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- Anda cá, rapaz!
Voltei-me, pensando que se dirigia a um camarada meu. Mas não. Era mesmo por mim que chamava, todo sorridente, o antigo zuavo do Papa. A cicatriz do lábio superior tornava-lhe o sorriso hediondo. O coronel, conde de Mirbel, aparecia uma vez por semana no recreio dos pequenos. Destacava-se, então, do muro o seu pupilo, João de Mirbel, quase sempre de castigo. De longe, assistíamos à sua comparência em juízo, perante o terrível tio. O sr. Rausch, nosso professor, e testemunha de acusação, respondia, em tom obsequioso, ao interrogatório do coronel, velho alto e forte, de cronstadt na cabeça, e cujo casaco, abotoado até cima, conservava o corte militar. Jamais lhe largava o sovaco um pingalim, possivelmente feito de nervo de boi. Quando a má conduta de João ultrapassava os limites, lá víamos o nosso camarada a atravessar o pátio, no meio do sr. Rausch e do seu tutor. O trio desaparecia pela escadaria da álea esquerda, que levava aos dormitórios. Interrompíamos os jogos até se ouvir como que um longo queixume de cão castigado (ou talvez não passasse de imaginação nossa...). Pouco tempo depois, reaparecia o sr. Rausch, acompanhado do coronel, cuja cicatriz se tornara quase branca, no rosto congestionado, e cujo olho azul se mostrava levemente injectado. O sr. Rausch caminhava, de rosto voltado para ele, atento, e com um sorriso servil. Tal era a única ocasião em que se podia ver esse medonho rosto lívido, por sob os cabelos frisados e ruivos, alargado pelo riso. O sr. Rausch, o nosso terror! Quando, no início das aulas, o não encontrávamos já instalado na sua cadeira, eu punha-me a rezar: "Meu Deus! Fazei que o sr. Rausch tenha morrido! Virgem Santa! Concedei-me que tenha partido uma perna
- Ou que tenha ao menos uma doençazita sem importância..."
Ele, porém, gozava de uma saúde de ferro e, no extremo do braço magríssimo, a sua mão, seca e dura, era mais terrível do que um malho. Depois dos misteriosos castigos, que lhe infligiam os seus dois carrascos (indubitavelmente muito exagerados pelas nossas imaginações infantis), João de Mirbel dava entrada no salão de estudo, com os olhos vermelhos e uma cara onde as lágrimas haviam dissolvido a crosta de porcaria, indo ocupar o seu lugar. Nós, no entanto, não levantávamos os olhos dos cadernos.
- Sim, Luís, aproxima-te. - gritou o sr. Rausch.
......
Era a primeira vez que me chamava pelo meu nome próprio. Hesitei no limiar do locutório, onde João de Mirbel, em pé, se encontrava de costas para mim. Na mesinha do centro, via-se um embrulho com dois éclairs de chocolate e um babá. O coronel perguntou-me se gostava de bolos e eu acenei com a cabeça.
- Pois bem! Esses são para ti. Vamos... Por que esperas? É o miúdo Pian? Conheço muito bem a sua família... Não tem um aspecto muito melhor do que o pai... Mas a madrasta, Brigitte Pian... Essa, sim! Essa é uma autêntica mulher, uma verdadeira mãe da Igreja!
- Não! Fica! - ordenou ele a João, que procurava pôr-se ao largo. - Isso seria livrares-te muito facilmente. É preciso que vejas o teu camarada a regalar-se. Então? Vê se te decides, meu rapaz! - acrescentou, fixando nos meus os seus olhos, já furibundos, separados por um nariz curvo e firme.
- É um tímido - esclareceu o sr. Rausch. - Não te faças rogado, Pian.
O meu condiscípulo olhava através da janela. Eu via-lhe o pescoço sujo, um pouco acima do colarinho, voltado e desabotoado. Ninguém no mundo me atemorizava tanto como esses dois homens debruçados sobre mim, a sorrirem-me de muito perto. Já conhecia suficientemente a reputação de fera de Rausch. Balbuciei que não tinha fome. O coronel, porém, protestou que não havia necessidade de se ter fome para se comerem bolos. Como me obstinasse, o sr. Rausch gritou-me que fosse para o diabo e que nem todos seriam tão estúpidos como eu. Enquanto me raspava para o recreio, ouvi-o chamar pelo Mouleyre. Tratava-se de um rapaz de obesidade precoce que, no refeitório, rapava as travessas por completo. Acorreu, a transpirar. O sr. Rausch fechou a porta do locutório, de onde, mais tarde, Mouleyre saiu com a boca lambuzada de creme.
Era por um crepúsculo ainda cálido de Junho. Depois da partida dos semi-internos, havia, por causa do calor, um curto recreio da tarde. Mirbel aproximou-se de mim. Não éramos lá muito amigos, e creio mesmo que ele desprezava o menino muito ajuizado e o aluno prudente que eu era, por essa altura. Sacou da algibeira uma caixinha, que entreabriu:
- Olha.
Continha dois escaravelhos, a que chamávamos capricórnios. Tinha-lhes dado uma cereja para os alimentar.
- Eles não gostam de cerejas - disse eu. - Vivem na casca apodrecida dos velhos carvalhos.
Tínhamo-los apanhado, na quinta-feira, na casa de campo do colégio, na altura da partida, à hora em que esses insectos voam à luz do sol-pôr.
- Fica com um. Escolhe o maior. Mas toma cuidado! Ainda não está domesticado.
Não ousava dizer-lhe que não sabia onde meter o escaravelho.
Mas satisfazia-me o facto de ele me falar gentilmente.
Sentámo-nos nos degraus da escadaria, que levava ao corpo principal do edifício da escola. Nesse antigo palácio particular, de nobres proporções, amontoavam-se duzentas crianças e uma vintena de professores.
- vou ensiná-los a puxar uma carruagem - afirmou João.
Tirou da algibeira uma caixita, que ligou com um fio de cordel às tenazes do coleóptero. Assim brincámos uns instantes. Durante esse recreio excepcional das tardes de Verão, nem nenhum aluno ficava de castigo, nem os jogos em comum eram obrigatórios. Nos outros degraus da escadaria, as crianças cuspiam em caroços de damascos, que esfregavam em seguida até os furarem, a fim de lhes extraírem a amêndoa e os transformarem em assobios. Persistia ainda entre essas quatro paredes todo o calor do dia. Nem o mais leve sopro agitava o enfezado plátano. O sr. Rausch encontrava-se no seu lugar do costume, de pernas afastadas, do lado das retretes, onde era proibido ficarmos por muito tempo, e de onde provinham fortes maus cheiros, atenuados pelo cloro e pela lixívia. Do outro lado do muro, um fiacre ia rolando através do pavimento desigual da Rua Leyteire, levando-me a invejar o passeante desconhecido, o cocheiro e o próprio cavalo, que não eram forçados a estar encerrados num colégio e a tremer perante o sr. Rausch.
- Hei-de pregar uma sova no Mouleyre - disse João, de repente.
- Ouve lá, Mirbel: que vem a ser um zuavo do Papa? Ele jungiu os ombros.
- Não sei lá muito bem - respondeu. - Uns tipos que lutaram pelo Papa, antes de 70, e foram derrotados.
Calou-se um instante e acrescentou:
- Só desejo que não morram, ele e Rausch, antes de eu ser crescido.
O ódio desfigurava-o. Perguntei-lhe por que motivo, de entre todos, só ele era tratado daquela maneira.
- O meu tio diz que é para meu bem. Afirma que, quando o meu pai estava às portas da morte, lhe jurou, perante Deus, que havia de fazer de mim um homem...
- E a tua mãe?
- Acredita no que ele diz... Ou, melhor, não ousa contradizê-lo. Ela não desejaria que eu fosse interno. Teria preferido que eu tivesse um preceptor e não saísse de La Devize. Mas o tio não quis. Afirma que tenho um temperamento péssimo...
- A minha mãe - declarei eu, orgulhosamente, - veio para Bordéus por causa da minha educação.
- Apesar disso, não deixas de ser interno...
- Mas só por quinze dias, visto que Vignotte, o administrador de Larjuzon, se encontra doente e se torna necessário que o meu pai o substitua... Mas escreve-me todos os dias.
- E, no entanto, a sr.a Brigitte Pian não é a tua verdadeira mãe...
- Oh! Mas é quase a mesma coisa... É como se o fosse!
Calei-me imediatamente, sentindo as faces a escaldar. Ter-me-ia ouvido a minha verdadeira mãe? Será que os mortos se encontram a espiar constantemente o que se diz deles? Mas, se a minha mãe sabia tudo, sabia perfeitamente que ninguém ocupara o seu lugar no meu coração. Por mais perfeita que fosse a minha madrasta para mim... Era verdade que me escrevia todos os dias; mas a carta de hoje nem sequer a tinha aberto ainda. E essa noite, quando chorasse no abafado dormitório, antes de adormecer, seria com o pensamento posto em meu pai, em minha irmã Micaela, em Larjuzon, e não em Brigitte Pian. Todavia, meu pai desejaria que eu fosse interno durante todo o ano, a fim de poder viver no campo, e fora a minha madrasta que acabara por impor a sua vontade. Tinham agora uns aposentos em Bordéus, onde eu podia ir todas as tardes.
A minha irmã Micaela, que detestava a mulher do nosso pai, afiançava-me que eu apenas lhe servira de pretexto para não cumprir a promessa feita, quando se casara, de viver em Larjuzon. Micaela, por certo, via bem as coisas. Se a minha madrasta não se cansava de repetir "que eu era uma criança muito nervosa, demasiado sensível para suportar o internato", era tão-somente por tal argumento ser o único que convenceria meu pai, obrigando-o a viver em Bordéus. Eu sabia que assim era, mas raramente me dava ao cuidado de pensar em tal. Que os adultos se entendessem lá entre eles! Por mim, bastava-me o facto de a minha madrasta ter tido a última palavra. Mas não deixava de compreender que meu pai se sentisse infeliz, longe dos seus bosques, dos seus cavalos e das suas espingardas. Por esses dias, devia andar bem contente... Tal ideia bastante me ajudou durante essas duas semanas de provação. Depois, a verdade é que muito em breve haveria a distribuição dos prémios. E, nessa altura, necessário se tornaria que Brigitte Pian se resignasse a voltar para Larjuzon.
- Em breve, os prémios! - gritei.
Mirbel, com um escaravelho em cada mão, ia-os comprimindo um contra o outro:
- Estão a abraçar-se - disse. E acrescentou, sem olhar para mim: - Não sabes o que o tio inventou ainda, no caso de esta semana eu não conseguir uma nota de bom comportamento? Pois bem! Não passarei as férias grandes com a minha mãe... Não irei a La Devize. Mandar-me-ão para casa de um cura, o cura de Baluzac, precisamente a alguns quilómetros de tua casa... O cura terá por missão obrigar-me a trabalhar seis horas por dia, e domesticar-me... Parece que é essa a sua especialidade...
- Esforça-te por obter essa nota, meu caro.
Abanou a cabeça. com Rausch, era impossível. Já havia experimentado tantas vezes!
- Não tira os olhos de cima de mim. Tu sabes onde a minha carteira se encontra colocada: precisamente sob o seu nariz. Dir-se-ia que não tem mais ninguém para vigiar. Basta que eu olhe pela janela...
Era bem verdade que nada havia a fazer em favor de Mirbel.
Prometi-lhe que, se fosse para Baluzac, durante as férias, o iria visitar frequentemente. Conhecia muito bem o sr. Calou, o cura, que não era nada terrível, que eu estava convencido de que era até muito bom...
- Não; é mau. Diz o meu tio que lhe entregam rapazes viciosos para os domesticar. Parece até que triunfou dos dois filhos de Baillaud... Eu, porém, não deixarei que me bata...
Talvez o cura de Baluzac não fosse gentil senão para mim! Não sabia que responder ao Mirbel. Afirmei-lhe que a sua mãe, que raramente o via, não deixaria, possivelmente, de passar as férias com ele.
- Se o tio quiser... Ela faz tudo quanto ele quer - acrescentou, cheio de raiva.
Compreendi que estava prestes a chorar.
- E se eu te ajudasse nos teus trabalhos?
Abanou a cabeça: estava muito atrasado. E, depois, Rausch logo se aperceberia disso:
- Quando lhe entrego um exercício razoável, logo me acusa de o haver copiado.
Nesse momento, Rausch levou um apito aos lábios. Vestia sobrecasaca preta, com as bandas cheias de nódoas. Apesar do calor, conservava os pés quentes em sapatos de pano. Os cabelos frisados, de um tom amarelo-ruivo, deixavam-lhe a descoberto a ossatura da fronte manchada. Por sobre os olhos gázeos, batiam as pálpebras inflamadas. Dirigimo-nos em fila para o refeitório, cujo odor a sopa gordurosa eu odiava. Havia ainda bastante ar de dia, mas os vidros sujos impediam-nos de ver o Céu. Verificava que, na nossa mesa, só Mirbel não comia vorazmente. O zuavo do Papa encontrara, finalmente, o castigo que atingia em cheio o seu pupilo: essas férias na paróquia de Baluzac, longe da mãe! Com a minha bicicleta, poderia ir vê-lo todos os dias. Invadiu-me uma felicidade brusca. Falaria do João ao cura, que tão gentil era para comigo e me permitia colher avelãs no seu jardim... É verdade que eu era o pequeno Pian, o enteado da sr.a Brigitte, "a benfeitora"... Mas, precisamente por isso, pediria à minha madrasta que intercedesse pelo João... Isso mesmo lhe disse, na fila, quando subíamos para o dormitório.
Dormíamos uns vinte no mesmo compartimento, ventilado por uma janela apenas, que se abria para a estreita Rua de Leyteire. Ao pé de cada cama, uma mesinha de cabeceira suportava a bacia, na qual colocávamos os copos dos dentes, para que o criado, com um cântaro, pudesse encher ao mesmo tempo o copo e a bacia. Em cinco minutos estávamos despidos e deitados. O prefeito dos estudos, o sr. Puybaraud, baixava o gás e recitava, com voz gemebunda, três invocações que tinham o poder de me fazer saltar as lágrimas: chorava a minha solidão, a minha morte futura e a minha mãe. Tinha então treze anos. Minha mãe morrera havia já seis anos. Desaparecera tão rapidamente! Beijara-me, uma tarde, trasbordando de ternura e de vida. E, no dia seguinte, o cavalo, com o freio nos dentes, arrastara o tilburi vazio... Não sei como o acidente se deu, pois bem pouco me falaram dele. E, desde que se casara, meu pai jamais pronunciava sequer o nome da primeira mulher. Em contrapartida, a minha madrasta muitas vezes me exortava a que rezasse pela morta. Perguntava se todas as noites tinha um pensamento para ela. Parecia acreditar que minha mãe tinha mais necessidade de orações do que outro morto qualquer.
Sempre conhecera a minha mãe, que era sua prima, e que às vezes a convidava durante o tempo das férias.
- Devias convidar a tua prima Brigitte para Larjuzon - dizia meu pai. - Ela não tem possibilidades que lhe permitam passar umas férias, pois dá tudo quanto tem...
A mãe resistia um pouco, apesar de publicamente declarar a sua admiração por Brigitte. Talvez, no fundo, tivesse medo dela. Pelo menos, assim o afiançava a minha irmã Micaela:
- A mãe descobrira o que ela era, e não lhe passava despercebida a influência que exercia sobre o pai...
Bem pouca importância ligava eu a tais ditos. No entanto, impressionavam-me as exortações da minha madrasta. Era bem verdade que a mãe não tivera tempo de se preparar para a morte. A educação recebida, ajudava-me a compreender as insistências de Brigitte. Sim, bastante necessário se tornava interceder por essa pobre alma.
Nessa noite, fungando debaixo dos lençóis, comecei a rezar o terço por minha mãe, enquanto o prefeito dos estudos, o sr. Puybaraud, ia baixando o gás até reduzir o registo a uma minúscula chama azulada. Despiu a casaca e passeou por instantes por entre as nossas camas. Já se ouviam as respirações alternadas dos que dormiam. Ao passar perto de mim, deve ter ouvido o soluço, que eu procurava evitar, porque se aproximou e veio colocar uma das mãos sobre a minha face cheia de lágrimas. O sr. Puybaraud, com um suspiro, cingiu-me, como fazia minha mãe, e, debruçando-se repentinamente, beijou-me na testa. Passei-lhe um braço à volta do pescoço e beijei-o também na face picante. Afastou-se com passos silenciosos para a sua alcova. Vi ainda a sua sombra mover-se atrás das cortinas de chita.
Quase todas as noites recebia a mesma consolação do sr. Puybaraud: "demasiado doce e de uma sensibilidade perigosa...", assegurava a minha madrasta, que lhe era muito ligada, visto ele ocupar o lugar de secretário-geral das Obras.
Daí a alguns dias, quando os meus pais regressaram a Bordéus, e o criado de quarto me chamou, pelas seis horas, para me levar a casa, encontrei o sr. Puybaraud, que parecia fazer a ronda no pátio. Depois de ter, com a sua mão um pouco húmida, afastado os cabelos, que me cobriam a testa, entregou-me uma carta fechada, pedindo-me que a metesse eu próprio na caixa do correio. Prometi-lho, muito admirado de que não tivesse confiado a carta ao censor, pelo qual devia passar todo o correio da casa.
Esperei o momento de me encontrar na rua para decifrar o endereço. A carta era dirigida à sr.a Octávia Tronche, professora na Escola Livre, Rua Parmentade, em Bordéus. Eu conhecia muitíssimo bem essa Tronche, que vinha a nossa casa, no intervalo de duas aulas, e a quem minha madrasta empregava em diversos serviços. Nas costas do sobrescrito, o sr. Puybaraud escrevera, em caracteres bem desenhados: Parte, pobre cartinha, e traz ao meu coração um raio de esperança... Caminhando um pouco atrás do criado, que levava a minha pasta debaixo do braço, li e reli essa estranha invocação, pelo passeio da Avenida Vítor Hugo, à altura da Rua de Santa Catarina, nesse crepúsculo do dia anterior ao da distribuição dos prémios, que cheirava a absinto.
Aqui se situa a primeira má acção da minha vida - quero dizer: aquela de que sinto remorsos. Embora o sr. Puybaraud me não haja feito a mínima recomendação a respeito dessa carta, eu bem sabia que me julgava digno da sua confiança, muito mais do que a qualquer dos meus condiscípulos. Experimentei, mais tarde, persuadir-me de que não me apercebia, aos treze anos, daquilo que se encontrava em jogo para com o prefeito dos estudos. Na realidade, porém, eu compreendia muitíssimo bem do que se tratava e entrevia o elemento dramático que, para o caso em questão, trazia o estado semi-religioso do meu professor. Sem dúvida, pertencia a uma sociedade laica (há muito tempo desaparecida, em relação aos dias de hoje), a uma espécie de terceira ordem onde nenhum voto era feito, e não era caso virgem ou mesmo raro que, com o consentimento dos superiores, um desses "irmãos" abandonasse a comunidade, para se casar. O sr. Puybaraud, no entanto, ocupava um lugar muito especial. As suas funções haviam-no colocado em relações com a direcção diocesana das Obras e com muitos pais de alunos. Toda a cidade o conhecia, e não apenas o alto clero e a burguesia. A sua figura tornara-se familiar nos bairros mais pobres, onde as crianças o rodeavam, logo que aparecia à esquina de uma rua, dado que trazia sempre bombons e pastilhas para elas.
Nem a sobrecasaca, nem o estranho chapéu alto, de pêlo eriçado, que lhe cobria a cabeça, espantavam quem quer que fosse. O doce rosto alongava-se-lhe, devido às patilhas, que usava até à altura das maçãs. No verão, conservava o chapéu alto na mão e enxugava a testa descoberta e os cabelos raros e sedosos, que usava compridos e a caírem-lhe sobre o pescoço. Tinha feições miudinhas, quase demasiado bonitas, olhos pisados e mãos sempre húmidas.
Apesar de louvar as virtudes do sr. Puybaraud, a minha madrasta julgava com toda a severidade "os excessos da sua sensibilidade doentia". Muito menos do que a outra pessoa qualquer lhe deveria eu ter revelado o segredo dessa carta. E, no entanto, era precisamente a ela que eu ansiava por tudo dizer. Sentia-me como que orgulhoso da importância de tal segredo, fácil presa já do desejo de espantar, de escandalizar. Todavia, nada ousava descobrir perante a família reunida.
Recordo-me dessa tarde. O aposento, que meu pai se resolvera a alugar, ficava situado na Avenida da Intendência, num segundo andar. Nas tardes de Verão, o barulho dos fiacres sobre os pavimentos, os apitos do comboio eléctrico, que acabava de ser inaugurado esse ano, tornavam difíceis as conversas. Quinze dias de campo tinham bastado para que meu pai readquirisse o seu tom de pele. A perspectiva das férias próximas trouxera-lhe o bom-humor. Tivera, todavia, de se levantar da mesa, depois de uma observação da mulher, para ir pôr um laço de smoking e vestir um casaco preto. Não podia suportar a negligência no vestir, a que ele se habituara em Larjuzon.
Quanto a ela, apesar do calor, usava um véu e uma gola de guipura que lhe tapava o pescoço até às orelhas. A cara enorme, de faces compridas e de cor mate, era dominada pelos cabelos cheios de anéis, mantidos por uma rede quase invisível. Tinha os olhos negros, fixos e duros, e uma boca sempre sorridente, muito embora quase nunca descobrisse os longos dentes amarelos, descarnados e solidamente encastoados de ouro. O duplo queixo emprestava-lhe ao conjunto um ar majestoso, que o porte da cabeça, a marcha e uma voz timbrada e feita para dar ordens, sublinhavam ainda.
Compreendia-se desde logo que a sua principal vocação fosse a de dirigir uma comunidade. Depois da morte do barão Maillard, seu pai, prefeito da Gironda, ao tempo do Império, consagrara Brigitte a maior parte da sua fortuna à compra e às reparações de um conventozito dos arredores de Lourdes. Pretendia reunir aí jovens mundanas, sob uma regra nova, inspirada em parte pelo seu director, o abade Margis. Ainda, porém, os trabalhos não haviam terminado e já eles se não entendiam.
Por essas alturas, muitas vezes Brigitte Maillard se aconselhou com meu pai, que trabalhara, enquanto jovem, como amanuense amador, no escritório de um advogado de Bordéus, e possuía suficientes conhecimentos sobre questões do foro. Dissuadiu-a de um processo escandaloso e de antemão perdido. Por seu turno, também ele se aconselhava com ela, nas dificuldades familiares que, por essa altura, atravessava e que tão tragicamente se resolveram com a morte de minha mãe.
Desde que se ignorassem as razões que, em certa época, criaram tão profunda intimidade entre meu pai e Brigitte Maillard, difícil seria imaginar-se como é que dois seres, tão dissemelhantes, haviam podido ligar as suas vidas. Em presença dessa imponente figura, dessa Maintenon biliosa, o meu pobre pai dava azo à compaixão, com o seu ar de fraqueza e de bondade, a sua fala hesitante, a sua boca de guloso, os seus bigodes demasiado compridos, feitos para mergulharem nos aperitivos e nos molhos, a sua tez de homem superalimentado e os seus olhos papudos.
Entre os dois esposos, revejo, nessa tarde em que rebentou o caso Puybarand, a minha irmã. Micaela tinha, então, catorze anos. Todos concordavam em que tinha a pele morena, uma maxila inferior pesada e os cabelos implantados muito em baixo. Para que se pudesse gostar dela, porém, bastariam os seus admiráveis olhos e os seus dentes puros que a boca, grande, mostrava completamente, quando ria. Os braços podiam parecer demasiado musculosos. Mas não assim as pernas, de que ela se orgulhava, e que descobria demasiadamente, apesar dos vestidos já meio compridos com que a nossa madrasta a vestia.
Verdade é que Brigitte mostrava bastante paciência para com Micaela e quase sempre saía derrotada perante a rapariguita agressiva.
- O meu dever - costumava ela repetir - e já que não posso ter qualquer influência sobre esta criança, é salvaguardar, custe o que custar, a paz da família.
Vangloriava-se de que nem as próprias religiosas do Sagrado Coração pudessem obter o que quer que fosse de Micaela:
- É uma criança colérica e cheia de contradições - afirmava ela ao nosso pai, que protestava:
- Nada disso, minha querida. Tu dramatizas sempre! É um bocadinho teimosa e irrita-se facilmente como a minha pobre mãe... Um bom marido, porém, resolverá a questão...
Brigitte abanava a cabeça e suspirava. Via as coisas de mais alto. A sua razão de ser e a sua glória era, afinal, o ver as coisas do mais alto possível. Foi numa tarde de sábado que rebentou o caso Puybarand. Ouvíamos o rumor da multidão por sobre os passeios da avenida da Intendência, na hora em que os soldados obedeciam ao toque de recolher. Micaela e meu pai estavam debruçados numa das extremidades da sacada. Eu achava-me um pouco afastado deles, ao pé da minha madrasta. Os candeeiros de iluminação pública roçavam os telhados. Interrompera-se a circulação das carruagens. As paredes queimavam ainda. A brisa trazia-nos, por momentos, o cheiro das tílias. Nada mais se ouvia além do murmúrio próprio das cidades, dos tempos em que não havia automóveis, a cheirarem a cavalos, a ruas molhadas e a circo.
Encontrava-me ainda em luta contra a tentação de descobrir o segredo de Puybaraud, embora não tivesse a mínima dúvida de que acabaria por sair vencido. Metodicamente, a minha madrasta ia-me interrogando acerca dos meus exames do fim do ano. Pretendia saber quais as perguntas formuladas em cada disciplina e a maneira como lhes respondera. Eu bem sabia que ela se interessava pelo assunto apenas por obrigação e que o seu espírito se encontrava muito longe. Dizia-me, contudo, o que tinha a dizer-me. Em qualquer circunstância da vida, e nas suas relações com as pessoas, jamais hesitava sobre as palavras a dizer e sobre a atitude a tomar. Decidi-me, então:
- Desejava contar-lhe uma coisa, mãe... No entanto - acrescentei, hipocritamente - não sei se terei o direito...
Uma chama de atenção brilhou nos seus olhos negros, até então distraídos.
- Desconheço o que pretendes contar-me, meu filho. Mas há uma norma que deves seguir sempre cegamente: a de nada esconderes da tua segunda mãe, daquela que recebeu o encargo de te educar.
- Mesmo quando se trate de um segredo que interesse a outras pessoas?
- Principalmente se o mesmo se referir a outras pessoas - respondeu vivamente.
E inquiriu, avidamente:
- De que é que se trata? Da tua irmã?
Apesar de Micaela não ter mais de catorze anos, supunha-a já capaz das piores coisas. Abanei a cabeça. Não; não se tratava de Micaela, mas sim do sr. Puybaraud e de Octávia Tronche.
Lançou um grito:
- O quê? - E, apertando-me o braço: - O sr. Puybaraud? Octávia?
Não passava de uma criança demasiado ignorante no que dizia respeito ao amor humano para ter notado que a minha madrasta jamais falava em tal assunto a sangue-frio e sem cair como que em transe. Ao falar-lhe da carta e da frase escrita no verso do sobrescrito, interrompeu-me:
- Dá-ma cá, depressa!
- A carta? Mas eu meti-a na caixa...
Pareceu decepcionada:
- Fizeste mal. Devias ter-ma trazido. Incumbe-me velar pela salvação da alma de Octávia, que desempenha um cargo importante na Escola Livre, a qual espera vir a dirigir um dia, mais tarde. Tenho, não só o direito, mas até o dever, de nada ignorar acerca de tudo quanto lhe diga respeito... De qualquer maneira, porém, hei-de ler essa carta - acrescentou, em tom mais calmo.
Apercebeu-se da minha atrapalhação. Em que conta me iria ter o sr. Puybaraud, que tanto gostava de mim? A minha madrasta deu-me a entender que não haveria necessidade de me meter na questão, pois ela iria empenhar-se em forçar Octávia a confidências.
- Nota, meu filho, que não imagino nada de mal. Devemos acreditar numa pessoa de tantos méritos como o sr. Puybaraud, que, aliás, tem toda a liberdade de entrar na vida do mundo, se assim o entender. Até prova em contrário, de nada o podemos acusar, a não ser de imprudência. Sempre pensei que a sua piedade, completamente afectiva, o exporia aos mais inconsiderados passos. Graças a ti, poderei intervir a tempo...
Acrescentou ainda, com os dentes cerrados e com brusca violência:
- Octávia! Sempre desejava saber! São todas umas cadelas...
Os instrumentos da banda militar soaram para os lados da rua Vital-Carle. Uma inovação fazia os encantos rios bordeleses: cada soldado músico usava no boné uma lâmpada eléctrica, à guisa de borla. Brigitte entrou para a sala e eu fiquei debruçado por cima da multidão. Rapazes e raparigas acertavam o passo pelo dos soldados. De braço dado, pejavam a calçada, formando como que uma cadeia de gritos e de risos. Deixei de lutar contra a vergonha e contra a angústia: que iria acontecer ao pobre do sr. Puybaraud? O instinto paternal, que o fazia debruçar-se sobre a minha cama, o gesto de me cingir e o beijo na testa eram coisas de que, nessa altura, eu não podia atingir o significado. Sentia perfeitamente que, nessa tarde, traíra um homem de tal modo abandonado que necessitava de recorrer a uma criança de treze anos para se sentir menos só. Vinha-me ao pensamento o Menino Espião de Alphonse Daudet e aquilo que o soldado alemão repetia ao pequeno Sten:
- Nada bonito, icho!... Nada bonito! - Tinha procedido mal? A minha madrasta afiançava que havia cumprido o meu dever... Nesse caso, por que motivo sentia remorsos?
Fui ter com ela. Encontrava-se sentada junto da janela e tentava ler. (Não podia acender-se a luz, por causa dos mosquitos, e fazia muito calor para que as janelas se pudessem fechar. Um como que obscuro instinto de compensação me forçava a praticar qualquer coisa de bom. Falei-lhe, então, de Mirbel e roguei-lhe que intercedesse junto do cura de Baluzac. Dei-me a observar esse comprido rosto lívido à luz do crepúsculo. Era já muito escuro para ler. Encontrava-se, pois, imóvel, com o busto erecto, dado que um velho hábito conventual a impedia de se apoiar ao espaldar da cadeira. (Não me recordo de alguma vez a ter visto cruzar as pernas). Sabia que me escutava distraidamente e que o seu pensamento se achava ligado ao caso Puybaraud-Tronche.
- O cura de Baluzac? - disse, por fim. - Pobre padre Calou! Pergunto a mim própria se é ele que se faz passar por um ogre... Enfim, isso talvez o ajude a comprar alguns livros... Talvez fosse do meu dever esclarecer o coronel...
Apressei-me a suplicar-lhe que não fizesse tal coisa, dado que as suas palavras vinham confirmar-me na ideia de que o padre Calou não seria um carcereiro muito feroz, e principalmente porque não desejava renunciar à alegria de ter João de Mirbel por companheiro, durante as férias. Ela, porém, não tardou a acrescentar que, reflectindo melhor no assunto, esse pobre transviado não deixaria de lucrar com a companhia do sr. Calou, pelo que nada mais havia a fazer do que deixar que a vontade de Deus se cumprisse.
No decurso da semana, que se seguiu, dei-me a observar, receosamente, o sr. Puybaraud. Continuava, no entanto, a ser o seu "queridinho", no dizer dos meus colegas, tratando-me até ao fim com a mesma amizade. Os exames estavam quase no fim e o calor tornava-se demasiado excessivo para que se pudesse trabalhar muito. O próprio sr. Rausch se desleixava, lendo-nos, nas aulas, O Soldado Chapuzot. No recreio dos grandes, andavam os carpinteiros a construir os estrados para a distribuição dos prémios. Todos os dias repetíamos os coros do Athalie, de Mendelssohn:
Todo o Universo se encontra cheio da sua magnificência! Adoremos esse Deus...
Se não fora Micaela, talvez nada tivesse sabido acerca do escândalo do drama Puybaraud-Tronche. Apesar de ser a criança mais franca e menos inclinada a escutar às portas, em presença da madrasta mantinha-se constantemente na defensiva, sem deixar de a observar com uma lucidez e uma aversão que jamais desarmavam. De mais, Octávia Tronche, que amava Micaela com toda a ternura, não soube resistir por muito tempo às perguntas da pequena. Dessa forma me encontrei ao corrente das deploráveis consequências da minha indiscrição.
Octávia Tronche ia trabalhar em nossa casa nas únicas manhãs em que não tinha aulas: quintas e sábados, das oito às onze horas. Tratava-se de uma rapariga de cabelo descorado e raro, falha de frescura, mas não de certa graça, que lhe provinha toda dos olhos, apesar de pequenos e incolores, e do sorriso encantador dos lábios sem pintura. As crianças adoravam-na. E, com essa adoração, condenavam Octávia às mesquinhas perseguições das restantes professoras invejosas. A blusa assentava-lhe sobre uns ombros magríssimos, e dificilmente poderia existir alguém com menos peito. Contudo, as formas femininas acentuavam-se-lhe para baixo da cintura e nem a própria saia monástica lhe dissimulava a espessura das ancas e de tudo o mais. Logo que, nessa manhã, entrou na salita da sr.a Pian, da "sr.a Brigitte", Octávia viu-se acolhida por um sorriso não habitual:
- Tu sofres com o calor, minha querida. Leio-o na tua cara.
Octávia assegurou que não se sentia fatigada.
- É menos pela tua cara do que pelo teu trabalho que eu me apercebo de que assim é, minha filha.
O tom de Brigitte Pian tornara-se, de repente, muito severo:
- Cometeste vários erros de moradas no envio do nosso último Boletim. Algumas dessas senhoras queixaram-se de o terem recebido com grande atraso.
Octávia, muito confusa, desculpou-se.
- Isso seria ainda o menos - continuou a minha madrasta. - Mas a circular que te ditei e que, por negligência, não relinegligência, sim, confesso; bem vês que nem a mim própria me poupo -, saiu cheia de erros e omissões... Algumas frases nem mesmo faziam sentido...
- É certo que não sei onde trago a cabeça, de há uns tempos a esta parte - balbuciou Octávia.
- A cabeça ou o coração? - perguntou Brigitte, com uma voz muito doce, a contrastar com o sobrecenho e a severidade do rosto.
- Oh! sr.a Brigitte... Que quer dizer com isso?
- Não te peço que me confesses os teus segredos, minha filha. A confiança não se impõe.
E como Octávia protestasse que não tinha nenhuma espécie de segredo para com a sr.a Brigitte:
- Tu sabes até onde costumo levar o respeito pelas consciências. És uma das antigas. Acredito em ti - não, evidentemente, de olhos fechados, mas com eles bem abertos e com uma solicitude verdadeiramente maternal. Todas nós temos os nossos transes difíceis, minha pobre filha...
Era mais do que Octávia podia suportar. Caiu de joelhos e escondeu a cabeça no regaço de Brigitte Pian. Esta olhava para aquela nuca magra, que os cabelos, esticados e reunidos num pequenino rolo apertado, punham a descoberto, para aquela carne pálida e para aquelas primeiras vértebras do colo a abrir-se. Que felicidade para a pobre rapariga não poder decifrar a expressão de náusea que se apoderara do rosto da sr.a Brigitte.
- Até esta! - ia ela pensando. - Até esta desgraçada criatura!
Em voz alta, mas com doçura, disse:
- Então, também tu, minha pobre Octávia! Também tu crês que te amam!
Octávia Tronche levantou a cabeça e protestou:
- Que me amam? Oh! Minha senhora, não sou tão idiota que vá acreditar numa coisa dessas... Claro está que não se trata disso!
Pelo espaço de alguns segundos, a confusão emprestou-lhe ao rosto uma graça estranha, a graça adorável da humildade.
- Já é bastante que alguém me consinta em que não possa viver senão para ele e para os filhos que, porventura, Deus nos venha a dar...
- Pois, claro, Octávia! - respondeu a minha madrasta, levantando-a. - Senta-te ao pé de mim e acalma-te. Se ainda há pouco acreditava ver-te inclinada para uma vocação mais santa, a verdade é que por muito satisfeita me daria se te visse fundar um lar cristão. Onde há nada de mais normal, de mais simples? Essa tua emoção bastante me espanta.
- Ah! Não, não, minha senhora... Não é assim tão simples. Se a senhora soubesse...
Imagino que, nesse momento, a minha madrasta devia gozar, no sentido mais amplo da palavra. Saboreava o prazer, que só a Deus pertence, de tudo conhecer acerca do destino de uma pessoa, que crê descobrir-no-lo, e de se sentir senhora de lhe inclinar os cordelinhos num sentido ou noutro. Porque, no fundo, não punha em dúvida o seu poder sobre o espírito ansioso do sr. Puybaraud, do que, aliás, recebeu prova insofismável por parte de Octávia. Depois de, em consequência de uma sábia gradação da confiança à inquietação, Brigitte ter exclamado:
- A tua perturbação também me perturba a mim! - e de ter perguntado, angustiadamente, à pobre rapariga se se tratava de um homem casado ou divorciado, ? de verificar que a acusada baixava a cabeça para esconder as lágrimas, começou a interrogá-la, num tom que quase traía verdadeiro horror:
- Ó desgraçada criança! Devo compreender, então, que a pessoa, de que se trata, se encontra ligada a alguém de quem não possa separar-se ? Serias capaz de entrar em concorrência com o próprio Deus?
- Não, não, minha senhora! Ele é livre e os seus superiores estão de acordo. O sr. Puybaraud (porque bem o adivinhou, sr.a Brigitte) deve deixar o colégio esta mesma semana. E desde já nos é permitido pensarmos um no outro...
A minha madrasta levantou-se e cortou-lhe a palavra:
- Não digas mais nada. Nada mais quero ouvir. É aos vossos directores espirituais que compete tomarem as responsabilidades. É possível que eu tenha, num assunto de tal ordem, pontos de vista que talvez não concordem com os deles...
- Mas, precisamente, sr.a Brigitte - exclamou Octávia, lavada em lágrimas - o sr. Puybaraud não consegue convencer-se dos seus direitos. Constantemente me repete que só a senhora o poderia esclarecer, que só a senhora possui bastantes luzes para lhe conceder a necessária paz. Entenda-me bem, minha senhora, porque não se trata daquilo que poderia crer... Basta olhar para mim. O sr. Puybarautl não é impelido por qualquer espécie de baixos interesses. Mas afirma-me que, à simples ideia de que poderia vir a ter um dia, uma criança como o Luisinho até soluça de alegria...
- Sim, sim... - replicou com ar sombrio a minha madrasta. - O demónio não ataca os seres nobres e cândidos sem fazer certos desvios...
- Oh! Sr.a Brigitte, não vai convencê-lo de que se trata de um ardil do demónio?
Agarrou vivamente na mão da minha madrasta, sentada no lugar do costume, em frente da secretária apinhada de circulares e de pastas para arquivo.
- Nada lhe direi, se nada me perguntar, minha filha... Se ele me interrogasse, não falaria senão na medida em que me sentisse suficientemente esclarecida, mas, nessa altura, sem medo, sem cautelas, como sempre fiz.
Octávia juntou as mãos e ergueu os olhos de terna ovelha para esse rosto indecifrável:
- Mas a mágoa de não chegar a ser pai pode não ser coisa má. É essa a opinião do seu director. O sr. Puybaraud tem feito tanto, desde há anos, para a vencer! Quem nos diz que isso não representa o sinal de que a sua vocação é, no fim, a de ceder a tal apelo?
A minha madrasta abanou a cabeça:
- Não devemos desprezar essa hipótese... Embora, em boa verdade, Deus não costume chamar uma alma às alturas para a fazer tombar nos precipícios. Que essa espécie de abandono de posto, esse retrocesso, esse regressar a uma vida menos mortificada, seja o que é pedido ao sr. Puybaraud - eis no que só acreditarei se me forem apresentados sinais evidentes, porque nada pode desconcertar a nossa fé.
- Ele afirma que pecou por orgulho, visto ter confiado demasiadamente na sua força, e que necessário é bendizer a Providência, que o advertiu, antes que fosse tarde de mais - insistiu Octávia, com voz suplicante.
- Se tem a certeza - interrompeu secamente Brigitte - que necessidade tem ele de procurar mais longe e de me meter em tal discussão?
Octávia reconheceu que a desgraça consistia justamente no facto de ele não ter certeza nenhuma, facto que o levava a mudar de um dia para o outro. E, banhada em lágrimas, acrescentou que bem via que "o processo da sr.a Brigitte se encontrava formado e que a sentença seria inexorável". A minha madrasta imediatamente se sacrificou para salvar a sua reputação:
- Nada disso, Octávia! Não me julgues, de forma nenhuma, hostil por princípio àquilo que a natureza pecadora reclama de Vocês. Não é apenas o sr. Puybaraud que se encontra em jogo; acredito até, de boa vontade, que tu, pelo menos, sejas chamada a desempenhar os deveres do matrimónio e da maternidade. Sim - repetiu ela, com os olhos fixos na humilde rapariga (talvez a imaginar esse ventre, sob o avental, e essa ingrata figura ainda mais desfeada pela gravidez) - sim, talvez seja por tua causa que o sr. Puybaraud se afaste da sua vocação. Dou-me mesmo a imaginar, de repente, que talvez a sua derrota possa ser-vos necessária e transformar-se como que numa espécie de benefício para a vossa salvação.
Dessa forma, Brigitte Pian atribuía ao Pai do Céu as complicações e as sinuosidades da sua própria natureza. Mas já Octávia Tronche, invadida pela esperança, reerguia, como planta depois de regada, a sofredora e terna fisionomia.
- Oh! Sr.a Brigitte! Eis que Deus fala pelos seus lábios - exclamou com exaltação. -Sim, sim, é por mim, só por mim, que o sr. Puybaraud renuncia às alegrias de uma vida mais elevada, à paz de um colégio, do qual era a verdadeira honra...
- E tu aceitas a sangue-frio um tal sacrifício, minha filha? - perguntou com toda a brusquidão Brigitte Pian.
Octávia mostrou-se interdita.
- Nota que não pretendo que devas recusá-lo. Apenas afirmo que, para além de qualquer outra questão, este problema particular se te impõe: tens, ou não, o direito de aceitar que um homem, como Puybaraud, que te é infinitamente superior nos dons do espírito e nas graças recebidas, te sacrifique os frutos do seu apostolado, a sua glória perante Deus e a sua honra perante os homens? Porque não se deve ocultar que uma deserção de tal ordem, mesmo (e principalmente) aos olhos do mundo, rouba todo o crédito a quem a pratica. De que serve não querer ver? Todas as portas se fecharão na sua frente, e, como não há ninguém mais desarmado perante as necessidades da vida, bem deves convencer-te de que, por tua causa, irá ver-se a braços com uma vida de necessidades, para não dizer miserável...
De novo Octávia Tronche se mostrou banhada pelo seu humilde sorriso:
- Oh! Quanto a isso, de modo nenhum, sr.a Brigitte. Estou completamente tranquila. Sou corajosa; e, enquanto tiver um sopro de vida, nada lhe faltará, ainda que eu tenha de trabalhar a dias... Não lhe faltará, nem o necessário, nem o supérfluo...
- Tu bem sabes que não és muito forte. O trabalho de secretaria, de que te desempenhas (e que não é quase nada), é já demasiado para ti, afora as tuas funções na Escola Livre. E não julgues que há, nisto, qualquer censura.
Era verdade que Octávia Tronche não podia trabalhar muito, pois até as tarefas extra para a preparação dos bazares de caridade, a realizar depois das horas de aula, a faziam cair de cama. Minha madrasta não se cansava de lhe repetir que a sua obrigação era considerar esse aspecto da questão, por mais penoso que fosse. E, como Octávia afirmasse timidamente que ambos esperavam que o sr. Puybaraud pudesse vir a ser assalariado pelo secretariado das obras, onde trabalhava gratuitamente, havia vários anos, Brigitte admirou-se de que ela pudesse demonstrar semelhante falta de tacto. Como podia acreditar em que tal coisa viesse a ser possível? Existem coisas que não necessitam de qualquer explicação:
- É forçoso que tenhas perdido todo o senso, minha filha... Toda a gente sabe que não é hábito pagar-se, com o dinheiro dos pobres, um trabalho de que qualquer amanuense se pode desempenhar, mesmo sem contar com os laicos piedosos... Não! Apenas poderíamos fazer o possível, ou seja, recomendar o sr. Puybaraud, na medida em que pudéssemos recomendar um homem, que, por culpa própria, se tivesse colocado em situação tão baixa, e que não possui, quanto a mim, nem títulos nem diplomas.
Quando a minha madrasta sabia ter precipitado qualquer criatura num abismo de aflição, toda ela se comprazia em lançar-lhe rapidamente a mão, por meio de uma mercê completamente gratuita. Logo, depois de se ter convencido de que Octávia Tronche se encontrava incapacitada de se afundar mais no abismo, pensou em levantá-la, pouco a pouco, e em insuflar-lhe alguma esperança. Só algum tempo depois eu viria a saber, na véspera da distribuição dos prémios, e da própria boca do sr. Puybaraud, a combinação que fizeram de comum acordo.
Tínhamos trabalhado todo o dia a prender os galhardetes e a reunir em feixes as bandeiras do Papa e da República. O sr. Puybaraud atravessou o pátio e eu fui ao seu encontro, como fazia sempre, por um privilégio que nenhum dos meus condiscípulos me disputava. Obrigou-me a sentar num dos degraus do estrado e deu-me a entender que se encontrava em vésperas de tomar uma decisão grave. A sr.a Brigitte "que, como todas as criaturas verdadeiramente santas, tanta bondade escondia num exterior tão austero", compreendera que ele tinha necessidade de calma, de solidão, para reflectir e se resolver a tomar o melhor partido; e tinha tido a caridade de o convidar a passar essas férias em Larjuzon...
- Em Larjuzon! - exclamei, estupefacto.
Há certos lugares que não se ajustam a determinados indivíduos. Não via nenhuma possibilidade de estabelecer qualquer relação entre a região das minhas férias grandes e um professor do meu colégio. O pretexto oficial da sua presença em Larjuzon seria o de me treinar na aprendizagem do latim.
Procurei imaginar o sr. Puybaraud, por um dia tórrido, com a sua sobrecasaca e o seu chapéu alto, atravessando as áleas de Larjuzon. Perguntei-lhe se iria conservar esse vestuário, obtendo como resposta que era precisamente a necessidade da compra de enxoval que iria retardar um pouco a sua chegada.
O sr. Rausch abandonara o seu lugar, junto das retretes. Em mangas de camisa, empoleirado numa escada, e armado de um martelo, pregava um prego com toda a sua ferocidade natural. Os alunos permutavam as suas direcções para o tempo de férias. A orquestrazita ia repetindo, no salão de festas, a abertura da Viagem à China. João de Mirbel, encostado, por hábito, à parede, muito embora não houvesse castigos, nem mesmo para ele, baixava a cabeça, com as mãos nas algibeiras, tendo colocada na cabeça, atravessada por sobre os cabelos compridos, a sua ridícula boina de mau aluno. A leve penugem das faces dava-lhe um aspecto de rapaz bastante mais idoso do que os seus condiscípulos (- andava dois anos atrasado -). Talvez mais ainda do que a sua má conduta, era a idade que o separava de nós - essa margem de incomensurável abismo, onde chegava tão falho de socorros, tão abandonado, e presa muito fácil de nem ele próprio sabia que fatalidade, e da qual não podia falar a ninguém.
A carruagem alugada em Langon parou defronte do jardim do presbitério. O coronel foi o primeiro a descer. O almoço, que acabara de engolir, avivava-lhe de maneira assaz curiosa o acne das faces e tornava-lhe branca a cicatriz. O cronstadt pendia-lhe um pouco sobre a orelha esquerda. Trazia na lapela do pequeno sobretudo amarelado, que lhe chegava aos rins, e ao qual chamava o seu"abafa-traques", um pequeno botão de rosa, já murcho. As calças, de tecido aos quadradinhos, modelavam-lhe as magras pernas de galo. Usava polainas brancas.
João, carregado com uma maleta de mão e uma cartucheira, apareceu atrás de si, no jardim, onde os legumes mal deixavam espaço suficiente para pôr os pés. O presbitério encontrava-se repleto, a toda a volta, de batatas, feijões, tomates e toda a espécie de hortaliças. Groselheiras e pessegueiros sucediam-se, a distância, pelo terreno que levava a uma porta baixa, encimada com uma cruz de S. João, feita de miolo de sabugueiro.
Nem o tio, nem o sobrinho, tinham a menor dúvida de que, através dos vidros empoeirados do rés-do-chão, alguém os seguia com o olhar. O abade Calou apenas esperou pelo toque da aldrava para ir abrir a porta. Era bastante mais alto do que o tio. Por sobre a sotaina, trazia um avental azul de jardineiro. Uma barba de vários dias escondia-lhe por completo a cara até às maçãs do rosto. Tinha a testa baixa, olhos azuis e infantis, nariz largo e fendido na extremidade e dentes sãos. João de Mirbel, porém, nada mais notou, à primeira vista, do que as manápulas enormes, espatuladas, cobertas de pêlos.
- Aqui lhe trago o seu pensionista, sr. cura. Advirto-o de que não se trata de um famoso presente, o que lhe trago. Vamos! Cumprimenta o sr. cura, e o mais depressa possível. Não quero ter que repetir-to! Não vais começar imediatamente por dar uma amostra do teu lindo temperamento!
João, de boné na mão, baixava a cabeça, sem dizer palavra.
- Um mono! Por um lado, não me aborrece mesmo nada que o sr. cura comece por se aperceber imediatamente da categoria de moço com que vai lidar. É necessário chegar-lhe para que dê os bons dias!
- Temos muito tempo para nos conhecermos - respondeu o cura.
Dissera isto com um tom frio, indiferente. Sem mais comentários, conduziu-os ao segundo andar, a fim de mostrar o quarto ao pequeno. Este, caiado de branco, mobilado com o estritamente indispensável, mas muito limpo, ficava lá em cima, nas águas-furtadas, dando a janela para as bandas da velha igreja, com o seu cemitério, e para o vale, onde os pinheiros escondiam o afluentezito do Garona, chamado Ciron. Graças ao verde mais tenro dos amieiros, era possível seguir-lhe o curso com os olhos.
- Eu durmo e trabalho mesmo por baixo. Nada mais nos separa, além deste soalho. Ouvi-lo-ei mesmo respirar.
O zuavo do Papa afiançou que isso não seria demasiado, pois se tratava de um indivíduo "a não perder de vista, nem de dia, nem de noite". Quando regressaram à vasta sala do rés-do-chão, a que o cura chamava o salão, mobilada com uma jardineira e quatro cadeiras estofadas, e onde o salitre destruíra o papel das paredes, o coronel soprou aos ouvidos do cura:
- Quero falar-lhe em particular. Tu, vai para o jardim, até que te chamem... Vamos! Depressa!
