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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O DEMÔNIO DA PERVERSIDADE / Edgar Allan Poe
O DEMÔNIO DA PERVERSIDADE / Edgar Allan Poe

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                   

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Antes de contar a minha história, preciso fazer algumas considerações sobre o que resolvi chamar de Demônio da Perversidade. Em sua busca para descobrir quais teriam sido as intenções de Deus ao criá-lo, o homem acabou por se analisar e chegou às seguintes conclusões: como Deus lhe deu órgãos digestivos, é preciso que o homem se alimente para manter seu corpo. Essa necessidade impulsiona o homem como o chicote impulsiona o cavalo e, movido por ela, o homem come. Com a energia proveniente da comida, o homem transforma o seu meio. Deus também pôs no homem acessórios para que ele se reproduzisse e continuasse sua existência terrestre. A mente humana também foi outro presente divino e, com ela, o homem foi capaz de seguir PRECEITOS morais e intelectuais.

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Tal pensamento teria sido mais exato se o homem tentasse deduzir as intenções divinas a partir daquilo que o próprio homem faz, e não a partir de suas suposições sobre o que ele acha que Deus quer que ele faça. Se já é difícil para nós entendermos Deus em suas obras visíveis como os grilos, as girafas, as montanhas, as estrelas, as marés... como será possível tentar entender os pensamentos e as intenções de Deus ao criar as coisas que criou? Posteriormente, a FRENOLOGIA admitiu a perversidade como uma característica congênita, primitiva e paradoxal de boa parcela da raça humana. Como se, ao nascer, já estivéssemos condenados pela perversidade. Todos nós, mais cedo ou mais tarde, acabamos ATORMENTADOS por vozes internas, pensamentos repetitivos que vêm de nosso interior e que causam a nossa CÓLERA. Essa cólera, essa loucura mental muitas vezes só precisa de uma faísca, uma breve idéia para virar um impulso, para que esse impulso se converta em desejo e o desejo, em vontade. A partir daí, a vontade se torna uma ÂNSIA incontrolável que, infelizmente, é satisfeita. Digo infelizmente porque, quase sempre, satisfazer nossos instintos primitivos não é algo de acordo com o sistema moral e social em que vivemos... Quase sempre isso nos causa transtornos, REMORSOS e MORTIFICAÇÕES.
Essas crises, tão cruciais para um ser humano, nos arrebatam num instante e exigem decisões rápidas, energia e ações imediatas. É como nos vermos numa fuga e, subitamente, nossa estrada acaba em um precipício. A primeira idéia, a de pular, nos causa medo, nojo, receio, angústia. Contudo, nossos inimigos se aproximam e começamos a analisar melhor o abismo. Começamos a traçar uma rota de fuga no ar. Imaginamos que aquela é a única saída, mesmo que não haja nada para nos deter. Então, empurrados pelo espírito da perversidade, nós cometemos a loucura porque no fundo sabíamos que não deveríamos cometê-la. A perversidade nos tira do sério e reduz nosso princípio inteligível a MIGALHAS. Desculpem minha demora e minha filosofia, mas precisava tentar explicar por que me encontro encarcerado nesta cela reforçada. É sobre isso que quero falar. Ouçam minha história e vão entender por que me encontro agora trancado numa cela fria, com GRILHÕES nos punhos e tornozelos. Acredito que nenhuma aventura humana, nenhum crime, nenhuma façanha tenha sido tão bem planejada e executada quanto a minha. Durante meses dediquei todo o meu tempo pensando em uma forma de executar minha proeza. Fiz desenhos, cálculos, li livros, passei horas imaginando situações e descobrindo suas falhas. Quando era possível, eu as solucionava; se não fosse possível reparar as falhas, abandonava o plano e partia para a mentalização de outro modo de eliminar meu oponente. Até que li num romance