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CATARATAS DO GÓLGOTA, norte de Massachusetts, 1890. A cidade assentava-se numa ravina de terreno áspero e obstinado onde as poças estagnadas geravam vermes rastejantes nas pendentes folhas castanhas dos chorões. O Ribeirão de Siloam sufocava-se com os detritos que vinham da tecelagem, e em suas argilosas margens, os comerciantes católicos da vizinha cidade de Lawrence decidiram construir sua igreja.
Quando revolvido, o solo mostrou-se arenoso. Índios, de há muito mortos, desenterrados da terra solta, tiveram que ser levados em pilhas de esqueletos. Operários, finalmente, atingiram o fundo rochoso e taparam com panos suas bocas e narizes. O granito tinha fissuras profundas e exalava um odor fétido semelhante ao do leite azedo. Ao partir-se a rocha, quatro operários morreram sob escombros de madeira. Outros dois tornaram-se pálidos e consumiram-se de difteria. Um subempreiteiro sofreu delírios de malária.
Quando o portão de ferro foi levantado, sete novas sepulturas erguiam-se na área parcamente drenada do cemitério.
Contudo, foi um edifício delicado, de branco campanário, que se ergueu do miasma. Lilases farfalhavam e abelhas zuniam pelas pequenas janelas góticas. Tracejados de luz brincavam como asas de borboleta sobre o assoalho encerado. Quadros da Paixão estavam pendurados a intervalos regulares nas alvas paredes do interior da igreja.
Sobre ela erguia-se a torre do sino, cuja férrea voz cava, profunda e reverberante soava anunciando uma nova presença em Cataratas do Gólgota.
Anciãos da cordoaria e das comportas do canal, veteranos da Guerra Civil, espiaram o posto avançado da Igreja Católica, cujo nome era Igreja das Dores Eternas. E atrás dos vitrais virentes ou vermelhos como rubi, Bernard K. Lovell, o padre, cuidadosamente preparava o cálice, a âmbula, e os paramentos trazidos da sacristia. A riqueza de Lawrence providenciou para que entalhes de nogueira ornamentassem alguns dos bancos. Havia anjos esculpidos nas colunas do transepto e o contorno da cornija ondulava qual fita branca ao redor de seu interior. Era por demais resplendente, por demais exótico, para Cataratas do Gólgota.
Os veteranos balançaram a cabeça e profetizaram que tal exibição de fausto levaria à ruína.
Padre Lovell devotamente depositou o Evangelho exageradamente enfeitado sobre o altar. Às suas costas, o estofo de veludo da grade de comunhão captava os reflexos dos castiçais de cobre e dos turíbulos. Toda a capela-mor banhava-se ao sol do leste. Sobre o altar, sinal visível da presença de Cristo, uma lamparina consagrada, de cobre, luzia firme, uma rubra incandescência no cantar matinal dos passarinhos.
Lovell era tímido, mal chegado aos trinta anos. Uma ligeira diminuição da perna esquerda fazia-o claudicar. Era louro, de olhos rosados e aguados, como os de um coelho.
Esta era a sua primeira igreja e ele tinha o ar de quem lutava para sepultar antigas humilhações.
Os católicos de Lawrence chegaram a Cataratas do Gólgota, de forma ostentosa e sem conforto, em seus cabriolés pretos. Os roceiros irlandeses e as operárias tecelãs acotovelaram-se nos bancos sem ornamentos nem almofadas, mexericando em voz baixa. Lovell invejava o prestígio dos comerciantes. As tecelãs, com suas mãos calosas e o inglês adulterado, deixavam-no nervoso. Sua voz aguda e esganiçada de tenor proclamou o serviço do Senhor. Ao fim, os comerciantes se foram, vagamente desapontados.
O inverno foi rigoroso, inconcebivelmente rigoroso. Os comerciantes de Lawrence, acobertados por sua fortuna, ainda não podiam acreditar que um inverno tão rigoroso pudesse abater-se sobre eles. Para Cataratas do Gólgota foi catastrófico, já que a cidade ficava no caminho de qualquer tempestade mais violenta que cruzasse o continente. O Siloam ficou bloqueado por regos intransitáveis de gelo serrilhado. As pontes tornaram-se traiçoeiras. Agulhas de gelo atingiam cruelmente o gado que se amontoava sob os carvalhos mortos. O povo tiritava envolto em suas peles, e nem mesmo os maiores aquecedores a carvão conseguiam espantar o frio úmido de seus corpos. Quando o inverno terminou, doze famílias haviam contraído pleurisia.
Veio a primavera, e o lodo ao redor da igreja abundava em insetos rastejantes e gosmentos, e sapos marrons saltavam para os parapeitos das janelas góticas. Borboletas brancas adejavam sobre as sepulturas. Padre Lovell encurralou, dentro da sacristia, um ninho de seis cobras de jardim. À noite, nuvens baixas de vapor denso e fantasmagórico envolviam as margens lamacentas do ribeirão e vazavam para as fundações da igreja, deixando manchas escuras no soalho.
O verão se arrastou, e as missas dominicais tornaram-se úmidas de suor humano. Mosquitos atacavam em nuvens e vinham pousar em mãos e faces desprotegidas. O mofo infestava a pintura das paredes externas. O povo tecelão de Cataratas do Gólgota recusava-se a comparecer, por isso os comerciantes de Lawrence contribuíram pessoalmente com somas maiores ainda para a branca igreja.
Gradualmente, as refinadas damas recusaram-se a sair de Lawrence. Mesmo as mais humildes operárias e os rijos peões irlandeses passaram a detestar as incessantes fustigadas de Lovell pedindo mais contribuições. Pois, por coincidência ou de propósito, e na opinião de Lovell por dissimulada persuasão por parte dos comerciantes de Lawrence, as comunicações com a arquidiocese de Boston haviam cessado. Lovell os acusava a todos de abandonarem a igreja, e com renovado vigor continuava a passar sermões aos valentes que ainda apareciam. Mas, ao notar os anciãos trêmulos em suas calças de brim, os amplos espaços vazios nos bancos, ele percebeu que sua congregação estava moribunda.
Com o passar dos anos, uma depressão econômica devastou as cidades fabris e os comerciantes de Lawrence recusaram-se a mais investimentos. Os teares quedaram-se silenciosos. O outrora ativo canal alimentado pelo Ribeirão de Siloam encheu-se de algas malcheirosas e íris silvestres.
Enfurecida, Cataratas de Gólgota encontrou seu bode expiatório, a destroçada Igreja Católica das Dores Eternas.
Lovell desprezava os preconceitos da cidade e sua obsessão pelo dinheiro. Recolhia-se ao seu pequeno quarto na reitoria ao lado, seus livros de etimologia, o retrato de sua mãe sobre a cômoda negra de tampo de mármore.
Escrevia elegantes epístolas à Santa Sé em Roma, descrevendo uma congregação dinâmica numa cidade em desenvolvimento. A verdade era que Cataratas de Gólgota também começava a agonizar.
Na reitoria, o silêncio agravava-se. O âmbar da lâmpada noturna ardia sobre o cômodo malcuidado. Solicitação de fundos jaziam na escrivaninha, recusadas pelos comerciantes. Por amargo orgulho, Lovell continuava a mentir a seus superiores eclesiásticos. Bebendo burgundy tinto, ele fitava além de seu reflexo para os sombrios montes do interior de Massachusetts. Sua missão era obscura e tenebrosa como o Siloam, que sugava a pedra-de-canto da igreja.
Num dia de inverno, Lovell, os cabelos ralos e grisalhos, feriu sozinho a terra dura como pedra e, então, com uma corda esgarçada, tentou baixar o ataúde de seu último paroquiano. O peso era excessivo para seus frágeis braços.
O caixão caiu de lado. E o padre teve que endireitá-lo, com esforço, dentro da cova aberta.
Depois daquele inverno, não apareceram novas sepulturas nas margens do ribeirão. A névoa recém-chegada descolorava o revestimento de madeira das paredes, e Lovell permitiu que a ferrugem tomasse conta do portão de ferro.
As propriedades ao redor da igreja ficaram abandonadas.
Cresciam as ervas daninhas entre a igreja e a cidade. Ninguém mais ouvia a voz estridente e lasciva do padre, nem mesmo nas mais calmas e silentes noites escuras de verão.
No décimo inverno rigoroso, Lovell deixou-se cativar pelos estranhos traçados do gelo contra os vitrais. Rápidas centelhas de prata e ametista roçavam a música dolorosa de sua alma. Perturbado, a barba por fazer, desfiava sua litania para os bancos desertos. Havia consolo nos reflexos de luz que pareciam mover-se por vontade própria pelos assoalhos úmidos. Os quadros da Paixão, corroídos pelo mofo, faziam do Homem das Dores uma figura corcunda. Lovell entretinha-se com a delicadeza de luz e sombra das paredes, e orava à grande indiferença para além da ravina.
Pois, alguma coisa invadira a igreja. Levemente, como sementes levadas pelo vento numa tarde de primavera.
Sorrateira como o princípio de uma enfermidade. Era uma ausência, que flutuou para dentro das paredes infestadas de espórios e de verniz arruinado. Era um nada, e, contudo, era palpável.
Veio como uma sombra deslizando sobre os montes.
Irremediavelmente bêbado, Lovell dizia a missa da meia-noite, em êxtase devoto e febril, para tirar da boca o gosto pútrido que o intoxicava até aos ossos. O órgão rugia, as paredes manchadas reverberavam, e as velas bruxuleantes quase pareciam ter voz. Os paramentos de Lovell cintilavam em vibrante esplendor, suas faces rubras de uma luz incerta.
Pouco a pouco, sem perceber, ele entregou-se a um pacto, sutil como um véu. Tão forte, no entanto, que quebrou o homem.
No altar, ignorada no paroxismo de uma nova missa, o fulgor vermelho da lamparina de Cristo clamou por óleo, tremulou a esmo, criando sombras, e apagou-se.
Cataratas de Gólgota, culpada de ignorância, absorvida em seus problemas financeiros, abjurou a igreja, e nada viu, nada ouviu, como se também Lovell estivesse morto.
Em 1913, a arquidiocese de Massachusetts iniciou um diligente trabalho de reestruturação das jurisdições paroquiais. Uma comissão de clérigos de Boston, examinando os registros do interior, detectou uma certa inconsistência numa pequena congregação próxima aos limites com New Hampshire. Indagações não foram respondidas. Mandaram um enviado.
Foi no princípio de um verão ardente. A poeira se acumulava nas estradas amarelas por onde o enviado passava a cavalo, na direção de Cataratas do Gólgota. O Ribeirão de Siloam estava atulhado de folhas e troncos, e o coaxar rouco dos sapos-bois ecoava pela ravina. Perplexo, o enviado parou e baixou o olhar para a igreja.
As paredes estavam rachadas, pipocadas, e sujas de uma lama que, àquela distancia opressiva, assemelhava-se a sangue coagulado. Arbustos secos e erva-de-santiago infestavam o jardim. O portão, outrora ereto, jazia em ângulo oblíquo na grama amarelecida.
O enviado desmontou. Espiou pelas janelas da reitoria.
Ninguém.
No entanto, pilhas de roupas provavam que era habitada. Foi andando com cuidado pelo terreno irregular e olhou para dentro da igreja escura. O enviado chamou, bateu, e gritou, mas a pesada porta estava emperrada nas dobradiças enferrujadas.
Enxugou o suor do pescoço. A igreja exalava mau cheiro.
Com um grito violento, jogou-se contra uma porta lateral e caiu para dentro. Segundos depois, nauseado e branco como papel, saiu aos tropeções para o sol quente. Berrou chamando a polícia.
Meninos do campo ouviram os gritos e arrastaram o enviado para a sombra dos olmos. Outros entraram vagarosamente na igreja. Lá, no lusco-fusco, viram um Lovell demente e macilento, ranho escorrendo das narinas, um crucifixo lambuzado de cera, e ele, incoerente, no púlpito.
Então, muito devagar, viraram-se para ver os bancos.
Cadáveres embalsamados em verniz, carne em frangalhos envolta em tecidos, luvas e chapéus, sorriam rigidamente para a missa, através de uma nuvem de moscas negras.
Lovell foi derrubado ao chão. Naquela noite, a polícia o transportou, de carroça, para Boston, pela meia-noite úmida e ciciante. O enviado testemunhou o ressepultamento dos mortos. Mesmo os mais distantes lilases e forsítias se encheram de odor nauseabundo e râncido de carne putrefata.
Vândalos, agora, destruíam a reitoria à cata de relíquias macabras. Sob o chão da reitoria, encontraram um coroinha sem um braço, incompletamente preparado pelo verniz de Lovell, num gesto de bênção. Era um dos gêmeos McAliskey, desaparecido desde o ano anterior. Nenhuma escavação conseguiu localizar o outro gémeo.
Mas o mau cheiro filtrou-se pelas fissuras do leito rochoso e foi reaparecer sob o centro de Cataratas do Gólgota. Como prelúdio à chuva, ao aumentar a pressão atmosférica, uma emanação densa subiu dos arbustos. Os transeuntes foram obrigados a tapar o rosto. A igreja tornou-se conhecida como a Igreja da Danação Eterna e foi desprezada.
A arquidiocese de Boston permitiu que continuasse abandonada. A hera invadiu as rachaduras das paredes.
Trepadeiras se enroscavam na sacristia empenada. Ratos deixavam fezes sob os bancos, nas roupas da grotesca "congregação" de Lovell. Fragmentos dos vitrais caíram para o chão empenado e o tempo não encontrou resistência para invadir seu interior.
Durante as longas auroras do outono, os raios de sol iluminavam os cacos de vidro e os candelabros de cobre, agora destroçados, até que cintilassem com um poder desconhecido e triunfante.
Cogumelos alaranjados cresceram no caminho de pedra que levava à igreja. Espórios floresceram no que restou dos paramentos sacerdotais amontoados no coro. Folhas mortas empilharam-se no canto sudoeste da nave. Lentamente, lentamente, os longos fios das teias de aranha moveram-se sobre os escombros encardidos.
Em novembro de 1914, Bernard K. Lovell, a caminho de um asilo menor e melhor equipado, escapou de seus en-fermeiros. O ex-padre cometeu suicídio nos paralelepípedos de Boston, jogando-se sob as rodas de um carroção de cerveja.
Na mesma noite, em Cataratas do Gólgota, dois bodes irromperam pela porta da igreja, espojaram-se nas roupas úmidas jogadas ao chão, e se uniram em turnos de cópula furiosa.
Duas noites depois, 23 de novembro de 1914, o professor de inglês da Escola Primária de Cataratas do Gólgota, um certo Robert Wharton, notou dois globos azuis luminosos movendo-se vagarosamente pela parede oeste da igreja.
Em 24 de novembro, não menos de vinte pessoas da cidade prestaram juramento perante um tabelião de que tinham ouvido música coral ecoando pela igreja escura e deserta.
Na manhã seguinte, Silas E. Gutman, dono da propriedade vizinha à igreja, cortou as gargantas de suas duas novilhas premiadas por causa dos mugidos baixos e semelhantes à voz humana que emitiram depois de pastar entre as sepulturas.
A 25 de novembro, a mulher de um agente imobiliário, uma certa Sra. Gerald T.K. Hodges, queixou-se ao marido de ter ouvido o lento dobrar do sino abandonado, soando pela ravina enevoada. Duas horas mais tarde, morria de hemorragia cerebral.
Assim teve início a lenda de Cataratas do Gólgota. Os eventos se sucederam, em memória e temor, na imaginação coletiva do vale moribundo. Luminescências azuis, noturnais vozes incorpóreas, e animais enlouquecidos, por pastarem perto demais da igreja, puderam ser observados até bem adiante na geração seguinte.
A parapsicologia estava, então, na infância. Os registros eram poucos e escassamente documentados. Mas as informações disponíveis indicavam que, durante o mês de novembro de 1914, um aumento cíclico de manifestações paranormais havia ocorrido longe de Cataratas do Gólgota.
Um aumento tríplice nas manifestações de aparições foi claramente observado nas Ilhas Britânicas. Cinco expedições arqueológicas ao Oriente Médio documentaram ventos luminosos e animais dementes circulando pelas ancestrais tumbas de Jerusalém.
Os arquivos da Igreja Católica se abarrotaram de relatos de padres reportando visitações, estigmas e milagres, tanto na Guatemala como no Brasil e na França.
Na verdade, veteranos da Batalha do Marne, durante a Primeira Guerra Mundial, divulgaram histórias incompreensíveis sobre batalhões inteiros entrando em pânico por causa de visões etéreas passando por perto das trincheiras bombardeadas.
Abaixo dos arquivos da Igreja, a salvo de olhos laicos, Jazia o desalentador espetáculo do Papa Pio X, "abençoado pastor de almas", que havia caído em catatonia durante um consistório de cardeais e cujos pés e mãos brilhavam em horror, numa paródia grosseira da Crucificação. E na memória mais recente do Vaticano, anotados nos registros da Santa Sé e enterrados secretamente, pairavam os bizarros acontecimentos que cercaram a eleição do papa em exercício, Francisco Xavier.
Roma fervilhava de rumores. Câmeras do mundo todo se assestavam sobre as cabeças de 100.000 fiéis aglomerados na Praça de São Pedro para apreciar a pompa e o esplendor da reunião do Colégio dos Cardeais. De todos os pontos do planeta vieram os cardeais, para eleger um novo papa sob a inspiração do Espírito Santo. Era uma ocasião solene. Era uma ocasião de júbilo. A tensão entre os jornalistas, as ordens religiosas, e a Cúria e arcebispos estrangeiros, era grande.
Os cardeais visitantes se dividiam em dois grupos. De um lado, a conservadora Cúria Romana. De outro, um novo movimento de extática preparação para o segundo milênio — o desde há muito profetizado Segundo Advento de Cristo — um grupo que se intitulava "milenaristas". O Colégio atingira um impasse entre as duas facções, com um grande número de indecisos de permeio.
No décimo primeiro dia de votação, o longevo arcebispo de Gênova, de 92 anos, repentinamente levantou-se na Capela Sistina, afastando-se de sua cátedra de dossel franjado chamado baldaquino. O Colégio dos Cardeais, como um todo, mais de 100 homens em mantos púrpura, contemplaram perplexos o ancião atravessar tropegamente o chão de mármore enquanto fitava o magnífico teto pintado por Michelangelo.
Subitamente, ele levantou o dedo apontando para a figura de Deus no ato de despertar Adão.
— Está escolhido... Está escolhido... Está escolhido... — ele ciciou.
Os cardeais prenderam o fôlego a esta violação da lei do silêncio. Mas, transfixados, observaram a mão do velho afastar-se fremente do afresco do dedo divino, passar pela abóbada, descendo, descendo sempre, pela parede.
Involuntariamente, mais de cem pares de olhos seguiram aquele dedo rígido e ossudo.
O arcebispo apontou para o rosto pálido de choque do quase desconhecido siciliano Giácomo Baldoni.
— É você... é você... — o velho esganiçou, e caiu prostrado nos braços de dois amedrontados camareiros.
Naquela noite, os Aposentos dos Borgia, divididos em humildes celas, como um imenso dormitório de catres para os cardeais presentes, foram varridos por ondas de rumores e discussões apaixonadas. A Cúria Romana tentou desesperadamente restaurar o senso de lógica e pragmatismo. Mas os milenaristas, pressentindo uma intervenção do Espírito Santo, impetuosamente converteram os votos indecisos.
Ao desjejum do dia seguinte, o Núcleo Cardeal Belocchi aproximou-se do pálido Giacomo Baldoni e sussurrou em latim: — Aquele a quem o Santo Espírito elege, a ele o Santo Espírito dá forças.
Mas o Italiano de belas feições vigorosas, olhos cinzentos em estranho contraste com sua compleição, devolveu lhe um olhar que parecia vir de um profundo poço de apreensão.
— Mas será mesmo o Espírito Santo? — murmurou em agonia.
Surpreso, o Núncio não encontrou resposta.
Naquela mesma manhã, Giacomo Baldoni da Sicília recebeu bem mais de dois terços dos votos. Uma aura de silêncio abateu-se sobre a Capela Sistina. Nas mãos do siciliano, para o bem ou para o mal, o Colégio dos Cardeais depositou toda a Igreja Católica Apostólica Romana, todas as suas almas, suas riquezas, sua própria missão histórica com a aproximação do segundo milênio. Tudo com base na visão mística do arcebispo de Gênova.
O presidente do Colégio cruzou hesitante o chão de mármore, transpirando abundantemente na atmosfera tensa.
— Aceitais a eleição do Colégio dos Cardeais? — ele fez a pergunta de praxe.
Nos olhos profundos e inteligentes, o Núncio Bellocchi tornou a ver a dúvida profunda, que beirava o horror, e viu a mão do siciliano tremer violentamente nos braços da cátedra.
Perturbado, o presidente repetiu a pergunta, passando os olhos nervosamente pelos cardeais reunidos, como a pedir socorro.
O siciliano, num paroxismo de indecisão, tentou levantar-se, deu a impressão de que desejava prevenir os presentes sobre um sério perigo, mas faltaram-lhe as palavras. Ao invés, fitou mudamente o presidente.
— Aceitais a eleição do Colégio dos Cardeais? — a pergunta foi feita pela terceira vez, a voz pouco firme.
O rosto do siciliano transformou-se. Acomodou-se na cátedra, a íntima batalha decidida. Vitória ou derrota, era difícil para o Núncio discernir, naquele belo, ambíguo, apaixonado rosto.
— Aceito — respondeu o siciliano com firmeza. Era como se Baldoni quase tivesse sabido o que ia acontecer.
— Por qual nome desejais ser chamado? — indagou o presidente, a segunda pergunta de praxe.
— Francisco Xavier — foi a resposta imediata.
Murmúrios de aprovação e aplauso vieram dos mile-nianistas. Francisco, de Francisco de Assis, o místico e piedoso santo. Xavier, o nome do Senhor. O nome indicava submissão à causa do Segundo Advento em todo o seu significado. Com Francisco Xavier, e o Espírito que o guiara, a Igreja tomava um novo rumo decisivo.
Os camareiros arriaram os baldaquinos de todas as cátedras, à exceção da de Baldoni, com isto significando sua subida ao trono. Em menos de dez minutos tudo estava consumado. A Igreja Católica, a barca de São Pedro, havia passado aos cuidados do desconhecido e mercurial temperamento de Francisco Xavier.
Naquela noite, depois das devoções particulares, as velas espiraladas do lado de fora da capela papal gotejaram cera vermelha como sangue. Atemorizado, o camareiro destruiu as velas e as substituiu antes que o novo pontífice terminasse suas orações.
Pelos corredores de mármore dos Aposentos dos Borgia, dois jesuítas viram globos azuis luminescentes passando silenciosamente pelas esplêndidas pinturas das longas paredes.
Francisco Xavier sonhou com uma congregação, os bancos lotados com bodes, jumentos e cavalos. Significaria São Francisco de Assis? indagou-se no sono. Ou seria uma visão vinda de algum lugar além do limite da graça?
Naquela noite, em Cataratas do Gólgota, depois de um temporal, um cordeiro morto foi dar à margem verde do outro lado da igreja. Por coincidência, um pano franjado, todo em farrapos, agarrara-se aos galhos de um arbusto, por trás do animal, formando um dossel. Do lado oposto do cordeiro morto e todo quebrado, formou-se um semicírculo de mais de vinte galos mortos, ainda cobertos de sangue rubro, trazidos das fazendas pela enxurrada, quando o Ribeirão de Siloam rompeu as barragens. Os habitantes da cidade e os fazendeiros contemplaram o espetáculo de morte agoniada e não conseguiram decifrá-lo. Era um sinal novo. Como se a morte, agora, criasse forma concreta em Cataratas do Gólgota. A cidade se recolheu em horrorizado segredo. E esperou.
CAPÍTULO UM
O pó levantava-se em torvelinho pela Rua Boylston, ao calor de setembro, e deslocava nuvens de cisco, pedacinhos de folhas mortas, pólen âmbar e sementes aladas. Vinha do norte. Calor árido e sulfuroso erguia-se da seca formando grandes semicírculos de mormaço que chegavam até Cambridge, bem ao sul.
O campus de Harvard, recortado contra o ar disforme, cobria-se de uma fina camada de poeira.
Mário Gilbert fazia sua preleção em um dos auditórios.
As paredes georgianas de tijolos vermelhos, estranguladas pela hera, eram baluartes contra a onda de calor, e havia tranquilidade e silêncio entre as poltronas estofadas de vermelho, os retratos na parede e a tribuna de mogno.
Sete homens do corpo docente de Harvard, em ternos leves de verão, ouviam.
Nas janelas de vidro fume, quase brancas com o resplendor matinal filtrando-se pelas longas cortinas escarlate, os grãos de poeira cintilavam suspensos, como num movimento browniano. Era como se diminutas partículas de matéria em processo de estrangulamento passassem para a não-existência no calor oblongo da janela em sua mortalha vegetal.
Mário Gilbert virou as páginas do trabalho e tentou concentrar-se em seu discurso.
— Pesquisas derivadas, na área de Cataratas do Gólgota — ele continuou, — trouxeram à luz vestígios deixados por tribos aborígines. A palavra algonquina para a ravina na qual se encontra a igreja deve ser traduzida por "o lugar de onde sobe o vapor". Mas o vocábulo não significa exatamente fumaça, nem nevoeiro, nem neblina. O Dr. Wilkes, do Departamento de Antropologia, um especialista em dialetos algonquinos, estabeleceu que o termo é, na melhor das hipóteses, um derivado da raiz para vapor ou bafo. E, de fato, da rocha granítica das fundações da igreja emana um vapor visível de manhã cedo e no outono.
Mário sentiu a transpiração formando-se na nuca.
Incomodava-o a gravata verde de lã que sentiu-se na obrigação de usar, e volta e meia mexia-lhe no nó. Virou-se Iara apanhar o copo de água já tépida.
Atrás do estojo de slides e pastas contendo documentos, estava sentada sua colega, Anita Wagner, impassível como uma estátua de marfim. Vestia-se de linho bege e delicadas pulseiras de ouro tilintavam a cada movimento de seu pulso fino. Tinha os cabelos longos e negros que combinavam com seus extraordinários olhos também pretos, mas a cútis pálida parecia pertencer a outrem, a algum ser etéreo de um mundo qualquer distante e superior.
Mário virou-se para a imperturbável comissão de estudos interdisciplinares.
— Assim, sabemos que os algonquinos conheciam o lugar, deram-lhe um nome, e migraram cautelosamente ao seu redor.
Os retratos na parede irritavam Mário. Retratavam homens mortos de um mundo morto e liberal, e, tal qual o corpo docente à sua frente sorriam, benignos, complacentes, insípidos.
Mário endireitou os ombros fortes e debruçou-se para maior ênfase.
— Evitavam-no — declarou. — De fontes arqueológicas e antropológicas, sabemos que não houve desmatamento, em qualquer escala, nem áreas agrícolas fertilizadas com peixe, nem matéria orgânica queimada que pudesse indicar a existência de fogueiras, nem mastros de tendas, nem peles ou dentes de animais, e nenhum fragmento de cerâmica. Quer a caminho de conclaves religiosos ou migrando na estação das frutas silvestres, os algonquinos sistematicamente davam a volta à ravina, mantendo uma distância de pelo menos cinco milhas de raio.
Os homens sentados pareciam de pedra.
— Também sabemos — Mario prosseguiu, virando mais uma página, — que os primeiros colonos, os separatistas ingleses, evitavam a área, embora isto seja provavelmente uma consequência do potencial de insalubridade do Ribeirão de Siloam na afluência com o pântano. Contudo, praticavam uma forma primitiva de mineração, dragando os leitos dos lagos vizinhos, à procura de depósitos de minério de ferro que eles derretiam em fornalhas a lenha construídas em terra. Talvez esses fogos, queimando na noite por ambição material, fossem o berço de muitas das lendas que posteriormente se originaram naquela região — lendas que normalmente tinham uma qualidade satânica ou cristã-demoníaca.
Ainda assim, nem uma centelha de emoção transpa-receu nos homens sentados. Mário pressentia um sutil cepticismo por trás de suas expressões gentis. Fazia sua pele arrepiar-se. A apresentação histórica estava concluída.
Cabia a Anita atualizá-los. Mário sentou-se, trocando olhares com ela, e Anita sorriu com confiança. Calmamente abriu sua pasta sobre a tribuna e debruçou-se ligeiramente.
— A igreja em si — ela começou, enquanto Mário estendia a mão para descer a persiana, virando-se depois para o estojo de slides. — A Igreja das Dores Eternas foi virtualmente abandonada pela arquidiocese de Boston.
Jamais foi reconsagrada. E este é um fato muito raro para uma área que possui uma população católica numerosa.
O primeiro slide foi projetado. Na sala em obscuridade, os homens obedientemente apertaram os olhos para a imagem: uma igrejinha pitoresca, com revestimento de madeira, e em estado de abandono, num cenário de inverno da Nova Inglaterra.
— A causa do abandono deve estar relacionada ao colapso nervoso, cerca de 1913, do primeiro padre paroquial — Anita explicou — Bernard K. Lovell.
Mário apertou um botão e surgiu uma fotografia em sépia, vagamente discernível, ampliada de uma fotografia de formatura do final do século. Os homens dentro da sala mexeram-se incomodados. Na tela branca, o olhar agudo de uma personalidade distorcida fitava-os com uma fixidez anormal, quase catatônica.
— Lovell foi declarado insano pelo Tribunal Municipal de Boston, depois de um julgamento que durou três dias sem que fosse apresentada defesa pela Igreja Católica — Anita prosseguiu. — Ainda não temos detalhes disponíveis dos arquivos da arquidiocese. Mas, segundo o folclore e a lenda, parece que o infeliz padre foi tomado pela mania de vestir cães e bodes e sentá-los nos bancos, como se fossem os paroquianos.
Anita observou os homens olharem para o slide de Lovell, e depois vagarosamente de volta para ela.
— Algumas versões dizem que ele desenterrava cadáveres do cemitério da igreja. E, do mesmo modo, os vestia como paroquianos.
O caso começava a esquentar. Depois da exposição monótona e extensa dos fundamentos históricos e geográficos, Mário achou que os homens se deixavam cativar pelo encanto persuasivo de Anita. Até mesmo o Deão Harvey Osborne, a nêmesis de Mário, o decano do corpo docente, sacudiu os ombros como que embaraçado pelo seu crescente interesse no assunto.
Mário apertou um botão. Uma cópia azulada de uma fotografia mal tirada apareceu, com setas brancas em superposição. Os homens estavam fascinados.
— Padre Lovell suicidou-se enquanto se encontrava encarcerado — Anita explicou. — Esta fotografia, tirada por um astrônomo amador, do alto do vale, duas semanas depois, foi apenas uma das quinze aparições de globos luminosos que ocorreram no ano seguinte.
Várias outras imagens se sucederam, algumas delas meros desenhos feitos por observadores febris, outras tiradas em chapas rachadas e pouco nítidas. Ainda assim, era óbvio que várias espécies de luzes pareciam pairar pelas paredes e pelo telhado da igreja.
— Os habitantes locais relataram vibrações dos alicerces estruturais da igreja e movimentos de sombras dentro da nave. Mas o ponto crucial é o seguinte — Anita disse, fazendo uma pausa dramática.
Fitou cada professor no fundo dos olhos, desafiando diretamente a incredulidade de cada um, no entanto sorrindo suavemente e sem rancor.
— As visões recomeçaram!
Funcionou. Os velhos, os jovens, os cépticos, e os sugestionáveis — cada membro do corpo docente estava fisgado.
— Alguma coisa existe por lá, senhores — Anita concluiu. — Alguma coisa que fez com que os habitantes de uma cidadezinha moribunda experimentassem sensações dentro e ao redor de uma igreja abandonada.
O Deão Osborne aproveitou o momento para bater o cachimbo no pé da poltrona e deslocar o fumo. Resíduos finos e enegrecidos de tabaco queimado caíram no chão. O encantamento partira-se. Aspirando vigorosamente, o Deão Osborne reacendeu o cachimbo.
Imediatamente, Anita mudou a voz para um tom positivo, fechando a pasta.
Chegara a hora das coisas objetivas. Rotineiras.
Científicas.
— Como cientistas do paranormal — ela disse com suavidade mas com insistência — é nosso dever desnudar o horror e o medo, a lenda e o folclore, e penetrar no que quer que seja que está lá. Nossa tarefa é rastrear sua existência pela medição ou, sem prejuízo, desprezar a documentação prévia e o próprio lugar como sendo nada mais que uma fraude.
O Deão Osborne bocejou ostensivamente. Contudo, os outros membros do corpo docente acharam sensata a mulher de negros cabelos. O Deão Osborne relaxou um pouco na poltrona. Mário escondeu um sorriso.
Anita virou-se diretamente para o Deão Osborne.
— Assim fazendo — ela disse — podemos dar nossa contribuição para um dos mais potentes e universais elementos da vida do homem sobre a terra: a crença no paranormal.
Mário desligou o projetor de slides, abriu as cortinas, e ficou de pé, fitando os homens que piscavam devido à súbita infusão de luz brilhante.
— Alguma pergunta? — ele indagou.
Mário aguardou um segundo, vários outros segundos, mas os membros do corpo docente permaneciam sentados como esculturas vivas no melancólico e úmido auditório.
Mário protegeu os olhos contra o fulgor do dia de setembro, para além dos retratos, da parede manchada, da garrafa de café pingando gotas escuras no papel-toalha.
— Alguma pergunta? — repetiu.
A palma da mão de Mário deixara uma mancha oval de suor na beira da tribuna. À distancia, numa sala de aula, um relógio soou fracamente.
Isto animou os homens, que agora tossiam e conversavam entre si, a se levantarem a um só tempo e se dirigirem para a porta. Anita ficou perto da mesa, atrás de Mário.
— O que está havendo? — ela cochichou.
— Não sei... eles parecem assombrados...
Mário os acompanhou, encurralando o Deão Osborne no corredor. No fim do corredor, pela porta aberta, o resto do corpo docente mergulhou na fornalha do dia; a luminosidade da atmosfera diminuiu lentamente, e a porta voltou a fechar-se. Quietude.
— E então? — Mário perguntou. — É sim ou não?
O Deão Osborne, num terno leve de risca, baixou o olhar várias polegadas para fitar Mário. Os dois rostos estavam banhados de suor. A poeira seca e cheia de energia e pólen flutuava pelo ar ao redor dos dois homens num miasma de calor sufocante.
Osborne viu Anita sair do auditório com os estojos de slides embaixo do braço. Admirou seu corpo esbelto, o modo elegante de manter alta a cabeça e as longas pernas na saia de linho. Anita tinha a pose de uma ave distante, Osborne pensou, linda, audaz, e orgulhosa.
— Acho que conseguiu, Mário — ele disse. — Apostaria o meu mandato.
Mário sorriu.
— O orçamento? Tudo? Exatamente como foi apresentado?
— Bolas, não é mais do que o orçamento para o cafezinho do departamento de antropologia. Não pense que é o Prêmio Nobel.
O sorriso de Mário transformou-se em velado desafio.
Os olhos negros cintilaram.
— Tudo a seu tempo, Deão Osborne.
— Vou lhe dar um conselho, Mário.
Agora, tudo que restava na expressão de Mário era uma suspeita áspera e patente. Sentiu a mão tranquilizadora de Anita tocar-lhe o cotovelo.
— Pois não, senhor?
— O orçamento interdisciplinar para essas classes experimentais vai secar. Eu diria que no período da primavera.
— Obrigado pela dica.
— Mário, como vai financiar essas... hum... expedições?
— Vendendo heroína para os calouros.
Contra sua vontade, o Deão Osborne franziu o sobrolho.
A custo manteve a calma.
— Una-se a um departamento, Mário — aconselhou.
— Por quê?
— Porque vai haver um corte drástico em todos os orçamentos. E qualquer projeto sem um patrocínio importante corre o risco de ser eliminado.
— Vou sobreviver.
— Não, não vai, Mário. Não importa o departamento — zoologia, psicologia, ou o que for. Ponha-se sob a proteção de alguém antes do período da primavera.
Os dedos de Mário brincavam nervosamente com a aba da pasta, desmentindo seu sorriso cínico. O olhar calmo e penetrante do Deão Osborne o deixava perturbado.
Anita deu um passo à frente.
— De quem foi essa decisão? — perguntou.
Sua voz soou fria, objetiva, vagamente suave, o tipo de voz que parecia ser o eco das escolas particulares para moças, da sociedade estabelecida, da família que exerce influência quando necessário.
— Do Conselho — o Deão Osborne informou, modu-lando a voz para um tom de respeito. — Nada tive a ver com isso.
— Decerto que não — Mário comentou irritado.
— Olhe, Mário. Harvard é uma sociedade de um bilhão de dólares. O dinheiro anda curto agora. A opinião é a de que não deve haver incompetência. E classes experimentais e laboratórios como o seu não são eficientes. Assim, aceite o meu conselho e integre-se a um dos grandes departamentos.
— Não vou renunciar à minha independência — Mário disse de imediato.
— Explique a ele, Anita — o Deão Osborne pediu, frustrado. — É para o seu próprio bem e para o bem dele.
O Deão Osborne afastou-se. A porta da frente o recebeu, e uma luz amarelo-esbranquiçada espraiou-se pelo corredor.
Mário e Anita foram deixados sozinhos.
Violentamente, Mário arrancou do pescoço a gravata, enquanto atravessavam o pátio.
— Se eu lhes apresentasse Jesus Cristo — ele gritou, Ecce Homo em pessoa... Ele não estaria à altura do currículo...
Vários estudantes, empurrados para o gramado pelo passo furioso de Mário, olharam para trás. Anita teve que dobrar suas passadas para poder acompanhá-lo.
— Eles estão mortos — ele disse. — Aqui, entre as orelhas. Não podem ver... não podem acreditar!...
Mário chutou um pedregulho do caminho. Que deslizou para perto de uma lata de lixo. Um gato pulou da lixeira e foi se proteger numa escada de incêndio.
— Mário... conseguimos a concessão — Anita disse, de modo tão conciliador quanto conseguia.
— É... as últimas migalhas antes que fechem a porta da loja no nosso nariz!
Mário continuou andando, mais devagar agora, desconsolado, na direção do Charles River. Um leve cheiro de creolina, gasolina e mato permeava o ar. Uma fina poeira amarelada, trazida do norte, envolvia os dormitórios dos estudantes.
Às suas costas, a universidade era uma presença quase palpável, uma pressão física de edifícios de pedra e história morta. Mário olhou adiante, para a luminosidade do rio.
Botes passavam deslizando no reflexo do calor do meio-dia.
Era toda a diferença entre liberdade e escravidão — no entanto, ele precisava de Harvard.
Anita colocou a mão esguia no bolso dele, respeitando seu silêncio, quando juntos atravessaram a Ponte Anderson.
Mário destrancou a porta branca e ligeiramente empenada do apartamento. A cama, com lençóis limpos, estava por fazer; as portas dos dois armários estavam abertas. Um deles estava cheio de camisas de trabalho, calças jeans e botinas. Os vestidos de Anita, mais caros, e os costumes de tweed, abarrotavam o outro. A janela estava aberta, e ao lado dela ficava uma gravura de Matisse, que pertencia a Anita, a obra favorita dela dos dias do impressionismo, mas incompreensível para Mário.
Dos baixos telhados da fábrica, bem a oeste, vinha a fragrância tentadora de flores silvestres e do rio além de Cambridge.
Nas prateleiras embuchadas nas paredes, imaculadas e arrumadas com precisão, estavam centenas de dossiês de investigações de campo, livros de referência, históricos de casos, e volumes encadernados de jornais da Universidade de Utrecht, do Instituto Rhine na Universidade de Duke, do Instituto de Pesquisa de Stanford, e do Instituto de Frankfurt.
Anita acomodou-se na cama e Mário lhe trouxe uma cerveja gelada do refrigerador.
— O furgão já está carregado? — ela perguntou.
Ele balançou a cabeça em confirmação, e foi sentar-se perto da janela aberta, para calçar os pesados sapatos de campanha.
— A fiação toda? — ela perguntou. — Os sensores e as sondas?
— Tudo lá.
Mário enfiou-se na enxovalhada jaqueta de couro marrom. Apesar do calor, ela o deixava relaxado. Era virtualmente o seu alter ego. Dias de barricada, noites em terreno desconhecido, e suas primeiras tardes com Anita, há sete anos; agora, o forro de pele de carneiro estava se desprendendo em volta do colarinho, mas a jaqueta continuava sendo uma possessão preciosa.
Mário descontraiu-se e pousou os pés no peitoril da janela.
— Então, troque de roupa — ele disse, tomando a cerveja. — Quero chegar lá antes do anoitecer.
Observou as caixas de anotações e correspondência, mapas referenciais cuidadosamente dobrados, gráficos de estatísticas, e catálogos de firmas eletrônicas, tudo arrumado embaixo da toalha quadriculada de vermelho da mesa da cozinha.
Sobre sua escrivaninha ficava uma longa prateleira com suas próprias investigações de campo. Bacia de Tide-water, Virginia: luminosidades relatadas por favelados analfabetos, descendentes de escravos fugidos. Um período de cinco meses com fotografias, entrevistas, sondas de temperatura enterradas nas dunas de areia e nos baixios de juncos e de pântanos. Resultado: duas incidências de vagalhões incandescentes além do horizonte leste do mar, com uma vaga correlação com as marés irregulares do outono. Nada mais. Exceto um caso grave de febre-do-pântano que ainda lhe causava anemia.
Atlanta, Georgia: um cheiro pútrido no terminal de uma ferrovia abandonada. Vários velhos já haviam desaparecido e os outros murmuravam incoerentemente sobre uma "coisa" que saía das tábuas do galpão de controle em ruínas.
Pesquisas revelaram que tinha havido um matadouro no terreno, agora coberto por trilhos cheios de ervas daninhas.
Três meses de vigília noturna ininterrupta com câmeras infravermelhas e gravadores de som ultra-sensíveis; de escavar gatos, aranhas e lixo pesado embaixo do galpão de controle, e tudo o que conseguira era uma leve correlação entre o aumento do odor e alguma estática conseguida nos microfones de som. Isso, e abundante perseguição da polícia. O resultado líquido se resumira a um único artigo na Parapsicologia Moderna.
Havia dúzias de outras investigações de campo, cada uma em sua pasta separada. Relâmpagos globulares, imunidade de impassíveis encantadores de serpentes durante o serviço evangélico em Appalachia, uma comparação de PES(1) entre executivos da IBM e roqueiros italianos desempregados. Estudo de probabilidades. Um esboço paradigmático do problema do observador experimental. Uma contestação da teoria de onda-partícula como explicação para a transferência onírica. Notas com vistas a um estudo da religião organizada como monopólio de sugestionamento. Todos becos-sem-saída.
— O que está corroendo você — Anita perguntou, interrompendo seus pensamentos — além de Osborne?
Mário tirou uma carta dobrada do bolso e a entregou a Anita.
— O que é?
— Leia.
Enquanto ela lia, Mário foi ao refrigerador de onde trouxe mais duas cervejas e as abriu. Anita leu a carta com a sensação de desastre iminente.
— Chegou hoje de manhã — ele explicou. — Não quis mostrar-lhe antes da apresentação.
Anita balançou a cabeça, incrédula.
— Isto é inacreditável — ela comentou mansamente. — Herbert Broudermann é o homem mais importante da Costa Oeste.
— Foi. Acabaram de tirar o laboratório dele.
Anita releu a carta. A letra era minúscula, atravancada e invadia a margem do papel, um alerta irônico, mas desesperado, de um colega distante.
A carta terminava com várias piadinhas fracas, mas o pesar era evidente em cada linha.
(1) Percepção Extra-sensorial.
Mário deixou-se cair pesadamente na poltrona ao lado da janela. Limpou os resquícios de cerveja do lábio superior.
— Em abril, foi a vez de Charles Simpson — Anita disse em tom sério.
— Em Tulane.
— E, em janeiro, foram Jessup e Weinstein na Universidade de Chicago.
— Contrato recusado. Foi um choque e tanto.
— Mário — o que está acontecendo?
— Não sei... simplesmente não sei... algum tipo de caça às bruxas...
Da cozinha, apareceu a gata de Anita, uma fêmea amarela cujo nome era Dr. Lao, que pulou para a escrivaninha e deslizou ao redor de um modelo em açúcar e areia de Cataratas do Gólgota.
— E hoje, isto — Mário confessou. — Quero dizer, o deão... me atingiu como uma bomba. Anita, poderíamos perder todo o laboratório!
— Besteira. Minha mãe conhece o presidente do departamento de antropologia. São parceiros de tênis.
— Ótimo. Vamos instalar nosso laboratório na quadra de tênis de sua mãe.
— Acredite, Mário. Não perdemos coisa alguma.
Mário acendeu um cigarro. Dr. Lao saltou para o colo dele. Alisou as orelhas da gata enquanto contemplava as violentas cascatas de poeira levantando-se ao norte.
— Inferno — Anita comentou. — Talvez haja mais nisso do que política universitária.
— É o novo materialismo. Agora, somos párias.
Mário virou-se na poltrona e, enquanto Anita calçava seus sapatos de trabalho, os olhos dele examinaram a maquete de Cataratas do Gólgota. Com quase um metro de diâmetro, firmava-se sobre uma base de gesso, e minúsculos blocos de madeira, no meio de pequenos ramos, simulavam o edifício em ruínas da igreja às margens do Ribeirão de Siloam, a Igreja das Dores Eternas.
O laboratório pertencia a Anita. Originalmente, haviam lhe dado espaço no departamento de psicologia do comportamento. À proporção que suas pesquisas se afastavam da psicologia do comportamento e se acercavam dos sistemas de credo, para depois mergulharem na receptividade da PES e outras formas de sugestão, ela conseguira convencer o Deão Osborne a dar-lhe um lugar próximo ao departamento de física, de modo que pudesse fazer uso de computadores mais sofisticados no campo da estatística. Ali conhecera Mário Gilbert.
Agressivo, desagradável, deliberadamente grosseiro quando bem entendia, ele fora levado para as ciências por algum demônio particular.
A energia, a determinação do jovem, eram extraordinárias. Era como se tivesse a intenção de pôr tudo a nu, deixando no processo um rastro de destruição, tentando encontrar o que era que animava o universo. Sua genialidade no campo da eletrônica se encaixava com precisão ao estudo do subliminar mais cauteloso de Anita. Mário tornou-se seu assistente técnico e em pouco tempo o laboratório era tanto dele quanto dela. Noite após noite, ele ficava até mais tarde, recalculando, concebendo novas experiências, lendo as publicações profissionais. Se ele precisava desesperadamente destruir sua crença intuitiva no paranormal, Anita não o sabia. Ultimamente, indagava-se se o próprio Mário o saberia.
Primeiro, Mário a deixou embaraçada, ao desmoralizar quinze médiuns, arranjando assim cinco ações judiciais contra a universidade. Sem se deixar abater, desmascarou dois telepatas charlatães de Albany, e um conhecido entortador de metais que estava fazendo exibições em Manhattan. Em seguida, atacou as reivindicações de um abastado guru de Bombaim, atraindo para o laboratório de Anita a fúria de uma influente comunidade religiosa com sede em Boston.
Os contatos de Anita protegeram o laboratório. Os professores admiravam-na tanto quanto universalmente detestavam Mário. Este, no entanto, deixava-se magoar secretamente por seus desgastantes contatos tanto com professores como com charlatães. Desdenhava a necessidade injustificada de crer, e, da mesma maneira feroz, ridicularizava a obstinada recusa de se aceitar a prova quantificada dos fenômenos paranormais.
Devotou-se ao desenvolvimento de sensores eletro-nicos.
Os estudos sobre PES proliferavam quando Mário achou como utilizar a maciça capacidade do computador de física para analise de probabilidades. Também achou meios de adaptar a mais recente microtecnologia das escolas médicas para auxiliar nas medições do cérebro durante estados alterados de consciência. Uma força extraordinária o impelia para componentes, transistores e lentes, como se as ferramentas inanimadas pudessem gerar alguma espécie de transfiguração pessoal.
Provavelmente Anita já sabia, lá pela segunda semana, que se tornariam amantes. Provavelmente Mário o soube desde o princípio. Mas postergaram, moveram-se devagar, com cautela, na direção do compromisso físico, cada um adivinhando que, no outro, encontrara o seu igual.
Anita entregou-se no apartamento de Mário, submetendo-se como o cipreste se curva à cheia indomável do rio, submersa, vencida, mas não quebrada. A experiência a transformou. Pois havia uma violência, uma selvageria mesmo, na masculinidade de Mário, que a deixava chocada, para depois dar lugar a um aspecto reprimido, inteiramente diferente, de sua personalidade.
Sua sensualidade desabrochou. Isto, às vezes, a perturbava. A crueza de Mário frequentemente a perturbava. Em seus braços, porém, ela mergulhava fundo num oceano onde os dois submergiam em êxtase.
Mário, contudo, estava mudado. Aproximava-se dos quarenta anos.
As promessas de seu inegável talento começavam a murchar. As investigações de campo foram virtualmente estéreis. Sua falta de boas-maneiras haviam-no alienado de todos os que poderiam tê-lo ajudado a promover sua carreira. E, agora, universidades pelo país todo começavam a fechar o cerco sobre a própria parapsicologia. Para Mário, o tempo começava a esgotar-se. Ficava cada vez mais tenso, amargo, pouco estável.
Para o bem da auto-estima de Mário, Anita desejava desesperadamente que alcançassem algum sucesso tangível em Cataratas do Gólgota.
Mário pôs-se de pé e fechou a janela. A gata pulou para o chão.
Gritos infantis, a distancia, desapareceram.
— Bill e Didi prometeram cuidar da gata — Anita disse.
— Ela é esperta. Não se preocupe com ela.
Mário apanhou uma sacola de lona contendo filmes, lentes sobressalentes, e medidores de luz. Algo no apartamento pareceu-lhe esquisito, mas não saberia dizer o quê. Ele a fitou, e ela o achou nervoso.
Havia sempre ansiedade antes de um projeto.
Vamos embora — disse ele, forçando um sorriso.
Do lado de fora, o Volkswagen branco reluzia ao calor do meio-dia.
Mário havia reformado o interior do furgão fechado.
Estava agora equipado com prateleiras, correias e pequenas caixas de metal embutidas.
Os sensores eletrônicos estavam cuidadosamente alinhados dentro das caixas acolchoadas segundo o tamanho, e três sondas de temperatura estavam igualmente acondicionadas em caixas forradas de feltro, encostadas à parede. Microfones sônicos supersensíveis embalados em pesados caixotes de madeira. Nas prateleiras, havia rolos de fio vermelho, fita isolante preta, e uma caixa de ferramentas serrilhadas, inclusive material de solda, alicates de ponta fina, decapadores de fio, e um sortimento desordenado de parafusos, moldes, colas e pequenos cristais. Mário havia confeccionado dois pequenos computadores com peças da Marinha compradas por intermédio das ligações de Harvard com o MIT Massachusetts lnstitute of Technology), que ficaram acondicionados, com sobressalentes para o minúsculo circuito solid-state, em caixotes com reforços especiais, forrados com lençóis dobrados, atrás dos sacos de dormir.
Ao lado dos sacos de dormir estava uma longa sacola de lona com roupas limpas, e capas-de-chuva amarelas e botas de borracha estavam penduradas nos ganchos. Um lampião Coleman estava pregado a uma prateleira protuberante de madeira. Um aquecedor a gás de butano foi colocado atrás do banco de passageiros. Diversos utensílios para as refeições, cantís, e alimentos para emergências, encontravam-se ordeiramente arrumados sob a longa sacola de lona.
Anita conferiu os itens, um a um, em três folhas presas a uma prancheta.
Pequenas bobinas, contendo resmas de papel gráfico, penas de caneta, e tinta preta de sobra, estavam arrumados sob um diminuto extintor de incêndio atrás do assento do motorista. Um tripé de máquina fotográfica estava preso por correias, longitudinalmente, na ponta onde a lateral se curvava para formar o teto. Numa prateleira sob o pneu traseiro ficaram diários, pranchetas, e alguns livros de referência sobre áreas semelhantes.
Uma dúzia de cartelas de pilhas e um sólido gerador verde, muito atacado de ferrugem e cheirando a gasolina, ocupava o espaço a ré. Estava coberto por um cobertor do Exército. E atrás dele, enrolada em muitas toalhas e lona resistente, havia uma câmera de termovisão com tela de vídeo, acondicionada nas sombras do furgão fechado.
Ao lado dos sacos de dormir, Mário havia colocado uma caixa inteira de vinho italiano branco, seco. Duas grandes almofadas ocupavam o espaço atrás do banco da frente, e, mesmo com um carregamento completo de equipamento, havia espaço suficiente para que ambos os sacos de dormir fossem abertos completamente sobre um pequeno mas espesso tapete que cobria todo o comprimento do furgão.
Anita encontrou o porta-luvas na frente do carro completamente equipado com canivetes, pilhas pequenas, luvas de trabalho, fluido de isqueiro, e mapas da área de Cataratas do Gólgota feitos pela municipalidade e por agrimensores. Sob a carroceria do furgão, presos por cabos resistentes e atarrachados ao chapeamento, estavam pás de cabo longo, de diferentes tipos, e um mastro polivalente para sensores-sondas que seriam usados nas áreas estreitas demais para a mão humana. Corda, arame, e uma machadinha estavam pendurados na porta ao lado do motorista. Escondido no compartimento de mapas, um revólver negro, sem licença de porte.
— Está tudo aqui — ela disse, finalmente. — Menos os meus óculos escuros.
— No pára-sol.
— Ora!
Mário fechou as portas do furgão e veio sentar-se ao lado dela no banco da frente. O estofamento de vinil estava quente e pegajoso, e o sol brilhava vítreo na estrada.
Mário ligou o motor. Levantou os olhos para a estrada e deu partida. O Volkswagen não tinha potência e a carga pesada que carregava fê-lo moroso. Enquanto dirigia, estava atento a qualquer coisa que deslizasse solta às suas costas, mas tudo estava muito bem peado. Tudo o que ouvia era o suave murmúrio da água e da gasolina extra em dois tanques separados embaixo do banco dianteiro.
A fim de tomar a direção norte, o furgão tinha que cruzar a Ponte Anderson e passar pela universidade. Anita contemplou o maciço de tijolos vermelhos e as sufocantes trepadeiras de hera e, além do vetusto pátio, os edifícios mais modernos de aço e vidro. Era como uma fortaleza no centro de uma cidade medieval.
— Mário — ela disse docemente, os olhos se fechando ao calor do sol.
— O quê?
— Esse lugar... Cataratas do Gólgota... podemos não encontrar coisa alguma.
O queixo de Mário contraiu-se, mas ele permaneceu em silêncio; apenas sacudiu os ombros em fingida indiferença.
Os olhos dela se abriram, os profundos olhos negros que contrastavam tão surpreendentemente com o fascinante rosto pálido e anguloso.
— Pode se tratar de documentação sobre fatos equivocados — ela comentou.
— Pressão das estruturas e vento, que os fazendeiros traduzem por fantasmas. Vultos entre as sepulturas que podem não passar de coelhos saltando ao luar.
Mário sorriu enquanto o veículo atravessava o limite norte do campus para entrar nas ruas poeirentas e pobres do norte de Cambridge. Seu otimismo — ou seria sua necessidade? — suplantavam suas preocupações. Pegou e colocou os óculos escuros.
— Pode ser, amor — ele disse com entusiasmo. — Não seria a primeira vez.
— Não — ela respondeu. — Eis a questão. Não seria.
Embora Mário parecesse descontraído, sua mente fervilhava. O que, de fato, esperava encontrar desta vez?
Considerou os vários lugares na América do Norte e na Europa onde áreas, usualmente abandonadas, pouco desvendaram em termos de achados paranormais. Ocasio-nalmente, luminescências azuis eram reportadas, como em Cataratas do Gólgota. Com bastante frequência, alterações mínimas de estado inerte — objetos imóveis que se moviam, objetos em movimento que mergulhavam — Foram relatados.
Quase sempre, os habitantes nativos, quer fossem americanos, irlandeses ou iugoslavos, incorporavam essas aberrações às suas mitologias.
Somando-se a tais pequenas manifestações físicas, frequentemente se reportava uma certa "atmosfera psíquica" ou sugestionabilidade que permanecia ativa em algumas áreas. Era isto que Mário esperava documentar e correlacionar. Cataratas do Gólgota dependeria em certa escala dos que viviam por perto, suas anormalidades, suas obsessões, pois tais emoções é que levavam às manifestações físicas.
De fato, várias teorias se baseavam na presunção de que pessoas altamente carregadas, levadas a cometer homicídio, incesto, ou suicídio, poderiam projetar suficiente energia psíquica para dar início a manifestações paranormais que sobreviviam ao próprio indivíduo que agira como catalisador.
Mário trocou para a marcha mais rápida e ultrapassou um caminhão carregado com canos longos e escuros.
Inclinou-se para Anita e berrou acima do rugido do Volkswagen ofegante pela rodovia aberta.
— Resultados negativos — ele gritou. — Valem tanto quanto resultados positivos.
— Se pudéssemos... ao menos uma vez.., pôr as mãos em alguma coisa — alguma coisa tangível. Tangível demais para ser desprezada por eles! — Mário apertou-lhe o joelho carinhosamente.
— Na época do Natal teremos um fantasma sobre a mesa de Osborne — ele riu, mas em seu íntimo o horror do fracasso assaltava sua vacilante confiança. Esta vez seria decisiva, ele sabia. Não haveria moratória. Desta vez era, verdadeiramente, publicar ou perecer.
A estrada parecia passar voando. Anita ficou sonolenta e acomodou-se, braços cruzados, fechando os olhos. De vez em quando ele a fitava enquanto dirigia. Ela o tornara um homem complexo. O refinamento inato dela, o brilhantismo inexplicável e abrupto de suas pesquisas — tudo isso o transformara. Outrora marxista estridente nas barricadas, ele era agora complicado, quase complicado demais, como se a personalidade mais socializada dela tivesse invadido a sua própria personalidade, e nem mesmo toda a sua rude defensiva conseguiria jamais expulsá-la.
Os montes pareciam se contorcer, e, de vez em quando, os telhados de pequenas fábricas se tornavam visíveis entre grupos de árvores. Mário sorriu para Anita, adormecida, graciosamente recostada em seu ombro.
O calor era intenso e gotículas de suor brilhavam na testa dela, sob o lenço indiano que mantinha os sedosos cabelos negros no lugar. Ela acordou de sopetão.
— O que há de errado com o campo? — ela perguntou. — Parece morto.
— É o calor do verão. Literalmente, a seca.
Anita umedeceu um lenço de papel com água do cantil de Mário e passou pelo rosto, pescoço e colo. Jogou o papel usado num saco pendurado ao painel do carro. Reclinou-se contra o estofamento quente.
— A que distancia estamos de Cataratas do Gólgota? — ela indagou.
— Uma hora, mais ou menos.
Ela contemplou as fazendas cinzentas, batidas pelo tempo, se sucederem, bem como cercas que deveriam mostrar-se bonitas no princípio da primavera ou do outono, mas que agora pareciam devastadas por uma desidratação reumática. Vários cavalos baios galoparam magnificamente pelo pasto alto e desapareceram no vale arborizado.
Anita esfregou os olhos e tomou mais um gole de água.
— Meu Deus, tive um sonho terrível — ela estremeceu.
— Como foi?
— Eu estava me arrastando nas fissuras do fundo rochoso da igreja de Cataratas do Gólgota — ela contou. — Estavam cheias de larvas vermelhas e de cabelo. Foi repugnante.
Mário olhou à frente para as curvas secas da estrada de asfalto. Pequenos roedores atravessavam-na saltitantes indo esconder-se no mato alto.
— Você tem sonhos assim? — Anita perguntou. — Imagens que são horríveis?
— Tenho, droga. Piores.
Anita virou-se no assento, desatou o cinto de segurança e botou-se de joelhos para procurar alguma coisa no interior do furgão. Finalmente, encontrou dois copos de plástico e uma garrafa de vinho branco. Cheio de admiração, Mário deu-lhe uma palmadinha no traseiro antes que ela se sentasse novamente.
