha acreditado que se tratasse de um louco solto.

-Será melhor que o encontre, senhor Pitt - repetiu FAT George, meneando a cabeça até que os cachos ricochetearam em seu pescoço de astracã. -Ou nos zangaremos muito, Wee Georgie e eu.

-Eu também - disse amargamente Pitt. -Mas se tanto lhes chateia, será melhor que comecem a fazer algo por sua conta.

Wee Georgie lhe lançou um olhar envenenado. FAT George sorriu, mas sem humor nem simpatia.

-Isso é trabalho seu, senhor Pitt – disse. -Seria muito de agradecer que se ocupasse disso.

E sem dizer mais, deu meia volta e em um instante desapareceu entre as carruagens.

Wee Georgie olhou ao Pitt uma vez mais, cheios os olhos de malícia, e se afastou em busca de seu comparsa. Via-se obrigado a trotar para lhe dar alcance, e isso o punha furioso.

Pitt seguiu seu caminho sem dar muitas voltas ao assunto, embora fosse um indício do sentir general o fato de que até a FAT George percebesse que o medo estava afetando a seu negócio.

Perplexidade absoluta foi o que achou ao chegar à delegacia de polícia de outrora. O inspetor que falou com ele era um homem alto e magro, de rosto lúgubre e ascético e um ar de direta dignidade.

-Nós não sabemos nada - disse em tom cansado. -Embora pareça incrível, ninguém nos deu parte. Sei pouco mais que o que publicaram os jornais.

-Ninguém deu parte? - disse Pitt. -É esta a delegacia de polícia?

-Em efeito. - O inspetor suspirou. -Interroguei a todos meus homens. Queria saber quem tinha sido o idiota que tinha contado ao Uttley, mas nenhum esteve patrulhando nessa zona. E o verifiquei, assim não é preciso que se incomode em averiguar se dizem a verdade ou se alguém trata de encobrir um estúpido engano. Todos os agentes têm testemunhas. Uttley não se inteirou por nenhum deles.

-Que curioso - disse Pitt pensativo. Não duvidava daquele inspetor, como tampouco pensava que seus agentes pudessem mentir, seria muito fácil averiguá-lo, e o que cometesse tão estúpido ato o poriam de quatro na rua.

-Eu ainda diria mais - apostilou o inspetor. -Só me ocorre que foi uma das pessoas que foi ao resgate. Radley nunca o teria contado à imprensa. Ao menos parece que ele está ao nossa lado. Possivelmente seja o único. Tem lido os jornais, senhor?

-Sim, assim é como me inteirei, e olhe que Radley é meu cunhado.

As sobrancelhas do inspetor se arquearam.

-Ele não pensava dar parte?

-A mim sim, porque o atacante levava um cutelo, mas não a vocês. Queria nos economizar publicidade por conta de outra agressão.

-Qualquer um diria que somos idiotas - se lamentou o inspetor. -Tem que ser muito triste que um membro do Parlamento alcance o poder aproveitando a reação do público contra a polícia. - Torceu o gesto. -Que coincidência, não é, que o verdugo atacasse ao rival do Uttley justo antes das eleições.

-Muita coincidência - disse Pitt. -Bem, obrigado por tudo, inspetor.

Acho que irei ver esses cavalheiros que ajudaram ao senhor Radley. Quero ouvir sua própria versão.

-Não sei do que lhe servirá. Eles não viram o atacante. Mas se acreditar que vale a pena...

-Sim, poderia ser.

-Certamente que não, senhor - disse estranhando o senhor Milburn. -Seria tomar uma liberdade imperdoável. Por que ia eu a fazer semelhante coisa?

-Poderia ser que o tivesse considerado um dever de cidadão – respondeu Pitt. -Ou também que, na tensão do momento, tivesse um deslize.

Milburn estava muito rígido, as costas retas.

-O único momento tenso, senhor, produziu-se quando a agrediram esse pobre cavalheiro. E à dama também, por certo. Nada menos que em uma zona tão excepcional como esta. Já não se está seguro em nenhuma parte. - Milburn meneou a cabeça e depois ajeitou o cabelo. -Não sei aonde iremos parar. Não quero que me interprete mau, senhor, mas a polícia deveria ser capaz de fazer algo mais. Vivemos na maior cidade do mundo, e muitos diriam a mais civilizada, mas vamos pela rua temendo aos loucos e os anarquistas. Isto não é bom, senhor!

-Lamento-o - disse Pitt, -mas não sei o que outra coisa podemos fazer além do que estamos fazendo.

-Sim, imagino. - Milburn assentiu como se se envergonhasse um pouco. –O medo não é bom aliado. Suponho que me precipitei ao falar. Acredita que posso ajudá-lo em algo?

-Reconheceu alguém? - perguntou Pitt.

-Mas se nem sequer vi o ataque. Estava em meu dormitório a ponto de me deitar quando ouvi os gritos daquela dama. Desci imediatamente e saí à rua para ver o que se podia fazer.

-Uma atitude elogiável - afirmou Pitt. -E devo dizer que muito valente.

Milburn se ruborizou um pouco.

-Obrigado. Confesso que naquele momento não pensei no perigo, de outro modo teria reconsiderado minha iniciativa. Mas, seja como for, temo muito não poder ajudá-lo neste sentido.

-Em realidade referia a se reconheceu à dama e o cavalheiro que foram vítimas do ataque.

-Não, senhor. Tudo ocorreu muito depressa e na escuridão. E acrescentarei que normalmente uso óculos. Como é lógico, nesse momento não os levava postos. O cavalheiro me pareceu bastante jovem. Ao menos se movia com agilidade. E era robusto, sim, muito robusto. Não recordo mais. - Inspirou fundo e estudou Pitt muito sério. -Quanto à dama, não há dúvida de que tinha gênio, e muito bons pulmões, mas a verdade é que não me fixei em nada mais, se era loira ou morena, bonita ou vulgar. Sinto muito, senhor, parece que não lhe sirvo de nada. Começo a compreender suas dificuldades.

-Ao contrário, senhor Milburn. Serviu-me muito. Direi-lhe mais, acredito que me resolveu completamente o problema. Obrigado, e que tenha um bom dia.

Milburn ficou parado, procurando em vão algo que dizer enquanto Pitt partia.

Mas no Bow Street as coisas foram muito distintas. Giles Farnsworth estava no escritório do superintendente, passeando-se como um tigre enjaulado. Ao ouvir que Pitt chegava se situou de frente à porta, esperando-o com um jornal na mão.

-Suponho que terá lido isto - disse furioso. -Como o explica? O que está fazendo você a respeito? Agora atacam a um futuro parlamentar no coração do Mayfair! Sabe alguma coisa, Pitt? Alguma maldita coisa?

-Que desta vez não foi o Verdugo - respondeu Pitt com calma.

-Como que não? - respondeu Farnsworth desconfiado. -Insinua que em Londres há dois loucos homicidas armados com cutelos?

-Não, por um lado há um louco, e por outro um oportunista que se aproveita da situação.

-Mas do que está falando? Que classe de vantagem poderia tirar um homem cordato deste pesadelo?

-Uma vantagem política.

-Política? - Farnsworth ficou imóvel. -Está dizendo o que me parece que diz? Santo Deus, será melhor que esteja certo. E procure ser capaz de demonstrar essa acusação.

-Ainda não tenho provas suficientes contra ele - disse Pitt, indo até sua escrivaninha. -Mas estou convencido de que foi ele quem atacou ao senhor e a senhora Radley ontem à noite.

Farnsworth o olhou.

-Seriamente? Dá-me sua palavra, Pitt?

-Sim.

-Como sabe? Não o terá confessado ele.

-É claro que não, mas escreveu um detalhado artigo no jornal. Disse-me que se inteirou por um agente que estava de serviço, mas não há tal agente, e tampouco o pôde saber pelo homem que foi em ajuda do Radley, porque ele não sabia quem era Radley.

-Caramba - disse Farnsworth. -Esse homem se tornou louco. - Falava com desprezo. Logo pareceu esquecer o assunto e olhou ao Pitt com renovado nervosismo. -O que me diz do verdadeiro Verdugo? A cidade inteira está aterrorizada. Houve moções na Câmara dos Comuns, o ministro do Interior passou francamente mal na roda de imprensa. Sua majestade expressou sua grande preocupação. Parece que está inquieta. - De repente subiu a voz como se a fúria tivesse despertado uma onda de medo. -Pelo amor de Deus, Pitt, mas o que lhe passa? Alguma forma tem que haver para achar provas com que prendê-lo!

-Refere-se outra vez ao Carvell, senhor?

-Pois claro que me refiro lhe replicou Farnsworth. -Carvell tinha um motivo, meios e oportunidade. Dispõe você de toda a vantagem possível para obrigá-lo a confessar. Use-a!

-Está em um engano - começou Pitt, mas Farnsworth lhe interrompeu com impaciência.

-Isto é inaudito! - exclamou. -Tellman tem razão, é você muito afetado. Este não é momento nem lugar para exames de consciência. - inclinou-se sobre o canto da mesa e apoiou as mãos, olhando de cima abaixo ao Pitt. –Você deve a seus superiores e ao corpo de polícia. Não se deixe levar por minúcias. Isso é para policiais ajudantes, se me entende, não para um superintendente. Faça frente a suas responsabilidades, Pitt e se não, demita-se!

-Não posso prender o Carvell - disse Pitt muito devagar. -E me nego a acusar a ninguém pelo que eu possa pensar de sua vida privada.

-Maldito seja, Pitt! - Farnsworth descarregou o punho sobre a escrivaninha. –Esse tipo manteve um romance ilícito com a vítima de um assassinato. Não tem álibi, nem para essa noite nem para a que mataram ao Winthrop. Poderia ser que Arledge conhecesse o Winthrop.

-Como sabe isso? - interrompeu-lhe Pitt...

Farnsworth olhou-o sem confiança.

-Ele conhecia a senhora Winthrop. Não é preciso ser muito esperto para deduzir que também conhecia o capitão. E se Carvell era ciumento, a conclusão parece óbvia.

-Disse-o Tellman?

-Pois claro que me disse isso Tellman! O que lhe passa? A que vêm tantas dúvidas?

-Também pôde ter sido Bartholomew Mitchell.

Agora Farnsworth estava perplexo.

-Quem? O cunhado do Winthrop? E por que, se pode saber-se? o que tem que ver ele com o Arledge?

-Winthrop batia em sua mulher - disse Pitt. -Mitchell sabia. Viram o Arledge com a senhora Winthrop quando ela parecia muito desgostada por algo.

-E o cobrador de ônibus? - perguntou Farnsworth evitando a questão das discussões. -O que tem sobre isso? Não me dirá que teve algo que ver com este drama familiar.

-Nem idéia. Claro que tampouco sabemos o que tinha que ver com o Carvell - argumentou Pitt.

Farnsworth mordeu o lábio:

-Chantagem - disse. -É a única resposta. Por alguma razão estava no parque e viu um dos assassinatos. Continuo pensando que é Carvell. Vá atrás dele, Pitt. Obrigue-o a confessar a verdade. Se for culpado, não lhe será difícil.

Alguém bateu na porta e entrou no escritório. Era Tellman.

-Oh, - disse com certa surpresa, ante a presença do Farnsworth. -Desculpe, senhor. - Olhou ao Pitt. -pensei que gostaria de saber, senhor. Os homens investigaram o paradeiro do Carvell no momento dos dois assassinatos.

-E? - disse Pitt, sentindo que todo se vinha abaixo.

Farnsworth olhou ao Tellman, com expectativa.

-Não acharam a ninguém que o confirme. Em nenhum dos dois casos. Já não sei que mais podemos tentar.

-Basta com isso - disse Farnsworth. -Prenda-o pelo assassinato do Arledge. Os outros dois não importam neste caso. Assim que esteja detido, confessará.

Pitt se dispunha a protestar, mas Tellman se adiantou.

-Ainda não sabemos nada do Yeats, senhor – disse. -Talvez Carvell possa demonstrar que não esteve ali.

-E o que diz ele? -inquiriu Farnsworth.

-Que estava em um concerto - replicou Tellman com expressão inocente. -Seria uma estupidez prendê-lo e logo achar a alguém que o viu no teatro, longe dali, a meia-noite.

-A que hora mataram ao Yeats?

-Provavelmente entre as doze e as doze e meia - disse Pitt.

-Provavelmente? -replicou-lhe Farnsworth. -Não pode ser mais preciso o legista? Possivelmente era mais tarde. Possivelmente foi duas horas depois. Isso teria dado ao Carvell tempo de sobra para pegar uma carruagem até o Shepherd"s Bush. - Olhou-os a ambos com expressão de triunfo.

Tellman disse: -Yeats dificilmente teria estado rondando pelo terminal do Shepherd"s Bush duas horas depois de finalizar o trajeto. teria ido a casa. E posto que só está a quinze minutos a bom passo, isso limita bastante a hora de sua morte.

Farnsworth apertou os lábios.

-Então procure averiguar quem mais assistiu a esse concerto – disse. –Se Carvell estava ali, alguém deve tê-lo visto! É um personagem conhecido. Certamente não estava só. Vamos, homem, você é detetive. Deve haver um modo de demonstrar se esteve ali ou não. E o intermédio? Foi tomar um refresco? Com certeza falou com alguma pessoa. Os concertos, além da música, servem para relacionar-se.

-Carvell diz que não - respondeu Tellman. -Foi pouco depois da morte do Arledge, e não se sentia com ânimos de falar com ninguém. Só assistiu para escutar a música, diz que lhe trazia lembranças do Arledge. Entrou sem falar com ninguém e saiu da mesma maneira.

-Prenda-o - repetiu Farnsworth. -É nosso homem.

-E se resultar que foi o senhor Mitchell, senhor? - disse Tellman. -Parece que ele também tinha motivos, e tampouco pode provar onde esteve, sem contar com a palavra da senhora Winthrop, e isso não vale muito.

Farnsworth foi para a porta.

-Pois façam algo, e rápido. - dirigiu-se ao Pitt. -Ou terei que substituí-lo por alguém mais competente. A gente tem direito a esperar melhores resultados. O ministro do Interior tem um interesse pessoal no caso, e até sua majestade está preocupada. O que resta da semana, Pitt, nem um dia mais.

Tão logo Farnsworth se foi, Pitt olhou ao Tellman com curiosidade. Este fingiu certa indiferença.

-Lástima - disse como se tal coisa -que não lhes ocorram sugestões mais úteis. Já não sei que mais fazer. Temos dois homens tratando de averiguar algo sobre esse maldito cobrador. É tão comum que poderíamos trocá-lo por outros dez mil seres comuns sem notar a menor diferença. Mandão, presunçoso, vivia com sua esposa e dois cães, gostava das pombas, bebia cerveja no Fox & Grampeie as sextas-feiras de noite, jogava mal ao dominó, mas se dava bem em atirar dardos. Por que ia alguém assassiná-lo?

-Porque sabia algo que não devia - respondeu Pitt.

-Mas estava no ônibus quando Winthrop e Arledge foram assassinados –saltou Tellman. -E não passou perto do parque. Embora tivessem matado ao Arledge em outro lugar, sabemos exatamente onde mataram ao Winthrop.

-Então ponha mais homens para averiguar onde assassinaram ao Arledge - disse Pitt sem esperança. -Reviste a zona onde vive Carvell. Procure uma desculpa para ir ver o Mitchell, e reviste outra vez a casa.

-Sim, senhor. O que vai fazer você? - Pela primeira vez, perguntava-o sem insolência.

-Assistirei ao réquiem pelo Aidan Arledge.

Não havia lugar para que Charlotte acompanhasse ao Pitt, primeiro ao réquiem e a posterior recepção. A casa nova estava virtualmente terminada e havia um montão de coisas pendentes: cortinas que pendurar, pranchas soltas que atarraxar ao chão, um grifo que trocar, ladrilhos que colocar na cozinha e algumas mais na despensa, etcétera. Entretanto, tudo isso parecia insignificante comparado com a oportunidade de conhecer os principais protagonistas da tragédia que Pitt estava investigando.

Chegaram cedo de propósito, vestidos com discrição como o resto da gente. De fato Pitt tinha investido três vezes mais tempo do que habitual ante o espelho de corpo inteiro. Também tinha permitido a Charlotte que lhe arrumasse o colarinho, o lenço de seda e a jaqueta até que ela ficou satisfeita. Por sua parte, Charlotte levava o mesmo vestido negro que tinha usado no funeral do capitão Winthrop, mas com um chapéu muito diferente, desta vez de copa alta e aba mais curta, e absolutamente na moda, quando não por diante dela. Era um presente de tia avó Vespasia.

Acabavam de desembarcar do cabriolé, a certa distância do lugar para não ser vistos sem carruagem própria, quando se acharam com o Jack e Emily, que também se deram pressa em chegar. Jack estava tão elegante como de costume, embora ainda andava um pouco enrijecido. Charlotte sabia o do incidente pelos jornais, pelo Pitt e pela própria Emily, a quem tinha ido ver muito pouco depois de ler a notícia.

Emily estava radiante em seu vestido negro de seda com babados, mangas amplas e ombros vincados. Não obstante, seus olhos piscaram de admiração, e certa surpresa também, ao ver o chapéu de sua irmã.

-Quanto me alegro de que esteja aqui - disse colocando-se ao lado de Charlotte, mas sem mencionar o chapéu. -Me sinto tão culpada. Não conseguimos nada que sirva ao Thomas e, para falar a verdade, nem sequer o tentamos. O que dizem os jornais é injusto, claro que a justiça nunca teve nada que ver. Conhece alguém? - perguntou assinalando para a gente que começava a congregar-se.

-Claro que não - respondeu Charlotte baixo. -Bom, acredito que essa dali é Mina Winthrop. E ao lado é seu irmão, Bart Mitchell. Thomas - disse voltando-se para o Pitt, -por que vieram? Você acha que é por solidariedade? Ela mostra-se muito triste.

-A senhora Winthrop o conhecia - disse Pitt, aproximando-se delas e saudando Emily.

-Conhecia-o?- Charlotte não saía de seu assombro. -Isso não me havia dito!

-Acabo de me inteirar.

-E como o conheceu? É possível que...? Não, isso não pode ser.

-Olhem a esse pobre homem - interrompeu Emily ao ver passar Jerome Carvell a uns metros deles. -Parece muito abatido. - E assim era, tinha uma palidez mortal e os olhos avermelhados como se tivesse passado a noite tratando de ver algo que, quando por fim o conseguiu, tinha-o estremecido até a medula.

Caminhava abrindo passagem cansativamente entre outros sem olhar a ninguém no rosto. Só falava para responder às condolências que recebia.

-Mostra-se muito preocupado - disse Charlotte. -Pobre homem. Pergunto-me se saberá algo ou se só é a aflição.

-Poderia ser ambas as coisas - disse Emily, olhando não às costas do Carvell mas a Mina Winthrop. Mina, é claro, vestia de rigoroso luto, mas agora trazia granadas e pérolas, e ia sem véu. Enquanto olhava com interesse a seu redor, seu irmão caminhava junto a ela, isso fez pensar a Charlotte que Bart queria controlar se Mina se afastava dele, como se faz em companhia de um menino pequeno que poderia correr perigo ou extraviar-se. Charlotte tinha tido essa mesma atitude com seus filhos, sempre pendente deles embora estivesse falando com alguém.

-Thomas - disse.

-Sim?

-Bart Mitchell é suspeito?

-Porquê?

-Porque o capitão Winthrop batia em sua mulher, claro. Quero dizer, é possível que Arledge fizesse também algo que prejudicasse a Mina?

-Ignoro-o. Ela estava muito perturbada o dia em que os viram juntos. Poderia ser.

-E o condutor de ônibus?

-Nem idéia. Não parece que tenha nada que ver.

-Deve ter visto algo - atravessou Emily. -Do ônibus.

-Sua linha não passa perto do Hyde Park.

-OH.

Chegavam mais pessoas, entre elas um homem de aparência distinta, de meia idade, cabeça augusta, cabelo espesso com cãs nas têmporas e bigode fino. Vestia-se impecavelmente, um traje de última moda e uma camisa de seda. Caminhava com uma segurança em si mesmo que atraía muitos olhares. Aparentemente estava habituado a causar sensação, porque não dava a impressão de afetar-se por isso, de fato mal parecia notá-lo.

-Quem é? - perguntou Charlotte. -Um ministro ou algo parecido?

-Não o conheço - disse Pitt.

Emily sufocou a risada ficando uma mão enluvada sobre a boca.

-Mas o que diz. Se é Sullivan.

-E quem é Sullivan? - perguntou Charlotte.

-Sir Arthur Sullivan! - sussurrou Emily. -Do Gilbert e Sullivan!

-Ah! OH! É claro. O senhor Arledge era compositor e diretor de orquestra, não? Possivelmente venha também o senhor Gilbert.

-Não - disse rapidamente Emily. -Ao menos, se souber que sir Arthur está aqui. Estão brigados, sabe.

-Sério? - Charlotte se sentiu surpreendida e decepcionada. -Isso não sabia. Como se arrumam então para escrever essas operetas maravilhosas?

-Não sei. Possivelmente já não trabalham juntos.

Charlotte se sentiu ilógicamente decepcionada. Ainda recordava as contadas noites que tinha passado no Savoy, o colorido e a agitação, as envolventes melodias. Agora que Pitt tinha sido promovido e que possivelmente poderiam freqüentar mais freqüentemente a ópera, já não ia ser possível.

Uma segunda onda de gente interrompeu seus pensamentos. Junto à porta da igreja as pessoas se davam cotoveladas e, sem querer, voltou a cabeça.

-É ele! - disse Emily.

-Quem? Gilbert? - perguntou Charlotte.

-Naturalmente, W. S. Gilbert.

-Seriamente disputaram? - Charlotte viu que Gilbert avançava inexorável para onde se achava sir Arthur Sullivan no alto da escadaria, aparentemente alheio aos recém chegados. -Por que motivo?

-Não sei. É o que ouvi dizer. - Emily a puxou pelo braço e a levou para a porta da igreja. -Acredito que é momento de que entremos. Seria uma falta de delicadeza fazer esperar às pessoas, não lhe parece? E uma ridicularia ter vindo cedo e entrar tarde na igreja.

Charlotte aceitou sem pôr reparos.

Sir Arthur Sullivan percebeu um considerável rebuliço entre a multidão e ao voltar-se viu o W. S. Gilbert a uns passos dele, subindo a escadaria com passo decidido, falando com quem lhe flanqueava, os quais estavam tão atentos que não afrouxaram o passo até que pareceu que iam chocar com os de cima.

Sir Arthur não se moveu de lugar, e continuou falando ele também como se fosse a coisa mais importante do mundo.

Gilbert se viu obrigado a deter-se o chegar ao degrau superior.

-Senhor, está obstruindo a passagem - disse claramente para que todo mundo o ouvisse.

Os congregados calaram de repente. Um a um se voltaram para olhar. Um pigarreou de nervos. Outro soltou um risinho e imediatamente tratou de dissimular.

Sir Arthur interrompeu sua conversa com um homem gordo de cabelo branco e se voltou para o Gilbert muito lentamente.

-Dirige-se a mim, senhor?

Gilbert olhou em redor para ver se havia alguém mais em sua cercania e depois olhou de novo a sir Arthur.

-Tem um grande sentido da obviedade, senhor – replicou. -Vejo que reduziu a questão a sua medula em uma rápida dedução. A você dirijo, senhor. Está bloqueando a entrada à igreja. Seria amável de deixar a passagem livre?

-Não pode esperar seu turno, senhor, como uma pessoa civilizada? – As sobrancelhas do Sullivan se arquearam com desdém. -Acaso deve a boa sociedade interromper seus afazeres e abrir a passagem a fim de que você possa passar quando tiver vontade?

-Admiro aos homens com auto-estima, senhor, mas considerar-se a gente mesmo o conjunto da boa sociedade raia ao ridículo - replicou Gilbert.

Sir Arthur se ruborizou levemente. Agora lhe era impossível mover-se sem perder a batalha. Permaneceu justo onde estava, diante do Gilbert.

Foi lady Lismore quem salvou a situação. Emergindo das sombras da entrada, dirigiu-se assim ao Sullivan.

-Lamento interrompê-lo, sir Arthur, mas lhe agradeceria muitíssimo sua ajuda. Devemos escolher a música adequada para a ocasião, e não estou de todo segura a respeito ao chelista.

Sir Arthur a olhou irritado, como se tivesse tido a resposta perfeita na ponta da língua, mas entrou com ela.

-É claro, lady Lismore. Algo que eu possa fazer...

Gilbert se sorriu e olhou de esguelha aos que observavam com atenção. Mas somente mostrou uma leve complacência ao cruzar o pórtico e desaparecer no interior em penumbra da igreja.

Charlotte suspirou.

-"Com um taco torcido e um falso pano verde, e elípticas bolas de bilhar – disse Emily alegremente. -Meu objeto o mais sublime, conseguirei com o tempo"

-Ssh! - Charlotte franziu o sobrecenho. -Não pode entrar na igreja para um funeral cantando O Mikado!

Emily calou imediatamente, ao menos até que lhes indicaram um banco mais próximo à parte de trás do que ela teria desejado. Pitt e Jack estavam a sua esquerda, o primeiro entre as sombras das colunas.

-Há muitíssima gente - disse Emily assim que se acomodaram. -Suponho que é porque se trata de um assassinato. A maioria veio só para bisbilhotar.

-Assim como você - indicou Charlotte.

-Não seja má. Sabe que a campanha parte muito bem. Acredito que Jack tem possibilidades reais de sair eleito.

-Bom, cale já. Estamos na igreja!

-Ainda não começaram - protestou Emily. -Tia Vespasia disse que ia vir, mas ainda não a vi. E você?

-Não. Mas tampouco a ninguém que me soe de algo.

-Foi ver mamãe ultimamente?

-Não, estive muito ocupada com as reformas.

Emily inclinou a cabeça como se estivesse rezando ou muito concentrada.

-Isto vai de mal a pior – sussurrou. -A outra noite esteve no rio até o amanhecer.

-Como sabe?

-Vi-a.

-Então você também estava.

-Não compare! - indignou-se Emily. -Isso é muito diferente. Olhe que é obtusa às vezes.

-Nada disso. Mas acredito que não há motivo para zangar-se. Não pode impedir que faça o que quiser.

-Ou seja quem mais a viu!

A mulher do banco de diante se voltou para olhar com cenho a Emily, abandonando-se com o programa do serviço.

-Encontra-se mau? – disse. -Talvez devesse sair para tomar ar antes de que isto comece.

-Muito amável de sua parte - replicou Emily com um sorriso açucarado. –Mas se sair, duvido que meu lugar continue livre e então minha pobre irmã teria que ficar sozinha.

Charlotte tampou o rosto para não rir e deixou que a outra pensasse que era de angústia.

A mulher fez uma careta.

Depois de uns compassos de órgão, a música se deteve em seco e o vigário começou a falar.

Charlotte e Emily se prepararam para fingir desconsolo.

A recepção foi um ato bem diferente. A carruagem de Emily depositou aos quatro no Green Street, frente à casa do Jerome Carvell, e se afastou para deixar lugar a uma carruagem de quatro portas carregada deste modo de passageiros.

Emily pegou pelo braço Jack e subiu a escadaria até a porta, onde um mordomo alto e muito rígido, de maçãs do rosto proeminentes e majestosas pernas, examinou o cartão do Jack antes de tomar uma decisão.

-Bom dia, senhor Radley, senhora Radley. Passem, por favor. - voltou-se para Pitt. -Bom dia, senhor? - Sua expressão tinha mudado sutilmente, era difícil dizer no que, mas o respeito se evaporara e seu olhar era agora arrogante.

-Senhor e senhora Pitt - respondeu Pitt com igual frieza.

-Ah.

Charlotte se enrijeceu. Doía-lhe que Pitt tivesse que agüentar o desdém do mordomo, mas lhe horrorizava que pudesse desforrar-se e piorasse ainda mais a situação. Procurou sorrir como se não tivesse captado outra coisa que a cortesia habitual.

Pitt levantou um pouco mais a cabeça, mas o mordomo impediu-o de falar.

-Lamento-o, senhor, mas não acredito que seja um momento oportuno para ver o senhor Carvell. Como terá observado, trata-se de uma reunião social de certa seriedade e tristeza.