francês sobre a morte acidental de uma personagem chamada Madame Pilau, por uma vela envenenada. Pensei e repensei sobre aquele DELITO e após MINUCIOSO estudo, resolvi adotá-lo. Foi preciso aprender a envenenar uma vela e armar uma forma de colocá-la no CASTIÇAL de minha vítima. Para tanto, armei uma visita corriqueira na qual comemos bolinhos, conversamos e tomamos chá. Quando minha vítima foi ao banheiro, SORRATEIRAMENTE entrei em seu aposento e substituí a vela. Os demais fatos decorreriam naturalmente, uma vez que minha vítima adorava ler deitada em sua cama e que seu quarto era estreito, pequeno e com muito pouca ventilação.
“Por que o matei?” — você deve estar se perguntando. Posso responder que estava de olho em sua herança, já que tudo que era dele seria meu quando ele morresse. Achei melhor não esperar tanto e, por isso, abreviei sua morte. No entanto, à medida que eu elaborava meu plano, meu interesse em sua perfeição, em seus detalhes e em sua execução iam deixando o seu objetivo final — tornar-me um homem rico — de lado. Posso dizer sem problema algum que, embora eu tenha USUFRUÍDO de vários bens materiais provenientes do meu crime, nenhum deles me deu a satisfação pessoal que o assassinato ainda me causa. Lembro-me com VIVIDEZ do momento em que entrei no quarto, a porta rangendo e meu coração pulando dentro do peito enquanto substituía a vela normal pela envenenada. “Durma bem, querido parente!”, pronunciei com orgulho e MALÍCIA. Voltei para a sala e logo ele voltava do banheiro. Com muita naturalidade, retomei nossa conversa sobre cavalos. Depois, sempre pensando em minha segurança, lembro-me de ter destruído todas as minhas anotações e livros que remetessem ao crime. Estava quase apreciando o fogo devorar as evidências quando fui surpreendido por uma voz: — Você aqui! Era um amigo dos tempos de escola. Meu estômago gelou. Fingi um sorriso saudoso. Ele se aproximou. Pensei em matá-lo, mas seria tolice cometer um crime sem planejá-lo antes. Tive outra idéia: — Venha até aqui, estou fazendo uma pequena fogueira para combater esse frio. O sujeito se aproximou na tarde gelada de inverno, o fogo já devorava AVIDAMENTE os ESBOÇOS que poderiam provar minha culpa. — Que boa idéia — ele disse, puxando assunto. — É. Eu tenho mania de juntar muito papel, muito lixo. Mas hoje, com esse frio, tomei coragem e pus fogo em tudo! Ele apenas sorriu. Por sorte era um sujeito TOSCO, pouco afeito a livros, e logo mudamos de assunto. Minutos depois meu ex-colega foi embora e fiquei mais calmo. Assim que ele se foi a frase apareceu em minha mente: ESTOU SALVO!
No começo gostei, era como um troféu. Como se eu tivesse ganho o prêmio do crime perfeito. Sim, o crime perfeito que muitos dizem ser uma mentira, uma ficção, era agora um segredo meu, uma conquista e uma satisfação pessoal. Mal sabia eu que aquelas duas palavras seriam a minha mais perfeita ruína... Nos dias seguintes a satisfação circulava por todos os poros de meu ser. Lembro-me de amigos indo me visitar para informar da morte de meu parente ilustre. Lembro-me da minha expressão FORJADA, ao ouvir deles que minha vítima havia morrido em paz, de morte natural durante o sono. Lembro-me de ter inclusive LACRIMEJADO! Sem saber, eu era um ator e dos bons, afinal havia conseguido LUDIBRIAR várias pessoas com minha ENCENAÇÃO. Essas memórias me dão, até hoje, uma sensação de conquista e de superioridade que estariam completas se não fosse a existência do Demônio da Perversidade. Engana-se quem pensa que o demônio tem chifres. Está errado quem acredita que ele anda por aí a espetar as pessoas com o seu TRIDENTE. Não sabe nada da vida quem acha que ele vive embaixo da terra, num inferno de labaredas. É até engraçado pensar que, para muitos, o “demo” tem pele vermelha e uma cauda pontiaguda. Sabe por que quem pensa assim está errado? Porque o demônio não tem aparência nenhuma. Nem corpo, nem