— Era como se a Igreja das Dores Eternas... estivesse tentando me agarrar — ela explicou, enquanto abria a garrafa à custa de muito esforço. — Como uma mensagem. A sensação era essa.
Entregou a Mário um copo de vinho, que ele bebeu olhando para o acostamento. Estendeu o copo pedindo mais.
Anita trouxe a garrafa para perto do copo e tornou a enchê-lo pela metade.
— Você sabe como é — Mário disse. — É a sua própria natureza sexual. Sua consciência está soando o alarme de que...
— Pare com isso.
— É verdade. Com os antecedentes familiares que você tem...
— Não sigo a linha freudiana.
Mário sorriu e bebeu todo o vinho. Com um ligeiro balançar da cabeça, recusou mais. Anita descansou a garrafa no chão quente de vinil e recolocou a rolha.
Saíram da planície costeira e entraram no interior de Massachusetts.
Vales sutis erguiam-se vagarosos para os Berkshires a oeste. Era como se um forcado cego houvesse outrora sido arrastado pelo solo pedregoso, deixando regos rasos e estéreis.
Anita consultou o mapa sobre os seus joelhos. As cidades para as quais se dirigiam tinham nomes tais como Kidron, Sião, Cataratas do Gólgota, Nova Jerusalém, e Dowsan's Repentance. Pontes cruzavam o Ribeirão de Siloam numa afluência chamada até hoje de Travessia do Sinai. Com o calor do sol poente irrompendo pelo quebra-vento, Anita observou as fazendas tristonhas e queimadas de sol passarem numa névoa de mormaço amarelo-enxofre, campos violentamente retorcidos.
Ninguém trabalhava nos campos. Não havia cavalos nem gado à sombra das árvores.
— O povo desta região veio a aceitar a Bíblia em seu sentido mais literal — Mário comentou. — E estes são os seus monumentos. Detritos e celeiros quebrados.
— O que há de errado nisso? — Anita argumentou. — Não era Belém apenas uma aldeia suja e pobre num país desolado?
— Não há nada de errado. Caso não se importem de viver de ilusão.
Uma pilha de pedras quebradas e uma manivela enferrujada marcavam o poço que já fora o centro de Kidron.
Mário parou o furgão. As tábuas batidas pelo tempo, de uma barreira próxima, estavam num estado de ruína tão completo que mais pareciam uma greda e a erva daninha crescia em densa profusão.
Mário tirou várias fotografias com sua Leica de 35mm. O calor estava insuportável. Nada se mexia, exceto ondulações de calor que subiam.
A paisagem era messiânica. Em estado selvagem, a área havia sido colonizada por pessoas que buscavam a Cristo, pacientes e fanáticos, mas o milênio jamais chegara.
— A paisagem mais desolada que já vi — Mário murmurou.
O furgão começou a subir a última encosta e o asfalto cedeu lugar a alguns trechos de terra fina em pó. Os pneus perderam a tração. Mário ficou tenso. Os Pirellis de radiais de aço guincharam, o furgão dançou, e a mão de Anita pousou mansamente em seu braço.
— Tudo bem, tudo bem — Mário disse. — Não vamos atolar.
Mas o furgão deslizou para o lado e só então a tração pegou. Mário guiou pela estrada oblíqua que subia a ladeira, um pouco pelo contraforte e um pouco campo adentro.
Anita levantou o vidro, mas a poeira rosada e sufocante se filtrava para dentro, suspensa nos reflexos do sol no painel.
Repentinamente, o furgão entrou na sombra profunda de um bosque de vidoeiros. As cascas brancas e sara-pintadas das árvores se destacavam nas profundezas negras como a noite dos bosques. Havia lagartas penduradas em fios de seda que se enrolavam, e à proporção em que o furgão se adiantava, os corpos verde-claros vinham se espatifar contra o vidro, deixando-o todo lambuzado.
— Céus — Mário praguejou — não consigo enxergar nada.
Os esguichos do vidro estavam entupidos com arcos de lagartas amassadas que se contorciam.
O Volkswagen estremeceu saindo do bosque. Mário parou. Anita saiu com uma garrafa térmica de água e papel-toalha. Tudo estava quieto.
Era o crepúsculo. Nuvens rubras-cobriam o oeste e um fulgor âmbar parecia levantar-se dos campos e dos espinhaços. O grito lamentoso de uma coruja ecoou pela escuridão do vale, abaixo de onde estavam.
Uma névoa roxo-marrom fazia ondas sobre os escuros meandros do Siloam.
A noite descia sobre as choças arruinadas, e da ravina rochosa e lamacenta, através da fumaça, erguia-se o campanário destruído da Igreja das Dores Eternas, à luz da estrela vespertina.
Mário desceu do carro e contemplou o vale, mas à exceção do campanário, o vapor a tudo obscurecia.
Desconsolado, nervoso, ele andava pela borda do penhasco, esquadrinhando de binóculos, mas nada viu além de silhuetas em ruínas.
No fundo da ravina, onde deveriam estar as luzes da cidade, nada havia senão um oval de escuridão ainda mais densa. O cheiro de água suja chegou ao Volkswagen. As trevas eram assustadoras. Através dos galhos partidos à sua frente, Mário conseguiu vislumbrar as frias estrelas.
Mas, para além dos campos secos, onde começava a refrescar, nem a mais vaga forma retilínea, que pudesse sugerir uma rua, um prédio, ou mesmo uma rocha, estava à vista. Absolutamente nada havia visível.
Anita aproximou-se — Bem-vinda a Cataratas do Gólgota — ele murmurou.
CAPÍTULO DOIS
CATARATAS DO GÓLGOTA, de manhã, fervia com a névoa branca aquecida que subia da argila e se espalhava pelos campos dourados.
Anita ferveu água para o café no fogão portátil, enquanto Mário foi, mais uma vez, até a última fileira de árvores e baixou o olhar para o fundo do vale miasmático.
A igreja, à direita, assentava-se sobre uma ravina cinzenta, e por trás dela o Siloam corria brilhante e agitado; à esquerda, onde o ribeirão se transformava num pântano lodoso e infestado de arbustos, ficavam as ruínas da cidade.
E, entre uma e outra, havia quase um acre de moitas de espinhos ressequidos e terreno irregular. Não era fácil fugir à impressão de que a cidade se esgueirara da igreja e desaparecera ao fazê-lo.
Anita chegou devagar, carregando duas canecas transbordantes de café.
— Obrigado, querida — ele disse, com um beijo.
— Você também não conseguiu dormir, não é?
— Tive os mesmos sonhos que você. Rochas fendidas, cheias de sangue, ou lava, ou seja o que for.
— As lagartas continuaram caindo sobre o teto. Eu as ouvi se arrastando em ziguezague.
Mário devolveu-lhe a caneca e levantou os binóculos. As tábuas de revestimento da igreja pareciam estranhamente brancas atrás do nevoeiro. As janelas góticas já não tinham seus vitrais, negras formas no brilho tépido. Além do portão ornamental todo arruinado, Mário vislumbrou o Siloam subindo e descendo, como se respirasse.
Mais próximas aos bosques de vidoeiros, quase perdidas no mato dourado, avistavam-se doze lápides inclinadas na direção da ravina.
Algumas delas possuíam cruzes, mas estavam todas profundamente deformadas por fungos e líquen escuro.
Como um psiquiatra que, a fim de se manter objetivo, necessita descobrir precisamente por que um paciente é desagradável, Anita estudou a área à sua frente. Quanto mais olhava, menos gostava do que via.
Partindo dos vidoeiros, uma estradinha vermelha e suja descrevia um largo círculo que passava pelo cemitério e ia dar na cidade de Cataratas do Gólgota.
Ainda não fazia muito calor, mas a atmosfera carregava uma qualidade úmida e saturante que lhes sugava a energia.
Nas sombras dos edifícios arruinados, os cães se movimentavam como água subterrânea, com um movimento de cabeça indolente e mecânico, como de bonecas.
As sombras das fachadas das lojas curvavam-se para baixo, a tabuleta de um armazém tocava obliquamente as esfarrapadas tábuas de revestimento. Por todo canto, a cidade parecia estriada de ângulos conflitantes de sombra negra contra a manhã ensolarada, de madeira luzindo e ar branco como leite.
Fora da rua principal, na Rua Canaan, viram casas ao estilo da primeira fase vitoriana, muitas delas com jornais tapando janelas quebradas.
A cidade estava quieta, quieta demais, e as glórias da manha tinham a fixidez enervante de cães cuja vitalidade estava esgotada.
— Não parece um lugar muito saudável, não acha? Mário comentou.
— Parece terminal!
A Rua Canaan levava a um campo que se interpunha entre Cataratas do Gólgota e a igreja católica. Mário estacionou o furgão onde a estrada desaparecia entre arbustos altos e espinheiros.
Ao saírem, a força total do ar úmido e acre os atingiu.
Era evidente, pelo campanário que ainda se erguia na ravina em frente, que a igreja ainda dominava a cidade.
Cruzaram até a beira do Ribeirão Siloam, entre a ravina e a cidade. Ali, a água retrocedera fazendo-se lama, num denso, cinzento e ofegante pântano.
Os insetos de verão, em enxames cerrados saindo da área da igreja, cobriam os chorões enlameados e brilhantes.
O calor agora aumentava. E soprou saindo do pântano, até que os espinheiros e galhos retorcidos tremulas-sem nas ondas quentes.
Mário tirou a camisa. Os músculos sutis se alternaram pelos braços, ombros e o pescoço forte quando ele enxugou o suor do rosto. Mário possuía uma presença física que ninguém conseguia ignorar. Seus alunos chamavam-no "Sr. Cambridge".
— Assustador, não é? — ele comentou. — Dizer que um ateu como eu tem a sua carteira profissional dependendo de uma igreja católica do século passado!
A porta da igreja era de madeira, cortada em formas góticas. A pintura estava toda descascada pela ação do sol, deixando à mostra as tábuas de carvalho.
— Você acha que ela continua consagrada? — Anita perguntou, ao se aproximarem.
Mário sacudiu a cabeça.
— Igreja que sofre violação — e esta sem dúvida sofreu — perde a presença de Cristo. — Virou-se para Anita com um largo sorriso. — Bem, eu já fui católico...
Inspecionou a porta, calculando sua provável resistência, e então, repentina e violentamente, deu uma pancada estrondosa com o salto de sua bota contra ela. A porta girou nos gonzos e revelou um interior negro, com ar encanado.
— ... e agora sei o que me espera — ele comentou, seu sorriso menos cínico.
Dentro, levaram alguns segundos até a visão ajustar-se.
Quando conseguiram enxergar, notaram um amontoado de bancos quebrados sobre um chão de madeira de lei ativamente frequentado pelas aranhas, e farrapos de cortina pendurados onde deveria estar o altar.
— Meu Deus, como fede — Anita resmungou.
— Acho que todos os animais da região pararam por aqui para apresentar seus respeitos.
Mário tornou a vestir a camisa ao sentir a friagem úmida.
Agora que estava aberta, a porta da igreja lançava uma forte mancha de luz em forma gótica que se arrastava até ao altar. No fundo da igreja estava o véu do santuário destroçado, assim como um ninho de ratos, feito de madeira e pano, e também castiçais de cobre amassados e jogados no chão. Mal se percebia tudo isso devido à obscuridade.
Não havia capelas laterais. Contra a parede oposta, e dando para o cemitério, havia um único confessionário. As cortinas negras haviam caído e agora acolhiam fiapos de palha e, surpreendentemente, o que restava de um sapato feminino de salto alto.
Os bancos também continham restos de roupa de mulher. Um pedaço de chapéu de veludo, de pluma e aba curva, um retalho de gola de pele, farrapos de renda amarelecida, algodão estampado todo sujo da chuva que caíra pelo telhado, jaziam agora em pilhas ou presos embaixo dos bancos caídos.
Mário apanhou um pedaço de espartilho antigo, os ilhoses ainda no lugar, laços esgarçados.
— Um pouco biruta, esse nosso padre celibatário — foi o comentário.
O púlpito, entalhado em madeira, e com uma pequena escada em espiral, ornamentado com cenas da Paixão, estava agora completamente cinzento. A umidade havia corroído a tinta, deixando apenas o casco tosco, enfermo e sem cor.
Um anjo de madeira, as asas ligeiramente levantadas, parecia fitá-los da coluna mais próxima da capela-mor. O gancho que o sustinha havia se soltado em parte, de modo que seu rosto parecia curvado em derrota.
O anjo estava da mesma forma, uniformemente cinzento, e pequenos insetos brancos rastejavam sobre a madeira seca.
O pano bordado a ouro onde estava desenhado IHS, o nome de Cristo, caíra do balcão do coro e, com as repetidas tempestades que varriam a igreja, se emaranhava aos genuflexórios apodrecidos e a pedaços de madeira decorativa ao estilo do renascimento gótico que haviam tombado do teto.
Atrás da capela-mor havia uma janela rósea. O vidro se espalhara em cacos pelo seu interior. Apenas uns poucos fragmentos afiados como laminas permaneciam presos aos caixilhos. Mário fitou o céu pela abertura da janela. No lugar de um vitral com a imagem de Cristo, viu um galho de árvore, retorcido e morto, contra a doentia névoa branca.
— Está vendo? — Mário disse, empurrando um monte de lixo com a bota. — Cristo não está presente.
— O que você quer dizer? — Anita perguntou.
E aproximou-se. Misturada aos panos marrons tomados de mofo e lascas de madeira, viu a corrente de cobre de uma lamparina.
Esta, em si, era pequena e achatada no fundo, como uma tigelinha. O vidro vermelho que deveria dar à lamparina o seu fulgor rubi estava em pedaços, restando dele apenas pedacinhos.
— Esta lamparina deveria estar no altar — Mário explicou. — Quando acesa, significa a presença de Cristo.
Anita virou-se para examinar o que restava dos doze quadros da Paixão pendurados nas paredes. Nove deles permaneciam milagrosamente no lugar, mas três haviam caído sobre os detritos do chão. Um pintor de pouca arte havia laboriosamente pintado uma série de cenas sem inspiração, e essas cenas agora estavam escuras e empenadas. Uma mancha oval que se ampliara, fazia do Homem das Dores um corcunda.
Ao se virar, deparou com Mário, que havia subido ao altar, sorrindo de braços estendidos, como num arremedo da Crucificação.
— Oh, Mário — ela riu. — Pare com isso.
Mário sorriu e revirou os olhos.
— Você não faz idéia — ele disse. — Não faz idéia alguma do que as freiras e os padres fazem com a gente na infância.
— Estou surpresa que você permitisse.
— Eles deixam a gente apavorada. Enchem a nossa cabeça com a idéia de culpa e empurram Deus e o diabo pela goela abaixo até a gente ter vontade de vomitar.
— Uma porção de gente parece aproveitar alguma coisa disso tudo.
Mário notou a hera morta que abrira caminho desde o cemitério para vir morrer na igreja.
— É, e também pagam uma fortuna desgraçada pelo privilégio. — disse.
Prendeu o pano do altar com um pé e com o outro testou a força do veludo infestado de fungos. O pano rasgou-se sem resistência.
— A Igreja Católica é a maior empresa privada proprietária de bens no mundo inteiro — ele disse, remexendo nos detritos a seus pés. — Sabe disso? Seus bens chegam aos bilhões. — Vários pedacinhos de cobre e mogno surgiram em suas mãos. Atirou-os na capela-mor.
— Possui barras de ouro, prata, aviões a jato, imóveis, tesouros artísticos, para não mencionar os privilégios diplomáticos dos quais abusa.
Uma pequena cabeça de gárgula, um rosto de madeira fazendo uma careta, apareceu entre as tábuas do assoalho.
Mário sorriu e depositou a cabeça sobre um banco torto. O rosto parecia infeliz, como que perplexo pelo que fosse que o tivesse atirado lá do alto do teto.
— E tudo baseado em crença — ele disse com tristeza. — O que significa credulidade.
A sacristia estava em ruínas. Um furo no teto permitira a entrada de gerações de água, fuligem e folhas mortas.
Pedaços de ornamentadas vestimentas amarelas haviam se tornado duras e escuras. Um hinário se convertera num montículo de matéria orgânica no meio de uma mancha úmida.
Anita arranhou a madeira ao longo dos caixilhos das janelas góticas com seu canivete. A madeira que ficava ao sul ensolarado estava quebradiça e caiu facilmente em flocos. Nas janelas do norte, a madeira estava fibrosa e úmida dos vapores do Siloam.
Degraus de madeira levavam ao campanário, mas os suportes haviam cedido e ervas daninhas invadiram as junturas.
Mário escavou a sujeira do rodapé e estudou a matéria cinza uniforme que unia o solo de argila às pedras de fundação.
— A igreja está em contato direto com o fundo rochoso — ele anunciou. — Qualquer coisa passando pela estradinha, mesmo um trator, causaria tremores que iriam até o campanário.
— E é isso o que o povo ouviu? — Anita perguntou.
— Temo que sim. Provavelmente, é só isso.
Desapontado, Mário caminhou pela passagem norte, medindo a igreja.
Era pequena, escura, com alguma coisa não-resolvida.
Mário sentiu uma espécie de ansiedade nos montes de detritos e artefatos religiosos.
Alguma coisa perturbada.
— O padre deve ter enlouquecido pouco a pouco — ele disse. — Talvez tenha levado anos. Lentamente.
Sobre o confessionário havia um pequeno crucifixo. O parafuso superior havia se soltado, de forma que a cruz caíra de cabeça para baixo e de costas. Mário estendeu a mão.
— Mário...
Mário virou-se, o rosto atingido obliquamente pela sombra longa e densa cortada pelas brilhantes janelas do sul.
— O que é?
— Nada. Não sei.
Mário endireitou o crucifixo e começou a torcer o parafuso no orifício superior.
O eco lamentoso e baixo do sino encheu a igreja e gradualmente morreu.
Mário sorriu.
— Nunca toque num crucifixo invertido — ele disse. — Era isso que as freiras nos diziam.
Agora, a atmosfera no interior da igreja alterou-se. Anita ficou paralisada.
— Está sentindo? — ela perguntou.
— O quê?
Ela balançou a cabeça...
— Uma atmosfera. Quase uma inteligência. Como se a igreja soubesse que estamos aqui.
Mário deu de ombros e resmungou.
— Vamos buscar os equipamentos.
Trouxeram vários volumes pesados do Volkswagen, uma caixa com sensores delicados, rolos de fio vermelho, cabos pretos reforçados, e a lanterna Coleman.
— Vamos colocar os sensores pelas paredes norte e sul — Anita sugeriu.
— E um embaixo do altar.
De uma caixa de couro, Mário desenrolou delgados fios verdes, amarelos e brancos que conectou a quatro microfones ultra-sensíveis. Espalhou os microfones e fios ao longo do rodapé. Depois adaptou os limitadores para protegerem os fios delicados, quase fibrosos. Os microfones tinham capacidade para detectar camundongos correndo a uma distância de três metros.
Cada edifício tem suas próprias e distintas características de som ambiente, tremores, e variações térmicas. Seria crucial conhecer essas características a fim de detectar qualquer anormalidade no padrão. Poderia levar uma semana, até meses, mas era absolutamente vital para estabelecer a precisão de qualquer experiência.
Mário ligou os microfones a um sistema digital montado a partir de peças de equipamento médico. O sistema mantinha um firme registro de tempo para qualquer som abaixo da capacidade do limitador.
— Onde devo colocar as sondas de temperatura? — Mário perguntou.
Anita estudou os montes desordenados de madeira e panos entre os bancos. As sondas de temperatura eram extremamente sensíveis mas seu raio de ação era curto.
Colocá-las em lugares apropriados era uma questão de intuição tanto quanto de inteligência.
— Uma atrás do altar, perto da sacristia — ela reco-mendou. — A outra no canto a noroeste. Aquele canto cheio de lama.
Mário ligou as duas sondas a um aparelho linear de grafoanálise que possuía sua própria fonte de energia.
Confrontações de tempo, as incontáveis minúsculas alterações de temperatura no ciclo do dia para a noite e vice-versa começariam a indicar os padrões de características. Os padrões, então, revelariam os desvios.
Mário esticou as costas relaxando o esforço causado pela posição curvada para desenrolar os metros de fios.
Gravetos secos e folhas crespas cobriam a blusa de Anita.
— Vamos fazer uma pausa, por favor — Anita pediu, limpando a manga da blusa.
Passaram por cima dos detritos, pela pia de água benta entupida, e banharam os rostos no calor do sol aberto. Era um alívio, depois da triagem úmida e claustrofóbica do interior da igreja.
— E o sismógrafo? — Anita quis saber.
— Depois que escurecer.
Mário esticou-se, flexionando costas e pescoço, e virou-se para contemplar a igreja.
Já fora bonita. A maior parte do revestimento ainda permanecia branco e brilhante. O campanário erguia-se pitorescamente sobre o Siloam e as moitas baixas da margem oposta. Mas, no calor de fim de tarde, havia nela um laivo esdrúxulo, como se a realidade tivesse perdido o rumo na tentativa inútil de esconder o horror de uma época passada.
— Aquele padre — Mário disse, balançando a cabeça. — Ele deixou sua marca nesta cidade.
Anita deixou-se cair sobre um tufo de grama, e olhou com tristeza para a igreja e para o vazio escuro além da porta arrebentada.
— O que você acha que realmente aconteceu lá?
— Quem sabe? — Mário deu de ombros. Enquanto os mitos proliferarem, ninguém vai jamais conseguir desencavar as circunstâncias exatas do que sucedeu por aqui.
Haviam ambos pesquisado detalhadamente a história da igreja, mas pouco tinham com que pudessem comprovar seus esforços, exceto que em 1921 um professor da escola secundária de Providence viera por seus próprios meios estudar o folclore violento que se gerava em Cataratas do Gólgota. O resultado, dois anos depois, foi uma coleção abrangente de observações originais. Relatava três casos em que o vulto do padre havia sido visto ao longo das paredes; um caso de sua insana música coral reverberando do coro destruído; e vários casos de enfermidade e até morte relacionados com a aproximação à igreja.
Depois, durante a Depressão, aparecera o Relatório Olgivy. Este incluía Cataratas do Gólgota em sua lista da fenomenologia do norte de Massachusetts. Olgivy era espírita e havia tentado comunicar-se com o padre suicida.
Também tentara fotografar a luminescência que vira subindo pela parede norte. Tudo o que conseguiu foram chapas ruins com exposição excessiva. Dois meses mais tarde, viria a falecer de uma moléstia que lhe causava sangramento no ouvido.
E então, no limiar da Segunda Guerra Mundial, uma excursão solidamente financiada, patrocinada por uma organização teosofista de Boston, chegou com sondas elétricas e câmeras infravermelhas. As orações não surtiam efeito para levantar o padre. Não conseguiram a menor resposta.
Cercaram o cemitério com luzes negras e, enlouquecido pela iluminação fantasmagórica, o gado estourou e acabou pisoteando os geradores no solo arenoso. Os teosofistas jamais voltaram, mas escreveram à cidade pedindo que queimassem a igreja.
Tudo isso pertencia aos dias crédulos e sem responsabilidade dos primórdios da parapsicologia. Nada além de bruxaria, na opinião de Mário.
Porém, todos eles, intuitivamente, haviam procurado o padre. Algo da paixão do padre. Algo não resolvido entre os mortos profanados. Seria tudo folclore?
Mário deu as costas à igreja. O mato alto e dourado à sua frente sussurrava entre as cruzes de pedra e os anjos de madeira carcomida de fungos no cemitério.
Quase todas as lápides estavam apagadas por décadas de chuva, mas duas mostravam a data de 1897. Em uma delas, era possível ler o nome Clare ou O'Clare. Terra jogada de duas covas abertas havia formado um montículo no qual crescia uma roseira sem um único botão.
Duas pedras lapidares tinham formato vagamente gótico, outra era quadrada no alto, e as restantes eram cruzes agora caídas de lado sobre o pó. Uns poucos pedes-tais mostravam entalhes de pergaminhos ornamentais na direção longitudinal. Mário escavou a base de uma das lápides ainda eretas. As iniciais do escultor eram claramente visíveis à luz do dia.
— Estas duas parecem mais recentes — Anita comentou, apontando para as duas lápides góticas.
— Talvez sejam os gêmeos. Dizem que o padre os assassinou.
Anita estremeceu.
— Vamos inspecionar a reitoria — Mário disse, — antes que o sol se ponha.
A reitoria ficava no lado leste da igreja, sob a râsea janela estraçalhada da qual a imagem do Salvador havia tombado há décadas. Era uma pequena estrutura de pedra, de telhado baixo de madeira. Uma macieira se debruçava sobre a chaminé arruinada.
Mário trepou numa pedra e espiou pela janela. Uma mesa oval de mogno havia tombado e se reduzia agora a lascas de madeira sobre o que restava de um tapete azul de pequenas proporções. E, sobre o tapete, estava um conjunto de bacia e jarra todo lascado.
— E incrível como o povo da cidade deixou este lugar abandonado — Anita murmurou. — Alguns desses objetos parecem ter valor.
— Má reputação — Mário sorriu.
Anita tentou a porta, que aguentou firme nos batentes.
Mário bateu com o ombro contra a madeira podre. A porta cedeu como papier-mâché.
Nas sombras interiores, as estantes, vazias agora a não ser pela serragem cinza, produto do trabalho de insetos no teto, alinhavam-se na parede sobre a cama. Esta, dir-se-ia completamente dissolvida pelas goteiras do telhado. Apenas as molas enferrujadas e nuas permaneciam em desordem pelo chão, entre farrapos de estolo do colchão. A cabeceira e o pé da cama jaziam selvagemente retorcidos entre folhas mortas.
Não havia sinal de crucifixo na parede. Um armário, com entalhes na chapa inferior e ao longo das portas, ficava numa parede. Fezes de rato eram visíveis embaixo dele, entre galochas podres e alguns fiapos de tecido.
— E o lugar mais perturbador que já vi — Anita disse.
— Algo existe nestas ruinas aqui — Mário sugeriu. — As formigas. As aranhas. O pântano arfando para cima e para baixo. Está vivo demais para estar morto. Melhor pormos um sensor aqui. Só para constar.
Mário espanou a terra vermelha dos jeans de Anita. E passou o braço por seus ombros.
— Pronta para o jantar? — ele perguntou.
— Claro que estou. — Então, vamos para a cidade ver o que conseguimos desencavar. Não há pressa quanto ao sismógrafo.
Ela o abraçou pela cintura, a mão fina descansando no bolso traseiro, e encostou-se nele ao se dirigirem para o Volkswagen estacionado nos montes de lixo onde a Rua Canaan morria.
Dentro do furgão, mudaram rapidamente de roupa, Mário admirando com um sorriso a delicadeza dos movimentos de Anita, seu pudor gracioso apesar de todos os anos em que estavam juntos. Mário fechou depois as por-tas do furgão e passou o ferrolho.
Havia apenas sete prédios ativos em Cataratas do Gólgota, que eram, no entanto, suficientes para servir os fazendeiros locais e os poucos habitantes que ainda permaneciam na cidade. Além do bar, do mercado, e da agência de imóveis, havia uma lojinha de ferragens, um armazém polivalente, uma garagem com bomba de combustível e bomba de ar, ambas funcionando, e uma loja de artigos masculinos. Outras construções ocupavam a Rua Canaan, mas ou estavam cobertas por tapumes ou se reduziam a escombros de madeira e alicerces de concreto.
Atravessaram devagar a Rua Canaan. A rua em si estava vazia. Apenas uma camioneta e o veículo de um fazendeiro estavam estacionados em frente ao empório.
No fim da rua assentava-se um edifício escarranchado com um letreiro luminoso de neon, na forma de uma taça de martini. Ao se aproximarem, ouviram um murmúrio baixo de vozes que vinha de além da camioneta estacionada. Um velho saiu pela porta de tela e afastou-se mancando, apoiado numa bengala cheia de nos.
Mario enfiou a camisa por dentro da calça e tentou ajeitar os cabelos rebeldes. Anita penteou sua longa e sedosa cabeleira negra.
— Você está linda — ele disse sorrindo.
— Pois me sinto como o pelego de um cavalo.
Mário empurrou a porta.
Dentro, havia uma vitrola automática sobre um estrado de madeira, uma mesa de bilhar com bordas vermelhas e o feltro verde muito roçado, indiferente aos jogadores. Dois fazendeiros estavam sentados em cadeiras postas ao longo de uma porta pintada de preto deitada sobre duas pesadas grades. Isso era o bar. Ao fundo da sala comprida e estreita, havia pilhas de cadeiras quebradas e tacos de bilhar, uma distribuidora automática e a porta do toalete dos homens sob uma lâmpada sem lustre.
O cheiro era o da igreja. Úmido, aprisionado, e cheio da fina poeira peneirada que soprava do Siloam agonizante.
— Tarde — disse o homem do bar.
— Tarde — respondeu Mário. — Dois chopes, por favor.
O homem do bar tinha um rosto redondo e rosado, e quando a iluminação do teto o alcançou, parecia vagamente porcino. A boca se abriu em botão, num assobio sem melodia, enquanto os copos se enchiam de chope.
Os dois fazendeiros, em seus macacões com sujeira encardida, fitavam Anita abertamente.
Anita aproximou-se do bar, um pouquinho atrás de Mário. Mantinha os olhos na única torneira, da qual saia uma mangueira transparente que levava diretamente ao barril sobre suportes de madeira.
— De onde vocês são? — o homem do bar perguntou.
— Cambridge — Mario respondeu com educação.
Fez-se um silencio prolongado. Os fazendeiros voltaram aos seus devaneios, passando o dedo pelos copos de chope.
O primeiro deles era tão magro que seus cotovelos eram protuberantes.
Mário pediu dois sanduiches mistos, batatas fritas e mais dois chopes.
— Vocês têm material elétrico no seu furgão que dá para afundar um submarino — o homem do bar comentou de repente, olhando diretamente para Mário. — Para que é que vocês precisam daquilo?
O olhar dos fazendeiros tomou uma expressão perdida, mas estavam obviamente prestando muita atenção.
— Somos parapsicólogos Anita explicou sem rodeios. — Viemos investigar a igreja.
Uma nervosa reação em cadela percorreu os homens.
Entreolharam-se.
— Caçadores de fantasmas — exclamou um deles com desprezo.
O homem do bar afastou-se de Mário e pôs-se a lavar os copos de chope num frenesi de ansiedade.
— Nós devíamos era ter queimado a igreja até a raiz, Frank — o fazendeiro magricela comentou. — Como aqueles teoso-qualquer-coisa queriam fazer.
O homem do bar negou vigorosamente com a cabeça.
— É propriedade da Igreja Católica. Ninguém quer arranjar encrenca com Boston.
O fazendeiro magricela bateu com os dedos no copo.
Rapidamente, o homem do bar botou o copo embaixo da torneira e o liquido âmbar começou a cair com enervante lentidão.
— O povo anda um pouco nervoso — o homem do bar explicou a Mário. — Caçoaram deles.
— Ninguém está caçoando de ninguém — Anita disse.
— De forma alguma acrescentou Mario. — Tem acontecido coisas. Queremos saber por que, só isso.
Os fazendeiros e o homem do bar agora examinavam Anita e Mário com olhares surpreendentemente francos. O homem do bar inclinou-se.
— Vocês podem acabar com o que está lá? — ele perguntou em voz baixa.
— O que está lá? — Mário perguntou.
Os homens se recolheram a um silencio obstinado e conspirador. Fora, os faróis de caminhões e calhambeques afastavam-se da Rua Canaan, tomando a direção das fazendas nos montes distantes. Os faróis lançavam longos raios de luz para dentro da taverna.
Os homens pareciam indecisos, tentando silenciosamente decidir-se sobre os dois intrusos.
— Vocês podem acabar com aquelas coisas? — o homem do bar perguntou.
Mário debruçou-se para abranger a todos numa camaradagem masculina, amiga e confidencial, sem fingimentos, sem pudores.
— Isso depende — ele disse. — O que foi que viram?
O homem do bar pareceu positivamente aterrorizado.
Olhou para o canto escuro da taverna como se alguma sensibilidade ali ouvisse cada palavra sua.
— Ora, infernos, conte a ele — disse o fazendeiro magricela.
— Nunca vi porcaria de coisa nenhuma — o homem do bar resmungou.
O fazendeiro magricela deixou escapar uma risada grosseira e bateu na porta que servia de bar de tal forma que os copos vibraram.
— Seu bunda-mole mentiroso — ele explodiu. — Você viu o coroinha sem braço.
— Você disse que ele vinha saindo do cemitério e indo para a igreja — acrescentou solenemente seu companheiro, fitando o homem do bar.
O fazendeiro magricela limitou-se a balançar sua cabeça de falcão, para a frente e para trás, dobrando-se de rir.
— Eu tive uns sonhos — o homem do bar explicou, ruborizando-se, para Mário. — E um dia, pra lá de bêbado, eu mais ou menos vi o meu sonho.
O fazendeiro magricela inclinou-se para mais perto de Mário.
— Ele arrastou todos nós para a igreja — ele contou. — Mas não encontramos porcaria nenhuma.
— Também, parei de beber durante um ano o homem do bar acrescentou.
— Ainda tem esses sonhos?
— Não.
Anita observou o homem do bar contemplar os restos de bebida no fundo do copo, sem expressão alguma no rosto, como que se lembrando de mais alguma coisa, alguma coisa revivida numa gelada manhã de fins de dezembro, que ele não conseguia esquecer.
— O coroinha de um braço só foi encontrado, a senhora sabe — ele dirigiu-se a Anita, — um ano depois.
— Depois do que?
Os fazendeiros sombriamente desviaram o olhar para as janelas enegrecidas. Não havia outras luzes acesas em Cataratas do Gólgota fora da taverna. O letreiro vermelho de neon com a taca de martini lançava sua luz sobre o asfalto rachado.
— Você sabe sobre o padre? — ele perguntou.
— Sei — Mário respondeu.
— Descobriram tudo em 1914. Bem, um ano depois, o homem que era dono deste bar aqui encontrou os restos mortais de um coroinha debaixo da reitoria.
— O padre tinha aquela mistura de verniz e cera de abelha — o fazendeiro magricela confidenciou a Mário, — para preservar os cadáveres.
Mário meneou a cabeça num gesto de encorajamento.
— Pensaram que era um dos gêmeos McAliskey — o outro homem disse, virando-se na cadeira a fim de fitar Mário e Anita. — Mas já não havia uma parte da carne do rosto. Ninguém conseguiu dizer qual deles era.
— Nunca encontraram o outro gêmeo — ajuntou o fazendeiro magricela, em voz baixa e pesarosa.
— Não mesmo — interferiu o homem do bar. — Mas, de qualquer forma, puseram duas lápides no cemitério.
Fez-se um silêncio pensativo. O rosto do homem do bar se suavizara, revelando uma tristeza profundamente sentida.
— Tem essa lenda em Cataratas do Gólgota — ele explicou. — Que a roseira no cemitério... não vai florescer até que o outro gêmeo seja enterrado ao lado do irmão.
Mário acendeu um cigarro e soltou a fumaça para o outro lado. Foi o único movimento na sala.
— Tem gente que viu fachos de luz — o fazendeiro magricela disse para a escuridão.
— Às vezes as luzes se movem, como procurando alguma coisa.
— Harriet... a moça do mercado... viu o vulto do padre — o homem do bar acrescentou. — Quando era menina.
Tentou possuí-la.
O fazendeiro magricela balançou a cabeça e recostou-se na cadeira quebrada.
— Minha mãe viu os cardos do cemitério virarem aves — ele disse numa voz distante, sem expressão. — Pássaros pretos de garganta vermelha. Voaram para o campanário.
Mário deixou a fumaça do cigarro soltar-se da boca e evolar-se para o teto onde flutuou em ondas preguiçosas.
— Por que essas coisas acontecem? — perguntou suavemente.
Quebrou-se o encanto. Os fazendeiros terminaram suas bebidas, e empurraram os copos para a pia.
— Ora, inferno, todo mundo sabe — o fazendeiro magricela disse, limpando os lábios com as costas da mão.
— Eu não sei.
— Pois adivinhe, doutor — disse seu companheiro, levantando-se e indo para a porta.
O fazendeiro magricela acenou a mão num gesto grandiloquente para o homem do bar e também saiu para a noite pela porta de tela.
Pela janela escura, os faróis de uma camioneta fulguraram direto nos olhos de Mário. O motor roncou, e os amortecedores rangeram sobre a estrada ondulada que saía de Cataratas do Gólgota.
O homem do bar mexeu num interruptor num fio branco. O letreiro vermelho do martini apagou-se.
— Por que acontecem? — Anita teimou, com voz meiga e persuasiva.
O homem do bar sorriu.
— É só uma história — ele esclareceu embaraçado. — Algumas pessoas daqui não são muito cultas, entenda.
— É exatamente nisso que estamos interessados — Anita disse. — A história completa.
O homem do bar enrubesceu, empilhou os pratos sujos da pia e apagou as luminárias.
— Hora de fechar — murmurou educadamente.
— Sim, mas por que acontecem? — Mário insistiu.
— Vou acompanhá-los até a porta.
Ao se encaminharem para a porta, onde os gafanhotos rouquenhos se arremessavam contra ela, o homem do bar examinou Mário atentamente.
— O padre — ele disse suavemente. — Ele pervertia os mortos.
— Entendo.
— Entende o que eu digo? Ele os pervertia. Depois de desenterrá-los.
Mário meneou a cabeça mim gesto de encorajamento.
— Entenda, até os mortos devem ter sua vingança — o homem do bar completou.
Ele havia aberto a porta, e agora estavam parados, os três, na calçada rachada cujo meio-rio estava cheio de mato.
Os grilos nos campos gritavam sob as estrelas, e o cheiro de sedimento invadia suas narinas.
— A história é essa — disse o homem do bar. — Acredite ou não.
— Bem, muito obrigado por nos ter contado — Mário disse.
— Tudo bem. Boa noite.
O homem do bar voltou para dentro da taverna, e antes de entrar olhou para cada lado da rua.
Mário e Anita subiram de mãos dadas pela deserta, seca e empoeirada Rua Canaan. Seus reflexos nas vitrines mortas e escuras das lojas pareciam acompanhá-los sorrateiramente.
— O que você acha? — ela sussurrou.
— Acho que devíamos acabar nosso trabalho na reitoria.
Mário abriu as portas do furgão. Pendurou rolos de fio amarelo de baixa amperagem ao ombro e levantou o delicado sismógrafo contra o peito. Anita acendeu a luzinha do furgão e apanhou a caixa de metal contendo penas, tintas e o papel gráfico em bobinas.
Leves tremores percorriam a nuca de Mário ao andarem com cuidado para a reitoria.
— Não tropece nas sepulturas — ele resmungou.
O flashlight de Anita brincava pelos pés de cardo que levavam ao vão escancarado e tenebroso da porta da igreja.
Ruídos cavernosos vinham de dentro. O lampião Coleman, que havia sido colocado à cabeceira do altar, estava agora no topo de um banco quebrado. Quem o movera?
Anita passou a luz da lanterna lentamente pelo interior da igreja. As sombras se alongavam, fundiam-se, alongavam-se novamente enquanto o feixe de luz amarela descia pelas paredes manchadas.
— Desligue a luz — ele cochichou.
Ela desligou. Depois de alguns segundos, conseguiram vislumbrar as estrelas através das janelas góticas e das rachaduras no telhado. O luar pálido banhava o chão da igreja com um brilho quase imperceptível.
Ondas de calor avançavam do cemitério, e com elas um fluxo constante de insetos brancos nas correntes de ar quente.
Ouviram o ruído de aves agitadas no campanário, as asas macias roçando o sino caído.
— Mário... — Anita segredou.
Mesmo com a lanterna apagada, os fragmentos dos vitrais da janela rósea atrás do altar mexeram-se bruscamente e cintilaram.
Mário virou a cabeça, atento.
— Anita — ele murmurou tenso, — afaste-se da porta!
Pelo canto sudoeste da igreja, surgiu um vulto — uma silhueta alta e esbelta de um homem usando as vestes largas e esvoaçantes de um padre católico.
CAPÍTULO TRÊS
MÁRIO PASSOU correndo por Anita, e sobre a porta der-rubada da igreja, seguindo para os arbustos do caminho.
O vulto movia-se na entrada da reitoria.
— Mário... — o sussurro trêmulo de Anita atravessou as trevas.
Mário, porém, já estava correndo ao longo da parede sul, cuja quentura era ainda palpável. Suas botas amassavam os pedregulhos ao redor do cemitério. Anita corria atrás dele.
— Mário! Espere por mim!
Mário saltou para as sombras, agarrou a batina negra e fê-la girar.
A lanterna de Anita iluminou o rosto pálido de um sacerdote católico.
O clérigo se contorceu, curvou-se, tentou virar-se; mas o braço de Mário mantinha-o preso contra a parede da reitoria.
Aos poucos o sacerdote cedeu, cabeça apoiada na pedra, os olhos como pontos faiscantes à luz da lanterna, fixos em Mário. Era louro, e seu cabelo esvoaçava à brisa noturna enquanto os grilos gritavam seu sarcasmo abominável e indiferente.
Mário deixou cair a mão ao longo do corpo.
— Um padre — ele murmurou enojado. — Um padre real, vivo, de batina, da Santa Igreja Católica!
O sacerdote umedeceu os lábios e endireitou a batina.
Tentou evitar o paralisante facho de luz.
— O que estão fazendo aqui? — quis saber. — Quem são vocês?
— Nós? O que está você fazendo aqui?
— Tenho o direito de estar aqui — o padre respondeu. — Meu nome é Eamon James Malcolm. Sou jesuíta.
Mário recostou-se na parede apoiado sobre o braço esquerdo.
— Ótimo — disse devagar. — Um jesuíta. Maravilhoso!
Anita dirigiu o facho luminoso para o lado do rosto de Malcolm. Os olhos pálidos iam dela para Mário, indo e voltando, coruscantes de raiva.
— Quando chegou? — Anita perguntou com suavidade.
— Não estava aqui há uma hora.
— Acabei de chegar. Vim naquele Oldsmobile. Quando notei que a porta da igreja havia sido arrombada — Padre Malcolm hesitou — fiquei com medo. Pensei em vândalos.
— Vândalos! — Mário rosnou sem calor. — Pelo amor de Deus! Não notou os cabos? Nossos equipamentos eletrônicos?
Padre Malcolm afastou-se da parede. Ajeitou os cabelos.
— Se os julguei mal, peço que me perdoem.
Houve um impasse prolongado. Mário percebeu a friagem da noite na base de sua nuca.
Por favor, vamos entrar na reitoria — Padre Malcolm sugeriu. — Poderemos conversar lá dentro.
Mário e Anita seguiram seu vulto escuro até a porta da reitoria.
Por duas vezes, Padre Malcolm voltou-se para observá-los desviarem-se dos detritos até alcançarem uma lanterna ao lado do armário.
Como antes, a reitoria fedia a poeira orgânica putrefata, e à memória de Anita veio a mistura de verniz e cera de abelha que o padre Lovell fabricava nesse mesmo quarto, tantos anos atrás.
O padre curvou-se sobre o lampião. Ajustou a chama de álcool, de forma que Anita e Mário puderam ver os contornos vigorosos de um rosto inteligente.
— Digam-me quem são — o jesuíta pediu. — O que estão fazendo aqui.
A voz possuía o familiar timbre de autoridade da Igreja.
Mário irritou-se.
— Sou Anita Wagner — Anita apresentou-se calmamente.
— E este é Mário Gilbert. Somos parapsicólogos.
O jesuíta levantou um supercílio. Olhou de Anita para Mário, a raiva transformada pela curiosidade.
— Parapsicólogos — disse num murmúrio. — FES?
Clarividência? Coisas assim?
— Somos da Universidade de Harvard — Mário esclareceu. — Viemos investigar a igreja.
O jesuíta tornou a fitar Anita. Ela sacudiu o cabelo negro que lhe caía sobre a testa e seu sorriso, embora delicado, era também desafiador.
O lampião brilhava às suas costas. Tornava sua silhueta firme e generosa sob a blusa de algodão. O jesuíta desviou o olhar.
— Universidade de Harvard — repetiu com respeito.
— Sim.
O jesuíta brincou com a tampa de um bule sobre uma caixa de papelão.
— Bem — ele concedeu. — A PES foi provada, não foi?
Todos a possuem, em maior ou menor grau.
Fitou os parapsicólogos. Eles não cederam terreno. A mulher possuía uma confiança quase sobrenatural que o preocupava.
— E clarividência — acrescentou. — Creio que os místicos da Igreja já passaram por experiências muito semelhantes a ela.
Os parapsicólogos não fizeram qualquer esforço para encontrarem um denominador comum. Padre Malcolm pensou vislumbrar um sorriso de desdém nos lábios de Mário. Mudou de tática.
O jesuíta inclinou-se sobre a mesa de cozinha.
— E vieram para fazer experiências na minha igreja? — ele indagou.
Mário e Anita trocaram olhares.
— Sua igreja? — Mário disse. — O senhor a deixou em escombros durante 60 anos. Dificilmente tem direito a ela agora.
— Os impostos estão pagos, o título de propriedade mantido. Pertence à Santa Sé da Igreja Católica Apostólica Romana e é administrada pelo bispo da arquidiocese de Boston.
— Olhe para ela! — Mário exclamou, abrangendo com um gesto a negra e triste ausência de estrelas para além da porta. — É isso a Igreja Católica? É um monte de merda!
O jesuíta sobressaltou-se com a blasfêmia. Afastou-se da mesa de cozinha.
— Ela sofreu uma terrível profanação, Sr. Gilbert — explicou. — Desconsagrada, ela caiu sob a influência de... outro poder.
Ainda que fitando colericamente o jesuíta, este o intrigava. Padre Malcolm tinha uma qualidade serena, obsessiva, que ameaçava destroçar o controle intelectual de Mário.
— Posso perguntar, padre — Anita disse depois de um longo silêncio, — exatamente por que está aqui?
Neste instante, os pólos idênticos da natureza de Malcolm produziram uma confusão nervosa. Não sabia se podia confiar em Anita e Mário. Apesar de todos os seus estudos, não saberia como defini-los. O jesuíta deixou-se ficar paralisado entre os raios luminosos do lampião e a sombra tenebrosamente escura.
— Vim — ele explicou hesitantemente — para reconsagrar a igreja, e devolvê-la a Cristo.
O polegar de Mário involuntariamente curvou-se para a palma da mão.
Anita pressentiu a completa tensão do corpo dele; Mário, porém, examinava o padre, despudoradamente, dos pés à cabeça.
— Está dizendo que veio exorcizá-la? — perguntou incrédulo.
— Sim. Trago uma autorização do Bispo Lyons.
Mário segurou o cigarro aceso. Aranhas deslizavam pela parede da reitoria, tateando o caminho ao redor da brilhante mancha oval sob a janela.
Por muito pouco tempo, Mário quedou-se simplesmente observando as aranhas, depois o padre.
— Estranho, não é mesmo? — Padre Malcolm disse.
— O quê?
— Que vocês e eu tenhamos chegado à Igreja quase ao mesmo tempo.
— Pura coincidência.
— Quem sabe. Ninguém jamais soube como esses chamados são enviados.
Mário reprimiu um sorriso à linguagem arcaica.
O sacerdote subitamente passou a mão pelos cabelos, e seu anel luziu violentamente como uma chama.
— Por quanto tempo precisam ficar por aqui, Sr. Gilbert?
— Dois meses. Talvez três.
— Não será possível. Preciso de apenas alguns poucos dias para preparar a igreja. Uma vez que esteja purificada, voltará a funcionar como um edifício santo.
Mário fumava calmamente, mas Anita percebeu a centelha escura e perigosa crescendo das profundezas de suas pupilas.
Na longa confrontação, nenhum dos dois homens falou, ambos acostumados aos condutos sinuosos e necessários do poder político.
— Bem, não vou embora, padre — Mário disse finalmente, jogando a cinza do cigarro pela janela da reitoria.
— E, contudo, não lhe cabe direito algum, cabe?
— Cabem-me todos os direitos.
Perplexo, Padre Malcolm apoiou-se no peitoril da janela ao fundo, meio fora da escuridão, de forma que seus cabelos loiros contrastavam vivamente com a noite escura dos campos.
— Que direitos são esses, Mr. Gilbert?
— Por dois mil anos, a Igreja Católica vem obstruindo todos os canais de pesquisa científica. Eu diria que vocês me devem três meses.
— Um pequeno exagero, não acha?
— Religião é o monopólio organizado dos fenômenos paranormais — Mário interpôs rapidamente. — Mas, agora, em Cataratas do Gólgota, esse monopólio está sendo destruído.
O jesuíta se limitava a abrir e fechar as mãos como se estas lhe causassem dor.
— É verdade — concedeu. — A Igreja Católica jamais negou a existência do sobrenatural.
Cruzou os
braços, parecendo profundamente incomodado, incapaz mesmo de ordenar seus pensamentos.
— A própria substância da Igreja, a presença física de Jesus Cristo, que ocorre quando o pão e o vinho se transmutam no corpo de nosso Salvador, é talvez o maior exemplo disso.
Mário gemeu.
— Poupe-me! Eu me vacinei contra isso quando era criança. Assim, estou imune.
— Entendo. E agora você é ateu.
— Sou cientista. Acredito naquilo que posso medir.
— Nesse caso, não posso permitir sua presença na igreja.
Os olhos de Mário tornaram-se perigosamente escuros e profundos.
— Por que não? — Anita perguntou docemente.
— Porque os mistérios da Igreja não devem ser analisados por instrumentos de ciência. Isto seria outra profanação.
— Besteira! — Mário contra-atacou. — No Vaticano, a ciência é abundante. O Papa reza missas transmitidas pela televisão. O lugar está abarrotado de computadores. É uma nova era, Padre Malcolm.
— Talvez — Padre Malcolm respondeu serenamente. — Mas o Papa experimenta o ato interior da graça. Como todos os padres. Seja como for, as verdades da ciência e as verdades da Igreja jamais serão compatíveis.
— Se o que a Igreja crê é verdade, então não devia temer a análise da ciência.
Anita cruzou as pernas. O movimento fez cessar o debate que se acalorava.
— Padre Malcolm — ela disse com cautela, — não temos intenção de interferir com seus deveres. No que nos diz respeito, estamos procurando frequências ou padrões de ondas no limite máximo da reação humana. A interpretação da Igreja Católica do que sejam esses fenômenos, ou como ela deseja tratá-los, não nos interessa.
O jesuíta sorriu.
— Compreendo a sua posição — ele disse. — Mas esta igreja foi tão grosseiramente maculada, e fazer com que a Eucaristia possa ser novamente celebrada nela... bem... esse é o único propósito de minha missão aqui. Dificilmente seria uma placa de Petri destinada à análise de vocês.
— Tente entender — disse ela em tom persuasivo. — Arriscamos muito para podermos vir aqui.
O jesuíta tentou ler fundo nos olhos dela, e pensou ter encontrado sinceridade neles. Tornou-se mais gentil.
— Creio que entendo, Srta. Wagner — ele disse. — Eu sei como são as universidades e conheço Harvard. Dificilmente eles estariam apoiando sua presença aqui.
— Há conflitos de opiniões — ela admitiu.
— Olhe, nenhum de nós deseja perturbar as hierarquias que nos permitiram vir aqui — ele prosseguiu cautelosamente. — Não é verdade?
— É — Anita respondeu.
— Então, talvez possamos chegar a um entendimento.
Mário fitou-o com suspeita.
— Que tipo de entendimento?
— Talvez pudéssemos trabalhar juntos — o jesuíta propôs ingenuamente. — Pelo menos, na fase do exorcismo.
Lentamente, Mário sacudiu a cabeça.
— Não entendo o que quer dizer com "trabalharmos juntos". E, não sei se estou disposto a arriscar meio milhão de dólares de equipamento nesse cambalacho que está planejando!
Mário observou o rosto pálido do jesuíta ficar ainda mais pálido e o olhar gentil tornar-se sombrio. Um frêmito selvagem percorreu Mário. Sorrindo, ele virou-se para partilhar o sentimento com Anita. Para sua surpresa e desapontamento, ela retribuiu com um olhar prudente, uma expressão de simpatia no rosto que significava haver tomado o partido do padre.
— Mário — Anita debruçou-se, saindo da obscuridade, seu rosto angular esmaecido como uma almofada de cetim.
— Temos que discutir isso.
— Que diabos...
Algo, porém, havia deflagrado a imaginação de Anita.
Algum vago plano, uma improvisação, uma manipulação mental para explorar o jesuíta.
— Mário, vamos conversar sobre isto esta noite.
Mário indagou-se o que teria se passado com ela tão depressa. Sabia muito bem que não podia menosprezar o assunto sem mais nem menos. Mas a presença do jesuíta doía. E mais amargurava Mário saber que o sacerdote se dispunha a um entendimento. Bondade clerical sempre cheirava a profano, como leite azedo nas narinas.
Mário abrandou-se, com relutância, com um dar de ombros quase imperceptível. Com um gesto sugeriu a Anita que se retirassem.
— Boa noite, então — Padre Malcolm disse esperançoso, acompanhando-os até a porta.
Anita meneou a cabeça com um sorriso amigo, mas Mário saiu para a grama alta sem olhar para trás, as mãos enfiadas nos bolsos.
— Um padre! — ele resmungou. — Não posso acreditar!
Um padre católico, desses que odeiam o demônio! E jesuíta, ainda por cima! O que esses filhos-da-mãe mais apreciam é conversa fiada. E nós não temos tempo!
Anita alcançou-o ao lado do Volkswagen.
— Mário... por favor... ouça-me...
Mário jogou-se contra a porta lateral, passando as duas mãos pelos cabelos e, em seguida, frenético, escancarou a porta e foi buscar uma garrafa do vinho italiano.
— É o castigo de Deus por eu ter me tornado ateu! — ele zombou, bebendo direto do gargalo.
Mário notou a determinação nos olhos dela.
— Muito bem, minha senhora — ele disse, — qual foi a idéia brilhante que lhe ocorreu?
— Mário, deixe que ele faça o exorcismo.
Mário tomou um grande gole da garrafa verde, balançando a cabeça.
— Vamos fazer dele o objeto das medições. Vamos registrar o que nunca registramos antes. Um crente em pleno ritual ardente.
— Não viemos para cá para registrar um exorcismo — Mário teimou, cheio de nojo. Anita chegou-se muito perto dele.
— Temos uma oportunidade aqui, Mário. Admito, não é o que havíamos planejado. Mas é bom. É, muito bom para nós. Vamos tirar o máximo proveito.
Mário pensou vagamente na quantidade de equipamentos dentro da igreja, e o que ainda estava no furgão à espera de ser montado. Sentiu que aquela oportunidade única pesava dolorosamente em seu peito.
Como cientista, sabia que Anita tinha razão. Era uma situação sem precedentes em pesquisas de campo. Mas a simples idéia de um jesuíta praticante deixava-o nauseado.
— Por favor, Anita! O homem tem complexo de messias!
Está se preparando para entrar em combate mortal com Satanás e seus malditos sequazes! É tudo pura merda mitológica! Nada há de real em tudo aquilo!
Anita pousou carinhosamente a mão no braço dele, tranquilizando-o.
— É real para ele — ela lembrou. — A menos que você tenha razões pessoais para não querer presenciar um exorcismo?
Mário olhou para o outro lado.
— Não. Claro que não — respondeu evasivo. — Mas, que merda, Anita, essa história me deixa arrepiado, esse santarrão...
Anita postou-se à frente dele e fitou-o direto nos olhos.
Mário, sem dúvida, tinha antigas contas a ajustar com a Igreja Católica, ela sabia. Mas, jamais o tinha visto assustado. O jesuíta havia feito eclodir fundas memórias, memórias que tinham começado muito antes de se haverem conhecido.
— Trato feito? — ela insistiu.
Mário, porém, apenas enterrou o dedão do pé dentro da argila, relutante em ceder.
— Mário, não podemos lutar com ele. A igreja pertence à arquidiocese. Tudo o que o jesuíta tem a fazer é entrar em contato com o bispo e pedir que ele apresente uma reclamação a Harvard. O Deão Osborne acabaria conosco numa única tarde.
Desconsolado, Mário tomou mais vinho. Ofereceu a garrafa a Anita. Com delicadeza, ela a afastou.
— Este talvez seja o nosso último projeto com um laboratório em
operação, Mário — ela disse persuasivamente. — Não o destrua por resistência ao padre.
Mário sorriu de um jeito encantador. O sorriso se desfez, revelando um estranho e poderoso sentimento de desespero. Tentou passar o braço à volta da cintura dela. E ela gentilmente, afastou sua mão.
— Trato feito? — ela repetiu.
Mário concordou.
— Trato feito.
Deprimido, Mário a acompanhou para dentro do furgão.
Despiram-se. Pelas frestas das janelinhas laterais, viram a luz na reitoria. Um vulto se movia de um lado para outro, entre a porta e o velho carro americano estacionado debaixo da macieira. O padre levava uma caixa atrás da outra para dentro da reitoria.
Mário soltou um gemido e deixou-se cair molemente sobre as toalhas enroladas que formavam uma almofada. Ver um padre, de batina e tudo, conseguira remexer cinzas do passado, reacendendo cenas de sua juventude solitária, reprimidas a tanto custo. Por mais que tentasse agora minorar sua dolorosa insistência, os anos miseráveis que passara no Asilo de Meninos Abandonados Nossa Senhora do Sangue Sagrado ressuscitaram com plena força.
Tinha sido uma escola árdua para se adquirir qualquer educação sentimental. Os meninos eram grosseiros, temperamentais e violentos, e, ao alcançarem o 9° grau, um terço deles já conhecia o interior de um reformatório.
Mário punha-se a contemplar as casas de cômodos de Boston. Não conhecia outro mundo. Sabia apenas que por três vezes fora levado ao asilo pela mãe, e que por duas vezes ela fora buscá-lo de volta. Depois disso, pelo que dizia Padre Pronteus, ela mal subsistia com a pensão do governo, e não tinha sequer coragem para ir visitá-lo.
A instituição era a mais carente de Boston. O chão era tão empenado que mesmo homens feitos tropeçavam nele.
Os toaletes fediam. Um odor impregnante de suor e mofo permeava os chuveiros e os vestiários, bem como os saguões ladrilhados.
E, por aqueles saguões, entre armários e bancos igualmente negros, corria à boca pequena que metade dos padres era de homossexuais. Resultado, Mário entendeu gradualmente, do anormal imperativo do celibato.
Um indefinível homoerotismo era a válvula de escape de todos os relacionamentos em Nossa Senhora do Sangue Sagrado. Mesmo aos sete anos, Mário deixava-se fascinar pelas freiras que adejavam, tão estranhamente apaixonadas, diante da Virgem Maria. Sua própria mãe ambígua — a Virgem Mãe em campo azul com estrelas pintadas — e as freiras, cujos movimentos mais corriqueiros deixavam entrever camadas de panos engomados, tudo fundido numa vaga mas possante atmosfera.
Era um ambiente sombrio, quase erótico, que pesava em seu coração, e o que primeiro lhe ensinou o desejo.
O diretor e Padre Superior, Padre Pronteus, era contrário a essa atmosfera. Era um homem grande, elegante, carismático, em cujos olhos brilhantes Mário percebia uma espiritualidade vigorosa, um candente idealismo, que o colocava acima da mórbida claustrofobia do orfanato.
Mário era coroinha de Padre Pronteus. Mário se destacava nas aulas de latim de Padre Pronteus. A história clássica da Igreja, com suas distinções sutis de matéria e essência, transformação e existência, fascinavam Mário. Com frequência, ficava muito depois de terminada a aula, ouvindo Padre Pronteus. A Igreja ensinava que para além da carne, e embora animando a carne, pairava um plano de idealização e espiritualidade onde Cristo reinava supremo.
Mário discutiu com Padre Pronteus sobre a possibilidade de ordenar-se padre.
Estava com 15 anos quando Padre Pronteus apanhou-o masturbando-se no vestiário. E foi imediatamente levado à sala da administração. Houve uma lamurienta, incomoda discussão sobre a distinção de carne e espírito.
