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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DELFIM / José Cardoso Pires
O DELFIM / José Cardoso Pires

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

«Alongando o braço para alcançar os cigarros e a boquilha, Maria das Mercês fica estirada ao comprido. Não se mexe durante muito tempo, é capaz de se manter assim uma eternidade. Deitada e de pernas penduradas no braço do maple, está voltada para as traves do tecto onde se reflecte o brilho da lareira.(...) As mãos repousam sobre o vinco do slip. Ali, junto desse contorno (de rendas?, de nylon?) que ela afaga por cima do tecido das calças, a pele lisa das coxas tem o toque mais precioso de um corpo de mulher (...)»

 

 

 

 

O largo. (Aqui me apareceu pela primeira vez o Engenheiro, anunciado por dois cães.) O largo:

Visto da janela onde me encontro, é um terreiro nu, todo valas e pó. Grande de mais para a aldeia ‑ é facto, grande de mais. E inútil, dir‑se‑á. Pois, também isso. Inútil, sem sentido, porque raramente alguém o procura apesar de estar onde está, à beira da estrada e em pleno coração da comunidade. Tal como um prado de cardos, mostra‑se agressivo, só domável ao tempo; e se não pica repele, servindo‑se das covas, dos regos das chuvas ou da poeirada dos estios. Um largo, aquilo a que verdadeiramente se chama largo, terra batida, tem de ser calcado por alguma coisa, pés humanos, trânsito, o que for, ao passo que este aqui, salvo nas horas da missa, é percorrido unicamente pelo espectro do enorme paredão de granito que se levanta nas traseiras da sacristia. Diariamente, ano após ano, século após século, essa muralha, mal o sol se firma, envia a sua sombra para o terreiro, arrastando uma outra, a da igreja. Leva‑a envolvida, viaja com ela pelo deserto de buracos e de pó, cobre o chão, arrefece‑o, e ao meio‑dia recolhe‑se, expulsa pelo sol a pino. Mas a tarde é dela. À tarde a sombra recomeça a invasão, crescendo à medida que a luz enfraquece. Tão escura, observe‑se, tão carregada de hora para hora, que parece uma mensagem antecipada da noite; ou, se preferirem, uma insinuação de trevas posta a circular pela muralha em pleno dia para tornar o largo mais só, deixando‑o entregue aos vermes que o minam.

Assim, o enorme paredão figura mais como vulto, fantasma familiar, do que propriamente como muro. Isto, num certo sentido. Porque para quem conheça a aldeia (consulte‑se a citada Monografia do Termo da Gafeira, do Abade Agostinho Saraiva, MDCCCI) é ali que está o pórtico do povoado, o mastro, segundo ele, dumas gloriosas termas romanas mandadas construir por Octavius Theophilus, Pai da Pátria. Lá se pode ler, na pedra imperial (e na gravura que abre o livro), o mandato solene gravado a todos os ventos:

 

           ISIDI DOMIN ‑ M. OCT. LIB THEOPHILVS

 

A muralha, como lápide de uma vasta e destroçada campa com vinte séculos de abandono. Ou simplesmente como cabeça do largo. E, crucificada nela e na sua legenda de caracteres ibéricos, digo, lusitanos, a igreja. Depois temos buracos e terra esquecida até à estrada de alcatrão, temos tabernas e comércio sonolento e, a fechar o traçado, uma fila de casas a cada margem, muitas delas vazias e ainda com as argolas onde antigamente se prendiam as bestas. Antigamente, em tempos mais felizes.

Antigamente, cinquenta, setenta anos atrás, o terreiro foi com certeza uma praça de feira, porque não? Um arraial. Um encontro de marchantes, com almocreves e mercadores de sardinha vindos de longe atrás das muares. Haveria barbeiros tosquiando ao sol e mendigos de chaga e alforje; tabuleiros com arrufadas; galinheiras de guarda aos seus pequeninos cestos de ovos, acocoradas debaixo de largas sombrinhas (visto não existirem árvores); não faltaria sequer o capador em visita, cavalgando uma égua tristemente guedelhuda... Tudo isto devidamente emoldurado por uma correnteza de mulas e de jumentos presos às argolas das paredes enquanto os donos se perdiam pelas tabernas.

Feira e arraial. Arraial bordado por um friso de animais de carga, um friso de caudas a dar‑a‑dar (como galhardetes ao vento), nuvens de moscas em torno de ancas luzidias, e lojas cheias de forasteiros, lojas cheias, lojas cheias, e ‑ atrevo‑me a acrescentar ‑ dinheiro e vinho a correr, mesmo que fosse a hora da missa e os camponeses embalados nos negócios e nas conversas de balcão esquecessem lamentavelmente os seus deveres de cristandade. Não se lhes levaria a mal por isso, tinham desculpa. A igreja, já de si pequena para a povoação(1), não comportaria os mercadores de fora, e os mais atrasados haviam de ficar à porta, ao ar livre, acompanhando a cerimónia por simples cálculo de tempo e pela campainha do sacristão. Os últimos, à falta de melhor, recolher‑se‑iam nas tendas, bebendo e conversando em tom comprometido, mas todos,

 

*1. «No Livro das Confirmações do arcebispo Gusmão Contador dava‑se a Gafeira, à data de 1778, com igual número de almas ao da própria cabeça do concelho [...] ao passo que em uma última relação se vê não haver mais do que 1044 habitantes, entre varões e fêmeas, e disto se tira prova do abatimento a que esta terra se acha condenada.» ‑ Saraiva, Monografia.

«Só no ano passado emigraram da freguesia dezanove famílias inteiras, calcule Vossa Excelência.» ‑ Regedor da aldeia, em conversa.

 

no largo ou ao balcão, fariam o sinal‑da‑cruz quando, através da manhã silenciosa, soasse o tilintar de sanctus, sanctus, sanctus.

Pois sim, mas agora o largo é o que se vê. Uma muralha, um espectro. Mais exactamente, um terreiro enfeitado de argolas que tiveram a sua época quando rompiam das pedras chumbadas para deterem o viajante pela arreata da montada, de modo a fazerem desta praça uma estação, um ponto desejado. Por isso ele se mostra tão triste e paciente no seu silêncio e, mais que paciente, esquecido da aldeia. Tão renegado como o conheci faz hoje um ano, dia trinta e um de outubro, por ocasião da minha primeira caçada na lagoa. Abade Agostinho Saraiva:

«Desta terra da Gafeira quis a Providência fazer exemplo de castigo. Porque sendo dotada de águas boas na cura das feridas malignas e de abundante e saboroso pescado, não a redimiu o Senhor com a vara de Sua Altíssima Clemência, a qual tem duas pontas e são a do castigo do século e a do arrependimento cristão. E estas pontas são de fogo e de mel e conduzem à absolvição no dia em que das entranhas da Gafeira desaparecer o último sinal de paganismo bem como dos festins e orgias que se levaram a efeito nas termas romanas instaladas por Teófilo e das quais restam pedras ímpias e inscrições de agravado speculum exemplorum.»

Aceitemos a maldição. Soletremos a muralha pecadora e com mão oficial, zeloso doutor, escrevamos o nihil obstat para descanso de todos nós. Sou assim, respeito os mortos que deixaram a sua palavra no granito e no papel. Mesmo que os mortos se chamem Agostinhos Saraivas, Júlios Dantas, Augustos de Castro e outros literatos menores, sem esquecer os das estátuas. Bem, e depois?

Depois, quero dizer que os respeito mas que não me aproprio deles, ao contrário de muitos políticos, para lhes torcer o cadáver e as ideias à minha feição. Na maior parte dos casos passo de chapéu na cabeça por tais personagens, como se continuassem vivos, e a isso chamo eu respeitar. Por conseguinte, o muro que se conserve como está, e o abade também (nas páginas que escreveu), porque um e outro são incapazes de me explicar o terreiro acolá batido pela luz da tarde. Para o compreender tenho de fazer um desvio, recuar um ano. Escolher uma manhã de domingo e colocar, ao centro da moldura de argolas encimada pela legenda romana, não o bufarinheiro de outros tempos, não as galinheiras debaixo dos guarda‑sóis nem o ferrador a talhar cascos, mas um Jaguar modelo E‑4.2. litros. Isso: o largo e um Jaguar de frente para a igreja, mais ou menos no sítio onde está o meu carro. Um pouco à esquerda, talvez; vinte passos, digamos. Agora junto, se me permitem, dois lobos‑de‑alsácia, cada qual amarrado ao seu escudete do pára‑choques; junto sol, muito sol, e ‑ perdoai, Abade, que não sei o que faço ‑ espalho um pouco de música também, ponho a deslizar certos coros esganiçados que costumam ouvir‑se nas missas de província.

‑ Spiritus sancte, Deus... ... miserere nobis.

‑ Sancta Trinitas, Unus Deus... .. miserere nobis.

Gente, não a meto por enquanto: não a havia nessa manhã em que desembarquei na Gafeira. De vivo, tudo quanto encontrei foi a ladainha e os cães que estavam de sentinela ao poderoso automóvel, e mesmo esses não se dignavam olhar‑me. Gemiam, rancorosos, e arreganhavam os dentes para as vozes que passavam por eles a contrapelo: «Au... aú‑aúúú...»

«Aúúú...»

Os uivos esfarrapavam a ladainha e, naturalmente, haviam de chegar à igreja, que era acanhada e de madeiros pintados, igreja pobre como se depreende. Aí abalariam os camponeses na sua fé ensonada, inquietavam‑nos (e não se esqueça que, momentos depois, eu iria presenciar o desfile daquela gente à saída da missa ‑ posso vê‑la portanto lá dentro: os homens de pé, as mulheres de joelhos. Filhas‑de‑Maria, de rosário nos dedos; rapazes com transístores e blusões de plástico recebidos de longe, duma cidade mineira da Alemanha ou das fábricas de Winnepeg, Canadá; moças de perfil de luto ‑ as viúvas de vivos, assim chamadas ‑ sempre a rezarem pelos maridos distantes, pedindo à Providência que as chame para junto deles e, uma vez mais, agradecendo os dólares, as cartas e os presentes enviados...

Chega. Todos, homens e mulheres, estariam como mandam as narrações sagradas, isto é, na apatia dos seus corpos cansados; todos a repetirem um ciclo de palavras, transmitido e simplificado, de geração em geração, como o movimento da enxada). E nisto...

... eis os uivos, lá fora. Correu um murmurar de botas no soalho, ouviu‑se um choro de criança, e então, no altar‑mor, talvez o Engenheiro se tivesse voltado ligeiramente na cadeira.

Se assim foi (como é de crer que tenha sido), tanto bastou para que um criado, por sinal maneta e mestiço, deslizasse por entre os fiéis e viesse à rua calar os animais.

Eu próprio o vi sair ao terreiro na tal manhã em que cheguei à Gafeira. Passou por mim a assoprar palavrões, cortado pelo sol e a balouçar o braço decepado. Só que, para espanto meu, diante das feras tornou‑se frio de repente e falou‑lhes em tom comedido. Dirigiu‑se à primeira:

«Lorde duma cana, que nunca mais tens juízo...» E começou a desatar‑lhe a trela.

«Um», respondeu‑lhe o Lorde, deitando‑se por terra.

Dirigiu‑se à segunda fera, uma cadela:

«E tu? Queres festa, Maruja? Está‑te a pular o pé?»

«Um», respondeu a Maruja. «Um‑um...» E empinou‑se, de língua de fora, para o cumprimentar. Mas o mestiço afastou‑se secamente.

Com a única mão, desprendeu os animais e conduziu‑os para o outro lado do largo. Escolheu duas argolas, amarrou‑os com força e tão curto que roçavam o focinho na parede, mal tocando o chão com as patas dianteiras. E sempre a falar‑lhes, sempre num sermão constante que, à distância onde me encontrava, me parecia um discorrer de conselhos paternais. Causava assombro assistir a semelhante tarefa de punição, à autoridade com que ele a executava e aos movimentos precisos e eficazes da mão no governo de duas feras tão difíceis.

Mão arguta, pensei. Mão controlada.

 

Dois cães e um escudeiro, como numa tapeçaria medieval, e só depois se apresenta o amo em toda a sua figura: avançado na praça com a esposa pela mão; blazer negro, lenço de seda ao pescoço.

De entrada pareceu‑me mais novo do que realmente era, talvez pelo andar um tanto enfastiado, talvez, não sei, pela maneira como acompanhava a mulher ‑ de mão dada, dois jovens em passeio. (Quando, na noite seguinte, o viesse a conhecer, compreenderia que, afinal, o que pairava nele era o ar indefinido, o rosto sem idade de muitos jogadores profissionais e amantes da vida nocturna. Mas continuemos.)

Continuemos, como naquela manhã, a seguir marido e mulher atravessando o largo. Havia sol a jorros, brilho e ouro, e não a claridade sem vida deste final de outubro a que estamos a assistir e que desgraçadamente nasceu comprometido, irmão do inverno. Lembro‑me bem de que na altura pensei na maravilha da luz do outono ‑ a melhor de todas ‑ e em duas moedas resplandecentes, enquanto observava o casal em marcha para o Jaguar. Seriam sessenta metros ao todo (ponhamos mesmo setenta, a avaliar pela distância a que o meu carro está da igreja), setenta metros de silêncio e a passo de procissão, através de camponeses endomingados e ainda entontecidos pela lenta e pesada obrigação da missa. E eles avançando de cabeça levantada, mão na mão, sem um cumprimento a quem quer que fosse; sem uma palavra entre ambos, e muito menos para o mestiço que os esperava com os cães pela trela. Duas silhuetas de moeda, dois infantes do meio‑dia. Dois quê?

Sorrio: Infante nunca foi um termo meu. Saltou‑me à ponta da frase porque desde que cheguei que o tenho no ouvido.

«Então o infante? Não encontrou o infante lá por Lisboa?»

A palavra deve andar a correr neste momento acolá, no café em frente. Não me admiraria muito. Infante para a esquerda, Infante para a direita... porque é no café que o velho cauteleiro faz praça, com as suas duas tiras de lotaria penduradas na gola do casaco. Só ele é que trata assim o Engenheiro, por Infante, e se calhar julga‑se com direito a isso. Talvez tenha razão. Talvez, insisto eu, tenha mesmo necessidade desse direito, já que, além de vendedor de sortes grandes e terminações, ele é o guia e o arauto da aldeia. Cada ofício com seu estilo, e este ‑ guia, pregoeiro, arauto e actividades associadas ‑ precisa de ter o seu. Por que diabo não há‑de haver copyrights para os cauteleiros?

«Então o Infante?» ‑ aí está como ele me veio receber, não há muito tempo, quando me apeei no largo.

E, enfim, não se pode dizer que seja uma maneira muito própria de saudar um conhecido, um hóspede, como é o caso, que regressa à aldeia ao cabo de uma ausência de 365 dias. É verdade, trezentos e sessenta e cinco dias, Velho. 31 de outubro de 1966 ‑ 31 de outubro de 1967. Datas de caçador. E este ano, que eu saiba, não foi bissexto.

Mas, ainda que tivesse decorrido apenas um mês, ainda que fosse uma escassa quinzena, uma semana, a questão põe‑se no mesmo pé. Um caçador desembarca naquele terreiro, corre os olhos em redor ‑ muralha, casas mudas, a porta aberta da loja do Regedor ‑ e salta‑lhe uma voz não sabe donde. Vira‑se. Dá com um homenzinho a fitá‑lo: «Então o Infante?»

Palavra, parece uma acusação. Desconcerta encontrar assim uma cara que nos é conhecida e no meio dela um grande dente espetado a pedir‑nos contas:

«O Infante?»

Depois os olhos, Velho. Essas frestas sem brilho também se estavam nas tintas para tudo, para mim, visitante de boa vontade, e para todos os outros caçadores que hoje e amanhã vêm à Gafeira em romagem às aves da lagoa. Queriam saber do Engenheiro (do Infante, peço desculpa). Quanto ao resto, os olhos nem bom‑dia nem boa‑tarde.

«Não o viu? Não se encontrou com ele lá por Lisboa?»

Perante isto um homem hesita. Percebe que houve coisa. Mas o quê?

«Crime», pronuncia o dente inquisidor; e sente‑se que dentro do Velho se tinha levantado uma alegria mansa. A vitória do profissional de novidades que gosta de chegar primeiro, e no momento inesperado, com a revelação que deslumbra o visitante.

«Estou‑lhe a dizer. Cães, criado e dona Mercês, já nada disso existe. Caramba, não me diga que não sabia.»

Calcula‑se como um dente como aquele, único, eremita, pode apanhar um forasteiro à hora do meio‑dia numa aldeia em silêncio. É um osso eriçado no deserto, um estilete que se aproveita da desorientação de um

estranho para penetrar nele a fundo, sempre mais fundo, de modo a destruir‑lhe os últimos restos de dúvida e de serenidade.

«Homem...» tenta ainda o viajante. E o outro a cortar rápido, sem mais aquelas: «Assim mesmo. A dona Mercês matou o criado e o Infante matou‑a a ela. Nem mais.»

A partir daqui o Velho não tem bandeira. Entrou num discurso tortuoso, carregado de meias palavras, no qual era possível vislumbrar Maria das Mercês, tresloucada de todo, a enfrentar o marido e o criado, essa estranha aliança que a torturava. «Acabou‑se. Comeram‑se uns aos outros, tiveram o fim que mereciam... Agora quem quiser caçar na lagoa já não precisa da autorização do Infante para nada.» E etc.

Assim, de cabeça baixa, gabardina no braço, deixei eu há coisa de três horas o meu carro, rumo à pensão. Levava em cima de mim a voz do pregoeiro da aldeia; ia envolvido numa tempestade de vinganças e delírios populares, as tiras de lotaria esvoaçavam à minha frente e o homem parecia louco, louco varrido. Ou fazia o seu número?, perguntava eu a todo o passo.

Avalio deste miradouro as voltas e contravoltas que aquele dente não deu sobre o terreiro: picando‑o todo em redor de mim, mordiscando‑o em círculos enquanto estive parado junto do carro; singrando depois em ponto corrido a perseguir‑me com lengalengas, e finalmente, já mais confiante, tecendo renda de palavras, enovelando‑se‑me nos passos, a tolher‑me a marcha. A dada altura fui eu que me deixei levar por ele. Tocado pelo veneno da curiosidade, em vez de me dirigir logo para aqui, onde uma estalajadeira de caçadores aguardava a minha chegada desde manhã, acompanhei o Velho ao café. A pensão que esperasse, decidi. Primeiramente convinha tomar fôlego, beber um copo, e, já agora, conhecer as linhas com que se cose o caçador ignorante dos mistérios aldeões. Estes da Gafeira sobretudo tinham sido muitos e inacreditáveis. Se tinham.

«Eu não dizia?», anunciou o Velho, mal entrámos no café. «O Infante também não está em Lisboa.» Apontava‑me a dois homens que estavam sentados a uma mesa, como se me tivesse ido buscar algures para vir ali confirmar o que há muito suspeitava.

«Diabo...», murmurou um deles, o dono do café, coçando a cabeça. «Isso agora é que é o diabo...»

E o outro, um batedor de caça:

«Teria ele abalado para a África?»

«África?», gritou o Velho. «Deixa‑me rir. Em África nunca ele estaria em segurança.»

O Batedor então:

«De qualquer maneira fugiu. E quem foge é porque não quer ser apanhado. Essa é que é essa.»

Velho‑dum‑Só Dente:

«Agora assobiem‑lhe às botas. Matou, cometeu crime... E ainda dizem que há justiça.»

Batedor:

«Duas mortes, nem menos.»

Velho:

«Uma, Batedor exagerado. O Domingos foi morto pela patroa.»

Aqui estabeleceu‑se confusão. Segundo o comerciante, proprietário de uma casa de porta aberta, já se sabe: a verdade está nos autos. Nada de crime. Segundo o cauteleiro a moeda foi o ciúme. A patroa mata o criado, e o marido, roído de mágoa, mata‑a por sua vez. «Pois tu não entendes», remata o Velho, «que desta maneira é que o alma do diabo fica sem ponta de honra onde se agarre? Não entendes mais, Batedor de boca aberta?»

Parece que os estou a ouvir: dois pregadores em fúria. Discutem a morte e já lhe metem almas do outro mundo de permeio; falam de cães, cães‑fantasmas (ou terei entendido mal?) e nada os pode deter.

«Destelharam a casa», dizia o Velho (ou o Batedor, já não os distingo...). «São as almas dos Palma Bravo que andam por lá à porrada.»

«As almas e os cães», acrescenta o outro. «Também aparece o fantasma do Domingos disfarçado de cão‑maneta. Dizem.»

«Bem feito. O Domingos não quis ser toda a vida cão do Infante? Não se comportou como tal? Pois teve o fim que merecia, nem mais.»

«Morte de cão, como lhe pertencia.»

«E o Infante também teve o fim justo. Preparou a cama, deitou‑se nela. Foi ou não foi?»

«Grandecíssima cegada.»

«Já lá dizia o filho do enganado que quem muito fornica acaba fornicado. E é o caso. A verdade está bem à vista.»

«Cegada. Grandecíssima cegada.»

Eram dois corvos, dois apóstolos excomungadores. O cauteleiro a celebrar maldições, com as tiras de lotaria ao pescoço como uma estola de sacerdote, e o Batedor, sempre fiel, a acompanhar‑lhe a ladainha. Infante... Infante..., repito de mim para mim. E muito no íntimo peço‑lhe desculpa de ter empregado um termo tão do Velho e em que só o Velho sabe pôr a intenção mais profunda.

Falta‑me, quanto mais não seja, o ódio animal de um dente que navega entre a fábula e a justiça para dar a essa palavra a violência devida. E, para já, retiro a expressão. Seria um efeito inútil, tenho de reconhecer.

Portanto, onde pus Infante ponho Engenheiro, ou simplesmente o nome próprio, Tomás Manuel, e desvio o olhar do café onde deixei o Velho e o Batedor. Volto‑me antes para o largo e, sem querer, torno à manhã do ano passado em que assisti à aparição do casal Palma Bravo depois da missa. Sigo‑o de perto, atravessando a multidão (com licença, Velho) por entre filhas‑de‑Maria, viúvas‑de‑vivos e rapazes de blusões comprados nos armazéns de Winnipeg, Canadá. Só que me demorei demasiado com coisas à margem, fantasmas, questões de café ‑ e, com tudo isto, o nosso homem já está ao volante do carro. A seu lado, Maria das Mercês, jovem esposa; atrás, o criado mestiço entre dois mastins. «A Barca do Inferno» ‑ resumo da minha janela, pensando no triste fim que os espera.

Admirado pelos jovens de blusão, Tomás Manuel, o Engenheiro, limpa os óculos escuros com gestos vagarosos. Não se mostra interessado na curiosidade que o rodeia, quase não olha, sabendo que com um toque de acelerador abre caminho e segue em frente. Obedecerá a certa regra que mais tarde, numa noite de mau vinho, eu ouviria da boca dele em relação à gente da Gafeira e das suas manhas?

Puxo pela memória: Estes tipos quanto mais nos olham menos nos querem ver... ‑ era a tal regra. O Engenheiro completara‑a com o exemplo dum celebrado tio Gaspar que só descia à aldeia para ouvir missa e que, mesmo então, nunca fitava ninguém de frente. Fazia‑o por pena, dizia ele. Receava que essa gente cegasse quando lhe sentisse o brilho do olhar.

Pelo que vim a saber de Tomás Manuel nos nossos serões na Casa da Lagoa, acredito que estivesse assim naquele instante: pé no acelerador, soberano ao tempo e aproveitando, sem o saber, as regras dos grandes defuntos. A própria Dona da Pensão, tão pausada, tão arranjadeira, afirma que havia nele um coração largo e um cata‑vento de caprichos; que ora seguia as lições do pai e do avô, pessoas de amigo conviver, ora as do citado tio Gaspar, o fidalgo do olhar que cegava. Tinha fases, dizia ela.

E eu: «Fases?»

Corto as considerações da minha hospedeira porque me vem à lembrança um estrondo poderoso, rasgando a aprumada linha do meio‑dia. Que é isto?, perguntará, se perguntar, alguém desprevenido. O largo ficou a tremer, o Jaguar transformou‑se num ronco que já passou a aldeia, que já se perdeu na estrada e uiva pela serra acima, a devorar curvas sobre curvas até mergulhar no pinhal e deter‑se a meia encosta sobre a lagoa. É ali a casa.

Julgo que ainda a sei apontar, embora esteja oculta, na outra aba dos montes. Guiando‑me pelo enfiamento da chaminé da vivenda do padre, com aquele pau de fio mais isolado, vou lá dar, é infalível como assinalar a lagoa ao pôr‑do‑sol pela coroa de fumos que a denuncia e que é ‑ torno a dizer ‑ o reflexo dela, a respiração que se liberta dos pântanos e dos caniços.

 

Aí vai a dona da pensão: um mastodonte. Acaba de sair por baixo da minha janela, carregada de gorduras e de lutos, e calculo que de boca aberta para desafogar o seu trémulo coração. Atravessa a rua perseguindo a criada‑criança, como é hábito. Entra no café: mal cabe na porta. Tem cabecinha de pássaro, dorso de montanha. E seios, seios e mais seios, espalhados pelo ventre, pelo cachaço, pelas nádegas. Inclusivamente, os braços são seios atravessados por dois ossos tenríssimos. «Jesus, o que são as coisas», queixa‑se ela a todo o momento.

Com um corpo assim não podia deixar de ser uma criatura sofredora, maternal. Vemo‑la sentada, formiga‑mestra duma hospedaria de caçadores: toda ela transborda generosidade. Chegamo‑nos mais: verificamos que está erigida sobre uma fina camada de cheiro à flor do soalho, o modestíssimo cheiro a sabão amarelo, e começamos a perceber uma música gentil lá no alto ‑ a sua voz. Escutemo‑la sem pressas, é o som duma alma sensível e resignada. E não faltarão pequenas delicadezas, pequenas gotas de orvalho, a brindar quem se abeirou dela. Ainda há pouco, quando me veio apresentar os cumprimentos, teve de me trazer a Monografia aqui presente:

«Espera, da outra vez o senhor escritor lia muito este livro, e pode ser que ainda lhe interesse. Deixe‑mo levar, disse eu. E aqui tem, faça favor.»

Agradeci. Era um gesto, como se vê, uma pequenina gota de orvalho destilada de um corpo volumoso e paciente. E a prosa do Dom Abade também é paciente, tem todo o ar de um inventário de ruínas e de coisas paradas. Um conforto caseiro, próprio para distrair o caçador, repousando‑o da Natureza e dos inquietantes jogos das aves. Depois é feita de muita verdade histórica (classificação da minha hospedeira), com «muitos e muitos casos das famílias de melhores exemplos».

«Que eu saiba, só o Engenheiro tem outro volume igual», acrescenta ela. «Mas, Deus me perdoe, desconfio que nunca passou daquela parte que diz respeito aos oito fidalgos de bom coração.»

«Oito fidalgos?»

«Os Palma Bravos, senhor escritor. Vem lá tudo. A maneira como fizeram a casa, o Terramoto da Pólvora, a doação da lagoa... Enfim, era gente de valor.»

Minha formiga‑mestra, mulher de carreirinhos certos e diligentes: eu, que percorri linha a linha toda a Monografia do Abade Domingos Saraiva, que transcrevi inclusivamente algumas páginas num caderno que trouxe comigo e que por acaso está acolá, naquela mala, eu, leitor impuro, garanto com a mão na mesma piedosa obra que jamais encontrei nela o menor traço de qualquer fidalgo de bom coração. A sério, palavra de senhor escritor. O abade sabia molhar a pena sem carregar muito nas tintas e se fez elogios aos Palma Bravo, foi suficientemente cauteloso para não se chegar demasiado à lagoa. Ai não, que não foi. Até porque a lagoa queima, não é assim?

«A lagoa queima, a lagoa queima...» Onde ouvi eu isto? Hoje, quando fui comprar a licença ao Regedor, ou há um ano atrás? No café? E a quem, ao cauteleiro? «Está envenenada, é uma lagoa de chumbo e de pólvora. E ai daquele que meter lá a mão...» Onde diabo fui eu buscar isto?

«O que são as coisas», lamenta a minha hospedeira; e também não sei se essa voz é da ainda agora, quando a boa senhora conversava comigo sentada aí à beira da minha cama, se mais antiga, doutras visitas que me fez, quando, igualmente sentada no mesmo sítio e vestindo a mesma bata negra de cetim, espalmava a mão no peito, a ofegar de ter subido a escada. Ondulava, ondulava. Já nesse tempo a voz lhe tremia como um sussurro de pétalas no bico dum enorme seio.

«O que são as coisas... Se o Engenheiro não cismasse tanto na lagoa...»

Neste ponto, desenha‑se‑me, muito clara, uma frase de Tomás Manuel que anotei (ou não ‑ é questão de procurar) no meu caderno: «Se até agora foi a minha família quem governou a lagoa, não hei‑de ser eu quem a vai perder.» Saberia disso a estalajadeira recatada? Tudo leva a crer que sim, e que sem perder a sua comovida seriedade pegasse nessa sentença (nessa declaração de princípios, para ser mais exacto) e se alongasse na explicação dos cegos caprichos que levaram o Engenheiro à perdição. Faria comparações com o passado, invocaria os oito fidalgos de bom coração (a bíblia do Dom Abade está para ela na proporção em que o friso dos fantasmas populares está para o cauteleiro) e o seu comentário sairia perfeito, exemplar, retocado de clemência. Imitando‑lhe o estilo:

«Esses ditos, senhor escritor, já vinham do pai dele, que era pessoa geniosa mas muito dada, e do avô Dom Tomás, que com poucas falas fazia tremer os doutores. O Engenheiro respeitava‑os muito. Muitíssimo. Mas (e aqui baixar o tom de voz), todos os caprichos que ele tinha no que tocava à Casa da Lagoa era para um dia figurar nos livros ao lado dos antepassados. Acredite, senhor. Cá por mim, os tais ditos não tinham outro motivo. Cuido que se sentia mais perto dos avós quando os empregava, faço‑me compreender? (Pausa, durante a qual afagava tristemente o vestido nos joelhos.) Cometeu erros, não digo menos. Fez muita e muita estroinice, e sem necessidade. Mas se gastou uma fortuna com guardas e com a lagoa, a intenção não era má. Nisto de honrar os defuntos entendo que todos os exageros são desculpáveis.»

Estar mais perto dos mortos... repetir‑lhes a palavra, iludir o tempo adverso. «Em resumo, a solidão» ‑ era o que tinha dito, sem se dar conta, a minha hospedeira. E olha quem fala. Ela, uma criatura mais que todas solitária, sentada à beira duma cama; tão deslocada no tempo, a infeliz, tão suspensa sobre ele, que me aparece, não num quarto de pensão, mas numa vasta e deserta pista feita de tábuas intermináveis que cheiram a sabão amarelo. A sua figura matronal perde‑se na aridez do tablado, e é minúscula, infantil. Santo Deus (ou Santíssimo Sacramento), o que são as coisas. Uma formiga‑mestra a comentar a solidão dos outros e a afagar os joelhos abandonados; a despedir‑se, com esse gesto, do seu corpo roliço, secretamente viçoso e afogado em gorduras. Ou então (como escreveria um romancista citadino e de pena em dia), uma mulher que embala a infância, perseguindo‑a na imagem de uma criada‑criança, ou que aperta um segredo dentro dela, sabe‑se lá, calcando‑o com os dedos e com a melancolia da resignação. Sabe‑se lá, pois, sabe‑se lá. É com certeza esse o mundo de uma hospedeira de aldeia: quartos para povoar, primaveras de sabão amarelo. Frases perdidas, sempre as mesmas, a desdobrarem‑se pelo tempo fora. «Defuntos, defuntos...» Como se a aldeia da Gafeira, tantos anos adormecida, não tivesse sofrido em menos de vinte e quatro horas uma desgraça transformadora.

«Jesus», recomeça ela, «que cisma a daquele homem em querer figurar nos livros.» E também este desabafo é intemporal. Podia ter sido de hoje (e se calhar foi) e podia vir de longe, de um vulto perdido no infinito a falar‑me de cima de uma cama de boneca na extremidade dum sobrado deserto: «Só Deus, senhor escritor, só Deus sabe a vida regalada que ele levava, se quisesse. A fábrica punha‑lhe um chalet à disposição na vila, mas isso sim, a lagoa cegava‑o. E tudo por causa daquela ideia de figurar nos livros.»

E eu, do vão desta janela:

«É possível. De resto, tinha todo o direito a isso.»

E ela:

«O quê, ao lado dos outros Palma Bravos? Senhor, eram pessoas de respeito.»

Eu:

«Bem sei, está aqui no livro.»

Ela:

«Nunca naquela família tinha havido até à data o menor escândalo. Não me acredita?»

Outra vez eu:

«Acredito. Ou antes, estou a pensar no que escreveria o homenzinho se fosse vivo.»

Ela: «O autor do livro?»

Eu:

«Sim. Tenho a certeza que se calava, minha hospedeira. Mais que certo.»

E então:

«E talvez fosse o melhor que ele teria a fazer. Na minha opinião há desgraças que só servem para emporcalhar o papel. Com sua licença, senhor escritor.»

Eu, lembrando‑me do Velho‑dum‑Só Dente:

«A menos, hospedeira recatada, que o Abate tivesse o arrojo, o brilho, a alegria, a justiça, e etc. e tal, que teve o cauteleiro quando me contou os crimes, e metesse na história os cães, as almas penadas e as legendas populares.»

Ela, de mãos na cabeça:

«O cauteleiro, Mãe Santíssima.» Eu:

«E então? De agora em diante essas coisas fazem parte da lagoa.»

Ela:

«Ora. É um ingrato, o cauteleiro. Um mafarrico que se alguma vez trincar a língua morre envenenado. Então ele haverá quem acredite nas patranhas de semelhante traste, diga‑me só? Nem o próprio, quanto mais. E, senhor escritor, só por ignorância, só por muita heresia, é que se chamam as almas do outro mundo a uma questão tão clara como esta.» Suspirando fundo: «Ai, ai... cala‑te, boca.»

Mas a boca não obedeceu, reparo agora. Mudou, quando muito, de tom. Com mágoa, com piedade até ‑ digo bem: mágoa, piedade ‑ demonstra como, fazendo de Tomás Manuel um criminoso que vinga na própria mulher a perda de um criado, o cauteleiro lhe punha em dúvida a qualidade de homem, ou seja, os seus costumes de macho, passe a expressão. «Ora, se algum pecado se podia apontar ao Engenheiro, era ser leviano em demasia e andar, como diz o outro, sempre atrás de saias. Passe a expressão.»

«Lógico», concordo. O discurso da minha hospedeira era perfeitamente certo e provado. Mas também a resposta do cauteleiro, se aqui estivesse, resposta de armadilha, como sempre, não seria menos certa. Esta só: que quem muito fornica, cansa‑se, isto é, que «quem muito fornica acaba fornicado». E como argumento chega. Dá para os dois lados, mas tem igualmente lógica e, mais ainda, astúcia. É de força, o Velho. Principalmente quando se trata do Infante.

A minha hospedeira:

«Se tivesse havido crime como ele diz, se alguém a tivesse matado (à Maria das Mercês) e a atirasse para lá (para a lagoa), alguma vez o corpo ficava espetado no fundo? Não vinha logo ao de cima, faça favor de me dizer? E a autópsia? Para que servem as autópsias? Enganavam‑se, não?» Abanando a cabeça: «Também que ideia a do Engenheiro, desterrar a pobre da senhora num ermo daqueles.»

Fiquemos por aqui. Não é necessário que a minha hospedeira torne a evocar a dama da lagoa no seu exílio do vale, dias sem fim a fazer tricot, a odiar os cães (como era voz pública que odiava), fumando, cozendo bolos.

«Boa vida, mas infeliz», lamentaria, para resumir, a estalajadeira: «E a minha será melhor?»

«Cala‑te boca», penso eu em voz alta.

Ninguém entra nem sai do café.

 

É lá (no café) que se encontra a estalajadeira. Não aqui, pousada na minha cama a conversar, nem tão‑pouco no cenário de um imenso e distante estrado, a abanar a cabeça desconsoladamente. «Jesus, Jesus», estará ela a dizer às imposturas com que o Velho enche os ouvidos dos caçadores de fora.

Separa‑nos a largura de uma rua que atravessa a aldeia e que desemboca no largo e na estrada nacional número não sei quantos, e separa‑nos uma fracção de tempo ‑ quanto ao certo? Mas, se verificar, encontro sinais da boa senhora neste quarto, como sejam: o volume da Monografia sobre a mesa, o colchão ligeiramente descaído no sítio onde esteve sentada (embora o tivesse composto quando saiu) e, por fim, a ruga que os pés dela foram levantando no tapete enquanto falava comigo.

Há também as correias de um cantil: Que ela desmontou e pôs de lado, em cima da colcha, para o encher de aguardente ‑ se possível daquela bagaceira que em tempos me serviu e que tinha um gosto inesquecível.

«O gosto das pêras», lembra a minha hospedeira.

«É verdade, o tal gosto das pêras.»

Era uma bagaceira única, aquela. Tinha gravidade, calor lento, e possuía um travo difícil que vinha de terem mergulhado nela pêras silvestres. Soromenhos, chamam‑se esses frutos pequeninos, e nunca me passaria pela cabeça que pudessem amaciar tão bem uma aguardente.

Outra coisa inesquecível: A forma aconchegada de um cantil. As correias e o tampo cromado estão na mesa‑de‑cabeceira. Agora só desejo que quando me devolver o frasco ele traga o peso, o denso e confortável balançar de um líquido bem adormecido. Com uma aguardente inspirada não há lagoa que resista. E, como fiz notar à minha hospedeira, este ano vamos ter caça a dar com um pau. «Diz o Batedor», acrescentei.

E ela (alisando o vestido?):

«O Batedor diz o que lhe convém para entusiasmar os caçadores. O que não acho certo, senhor, é que não tenham baixado o preço das licenças. A lagoa foi arrematada por sessenta contos, quando, no tempo do Engenheiro, nunca ia a menos de noventa.»

«Melhor. Mais dinheiro fica para esta gente.»

«Noventa contos», continuou a minha hospedeira. «E a Câmara a rir‑se, e ele de espingarda no armário. Duas ou três batidas com os donos da fábrica, umas pescariazitas, e toma lá noventa contos de mão beijada. Já pensou na fortuna em que lhe ficava cada tiro?»

«Não», respondi. «Nem ele, com certeza. Mas só há um tiro barato na vida.» (O último ‑ acrescentei‑o de mim para mim ‑, o do suicídio.) «Acorda‑me amanhã às seis?»

A criada‑criança entrava e saía, carregando a bagagem. Da primeira vez a mala, da segunda as botas de borracha com canos altos que lhe davam pelo peito e, para terminar, a espingarda e a cartucheira. Meti‑lhe na mão algum dinheiro:

«Para rebuçados. E se eu amanhã apanhar um ganso dou‑te mais. Combinado?»

A patroa sorriu para mim:

«O senhor estraga‑me a rapariga. Então que se diz?»

«Obrigada», respondeu a criadita; e corou muito.

Quem me dera ‑ pensei eu, vendo‑a sair ‑ o que eu não daria para sonhar esta noite com montanhas de rebuçados a faiscar como diamantes e que esses rebuçados fossem o desejo mais alto e mais profundo dela. Quem me dera, repeti. Seria bom para ambos e uma raridade, um caçador a partilhar um sonho e um ganso com uma criança. O mais grave é que seria também uma superstição, ou quase. Já está a ser. E que fraqueza. Dão azar, as superstições.

Um ruído triste ‑ uma nora a girar ‑ escorre pela tarde. Relógio cego. Relógio de maquinismos perros, tocado por uma dessas mulas vendadas que nunca foram à tropa e que, por consequência, nunca aprenderam as velhacarias que fazem a lenda das mulas. A nora vai rodando minuto a minuto, sente‑se mas não se vê. E a mula‑relógio arrasta‑se num círculo de terra e de alcatruzes que se traduz num outro círculo, mas de sons é maior ‑ uma área onde cabe a tarde e o largo que, de quando em quando, é atravessado por um acontecimento: o grito de alguém, um vulto passageiro, esta furgoneta que aí vem.