O hcura interveio, então, com a sua voz sossegada:
- Perdoe-me, coronel, mas desejo que ele assista à conversa que vamos ter. Isso faz parte do meu sistema, e rogo-lhe que tenha confiança em mim. Importa que o pequeno fique a saber claramente o que lhe censuram e o que devemos ensinar-lhe.
- Aviso-o de que isso pode acarretar graves consequências... O senhor não o conhece... Sentir-me-ia mais à vontade...
O coronel não estava satisfeito, mas o cura não quis ouvi-lo. João conservou-se de pé, no meio do salão, de olhos postos no tio.
- Como hei-de eu explicar-lhe? Um patife, sr. cura, e isso diz tudo. Incorrigível -não há outras palavras. In-cor-ri-gí-vel, repetia, com voz aguda.
Não; não encontrava outra palavra. Como muitas pessoas, que se consideram muito acima do comum, apenas dispunha de um vocabulário restrito e cuja pobreza procurava compensar por meio da imagem, do estribilho, da entonação e do gesto.
- Mais depressa se deixaria matar, sr. cura... Por vezes, acaba por se entregar, mas apenas no intuito de não apanhar pancada. Nada estúpido, contudo, e com certas possibilidades... Nunca, porém, faz os seus trabalhos ou aprende as lições...
- De que é que ele gosta? Quero dizer: quais são as suas predilecções?
- Do que gosta?
O coronel pareceu ficar embaraçado.
- Efectivamente, de que é que tu gostas? De não fazer nada? Sim, claro. Mas fora disso? Vamos, responde... Não... Mas não está a ver? Não está a ver de que força ele é? Responde, ou chego-te.
O cura segurou-lhe o braço, já levantado.
- Deixe lá! Aprenderei a conhecer os seus gostos.
- A conhecer os seus gostos? O sr. cura tem cada uma! Mas eu sei o que quer dizer com isso... E ele há-de aprender a conhecer o seu sistema, que deve ser simples, quero creracrescentou, piscando o olho. -Para um cavalo vicioso, não conheço senão duas coisas: espora e chicote. E quando digo vicioso... Há coisas que gostaria de lhe confiar em particular...
João de Mirbel tornara-se escarlate. De tal maneira baixava a cabeça que o cura apenas lhe conseguia ver os cabelos.
- Terei necessidade de acrescentar que falo na minha qualidade de tutor e em nome da condessa de Mirbel, mãe deste patife, e que o senhor fica com carta branca para poder usar de todos os meios que lhe pareçam próprios para o domesticar? Nenhum outro limite, bem entendido, do que os que se impõem para a saúde do rapaz.
- Evidentemente-repetiu o cura, sem deixar de fixar aquela cabeça envergonhada.
- Volto a pensar, neste momento, no que há pouco me perguntava acerca das suas predilecções. Gosta de ler... E, naturalmente, procura o pior. Será preciso vigiá-lo de muito perto, nesse particular. Possui já as suas ideias... Só lhe digo isto! Oh! Nem sempre é tão mudo como neste momento. E, quando se mete a teimar, não tem papas na língua. Talvez não acredite que, na Páscoa, ousou sustentar, perante o sr. Taluzac, o nosso cura, que, se o ministro Combes se achasse de boa fé, e se acreditasse que procedia muito bem, ao acabar com as congregações, não somente não era culpado, como ainda ganhava certos méritos perante Deus?...
- Sustentou isso? -inquiriu o cura, interessado.
- Claro... Hem? Que lhe parece? E nada o fez desistir do seu ponto de vista: nem os argumentos do sr. Taluzac, nem a indignação das senhoras, nem a sova que acabei por lhe aplicar.
- Realmente, sustentaste essa opinião? - inquiriu novamente o cura.
E fixava, com olhar pensativo, esse raposito encerrado no seu salão, o qual, com o pêlo eriçado, parecia procurar uma escapatória.
- Se o sr. cura possuir o segredo para lhe endireitar os miolos, os Mirbel ficar-lhe-ão muito gratos. Porqueconsidere o sr. Cura - o nosso nome, a nossa fortuna e o futuro da nossa raça dependem deste pequeno miserável. Afirma que preferia rebentar a estudar para o ingresso em Saint-Cyr ou para se alistar, como todos nós fizemos. Aliás, está muito atrasado. Não pode habilitar-se para ingressar em qualquer Escola. Tem mesmo o cinismo de confessar que nada fará, e que nada quer fazer, nem mesmo ocupar-se das suas propriedades. Veja só isto: ele não protesta, faz troça. Não troces dessa forma, ou chego-te.
João recuara até à parede. Um vago sorriso descobria-lhe os caninos pontiagudos e brancos, um pouco tortos. Procurava proteger-se, com um gesto de criança malhadiça, que lhe devia ser muito familiar.
- Não se encolerize, coronel - disse o cura. - De agora em diante, isso compete-me a mim. Pode partir tranquilo. Mantê-los-ei ao corrente do que se for passando, tanto a si como à sr.a condessa. De mais, o próprio pequeno lhes há-de escrever.
- Nunca mais!...
Tais eram as primeiras palavras que lhe saíam dos lábios.
- Adeus, meu rapaz - disse o tio. - Entrego-te em boas mãos, em boas e fortes mãos - acrescentou, enquanto apertava a enorme manápula do cura. - Conseguiram já excelentes resultados, ao que se diz...
E desatou num riso intenso, que surpreendia. O cura acompanhou-o até à carruagem.
- E, sobretudo, nada de o poupar - concluiu o coronel, entregando ao cura um sobrescrito com o dinheiro para as primeiras despesas. - Não é uma menina; tem a pele dura. Não tenha o mínimo receio; estarei sempre do seu lado. E, acima de tudo, não entre em linha de conta com o que a minha cunhada possa vir a escrever-lhe. Sou eu quem conduz a barca, sou eu quem decide.
O cura reentrou no salão, onde João se mantinha de pé, no mesmo lugar. Esboçou um leve movimento de recuo à aproximação do padre e de novo repetiu o gesto de levantar o cotovelo à altura do rosto, como para se livrar das pancadas.
- Vem ajudar-me a pôr a mesa - disse o cura.
- Eu não sou seu criado.
- Aqui, cada qual é criado de si mesmo... salvo para a paparoca, que é a tarefa da Maria. Tem, no entanto, setenta e um anos e sofre de reumatismo. É de pôr a mesa para a tua merenda que se trata. Por mim, nunca merendo. O teu amigo Luís Pian e a irmã devem vir de bicicleta. Já cá deviam estar.
Abriu a porta da sala de jantar:
- A torta e as ameixas estão no aparador, bem como uma garrafa cheia de xarope de orchata. Irás buscar a água, quando a quiseres beber. A que está no cântaro tem lixívia. Até logo, pequeno... Ainda outra coisa: sabes que o meu gabinete de trabalho se encontra mesmo por baixo do teu quarto. Há lá muitos livros... Talvez não daqueles de que tu gostas. Todavia, procurando bem... Enfim, podes revolvê-los, se te agradar. Isso não me incomodará mesmo nada.
João ouviu os passos pesados do cura na escada de madeira e, logo a seguir, por cima da sua cabeça, o ruído de uma cadeira arrastada no soalho. E fez-se silêncio, só interrompido pelas cigarras, pelo canto de um galo e pelo zumbido das moscas.
- Se ele crê que vai engodar-me, se acredita em que vou cair-lhe nos braços...
Todavia, empurrou a porta da sala de jantar e aspirou o cheiro da torta. Tratava-se de um compartimento mais bem mobilado do que os restantes: um relógio de parede antigo, um grande aparador Luís Filipe, uma mesa de cerejeira envernizada, cadeiras de palhinha. Reinava aí uma frescura de frutas. Para além da porta envidraçada, a vista estendia-se por sobre os tectos baixos dos estábulos e por sobre a pradaria em declive, onde o feno se encontrava ainda em molhos.
Perguntar-me-ão: "Como conheces tu esses acontecimentos, a cujo desenrolar não assististe? Com que direito estás a reproduzir diálogos que não ouviste?"
Na verdade, sobrevivi à maior parte dos meus heróis, vários dos quais ocuparam lugar de relevo na minha vida. Além disso, sou um conservador de papéis velhos por temperamento e possuo, além de um diário íntimo - o de Puybaraud -, as agendas que Mirbel encontrara na altura da sucessão do padre Calou. Por exemplo, tenho neste momento sob os olhos a carta que o abade relia, enquanto João, na sala de jantar, andava em volta da mesa, sem resistir à tentação de trincar um abrunho... E eu e minha irmã Micaela, de bicicleta, corríamos para ele através da estrada, branca e poeirenta, dessas épocas anteriores ao alcatrão... (Em Vallandraut víramos passar, na sua carruagem, o conde de Mirbel, no seu regresso, com o cronstadt por sobre a orelha e com as magras pernas traçadas. Micaela notara mesmo a tal cicatriz e o murcho botão de rosa na lapela do sobretudo amarelado).
É fora de dúvida que me arroguei o direito de ordenar esta matéria, de orquestrar esta realidade, esta vida subsistente, que só comigo morrerá e que se há-de manter através dos anos, enquanto me restar a força suficiente para dela me lembrar. Se, de certo modo, conserto a forma dos diálogos, não é menos verdade que não alterarei uma vírgula sequer a esta carta da condessa de Mirbel, que o abade Calou recebera na antevéspera da chegada do João, assinada, com fina letra traçada a tinta azul, por La Mirandieuze-Mirbel:
"Sr. Cura:
Se me abalanço a dirigir-me directamente ao senhor, é só porque fui informada pela sr.a Baillaud de que tem, como educador, métodos muito diferentes daqueles que lhe atribui o conde Ademar de Mirbel, meu cunhado. Rendo graças a Deus pelo facto de não lhe ter ocorrido a ideia de visitar os Baillaud e, dessa forma ter ficado, a seu respeito, com a ideia dessa reputação que faz do senhor um domador de crianças difíceis e conhecedor dos processos de lhes apertar a tarraxa, como ele diz. Por mim, não estive com tantas cerimónias. E, se bem que fosse um pouco embaraçoso tentar informar-me junto desses antigos droguistas, cujos avós se encontraram ao serviço dos meus, não hesitei em entrar em ligação com eles, no que fui plenamente recompensada, pois que fiquei a saber a quem me dirijo neste instante e a confiança que posso depositar no seu carácter. Importa, sr. cura, que venha a conhecer certas particularidades que hão-de esclarecê-lo acerca do natural do meu desgraçado filho. Antes do mais, terei de falar-lhe no amor que sempre me devotou, por certo bem mais violento do que aquele que os rapazes dessa idade costumam devotar a suas mães. João está convencido de que não lhe retribuo toda a sua ternura e pensa que o avalio consoante o retrato que o tio me faz dele. E devo reconhecer que as aparências lhe dão razão, porquanto há-de parecer-lhe que o abandono sem resistência e o entrego a esse carrasco. Perdoe-me o vocábulo, sr. cura; mas, quando vir o conde, compreender-me-á.
Impõe-se que, nesta altura, lhe faça uma confissão bastante dolorosa. Entretanto, é ao padre, ao homem habituado a perdoar, que me dirija. Nada posso contra o meu cunhado. Primeiro, porque recebeu em testamento plenos poderes no que toca ao meu filho. Depois, e principalmente, porque me tem sob as garras, já que meu marido, na altura da sua última doença, entregou a Ademar um arquivo para mim a mais de um título acabrunhante. Não afirmarei, sr. cura, que fui uma mulher culpada, pois agi sempre segundo a minha consciência e na plenitude dos meus direitos de mulher. Imprudente, incapaz de astúcias e de cálculos, ah!, isso fui-o, pela certa. Fácil me teria sido enganar meu marido e, por certo, teria mesmo todo o direito de o fazer. Tudo o que sofri enquanto nova, as partidas inventadas pelo ciúme, a clausura, tudo aquilo que a solidão de um castelo em Armagnac permite de suplícios ocultos, de vinganças impunes, daria para escrever um romance... E quem diz que não o venha a escrever ainda, visto saber escrever, coisa que, no fundo, haveria de vir a ser a causa da minha perdição? Ademar guarda umas desgraçadas cartas, que alguém me havia devolvido, e que eu fiz a asneira de não ter destruído. Levada pelo demónio da literatura, nelas expressei, em termos muito vivos, sentimentos a que o mundo perdoa a uma mulher de ceder, mas cuja expressão crua jamais lhe saberá desculpar.
Ei-lo na posse do meu segredo, sr. cura. Embora não creia nos mistérios da religião, acredito todavia na virtude dos seus ministros, bem como na sua discrição. Forçoso era que o soubesse: Ademar só é senhor da pessoa de João pelo simples facto de a minha honra se encontrar nas suas mãos. E perder-me-á, se eu der um passo em falso. Bastará o seguinte para lho demonstrar: como teme não me ter completamente segura, pretende casar comigo. Tenta-o a minha fortuna, que não é medíocre; mas justo é dizer-se que tal foi a última vontade expressa pelo seu irmão moribundo, pois não cessava de repetir que não se martiriza suficientemente uma mulher senão casando com ela. Nem sequer a ideia de que uma Mirbel, nascida como La Mirandieuze, pudesse vir a divorciar-se lhes passou pela ideia, nem a um, nem a outro. Ademar lançou mão de uma chantagem, feita apenas por meias palavras. Não se cansa de me dar a entender que, se me tornasse sua mulher, João viria a ser educado junto de nós, em La Devize, e me deixaria o pulso livre quanto à sua educação, bem como toda a liberdade de viver uma parte do ano em casa de meus pais. A sr.a de La Mirandieuze possui, como o senhor não desconhece, importantes relações e, por isso mesmo, ainda não renunciei à brilhante recompensa que o sucesso literário poderia vir a assegurar-me... Que fazer, porém? Não oponho uma recusa formal às propostas de meu cunhado; experimento ganhar tempo. Ademar já ultrapassou os sessenta e sai da mesa muito congestionado. Os desregramentos, a que se entrega, sob o ponto de vista alimentar, e sobre os quais terei a generosidade de lançar um véu, poderiam permitir certos cálculos, se não fora eu uma mulher absolutamente incapaz de calcular, e que pode ter cometido muitas loucuras, mas nunca baixezas. Após estes esclarecimentos necessários, ouso esperar que o senhor me não irá julgar segundo os princípios estreitos, que sei que lhe repugnam, mas segundo uma religião esclarecida e humana, e ainda que me não recusará uma graça que só de si posso esperar. Desejaria que pedisse a Ademar que me permitisse ir visitar João, a Baluzac. Se lhe escrever, afirmando-lhe que desejaria essa benéfica visita, por certo que lha não recusará. Diga-lhe que pode ceder-me um quarto. Entretanto, irei dormir à hospedaria de Vallandraut, afim de em nada o importunar. Espero a sua resposta com a impaciência de um coração de mãe e rogo-lhe, sr. cura, que acredite nos sentimentos de indelével gratidão que sinto já pelo benfeitor do meu único e bem-amado filho."
O cura levantou da mesa um lápis encarnado e sublinhou: irei dormir à hospedaria de Vallandraut. Eis-me precisamente a olhar para esse traço encarnado, apenas desbotado pelos anos... Teria o cura visto que essas eram as palavras essenciais, e que o resto da carta não havia sido escrito senão para chegar a essa pequenina frase? A princípio, assim, o acreditei. Mas, a falar verdade, não podia ele ter o dom da profecia, pelo que a frase só deve ter sido sublinhada depois dos acontecimentos, que lhe deram toda a sua real significação. O que, no entanto, ele compreendeu, desde essa tarde, foi que por nada no mundo Ademar de Mirbel teria consentido em servir-se, contra a cunhada, de documentos que podiam vir a desonrar a família. Como também não era verosímil que, com sessenta anos e demasiado rico, o coronel pudesse pensar em casar com a condessa.
O sr. Calou tirou de uma gaveta um sobrescrito, nas costas do qual se encontrava esta nota: Simuladoras. Classificou a letra, e de novo fechou a gaveta, atento durante um instante ao murmúrio das nossas vozes, coado através do soalho, aos nossos risos e ao ruído dos pratos remexidos. com os cotovelos fincados na mesa, assim se conservou por longo espaço, imóvel, com a cabeça escondida nas mãos enormes.
- É adocicado - disse João, após ter esvaziado o copo de orchata. - Para mim, só bebidas fortes.
E vasculhou no aparador. Bem via que se fazia fanfarrão e, contudo, sentia-me escandalizado. Dar-se-ia o facto de Mirbel ser, na realidade, um rapaz impossível? Revolvia garrafas meio vazias, abria-as e aspirava, para adivinhar pelo cheiro, o que elas continham.
- Deve ser groselha, angélica ou licor de noz, licores de freiras... Mas o cura não é sujeito a quem se enviem xaropes que tais... Ah! Cá está o óleo com que alumia a lâmpada - exclamou, de repente, brandindo uma garrafa já encetada de armagnac... E, ainda por cima, data de 1860 (fez estalar a língua), do ano em que o tio Ademar apanhou o seu rico ferimento em Castelfidardo...
Micaela protestou:
- Decerto não ia bebê-lo, em plena tarde? O armagnac costumava beber-se à sobremesa...
- À sobremesa já o cura cá estará.
- Ó João! Mas tu vais, de facto, beber?
- Não farei cerimónia! E não num cálice de licor, compreendes?
Difícil me era distinguir na sua atitude qual a parte de comédia. O aluno taciturno do colégio, sempre castigado, em nada se assemelhava a este gaiato turbulento. Não compreendi imediatamente que era a presença de Micaela que o excitava, visto que apenas lhe dirigia raríssimas palavras e só lhe respondia por meio de monossílabos. Mal parecia vê-la.
- Isso é de mais, João. Tu vais adoecer.
- E de um só trago, vais ver...
Atirou a cabeça para trás, mas engasgou-se e começou a tossir. Micaela deu-lhe umas pancadinhas nas costas. O cheiro do álcool empestava a sala.
- O sr. Calou vai dar por isso - afirmei eu.
- Vamos deitar um pouco de água na garrafa e ele há-de pensar que o seu armagnac se azedou...
- Mas o cheiro, João! Tu cheiras que tresandas a aguardente! E o presbitério inteiro, igualmente!
Ouvimos o ruído da cadeira, ao ser afastada, e o som das sapatorras do abade Calou nas escadas. Mal entrou na sala, aspirou e olhou para nós.
- Estes trastes já descobriram o meu armagnac - disse ele, jovialmente. - E, dirigindo-se ao João: - Confessa que não é mau de todo. E tu deves saber disso, hem? Em La Devize tendes do melhor, tenho a certeza, pois é o sítio ideal... Luís! Tu devias levar o teu amigo até à margem do Ciron. Gostas de pescar? Gostas? Bem! Então, mostra-lhe os bons sítios. As solhas fazem enormes devastações, mas sempre existem alguns "viveiros".
Abriu a porta envidraçada da sala de jantar, que dava directamente para as traseiras da casa, e seguiu-nos algum tempo com a vista. Atravessámos a pradaria meio ceifada. As tempestades desse verão chuvoso não davam tempo para se ceifarem os fenos. Avançávamos para as filas de amieiros. Já as libélulas fulvas e azuis anunciavam a aproximação da corrente invisível. Metemo-nos pelo meio do prado pantanoso. Era por uma tarde abafadiça e húmida. O álcool devia ter dado certa audácia a João, pois caminhava junto de Micaela, atrás de mim, mas suficientemente longe para que eu pudesse ouvir o que diziam. Mostrava-lhes o caminho, completamente invadido por uma vaga angústia, origem desse sofrimento que havia de penetrar e corromper toda a minha vida. Não é, porém, a minha história que estou a contar. E desejaria até que, na trama apertada desses destinos, o fio da minha ficasse invisível. Todavia, não posso passar em silêncio essa ferida que recebi, enquanto criança ainda. Nada há tão espalhado como o ciúme, sob a sua forma mais simples. O ciúme de que comecei a sofrer aos treze anos, nessa pradaria húmida, onde apurava os ouvidos para ver se surpreendia algumas das palavras trocadas entre a minha irmã e o meu amigo, não é, porém, muito comum - pelo menos, assim o espero - na raça dos homens sobre a qual pesam já suficientes maldições.
Já nessa altura me seria impossível distinguir se me encontrava atingido na minha ternura por Micaela ou na amizade que votava ao João. Tornava-se-me insuportável que Micaela lhe falasse a meia voz, no mesmo tom de confidência de que só eu havia beneficiado até esse dia. Micaela pertencia-me, ainda a não tinha repartido com quem quer que fosse, e eis que João a chamava de parte e a fazia rir, esse mesmo João que havia quinze dias eu me encantava a imaginar por todos os caminhos de Larjuzon, que eu associava aos meus projectos de férias, que sonhava ter para mim somente, completamente só para mim. Mas até ele se me escapava. Como é que o não pressentia? "Tratam-me como se fosse uma criança, escondem-se de mim..." Às vezes, tinha que parar, a fim de esperar por eles. Cheguei mesmo a perdê-los de vista, numa volta do caminho, e tive de voltar atrás. Quando me aproximei, calaram-se.
- De que falavam vocês?
Olharam-se a rir, mas sem responderem. João mastigava uma erva seca. Micaela estava um pouco corada e o enorme chapéu de palha obrigava-a a levantar a cabeça para me ver. Eu insisti: De que falavam eles?
- De coisas que não interessavam aos rapazitos - afirmou Micaela. - João inclinou-se para o seu ouvido. Desta vez ouvi: "Supões que já esteja instruído?" - perguntou.
"Estar instruído", na nossa linguagem, significava conhecer os segredos da vida, os mistérios da procriação. Corei e continuei a andar para a frente, com esse acréscimo de mágoa: escondiam-se de mim para falarem do que era proibido. Tal cumplicidade ainda mais me separava deles.
Permitira-me a minha madrasta que convidasse o João para almoçar em Larjuzon, no dia seguinte. Resolvi não lhe transmitir um convite que, antes disso, tanta satisfação me dera. Agora, porém, receava esse dia em que Micaela se me apoderaria de João, ou João se me apoderaria de Micaela. Sim, antes privar-me de vê-lo! Que ficasse a rebentar de aborrecimento no seu presbitério! Afinal de contas, o tio lá sabia o que fazia ao apertar-lhe a tarraxa. Era voz corrente no colégio "que Mirbel era um tipo ignóbil". Apenas o conservavam lá porque o seu tutor fora um dos heróis de Castelfidardo. Talvez nesse momento estivesse a contar a Micaela aquilo a que eu chamava histórias indecentes. Micaela não devia ter relações de amizade com ele. Avisaria a minha madrasta. Mais valia renunciar a ele, não mais o ver, do que experimentar esse aperto na garganta, essa contracção no estômago, essa dor, esse mal sem remédio, visto que o remédio se encontrava muito longe da minha influência, ou seja, na vontade, no coração, no pensamento oculto do meu amigo e da minha irmã, coligados ambos contra mim! Inconfessáveis torturas! É bem certo que, na margem do Ciron, cujo rápido curso dominava com os olhos, apoiado àquele pinheiro que a água, que lhe banhava as raízes, tornara enorme, ignorava ainda que essa tortura fosse inconfessável e só por orgulho me esforçava por dissimular o meu despeito. Sem esperar por eles, e na mira de os enganar, caminhara rapidamente, secando as lágrimas, retomando o fôlego e recompondo o rosto. Riam e eu ouvia-os rir muito tempo ainda antes de os ter visto. O chapéu de palha da Micaela movia-se ao de cima dos fetos revoltos. Finalmente, surgiram. Minha irmã perguntou-me como é que João de Mirbel poderia ir no dia seguinte a Larjuzon, visto não ter bicicleta.
- A besta confiscou-ma... - disse.
A besta era o tio. Respondi com frieza que nada podia resolver.
- Pensei que poderia ceder-lhe a minha bicicleta - afirmou Micaela. - Levar-te-ei, à tarde, no quadro da tua...
- Oito quilómetros no quadro da bicicleta? Ora, muito obrigado! Não desejo derrear a minha. Mirbel não terá mais que fazer do que percorrer a pé a estrada de Larjuzon, se assim o entender. Oito quilómetros não são, propriamente, nenhum bicho de sete cabeças!
- Já cá se esperava! - gritou Micaela, furiosa. - A sua bicicleta é sagrada! Tu não vais arranjar complicações!
- Não, não as arranjará - afirmou João, agarrando-me no braço, com ar meio terno, meio feroz. - Hem, Luís? É para mim, entendes?
Retirei o braço com um gesto brusco e fui sentar-me em cima de um tronco.
- Embezerrou-disse Micaela. - O caso ainda não terminou!
Não. Não estava embezerrado. Sofria apenas. Olhava para as aranhas-de-água, vendo-as lutar contra a corrente. A água, transparente, agitava os compridos limos. Vairões nadavam por ali perto. A sombra reflectia-se-lhes no fundo arenoso. As plantas que gostam da água e os mentrastos esmagados rodeavam-me desse perfume de que me hei-de lembrar até à morte, para dizer adeus aos belos dias de verão acabados, à minha velha amiga dor e ao meu jovem amor. Não! Não estava embezerrado. Apenas sofria um sofrimento de adulto. Ambos deviam ter-se sentado a alguns passos de mim, pois lhes ouvia os murmúrios, embora os fetos os escondessem dos meus olhos. De repente, a voz de João aumentou de volume e compreendi que era de propósito que falava alto:
- Não te inquietes! Ele há-de chegar-se à razão. Se continuar a teimar, lançaremos mão dos grandes meios...
Levantei-me e corri para ele.
- Que meios? Ora experimenta, meu selvagem...
Apertara-me os pulsos, fazendo-me doer. Eu, porém, cerrava os dentes para não gritar.
- Ora, repete lá que não emprestarás a bicicleta à tua irmã!
- Larga-me! Estás a torcer-me os pulsos!
- Repete lá que não queres regressar em cima do quadro!
Bruscamente, senti-me solto. Micaela invectivara o meu carrasco, gritando, furiosa:
- Proibo-te de tocar no meu irmão!
- Ora bem! Olha que não vou parti-lo em dois!
Mediram-se com olhar hostil. Enorme calma se apoderou de mim. Zangavam-se, tornavam-se inimigos. Micaela ainda me preferia a mim, e ele não gostava de Micaela. Só por minha causa é que se levantavam um contra o outro. Senti que o peito se me alargava deliciosamente. E, como sempre que o mal se afasta, acreditei que desaparecera para sempre. Já os não odiava. Toda a ternura, que sentia por ambos, floria de novo. Claro que voltaríamos, Micaela e eu, na minha bicicleta. Mas não podia ceder de imediato. Além de que, agradava-me bastante vê-los caminhar afastados. Agora, era a vez de Mirbel caminhar à nossa frente, a mastigar uma erva. Eu seguia-o um pouco atrás, levando minha irmã pela mão. Segurava a mão de Micaela e via João a caminhahr à nossa frente... Tal era a verdadeira felicidade. A erva estava húmida. Uma tempestade, que ainda não estalara, surgia no horizonte, lançando por sobre os pinheiros o seu escuro cariz. Homens e mulheres atarefavam-se em volta de um carro meio carregado de feno.
- Pois é - disse eu. - Um grande selvagem, este Mirbel...
- Mas bastante gentil, apesar de tudo...
- Claro! Mas, ainda assim, um selvagem.
- De qualquer forma, vejamos se o conseguimos levar a almoçar connosco, amanhã.
De novo, com um aperto na garganta, perguntei a Micaela se ela tinha assim tanto interesse nisso.
- Bem sabes que, este ano, Larjuzon é cómico, com o teu Puybaraud e a Brigitte a esvoaçar constantemente diante dessa larva de besouro.
- Oh! Micaela!
- Brigitte tanto há-de fazer que há-de tornar Larjuzon insuportável mesmo para o pai. Claro que vou deixar a minha bicicleta ao Mirbel...
- Nesse caso - gritei, enfurecido - regressarás a pé.
João voltara-se. Triunfava com a nossa disputa exaltada.
Eis no que dera não lhe haverem permitido que me chamasse à razão. Bem sabia como se lidava com os garotos...
Contornámos o presbitério, gritando todos ao mesmo tempo. Eu protestava:
- Mas a bicicleta é minha. Ou não?
- Bem tola és em lhe pedir licença - disse João a Micaela. - Sobes para a bicicleta antes de ele agarrar nela. E, se ele não quiser subir para o quadro, então... fará os oito quilómetros a pé.
Adiantei-me e agarrei na bicicleta. João, porém, não me deu tempo a que me pudesse afastar: segurando o guiador, atirou um pontapé a uma das rodas, fazendo-me cair. O padre Calou, que devia estar a espiar-nos, saiu precipitadamente do presbitério, correu para mim e levantou-me. Apenas tinha uma arranhadura no braço. Voltou-se para Mirbel:
- Vai ao meu quarto e procura a tintura de iodo e o algodão em rama, que estão no toucador.
Deu a ordem com a sua calma habitual, mas com uma voz como que atravessada por um surdo ronco, a olhar para Mirbel e para os seus punhos fechados. Este obedeceu com prontidão. Quando regressou, o abade estava a lavar-me a ferida na bomba da água. Dirigiu-se-lhe, sem olhar para ele:
- Limpa-o com algodão em rama e põe-lhe tintura de iodo. Mas pouca. Dói um bocadinho? Agora, conta lá o que se passou, Micaela.
Esta fez uma narrativa confusa. Negou razão a ambos: Mirbel fora brutal, mas eu tinha feito tudo para o exasperar.
- Apertem as mãos! - comandou o abade.
Agarrei na mão de João, que não retirou a sua. Depois disso, o sr. Calou declarou que ia pôr-nos de acordo. Não permitiria que regressássemos ambos na mesma bicicleta, mas, no dia seguinte, emprestaria a sua ao João, para que ele pudesse ir a Larjuzon. Durante algumas horas, o abade dispensaria a bicicleta, visto não haver nenhum doente grave na paróquia. Todavia, podia acontecer que surgisse qualquer caso imprevisto. Por isso, bom era que João regressasse antes das quatro horas.
- Quanto a Vocês os dois, nada mais terão a fazer do que acompanhá-lo até aqui, a fim de passarem o dia juntos.
Nem a mais leve hostilidade se notava na sua voz. Deixara de chover, porque o vento varrera as nuvens do Céu. O cura pediu-nos que lhe regássemos a hortaliça e aconselhou-nos a que nos descalçássemos para não sujarmos os sapatos. Como recompensa, autorizou-nos a depenar as groselheiras, depois de Maria haver feito as compotas.
João esperou que o abade entrasse em casa para declarar que não fora para ali em serviço e que não estava disposto a deixar que o tratassem como a um criado. Mas, mal nos viu descalços, a mim e a Micaela, não pôde resistir mais, acabando por descalçar as alpercatas e agarrar num dos regadores que minha irmã transportava. Tão estranha é a infância que esse dia estival, em que corríamos descalços pelo cascalho, que nos aleijava os pés, e em que nos enlameávamos de boa vontade, nos ficou na imaginação como uma lembrança de pura e calma felicidade. A minha alegria, contudo, era marcada, pela angústia, dado que era para Micaela que João tirava a água. Esta arregaçara a saia até aos joelhos e fingia zangar-se, mas por entre risos tão agudos que em nada se assemelhavam ao seu riso habitual. No entanto, recusava-me a sofrer. Trazia comigo essa dor adormecida que um nada bastaria para fazer acordar, e gritava mais do que eles, a fim de me aturdir. Quando o Sol desapareceu por detrás dos pinheiros, fomos forçados a pensar na partida. João inquiriu a que horas se almoçava em Larjuzon.
- Ao meio-dia. Mas vê se apareces logo que possas - recomendou Micaela. - Levantamo-nos às oito horas. Logo que possas servir-te da bicicleta do abade...
Eu protestei que não havia necessidade de privar por muito tempo o abade da sua bicicleta. Podiam chamá-lo para assistir a um doente... João respondeu, com a sua horrível voz, que "ninguém tinha precisão de padre para morrer". Micaela pareceu ficar chocada e notei que se despediu dele com certo constrangimento. Mas voltou-se por duas vezes para corresponder a Mirbel, que agitava a boina. Usava um fato à marinheira por sobre uma camisola de lã, raiada de branco e encarnado. Estava descalço e fixava as calças, por cima dos joelhos, com elásticos.
Soube mais tarde, pela sua própria boca, o que tinha sido essa primeira noite no presbitério. Errou por alguns instantes em redor da casa, sem saber o que fazer. Baluzac nada mais era do que uma simples aldeia. Apenas possuía uma estalagem e nenhum outro armazém, afora a farmácia, onde o cura não permitia que o seu pensionista pusesse os pés. Tal fora a única proibição formal que lhe fizera. Também o cura lhe falara do seu escritório cheio de livros. Estes, no fundo, desempenhavam na sua vida um papel que ninguém das suas relações poderia imaginar. Pertencia, pelo lado paterno, a uma família onde tal gosto numa criança seria considerado como um sinal inquietador. Aliás, o tutor e a mãe estavam persuadidos de que ele não procuraria senão as narrativas escabrosas ou obscenas. Na verdade, algum azo dera a tais suposições.
João nada podia contra os seus desejos. A simples ideia de que essa casa se encontrava cheia de livros, muito embora próprios dos padres, e que havia nela uma autêntica biblioteca, na qual tinha o direito de vasculhar, despertava em si uma tentação tão violenta como as piores. No entanto, ia resistindo a essa tentação, por não desejar que o padre Calou ficasse com a impressão de que João de Mirbel se podia domesticar assim tão facilmente ou que por sua má cabeça havia de cair no laço. Apesar disso, subiu ao primeiro andar, procurando não fazer barulho nos degraus.
O ar estava impregnado de um forte cheiro a tabaco de cachimbo. João hesitou, aproximou-se da porta... e só o orgulho o impediu de avançar. Não duvidava de que o abade, à escuta, surpreendera o rumor das alparcatas e o espreitava mais atentamente do que o pescador que vê uma truta voltear à roda da linha. O abade Calou não se conteve e entreabriu a porta:
- Tinhas necessidade de alguma coisa, meu rapaz?
E, como João acenasse que não com a cabeça:
- Desejas algum livro?
O rapaz penetrou numa autêntica nuvem de fumo. Jamais vira tantos livros: do tecto ao soalho, em cima das cadeiras, sobre a chaminé, brochados, encadernados... Havia ainda um cavalete com rodas para atingir as últimas prateleiras e uma secretária para ler e escrever em pé! Quantas maravilhas! Livros maçadores, pela certa... No entanto, nunca se sabia e nenhum livro parecia completamente aborrecido para João.
O cura voltara a sentar-se à mesa, sem lhe prestar atenção. João trepou ao cavalete. Que pena ter aquela dor na nuca, aquelas náuseas. O alnanac que bebera, por bravata, fizera-lhe mal e o cheiro do cachimbo atormentava-o! Desceu precipitadamente, agarrou num alfarrábio ao acaso e leu o título: Tratado da concupiscência. - Carta e máximas sobre a comédia. -A Lógica.-Tratado do livre arbítrio, de Bossuet. Iria vomitar e perder os sentidos no escritório do cura? O que era necessário era aguentar, de qualquer maneira! A fim de se esquecer da indisposição, abriu o livro e fez esforços para ler: ...Essa mulher que, nos Provérbios, elogia os perfumes que espalhou sobre o leito e o doce aroma que se respira no seu quarto, para concluir logo após -" Embriaguemo-nos de prazer e gozemos os beijos desejados - demonstra com tais palavras aonde conduzem os bons cheiros preparados para enfraquecerem a alma, arrastá-la para os prazeres sensuais através de qualquer coisa que, parecendo não ofender directamente o pudor...
- Tu estás pálido, meu rapaz! Estás mesmo verde... Sentes-te mal?
João protestou que não era nada de cuidado: simplesmente qualquer coisa do coração...
- Deita-te.
O pequeno recusou. Aquilo passaria por si mesmo. Aliás, encontrava-se já um pouco melhor. De novo se esforçou por unir o pensamento à página aberta... O abade ouviu o baque do corpo de João sobre o soalho, embora sem grande estrondo, uma vez que se arrimara ao cavalete. Sentiu-se transportado por dois fortes braços e teve outra náusea. O cura, sem qualquer espécie de nojo, estendeu-lhe uma bacia e susteve-lhe a cabeça com a grande manápula. Sentia-se desesperado por haver caído daquela maneira em poder do adversário.
- Eu desço também - afirmou o abade. - vou acabar de ler o meu breviário na Igreja. Poderás ir lá ter comigo. Verás que é uma bela igrejinha... construída por Bertrand de Goth, que veio a ser o papa Clemente V, um conterrâneo nosso, como talvez não saibas, que nasceu em Vallandraut, a menos que não tenha sido em Uzcste, onde se encontra o seu túmulo... Um papa como não conviria que houvesse muitos...
João ripostou que as velhas pedras o não interessavam.
- Mesmo assim, não deixes de ir fazer uma curta visita a Nosso Senhor...
Finalmente! Aí estava o jogo do cura! João, sem ousar erguer os olhos, rosnou que não acreditava já nessas histórias...
- Realmente? - perguntou o padre Calou, num tom em que não se vislumbrava a mínima dose de ofensa.
- Admira-se?
Mirbel adoptara um ar bastante presunçoso.
- Por que razão me haveria de espantar? - exclamou o cura. - O que espanta é o acto de acreditar... O mais espantoso é o facto de aquilo em que nós cremos ser a verdade. O que admira é que a verdade exista, que tenha encarnado sob essas velhas abóbadas, que não te interessam, e onde eu a aprisiono graças a estas enormes mãos que constituem a admiração do tio Ademar. Sim, meu rapaz, a mim próprio me espanta o facto, de tal modo é absurdo e louco aquilo em que cremos. E, contudo, é verdadeiro!
Estaria a divertir-se, o cura? João exclamou:
- De qualquer maneira, tudo isso me é absolutamente indiferente, agora!
E procurava fazer frente ao adversário, olhos nos olhos. Apesar disso, o olhar ia fraquejando.
- Nesta altura, talvez, meu pobre rapaz... Mais tarde, no entanto, havemos de ver.
João exclamou então, como em desafio:
- Jamais me converterá.
- Não serei eu que te hei-de converter... Como poderia consegui-lo?
- Então, se não é o senhor... Quem mais vive aqui, além de Maria?
O cura não respondeu. Uma ideia o preocupava:
- Ora, diz-me cá: como te arranjavas no colégio? Lá não se brinca com as confissões e as comunhões...
João respondeu de maneira altiva que tal assunto jamais o embaraçara. Todos os sábados havia confissões. Ele limitava-se a confessar qualquer coisa, sem se importar com o quê. Aos domingos, havia a comunhão. Mas que podia importar isso a quem não acreditava? Nem aquecia, nem arrefecia... Mas o escândalo por que esperava não estalou.
- Achas que é assim? - inquiriu o padre Calou.
João sustentou insolentemente esse olhar, que se poisou sobre ele, tão cheio de tristeza e doçura, que, apesar de tudo, o conseguiu constranger.
- Todos os sábados? Todos os domingos? Desde há quanto tempo? Durante dois anos? Oh, meu Deus!
O padre Calou contemplava esse rosto, essa fronte pura sob os cabelos escuros por onde corria a chama de uma mecha mais clara. Nada mais achou para dizer do que isto:
- Vai deitar-te um pouco, antes do jantar. Vai, meu filho.
E dirigiu-se para a Igreja, sem se voltar, com passo rápido. Os ombros curvados faziam-no parecer menos alto.
Já a memória mal distingue esse primeiro almoço de Mirbel, em Larjuzon, de todos quantos se lhe seguiram. Durante o mês de Agosto, não mais nos separámos. Se não era ele a vir a nossa casa, era Micaela que ia vê-lo a Baluzac - e por nada no mundo eu teria consentido em não a acompanhar, dado que todo o meu sossego iria por água abaixo se os soubesse juntos, longe de mim. Organizei a minha vida em torno dessa necessidade de me encontrar sempre junto de ambos.
Para ser completamente franco, de início, o facto não me desagradava de todo. Os dias trágicos, em que se juntavam e fugiam de mim, eram menos numerosos do que aqueles em que Micaela se enraivecia contra os dois rapazes e se via forçada a defender-se das partidas que ambos inventávamos contra a "rapariga". O nosso trio desconhecia o entendimento completo, necessário se tornando, pois, que minha irmã ou eu desempenhássemos o papel de vítimas. Só me sentia feliz quando era forçado a defender Micaela das partidas de João ou a protegê-la das suas traquinices, não raro maldosas. Quase sempre, porém, no próprio instante em que me pareciam mais zangados, surgiam as mais intempestivas reconciliações entre ambos. Era precisamente nos momentos, em que me julgava mais defendido contra qualquer aliança entre minha irmã e o meu amigo, que se passavam cenas inexplicáveis, torturantes para mim, como aconteceu naquele dia em que a arreliávamos com alusões à "história dos bolos", a qual, no dizer de Mirbel, criara entre nós dois uma amizade para a vida e para a morte.
- Que história é essa dos bolos?-inquiria a minha irmã.
Olhávamo-nos, piscando o olho e com um dedo nos lábios, jurando solenemente nunca a contarmos à "rapariga". Corríamos à volta dela, tirávamos-lhe os brincos e fugíamos, esfregando um índex no outro: "zanga-te, zanga-te, dá sorte". Eu mantinha-me a uma prudente distância. João, porém, volteava em torno dela, como um demónio, tocava-lhe e escapava-se de novo... De repente, Micaela precipitou-se, com as unhas para a frente, e arranhou-lhe a cara. Ele não procurou defender-se. Vacilou e tombou em cima da erva. Ao levantar-se, vimos-lhe a cara arranhada, a gotejar sangue. Ficámos interditos. Micaela empalidecera.
- Oh! João! Limpa-te, que eu não tenho lenço.
Ele, porém, deixava correr o sangue pela cara. Pensei que fosse atacar Micaela, mas não: apenas se sorria para ela. E como esse sorriso parecia tão pouco próprio dele! Parecia afinal, que ambos possuíam direitos, um sobre o outro, e que João tinha a liberdade de aceitar que ela o maltratasse. Crianças ainda, iam ingressando nesse mundo em que os golpes possuem o mesmo significado que as carícias e em que as injúrias se encontram mais carregadas de amor do que as mais ternas palavras. E lá estava a cortina a tapá-los: já os não via. Ficava só, do outro lado dessa cortina, rapazinho perdido num mundo povoado desses inconstantes ogres, que são as pessoas crescidas.
Se Mirbel se civilizava um pouco, toda a glória pertencia a minha irmã e não ao padre Calou (pelo menos até ao mês de Agosto, em que sobreveio um acontecimento que a seu tempo contarei). Em boa verdade, não era para desprezar o que o cura obtivera do seu pensionista, desde o primeiro dia. Entretanto, nenhum progresso fizera durante as semanas que se seguiram: "Tenho em casa um gatito - escrevia o padre Calou na sua agenda desse Verão - um gatito que entra na biblioteca e sai dela sem arrastar uma cadeira, cheira os livros, e regressa à sala de jantar, onde se senta à mesa, emborcando a sopa. Recusa-se à luta, aceita trabalhar uma hora por dia e assiste à missa, nos domingos. Desde muito cedo que descobri que odeia a minha doçura - a "minha doçura de padre", como me afirmou, um dia, horrorizado, esse jovem de Bordéus... Desejaria que nada houvesse no meu aspecto ou na minha linguagem que o pudesse desgostar. Claro, é isso mesmo: nada untuoso no sentido enjoativo. Ah! Como a unção de Cristo foi dura! Que grande diamante não é preciso ser-se para cortar os corações! João teria odiado menos a minha ferocidade, contra a qual se premunira..."
Talvez o abade Calou tivesse surpreendido o segredo de João, mas a verdade é que não conhecia o meu. E quem, aliás, poderia compreendê-lo, para mo explicar a mim próprio? Ninguém pode transportar o fardo de uma criança, pois não há quem esteja habilitado a fazê-lo.
O sr. Puybaraud encarregava-se dos meus estudos e da minha alma, com um ardor que eu lhe não levava a bem. Decerto que gostava de mim. Em contrapartida, repetia-se constantemente na minha família que eu o adorava, jogo em que eu próprio entrava sem qualquer resistência. "João não afirma nada sem ser pela boca do sr. Puybaraud..." No entanto, fácil me teria sido aceitar a ideia de não mais o ver, sem sentir a mais pequena mágoa. Ninguém há que saiba medir a indiferença das crianças para com os adultos, ainda para aqueles a quem parecem mais estreitamente ligados. Afora João, Micaela e, em grau diferente, meu pai e minha defunta mãe, nenhuma outra criatura possuía qualquer realidade aos meus olhos. Aquilo a que se chama - os outros - era, para mim, como que uma figuração simbólica: apenas constituíam o fundo da cena, circulando, mas sem que os visse, em torno do meu coração, atormentado ou satisfeito, conforme o lugar que ocupasse em relação a Micaela e a João.
O sr. Puybaraud passeava comigo pelo parque, orientando a sua conversa no sentido da edificação ou da cultura do espírito. Eu replicava, testemunhando-lhe essa delicadeza, um tanto falsa, que tão facilmente me abria os corações, desde que me desse a tal trabalho. Nada revelava ao pobre homem que o meu coração sofria a mil léguas de distância da sua pessoa, que eu ia tagarelando sem qualquer relação com os meus pensamentos ou sentimentos reais, que lhe escapava sem qualquer dificuldade ou esforço, não lhe outorgando mais do que a simples aparência de uma criança sensata e atenta, sobre a qual derramava os tesouros da sua belíssima alma.
Possuía eu a vantagem de nada ignorar acerca da sua própria história, coisa que, aliás, não me interessava demasiadamente. O Puybaraud dessas férias encontrava-se em plena mudança, a meio caminho da vida secular. Substituíra o chapéu alto por outro de palha e a sobrecasaca por um casaco, mas continuava a usar as calças pretas e as camisas de goma, mesmo nos dias tórridos. Mantinha para comigo o tom de um educador cristão, contando-me da sua vida muito mais do que é de uso contar-se a uma criança. Hoje, passados tantos anos, e quando o sr. Puybaraud já nada mais é do que pó, releio o seu diário e o assunto começa a apaixonar-me, revivendo o drama de que fui testemunha algo distraída, porque respeita aos problemas que cada vez mais se transformam em ideia fixa à medida que me vou aproximando da morte.
Durante a primeira semana da estadia do sr. Puybaraud, Brigitte Pian pouco se aborreceu em Larjuzon. Os dias eram demasiado curtos para esgotar a felicidade de poder ajudar um homem a desfazer a meada intrincada da sua vida interior.
Já não tinha o sentimento de perder o tempo nem o de ir contra a sua vocação, que era a de revelar aos outros as ideias que Deus possuía a seu respeito, lá do fundo da Sua eternidade. O sr. Puybaraud viera trazer-lhe a casa um assunto privilegiado, em que tinha a certeza de poder dar a sua justa medida, embora não se esquecesse dos perigos. Encontrava nisso uma viva satisfação, por certo nem de longe criminosa. De início, enorme foi a sua alegria ao sentir-se escutada como um oráculo pelo sr. Puybaraud. Submissão, no entanto, apenas aparente! Depressa teve de reconhecer que lidava com uma ovelha mais renitente do que parecia à primeira vista. "Trata-se de uma alma fugidia..." - afirmava ela, a partir da segunda semana. Chegou mesmo a acusá-lo de se esquivar à Graça, isto é, à sua direcção.
A tendência de Brigitte Pian era a de conduzir as almas para as alturas, segundo as suas próprias palavras, esforçando-se por abrir os olhos de Puybaraud no tocante a um dos ardis do demónio, que é o de perturbar uma alma cristã com a ideia de humildade que tem de si própria. O meu professor estava persuadido de que não presumira muito acerca das suas forças, pelo facto de não se considerar chamado ao destino comum dos homens, mas que estava a tempo de percorrer o caminho andado por todos os seus antepassados, casando-se também para ter filhos e alimentá-los, como as aves procedem para com as suas ninhadas. Brigitte Pian não ignorava, contudo, que, muitas vezes, há necessidade de arrancar às almas essa máscara de falsa humildade com que se acobertam. Afirmava, como se o próprio Deus lho houvesse comunicado, que o sr. Puybaraud não havia saído do seu colégio senão porque se encontrava destinado ao claustro por toda a eternidade. E sustentava ainda que a verdadeira discussão, para ele, se cifrava apenas nisto: - a que porta bater, a que regra se sujeitar?
Não só a sr.a Brigitte nada ganhava contra Puybaraud, muito embora sustentando a luta no próprio terreno para o qual a havia conduzido, como fora forçada a reconhecer que esbarrava contra uma influência bem mais poderosa que a sua. E que influência, Deus do Céu! Precisamente a de Octávia Tronche, que lhe inspirava um sentimento muito semelhante ao que as pessoas mundanas chamavam desprezo. Brigitte, no entanto, bem sabia que não devemos desprezar ninguém e que até a alma de Octávia Tronche possuía bastante valor aos olhos de Deus.
Admirava-se a minha madrasta de que, mesmo ausente, Octávia conseguisse ter tanto poder sobre Puybaraud como o que tinha quando o encontrava todos os dias na cidade. A razão estava em que, se, na verdade, o meu professor a não via já, dela recebia diariamente uma carta, que a sr.a Brigitte devorava com os olhos, quando Puybaraud a lia diante de si, na altura do pequeno almoço matinal, com incrível atenção. Na verdade, tudo o que a Puybaraud iludia na figura ingrata de Octávia (embora bastante sensível ao encanto espiritual que dela irradiava), cedera o passo à admiração e ao mais terno respeito, durante essa separação em que a jovem se lhe não mostrava, a não ser por meio dessas páginas escritas todas as noites, antes de adormecer.
Essa correspondência, que encontrei no espólio de Puybaraud, não poderia ser publicada aqui - não porque o não merecesse, mas sim porque tenho as minhas dúvidas sobre se haveria muitos leitores que lhe apreciassem o encanto de verdadeira humildade, dessa humildade que se desconhece a si própria e que nem o próprio brilho consegue tornar conhecida do possuidor. Não posso, no entanto, passá-la inteiramente em claro, porquanto a vitória que Octávia conseguiu sobre a minha madrasta retumbou cruelmente em mais de um destino.