Paternalmente, Padre Pronteus chegou-se para mais perto de Mário.
A mão do padre descansava sobre o ombro de Mário, e depois deslizou pelo braço e foi parar na coxa, mesmo enquanto discursava sobre Santo Agostinho e as tentações da carne. Mário viu o rosto de Padre Pronteus ir ficando rubro, a respiração entrecortada. Foi como se lâminas invadissem o seu mundo idealizado, deixando tudo em escombros.
De súbito, Mário tentou libertar-se do mentor. E sentiu o corpo pesado e quente sobre o seu. E, em algum momento, Padre Pronteus teve sucesso com suas mãos fortes e, no entanto, sutis e seguras. Naquele instante abominável, toda a superestrutura dos pensamentos de Platão e Tomás de Aquino desmoronou desintegrada. Padre Pronteus usara seu idealismo para mascarar uma desesperada necessidade genital: seduzir Mário. Mário vislumbrou, num relance, que toda a estrutura de crença da Igreja Católica apoiava-se sobre a repressão, a sublimação e a glorificação da abstinência sexual. Algo pior: a inconcebível, repugnante sensação de ser tocado por outro homem.
O papa diz "dá-me o menino até que tenha sete anos e eu o terei pelo resto de sua vida", Mário pensou com amargura, relembrando o velho epigrama. Muito bem, o Papa teve a mim até os meus 15 anos, e isto já chega para que ele se arrependa pelo resto da vida.
Ao lado dele, Anita mexeu-se.
— O que é? — ela murmurou.
— Não consigo dormir.
Anita aconchegou-se a ele, acariciando seu cabelo escuro e anelado. O pesadelo do passado cedeu ao calor dela. Com estranho desespero, Mário procurou seu corpo.
Dentro da reitoria, Padre Malcolm fez uma pausa em seus trabalhos. Sentado numa cadeira de vime arruinada, pensou nos parapsicólogos. Indagou-se se já teria cometido alguma indiscrição, ou se cedera demais. Certo, o bispo havia finalmente autorizado o exorcismo, mas por um alto preço: a entrevista penosa e desgastante.
De branca cabeleira, veiazinhas minúsculas no rosto e no nariz, o Bispo Edward Lyons havia contemplado com um longo e silencioso olhar, o novo exorcista.
— É apenas por causa da grande tragédia que se abateu sobre seu tio que estou permitindo tal coisa — ele disse. — Sei o que Cataratas do Gólgota representa para você.
— Obrigado, Vossa Reverendíssima.
Bispo Lyons parecia aborrecido.
— O que estou tentando lhe dizer é que tenho sérias dúvidas quanto a essa aventura.
— A igreja está corrompida, Vossa Reverendíssima.
Necessita de reaceitação no seio de Cristo.
— Há muitas outras igrejas cujos títulos de propriedade nos pertencem.
Padre Malcolm achou irritante aquela rude objetividade.
O bispo indicou uma cadeira antiga, tirada de uma propriedade veneziana antes de seu fechamento por execução de hipoteca.
— Padre Malcolm confidenciou o bispo. — Conheço mais coisas a respeito de seu tio do que o conheci pessoalmente.
No entanto, ainda assim, eu o amei. O que aconteceu a ele em Cataratas do Gólgota foi uma tragédia pessoal para mim, tanto quanto o foi para você e para a Igreja.
Padre Malcolm mexeu-se na poltrona, constrangido.
— Obrigado, Vossa Reverendíssima.
As grisalhas sobrancelhas do bispo arquearam-se. Os argutos olhos de cão fitaram o jovem jesuíta.
— Mas... — sacudindo os ombros, — ... um exorcismo!
— Por que não? — Padre Malcolm exclamou agitado. — O modo como morreu...
O bispo ergueu a mão com o anel episcopal, pedindo silêncio.
— Foi um escândalo para a Igreja. E para mim pessoalmente. E deve-se aprender a evitar escândalos.
— Não é minha intenção sair por aí divulgando o ritual.
Bispo Lyons estudou o padre atentamente. Sorriu, mas o sorriso gelou o jovem jesuíta.
— Não. Você, não. Mas, você nada sabe do mundo secular. Você mergulha nas coisas de cabeça. E se esquece de que o mundo inferior nos espreita, nos julga, nos acusa.
— Sim, Vossa Reverendíssima.
— Peço-lhe que não se esqueça de minhas palavras.
— Não esquecerei, Vossa Reverendíssima.
Padre Malcolm se perguntava agora se os parapsicólogos divulgariam suas pesquisas. Mas também, quem leria esses jornais obscuros? Ainda assim, uma ordem lhe fora dada. O jesuíta ajeitou os cabelos com os dedos e afundou-se num devaneio amargurado.
Que foi rompido pela súbita invasão de um animal no meio dos arbustos. A entrada violenta, pesada, audaciosa, de um corpo truncando galhos. Levantou-se e foi até a janela aberta. Nada via além do Oldsmobile no gramado. O som de patas se afastando da reitoria ruidosamente, na direção dos campos, para o seio das trevas, a fêmea sendo perseguida pelo macho.
O riso de uma mulher flutuou qual borboleta dourada, vindo do Volkswagen.
Corujas piavam na macieira. Novilhas pastavam entre as lápides, com seus sininhos tilintantes, ancas grandes passando. Atrás da igreja, o Siloam emitia vozes. Uma força abrangente parecia animar o vale, uma bizarra comunhão entre a igreja, o furgão, e as aves e animais. Os ritmos se transmitiam de uns para outros, pelo Siloam, e retomavam.
Tudo fazia parte de uma ecologia de malditos.
CAPÍTULO QUATRO
O JESUÍTA tomou café amargo.
O Oldsmobile, do lado de fora, estava carregado com pesados caixotes no porta-malas e no teto. Atravessando o campo de ervas daninhas, as calças pretas do padre se enchiam de carrapichos. Insetos alados prendiam-se à batina pregueada. Transpirando, ele suspendeu um longo caixote que estava na parte de trás do carro.
Anita Wagner e Mário Gilbert nadavam nus sob os ciprestes. Estavam no Siloam, numa poça de água clara e refrescante, a apenas três metros da parede norte da igreja.
Seus braços eram musculosos e com braçadas vigorosas cortavam a água azul.
A vista de uma mulher nua trouxe à memória do jesuíta, paradoxalmente, a figura do tio, Padre Farreel Malcolm.
Tinha sido um expert em pintura renascentista, particularmente os pintores venezianos, e pesados volumes sobre Ticiano estavam repletos de formas femininas alvas e roliças. Ticiano tinha uma visão muito completa das mulheres. Para ele, elas eram complexas, inteligentes, criaturas ideais, iguais aos homens em todos os sentidos.
Foi depois da morte do tio que Padre Malcolm, ao procurar uma explicação, viu-se impelido a estudar a psicologia do sexo. Sentiu-se enojado.
Padre Malcolm carregava um pesado volume ao ombro, do Oldsmobile para a reitoria. Pelos ciprestes viu Anita estendida ao sol, e Mário, de ombros largos e genitália possante, saindo da água.
Da reitoria, o jesuíta ouviu a voz feminina em alegres chamados.
O Jardim do Éden poderia ter sido habitado por tais criaturas, ele pensou. Essa franqueza de corpo, essa facilidade do amor corporal. Sua própria educação tinha sido um labirinto de disfarces para as funções naturais, o pudor alcançando um imperativo absoluto. Contudo, não foi sem inveja que os despudorados atributos físicos de Mário vieram-lhe à mente.
Mas o Jardim do Éden sofreu a queda do homem. E o homem adquiriu a noção de pecado e vergonha. Assim sendo, a Igreja se esforçou para dirigir esse conhecimento e transformá-lo num laudatório ao Senhor. Assim sendo, também, a nova geração, rejeitando o conceito de inibição sexual, era uma afronta à igreja. Pois a nova geração proclamava que a realização era uma possibilidade na vida sobre a terra. O que, evidentemente, era uma inverdade.
A lembrança do Rio Potomac passou célere por sua mente. A lembrança de um lugar quente e úmido como Cataratas do Gólgota; a lembrança de um hotel onde homens elegantes tomavam suas mulheres por prazer. Na varanda, confuso e incapaz de raciocinar — durante uma única tarde não se sentira solitário.
Surpreso com a veemência da lembrança, o jesuíta voltou ao Oldsmobile.
Pelo jeito, levaria consideravelmente mais tempo do que imaginara para eliminar, ou pelo menos neutralizar, aquela cena. Involuntariamente, inclinou-se para espiar as margens cobertas de ciprestes.
Mário e Anita haviam ido embora. Tê-lo-iam visto bisbilhotando? Teriam se incomodado? Para além da igreja e do rio, ondeavam os campos das fazendas, secos demais para esta época do ano, e ao alto o branco celestial de nuvens correndo.
O jesuíta enxugou o suor que lhe escorria sobre os olhos. O miasma morno do pântano recordava a mesma letargia, o mesmo abandono sensual que experimentara no Potomac. Aquela memória, e seu tio, eram as razões de ter vindo a Cataratas do Gólgota.
Penetrou na igreja.
Anita montara o sismógrafo atrás da porta da cripta. Os cabelos ainda estavam úmidos da natação. A blusa de algodão ensopada ao redor da gola. Os dedos delgados moviam-se sem esforço sobre a bobina girando lentamente, e sobre os finos traços pretos que saíam da agulha de tinta.
Virou-se com um sorriso para o jesuíta.
— Consegui detectar seus passos na reitoria — ela anunciou.
— É mesmo? — Padre Malcolm perguntou perturbado. — Esses instrumentos são assim tão sensíveis?
— São, sim. Trabalhamos com alterações mínimas, Padre Malcolm.
O sacerdote afastou-se. Para ocultar seu embaraço, examinou os detritos sobre o chão.
— Vejo reais possibilidades de renovação — ele comentou. — Não parece tão repelente quanto ontem à noite.
Mário entrou na igreja, os braços intumescidos, dentes trancados, pelo peso de uma caixa preta de metal que carregava contra o peito nu. Passou pelo jesuíta e manobrou pela nave para aproximar-se de Anita. Destravou as fechaduras superiores. Cuidadosamente, apanhou as peças de um equipamento óptico arrumadas sobre o forro macio.
Para Padre Malcolm as peças repousavam como uma presença alienígena no chão da igreja.
Mário adaptou delicadamente uma peça vermelho-escura, um laser a rubi, aos encaixes. Examinou o difusor de raios e o espelho de referência, e em seguida recolocou o protetor plástico. Era um laser de dupla pulsação, para o qual Mário havia aumentado o amplificador, a fim de fornecer uma imagem visual expandida.
O jesuíta, mesmerizado, aproximou-se da câmera. Sua sombra caiu sobre Mário, que interrompeu o trabalho e levantou o olhar.
— Qual é o problema, Padre Malcolm?
— Todos esses instrumentos, e quilômetros de cabos também!
— E daí?
— Bem, afinal de contas, trata-se de uma igreja.
— Afinal de contas, trata-se de uma investigação científica.
— A Harvard o que é de Harvard. Mas a Cristo...
— Já sei. O dízimo.
A um sinal de Anita, Mário ficou em silêncio.
O jesuíta pôs-se a varrer o lixo e as peças de roupa feminina para dentro de caixas de papelão. Anita debruçou-se sobre Mário.
— Deixe o padre comigo — ela sussurrou.
— Por quê?
— Porque você é bruto demais com ele.
— Ora, o mesmo se aplica a nós dois. O filho-da-mãe hipócrita e convencido.
A manhã transcorreu em silêncio.
A concentração de Mário nos testes da câmera a laser era interrompida pelos movimentos incessantes do jesuíta pela igreja, ao carregar para fora os bancos quebrados e os detritos caídos do teto. Finalmente, na igreja vazia, Mário observou o padre varrer do chão o cisco acumulado de um século.
Subitamente, os olhos de Mário ficaram fixos no visor da câmera a laser. Soltou um som de surpresa.
— Qual é o problema, Sr. Gilbert?
— A câmera a laser está detectando sinais de pressão arquitetônica. Bem atrás do senhor.
Padre Malcolm olhou para as vigas do teto. Apenas o canto noroeste parecia estar em más condições.
— Pensei que a estrutura permanecesse basicamente firme.
— Eu também.
O padre juntou o cisco preto numa caixa e levou-a para o sol ardente.
No visor da câmera, a pressão da igreja reduziu-se, e os padrões curvos se endireitaram em feixes luminosos acabados em cruz, como era normal.
O jesuíta voltou com um balde de água quente e espuma de sabão. A pressão o acompanhava ao redor da igreja.
— O senhor parece realmente perturbado, Sr. Gilbert — Padre Malcolm comentou, enquanto esfregava o chão.
— Algo de instável aqui — Mário admitiu.
Padre Malcolm lavava o chão com afinco. A pressão agora era maior onde o padre escovava o rodapé. Mesmo quando parou, a pressão continuou presente na tela do laser.
— Anita — Mário cochichou. — Troque de lugar com o padre.
Anita foi até o padre e falou rapidamente. Intrigado, ele lhe entregou o balde e o esfregão, mas a pressão mostrava agora linhas onduladas incongruentes sobre a porta, longe de Anita, e sobre Padre Malcolm.
— O que será isso? — ele perguntou.
— Não sei — Mário respondeu. — Alguma coisa o está acompanhando aqui dentro. — Levantou o olhar com um sorriso divertido. — Parece que não estamos sozinhos.
Anita sentiu um calafrio repentino, quando um frio gélido invadiu a igreja, seguido de um penetrante odor, acre e fétido. Todos o sentiram, mas ninguém o comentou. E, de repente, desapareceu, do mesmo modo que as linhas de pressão.
Pelo resto do dia, apesar da vigilância de Mário, nenhum outro indício de frio, odor ou padrão de pressão, se manifestou.
Ao fim da tarde, os montes de lixo atrás da igreja fumegavam.
Com um galho seco, Padre Malcolm cutucou a fumaça azul que subia, emanando um cheiro doce e enjoativo, como carne deteriorada. Agrupados ao redor das fogueiras de ervas-de-santiago e tijolos quebrados, alguns moradores de Cataratas do Gólgota observavam, mesmerizados e hostis. O
padre notava suas fisionomias se alterarem a cada lufada de fumaça do pano encardido que se queimava, como se eles estivessem tentando decidir se os intrusos teriam vindo para o bem ou para o mal.
As chamas sibilaram e morderam as roupas imundas, destruindo vestes sacerdotais que se enroscavam, negras, com as toalhas do altar. Formigas vermelhas fugiam do calor, e pareciam gotas vivas de sangue derramando-se sobre o solo. Malcolm protegeu o rosto com um lenço.
— A fumaça! — gritou uma mulher idosa. — É igual ao rosto do primeiro padre!
O jesuíta girou nos calcanhares, mas tudo o que viu foram os fumos carregados de partículas, flutuando baixos para a ravina.
— Não ligue para ela, pastor — o homem do bar avisou.
— Ela não é boa da cabeça.
Mas a mulher insistiu.
— Estava lá por um segundo — ela berrou. — E eu o vi!
— E eu também — acrescentou um menininho.
Outros riram com nervosismo. A velha levou o menino embora.
Mário saiu da igreja, rolos de fio fino ao ombro. Parou para ver o fogo. O fedor quase o fez engasgar-se.
O jesuíta remexeu os panos podres e negros onde os botões tinham derretido até se transformarem num melaço liquefeito.
— Às vezes nos metemos em negócios escusos — ele disse suavemente, pondo de pé uma das caixas de lixo da igreja. — Há sempre uma batalha a ser travada contra o mal, uma batalha abjeta e imunda que vai prolongar-se até a vitória final de Cristo.
Mário ajustou ao ombro o volume de fios.
— Acha mesmo? — disse com um sorriso desdenhoso, e foi para o furgão.
A mão de Padre Malcolm segurou-lhe o braço.
— Espere — ele disse com brandura. — Está aqui para investigar fenômenos que vão além da compreensão humana. Seus instrumentos registraram pressões que ultrapassam qualquer explicação. Não pode ter deixado de sentir os cheiros penetrantes e desumanos, o frio gelado que parecia invadir cada canto, cada concavidade da igreja.
Como o senhor explica essas coisas, Sr. Gilbert?
— Eu observo, Padre Malcolm. Eu meço. Eu não ponho rótulos. É preciso coragem para não oferecer explicações fáceis. Ser capaz de admitir, sim, aconteceu, isto, e aquilo e mais aquilo também, e eu não sei o que significam. Talvez, um dia, eu venha a saber como é que tudo isso se encaixa.
Mas não hoje. Não agora. Agora, tudo é pura experiência e faço os registros o melhor que posso. Só isso, padre. Nada de santos. Nada de liturgia. Nada de Santíssimas Trindades.
Sorrindo, afastou-se para o furgão.
Padre Malcolm não tornou a entrar na igreja até que a fogueira estivesse extinta e enterrada na terra. A fumaça do solo enegrecido flutuou pela ravina, dando um colorido malva ao sol poente. As sombras se dissiparam fundindo-se num denso fulgor pardo.
Anita comeu seu jantar atrás do console onde estavam os sistemas de temperatura.
Até as coisas se estabilizarem, os instrumentos preci-savam ser observados e continuamente ajustados. O jesuíta mostrava-se infatigável, entregue às suas tarefas de esfregar e limpar.
Anita observava-o com curiosidade.
— Como se tornou exorcista? — ela perguntou de repente.
Padre Malcolm fitou os olhos escuros, depois deu levemente de ombros, e examinou o rodapé podre.
— Toda paróquia tem seu exorcista — ele disse modestamente. — É a terceira das quatro ordens para alguém se tornar padre.
— Mas o senhor tem alguma experiência especial... isto é... os exorcistas não são pessoas raras e especiais?
Ele sorriu, apreciando sua franca curiosidade.
— Tem visto filmes demais, Srta. Wagner.
E, em seguida, a sério: — Estudei. E me candidatei. Spiritualis imperater.
Depois, em Boston, o bispo deu-me um livro... instruiu-me...
as palavras e os métodos, entende? E isso foi tudo.
— E já teve ocasião de praticar algum ritual de exorcismo?
— Já. Uma senhora de idade. Na verdade, atuei como assistente. E tudo correu muito bem.
Anita achava aquele assunto esotérico, fascinante, mas relutava ligeiramente em intrometer-se. Contudo, sentia-se à vontade com aquele jesuíta tranquilo e de olhar introspectivo.
— É como... é como mágica? — ela quis saber. — Fórmulas secretas? Palavras místicas?
Padre Malcolm riu com vontade, sem intuito de ridicularizar.
— O procedimento verdadeiro está estabelecido desde o século III e é frequentemente usado. Por exemplo, para se consagrar a água benta, há um exorcismo ritual do mal.
— É mesmo assim tão simples? — Anita perguntou.
Padre Malcolm foi para a área seguinte, arrancou o rodapé da parede e afundou o esfregão no balde de água.
Depois parou.
— Não, Srta. Wagner. Nunca é simples. — Fez silêncio, enquanto organizava seus pensamentos em palavras. — Para ter sucesso, o exorcismo depende do padre oficiante. De sua fé. De seu poder.
Anita balançou a cabeça. A igreja estava agradavelmente serena. Vários dos consoles pareciam chiar. O rio atrás da igreja cantava em tons baixos. Mário entrou carregando uma caixa de videoteipes.
— Vocês sabiam que há rumores de que o próprio Lovell foi exorcizado? — Padre Malcolm adiantou.
Mário colocou a caixa no chão e foi sentar-se no caixote de instrumentos ópticos.
— Nunca ouvi falar — admitiu.
— Segundo as cartas de Lovell...
— Espere aí. O senhor tem cartas escritas por Bernard Lovell?
— Comprei-as da família dele. Ele escrevia espora-dicamente para a irmã, em Charlestown. Numa das cartas ele se refere a uma cura imperfeita. Sabem, a princípio, pensei que se referia à sua perna aleijada. Lovell tinha sofrido um ataque leve de poliomielite e claudicava um pouco. Foi só nestes últimos anos que, ao reler aquelas cartas, notando o estilo circunspecto e pouco natural com que construía suas frases, é que outra possibilidade me ocorreu.
Padre Malcolm aproximou-se deles. O rosto estava transformado por entusiasmo, temor e uma indefinível ansiedade.
— Entendam, na Igreja Católica, nenhum homem que, a qualquer tempo, tenha sido vítima de possessão, pelo prazo que for, pode se tornar padre.
— Mesmo que esteja curado? — Anita indagou.
— Mesmo assim.
Anita fixou perplexa. - Vocês precisam entender a astúcia do inimigo — o jesuíta insistiu. — Seria tão típico dar a impressão de cura, e depois... voltar...
— De forma que o senhor acha que Lovell, na verdade, era um agente do demónio? — Mário perguntou.
— Estou plenamente convencido disso.
Uma pesada carga de tristeza pareceu descer sobre o padre. As sombras agora pareciam mais negras, fundindo-se com as paredes distantes, como o palco vazio da noite, e a voz do jesuíta parecia originar-se do âmago de seu próprio sofrimento.
— Muita gente, eu acho, diria que Lovell sofreu um colapso nervoso. Em consequência do isolamento, do sentido de frustração, e de cansaço físico. E, talvez, comece mesmo com cansaço. Exaustão. Uma certa amargura contra a arquidiocese por tê-lo abandonado. Tudo isso, é óbvio, ele não admite para si mesmo. Entrega-se a novas devoções, novos melhoramentos na igreja, que só servem para agravar seu isolamento e seu cansaço. Dai advém o que os Principais da Igreja chamam de aridez da alma. A alma está deserta de consolação. Não pode rezar.
— Continue — Anita pediu mansamente.
Padre Malcolm voltou-se da janela. Por trás de sua cabeça, viam-se pequenos tufos de asclépias flutuantes, dividindo-se em negros ramos mortos.
— Instala-se um sentimento de desgosto. Desgosto com os assuntos espirituais. Desgosto com o esforço físico da oração. Desgosto com a missão da Igreja. O corpo está exaurido, a mente esgotada pelas súplicas longas, ardentes e estéreis. A solidão destrói a personalidade do homem. Uma ? 94 ?
doença, uma melancolia, captura o padre. A isto, Srta. Wagner, dá-se o nome de a negra noite dos sentidos.
Anita meneou a cabeça lentamente, de modo encorajador, incapaz de libertar-se do timbre de risco que soava na voz do sacerdote.
— E o que acontece então? — perguntou baixinho.
— Ele perde o controle. Fica desorientado. Sua alma não tem alicerces. Entra no que os Principais da Igreja chamam de a negra noite do espírito.
— Sim.
— E é neste ponto que um homem que escolheu o serviço divino se mostra mais vulnerável. E Lovell — creio firmemente que Lovell — atingira esse estágio. Estava fisicamente penetrado por Satanás e a ele entregou sua vontade.
Mário soltou um assovio.
— Assim sem mais nem menos? — perguntou.
— É.
Mário sacudiu a cabeça, incrédulo, virou-se e começou a testar as peças do videoteipe. O jesuíta tomou seu silêncio por reprovação. Nas sombras, Anita sentiu que Mário o havia magoado. Aproximou-se do jesuíta e perguntou gentilmente: — Por que comprou as cartas de Bernard Lovell?
— Para aprender tudo o que pudesse sobre esta igreja.
Sabe, meu tio era James Farrell Malcolm.
— O nome não me é familiar.
— Pensei que fosse do domínio público. Sem dúvida, se pesquisaram a igreja...
— Nossa pesquisa levou seis meses — Mário disse na defensiva. — Esse nome nunca foi mencionado.
O sorriso de Padre Malcolm era doloroso.
— Nesse caso, os arquivos da diocese permaneceram secretos. — Ficou levemente indeciso. — Ele, também, era jesuíta. Um estudioso da Renascença. Uma pessoa muito conhecida em Boston. Veio a Cataratas do Gólgota em 1978.
— Por quê?
— Pela mesma razão que eu.
— Exorcismo.
Padre Malcolm confirmou. Seu rosto tinha adquirido uma expressão extraordinariamente tensa. Frustração e amargura fizeram brotar lágrimas em seus olhos.
— Mas ele morreu aqui — Padre Malcolm continuou. — Nesta igreja. Durante o exorcismo.
Anita arregalou os olhos para o jesuíta.
— Por que a cortina de mistério? — quis saber.
Padre Malcolm sentiu a fala paralisada e os pensamentos vazios diante dessa mulher atraente. Finalmente, contou.
— O... o jesuíta que o assistia contou que meu tio começou a gaguejar... a ter alucinações. No auge da missa, começou a trocar as palavras da litania... dando-lhes uma conotação obscena... E... e... nesse ponto... o assistente desmaiou...
— Por favor, não pare — Anita encorajou.
Padre Malcolm virou-se para ela com uma expressão estranha, quase hostil.
— Que... quando o assistente recobrou consciência, ele... ele viu meu... meu tio... James Farrell Malcolm... co...
copulando... com... — O jesuíta soltou uma gargalhada terrível. Completamente sem calor. O rosto forte parecia a cabeça da morte contra as janelas escuras. A gargalhada morreu instantaneamente. Seus olhos estavam fundos, cheios de mortificação. — Com um animal do campo!
Com um gesto dramático, apontou para a pedrella vazia, onde outrora ficava o altar.
— Bem ali! — exclamou com amargura.
O frio aumentou dentro da igreja. Um frio de rio de água das margens de argila. A umidade gelada pingava das paredes internas. Mário olhou à volta. O som de água pingando ecoava pela igreja. Um som que não estivera lá na noite anterior, e que agora o irritava. O padre o irritava. As complexidades para a montagem dos equipamentos tinham se tornado mais difíceis do que imaginara, e isto também o irritava.
— E o que o faz pensar que o senhor é diferente? — Mário perguntou com grosseria.
Padre Malcolm empalideceu.
— O que quer dizer com isso?
— Ora, primeiro Bernard Lovell, e depois seu tio. Dois padres. Um se dedica à necrofilia e outro à bestialidade.
Trêmulo, o padre inclinou-se, braços cruzados.
— Tem razão. É assim que ele trabalha em Cataratas do Gólgota — Padre Malcolm comentou. — É nesse nervo que ele toca.
— Quem toca no nervo? — Mário perguntou bruscamente.
— Satanás, Sr. Gilbert — Padre Malcolm respondeu com simplicidade.
Uma explosão de riso grosseiro escapou dos lábios de Mário.
— Satanás! — ele gritou. — Querubins! Serafins!
Dominações, Virtudes, Poderes e Principalidades! Essa droga de igreja é uma arena para vocês, padres!
— Na verdade, Mário — o jesuíta concordou, — é uma estrada sombria, infestada de mal, a que o sacerdote palmilha — tão cheia de armadilhas, tantas maneiras de derrotá-lo.
Mário jogou uma prancheta sobre a caixa de peças. O ruído desfez a atmosfera.
— O que derrota os padres — Mário atacou, — é o que fica fermentando em suas almas desde que São Paulo teve a brilhante idéia do celibato.
— Isso é um insulto — Padre Malcolm protestou. — Meu tio era um homem refinado, que encontrou vários canais...
— Menos o canal natural.
— Há outras expressões de amor que não a genital.
— É mesmo? Então, me conte — virou-se para Anita. — Durante dez anos fiz confissões. E você sabe o que é que eles perguntam, Anita? Você se tocou? Você tocou outra pessoa? Alguém tocou em você? Onde? Como? Qual foi a sensação? É isso que eles estão morrendo de vontade de saber: qual foi a sensação! E, quando não estão perguntando, estão procurando descobrir com as próprias mãos abençoadas.
O jesuíta ficou pálido.
Mário notou o olhar de advertência de Anita. Por vários segundos, ficou mexendo desajeitadamente com o
equipamento de vídeo. Seus olhos estavam negros e úmidos de raiva reprimida.
— Olhe a pedra sobre a qual Pedro construiu — Mário disse em voz baixa. — Levante-a e veja o que rasteja embaixo dela. Celibato. Toda a Igreja foi construída contrária à natureza.
O jesuíta levantou-se, arrumando o cabelo para trás.
Para Anita, sua revelação havia feito dele um homem mais velho, um homem que tinha provado do pouco sutil tempero de degradação da Igreja.
Será contrário à natureza, Anita? — ele perguntou. — Já não sei mais nada. A Igreja está mudando... devagar... mas sem retorno.
O jesuíta foi até a porta da igreja. Anita fez um gesto que era um pedido para que Mário se desculpasse, mas este limitou-se a sacudir a cabeça.
— Sinto muito se falamos sem respeito — Anita desculpou-se. — Nossos sentimentos sobre esse assunto também são muito arraigados.
— Deus nos permite que a verdade vença nossos sentimentos — Padre Malcolm sentenciou.
Deu boa-noite com um gesto de cabeça e retirou-se para a reitoria.
Mário e Anita voltaram ao furgão. Mário abriu uma garrafa de vinho e começou a beber.
— Ele me deixou louco de raiva — Mário comentou. — Aquela santidade toda foi, para mim, como uma unha arranhando um quadro-negro.
Anita manteve-se em silêncio. Despiu-se. Mário, nu, analisava os mapas sismográficos. Estes também revelavam a ligeira pressão que havia aparecido atrás do padre.
Arrumou os mapas na prateleira, apagou a lanterna, e deitou-se ao lado de Anita. Deu uma risada.
— Qual é a graça?
— O tio do Padre Malcolm. Espero que o animal do campo já fosse maior de idade.
— Mário, foi uma tragédia. Não teve graça alguma.
Mas o riso de Mário era contagioso.
Anita sentiu os braços dele ao redor dos ombros, a mão sobre seu seio. Pelas janelas laterais, viram as estrelas agrupadas em densa confusão de constelações. Os campos estavam frios, e as touceiras gemiam e se roçavam nas brisas ligeiras. Galhinhos secos batiam no furgão. Mário ficou de quatro.
— Hei! — ela murmurou. — O que está fazendo?
— Sou um animal do campo.
Ela tentou afastar aqueles ombros poderosos, fazendo força para não rir.
— Você se portou como um animal do campo lá na igreja.
— Gosto de ser um.
Os mamilos se intumesceram. Não conseguia afastá-lo.
O riso dela filtrava-se por entre os dentes cerrados. Puxou Mário para baixo, para dentro da languidez que a dominava.
De repente, como pássaros voando dos galhos, seu corpo adquiriu movimentos rítmicos e seus gritos plenos escaparam pela noite.
Aconteceu tão depressa, que a pegou desprevenida. A transpiração umedecia seus cabelos e os colava à testa. Num estado de doce exaustão ela sorriu e franziu o rosto. Mário a penetrou. Os dedos delicados de Anita brincavam pelo dorso arqueado. Acariciaram os cabelos espessos e anelados. A musculatura dos ombros de Mário se retesou, as nádegas se contraíram. Abruptamente, ele gemeu. O corpo pesado estremeceu, e em seguida estremeceu mais devagar.
Em pleno orgasmo do homem, Anita imaginou, não aquela fome avassaladora e sombria em seus braços, mas, inexplicavelmente, o rosto pálido e hesitante do jesuíta na igreja.
Lentamente, Mário rolou para um lado. Olhou para ela como através de um sonho nebuloso.
— Está tudo bem? — ele murmurou.
— Tudo está maravilhoso — ela assegurou sorrindo.
Enquanto Mário dormia, ressonando baixo, a mão pousada em seu ombro, Anita contemplou as estrelas pie-la minúscula janela no teto do furgão. O que teria trazido o jesuíta a este lugar? indagou-se.
Algo confuso, psicopatológico? Ou a estranha beleza, a fome espiritual que vivia e respirava em Cataratas do Gólgota?
Mário sonhava, num universo de sombras, amoral, que desconhecia a vergonha; um alívio imenso para as suas profundas ansiedades. A criança surgiu em seu rosto adormecido. Confiante, inocente, vulnerável. No decorrer do trabalho do dia, e durante o sexo à noite, aquela criança era sufocada pela força de sua energia brutal e propulsora.
Em seus braços, Anita sentia-se como uma ave selvagem aninhando-se num oceano escuro, batido pela tempestade.
Mas, seria suficiente, a extraordinária libertação dos sentidos? A delicada Anita, a criança refinada da sociedade do norte do estado de Nova Iorque, a cuidadosa escritora científica, desejava um lugar quieto onde se expandir, ir em busca de sua própria natureza. Mas, o que, na verdade, seria essa natureza?
Lembranças de uma outra ecologia flutuaram agradavelmente pelas lembranças de Anita. Ela resvalou para uma larga vastidão de campos ondulados ao redor de uma branca casa colonial. Seven Oaks, que há três gerações vinha sendo o lar de sua família. E, em imaginação, viu-se cavalgando Tredegar, o belo garanhão árabe castanho, saindo da longa estrebaria de telhado baixo.
Seven Oaks havia sido construída ao redor de uma casa do século XVII, que agora continha o salão de estar, um telhado inclinado, e uma enorme lareira de ferro. Os armários de louça tinham iluminação própria. Os quadros nas paredes pertenciam à escola francesa, é depois da sala de jogos ficava uma piscina coberta, de pequenas dimensões.
Era Natal quando Mário visitou Seven Oaks pela primeira vez. Iledda tinha trabalhado o dia inteiro, às voltas com gansos e bolos, na cozinha. A Sra. Wagner servia xerez em frente à lareira, e a neve caía; caía com a pureza recordada da inocência da infância de Anita.
Mário sentou-se, deliberadamente descansando as botas de motociclista na banqueta finamente bordada, respondendo à Sra. Wagner através de grunhidos e monossílabos. Anita intimamente reconheceu que os feriados caminhavam para a catástrofe. À educada conversa da Sra. Wagner, quer sobre escritores modernos, muitos dos quais conhecia pessoalmente, quer sobre pintura, Mário retribuía com um silêncio oco e hostil. Foi só quando Anita e sua mãe puseram-se a recordar a figura do pai, que Mário voltou à vida.
O pai de Anita tinha sido corretor da Bolsa até o acidente fatal com o avião. Mário estava interessado na Bolsa de Valores. Era, à época, um fervoroso marxista que vislumbrava sinais de conspiração em qualquer flutuação do mercado de ações, benefícios fiscais a empresas, e nas declarações de renda dos ricos. Alguns poucos comentários rudes de Mário dispersaram a atmosfera de perda, nostalgia e refinamento.
Nem as coisas melhoraram quando Mário caminhou ao lado de Anita para as estrebarias. A vastidão das terras embranquecidas pela neve, os fazendeiros trabalhando a propriedade visando aos incentivos fiscais, os soberbos cavalos árabes eram, para Mário, os reflexos de uma ciasse que perdera a integridade e vivia no passado. Em cada sinal de luxo, ele via o epitáfio de uma centena de vítimas da miséria, da sarjeta, das drogas, da violência.
Nem Mário ignorou o significado do olhar dirigido pela Sra. Wagner à filha. O olhar dizia bisonho e mal-educado e grosseirão.
Mário aprendeu a cavalgar numa única tarde. Era um atleta nato. Como também desprezava a piedade da Sra. Wagner, esforçou-se para não parecer tolo aos olhos daquela mulher.
Apesar da capa de cinismo, Mário estava completamente fascinado com Seven Oaks. Já de antes sabia, sem sombra de dúvida, que Anita pertencia a um tipo de vida que ele não poderia sequer ter suspeitado que existisse. A Sra. Wagner possuía uma integridade própria, e Mário sentia-se vagamente atemorizado pela segurança que dela emanava.
Os convidados para a ceia de Natal, em sua elegância cara mas informal, as mulheres cobertas de jóias, os homens em macias camisas de colarinho aberto, gradualmente notaram que o jovem sombrio ao lado de Anita ardia em uma violência que eles jamais haviam tido a necessidade de defrontar. Mário estava bebendo em excesso. O esforço para usar os talheres certos o aborrecia. A conversa sobre os coros das igrejas locais, os passeios de trenó, ao luar, em Nova Iorque, deixavam-no tenso.
— Passeios de trenó? — ele resmungou. — O que vocês todos pensam que a vida é? Um eterno piquenique?
A conversa murchou.
— Vocês poderiam alimentar um orfanato inteiro com o que gastam para passear seus traseiros sobre a neve!
Anita, intensamente ruborizada, pousou a mão em seu braço. Tarde demais. Mário desvencilhou-se.
— Vocês vivem na ficção! — ele disse, pondo-se de pé e apontando para a mulher que lhe ficava mais próxima, de penteado cuidadosamente feito, que retribuiu o olhar, espantadíssima, os dedos entrelaçados no fio de pérolas.
— E tudo o que possuem, trenós e cavalos, jóias, paraísos fiscais, um dia, um dia tudo isso lhes será tirado pelo povo que foi obrigado a viver na realidade!
Embaraçado pelos olhares, humilhado, embriagado, e ainda furioso, Mário fugiu da claridade vermelho-escura da requintada sala de jantar, com suas cristaleiras iluminadas, correu para a cozinha e depois saiu cambaleante pela neve.
Os presentes evitaram fitar Anita, e ocuparam-se em brincar com a comida em seus pratos. Anita, jogando o guardanapo sobre o prato, saiu correndo atrás de Mário.
Ele tropeçava, furioso, pela neve, na direção da silhueta do casario da fazenda, sob as estrelas. Então, parou. Um abismo decisivo e profundo o separava da paisagem.
— Ou eu ou eles — murmurou, sentindo a presença de Anita às suas costas. Virou-se. Em seus olhos havia uma expressão, ou de nostalgia e de perda pela infância que jamais tivera, ou de ira, eia não saberia definir.
— Se eu vivesse cem anos — ele insistiu, — não conseguiria jamais me adaptar a eles. Ou à sua mãe. Ou a essa parte de você.
Apertou os ombros trêmulos entre seus dedos fortes, olhando fundo nos olhos dela.
— Você não entende? — perguntou desesperado. — Você tem que fazer sua escolha agora, Anita.
Anita contemplou o rosto hostil, no entanto vulnerável, e viu imediatamente que Mário tinha razão. Sevem Oaks jamais se enquadraria em sua epistemologia. Ele jamais perceberia, jamais sentiria a vida que a havia moldado e que ainda corria em suas veias. Mário não poderia suportar tal superioridade às suas origens miseráveis.
Anita descansou sobre aquele coração quente que batia.
— É você, Mário — ela sussurrou. — Será sempre você.
— Anita — Mário murmurou, meio adormecido.
Ela voltou ao seu abraço, mais carinhoso agora, sua enorme e desarmada carência envolvendo-a com ternura.
Não tornaram a fazer amor, simplesmente deixaram-se ficar abraçados, e ouviram a brisa passando pelo vale.
— Anita — Mário disse baixinho, trazendo-a para mais perto, numa estranha mistura de orgulho e afeição.
Contudo, o mistério da missão do jesuíta continuava a tantalizá-la. Mesmo estando ao lado de Mário, sua mente vagava livre. Até sentir-se dividida em duas metades diferentes e perfeitas.
O Siloam, turbulento e profundo, corria alto pelas ribanceiras de argila.
Padre Malcolm sentiu-se vazio pela longa confissão aos parapsicólogos, que o deixara inquieto. Mário mostrava-se antagônico. Anita pouco sabia do catolicismo. Suspirando, dedicou toda a sua atenção aos preparativos para o exorcismo.
Examinou o cálice de prata, em sua caixa forrada de veludo azul. O cálice refletiu seu rosto desfigurado e também a panóplia de estrelas além da janela da reitoria. Em compartimento separado, estava a bandeja de prata, a patena, na qual descansaria o Bendito Corpo do Senhor, a própria Hóstia. Examinou depois o véu umeral, o guardanapo de linho bordado que protegeria a patena do contato de mãos humanas. Estava imaculado. Sentiu-se seguro.
Em outra caixa estava o lavabo, a pequena bacia dourada que receberia a água depois da ablução. Envolvidos em panos, estavam o turíbulo e as cápsulas de incenso. Num pesado jarro estava a água gregoriana, e o crisma, e a água benta. A tudo, Bispo Lyons dera sua bênção, e ofertara a ele depois da investidura.
Outras caixas, altas silhuetas negras, continham os outros objetos do exorcismo.
Um vulto moveu-se pela cerca do cemitério. Era o parapsicólogo Gilbert. Nu, urinou voluptuosamente na sebe, e depois voltou ao furgão.
Mais uma vez, inesperadamente, a visão do Potomac invadiu o devaneio de Padre Malcolm, um hotel e uma balaustrada branca. Na varanda, ele sentado, numa agonia de espera, o sangue latejando em seus ouvidos. Sobre a colcha branca, o chapéu verde-escuro de uma mulher.
De volta à reitoria, Padre Malcolm ajoelhou-se para as orações. Quando sua mente serenou um pouco, ele deitou-se no catre duro, puxou o cobertor sobre o corpo despido, e caiu num sono atribulado.
CAPÍTULO CINCO
MÁRIO DESPERTOU às 4h 30m da madrugada e silenciosamente dirigiu-se à igreja. Os instrumentos chiavam baixinho. Mário ficou sossegado. Nem o sismógrafo nem a câmera a laser mostravam qualquer perturbação; porém, sentia-se relaxado e confiante entre sua aparelhagem eletrônica. Tinha nascido para isso. De resto, a igreja estava vazia, à espera. Chutou os fios para junto da parede.
Desligou as luzes do sismógrafo. Depois, quando se preparava para ir embora...
— Jesus Cristo!...
Contra a parede norte, oscilando como uma borboleta presa, havia uma auréola de luz azulada.
Deslizava lentamente, ondulante, caindo para o chão.
Mário ergueu o braço e fez movimentos sobre a luz que se movia.
Não houve sombra. A luz possuía finas estrias internas de forma branco-azulada, e subitamente bruxuleou e apagou-se. Os sistemas de temperatura registraram uma queda de quase 5° na parede norte.
Aparentemente, parecia ter vindo de fora, Mário pensou.
Fora, não deste espaço, mas deste tempo. O modo como se movera rapidamente ao desaparecer implicava em uma geometria de ordem desconhecida.
Mário fez vigília na igreja escura e deserta. Cada som, cada pio de passarinho, cada estalido de galho pela reitoria, deixava seus nervos à flor da pele. Mas, depois de duas horas, os sinais cessaram, Virou-se para o sismógrafo na parede norte, tornou a ligá-lo, e regressou ao furgão.
Anita dormia, os braços jogados para trás, os cabelos negros cobrindo um seio, o sono profundo da sexualidade satisfeita. Acordou-a.
— Luminescências — ele explicou em voz baixa. — Há cerca de duas horas.
Anita despertou sobressaltada, vestiu um par de calças e uma blusa de flanela quadriculada sobre o corpo nu, e depois calçou as pesadas botas de trabalho.
— Fora?
— Dentro. Parede norte. Forma completa, em metamorfose.
— Temperatura de cor baixa?
— Não. Azul.
Anita foi rolando um cabo de energia do gerador à frente de Mário que carregava uma pesada câmera preta para dentro da igreja.
Esse aparelho era um câmera infravermelha, chamada termovisão. Em seu interior havia um frasco Dewar contendo nitrogênio líquido. A câmera tinha sete paradas-f e focalização manual, e registrava discrepâncias de temperatura de até menos de 2/10 da escala Celsius.
Mário montou a termovisão na parede norte. Quando Anita acabou de ligar os cabos torcidos, o vento leste estava soprando numa opaca luz parda. A neblina do rio gotejava incessante, dentro da igreja, formando poças no chão.
Na tela da termovisão, a arquitetura da igreja apresentava-se como uma confusa mistura dos marrons e ocres de Vau Dyke.
Padre Malcolm entrou na igreja, surpreso ao vê-los de pé tão cedo. Trazia na mão uma bacia com massa e uma espátula.
— Outra câmera, Mário?
— Tivemos uma luminescência esta madrugada, às 4h 15m.
O jesuíta seguiu o olhar de Mário para o aparelho de termovisão. A parede norte mostrava-se completamente nua de marcas. Mas, no interior da igreja, a tensão era inequívoca.
— Acho que o senhor estava dormindo — Mário comentou.
— Para falar a verdade, estava rezando.
— Nesse caso, suas orações devem ter surtido efeito.
Alguém respondeu a elas.
O jesuíta preferiu ignorar o sarcasmo. Começou a pôr massa nas colunas seriamente danificadas.
— Os olhos da fé — ele disse — verão o que suas câmeras jamais poderão registrar.
— Venha cá, Padre Malcolm. Isto é o que eu vejo.
O jesuíta postou-se atrás da termovisão. Contra os castanhos opacos da tela, havia uma suave cintilação rósea.
— O que é esse rosa? — Padre Malcolm perguntou.
— O calor do corpo de Anita.
Na tela, Padre Malcolm discerniu uma figura quase transparente, os braços estendidos para a frente, fazendo anotações.
Mário ajustou o anel da parada-f. As cores tornaram-se mais vívidas. Padre Malcolm observou o crânio brilhante, as órbitas negras dos olhos e das fossas nasais. Roupas não eram visíveis. O calor do umbigo, das axilas e dos seios de Anita emanava vermelho.
— Extraordinário — o sacerdote admitiu.
— Os dias do tarô acabaram-se há muito tempo, Padre Malcolm.
— Sem dúvida.
Padre Malcolm surpreendeu-se observando a figura, vagamente humanóide, e o calor que se desprendia da junção das coxas. Constrangido, deu meia-volta.
— Com instrumentos assim — Mário explicou — podemos alcançar áreas nunca antes acessíveis à observação.
— Pode não trazer bem algum, Sr. Gilbert — o jesuíta disse, afinal. — O homem vai depressa demais. Longe demais. E nem sempre sabe o que está fazendo.
— Raios-X e microcirurgia — Mário contra-argumentou.
— Acha que são coisas más?
— Bombas de napalme e armas nucleares, Sr. Gilbert.
Acha que são coisas boas?
Mário deu de ombros.
— São os políticos que encomendam as armas e as usam. Não se pode culpar alguém como Einstein por pesquisar a natureza da matéria e da energia.
Mas, Padre Malcolm já se afastara para o vestíbulo, carregando a bacia. Suas mãos estavam cobertas de massa ressecada, e sua camisa toda respingada. Mesmo suas sobrancelhas louras e a testa ampla mostravam sinais de massa.
— Tenho pensado muitas vezes — Padre Malcolm disse — que antes de se aplicar a tecnologia às nossas ambições... deveria haver um prévio desenvolvimento para a humildade espiritual.
— Talvez. Mas não posso esperar.
— Dá para perceber que não pode.
O jesuíta começou a aplicar a massa branca nos buracos e rachaduras da base do altar. Isto fez com que as configurações na termovisão se tornassem uma confusão de marrons, alaranjados e verdes, quando corpo quente ou fria espátula passavam pelas lentes. Mário sorriu desanimado, desligou a câmera e saiu da igreja.
Anita, que estivera ouvindo a conversa dos dois homens, falou: — Diga-me uma coisa, Padre Malcolm. Vamos supor que essas luminescências tenham realmente alguma espécie de dimensão espiritual. Por que não poderiam ser os mortos profanados? Afinal de contas, eles foram brutalmente violados, talvez aqui mesmo no chão da igreja, esquartejados, seus membros moldados em várias formas grotescas. Quem poderá dizer que não é vingança o que procuram?
Padre Malcolm não respondeu, e continuou a aplicar a massa maleável rápida e delicadamente pela base rachada.
— É isso o que Cataratas do Gólgota pensa que está acontecendo — Anita insistiu.
O padre virou-se.
— Pois estão enganados — respondeu com simplicidade.
— O retorno à terra não existe. O julgamento das almas é instantâneo e irrevogável.
— O que isso significa?
— Para Lovell, a condenação significa a separação de Deus e a consciência do abandono. Para os mortos desta igreja, se foram legitimamente absolvidos de seus pecados, não precisam temer a segunda morte, que é o sofrimento da alma no inferno.
— E para seu tio? — Anita perguntou.
Padre Malcolm fitou-a. Não parecia haver ironia nela e tinha até mesmo se despojado da postura profissional.
Mostrava-se simplesmente curiosa.
— Posso apenas rezar para que lhe tenha sido permitido dar-se conta de sua degradação, antes de morrer. Que tenha pedido perdão.
Descansou a espátula e aproximou-se de Anita. Seus olhos brilhavam.
— Entenda, creio que Cristo, em sua encarnação humana, padeceu da dúvida, da alienação, do horror abismal do aniquilamento. Foi a noite negra do espirito o que Ele sofreu na cruz fincada no Gólgota. O mesmo se deu com Bernard Lovell. O mesmo com meu tio. O mesmo que qualquer ser humano sofrerá em algum momento. Só que, sendo o Cristo, Ele triunfou sobre a anarquia mental, degradante, obscena e destruidora, e, assim, nos redimiu a todos nós que cremos no Seu sacrifício.
Engoliu. Viu que ela prestava atenção. Seu olhar correu pelas ruínas à volta deles.
— Nesta igreja — ele declarou — dois homens em Cristo defrontaram-se com sua negra noite e falharam. Amanhã será minha vez.
Anita estava visivelmente emocionada. Brandamente, ela comentou: — Então, Mário tinha razão. Esta igreja é a sua arena.
O sacerdote acercou-se dela até chegar a poucos centímetros de seu rosto. Anita sentia nas faces a respiração dele.
— Sim, Anita — ele murmurou. — Amanhã darei combate ao mais poderoso adversário de Cristo. — Seus olhos faiscaram, o rosto estava tenso de determinação.
— Não posso falhar.
Mário avançou pela nave, carregando um gravador de videocassete.
— Ora, se não temos aqui uma ceninha íntima — ele resmungou.
Anita riu, de repente, o rosto em brasas.
O jesuíta, confuso, afastou-se dela. Ela, aparentemente, recaiu no ceticismo teimoso de Mário. Será que a subestimara? Será que ela estivera simplesmente a sondá-lo com propósitos científicos? A expressão de Anita estava além de qualquer definição. Padre Malcolm deu-se conta de que não possuía parâmetro que o ajudasse a decifrar o comportamento de uma mulher.
Sentia-se completamente perdido na presença de Anita.
*
Nas pesadas trevas que invadiam o vale, os vaga-lumes voavam entre as touceiras. Espalhavam-se em nuvens vindas do rio, em movimentos em leque, circundando a igreja. A atmosfera permeava-se de uma poeira fina que descia sobre a igreja, infiltrava-se para dentro do furgão, e assentava-se na reitoria. Sob ela, Cataratas do Gólgota escureceu. O Siloam nivelou-se numa negra turgescência viscosa. Era quase meia-noite quando Padre Malcolm saiu da igreja. Suas calças e camisa estavam cheias de sujeira. Os braços respingados de massa e gesso. Pensou ver uma luz no furgão e caminhou rapidamente pela alameda. Subitamente, parou.
— Mário — ouviu a voz de Anita sussurrante — ainda não... ah... ainda não...
Um ruído surdo, corpos em movimento, e a respiração estertorante de um homem.
— Ah... sim... Mário, sim, sim. Agora! Agora!
O furgão balançava-se espasmodicamente, e as touceiras, erguendo-se como espinhos, pareceram subitamente mãos se elevando para agarrar o ar obscurecido do vale.
O jesuíta virou-se precipitadamente. No movimento apressado, seu tornozelo enroscou-se no súbito abraço dos fios enrolados de Mário, que estavam sobre a grama. Como se solo e ar viessem repentinamente ao seu encontro, o jesuíta sentiu seu corpo cair pesadamente sobre cabos e arbustos.
Ouviu o próprio coração acelerado. Absurdamente emaranhado nos espinheiros, viu a porta do furgão abrir-se.
Era Mário, nu, furioso, segurando uma barra de ferro.
— Quem está aí? — Mário perguntou.
— Mário... sou eu...
Mário riu sem rancor.
— O que deseja, Padre Malcolm? Não veio abençoar o ato do amor, veio?
Padre Malcolm enrubesceu tão violentamente que, mesmo no escuro, Mário percebeu-lhe o rubor.
— Vim ver se você poderia me ajudar com o altar.
— Altar?
— Tenho um novo lá na reitoria. Mas é pesado. E não temos muito tempo.
Mário deu uma espiada em Anita, que estava no fundo do furgão, cobrindo a nudez com a manta do saco de dormir.
Mário vestiu as calças e, de peito nu e pés descalços, seguiu Padre Malcolm ao longo da parede sul. A beira do cemitério era um caos de insetos brancos que se atiravam contra eles em pequenas nuvens.
— Pra que essa pressa toda, padre?
— Amanhã é domingo.
— E que tem isso?
— A igreja deve ser reconsagrada num domingo.
As janelas góticas pareciam mais escuras do que os campos iluminados pelas nuvens. Mário mal percebeu sua aparelhagem entre as caixas trazidas pelo jesuíta.
Na reitoria, o padre ficou parado à porta. E viu as marcas vermelhas pelo peito e costas de Mário. Como se garras o tivessem arranhado.
— O que é que há? — Mário perguntou.
— Nada, não. Desculpe. Cuidado com o chão da reitoria.
Está cheio de pregos.
Uma grossa vela branca, queimada até quase a base, iluminava o interior. As túnicas do jesuíta estavam penduradas na parede menor. Na mesa da cozinha estavam os acessórios dos paramentos. Mário reconheceu a sacola de pano preto que seria usada ao ombro para receber a Hóstia antes da consagração. Havia um crucifixo pendurado na parede. A reitoria fedia, não apenas devido às maçãs podres debaixo do assoalho, mas também de suor humano.
A uma grande distância, o ronco baixo de um trovão morreu atrás dos morros invisíveis.
Pelas janelas, Mário viu o lado inferior de nuvens negras iluminando-se vivamente, e o amplo fulgor de um relâmpago abaixo do horizonte.
Padre Malcolm retirou o lençol de proteção que cobria a pesada base de nogueira de um altar. A frente dessa base tinha uma inscrição com o nome de Cristo — IHS — circundado por peças de nogueira em sentido contrário.
— Esse é o altar?
— Só a base. Vamos montar o altar dentro da igreja.
Com um gesto, Padre Malcolm pediu que Mário levantasse uma das extremidades. Pesava quase 50 kg e tinha uma forma desajeitada, como topo menor do que o fundo. Carregaram-na com grande esforço peia reitoria, depois pela alameda sul, transpirando abundantemente, embora o vento começasse a soprar, fresco e seco.
A igreja encontrava-se mergulhada em trevas extraordinárias; o ar, como éter, sufocante. Novamente, foram manobrando a base do altar, levando-a para o plano do altar, um único degrau mais alto. Abaixaram-na devagarinho, dentes trancados e faces trêmulas. Mário apoiou-se na base, tentando recuperar o fôlego.
O jesuíta já havia pendurado dois grandes crucifixos nas paredes, Cristos expressionistas estendidos sobre aras de cruzes douradas.
Vários frascos e vidros tampados estavam arrumados no chão, para o exorcismo, bem como doze castiçais para velas.
Ao lado do altar, esperando pelos linhos, estavam o tabernáculo ornamentado, as galhetas de água e vinho, e velas cor de ouro numa caixa alongada perto de um candelabro dourado. Dentro de uma caixa de papelão estava a lamparina do altar, o vidro protetor vermelho-rubi e as lustrosas correntes de cobre.
No ponto onde Padre Malcolm tinha pregado tábuas novas de modo pouco artístico mas eficiente, formando uma plataforma rasa, abaixaram a base do altar. Padre Malcolm concentrou-se em ajeitá-la até que ficasse centrada. Depois, carinhosamente, acariciou seus lados.
— Está vendo? — ele disse. — A pedra do altar entra em contato com a terra através do chão. Assim, vai ser o mediador entre Deus e o homem.
A pedra do altar era tão mais pesada que tiveram que dar passos miudinhos, arrastando-a pelo chão. Quando conseguiram montá-la nas junturas da base, a mesa maciça de pedra e madeira encaixou-se facilmente.
O padre inspecionou os quatro pontos de apoio do altar.
— O contato jamais pode ser quebrado — apressou-se em explicar.
— Por quê?
— Se o contato é interrompido entre a pedra do altar e a base, mesmo que seja por um segundo, o altar terá perdido a consagração.
Padre Malcolm agora começou a desdobrar várias peças de linho branco, que tirava de uma sacola de couro preto.
Retirou a embalagem e estendeu a toalha de frente, o antepêndio, sobre o altar. O antepêndio exibia o Alfa e o ômega, bordados, que cintilaram na escuridão.
Antes que a toalha cobrisse o altar, Padre Malcolm lançou um rápido olhar à pedra mosqueada e nua. Era levemente inclinada, levemente côncava. A longínqua descendente, Mário sabia, das pedras de sacrifício, que eram caneladas para que o sangue das vítimas pudesse escorrer.
Com muito amor, Padre Malcolm colocou a toalha de linho da parte posterior, o pálio, no lugar. Depois, apanhando do chão o tabernáculo ornamentado, depositou-o sobre o altar.
— Alguma dessas coisas é consagrada? — Mário perguntou.
— O quê? Não. Ainda não. Algumas peças ainda estão na reitoria. Mas o altar, tal como a igreja e o cemitério, ainda são profanos.
O sismógrafo, quando Mário deu uma olhada nele, mostrava tremores pela parede norte.
— Mário...
Surpreso com o tom de voz, Mário virou-se para o jesuíta, cujo rosto estava extraordinariamente pálido.
— O que foi? — A lamparina do altar... não consigo tirá-la da caixa.
Sem entender, Mário foi até a caixa de madeira. As correntes de cobre estavam enroladas sobre uma pequena lamparina redonda, com o vidro vermelho protegendo o pavio.
— O cobre quase não tem peso — Mário comentou. — Qual é o problema?
— Se você puder... fazer o favor...
Mário estendeu o braço para a lamparina, sentiu um peso residual, extraordinário, como se
algo inconcebivelmente poderoso a puxasse para baixo. Foi o que sentiu através das mãos. A resistência foi diminuindo, pouco a pouco, e Mário levantou a lamparina ao peito, do mesmo modo que um levantador de peso aninha 75 kg de ferro nos braços. Lentamente, a lamparina de cobre foi ficando cada vez mais leve, até tilintar normalmente nas mãos de Mário.
O sismógrafo parou de registrar tremores.
— Muito obrigado — Padre Malcolm disse nervoso, enxugando a testa, onde a transpiração brilhava. Fitou Mário de modo estranho, como que temeroso.
— Você não me perguntou se havia alguma coisa consagrada dentro desta igreja? Eu disse que não, e estava errado. Há uma coisa, sim.
— O quê?
— Eu sou consagrado.
O aparelho de termovisão registrou uma queda acentuada na temperatura, quando o Siloam resfriou com o ar noturno. No entanto, o ar no interior da igreja era fétido, quente e debilitante como um forno a carvão.
Padre Malcolm olhou incerto ao redor. Os únicos ruídos eram os dos consoles com seus cicios baixos. Os grilos haviam subitamente ficado silenciosos, como se o vale fosse vítima de uma invasão.
O padre cobriu as toalhas do altar com o lençol de proteção. Com o auxílio de Mário, pregou a lamparina do altar, que ficou pendurada num elo da corrente, sobre o altar.
A lamparina começou a tremer sobre o altar profanado.
Aos poucos, sua chama firmou-se.
— Agora, eu vou para a reitoria — Padre Malcolm anunciou. — Para meditar e rezar.
Tinha o ar de quem queria dizer muito mais. Só que já não havia tempo. Algo tivera início. Os olhos tinham o brilho de um estranho medo e um tique nervoso surgiu no canto de sua boca.
— Você pode vir me buscar ao nascer do sol? — perguntou.
— Claro.
— Obrigado, Mário.
O jesuíta, cheio de nervosismo, passeou o olhar pela igreja. Os frascos, caixas e utensílios estavam arranjados com a máxima eficiência. Revisou mentalmente o ritual do exorcismo, satisfeito que tudo estivesse no lugar certo.
Saíram, pela porta, para o frio. Padre Malcolm trancou a porta da igreja, e entregou a chave a Mário, — Fique com ela — Padre Malcolm instruiu. — Amanhã, quando eu disser, use-a para abrir esta porta.
Perplexo, Mário concordou, guardando a chave no bolso.
— Nem mesmo para checar seus equipamentos — Padre Malcolm preveniu.
— Certo.