Produtos Rekord: Letras vermelhas a gritarem no altifalante sobre a cabina. «Rekord», lê‑se nos lados e nas portas de trás. Avante, alegres propagandistas de feira, e bons negócios para as «Pomadas‑Vermífugos‑Den‑tífricos‑Preços de Laboratório» e para o mais que não cabe no letreiro da furgoneta. Preparem novos discursos (dispensando os frascos de lombrigas, se não vêem inconveniente). Sugestão: palestra aos gafeirenses Sobre O Reumatismo e a Pomada Rekord, porque dezenas de velhos desta progressiva terra sofrem da «ferrugem da lagoa» e pedem às abelhas que os piquem. Resulta, mas dói. E até à próxima, índios. Até à próxima, pedagogos ambulantes, tribunos e peritos do marketing que viajam nessa furgoneta de altifalante, enaltecidos pelos universais slogans Rekord e por derrotados paso‑dobles.

Sozinho no meu posto sobre a aldeia, sinto‑me um observador de gabinete que reconstitui um condado desaparecido. A furgoneta vai‑me aparecer dentro em pouco na estrada que sobe para o pinhal e lá no alto ainda a poderei ver pela última vez, atravessando as zonas de corte, entre cacos de resina e troncos decepados.

Toda essa corda de montes, antes de ter sido hipotecada e solta ao mato por um agrónomo caprichoso, foi conquistada por um outro Palma Bravo (o primeiro, o mais antigo, Tomás Manuel também, e porventura couteiro‑mor), discutida em demandas pelos que vieram a seguir (pelo de poucas falas, pai do actual, pelo advogado guerrilheiro, por um outro que tinha o brilho que cegava...) e, pouco a pouco, elevada à categoria de território intocável em nome da lenda e do costume. Não faltaram padres de aldeia a prestar‑lhe homenagem. Regedores, escrivães, armas. Nem sequer um canónico de tanta sabedoria como Dom Agostinho Saraiva, autor da Monografia do Termo da Gafeira I Leiria ‑ Ano de MDCCCI.

Pego no livro. Tenho‑o nos dedos, ressequido, amortalhado numa capa de pergaminho e envolvido em cheiro de santidade. Hei‑de relê‑lo logo ao deitar e percorrer, guiado por ele, túmulos, subterrâneos e caminhos legionários dos conquistadores romanos, sonhando milagres, sonhando excomunhões. Reviver, em suma, a glória e o apocalipse de um nó esquecido da Terra ‑ isto que me rodeia, a Gafeira que o abade cisterciense reduziu a uma ferida divina. Então hei‑de pasmar uma vez mais com o gosto oficial e admirar as minúcias que há nos sábios de livraria quando se debruçam sobre o passado morto para fugirem às inquietações do presente. Direi: sábios domésticos, sábios domésticos.

E não deixarei de ter um momento de ternura para as ingenuidades deste zelador de antiquitates lusitanae (é assim que se diz?), instalado na sua prosa cuidada, no seu elzevir oitocentista que volto a saborear com as licenças necessárias e o privilégio real. Fiz‑me entender, leitor benigno? Fui claro, monge amigo? E nós, minha hospedeira?

Recuo um passo, espreguiço‑me.

Nós, já percebi, também não estamos melhor. Solidão, bem vejo. Respeito pelos antigos. Daí que uma formiga‑mestra de caçadores guarde tão alta veneração pelas páginas ásperas dum memorial, seguindo, sem dar por isso, as opiniões e o retrato que lá se faz da Gafeira. É fácil. Se eu quiser, abro o livro ao calhar e não tenho dúvidas: logo nos primeiros capítulos cruzo‑me com legiões de romanos; se andar mais, encontro peregrinações de leprosos em demanda da lama da lagoa «que é de cura infalível nas chagas mais rebeldes» (palavras da Dona da Pensão, não do Abade); mais adiante, tropeço em restos de balneários e aparece‑me ela, de dedo espetado: «Luxo e desgoverno. Foi a ânsia de luxar que atirou com tantos emigrantes daqui para fora...»

Ah, hospedeira, que por vezes chego a pensar que é o doutor Agostinho Saraiva quem fala por detrás dessa boca de pétalas. Só ele criticaria assim os camponeses que abandonam a terra e os rapazes que vestem blusões de plástico e vão para o café ver televisão. «Luxo e desgoverno...»

«Quando o pobre come galinha...»: Duma quelha que dá para a estrada sai uma velhota a perseguir uma galinha. «Piu‑piu...», vai chamando, como se trouxesse no avental algum milho para lhe oferecer. Mas o animal não se comove e, de cabecita a dar a dar, passo alertado, entra em campo aberto, no terreiro. Quando o pobre come galinha, diz o ditado, não há luxo nem desgoverno: um dos dois está doente. A galinha não se deixa agarrar porque não se sente ainda doente. E a velhota, estará?

O livro do Dom Abade pesa‑me na mão. Não preciso de o abrir para antever o universo que me espera. Numas folhas encontrei um acampamento militar, noutras um cipo funerário de Tibúrcio, o Moço, poeta cirurgião; noutras galerias, aras votivas, dedicatórias. A páginas tantas entra‑se na idade dos varões lavradores.

«Subiu este lugar no conceito do Paço e do Reino mercê de alguns honrados que o povoaram e protegeram com o seu braço, mormente os da casa dos Palma Bravo...»

E é como se tivessse a minha hospedeira a interromper‑me a leitura, deleitada:

«Os oito fidalgos de bom coração.»

Então eu, que estudo pela décima vez os lavradores enaltecidos, por acaso nenhum deles fidalgo e todos Tomás Manuel de baptismo, eu pouso o livro e faço os meus cálculos. Somo aos oito Palmas Bravo da crónica o pai e o avô do Engenheiro: perfazem dez e saltaram todos do passado, assanhadíssimos. Não importa. Andam em guerra nos pinhais (para onde se dirige a furgoneta do altifalante) e, sendo ou não fantasmas de fidalgos que agitam os protocolos do diabo, contam. Junto‑lhes mais o Engenheiro: ficam onze. «Onze», confirmo. Número primo, dois algarismos gémeos, aprumados. Duas lanças verticais a fechar a lista dos Palmas Bravo.

Seguindo a furgoneta pelas curvas da serra, perco‑me lá longe, nas noitadas que passámos em tempos, eu e Tomás Manuel Undécimo, quando bebíamos na sala sobre a lagoa, com centenas de rãs a conversar aos nossos pés. Ao mesmo tempo, por cima das águas tutelares imagino uma inscrição em grandes letras douradas numa fita suspensa das nuvens:

 

        AD USUM DELPHINI

 

Isso. Como nas gravuras antigas.

 

Ad Usum Delphini ficaria bem como divisa, a encimar o portal da casa. A meio da arcada, de preferência, e na boa cantaria.

As paredes foram levantadas por Tomás Manuel, avô do Engenheiro, depois de um incêndio que passou à história como «terramoto da pólvora». Da pólvora, porque começou numa explosão do forno, onde três carvoeiros, a soldo dos Palma Bravo, fabricavam munições contra o governo liberal; terramoto, porque, com o abalo, a aldeia veio para a rua julgando que era o dia final, a Terra a estalar. Nesta aventura, parece que andou metido um advogado errante, de olhos acesos e barbas de espinhos, e que o dito advogado percorria a cavalo montes e penhascos com correio secreto do príncipe D. Miguel (uma vez que no escritório do Engenheiro havia uma proclamação miguelista). Deixá‑lo, coitado. Admito que seja uma das almas penadas do repertório do cauteleiro, mas não julgo que possa fazer grandes estragos. Cansou‑se muito em vida, morreu no fio, chupado pela tísica. Com que cara iria aparecer agora à sociedade? De olhos acesos e barbas de espinhos?

Tomás, o Avô, deitou contas às cinzas e pôs‑se a construir a casa sobre as velhas cavalariças que tinham escapado ao incêndio. Teve de fazê‑la mais pequena, imagine‑se o desgosto. Dois andares, escada de pedra no pátio de entrada, varanda corrida, hoje sem grades e apenas três potes gigantescos a guardá‑la. «Grades para quê, se não há crianças?» perguntava o Engenheiro quando decidiu transformar a sala grande num estúdio de longas vidraças, aberto sobre o terraço. E assim a casa ficava mais ligada ao vale, mais devassada por ele. Mais triste no inverno, quando a chuva saltitava no cimento da varanda, fustigada pela ventania.

O estúdio. Tudo disposto como na noite das apresentações: cobres nas paredes, uma espingarda antiga em cima da lareira. Eu, caçador em visita, Maria das Mercês no lugar que lhe é próprio (sentada no chão, entre revistas ‑ Elle, Horoscope, Flama), o marido estendido no maple e com um braço pendurado para a bebida que repousa em cima do tapete. Música de fundo, e do gira‑discos.

Distraímo‑nos com coisas várias, histórias de caça (foi lá que me emprestaram o precioso Tratado das Aves, Composto por Um Prático), tempo, viagens, comida. Também nomeámos indivíduos, gente dos nossos mundos privados que às vezes se tocam entre si e fazem, como se diz, a aproximação dos estranhos. De nome em nome, uns presentes, outros esquecidos, vem à baila a morte. Há sinais dela espalhados pelo meu caderno, opiniões do género:

«Morte? A única coisa que os horóscopos nunca dizem...) ‑ Maria das Mercês.

«Não há morte em beleza senão a de Cristo ou a de parto» ‑ idem, no final de um outro serão.

«Fazer a campa na lagoa!» ‑ Tomás Manuel.

«A sério», declara o Engenheiro. «Se um dia fizer testamento, é na lagoa que quero ser enterrado.»

Maria das Mercês levanta uma sobrancelha. Ou não compreendeu, ou não achou graça.

«Que tétrico, Tomás.»

«Nem por isso. É muito mais decente ficar na lagoa do que numa cova cheia de bichos.»

«Uf», diz ela. «Está de todo, você.»

«Estou óptimo.» Tomás Manuel ri. E como se recitasse: «Bem enterrado no fundo do lodo que é para a miuçalha dos peixes não me chegar...»

«Para já, acho de péssimo gosto», torna Maria das Mercês, enquanto liga o televisor. Regula as imagens, deixando‑as sem som, e dali regressará ao seu canto entre almofadas. Já regressou. Agora está atenta ao ecrã. Procissões e paradas militares, é o que corre diante dela. «Além de que um enterro desses devia dar um trabalhão», acrescenta, sem desviar os olhos do televisor.

«Não sei porquê. É tão fácil fazê‑lo na lagoa como noutro lado qualquer.» Tomás Manuel vira‑se para mim: «Não há aldeias no Amazonas com cemitérios submersos? Então, pronto. Arranjam‑se uns escafandros...»

Maria das Mercês, cortando logo:

«Outra vez os coveiros do escafandro? Você acaba por me fazer pesadelos, Tomás.»

O marido ergue o copo de whisky numa saudação:

«Coveiros do escafandro. É ou não é sensacional?»

Rimos os dois, ela não. A morte, os grandes silêncios e os espectáculos da solidão apavoram‑na. No inverno raramente desce à lagoa (garantira‑me o Padre Novo), e é decerto por isso, porque as águas sem luz, arrepiadas pelo vento ou pela chuva, lhe lembram um mundo despovoado.

«O que me admira é o orgulho daqueles peixes.» Agora é comigo que o Engenheiro fala, não com ela. «Saberem que entraram na agonia e puxarem pelo resto das forças para cumprir a última vontade. Outro whisky?»

«Aceito ‑ só uma gota. Whisky e peixes não ligam lá muito bem.»

«Ligam, pois. Estes são peixes especiais.» Tomás Manuel serve‑me a bebida no gesto clássico dos barmen: voltando rapidamente a garrafa, ainda rolhada, para espalhar o álcool depositado no fundo. «São peixes que cumprem por si próprios as suas últimas vontades.»

Fica de garrafa na mão. Pensa numa campa austera a despontar das águas, rodeada de bardos prateados; vê aridez, majestade, e, na massa negra do fundo da lagoa, cadáveres de peixes que preferiram sepultar‑se vivos a serem devorados pelos irmãos.

«Àquilo chamo eu raça, nervo. E sabedoria. Tanto que só os grandes é que têm a coragem de se enterrar. Pelo menos é o que contam os pescadores.»

E a mulher, sem deixar de seguir a televisão:

«Ah, pois. Vá pelo que lhe dizem os pescadores que vai bem servido.»

«Mas é que vou mesmo. E fica sabendo que nunca me arrependi. Na caça cão e batedor, na lagoa rede e pescador. Boa ou má, ainda não conheço melhor receita do que esta.»

Será um ditado?, comento de mim para mim. Será um dos muitos pensamentos, regras ou caprichos, herdados de Tomás, o Fundador, de Tomás Terceiro, Quarto ou Oitavo, de Tomás o Avô, e por aí fora? Ao certo, certo, desconfio de que nem a jovem esposa o saberá. Nem tão‑pouco ele, Tomás Undécimo, admirador dos peixes que se exilam para se pouparem às humilhações da morte.

«Palavra, esta história fascina‑me.» O Engenheiro fala baixo, pausadamente. «Um criado meu viu há dias dois cadáveres desses arrancados do fundo da Verga Grande. Estavam impecáveis.»

«Cadáveres de santos», murmuro, e cá por dentro sorrio: Oh, a fácil poesia. Mas nada de pressas. Desejar fazer do corpo um padrão para além da morte será porventura menos fácil?

Imagino uma dinastia de patriarcas guardados como tesouros nas profundidades e as lápides a saírem das águas: Tomás Manuel (1600?), Tomás Manuel (1700?), Tomás Manuel (1800?), Tomás Manuel e mais Tomás Manuel... eles também, desgraçados peixes sem mácula. E insisto: «Cadáveres de peixes santos.»

«Positivamente. O criado diz que os apanharam inteirinhos.»

Maria das Mercês encolhe os ombros:

«O Domingos, veja só.»

«E depois? Que eu saiba, o Domingos não é nenhum aldrabão.»

«Aldrabão, não. Mas lá que é um sonhador, é.»

«Sonhador, com o sentido prático que ele tem?»

«Sonhador, pois. Deve ser para aí da raça, ou do clima, sei lá. Havia uma cabo‑verdiana no colégio que era exactamente como ele.»

Marido e mulher discutem Domingos, o criado. Não é apenas o mestiço ágil que eu tinha visto a manobrar os cães no terreiro da igreja, mas ‑ como vou saber dentro de instantes ‑ o homem que gastara a infância nos cais do Mindelo, conduzindo marinheiros americanos com a sua voz branda e amável. Isso era o passado, declara o Engenheiro. A inteligência de que a natureza o dotou para sobreviver.

«E o passado não conta nas pessoas?», pergunta Maria das Mercês. «Pois olhe, eu acho que basta um tipo ter sido criado numa ilha para ganhar uma maneira de ser especial. Pelo menos precisa de imaginação para suportar aquela pasmaceira.»

Tomás Manuel pisca‑me o olho: «Influência do factor geográfico no comportamento das espécies.»

«Oh, não goze», implora ela, pegando no tricot.

E o marido, uma vez mais para mim:

«É isto. A sociologia chegou à Gafeira.»

Silêncio a seguir: uma esposa que faz malha, um Engenheiro anfitrião que bebe, rolando o copo nos dedos. Situação pouco agradável para um visitante, se não fosse o whisky velho que o acompanha e a não menos velha curiosidade que nunca abandona o contador de histórias, esteja onde estiver. Coleccionador de casos, furão incorrigível, actor que escolhe o segundo plano, convencido de que controla a cena, deixa‑me rir. Rir com mágoa, porque todos os contadores de histórias, por vício ou por profissão, merecem a sua gargalhada quando julgam que controlam a cena. E quem os trama é o papel, o espaço branco que amedronta ‑ e aí, adeus suficiência. Não há boa memória nem gramática que os salve. Aposto que Xenofonte, apesar de patrono dos escritores caçadores, foi muito melhor furão em campo aberto do que no papiro. Atenção a Tomás Manuel:

«Qualquer dia hei‑de pedir‑lhe para nos fazer uns grogues à maneira de Cabo Verde.» Refere‑se a Domingos, evidentemente. «Ficam estupendos.»

(Entretanto, lembro‑me eu, sempre a vigiar a rua e o café, os jornais da tarde ainda vão tardar com o seu boletim meteorológico. Sei muito bem o que se passou com o Domingos e a maneira como o Engenheiro o reconstruiu, peça por peça, depois de o ter arrancado a uma guilhotina da fábrica, sem um braço. Sei tudo. Conheço‑lhe a morte que o espera, e até como foi salvo da perdição da bebida graças a uma receita de Tomás Manuel, que, se não me engano, se resume a duas coisas: «rédea curta e porrada na garupa.» Sei tudo menos o passado próximo, o ontem e o hoje, que o jornal da tarde me reserva. E é importante.)

«Agora põe‑se‑lhe um tractor à frente e é tipo para o montar e desmontar com a maior limpeza. Mas deu‑me que fazer, Domingos duma cana. Fui‑me a ele, rédea curta e porrada na garupa, e pu‑lo okay. Maria, quanto tempo esteve o Domingos na Ford?»

«Seis meses», responde a mulher, do canto da sala. «Olhe... a locutora de que você gosta, Tomás.»

«Dá‑lhe cumprimentos. O caso é que num estágio de seis meses, ou nem isso, aprendeu a pegar num tractor como gente grande. Daí até ao Jaguar foi um brinquedo, faz dele o que quer.»

De quando em quando, Maria das Mercês tira uma fumaça da longa boquilha, torna a pousá‑la no cinzeiro e, diante do televisor, recomeça a manobra dos dedos e da lã. Maquinalmente, como as beatas quando desfiam um rosário. O tricot, afirma ela, descontrai («a pessoa deixa de pensar») mas, aqui para nós, qual a diferença entre o rosário e as agulhas?, pergunto, olhando‑a de relance. Mimetismo lúdico, Professor. Tricot para aquecer os pobres, ave‑marias para o nosso eterno descanso ‑ dois movimentos que descontraem a alma e a angústia. (Assunto a desenvolver no meu caderno de notas: a caridade como elemento de equilíbrio social; logo, como estabilizador das hierarquias. «Da necessidade da existência dos pobres para se alcançar o Reino dos Céus.» Mas não vale a pena gastar tempo com o assunto. Vem nos catecismos, Professor.)

Tomás Manuel vai discorrendo acerca de Domingos e eu ligo o que ele me conta à utilidade de certos homens desprotegidos e de certos pássaros de guias cortadas ao serviço do caçador. São criaturas diminuídas ‑ como o pobre, como o mal‑nascido ‑ e também se podia escrever sobre elas um outro catecismo. Mas nada de considerações à margem, principalmente neste primeiro serão da Casa da Lagoa. Terei outros na mesma sala sobre o terraço ou na adega da cave conhecida pelo bodegón. No dia seguinte (seis em ponto, minha hospedeira) estarei de volta, dessa vez para mergulhar no vale e atirar aos gansos e aos galeirões, protegido por este homem que, com uma assinatura, um salvo‑conduto, me defende (me defendia) das balas dos guardas. Tem (está vivo algures: continua a ter) trinta e poucos anos e sonha com um cadáver imaculado. Porquê, não é o momento de aprofundar. A resposta viria mais tarde, com aquele travo de desafio que nunca o abandona:

«Os cemitérios são de todos, a lagoa é só minha. Adoro as exclusividades.»(1)

Despeço‑me de Maria das Mercês:

«Até amanhã.»

«Até amanhã», responde ela.

«Mais um copo para o caminho?», pergunta o Engenheiro.

(Mas eu não lhe dou atenção. Acabam de chegar ali mesmo, ao largo, duas stations, uma delas com um barco de plástico no tejadilho. Os caçadores saem, os cães também.

«A frota aproxima‑se, a frota aproxima‑se...», alegro‑me eu a esta janela.)

 

*1. Textual, como consta dos meus apontamentos. Tomás Manuel defendia o princípio das exclusividades» que torna socialmente feliz o homem. «Todo o acesso é provocado pelo desejo de exclusividade», sustentava ele, se bem que por outras palavras.

 

A curiosidade, a terrível curiosidade que leva o ouvinte de lendas e de milagres a aflorar os lugares proibidos, pedia‑me que fosse ver a casa sobre a lagoa. Depois duma narrativa tão feroz e tão complicada como a do vendedor de lotaria, nada mais natural que aproximar‑me do cenário da tragédia, contemplar de perto a pousada solitária. Seria o peregrino que vem de longe, recebido por paredes vazias, por silêncio. Algures, no pátio, uma cadeira de praia abandonada, a lona apodrecida, em farrapos. Na varanda, ligando os enormes potes de barro, teias de aranha a brilhar ao sol. Um moscardo que passa a zumbir, um berro de ave na lagoa. Outra vez o sossego, o nada.

Mas nesta época do ano os dias acabam de repente (como estamos vendo) e havia coisas a assentar para amanhã, havia o aluguer do barco, a licença, uma infinidade de pequenos nadas. Numa abertura de caça na lagoa os preparativos levam o seu tempo, ensinou‑me a experiência. É necessário repouso, ordem lenta, para que se vá de consciência tranquila e se enfrentem com soberania os espaventos e as deslealdades habituais numa batida de muitos atiradores. Principalmente numa batida na lagoa ‑ sublinho; e nesse primeiro dia, nessa ofensiva confusa. A menos que, no meio de tanta barafunda, haja bastantes caçadores de qualidade, e nessa caso, enfim, sempre as coisas podem mudar de figura. Tenhamos fé. Esperemos que seja uma operação com um mínimo de disciplina e de inteligência, para não acabar tristemente numa girândola desesperada de fogo antiaéreo ou numa carnificina. Que palavra, carnificina.

De modo que, antes de mais nada, os preparativos. A visita à casa abandonada podia esperar mais um dia, mais um ano, uma eternidade, pois já não tinha sentido, a não ser como um arranhar de ferida ou de recordação. Seria bonito ver‑se o forasteiro, de chapéu na mão, em romagem aos destroços onde tiveram lugar as Conversações Sobre a Lagoa. Mas até isso (e é o meu lado bom que fala, o do caçador) não passaria de uma curiosidade, de um gesto generoso que fica muito bem, mas que não representa coisíssima nenhuma senão o espectáculo de quem o pratica. Assim mesmo. Por conseguinte, deixe‑se a casa em paz, deixe‑se o Velho e o Batedor, e para o largo é que é o caminho. No largo temos o Regedor, que está à frente dos arrendatários da lagoa. Agora é dele que depende a licença de caça, não de Tomás Manuel.

O terreiro estava como se imagina, deserto. Argolas inúteis, sol a pino; as mesmas tabernas sonolentas, os mesmos cartazes de pólvora e de adubo do ano passado e, ao fundo de certa loja, o Regedor, de chapéu na cabeça, a guardar o balcão. Para lá da porta, a muralha continuava com a sua lenda e o seu orgulho na outra extremidade do largo. Como se dissesse: «Quod scripsi, scripsi» ‑ e fosse um imponente eco romano. «O que está escrito em mim, está escrito há mais de vinte séculos e há‑de perdurar. Quer os vossos delfins estejam mortos ou vivos; quer o fumo dos vossos tractores me venha turvar o rosto; quer os eruditos da região, abades e outros que tais, me lancem as excomunhões que me lançarem ‑ eu, muralha, posso bem com as arrogâncias, e cá estou. Quod scripsi, scripsi. Só acato as razões da Madre Natureza, as ervas que me agasalham e a companhia dos bichos silenciosos. Esta lagartixa, por exemplo.»

E era verdade. Espalmada na inscrição imperial, havia uma lagartixa. Parda, imóvel, parecia um estilhaço de pedra sobre outra pedra maior e mais antiga, mas, como todas as lagartixas, um estilhaço sensível e vivaz debaixo daquele sono aparente. Pensei: o tempo, o nosso tempo amesquinhado.

Ficámos frente a frente, à luz do meio‑dia. Eu, senhor escritor da comarca de Portugal, e portanto animal tolerado, à margem, e ela, ser humilde, português, que habita ruínas da História; que cumpre uma existência entre pedras e sol, e se resigna (é espantoso); que é, ela própria, um fragmento de pedra gerado na pedra ‑ um resto afinal, uma sobra; que se alimenta de nada (de quê?) e é rápida no despertar, e sagaz, e ladina, embora votada ao isolamento de uma memória do Império; que não tem voz, ou a perdeu, ou não se ouve... Lagartixa, meu brasão do tempo. Posso encontrá‑la amanhã no mesmo sítio (talvez lá esteja ainda) ou nas traves do solar da lagoa, ou num buraco da adega que já foi o bodegón das minhas ceias do ano passado com o Engenheiro e nunca mais o será. Posso, simbolicamente, supô‑la no alto do portal, imposta sobre a legenda Ad Usum Delpbini, porque em todos esses lugares ela estará perfeita na sua modéstia abstracta como a imagem de um tempo ou de uma idade em que os anos escorrem alheios à mão do homem e em que a erva cresce e morre e se diz:

Afinal também temos primavera.

Passam duas viúvas‑de‑vivos, com cestos de roupa à cabeça: «Tempo... Primavera...» Que é o tempo para estas mulheres? O tamanho dum luto, duma ausência? E para o Engenheiro? Uma velocidade ansiosa... um Jaguar, seis mil rotações por minuto que o levavam à cidade e o vingavam dela? E, no que toca aos camponeses, que vem a ser o tempo para os camponeses‑operários que trabalham na Vila? E para o Regedor? E para a minha hospedeira, santa madona de boquinha recatada? E para mim, que sou senhor escritor?

Pergunto, e tenho a resposta comigo, num pedaço de papel que trouxe há pouco da loja do Regedor, uma licença de caça passada por ordem dos habitantes da aldeia, e não por Tomás, o Engenheiro. O tempo, o bom sentido do tempo, está nesta prova. A lagartixa sacudiu‑se no seu sono de pedra.

«Fomos à praça em nome de noventa e oito homens...» ‑ foi a declaração do Regedor quando o procurei na loja, depois de ter deixado a muralha e a lagartixa. E assim dava da mesma maneira a medida do tempo. Repare‑se: ele, como chefe de freguesia, há muito que era autoridade. Conservava dentro de sua casa o chapéu na cabeça, tinha o estabelecimento forrado de editais e o próprio bafo que lhe saía das roupas era o mesmo de antigamente. Mas, representando no momento actual a lagoa e os noventa e oito camponeses, estava investido de novos poderes. Por isso se mostrava tão preocupado.

«Batemos a melhor oferta por três contos. Vossa Excelência vem por muitos dias?»

Queria‑se ao corrente de tudo, dos caçadores que tinham chegado, se traziam barcos e de que espécie, mas fazia‑o com o empenho de um procurador esforçado que se encontra, do pé para a mão, com uma herança a governar.

«Quem é que alguma vez sonharia poder ficar com a lagoa?», perguntava para longe, para o largo. «Verdade que não tivemos o senhor Engenheiro a fazer‑nos frente, mas quem sonharia? E só para espingardas de fora já passei vinte e quatro licenças.»

Em tom de vossa excelência, descreveu‑me as muitas dificuldades que vencera, ele e os noventa e oito, para se reunirem em cooperativa à face da lei. Os olhos luziam‑lhe por entre a complicação dos requerimentos e das despesas que gostosamente ia enumerando e, volta não volta, tomava aquele jeito de falar por cima de mim, para o largo:

«Poderá o Turismo apoiar uma coisa destas? E se o fizer será necessário algum imposto especial? Que lhe parece, a Vossa Excelência?»

Não descansava, punha números em cima do balcão, recibos, comunicados da Câmara e da Venatória. Por fim, a lista dos associados:

«Temos um médico da Vila... Veio também o professor... Aqui mais abaixo está o padre... número vinte e um, Reverendo Benjamim Tarroso, e estes três são os guarda‑rios. Se tudo for avante somos capazes de vir a fornecer caça para Lisboa.»

Apertou os olhinhos:

«Despachando‑a na camioneta das oito e cinco, púnhamo‑la no Rossio à hora do almoço.» E depois: «O pior é se tem de ir primeiro a qualquer inspecção.»

Sentei‑me numa saca de adubo, entretido, por um lado, com ele, por outro, com a confusão que o rodeava ‑ sal, panos, confeitos, a placa de uma Companhia de Seguros, Agência, sabão, arreios amarelos pendurados no tecto, raticidas, um arado à porta, editais nas vidraças ‑ o inventário insondável donde emergiam os seus olhinhos perscrutadores. Em lugar de honra havia um calendário de parede com uma jovem colorida a beijar um cão: John Aí. da Cunha ‑ Grocery Store & Meat Market ‑ Newark, N. J., e aquilo era um eco distante, a presença dos vivos que mourejavam noutros continentes com o pensamento nas viúvas e nos amigos da Gafeira. Mr. Da Cunha havia de gostar de saber as últimas novidades da lagoa, estou certo que sim. E os patrícios no Canadá também. E na Alemanha ‑ junto ainda; e em França; e no Brasil e nos quintos dos infernos muita gente beberia um copo em honra dos noventa e oito e do seu delegado Regedor.

«A pendência foi resolvida na máxima legalidade», gabava‑se ele a todo o momento. «Nada de política, nada que não fosse rigorosamente dentro da lei.»

Preocupava‑se com tudo, com o possível e com o impossível. Não ignorava como era difícil a barca da lagoa e governava‑a atrás daquele balcão, muito atento, muito sereno, e olhando em frente e a direito. No sentido da muralha onde uma lagartixa, há muito imóvel, poderia despertar num rasgo inesperado e lançar‑se à vida com a mesma astúcia com que ele, Regedor, se lançara do fundo da sua loja para a posse da lagoa.

 

Os cães. (Entraram dois no café, levados por uma jovem de calças de amazona.) «Os cães são a memória dos donos.»

Nós, em face desta afirmação dos entendidos (entre esses o cauteleiro da Gafeira), pomo‑nos a idealizar os bons animais como mandam as gravuras escolares: salvando o afogado, rondando o enfermo ou a pressentirem a morte, entristecidos. Passado tempo vamos encontrá‑los de guarda a uma cama vazia, em longos jejuns que são o seu luto magoado, e mais tarde começam a correr notícias de uivos e de fugas, por ocasião desta ou daquela data, deste ou daquele acontecimento relacionado com a vida do falecido. É assim a saudade nos fiéis companheiros do homem, os cães. É assim que eles prolongam a lembrança dos mortos na sociedade dos vivos. Aprendei, crianças do meu país.

Mas antes de serem memória, recordação, os cães são a assinatura do amo, de que imitam a autoridade e os vícios. Os lulus de laço ao pescoço, iguaizinhos na expressão às velhas pintadas que os embalam. Os cães‑polícias da G. N. R., insaciáveis e sanguinários. Os vira‑latas, sempre ladinos e imaginativos. O perdigueiro do Batedor, certíssimo com as botas cardadas do dono e com os remendos das calças de cotim. Tal senhor, tal cão ‑ está farto de ser dito e redito.

Como verifiquei no café, à medida que o Velho‑dum‑Só Dente fazia a narrativa dos crimes da lagoa, o perdigueiro do Batedor era um animal sem vaidades que tinha nos olhos conformados a fome e o receio dos humildes. E no entanto havia bons sinais nele, era evidente. A pata sólida de esforçado caminhador, a coluna escorreita, uma cabeça quadrada e ossuda. Bela cabeça, na verdade, infeliz mas bela; uma valiosa caixa de faros servida por um nariz fendido, de dois canos. Diante de uma perdiz, tenso e de rabo esticado, este cão seria uma linha a prolongar a arma do caçador pelos dois tubos do focinho. Certo com o batedor, ligado a ele.

Assim, também perante os mastins do Engenheiro (e sem dúvida perante os dois setters que estão no café com a jovem amazona), o que intriga é o instinto de classe dos cães das casas abastadas, a maneira como escorraçam o pobre e como emparceiram com o rico, ainda que o não conheçam. Avaliam o suor da miséria pelo faro, é o que se depreende. E pelo olhar, a timidez. (Como se comportarão os dois setters ali, diante do perdigueiro do Batedor?) Até entre os cachorros a lei geral é simples, acompanhando‑se ou repelindo‑se conforme a autoridade de que vêm dotados, porque todos são portadores dos cheiros da fome ou da abundância dos patrões. Razão tinha o Engenheiro em desconfiar de quem não gostasse dos cães dele. E eu ainda mais razão em me interessar pelo assunto, porque foram os cães que me chamaram pela primeira vez a atenção para o casal Palma Bravo, acolá, no largo; foram eles também (opinião do Velho) as últimas personagens a desistir da lagoa. Por algum motivo aturei eu hoje tantas histórias sobre fantasmas e cachorros manetas.

«Uma vez a casa fechada, alguém levou os animais para a fábrica. Possantes como são e, para mais, saudosos dos donos, era de esperar que à primeira aberta, voltassem à lagoa. Não vejo onde possa estar o mistério das aparições, como por aí se diz.» ‑ Relato da Dona da Pensão.

«Veneno é o que esses mostrengos têm nas entranhas. Só a baba deles é capaz de desfazer as cadeias mais valentes.» ‑ Batedor.

«Cães de mil diabos, que tão depressa aparecem na ponta dos telhados como andam lá em baixo às dentadas à água.» ‑ Velho‑dum‑Só Dente.

«Quer‑se dizer, à falta dos Palmas Bravo, foram eles que tomaram conta da lagoa... Também não está mal, não senhor.» ‑ Dono do Café.

«Fala‑se em fantasmas...» ‑ Velho.

«Em cães‑fantasmas. Quem podia ser o cão‑maneta que lá aparece senão o Domingos mestiço?» ‑ Batedor.

Nesta confusão de almas penadas, o rosto do Engenheiro apagou‑se

‑ «levou sumiço», como me foi dito logo à chegada ‑ deixando o Lorde e a Maruja a cumprir penitência pelos desvarios que o dono e os seus antepassados praticaram. E se realmente Tomás Manuel não está a esta hora em Lisboa, das duas uma: ou «se espatifou com o carro nalguma ribanceira...» ‑ hipótese do Dono do Café ‑ ... ou «fugiu para o estrangeiro».

‑ Velho‑dum‑Só Dente.

Fiz, e continuo a fazer, que sim a tudo. O cauteleiro pregava injúrias, o Batedor punha‑lhe o ámen. Descreviam e interrogavam com voltinhas de velhacos, com traquinices de pura diversão. Abrindo muito os braços, o Velho fazia esvoaçar as duas tiras de lotaria (a sua estola de celebrante) e o amigo, fiel acólito, quando não confirmava por palavras, baixava a cabeça: ámen, ámen. Se calhar é o que estão a fazer ainda, para muita indignação da minha hospedeira e para passatempo dos outros caçadores. Mas, pelos vistos, a jovem das calças de amazona enfastiou‑se. Saiu, rua acima, e os dois setters que a acompanham dizem bem com ela, são um prodígio de beleza tranquila.

Lá vai, fumando para o alto, desinteressada e cada vez mais distante dos ódios que porventura ficaram a tecer‑se no café. Guerra é guerra, bradará, se é que ainda brada, o Velho. E nesta batalha de tão loucas proporções ‑ avós contra netos, fidalgos contra fidalgos e um lobisomem mestiço de permeio ‑ os setters de bom figurino estão a mais. A jovem amazona fez bem em se afastar. Cães aqui são lobos domésticos, mais nada; afecto, servidão, não é com eles. O afecto vem nas cartilhas de infância que o cauteleiro mal teve tempo de soletrar, para muita infelicidade sua, e nas quais não têm cabimento um Lorde ou uma Maruja que são polícias‑alemães e não cães de cartilha. Para isso, antes os pachorrentos são‑bernardos que patrulham as neves com uma barriquinha de conhaque ao pescoço ou o podengo corajoso que salva a criança desprevenida da corrente do ribeiro. Aqui, como em tudo, cada coisa em seu lugar. Pastores e são‑bernardos nos livros de infância, cães‑polícias num manual de linchamentos. (E, já agora, os setters ao lado da rapariga de calças de amazona.)

Acontece ainda que entre cachorro e amo não contam apenas os sentimentos. Há serviço, propriedade, demonstração de poder, como provam (entre as anotações do meu caderno):

  1. a) o caso de um Palma Bravo, um dos mais antigos, não sei qual, ensinando que pelo ladrar dos cães se conhece o respeito da casa. Sublinhado pelo ladrar dos cães;
  2. b) padre Benjamim Tarroso, prior da Gafeira, declarando que preferia caçar de salto com o criado a levar com ele o mais fino cachorro (apoiava‑se em Bergson e, se não estou em erro, tomava o instinto como forma primária de dedicação);
  3. c) a parábola da filha desobediente, contada pelo Engenheiro com as sábias palavras do tio Doutor Gaspar, pai desventurado: «Um homem dá tudo menos os cães e os cavalos»;

finalmente d), a definição de Domingos: um indivíduo que tratava as máquinas como se fossem animais e que dominava os cães como se fossem máquinas. «A precisão requer um instinto especial, e este tipo tem‑no.

Se formos a ver bem, a fidelidade dos cães avalia‑se pela prontidão, i. e., pela precisão como reagem aos estímulos» ‑ comentário (aproximado) de Tomás Manuel no dia em que Domingos lavava o motor do Jaguar.

Podia juntar mais. Enchi páginas e páginas com lembranças da lagoa, e até pedaços de livros antigos copiei, sentado a esta mesa. Mas eis que, quando trago de Lisboa o meu caderno e me preparo para recomeçar a preenchê‑lo como dantes, com prazer e meditação, eis que o mundo antigo desaparece e me deixa a uma janela, de braços caídos, atordoado. Já não tenho Tomás Manuel como modelo vivo, como pão da minha curiosidade. Nem Maria das Mercês. Nem o Domingos, que se transformou em cão‑maneta. Nunca mais as noitadas da lagoa terão aquele deslizar brando e espesso ‑ o travo macio do gin, como eu dizia tantas vezes.

Por isso, se pretender juntar aos meus apontamentos a menor ideia, a menor palavra, serei, como o abade da Monografia, narrador de tempos mortos. Falarei obrigatoriamente de ruínas, misturarei ditos e provérbios, pondo‑os na boca do filho quando pertenciam ao pai ou ao tetravô, numa baralhada de espectros em rebelião. E se, para completar, invento uma legenda do tipo Ad Usum Delphini, pior. Mais me aproximo da toada dos doutores de água benta, à cabeça dos quais se coloca o sempre respeitado Dom Agostinho Saraiva, meu precursor nas memórias da Gafeira. Miserere mei.

 

Ainda os cães. (Senhores, este é o país dos cães.) Lá estão eles a latir no quintal das traseiras onde os caçadores os reuniram.

Excitados pela viagem e pela companhia da espingarda e dos cartuchos, percebendo, e de que maneira ‑ pelo vestuário dos amos, pelas atenções especiais que recebem deles ‑ o destino que levavam, os cães sonharam todo o caminho com rastos de mato, tocas a rescender de mornas e asas perdidas a espadanar no rio. Por isso protestam, fechados num pátio de pensão, cada vez mais inquietos à medida que a tarde vai caindo. Chamam pelos donos, pretendem fazer‑se lembrados e marchar, sem mais demoras. Caçadores, eles também, têm o seu orgulho e em certo sentido representam os amos naquela assembleia.

O que vale é que, para meu descanso, se calam ao anoitecer. Por enquanto estão no pleníssimo direito de se considerarem representantes, memória, prolongamento e o mais que muito bem entenderem em relação a quem lhes dá o sustento e carícias. Inclusivamente, têm uma quantidade de argumentos a seu favor, a começar por Xenofonte, 400 anos a. C, que descobriu que Deus, tendo criado o homem e achando‑o, coitado, fraquíssimo, lhe fez presente do cão. Mas Xenofonte não é para aqui chamado. Não seria decente manchar um guerreiro das letras com citações menores. Ele nunca diria que os cães eram a memória dos donos ou coisa semelhante, nem ensinaria os honrados lavradores que lhes era permitido dar tudo menos o cão e o cavalo. Tinha outro saber, o grandecíssimo filho da mãe. E era um magnífico guerreiro das letras. Grandecíssimo.

«Dar tudo menos os cães e os cavalos...» Quem fala assim?

O Engenheiro. A voz é a dele, se bem que transtornada pelo vinho e avançando aos bordos, por entre frases retorcidas duma história de amores e de castigos. História emaranhada como diabo, e muito mais quando contada com uma voz de vinho. É ele, é. É, sem tirar nem pôr, o vocabulário de Tomás Manuel em acção. Em todo o caso, pressinto que alguém está por detrás dele, alguém vai tomando forma através das palavras que me chegam, e meu dito, meu feito: pouco a pouco, emergindo da névoa da lagoa, desenha‑se uma silhueta negra, cada vez mais solene, mais nítida...