Charlotte se dispôs a fazer um comentário esmagador.

-Não devo ver ao senhor Carvell - disse educadamente Pitt - mas à senhora Arledge. Ela me está esperando, e me preocuparia que pensasse que declinei seu convite.

-Oh. - O mordomo pareceu sobressaltado. -Entendo, senhor. É claro. Façam o favor de passar.

A mesa estava posta com toda classe de manjares, e Carvell certamente tinha contratado pessoal de reforço para a ocasião porque havia ao menos meia dúzia de criadas e lacaios de libré, esperando discretamente para atender os desejos dos convidados.

Ao entrar ela e Pitt na outra sala, um pequeno grupo de homens que havia na entrada se voltou para olhá-los. Um deles, de rosto inteligente com uma expressão mescla de pena, nervosismo e esperança, avançou para eles. Charlotte não teve que perguntar se se tratava do Carvell, pois a força de seus sentimentos encaixava com a descrição que Pitt fazia dele. Era o homem que tinha visto no funeral e cuja aflição tanto a tinha comovido.

Pitt a olhou de esguelha, notou que ela se deu conta e sorriu antes de ir saudar Carvell.

-Bom dia, superintendente - disse Carvell olhando-o inquisitivamente. -Há alguma...? - Viu pelo olhar do Pitt que não havia nada novo. -Perdoe. Que estupidez de minha parte. Rogo-lhe me desculpe. Deveria dizer que me alegro de vê-lo ou soará muito candido?

Não parecia ter reparado em Charlotte, mas curiosamente, ela não se sentiu desprezada. De perto, seu rosto era mais feio, notavam-se claramente as marcas de varíola, mas nada disso diminuía sua grande vitalidade. Apesar de a conhecer sua relação com o Arledge e imaginar o que isso teria suposto para a Dulcie, e a possibilidade muito real de que fosse o autor de um ou mais assassinatos, Charlotte não pôde evitar ficar de seu lado como se a mera intensidade de seus sentimentos não desse o menor traço de dúvida. No Carvell a indiferença era uma emoção desconhecida.

-Não me pega com novas - disse Pitt. -vim porque a senhora Arledge me convidou, e agradeço a oportunidade de apresentar meus respeitos a um homem ao qual sem dúvida teria admirado se tivesse chegado a conhecê-lo.

Carvell mordeu o lábio e engoliu em seco.

-É muito amável, superintendente. Ninguém poderia dizê-lo com mais generosidade sem faltar à verdade. Não soube você nada novo e seu dever o traz aqui, além de sua inclinação natural. Compreendo-o muito bem.

-Não direi que não haja nada - objetou Pitt. -Mas o pouco que há não leva a nenhuma conclusão. Senhor Carvell, posso lhe apresentar a minha esposa?

-OH! - Carvell foi pego de surpresa. -Quanto o sinto, senhora. Desculpe-me por minha grosseria. Tinha suposto... bem, não sei o que tinha suposto em realidade. Me perdoe. - Fez uma ligeira reverência. -Como está?

Não fez gesto de aproximar-se.

-Encantada, senhor Carvell - disse ela sorrindo. -Aceite minhas condolências. É algo extremamente amargo perder ao melhor amigo.

Ele a olhou surpreso, depois um tanto incômodo, e por último com espontâneo afeto.

-Muito amável de sua parte. - Eram palavras formais, mas Charlotte soube que as dizia a sério.

Antes que algum deles pudesse achar um tema mais agradável de conversa, produziu-se um movimento de gente no portal, um murmúrio de vozes, um roçar de tecidos. Ao voltar-se, Pitt e Charlotte viram uma mulher entrando sozinha na sala, vestida deliciosa e femininamente de negro com discretos adornos de joalheria e babados na gola e pulsos. Não era uma mulher grande, nem tampouco extraordinariamente formosa, mas atraía a atenção. Tinha feições bem proporcionadas e uma boca bem torneada, o delicado tom de sua pele não se danificara e estava penteada com muita graça, só seus olhos azuis delatavam a insônia e a ansiedade.

Charlotte notou que Pitt se retesava e olhou-o rapidamente. A admiração era evidente em seu rosto, assim como uma profunda gentileza que não lhe tinha visto em muito tempo, nem sequer para Jerome Carvell. Não teve que perguntar para saber que aquela mulher era Dulcie Arledge.

Dulcie passeou o olhar pela sala. Não se deteve ao ver mina Winthrop, aparentemente não a reconheceu, como tampouco ao Bart Mitchell, que estava ao lado dela. Sorriu a sir James Lismore e ao Roderick Alberd. Várias pessoas mais receberam dela um ligeiro movimento da cabeça e um esboço de sorriso. Seus olhos passaram pela graciosa figura do Landon Hurlwood, um pouco mais alto de quem o rodeava, mas ela não deu sinais de conhecê-lo.

Victor Garrick estava sentado em um canto com o chelo embalado entre os braços, esperando o momento de tocar. Seus cabelos loiros brilhavam à luz do acendedor de gás que tinha em cima, e seu rosto mostrava uma expressão de paz, como quem está sonhando em algo muito longínquo e formoso.

Dulcie saudou-o com uma inclinação da cabeça. Isso pareceu suavizar a expressão concentrada do Victor, mas um momento depois seu olhar voltou a abismar-se.

Os olhos de Dulcie se posaram finalmente no Pitt e um delicado sorriso adornou sua boca. Avançou entre as pessoas, trocando uma palavra aqui e outra lá, até que esteve a uns passos dele.

Pitt esperou e Charlotte não disse nada. Assustou-a, a profunda emoção que pressentia no Pitt, não era unicamente a solidão do Dulcie e o horrível engano que parecia sofrer com tanta dignidade, mas também um sentimento de ternura e respeito por ela que Pitt sem dúvida recordaria muito depois de que o caso fosse resolvido.

Charlotte admirou-o por isso. Não lhe gostaria que ele fosse incapaz de tais emoções, e entretanto havia algo que a intranqüilizava ligeiramente, uma lembrança das numerosas vezes em que ela tinha estado ausente quando ele tinha chegado cansado e preocupado, confuso e com necessidade de falar do caso.

Charlotte tinha estado tão absorta em seus planos de deixar bonita a casa, e fazê-lo a um preço razoável, que mal tinha tido ocasião de pensar em outra coisa.

Agora sentia uma pontada de ciúmes, suave, mas inequívoca.

-Bom dia, superintendente - disse Dulcie sorrindo ao Pitt. Houve um momento de vacilação antes de que voltasse para Charlotte. -Encantada. Você deve ser a senhora Pitt. Agradeço-lhe que tenha vindo também. É muito amável.

Charlotte teve que esforçar-se por sorrir com doçura e pensar em algo agradável que responder. O menor deslize teria sido detectado. Bastava-lhe olhar Dulcie nos olhos para saber que nada lhe passava por cima.

-Obrigado, senhora Arledge. Espero que não o considere uma intromissão.

-É claro que não. Não tenha a menor duvida.

Dulcie olhou ao Carvell. Charlotte conteve o fôlego e de repente se deu conta de que Dulcie não tinha a menor idéia de que ele fosse outra coisa que um amigo penalizado, bastante generoso para ter emprestado sua casa para a ocasião. Agradeceu em silêncio de que assim fosse.

-Obrigado, senhor Carvell - disse Dulcie inclinando a cabeça. –Sua hospitalidade foi muito importante para mim em uma situação que podia ter sido quase insuportável. Tenha a certeza que o agradeço mais do que imagina.

Carvell ficou transposto, avermelhado até as orelhas. Charlotte apenas fazia uma idéia das emoções que devia estar sentindo ao enfrentar à viúva do Arledge.

Abriu a boca para falar, mas a voz lhe falhou.

Pitt estava tão enrijecido como Carvell.

Dulcie esperou.

Provavelmente Carvell diria algo antes de delatar-se. Em qualquer momento lhe ocorreria alguma coisa. Alguém tinha que dizer algo.

Pitt engoliu ar e isso pareceu devolver ao Carvell à realidade.

-Me alegro de lhe ser útil - disse desconfortável. -Em realidade é muito pouca coisa. Não o suficiente... absolutamente.

-Estou certa de que é importante - atravessou Charlotte, incapaz de suportar a tensão. -O fato de não ter que preocupar-se de aspectos práticos e poder partir quando a gente não pode agüentar mais e precisa estar só, já é muito.

Dulcie a olhou.

-É muito perspicaz, senhora Pitt – observou. -Tem toda a razão. Foi uma gentileza importante, senhor Carvell. Não permita que sua modéstia o minimize.

-Obrigado - disse ele. -Obrigado. Se me desculpar, senhora, devo me certificar de que Scarborough esteja preparado para servir. - E se foi em busca do mordomo.

Dulcie sorriu ao Pitt.

-Não sabia que fosse tão tímido. Que homem tão curioso. Mas foi muito amável, e isso é o que importa de verdade.

Interrompeu-os um grupo de pessoas que se aproximavam para dar os pêsames à Dulcie Arledge e para dizer que tinham gostado muito do serviço, em especial a música.

-Sim, o jovem Garrick tem muito talento - disse Dulcie. -Toca com mais sentimento que nenhum outro músico que conheço. Claro que não tenho conhecimentos para julgar sua técnica, mas me parece muito boa.

-E o é - concedeu sir James Lismore, olhando de soslaio ao Victor Garrick, que continuava sentado conversando com Mina Winthrop. -É uma lástima que não considere o dedicar-se a isso profissionalmente – continuou. -Mas é muito jovem e ainda pode trocar de opinião. Acredito que poderia chegar muito longe. - Voltou-se para Dulcie. -Aidan tinha boa opinião dele.

-Quem é a dama que está com ele? - perguntou ela.

-Ah, é a senhora Winthrop. Não a conhece?

-Não recordo que nos tenham apresentado. Pobre mulher. Temos muito em comum, temo. Deveria lhe dar o pêsames. - Sorriu um pouco divertida. -Acredito que o meu será especialmente oportuno.

Mas antes de que pudesse cumprir seu encargo, outros convidados se aproximaram deles e Dulcie teve que murmurar educados obrigados durante vários minutos mais. Charlotte e Pitt se desculparam e foram escutar e vigiar de certa distância aos outros convidados.

Viram lorde e lady Winthrop um ao lado do outro, falando em tom - serio com um cavalheiro idoso que levava uns óculos sem aros.

-A polícia me decepcionou muito - estava dizendo lorde Winthrop com evidente desgosto. -Eu pensava que, tendo em conta a reputação de meu filho, e seu serviço ao país, fariam algo mais para capturar ao louco que cometeu esse crime.

-Que baixeza - disse o cavalheiro. -Pensamos que essas coisas passam entre os plebeus, mas quando começam a invadir a vida de gente respeitável é que o país está em um lamentável estado. Imagino que terá falado com o ministro do Interior.

-Certamente - disse rapidamente lorde Winthrop. -Mais de uma vez! Inclusive tenho escrito ao primeiro-ministro.

-E não obteve resposta - acrescentou lady Winthrop.

-Isso não é de tudo certo, querida - a corrigiu seu marido, mas antes de poder explicar-se lhe cortou de novo.

-Ora – disse. -Não fez outra coisa que confirmar o recebimento de suas cartas. Isso não é uma resposta! Não lhe disse o que pensava fazer a respeito.

O cavalheiro de óculos estalou a língua e murmurou algo inaudível.

Pitt sorriu. Ao menos o primeiro-ministro não perdia a calma.

Serviram a comida. Lacaios e criadas iam entre os convidados com bandejas de vinho e aprimoramentos. Em todo momento o arrogante mordomo, Scarborough, fiscalizava de maneira que até o menor detalhe fosse perfeito.

Charlotte se afastou do Pitt e ficou a observar por sua conta com discrição. Falou uns minutos com Mina Winthrop, que esteve encantada de vê-la, e com a Thora Garrick, quem pelo visto tinha decidido acompanhar a Mina possivelmente para ouvir tocar seu filho.

-Me alegro de vê-la, senhora Pitt - disse Mina com um sorriso indeciso. –Se lembra da senhora Garrick, não é verdade?

-É claro - disse Charlotte. -Como está, senhora Garrick?

-Muito bem, obrigada - respondeu Thora sorrindo.

-Ouvi seu filho tocar - disse Charlotte. -Tem um talento extraordinário.

-Obrigada.

-Como vão as reformas? - perguntou Mina.

-A casa está quase terminada - respondeu Charlotte. -Pintei uma sala de amarelo, graças a seu sentido criativo.

Mina se ruborizou de prazer.

-Como está seu braço? - Charlotte a olhou com ar despreocupado, mas tratando de expressar sua intranqüilidade.

-OH, não é nada - se apressou a dizer Mina. -Em realidade não me fez o menor dano. Acredito que é uma tolice dar tanta importância aos acidentes.

Thora olhou para Charlotte com incredulidade, e depois a Mina, cujo problema era agora evidente.

Charlotte se deu conta do que acontecia.

-Eu acredito que foi uma queimadura considerável - disse. -O chá estava muito quente. Admiro sua fortaleza, mas...

Mina se relaxou o suficiente para que a cor voltasse para seu rosto e a quietude ao resto do corpo. Thora respirou ar com súbito alívio.

-Mas não a consideraria indulgente consigo mesma de ter admitido que a dor era muito aguda - concluiu Charlotte. -Não acredito que eu me tivesse levado com tal valentia. - Logo mudou de assunto, e falaram de porcelana, relógios e espelhos.

Mas quando Charlotte se desculpou continuava dando voltas na cabeça ao fato de que Thora Garrick estivesse à corrente dos machucados de Mina e que, entretanto, não parecesse afetá-la o que Mina ou Bart Mitchell pudessem estar implicados na morte do Winthrop. Era preciso que o comunicasse ao Pitt tão logo se apresentasse a ocasião.

Pediram ao Victor Garrick que tocasse de novo, coisa que fez com deliciosa melancolia. Depois, um público mais entendido em música de que estava acostumado a ter ovacionou-o sem reservas. Quase três quartos de hora depois, Emily se reuniu furiosa com o Charlotte.

-Esse homem é um completo canalha! - disse Emily com raiva contida e as faces acesas.

-Quem? - perguntou Charlotte, entre atônita e divertida. -Quem é o que tão mal se comportou para que utilize uma palavra desse calibre? Achei que as damas como você não...

-Isto não tem graça - replicou Emily. -Eu gostaria de o ver na rua mendigando!

-Mendigando? De quem diabos fala?

-Desse porco arrogante de mordomo, Scarsdale ou como se chama - respondeu Emily torcendo o gesto. -Acabo de ver uma das criadas chorando como uma madalena. O mordomo a pegou cantando e a despediu, porque isto é uma recepção de luto. Ela não conhecia o pobre homem. Como vai saber a diferença entre tocar o chelo e cantar uma triste toada? Penso pedir ao senhor Carvell que faça algo a respeito. Que volte a empregar a essa moça e ponha a esse monstro de quatro na rua.

-Não pode fazê-lo - protestou Charlotte. -Não vai despedir seu mordomo porque tenha castigado a uma criada. - Mas enquanto o dizia, Charlotte tinha a cabeça em outras coisas. O rosto do Jerome Carvell enchia sua visão interior. Certamente um homem como aquele não teria permitido que um de seus criados tratasse às pessoas daquela maneira.

Ou acaso Carvell era muito vulnerável ao mordomo que vivia em sua casa e o conhecia como só pode fazê-lo um criado?

-Charlotte - disse Emily. -O que acontece?

-Pensava. Possivelmente não seja nada. De qualquer modo não pode falar com ele. Isso não ajudaria à criada.

-Por que não? Claro que posso.

-Não! Me acredite, há razões.

-Quais?

-Boas razões, relativas ao senhor Carvell. Por favor.

-Então a empregarei em minha casa - disse Emily. -Deveria tê-la visto, Charlotte. Não penso permitir uma coisa assim.

Charlotte se dispunha a replicar quando Dulcie Arledge se aproximou sorridente, com rosto de fadiga e os ombros ainda erguidos.

-Pobre criatura - disse Charlotte em voz baixa à Emily, sem deixar de olhar para Dulcie.

-Pois eu, nas mesmas circunstâncias, não poria melhor rosto - replicou Emily, mas havia uma ambigüidade, uma vacilação em suas palavras que Charlotte não chegou a entender. De todo modo, era tarde para perguntar. Dulcie estava ali mesmo.

-Foi uma recepção muito emotiva - disse Charlotte.

-Obrigada, senhora Pitt - aceitou Dulcie.

Emily acrescentou um comentário oportuno, e antes de que Dulcie pudesse seguir com as formalidades de rigor, chegaram lady Lismore e Landon Hurlwood.

-Dulcie, querida - começou lady Lismore com afeto. -Conhece senhor Landon Hurlwood? Ele admirava muito o trabalho do Aidan, veio apresentar seus respeitos e lhe dar os pêsamess.

-Não - disse Hurlwood.

-Sim - disse Dulcie quase no mesmo momento.

Hurlwood se ruborizou.

-Sinto-o - disse em seguida. -É claro que conheço a senhora Arledge. Só queria dizer que mal fomos apresentados. Como está, senhora Arledge. Adula-me que se lembre de mim. Com certeza são muitos os que admiravam o trabalho de seu marido.

-Encantada, senhor Hurlwood - respondeu ela, olhando-o com seus grandes olhos azuis. -É muito amável por ter vindo. Agrada-me que admirasse você o trabalho de meu marido. Estou certa de que seu nome perdurará apesar dos anos.

-Não me cabe dúvida. - Hurlwood fez uma ligeira reverência, olhando-a nos olhos com expressão aflita. -Seria uma rabugice dizer quanto admiro sua dignidade ante semelhante perda, senhora Arledge?

Ela se ruborizou e baixou a vista.

-Obrigada, senhor Hurlwood, embora temo que exagera.

-Absolutamente - atravessou lady Lismore. -Não é mais que a pura verdade. E agora acredito que deveria retirar-se, foram muitas emoções. Será um prazer despedir pessoalmente aos convidados, se quiser você que o faça.

Dulcie inspirou fundo, sem olhar ao Hurlwood.

-Acredito que o agradeceria, se você não se importa - aceitou.

-Posso acompanhá-la à sua carruagem? - perguntou Hurlwood lhe oferecendo o braço.

Ela hesitou um pouco e depois, passando-se nervosa a língua pelos lábios, extenuada como seu rosto mostrava às claras, declinou o oferecimento e foi sozinha para a porta. Scarborough se adiantou para abri-la e a seguiu para avisar à carruagem e receber sua capa das mãos do lacaio.

-Uma pessoa realmente extraordinária - disse lady Lismore.

Hurlwood continuava com o olhar posto na soleira. Suas faces estavam um pouco ruborizadas.

-Com efeito – disse. -Extraordinária.

 

Lady Amanda Kilbride se dirigiu a cavalo de manhã, sozinha, ao Rotten Row. Tinha brigado com seu marido a noite anterior, lhe prometendo que no dia seguinte não a acharia em casa. Ele não pensaria que se ia definitivamente, isso estava descartado, mas sim o preocuparia sua ausência. angustiaria-se pensando que ela tivesse feito alguma tolice, inclusive que tivesse cumprido sua promessa de lhe abandonar e estivesse mantendo um romance com o primeiro homem apresentável que o pedisse.

Entretanto, à fria luz da manhã ela teve que admitir que não havia muitos homens apresentáveis à vista, e menos ainda um que convidasse a uma mulher casada a ter uma aventura. A possibilidade de que tivesse aparecido algum entre o momento de sua ameaça - por volta das nove - e quando foi se deitar fechando com chave o quarto - pouco antes da meia-noite- era remota.

Chegou ao final do Rotten Row e viu sua pedregosa superfície estendendo-se ante ela sob as árvores. Um bom galope era justamente o que necessitava. Inclinou-se um pouco e acariciou seu cavalo, animando-o com suaves palavras. O animal espetou as orelhas ao perceber a mudança de tom. Toda a manhã tinha estado esmagando-o com as injustiças recebidas. Pô-lo ao trote e depois ao meio galope.

Montava bem e sabia. Isso a fez desfrutar ainda mais do tonificante sol da primavera, das sombras longas no Row e o brilho do orvalho na erva do parque, lá ao fundo. Não se via quase ninguém nas cercanias, nem sequer no Knightsbridge, tão somente algum transeunte que retornava a casa depois de uma farra ou gente muito madrugadora como ela mesma, desfrutando da fria e nua luz do sol e da quase total solidão.

Ao chegar ao extremo, deu meia volta e galopou de volta para o Hyde Park Corner, sentindo o vento no rosto.

A três quartos de caminho pôs o cavalo ao passo. Sabia que não devia lhe oferecer um gole no bebedouro enquanto estivesse suado, mas teria se encantado em refrescar o rosto. Jogou o pé na terra, deixando as rédeas soltas e deu uns passos para o bebedouro. Inclinou-se distraídamente, pensando ainda na briga com seu marido e depois , com as mãos já na água, olhou.

A água era de uma cor avermelhada.

Retirou-se rapidamente lançando um grito. Todo o bebedouro estava turvo com um líquido muito escuro, para tratar-se de água. Havia algo dentro, algo grande que ela não podia ver bem.

-Será possível! - disse zangada. -Isto é incrível! Quem terá feito uma coisa assim? Que asco! - voltou para atrás e foi endireitar-se quando viu um objeto estranho ao extremo do bebedouro. Tão estranho era que teve que aproximar-se para ver melhor.

Por um momento não pôde acreditar. Mas quando seu cérebro registrou que era o que parecia, a mulher se desabou de bruços no bebedouro.

A água a fez engasgar-se e, em um esforço por recuperar o fôlego, endireitou-se de novo boqueando e com náuseas, a parte superior de seu corpo tinha ficado empapada, e agora estava transida de frio. O horror impedia-a de gritar, e ficou meio dobrada sobre o canto do bebedouro, em silêncio, tremendo dos pés a cabeça.

Ouviu suas costas um ruído de cascos, calhaus dispersados, uma voz de homem.

-Perdoe, senhora, encontra-se bem? Caiu do cavalo? Se me permite...

Calou de repente ao ver o objeto. -meu Deus! - O homem engoliu saliva e teve um acesso de tosse.

-O resto está ali. - Amanda indicou para a água ensangüentada, de cuja superfície aparecia agora um joelho.

Tellman olhou ao Pitt com uma sombria expressão em seu rosto de luz.

-Sim? - disse Pitt, sentado em sua poltrona, temendo algo.

-Houve outro crime - disse Tellman, olhando-o sem pestanejar. Voltou a fazer. Esta vez terá que o prender.

-É que...?

-Carvell. Outro corpo decapitado no parque.

Pitt sentiu que se afundava.

-Quem é a vítima?

-Albert Scarborough, o mordomo do Carvell. - Uma sombra de humor negro iluminou o rosto do Tellman. -Lady Kilbride o achou no bebedouro. Ou para ser mais exatos, achou o corpo incompleto. A cabeça estava um pouco mais à frente.

-O bebedouro de onde?

-Rotten Row, a uma centena de metros do Hyde Park Corner.

Pitt tratou de afastar de si o horror da morte e concentrar-se nos elementos práticos do caso.

-Um pouco longe do Green Street – observou. -Alguma idéia de como chegou até ali?

-Ainda não. Era um tipo corpulento, Carvell não pôde levá-lo nas costas.

Devem ter ido andando.

-De passeio com seu empregado a meia-noite? - disse Pitt com expressão de assombro. -Não parece o tipo de pessoa que alguém leva por prazer a dar uma volta. E como o subchefe Farnsworth não deixou de indicar, ultimamente ninguém passeia pelo parque.

-Bom, pois não foram andando - corrigiu Tellman. -Carvell o matou em sua casa e o levou em algum tipo de transporte. Talvez sua própria carruagem. Quer prendê-lo você ou o faço eu?

Pitt ficou de pé, súbitamente cansado, como se seu corpo pesasse uma enormidade. Deveria sentir alívio ante a resolução do mistério, ou do pânico que tinha provocado, em troca, não tinha a menor sensação de paz.

-Irei eu. - foi pegar seu chapéu, apesar de fazer uma esplêndida manhã. -Será melhor que me acompanhe.

-Sim, senhor.

Era muito antes das nove quando Pitt e Tellman chegaram à casa do Green Street. Pitt tocou a campaninha, mas demoraram um momento em responder.

-Sim, senhor? - Um lacaio com o cabelo desalinhado olhou-o nervoso.

-Queria falar com o senhor Carvell, se for amável - disse Pitt, mas sua voz foi uma ordem, não um pedido.

O lacaio se sobressaltou.

-Sinto muito, senhor. Não sei se o senhor Carvell se levantou já - disse a modo de desculpa. -Poderia voltar por volta das dez?

Tellman ia falar, mas Pitt se adiantou.

-Temo que não. O assunto é da máxima gravidade. Diga-lhe que o superintendente Pitt e o inspetor Tellman precisam vê-lo imediatamente.

O lacaio empalideceu. Ia dizer algo, mas trocou de opinião e se afastou sem recordar de lhes pedir que esperassem ou acompanhá-los a um lugar mais adequado que o vestíbulo.

Carvell apareceu momentos depois em roupão, com o cabelo despenteado e o rosto pálido de medo.

-O que passou, superintendente? - perguntou ao Pitt, fazendo caso omisso do Tellman. -O que o traz a estas horas?

Pitt voltou a sentir relutância e uma compaixão que já lhe era familiar.

-Sinto muito, senhor Carvell, mas temos que revistar sua casa e interrogar ao pessoal. Sei que lhe causará aborrecimento, mas é de tudo necessário.

-Por que? - Carvell estava muito nervoso, abria e fechava as mãos aos flancos, seu rosto estava branco. -O que ocorreu? É algo mau? Fale, pelo amor de Deus. É que houve outro...?

-Sim. Seu mordomo, Albert Scarborough. - Pitt teve que dar um passo à frente para sustentar ao Carvell. Agarrou-o pelo cotovelo e o conduziu para o banco de carvalho que havia um par de metros atrás dele. -Será melhor que se sente. - Olhou ao lacaio. -Traga para o senhor um cáice de brandy - lhe ordenou. Em seguida, como o jovem seguia pego ao chão que pisava, acrescentou: -apresse-se!

-Sim... sim, senhor. - O consternado lacaio desapareceu chamando com trêmula voz à governanta.

Pitt olhou ao Tellman.

-Já pode começar a revista.

Tellman, que estava esperando essa ordem, partiu na hora com uma expressão lúgubre.

Pitt olhou ao Carvell, quem parecia estar enjoado de verdade.

-Acredita que o fiz eu? - disse com voz rouca. -O noto em seu rosto, superintendente. Mas por que? Que sentido teria matar a meu mordomo?

-Acredito que a resposta é infelizmente óbvia. Ele estava em inexorável situação para conhecer suas relações com o senhor Arledge e sua possível implicação na morte do mesmo. Se assim fosse, poderia ser muito bem que houvesse você julgado prioritário, por sua própria segurança, livrar-se dele.

Carvell fez um intento de falar, mas não pôde. Olhou ao Pitt durante longos e horríveis segundos e depois , com desespero, ocultou a rosto entre as mãos.

Pitt se sentiu brutal. Ressonaram em sua cabeça as palavras do Tellman lhe reprovando sua atitude afetada, as do Farnsworth a respeito de evitar suas responsabilidades tanto para seus superiores, que tinham acreditado nele ao promovê-lo, quanto para seus ajudantes e sobre tudo para a opinião pública. As pessoas tinham direito a acreditar que o corpo de polícia de Londres era o melhor e que Pitt deixaria a um lado suas simpatias ou antipatias pessoais, seus caprichos ou sua compaixão. Tinha aceito o emprego, com as honras e recompensas que levava implícitos. Fazer menos do que dele se esperava era uma deslealdade.

Olhou ao pobre Carvell. O que tinha acontecido? Que corrente de emoções lhe tinham levado a assassinar ao homem que amava? Só podia ser certo tipo de rechaço, já fosse que o romance tinha terminado, já que Arledge tinha encontrado um substituto.

Por que Winthrop em primeiro lugar? Winthrop devia ser o outro. De algum jeito o cobrador de ônibus se inteirara, não aquela noite. E é claro o orgulhoso Scarborough também sabia. Tratou de imaginar a cena, quando o mordomo enfrentou a seu senhor, rígido como um pau, com suas majestosas pernas metidas em meias de seda, reluzente até o último botão, franzidos os lábios com desdém. Não devia imaginar que seu senhor mataria a ele também.