Embora Octávia sentisse muita consideração pela sr.a Brigitte, encontrava, assim à distância, a coragem necessária para lhe poder resistir, defendendo o amigo de uma demasiada desconfiança acerca das próprias luzes. Afiançava-lhe que "até uma pessoa, superior a nós pela virtude, pela experiência e pela inspiração, não pode substituir esse conhecimento pessoal da vontade divina, que é o fruto da virtude do abandono... Tenho para mim que bom será escutar os conselhos dos outros, quando não nos desviem dessa submissão atenta e vigilante àquilo que se passa em nós próprios. É em nós que Deus fala em primeiro lugar, meu amigo. Não será assim? Parece-me impossível que aquilo que com tanta veemência sinto por si possa ir contra a Sua vontade. A luz está na sua direcção, e eu procuro lutar contra o movimento instintivo que para ela me atrai, pois, à minha volta, só vejo trevas. E o que me tranquiliza é o facto de saber que, em presença do seu bem, temporal ou espiritual, conseguirei renunciar a si, não sem grande dor, claro está, mas quase sem luta, ouso afirmá-lo. Por mais egoísta que eu seja (e Deus sabe se o sou!), amo-o demasiado para tentar procurar-me a mim própria. Amo-o de tal maneira que não lutaria um segundo sequer contra a influência a que se encontra sujeito em Larjuzon, se tivesse a certeza de que a mesma pretendia torná-lo feliz e se não juntassem demasiadas subtilezas ao nosso caso, afinal tão simples e tão vulgar. Há, no entanto, um ponto sobre o qual, e tanto quanto uma pobre rapariga tem o direito de pensar, a sr.a Brigitte não tem razão. Não possui, como o senhor e eu, a certeza de que toda a carne, ainda que ferida, continua sagrada, e que o mais belo mistério de Deus, a despeito do pecado original, é o nascimento de uma criança. Ouvi-lhe, acerca deste assunto, palavras que possivelmente interpretei mal. Oh! Meu amigo! Como adoro em si esse sentimento, que Deus lhe concedeu, para com as crianças, para com essas criancinhas em que necessário é que todos nos transformemos, se quisermos aspirar a um lugar no Céu! Incapazes, porém, de nos parecermos com elas, grande coisa é já, no entanto, fazê-las vir ao mundo. Claro que há vocações mais elevadas... Todavia, tornando-me sua mulher, não creio ir contra o apelo de Cristo, contra a Sua exigência de tudo deixar para O seguir, porquanto me submeto, antes do mais, à Sua vontade adorável, através de si, meu bem-amado, e através daqueles que hão-de nascer da nossa carne... A este simples pensamento, estremeço de alegria..."
O sr. Puybaraud nunca me mostrava essas cartas, pelo que apenas podia avaliar da derrota da minha madrasta através do seu sombrio mau humor, mormente por ocasião das refeições, cuja atmosfera se tornara quase irrespirável.
Sabia perfeitamente que os negócios de Puybaraud caminhavam mal e que as suas relações com Brigitte Pian se tornavam azedas. Sentia-me, no entanto, demasiado infeliz para que lhes pudesse prestar atenção. Desde que Micaela arranhara o rosto de João, selara-se como que uma aliança entre os dois. Já não beneficiava desses períodos em que o meu amigo, tornado criança, se coligava comigo para arreliarmos a "rapariga". Em cada visita sua, o único cuidado de ambos era arranjarem uns momentos para se encontrarem a sós, inventando, para fugirem de mim, tantos ardis quantos os que eu inventava para jamais os perder de vista. Sentia vergonha de me tornar importuno. Embora isso se me tornasse odioso, a verdade é que me colava a eles, fingindo não ver os sinais de irritada impaciência que trocavam entre ambos.
Bastava que minha madrasta me chamasse, que Puybaraud tivesse de me mostrar uma tradução corrigida ou que tivesse de me ausentar, mesmo só por instantes, para ficar com a certeza de que, no regresso, Micaela e João teriam fugido. Na álea em que, ainda há bem pouco tempo, casquinava o riso de Micaela, ou em que o meu amigo chamava o cão, com a sua voz grossa de homem-menino, já não ouvia senão o murmúrio do vento nos ramos humedecidos pela chuva da tempestade. Gritava por eles: "Micaela! João! Onde estão Vocês?" E calava-me, em seguida, consciente de que, embora me ouvissem, mais baixo falariam ainda, procurando abafar o ruído dos passos e apagar os vestígios da sua passagem.
Mal imaginava, então, que espécie de atracção os chamava, dado que eu próprio a não sentia ainda na minha carne adormecida. O ciúme provém da insuportável visão do prazer que uma criatura amada recebe de outrem ou lhe prodigaliza. Duvido de que, nessa altura, fosse capaz de pensar em qualquer coisa desta ordem. Mas o que me fazia mal, a pontos de gritar, era, sem dúvida, a felicidade de ambos, em parte devida à minha ausência.
Recordo o dia em que o sr. Puybaraud decidiu partir sem mais aquelas. Durante o almoço, o sr. Calou, que acompanhara João a Larjuzon, fora quase o único a falar. Puybaraud replicava-lhe, de vez em quando. Brigitte, porém, não descerrava os lábios. O seu porte sombrio quase me metia medo. Na sua frente, o abundantemente servido senhor meu pai comia sem olhar para ninguém, com a boca quase em cima do prato. João e Micaela, separados por toda a largura da mesa, falavam com os olhos; e eu, sentado ao pé do sr. Puybaraud, fingia não perder nenhuma das suas palavras. Nada mais existia no mundo, porém, do que essa muda troca de olhares entre minha irmã e João, essa paz de Micaela, esse repouso em que a via assente pela única razão de João se encontrar presente. Aos seus olhos, até eu fazia parte do resto do mundo, ou seja, daquilo que não existe. Eu pertencia ao nada.
A chuva torrencial não consentiu que tomássemos o café debaixo dos carvalhos. A minha madrasta procurou desculpar-se do seu silêncio em razão de uma dor de cabeça, pedindo-me que lhe fosse procurar ao seu quarto uma caixa de cafiaspirina. Bastaram esses simples dois minutos para que João e Micaela se raspassem, apesar da chuva. Quis ir ter com eles. Mas, como a chuva tivesse aumentado, a minha madrasta não mo consentiu: "Tanto pior para a Micaela. Tu ficas!"
Mas, então, ela não via nada? A conduta de Micaela deveria tê-la horrorizado. No entanto, não tinha olhos senão para o sr. Puybaraud. Como a indisposição a não tivesse largado, foi obrigada a retirar-se. Nenhuma presença no mundo teria impedido meu pai de ir dormir a sua sesta. Fiquei, pois, sozinho na sala de bilhar, olhando o campanário inundado através da porta envidraçada. Na sala, o sr. Puybaraud e o abade Calou continuavam a falar em voz baixa. A partir de certa altura, no entanto, foi-me possível não perder uma única palavra da sua conversa. Queixava-se o meu professor de uma tirania evidente. Compreendi que o abade Calou fazia pouco da sua pusilanimidade e o aconselhava a pôr-se ao fresco, sem perda de um minuto.
De mim para mim, ia dizendo: "Devem ter-se abrigado na granja abandonada". Encontrava-me a imaginar Micaela e João nessa cozinha onde apenas os pastores acendiam, às vezes, o lume e onde as paredes se achavam enegrecidas com desenhos e inscrições que faziam rir João e que eu não compreendia. Beijavam-se e mostravam-se ternos um para com o outro. Micaela jamais se mostrava carinhosa para comigo. Mesmo quando se mostrava terna, essa ternura tinha sempre um ar de brusquidão. João, esse, mesmo nos seus melhores momentos me falava sempre com ar de superior. Um selvagem, mas não para Micaela. Dizia-lhe: "Tens as mãos frias". E conservava-as nas suas por bastante tempo. Para comigo, jamais se mostrava terno, com essa ternura que sempre esperei dos semelhantes! Dessa maneira ia sofrendo, perante o campo inundado pela chuva.
O abade Calou quis aproveitar-se de uma aberta para regressar a Baluzac. Pediu-me que fosse chamar João. Toquei a sineta, mas em vão: João não apareceu. Afirmou então o abade que o seu pensionista já era suficientemente crescido para poder regressar sozinho. Montou na bicicleta, após se ter despedido da sr.a Brigitte, a qual, depois de lhe ter passado a dor de cabeça, deu alguns passos na avenida, em companhia de Puybaraud. Do patamar, via as suas idas e vindas. Quase só o meu professor falava. A conversa foi rápida e, muito embora eu não tivesse ouvido nenhum altear de voz, compreendi que se azedara bastante. Ao passar por mim, o sr. Puybaraud afagou-me os cabelos. Estava terrivelmente pálido:
- Vou-me embora amanhã, Luisinho! vou arranjar a mala.
Mal o ouvi. Onde estariam Micaela e João? Nem a hora da merenda os forçara a regressar a casa. Não me lembrava de que alguma vez se houvessem demorado tanto tempo, sozinhos. Não era já a mágoa que me dominava, mas sim a cólera, a raiva, o desejo de os maltratar, tudo aquilo que de vil existe já em nós, nessa idade em que o homem, em que nos havemos de transformar, se encontra formado e equipado, com todo o seu contingente de inclinações e paixões.
Já não chovia. Caminhava rapidamente sob as árvores ainda carregadas de chuva. Aqui ou além, uma gota tombava-me nas orelhas, deslizando-me ao longo do pescoço. Era por um pálido Verão sem cigarras. Se houvesse em Larjuzon outro rapaz ou outra rapariga com quem pudesse ligar-me... Nenhum rosto, porém, nenhum nome me ocorria ao pensamento. Numa curva, vi que a minha madrasta se dirigia ao meu encontro. Observou-me, durante um instante, colocando-me a mão sobre a testa. Não pude impedir que as lágrimas rebentassem, mostrando-me, de início, incapaz de responder às suas perguntas.
- Fogem de mim - balbuciei, por fim. Pensou tratar-se de um jogo infantil.
- Faz de conta que não reparas. Serão eles os mais enganados.
- Não, não! Isso é o que eles pretendem...
- Isso, quê?
- Isso mesmo - insisti eu, a meia voz. - Estarem sós...
Brigitte franziu as sobrancelhas:
- Que queres tu dizer? - perguntou.
Mas a dúvida, despertada durante um instante, não se lhe fixou no cérebro. Encontrava-se demasiado preocupada com outras coisas e prisioneira do seu próprio tormento. Apesar disso, a semente que eu lançara havia encontrado um terreno propício e, tarde ou cedo, acabaria por germinar.
- Somos sempre castigados pelo facto de ligarmos demasiada importância aos outros - murmurou Brigitte Pian, amargamente. - Acredita, meu pobre Luís: a mim mesma pergunto, muitas vezes, se não me apaixonarei demasiadamente pela salvação dos outros. Sim, bem sei que o mais ínfimo de entre eles tem uma importância infinita. Sacrificaria a própria vida para a salvação de quem quer que fosse... E, todavia, chego a espantar-me, em certos momentos, do tempo que terei perdido (pelo menos, na aparência, porque só Deus é o verdadeiro juiz) em benefício de criaturas medíocres, para não lhes chamar vis. A provação das almas elevadas é fatigarem-se nas trevas ao serviço de espíritos inferiores e subalternos...
A última palavra silvou-lhe autenticamente através dos lábios quase fechados. Compreendi que o tipo do espírito subalterno era constituído, aos seus olhos, pelo sr. Puybaraud. Em que é que este a podia interessar? Amá-lo-ia, porventura? Se o não amava, ia dizendo a mim próprio, por que razão o tomava tanto a sério? Que mal ou que bem podemos receber dos seres que não amamos?
Entrevi Micaela, de longe, sentada num dos degraus da escada. Sem que lhe perguntasse fosse o que fosse, informou-me de que tinham ido dar um passeio de bicicleta e que João regressara a Baluzac, sem ter passado de novo por Larjuzon. Devia ter saído do seu quarto. Estava muito bem penteada e de mãos e cara lavadas. Observava-me, procurando adivinhar-me os pensamentos. Contudo, fingia-me indiferente e muito satisfeito por me saber simultaneamente infeliz e verdadeiro senhor de mim próprio.
Fui deitar-me cedo, na intenção de ler na cama. Tal não me foi possível, porém. Chegaram aos meus ouvidos os ecos de uma disputa violenta, coados através do soalho. Soube, no dia seguinte, pela boca de Micaela, que minha madrasta não se contivera e tratara o sr. Puybaraud bastante mal. Ele próprio havia perdido a calma, exasperado com o facto de, às razões que apresentara a Brigitte, para lhe explicar a sua decisão de casar com Octávia, lhe ter respondido, com os olhos postos no Céu, que era uma provação por que ela sempre esperara e que de boa vontade consentia no sacrifício que ele lhe exigia...
- Mas não se trata de nenhum sacrifício para si, sr.a Brigitte. A questão só a mim diz respeito...
Brigitte, porém, nada mais queria ouvir. Ferida muito embora, perdoava a injúria sofrida. Era essa a reacção que opunha sempre às pessoas que pretendiam chamar-lhe a atenção para uma injustiça que ela cometera. Muito longe de reconhecer o erro e de bater no peito, estendia a face esquerda, protestando que bem merecia ser assim mal compreendida e caluniada e acrescentando uma malha a mais a esse tecido encorpado de perfeição e méritos em que se envolvia por completo e no qual jamais deixava de trabalhar. Atitude que dava em resultado exasperar as pessoas e levá-las a pronunciar palavras violentas e das quais a sr.a Brigitte uma vez mais tirava proveito, não só perante a própria consciência, como também perante Deus.
Nessa noite, contudo, deu largas à raiva de que andava cheia e foi forçada a ultrapassar todos os limites, visto que, no dia seguinte, à hora do pequeno almoço (que foi servido mais cedo do que era costume, em razão de o meu professor ter de tomar o comboio das oito horas), se humilhou a pontos de, mesmo na minha presença, lhe ter pedido desculpa.
- Mas está claro que fui indigna! - repetia, numa autêntica embriaguez de humildade. - Quero proclamá-lo na presença do Luís. Quando me apercebo de que uma alma se engana e vai caminhando para a sua perda, não posso conter-me.
O excesso de zelo, porém, não basta para desculpar tamanha violência. Jamais se consegue dominar a própria natureza e eu reconheço humildemente que possuo uma natureza ardente - acrescentou, com visível satisfação. - Deve perdoar-me, meu amigo.
- Não, sr.a Brigitte - protestava o sr. Puybaraud. - Não posso suportar que se humilhe perante mim, que não sou digno disso!
Ela, entretanto, nada queria ouvir, apenas pretendendo ficar com o benefício do seu gesto de humildade. As despesas já estavam feitas e nada lhe custava ir até ao extremo de uma humilhação que forçava a sua vítima à entrega das armas e a engrandecia aos seus próprios olhos (outra malha ainda no tecido da perfeição).
- Aliás, há-de verificar através da minha conduta para consigo e para com Octávia, que não fico com o mínimo rancor. Disse-lhe o que, em consciência, acho que devia ter-lhe dito. Agora, acabou-se. Confio ambos a Deus e afirmo-lhe que não terão, os dois, amiga mais certa, nessa nova vida, tão cheia de ciladas, e temo que de provações, que se abre na frente de ambos.
Puybaraud agarrou-lhe na mão, que levou aos lábios com fervor. Que seriam eles, sem a sr.a Brigitte? Tanto a situação de Octávia, na Escola Livre, como a sua, na Comissão, apenas dependiam dela. Em suma: bastar-lhe-ia dizer uma palavra...
Ia espiando o rosto da sua benfeitora, que, de repente, se mostrou vazio de toda e qualquer expressão. As palavras de Brigitte Pian tornaram-se vagas. Falava da Providência, à qual devia confiar-se, porque nunca nos abandona e nos segue amorosamente nos mais duros momentos e quando nos cremos abandonados. E, como o sr. Puybaraud voltasse à vaca fria, repetiu-lhe que nada podia decidir, visto não ter senão um voto no "Conselho", exactamente como todos os restantes membros.
- Oh! Sr.a Brigitte! - insistia ele. - Bem sabe que, se advogar a nossa causa...
Mas, nessa manhã, a minha madrasta sentia-se com a bossa da humildade. E, quanto mais Puybaraud pretendia que ela era toda-poderosa para os manter, a si e a Octavia, nas funções que desempenhavam, mais ela se apagava e se enchia de alegria com desaparecer e reduzir-se a quase nada.
Após a partida de Puybaraud, Larjuzon conheceu alguns dias de calma. A minha madrasta raro saía do quarto: escrevia e recebia muitas cartas. Chegara, finalmente, o calor. A tempestade, que não rugia já por trás dos pinheiros, ia rugindo no fundo de mais de um coração. Nessa semana, João veio apenas uma vez, de bicicleta, e passou comigo essa tarde, sem que com isso eu tivesse sentido qualquer prazer. O instinto de sofrimento, que jamais me abandona, advertia-me de que João não cedia à sua inclinação, mas que seguia um plano previamente traçado, e de acordo com Micaela.
Esta não procurava acompanhar-nos quando nos íamos sentar na margem do ribeiro. Nesse dia, João foi tão amável para comigo quanto o havia desejado. Todavia, nunca me sentira tão triste, por saber que essa amabilidade tinha origem no mesmo ponto em que a minha mágoa nascia; ou seja, na influência que Micaela adquirira sobre ele. Causava-me sofrimento essa felicidade, que banhava todos os poros da criança, ainda ontem desconhecida e martirizada.
Pouco falávamos. Ele seguia o seu sonho e eu tinha o espírito ocupado por uma terrível dúvida: entendera-se com Micaela para se encontrarem longe destes lugares. Quase todos os dias Micaela partia, de bicicleta, sem mim, enquanto eu trabalhava. Deviam ter as suas entrevistas entre Baluzac e Larjuzon... Hoje, viera apenas para trocar as voltas. Ia-o observando enquanto aparava um ramo de salgueiro. Disse que ia fazer-me um apito. O rosto moreno irradiava felicidade.
- Não há dúvida de que, apesar de tudo, o sr. Calou é uma pessoa muito decente. Imagina que escreveu ao meu tio, solicitando-lhe que deixasse que a mamã viesse visitar-me... O meu tio aquiesceu. Ela virá na próxima semana e irá dormir a Vallandraut...
- Oh! Meu caro! Quanto folgo com isso!
Claro que isso me agradava, pois era a visita da mãe que lhe dava toda essa alegria! Decerto, também Micaela; mas não apenas esta...
- Tu não conheces a minha mãe? Olha que é uma autêntica beleza! - acrescentou, com um estalido da língua. - Pintores conhecidos pedem-lhe que os deixe retratá-la. Aliás, hás-de vê-la, pois ela espera vir agradecer à tua madrasta. Escreveu-me a dizer que faz todo o empenho em cá vir. Ficará muito satisfeita em poder fazer essa visita, apesar de isso não estar nos seus hábitos! Tenho-lhe falado muito de ti e da Micaela. Estou certo de que a Micaela lhe há-de agradar. A minha mãe gosta dos temperamentos espontâneos. Apenas receio que a Micaela se vigie demasiadamente. Bem sabes que, quando pretende mostrar-se bem educada, começa a fazer boquinhas. E esse não é o seu género. Nem é necessário que se apresente muito bem penteada, não achas?
Não dei resposta. Falava-me apenas como se falasse consigo próprio e eu nada era aos seus olhos. Consultou o relógio, bocejou e, de repente, lançou-me os braços ao pescoço e beijou-me. Transbordava de ternura, de que eu recebia uma gota, só porque me encontrava presente. Sabia, no entanto, que esse beijo fora dado em Micaela.
Nesse dia, separaram-se com um frio aperto de mão. Quando se encontrava já em cima da bicicleta, ambos trocaram algumas palavras, em voz baixa. Durante o jantar, a minha madrasta falou da condessa de Mirbel e da sua esperada visita. A dar crédito ao que ela afirmava, tratava-se de uma pessoa que, pela graça própria e pela beleza, representava o que no mundo existe de mais delicioso. Tinha, é certo, dado origem a certos falatórios. Claro está que a caridade nos proíbe de acreditarmos em tudo quanto se diz e Brigitte Pian não dava crédito a nenhuma dessas abominações. Desde que as coisas não tenham sido vistas com os próprios olhos, não há o direito de se afirmar seja o que for. Aliás, se o escândalo fora grande, necessário se tornava reconhecer que, desde que enviuvara, Júlia de Mirbel, salvo os poucos meses passados em Paris, em casa dos La Mirandieuze, vivia muito isolada no castelo de La Devize, e que a sua atitude testemunhava uma grande dignidade.
Ressaltava de todos esses mexericos que a filha do prefeito do Império pouca importância ligava a uma pessoa cujos pais nem sequer teriam sido honrados com um simples olhar dos seus antepassados. Só por isso, tal visita representava a única satisfação do amor-próprio, que minha madrasta podia ainda conhecer, visto pertencer, sem qualquer contestação, à primeira sociedade da terra, menos em razão da origem e da fortuna, do que graças ao seu poder oculto no mundo edificante e ao prestígio de uma virtude notória. Fora sem dúvida o nome de Mirbel que abrira a João as portas de Larjuzon, sem que a minha madrasta lançasse estridentes gritos, apesar de constantemente se ter falado dele, em nossa casa, como de um indivíduo mal comportado e agitador.
Depois do jantar, ao surgir da lua, Micaela quis passear pelo parque. Meu pai saiu do seu torpor para lhe repetir exactamente a frase que minha mãe lhe dizia sempre, em momentos que tais: "Agasalha-te e toma cautela com a humidade do ribeiro". Encontrava em Micaela a mesma alegria e a mesma exaltação que já nessa tarde notara em João. O luar iluminava-lhe a cara levemente prognata, bem como o grosso lábio inferior, que lhe dava um carácter de avidez quase animal. E tal era, no fundo, o seu natural. Nunca encontrei no mundo quem, como Micaela, tivesse sentido, desde os seus quinze anos, uma tal fome de felicidade. Traía-se essa fome na maneira de trincar um fruto, com fortes dentadas, no modo de meter todo o nariz numa flor, para lhe aspirar o perfume, e no abandono encantador do seu sono que, por vezes, a surpreendia na erva do prado, mesmo ao pé de mim. Nunca, porém, esperava pacientemente a felicidade vinda do exterior. Atormentava-a o instinto da luta e da conquista, como suficientemente mo provou, nessa mesma noite, no falar-me de João. Porque fora para me falar dele que me pedira que a acompanhasse no passeio pelo parque. Decidiu-se, um pouco antes de atravessarmos as pradarias cheias de neblina, lançando-me os braços em volta do pescoço, de maneira a sentir a sua respiração em cima do meu ouvido. O que tinha a dizer-me parecia simples loucura... Dificilmente a acreditaria, por tal forma era maravilhoso!
- Sim! Imagina que estamos noivos... Pois claro! É coisa séria, embora ele não tenha mais que dezassete anos e eu não tenha ainda feito os quinze... Claro que ninguém poderia acreditar nisso! Rir-se-nos-iam na cara... Por isso mesmo o não diremos a ninguém, a não ser a ti, a ti somente, o nosso Luisinho... Porque choras? Não achas que é maravilhoso?
Maravilhoso! Nenhuma outra palavra lhe era mais familiar. Escondia o rosto no seu ombro. E ela deixava-me chorar sem nada me perguntar, habituada às lágrimas que eu chorava sem qualquer razão. Contudo, sentia uma grande paz. Já não havia nada a perguntar, tudo se encontrava resolvido, e nada mais tinha a esperar de que esse papel de confidente que me destinavam. Jamais poderia ser o primeiro, o único, no coração de Micaela. A água deixava ouvir o seu doce murmúrio gelado ao fundo das pradarias. Micaela cheirava a cravos. Enxugava-me os olhos com o lenço, continuando a falar-me em voz baixa.
Acertara em cheio: encontravam-se várias vezes por semana, por detrás do moinho do sr. Du Buch. Só tinham receio de que a minha madrasta os viesse a descobrir. Micaela obrigou-me a jurar que nada diria que pudesse colocá-la na pista. Nesse momento, recordei-me de ter contado a Brigitte Pian que João e Micaela se escondiam de mim. Tinha-o dito sem má intenção (tê-lo-ia dito sem má intenção?). Não lhe teria despertado a atenção?
- Tenho medo dela, Luís! Ela detesta de tal forma que possamos ser felizes! Sinto que me quer mal, principalmente porque não tenho o ar de sofrer. É necessário acautelarmo-nos... João, porém, é tão imprudente!
Falava-me dele com uma liberdade de que eu próprio me sentiria incapaz. Não desconhecia os riscos que corria: tratava-se, na verdade, de um indivíduo ainda mais de temer do que o próprio tio o julgava. Ainda hoje pergunto a mim próprio por que razão o achava ela tão terrível, uma vez que ele próprio me afirmara que acreditaria cometer o mais " atroz sacrilégio se tentasse fazer mais do que beijá-la castamente... Talvez ela soubesse que o João não haveria de ser esse cordeiro, durante toda a vida... No entanto, não tinha medo dele. E depois, era dele e não de outrem que havia de ser mulher. Escolhera-o, como ele a escolhera a ela, apesar de não passarem de duas crianças. Ainda que vivesse durante cem anos, nenhum outro rapaz existiria para ela. Nada havia a fazer. Era tão inteligente e tão forte...
- E, além disso, tão bonito... Não achas?
Não. Não o achava bonito. Que é, afinal, a beleza para uma criança? Sem sombra de dúvida, a criança é mais sensível à força, ao poder. Tal pergunta, no entanto, deve ter-me magoado, porque ainda hoje me lembro, decorrida quase uma vida inteira, do sítio da álea onde Micaela me interrogou por essa forma a propósito de João. Poderia hoje definir melhor o que entendo por beleza? Poderia afirmar qual o sinal por que a reconheço, quer se trate de um rosto de carne e osso, de um horizonte, de um céu, de uma cor, de uma palavra, ou de um cântico? Poderia afirmar que fosse esse sobressalto da carne e que, todavia, tem interesse para a alma, essa alegria desesperada, essa contemplação sem saída e que nenhum abraço recompensa?...
- Ouve, Micaela: bem sabes que, no colégio, se afirma que o João é um indivíduo nojento.
- Sim, talvez... Mas o abade Calou não o considera como tal. Além disso, há uma coisa que te vai fazer dar pulos: mais vale ser um indivíduo nojento do que ser virtuoso como Brigitte Pian...
- Oh, Micaela!
- Sim! Antes no Inferno, sem ela, do que no Céu, com ela!
- Oh, querida! Isso é uma blasfémia - protestei - que vai acarretar-te desgraça. Pede perdão, depressa. Depressa, faz um acto de contrição!
Esboçou, docilmente, um rápido sinal da cruz, murmurando algumas palavras: De todo o coração me arrependo do pecado que cometi contra a vossa adorável majestade... Em seguida, desatou a rir:
- Sabes o que o abade Calou diz ao João? A respeito de Brigitte? Que há pessoas que escolhem Deus, mas a quem Deus não escolheria possivelmente...
- O sr. Puybaraud - respondi, bastante chocado - acha que o abade Calou possui demasiado espírito para um padre, que é mordaz e que as suas ideias cheiram a heresia.
Micaela ignorava o que queria dizer cheirar a heresia. Mas não respondi à sua pergunta, preocupado havia um instante com outra ideia:
- Ouve, querida - disse eu, bruscamente - gostaria que me dissesses... Mas não te zangarás?... Ele beija-te?
- Decerto - afirmou ela. - E com ardor-acrescentou.
- Nem podes calcular... É maravilhoso! Mas, com a breca!, Nada mais, Luís! Nada de nada! Não vás imaginar...
Oh, grande Deus! Que poderiam eles fazer de pior do que beijarem-se? As faces escaldavam-me. Olhava para Micaela, que tinha um ano mais do que eu (mas que era já uma mulher, enquanto eu não passava de uma criança). Como me parecia crescida, cheia de experiência e carregada de pecados!
- Que tolo tu és, Luís! Se te digo que estamos noivos...
Também ela procurava tranquilizar-se, pois a sua consciência não estava lá muito tranquila. Uma nova onda de felicidade, no entanto, a veio cobrir de repente, levando-a a trautear, com voz ainda pouco firme e de cana rachada, essa ária de Gounod, que a nossa mãe cantava por noites semelhantes:
A noite ir az. o silêncio...
Levei muito tempo para adormecer. Não que tivesse maiores mágoas do que as habituais, mas porque um remorso me atormentava. Procurava lembrar-me com que cara Brigitte Pian acolhera a minha queixa contra João e Micaela "que se escondiam de mim". Conhecia-a o suficiente para me tranquilizar pelo facto de ela nada ter manifestado, não ignorava a sua mestria, nem que jamais cedia ao primeiro impulso. Escondia as garras para as mostrar semanas depois, quando já ninguém se lembrava de qual tinha sido o pretexto.
Não raro ouvia eu observações sobre a conduta que tivera em tal ou tal circunstância, no ano anterior, e da qual me falava então, pela primeira vez.
Leves mudanças verificadas na minha madrasta me aumentaram a inquietação, levando-me a avisar a minha irmã. ; Chamei-lhe a atenção para o facto de a sr.a Brigitte ficar menos tempo no quarto e para o de, a despeito do calor, ser vista a qualquer hora do dia nas escadas ou até no parque. Penetrava no salão sem que o mais leve ruído anunciasse a sua aproximação. Micaela tentou sossegar-me, lembrando-me que a nossa madrasta já não tinha o sr. Puybaraud para massacrar. No entanto, no dia em que João veio de novo a Larjuzon, reconheci, por certos sinais, que entrara na órbita das preocupações de Brigitte. Certa manhã, ao pequeno almoço, estranhou que Micaela percorresse as estradas à hora da sesta, quando até os próprios animais ficam nos estábulos.
Breves relâmpagos, que anunciavam a iminente tempestade. Tive, ao menos, a consolação de me convencer de que os meus receios haviam sido vãos, pois em nada interviera em tal desgraça. Mas ainda não tive ocasião de falar dos Vignotte. O capataz de Larjuzon e a mulher só havia pouco tempo ocupavam esse lugar. Fora a minha madrasta que os colocara, coisa que havia de ter constituído, sem dúvida, a origem de surdo desentendimento entre ela e meu pai.
Logo após o seu casamento, Brigitte começara a não se entender com o velho Saintis, que nascera na propriedade e a quem meu pai consentia, de bom grado, a linguagem liberal, as bebedeiras e a devassidão. A pessoa que se fixa no campo, depois de ter vivido sempre na cidade, depressa se vê forçada a entrar em luta com os camponeses, procurando cavalgá-los. Trata-se de um assunto muito conhecido, que o próprio Balzac tratou. Ao contrário, porém, do que é de uso passar-se em tais histórias, os campónios de Larjuzon ficaram a perder em presença da senhora da cidade. Saintis, embriagado, tão grosseiro se mostrou para com a minha madrasta que meu pai se viu na necessidade de o despedir. Jamais haveria de perdoar, porém, à sua segunda mulher o tê-lo colocado perante uma tal necessidade.
Os Vignotte, que Brigitte protegia, não foram aceites de bom grado por meu pai. Não suportava o novo capataz e sentia saudades do velho Saintis, por mais bêbedo e gatuno que fosse.
Numa terra em que todas as línguas são de temer, as dos Vignotte eram ainda as mais temidas. A sr.a Vignotte, cuja boca arruinada lhe chupava os lábios e as faces, mais não parecendo do que enorme bico, encavalitado por uns óculos, por sob os falsos bandós de um preto brilhante, jamais regressava de casa dos fornecedores sem trazer à sr.a Brigitte o relato dos casos, em que os ataques de frente eram raros, mas não assim os subentendidos ou os risinhos abafados.
O mais estranho, porém, é que essa velha, extraordinariamente devota e que nunca abandonara a aldeia, não se sentia desconcertada nem estupefacta perante o adultério, nem tão-pouco perante o incesto, dado que todas as aberrações e até os próprios crimes de Sodoma a encontravam de atalaia, trocista, e a piscar o olho.
Se a aldeia constituía o domínio da velha, pertenciam ao sr. Vignotte os bosques e os campos, que atravessava na sua carripana, assente em altas rodas, nas suas idas e vindas através das granjas. Quantos parzinhos, que se julgavam ben escondidos, nas horas de maior calor ou ao tombar do crepúsculo, haviam sido descobertos pelos seus olhos de falcão! Por vezes, nem sequer via os indivíduos. Mas duas simples bicicletas por detrás de um bosque, simbolicamente colocadas a par, eram o bastante para o encherem de medonha alegria. Ora, certo dia, não muito longe de uma cabana para a caça ao pombo bravo, reconheceu, muito pequena e junto de outra, enorme e empoeirada, a própria bicicleta que, na véspera, a menina Micaela lhe pedira que lubrificasse... Como se isso fosse das suas atribuições!
Como de costume, Brigitte Pian nada disse, desde logo, sobre aquilo que Vignotte lhe contara. Fingiu não acreditar, passando a redobrar de vigilância. Quanto mais se recusava a deixar-se convencer, mais Vignotte se mostrava brutal nas suas acusações, a ponto de chegar a afirmar que a menina Micaela e o rapazote que vivia com o abade Calou... ?Tudo isso foi dito e jurado com grandes juramentos. Vira-o Kom os seus próprios olhos, ou como se assim tivesse sido. Porque que não era ao sr. Vignotte que alguém haveria de convencer de que um rapaz, como o velhaquete que se encontrava em casa do abade Calou, pudesse estar mais de uma hora com uma rapariga numa cabana... Vamos lá! Não há necessidade nenhuma de contar histórias dessas... Todos fomos jovens e bem sabemos como essas coisas se passam. Claro que não é por se tratar de uma menina... Aliás, era necessário vigiá-la bem... Havia já muito tempo que Avelina Vignotte a pusera a descoberto. Nada a espantara esse facto. "Eu, no entanto, ia-lhe dizendo: não, Avelina. Lá carícias, talvez..." - "Nada disso!"-respondia ela. - "Basta ver-lhe o desenvolvimento das ancas e do resto! Mas é muito lamentável, principalmente numa rapariga que tem sempre diante dos olhos o exemplo da sr.a Brigitte!"
Esta decidira esperar pela visita da condessa de Mirbel, antes de tomar qualquer partido. A questão, aliás, apresentava-se grave, sob vários aspectos, e bastante delicada. O sr. Pian adorava Micaela e era difícil prever qual viria a ser a sua reacção. Segundo uma anotação do abade Calou, a respeito deste assunto, parece ainda que a minha madrasta fora, até esse momento, retida por uma certa espécie de escrúpulo (pois se mostrava, então, bastante escrupulosa, embora não exageradamente). O que, no fundo, a perturbava era não poder dissimular a alegria que lhe era transmitida por essa desgraça, com a qual devia envergonhar-se e consternar-se. Pois não era ela, no fundo, a segunda mãe de Micaela? Uma coisa apenas importava a Brigitte Pian perante uma dificuldade de tal ordem: vencer os escrúpulos através da lógica. Faltava-lhe encontrar uma razão que legitimasse o seu prazer e o fizesse penetrar no sistema do seu aperfeiçoamento. Ajudou-a, desta feita, o ter fixado o espírito, pelo breve espaço de alguns segundos, nas brilhantes perspectivas de uma aliança com os Mirbel - perspectivas, contudo, muito longínquas e duvidosas e às quais seria loucura apegar-se, dada a idade do rapaz. Pouco custou à sr.a Brigitte repetir essa tentação, da qual acabou por se gloriar, acrescentando ainda outra malha ao espesso tecido dos seus méritos. Evidentemente, na opinião do mundo, ela devia tirar vantagens desse escândalo. Mas não! Tudo faria para que redundasse em benefício da salvação dessa desgraçada criança. Que essa criança tivesse, se não caído no fundo do abismo, mas apenas chegado à sua beira, era uma desgraça, por certo, mas, ainda assim mesmo, capaz de possibilitar as medidas decisivas para a sua regeneração. A situação era clara. As teias de aranha haviam de ser afastadas dos olhos do sr. Pian e todo o espírito da casa poderia vir a ser transformado. Nada, enfim, poderia vir a ser mais proveitoso a Micaela do que a humilhação com que iria ficar acabrunhada.
A sr.a Brigitte tinha ideias misericordiosas para com Micaela, porque a misericórdia era artigo que ela não negligenciava. Como não haveria de ser indulgente ao simples pensamento da mulher de quem essa criança era filha? A primeira sr.a Pian precipitara-se nas trevas, em razão de uma morte brusca e terrível, sobre a qual pairava a suspeita, bastante fundada, de suicídio. Brigitte conservava um arquivo, que só a caridade a impedira de abrir perante o esposo cego. Resistira à tentação, até essa altura, apesar das comparações indelicadas e até injuriosas para si, a que o sr. Pian se entregava algumas vezes. De grande virtude necessitara Brigitte para se calar - mas de uma virtude bastante heróica, como só Deus sabia! Talvez, no entanto, não viesse longe o dia em que, para defender a filha, tivesse de atirar aos olhos do pai e do esposo ultrajado os testemunhos escritos de que a mulher, que continuava a chorar, lhe não merecia as lágrimas. Em contrapartida, porém, a filha imprudente, se não culpada, tinha direito ao perdão, por causa da pesada herança, cujo peso esmagador era forçada a sofrer.
Desse modo adoçava Brigitte Pian o prazer que de antemão ia saboreando. Era um espírito lógico, sempre a caminhar a direito, numa estrada assinalada com princípios evidentes e na qual não dava um passo sequer que não tivesse a sua imediata justificação. Mais tarde, viria a ceder a essas inquietações obscuras que, na altura, recalcava ainda sem grande mágoa: deixaria a estrada segura e atravessaria os bosques através do matagal dos motivos inconfessáveis. Chegaria o dia em que os actos praticados para sempre a atormentariam, voltando para ela um rosto desconhecido e terrível. Ainda estava, entretanto, muito longe disso e necessário era que muitos outros viessem a sofrer por sua causa, antes que ela alcançasse a revelação do amor, a que acreditava dedicar-se, e que nem sequer conhecia.
Um único ponto brilhante me ficou na recordação desse dia que a condessa de Mirbel passou em Larjuzon: João surgiu-me, então, a uma luz inteiramente nova. O terrível garoto, demasiado precoce, o cancro que o tio Ademar e o sr. Rausch não podiam dominar senão com chicotadas, o indivíduo perigoso, se bem que por vezes gentil e quase terno, era apenas isto: - o mal que representava para a minha pessoa. Gostava dele, decerto, mas sem qualquer espécie de estima. E, mercê de uma contradição, que bem pouco me importava, a minha irmã descera bastante, na minha consideração, ao ligar-se-lhe.
Entretanto, junto da mãe, o João surgiu-me diferente. Só tirava os olhos dela para nos espiar no rosto os sinais da nossa admiração. Em seguida a qualquer dito da condessa, João olhava-me, sorrindo, como se temesse que eu não houvesse compreendido ou fosse insensível a tanto espírito. Desde os primeiros minutos que gozava com a nossa surpresa perante uma criatura tão fina e tão jovem, que era, no fundo, a mãe desse rapagão de dezassete anos. Actualmente, o milagie da juventude readquirida encontra-se por toda a parte: é apenas questão de preço. Nesse tempo, porém, qualquer mãe de família fazia jus à admiração, se tivesse conservado uma figura de adolescente. Por isso, o que, antes de mais nada, nos espantou foi o aspecto juvenil da condessa, e não a sua beleza, que, apesar de quase perfeita, não era de espantar.
Receando o Sol, procurava fugir-lhe tão encarniçadamente como o procuraria hoje para lhe entregar todo o corpo.
Não lhe bastava o véu, que lhe enfeitava o chapéu e lhe cobria a cara, pois ainda abria a sombrinha de berloques, a fim de atravessar a mais pequena réstia de sol e não tirava as luvas senão para comer. Muito atenta ao efeito que sobre nós produzia, mostrava-se de uma simplicidade afectada.
Depois de servido o café sob os carvalhos, João arrastou a mãe para a álea do parque, a fim de poder conversar com a Micaela.
Durante essa breve ausência, o abade Calou e meus pais trocaram entre eles certas apreciações ácidas.
- É uma pessoa superior, no seu género, - afirmou a minha madrasta. - Num plano que, bem entendido, em nada me interessa, pois se trata do ponto de vista do mundanismo. O culto do próprio corpo, levado a tal extremo, tem um ar nitidamente pagão, não lhe parece, sr. cura?
Embora, por essa época, tivesse ainda o abade Calou na conta de um bom padre erudito, apesar de bastante simples e despido de ambições, considerava-o de juízo fraco e estranho, tendo-o, como ela dizia "debaixo de olho", pois reconhecia em si o direito da vigilância sobre qualquer sotaina que se encontrasse perto.
- A condessa de Mirbel é uma "literata" - disse o cura, desatando a rir sem medida por causa de uma palavra tão pouco cómica. - Sabem que escreve romances?
- E já os publicou? - perguntei.
- Não! - sibilou a minha madrasta. - Contenta-se com vivê-los.
Santo Deus! A maledicência, e ainda por cima junto de uma criança, que poderia sentir-se escandalizada! Uma malha, duas malhas acabavam de cair do tecido da perfeição. Mas eis que já Brigitte Pian se encarniçava a apanhá-las... O que ela dizia não correspondia a nada de que tivesse a certeza e lastimava não ter retido a tempo essa saída.
- Eu absolvo-a, minha senhora - proferiu o abade Calou.
- Há palavras que um padre não deve pronunciar irreflectidamente - ripostou Brigitte, franzindo o sobrecenho.
Vimos, ao longe, dirigir-se para nós a condessa, ladeada pelo filho e por Micaela. João caminhava de rosto voltado para a mãe. Ria e inclinava-se para ouvir, com inquietação, as respostas de minha irmã. Não nos via. Essas duas criaturas amadas riscavam-nos a todos. Eu sofria, mas sem ciúme. Sentia-me comovido até às lágrimas. João não era o que pensávamos: era bom, muito embora, por vezes, parecesse mau. Brigitte Pian observava o grupo que se ia aproximando. com os cantos da boca descaídos, a sua enorme cara parecia uma máscara. Nada pude decifrar, porém, nesse rosto de beata. O abade Calou também os não perdia de vista. Parecia preocupado e triste. Logo que conseguimos ouvi-los, verificámos que rebentara uma discussão entre a mãe e o filho.
João suplicava-lhe que lhe permitisse acompanhá-la até Vallandraut. Ela abanava a cabeça: era forçoso cumprir à risca o programa fixado pelo tio Ademar. Ficara combinado que jantaria cedo, no presbitério, com João, e que, em seguida, a carruagem a levaria a Vallandraut, onde dormiria para retomar o caminho no dia seguinte. O comboio partia às seis, pelo que teria de se levantar ao raiar da aurora. Separar-se-iam, portanto, à noite, em casa do abade Calou.
João, todavia, jamais renunciava àquilo que desejava. As razões apresentadas pela mãe deslizavam por cima dele, sem o atingirem. Nada mais contava do que o seu desejo de passar junto dela uma parte da noite. Tinha até o projecto secreto de ficarem ambos acordados até ser dia.
- Pense em que estamos separados toda a vida, em que nunca a vejo! E recusa conceder-me uma tarde, uma noite, quando lhe é possível!
Adoptara esse tom exigente, tão meu conhecido, e essa expressão obstinada, que fazia exasperar o sr. Rausch. A mãe, no entanto, punha tanta força na recusa como a que ele punha na insistência. Micaela afastou-se de ambos, discretamente. O tom da discussão ia subindo. Ouvimos a condessa de Mirbel terminá-la, com voz seca:
- Já disse que não, e será não! Pedes sempre mais do que aquilo que te dão. Estragas por prazer este dia... Não! Não quero ouvir uma palavra mais!
E aproximou-se de nós, com aquele sorriso que parecia iluminá-la toda, embora a soubéssemos tensa e fremente. João olhava-a por baixo, com os olhos plenos de desafio. Depois de minha madrasta e Micaela terem servido xaropes de groselha e de orchata, a condessa tomou a carruagem, mais uma vez expressando a Brigitte a sua gratidão, talvez ainda com ar mais distante e distraído do que aquele que mostrara à chegada. Segui com os olhos a carruagem que se afastava. João ia sentado no banco móvel. Nenhum raio de alegria lhe iluminava a cara obstinada, que a sombrinha da condessa, bruscamente aberta, lhe escondeu.
Nenhum pormenor dos acontecimentos que irei relatar é imaginário, apesar de João lhes não ter feito senão raríssimas alusões na minha presença. Todavia, há uma narrativa do abade Calou, que lhes é inteiramente consagrada.
Mal a carruagem atingira a estrada, logo João voltara à carga. Quando se encarniçava por essa forma, mais parecia um cão a correr numa pista. Tudo em vão, porém, pois a mãe fechou-se na sua recusa com uma decisão desesperada. Já sem argumentos, semi-voltou-se para o abade Calou, que os observava em silêncio.
- Ó sr. cura! Já que está encarregado de educar o João, veja se o torna razoável.
Respondeu com secura que "nesse dia, tinha entregado a pasta". Ela volveu-lhe, com um tudo-nada de insolência, que, todavia, se apresentara o momento de mostrar o seu famoso pulso de ferro. Nessa altura, João levantou-se, pálido de raiva, e, aproveitando o facto de os cavalos, numa subida, terem abrandado o passo, saltou da carruagem, pouco faltando para ter ficado debaixo de uma roda.
O cocheiro puxou as rédeas e os cavalos encabritaram-se. Quando a condessa e o cura chegaram junto dele, já João se levantara. Nada sofrera. Nessa estrada deserta, mãe e filho enfrentaram-se com os olhos, sem nada dizerem. O tempo estava nublado, com intermitentes raios de sol. As cigarras interrompiam-se, para recomeçarem com uma espécie de longo prelúdio arranhante. O cocheiro tinha dificuldade em manter quietos os cavalos, repletos de moscas, que ia sacudindo com o chicote.
- Não posso deixar de dar razão ao teu tio. És uma criança impossível.
Ele, porém, retomava a sua argumentação: não a vira desde o último trimestre, fizera essa viagem expressamente por causa dele e pretendia roubar-lhe a única noite que podiam passar juntos...
- Ouve, João, meu querido filho! Prometi ao teu tio, empenhei a minha palavra... Na próxima vez, reservar-te-ei uma noite inteira - e, para isso, não hei-de esperar pelo fim das férias. Mas não há necessidade de irritarmos o teu tio. Vamos, sobe, e senta-te no meio de nós. Não o importuna muito, sr. cura? Encosta-te bem a mim, como um bebé - acrescentou, envolvendo-o com o braço.
Não resistiu mais - abandonou-se. Finalmente, cedera! A sombra dos pinheiros, estendendo-se, ia riscando a estrada a toda a largura. O abade Calou voltou a cabeça.
- É a hora de apanhar as cigarras - afirmou João. - Descem, com o sol, ao longo dos pinheiros e cantam quase à altura de um homem.
A condessa suspirou, aliviada. Falava de outra coisa, largara a presa. Diante do presbitério, avisou o cocheiro de que não valia a pena desatrelar os cavalos, visto que partiria para Vallandraut antes das oito horas. O homem, contudo, nada quis ouvir: queria dar de comer e beber aos cavalos. com tais calores, tinham necessidade de ser bem tratados. A condessa apenas obteve a promessa de que lhes não tiraria os arreios.
À mesa, queixou-se de que o maravilhoso almoço da sr.a Pian lhe não permitia fazer as necessárias honras aos frangos de Maria. Eram apenas sete horas e a luz horizontal inundava a salita de jantar do presbitério, apesar do estore corrido.
- Que sala encantadora! - dizia. - Imagino que seria assim a sala de jantar de Jocelyn...
Apenas sujava o prato, voltando-se constantemente para a cozinha. O serviço era lento, porque Maria não tinha quem a ajudasse. O cura foi obrigado a levantar-se, por várias vezes, regressando da cozinha com a travessa, mas sem a mínima alegria ou boa disposição, talvez ainda um pouco magoado com o que se passara na carruagem. João não se espantava de que o padre se mostrasse insensível aos encantos de sua mãe. Era da ordem: "Essas coisas não lhes interessam" - ia pensando. - E, além disso, ela não dissimulava muito a sua pressa de partir. Até ela própria se apercebeu disso, procurando desculpar-se: o cocheiro metia-lhe medo, achava-lhe uma cara patibular...
- Não desejo nada encontrar-me nas estradas, de noite, com este homem...
João interrompeu-a:
- Acompanhá-la-ei de bicicleta, mamã!
A condessa mordeu os lábios.
- ó João! Decerto não vais recomeçar. Tinhas-me prometido...
Baixou a cabeça. Maria transportava o guisado, a sua coroa de glória.
- Não comerá muitos como esse - afirmou o cura.
A condessa esforçou-se por engolir algumas garfadas.
Já não podia mais, mas sentia prazer em agradar e ser-lhe-ia muito duro partir, deixando atrás de si pessoas decepcionadas. Procurou, portanto, ser amável para com o seu hospedeiro e terna para com o filho. O cura não desenrugava a fronte. Acabada a sobremesa, saiu para ler um bocado do seu breviário. A condessa compreendeu que ele queria proporcionar-lhes alguns instantes íntimos, antes de se separarem. Assim o compreendeu João também, aproximando-se da mãe. Poderia contar com toda a precisão o que ela sentia durante esses minutos: sabia que tinha pressa de partir e vergonha de o manifestar. Sentia-se obrigada a acariciar os cabelos do filho, mas consultando muitas vezes, com olhares furtivos, o antigo relógio de parede colocado por cima da chaminé. João, que lhe surpreendeu os olhares, avisou-a: "Adianta-se bastante..." Ela protestou que podia conceder-lhe ainda uns instantes. Fazia-lhe recomendações, com voz distraída. Afinal, o abade Calou não era assim tão terrível, no fundo... João não era infeliz.
- Não, mãe; claro que não. Sou até feliz, muito feliz - acrescentou com tímido ardor.
Não lhe viu as faces coradas nem se apercebeu do seu estremecimento. Na véspera, resolvera confiar-se à mãe, esperando que não viesse a rir-se ou a divertir-se com ele, mas que tomasse as coisas a sério... Deixara, porém, passar o tempo e, agora, era tarde já para se expandir... Mais valia não pronunciar o nome de Micaela no último minuto. As razões, que apresentava a si próprio, escondiam outra, que não ousara confessar: era completamente inútil entregar-se a essa criatura longínqua. Muitos anos mais tarde, num dia em que João me falava, ao canto da minha lareira, na Rua Vaneau, em Paris, das horas mais sombrias da sua vida, não esqueceu esse crepúsculo ainda cálido, na sala de jantar do presbitério, onde se encontrava junto da mãe adorada, quase com os joelhos a tocarem-se, espiando os seus incessantes olhares para o relógio. Pela porta envidraçada, entrevia o cura, que ia e vinha, através da horta, lendo o seu breviário.
- Voltarei antes do fim das férias, meu filho! Prometo-to. E terás, então, a tua noite completa.
Não respondeu. Ela ordenou ao cocheiro que baixasse a capota da carruagem. João subiu ao estribo e apoiou os lábios no pescoço da mãe.
- Desce! Não vês que mal pode segurar os cavalos...
Uma nuvem de pó se levantou, recaindo novamente. João esperou que a carruagem desaparecesse na última curva e regressou ao jardim. Descalçou-se, agarrou em regadores e pôs-se a regar a chicória que transplantara na véspera. O sr. Calou, sem lhe dirigir a palavra, dirigiu-se para a Igreja, a fim de rezar as suas orações. No regresso, já João se encontrava deitado. Atirou-lhe as boas-noites, através da porta, numa voz já ensonada. Antes de se deitar, ainda o cura acabou por descer, a fim de se certificar de que deixara a porta bem trancada. Contra o costume, não deixou a chave pendurada no prego do corredor. Agarrou nela e foi escondê-la sob o seu travesseiro. Depois, ajoelhado junto do leito, rezou durante mais tempo do que nas outras noites.