«O tio Gaspar», suspiro baixinho. «O fidalgo do brilho que cegava.»

«Caluda», segreda‑me o Engenheiro. «Não vês como vem de luto carregado?»

«Luto porquê?»

«Gaita. Tenho estado a falar para o boneco, ou quê? Luto por causa da filha que o desfeiteou, por quem havia de ser? Quando ele disse que dava tudo menos os cães e os cavalos tinha as suas razões.» Olha‑me de frente: «Posso continuar?»

Enchemos copos grossos de taberna antiga à boca da pipa e, enquanto escuto a parábola da filha transviada (rigorosamente nos mesmos termos e com os mesmos apartes com que me foi contada, uma noite, pelo Engenheiro), a figura do tio Gaspar vai‑se tornando mais próxima de nós, simples mortais.

Levanto‑me num salto:

«Chiça. Então está‑se na adega e pára‑se de beber? Que é da guitarra?»

Tomás Manuel fila‑me por um braço:

«Respeito, pá. Respeito, que é a honra dum homem que está em causa.» Dá volta à torneira e passa‑me o copo: «Pronto, e agora pianinho. Não há cá guitarras nem meias guitarras.» Silêncio demorado. «Está um homem em causa, catano.»

Deixa tombar a cabeça, guarda ainda uns instantes do recolhimento em memória do homem em causa. Depois, num tom arrastado, comovido, recomeça a história, emenda, volta atrás, molhando a palavra constantemente «O tio Gaspar fez... o tio Gaspar aconteceu...» E o cavalheiro‑lavrador lá vai, percorrendo a parábola, o passado. Veste camisa negra de viúvo, colete de gola forrado a seda. De punhos cerrados, gira ao acaso, revolvido pela afronta da herdeira, nome do seu nome, carne da sua carne, que lhe fugira com um valdevinos. A gente a beber no bom repouso e o homem em reunião de família, trinta anos atrás, comunicando a decisão de renegar a filha para todo o sempre. E a família de olhos no chão, desonrada por amores tão rebeldes; e nesta adega tantas lembranças rabiscadas nas paredes, e até um cartaz de Manolete; e o brioso Gaspar cada vez mais assanhado, a lançar fogo a retratos, cartas, vestidos, a tudo, fosse o que fosse, que lhe lembrasse a filha; e de repente um vazio, uma poeira luminosa.

Então ouvimo‑lo tossir, aclamar a voz e, cheio de serenidade, chamar o criado mais velho e de maior confiança: «Fulano, aparelha‑me o Cadete e anda comigo. Espera, traz também a Pardala.»

Pela porta que dá para o pátio entram insectos nocturnos. De tempos a tempos, um pio de mocho ‑ mau sinal para os amantes em fuga. Enfim, não nos precipitemos e bebamos pela justiça. O tio Gaspar (preveniu‑me Tomás Manuel) não era indivíduo para deixar que lhe mijassem nas botas. Mais:

«Ninguém lhe podia ver sequer os olhos. Quando os abria eram fogo.»

Tornamos a encher os copos, e então verifico que o fidalgo já partiu, herdade fora, conduzindo pela arreata o cavalo de estimação. Tinha‑lhe mandado pôr a sela branca, de camurça, estribos lavrados e arreios de fivela de prata. Pardala, a galga de mais finos ventos, leva a coleira de cerimónia. Em procisão, amo, animais e servo vão caminhando, caminhando, até que fazem alto à beira de um fosso que servia de estrema à herdade. Silêncio sepulcral. Eu e Tomás Manuel ficamos de copos suspensos.

«O tio Gaspar», torna a segredar o meu companheiro, «nunca dava contas a ninguém das decisões que tomava.»

Compreendo, compreendo. Na verdade, o velho continua sem uma palavra, está fixo numa direcção qualquer para lá da fronteira dos seus domínios. Rezará?, pergunto. Medita? «Chut.» Tomás Manuel chama‑me a atenção para a mão direita do falecido tio Gaspar. Daquele vulto rígido, obstinado, desponta lentamente um revólver engatilhado. Durante algum tempo a mão suspende‑se, depois, sempre com a mesma lentidão, aproxima‑se da Pardala que o criado segura pela trela e abate‑a com um tiro no ouvido.

Viro a cara para o lado: «Irra...»

«Momento», avisa Tomás Manuel. «Ainda não é tudo.»

Não é, há mais. O tio Gaspar dirige‑se agora ao cavalo, hesita. Os dedos tremem‑lhe, ficaram de repente mais velhos e ressequidos. Ouve‑se um disparo, outro e outro. Tem de consumir um carregador inteiro para pôr fim ao animal. O belo e leal Cadete jaz no meio dum balseiro, de patas para o ar e olhos espantados. Acabou‑se. Eu e o meu companheiro bebemos uma golada de alívio.

Moral da história, conclui Tomás Manuel: o tio Gaspar, com aquele sacrifício, pretendia ver‑se livre para sempre de todas as companhias em que tinha acreditado. Perdera a confiança na fidelidade, dali para o futuro queria‑se só.

(Afirmação infundada, verifico prontamente, porque restara o criado de confiança. Mas para quê criar mais desgosto ao cavalheiro Gaspar?

«Cale‑se», diria o Engenheiro. «É um homem que está em causa.» E lá voltaríamos nós ao princípio.)

Encontramo‑nos, cada qual em seu mocho, na cave conhecida entre amigos pelo bodegón. Nas paredes há vários nomes apontados: Sidónio I Gatucha; datas, bonecos com legendas: Esta é a Mercês... Viva tu madre! - versos de ocasião. Ao alto, o cartaz da célebre corrida de Linares onde Manolete perdeu a vida.

O lavrador dos olhos em brasa esfumara‑se. Tínhamo‑lo deixado para trás à beira de um balseiro, cabeça levantada, revólver a fumegar, velando orgulhosamente os cadáveres do cavalo e da cadela. Para se apagar assim, tão misteriosamente, talvez tenha retomado o lugar dele no purgatório. A menos que preferisse ir ajustar contas a outro lado e se metesse aos pinhais para guerrear contra os restantes Palmas Bravo e contra todos os cachorros que os acompanham. (Com franqueza, já é tempo e mais que tempo de pôr cobro ao alarido dos cães nesse quintal. Onde se terão metido os caçadores?)

«Escuta», interrompo eu. «Andam cães na lagoa.»

O Engenheiro tem um meio sorriso:

«São os meus. Quem sabe de animais até os conhece pelo ladrar.» Levanta o copo à luz: «O tio Gaspar sabia. E de mulheres, pá.»

«Como é o tal ditado? Prà cabra eprà mulher...» «Gabava‑se de as conhecer pelos dentes», continua Tomás Manuel. «Homem, não é caso para rir.»

Tratamo‑nos por tu, como é hábito entre gente que cultiva o à‑von‑tade perante o mundo. Tu cá, tu lá, velhos amigos, irmãos da mesma estirpe. Tu, Engenheiro, discorrendo sobre dentes e mulheres; eu bebendo na frescura duma adega, cercado de paredes riscadas. Mas que cartaz de morte, o do Manolete.

«Dentes. De dentes é que se está a falar...» Tomás Manuel prova por a mais b que são uma referência como qualquer outra (veja‑se a maneira como o médico estuda a boca do enfermo, veja‑se o conhecedor de gado). Numas gengivas pode ler‑se um passado de fome ou as atenções dos dentistas; nas luzidias coroas de ouro, o aventureiro ou o emigrante; nos dentes mal distribuídos, uma infância sem cuidados. Nada de extraordinário, demonstra o Engenheiro. Não é razão para rir, não há a mais pequena ponta de piada nisto. Os dentes são uma autêntica certidão para quem aprenda a decifrá‑los, e o próprio Tomás Manuel acabara por fazer esse treino nas raparigas dos clubes. «Abre a boca, filha.»

«Pelos dentes», diz ele, «calculo os anos de fado, calculo a proveniência social (nem sempre), calculo a idade das tipas (não estou a gozar, palavra), calculo o raio que as parta a todas e mais a mim que ainda lhes dou confiança. Passa‑me o teu copo.»

Chega‑se à torneira do pipo, por baixo de um azulejo onde se lê Água para os Peixes, Vinho para os Homens (Y mierda si no te gusta, escreveu alguém a seguir).

«Qualquer dia levo‑te a uns sítios que eu cá sei», torna ele, enquanto enche os copos, de costas para mim. «Conheço malta que te dava para uma dezena de romances.»

«Óptimo», respondo eu. «Óptimo.»

«Malta porreiríssima, como o meu amigo Zé Inácio, que é arrumador de automóveis e sabe da vida como poucos. Pá, o mundo é bestialmente simples. Vocês, com a literatura, é que têm a mania de o complicar.»

«Nenhum escritor tem a mania de complicar. Nenhum bom escritor, pelo menos.»

«Ah, pois não. Simplificam, é isso?»

«Também não. Nenhum escritor gosta de complicar seja o que for, e ainda menos de simplificar. A certeza do golpe está nesse rigor», torno eu. «E o seu martírio», digo ainda baixinho. Tomás Manuel senta‑se no mocho:

«Ai, ai. Estás aqui estás a atirar‑me com o Sócrates. Com o Xenofonte, quero eu dizer. Há uma data de dias que não falas no Xenofonte.» «Pior para ti, porque era de facto um grande caçador.» «Pois. E um grande escritor, ensinaram‑me no liceu.» «Repórter de guerra», vou eu continuando. «Militar...» «Filósofo‑guerreiro. Um valente, um grande, um etc. etc. filósofo

guerreiro.»

«Tu é que sabes. Tu é que és o escritor. Positivamente.» «Obrigado. Em meu nome e em nome do Xenofonte...» «... Que era um gozador dos antigos», completa Tomás Manuel. «E era. Escrevia sobre a vida com um prazer que nem podes imaginar.»

«E sobre a morte.»

«Já dissemos. Se era um repórter de guerra escrevia sobre a morte.»

«Desculpa, tinha‑me esquecido», torna o meu companheiro. «Política? Não escreveu também sobre política?»

«Claro. Sobre política, sobre a educação dos príncipes...» Suspiro: «Fazes‑me velho, caramba.»

Tomás Manuel baixa os olhos para o copo, fica uns momentos calado. Depois:

«Não há dúvida que tenho de ler os teus livros.» «Kaputt. Sobre os meus livros peço tréguas.»

«Falo a sério, pá. De qual é que tu gostas mais?»

Encho‑me de paciência. Respondo‑lhe que gosto de todos os livros que escrevi, e de maneira e por razões diferentes; que em todos falta qualquer rasgo do acaso para os tornar definitivos, acabados, e daí nunca poder abandoná‑los, gostando ainda mais deles por isso. Depois ‑ explico ‑ cada romance tem as suas recordações à margem das aventuras que conta, cada um vai crescendo com o tempo, corrigindo‑se com o corpo e a voz do homem que o escreveu. Isso, as memórias ligadas a uma obra e a certeza de a trazermos continuamente connosco, suspensa, inacabada, é que tornam feliz a arte de escrever. Stop, Engenheiro Anfitrião. Kaputt. Vamos deixar em paz as minhas prosas e o prazer vigilante que as acompanha pela vida fora, lá porque as considero suspensas, inacabadas e sempre melhoráveis. Nenhum escritor gosta de falar do que escreveu a não ser em ocasiões muito, mas mesmo muito, especiais. Nenhum ‑ friso bem ‑ faz livros para complicar a vida.

«Okay, não se fala mais nisso.»

Dobrado, cotovelos sobre os joelhos, gira o copo nos dedos. Água para os peixes, vinho para os homens, leio por cima dele, na parede E mierda si no te gusta a companhia dum agrónomo tão persistente. Tão avinagrado ‑ é o termo, já que estamos a beber vinho. Podíamos ter escolhido outro assunto, e talvez fosse a altura de o fazer.

«Está assente, não se fala mais nos teus livros. Conheces a Pazinha Soares?»

«Quem?», pergunto.

«A Maria da Paz Soares. Uma que escreve. Todos os anos publica um livro de poemas e todos os anos muda de amante que é para manter os cornos do marido em forma. É público, não há quem não saiba.»

Agarro‑me ao nome:

«Maria da Paz...»

«Conheces com certeza. Não há ninguém que não conheça essa cabra.» (Um momento: é aqui que Tomás Manuel irá jogar um dos seus pensamentos favoritos, o da cabra e da rédea curta.) «Poesia de cama», continua ele, «estás‑me a perceber? Poesia para essas literatas das faculdades. Por isso é que se eu tivesse uma filha havia de ser feita para casar. Não acreditas? Olá. E ai dela se pusesse os cornos ao marido, que era o mesmo que mos pôr a mim. Positivamente. Para a cabra e para a mulher, corda curta é que se quer.»

O Engenheiro Anfitrião tinha chegado ao copo que seria nele a medida da maldade. Nos serões da lagoa percebi que, a certo ponto, se punha branco e desdenhoso. Tão depressa se deixava arrastar numa conversa sonolenta, como lançava, brusco e sagaz, uma rasteira ao ouvinte desprevenido. Já está no tom. Agora vai ser uma gaita.

«Escuta.» Chega‑se muito a mim, com um certo desafio manso no rosto. «Podes chamar‑me primário e o resto que os intelectuais chamam às pessoas que não pensam como eles. Estou‑me nas tintas. Borrifo‑me, d'accord? Mas isto...» Espeta dois dedos na testa: «... não há teoria no mundo que justifique.»

Entra a criada velha com um tabuleiro de chouriça assada e broa quente, da que fumega quando se abre. Servimo‑nos, Tomás Manuel balança‑se no banco:

«Poesia de cornos... Cornos com poesia... Poesia obrigada a cornos...» Endireita‑se: «À saúde da humanidade. Hip, hip, hurra. Aninhas, bota aqui mais dois copos.»

«Está notável a chouriça.»

«Pudera, tem cá o dedo da Aninhas...» O Engenheiro puxa a velha para junto dele, abraça‑a pela cintura. «Aninhas, sabes o que é a poesia de cornos, c'est‑à‑dire, la véritable poésie des cocus? Não sabes, está‑se mesmo a ver. Pois então, Aninhas, estás lixada. Vai buscar um banco e come aqui com a gente.»

A velha recusa, meio cerimoniosa, meio intrigada, mas demora‑se ainda, de mãos cruzadas à frente do avental, satisfeita por nos ver comer. É pequena, muito escura, e com uma barriguinha espetada para o ar. Quando se despede, Tomás Manuel toca‑me no braço:

«Vinte e três anos a trabalhar para um marido entrevado. E se lhe perguntares, diz‑te logo: que se há‑de fazer, menino, o casamento não é um contrato? Mas disto é que não fala a poesia, a porra da véritable poésie des cocus.»

Concordo. Não há razão para que não concorde. Saboreio a chouriça temperada como deve ser, pouca gordura, fogo certo, e tenho atrás do Engenheiro Anfitrião uma linha de pipas de vinho encimada pelo cartaz de Manuel Rodriguez, Manolete, falecido a 28 de Agosto de 1947, a las cinco de la tarde, hora de Lorca e de Inácio Sànchez Mejias. Lorca está morto, Inácio também; e Manolete já o estava naquele cartaz da corrida fatal de Linares, antes, até, de ter entrado na praça e de ter na sua companhia os nomes de Dominguin e Gitanillo de Triana, vivos felizmente, e dos sagrados touros Miuras que são catedrais da Inquisição para grandes bispos dominarem. Parece um ex‑voto, o cartaz. E é francamente mau. Já tinha o desenho tosco e funerário dos ex‑votos quando ainda não passava de um anúncio de corridas ou de um edital de contrato com a morte. Aceitando que faz algum sentido falar de contratos numa ocasião como esta...

Na aldeia, a três quilómetros da casa da lagoa e do bodegón, várias jovens camponesas dormem sozinhas nas suas camas de casadas. Lembro‑me delas (das viúvas‑de‑vivos iguais às que há pouco subiram a rua com cestos de roupa à cabeça), lembro‑me das suas bodas comprometidas visto que já sabiam, estava decidido, que em breve os maridos partiriam para as minas da Alemanha ou para as fábricas do Canadá, e não lhes restaria mais do que, vestidas de luto (assim manda o costume, o contrato), sonhar com eles e com a hora do regresso em que pudessem despir o negro que cobre a sua morte oficial.

«Noutros tempos», digo eu a Tomás Manuel, «os jogadores apostavam as mulheres ao jogo. Sabias?»

«Sim. Parece que sim.»

«E se perdessem?»

«Se perdessem, entregavam‑nas. Ou achas que ficavam cornos por isso?»

«Acho», respondo eu, «que, na tua maneira de ver, quebravam o contrato.»

«Contrato? Não percebo. Desconfio que já bebi mas foi de mais.»

 

Para ser franco, também agora me apetecia beber. Experimentar a aguardente do cantil, ou melhor, o vinho da lagoa. Vinho grave, espesso e tão macio, que saudades, vinho.

Mesmo face a face com um cartaz de morte, mesmo comprometido com parábolas de filhas transviadas e com lições sobre os dentes das prostitutas de bar, mesmo assim, que vinho. Pazinha Soares e a poesia de cornudos, se a há, nada podem contra ele. E a adega, melhor dito, o bodegón, embora entregue aos ratos e ao desprezo, continuará a ser para mim a cisterna de um sabor decantado que se repete gota a gota, igual e seguro ‑ um trilho de cor a singrar sobre o tempo e a recordação, no extremo do qual Tomás Manuel, de mão na torneira, vai enchendo copos sobre copos.

«Mais um, pá. Não me digas que és dos que se cortam.»

O Engenheiro Anfitrião tem o beber autoritário dos homens habituados a prolongar as horas e a companhia. Numa noite (suponhamos, naquela em que me faz o retrato das desventuras do cavalheiro Gaspar) é capaz de navegar num vinho manso, camarada e a caminho do sono ‑ e às duas por três tornar ao princípio, quase fresco:

«Vamos meter mais uns copos, e ao nascer do sol despejamos uma cartucheira na lagoa. A guitarra?»

Diabo, se lhe deu para aí, se «virou o fundo à garrafa», como se diz em linguagem de bar, todo o tacto é pouco. Convém deixá‑lo. Que toque e que beba e que repita as vezes que quiser a parábola da filha transviada. Tacto, recomendo e torno a recomendar a mim mesmo, enquanto ele procura a guitarra por cima dos cascos. Muito tacto. Há frequentadores de bar que ao quinto whisky puro estão arrasados, julgamos nós, e que começam a arrefecer, a arrefecer, e só por alturas do décimo copo se vão abaixo outra vez. Meta‑se alguém com eles, experimente, e verá o enterro que leva, porque bededores de tão castigada têmpera não são parvos: têm o instinto dirigido para quem lhes quer explorar o vinho e a intimidade.

Se estiverem de maré, são perversos como crocodilos ensonados e ajeitarão as suas confidências de modo a tirarem, eles, do curioso, um desabafo que lhes interesse. Os barmen podiam fazer um tratado sobre o assunto. Dez tratados, se quisessem. Uma enciclopédia do tamanho da Britânica by appointment to His Majesty Johnnie Walker Rótulo Preto.

«Tomás, nem tu sabes como me apetecia um whisky», suspiro agora, em pensamento.

«Serve‑te», grita‑me ele, sentado nos degraus que dão para o pátio, a afinar a guitarra.

Mas estamos no bodegón e no bodegón bebe‑se vinho. (Whisky aqui, na aldeia, só talvez no café, e Deus me livre de me ir meter no meio dos caçadores e do velho cauteleiro.)

Avanço para a torneira da pipa donde nos temos estado a servir, tomo uma golada forte: Pelos barmen, por esses comandantes do prazer que conhecem à légua os exploradores das confidências dos bêbedos. Glória, três vezes glória ‑ cantarolo cá para mim. Mas arrependo‑me logo, ponho o copo com força em cima da mesa: Glória nunca, Glória é uma saudação de igreja. Os barmen não têm nada de sacerdotes. Abso‑lu‑tissi‑ma‑mente nada. Só são confessores e mães de fracos para os pretensiosos que julgam que um balcão é um muro das lamentações. Havia de ser lindo, padre, mãe e confidente ao preço de meio whisky com água.

«Nenhum escritor nasceu para complicar a vida», resmungo.

Tomás Manuel continua debruçado sobre a guitarra.

«Ouviste, Tomás? Nenhum escritor nasceu para complicar a porca desta chatice em que andamos metidos. E os barmen ainda menos. Também não há nenhum que goste de complicar.» Cuspo para o lado: «Nenhum.»

Sabe‑me mal a boca só de pensar nos ingénuos que procuram padre, mãe e confidente num barman, num homem de mão certa e ensinada a dominar sucessivas dinastias de Johnnies Walker, Vats Victoria, Gordons, Vintages, Stolichnayas & Companhia. Um barman, com todas as letras, é um indivíduo que tem a profissão de comandante do prazer, que se treinou para isso com o sentido exacto da medida e da discrição. Dispensa perfeitamente desgraças e arrogâncias. Ou não? Cuspo de novo, tenho a boca seca, desgostosa. Talvez não seja mau regular o vinho e aguardar para outra ocasião os rapazes do meio‑whisky‑por‑uma‑confidência (despedindo‑me daqui de todos eles com um simples gole do meu cantil se a formiga‑mestra já mo tivesse trazido, bem atestado de aguardente. Já cá devia estar, e com toda a subtileza que lhe puseram os soromenhos.

Dou dois passos pelo quarto. Recordações e pêras silvestres, suspiro. E ainda a tarde vai no meio. Que Deus perdoe aos ingénuos rapazes, se for capaz disso, e que os barmen de Entre Chiado‑e‑Cais do Sodré usem da tradicional magnanimidade para os escutar...)

... Porque, irmãos, é mais fácil passar um camelo pelo buraco duma agulha do que fazer entrar o bebedor no reino privado dos barmen. Aprendam isso com eles. E fixem que há mil bebidas e um número restrito de bêbedos ‑ de tipos de bêbedos, não sei se me faço entender. Que o digam os barmen, esses nossos irmãos vigilantes, nossos timoneiros, nossos competidores supremos. Manolete, penso eu, dirigindo‑me ao cartaz, também foi um competidor supremo. E em voz alta para o Engenheiro:

«Sabes o nome daquele touro?» Faço a pergunta e nem espero pela resposta. «Islero», digo. «Islero foi também um competidor supremo porque matou o Manolete. E Granadino, já ouviste falar? Granadino foi outro competidor supremo porque matou o Joselito. Sei uma boa porção de coisas que davas tudo para saber.»

«Me cago em tu leche», responde Tomás Manuel. Tem a mão esquecida sobre as cordas da guitarra. «Ai Pazinha Soares, Pazinha Soares...»

«Outra vez?»

«Tanto quanto eu sei, ainda não nasceu quem cantasse melhor o fado.» Dedilha umas notas soltas: «Pazinha Soares, poetisa da gaita. Que filha da mãe de voz.»

Perdeu‑se, está bem de ver, por recordações que lá sabe: serenatas de verão no pátio, o cheiro dos nardos e a tal voz levemente ácida (como certas boas essências) que, no dizer de Tomás Manuel, continha uma aspereza secreta só possível num corpo indiferente como o dela, Pazinha Soares, «hoje ao serviço dos intelectuais».

«Está dito», corto eu. «O primeiro fado é para a Pazinha Soares. Senhoras e senhores: a pedido, vão Vossas Excelências ouvir...»

«De pé», protesta o meu companheiro.

«Tens razão. Ou bem que há respeito pelo público ou então boa noite. Senhoras e senhores, pelo distinto amador Engenheiro Palma Bravo vão Vossas Excelências ouvir... Qual é o fado?»

«Nenhum», responde ele em voz apagada. E logo num berro: «Nenhum, já disse. Para pegas não sei tocar.» Parece levar a sério a comédia que ele próprio tinha ajudado a montar.

Vai pôr a guitarra em cima das pipas e volta de boca descaída, enojado.

«Conversa. Todos vocês detestam o fado.»

«Vocês, quem?» «Tu e todos os escritores. Só me falta que também sejas comunista.»

Deixa‑se cair no mocho, é um vulto acabrunhado. Entretanto rosna:

«Quiseste‑me engrossar, mas lixaste‑te. Tenho agarrado mais pifos num ano do que tu nunca hás‑de agarrar em toda a tua vida...»

Eu não dizia? Nunca fiando... O copo da maldade regressou, agora vai começar o ciclo e o que nos resta é dar as boas‑noites e ficar por aqui.

Mas ele volta a falar. Noutro tom, tom inquieto perante o silêncio de alguém:

«Estou grosso, pá...» Estende‑me a mão: «Sans rancune? Fixe, vamos beber um whisky a Lisboa. Só um whisky, catano. Para selar a paz.»

A muito custo chegamos ao pátio, e para o convencer a subir a escadaria até casa é o cabo dos trabalhos. Cada degrau uma pausa. Em cada degrau vira‑se para Lisboa, que é uma cidade para um homem despejar os odres, e, ala, para a aldeia. Soluça: «Todas as cidades são uma trampa.» Torna a soluçar: «Positivamente.»

Vou deixá‑lo na varanda, não há que ver.

«Um momento, nada de pressas. Tu sabes a razão por que nenhum homem deve fornicar a mulher legítima?» Fica calado, à espera; calado e a oscilar. «Tu sabes», torna depois, «porque é que isso deve ser considerado um delito perante a lei? Chiu, eu explico. Porque a mulher legítima é o parente mais próximo que o homem tem, e entre parentes próximos as ligações estão proibidas. É ou não é bem jogado?» «Está frio. Desconfio que já me constipei.»

«Curamos isso em Lisboa.» Tomás Manuel agarra‑se‑me ao casaco. «Embora, pá. Vamos a Cascais ou aos fados. Pode ser que a gente encontre a Pazinha Soares.»

E numa sacudidela raivosa:

«Chiça. A que propósito me fui eu lembrar da Pazinha Soares?»

(Terá de facto existido uma Pazinha Soares?, pergunto‑me hoje muito seriamente.)

 

Desfazendo a mala e encontrando um número da revista Merkur dedicado a Hans Magnum Enzensberger:

Se um dia isto, a Gafeira, resultasse num livro (o que depende da felicidade com que se interroga o aparo e do bom êxito da memória), se um dia a lagoa e a aldeia, os vivos e os espectros, viessem de novo até mim, mas então em espaços lineares 12‑in‑14 e em graneis salpicados de outros símbolos (que são os do revisor), nessa altura não deixaria de meter meia dúzia de linhas tiradas de Enzensberger (Politique et Crime, ed Gallimard):

«Os papéis das testemunhas tinham sido, no rigoroso sentido literal do termo, decorados e repetidos até à saciedade, de modo que nos debates quem comparecia não eram as pessoas reais, mas a representação que elas tinham construído de si mesmas e das teses por que se batiam; Anna Caglio não aparecia como ela própria, mas como alguém que interpretava o papel de Anna Caglio...»

 

Lagoa, para a gente daqui, quer dizer coração, refúgio da abundância. Odre. Ilha. Ilha de água cercada de terra por todos os lados e por espingardas de lei.

Mas ilha, odre, coroa de fumos ou constelação de aves, é a partir dela que uma comunidade de camponeses‑operários(1) mede o universo; não a partir da fábrica onde trabalha, nem da horta que cultiva nas horas livres. Daí que os gafeirenses lhe conheçam tão bem os ciclos, as estações, os animais que as frequentam e as armadilhas de que dispõe ‑ as dela e as dos guardas. E, veja‑se, é igualmente a lagoa (ou a nuvem em sua representação) que me chamou aqui e me tem entre quatro paredes duma pensão, à espera e a recordar.

Encontro‑me entre dois pólos de ruínas, eis o que me ocorre. Na linha dos montes uma casa destroçada, nas raízes da aldeia um estendal de grandezas romanas registado, peça a peça, por um abade. Deve ter sido feliz esse homem, principalmente pelo prazer das minúcias ordenadas que se lhe sente no estilo. Tão cheio de bom senso, é verdade. Tão repousado...

No entanto, sempre que neste mesmo quarto me punha a coleccionar apontamentos e passagens de livros ignorados, que fazia eu senão entregar‑me também a curiosidades? É certo, mas sem tranquilidade ‑ sempre sem tranquilidade, meu lado crítico, minha voz independente. Jamais consegui contar uma história em paz comigo mesmo e com a gente que circula nela, e jamais consegui lê‑la tranquilo. E tenho quarenta anos, quarenta e um.

 

*1. Designação imprópria, só aplicável ao camponês que, numa agricultura em vias de industrialização, adquiriu um perfil próximo do operário sem contudo se ter identificado com ele. Não dispondo de terras, o homem da Gafeira exerce como recurso uma actividade não especializada nas fábricas dos arredores. A impossibilidade de garantir um futuro na indústria e a desadaptação gradual ao campo conferem‑lhe um comportamento indeciso a que, à falta de melhor, se atribui a designação de «camponês‑operário». ‑ Do caderno de apontamentos.

 

O que vale é que mesmo a um quarto de pensão chegam sinais do mundo, vida de fora. Quando eu, estendido na cama, lia o Dom Abade ou o Tratado das Aves, bastava‑me levantar a cabeça para ter a coroa de nuvens a chamar‑me ao dia‑a‑dia, à caça, à chuva dos campos ‑ coisas concretas. Ao anoitecer, o halo derramava‑se e tudo indicava que era a despedida, que decididamente a lagoa se ia desligar da aldeia. Mas não. Acto contínuo tilintavam campainhas, dezenas de camponeses‑operários regressavam da Vila nas suas bicicletas, e essa música falava‑me de cestos de enguias arrancadas às águas de madrugada, em rápidas surtidas na viagem para as fábricas. Deste modo a vida na Gafeira cumpria‑se, e continua a cumprir‑se, com os olhos na lagoa. Ao romper da manhã, vultos de ciclistas, mergulhados na água até às partes; ao romper da noite, uma saudação de campainhas e enguias a fumegar. Dominando o dia, uma coroa de nuvens. Que horas serão?

Horas: Ainda é cedo para os jornais da tarde, posso tirar daí o sentido. Não há por enquanto, à volta do café, o movimento que anuncia a chegada de notícias à povoação. Até lá, quem quiser novidades contente‑se com as do Velho das lotarias, e o Velho, honra lhe seja feita, não se guia pelo noticiário dos jornais, tem o dele. O lado mau da lagoa chega‑lhe e sobeja‑lhe para explicar o mundo.

Forasteiro, cuidado com os provérbios: Se a lagoa é a abundância e se, como diz o ditado, toda a abundância traz castigo, convém estar de pé atrás. Trata‑se de uma das muitas regras populares inventadas na idade das resignações cristãs e postas a circular para que ninguém invejasse a abundância onde ela estava aferrolhada. Positivamente, Engenheiro Anfitrião. No interesse da verdade e para meu governo pessoal, dispenso perfeitamente a Camisa‑do‑Homem‑Feliz. Prefiro a minha...

...E os carros que estão no largo: São seis, neste momento, e provam que, com ditado ou sem ditado, há o lado bom da abundância (aquilo: carros, barcos para sulcar as águas amanhã, dinheiro para boas armas, dinheiro para aprender a vida e beleza... muita, muita coisa).

Claro que há também o lado mau, claro que sim. Durante anos e anos a lagoa acumulou tais venenos de matar peixes, suportou tanta pólvora e tanta autoridade que ‑ limito‑me a repetir o Regedor ‑ queima quem se atreva a ofendê‑la. Razão por que, dentro da boa lógica, se prepara para devorar a casa dos Palmas Bravo («que não tardará a desfazer‑se pela encosta abaixo, arrastando fantasmas e cães danados» ‑ profecia do Batedor, no café); razão por que desafia de longe os mastins do Engenheiro e assiste, impassível, à loucura que se vai apossando deles; razão, por último, do abraço de morte com que recebeu Maria das Mercês na madrugada de 12 de Maio próximo passado. E tudo está conforme os autos ‑ remato, acendendo um cigarro.

Mas, pergunta a minha curiosidade, quem leu os autos? O Regedor. E adiantou muito para além da «verdade dos factos»? Duvida‑se. Anda com os seus problemas, não tem tempo para remexer num assunto que está oficialmente encerrado. «Os autos são explícitos», foi como ele se descartou diante de mim para pôr termo à questão.

Aceito, amigo Regedor, os autos são explícitos. Mas os maus tratos? Ou, pergunto eu na minha ignorância, será ainda fantasia o que por aí corre acerca dos vestígios das pancadas?

«Absolutamente. Alguém pôs isso a correr para incriminar o Engenheiro. Vossa Excelência compreende: vi o corpo, não tinha o mais pequeno sinal de violência.»

«Fala‑se em roupa rasgada...»

«Pois, e em arranhões. E não é natural? Uma senhora pelo meio da mata àquela hora da noite...»

Maria das Mercês deve ter tropeçado vezes sem conta antes de se entregar nos braços da lagoa. Descalça e em camisa, fugiu às cegas, prendeu‑se nos galhos, cortou‑se nas silvas; no musgo escorregou, nos espinheiros feriu‑se. Ia doida, desaustinada.

«Fez mais de dois quilómetros de mato para conseguir chegar à Urdiceira.» O Regedor arrumava a papelada que me tinha estado a mostrar, facturas, ordens da Venatória, o que se sabe. «Dois quilómetros. Para mais e não para menos.»

«A Urdiceira», murmuro. «Não lembra ao diabo escolher um sítio daqueles.»

«Costuma‑se dizer que quem se mata leva destino. Talvez o dela fosse o mar, sabe‑se lá.»

«O mar ou o pântano, amigo Regedor?» «O mar. Inclino‑me mais para o mar.»

Confere, minha estalajadeira. A ideia (que «é apenas um supor», previne desde logo o representante dos Noventa e Oito, «visto que os autos são omissos nesse ponto...»), a ideia vem confirmar o tal ódio que Maria das Mercês tinha à lagoa.

Para lhe fugir não havia outra saída senão o mar. O mar e só o mar. Ia para as dunas, ouvia já os berros das ondas a chamarem‑na do lado de lá e, quando se meteu mais dentro, para encurtar caminho, ficou presa no pântano da Urdiceira. A lagoa tinha‑a filado. «Catrapus», grita o Velho das lotarias perante os ouvintes no café.

Mau princípio este, o de dar confiança a gargalhadas do destino e a invenções dum pregoeiro. «Péssimo», reforço, intrigado com a quietação que vai no café em frente. Velhos assanhados são muito literários, não contesto, mas não servem senão para entreter os indiferentes. Desumanizam, meu lado crítico. Maria das Mercês não gostava tanto da vida que fosse capaz de lhe pôr fim com as próprias mãos. Morte em beleza não havia para ela. «Só a de parto...» ‑ não foi o que lhe ouvi dizer?

Falta uma vírgula na paisagem: E a tarde escorre sem estremecer. Nem um golpe de ar, nem um pássaro, um ruído ao menos a descer dos montes pela estrada. Isto, no fundo, é morte. Podia‑se pôr uma cegonha na torre da igreja ‑ seria a vírgula. Um pescoço longo e curvo, espalmado no ar sobre o largo. As cegonhas pensam muito nos filhos, parece. Andam de terra em terra a pensar neles.

Diabo, o que tu foste lembrar: «Morte em beleza, só de parto...» Se o Velho ouve, desaba em cima de mim, mais incendiado do que nunca:

«Parto, ela? Ih, ih, ih... Deixa‑me rir.»

Cortará a tarde com o seu risinho malfeitor, e em vez de uma vírgula teremos uma corrida de reticências na paisagem. Será uma pieira a tatuar a memória de Maria das Mercês, a crivá‑la de alto a baixo com rajadas de escárnio:

«Ih, ih, ih... Maninha como uma mula, ih, ih... Maninha é que ela era.»

E então, por menos crédito que se dê a um pregoeiro, a acusação fica a pairar: Maria das Mercês, mulher inabitável. Sobre a solidão da lagoa, a solidão dela mesma, esposa maninha que odeia o ventre abundante das águas (para onde Tomás Manuel se sentia também atraído com o sonho das campas submersas). Odiando‑o a tal ponto que acabou por se lhe entregar.

O regresso ao líquido amniótico... Correcto, doktor Freud? Calma. De imagens freudulentas está a publicidade cheia. E as contas bancárias dos padres da psicanálise, claro que sim. Aposto em como até o Herr Goebbels bebia à sucapa no Freud por uma palhinha de aço Krupp.

 

«Mulher inabitável...» Gosto, é frase altiva, a prumo ‑ de título para alegoria:

A MULHER INABITÁVEL

Na brancura de uma folha de papel (que é indiscutivelmente um território de sedução, um corpo a explorar), no centro e bem ao alto, planta‑se a frase. Ela apenas, o título, como um diadema de dezasseis letras. Só depois é que virá a homenagem (com ou sem dedicatória: «Maria das Mercês, 1938‑1966»), inteiramente preenchida por uma romãzeira em flor que há no quintal da Pensão. E será um desenho meticuloso todo feito de articulações, por meio de folhas recortadas, cada qual com o seu pensamento.

A romãzeira está brava, assaltada por legiões de formigas. Apesar disso, cabe‑lhe a homenagem, porque, nesta época do ano e nesta desolada terra, é a única exclamação da Natureza. Árvore bravia, de sombra rendilhada, que já foi sumo e que hoje fica na flor: à volta não vejo senão pedras e formigas, restos de comida e cães à espera dos donos. E no meio, ela. Ela, enchendo a página, como um herbário escolar, com a folhagem tatuada de injúrias (do Velho), caprichos de interrogações nas flores, pontinhos a formigar. É um cântico de vermelho exposto ao sol outonal, esta árvore, e sustenta nos braços cor de cobre toda uma abóbada de chagas em alegria. Tem, para finalizar, a inestimável utilidade da beleza ‑ coisa importantíssima.

Um elogio da esposa maninha não se defende com facilidade, e menos ainda com alegorias de amador. Mas, e os homens maninhos? Não há lugar para eles, os homens maninhos, nos imparciais compêndios populares por onde se guiam Velhos e Batedores? Donde vem o mal que impede os frutos? Da esposa inabitável ou da semente que não tem força para viver dentro dela? De ambos? Caso a apurar. A excelentíssima classe médica é que devia pronunciar‑se.

Ora, não longe daqui, num consultório da Vila, há seguramente uma ficha esclarecedora. «BRAVO, Maria das Mercês da Palma; n. Lisboa 1938; ant. familiares ‑ si interesse; ant. pessoais...» Alto. É trabalho escusado: «antecedentes pessoais», aquilo que podia fazer alguma luz sobre a questão, é assunto que ficou no segredo dos doutores, no compromisso que existe entre a mortalha e a bata branca. Inútil insistir, porque pactos são pactos, e ambos, bata e mortalha, apagam cuidadosamente certos segredos de cada corpo. Inútil abordar o médico a este respeito.

Mudemos de pista. Deixemos o consultório da Vila, alonguemos o olhar mais para o sul, muito para lá daqueles pinhais ‑ e aí, Lisboa, cento e trinta e cinco quilómetros de distância da Gafeira, hora e meia de estrada (média de Jaguar E), existe uma outra ficha. Ficha não. Um punhado de documentos arquivados na secretaria de um externato religioso. Se Deus for servido, hão‑de encontrar‑se cadernetas escolares, bordados e fotografias de curso em que Maria das Mercês aparece, ano após ano. Nas primeiras de laço no cabelo, nas últimas de saltos altos.

Este colégio, para condizer com as freiras universitárias que o dirigem e com os largos terraços donde se vê o Tejo, terá de ser pontual, completíssimo. Parece que sim, que o é. Esteve representado no funeral de Maria das Mercês com a coroa da saudade e da pureza e mandou rezar missa na capela por alma da aluna desventurada. Pontual e completíssimo. No momento presente deseja apenas que não se levante mais escândalo à volta de uma antiga aluna e que a mancha que caiu nos anais do colégio seque depressa. «Silêncio», ordenam as monjas, batendo palmas. Usam todas aliança no dedo, grandes corações de metal pregados nos hábitos.

«Eis aqui a escrava do Senhor...»