Mas isso era uma estupidez. Já tinha matado a três pessoas. Como pôde Scarborough dar as costas a alguém a quem tinha ameaçado e de quem sabia que tinha assassinado já três vezes? Não pôde haver resistência. Scarborough media pelo menos seis polegadas mais que Carvell. Teria-lhe ganho facilmente em um combate corpo a corpo. Teria que perguntar ao legista se o corpo do Scarborough apresentava feridas, uma punhalada no coração ou algo pelo estilo.

Tellman estaria revistando a casa. Começaria fazendo perguntas ou procuraria o lugar do crime? Ou o meio de transporte com que Carvell levou o corpo inerte do mordomo até o bebedouro? Ou a arma homicida? Certamente teria guardado a arma já desde o começo. Isso era perigoso. Estava tão seguro de havê-la escondido, ou de que ninguém a buscaria no lugar preciso? Ou que se a achavam não poderiam implicá-lo?

-Senhor Carvell.

Carvell permaneceu imóvel.

-Senhor Carvell?

-Sim?

-Quando viu o Scarborough com vida por última vez?

-Não sei. No jantar, possivelmente? Pergunte aos outros criados, eles o terão visto depois de mim.

-Fechou ele a porta ontem à noite?

-Não sei, superintendente. Ontem foi o funeral pelo Aidan. Imagina que me preocupei com saber quem fechou a casa? Poderia ter estado aberta toda a noite.

-Quanto tempo estava Scarborough a seu serviço?

-Cinco anos, não, seis.

-Estava satisfeito com ele?

-Trabalhava bem, se se referir a isso. Se me perguntar se eu gostava desse homem, direi-lhe que não. Era um ser aborrecido, mas levava a casa perfeitamente. - Olhou ao Pitt sem enfocar a vista. -Nunca tive problemas domésticos – disse. –As comidas se serviam à hora, bem cozinhadas, e as contas da casa estavam em perfeita ordem. Se alguma vez passou algo, eu não me inteirei. Tenho amigos que sempre se estavam queixando por alguma coisa. Eu não. De vez em quando era depreciativo, mas não me importava. - Um sorriso zombador apareceu em seus lábios. -Era muito bom quando tinha convidados. Sabia arrumar-se com qualquer tipo de festa ou recepção. Nunca tive que me ocupar eu mesmo de nada.

Uma criada cruzou pelo patamar, mas Carvell não pareceu perceber isso, nem dos sons ou movimentos que procediam do outro lado da porta que dava ao vestíbulo.

-Eu lhe dizia: "Scarborough, na quinta-feira de noite terei dez pessoas para jantar – prosseguiu. -Ocupe-se de tudo", e ele o fazia, e sabia propor um bom menu a preço razoável. Se fosse preciso, contratava pessoal extra, e nunca tive que suportar a gente impertinente, descuidada ou desonesta. Sim, era muito desdenhoso, mas muito bom em seu trabalho para que eu me esquecesse disso. Duvido que encontre outro como ele.

Pitt guardou silêncio.

Carvell soltou um risinho nervoso que terminou em soluço.

-Bom, se acabar na forca não terei que me preocupar.

-Matou ao Scarborough? - disse Pitt com suavidade.

-Não - respondeu Carvell com calma. -E antes de que me pergunte isso, não tenho idéia de quem o fez nem por que.

Estava destroçado e assustado. Pitt continuou interrogando-o uns minutos, mas não tirou nada que acrescentar à idéia que já tinha daquele homem. Deixou-o sentado no vestíbulo e foi ver o que tinha descoberto Tellman.

Encontrou-o no vestíbulo dos criados, um lugar bastante pequeno comparado com outros parecidos que tinha visto, mas comodamente mobiliado e com um agradável aroma de lavanda e cera para móveis. Os aromas da cozinha o fizeram notar de repente que estava faminto. O lacaio que tinha aberto a porta aguardava em posição de pé. Uma das criadas chorava com um trapo na mão, a vassoura apoiada contra a parede. A governanta estava sentada em uma cadeira de espaldar de madeira com as chaves pendendo da cintura e os dedos manchados de tinta, com uma expressão de ter encontrado no prato algo indescritível. A criada e a cozinheira não estavam. A criada de cozinha aguardava frente a Tellman com expressão chorosa e obstinada.

Tellman se voltou. Aparentemente não valia a pena seguir interrogando à moça.

-O que averiguou? - perguntou Pitt.

-Pouca coisa - disse Tellman aproximando-se dele. Seu rosto refletia certa surpresa. -Depois da recepção o pessoal passou grande parte da tarde limpando.

Os lacaios e criadas contratados para a ocasião receberam seu pagamento e partiram. Tinham despedido uma por conduta improcedente, não sei muito bem a título de que. Ninguém parecia estar à corrente. Carvell esteve fora, mas não sabem onde, embora o lacaio pensa que simplesmente queria estar a sós com sua dor.

-Dor? - repetiu Pitt.

Tellman olhou-o sem entender.

-O lacaio sabia que Carvell sentia algo pelo Arledge? - disse Pitt em voz baixa mas com obrigação.

Tellman negou com a cabeça.

-Não, acredito que não. Ao que parece qualquer morte lhe causava um grande pessimismo.

-Oh. O que tem sobre Scarborough?

-Passou a tarde em sua despensa e examinando as provisões da adega - respondeu Tellman, afastando ao Pitt dos criados, que os olhavam à expectativa.

-O jantar consistiu em um lanche frio. Carvell esteve lendo na biblioteca e se retirou cedo. Os criados se retiraram ao redor das oito. Scarborough fechou as portas às dez e ninguém o viu depois dessa hora. -Tellman se mostrou inflexível em sua convicção, sua boca era uma linha reta e dura. -Ninguém tocou a campainha, pois outros o teriam ouvido. Soa na cozinha e aqui mesmo. - Assinalou para o tabuleiro com as campainhas, numerados por aposentos.

-E suponho que ninguém forçou a entrada - disse Pitt, sem perguntar sequer.

-Não, senhor. Todas as portas e janelas estavam bem fechadas... -Tellman se deteve.

-Sim. Exceto? - urgiu-lhe Pitt.

Tellman torceu o gesto.

-Exceto a porta janela da sala de jantar. A criada afirma que lhe parece que estava aberta quando entrou esta manhã. Ou ao menos não trancada. Carvell deve ter saído por ali e ao voltar esqueceu de passar o fecho.

-Alguém o fez - concedeu Pitt. -É muito provável que Scarborough saísse também por ali, vivo e por sua própria vontade.

Tellman fez cara de ceticismo e desdém ante a indecisão do Pitt.

-Para que? - Sua mofa foi evidente. -Não pensará que o mordomo saiu para buscar uma mulher de noite. Achei que tínhamos abandonado a idéia de que tivesse que ver com as prostitutas do parque. Sabemos perfeitamente que não se trata de um louco obcecado com a fornicação, mas sim de um assassino mais que cordato que foi traído por seu amante e busca a vingança, e que logo matou a alguém que sabia e que o ameaçou de contar.

Pitt guardou silêncio.

-Ainda pensa no Mitchell? - perguntou Tellman. Isso está desconjurado. Talvez tinha motivos para matar ao Winthrop, mas não aos outros, e muito menos ao mordomo. Como ia ter Mitchell algo que ver com o mordomo do Carvell?

-A única razão de que alguém tenha matado ao Scarborough é que ele sabia algo - disse Pitt. -Mas é certo, não vejo nenhuma conexão com o Mitchell.

-Então vai prender ao Carvell?

-Revistou já a casa?

-Pois claro que não. Revistei a despensa do Scarborough e estive em seu quarto. Ali não há nada, mas tampouco tinha esperanças.

-Papéis?

-Que classe de papéis? - perguntou Tellman com surpresa.

-Se estava chantageando ao Carvell - respondeu Pitt, -deveria haver algum documento que o prove.

-Chantagem pelo do Arledge? Pode ser que só o tentasse depois do assassinato e que ontem à noite recebesse o pagamento.

-Para que esperar tanto? Faz muitos dias que mataram ao Arledge.

-Não encontrei nada, mas não pude ler todas as cartas e papéis. perguntei à cozinheira pela faca da carne, e procurei um cutelo no abrigo do jardim. Nada. A lenha a compram cortada.

-E a faca?

-Não sei. - Tellman parecia desdenhar a idéia. -A cozinheira diz que está onde está sempre. Ficou muito tinta, mas acredito que dizia a verdade. Parece uma mulher muito disciplinada, nada de gritos e essas coisas. Uma pessoa sensata. - Deu - de ombros. -Não sei o que pôde fazer com a arma. Suponho que a acharemos se pusermos a muitos homens na busca. Em minha opinião, senhor, Carvell confessará quando o metermos em uma cela e se dê conta de que não pode sair impune disto. Terá medo e nos dirá os detalhes que desconhecemos.

-Pode ser - disse Pitt, mas não achava e lhe notava na voz.

Tellman parecia estar farto das evasivas do Pitt, e não se incomodou em dissimulá-lo.

-Não há por que demorar mais! Possivelmente não sabemos todos os pormenores, mas isso é questão de tempo. Embora não possamos lhe endossar o do condutor, podemos acusa-lo de matar ao Arledge e Scarborough. - voltou-se, afastando um passo. -Tenho que pedir ajuda ou nos podemos levar em um cabriolé? Não acredito que oponha resistência. Não é desses.

-Sim - concedeu Pitt a contra gosto. -Leve-o em um cabriolé. – ia acrescentar que não forçasse a desnecessárias indignidades mas compreendeu que era estúpido dizê-lo, e que dificilmente afetaria ao modo de atuar do Tellman.

-Você não vem? - disse Tellman surpreso, zombando já com o olhar do fato de que não o fizesse Pitt em pessoa.

-Prenderei-o eu mesmo - disse Pitt. -Você o levará a delegacia de polícia.

Quero ficar para ver que mais posso averiguar.

Carvell não se surpreendeu ao vê-los voltar. Seguia sentado no vestíbulo onde o tinham deixado antes, pálido e enjoado. Levantou a cabeça ao reconhecer os passos do Pitt. Não disse nada, mas a pergunta estava em seus olhos.

-Jerome Carvell. - Pitt odiou sua própria voz ao pronunciar as palavras. A mudança de tom, a súbita formalidade pressagiavam o que se dispunha a dizer, e o rosto do Carvell adotou uma expressão intumescida, quase dolorosa, vendo seu temor feito realidade. - Prendo-o pelo assassinato do Albert Scarborough.

-Eu não o matei - disse Carvell quedamente, sem esperanças de que lhe acreditassem. Ficou de pé e estendeu as mãos. Olhou ao Pitt. -Nem aos outros.

Pitt queria acreditar nele, ou ao menos uma parte dele o queria, mas já não podia ignorar as provas.

-O inspetor Tellman lhe levará a delegacia de polícia. As algemas não serão necessárias.

-Obrigado - disse Carvell em um sussurro e, obediente, os ombros caídos e o rosto pálido, cruzou o vestíbulo com o Tellman e saiu pela porta principal. Não fez o menor intento de se soltar do inspetor. A paixão, a vida incluso, pareciam havê-lo abandonado como se tivesse recebido ao fim um golpe que esperava desde fazia tempo.

Pitt subiu ao quarto do mordomo e o registrou a fundo, não achou mais que Tellman. Voltou a descer e examinou por toda a casa, as salas de recepção, o vestíbulo dos criados, a despensa do mordomo, a sala de estar da governanta, a cozinha, o quarto da lavagem, a adega e a copa, sem achar nada de interesse. Por último foi revistar a cavalariça, onde os lacaios lhe haviam dito que Carvell guardava um cavalo e uma caleche de dois lugares que às vezes usava no verão, conduzindo ele mesmo com apreciável destreza. Cuidava do animal o menino que limpava as botas, o qual aproveitava a menor oportunidade para sair da casa, tendo em conta que havia muito poucas botas em que ocupar seu tempo. Ajudava também ao jardineiro de vez em quando, e o lodo do inverno lhe dava trabalho extra.

-Sim, senhor? - disse muito formal quando Pitt se aproximou.

-Posso ver o estábulo? - perguntou Pitt por mera formalidade. Não teria aceito uma negativa.

-Sim, senhor, como quiser - disse o menino com surpresa. -Mas não falta nada, senhor. Está a caleche e todos os arreios.

-De qualquer modo darei uma olhada.

Fazia muito que Pitt não se aproximava de um cavalo. O quente aroma do animal, o achão pavimentado, o aroma a couro e betume lhe trouxeram lembranças da propriedade onde se criou, de seus estábulos e quartos de ferramentas agrícolas, da sensação de estar montado sobre um cavalo, da força e velocidade do animal, da arte e o prazer de ser um com o cavalo. E o trabalho de depois, escovar e limpar, colocar o animal em sua baia, os músculos doloridos, e ao final a tranqüilidade. Isso fazia muito tempo. Dulcie Arledge teria compreendido, com seu amor pelos cavalos, as corridas seguindo aos cães, a extenuação do corpo, a dor que dava quase prazer.

Acariciou o cangote do animal. O menino estava atrás dele.

-Escovou-o esta manhã? - perguntou Pitt, olhando os cascos do cavalo e reparando em umas manchas de barro, umas fibras de erva pegas às cerdas da ferradura.

-Não, senhor. É que com o do senhor Scarborough e isso de que ninguém saiba o que lhe passou, toda a casa está alvoroçada.

-Escovou-o ontem à noite?

-OH, sim! Deixei-o reluzente como um penny novo, senhor. Tem umas bonitas crinas. Verdade, Sam? - disse, recebendo do animal um amigável golpe de focinho.

Pitt indicou o barro.

-Isso não estava aí ontem à noite! - disse o menino indignado. -Ouça! –Seu rosto empalideceu de repente. -Quer dizer que alguém o tirou? De noite?

-Isso parece - respondeu Pitt, olhando o chão para certificar-se de que não havia lama pisoteada, mas tudo estava imaculado. Engraxate ou não, era um cavalariço muito diligente. -Vamos ver a caleche - Girou para a garagem. O menino lhe pisava quase os calcanhares.

Abriu a porta e viu uma elegante caleche com suas varas brilhando ao sol, a pintura perfeita.

-Olha-o bem - lhe disse ao menino. -Fixa lhe no arnês. Está tal como o deixou?

O menino examinou tudo meticulosamente, cada peça de couro ou de latão, sem tocar nada. Ao final suspirou longamente e olhou ao Pitt.

-Não estou seguro, senhor. Parece que está igual, mas dessas correias não sei o que dizer. O arnês estava nesse gancho, sim, mas não acredito que as bridas estivessem como estão agora. Que conste que não posso jurá-lo!

Pitt guardou silêncio e se aproximou para olhar no interior da caleche. Estava tudo limpo, as portas asseguradas, os assentos nus.

-Usaram-no, senhor? - perguntou o menino.

-Eu diria que não - respondeu Pitt, sem saber se isso o consolava ou decepcionava-o.

Abriu o fecho e abriu a portinhola, que virou limpamente sobre suas bem engraxadas dobradiças. Olhou no estribo e viu um fio de tecido enroscado ao parafuso de sujeição. Inclinou-se para agarrá-lo com dois dedos e o desprendeu cuidadosamente. Depois o pôs à luz. Era longo e de cor clara, retorcido como um saca-rolha.

-O que é isso? - perguntou o menino.

-Ainda não sei - respondeu Pitt, mas não era verdade. Estava quase seguro de que pertencia às meias da libré de um lacaio. -Obrigado – acrescentou. -Verei se houver alguma coisa mais. Você sabe se o senhor Scarborough utilizava a caleche?

-Não, senhor. O senhor Scarborough ficava na casa. Era o senhor Carvell quem conduzia, e se mandava a alguém a um recado era para mim.

-Alguma vez põe libré?

—O moço sorriu antes de responder:

-Libré, eu? Não, senhor. O senhor Scarborough teria tido um ataque se lhe tivesse ido com essas idéias. Me teria baixado as fumaças em seguida.

-E meias tampouco?

-Não! por que? - Olhou o fio, repentinamente sério. -É de alguma meia?

-Provavelmente. - Pitt teria preferido não lhe esclarecer esse ponto, mas o tempo passava e as perguntas eram inevitáveis. Que Scarborough tivesse utilizado a caleche não teria provado nada. Colocou o fio em um cartucho de papel e este em um de seus bolsos. Era inútil dizer ao moço que não o comentasse com ninguém do serviço, mas assim tudo o fez.

-OH, não, senhor - disse o menino muito solene, e seguiu ao Pitt enquanto revistava o resto da caleche e da garagem antes de voltar para a porta posterior, indiscutivelmente cansado, como se todo o vigor lhe tivesse abandonado de repente.

Pitt não retornou ao Bow Street. Estava zangado sem motivo algum, e não queria presenciar como acusavam formalmente ao Carvell. Farnsworth estaria transbordante de satisfação e isso o teria mortificado em grau supremo. Não tinha a menor sensação de triunfo. Era uma tragédia de grandes proporções , e só lhe ocorria pensar na dor que implicava. Quando fechava os olhos podia ver o rosto amável de Dulcie, seu rosto inteligente, e a terrível comoção quando lhe comunicou que seu marido amava a outro homem. Ela tinha aceito que Aidan tivesse tido algo que ver com outra pessoa, mas o fato de que fosse um homem havia quase quebrado sua fortaleza.

E entretanto, por mais que Pitt abominasse isso, uma parte dele estava ainda sob o efeito de uma comoção, sem aceitar de todo que o culpado fosse Carvell.

Deu ao cocheiro o endereço de Nigel Uttley. Não ia servir lhe de nada, mas queria lhe dizer que sabia que era ele quem tinha agredido ao Jack Radley. Seria um grande prazer assustá-lo, e não achava que isso pudesse prejudicar ao Jack. A esse respeito, Uttley não se frearia pelo que Pitt dissesse ou deixasse de dizer.

Ao chegar comprovou irritado que Uttley não estava em casa, coisa que não deveria surpreendê-lo. Faltava muito pouco para as eleições. Podia ser que estivesse ausente todo o dia.

-A verdade é que não sei, senhor - respondeu fríamente o lacaio. -É possível que retorne para o jantar. Se deseja esperá-lo, pode passar à saleta.

Pitt hesitou um instante e depois aceitou. Esperaria exatamente meia hora. Se até então Uttley não tivesse retornado, deixaria seu cartão de visita e uma mensagem críptico com a esperança de inquietar ao máximo ao Uttley.

Durante quarenta minutos Pitt esteve passeando-se pelo austero salão, surpreendentemente confortável por sua simplicidade. Depois ouviu a voz do Uttley no vestíbulo. Estava muito surpreso.

-Pitt? E agora o que quer? Esse pobre diabo está desesperado, né? Não sei o que pensa que posso fazer eu. Vai haver mudanças na polícia assim que tome posse do cargo. Desculpe-me, Weldon. Será só um momento. - Seus passos soaram agudos no piso com incrustações de mármore até que Uttley abriu a porta da saleta e ficou na soleira, vestido com um traje claro e umas lindas botas.

-Boa tarde, superintendente. O que posso fazer por você desta vez? - Parecia divertido.

-Boa tarde, senhor Uttley. Vim lhe dizer que sabemos quem atacou ao senhor e a senhora Radley a outra noite, embora não está muito claro o motivo. – Arqueou as sobrancelhas. -Não parece que houvesse nenhum propósito razoável.

-Pensava que esta classe de delitos careciam sempre de propósito replicou Uttley, apoiando-se no batente , risonho. -Mas é uma gentileza de sua parte vir me dizer que já o resolveu. - Olhou ao Pitt e acrescentou: -Ao final era o Verdugo ou um ladrão ocasional?

-Nenhuma coisa nem outra - disse Pitt com a mesma calma. -Foi um político oportunista que pretendia tirar vantagem das tragédias destes dias com o fim de ganhar uma cadeira. Duvido que tivesse intenção de matar ao senhor Radley.

Uttley empalideceu. Continuava apoiado no batente, mas sua pose era agora forçada, rígida.

-Não me diga. - Engoliu em seco olhando ao Pitt. -Quer dizer que alguém queria desfazer-se do Radley? Assustá-lo para que renunciasse a sua candidatura?

-Pois não. - Pitt lhe sustentou o olhar. -Eu acredito que se pretendia ridicularizar a postura do Radley em relação à polícia e convertê-lo em objeto de brincadeira.

Uttley guardou silêncio.

-O que não é tão factível como poderia parecer - continuou Pitt. -Porque isso incomodou a certas pessoas muito poderosas.

Uttley engoliu saliva com dificuldade. Tinha as mãos fechadas aos lados.

-Em certos círculos - acrescentou Pitt com um sorriso. -Gente com mais influência do que alguém poderia pensar.

-Quer dizer... - Uttley se deteve em seco.

-Sim, isso mesmo - disse Pitt.

Uttley pigarreou.

-E o que pensa fazer a respeito? Eu... Bom, suponho que não tem provas, do contrário prenderia o culpado, não? A fim de contas é um delito, digo eu.

-Desconheço se o senhor Radley vai apresentar queixa - disse Pitt sem cerimônia. Isso depende dele. Posto que não deu parte disso, talvez pensa que o culpado receberá seu castigo sem necessidade de intervir pessoalmente.

-Mas você? - disse Uttley, e avançou um passo. -O que vai fazer você? Não disse se tinha provas ou não. - Agora observava atentamente ao Pitt.

-Não o disse, não é verdade?

Uttley começava a respirar melhor. Endireitou um pouco os ombros.

-Eu acredito que são todo meras conjeturas - disse, colocando as mãos nos bolsos. -Imagino que é o que você quisesse que fossem. O subchefe seria menos crítico com sua atuação.

Pitt sorriu.

-OH, em realidade o senhor Farnsworth se expressou com muita clareza.

Estava furioso.

Uttley ficou gelado.

-Mas me inclino a pensar que prefere fazê-lo a sua maneira – continuou Pitt. Essa é a razão de que não me tenha incomodado em levar as coisas ao terreno formal. A prova está aí. Do contrário não acredito que o senhor Farnsworth tivesse aceito minha palavra. Ao fim e ao cabo, é tudo tão incrivelmente incompetente. Não acha?

Uttley se obrigou a sorrir, mas lhe falharam as palavras.

-Pensei que devia sabê-lo - concluiu Pitt. -Da próxima vez que escrever um artigo, estou certo de que quererá ser mais objetivo. - Dito isto, colocou ele também as mãos nos bolsos. -Bom dia, senhor Uttley. - Passou diante dele e saiu à rua.

Pitt chegou a sua casa sem a menor sensação de júbilo. A satisfação de ter vencido ao Uttley se evaporara por completo, e não fazia mais que pensar no rosto do desconsolado Carvell. Podia vê-lo andar curvado junto ao Tellman, descer a escada com os cabelos da parte posterior da cabeça ligeiramente arrepiados.

Extranhamente, Charlotte estava em casa. Tinha estado ausente tantas vezes nos últimos meses organizando a casa nova, que Pitt esperava encontrar tudo em silencio sem outra coisa que uma nota na mesa da cozinha. Entretanto, percebeu ruído de panelas, a chaleira em marcha, entrechocar de pratos e frufrú de saias.

Quando abriu a porta, a cozinha lhe apareceu iluminada com o último sol da tarde e cheia de aroma de pão fresco, a roupa limpa pendendo do teto alto, o vapor do bule e um delicado aroma de carne assando-se no forno.

Gracie estava recolhendo as coisas do jantar das crianças e deixou os pratos em cima do aparador antes de lhe dirigir uma breve reverencia e correr ao piso de cima.

Pitt mal teve tempo de perguntar-se pelo motivo das pressas, pois Jemima se jogou para ele gritando de alegria e querendo lhe contar o que tinha feito hoje. Daniel lhe puxou a manga para lhe mostrar a corneta de papel que tinha feito.

Charlotte secou as mãos no avental e foi para ele colocando-se bem as forquilhas do cabelo. Depois, sorrindo, beijou-o . Pitt passou vários minutos prestando atenção a todos até que Daniel e Jemima partiram, satisfeitos, e por fim ficaram a sós.

-Parece muito cansado - disse Charlotte. -ocorreu algo?

Ele se alegrou de não ter que interromper suas explicações sobre a casa nova a fim de poder lhe contar suas coisas. Freqüentemente, se tinha que esforçar-se por solicitar sua atenção, depois se sentia incômodo.

-Prendi ao Jerome Carvell - disse. Sabia que lhe olhava o rosto pendente de interpretar suas emoções. Charlotte o conhecia o suficiente para imaginar que isso lhe agradaria ou lhe daria uma sensação de vitória.

-Por que? - perguntou.

Não era o que ele esperava, mas era uma boa pergunta. Pitt lhe contou todo o acontecido ao longo da jornada, incluída sua visita ao Uttley. Escutou-o em silêncio, mas para o final sorriu.

-Não tem certeza de que fosse Carvell, não é? - disse.

-Suponho que minha cabeça diz que sim, ao menos no caso do Scarborough, mas não nos outros. Não há dúvida de que era sua caleche que utilizaram para levá-lo até o parque, e tinha um motivo excelente se o mordomo lhe estivesse chantageando.

-Mas? - perguntou ela.

-Mas me é muito difícil acreditar que matasse ao Arledge. Não posso evitar pensar que o queria.

-Possivelmente matou ao Scarborough mas não ao Arledge?

-Não acredito. A única razão seria que Scarborough soubesse algo que pudesse lhe acusar. A relação em si não parece motivo suficiente, depois de tanto tempo. Certamente já estava ao par. E os criados que divulgam confidências sobre a vida privada de seus senhores não encontram outro trabalho depois. Teria que ter tirado dinheiro suficiente de sua chantagem para viver de renda. Mas... - Não havia mais que dizer.

Charlotte terminou de preparar o jantar e comeram em silêncio. Pitt subiu para ver as crianças e lhes leu um conto. Depois lhes deu boa noite, voltou a descer e foi sentar-se ao salão, pensando que apesar das vantagens de mudar-se a uma casa maior, uma casa formosa com jardim onde poderia entreter-se se em algum momento dispunha de tempo, nesta casa tinha passado momentos tão felizes, de tão boa lembrança, que sem dúvida lhe custaria abandoná-la para sempre.

Charlotte se sentou a seu lado no chão, absorta em seus pensamentos, mas isso deu ao Pitt uma sensação de paz que finalmente levou-o a dormir na poltrona, e ela teve que despertá-lo para ir deitar.

Ao meio dia seguinte Bailey entrou na delegacia de polícia do Bow Street com semblante de preocupação e quase sem fôlego, o rosto vermelho e os olhos cheios de uma estranha mescla de ansiedade e determinação.

Pitt estava abaixo com o Tellman e Grange, falando dos últimos detalhes das provas.

-Ainda terá que tentar achar a arma, ou ao menos...

-Pôde havê-la atirado em qualquer parte - argüiu Tellman.

-No rio - acrescentou-lhe Grange. -Igualmente não a encontramos nunca. Poderia estar sob o barro. A maré, sabe você?

-Pois claro que sei! - disse Pitt. -Se não me tivesse interrompido haveria dito, ou ao menos o lugar onde o mataram. Isso não pode ter mudado.

-Matou ao Scarborough onde acharam o corpo - replicou Tellman, fazendo caso omisso de Bailey, que parecia muito impaciente.

-E Arledge? - insistiu Pitt. -Onde o matou, e como o ergueu ao quiosque de música?

-Em um carrinho de mão ou algo parecido - disse-lhe Grange, tratando de ajudar.

-Que carrinho de mão? - perguntou Pitt. -A sua mão. Já o comprovou você: não havia sangue por nenhum lado. Tampouco o carrinho de mão do guarda do parque.

-Não sei -admitiu Tellman a contra gosto. -Mas o descobriremos.

-Bem! Porque de outro modo lhe dará um excelente motivo à defesa para semear uma dúvida razoável. Não há carrinho de mão, não há lugar do crime, não há arma e não há provas do motivo.

-Uma briga, o ciúmes. Utilizaram sua caleche para transportar ao Scarborough, e seu cavalo para puxar a carruagem - respondeu Tellman. - Além disso, Scarborough era seu mordomo.

-Ponha-o tudo em ordem - ordenou Pitt. -Ainda não terminamos.