Padre Malcolm virou a cabeça para olhar a porta fechada. O luar estava fraco, e batia obliquamente na madeira desgastada pelo tempo.
— Quem sabe seus instrumentos nos trarão sorte — ele comentou sorrindo. — Boa noite, Mário.
— Boa noite, Padre Malcolm.
E ficou observando Padre Malcolm, cabisbaixo, preparando-se para o exorcismo, passar pelo cemitério.
Mário encontrou Anita no furgão, olhos fitos adiante do pântano.
Mário parou de supetão.
— O que está havendo?
Anita apontou para o cemitério. Os pedregulhos, entre a erva-de-santiago, tremiam e rolavam para a frente como os feijões saltitantes do México.
— RSPK (2) não diferenciada — ela comentou em voz baixa.
— Isto está acontecendo desde que vocês dois levaram aquele altar para dentro da igreja.
Os pedregulhos rolavam em ondas, entrecruzando-se, soando, ao se tocarem, como ossos que se chocam. Depois, aninharam-se de volta ao pó.
— Você acha que é o padre? — ela perguntou.
(2) RSPIS — Recurring spontaneous telekinesis — Telecinese espontânea intermitente (N. do T.)
Mário deixou-se cair, friccionando o rosto, lutando contra o cansaço.
— Bom, sem dúvida ele anda catalisando coisas desde que chegou. Acho que são projeções dos seus próprios problemas emocionais. — Mário cobriu os ombros nus com a jaqueta de couro.
— Seja como for, quanto pior para ele, melhor para nós.
A brincadeira de amanhã deve manter nossas agulhas muito ocupadas.
Pela primeira vez, desde que o conhecia, a rapidez, a agilidade mental, a agudeza de cálculo de Mário discordavam frontalmente do que ela sentia. O charme mascarava a grosseria do pensamento dele. Ela perguntou-se se aquela rispidez não o teria deixado cego, se não o fizera inclinar-se para a teoria errada, por pura teimosia mal dirigida.
Mário levantou a mão.
— O que é? — ela perguntou.
Ficaram à escuta. A voz do jesuíta vinha da reitoria, passando pelos montes de lixo queimado. Uma voz em pleno vigor, desnudada numa terrível nudez. Anita sentiu seu coração inundar-se com aquela voz.
— Inimigo da raça humana — fonte da morte — ladrão da vida — raiz do mal — sedutor de homens — serpente da imundície — por que resistes? Sabes que o Senhor Jesus Cristo destruiu teu plano — O resto se perdeu, porque o Siloam, levado ao frenesi pelo súbito avanço do vento sul, transbordou das margens de argila e encharcou os alicerces da igreja.
— O que ele está fazendo? — Anita sussurrou.
Mário sorriu sem calor.
— Invocando Satanás.
Da reitoria, as trevas pareciam fluir pelas janelas sem vidro, como se estas fossem a fonte da noite. Também a igreja, apesar das luzes monitoras dos instrumentos, despejava trevas pelos peitoris.
— Mas isso... isso é magia negra! — ela objetou.
— Só se usada incorretamente. Segundo a doutrina católica, todas essas perturbações não passam de meros reflexos de seu senhor, Satanás. Assim, como qualquer bom padre, ele tem que invocar o mal original a fim de poder expulsá-lo.
— E, para isso, ele precisa de Jesus Cristo.
Mário sorriu.
— Você pega as coisas depressa, meu bem. E esta noite se resume inteiramente nisso.
Continuaram contemplando os campos e a igreja, mas o vento sul tinha amainado. A voz do jesuíta prosseguia num murmúrio monótono.
— Coitado daquele filho-da-mãe que não sabe quem ou o quê pode ser o enviado do anticristo — Mário disse, penalizado. — Os pedregulhos, o Siloam. Ou, quem sabe, até você.
Anita voltou-se. Mário sorria, mas seu sorriso era ambíguo, e a expressão dos olhos implacável.
— O que foi que disse? — Anita perguntou.
— Que você pode ser o enviado do anticristo. Sem saber.
— Besteira.
— Eu vi o modo como ele olha para você.
Mário deu de ombros, virou-se, e puxou um talo de grama amarela, que prendeu entre os dentes da frente.
— Você está despertando alguma coisa nele, Anita.
— Isso é ridículo!
— Talvez, sim. Talvez, não. Ele pode ser um padre, mas também é um homem.
— Estou achando essa sua conversa de péssimo gosto, Mário.
— E desde quando Anita Wagner virou puritana?
Anita nada disse, embora a raiva em seus olhos fosse suficiente para Mário desviar o rosto.
— Vá até lá e dê uma olhada — ele sugeriu. — Aprecie a Igreja Católica em plena função.
— Prefiro não perturbar a privacidade dele.
— Pois eu diria que é seu dever, como cientista, observar o personagem principal. Especialmente num caso de psico projeção.
Anita percebeu um laivo de sarcasmo na voz de Mário.
Do que a acusava? E, como frequentemente acontecia sempre que Mário a provocava, fez exatamente o que tinha vontade.
Passou pelos carrapichos da alameda da reitoria, e espiou pela janela.
A vela estava quase apagada. A parafina branca pingava no assoalho. Na escuridão, ela podia distinguir o crucifixo do padre, posto inclinado sobre a mesa, as aras estendidas brilhando na direção dela quando relâmpagos de calor fulguravam pelo espinhaço. Anita sentiu a fragrância do incenso. Depois, como uma brisa sussurrante, veio a prece intensa, quase inaudível, de Padre Malcolm. Lembrou-lhe os pacientes em transe que ela e Mário haviam estudado.
Padre Malcolm ajoelhou-se fitando o crucifixo, perdido num mundo que ela desconhecia.
Então, essa é a aparência da alma de um homem, Anita pensou. Mãos e braços empoeirados, minúsculos arranhões nos antebraços, pó estriando-se rosto abaixo, em regos diminutos. O cabelo louro desarrumado e pegajoso. Os olhos fechados.
Será que Mário tinha razão? Será que uma mulher poderia aparecer, aos olhos de um padre em oração, como um agente do inimigo final?
Padre Malcolm ficou em silêncio. Parecia estar à espera.
De fato, Anita sabia que ele estava à espera. Se Mário estava certo, o padre tornar-se-ia o veículo do mais intenso estudo de psicoprojeção dos dois. Mas, nesse momento, ao contemplar o homem, ajoelhado no chão imundo, ocorreu a Anita que o padre poderia, possivelmente, ser o objetivo, a vítima, do fenômeno paranormal e não sua causa psíquica.
O jesuíta levantou o olhar para o fulgurar dos relâmpagos dançando entre as nuvens. Uma extraordinária intimidade a tudo abrangia, inclusive a Anita. Era como se houvesse uma coisa chamada alma, e que emprestava àquela sala cansada uma extraordinária sensação de paz e expectativa.
Anita sentiu-lhe os efeitos purificadores. Casto como o Siloam, ela pensou. Complexo e delicado como as lindas nuvens noturnas. Profundo como o poço de Cataratas do Gólgota.
Uma dimensão dela que voltava a crescer.
Nesse momento, na estrada do serro, um caminhão Ford passou roncando. O motorista grisalho debruçou-se na cabine e ergueu um punho fechado em sua direção.
— Vocês vão morrer, seus idiotas — chegou o grito. — Todos vocês
CAPÍTULO SEIS
O SILÊNCIO da noite era inexplicável. Conquanto o Siloam corresse, jogando galhos mortos para as margens, não se ouvia som algum. O negror era lívido e reluzente, como um sonho, e mariposas brancas adejavam, vindas do pântano em vagos contornos de luz.
Na reitoria, de joelhos, Padre Malcolm esperava. As últimas barreiras do orgulho já estavam destruídas e, contudo, ele não se sentia vazio. Culpas amorfas levantavam-se em sua mente, purgavam-se, e desapareciam.
Lembranças de mesquinhezas, de ira, de ambição, purificavam-se no fogo de sua ardente devoção.
O ego apegava-se às memórias, mas a oração as ex-pulsava e o tornava uno e santificado.
Um dia tempestuoso no Atlântico, quando tinha 12 anos e atingira seu irmão, Ian, com uma verga de barco. O órgão reboando na Catedral de São Patrício, em Nova Iorque, e ele detestando o som e temendo a morte. As lembranças subconscientes se desembaralharam.
O tapete de sua infância, o pai severo, o Tio James, que era jesuíta, brincalhão e gordo, sorridente e meio calvo. Tio James explicando a Companhia de Jesus. O anel de ouro. A cruz na lapela. Aquele homem complexo, que também amara as artes e a beleza sensual, os livros sobre a Renascença, as mulheres idealizadas em jardins luxuriantes, pintadas pelos Príncipes Medici.
Um pedaço de pau no jardim, e nele duas cobras enroscadas, copulando. Tio James apontou para os répteis. E explicou a divisão dos sexos — macho e fêmea, e se meteu no campo de margaridas com uma certa tristeza. Pois, as paixões eram algo de lindo, ele explicou, mas afastavam o homem de sua forma natural de amor — o espiritual.
Havia, porém, outras lembranças. Um longo hotel, com uma balaustrada branca. Abaixo do 2° andar, corria o Potomac, cheio de vapor. Caminhando entre os cipreses, vinha uma mulher, de chapéu verde. Que era a sua própria imagem refletida num espelho, ele pensou, espiando da varanda do quarto. Como Platão dissera, uma única natureza havia sido dividida em duas, a masculina e a feminina, e Eamon precisava da concretização dessa união tanto quanto precisava de salvação.
O nome dela era Elizabeth Alvers, e era professora na Universidade de Georgetown, no Departamento de História dos Costumes. Seus seminários estenderam-se por dois períodos. E, no decurso desse tempo, sentiram mútuo respeito. Que, pelo fim do verão, transformara-se em profunda afeição. No outono, Malcolm reconheceu ter chegado a uma encruzilhada crucial de sua vida, e as opções lhe causavam extrema agonia. Havia apenas duas: o matrimônio com Elizabeth, ou o matrimônio com a Igreja.
Malcolm perdeu peso, seus estudos se ressentiram, e os jesuítas o aconselharam a romper o relacionamento. Ele recusou-se, e passou uma semana com a família Alvers, em Norfolk. Isto não lhe trouxe respostas. Seus planos de casamento fracassaram: ele regressou ao seminário, e dedicou-se à bolsa de estudos.
Por essa época, consultou um psicanalista. Discutiram sua idealização do Tio James e a Companhia de Jesus.
Examinaram a religião sob o prisma da sublimação do desejo carnal. No fim do semestre, formou-se com louvor.
A carta de Elizabeth permaneceu fechada, um ícone do seu amor. Enquanto passava pelos preparativos de iniciação à Companhia de Jesus, sofreu um colapso nervoso e voltou a Boston. E, lá, encontrou consolo nos souvenirs que seu tio trouxera de todas as suas viagens a Veneza, seus escritos eruditos, até chegar ao horror de Cataratas do Gólgota.
Outra carta chegou de Norfolk. Dessa vez ele deu resposta. A solidão de seu futuro estendia-se à sua frente como um abismo. Solicitou sua dispensa como candidato à Companhia. Encontrou-se com Elizabeth num dia em que o Potomac estava úmido e abafado. Aconteceu em Cavern's lnn, um hotel caro frequentado por políticos e suas amantes, fato que veio a descobrir depois de ter-se registrado.
Observou-a chegar pela alameda de ciprestes. Em roupas de tweed, com o chapéu verde-escuro, era sofisticada de um modo que o intimidava. Quando o jantar foi servido na varanda, ele lhe disse, inesperadamente, que havia mudado de idéia. Havia requerido novamente sua matrícula. A vida para ele, fora da Igreja, era inexistente. Elizabeth nem provou o jantar, e o dele tinha o sabor de serragem.
— Por que não escreveu da primeira vez? — ela perguntou. — Eu precisava de você. Você precisava de mim.
Que mal havia nisso?
“Precisar” era um verbo tão ambíguo, que ele se forçou a contemplar novamente o glorioso crepúsculo sobre o Potomac.
— Tive medo — ele disse.
— Por que tem tanto medo de si mesmo? — ela perguntou. — Eamon, é do amor que você tem medo?
Incapaz de falar, horrivelmente envergonhado, limitou-se a ficar olhando o rio.
— É... é a expressão física do amor — ele disse, afinal, a muito custo. — É disso que tenho medo.
Virou-se. Para sua surpresa, nada a deixava zangada, nada fazia com que se envergonhasse dele.
— E, no entanto, poderia ser a união de nossas almas — replicou suavemente. — E que vergonha haveria nisso?
— Nenhuma — ele respondeu. — Vergonha nenhuma.
O chapéu verde ficou sobre a colcha branca. Um símbolo de Elizabeth, de sua vulnerabilidade, de sua sofisticação.
Eamon ansiava pelo amor, havia vivido toda a sua vida na ausência do amor, e ela estava à sua espera.
— Nenhuma vergonha — ele repetiu.
Era madrugada, quando acordou sobressaltado. A toalha na mesa de jantar estava úmida de sereno. Sentada no sofá, Elizabeth descansava contra seu peito, a mão alva pousada em seu ombro. A veia na garganta pálida pulsava suavemente. Seus lábios se moviam, e ela parecia meio acordada e meio dormindo. Ele deu-se conta de ter passado a noite rezando, rezando, e dormindo, e voltando a rezar, lutando com cada fibra devastada de seu corpo paralisado.
Repentinamente, os seios dela fizeram pressão. Com um movimento espontâneo, como fazer carinho a uma criança, ela havia passado o braço ao redor de sua nuca a fim de abraçá-lo.
Ele se mexeu devagarinho para desvencilhar-se. Mas quando suas mãos tocaram o ombro dela, ao invés de afastá-la trouxeram-na para mais perto, e ele cerrou os olhos e sentiu-se tonto, numa embriaguez que o apavorava.
— Ah, Eamon — ela murmurou em prantos. — Não me rejeite. Porque, ao me rejeitar, você rejeita a si mesmo.
Em plena luz da manhã, um elegante desjejum foi servido. O camareiro bisbilhoteiro, confuso pela visão de um chapéu verde sobre uma colcha intocada, serviu torradas com canela, omelete e café, em baixela de prata. Contudo, Eamon sentia-se morto agora, e tinha consciência disso. O olhar de Elizabeth era sombrio quando ele tornou a acompanhá-la pelo saguão do hotel. Ela deu-lhe um abraço inesperado e partiu, levando o Amtrak de volta a Norfolk.
Foi essa experiência que precipitou o segundo, e arrasador colapso.
Seja como for, depois de outra dispensa, pôde finalmente concentrar-se nos trabalhos deixados pelo tio e em Cataratas do Gólgota. Passou de postulante a jesuíta, mas a vitória parecia-lhe particularmente vã.
Como que para compensar a dispensa, como que para testar os resquícios de seus laços com Elizabeth, ele deu início à longa campanha de reconsagrar a igreja profanada de Cataratas do Gólgota.
O jesuíta procedeu a um exame de consciência, cujo propósito era determinar se almejava a glória ao trazer a igreja de volta à santidade. Admitiu que assim era, e rezou para que Jesus o libertasse dessa carga. Perscrutou seu coração a fim de verificar se não haveria um laivo de vingança em sua necessidade de purificar a igreja, uma vingança contra a obscena imundície do tio. Admitiu que assim era, e rezou para que também dessa carga fosse libertado.
Mas não bastava. Algo permanecia sepultado no fundo dessas confissões. O sucesso do exorcismo, ele sabia, dependia de se arrancar esse "algo" pela raiz. Por isso, rezou para que a embriagante felicidade de estar tão próximo de uma mulher também fosse dissipada, que o momentâneo prazer que gozara em Georgetown fosse expurgado de sua alma, que o Cristo o fortalecesse contra sua própria vulnerabilidade.
Lentamente, começou a vestir-se.
*
Primeiro, despiu as calças e a camisa de flanela, a roupa de baixo, sapatos e meias. Com a água fria da bacia, esfregou os braços, rosto, peito e pernas, tirando a tinta e o pó com o sabão. Ensaboou a cabeça e a enxaguou. Secou-se vigorosamente. De um prego na parede, pegou as túnicas do ofício, envoltas em pano branco. Vestiu a alba com barra de renda, que lhe chegava aos joelhos.
— Torna-me branco, Senhor, e limpa meu coração, torna-me alvo pelo sangue do Cordeiro, para que eu possa servi-lo.
Atou a alba com um cinto franjado.
Os sapatos pretos reluziam na luz cinzenta antes do amanhecer, e o barrete assentava-se confortavelmente sobre os cabelos louros. A casula vermelha era grossa, brocada, e dura. A estola bordada com o nome arcaico de Jesus ajustou-se comodamente ao redor da nuca, transmitindo-lhe segurança.
Esquisito, ele pensou. Fazia quase que exatamente um ano desde que passara a noite com Elizabeth.
Saindo do devaneio, topou com Mário à porta, contemplando-o atônito.
— Mas o senhor está uma beleza, Padre Malcolm.
Irreconhecível.
E, de fato, o jesuíta transformara-se. O ouro e a prata da cruz ao pescoço, o bordado dourado da casula, o traçado branco da renda da alba, faziam dele um representante visível da Igreja.
O jesuíta apanhou um longo bastão atrás do armário. Ele o havia embrulhado num lençol limpo. Ao desembrulhá-lo, Mário notou que tinha ao alto um pequeno, pesado e ornamentado crucifixo de prata. O padre ficou ereto, o bastão de prata à sua frente.
— A caixa de prata, Mário — ele disse, num tom de voz diferente. — Leve-a para o cemitério.
Mário passou as mãos sob as teias de aranha da parede e levantou ao peito uma caixa pesada. O jesuíta caminhou com passos firmes para o céu aberto. Era uma figura magnífica, em sua casula escarlate, como uma criatura de outro planeta. Caminhava, vagarosamente, como se estivesse testando o terreno; Mário, contudo, sabia que estava apenas se concentrando, preparando-se para o combate que enfrentaria.
O odor de folhas mortas e frutas podres trouxeram Padre Lovell à lembrança de Mário. E agora, esse jesuíta apaixonado, mal e mal reprimido, à sua frente, era mais um daqueles padres cujas missões raiavam o limite da loucura.
Da parte de Mário, era uma intuição, a observação das centelhas denunciadoras nos olhos, os dedos nervosos que traíam o controle exterior. Mário conhecia os padres. Suas baixezas, como ninhos de serpentes de ids insuperáveis escondidos sob a hera. Talvez, não mais que talvez, ele pensou, esse padre, com emoções tão idênticas às de Padre Lovell, pudesse realmente ajudar suas pesquisas.
De qualquer forma, o jesuíta já estava emitindo ondas de temor e fé, que Mário detectava de modo quase palpável na manhã abafada e sem sol.
Na trilha do cemitério, Anita estava parada. Usava jeans azuis e uma blusa branca debruada de azul-claro.
— Bom dia, padre — ela cumprimentou cortesmente. — Conseguiu dormir?
O jesuíta não respondeu, e apontou para o chão. Mário depositou a caixa a seus pés.
— Segure o crucifixo, por favor — ele dirigiu-se a Mário.
— Mas não o deixe tocar o solo.
Enquanto Mário empunhava o pesado bastão, o sacerdote ajoelhou-se e abriu a caixa. De seu interior forrado de veludo retirou o turíbulo, feito de cobre ornamentado, com uma fina malha entrecruzada. No prato do turíbulo armou um montículo de grãos resinosos. E os acendeu com um pavio de prata. O incenso subiu, ao redor de sua cabeça.
No segundo compartimento da caixa havia um cálice coberto.
— Mário, vou precisar de você para segurar a água benta.
Mário fitou-o, piscando muito. A idéia parecia-lhe vagamente indecente, levando-se em consideração sua apostasia.
— O senhor está pensando em mim para seu coroinha?
— Mário sussurrou.
O jesuíta virou-se para ele. Sua expressão era severa, as linhas do rosto definidas, os olhos quase vítreos de amargura.
— Mário, pelo amor de qualquer coisa que você ame ou considere sagrada.
Mário umedeceu os lábios. Olhou para Anita, e reprimindo uma expressão de desagrado, levantou o cálice de água benta.
— Obrigado, Mário.
Com o cálice de água benta estava o hissope, o instrumento usado para aspergir as gotas de água benta.
Mário sentiu que tudo voltava. As intermináveis horas na capela. As freiras com seus pés ligeiros, a doutrina martelada diariamente nos cérebros juvenis. Padre Pronteus.
Ao segurar o cálice, contemplou amargamente o cemitério.
Pelo menos, ocorreu-lhe, os instrumentos estariam registrando tudo.
O jesuíta olhou por cima do ombro para as negras janelas sem vidro da igreja. Durante muito tempo, limitou-se a olhar. Depois, volveu o olhar ao cemitério.
Padre Malcolm levantou alto o crucifixo de prata. Com passos destemidos, entrou naquele meio acre de carrapichos e lápides carcomidas pelos fungos.
— Eu te abjuro, velha serpente — ele clamou. — Em nome Daquele que tem poder para mandar-te para o inferno, para que deixes esta terra consagrada no seio de Cristo!
Mário viu o jesuíta fechar os olhos, como se estivesse arregimentando forças para continuar. Deixe-se levar ao delírio, se quiser, Mário pensou, eu preciso de resultados.
— Que o mal não tenha mais poder sobre este solo! Que a paz de Cristo Redentor envie sua graça salvadora a este chão!
O jesuíta moveu o turíbulo formando uma cruz. Depois, Mário segurou o turíbulo enquanto Padre Malcolm aspergia água benta sobre a sujeira.
— Siga-me, Mário — pediu ele gentilmente. — Nada lhe acontecerá.
Pelo canto do olho, Mário viu que Anita discretamente fotografava tudo o que acontecia.
Padre Malcolm entrou sem hesitação pelos arbustos que lhe chegavam à altura do peito, levando alto à sua frente o crucifixo de prata, e repetiu o procedimento em cada uma das sepulturas, frequentemente fazendo o sinal-da-cruz com o lado da mão. No quinto túmulo, o dos gêmeos desaparecidos, ele entoou: — Repele, ó Senhor, o poder do mal! Destrói a mentira de suas artimanhas! Que o tentador maldito fuja! Possa esta terra estar protegida pelo sinal do Teu nome!
De novo o jesuíta fez o sinal-da-cruz. Depois, uma pausa. Um arrepio percorreu a nuca de Mário. As nuvens, ao alto, começavam a se juntar.
Levaram mais de uma hora até que, finalmente, Padre Malcolm santificou todo o perímetro do cemitério. Ao se aproximarem de volta a Anita, o sacerdote estava abatido e trêmulo.
— O senhor está bem, padre? — ela perguntou.
— No quinto túmulo... senti como se alguma coisa me puxasse... alguma coisa nojenta... indescritivelmente maligna.
O jesuíta secou o suor do rosto com um lenço. E limpou sua alba dos insetos vermelhos.
— Agora, a torre do sino — ele disse. — Mário, pegue a escada.
Mário ficou olhando, paralisado, sem entender. O jesuíta virou-se furioso para ele.
— O sino também precisa ser santificado! — ele gritou.
Mário colocou o turíbulo dentro da caixa. E depois acompanhou Padre Malcolm até a parede norte. Ao alto, as nuvens densas circulavam para dentro do vale.
— Depressa, Mário...
Mário colocou a escada cinzenta e velha contra a parede do campanário. O jesuíta levava um frasco na mão.
— Padre, essa escada não vai aguentar conosco...
Mas o jesuíta pertencia a outra esfera. Seus olhos faiscavam e os lábios estavam rígidos. Mário o seguiu.
Subiram ao telhado e seguraram-se à base do campanário. O próprio campanário se inclinava à brisa forte.
Mais embaixo, todo o complexo de campos se agitava com as correntes contrárias das rápidas rajadas de vento.
A tontura fazia o sangue latejar nos ouvidos de Mário e deu-lhe náuseas. Normalmente, não sofria de vertigens.
— Amarre esta corda ao sino, Mário — o jesuíta instruiu.
— O sino deve tocar novamente.
Ao abrir os olhos, Mário pensou que a paisagem estava ficando enviesada. Viu Anita, de braços cruzados, olhando para cima. Tudo parecia instável. Agarrou-se aos suportes do campanário.
— Seja forte, homem — o jesuíta instou.
Que coisa tão esquisita de se dizer. Mário o fitou.
Indagou-se se o jesuíta estaria louco. Finalmente, agarrou a ponta da corda e conseguiu passá-la pelo olhal da argola do sino. Para sua total surpresa, o sino de ferro maciço, levando a data de 1886 de uma fundição de Filadélfia, desprendeu-se, e ficou livre depois de quase um século de prisão ao suporte.
Padre Malcolm abriu o frasco. Com os dedos, ungiu o sino por dentro e por fora.
Repentinamente, a rolha lhe foi arrancada das mãos, rodou no ar e despencou-se em rodopios para dentro do Siloam. Ele agarrou a mão de Mário.
— Ele está zangado, Mário — murmurou. — Não tenha medo.
Padre Malcolm fez o sinal-da-cruz sobre os 250 kg de ferro fundido.
— Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo! — ele falou ao vento. — Que este sino abjure todo o poder e dispensação do mal sobre a terra! Que o mal ancestral ouça o seu som e se ponha em fuga! Pois ele soa pela Redenção de Nosso Senhor Jesus Cristo!
Nesse momento foi que Mário entendeu a origem de sua tontura. As litanias, o delírio católico gritado ao seu ouvido por um padre que acreditava no que dizia, trouxeram-lhe de volta à memória seus velhos sonhos, há tanto tempo relegados ao desprezo, de serviço à Igreja.
Nuvens tempestuosas corriam agora sobre os bosques de vidoeiros. Barris e galhos secos rolavam pelas ruas de Cataratas do Gólgota. Neles, Mário viu a analogia com o caos que ameaçava explodir em seu cérebro. Ao descer a escada, sentiu que o vento, como se fosse dotado de mãos, puxava-o pelas pernas, sugando-o de regresso aos temores e mitologias arcaicos do orfanato. Anita firmou a escada.
— O padre está completamente carregado — Mário comentou com sarcasmo, escondendo seu próprio tormento.
— Maravilhoso!
Mas quando Padre Malcolm desceu ao lado dela, Anita só conseguiu ver o rosto cansado e exangue de um homem profundamente sensível.
Ouvindo sons, o jesuíta virou-se. Pedregulhos voavam às cegas vindos das margens de argila. As pedras planas tamborilavam contra as fundações da igreja. Ele sorriu sombriamente e os levou até a porta trancada.
Mário segurava o turíbulo. A Anita ele entregou um vaso de estanho contendo água gregoriana. A mistura de água benta, sal, vinho e cinzas parecia surpreendentemente pesada na mão de Anita.
Padre Malcolm ergueu o crucifixo.
— Contemplem a Igreja das Dores Eternas — ele disse em voz alta. — Uma igreja assaltada pelo poder astucioso de um espírito imundo.
O nome da igreja é adequado demais, Mário pensou.
Com precisão inequívoca, a Igreja Católica realçava seu misticismo nos lugares mais negligenciados.
O jesuíta dirigiu-se com intimidade à igreja que lhe matara o tio, e que agora infeccionava seus pensamentos. De alguma forma, a igreja tornara-se parte dele. E, agora, ele viera para derrotar o mal que habitava em seu próprio íntimo e que habitava o íntimo da igreja.
— O inimigo ancestral rodeia a igreja — ele disse bem alto. — E contamina a terra com miséria.
De repente, com muita raiva, espargiu sobre a porta gotículas de água gregoriana que se misturou à água de chuva destilada, escorrendo pela fechadura de ferro abaixo.
— Expulsa, ó Senhor, o poder do mal! Faz com que aquele que é imundo fuja pelo sinal do Teu nome!
Elevando o crucifixo, lentamente, majestosamente, ele fez o gesto da cruz.
Descontraiu-se, observou as gotinhas de água gregoriana cintilando à luz cinzenta e, então, e a despeito de si mesmo, sorriu.
— Bom — ele comentou. — Muito bom, mesmo. Vamos purificar a igreja.
O jesuíta foi até um canto e novamente espargiu água gregoriana.
— Em nome Daquele que há de julgar os vivos e os mortos! — proclamou. — Em nome do Criador! Em nome do Arcanjo São Miguel, que te arrojou ao inferno. Deixa a Igreja das Dores Eternas! Pelo sinal-da-cruz foste derrotado!
A náusea voltou a atingir Mário, direto no plexo solar.
Como um campo gravitacional, as litanias o atraíam para os níveis pré-verbais da dependência psíquica do Padre Pronteus. Fora tão profundamente traído por ele...
Mário espiou pelas janelas. Os instrumentos chiavam de mansinho, o aparelho de termovisão amplamente focalizado para o altar. A náusea passou. Ali estavam os instrumentos de sua própria mente, sua liberdade, seu desafio. Sentiu-se melhor. A velha amargura aguçava-lhe o cérebro.
O jesuíta entregou a água gregoriana a Anita. O vento agora açoitava sua blusa para trás, revelando contornos macios e intumescidos.
O jesuíta afastou-se dela rapidamente, incensou as tábuas e foi postar-se num ponto a cerca de dez passos de distância da parede sul. O paramento vermelho farfalhava como um enorme pássaro escarlate ao vento. Mais uma vez, tomou a água gregoriana das mãos de Anita.
— Em nome Daquele que há de julgar os vivos e os mortos! — repetiu. — Em nome do Criador!
A vaga sombra de Anita à luz nublada, caindo sobre a parede da igreja, ondulou pelas tábuas de revestimento, e as formas pareciam metamórficas.
A compulsão de virar-se para vê-la era como uma tortura física. O corpo de Padre Malcolm estremecia, sua mente buscava indícios. Ao invés, ele aspergiu água gregoriana sobre a sombra insatisfeita que recebia.
Pelo canto do olho, o jesuíta viu que a chuva, ainda fraca, já havia feito da alameda para a reitoria uma língua viva de lama. Um melaço cinzento, que não se diferenciava das margens de argila, sugava os alicerces da igreja.
Um pássaro morto flutuava em círculos e círculos, num redemoinho silencioso e denso.
Evitando Anita, ele estendeu a mão para o frasco.
— Por favor, Anita, a água gregoriana.
— Estive pensando, Padre Malcolm. Eu poderia fazer um uso melhor disto aqui.
— Que uso?
— Uma ducha íntima.
Paralisado, Padre Malcolm não se atrevia a olhar. Sabia que aquilo não podia ser real, que estava tendo uma alucinação, e ainda assim, não se atrevia a fitá-la. Pelo chão da igreja, a sujeira marrom-avermelhada escorria como fezes amolecidas.
Mansamente, Padre Malcolm pôs-se a entoar o Salmo 86:
Inclina, Senhor, os teus ouvidos e responde-me; pois estou aflito e necessitado.
No dia da minha angústia clamo a ti porque me respondes.
— Eu faria uma lavagem benta — a voz sensual de Anita insistiu.
O jesuíta girou nos calcanhares, o rosto pálido e contorcido.
A figura era de Anita, mas invadida de malignidade, libidinosa. A língua dela movia-se rapidamente de um lado para outro. Seus olhos tinham uma cintilação sobrenatural e os dentes alvos mordiam a língua vermelha e úmida.
Sorriu um sorriso lascivo.
— Fiz você olhar, não fiz? — a imagem da alucinação disse.
Padre Malcolm estremeceu. Era como se tivesse sido trespassado por uma lança. Seus olhos se inundaram de lágrimas de raiva.
O ribombar de um trovão, como o tiro de uma espingarda, soou pelo vale.
Quando se voltou para pegar a água gregoriana, notou que Anita já parecia novamente normal e solícita; cont lido, colocou o crucifixo entre ambos.
O jesuíta tremia e oscilava em delírio. Mário foi até ele; agarrou-o pelo braço para ampará-lo.
— Padre Malcolm — disse gentilmente. — O senhor está bem?
O jesuíta passou por ele e a chuva espirrou das extremidades do crucifixo.
— Mário! — Anita exclamou ofegante, apontando.
Na porta da igreja, onde a água gregoriana tinha sido aspergida, marcas a fogo haviam corroído a madeira.
Projeção psíquica, Mário pensou de imediato. Mas tão real. Tão excessivamente real. Que outros horrores o cérebro daquele homem será capaz de liberar, uma vez dentro da igreja?
O jesuíta correu para a porta.
— Eu te exorcizo, espírito imundo! — ele gritou para o vento e para a chuva. — Que neste momento tu sejas arrancado e expulso da casa do Senhor!
A casula vermelha tinha a fímbria toda manchada de lama. Padre Malcolm ficou parado fitando a porta, fustigado pela tempestade.
— Abram caminho para Nosso Senhor Jesus Cristo! — ele ordenou. — Abram caminho para o Senhor que habita nesta igreja!
A chuva caía agora forte e fria, fazendo o incenso bruxulear e evolar-se. Foi então que o jesuíta afastou-se da porta e passou o olhar pelas árvores inclinadas e pelo cemitério. Finalmente, com cautela, deu-se por satisfeito.
Devagar, fez caminho pela lama, afastou os arbustos com a extremidade do crucifixo, e dirigiu-se à porta.
— Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo — entoou. — Eu me uno à Igreja das Dores Eternas. Que ela receba o justo e o sagrado.
Uma batida com a base do bastão do crucifixo fez com que o som vibrasse pelo vestíbulo. Bateu pela segunda vez. E pela terceira vez.
Fez sinal para Mário.
Mário curvou-se para abrir a porta. A fechadura de ferro tinha emperrado. Retesou as pernas e jogou toda a sua força para fazer o giro, e a ferragem cedeu com violência.
Lentamente, a porta abriu-se para dentro.
Um bafo negro e corrosivo escapou. Mário deu atrás, num acesso de tosse.
Horrorizado, o jesuíta ergueu o crucifixo.
Devagar, entrou no vestíbulo. Na parede mais próxima havia um pesado caixote. O jesuíta segurou alto o bastão adiante deles e gesticulou na direção do caixote.
— O cálice fechado — ele murmurou. — Traga-o para mim.
O jesuíta tomou o cálice e despejou a reluzente água benta na pia consagrada.
Do fundo da igreja ouviu-se um ronco baixo e vacilante, um obsceno murmúrio de satisfação.
As trevas imperavam a toda volta, exceto no vestíbulo.
O jesuíta avançou para o interior da igreja, mas parou. De dentro dela chegava-lhes o fedor de corpos em decomposição e o som de uma risada insana. O som furtivo e apressado do prazer, uma respiração maligna.
— Satanás está aqui — Padre Malcolm sussurrou. — E sensível à presença de todos nós.
Entraram. E era como entrar numa fornalha recém-fechada onde os óleos negros ainda se apegavam às paredes, seca, quente, e totalmente imóvel. Mário notou que os instrumentos funcionavam suavemente. Seja o que for que o jesuíta esteja sofrendo, refletiu ele, suas exteriorizações estão indo direto para os filmes, os videoteipes e as bobinas girando lentas.
— Contempla a cruz de Cristo! — Padre Malcolm proclamou. — Em nome de Jesus, e pela intercessão da Imaculada Virgem Maria, dos Santos Apóstolos São Pedro e São Paulo e de todos os santos, pela autoridade de que somos investidos, empreendemos agora a expulsão da corrupção diabólica.
Um limo esverdeado escorria-lhe agora pelos paramentos. Padre Malcolm tirou um lenço imaculado de um bolso interno e limpou-se. Mário olhou para cima. De fios de seda invisíveis, uma meia dúzia de lagartas rodopiavam lentamente, lentamente, ao sabor da brisa.
O jesuíta interrompeu-se. Ouviu a voz do tio.
— sim... sim... Eamon... no ato de adoração... um jumento é bom... bom... bom... mas um bode... é melhor... melhor... melhor.
Padre Malcolm reconheceu o sotaque levemente ofegante de Boston. A igreja silenciou.
— Ele está em boa forma hoje — Padre Malcolm comentou, já tendo estudado o assunto.
E então cerrou as mandíbulas, ergueu o crucifixo e mergulhou nas trevas.
— Que o Senhor Deus se levante — ele clamou. — E que seus inimigos se dispersem.
Algo fulgiu vagarosamente pelas paredes norte e sul. Os dois crucifixos. Os joelhos do jesuíta cederam.
Os dois Cristos, antes resplandecentes e dourados, surgiam agora deformados, corcundas, cobertos de tumores; pernas e rostos tomados de crostas, flagelados, assimétricos.
E do pano que lhes cobria o baixo-ventre manava leite.
— Ah, não... — Padre Malcolm gemeu. — Tamanha conspurcação!
O jesuíta pôs-se de pé, relanceou o olhar para Mário e Anita, mas estes pareceram não notar.
Anita esgueirou-se para a termovisão.
Ajustou ligeiramente a câmera para enquadrar o sacerdote. Ondas vibrantes em tons de verde evolavam-se do barrete e do crucifixo, ainda frios da água da chuva.
O rosto de Padre Malcolm ficou tenso. Suor e chuva misturavam-se livremente escorrendo pelo pescoço.
Levantou alto o bastão.
— Pára de ultrajar esta igreja! — ele clamou. — Desaparece, Satanás! Humilha-te! Pois o Senhor assim te comanda!
No trono episcopal, o estrado elevado com sua pequena escada em espiral que dava do alto para o altar, em vestes completas em ocre e escarlate, reclinava-se a figura de cabeça peluda e chifres pontudos de um bode.
A língua do animal, rósea e abrasiva, apareceu para o jesuíta.
Ele jogou gotas de água benta sobre o trono episcopal.
— Estás derrotada, Serpente Maldita! — proclamou. — A Santa Mãe de Deus, a Virgem Maria, assim te ordena! O sangue dos mártires assim te ordena! Que sejas arrancado e exorcizado da casa de Deus!
Ouviu-se um eco tolo e sibilino.
Deus — teus — meus — leus — reus — feus — seus —.
E o eco cessou. O jesuíta, em sua agonia, não percebeu que Anita e Mário haviam se colocado atrás dos instrumentos para observá-lo.
A sonda de temperatura registrava uma queda de 10°.
O jesuíta ficou à escuta. Ouvia-se apenas, do lado de fora, o tamborilar da chuva que amainava.
— Que todos os inimigos da Cruz sejam derrotados! — ele exclamou em desafio.
A provocação passou sem resposta. Exorcismos têm marés altas e baixas. O jesuíta sentiu a momentânea recessão da presença maligna, como se esta batesse em retirada em busca de reforços.
— E melhor andarmos depressa agora — o jesuíta sussurrou, e correu para a parede mais próxima, a parede onde a câmera a laser estava instalada. Na mão esquerda levava o frasco do crisma. Com a mistura de água e bálsamo desenhou o sinal-da-cruz na parede.
Tomou o turíbulo do chão e incensou a cruz desenhada.
Em doze diferentes lugares o jesuíta desenhou a cruz, e doze vezes dedicou a igreja a Deus, e em cada um dos doze lugares ao redor da igreja deixou uma vela acesa significando a presença da santidade.
As doze velas douradas, em seus castiçais rasos de estanho, dispersaram a escuridão das paredes.
O jesuíta transpirava profusamente. Traçou uma cruz de Santo André sobre o assoalho perto do altar, usando areia e cinzas. Na viga da cruz inscreveu os alfabetos latino e grego.
Padre Malcolm olhou à volta da igreja. As chamas das velas tremulavam às vezes, ao sabor de uma brisa qualquer, mas queimavam firmes e confiantes. Anita trocou a fita da termovisão.
Paredes e chão, interior e exterior, haviam sido consagrados. Mário voltou a sentir a mesma claustrofobia que já sentira em seus tempos de orfanato.
De um baú preto o jesuíta tirou as toalhas do altar.
Estendeu o appendium de forma que o Alfa e o Ômega em ocre ficassem centrados. A toalha central, imaculada e macia, cobria a pedra do altar, com o pálio por trás. Padre Malcolm começou a espargir água benta liberalmente, consagrando a base e o chão ao redor do altar.
Com voz forte entoava o Salmo 44:
Pois Tu nos salvaste dos nossos inimigos e cobriste de vergonha os que nos odeiam.
Em Deus nos temos gloriado continuamente E para sempre louvaremos o Teu nome.
Era como se o próprio Salmo, escrito há mais de 2.000
anos por Davi, se encontrasse presente no altar. E fazia valer o seu significado através da obediência do jesuíta vivo.
Sobre a toalha do altar, Padre Malcolm crismou cinco lugares. E, em seguida, queimou os grãos de resina sobre o altar. Crismou os quatro pontos onde a pedra do altar contatava a base. Somente quando terminou tudo, permitiu-se descansar. Lentamente, virou-se.
Anita usava um chapéu verde-escuro e esperava, acusadoramente, como uma pintura de Rembrandt no chiaroscuro do canto da igreja.
— Então — Padre Malcolm murmurou desconsolado. — Ele ainda está aqui. E quer trabalhar por seu intermédio. Que assim seja. Estou preparado.
Ao invés de voltar-se, Padre Malcolm começou a preparar o altar para a Eucaristia.
— Fiquei à sua espera, Eamon — a voz meiga disse. — Escrevi duas vezes. Você nunca me respondeu.
Do tabernáculo, ele tirou o cálice com o vinho branco misturado a uma gota d'água, e a pátena para a hóstia.
Acendeu as cinco velas douradas do candelabro baixo, e os reflexos no lavabo e no cálice de prata lhe deram confiança.
Levantou o pavio de prata para acender a lamparina do altar.
— Eu precisava de você — veio a voz vulnerável. — Você precisava de mim. Que mal havia nisso?
Trêmulo, ele abaixou o longo pavio.
— Por que tem tanto medo de si mesmo? — disse a voz inconcebivelmente idêntica. — Eamon, é do amor que você tem medo?
Ele conhecia muito bem a resposta. Nem um dia se passava sem que aquela cena final lhe viesse, sob alguma forma, à mente. Deu por si formulando a resposta, e novamente tentou alcançar o vidro vermelho-rubi da lamparina.
— E, no entanto, poderia ser a união de nossas almas — ela disse. — E que vergonha haveria nisso?
Agora ele sabia a resposta certa. O resultado de sete meses de orações, orientação, e severa disciplina. A tentação de responder era tão poderosa, que cerrou os olhos. Invocou Cristo e a cena do hotel evaporou-se, e ele percebeu nitidamente, reluzindo à sua frente, os instrumentos da Eucaristia. Pela terceira vez, levantou o pavio de prata.
— Eamon...
Não saberia dizer se o som era real ou fruto de alucinação. Rapidamente, calculou que Anita não o chamaria pelo nome de batismo.
— Ao me rejeitar, você rejeita a si mesmo.
As palavras adquiriram um medonho segundo sentido. O extraordinário poder de percepção da Serpente. A acusação de que a imperfeição permanecia, e de que ele pertencia ao nível inferior de sua própria natureza.
Padre Malcolm recolheu o pavio de prata sem ter acendido a lamparina do altar e começou a litania dos Santos; a voz potente ecoou pela igreja, e seu rosto pareceu inflamado pelo calor das velas.
Uma atmosfera lasciva e onírica parecia circular sobre os instrumentos da Eucaristia. Padre Malcolm resistiu, retirou o barrete usando apenas dois dedos, e o depositou sobre o altar. Ajoelhou-se, beijou o altar, persignou-se e levantou-se.
Abriu o pesado guardanapo de linho, chamado corporal, expondo a hóstia. Ao fazê-lo, olhou rapidamente para Anita.
A real, parada solicitamente ao lado da termovisão.
Seus olhares se encontraram. Uma certa força fluiu entre ambos. Algo inexprimível, e o jesuíta voltou-se.
Molhou o polegar e o indicador num fiozinho de água que foi obrigado a despejar, e o que restou da água foi recolhido no lavabo.
Uma imensa tristeza apoderou-se do jesuíta, a tristeza de sua solidão, o prolongado sofrimento de sua vida sem consolo.
Padre Malcolm percebeu a origem de tais emoções.
Recitou os Salmos em seguida à Ablução e a sensação desapareceu. Mais uma vez, havia clareza de lógica na celebração do sacramento.
Então, ao chegar ao ponto da Consagração, a invocação que transforma o pão e o vinho na presença viva de Cristo, percebeu que a mesma atmosfera lasciva e onírica voltava ao altar.
Sentiu contra o peito a pressão dos seios de Elizabeth e a embriaguez do perfume que ela usava, a pressão ansiosa e hesitante dos dedos dela em sua nuca.
Repetiu os Salmos.
De repente, para sua surpresa, divisou Anita atrás do altar. Havia preocupação nos olhos dela, e parecia aflita mas decidida a falar.
— O que... o que é? — Padre Malcolm gaguejou.
— Padre Malcolm — ela disse com doçura. — Está tendo alucinações?
— Ele usa de tantos artifícios, Anita.
O jesuíta enxugou o suor ao redor dos olhos. A igreja estava extraordinariamente quente.
— Por favor, vá embora — ele pediu. — Não posso interromper a Eucaristia.
Anita virou a cabeça e o jesuíta notou que ela recebia algum sinal de Mário. Ela aproximou-se do altar.
— Suplico que não fique zangado comigo, Padre Malcolm — ela disse. — Mas acho que sei a razão de suas alucinações. — As contradições de sua natureza sexual — ela explicou. — Elas emergem em tempo de tensão.
O jesuíta olhou fixamente para ela, analisando-a. Mais uma vez, era a imagem dela nas garras de Satanás. Ele clamou por auxílio. Com corpo e mente devastados pelas tempestades sensoriais, sentiu-se, contudo, divorciar-se da Eucaristia.
— A igreja o obsedou — ela continuou suavemente. — Corrompeu o desejo natural de adorar e servir.
Padre Malcolm entendeu que fora levado ao diálogo com o Maligno. E, uma vez envolvido, seria como tentar libertar-se de areias movediças.
A velha-Serpente escolhia palavras de cuja lógica provinha um carisma indefinível, e para as quais não havia resposta.
— Do que é que a Igreja tem tanto ciúme? — ela cuspiu as palavras.
— Por favor, eu...
— Transformou sua própria natureza num ninho de cobras de pensamentos escusos e pervertidos.
— Não é verdade! Eu lhe imploro...
Vinho e hóstia, não consagrados, permaneciam sobre o altar, intocados.
— Claro que é verdade! — ela exclamou, olhos em fogo.
— E você mordeu a isca direitinho.
Atabalhoadamente, o jesuíta girou nos calcanhares e tentou dar início ao Ó Salutaris Hostia, o começo da Consagração.
— E para quê? — ela prosseguia. — Para que você possa dedicar seus desejos sublimados ao louvor da Igreja? Foi para isso que desistiu da felicidade, Eamon?
Padre Malcolm sacudiu a cabeça vigorosamente mas a imagem de Anita não se desfez. A blusa encharcada brilhou quando ela deu um passo a frente. Com uma das mãos segurou um seio.
— Olhe! Não é nada! — ela tentou. — Apenas um pedaço de carne!
Gaguejando ao entoar o Ó Salutaris Hostia, o jesuíta sentia-se desfalecer no calor intenso.
— Agora, mire-se! — ela disse com desprezo. — É o que você deseja, mais do que à própria salvação.
Mais uma vez, ele começou o Ó Salutaris Hostia, concentrando-se, o cérebro recordando as palavras latinas, tentando projetar-se no sabor e no significado de cada vocábulo. Começou a falar mais devagar, até que confundiu-se completamente.
Anita sorriu. Movia-se ritmicamente, batendo o corpo contra o altar. Seus olhos foram se fechando, mas antes que o fizessem, as pupilas se tornaram vítreas de prazer.
— Pare com isso... pare com isso... eu imploro...
— Ainda não terminei.
— Pelo poder de São Miguel Arcanjo, que te enviou para...
Anita riu, mostrando dentes alvos, limpos, perfeitos.
— Olhe — ela disse. — Olhe para o meu rosto.
O rosto lindo e angular esticou-se, retesou-se, os supercílios se juntaram e as pálpebras fremiam, e todo o seu corpo vibrava e vibrava. Aos poucos as narinas serenaram. A fonte estava porejada de suor. Ela prendeu o fôlego e o tormento cessou em suas feições. Em seu lugar, surgiu a tranquilidade do desejo satisfeito.
— Viu? — ela perguntou, a voz ainda trêmula do orgasmo. — É só isso.
Padre Malcolm arrojou-se ao Tantum Ergo. Pelo mistério da Eucaristia, o pão e o vinho transubstanciavam-se no corpo e sangue de Jesus Cristo. Houve uma espécie de corte visual. Anita desapareceu. O jesuíta virou-se. Lá estava ela, atenta ao sistema de gravação de sons, olhando para ele e parecendo muito preocupada.
— Devo procurar um médico — ela murmurou.
— Não. Acho que ele já se recuperou — Mário respondeu.
O jesuíta estudou o rosto e a figura de Anita na área da parede coberta pelas sombras. Pareceu reconhecê-la, como se estivesse saindo de um transe.
— Está tudo bem, meus amigos — sussurrou com voz rouca. — Foi bem ruim, mas... está tudo bem agora.
Obrigado...
Mário tornou a sentar-se diante da tela da termovisão.
Fora penoso vislumbrar a preocupação em seus rostos. O jesuíta deu prosseguimento ao Tantum Ergo. O calor abrasador havia passado, e ele ouvia nitidamente o gotejar da chuva.
— Acho que está quente demais para ele — ouviu Mário cochichar.
— Acho que você devia ir ajudá-lo.
— Boa idéia.
Enquanto entoava as frases latinas, o jesuíta ouviu a cadeira de Mário arrastar-se e o som das botas pesadas ao longo da parede que ficava às suas costas. Ouviu um chiado alto. O Tantum Ergo silenciou.
Mário estava urinando nas velas acesas no chão.
Como num pesadelo, o jesuíta viu a jaqueta de couro, os joelhos ligeiramente curvados, o pênis incircunciso e levemente rosado, e o jorro de urina sufocando a chama incerta.
Horrorizado, Padre Malcolm deu as costas e completou o Tantum Ergo.
— Vou lhe mostrar um truque formidável — ouviu Mário dizer.
Uma repulsa mórbida invadiu o jesuíta. O que acontecera a Lovell e a seu tio, acontecia agora a ele.
A fim de retornar à realidade, procurou por Mário e Anita perto dos instrumentos. Não estavam lá. Pelo canto do olho, viu Anita à sua frente. Estava de quatro no chão. Nua. E Mário também. Mário a penetrou por trás, os joelhos curvados apoiando-se nos quadris dela. Em movimentos ritmados e profundos chegaram o orgasmo.
Anita retesou-se, mordeu os lábios, e depois relaxou e sorriu.
— Não foi nada fácil — Mário alardeou, dando um passo atrás, o pênis volumoso balançando molemente com seus movimentos.
— Ela é toda sua — ele convidou.
O jesuíta ficou sem respiração e esticou o braço para colocar a hóstia consagrada na luneta do ostensório.
— Não creio que seja a hora nem o lugar para a elevação da hóstia — Mário comentou com azedume.
De fato, a pornografia dentro da igreja era tão concreta, que o jesuíta a sentiu como sal sobre os lábios.
Mas era precisamente no meio de tal profanação que a Eucaristia se fazia mais necessária a fim de confirmar o domínio de Cristo. O jesuíta ergueu o ostensório e abençoou a igreja.
Anita cuspiu no chão.
— Aí está a sua hóstia — ela disse.
E fitou o jesuíta diretamente nos olhos. O tom de desafio desaparecera. Ela falava agora com uma autoridade que o deixava gelado, pois saía do âmago de sua própria natureza.
— Essa é a hóstia — ela disse calmamente — do homem que odeia a Deus!
O jesuíta sentiu uma corrente galvânica percorrer seu corpo. Não se atrevia a pensar, e não se atrevia a parar de pensar, e apressou-se em entrar no aspecto mais sagrado da Eucaristia, a oferenda do sacrifício, o Unde et memores do Amamnesis.
Já não tinha defesas. Já não lhe restavam forças. Sentiu as trevas que se fechavam sobre sua cabeça. Cristo não lhe dera resposta, e a amargura de suas frustrações, os colapsos agonizantes, a hierarquia ferrenha da Igreja mereciam a sua raiva, inundavam sua boca e ouvidos, e enchiam sua garganta de um líquido viscoso e sufocante.
Estava afundando e tinha consciência disso. Pois sabia, nesse momento, o que jazera, intocado, sob as últimas barreiras de sua personalidade durante a longa noite de vigília. Era indizivelmente escabroso. E ele provou o veneno destruidor em toda a sua potência, pois era o que existia secretamente em sua própria natureza. E que se chamava ódio a Deus, que nega ao homem felicidade sobre a terra. Era como se seus dedos pertencessem a um animal distante e moribundo. A fúria prevaleceu sobre ele, fez com que suas mãos tremessem em confusão e angústia. Padre Malcolm tateou à procura da hóstia para misturá-la ao vinho, completando a Eucaristia.
— É... a voz de Mário comentou amarga. — Agora, você trabalha para nós.
Os dedos imobilizaram-se. Deveria parar, e negar a missa celebrada pela Serpente? Ou seria isso outro truque, com o propósito de evitar que se completasse uma missa sagrada?
A transpiração escorria ao redor dos olhos do jesuíta, banhando sua visão com lágrimas de horror adocicado.
Esquecia as palavras. Cristo estava totalmente ausente.
Ainda assim, o jesuíta clamou a Jesus por um indício, um sinal, qualquer que fosse.
— Eu lhe disse para não me rejeitar, seu filho-da-mãe — Anita disse com voz sibilante.
Cristo parecia aproximar-se, ou seria isto também outro truque? Seria uma Presença impostora?
— Você trouxe o ateísmo a esta igreja — Mário disse, inclinando-se para a frente. — Você sabe que ciência é ateísmo. — Mário olhou sorrateiro para Padre Malcolm.
— Você queria ser tentado, não queria?
Febrilmente, Padre Malcolm tateou pela hóstia e não conseguiu encontrá-la na confusão ofuscante das toalhas do altar.
Padre Malcolm afastou-se da apside. Atrás dele, parado, estava Mário, olhos fechados de gozo, pressionando o rosto obediente de Anita contra as sombras ondulantes do púbis.
Ele gemeu de prazer.
— Observe meu rosto, Padre Malcolm.
— Não! Eu o proíbo — Malcolm disse ofegante.
— Proíbe? — Mário gargalhou, atrás do altar, segurando a roupa de um homem. — E o que você vem imaginando há três dias.
— O que é isso aí?... Onde arranjou essa roupa...
— De um certo James Farrell Malcolm. Que pena! Onde ele está já não lhe fazem falta.
Anita riu. Mário usou a roupa para limpar o suor de suas pernas, e depois os órgãos genitais. Jogou-a, depois, com desdém, para um canto. Padre Malcolm persignou-se, sentiu cãibras pelas pernas, e o coração parecia prestes a parar.
Com todas as forças que lhe restavam, tornou a espiar para os consoles.
Para seu incrível alívio e esperança, Mário e Anita, completamente vestidos, preocupados, ajustando os instrumentos, estavam silenciosamente sentados na obscuridade.
Como em sonhos, Padre Malcolm procurou e encontrou a hóstia. Mas seus braços pesavam tanto quanto a lamparina do altar na noite anterior. O jesuíta sentiu o entorpecimento doentio da ilusão hipnótica.
De repente, Anita aproximou-se do altar.
— Preciso de uma toalha. Incomoda-se? — ela disse, estendendo o braço para o appendium.
— Não... não... — ele ofegou.
Mas, no último instante, arrestou o passo e lembrou-se de que não podia deixar a área consagrada. O sorriso de Anita tornou-se subitamente hostil.
— Quase — ela sibilou rouca.
Padre Malcolm sustentava desesperadamente a hóstia sobre o vinho sagrado. Uma migalha desprendeu-se, caiu rodopiando e, como o bafo de uma boca, uma fornalha de calor rubro fulgurou por ele sobre o altar.
— Deus meu! — ele gritou.
Vagamente, quase desfalecido, agarrando o peito, ele viu o longo bastão de prata com o pavio prateado. Seus braços pareciam de chumbo ao tentar agarrar o bastão e acender o pavio. E, a cada tentativa, o sopro lascivo de Anita o apagava. Sua risada cristalina ecoava por seu cérebro.
Finalmente, protegendo o pavio com o próprio corpo, conseguiu acender uma chamazinha branca.
— Você jamais acenderá a lamparina — Anita escarneceu, da periferia da área consagrada.
Pondo-se de pé a muito custo, já completamente exaurido, o jesuíta ergueu o bastão para a lamparina do altar. O bastão oscilava, como uma cobra, sempre que a chama branca aproximava-se da lamparina. Três vezes ele trouxe o pavio à lamparina, e três vezes foi repelido por uma força tirânica.
— Foda-se, padre! — Mário berrou.
E, subitamente, o bastão voou das mãos do jesuíta.
— Jesus, Maria, José...! — Padre Malcolm gritou, levando as mãos as têmporas, ao cair para a frente, dobrando-se no chão. De relance, viu o cálice de prata contendo o Sangue de Cristo tombar e manchar de vinho a toalha imaculada. A hóstia quebrou-se contra o tabernáculo, o candelabro caiu, e o oceano negro do esquecimento abateu-se sobre ele.
Mário o sustentava, instando para que ficasse de pé.
Anita tentava limpar o filete de sangue que escorria de sua testa. Tentou desvencilhar-se dos dois.
— Deixem-me! — gritou rouco.
— Padre Malcolm! — Mário insistiu. — Queremos ajudá-lo!
— Ordeno aos dois... que partam!
— Somos nós — Anita disse com brandura. — As alucinações acabaram.
Hesitante, rígido, ele permitiu que Anita limpasse novamente a fronte machucada.
Depois, empurrou-a.
— Terminei a missa?
— Completamente — Mário lhe assegurou. — Conseguimos gravar tudo.
As velas no chão queimavam cintilantes das estações da unção carismática, Padre Malcolm foi examinar o chão atrás do altar. Nenhum indício de que alguém tivesse procedido de modo escuso ali.
— Tive as mais terríveis sensações... dentro do meu corpo...
— Não temas mal algum — Mário parodiou, tentando brincar. — Pois os meus instrumentos e os meus diários te confortarão.
— Mário! — Anita gritou.
— O que é?
— Mário, é melhor vir até aqui — ela disse, fitando a tela da termovisão.
Mário correu para o aparelho. A câmara havia sido focalizada para o altar. E havia algo na tela. O jesuíta abriu caminho entre eles.
Ao lado do altar, braços estendidos, a imagem de um homem crucificado aparecia suspensa no ar. Ajustando a lente e o foco, surgiu mais nítida a imagem da figura que recedia. Somando-se aos braços estendidos a cada lado do torso central, e as duas extensões longitudinais, havia uma ferida aberta no lado direito.
Mário ficou olhando. Projeção psíquica. Tinha que ser.
Mas, então, por que sentia-se tão mal olhando aquela imagem?
Anita estudou a imagem, relutando em se comprometer.
Objetividade era tudo. E, sem dúvida, a figura se originava da volatilidade nervosa do jesuíta. Ou viera do éter, a seu chamado.
Mário, suando em bicas, contemplava com mórbida contrariedade a imagem pura de seu mais extraordinário sucesso.
O jesuíta ergueu os olhos para o altar. Havia apenas o linho manchado, o lavabo caído ao solo, e a parafina flebilmente enfumaçando o appendium. No ar, ao redor, absolutamente nada.
A imagem foi se desfazendo aos poucos. Ajustando o anel de parada-f, Mário conseguiu mantê-la visível por mais alguns segundos. Ao lado da câmera, o gravador rodava suavemente. O jesuíta olhou ao redor da igreja silenciosa.
As trevas haviam se dispersado completamente. As nuvens da tarde deixavam entrever céus azuis, e o cantar dos pássaros ecoava pelo vale fresco.
Na câmera, a imagem na tela cedera lugar à vista uniforme do interior da igreja.
— Mário — Padre Malcolm murmurou, e a voz faltou-lhe.
Mário esfregou os olhos e tornou a olhar, piscando muito, para a tela convexa.
— O que foi?
— A lamparina do altar.