Maria das Mercês andou por estes corredores. Fez o seu primeiro tricot no relvado do parque, jogou à batalha naval em salas de aula comandadas por crucifixos de prata. Havia no tempo dela ‑ e neste, e no que vier, haverá sempre ‑ uma Irmã Jovem que era a Inocência e a Madrugada, a «irmã, jardim fechado» das Escrituras (Salomão IV‑3). Havia a Madre Perfeita, Distância e Austeridade, e também a adolescente apaixonada que estremece para lá das vidraças, sol e nuvens. E mais, muitas mais: umas que trocam mensagens de carteira para carteira, revoadas de segredos; outras que copiam versos de cançonetas; e nem sequer faltava a indispensável colegial que desenha na sebenta um rosto de mulher, sempre o mesmo, e escreve um nome: Irmã Melancolia. Desta não se espera novidade de maior.

A continuar assim (que não continua...), acabará em «noiva do Senhor», para desgosto de todos nós. Vem tudo em Santa Teresa, Las Moradas.

Maria das Mercês, não acredito que tenha tido as suas horas místicas. Devoção, estudo, comportamento ‑ média normal. Passou pelo colégio com o à‑vontade com que aparece em certa fotografia guardada na casa da lagoa: ao lado da Madre Maternalíssima, raqueta de ténis debaixo do braço, pato Donald estampado na blusa; tem lacinhos no cabelo e faz uma careta para disfarçar o riso. Somente ‑ e isso é que desconcerta ‑ há qualquer coisa inesperada nela. Os seios? Não só os seios. As coxas, que são largas e acabadas. Adeus infância. Dou‑lhe onze anos, no máximo.

Olhando‑a naquela idade, e conhecendo‑a depois, senhora da lagoa, deduz‑se que o corpo que viria a ser inabitado se encaminhava desde muito cedo para as formas seguras e instaladas das madonas do lar. Deduz‑se igualmente que o mesmo corpo, numa volta que não podemos de maneira alguma adivinhar, ganhara equilíbrio, elasticidade, bom gosto, tornando‑se na silhueta exigente que se passeava na varanda do estúdio, em calças e lenço ao vento. De Tomás Manuel não haveria notícias por enquanto.

Sete anos de esposa, a passear de cá para lá. Deste lado, na Gafeira, é dia. Vêem‑se quatro carros de caçadores no terreiro, além do meu e da furgoneta do Regedor, e, apesar de fria, a tarde está calma. No vale, a brisa do anoitecer vem, como de costume, correndo do mar (o lenço de Maria das Mercês sacode‑se ligeiramente...) e traz sinais de névoa. Outubro nevoento sobre a lagoa, em ano a fixar. Mil novecentos e quê?

De vez em quando a jovem esposa julga ouvir o telefone. Outras vezes o motor de um automóvel; noutras o portão a girar nos gonzos, como se isso fosse possível sem que os cães dessem sinal. Esses malditos. Mas o telefone morreu há muito, porque as amigas jogam na Vila, em casa umas das outras; ou estão no cinema ‑ as de Lisboa. Os cães, Lorde e Maruja, dormem em cima dos restos da ceia, um olho voltado para dentro, outro, meio esquecido, ligado ao faro e às orelhas. E quanto ao automóvel «não há hipótese», como diria o Engenheiro. «Positivamente.» O vento sopra no sentido da casa para a estrada. Impossível ouvir‑se o motor à distância.

Maria das Mercês foi ao quarto tomar uma aspirina e agora encosta‑se a um dos potes gigantes da varanda, correndo o olhar ao longo da comprida boquilha que aperta nos dentes.

Na extremidade, o morrão do cigarro aviva‑se e morre, é um farol incerto a vigiar.

Por onde andará aquele homem?, interrogo‑me eu também. Por África? Por Lisboa? A aldeia está parada. A camioneta da carreira não vem com os jornais. A criada‑criança e a jovem dos dois setters desapareceram. Que terá sido feito do Engenheiro? Fugiu à morte da mulher?

 

Só agora, dezoito horas e catorze minutos, chegam os jornais da tarde, e faço votos que com notícias de bom tempo. Oxalá. Para honra e glória do melhor ganso da época, é indispensável que a criadita me traga um bom Diário de Lisboa ou um bom Diário Popular que não me falem de chuva nem vento forte e ainda menos de trovoada. Indispensável, está em jogo um pacto de rebuçados. E estou eu, que também conto no pacto. O cauteleiro montou a banca dos jornais numa das mesas à entrada do café, e daqui, dali e dacolá começam a surgir os clientes de todos os dias. Além deles, vêm os de fora, os caçadores que andaram a passear e a visitar as tascas como turistas. Cruzaram‑se nos mesmos sítios, ouviram as mesmas pessoas, dentro em pouco já se falam. Quando se encontrarem ao jantar, na sala do rés‑do‑chão, vão fatalmente trocar impressões sobre a lagoa com os dados que lhes foi possível juntar e em seguida hão‑de passar aos cães e às pólvoras e, por vezes, a problemas de leis. Conheço a cantiga. E tu despacha‑te, criadita. Esse diário da tarde é importantíssimo para o nosso pacto, os outros caçadores que se lixem. Seja cão se merecem que a gente se preocupe com eles.

Pelo que anuncia o jornal, tudo vai correr amanhã na melhor ordem. Bancos de nevoeiro na costa meridional ‑ não nesta, o diabo seja surdo ‑, pequena descida de temperatura e o clássico vento moderado que, para cúmulo, sopra de noroeste. Nada mau. Tenho muita pena dos respeitáveis galeirões desta nobre e progressiva terra, mas está escrito. Escusado tentarem fugir para o mar, porque o vento vem contra eles, nem essa salvação lhes resta.

Estendo‑me na cama a ler o jornal. Em poucos minutos está visto e deixa‑me os dedos sujos de tinta, comprometidos por uma negrura baça de chumbo. É o suor, penso; o amargo e penoso suor de umas folhinhas que nasceram de apreensivos redactores e passaram por cadeias sucessivas de repartições, tesouras, adiamentos, sustos, até serem esprimidas nas pesadas rotativas. Esfregando o polegar no indicador, sentimos escorrer o esforço, o fungo quase imperceptível que reveste e que alisa os altos e baixos da nossa consciência. São jornais sem sobressaltos, é o que se pode dizer deles, lendo‑os. E é o que eles nos dizem a nós, suando. Foram tão escorridos, tão lavados pela Censura, que sujam as mãos.

Este, em particular, vem exausto. Mensageiro maltratado mas convencido (em artigos de fundo e notas do dia) do seu Valiosíssimo Papel de Órgão da Informação nas Estruturas Nacionais, chegou à Gafeira muito composto de bom senso e com a autoridade de ter preenchido as vinte e quatro páginas que lhe competem. Chegou cansado; sem voz, pode dizer‑se. Abre‑se e pouco adianta, a não ser para os desconfiados leitores das entrelinhas. Mas, vá lá, mal ou bem sempre traz um prometedor boletim meteorológico. Esperemos que não falhe. Que, ao menos, não seja tão desastrado como certas previsões da NASA ‑ lembro‑me eu, deparando com a fotografia de Edwin Aldrin a sorrir a duas colunas da primeira página.

UM LAVRADOR FESTEJOU O NASCIMENTO DE UM FILHO VARÃO

Beja, 30 ‑ Mais de 500 convidados festejaram no Monte de Santa Eulália, propriedade do Sr. Patrício Melchior, o nascimento do primeiro filho varão daquele lavrador.

Consumiram‑se, entre outras iguarias, doze perus, vinte e quatro cabritos, quinze leitões, trinta e um frangos e cem quilos de borrego. Beberam‑se cem litros de vinho, quatrocentas cervejas, duzentas garrafas de whisky...

... e isto, parecendo que não, é um desafio ao sorriso de Edwin Aldrin. Ri‑te, cosmonauta inacessível, das vitórias que se ganham cá em baixo, e não te espantes. Conheço, mea culpa, vários cidadãos de lavoura‑e‑cabaré capazes de pensar como o nosso lavrador e, aqui para nós, nem reparo. Sei como é fundo neles, e consoante, e magoado, o sonho de fazerem um homem à sua maneira, ensinando‑lhe mundo e mulheres. Desejo‑lhes, portanto: Salute edfigli maschi ‑ que é como brindam (diz‑se) os napolitanos legítimos.

Edwin Aldrin encara‑me: Com os seus lábios brancos de americano engarrafado em aço.

Está cheio de guerra e de publicidade, mas é um cosmonauta ‑ nunca esquecer. E um homem confiante nos milagres que outros homens vão descobrindo porque se põe à prova neles, e nessa qualidade merece tudo, quer se chame Edwin, Gagarine ou tenha o nome de código de Major Alfa Zero. Só não merece as arruaças dos políticos de Cabo Kennedy ‑ digo eu, com pena dos seus lábios brancos. E o telegrama que vem no jornal é um insulto acabado. Devia ser proibido pela Liga da Inteligência Pública.

Daqui, basta eu querer, posso ir dar a dezenas de raciocínios. Um homem que confia, um cosmonauta, leva fios invisíveis de humanidade em esfuziante propulsão. Com ele viaja o nosso velho universo ‑ com lábios assim tão gelados e com escafandros tão tenebrosos. Sinceramente. Falo com a mão na consciência, porque, modéstia à parte, muitos dos meus avós portugueses também foram bons cientistas de descobrir mundo. Excelentes, não exagero. Diabólicos triunfadores das sete partidas do mundo e igualmente sacrificados pela especulação dos políticos e pelas ofensas à Liga da Inteligência Pública que naquela época, século xvi, não existia. Nem existe hoje, infelizmente.

Quando morre uma mosca nascem mil formigas: No sobrado, à volta da cama, aproveitando as réstias de sol e o aconchego do quarto, as moscas passeiam. Magras, pressentindo o Inverno que se avizinha, ensaiam de quando em quando um voo curto e recomeçam a girar pelo soalho. Sabem muito bem que têm os dias contados. Mas, criminosas encartadas em pátio de prisão, circulam num espaço limitado, fingindo que recuperam forças, disfarçando com toda a maldade que as distingue e com todo o seu sadismo e cobardia. Chegam a perseguir‑se, e fazem amor. Condenadas e tudo, fazem amor. Muitas ainda hão‑de resistir até amanhã, para se banquetearem com o sangue fresco das aves da lagoa, e depois cairão de patas para o ar num canto, girando nas asas, espojando‑se como se brincassem e, no entanto, já assassinadas pelo Inverno. E logo aparecerão brigadas de formigas para as arrastar, porque quando morre uma mosca é sabido que nascem cem formigas e um milhão de vermes.

Outra vez o sorriso branco: Enquanto as moscas passeiam, o caminhante do espaço permanece suspenso na primeira página do meu jornal. Se lhe descrevessem as fabulosas aventuras dos portugueses que foram, antes dele, navegadores do impossível, talvez não acreditasse.

Também, pouco adiantaria que acreditasse ou não. Acenar com os padrões dos nossos descobridores como resposta às façanhas de um cosmonauta é o argumento dos olvidados, e já enjoa. Estamos fartos de o ouvir nos discursos de academia e nas crónicas oficiais. Aldrin nunca teria tempo para isso. Anda excessivamente atarefado com o futuro para poder dar atenção aos desprezados do século XX...

... E esse é o preço que nos custa o tempo: «Positivamente», disse‑me uma vez Tomás Manuel. «Cada tempo tem um preço.» Via as florestas trituradas pelas fábricas de celulose (ele próprio trabalhava numa, e que remédio); via a caça a desaparecer («não tarda muito, só nos restam perdizes de aviário e coelhos enlatados», ameaçava); nas vilas do interior surgiam snack‑bars («manjedouras», chamava‑lhes ele) onde o sincero e palpável linho ia sendo substituído por guardanapos de papel («papel higiénico para limpar o olho da boca»); via na Gafeira os filhos dos emigrantes passeando transistors («garrafões de música») ‑ via isto e não criava ilusões:

«É o preço do tempo. Para haver Jaguars e safaris foi preciso aceitar esta trampa toda.»

«E para haver menos fome...»

Resposta dele:

«Fia‑te nisso. Com os bancos de esperma e a população a crescer desta maneira, sempre estou para saber como é que se acaba com a fome.» E logo a seguir, num desabafo que nunca mais me esquece: «Esperma em ampolas, ao que a malta chegou. Mandarem‑nos pares de cornos devidamente esterilizados e ainda por cima ficarmos muito agradecidos à Ciência. Chiça. Vão mas é fazer pouco da raiz da avó deles.»

No azedume com que Tomás Manuel falou dos bancos de esperma e da raiz da avó dos cientistas que passam por cima do orgulho dos machos, neste rancor que estalou assim do pé para a mão, não se esconderá o desespero de quem se julga incapaz de habitar um ventre de mulher? Faço a pergunta, é mera suposição. De resto, como prová‑la?

Por mim, pelo que sei do Engenheiro e do seu estilo, não o vejo a ir bater à porta do médico e sujeitar‑se a um atestado de esterilidade. Tudo menos isso. Se há terrenos do homem que não se discutem, esse é um deles, a menos que passemos a andar todos catalogados pelas sentenças dos espermatogramas. Não. Antes a dúvida. Antes verificar por conta própria, experimentando fora de casa, como fazem muitos cidadãos de lavoura e cabaré. Com quem, neste caso?

Passo em relance a galeria de mulheres de Tomás Manuel ‑ a breve e fragmentada parte que fixei dela, evidentemente ‑ e escolho uma das mais livres e menos complicadas: Gatucha, Gatucha Abrantes Lemos, essa que ele uma ocasião me descreveu numa história policial. Mãe independente, logo já comprovada, presença e beleza em feliz conjugação (racée, foi a palavra que lhe coube na conversa), Gatucha não seria na altura a dona de boutiques em Cascais nem se ligara ainda ao industrial que viria a morrer de uma síncope na auto‑estrada. O Engenheiro tentaria por ali, e talvez resultasse. Exemplos não faltam e, mais, assisti a bebedeiras que ficaram na história dos nascimentos de filhos machos. Ecce homo, este é o meu whisky. Bebei dele em louvor do melhor par de testículos que a terra há‑de conhecer.

Assente isto, Tomás Manuel daria as primeiras avançadas. Mas aí mais tacto: admitindo que realmente vinha um filho, quem lhe garantia a ele, Engenheiro na Vila, que era seu? Com todas as juras da presumível Gatucha, com todas as lágrimas e o resto, não continuaria a dúvida a roê‑lo? «Escuta bem», aconselhava‑o a prudência dos velhos Palmas Bravo. «Fazer filhos em mulher alheia é perder tempo e feitio.»

O aviso estava dado, agora levanto‑me e venho à janela. Da janela para a cama, da cama para a janela, que outra coisa se pode fazer na Gafeira?

Calaste‑te, meu lado crítico?

 

(...) Um lavrador de arrozais, João B. de L., ganadeiro e presidente de concursos hípicos, jura a pés juntos que jamais aceitou um recibo ao pessoal da casa, porque, com sessenta e oito anos feitos, ainda acredita na palavra alheia. Na noite de Natal, reúne a família e os criados à mesa, e, esteja onde estiver, logo que nasce um filho a um trabalhador da herdade, nunca se esquece de lhe mandar o dote: um cordão de ouro, se for rapariga, duas acções da Companhia Agrícola J. B. de L., Herdeiros, se for rapaz. «Faço o socialismo à minha maneira», costuma ele dizer.

Há ainda o caso de um outro ‑ esse muito antigo ‑ que semeava bastardos entre a criadagem e que a cada amante oferecia um lenço vermelho. Tem barbas, a história. Ouvia‑a ao Padre Novo, que, por sua vez, a tinha ouvido a alguém dos seus tempos de liceu. Numa das versões, o homem morria crivado de tiros de zagalote; noutra, o fim era a loucura: acabava, velho e podre, a sonhar com procissões de lenços vermelhos. Prefiro a segunda.

 

Todos os anos o mar rasga a membrana de areia que corta a linha das dunas, insinua‑se nela, penetra por esse corredor e carrega sobre a lagoa, fecundando‑a de vida nova. O ventre amplo, ventre macio forrado de lodo, revolve‑se, transborda, mas, passado o ímpeto, povoa‑se de pequeninas centelhas de cauda a dar a dar e a lagoa fica majestosa e tranquila como um odre luminoso de peixes abandonado no vale, entre pinhais.

Um viajante que ponha o dedo no mapa do Automóvel Clube e percorra o litoral vai encontrá‑la, mais quilómetro menos quilómetro, entre a linha azul do oceano e as manchas acastanhadas dos montes. Se for caçador, melhor, menos a esquece, porque tem um desenho inconfundível: o contorno de uma pata de ganso espalmada sobre o papel (o que me leva a imaginá‑la como gerada há milhões de anos por um gigantesco animal voador que, no regresso de outros continentes, tivesse tocado a terra naquele ponto e a afundasse, fazendo brotar a água. Um mito? Paciência. Assim como assim, não seria o primeiro da lista pessoal de um inventor de verdades que já descreveu(1) ondas bíblicas e peixes patriarcais) e esse desenho fica como uma miragem a atrair o caçador em trânsito.

Mas os habitantes da região têm da lagoa uma ideia mais profunda e nevoenta. Lagoa e Palmas Bravo fazem uma e a mesma história e, como não dispõem de outro guia além da recordação ou do memorial do Dom Abade, ao fim de tantas gerações de fidalgos e cruzamentos de lendas, tresnoitam. Aquela clareira de água, à boca do vale, aparece‑lhes como um enorme átrio de solenidade guardado por um friso de governadores, um baixo‑relevo esfarelado pelo tempo que é impossível decifrar figura a figura.

São vaguíssimas essas personagens (a Monografia teve o maior cuidado para que o fossem) e contêm, cada qual, a experiência de todos os lavradores antigos.

 

*1. O Anjo Ancorado, Lisboa, 1958.

 

Pegue‑se numa ao acaso ‑ a de Tomás Manuel, o Gago, suponhamos, que, parece ter sido um dos mais insaciáveis sementais da família. A lição de J. B. de L., o seu famoso princípio de conceder dotes aos filhos dos criados, agradar‑lhe‑ia certamente (um dote ‑ um cordão de ouro, uma espingarda ‑ seria uma enternecedora vinheta para abrir o capítulo dos fidalgos de bom coração), da mesma forma que a epopeia dos lenços vermelhos, passada algures e sem data reconhecida, poderia igualmente ser dele, Gago. Heróis semelhantes sobrepõem‑se e usam a mesma linguagem.

Assim sendo, foi aqui na Gafeira, e não num lugar apócrifo sem idade nem assinatura responsável, que o caso teve lugar. O Gago não enjeitaria a história ‑ até certo ponto, pelo menos ‑ e talvez fosse legítimo mandar desenhar um lenço no brasão de armas da Gafeira. Lenço vermelho em campo de prata. Tomariam muitas cidades incluir no seu emblema de honra um ornamento tão pessoal.

Desses lenços pouco se sabe. Desconhecem‑se pormenores de identificação, como o estampado, o ano de fabrico e as quantidades exactas que chegaram ao país. Eram vermelhos, está assente; e de merino; vinham de um armazém da Galiza pela via oficial dos correios, com destino a certo lavrador (para o efeito, Tomás Manuel, o Gago), que alindava com eles a cabeça das amantes camponesas. Admite‑se também, está nas regras, que o capricho do Palma Bravo tenha ficado por bastante tempo no segredo de um punhado de mulheres e que elas, vendo‑se obrigadas a usar o mesmo sinal, se achassem ligadas por esse compromisso e calassem. Tinha de ser assim, quer a história se passasse na Gafeira ou noutro lugar qualquer. E de ano para ano o círculo das amantes foi crescendo; de ano para ano, na altura das ceifas, os ranchos apareciam mais garridos com a conspiração dos lenços que saltitavam como papoulas nos trigais.

Como não podia deixar de ser, o rio acabou por transbordar. «Vingança», decretaram os primeiros homens da Gafeira que descobriram o escândalo. Mas arrependeram‑se. Por causa de uma má palavra cumpriu um deles três anos na cadeia da comarca; por causa de um tiro perdido marcharam para as costas de África dois irmãos e um cunhado. A ajudar a confusão, os maridos enganados puseram‑se contra os revoltosos, acusando‑os de caluniadores e ciumentos. Coisas.

E o Gago a envelhecer. E os lenços a chegarem pelo correio em caixinhas de meia dúzia. «La Preciosa ‑ Tejidos y Mercería ai por mayor», dizia o rótulo, sempre o mesmo.

Foi então que um gafeirense, não interessa qual, reuniu os homens casados e lançou uma ideia: mandarem vir lenços iguais para todas as mulheres da aldeia.

Dito e feito. O velho, que estava tão velho que não saía de casa, não deu logo pela diferença. Amarrado de manhã à noite a um cadeirão com um bacio de porcelana debaixo do tampo, passava a vida na varanda. Uma bela tarde viu chegar ao pátio um lenço que não reconheceu e pensou: «Maldita memória. Quem será a moça?»

Na manhã seguinte novo lenço, nova pergunta: «Olá? E esta? Quando demónio a conheci eu?» No outro dia, no outro e no outro, mais raparigas, mais lenços. «Novinhas», comentava o Gago. «Tão novinhas e eu sem me lembrar delas. Ou será da minha vista?»

Até que, sem dizer porque sim nem porque não, ordenou que o içassem para cima de um carro de bois e foi passar revista às propriedades. Parecia um pregador em viagem, sentado num trono de seda. A cadeira, furada no tampo, estava envolvida por uma colcha que ocultava o bacio. Ele e os seus dejectos arrastavam‑se a passo de procissão por entre lenços vermelhos, tantos como não seria capaz de imaginar. «O que aí vai, magano. O que aí vai...»

De pé, a meio da carroça, um moço da casa amparava‑o pelas costas. E o Gago foi‑se tornando pensativo, mais inteiriçado ainda, avançando aos solavancos como uma imagem de madeira.

«Para a aldeia», gemeu ele, de olhos espetados. Começava a assustar‑se. «Avia‑te, rapaz. Para a aldeia.»

«Para a aldeia», gritou o moço ao boieiro que seguia à frente do carro, de aguilhada ao ombro.

Neste aparato entrou o Palma Bravo acolá no largo, recebido por comerciantes e curiosos que cercaram o andor para o cumprimentar. Ele mal lhes respondeu, tinha pressa. Procurava lenços, duvidando que a uma luz tão fraca, a bem dizer quase noite, não tivesse posto vermelho onde havia simplesmente roxo. Ou castanho. Ou laranja.

«Rapaz», disse o Gago, de costas para o moço que o acompanhava, quando se cruzaram com a última mulher da aldeia (mas antes subiu esta rua e ao longo dela deve ter visto ainda mais lenços porque já então se fazia por aqui a saída principal da Gafeira), «rapaz, de que cor era o cachené daquela?»

«Encarnado, patrão.»

«Ah» fez ele; e calou‑se.

Durante o regresso a casa foi‑se apagando com a noite que escorria dos pinhais sobre o caldeirão e sobre os bois. De repente, um rouquejar, uma pieira começou a sair da carcaça do velho e era um estertor que arrepiava o moço e o boieiro. Agonia?, perguntavam eles. Mas não. Era riso, um riso que cresceu tão perdidamente que em breve se transformou num estardalhaço de soluços e de fezes a ressoar pelo vale.

 

Lá está a nuvem, a coroa, a desenhar‑se por cima do pinhal. Bom tempo, anuncia‑me ela pela forma como se firmou, muito suave.

Bom tempo, alvoradas e cheiros, leio eu nela... Paz sobre os caniços.

Demoro‑me a estudá‑la como dantes, mas entre a janela onde me debruço e essa saudação da lagoa vai o espaço de um ano. Um ano a distanciar uma ideia de Gafeira, a esbater pessoas, vozes. Domingos, o maneta, é uma sombra mal esboçada, um galho pendurado ao vento. Tomás Manuel aparece‑me no alto da escadaria do pátio a mijar em arco para o ar; dá comigo e põe‑se‑me a fazer manguitos. E Maria das Mercês? Como era?

Havia, e espero que continue a haver, fotografias dela no escritório do Engenheiro, ao lado do estúdio. Uma na idade de colégio, raqueta de ténis debaixo do braço, outra com o véu do casamento, outra ainda abraçada ao marido numa ponte sobre o Sena (a Notre‑Dame ao fundo) ‑ estas, e talvez mais, alinhadas nas prateleiras da estante juntamente com polvorinhos da prata, com velhíssimas pistolas de pederneira, unhas de javali e retratos dos Palmas Bravo. Tinham rostos nebulosos, esses cavaleiros lavradores. Emergiam de um passado intemporal em que reinavam guerrilheiros de crucifixo no bolso e onde havia lenços vermelhos a flutuar sobre as searas. E javalis nos bosques ‑ faço questão de acentuar; não é qualquer caçador que se pode gabar de os ter enfrentado, visto que, nos tempos que correm, ninguém lhes põe a vista em cima. Desapareceram. Cansaram‑se de brincar aos medievais. Actualmente são hunos exilados em tapadas aristocráticas.

Tudo abstracto: tempo, recordações, Velho, lagoa... Emigrantes reduzidos a bandeiras de luto em corpos de mulheres jovens, gafeirenses que vivem nessas casas à minha volta e os desconhecidos que eu fui buscar aos bares e às conversas do acaso ainda ‑ diz o meu lado crítico ‑ tornam mais abstracta esta Viagem à Roda do Meu Quarto. (Mas com o meu lado crítico posso eu bem, é um adversário de luxo que joga com as armas que lhe forneço. Queixe‑se ou não do pretensiosismo e dos vícios da recuperação histórica que há numa Viagem à Roda da Um Quarto, proteste as vezes que protestar contra a paixão do nada, do pormenor, e contra o detestável gosto do chamado presente intemporal, argumente com isso e com muito mais, que não me impressiona. Tanto se me dá. Lamento, e cara alegre, porque esses defeitos sempre têm os seus méritos. Alguns foram mesmo condecorados com a Grã‑Cruz do Onanismo Literário.)

Tudo, tudo abstracto. Até os javalis com quem nunca tive a honra de travar conhecimento a não ser através das tapeçarias antigas e do pêlo das escovas de toilette. A aldeia desfocou‑se, perdeu referências. Duas mortes repentinas cortaram‑lhe o fio natural do tempo e as vozes que me ligavam a ela foram‑se distanciando, distanciando, para horizontes incrivelmente imprecisos.

«Nasceu‑me um filho ao meu criado João Meço. Mais whisky para esta mesa.»

Isto passou‑se longe e podia ser daqui. Malmequer, bem‑me‑quer... rapaz ou rapariga? Espingarda ou cordão de ouro? J. B. de L., Herdeiros, o lavrador dos dotes e das consoadas com a criadagem, embora desconhecido na Gafeira, não traria grandes revelações a esta gente. O próprio Dom Abade, se fosse vivo, poderia testemunhar que no reduto cristão onde me encontro também houve sempre um Palma Bravo a repartir com a família e os servos o pão da Natividade. «Alegrem‑se os Céus e a Terra...», cantavam os querubins na lagoa, cavalgando acolá aquela nuvem redonda.

Seguramente que o Engenheiro aprendeu em criança a cerimónia da ceia do Natal e que a repetiu até à morte do pai, que foi lenta e dolorosa. Hidropisia, como não podia deixar de ser. E talvez haja aí quem ainda se lembre do velho a dirigir‑se para a mesa do banquete por entre filas de criados, atrás da sua enorme barriga‑de‑água. Que peso, que sacrifício ‑ e ele, sorridente. Então os Céus e a Terra alegravam‑se, no dizer dos querubins das alturas, e o vendedor das lotarias (se porventura tivesse sido convidado) não deixaria de comentar que o fidalgo tanto bebera que acabara afogado na própria barriga, tal como diria, anos mais tarde, que o filho, o Infante, por tanto fornicar acabara fornicado. Estou a exagerar?

(Em princípio, sim. Uma hidropisia é, na verdade, um exagero, uma caricatura da morte. Nenhum narrador eficaz cairia nessa armadilha, nessa escolha tão espaventosa no catálogo das doenças possíveis. Não lembra ao diabo uma lagoa vingar‑se tão teatralmente instalando‑se na barriga de um rei condenado. Mas não tem importância. No princípio era a água e a água estava nele... Ofendi, zeloso Abade? Posso continuar?)

Por um Inverno gelado ‑ data provável: 1959, ano do casamento do Engenheiro ‑ chegou à Gafeira a primeira máquina de tricotar. Viriam mais, uma até com a missão de desgraçar o prior Benjamim Tarroso, que está numa casa aqui perto, entrevado para sempre. Mas a primeira foi aquela. Desembarcou no pátio da residência dos Palmas Bravo e, carregada pelo moço, implantou‑se com todo o cerimonial ‑ embalagem, livro de instruções, certificado de garantia ‑ no quarto dos engomados onde Maria das Mercês pintava flores secas para oferecer aos stands da Cruz Vermelha Feminina.

Era um monstro que não dava sossego a ninguém, protestaria em breve o Engenheiro. Uma larva insaciável. Possivelmente tinha sido colocada desde o início na mesa de freixo em que eu a via quando atravessava o corredor, embora então estivesse muda e seca, a hibernar. Até lá, fora incansável. Um monstro.

Voraz, percorrendo um terreno limitado, a larva com os seus dentes de aço, ruminadores, tinha escrito sobre o tampo de freixo uma extensa crónica de solidão. Escrevendo e apagando, para frente e para trás, desentranhara‑se numa baba caprichosa que escorria em caudais de tricot ao longo das horas, dos dias e das semanas de Maria das Mercês.

«Agasalhos para o pessoal», justificara‑se a jovem esposa. E pouco antes do Natal: «Tomás, e se convidássemos os trabalhadores para a consoada?»

Há muito que o pai Palma Bravo tinha morrido de ascite (vulgo hidropisia, vulgo barriga‑d'água) se, em boa justiça era essa a doença que lhe cabia por ter sido um monarca da lagoa e um abundante bebedor. Nessa época, portanto, a casa, além dos patrões e da velha Aninhas, resumia‑se ao Domingos, a uma criada e ao moço de lavoura.

«Lembre‑se do pai, Tomás. Vamos fazer a ceia como ele gostava. Está bem?»

Conta‑se (não estou para localizar a pessoa, o relator) que uma mulherzinha da casa ‑ a Aninhas, quem havia de ser? ‑ andou pelos trabalhadores de fora a informar‑se do Natal de cada um e dos seus planos. Tenho um vaguíssimo rumor das censuras que lhe foram feitas na altura, e de súbito ilumina‑se a casa do lagar e vê‑se a mesa armada com uma dúzia de convivas à volta.

Três são camponeses‑operários e respectivas mulheres, o resto é velharia ‑ uns surdos, outros coxos, outros a pingar do nariz. Para completar, crianças agarradas às saias das mães.

Tomás Manuel em pessoa serve os visitantes; insiste nos doces, no espumoso, oferece charutos. Maria das Mercês distribui prendas de tricot. O quase esquecido cântico dos querubins começa a tremular de novo sobre a lagoa.

Está‑se nisto quando o primeiro convidado se levanta com a mulher e os filhos atrás. Tão cedo? O primeiro convidado, e o segundo, e o terceiro têm uma excursão do pessoal da fábrica no dia seguinte. Agradecem com muitas desculpas e partem. Em pouco tempo restam os velhos sentados contra a parede, cada qual com um charuto por estrear na palma da mão.

«Então, tiozinhos?», diz Maria das Mercês, por dizer. Ao mesmo tempo olha disfarçadamente o marido.

Diante daquela jangada de comida e de velas a cintilar, Tomás Manuel guarda silêncio. É o bom anfitrião imóvel no auge do festim. Finalmente desperta:

«Melhor, agora é que a coisa vai começar.» E fica logo outro, alegre.

Sai para ir ao bodegón buscar champanhe. Do bom, do autêntico. (De caminho traz também uma garrafa de whisky, que mete à boca quando atravessa o pátio às escuras.) Nova viagem, esta então para voltar com o gira‑discos (e com mais uma garrafa). Bate as palmas:

«Domingos, prepara‑me essas goelas.» E despeja‑lhe whisky puro a rasar o copo.

Para a criada Aninhas tem champanhe:

«Chega‑lhe, que a partir de hoje já não morres estúpida.»

Para a moça e para os velhos, a mesma coisa:

«Champanhe. Do francês, daquele que nem os bispos provam quando querem.»

«Ui», pia um velho, deleitado. Limpa os beiços às costas da mão e ri, sacudindo a cabeça, como se não acreditasse na felicidade que lhe estava reservada.

Mais bebida, mais charutos, tudo baila à voz do Engenheiro. Os querubins não se ouvem, merda para os querubins. Em lugar deles, é um fado de Coimbra que enche a casa do lagar.

Eu quero que o meu caixão tenha uma forma bizarra, a forma dum coração, aiii...

«...Ai, a forma duma guitarra», acompanha Tomás Manuel.

Palmas. A fila de velhos desejaria aplaudir mas tem as mãos ocupadas, numa o charuto por acender, na outra o copo. «Aí, velhadas duma cana», grita‑lhes o dono da casa; e eles riem, acenando com a cabecinha que sim, que sim. O do meio já não a torna a levantar. Adormeceu.

Maria das Mercês toma uma aspirina com uma golada de champanhe. Bebe um tanto à parte, insiste em beber. Daí a nada aproxima‑se do marido:

«Esqueceu‑se de mim, Tomás?» Levanta a taça, cruzando‑a com o whisky dele. De braço enganchado, como nos filmes, o casal faz uma saúde. Em inglês. «Merry Christmas», diz ela.

«Merry Christmas», repete o homem, e cantarola: «Jingle bells, jingle bells... Tatará‑tatá...»

Neste momento preciso conto dois velhos que dormem e um que soluça, comprometido. Maria das Mercês dança com Tomás Manuel que, sem largar o copo, o vai despejando no whisky do Domingos sempre que passa por ele.

«Dia não são dias, pá.»

À Aninhas faz‑lhe festas. Tão depressa lhe atira uma piada brejeira como a arrasta para dançar, e a mulherzinha encolhe‑se, esconde o riso com a ponta do avental.

A dada altura ouve‑se um estrondo. Um dos velhos sonolentos, ao fim de muito cabecear, desabou em cima dos companheiros, baralhando‑os. Com o susto, o da ponta tombou da cadeira mas, mesmo assim, ainda teve tempo para despejar um palavrão de todo o tamanho. Respondeu‑lhe uma gargalhada geral tão sentida e tão longa que os outros dois endireitam‑se nos seus lugares e ficam estonteados, muito sérios.

Mas há um velho a espernear debaixo da mesa. Acode‑lhe o moço da lavoura que, por infelicidade, ainda vinha a rir, feito engraçado. O velho recebe‑o com outro palavrão, dos tais, dos maiores, ao mesmo tempo que, apanhando o pau em que se apoiava, lhe atira uma bordoada às canelas. Está ofendido, com mil diabos. A única mão que aceita para se levantar é a do Engenheiro, mas nem lhe agradece. Está deveras ofendido. Uma vez de pé, agarra o chapéu e que vá tudo para o inferno. Sai para fora.

Muito acanhados, os outros dois seguem‑no. Obedecem à solidariedade dos velhos, que é terrível, como sabemos. O último faz uma despedida em regra:

«Patrão...», soluça. «Senhora Dona Mercês...», soluça. Depois, num arranco: «Peço desculpa de alguma má palavra...»

Fica ainda a tomar balanço para enfrentar a escuridão do pátio, ensaia uma reviravolta e desaparece, impelido por uma rajada de risos.

«Ai, o mafarrico», torce‑se a Aninhas na cadeira. «Ai, eu... ai, eu...»

«Chegam as rosas, desfaz‑se o mar...», diz o Engenheiro.

«Amor?», pergunta Maria das Mercês.

«Nada, é o nome do disco.» Tomás Manuel estende o braço para a garrafa. «Qualquer dia temos de mandar limpar o pick‑up.»

No canto da árvore de Natal, a criada nova defende‑se do moço de lavoura que teima em puxá‑la para dançar. Sentado junto deles, Domingos recebe cotoveladas, encontrões, mas mantém‑se alheado. A luz das velas tem uma cor amolecida, esverdeada.

«Então?» Tomás Manuel aproxima‑se dele, de garrafa apontada. Pelo caminho murmura que chegam as rosas e se desfaz o mar.

«Menino», pede‑lhe a Aninhas, muito gaiteira, «ponha lá aquela música de há bocado.»

Qual? Outro tango? Mais valsas? Mais guitarradas? Uma marcha? Na casa da lagoa havia, que a ouvi eu, A Ponte do Rio Kwai, mas estamos em 1959, e no Natal de 1959 duvido que essa marcha tivesse sido escrita. De qualquer maneira, a festa vai acabar com baile e com Maria das Mercês, levemente toldada, a fumar o seu primeiro charuto. Discretamente, o criado maneta encaminha‑se para a porta

«Que é isso?» Tomás Manuel agarra‑o pelos ombros e corta‑lhe a saída.

O outro teima em passar. Sacode a cabeça, estrebucha para se ver livre, mas de repente começa a escorrer das mãos que o prendem. Maria das Mercês solta um berro:

«O médico.»

«Depressa», ordena o marido com aquele corpo nos braços. A boca do mestiço é um traço de espuma e o rosto arrefeceu, está cinzento. O Engenheiro volta‑se para a mulher: «Vai tu telefonar, avia‑te.»

Maria das Mercês corre para a porta, mas volta para ir buscar a lanterna eléctrica. Ao passar por Tomás Manuel pára um segundo, inclina‑se ao ouvido dele:

«Animal», segreda‑lhe com raiva, como se fosse uma despedida, uma acusação.

Com mais força e com mais autoridade do que se a tivesse lançado em voz alta e perante testemunhas.

(Pelos meus cálculos, esta primeira e última consoada de Tomás Manuel, a ter tido lugar, teve‑o no Natal de 59‑ Casada há um ano, não faz sentido que o insulto de Maria das Mercês ficasse no ar sem um arrependimento. Estavam no começo, sofriam um pelo outro.

«Amor, que insensatez», teria ela dito, lavada em lágrimas.

Assim é que está certo.)

 

Entram clientes no café, saem outros de jornal na mão, mas os caçadores que estavam ficaram. Continuam encadeados com o Velho, é o que se depreende. E o Velho despeja a doutrina que lhe agrada, olha quem. No fundo, sente‑se protegido por ter o Batedor ao lado, pois não há praticante da caça digno desse nome que não goste de ser amável, de ouvir e de respeitar um batedor e as pessoas em quem ele deposita confiança. Que lhes faça bom proveito o passatempo, são os meus votos. Não é um sacrifício por aí além prestar um mínimo de atenção a um pregoeiro ladino que vive de números de sorte e para o qual nada é impossível no mundo, nem a felicidade inesperada nem a lenda.

Partindo do princípio que é ainda acerca dos crimes da lagoa que ele está a discursar no café, os forasteiros hão‑de sentir‑se um tanto desnorteados nas voltas e contravoltas do Velho. Pensarão: «Que salgalhada» ‑ e, como quaisquer caçadores em mato desconhecido, procurarão referências, pontos concretos:

Ora bem ‑ resumirão ‑, na tarde de 11 de Maio próximo passado um Engenheiro, neste café designado por Infante, teria saído da fábrica para se dirigir a Lisboa: primeiro ponto. Sobre isto parece não haver dúvidas para os caçadores ouvintes, até porque duas testemunhas presentes, que nesse dia viajavam na camioneta da carreira, reconheceram o Jaguar na auto‑estrada de Vila Franca por volta das 18 horas.

Segundo ponto. O Infante regressou bêbedo, ao que se julga. Na estação da Shell, a trinta quilómetros da Gafeira, intimou o moço de serviço a abrir o bar, ameaçando‑o com a mangueira da gasolina. Eram três e meia da madrugada ‑ «três e dezassete», precisam os autos.

Aqui começa a complicação propriamente dita e, como tal, as opiniões dividem‑se. Sustentam uns que o Infante se fazia acompanhar por uma senhora de nacionalidade estrangeira; afirmam outros que, tendo chegado ao local um segundo automóvel conduzido por determinado indivíduo das relações dele, era nesse carro que a sujeita vinha. E que sujeita.

Enorme, um cavalo de cem moedas. Uma autêntica Fulaníssima de Tal. Enfim, fosse como fosse, segue‑se que havia dois carros em pista e um encontro no bar. E aguardemos.

Terceiro ponto, a rixa. Sem dúvida por causa da dama. O Infante deitou a casa abaixo, partiu os dentes ao rival e levou‑lhe uma orelha para recordação ‑ ou pouco faltou para lha levar. Além disso, não satisfeito com a obra, fugiu‑lhe com a estrangeira. Se é que não fora ele quem a tinha trazido.