De início, o abade Calou julgara que o vento o acordara, esse vento que soprava com violência, muito embora a noite fosse pura e o luar iluminasse o soalho. Um guarda-vento batia algures. Debruçando-se à janela, o cura verificou que se tratava da janela do quarto que ficava exactamente por cima do seu, onde o João dormia. O fecho da janela devia ter-se soltado. Enfiou a sotaina, subiu às águas-furtadas e abriu o mais docemente possível a porta do quarto de João, a fim de fechar a janela. Violenta corrente de ar espalhou na mesa o conteúdo de um vaso cheio de urze, que Micaela colhera. Ao primeiro relance de olhos, logo o abade verificou que a cama se encontrava vazia. Após alguns segundos, retomou o fôlego, desceu ao rés-do-chão e verificou a porta, cuja tranca não havia sido retirada, nem a fechadura forçada. Fora pela janela que o louco certamente fugira, fincando-se na goteira. O cura foi retirar a chave de sob o travesseiro, e saiu.
A noite devotara-se ao vento e à Lua. Enorme ramalhar de pinheiros envolvia o presbitério. Não se ouvia a queixa ofendida e frequentemente interrompida do mar. Nenhuma vaga, nenhum revolutear de espuma destruía o rumor do vento nas árvores. Antes de mais nada, dirigiu-se o cura à arrecadação, onde se guardavam as duas bicicletas (alugara outra, em Vallandraut, para o seu pensionista), e só encontrou a sua. Na esquina da casa, em que a goteira acabava, permitiu-lhe o luar ver no chão os vestígios de uma queda. João devia ter saltado de bastante alto, porque as marcas dos saltos tinham ficado nitidamente evidentes. O abade voltou à arrecadação, agarrou na sua bicicleta, e hesitou.
Era quase meia-noite. O rapaz devia ter fugido pelas onze.
Demasiado tarde para intervir: o mal estava feito. Mas que mal? Para quê perder a cabeça? Que haveria de trágico numa cena furiosa entre mãe e filho, pela noite dentro, numa estalagem de Vallandraut? E, principalmente, que poderia importar isso ao cura de Baluzac? Claro que se encontrava encarregado do rapaz, pelo qual se declarara responsável.
Ele, porém, regressaria de manhã e o mais simples seria fechar os olhos. Não há necessidade de nos apercebermos de certas coisas ou de nos colocarmos na situação de tornarmos inevitável uma repressão que, de uma só vez, nos obrigaria a perder todas as vantagens adquiridas... Tratava-se bem disso, porém!
O cura caminhou alguns passos por entre as groselheiras, abriu o portal e contemplou a estrada vazia, iluminada pelo luar.
Impossível ir em socorro da criança, dessa criança que ele tanto amava e que, possivelmente, a essa mesma hora sofreria uma provação mortal. A mãe lá tinha as suas razões para pretender ficar só, durante toda a noite. Opusera a João uma recusa obstinada, feroz, quase cheia de ódio. O abade tentou persuadir-se de que estava a variar... Mas não! Conhecia muito bem essa espécie de criaturas, senhoras de uma exigência (que João, aliás, herdara), de um frenesim que as levaria a espezinhar até os corpos dos próprios filhos. Talvez, no entanto, estivesse a exagerar o perigo, só porque amava o rapaz.
Era a primeira vez que se deixava ligar a um pensionista seu. Ainda não houvera ocasião para tal, desde que se encarregara de domesticar os "temperamentos difíceis". Não fora por necessidade que se impusera semelhante tarefa. O irmão, proprietário em Sauternais, e a quem abandonara a sua parte da herança, todos os anos lhe enviava uma quantia, que variava segundo as colheitas, mas que nunca ultrapassava os seis mil francos. com o seu tratamento e os seus quase nulos extraordinários, era mais do que necessitava, pois vivia da sua horta, do seu galinheiro e das dádivas em géneros dos paroquianos. Se, pois, se encarregava de rapazes, a quem os pais não conseguiam fazer acertar o passo, não era por necessidade de proventos materiais, mas simplesmente porque gostava de esticar os fios e conduzir uma busca paciente, não perdendo a esperança de, um dia, ver cair-lhe em casa essas aves selvagens, que mereciam os seus cuidados, e das quais faria verdadeiros homens. Acreditava consegui-lo mais facilmente chamando a si os refractários. Claro que, no sr. Calou, não passava de um resto de romantismo, uma herança do seminarista que fora, essa predilecção pelos "espíritos rebeldes". Mas fornecia-lhe um prazer mais secreto, mais interior: o de se tornar fiador, perante o Pai Celeste, desses seres jovens e ameaçados, quando não já atingidos pelos horrores da vida, de todos quantos se não importam de se perderem ou salvarem. Não se tratava de uma virtude, mas antes de uma preferência, de uma inclinação.
Até então, suportara os pensionistas porque amava a infância e a adolescência. Em todos, porém, o encanto passageiro da idade encobria um fundo sólido e permanente de vulgaridade, de estupidez e de velhacaria. Uma graça efémera revestia com o seu brilho o burguesito insensível e de modelo vulgar. com João de Mirbel, porém, obtivera o abade Calou, pela primeira vez, o que esperava de Deus. Fora, enfim, visitado por uma criança, que possuía uma alma.
Uma alma, no entanto, inacessível. Isso pouco importava. O abade Calou fazia parte desses seres que, desde a juventude, se votaram ao desinteresse pela velhice, quando o coração nada mais pede em troca do que aquilo que dá. O pior era que João, nem se deixaria amar, nem proteger. Nem o próprio abade fora capaz de conjurar o perigo desse encontro nocturno entre a mãe e o filho, mesmo quando o tinha sujeito e quando uma vigilância absolutamente material teria bastado. Que aconteceria, quando a criança abandonasse o presbitério para percorrer todos os caminhos do mundo? (Porque o abade nem por sombras o imaginava sedentário e a vegetar no fundo de um castelo de Armagnac). E, todavia, nem mesmo nesse próprio momento o abade de Baluzac se lamentava do encargo que assumira para com o pequeno... Onde se encontraria, agora? Onde ir procurá-lo? Onde encontrá-lo? Sem dúvida, havia de regressar pela manhã. Caso contrário, o abade iria ao seu encontro. Enquanto esperava, nada mais havia a fazer do que aquecer o café. Dirigiu-se à cozinha e, puxando as cortinas, para que a Lua a pudesse iluminar, lançou o fogo a alguns cavacos. Sentando-se, em seguida, na cadeira baixa da Maria, sacou da algibeira o seu rosário de caroços de azeitona e não pensou em mais nada. A Lua banhava-lhe a nuca, de cabelos pouco cuidados. Como tinha os cotovelos apoiados nas coxas, as mãos enormes, lançadas para a frente, tomavam uma grandeza estranha, desmesurada...
João esperara, para se evadir, o momento de ouvir, através do soalho, a respiração do cura adormecido. Ainda o relógio não batera as onze badaladas, e já ele corria pela estrada enluarada. O vento puxava-o, de forma que ia pedalando sem esforço, numa espécie de calma embriaguez, na certeza de que nenhuma força do mundo o impediria nunca de conseguir o que uma vez resolvera. Veria a mãe, nessa noite. Velaria à sua cabeceira até ao romper da aurora. Tinha tanto a certeza disso como a de que, um dia, haveria de apertar Micaela nos braços. Jamais pedalara dessa forma, de noite, iluminado pela claridade do Céu e transportado nas asas do vento, por sobre um mundo deserto. Nenhuma apreensão sobre o que iria passar-se entre ele e a mãe. Na presença de testemunhas, parecera ela a mais forte. Sozinha, no entanto, tê-la-ia à sua mercê.
Caminhava rapidamente, e bem depressa atravessou a neblina, que pairava sobre o Ciron, no sítio em que a estrada começa a descer, um pouco antes das primeiras casas de Vallandraut. Nesse momento, perdeu toda a sua soberba. Imaginou a estalagem já barricada. Que diria ele, a fim de explicar a sua vinda e para obrigar a que acordassem a mãe? Que pretexto inventar? Tanto pior. Dir-lhe-ia que adoecera à simples ideia de não mais a tornar a ver e que o abade Calou o aconselhara a tentar a sorte. Em plena noite, numa estalagem, a mãe não poderia protestar muito, por causa do escândalo. E ele procuraria enternecê-la. Sim, havia de acabar por conseguir enternecê-la. Em todo o caso, não se deixaria ceder à raiva. Choraria com o rosto encostado ao seu vestido e beijar-lhe-ia as mãos.
Chegou ao local em que os carros, com os varais levantados, desenhavam no solo uma espécie de animal com chifres. A Lua, no declínio, batia de chapa na fachada leprosa do Hotel Larrue e na inscrição, em letras negras: "Recebem-se hóspedes e carruagens."
O café encontrava-se ainda iluminado, e ouviu os choques das bolas de bilhar. Encostou a bicicleta à parede e pediu uma garrafa de limonada a uma rapariga gorda e sonolenta, sentada numa cadeira, perto do balcão deserto. Respondeu-lhe, de mau modo, que era já bastante tarde, que o Hotel devia estar fechado já, e que não se serviam bebidas para além das onze horas. Então, fez a pergunta, que trazia engatilhada:
- A condessa de Mirbel estaria, de facto, no Hotel? Trazia-lhe uma mensagem urgente...
- A condessa? Que condessa?
A desconfiada rapariga pensou numa farsa. Disse que tinha mais que fazer do que ouvir histórias e que ele, com a idade que tinha, melhor faria em ir para casa do que andar na vadiagem.
- Mas ouça! Há aqui uma senhora (pensou que talvez não tivesse dado o nome), uma senhora loura, com um chapéu de palha, um vestido de saia e casaco de cor cinzenta...
- Uma senhora loura? Espere um pouco...
Um raiozito surgiu no olhar estúpido.
- Com um vestido de saia e casaco - acrescentou a rapariga -, um véu com bolinhas e uma linda mala, que aqui deixara a guardar...
João, impaciente, interrompeu-a: Qual era o seu quarto?
- O seu quarto? Mas ela não veio cá dormir. Apenas veio buscar a bagagem... Foi dormir a Balauze - insistiu. - Levei, de manhã, um telegrama, com a direcção do Hotel Garbet, para reservar um quarto.
João reflectiu que Balauze era a sub-prefeitura e que sua mãe deveria ter calculado que encontraria maior conforto no Garbet. Contudo, por que razão lhe dissera que iria passar a noite em Vallandraut? Informou-se da distância a que ficava Balauze. Doze quilómetros... Uma hora apenas de bicicleta.
- Quis ir dormir ao Hotel Garbet - continuou a rapariga, que se tornara, repentinamente, faladora (e sem dúvida um tanto hostil à senhora que havia desdenhado do Hotel Larrue). - Mas resta saber se não será em plena estrada que há-de passar a noite...
João mostrou-se inquieto:
- Mas porquê? Os cavalos eram maus?
- Cavalos? Imagine que foi uma carruagem movida a gasolina que a veio buscar. Todo o Vallandraut deitou o nariz de fora. Imagine o barulho que aquilo fazia e o cheiro a gasolina e a óleo. E a poeira! Sem falar já na galinha da sr.a Caffins, que eles esmagaram... Quanto a isso, sejamos justos: pagaram-na por muito mais do que ela valia... E se Você tivesse visto o cavalheiro, com os enormes óculos, que lhe cobriam quase toda a cara, assim como que uma máscara de meter medo, com um guarda-pó cinzento até aos pés... Meu Deus! O que se inventa, nos dias de hoje!
- Então, no Hotel Garbet, em Balauze? Na praça da Igreja? Tem a certeza?
Agradeceu, montou na bicicleta, deixou a estrada de Baluzac e voltou à direita. Agora, o vento dava-lhe de frente e lutava contra essa força invisível, contra esse poder hostil, ou talvez piedoso, que lhe retardava a corrida para Balauze. Se estivesse acompanhado pelos Pian, não mostraria a sua fraqueza. Mas, sozinho, desceu da bicicleta, logo na primeira subida. Apesar do vento fresco da noite, corria-lhe o suor pela cara abaixo e doíam-lhe as pernas. Não pensava senão na sua fadiga. Era um homem já, mas uma criança apenas no que respeitava às relações com a mãe. Nem supunha sequer que ela pudesse tomar parte no que conhecia ou pressentia acerca das paixões e dos crimes humanos. O pai e o tio mais não eram, aos seus olhos, do que simples carrascos. Guardara dos primeiros anos passados em La Devize a recordação dessa voz agudíssima do pai, galarispo furibundo e patudo, a rodopiar em torno da mãe, mártir silenciosa. O tio Ademar, dono de voz semelhante, conservava certa elegância de atitudes, em presença da cunhada. Nada disso, porém, justificava que lhe acudisse ao espírito infantil a ideia de que, algum dia, a mãe pudesse ter merecido o ódio de ambos.
E, todavia, raro era o dia, que passara com a sua mãe, que ela o não tivesse desconcertado acerca da ideia que dela fazia, ou em que ele se não tivesse apercebido da sua secura, e mormente da sua insinceridade. Essa intrujice a respeito da noite a passar em Balauze não deveria já surpreendê-lo, pois em La Devize, e principalmente em Paris, em casa dos avós La Mirandieuze, onde passava os cinco meses de Janeiro a Junho, João, durante as férias da Páscoa, várias vezes se dera conta das contradições da condessa, que nunca se dava ao trabalho de fazer concordar as suas mentiras. Se, por exemplo, declarava estar ansiosa por conhecer uma peça, de que toda a gente falava, esquecia-se de que, uma noite da semana anterior, dissera sair para ir vê-la e que dela apresentara, no dia seguinte, um resumo entusiástico, embora vago. Quantas vezes João, com a detestável lógica da sua idade, e para quem as palavras da mãe tinham um valor absoluto, a desconcertara com a sua eterna objecção: "Todavia, mãe, tinhas-nos dito..." O que havia dito não concordava sempre, nem sequer frequentemente, com o que contava no próprio momento. Nem tentava mesmo desculpar-se: "De facto, disse isso? Deves tê-lo sonhado, meu querido..." Se algum dia, porém, João pudera nutrir uma suspeita, nada só dela, desde que se encontravam separados. Como não teria concedido uma alma em conformidade com o seu admirável rosto? Na sua imaginação, não era possível aliar a ideia do pecado com essa fronte tão pura, com esse nariz talvez demasiado curto, com essas pálpebras pesadas por sobre as pupilas cor do mar: "glaukopis" (João sublinhara a palavra grega no seu dicionário), e mormente com essa voz de contralto, cheia de vibrações e ligeiras quebras, voz inolvidável, que ainda hoje me encanta, quando vou visitar a velha senhora, a quem o tempo pouco mais pôde destruir do que as mãos, pois a arquitectura do rosto ainda se conserva intacta sob a pele encarquilhada, como uma maravilha grega que resiste, através dos séculos, e as pálpebras se mantém como as margens arruinadas da mesma corrente esverdeada, com reflexos de sargaços e algas.
João pedalava, pela última subida, antes de chegar a Balauze, nada perturbado pelo que tinha ouvido, mas inquieto com o que podia vir a passar-se no Hotel Garbet entre ele e sua mãe, na presença desse estranho. Qual, dos amigos de sua mãe, possuiria um carro movido a gasolina? Devia ser Raul... Chamavam Raul, em casa dos La Mirandieuze, a esse notável dramaturgo, com aquela sem-ccrimónia que usam as pessoas da alta sociedade em chamarem pelo nome próprio a um homem tão célebre como àquele era. Na verdade, não se chamava Raul. Mas não citarei aqui o verdadeiro nome, por mais esquecido que ande já hoje, de quem foi tão célebre como os Donnay, os Bernstein, os Porto-Rico. Se já nada resta de uma obra que, nessa época, ocupava lugar de relevo, se os próprios títulos das suas peças mais célebres se apagaram da memória dos homens, a verdade é que nem por isso terá deixado um traço menos profundo em bastantes vidas, que ainda não desapareceram e que, como a da condessa de Mirbel, se arrastam na estagnação, antes de se aniquilarem no esquecimento total.
Nem por um instante sequer, João poderia imaginar que houvesse o mais pequeno laço secreto entre sua mãe e esse corpulento quarentão. E ia pensando: "Ela devia ter achado cómoda e agradável essa viagem num carro a gasolina. Mas não fora bonito tê-lo privado a ele desse prazer, que havia de torná-lo doido de alegria..." Atravessou uma rua estreita e sombria, que ia desembocar em frente da Catedral, numa praça com arcadas em volta. Encontrava-se deserta. Percorreu-a na bicicleta e só dificilmente pôde descobrir o Hotel à sombra da igreja. Tinha sido construído nas dependências do antigo paço episcopal e apenas uma ruela o separava da Catedral. Tanto a porta principal como a dos carros se encontravam fechadas, assim como as janelas, com excepção das do primeiro andar, onde duas delas apareciam entreabertas. Tocar, bater à porta, acordar toda a gente, em plena noite? Mas com que pretexto? Poderia pedir pousada, mas quase não tinha dinheiro. A mãe pagaria por ele?... Hesitava. E, se bem que de nada suspeitasse, a verdade é que sentia, embora um tanto obscuramente, que não devia fazer semelhante coisa, que não devia dar mais um passo na direcção que tão loucamente seguira. Quanto a retroceder caminho para Baluzac, seria o mesmo que dar-se por vencido, coisa em que não consentiria por nada deste mundo. Resolveu instalar-se sob uma espécie de cornija baixa, entre dois contrafortes da Catedral, e esperar pelo romper do dia. Tão estreita era a ruela que quase se encontrava sob as janelas do Hotel. Quando a mãe saísse, beijá-la-ia, sem quaisquer palavras, e com todas as suas forças. Tão espantada havia de ficar que nenhuma pergunta lhe faria. Veria, então, o quanto a amava esse filho, que fizera tal viagem em plena noite e que velara, extenuado de fadiga e cheio de fome, simplesmente para poder beijá-la uma vez mais. Encontrava-se ela a repousar, por trás dessa parede, sem dúvida no primeiro andar, no quarto das janelas entreabertas, uma vez que dormia sempre com as janelas abertas. A lua desaparecera por trás do campanário da igreja. Mas o luar empalidecia o Céu, apenas deixando cintilar uma e outra estrela. João sentia frio e a pedra dura martirizava-o. Deitou-se sobre as ervas. Mas, mordido por urtigas invisíveis, levantara-se, gemendo. Um cão, que despertara, ladrara ao longe, para logo se calar. A cantada dos galos vinha ainda longe. Nesse momento, pensou em Micaela, o mais castamente que lhe era possível, a ele, que não era nada puro. Mantinha-a abraçada em espírito, sem outro prazer que não fosse o simples repousar encostado a um coração fiel. E se, bem perto dele, do outro lado da rua, por trás das janelas meio fechadas...
Mais tarde, tudo haveria de saber a respeito da mãe. Todas as ligações desse homem eram notórias e marcadas com o mesmo horrível sinal. Muitos romances se chamam - ou poderiam chamar-se - Um Coração de Mulher. Muitos psicólogos profissionais se hão debruçado sobre o mistério feminino... A razão de ser do homem que, nessa noite compartilhava do leito da condessa de Mirbel, no Hotel Garbet, era a de reduzir tal mistério às suas ínfimas proporções. As vítimas sabiam perfeitamente o que poderiam esperar dele. Todas as que possuíra ficavam assinaladas com a mesma marca: uma sede inesgotável. Todas se transformavam em errantes inimigas dos deveres humanos, obcecadas por quanto haviam sofrido. "Tu não te conheces bem - soprava-lhes ele -, ignoras as tuas possibilidades, os teus limites, e não sabes até onde podes ir..." Uma vez abandonadas, apenas lhes ficava essa perigosa ciência de prazer, mais difícil de adquirir do que os virtuosos podem pensar, visto que os seres verdadeiramente perversos são quase tão raros no mundo como os santos. Se raramente se topa com um santo no caminho, também é raro topar-se com o ser capaz de provocar esse gemido, esse grito mesclado de horror, mormente à medida que a sombra do tempo vai caindo sobre um corpo minado e lentamente destruído, simultaneamente, pela idade e pelo desejo, pelos anos e por uma paixão a que já não pode furtar-se.
Nada se escreveu ainda acerca do suplício da velhice de certas mulheres, o verdadeiro Inferno que começa nestas paragens.
Durante muito tempo, João perdeu o conhecimento, com a cabeça apoiada ao ângulo formado pela parede e pelo contraforte. Acordou-o a dor da má posição, se não foi antes o frio ou a voz de um homem a falar, na janela que se encontrava mesmo por cima dele.
- Anda cá ver. Não sei se é a Lua ou a alvorada que ilumina o Céu.
Falava para alguém que se encontrava no quarto e que João não podia ver. Conservava-se um pouco retirado e de perfil, envolvido num roupão de seda escura.
- Agasalha-te - acrescentou - porque a noite está fria.
Debruçou-se, afastando-se um pouco para dar lugar à mulher, mas continuando a ocupar, sozinho, quase toda a janela, pelo que a leve figura branca apenas pôde colocar-se entre a parede e esse busto enorme.
- Que solidão maravilhosa! E que silêncio!... Não, querido, não sinto frio...
- Mas está frio. Põe a manta pelos ombros.
A mulher desapareceu da janela, para regressar de novo, coberta com um roupão de homem, que a tornava maior e lhe fazia a cabeça mais pequenina. Assim se conservaram por um largo espaço, sem trocarem uma palavra sequer.
- Como somos pequeninos - disse o homem. - Acreditas que as pessoas, que dormem nestas casas, terão visto, algum dia, as minhas peças? Ou que conheçam simplesmente o meu nome?
- Leram-nas na Illustration.
- É verdade! - acrescentou ele, animado. - O suplemento da Illustration entra em toda a parte... Quando mais não seja, nas barbearias e nos cabeleireiros... Que linda cena, este lugar, hem? Para mim, no entanto, o ar livre não me interessa.
É necessário que estas coisas se passem dentro de quatro paredes.
Ela respondeu-lhe qualquer coisa, em voz baixa, refreando o riso. O homem riu também, e acrescentou:
- Derruba-se uma das quatro paredes. Isso mesmo devia ser o teatro, a peça com que sonho...
- Sem diálogo, nesse caso?
Falavam em voz baixa. João nada mais conseguiu ouvir do que as pancadas do sangue nos ouvidos.
Soou a uma hora.
- Não, não! Agora é necessário dormir...
De novo, o mesmo riso refreado. Apoiou a cabeça no ombro que o homem lhe oferecia. João olhava para a empena que dominava a fachada. A porta dos carros devia ser muito antiga, com a sua ferradura pendurada no batente. Conseguiu ler: Hotel Garbet, casamentos e banquetes. No seu espírito, ia comparando o homem, que se encontrava à janela, e de cuja voz conhecia toda e qualquer entonação, com esse homem maduro, de cabelos pintados e ligados por sobre um crânio calvo, a quem os La Mirandieuze chamavam Raul. O socorro que, instintivamente, procurava no mais fundo de si próprio, contra uma dor atroz que, nessa altura, ainda não sentia, veio a manifestar-se numa simples palavra, que pronunciou em voz bastante distinta: "É cómico!" E repetia, num tom de mofa: "Mas que coisa tão cómica!" E ainda: "Pois muito bem, minha velha!" Ouviu o leve ruído da janela a fechar-se. "Assim como assim, se isso a diverte... Não fazem mal a ninguém..." E, de repente, invadiu-o o terrível pânico de se ver descoberto, de ter que falar-lhe ou ouvir-lhe as explicações. Que horror ser forçado a enfrentar a cara envergonhada e balbuciante da própria mãe! Saltou para a bicicleta e atravessou a praça, sem sentir a fadiga, na incomensurável alegria de alargar tanto quanto possível a distância entre ele e esse quarto de Balauze. Na primeira subida, porém, sentiu-se fraquejar. Apeou-se, levou a bicicleta até junto de uma meda, atirou-se para cima do feno... e ali ficou sem conhecimento. Como o feno o aquecia! Estava a escaldar, apesar do frio da madrugada. Doía-lhe a cabeça. Devia ser uma calhandra que cantava, mesmo por cima dele, na cerração. Próximo de si, uma galinha, com a sua ninhada, ia esgaravatando a terra, a cacarejar. Experimentou levantar-se, mas sentiu um arrepio. "Que febre que eu tenho!" - disse. - Agarrou na bicicleta e experimentou dar alguns passos. A cem metros, no cruzamento da estrada de Uzeste, um ramo de pinheiro, suspenso na parte superior da porta, anunciava uma estalagem. Teve dificuldade em chegar até lá e em pedir um café bem quente. Uma velha fixava-o, murmurando em dialecto. O sol inundava já o banco, que se encontrava no limiar e no qual se deixou cair. E se o carro a gasolina surgisse de repente? Mas não! Levantar-se-iam tarde, tinham muito tempo, os porcos! Mas que grandes porcos! Não por praticarem o amor carnal, mas sim por se mostrarem ridículos. Para ele, acabara-se o caminho. Jamais caminharia, por certo, fosse por causa de quem fosse. Todas as pessoas dormem umas com as outras. É a vida! Com quem dormiria o tio Ademar? E o sr. Rausch? E o abade Calou? Seria engraçado vigiá-lo, a esse! Havia de lhes perguntar isso, a todos eles... A menos que rebentasse antes disso!
Molhou os lábios no café, bebeu alguns golos e voltou-se para vomitar. Com a cabeça apoiada no muro, fechou os olhos, sem a força necessária para enxotar as moscas que lhe pousavam nas faces, a escaldar. Passava uma bicicleta. Afrouxou. Ouviu um grito e o seu nome repetido várias vezes. Junto dele, o rosto ansioso do abade Calou. Fazendo um esforço, talvez pudesse tentar compreender, responder. Mas, desde que o cura ali estava... nada mais lhe restava do que abandonar-se, deixar-se afundar. Sentiu que o levantavam como a uma criancinha e o deitavam numa cama, num quarto escuro que cheirava a estrume. O abade Calou envolvera-o na sua romeira preta e discutira durante muito tempo com a estalajadeira, que não queria alugar-lhe a carruagem, por ser dia de feira em Balauze. "Custe lá o que custar..." - repetia a voz irritada do abade Calou. As ferraduras do cavalo soaram, finalmente, no pavimento do pátio. Tinham posto palha na carriola. O cura levantou João, ainda adormecido, e cuja cabeça lhe bamboleava no ombro, e estendeu-o por sobre a palha, depois de o ter envolvido na sua romeira. Tirara a camisola de malha que, de madrugada, vestira sob a sotaina, enrolando-a ao pescoço do rapaz.
A plcurisia foi bastante séria, pois, durante quinze dias, tudo foi possível recear. O zuavo do Papa passou quarenta e oito horas no presbitério e estabeleceu, com o abade Calou, em que não havia necessidade de importunar a condessa. Falaram-lhe numa grande bronquite e ela não manifestara qualquer inquietação. Ainda não existiam as curas de altitude ou, por outra, o seu uso não se encontrava ainda muito espalhado. O médico, que consultaram em Bordéus, mostrara preferência pelo ar dos pinheiros para essas espécies de doenças, aconselhando o coronel a que aceitasse o oferecimento do abade Calou. Este encarregava-se de preparar o rapaz, evitando-lhe qualquer excesso, para tirar o curso dos liceus em dois anos. No fundo, porém, o que acabou por decidir o zuavo do Papa foi a sua repugnância em reenviar o sobrinho para um colégio desonrado pelo "escândalo do casamento de Puybaraud".
Na noite em que assentaram na decisão de deixar João em Baluzac, o cura pretenderia que Deus fosse Alguém a Quem pudesse beijar as mãos e os pés, em sinal de gratidão. João mantinha um silêncio hostil e só abria a boca para pedir, em tom imperioso, o que lhe era necessário. O abade Calou nada sabia do que se passara em Balauze. Bastava-lhe ver a ferida. Como o golpe havia sido desferido e com que arma, sabê-lo-ia um dia, mais cedo ou mais tarde, ou talvez nunca mais. Não era isso o que importava, mas tão-somente o impedir que a infecção pudesse vir a espalhar-se. Ao cair da noite, sentou-se à cabeceira de João, sonolento, perguntando-lhe se o inverno, em Baluzac, não lhe metia medo. O rapaz ripostou que tudo seria melhor que Rausch, embora lamentasse o não poder dar execução ao seu projecto de lhe "partir a cara".
O cura fingiu acreditar que ele estava a brincar.
- E hás-de ver as ricas fogueiras que faço, nas noites de trabalho e de leituras. Tomam-se notas e beberrica-se licor de nozes. O vento do oeste faz gemer os pinheiros e atira pancadas de água contra as portadas das janelas...
Com voz estranha, João afirmou que "isso não devia ser beleza nenhuma..." O abade Calou retorquiu-lhe, com toda a calma, que o importante era possuir a beleza na alma.
- Ora, vejam! (Sempre a voz de outrem, a voz estranha!)
O abade, sem se desconcertar, meteu o rosário na algibeira da sotaina e puxou de um cachimbo, que apenas cheirou, pois achava que não devia fumar no quarto do doente.
- Ora! Eu sou um velho que já atingiu o bom porto.
- Claro, claro! O bom Deus! Já se cá sabia!
O cura levantou-se e pôs a mão sobre a testa de João.
- O bom Deus, agora e sempre, por certo!
Aliás, tinha agora um filho, um mau rapaz, ou que apenas pretendia ser mau, mas seu filho, apesar de tudo... João encostou-se às almofadas e gritou:
- Não tenha ilusões! Se quer saber, odeio tudo quanto o senhor representa!
- Olha que vais fazer com que te aumente a febre - respondeu o cura.
Como o pobre pequeno sofria! "Encarniça-se contra mim só porque me encontro ao seu lado e não tem mais ninguém em quem possa morder..." O abade, com os cotovelos sobre os joelhos, ia reflectindo, mantendo expressamente a cara na sombra, pelo facto de João, do fundo das almofadas, se esforçar por ver se o golpe o tinha atingido. Mesmo que a lâmpada, porém, o iluminasse em cheio, nada o doente poderia ter decifrado nesse rosto vazio de toda e qualquer expressão. E, de repente, sentiu vergonha do que afirmara.
- Não é contra si que digo coisas destas - continuou, em voz baixa.
O abade Calou jungiu os ombros.
- São palavras para te acalmares... Em breve, porém, poderás receber visitas.
- Não conheço ninguém.
- E os Pian?
- Desde que não vieram, nem escreveram...
- Todos os dias pedem notícias tuas.
- Mas não vieram... - insistiu, voltando-se contra a parede.
Um dos nossos fazendeiros, que vivia em Baluzac e nos trazia o leite, todas as manhãs, transmitia-nos, efectivamente, notícias de João. O cura, porém, admirava-se de não termos dado ainda directamente, nenhum sinal de vida. Não tinha dúvidas de que isso penalizasse Mirbel, sem, no entanto, poder atingir a medida em que a nossa aparente indiferença o havia atingido. O cura de Baluzac, entretanto, persuadido de que, por trás da cortina, se encontrava "a mãe Brigitte", resolveu dirigir-se a Larjuzon, logo que o seu doente se encontrasse melhor, a fim de se tranquilizar a esse respeito.
Em Larjuzon, o correio chegava quando a família se encontrava reunida, durante o pequeno almoço. A minha madrasta, quer regressasse da missa, quer descesse do seu quarto, encontrava-se já completamente vestida e abotoada até ao pescoço. Na manhã, em que li, em voz alta, a carta do abade Calou, a anunciar-nos a doença do João, evidenciava a sua cara dura, franzida, dos maus dias. Tinha de ensinar o catecismo, às onze horas, às crianças da primeira comunhão, as quais, a acreditar em si, eram manhosas, estúpidas, incapazes de compreenderem fosse o que fosse e apenas se divertindo com alfinetarem-se, mutuamente, nas partes carnudas. Além disso, sujas, manchando os soalhos e a cheirarem mal. Quanto ao menor sentimento de gratidão - ora, ora! Mesmo que uma pessoa se esfalfasse ao seu serviço, os próprios pais seriam os primeiros, em qualquer caso, a roubar-nos e a assassinar-nos. Bem sabíamos que, nesses dias de catecismo, o menor choque bastava para que o fogoso temperamento, com que o Céu dotara a sr.a Brigitte, se manifestasse imediatamente.
- Meu Deus! - gritou Micaela, mal acabara de ler a carta. - Devemos ir imediatamente a Baluzac. E eu que nem sequer estou vestida...
A voz da minha madrasta ecoou:
- Decerto que não pretendes ir agora mesmo, de manhã, a Baluzac!
- Mas claro que sim! O pobre João...
- Proibo-to!
- Mas por que não há-de ser esta manhã mesmo?
- Nem esta manhã, nem esta tarde! - atalhou a sr.a Brigitte, pálida de cólera.
Olhámo-nos, estupefactos. Embora as suas relações com minha irmã se mostrassem sempre tensas, a verdade é que, até então, sempre evitara a luta aberta.
- Que mal há nisso? - inquiriu Micaela, já com insolência.
- Não vejo nenhuma razão para esperarmos pelo dia de amanhã. - Nem amanhã lá irás. Nunca mais irás a Baluzac - gritou. - E não te finjas admirada, minha hipòcritazinha!
Meu pai levantou o rosto assombrado por cima do Nouvelliste:
- Então, Brigitte! Por que razão te perturbas tu?
- Há muito tempo que o devia ter feito! (E a voz tornou-se-lhe solene).
Como Micaela perguntasse de que a acusavam, declarou:
- Não te acuso de nada! Apenas creio no mal quando o vejo com os meus próprios olhos!
Meu pai levantou-se. Envergava o seu velho roupão castanho. Tufos de pêlos esbranquiçados passavam-lhe por sobre o colarinho desabotoado da camisa.
- Isso não impede que tenhas dado a entender...
Brigitte fixou no marido um olhar angelical:
- Também sofro com o teu sofrimento. Mas é necessário que fiques a saber: diz-se que ela se encontra com o pequeno Mirbel, por trás do moinho do sr. Du Buch.
Micaela respondeu com firmeza que era verdade, que se encontrara com João, algumas vezes. Que mal havia nisso?
- Não te faças ingénua, que não te fica bem! Houve quem te visse.
- Mas que é que podiam ter visto? Não havia nada que ver.
Meu pai atraiu-a ternamente a si.
- Efectivamente, nenhum mal existe em te encontrares com o pequeno Mirbel no moinho do sr. Du Buch. No entanto, apesar de não passares de uma criança, pareces mais idosa e as pessoas da terra, sobretudo as mulheres, são como víboras.
Brigitte interrompeu-o:
- Como víboras, efectivamente... E não precisas de tomar a defesa da Micaela contra mim. É para a colocar ao abrigo da maledicência, e talvez da calúnia, que intervenho, antes que possa ser tarde. O pequeno Mirbel é um transviado. Que Deus me perdoe tê-lo recebido nesta casa! Até onde terá ido? - acrescentou, a meia voz, com um ar de sombria reflexão. - Eis a questão.
Como, de repente, se tornara doce! Meu pai segurou-a pelos pulsos:
- Vais despejar o saco! Que houve?
- Houve... Mas larga-me, primeiro - gritou. - Esqueces quem sou? Queres, então, a verdade? Pois tê-la-ás!
Furiosa, rodeou a mesa e, entrincheirada por trás das pratas e das chávenas, com as mãos apoiadas no espaldar de uma cadeira, recolheu-se ao abrigo das pálpebras membrariosas, e gritou:
- A Micaela é uma rapariga que já procura o homem. Aí tens o que há.
Durante o silêncio, que se seguiu a essas palavras, nem sequer ousámos olhar uns para os outros. A sr.a Brigitte, repentinamente desembriagada, vigiava, não sem angústia, o pai e a filha.
Octávio Pian levantara-se. Parecia muito alto, e exactamente como me recordava de o ter conhecido antes da morte da minha mãe. Atingido na sua ternura, nesse sentimento dos pais para com as filhas, onde se encontra tanto respeito e um pudor tão susceptível, que nunca mais perdoam a quem, uma vez, as haja ofendido, saiu das profundezas da sua dor roubado à lembrança da mulher morta por aquela que se encontrava na sua frente, terrivelmente viva.
- Uma criança de quinze anos? Como se isso fosse possível! Não terás vergonha?
- Vergonha de quê? Eu não acuso a Micaela - retornou Brigitte, com voz amansada. - Repito: quero crer, e creio com toda a minha alma, na sua inocência, na sua relativa inocência... Mas as jovens mães de catorze e quinze anos, existiam. Via-se bem que ele não visitava essas desgraçadas!
Ainda hoje me parece estar a ouvir a entonação que ela deu à expressão jovens-mães. Não é possível encerrar em duas palavras uma repulsa mais violenta. Perguntei o que isso significava a Micaela, mas em voz baixa. Ela, porém, não me deu resposta (talvez nem ela própria o soubesse). Com os olhos fixos em meu pai, perguntou:
- Acreditas nela?
- Não, evidentemente, minha querida filha.
E atraiu-a a si. A minha madrasta perguntou:
- Será necessário chamar aqueles que te acusam, aqueles que pretendem ter-te visto com os seus próprios olhos?
- Pois decerto! Por que não? - gritou a pequena.
Meu pai, que, de repente, parecera ter readquirido a calma, disse:
- Ah! Já adivinhei. Trata-se dos Vignotte. São bem conhecidos, esses tais Vignotte... com que então, já te contentas com as bisbilhotices desses indivíduos?...
- Quem te diz que me contento? Repito-te que não acuso ninguém. Cumpro uma penosa obrigação: apelo para um testemunho, eis tudo. Compete-te a ti verificá-lo. O meu dever acaba onde o teu principia.
Brigitte Pian cruzava os braços, imparcial, inatacável, justificada já perante Deus e os Seus anjos.
- E que fazia Micaela, na opinião do Vignotte?
- Poderás perguntar-lho. Não queres, com certeza, que vá sujar os lábios... Será horrível de ouvir... Mas, se for necessário, se exigires a minha comparência, encontrarei a força precisa no amor que sempre vos tive a todos, e muito particularmente à Micaela. Podes escarnecer à tua vontade, pois nunca te amei tanto como neste momento.
Verteu duas ou três lágrimas, que só enxugou depois de as termos visto. Meu pai, muito calmo, pediu-me que fosse procurar o Vignotte.
Este entrou, com o boné na mão, e o olho direito, que apanhara um chumbo numa caçada, completamente fechado. O outro fixava-nos com uma espécie de estupidez intensa. Usava uma barba mal tratada, em volta da boca cheia de raízes de dentes, e tinha as pernas arqueadas. Deixara os tamancos à entrada, deslizara pela porta entreaberta, arrastando os pés, em peúgas, pelo soalho. Ao voltarmo-nos, logo deparávamos com ele, sem que alguém o tivesse pressentido, obsequioso, trocista, tresandando a suor e a alho.
Logo do limiar compreendeu do que se tratava. Meu pai mandou-me sair e pediu a Micaela, com toda a doçura, que fosse para o seu quarto e lá esperasse que a chamassem. Dirigi-me para a saleta, onde me conservei mesmo junto da porta, num estado de excitação em que me parece recordar ainda o domínio de uma esperança vergonhosa: Micaela e João iriam ser separados. Eu poderia, então, repartir-me entre ambos. Nenhuma comunicação poderiam fazer sem ser por meu intermédio e sem que eu o quisesse. Tudo isso não surgia claramente concebido, mas sentido, experimentado, com força incrível. Correra como louco até casa do Vignotte e trouxera-o a toda a pressa, o que era contrário aos hábitos desse homem circunspecto, obrigando-o a seguir-me sem mesmo lhe dar tempo a vestir o casaco. Atrás da porta, ia ouvindo o que ele dizia.
- Eu cá não disse isso... Só vi o que vi... Não, evidentemente, que tenha estado na cabana. Desde havia quanto tempo aí estariam, sem falarem? E que faziam, se não falavam? Não tinha necessidade de ver para saber... Naturalmente, fixavam-se nos olhos? Para mim, claro, tudo isso é indiferente.
Meu pai fazia perguntas, que eu mal ouvia. Não levantava a voz: continuava tão calmo como de costume. Usava, nessas alturas, um dialecto acentuado, que eu compreendia melhor que o resto. Voltara a ser o patrão, que não tem necessidade de gritar e que sabe impor o respeito por uma simples inflexão da voz. Interrompia Brigitte, cortando-lhe a palavra:
- Deixa-me acabar este caso com o Vignotte.
Não se tratava de uma disputa ou discussão, mas apenas de uma apreciação. Quando meu pai deixava de falar, nada mais conseguia ouvir além do barulho que Vignotte fazia ao assoar-se. Em seguida, a minha madrasta abriu a porta tão repentinamente que apenas tive tempo para me afastar um pouco. Nem um olhar me lançou. com o chapéu de palha por sobre os cabelos ralos e as mãos metidas em mitenes brancos, atingiu o vestíbulo, agarrou numa sombrinha e desceu os degraus da escada, com um ar de pessoa menos aborrecida do que simplesmente absorta. Soube, passados minutos, da boca da minha própria irmã, que o pai acabava de manifestar um espírito de decisão, como o que possuíra antigamente, mas do qual já quase nos não recordávamos.
Parecera ter dado razão à mulher com proibir a Micaela, não apenas qualquer visita a Baluzac, mas até qualquer troca de correspondência com João. Admirei-me, ao tomar conhecimento de que essa proibição também me dizia respeito. Para ter a certeza de que a mesma não viria a ser violada, o pai confiscou-nos as bicicletas, até nova ordem. A Irmã Escolástica, superiora da Escola Livre, que devia grandes favores a meus pais seria convidada a dirigir os trabalhos da Micaela, durante os lazeres das férias. No fundo, não desenfiava da filha, como lho afirmara, beijando-a ternamente. Conhecendo, no entanto, a ferocidade das pessoas de Larjuzon, pretendia pô-la ao abrigo dos falatórios das comadres. A sr.a Brigitte teria conquistado, portanto, um triunfo, se o meu pai não tivesse convidado os Vignotte a procurarem outro emprego. O golpe atingiu directamente a protectora. Em vão argumentou que era perigoso transformar semelhantes indivíduos em inimigos e, ainda por cima, tão bem armados como eles estavam. Meu pai, porém, afiançou-lhe que tinha os Vignotte na mão e possuía os meios necessários para lhes fechar a boca.
Dessa forma, a calúnia, que tão graves consequências veio a ter para alguns de nós, tivera também o condão de arrancar - infelizmente, por bem pouco tempo! - o meu pai ao estado de inanição em que se mantinha havia seis anos. Brigitte vira levantar-se-lhe na frente um adversário que, desde havia muito, nenhuma importância tinha a seus olhos. O amor do marido por Micaela vinha ainda da paixão que tivera pela primeira mulher. No fundo, tratava-se sempre da morta como, sem dúvida, a minha madrasta acabara por compreender. E só isso explicará a sua conduta durante os dias que se seguiram.
Em todas as circunstâncias, Brigitte Pian procurava sinceramente o bem - ou, pelo menos, estava convencida de que o procurava sinceramente. Aí está uma coisa que é necessário não descurar todo aquele que leia estas memórias. Talvez a devesse ter mostrado a uma luz completamente diferente daquela que, nestas páginas, a iluminam tão cruelmente. Claro está que me foi dado ver, de muito perto, o sofrimento das suas vítimas. No entanto, no momento de relatar a sua acção possivelmente mais negra, injusto seria deixando-me levar pela facilidade de não mostrar senão uma única faceta dessa alma temível.
Importa recordar que, quando Brigitte Mailland, antes do seu casamento, vinha passar algumas semanas, no Verão, a Larjuzon, se encontrava imiscuída num desses dramas entre casais, sem episódios visíveis, sem explicações e que, dessa maneira, se prolongam, em silêncio, até à morte. Meu pai assistia ao sofrimento de uma mulher adorada, Marta, por causa de outro homem. E nada mais podia fazer por ela do que aumentar-lhe os remorsos pelo espectáculo constante da sua própria mágoa. Homem simples e pouco habituado à introspecção, encontrara em Brigitte a ajuda de um comentário lúcido. Encontrava-se-lhe ligado por estreitos laços, embora destinados a desfazerem-se pelas mesmas circunstâncias que os haviam originado. Gabava-se Brigitte de o haver salvo do suicídio. E é certo que, no pior momento, pudera pôr de parte essa ideia, graças a essa atenta confidente, que o seguia, ou antes, que o precedia até nos vários estádios dessa horrível provação, ajudando-o a comunicar com a mulher, de que ela era, não apenas prima, mas amiga de infância. Tornando-se a segunda sr.a Pian, considerou Brigitte, com toda a boa-fé, ser seu dever essencial o acabamento da obra iniciada, arrancando o marido à terrível influência da morta - tanto mais quanto era certo que ele só consentira em tornar a casar-se, na esperança de semelhante cura. Daí em diante, só um rancor pessoalíssimo e um ciúme inconfessado haviam de orientar a maneira de agir da minha madrasta. Na altura do casamento, porém, estava no seu pleno direito de acreditar nessa missão, de que o marido a havia encarregado. Quando, passados alguns meses, se apercebeu de que Marta continuava a reinar, graças ao prestígio de uma virtude que, a despeito da mais viva paixão, passava por jamais ter sucumbido, e que continuava, aos olhos de meu pai, como uma heroína, capaz de morrer de amor, antes de trair a fé jurada, a sr.a Brigitte convenceu-se de que o que primeiro importava era o certificar-se de que essa auréola não fora usurpada. E pensava que, no dia em que apresentasse ao marido as provas de que a primeira sr.a Pian havia sido adúltera e que só começara a afectar as aparências dessa virtude, a partir do momento em que o amante a abandonara, levando-a ao desesperado suicídio, ele se havia de livrar de tão vergonhoso feitiço. Ora, mesmo muito antes ainda de ter essa prova sob os olhos, e ao lembrar-se de certas confidências recebidas, já Brigitte não duvidava sequer da culpabilidade de Marta. Talvez mesmo nem tivesse desejado tão ardentemente o tomar-lhe o lugar, se não fora a ânsia de descobrir essas provas, vasculhando livremente pelos quartos, pelas gavetas e pelos cofres de segredo.
A essa tarefa se entregava com a maior satisfação. Logo após as primeiras semanas do seu casamento, encontrou um documento, que veio ultrapassar tudo quanto esperava encontrar, a ponto de lhe ter parecido mais sensato calar-se. Disto se infere o quanto Brigitte Pian era capaz de sentir piedade, uma vez que conseguiu vencer a tentação de falar, enquanto esperou poder curar o marido, sem ter de lançar mão do meio de lhe abrir os olhos.
Pareceu curado, precisamente, depois de os Vignotte terem sido despedidos. Vencida nessa questão, Brigitte ficara a ter razão em todas as restantes. Não podia deixar de aplaudir uma decisão que meu pai tomou, pouco tempo depois: Micaela, a partir do recomeço das aulas, seria internada no Colégio do Sagrado Coração, sob a orientação das freiras que, até então, a haviam educado como aluna externa. (No entender de Octávio Pian, isso não representava um castigo, mas sim o meio mais seguro de furtar a pobre rapariga ao convívio de uma temível madrasta).
Devia pois, a sr.a Brigitte mostrar-se satisfeita. Mas não sucedeu assim, pois sabia que era a morta que o pai defendia na pessoa da filha. O regresso à vida, por parte de Octávio, constituía o termo da vitória, não de Brigitte, mas sim de Marta, dessa mulher de quem se encontrava possuído para todo o sempre. Eis o que, sem dúvida, a minha madrasta entrevia na sua lôbrega consciência, e o que a incitara a fazer explodir uma bomba, por tanto tempo retardada e dissimulada.
Tanto minha irmã como eu, continuávamos, no entanto, estreitamente vigiados. Para desgraça nossa, a empregada do correio tinha em Brigitte a sua directora espiritual, pelo que deveria ter recebido instruções muito precisas acerca das nossas cartas. Toda a correspondência saída de Larjuzon devia ser colocada, todas as tardes, na caixa, onde o carteiro a ia buscar no dia seguinte, de manhã. Não saía um sobrescrito sequer de Larjuzon a que a minha madrasta não lançasse um olhar. Micaela, portanto, apenas podia contar comigo para lhe levar uma mensagem ao João. Não que pretendesse faltar à promessa feita ao pai, de não lhe escrever, mas porque desejava mandar-lhe um medalhão de ouro, em forma de coração, que trazia ao peito e continha alguns cabelos da nossa mãe. Chocava-me o facto de vê-la desfazer-se dessa relíquia, em favor de Mirbel, e não me apressava muito a tentar a corrida, tanto mais longa e fatigante, quanto era certo ter de contornar a povoação para evitar que me vissem e me denunciassem. Aliás, uma ausência tão prolongada poderia vir a ser suspeita aos olhos da sr.a Brigitte, que me vigiava com redobrada atenção, embora sem sombra de maldade. Atraía-me frequentemente a si, afastava-me as madeixas da testa e murmurava: "Pobre pequeno!", deixando escapar um suspiro.
Quanto maior era a insistência da Micaela, mais eu me mostrava pouco desejoso de tentar a aventura. As últimas semanas de férias estragaram-se, assim, com vãs discussões. Perdi o prazer desses longos dias passados com minha irmã, sem ninguém de permeio, e que tão ternamente acarinhara no espírito. Quanto a Mirbel, pensava que o tornaria a ver no recomeço das aulas. Ignorava ainda que viria a passar todo o ano em Baluzac. Desconhecia também a sorte que me esperava - a pior que se poderia imaginar. Antegozava já a ideia de, no colégio, não repartir Mirbel com quem quer que fosse. Claro que haveria de amar em mim, principalmente, o irmão de Micaela. Não mais se veriam, no entanto, nem teriam a menor possibilidade de se corresponderem. E eu estaria com ele para sempre - único condiscípulo que teria existência real aos seus olhos.
Pelas quatro horas de um dia de Setembro, desembocou na avenida um padre, de bicicleta. Micaela gritou: "O abade Calou"! Brigitte Pian mandou-nos para os nossos quartos. E, perante os protestos da Micaela, meu pai corroborou essa ordem, com toda a firmeza. Ele próprio ficou, se bem que fosse seu costume ir refugiar-se no escritório, logo que qualquer visita fosse anunciada. Sem dúvida, queria assegurar-se de que a mulher não iria sobrecarregar Micaela muito para além daquilo que ficara combinado entre ambos. Não tendo assistido a tal encontro, apenas irei reproduzir as notas que o sr. Calou redigiu, nessa mesma noite, no seu diário - por mais secas e sucintas que sejam.
"Que mulher espantosa! Que prodígio de deformação! Aos seus olhos, as simples aparências do mal têm a mesma gravidade do próprio mal, desde que nisso resida o seu interesse. Uma natureza profunda, mas exactamente como esses viveiros onde os olhos seguem todos os movimentos dos peixes. Também na sr.a Brigitte se evidenciam, a olho nu, os mais secretos motivos dos seus actos. Se algum dia essa força das sentenças ou condenações, que atira para cima dos outros, houvesse de voltar-se contra si mesma, quanto não haveria de sofrer!