Acima de suas cabeças, o vermelho-rubi da lamparina do altar, o símbolo da presença de Cristo, queimava em silencioso e cristalino esplendor. O jesuíta adiantou-se, insistente, o rosto pálido e temeroso.
— Não fui eu quem a acendeu!
CAPÍTULO SETE
PADRE MALCOLM, olhos fixos reverentemente na lamparina do altar, dividido entre a dúvida e o êxtase, apontou para o brilho vermelho-rubi do vidro protetor.
— Cristo venceu — ele disse em voz baixa.
Anita pousou a mão no braço de Mário. No silêncio, a lamparina irradiava pontos de reflexo na casula do jesuíta, nos dois cientistas e nas câmeras.
— Ela não se acendeu sozinha — Mário contestou num resmungo.
Padre Malcolm virou-se, enfático.
— Eu não a acendi, Mário.
Mário apertou um botão prateado na base do monitor da termovisão.
— Há um meio de se descobrir — ele disse.
O videoteipe preto mostrou uma faixa vermelha ao voltar a fita, refletindo a lamparina do altar. Padre Malcolm sentia-se atrair pela tela, magneticamente, prendendo a respiração. Uma confusão de fulgores vermelhos e uma cruz preta desciam pela nave da igreja em movimentos bruscos.
Pareciam, a Padre Malcolm, uma alma no purgatório.
Mário tocou o videoteipe em rotação normal.
A casula do jesuíta aparecia claramente definida, uma silhueta escura contra as emissões de calor saindo das juntas de seu corpo e do rosto. O jesuíta empunhava o longo e negro bastão do pavio de prata. Mário evocou um quadro de monges medievais, um herético ritual de fogo nas cavernas da Sicília.
— Como é aquele pavio? — Mário perguntou. — Como se acende realmente?
— Pedra contra aço.
Na ponta do pavio aparecia agora um ponto branco, quando o jesuíta o acendeu.
Padre Malcolm vacilou, o bastão inclinou-se e oscilou, mas a lamparina permaneceu nítida e apagada.
— Acredita em mim agora, Mário? — ele murmurou. — Ele era forte demais para mim, naquele momento.
Mário tornou a tocar o videoteipe. Duas vezes mais, Padre Malcolm elevou o bastão de prata com seu pavio, e duas vezes mais batalhou contra uma força invisível. Duas vezes mais, a lamparina permaneceu nítida e apagada.
Mário parou a fita. A bioluminescência, como a maioria das formas de luminescência psíquica, é fria. Mesmo quando adquirem um tom vermelho ou alaranjado, quando medidas, ficam pouco acima da temperatura ambiente. Contudo, ele podia sentir a luz do altar, acima dele, aquecer-lhe o rosto a cinco metros de distância.
— Padre Malcolm, em que estava pensando enquanto tentava acender a lamparina?
O jesuíta fitou Mário como se estivesse se sentindo grosseiramente insultado.
— Por favor, Padre Malcolm — Anita pediu com delicadeza, percebendo o propósito da indagação de Mário.
— É muito importante.
Padre Malcolm olhou para ela, o rosto em brasa, e depois virou-se novamente para Mário.
— Fantasias — murmurou.
— De que espécie? — Anita perguntou.
— Sexuais — ele admitiu num sussurro.
Mário pressionou o botão e a fita rodou para a frente. De vez em quanto, as convergências obscureciam a lamparina, e, a cada vez, quando a imagem novamente se definia, a lamparina, como antes, permanecia nítida e apagada.
Depois, o vulto do jesuíta jogou longe o bastão. Ergueu os braços para a cabeça. Em seguida, a câmera acompanhou sua queda ao solo. A câmera oscilou desordenadamente, corrigiu-se, e tornou a mostrar a área do altar.
A lamparina tinha agora um ponto branco de calor interior, e dali saía uma grade ocre de radiação de calor sem perturbação.
— Foi um calor ardente que senti de repente. — Padre Malcolm explicou. — Assim que me atingiu, eu sabia o que era. Daí, olhei para cima e a lamparina estava acesa. Sentime glorificado.
Mário voltou a fita ao ponto em que o jesuíta estava parado. Passou depois a enrolar a fita manualmente. Na tela, Padre Malcolm começava a levar as mãos às têmporas.
O dedo de Anita indicou a onda vermelha de calor emanando das costas do sacerdote.
Centímetro a centímetro, a figura foi caindo e a câmera deu um salto rastreando-a. A cada imagem, a lamparina do altar, apagada e nítida, deslizava para o topo da linha de imagem. Quando quase a metade da lamparina já havia saído da tela, um ponto branco de luz surgiu na superfície de sua vasilha de óleo.
Uma radiação ocre começou a espalhar-se da forma da lamparina.
Pelas experiências de Dodge e Tippet, na Universidade de Duke, Anita sabia que um paciente emocionalmente histérico poderia induzir sugestionabilidade espontânea em pessoas receptivas. Mas a termovisão não era sujeita a emoções. Era totalmente objetiva. E a lamparina estava quente agora, e a combustão era uma união química de óleo e oxigênio. Combustões pirocinéticas tinham raramente sido ? 156 ?
registradas de modo tão inequívoco, provindas de um paciente sofrendo de stress profundo.
Mário viu o rosto de Anita, e compreendeu que a mente dela passava veloz pelos dados coletados de estudos e experiências anteriores, na tentativa de adequar o que havia acontecido.
Impulsiva e agressivamente, Mário puxou uma cadeira para debaixo da lamparina.
— O que pensa que está fazendo? — Padre Malcolm indagou com autoridade.
— Vou dar uma espiada na lamparina, é claro.
Padre Malcolm aproximou-se, agarrando o braço de Mário.
— Mário, não faça isso.
— Porque não?
— Porque é um objeto de culto.
Mário desvencilhou-se das mãos do jesuíta e trepou na cadeira. Espiou para dentro do vidro vermelho. A chama queimava tão tranquilamente que mais parecia um cone azul e amarelo. Abriu a portinhola de vidro vermelho.
— Mário? Não! — Padre Malcolm murmurou.
O vidro da portinhola era afiado e cortou a mão de Mário, o que foi ignorado na excitação do momento.
Mário cheirou ao redor da lamparina. Não era um petroquímico. Passou os dedos pela chama. Era fria, eficiente. O tipo de fogo que poderia ter sido usado há milénios no Mediterrâneo.
— O que ela queima?
— Óleo santificado.
Mário sorriu.
— Ah, sim... santificado. A diferença é toda essa. Pelos artigos de LaCade en Baton Rouge, Anita sabia que raríssimos líquidos passavam por combustão espontânea, mesmo no mais forte campo de turbulência psíquica.
Também conhecia as experiências soviéticas, com líquidos voláteis e médios, que não levaram a resultado algum.
Começou a sentir a incómoda sensação de que algo, completamente diferente, ocorrera. Ao descer da cadeira, Mário puxou um lenço do bolso para estancar o sangue do corte causado pela portinhola de vidro.
Levantou o olhar. Padre Malcolm havia ajustado a câmera da termovisão para a frente. O brilho da tela passou pelo rosto hipnotizado do jesuíta, o fulgor metamórfico dos momentos finais dos registros.
Cintilando lentamente, a figura virente do homem crucificado suspendia-se perto dos contornos nítidos do altar. Emblema do mistério gerado da Eucaristia, fulgurava desafiadoramente em sutis verdes e marrons-escuros.
Vagarosamente, Padre Malcolm ajoelhou-se.
— Que tu me concedas critério, humildade e pureza para discernir os Teus propósitos e o vaso da Tua Graça. Dá-me forças para cumprir a Tua vontade, e visão clara para perceber os Teus desígnios.
Mário examinou o jesuíta genuflexo. Padre Malcolm rezava, voltado para o altar, mas tinha sido a imagem cruciforme na termovisão que o pusera de joelhos. Parecia ter-se abandonado a ela totalmente, e uma singular expressão de alívio refletia-se em seu rosto.
Anita fez sinal a Mário para que deixassem o padre a sós com suas orações. A voz do sacerdote os seguiu, desvanecendo-se sonoramente à proporção em que se afastavam para o furgão.
Ainda não era o crepúsculo, mas os céus acima de Cataratas do Gólgota já mostravam farrapos de vermelho. O temporal tinha rompido a barragem de troncos na embocadura do pântano, e o Siloam transbordava sobre o charco esponjoso, desfazendo-o e despejando-o sobre o vale.
Atrás do Volkswagen, um grupo de crianças os observava apreensivas. Estavam singularmente imóveis, como criaturas dos bosques apanhadas numa luz irreal.
Sobre os telhados de Cataratas do Gólgota erguiam-se as nuvens do temporal, com fímbrias roxas, douradas pelo sol poente. Os telhados da cidade refletiam-se em poças de ouro.
— Tudo parece tão diferente — ela murmurou.
Mário olhou para o cemitério. Algumas asclépias tinham desabrochado devido à chuva. As lápides gotejavam água, e rebrilhavam nos tons malva e vermelho do pôr-do-sol. Até o bosque de vidoeiros, mais acima, parecia anormalmente branco, pontilhado pela incandescência anômala do sol imediatamente após a tempestade.
— O que aconteceu, Mário? — Anita perguntou.
— O temporal. Lavou toda a poeira do ar.
Anita olhou atônita para ele. Nesse momento, com um sucesso estrondoso na palma da mão, a enfurecedora objetividade daquele homem era uma agressão ao seu ser mais profundo.
— E as imagens? — ela indagou.
— Eu... eu sei lá. Preciso ponderar.
Anita conservou a calma.
— Uma lamparina a óleo, com combustão espontânea, e uma forma de cruz que se pode desconfiar ser extremamente semelhante à de Jesus crucificado. Tudo firmemente registrado em fitas de 3/4 de polegada. O que há para ser ponderado?
Mário afastou-se. O rosto de Anita suavizou-se, e sua voz perdeu a aspereza.
— Mário, por favor... Depois de tantos anos, finalmente temos algo definitivo.
Mário nada disse. Anita deu a volta para postar-se à frente dele. E nos olhos de Mário havia uma terrível e sombria expressão de contrariedade. Ele deslizou apoiado à parede da igreja, esfregando as faces.
— Mário, o que há de errado?
— Eu nem sequer me lembro de ter gravado aquelas imagens — ele gemeu. — Não sei o que houve comigo. — Levantou o olhar para ela. — Você não sentiu? — perguntou estupefato.
— Senti o quê?
— Anita... eu... eu mal pude ficar perto da câmera...
quando o padre caiu...
Ela o fitou, sem compreender.
— Eu não estava sentindo nada!
Mário fechou os olhos e tentou controlar-se.
— Está bem — ele disse. — Talvez eu estivesse emocionalmente envolvido na experiência. Tipo reação solidária.
Às 4h47m, no momento do colapso do padre, no instante da combustão espontânea da lamparina do altar, Mário sentira, partindo das entranhas para o plexo solar, um arrepio. Pulsou e morreu. Como um choque elétrico de baixa voltagem. Ou um orgasmo incompleto.
Sentia agora um toque de febre. Devido, quem sabe, ele pensou, às longas horas, ao miasma úmido do solo argiloso.
Anita acariciou-lhe levemente a face. Ele sorriu e levantou-se. Ouviram a suave litania filtrando-se pela janela.
Soava vagamente em harmonia com a qualidade peculiar das luzes do vale lavado pela chuva.
— Estou exausto. Você iria até lá monitorar os equipamentos? — ele perguntou com delicadeza.
— Claro.
Mário avançou pela grama pegajosa na direção do furgão. As crianças não se dispersaram.
Ao entrar no veículo, pondo de lado uma caixa preta de metal, percebeu que a garotada espiava para dentro, por baixo de seus braços.
— Jesus está lá dentro da igreja? — um menininho de óculos perguntou.
— Por que... por que, diabos, você quer saber?
— Para onde é que o diabo vai agora? — uma menininha tímida perguntou.
— Para o lugar dele. Na imaginação das pessoas.
— O diabo vai voltar — uma criança preveniu.
— E vai levar sua alma — gritou outra.
Mário fechou a porta com um empurrão.
Dentro da igreja, Anita substituiu a bobina de papel gráfico no sismógrafo, enquanto observava a limpeza que o jesuíta fazia ao redor do altar.
Padre Malcolm recolocou os frascos nas caixas. O cálice e a patena ele depositou cuidadosamente no tabernáculo. O ostensório e a luneta foram delicadamente arrumados a um lado do altar. Anita viu que suas mãos tremiam mais e mais, até que ele, subitamente, as levou ao peito.
Mansamente, Padre Malcolm chorava.
Anita foi até ele e tomou-lhe o braço. Ele estremeceu violentamente, delirantemente feliz e, no entanto, totalmente drenado pelo terror de sua experiência.
— Padre Malcolm — ela disse num sussurro. — O senhor precisa descansar agora.
— Ah, Anita... que a fé tenha surgido... e surgido por meu intermédio!
— Tem razão. O exorcismo foi um sucesso. Mas Deus precisa que o senhor descanse um pouco.
Anita tentou persuadi-lo a afastar-se do altar. Aos poucos, ele deixou-se levar pela nave. Olhou à volta da igreja, as paredes agora tingidas do vermelho da lamparina.
Depois, atravessou o vestíbulo.
Pela porta aberta, o sol poente dourava a pia de água benta.
Ao ar livre, sobre os telhados de Cataratas do Gólgota, um arco-íris duplo ia morrer nos montes escuros a cada lado. E, no alto, entre as nuvens novas de cirros, brilhavam as estrelas vespertinas.
— Como um rio de luz, Ele nos trespassa a todos.
Padre Malcolm girou nos calcanhares, e viu Anita, meio escondida nas sombras.
— Anita, você sente a presença de Deus?
— Alguma coisa aconteceu, Padre Malcolm. Mas eu não sei o que foi.
— Cristo vive, Anita. Em você, como em mim.
Anita sorriu.
— Eu não saberia dizer, Padre. Confiamos em dados.
Estatísticas. Correlações. Nossas teorias precisam ser provadas. Nossas experiências devem ser duplicadas por outros cientistas.
— Deus é a fonte de todas as nossas provas, Anita. Esta igreja não é a prova disso?
— Sabe, não sei se Mário concordaria.
— Você deu sua alma a Mário?
Anita, de súbito, viu a dor na expressão de Padre Malcolm. A dor de separar-se dela.
— A alma — ele disse com suavidade — tem suas necessidades. Exatamente como o corpo. Exatamente como a mente. Você está correndo um grande perigo, ignorando essas necessidades, Anita.
— Entendo o que quer dizer, Padre. E aprecio tudo o que disse. Mas o meu modo de pensar é tão diferente.
— Mas pensará, não é, Anita? Olhe a seu redor. Sinta.
Aprenda a receber. — Tentarei, padre. Boa noite.
Mário não conseguia dormir. Às duas da manhã, voltou à igreja. Sentando-se diante da termovisão, fez voltar a fita. Lá estava, a imagem palpável, vagamente cruciforme. Anita, é claro, tinha razão. O que tinham conseguido aqui era, de fato, estupendo. Tudo pelo que tinham suado, lutado, trabalhado, nestes últimos sete impiedosos anos, finalmente rendia frutos. E tudo valera a pena, todos os tempos difíceis e o orgulho ferido, os anos ignóbeis que se estendiam para o passado, como um tapete esfarrapado.
Mário estudou a imagem na tela. Aquela incrível imagem. Projetada, formulada, emanada de um homem crente quase morto pela fé. Uma imagem concreta. Não de mente para mente, mas para um termovisão rastreando calor. Pela primeira vez, uma imagem fixada em material que poderia ser exibido para o mundo todo. Ou, pelo menos, para aquela parte do mundo disposta a estudá-la de mente aberta.
Planos de uma preleção ao comitê de Harvard ocorreram-lhe.
Anita teria que desenvolver o perfil psiquiátrico e o histórico do jesuíta. Da psicologia do anormal Mário passaria aos estudos de Kirlian. A fotografia Kirlian fixava diferentes padrões de luz para iogues em Meditação e para indivíduos comuns.
Do mesmo modo, pacientes esquizofrênicos transmitiam sinais eletroquímicos alterados se comparados a pacientes normais. havia estudos sobre o carisma, sua influência sobre as emoções, e os estudos sobre a telepatia, ou transmissão do pensamento entre duas mentes. Mas nunca, em imagem nítida, a réplica da obsessão psíquica de um paciente.
Primeiro o Padre Lovell, e depois o tio do jesuíta.
Indivíduos perturbados, altamente libidinosos, que se dividiram em sua demência autodestrutiva. Ao redor da igreja, a imaginação coletiva dos nativos do Vale do Gólgota.
Assustados, interpretando as luminescências, obcecados pela igreja, tudo isso contribuindo para sua energia emocional. Talvez a própria geologia da igreja, sua esquisita localização encravada na ravina argilosa ao lado do rio azul, fundações graníticas fissuradas, que haviam atemorizado até mesmo os xamás algonquinos. Tudo somado, resultava um rico humo psíquico, uma redoma de gases voláteis na qual entrara o terceiro sacerdote, Eamon Malcolm. E, pelo poder extraordinário de sua fé e de sua dúvida fizera arder uma centelha. Essa centelha, a crise psíquica, transformara-se, agora, em uma imagem resultante do calor de seus próprios pensamentos reprimidos. Mário balançou a cabeça, maravilhado.
Cataratas do Gólgota. Este lugar doentio e detestável, que cheirava mal e era moralmente repelente, revelava agora tesouros com os quais ele sequer ousara sonhar.
De joelhos, em meditação, e fitando o crucifixo, Padre Malcolm sentia o fluxo da excitação inundando-lhe o rosto. A emoção era indescritível.
Contudo, o que ocorrera? Que o calor o invadira, isso era inegável. Subira-lhe pelas costas, enchendo as paredes do tórax, e espalhando-se rapidamente para o cérebro, e só então, passando para os membros. Seria isto, Padre Malcolm indagou-se, o que os antigos Pais da Igreja chamavam de "o fogo de Deus"? Ou seria um simulacro diabólico daquele sopro de êxtase?
E, como reconhecer os sinais? Que, mesmo agora, se achava habitado, ele o sabia. O interior de seu corpo já não lhe pertencia, uma febre que não era sua, e a mente alimentada por um combustível cuja potência exótica ele jamais conhecera. Seriam todos sinais de contaminação demoníaca, os augúrios da arrogância e a da corrupção? Ou seriam metamorfoses íntimas que proclamavam a presença de Cristo?
Um jesuíta de coração pesado, duas vezes vítima de colapsos, de ínfimo valor, no ermo de um vale humilde, dentro de uma igrejinha abandonada. Seria este o tipo de alvo facilmente procurado por Satanás?
Ou seria precisamente o vaso desocupado que Cristo preenchia no momento extremo da necessidade?
Pois, sem dúvida, ele já não era mais o mesmo. Era o servo de um senhor. E este era um pensamento exaltado, belíssimo, que o transfigurava. Ousaria ele confiar na imagem da máquina dos cientistas? Poderia Cristo, em qualquer forma, revelar-se em meras telas mecânicas? Não era a ciência o anticristo, um sistema de ateus? Quem quer que fosse o seu senhor, seu emblema estava gravado nas extraordinárias visões coloridas da termovisão dos cientistas.
Não foi tanto que Padre Malcolm tivesse adormecido, mas passara a dúvidas visuais cada vez mais amplas, até que se tornaram sonhos, sonhos de maravilhas, de uma beleza inexcedível, que o levaram até à madrugada.
Anita estava sentada no furgão, cadernos de notas a seus pés. Pela janela de ré, parcialmente aberta, observou a Igreja das Dores Eternas. Erguia-se, agora, do fundo do vale, como um diadema. Seu campanário reluzia à lua nascente, puro e radiante. Um símbolo fálico, segundo Mário. Segundo a Igreja Católica Apostólica Romana, uma ânsia ardente na direção de Deus.
O olhar de Anita foi da igreja para a prateleira na qual estava o lampião a querosene. Havia uma fotografia encostada à base do lampião. A Sra. Wagner. A mãe de Anita, em roupas campestres de tweed, um rosto jovem para a idade, com ruguinhas de bom humor ao redor dos olhos e um gracioso senso de dignidade.
O rosto parecia fitar Anita com um laivo de tristeza, refletindo o distanciamento que se alargara entre ela e a filha.
A Sra. Wagner detestava Mário. Para ela, Mário era grosseiro, descuidado, violento e estrangeiro. Não que não entendesse o que Anita via nele. Isso era por demais evidente. Liberdade. Liberdade sexual. Mário tinha um quê, mesmo quando tentava ser intelectual, que fazia a Sra. Wagner pensar em um animal. Só que Anita entrara na órbita de Mário exigindo os seus direitos como um ser sexual.
Mesmo Anita sentia-se perplexa com sua atração gravitacional para a esfera de Mário. Tentou lembrar-se do pai, mas tudo o que conseguia recordar era um homem franco, indistinto agora, que falecera quando ela estava com sete anos. Cenas vieram-lhe à mente: depois d morte do pai, uma série de homens fazendo visitas a sua mãe. Homens bem-educados, ricos, discretos, ambiciosos. Inclusive o Deão Osborne. Mas o que a Anita criança percebia neles não era substância, mas uma estranha ausência de virilidade.
A Sra. Wagner, provavelmente, detectava o mesmo. De qualquer modo, não se casou novamente.
As memórias voltavam em torrentes estimuladas pelos extraordinários acontecimentos do exorcismo.
Pois o exorcismo aparentemente rompera o poder de Mário sobre Anita. O campo gravitacional, aquele ímpeto emocional de Mário, perdera repentinamente seu intenso poder. Por estranho que pudesse parecer, a liberaço sexual de Mário era repressiva. Reprimia a dimensão mais delicada e intuitiva de Anita.
Relembrou os invernos em Seven Oaks. Sapatos de neve até alcançar o córrego congelado atrás das cocheiras. Folhas caídas, congeladas desde o outono, lá estavam, engastadas nas borbulhas e contornos cristalinos de gelo. Encontrava tranquilidade naquela solidão.
Lento desdobramento de vida. Sensualidade sem sexo.
Inteligência sem intelectualidade agressiva. Uma espécie de ouvir e compartilhar de um coração humilde. Padre Malcolm teria entendido.
Não que a inocência ressuscitasse em Anita. Essa, de há muito fora deixada para trás, na infância irrecuperável. Mas, algo de raro e permanente ocorrera: um despertar para além do sexual. Uma espécie de aceleração da imaginação espiritual, que muito deve ao sensual, mas que se sobreleva a ele, como as pombas se erguem mais alto do que as nuvens lácteas batidas pelo luar.
Anita apoiou-se no cotovelo. A igreja ainda estava iluminada pela luz da lua, e parecia dialogar com os bosques de vidoeiros ao alto. Um novo eco, um novo sistema de ritmos adquiria vida no Vale do Gólgota, tão diferente do que havia antes como uma clave maior difere de uma clave menor.
Algo tivera lugar naquele dia, algo raro, até milagroso.
Ou tudo não passaria de um ardil?
CAPÍTULO OITO
ALGO ROÇAVA pelo crucifixo. Lentas a princípio, e penetrando depois pela janela, as pétalas da macieira moviam-se ao luar, caindo docemente sobre o catre de Padre Malcolm.
Ele jogou para longe a manta que o cobria, e sentiu então a dor dos músculos enrijecidos. Devagar, massageou-se, e depois saiu da cama. Na porta, viu um coelho fitá-lo inteligentemente e depois saltitar degrau abaixo.
A casula vermelha, pendurada num cabide, recebia o sol nascente. A lama na fímbria havia secado, e finalmente caído durante a noite, como poeira cinzenta no assoalho. O barrete também estava envolvido de pó cinzento. A alba, jogada sobre uma cadeira velha, estava amarelada de suor e sujeira.
Padre Malcolm levou a casula para o Oldsmobile. Depois pegou o barrete e os sapatos. O sol parecia excessivamente brilhante fora da reitoria. Não apenas a macieira apresentava-se em floração esplêndida, mas também as duas pereiras ao lado norte da igreja haviam florescido depois da chuva forte.
A Igreja das Dores Eternas erguia-se, agora radiosa e reconsagrada, como o mais faiscante ornamento do vale.
Dentro dela, Mário podia ser visto, em vigília, debruçado sobre seus instrumentos, desfigurado pela falta de sono.
Enquanto preparava o desjejum, o jesuíta olhou pela janela. Dois passarinhos escuros e pequeninos pulavam pelos ramos. Um deles carregava um ramo no bico. Padre Malcolm notou um ninho rudimentar na forquilha escura entre as pétalas. Lentamente, Padre Malcolm tomou seu café.
Havia sido, na terminologia cristã, uma experiência de êxtase. Mário chamá-la-ia de explosão física. De qualquer modo, já era agora coisa do passado. Permanecia apenas a sensação de imanência, de se estar no limiar quer da glória ou da aniquilação.
A hora, agora, era de preparar seu relatório para o bispo. Padre Malcolm contemplou sonhadoramente os resíduos de café flutuando na xícara. Uma abelha circulava preguiçosamente ao redor de sua mão.
Fora uma revelação descobrir que Cristo havia decidido manifestar-se através dele, mesmo que num único ritual.
Algo em que jamais acreditara, sequer por um momento, durante todos os anos de sua preparação.
Pois um sacerdote, assim acreditava, especialmente um jesuíta, pode atingir sofisticação com a pergunta final: serei digno de Cristo?
As esperanças da família tinham se concentrado em Ian, o primogênito, destinado ao sacerdócio. Com a morte de Ian, Eamon tomou seu lugar. Eamon era inteligente, fazia boas imitações, e a idéia de falhar o deixava transtornado. Assim, candidatou-se e ganhou bolsas de estudo. A família, contudo, sabia que existia uma falha sutil em Eamon. Um estranho vazio num cerne onde devia existir vitalidade.
Elizabeth conseguira avivar aquele vazio até assemelhar-se a tempestades de virilidade. Mas isto também era, de certa forma, um fac-símile. Eamon sempre soubera que sobreviveria em Cristo, e apenas em Cristo, ou pereceria em Sua Ausência.
Agora, de maneira bastante simples, e com toda humildade, Padre Malcolm reconhecia que, ao entrar para a Companhia de Jesus, havia sido, em última análise, fabulosamente recompensado.
Calçou os sapatos, e parou à porta. O cemitério não escapara aos efeitos da chuva. Florescia em groselhas, morangos e amoras silvestres. Borboletas monarcas deixavam-se ficar no telhado da reitoria. Os lilases curvavam-se sobre o célebre Siloam.
O Eden novamente, ele pensou, maravilhando-se, e explorou o mato alto, protegendo os olhos contra o sol matutino.
Por todo canto, o solo do vale apresentava-se radioso com plantas altas que roubavam o ouro do sol, e as asclépias flutuando no ar oscilavam como globos luminosos. Até a cidadezinha de Cataratas do Gólgota, lavada pela água da chuva, alterara-se. Gengibres e ripas brancos faiscavam, dominados pelo vermelho vivo dos telhados vitorianos.
Uma bota roçou os galhos da macieira. Padre Malcolm levantou a vista. A bota pertencia a um fazendeiro jovem e barbudo, carregando um rifle. Os olhos do homem estavam injetados mas ele parecia contente.
— Bom dia, padre — ele disse timidamente.
— Ora, meu Deus, o que está fazendo aí em cima?
— A gente 'tava protegendo o senhor.
— Protegendo de quem?
— De Satanás.
Padre Malcolm sorriu.
— Agradeço a lembrança. Agradeço mesmo. Mas, você sabe que Satanás não se assusta com armas de fogo.
— Talvez não. Mas a gente ia fazer uma barulheira danada pra ele.
O jovem, com cerca de 25 anos, escorregou para o chão.
Dois outros homens, mais velhos, em macacões de brim e gorros imundos, também aninhando rifles nos braços, saíram dos fundos da reitoria.
— A gente quer que o senhor venha com a gente, padre — disse o mais velho de todos.
— Mas estou indo para Boston!
O fazendeiro mais idoso, olhos castanho-escuros e injetados nos cantos, aproximou-se educadamente.
— Acho que vai gostar de ver o que a gente tem pra mostrar.
Havia sinceridade no olhar do velho, e indícios de medo. A curiosidade de Padre Malcolm acirrou-se.
— Está bem — respondeu. — Mostrem o caminho.
Todos juntos, subiram o morro resfolegando. Chegaram a uma choupana cinzenta e arruinada, ao lado de um celeiro.
Uma mulher gorducha, de avental, e rodeada por cinco crianças, ficou espiando.
Com um gesto, o velho fazendeiro convidou Padre Malcolm a entrar no celeiro. Estava tão escuro que o jesuíta somente conseguia distinguir um vermelho embaçado da coroa solar, do sol que iluminava Cataratas do Gólgota.
Depois, pouco a pouco, foi percebendo tábuas horizontais, um monte de palha e, no fundo da palha, uma bezerrinha acabada de parir.
— Olhe para ela — disse o fazendeiro velho, mais numa súplica do que numa ordem. Padre Malcolm ajoelhou-se. A bezerrinha não tinha mais do que algumas horas, o pêlo ainda estava úmido, as juntas exageradamente protuberantes e os olhos rosados.
— Ela me parece ótima.
O velho fazendeiro acocorou-se ao lado dele, puxando o gorro levemente para trás.
— Ela é perfeita, padre! — declarou ele.
Padre Malcolm fitou os homens perplexos. Estavam postados à sua volta, os rifles pendentes em suas mãos. E agora, a mulher e as crianças acotovelavam-se dentro do celeiro.
— A gente não tinha um bezerrinho nascido aqui desde antes do meu pai nascer — o fazendeiro confessou.
— A gente tem que comprar o gado em Dowson's Repentance.
— Entendo. E este aqui?
— Nasceu hoje de manhã. E é perfeitinho!
Padre Malcolm acariciou o animal. A longa língua rosada balançava do focinho. O sacerdote não conseguiu reprimir um sorriso. O fazendeiro levantou-se.
— É melhor o senhor vir conosco, padre — ele disse.
Padre Malcolm acompanhou os homens pela porta lateral. Um deles a fechou, de forma que a mulher e a meninada não pudessem ouvir. Os outros apanharam pás de cabo longo e garfo de estrume e começaram a cavar a terra fofa.
Padre Malcolm empalideceu.
À proporção em que as pás iam cavando a terra, bezerros mutantes, de beiços arreganhados como num sorriso, e cabeças pontudas, apareceram. As patas da frente davam nós, alguns dos animais tinham bocas onde deviam estar as orelhas. Um não tinha pata alguma, mas uma série de barbatanas no dorso felpudo.
— O senhor sabe quem fez isto conosco — o fazendeiro velho comentou. — Mas, o que aconteceu hoje de manhã?
Padre Malcolm engoliu em seco, observando os homens jogarem a terra de volta sobre os corpos dos animais já parcialmente em estado de decomposição.
— Não tenho licença para responder — confessou. — Por isso é que preciso ir a Boston.
Os fazendeiros trocaram olhares.
— O senhor vai voltar?
— Decerto que sim. Eu agora pertenço a Cataratas do Gólgota.
O fazendeiro mais velho meneou a cabeça. Voltaram ao casebre cinzento. Padre Malcolm notou que, embora suas roupas estivessem imundas e as Mãos pretas de sujeiras, eles agora se lavavam numa torneira de água fria.
Em silêncio, escoltaram-no de volta à reitoria. A meio caminho, descendo a ladeira, o fazendeiro jovem bloqueou-lhe o avanço, colocando a mão contra seu peito.
— O senhor não entendeu, padre — ele explicou. — Não havia sinal de que a vaca estava prenha.
— Ora, bem... nem sempre essas coisas...
— Falamos com todo o pessoal aqui do vale. E ninguém consegue explicar.
O fazendeiro velho aproximou-se.
— Isso é coisa de quem? — ele perguntou. — Se é trabalho de Satanás eu corto a garganta da bezerrinha.
— Por favor, esperem até eu voltar de Boston.
Sombrios, acompanharam a descida do padre, que chapinhava na lama, na direção da igreja. Padre Malcolm ia de testa franzida, pensando no que significaria o nascimento de um bezerrinho saudável. Seria este, assim como o vale florido, mais um sinal da imanência divina, ou seria um evento inspirado por poderes mais sinistros? Será que o exorcismo realmente surtira efeito? Qual o significado de todos esses sinais? Padre Malcolm cultivara secretas esperanças de deixar para trás um universo de símbolos e portentos, e também secretamente murmurava esperanças e temores. Agora, já não tinha tanta certeza. Tal como os homens do campo, teria que esperar pela resposta.
Um microônibus estava estacionado ao lado do furgão Volkswagem. Na lateral do veículo, em letras pretas, estava escrito Haverford County Medical Services. Anita, segurando uma prancheta, conversava muito séria com dois homens.
Padre Malcolm foi para a porta da igreja. E, então, parou para observar. Os homens pareciam particularmente interessados no cemitério. Apontavam, discutiam, e depois prestavam atenção. Depois de mais alguns debates, trocaram apertos de mão com Anita, apontaram para as lápides, subiram no microônibus e foram embora devagar.
Padre Malcolm olhou para o cemitério. Entre groselhas e morangos sumarentos, desabrochara uma única rosa sobre a quinta sepultura.
Anita desceu a alameda. Vestia uma blusa amarela de algodão que deixava à mostra os ombros pálidos. Era como se, absurda mas inegavelmente, ela fosse sua irmã, Padre Malcolm pensou. Anita entregou-lhe a prancheta.
— O que é isto? — ele perguntou.
— Relatórios — ela explicou. — Reações ao exorcismo.
Padre Malcolm apertou os olhos para poder ler a caligrafia miúda e caprichada, numa escrita organizada em folhas simples de papel.
A Srta. Kenny viera a falecer, serenamente, às 4h38m.
Deitada, estendera os braços sobre a cama e pusera-se a cantar. Subitamente, seus olhos tornaram-se meigos, como se estivesse tendo a visão de algo infinitamente belo. Sua irmã havia parado o relógio às 4h38m, um costume de família. E apenas notou que, no momento da morte, o sol vinha despontando, irradiando-se como um alfanje de luz dourada pela Rua Canaan, na direção da igreja.
Padre Malcolm olhou para Anita.
— Leia o próximo — ela disse.
Naquele momento, Fred Waller, o mecânico, ouvira seu nome ser pronunciado pela irmã da Srta. Kenny. O alfanje de luz o despertava. No instante em que ouviu seu nome ser chamado, ele viu, adiante das nuvens de tempestade que se afastavam, o sol atingir a Igreja das Dores Eternas com plena força. E, então, ouvira o grito do jesuíta.
Ao contrário do que acontecera ao testemunhar a morte do pai, asseverara Waller convictamente. Naquele dia, no hospital, havia sentido como se algo, talvez a alma, deixasse seu pai, e mesmo antes da chegada do médico ao quarto, sabia que ele estava morto. Desta vez, era como se algo entrasse no vale, atingindo a igreja.
— Há mais ainda — Anita disse. — George Finster, o dono da taverna, tinha se levantado para fechar as janelas por causa da tempestade. E, nesse momento, o sol descera sobre a Rua Canaan. Nesse momento, uma garrafa de vinho explodiu.
Padre Malcolm examinou aquele rosto obviamente sincero. Folheou o resto dos relatórios. A maioria registrava algum tipo de reação a luz irradiante, uma sensação de bem-estar, o súbito alívio de um jugo que deixava a atmosfera.
— Coisas assim ocorrem em parapsicologia — Anita acrescentou. — Mas nunca tão depressa, nunca em escala tão forte em relação a um único evento.
Ao invés de oferecer a explicação da Igreja que, pressentia, Anita estava buscando, algo que viesse a dar coesão à reação coletiva ao exorcismo, Padre Malcolm virou a cabeça para contemplar a poeira no lugar onde antes estivera o microônibus cor de laranja.
— Quem eram aqueles homens? — ele perguntou.
— Do asilo de velhos. A oeste do Vale do Gólgota.
— E o que queriam?
Anita apontou para o cemitério e a única rosa, de pétalas compactas. Que brilhava sedosa ao sol. O cemitério era uma profusão de minúsculas amoras e flores silvestres, mas a rosa dominava o cemitério agora, como a lamparina do altar dominava a igreja.
— Houve duas remissões de moléstias — Anita prosseguiu. — Leucemia e tuberculose. Os dois pacientes sofreram alucinações envolvendo a rosa no nosso cemitério.
O jesuíta olhou para o cemitério.
A rosa balouçante pendia, e tornava a balouçar ao sabor da brisa morna.
— O que significa isso tudo, padre? — Anita perguntou.
— Na terminologia católica, que explicação o senhor daria?
— Que o amor de Deus engendra milagres para que o desespero do homem possa transformar-se em fé. Não pode haver outra possibilidade, Anita.
Sentiu-se tentado, por um instante, a sair do lado dela, a fim de entrar na igreja, sofrendo ainda um resquício da dor que o assaltara na véspera. Mas quando o fez, a igreja estava ainda mais radiante do que o vale lá fora.
O vestíbulo mostrava pegadas na lama endurecida, sedimentos da tormenta. Mas o teto fulgurava em círculos de luz, como auroras prateadas refletidas na água benta.
Padre Malcolm molhou os dedos na pia de água benta, ajoelhou-se e murmurou uma oração rápida e silenciosa.
Depois, ao entrar na nave da igreja, ficou ofuscado com o fulgor das luzes. O sol, brilhando entre os botões de pessegueiros, transmitia todo o esplendor da manhã para o chão. As paredes se incendiavam com a glória do alvorecer.
Padre Malcolm virou-se para deparar com Mário, pela primeira vez naquele dia.
Uma latinha de café, cheia de pontas de cigarros, era a muda testemunha da fanática vigília de trabalho. Cabos, cartões de notas, alicates, fios de solda, lápis, e toda a sorte de porcas e parafusos rodeavam a tela da termovisão.
Padre Malcolm afastou-se.
O altar estava imaculado. As paredes não apresentavam sinais de manchas. Nem mesmo a cruz de Santo André, desenhada no chão com cinza e areia, fora perturbada pelas pesadas botas do cientista. Ao alto, a luz suave da lamparina do altar irradiava pontos diminutos de reflexos por toda parte.
Padre Malcolm ajoelhou-se novamente, fez o sinal-da-cruz, e beijou o altar ao levantar-se.
O que quer que tenha invadido o vale, ele pensou, invadiu a todos nós. Nada voltaria a ser a mesma coisa. A fé operara através de todos os seres pensantes, inclusive os agressivos parapsicólogos e seus instrumentos sofisticados.
Padre Malcolm concentrou-se na contemplação da imagem gerada pelas flutuações de íons errantes na fita cassete.
— Pelo que soube, o senhor vai a Boston apresentar um relatório completo ao bispo — Mário disse, sorrindo. — Vai precisar de muita sorte. Acho que vai descobrir que ele mantém um rígido monopólio dos acontecimentos milagrosos.
Padre Malcolm levou tempo para responder. Não lhe ocorrera que o Bispo Lyons talvez não reagisse prontamente à revelação em Cataratas do Gólgota.
— Diga-me uma coisa, Mário — ele disse com tristeza. — Por que escolheu a parapsicologia?
— Por que era o desafio decisivo. E também porque sou particularmente bom nesse negócio.
— A parapsicologia lida com naturezas absolutas, não é mesmo? Com realidades além dos meios normais de percepção, além do nosso domínio habitual do cognoscível?
— É isso aí.
— E abrange todos os fenômenos no campo da teoria.
Sua natureza permeia cada um dos aspectos da realidade física e inteligente. Estou certo?
— Diga logo onde quer chegar, padre.
— Diga-me você, Mário. O que a parapsicologia representa para você, além de ser a substituta da Igreja? Um misterioso, abrangente, absoluto...
— Ah, céus — Mário suspirou. — Isso me dá enjôo.
— Você fez dela a sua amante, Mário... uma amante que jamais revelará sua natureza real... deliberadamente.
— Cale a boca!
Padre Malcolm encostou-se na coluna. A imagem cruciforme, no visor da termovisão, parecia pregá-lo ao pilar de madeira.
— Mário — ele prosseguiu calmamente. — Sem a parapsicologia você estaria em estado de total desespero.
— Ouça o que ele diz, Anita. Não quer ouvir a oratória de um padre quando chega ao auge do entusiasmo?
Anita havia entrado na igreja e estava silenciosamente observando os dois homens. Nesse momento, o jesuíta virou-se para ela, buscando sua compreensão.
Um materialista, um ateu, um fatalista — Padre Malcolm disse — é sempre uma criatura em desespero. Perdeu Deus, e portanto perdeu a si mesmo. No caso presente, a devoção à parapsicologia nada mais é do que uma expressão de carência pelo que está perdido: seu futuro, a transcendência...
Mário esmagou o cigarro, jogando-o depois na latinha de café.
— Se a condição do homem honesto é o desespero — ele concluiu —, eu o aceito.
— Não, Mário...
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa: se Jesus Cristo em pessoa viesse a este vale, eu não ficaria tão aterrorizado quanto o senhor está neste momento. Porque eu vivo de acordo com a verdade, conforme a conheço, e faço o que devo fazer para conseguir um pedacinho de espaço limpo e sem loucura neste mundo desvairado!
— E a sua motivação é essa?
— Jamais me vendi à Igreja! — ele exclamou. — Jamais me vendi à Universidade! E, se desespero é o preço, pago-o com prazer.
Padre Malcolm afastou-se da coluna. Sentiu que os olhos de Anita o seguiam. O fulgor do vale infundia-lhe uma sutil confiança. Virou-se para Mário.
— Mário, seu deus é a eletrônica — ele disse com brandura. — Restrito a cabos e gravadores. Mas, o meu Deus é a soma total de todas as coisas possíveis. Deus é aquele em quem todas as coisas são possíveis. Consequentemente, sou eu quem sobrevive com condições de vida.
Padre Malcolm lançou um último olhar ao visor. Depois, foi para o Oldsmobile.
— Ele vai fazer papel de bobo — Mário preveniu. — O idiota pensa que é João Batista.
Anita saiu correndo atrás do jesuíta. Alcançou-o quando ele jogava uma caixa de papelão no banco traseiro e pousava a mão no trinco. Ele parou quando a viu.
— O senhor tem tanta certeza assim de que está fazendo o que é certo? — ela perguntou.
— Logo saberemos, Anita.
— Lembre-se, Boston não é Cataratas do Gólgota. O que nós aqui achamos que é um foco de paranormalidade... uma revelação... não passará para eles de...
Padre Malcolm sorriu, pousando a mão no ombro dela.
— Entendo o que quer dizer. Revelações e intervenções milagrosas são anátemas para os poderes cosmopolitas da Igreja Católica. — Recolheu a mão. — E, no entanto, não são tais fatos a própria essência da fé católica? Em Boston. No Vaticano. No mundo inteiro.
Com mão trêmula indicou a pereira em flor, os íris silvestres e extáticos, e o branco cintilante da igreja recuperada. — Quem poderia ignorar tais provas?
— Sim, é claro — ela disse. — No entanto, as formas do paranormal são inumeráveis, e talvez o que aconteceu aqui não tenha o significado que o senhor lhe atribui.
Padre Malcolm ligou o motor. O Oldsmobile roncou voltando a vida, um fio de fumaça azul, quase invisível, saindo do amortecedor.
— Você está tentando me proteger do coração empedernido do bispo e seus secretários — ele concluiu. — Você teme que eu faça papel de tolo. Talvez tenha razão.
Mesmo assim, é meu dever comunicar ao bispo o resultado de minhas investigações, e deixar que ele determine seu significado.
Trocou de marcha. O freio estava travado, e o Oldsmobile gemeu possante contra essa prisão. O sacerdote se fez levemente sério, vendo a preocupação no rosto de Anita.
— Não permita que a ciência endureça o seu coração — ele aconselhou. Deixe que esta igreja e este vale conversem com você. É um testamento abundante de sinais, se ao menos tiver coragem para ler o que dizem.
Em doce desalento, ao ver que nada conseguiria impedi-lo, Anita deu um passo para trás, afastando-se do automóvel.
— Que Deus esteja com você, Anita — ele disse com imensa sinceridade.
— E com o senhor, padre.
O Oldsmobile deu alguns solavancos libertando-se dos sulcos, Padre Malcolm acenou alegremente, quase colidiu com um arbusto alto, riu quando viu Anita rir também, e, depois, o carro preto começou penosamente a subir a ladeira.
Anita retribuiu o aceno, mas a ansiedade retornara. O vale estava lindíssimo, a fé do jesuíta era uma fonte contagiante de confiança. Qual a origem de sua angústia?
Mário observou o Oldsmobile levantando uma nuvem de pó pelos campos, até chegar à única estrada que havia e desaparecer nos bosques de vidoeiros. Anita tornou a entrar na igreja.
— Mário — ela disse com doçura.
— O que é?
— O que está acontecendo?
— Acontecendo? — Mário resmungou, a atenção presa ao console da termovisão.
— É — Anita explodiu. — Com esta igreja, com esta cidade, comigo! Que diabos está acontecendo?
Mário deu de ombros.
— Acho que você pegou a refração da crença de Malcolm. O homem é um potente transmissor psíquico. Isso, e a sua própria sugestionabilidade.
Insatisfeita, Anita subiu a nave e parou sob a lamparina vermelha do altar.
— E o que me diz disto aqui? — ela perguntou.
— Sai dessa, Anita. Já tivemos outras experiências com pirocinese. O padre está completamente carregado e a lamparina sofreu combustão espontânea. E temos as fitas para prová-lo.
A certeza dele deixou-a irritada. Foi até a janela gótica e debruçou-se no peitoril. O sol amornava seu rosto, e o ar recendia a flor de macieira. A rosa balouçava serenamente sobre a quinta sepultura.
— O que invadiu o vale, Mário?
— Quatro meses de seca. Ciclo agrícola completamente fodido e bloqueado. Então vieram as chuvas. Tudo floresceu.
Com quatro meses de atraso.
Anita virou-se cheia de raiva.
— Dane-se, Mário! É a remissão de leucemia? — ela perguntou. — Havia uma mulher morrendo de tuberculose e hoje ela está cantando!
Mário permaneceu em silêncio por algum tempo, fingindo estar absorvido no computador.
— Ainda não fui ao asilo de velhos — ele disse na defensiva. — Não sei o que aconteceu de verdade.
Anita caminhou pela ala lateral, o dedo correndo óciosamente pela parede que jesuíta crismara. Parou no vestíbulo, baixando o olhar para a faiscante água benta na pia.
— Ouça, benzinho — ele disse, parecendo preocupado.
— Quando um lugar chega a ficar assim tão cheio de sugestões, muitas coisas podem começar a parecer muito convincentes. Não deixe o padre levar a melhor sobre você, está bem?
— Acho que eu seguro a barra, Mário.
Dos céus do norte veio uma formação em V de aves escuras, voando sem esforço sobre a folhagem outonal no topo do espinhaço ao norte. Quando a formação penetrou no vale do Gólgota, alguns dos pássaros começaram a perder sua posição. O V deformou-se. Confuso, o bando de aves circulou desordenadamente e veio pousar nas árvores frutíferas ao lado da igreja.
Anita olhou para baixo. Teias de aranha cintilavam sobre as pedras da alameda da igreja. Teias antigas ainda cobertas de pó de argila, irradiando-se de círculos interiores, treliças articuladas e uniformes. Próximas das marcas deixadas pelos sapatos de Padre Malcolm achavam-se teias novas, ainda incompletas. Anita quedou-se observando-as, por muito tempo.
As teias novas apresentavam padrões anárquicos cruciformes.
Dentro da igreja, os movimentos discretos e mínimos de Mário trabalhando na termovisão faziam rubras sombras macias e sensuais sobre o chão, a tal ponto a luminosidade da lamparina acesa sobre ele era penetrante. Mário estudava a imagem cruciforme gravada na fita, rodando e tornando a rodá-la uma dúzia de vezes.
Uma alteração sutil e irremediável operara-se nele.
Seus dias de bicho-papão no campus de Harvard, que todos suportavam por causa de Anita, estavam acabados.
Gurus em levitação, cartas de tarô, leitura da mão, sessões de mediunidade, jamais tornariam a interessá-lo. A termovisão fulgurava brilhante — fonte de sua justificação científica. Os senhores de Harvard poderiam caçoar, conspirar, ignorar — e eles o fariam — mas não poderiam, em última análise, refutar a imagem na termovisão.
Nem, e Mário compreendeu com enorme prazer, o poderia a igreja Católica.
Gargalhou alto. Visões do teimoso Deão Osborne, de bispos sarcásticos, passaram por sua imaginação. Mostrar-lhes-ia as fitas da termovisão. E suas máscaras de fingimento cairiam. A necessidade de destruir esses hipócritas fez correr um arrepio de antecipação pelo corpo de Mário. E se alguma coisa desse errado? E se a termo visão não os convencesse? Não. Tinha que dar certo. Os dias de viver em águas-furtadas intelectuais, assaltado por dúvidas ferozes e autoquestionamento, mal disfarçados por uma fachada de sarcasmo, sem dúvida alguma, estavam terminados. Certamente, agora, em algumas semanas, ou mesmo em questão de dias, a respeitabilidade estaria a seu alcance.
Ainda assim, Mário estava apreensivo. O valor em risco era altíssimo. O fracasso agora significaria ser jogado na cesta de lixo do ridículo científico.
Já que as projeções psíquicas não morrem inteiramente, mas empalidecem com infinita lentidão, a imagem na tela da termovisão ainda seria vagamente visível. Não haveria meios de torná-la mais nítida? Mário sabia que, num laboratório, seria possível melhorar a imagem banhando-a em uma frequência controlada eletromagneticamente: a assim chamada frequência "de assinatura". Mário suspeitava que uma frequência próxima à das luminescências separaria a imagem da interferência ambiental. Funcionara em laboratório com projeções muito mais vagas. Talvez funcionasse na igreja. Transformar a igreja num laboratório despertou o senso de ironia de Mário.
Havia no furgão suportes para lâmpadas, luminárias e filtros de espectro azul. Mário saiu correndo para o veículo e começou a descarregar o equipamento. O padre fora embora.
A igreja, deu-se conta cheio de temor e excitação, era sua.
CAPÍTULO NOVE
O OLDSMOBILE cruzou o Rio Charles, O lado norte da expansão urbana rebrilhava ao crepúsculo. As luzes já estavam acesas nas sombras dos becos, e os navios mercantes atracados às docas mostravam-se fracamente iluminados pelas luzes de convés. Sobre as habitações dos portuários, erguia-se a grande catedral, majestosa e melancólica como um penhasco artificial.
Pelas ruas sinuosas, aos solavancos pelas pedras soltas, o Oldsmobile seguia aos trancos por bairros estreitos já perdidos na noite.
Padre Malcolm estacionou atrás de um restaurante chinês. Um vulto na porta da cozinha o espiou com suspeita, depois abriu a porta de tela e jogou água de sabão pelo terreno. Ao sair do carro, Padre Malcolm notou a cerração refletindo as luzes alaranjadas de Boston, dentro e ao redor das montanhas.
Subindo pelo caminho de pedras da residência episcopal, veio-lhe subitamente à lembrança o branco reluzente dos ramos da macieira na porta na reitoria. O contraste não poderia ser mais completo. Gatos vadios miavam e pulavam ruidosamente pelas latas de lixo, enquanto ele se aproximava das portas sofisticadamente entalhadas.
De algum ponto lá dentro, chegou-lhe o som de uma máquina de escrever. À distância, da cidade densa veio o eco da sirena de um carro de polícia. Padre Malcolm sentiu-se encurralado nas misérias do mundo. Ergueu a mão uma vez, e outra vez, e então, finalmente, apertou a campainha. O datilografar cessou.
Quando a porta se abriu, um padre esguio, de batina preta, o fitou, inspecionando, avaliando, com ares superiores e desdenhosos. Padre Malcolm, timidamente, a boca seca, ajeitou o cabelo despenteado e percebeu que sua camisa e calças ainda estavam sujas da argila de Cataratas do Gólgota.
O padre magro ficou à espera.
— Preciso ver Sua Reverendíssima — Padre Malcolm declarou hesitante.
O padre sacudiu a cabeça.
— O Bispo Lyons já se recolheu. Mas se o senhor voltar amanhã, depois das 10 horas, poderá marcar uma hora com o secretário de entrevistas.
— É um assunto de extrema urgência.
— Pois não?
— Peço desculpas pelo avançado da hora. E peço desculpas pela minha aparência. Mas algo ocorreu que tem enormes implicações para a diocese.
O padre magro levantou um supercílio.
Padre Malcolm entrou. Uma escada de nogueira, em espiral, levava aos aposentos superiores, passando por gravuras emolduradas e um retrato de Sua Santidade, Baldini, o siciliano, atualmente o novo Papa Francisco Xavier. O padre indicou um banco duro de madeira; suaves luzes vermelhas cintilavam, e um pequeno crucifixo dourado pendia sobre a mesa e a máquina de escrever do padre.
Padre Malcolm, agitado, olhou ao redor, para as outras duas escrivaninhas antigas, de entalhe, sob a janela de vidro fumê. Volumes encadernados em couro vermelho, códices, e agendas encadernadas em preto estavam alinhados sob os painéis de cerejeira.
Passadas voltando pelo corredor. O padre esguio apresentou um padre mais idoso, com título indefinido, e esgueirou-se para a sua mesa. O ruído da máquina de escrever voltou a ecoar pelo saguão.
O padre idoso sentou-se ao lado de Padre Malcolm, incomodamente próximo.
— Qual o propósito de sua vinda a esta residência? — ele perguntou suavemente, sobrancelhas grisalhas e espessas sobre olhos negros irrequietos.
— O propósito? — Padre Malcolm exclamou. — Por onde posso começar? Preciso falar pessoalmente com Sua Reverendíssima.
— Mas, entenda, por favor, ele já se recolheu.
— Por favor, diga a Sua Reverendíssima que o Padre Eamon Malcolm regressou de Cataratas do Gólgota. Diga-lhe que algo de muito extraordinário aconteceu. Diga-lhe que somente Sua Reverendíssima pode assumir controle agora.
O padre idoso, sentindo-se talvez insultado pelo deplorável casaco negro sobre a camisa manchada de argila e infestada de sujeira, suspirou. Levantou-se e depois curvou-se ligeiramente para a frente.
— Saiba, Padre Malcolm, que será aconselhável que sua causa justifique tamanha perturbação.
— Assim como dei testemunho de Cristo, asseguro-lhe que justifica.
A afirmação religiosa causou pouca impressão no homem de feições de falcão. A contragosto, o padre subiu a escada espiralada, passou pelo retrato do papa e fuzilou Padre Malcolm com o olhar.
Padre Malcolm enterrou o queixo nas mãos entrelaçadas, e soprou os dedos congelados até os ossos. Ficou de pé, andou pelo tapete verde, e tentou distrair-se. Pelas janelas de grade espiou vultos indecisos caminhando no nevoeiro, um caleidoscópio de formas humanas perdidas e inseguras no inferno urbano.
O padre esguio atendeu o telefone que havia tilintado.
Com uma voz macia e alegre pôs-se a conversar ao aparelho.
Padre Malcolm passou pela mesa. Como num sono de sombras, impelido por alguma força motriz, e não por vontade própria, flutuando mais do que caminhando, viu o retrato do papa parecer mais próximo, a escada em espiral tornar-se reta. Em silêncio, ele subia as escadas.
Ansiosamente, Padre Malcolm examinou com atenção os olhos cinzentos do papa siciliano. E os olhos cinzentos pareceram retribuir seu olhar. Um organizador, o homem que aplainava dificuldades para o secretário de estado do Vaticano, Baldoni, o homem que se tornara pontífice, jamais perdera suas origens sicilianas. Dizia-se que o rosário que pertencera a sua mãe ainda pendia sobre o leito dele nos Apartamentos dos Borgia. Francisco Xavier fora um lavrador nos campos da Sicília, e suas epístolas abundavam com tais memórias.
Nos últimos cinco anos, o movimento milenarista ganhara força e poder dentro do Vaticano. Em resposta ao fervor que se espalhava pela América Latina, Ásia e África, os cardeais instavam com Francisco Xavier para que preparasse a Igreja para o objetivo final: a conclusão da História com a segunda encarnação de Jesus Cristo.
Sabia-se que Francisco Xavier era um adepto fervoroso da doutrina milenarista. Padre Malcolm primara sempre por ignorar o carisma dessa doutrina, mas sentia-se agora paralisado. Os eventos em Cataratas do Gólgota adquiriam um significado que o deixava tonto.
Sentia que ser o vaso de Cristo, ter sido o instrumento através do qual uma igreja profanada fora recuperada para Deus — era um destino radiante e inexprimível, mas o olhar do papa fitava-o e desafiava sua coragem, suas mais enraizadas esperanças, até que a sala pareceu ondular.
Subiu os degraus como se estivesse submerso em águas profundas e vislumbrou um longo corredor coberto por uma espessa passadeira vermelha. Um crucifixo luzia vagamente no painel de nogueira. As luzes de Boston lançavam treliças indecisas de luz a seus pés. No fim do corredor, um pequeno abajur estava aceso. E lá, o padre idoso conferenciava com um jovem jesuíta.
O padre idoso, ainda recostado na minúscula mesa à porta parcialmente aberta dos aposentos do bispo, ergueu o olhar, obviamente escandalizado com a presença de Padre Malcolm. Atrás dele, várias lâmpadas cor de âmbar luziam sobre as poltronas de estofo vermelho dentro do quarto.
— O que significa sua presença aqui, Padre Malcolm — o padre sussurrou com severidade.
O jesuíta levantou-se e sorriu para Padre Malcolm.
— Sua Reverendíssima solicita que o senhor procure o seu secretário de entrevistas, amanhã de manhã.
Dentro do quarto, o som de alguém limpando a garganta. Padre Malcolm, delicadamente mas com firmeza, abriu caminho entre os outros dois sacerdotes. Ouviu-se um ruído de roupas farfalhando como se um homem pesado mudasse de posição em uma das poltronas antigas. Padre Malcolm lobrigou a ponta de um leito, uma cama de quatro colunas de carvalho, e gravuras nas paredes.
— Amanhã poderá ser tarde demais — Padre Malcolm declarou.
O jesuíta sorriu novamente, um sorriso untuoso, mas não indelicado.
— Qual é exatamente o seu problema, Padre Malcolm? — ele perguntou, frustrado.
— Eu vi o que não deveria ter visto — Padre Malcolm respondeu, estudando suas expressões.
O jesuíta franziu o rosto, tentando ainda manter a sombra de um sorriso.
— Não consigo entendê-lo, padre — ele disse generosamente. — Mas, como o senhor sabe, esses assuntos passam por uma triagem antes de chegarem ao conhecimento de Sua Reverendíssima.
O padre idoso olhava para Padre Malcolm com crescente hostilidade.
Padre Malcolm os observou, as linhas de caráter refinadas e duras de suas fisionomias. Eles conheciam bem os labirintos da diocese. Conheciam os caminhos de acesso a Sua Reverendíssima, os quais guardavam ciosamente. Eram ambos intelectuais sofisticados. Suas imaginações jamais conseguiriam apreender Cataratas do Gólgota.
— Por favor, Padre Malcolm, retire-se — o padre de feições de falcão disse. — Antes que comprometa sua causa irremediavelmente.
Fisicamente a poucas polegadas de distância dos dois, a menos de meio metro da porta aberta, Padre Malcolm esforçou-se para espiar para dentro. Sentado à escrivaninha, completamente vestido, sólido e de alva cabeleira, o Bispo Edward Lyons lacrava uma carta e imprimia o anel no lacre.
Ao virar-se, o bispo deparou com Padre Malcolm à porta.
Seus olhos escuros franziram-se, mais em surpresa do que em escândalo pela intromissão. Sua cabeça leonina assentava-se sobre um pescoço grosso e firme, com um corpo quase grande demais para a frágil mobília francesa que o rodeava.
Inesperadamente, Padre Malcolm passou rápido entre o padre idoso e o jesuíta, correu para dentro do quarto e caiu aos pés do bispo.
— Ora veja, Padre Malcolm — admoestou o jesuíta.
Zangado, o padre idoso entrou nos aposentos, seguindo Padre Malcolm.
— Vossa Reverendíssima — Padre Malcolm murmurou, beijando o anel da mão direita. — Não se zangue comido!