Por fim, quarto e último ponto, como a pressa fosse muita, derrapou na precipitação da fuga, atingindo um poste de iluminação com as traseiras do carro, rasgou um sobrolho e seguiu.

«E estes é que são os factos», como diria o Dono do Café.

«Bem, e depois?», perguntarão os caçadores como eu perguntei.

E o Velho responderá: «Depois chegou a casa e não encontrou a mulher.»

«Já sabemos, tinha‑se afogado. Mas quanto à estrangeira? Foi pô‑la em Lisboa? E como, se ele tinha estampado o carro?»

Velho: «O carro é o menos. Mais porrada, menos porrada, anda sempre.»

O Dono do Café: «É material inglês, não há nada que o faça calar.» (Fala assim porque depois de encontrarem o corpo de Maria das Mercês, subira a encosta, como muitos curiosos, até ao pátio da casa e vira o Jaguar. Estava numa poça de óleo e salpicado de sangue nos vidros e nos estofos.)

O Batedor: «Tal carro, tal dono.»

Dono do Café: «Parece impossível como ele conseguiu conduzir naquele estado.» (Porque, além dos ferimentos da desordem, o Engenheiro, no momento do choque, batera com a cabeça no pára‑brisas, abrindo um profundo lenho. Parecia de facto impossível ‑ as palavras vinham do médico e ouvidas pelo dono do café ‑ que alguém aguentasse duas horas ao volante com o sangue a correr‑lhe em bica para os olhos. E conseguiu‑o.)

Velho: «A mim o que me faz mais espécie é a estrangeira. Se chegou sozinho a casa, largou‑a com certeza no caminho.»

Batedor: «Foi pô‑la em Lisboa, não tem que ver. Duas horas naquele espada dão para ir ao cabo do mundo. Então nas mãos do Engenheiro.»

Velho, fuzilando‑o com os olhos: «O Engenheiro, o Engenheiro... Quem tem contos de réis para multas e automóveis anda depressa. Não vejo onde está a habilidade.»

Batedor: «Sim, se vamos por esse lado...»

Velho: «Nem mesmo consigo perceber para que lhe servia um cavalão tão rápido. Tu percebes?

Batedor: «Eu não, senhor. Mas com a vida dos outros posso eu bem.»

Velho, de dente afiado: «Tanta pressa, tanta farronca, e afinal para quê? Para chegar atrasado onde fazia mais falta.» Ria a bom rir.

Este pregoeiro de jornais e lotarias tem modos ardilosos quando acusa. Utilizando silêncios e ingenuidades calculadas, sabe escolher as palavras e ferra o dente. Em vez de Engenheiro, Infante; em vez de automóvel, cavalo ou cavalão, e com mais um adorno, mais um sombreado, temos o Tomás Manuel transformado num diabo sem sorte, combatendo contra moinhos de gasolina e cavalgando um cego e descomunal pénis de aço. Y que viva Goya, hermano.

Nem eu, nem os caçadores, nem ninguém poderá ficar insensível às astúcias de um dente assim. Pergunta‑se‑lhe pela casa ‑ é um supor ‑ e o Dente responde: «Está a desfazer‑se. Os fantasmas andam a esbarrondá‑la, pedra por pedra.»

Pergunta‑se mais: «Fantasmas? Fantasmas de quem?»

Resposta do Dente: «Dos Palmas Bravo, de quem havia de ser?»

Nova pergunta: «E o criado Domingos?»

Resposta: «Outro que nunca falta, o Domingos. Por sinal que é dos fantasmas mais importantes.»

Intervenção do Batedor: «Aparece como cão maneta.»

O Dente: «Justo. É um lobisomem de três patas. Não há dúvida que a praga está completa. Fidalgos, criados, cães, não falta ninguém...»

Uma pergunta ainda, Dente: «A dona Mercês também anda por lá? E como, se não é indiscrição?»

Resposta do Dente: «A dona Mercês, Infanta ou como lhe queiram chamar, não tem cabimento na casa. Só homens. Homens e cães.»

Batedor: «E o criado mestiço, não se esqueça.»

«Claro, o cão maneta, o cão maneta...» rematam os caçadores de fora, em coro.

Alongo o olhar pela linha do pinhal. Os montes escurecem, a nuvem ensombrou‑os mais. Quando cair a noite começarão a desfilar por entre as árvores as almas bêbedas dos Palma Bravo, couteiros reais saídos das páginas do abade Agostinho Saraiva, falcoeiros, monteiros‑mores e sociedade, sem esquecer o advogado errante. Encaminharam‑se para o casarão, onde ‑ diz o Velho ‑ tratam de ajustar contas antigas. Parece que no aceso da contenda levantam o soalho, destelham a casa, e terminam amaldiçoando as filhas desobedientes, as esposas arrogantes e todas as mulheres em geral.

 

Ao fim da tarde o largo perdeu o ar agressivo, é um território de abandono que acaba de cumprir mais uma jornada, percorrido, espezinhado, pelas sombras aliadas da igreja e da muralha. Dentro em breve vai render‑se à noite, que é a face comum do universo, aconchegar‑se nela, preencher os buracos e as rugas com escuridão. Confundir‑se, enfim, com a mesma mancha que iguala outras zonas mais felizes ‑ a estrada e os canteiros, as viçosas hortas.

Nas tabernas não há luz por enquanto e, tenho a certeza, o Regedor encontra‑se na posição em que o deixei: chapéu na cabeça, mãos sobre o balcão, a olhar para longe. Assemelha‑se a um capitão de navio na ponte de comando, pronto a enfrentar o crepúsculo que avança para ele vindo do terreiro. Aí está, aponto eu, quem pode desmanchar muita confusão se um dia se dispuser a fazê‑lo. Tratou com o Engenheiro anos e anos, tudo quanto declarar assenta em números, hipotecas, papel selado e em confidências apanhadas nos corredores da Câmara da Vila. Fala da lagoa, se entender que deve falar, mas «com elementos» (sic) «com os elementos na mão».

Em toda a Gafeira só ele e o Padre Novo sabem ao certo o que aconteceu na última noite dos Palmas Bravo. Ambos, sacerdote e regedor, leram as certidões de óbito ‑ melhor: ambos seguiram o aparo do médico preenchendo o resumo dos dois cadáveres, o de Maria das Mercês, esposa desesperada, e o do criado. Mas um evita explicações porque é chefe, cabeça de freguesia, o outro porque é alma, segredo de confissão. Fica de fora o médico que não vive cá e tem consultório na Vila. Com esse não se conta; escreveu o que tinha a escrever em legítima declaração oficial e não está para alimentar as intrigas de uma aldeola. E assim é que se fala, tenho de reconhecer.

Há um casal de corvos num pau‑de‑fio: Sempre julguei que o aparecimento da luz eléctrica nas nossas aldeias viesse expulsar os fantasmas e os bruxedos luarentos que infestavam os campos.

 

Enganei‑me. Enquanto houver cauteleiros Dum‑Só Dente e batedores encandeados, os mistérios da morte continuam a ressoar. E se o Padre Novo tem como profissão lidar também com mistérios ‑ com outros, mas no fundo ainda mistérios ‑ ninguém nos pode valer se o Regedor se não dispuser a isso. Contemos com a sua cortesia e com o seu amor aos factos para que o visitante bem intencionado saia daqui com alguma luz. Os corvos, apesar da sua negrura autoritária, têm uma linguagem claríssima. Nunca se desorientam.

O Regedor, ao balcão ou fora dele, tudo quanto contou e vier a contar assenta no rigor, na fé dos autos. Tudo aparecerá resumido naquela toada de enfado de pessoa que não faz mais que repetir uma verdade conhecida que a ignorância de uns e a velhacaria de outros andam a desfeitear sem qualquer proveito. Paciência. O que aconteceu, aconteceu ‑ e não oferece dúvidas, está no processo respectivo da Guarda Nacional Republicana. Quem não acreditar que vá ver e saberá que três indivíduos ‑ Fulano, proprietário, residente em Lisboa; Beltrano, engenheiro agrónomo, digo silvicultor, residente na Casa da Lagoa, Gafeira; e Cicrana, aliás Jacqueline, aliás Wanda, aliás Dimitra Barkas, artista de variedades, natural da Baixa Tessália e portadora de passaporte italiano ‑ os três combinaram encontrar‑se na estação de gasolina situada no quilómetro K da estrada nacional; por todos foi declarado que se dirigiam a uma casa da praia de São Martinho, propriedade do primeiro, utilizando para o efeito a viatura de marca Jaguar matrícula tal, e nesse encontro ocorreram os acontecimentos que deram origem ao processo.

«Para abreviar: altercaram», disse‑me o Regedor.

Altercar é mesmo dele. É uma palavra de secretaria que se ajusta às instruções modorrentas e à caligrafia de um escritor saturado de caspa. «Altercaram as partes... envolveram‑se em desordem da qual resultaram ofensas morais e corporais», e por aí fora, sempre neste tom, até se chegar ao momento da fuga e do acidente. Houve entretanto circunstâncias agravantes a registar, não se tendo provado que o rasgão produzido na orelha do segundo indivíduo tenha sido obra de Tomás Manuel. O Regedor fez perante mim questão deste ponto:

«Como tive ocasião de dizer a Vossa Excelência, a estrangeira é que se aproveitou da barafunda e ferrou o dente no outro sujeito. No delito da orelha o Engenheiro não foi tido nem achado.»

 

Mas, tornando ao princípio, porquê a discussão? Ciúmes? Torço o nariz: ciúmes nele, Tomás Manuel?

Também aqui o Regedor não tinha deixado lugar a dúvidas: falta de cumprimento do ajustado. «À última hora o tal sujeito negou‑se a ir para São Martinho e quis à viva força meter‑se em casa do Engenheiro.»

«Com a italiana?»

«Italiana, chinesa ou a pata que a pôs. Turistas dessa laia só dão prejuízo ao comércio.»

«Bonito. Mordeu o amigo e raspou‑se com o Engenheiro. Para onde, não se sabe?»

«Para Lisboa», tinha sido o parecer do Batedor, ao passo que aí já o chefe da aldeia é mais reservado e entende que ninguém tem o direito de se pronunciar sobre coisas que não vêm nos autos. Quanto a ele, até à Vila sabe‑se, está escrito. Tomás Manuel deixou a rapariga na Transportadora do Norte, onde tomou um táxi, sozinha, às quatro e vinte da madrugada. Isto, sim, está assente, foi declarado. Ir mais longe é aventurar.

«No dia em que o turismo se desenvolver nesta terra vamo‑nos ver doidos com essas desavergonhadas», concluíra o Regedor. O dente da mula: Lá na terra da verdade o cavalheiro Gaspar havia de soltar uma boa gargalhada com o episódio da mordidela de Jacqueline. Seria mais uma pedra a juntar à sua teoria dos dentes das mulheres, um exemplo que não poderia passar‑lhe despercebido. «Boa», diria ele para Tomás Manuel. «Vês tu, sobrinho?»

Pergunto, pois:

«E o sujeito da dentada?»

«O da dentada ficou a cuspir na orelha, quem o mandou ser parvo?» (Esta cena enojou profundamente o Regedor, como tive ocasião de reparar.) «Propostas daquelas não se fazem a ninguém, e muito menos ao Engenheiro. Tudo tem os seus limites.»

«Também digo.»

«E o Engenheiro, muita estroinice, muita estroinice, mas portas adentro cuidadinho. Ah, sim. Portas adentro não admitia faltas de respeito, fosse a quem fosse.»

Acenei que sim (e continuo a acenar), pensando, como pensa o Regedor, a que ponto é arriscado e do mais elementar conhecimento dos hábitos dos delfins desafiá‑los, quer na honra, quer no orgulho.

 

A bem vão no longe e gostam de se sentir protectores, a mal, Deus te livre, são ferozes. Vi‑os capazes das piores coisas e daí a nada de lágrimas nos olhos, comovidos com eles próprios ao contarem uma história em que figuravam com toda a sua generosidade ou em que mostravam o reconhecimento de alguém pela sua coragem leal. O homem da orelha rasgada tinha obrigação de conhecer este traço da natura vitae delphini. Doutro modo, quem o mandou ser parvo?

A postos: Uma charrua à porta, no passeio, e as mantas de pastor penduradas cá fora indicam que o Regedor continua a postos, na sua loja. Recordará Tomás Manuel («Mãos largas, mãos largas», tinha‑lhe ele chamado) e, se o está a fazer, pela sua memória de comerciante regrado desfila uma parada de grandezas. Nos primeiros anos esplendores de Palmas Bravo, caçadas, carros novos, Bailes do Palito em Beja, touradas em Badajoz pelo São João. Depois do casamento, dois cavalos Alter num camião em marcha para a Feira da Golegã e atrás, num descapotável, o Engenheiro e Maria das Mercês, em grande uniforme: de chapéu mazantino, jaqueta de veludo, safões e camisa de folhos. «Mãos largas, vida folgada...»

Mais do que chefe da aldeia, o Regedor é agora um capitão de sonho e de cálculo. Põe o pensamento em Tomás Manuel e nas suas embaixadas, mas é nos anos mais recentes que se deterá com apreensão: diante do estrondoso carro dos Palmas Bravo que tomava lugar nos cortejos de oferendas, com seis faisões de asas abertas no cume duma pirâmide de gansos e de patos reais ‑ a florida e derradeira produção de uma casa que deixara de ter lavoura.

«A caça que ali ia», dirá. «A propaganda que aquele carro podia fazer à Gafeira se o Turismo se quisesse empenhar.»

É indiscutivelmente um capitão de cálculo. Firmando‑se para lá da porta da loja, perde‑se por instantes. Vê a estrada cheia de trânsito, música, excursões. E se porventura levanta o rosto na direcção dos montes em frente, não resistirá a futurar, muito em segredo, uma estalagem na casa dos Palmas Bravo. Mesas no pátio, bebidas na adega, esplanada sobre a lagoa...

Deixei‑o assim esta tarde. Estava (quero crer que ainda está) com o mapa dos Noventa e Oito em cima do balcão, sereno e muito atento. Dá‑me vontade de o sacudir daqui:

«Eh, capitão Regedor.»

Eu à janela, ele ao balcão da sua nave, ambos nos vamos deixando envolver pelo crepúsculo. O pinhal é uma paliçada entre mim e a lagoa, onde, num pântano, a Urdiceira, existe uma ferida por fechar. Arrancaram de lá o corpo de Maria das Mercês, esse espinho branco cravado no lodo, essa anémona de cabelos soltos a tremularem na corrente. Ofélia, murmuro. Ofélia à flor das águas como no sempre venerado santo William Shakespeare.

Mas estes montes são pobres. Nem ao anoitecer têm grandeza para se poder estender sobre eles um imponente manto de púrpura digno de dar passagem a uma Ofélia. E, francamente, só por delírio pretensioso é possível chegar a tamanha ingratidão para com Maria das Mercês, criatura humana ‑ não dos livros. Ofélia, Hamlet, Cena V, e coisa e loisa, estão a mais neste cenário. Saint William Shakespeare disse tudo sobre o assunto. Esgotou‑o, meteu‑nos a todos no saco dele porque escreveu uma bíblia e «na Bíblia (cito de memória) contém‑se até a defesa dos diabos». O melhor é deixar essa gente em paz com os encenadores ‑ ou em guerra, se houver vantagem nisso para o Teatro. Daí lavo as minhas mãos e afasto o olhar do pinhal. Ninguém tem culpa dos caçadores enfrascados em literatura.

Baixo à terra: A tarde escureceu muito nos últimos minutos. «Infanta da lagoa, fare you well, my dove.» Digo adeus a Saint William & Company e percorro o terreiro com intenção.

«Informa‑me, Capitão Regedor. Ao certo, certo, que foi feito do Engenheiro?»

E do balcão respondem‑me:

«Ignoro. Fala‑se em suicídio, fala‑se numa transferência para África. Procure nos bares de Lisboa.» Noutro tom: «Queira desculpar, estou muito ocupado com este assunto dos Noventa e Oito.»

«Mas, Capitão Regedor...»

«Em Lisboa, em Lisboa. Decretos, novidades, é tudo em Lisboa.»

Desloco‑me a Lisboa. Na casa da lagoa havia revistas de automobilismo, galhardetes de Monza, placas de rallyes ‑ está decidido: escolho o bar do Automóvel Clube.

«Diz‑me, barman do Automóvel Clube, que se passa com o Engenheiro?»

«Que eu saiba nada. Tenho ouvido falar dele vagamente.»

«Está vivo, portanto?»

«Com certeza. É novo de mais para ter apanhado uma cirrose...»

«E que tal como copo?»

«Razoável. Whisky puro e vodka com água.»

«E quanto ao resto?»

«Quanto ao resto, menos mau no poker.»

«Refiro‑me a carros, barman. O Engenheiro Palma Bravo estudou em França... Acho que conheceu lá o Jim Clark quando o Jim Clark não era o ás que é hoje.»

«Possível, tudo é possível.»

«Chegou a ter convites para estagiar na Lotus.»

«Quem?»

«O Engenheiro, barman incrédulo. Vi fotografias dele a pilotar um Lotus‑XXI.»

«Oh», faz o barman. «Fotografias tem a malta toda que vem aqui.»

«E não corria?»

«Enfim... Correr, correm todos os tipos que vêm aqui. Alinham, pelo menos.»

«E ele? Era dos que alinhavam?»

«Sei lá. Era dos tipos que vinham aqui.»

«Estás chato, barman do Automóvel Clube. Dá‑me a conta.»

«Dois whiskies e uma chamada para fora. Para onde foi?»

«Gafeira. Mas despacha‑te, barman, tenho o jantar à espera. Não estou nada interessado em aturar os outros caçadores, lá em baixo.»

 

No andar de baixo, ao fundo da sala de jantar, a jovem das calças de amazona joga bridge com três caçadores. Entre mim e o grupo, ninguém por enquanto. Mesas postas, talheres alinhados e, mesmo diante do meu nariz, um prato a fumegar.

A moça aparece‑me de perfil, pernas estendidas, cabeça para trás, na posição dos jogadores que se isolaram dos parceiros para se entregarem às cartas que têm na mão. Assim, a linha do pescoço lança‑se como uma sugestão de vela de escuna, libertando‑se airosamente dos ombros, que são ágeis e repousados, bons para acolherem com descontracção o luzidio, o terno e sempre confiante abraço de uma Greener 7,5 mm. Toda ela resplandece.

«October sigh»: Toda ela resplandece e triunfa no sossego da casa porque, prodígio dos prodígios, tem o halo da juventude a acompanhá‑la. Palavra. Está de pull‑over ligeiro como só um corpo adolescente pode estar em Outubro e numa tarde tão desagradável, tão incerta. «October, my October sigh», ponho‑me a cantarolar em pensamento, enquanto na mesa distante a jovem continua imóvel, batida pelo reflexo do candeeiro na parede caiada.

Esta canção, October sigh, nunca existiu. Nem jamais alguém a poderá repetir, incluindo eu que acabo de a inventar e que não me hei‑de lembrar dela por muito tempo. Já a esqueci, my October sigh, my silly and de‑arest sigh, e assim é a vida. Esquece‑se o que não há, uns acordes, uns versos de imaginação, e esquece‑se o que é real e insondável, como o sorriso de um astronauta a duas colunas de jornal ou o espectáculo de uma jovem resplandecente. Belos ombros para contemplar com gentileza. Com muita e muita independência. E pernas admiráveis, também, tanto quanto é possível avaliá‑las através dumas calças de montar. Devem ser brandas de toque, sem grandes massas de músculos e, por isso, ideais para longas expedições. Deus permita que o sejam, my October sigh.

Poucas coisas haverá mais belas no mundo do que uma mulher entre juncais a apontar a uma ave em liberdade.

O estilo: Maria das Mercês tinha muito deste estilo de corpo, desta indiferença em relação à «outra gente», certos gestos irmãos até. Usariam os mesmos calões, ela e a moça que joga? Pedigree dos bem‑nascidos, chama‑se a isso, é daí que vêm as semelhanças que distinguem. Basta passar em revista a mesa do fundo para ver como todo o grupo exibe sinais de casta, a começar pelo cavalheiro de bigode à camponês e casaco de pele de cavalo.

O homem faz‑me lembrar um monarca exilado, de passagem com os filhos por uma pousada de caçadores. É o Pater jogando o bridge em família. Será? O que ele tem é um olhar pardo e nada curioso como nunca vi igual, a não ser nas feras saciadas. O bigode de camponês num rosto tão cuidado torna‑o ainda mais inconfundível e mais distante. Mas chega. Para que não se sinta observado, para não lhe dar sequer esse prazer, abro o jornal. Castas, pedigrees e comparações com as espécies animais são um lamentável acompanhamento para qualquer refeição. Não há capítulo de romance que resista a uma retórica tão descaradamente colorida...

«Portuguesidade e contemporaneidade»: ...Como não há leitor de jornal que resista a um artigo de fundo. Vem sempre em prosa de bom senso e tem o paladar requentado da retórica e da burocracia.

Senhora Dona Hospedeira, é possível fazer omeletas com retórica? Claro que não, era o que faltava. E também não é possível admitir que um corpo como o da jovem acolá suporte a menor figura de retórica. A menor. Retórica é a máscara da impotência, e aquele corpo é suficientemente afirmativo para a recusar. Suficientemente elaborado quero eu dizer. Vale pelo que vale. Vale mais do que o melhor grande slam que alguém produziu em toda a história do bridge. Assombrosas pernas, isso é que são.

«Inauguração duma Cantina Escolar»: O mais desconcertante é que ela não montava, continuo eu à tona do jornal; e com este ela não é à moça à minha frente que me estou a referir, mas a Maria das Mercês. Tendo igualmente as enaltecidas pernas de amazona e sabendo de cavalos desde pequena, não montava. Excepto, como disse o Regedor, na feira anual da Golegã.

E no entanto ela foi em criança aluna de picadeiros, cavalgou aos domingos em Cascais e no campo do Jockey Clube. E eis que de súbito se interrompe, lívida. Nenhum mestre cavaleiro sabe responder às revoluções que a mudança de idade provoca no sangue das raparigas, e ali está um caso: uma garota, Maria das Mercês, apeia‑se da montada; praticamente, deixou‑se escorregar dela abaixo. Surpreendida e estranhamente infeliz, leva as mãos aos seios ainda por afirmar. Depois espera.

«Passa‑lhe com a idade», resolvem os cavaleiros de maior experiência. «Com o casamento», pensa a mãe. E Maria das Mercês arruma as esporas e olha‑se com curiosidade. Tem as ancas e os rins bem plantados de quem faz corpo com cavalo, ainda lhe custa a acreditar que se tornou mulher tão cedo. (Aos onze anos ‑ a imaginar por um retrato dela que havia no gabinete de Tomás Manuel. Onze anos, no máximo.)

«Monges do Vietname... A Purificação Pelo Fogo (Reuter): Agora um momento. Maria das Mercês, aluna dum externato religioso; Maria das Mercês transtornada pelos mistérios do próprio corpo; Maria das Mercês noiva de um Palma Bravo; quanto não sofreu Maria das Mercês nesses anos de espera? Quantas novenas não teria prometido e, uma vez casada, com que ansiedade não teria tornado a saltar para uma sela?

Faço ideia:

Às escondidas, aproveitando a ausência do marido, ela a erguer‑se no estribo e o conselho antigo a espicaçá‑la: «Casamento... A natureza acalma‑se com o casamento...» Dá então os primeiros passos, os primeiros esticões no bridão. Agora a trote; mais rédea a seguir, mais esporas. A corrida, a corrida solta, a dúvida, mais esporas, e venha vento, e venha galope, sempre mais galope. Perdida na alegria reencontrada, voa atrás de duas narinas em carne viva que se levantam a abrir caminho, atrás de ritmo, fúria acesa, de crinas desfraldadas, mas quando menos espera revolve‑se sufocada, cerra os dentes, inteiriça‑se, e o cavalo cresce diante e por baixo dela, envolvendo‑a em calor, sangue quente, músculos. Até que consegue dominá‑lo e deixa‑se cair para a frente, vencida. Está abraçada a um pescoço erecto e apontado às nuvens a latejar, donde escorre um salitre espesso e morno que a inunda. O suor de animal aviva os aromas da terra. Maria das Mercês, incapaz de se apear, sente os lábios frios, as coxas a arder...

Alguém me toca no ombro. Volto‑me e dou com dois braços estendidos para mim: o Padre Novo.

«Com que então só se lembra da gente quando há caça?»

Ri com alegria, é um padre bem‑disposto que anda sempre apressado entre a igreja da Gafeira e o colégio da Vila. Numa das mãos traz o Match enrolado, na outra um cigarro. «Sim, senhor», diz, puxando uma cadeira. «Sim, senhor.» E olha‑me satisfeito.

Ofereço‑lhe um aperitivo. Aceita, mas tem de ser muito a correr:

«Fiquei de estar às oito na Vila e ainda quero passar pelo Padre Tarroso.»

«Pequena», chamo eu a criadita. «Pede à senhora que te arranje um cinzano para o senhor doutor. Ela sabe como é.» E para o Padre: «Cinzano com casca de limão e uma azeitona.»

«Bolas, que é ter memória.»

«De jogador», acrescento, olhando a mesa do fundo, embora considere viciada a memória dos jogadores. Talvez a jovem do pull‑over de Outubro a tenha assim, viciada, mecânica ou construída de associações supersticiosas; ou talvez não seja sequer uma jogadora. Assim, sempre é preferível uma memória de jogador à memória dum cérebro electrónico. Aponto o jornal da tarde: «Os americanos anunciam o primeiro comboio astronáutico.»

«E nós temos de lhes pedir o horário para os cumprimentar cá de baixo.»

«Nem mais», digo eu, rindo. «Ou então perguntamos aos russos.»

«Perguntamos ao de Gaulle...»

«Subversivo. Deixou perder a Argélia.»

«Nesse caso, perguntamos ao Ian Smith», torno eu.

«Pior. Teoricamente, o Ian Smith é subversivíssimo. Revoltou‑se contra a metrópole...»

Sem querer tínhamo‑nos posto a brincar, como um ano atrás, ao Jogo do Olho Vivo, que nasceu dos acasos de um serão e que é um exercício local, muito nosso. Muito Gafeira e arredores. Um cosmonauta como Edwin Aldrin dificilmente poderia alinhar nele. Por mais desconfiado que fosse e por mais obcecado que andasse com histórias de espionagem, nunca conseguiria somar tantas razões subversivas como nós aqui na Gafeira.

«Outro tema», propõe o Padre Novo.

«Outro? Caça.»

«Caça é de caras», responde ele. «Caça‑tiros... tiros‑revolução... revolução‑subversivo. Está a ver? Com três associações resolvi a questão.»

«A culpa foi minha, que escolhi um tema tão simples.»

O padre levanta um dedo, como se anunciasse uma verdade eterna:

«Só aos portugueses atentos é concedido o privilégio de jogar ao Olho Vivo.»

«Exactamente», digo eu.

Essa era, mais ou menos, a nossa definição do jogo. Estou a reconhecê‑la, costumávamos proclamá‑la como se fosse uma verdade de seita e, portanto, subversiva uma vez mais ao abrigo do Código Civil. Recitávamos‑la com o ar de falsa solenidade com que dois colegiais imitam uma sentença pomposa de um reitor caduco. Passatempo patriótico, era assim que classificávamos o Olho Vivo. « Um passatempo patriótico, exclusivo dos bons portugueses», dita‑me a memória inesperadamente, e penso logo num artigo de fundo de jornal e num governador civil a discursar. Nenhum deles falaria melhor.

O Padre Novo:

«Lembra‑se do médico naquela noite em minha casa? O tipo estava desconfiadíssimo com a gente. Tenho a certeza que não percebeu patavina da brincadeira.»

«Era fascista, se calhar.»

«Qual quê, não há médicos fascistas. Médico‑ciência», recomeça o padre, «ciência‑pensamento... pensamento‑subversivo. Esta também é fácil.»

«Estamos destreinados. Qualquer cabo de esquadra chega para nós no Olho Vivo.»

«Também, há um ano que não jogávamos.»

«Um ano, precisamente. Sempre é verdade que o Tomás Manuel fugiu?»

O Padre Novo torna‑se sério de repente. Recebe a taça de cinzano das mãos da criada e só depois se vira para mim:

«Sim...» E olha‑me com curiosidade.

«Terrível, não é? Nunca me passaria pela cabeça que um pobre diabo como o Domingos causasse tanto estrago.»

«Quando é que você soube do caso?»

«Hoje» respondo. «Esta tarde.»

«Só hoje?» O padre debruça‑se sobre o cinzano; remexe vagamente a bebida com a azeitona espetada no palito. Instantes depois, numa voz ausente, meditada: «É realmente terrível.»

«De arrasar. E o que espanta é que há uma lógica diabólica em tudo aquilo.»

«Lógica de mais.»

«O Domingos, ou acabava nas mãos da Mercês, ou era morto pelo Tomás Manuel. Tinha de ser, era questão de tempo. Assim antecipou‑se, deu ele cabo de todos.»

«De acordo. Mas sabe que o tipo morreu de morte natural, não sabe?»

«É o que eu digo, antecipou‑se ao crime.»

«Crime...», murmura o Padre Novo. «O à‑vontade com que nós falamos em crime.» Espreita o relógio, põe‑se de pé num salto: «Conversamos depois. Janta comigo amanhã, está combinado?»

«Combinado. E para já pode contar com um pato», prometo‑lhe enquanto ele despeja o copo em duas goladas. «Um pato nada subversivo. Dos tais que cumprem todas as regras da caça...»

Não me ouviu certamente. Atravessa a sala, acenando‑me adeus com a revista. Bem podia ter mandado cumprimentos por ele ao prior Tarroso, lembro‑me ainda, mas fica para a próxima. O velhote tem o mérito de ser um homem reconhecido à vida, apesar de estar a acabar os seus dias numa cadeira de entrevado e de ter sido uma boa espingarda. Comportou‑se como um esforçado vigário, ouço dizer, e caiu no campo da honra, vítima da sua profissão, por causa dum cachecol de dois metros e meio que lhe ofereceram as senhoras da Conferência de São Vicente de Paulo. Tanto tricot de enfiada é obra, dá para enforcar uma diocese. As beatas têm destes sadismos. Ai, ai, my October sigb...

Enquanto vou comendo na companhia de um jornal lido e relido, comparo o padre Tarroso aos cavaleiros de outras eras que tombavam às mãos do inimigo, estupidamente imobilizados pelo peso das armaduras. Entre duas arrobas de ferro e um cachecol de sete voltas, o diabo faça a escolha. Ambos são uma protecção estupidamente infiel. Tão estúpida e tão infiel que não consta que tenha havido aventura mais inglória do que um ministro de Deus na sua motorizada, todo enrolado naquela cota de malha retorcida por uma brigada de fanáticas, e às duas por três soltar‑se‑lhe uma ponta do cachecol estupidamente comprido e ir‑se enfiar onde? ‑ na estúpida da roda de trás. A máquina empina‑se, o cavaleiro‑prior esperneia e vai pelos ares, de cabeça contra um pinheiro. Estupidamente também. Irra, isto aconteceu numa época em que havia na Gafeira nada menos do que três máquinas de tricot a funcionar em pleno rendimento.

Acabam de chegar os outros hóspedes. Assemelham‑se a um grupo de excursionistas em visita a uma sala de museu. Pronto, façam favor, Messieurs, Gentlemen. Aqui é o chamado paço dos caçadores, as paredes datam de mil oitocentos e muitos e estão assentes sobre as termas romanas construídas durante o consulado de Octavius Teophilus. É histórico, consta dos documentos. Mas não se acanhem. Gentlemen, não fiquem aí especados. Além, na parede do fundo, têm uma peça admirável, a Jovem Jogando Bridge entre Caçadores, mas, aviso desde já, não vem no catálogo. Também não se conhece a biografia, lamento muito. E como sem biografia não sabem viver os guias de museu, o melhor é sentarem‑se, meus senhores. Deixem‑se desse ar de concorrência porque a caça amanhã chega para todos. Calma, cavalheiros, meditem naquela dignidade.

Na mesa do fundo, a jovem do pull‑over de Outubro mantém‑se de cartas na mão. Discreta. Resplandecente. Alheada dos intrusos. Com dignidade, de facto.

 

Caminho por quelhas atapetadas de mato que se há‑de transformar em estrume e em viveiro de larvas depois de moído por botas cardadas, calores e invernias; e, caminhando, cruzo‑me com vultos, alguns chegados da Vila. Vejo interiores de casebres alumiados a petróleo, são uma espinha de traves coberta com telhas em escama. Cavernames de navio, é o que me lembram. Pequenas arcas de Noé. Num ou noutro há o gato e a criança de barriga nua e de pernas arqueadas; num ou noutro há o cachorro e a galinha presa pela pata a uma cadeira, e em grandes alguidares de folha remexem enguias pardacentas. A noite está tranquila, húmida talvez.

Seguindo por ruas de arrabalde, contorno a povoação. Do fundo de um ninho de pedras levanta‑se um camponês a puxar as calças e a apertar o cinto; do lado de lá de um muro desencadeia‑se um alarido de cães. Percebo, estou nas traseiras da pensão e este é o quintal da romãzeira selvagem com os exércitos de formigas que a cobrem e com toda a poesia das suas chagas em flor. Juízo, cachorros, que é aquilo?

Esopo, irmão: Aquilo, verifico eu, sondando o vulto, à esquerda, é um burro esquecido num baldio qualquer ‑ a imagem clássica do burro escravo e maltrapilho que, já de si, figura como animal clássico. Poucas criaturas haverá tão individualistas e tão cheias de biografia; e com orelhas tão ágeis para escutar (e registar) o mundo. Parecem duas folhas de piteira nova, as orelhas ‑ direitas e aguçadas, dois dedos espetados, dois parênteses que abarcam a paisagem de fora e a que está por dentro dele, burro. Aqui temos o nosso amigo, imóvel e muito só, como uma interrogação no descampado. Olá!

Atrás dele e do vazio que é todo o plaino que se estende até ao arvoredo, levantam‑se montes negros. Uma fieira de luzes pinga lá de cima sobre a aldeia, minúsculos vaga‑lumes a tremular. Penso: «As bicicletas. Os ciclistas descem a serra.» E duvido se não ouvia a minha própria voz, ao pensar.

Os vagalumes: Então, sobre o atlas nocturno que vou percorrendo ‑ declives, perfis cegos, traçados de quelhas e casario ‑ espalmo um poema aventureiro, um poema‑galáxia todo escrito na memória e só para mim. «Vagalume», diriam as primeiras linhas ‑ desta maneira: Vagalume / Lume Vela... ‑ e o mais que se arranjasse. Depois meto‑lhe sinais, os publicitários e desacreditados pontos de exclamação e os desertos hífenes, tensos e inacessíveis como barras de trapezistas; e com isto e com o meu tipógrafo (que é a mão definitiva do poeta) componho os versos mais acabados.

VaGaLuMe ‑! ‑ ! ‑ ! vêm?

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o

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r

e

a ALDEIA

 

«Vagalume», prossigo eu, com os olhos nas luzes, no poema, «Vela‑ gume, velageme... ai, flores velhas», sabendo muito bem que nem por brincadeira se deve tocar nas coroas funerárias que os poetas escolares da minha aldeia ‑ Gafeira e capitais do país incluídas ‑ foram buscar aos compêndios franceses. Têm quase meio século, essas pétalas de poesia. No seu tempo destilaram uma autêntica e destruidora essência quando colocadas entre a palavra MERDE e os mais enternecedores laços das famílias.

«Velho, sabes quem foi Monsieur Dada, que nunca existiu? Pois as flores velhas vêm dele, foi ele quem as inventou...» e suportemo‑las, ninguém pode evitar que os nossos correios literários andem tão atrasados e que os académicos em idade de serviço militar enfeitem as mesas dos cafés com estas flores de sarcófago; que as disponham no mármore, à volta da bica e do copo de água, com a gravidade com que os heróicos sobreviventes da guerra de 14‑18 alinham dálias decepadas aos pés dos monumentos, escrevendo PÁTRIA com elas e erguendo um estandarte muito condecorado. Como, para não ir mais longe, ninguém pode também evitar que um caçador às tantas da noite se entretenha com o seu poema‑código composto de faróis de bicicletas.

Está a mais, o melhor é esquecê‑lo. Rápida e diligentemente, determino. Não faltam campas nas tertúlias do Chiado e arredores ‑ aldeias e cafés de província incluídos ‑onde as flores velhas sejam cultivadas por mãos desvanecidas.

Um nicho: Ando mais, desemboco na estrada por um atalho, mas antes aparece‑me uma locanda quase clandestina, como as das feiras pobres: tábua comprida a servir de balcão, cortinas de chita a separarem a loja do quarto de dormir. Sentados por baixo de um gasómetro, três homens embalam as caçadeiras. Têm‑nas sobre os joelhos, passam‑lhes o pano, acariciam‑nas. Se o Regedor aqui estivesse, diria: é isto, cada qual prepara a festa na lagoa.

Os faróis das bicicletas aproximam‑se de mim pelas costas, alongando‑me a sombra e deixando‑a depois para trás. Sulcam a estrada num rasgão macio sobre o asfalto mas, conforme se aproximam da Gafeira, vão‑se animando em ziguezagues. As campainhas retinem, só se hão‑de calar à porta do café.

Fumo: E aqui cortam‑me o caminho nuvens de um fumo quente, carregado de ternura e de recordação, que vêm de um pátio à entrada da aldeia. Faço um desvio, mergulho nelas, vou dar a um forno de pão, chamado pelo maravilhoso aroma da rama de pinho a arder. Labaredas calorosas, masseiras de tábua raspada, a ladina pá da forneira e a brancura do linho que cobre a branca farinha, tudo se afoga em névoa, em alvura ‑ e eu também. Os olhos ardem‑me, e nem assim deixo de estar preso ao conforto hospitaleiro, ao segredo e às seduções que há num forno de pão. Só daí por bastante tempo consigo despegar‑me daquele tugúrio consolador, e então pasmo: também a aldeia se encontra coberta de bruma. Bruma ou fumo de pinho?

Depois do dia luminoso que esteve, uma turvação assim, repentina, não engana ninguém. São os ventos a mudar, são eles, os ares do oceano, que entram pela costa carregados de poeira de água, de névoa. Ar marítimo. Correcto, confere com o boletim meteorológico, que, uma vez sem exemplo, se decidiu a cumprir a palavra. De madrugada cá teremos o prometido noroeste, nada quezilento, nada alvoroçado, para impedir, como convém, a fuga das aves para o mar. Só falta que abrande durante a tarde de maneira a proporcionar uma deslumbrante entrada de patos na lagoa ao pôr‑do‑sol. Isso então é que seria correcto, correctíssimo.

Por nada deste mundo queria estar na pele desses cavalheiros que repousam agora nos juncais, ferrados no sono. E nesta conversa já são quase dez horas, quem diria.

As luzes do café derramam‑se na cinza clara que repassou a noite, a balbúrdia dos ciclistas aumenta. Gente que chega, um rádio que berra, a mulher que chama pelo filho, e eu cortando esta confusão, rumo à hospedaria. No momento em que vou abrir a porta, trava junto de mim o Morris‑850 do Padre Novo.

«Venho agora da Vila. Acabo de encontrar o Engenheiro no posto de gasolina.»

Disse isto sem despegar as mãos do volante. Como se andasse a passar palavra de pessoa em pessoa e tivesse pressa.

 

«No bar da Shell?», pergunto.

O padre, sem largar o volante:

«Bêbado que nem um cacho. E prepara‑se para vir aqui.»

«Vir à Gafeira, o Tomás Manuel? Não pode ser ele. Ele disse‑lhe onde vivia?»

«O mais grave», continua o Padre Novo, sempre a olhar em frente para o pára‑brisas, «o mais grave é que, não tarda muito, toda essa malta está grossa. Santo Deus, se ele aparece aí vai ser um inferno.»

Debruço‑me à janela do carro:

«Os padres andam sempre a sonhar com apocalipses.»

Não me responde. Tem o motor desligado, mas é como se fosse em viagem, muito direito ao volante. Apetece gritar‑lhe: alma, padre‑doutor ‑ e de o fazer voltar a si com uma saudável palmada nas costas. Assim não passa de uma sombra, uma sombra vigilante.