Bailey não pôde conter-se mais.

-Carvell não matou ao condutor – explorou. -Esteve no concerto, tal como nos disse.

Tellman o fulminou com o olhar.

-Encontrei um que o viu - disse Bailey, desafiador. -Esteve tão perto dele como eu de você, e conhecia-o muito bem.

-Quem é? - perguntou Tellman.

-O gerente do Coutts Bank - respondeu Bailey com grande satisfação. – São banqueiros da família real.

-Pode ser que ao condutor o matasse outro - disse Tellman torcendo o gesto. -Não soubemos como encaixa em tudo isto.

-Sim - concedeu-lhe Grange. -Possivelmente não pudemos achar uma conexão porque não a havia. Pôde ser uma vingança de tipo pessoal, ou talvez quem o fez procurou que parecesse coisa do Verdugo.

-Talvez cada caso é diferente - disse Pitt. -Embora o duvido. Não, eu diria que Carvell não é o Verdugo. Obrigado, Bailey. Um excelente trabalho.

Bailey se ruborizou de orgulho.

-Obrigado, senhor.

-Não irá soltá-lo, não é? - perguntou-lhe Grange, esquecendo-se de acrescentar o "senhor".

Tellman emitiu um som de brincadeira, mas não pareceu que fosse dirigida ao Pitt em particular.

-Pois sim - respondeu este. -De qualquer modo um bom advogado nos obrigaria. Há muitas explicações possíveis.

-A caleche e o cavalo eram do Carvell - observou Tellman. -Com certeza tem algo a ver nisto.

-Scarborough podia havê-la tomado sem permissão - disse Pitt. E enquanto Tellman expressava com gestos sua absoluta incredulidade, acrescentou: -Um advogado diria o mesmo, e um jurado poderia considerá-lo uma dúvida razoável. Não é impossível roubar uma caleche , sobre tudo se contava com a conivência do mordomo, quem além disso podia dispor de chaves. Carvell não tem cavalariço.

-Ah, - disse Tellman. -E para que? Só para dar uma voltinha a meia-noite depois de passar o dia mandando fazer recados aos outros criados?

-Possivelmente tinha uma amiguinha - sugeriu Pitt. -Uma garota bonita para luzir em uma bonita caleche. É melhor que um ônibus e menos caro que uma carruagem de aluguel, além de que lhe dava maior margem de ação. Possivelmente um romântico passeio pelo parque?

-Estando o Verdugo solto? - disse Tellman com ironia. -Sim, muito romântico.

-Ou possivelmente ia em busca de uma prostituta - continuou Pitt.

Tellman olhou-o com desdém.

-Outra vez com essas? Achava que o tínhamos descartado.

-Com efeito. Mas isso não significa que qualquer advogado que ganhe seus honorários não possa apontar essa possibilidade.

Tellman se voltou para Bailey e Grange.

-Então terá que começar outra vez do zero. E o que sei eu por onde!

-Averiguando onde mataram ao Arledge - respondeu Pitt.

Tellman soltou um mostruário de blasfêmias.

Também Pitt voltou ao princípio. Fazia muitos dias que não pensava na morte do Oakley Winthrop. Aí tinha começado tudo, podia ser a raiz do ocorrido depois. Quem tinha matado ao Winthrop, por que razão e por que nesse momento? Com quem se encontrou no parque aquela noite, que se sentiu impulsionado a compartilhar um bote? A chave estava aí.

Foi um ato realmente absurdo. Só pôde tratar-se de alguém a quem conhecia, de quem nada receava. Mas mesmo assim, por que? Que razão podia ter tido alguém, inclusive um amigo, para tão ridícula atividade no meio da noite?

Bart Mitchell?

Bart e Mina?

Desembarcou do cabriolé, cruzou a calçada e bateu na porta dos Winthrop. A criada acudiu quase imediatamente.

-Boa tarde. -Estendeu-lhe seu cartão. -Seria amável de perguntar à senhora Winthrop se posso falar com ela? É um assunto de suma importância.

A moça pegou o cartão e momentos depois retornou para acompanhá-lo ao salão. Mina Winthrop estava de pé junto à janela, olhando para o jardim. Levava o cabelo recolhido em um coque, e um vestido verde escuro que quase parecia negro. Sentava-lhe muito bem, fazia jogo com sua pele clara e seu longo pescoço. Mina sorria, e de repente Pitt pôde ver nela quão jovem tinha sido vinte anos atrás.

Bart Mitchell estava junto à cornija da lareira observando ao Pitt com seus olhos azuis e intensos e expressão circunspeta.

-Boa tarde, superintendente - disse Mina com afeto, indo para ele. –Necessita mais informação? Dei voltas uma e outra vez, mas não encontro nada que pareça importante.

-Não era de seu marido que queria lhe falar, senhora Winthrop - disse Pitt. Olhou de esguelha ao Bart e saudou-o com a cabeça. -Era sobre o senhor Arledge.

Ela se sobressaltou.

-O senhor Arledge ?

-Sim. Acredito que você o conhecia, não?

-Eu... Bem, não exatamente. Eu... - Parecia confusa, e olhou a seu irmão.

-Por que o pergunta, superintendente? - Bart avançou até o centro da sala. -Não pensará que a senhora Winthrop teve algo que ver com sua morte, não é verdade? Isso seria absurdo.

-Só procuro pistas, senhor Mitchell - disse Pitt com um leve gesto de cortesia dedicado a Mina. -Uma observação, uma palavra solta no ar, uma idéia que de repente toma relevância...

-Desculpe - disse Bart. -Mas por que ia saber Mina algo pertinente sobre o Arledge? Só o conheceu de passagem em ocasião de um ou dois concertos. Duvido muito que o que você sugere pudesse haver-se dado em tais circunstâncias.

Pitt fez caso omisso.

-Conhecia ou não ao Arledge, senhora? - perguntou a Mina.

-Bem - vacilou. -Vi-o em algumas ocasiões. Sou muito aficionada à música. Ele era um músico excelente, sabe.

-Isso soube. Mas acredito que você o conhecia um pouco pessoalmente, senhora Winthrop.

Bart ergueu o queixo e olhou ao Pitt.

-O que está insinuando, superintendente? Em outro momento, essa pergunta seria inofensiva, mas já que está investigando a morte desse  homem, suas observações adquirem um tom muito diferente. A relação de minha irmã com o senhor Arledge era muito superficial, e não havia nisso nada improcedente.

-Claro que não, Bart - disse Mina com um tom de desculpa. -Não acredito que seja isso o que o superintendente tinha em mente. Não há motivo para pensar semelhante coisa. -Voltou-se para o Pitt. -Cruzamos algumas palavras e nada mais, asseguro. Se eu me tivesse fixado em algo que podia lhe ser de ajuda, não acredita que lhe teria feito avisar imediatamente? Ao fim e ao cabo, o matou a mesma pessoa que assassinou a meu marido!

-Mas Mina! - exclamou Bart. -Certamente que não havia nada improcedente. O senhor Pitt não trata de insinuar isso. O que está dizendo é que, precisamente por essa razão, você poderia saber mais do que está disposta a revelar.

-Equivoca-se, senhor Mitchell - lhe cortou Pitt, embora não fosse de tudo sincero. -Poderia haver uma conexão que a senhora Winthrop desconhece. Como você indicou antes, alguma conexão tem que haver.

Bart lhe dedicou um olhar hostil de seus extraordinários olhos.

-Senhora Winthrop? - insistiu Pitt.

Olhou-o com inocência e não disse uma palavra.

Pitt se viu obrigado a concretizar.

-Viram-na em um estado de desassossego durante uma recepção à saída de um concerto, e o senhor Arledge esteve tentando consolá-la. Você parecia confiar nele.

-OH. - Mina conteve o fôlego e olhou ao Bart, com medo e apuro de uma vez.

Bart foi situar se a seu lado.

-Quem quer que haja dito isso, superintendente, teve muito mau gosto - respondeu, tenso. -Foi um assunto doméstico sem importância, como acontece a todos alguma ou outra vez, e não pode guardar a menor relação com a morte do Arledge. Mas homem de Deus, o que tem que ver a... - hesitou um segundo - morte de um animal doméstico com esse louco saído quem sabe de onde que se dedica a cortar cabeças no Hyde Park? É ridículo. Se essas forem todas as pistas que tem, não estranho que o assassino continue em liberdade!

-É injusto, Bart - atravessou Mina. -O superintendente não podia saber que isso... que isso foi o que aconteceu. Só sabe que eu estava preocupada e que o senhor Arledge tratou de me consolar. Poderia ter sido importante. - Sorriu ao Pitt, desconfortável. -Lamento que isso não lhe sirva de nada. Temoque terá que procurar em outra parte. O senhor Arledge estava sendo amável comigo porque a música me tinha comovido muito. Com certeza teria feito o mesmo por qualquer outra pessoa. Nossa relação não foi mais à frente. Ele não me disse nada que possa jogar luz sobre a causa de sua morte. Em realidade não posso recordar o que me disse. Tudo foi muito geral.

Hesitou como se fosse a acrescentar algo, e depois olhou nervosa a seu irmão.

-Conhecia ao senhor Arledge? - perguntou Pitt ao Bart Mitchell.

-Não! - atravessou Mina, ruborizando-se por sua precipitação. -OH! Sinto muito. Queria dizer que Bart voltou muito recentemente do estrangeiro.

-Quando ocorreu aquele incidente, senhora?

Ela empalideceu.

-Eu... pois não o recordo, Faz algum tempo.

-Antes dos hematomas no pulso?

Houve um momento de silêncio absoluto. O relógio junto à janela soou como lenha chispando ao fogo.

-Isso foi outro dia - disse fríamente Bart. -Um acidente com o chá. Uma criada torpe que não olhou por onde ia. - Seus olhos azuis perfuraram ao Pitt com ira e desafio. -Isso já sabia você, superintendente.

-Disse os hematomas, senhor Mitchell - replicou Pitt sem pestanejar.

-Foi minha culpa! - disse Mina. -Asseguro, eu... - Se voltou para o Pitt. Toda segurança em si mesma tinha desaparecido. Mostrava-se assustada. –Estava fazendo tolices e meu marido me segurou para evitar que caísse. Eu já tinha perdido o equilíbrio, e então...

Bart parecia a ponto de explodir por alguma emoção que não se atrevia a revelar. Seu rosto tinha avermelhado de ira.

-E ele, ao fazer força, eu, com o peso... - balbuciou Mina. -Em realidade não foi nada, e só eu tive a culpa.

-Não é verdade! - Bart acabou perdendo o controle sua voz tremia e soava muito grave. - Deixa de se culpar por... - Se deteve e abraçou Mina como se não fizesse ela poderia cair. -Superintendente, tudo isto não tem a menor relação com suas pesquisas. Aconteceu muito antes da morte do Arledge e nada tem que ver com ela. Receio que nenhum dos dois o conhecia pessoalmente, e embora nós gostaríamos, não podemos ajudá-lo. Que tenha um bom dia, senhor.

-Entendo. - Pitt não acreditou nele, como menos ainda acreditava em Mina, mas não podia demonstrar nada. Estava seguro de que Oakley Winthrop tinha batido em Mina freqüentemente, e que ela tinha medo de que quando Bart o viu decidisse matar ao Winthrop, ou que a polícia pudesse pensar isso. -Obrigado por seu tempo, senhora Winthrop – disse. -Senhor Mitchell. - E fazendo uma ligeira reverência, mas sem dar a entender que acreditava em sua versão, despediu-se deles.

 

E chegou o dia da mudança. Como o Verdugo continuava solto e o mistério igualmente insondável, Pitt só pôde ajudar poucas horas. Tinha contratado a uns operários para que transladassem os móveis, e Charlotte tinha passado a tarde anterior envolvendo copos, taças e pratos em papel de jornal e colocando-os em caixas.

Empacotaram toda a roupa, os tapetes tinham levado pela manhã e agora ia todo caminho da casa nova, cuja decoração estava por fim terminada. Os ladrilhos em torno da lareia tinham sido trocados, todos os acendedores reparados e funcionando à perfeição, as telas estavam inteiras, até o último arremate de friso tinha sido arrumado ou substituído, e a pintura e o papel de parede estavam perfeitos.

Agora que era uma realidade, as crianças se davam conta do que significava mudar-se. Um mundo novo cheio de excitação e aventuras. Ao levantar-se aquela manhã, Daniel se tinha posto a saltar e não tinha deixado de fazer perguntas, não ter obtido muitas respostas não tinha embaciado seu ânimo.

Jemima estava muito calada. Sendo dois anos mais velha, havia-lhe custado menos tempo dar-se conta de que aceitar o novo significa indevidamente renunciar ao velho, com a incerteza que isso supõe. Tinha arrebatamentos de entusiasmo e curiosidade, seguidos de cumpridos silêncios quando contemplava os aposentos, que agora se viam nus e como abandonadas sem as cortinas, os quadros ou os móveis de sempre. Quando recolheram os tapetes foi como se tivessem tirado o chão mesmo, e esteve vários minutos um pouco chorosa enquanto Gracie tratava de consolá-la, lhe dando uma série de instruções que Jemima foi incapaz de cumprir.

Entretanto, às dez e meia, Gracie e as crianças tinham montado no cabriolé com Pitt, apertados em seus estreitos assentos. Charlotte não poderia acompanhá-los, além do fato de que eles tinham partido primeiro a fim de abrir a casa e dispor-se a receber os volumes assim que chegassem. Charlotte tinha ficado na casa velha esperando que carregassem tudo, e assegurando-se que nada ficasse esquecido ou extraviado, até que o passaram o ferrolho na porta pela última vez.

Depois de repetir aos encarregados da mudança o endereço da nova casa, Charlotte pegou suas duas almofadas bordadas à mão, que eram muito boas para confiar aos operários e muito grandes para colocá-las em caixas. Decidiu envolvê-los em um lençol velho, fechou uma vez mais a porta principal e hesitou um momento, olhando em redor.

Depois se encheu de coragem e se dirigiu para a grade pelo caminho particular. Não havia tempo para pensar nos bons momentos passados naquela casa, e tampouco nos maus. As lembranças não podiam ficar atrás. Formavam parte de uma pessoa, levava elas no coração.

Cruzou a grade, fechou-a e se dirigiu à parada do ônibus, com as almofadas envoltas no lençol. Parecia que levava uma trouxa de roupa lavada, e se alegrou de não topar com nenhum conhecido.

O ônibus chegou em cinco minutos e ela se dispôs a subir com o fardo nas costas.

-Sinto muito, senhora, mas não pode subir com isso - lhe disse o cobrador.

Plantou-se diante dela, adiantando o queixo, com seus botões de reluzente latão e expressão de altiva autoridade.

Charlotte olhou-o, pega em surpresa.

-Terá que descer! - disse o homem. -Se pensa que todas as lavadeiras do Bloomsbury subam com a roupa lavada, não ficará lugar para ninguém mais.

-Isto não é roupa lavada - respondeu Charlotte indignada. -São almofadas.

-Dá na mesma o que são - replicou o homem. -Por mim é como se fosse a camisola da rainha. Não pode subir com isso. Não há lugar. Agora seja boa garota e desça para que possamos seguir nosso caminho.

-Estou-me mudando de casa! - disse Charlotte desesperada. -Meu marido e meus filhos já foram para lá. Tenho que me reunir com eles.

-Não o duvido, senhora, mas será em outro veículo, neste não! O que acreditou que é isto, um caminhão? - Assinalou a calçada. -Desça de uma vez antes que chame à polícia e a detenham por alvoroçar.

Um passageiro se aproximou, era um cavalheiro idoso com bigode e bengala negra.

-Deixe subir a esta pobre mulher - disse ao cobrador. -Se o levar sobre os joelhos não ocupará muito lugar.

-Sente, senhor, e não se meta onde não lhe chamam - lhe ordenou o cobrador. -Já me ocupo eu disto.

-Mas...

-Sente-se, toco! - gritou uma mulher do fundo. -Meta-se em seus assuntos! Ele já sabe o que se faz. A gente não pode subir aqui com a roupa lavada, é só o que falta!

-Ela diz que não é roupa lavada - objetou o cavalheiro.

-Vá sentar se, senhor - interrompeu-o o cobrador, -ou terá que descer também. Temos um horário que cumprir, se souber! - Olhou Charlotte. -Ouça, senhora, vai descer sozinha ou tenho que chamar a policia e que a acusem de alterar a ordem pública?

Charlotte estava muito furiosa para falar. Soprou com raiva e desceu da plataforma. Só pensou em agradecer ao cavalheiro que tinha tentado ajudá-la quando já era tarde e o ônibus tinha partido, fazendo cair o homem sobre o cobrador. O condutor açulou aos cavalos e estalou seu látego por cima das garupas, fazendo-os avançar. Charlotte ficou sozinha na calçada, com suas almofadas e furiosa.

-Mas onde demônios estava? - disse Pitt quando ela chegou por fim, acalorada, desarrumada, com o cabelo desalinhado e as faces ardendo de ira enquanto segurava as almofadas com mãos crispadas.

-Em uma carruagem de aluguel. Esse porco atordoado não quis me deixar subir no ônibus!

-O que? - Pitt estava perplexo. -Do que está falando? Os operários já descarregaram quase tudo.

-O grande impertinente, altivo e arrogante não me deixou subir com as almofadas - continuou ela, furiosa.

-Por que? - Pitt se deu conta de que Charlotte estava fora de si, mas não via o motivo. -Explique-se. Não era um ônibus normal?

-É claro que era! Mas esse presumido caipira achava que as almofadas eram roupa lavada, e não me deixou subir. Ameaçou inclusive chamar à polícia e que me detivessem por alterar a ordem!

Pitt torceu o gesto, mas depois de um breve silêncio em que a expressão desafiou-o a tomar-lhe a brincadeira, fez um esforço por mostrar-se compassivo.

-Sinto muito. Me dê as almofadas - disse estendendo a mão.

Ela o fez.

-Onde estão os operários? Não os vejo.

-Foram a almoçar. Voltarão dentro de meia hora para descarregar o resto. Gracie está na cozinha. - Deu uma olhada ao redor. -Isto é realmente bonito. Fez um magnífico trabalho.

-Lisonjeador - disse ela, mas estava desejando sorrir e ficou a olhar também. Pitt tinha razão, a sala tinha ficado muito bonita. - Onde estão as crianças?

-No jardim. Há um momento atrás, Daniel subiu na macieira e Jemima tinha encontrado um ouriço e estava falando com ele.

-Bem. - Charlotte sorriu a seu pesar. -Acha que gostarão?

A expressão dele respondeu à pergunta sem necessidade de palavras.

-Viu o quarto verde? Será nosso dormitório. Venha, mostrarei-lhe.

Pitt ia dizer que não tinha tempo, mas mudou de opinião. E tão logo estiveram acima se alegrou de havê-lo feito. O quarto transbordava paz, era um remanso afastado das pressas e do bulício da rua. O vento agitava as folhas das árvores que se viam pela janela e a luz brincava nas paredes. Não se ouvia nada. Olhou para Charlotte com um sorriso. Ela estava na expectativa.

-Sim - disse ele com sinceridade. -Em minha vida nunca tinha estado em um quarto mais bonito.

No dia das eleições houve chuvaradas com repentinas aparições de um sol brilhante. Jack saiu tão logo terminou de tomar o café da manhã e Emily não foi capaz de ficar em casa com a alma inquieta, embora soubesse que não podia ajudar em nada e agora nenhum apoio moral bastava para aquietar o nervosismo.

Nigel Uttley também saiu cedo. Sorria muito confiante e esteve conversando com amigos e partidários seus, mas observando-os atentamente se podia ver que uma parte de sua jactância anterior tinha deixado lugar a uma ansiedade que se deixava ver de vez em quando.

Os homens com direito a votar foram às urnas e deixaram suas papeletas. Saíam sem olhar a ninguém e se afastavam com pressa.

A manhã transcorreu devagar. Emily foi de um lado a outro com o Jack tratando de pensar em algo que lhe animasse mas sem dar esperanças vãs, já que o triunfo não era seguro. Mas enquanto observava o ir e vir dos homens, pegou no ar retalhos de conversa que a induziram a pensar que Jack podia sair vitorioso.

Porque só podia ganhar ou perder. Amanhã seria membro do Parlamento, com toda a responsabilidade, o trabalho e as possibilidades de fama que isso comportava, ou seria o perdedor, sem posição alguma. Neste caso, Uttley estaria ali sorridente, seguro de si mesmo. Ela teria que consolá-lo, ajudá-lo a acreditar em si mesmo outra vez, procurar algum motivo de ilusão, alguma outra causa pela que trabalhar e preocupar-se.

Por volta das duas estava emocionalmente esgotada, e ainda tinha diante toda a tarde. Por volta das cinco começou a acreditar que Jack podia ganhar e seu ânimo se enchia de esperança, mas logo caía em picado, presa do desespero.

Ao encerramento das mesas eleitorais Emily estava rendida e suja, e os pés a torturavam. Retornaram a casa em silêncio, em um cabriolé. Nenhum dos dois sabia o que dizer agora que a batalha tinha terminado e só restava esperar a notícia da vitória ou derrota.

Uma vez em casa jantaram um pouco sem desfrutar da comida. Emily não soube o que tinha sido, achava recordar um pedaço de salmão no prato, mas não se era esquentado ou defumado. Não deixou de olhar o relógio do aparador, perguntando-se quando acabaria a recontagem e conheceriam o resultado.

-Você acha...? - começou, justo quando Jack ia falar.

-Perdão - disse ele. -O que ia perguntar?

-Nada. Não tem importância. E você?

-Só ia dizer que isto vai longe. Não é preciso que...

Emily fulminou-o com o olhar.

-Está bem - se desculpou ele. -Só pensava que...

-Pois não pense. É absurdo. Esperarei até que tenham contado a última papeleta.

Levantou-se da mesa. Eram nove e quinze.

-Bom, mas ao menos vamos ao salão. Ali estaremos mais confortáveis.

Emily aceitou com um sorriso. No momento de sair da sala de jantar, Harry, o mais jovem dos criados, apareceu na arcada sob a escada, com o cabelo revolto e as faces avermelhadas.

-Ainda estão contando, senhor! - disse sem fôlego. -Acabo de vir de lá. Acho que já falta muito pouco, e eu diria que os dois montões estão muito igualados. Talvez você ganhe senhor! O senhor Jenkins diz que sim!

-Obrigado, Harry - disse Jack em um tom de voz quase equânime. –Mas acredito que Jenkins fala mais por lealdade que por conhecimento de causa.

-OH, não, senhor - respondeu Harry com incomum confiança. -Todos os criados pensam que o senhor ganhará. Que o senhor Uttley não é tão preparado como se acreditava. A cozinheira diz que desta vez exagerou mais da conta. E além disso não é casado, o que segundo a senhora Hedges faz que seja um homem muito procurado por ricas damas com filhas, mas não tão de confiança como um homem casado. – Estava vermelho de excitação, mas se mantinha erguido e com as costas retas.

-Obrigado - disse Jack muito sério. -Espero que ninguém se sinta decepcionado se saio derrotado.

-OH, não, senhor - disse alegremente Harry. –Claro que ganhara! - E dito isto deu meia volta e transpassou a porta de tecido verde para voltar com o resto dos criados.

-Vá por Deus - suspirou Jack, indo para o salão. -Isto lhes vai sentar muito mal.

-A todos - disse Emily, entrando no salão. -Mas não vale a pena lutar por nada se consegui-lo não te importa o suficiente.

Jack fechou a porta e ambos se sentaram, muito juntos, tratando de pensar em outra coisa enquanto os minutos transcorriam e a agulha do relógio de ouro passava das dez às onze. estava-se fazendo muito tarde. Logo haveria um resultado. Ambos eram conscientes disso e procuravam não dizer nada. Sua conversa foi fazendo-se mais e mais esporádica.

Por fim, às onze e vinte, Jenkins apareceu na porta, acalorado, balbuciando palavras com uma emoção transbordada e insólita nele.

-Senhor... senhor Radley. Já há recontagem, senhor! Quase terminaram. A carruagem está preparada. James lhe levará agora mesmo à sala. Senhora...

Jack ficou em pé de um salto e deu um passo antes de voltar-se para ajudar Emily, mas esta se levantara já. As pernas lhe tremiam.

-Obrigado - disse Jack com menos calma do que pretendia. -Sim, obrigado. Iremos. - Estendeu a mão a Emily e se dirigiu para a porta sem incomodar-se em agarrar sua jaqueta.

Viajaram em silêncio, inclinados para frente como se pudessem ver alguma coisa, embora não havia mais que o passar das luzes e as luzes em movimento de outras carruagems que se apressavam também naquela tumultuosa noite.

Ao chegar à sala onde se celebrava a recontagem de votos, desceram da carruagem e subiram a escadaria com o coração na mão. Sua entrada provocou um silêncio geral. As pessoas os olhavam, ouviu-se um murmúrio de nervosismo. Só ficavam encarregados da recontagem, que revisavam os maços de papel encurvados sobre uma mesa.

-É a terceira vez! - sussurrou nervoso um homem baixo.

Emily aferrou com tal força o braço do Jack que este deu um pulo, mas não o soltou.

Ao fundo da sala estava Nigel Uttley, carrancudo, pálido e tenso. Ainda confiava em ganhar, mas não tinha previsto que fosse por tão pouco. Achava que a vitória ia ser fácil. Seus partidários estavam apinhados em grupos nervosos, lançando olhares às mesas e às pilhas de papeletas.

Também os partidários do Jack estavam ali, mas ao não ter pensado que podiam ganhar, a possibilidade lhes parecia agora muito real. A sorte estava lançada, em qualquer momento se saberia o resultado.

Emily deu uma olhada para calcular quanta gente havia ali reunida, e ao passear o olhar de um grupo a outro viu um reflexo de cabelos de prata sobre  uma altiva cabeça.

-Tia Vespasia! - exclamou com assombro. -Olhe, Jack! - Puxou-o pela manga. -Veio a tia avó Vespasia!

Jack se virou, e na hora seu rosto se iluminou com um sorriso. Abriu passagem para ela.

-Tia Vespasia! Quanto me alegro de vê-la aqui!

Ela o olhou com olhos serenos e divertidos, mas suas faces mostravam uma vermelhidão de excitação.

-Onde ia estar se não aqui –disse. -Não pensará que podia perder isto?

É que... é um pouco tarde - disse ele com apuro. -E poderia ser que eu não ganhasse.

-Claro que pode. Seja como for, terá liderado uma excelente batalha. Terá visto que sabe te defender.

-Seu olhar despedia um brilho belicoso.

Jack ia acrescentar algo quando a sala ficou imersa em um súbito silêncio e todo mundo se voltou para ver que o funcionário ficava de pé.

Produziu-se um instante de grande espera enquanto o homem procedia aos preâmbulos formais, saboreando pausadamente o dramatismo do momento. A seguir anunciou que por uma margem de doze votos, o membro do Parlamento para aquele distrito eleitoral seria John Henry Augustus Radley.

Emily lançou um grito de júbilo. Jack boqueó de surpresa e soltou o ar em um larguísimo suspiro. Nigel Uttley ficou parado, sem acreditar de tudo.

-Parabéns, querido. - Tia Vespasia se voltou para o Jack e lhe deu um beijo na face. -Com certeza o fará maravilhosamente bem.

Ele se ruborizou de felicidade, muito coibido e emocionado para responder.

A celebração se levou a cabo na tarde seguinte. Foi algo bastante improvisado pois Emily não tinha posto nisso seu esmero habitual. Em realidade, não pensou que teria que celebrar nada. Naturalmente, os que tinham colaborado na campanha foram convidados, esposas incluídas, assim como todos os que tinham dado seu apoio. É claro, também estava a família do Jack, que em realidade era família de Emily.

Charlotte e Pitt aceitaram imediatamente. Recebeu uma encantadora nota de Caroline, sem especificar se assistiria ou não.

A festa começou cedo, à medida que ia chegando gente exaltada pela vitória. Todo mundo falava ao mesmo tempo, tudo eram idéias novas e esperanças de mudança.

-Só mudou um parlamentar - dizia Jack, tratando de ser modesto e procurando não perder a perspectiva das coisas. -Isso não muda o governo.

-É claro - concedeu Emily, muito perto dele e com um grande sorriso. –Mas por algo se começa. É uma mudança na maré. Uttley está que gorjeia.