Pois o que eu vi, sem dúvida vai sacudir a Igreja!
Bispo Lyons, perturbado, mexeu-se na poltrona. Algum tempo depois, retirou a mão direita e com ela fez sinal para que o padre idoso e o jesuíta se retirassem.
— Malcolm, Malcolm — o bispo repreendeu bondosamente. — Impetuoso e afoito como sempre.
Num gesto de cansaço, Bispo Lyons indicou uma poltrona de braços curvos próxima a ele. Padre Malcolm, pálido de temor, sentou-se na beiradinha.
— Acabo de regressar de Cataratas do Gólgota, Vossa Reverendíssima.
O bispo manteve-se em silêncio. Devotou-se à correspondência sobre a escrivaninha, estudou as páginas, e, com a atenção voltada para as dificuldades, franziu as grossas sobrancelhas e esfregou a testa. Levantou o olhar, com um ar quase de surpresa ao verificar que Padre Malcolm ainda estava ali.
— E é isso motivo suficiente para justificar esta quebra de protocolo?
Padre Malcolm engoliu em seco. Encarando o rosto enrugado e indomável, os pensamentos lhe fugiram, quais andorinhas assustadas, deixando uma concha oca, um jesuíta vazio e confuso que perdera as âncoras.
— E então?
— Senti a presença de Cristo Padre Malcolm explicou debilmente.
Bispo Lyons reclinou-se na poltrona, fitando Padre Malcolm como se ele fosse demente.
— Deve-se sempre sentir a presença de Cristo — foi o comentário do bispo.
— Em meu próprio corpo, Vossa Reverendíssima. Na conclusão do exorcismo. No momento mais solene da missa.
Uma onda de aborrecimento perpassou o rosto de Bispo Lyons.
— Padre Malcolm, esse não é um assunto a ser trazido a mim de tal maneira!
— E também exteriormente ao meu corpo.
De muito longe, as badaladas de um velho relógio soaram. Padre Malcolm pressentiu que o jesuíta, sentado à mesa na frente da porta, estava escutando. Talvez, também o padre idoso lá estivesse. Padre Malcolm sentia abismos abrindo-se a sua volta.
Bispo Lyons voltou os olhos para a correspondência, tentou concentrar-se em suas sutis contradições e insinuações, e viu que era impossível. Com raiva, puxou tudo para um lado e virou-se para o jesuíta.
— Realizei o exorcismo conforme suas instruções — Padre Malcolm relatou.
— E então?
— Deu resultado.
— Bom.
— Mas no clímax, quando o combate foi realmente travado, e as mais horrendas alucinações ocorreram... de natureza sexual...
Os olhos do bispo se apertaram.
— Quando depositei a hóstia consagrada no cálice, um vendaval ardente me invadiu. Invadiu-me, Vossa Reverendíssima, habitou dentro de mim, e eu desmaiei.
— Entendo.
— E quando recobrei a consciência, a lamparina do altar tinha se acendido espontaneamente.
— Obviamente, durante o seu período de perturbação, acendeu-a sem dar por isso.
— Não.
Bispo Lyons sorriu, frustrado.
— Pelo amor de Deus, Padre Malcolm, como pode ter tanta certeza?
— Porque estudei as fitas.
Bispo Lyons levantou-se e fechou a porta do aposento com maior firmeza. Voltou, calçado em suas pantufas macias. Depois, veio sentar-se ao lado de Padre Malcolm e inclinou-se, tão próximo que o jesuíta podia sentir o delicado perfume da colônia no pescoço taurino.
— A que fitas se refere, Padre?
Padre Malcolm sentiu as faces em fogo. Enxugou a testa com um lenço branco que dobrou, depois, cuidadosamente.
— Foram feitos alguns videoteipes — ele explicou.
— De um exorcismo? Mas eu recomendei que você usasse de discrição.
— Eu precisava de assistência. E eles já estavam lá.
— Quem são eles?
Laboriosamente, Padre Malcolm colocou o lenço no bolso de seu surrado paletó negro. Subitamente, sentiu medo.
— Cientistas, Vossa Reverendíssima. De Harvard.
Bispo Lyons descontraiu-se visivelmente.
— Mantemos excelentes relações com Harvard. Inclusive com o departamento de telecomunicações.
Padre Malcolm sacudiu a cabeça vigorosamente de um lado para outro.
— Parapsicólogos — forçou-se a explicar.
Bispo Lyons fitou-o como se, agora, existisse entre eles um abismo intransponível.
— Eles gravaram o exorcismo, Vossa Reverendíssima.
Bispo Lyons contemplou as próprias pantufas, apoiando-se nos braços da poltrona, balançando a cabeça leonina.
— Padre, esse tipo de notícia não poderia jamais me ter sido dado pelo senhor.
— Tentei impedi-los!
— Mas permitiu que fotografassem tudo! — o bispo retrucou furioso.
Padre Malcolm não tinha resposta. Bispo Lyons friccionou a nuca, massageando os músculos cansados, e fez uma careta.
— Cada sacerdote, cada igreja, é uma porta pela qual Satanás tenta entrar — sentenciou o prelado. — E o senhor abriu as portas aos ateus da ciência.
— Por favor, ouça-me, Vossa Reverendíssima.
Padre Malcolm lutava por encontrar palavras que penetrassem a mente do bispo.
— Seus instrumentos especializados gravaram uma semelhança da Crucificação.
Bispo Lyons olhou fixamente para ele. E então foi atacado por um acesso de tosse. Desarvorado, puxou do bolso um lenço de linho, agitou a mão desesperadamente, e, finalmente, aos poucos, os olhos rasos d'água, foi se recobrando.
— O senhor abjurará essa imagem como sendo uma profanação de Deus — o bispo ordenou. — E expulsará esses parapsicólogos da igreja.
Padre Malcolm pôs-se de pé.
— O vale Vossa Reverendíssima... o vale floresce como se fosse primavera. Lilases e arbustos. Macieiras em flor.
Flores de pessegueiro. Lírios e margaridas pela cidade toda.
Bispo Lyons fitou-o com fascinada repugnância. Padre Malcolm aproximou-se ainda mais.
— O gado voltou a ter saúde — disse rapidamente. — Pela primeira vez em muitos anos.
— Não diga!
— Na manhã seguinte ao exorcismo.
O bispo acenou uma mão impaciente.
— E o senhor é especialista em criação de gado...
— Vossa Reverendíssima, também houve duas remissões de moléstias graves! Ambos os doentes sonharam com a rosa do cemitério... uma rosa que não floresce desde tempos imemoriais!
— Padre...
— Mas, hoje de manhã, desabrochou.
O bispo deu alguns passos para trás.
— Ajude-me, Vossa Reverendíssima — Padre Malcolm pediu mansamente. — Não seriam esses sinais... portentos de uma era que nossa Igreja espera há tanto tempo?
— Sinais podem ser ilusórios. Satanás imita os sinais de Cristo. O senhor não pode se deixar seduzir. — Bispo Lyons contemplou-o zangado. — E o senhor errou, vindo aqui assim desse modo, Padre Malcolm. E ofereceu sua igreja aos profanos.
— Mas, senti... em mim... que esses sinais... poderiam ser os sinais da Revelação!
— Revelação? Ah, sim. Quer dizer que essa é a sua mensagem para mim? O senhor decidiu que esses sinais anunciam o Segundo Advento de Nosso Bendito Salvador.
Que Ele escolheu essa igrejinha perturbada em Cataratas do Gólgota como Seu portal de entrada!
Mal controlando a raiva que sentia, Bispo Lyons esfregou as mãos, muitas e muitas vezes.
— Deixe-me dizer-lhe uma coisa, Padre Malcolm, sobre essa sua visão apocalíptica que deixou seu cérebro em fogo.
Não será uma ocasião festiva! Os precursores serão trovões, relâmpagos, e grandes terremotos, pragas de gafanhotos, fome... Traduzindo em termos nucleares modernos, poderia muito bem significar o holocausto, o fim da vida sobre a terra.
— Ou o começo da vida, Vossa Reverendíssima — Malcolm acrescentou com simplicidade. — "E vi o céu aberto"
— citou. — "E eis um cavalo branco. O seu cavaleiro se chama Fiel e Verdadeiro", e "Ele segurou o dragão, a antiga serpente, que é o diabo, Satanás, e o prendeu por mil anos".
"E de uma e outra margem do rio, está a árvore da vida, que produz doze frutos, e as folhas da árvore são para a cura dos povos. E Deus ensinará os povos".
Bispo Lyons pôs-se a andar de um lado para outro do aposento, fitou Padre Malcolm, desandou a andar novamente. Quando parou, seu rosto adquirira expressão mais benevolente, quase paternal.
— Eamon — disse ele com suavidade. — Cristo virá quando vier. Não cabe a nós sair por aí à procura de sinais.
— Mas, decerto, aquela não foi uma transformação comum!
O bispo conservou o sorriso benevolente, embora estivesse obviamente irritado. Pousou as mãos nos ombros do jesuíta.
— Será que foi o cavaleiro pálido num cavalo o que você realmente viu, Eanrion; segurando a balança com que há de pesar as almas? — perguntou com doçura. — Ou a lua vermelha de sangue? Gafanhotos com rosto de homem? Você viu a besta que tinha sete cabeças e dez chifrões? Ouviu as pessoas falarem em língua desconhecida? Uma linguagem de ritmo perfeito, cadências harmoniosas jamais ouvidas na terra, desconhecidas até das pessoas que a pronunciaram, uma linguagem doce e maravilhosa, que o homem ignora, tal como surgiu, pela primeira vez, em Pentecostes? Você ouviu essa linguagem, Eamon?
Padre Malcolm gaguejou.
— N-não... isso não... m-mas — Você viu os sete anjos e os sete selos das últimas pragas? Viu, Eamon? Porque esses são os sinais do Apocalipse. Não os que você mencionou. Não pessegueiros floridos. Nem bezerrinhos bonitos.
— M-mas, quem sabe, sinais antecipatórios... pois os experimentei em mim mesmo, e dentro da igreja, e pelo vale!
Bispo Lyons pegou-o pelo braço, levando-o até as janelas de vidro fume. Embaixo, o nevoeiro alaranjado avançava pelos canais negros da baía, e as luzes do tráfego subiam os morros solitários.
— Quantas daquelas almas, lá embaixo, são consagradas a Cristo? — o Bispo indagou. — Contemple o mundo real, Eamon. Está corrompido pelo ódio e se envilece na sua ambição.
— Mas, nossa missão...
— Nossa missão é deixar a Igreja preparada e plena, antes de prepararmos os corações humanos para o ato final da História.
Bispo Lyons voltou para o centro do quarto. Apanhou um dossiê volumoso que estava sobre a mesa. Padre Malcolm viu muitos semelhantes a esse nas estantes de pau-rosado mais próximas.
— Sabe o que é isto? — perguntou o bispo.
— Vossa Reverendíssima, por favor...
— O itinerário de Sua Santidade a Quebec, Eamon. Em três dias, o núncio Cardeal Bellocchi estará chegando. E sabe por quê?
Padre Malcolm fez que não com a cabeça, sentindo-se abjetamente desprezível. — Porque, dentro de uma semana, Sua Santidade Francisco Xavier estará fazendo uma peregrinação a Quebec!
Bispo Lyons avançou lentamente, o rosto vermelho, na direção de Padre Malcolm.
— E por que Sua Santidade vai a Quebec? — o Bispo sussurrou. — Por que vou ao encontro dele? Por que os cardeais e bispos do continente estarão em Quebec dentro de uma semana?
Padre Malcolm engoliu em seco. Bispo Lyons chegou-se ainda mais perto. O sorriso benigno desaparecera. Falou com Malcolm como se fala a uma criança.
— Porque o mundo é um lugar de corrupção e pecado, Eamon. O homem desconhece Deus. É um mundo cínico e amargurado, um mundo onde habita e floresce o anticristo.
O Pontífice vai aonde deve ir para instruir o mundo, Eamon.
Fermentá-lo para Cristo. De aldeia em aldeia. De cidade em cidade. De país em país.
O bispo voltou à escrivaninha e jogou o dossiê sobre o tampo. O próprio peso do trabalho desenvolvido para a chegada iminente do Núncio parecia curvá-lo.
— E isto significa trabalho duro, Eamon — ele disse devagar. — Organização fria e lúcida.
Bispo Lyons virou-se, sorrindo brandamente, quase como um amigo.
— Mantendo nossa disciplina, nossa fortaleza mental, Eamon — ele disse em voz baixa, — podemos destruir a imitação presunçosa encenada por Satanás.
— Sim, Vossa Reverendíssima.
Bispo Lyons aproximou-se em suas pantufas macias e colocou as mãos nos braços de Padre Malcolm.
— Alegre-se, meu filho. Você limpou uma igreja e a devolveu para Deus. Tentar ir além seria atrair o pecado do orgulho.
Padre Malcolm sentia lágrimas de raiva subindo-lhe aos olhos, mas assentiu docilmente. O bispo estendeu a mão.
Padre Malcolm ajoelhou-se e beijou o anel.
— Na melhor das hipóteses — o bispo acrescentou — aquela igreja nunca esteve possuída, em primeiro lugar, mas sofrendo de um fluido negativo dos paroquianos.
Chocado, Padre Malcolm fitou o anel. Depois, levantou-se e atravessou o aposento atapetado, sentindo o rosto arder. Evidentemente, o bispo tocara algum botão, pois a porta abriu-se e o padre idoso lá estava, tentando esconder um sorriso.
Padre Malcolm ainda voltou-se, mas o bispo já estava sentado à escrivaninha, absorvido em sua correspondência.
Padre Malcolm deixou-se levar até o pé da escada.
O retrato de Baldoni, o papa siciliano, pareceu segui-lo com o olhar até chegarem ao térreo.
— O senhor virá procurar o secretário de entrevistas, pela manhã? — o padre idoso perguntou.
— Não, muito obrigado.
— Boa noite, Padre Malcolm.
— Boa noite.
Saindo para a neblina fria, sentiu-se congelar, tremendo, e seus sapatos ecoavam pelo calçamento úmido.
No pára-brisa do Oldsmobile encontrou uma nota informando que o estacionamento era reservado aos frequentadores do restaurante. Padre Malcolm amassou o papel, e deixou-o cair no asfalto.
Quando entrou no Oldsmobile a ignição não pegou. O ruído de não-ignição saiu do painel. Padre Malcolm descansou a cabeça sobre o volante, e fitou a pequena imagem de Cristo acima do painel.
— Dai-me forças, Senhor — rezou. — Dai-me forças, pois já não me resta nenhuma.
Padre Malcolm saiu do automóvel. Passou o câmbio para segunda e sacudiu o carro. Numa nova tentativa, o carro pegou. Foi de ré pelo beco estreito. Limpou as lágrimas.
Passou pela ponte pênsil, cruzando alta sobre a baía escura e agitada. As luzes alaranjadas do cais cintilavam muito lá embaixo. Luzes de néon faiscavam sob o ventre baixo das nuvens. O mundo é múltiplo, ponderou, e vivia do dinheiro e da exploração das ilusões, A Igreja Católica nascera na turbulência de um império decadente, distante todo um oceano, distante quase 2.000 anos. Padre Malcolm indagou-se se a Igreja, mesmo com o advento de um novo papa, poderia sobreviver à proliferação da indiferença.
*
Já passava da meia-noite quando Padre Malcolm alcançou o topo do espinhaço sul de Cataratas do Gólgota.
No mesmo instante, sentiu um calor morno e a fragrância de flores de pessegueiros e de lilases. Parou o carro.
A Igreja das Dores Eternas iluminava-se de luz azul, como uma vela lunar romana. Cabos contorcidos passavam pelo mato alto e, em algum ponto, um gerador roncava. Uma gélida luz azul envolvia a igreja, jorrando densas sombras em todas as direções, até mesmo sob o campanário. Se a lamparina do altar ainda estava acesa, encontrava-se totalmente dominada pelas estranhas luzes azuis, pois padre Malcolm viu apenas a fantasmagórica transformação da igreja que já fora serena.
Furioso, saiu do carro e bateu a porta com força. Notava agora, protegendo os olhos, sentindo nas narinas o calor acre das lâmpadas azuis dentro da igreja, vários homens e mulheres da cidade.
— Eles pegaram! — um homem da roça gritou. — Eles pegaram!
— Pegaram o quê? — Padre Malcolm perguntou perplexo, passando trôpego pelo ajuntamento.
Pelas janelas góticas, viu Mário e Anita, no interior da igreja, movendo-se diante da tela da termovisão. Uma vaga náusea transformou-se em terror mais definido. Correu para dentro da igreja.
— O que está acontecendo aqui? — ele berrou, acima do ruído do gerador que tremia e soltava fumaça sob as janelas.
Mário vestia a jaqueta de couro, muito nervoso, muito agitado, narinas fremindo, o suor banhando a nuca e até cintilando pelo cabelo curto e anelado. Anita foi a primeira a virar-se, e Padre Malcolm percebeu em seu rosto um misto de vergonha e excitação.
O fedor da gasolina saindo do gerador permeava a igreja. Sobre o altar, a lamparina luzia púrpura, quase negra, certamente alienígena nessa arena de lâmpadas de foco azul, colocadas alto. O clima era doentio: a carne de Mário assemelhava-se à de um cadáver de cena teatral.
— Esta é uma igreja santa! — Padre Malcolm bradou adiantando-se.
— É o meu laboratório! — Mário devolveu o grito.
Padre Malcolm passou por cima dos cabos.
Inesperadamente, no espaço livre entre Mário e Anita, ele viu a versão definida, vagamente flutuante, em azul cobalto, da imagem cruciforme. O rosto de Padre Malcolm empalideceu, e empalideceu tanto que chegou a ficar quase azulado à luz das lâmpadas mais próximas. Mário, ao ver o rosto atônito, caiu na gargalhada.
— É o resíduo — explicou com expressão maligna. — Projeções psíquicas não morrem.
Confuso, Padre Malcolm fitou Mário, o chiado ressoando em seus ouvidos.
— O quê? — ele disse, os lábios trêmulos. — O que quer dizer?
Ao invés de responder, Mário ligou a termovisão, e com movimentos tão ágeis que Padre Malcolm julgou estar assistindo a um mágico em ação, apanhou os videoteipes da câmara, guardando-os numa sacola de plástico.
Anita aproximou-se lentamente. Padre Malcolm ainda não tirara o olhar da câmera da termovisão. Sentia que a igreja havia sido vítima de uma violação grosseira e vil.
— Conseguimos imagens fantásticas, padre — ela disse com meiguice. — Vamos levar as fitas para Harvard.
— Não, Mário — Padre Malcolm murmurou. — Estou sob imposição de silêncio. Por ordem do bispo.
Mário sorriu, mostrando dentes brancos e perfeitos. Os olhos, no entanto, eram malignos.
— Não reconheço a autoridade dos bispos — Mário falou zombeteiro.
Padre Malcolm chegou-se para perto dele.
— Mário — o jesuíta sussurrou chocado. — Não pode mostrar essa imagem ao mundo! Ela é o resultado de minha missão sacerdotal. Seria uma profanação!
Mário percebeu o temor do padre. Não porque o bispo lhe tivesse recomendado discrição no caso, sem divulgação pela imprensa. Não. Algo muito mais inspirador. jesuíta acredita naquela imagem, do mesmo modo que os peregrinos acreditam no Sudário de Turim, ou na stigmata de milhares de crucifixos em incontáveis lugares ignorantes e crédulos.
— Preciso de um prazo maior — Mário disse acalorado.
— Preciso de tempo! Preciso de dinheiro! A universidade exige provas! E eu as tenho, ora! Não poderão negar-me.
Padre Malcolm estendeu a mão para a sacola de plástico segura por Mário.
— Mário — ele implorou. — Essa imagem pertence a este lugar. A esta igreja.
O olhar de Mário para Padre Malcolm estava carregado de desdém.
— É uma projeção psíquica — disse friamente. — Estamos sempre publicando esse tipo de imagens. Em publicações científicas. Em jornais quando possível. Por que não?
Virou-se para ir embora, mas as mãos de Padre Malcolm tinham agarrado a manga da jaqueta de couro.
— Não — Padre Malcolm disse lentamente. — Não posso permitir.
Mário riu, libertando a manga da jaqueta.
— Diga, padre — ele provocou. — Diga o que o senhor acha que esta imagem representa.
Padre Malcolm buscou Anita num mudo pedido de socorro. E ela limitou-se a virar a cabeça, incapaz de deter a obstinação de Mário. Padre Malcolm sentiu-se girar, novamente agarrado por Mário.
— O senhor não acredita em projeções psíquicas, não é?
— Mário berrou. — O senhor acha que a imagem é uma manifestação real de Jesus Cristo.
— Dê-me a fita, Mário.
— Vá para o inferno, padre.
Padre Malcolm penetrou na arena de luzes azuis. Uma a uma, derrubou-as espatifando-as contra o chão da igreja. Os bulbos estavam tão aquecidos, atrás da camada de cobalto, que explodiram, projetando cacos ardentes pelas pernas do jesuíta.
— Não irei para o inferno — ele disse firmemente. — E não permitirei que esta igreja vá.
Caminhou até o centro da igreja e recomeçou a destruição das lâmpadas azuis.
Subitamente, o corpo de Mário colidiu com ele, e um braço vigoroso prendeu-o pelo pescoço contra a parede.
— Seu filho-da-mãe — Mário silvou, com olhos furiosos como os de um demônio. O jesuíta sentiu faíscas vermelhas invadindo sua visão, e sua respiração tornava-se difícil.
Vagamente, percebeu que Mário brandia uma fita cassete diante de seu rosto.
— Olhe para esta fita, padre! — ele berrou, a poucos centímetros do rosto do sacerdote. — Tirei a medida e a forma de sua fé! E selei tudo com fita magnética! Homens já juraram por imagens assim, antes. E tornarão a jurar, mas não em suas igrejas! Mas nas universidades, nas instituições científicas! Onde quer que homens livres se reúnam em liberdade para analisar a natureza do homem e seu universo!
Mário relaxou a pressão. O jesuíta perdeu ligeiramente o equilíbrio, mas não chegou a cair. Friccionou a garganta machucada.
— Você é um tolo vaidoso e egoísta — Padre Malcolm gritou, subitamente se libertando da prisão de Mário. Dando a volta pelo altar, olhos fixos em Mário, esfregando a garganta, parecia um lobo encurralado. Seus olhos, então, foram pousar no altar, e perceberam que não estava em posição. Por um instante, fez-se silêncio, exceto pelo chiado do gerador. À luz das horríveis lâmpadas branco-azuladas, suas mãos e seu rosto pareciam feitos de mármore.
— O que você fez! — ele disse baixinho.
— Ah, isso. Uma das luzes se emaranhou nos cabos e caiu.
Padre Malcolm tateou sob a toalha. O contato entre a pedra do altar e a base tinha saído do lugar.
— VOCÊ ROMPEU O CONTATO! — Padre Malcolm bradou — EU PRECISAVA DE ESPAÇO! Padre Malcolm apontou um dedo trêmulo.
— Eu sei quem você é — ele declarou.
— Que diabos quer dizer com isso?
— Sei para quem trabalha!
Padre Malcolm avançou firme sob a lamparina do altar.
Agarrou os videoteipes e os slides. E, de repente, Mário parecia estar por todos os lados à sua volta. O material gravado caiu ao chão.
Padre Malcolm tentou alcançar o computador.
Horrorizado, Mário arremessou-se sobre ele.
Anita acudiu, e Mário desvencilhou-se dela. O jesuíta avançava penosamente, esparramando eletrodos e placas de circuito. Com uma das mãos Mário agarrou os cabelos louros do padre. E com a outra esbofeteou as faces lívidas, uma vez, e outra, e outra mais. Inutilmente, o jesuíta tentava proteger o rosto com as mãos. Jorrou sangue de seus lábios.
Mário segurava a cabeça do padre, empurrando e puxando o jesuíta para o vestíbulo, sem parar de esbofeteá-lo.
— Mário! — Anita gritou.
Mário sacudiu o padre, como se este fosse uma boneca de pano, até arremessá-lo ao vestíbulo. Padre Malcolm foi colidir com a pia de água benta, tentou segurar-se a ela, e depois caiu.
Mário observava, um brilho selvagem nos olhos.
— Nunca mais tente isso — advertiu.
— Padre Malcolm! — Anita gritou.
Passou correndo por Mário, e foi ajoelhar-se ao lado do jesuíta que gemia de humilhação e dor física.
— Largue esse bastardo aí! — Mário disse.
— Mário, saia daqui! — Anita ordenou asperamente.
— Não vou abandonar meus equipamentos enquanto ele estiver aqui.
— Pode ir sossegado. Eu vou ficar!
Mário fitou-a. Ela ainda amparava o corpo do jesuíta, que tentava pôr-se de pé. Uma terrível e atordoante compreensão invadiu Mário.
— Com ele? — perguntou devagar.
Padre Malcolm apalpou de leve as narinas. Seus dedos tingiram-se de vermelho. Involuntariamente, e horrorizado, baixou os olhos para a pia de água benta. A superfície da água continha grandes manchas vermelhas que se espalhavam.
Padre Malcolm, muito fraco, persignou-se.
— Não vou deixar você aqui — Mário insistiu.
— Não vou a Harvard com você, não vou a lugar algum com você — Anita disse, suave mas firmemente, os olhos cheios de lágrimas. — Mário, você está completamente transtornado! Esta igreja o enfeitiçou! E está mudado por uma força que não consegue controlar!
Uma lembrança rápida coruscou pela mente de Mário. O arrepio que o invadira no clímax do exorcismo. A sensação de que se tratava de algo maior do que uma contração muscular.
— Besteira!
Anita fitou-o muito séria.
— Eu vou ficar, Mário.
— Quando a conheci — ele disse friamente — você possuía a melhor mente científica que eu poderia ter encontrado. Como um computador dançante, Anita. Nunca imaginei que pudesse amolecer. Não depois de tudo o que me ensinou.
— Mário, não estou exigindo nada de você, exceto um pouco de decência humana!
Ultrajado, Mário buscava palavras.
— Você acabou aceitando essa epistemologia do sangue do cordeiro! — ele acusou aos berros. — Você nunca perdeu sua disciplina, antes. Que diabos aconteceu com você?
Anita desviou o olhar.
— Deixe-nos sozinhos, Mário.
Mário hesitou, e depois colocou a fita numa sacola que já continha outros videoteipes e estojos de slides. Uma mistura indefinível de dor, angústia, e pura raiva passou por suas feições. Não era a primeira vez que brigavam e rompiam. Mas era a pior.
— Você vai estar aqui quando eu voltar? — ele perguntou.
— Já disse. Vou tomar conta dos equipamentos.
Ele ainda olhou para ela, nada mais encontrou para dizer, e depois fitou o jesuíta.
— Padre — Mário disse.
— Mário, deixe-o em paz.
— É um homem de sorte, padre. Ela é, de fato, muito boa.
Padre Malcolm encarou-o, confuso. Mário deu uma piscadela maliciosa e debruçou-se.
— Como enfiar em mel morno.
— Seu miserável! — Anita gritou.
Mário soltou uma risada grosseira, depois virou-se e saiu como um touro, da igreja para a escuridão. Pouco depois, o eco do Volkswagen era ouvido pelo vale.
Anita ajudou Padre Malcolm a erguer-se.
— O senhor está bem?
— Estou, estou.
— Quero me desculpar por ele, Padre. Mário tem prazer em ferir quando está zangado.
Padre Malcolm manteve-se em silêncio.
A gasolina do gerador acabou. O chiado adquiriu um tom mais baixo, engasgou, tossiu, e finalmente cessou. A sós, Padre Malcolm e Anita viram as luzes dentro da igreja empalidecerem. Laranja, depois vermelho, e, finalmente, como um crepúsculo infinitamente sangrento, as luzes arrefeceram e se extinguiram. Apenas a doce luz da lamparina do altar iluminava o interior da igreja, tranquila e imperturbável.
Uma rajada de vento soprou, agitando os bosques de vidoeiros. Asclépias flutuaram irrequietas, passando por eles na porta da igreja.
— Sangue derramado... o altar conspurcado... — ele comentou em voz baixa. Há muito a ser expiado. Acho melhor ficar em vigília.
— Esta noite?
— É. E todas as noites até que haja purificação.
— Sozinho, padre?
— Não corro perigo — ele disse. — A igreja e o terreno estão santificados.
Ainda assim, o vento que se levantou sacudiu os vidoeiros, jogou arbustos secos para o Siloam, e assobiou pelas fazendas distantes. Apenas no complexo da igreja e seu terreno tudo estava quieto.
A rosa no cemitério ainda pendia, pesada, parecendo escura como sangue coagulado.
Padre Malcolm foi buscar uma caixa de papelão na parede norte. De dentro dela tirou longas velas brancas que ajustou nos castiçais atrás do altar.
Anita ajuntou os cacos de vidro, usando uma capa de pasta de arquivo. O cheiro de gasolina já quase desaparecera. Levantou os suportes das lâmpadas e encostou-os à parede.
Na tela do computador, silenciosa e trêmula, brilhava a imagem cruciforme. Agora que as luzes estavam apagadas, a interferência havia retornado. Padre Malcolm limpava a área ao redor do altar. Ela ficou observando. Ele caiu de joelhos, fez o sinal-da-cruz e concentrou-se.
O vento que se levantou castigava os campos adjacentes. Anita andava de um lado para outro, com ansiedade. Os íons atmosféricos atrapalhavam todo o computador, irradiavam arcos de fluxo pela imagem provocando obliteração.
— Tem certeza de que vai ficar bem, padre?
— Tenho sim, Anita. Se quiser, pode dormir na reitoria.
Passado um pouco, Anita atravessou o vestíbulo e saiu para a noite. Ainda zangada com Mário, carregou o saco de dormir para a reitoria, perguntando-se que diabos acontecera com ele.
E ficou imóvel, atônita.
A metáfora, embora inconsciente, fazia-se por demais verdadeira. Sentiu um arrepio quando a sonora litania de Padre Malcolm, o adversário do demônio, ecoou pela Igreja das Dores Eternas.
CAPÍTULO DEZ
MÁRIO DEITOU-SE no catre que havia no laboratório minúsculo. Uma febre ardia em sua garganta. Parecia ouvir todos os sons como se estivesse submerso. O coração disparado, batendo contra as costelas. Que diabos estará acontecendo? indagou-se. Tenho 38 anos e saúde perfeita.
Será que vou ter um enfarte?
Fora do laboratório, um homem estava usando uma enceradeira. Um senhor idoso, negro, a quem Mário oferecera sua amizade há muitos anos, e que lhe dera acesso ao edifício durante as greves no campus. Mário recordou aqueles dias com carinho. No escritório do Deão Osborne empunhando um megafone. Gás lacrimogêneo pelo pátio.
Tudo tão fácil, naquela época. Como boiar ao sabor da correnteza. Nenhuma das complicações de agora.
Cataratas do Gólgota dominava Mário. Era como um vírus vivo alimentando-se de seu fígado. Parecia pulsar em suas artérias atingindo o cérebro. Estava tão perto, mas tão perto mesmo, da natureza final da projeção psíquica!
Estonteado, tomou mais algumas aspirinas, um pouco de Contac e Alka-seltzer. Quando puxou a válvula do toalete, ao lado do laboratório, pensou que a cabeça iria explodir.
Sob a mesa dos slides, videoteipes e fotografias catalogadas, estavam alguns halteres de ferro fundido, que ele fez rolar com o pé. E começou a estudar o material.
Três estojos de slides coloridos, a maioria deles com ótima exposição, e os outros pelo menos suficientemente bons para documentar o trabalho. O vale de Cataratas do Gólgota, as condições climáticas alteradas, o Siloam antes e depois do exorcismo, a roseira no cemitério, e o interior da igreja, como a tinham visto originalmente, cheia de roupas femininas podres e detritos caídos. Reveladas em Boston, em regime de urgência, a pedido de Mário, que pagou com um cheque que, pelo que sabia, não tinha fundos.
Duas caixas de plástico marrom, com videoteipes. Uma delas, transferida da câmera a laser, mostrando tensão arquitetônica atrás do jesuíta. Na outra, sobre a qual os dedos de Mário repousaram amorosamente, estavam os cassetes do exorcismo, propriamente dito, gravados pela termo visão, inclusive as primeiras sombras esverdeadas da imagem em estrutura cruciforme, bem como a imagem fixada a alógeno.
Fotografias brilhantes, ampliadas, haviam sido tiradas por Anita em busca de detalhes dos equipamentos usados; da consagração do cemitério; mostrando a roseira seca; e, fotos comparativas indicando a diferença ecológica entre Cataratas do Gólgota e todos os outros vales circunvizinhos.
Somando-se a tudo isso, havia ainda um mapa primário, em papel gráfico, dos horários precisos de eventos sonoros e variações sísmicas. Mário duvidava que o comitê quisesse entrar em tais detalhes. O importante era que se entusiasmassem com o projeto e se convencessem de que era uma questão de poucos meses até que se rompesse o escudo que protegia a imagem ao lado do altar e sua verdadeira natureza pudesse ser determinada.
Mergulhou na leitura das cinco laudas datilografadas de sua palestra. Havia notas à margem, a fim de enfatizar o aspecto algonquino, já que um dos membros do comitê pertencia ao departamento de antropologia. O resto estava apertado como o traseiro de um médico em dia de defender sua tese oral.
Havia algo de errado com seu corpo. Um frio na boca do estômago, um frio que não era natural. Subia do ventre em lentas pulsações.
Mário vestiu o paletó de tweed. Escovou para trás os cabelos rebeldes. A gravata preta e estreita tinha mais de dez anos de uso, e repentinamente estava de novo na moda.
Sabia que sua aparência era excelente. Aspecto irrelevante para a ciência, mas sutilmente importante em discursos públicos. Mário estendera o convite a todo o corpo docente, ao Crimson, e a quatro jornais da Nova Inglaterra.
Encomendara vinhos e queijos para setenta pessoas, na esperança de que pelo menos dez aparecessem.
— Bem... — ele murmurou. — Será Freud, Nietzsche, e Gilbert, ou será que saio de cena completamente? De uma vez por todas?
Recolheu o material todo, apertou-o contra o corpo, e saiu do laboratório.
— Boa sorte — disse o homem da enceradeira.
— Obrigado, velho amigo. Vou precisar, e muito.
Pela porta de vidro, Mário alcançou a alameda ladeada de arbustos sob as luzes do campus. Tão perto do sucesso, jamais sentira tal nervosismo. Quase a ponto de desmaio, boca seca. Por um instante, sentiu-se desorientado. Tentou convencer-se de que haveria outros projetos, caso este fracassasse, mas sabia que a hora era agora.
Ao passar pela biblioteca, refletiu que Anita teria sido um grande apoio numa sessão como esta. Ele dependia das maneiras sociais dela, do vínculo de sua família com a universidade. Ora, ela que se afundasse, em Cataratas do Gólgota, nas litanias de um padre lunático.
De súbito, teve a profunda sensação de que, na realidade, não estava absolutamente em Harvard. Estava, ao contrário, em Cataratas do Gólgota. Era como se tivesse se transformado em espírito puro, incorpóreo, entre as luzes noturnas. E, então, a sensação passou.
Subiu correndo os degraus de cimento do prédio de auditórios, e galgou aos saltos dois lances de escada, até chegar à sala 220. Seu coração quase parou. Ao lado do quadro com letras móveis brancas, onde se lia: Um Assalto à Quarta Dimensão Fronteiras do Paranormal: Investigação sobre os Limites da Ciência Física em Cataratas do Gólgota quase cem pessoas esperavam, entre membros do corpo docente, diplomandos, e alguns tipos duros, dentre os quais ele reconheceu o editor de ciências do The New York Times.
Antes que pudessem cumprimentá-lo, ele virou-se desnorteado para o lavatório dos homens, porque sabia que ia vomitar. Então o editor de ciências aproximou-se de mão estendida.
— Um bioquímico em ácidos nucleicos, que recebeu o Premio Bollington, fez hoje o seu discurso de agradecimento. Ouvimos dizer que o senhor faria hoje uma palestra. Decidimos ficar por aqui, depois do coquetel.
Espero que não se incomode.
— Sinto-me tão lisonjeado que não sei como me expressar.
Mário esperava que sua voz tivesse soado natural. O editor de ciências sorriu friamente e perdeu-se na multidão.
Vários repórteres, tendo seguido os membros mais notáveis do corpo docente, agrupavam-se ao redor de uma mesa coberta por uma toalha branca sobre a qual o bufê parecia particularmente escasso.
Deão Osborne saiu de uma confusão de vozes altas que se cumprimentavam.
— Onde está Anita?
— Em casa com as crianças.
— Vocês não romperam, romperam?
— Ouça, será que toda essa gente cabe lá dentro?
— Claro. Eles não estão suando muito...
Mário contou por alto o número de pessoas. Havia mais de cem. Depois do discurso de aceitação do bioquímico, ele próprio teria a sua primeira chance de verdade, para se alçar a esse nível de credibilidade. Ou de afundar para sempre, condenado definitivamente como medíocre.
Abraçado ao material, reconhecendo aqui e ali alguns físicos diplomados, e trocando apertos de mão, Mário entrou no auditório.
E, agora, tudo era real demais. As lousas verdes que deslizavam. O projetor à sua disposição. Na lousa verde, seu nome e o título da palestra escritos a giz. Doze fileiras de poltronas estofadas, voltadas para a tribuna. Vídeo-câmaras para documentação em circuito fechado.
Tudo pelo que havia esperado. Mário sentiu a brilham-te irradiação das lâmpadas fluorescentes no teto, uma espécie de analogia visual ao pânico que lhe varria os nervos, e, contudo, isso o fortalecia. Mais do que a velocidade. Mário foi até a sala de projeção.
Um homem de certa idade já estava à sua espera, para receber os cartuchos de slides, e depois os videoteipes, ouvindo as instruções de Mário. Pelo projetor alto, ajustou a placa espelhada, de forma que pudesse projetar um fac-símile razoável das fotografias sobre uma tela brilhante.
Mário subiu à tribuna e debruçou-se ao microfone.
— Testando. Testando. Cataratas do Gólgota — entoou.
O homem idoso ajustou a entrada de som e fez sinal de que estava pronto.
O olhar de Mário percorreu as poltronas vazias, despersonalizadas, e, no entanto, embriagadoramente hostis. Todas essas mentalidades, ele refletiu. Confusas, teimosas, preconceituosas, destreinadas ou hipócritas. Ele teria que penetrar em cada uma e em todas elas.
Literalmente, copular com elas e lá deixar semeada sua idéia de Cataratas do Gólgota.
O corpo docente entrou em primeiro lugar, em grupos, formalmente trajados. Tomaram, é claro, as poltronas da primeira fila e sentaram-se à vontade. Depois, entraram os diplomados, tanto os tipos ambiciosos de cabelos cortados rente, ansiosos por tomar conhecimento da última aventura, como os cabeludos, clandestinos desmazelados de épocas passadas, procurando com o que se ocupar. Várias mulheres entraram juntas, empertigadas, elegantes, e sutilmente agressivas, exibindo sorrisos gelados e tagarelando com fingida irrelevância. Todas elas capivaras, Mário pensou.
Dez minutos depois, o senhor idoso ligou o reostato e o prédio ficou na obscuridade. Uma luz do teto permitia que notas fossem tomadas. Várias das mulheres possuíam canetas a bateria.
— A natureza da bioquímica, que acabou de lhes ser explicada, pelo menos em parte, no discurso de aceitação do Prêmio Bollington — Mário deu início à introdução — é um exemplo da extraordinária diversidade de ciências físicas contemporâneas. Essa diversidade e essa especialização, sem precedentes, foram conquistadas através de séries e mais séries de abalos às suas mais privilegiadas e básicas hipóteses. A partir do desenvolvimento do modelo experimental, aproximadamente durante o período da Renascença, uma hipótese depois de outra teve que ser descartada à luz dos dados absolutos, documentais e experimentais, Talvez nenhuma outra hipótese tenha sido mantida com mais vigor até recentemente do que aquela da materialidade dos eventos temporais.
Mário tomou um gole de água do copo a um canto da tribuna. A platéia mostrava-se interessada nele, parecia mesmo torcer por ele. Não eram, afinal de contas, imunes a ideias.
— Até agora — ele prosseguiu corajosamente — qualquer ocorrência de imaterialidade era confinada à experiência comumente chamada de religiosa. De fato, pode-se dizer que a religião nada mais é do que o controle organizado das experiências com o imaterial.
A platéia começava a sentir, agora, na palestra, um sentido oculto de agressão, e descontraiu-se tentando tomar a medida do intelecto de Mário.
— O projeto em Cataratas do Gólgota foi um modelo experimental planejado para testar a habilidade da moderna tecnologia em romper fronteira entre o material e o imaterial. Assim procedendo, nossas noções dessa fronteira sofreram uma espécie de choque que altera o desenvolvimento dos futuros métodos de experimentação.
A platéia pressentia, nesse instante, o alto risco que Mário incorria fazendo a palestra. Para um orador não-contratado, alardear pretextos grandiloquentes para sua pesquisa constituía quebra da etiqueta universitária. Tal privilégio era reservado àqueles que tinham recebido cátedras honoríficas ou prêmios, nacionais ou internacionais. Mas a platéia estava aceitando, e disposta a dar corda a Mário.
Na verdade, reinava um silêncio atento no auditório.
— Poderíamos projetar as fotografias maiores, por favor? — ele pediu, tomando mais um gole de água, e verificando suas anotações.
As luzes baixaram ainda mais. Os homens mexeram-se em suas poltronas. Repórteres se curvaram na direção das lâmpadas do corredor lateral.
Aos poucos, a calma foi restaurada.
Atrás de Mário, a tela brilhante foi arriada até a altura adequada. Ele não conseguia distinguir a pessoa que colocou a primeira fotografia no projetor, vendo apenas mãos e braços brilhantemente iluminados. Voltou-se de frente para a tela.
Estendendo-se por quase três metros, estava uma foto de Anita num banho de espuma.
Risadas nervosas soaram, cessaram, e depois recrudesceram quando as pessoas no auditório entenderam que Mário havia apanhado o jogo errado de fotografias.
Mário sentiu centelhas disparando pelos cantos dos olhos.
— A próxima fotografia! — ele disse.
Os risos continuaram, e vozes masculinas circularam pela sala, fazendo rir as mulheres.
A próxima fotografia mostrava Anita, timidamente sentada ao pé da cama de Mário, joelhos separados, a mão modestamente colocada sobre a nudez do púbis.
Mais risos ecoaram, embora ligeiramente nervosos.
— Eu não tirei essas fotografias! — Mário gritou, correndo para a beira do palco.
Notou um universitário tentando ganhar um trocado como operador de audiovisual.
— Mostre a seguinte, droga! — Mário ordenou.
Havia mais fotos. Todas elas mostrando Anita numa variedade de poses. Usando uma variedade de utensílios domésticos. Não eram fotos tímidas. Era pornografia da pior espécie e com closes de genitália. A platéia estava escandalizada.
Mário pulou para o projetor. Arrancou as fotos e analisou-as. Todas mostravam o cemitério de Cataratas do Gólgota, a igreja, e os vales vizinhos.
— Estou fodido! — Mário murmurou. — Que diabos estará acontecendo?
O operador de áudio deu alguns passos para trás, morto de medo de ter perdido o trabalho.
Violentamente, Mário acenou para o operador idoso na sala de projeção, ao fundo do auditório. Através de gestos, o operador perguntou se deveria projetar os slides ou o videoteipe. Mário apontou para os slides.
E, voltou à tribuna. Tomou uma boa quantidade de água.
— Não era esse o choque que eu tinha em mente — declarou. — Peço mil perdões. Com toda a humildade. Não tirei aquelas fotografias.
Estou tão inteiramente escandalizado com essa pornografia quanto todos vocês.
Queiram, por favor, aceitar minhas desculpas.
A platéia hesitou, e sentou-se, irrequieta, no estofo de suas poltronas. Estavam todos usando a mente coletiva para decidir se deviam ou não sentir-se insultados.
— Ela era sua associada, ou melhor dizendo, sua amante — veio a voz gélida de Osborne.
Mário teve a viscosa sensação, na base da nuca, de que Osborne conseguira, de algum modo, sabotar sua palestra.
Uma fúria violenta passou vermelha diante de seus olhos, tão violenta que, a acreditar que fosse real, ele sairia correndo atrás do deão e o agrediria fisicamente.
— Os slides, por favor — Mário pediu.
A tela foi levantada, levando-se em conta o maior formato da projeção. Ouviu-se uma tosse rouca numa das fileiras centrais. O primeiro slide, por engano, era apenas uma ofuscante luz branca. As pessoas tamparam os olhos.
Depois, o segundo slide foi projetado.
Mostrava um camaleão, da espécie de camaleões brancos que correm pelas terras de Cataratas do Gólgota.
Mário consultou suas anotações. Não se recordava de ter tirado o slide, e não conseguia lembrar-se, no momento, do propósito da imagem.
— Um pouco da vida ecológica local — deu a desculpa esfarrapada. — Podemos passar o próximo slide, por favor?
Desta vez, eram dois camaleões no que parecia ser o assoalho da igreja. Perplexo, Mário deixou a tribuna para observar a imagem projetada em sua totalidade. As pessoas no auditório perceberam sua perplexidade. O que quer que estivesse acontecendo, era morbidamente fascinante. Mário levantou a mão, pedindo o slide seguinte.
Os dois camaleões estavam agora muito mais próximos, cada um na cauda do outro.
E o slide seguinte mostrava os dois copulando, ventre a ventre, uma ligeira espuma de líquido seminal visível na área genital da fêmea. O editor de ciências de The New York Times escusou-se com as pessoas mais próximas e deixou a sala.
Mário virou-se para a sala de projeção.
— Que diabos está havendo? — ele perguntou. — Eu não tirei esses slides.
O operador idoso levantou, furioso, o cartucho de slides. Indiscutivelmente pertencia a Mário.
— Vá para o fim! Escolha um dos últimos!
Mostrava o anus de um bode.
Muitas das mulheres caíram na risada. Várias outras saíram ostensivamente. Os repórteres tinham desistido de tomar notas. Alguns dos membros seniores do corpo docente esperavam pacientemente, mas os membros mais jovens mostravam-se escandalizados.
— Mas que merda é essa, Gilbert? — um deles perguntou em tom de queixa.
— Eu não tirei esses...
— Ora, alguém tirou.
— Esp-esperem um — um minuto... F-por favor, não se retirem! — ele implorou.
Mário levantou os braços, na tentativa de silenciar o zunzum, zangado ou malicioso, tentando manter as pessoas em seus lugares.
As luzes se acenderam.
— Se-sei tanto quanto vocês a respeito disso tudo — ele explicou, contendo as lágrimas. — É um harável pesadilo — A língua ia ficando grossa. A febre voltava. Sentia-se flutuar.
— A — termovisão — boa demais... — ele tartamudeou.
Escandalizada, preocupada, e, contudo, estranhamente fascinada, a platéia sentia-se transfixada ao ver, diante de seus olhos, a catástrofe de um jovem orador jogando fora toda a sua carreira. Mesmo ao diminuírem as luzes, ficaram todos de olhos fixos tanto em Mário como na tela.
— Termo — termovisão — é Cristo — pegamos — pegamos — Mário agarrou a própria garganta, tentando libertar-se das pulsações espasmódicas dos músculos na base da língua.
— Oh, Deus — estou preso...!
Na tela, a termovisão exibia, em cores invertidas, um cavalo galopando pelo mato alto, caçando um homem. Em horrorizado silencio, a platéia viu o cavalo encurralar o homem contra uma parede de madeira, empinar e atacar com as patas dianteiras. Um esguicho vermelho cobriu a tela e a platéia prendeu o fôlego. Repetidamente, o cavalo dava atrás, empinava, e atingia, com toda violência, o crânio do homem agonizante. Fragmentos de cérebro batiam contra a parede.
Olhos esmagados nas órbitas destruídas. O sangue gotejava das patas do cavalo, mesmo quando levantadas em pleno ar, e, ao descerem, havia menos e menos o que reconhecer no rosto humano. Apenas os braços estremeciam em convulsões nervosas.
Era inegável, revoltante e abjetamente real. Algumas senhoras procuraram rapidamente a saída. Até o Deão Osborne empalideceu. Até os repórteres, empedernidos que eram, sentavam-se paralisados diante da total malignidade das imagens.
— Não — não — Mário gaguejou. — Eu n-não termo-lermo — minhas não — seguiu-me até aqui — sinto — sin-to — tinto — t-tinto — p—pinto — p-pinto — A língua de Mário mexia-se grossa, projetada para fora da boca, na grotesca máscara de um rosto humano.
— Greba — greba — valsa — valsa — d-d-dunda — makoftu — m-m-mamalia — sim — sim — sim — doce Jesus — maria — bom demais — arelo — arelo — amelo — dundu...
Vários homens se puseram de pé, sem saber como agir.
— S-s-s-sinto — p-p-p-pinto...
Um jovem do departamento de sociologia pulou para o palco, tentando segurar Mário.
Mário agrediu-o, os punhos fechados de raiva e frustração, os olhos dilatados e remelentos.
— É epilepsia — o sociólogo anunciou. — Alguém aí pode me ajudar, por favor?
Com dificuldade, alguns outros homens subiram ao palco. Pareciam ter medo de Mário, que chutava às cegas, tentando libertar-se do peso dos outros homens, como se afundasse num profundo oceano.
Mário viu seus rostos, aqueles rostos alienígenas e pálidos, chegando perto. A aniquilação que sempre tinha temido. A persona do homem, a fachada do homem que se fez sozinho não aguentava determinadas agressões. E tais agressões estavam agora muito próximas, e o animal selvagem dentro dele era tudo o que restava.
Na febre, Mário viu a termovisão, ainda ligada. E, enquanto os homens tentavam derrubá-lo ao chão, enquanto se sufocava com a própria língua, enquanto sentia os músculos tensos contraindo-se na garganta, ele viu o maranhão negro, de patas ensanguentadas, galopando pelo mato alto, gloriosamente.
— F-fitalta — magaserata — perime — hed — barestra...
— Mário ouviu a milhares de milhas de distância.
— Não é epilepsia — diagnosticou o sociólogo.
— Seja o que for, pegou ele de jeito.
Na tela, uma égua branca pulou furiosamente sobre uma sebe, a saliva escorrendo, perseguida pelas patas ensanguentadas.
Mário tentou, incoerentemente, alcançar aquela imagem, como para defender-se de um ícone, como para preservar uma lucidez que lhe escapava.
— Gerosma — J-j-j-es — terapia — o — terapia — agora — perima — ima — ima.
Nem mesmo sentiu as mãos que o prenderam ao chão do pódio. Nem o pânico à sua volta penetrou a tempestade feroz que lhe invadiu o cérebro. Havia apenas a imagem ambígua, suspensa, de um cosmos que inesperadamente o deserdara.
— Senhores — o sociólogo declarou atônito. — Ele está falando em língua desconhecida!
Na tela brilhante, distorcido e alongado, mas perfeitamente nítido, o longo pênis ereto do cavalo dardejou em do rubro. Levantou-se nas patas traseiras, uma besta fugindo, e ainda assim triunfante, e a égua, encurralada nos altos arbustos, virou-se com olhar aterrorizado.
— G-g-g-gerisma — meta — lafa — alfa — — De qualquer modo, parapsicologia é isso aí — um repórter comentou.
Mário sentiu-se cair na subestrutura de sua personalidade. Uma psique de frágeis alicerces, uma porta esca-moteável. Submergiu ao nível das origens primitivas sem alma, onde a violentação do ser era a ordem natural, e a crueldade um meio de vida.
No fundo do poço, as trevas eram completas.
CAPÍTULO ONZE
PADRE MALCOLM permaneceu firme em sua vigília dentro da Igreja das Dores Eternas. Haviam sido três dias de orações e meditações solitárias.
Anita trazia-lhe água, frutas e queijo, que ele aceitava distraído. Ajoelhava-se, às vezes, em transe superficial, e nessas ocasiões Anita deixava o prato e o copo ao lado dele.
Não parecia estar sentindo dores. No entanto, algum assunto permanecia não resolvido. Tinha perdido tanto peso que seus olhos estavam fundos.
Anita o observava em sua meditação. De vez em quando, ela ajustava os instrumentos, substituía os videoteipes, ou colocava uma bobina nova de papel gráfico no sismógrafo. O interior da igreja encontrava-se perfeitamente estabilizado.
O computador continuava mostrando a já familiar imagem cruciforme, ambígua e vagamente iridescente.
O povo passou a se reunir, durante o dia e pela noite adentro, nas ladeiras ao redor da igreja.
Às vezes, Padre Malcolm cantava, e sua voz melancólica de tenor flutuava com intimidade pelas flores rosadas e brancas. Vez por outra, as pessoas reunidas acompanhavam-no na canção. E, vez por outra, suas vozes perpassavam, desacompanhadas, pelos lilases e íris.
A lamparina vermelha do altar queimava ininterrupta, jorrando um delicado fulgor sobre os cabelos do jesuíta, que começavam a ralear.
Pelo Vale do Gólgota, os campos plantados já mostravam brotos, e o vento fresco e seco soprava diminutos botões pelo solo duro. Os espinhaços cobriam-se das folhagens ouro-avermelhadas do outono. Um engenheiro agrônomo, do Sindicato de Fazendeiros do Município de Haverford, veio em sua camioneta verde para investigar as cintilantes plantas florescendo no Vale do Gólgota. Testes de terra demonstraram um baixo teor alcalino, e quase nenhuma ruptura nas camadas superiores do solo. O nível de nutrientes era extraordinariamente alto para a Nova Inglaterra.
Anita coletou depoimentos de outras ocorrências anômalas.
Em Dowson's Repentance, na fronteira ocidental do Vale do Gólgota, nos dois casos de remissão de moléstia, os pacientes haviam tido alta na clínica geriátrica. O resultado de exames de sangue posteriores, do paciente leucêmico, mostrou que tinha havido ligeiras flutuações e depois estabilização dentro dos níveis normais. O paciente tuberculoso, Henry "Hank" Edmondson, um velho fazendeiro de 87 anos, voltou para o seu quarto, na casa da família construída no alto de um outeiro que dava para a cidade abandonada de Kidron. Em suas entrevistas com Anita, ambos relataram que tinham nitidamente visualizado a rosa que pendia no cemitério da Igreja das Dores Eternas.
Ambos se mostraram ansiosos para visitar a igreja.
Harvey Timms, de oito anos, era surdo de nascença, mas percebia deformações de ruídos surdos e prolongados através dos ossinhos mais profundos do ouvido, no canal auditivo. No domingo à tarde, ele estava na cozinha da casa, tomando uma lição de foniatria com o terapeuta de Dowson's Repentance. Este segurava os dedos de Harvey sobre a garganta, na tentativa de induzi-lo a pronunciar vocábulos. Subitamente, Harvey afastou-se, mostrando-se impaciente.
Levou meia hora em linguagem de sinais para que se compreendesse que os ruídos haviam repentinamente se tornado definidos. Ruídos graves com eco metálico. O exame médico em Dowson's Repentance não demonstrou qualquer amolecimento dos tecidos. Mas, a caminho de volta a Cataratas do Gólgota, Harvey inesperadamente soltou um grito de alegria. O jesuíta estava tocando o sino da Igreja das Dores Eternas.
Anita deitou-se em seu saco de dormir, na reitoria. Pela janela, as pétalas das flores da macieira flutuavam, roçavam o crucifixo; e, para além dos campos, os serros mostravam-se nebulosos, cobertos por um leve vapor. Anita deu-se conta de que logo Mário estaria de volta. Ocorreria, então, ou o fortalecimento ou a ruptura dos já enfraquecidos laços do relacionamento.
Mário criara seu próprio papel, agressivo, sexual, e quase assustadoramente encantador, Mas, no decorrer dos últimos dois anos, esse papel o traíra. Parecia ser mais importante para ele humilhar o Deão Osborne do que preparar um caso à prova de fogo com relação ao projeto.
Padre Malcolm representava uma ameaça para Mário, não só por causa do catolicismo, e não só por causa do orfanato para meninos, mas porque Padre Malcolm significava um grau de desenvolvimento da personalidade que Mário rejeitava. Anita o levara pela mão até ao limiar desse nível, às interligações entre a sociedade e os misteriosos e imutáveis trabalhos que executavam. Só que Mário lançara um único olhar a um mundo sem risco físico, sem o vigor do antagonismo, sem a mediação do sexo, para, depois, retrair-se desgostoso.
Anita caiu num sono leve, com um sonho que se repetia há três noites sucessivas. Era a última lembrança que guardava do pai, a noite em que ele partira para o aeroporto.
Entrara no quarto dela, espiara por baixo do dossiê delicado da cama de colunas e, por engano, achou que a menina dormia. Ao invés de acordá-la, limitara-se a sorrir, virando-se e fechando a porta. Ela jamais tornaria a vê-lo. O avião perdeu altitude ao decolar de Boston e mergulhou no Atlântico gelado.
Anita ouvia atentamente a voz suave e melodiosa de Padre Malcolm.
Segundo os princípios do "efeito do operador", a ausência de Mário e a presença de Anita poderiam alterar os resultados nos instrumentos. Pois o paciente de um estudo reage, semiconscientemente, aos desejos e sentimentos daqueles que o cercam. E o que, semiconscientemente, estaria Anita dizendo a Padre Malcolm, agora que Mário não estava por perto?
Anita acreditava em Deus? Desejava ardentemente vê-lo?
Encontrar uma prova tão irrefutável de Sua existência que jamais viesse a precisar incomodar-se novamente com dúvidas agnósticas?
Ou será que ela se contentaria com uma espécie de Princípio Heisenberg da incerteza? Talvez existisse uma zona na qual emoções poderosas, sugestionabilidade, e paranormalidade se entrecruzassern, tornando-se detectáveis em diferentes épocas sob diferentes disfarces.
O único vínculo comum, concluiu, era o amor. Amor reprimido. Amor nostálgico. Amor sublimado e etéreo. Amor por um ideal. Medo do amor. O poder de sustentação da necessidade final do homem e a fraqueza final, o Amor.
A voz de Padre Malcolm partiu-se, inesperadamente, num grito estrangulado.
— Anita...
Anita sentou-se bruscamente. Vestiu-se rápida, e foi até a janela da igreja. Padre Malcolm ainda estava ajoelhado no chão, as mãos descansando no colo. Mas sua cabeça curvava-se em angulo, e o rosto se contorcia de agonia.
Ela correu para dentro da igreja.
— Padre...
Ele pareceu perceber a presença dela, embora incapaz de mexer-se. Anita atravessou a nave da igreja a fim de examinar o rosto do sacerdote. As narinas fremiam, como se a atmosfera da igreja não contivesse oxigênio suficiente.
Onde as pálpebras se entreabriam, aparecia o branco dos olhos. Ela curvou-se, tocando de leve sua face.
— O senhor está bem, padre? — sussurrou.
De repente, as pálpebras se abriram. Os olhos estavam revirados.
Depois, aos poucos, ele foi readquirindo o poder de concentrar-se. Viu Anita. Tentou sorrir e, em seguida, apertou a mão dela entre as suas.
— Tudo está bem, Anita — ele murmurou.
— Que bom.
— Ajoelhe-se, Anita! Devagar, ela se pôs de joelhos ao lado dele, as mãos descansando sobre as coxas, e o gesto pareceu confortá-lo.
Padre Malcolm curvou a cabeça, persignou-se, e ficou à escuta. Sacudiu a cabeça vigorosamente em gesto de negativa. Os lábios começaram a se mover. Anita inclinou-se para a frente, mas não conseguia distinguir palavras.
— Reze, Anita — ele comandou de repente, sentindo dor.
Confusa, Anita tentou impedir que caísse.
— Por favor, Padre, eu...
— Reze!
Anita, sob terrível tensão, ficou de mãos postas. E, então, não lhe pareceu assim tão horrível, assumir a postura de oração. Era uma postura de encorajamento em sessões de terapia de grupo. Ou de concentração psíquica na Ioga.