Escandalizada com o facto de me arvorar em defensor dessas duas crianças e de esperar, para João, um grande benefício desse primeiro amor, cerra os lábios e trata-me de "vigário grosseirão". Tive a audácia de lhe chamar a atenção para o perigo que representa essa temerária interpretação da vontade divina, de que tanto abusam certas pessoas piedosas. Mas que imprudência em ter estendido a minha crítica aos clérigos! Essa senhora teve ocasião de me retorquir que eu negava os direitos da Igreja militante. Estou já a ver a denúncia que é muito capaz de dirigir ao Arcebispado! A sr.a Brigitte procura menos compreender o nosso pensamento do que retirar dele aquilo que julga vir a prejudicar-nos aos olhos da autoridade e à necessidade de nos perder. Isso mesmo lhe disse, pelo que acabámos por nos separar com uma saudação muito respeitosa, do meu lado, e outra, demasiado seca e apenas delicada, do seu.
"À saída, próximo do portão, eis que Micaela sai de detrás dos arbustos, muito corada e quase sem ousar olhar para mim. Desci da bicicleta e ouvi que me dizia:
"- Acredita no que lhe contaram?
"- Claro que não, Micaela!
"- Sr. cura, quero que saiba... que se me confessasse a si... nada teria a dizer-lhe a respeito do João.
"Estava debulhada em lágrimas. Apenas balbuciei:
"- Que Deus vos abençoe a ambos!
"- Diga-lhe que não posso vê-lo, nem escrever-lhe, e que irei ser internada, no princípio do ano... E vigiada! Calcula as instruções que hão-de ter sido dadas a meu respeito... Mas diga-lhe que esperarei por ele o tempo que for necessário... Dir-lho-á?
"Experimentei brincar:
"- É uma missão bastante estranha para um velho cura, Micaela!
"- Ora, um velho cura! Além de mim, apenas o senhor o ama na terra!
"Disse isso como uma coisa sabida, muito simples e evidente.
"Nada pude responder. Tive até necessidade de voltar a cabeça.
"Em seguida, estendeu-me um embrulho para lhe entregar:
"- Jurei que não lhe escreveria, mas não que lhe não daria nenhuma lembrança. Diga-lhe que é o que possuo de mais precioso. Desejaria que o conservasse até que nos tornássemos a ver. Diga-lhe...
"Nessa altura, fez-me sinal de que devia ir-me embora e saltou para o maciço. A touca da Irmã Escolástica aparecia por entre as árvores".
O abade Calou foi encontrar João exactamente onde o deixara, estendido na cadeira de braços, por trás da casa e do lado ocidental. Tinha um livro aberto nos joelhos, mas não lia.
- Ora aí está! Provocaste um destes chinfrins, em Larjuzon, meu pobre pequeno!
- Foi a Larjuzon?
Mirbel procurava mostrar um ar desinteressado, indiferente, mas em vão.
- Claro. E a sr.a Brigitte fez das suas. Imagina tu que Micaela...
Às primeiras palavras do cura não resistiu que não gritasse:
- Bem podia ter-me respondido. Quando se ama, não se conhecem proibições; arrisca-se tudo...
- É uma rapariga, João! A mais corajosa, no entanto, que eu já conheci.
O rapaz, sem olhar para o abade Calou, inquiriu se lhe falara.
- Claro! Durante alguns minutos. E fixei tudo quanto me pediu que te repetisse: não pode ver-te, nem escrever-te, e será internada no Sagrado Coração, no início do ano. Esperar-te-á, porém, durante muitos anos, se for necessário.
Adoptou o ar de quem recita uma lição decorada, transmitindo, dessa forma, muito maior peso a cada palavra.
- E depois? Só isso?
- Não. Pediu-me que te entregasse isto... É o que ela possui de mais precioso. E que o guardasses até vos encontrardes de novo.
- Que é isso?
O cura não sabia. Após ter depositado o objecto sobre os joelhos do pequeno, entrou em casa. Pela janela entreaberta, viu-o a olhar para o côncavo da mão, onde tinha o coraçãozito de ouro e a corrente. Depois, como se fosse beber, aproximou-o dos lábios.
O sr. Calou sentou-se à mesa, abriu o manuscrito da Teoria da fé em Descartes e releu o último parágrafo. Não pôde, porém, conter-se e voltou à janela. Mirbel tinha a cara escondida nas mãos. E, por sem dúvida, o medalhão encontrava-se entre as palmas húmidas e os lábios.
Havia dois dias já que João almoçava e jantava na sala de jantar. Nesse dia, pelas sete horas, foi sentar-se em frente do cura, tão taciturno como se mostrara até então. (O sr. Calou habituara-se a ter perto de si uma revista ou um jornal, enquanto comia). Todavia, desde a sopa que compreendera que João o olhava por baixo. Se o pequeno continuava calado, era apenas por timidez, acanhamento ou impossibilidade de encontrar um pretexto para entrar no assunto. Por seu turno, temia o cura que uma palavra a destempo pudesse vir a perder tudo. Limitava-se, como de costume, a vigiar o apetite de João, que era caprichoso. E quando, após a refeição, se encontraram por detrás da casa, perguntou-lhe o que é que gostaria de comer, no dia seguinte. João respondeu que nada desejava, mas sem o ar façanhudo dos restantes dias. E, de repente, fez uma pergunta:
- Realmente, a minha saúde interessa-lhe assim tanto?
- Oh, João! - Ele murmurou: "não! sem brincadeira!",
Com um ar infantil, sentou-se na cadeira de braços e agarrou na mão do abade, que se mantivera de pé. Disse, sem olhar para ele:
- Não fui lá muito amável para consigo... E o senhor... Ah! O que o senhor fez hoje...
Chorava como choram todas as crianças, sem qualquer vergonha.
O sr. Calou sentou-se a seu lado, com a mão na dele.
- Nem o senhor pode calcular... Se a Micaela me tivesse abandonado, matar-me-ia... Não acredita?
- Claro que acredito, meu filho!
- Mas acredita realmente?
Que necessidade tinha de confiança, de ser acreditado sob palavra.
- Vi imediatamente que o caso era bastante sério.
E, como João murmurava: "Não terei sonhado? Vi, realmente o que julguei ter visto em Balauze?", o cura interrompeu-o:
- Não me contes nada, se isso te magoa muito.
- Sabe que nos mentiu? Era mentira isso de ir dormir a Vallandraut... Tinham reservado um quarto em Balauze, no Hotel Garbet.
- Já se sabe que todas as mulheres dizem uma coisa e fazem outra...
- Mas não estava só... Foi encontrar-se com um tipo. Vi-os à janela desse quarto, a meio da noite.
Vira-os e os olhos continuavam a vê-los ainda. O sr. Calou tomou-lhe a cabeça nas mãos, tocando-lhe docemente, como para o acordar.
- Ninguém deve meter-se na vida dos outros, contra sua vontade. Fixa esta lição, meu filho. Ninguém deve empurrar a porta dessas segundas ou terceiras vidas, que só a Deus é dado conhecer. Ninguém deve voltar os olhos para a cidade secreta, para a cidade maldita dos outros, se não quiser transformar-se em estátua de sal...
João, no entanto, continuava a insistir, de olhar sempre perdido, a descrever o que via ainda, o que continuaria a ver até à hora da morte:
- Um homem já quase velho... Conheço-o: um sujeito de Paris, que escreve peças... Cabelos pintados, pança e uma boca... oh!... ignóbil...
- Diz antes que, para ela, esse homem encarna o espírito, o génio, a graça. Amar alguém é como ser-se sozinho a ver uma maravilha invisível para os outros... São horas de irmos lá para dentro - acrescentou, após um breve silêncio. - A noite, nesta época, tomba rapidamente, e tu não estás bem agasalhado.
Mirbel seguiu-o docilmente. O abade segurou-lhe o braço, até ao quarto-biblioteca, onde João se estendeu sobre a cama.
O sr. Calou acendeu a lâmpada, aproximou a sua cadeira e inquiriu:
- E eles? Viram-te?
- Não! Encontrava-me encostado ao muro da igreja, escondido na sombra. Regressei antes de raiar o dia. Dormi numa meda de feno. Se o senhor me não tivesse ido procurar, creio que teria rebentado como um cão doente. Quando penso no que fez...
- Não pretendias, por certo, que me pusesse a esperar o teu regresso, com os pés enfiados nas pantufas? Tinha-te a meu cargo, era responsável por ti. Podes lá imaginar os aborrecimentos que teria tido...
- Mas não foi por isso? Não foi somente por isso?
- Tolito!
- Foi porque o senhor gosta um pouco de mim?
- Como se houvesse apenas um velho cura a gostar de João de Mirbel!
- Será possível? Não, não é possível!
- Olha para esse coração de ouro... Onde o meteste tu? Pendurado ao pescoço, como ela o trazia, não é? Ou sobre o peito? Sim, é aí que deve estar, para que possas senti-lo sempre, para que tenhas só que lhe colocar a mão em cima em todos os maus momentos.
- É uma criança ainda. Não me conhece, não sabe quem sou. Nem me poderia compreender, pura como é, se eu procurasse explicar-me. Nem o senhor mesmo sabe o que eu fiz...
O sr. Calou pôs-lhe a mão na cabeça:
- Claro que não és nenhum santo, nem pertences à raça dos justos. Pertences ao número daqueles a quem Cristo veio procurar e salvar. A Micaela ama-te pelo que tu és, assim como Deus te ama exactamente como te fez.
- Mas a minha mãe não me ama.
- Apenas a paixão a impede de sentir o amor que tem por ti. Mas esse amor existe.
- Por mim, odeio-a.
Disse isso num tom um pouco forçado, artificial, como usava por vezes.
- Pensa, talvez, que estou a brincar? Não. É verdade que a odeio.
- É claro! Exactamente como podemos odiar as pessoas que amamos. Nosso Senhor exige que amemos os nossos inimigos. Isso é, muitas vezes, mais fácil do que não odiarmos aqueles a quem amamos.
- Sim - disse João - porque nos fazem muito mal.
Apoiou a cabeça no ombro do cura e acrescentou, em voz baixa:
- Se soubesse quanto sofri... E ainda agora, muitas vezes durante a mesma hora... É como se tocasse numa ferida em carne viva. Sofrimento tão grande que apetece gritar ou morrer...
- Ouve, filho. Há muito que perdoar às mulheres... Não posso explicar-te ainda porquê. Hás-de vir a compreender-me, mais tarde, tu que, afinal, tanto mal lhes hás-de vir a fazer... Mesmo as mais felizes, na aparência, merecem a nossa piedade... Não uma piedade comovida, cúmplice, mas a piedade de Cristo, a piedade de homem e de Deus que sabe de que sujo barro construiu a sua criatura. Ainda não é tempo de te falar em coisas que tais.
- Bem sabe que já não sou propriamente uma criança!
- Não, evidentemente! É verdade que és um homem já: tens a idade outorgada pelo sofrimento.
- Oh! O senhor... o senhor compreende!
Falaram por um longo espaço ainda, o padre e a criança, mesmo depois de este se ter metido na cama. E, quando o sono lhe fechava já os olhos, ainda pediu ao padre Calou que rezasse as suas orações ao pé de si e que não abandonasse o quarto antes de ele ter adormecido.
Despertou-me o canto de um galo. Seria já de madrugada? Acendo um fósforo. Não são ainda cinco horas. Decido esperar um pouco mais. Resolvi tentar, nessa madrugada, a corrida para Baluzac, que a minha irmã não pudera conseguir de mim, por minha própria conta e risco. Ontem à noite, depois da visita do sr. Calou, soube pela boca da minha madrasta que Mirbel, nesse ano, não voltaria para o colégio. Ter-me-ia visto estremecer? Teria compreendido que aplicara um belíssimo golpe nesse rapazote pálido, que fingia indiferença? Acrescentou que o facto transformara os projectos que, em princípio, combinara com meu pai, no intuito de arranjarem outro estabelecimento, a fim de me subtraírem à influência dessa ovelha tinhosa. Isso, porém, deixara de se tornar necessário. Também não voltaria a encontrar o sr. Puybaraud, com cuja saída também ela se felicitava. Achava que eu era demasiado inclinado à pieguice e, sob esse aspecto, o sr. Puybaraud havia sido um professor bastante pernicioso.
João em Baluzac, Micaela no internato... E, então, eu? Nesse dia, vira pela primeira vez, de cara descoberta, essa minha velha amiga, a solidão, com a qual vivo hoje em boa harmonia. Já nos conhecemos muito bem, pois descarregou sobre mim todos os golpes possíveis, não tendo já lugar onde ferir. Creio que nunca soube evitar-lhe qualquer das ciladas. Neste momento, parece ter-se cansado de me torturar. Ateamos o lume, frente a frente, durante as noites de inverno, em que a queda de uma pinha, ou um soluço da noite, têm tanto interesse para mim como uma voz humana.
Tornar a ver João, pela última vez, e a todo o preço... Combinarmos como poderíamos corresponder-nos... Fácil me era escrever-lhe. Mas para onde me havia de dirigir as respostas? Como é que se procede para se receber o correio na posta restante? Vê-lo uma última vez e certificar-me de que existo ainda para ele e que Micaela não tomou todo o lugar no seu coração. As flores das cortinas começam a tomar um leve tom encarnado: o dia vai surgir. Visto-me, sustendo a respiração. O soalho não rangeu. Uma parede me separa, aliás, do enorme quarto do casal Pian, onde as camas de acaju se encontram tão afastadas quanto possível uma da outra.
Abro a porta, sem fazer o mais leve ruído. Em boa verdade, os degraus da escada rangeram, mas Brigitte não tinha o sono leve. Sairia pela cozinha, para ter a certeza de que não seria ouvido. A chave encontrava-se na tina da lixívia.
- Onde é que tu vais tão cedo?
Retive um grito.
Na minha frente, à esquina da escadaria, erguia-se Brigitte, envolta no seu roupão cor de ametista, na claridade incipiente, que descia do tecto. Caía-lhe sobre os rins uma espessa trança, grossa como uma serpente, a que uma fita encarnada ligasse a cabeça.
- Onde ias tu? Fala! Responde!
Nem penso sequer em mentir. Já tem a certeza de tudo, mesmo antes de eu abrir a boca. Aliás, o próprio desespero me tiraria a força necessária para a mentira. O desespero, sem dúvida, mas ao qual me agarro apenas para me salvar. Procuro a salvação do lado dessa louca sensibilidade, cuja manifestação espanta até as mais temíveis pessoas, obrigando-as a acarinharem-me em vez de me castigarem. Arquejo, pois, sufoco, ultrapasso os limites e não consigo parar. Brigitte ergue-me nos braços vigorosos e leva-me para o seu quarto, onde meu pai, acordado em sobressalto e sentado na cama, se crê vítima de um pesadelo.
- Acalma-te, então! Não vou comer-te. Bebe um golo de água. É de flor de laranjeira!
Estendera-me na sua própria cama. Eu tartamudeava:
- É só porque nunca mais o verei... Queria dizer-lhe adeus...
- Trata-se desse Mirbel - afirmou Brigitte a meu pai. - Aí tens o pé em que as coisas se encontram. É caso para perguntar se não é já demasiado tarde para agir. Que mórbida sensibilidade! Pobre pequeno! - acrescentou, em voz alta. Mas logo, em voz baixa: - Que herança!
- Para quê falar de herança na sua presença? - inquiriu meu pai, no mesmo tom. - Que pretendes insinuar?
- Como se isso de insinuar estivesse nos meus hábitos!
- Como se estivesse nos teus hábitos?! - Troçou, abanando a cabeça, e repetiu: - Essa agora! Essa agora!
Nunca vira o meu pai tão pálido. Sentado na cama, as pernas cheias de pêlos negros não assentavam no chão. Grossas veias azuis lhe inchavam os pés, nos artelhos disformes. Da camisa aberta saía-lhe uma mecha de pêlos grisalhos. Tinha as coxas assustadoramente magras, quase de tísico. Brigitte, em pé, e envolvida no seu roupão episcopal, com os cabelos por sobre a fronte abaulada e a trança luzidia e engordurada, olhava-o com os seus olhos simultâneamente odientos e circunspectos.
Meu pai levantou-se, tomou-me nos braços, e levou-me para a minha cama. Eu soluçava de encontro à sua camisa. Atirou-me a roupa para cima. Um sol pálido coava-se por entre as flores de lis desenhadas nas cortinas. Ouço ainda a entonação com que me repetia:
- Limpa essas lágrimas, idiota! Assoa-te e dorme!
Ao mesmo tempo, afastava a dobra do lençol com a mão e olhava para mim como se nunca me tivesse visto.
Prouvera a Deus que nunca tivesse sabido o que vou contar agora (e com que constrangimento e vergonha, apesar de necessário...). E nada soube, efectivamente, até ao dia seguinte àquele em que estalou a Grande Guerra, em que me reconciliei com o tio Moulis, irmão de minha mãe, de quem me encontrara separado, durante toda a vida, por causa de uma dessas desavenças de família, cujos pormenores não importa focar. Porque muito gostara da irmã Marta, desejara conhecer-me, antes de morrer. Era arquitecto na cidade, como meu avô o fora também. Mantivera "o género boémio, o género artista", que Brigitte Pian detestava, e ao qual atribuía a fonte dessa corrupção, em que minha mãe fora educada e, segundo ela, se perdera. Esse velho e cínico rapaz, passados mais de vinte anos sobre o acontecimento, veio dar-me a conhecer as circunstâncias em que eu viera a este mundo. Sem que tenha podido provar-me que eu não era filho de Octávio Pian, acreditava piamente que o meu nascimento fora devido a um primo carnal de minha mãe, Alfredo Moulis, "belo como o dia", afirmava meu tio. (A fotografia, que dele me mostrou, nada fixara desse encanto, pelo que nenhum prazer sinto com a ideia de ter sido gerado por esse rapaz de cabelo frisado e com cabeça de carneiro). Desde os mais tenros anos que votara à prima uma adoração, que esta lhe retribuía em toda a extensão. Não me alongarei sobre assunto tão odioso e nada mais direi do que o indispensável acerca do documento encontrado pela minha madrasta, logo nos primeiros anos de casada.
A acreditar no tio Moulis, tratava-se de uma espécie de memorando escrito pelo punho de minha mãe, uma sucessão de cálculos e ligação de datas, de que ressaltava a certeza de que, para ser filho de Octávio, deveria ter nascido dois meses mais cedo. Certo é que, na altura de nascer, bem longe estava eu de haver atingido o peso normal, que se viram obrigados a envolver-me em algodão em rama e que só com muita dificuldade fora possível criarem-me. A que fim se destinaria um tal papel? Simples rascunho de carta, por sem dúvida, como o meu tio supunha, sem ter a certeza absoluta.
Octávio Pian, no entanto, possuía uma razão, que supunha pertencer-lhe exclusivamente, para pôr em dúvida o facto de eu ser seu filho, e à qual esse documento veio, afinal, dar ainda mais força. Sabia-o o tio Moulis da boca da própria irmã... Ah! Como é difícil tratar de um assunto destes! E que de perífrases não seriam necessárias! Pareceu-me ter compreendido que Octávio pertencia a essa espécie vulgar de homens, a quem o próprio excesso de amor transforma em inibidos. Suplício atroz, mormente quando a paixão não é partilhada e esse ridículo desespero passa a ser observado com olhares frios ou zombeteiros...
Desejaria que o leitor sentisse com quanta repugnância me atrevo a escrever semelhantes coisas, das quais é fácil concluir que estou a contar uma história em que nada há de inventado, uma vez que qualquer romancista foge, instintivamente, de assuntos tão horríveis como estes. Renunciando, porém, à ficção, a fim de se seguir o rumo dos destinos que, na realidade, se cruzaram com o nosso, a cada momento se choca com tais misérias dos sentidos, com essas aberrações, ou, pior ainda, com essas insuficiências, de que tanto mais nos repugna ouvir falar quanto é certo que muitos, de entre nós, fomos suas vítimas, ou pouco ou muito. Dizia Renan que a verdade talvez seja triste, porque apenas a considerava no plano metafísico. No plano puramente humano, não é apenas triste, mas também a tal ponto ridícula e vergonhosa, que até o pudor nos impede de falar dela. Daí o silêncio que sobre ela cai, apenas se tornando necessário, para que brilhe aos olhos do público, o escândalo de um processo de divórcio ou de uma anulação do Papa.
Quando, em Outubro, regressei à cidade, na companhia da minha madrasta, Octávio Pian deixara-se ficar em Larjuzon. Consumara-se, assim, a separação dos esposos, sem que eles próprios a tivessem combinado. Tudo isso se passou o mais naturalmente possível. Meu pai, que ainda se não encontrava na posse do documento (esquecido, como por acaso, numa gaveta do seu quarto, onde não tardaria a descobri-lo), fora demasiado preparado e catequizado por Brigitte para me ver partir sem mágoa e para preferir a solidão, a invernia em pleno campo à coabitação com uma mulher execrada e com um filho, cuja simples vista acordava toda a sua angústia. A recordação, que dele conservo, é a de um homem regressado a essa espécie de pasmo, a esse estado de sonolência, de que apenas saíra, por alguns dias, a fim de defender Micaela. Devia ter começado a beber, a partir dessa altura. No entanto, só após a nossa partida se abandonou ao alcoolismo.
Como a Micaela se encontrava internada no Sagrado Coração, fiquei só com a minha madrasta. Foram dois anos pacíficos, até ao termo do curso dos liceus, e durante os quais sofri bastante menos do que imaginara. Trabalhava com facilidade e Brigitte não tinha que recear aborrecimentos causados por esse estudante taciturno que, durante a noite, estudava as lições e fazia os exercícios, sem necessidade de qualquer espécie de vigilância. Durante esse primeiro ano, meu pai vinha à cidade, uma vez por mês, nos dias de saída da Micaela. Levava-nos a almoçar ao restaurante. Ficou-me na lembrança esse vivo prazer que sentia em escolher na ementa os pratos preferidos: ostras, almôndegas de lebre, guisados da Provença. A certeza de que a Micaela e o João se encontravam separados, e decerto para toda a vida, como que adormecera a minha ternura para com eles e também, salvo num ou noutro rápido despertar, o meu ciúme. Sempre me foi necessário sofrer para saber que amava.
Devo contar, nesta altura, dois incidentes que estabilizaram em ponto morto a minha amizade por Mirbel. No regresso do colégio, e durante a tarde do primeiro inverno, a minha madrasta informou-me, sem levantar os olhos do livro, que estava a ler: "Veio uma carta para ti". Não me iludia o seu afectado desinteresse.
"É de Mirbel" - declarei, após ter olhado para o sobrescrito. E logo, com essa astúcia própria de certas crianças para manobrarem os pais menos transigentes, inquiri, com um olhar cândido: "Posso lê-la?"
Brigitte Pian hesitou por um momento. Em seguida, decidiu confiar em que lha mostraria, se tal achasse de meu dever. Nem um momento olhou para mim, enquanto ia decifrando a carta em que João de Mirbel, depois de me ter descrito "a vida estúpida", que levava no presbitério de Baluzac, uma vida "de fazer saltar os miolos", me pedia que lhe desse notícias da minha irmã: "E talvez ela pudesse acrescentar algumas palavras no final da carta. Dar-me-ia muito prazer com isso e não seria, por certo, faltar ao prometido. Diz-lhe que ninguém pode avaliar o que é viver numa suja terreola, perdida no meio dos pinheiros, sempre em frente de um velho cura, que é um óptimo indivíduo, não o nego, e que faz quanto pode por mim. No entanto, eu não sou um óptimo indivíduo - e é nisso que reside toda a desgraça. Diz-lhe que apenas três linhas suas já seriam o bastante. Nem pode imaginar, sequer, o quanto isso me ajudaria..."
Lembro-me da fria cólera que me invadia, à medida que ia lendo a carta e verificando que nada, nela, me era destinado. A irritação sobrelevava a mágoa. Já que assim era, mais valia não pensar mais nisso, despedir o pessoal... Muitas vezes haveria de sentir, no decurso da minha existência, esse brusco desejo de cortar com alguém, de pôr as pessoas à margem! Estendi a carta a Brigitte, que imediatamente a leu, mas sem pressa. Ao dobrá-la, um sorriso descobriu-lhe os dentes de égua. E disse-me:
- A Superiora mandou-me um pacote de cartas desse cavalheiro. Porque teve o topete de escrever cartas à tua irmã, mesmo para o convento! Imagina que todas as cartas começavam por uma súplica à Reverenda Madre, ou à pessoa que abrisse, em primeiro lugar, o sobrescrito, no sentido de as entregar à Micaela!
E acrescentou, em tom sentencioso:
- O que prova, afinal, que a corrupção pode andar de braço dado com a estupidez e que as duas coisas não são, de modo algum, incompatíveis.
Após o que, lançou a carta ao fogo, entregando-a às chamas efémeras.
Quanto ao segundo incidente, nem sei bem se deva situá-lo na mesma época. Quero crer antes que esse encontro com o abade Calou se tivesse passado durante o Inverno do ano seguinte. Numa quinta-feira, ao sair de casa, ouvi que alguém pronunciava o meu nome, mesmo por trás de mim. Reconheci o abade Calou, apesar de ter emagrecido bastante. Dançava-lhe por sobre os ombros ossudos a velha sotaina. Devia ter estado à espreita da minha saída. Disse-lhe que me dirigia à livraria Féret, e ele seguiu-me.
- João ficará muito contente, esta noite, quando lhe contar o nosso encontro.
- Como vai ele? - perguntei, com ar indiferente.
- O pobre rapaz não anda nada bem - respondeu.
Esperava pelas minhas perguntas, mas em vão, porque parei à porta da livraria Féret, pondo-me a folhear os livros em segunda-mão, expostos ao ar livre. Mas seria assim tão insensível? Por certo que não, pois não me passava despercebida a angústia do pobre padre, inclinado sobre mim, e porque mesmo, depois de tantos anos decorridos, ainda sou sensível ao remorso que me penetrou na alma, nesse momento.
- Para dizer tudo, o nosso João inquieta-me bastante.
Imagina que este ano não pôde ir a La Devize, pois a mãe está a passar o Inverno no Egipto. Claro que trabalha bastante e vai à caça. Arranjei-lhe, em Outubro, uma armadilha para caçar pombos bravos. Apanhou cento e quarenta e sete. Arranjei-lhe mesmo um cavalo, imagina tu, no moinho do sr. Du Buch, uma velha pileca, que, no entanto, se deixa montar. Mas falta-lhe a companhia...
- E, então, o senhor? - perguntei, candidamente.
- Ora, eu...
Fez um gesto vago, e nada mais acrescentou. Por certo que medira já a sua impotência, havia muito tempo. Nada possuía daquilo que uma criança dessa idade exige para ser feliz. A sua cultura nenhum valor tinha aos olhos de João. E o mesmo acontecia com a sua ternura. Que outra coisa podia ser, além de um carcereiro, para esse rapaz que ele ia encontrar, à noite, enrodilhado numa cadeira de palha, ao canto do lume, com um livro aberto sempre na mesma página? E que nem sequer levantava o rosto sombrio para ele? Nem o montar a cavalo, nessa velha pileca, o divertiria bastante. Quando o não encontrava no presbitério, bem sabia o abade onde João procurava o seu refúgio. Nessa altura, porém, ainda eu não conhecia essa outra angústia: João demorava-se muitas vezes em casa do inimigo, na farmácia dessa Voyod, que era o mais encarniçado adversário do abade Calou. No fim das aulas, aí se lhe juntavam o professor primário e a professora. Bebiam café no armazém e comentavam os artigos de Jaurés ou de Hervé.
Embora soubesse muito bem onde o abade pretendia chegar, tive todo o cuidado em não o ajudar, pelo que teve de entrar no assunto, sem mais preâmbulos:
- Lamento - dizia-me - ter trocado essas palavras com a sr.a Pian. Contudo, creio-a incapaz de ceder ao rancor e tenho a certeza de que a sua decisão, a respeito da Micaela e do João, lhe foi ditada pelas razões mais nobres. Por isso as não discutirei, pois acredito no seu bom-senso. No entanto, meu filho, não achas que a Micaela poderia escrever ao cura de Baluzac, de tempos a tempos? Que mal haveria nisso? Mesmo sem me encarregar de qualquer mensagem para o João, falar-me-ia um pouco da sua vida, o que seria um conforto enorme para o teu amigo. Direi mesmo mais, Luís, - murmurou-me quase ao ouvido - poderia ser a sua salvação... Porque, no fundo, é disso que se trata: salvá-lo... Compreendes?
Vi-lhe, muito perto de mim, os olhos implorativos de criança, e senti-lhe a respiração ácida. Não; não o compreendia lá muito bem. No entanto, desta feita, sentira-me impressionado. Era, entretanto, por ele, e não pelo João, que me curvava perante o seu desejo. Prometi-lhe que iria transmitir a sua proposta à Micaela, poupando-lhe mesmo a mágoa de ter que me pedir que nada dissesse à minha madrasta, pois eu próprio lho assegurei antes. Lançou-me a mão enorme à nuca e atraiu-me a cabeça de encontro à sotaina cheia de nódoas. Acompanhei-o até ao carro eléctrico. Na plataforma da retaguarda, os homens à sua volta assemelhavam-se a simples anões.
Essa correspondência entre o abade Calou e Micaela, que talvez pudesse ter impedido muitas desgraças, interrompeu-se logo à terceira carta. Micaela tivera a imprudência de a confiar a uma semi-interna, porque não pudera deixar de a dirigir inteiramente ao João, muito embora o sobrescrito fosse endereçado ao abade Calou. A carta foi interceptada por uma das freiras e levada ao conhecimento de Brigitte Pian, que me contou todo o caso, embora evitando atirar todas as culpas para Micaela:
- Foi o próprio padre que a induziu em tentação, não há que ver. Apesar da gravidade do caso, achei-me no dever de implorar o perdão para a tua irmã e devo dizer que a Reverenda Madre se mostrou de uma enorme caridade. Quanto ao cura de Baluzac, o seu arquivo vai engrossando cada vez mais - acrescentou com involuntária satisfação - embora essa carta constitua a prova principal...
Dessa forma se dera a pensar, em voz alta, mesmo na minha presença. Gostaria ela de mim? Por muito tempo me encontrei persuadido de que havia acarinhado na criança, que eu era, a prova viva do pecado da primeira sr.a Pian. Hoje, acho-me inclinado a pensar que me demonstrava toda a afeição, de que era capaz, todo esse poucochinho de ternura, que subsiste sempre, até nas mulheres mais insensíveis.
Deslizava, então, a minha existência estreitamente ligada à de Brigitte. Apenas separava o meu quarto do seu a saleta onde trabalhava e recebia as pessoas. A porta encontrava-se sempre entreaberta, só se fechando quando recebia alguém. Por bem pouco, no entanto, que levantasse a voz, já de si muito aguda, fácil me era seguir-lhe as conversas, mormente no inverno, altura em que as janelas, completamente fechadas, não deixavam penetrar mais do que os surdos rumores da Avenida da Intendência.
Quando ouvia a voz do sr. Puybaraud, não raro me dava ao trabalho de ir cumprimentá-lo. Nem sempre o fazia, porém. Frequentemente, era até ele que, ao despedir-se, vinha beijar-me. Simultaneamente com a sua mudança de posição no mundo, também a minha maneira de ser para com ele se alterara. Esse pobre e frágil homenzinho, que um sobretudo, comprado já feito, mal defendia do frio e cujos sapatos raramente viam pomada, já não podia inspirar-me a mesma deferência que me inspirara o mestre de sobrecasaca, de quem fora o aluno amimado.
É de toda a justiça acrescentar que o seu aspecto me inspirava a piedade, ou, pelo menos, essa espécie de mal-estar, que nos invade na presença de alguém, que nos acostumámos a considerar infeliz. No entanto, quando reflectia melhor na infelicidade do sr. Puybaraud, impossível me era não concordar com Brigitte Pian e não o desprezar pelo facto de se ter deixado impressionar por uma atracção, que eu desconhecia ainda, embora me sentisse já inclinado a olhá-la com desconfiança e horror. Talvez não houvesse sentido a mesma repulsa pelos sinais aparentes da sua decadência, se não acabassem por ter correspondido, quanto a mim, a uma realidade de ordem espiritual, e se o sr. Puybaraud, por causa do seu casamento, não tivesse caído, voluntariamente, aos meus olhos, de uma posição que eu tinha por superior. Neste ponto, aliás, pouco mudei, pois creio que a desgraça dos homens provém, normalmente, do facto de não lhes ser possível manterem-se castos, uma vez que uma humanidade casta por certo desconheceria a maior parte dos males, que a afligem - mesmo daqueles que menos parecem relacionar-se directamente com as paixões da carne. Apenas um reduzidíssimo número de indivíduos, em quem o sangue e o coração se encontravam soberanamente dominados, me puderam convencer da possibilidade de se atingir a felicidade, neste mundo, através da bondade e do amor.
Vinha o sr. Puybaraud, todas as quinzenas, receber da minha madrasta os subsídios, de que o casal vivia. O resto do tempo passava-o ele a percorrer a cidade, em busca de um emprego difícil de encontrar. Octávia, grávida, mas ameaçada de aborto, era forçada a ficar de cama até ao parto, não podendo desempenhar qualquer tarefa. Ouvira dizer que uma Irmãzinha da Assunção lhes fazia os trabalhos de casa, todas as manhãs. Era tudo quanto sabia acerca desse infeliz casal, sobre o qual, aliás, não fazia demasiadas perguntas.
Todavia, notara que as entrevistas bimensais do sr. Puybaraud com a minha madrasta, apesar de terminarem sempre pela entrega de um sobrescrito com dinheiro, comportavam uma longa discussão, em voz baixa, intercalada, aqui e além, de palavras em tom mais elevado. Se, por banda do sr. Puybaraud, a entonação se mostrava insistente e súplice, pela da minha madrasta havia o acento, que eu tão bem conhecia, de negativa e recusa. De repente, punha-se a falar sozinha, no tom de quem dita uma lei a um subalterno, dominado e reduzido ao silêncio:
- Bem sabe que assim terá de ser, porque é essa a minha vontade, à qual terá que submeter-se - gritava ela, certo dia, em voz suficientemente alta para que eu pudesse perder qualquer palavra. - E, quando digo a minha vontade, ainda me expresso mal, porque jamais devemos fazer o que queremos, e sim o que Deus quer. Não espere que continue a ser sua cúmplice por mais tempo.
Nesse momento, e a despeito de quanto devia à minha madrasta e da dependência total em que se encontrava perante ela, o meu ex-professor reprovou-lhe o facto de seguir mais a letra da lei do que o seu espírito, indo até ao ponto de afirmar-lhe que era sempre o próximo que fazia as despesas dos seus escrúpulos e que era constantemente contra alguém que manifestava os pruridos e os rigores da sua consciência. E acabou por acrescentar que não a largaria antes de haver conseguido o que lhe pedia. (Não me foi possível averiguar, através da porta, de que assunto se tratava). Fora de si, Brigitte gritou que, já que assim era, seria ela quem se retiraria. Apercebi-me de que abandonava a saleta, não sem barulho. Alguns segundos mais tarde, o sr. Puybaraud, pálido, entrou no meu quarto. Segurava na mão o sobrescrito que Brigitte quase lhe arremessara à cara. As calças tinham joalheiras. Não usava punhos. A gravata preta e o peitilho constituíam os únicos restos do seu espólio do colégio.
- O menino ouviu? - perguntou-me. - Tomo-o como testemunha...
Quero crer que poucas crianças tenham sido, tantas vezes como eu fui, escolhidas como árbitros pelas pessoas crescidas. Essa confiança, que eu inspirava ao meu professor, já nessa tarde, em que me encarregara da carta para a Octávia Tronche, mais uma vez o forçava a recorrer aos meus bons ofícios confiança raciocinada e que nele provinha desse culto que desde sempre votara à infância. Em sua opinião (e bem pouco senso mostrara em desenvolver tais conceitos na minha presença), os rapazes entre os sete e os doze anos tinham o condão de uma lucidez de espírito bastante extraordinária e até, por vezes, de um incrível génio, que se desvanecia na altura em que a puberdade se aproximava. A despeito dos meus quinze anos, ainda conservava aos seus olhos todo o prestígio da criança. Pobre Puybaraud! O casamento não o embelezara. Tornara-se quase calvo. Mal lhe cobriam o crânio algumas mechas louras. As maçãs do rosto mantinham-se encarnadas na cara exangue. Tossia.
Como no tempo em que, em Larjuzon, me explicava um texto latino, aproximou uma cadeira da minha.
- Ao menos tu compreendes-me...
Só me tratava por "tu" nos momentos de expansão ou quando se dirigia à criança de conceitos infalíveis. Contou-me que o médico não esperava que a Octávia chegasse ao termo normal da gravidez, desde que não tivesse um repouso absoluto de corpo e de espírito. Acreditara, pois, poder apaziguar um dos mais graves cuidados, que atormentavam a mulher, enganando-a acerca da origem da pequena quantia que lhe levava todas as quinzenas. Ignorava ela que esse dinheiro provinha da minha madrasta, acreditando que o marido ia ganhando a sua vida e acabara por obter alguns emolumentos do Arcebispado.
- Claro! Preguei-lhe essa mentira e continuo a sustentá-la, todos os dias, só Deus sabe a troco de que sofrimentos e vergonha! Deveremos, no entanto, chamar mentiras às histórias, que somos forçados a contar aos doentes? Eis o que não posso admitir, a despeito de tudo quanto diz a sr.a Brigitte...
Olhou-me fixamente, como se esperasse ouvir um oráculo. Levantei os ombros:
- Deixe-a falar, sr. Puybaraud. Desde que esteja de bem com a sua consciência...
- Não é tão simples como isso, Luisito... Em primeiro lugar, porque a Octávia acha estranho e lamenta o facto de a sr.a Brigitte não a ter ido visitar, desde que adoeceu... A tua madrasta tem-se recusado até hoje a ir visitá-la "enquanto eu não reparasse a ofensa feita à verdade", como teve o topete de me escrever. Isso obrigou-me a certas explicações com Octávia, que facilmente compreenderás, porque a mentira engendra a mentira. Neste ponto, tenho que concordar inteiramente com a sr.a Brigitte. É um labirinto de que não sei como sair. Finalmente, conseguira tornear a questão menos mal... Eis, no entanto, que a sr.a Brigitte se torna ameaçadora. Afiança-me que, em sua consciência, não reconhece o direito de se manter minha cúmplice por mais tempo. E exige que informe a Octávia acerca da origem desse dinheiro... Imagina tu...
Compreendia-o muito bem, claro! E assegurei-lhe que, ao contrário, o que mais me espantava era o facto de que a minha madrasta tivesse consentido por tanto tempo em que se não desenganasse a Octávia. Não lho disse, mas dei-lho a entender, que me admirava bastante esse rigor. Começava, então, a travar conhecimento com a obra de Pascal, na edição reduzida de Brunschwicgí O tipo de Brigitte Pian, não só se me revelava, como se embelezava, em comparação com a Madre Inês e a Madre Angélica e com todas as restantes orgulhosas de Port-Royal. Revejo ainda a criança implacável, que eu era então, sentada ao canto do fogão, diante de uma mesa cheia de dicionários e cadernos, e tendo na frente esse homem extenuado, que estendia para o lume duas mãozitas brancas, um pouco sujas, e cujos sapatos esburacados lançavam fumo. O que os seus olhos ternos e castigados viam nas chamas era apenas a imagem de uma mulher estendida numa cama, tendo no ventre um fardo precioso e ameaçado. Tal era a realidade que Brigitte Pian se recusava a admitir, e na qual também me não podia fazer acreditar. A minha madrasta não se cansava de repetir-lhe:
- Avisei-o muitas vezes e, por isso, não é a mim que deve dirigir-se...
Verdade era que tudo viera a passar-se consoante as suas predições e que os acontecimentos lhe tinham vindo dar razão para que pudesse deixar de sentir uma confiança reforçada nas inspirações e nas luzes, que lhe vinham do próprio Deus.
- Abandonou-me sob a ameaça de que iria visitar a Octávia, amanhã à tarde - afirmou Puybaraud, com voz sombria. - Levar-nos-á algumas coisas, mas exige que, até lá, prepare Octávia, no sentido de ficar a conhecer a minha verdadeira situação. Que fazer, pois? Quereria evitar à minha pobre mulher o espectáculo desta vergonha. Bem sabes que não possuo o mínimo sangue-frio. Não poderei suster as lágrimas...
Perguntei-lhe por que motivo não arranjava alunos. Não podia dar explicações? Abanou a cabeça. Faltava-lhe o diploma e até o casamento lhe fechara a maior parte das casas em que poderia ter qualquer possibilidade de entrar.
- Que pena não precisar de explicador! - declarei, com ar satisfeito. - Mas se sou sempre o primeiro...
- Ora, tu! - respondeu-me com uma admiração mesclada de ternura. - Tu sabes já tanto como eu. Estuda para os concursos, meu filho. Colecciona os diplomas... Não terás muita necessidade deles, mas nunca se sabe... Se ao menos fosse licenciado...
Filho de uma família pobre, e educado pelos futuros confrades, por caridade e porque lhe pressentiam o valor, o jovem Leôncio Puybaraud aprendia tudo quanto queria e poderia ter ido muito longe se, a partir dos dezoito anos, não houvessem recorrido a ele para substituições, visto o Colégio ter falta de professores. Tivera que estudar por si próprio, mesmo a dar aulas, e apenas conhecia a literatura através dos Trechos Escolhidos e dos Manuais. Em contrapartida, aprofundara, melhor que muitos universitários, os grandes autores antigos, da Grécia e de Roma. Hoje, porém, toda a sua ciência se mostrava insuficiente para lhe permitir ganhar os escassos trezentos francos mensais, que lhe seriam necessários.
Bem desejava que se fosse embora. E ia folheando o dicionário, para lhe fazer compreender que não tinha tempo a perder. Ele, porém, ia-se demorando, abandonado a essa atmosfera, quente e doce, perto de uma criança que adorava, procurando inventar os meios de que devia lançar mão para advertir Octávia, sem lhe causar uma grande emoção...
Sugeri-lhe, então:
- Por que é que há-de ser o senhor a dizer-lho? Poderia encarregar alguém disso... Por exemplo, essa Irmãzinha da Assunção, que lá vai todas as manhãs...
- Mas que excelente ideia, Luís! - gritou, batendo com as mãos nas magras coxas. - Só tu és capaz de ver claro em qualquer situação! Essa Irmã é uma santinha, que gosta muito da Octávia, admirando-a bastante. É até um espectáculo bastante curioso o dessas criaturas, que se julgam inferiores uma à outra. Desejaria que a sr.a Brigitte as pudesse observar como eu... pois apreenderia o que é a verdadeira humildade...
Interrompeu-se, ao ver-me franzir os lábios, e ao sentir-me mais subordinado à sr.a Brigitte do que jamais ele próprio o fora.
No dia seguinte, pelo meio da tarde, Brigitte Pian apeou-se de um carro, em frente da casa da Rua Mirail, onde o casal Puybaraud ocupava uma parte de casa mobilada, que ela própria escolhera, e cujo aluguer pagava. Levava os braços carregados de pacotes, a ponto de não poder levantar o vestido nessa escada horrível. A água das lavagens corria numa vala aberta. Brigitte Pian já conhecia esse odor, muito familiar às suas narinas de senhora caritativa. A miséria das cidades em toda a parte possui o mesmo cheiro a guisado e latrinas. Ainda aqui, não desejaria ceder à tentação de fazer voltar contra Brigitte Pian os melhores actos da sua vida. Fossem quais fossem as profundas razões, a verdade é que sempre se mostrou muito esmoler, e até, em certas ocasiões, junto de doentes graves, muito capaz de lhes pagar o tratamento da sua própria bolsa. De mais, tinha por princípio que mais valia facilitar a vida a um pequeno número de infelizes, do que espalhar sobre muitos pequenas esmolas. Lembro-me até de que, quando ambos fazíamos visitas dessas, ela comprava linhas, lã ou géneros de mercearia, nos armazéns afastados do centro da cidade, que considerava como seus protegidos e aos quais procurava arrancar à rotina, mandando-lhes listas de encomendas. Contudo, nunca poupava observações ou censuras a esses comerciantes em situação difícil, escandalizando-se com a ingratidão de certas pessoas, que se obstinam em não sair da cepa torta, por mais que as ajudem materialmente.
Jamais se portou tão bem com os Puybaraud: embora os sustentasse, não procurou evitar que se debatessem com dificuldades. Seria de propósito? E quem pode afirmá-lo? Talvez nem ela própria o soubesse. Inclino-me a crer que achava bem que continuassem a viver na miserável situação que lhes predissera e que acabassem por ser tão evidentemente castigados, pelo simples facto de se haverem furtado à sua direcção. O facto de ter constantemente os Puybaraud na sua dependência era para ela um triunfo permanente. Quanto aos seus sentimentos para com Octávia, até ela própria haveria de estremecer, se acaso os conhecesse bem a fundo.
A primeira coisa, que saltou aos olhos de Brigitte, no quarto da doente, foi um piano vertical, perpendicular à cama, e colocado contra a cabeceira, que atravancava o compartimento ao ponto de tornar difícil a movimentação entre o armário, a mesa e a cómoda, cheia de frascos, chávenas e pratos sujos. (O sr. Puybaraud depressa se habituara a destruir todos os dias, a ordem que a Irmãzinha deixava atrás de si). Durante a troca dos primeiros cumprimentos e das primeiras perguntas e respostas acerca do estado de Octávia, logo os Puybaraud se haviam apercebido - e com que angústia! - de que o piano atraía os olhares da sr.a Brigitte, a qual não tardaria a formular as suas perguntas. A casa alugadora bem lhes prometera mandar buscá-lo, mas o certo é que havia faltado ao prometido. Ainda nessa manhã o sr. Puybaraud insistira uma vez mais no assunto. Como seria possível explicarem a Brigitte Pian que haviam tido uma fantasia dessas, perfeitamente absurda, visto que nem um nem outro sabiam tocar piano, embora ambos sentissem o mesmo prazer em dedilhar no teclado, com um dedo só, certas notas dos cânticos? Mesmo que não se encontrassem na miséria, ainda assim esse aluguer seria difícil de explicar. Mas quando se vive da caridade das pessoas...
Octávia deu-se pressa em abordar um assunto capaz de desviar a atenção da sr.a Brigitte. Agradeceu-lhe de todo o coração o facto de não haver permitido que Leôncio a pudesse trazer enganada por mais tempo sobre a origem do dinheiro, que levava para casa, todas as quinzenas. Tinha-o feito com boas intenções e só por caridade para com ela. Mas desde havia muito que pensava num embuste, embora tivesse acreditado, de início, num ardil da sr.a Brigitte que, como toda a gente bem sabia, se escondia para praticar o bem, como outros faziam para praticarem o mal. (Octávia não era inteiramente falha desse defeito, tão espalhado nos meios em que fora educada, e nos quais a lisonja bem pouco custosa lê, quando dirigida a pessoas influentes e ricas, que têm outras na dependência). Acrescentou que compreendia e partilhava também dos escrúpulos da sr.a Brigitte. Esta, que ouvira distraidamente, interrompeu-a para lhe afirmar que lastimava bastante ter magoado o sr. Puybaraud, e que talvez pudesse ter tido para com ele a fraqueza de ceder, se se tratasse de uma pessoa do mundo, como há tantas, que nada entendem acerca das coisas de Deus. Julgara, porém, que uma cristã, como Octávia, nada devia ignorar sobre as consequências dos seus actos, nem tão-pouco das provas a que a Providência a desejava submeter.
- Desde que era desígnio da Providência obrigá-la a viver na dependência da caridade de uma amiga e permitir que o sr. Puybaraud não encontrasse no mundo nenhum lugar que lhe conviesse, não achava poder arrogar-se o direito de lhe fazer perder o benefício de uma tal lição.
Após ter escrito tais palavras, que considerou atrozes, no seu diário íntimo, o sr. Puybaraud acrescentou ainda:
- Não vou jurar que as haja pronunciado com ironia consciente, mas antes com essa satisfação de poder envolver num pretexto inatacável, sob o ponto de vista religioso, o seu profundo prazer em ter tido tão grande razão naquilo de que nos advertira, e em que, no fundo, nada mais exista, entre a nossa miséria e a nossa casa, do que esse pequeno sobrescrito, que sou forçado a ir buscar a sua casa, duas vezes em cada mês.
- É curioso! - exclamou. - Esse piano não faz parte do inventário, que me mandaram, na altura em que aluguei a casa.
- Não - respondeu Octávia, com a voz a tremer. - Foi uma loucura de que só eu sou a culpada.
E olhou-a, com esse terno sorriso, perante o qual poucas pessoas havia que não se sentissem desarmadas. No entanto, a testa da benfeitora não se desfranziu.
- Perdão, minha querida - interrompeu o sr. Puybaraud. - Fui eu quem propôs isso, pensando mais no meu prazer pessoal do que no teu.
Que grande erro cometera em chamar "querida" à mulher, na presença de Brigitte Pian! Sempre detestara a falta de pudor dos casais que, sob o pretexto de que são legítimos, tornam a sua ignóbil intimidade sensível, quer por uma palavra, quer por um simples gesto. No seu caso particular, porém, isso tornava-se autenticamente insuportável. Perguntou, pois, com voz demasiado doce:
- Devo entender que alugaram este piano?
Ambos os acusados inclinaram a cabeça.
- Algum de vós, portanto, está apto a dar lições de piano? Pensava que ambos ignoravam o solfejo, ao ponto de nem conhecerem as notas.
Octávia respondeu que haviam acreditado em que podiam permitir-se o luxo dessa simples distracção.
- Que distracção? A de tocar com um dedo apenas, como te vi fazer na Escola Livre, com risco de te tornares ridícula aos olhos das alunas?
E a sr.a Brigitte, que só em raras circunstâncias sabia rir, ; emitiu uma espécie de cacarejo.
Octávia baixava a cabeça. Os cabelos, alourados e baços, dividiam-se em duas tranças a caírem-lhe sobre os ombros. O peito elevava-se e baixava-se demasiado rapidamente por sob a camisola de tecido grosseiro.
- É certo que errámos, sr.a Brigitte - comentou Puybaraud. - Mas há que evitarmos causar qualquer aborrecimento à Octávia - suplicou, em voz baixa. - Voltaremos a falar no assunto, na altura da minha próxima visita. Explicar-lhe-ei, então...
- Sim, queira perdoar-me... - soprou-lhe ela. - Voltaremos a falar disso, mais de espaço, e noutra ocasião. Dir-me-á, então, com que dinheiro conseguiu alugar esse piano.
- Com o da senhora, sem dúvida... Reconheço que, quando se vive da caridade, é imperdoável gastarem-se vinte francos por mês para se possuir um piano que não se sabe tocar... Deixemos a explicação do facto, no entanto, para a ocasião mais oportuna...