-Certamente - confirmou alegremente uma mulher obesa, com uma taça de champanha na mão e pondo em perigo aos que passavam perto dela. -Bertie diz que face ao que veio dizendo a imprensa, isto o pegou totalmente despreparado. Estava convencido de que ganharia.

Bertie, que só atendia pela metade, voltou-se para o Jack com uma expressão grave em seu rosto bonachão.

-Certo, moço, Uttley estava verdadeiramente zangado. -Mordiscou um canapé. -Tem um inimigo difícil, Jack. Eu se fosse você guardaria-me muito dele.

Momentaneamente, a conversa ficou inundada sob o bate-papo, o ruído de taças, roçar de tecidos e esfregar de solas no piso.

-Mas querido - disse a esposa do Bertie tão logo pôde fazer-se ouvir. –Não me cabe dúvida de que pensou que podia perder. Qualquer que participe de uma competição sabe que alguém deve perder.

-Uttley não achava que seria o perdedor. - Bertie ficou ainda mais sério. –E não se trata de perder uma cadeira que ele considerava de sua propriedade. Soube que perdeu muito mais.

Sua esposa não compreendia.

-Que mais? Explique-se, querido. Não o entendo.

Bertie fez caso omisso e seguiu olhando ao Jack.

-Em tudo isto há coisas que me escapam, há grandes poderes em ação, já me entende... Às vezes se ouvem coisas, mas terá que estar no lugar certo e no momento apropriado. Há pessoas -Hesitou, olhando de esguelha a Emily, e depois outra vez ao Jack. -Pessoas que estão por trás das pessoas que alguém conhece.

Jack guardou silêncio.

-Grandes poderes? - disse Emily, e na hora o lamentou. Em sua qualidade de mulher, supunha-se que não devia falar daquelas coisas, menos ainda tratar de compreender, embora fosse pela metade, o que Bertie dizia.

-Bobagens - cortou a mulher do Bertie. -perdeu porque as pessoas preferem Jack. Não pode ser mais simples. A verdade, está vendo mistérios onde não os há.

-É claro que os votantes preferiam ao Jack - disse Bertie com paciência, bebendo de sua taça. -Mas não foram eles quem deu bola negra ao Uttley em seu clube. - Olhou significativamente ao Jack evitando a cabeça de sua mulher. –Você ande com olho aberto, isso é tudo. Estão acontecendo muito mais coisas do que vemos. E os que têm autêntico poder nem sempre são os que alguém supõe.

Jack assentiu com expressão séria, mas o sorriso não desapareceu de seus lábios.

-Bom, tome um pouco mais de champanha. Merece isso mais que ninguém.

Terminadas as felicitações, os brindes e agradecimentos, Emily pôde por fim aproximar-se de Charlotte.

-Tudo bem? – disse. -Nem sequer tive tempo de lhe perguntar como foi a mudança. É confortável a casa nova? Já sei que ficou muito bonita. – Olhou apreciativamente o vestido verde escuro de sua irmã. Levava os ombros acentuados, muito na moda, com um delicado adorno de penas. -Já o ordenaste tudo? – Mas antes que Charlotte pudesse responder, sua expressão mudou. -Há notícias do Verdugo? É certo que Thomas prendeu a alguém e logo teve que soltá-lo? Ou é uma patranha?

-Não, é certo - disse Charlotte, movendo-se um pouco para dar as costas a um grupo de ruidosos convidados. -Prendeu o Carvell depois da morte de seu mordomo, mas um de seus homens descobriu que Carvell tinha álibi para o dia em que o condutor foi assassinado, assim teve que deixá-lo em liberdade.

Emily fez expressão de estranheza.

-E por que pensou que era Carvell? Quero dizer, o que o convenceu para prendê-lo? Esse seu mordomo era um canalha. - Pronunciou a palavra com sanha. -Com certeza fez um montão de inimigos. Se eu tivesse tido algo que ver com ele, asseguro-lhe que não me teriam faltado vontades.

-Não exagere - disse Charlotte. -Era um pouco mandão, sim, e ludibriava com a mera expressão de seu rosto.

-Despediu aquela garota só por cantar - protestou Emily com rancor. -Que brutalidade. Usava sua autoridade para humilhar a outros, o que é indesculpável. Era um fanfarrão. Eu não desejaria que o decapitassem, mas já que ocorreu, não posso dizer que me dê nenhuma pena.

Pitt se tinha aproximado com um prato de canapés doces e salgados para Charlotte. Era evidente que tinha captado o último comentário. Estava divertido.

-Não a tinha na lista de suspeitos - disse. Logo ficou sério. -Parabéns, Emily. Me alegro muito por vocês dois. Espero que seja o início de uma próspera carreira política.

Ouviram gargalhadas do outro lado do salão e alguém lançou vivas.

-Com certeza que sim - disse Emily com menos convencimento que determinação. -De quem suspeita? - perguntou sem mais. -Supõe que no fim de contas o cobrador nada tinha que ver com os outros?

-E que lhe matou outra pessoa? - Pitt arqueou as sobrancelhas. -Por que?

Emily deu de ombros e disse:

-Não sei.

-Possivelmente era um grosseiro e um porco, como o que me fez descer do ônibus o outro dia - disse Charlotte com rancor. -Se alguém lhe tivesse cortado a cabeça eu não o teria lamentado muito.

Emily a olhou com curiosidade e desconcerto.

-Do que está falando?

-Oh. - Charlotte fez uma careta. -O grande miserável, o grande... – Não achou palavra pior. A raiva a acendia por dentro, e sua memória fervia de pura humilhação.

Emily aguardava, e inclusive Pitt a estava olhando com súbito interesse, como se a história tivesse tomado um novo significado.

-O grande porco - terminou Charlotte. -Não me deixou subir ao ônibus porque levava duas almofadas grandes envoltas em um lençol. Achava que levava a roupa limpa!

Emily rompeu a rir.

-Perdoa - se desculpou. -A verdade é que... - O resto se perdeu entre as risadas de imaginar a situação.

-Grandes fumaças se dava - prosseguiu Charlotte, ainda indignada. –Teria feito algo por poder amassá-lo de algum jeito. - estremeceu-se. -Não sabe que mal se comportou com o homem que se levantou para me dar uma mão. Imagina? - Olhou de esguelha ao Pitt, que estava absorto em seus pensamentos. -Vá, não está escutando! Acha que são minhas tolices!

Um criado lhes ofereceu uma bandeja de canapés e cada qual tomou um.

-Não -disse Pitt-. O que acredito é que a maioria das pessoas reagem assim. Você fez o que as pessoas estão acostumadas fazer...

-Eu não fiz nada - protestou ela. -Tomara o tivesse feito, mas não me ocorreu o que.

-Exatamente. Voltou para casa jogando pragas, mas não fez nada.

Emily olhou-o intrigada.

-O cobrador de ônibus... - disse lentamente Charlotte, começando a compreender. -OH, não! Isso é absurdo! Ninguém lhe corta... - Calou de repente.

Uma dama gorda passou por seu lado a ponto de atirar os canapés com a manga do vestido. Alguém riu com estridência.

-Pode ser que não. - Pitt franziu o sobrecenho. -Possivelmente seja uma tolice. Mas tem que haver uma razão, algo de tipo pessoal. - Olhou a Emily. -Bom, isto é uma festa. Falemos de vocês e de seu triunfo. Quando toma Jack posse da cadeira? Sobre o que versará seu discurso inaugural, decidiu-o já?

Passaram a falar de política, do futuro e dos planos do Jack.

Teve que transcorrer mais de uma hora até que Charlotte dispôs de uns momentos a sós com Pitt para trazer à tona o assunto do Verdugo. Apesar de que estava muito contente por Emily e Jack, começava a dar-se conta de quão difícil a situação se tinha posto ao Pitt e a seu agora muito ameaçado cargo de superintendente.

-O que pensa fazer? - perguntou-lhe em voz baixa para que a mulher da saia a quadros e o tom entusiasta não pudesse ouvi-la. Como Pitt pareceu não entender, acrescentou: -Se não foi Carvell, quem pode ter sido?

-Não sei. Possivelmente Bart Mitchell. Tinha razões de sobra para matar ao Winthrop, e possivelmente também ao Arledge, se interpretou mal os cuidados que dispensava a Mina. Mas não me ocorrem motivos para o do Yeats e logo Scarborough, a menos que soubessem algo. Deve ser um homem muito violento. Sua experiência na África, a vida e a morte cotidianas… - Deixou a frase em suspense.

-No fundo não acredita que seja ele, não é?

-Não me parece - respondeu Pitt. Saudou um conhecido e prosseguiu. -Em realidade não conhecemos seus movimentos, nem a data exata de sua volta da África. É muito possível que não conhecesse bem ao Winthrop até muito recentemente. É claro, Mina está envergonhada e faz o que pode por ocultá-lo. É como se acreditasse que ela tem a culpa. - Sua voz adotou um tom duro e irado. –Não é a primeira mulher maltratada que vejo. Todas parecem tomar a culpa a si mesmas. Faz anos, quando era guarda e ia por alguma briga doméstica, costumava achar à mulher sangrando e meio morta, mesmo assim, estava convencida de que a culpa não era do homem. Em situações assim as mulheres perdem toda esperança, toda confiança, inclusive os mínimos traços de dignidade. Normalmente é pela bebida, em geral o uísque.

Charlotte o contemplou aterrada ante aquele mundo que se abria ante ela. Recordou a vergonha de Mina, sua falta de confiança desde a morte do marido. Agora parecia evidente, o único estranho era que tivesse demorado tanto em chegar a seu trágico clímax.

-Mas isso não explica por que matou ao Arledge - prosseguiu Pitt. -A não ser que Mina soubesse que tinha matado ao Winthrop e de algum jeito o dissesse ao Arledge, sem querer, claro.

-Sim - disse Charlotte. -Poderia ser assim. Mas por que o cobrador e depois o mordomo? Ou é que o mordomo tentou chantagear ao Carvell pensando que tinha matado ao Arledge, e então Carvell matou-o para silenciá-lo porque não podia demonstrar sua inocência?

Pitt sorriu.

-Um pouco gasto pelos cabelos – disse. -Mas encarreguei ao pobre Bailey que comprove que Carvell esteve efetivamente no concerto. Quero provas concludentes, irrefutáveis.

-Tem dúvidas?

-Não sei. - Parecia cansado e confuso. -Suponho que minha mente as tem.

Várias pessoas próximas a eles levantaram suas taças para fazer um brinde. Uma mulher envolta em renda de cor pêssego o fez com tal exuberância que sua voz soou como um chiado.

-Mas não seu coração - disse Charlotte.

-É um pouco absurdo pensar com o coração - respondeu Pitt com um sorriso. –Eu prefiro o instinto, que provavelmente não é mais que uma série de lembranças sob a superfície da memória que formam essas opiniões para as quais não podemos aduzir uma razão.

-No final é o mesmo. Você não acha que o fizesse ele, mas não está seguro. Emily diz que esse mordomo era um canalha. Despediu uma pobre moça só porque estava cantando. E o que é imperdoável é que ele devia saber o que significava perder esse trabalho. A pobre garota dificilmente ia achar nada mais. Morreria de fome! - Seu tom se agudizava à medida que se deixava levar pela ira.

Pitt lhe pôs uma mão no braço.

-Não disse que Emily lhe ia oferecer um posto como criada?

-Sim, mas isso não conta. - Estava muito indignada para serenar-se. -Scarborough não podia sabê-lo. E se não tivesse estado ali Emily, ela se teria ficado na rua. Esse Scarborough era um indesejável.

Pitt franziu o sobrecenho.

-Fez isso em público?

-Não, bem, mais ou menos – respondeu. -Em um canto, perto da cadeira onde estava sentado Victor Garrick com seu chelo, esperando o momento de tocar.

-Sim, tem razão. Foi cruel e arbitrário: um homem capaz de fazer chantagem...

Interrompeu-os Emily aproximando-se com um revôo de seda verde maçã e recamado de pérolas.

-Mamãe não veio ainda - disse nervosa. -Será capaz de não vir? A verdade, eu não gosto nada. Parece que ultimamente só pensa em si mesma. Estava convencida de que viria, já que Jack ganhou. - Desprezou com um gesto da mão outra taça de champanha, e o lacaio passou ao largo.

-Ainda há tempo -disse Pitt sem a menor convicção.

Emily olhou-o mas guardou silêncio.

Pitt se desculpou e foi falar com o Landon Hurlwood, que tinha apoiado ao Jack e se somou à celebração. Estava à vontade e relaxado, ia de grupo em grupo cheio de vitalidade e otimismo. Seus cabelos como de estanho brilhavam sob o lustre.

-Landon nos ajudou muito - disse Emily, vendo que saudava o Pitt com evidente prazer. -É um bom homem. Nunca lhe tinha visto tão ditoso desde que morreu sua esposa, pobrezinha. Padeceu uma longa enfermidade, sabe. De fato nunca achei que estivesse tão doente como em realidade estava. Nunca falava de outra coisa. Temo que a interpretei mau, porque morreu de tuberculose, e agora me sinto culpada.

-Não estranho - disse Charlotte.

Emily a olhou com cenho.

-Não tem por que me dar a razão! Morta ou não, era uma mulher irritante.

-Imagino que ele a queria, e que ela não devia ser tão irritante – indicou Charlotte.

-Você gosta de me contráriar - disse Emily, e de repente ficou séria outra vez. -Se preocupa Thomas? Não esperarão que resolva todos os crimes, digo eu. Com certeza alguns nunca chegam a esclarecer-se.

-É claro. - Charlotte ficou seria também. -Mas eles não pensam igual. E desta vez não pude ajudar em nada. Nem sequer sei por onde começar. Tratei que pensar quem pôde fazê-lo, se é que não foi Carvell.

-E eu igual - disse Emily baixando a voz. -O que não consigo entender é o porquê. Atribui-lo a um louco não ajuda em nada.

Produziu-se um alvoroço na entrada da sala quando as pessoas começaram a afastar-se para deixar passagem a uma pessoa idosa, vestida de negro e apoiada em uma bengala.

-Avó! - exclamou Emily. Olhou para o fundo esperando ver Caroline, mas só havia um lacaio com libré.

Foram as duas saudar a anciã, que tinha um aspecto formidável em seu vestido antiquado de enorme anquinha e uma blusa profusamente adornada de azeviches. Brincos de azeviche adornavam suas orelhas, e sua expressão estava dominada por um mau humor mal mitigado pela curiosidade.

-Quanto me alegra vê-la, avó - disse Emily com todo o entusiasmo que foi capaz de aparentar. -É um prazer que tenha podido vir.

-E como não ia vir - disse a anciã. -Tenho que ver que diabos estão fazendo! Membro do Parlamento – soprou. -Não sei se me alegra. Tenho minhas dúvidas sobre que o governo seja coisa de gente respeitável. - Olhou em redor aos ali reunidos, percebendo as jóias, das de champanha, bandejas de prata e os numerosos lacaios de libré. - Um pouco ostentoso, não? Ficar em evidência não é algo próprio de cavalheiros.

-E quem acha que deveria nos governar, avó? - perguntou Emily, com duas manchinhas rosadas nas faces. -Homens que não sejam cavalheiros?

-Isso é farinha de outro saco - disse a anciã, desdenhando a razoável pergunta. -Os genuínos cavalheiros, para quem governar é algo inato, não necessitam eleições. Têm sua cadeira na Câmara dos Lordes por nascimento, como deve ser. Isso de subir a uma caixa nas esquinas para pedir às pessoas que vote por você é muito diferente, e se quer saber minha opinião, bastante vulgar.

Emily ia dizer algo, mas se absteve.

-Está um pouco antiquada, avó - disse Charlotte. -Ao senhor Disraeli o escolheram, e a rainha deu sua aprovação.

-Ao senhor Gladstone também, e ela não o passou! - replicou-lhe com deleite a velha senhora.

-O que demonstra que ser eleito não tem nada que ver - replicou Charlotte. -Disraeli era muito inteligente.

-E vulgar - disse a anciã, olhando-a fixamente. -Levava uns coletes espantosos e falava muito, e muito freqüentemente. Sem o menor refinamento. Apresentaram-nos uma vez, sabe. Não, isso não sabia, verdade?

-Pois não.

-O que eu lhe digo: vulgar. Não sabia quando ficar calado. Achava que era gracioso.

-E se equivocava.

-Bom, não, o que sei eu. O que importa isso?

Charlotte olhou Emily de esguelha, e ambas decidiram lhe seguir a corrente.

-Onde está mamãe? - perguntou Charlotte, mas na hora desejou não havê-lo feito.

A avó levantou as sobrancelhas.

-Santo céu, criatura, como vou saber? Dançando, sem dúvida. Está bastante louca. - Observou às mulheres com suas saias mais ligeiras e seus ombros amplos adornados de babados, laços, renda ou penas, as cabeças com aqueles cachos, adornos de diamantes e pérolas, alfinetes, tiaras e flores. -Quem diabo é toda esta gente? - perguntou a Emily. -Não conheço ninguém. Teria que me ter apresentado. Já lhe direi eu a quem desejo conhecer.

-E onde se colocou esse teu marido? por que não está com você? Sempre disse que casar-se com um homem que só procura seu dinheiro não pode sair bem. - Olhou Emily com sarcasmo. -E tampouco é que seja uma herdeira como Deus manda, outro galo cantaria. Seu pai lhe teria procurado um jovem de boa família. Ninguém ouviu falar do Jack Radley, não é?

-Agora sim, senhora Ellison. - Jack apareceu detrás de seu campo visual, muito arrumado e sorrindo à anciã como se estivesse encantado de tê-la ali.

Ela teve a delicadeza de ruborizar-se, depois grunhiu baixo:

-Podia me haver dito que estava atrás de mim! - replicou a Charlotte em voz baixa.

-Não sabia que ia ofender-se tanto, se não o tivesse feito.

-O que diz? Não murmure, moça. Não a ouço. Pelo amor de Deus, fala clara. Sua mãe investiu um bom dinheiro em que lhe ensinassem dicção e bom comportamento quando era jovem. Deveria ter economizado esse dinheiro. –Logo sorriu ao Jack. -Parabéns, jovem. Parece que ganhou alguma coisa.

-Obrigado. - Jack lhe fez uma reverência e lhe ofereceu o braço. -Se me

permitir, apresentarei-lhe algumas pessoas interessantes que sem dúvida desejam conhecê-la.

-Adiante - aceitou ela com a cabeça alta. Sem olhar atrás, recolheu suas saias e partiu majestosa, deixando Charlotte e Emily.

-Se alguém lhe tivesse cortado a cabeça, entenderia-o - resmungou Emily.

-E acredito que eu não lhe delataria - acrescentou Charlotte. Então olhou a sua irmã no momento em que esta parecia estar pensando a mesma coisa.

-Você acha que...? - começou Emily. -Não - se respondeu ela mesma mas sem convicção. -Acha que há alguém que sabe quem o fez? Protegeria alguém a...?

-Não sei. Possivelmente se fosse algum ser amado, um marido ou um pai. - Uma névoa de desagradáveis pensamentos cruzou por sua cabeça. -Mas seria insuportável pensar que alguém a quem ama pode fazer algo assim. Alguém se sentiria também culpado. É impossível não sentir-se afetada pelos atos da pessoa amada. Se tivessem perdido o juizo, seria como se você mesma tivesse enlouquecido um pouco.

-Não! - objetou Emily. -Não pode culpar a...

-Possivelmente não seja justo - a interrompeu Charlotte, -mas é assim como se sentiria. Acaso não a envergonhou quando seus amigos comentaram que tinham visto mamãe com o Joshua?

-Sim. Mas... - Emily caiu na conta-. É claro - disse rapidamente. -E isso não é nada. Entendo o que quer dizer. Teria a sensação de ter contribuído para isso, embora fosse por ignorar algo terrível, algo espantosamente mau. Lutaria por lhe convencer de que tudo isso não é verdade. Que horror - concluiu, com o rosto contorcido de piedade.

-Suponho que poderia ser Mina. Possivelmente queria proteger a seu irmão, sobre tudo se ele matou ao Winthrop para protegê-la.

-Não me ocorre ninguém mais - disse Emily, pensando em voz alta. –O senhor Carvell não é casado, e ninguém sabe nada desse cobrador de ônibus.

-Supõe que a senhora Arledge poderia saber algo? - perguntou indecisa Charlotte, detestando-se por falar mau, até por mera sugestão, de Dulcie. Pitt a admirava, e por excelentes motivos. Trazer seu nome à tona naquele contexto parecia mesquinho.

-Como o que? - respondeu Emily. -Duvido que tenha a menor ideia de quem matou ao Arledge, ou o haveria dito ao Thomas e assim esclarecia o assunto e tirava a polícia de sua casa. Depois poderia reatar sua vida discretamente.

Charlotte a olhou.

-Por que "discretamente"? Fala como se ela tivesse algo que ocultar.

-Às vezes é obtusa, Charlotte - disse Emily com um sorriso. -Dulcie tem um admirador, se não é mais que isso. Acaso não se deu conta?

Charlotte ficou estática.

-Não! Quem é? Como está tão certa?

-Não sei quem é, mas sim sei que existe. É evidente. - Meneou a cabeça. -Não a observou?

-No que?

-Charlotte, Por Deus! - exclamou Emily exasperada. -Em sua maneira de vestir, nos pequenos detalhes, esse primoroso alfinete de luto, a renda, a forma em que o vestido se ajusta perfeitamente ao talhe, essas mangas tão na moda. Além disso, usa um perfume estupendo. Caminha como se notasse que todos a estão olhando. E inclusive quando não fala com ninguém mantém uma... - deu de ombros -uma espécie de compostura, como se soubesse algo especial e misterioso, e muito suculento. A verdade, Charlotte, se não sabe distinguir a uma mulher apaixonada, não serve como detetive. Direi-lhe mais, inclusive como mulher é de uma falta de inteligência extraordinária.

-Eu pensava que era...

-O que?

-Não sei, coragem, possivelmente?

Emily sorriu a um conhecido que tinha feito campanha pelo Jack e

depois continuou falando.

-Sim, não duvido que também tenha coragem, mas isso não dá satisfação interior, não a faz sorrir sem motivo, olhar-se nos espelhos e procurar que seu aspecto seja perfeito, no caso de se tropeçar com ele.

-Como a observou tanto? - perguntou Charlotte um tanto surpreendida. –Eu só a vi no réquiem.

-Para observar isso não preciso ver muito às pessoas. No que pensava que não percebeu?

Charlotte se ruborizou, recordando quais tinham sido seus sentimentos.

-Não sei se isso importa - disse, evitando a questão.

-Pois claro que não - respondeu Emily, mas na hora reagiu. -Do que está falando? O que é o que deve importar?

-O que vai ser! Pois ele. - Charlotte suspirou. -Você acha que...?

-Sim - disse Emily na hora, sem reparar em um homem idoso que tratava de chamar sua atenção. O homem finalmente renunciou. -Temos que saber. Não sei como, mas temos que averiguar quem é.

-Você acha que poderia ser Bart Mitchell? Possivelmente seja essa a conexão que Thomas anda procurando.

-Começaremos amanhã pela manhã - sentenciou Emily. -Pensarei no que podemos fazer, e você o mesmo.

Interrompeu-as a chegada do Caroline e Joshua, vestidos ambos com muita formalidade e radiantes de felicidade.

-OH, menos mal - disse Emily com alívio. -Realmente começava a pensar que não viria. - foi saudar sua mãe.

Charlotte lhe seguiu os passos.

-Felicidades, querida - disse Caroline, exaltada, dando um beijo em Emily na face. -Quanto me alegro por você. Estou certa de que Jack o fará maravilhosamente, certamente há muito trabalho que fazer. Onde está?

-Ali o tem, falando com sir Arnold Maybury - disse Emily. Observou o rosto encantador do Joshua, com seu nariz ligeiramente torcido e o sorriso irônico. -Me alegro de ver a você também. Jack estará encantado.

-Não podia faltar - disse Caroline com um sorrisinho estranho. Depois se voltou para Joshua, repentinamente ruborizada e coibida.

Desta vez foi Charlotte quem adivinhou, e Emily a que não entendeu nada.

-Mamãe - disse Charlotte, -o que quer dizer?

Emily a olhou carrancuda. A pergunta parecia estúpida. Dispunha-se a fazer uma observação quando viu que tinha passado por cima um matiz, algo muito mais importante que as palavras. Olhou ao Joshua e Caroline.

Caroline respirou fundo e dirigiu a vista a um ponto intermédio entre as duas filhas.

-Joshua e eu acabamos de nos casar - anunciou a toda pressa em pouco mais que um sussurro.

Emily sentiu um enjôo.

Charlotte ia dizer algo amável, mas a garganta lhe ardia e os olhos se umedeciam ridiculamente.

Joshua rodeou ao Caroline com o braço. Ainda estava sorrindo, mas havia força em seu olhar, e também uma advertência.

Jack voltou dando o braço à avó, que segurava uma taça de champanha na mão. Vendo que interrompia uma cena emocionalmente intensa, Jack se dirigiu ao Joshua.

-Parabéns - disse este lhe estendendo a mão. -foi uma grande vitória, que redundará em benefício de todos. Desejo-lhe uma longa e bem-sucedida carreira. – Sorriu. -Por nós e por você.

-Obrigado. - Jack lhe soltou a mão e alcançou uma taça de um lacaio que passava. -Pelo futuro - brindou.

A avó levou também sua taça aos lábios.

-Pelo futuro de todos - acrescentou Emily, olhando de esguelha ao Jack. -Incluídos mamãe e Joshua. Temos que lhes dar parabéns e lhes desejar toda a felicidade do mundo.

Jack fez expressão de surpresa.

-Acabam-se de casar -concluiu Emily.

A avó, ao meio gole de champanha, engasgou-se e salpicou a metade superior de seu vestido. Seu rosto tinha corado de susto e indignação. Entretanto, não era possível ter um aspecto decoroso se a pessoa gotejava copiosamente. Emily pegou um lenço e, tratando de secá-la, só piorou as coisas. A avó optou pela única saída possível e se desabou no chão, sem sentido, atirando-se quase ao Jack.

Imediatamente se converteu no centro de toda a atenção. Ninguém olhava já Caroline e Joshua, nem sequer ao Jack. As pessoas se aproximaram as pressas.

-Meu deus! Pobre mulher! - disse um homem ao ver a avó no chão. -Rápido! Sais!

-Sentiu-se indisposta? - perguntou uma mulher. -E se avisarmos um médico?

-Não será necessário - lhe assegurou Emily. -Acenderei uma pena sob seu nariz. - Procurou um lacaio que a proporcionasse.

-Pobrezinha. - A mulher contemplou compadecida a figura lhe deitada da avó. -Adoecer em público, e tão longe de sua casa.

-Não está doente - disse Emily.

-Está bebeda - acrescentou Charlotte com súbita e imperdoável malícia. Estava furiosa com a anciã por seu egoísmo ao privar Caroline de ser o centro da atenção, precisamente em um momento de felicidade para ela. Viu que a anciã tocava castanholas com os dentes e sentiu satisfação.

-OH! - A piedade da outra se evaporou, o que a fez afastar uns passos.    -Deveria levá-la fora - disse Charlotte ao Jack. -Que lhe ajude um lacaio. Deixa-a onde possa ir recuperando-se e depois alguém acompanhará a sua casa.

-Eu não - disse Caroline com firmeza. -Além disso, não penso ir a casa. Esta é minha noite de bodas.

-Você não, claro - concordou Charlotte, e olhou a Emily.

-OH, não! - Emily estava estupefata.

O lacaio voltou com uma pena já acesa e a entregou a Emily, quem lhe agradeceu e a aproximou com cuidado sob o nariz da anciã. A avó aspirou e tossiu, mas permaneceu obstinadamente no chão com os olhos fechados.

Jack e o lacaio se inclinaram para levantá-la. Foi uma operação complicada. A mulher era gorda e baixa, e agora um peso morto. Custou-lhes levantá-la com as saias em perfeita ordem, e começar a abrir-se passagem entre as pessoas a caminho do portal. Contudo, ao passar junto a Charlotte, a velha conseguiu soltar um pontapé rápido que esteve a ponto de dar no cotovelo do Charlotte.