Entretanto, em sua culpa, julgou que uma divisão irreparável formava-se entre ela e Mário.
Uma vela caiu, tombando vagarosamente para o chão, na frente deles. A parafina continuou ardendo, e brilhou mais intensamente sobre seus rostos.
Padre Malcolm rezou pelas vítimas do Padre Bernard Lovell. Rezou pelo gêmeo desaparecido. Implorou para que a misericórdia de Cristo restaurasse as mutilações sofridas.
Padre Malcolm rezou pelo próprio Padre Lovell. Rezou pelo amor que fora vilipendiado no coração do morto.
Padre Malcolm rezou por James Farrell Malcolm.
Ofereceu-se como testemunha do caráter do tio, a alma sem orgulho ou inveja. Implorou para que o cataclismo final de perversão não pesasse contra uma vida inteira de obediência a Cristo.
O Siloam cantava docemente, deslizando por pedras outrora escondidas pela sujeira acumulada e pelos detritos de meio século. Anita abriu os olhos. O altar refulgia sob as velas. As paredes pareciam irradiar sua própria luz em vez de refleti-la.
Padre Malcolm rezou por Mário, para que sua ira pudesse ser purgada e ele devolvido a Cristo. Padre Malcolm rezou pela mulher a seu lado, para que a criança que ainda residia nela pudesse acordar novamente para a misericórdia de um Deus infinito.
Padre Malcolm rezou pelo bispo, que o enfurecera com sua indiferença. O jesuíta percebeu que, como mediador entre a terra e o céu, permanecia impuro. Silenciosamente, questionou-se.
Por que zangou-se com Sua Reverendíssima?
Sua cegueira espiritual deixou-me furioso.
Você julgou-se seu igual.
E, assim procedendo, tornei-me indigno.
Seu orgulho foi insultado.
Sentime profundamente humilhado.
Enuncie suas fantasias.
Em meu orgulho pecaminoso, cultivei a fantasia de que Cristo me havia escolhido para uma missão entre os homens.
Imaginei-me sendo procurado por homens mais importantes do que eu. Cheguei ao ponto de fantasiar uma audiência com o Santo Padre, em Roma.
Essas fantasias são infantis.
E, ao tê-las, tornei-me indigno.
Anita abaixou a cabeça. O adiantado da hora, a ausência de Mário, o tormento do padre perto dela haviam alterado seu senso dos acontecimentos. 'Já não havia pressa. Achava-se num fundo rochoso onde a vida concedia apenas o tempo suficiente para a alma trazer a termo suas intenções.
Na atmosfera tranquila de luz ambiental avermelhada, por alguma razão que não conseguia analisar racionalmente, Anita começou a chorar.
Padre Malcolm rezou pelo pai, com todas as suas ineficácias. Padre Malcolm rezou pela mãe, aquela mulher tímida e medrosa que jamais alcançara uma identidade.
Rezou pela alma de seu falecido irmão lan.
E você reza inequivocamente por seu irmão lan?
Reverencio sua memória.
Contudo, você o odiava.
Porque ele era bom.
Como pôde?
Fé, graça, mesmo no mínimo sussurro, eram uma longa e intolerável guerra para mim; em lan, eram um dom inato.
Esses ciúmes são infantis.
Rezo inequivocamente pelo perdão de Cristo.
Anita enxugou as lágrimas. Há muito tempo não chorava. A vida com Mário não permitia esse tipo de reação.
— Não tenha medo, Anita — Padre Malcolm disse. — Entregue seu coração a Deus.
Padre Malcolm rezou pelas massas humanas das cidades, desamparadas entre forças que não compreendiam e não podiam controlar. Rezou pelos pobres do Vale do Gólgota, humildes peões na guerra entre o bem e o mal.
Continuou silenciosamente a questionar-se.
É seu amor por Cristo absoluto?
É.
Não guarda ressentimento em seu coração?
Aceitei o abandono do mundo.
Obedeceria à ordem de Cristo?
Subitamente, já não era a sua própria voz. Era a voz de alguém que o conhecia bem demais. Padre Malcolm sentiu o ar adensar-se perante ele e teve medo.
— Anita — Padre Malcolm chamou.
— Estou aqui, padre.
O jesuíta sabia que estava seguro dentro dos limites da igreja e da área santificada. No entanto, devia mediar entre as almas terrenas e Deus, no céu, com a doutrina e com os instrumentos da fé. E pressentia agora quem o interrogava, espicaçando e espicaçando sua consciência.
Eu cumpriria qualquer ordem de Cristo.
Sem reservas?
Eu não me intimidaria.
Se Cristo ordenar que vá?
Eu irei.
Se Cristo ordenar que fique?
Ficarei.
Então, negue-O.
Padre Malcolm dobrou-se na agonia da descrença. Não se atrevia a abrir os olhos; sentia um vago rocejar. A voz esperava, não a sua própria voz.
Eu — eu não poderia...
Não deve sofrer o desamparo?
Estou fraco demais. Tenho medo.
Cristo não sofreu o desamparo na agonia de Sua morte?
Eu não sou o Cristo.
Você é o Seu eco sobre a terra.
Padre Malcolm contorceu-se em dores, segurando a cabeça. A tensão mental do paradoxo era insuportável. Como um entorpecente, o fulgor vermelho do ambiente penetrava em seus olhos, mesmo que mantivesse as pálpebras cerradas.
Anita abriu os olhos. Padre Malcolm tremia como um cão envenenado. Ela enxugou-lhe a testa. Ele apoiou-se nela, com todo o peso do corpo. Na tela do computador, o fluxo tinha obliterado a imagem cruciforme. Trêmulo, os dentes batendo, Padre Malcolm desfaleceu nos braços de Anita, submerso na agonia da dúvida, descrente.
Aquele que acendeu a lamparina, assim o ordena.
— Não — ele respondeu num murmúrio mais alto.
— Padre... sou eu... Anita.
Aquele que trouxe sinais ao vale assim o ordena.
— Não! — Padre Malcolm bradou, sacudindo a cabeça com violência.
Você deve entrar no vale da sombra da morte.
— Nunca!
— Padre... por favor...
Num paroxismo de angústia, Padre Malcolm dobrou-se, contorceu-se para longe dela, incapaz de abrir os olhos.
Você não crê que Cristo estará a sua espera do outro lado?
Padre Malcolm tapou os ouvidos, como se quisesse anular aquela voz. Mas não havia voz. Anita pousou as mãos sobre os ombros rígidos. E os olhos dela estavam cheios de lágrimas.
— Padre Malcolm, já é quase madrugada... Termine a vigília, por favor.
Então, negue-O.
— Não.
Negue-O.
— Nunca.
Sua obediência não passa de falso orgulho. Negue-O.
— Ainda que minha alma não mais conheça a Deus, não o farei!
Um galo cantou de repente, no fundo dos declives ao norte do Vale do Gólgota. Era como o soar de um riso sarcástico. O eco ressoou dentro da igreja, jogando a agulha do sistema de som de um lado para outro.
O rosto de Padre Malcolm contraiu-se. Afastou-se debilmente de Anita, confuso.
— Padre... o senhor está bem?
Ainda desnorteado, tentou focalizá-la.
— Estou. Eu...
Pela segunda vez, o galo cantou, sensual e viril.
Padre Malcolm olhou ao redor da igreja. Estava iluminada pela imperturbável lamparina vermelha. Virou-se para Anita, e surpreendeu-se com suas lágrimas.
— O senhor estava quase em estado de inconsciência — ela explicou.
Pela terceira vez, o galo cantou.
— Ao contrário de São Pedro, eu não O neguei — ele disse em voz fraca, tentando sorrir.
Recobrou completo controle.
— Anita... era tão estranhamente lógico... meu cérebro estava bloqueado... eu não conseguia pensar... tudo o que conseguia fazer era recusar...
— Mas, agora, a vigília terminou. — Tem razão. Executei a vigília por inteiro. Ela o observou atentamente, meio ajoelhado e meio querendo levantar-se, tentando entender o que se passara.
— Estive tão perto — de uma presença — e, no entanto, eu não conseguia pensar — nada era coerente...
— O senhor sofreu uma dissociação.
— É. Talvez. Sentia-me dissolver. Assustado. Será que fracassei? — fitou-a cheio de ansiedade.
— Olhe! — ela respondeu. — Olhe a sua igreja! Que ela seja a sua testemunha!
Fiapos de ar dourado agitavam a janela da apside, anunciando a aurora no Vale do Gólgota.
— O amor opera tão poderosamente — ele comentou, maravilhado. — É absoluto. E seus comandos são absolutos.
Transtornado, ele secou as mãos na batina e mordeu os lábios.
— Cristo é amor — ele disse, as sobrancelhas franzidas, — Qualquer movimento que nos afaste de Cristo, é um movimento que contradiz o amor.
Olhou fundo nos olhos enevoados de Anita.
— Você entende? — perguntou apaixonadamente. — Cristo é aceitação. E somente o homem que se coloca fora de Cristo pode compreender a noção da separação. E, assim, é claro, eu me vi envolvido por esse paradoxo!
Rejubilado, Padre Malcolm abraçou Anita.
— Assim, eu, verdadeiramente, estou em Cristo. E, negá-lo para provar-lhe o meu amor — é um conceito que não pode existir em minha mente!
Anita enxugou os olhos, tão contagiante era a alegria dele.
— E você, também — ele disse, fitando seu rosto. — Você também aprendeu alguma coisa esta noite?
Padre Malcolm pensou em seus três dias de sacrifício, a privação física, a concentração intolerável.
Havia despedaçado, implacavelmente, sua consciência cristã, o seu próprio Grande Inquisidor, e emergia considerando-se digno da imanência que flutuava como o rio no Vale do Gólgota.
Notou a transformação, como pétalas desabrochando, da jovem que, através de sua orientação, tinha descoberto o segredo da sinceridade absoluta. Padre Malcolm sentiu-se orgulhoso. E, nas circunstâncias, ponderou ele, não era um pecado capital.
Era, porém, suficiente.
Impulsivamente, ele curvou-se e beijou a testa de Anita.
Ela corou, e apertou o braço dele.
Uma segunda vez, mais devagar, sua sombra passando pelo rosto dela, Padre Malcolm beijou-a delicadamente no ponto onde os cabelos negros descobriam a testa.
Ela sorriu com meiguice, e acariciou a face dele.
Um tremor o sacudiu. Anita o sentiu, e colocou as mãos no peito dele, para confortá-lo, olhar seu rosto, e foi quando sentiu as furiosas batidas do coração de Padre Malcolm.
E, de repente, ela compreendeu. Eia, para quem a expressão física de carinho e gratidão deixara de ser, de há muito, motivo de timidez, entendeu subitamente que o mesmo gesto havia deflagrado algo de violentamente instável no sacerdote. Assustou-se. Não por si mesma. Mas, por ele.
Até você poderia ser um enviado do anticristo para ele, Mário dissera.
— Anita — ele sufocou-se, tentando preveni-la, suplicando-lhe, mesmo contra sua própria natureza.
— Não se assuste, padre.
Mas as palavras assumiam um terrível sentido oculto, que intoxicou o já desorientado jesuíta.
Tinha nos braços a mulher, o arquétipo da felicidade terrena, análoga à sua própria e desesperada solidão. A mesma que repousara em seu peito, na varanda sobre o Potomac, naquela noite distante. O sangue quente de Padre Malcolm adquirira um súbito autoconhecimento, uma súbita sabedoria que repudiava todos os anos de discrição e disciplina.
Anita percebeu, instantaneamente, o que se passava.
Tentou, gentilmente, afastá-lo, mas o abraço dele tornou-se incrivelmente forte.
— Padre... não... não...
Às narinas dele chegava o morno cheiro da mulher, rompendo todas as suas defesas. Sua pele tornou-se quente, febril, a respiração acelerou-se, e ele sentiu-se mudando, precisando, metamorfoseando-se da cintura para baixo.
A mão direita de Malcolm fez pressão sob a blusa de Anita, mesmo enquanto a abraçava, e procurou seu seio.
Anita curvou-se para trás, tentando afastar-se dele. Mas ele não aceitaria uma recusa. Desajeitadamente, sua boca fechou-se sobre a dela, as mãos segurando-lhe a cabeça, a língua penetrando entre seus lábios.
Anita libertou-se violentamente do beijo dele. E sua mente turbilhonava de medo por ele, desesperadamente sabendo que, sem querer, havia provocado uma combustão na natureza do padre.
E o aspecto mais aterrador de todos: ao toque da língua áspera sobre sua boca, ela sentia percorrer lhe o corpo um arrepio quente e apaixonado como uma corrente elétrica.
Anita desvencilhou-se do abraço vigoroso, e notou que, atrás dele, a igreja se enchera de unia luz cor de sangue.
Olhou depressa para a lamparina do altar, a tempo de vê-la bruxulear sobre suas cabeças, agonizando, e repentinamente tornar-se escura e fria. Padre Malcolm também contemplava a lamparina, arrancado do delírio, pálido e desfigurado.
— Ah, Anita — ele se lamentou, descrente. — Ele fez de você a sua prostituta!
Ela libertou-se; circulou o altar. O jesuíta, gesticulando freneticamente, tentava alcançar o altar para pôr-se de pé.
Com isso, a toalha do altar caiu em suas mãos, e o tabernáculo tombou e espatifou-se, arremessando o cálice e a patena, que rodopiaram pelo chão.
— Ah, Deus meu... não! — ele gritou, apertando a toalha do altar contra o peito.
Anita continuava circulando, cada vez para mais longe do altar, na direção da apside.
— Anita!
Padre Malcolm agarrou o bastão do pavio ao lado do altar. Jogou uma cadeira na frente do altar e tentou subir, mas uma força desconhecida fez o bastão em suas mãos vibrar loucamente, e apenas uma fumaça oleosa pingou sobre jesuíta.
— ANITA!
Padre Malcolm girou, subitamente, como se estivesse sendo projetado, e o pavio de prata foi colidir com a parede sul.
— ACENDA A LAMPARINA! — ele berrou, dobrando-se de dor.
Cautelosamente, Anita subiu na cadeira. Tirou do bolso da blusa, cujos botões Padre Malcolm arrebentara, uma caixa de fósforos. Acendeu um palito. Um sopro longo e deliberado às suas costas apagou-o.
Muito lentamente, Anita começou a voltar-se.
— Não se virei — Padre Malcolm preveniu.
Ela acendeu outro fósforo, e rapidamente chegou a chama à lamparina. Ouviu, atrás de si, movimentos pesados, como de um corpo peludo, e o ruído fedorento de jatos de urina na porta da igreja.
— Pelo sangue de Nosso Salvador, Jesus Cristo, e pela intercessão da Virgem Maria, Mãe de Deus, pelos Santos Apóstolos e por todos os santos, nós te abjuramos e ao teu horror imundo para as profundezas do inferno...
A voz de Padre Malcolm quebrou-se de repente.
Anita manteve a chama firme. O brilhante cone de luz pareceu correr ao redor da vasilha de óleo como minúsculos camundongos. E, então, acendeu-se. O calor da chama subiu ao seu rosto, dando-lhe uma sensação incômoda. A chama firmou-se, de um amarelo doentio, exalando um incenso fétido.
Assim é melhor, ela ouviu uma voz diferente. Assim é melhor.
Anita virou-se devagar.
A igreja estava quieta. Padre Malcolm jazia deitado, trêmulo, no chão da nave. Na tela da termovisão surgiu a semelhança de um bode, com a mitra de bispo, a cabeça ensanguentada inclinada para um lado, e um crucifixo negro torto contra os joelhos selvagens.
O cascatear surdo de uma gargalhada alegre ecoou e ressoou por todo o espaço da Igreja das Dores Eternas.
CAPÍTULO DOZE
O HOSPITAL MUNICIPAL, de Cambridge estava mal iluminado por clarabóias inclinadas, parcialmente opacas pela sujeira e detritos, consequências da noite gelada, e pela manhã chuvosa. Mário encontrava-se sentado num dos leitos da 8ª Enfermaria, vestido numa roupa de algodão, ociosamente folheando as páginas de um velho exemplar dominical do The New York Times. De vez em quando, passos se aproximavam da enfermaria para depois se afastarem. Há quanto tempo estaria nesta enfermaria, perguntou-se. Dois dias? Três? Após o desastre no auditório, o tempo deixara de existir como uma quantidade mensurável.
Chovia. Uma chuva ruim e pesada. O paciente no leito ao lado, um senhor barrigudo, de pele extraordinariamente rosada, ficava gemendo e coçando o peito raspado que dentro em pouco se submeteria ao bisturi do cirurgião.
Mário virou para a página da seção de ciências. Dois universitários do MIT tinham conseguido duplicar em laboratório os tecidos fibrosos da retina de uma lagartixa.
Um matemático da Berkeley havia aprimorado o modelo para emissão de energia dos buracos negros cósmicos. Um historiador marxista de ciências conseguira provar que a teoria da evolução de Darwin refletia as necessidades de classe de uma sociedade vitoriana. Mário, atordoado, estudava os artigos, à procura de indícios quanto à idade dos articulistas. Ultimamente, vinha se deixando obcecar pelas idades daqueles que conseguiam deixar sua marca no mundo. Ele próprio já estava ultrapassando esse momento em que os melhores cientistas atingem o apogeu. Cataratas do Gólgota significava sua redenção. Poderia vir a sê-lo ainda, ele pensou, se ao menos conseguisse definir o que ocorrera no auditório.
Um senhor de terno entrou na enfermaria. Professor Hendricks, do departamento de física.
— Mário, como se sente? — Hendricks perguntou.
Mário tentou sorrir, e indicou a cadeira de plástico azul ao lado do leito. Hendricks, um belo homem de cinquenta e poucos anos, esbelto, têmporas grisalhas, sentou-se ereto.
— Acho que estou bem, professor — Mário respondeu.
Pelo modo como Hendricks se encolhera ao vê-lo, Mário deduziu que ainda devia estar pálido como uma folha de papel. O homem no leito ao lado gemeu. Hendricks inclinou-se para a frente.
— Você nos pregou um susto e tanto, Mário — ele comentou. — O que houve?
Mário dobrou a seção de ciências do jornal, colocando-a na minúscula mesinha-de-cabeceira encostada à parede.
Virou-se para os inteligentes olhos cinzentos do físico Hendricks e cruzou as mãos sobre a barriga.
— O que o senhor acha que houve? — Mário indagou.
— Aí você me pegou. O auditório virou um pandemônio. Pensei em ataque epiléptico.
— O que estou querendo saber é: o que o senhor viu? Na tela?
Hendricks olhou perplexo para Mário.
— O mesmo que todo mundo.
— Exatamente, o quê? Professor Hendricks, por favor, conte-me. É importante.
Hendricks coçou o queixo. Sinal evidente de embaraço.
Mário esperava impaciente.
— Ah, bem... umas fotografias de uma mulher nua... sua companheira, alguém comentou... alguns lagartos... e um pedaço de um filme horrível... um garanhão selvagem pisoteando um pobre coitado qualquer até à morte. Meu Jesus, foi horrível... — Hendricks, muito sério, fitou Mário.
— O que foi que deu em você? Fazer um papelão daqueles depois de tudo que investiu no projeto?
Ao invés de responder, Mário reclinou-se sobre os travesseiros duplos.
— Tem certeza do que viu? — perguntou depois de muito tempo.
— Claro que tenho certeza, com uma coisa daquelas não ha como me enganar.
— Prestaria um depoimento, sob juramento, sobre o assunto?
— O quê?
— Se fosse preciso, assinaria um depoimento?
— Claro. Por que não?
Mário relaxou um pouquinho. Recobrava a cor, aos poucos. Hendricks não saberia dizer se era saúde ou febre.
— Lembra-se de quem mais estava presente?
Hendricks encolheu os ombros.
— Alguns membros do corpo docente.
— Não tinha havido uma outra função qualquer, antes da minha palestra?
— Tem razão. O Prêmio Bollington. Mas, é claro. Teria que haver uma relação dos nomes. A lista dos convidados. A maioria deles ficou para ouvir você.
— Vou precisar dessa lista — Mário disse. — Preciso de depoimentos lavrados em cartório de todos eles.
— Por que isso?
— Porque se trata de um grupo dos mais eminentes jamais reunidos para uma palestra.
Hendrieks não estava entendendo. Há muito tempo apoiava Mário. Fora seu professor, antes das greves estudantis, e descobria agora que, com o passar dos anos, seu antigo assistente de cátedra tornara-se um homem duro.
— Não consigo acompanhar seu raciocínio — disse serenamente.
Mário apoiou-se nos cotovelos. O paciente no leito ao lado, gemeu.
— Porque eles viram o que eu e o senhor vimos — Mário sussurrou em tom acalorado.
— Claro que viram. Mas, e daí?
Mário aproximou-se mais um pouco, certificando-se de que ninguém mais os ouvia.
— Aquelas imagens não estavam gravadas nem nos meus slides nem nas minhas fitas — ele sibilou.
Hendricks baixou o olhar para o chão, desconcertado.
Mário agarrou o braço do professor.
— Entende o que estou dizendo? Aquelas imagens não saíram das minhas fitas!
Hendricks desviou o olhar. Uma enfermeira entrou para dar ao paciente ao lado uma cápsula vermelha num copo de papel. Depois, saiu sem ruído com seus sapatos de solado de borracha. Hendricks a acompanhou com os olhos para ver aonde ia ela.
— O senhor não acredita em mim — Mário comentou.
— Eu teria que ver os slides e as fitas, Mário — Hendricks voltou a fitar a fisionomia desanimada de Mário.
— Onde está o material? — o professor perguntou, o rosto impassível, deixando perceber o perfeito controle que exercia sobre suas emoções.
Mário sacudiu a cabeça.
— Acho que ainda devem estar na sala de projeção.
Hendricks ficou de pé.
— Bem, não tenho muita certeza do que espero ver nas fitas — confessou.
— Está me dizendo que houve uma espécie... de quê?
Alucinação...
— Coletiva. Exatamente isso, Professor Hendricks. E é por isso que preciso dos depoimentos.
Hendricks meneou a cabeça em solidariedade.
Apertaram-se as mãos.
— Descanse um pouco — ele aconselhou. — Você parece exausto, Mário. Quando estiver se sentindo melhor, pegue o material e venha me ver. Está bem assim?
— Ótimo. E obrigado pela visita.
Mário deixou-se cair novamente sobre os travesseiros.
Estava mais fraco do que imaginara. Óbvio que Hendricks não poderia acreditar no que lhe tinha dito. Simplesmente, teria que provar-lhe, mostrar-lhe a evidência das fitas. Mário suspirou, e, mecanicamente, apanhou o jornal. Ao virar para a seção política, uma seção que raramente lia, um artigo chamou-lhe a atenção.
Um secretário do Ministério da Fazenda do Vaticano estava implicado em negociações com guerrilheiros sicilianos e brasileiros. Havia uma fotografia do cardeal envolvido, resplendente em seus botões de ébano e a cruz peitoral, segurando seu chapéu de abas largas para encobrir o rosto, como um criminoso comum. Mário destacou cuidadosamente a fotografia. Significava a soma total de todo o esplendor e de toda a duplicidade da instituição católica.
A Igreja possuía um infinito talento para a sobrevivência, apesar dos escândalos, das heresias, de seus mercenários e seus papas ilegítimos. Qual seria o segredo?
Como conseguia impor o engodo de seus mistérios arcanos e medievais sobre geração após geração de fiéis? Qual a origem de sua energia?
Mário não tinha dúvidas de que a resposta era: repressão. O id era sutil mas inexoravelmente transformado com a idéia de culpa, estranhos conceitos de sexualidade, e uma série de pesadelos neofreudianos. E havia apenas uma válvula de escape: reverência à autoridade da Igreja. Como no hipnotismo. O sacerdote tornava-se um sonhador, e suas imagens de salvação nada mais eram senão a medida da agonia excruciante do id.
Até mesmo um homem normal, se preso em confinamento solitário, sofrerá alucinações e se tornará dependente de suas fantasias.
No isolamento, sob uma pressão que ultrapassa as fronteiras psíquicas normais, um id como o de Eamon Malcolm desintegrar-se-ia e projetaria a imagem materializada de seus sofrimentos e autocontradições.
Mário observava a chuva arrastando lençóis de sujeira molhada pelas clarabóias. Mal notou quando o homem no leito ao lado foi levado de maca para a cirurgia. Ao contrário, tentou concentrar-se em Eamon Malcolm.
Cataratas do Gólgota, sua topografia singular, seus temores coletivos, seu isolamento tinham feito de Bernard K. Lovell um necrófilo. Em seguida, destruíram James Farrell Malcolm, fazendo dele uma criatura bestial. Contudo, Eamon Malcolm, sensível e extremamente culto, um idealista perdido num mundo brutal, sofrera o destino mais incompreensível de todos: tinha se transformado em um dos mais notáveis transmissores psíquicos de todos os tempos.
Incrível como pudesse parecer, Malcolm projetara a rede onírica de suas obsessões psíquicas a uma distância de 100 milhas, para uma platéia de mais de cem pessoas desavisadas e sofisticadas. Seria, ainda que remotamente, possível? E se o fosse, então, por quê? As imagens manifestadas durante a palestra eram facilmente decifráveis como visões oníricas de luxúria e fúria. A hostilidade e a sexualidade anormal tinham se manifestado em forma freudiana, isto é, disfarçadas. O garanhão atacando o homem em fuga seria, provavelmente, uma metáfora decorrente de inveja e ódio sexuais contra Mário.
E transmitia um silencioso grito psíquico de angústia.
Eamon Malcolm, sem dúvida, ignorava tudo isso. Para ele, tudo não passava de uma batalha moral entre Cristo e Satanás, tendo por campo seus próprios corpo e mente indignos.
Duas perguntas inquietantes ficavam sem resposta: por que a projeção dessas violentas imagens para o auditório de uma universidade? Por que não a figura cruciforme, símbolo de sua salvação? Classicamente, o id do sacerdote continuaria a sublimar sua hostilidade sob a máscara de imagens benignas.
A menos que tivesse ocorrido alguma-alteração em Cataratas do Gólgota.
Outra questão: haveria outras vítimas em potencial nas projeções inconscientes do padre?
Pela primeira vez, Mário pressentiu que Anita poderia estar correndo perigo.
Esgueirou-se da cama devagarinho e pegou a camisa pendurada num cabide. Ainda estava manchada da luta para jogá-lo ao chão no auditório.
Dr. Cummins, um médico jovem, entrou na enfermaria.
— Está de saída, Sr. Gilbert? Abotoando a camisa, Mário olhou para o médico. Tinha um rosto elegante. O tipo de rosto cultivado durante gerações nas propriedades de Long Island ou Cape Cod, estudos em colégios particulares, dicção impecável, o tipo que Mário detestava.
— Tenho que recuperar umas coisas, por isso vou dar o fora daqui — Mário explicou.
Dr. Cummins era mais jovem do que Mário. Surpreso com o tom de voz do outro homem, ficou sem jeito e consultou a prancheta.
— Ainda falta o exame cerebral para se determinar se existe epilepsia.
— Não sofro de epilepsia — Mário declarou enquanto vestia as calças. Inexplicavelmente, estavam sujas de lama.
Provavelmente levara um tombo da maca ao ser retirado do auditório. Tudo de que se lembrava agora era do caos e das manchas vermelhas na visão.
— Sr. Gilbert — Dr. Cummins ponderou, inclinando-se levemente. — Suspeitamos que esteja sofrendo de alguma forma de histeria. Trabalho e motivação excessivos em decorrência do seu projeto. O senhor teve um colapso emocional.
O olhar de Mário era de raiva.
— É esse o seu diagnóstico? — indagou. — Colapso nervoso?
Dr. Cummins, agitado, umedeceu os lábios.
— Quando o senhor foi retirado do auditório, estava incoerente e aos gritos — explicou, sério. — Da próxima vez, pode ser pior ainda.
— O que, na próxima vez?
— Alucinações. Violência. Pelo que sabemos, pode realmente sofrer um ataque epiléptico.
— Não há nada de errado comigo.
Já completamente vestido, tentou passar pelo médico.
— Nosso conselho é que desista do projeto — Dr. Cummins acrescentou, bloqueando-lhe a passagem. — Vamos receitar-lhe alguns tranquilizantes. E recomendamos psicoterapia.
O olhar de Mário, para ele, estava carregado de ódio. Por um instante, Dr. Cumrnins pensou que Mário iria agredi-lo com um soco, e se desviou.
— Isso tudo nada tem a ver com a minha psique — Mário disse. — É uma espécie de experiência da qual o senhor não entende coisa alguma.
Mário passou pelo médico e foi para a porta.
— Mostrar material pornográfico para uma platéia de Harvard não pode ser considerado o comportamento normal de um homem! — Dr. Cummins gritou.
Da porta, Mário girou nos calcanhares, furioso.
— Estamos lidando com fenômenos irracionais, doutor.
Mas, o senhor não teria como compreender.
Rapidamente, Mário atravessou o corredor.
Dr. Cummins gritou atrás dele.
— Pelo menos, tenha a decência de registrar sua saída.
Mário entrou no elevador azul. As portas se fecharam, levando-o para o térreo.
Levou quinze minutos correndo, escorregando na lama e roçando folhagens altas, para atravessar o campus.
A sala de projeção do auditório estava trancada.
Irritadíssimo, Mário sacudiu a maçaneta. Podia ver o palco, coalhado de papéis, e as lousas cheias de coisas escritas a giz.
Mário deu socos e pontapés na porta, sentindo-se frustrado.
O senhor idoso entrou no auditório, carregando nos braços estojos de slides e laudas de papéis.
— Não esperava vê-lo novamente — resmungou, procurando a chave numa corrente de metal presa ao cinto.
— Preciso dos meus slides. Das minhas fitas — Mário disse com ansiedade, sacudindo a água dos cabelos.
O operador abriu a porta e cuidadosamente colocou os slides que carregava numa mesa ao lado dos dois projetores idênticos.
— Material visual de palestras antigas ficam na prateleira de baixo — ele informou.
Mario procurou pelos slides na prateleira indicada.
— Não estão aqui — ele disse.
— Então veja dentro dos estojos. Às vezes eles estão com os rótulos errados.
Mário puxou os primeiros slides de vários estojos de programas anteriores. Engenharia: Sistemas Hidráulicos.
Química: Polímeros e Estruturas em Cadeia. Metalurgia: Fadiga dos Metais. E uma série do departamento de arquitetura: E. R. Robson e os internatos de Londres.
— Não estão aqui! — Mário berrou.
— Então, quem sabe, estão misturados com os da palestra de hoje.
Mário foi procurar nas prateleiras ao lado dos dois projetores. Todos os estojos de slides estavam rotulados com a letra de outras pessoas. E, de qualquer forma, nem os cassetes plásticos das fitas da termovisão, nem seus estojos, estavam ali.
Nesse momento, o universitário que trabalharia como assistente do audiovisual, o mesmo que operara o projetor durante sua palestra, entrou empurrando um carrinho de diagramas de acetato.
Mário correu para ele e agarrou-lhe as lapelas do paletó.
— Onde estão eles? — Mário perguntou, a poucos centímetros do rosto do rapaz.
— Onde estão o quê?
— Os meus slides. Minhas fotografias. Minhas fitas.
Mário empurrou-o para o lado. O universitário franziu o rosto, sentindo as têmporas latejarem de medo.
— Nem mexi neles — o jovem protestou.
— Nesse caso, quem mexeu?
— O policiamento do campus.
Muito lentamente, Mário afastou-se do estudante.
— Os tiras do campus? — perguntou incrédulo.
— Sabe como é, era pornografia.
Mário fitou o universitário com extremo desprezo.
Depois, saiu pisando pelas folhas de acetato espalhadas pelo chão, descendo rapidamente as escadas.
Chovia mais forte. Uma chuva maligna e dirigida, chicoteando seus ombros e sua cabeça. A lama escorria das sebes, e os guarda-chuvas pelo campus todo estavam virados para trás. Agora, o frio o atingia. E não melhorou quando entrou no subsolo do Departamento de Polícia do campus.
Lâmpadas elétricas pendiam dos tetos altos. Ecos se prolongavam pelos corredores de cimento. As paredes exibiam cópias fotostáticas dos terroristas procurados pelo FBI.
A polícia do campus lembrar-se-ia muito bem dele. Por três vezes, haviam-no arrastado aos berros por tentar ocupar o gabinete do presidente. Por duas vezes, sem mandado, haviam dado busca em seu apartamento à procura de material subversivo. Isso acontecera há duas décadas. Mas, lá no fundo, ninguém esquecera.
Quando Mário entrou no corredor que levava ao gabinete do capitão, reconheceu de pronto a iluminação lúgubre, o cheiro mofado e acre de mobília envernizada e de paredes úmidas, o tédio infinito e a melancolia dos policiais que, além de secretamente detestarem a vida intelectual, já o haviam detestado pessoalmente.
O capitão, um homem de cinquenta e tantos anos, com pés-de-galinha ao redor dos olhos e argutos olhos cinzentos, recebeu Mário imediatamente. Pela careta que fez, era óbvio que tomara conhecimento do acontecido no auditório. Girou a cadeira, contemplando o vulto desamparado, gotejando chuva, à sua frente.
— Eu adoraria pôr você atrás das grades por comportamento imoral, Gilbert — ele disse rindo. — Mas ninguém apresentou queixa.
— Vim buscar minhas fitas. Os tiras do campus estiveram na sala de projeção e pegaram o material. Tenho uma testemunha.
O capitão levantou um supercílio, depois apertou um botão do intercom. Logo surgiu um policial e os dois se entretiveram numa discussão em voz baixa. Mário já conhecia a encenação.
— Não estão nos achados e perdidos — o capitão reportou. — E não as temos aqui na Central.
O tom de voz era definitivo, inexpressivo e metálico. O capitão levantou-se e acompanhou Mário até a porta.
— Eu o processo se for preciso — Mário ameaçou baixinho. — O senhor sabe que sim.
O capitão riu e abriu a porta.
— Ótimo, Mário. Faça exatamente isso.
Mário saiu desanimado. Sentia que o capitão e os policiais o observavam com mal disfarçada hilaridade.
Mário correu pela chuva fria e forte, entrando no departamento de ciências, onde desceu pelo corredor até chegar ao laboratório de Anita.
Um cadeado novo brilhava na fechadura.
Mário sacudiu o cadeado, que não cedeu. Correu até o depósito de material, mas ali, também, brilhava um cadeado trancando a porta do conjunto.
Não havia janelas no laboratório de parapsicologia. Não havia meios de acesso pelo departamento de física. Não passava de um cubículo sem aquecimento cedido pelo Deão Osborne a Anita, há muitos anos, gradualmente transformado numa densa câmara experimental.
Finalmente, Mário arrebentou o cadeado, usando um pesado extintor de incêndio, e lascas de madeira voaram e se espalharam pelo chão.
— Não adianta, Mário — disse uma voz às suas costas. — O Deão Osborne demitiu você.
Respirando com dificuldade, ainda segurando o extintor, Mário virou-se e viu Henry, o servente negro, limpando a lama do corredor.
— O Deão Osborne? — disse, em voz quase inaudível.
Henry fez que sim com a cabeça, evitando os olhos de Mário.
— Depois da palestra, ele tirou tudo daí do seu laboratório. Depois trancou. Os tiras estavam aqui, e tudo o mais. Pensei que você tinha assassinado alguém.
Mário deixou-se escorregar molemente para o chão, apoiado na porta.
— Ele não podia fazer isso. O projeto... minha classe...
tenho contrato até o fim do semestre.
— Não podia, mas fez.
Mário levantou o olhar lentamente. Nervoso, Henry se esgueirou, indo limpar os cantos mais afastados do corredor.
— E os meus slides — Mário murmurou. — E as minhas fitas?
Henry encolheu os ombros, mas evitou o olhar ardente de Mário.
— É melhor falar com o deão sobre isso.
Mário continuou a fitá-lo. Depois, desencostou-se da parede, limpou a chuva do rosto, e soprou com força os punhos cerrados.
Um arrepio percorreu a espinha de Mário. Henry observou-o passar pela quadra, e depois subir devagar os brancos degraus de pedra que levavam aos escritórios da administração.
Mário passou pelo corredor mal iluminado, os saltos dos sapatos fazendo eco, até a porta em vidro granulado, onde se lia: Administração de Ciências, Deão Harvey Osborne.
Mário abriu a porta. O suave ruído de máquinas de escrever cessou. A porta fechou-se atrás dele. Sob uma luz fluorescente, irritantemente ofuscante, a recepcionista levantou o olhar, surpresa.
— Mário Gilbert — ela disse com um sorriso. — Pensei que estivesse no hospital.
Mário debruçou-se sobre a mesa, apoiando-se nos dois cotovelos.
— Quero ver o Deão Osborne — disse com frieza.
O sorriso sumiu. Ela falou pelo intercom. Houve uma conversa sussurrada. Depois, fez um gesto indicando uma poltrona reta, forrada de couro, sob o relógio de parede.
— Sente-se, por favor — ela disse.
E, ao sentar-se, pingando água que formava uma poça no soalho, ele se pôs a examinar os boletins presos por percevejos ao quadro de cortiça, bandejas de metal com memorandos, os escaninhos onde os professores vinham apanhar sua correspondência. No lugar onde antes ficava uma lareira, havia agora um cofre pesado, com trincos de aço, emoldurado por tábuas de madeira.
— É ali que estão os meus slides e fitas? — Mário perguntou.
A datilógrafa parou de bater à máquina.
— É melhor falar com o Deão Osborne sobre isso — ela disse, e voltou ao trabalho.
Passados 20 minutos, a porta do gabinete do Deão Osborne abriu-se. De lá saiu uma senhora de meia-idade, morena e muito preocupada. Mário concluiu tratar-se de uma mãe qualquer implorando para que o filho não fosse expulso da classe de química elementar. A porta do Deão Osborne fechou-se novamente.
Depois, um homem magricela, com um cachimbo apagado, passou por Mário como um furacão e entrou no gabinete do deão sem se fazer anunciar.
Vinte e cinco minutos se escoaram. Embora passasse um pouco do meio-dia, o céu chuvoso fazia do dia um anoitecer sombrio.
Mário teve um pensamento inquietante: se o Deão Osborne lhe recusasse as fitas, se a palestra não passasse de um desastre total, ridicularizados e sem análise os resultados da experiência em Cataratas do Gólgota jamais alcançariam o mundo exterior. Mário desandou a andar pela área entre o cofre e os escaninhos de correspondência.
— Mais cedo ou mais tarde, ele vai ter que me ver — Mário disse devagar. — Diga-lhe isto.
A recepcionista falou pela segunda vez ao intercom. O homem magricela com o cachimbo apagado passou por ele, meneou a cabeça e sorriu. Depois saiu para o corredor.
— Pode entrar agora.
Mário dirigiu-se para a porta de madeira de lei, onde o nome de Osborne estava escrito em letras douradas. Nas duas paredes laterais apaineladas viam-se retratos a óleo de deãos anteriores e antigos alunos de Harvard que haviam alcançado projeção. Todo o conjunto de salas, a recepção, a sala de correspondência e as duas salas da secretaria, fizeram silêncio à sua passagem.
Quando Mário abriu a porta, o Deão Osborne estava examinando vários papéis contra a luz pálida da janela.
Mário fechou a porta e sentou-se na poltrona em frente à mesa maciça. O Deão Osborne franziu o cenho, rubricou alguma coisa nas duas páginas, e acrescentou uma nota de rodapé. Finalmente, deu-se por satisfeito. Apertou um botão.
A recepcionista entrou, recebeu dele as páginas, e saiu. O Deão Osborne girou a cadeira a fim de encarar Mário.
— Mário — ele disse com amabilidade. — Você já não existe aqui em Harvard.
Empurrou um tablóide pelo tampo envernizado da mesa.
Pesquisador Parapsicólogo Cai sob a Influência Maligna
Mário Gilbert, parapsicólogo e orador da Universidade de Harvard caiu, na última quinta-feira, sob a influência de suas próprias pesquisas.
A palestra, sobre almas penadas numa igrejinha remota ao norte de Massachusetts, transformou-se em pandemónio quando o jovem cientista jogou-se ao chão, aos berros.
Testemunhas descreveram sua língua como "preta e inchada", enquanto outras relataram que ele "falou em língua estranha", presa de um "ataque diabólico". O incidente ocorreu pouco depois da apresentação de slides pornográficos tirados no curso do projeto.
Mário jogou o tablóide na cesta de lixo.
— Preciso de minhas fitas e slides.
O Deão Osborne recusou com um movimento da cabeça.
Propriedade da universidade.
— Pelo amor de Deus, eu os tirei!
— Com equipamento da Harvard. Para um projeto da Harvard. Apresentados em Harvard. Você conhece o regulamento.
Mário passou os dedos pelos lábios, como se um sabor ruim chegasse à sua boca. Inclinou-se.
— Tenho que ficar com eles — disse suavemente.
— Por quê? — Porque o que está gravado naqueles slides não é o que o senhor e uma centena de outras pessoas viram. O rosto do Deão Osborne contorceu-se. A austera fachada do descendente de uma eminente família da Nova Inglaterra começava a rachar. E, em seu lugar, surgia um homem zangado e ruborizado, pessoalmente humilhado, e até ameaçado, por uma catástrofe que ele próprio patrocinara.
— O que eu vi foi imundície!
— Sei que viu. Mas não é o que está gravado no material visual.
Deão Osborne girou a cadeira para o lado oposto, tentando controlar-se. Mário notou a veia pulsando no pescoço do deão. Aos poucos, ele girou de volta, bem-educado, frio e cortês como sempre.
— Que porcaria de loucura é essa, Gilbert? — indagou.
Mário curvou-se para a mesa, os dedos apoiados no mata-borrão para dar maior ênfase às palavras.
— Alucinação coletiva.
Deão Osborne fitou Mário durante muito tempo.
— Foi uma transmissão telepática de imagens! — Mário explicou entusiasmado. — De uma fonte a mais de 100 milhas de distância! E posso prová-lo, se ao menos me devolver os slides!
Deão Osborne sacudiu a cabeça. Havia uma expressão de incredulidade em seu rosto. Incredulidade na explicação apresentada por Mário. Incredulidade por ter-se deixado, ele próprio, envolver em tal rede de insanidade. Não encontrou o que dizer.
— Deão Osborne — Mário continuou rapidamente. — Encontrei um homem excepcionalíssimo em Cataratas do Gólgota. Um jesuíta.
O Deão franziu o rosto.
— Um homem muito inteligente — Mário prosseguiu. — Mas emocionalmente perturbado. Muito mais perturbado do que ele próprio poderia perceber.
— Com você, são dois.
Mário respirou fundo, ignorando o sarcasmo do Deão.
— O jesuíta é, inconscientemente, a fonte de todas aquelas imagens.
Deão Osborne umedeceu os lábios. Mário notou que o homem empalidecera. Um envolvimento com a Igreja Católica somente aumentaria o constrangimento do Deão.
— Então, é isso? — Deão Osborne indagou e sua voz tremia. — É essa a inovação científica que você me traz?
É isso o que justifica me fazer de tolo perante a imprensa e nossos mais distintos catedráticos?
Mário recuou na cadeira.
— Mas eu já gravei a imagem de uma de suas obsessões psíquicas — insistiu em tom de provocação.
A cabeça do Deão Osborne foi para trás, como num espasmo.
— Onde? Quando? — ele desafiou.
— No videoteipe.
— Mário, aquele vídeo teipe não mostrou coisa alguma, exceto um cavalo pisoteando o coitado de um roceiro até matá-lo.
— Vá lá e dê uma olhada! — Mário gritou.
Em vez de atendê-lo, Deão Osborne desandou a movimentar a cadeira giratória de um lado para oito, e depois pôs-se a tamborilar com os dedos nos braços da cadeira. Estava perdendo a paciência com Mário. E Deão Osborne sentiu uma certa dose de vulgaridade avolumando-se inexoravelmente em seu íntimo.
— Que droga de obsessão psíquica é essa? — ele perguntou.
— Cristo. Gravei a imagem no clímax do exorcismo. É, uma imagem inegável de um vulto cruciforme.
Deão Osborne já se vira envolvido em muitas disputas, já conhecera homens de quem não gostara. Mas nenhum tivera o poder, como Mário, de derrubar sua equanimidade.
Havia um traço qualquer naquele rosto agressivo que dava ao deão vontade de esmurrá-lo. Um antagonismo mais profundo do que uma simples humilhação administrativa fazia surgir no eminente professor uma deplorável falta de boas maneiras.
— Sabe o que acho? — o Deão perguntou.
—O quê?
— Que isso tudo é pura merda. E que você é um doido varrido!
Mário, furioso, socou a mesa com o punho fechado.
— Vá lá e olhe o material visual! — ele exigiu. — A menos que esteja com medo — acrescentou, subitamente reconhecendo os sintomas.
Muito zangado, Deão Osborne ficou de pé.
— Você notou aqueles retratos ao entrar aqui? — perguntou depressa. — Pessoas eminentes. Homens de substância. Homens que deram forma ao pensamento americano. Homens que construíram o mundo moderno.
Prêmios Ilobel. Deãos de grandes universidades. Homens que dividiram o átomo e inventaram a viagem espacial.
— Eles também tiveram seus detratores.
— Talvez. Mas não fizeram tráfico com sacerdotes doentes, nem com igrejas arrasadas, e... e... alucinações coletivas...
— Estou dizendo a verdade!
— Intelectualmente, é repugnante! — o Deão declarou. — Mário, você não passa de um ex-revolucionário, um eterno universitário que, de repente, saiu dos trilhos numa crise de meia identidade, provocada por velhinhas em sessões espíritas!
Mário se levantou, com lágrimas nos olhos.
— Seu filho-da-mãe — ele sussurrou. — Dê-me as fitas e os slides!
Deão Osborne deixou-se cair pesadamente na poltrona.
Jogou o fumo do cachimbo sobre o tablóide amassado. No que lhe dizia respeito, Mário não existia.
O parapsicólogo jogou-se para a frente, esmurrando a mesa com os dois punhos.
— Você não tem o direito de interromper um projeto só porque não acredita na premissa! — ele berrou.
— Saia daqui.
— Você participa de um dos mais sensacionais acontecimentos da história da paranormalidade e nem sequer se dá ao luxo de examinar as provas!
— SAIA DAQUI!
Mário ergueu a cabeça num gesto brusco ao ouvir o berro. O rosto do deão estava lívido. A delicadeza lhana desaparecera. E o que restava era fúria total.
— Mesmo que fosse verdade — o Deão disse roucamente. — Eu o mandaria embora. Essas anormalidades psíquicas me causam repulsa, como causariam a qualquer cientista sério.
Mário afastou-se de costas, até a porta, os olhos transbordando de lágrimas de raiva e frustração.
— Envie Hendricks a Cataratas do Gólgota — suplicou.
— Não.
— Então venha o senhor mesmo. Lá é um mundo diferente.
— Não.
O Deão curvou-se sobre a mesa, apontando a haste para Mário.
— O seu mundo lida com folhas de chá e almofadas bordadas. Música de cítara e pauzinhos de incenso. E isso é ótimo. Se é o que quer fazer. Mas não aqui.
— Por que não?
— Porque não é ciência!
Derrotado, Mário virou-se para a porta.
— Eu o protegi durante anos. Por causa de Anita. Bem, acabou-se. Não com esse lixo que está vendendo. E artigos sensacionalistas como este aqui.
Mário abriu a porta.
— Eu quero aquele equipamento de volta, Gilbert! — Osborne ainda gritou atrás dele. — Traga-o até o fim da semana.
Mário girou nos calcanhares.
— Uma semana?
— Exatamente. Seu projeto está cancelado. As câmaras custam uma fortuna, Portanto, traga-as.
— Mas estou no meio de uma experiência viável!
— Nesse caso, alugue o seu próprio equipamento — o Deão sugeriu friamente. — Harvard precisa do dela.
Mário fitou-o, de olhos arregalados pelo antagonismo sem reservas que lhe era dirigido.
— E em perfeitas condições — acrescentou o Deão. — Se for preciso, mandarei a força policial do campus. Dentro de uma semana.
Mário bateu a porta com tamanho ímpeto que o retrato do predecessor de Osborne entortou-se na parede.
O Deão levantou-se e endireitou o quadro. Lamentava profundamente ter perdido o autocontrole. Descera ao nível de Mário. E a perda da dignidade era imperdoável. Aos poucos, a austera organização e a calma reconfortante do gabinete devolveram-lhe a tranquilidade.
E uma pontada de culpa. Pois a tragédia pessoal de Mário Gilbert era que ele continuara sendo protegido, muito tempo depois de todo mundo já ter entendido que, pelo país todo, a parapsicologia vinha sendo cancelada. O Deão Osborne protegera o laboratório. E não o fizera por razões científicas, mas por motivos pessoais que tinham a ver com a mãe da Anita.
Deão Osborne espiou entre duas lâminas de persiana, levemente separadas. Mário atravessou o pátio, indo para as ruas enlameadas. O jovem cientista até parecia estar chorando. Deão Osborne fechou as persianas com violência.
Todos esses acontecimentos representariam não apenas a destruição acadêmica de Mário, mas tal destruição seria solitária. Deão Osborne tinha a forte premonição de que as coisas entre Anita e Mário estavam mudando. De outro modo, teria sido Anita quem teria vindo ao gabinete reclamar o material visual, e o deão teria achado quase impossível recusar. Um rompimento entre aqueles dois seria o único resultado positivo do malfadado projeto de Cataratas do Gólgota.
Mas o sentimento de culpa não cessou. Quem sabe, devia isso a Mário. Um rápido passar de olhos pelos slides.
Deão Osborne saiu do gabinete e foi até o cofre de aço.
Era sexta-feira. A sua equipe já teria saído. Girou o segredo e a pesada porta abriu-se.
Cheques de pagamento. Minutas de documentos jurídicos para uma doação. Uma peça óptica de fibra, usada igualmente pela física e pela bioquímica. Na prateleira superior, uma caixa de papelão rotulada Cataratas do Gólgota, contendo três estojos de slides e duas fitas cassete.
Inexplicável, a poderosa força motriz da curiosidade. Não sentia algo parecido desde o tempo em que ele mesmo fora um universitário, assistindo às palestras do grande B. F. Skinner, e um universo inteiramente novo parecia descortinar-se especialmente para ele. Deão Osborne transpirava abundantemente. Se a obsessão de um homem podia ser gravada, mesmo que vagamente, mesmo que sugestivamente, que extraordinárias implicações para as ciências psicológicas!
A emulsão do slide brilhava quase verde. Finas camadas azuis de reflexo emanavam das fitas cassete. Deão Osborne, hipnotizado, o rosto trêmulo, as contemplava.
Era uma fraude. Tais conceitos não pertenciam a uma administração competente. Mário era um artesão grosseiro, e Deão Osborne queria ser mico de circo se caísse nesses truques. O debate em altos brados acirrara, incomodamente, a imaginação do deão. Mas não surtira efeito. Deão Osborne recobrou o autocontrole e bateu com força a porta de aço.
E as provas foram, assim, engolidas pela escuridão do cofre. As travas cerraram-se. Mário Gilbert deixara de existir.
Cataratas do Gólgota permaneceria ignorada do mundo.
CAPÍTULO TREZE
DAS VERTENTES do Vale do Gólgota um lençol de pancadas de chuva obscurecia a cidade.
As margens de argila deslizavam para dentro do célere e avolumado Siloam que avançava pela terra adentro, causando erosões à subestrutura da igreja.
As chuvas pesadas inundavam os porões, deslocavam ferramentas de ferro e pesadas jarras de vidro, dos tempos de Bernard Lovell. O ferro nu do velho portão da igreja podia ser visto onde a enxurrada lavava o começo da alameda da igreja.
Mário parou no alto do vale, mirando toda a sua extensão com o auxílio de um binóculo, o rosto quase inteiramente coberto pelo capuz da capa amarela de chuva.
As flores e botões pareciam ter sido arrancados das árvores, secos e definhados, retorcidos e sujos; o chão estava apinhado de truta escura, seca, caída dos galhos.
Ao encharcar-se a terra com a água da chuva, ao invadir o Siloam o solo macio e poroso, o cemitério ondulara, e as lápides se encontravam agora tortas para um lado e outro, como dentes quebrados.
Não se via sinal de Anita.
O Oldsmobile do jesuíta desaparecera. Mesmo daquela altura, Mário podia distinguir por onde o carro havia passado como louco pelos arbustos, formando sulcos desordenados pelos campos.
Erguendo-se acima das árvores mortas e touceiras que se curvavam, gemiam, farfalhavam, espalhavam chuva, a estrutura principal da Igreja das Dores Eternas permanecia inviolada. Camadas densas e escuras de fumaça, provindas de fogueiras no vale, enroscavam-se, quais serpentes, ao redor da igreja.
Por todas as plantações do vale, pequenas colunas pardas de fumaça evolavam-se, para depois achatarem-se bruscamente devido ao efeito da chuva e do vento, espalhando-se para os lados, pelos campos, na direção da igreja.
O que teria acontecido? Mário indagou-se, ao abrir caminho entre galhos quebrados, trepadeiras mortas e arbustos espinhosos. Da encosta, a visibilidade era horrível.
Nevoeiro e chuva em turbilhão misturavam-se em rajadas contrárias sobre os alagados e desertos bosques de vidoeiros. Mário guardou os binóculos no bolso da capa de chuva e entrou no Volkswagen.
O furgão rodou os pneus na lama. Manchas marrons sujaram o pára-brisas, o painel e a grade. Placas enormes de lama grudaram-se aos pára-lamas, ao descer para o vale já não havia chuva ou nevoeiro, apenas um dossel de nuvens, baixo e metálico.
A igreja ficava lacrada no âmago de seu vale, escondida dos vales vizinhos.
Mário estacionou o veículo numa curva da estrada, em terreno mais firme.
Saiu andando, e suas botas deixavam impressões fundas na terra. As flores ressequidas, e os íris mortos e escuros espalhavam-se sobre pedras e argila viscosa, como vítimas de um campo de batalha.
— Anita! — Mário gritou, as mãos em concha ao redor da boca.
Tropeçou. A chuva e a terra mole fizeram com que farrapos de roupa feminina e o crucifixo deformado, que foram queimados e enterrados, se apegassem às suas botas.
Tudo o que restara da imagem de Cristo era uma perna e um rosto desfigurado e meio derretido.
— ANITA!
Não houve resposta. As ruas de Cataratas do Gólgota estavam vazias. Apenas os cães farejavam por lá, dorsos arqueados, caudas baixas entre as patas.
Aves mortas, vítimas de um instinto migratório alterado, agora se espalhavam ao redor da base do campanário. Mário puxou uma lanterna de plástico de dentro do bolso da capa, e saiu pisando por cima de ferro retorcido, a caminho da igreja.
Chegando ao vestíbulo úmido, correu a luz da lanterna lentamente pelo interior.
No crepúsculo escuro, cintilando quando atingidas pelo feixe luminoso, havia doze figuras cruciformes nas paredes: a consagração do crisma de Padre Malcolm.
A lamparina do altar luzia em ocre doentio que tremulava debilmente sobre chão e paredes. Mário atravessou a nave e iluminou a lamparina com a lanterna.
Dela pendia uma borra, fazendo-a parecer quase genital.
Pairava no ar o odor de querosene.
Na apside, a bobina do sismógrafo continuava a rodar, muito fraca, embora o papel de há muito já tivesse terminado, e a ponta de tinta ainda continuasse a registrar mais linhas, ainda numa densa e ilegível barafunda negra.
O eco apanhou o nome, alterou-o, e o devolveu reverberando pelas tábuas.
ni-ta... ni-ta...
Era um eco indistinto. Seria a voz de Mário?
— ANITA!
ni-ta... ni-ta...
Uma imitação lúgubre e dolorosa do seu chamado.
Mário passou pelo sismógrafo. O sistema de gravação de som mal se mantinha aceso, com a luz da bateria baixa e hesitante.
A câmara a laser continuava de pé, encostada à parede.
Mofo azul crescia pelos cabos, faiscando à luz da lanterna.
... ni... ta... ni... ta...
E agora um eco, sem som inicial? Ou teria ele chamado novamente? Mário jogou o feixe de luz para o teto. Onde a água da chuva tinha pingado, a borra negra pendia em torrões.
A luz atingiu a termovisão. Uma cruz havia sido desenhada na fina camada de poeira. Uma cruz invertida.
Mário passou pelo chão coberto de lixo até onde se encontrava a termovisão. Suas botas esmigalhavam frutos podres e cacos de vidro. Um suco denso e viscoso escorria dos frutos amassados e cheirava a querosene.
Rapidamente, ele ligou o instrumento. As baterias ainda operavam. As lentes mostraram a arquitetura interna, fria e estável, com a convergência de ventos frios vindos de fora.
Mário apertou o botão "fita", e o vídeo continuou mostrando apenas o mesmo interior escuro e lúgubre. A fita parou na última imagem, tendo rodado até o fim da bobina.
Mário voltou a fita. Uma confusão de figuras variegadas surgiu na tela.
Mário apertou um botão. A fita parou.
Um grito esganiçado fez com que Mário corresse a luz da lanterna rapidamente pelo interior da igreja. Nas toalhas do altar, aparecendo e desaparecendo pelo feixe de luz, camundonguinhos entravam e saíam do tabernáculo. Nesse momento, soou o eco macio, se apagando.
... ita... ita... uta... puta... puta...
Os olhos de Mário se voltaram para a termovisão. A fita estava voltando, muito lentamente, espontaneamente, refletindo diferentes visualizações na tela.
Mário iluminou a tela convexa com a luz da lanterna. A fita continuava em reverso, para um fluxo violento e um piscar vagaroso de marrons.
Mário desligou o flashlight. Na igreja em trevas, as figuras tornaram-se mais nítidas, detalhadamente definidas, inequívocas.
As formas coleantes transformaram-se em imagem: uma forma animalesca e cabeluda, numa cadeira, cabeça inclinada para o lado, e um crucifixo negro entre as patas.
Instantaneamente, Mário apertou o botão prateado congelando a imagem.
— Meu Jesus! — ele murmurou, sentando-se muito devagar, olhos fixos no aparelho.
Mário tocou o vídeo para a frente e para trás. As imagens da besta apareciam apenas em algumas tomadas, com aproximadamente a mesma duração da figura cruciforme.
A besta tinha um ar astuto e sarcástico, e sorria insolentemente.
Mário deixou a igreja abruptamente.
Saiu esbarrando pelas touceiras de espinhos, jogadas contra as fundações da igreja, e arrastou-se até a reitoria.
Viu o saco de dormir de Anita no chão. Rasgado por patinhas afiadas, o estofo flutuava pela cozinha, e fiapos de lona se espalhavam pela mesa, peitoris e cadeiras.
— ANITA! — ele berrou.
Não houve resposta. Apenas o vento enfumaçado. Mário pisou em ramos soltos no limiar da porta e entrou na cozinha como um furacão. O colchão do jesuíta transformara-se num ninho de cobras, enroladas e encolhidas dentro do forro, à procura de calor.
O sensório, usado para aspergir água benta da caldeirinha, estava no chão, quebrado por pés em pânico.
Por todo lado, pratos, toalhas, pacotes de comida, estavam esparramados, como se alguém freneticamente em fuga passasse pela reitoria a fim de ir para o Oldsmobile.
Ao olhar pela janela da cozinha para os sulcos e pedaços de arbustos deixados pelo Oldsmobile, Mário notou os frascos de água benta, de óleo sacramental, e lascas de madeira, espalhados pelo mato e pela lama.
Mário atravessou a reitoria, voltando pela alameda sul da igreja.
Na obscuridade, divisou vultos de fazendeiros arrastando uma coisa para uma das piras fumacentas. Não levou muito tempo até entender de que se tratava: um bezerrinho natimorto, horrivelmente deformado. Com fisionomias rígidas, sem paixão, os fazendeiros levantaram o rnutante, jogando-o na fogueira e observaram enquanto se queimava. Vários dos fazendeiros carregavam espingardas e olhavam para trás, sobre os ombros.
Ao passar pelas janelas da igreja, viu a imagem da besta, iluminada por trás pela tela da termovisão. Devido a um truque de ângulo, o olhar da besta parecia acompanhá-lo.