- Mas que explicação? Tudo está devidamente explicado e nitidamente claro - declarou Brigitte, sempre em voz baixa. (Octávia, porém, não perdia uma palavra sequer). Parece-me bem que nada mais haverá a acrescentar. Acho que nem um nem outro se aperceberam ainda de que ultrapassaram bastante os limites. Creia que não se trata, afinal, de uma simples questão de dinheiro! Não é isso que está em causa...
O sr. Puybaraud interrompeu-a, lembrando-lhe que ela própria estava convencida de que nada havia a acrescentar e abraçou a Octávia, que soluçava. Brigitte Pian, porém, muito embora inquieta pelas lágrimas de Octávia, encontrava-se a braços com um desses acessos de ira, que tão-pouco sabia dominar, e nos quais reconhecia, com toda a humildade, a marca dessa natureza de fogo que o Céu lhe havia outorgado. Por mais que se esforçasse por não elevar a voz, as palavras furiosas, e dificilmente retidas sibilavam-lhe por entre os dentes cerrados.
- Só me resta aproveitar ao máximo esse facto. A virtude também tem os seus limites, com a breca! É meu dever reagir contra a fraqueza; e, por mais caritativa que possa ser para convosco, de forma nenhuma pretendo levar a bondade até aos limites da loucura...
- Suplico-lhe que se cale ou que se vá embora! Pois não vê o estado em que coloca a Octávia?
E o sr. Puybaraud, completamente esquecido de tudo, foi até ao ponto de lhe agarrar no braço, puxando-a para a porta.
- Que é isso, meu amigo? Pois ousa tocar-me?!
Brigitte Pian, em razão desse verdadeiro atentado, via-se de repente transportada ao cume da sua perfeição habitual.
- Não, Leôncio! - gemeu Octávia. - Trata-se da nossa benfeitora. Tu é que estás procedendo mal, não a tratando como merece.
Nessa altura, Puybaraud, dominado pela raiva dos fracos, e vendo que Brigitte se encontrava já no patamar, gritou um pouco mais alto:
- Nós estamos em nossa casa, minha querida!
Na moldura da porta surgiu, então, a enorme estatura da minha madrasta.
- Em vossa casa, na verdade?
O triunfo surgira-lhe tão facilmente que de imediato reconquistara uma calma que ela julgava vinda do Céu. Na verdade, mais nada teria a acrescentar a essas palavras, que logo colaram os lábios do seu adversário. Mas não pôde deixar de atirar mais esta seta:
- Será preciso mandar-lhe todos os recibos da renda? Não estão passados em seu nome, parece-me a mim...
O sr. Puybaraud bateu com a porta e aproximou-se da cama, onde Octávia, com a cara entre as mãos, chorava. Tomou-a nos braços e puxou-a de encontro ao peito.
- Procedeste mal, Leôncio! Devemos-lhe tudo... E, na verdade, o piano...
- Acalma-te, querida! Olha que fazes mal ao pequeno...
Chamavam "o pequeno" à criança que ainda não tinham, e que talvez jamais viesse a nascer. E, como o sr. Puybaraud ia repetindo, em voz baixa, sempre com a cabeça da mulher de encontro a si, "a atroz criatura!", Octávia protestava:
- Não, Leôncio, não. Isso é mal feito. Tem defeitos de temperamento, claro. O temperamento, como sabes, é o ponto difícil de todos nós. É fácil não cometermos os crimes, de cujas ocasiões Deus nos afasta. Vencer, porém, a natureza, todos os dias, não é fácil, salvo se houver uma Graça particular. À sr.a Brigitte só lhe faltou a estadia num convento...
- Ainda bem! Se lá tivesse entrado, com certeza que teria acabado por dirigi-lo e por fazer tremer toda a comunidade, na qual escolheria com tempo as suas vítimas. Pelo contrário, só há que agradecer a Deus o facto de não lhe terem entregado ninguém, de corpo e alma, num convento. Era aí que Brigitte Pian havia de ter dado provas de todas as suas capacidades.
A nós, resta-nos, ao menos, a liberdade de morrermos de fome, sem nunca mais sermos forçados a vê-la...
- Concordo contigo em que em muito teria ajudado a santificação das Irmãs - afirmou Octávia, ainda banhada em lágrimas, mas já com um pálido sorriso. - Como viste, há, em regra, na vida das santas monjas, uma superiora da raça da sr.a Brigitte, que as ajuda a ganhar o Céu pelos caminhos simultaneamente mais rudes e curtos, visto que não morrem de velhas... Não - acrescentou. - Não é justo o que estou a dizer... A nossa benfeitora... Oh! É muito mal feito!
Calaram-se por uns instantes. Puybaraud, sentado na cama, agarrou num dos biscoitos, que Brigitte lhes levara, trincou-o aos pedacinhos, e perguntou:
- Que irá ser de nós?
- Irás procurá-la amanhã - disse Octávia. - Conheço-a bem. Sentirá os seus escrúpulos, esta noite, e será a primeira a apresentar as suas desculpas. De qualquer forma, o Luisito comporá as coisas.
Não o desejava. Não! Jamais se exporia a ser tratado de tal forma.
- É duro humilharmo-nos, meu querido. É o que há de mais duro, principalmente para um homem do teu valor. Mas é isso que te peço.
- Oh! O que mais me custa é que ela imagina que Deus lhe deu razão, só porque tudo nos acontece como ela previra. Tu acreditas que seja castigo?
- Claro que não - protestou veementemente. - Não; castigados, não. Apenas experimentados. Não nos enganámos. A tua vocação veio de encontro à minha. A sr.a Brigitte não compreende que fomos chamados a sofrer em conjunto.
- Pois é. E é, afinal, desse sofrimento que provém toda a nossa felicidade.
Ela atirou-lhe os magros braços ao pescoço:
- É verdade que não te arrependes de nada?
- Só sofro pelo facto de não poder ganhar a vida - suspirou;
- Mas se o pequeno nascesse... então nada mais teria importância, perante essa alegria.
A mulher murmurou-lhe:
- Não penses muito nisso! Não tenhas muitas esperanças...
- O quê? Que é que te leva a pensar?... O médico disse-te alguma coisa que eu ainda não saiba?
Cumulava-a de perguntas e ela abanava a cabeça. Não! O médico nada lhe dissera. Era uma ideia sua, a de que talvez isso também lhes viesse a ser exigido. Isso, principalmente.
- "Não!" - repetia Puybaraud, enquanto ela lhe ia afirmando que se tornava necessário ir aceitando essa ideia, como fizera Abraão. E talvez assim Isaac lhes fosse dado. Puybaraud continuava a dizer: "Não!", mas com maior doçura. Tombou de joelhos e, com a cara metida nos lençóis, respondeu, em voz sufocada, à oração da noite, que Octávia começara a rezar.
Depois da última invocação, Octávia calou-se e fechou os olhos. Puybaraud, então, acendeu uma vela, aproximou-se do piano, cujas teclas luziam na noite, e, com um dedo hesitante, procurou a ária, de que mais gostava, do cântico entoado pelas crianças, no dia da primeira comunhão, e cujas palavras ia repetindo em voz baixa: o Céu visitou a Terra, o Bem-Amado está comigo...
Ainda Brigitte Pian não chegara à rua e já se enraivecia contra si mesma. Como podia ter chegado a um tal ponto de descontrole? E que pensariam os Puybaraud a seu respeito? Não lhes era dado, como a ela, verem a sua perfeição interior, da qual não podiam medir nem a altura, nem a largura, nem a profundidade. Iriam julgá-la através desse momento de mau-humor de que, no fundo, já sentia vergonha. Que vem a ser a natureza humana - ia ela pensando, ao subir a rua Mirail, para atingir a avenida Vítor Hugo - para que, depois de uma vida passada em busca da conquista sobre a própria pessoa, e logo que se pensa ter-se adquirido o direito de nos julgarmos isentos das fraquezas que, nos outros, nos horrorizam, baste a simples vista de um piano para nos fazer sair das marcas?
Natural era que, por vezes, caísse uma malha desse tecido de perfeição em que Brigitte Pian trabalhava, vigilantemente, a todos os instantes - desde que sentisse a consolação de não ter testemunhas. No entanto, os Puybaraud, e mormente Octávia, eram os últimos perante quem ela consentiria, voluntariamente, em mostrar qualquer fraqueza. "Vão considerar-me uma comerciante" - monologava Brigitte, que procurava fazer progressos na vida espiritual, como se se tratasse do estudo de uma língua estrangeira. Enraivecia-a a ideia de que os Puybaraud se não apercebiam da sua ascensão, havia alguns meses, e que, pela aparência de um simples momento de mau-humor, a iriam classificar no número das beatas da espécie mais vulgar. Até que altura Brigitte Pian se elevara já, não era à sua humildade que pertencia conhecê-lo com precisão. De boa vontade teria tornado a subir as escadas dos Puybaraud, para lhes recordar que até os maiores santos, por vezes, haviam cedido à cólera. Seria ela uma santa? Bem se esforçava por isso, com pleno conhecimento, defendendo, em cada passo que dava em frente, o terreno já conquistado. Jamais surgira alguém que lhe ensinasse que o homem, à medida que vai caminhando na estrada da santidade, mais vai descobrindo a própria miséria e nulidade, atribuindo unicamente a Deus, não por simples devoção, mas sim por ceder à evidência, os poucos bons movimentos que a Graça lhe inspira. Brigitte Pian seguia o caminho inverso, procurando reforçar, diariamente, os motivos que tinha para agradecer ao Criador o tê-la feito uma criatura tão digna de admiração.
Antigamente, perturbara-se um tanto perante a secura que sempre marcara as suas relações com Deus. Lera, no entanto, em seguida, que são muitas vezes os principiantes, a quem Deus ajuda nos primeiros passos para fora do lamaçal, inundando-os de graças sensíveis, e que a insensibilidade, que a afligia, mais não era do que o sinal de que ultrapassara já, desde havia muito, as baixas regiões de um fervor mais que suspeito. Por essa forma se glorificava essa alma frígida da sua própria frialdade, sem reflectir em que em nenhum momento, mesmo na altura de começar a busca da vida perfeita, nada encontrara que se assemelhasse ao amor e jamais se aproximara do Mestre senão para o arvorar em testemunha do seu rápido avanço e dos seus méritos singulares.
Todavia, através dos passeios entre a rua Mirail e a Avenida da Intendência, subindo, no meio da bruma, pelos quarteirões da rua Duffour-Dubergier e da rua Vital-Carles, Brigitte Pian ia sentindo um mal-estar bem mais profundo do que o de se ter sentido diminuída aos olhos do casal Puybaraud.
Moía-a essa surda inquietação (por vezes adormecida, mas sem nunca desaparecer por completo) de não ter todas as suas contas feitas, e de ser julgada, também ela, com esse infinito rigor que, a seus próprios olhos, caracterizava o Ser Incriado. Bem no íntimo, em certos dias, e principalmente quando deixava Octávia Tronche, relâmpagos cruzavam as trevas da sua alma, permitindo-lhe poder ver-se, de repente. Descobria, então, com uma evidência, que cega, (mas apenas por instantes) que existia outra vida além da sua e outro Deus além do seu Deus. A satisfação de ser Brigitte Pian, de que tanto se orgulhava, desaparecia repentinamente, e ficava a tremer, miserável e nua, numa praia deserta e sob um Céu de chumbo. Chegava-lhe, de muito longe, o cântico dos anjos, a que se juntava a execrável voz dos Puybaraud. Não se tratava senão de um simples relâmpago. Por isso, procurava, por meio de algumas orações jaculatórias, cuja eficácia lhe era conhecida, reencontrar o perdido equilíbrio do seu espírito. Postava-se, então, em frente de um altar, como fez, nesse dia, na Catedral, procurando readquirir a tranquilidade e adorando essa mesma tranquilidade como se fosse a própria aprovação do Mestre oculto. No entanto, perante o Santíssimo Sacramento exposto e, em seguida, junto da Virgem, colocada por trás do coro, e à qual o artista, emprestara os traços da imperatriz Eugenia, sentia-se sob a ameaça interior de uma desaprovação: "Eis uma provação, que eu aceito" - pensava ela. No seu espírito, porém, isso apenas significava: "Nota bem, Senhor, que a aceito e não te esqueças de assentar esta minha aceitação na coluna do meu Haver". Porque a paz lhe continuasse a fugir, entrou no confessionário, acusando-se de haver sido violenta, e não decerto injusta (porque a ira fora justificada), mas por não ter sabido conter a sua legítima indignação dentro dos limites de uma caridade regulada.
Se, no dia seguinte, depois do almoço, o sr. Puybaraud houvesse encontrado Brigitte em casa, teria encontrado na frente uma pessoa desarmada e pronta a conceder-lhe o exemplo da verdadeira humildade, visto que, no tocante à humildade, a ninguém receava. Quando, porém, o meu professor, pálido de emoção, perguntou à criada se a senhora estava em casa, obteve como resposta que fora chamada por telegrama a Larjuzon, para onde partira, na companhia dos pequenos. O sr. Octávio Pian tivera um ataque e as palavras do telegrama eram suficientemente alarmantes para que a senhora imediatamente mandasse fazer as malas e levasse quanto havia de roupas de luto.
A morte de meu pai nada de suspeito apresentara. Saintis (que retomara o lugar que a saída dos Vignotte deixara livre) encontrara-o, pela manhãzinha, com a cara no tapete e já frio. Como muitos burgueses da charneca, Octávio Pian sempre comera e bebera em demasia. Entretanto, desde que vivia só, bebia assustadoramente. Na véspeira do dia em que morrera deveria ter bebido ainda mais, porque a garrafa de armagnac, encetada nessa tarde, encontrava-se vazia no escritório, onde costumava fumar o seu cachimbo, ao canto do lume, à espera da meia-noite.
Sei hoje que os escrúpulos de Brigitte Pian se cristalizaram em torno desse papel, de que já falei, e que, com razão ou sem ela, considerava terrível para a memória de minha mãe. Por muito tempo acreditei que, ao deixar Larjuzon, de propósito deixara o documento numa gaveta, com a plena certeza de que o marido acabaria por descobri-lo. Sem dúvida, era ir demasiado longe. Posso hoje atribuir todo o seu sentido às frases que a minha madrasta repetia incansavelmente no seu quarto, durante as noites que precederam e seguiram as exéquias de meu pai e que eu, de olhos muito abertos na escuridão, escutava cheio de terror, convencido de que Brigitte Pian enlouquecera. Pela ranhura inferior da porta, roída pelos ratos, via a luz, que a sua sombra errante ia cortando, a intervalos regulares. Embora calçasse pantufas, o velho soalho rangia. "Vejamos, reflictamos...", continuava a repetir em voz alta. Ouço ainda esses "vejamos, reflictamos" de alguém que pretende, custe o que custar, pôr fim à desordem dos pensamentos. Poderia ter-lhe mostrado o papel, e não o fizera. Temera sempre inquietá-lo, quando facílimo seria destruir o culto que votava à memória de Marta. Jamais o fizera. Poucas possibilidades havia de que viesse a abrir essa gaveta. Tudo quanto lhe poderiam ter atirado à cara era não ter tido o cuidado de queimar o papel... mas não com o pensamento reservado de que o marido viesse a lê-lo. "Entrego-me nas mãos de Deus... Sim, é isso mesmo: ao juízo de Deus. De Deus dependia que Octávio viesse a abrir ou não a gaveta. E, mesmo que assim tivesse acontecido, de Deus dependeria que o pobre homem compreendesse o sentido desse documento ou que lhe ligasse importância. Nada prova, aliás, que ele o tivesse encontrado sequer. Tal e qual. O documento já se não encontra na gaveta e o fogão de lenha do vestíbulo está repleto das cinzas dos papéis que ele queimou. Fez desaparecer tudo quanto provinha da primeira mulher, e o documento acompanhou o resto... Já não era senhor da sua cabeça, pois se dera à bebida..." Talvez não tivessem sido essas as suas próprias palavras; apenas as reconstituí de memória, tendo em consideração o que vim a saber depois e ignorava ainda então. Esforcei-me por encontrar a pista dos escrúpulos de Brigitte, mas não tenho a certeza senão desses vejamos, reflictamos, aos quais, durante a noite, se lhe apegava o espírito em desordem.
Micaela, entretanto, fingia não ver Brigitte. Pobre Micaela, presa também do remorso, desse remorso que ambos partilhávamos e que continuámos a sentir por muito tempo, e do qual, no declinar da vida, nenhum vestígio encontro já. A profunda mágoa de Micaela, que tanto amava o pai, não impedia que a sua preocupação dominante, em Larjuzon, e na véspera do funeral, fosse precisamente a de saber se poderia ver o João. Após a cerimónia, a dor filial decresceu e como que quase se eclipsou perante o desengano de não ter visto João no acompanhamento.
Temendo que o espesso véu negro, que lhe cobria a cara, a impedisse de vir a reconhecê-lo, encarregara-me de a avisar no caso de ver João de Mirbel. Tinha partilhado do seu desejo de tal maneira que os meus sentimentos pessoais nada tinham que ver com a curiosidade com que eu mirava e remirava o bando de burgueses e campónios que se comprimiam no préstito. No meio desses rostos animais, dessas caras de furão, desses focinhos de raposa ou de coelho, dessas frontes de ruminantes e desses olhos femininos, espantosamente vazios e extintos ou, pelo contrário, vivos, brilhantes e estúpidos, como os dos pássaros, apenas me dava a procurar essa cara, essa poderosa fronte sob os cabelos anelados e curtos, esse olhar e essa boca trocistas, mas em vão. João temera, sem dúvida, desfilar perante a minha madrasta. Como, porém, não era costume a viúva acompanhar o funeral até ao cemitério, sempre esperei que ele ousasse acompanhar-nos.
Era por uma dessas manhãs em que faria um lindo tempo, se o nevoeiro não acabasse por encobrir o fraco Sol. Até ao derradeiro minuto, junto da sepultura, e enquanto alguns vivos, já meio-mortos no seio desse nevoeiro, iam passando a pá de mão em mão, e parcimoniosos punhados de terra iam tombando sobre o caixão desse Octávio Pian, que possivelmente nem meu pai era, esperava que João surgisse do meio das sombras. Por várias vezes Micaela julgou que era ele e me apertou o braço. Ruminámos ambos a nossa vergonha, ao recordarmos tal momento, durante vários anos. Todavia, a dor que experimentávamos demonstrava bem quanta ternura havíamos dedicado ao nosso pai. Hoje, já me não revolto contra essa lei a que a minha irmã obedecia, no cemiteriozito de Larjuzon. Pertencia a esses seres tão equilibrados e puros em que o instinto quase sempre se confunde com o dever e cuja natureza leva a realizarem tudo quanto Deus espera deles.
De tarde, a minha madrasta dirigiu-se para o seu quarto, onde a ouvimos andar de cá para lá, até bastante tarde. Contra todos os usos, nenhum de nós compareceu à refeição fúnebre, cujo barulho chegava até ao primeiro andar, onde Micaela e eu nos havíamos refugiado. Na ausência de qualquer parente próximo, fora o nosso tutor, o notário Malbec quem presidira. Depois do café, foi ter connosco, congestionado e quase hilariante. Sabíamos que alguns clientes o esperavam e que por pouco tempo seríamos forçados a sofrer-lhe a presença. Se eu estivesse a escrever um romance, este Malbec constituiria uma personagem engraçada e digna de ser pintada, podendo entrar na galeria de todas aquelas acerca das quais as pessoas se não cansam de repetir que se trata de personagens "puramente à Balzac"... Não desempenhou, entretanto, nas nossas vidas, outro papel que não fosse o de nos livrar de tudo quanto pudesse vir a desviar-nos a atenção dos movimentos dos nossos corações e espíritos. Aborrecia-me de morte. Costumava contar histórias a mim próprio, quando, no seu escritório, se tornava necessário ouvir-lhe a leitura dos documentos, que eu me limitava a assinar com as minhas iniciais. Durante toda a minha mocidade, acreditei (ou procedi como se acreditasse) que essa espécie de indivíduos calvos, de lunetas e suíças, esses homens de negócios, entre duas idades, que se apresentam como que caracterizados, parece escaparem às paixões do coração e que tudo quanto é humano lhes passa despercebido.
Após a partida do sr. Malbec, e afastadas todas as carruagens, cedemos a essa obsessão, que nos parecia sacrílega, de perguntarmos um ao outro o que teria acontecido a Mirbel, nesse quarto em que nos aborrecíamos e que um simples tabique separava daquele de que o nosso pai acabara de ser retirado. Soubemos, desde então, que nada nos proibiria de tornarmos a ver Mirbel, em Baluzac. O cemitério, aond 154
havíamos de voltar, no dia seguinte, ficava um pouco afastado da aldeia, precisamente na estrada que levava a Baluzac. Nada seria fazer o caminho a pé até ao presbitério. Brigitte Pian parecia incapaz de exercer a mínima vigilância e a morte do pai desligara Micaela da sua promessa.
Nesse dia, o nevoeiro era ainda mais espesso do que o fora na véspera. Através dos bosques, não havia muita possibilidade de que alguém nos encontrasse. Na campa coberta de flores já murchas, Micaela esforçou-se por rezar, duas vezes seguidas, o De Profaneis, que me pareceu interminável. Depois, com a sensação de abandonarmos o pobre morto, caminhámos tão rapidamente que, apesar do nevoeiro, o suor me encharcava a cara. Micaela caminhava à minha frente, de boina branca na cabeça (pois não possuía mais nenhum chapéu preto além do que levara ao enterro). Um casaquito cintado marcava-lhe a cintura, já então considerada um pouco grossa. Tinha os ombros bastante elevados. São defeitos que a minha memória guardou. Mas evolava-se dessa rapariga desembaraçada uma extraordinária força e uma desbordante ânsia de viver.
As poucas casas que constituíam a aldeia de Baluzac pareceram-nos atingidas de morte. Não formavam uma rua sequer e nada havia em tal aldeia que se assemelhasse a uma praça. O presbitério encontrava-se separado da igreja pelo cemitério. Para além, ficava a Escola nova. Em frente, uma estalagem, que era simultaneamente mercearia, a oficina de ferrador e a farmácia Voyod que, nesse dia, se encontrava fechada. Dois terços dos paroquianos do abade Calou viviam isolados em herdades, a vários quilómetros da aldeia. À medida que nos íamos aproximando, a perturbação de Micaela mais se confundia com a minha. Formávamos um só coração e apenas tínhamos uma respiração. Eu arregaçara as calças do luto por sobre as botinas pretas com botões.
A horta parecia abandonada.
- Antes de tocares, espera que eu retome o fôlego - disse Micaela.
Não fez o gesto que teria feito hoje. Não usava bâton ou pó de arroz, nem sequer saco, mas apenas uma algibeira interior na saia. Levantei a aldrava da porta. O ruído soou como num sepulcro vazio. Passou-se meio minuto. Depois, ouvimos o ruído de uma cadeira e o barulho do arrastar de chinelos. O fantasma, que nos abria a porta, era o abade Calou. Emagrecera ainda mais, após o nosso encontro na Avenida da Intendência.
- Oh! Meus queridos filhos!... Ia escrever-vos. Deveria ter lá ido... mas não tive coragem, por causa da sr.a Pian. Compreendem?
Entrou à nossa frente para a saleta e correu as cortinas. Uma lufada de ar fresco caiu-nos sobre os ombros.
À sua pergunta, feita com voz hesitante, sobre se não receávamos apanhar uma constipação, respondi-lhe que, efectivamente, tínhamos sentido muito calor e que talvez fosse melhor subirmos. Pareceu um pouco contrariado, desculpou-se acerca da desordem em que iríamos encontrar tudo, e fez-nos sinal de que o seguíssemos até ao primeiro andar. Sentia a Micaela tensa por causa da aparição desejada: João iria, de um momento para o outro, debruçar-se sobre o corrimão. Talvez se encontrasse por detrás dessa porta que o abade Calou estava a abrir, desculpando-se ainda:
- A cama está ainda por fazer. A Maria vai ficando velha e eu, de manhã, também não sou muito mais válido...
Mas que abandono! Os livros juncavam os lençóis de brancura duvidosa. No fogão, por entre a papelada, uma travessa com os restos de uma refeição. Nas cinzas da lareira encontrava-se a cafeteira. O abade Calou aproximou duas cadeiras e sentou-se na cama.
- Queria poder afirmar-vos que sinto muito a vossa desgraça. Mas, por agora, não me é possível pensar nos outros. Sinto-me prisioneiro da minha própria dor. Talvez Vocês saibam onde se encontra? Talvez corram certos rumores? Por mim, nada sei e arrisco-me, mesmo, a nunca mais saber nada, visto que não será a família que há-de pôr-me ao corrente dos resultados das suas buscas, como facilmente compreenderão. Perdoem-me falar-lhes desta maneira... Depois da desgraça que me aconteceu, não troquei dez palavras com qualquer pessoa... Aqui, voltam-me as costas. Ou antes, riem-se de mim...
- Mas que desgraça? - perguntei eu.
Micaela compreendera.
- Que lhe aconteceu? Não lhe aconteceu nada, pois não?
O abade Calou segurou a mão que Micaela lhe apertara.
Repetiu que era o último a poder dar-lhe resposta, o único que não podia esperar qualquer informação de quem quer que fosse... Por fim, apercebeu-se do nosso espanto:
- Então, Vocês não sabem que ele se foi embora? Não vos disseram que partiu? Faz amanhã oito dias...
Gritámos ao mesmo tempo:
- Foi-se embora? Mas por que motivo se foi embora?
O abade levantou os braços, deixando-os cair de novo:
- Por que motivo? O aborrecimento, decerto... Esta vida, aqui, na companhia de um velho cura... Mas ele, por si só, não teria tido semelhante ideia, senão fora alguém ter-se metido de permeio... Não! Nada vos posso dizer. Não passais de umas crianças... Ah! Micaela! Tu, e só tu, poderias ter... talvez...
Nunca vira chorar um homem dessa idade e, ainda por cima, um padre. Não eram lágrimas de adulto. Os olhos azuis, nublados, assemelhavam-se àqueles que a sua mãe deveria ter enxugado, sessenta anos antes, quando tinha grandes desgostos. Até o esgar da boca era infantil.
- Supunha ter feito tudo quanto podia. Deveria ter-te perseguido, Micaela, agarrar-te e ter-te trazido à força. Não tive senso. Essa nossa correspondência... Que loucura! Não pudeste resistir à tentação de meter, no sobrescrito que me dirigias, uma carta para o João... Deveria tê-lo previsto. Pelo que me diz respeito, sabes que o assunto chegou até ao Arcebispado? A vossa madrasta enviou um memorial contra mim. Essa querida senhora! Felizmente que o Cardeal Lécot não é tão terrível como a sua cara parece mostrar. Sua Eminência riu-se de mim, claro! Chamou-me "o mensageiro dos amores", e citou alguns versos latinos. Mas tudo na intenção de levar o caso para a brincadeira, de lhe não atribuir nenhuma importância. Embora duro e de terrível zombaria, o Cardeal possui aquele bondoso coração que, de ordinário, acompanha as grandes inteligências. Sei que foi de uma grande bondade. O abade Calou escondeu a cara, por um instante, nas mãos enormes. Micaela perguntou-lhe o que era necessário fazer. Retirou as mãos da cara, olhou-a por uns momentos, e um sorriso iluminou-lhe a cara molhada.
- Oh! Quanto a ti, Micaela, é muito simples. Enquanto tu e ele viverem, nada estará perdido. Sabes o que representas para si? És capaz de lhe medir toda a extensão? Enquanto que eu, pobre velho, que poderei fazer? Sim, bem sei: sofrer. Pode sofrer-se sempre pelos outros. - Posso acreditá-lo? - perguntou a si próprio, em voz baixa, como esquecido da nossa presença. - Claro que acredito. Que os actos não sirvam para nada, que o homem se veja incapacitado de adquirir qualquer espécie de méritos por si próprio ou através daqueles a quem ama, que doutrina tão atroz! Durante séculos, todos os cristãos acreditaram em que a humilde cruz, na qual se encontravam pregados, à direita ou à esquerda do Senhor, os ajudaria na própria redenção e na das pessoas que amavam... Depois, surgiu Calvino a fazer desaparecer essa esperança... Eu, no entanto, jamais a perdi... Não,-repetia - não!
Eu e Micaela trocámos um olhar. Pensámos que enlouquecera e sentimos certo receio. Sacara da algibeira um enorme lenço de quadrados, de cor violeta. Limpou os olhos, esforçou-se por fazer parar a tremura da voz, e disse-me:
- Tu, Luís, poderias escrever para La Devize. É natural que perguntes à condessa o que é feito do teu condiscípulo. Claro está que será necessário interpretar bem a sua resposta, visto não haver quem saiba mentir tão bem como ela... Pode acontecer que já tenha regressado a casa... Não podem ter ido para muito longe, - acrescentou.
- Não estava só? - perguntou Micaela.
O abade não desviou os olhos do lume, onde acabara de pôr uma cavaca. Observei que não era possível viajar sem dinheiro e que Mirbel quase nada recebia da família.
- Estava sempre a lamentar o facto. Lembra-se, sr. cura?
Este continuava a procurar tições por entre as cinzas, como se não tivesse ouvido a minha pergunta. Estávamos de pé, na sua frente. Era visível que temia as nossas perguntas e desejava que nos fôssemos embora. A Micaela não insistiu. Lançou um derradeiro olhar a esse compartimento sujo e em desordem e desceu as escadas, devagar, com a mão a deslizar pelo corrimão em que João tantas vezes deveria ter feito deslizar a sua. A humidade estragara o papel da parede. O chão de ladrilhos do vestíbulo encontrava-se molhado.
- Logo que saibam de alguma coisa, escrevam-me - pediu o cura.
- Pelo meu lado, eu...
- Não lhe pergunto o nome da pessoa com quem partiu - afirmou Micaela, de repente. (Soube, mais tarde, que Saintis a informara acerca dos boatos que corriam a propósito de Hortênsia Voyod e do pequeno pensionista do sr. Calou).
- Nem é difícil adivinhar-acrescentou, a rir.
Recordo-me desse riso. O cura tinha aberto a porta e o nevoeiro penetrava em casa, carregado do cheiro a fumarada. Calou pôs-se a falar muito depressa, sem olhar para nós, e sem largar o trinco da porta:
- Que é que isso te pode importar? Para ti, nada disso tem interesse, Micaela, visto que mais ninguém no mundo, a não seres tu, tem importância para ele. Tu eras o seu desespero. Que te importa, pois, que outra tenha aproveitado, só pelo facto de se encontrar à mão? Por piedade, não me perguntes nada... Toda a gente, aliás, te poderá falar disso. Nem sequer terás necessidade de interrogar quem quer que seja. Não é a um pobre padre que compete falar-vos de coisas dessas, pois não passais de duas crianças. Tudo o que posso dizer-te, Micaela, é que só tu poderás salvar o João. Aconteça o que acontecer, não o abandones nunca. Nem sequer te terá traído... Nem a mim próprio, aliás, ele traiu. Ligara-me a ele como ao filho da minha velhice, mas sem lhe ter pedido a sua opinião. A paternidade, em que eu próprio me investi, nenhuma obrigação particular lhe impunha. Apenas ofendeu a Deus, a esse Deus que eu não fui capaz de tornar sensível ao seu coração e a Quem não conhece melhor, depois de todo o tempo que passou comigo, do que conhecia no primeiro dia, em que Vocês se zangaram neste jardim. Lembram-se?
Claro que me lembrava. Por mais jovem que fosse ainda, o passado era-me já esse abismo, em que até os mais ínfimos assuntos da meninice se transformavam em delícias perdidas.
Foi talvez nessa tarde, logo depois de ter fechado a porta e de nos ter perdido de vista, tragados pelo nevoeiro, que o abade Calou escreveu as linhas que tenho à frente dos olhos:
"Para avaliar acerca do que valem as nossas relações com Deus, nada de mais revelador existe do que a natureza das nossas inclinações para com os seres, e para com um ser em particular. Se constitui a fonte de todas as nossas alegrias e de todos os nossos sofrimentos, se a nossa paz depende apenas dele, fácil é compreendermos que nos encontramos tão afastados de Deus como se pode estar sem se haver cometido qualquer crime. Não que o amor de Deus nos condene à secura, mas sim porque nos obriga a devotar às criaturas um amor que não seja um fim em si próprio, esse amor puro, quase inconcebível para todos quantos nunca se encontraram nas condições de o sentirem. Esperei deste pequeno as alegrias da paternidade, que, todavia, Vos sacrificara, meu Deus, durante o período da minha ordenação. Como poderia ter eu dominado e vencido nele essa animalidade a que, sem o saber, encontrava não sei que graça? Porque mais fácil é odiarmos a nossa própria maldade do que a maldade de um ser amado".
Micaela caminhava à minha frente. Quando pretendia alcançá-la, alongava o passo como alguém que pretendesse ficar só. De cabeça levantada, nada, na sua atitude, traía acabrunhamento. Para mim, o que sobretudo importava era chegarmos antes que a nossa madrasta viesse a dar por tão longa ausência. Esse cuidado dominava por sobre todos os outros. Ao atravessarmos o vestíbulo, para nos dirigirmos aos nossos quartos, Brigitte abriu a porta da saleta, chamando-nos. Não quereríamos tomar chá? Aquecer-nos-ia um pouco, depois dessa longa caminhada. Micaela respondeu-lhe que não tinha fome. No entanto, perante a insistência da madrasta, não quis que pensasse que tinha medo e se escapava. Entrámos, pois, na sala onde o chá se encontrava servido. Brigitte Pian não estava com essa cara, tão minha conhecida, dos momentos em que se preparava para iniciar uma batalha. Todavia, não me era possível duvidar de que tinha adivinhado de onde regressávamos e atribuí, erradamente, à cólera que devia sentir o seu ar de fadiga e acabrunhamento. Encheu ela própria as chávenas, pôs manteiga nas torradas, que apresentou primeiramente a Micaela, e acabou por nos perguntar, como se da coisa mais natural se tratasse, se tínhamos visto o abade Calou. Micaela assentiu com a cabeça, mas a tempestade, que eu temia, não rebentou.
- Nesse caso, - afirmou Brigitte, com voz triste e como que pesarosa - já sabeis, com certeza...
Micaela cortou-lhe a palavra, de modo agressivo. Efectivamente, nada ignorávamos já, mas ela preferia que se não falasse mais disso... Como se dirigisse imediatamente para a porta, a madrasta chamou-a:
- Não, Micaela! Fica mais um bocadinho.
- Aviso-a de que, se se trata de um sermão, não estou disposta...
Esse tom de desafio pareceu não atingir Brigitte Pian, que, sem sombra de dúvida, ia seguindo a sua ideia. Mas que ideia?
- Não estou com disposição para fazer sermões. Apenas desejava, com todo o interesse, que me fizesses justiça.
Micaela, com o rosto endurecido, desejava saber de que lado viria o ataque. Aproximou a chávena dos lábios e sorveu o chá em pequenos goles, o que a dispensava de responder e obrigava Brigitte a descobrir o jogo.
- Dir-me-ás que não se deve esperar nenhuma justiça da parte dos homens e que deve bastar-nos a tranquilidade de consciência. No entanto, não passo de uma criatura tão fraca como as demais e tenho necessidade - não, evidentemente, para triunfar sobre ti, minha pobre filha, mas tão-somente para repouso meu, ou antes, para sossego do meu espírito - de que reconheças na minha frente que bem me apercebera do perigo, naquilo que te diz respeito, e que esse rapaz ainda é pior do que eu temera, e outrossim que soube defender-te contra esse perigo, tão bem, se não melhor, do que uma mãe pela carne...
Tão habituados estávamos a que todas as atitudes de Brigitte Pian fossem previamente preparadas, que o nosso primeiro movimento era sempre o de procurarmos saber qual o fim que ela pretendia atingir. Por sem dúvida que jamais fora tão sincera quanto o estava a ser nesse momento. Nada nos advertiu de que o assunto, de que estava a tratar com Micaela, proviesse de uma angústia, que nem um instante sequer a largara após a morte do nosso pai. Ansiava por que a sossegassem. Não via, aliás, por onde Micaela poderia escapar-se, a fim de lhe não dar razão. Bem longe estava a minha irmã de pôr em dúvida a força do golpe, que vibrava na sua inimiga, ao gritar-lhe:
- Quer que reconheça que foi a mais forte? Pois bem! De boa vontade o reconheço. Foi a senhora, e só a senhora, quem nos separou. Foi a senhora que o fez desesperar. Se está perdido, só a senhora é responsável pela sua perda. E se eu própria...
O céu não desabou. Brigitte continuou sentada, ou melhor, afundada na poltrona, ao contrário dos seus hábitos. Apenas levantou um pouco a voz:
- É a dor que te perturba, minha pobre Micaela... Ou não te disseram tudo. Se alguém o perdeu, foi essa Voyod.
- Uma carta minha, uma só, seria o suficiente para o impedir disso. Se me tivesse sido possível falar-lhe, se a senhora não se tivesse metido de permeio, com esse terrível encarniçamento, que foi até ao ponto de tentar perder o abade Calou, perante os seus superiores...
Micaela viu-se interrompida pelos soluços. Era a primeira vez que chorava na frente de Brigitte, como se o instinto do ódio a tivesse advertido de que a sua inimiga não viria a triunfar dessas lágrimas e que, bem pelo contrário, elas a haveriam de acabrunhar.
- Vejamos! Vejamos! - repetia Brigitte Pian, com essa mesma voz da noite em que eu a ouvira murmurar, no seu quarto. - Apesar de tudo, hás-de concordar em que se trata de um transviado, de um malfeitor...
- Um malfeitor? Só porque tem apenas dezoito anos é que se deixou levar...
Micaela hesitou em acrescentar "por uma mulher".
- Claro - insistiu Brigitte, com a convicção de alguém que defende a tranquilidade própria - digo bem: um malfeitor. Deixemos essa mulher, se assim o preferes. Fica ainda de pé a certeza de que esse filho-família se comportou como um malandrim, e que, se existisse justiça na terra, deveria ser metido numa cadeia.
Micaela jungiu os ombros. Tais afirmações antolhavam-se-lhe como absurdas, desarmando-a pelo seu próprio excesso. Replicou que Brigitte Pian, como toda a gente sabia, errava sempre que se tratasse de histórias dessa natureza. Necessário seria aumentar-se o número das prisões, no caso de ser obrigatório encerrar nelas todos os rapazes que cometem crimes que tais...
- Nem todos os rapazes arrombam as secretárias - continuou Brigitte. - Nem todos fogem com as economias dos seus benfeitores.
Tinha atirado a seta sem uma intenção definida, persuadida de que nós conhecíamos todas as circunstâncias que se relacionavam com a fuga do João. Só muito tarde a cara descomposta da Micaela a advertiu do seu erro. Levantou-se bruscamente para amparar a pequena, que a empurrou, e veio encostar-se ao meu ombro. Encontrava-me em pé, encostado à parede. Micaela balbuciava:
- Trata-se de mais uma calúnia, por certo, de outra invenção dos Vignotte.
- Então, Vocês não sabiam disso, meus pobres filhos?
Fixou-nos com um longo olhar, espantado e feliz. Nunca a nossa madrasta nos falara nesse tom pacífico, quase terno. Finalmente, sossegara: íamos ser obrigados a concordar em que nenhuma mãe teria agido de maneira diferente. O crepúsculo ia-se tornando noite. Brigitte apenas se encontrava iluminada pelas chamas.
- O infeliz abade Calou não teve coragem de vos descobrir a infâmia do seu protegido. Deveria ter calculado isso mesmo. Lamento haver sido tão brutal, minha querida Micaela, ter-te desferido semelhante golpe. Compreendes, agora? Tinha a obrigação de te defender contra um malfeitor. Conhecia-o muito bem, pois tirara informações perante o conde de Mirbel... Demasiado tarde, infelizmente, do que te peço perdão. Deixei que te relacionasses com esse tarado. Foi esse o meu erro, o meu grande erro. A fiança do sr. Calou não devia ter-me bastado. É certo que, acerca desse, também estava um pouco iludida...
Tomou o nosso silêncio por aquiescência, e cedeu ao prazer de se abandonar, de se confiar:
- Há momentos - continuou - em que se não vê claramente.
Podeis crer que eu própria cheguei a perguntar-me... Enfim, a ter dúvidas. A morte do vosso pai atingiu-me bem mais do que podeis calcular. Todos nós temos o encargo das almas que Deus nos colocou no caminho. "Que fizeste do teu irmão?" Essa pergunta de Deus a Caim, por várias vezes a tenho formulado em presença desses despojos, de que a alma tão bruscamente se desligou. A morte súbita contém, nela própria, uma indicação que nos faz estremecer... Pouco a pouco, apoderou-se de mim a angústia a respeito de todos aqueles de que terei de dar contas a Deus. Algumas vezes me terei enganado. Mas tomo Deus por testemunha de que sempre procurei a Sua divina glória e o bem das almas... Que dizes tu, Micaela?
A minha irmã acenara que não com a cabeça, afastando-se da parede e saindo da sala. Quis segui-la, mas a minha madrasta reteve-me.
- Não! Deixa-a lá consigo mesma, com os seus pensamentos!
Passou-se certo tempo. Brigitte Pian ateava o lume e, por vezes, uma chama crescia, revestindo-lhe o enorme rosto de uma luz ardente, para logo se extinguir. Nada mais se destacava das trevas, que tombavam, além desse rosto de faces pálidas.
- Não - gritei, de repente. - É melhor não a deixar sozinha.
Saí e subi ao segundo andar, onde ficava o quarto de Micaela. Bati à porta e não obtive resposta. Abri-a e julguei que estivesse estendida sobre a cama, às escuras, como fazia frequentemente. Chamei-a em voz baixa, pois os quartos, durante a noite, metiam-me medo. Nada. Não se encontrava lá! Procurei-a por toda a parte, desde a cozinha ao quarto da roupa. Ninguém a vira. Saí para o patamar. A noite fria era banhada pela luz de uma Lua invisível. Regressei à saleta, gritando:
- Não sei onde está a Micaela. Procurei-a por toda a parte.
- Então, é porque saiu para ir à aldeia. Por que razão tomas esse ar de tragédia, meu tolinho?
Brigitte levantara-se. E como eu lhe respondesse, a chorar, que a Micaela nada tinha que fazer na aldeia, a essas horas, ela murmurou, com voz irritada, "que estas crianças a enlouqueciam". Mas já ela caminhava à minha frente para o patamar. Alguém caminhava pela álea.
- És tu, Micaela?
- Não, minha senhora. É o Saintis.
Saintis, o inimigo que voltara à praça e que indecente seria mandar embora, antes de passarem alguns meses. Vinha tão ofegante que lhe ouvíamos a respiração difícil, na noite. Avisou-nos de que a menina Micaela lhe pedira uma lanterna para a bicicleta. Mandara dizer à senhora que tinha onde ir, urgentemente, e que não deviam esperá-la para o jantar.
- Onde é que ela terá ido?
- Ainda o perguntas? A Baluzac, com certeza. E, afinal, é melhor assim - acrescentou Brigitte Pian, regressando à saleta, onde tinham posto já um candeeiro. - Espera que o abade Calou lhe irá explicar as coisas, tornando-as mais aceitáveis... Qual o quê, porém! Um roubo por arrombamento é um roubo por arrombamento.
Passou-me a mão pelos cabelos.
- Ah! Meu querido filho! - suspirou. - Que exemplos te dão, numa idade em que tudo devias ignorar de tais misérias. Mas que lição, também, Luís! Olha para a tua irmã, uma boa rapariga, por certo... Todavia, nada podia impedi-la de correr os bosques, por uma noite de inverno. Eis o que a paixão faz dos seres, eis até onde nos rebaixa. Promete-me que tu, pelo menos, não hás-de vir a ser como os outros e não te hás-de deixar transformar em animalzinho.
Quis beijar-me. Mas eu furtei-lhe a cara e fui sentar-me longe de si, afastado do candeeiro.
Nas minhas palavras, nada se podia encontrar desse ódio que me inspirava. No entanto, a minha madrasta deve ter-lhe sentido o bafo, desde essa noite, em que jantámos sós e em que esperámos pelo regresso de Micaela até às onze horas. Dessa vez, Brigitte Pian chamou-a em vão. Micaela subiu ao segundo andar, sem parar na saleta. Às reflexões feitas por Brigitte, enquanto me entregava uma vela, apenas respondi com monossílabos. Um pouco mais tarde, quando hesitava ainda em estender as pernas pelos lençóis gelados, vi-a entrar. Vestira já o roupão de noite, cor de ametista, mas não lhe via a comprida trança - essa enorme serpente presa entre o roupão e o pescoço. Disse-me:
- Como a noite está fria, trago-te uma botija.
Ao metê-la na cama, tocou-me nos pés. Era a primeira vez que vinha beijar-me e aconchegar-me a roupa.
- A pobre pequena não ousou reconhecer, na nossa frente, que o abade Calou acabara por lhe abrir os olhos. Compreendo o seu sofrimento. Não devemos falar-lhe com aspereza. Mais tarde me fará justiça... Não achas? - insistia, levantando a vela acima de mim, para me observar. Refugiei-me no entorpecimento. De olhos fechados, voltei-me para a parede e fingi cair numa sonolência, como se estivesse a jogar com um pau de dois bicos. Brigitte suspirou:
- Que feliz que és em poderes dormir assim!
Dito isso, regressou ao seu quarto, à sua solidão. Durante a noite, fui despertado pelo ranger do soalho. Pensei que estivesse a contas com os seus escrúpulos, e senti-me, indignamente, satisfeito com isso. Ignorava ainda o horror dessa tortura que infligem a si próprios os servos de Deus que não sabem o que é o Amor.
No dia seguinte, ao pequeno almoço, Micaela, pálida e de olhos pisados, iludiu as minhas perguntas.
- O sr. Calou afiança que isso não pode ser considerado um roubo - disse-me ela. - O abade costumava adiantar dinheiro ao João, quando tinha necessidade disso. Dessa vez, foi o próprio João a servir-se, porque sabia que a família rapidamente se apressaria a restituir-lhe a importância. Deixou um bilhete no sítio do dinheiro, e o abade nem sequer duvida de que lhe venha a ser restituído...
Inquiri se, efectivamente, Mirbel tinha arrombado a fechadura. Minha irmã teve de assentir, mas, irritada com a careta que fiz, negou-se a acrescentar fosse o que fosse e voltou-me as costas. O mais estranho é que essa acção, que se me assemelhava monstruosa, de novo me tornou sensível a ternura que o Mirbel me inspirava. Jamais poderia renegá-lo ou renunciar à sua amizade, voluntariamente. Um frémito me percorreu todo, ao verificar que tão ligado me encontrava a um indivíduo tão susceptível de vir a tombar no crime.
Só muito tempo depois é que, por frases soltas, cheguei a conhecer completamente os segredos de tal aventura, não pela boca do abade Calou, mas sim pela do próprio Mirbel. Acontece ainda hoje que a velha condessa me fale no assunto, quando a visito, sem demonstrar qualquer espécie de constrangimento.
- É um rico assunto para um romance seu - afirma-me, com ar guloso. - Deveria guardá-lo para mim, mas ofereço-lho. Por mim, fá-lo-ia às três pancadas, pois não se trata do meu género ou seja, de uma história amorosa...
Em sua opinião, nada há que tenha direito ao nome de amor além do adultério das pessoas de sociedade.
É na origem desse roubo e dessa fuga, que tanto haviam de pesar no destino de Mirbel, que se situa uma "boa acção" do abade Calou, levada a efeito vários anos antes, no decurso das primeiras semanas que viveu em Baluzac.
Nesse momento da existência, vergava ele ao peso da pior provação que pode sofrer um padre: a certeza de que os homens não têm necessidade dele e que, no fundo, não há demasia alguma em afirmar que se riem do Reino de Deus. Nada sabem acerca de Deus e jamais foram atingidos pela boa nova. Aos seus olhos, existe uma simples organização dos ritos previstos para certas circunstâncias da vida, a cargo do clero. Mais nada existe para além disso. Que resta, portanto, ao padre, além de se dobrar sobre si mesmo, conservando no próprio peito essa chama vacilante até para ele e para um reduzido número de almas, até que, finalmente, possa vir a manifestar-se o brilho do pensamento de Deus ao mundo?
Tal era o estado de espírito do abade Calou, na altura em que, depois de doze anos passados no seminário, se viu forçado a abandonar a cadeira, que aí regia, na sequência de certas denúncias a respeito da sua ortodoxia. Humildemente aceitara essa paróquia de Baluzac, nos confins das charnecas, e uma das mais temidas da diocese. O estudo e a oração encher-lhe-iam os dias. Prestaria toda a sua solicitude ao pequeno rebanho, que lhe confiavam, sem pensar em atingir qualquer resultado. Desde o primeiro domingo, que se seguiu à sua instalação, procurou falar o mais simplesmente que lhe foi possível, como costumava, aliás, a uns quarenta fiéis, mas sem fazer grandes esforços por se tornar acessível. O assunto que perante eles tratou referia-se precisamente à missão do padre. No fundo, pensava apenas em voz alta, falando para si próprio. Ora, no dia seguinte, encontrara por debaixo da porta uma carta anónima de oito páginas. Uma mulher, que o ouvira, compreendera-o. Devia tratar-se de pessoa com certa cultura. Entrara na igreja - escrevia ela - por simples curiosidade e desocupação, para de lá ter saído perturbada. Reprovava, no entanto, nos padres o facto de ficarem à espera das ovelhas perdidas e de não procurarem imitar o Mestre, que as procurava e perseguia até as poder reconduzir carregadas sobre os ombros. Aludia a vergonhas que não se confessam, a estados de desespero de que nenhuma alma poderia livrar-se por si própria, se Deus não desse os primeiros passos.
Acreditou o padre Calou que, nessa manhã, um sinal lhe fora transmitido. De seu natural, era inclinado (como o foi Pascal) a esperar de Deus sensíveis sinais ou um testemunho material. Esse grito lançado desde o primeiro dia, e nesses campos perdidos, interpretara-o ele como um conforto trazido à sua angústia, uma resposta dada à sua inquietação e bem assim como uma terna admoestação. Preparou a homilia do domingo seguinte, com atento cuidado, e, muito embora deixando-lhe um alcance geral, pesou-lhe cada palavra para que a desconhecida pudesse decifrar que se tratava de uma resposta para ela só. Ao primeiro olhar lançado sobre o seu auditório, descobriu, por detrás de uma coluna, dois olhos castanhos, numa cara ainda fresca e moça, que se fixavam sobre ele. Soube no mesmo dia tratar-se de uma das professoras de Vallandraut, que ia muitas vezes a Baluzac, por qualquer motivo desconhecido das pessoas daí, mas que as levava à troça e a meneios de cabeça. O abade Calou lançou nas suas notas a perturbação, que sofreu na cadeira, para poder acabar a homilia. Nada mais, porém, escreveu a seguir sobre essa história, à qual se refere apenas por alusões obscuras e incompreensíveis para outrem que não fosse ele próprio. De facto, a professora quase desde logo se tornara sua confessada, pelo que o segredo da confissão lho impedia.