-Não permitirei que viva sob o mesmo teto que eu - disse Caroline-. Ela jurou que não me toleraria se eu me convertesse no bobo da boa sociedade. -Olhou Emily. -Sinto muito, querida, mas acho que toca a você lhe oferecer uma casa. Charlotte não dispõe de lugar.

-Nem que o tivesse - replicou Charlotte. -Se não aceitar viver com um ator, tampouco quererá viver em casa de um policial. Graças a Deus!

-Já vejo que ganhar as eleições é uma vitória de duplo fio - disse Emily. - Suponho que Ashworth House é o bastante grande para não ver a avó a maior parte do dia. OH, mamãe! Desejo-lhe toda a felicidade do mundo, mas por que me faz isto?

Sammy Cates costumava levantar-se cedo. As primeiras horas do dia eram transparentes, prometedoras, e freqüentemente também solitárias. Não era que não gostasse das pessoas, mas desfrutava de sua própria companhia pois isso lhe permitia deixar vagar sua imaginação, que era o melhor entretenimento que conhecia. Na véspera tinha ido ao music-hall a escutar as maravilhosas canções de Enjoe Lloyd. O recordá-lo fazia sorrir ainda.

Caminhou a passo vivo pela rua silenciosa onde vivia com sua mulher, filhos e sogro em uma casa de dois cômodos. Saiu à avenida, que começava a animar-se com as carretas que iam ao mercado ou entregavam mercadorias às casas grandes próximas ao parque. Passava por ali todas as manhãs, e muita gente o saudava. Ele respondia à saudação, absorto ainda na noite do dia anterior.

Queria estar cedo às portas do parque para certificar-se de que não houvesse nada que ofendesse a sua vista. E então começaria o trabalho: varrer, limpar, arrancar ervas daninhas, coisas não especialmente divertidas mas tampouco especialmente molestas. Mas o que o fazia sorrir enquanto cruzava Park Lane e chegava à grade era estar ao ar livre e a aquela hora, completamente a sós.

Fazia sol, mas o orvalho cobria a erva com uma pátina brilhante e os arbustos estavam úmidos. Vá. Algum desordeiro tinha deixado uma garrafa no caminho. Que descaramento. Poderia haver-se quebrado e deixado fragmentos de vidro por toda parte. Ou seja que dano podia fazer isso. Sobre tudo a um menino.

Inclinou-se para recolher a garrafa.

Foi fazê-lo quando viu um pé aparecendo da vegetação, e depois uma perna e a sola do outro sapato em um ângulo diferente.

Soltou a garrafa e se aproximou dos arbustos. Engoliu em seco. Seria alguém que tinha bebido mais da conta, mas existia outra possibilidade. Desde que tinham descoberto o primeiro cadáver, Cates tinha temido algo assim, mas no fundo não esperava que chegasse a acontecer.

Com cautela, a boca seca e o coração pulsando violentamente, pegou as pernas pelos tornozelos e puxou para si.

O homem usava uma calça escura, azul marinho ou negro, mas estava úmido do orvalho e era difícil distinguir. Quando começou a sair o corpo, Sammy deu um passo atrás. Era um policial! Não havia engano possível, a julgar pelo uniforme.

—"Meu Deus!", gemeu. Não era um bêbado. Isto era coisa do Verdugo! Possivelmente não devia movê-lo dali. Talvez culpariam a ele.

Ao dar um passo atrás tropeçou com a garrafa e caiu sentado no chão, o que acabou de lhe deixar sem fôlego.

Voltou a olhar o horrível objeto. Sim, era um policial, sem dúvida. Reparou no brilho dos botões prateados.

Ficando de quatro, aproximou-se novamente e voltou a puxar o corpo. Foi saindo pouco a pouco dos arbustos: cintura, torso, pescoço, cabeça! Estava inteiro!

Sammy caiu para trás, tremendo como uma vara mas com uma vertigem de alívio. Que estúpido! deixou-se levar pela imaginação. É que um policial não podia embebedar-se como qualquer filho do vizinho?

Levantou-se e foi inclinar-se sobre o homem para ver se estava muito bebado. Tinha o rosto terrivelmente pálido, de fato sua pele estava quase branca. Como se estivesse morto!

-"Meu Deus!", sussurrou. Decidiu-se a lhe tocar a face com o dorso da mão. Estava fria. Afrouxou-lhe o pescoço e deslizou a mão por dentro da roupa. Estava quente! Ainda vivia!

Examinou o rosto uns instantes, mas não distinguiu que as pálpebras se movessem. Se o homem respirava, o fazia de modo imperceptível.

Só podia fazer uma coisa: procurar ajuda. Aquele homem necessitava um médico. Ficou de pé e pôs-se a andar, primeiro a passo vivo e logo correndo.

-O que? - Pitt levantou a vista da escrivaninha e olhou ao Tellman, sério mas com um perverso brilho de triunfo no olhar.

-Bailey - repetiu Tellman. -Um dos guardas o achou esta manhã, por volta das seis. Tinham-no golpeado na cabeça e estava entre uns arbustos.

Pitt se sentiu doente. Era uma horrível mescla de piedade e culpa.

-Está muito mal, ferido? - perguntou com a boca ressecada.

-Não lhe saberia dizer. Ainda continua inconsciente. Quem sabe.

-Bem, que feridas tem? - Pitt ouviu sua própria voz, áspera e com um tom de pânico.

-Não parece que haja nada salvo o golpe na cabeça - respondeu Tellman.

-Alguém sabe o que aconteceu?

-Não. É claro, o senso comum faz acreditar que foi o Verdugo. Bailey não estava de serviço no parque nem perto dali. Seguia investigando a declaração do Carvell de que esteve naquele concerto. - Olhou fixamente ao Pitt. -Poderia ter descoberto alguma coisa.

Não havia resposta. Pitt ficou de pé.

-Onde está agora?

-Levaram-no a hospital Samaritan Free do Manchester Square. Fica perto de onde o acharam. - Suspirou devagar. -Quer que volte a prender o Carvell?

-Primeiro quero ver Bailey.

-Não poderá lhe dizer nada.

Pitt não se incomodou em replicar. Passou junto ao Tellman sem lhe olhar e, esquecendo o chapéu e a jaqueta, saiu do escritório. Desceu a escada de dois em dois, passou pela recepção sem dizer nada e saiu à rua. Custou-lhe quase meia hora achar um cabriolé e dirigir-se ao Manchester Square.

Estava destroçado. Já não havia uma dúvida razoável a favor da inocência do Carvell. Era a presença, ou ausência, do Carvell no concerto o que Bailey tinha ido verificar. Mas lhe doía pensar nisso. Gostava de Carvell, sentia um respeito instintivo por aquela pessoa e se solidarizava com seu pesar, que ainda tinha por algo real.

E igualmente profunda era a desilusão que sentia por si mesmo, uma horrível sensação de fracasso por ter sido enganado daquela maneira. Equivocara-se de meio a meio.

Era culpado do que acontecia com Bailey. E se este morresse, seria-o de sua morte.

Como podia ter sido tão estúpido, tão inconsciente? E inclusive agora, enquanto ia no cabriolé, ainda era incapaz de ver claro, mas a evidência o fazia inelutável.

Desembarcou do cabriolé e disse ao cocheiro que esperasse. Uma vez dentro procurou a sala onde Bailey jazia estendido em uma cama. Levava posta uma camisa de dormir de áspero tecido e o cobria um lençol e uma manta cinza. Ao lado de sua cama de armar havia um médico jovem, com rosto de preocupação.

-Como vai? - perguntou Pitt, temendo a resposta.

O médico lhe olhou com precaução.

-Quem é você?

-O superintendente Pitt, do Bow Street. Como vai?

-É difícil dizê-lo. - Meneou a cabeça. -Não se moveu desde que o trouxeram, mas recuperou a temperatura corporal. Sua respiração é bastante regular e o coração pulsa com normalidade.

-Recuperará-se? - Era mais uma presunção que uma certeza.

-Não sei. É possível.

-Quando acredita que poderá falar? O médico voltou a menear a cabeça e olhou ao Pitt.

-Não sei, superintendente. Nem sequer sei se falará. E embora o faça, pode ser que não recorde grande coisa. Terá que preparar-se para qualquer eventualidade. Eu, em seu lugar, seguiria adiante com a investigação sem contar com ele.

-Entendo. Faça tudo o que esteja em sua mão, por favor. Não repare em esforços.

-Fique tranquilo.

Pitt partiu ainda mais desconsolado, e sentindo-se profundamente culpado.

Ao chegar ao Bow Street encontrou Giles Farnsworth em seu escritório, pálido e com os punhos apertados.

-Soltou ao Carvell –resmungou, -e agora por pouco assassina a um de seus homens. -Foi até a cornija da lareira e se voltou. -Já temia que este cargo lhe vinha largo, Pitt, mas Drummond insistiu muito. Vejo que foi o mais grave engano de sua carreira. Sinto muito, Pitt, mas sua incompetência é inaceitável.

Voltou a cruzar a sala.

-Fica você suspenso- disse. -Terminará este caso e voltará para seu antigo posto. O melhor é que troque de delegacia de polícia. Já pensarei em qual quando tiver tempo. Possivelmente alguma dos subúrbios. - E sem esperar réplica, foi para a porta. Hesitou com a mão na maçaneta. -Disse ao Tellman que volte a prender o Carvell. A estas horas o terão detido já. Comece a preparar as provas para o processo. Quando tiver terminado com isso, pode tomar uns dias livres. Adeus. - Fechou a porta ao sair, deixando ao Pitt absolutamente deprimido.

 

Charlotte ficou aniquilada ao inteirar-se da suspensão do Pitt. Possivelmente deveria esperar aquela possibilidade, mas tinha tido a cabeça ocupada em outras coisas: a casa nova-e vender a velha, é claro,-a candidatura do Jack, o romance de sua mãe, seu recente matrimônio. Não lhe cabia na cabeça, era injusto!

Sentia muitíssimo a dor e a humilhação que aquilo significava para o Pitt, mas estava furiosa pela injustiça que se cometia. Mais tarde começou a temer por ela e pelas crianças. O que aconteceria a casa nova? Como iriam pagá-la? E já não podiam voltar para a casa velha.

Tudo isto passava por sua cabeça, e era consciente de que devia notar-se no rosto. Nunca se tinha dado bem em ocultar seus sentimentos, mas fez tudo o possível por dissimular, apesar do mal-estar que sentia.

-Vamos nos arrumar - foi quanto pôde dizer, e sua voz soou áspera de tão seca que tinha a boca.

Pitt a olhou, pálido como ela, e exausto.

-Claro que sim - disse, embora não tinha idéia de como iriam fazê-lo. A idéia de voltar para trabalho como inspetor, em uma delegacia de polícia longínqua, era muito amarga para fazer outra coisa que esquecê-la até que a dura realidade se impusesse. Talvez poderia convencer Farnsworth de que lhe atribuísse à delegacia de polícia de Central London, e assim poder trabalhar em uma zona que conhecia em vez de ir e vir em ônibus diariamente. Não poderia pagar um cabriolé.

Estiveram um momento sentados em silêncio, muito juntos. As palavras não serviam de muito. Não havia nada agradável que dizer salvo as banalidades em que ambos tinham pensado, desprezando-as depois.

Charlotte se sentou um pouco mais erguida. Tinha acendido a lareira, não porque fizesse frio no salão mas sim porque a piscada das chamas contribuía a criar uma espécie de ilhota que os isolava do resto do mundo.

-Carvell o admitiu por fim? - perguntou.

-Não. - Pitt viu mentalmente o rosto do Carvell, lhe implorando com o olhar, destroçado, pálido e atemorizado, enquanto o baixavam às celas. -O negou com veemência.

Charlotte olhou-o.

-Você acredita nele, não é verdade? – disse. -Ainda pensa que não o fez!

Pitt permaneceu uns segundos sem dizer nada. Estava mais que confuso, mas sua voz não titubeou ao responder.

-Não. Não concebo que fizesse mal voluntariamente ao Arledge. E se o tivesse matado em um arrebatamento de raiva teria ficado destroçado e nem sequer teria tentado escapar. De fato, estou convencido de que se o tivesse matado aceitaria, inclusive de bom grado, o castigo.

-Tem que averiguar quem o fez, Thomas! Não deixe que o pendurem por isso! - Ajoelhou-se diante dele, lhe falando com voz firme e suplicante ao mesmo tempo. –Tem que haver algo. Por muito esperto que seja, o Verdugo terá deixado alguma pista, um pequeno fio de que possamos ir puxando até desentranhar a verdade.

-Tomara - disse ele sorrindo, -mas espremi os miolos procurando o que pode ser e não passei daí.

-Está muito perto da medula - respondeu ela. -Analisa os detalhes em vez de ter uma visão de conjunto. O que têm em comum as vítimas?

-Nada.

-Algo tem que haver! Winthrop e Scarborough eram dois fanfarrões, e disse que o cobrador de ônibus era um homenzinho serviçal. Quem sabe, possivelmente também era um valentão.

-Mas Arledge não. Segundo todas as versões era um homem afável e muito cortês.

-Tem certeza?

-Sim, tenho. Ninguém disse nada de mau contra ele.

Charlotte refletiu enquanto ele guardava silêncio.

-É possível que todos exceto a gente fossem assassinados para encobrir a essa única pessoa que alguém queria ver morta? - disse ao cabo. -Pode ser que os outros fossem escolhidos ao acaso.

-Não tem sentido. - Pitt meneou a cabeça e estendeu uma mão para afastar uma mecha de cabelo que lhe caía sobre a testa. A Scarborough tiraram de sua casa para matá-lo. Yeats estava no Shepherd"s Bush, longe da sua, do Arledge não sabemos e Winthrop estava passeando de bote pelo Serpentine, o qual é por si absurdo. A que vem ficar a remar em metade da noite? Se já for difícil imaginá-lo com um amigo em um bote a meia-noite, calcula com um desconhecido.

-O Verdugo queria o ter no bote para matá-lo sobre a amurada - respondeu ela.

-E como conseguiu que subisse? Como convence a alguém para que suba a um bote em plena noite?

-Pois… eu diria que me tinha caído à água, algo valioso, de uma ponte ou algo parecido - disse Charlotte. -Antes teria atirado o chapéu ou qualquer outra coisa.

-O chapéu! - Pitt se incorporou na cadeira, dando um golpe a ela sem querer.

-O que? - Charlotte se levantou com presteza. -O que passa, Thomas?

-O chapéu - repetiu ele. -Encontraram um chapéu ao dragar! Não era do Winthrop. Não pudemos relacioná-lo, mas possivelmente ocorreu como você diz.

Uma artimanha para persuadi-lo que subisse ao bote. É incrível! É uma resposta tão simples, tão efetiva... - Beijou-a entusiasmado e logo começou a passear pela sala. -Todo começa a encaixar - prosseguiu, cada vez mais excitado. -Winthrop era um oficial da armada. Que mais natural que lhe pedir ajuda para recuperar o chapéu. O Verdugo bem pôde fingir que não sabia remar. Há muita gente que não sabe.

"Acenou ao Winthrop e subiram os dois ao bote... e então o Verdugo aponta um ponto na água e Winthrop se inclinou pela amurada. E depois... –Baixou os braços com a mão rígida como a folha de uma faca -Winthrop é decapitado.

-E os outros? - perguntou Charlotte. -O que me diz do Arledge?

-Não sabemos. Não sabemos onde mataram ao Arledge.

-Mas e Scarborough?, e o cobrador? - insistiu ela.

-Ao Scarborough o mataram onde foi encontrado. O bebedouro do Rotten Row estava cheio de sangue.

-E Yeats?

-Perto do terminal do Shepherd"s Bush. Depois o transladaram ao Hyde Park em uma caleche.

Charlotte pensou um momento.

-Dá a impressão de que Arledge era o único que importava, não é verdade? - disse.

-Salvo que não foi o primeiro. As vezes vejo sentido - acrescentou, voltando-se para sentar, -e as vezes não.

-Sei. - Levantou uma mão. -Deixemo-lo agora. Amanhã começarei de novo. Vamos para cama.

Tomou a mão e se levantou devagar, com o rosto ainda tenso. Inclusive enquanto subiam ao quarto ela não deixava de dar voltas, baralhar hipóteses, urdir planos. Só conseguiu esquecer-se e pensar em outras coisas quando já estava em camisola, com o lençol subido até o pescoço e aninhada junto ao Pitt.

À manhã seguinte Pitt não foi ao Bow Street, não tinha sentido. Sua mente era uma confusão de idéias, muitas das quais mal formadas e apoiadas em dados e impressões ainda por confirmar. E tinha que esperar por força até a tarde. Passou as horas em ocupações corriqueiras, verificando uma e outra vez os detalhes do caso. Às oito menos um quarto se pôs em marcha. Queria ver o Victor Garrick mas não conhecia seu endereço. Sabia que Mina Winthrop o podia dar, assim tomou o ônibus até o Curzon Street e se apeou em pleno entardecer primaveril.

-Sim, senhor? - perguntou a criada.

-Queria falar com a senhora Winthrop, se for possível - disse.

-Sim, senhor. Se quer entrar, verei se está em casa.

Era a resposta habitual, e Pitt esperou obediente.

Mina demorou menos de cinco minutos. Estava radiante com um vestido de musselina cor lavanda. Ao notar a surpresa do Pitt, piscou.

-Boa tarde, superintendente. Acredito que me pegou de surpresa. Não estou vestida adequadamente. - Era um claro eufemismo. Estava muito mais jovem que depois de morrer seu marido, vestida toda de negro, assustada e perplexa. Agora suas faces tinham cor e seu longo e esbelto pescoço trazia unicamente um colar de grosas contas, e só porque ele sabia que estavam ali pôde distinguir o leve tom purpúreo de umas contusões. A qualquer outro pareceriam sombras. Mina se movia com grande espontaneidade, como imbuída de vitalidade.

-Lamento importuná-la, senhora Winthrop - se desculpou ele por sua vez. –Vim porque queria ir ver o Victor Garrick e não conheço seu endereço. Só sei que é perto daqui.

-OH! Pois teve sorte. Vivem duas portas mais à frente, mas igualmente teria feito a viagem em vão. Victor está aqui.

-Seriamente? Seria muito pedir que me permitisse falar com ele? Não levará muito tempo.

-É claro que não. Estou certa de que se pode ajudar em algo, fará-o encantado. - Franziu o cenho. -Embora meu irmão me havia dito que apanhou ao homem. Que mais precisa saber?

-Só alguns detalhes, não seja que um advogado esperto nos pegue despreparados - respondeu Pitt.

-Então entre na sala do jardim. Victor esteve tocando para nós, e acredito que será um lugar agradável para conversar.

Pitt lhe agradeceu e aceitou de boa vontade. Mina conduziu a uma das mais encantadoras salas que jamais tinha visto. Umas portas-janelas davam a um pequeno jardim fechado repleto de plantas de todos os tipos. As flores eram todas brancas: rosas brancas, lírios, cravos e gerânios, alhelíes, selos do Salomão e muitas outras cujo nome desconhecia.

As paredes e cortinas da sala eram de cor verde com um delicado motivo floral branco, e havia um vaso com flores, também brancas. A última luz da tarde primaveril inundava a estadia, esquentando-a mas sem lhe subtrair o fictício frescor de um jardim.

Victor Garrick estava sentado em um canto com seu chelo. Bart Mitchell estava de pé junto ao aparador. Não havia ninguém mais.

-Victor, lamento interromper - disse Mina, -mas o superintendente Pitt veio vê-lo. Parece que há detalhes ainda por esclarecer em todo este desventurado assunto, e acredita que você poderia ajudá-lo.

-Possivelmente deveríamos partir - disse Bart fazendo gesto de ir-se.

-Não, não - respondeu Pitt. -Por favor, senhor Mitchell, será um prazer os ter aqui. Deste modo me economizarei ter que lhes perguntar em separado. - Pitt estava arranjando um plano, ainda brumoso e sem muitos de seus principais elementos. - Sinto interromper o recital com tão fastidioso assunto, mas acredito que por fim estamos perto de sua conclusão.

Bart foi para o aparador e recuperou sua anterior postura, com uma expressão fria nos olhos.

-Como quiser, superintendente, mas não acredito que nenhum de nós saiba nada que não haja dito já.

-Trata-se mais do que puderam ter visto. - Pitt se voltou para o Victor, que o observava com seus olhos azuis muito abertos, ao que parecia mais por educação que por interesse.

-Sim? - disse, já que o silêncio parecia requerer algum comentário.

-Na recepção que se celebrou depois do réquiem pelo Aidan Arledge –disse Pitt, - você estava no canto, perto do portal, não é assim?

-Sim. Não tinha especial vontade de falar com as pessoas. Além disso, era mais importante não abandonar meu instrumento. Alguém podia lhe dar um golpe sem querer, inclusive atirá-lo ao chão. - Inconscientemente, seus braços abraçaram o prezado chelo, acariciando sua deliciosa madeira, Lisa como o cetim e igualmente brilhante. Pitt reparou na amolgadura e se sentiu furioso.

-Foi assim que ocorreu isso? - perguntou.

Victor crispou as feições e empalideceu de repente. Agora seus olhos brilhavam duros, olhando fixamente para um ponto ao longe, ou possivelmente abismados em certas lembranças.

-Não - disse por fim entre dentes.

-Então? - insistiu Pitt, comprovando que estava contendo a respiração. O que não tinha percebido era que a dor que sentia nas palmas das mãos eram suas unhas cravando-se na carne.

-Um ser perverso me empurrou, e o chelo foi dar contra o corrimão - respondeu Victor a meia voz.

-Que corrimão? - inquiriu Pitt.

Bart Mitchell trocou de posição no aparador e se dispôs a intervir, mas decidiu não fazê-lo.

-De um ônibus? - disse Pitt.

-Como? - Victor olhou em redor. -OH, sim. Essa gente não tem nada dentro, nem sentimentos nem alma.

-Uma amostra de vandalismo - concedeu Pitt, engolindo em seco e dando um passo atrás. -O que queria lhe perguntar, senhor Garrick, era se viu o mordomo, ao Scarborough, enquanto dava ordens aos outros criados durante a recepção.

-A quem?

-Scarborough, o mordomo.

Victor não parecia entender.

-Um homem robusto de maneiras muito arrogantes.

Victor o recordou por fim.

-Ah, sim. Um tirano, um ser detestável. - Estremeceu ao dizê-lo. –É imperdoável valer-se do poder para abusar de quem não pode defender-se. A pessoa que faz essas coisas é... – Suspirou. -Não tenho palavras para expressá-lo. Procuro, mas não encontro nada que possa definir a ira que sinto.

-Despediu realmente a essa garota por cantar? - perguntou Pitt, procurando adotar um tom ligeiro.

Victor olhou-o com as sobrancelhas arqueadas.

-Sim – disse. -Estava cantando uma toada de amor, muito frouxo, uma cançãozinha triste sobre o amor que se vai. Despediu-a sem lhe dar oportunidade de desculpar-se. - Seu rosto estava cada vez mais branco, seus lábios desprovidos de cor. -Não teria mais de dezesseis anos. - Todo seu corpo estava tenso, embora suas mãos continuavam suavemente apoiadas no chelo.

-A senhora Radley também o ouviu - disse Pitt, não como parte do plano, mas respondendo a um impulso piedoso. -Ofereceu um trabalho a essa garota. Não ficará na rua.

Victor se voltou muito devagar, com seus brilhantes olhos azuis aplacados, dissipada a ira.

-Seriamente?

-Sim. A senhora Radley é minha cunhada e me consta que é verdade.

-E o mordomo está morto - acrescentou Victor. -Tudo perfeito.

-Era tudo o que queria saber? - disse Bart. -Eu não vi nada, e, que eu saiba, minha irmã tampouco.

-Bom, quase - replicou Pitt, olhando não a ele mas a Mina. -A outra questão tem que ver com o senhor Arledge. - Trocou o tom de voz endurecendo-o de propósito. -Você me disse, senhora Winthrop, que se conheciam muito levemente, que só foi um detalhe amável por parte dele quando você sofria pela morte de um animal doméstico.

-E? - disse ela, dúbia.

-Sinto muito, mas não acredito.

-Contamo-lhe o que aconteceu, superintendente - atravessou Bart. -Que você o aceite ou não, já é outra questão. Tem ao Verdugo preso. É inútil que persista em um assunto que quando muito é tangencial.

Pitt não fez conta.

-Eu penso que o conhecia bastante melhor que isso - disse a Mina. -E não acredito que o que a desconsolava fosse a perda de um animal.

Mina estava desconfortável.

-Meu irmão já lhe contou o acontecido, superintendente. Não tenho nada que acrescentar a isso.

-Já sei que o senhor Mitchell me contou isso, senhora. O que estranho é que não o fizesse você mesma! Será que não é tão rápida contando mentiras? Ou não lhe ocorreu nenhuma a tempo?

-Senhor, sua rabugice é absolutamente gratuita. - Bart se aproximou do Pitt como disposto a agredi-lo. Falou com voz grave e ameaçadora: -Devo lhe pedir que abandone esta casa. Aqui já não é bem-vindo.

-Isso carece de importância - respondeu Pitt, olhando ainda a Mina. –Senhora Winthrop, se perguntasse a seus criados, acredita que confirmariam essa história do animal que morreu?

Mina empalideceu, as mãos lhe tremiam. Abriu a boca, mas não achou palavras.

-Senhora Winthrop - disse Pitt lúgubre, odiando ter que fazer. –Sabemos que seu marido lhe batia...

Ela sacudiu a cabeça, cheia de terror.

-OH, não, não! - exclamou. -Foi... foi um acidente, a culpa foi minha. Se eu tivesse sido menos torpe, menos estúpida. Provoquei-o. Eu ao... - Olhou, para seu irmão.

-Não é sua culpa! - disse Bart entre dentes. -Não me importa se você mostrasse estúpida ou insistente! Nada justifica.

-Bart! - Mina quase gritou, levando-as mãos à boca. -Engana-se! Não passou nada! Ele nunca tratou de me fazer mal! Não o entendeu. Oakley não era cruel. Foi o uísque. Ele só...

Victor olhou a Mina e depois ao Bart, que estava lívido.

-Não lhe doeu? - perguntou com suavidade.

-Não, querido Victor, tudo passou muito depressa - lhe assegurou. –Bart sempre está - hesitou -me protegendo.

-Não é certo! - A voz do Victor soou como estrangulada. -Os golpes doem, e assustam! Nota-se em seu rosto. Você lhe temia. E ele a fazia sentir-se envergonhada, inapta.

-Não! Isso não é verdade. Não o fazia a sério. E estou bem, prometo-lhe!

-Porque esse porco morreu! - replicou-lhe Bart.

Ia acrescentar algo mais, mas não o fez. Mina rompeu a chorar, encurvando os ombros enquanto os soluços a sacudiam e se derrubava no sofá. Bart foi para ela, quase derrubando ao Victor, e pegou grosseiramente ao Pitt pelo braço empurrando-o para a porta. Victor permaneceu imóvel.

Pitt não protestou ao chegar ao vestíbulo e, momentos depois, apalpando-as marcas dos dedos do Bart no braço, dirigiu-se à avenida. Era uma tarde limpa, e ainda havia luz. Não esperava que ocorresse nada durante um tempo.

Esteve uns quinze minutos tomando um copo de cidra em um pub e depois seguiu seu caminho enquanto as nuvens escureciam e o dia se ia extinguindo. Passou um momento antes que notasse que alguém o estava seguindo. A princípio foi só uma sensação, a consciência de um som que se fazia eco de seus passos, desaparecendo quando parava, retornando quando voltava a andar.

Quando chegou ao Marylebone Road tinha anoitecido, e lhe custou o seu não apertar o passo. Era uma sensação estranha e molesta, como uma urticária. Se seus pressentimentos, por mais que tênues e fundados em provas tangíveis mas frágeis, não eram errôneos, quem o seguia não era outro que o Verdugo, sempre à espera de sua oportunidade. Com certeza levaria a arma consigo.

Apesar de sua determinação de afetar naturalidade, Pitt não pôde evitar andar a grandes passadas. Ouviu o repico ligeiramente irregular de suas botas na calçada, e atrás dele, mais perto agora, os passos velozes e ligeiros de seu perseguidor.