nada. Porque o demônio mora dentro de nós. Dentro de nosso próprio cérebro. Talvez seu sobrenome seja consciência, talvez seja moral, não sei. Sinceramente, meu espírito acadêmico anda cansado para tais filosofias. Prefiro chamá-lo apenas de Demônio da Perversidade, a criatura que me trancafiou nesta cela de condenado. Durante anos eu vivi em paz e alegria com o meu crime, com a minha riqueza e com meu parente morto, mas o demônio é ARDILOSO. Ele sabe esperar, ele aguarda seu momento de fraqueza e então começa a PERTURBÁLO. Começou de leve, aos poucos, com breves INSINUAÇÕES, apenas com lampejos, com a frase ESTOU SALVO. Mas, com o passar dos dias, das semanas e dos meses, foi crescendo numa OBSESSÃO perseguidora. Primeiro eram mínimas as vozes, depois seu volume foi aumentando e, por fim, eram várias vozes martelando minha cabeça repetidamente com o coro: “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” O meu maior troféu, a minha glória pessoal, a minha grande façanha se tornou um INCÔMODO sem precedentes. Um demônio perverso que me perseguia onde quer que eu fosse. Que não me deixava dormir, nem me alimentar, nem fazer minha higiene. Se eu corresse ele corria atrás, ou melhor, dentro de mim. Se eu ficasse parado a sensação era de descontrole. Era impossível trabalhar ou me divertir. Resumindo: era impossível viver! A cada segundo que passava, o refrão “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” “ESTOU SALVO” afundava seus caninos em meu cérebro. Passei a falar sozinho, para que minha voz me distraísse de minha voz interior. É óbvio que as pessoas percebiam e se entreolhavam ou me olhavam com ares críticos. Para não ficar malfalado, passei a cantar, na esperança de que minha cantoria me trouxesse alívio. Só que nunca fui um bom cantor, além disso tinha vergonha de cantar na presença de outras pessoas. Minha situação ia piorando a cada dia. Por isso eu tentava me distrair no campo e na floresta. Lá meus cabelos e minha barba cresceram, mas depois de algumas semanas a vida campestre não satisfazia mais o meu ser e não me dava mais paz. Tive que voltar para a cidade. Era uma tarde quente, estava caminhando pelas ruas do centro, tentando me distrair das vozes, quando a perversidade dominou minha boca e comecei primeiro a balbuciar lentamente: — Estou salvo. Estou salvo. E depois a murmurar baixinho: — Estou salvo. Estou salvo. Antes que pudesse reagir eu já estava falando e logo gritando aquelas palavras curiosas que poderiam pôr em jogo a minha liberdade assim que alguém me perguntasse: — Afinal, de que é que você está salvo? Por isso comecei a correr. Pretendia me REFUGIAR novamente na zona rural da cidade ou em alguma floresta, onde ninguém me escutasse. Mas o seguir em minha gritaria. Alguns otários pensaram que eu era uma espécie de MESSIAS, algum tipo de líder religioso PREGANDO a salvação. Sua crença só piorou minha situação, pois ficavam repetindo: — Ele está salvo! — Sim, ele encontrou a salvação! — É isso! Ele diz que está salvo, então ele sabe o caminho! — Ele é o escolhido! — Ele é o novo messias... Essas tolices acabaram atraindo a atenção de mais gente. Algumas pessoas ficaram revoltadas comigo e também resolveram me perseguir: — Cala a boca, falso messias! — Nenhum IMPOSTOR pode tomar o lugar do filho de Deus! — LINCHEM esse mentiroso — gritavam os que não estavam de acordo com a falação do primeiro grupo. De minha parte, eu só queria correr e fugir dali. Longe de ser um enviado de Deus, eu lutava contra meu próprio demônio interior e, após alguns minutos, contra o cansaço físico. Seria uma situação engraçada, não fosse tão dramática e perigosa. É claro que aquele ALARIDO todo chamou a atenção da polícia. Em pouco tempo, guardas a pé e a cavalo se infiltravam na multidão. Para um policial, ver um único homem fugindo de dois grupos numerosos de pessoas só significa uma coisa: que eu era um MELIANTE que