Apenas irei contar o que sei acerca do assunto o mais discretamente que me for possível. Essa rapariga, inocente ainda, começava a ser fascinada por Hortênsia Voyod - uma amazona, que grande erro seria supor-se pertencer a um género totalmente desconhecido no campo. Há indivíduos que estendem as redes e podem jejuar durante muito tempo antes que qualquer presa nelas venha cair: a paciência do vício é infinita. Uma só vítima lhes basta e um só encontro lhes assegura anos de pacífica satisfação dos prazeres. Nesse declinar de Setembro, em que o sr. Calou se tornara o cura de Baluzac, acabava a farmacêutica de passar uma temporada em Vichy. Embora considerasse a sua amiga como uma rapariga difícil de prender e muito entregue ainda aos seus escrúpulos, bem longe estava de imaginar que o seu reino se encontrasse seriamente ameaçado, tanto mais que não conhecia ninguém, numa roda de dez léguas, cuja influência pudesse temer. Não tomou, portanto, a sério a carta de ruptura recebida nessa manhã, mas, pelo sim, pelo não, abreviara o regresso. Logo à chegada, descobriu quem era o adversário e acreditou tratar-se de um jogo que ela acabaria por ganhar.
Ainda aqui, fiel à minha promessa de nada inventar, mal poderia descrever uma luta, a propósito da qual nenhum dado preciso possuo. O combate, porém, deve ter sido bastante disputado, visto que o abade Calou, que jamais solicitara qualquer favor e que sentia a maior aversão por coisas que tais, acabara por obter a mudança de lugar da sua penitente. No seu novo posto, porém, ainda a pobre rapariga se não encontrava ao abrigo das cartas da farmacêutica, nem mesmo das suas frequentes visitas, dado que a senhora em questão comprara, precisamente nesse ano, um carro movido a gasolina, que fora o primeiro a aparecer em Baluzac. Na véspera, porém, do dia em que deveria efectuar a sua segunda visita, trouxera-lhe o correio uma carta datada de Marselha, e na qual a jovem lhe anunciava a sua entrada no noviciado de uma ordem missionária, marcando-lhe uma entrevista no Céu.
Depressa compreendeu o abade Calou, muito embora sem ter tido qualquer explicação com a farmacêutica, que havia despertado nessa mulher um ódio que jamais se extinguiria. No entanto, pelo que lhe dizia respeito, pouco cuidado lhe dava o facto, crendo que não constituía presa apetecível para tal inimiga. Preocupava-se, sim, e bastante, quanto a ela, pois se considerava muito capaz de penetrar nos arcanos desse sofrimento, por mais vergonhoso que fosse. Porque, no fundo, estivera sempre atento a tais golpes imprevistos, a esses prolongamentos desconhecidos dos nossos actos, praticados com a nossa interferência, ainda que com as melhores intenções, no destino de outro ser.
De início, a acção do adversário desenvolveu-se no único terreno em que o poderia atacar. O anticlericalismo, por essa altura, encontrava-se assanhado. A farmacêutica, com o professor primário e sua mulher, formaram uma espécie de comissão de propaganda, de que a região em breve começou a sentir os efeitos. No entanto, demasiado má era a reputação de Hortênsia Voyod, mesmo em Baluzac, para que os seus ataques pudessem ter um alcance por aí além. Por isso mesmo, convenceu-se o cura, durante dois ou três anos, que nada havia a temer da inimiga. Todavia, nunca passava, de boa vontade, pela frente da farmácia. E, quando, numa curva do caminho, se encontrava na frente de Hortênsia Voyod, era ele quem voltava o rosto, por tanto o impressionar esse implacável olhar pálido.
Se havia esperado anos pela presa, a vingança demorou bastante menos tempo. Muito de desculpar é o facto de o abade Calou, de início, não se ter encontrado prevenido contra uma pessoa tida por não se interessar pelos jovens, e cujo aspecto físico nada tinha que os pudesse atrair. Vestia, com frequência, uma saia-calça, como as que então usavam as senhoras que andavam de bicicleta, e um bolero muito decotado, que lhe deixava a descoberto a cintura, ornamentada com uma fivela de prata, que lhe reproduzia as iniciais. Os cabelos, "à Cléo", divididos em bandós lisos, pegados às orelhas, e apenas deixando ver os lóbulos, uniam-se-lhe no pescoço, numa espécie de carrapito louro, de onde pendiam os ganchos. As sardas, que lhe devoravam a cara, acumulavam-se-lhe no nariz e nas faces, irradiando até às pálpebras. Algumas pareciam até mergulhar-lhe nos olhos cor de ouro.
Aproveitara o abade Calou a convalescença do João para acabar de conquistá-lo, ao que pensava. Cedia à ilusão a que todos nos submetemos, apesar dos desmentidos da experiência. Nada existe, no amor e na amizade dos seres, que se possa adquirir de uma vez para sempre. João de Mirbel, traído pela mãe e vencido pela doença, era muito capaz de sentir uma gratidão fugidia e de ceder à ternura. Mas essa força que, desde o primeiro dia, se levantara nele contra o padre, continuava a subsistir, embora sem conhecimento do sr. Calou. Um padre nunca é totalmente indiferente: ou atrai ou repugna. Mirbel sentia uma repulsa instintiva e uma atroz repugnância pelo homem profissionalmente casto. Lutava, com todas as forças, contra esse instinto, mas não podia deixar de odiar o próprio cheiro dessa casa sem mulher. Odiava que o sr. Calou achasse muito natural que um rapaz da sua idade se subordinasse a uma regra igual à sua. E esse rancor era tanto mais violento quanto era certo que, nele, nem o espírito, nem o coração, se encontravam abertos aos encantos da piedade e da pureza, a esse deleite do amor divino, do qual, aqueles que o sentem, só dificilmente podem imaginar que o maior número lhes fique indiferente, ao ponto mesmo de nem sequer o compreenderem. A monotonia da sua vida de reclusão, à medida que ia adquirindo as forças, e a luta que sustentava contra si próprio, a fim de não se mostrar ingrato para com um homem a quem devia tantos favores, tudo isso se conjugava para ressuscitar em João de Mirbel os seus demónios adormecidos. Tudo, pois, incluindo a afeição que o sr. Calou lhe testemunhava, se conjugou para facilitar o jogo do inimigo, uma vez que o natural de João era defender-se da ternura que alguém lhe quisesse prodigalizar. Quantas vezes lhe ouvi dizer, mais tarde: "Odeio que gostem de mim".
Por uma dessas contradições, contra a qual João de Mirbel nem sequer se dava ao trabalho de lutar, mostrava certo ressentimento para com o abade Calou pelo facto de, em seu próprio benefício, tornar mais branda uma lei moral e religiosa, que, no entanto, odiava. O abade fechava os olhos a muitas coisas, não indo ao ponto de o importunar em tudo quanto respeitasse à simples letra dessa lei. Bem longe de se contentar com isso, João mais se fortaleceu perante essa fraqueza, começando a levar uma vida desregrada. Ia, às vezes, à taberna. No entanto, de temperamento pouco sociável, parecia orgulhoso, e jamais arranjara amigos. Em contrapartida, agradava às raparigas, tendo arranjado, no fim do inverno, a sua primeira aventura. Os pais da rapariga queixaram-se ao abade Calou, que procurou intervir, mas com grande falta de jeito. Como a maioria dos homens castos, acreditava que um grande amor constituía, para um jovem, a melhor defesa contra as paixões. Por este lado, nada temia, persuadido como estava de que João seria incapaz de atraiçoar Micaela. Ora, se é certo que muitos rapazes podem conservar-se fiéis a uma rapariga, que amam, há outros, como era o caso de Mirbel, que não estabelecem qualquer ligação entre o amor do coração e os caprichos dos sentidos. Uma só existe, aos seus olhos, e exasperam-se com o facto de alguém ousar submeter à mesma bitola o culto de adoração que lhe devotam e as medíocres aventuras em que só a carne se encontra interessada.
Tal foi o assunto da primeira discussão entre o abade e Mirbel, na qual este se deixara arrastar por uma violência desde havia muito contida. Depressa levou vantagem sobre o padre, troçando de que este pensasse em condená-lo, não em nome da moral cristã, mas apelando simplesmente para um código amoroso, já bastante antigo, e no qual já ninguém acreditava, com excepção dos seminaristas. Foi até ao ponto de gritar-lhe que o proibia de falar na Micaela, um nome que não admitia que ninguém pronunciasse na sua frente. Quanto mais Mirbel se deixava levar pela cólera, menos o abade procurava defender-se. João, no entanto, nenhuma consideração mostrou por essa dor que não se ocultava.
"Irrita-se comigo pelo facto de me saber um pai fraco"escrevia o abade, na noite do dia em que tal cena se desenrolou, no seu diário. - "Até a alma menos cristã exige que não a amemos, a não ser em nome de Deus, desse Deus em que nem sequer acredita".
Apesar de Mirbel nada me ter contado de preciso acerca do que a cólera lhe soprara, imagino que a frase do sr. Calou se refere a palavras bastante cruéis. João tinha consciência dessa crueldade, mas, embora uma parte de si próprio a detestasse, ia caminhando sempre em frente, mergulhando com uma espécie de raiva nessa maldade extraordinariamente gratuita. Não fora, pois, de propósito deliberado, nem tão-pouco para vibrar o último golpe no seu benfeitor, que se ligara com a farmacêutica. O professor primário e a mulher conduziram-no à presença de Hortênsia Voyod. Nesse dia chuvoso de Fevereiro, em que o adolescente, que ela espreitava, havia semanas, por trás das cortinas, atravessou envergando o capuz de colegial, o pequeno pátio inundado e transpôs o limiar da farmácia, decerto que a farmacêutica teve um suspiro de alívio, muito embora soubesse que a vingança tinha ainda um longo caminho a percorrer.
Nesses colóquios, iluminados por uma lâmpada Pigeon, ao calor de um fogão ruidoso, e em que o armagnac fazia, soltar as línguas, não era possível que João soubesse afirmar que espécie de satisfação encontrava junto dessa mulher pálida, de voz um tanto rouca e, apesar disso, bastante doce, e quase sem entonações. Nessa altura, em que a paixão anticlerical do professor primário, de acordo com as lutas políticas da época, nenhum interesse tinha para Mirbel, as zombarias da farmacêutica suscitavam-lhe uma correspondência imediata. Falava-lhe numa língua, que nunca tinha ouvido, mas que compreendia perfeitamente.
Nessa primeira noite, deu-se ela a insistir em que não fosse vê-la, senão já depois de a noite ter caído e que, antes de entrar, procurasse assegurar-se de que ninguém o vira, visto que o cura, com o qual tivera os seus desaguisados, não aprovaria, por certo, as suas relações, razão por que havia vantagem em as manterem secretas. Protestou ele que nada tinha que ver com as questões do seu professor. Nos dias seguintes, acabaram por verificar a profunda compreensão que havia entre ambos.
O que predominava nessa mulher (sem verdadeira cultura, mas com suficiente leitura dos melhores e dos piores autores modernos) era um espírito de reinvidicação e ódio contra um Deus, cuja existência, aliás, negava, - ilogismo que, no fundo, em nada a constrangia. Lançava, contra esse Ser desconhecido, em Que não acreditava, a repreensão de toda uma raça, para a qual, no mundo, nenhum outro caminho existia, além da imolação.
Sem dúvida, nada descobria em Mirbel acerca da sua secreta ferida. Mas via-se bem que o rapaz, embora não tivesse a mais pequena razão para partilhar com essa mulher, mais velha do que ele cerca de vinte anos, de um rancor tão extraordinário, também não perdoava ao destino tê-lo feito exactamente como era. O facto de ser um Mirbel, herdeiro de uma família patrícia, mais estranha lhe tornava essa força hostil, obstinada e dirigida contra toda a ordem e todo o constrangimento necessários à felicidade. Hortênsia Voyod não desconhecia a fonte envenenada do seu ódio. Por nada no mundo consentiria em desvendá-la a João, embora pudesse fazê-lo, se assim o quisesse. O adolescente, esse, não sabia a razão por que, neste mundo, tudo o afastava da alegria, salvo uma rapariguita, que não esperava tornar a ver, e um padre em quem se encarnava, justamente, o objecto da sua repulsa. Talvez Hortênsia Voyod não tivesse atingido tão facilmente o seu fim, se o João não viesse a ser, nas suas mãos, o instrumento de que se havia de servir. No entanto, esse entendimento entre ambos, desde o primeiro dia, esse acordo profundo, em muito lhe viera facilitar as manobras. Nem teve, sequer, necessidade de fingir uma simpatia que, na realidade, sentia: o rapaz viera, por si próprio, prender-se na rede, na qual se debatia com todo o prazer. Nem teve de recorrer mesmo a nenhum ardil para o atrair. Todas as noites o abade Calou ia acabar de ler o seu breviário em frente do Santíssimo Sacramento, onde se demorava até à hora do jantar. João saía, então, do presbitério pela porta oposta à estrada principal, contornando a aldeia. Podia entrar-se em casa de Hortênsia, sem ter que se atravessar a farmácia, saltando a barreira que cercava um jardinzito, na parte detrás da casa.
Mesmo que não temesse o encontro com os fregueses, Mirbel procederia do mesmo modo, a fim de evitar o farmacêutico - esse velhote, sempre ocupado em empacotar medicamentos com tão atento cuidado como se disso dependesse a vida dos doentes, que apresentava uns modos de excessiva humildade, desmentida pelos olhares de troça. Como geria a propriedade da mulher (a cláusula essencial do seu contrato era a de que, não possuindo qualquer direito sobre ela, as propriedades ficariam a seu cargo), todas as tardes se ausentava, jamais penetrando, no regresso, no armazém, quando aí se reunia "o cenáculo", como ele dizia.
Mal se passara uma quinzena, e já o abade Calou fora avisado acerca dessas reuniões clandestinas. Dessa feita, não se deixou levar pelo primeiro movimento. E, quando abordou o assunto com Mirbel, fê-lo sem qualquer dose de paixão e após ter reflectido maduramente sobre a conduta a seguir. Bem longe de lhe dirigir qualquer censura, reconheceu que a solidão é uma vocação sem qualquer atractivo para um jovem de dezoito anos. Tinha, no entanto, as suas razões, que não podia confessar-lhe, para considerar Hortênsia Voyod como uma pessoa encarniçada em prejudicá-lo. Apelou, portanto, para a sua lealdade: enquanto vivesse no presbitério, seria trair o seu hospedeiro continuar em ligação com essa mulher. Se, no entanto, se não considerava capaz de viver em Baluzac, sem ter que frequentar a farmácia, necessário se tornava dizê-lo com toda a franqueza, pois o abade Calou procuraria um pretexto para solicitar dos Mirbel que viessem buscar o pequeno - coisa que João temia, acima de tudo, pois, nesse caso, não evitaria o internato em qualquer colégio de jesuítas. Contudo, sentira-se atingido pelo tom do professor. Não podia negar que Hortênsia Voyod pretendesse o mal do cura, não que directamente o houvesse atacado, na sua presença, mas porque todas as suas afirmações o visavam indirectamente. De tal forma que o rapaz, ao sair do armazém, se sentia envergonhado quando, na sala de jantar do presbitério e através do fumo, que saía da terrina da sopa, tinha de corresponder ao sorriso do abade e ao seu olhar quase infantil. Prometeu, pois, acabar com as visitas à farmácia. Mais tarde, afirmou-me que, nesse momento, se encontrava de boa-fé e absolutamente resolvido a manter a palavra dada. Foi por essa altura que o abade Calou lhe arranjou um cavalo e me reteve na rua, procedendo a essa tentativa, cujas deploráveis consequências já contei, para manter correspondência com a Micaela.
Se, antes de ter conhecido Hortênsia Voyod, o João, separado de Micaela, que nem sequer lhe recebia as cartas, sofrera com o seu exílio em Baluzac, a verdade é que, depois, não mais o pôde suportar, uma vez que lhe faltavam essas conversas, a que se habituara, ou essas leituras, em voz alta, que o professor primário fazia dos artigos de Hervé, de Gérault-Richard e de Jaurés (enquanto Hortênsia emborcava o seu copo como um homem e acendia o cigarro ou falava só, com uma espécie de ironia amarga, da qual Mirbel, passados tantos anos, ainda me elogiava a sedução).
O abade Calou teria preferido, por certo, os seus acessos de revolta. Que fazer, porém, contra essa nostalgia de fera na jaula, mormente quando a superiora do Sagrado Coração advertira, secamente, o abade de Baluzac de que devia cessar por completo a sua correspondência epistolar com Micaela? João não lia nada, atamancava os trabalhos e percorria os bosques, a pé ou a cavalo, até ao anoitecer. Passadas algumas semanas, começou a frequentar assiduamente a casa do professor primário. O abade fechava os olhos. Não duvidava de que o rapaz aí encontrasse sempre uma carta de Hortênsia Voyod e que ele próprio lá deixasse a resposta. Prometera não mais a ver ou escrever-lhe. Sem essa troca de correspondência quase diária, natural era que as suas relações não tivessem vindo a tomar esse tom apaixonado. Por certo, fora até o tom romântico das cartas do adolescente que despertara essa ideia em Hortênsia Voyod. Entreviu nelas o que, de início, nunca julgara ser possível vir a dar-se com esse rapazote, que poderia ser seu filho. Prudentemente, começou por se limitar à linguagem da amizade, da qual era mestra em servir-se para atingir os seus fins, embora se mostrasse incapaz de a sentir, na realidade, visto que desde o colégio, em que estivera internada, até haver obtido o diploma de um curso superior, a amizade jamais fora para si outra coisa além de um alibi do desejo. Dessa feita, encontrava-se em jogo o seu desejo de vingança. Nenhuma ilusão teve, pois, acerca do sentimento que despertara em Mirbel. Embora este lhe não houvesse feito confidências, ela bem sabia que sofria, que tinha o coração completamente cheio de outra. Mais avisada, porém, do que o abade Calou, distinguira no rapaz o animal que era, no fundo, submetido já ao seu instinto essa exigência cega e irreprimível.
Hortênsia Voyod logo de início reconhecera essa faceta da sua natureza. As duas ou três cartas suas, que João conservara e me mostrou, mais tarde, não tinham nada de sentimentais, e antes haviam sido escritas com o cuidado bastante para despertarem, sem qualquer grosseria, uma imaginação jovem, condenada à solidão. Uma das raras notas do abade Calou, directamente concernentes a Hortênsia Voyod, é demonstrativa de quanto o padre se preocupara e obcecara com essa mulher: "Ciência inexplicável numa camponesa - escreve ele. - É porque, no fundo, o vício também é educador, à sua maneira. Nem a todos é dado poderem contemplar o mal de frente. As nossas pobres fraquezas individuais, a que chamamos simplesmente "o mal", nada têm de comum com esse desejo de destruir uma alma... O espírito do mal, tal como o século XVI o conheceu e descreveu, nas Ligações Perigosas, continua a respirar, bem o sei, a alguns metros do meu presbitério, por trás das cortinas de uma farmácia..."
A Primavera chegara cedo. Embora o exame final do curso dos liceus se aproximasse, João fugia de casa incessantemente. Hortênsia bem sabia que o encontraria logo que considerasse o momento propício e que, para tanto, lhe bastaria passear pelas margens do Ciron. Não se apressava, porém, porque nada pretendia arriscar. Necessário era, antes do mais, implantar uma ideia fixa no espírito do rapaz, e que não sonhasse senão com ela, já a ver ao longe a sua vingança. Não era suficiente descarregar no abade Calou um golpe mortal. Desde que perdera a sua amiga, procurava um pretexto para se desembaraçar do velho farmacêutico, tornado inútil. Calculou que o pequeno Mirbel, do mesmo passo que a vingaria, a havia de ajudar na sua libertação, desde que consentisse no escândalo. Hesitava, no entanto, no caminho a seguir.
Logo que surgiram os belos dias primaveris, deu-se o abade Calou, à semelhança do que todos os anos fazia, a visitar os bairros e as herdades afastadas. Tratava de aliciar as crianças para a catequese e de visitar os doentes e principalmente os velhos, a quem os filhos obrigavam a labutar, frequentemente, até à morte. Por vezes até, havia à sua cabeceira uma nora que lhes invejava o negro pão, que as suas velhas gengivas iam moendo, com lentidão de ruminantes. Humanidade dura em si mesma, impiedosa para os outros e para quem o padre não passava de um madraço espertalhão: "Qual o quê? Padres?! Lá falta, fazem!..." O confuso sentido que tinham de uma tal necessidade ligava-se, nessa época, a uma ideia no fundo bastante cara ao abade Calou, por se relacionar com a última lição dessa cruz fixada na terra, imóvel, e na qual se pregara, por meio de cravos, um Deus incapaz de um movimento sequer. Do mesmo modo o padre, atado ao mesmo poste e exposto à mesma irrisão, propõe aos homens um enigma que eles nem tentam sequer decifrar.
Uma tarde, pelos fins de Abril, quando o cura regressou a casa, um pouco antes do crepúsculo, foi informado pela Maria, que o esperava, de que o sr. Voyod, o farmacêutico, se encontrava no salão, havia já uma boa meia hora, e que ela pensara ter procedido bem acendendo o lume. Era a primeira vez que tal personagem transpunha o limiar do presbitério. O abade Calou, extraordinariamente intrigado com o facto, encontrou o visitante sentado ao canto do lume fumegante. À entrada do padre, levantou-se. Vinha vestido de ponto em branco. O fino laço preto mal escondia o botão da camisa. Poder-se-ia meter-lhe uma mão entre o colarinho e o pescoço descarnado. O sorriso descobria-lhe a boca desdentada.
Apresentou muitas desculpas pelo facto de nunca ter tido ocasião de visitar o cura. Receara sempre não ser bem recebido. Todavia, era do domínio público não partilhar ele de todas as ideias da mulher. Enquanto a sua primeira mulher vivera, frequentara a igreja, nos dias das grandes solenidades, e cantara mesmo no coro, até aos seus dezanove anos. Muito desejaria que o sr. cura o não considerasse como inimigo, esperando que lhe desse a honra de passar a ser seu cliente. Não devia ser nada cómodo ter de ir a Vallandraut para comprar algumas hóstias.
Tudo isso era dito de enfiada, como se de uma lição preparada se tratasse, e sem que o abade conseguisse adivinhar qual o fim que o homenzinho se propunha atingir. Aludiu, uma vez mais, aos princípios da sr.a Voyod, que ele se encontrava bem longe de perfilhar. Para si, nem tudo era cor-de-rosa, podia o sr. cura ter a certeza. Sacrificara-se, no intuito de servir de pai à filha do seu amigo Destiou, logo que ficara sem pais e com a responsabilidade da gerência da propriedade em cima das costas. O farmacêutico não desconhecia que o povo lhe atribuíra fins interesseiros... Que havia ganho, porém, com tal casamento? Apenas as labutas do proprietário, sem qualquer das vantagens... Além disso, até as ideias da sr.a Voyod haviam obrigado muitos clientes seus a afastarem-se. Ah! Mas ainda não acabara de lhe dar cuidados! Só então começava a deitar as mãozinhas de fora. Claro estava que não tinha que dar conselhos ao sr. cura. Mas bastante o espantava o facto de o seu aluno ter autorização para visitar uma pessoa por tal forma hostil à Igreja. Em todo o caso, ele, na sua qualidade de marido, e se bem que mais se considerasse como um pai do que como um esposo, bastante se inquietava com essas entrevistas, de que todo o Baluzac começara já a falar... Bem sabia que se tratava de um simples rapazote, claro, e que essas coisas não tinham uma importância por aí além, na idade do pequeno Mirbel... No entanto... Como, porém, o cura o interrompesse, para lhe afiançar que o seu aluno já não ia à farmácia, o velho começou a falar de encontros nos bosques, que não deviam ser lá muito bons para o jovem e que nenhuma vantagem trariam também à mulher. A prova estava, afinal, em que ela não levara nada a bem as suas observações. Como se tivesse esquecido de que, ainda havia poucos momentos, falara do seu casamento como de um acto de pura devoção desinteressada, choramingou que bem triste era, no fundo, chegar ao limiar da velhice e ver-se ameaçado de perder, de um momento para o outro, o benefício de tantas canseiras e de tantos trabalhos. Quando um homem se ocupa, durante anos, de uma propriedade, que beneficiou, transformando os matagais em terreno cultivável, desbastando-a e restabelecendo-lhe os limites contestados pelos vizinhos, é bastante duro ver-se ameaçado de ser despedido, como um criado, quando tudo se encontra em ordem.
O sr. Calou observou-lhe que o seu pensionista nada tinha a ver com isso. O farmacêutico ripostou-lhe que, de facto, não era de crer em tal e que seria a última coisa em que podia pensar. Porque, no fundo, havia que fazer justiça a Hortênsia, que nunca levara uma vida desregrada e ninguém podia acusar de ser inclinada a coisas dessas... (e o velho lançou um olhar estranho ao cura, que depressa dissimulou sob as pálpebras inflamadas).
O abade agarrara nas tenazes, esforçando-se por reanimar o lume. Afirmou que a lareira se encontrava fria, pelo facto de se não ter acendido o lume durante o Inverno. O velho, a quem o fumo provocava a tosse, insistiu com o abade Calou para que dissesse umas palavras ao seu aluno. Claro que nada se tinha passado... mas para quê dar origem a mexericos? Além disso, Hortênsia estava a aproximar-se de uma idade crítica...
As tenazes tremiam nas enormes mãos do padre. Levantou-se e teve que baixar a cabeça para olhar o seu visitante nos olhos:
- Fique tranquilo, sr. Voyod. O meu pensionista jamais percorrerá os bosques, apartirdeamanhã. Dou-lhe a minha palavra.
O farmacêutico achou que o cura não tinha um ar pacífico. Repetiria, mais tarde, que jamais havia visto um homem tão fora de si, nem com ar tão capaz de aplicar uma sova mestra. O sr. Voyod não desejaria estar na pele do rapaz, quando regressasse para jantar.
Calou, ao ficar só, subiu ao quarto, encheu uma bacia de água e borrifou a cara. Em seguida, ajoelhou-se. As palavras, porém, colavam-se-lhe aos lábios e os pensamentos turbilhonavam-lhe como folhas arrastadas por um ciclone. Dizia-se ainda, na família do irmão: "Durante as férias de 1880, no ano da grande cólera do Ernesto..." A última dessas cóleras atingira-o um ano antes da sua ordenação, na altura do subdiaconato. Depois, com a ajuda da Graça divina, sempre conseguira dominar-se, antes que o acesso atingisse as raias.
Nessa noite, com os cotovelos apoiados ao genuflexório, segurava a cabeça nas mãos. Uma voz interior como que lhe gritava: "Há perigo... Arriscas-te a maltratá-lo..." Mais forte, porém, do que tal apelo, trovejava dentro dele o desejo de que o rapaz se encontrasse na sua presença, para o agarrar pelo cachaço e forçá-lo a ajoelhar até que pedisse misericórdia. E, depois, acabara-se a brincadeira. Tratá-lo-ia como o tio Adernar desejara que o tratasse. Já que não obedecia senão à força e não cedia senão ao medo, o cura de Baluzac saberia como torná-lo macio e mais obediente do que um cão sabujo: "Reza! Procura ganhar tempo..." - ia repetindo a voz, incansavelmente. E, de repente, ouviu os passos bem conhecidos na escada. Abriu a porta:
- Entra. Preciso falar-te.
Como o rapaz respondesse: "vou já...", insistiu: "Imediatamente..." João jungiu os ombros e quis continuar a subir as escadas, que levavam ao segundo andar. Viu-se, no entanto, agarrado pelo cachaço e, sentindo a pressão de um joelho contra os rins, achou-se sobre o divã-cama, para onde fora lançado como um pacote, entre os livros e as brochuras. Estupefacto, conservou-se sentado, vendo à altura da cara dois enormes punhos. Apenas pôde balbuciar: "Que lhe aconteceu?" O abade respirava rapidamente e limpou a fronte molhada com as costas da mão. Vá lá! Tinha evitado! o perigo maior. A coisa passara, por agora.
Num tom extraordinariamente frio, e sem que a voz lhe tremesse, confessou a sua falta de êxito para com o aluno e avisou-o de que, desde esse momento em diante, apenas o vigiaria exteriormente, até que a família Mirbel o desquitasse do contrato que fizera. Esperava que o rapaz não pretendesse levar o caso entre ambos para o lado da força, pois o abade, quando forçado a usar da sua, tinha muita dificuldade em regulá-la e batia com dureza.
Depois disso, ordenou-lhe que fosse para o quarto, onde lhe levariam a comida: "Enquanto me dizia estas coisas de selvagem - escrevia João a Hortênsia Voyod - o cura tinha os olhos fechados. Talvez orasse, embora os lábios não mexessem. Constantemente essa escapatória oculta, por onde estes indivíduos se nos escapam".
Cumpriu a sua palavra, impondo a sua presença ao Mirbel, ou fechando-o sob a vigilância de Maria, sempre que o seu ministério o ocupava fora de casa. Claro está que o João muitas vezes pôde sair, e nunca deixou de se corresponder com Hortênsia Voyod, graças ao professor primário, que lhe ensinava a Matemática. No entanto, não deixou de ser dominado e de ceder a essa vontade inflexível. Até mesmo a aproximação do exame e os esforços que teve de fazer durante as últimas semanas o forçaram a adiar todos os planos de resistência. Admitido à prova oral, mas reprovado nesta, só regressou a Baluzac em Setembro, após ter passado um mês na companhia da condessa, em La Devize. Fora a primeira vez que se encontrara em presença da mãe, após a revelação sinistra que tivera em Baluzac: "Transformaram-me o meu pobre João - escrevia a condessa ao abade Calou. - Era uma criança terrível, mas não cínica. Hoje, não posso pronunciar uma palavra só de exortação, ou esforçar-me simplesmente por dar um tom mais elevado às conversas (o que constitui, para mim, um cuidado constante), sem que esse infeliz se me ria em plena cara. Há-de permitir-me, sr. cura, que, embora não pondo em dúvida a excelência dos seus métodos, verifique, pelo menos, que falharam no que se refere ao meu filho".
Durante essas semanas de férias, recebeu João, quase todos os dias, uma carta da farmacêutica. E, logo que regressou ao presbitério, os seus projectos começaram a tomar forma definida. Uma nova reprovação, em Outubro, havia de tirar as últimas hesitações a Mirbel. Os retiros eclesiásticos obrigaram o abade Calou a ausentar-se, durante alguns dias.
João não largava Hortênsia. No seu regresso, o abade deixou de o vigiar tão de perto, ao vê-lo mais calmo e sossegado.
As relações entre ambos haviam-se tornado em simples relações entre professor e aluno, os quais, fora das horas de trabalho, quase não se falam e se furtam a qualquer discussão. O padre dedicava-se, com redobrada confiança, ao seu pequeno rebanho. As crianças começavam a abrir-se com ele, a estimá-lo. O novo mal-entendido, que o separava do discípulo, não se lhe tornava evidente. com uma inconsequência incrível, Mirbel irritava-se e sofria com o desinteresse do abade Calou a seu respeito. E este sofrimento teve uma grande quota-parte na fatal resolução que tomou, e da qual Hortênsia Voyod muito bem lhe soube dissimular a gravidade. É indubitável que desejamos sempre o interesse das pessoas que não amamos ou que pensamos desprezar. João, por nada deste mundo, o teria confessado. Mas ter-se-á mostrado incapaz de compreender que o abade Calou lhe reservou sempre no seu coração e no pensamento o primeiro lugar. Os místicos obedecem à lei de uma economia que lhes é impossível tornarem compreensível aos não iniciados. Como poderia, pois, o padre não se encontrar tranquilo a respeito do João, se ainda se lhe supunha em dívida, apesar de ter oferecido a vida por ele, renovando, quase todos os dias, o seu sacrifício? Tal regime de trocas, de compensações, de reversibilidades, que a Graça concede aos que crêem, andava bem longe do mundo da carne, em que o adolescente começara a tomar conhecimento de si próprio! Acreditou que fora posto à margem, repelido pelo único homem que possuía todos os seus segredos, que sabia o quanto sofrera e o quanto continuava a sofrer, com respeito à mãe e a Micaela. Se até esse o abandonava, que mais restava senão fugir ao mundo abominável onde não havia lugar para si? Claro que sabia muito bem que essa história com a Hortênsia não poderia durar sempre, nem sequer por muito tempo. Tal era, no entanto, a sua vocação para a desgraça que só ela o atraía para tamanha aventura. Que ela se mostrasse, pois, sem qualquer saída ou esperança, o obrigasse a abandonar o porto e o lançasse numa corrente, de que nunca mais pudesse livrar-se.
Tivemos que ficar em Larjuzon até à celebração da missa que, na Gironda, se chama do oitavo dia. Na antevéspera, recebera a minha madrasta uma carta da irmã que vigiava à cabeceira de Octávia. O aborto não pudera ser evitado, sobreviera-lhe uma flebite, a febre não descia e o coração estava cada vez mais fraco. O médico esperava o pior. Tudo faltava, na rua Mirail. Apesar da expressa proibição do sr. Puybaraud, a irmã recorria à sr.a Pian, dado que o padeiro e o farmacêutico começavam já a resmungar. Tais notícias pareceram acabrunhar Brigitte. Sem dúvida, podia ir a Bordéus e regressar antes da missa do oitavo dia, mas temia o acolhimento do meu antigo professor. Por isso, com a sua habitual generosidade, resolveu enviar um vale telegráfico, em nome da Irmãzinha, e dirigido para o seu convento.
Brigitte pedia-me conselho, pensando em voz alta, na minha presença, como se não notasse a minha frieza.
- Se não me tivessem a mim! - repetia ela, recordando tudo quanto fizera pelos Puybaraud. - Tinha-os avisado. Tudo o que lhes disse se está a realizar, ponto por ponto. Deus sabe que eu bem adivinhara, não apenas esse acidente, como também essa morte quase certa, de que nunca ousei falar-lhes... Mas não me competia a mim, pobre mulher, pôr-lhes todos os pontos nos ii. O seu director espiritual sempre foi muito leviano! Só ele poderia sustê-los à beira do abismo... E, pelo contrário, ainda os empurrou. No entanto, hás-de ver que, no fundo, hei-de ser eu a responsável, na opinião de Puybaraud. Já a tua irmã me atribui a morte de vosso pai e até o próprio furto por arrombamento do pequeno Mirbel... Até custa a crer!
Olhava-me, e o seu riso ansioso parecia mendigar uma palavra de compreensão, um protesto. No entanto, o silêncio obstinado, que lhe opunha, evidenciava claramente que eu concordava em todos esses pontos com o sr. Puybaraud e com a Micaela.
Teve, pois, de recorrer apenas a si própria. Ora errava pelos compartimentos, ora andava em torno da mesa, arquitectando o seu sistema de defesa. Haverei eu de sobrecarregá-la, ainda hoje, com o peso de tantas desgraças, a essa mulher flagelada pelas Euménides da Nova Aliança, pelos escrúpulos que, após a vinda de Cristo, inquietam as consciências atormentadas? Os escrúpulos, que lhe alanceavam a alma, forçavam-na a ir à cidade, o mais cedo possível, a fim de interrogar o sr. Puybaraud e receber da sua boca palavras tranquilizadoras. Mas, como apenas havia um comboio por dia, tivemos que esperar pelo dia a seguir ao da missa do oitavo dia.
Levantámo-nos ainda de noite. Durante toda a viagem, Brigitte foi obrigada a sofrer a presença da Micaela, que, em Larjuzon, se lhe escapava sempre. Nas três horas que tivemos de passar encerrados num compartimento de segunda classe, a adolescente, funebremente vestida de negro, entregou-se ao jogo de nem uma só vez consentir que o seu olhar se encontrasse com o de Brigitte Pian, que implorava o seu. Nada sentia nessa altura, da piedade que hoje experimento para com essa mulher, há tanto tempo já volvida ao pó, no comboio mal aquecido pelos esquentadores que os empregados nos haviam colocado nas pernas e onde me ajoelhava sobre o banco para aquecer os pés gelados. Começava, no entanto, a aperceber-me do que se ia passando no espírito da sr.a Brigitte. Observava, com grande curiosidade, essa criatura imponente, essa grande estátua de bronze, cuja sombra entenebrecera a minha infância, e que, nesse momento, me parecia vacilar. Brechas se abriam, aqui e além. Talvez me fosse dado vê-la fundir-se, de um momento para o outro. Quando se levantou para descer do comboio, pareceu-me pequena, o que me espantou pelo facto de me não ter apercebido de que fora talvez eu que crescera.
Não indicou ao cocheiro a nossa direcção, mas sim a de Puybaraud. Nessa manhã sombria, o barulho do carro encheu a triste rua Mirail. Levantámos os olhos para o andar em que habitava o meu ex-professor, e cujas persianas se encontravam fechadas. A porteira entremostrou o rosto descarnado pela porta do desvão que lhe servia de habitação. Informou-nos de que tudo se acabara, no dia anterior, à tarde, e de que o sr. Puybaraud se recusava a receber quem quer que fosse. Não se sabia ainda a hora do funeral. Compreendemos que dera as ordens mais severas quanto às nossas pessoas. "A desgraça torna-nos, por vezes, bastante ingratos..." A porteira concordou em que muitas vezes observara já que assim era, de facto. Quando nos encontrámos, de novo, no carro, Micaela deixou de desviar a vista de Brigitte, fixando-a, muito ao contrário, tão dura e longamente que esta se viu forçada a desviar a sua, olhando pela portinhola. Muito embora Brigitte Pian não mais fizesse que mexer os lábios, compreendi que começara a rezar pela morta. Sem dúvida que se não continha em gritar-lhe, para além do silêncio eterno: "Então? Quem é que tinha, afinal, razão, minha pobre Octávia?"
Abandonava-se, por certo, à passageira euforia de tão evidente conformidade entre as suas próprias vistas e as da Providência. Ainda, porém, não atingíramos a avenida da Intendência e já ela se tornara mais sombria. Micaela foi para o seu quarto e não mais a vimos durante todo o dia. Brigitte Pian veio ver-me ao quarto; mas, como mal lhe respondia, deixou a porta de comunicação entreaberta: embora hostil, a minha presença tornava-se-lhe necessária. Regressou pouco tempo depois, para me contar a história das suas relações com os Puybaraud, desde havia dois anos, e em tudo encontrando ocasião para se louvar, salvo no que se referia à sua última entrevista, à cabeceira de Octávia. Prouvesse a Deus que o sr. Puybaraud não viesse a convencer-se de que essa discussãozita acabara por agravar o estado da doente! Esforçava-se por me fazer ciente dos pormenores de tal discussão, procurando recordar-se dos próprios termos de que se servira. Eu escutava-a com fria polidez e sem proferir uma palavra de aprovação ou conforto.
Finalmente, não podendo conter-se mais, pediu-me que fosse sozinho à rua Mirail. Sem sombra de dúvida, Puybaraud receber-me-ia, informando-me da hora a que o funeral se realizaria. A porteira, porém, não me permitiu que subisse, apesar da minha insistência. Por isso mesmo, vi-me forçado a ir informar-me à igreja de Santo Eloi, onde me disseram que nem sequer haveria missa, mas unicamente uns responsos, às oito horas da manhã do dia seguinte.
Não fomos apenas nós a comparecer, como a minha madrasta profetizara. Lá se encontravam muitas antigas alunas de Octávia e também várias professoras da Escola Livre. Quase todas elas choravam. De tal maneira o ar se encontrava saturado de orações, que quase tinha a sensação física do facto. O sr. Puybaraud, vestindo o velho sobretudo preto, que usava, outrora, durante o inverno, no pátio de recreio, mantinha-se em pé, sem genuflexões e sem lágrimas, com a cara tão branca como devia estar a de Octávia, no interior das quatro tábuas. Porque parecia não ver ninguém, persuadir-nos-íamos que nada havia de hostil na sua atitude a nosso respeito. À porta do cemitério, porém, pareceu não ver a mão que eu lhe estendia, pelo que tive de agarrar a sua, que rapidamente retirou. Quanto à minha madrasta, nem sequer ousou tentar o gesto, pois ele nada mais fez do que inclinar-se na sua frente, sem sequer a olhar ou mexer o braço.
Nesse mesmo dia, depois do jantar, e já no meu quarto, até onde me seguira, me dizia ela ter lamentado bastante que o sr. Puybaraud não houvesse cedido à sua natural revolta, e muito mais ainda que, dessa maneira, lhe não fosse concedido chegar-se até ele para o aconselhar à resignação e à submissão. Objectei que a hostilidade, que para connosco demonstrara, não significava que estivesse na posse dos mesmos sentimentos para com Deus, acrescentando, perfidamente, que, como fora marido de uma santa, bem poderia a minha madrasta dirigir-se-lhe para que lançasse sobre o sr. Puybaraud as graças de que tanto necessitava.
"Uma santa!" - gritou Brigitte. - "Uma santa!"
Olhou-me sem sombra de cólera antes com uma espécie de atenção que mais se assemelhava ao pasmo, rodopiou por momentos em redor da minha mesa e acabou por se retirar, levando consigo, pela certa, uma sobrecarga de perturbação e angústia para toda a noite.
Nos dias, que se seguiram ao enterro de Octávia, não tentou ver o viúvo, embora continuasse a socorrê-lo, sem ele saber, graças à cumplicidade da Irmã enfermeira. A Micaela regressara ao convento do Sagrado Coração e nós continuámos a viver juntos: ela, sempre a procurar agradar-me, arrastando-se quase até à humilhação, como se não visse outro socorro humano além desse rapazinho de uma correcção desconcertante.
Obedecera eu à sugestão do abade Calou, escrevendo, de Larjuzon, à condessa de Mirbel, pedindo-lhe notícias do João. Encontrei a resposta a essa carta em Bordéus - carta, aliás, cujos termos tinham sido bem pesados, a fim de reduzir a quase nada o tal escândalo:
"Nada me espanta, meu querido e jovem amigo, que tanto se interesse pelo João e que tenha ficado muito impressionado com os boatos absurdos, que percorreram a região, a respeito dele. Veio ter connosco, também muito espantado e demasiado perplexo com todo o barulho feito em torno da sua leviandade. Os maiores responsáveis por tudo isso foram, sem dúvida, o cura e o farmacêutico: ambos amotinaram o povo. E, se o segundo desses senhores, tinha, aparentemente, alguma desculpa, já o mesmo não há que dizer do primeiro, a quem faltaram bom-senso e ponderação, muito para além do que pode desculpar-se a um eclesiástico, principalmente quando pretende ser um educador! Isso mesmo lhe disse eu, quando o fui reembolsar desse adiantamento de dinheiro feito ao meu filho, e a respeito do qual as más línguas espalharam uma história rocambolesca, em que espero que o Luís não tenha acreditado. O padre não encontrou que responder às acusações que lhe fiz, talvez com a excessiva veemência do meu coração materno... (Só mais tarde pude medir a sublimidade desse silêncio! O abade Calou, com uma só palavra, poderia ter reduzido a nada a mulher que o ultrajava, pois ela ignorava ainda, nessa altura, que o filho tiritara, durante uma noite inteira, sob as janelas da estalagem de Balauze, que estivera prestes a morrer, e ficara para sempre ferido e envenenado pelo que os seus olhos haviam visto e pelo que as suas orelhas tinham ouvido). A condessa acabava a carta por me advertir de que o João iria acabar o ano na Inglaterra e que, como os preparativos da viagem o forçavam a passar alguns dias em Bordéus, esperava que não lhe proibissem que fosse despedir-se de nós.
Essa carta da condessa deixou-me bastante perturbado e hesitante. Devia mostrá-la ao abade Calou, como lhe prometera? Tive, então, necessidade de sair da minha reserva, a fim de pedir conselho à minha madrasta. Até me interessava, em parte, saber como ela iria reagir. Mas, se esperava que fosse saltar contra o pobre cura de Baluzac, a verdade é que a sua reacção me surpreendeu. A dar-lhe ouvidos, necessário se tornava evitar o ir ferir inutilmente um homem, que acabava de ser tão duramente experimentado. Como, no entanto, por outro lado, tal documento lhe poderia vir a ser útil, aconselhou-me a fazer-lho chegar às mãos, mas afirmando-lhe que ninguém da minha família acreditava nas alegações da condessa. com meu conhecimento a primeira vez era que a minha madrasta se não armava em juiz. Quando escrevi ao abade Calou, não deixei de acentuar essa extraordinária mudança: fi-lo, aliás, com uma ironia que o padre não aprovou. Só ao fim de uma semana recebi a sua resposta. Da página que aqui transcrevo, com todo o respeito e amor, posso bem dizer que, depois de a ter lido, não mais fui, por completo, o mesmo rapaz.
"Meu querido Luisinho: demorei algum tempo a responder-te, porque a tua carta não me encontrou em Baluzac e me foi parar às mãos em casa de meu irmão, onde me instalei por algum tempo.
Não tenciono usar de meias palavras para contigo, meu filho. Vejo que estás demasiado ao corrente do que se passou para que tente contar-te histórias. Já não sou o cura de Baluzac, tendo mesmo recebido ordem de deixar a paróquia e retirar-me. Irei viver com a família. É a desgraça, parece-me, e talvez um pouco mais até do que o simples termo significa. Os Mirbel e o Voyod conluiaram-se para me tornarem o responsável pelo escândalo. De mais, o trabalhinho que a sr.a Brigitte quis ter a honra de me consagrar, que data já de vários meses e os vigários-gerais tinham entre mãos, anunciava, tintim por tintim, o que viria a acontecer. Os acontecimentos deram bastante razão à crítica cerrada e demasiado terrível que a tua querida madrasta fazia do meu carácter e das minhas tendências. Expresso-me aqui sem a mínima dose de ironia, meu querido Luisito, e confesso-te até que gostei pouco daquela de que impregnaste a tua carta. Bem sabes que não creio no acaso. Por isso mesmo, não acredito que tenha sido só por acaso que todas as previsões da sr.a Brigitte vieram a verificar-se. Não irei até ao ponto de afirmar que ela haja interpretado sempre, com espírito são, os factos ou motivos das acções dos outros; reconheço apenas que possui uma espécie de dom que lhe facilita prever-lhes a malícia oculta. Talvez te não espante, se te confessar que, por vias diferentes, o meu erro e o dela se vão encontrar. Um e outro - ela com a sua só razão e eu com o meu coração acreditámos que nos seria dado intervirmos no destino dos outros. E, sem qualquer sombra de dúvida, o essencial do nosso ministério, exactamente como o dever de todo o cristão, é o de explicar o Evangelho, e não o de pretender transformar o próximo à sua maneira, e de acordo com as suas ideias especiais. Porque, por nós próprios, nada mais podemos fazer do que caminhar na frente da Graça, da mesma maneira que o cão precede o caçador invisível, e com maior ou menor eficácia, consoante nos mostramos mais ou menos atentos, dóceis e submissos para desposarmos a graça do Mestre, ficando indiferentes à nossa. Pelo que me diz respeito, a sr.a Brigitte viu muito bem as coisas. A falta de medida e de senso, que me atribui, e da qual afirma, numa síntese impressionante, que, num padre, e em tal grau, se arrisca a provocar desastres mais graves do que a paixão criminosa, foi por certo o que me fez cair em certas intervenções temerárias, mal preparadas e evidentemente imprudentes. Oh! Decerto que a Graça até disso tirou proveito, porque o Amor do nosso Deus é tão grande que apenas retira o que há de bom em todos aqueles que ama. Contudo, perante os destroços, que se acumulam em torno do que cremos ser o nosso apostolado, devemos procurar ver o que neles se imiscui de interesses inconfessáveis e das secretas cobiças, de que, aliás, não temos senão um conhecimento muito fraco, razão por que tudo devemos esperar da misericórdia.
Meu querido Luís, tudo isto te há-de parecer bastante obscuro. Voltaremos ao assunto, mais tarde, se o Pai não tiver chamado à Sua presença o servidor, não apenas inútil, mas perigoso, que eu sou. Enquanto espero por isso, permito-me dar-te este conselho, pelo que respeita à sr.a Brigitte: não deves troçar do que se passa no seu íntimo, nem julgar pequena a sua provação. Após não haver visto, durante toda a vida, mais do que o aspecto edificante das suas acções, surgem-lhe todas elas, repentinamente e em conjunto, como visões terríveis. Quando Cristo nos abre os olhos e as nossas acções nos envolvem e esmagam, espantam-nos tanto como esses homens que o cego de nascença, de que fala o Evangelho, viu, depois de curado, e que lhe surgiram "como árvores que caminham". Quereria eu que a sr.a Brigitte viesse a compreender aquilo de que eu próprio me encontro persuadido, na situação ínfima em que me encontro, e que é bastante pior do que poderás imaginar, porque não há calúnia que não me tenham lançado - e as pessoas acreditam apenas no que querem acreditar, seja no Arcebispado ou fora dele. Posso afirmar que, atingidas já as margens da velhice, tudo perdi da minha modesta honra humana e deixei ultrajar em mim esse Jesus, que me marcara com o seu sinal. Quanto à minha família, encontra-se humilhada e irritada por esta vergonha que lhe causo, sem contar com a complicação material da minha presença em casa. O meu sobrinho mais novo foi forçado a ceder-me o seu quarto, passando a partilhar do do irmão. São todos muito bons para mim, claro; mas a minha cunhada pergunta-me, talvez demasiadas vezes, o que é que conto vir a fazer num futuro próximo. Apenas lhe posso responder que nada sei, porque, em boa verdade, para nada presto... Ah! Presentemente, já não há erro possível! Eis-me perante o meu Deus, mais despido e despojado de merecimentos, e mais desarmado do que ninguém no mundo! Eis, talvez, a situação que é de desejar para os homens cuja profissão - se assim posso exprimir-me - é serem virtuosos. Quase inevitável é que os virtuosos de profissão tenham uma ideia exagerada do valor dos seus actos, se constituam em juizes de si próprios e que, ao compararem-se com os outros, não venha a sua virtude a causar-lhes, por vezes, como que uma vertigem. Desejaria que a sr.a Brigitte, na provação que está a sofrer, se persuadisse de que está em vias de uma grande descoberta..."
Poderá julgar-se que, pelo facto de assim se confessar a um rapaz, que ia entrar nos dezassete anos, o abade Calou mais uma vez demonstrava não haver feito grandes progressos no tocante ao bom-senso. Não tive coragem de mostrar esta carta à minha madrasta, embora se tivesse deixado já de procurar embair-me e eu fosse vivendo na atmosfera insuportável que a sua angústia criava. Por esse tempo, um pequeno hebdomadário anarquista, La Bataille, que apenas vivia de escândalos, publicara, acerca de "o rapto da farmacêutica", certas linhas venenosas. Admirava-me o facto de Brigitte Pian me pedir que lhe comprasse, todas as semanas, essa folha abjecta, que não ousaria comprar ela própria, nem sequer pedir a um criado que lho fizesse. E nada percebia do deleite que parecia tirar de uma leitura que tal, até que, enfim, vim a saber, no colégio, que o sr. Puybaraud desempenhava, em La Bataille, o lugar de secretário e que, com razão ou sem ela, o público lhe atribuía todos os ecos anti-religiosos, aí publicados.