«Descanse que, mesmo com os copos, o Tomás Manuel sabe muito bem até onde pode ir», digo eu para dentro do carro.

E a sombra:

«Não imagina como estou preocupado.»

«Ai não, que não imagino. Seria um transtorno para a Parábola se o Filho Pródigo regressasse ao lar com uma carraspana.»

«E lembrar‑me eu que nada disto acontecia se tenho levado a sério o Domingos», continua a sombra, falando para o pára‑brisas. Volta‑se no assento, os óculos ficam a luzir na penumbra, apontados para mim: «Três dias antes de morrer veio ter comigo para lhe arranjar trabalho em Lisboa. E eu, estúpido, sem perceber.»

Desencosto‑me do carro, tenho as mãos húmidas da camada de orvalho que o cobre. O Padre Novo põe‑se distraidamente a fazer sinais com as luzes ‑ a acender e a apagar, a acender e a apagar.

«Acredite, podia tê‑lo salvo. O meu mal foi não ter percebido a que ponto ele estava amedrontado.»

«Era estranho, aquele Domingos.»

«Orgulhoso. Um tipo esquisito, parecendo que não», diz o padre. «O Tomás Manuel tinha‑o espancado na véspera por causa dum emigrante e eu julguei que era por isso que ele se queria ir embora. Que estupidez. Nunca mais me posso perdoar.»

Na clareira que os faróis cavam na névoa, surge um homem enrolado em fumos com um bando de garotos atrás. Vem do largo, carregando um molho de canas ao ombro, que são, tudo leva a crer, foguetes; foguetes de fio encerado e hastes aparadas.

«São para hoje?», pergunto quando o grupo passa por nós.

Fogueteiro e companhia detêm‑se. O homenzinho cheira a pólvora a meia légua de distância, e muito mais ainda no momento em que, encostado a mim, espreita para dentro do carro. É verdade, tresanda a pólvora e a esterco. Deve ser dos tais que trazem sempre no bolso do colete um desses isqueiros de cordão que nunca falham em matéria de acender rastilhos. Explica ele:

«Levo aqui, senhor padre, esta braçada de foguetes para deitar à meia‑noite, com outros tantos que o Regedor ficou de me arranjar. Ainda não ceei, ainda tenho de preparar três morteiros para amanhã, e nem ao menos posso contar com a ajuda do meu rapaz que, pelos vistos, está a queimar a féria na Vila, devido ao adiantado da hora. Pois não quer ver o senhor padre que, com tanto transtorno, tenho de gramar esta canalha atrás de mim? Sarna das sarnas, que me têm feito a vida negra. Ide‑vos, mocitos, ide às vossas mães. Daqui até à meia‑noite não me doa a mim o juízo.»

Despejou as mágoas e partiu. Em menos de um fósforo evaporou‑se com a garotada que o seguiu, absorvido pela bruma.

«Venha a minha casa», convida‑me o Padre Novo.

Agradeço mas não aceito. Sinto‑me alvoroçado com este regresso à Gafeira. Um ano vivido assim, numa tarde, desorienta. É um fardo que não se descarrega facilmente, sobretudo se dentro dele vêm defuntos que nós conhecemos e esquecemos, e que inesperadamente nos caem em cima com todo o peso dos seus segredos. Ando com eles, quer queira, quer não. Foram referências que esperava encontrar na paisagem da Gafeira e que me faltaram, desnorteando‑me, neste dia de festa.

«Obrigado, mas convém‑me deitar cedo», respondo eu. «Amanhã tenho de fazer frente a vários patos. A um, pelo menos.»

«Deus permita que a gente o coma em paz», diz o padre. «Tenho as minhas dúvidas.»

«Comemos, vai ver que comemos. Mas a esta hora quem leva vantagem é ele. Aposto que já vai no segundo sono.»

O meu amigo faz um sorriso vago:

«Você fala dos bichos com uma espécie de fatalismo. Há qualquer coisa de código de honra, não sei...»

«Uma visão sentimental da vida animal... É assim?»

«Um pouco. Às vezes, chega a parecer um jogo cheio de regras. Os bichos a cumprirem o destino de caírem no campo da honra, você a matá‑los com nobreza. Mas entre, ao menos. Faz‑me impressão vê‑lo aí a apanhar humidade.»

Aceito. Só por um bocadinho, só o tempo de fumar o cigarro, porque o pato que eu tenho de derrotar amanhã, etc, etc. e etc.

«É o que eu digo, a caça para si tem todo o ar duma batalha clássica.»

«Para mim e para todos os caçadores que se dão ao luxo de respeitar certas regras», torno eu. E, sentado ao lado dele, começo a defender teorias e conceitos de exigências no prazer e, logo, a necessidade de regras e de esquemas. Isto na intenção de o distrair e duvidando muito secretamente se tais esquemas, tais tácticas e o que se segue não seriam ainda uma visão literária da existência animal, sabendo ao mesmo tempo quanto me desagradaria que o fossem, e que se calhar são.

«Como?», pergunta a voz à minha esquerda, mas tão apagada que não ilude ninguém: o Padre Novo andava por outras paragens, rodando o vulto longínquo de Tomás Manuel. Ou rondando a memória de Domingos ‑ ponho ainda como hipótese. Das duas, uma.

Agora está dobrado para a frente, consultando o relógio à luz do conta‑quilómetros. Quando se endireita, suspira fundo:

«Não sei se não seria melhor ir procurar o Engenheiro ...»

Calo‑me, é lá com ele. Já se pôs outra vez a falar para o pára‑brisas:

«Só receio que se eu lhe aparecer seja pior. É capaz de se sentir na obrigação de levar as ameaças por diante, e então é que vem mesmo. Não sei, francamente não sei...»

Continuam a chegar ciclistas, e a televisão do café a recebê‑los com música e com publicidade comercial. Uma velha que ia no seu caminho volta atrás para dar a sua espreitadela ao carro. «Santas noites», resmunga; e segue. Anda no ar o eterno pregão da mãe que procura o filho e, à minha esquerda, o segredar do padre: Vou? Não vou?

Não compreendo, sinceramente que não estou a ver em que é que a ira ou o orgulho do Engenheiro podem ir além dum alarme calculado, dum simples acenar à distância para a Gafeira. Por alguma razão ele se instalou no bar onde tinha deixado tão más recordações; por alguma razão, também, escolheu este dia para se fazer lembrar à aldeia que o julgava perdido. E o meu companheiro está, vai não vai, para lhe fazer o jogo. Não é ingenuidade? ‑ critica o mais elementar bom senso.

«Não sei», diz o rosto dele, enfrentando o nevoeiro. «Francamente que não sei...»

«Desafiar o orgulho dos bêbedos não é lá das melhores coisas», torno eu. «Mas se quer que o acompanhe vou consigo.»

«Você dá‑se com ele?»

«Nunca mais o tornei a ver, mas isso não impede.»

«A sério que não voltou a vê‑lo?»

Levanto a mão solenemente:

«Juro. Mandei‑lhe as boas‑festas pelo Natal, foi tudo.»

«E não o encontrou em Lisboa?»

«Homem, nem em Lisboa nem em parte nenhuma. Porquê?»

O Padre Novo fica‑se a abanar a cabeça:

«É fantástico. As alhadas que aquele homem arranja.»

«Alhadas?»

«Nada de importância», diz o padre. «Você sabe como ele é. Inventa as histórias e depois acredita nelas.»

«Percebo. Desta vez meteu‑me a mim ao sarilho...»

Sorriso cansado do padre:

«Garotices.»

«Está bem, mas o que foi?»

«Uma trapalhada qualquer, não me lembro ao certo. Um processo por causa dum romance ou não sei quê. Se quer que lhe diga, nem percebi.»

«Com essa é que você me tramou. Romance?»

O padre ri abertamente:

«Escrito por você.»

Quase dou um salto no assento:

«Por mim?»

«Sim, senhor. A biografia duma manicura que ele lhe apresentou não sei onde...»

«Manicura? Nunca!», proclamo alto e bom som diante do padre que ri cada vez mais. «Era o que faltava, meter‑me com uma instituição tão poderosa como as manicuras. Só se eu fosse parvo, meu caro doutor.»

«Pois aguente‑se, que foi o que o Tomás lhe reservou.»

«Aguento nada. As manicuras não são para graças, que é que pensa? Dispõem dos melhores ficheiros, conhecem segredos de toda a casta de clientes, são uma força. Uma autêntica força. Quando estiver com ele peça‑lhe para me trocar a heroína.»

«Eu? Para quê, para ele lhe arranjar outra pior?»

Com aqueles óculos a faiscar quando ri, conta‑me como determinada manicura que usava verniz de prata veio à fala com um romancista, confiada na sua discrição e na sua fidelidade ao facto real; como depois o mesmo romancista, que era eu, traficou na sagrada letra de imprensa as confidências ouvidas, alterando‑as com impiedade; conta‑me ainda a repulsa de um Engenheiro protector que veio em socorro da ofendida, e, para fechar, lamenta sem azedume a paciência dum sacerdote que confusamente o escutou quando ele se encontrava no auge do furor e do whisky. Concluindo:

«O Tomás Manuel só esperava que o seu livro saísse para apresentar queixa nos tribunais.»

«Vê?», acudo logo eu. «As manicuras são ou não são uma instituição? Está a ver como se enrola um escritor em meia folha de papel selado?»

«Aguente‑se, dessa já você não se safa.»

Alegra‑me que o meu companheiro se tenha deixado de ideias agourentas que estão muito certas num cura de aldeia mas nunca nele, pastor confiante em Deus, não nos diabos. Os pregoeiros de um só dente e as corujas de sacristia é que se deleitam a inventar mafarricos porque precisam deles como do pão para a boca. O Padre Novo, não. Tem a alegria de quem acredita de boa vontade, ou seja, sem ser por medo, e, além de bom parceiro do Jogo do Olho Vivo, é um paciente ouvinte de histórias do Engenheiro. Esta cá me fica, torno eu de mim para mim. Podia esperar todas as habilidades de um Palma Bravo menos a de me pôr em conflito com as manicuras. Manicuras, que responsabilidade.

«Já agora donde era a heroína, posso saber?»

Mas, para minha surpresa, o padre tinha‑se posto bruscamente seco e sombrio:

«Coisa sem sentido... Nós para aqui a brincar e ele, coitado, tão só.»

Tento disfarçar:

«Tão só, não. Tem as manicuras todas que ele quiser inventar. Acha pouco?»

Fez‑se um gume de silêncio entre mim e o meu companheiro, que está com as mãos no volante, perfilado.

«Você é cruel», murmura daí a pouco. «Nunca pensei.» «Sou um escritor negativo», respondo‑lhe. «Mas isto passa, deixe lá. Qualquer dia aproveito para fazer a minha revisão.»

Quando subo ao quarto da estalagem, levo comigo a recordação ameaçadora do Engenheiro, debruçado sobre um copo de whisky e terrivelmente só, ele que tanto desejou companhia. Os degraus da escada rangem um por um: «Unhas de Prata... Unhas de Prata...» Há‑de haver forçosamente alguém com esta alcunha.

Um guitarrista?

 

Sentado à beira da cama, o caçador em vésperas de expedição contempla vagamente a braseira que a dona da casa mandou pôr no quarto. Pensa em tudo e em coisa nenhuma ‑ no padre e no Engenheiro; em enguias (e a propósito de enguias num provérbio africano: «Não é por estar muito tempo no rio que o pau se faz cobra de água»); pensa no fatalismo sentimental com que fala dos animais, seus adversários na caça, e que não lhe agrada nada (acha as antropomorfizações uma bravata, acredite ou não o Padre Novo, acha um termo feio, an-tro‑po‑mor‑fi‑za‑ções) e com isto tem a consciência de estar a adiar o sono. Depois, há o ruído da rua, música, e campainhas; dirige‑se à janela para a fechar.

Pelas vidraças descidas até meio entra o ar da noite que, percebe‑se agora, vem cortado de um ligeiro travo de fumo. É bom estar assim, num quarto com borralho na braseira, e receber de frente uma aragem temperada por um fio de aroma. Excelente ideia, a da braseira. Raros caçadores terão tido tantas atenções da parte de uma formiga‑mestra estalajadeira.

No passeio do café alinham‑se as bicicletas, cada qual com uma cesta de enguias enfiada no guiador. À porta e ao balcão os camponeses‑operários fazem grupo, são inconfundíveis por trazerem samarras de gola levantada (como quando desciam a serra) e pelas calças apertadas com molas nos tornozelos. No meio deles giram os filhos e algum cachorro curioso, e todos, homens, crianças e cachorros curiosos, oscilam da penumbra da rua para a loja iluminada donde emanam a música e o vinho. Compreende‑se, é a festa. Espectáculo completamente moral. Amanhã Ano Primeiro da era dos Noventa e Oito. (Li isto algures, «Espectáculo completamente moral». Anúncio de feira? Mas em que sítio e quando?) Amanhã 98‑Espingarda‑da‑Região‑98 hão‑de participar nas provas da lagoa com todo o aparato dos grandes dias. Haverá romaria entre as árvores, baile e concertina ‑ Patos, Garrios, Galeirões / & Demais Aves da Época / Cortejo de Barcaças / Cães ao gosto dos Srs. Caçadores. É a festa. O próprio Regedor acaba de fazer a sua entrada, parando à porta do café, com um rolo de papel na mão e chapéu revirado para cima, chapéu a desprender‑se para distantes alturas. Viva, Regedor de largos sonhos, capitão dos Noventa e Oito.

Nisto, abre‑se‑me um clarão na memória: «Unhas de Prata. E ela, a mulher do crime perfeito.» E nesse clarão reflectido nos vidros da janela aparece o meu rosto a mexer os lábios.

Já não há rua, há meia vidraça onde eu estou instalado e, em segundo plano, outro indivíduo, o Engenheiro. Os dois vultos encontram‑se frente a frente, enquadrados numa sala ampla, e todos os movimentos que fazem deslizam na negrura do vidro como num espelho desfocado pela distância. Os lábios deles não param e as mãos agitam‑se, desenham gestos. Conversam. O tema da reunião é o Crime. Livros e teorias do Crime, visto que se está na noite da Dama das Unhas de Prata, novembro de 1965.

«Amigo», vejo‑me eu a dizer na vidraça que dá para a varanda sobre a lagoa, «a literatura policial é um tranquilizante do cidadão instalado. Toda ela tende a demonstrar que não há crime perfeito.»

Tomás Manuel põe em dúvida. Percorre ou vai percorrer a constelação dos policiais que tem na estante do seu gabinete: Cárter Dickson, Gardner e O Santo, Rex Stout e Nero Wolfe... (e Simenon, junto por minha conta. E Hamett, e os escrivães da Inquisição, e Sir Edgar Allan Poe, que nunca foi Sir, e o Reichsfiihrer SS Walter Schelienberg, que nunca foi romancista e que no entanto relatou crimes bem planeados como poucos. Mas não julgo que haja vantagem em pôr‑me para aqui a enumerar tantos nomes. Não só não conseguiriam impressionar o meu amigo como iriam ocupar mais três ou quatro linhas de texto sem parágrafo).

«Essa conversa de que o crime não compensa também é uma boa anedota», diz ele. Boceja largamente, recostado no maple (e eu invejo‑o por isso. Tem sono. Quando chegar à cama vai dormir que nem um justo, sem bicicletas a tilintar nem pesadelos de dente de Velho). Põe‑se de pé: «Deve ter havido milhões de crimes altamente compensadores.»

«Está bem, mas não vêm nos romances. O burguês pacato precisa de acreditar nas instituições. Mostrar‑lhe que pode haver crimes perfeitos era o fim da sua tranquilidade.»

«Mas é que há mesmo. Por definição todos os crimes que não se descobrem são perfeitos.» O Engenheiro dá duas voltas pela sala, depois sai‑se‑me com esta: «Até eu conheço um, já vês.»

«Um crime perfeito?»

Pausa longa. Parece que estamos no teatro.

«Perfeitíssimo. Com título e tudo.»

«Não me digas, pá. Um crime perfeito, e estavas assim tão calado?»

«É verdade», torna o meu amigo. «O Caso das Unhas de Prata.»

«Óptimo, grande Sherlock. Deita cá para fora o mistério e não faças caixinha. Porquê das unhas de prata?»

«Porque é o verniz que ela usa. Pinta sempre as unhas daquela cor. Um aço prateado, sabes como é?»

«Go on, Sherlock, go on...»

Traço a traço, o meu anfitrião começa a compor uma beleza de mulher iluminada pelo rosário de unhas venenosas que lhe coroam os pés e as mãos. Coloca‑lhe um rótulo (ou coloco‑lhe eu, tanto faz): «Pega de grande classe na primeira metamorfose» ‑ o que a situa entre as jovens de princípios que se extraviaram depois do divórcio e começaram a sua independência explorando apartamentos mobilados e pequenos contrabandos de bom gosto. Para aí, mais coisa, menos coisa. Passagens rápidas pela Bénard à tarde e pela Marques, férias na Costa Brava ou nas praias selvagens, e sociedade em boutiques para garantir o excitante traço da independência. Tomás Manuel conheceu‑a («Racée, fêmea quatrocentos por cento e cheia de classe. Pá, se esse Jaguar pudesse falar...») e com o celebrado Jaguar, com o Lancia que Deus tem e, mais para trás ainda, com o seu primeiro Porsche, acompanhou‑a como amigo e como confessor entre lençóis. Mas vem o dia em que Dama das Unhas de Prata se liga a um velho da alta finança, e é então que tem início o drama que a há‑de conduzir ao crime. Final do primeiro capítulo. «Mais um whisky?», pergunta o meu companheiro.

«Se fosse a ti, Sherlock duma figa, não punha as coisas em termos tão simplistas. As jovens independentes sofrem às vezes duma ânsia de protecção e eu salpicava a história com umas gotas do complexo de Édipo.»

«Vai gozar outro.»

«Não estou a gozar, estou a ir ao encontro dos leitores. O ideal seria que o velho fosse amigo do pai dela. Não queres? Pronto, não compliquemos.»

«Conto ou não conto a história?»

«Please do, mister Holmes.»

No capítulo seguinte ouvem‑se discussões de ciúmes, birras de velho, a receita que se previa. O homem tinha uma arteriosclerose adiantada e explorava a ferida.

À mais pequena contrariedade, punha o aviso: vê o que arranjas, menina das unhas de prata. Quanto a separarem‑se, pior, seria o fim. Não resistiria, menina das unhas de prata. Golpes de velho, que tão depressa ameaçam os outros com o castigo da morte como lhes prometem testamento e felicidades se a morte vier longe e a seu gosto, ou seja, nunca mais.

A moça deitava as mãos à cabeça, corria para o Engenheiro: «Tomás, eu sufoco. Qualquer dia acabo com aquele monstro. Tomás, é insuportável. Qualquer dia faço uma asneira... Tomás, Tomás...» Andava tão transtornada que nem quando estava com o meu amigo deixava de pensar no velho. Isso, confessa‑me o Engenheiro em aparte, só lhe dava vontade de a mandar vestir e, ala, para o olho da rua. Palavra.

Jogo o palpite clássico:

«Móbil do crime, o dinheiro. Armas, os medicamentos. Acertei?»

«Nem pouco mais ou menos.»

Tomás Manuel está como convém a uma narrativa policial: lareira ao fundo da sala, espingarda na parede, silêncio na lagoa. Eu sou o indispensável ouvinte que se interessa por destrinçar o nó do problema. E vamos a isto.

«É simples», diz ele. «Como plano não tem nada de complicado, mas, pá, é sensacional. Um autêntico ovo de Colombo. Só isto: usar o amor como arma do crime.»

Confesso que não estou a ver bem:

«Amor como arma do crime?»

«Nem mais. A miúda excitava o velho durante a digestão, percebes agora? Obrigava‑o a dar tudo por tudo na cama até que um dia a esclerose havia de o esticar de vez. É ou não é de génio?»

À minha frente, nas largas vidraças da sala, o Engenheiro está imóvel, à espera.

«Tens a certeza que foi assim», pergunto‑lhe.

«Pelo menos, era o que estava planeado», responde ele. «O azar foi o tipo ter morrido antes do tempo.»

«Ora gaita.»

«É verdade. Lembrou‑se de ter uma síncope em família com médico e tudo à cabeceira. Mas isso não altera. Como esquema, era infalível.»

Tomás Manuel fica outra vez parado, a olhar‑me. Não me pronuncio imediatamente sobre o plano da Dama das Unhas de Prata ‑ tenho cá as minhas razões (e as minhas leituras policiais, como toda a gente).

«Diz‑me uma coisa», pergunto‑lhe daí a nada. «Tu sabes se o velho tinha estado com ela nesse dia?»

«Acho que sim. Quando mais não fosse ao almoço. Almoçavam sempre juntos... Porquê?»

«E morreu quando? Nessa noite?»

«Nessa tarde. Parece que chegou a casa...» E de repente o Engenheiro dá um salto: «Pá, não me digas...» Senta‑se no maple, fita‑me. Atordoado, sempre a fitar‑me, procura compreender, ganhar pé. «É isso», conclui num murmurar lento, «não há que ver. A morte nem sempre se dá no próprio acto. Positivamente... Nesse caso, caramba, nesse caso foi ela que o matou. Antes ou depois, foi ela.»

A névoa que vem lá de baixo, da rua dos ciclistas, turva as vidraças. O calor da casa torna‑se mais pesado.

«Matou‑o, a viborazinha. Matou‑o em cima do almoço», continua, muito para ele, Tomás Manuel. «O velhadas saiu vivo da casa da miúda, mas já ia pronto... Espantoso como nunca me tinha lembrado disso.»

«Mors post coitum», resumo eu, como qualquer médico que dá um parecer definitivo. Nesse instante já não o vejo reflectido na janela nem somos dois amigos suspensos num clarão.

 

A aldeia foi‑se aconchegando na névoa, é uma confusão de vultos a formigar em torno de uma gruta de luz ‑ o café.

Por baixo desta vigia, deste meu posto sobre a Gafeira, por baixo da loja que a dona da pensão transformou em sala de jantar e, mais fundo ainda, trinta ou quarenta palmos mais fundo, tenho aquedutos subterrâneos (abade Agostinho dixit), opulência, pegadas de um tribuno ocupador que se assinava Octavius Teophilus, varão consular. Estou cercado por famílias e por casebres implantados num ossário da história. Os ciclistas e as viúvas‑de‑vivos passeiam‑se sobre ele, sobre mil glórias sepultadas.

Pela janela meio corrida entra um cheiro a enguias a arder nas tabernas e nos lares que, quanto mais noite, mais se adensa. É o festim, digo. O festim sobre as ruínas. Os destroços das idades mortas despertam a fumegar e, neste ponto, justiça seja feita ao profético Dom Abade, que, já em 1801, Monografia, cap. VI, fls. 87 vs., tinha prevenido o mundo contra a herança pagã que pesa sobre a Gafeira:

«Encontradas que foram duas cisternas nas casas do forno da família Ribeiro e, bem assim, os lavabos e a dita conduta no quintal de Silvério Portela, a qual orçava por trinta varas de comprido e media, na maior altura, obra de homem e meio, mais se nos confirma estar a Povoação assente em uma teia de canais e de represas que serviram aos banhos ímpios da tropa romana e às orgias dos adoradores de Baco a cujos desmandos se acolhiam...»

Seja. Tome‑se o abade à letra. É muito possível que nas veias dos camponeses‑operários ande a rondar uma gota perdida do sangue dos invasores e que, como relata a Monografia, as mulheres «conservem, em muitas aparências do corpo, as formas romanas, quais sejam a mama pequena, o lábio carnudo e as pernas possantes e de artelho largo». Assim como é também de admitir, perante a alegria que vai na aldeia, que um antigo e adormecido incenso de prazer se tenha levantado das relíquias e cegue, e queime, a alma dos gafeirenses. Mas esta névoa (ou esta fumarada de enguias ‑ quem adivinha?), esta névoa excita, traz prenúncios felizes, e todos nós merecemos vinho para hoje, céus calmos para amanhã, conforme está previsto pelos Serviços Meteorológicos. Uma vez na vida, acreditemos no Borda‑d'Água oficial e nos aristóteles que o fabricam.

Um fumo áspero, de gordura a chiar no fogo, sai das lareiras e das quelhas. As enguias, grossas como punhos, estorcem‑se nos espetos de salgueiro, pingando nas brasas e abrindo labaredas. Na chaminé do humilde, no balcão mais tosco, rompem clarões, ao mesmo tempo que nuvens violentas, carregadas de um sabor bárbaro, rolam sobre as cabeças dos homens e vêm até mim.

Baixo a vidraça mas, ouvindo através dela a balbúrdia da rua, preparo‑me para uma noite difícil. Enquanto não adormecer vou pensar certamente no tema «Toda a festa é uma demonstração de poder», e daí sairá um caudal de lembranças nocturnas ‑ Regedor, política, cosmonautas, amor, coisas boas. De raciocínio em raciocínio irei longe, darei voltas para chegar à casa do Engenheiro conquistada pelas lagartixas, que são, para mim, o tempo (português) da História. Ficarei um instante parado, só sombra. Descerei o vale por cima de uma cama de fetos, aproximando‑me em sonhos da lagoa, com as suas águas tristes, sua solidão, seus segredos... Até que ao primeiro tiro da madrugada se levantarão os patos de asa crespa numa esfera de som e de poalha de luz.

(Acaba precisamente de estourar um foguete, os cães reunidos no quintal acordam, indignados.)

Enquanto isto, os vidros por onde espreito a rua vão‑se tornando baços e serão como uma janela de comboio nocturno, um postigo de bruma que os mensageiros de ferro e de carvão carregam festivamente no seu bojo, de apeadeiro em apeadeiro. Nesta estação, Gafeira, pressente‑se vida, mas custa a distinguir através dos vidros, tal é o fumo. Há música saída de um alpendre (?) e bicicletas em linha, e, a toda a volta, manchas imprecisas, população, habitações, ruas.

Às esquinas e à porta das tendas colocaram‑se fogueiras com espetos em labarela, verdadeiras bandarilhas de carne; no céu estalam foguetes que são também fogo, música e rastro branco. A fumaceira avoluma‑se. Rompe das frestas dos telhados, desponta das crianças que circulam ao deus‑dará, devorando pedaços de carniça sobre o pão. E um nevoeiro que embriaga, um nevoeiro de enguias e de brisas do oceano.

(E não haver uma alma que feche as janelas da Gafeira...) No café, um ciclista volta o forro das algibeiras: saem penachos de vapor de cada bolso. Viúvas‑de‑vivos passam a correr, fumegando ‑ as saias e os seios fumegam; um calor activo escoa‑se‑lhes das virilhas, da secreta boca do corpo, espraiando‑se pelo ventre e pelos braços num tremular branco e contínuo. Nas tabernas os camponeses atropelam‑se, procuram o copo às apalpadelas. (E as janelas abertas, e as crianças a tossir nos berços...) Ouvem‑se gritos, gargalhadas, música de feira. E foguetes ‑ os cachorros mal respondem, gemem.

Esses latidos, embora fracos e sem convicção, prolongam‑se pela noite. Vêm de algures, de dois cães em desespero, dois unicamente, que estão numa clareira (o largo, vê‑se logo), cercados por gente e por neblina. Há risos na assistência, e os animais, um macho e uma fêmea, arrastam‑se miseravelmente pegados um ao outro pelo sexo, o cão levando a cadela atrás, às arrecuas, parando agora à espera, gemendo mais adiante ‑ mas cada qual voltado para seu lado, sem se olharem nem se sentirem aliados pela menor recordação do amor que estiveram a viver. Dois estranhos, dois corpos que se ignoram e que se encontram comprometidos por um nervo intumescido, mais nada. O castigo da carne caiu sobre eles quando se julgavam livres, e cumprem‑no. Andam para ali, ligados, a debater‑se e a gemer, mas também isso sem convicção. Os curiosos insultam‑nos (há necessariamente o Velho a atirar‑lhes terra e a persegui‑los) e eles, de pescoços esticados, olhos estúpidos, continuam impotentes na sua indignidade.

Novo foguete, os latidos cresceram. Transformaram‑se em uivos que terminam num bater de dentes entremeado de sons roucos, semelhantes a vozes humanas. Mas são os cães ainda na clareira. E desta vez estão desligados e parecem enormes. Sentados nos quartos traseiros, como leões de circo, escancaram as negras bocarras, suportando as fantasias de um domador que é, nem mais nem menos, o Velho das lotarias. Ele em pessoa, a torturar na praça pública dois mastins corpulentos. Monstros daquele tamanho só podem ser os lobos‑de‑alsácia do Engenheiro, e são, não há que duvidar. Lá está o Lorde. Lá está a Maruja.

O cauteleiro faz a sua oratória à assistência, e demonstra: vai‑se às feras e arranca‑lhes mancheias de pêlo.

«Aproveitem a hora da sorte», apregoa, enlouquecido.

Com o pêlo vêm, agarradas, tiras de carne a todo o comprimento dos lombos, que saem vivas, a saltar, e se enroscam no braço do Velho.

«Enguias, meus senhores. Aproveitem a hora da sorte», anuncia, mostrando‑as bem alto para que todos as apreciem. Depois puxa brutalmente essas cordas sangrentas que se lhe enovelaram nos pulsos e, brutalmente também, lança‑as para o chão a monte.

Sempre que avança para fazer o seu número, Lorde e Maruja recebem‑no de dentes aguçados. Mas não vão além da ameaça porque se deixam descarnar, enguia a enguia. Urram, é tudo. Atiram aos céus uns olhos a faiscar e não saem do mesmo sítio. Desfibrados, o esqueleto à mostra, estão num lago de sangue e de enguias donde se desprende uma renda de vapor semelhante à que se liberta dos pântanos. E as unhas do velho andam por cima deles, retalham‑nos com puxões ansiosos. «A vossa enguia, meus senhores. Tirem a vossa enguia.» No nevoeiro ‑ agora mais carregado com o fumo morno do sangue e com o bafo dos cães ‑ soam campainhas. Uma banda toca o hino nacional.

 

O festim rematou com o hino nacional (transmitido pelo televisor do café em fecho da emissão) e com uma debandada de campainhas.

Dlim‑dlim, dlim‑dlim... Eram os camponeses‑operários a chamarem‑se, o amigo que estava na rua dirigindo‑se ao amigo que estava ao balcão; eram as crianças, aproveitando uma aberta para porem um dedo curioso nas bicicletas desocupadas; era, por fim, o desfile para casa de dezenas de ciclistas a pedalarem num rastilho de música. Dlim‑dlim, dlim‑dlim...

Levo a braseira para o corredor e meto‑me na cama. Uma despedida com banda municipal e campainhas tocadas por mãos trabalhadoras, um delírio de enguias inspirado nos fumos, aromas e temperatura deste dia especial deixam uma amável recordação e convidam ao sono dos caçadores. Se o sono não falhar ‑ ponho as minhas reservas; e se não aparecerem os inevitáveis hóspedes retardatários a baterem à porta às tantas da madrugada. Para já, estes lençóis cheiram a fumo.

De cantil à cabeceira e caderno de apontamentos na mão, ponho‑me a ler. Uma golada rija, duas ou três linhas passadas a correr, e salta‑me entre duas páginas um criado a farejar. Olá?

Não o conheço de parte nenhuma, mas não o perco de vista e, de nota em nota, percorrendo a caligrafia miúda que é o mato rasteiro por onde ele vai de rabo alçado, a minar, a fugir, a estacar de orelha fita, descubro de quem se trata em certa e determinada passagem:

«Citando Bergson», tenho eu escrito no caderno, «o prior Tarroso exemplificou‑me as virtudes do instinto num criado que teve em tempos, sustentando que preferia caçar com ele de salto do que levar o melhor perdigueiro...»

Sigo o homenzinho, recapitulando «a extraordinária percepção do perigo, a dedicação e a engenhosidade de que deu provas (...) e que são qualidades tanto mais sólidas quanto mais elementar for o tipo de inteligência» e, mantendo‑me no encalço do criado, choco‑me com o prior. Paro a relembrá‑lo, em cima do apontamento que se segue nesta página. Vem de caçadeira aperrada e samarra de pele de lontra, «é um cura enxertado nos romances de Camilo.

O quarto serve de escritório. Bula papal emoldurada na parede. Pilhas de jornais a um canto (Novidades, o Apostolado, o Correio da Comarca...), a História de Portugal, de Pinheiro Chagas em 2 vols. Sobretudo nu, sem tapetes. Cheiro a maçãs por toda a casa. A samarra de pele de lontra e a biografia da Conversão de Voltaire...»

Coitado do prior, que, velho e inválido, ainda quis pôr o nome ao lado dos Noventa e Oito. Ao lado, não: à frente é que devia ser, porque tem a experiência dos atiradores que se corrigiram compensando os defeitos da idade. À frente, repito ‑ e num lugar de honra. Até numa cadeira de entrevado está com os Noventa e Oito, sonhando talvez com algum dos milagres com que sonham os caçadores que nunca desistem. E essa coragem desculpa‑lhe a famosa teoria do instinto dos criados perdigueiros, e outras. Por mim, é mais do que suficiente. Absolve‑o. Não assina o Match como o Padre Novo, não lê Teilhard de Chardin e não terá uma fé tão exigente. É, no entanto, um generoso caçador.

Mais uma golada do cantil, mais leitura. Não vai mal.

Esta página tem um título: Relação ‑ e pelo tom desconfio que a copiei duns papéis guardados no Tratado das Aves que pertenceu a Tomás, o Nono, avô de Tomás Manuel. Encontrei muitos repartidos pelo livro: rascunhos de escrituras, adivinhas em verso, receitas de unguentos, orçamentos e despesas, tudo apontado a tinta barrenta por um aparo de lavrador, desabituado e áspero como uma roda de esporas a soletrar.

Hoje, dia da feira de Agosto de 1861, ajustei para me servir por um ano o Thiago, filho de Maria Cannaças, ganhando o seguinte: 20 alqueires de trigo de 14$400 réis. Recebeu hoje,

dia 25 de Agosto, para umas calças - $900.

- Idem, a 17 do mm.o mês, para cigarros e 1 alqueire de cal - $300.

- Idem, a 20 do mm.o mês, para tabaco e barba - $180.

- Idem, a 21 do mm.o, - 1$100 para umas solas e um vestido e um lenço para a mulher.

- Idem, a 22 do mm.o mês, para tabaco e 1 vara de pano cru - $80.

No dia 24 recebeu dois alqueires de trigo - $140.

Também nesta data recebeu a soldada do irmão Joaquim - $400.

 

(Nota minha, à margem: Administração paternalista. Vestuário, recreio, alimentação, fornecidos diariamente como método de controlo da dependência.)

Lembra‑me o Engenheiro a pontificar: «Vinho por medida, rédea curta e porrada na garupa.» Com três mandamentos tão elementares é que ele fez de um operário destroçado o Domingos que eu conheci.

(Aqui um parêntese:

Domingos, antes de ter sido cachorro de três patas e de ter acabado como sabemos, foi homem ‑ engenho e precisão. Vi‑o tratar do carro do Engenheiro, o rosto magro e o nariz sensível comandavam a certeza dos movimentos, enquanto a mão agia solta, como se pensasse.

«Abre a boca», dissera ele, aproximando‑se do Jaguar para lhe abrir o capot. E, como não fosse obedecido, não o forçou. Estendeu um pedaço de arame, sondou o gancho do fecho para o soltar, mas nada feito. Havia ali um capricho que era preciso tornear, decidiu ‑ e os Jaguars eram cheios de caprichos. Como nenhuns.

Recuou dois passos, talvez para o olhar melhor e estudar a maneira de o convencer. Os faróis do Jaguar alojavam‑se, rasgados e frios, num focinho chato e feroz, focinho de tubarão.

«Deu‑lhe a cãibra», suspirou, acenando com a cabeça e sem deixar de o estudar. Depois, mais alto, para o Engenheiro: «Está a precisar duma mola nova.»

Voltou ao carro. Pôs‑se a apalpar o dorso metálico com a única mão, correndo‑o desde as guelras dos ventiladores ao traço da boca do capot, à procura do ponto justo da ferida, do defeito ou da entorse que impediam a articulação. Calcava suavemente com o coto do braço, ao mesmo tempo que, com o estilete de arame, tentava desprender o fecho; e, não o conseguindo, recomeçava o deslizar subtil, como se a mão, pela maneira como as pressões lhe respondiam, fosse um ouvido astuto a sondar uma pele rija e esmaltada. «Vamos...», murmurava. Dava a impressão de aconselhar, de querer pôr fim a uma teimosia sem sentido.

Tomás Manuel tocou‑me no braço:

«Repara...» [E então teve o tal comentário em que considerava a precisão como uma forma apurada de instinto, um sexto sentido ou coisa parecida.}

A mão perscrutadora continuava a explorar. Da varanda, eu, o Engenheiro e Maria das Mercês acompanhávamo‑la nas avançadas, nos rodeios, nas hesitações, para atingir a cartilagem, o nó ou o nervo decisivo.

As maxilas soltaram‑se, a boca do grande esqualo abriu‑se à luz do dia, deixando à mostra um ventre de tubos, traqueias e tendões de aço onde o mestiço mergulhou. «Jonas e o seu mundo privado», pensei.

Domingos viu o distribuidor, alongou‑se pelo cérebro de delicados filamentos, desligou as velas. Mas aí o Jaguar respondeu‑lhe com uma faísca.

Saltou imediatamente:

«O quê, tu mordes?» E sorriu para nós, cá para cima.

Sabia falar às coisas e aos animais, era o seu condão. Com voz cantada de crioulo, embalava o coto do braço, transportando esse gancho, essa alavanca adestrada. Tinha bons dentes, certos e muito brancos, e aprendera a servir‑se deles para segurar uma ponta de arame, para a quebrar ou dar‑lhe forma, e nisso eram sólidos como as mandíbulas de um alicate ou como se fossem uma chave de marfim. Os dentes e as pernas ajudavam‑no muito; e também os joelhos, que tinham a força de um torno quando apertavam qualquer peça.

Domingos acabara de fechar o capot e dava uma volta de experiência pelo pátio. Guiava como os chauffeurs de praça gabarolas que metem as mudanças com a perna. Só que essa era a sua única possibilidade de conduzir, e muito fazia ele. Nunca poderia ser comparado aos chauffeurs que pretendem impressionar o cliente com mudanças à patada. De maneira nenhuma. «Guia mesmo bastante bem», acrescentei para Tomás Manuel.

«Ajeita‑se. Mas não gosta lá muito.»

«Se parece», disse Maria das Mercês. «Você obriga‑o a cada susto.»

Estava de pé, encostada a um dos potes da varanda. Vestia um casacão de mohair que lhe dava pelos joelhos e os sapatos eram de camurça leve, da cor das calças. Às vezes apertava nos dentes o fio de ouro que trazia ao pescoço, mordiscando‑o; ou então esticando‑o tanto que ficava com os lábios rasgados e tensos. Era assim que ela estava naquele instante.

«O médico mandou‑o fazer dieta», tornou o Engenheiro, entretido a seguir as experiências do criado, «mas não adianta. Há ali qualquer deficiência de tensão. Em se metendo num carro começa com tonturas.»

«Nervoso, talvez.»

«Coração. Tem um coração de passarinho.»

Maria das Mercês pendurou‑se no braço do marido:

«Tomás, meu bem, porque é que você não diz antes que o rapaz tem medo? É algum mal ter medo? Eu cá tenho e, fique sabendo, consigo ao volante não conheço ninguém que não tenha.»

«Conversa. Se não fosse o coração, havias de ver como ele metia o prego a fundo.»

Maria das Mercês, voltando‑se para mim:

«Que se há‑de fazer? Para este homem, o Domingos é intocável.»

«Achas que sim?», perguntou Tomás Manuel, desinteressado. «Olha, patos.»

Por cima de nós vogava um casal de adens, a fêmea de plumagem obscura, o macho de asas vistosas e com as duas guias azuis da cauda a reluzir. Elevaram‑se das tramagueiras num deslocar lento e na vertical, como é costume levantarem, e logo ganharam velocidade. Dentro em pouco sobrevoavam o vale, batendo uma zona escolhida.

«Andam no namoro, patrão Engenheiro», gritou lá de baixo o Domingos. Tinha saído do carro para observar as aves.

No céu afogueado do entardecer, os adens riscavam as nuvens tranquilamente. Vinham com toda a probabilidade dos lados do oceano, das margens salgadas onde tinham passado o dia, e regressavam ao interior para escolher onde pernoitar.