precisava ser detido. A cavalo, um guarda tomou a dianteira e conseguiu me derrubar. Caí no chão frio e rasguei as calças e os joelhos. Membros da “minha seita” vieram me socorrer. Gritavam: — Homens fardados novamente estão maltratando o filho de Deus! — A história se repete! — Mas desta vez não vamos permitir que humilhem o filho do Senhor! — gritavam os novos fanáticos. Alguns deles partiram para a briga com os policiais. A tropa jogava os cavalos sobre o povo e a confusão estava armada. Nove outros policiais me cercaram e algemaram. Com tiros para o alto eles me protegeram do grupo que queria me adorar e do grupo que queria me linchar. Por alguns instantes, meus “seguidores” tentaram me libertar da polícia:
— Soltem nosso líder! Soltem o novo messias! — gritavam aos guardas. Mesmo armada, a polícia estava em número bem menor e poderia se dar mal naquela situação. Cheguei a pensar que eles me soltariam e eu iria do fogo para a frigideira, caindo na mão de fanáticos religiosos recém-concebidos. Por sorte o grupo que queria me linchar fez menção de me libertar à força para me dar uma coça, e meus fiéis seguidores resolveram partir para a briga. Foi uma rusga muito feia que se alastrou pelas ruas da cidade. Homens maduros, pais de família, jovens, crianças, mães e até idosos se ENGALFINHARAM a socos, cotoveladas, pedradas, chutes e cusparadas. A polícia aproveitou para sair dali. No fim das contas até me senti bem em ter sido preso. Achei bem melhor do que ter sido linchado! Não é difícil imaginar a confusão na delegacia. Os policiais detiveram e interrogaram alguns populares dos dois grupos a respeito do que acontecia ali. Depois vieram me interrogar. Mesmo que eu conseguisse me controlar e não confessar meu crime, a polícia iria me prender por desordem pública, BADERNA, INCITAÇÃO popular e sabe-se lá quantas acusações mais. Demonstrando uma frieza e uma clareza espantosas, eu comecei a relatar meu crime. Estava cansado daquela vida de refém do Demônio da Perversidade, por isso, contei tudo. Em minutos arranquei de minha alma um segredo de anos. O crime que estava INCRUSTADO em meu ser se soltou e saiu pela minha boca. Falei com todos os detalhes sobre a minha ganância, minha mesquinharia, minha frieza e minha maldade. No começo os guardas acharam que era uma história MIRABOLANTE para que eu me safasse da bagunça que havia produzido nas ruas. Mas como mantive a seriedade no relato e como algumas pessoas na delegacia conheciam minha vítima, acabei ENCARCERADO. Fui levado para uma cela e alguns dias depois julgado e condenado. Se eu tivesse uma faca teria arrancado minha própria língua, mas como não pude conter minha perversa consciência vou terminar meus dias na prisão. Muitas vezes me pergunto se minha maldade foi tão grande que eu não pude controlá-la e acabei fazendo mal a mim mesmo ou se não passo de um doente mental. Hoje me encontro aqui nesta jaula. Amanhã estarei livre das grades e dos ferros, mas para onde vou?
Movido pela cobiça e pela ganância, o protagonista desta história cometeu um crime premeditado. Ao ver seu desejo de riqueza satisfeito, ele começou a ouvir vozes. Era a sua consciência cobrando pela autoria da maldade.
Fazer maldades pode até ser fácil num momento de sangue quente, raiva, cobiça ou egoísmo exagerado. Porém, conviver com o crime, com a memória de ter causado danos a outras pessoas pode vir a ser mais difícil do que ser preso.
Pelo menos é o que nos conta o narrador ao enfrentar o demônio perverso de sua própria consciência, preferindo a prisão a uma vida de culpas.
E quanto a você? Como anda sua consciência? Tomara que limpa e leve. Se algo, no entanto, o perturba, tente conversar sobre o assunto com a fonte das preocupações para recuperar sua tranquilidade.

 

 

                                                                  Edgar Allan Poe

 

 

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