Todos os sábados assistia a essa leitura, que ocupava todo o serão e que Brigitte retomaria, pelo meio da noite, como para melhor se compenetrar do aviltamento a que chegara uma alma empurrada por si própria (assim o pensava, pelo menos) para a revolta, para o ódio desesperado. Nem as crianças, nem os adolescentes são, normalmente, muito sensíveis às transformações físicas dos adultos junto de quem vivem. Contudo, dia a dia me era dado ver que Brigitte se ia reduzindo. O roupão cor de ametista dançava-lhe, agora, no corpo, como se a serpente espessa e gorda dos cabelos entrançados tivesse passado a nutrir-se da própria substância da sua possuidora. O mais estranho é que, após alguns meses, não só o sr. Puybaraud havia de ser forçado a abandonar o jornal e a encerrar-se nos trapistas de Septfonts, para fazer um retiro, mas também que lá haveria de ficar, finalmente, para, sob o hábito de noviço, realizar o que a minha madrasta sempre esperara dele. Até nisso, as previsões de Brigitte Pian estavam de acordo com os desígnios da Providência... Na altura de que falo, porém, ainda ela não previa tão inesperado desenlace. Se, por vezes, o seu espírito ansioso deixava de pensar no renegado, era apenas para volitar em redor de outras suas vítimas - o seu marido e Octávia, que talvez ainda vivessem, julgava ela, se não houvessem encontrado no caminho essa Brigitte Pian. Pensava igualmente na Micaela, no João e no abade Calou, que denunciara...
Um ponto que, para mim, continua obscuro, é saber que amparo poderia ela esperar, em tal crise, da parte de um confessor. Não lhe conhecia nenhum e não tenho mesmo a certeza de que tivesse tido algum. Parece-me, mesmo, que na própria época, em que mais se vangloriava dos seus progressos espirituais, e em que nada fazia prever que um dia viesse a ser pasto de todas as fúrias do escrúpulo, poucas vezes se aproximava dos sacramentos, pelo menos tantas quantas seriam de esperar numa pessoa em que a devoção se encontrava por tal forma arraigada. Na minha infância, vigorava ainda a disputa sobre a frequência da comunhão, desencadeada dois séculos e meio antes. Não existem hoje cristãos devotos que não comunguem quantas vezes lhes for possível. Há quarenta anos, porém, ainda o temor e o receio regulavam as relações de certas almas com o Amor encarnado, que, segundo a tradição jansenista, acreditavam ser implacável.
O certo, porém, é que, nesse ano, quando chegou a Quaresma, e à medida que a Páscoa se ia aproximando, a angústia de Brigitte atingiu as raias do terror. Uma noite, entrou no meu quarto, sem bater à porta. Estava eu já deitado, a ler Dominique, e levantei para a intrusa uns olhos ainda cheios do mundo imaginário de que me fizera sair.
- Ainda não estás a dormir? - perguntou Brigitte, com expressão tímida e suplicante.
Procurava decifrar na minha cara o aborrecimento de haver sido importunado. Se ainda me não encontrasse na cama, teria escondido a cabeça nas mãos e tapado os ouvidos, debruçando-me sobre o livro, numa atitude que desencorajaria qualquer avançada. Mas, sob os lençóis, achava-me desarmado.
- Ouve, Luís! Quero pedir-te um conselho... Há-de parecer-te estranho, mas há momentos em que não conseguimos ver com clareza. Qual é, segundo a tua opinião, o mal maior: desobedecer à Igreja, não fazendo a desobriga, ou expormo-nos, por simples obediência ao preceito, a receber indignamente a Eucaristia?... Não. Não respondas demasiado depressa. Procura reflectir. Lembra-te do que S. Paulo quer dizer, quando fala dos que não distinguem o corpo do Salvador...
Respondi-lhe que não havia necessidade de reflectir muito e que o dilema não era de pôr, visto que bastava confessar os pecados a um padre para se reencontrar o estado da Graça...
- Para ti, talvez, Luisito! Para um coração de criança, com certeza...
Sentou-se na beira da cama, com todo o peso. Instalava-se. Pobre de mim! Devia, então, renunciar à companhia de Dominique, para ouvir essa velha desvairada!
- Em primeiro lugar, seria necessário que os pecados fossem simples, fáceis de discernir e de delimitar, e fosse possível reduzi-los a uma fórmula. Como queres tu, porém, que eu torne intelegíveis a um padre os problemas que me atormentam? Como poderá ele apoderar-se completamente do que respeita às minhas relações com teu pai, com os Puybaraud, com o abade Calou e com a Micaela? Já por três vezes fiz a experiência: dirigi-me sucessivamente a um padre secular, a um Dominicano e a um Jesuíta... Nenhum deles pôde discernir em mim outra coisa que não fosse uma dessas escrupulosas, que os confessores temem mais do que a peste, e contra as quais usam a melhor arma para aumentarem a sua angústia, fingindo não tomarem a sério aquilo de que se acusam. Dessa forma saem do confessionário persuadidas de que não foram compreendidas e que, portanto, não poderiam ser absolvidas de uma falta que o padre não compreendera... Pois muito bem! É esse o mal que me atingiu - acrescentou bruscamente, após um breve silêncio. - A questão toda está em saber se se é escrupulosa com conhecimento de causa; o facto de sofrermos uma tal tortura não pode significar que provenha de faltas ilusórias...
- Nesse caso - interrompi com certo ar pedante - não se trataria de escrúpulos, mas sim de remorsos...
- Estás a pôr o dedo na ferida, Luís. Procuramos sossegar-nos usando termos mais doces. É bem verdade que não sou uma escrupulosa: tenho remorsos, sim, dos próprios remorsos. Mas aquilo que tu compreendeste, de imediato, com essa prontidão de raciocínio, que causava o espanto do sr. Puybaraud já desesperei de o fazer compreender a esses homens sem experiência, para quem os pecados são coisas fáceis de definir e que não compreendem que o mal infeccione, muitas vezes, uma vida inteira - esse mal porventura multiforme, invisível, indecifrável e, portanto, inexprimível, literalmente inominável...
Deixou de falar, carregando sobre mim. Ouvia-lhe a respiração rápida.
- Tenho uma ideia - disse. (Voltara-me essa espécie de excitação dos tempos em que o sr. Puybaraud me interrogava como a um oráculo e eu me dava a espantá-lo com uma resposta simultaneamente inesperada e cheia de bom-senso). O padre que melhor poderia conceder-lhe a paz seria aquele que, não só a conhecesse há muitos anos, mas ainda que nada desconhecesse dos acontecimentos, a propósito dos quais se vai atormentando. Sim-insisti-enquanto ela me olhava com essa atenção dos doentes graves, logo que o médico abre a boca, o abade Calou sabe, de antemão, o mal de que a senhora sofre, pois mo descreveu na sua última carta. Escrúpulos ou remorsos, a designação não importa. Dar-lhe-á a absolvição com conhecimento de causa.
- O abade Calou? Falas a sério? Confessar-me ao abade Calou, depois do que lhe fiz?...
- Exactamente: depois do que lhe fez.
Levantou-se e começou às voltas em redor do quarto.
Como ia gemendo que não poderia nunca... insinuei-lhe:
- Ser-lhe-ia bastante duro, por sem dúvida, mas teria os seus méritos...
À palavra "méritos" ergueu a cabeça.
- Estaria acima das forças da maioria das pessoas, bem sei... A senhora, porém... - Endireitou-se ainda mais: "Apesar de tudo..."-murmurou.-Seria necessário importuná-lo no seio da família... E teria o direito de confessar ainda? - perguntava.
- Sim, evidentemente, nos limites da diocese...
Recomeçou com as idas e vindas. De propósito, dei-me a abrir a boca com ruído, metendo-me sob os lençóis.
- Adormeces, Luisinho? Tu vais dormir, feliz criança!
Debruçou-se sobre mim e os seus lábios gretados pousaram-me na fronte.
- Confesse que lhe dei uma rica ideia! -disse eu, com ar satisfeito.
Não respondeu, moendo e remoendo a ideia no seu espírito. Apagou a lâmpada. Mas, logo que ela saiu e fechou a porta, tornei a acendê-la, e Dominique de novo me transportou para bem longe dessa mulher atormentada.
Ao descer do comboio, em que regressava de casa do abade Calou, e como ainda faltavam duas horas para o jantar, Brigitte não se serviu de nenhum carro e atravessou a pé a sombria Avenida de S. João, envolvida em nevoeiro, acotovelada pela multidão, indiferente por completo a tudo quanto odiava normalmente, segura do seu perdão. Avançava depressa e, pela primeira vez, com o entusiasmo da gratidão, que a elevava para Deus, de mistura com uma humílima ternura, francamente humana. Tinham-na alijado do peso dos pecados. Já não sofria, já não respirava com dificuldade. Por vezes, como se se tratasse de uma aguda recordação, tomava-a uma grande inquietação: teria confessado tudo? Claro que tinha. Aliás, quem a ouvira, sabia tudo de antemão...
Atentava no que lhe haviam dito nesse quarto sem lume, com as paredes caiadas de branco e mal mobilado, em que o abade Calou a recebera. Nada procurara para a tranquilizar, apenas a envergonhando pelo facto de ligar tanta importância às suas faltas, como se ignorasse que Deus se serve à Sua maneira dos nossos próprios pecados. Suplicara-lhe que penetrasse o mais possível no seu nada e que não trocasse a ilusão de ser uma pessoa muito avançada no caminho da perfeição pela de se considerar uma insigne pecadora. Acrescentara que muito podia fazer ainda por aqueles a quem acreditava dever uma reparação - pelos mortos, claro; mas também pelos vivos, assegurando-lhe: "Desta forma, deverá ajudar-me o mais possível junto do Cardeal..." (e ela compreendera muitíssimo bem que lhe pedia uma coisa dessas apenas por ela, com um sentimento de pura caridade...). Nem, sequer, ambicionava o seu ingresso nas boas graças do Arcebispado, mas tão-somente que o deixassem instalar-se, a expensas suas, entre a Bastide e a Souys, no bairro mais pobre e abandonado que conhecia, onde alugaria um sítio em que lhe permitissem ensinar a catequese e celebrar a missa. Brigitte Pian, caminhando ligeiramente pelos passeios humedecidos pelo nevoeiro, decidiu que seria ela a pagar-lhe as despesas, imaginando já uma nova paróquia a surgir em torno do abade Calou. Teve ainda tempo de parar na igreja, antes que as portas se fechassem, onde ficou imóvel, durante algum tempo, como uma miraculada que não encontrasse as suas palavras. Em seguida, saiu e chegou à porta de sua casa, quase sem ter conhecimento do caminho percorrido. Na antecâmara, notava-se um desusado cheiro a tabaco, que a fez descer à terra. Quem se permitia, afinal, fumar em sua casa? Reconheceu uma voz, a da Micaela, de mistura com outra, que não sabia de quem fosse... Todavia, desde logo soube quem é que se encontrava na sua saleta, ou antes, quem ousava encontrar-se lá! A carta da condessa bem deixara prever uma visita do pequeno Mirbel, mas Brigitte nem por um segundo sequer pensara em que esse ladrão tivesse a ousadia de se apresentar em nossa casa. E viera! E nós havíamo-lo recebido! Por detrás dessa porta, falava livremente com a Micaela. Brigitte Pian endireitara-se. Na antecâmara, iluminada por um bico de gás, envolto num globo de vidro fosco, transformara-se nessa pessoa fortificada pelo estado de Graça, segura dos seus direitos para intervir na vida daqueles sobre os quais tinha certa autoridade. Ao mesmo tempo, porém, trovejava em si esse justo furor, contra o qual nada lucrava em se defender, quando alguém ousava desdenhar das suas ordens ou subtrair-se ao que ela resolvera ou prescrevera.
Todavia, no momento em que segurava o trinco, a mão hesitava-lhe ainda. A despeito dessa cólera, e reconquistada a paz interior, não a abandonara por completo a calma das profundezas do ser. Ela sabia que os que estavam na saleta a acusavam de lhes haver feito mal também. Nesse ponto, porém, de nada a acusava a consciência. Que outra atitude poderia ter tomado? Protegera Micaela, que era uma criança, como todas as mães haveriam feito. O abade Calou, entretanto, via as coisas por prisma diferente, sabendo ela o que esse pequeno Mirbel era para ele, embora, nesse dia, nem sequer lhe houvesse pronunciado o nome na sua frente. Lembrava-se, porém, de certas palavras suas, sem dúvida inspiradas pela lembrança do rapaz perdido. Dizia ele: cada destino é uma coisa especial. E é talvez um dos segredos da misericordiosa justiça, da qual dependemos, que não existe lei universal para julgar e condenar os indivíduos. Cada qual é um miserável herdeiro, carregado dos vícios e méritos da própria raça, numa medida que escapa à nossa avaliação, sempre livre de poder dizer sim ou não, nos momentos em que o amor de Deus lhe passa ao alcance. De tudo o que importa, porém, de tudo o que pesa sobre tal escolha, ninguém há aí que possa arrogar-se o direito de se transformar em juiz. Fora a respeito dos Puybaraud que o abade Calou dissera: "Não devemos intervir, cega e surdamente, entre dois seres que se amam, ainda que enveredem pelo caminho do mal. O que importa, sobretudo, compreendermos é o que a sua união significa, porque os caminhos humanos não se cruzam por mero acaso..."
Brigitte Pian, atrás da porta, escutava duas vozes alternadas: a da rapariga, um pouco opressa, e a do rapaz, viril, pouco firme e com surdas entonações. Brigitte, não já irritada, mas simplesmente hesitante, sentou-se numa cadeira de pinho.
Foi para não dar a impressão de que escutava às portas (embora não compreendesse o que se dizia na saleta) que se dirigiu, um pouco mais tarde, para o seu quarto, onde se demorou bastante tempo, ajoelhada na escuridão.
João de Mirbel escolhera uma quinta-feira para tentar encontrar-se com a Micaela, pois sabia que, nesse dia, ela estaria livre, de tarde. Foi por mim que perguntou. A minha primeira ideia foi avisar a Micaela, tendo logo reconhecido que ela sabia que o João se encontrava em nossa casa. O uniforme tornava-a mais feia. Os cabelos, atados em trança no alto da cabeça, encontravam-se ligados por uma fita cor de malva. Os canos altos das botinas tornavam-lhe os artelhos bastante salientes. Em nada me enganou a calma que afectava. Como não havia necessidade de que a malvadez da nossa madrasta pudesse vir a tirar o menor proveito dessa visita, conviemos em que, embora o João me pedisse que o fizesse, eu não os deixaria, enquanto durasse a visita.
Depois disso, dirigimo-nos para a sala de visitas. Ainda não eram quatro horas, mas já os estores de macramé e bordado inglês a enchiam de sombra, pelo que necessário se tornava acender as luzes do lustre. O cheiro do petróleo enchia as mesas "de encaixe", pirogravadas, sob os resguardos pintados, avivando as poltronas douradas. Se é certo que Mirbel crescera e se tornara mais forte, a verdade é que estava também mais magro de cara. As faces cavadas davam-lhe certa importância ao nariz, que anteriormente lhe conhecêramos curvo, mas pequeno. A cara tornara-se-lhe mais engelhada do que seria normal num rapaz de dezoito anos. Vestia um fato novo, comprado feito, com grandes chumaços nos ombros.
Embora se tivessem amado na época em que os corpos ainda não tinham tomado a sua forma definitiva, olharam-se com espanto e com um silêncio que me pareceu demasiado longo. Necessário se tornaria que os pobres insectos refizessem os estádios das suas metamorfoses, ao invés, para se encontrarem perante a criança que cada qual amara. Sem dúvida, foram os seus olhos, que em nada haviam mudado, que primeiramente se reconheceram.
Quanto a mim, nada restava já desse ciúme pueril. Apenas pensava em me esconder, em me tornar invisível. Nem tive grande dificuldade em o conseguir: desde as primeiras palavras, nada mais houve para mim do que as suas pessoas. A conversa, no entanto, esmorecia. Acreditar-se-ia em que não sabiam que dizer-se, ela, sentada, e ele, em pé, no contraluz. Do canto, onde me encontrava, bastantes réplicas me escapavam, principalmente quando pronunciadas pelo João que repetia, com impaciência algo irritada: "Não é disso que se trata... Isso não tem o mínimo interesse..." E a Micaela, com o seu ar trocista, inquiria: "Achas?" Compreendi que se referia à farmacêutica. João, de mãos nas algibeiras e com os ombros levantados, balançava-se, ora num pé, ora noutro. Ouvindo-a, dir-se-ia que a coisa mais evidente era, afinal, que Micaela já nada queria com ele, que recorrera ao primeiro pretexto para o afastar. No entanto, tudo isso era natural. Como pudera ela acreditar, por um instante só, que se interessava por ele? A Micaela interrompeu-o, no tom das suas antigas discussões infantis: "E és tu que me acusas? Hás-de concordar em que é muito estranho! Como se não tivesses sido tu o primeiro..." E o João, exasperado, acrescentava: "E continuas a obstinar-te nessa história francamente idiota! Vê se acabas por compreender que isso não correspondia a mais nada, em mim, do que ao desejo de sair da jaula, de retomar a liberdade... Precisava de sair do presbitério... Por tua causa, porque já não podia suportar a vida... Pois claro! Tu é que foste a causadora de tudo... Essa mulher? Muito havias de ter rido, se nos tivesses visto em Biarritz, nesse Hotel, onde me tomaram por seu filho. Não ousou negá-lo. Nem, sequer, se sentira vexada... Oh! Asseguro-te que, no fundo, muito se ria de mim. No entanto, não sei bem como explicar-te..." E como a Micaela lhe gritasse "que, efectivamente, melhor faria em nem sequer o tentar", afirmou-lhe que, nessa história, só o cura interessava, de facto, à sr.a Voyod. "Não me falava senão dele.
- A estas horas está a entrar em casa-dizia-me ela. - Já deve estar ao facto do que se passou. Qual irá ser a sua primeira reacção? Será capaz de chorar? Já o viste chorar alguma vez?
Eis as perguntas que me fazia. Apenas pretendera pregar-lhe uma suja partida, ou talvez vingar-se dele... Mas vingar-se de quê? Ora! Bastava o facto de usar uma sotaina para que ela pretendesse causar-lhe aborrecimentos... Em todo o caso, eu não tinha, para ela, qualquer espécie de interesse". Micaela ripostava que era muito possível que essa mulher não tivesse qualquer interesse por ele, mas que, no fundo, ele se deixara prender - e era isso que nunca lhe poderia perdoar. A tal acesso de raiva opôs João uma doçura inesperada, que traía, principalmente, o seu enorme cansaço: "Para quê discutirmos mais?" Sabia bem que tudo terminara. Ela ignorava o que ele havia sido forçado a suportar... Nem poderia contar-lhe tudo. Fora nela que se apoiara, na certeza que lhe dera de lhe guardar a maior fidelidade, acontecesse o que acontecesse... Mas, decerto, compreendia muito bem que ela houvesse contado demasiadamente com as suas forças. Uma rapariga não costuma ligar-se a um indivíduo como João de Mirbel. Arriscar-se-ia a deixar-se arrastar ou a perder-se.
"Estás a torcer a questão", insistia Micaela que, obstinadamente, voltava a falar nessa mulher, nessa Voyod. E João limitava-se a gemer: "Não podes compreender..." Só eu, um pouco fora desse campo fechado, conseguia ver claro em ambos. Micaela sofria do mesmo mal de que eu sofrera, devido a eles, quando ainda criança. Bem podia estar convencida de que não amava esse rapaz esgalgado, que mal reconhecia, pelo menos já sem essa angústia que lhe infligira durante essas últimas semanas. E ele, indiferente ao ciúme de Micaela, bem a ia chamando do fundo da sua solidão: "Toma-me pelo que sou; encarrega-te deste rapaz doente que eu sou". Ela, porém não ouvia semelhante grito. Era uma mulher já, mas da estirpe daquelas que nada vêem para além dos seus rancores puramente carnais. Uma mulher já, sim, mas prática e positiva: "És bem digno de lástima, na verdade! Ouvindo-te dir-se-ia que não passas de um fora-da-lei, tu, o João de Mirbel..." Ele nada encontrava para responder; ou antes, não conseguia encontrar as palavras que pudessem calar fundo nessa rapariga teimosa. Espantava-o o facto de ela lhe falar nas vantagens do seu nascimento, da sua fortuna... Como fazê-la consciente do que possuía dentro de si? Ou seja, dessa recusa e dessa exigência, cuja lei não conhecia ainda, no fundo?... Depois de um silêncio bastante longo, pediu-lhe: "És capaz de me explicar, Micaela, as razões por que fui essa criança a quem batiam, esse rapaz a quem apontavam a dedo, e que o selvagem do meu tio pretendia domesticar... Ademais, repito-te que há coisas que desconheces..." E ela, a inquirir: " - Que coisas?"
Abanou a cabeça, não para significar que se recusava a responder-lhe, como eu interpretei, mas para expulsar uma ideia, pela qual, bastante mais tarde, e já quando nos tornáramos inseparáveis, me contou andar então obcecado: essa ruela de Balauze, essas urtigas junto do muro da catedral, esse tronco de homem à janela e essa forma branca e frágil, que mal tinha lugar entre o ombro do homem e a parede. Depois de breve silêncio, acrescentou: "Tenho de te devolver... sabes o quê?" Pensava no medalhão. Ela protestou: "Não, não; guarda-o". Mas já ele desabotoara o colarinho e procurava abrir a corrente. Renunciou a consegui-lo, após vários e desajeitados esforços, tornou a sentar-se e para ali ficou, de cabeça baixa, e sem nada dizer. Não vi imediatamente que chorava. Mas foi a essas lágrimas que a Micaela acabou por se render. Não tinham dado um passo na direcção um do outro. No entanto, esse sinal materializado de uma mágoa, cuja causa lhe era desconhecida, venceu a resistência de Micaela, que a nada mais havia cedido, até então. Não esquecera nenhuma das afrontas. Tinha toda uma vida à sua frente para as conservar, somando-as àquelas que as circunstâncias haveriam de originar, e para alimentar com elas as suas futuras discussões. Mas ele chorava e ela não podia suportar isso, fisicamente falando. Aproximou-se dele e, abaixando-se um tudo-nada, limpou-lhe os olhos, com o lenço. Ao mesmo tempo, colocou-lhe a mão nos cabelos.
Eu voltara-me, mas continuava a ver os seus gestos através do espelho. Vi também abrir-se a porta que dava para o vestíbulo. Ficou entreaberta e ninguém entrara. João de Mirbel levantara-se. Nessa altura, apareceu Brigitte Pian, trazendo uma bandeja carregada de chávenas e torradas. Compreendi que devia ter colocado a bandeja na arca de madeira para poder abrir a porta. Só a boca sorria, ao mesmo tempo que nos observava com os seus olhos sombrios.
Serviu-nos com uma solicitude humilde, muito diferente daquela que ainda recentemente nos demonstrava, quando desejava edificar-nos. Ou então, se na sua atitude havia ainda qualquer sombra de edificação, a verdade é que nunca mais, a partir desse dia, deixei de ser sensível à transformação dessa natureza. Uma verdade de que não se duvida na minha idade é a de que os indivíduos não se transformam e que apenas regressam, muitas vezes, às inclinações que passaram uma vida inteira a combater neles próprios. O que não significa de forma alguma que acabem sempre por ceder ao que de pior neles existe. Deus é sempre a melhor tentação à qual muitos homens acabam por sucumbir nas horas derradeiras.
Não foi esse, porém, de início, o caso de Brigitte Pian, ainda que, submetida aos conselhos do abade Calou, pudéssemos vê-la despojar-se, em poucas semanas, de toda a sua ânsia de presidir, e procurar as fontes de uma religião puramente interior.
Mas o que ia suprimir da sua vida era justamente aquilo em que, a seu ver, consistia a religião, ou seja: tudo quanto satisfazia o seu gosto de dominar, de reger, de não ceder perante ninguém no tocante à pureza ou à perfeição.
Revejo-a ainda, de pé, no meio da medonha sala de visitas, com uma chávena em cada mão. Durante esses poucos minutos, em que nos impôs a sua presença, tudo quanto separava o João de Micaela e de mim próprio se esvaiu: - formávamos um bloco cerrado de juventude em frente dessa mulher a tombar na velhice. Três estrelas, separadas por verdadeiros abismos de distância, parecem próximas umas das outras, quando consideradas em relação a uma outra, mais afastada.
Contemplava-nos com uma avidez, de que não atingi imediatamente o sentido. "Humilhámo-la e, agora, vai ceder...", gritou Micaela, quando Brigitte saiu. Mas não; não era disso que se tratava. Encarregara, é verdade, o João de transmitir palavras amáveis a sua mãe e expressara mesmo o desejo de que deveria mandar-nos notícias da Inglaterra, o que mais não era do que consentir-lhe que escrevesse à minha irmã... Essa aparente derrota teve todo o seu significado ao longo dos dois ou três anos que precederam a minha partida para Paris. Durante esse período, o João escreveu, de Cambridge, várias vezes por semana à Micaela. Não basta dizer que a nossa madrasta consentia nisso: espiava mesmo a rapariga, todos os dias, procurando adivinhar se recebera carta e se ela lhe trouxera mágoas ou alegrias. Brigitte nada perdia desse amor, dessa interminável tempestade, cuja história serei forçado a contar, um dia. "Anda satisfeita quando me vê sofrer"-trovejava Micaela. Não; Brigitte não ficava satisfeita; apenas se interessava pelo assunto de maneira apaixonante.
Afirmava ainda Micaela: "Agora, que já não pode atormentar as pessoas, tornou-se numa espécie de zeladora". E isso já me parecia mais certo. Para Brigitte, o interesse pela vida tomara novos rumos. O facto de não trabalhar já no tecido da falsa perfeição permitia-lhe poder dispor do tempo para observar os outros, para se interessar por esse jogo estranho, que todos vão jogando e a que chamam amor, e do qual ela fugira sempre, muito horrorizada, durante tantos anos, sem procurar adivinhar o mistério que a palavra encerra.
Micaela, muito longe de se deixar aliciar pelo interesse que a madrasta lhe votava, atribuía-lhe pensamentos reservados e maldosos, e procurava ter todo o cuidado em nada lhe revelar acerca das suas relações com o João. Brigitte, porém, sabia interpretar-lhe os bruscos saltos do humor, fazendo como que a exegese das confidências casuais, do menor suspiro e dos silêncios.
Certo é que continuava a mostrar-se bastante regular na sua vida religiosa, porventura aproximando-se até um pouco mais dos sacramentos, visto que os escrúpulos lhe tinham desaparecido. Apesar disso, vivia como que duas vidas. Uma vez saída da igreja, penetrava num mundo inteiramente diferente, que nenhuma relação tinha com o da Graça. Descobrira, aos cinquenta anos, o gosto pela literatura de ficção, muitas vezes a surpreendendo no meu quarto, ocupada na escolha de um livro. Lia como se comesse, com uma avidez de criança que mete na boca grandes quantidades de comida. Dessa forma procurava recuperar tantas horas perdidas em ninharias, que era suficiente esperta para não ter desprezado sempre. Recordo ainda os seus gestos, quando abria o embrulho dos "bons livros". Agarrava num volume, ao acaso, começava a lê-lo, voltava duas páginas juntas, suspirava e erguia os ombros. Agora, porém, lia com o mesmo fervor o Adolphe, Lê Lys dans Ia Vallée ou a Anne Karénine. Eu lisonjeava-lhe o gosto pela pintura exacta dos sentimentos. Qualquer história de amor a interessava, desde que não falsificasse a realidade. Mostrava-se, assim, igual a uma pessoa que, condenada a uma vida sedentária, se enfarta de histórias de viagens, exigindo a maior veracidade da parte do escritor viajante. Quase não via o abade Calou. As tentativas para a recondução do abade no bairro de Souys não tinham chegado a bom termo. Já na classe dirigente atribuíam, sem razão, ao pobre padre certas locais venenosas contra a direcção da diocese, publicadas em La Bataille. Era o abade Calou um desses inocentes que não sabem nunca reprimir uma frase irónica e que antes se deixariam enforcar do que engolir um dito espirituoso. Para desgraça sua, sucedera, na cátedra ilustre dos Primazes da Aquitânia, ao Cardeal Lécot, um homem implacável, porque de espírito tacanho. Pode ser que um dia venha ainda a contar a subida ao calvário por parte do santo abade Calou. Encontrava-se já na altura de ser suspenso na cruz, ao tempo em que maçava Brigitte com a narrativa dos seus desgostos. Fora, no entanto, para lhe falar dela e não dele que fizera a viagem de comboio. Ela, porém, ficara desiludida com tal visita. No dia seguinte, já nem pensava nela, toda virada para a paixão da Micaela, quando não ocupada com qualquer história, cuja leitura prolongava pela noite dentro.
Certo é que o fanatismo não desaparecera totalmente dela. Pelo contrário, a lucidez, que lhe permitira julgar-se e condenar-se, tornava-a muito cheia de si mesma. Não acreditava que houvesse muitos exemplos de cristãos capazes de reconhecerem, aos cinquenta anos, que tinham enveredado por caminhos errados. Não confessava, mesmo, ser-lhe agradável, então, o facto de não pretender dirigir fosse quem fosse. Por vezes, assoberbava-a uma profunda nostalgia, ao pensar nos anos já passados.
Um dia, regressávamos nós do enterro do meu tutor, o sr. Malbec. Tinham-no trazido de casa da amante, com a boca torcida. Deixava uma herança bastante complicada, pelo facto de ter levado uma vida suficientemente dissoluta. Brigitte, de repente, afirmou-me, na carruagem que nos transportava: "Apesar de tudo, este Malbec talvez tenha sabido viver..." Protestei imediatamente: seria isso viver? A minha madrasta pareceu algo constrangida, afirmando que a não compreendera bem. O que queria dizer era que vivera a sua vida completamente à larga e sem quaisquer peias. No fundo, parecia sincera, o que não impedia que a minha vida de estudioso aplicado a espantasse: "Todos os homens são uns canalhas... - repetia, muitas vezes, não com a aspereza de antigamente, mas com um sorriso. Quando me estabeleci em Paris, para seguir o curso de Ciências Políticas, fui forçado a sofrer, durante as breves estadias que fazia em Bordéus, interrogatórios cerrados e subtis. Brigitte não punha em dúvida que me tivesse dedicado a uma vida de intrigas e paixões, mantendo com a condessa de Mirbcl uma aturada correspondência, da qual eu e João éramos sempre o assunto principal (porque, a partir de 1910, reencontrara o meu amigo na capital). Ainda aqui me abstenho de antecipar a narrativa, que mais tarde virei a escrever, a propósito desses anos em Paris. Apenas contarei uma aventura, pelo facto de Brigitte ter tomado parte nela e por ter sido nessa época que se deu a incrível mudança que se verificara nessa mulher.
Desde muito cedo que eu girara à volta do casamento. Essa ideia fixa, que me perseguira desde a meninice até essa altura, em que me encontrava em condições, que nem um só jovem em mil possui, para tentar a experiência da felicidade, provinha dos tormentos obscuros de um coração que eu julgava vir a perder-me. Bem podia, então, aplicar a mim próprio aquilo que Nietzche com tanta profundidade escreveu no século XVI: "Tinha a suficiente fereza e o suficiente exercício ascético para conservar todo o seu domínio..."
Quando um amigo me falou da sua prima, nascida num meio artístico e rico, e cujas graças gabava extraordinariamente, acabei por morder o anzol, logo que a vi. Essa familiaridade, que eu tinha com Deus, essa crença de que nada me acontecia, sem que Deus o tivesse desejado, e de que nada havia na minha vida que, de qualquer maneira, não fosse dirigido por um delegado do Infinito, - tudo isso me preparava para acolher a jovem como a um anjo libertador. Esses olhos cheios de luz caminham à minha frente... Na verdade, essa madona ou musa mostrava-se bastante mais hesitante e renitente do que eu esperaria. Antes de tomar uma decisão, exigiu viajar através da Europa. Mas o meu amor facilmente se contentava com essas separações e perplexidades, levando-as à conta de se tratar de uma pessoa toda virada para as coisas sublimes.
Não soubera adivinhar, por sob essa ânsia do sublime, a hesitação desses grandes burgueses no tocante a comprometerem-se, pesando os prós e os contras e avaliando-me com olhos calculistas. Passava por ser rico. A minha família, porém, passava por honrada e mais nada. Representaria eu alguém com quem se pudesse contar? Essas pessoas pertenciam à categoria dos parisienses esclarecidos, que sabem muito bem que a ate e a literatura oferecem aos especuladores valores futuros... Arriscavam-se já a comprar alguns quadros de Matisse. Seria eu, porém, um valor firme para o futuro? Incapazes de decidirem, temiam a minha impaciência e procuravam, o mais engenhosamente possível, manter na expectativa o grande tolo que eu era. Quanto falava num rompimento completo, redobravam as suas tentativas, a tal ponto que, sabendo que a minha madrasta obtivera algumas informações más a respeito da saúde de tal família, me pediram que fosse interrogar o seu médico, que pretendiam ter desligado do chamado segredo profissional.
Acreditar-se-ia em que tais actos, tais diligências ridículas e ignóbeis, houvessem de ter sido sonhados. Revejo-me separado, pela largura de uma mesa, desse medicastro glacial, pronto a responder às perguntas que eu quisesse formular-lhe. Tudo isso veio a dar numa suprema entrevista, da qual saí noivo, e numa carta delirante da rapariga. A partir do dia seguinte, porém, que reviravolta! Fui despedido, sem desculpas ou explicações. Dei a mim próprio a pior de todas: que, a despeito de todas as provas tranquilizadoras que podia obter por outras vias, era incapaz de agradar. Um fiasco de tal ordem anulava, aos meus olhos, todos os outros sinais favoráveis. Existia em mim um não sei quê, que afastara o anjo! Incurável romantismo, o da juventude! Como tínhamos no próprio sangue essa crença numa reprovação pessoal numa vocação para a solidão e o desespero!
Em breve avisei a minha madrasta desse rompimento do noivado. Em vez da carta de condolências que esperara, tive a surpresa de a ver chegar a ela própria. Parecia que a minha desventura a atingira profundamente. Manifestou-me a sua grande pena e deu-me a entender que temera uma resolução desesperada da minha parte. As suas indiscretas consolações maçavam-me. No entanto, revelavam-me também que não era tão infeliz como, ao princípio, me parecera, pois apenas o meu amor próprio sangrava. Brigitte levou-me para Larjuzon. Sentia-a decepcionada ao ver-me assim tão razoável. Entretanto, nesse cálido Estio de 1911, forçoso lhe foi render-se à evidência. Muito longe de haver sido ferido de morte pelo meu fracasso amoroso, nele encontrara até uma furiosa excitação a exigir da vida todas as desforras. Nesse Verão, foi-me um antídoto tremendo a leitura maciça das obras de Balzac. Nenhum autor, em si mesmo, é moral ou imoral: as nossas próprias disposições é que decidem acerca da sua influência em nós. No ponto em que eu me encontrava, Balzac ligava-me à vida, embora inclinando-me o espírito ainda infantil para o cinismo, pelo que os cálculos e os artifícios desses jovens ambiciosos me encantavam.
Foi por essa altura que Brigitte Pian começou a desligar-se de mim. Estragava-lhe a ideia que tinha acerca do amor. Nada se lhe tornara tão antipático em qualquer pessoa como a ausência de paixão. Não suportava que tão depressa me tivesse consolado. Não ousou, claro está, dizer-mo abertamente; mas eu senti que ela me desprezava por não pertencer à raça dos torturados. Até que ponto se enganava, ainda eu próprio o ignorava então.
Durante as férias do ano de 1911, Micaela fora encontrar-se com os Mirbel, em La Devize. Nem à minha madrasta, nem a mim, nos restava outro recurso, além dos livros. A sua tristeza foi recrudescendo. Até nas práticas religiosas mostrava já certo desleixo. As conversas tendiam invariavelmente para o mesmo assunto: a paixão humana, que a obcecava. Falava-me, às vezes, de minha mãe, com uma hostilidade toda feita de admiração e inveja. As mais das vezes, porém, quedava-se silenciosa, prostrada, no vestíbulo ensombrecido, onde bruscas lufadas de sangue lhe abrasavam as faces de cor mate.
Sempre me causaram horror os neurasténicos. Por isso, o regresso a Paris, nesse ano, constituiu para mim como que uma libertação. Apenas troquei com a minha madrasta alguns postais indiferentes. Micaela, que esperava para se casar com o João, que este acabasse os seus dois anos da tropa, continuava a morar na Avenida da Intendência. Aludia, nas suas cartas, a "uma história incrível de Brigitte", mas esperava contar-ma, oralmente, por alturas de uma estadia em Paris, onde se fixaria em casa dos La Mirandieuze.
História incrível, efectivamente, e na qual, ao princípio, não acreditei, limitando-me a jungir os ombros. Que a minha madrasta se tivesse apaixonado, e, ainda por cima, pelo seu médico, que já havia ultrapassado os sessenta, pareceu-me simples imaginação de Micaela. Só em Bordéus fui forçado a render-me à evidência. Não se tratava da devoção de uma velha doente para com o homem que lhe cuidava da saúde, mas de uma paixão feroz, exclusiva e - o que mais estranho, por certo era ainda - feliz e cheia de satisfação. Não, bem entendido, que algo de repreensível se passasse entre ambos. O dr. Gellis, huguenote fervoroso e que tinha como clientela toda a alta sociedade protestante da cidade, estava muito acima de qualquer suspeita. Separado, no entanto, de uma mulher, que antigamente o cobrira de vergonha, alvo das exigências de muitos filhos, quase todos já casados, necessitados e ríspidos, descobria, com certa delícia, no declínio da vida, a felicidade de se ter transformado no único pensamento de uma criatura mais forte e mais bem apetrechada do que ele era. Via-a todos os dias, e nada decidia sem lhe pedir a sua opinião. Nenhum pudor, nem sequer o mais leve temor do ridículo atenuavam, nesses dois solitários, a expressão verbal da sua amizade. Nenhum deles conseguia ver um velho no rosto banhado de ternura que se debruçava sobre o seu. Viviam um para o outro, como dois inocentes, no meio das famílias irritadas e trocistas e da cidade murmurante.
Estava-se no último ano do serviço militar do João, cujo casamento devia celebrar-se em Outubro. As famílias trocaram jantares de noivado e contrato de casamento. Brigitte Pian, que desempenhava o papel de mãe da Micaela, prestou-se a isso com muito pouca vontade. A paixão da enteada em nada a interessava já. Principalmente, porém, o que mais lamentava eram os contratos de doação entre vivos, através dos quais, antigamente, ficaria satisfeita de reparar os seus erros. A fortuna pessoal de Brigitte era menor que a nossa: apenas lhe restavam (e só muito tarde se apercebera disso!) os capitais necessários para a compra de um pequeno terreno vizinho da Casa de Saúde do dr. Gellis. A condessa de Mirbel achava que "isso modificava completamente os dados do problema..." Na sua opinião, meio milhão a menos tornava o casamento bastante desigual.
Brigitte fingia-se surda, pretendendo nada compreender acerca dessas alusões, mas procurando evitar a guerra ou tudo quanto pudesse perturbar-lhe a estranha e profunda felicidade. Essa felicidade, reduzida às suas aparências corpóreas, vinha a ser um sexagenário barrigudo e de pernas curtas, vestido de sobrecasaca. A barba tingida dava-lhe ao austero rosto uma leve semelhança com o do chanceler Michel de Hospital. Falava muito e não escutava ninguém, a não ser Brigitte. Esta, porém, preferia calar-se, para não perder uma única palavra do bem-amado. As suas conversas tratavam dos assuntos mais graves, entrando mesmo pela teologia. Ela descobrira, enfim, que era sensível à lógica do calvinismo, embora nenhum deles mostrasse desejos de converter o outro, quer porque experimentassem uma espécie de ternura mútua pelas crenças respectivas, quer porque tais questões não lhes despertassem muito interesse. A idade tornava-os sensíveis ao valor de cada minuto, nenhum dos quais devia ser roubado à única necessidade premente, que era o seu amor.
Desde essa altura, Brigitte afastou-se da nossa vida. Perdi o costume de descer a Avenida da Intendência, nas ocasiões em que passava por Bordéus. O meu quarto tornara-se a aposentadoria do dr. Gellis, nas noites em que dormia na cidade, a fim de acompanhar Brigitte ao teatro ou aos concertos, visto ter-lhe ele pegado a sua paixão pela música. O médico não tinha automóvel, mas sim uma dessas velhas carripanas, à moda antiga, em que logo ao primeiro olhar se reconhecia a viatura do médico, e que demorava um tempo infinito a percorrer a distância entre a cidade e a Casa de Saúde.
Nem os jarretas se apaixonam sempre pelas rapariguinhas, nem as mulheres velhas pelos adolescentes. Acontece até que um homem e uma mulher, após se haverem buscado durante uma vida inteira, se encontram, por mero acaso, nas meias trevas do declínio. Nesses casos, a paixão ganha em desinteresse e indiferença por tudo quanto não seja ela própria. Se, afinal, lhes resta já tão pouco tempo! Pode rir-se à vontade o mundo, que nada conhece do que existe no fundo dos corações. Nas minhas raras visitas à Avenida da Intendência, Brigitte olhava-me com uma espécie de piedade. De nós ambos, era eu o mais infeliz. Os aspectos temíveis da sua natureza traíam-se, muitas vezes, quando evocava ou recordava minha mãe ou os Puybaraud, essas pessoas a quem nada tinha que invejar, pois não haviam conhecido, como ela, as delícias de um amor por igual partilhado.
Irritava-me ver reacender-se, sob as espessas sobrancelhas de Brigitte, essa cruel chama, ousando, então, aludir a essa espécie de amor que ela jamais poderia vir a conhecer. Descobrira uma brecha na sua paixão orgulhosa e satisfeita.
E dava-me a insinuar-lhe que a paixão, quando não se encarna, não passa de simples fantasma. Por mais que nos encontremos e percamos na pessoa querida, bem podemos embriagar-nos com palavras ou gestos, que jamais poderemos saber se, em verdade, a possuímos totalmente... Brigitte interrompia-me: "Não sabes o que dizes... Não sabes do que estás a falar..." Reencontrava, então, a mesma expressão horrorizada, que lhe fora tão familiar outrora, quando em sua presença se falava desse assunto proibido.
Ainda hoje sinto remorsos ao pensar que, com essas insinuações, lhe hei-de ter perturbado a alegria, uma vez que, ao tempo em que com ela tinha essas conversas, já algumas tempestades se desencadeavam entre esses Filémon e Baucis, segundo vim a saber por intermédio de Micaela. Manifestaria Brigitte algumas lamentações ou exigências? Impossível imaginar essas pobres tentativas, esses trejeitos dos corpos que já não possuem a idade dos corações que os animam. A juventude sofredora (e eu sofria bastante) odeia os velhos felizes.
Para o dr. Gellis, existiam os filhos e os netos mais velhos, quase na miséria! A compra do terreno vizinho da Casa de Saúde, que Brigitte Pian concluiu na véspera do casamento da Micaela, provocou a discórdia. Enquanto um dos pastores protestantes de Bordéus procedia a uma tentativa perante o médico, a família Gellis suplicava a Micaela que enviasse à madrasta uma pessoa em quem tivesse confiança, para que a pudesse admoestar. Era precisamente na época em que o abade Calou se vira proibido de exercer o seu ministério. Como se encontrava apenas suspenso, mas não interdito, todas as manhãs a sua sotaina humilde se juntava aos vestidos negros das velhas, na altura da Comunhão, numa capela próxima da Faculdade de Letras. Regressava ao seu lugar, sob os olhares curiosos ou apiedados, e o seu rosto parecia o de um anjo.
Nem sequer houve necessidade de a família Angellis ter de recorrer a ele. Para empregar as palavras, cruelmente fúteis, de que a condessa de Mirbel se serviu, as coisas acabaram por se arranjar por si próprias. Uma tarde, rias vizinhanças da Casa de Saúde, um automóvel apanhou de lado a camparia do médico, que morreu no desastre. A minha madrasta soube da notícia, pelo jornal, na manhã seguinte. Várias versões, por sem dúvida demasiado romanceadas, percorreram a cidade, comentando a chegada de Brigitte Pian, esgazeada e sem chapéu, ao pavilhão habitado pelos Gellis. Pretendeu-se, mesmo, que o filho mais velho lhe quisera impedir o acesso à câmara ardente, mas que ela o empurrara e, após ter franqueado muitas barreiras feitas pelas pessoas da família, se atirara sobre o cadáver, sem uma lágrima, sem um gemido, e que fora preciso tirá-la dali à força.
Morava eu, então, em casa de pessoas amigas, no Cap Martin, nunca pensando em que um luto, tão-pouco oficial como esse, pudesse valer uma deslocação minha. Limitei-me a enviar-lhe uma carta, de redacção bastante difícil, que ficou sem resposta. Todavia, como a Micaela e o João continuavam em viagem de núpcias pela Argélia, Brigitte não me saía do pensamento.
Impossível me seria regressar a Paris, sem ir a Bordéus certificar-me de que a minha madrasta não enlouquecera. Adiei essa maçada para o começo da Primavera.
A criada, que não me conhecia, deixou-me só no vestíbulo. Ouvi minha madrasta exclamar: "Pois claro, que entre!" Senti-me extraordinariamente aliviado pelo facto de nada de estranho lhe ter notado na voz. Encontrava-se sentada no lugar habitual, perto da secretária, na qual se não viam já amontoadas as circulares e os convites para os bazares de caridade. Apercebi-me, passado algum tempo, que voltara a usar o antigo penteado: os cabelos, levantados ao alto e cheios de anéis, deixavam-lhe a descoberto as orelhas compridas e o rosto bem modelado. Uma fotografia do dr. Gellis encontrava-se em cima do fogão, à sombra de um ramo de lilases. Nada na sr.a Brigitte demonstrava agitação ou desvario Cobria-lhe os ombros uma romeira de lã de cor violeta. Antes de eu ter entrado, devia ter colocado em cima da secretária esse rosário de que se servira já nos meus tempos de criança. Desculpou-se, de início, pelo facto de não ter respondido à minha carta, e, sem pretender enganar-me, afirmou que ficara durante muitos dias num tal estado de prostração, de que só dificilmente pudera sair.
- E agora? - perguntei-lhe.
Olhou-me com ar pensativo.
- Se o sr. Puybaraud se encontrasse aqui, havia de jurar que só tu serias capaz de compreender...
Sorria, com toda a calma.
- O maior segredo disto tudo - continuou ela - é que o não perdi de todo... Não posso falar deste assunto com ninguém... O querido sr. Gellis nunca esteve tão próximo de mim, mesmo durante a sua vida mortal. Enquanto vivo, começara já a sua missão junto de mim. Nós, porém, não passamos de simples corpos... Claro, éramos nossos corpos que nos separavam. Presentemente, porém, já nada nos separa...
Falou por muito tempo sobre esse tema, levando-me a acreditar, ao princípio, que se tratava de um mero ardil para arrebatar à morte o querido sr. Gellis. Passados alguns dias, porém, pude concluir que o amor humano não desabrochara demasiadamente tarde no árido destino da hipócrita, e que o "branco sepulcro" se descerrara e abrira, finalmente. Talvez lá tivessem ficado alguns ossos e alguma podridão. Acontecia ainda que as temíveis sobrancelhas se juntavam, por vezes, como acontecia antigamente, por sobre os olhos em brasa. Qualquer ofensa, por muito tempo remoída, fazia saltar uma palavra amarga. Mas "o querido sr. Gellis" já não estava longe e conduzia Brigitte para a paz de Deus.
Chamou-me uma carta urgente da condessa de Mirbel a La Devize, aonde a Micaela e o João haviam regressado, muito antes da data por eles mesmos fixada. Esse regresso precipitado inquietou-me. Parti imediatamente e fiquei como que tragado pelo drama desse casal, que ainda um dia hei-de descrever. Transformei-me em seu satélite, pois me arrastaram no turbilhão das suas lutas e das suas reconciliações. E a velha, que eu deixara, na Avenida da Intendência, toda entregue à adoração póstuma desse "querido sr. Gellis", afastou-se-me do pensamento. O meu estranho destino cifrou-se em andar constantemente a correr do João para a Micaela, procurando evitar os golpes que esses dois cegos iam descarregando um sobre o outro. Estranho destino, sem dúvida, principalmente para um homem que também sofria, mas sozinho, e sem que alguém o socorresse.
Acordou-nos do sonho a mobilização do dia 2 de Agosto de 1914. Esse trovão interrompeu milhares de dramas particulares como o nosso. Destruídas todas as nossas sapas, surgimos, do fundo das próprias paixões obscuras, estupidificados, de olhos espantados em frente dessa enorme desgraça, sem qualquer comparação com aquela que a nós próprios infligíamos. Abandonei o João e a Micaela, que já não podiam fazer mal um ao outro, visto que ambos iriam perder-se, e dei-me a medir toda a minha solidão de homem, que não tinha sequer a quem dizer adeus, afora Brigitte Pian.
Esta abatera e emagrecera bastante. Puxou-me contra si. Espantaram-me as suas lágrimas. Nem uma vez só se pronunciou o nome do sr. Gellis, tendo-se ela ocupado de mim, exactamente como uma mãe o haveria feito. Soube, mais tarde, que, por essa altura, via muitas vezes e socorria bastante o abade Calou, já perdoado pela autoridade diocesana, embora no fim da vida.
Na frente de batalha, via-me cheio de embrulhos e também de cartas, onde me falava principalmente da minha saúde e das coisas de que eu teria necessidade. Foi junto da sr.a Brigitte que passei os dias da minha primeira licença. Poucos dias antes, o abade Calou morrera-lhe nos braços. Narrou-me o acontecimento quase com secura e sem procurar edificar-me. O sr. Calou, embora ainda não totalmente enfraquecido - dizia-me ela -, já andava ausente deste mundo. As suas crises de angina de peito haviam-se tornado atrozes - dessas que obrigam o doente a precipitar-se para uma janela aberta, tal é o seu sofrimento. Desde porém, que retomava o fôlego, não se cansava de repetir que ainda podia sofrer bastante mais. Tinha em cima da mesa uma fotografia que eu havia tirado, antigamente, na horta de Baluzac, e na qual o João e a Micaela, descalços e franzindo as caras por causa do Sol, transportavam o mesmo regador. Brigitte acrescentou que, a despeito dos seus atrozes sofrimentos, o abade Calou não inspirava piedade.
Ela não se esquivava, quando eu aludia aos factos passados. Compreendi, no entanto, que até se esquecera dos seus pecados, tudo abandonando nas mãos da Divina Misericórdia. No crepúsculo da vida, Brigitte Pian acabara por descobrir que não devemos assemelhar-nos a um servo orgulhoso e desejoso de maravilhar o patrão, com pagar-lhe as nossas dívidas até ao último óbolo, e que o Nosso Pai não espera de nós que sejamos os guarda-livros dos nossos próprios méritos. Sabia, finalmente, que o que importa, não é tanto merecer, como saber amar.
François Mauriac
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