De braços caídos e de pescoço no ar, o mestiço estava o que se diz fascinado com dois navegadores tão prevenidos como são os patos reais nesta fase do amor e tão arrogantes na sua plumagem nupcial. A fêmea andaria a preparar o ninho, calculou, e com o macho atrás a fazer o reconhecimento do terreno.

«Manobras de Outono» comentei. E palavras não eram ditas soou um tiro. Outro a seguir, ambos na margem de lá.

Uma das aves suspendeu‑se um instante no céu. Depois dobrou o pescoço e veio por ali abaixo como uma flecha, saudada por todos os cães da lagoa.

«Estupendo tiro. Quem seria?»

Pela força da queda, o adem fora atingido na cabeça. Ou então cegara.)

Fechei o parêntese sobre Domingos. Deus fez o operário e em seguida deu‑lhe o castigo tirando‑lhe o braço; o Engenheiro pegou no barro desprezado, moldou‑o à sua maneira e fez o homem. Que arrogância, «fazer o homem». Mas está cá escrito, está no meu caderno.

E assim o Domingos foi renascendo da miséria do seu corpo, como diria um narrador patriarcal; e o corpo fez‑se sábio e visado, ganhando destreza, utilidade, lugar humano; e, para inquietação de Maria das Mercês, foi‑se ajustando à sombra do amo, absorvendo‑a, como a água que brota das fragas e se encaminha para o destino da mão que a descobriu. Por sua vez, a esposa maninha (a que morreria ignorando se estava de facto nela a maldição da esterilidade) sentia o vazio crescer à sua volta à medida que o criado se fazia homem e que a mão livre conquistava triunfo para a glória e orgulho de Tomás Manuel. Não esqueçamos: «Domingos, o intocável» ‑ foi como ela lhe chamou nessa tarde, mordendo o fio de ouro. Ainda que sem rancor, ainda que desinteressada, mordia‑o.

E o que são as coisas, santa hospedeira. Entre dama e valete há sempre uma carta apagada que decide a partida. Acontece. Qualquer jogador de bisca o sabe. Mas isto não vem no caderno.

 

No caderno vêm outras coisas, um comentário, uma citação, provérbios locais, desenhos (imagine‑se), lembranças que ocorrem com a famigerada indicação de «ideia a desenvolver». Mas para lá do caderno e dos signos abreviados que ele contém, eu vejo o resto ‑ um homem que escreve. Distingo‑o perfeitamente, vergado, como eu, sobre uma folha de papel, mas mais lento (se é possível) ou lento por razões diferentes, e também de aparo em riste. Sei que está cobrindo números com aplicação; e rectas, e curvas, e sinais vários ‑ exercício de caligrafia. Com a mesma mão, pousa a caneta para pegar no cigarro, com a mesma descansa o cigarro no cinzeiro para tomar a caneta; e essa mão é a esquerda. Domingos, o mestiço, faz a aprendizagem dos estropiados.

Por ordem do Engenheiro, tem de se apresentar todas as tardes a Maria das Mercês com o trabalho do dia e saber dela os seus progressos. Assim foi determinado e assim se cumpre para que se respeitem os mandamentos de fazer o homem, os quais foram ditados pela experiência dos antigos e são três, a saber: recompensa com prudência, governo com vigilância e castigo com firmeza. Vinho por medida, rédea curta e porrada na garupa.

Domingos sobe, pois, à sala do primeiro andar e por vezes corrige ali mesmo as provas à vista da senhora da lagoa. Hoje um ditado, amanhã números, no dia seguinte circunferências, e com isto vai amoldando a mão, tornando‑a mais expedita. De pé, Maria das Mercês debruça‑se por detrás dele: «Devagar, não carregues tanto...» E o homem obedece e em duas penadas toma tal gosto pela escrita que maravilha. «Formidável», diz a patroa, quase esquecida de que está a afeiçoar uma sombra do marido. E a terminar a lição marca‑lhe mais tantas cópias, mais tantas linhas de algarismos, um desenho a tinta, figuras recortadas à tesoura. O criado agradece e vem para o pátio esperar o Jaguar.

Na sala tudo fica em silêncio. Arrumado a um canto, o televisor vai desenrolando imagens sem som, figuras que se movem como dentro de um aquário, ‑ padres em procissão avançando para nós de boca aberta, militares a darem ordens, políticos ao microfone... padres, militares, políticos. A lenha da lareira desfaz‑se em chamas brandas porque na noite que está, cheia de névoa, o ar de fora não entra pela chaminé. Maria das Mercês senta‑se no chão, voltada para as labaredas, abraça as pernas pelos joelhos, deixando descair o rosto ternamente. Vê, e não vê, a linha de fumo que se derrama à tona das pinhas e do azinho: olha e esquece. Que tempo, pensa. Que noite que se vai pôr, com a bruma a galgar as dunas e a encher o vale.

Pareceu‑lhe ouvir o telefone: levanta o olhar, espera. Mas está mais do que habituada àquele som enganador, é um apelo fantasma que retine dentro dela quando se encontra só, e por isso torna a aninhar‑se em si mesma, apertando o queixo contra os joelhos. Distraidamente, oscila o corpo para a esquerda e para a direita. Embala‑se, e o sossego vai alastrando, alastrando. Realmente, que noite. E que névoa. Que fumo que vem da lenha (ali não chega o incenso selvagem das enguias) e como pesa na cabeça o calor do azinho.

Toma uma aspirina. Agrada‑lhe, para variar, o sabor do comprimido sem água, sentindo o pó a desfazer‑se na saliva, absorvendo‑a e secando‑lhe a língua até a tornar de uma aspereza sensível. O travo brando, cal e limões, penetra‑a lentamente mas deixa uma permanência na boca ‑primeiro o ardor, a exaltação dos poros e das glândulas, depois o gosto morno do amido que, quando concentrado, lembra pão a levedar, sémen, o rasto que fica sobre uma cama de longas horas de amor. O comprimido vai‑se dissolvendo, Maria das Mercês abre um número àojours de France e, de lápis em punho, começa a preencher um test. Test‑Horoscope, Test‑Jeunesse, um assim. Quando menos espera, acha‑se a desenhar bigodes e monóculos nas fotografias dos modelos Jean Patou.

A sala cheira a fumo, toda a casa cheira a fumo, e por certo ela também (e os meus lençóis), e a razão está no nevoeiro que vem lá de fora, invadindo os montes, tapando a chaminé da lareira...

Resolve abrir a janela, mas, com a mão ainda no fecho, detém‑se. Encontra‑se frente a frente com outra Maria das Mercês em corpo inteiro. Contempla essa mulher que enche o espelho negro de alto a baixo, quase a interroga.

«Olá», diz‑lhe em voz alta. «Olá», digo‑lhe eu daqui. E ela espreguiça‑se. Contraindo os braços e erguendo os punhos à altura dos ombros, sente‑se por instantes mais viva e mais liberta. Suspende‑se como está, vê‑se de seios erguidos, cotovelos recuados. Insiste: nova pressão do peito a abrir‑se, um pequeno som das articulações estalando, novo levantar de cabeça. O queixo aparece‑lhe recuado, mais redondo; apalpa‑o com alguma curiosidade. Em seguida a mão descai, deixa‑a escorregar pelo pescoço, avaliando a pele, os volumes, depois vai ao correr dos seios, errando pelas ancas e pelo ventre, que é discreto, apenas necessário.

Tem a ossatura sólida das mulheres do tipo Sagitário (cf. Elle, Horoscope, Professor Trintzius...), signo mutável que predispõe ao repouso e ao ar livre. Mas a presença benéfica de Júpiter não elimina nela alguns sinais indiscutíveis de Marte (seguramente por ter nascido muito próxima do Escorpião), o que resulta com frequência em felizes associações. Seios opiniosos num tronco repousado, nariz determinado e audaz num rosto contemplativo, são oposições características das mulheres deste signo de fogo que governa sobretudo a região das coxas, e Maria das Mercês não desmente a regra. Tacteia o ventre, as pernas, demora‑se no vinco do slip, ali onde se delimita um rebelde areal que se alteia gentilmente, recoberto e um tanto agreste de toque; e desse promontório breve, rosa negra, duna eriçada, partem dois rios irmãos que são as pernas em livre e consciente harmonia. Tais hastes, demonstram‑no as vidraças, têm o deslizar contenso da luz outonal; sendo firmes e bem definidas, iluminam envolvendo, e são amáveis ‑ porém sucintas. Sem retórica, classifico‑as eu, recordando‑me do artigo de fundo do jornal que li ao jantar.

Maria das Mercês compara‑se rosto com rosto. Põe‑se a três quartos, o olhar por cima do ombro surpreendendo o horizonte dorsal. Aperta a cintura, roda‑a. Em seguida começa a levantar uma perna, esticando‑a como fazem as bailarinas, eleva‑a mais, mais e mais, mas perde o equilíbrio e vai cair no fundo do maple ao pé da mesinha dos cigarros. Caiu e ficou. Olhando, olhando. No televisor‑aquário lampejam imagens de claro e escuro; sucedem‑se num rolar contínuo, chegam e vão ou espalmam‑se no vidro abaulado, enfrentando a objectiva e abrindo e fechando a boca. Estúpido mundo quando fala sem voz.

O relógio de porcelana trabalha ou não ‑ é impossível ouvi‑lo abafado na redoma de cristal, e se trabalha perde o seu tempo, ninguém lhe liga nenhuma. Um corujão sopra no arvoredo. Detestáveis criaturas, os corujões, detestáveis coveiros da noite. Não são?

Alongando o braço para alcançar os cigarros e a boquilha, Maria das Mercês fica estirada ao comprido. Não se mexe durante muito tempo, é capaz de se manter assim uma eternidade. Deitada e de pernas penduradas no braço do maple, está voltada para as traves do tecto onde se reflecte o brilho da lareira. São grossíssimas e envernizadas, feitas de patriarcais toros de carvalho e guarnecidas de cravos de ferro. Que peso não sustentarão as paredes, e que confiança saberem‑se cobertas por troncos tão imperiosos. Maria das Mercês aponta o cigarro para eles, morde a boquilha. As mãos repousam sobre o vinco do slip.

Ali, junto desse contorno (de rendas?, de nylon?) que ela afaga por cima do tecido das calças, a pele lisa das coxas tem o toque mais precioso de um corpo de mulher; é lisa, sim, mas como o interior de uma casca de ostra: surpreendente de suavidade e irradiada em mil subtilezas de tacto ‑ uma superfície, digamos, serenamente autoritária que se espraia até à orla (rendada ou não) do slip e que logo a seguir, passado o vinco, a fronteira, se abandona ao torvelinho do púbis. Os dedos demoram‑se sobre essa breve elevação, sobre esse banco de areia atapetado de urze rasteira; soletram‑na com todo o barroco que a ornamenta e que é essencial (o pêlo em tufos, em volutas, em caprichos de volumes e de elasticidade), penetram talvez no próprio aroma que ali paira, tão dominado, tão imperceptível. Depois, subitamente tensos, enclavinhados, os dedos prolongam o seu discurso solitário por toda a extensão do slip que, para mim, é necessariamente rendado ‑ de renda aberta. Maria das Mercês continua de rosto voltado para o tecto.

Naquela posição acabará por ter os pés dormentes, tanto mais que, nos últimos meses, rara é a noite em que não acorda apavorada, incapaz de se mexer. Má circulação, já se sabe, falta de exercício, mas é horroroso uma pessoa sentir‑se assim, paralisada, como um cadáver vivo. «Ça va», diz baixinho; e começa a assobiar entre dentes, quando ouve outra vez o corujão. Cala‑se. Algum pássaro ou algum rato infeliz andam em perigo, torturados por aquele coveiro nocturno. Porque, em boa verdade, não tem direito a outro nome, o corujão. Só gosta das trevas e dos buracos e põe um olho frio nos seres vivos que impressiona. Coveiro, nem mais. Haverá algum coveiro que não ponha um olhar frio seja no que for?

Acende outro cigarro e, vestindo o casacão, chega à varanda. Ela em cima, o criado no pátio, ambos ouviram o pássaro de má morte e ambos esperam agora pelo mesmo homem. Escutam o vale, os ruídos que o vento transporta. Mas o Lorde e a Maruja, tão sagazes e tão pressentidos nos sinais que lhes anunciam o dono, não se mexem.

Entretanto eu vou‑me aproximando, de caderno na mão. Furo por entre anexins pitorescos, tropeço em memórias e curiosidades da minha passagem pela Gafeira e não distingo bem a mulher que fuma e espera. Tenho de a desenterrar dos rabiscos que escrevi há um ano, destas ruínas de prosa, e não sei mesmo se das outras, das cisternas que jazem setenta palmos abaixo da cama onde me deito e onde, também eu, vou consumindo o meu cigarro da insónia.

Maria das Mercês é um contorno interrompido que entrevejo nas linhas dos meus apontamentos, um rosto no escuro a morrer e a avivar‑se a cada fumaça que vou puxando. Furo o véu de neblina com o morrão do meu cigarro, vislumbro‑a no outro lado, aprumada, frente ao vale, e, no pátio, o Domingos que ela um dia há‑de vir a matar (com crime ou sem crime, é o menos) depois de o ter ajudado a renascer. «Domingos», assopra, cheio de ódio, o Batedor chamando‑o lá de baixo, da aldeia. «Venha cá, deite‑se aí.» Mas embora o veja como cão, cão de três patas, não se atreve a tocar‑lhe, ai dele. Tocar‑lhe só o Engenheiro, e, para que não se duvide, a sentença está lavrada a páginas tantas do meu caderno: «Quem me trata mal os criados é porque não me pode tratar mal a mim.»(1)

Princípios são princípios, e muito mais se vêm afirmados por um Palma Bravo. Simplesmente ‑ e aqui é que o diabo pôs a unha ‑ alguém esqueceu essa realidade. Alguém, que o Padre Novo designou esta noite por um «emigrante em férias», tomou o mestiço de ponta e, insultando‑o, pôs em causa uma lei de família. Porquê aquela aversão? Provavelmente, deduzo eu, porque à hora a que o Domingos descia à aldeia para esperar o Engenheiro já o homem estava cheio de cerveja e, cansado de não fazer nada, vinha para a porta do café entreter‑se a desafiá‑lo. Provavelmente também porque, como interpretava o dono do estabelecimento, o emigrante trabalhava na América, e na América, tanto quanto o comerciante lera e ouvira, a gente de cor não tem sequer direito à sombra do corpo. Logo o tal ódio ao mestiço.

Maria das Mercês, lá do alto da varanda, não quis saber de explicações. Cortou o mal pela raiz:

«De agora em diante, Domingos, não tornas a ir esperar o senhor Engenheiro.»

O criado baixou a cabeça. Orgulhoso, tinha‑lhe chamado o Padre Novo, e não exagerara. Mas quem não se sente não é filho de boa gente,

 

*1. Seguida da variante popular: «Quem não pode com o patrão vinga‑se no cão.»

 

diria Tomás Manuel, ditando‑me mais uma regra neste caderno; e, pela última vez, todo aquele que lhe ofendesse a Casa tinha de pagar o atrevimento, como de resto se depreendia já há muito das minhas notas do ano passado.

Ressentido, o Domingos veio para o pátio (e, assim, continuava a ser a primeira pessoa a receber o Engenheiro). Uma tarde, estava ele ao portão, a senhora na varanda, chega o Jaguar disparado e salta lá de dentro Tomás Manuel, de punhos estendidos:

«Capado. Deixares‑te abandalhar por um safardana daqueles.»

Vinha de ajustar contas com o emigrante, agora era a vez do criado. Filando‑o pelo pescoço, atravessa com ele o jacto dos faróis, esbofeteia‑o, cospe‑lhe insultos em cima de insultos. As palavras aumentam‑lhe a ira e, a espumar de raiva, desfecha‑lhe um soco nos queixos.

«Larguem‑mo», urra, cortando o caminho à Aninhas e ao moço da lavoura que correram em socorro do Domingos.

O infeliz roda, entontecido. Segura o coto do braço a tapar o rosto, anda aos bordos. Depois verga‑se‑lhe uma perna, verga‑se‑lhe a outra, e estatela‑se no lajedo. Cego, Tomás Manuel corre o pátio, deita abaixo o que encontra pela frente, assopra como um danado. Por fim apanha um cabo de forquilha; vai‑se ao monte de miséria que estava no chão e mete‑lho à força nas unhas:

«Defende‑te, capado dum coirão. Defende‑te ou acabo contigo aí mesmo.»

Joelho em terra, cara em sangue a oscilar à luz dos faróis, o outro tenta endireitar‑se. Velha e moço tremem de pavor, a criada nova foge a chorar. Agarrando o cajado, firmando‑se nele com desespero, Domingos começa a levantar‑se. Mas os dedos escorregam‑lhe, as pernas negam‑se; as pernas estão ocas, moles, e o homem, num último esticão, desmorona‑se por inteiro em cima das pedras.

O Engenheiro fecha os olhos:

«Por amor de Deus defende‑te.» Era uma voz trémula, uma súplica lançada de dentes cerrados.

Nada. Domingos nem estremece. Estendido por terra, deita para longe um olhar cheio de tristeza e de serenidade.

Do alto da escadaria, Maria das Mercês tem estado a presenciar tudo sem uma palavra. Ela, estranhamente calma e silenciosa; o marido lá em baixo, com o corpo do criado aos pés. Vê‑o pálido, devastado pela luz dos faróis e de braços escorridos, e sabe que ele está à espera dum movimento, do menor sinal de Domingos que lhe faça descarregar a fúria. Passa um minuto, passam dois, e o mestiço não se mexe.

Então, num rompante, Tomás Manuel dá meia volta, deita as mãos à cara brutalmente, e desaparece. Foge, quase foge, escadas acima, doido por se livrar daquele farrapo nojento. Quando atravessa o patamar, Maria das Mercês recua discretamente para lhe dar passagem. Não lhe toca, não lhe diz nada. Parada entre a porta, deixa‑o só na sala, espapaçado num maple. Daí a algum tempo vai ao quarto buscar as chinelas e calça‑lhas. Traz‑lhe a bolsa do cachimbo, serve‑lhe um whisky. Senta‑se ao lado dele. Depois, um bom pedaço depois, começa a puxá‑lo para si, acariciando‑lhe as mãos, o cabelo, o rosto frio e carregado.

«Amor pequenino», segreda‑lhe, apertando‑o muito contra o seio. «Meu querido, meu grande amor pequenino...»

Como se cantasse, como se cantasse.

 

Continuo a folhear os meus apontamentos:

«Alça-cu - mergulhão.

Passeio de barco pela lagoa. A oratória das espécies ou Do Sagaz Exemplo da Madre Natureza.

Opinião do Eng.o: 50% da inteligência dos mestiços são ingenuidade do negro, os outros 50% são arteirices aprendidas com o colono. Solução adequada: promover o negro sem o proletarizar, instruir o mestiço sem o intelectualizar.

Respondi‑lhe que já tinha lido a receita em qualquer parte... No Salazar, pelo menos.»

«...E mudemos de conversa», desabafo eu com o meu cantil.

E a voz do Engenheiro:

«Porquê, incomoda‑te? Achas que é obrigatório intelectualizar toda a gente?»

Eu:

«Rema, pá. E bebe, que para isso é que tu tens jeito.» Caio logo em mim: «Não faças caso, é a insónia.»

Ele:

«Insónia, a estas horas da tarde?»

«Tens razão, não faças caso...»

Vamos ao pôr‑do‑sol, «num passeio de barco pela lagoa onde se irá desenrolar a oratória das espécies», e corremos ao largo, aproveitando a brisa que vem do oceano. Com remadas lentas contornamos os mouchões mais distantes. Depois, guinando sobre os juncais, regressaremos à outra margem.

«Bebe», vou eu a oferecer‑lhe, quando reparo que, fora da caça, nunca ando com o cantil. De resto, se o tivesse trazido também não adiantaria muito. Pelo que tenho bebido esta noite, custa‑me a crer que a aguardente ainda chegasse para uma golada a cada um.

«Engenheiro, se tens sede o único remédio é apontares para casa.»

«E é que tenho mesmo», diz ele. «Mas a culpa foi tua. Tu é que te lembraste da bebida.»

Encontrámos, lembro‑me perfeitamente, as ilhotas infestadas de cartuchos vazios que a corrente tinha arrastado, cápsulas de várias cores e de vários calibres semeadas por entre as ervas, e, encalhado numa das margens, o cadáver de um adem. Tomás Manuel admirava os patos reais, que são audazes e diabolicamente corajosos nos seus duelos sangrentos. Nada mais natural, por conseguinte, do que falarmos deles.

«Um guerreiro, estás a ver?» Com a ponta do remo, toca a carcaça emplumada que jaz endurecida e de patas mirradas. «Porque será que os guerreiros depois de mortos ficam com um ar inocente?»

«Alguns. Os que eu conheço não têm nada um ar inocente», respondo. «Mas sou suspeito, só os vi nos túmulos e nos monumentos. Estavam todos a posar para a posteridade.»

O Engenheiro remexe o cadáver, espia‑lhe as covas dos olhos, o bico enegrecido. As águas tinham‑no depositado no meio de excrementos e de cascas de ovos da última postura, ou foi ele próprio, ave guerreira, que, num desesperado golpe de asa, procurou refúgio ali. Não tinha um ar nada inocente. Mesmo nada.

Bordejamos o mouchão no sentido do levante. Tomás Manuel governa o barco fincando o remo nas margens, ora impelindo‑o para longe, ora aproximando‑o. Enquanto isso, mergulhões saltitam no terreno pelado. Rondam a zona onde tencionam pernoitar, fingindo que nos ignoram, mas à cautela, começam a afastar‑se a passo corrido, às carreirinhas. Na sua desconfiança, simulam uma certa compostura, que perdem por completo mal o primeiro levanta voo, e então é um desastre essa debandada de asas espavoridas. Principalmente depois de todo o desdém e dignidade com que os mergulhões se tinham passeado.

Tomás Manuel atira‑lhes cá de baixo uma gargalhada:

«Aí, seus alça‑cus.»

Rio com ele. Alça‑cu, que raio de nome.

«Não há bicho mais fraldiqueiro do que aquela porcaria», torna o Engenheiro.

Dobramos a ponta do mouchão, entrando no leito da lagoa, na zona em que as águas são mais brilhantes e correm arrepiadas pela brisa. O meu companheiro sabia que os mergulhões não levariam muito tempo a regressar aos pousios donde tinham desertado, mas não se dá ao trabalho de verificar. Resmunga apenas, de costas para eles:

Fraldiqueiros. Até os ovos chocam com as fêmeas.»

Alça‑cu, se a memória me não falha, era a alcunha de um vedor de águas que ele me apresentou (antes ou depois deste passeio?), um boeiro que nunca largava a varinha com que descobria veios de água e de metal. Era também fraldiqueiro, o vedor? Porquê Alça‑cu? Por andar constantemente de rabo no ar à procura de água e de minério?

«O povo tem um talento fantástico para as alcunhas», vai dizendo Tomás Manuel. «E então os nomes dos pássaros, que dão pano para mangas. Pega, por exemplo. É ou não é o retrato chapado duma puta?»

«Vem nos dicionários. Pega: o mesmo que faladora, mulher de hábitos livres.»

«Tens a certeza?»

«Certezíssima.»

«E o alça‑cu?», torna a perguntar.

«Alça‑cu não sei se vem. Mas é provável que o Moraes se tenha lembrado dele. Alça‑cu: o mesmo que fraldiqueiro... Só consultando.»

Cá por mim felicito‑me por não ter cara de erudito e de nunca fazer finca‑pé em discussões de dicionário. Palavras cria‑as o tempo e o tempo as mata, e de pássaros percebo muito pouco. Daí a admiração que eu tenho pelo Curioso que escreveu o Tratado das Aves. Tudo quanto posso acrescentar de momento está numa transcrição do meu caderno que, por sinal, diz respeito à codorniz.

«Engenheiro, tu és capaz de imaginar até onde vai a astúcia da codorniz?»

«Também é uma boa bisca, deixa lá. Entre a codorniz e o alça‑cu o diabo faça a escolha.»

«São as codornizes em relação aos cães», leio nos apontamentos que tenho debaixo dos olhos, «como o militar frente ao inimigo. Em campo aberto verás como elas cansam o seu perseguidor sem ensaiarem largos levantes e antes correndo a passinho estugado. Tão sabidas se mostram que param ao pé dos vespeiros para a eles atraírem os cães, que serão escorraçados pelas vespas, e sempre que haja gado próximo é no meio dele que vão pousar, ou perto de gente desarmada, porque sabem que em um tal ponto não lhes pode fazer mira o caçador. E em terreno despido furtam‑se com muita alegria e sageza, passando calculadamente por claros sem palha e todo o dia expostos ao sol que são aqueles onde o cão perde o faro, e destarte invertem a marcha e cortam pistas [...porém] como é pássaro muito ardente corre à fêmea com cegueira e disso se serve o caçador menos honrado, que mercê de um engenho ou chamariz, aventa o trinado do amor que é um assobio a modos como um criquiquiqui corrido e a ele acorrem os machos em grande excitação, ignorantes da morte que os espreita...»

Interrompo a rigorosa e apaixonante biografia da codorniz que copiei do Tratado das Aves - Composto por Um Curioso:

«Codorniz. Coturnix Communis, Bonn...» (Trato‑a pelo nome oficial, seguindo o texto. Dou‑lhe essa honra porque para mim, Engenheiro, ela é uma das personagens mais fascinantes do livrinho.)

«Boa bisca, não haja dúvida. Tu queres mulher fatal mais completa do que a codorniz?»

«E mais imaginativa, se fazes favor. Não perdias nada em ler o Tratado.»

Tomás Manuel carrega nos remos: «Imaginação e velhacaria fazem boa companhia», reponta. «Uma coisa não invalida a outra.» E porque torna e porque deixa, põe‑se a evocar a codorniz como uma Mata‑Hari de meio palmo, hábil nas retiradas. E um agrónomo que explica o homem em termos de História Natural, e eu ainda vou na cantiga. Da codorniz passou ao gavião, três remadas à frente está na milhareta, a tal que sangra os galeirões à bicada, cavalgando‑os em pleno voo... e assim pela lagoa fora. E eu a ouvi‑lo.

Na encosta da margem de lá, a casa vigia‑nos com os três potes na fachada, cercada de bravura e de arvoredo. O pôr‑do‑sol emoldura‑a numa folhagem de estanho, fá‑la mais deserta de aspecto. Lembra um mausoléu transviado e os potes seriam os adornos desnecessários, as fantasias sem explicação que se encontram nos jazigos monumentais. Tem um aspecto sinistro, isso é que ela tem.

Deslizamos mansamente, enquanto a tarde escurece e centenas de aves ocultas mariscam conchinhas e raízes de junca nos alagadiços. Costeando a margem, passamos por um abrigo com os disfarces de mato destroçados e com uma garrafa vazia lá no fundo; à tona de água vão despontando arbustos, vergônteas a balouçar, e nalgumas há penas penduradas.

Tomás Manuel estende um remo, sacudindo a vegetação ao longo do percurso na esperança de encontrar qualquer galeirão ferido. Faz isto por fazer, por rotina, uma vez que os galeirões em terra escondem a cabeça quando se sentem cansados ou doentes, e com isso, pobres diabos, julgam‑se a salvo. Se fossem patos, sim, daria resultado agitar os caniços. Mas galeirões? Tão ronhas, valha‑lhes a santa estupidez. E, neste andar, temos pela proa o pontão de desembarque num emaranhado de tramagueiras.

«Remos ao alto», ordena o Engenheiro.

Já em terra dá‑me o braço, levando‑me pela encosta:

«Agora vai um bom whisky. Não tens frio?»

«Não, mas preciso de beber seja o que for. Ainda tenho na garganta o fumo das enguias.»

«Fumo de quê?»

«Nada», emendo eu. «Desconfio que ainda hoje acabo com uma bebedeira de todo o tamanho. Pelo menos, a avaliar pela aguardente que me resta no cantil...»

«Whiiiisky...», grita o meu companheiro em direcção à casa. Põe as mãos em concha à volta da boca e lança com toda a força: «Whiiiisky...»

«Não te ouvem», digo‑lhe.

«Que se lixe.» Alarga o passo, «Whiiiisky... Whiiiisky...»

A corta‑mato, por entre fetos e arvoredo, chegamos ao pátio da casa, acompanhados dos cães que tinham descido ao nosso encontro. Maria das Mercês estava na varanda.

«Whisky para os náufragos», brada o marido cá de baixo. E na sala lá o tínhamos nós, fiel, à nossa espera ‑ um líquido decantado, ouro baço. Tão subtil nas gradações como o declinar do sol ao fim da tarde.

«Ah», faz o Engenheiro, saboreando a primeira golada.

«Vocês pareciam dois garotos a brincar às ilhas do tesouro», diz Maria das Mercês. Senta‑se diante de nós, mas não bebe. Nunca bebia.

O marido sorri:

«Encontrámos um pato.»

«Morto», esclareço eu. «Mas era um guerreiro.»

«Com esporas e tudo. E armadura, lembras‑te?»

«Fizeram‑lhe o funeral, foi?» Maria das Mercês sorri também. Observa‑nos, de perna cruzada, balançando o pé. «Não querem vir para a lareira? Vocês devem estar gelados.»

«Agora por lareira...» Tomás Manuel dirige‑se a mim, «conheces a anedota do velho que fazia amor na chaminé?»

«Tomás!», repreende‑o a mulher.

«Que é que tem? Incomoda‑te?»

«É porquíssima, Tomás.» Maria das Mercês volta‑se para mim. «Não queira ouvir. É pavorosa.»

«Não me digas que não gostas de anedotas pavorosas.»

«A esta hora, não.»

O meu amigo abre os braços:

«As mulheres são tão impossíveis, tão impossíveis, que até têm horas para as anedotas. Mas aguenta‑te, desta vez não perdoo.»

«Recuso‑me.» E Maria das Mercês foge para o fundo da sala, tapando os ouvidos.

Quando a história acaba, faz de lá uma careta:

«Indecente.»

«Ah, ah. Vês como ela adora anedotas porcas?» Tomás Manuel corre a abraçá‑la. «Anedotas e telefonemas são os hobbies da minha mulherzinha. É ou não é verdade?»

«Não seja mau», pede‑lhe baixinho, afastando as mãos que a envolvem. «Deixe‑me em paz, sim?»

«Uma porrinha é que eu deixo.» O Engenheiro sempre gostou de dizer palavrões para experimentar e fazer à‑vontade na presença de outras pessoas. Jogava termos cada vez mais pesados até que a mulher se levantasse, como agora fez, e pusesse ponto final na conversa.

«Você é chato, Tomás.» Atravessa a sala, mas à saída da porta tira‑lhe a língua: «Chatérrimo.»

«Ai, ai», boceja o Engenheiro, voltando para o maple. «E tu, quais são os teus hobbies? Política? Gozar o semelhante? Falas pouco, pá.» Abre uma caixa de charutos: «Vai um puro?»

Agradeço sem aceitar. Os puros («puro», uma palavra que me cheira logo a lavradores em Sevilha, Calle Sierpes, touradas e sangrias no jarro), os charutos cansam‑me. É defeito meu, mas (aqui uma obscenidade para reforçar) cansam‑me. Tanto como uma insónia. Tanto como as expressões e os princípios que tenho apontados no caderno e que à medida que os vou lendo me parecem mais semelhantes uns aos outros, quase repetidos de Palma Bravo para Palma Bravo, de geração para geração. Contudo talvez possam servir a alguém que um dia pretenda descrever a espécie bomo delphinus com a respectiva corte animal que o ilustra: cães, pegas‑ladras, garças‑mulheres, peixes santificados. De mergulhões nem me atrevo a falar. Não seria correcto da parte de um convidado da Casa da Lagoa.

«Então? Não queres dizer qual é o teu hobby?» Tomás Manuel levanta o corpo à luz. «Pois o meu é simples. O meu», continua, olhando o whisky com atenção, girando‑o nos dedos, «o meu é isto, conversas de alça‑cus... Coisas provincianas.» Encara‑me de frente. Tem um traço de desafio nos lábios, muito dele. «Ninharias rústicas, como diz a minha amiga Pazinha Soares.»

(Não agora, mas num dos seus discursos em louvor do saber rural com que a madre Natureza dá lições aos vaidosos ilustrados, aos teóricos e aos ambiciosos das explicações difíceis que há por aí, aos ímpios, pois, aos ímpios ‑ num desses discursos provei‑lhe que as ninharias provincianas eram o snobismo dele, Tomás Manuel; que lhe fizessem bom proveito, admitia, mas que, com muita pena, se comportava como um snob que eu cá sabia tirado de uma velha cançoneta francesa. «Je suis snob, je suis snob...»

Encolheu os ombros:

«Ora, adeus. Se julgas que me encantas com isso, estás redondamente enganado.»)

Mas nós tínhamos tido um belo passeio, não fazia sentido estragá‑lo com uma conversa que eu já conhecia à distância. Tomás Manuel que continuasse a sondar o whisky (e a sondar‑me a mim) que eu não me daria por achado. Dentro da televisão circulam vultos mudos, criaturas a singrar por detrás do vidro bojudo abrindo as bocas para nós. Padres, políticos, militares. E lá em baixo, na lagoa, o nevoeiro cobre os juncais onde as aves trabalham conchas e cascas soltas, esfarelando‑as, num verminar contínuo, sussurrante ‑ tal como à volta desta cama de pensão os bichos de madeira andam em liberdade e sussurram no forro da casa adormecida. Ouço‑os a maquinar, estou entre tábuas ‑ tecto de tábuas, porta de tábuas, sobrado velho, remendado. As tábuas são duas películas miraculosas que guardam no interior farinha de madeira, serradura triturada por milhares de carunchos minadores. E sobre esta paz activa de vida secreta, como as das aves que preparam o sono nas margens da lagoa, uma música perdida começa a rolar dentro de mim:

Je suis snob

et quand je ser ais mort

Je veux un sudaire de chez Dior...

«T'es mort?», pergunto, só com os olhos, ao meu anfitrião sentado no maple. «Estás morto por dentro, Engenheiro avicultor?»

 

Sei, todos nós sabemos, como pesa o tempo vencido sobre quem se aventura a recompô‑lo. É um eco a sublinhar as palavras, uma ironia que nos contempla de longe, um aviso. Se alguém (um narrador em visita) rememora a seu gosto (e já vê no papel, e em provas de página, e talvez um dia em juízos da Crítica) o final duma mulher que é de todos conhecido e que está certificado nos autos; se se apega a um punhado de notas tomadas em tempos por desfastio, e se mete agora a entrelaçá‑las e a descobrir‑lhes uma linha de profecia(1), então esse alguém necessita de pudor para encontrar o gosto exacto, a imagem exacta da mulher ausente. Necessita de discutir consigo mesmo, à medida que recorda, e assim fá‑lo por respeito, pela condição de homem em face da distância e da ausência. É, considero aqui, um ofício delicado contar o tempo vencido.

Pela mesma razão se, navegando na minha cama sobre um vazio de carunchos a sussurrar, eu assisto ao Engenheiro anfitrião descrevendo a mulher‑pega, a mulher‑codorniz ou outra qualquer e penso na senhora da lagoa ‑ que não cabe em nenhuma dessas classificações, evidentemente ‑ cumpre‑me prestar bem o ouvido às palavras e repeti‑las como uma testemunha que vai ditando ao escrivão, fiel à sua consciência e ao seu juramento. Uma testemunha que procura o rigor para não macular covardemente o retrato que se reflecte nele, Tomás Manuel. E que tudo fique conforme, e que no interesse da verdade seja lido e assinado, Gafeira, tantos de tal, em viagem com o Engenheiro pelas águas da lagoa.

Ora, naquele passeio, com o sol a baixar velozmente e as aves a esgravatarem nos juncais, nomeou‑se Pazinha Soares, nomeou‑se a codorniz,

 

*1. Em anotação a uma conversa com o Padre Novo, encontro no caderno uma ideia a desenvolver ‑ minha ou dele, não posso precisar:

«A descrição do passado revela um sentido profético no comportamento dos indivíduos que resulta de os estarmos a estudar numa trajectória histórica já conhecida.»

 

nomearam‑se, feitas as contas, os exemplos mais garridos da Criação. Faltou um, e o mais clássico, a louva‑a‑deus. Em Roma sê romano, na Gafeira sê mais prevenido com as mulheres do que São Paulo. Se fosse ao apóstolo, andava sempre com uma louva‑a‑deus enrolada nas epístolas para exemplificar.

«Tomás, mais um bicho para a tua colecção.»

(Apago a luz. Há muitos, muitos anos, eu e um grupo de amigos filmámos uma louva‑a‑deus, fornecendo‑lhe machos e moscas durante uma tarde inteira. Articulada, animal mecânico, ela abraçava as vítimas com as garras em pinça, começando a devorá‑las pela cabeça. Era uma escavadora de crânios, sozinha num campo de cadáveres destroçados por onde passava um vento terrível ‑ a voz de São Paulo, o acusador: «Força demoníaca, tão amável e graciosa e tão voraz na luxúria...» E eu pensei então: se fosse a ti, Apóstolo, andava sempre com uma louva‑a‑deus para exemplificar. «Eis aqui a morte pelo pecado...») E agora para Tomás Manuel, que vai remando e estendendo a vista pelas margens.

«Morspost coitum, a morte pelo pecado.»

«Chiça», diz ele; e ri.

«Mors post coitum. Foi assim que a garota das unhas de prata deu cabo do velho.»

O Engenheiro põe‑se sério:

«Pá, nem me fales nisso. Há uma data de tempo que não penso noutra coisa.»

«E eu penso em São Paulo. Fazes‑me lembrar o São Paulo a amaldiçoar as mulheres.»

«Mulheres», desata ele a cantar, «são a jóia rendilhada I a tentação mais prendada I da alma e do coração...» Pára os remos: «Não te importas de passar para a proa?»

Levanto‑me e, ao saltar o banco, dou uma palmadinha no ombro do meu amigo:

«Tomás, discípulo de Paulo.»

«Vai‑te mas é lixar. Que é isto? Um pato morto?» Põe‑se a remexer o cadáver com a ponta do remo: «Um guerreiro, repara. Porque será que os guerreiros depois de mortos ficam com um ar inocente?»

E eu para o arreliar.

«E porque será que os teus alça‑cus andam ali com tanta dignidade? Tomás, se não te despachas, faz‑se noite.»

Entramos numa língua de areia que penetra na lagoa até bastante longe. Reconhece‑se pela sombra escura do lodo e pela altura da junca mergulhada a pouca profundidade.

«Desconfio que nos chegámos de mais», observo.

«Foi de propósito. Convém bater os caniços, não vá andar por aí algum galeirão ferido.»

Tomás Manuel conduz o barco ao rés da vegetação das margens. «Amanhã, se encontrar o médico conto‑lhe a história da miúda», diz sem parar de remar e de costas para mim. «Se calhar nem ela sabe que matou o velho.»

«Admira‑te...» E, palavras não eram ditas, surge‑me uma dúvida: E se nem ela nem ninguém sabia? E se a Dama das Unhas de Prata não passava de uma das muitas fábulas que o Engenheiro inventava para se sentir vivo, homem do mundo?

Se era, tanto melhor para mim que, na minha despreocupação, estava destinado a ser metido num processo por causa dessa figura. Mas, Engenheiro, até acho graça. Lamento simplesmente que daqui a uns meses ‑ quando o Padre Novo for incomodado com um sórdido folhetim Do Desonesto Escritor e da Confiante Manicura ‑ a moça das Unhas de Prata tenha baixado de posto e que, em vez das boutiques de Cascais, frequente salões de barbearia.

Estou, vai não vai, para perguntar: Em que ficamos, Engenheiro? Qual das duas é verdadeira? Nenhuma? ‑ Mas, bico calado, por enquanto não sei de nada do caso. Deus Nosso Senhor Ámen me livre de trair alguma vez as confidências de um sacerdote que, coitado, estava verdadeiramente em baixo esta noite. Diz, Engenheiro...

«A táctica foi a das doses progressivas, como nos envenenamentos. E o velhadas caiu que nem um passarinho. Olha, aconteceu‑lhe exactamente o que acontece aos machos da codorniz.»

«Outra vez a codorniz?»

«O mais bonito é que, do ponto de vista jurídico, a tipa nem tem a menor safa», continua Tomás Manuel. «Juridicamente, quando há intenção de matar, há crime.»