Marylebone Road terminava no Euston Road. Um landau passou com seus faróis amarelos. O ruído dos cascos reverberou na pavimentação. Pitt andava tão rápido podia, sem chegar a correr. O faroleiro estava aproximando sua longa vara às mechas e as luzes foram prendendo de uma em uma, formando uma fileira de globos brilhantes entre os quais se estendiam zonas de escuridão que ocultavam aos transeuntes, gente que voltava para casa ansiosa de uma noite agradável.

Distinguiu o perfil de uma cartola contra a luz quando um homem passou a toda pressa.

A estação do Euston ficava a uma centena de metros. Notou o suor do medo e que respirava com dificuldade, apesar de não fazer outra coisa que andar depressa.

Os passos se aproximavam por detrás.

Não se atreveu a enfrentar ainda a ele. Até que fosse realmente agredido, não teria provas. Ter provocado a Mina não serviria de nada.

Entrou na estação. Era tarde e havia pouca gente. O ar frio da noite, depois do quente dia, tornara-se brumoso. O ruído dos trens, os gritos dos portadores, os assobios e o chiar do vapor lhe impediram de ouvir os passos de seu perseguidor.

Ao chegar à plataforma deu a volta. Havia um moço de estação, um cavalheiro idoso com uma carteira de documentos, uma mulher na penumbra, um jovem meio em sombras que ao parecer esperava a alguém. Então entrou uma mulher idosa, olhando nervosa para todas partes.

Pitt cruzou a plataforma e depois deu meia volta e a percorreu em direção à ponte que cruzava as vias. Subiu, os degraus estavam escorregadios. Ouviu o ruído de suas botas sobre os degraus metálicos. Nuvens de vapor formavam redemoinhos na névoa e a garoa começava a cair. As luzes da plataforma eram uma confusão de globos brilhantes que nadavam na escuridão da noite e o cinza da chuva, os faróis dos trens e o vapor que exalavam.

Cruzou a ponte sobre a via. Havia muito ruído para ouvir passos de alguém, nem sequer os seus.

Dde repente percebeu um movimento, uma sensação de perigo iminente, um ódio tão claro que foi como uma ardência na nuca.

Virou-se de todo.

Victor Garrick estava a dois passos dele, e a luz da plataforma iluminava seu semblante pálido, seus olhos acesos e o brilho quase prateado de seu cabelo. Empunhava em sua mão direita um alfanje, disposto a golpear.

-Você também o faz! - soluçou Victor, mostrando os dentes, com o rosto desconjuntado de angústia. -É igual aos outros! - gritou sobre o estrondo dos trens. -Faz mal às pessoas! Faz-lhes passar medo e vergonha, mas não permitirei que continue fazendo mal a ela! - Fendeu o ar com o alfanje e Pitt se afastou a tempo de evitar que a folha lhe desse no ombro. O golpe poderia lhe cortar o braço.

Pitt se tornou rapidamente para trás e Victor se equilibrou sobre ele, passando de comprimento e dando meia volta.

-Não escapará! - Victor respirava entre dentes, seu rosto era muito lágrimoso. -Por que me mente? - Foi um grito espantoso, esmigalhado, e não parecia estar olhando ao Pitt a não ser a algo mais à frente. -Continua dizendo que isso não dói, mas sim dói! Faz tanto dano que todo o corpo se sente dolorido, e se fica acordado toda a noite, doente e envergonhado, pensando que a culpa é sua e esperando a próxima vez. Estou assustado! Nada tem sentido! Mentiu-me todo o tempo! – O alfanje voltou a cortar o ar. -Você também tem medo! Vi seu rosto, os hematomas, o sangue! Cheira sua miseria! Posso notar seu sabor em minha boca! Isto não seguirá assim! Tenho que impedi-lo! - Descarregou grosseiramente o fio.

Pitt retrocedeu desesperado. Não se atrevia a usar sua bengala: o alfanje o teria cortado em dois, deixando-o indefeso.

Agora estava tudo muito claro: o valentão do Winthrop que batia em Mina, o cobrador de ônibus que tinha cometido a estupidez de arranhar o violoncelo, o arrogante Scarborough que tinha se despedido da criada por cantar, Victor devia ter atacado a Bailey quando este investigava o paradeiro do Bart, e tinha assustado a Mina. Ela temia que Bart fora culpado, ao menos da morte do Winthrop.

-Mas por que matou ao Arledge? - gritou com voz rouca.

Atrás deles, um trem cuspiu vapor e fez soar o apito.

Victor estava lívido.

-Por que matou ao Arledge? - repetiu Pitt. -Ele não ameaçou a ninguém!

Victor tinha os joelhos ligeiramente dobrados, mantendo o equilíbrio, com uma mão no corrimão e a outra empunhando a arma.

Pitt se afastou para um lado e retrocedeu fora do alcance do fio.

-O que lhe fez Arledge?

Victor não reagiu em seguida. Seu rosto mostrava uma súbita confusão. A cólera se esfumara e ficou imóvel.

-Não fui eu.

-Sim foi você. Cortou-lhe a cabeça e o deixou morto no quiosque. Não se lembra?

-Eu não o fiz! - A voz do Victor foi um chiado sobre o estalo continuado dos trens. Equilibrou-se com todo o peso do corpo, brandindo a arma. Pitt se esquivou do ataque e o segurou pelos ombros quando a mão do Victor, fechada sobre o punho, golpeava-lhe o braço com tal força que Pitt soltou a bengala.

Pitt lançou um uivo de dor, mas o assobio do trem o afogou. O vapor da locomotiva os envolvia aos dois. Lançando-se contra Victor, alcançou a este no peito e o fez cair para trás. A mureta lhe deu totalmente nas costas e o peso do alfanje o fez retroceder ainda mais. Victor escorregou no úmido metal da ponte.

Pitt tratou de o agarrar pelo braço, mas ele escapou da mão. As pernas do Victor, ao subir, golpearam ao Pitt.

Com um grito de surpresa e terror, Victor caiu ao vazio desaparecendo nas luzes do trem que passava por debaixo.

O ruído do impacto se perdeu entre o fragor da máquina e o chiado do apito. A surpresa do maquinista ficou gravada na mente do Pitt, e um segundo depois tudo acabou. Ficou agarrado ao corrimão com as mãos trêmulas, o corpo gelado e a mente iluminada por uma brusca compreensão, uma inegável piedade.

Victor tinha desaparecido. Sua raiva e sua dor eram já inalcançáveis.

Ao limpar o vapor e dar-se meia volta, Pitt viu outra figura. Ia avançando agarrada à mureta como um cego, o rosto lívido.

Pitt a olhou horrorizado. De repente compreendeu tudo. Era contra ela que Victor tinha gritado, não contra Pitt. Era a ela a quem tinha dirigido todo aquele medo, toda a dor do passado.

-Eu não sabia nada! - Ela não pôde conter-se. -Até hoje não. Juro-o!

-Não - disse ele, tão afligido pela compaixão que sua voz mal foi um sussurro.

-Foi seu pai, sabe - prosseguiu ela, desesperada por fazer-se entender. -Ele me batia. Não era mau, mas não podia dominar seu gênio. Eu sempre dizia ao Victor que não acontecia nada, que não me machucava. Pensei que era o que tinha que fazer! - Estava tão confusa e desesperada que inclusive a angústia desaparecia por momentos. -Pensava que o estava protegendo. Pensava que tudo iria bem, entende? Eu não queria que odiasse a seu pai, e Samuel não era mau, só que... - Uma súplica angustiosa aflorou a seu rosto. Olhou ao Pitt, ansiando que acreditasse. -Ele nos queria, a seu modo, isso me consta. Disse-me isso muitas vezes. Era culpa minha que se zangasse tanto. Se eu houvesse...

-Tudo terminou - disse Pitt indo para ela. Não podia suportar mais. Abaixo o trem se deteve, cuspindo vapor, e havia homens gritando na plataforma. Ela não tinha que vê-lo. Alguém devia levá-la dali. -Venha. -Agarrou-a pelo braço e quase a arrastou para a escada. -Não há nada a fazer aqui.

Naquela mesma manhã Charlotte tinha ido ver Emily depois de tomar o café da manhã. Estavam tomando limonada juntas, sentadas no terraço de Emily. O dia era ensolarado mas, além disso, decidiram sair ao jardim para que nenhum criado pudesse ouvi-las. A situação era desesperada. Era melhor que ninguém escutasse seus planos. Jack mostraria seu desacordo, como é lógico, dado seu novo cargo. Mas agora o mais urgente era fazer o possível por ajudar ao Pitt.

-Como vamos averiguar a identidade de um amante? - disse Charlotte, sorvendo sua limonada. -Não podemos segui-la.

-Não seria prático - indicou Emily. -E além disso demoraríamos muito. Poderiam passar dias antes de que voltem a ver-se. Temos que fazer algo o que seja mais rápido.

-E se ela não vai vê-lo? - disse Charlotte desesperada.

-Então a obrigaremos! - Emily não tinha perdido um ápice de sua determinação. Parecia confiar em uma vitória inesperada. -Temos que lhe enviar uma carta, ou algo similar. Um convite que pareça provir dele.

-Ela saberá que a letra não é sua. Além disso, os apaixonados costumam ter uma maneira especial de comunicar-se entre si, um termo carinhoso, algum diminutivo.

Emily a olhou carrancuda.

-Além disso - prosseguiu Charlotte, -embora ela respondesse à nota, não saberíamos quem é ele.

-Não ponha tantos reparos - disse Emily com certa aspereza. –Teríamos que redigi-la de forma que ela vá vê-lo, e assim saberíamos de quem se trata.

-E ele também saberia quem somos nós. Desse modo saberão que algo está acontecendo. Pareceria uma amostra da pior vulgaridade. Faríamos mais mal que bem. Não esqueça que isto é só o princípio. Ter um admirador não é nenhum delito, de fato se for discreta nem sequer se considera um pecado.

Sua irmã a olhou com uma careta.

-Quer resolver isto ou não?

Charlotte não se incomodou em responder.

-Não acredito que Dulcie se delate - disse pensativa, pegando o copo de limonada. Estava deliciosa, e muito refrescante. -Ele possivelmente sim.

-Mas não sabemos quem é. Temos que procurar sua pista através dela.

-Não estou certa de que isso seja necessariamente certo.

-Tem alguma idéia?

-Pode ser. Vejamos que qualidades deveria possuir.

-Para ser um amante? - Emily parecia sem confiança. -Não seja ridícula. Tem que ser viril, a isso se reduz quase tudo. O resto é questão de gostos.

-É muito simplista - disse Charlotte. -Refiro a que sentido tem matar ao Aidan Arledge agora e não antes, depois ou, melhor ainda, nunca. Em geral os apaixonados não matam ao cônjuge. Por que foi assim desta vez?

Emily guardou silêncio, mordiscando um doce de açúcar.

-As circunstâncias mudaram - respondeu ao fim. -É a única coisa que tem sentido.

-De acordo, mas no que mudaram? - Charlotte pegou também um pedaço.

-Alguém a descobriu? Não, isso quereria dizer que mataram à pessoa em questão se os ameaçava com a chantagem. Descobriu-o seu marido e se dispunha a expô-la à vergonha pública? Ou a repudiá-la por adúltera, possivelmente?

-Quando ele estava encalacrado com o Jerome Carvell? Duvido-o!

-Dulcie o descobriu com Jerome Carvell e o matou, em um arrebatamento de pura repugnâcia - sugeriu Emily.

-Thomas diz que ela não sabia sobre Jerome Carvell. Suspeitava que havia algo, mas pensava que se tratava de uma mulher, como pensaria qualquer uma.

-Mas Thomas acredita que é uma viúva angustiada. Não sabe que ela tem um amante.

Charlotte o admitiu em silêncio. Preferia não entrar na opinião que Pitt tinha de Dulcie.

-Estimo muito ao Thomas - continuou Emily, -mas não é alguém que saiba julgar muito bem às mulheres. Como a maioria dos homens – acrescentou. -Bem, suponhamos que ele partia, porque ela não podia casar-se com ele, e ela tinha que ficar livre como fosse evitar que ele a deixasse para sempre.

-Inclusive poderia ser que ele pensasse casar-se com outra – apontou Charlotte.

-Isso significaria que ele estava em disposição de casar-se - disse sua irmã, cada vez mais excitada. -O qual reduz drasticamente as possibilidades. Não há tantos cavalheiros da idade do Dulcie Arledge que estejam solteiros e sejam respeitáveis.

O amante não tinha por que ser de sua mesma idade, mas esse era um tema que nenhuma das duas queria abordar.

-Você acha que ele tinha intenção de deixá-la? - perguntou Charlotte.

-Não. Enfim, se ele não estiver a ponto de ficar descartado, então será que ficou disponível de repente. Se antes era igual a ela estivesse livre, porque ele não o era, agora ele o é, assim ela fez o possível para ficar livre também.

-Sim, poderia ser - concedeu Charlotte. -Certamente, tem sentido. A não ser, claro, que fosse alguém a quem ela conheceu muito recentemente.

-Sim. Esse poderia ser Bart Mitchell, o irmão de Mina Winthrop.

-Thomas suspeitava dele, acredito, mas não por esse motivo.

-Por qual, então?

-Por Mina.

-O que tinha que ver Arledge com Mina?

Charlotte lhe explicou o pouco que sabia. Emily lhe tirou importância.

-Ou alguém como Landon Hurlwood, que enviuvou recentemente. Agora está disponível, coisa que antes não. E é realmente atraente. - Sua voz denotava entusiasmo. -Eu não culparia a nenhuma mulher se ficasse gostando muito dele. E imagino que se um homem assim a quiser, é muito fácil perder um pouco o sentido da proporção.

-Golpear a seu marido na cabeça e depois o decapitar e deixá-lo atirado no parque não é "um pouco" - disse Charlotte. Também nela havia, entretanto, um nervoso entusiasmo, e Emily passou por cima as palavras em favor do tom.

-Mas dá muito bem o tipo, não lhe parece? - Emily se acotovelou na mesa de ferro forjado.

-Sim - disse Charlotte, cada vez mais convencida. -Sim, parece o homem ideal para o caso. Mas suponho que deve haver muitos outros. O problema é como decidir qual é.

-Acaso é preciso? Você já vê que a resposta não pode ser mais que essa.

-É claro que o vejo. Mas temos que prová-lo de algum jeito. Depois precisamos saber se ele matou ao Aidan Arledge e, por descontado, se Dulcie estava à corrente.

-OH. - Emily soltou um suspiro. -Vá, será muito interessante. Como poderíamos fazê-lo? Sobre tudo, tendo em conta que Thomas não pôde.

-Ele nunca pensou em Dulcie - disse Charlotte, mordendo o lábio e sentindo-se outra vez culpada.

-Talvez Dulcie não sabia que ele o fez por ela. - Charlotte a olhou exasperada. -Suponho que sim. Não é nenhuma ingênua. Perdoe. O que fazer?

-Devemos nos assegurar. - Charlotte falava tanto para ela como para Emily. Refletiu. -Terá que provocar alguma reação - disse por fim.

-Em quem? Em Dulcie? Do que serviria isso? Não se delatará.

-Nela não, nele!

-Mas se não sabemos quem é. Não só pôde ser Landon Hurlwood. Também poderia ser Mitchell, ou quem sabe quantos outros.

-Pois comecemos pelo Hurlwood e Mitchell. - Charlotte mordeu o lábio. -Embora confesse que não sei como o vamos fazer.

Emily pensou um momento. Seu rosto se iluminou de repente.

-Eu sim. É claro que o assunto é secreto, e se teve algo que ver com a morte do Aidan Arledge, terão a necessidade de que o siga assim. Só pode sair à luz como se se apaixonaram a partir de que ela enviuvou. Se a você ou nos apresentassem isso, quero dizer socialmente, para que pareça algo fortuito - se inclinou para frente –e fizéssemos algum comentário com cara de cumplicidade, ficariam tão desconcertados que saberíamos imediatamente que tínhamos “dado no prego”.

Charlotte ia protestar que ela não podia fazer uma coisa assim, mas então recordou a desesperada situação em que se achava Pitt, o fato de que o tivessem despedido, e mais ainda, perder a casa nova, ter que dizer-a Caroline -com a maliciosa satisfação da avó,- mas sobre tudo quão mau o estava passando Pitt.

-Sim - disse, sem saber como ia obter isso. -É uma excelente ideia. Deveríamos começar quanto antes. Eu me ocupo do Bart Mitchell, porque posso me apresentar em casa de Mina. Você terá que se encarregar do senhor Hurlwood. - levantou-se. -Como dará com ele, não tenho nem idéia, mas isso é seu assunto. - E dando em Emily um último abraço, sem esperar para ouvir alguma desculpa ou evasiva, abandonou o jardim e se dirigiu para a porta da rua.

Em menos de uma hora estava em casa de Mina, muito antes de que Pitt chegasse ali, e foi recebida com gosto e essa classe de naturalidade que só se dá normalmente quando há uma longa amizade atrás. Em outras circunstâncias se sentiria culpada por explorar sentimentos tão generosos, mas agora a necessidade excluía de sua mente qualquer consideração.

-Que prazer vê-la de novo, senhora Pitt - disse Mina com entusiasmo. –Que tal sua casa nova? encontra-se a gosto ali?

-Certamente, obrigada - disse Charlotte, vendo com alívio que Bart Mitchell se achava presente. -Eu gosto muitíssimo. Bom dia, senhor Mitchell.

-Bom dia, senhora Pitt - respondeu ele sem incomodar-se em dissimular sua surpresa. Deu um passo à frente.

-Não parta por mim, rogo - disse Charlotte com excessiva pressa. –Me saberia muito mal. - De boa vontade se teria esbofeteado por passar-se dos limites. Sentiu-se ridícula. E entretanto se ele se ia, a viagem teria sido em vão, e não havia tempo a perder. Em poucos dias Pitt teria que deixar o caso definitivamente.

-Bem, eu... - Bart não sabia como reagir, dificilmente poderia esperar aquelas palavras de Charlotte.

A ela lhe ocorreu uma idéia arriscada, desesperada-e ridícula, mas agora não tinha em conta sua própria dignidade. Só pensava no Thomas.

Não teve dificuldade em ruborizar-se, tão idiota se sentia. Baixou a vista como se quisesse dissimular seus sentimentos e de repente o olhou nos olhos como tinha visto fazer a um sem-fim de mulheres: Emily conseguia efeitos devastadores. Ela, Charlotte, só o tinha provado umas quantas vezes, de jovem, fazendo uma exibição.

Bart estava sobressaltado, mas foi sentar se ao sofá como se tivesse toda a intenção de ficar ali. Seria que sentia atração por ela? Ou simplesmente se sentia adulado?

Mina estava dizendo algo e Charlotte não tinha ouvido nenhuma palavra. Devia prestar atenção, ou agravaria as coisas com sua idiotice.

-Muito amável de sua parte - murmurou, confiando em que a resposta encaixasse.

Mina chamou à criada e lhe pediu limonada fresca. Seria isso o que havia ditoantes.

Charlotte se esforçou por procurar um tema inteligente de conversa. Não sabia nada de intrigas, falta de meios e de propensão para essas coisas, não ficava bem falar de política sendo mulher, não estava em dia em questões de moda. Tampouco queria entrar em tiro o tema do Verdugo. Fazia meses que não ia ao teatro, nem a um concerto.

-Como está seu braço? Espero que a queimadura se tenha curado – disse para romper o silêncio.

-Certamente - respondeu Mina, arqueando as sobrancelhas como se não tivesse esperado aquele comentário. -E muito mais rápido do que eu pensava. Acredito que sua rápida intervenção me economizou muitas dores.

Charlotte suspirou de alívio.

-Sei que a água fria só alivia os sintomas, e que normalmente nada tem que ver com o tratamento. Mas no caso das queimaduras, esse alívio parece que dura, e depois mal fica sinal. Está de acordo, senhor Mitchell?

-Dificilmente poderia não estar, senhora Pitt - disse com um sorriso. -Embora seja certo que sei pouco de queimaduras domésticas.

-E de outra classe? - insistiu ela, mais desesperada para o que parecia denotar sua voz trêmula.

Ele sorriu mais amplamente.

-Certamente. Por pura casualidade curei umas queimaduras de sol com água fria.

-De sol? Que interessante. - Olhou-lhe extasiada como se Bart fora o sujeito mais fascinante do mundo. Certamente, tinha uns lindos olhos azuis.

Ele desviou discretamente o olhar e procedeu a lhe falar de suas viagens a África, de quando caiu de seu cavalo enquanto vadeava um rio muito cheio e o contato da água lhe aliviou rapidamente a dor e o enjôo que lhe provocavam o sol e o calor. Era uma história interessante e a contou com humor e viveza. Charlotte não teve que fingir que lhe interessava.

A criada lhes levou uma limonada deliciosa, e Charlotte seguiu perguntando sobre suas experiências. Bart respondia relaxado enquanto Mina, sentada no sofá com as mãos no regaço e um leve sorriso nos lábios, escutava completamente relaxada.

Mas o tempo passava. Charlotte não tinha conseguido nada que provasse sua hipótese. Se Bart Mitchell era o amante do Dulcie, estava dissimulando maravilhosamente. Mas à medida que ia conhecendo melhor, parecia-lhe que esse mascaramento era algo inato e fácil para ele. Bart não delataria a uma mulher amada, nem voluntariamente nem por não saber dominar-se.

Charlotte se sentia cada vez mais néscia. Tomara que Emily estivesse indo melhor. Tinha que lançar-se, ao preço que fora. Ou ao menos tentá-lo!

-Quando retornou da África? - perguntou com expressão de entusiasmo. Não lhe estava sendo tão difícil paquerar com ele. Bart era uma pessoa muito agradável quando lhe conhecia um pouco mais, e muito de aparência agradável.

-O outono passado, senhora Pitt.

-OH, isso é bastante. - As palavras lhe escaparam e Charlotte engoliu em seco confiando em que a desilusão não soasse tão clara para ouvidos deles como aos seus próprios. Contudo, a certas pessoas podia lhes bastar esse tempo para apaixonar-se. Ela mesma não teria empregado tanto tempo. E Bart não parecia ser dos que necessitam mais de meio ano para que seus sentimentos tomem forma. -Gosta da boa sociedade londrina ou lhe parece muito calma depois de tantas aventuras? - Era uma pergunta torpe, pois só requeria uma resposta educada. -OH! Sinto-o - se apressou a dizer. -O que vai responder mas sim gosta? Mas queria que me desse uma resposta sincera, se sente falta do perigo e novidade de cada dia. - Falava muito às pressas, mas parecia incapaz de conter. -O desafio ao valor e a imaginação, a capacidade de suportar penúrias, de sair gracioso da escassez ou a perda.

-Minha querida senhora Pitt -disse sorrindo Bart, parecia genuinamente divertido. -Lhe asseguro que não tinha a menor intenção de lhe dar uma resposta simplesmente educada. Não acredito que seja uma mulher que invista seu tempo em bate-papos ociosos. De fato, estou convencido de que quase todo o faz por um propósito determinado.

Charlotte notou que se acendia. Bart tinha dado no alvo muito mais do que ele mesmo imaginava!

-OH –disse. -Eu... bom...

-Respondendo a sua pergunta - continuou ele, -com efeito, sinto falta de muitas coisas, e há momentos em que Londres me parece intoleravelmente calma, mas outras vezes contemplo o verdor dos jardins e o frescor das flores na primavera, os elegantes edifícios, e sei que detrás dessas fachadas há uma vida civilizada, há beleza e engenho, e então viver nesta cidade me apaixona.

Ela continuou com o olhar baixo.

-Pensa voltar para a África, senhor Mitchell?

-Suponho que algum dia.

-Mas não tem planos a curto prazo.

-Nenhum - disse ele um tanto divertido.

-É claro - respondeu Charlotte com suavidade. -A senhora Arledge se  alegrará muito, sem dúvida. Claro que você não a deixaria aqui sozinha. -Levantou a vista para observar a expressão dele.

Bart não mostrou indício de culpa, só uma absoluta incompreensão.

-Como diz? - perguntou, juntando um pouco as sobrancelhas.

Charlotte não se havia sentido tão néscia em toda sua vida. Tinha paquerado vergonhosamente com um homem decente, tinha tagarelado como se tivesse o cérebro cheio de penas, e agora não lhe ocorria como sair do atoleiro.

-Oh, - disse desesperada. -receio que me expliquei muito mal. Acredito que devo ter interpretar erroneamente algo que me disseram. Rogo-lhe me perdoe. - Não se atreveu a olhá-lo, e desde fazia um momento tinha esquecido por completo que Mina estava ali.

Mas Bart não ia deixá-la escapar tão facilmente.

-A senhora Arledge? - inquiriu.

-Sim, eu... - Charlotte viu que nada podia justificar seu anterior comentário.

-Parece uma mulher de grande dignidade - prosseguiu ele. -Mas não é alguém a quem eu conheça que do modo mais superficial e breve. Em realidade acredito que o funeral por seu marido foi a única vez que a vi. Conhece-a você bem?

-Não! Eu... tive a impressão de que você... mas devia ser outra pessoa. Suponho que não estava atendendo e achei ouvir o que não era. Sinto muito. - Por fim se decidiu a olhá-lo nos olhos. -Esqueça o que disse, por favor. Foi uma tolice de minha parte.

-Como quiser.

-Tome um pouco mais de limonada - propôs Mina, falando pela primeira vez desde que tinha saído à tona o tema da África.

-Não, obrigado. O agradeço, mas devo ir. - Charlotte ficou em pé com mais pressa que graça. Morria de vontades de sair dali. -Não queria alongar o que foi uma visita muito agradável. Obrigado por me receber tão generosamente tendo em conta que vim sem avisar, e nem ter sido convidada. Em realidade só queria lhe dizer que seus conselhos me foram muito valiosos, e que lhe estou extremamente agradecida.

-Foi algo sem importância - disse Mina. -Me alegro de que tudo tenha funcionado como você desejava.

-Possivelmente, mais adiante, gostaria de nos visitar - a convidou Charlotte, lhe oferecendo um de seus recém impressos cartões de visita com o novo endereço. Só momentos depois caiu na conta de que provavelmente ela e Pitt já não estariam ali então. A não ser que tivessem muito mais sorte que até então e resolvessem o caso.

-Volte quando quiser, senhora Pitt - disse Bart com um sorriso que não ocultava um desejo genuíno.

-Obrigado - disse ela, jurando-se não voltar a pisar naquela casa. –Estarei encantada!

Saiu a toda pressa para o vestíbulo, cruzou a porta que a criada lhe tinha aberto e caminhou com indecorosa pressa para a avenida principal e em busca do primeiro ônibus que passasse.

Emily, pelo contrário, não passou nervos para localizar ao Landon Hurlwood. Um pouco de ingenuidade lhe bastou para conhecer seu paradeiro. Depois, vestiu-se à última moda com um vestido de musselina branca com pontinhos azuis do Delft, mangas longas e ombros bicudos, e um maravilhoso chapéu alto e uma pena de avestruz na aba, e pediu sua carruagem.

Tudo tinha que funcionar na hora para apanhar ao Hurlwood. Em realidade teve que fazer que sua carruagem permanecesse um momento parada, causando certos problemas de tráfego, durante um quarto de hora, até que o viu sair do Whitehall e dirigir-se ao Trafalgar Square. Por fortuna o dia era esplêndido e caminhar representava um autêntico prazer.

Emily desceu sem ajuda do sobressaltado cocheiro e partiu para sua presa.

-Senhor Hurlwood! - exclamou alegre quando esteve a uma dúzia de passos. -Que agradável achá-lo aqui!

Ele a olhou perplexo. Sem dúvida vinha pensando em assuntos do governo e administração, temas que mal acabava de tratar ou tinha previsto fazê-lo em um próximo debate.

-Boa tarde, senhora Radley - disse com surpresa. Levantou o chapéu e se deteve, afastando-se um pouco para deixar passar. -Como está?

Ela sorriu encantadoramente.

-Excelente de saúde, muito obrigado. Que dia tão lindo, não é? A gente sente-se cheia de otimismo.

-Certamente. Tem toda a razão. Foi uma grande vitória, e mais doce ainda por ser inesperada, ao menos para alguns.

-E que o diga! Eu mesma não podia acreditar nisso no princípio. Deveria ter tido mais confiança, suponho.

-A julgar pelos acontecimentos, sim -sorriu ele, -embora acredite que é mais sensato mostrar-se modesto de entrada e desfrutar depois, não ao contrário.

-OH, certamente. Temo que o pobre senhor Uttley não aceitou bem sua derrota. Terá que aprender a ser discreto, não lhe parece? Eu acredito que uma parte do êxito na vida pública consiste em guardar-se para si os próprios sentimentos. - Olhou-o com inocência, como procurando sua aprovação.

-Acredito que está certa - disse ele, não muito seguro do que era o que havia atrás daquele comentário, mas consciente de que o havia.

-Outra coisa é o que alguém sabe de ouvir mas foi levado a cabo com a máxima discrição. - Emily inclinou a cabeça com um sorriso cúmplice. –Assuntos amorosos de caráter muito privado.

Hurlwood parecia incomodado, mas ela não soube se era a culpa ou simples problema ante uma observação de bastante mal gosto.

-Acredito que a senhora Arledge o está levando muito bem depois de tão lamentável perda, não lhe parece? - prosseguiu. -E que ocorresse em um momento tão delicado. Mas estou certa de que você saberá consolá-la com toda discrição.

Ele se ruborizou até as orelhas, sua mão se fechou sobre o punho da bengala. Quando respondeu, sua voz soou um pouco rouca.

-Sim. Bom, a gente faz o que pode. - Era uma observação à ligeira, e ambos sabiam. Seu olhar incômodo e furioso deu a Emily a resposta que procurava, sem necessidade de uma admissão verbal.

-Não quero lhe entreter, senhor Hurlwood -disse. -Sem dúvida tem assuntos importantes que atender, e já foi muito cortês comigo. Que passe um bom dia. Foi muito agradável conversar consigo.

E dito isto, sorrindo com inocente prazer, afastou-se para onde a esperavam sua carruagem e um lacaio com suficiente experiência para não fazer intrigas sobre o que sua senhora trazia entre mãos.

-O que fazemos agora? - disse Emily ansiosa mas com a fronte ligeiramente franzida.

Ela e Charlotte estavam no toucador do Ashworth House. Era preferível ao salão, pois embora se supunha que Jack estava na Câmara dos Deputados, podia voltar a qualquer momento, e aquela era uma conversa que ele de maneira nenhuma devia ouvir.

Charlotte, por sua parte, havia dito a Gracie que não sabia quando ia voltar para casa. Assim, Gracie devia dar o jantar às crianças, deitá-las, e se o senhor chegasse, lhe dizer que a senhora estava em casa do Emily e que possivelmente ficaria a dormir. Em outras circunstâncias, não estaria ausente de casa, mas aquele era um caso de força maior. A diferença estava em que Charlotte explicaria a Gracie os motivos, enquanto que Emily se cuidaria muito de que os criados não soubessem nenhuma palavra a respeito. Estavam todos muito impressionados pela vitória do Jack, e suas lealdades estavam profundamente divididas.

-Temos que achar provas, se é que há respondeu Charlotte.

-Alguma tem que haver, não?

-Se tanto o um como o outro são inocentes, não as haverá.

Emily desprezou a idéia com um gesto da mão.

-Não pense nisso. Como acha que aconteceu? Quero dizer, como pôde fazê-lo, se é que foi ela?

Charlotte refletiu.

-Não é muito difícil golpear a alguém na cabeça quando a outra pessoa não o espera de você. Menos ainda se você gostar...

-Teria que convencê-lo para ir aonde lhe interessasse - disse Emily, ao fio do argumento. -Um homem adulto, embora fosse muito magro, seria muito difícil de transportar uma vez inconsciente. Como fez ela para subi-lo ao quiosque de música?

-Cada coisa a seu tempo. De momento, ainda não lhe demos na cabeça.

-Isso não é problema! A que está esperando?

-A levá-lo ao lugar indicado, a isso. Terá que planejar as coisas. Devemos escolher o momento adequado. Não terá que deixá-lo ali atirado horas e horas!

-Por que não? -saltou Emily. -Importa tanto?

-Pois claro que sim! Há os criados. Como vai justificar você?

-De acordo. Já entendo. Tem que ser uma vez que os criados se retiraram, ou em um lugar aonde eles não vão. O jardim, por exemplo? De noite não terá que preocupar-se com o jardineiro. Uma estufa, um abrigo?

-Excelente - disse Charlotte. -Como lhe persuadir de que vá à estufa sendo de noite?

-Dizendo que lhe vai mostrar algo.

-E com a desculpa de ter ouvido um ruído?

-Para isso se chama um lacaio - disse Emily.

-OH, tem razão. Mas eu não tenho lacaio.

-Nem estufa.

Charlotte suspirou. Se pudessem conservar a casa nova, talvez teria uma. Inclusive com o tempo poderia dispor de um criado. Mas isso agora carecia de importância.

-Bom, conseguimos levá-lo a estufa - disse, -com a desculpa de lhe mostrar algo muito especial. Uma flor que se abre de noite e tem um aroma extraordinário.

-Você acha que falaria de flores com um marido a quem está a ponto de assassinar? - objetou Emily.

-Pois outra coisa. Não sei, algo que o jardineiro tem feito mal? Uma coisa errada que justifique despedi-lo e contratar a outro?

-Está bem. Consegue levá-lo a estufa e faz que se incline para olhar não sei o que, e depois lhe dá na cabeça com o primeiro que tem à mão. Em um lugar assim há utensílios apropriados. E depois?

-Deixa-o ali - disse Charlotte. -Ao menos até a madrugada, momento em que vai e lhe corta a cabeça.

-Vestida para a ocasião - interpôs Emily.

-Como?

-Pois com algo que dissimule o sangue!

-Ah. - Charlotte enrugou o nariz, mas compreendeu que a observação era pertinente. -Sim, muito bem. Teria que ser algo que se pudesse atirar depois, ou um objeto impermeável que pudesse lavar-se.

-Por exemplo? E como vai lavar o sangue sem deixar nenhuma mancha?

-Uma capa de chuva, possivelmente - disse Charlotte, não muito segura. –Mas ela não tinha por que guardar uma capa de chuva. Eu não tenho nada que se pareça nem remotamente. E o jardineiro? - pensou alto. -Assim ela poderia passar por um que cruzava o parque. - Então recordou algo. -Sim, viram um jardineiro no parque, empurrando um carrinho de mão! Emily! Não seria o assassino transportando o cadáver do Aidan Arledge até o quiosque de música?

-Então foi Dulcie, ou Landon Hurlwood - disse Emily.

-Dá no mesmo! Se foi ele, não pôde fazê-lo sem que ela soubesse. Dulcie é culpada em ambos os casos. Devem ter matado ao Arledge em sua própria estufa e depois o transportaram em seu próprio carrinho de mão!

-Isso terá que demonstrá-lo. - Emily se levantou. -saber isso não é suficiente.

-São só especulações - disse Charlotte, levantando-se também. - Antes de nada temos que provar isso nós mesmo. Teremos que procurar o lugar, vê-lo com nossos olhos. Tem que ficar uma mancha de sangue por alguma parte.

-Pois duvido que ela nos deixe farejar em sua estufa, se é que foi ali onde cortou a cabeça a seu marido!

-É claro. Bem, terá que ir de noite, quando ela não saiba.

-Invasão de moradia? - Emily não consiguia acreditar, mas o medo se desvaneceu de seu rosto, substituído por uma expressão de ousado entusiasmo. -As duas sozinhas? Teremos que fazê-lo esta mesma noite. Não há tempo perder.

Charlotte tragou saliva.

-Sim. Esta noite. Sairemos daqui sobre as… A meia-noite, de acordo?

-As doze é muito cedo - disse Emily. -Poderia estar levantada ainda. Eu a essa hora estou acostumada estar.

-Mas você não está de luto. Não acredito que tenha saído para jantar, ou ao teatro.

-De todo modo, proponho até a uma.

-OH, pois será melhor que eu não volte para casa. Thomas poderia....

-Naturalmente. Minha casa será o ponto de partida. Isso está claro. Eu tampouco saberia como explicar a Jack. Daria-lhe um ataque! Terá que esperar até a uma em alguma parte.

-Mas onde? Como nos vestiremos? Tampouco temos que entrar literalmente na casa. O que necessitamos certamente está na estufa ou no abrigo. Mas deveríamos levar algum tipo de luz. Tomara tivesse uma lanterna surda.

-Não há tempo - disse Emily, lamentando que assim fosse. -Levarei um farol de carruagem. Isso bastará.

-Como vamos entrar? Não podemos pedir a seu cocheiro que nos deixe ali.

-Terei que lhe dizer que nos leve a um lugar próximo. Isso não é problema. Conheço alguém que vive perto. Direi que vamos de visita.

-À uma da noite e vestida como um limpador de chaminé - ironizou Charlotte, rindo sem querer.

-OH. Claro. - Emily mordeu o lábio. -Será melhor que não. Direi que ela ficou doente. Vestirei-me de ladra e ainda por cima porei um bom xale. Você terá que fazer o mesmo. - E antes de que Charlotte pudesse protestar, acrescentou: -Buscarei algo das criadas, elas vestem coisas simpless, cores escuras. Isso servirá. Vamos. Temos que fazer muitos preparativos.

Com o coração na boca, Charlotte a seguiu.

Passavam cinco minutos da uma quando Charlotte e Emily, vestidas de escuro e com xales sobre a cabeça (no caso de Emily, sobre tudo para ocultar o brilho de seu cabelo), avançaram furtivas pela calçada para a porta que dava ao jardim de Dulcie Arledge. O carruagem não levava o farol aceso, era suficiente as luzes da rua e, de qualquer modo, desejavam que ninguém reparasse nelas.

-Trago uma faca e um espeto se por acaso está fechada com cadeado -sussurrou Charlotte.

-Um espeto?

-Sim, de cozinha. Já sabe. Para provar se as coisas estão cozidas.

-Eu que vou saber. Não cozinho nunca. Sabe usá-la?

-Pois claro. Só terá que cravar.

-E se abre a porta? - disse Emily surpreendida.

-Não, tola! Assim se sabe se a carne ou o bolo estão preparados.

Emily riu e Charlotte soltou um gritinho de excitação e riu também.

O cadeado, lógicamente, estava posto e Emily teve que sustentar o farol em alto de costas ao Charlotte enquanto vigiava temerosa a rua. Charlotte acionou o espeto e na hora conseguiu abri-lo. Emily apagou a lanterna, abriram a porta e entraram.

Suspirando de alívio, voltaram a fechar a porta, cuidando de levar a corrente e o cadeado, se por acaso alguém notava que estava aberto e receava algo.

Estava muito escuro. O muro era bastante alto para impedir que chegasse a luz dos lampiões, e o céu estava coberto, de modo que a pálida lua mal dava uma tênue luminescência.

-Não vejo nada - sussurrou Emily. -Assim não vamos achar a estufa, e menos ainda manchas de sangue.

-Você acha que haverá alguém acordado na casa?

-Não, mas é melhor não arriscar-se. Descobririam-nos antes do tempo, e como íamos justificar nossa presença?

Isso sossegou Emily. A idéia de ser descobertas era de por si espantosa. Não tinham a menor desculpa para estar ali.

Com Charlotte em cabeça, percorreram um estreito atalho pavimentado, que o musgo e o orvalho faziam escorregadio, Emily ia pega à saia de Charlotte para não perder-se na escuridão. Um grito de surpresa, embora fosse involuntário, podia despertar a toda a vizinhança.

O grande parede da casa se levantava à sua esquerda, negra contra as nuvens pálidas, e ante elas havia um telhado irregular e o bordo denteado de um telhado mais baixo, rematado por um elegante florão acabado em ponta.

-O invernáculo? - murmurou Emily.

-A estufa - sussurrou Charlotte.

-Como sabe?

-Pelo florão. A um invernáculo não põe florão. Sigamos adiante.

-Está certa de que têm uma estufa?

-Claro que sim. Estas casas tão grandes sempre têm estufa.

-Porquê?

-Porque sim. Para convencer a seu marido de dar um passeio no meio da noite?

Emily riu de nervoo.

-Não seja ridícula. Uma entrevista romântica entre os lírios com seu melhor roupão?

-Se levar vinte anos casada... mas ele preferia os homens. Maldição! - exclamou Charlotte ao tropeçar contra uma pedra decorativa.

-O que acontece?

-Uma pedra. Calma. - Cautelosamente reatou seu lento avanço pelo atalho.

Estiveram uns cinco minutos caladas. Tinham rodeado a estufa pela parte de trás e avançavam por um terraço para umas sombras densas.

-Isso deve ser o invernáculo - disse Emily.

-Ou um caramanchão - observou Charlotte. -Que também serviria. OH, não, claro que não. Como iriam dissimular as manchas.

-Não vejo nenhum vidro.

-Eu não vejo nada de nada.

-Se fosse vidro veríamos algum reflexo! - falou Emily. -Tampouco está tão escuro!

Charlotte se voltou devagar e Emily, que não o tinha notado, chocou-se com ela.

-Avise! - replicou-lhe. -Não faça isso sem dizê-lo.

-Perdoe. Olhe! Vejo um reflexo. Por aí há vidro. Deve ser a estufa.

E sem mais se dirigiu para lá. Momentos depois, achavam-se ante um pequeno edifício cujos vidros refletiam a lua em um desenho aquoso como um cetim manchado.

-Está fechado? - perguntou Emily.

Charlotte experimentou abrir e a porta cedeu ao primeiro intento, chiando sobre suas dobradiças sem graxa.

Emily ofegou e imediatamente tampou a boca.

-O farol! - ordenou.

Uma vez dentro, Charlotte o segurou em alto e Emily o acendeu outra vez. Contemplaram o interior do invernáculo, que era muito pequeno. Sobre uns bancos havia bandejas de alfaces e malmequeres, plántulas de espora de cavalheiro. Em outra prateleira havia vasos de barro com gerânios.

-O chão! - sussurrou Emily. -Esquece as prateleiras.

Charlotte desceu o farol para iluminar o piso de madeira.

-Não vejo nada - disse Emily com desilusão. -Me parece terra calcada. Move-a um pouco. - referia-se à luz.

Charlotte avançou uns passos e sua saia fez cair um vaso de barro.

-Ah! - Emily conteve o fôlego e sufocou um grito.

-Ssh! - Charlotte moveu outra vez o farol. Então o viu: uma mancha alongada no chão, perto da parede do fundo. -Oh!

Emily se agachou para olhar.

-Pode ser algo - disse. -Olhe. - Mais acima havia uma prateleira com latas e frascos que continham produtos químicos e mesclas de abono, creosoto e veneno para vespas e formigas.

-Certamente é creolina - disse Charlotte. -Mas não tem por que sê-lo. Se eu tivesse manchado tudo de sangue teria jogado algo forte. Me passe esse desplantador.

-O que vais fazer?

-Cavar.

Charlotte investiu uns momentos em arranhar o chão duro, retirando com esforço a terra empapada de creolina e deixando descoberto uma capa inferior cujo aroma, quando a levou cautamente ao nariz, era muito diferente. Não era mas, rançoso e um pouco adocicado.

-Sangue? - disse Emily com voz rouca.

-Acredito que sim. - Charlotte se endireitou, pálida. -Agora temos que achar o carrinho de mão. Vamos. Certamente estará aí fora.

Com o farol baixo e meio coberto por um xale, saíram sigilosas do invernáculo, fechando a porta.

-Terá que levantar o farol - disse Emily nervosa.

Charlotte o fez.

-Onde se guardam os carrinhos de mão? - disse. Emily mal pôde ouvi-la. -E a capa de chuva. Pergunto-me onde pode estar.

-E se queimou tudo? Eu o teria feito.

-Teria necessitado um incinerador. A capa de chuva cheiraria muito mal. Além disso, não acredito que fosse dela. Certamente é do jardineiro, e ele sentiria falta dela. Não, com certeza a lavou bem e a deixou em seu lugar. Em alguma parte tem que haver um abrigo para pás, restelos e essas coisas. -Girou lentamente com o farol um pouco mais alto.

-Aí! - disse Emily, justo quando Charlotte o via também. -Baixa a luz! Alguém pode vê-la! Depressa!

A passo rápido, mas cuidando de não atirar nem tropeçar com nada, foram para o abrigo, que por sorte tampouco estava fechado. Uma vez dentro deixaram a luz sobre um banco: não era necessário. O carrinho de mão estava ali, e a capa de chuva pendurava em um prego.

Emily soltou um gritinho de medo e Charlotte se estremeceu ao vê-la. Com cuidado, e o coração lhe palpitando, estendeu a mão e passou um dedo pela madeira do carrinho de mão.

-Está úmida? - perguntou Emily.

-Claro que não. Mas sim muito manchada. Acredito que também é criolina. - Foi para a capa de chuva e aproximou a luz. -Vejo algo na prega. É sangue.

-Então vamos! - apressou-a Emily. -Temos suficiente! Vamos antes que alguém nos descubra! - Charlotte deu marcha atrás agradecida. O xale lhe enganchou na asa do carrinho de mão e teve que atirar com força, presa do pânico.

Dispunham-se a apagar a luz e retroceder o caminho rodeando a estufa em direção ao muro, quando viram outra luz a uns quinze passos delas, no jardim.

Ficaram petrificadas.

-Quem anda aí? - inquiriu uma voz masculina. -Alto ou será pior para vocês!

-Meu deus! - soluçou Emily. -É a polícia!

-Diremos-lhe o que descobrimos! - sugeriu Charlotte, mas apesar de sua firmeza, as pernas lhe tremiam. Por uns segundos os pés não lhe obedeceram.

Emily tratou de dizer algo, mas não conseguiu emitir som algum. O guarda estava ali mesmo. Podiam ver sua capa e seus reluzentes botões. Sustentando em alto sua lanterna surda, olhou-as sem dar crédito a seus olhos.

-Vá, vá. O que temos aqui? Duas criadas roubando alfaces, né?

-Equivoca-se - replicou Charlotte com toda sua dignidade, que naquele momento era mínima. -Somos...

Emily reagiu na hora e lhe deu um sonoro pontapé.

Charlotte gritou ao mesmo tempo que lhe escapava um xingamento.

-Ei! - disse o guarda com calma. -Não é preciso falar mau. Quem são e o que fazem aqui? Terei que lhes levar detidas. Sei que não vivem aqui porque conheço todas as criadas da senhora Arledge, e vocês não são da casa.

Só havia uma saída.

-Pois claro que não! - disse Charlotte, recuperando a voz. -Meu marido é o superintendente Pitt, da delegacia de polícia do Bow Street. E esta é minha... minha criada. - Não havia necessidade de incriminar Emily, de momento ao menos. Notou o suspiro de alívio de sua irmã.

-Olhe, senhorita, será melhor que não diga tolices, não vai conseguir nada - disse o guarda com certa surpresa.

-Isto é a cena de um crime! - exclamou Charlotte. -Há manchas de sangue nessa estufa. E se não avisar ao superintendente Pitt, depois não me venha com desculpas!

-Estará dormindo em sua casa - disse o homem.

-Naturalmente. Vive no número doze do Gordon Square, Bloomsbury. Faça com que vão buscá-lo! - ordenou-lhe Charlotte. -E existe o telefone.

-Bom, não sei se...

O guarda economizou mais discussões ao acender uma luz na casa e abrir a porta da copa.

-O que acontece? - disse uma voz de homem com tom de obrigação. –Quem anda aí?

-Polícia, senhor - respondeu o guarda. -Agente Woodrow, senhor. apanhei a duas ladras no jardim.

-Não somos...! - começou Charlotte.

-A calar! - O guarda Woodrow se sentia a desgosto, a situação era muito ridícula. -Não se preocupe, senhor. Tudo está controlado, diga à senhora Arledge que não se inquiete. Eu me ocupo de tudo.

-Está em um engano - disse Charlotte com súbito desespero. -Não somos ladras. Faça vir imediatamente o superintendente Pitt. - Engoliu em seco. Era agora ou nunca. Tudo estava em jogo, a carreira do Thomas, a casa nova... –Isto é a cena de um crime!

-Um crime? -O mordomo, vestido em camisa de dormir, saiu finalmente do portal sustentando a luz. -Quem morreu?

-O senhor Arledge, imbecil! - disse Charlotte exasperada. -Mataram-no em seu próprio invernáculo e depois o levaram ao parque no carrinho de mão. Avise à polícia! Têm um desses aparelhos novos na casa?

-Sim, senhora.

-Pois use-o. Chame o Bloomsbury um e dois sete e que venha o superintendente Pitt.

-Ouça, um momento - respondeu Woodrow, mas o mordomo havia tornado a entrar já na casa. Uma ordem imperiosa era preferível a estar ali de pé com o relento, em camisa de dormir e discutindo com um guarda. Soava-lhe o nome do Pitt. Saberia sair daquela horrível situação.

-Não devia fazer isso! - zangou-se o guarda. No piso de acima se acendeu uma luz. -Olhe o que fez! Despertar a pobre senhora Arledge. Como se não tivesse bastante com a morte de seu marido e todo o resto.

Charlotte se embrulhou em seu xale. Sem a excitação da tarefa que as tinha levado ali, agora estava sentindo frio.

Emily tiritava a seu lado. Não queria imaginar o que Jack diria quando se inteirasse de tudo. Só podia confiar em que a mentira de Charlotte funcionasse.

Tudo se foi para o ar quando novas luzes se acenderam na casa e ouviram passos na cozinha. Momentos depois, Dulcie Arledge em pessoa aparecia na porta da copa envolta em um impressionante roupão de seda azul, com o cabelo castanho solto sobre os ombros.

-O que está acontecendo aqui? - perguntou. -Descobriu a uns intrusos, senhor guarda? É certo isso?

-Com efeito, senhora. - Woodrow deu um passo à frente, puxando Charlotte e Emily.

Emily estava aterrada, embora não era fácil que Dulcie a reconhecesse daquela vez e à incerta luz da lanterna surda.

-Mas se parecem mulheres - disse Dulcie.

-São, senhora - confirmou Woodrow. -Provavelmente pretendiam roubar hortaliças. Não se preocupe, senhora. Levo-as a delegacia de polícia e assim não terá que fazer outra coisa que assinar a queixa. E agora vamos. – Ele puxou Charlotte com menos delicadeza que antes. Pelo visto lhe tinha esgotado a paciência. A presença de Dulcie tinha bastado para lhe fazer mudar de tática.

-Charlotte! - Houve um tom de pânico na voz de Emily. -Pensa algo! Isto será a ruína do Thomas, mas também a do Jack!

Momentos tão desesperados requeriam medidas extremas. Charlotte abriu a boca e soltou um grito horripilante.

-Demônios! - O guarda Woodrow deu um salto e a lanterna caiu ao chão, rodando sem chegar a romper-se até o bordo do caminho. Charlotte gritou outra vez, com o que várias persianas subiram com fúria e puderam ouvir-se renovados sons de atividade.

-Por que o fez? - sussurrou furiosa Emily.

-Testemunhas - disse Charlotte, e voltou a gritar.

Woodrow blasfemou e foi recolher a lanterna.

-Basta, pelo amor de Deus! - ordenou Dulcie. -Está incomodando a toda a vizinhança. Pode-se saber o que lhe passa? Cale-se de uma vez!

Emily estava a ponto de fugir correndo, mas pensou melhor.

Charlotte se dirigia para Dulcie e o ráio de luz procedente da porta de trás no momento em que Landon Hurlwood, despenteado e com a camisa de dormir aparecendo sob o roupão, apareceu atrás do Dulcie, muito alarmado.

-Machucaste-te? - perguntou ao Dulcie.

Ela sentiu que o sangue ia aos pés.

Hurlwood olhou ao Charlotte, mas não a reconheceu. Depois olhou ao guarda.

-O que ocorre aqui? O que é tudo isto? Passa algo grave?

-Ninguém se machucou, senhor - disse Woodrow, pela primeira vez hesitante.

Sabia prever um escândalo quando se apresentava, mas que fosse em casa da senhora Arledge pulverizava todos seus esquemas. - Esta mulher - indicou a Charlotte, -esta mulher se pôs a gritar, mas ninguém a há tocou, juro-o.

Hurlwood a olhou: uma moça com o cabelo alvoroçado, vestida como uma criada e a pele manchada de creolina e pó. Logo desviou o olhar para Emily, que agora estava à luz.

-Senhora Radley - Então empalideceu, compreendendo o que Dulcie tinha visto ao fixar-se.

-Não me ocorre, senhora Radley, que motivo pode ter para irromper de noite em meu jardim - disse Dulcie com voz gélida e trêmula. -Mas nada posso fazer para ajudá-la. Deve ter-se tornado louca. Possivelmente o pós-parto e o pós campanha política, minaram sua saúde. Seu marido...

-A polícia está a caminho - a interrompeu Charlotte.

-A polícia já está aqui! - indicou Dulcie.

-Refiro-me ào superintendente Pitt. - Charlotte afastou o cabelo dos olhos. -Encontramos o lugar onde assassinaram ao senhor Arledge. Há sangue seco no chão, apesar da cronlina que você jogou em cima. E também está o carrinho de mão que utilizou para levá-lo até o parque, depois de lhe cortar a cabeça.

Dulcie se dispôs a protestar, mas sua voz se extinguiu em um sussuro.

Landon Hurlwood estava tão branco que seus olhos pareciam buracos abertos no crânio.

-E a capa de chuva - disse Charlotte implacável - que empregou para não manchar-se de sangue.

-Grande tolice! - ofegou Woodrow. -A senhora Arledge jamais teria pensado sequer em algo tão horrível. Que barbaridade.

-Fez isso para poder casar-se com o senhor Hurlwood, agora que também está viúvo, para vingar-se dos vinte anos de enganos a que a submeteu seu marido - disse Charlotte em um tom extranhamente uniforme no meio do silêncio. –Aproveitou os crimes do Verdugo do Hyde Park para matá-lo e ficar livre.

Woodrow olhou a Dulcie.

Hurlwood se tinha afastado um pouco dela e sua expressão, como a de quem reconhece à morte, era de terror e compreensão.

Dulcie olhou Charlotte com tal ódio que Emily inclusive deu um passo atrás, enquanto Charlotte notava que o frio lhe atravessava o corpo. Finalmente Dulcie se voltou para o Hurlwood.

-Landon! - E ao ver a expressão dele (o horror, a culpa e a repulsa), soube que tudo estava perdido.

Foi impossível saber o que teria feito a seguir, porque a porta do jardim se abriu sem que ninguém o notasse e Pitt estava a dois passos, mal vestido e com o cabelo alvoroçado.

Dulcie olhou-o, e abriu a boca, mas não emitiu som algum.

O rosto do Pitt mostrava essa decepção própria de quando se acorda à crua realidade depois de um sonho doce e agradável. Charlotte pôde observar que toda a admiração e a ternura se esfumavam para deixar um agonizante resíduo, aquele pingo de piedade que nunca abandonava a ele, à margem de quem a inspirasse, da ferida ou da culpa. E com frieza compreendeu até que ponto Pitt se emocionara ante Dulcie, e quão perto tinha estado ela, Charlotte, de perder uma parte dele que jamais teria podido recuperar.

-Agente, leve a senhora Arledge à delegacia de polícia do Bow Street, presa pelo assassinato do Aidan Arledge - disse Pitt.

-Sim, senhor. - Woodrow engoliu em seco. -Sim, senhor! - E se dispôs a cumprir a ordem.

Landon Hurlwood estava pego ao chão como se tivesse transpassado o mundo das coisas cotidianas e os pequenos assuntos da vida.

Depois Pitt se voltou para Charlotte e Emily, e disse a esta:

-Seu marido se ocupará de você. A Deus obrigado, isso não é de minha incumbência. - E acrescentou, olhando ao Charlotte -Espero que possa explicar tudo isto, minha senhora. Merece que a detenha por invasão de moradia!

-Apanhou-a - disse Charlotte fazendo caso omisso. -Acha que lhe devolverão o cargo de superintendente?

Pitt tratou de conservar sua aparência de cólera, mas perdeu. A despeito de todos seus esforços, seu rosto esboçou um sorriso de entristecedor alívio.

-Sim. Hoje mesmo cacei ao Verdugo.

-De verdade? - Não lhe importou saber quem era. Precipitou-se em seus braços. -É o melhor! Sempre o soube!

Pitt a estreitou com força e lhe beijou a face, o cabelo, os olhos e a boca. Depois estendeu o outro braço e atraiu para si Emily.

-Vai dizê-lo a Jack? - perguntou ela com voz baixa.

-Não - respondeu Pitt agüentando a risada. -Mas você sim! 

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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