Mentira ou verdade, a assassina das Unhas de Prata era agora uma realidade, Tomás Manuel podia descrevê‑la daqui a dez anos que não alteraria uma vírgula. Nisso é impressionante. Tem uma memória ardilosa que não há vinho que consiga toldar. Mas dos pousios das aves não se lembra ele, essa é que é essa. Bateu a margem com o remo e nenhum galeirão se descose. Nenhum, Engenheiro. «O melhor é desistires.»

«É o desistes. Para começar vou pôr a questão ao médico. Depois eu cá sei a maneira de apertar com ela.»

Solto uma gargalhada:

«Falo dos galeirões, não falo da miúda. Está‑me a parecer que foram todos evacuados pelos helicópteros da Protectora.» E a seguir: «A miúda é um caso teu.»

«E é. Deixa‑me falar com o médico e verás se não ponho tudo em pratos limpos.»

«Asyou ivish, dear Sherlock. Se queres reinar aos detectives, é contigo.»

«Bem bom, reinar aos detectives. Não dizem que em cada português há um polícia escondido?»

«Dois», corrijo eu. «Um polícia e um velho do Restelo que faz as vezes de polícia. Não tarda muito estamos a jogar ao Olho Vivo.»

O Engenheiro vai batendo os caniços, mais por desfastio do que na esperança de levantar seja o que for. Às tantas atira uma pazada com toda a força e deixa cair os braços:

«Estou chateado, pá. Se me apanho com um whisky ainda julgo que é mentira.»

Pronto, pego eu nos remos. Deixando as aves em sossego e cortando a direito, pomo‑nos num instante no pontão, que, ao anoitecer, espreita das tramagueiras como uma armadilha soturna. É feito de pranchas desconjuntadas e tem qualquer coisa de cais de piratas.

«Salta», digo para Tomás Manuel.

E ele, de mãos à frente da boca, como se lançasse um brado de abordagem:

«Whiiiiisky...»

Amarramos a bateira. O meu amigo abre as goelas para os céus e torna a lançar o grito:

«Whiiiiisky...»

«É escusado, não te ouvem.»

«Isso sei eu», responde‑me ele. Mas repete: «Whiiiisky...» A seguir pega‑me no braço, subindo comigo a vereda.

A mata cheira a musgo e a humidade ‑ recordações de Outono e cogumelos bravos. E nós escalando o monte, e a bruma a fechar‑nos o caminho atrás dos passos. Só quando por acaso me volto e deparo com o vale a fumegar de brancura compreendo com que rapidez e insinuação a neblina se apossou da lagoa.

«O nevoeiro, Tomás. A lagoa está coberta de nevoeiro.»

Ele nem se volta, leva‑me quase à força pelo braço:

«O nevoeiro é o menos. O nevoeiro não tem a menor importância.» Acelera o passo: «O que importa é que as águas estejam quietas lá no fundo.»

«As águas?»

«Desde que o fundo esteja quieto», continua ele, apertando‑me o braço para que eu não o interrompa, «podemos ir à confiança. E agora é a altura. Positivamente. Tão cedo não apanhamos outra maré para desenterrar os peixes.»

Fico varado, incapaz de acreditar nos meus ouvidos. Mas é ele, é o Engenheiro que fala, e vai de cabeça vergada, olhos nos passos, arrastando‑me. «Águas quietas... mudança de lua... Positivamente... A quantos estamos hoje?» E o mais estranho é que se pôs a silvar baixinho, por entre dentes. O som aumenta num trinado descosido que tem o seu quê de ansiedade, de escárnio até, de desafio. Parou. Agora são palavras sumidas que estou a ouvir:

«Na viragem da lua... e de madrugada. Ah, sim, de madrugada é que é a melhor altura. Mesmo no ponto do nascer do sol...» De novo o trinado; de novo a pausa. «Tu ficas no barco enquanto eu mergulho. Não nos podemos é esquecer da lanterna submarina.» Mais trinados.

Tento espiar‑lhe o rosto: impossível. Tomás Manuel não passa de uma mancha pesada a alastrar na penumbra da mata. Recordo: «Os cemitérios dos peixes. Os coveiros de escafandro à luz da lua» ‑ enquanto ele, desligado de mim, segue à frente, abrindo caminho. Promete que desta vez libertaremos os peixes imaculados que, na véspera, tinham sido tocados por um guarda‑rios quando andava à pesca de enguias; promete e sabe porquê: se todas as tentativas tinham falhado até aqui por causa das correntes, tal dia, mudança de lua, seria a ocasião ideal para os descobrir. Estavam lá, frágeis e quebradiços. Não poderiam faltar, e nós havíamos de dar com eles. Guiados pela memória do guarda‑rios e com o auxílio duma lanterna, venceríamos a turvação e começaríamos a arrancá‑los do lodo com as devidas precauções.

«A lanterna é essencial. E o ar comprimido, também. Espero que o Clube Naval não levante dificuldades em nos alugar o material.»

A passo lento, vai planeando a exploração dos cadáveres submersos, etapa por etapa, considerando o vento, as horas favoráveis e a precisão dos instrumentos. Desenterrar um corpo que a um gesto mais brusco se esfarela nos dedos é tarefa melindrosa. Mas nada era impossível, eu que não desesperasse.

«Whiiiisky...», torna a berrar, muito contente.

O nevoeiro rasteja pelos fetos, subindo a encosta, ao mesmo tempo que, para trás, acocorados no fundo do vale, os patos ficam a riscar o lodo com o bico, escrevendo histórias para adormecer onde cada um deles figura como bom chefe de família e dá conselhos para o dia seguinte. Desses há pelo menos um camarada que me está reservado, dê por onde der. Olá. Prometi‑o esta noite ao Padre Novo e seria uma vergonha se faltasse. E perto do meu pato, em qualquer ponto a determinar, há igualmente os túmulos dos peixes para onde o Engenheiro se dirige em pensamento, silvando outra vez por entre dentes. Refiro‑me à Verga Grande, é aí que os notáveis defundos repousam, guardados à superfície por mergulhões de bico de agulha que remam, de cabecinha alerta, nos seus ninhos aquáticos. Isto, resumo, é a lagoa. Podia‑se pulverizar num sussurro de mistérios. E maldito assobio. Maldita insónia, também. O Lorde e a Maruja vêm ao nosso encontro. Enquanto lhes faz festas para os acalmar na excitação com que saltam para ele, Tomás Manuel dirige‑se a mim:

«Acima de tudo que a Mercês nunca saiba. Fica assente?» Calo‑me, não sei o que hei‑de responder. «Assente?», repete ele. Endireita‑se, dá uns passos. «Não é por nada, mas nestas coisas as mulheres dão azar...»

E eu, morto por alegrar a conversa:

«Já lá dizia São Paulo.»

«Verdade, pá. O mistério não liga bem com elas.»

Recomeça a marcha entre a noite que desce do céu sobre a mata e a névoa que se levanta debaixo dos nossos passos.

«Com que então dão azar?», digo eu em ar de troça.

«Sabias», pergunta ele adiante de mim, «que nestes sítios as mulheres menstruadas não podem amassar pão?»

«Dão azar, é?»

«Nem amassar pão nem fazer vinho. E qualquer das duas coisas tem mistério. Pão e Vinho... Vem na Bíblia.»

Fico sem resposta. Tomás Manuel deixa passar algum tempo. Depois:

«Não gostaste, não?»

«De quê?»

«Da conversa das mulheres menstruadas. Mas olha que, como princípio, está perfeito. É uma maneira popular de impor a higiene, como qualquer outra.» Sacode a cabeça, sorri pela certa: «É caso para desconfiar, esse ódio todo que vocês têm aos mistérios. Muito suspeito, pá. Mesmo muito suspeito...»

Seguindo‑o, pisando nuvens e mergulhado nelas até aos joelhos, pergunto‑lhe cá de trás: «T'es mort, Engenheiro? Estás morto, anfitrião do lusco‑fusco?»

A muitos quilómetros acima das nossas cabeças, talvez um astronauta acabasse de sair do seu casulo metálico e caminhasse, solto, no espaço, iluminado por torrentes de estrelas.

«E tu, Engenheiro? T'es mort?»

Volto‑me na cama:

«Pudor. Não se fala de um morto pelas costas.»

 

Mas o Engenheiro não estava morto. Nem então, passeando comigo ao pôr‑do‑sol (com os bichos do soalho a escaravelhar por baixo de nós), nem agora, noite alta, bebendo num bar da estrada.

No bar, a uma hora destas? Há que séculos veio de lá o Padre Novo? Faz algum sentido isto?, protestará a minha hospedeira no seu quarto ao fundo do corredor.

Ah, tudo faz sentido na aldeia da lagoa. Aqui, meridiano da Gafeira, N graus de longitude, N de latitude norte, o tempo tem um vencimento diferente, o amor cumpre luto oficial e tudo faz sentido, mesmo um Engenheiro que volta ao bar da sua perdição (vide processo respectivo nos arquivos da G.N.R.) carregando a sombra morta de um criado. Tomás Manuel nunca mais se livrará desse espectro que tanto trabalhou em vida para o moldar aos seus passos e que, à última hora, lhe escapou. Nunca, jamais. E hoje, que o Domingos está na terra da verdade, a sombra voltou e anda com ele como um tumor, como uma curiosidade que a pessoa exibe, contrariada. Assim o olhou o pessoal do posto Shell quando ele apareceu no bar, assim o olharia o pregoeiro das lotarias dando largas ao seu contentamento. Espectros e maldições são o prato forte do Velho‑dum‑Só Dente, e, pelos vistos, esta minha linguagem também. Se me descuido, estou‑lhe no papo.

Sem pinga de sangue: Amanhã ao jantar quem vai pôr tudo em pratos limpos é o Padre Novo. Ele é que pode como ninguém ‑ some‑te, Velho ‑ descrever a cara dos empregados da estação de serviço quando ontem, há poucas horas ainda, mas já ontem, o Tomás Manuel se sentou no bar, servindo‑se da garrafa de whisky.

«Sem pinga de sangue», dirá o padre. «Os desgraçados olhavam para ele como quem olha para um fantasma.»

«E não era caso para menos. O Engenheiro disse‑lhe onde estava a viver?»

«Olhavam‑no como se ele trouxesse o fantasma do Domingos atrás.»

«Mau...», resmungo.

E o Padre Novo: «Mau o quê?»

«Os fantasmas. Nesta terra não se fala senão em fantasmas.»

«Pum, pum!» Fantasmas e bêbedos são os produtos da região. Há berros na rua, vem aí gente. Pum! Pum! Cheiram‑me tanto a vinho como o Engenheiro me cheira a whisky, sentado no posto da Shell diante dos empregados estarrecidos. Lavadores e moços da gasolina habituaram‑se a vê‑lo àquela mesa na companhia do mestiço que Deus tem. Ele fresco, o Domingos ensonado, ambos regressavam das noitadas de Lisboa, infestados de vício, como se lhes podia ler na cara. Mas sobre isto conversarei muito a sós com o Padre Novo por cima de um pato bem tostado. E boa noite. Quem foi que disse que um pato real pesa uma montanha de caramelos?

E quem escreveu isto: «Que pandeiretas o silêncio deste quarto... As paredes estão na Andaluzia... etc.» Quem foi?

Pessoa, o obrigatório. Fernando Seabra Pessoa (1888‑1935), dom sebastião da Poesia nacional. Ainda que não queira citá‑lo, os versos dele pulsam‑me aqui ao ouvido mais quente do travesseiro e, se os não sei de cor (que não sei), tenho‑os na Chuva Oblíqua em papel burguesíssimo das edições Ática, de Lisboa. É só copiar:

... Que pandeiretas I etc, etc, / As paredes estão na Andaluzia... / De repente todo o espaço pára / Pára, escorrega, desembrulha‑se..., / e num canto do tecto (que é de madeira, mas isso não interessa ao poema)... / etc, etc, / Há ramos de violetas I Sobre o eu estar de olhos fechados...

De olhos fechados: Na rua soam passos, vozes transviadas. São os bêbedos retardatários que avançam para casa em guinadas heróicas e saúdam a Gafeira, o País, a Humanidade.

«Pum!»

«Pólvora no mouchão grande. Pum!»

«Pum! Pólvora nele. Pum!»

«O ai, ó linda... Vou daqui prò meu amor, vou daqui prò meu amor, pum‑pum‑pum, parapapá.»

Os minutos correm «no silêncio deste quarto sobre o eu estar de olhos fechados», enquanto lá longe, na largueza da noite, um bêbedo mija para o ar. Engenheiro, meu Palma Bravo de sete fôlegos, em que estado tu vais aparecer em casa. E ele dobra‑se todo para trás e lança um esguicho de urina na direcção das estrelas.

«Anda cá, escritor da gaita. Anda ver quem é capaz de mijar mais alto.»

Sangra desalmadamente, está negro de pancadas. Saiu do bar da estação de serviço há cento e setenta dias bem contados (na célebre noite de 13 de Maio, não nesta), e nem sonha que a Maria das Mercês já o está a vigiar lá da terra da verdade.

Também, horas antes, o Domingos tinha entregado a alma ao Criador ‑ outra coisa que o Engenheiro ainda ignora. Mas entregou, estava morto. Como disse Maria das Mercês, uma ocasião à minha frente, «o Tomás dera cabo da saúde do moço com as noitadas», e se ela se inquietava não o fazia no ar. Tinha tido uma conversa com o criado, supõe‑se (teve várias, tudo indica), e ficara informada, passo por passo, dos cafés e dos bares do Cais do Sodré para onde o Engenheiro o andava a desencaminhar.

Tantas aventuras, vinho e mulheres cansavam o mestiço, como podia testemunhar o pessoal da estação Shell que o viu, madrugadas a fio, sentado no bar ao lado de Tomás Manuel, lívido e a pestanejar, e vestindo fatos de bom corte que tinham servido ao patrão. Vinha destruído, humilhado, porque ‑ foi o Padre Novo quem mo confirmou ‑ era um indivíduo orgulhoso, parecendo que não. As aventuras humilhavam‑no, estava farto.

«Jura que não tornas mais», exigiu‑lhe Maria das Mercês, muito pronta.

E o Domingos:

«Juro, senhora. Eu perca também este braço.»

«Oh, cala‑te», suspirou ela, horrorizada.

«Eu cegue, senhora. Preferia mil vezes ficar em casa...»

«Cala‑te, já disse.»

«Um tipo arrevesado», observaria o marido, a sós com ela. «Levo‑o a Lisboa, deixo‑o à vontade, dou‑lhe dinheiro... Nada.»

«Nada?»

«Nada. Foge das raparigas. Tem o complexo do braço ou lá o que é.»

«Elas, também, devem ser detestáveis...»

«É o que se arranja, e não julgues que são fulanas ao preço da chuva. Só me faltava esta, ter um criado...»

Maria das Mercês tapa‑lhe a boca com a mão, não o deixa acabar:

«Tomás, coitado do moço.»

Riem os dois.

As gargalhadas saltitam por entre a vegetação da mata, misturadas com ruídos de galhos que se quebram e com passos sobre a folhagem apodrecida.

Chegam ao fundo do vale e então, no meio dos caniços, aparecem Tomás e Maria das Mercês, de mão dada, ele à frente, ela atrás, saltando charcos, espantando rãs, e rindo. Há uma gota de sangue no pescoço da jovem, um pequeno rasgão que o marido acaba de descobrir.

«Que é?», pergunta ela, parada.

«Um arranhão.» Mostra‑lhe a mancha de sangue que ficou no lenço. «Vamos lavá‑lo, está bem?»

Sentam‑se na extremidade do pontão, pernas penduradas para fora a balançar sobre as águas quietas. Por baixo deles há uma colorida agitação de vida elementar: aranhas correndo sobre grossos fios de estaca a estaca, um sapo desconfiado escondido na cor da lama, e os infatigáveis alfaiates que patinam à superfície, montados nas suas longas pernas. São helicópteros vivos, tal e qual. Helicópteros delicadíssimos que se suspendem no ar, vibrando as frágeis e reluzentes pás das asas, e que deslizam à flor da água com a leveza de um grão de poeira.

«Quando casámos», diz a jovem lentamente, «você fartou‑se de me falar nos banhos da meia‑noite.»

«Com este tempo?»

«Sei lá. Dizem que à meia‑noite é que a água está melhor. E você prometeu. Palavra de rei não volta atrás.»

«Sim, rainha», diz Tomás Manuel. Beija‑lhe a mão: «Está combinado, rainha. Hoje à meia‑noite cerimónia na lagoa.»

«Nus?»

O marido responde‑lhe com um bater de dentes, como se estivesse arrepiado de frio.

Ela ri:

«Nus, pois. Nus é que tem graça.»

«Sim? E os guarda‑rios?»

«Quero lá saber dos guarda‑rios para alguma coisa.»

«E a pneumoniazinha?»

«Desculpas, Tomás. Você não diz que estas águas são milagrosas?»

«E são», responde ele. «Olha, já não tens nada no pescoço.»

 

Gastaram‑se rios de saliva (e horas de insónia, como se está a depreender) a discutir o que teria feito e não feito Tomás Manuel na última noite da casa da lagoa. Falou‑se de um encontro com o médico às cinco da manhã, quando, pela minha hospedeira, às cinco da manhã estava o médico a acudir a uma criada sem vergonha que ia morrendo de aborto nesta pensão. Correu ainda que fugira para Lisboa à procura de Maria das Mercês e que, de caminho, atropelara um rebanho de peregrinos que faziam a marcha anual para o santuário de Fátima. Falso também. Às cinco e meia em ponto, hora da chegada dos bombeiros da Vila, já ele batia a lagoa à procura do cadáver. Mexericos do povo, que onde não vê põe ouvidos ‑ confia‑me a estalajadeira da boca de pétalas. Mais concretamente:

«Eu, senhor escritor, não presenciei, não estava lá. Mas o caso passou às bocas do povo, e quando assim é nem Deus cala os mudos....» E é tudo o que pode adiantar uma mulher desejosa de paz e de respeito, deitada na sua cama de solidão.

Aninhas, sua amiga íntima, também não se descose. Tratou o Engenheiro quando ele regressou a casa depois da rixa no posto de gasolina, mas vive actualmente na Vila com o marido, e o que lá vai, esqueceu. O que eu ainda não consigo compreender lá muito bem é como uma velha tão mirrada conseguiu carregar com o Tomás Manuel, inchadíssimo de vinho e de pancadas. Dentro de casa, enfim, sempre há as paredes para uma pessoa se ir apoiando, mas atravessar o pátio com um fardo daqueles é obra. Estou a ver a Aninhas, formiga de ventre espetado, às voltas com o grão gigante. Com a prática que tinha de lidar com um marido entrevado, levou o patrão desde o carro até à cozinha, banhou‑lhe o rosto e pôs‑lhe adesivos. Teria sido assim?

Silêncio. Aqui na pensão e na casa da lagoa tudo dorme. A velha choraminga em surdina, com receio de acordar a patroa. Sempre que do fundo do vale lhe chega um uivo mais forte, encolhe‑se e resmunga: «Malditos cães.»

Há um bom bocado que o Lorde e a Maruja andam numa inquietação constante. Acordaram‑na pouco antes de ter chegado o Engenheiro, e ela, amedrontada, correu ao quarto do Domingos. Ninguém. Foi ao canil, achou‑o vazio. O criado andava na lagoa atrás de algum pescador furtivo e, como de costume, levara os cães. Malditos. São uns selvagens às dentadas às águas, como me disse o cauteleiro.

«Cuidado, menino... Eu ajudo‑o.»

Tomás Manuel recusa‑lhe o amparo. Embrutecido, mete pelo corredor, aos bordos de parede a parede; encontrão à esquerda, encontrão à direita, alcança a escada interior. Pausa. De pé, agarrado ao corrimão, fica a cabecear. Uma vez aqui, tanto se pode ter sentado num degrau a ganhar forças, como ter partido numa arrancada pelas escadas acima e só parar lá no alto, estonteado. Primeira etapa. Nova pausa.

Bem, do patamar em diante conheço eu o caminho. À esquerda tem‑se o quarto dos hóspedes, casa de engomados à direita; depois há uma passagem em arco que dá para o hall, e está‑se diante do estúdio; gabinete de Thomas Manuel dum lado, quarto de dormir do outro. Quanto tempo terá levado ele a fazer este caminho?

De luz apagada e olhos fechados, foi‑se desenvencilhando da roupa. Na cozinha tinha deixado o casaco, no patamar os sapatos e, pendurado no corrimão, o cinto. Se ficou a oscilar à porta do quarto (admitamos que à espera que os soluços passassem; ou sufocando os vómitos; ou porque resolvesse despir‑se ali mesmo), se, pelo contrário, entrou logo a uso e caiu em cima da cama, ninguém sabe. Sabe‑se que se deitou de luz apagada ‑ é a opinião geral (e é o que manda a lógica dos factos) ‑ e quanto ao resto a minha hospedeira vira a cara para o lado. A decência não lhe permite devassar as intimidades de um leito de casal.

Mas quer ela queira, quer não, a natureza tem os seus impulsos. O Engenheiro chega‑se à mulher. Está só e derrotado, precisa de um tronco a que se agarrar. A mão ensonada erra ao acaso, «procura as mamas» ‑ relato do Velho ‑ e perde‑se num emaranhado macio: pêlos. A mão desvia‑se, sobe o ombro, acelera, corre o braço, e o braço inesperadamente acaba: não está completo, é um toco. Então a mão salta sobre o candeeiro e, num relâmpago violento, Tomás Manuel, batido pela luz, escancara os olhos. Em vez de Maria das Mercês, tinha na cama o cadáver do criado.

 

Devo ter passado pelo sono ‑ não muito tempo, o suficiente para distinguir na escuridão a mancha cinzenta da janela. Serão, quê, quatro horas? Acendo a luz e leio; e esgoto o cantil e todos os ópios da insónia, ou fico aqui estendido à espera do cantar dos pássaros da madrugada? Pássaro Madrugador I, pequenino satélite amigo da Terra, esse é que nunca dorme nem perde tempo. Cinco... quatro... três... dois... um... Zero. Este código conheço eu de criança, quando nos bailes ao ar livre o vocalista da orquestra experimentava o microfone. Alô? Alô? Cinco... quatro... três...

Aproxima‑se um automóvel; passa na rua e segue em direcção aos montes. Já os primeiros caçadores?

«Visitez la Gafeira»: Mas não tão cedo, por favor. Antes das seis, seis e meia, é noite e depois do alvorecer o nevoeiro não desiste às primeiras. Nada de precipitações. De qualquer forma, se no automóvel vêm caçadores leais, e não os salteadores que em todas as vésperas de abertura fazem uma razia nocturna na lagoa, que sejam bem‑vindos. Welcome, espingardas madrugadoras! Willkommen! Tervetuloa! Sean bienvenidos, como manda a boa educação das agências de viagens. E este cumprimento quer‑se em letras bem folgadas, hospitaleiras. Welcome...

Um cartaz, porque não?: Se houvesse uma fotografia da lagartixa e um lenço vermelho, seria magnífico. Teríamos o cartaz ideal, amigo Regedor: a lagartixa, estilhaço vivo, resto milenário, pardacento, num fundo radioso de sangue. Setenta por um metro e vinte (70 x 120), impressão a cores, off‑set. Proponho até que se lhe acrescente a célebre legenda da anedota: «VISITE A GAFEIRA ENQUANTO ELA EXISTE.»

Não ‑ reconsidero. Como slogan, é desastrado, como são desastrados quase todos os slogans na nossa língua. Custa‑me dizer isto porque bem sei quanto sofrem os criadores de frases para o consumo dos mercados e também porque não quero ofender os incansáveis catalogadores do português legítimo. Nunca, Regedor. Temos um valioso tesouro que, se Deus nos der vida e saúde, havemos de conservar intacto, porque a língua pátria que herdámos é, como não se ignora, uma das mais ricas do mundo. Está cheia de bengalas por dentro e carregada de palavras a mais.

Também o meu travesseiro está carregado ‑ mas de recordações. Recordações a mais...

 

À cabeceira do criado morto em plena prova do amor, as vozes cruzam‑se, chegadas de sítios incríveis:

«Os cães são o remorso dos donos...»

«Ó, ai, ó linda... Lá‑lari... Ó, ai, ó linda...»

«Não sou, senhor escritor, pessoa de levar e trazer...»

«Alça‑cus, alça‑cus, onde pus eu a espingarda?»

A noite arrasta‑se numa velada de recordações.

«Colapso cardíaco», informa o Regedor à parte.

«Colapso quê», reponta o dente do Velho, mais bravo do que nunca.

«Cardíaco. Morreu com um colapso, disse o doutor.»

E o dente:

«Colapso era o bode do pai dele.»

«Respeito, homem de Deus», acode a dona da Pensão. «Não faça caso, senhor escritor.»

Mas o dente anda aos pinotes por cima do meu travesseiro e do cadáver do Domingos. Ninguém tem mão nele:

«Inchou‑lhe o instrumento na barriga da Infanta. Aconteceu‑lhe o que acontece aos cães. Ó, ai, ó linda, cão maneta, cão maneta...»

«Jesus, língua cervina.»

«... Cão maneta, cão maneta, tralalá. E ficaram os dois pegados, ficaram os dois pegados, tralalá, como os cães no trabalhinho. Ó, ai, ó linda, como os cães no trabalhinho. Foi morrer de pau armado, como os cães no trabalhinho...»

«Mais consideração pelo sono dos outros», urra o Regedor lá do largo.

Aqui ao lado, nos quartos ao longo desse corredor, repousam vários caçadores que anseiam, como eu, pela batida do alvorecer, alguns lamentando, também como eu, que o massacre tenha de ser feito para honra (honra?) e glória (glória?) da lagoa. Dentro de quatro, cinco horas, vamo‑nos encontrar todos. Nós, os Noventa e Oito e os forasteiros que vêm a caminho em automóveis de rádio aberto e barcos no tejadilho.

Mas por agora, nesta estalagem, a irmandade dos caçadores dorme, que é o que importa. Em cada quarto há uma espingarda no cabide ‑ fecharias lavradas, miras sensíveis, coronhas brandas e de nobre esplendor. De madrugada invadiremos a lagoa em grande uniforme: botas pelos joelhos, os meigos cockers dourados a resplandecerem na claridade indecisa e a ondularem os caniços onde se abriga a armada dos atiradores. E também não faltará uma manhã serena para nos ajudar. Desaparecerão os restos de neblina, teremos o tempo que tivermos, mas a chuva e tempestade é que não. Figas contra as tempestades que obrigam a caça a alturas desmesuradas e destroem a última esperança de nos encontrarmos com uma asa errante de garça ou com um impecável pescoço de ganso. Alguém terá ilusões quanto ao voo de um ganso navegador a mais de mil metros de altitude? Figas contra o ganso apavorado, esse astronauta.

Sem mau tempo, como tudo indica, a lagoa despertará com leveza. Os choupos, antes de serem choupos, serão manchas a pingar orvalho, a junca irá despontando em colónias de hastes corajosas, rasgando a névoa que baila à superfície das águas, e que se desfia, que faz renda, mistério. E num abrir e fechar de olhos rompe‑se o encanto. No mouchão, a meio da lagoa, perfilam‑se os galeirões. Lembram um exército acampado numa ilha.

Porque será que não fogem quando a frota dos caçadores avança para eles? Uma linha de espingardas desloca‑se silenciosamente e os pássaros negros, taciturnos, aguardam. Estão encostados uns aos outros como quando dormem, e os barcos aproximam‑se deslizando, deslizando. Eis senão quando soa o primeiro tiro. A fuzilaria rompe acto contínuo sobre uma cortina de asas que explode e se levanta do areal em todas as direcções, metralhada por um burburinho de caçadeiras. Espavoridos, os galeirões cruzam‑se por cima da lagoa; de cada embarcação sai fogo, de terra os atiradores cortam‑lhes a retirada. E eles desprendem‑se lá de cima, umas vezes como se viessem a amarar ‑ e é essa a morte em beleza de um galeirão: correndo ao lume de água com um espadanar equilibrado das asas e descansando por fim o pescoço na corrente ‑, outras vezes num destroço imediato, caindo em peso.

Sinto a lagoa inebriada, cheirando a pólvora. Vogam à deriva cardumes de cartuchos queimados e por toda a parte se esgueiram caçadores‑piratas que remam descaradamente para se apoderarem das peças que os outros abateram.

Piores do que esses, digo com o meu travesseiro, são os falsos ingénuos que disparam sobre a caça que já vem atingida. Cada dia tenho mais respeito pelos humildes atiradores das margens, que são cautelosos e de pontaria meditada, cada tiro um problema.

Em todo o caso, este ano vai haver menos caçadores nas margens porque o tempo (a lagartixa, disse‑se) despertou, deu um salto. Noventa e oito espingardas da Gafeira vão este ano enfeitar a lagoa em plena liberdade, pondo um brilho novo naquela fuzilaria, uma vez que, poupados como são e conhecedores do terreno e dos hábitos as aves, hão‑de certamente aquietar os intrusos sanguinários. À tarde lá os teremos, festejando o acto de posse, comendo em rancho pela mata, o chão atapetado de penas. Nas fogueiras fervem tachos de galeirões, chegam carroças floridas, carregando vinho, transistores e concertinas; a romaria de caçadores vai crescendo, cantando, fazendo baile.

«Ó, ai, ó linda. Vou daquiprò meu amor...»

Mas o último bêbedo passou na rua há muito tempo, levando com ele a cantiga e as ameaças à lagoa. Foi‑se enroscar nalgum canto, em casa, num telheiro, onde lhe apetecer, e aposto que ressona a sono solto. Que ressone, que se farte, porque felizmente não tem um roncar de estremecer paredes. Incomoda muito menos do que o silêncio que reina neste momento na lagoa, disso tenho eu a certeza.

Deve estar de meter medo, a lagoa.

 

Alguém ressona. Não no infinito, não num inocente telheiro ao relento, mas no quarto aqui ao lado: um caçador. Ressona em paz e com largueza. Não tem o vício de soletrar pessoas e casos, não alimenta o tão falado «demónio interior» de que se gabam, regra geral, os furões da literatura. Não se enreda, dorme ‑ que mais pode ele ambicionar? Assim, é um caçador em estado de inocência, dom precioso. Um hóspede comandando o repouso dos outros hóspedes que sonham, como ele, com a lagoa. Provavelmente já se vêem todos a atravessá‑la...

Sono amplo, cavado; movimento de mar sob as enxergas ancoradas ao longo dum corredor. E os caçadores da Pensão, embalados nas vagas, perdem‑se num esplendor de névoa. Não descobrem água nem margens, vogam sobre a brancura que rasa a lagoa e que faz dela uma planície de fumos, e, todos em linha, numa frota de colchões invencíveis, aproximam‑se do oceano que respira tranquilamente sobre o leito de areia, por detrás das dunas de estuque e de tabique.

Qualquer coisa me segreda que há alguém encoberto naquela inundação de bruma. Alguém especado no areal, e a vigiar. Só à claridade da antemanhã (que mal se lê ainda nos vidros da janela) posso saber se estou certo ou errado, mas, para já, arrisco um nome ‑ Tomás Manuel. E é isto, suspiro. Lá voltamos nós.

Viro a almofada. Escalda. Inútil mudar de posição ou procurar tolher o pensamento quando os cavalos da insónia tomam conta de nós. Galopam, esvoaçam por cima de abismos e atiram‑nos infalivelmente para o fosso da tentação (que é a lagoa, claro, a lagoa, a lagoa, a estuporada lagoa) e fixamos um pressentimento, uma sombra que, com o levantar da madrugada, tão depressa tem forma humana como dá a ideia de um monte de palha a apodrecer. A humidade escorre por ele abaixo, o vulto continua de guarda, impreciso. Mas é ele, é o Engenheiro, não há que ver. Deve estar enregelado.

De roupão pelas costas (pelo menos é assim que se me representa), camisa ensanguentada e sapatos sem meias, segura os cães pela coleira, um em cada mão. Os três fazem um corpo único, um escolho sombrio apontado para o braço do pântano que arrebatou Maria das Mercês e donde sai um queixume frágil a tremular pelo vale:

«Morrer afogada... Que desgosto, que infelicidade...»

A dona da lagoa ficou agarrada pelos pés ao lodo do fundo, hirta, inclinada para a frente como se fosse em marcha por baixo de água e tivesse sido detida de surpresa. Vêem‑se‑lhe os cabelos a ondular na corrente e, por cima, a pouca altura, sobrevoa‑a um bando de pássaros, sempre o mesmo. Mergulhões, verifico com pasmo. Aqueles são os mergulhões de que falava o Engenheiro e o fulgor que o cadáver irradia vem do nylon da camisa de dormir. Atenção: solta faíscas, a electricidade do nylon. O melhor será assinalar esse ponto do mapa do Automóvel Clube para aviso dos caçadores que dormem. Tracemos‑lhe uma cruz, Abade Doutor: «Requiem aiernam dona eis, Domine...»

Tento localizar a Urdiceira nos confins do pantanal. Há, desde a casa até às dunas, farrapos de roupa pendurados no tojo e nos ramos, bandeiras de seda e de renda comemorando o roteiro de Maria das Mercês. Sigo‑os. A cem metros do pátio deixou o lenço e sangue ‑ foi a primeira queda; à saída dum valado aparece um rasto de corpo, terra arranhada, fetos quebrados ‑ teria ajoelhado aqui pela segunda vez?; mais adiante, um fogo de silvas emaranhou‑se‑lhe nas pernas e comeu‑lhe um pedaço da camisa; nos espinhos das acácias perdeu as rendas, nas tramagueiras retalhou os pés; uma ponta de eucalipto esbofeteou‑a à passagem e ficou‑lhe com um lacinho de seda a acenar ao vento como uma vitória. De rasgão em rasgão, foi dar à corda das dunas que separa a lagoa do oceano, ali onde desemboca uma estrada natural lavrada pelos carros de bois que vêm carregar areia para uma fabriqueta de blocos. É trilho apenas, não chega a ser caminho. Nasce a meia encosta, nuns barracões enevoados de pó e cimento, desce a vertente salpicada de bosta e de fanicos da cabra e entra na água por um prado de juncos submersos. Urdiceira, ponto final. Ouve‑se o mar.

A hora em que o corpo foi descoberto, hora do nascer do sol («quando o pessoal que trabalhava na Vila interrompeu a viagem para tomar parte na busca» ‑ palavras do Regedor), a lagoa estaria toldada por um céu fosco. Seria o despertar habitual daquelas paragens, com os cumes arredondados das dunas a recortarem‑se no horizonte e um lençol de nuvens estendido de margem a margem, furado pelas hastes dos juncais.

Mas num recanto ignorado um pato deu o grito de alarme: coin, coin! De cada ninho mais próximo surgem pescoços. Silêncio, tempo de confirmação. O pato vigilante corre sobre a linha de água a ganhar altura, voa por cima do areal e repete o aviso à comunidade: coin, coin! Então as aves estremunhadas desertam para os mouchões do lago. Deste lado, à saída da mata, dezenas de bicicletas («mais de trinta», pelos cálculos do Regedor) estão estendidas no chão e junto de cada uma delas há um homem de pé. Ninguém tem boca, só olhos. Entre eles, que são uma cortina de nervos a enfrentar a lagoa, e as bateiras que sulcam as trevas brancas, ergue‑se a figura do Engenheiro ladeado por dois guardas a cavalo. O pato calou‑se. Tchape... ‑ fazem as barcaças, avançando. Tchape...

Tomás Manuel domina os cães com pulso forte, tem‑nos colados a ele. Tremem os três, presos ao chão. Dois mastins e um homem que acende cigarros uns nos outros e que mostra às dunas um rosto devastado, uma máscara de adesivos e de nódoas saída de um montão de roupa em frangalhos e de lama. É lama, estou vendo. Calças, canelas e sapatos são uma casca cinzenta e pesada ‑ a famosa «massa da lagoa composta de lodo e baba de peixe» que a Monografia apregoa como remédio dos antigos contra as chagas da lepra. E como matéria de luxúria. Se a memória me não falha, era com esta mesma lama que as ociosas romanas faziam a suas máscaras de beleza. Ou será confusão minha?)

Tchape... As bateiras vão circulando. Roupão a pingar, camisa ensanguentada, o Engenheiro parece um salteador escoltado por dois guardas a cavalo. Tchape... tchape...

A dado momento, os vultos esfiapados das barcaças convergem de todas as direcções sobre um ponto distante. Os cães agitam‑se, mas o dono cala‑os com um esticão violento e cerra os dentes. «Encontraram‑na», concluem os ciclistas ‑ e dominam‑se igualmente, porque tudo se passa ainda no segredo da neblina. Mal imaginam eles que, umas dezenas de metros adiante, já um bombeiro da Vila se debruça sobre as águas e, afastando o fumo, como que a aflorar a boca duma cisterna, ampara nos dedos uma mancha de cabelos.

Chegam mais barcos, fazendo círculo, e em tudo isto há um não sei quê de cerimónia, uma conspiração da madrugada posta em movimento por pesquisadores que se reuniram em torno de um enigma. Lentamente, com suavidade, o cerco vai‑se apertando e daquela grinalda de mãos começa a despontar o corpo de Maria das Mercês.

(Não tem de modo algum a serenidade que a lenda anunciava, mas também não está ainda roxo e inchado como depois o verá o médico na autópsia.)

Lorde e Maruja puseram‑se a gemer; empinam‑se, contorcem‑se. Os cavalos sacodem o pescoço e parecem querer recuar, sentindo o cortejo de bateiras que se aproxima. Remada após remada, as proas sombrias rompem a neblina e o barco capitão toca a terra com o seu terrível troféu.

Então o Engenheiro estica‑se todo, como se acabasse de levar uma punhalada nas costas, e abre‑se em urros que estremecem o vale:

«Enterrem‑me essa cabra! Enterrem‑me essa cabra!»

 

No andar de baixo, no quarto da dona da Pensão, toca um despertador. É o sinal para que a mimosa montanha de seios se revolva entre lençóis e ponha o pensamento em nós, caçadores à sua guarda. Bem precisamos dela, eu principalmente, que já distingo os contornos do lavatório, a mesa e os caixilhos da janela por onde, muito em breve, entrará a claridade do alvorecer. Cinzento em cima de negro. Cansaço e um cantil vazio. E a espingarda e a cartucheira penduradas na porta. Para quê? De que vale uma sábia e desperta caçadeira quando é dedilhada sem firmeza depois de uma noite em branco?

De nada, respondo espreguiçando o corpo moído. Chocar recordações em cima de um travesseiro não aproveita seja a quem for e torna‑se mais ridículo do que um alça‑cu a brincar às amas‑secas. Absolutamente. Ou, antes, positivamente, Engenheiro das más insónias. Só eu cairia em semelhante armadilha numa véspera de abertura de caça. E agora? Agora, prevendo o que vai ser a batida e o massacre dos ansiosos em que ela quase sempre descamba, a prudência aconselha a desistir. Um dia em má forma pesa nos outros que vêm a seguir ‑ o mal é esse. Depois, para me consolar, este ano é uma data especial e tudo mudou na Gafeira. O que conta é o festim das enguias e logo, a meio da tarde, o arraial dos Noventa e Oito, com tachos de cebolada a crepitar ao ar livre, vinho e concertinas. Isso, sim, é que é a caçada de hoje. Conta mais que o melhor cinturão de galeirões de crista, admitindo que ainda há bichos de tal espécie à face da terra e que não ficaram todos sepultados nos manuais.

Está dito, ao arraial não falto, custe o que custar. E ao entardecer, quando se firmar no alto dos pinhais a tentadora coroa de nuvens, não abrirei o meu caderno de apontamentos, e menos ainda a Monografia. Ficou‑me de emenda. Para a próxima terei o cuidado de escolher outra leitura, de preferência um canto de alegria. Um livro deste tempo e desta hora que não traga a lagartixa na portada como um ex‑líbris ou como uma pluma imposta sobre o granito.

Desta maneira, o Autor em visita despede‑se de um companheiro de serões e de uma Ofélia local, de um dente excomungador e de mastins e ideias negras que lhe guardaram a cabeceira na véspera do dia de Todos os Santos e de todos os caçadores, o primeiro mês de Novembro de mil novecentos e sessenta e seis. Pensa na manhã e espera. Espera. Espera o sono. O sono. Sono... 

 

                                                                                José Cardoso Pires 

 

 

 

                                         

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