Mário correu trôpego pela Rua Canaan. Lá também ardia uma fogueirinha. Um cãozinho morto estava sendo carregado pelas patas, rua acima. O taverneiro jogou-o, mãos enluvadas, no fogo. Mário viu, então, o animalzinho à luz da fogueira: não tinha um focinho canino mas uma coisa qualquer, bestial.
Com um cigarro entre os dedos, observando Mário, Anita estava parada à porta do velho salão de bilhar. Mário olhou para ela, atônito.
Anita devolveu-lhe o olhar, com olhos sombrios e vazios, sem vontade ou sem forças para falar.
Mário cruzou a Rua Canaan, passando pela pira ardente.
A chuva gotejava de seus cabelos anelados. As partículas de fumaça haviam deixado manchas escuras no rosto e nas bainhas da capa de chuva.
— O padre foi embora — ela disse devagar.
Mário piscou os olhos, o rosto corado pela luz da fogueira.
— Eu sei que o padre foi embora! — ele gritou zangado.
— O carro dele sumiu! A igreja está uma bagunça! As câmeras estão cobertas de mofo! Que diabos aconteceu?
Os olhos de Anita fitaram-no sem expressão.
Mário estudou-a mais de perto, percebeu o quanto tinha mudado. Todo o idealismo parecia ter desaparecido.
— Anita — ele disse, ainda zangado, mas em tom mais meigo. — Por que deixou o equipamento ficar naquele estado deplorável?
— Porque não há força no mundo que me faça pôr os pés dentro daquela igreja novamente.
Mário, surpreso com a inexpressividade metálica daquela voz, limitou-se a fitá-la.
— Por quê? — perguntou.
O choque de algo inexprimivelmente vil gravado naquele rosto, deixava-o paralisado. Tudo o que fez foi virar-se lentamente e entrar no salão de bilhar.
Mário a acompanhou. O salão estava vazio. Silencioso.
Uma luz vagamente avermelhada, causada pelas várias fogueiras que ardiam na Rua Canaan, filtrava-se pelas janelas. O salão cheirava a umidade, a poeira, e tinha o cheiro das cortinas apodrecidas penduradas nas janelas.
As roupas de Anita e pedaços de cortina formando um colchão, estavam agora no vão da escada que levava às trevas. Sobre a camisa amarrotada que servia de travesseiro estava o revólver preto.
— Fale comigo, Anita — ele pediu com doçura. — O que aconteceu em Cataratas do Gólgota?
Era uma pergunta direta, confusa. Ele sentou-se, atento, na borda de uma das mesas de bilhar, os olhos seguindo cada gesto dela.
— O que houve com a lamparina do altar? O que mudou por aqui?
Anita reclinou-se nos degraus. Por muito tempo, limitou-se a olhar para ele. Naquele breve período de separação, ambos haviam passado por experiências que, neste momento, faziam deles dois estranhos.
Depois, numa voz sem qualquer inflexão, quase infantil, ela contou: — Foi na última noite da vigília. Uma provação terrível.
Ajoelhei-me ao lado dele. Para encorajá-lo. Enquanto ele rezava, a igreja ficou mais quente. Devido à luz vermelha e suave da lamparina. Podíamos vê-la até de olhos fechados.
Parou, olhos esbugalhados, revivendo cada momento hediondo do que se seguira.
— Era madrugada — ela continuou, no mesmo tom inexpressivo e vazio. — Havíamos enfrentado muita coisa juntos. Ele estava passando por uma dor mental torturante.
Anita deixou-se cair vagarosamente sobre uma caixa de madeira, ao lado da antiga máquina de Coca-Cola.
As sombras se adensavam ao redor dos olhos, como que penetrando em seu rosto. Mário puxou um fio e uma pequenina lâmpada elétrica se acendeu sobre a mesa de bilhar. Fez com que o rosto de Anita se mostrasse estranhamente cadavérico.
— Ele entrou em delírio — ela prosseguiu. — Tentei arrancá-lo do transe. Finalmente, ele pareceu convencer-se de que tudo tinha corrido bem. Rezamos juntos.
Anita levantou-se da caixa de Coca-Cola e pôs-se a andar na área em frente às cortinas.
— E daí... não sei o que aconteceu — ela disse, e sua voz embargou-se. — Nossa afeição...
— Afeição!
— ...transformou-se em coisa diferente. Ele tentou fazer amor comigo.
Mário contemplou-a, incrédulo.
— Eamon Malcolm? Meu Jesus, isto confirma tudo. Jesus Cristo!
Mário estava de pé, ao lado da mesa de bilhar, jogando as bolas de cerâmica em todo o comprimento do feltro verde.
— Ele me tocou. Passou a mão embaixo de minha blusa, e nos beijamos.
Mário olhou para ela, e depois, furioso, arremessou um punhado de bolas que se chocaram loucamente umas contra as outras. Virou-se para ela.
— E daí, foderam? — ele perguntou.
Ela não deu resposta. Ele debruçou-se, insultado, sobre a mesa.
— E então? — ele gritou.
— Não. Não fizemos amor.
Mário socou as caçapas. O material podre se desfez.
Várias bolas caíram sobre suas botas. Outras saíram rolando pelo chão até se perderem no escuro. Ele passou as mãos pelos cabelos úmidos e crespos.
Anita chegou-se para perto dele. Curvou-se para a frente. Segurou-o pelos ombros e, lentamente, fê-lo girar para encará-la. Desapareceram o tom metálico e inexpressivo da voz e a concha oca do rosto. Estudava o rosto dele, exigindo atenção, morna e viva novamente.
— Algo saiu dele — ela disse mansamente.
— O quê? Além da virgindade, é claro.
— Como um pássaro. Sem asas. Senti quando o deixava.
— Não entendo o que está dizendo.
Suas mãos esguias e pálidas gentilmente forçaram-no a encará-la.
— O seu próprio ser... seu ego... uma alma... — ela explicou. — Chame como quiser. Saiu dele, e deixou-o vazio.
— Foi aí que a imagem da besta apareceu?
Anita afastou-se.
— Então, você também a viu. Sim! Foi nesse exato momento que a besta invadiu a igreja.
Com um arrepio, Anita recordou o momento. Padre Malcolm abrira a boca, os olhos inundados de terror e, simultaneamente, ela vira a lamparina do altar, fria e apagada. Algo se quebrara dentro dele.
— Mário — ela disse devagar. — Você se lembra dos estudos sobre pessoas agonizantes? Testemunhas presentes no instante em que ocorre a morte frequentemente vêem algo deixar a pessoa morta, algo sem asas, sem forma, mas mesmo assim perceptível.
— Eamon Malcolm continua vivo.
— Não. Em parte, talvez. Mas não por vontade dele.
Mário, ele perdeu a alma!
— E desde quando você acredita em alma?
O sarcasmo perdeu-se. Ela afastou-se de Mário, tão inflexível quanto ele. Apoiou-se na parede mais adiante e com voz distante e fria declarou: — Sua teoria de projeção psíquica está errada, Mário.
O conflito, então, era esse. Não apenas uma hipótese alternativa. Mas sua rejeição de Mário, de sua confiança nos instrumentos, de sua quase desnaturada necessidade de destruir para poder encontrar. A tempestade que vinha se formando há muito tempo explodia agora.
— De que diabos você está falando? — ele perguntou.
Mas Anita recobrara a passividade dos dias em que a conhecera no centro de processamento de dados do departamento de física. Ela era intuitiva. Seu modo de pensar era elegante, buscando para além do empírico, deixando-o frenético. E agora, ela erigia, de maneira firme e definitiva, aquela mesma barreira entre os dois.
— A imagem cruciforme, Mário — ela anunciou nitidamente. — Não era uma projeção. Era uma presença.
Mário sentiu as faces arderem de raiva, de incredulidade. O rompimento entre eles era completo. Muito, muito devagar, ele balançava as pernas, sentado no feltro verde. Continuou desviando o rosto, olhando pela janela para a Rua Canaan. Não queria que ela notasse sua expressão. Pois sentia um abismo de dúvidas abrindo-se à sua frente.
— Aquela imagem bestial — Anita disse, a segurança crescendo. — Não é projeção tampouco.
Era como submergir em terra seca. Mário arremessou um cubo de giz azul contra a parede, em fingida indiferença.
Desde a época em que as rebeliões universitárias tinham fracassado, Mário vinha se agarrando à ciência como um refúgio contra sua imensa insegurança. Sutilmente, passara a apoiar-se em Anita. Cataratas do Gólgota separava-os do mesmo jeito como a madeira boa se desprega da que está morta.
Sem Anita, o que fariam com o projeto? Valeria ainda sua própria vida, seu próprio futuro, um tostão furado que fosse? O pior era a pressão quase física de caos iminente já invadindo seu cérebro.
— O que é então? — ele perguntou, escondendo a mágoa.
— O anticristo.
Mário apanhou outro cubo de giz e jogou-o furiosamente contra a porta. Uma onda de raiva monumental, infantil, apossava-se dele.
— Por quê, Anita? — ele perguntou em voz baixa. — Por que o anticristo? Por que Cataratas do Gólgota? Deve haver milhares de lugares mais importantes do que esta cidadezinha escabrosa.
— São os padres, Mário. A besta se alimenta de padres.
— Nesse caso, ela deve estar bem satisfeita agora — ele concluiu. — Já teve três.
— Não passavam de trampolins. Ela quer mais. Acho que está atrás de caça mais grossa.
Mário mal podia acreditar no que ouvia.
— É essa a sua idéia de ciência, Anita? — ele resmungou, — O anticristo recrutando padres? É nisso que acredita agora?
— É isso o que anima a igreja.
Mário pulou para o chão. Apontou um dedo trêmulo para ela.
— Ouça, eu estava no auditório, com uma platéia de mais de uma centena de pessoas, entre professores e repórteres, quando Eamon Malcolm fez uma projeção sobre todos nós. Cada emoção indecente e doentia que ele sufoca naquela psique que teme a Deus e adora a Cristo. Ninguém chegou a ver nosso slide! Ninguém chegou a ver nossas fitas!
O que saiu foi pura pornografia, Anita fitou-o, chocada.
— Alucinação coletiva — ele gritou. — Corpos nus e um cavalo pisoteando um imbecil qualquer até matá-lo Foi um desastre total!
Mário foi sentar-se novamente sobre a mesa, sentindo-se derrotado.
— Eu me senti como se fosse uma língua — ele acrescentou baixinho. — Uma língua grande, gorda, embotada.
Uma outra pessoa estava tentando falar pela minha boca.
Uma outra pessoa estava nos enviando uma avalanche de pictogramas freudianos. Eu berrava quando me tiraram do auditório, Anita. Agora somos parias em Harvard. O Deão Osborne nos cancelou. Classe, laboratório, projeto. Tudo.
Temos uma semana para devolver o equipamento.
Anita absorveu as notícias com vagar. Deu a volta ao redor da mesa para vir abraçá-lo, mas, envergonhado, ele a repeliu.
— O padre — Mário sugeriu com voz lenta. — É um assassino psíquico. E eu sou o alvo.
— Está enganado, Mário.
Ele a fitou penalizado.
— Anita, aquelas noites todas que ele passou em vigília — disse Mário. — Todas aquelas santas orações e gemidos enquanto desejava o seu traseiro. Foi aí que ele transmitiu para mim — e para toda aquela platéia.
Anita apoiou-se na máquina de Coca-Cola. Era esquisito, mas sentia alívio com o cancelamento do projeto.
— Isso é hipótese — ela argumentou. — O padre é a vítima. Como você. Como eu. Como todo mundo em Cataratas do Gólgota.
Mário andava de um lado para outro, agitado e furioso.
— Aquela figura cruciforme... aquela forma bestial... — insistiu. — São como as imagens que invadiram a minha palestra... figurações oníricas freudianas da própria doença dele...
— Um animal peludo e de chifres? — Anita contra-pôs.
— Sai dessa, Mário! O que poderia representar?
— O tio dele. Sua própria luxúria. Ou o bispo. Ele era extremamente dependente do bispo. Seria uma metáfora malévola do bispo!
— E, por que malévola a tal ponto?
— COMO DEMÔNIOS VOU SABER? O DOENTE É ELE! NÃO EU!
Com o bico da bota chutou para um canto o taco de bilhar, que partiu-se em lascas afiadas, deslocando parafusos enferrujados.
— Quem sabe, estava furioso com o bispo. Você sabe muito bem como é que o inconsciente trabalha. A psique se vinga.
Mário tentou acalmar-se. Várias vezes virou-se para Anita. A cada vez, ela ficava mais firme, teimosa, incrédula, devolvendo cada olhar.
— Convença-se, Anita — ele disse de modo desagradável.
— Você se envolveu demais com Eamon Malcolm.
— Ele estava gritando em agonia. Claro que tentei ajudar.
— Não foi isso o que eu quis dizer.
Ele veio sentar-se perto dela, no canto mais próximo da mesa.
— Ele representava a figura paterna para você — Mário explicou calmamente. — Seu próprio pai morreu num acidente de avião, antes mesmo de você ter atingido a puberdade. Junte a isso os resíduos de culpa por estar vivendo livremente comigo. Precisava de um porto seguro para protegê-la de seus próprios complexos edipianos. É por isso que o acha carismático. É por isso que adotou a mitologia dele.
Anita cruzou os braços e afastou-se.
— Assim fica tão fácil, não é mesmo? — ela disse. — Mais cedo ou mais tarde tudo acaba caindo em sexo.
— Porque é aí que a idealização começa. Tanto para você como para ele.
Ela balançou a cabeça lentamente.
— Não sei o que fez você ficar assim, Mário. Freud tem seu lugar em nossa ciência. Os instrumentos também. Mas Freud e instrumentos podem levar a um beco sem saída, a não ser que se consiga manter as opções flexíveis.
— O padre a seduziu. Se não fodeu seu corpo, pelo menos fodeu suas idéias.
Anita contraiu-se ante a vulgaridade.
— Para se ser um cientista de verdade, Mário, tem-se que ir além da técnica. Tem-se que saber quando ter auto-confiança, quando pular adiante dos instrumentos e apreender os fenômenos através da intuição. E eu sei o que passei, e sei que é real.
Mário a ignorou. Ficou muito nervoso, esfregando as mãos. Anita percebeu que já não estava presente na consciência dele.
— De outro modo, apenas parece ser ciência, Mário — ela continuou. — Mas não é.
Atingido, Mário virou-se para ela.
— O que é, então? — ele indagou.
— Uma espécie qualquer de vingança, fantasiada de ciência.
Por muito tempo ficaram se olhando nos olhos, como se tivessem passado de amantes a inimigos por arte de alguma alquimia desconhecida.
Mário virou a cabeça e foi olhar pela janela para as brasas que se apagavam na Rua Canaan.
— O que pretende fazer? — ela perguntou.
— Consertar os instrumentos. Continuar. Não há mais nada que eu possa fazer.
— Sem o padre?
— Ele vai voltar — Mário murmurou. — Ele tem que voltar. Tenho uma semana de prazo para conseguir uma réplica daquelas fitas.
— Se Deus existe — ela sussurrou de mansinho, — Ele não há de permitir que Eamon Malcolm volte.
Mário apanhou a jaqueta de couro que estava na mesa.
Fitou Anita.
Ela possuía uma das mentes mais analíticas que jamais ele conhecera. E, agora, mergulhava na mitologia de um padre esquizofrênico. Sugestão? Atração física? O que teriam eles em comum? O que, de fato, acontecera na madrugada de sexta-feira?
Por que Anita permanecera em Cataratas do Gólgota, se tinha medo da igreja? Estaria esperando Eamon Malcolm? Mário subiu o zíper da jaqueta.
Ao sair para a Rua Canaan, o vapor, tocado pelo luar, flutuava como dedos translúcidos pelas calçadas, À sua frente, nos penhascos, os lençóis de chuva eram soprados para dentro, irradiando longos e rendados meandros de nevoeiro úmido sobre as lápides.
Mário entrou na igreja. A imagem da besta cintilava vagamente na tela da termovisão, soberana em seus domínios. Ao alto, a lamparina do altar luzia pálida.
Mário limpou dois sensores com uma camurça e os inseriu na lamparina. Ajustou a entrada do sistema de som: sons baixos, sibilantes, em alta frequência, estavam atravessando a igreja.
... ni... ta... ni... ta...
Mário agarrou os fones. Os ecos estavam sendo gravados. E ele já tinha a imagem da besta. Será que convenceria Osborne?
Não. Não convenceria. Quem poderia testemunhar de que jeito Mário conseguira as fitas? Precisava correlacionar a formação das imagens e ecos com violentas alterações físicas e emocionais do padre. A evidência tinha que ser irrefutável.
Sentiu-se invadir por uma onda de depressão. E se o jesuíta não voltasse? Eamon Malcolm jorrava visões de sua própria libido exasperada, contudo Mário Precisava de receptores dérmicos, sensores colocados no cabelo, passando pelas têmporas, termômetros para medir a temperatura do corpo do padre, Tudo tinha que ser correlacionado. Osborne não deixaria por menos.
A situação assemelhava-se vagamente à das agitações no campus. Quanto maiores os riscos, maior a determinação de Mário. Conseguiria aquelas imagens, ainda que destruísse o padre no processo.
E, exatamente como nos dias agitados do campus, o terrível espectro do fracasso total o envolveu.
Que diabos Osborne — ou qualquer outra autoridade — exigia dele? Suas entranhas? Numa bandeja de prata? Aqui.
Pegue. Eis o meu corpo, minha alma, tudo de que sou feito.
Ora, como se podia aceitar uma coisa dessas? Será que manterei o laboratório?
Com raiva, Mário cuspiu no chão.
E se levasse a Osborne a imagem retorcida e crucificada de Cristo? O que diria aquele homem de pedra da Nova Inglaterra? "Ele não faz parte do meu tipo de ciência. Tire-o de minha sala. Crucifique-o novamente!"
Mário gargalhou alto, um riso amargo, lágrimas de fúria nos olhos.
C-crucifique-o... C-crucifique-o... C-crucifique-o...
A blasfêmia foi morrer pelos cantos escuros da igreja.
O sorriso de Mário apagou-se com infinita lentidão.
Ele nada dissera em voz alta.
C-crucifique... C-crucifique... C-crucifique...
O eco propagou-se até o limite extremo da audição humana, um trinitário sibilante, agressivo e firme, como insetos num campo de verão.
Mário retirou os fones e, transfixado, Fitou a imagem da besta que lhe sorria.
O que dissera Anita?
A besta se alimenta de padres.
Uma incerteza terrível apossou-se de Mário. Será que sua teoria não passava de tolice?
Está atrás de caça mais grossa.
Mário pôs-se de pé, em atitude de desafio.
— Que caça mais grossa? — ele gritou alto, com desdém, na defensiva, para a imagem. — Aquele bispo fodido? O Papa Francisco Xavier?
Mário engasgou-se seriamente, mas o terrível frio que invadiu a igreja invadiu a ele também, e roubou-lhe a confiança.
O próprio Jesus Cristo? — Mário berrou.
Cristo.. risto... isto... isto... sto... to... to...
CAPÍTULO QUATORZE
BISPO LYONS encontrava-se sentado em sua cátedra de carvalho, de mitra, a cabeça levemente inclinada, e um longo crucifixo sobre os joelhos.
Sentia-se em pleno déjà vu. Em sua própria antecâmara, via a si mesmo, subitamente, como o personagem de um sonho. As palmas das mãos ficaram úmidas. Uma espécie de luz invisível, uma força poderosa embora imaterial, impulsionava os movimentos de pés e mãos.
Algo que estivera a espreita desde a manhã, e agora fechava o cerco e o observava.
O bispo tentou acalmar-se. De repente, vultos agitados emergiram do corredor.
— Sua Eminência chegou — murmurou um franciscano.
Bispo Lyons ergueu o olhar, ainda pálido.
— Cardeal Bellocchi? O Núncio? — ciciou.
— Nosso comitê foi recebê-lo à porta.
Bispo Lyons suspirou e levantou-se da cátedra entalhada. As perturbações psíquicas haviam cessado.
Esquadrinhou os corredores que fervilhavam de sacerdotes, os secretários jesuítas e os frades franciscanos. As muitas escrivaninhas antigas, com telefones ornamentados, os dossiês encadernados a ouro; e o poder de seu alto ofício devolveu-lhe a confiança.
— Não se sente bem? — perguntou o franciscano, tocando-lhe o cotovelo para guiá-lo.
— Apenas a euforia do momento.
Em seguida, Bispo Lyons liderou o trio de franciscanos pelos corredores enfeitados com arranjos florais, sob ardentes candelabros, até chegarem às maciças portas de carvalho.
O bispo parou. O núncio era, para ele, uma quantidade imponderável.
O nome muito apropriado, Bellocchi era olhos e ouvidos de Sua Santidade, discernindo o caráter dos homens para o conclave de Quebec. O Núncio era um dos velhos combatentes da Cúria Romana, mas também era um apaixonado de Francisco Xavier. E, ultimamente, Francisco Xavier enviava-o em missões bastante estranhas.
Ao alcançar o último degrau de pedra do alpendre, braços estendidos em saudação fraterna, a cintilação dos céus azuis e o brilho das folhas de outono deixaram-no momentaneamente cego. O Núncio, delegado papal para Quebec, que deveria resolver todos os problemas com antecedência, era um homem de baixa estatura, atarracado, resplendente nas vestes púrpura, nos sapatos púrpura, e no solidéu púrpura. A luz do sol de outono explodia sobre a cruz peitoral.
— É uma grande honra recebê-lo em nome de Cristo — Bispo Lyons disse grandiloquente, beijando o anel cardinalício.
— Em nome de Cristo — o Núncio respondeu sorridente.
Vestes flutuando, os dois homens subiram os degraus de pedra para as portas de carvalho mantidas abertas por franciscanos imóveis.
— Foi um vôo ruim? — perguntou o bispo, estendendo a mão, num gesto cortês, convidando o Núncio a entrar na residência episcopal.
— Dormi mal — Cardeal Bellocchi respondeu, examinando os lustres e as vigas de nogueira do teto.
— É mesmo?
— Sonhei que era um soldado — o Núncio disse, os dentes de obturações a ouro à mostra num sorriso, enquanto astutamente estudava o bispo. — Em missão secreta.
— Missão secreta, Vossa Eminência?
— É. E eu não sabia qual era.
O sotaque italiano era melodioso, ligeiramente sofisticado. Bispo Lyons estendeu a mão, mostrando o corredor que levava ao jardim e ao almoço; o Núncio o acompanhou, as vestes farfalhando audivelmente no tapete felpudo.
O Núncio se expressava por indiretas, em sutis metáforas, sondando e medindo o homem à sua frente. Bispo Lyons sentia-se pouco à vontade, por ser ele próprio um homem prático, um homem que mantinha suas contas em dia, com conselheiros obedientes, e um corpo de administradores diocesanos muito bem treinados.
Ao passarem pelas janelas de vidro fume, os padres todos de pé, um grupo de freiras ruborizadas, da equipe da cozinha, uma aura de pompa irradiou-se do Cardeal Bellocchi, transformando a residência episcopal em algo quase palacial.
Flores a toda a volta decoravam o jardim. Enormes fruteiras de cristal com frutas importadas descansavam sobre mesas cobertas de brancas toalhas de linho. Os raios solares deixavam ondas ovaladas de luz pelos cristais da mesa, e sacerdotes em suas batinas negras, movendo-se entre jarras de água e guardanapos, ficaram imóveis quando o cardeal pisou as pedras do Jardim.
— Espero que Vossa Eminência aprecie o nosso modesto almoço — disse Bispo Lyons, indicando a única mesa com apenas duas cadeiras, macias devido às almofadas malva com aplicações.
O Núncio sentou-se devagar, usando as mãos para ajeitar as vestes, a cadeira afastada por um padre.
— Um exército só avança sobre o seu estômago — sentenciou Cardeal Bellocchi, admirando as porcelanas e os cristais dos lugares postos. — Exatamente como o Vaticano.
Bispo Lyons sentou-se à sua frente. As mesas ao redor encheram-se com os assistentes do bispo e os membros da delegação do cardeal, muitos dos quais não falavam inglês e limitavam-se a sorrir para seus anfitriões. A conversa corria amena, entre as flores, enquanto as primeiras das muitas garrafas de vinho esvaziavam-se. O bispo admirou o suave à vontade do comportamento do cardeal. O tipo de funções e jantares formais aos quais o cardeal comparecia causavam inveja ao bispo.
O Núncio estudava o bispo atentamente.
— Como vai o trabalho de Cristo? — Cardeal Bellocchi indagou.
— Creio que nossos registros estão em excelente ordem, Vossa Eminência, e prontos para sua inspeção.
— Isso significa que a diocese é administrada com eficiência.
Bispo Lyons ficou radiante, embora tentasse mostrar-se modesto.
— Como uma máquina bem lubrificada — respondeu. — Se me permite a expressão.
O Núncio bruscamente afundou a colher na sopa de aspargos e depois sugou ruidosamente.
— É isso? — ele perguntou. — Uma máquina bem lubrificada?
Bispo Lyons sentiu uma onda de calor arrastando-se pelo pescoço até atingir o rosto. Notou que a conversa na mesa mais próxima havia cessado. Pânico desarrazoado ameaçava-o.
— Sem dúvida, esse é o dever da administração — o bispo argumentou.
O Núncio resmungou, permitiu que um padre retirasse o prato de sopa, e limpou os lábios no guardanapo de linho.
Pelo jardim, as aves do outono saltitavam, fulgores verdes e azuis de suas plumagens dardejando pelo amarelo seco de folhas e ramos farfalhantes.
Cardeal Bellocchi sorriu.
— Está vendo aquele passarinho de garganta verde? — perguntou, apontando para um carvalho contra um muro do jardim.
Bispo Lyons virou-se com dificuldade, esticando o pescoço, tentando ver.
— Estou vendo, Vossa Eminência.
— Observe como parece atarefado. Tão cheio de ansiedade. Fica pulando como se o Maligno o perseguisse.
O bispo espiou por entre as folhas brilhantes, confuso.
Ao olhar de volta para o Núncio, os olhos escuros do italiano estavam fixos nele. Sem saber por quê, deu-se conta de que já era uma quantidade ponderável para o Núncio.
— Assim também, tem o senhor estado atarefado — Cardeal Bellocchi comentou. — Preparando os seus registros para o meu exame.
O bispo conseguiu sorrir.
— Certamente, não estou sendo observado pelo Maligno — ele replicou.
O Núncio nada disse. O prato principal foi servido, carne em molho de vinho e alcachofras na manteiga. Atrás do Núncio, os italianos entretinham-se, conversando com jesuítas e franciscanos do bispo. Um clarão azulado passou pelas folhas ao alto, duas aves escapando em vôo duplo. O cardeal, divertido, contemplava a cena.
— O senhor já reparou como esses pássaros alçam vôo, quer por alegria ou por uma sensação de perigo? — ele perguntou.
— Frequentemente.
— Às vezes, centenas e centenas de aves, num único instante, até mesmo numa fração de segundo, se levantam como uma nuvem na direção do sol. É como uma explosão.
E, de repente, estão em pleno ar, disciplinados e em formação.
— É uma das maravilhas da natureza — o bispo concordou.
— Como acha que eles se comunicam entre si tão depressa? Como será que o líder expressa sua percepção do perigo? — O Núncio divagou. — Será telepatia?
— Não creio que seja.
Os pratos foram retirados. A temperatura tornara-se fria apesar do sol brilhante.
— Não acredita em telepatia? — o Núncio mostrou-se interessado.
— Não.
— Sua Santidade acredita.
O sorriso do bispo apagou-se instantaneamente.
— Nosso Santo Padre é um grande amante dos pássaros — o Núncio continuou. — Como todos sabem. Desenvolveu teorias sobre o comportamento deles. — Interrompeu-se para tornar um gole de água do copo de cristal. — Claro que, doutrinariamente, não há autoridade para se acreditar na telepatia.
— Nenhuma.
— No entanto, Francisco Xavier já passou por experiências durante o seu sacerdócio.
— Eu não estava a par, Eminência.
— Sua Santidade é siciliano — o Núncio explicou com um sorriso. — Já foi simplesmente o camponês Baldini. E, na Sicília, a fé é como uma brisa quente soprando pelas plantações de uvas. Nela, os homens vivem, movem-se diante dela, cada dia de suas vidas.
— Mas, evidentemente...
— Para tais homens a Segunda Encarnação de Cristo não é um conto de fadas — Caldeal Bellocchi interrompeu. Eles ficam atentos, Procuram os sinais.
Fez-se o lapso de um longo silêncio.
— Esses homens agem em fé apaixonada — o cardeal prosseguiu. — Esses homens são alvos vulneráveis.
— Alvos? — o bispo perguntou. — Para quem?
Os olhos sombrios do Cardeal Bellocchi tornaram-se mais sombrios.
— Para os velhos inimigos — esclareceu. E levantou-se.
Instantaneamente, as duas delegações puseram-se de pé. O bispo levou Cardeal Bellocchi de volta aos aconchegantes corredores forrados de madeira, onde as clarabóias no teto lançavam retângulos de luminosidade a seus pés. Muito ao longe, o bispo podia ouvir a sua equipe preparando o salão de conferências, arrumando os dossiês em seus lugares, enchendo copos de água, e ajeitando as poltronas ao redor da mesa longa.
— O Vaticano se prepara — o Núncio confidenciou.
— Prepara-se?
— Para um Concílio Ecumênico. Sobre o assunto da Segunda Encarnação.
O choque do bispo foi tamanho que quase estacou. O cardeal passou a mão pela dobra do cotovelo do prelado mantendo o passo firme.
Que esse homem, que aplainava as dificuldades, lhe confiasse um dos grandes segredos do Vaticano, deixou a mente do bispo em torvelinho. Seria o Núncio um adversário de Francisco Xavier? Teria ele percebido no Bispo de Boston um aliado pragmático?
— Se, ao menos, eu pudesse lhe contar — Cardeal Bellocchi sussurrou. — O que tem acontecido dentro do Vaticano nestas últimas semanas.
Bispo Lyons, ainda atordoado com as novidades, limitou-se a menear a cabeça. Uma vez aberto um Concílio Ecumênico, não haveria como controlar — quer doutrinária quer estruturalmente — o curso dos acontecimentos.
— Será isso aconselhável? — o bispo gaguejou. Mesmo politicamente? Ele tem muito apoio?
— Todo o apoio de que precisa — Cardeal Bellocchi respondeu em tom de seco azedume. — Do Espírito Santo.
Batalhas políticas iminentes vieram à mente do bispo.
Todas as conexões com bispos e cardeais norte-americanos revolviam-se em seus cálculos.
Voltou a sensação de déjà vu.
Bispo Lyons tornou-se visivelmente pálido, sentindo-se como uma vaga e etérea figura num sonho poderoso. Os franciscanos, espalhados pelos corredores, notaram o rosto sem cor, os olhos assustados e irrequietos. O bispo tropeçou.
E, repentinamente, o déjà vu, a desorientação tornaram-se palpáveis, quando um vulto saltou de um escuro corredor lateral.
Bispo Lyons girou, atônito, quando a figura de um padre colidiu com a comitiva e veio arrojar-se, de joelhos, agarrando-se às purpúreas do Cardeal Bellocchi.
Esse, gaguejando, confuso, tentou levantar o desorientado sacerdote. Mas Padre Malcolm encolheu-se ainda mais, enterrando o rosto na bainha púrpura das vestes, tentando encontrar refúgio entre santos clérigos.
— Em nome de Cristo, dêem-me proteção! — Padre Malcolm exclamou.
— Mas, meu filho, é claro...
— A igreja... a minha igreja... foi conspurcada pelo meu corpo!
Sem compreender, Cardeal Bellocchi pousou o dedo do anel cardinalício na face do jesuíta, onde ondas de febre e de frio se alternavam.
— Cristo foi derrotado — Padre Malcolm gritou para o cardeal. — Por meu intermédio!
Cardeal Bellocchi empalideceu, mas não cedeu terreno.
Vários franciscanos se persignaram. O tumulto era tão evidente, que três jesuítas se adiantaram para levar embora aquele lunático, encontrando, porém, a resistência dos franciscanos.
— Isso não é possível! — exclamou alto um jovem franciscano, tomado de furor.
— A lamparina acesa por Jesus Cristo queima em corrupção! — Padre Malcolm retorquiu, levantando-se e vendo-se tolhido por batinas e braços protetores.
— A imagem do bode domina a igreja e zomba de todos nós! — Padre Malcolm gritou.
A mão irada de Bispo Lyons fez Padre Malcolm girar nos calcanhares.
— Que imagem é essa? — exigiu saber, as veias do rosto intumescidas de raiva.
Padre Malcolm fitou o bispo numa estranha confusão de fúria indomada e súplica inútil.
— A imagem daquele que reina na igreja! Por sua causal Eu pedi socorro! E o senhor negou-o!
Bispo Lyons, paralisado pelo insulto, tornou-se rubro, aproximou-se de Malcolm e sussurrou: — Tem ao menos noção de onde está, Eamon Malcolm?
— ele irritou-se. — Sabe que este é o Cardeal Bellocchi, o Núncio Papal?
Padre Malcolm, num gesto de desafio, libertou-se das mãos do bispo. E apontou-lhe um dedo acusador.
— A stigmata do anticristo! — disse ele com horrorizada convicção — floresce na igreja que o senhor ignorou!
Bispo Lyons, levado à perplexidade pela veemência da denúncia, sentindo-se humilhado na presença do cardeal, fez, então, uma coisa muito estranha. Espiou por um corredor escuro, virou depois o pescoço e espiou para o outro lado, como se temesse estar sendo secretamente observado.
Cardeal Bellocchi colocou-se firmemente à frente de Padre Malcolm e levantou alto a sua própria cintilante cruz peitoral.
— Quero sua afirmação de que Jesus Cristo é o verdadeiro Filho de Deus, e que Francisco Xavier é o Seu vigário na Terra.
Padre Malcolm afastou-se, indo cair de novo nos braços que o cingiram.
— Não posso afirmar — murmurou debilmente. — Ele roubou minha alma.
— E, contudo, veio procurar refúgio entre homens santos — argumentou o cardeal.
— A fim de prevenir a todos — Padre Malcolm explicou, levantando-se. — Cristo foi expulso de Cataratas do Gólgota!
Vários franciscanos levaram as mãos aos ouvidos para não escutar a blasfêmia.
— Afirmei — Cardeal Bellocchi ordenou, trazendo o crucifixo para bem perto do rosto de Padre Malcolm.
— Eu o afirmo — o jesuíta disse com voz rouca, dominado e mesmerizado pela escultura dourada e cintilante de Cristo em Sua agonia.
— Beije-a em sinal de obediência — Cardeal Bellocchi disse.
Os franciscanos empurraram Padre Malcolm de encontro à cruz esculpida pendente da corrente de ouro. Padre Malcolm pareceu virar levemente a cabeça, depois, devagar, pousou os lábios franzidos no ouro frio. Lágrimas rolaram, livremente, abruptamente, por suas faces.
— Venho fugindo de Satanás — ele disse chorando — desde a madrugada.
— Que Cristo seja o seu refúgio.
Desnorteado, Padre Malcolm viu-se fitando rostos chocados e curiosos. Depois, em passos trôpegos, atravessou corredores, passando por arranjos florais eia-nelas de vidro fumê. Ainda que seus pés pudessem se movimentar, dois franciscanos o escoltavam, preso aos braços, para as entranhas da residência episcopal. No limiar da capela do bispo, entre perfume de incenso e o suave fulgor das lamparinas perto do confessionário, ele desfaleceu nos braços dos franciscanos.
No corredor, Cardeal Bellocchi, profundamente perplexo, aproximou-se do bispo.
— Onde fica essa igreja? — o cardeal quis saber.
— Ao norte, na cidadezinha de Cataratas do Gólgota.
Parou de funcionar há muitos anos, pela escassez de paroquianos, e...
— E... — os olhos do Cardeal Bellocchi se apertaram.
— E a terrível tragédia que se abateu sobre o primeiro padre, Bernard Lovell.
— Vou querer saber de todos os detalhes dessa tragédia — o Núncio declarou.
— Pois não, Vossa Eminência. Os arquivos estão todos guardados.
Cardeal Bellocchi contemplou tristemente o corredor, seu olhar seguindo o caminho percorrido pelo jesuíta.
— Que rapaz excelente — o Núncio comentou. — Por que o enviou sozinho para o perigo?
— Ele parecia tão forte — desculpou-se o bispo. — Tinha uma fé tão apaixonada.
O cardeal fuzilou o bispo com o olhar.
— Claro! — disse furioso. — Homens assim são os alvos mais vulneráveis.
Bispo Lyons engoliu em seco, com a exprobação do cardeal.
— Fecharei a igreja imediatamente — prometeu. — E o jesuíta confessará e será absolvido. Na verdade, já o tenho sob guarda, para sua própria segurança, no seminário.
O Núncio contemplou o bispo com profunda decepção.
— A sua máquina bem lubrificada — disse severamente.
— Era apenas sua fantasia!
Depois da conferência, na qual se preparou a agenda para a visita pastoral a Quebec na semana seguinte, o Núncio partiu para uma reunião de católicos leigos em Baltimore. Bispo Lyons ficou com a impressão de ter-se tornado simultaneamente aliado político do cardeal e seu inimigo espiritual.
Perturbado, o bispo foi até a capela. Ali, foi informado de que o jesuíta caíra desacordado antes de confessar-se, e que fora levado para o dormitório do seminário, onde adormecera.
*
Naquela noite, Bispo Lyons jantou sozinho, servido por um camareiro silencioso.
Os arquivos da diocese eram defesos a qualquer pessoa exceto a autoridade episcopal e diversos secretários da equipe. Nos grandes armários de metal verde, e nas caixas de madeira, encontravam-se guardados todos os editos e toda a correspondência, desde 1745. Os arquivos ficavam numa longa sala, com correntes de ar, estendendo-se no subsolo da residência, iluminada agora por lâmpadas elétricas, como uma morgue. Naqueles arquivos, Bispo Lyons havia, certa vez, procurado e encontrado o dossiê de Bernard K. Lovell, o padre psicopata.
Lovell era aleijado, filho de um fabricante de barris, menino desajeitado e de poucos estudos, que não chegara a se distinguir por suas ambições intelectuais. Sua correspondência revelava uma personalidade medíocre alimentada mais pela amargura do que pelo amor ou pelo senso de dever.
Os arquivos não conseguiram camuflar a abjeta cumplicidade da diocese. O desafortunado Lovell fora abandonado à própria morte em pecado, e a Igreja das Dores Eternas, em Cataratas do Gólgota, abandonada à própria ruína, até que mesmo os lançamentos contábeis tornaram-se escassos.
Por quê? Porque nas dioceses da Igreja Católica havia centenas, senão milhares, de igrejas abandonadas. Sem supervisão e sem recursos, tornavam-se campos férteis para a delusão e a blasfêmia. Era onde os sacerdotes crédulos criavam imagens de seu próprio desespero e de sua própria culpa, impregnando os paroquianos ou, em última análise, impregnando suas próprias consciências assustadas.
Cataratas do Gólgota não era exceção, pensou o bispo.
Só que Bernard Lovell, em sua última carta coerente, havia usado a mesma frase de Eamon Malcolm: Cristo foi derrotado em Cataratas do Gólgota.
Eclesiasticamente, era uma impossibilidade.
Bispo Lyons tirou um fiapo de carne de frango no interstício dos dentes. Os arquivos, de fato, reportavam diversas ocorrências estranhas nas paróquias, em fevereiro de 1914. Alguns casos de histeria. Sinais duvidosos do Segundo Advento. Muito parecidos com os que Eamon Malcolm relatara.
O caso de James Farrell Malcolm não tinha sentido algum. Um grisalho estudioso da Renascença, com laços de sangue, pelo lado materno, com diversos juízes e advogados bem-sucedidos, o velho era um favorito nos meios literários de Boston. Seus bons mots eram amplamente divulgados e seus conhecimentos da obra de Ticiano tornaram-no membro do conselho do Museu de Artes de Boston.
A memória privilegiada do bispo fê-lo lembrar-se da última carta recebida de James Farrell Malcolm: Irei sozinho para a Igreja das Dores Eternas exceto pela companhia Daquele que está sempre comigo, e lá, em orações e vigílias noturnas pelo poder Daquele que é a fonte de todas as nossas esperanças de Ressurreição, desmentirei aquele que proclamou que Cristo foi derrotado em Cataratas do Gólgota.
Eis a armadilha. O julgamento da fé. A tentação de padres ordenados. Inclusive do Papa, Francisco Xavier. De que outra maneira explicar as famosas vigílias de Francisco Xavier pelas cavernas da Sicília?
Contudo, para cada santo que emergia, confirmado em sua fé, centenas de destroços humanos, como Eamon Malcolm, espalhavam-se em terror e confusão.
Qual fora a ambígua mensagem do Cardeal Bellocchi?
Que, espiritualmente, tinham o dever de alimentar a predileção de Sua Santidade pelo místico, mas que, politicamente, tinham a obrigação de protegê-lo e mesmo resistir-lhe?
Satisfeito, o bispo pensou ter, finalmente, decifrado a mensagem.
— Traga-me material para escrever — disse ao camareiro. — Vou preparar dois editos esta noite.
Surpreso, o camareiro colocou mata-borrão, canetas, e papel timbrado na escrivaninha antiga do aposento.
Duas instruções seriam enviadas imediatamente, mesmo a hora tão tardia, para o conselho administrativo da diocese: a Igreja das Dores Eternas devia ser afastada da Igreja Católica viva, de forma que nenhum outro sacerdote lá servisse.
— Já perdemos três padres naquele ninho de serpentes — ele murmurou.
A segunda instrução era mais detalhada, vazada em termos menos exaltados: A Igreja das Dores Eternas, considerada propriedade não consagrada, deveria ser posta à venda no mercado de imóveis.
Muito feliz com seus editos, Bispo Lyons devotou-se ao banho noturno, afundando na banheira de água fumegante, a espuma sobre seu corpo chegando à beira da porcelana. Os azulejos e os encanamentos de cobre nas paredes pingavam vapor. O gelo se juntava nas janelas escuras, tomando formas atraentes.
— Veja se o jesuíta já aprontou sua confissão — o bispo instruiu o camareiro.
A Igreja das Dores Eternas renderia pouco, calculou o bispo. O mercado estava em baixa. Quem sabe, um grupo itinerante de teatro achasse o lugar aprazível.
De súbito, o prelado teve a intuição de que o melhor seria derrubar a igreja, e a propriedade ser vendida apenas pelo valor da área. A intuição transformou-se em convicção, e ele levantou-se da banheira a fim de alterar as instruções de venda.
Envolvendo-se no roupão vermelho, sentiu que o déjà vu voltava. O caso de Eamon Malcolm fora uma agressão às suas suscetibilidades, chegando quase ao ponto de destruir sua reputação perante o Núncio, e que agora lhe provocava um estranho zumbido nos ouvidos.
Violentos calafrios percorreram seu corpo. Ele baixou o olhar para os editos, preparados com tanto cuidado. Seus olhos se esbugalharam e um som de profundo terror escapou de dentro dele. A caligrafia dos editos era a sua própria, mas as palavras proclamavam agora uma espécie de poesia repugnante e abjeta em louvor às práticas animais.
Bispo Lyons fitou as janelas escuras. A cabeça peluda de um bode sorria e, lenta, muito lentamente, uma substância feito sangue se desprendeu da cabeça e escorreu pelas feições hirsutas.
— D-D-D-D-Deus! — o bispo clamou.
Sufocou-se, suas costas arquearam-se, e subitamente, na base e no topo da cabeça, sentiu os vasos sanguíneos cegando-o com uma dor branca, enquanto o sangue, libertado, jorrava por seu cérebro com pressão paralisante.
Bispo Lyons contorcia-se no chão, os calcanhares enterrados no tapete.
Agulhas de gelo, sádicas e afiadas, penetraram em suas funções respiratórias. Luzes faiscavam na janela coberta de gelo. O bispo apoiou-se num cotovelo.
Receba o sacramento, escravo de Deus!, ele ouviu no eco ressonante de seu próprio crânio avariado.
O camareiro entrou correndo, horrorizado.
Compreendeu de imediato que tratava-se de um derrame, embora como nenhum outro que tivesse presenciado. Colou o ouvido à boca do bispo. Daquela garganta torturada e angustiada, saiu o berro de um animal obsceno.
— Bahhhhh — o bispo baliu. — Baa-ahhhhh!
CAPÍTULO QUINZE
O DOENTIO gelo descorado, iluminado pelo luar, luzia para dentro do dormitório do seminário da catedral.
Sombras do vulto sentado à janela se alongavam. Fazia frio quando Padre Malcolm recobrou a consciência. Ao apoiar-se num cotovelo, a sombra se mexeu.
— Onde estou? — Padre Malcolm perguntou, rouco.
— No dormitório do palácio episcopal — respondeu uma voz suave. — O senhor desmaiou antes que pudesse fazer sua confissão.
Padre Malcolm sentou-se na beira da cama inferior de um beliche. Vários outros beliches se alinhavam ao longo das paredes. Aos fundos do dormitório havia um fogãozinho minúsculo e sobre ele um crucifixo.
— Será que eu poderia tomar alguma coisa? — Padre Malcolm pediu, friccionando o pescoço.
O vulto à janela, um franciscano, dirigiu-se ao fogãozinho e pôs água para ferver.
A lua cheia pendia imóvel quando as nuvens passavam.
Padre Malcolm encostou-se na coluna do beliche.
— Que horas são? — perguntou.
— Duas da madrugada — respondeu-lhe o franciscano, trazendo-lhe chá.
A xícara fumegante estava embaixo de seu nariz. Ao erguer o olhar notou a solícita curiosidade do franciscano.
Padre Malcolm agradeceu com um gesto da cabeça, pegou a xícara com as duas mãos e tomou um gole. O líquido desceu queimando, mas deixou-o mais desperto.
O franciscano trouxe sua cadeira para mais perto, o rosto iluminado pelo raio de luar que passava pela vidraça enregelada. Seus olhos castanhos ainda se fixavam em Padre Malcolm com extrema curiosidade.
— O que é que a gente sente? — ele murmurou. — Ao perder a alma?
Padre Malcolm sentiu-se invadido pela friagem da noite.
Tomou mais chá. Depois, ainda segurando a xícara com as duas mãos, fitou o luar oblíquo sobre o assoalho de tábuas.
— É como viver num vácuo — Padre Malcolm explicou com amargura. — E não se tem arbítrio.
— Nenhum arbítrio?
Padre Malcolm balançou a cabeça.
— Tornamo-nos escravos do primeiro que aparecer.
Sentimos medo. Queremos fugir. Suplicamos pela presença de Cristo. Mas não existe Cristo. Não lá dentro. Não mais.
Padre Malcolm recordou a vigília na Igreja das Dores Eternas. Primeiro, tinha havido a premonição, depois o reconhecimento. Afastara-se de Anita e da vileza de sua própria vaidade e de sua confusão. Vira a lamparina do altar, morta e fria. Naquela fração de segundo, havia clamado, não por Cristo, mas pelo bispo, e com raiva. Mas, nem bispo, nem Cristo, haviam-no impedido de correr para o ar frio da manhã, uma concha oca, uma marionete, fugindo do novo Dono.
Padre Malcolm enterrou o rosto nas palmas das mãos.
Da primeira vez, durante o exorcismo, quando se sentira sucumbir em meio à febre e à alucinação, havia clamado, natural e impulsivamente, com todas as suas forças, por Cristo. Quase como uma tensão e distensão do corpo. Mas, depois da vigília, tinha amaldiçoado o bispo, a figura paterna que o rejeitara.
Sentindo-se conspurcado, Padre Malcolm gemeu.
O franciscano puxou-lhe a manga.
— O senhor chegou a vê-lo? — indagou ansioso.
— Quem?
— Aquele que se opõe a Nosso Senhor Jesus Cristo.
Padre Malcolm levou a xícara aos lábios, embora o chá já estivesse acabado. Sentia-se faminto. Com fome de calor, com fome de qualquer coisa que, pelo menos, parecesse normal.
— Vi seu rosto em cada homem que encontrei — Padre Malcolm disse, arrepiado. — E em cada cidade pela qual passei.
O franciscano, fascinado, inclinou-se para ele.
Qual era a aparência dele, padre? — o franciscano perguntou, trêmulo de nervosismo.
— Exatamente como você ou eu.
O franciscano encarou-o.
— Explique isso, por favor.
— Em cada rosto vi o mal da ganância, da ambição, da hipocrisia. Vi as cidades cheias daqueles que servem o mal.
No fundo dos olhos de pessoas completamente estranhas eu sabia quem era que me olhava e sorria.
— Mas o senhor fugiu dele -- o franciscano argumentou.
— Está a salvo aqui.
— Estou mesmo?
O franciscano franziu a testa, depois sorriu suavemente, inclinou-se para a frente, e deu um tapinha íntimo e sem-cerimônia no joelho de Padre Malcolm.
— Ouça, quando entrou correndo no palácio e deparou com o bispo, não reconheceu a aura de santidade?
— Ao contrário, percebi duplicidade e um coração de pedra.
O franciscano, embaraçado, afastou-se.
— E o que achou do Cardeal Bellocchi? — perguntou irritado.
— Eu estava tão desorientado, Irmão. Nem me lembro direito.
— Mas, sem dúvida, formou alguma opinião.
— Um bom homem. Um homem duro, mas Jesus mora nele.
O franciscano descontraiu-se. Padre Malcolm estremeceu violentamente, e puxou um cobertor escuro e grosso para os ombros.
— Seja como for — ele disse baixinho, — o bispo já recebeu o que merecia.
O franciscano olhou para ele, sem compreender.
— O que quer dizer, Padre Malcolm?
Padre Malcolm devolveu-lhe o olhar, sentindo-se confuso.
— Mas, não é óbvio? — ele perguntou. — O pobre homem está às portas da morte.
— Pelo que sei, Bispo Lyons goza de excelente saúde.
Para falar a verdade, há apenas poucas horas, mandou que o camareiro viesse pedir notícias suas.
Padre Malcolm friccionou a testa. Desnorteado, agarrou-se à coluna do beliche, em busca de amparo.
— Não sei o que me deu para dizer aquilo — confessou.
— As idéias surgem, de vez em quando. Não sei de onde.
— Ora, o senhor estava zangado com o bispo — deduziu o franciscano.
Padre Malcolm fechou os olhos.
— Estava, sim. Confesso. Ele me deixou sofrer tudo sozinho.
— Precisa confessar suas iras, Padre Malcolm — o franciscano aconselhou num tom de voz mais seco e mais positivo. — Suas iras e todas as suas experiências da semana passada.
— Por quê?
O franciscano já estava arrastando uma velha mesinha-de-cabeceira pelo chão. Quando a ajeitou, diante de Padre Malcolm, abriu as gavetas e de lá tirou material de escrever: vidro de tinta, caneta-tinteiro, mata-borrão verde, e um lindo papel bege timbrado.
— O que é isso aí? — Padre Malcolm perguntou, encolhendo-se.
— O Cardeal Bellocchi deu instruções para que haja uma confissão completa.
— Pensei que o Cardeal Bellocchi já tinha ido embora.
— Ele vai ficar em Baltimore até amanhã de manhã. Sua confissão será entregue a ele em mãos.
— Mas, por quê?
— Porque, como o senhor muito bem observou, Jesus mora nele.
Padre Malcolm umedeceu os lábios machucados. O papel timbrado parecia fulgir nos longos raios branco-dourados de luar. A caneta brilhava. Arrumou o cobertor sobre os ombros.
— É contra os regulamentos — Padre Malcolm protestou.
— Ao contrário — contraveio o franciscano. — Será levada por Sua Eminência diretamente para a Sagrada Penitência Apostólica, no Vaticano.
Padre Malcolm, chocado, levantou o olhar.
— Para Roma? Quando?
— Amanhã, bem tarde. E o tribunal santo, usando de sua competência, adjudicará sua penitência.
O coração de Padre Malcolm disparou. Apesar da friagem no dormitório mal aquecido, gotas de suor pore-jaram sua fronte.
— Minha penitência? — ele sussurrou devagar.
— Oremos para que não seja pesada — disse o franciscano em tom encorajador. — Mas, lhe trará a absolvição.
Um longo silêncio reinou no dormitório. Vagos e distantes ruídos de panelas e frigideiras, vindos da cozinha pelos corredores, chegavam-lhe junto com o leve odor de repolho e sabão.
Padre Malcolm inclinou-se bruscamente derrubando o tinteiro.
No mesmo instante, o franciscano acorreu e enxugou o papel timbrado. Da gaveta tirou outro maço de papel impecável. Encheu a caneta-tinteiro, fez um teste com a pena, e a entregou a Padre Malcolm.
— Escreva sua confissão de coração contrito, Padre Malcolm.
Desnorteado, Padre Malcolm sentiu entre os dedos o peso da caneta. Roma. Encheu-se de coragem.
Padre Malcolm começou: Na busca de me aperfeiçoar e a fim de devolver a Nosso Senhor Jesus Cristo uma igreja profanada, eu, Padre Eamon James Malcolm, da Companhia de Jesus, na arquidiocese de Boston, Massachusetts, viajei sozinho para a Igreja das Dores Eternas, em Cataratas do Gólgota.
Padre Malcolm sentia os dentes batendo. O franciscano colocou um aquecedor elétrico portátil sobre os joelhos. A confissão, uma vez começada, desenvolveu-se num impulso espontâneo.
Talvez levasse horas. Padre Malcolm olhou pra cima. O franciscano possuía infinita paciência. Far-lhe-ia companhia durante a noite toda, se fosse preciso.
Foi quando Padre Malcolm sentiu a impressão inequívoca de que o franciscano estava ali mais para mantê-lo prisioneiro do que para protegê-lo do mundo exterior.
A culpa do fracasso subiu-lhe à garganta como bile escura.
O papel timbrado brilhava, embora a luz já não fugisse na moldura da janela. Padre Malcolm releu seu manuscrito.
Na busca de meu aviltamento e a fim de tirar de Nosso Senhor Cristo uma igreja abandonada, eu, Padre Eamon James Malcolm, da Companhia de Jesus, na arquidiocese de Boston, Massachusetts, viajei sozinho para a Igreja das Dores Eternas, em Cataratas do Gólgota.
Padre Malcolm deixou cair a caneta.
— Estou me sentindo mal — disse quase sem voz.
Tentou levantar-se, mas a mão vigorosa do franciscano adiantou-se para mantê-lo sentado.
— Continue, padre. E não omita coisa alguma. Padre Malcolm estendeu a folha de papel, trêmulo, para o franciscano nas sombras.
— Eu lhe imploro — ele murmurou —, leia.
— Não é permitido. É estritamente confidencial.
Ninguém deve lê-la até que chegue ao Vaticano.
— Mas, em nome de Deus... eu lhe suplico.
— Continue, padre — ele admoestou, severo. — Ainda que pareça doloroso. O tribunal cuidará de interpretá-la.
A mão vacilante de Padre Malcolm flutuou sobre o papel. Prosseguiu, tomado de medo, os olhos fixos na sua própria mão que se movia.
Pela Autoridade do bispo, de acordo com os cânones e códices dos ritos da Igreja, exorcizei com sucesso a Igreja das Dores Eternas, devolvendo-a a Cristo.
Padre Malcolm desabou, olhos fechados, contra a coluna do beliche. O esforço de pensar com coerência deixava-o estraçalhado. Bloqueios surgiam em toda volta.
Hesitante, de um ângulo oblíquo, Padre Malcolm apertou os olhos para enxergar a mesa.
Pela autoridade do Maligno, parodiando os cânones e códices dos ritos da Igreja, exorcizei com sucesso a Igreja das Dores Eternas, expulsando Jesus Cristo.
Uma exclamação violenta e amarga escapou dos lábios ensanguentados de Eamon Malcolm.
— Leia isto! — ele gritou, agitando a folha. Mas o franciscano simplesmente recolocou a folha e a mão do jesuíta sobre a mesa, examinando o rosto pálido do Padre Malcolm.
— Prossiga com sua confissão completa — ordenou o franciscano lentamente. E acrescentou: — Padre.
E fui recompensado com o duplo sinal de Sua Santa presença: pela lamparina do altar que se acendeu milagrosamente, sem o auxílio de mão humana, e pela milagrosa imagem de Seu Santo martírio na cruz ao lado do altar.
A única coisa que Padre Malcolm sentia era um arrepio frio pelos membros enquanto escrevia. Seu intelecto percebia nitidamente a formação de letras, palavras e sinais de pontuação. Seus sentidos, porém, estavam presos numa teia negra. Pois, o que pensava e escrevia de fato não parecia consistente com o que lia na folha de papel.
A desorientação era desmedida: o que era real, o que escrevia ou o que pensava estar lendo?
Pior ainda: o irmão ordenado de Cristo não tinha, de forma alguma, de quem valer-se.
Uma risada gutural e entrecortada, de desesperado temor e desamparo, saiu de seus lábios, ao ler: E fui recompensado com o duplo sinal de sua presença: pela obscena paródia da lamparina do altar, que se acendeu, sem o auxílio de mão humana, e pela sádica pornografia da morte excruciante de Cristo na cruz ao lado do altar.
Prosseguiu com a confissão. Sete laudas foram preenchidas. Exausto, ele acenou que havia terminado. No mesmo instante, o franciscano lacrou as sete laudas dentro de um pesado envelope.
— Ótimo. O bispo vai ficar contente — comentou o franciscano.
— Será? — Padre Malcolm perguntou confuso. — Pode ser, se ele se recuperar.
O franciscano franziu o cenho.
— Já é a segunda vez que o senhor diz isso.
— Isso o quê?
O franciscano tocou uma campainha. Em pouco, ouviram-se passadas farfalhantes pelo corredor.
O franciscano abriu o trinco e destrancou a porta.
— Pode me fazer o favor de ir verificar como está a saúde do Sr. Bispo? — ele ciciou pela fresta iluminada do corredor.
— A esta hora? — veio a resposta surpreendida.
— O mais rápido possível, Irmão.
Padre Malcolm viu a porta fechar-se. Terror e ansiedade tomaram conta dele. À sua frente, na mesa, o franciscano imprimia um exemplar do selo episcopal no lacre vermelho do envelope.
Era como se o envelope se carregasse de vida própria.
Padre Malcolm deixou-se cair, exausto.
— Sinto-me como se essa confissão tivesse sido escrita pelo próprio inventor do pecado.
— Não diga. Muitas vezes é o que parece.
Padre Malcolm sentiu um líquido quente nos lábios. Ao limpar o sangue, no escuro, percebia que o franciscano o observava atentamente.
— Posso ir me lavar no toalete? — perguntou debilmente.
— Sem dúvida.
O franciscano abriu a porta. Padre Malcolm saiu para o corredor de azulejos. Muito longe dali, outros corredores levavam à saída do seminário. O franciscano puxou-o para a direção oposta. Um padre de batina preta, simples, cabeceava no sono, sentado numa cadeira posta contra a parede. Padre Malcolm recordou que os corredores do seu seminário não eram assim tão bem vigiados. O padre acordou de supetão, com um sorriso encabulado. Meneou a cabeça para o franciscano.
Padre Malcolm entrou no lavatório. Os ladrilhos brilhantes do toalete refletiam fulgentemente as lâmpadas fluorescentes do teto. Enquanto banhava o rosto na água fresca da pia de porcelana, o padre e o franciscano montavam guarda à porta.
— A madrugada já vai chegar — disse o padre.
— É mesmo? — Padre Malcolm retorquiu. — Perdi a noção do tempo.
— Logo será a hora das matinas.
Padre Malcolm enxugou-se na toalha áspera, sem ter compreendido.
— Gostaríamos que o senhor dirigisse o ofício, Padre Malcolm — disse o padre, enquanto estudava cuidadosamente o jesuíta.
— Ahn?
— Não está contente?
Padre Malcolm engoliu em seco. Depois friccionou as mãos vigorosamente.
— Seria uma honra.
— E, quem sabe, um pouco como a volta ao lar — ajuntou o franciscano com compaixão.
Padre Malcolm virou-se para os espelhos. Intensamente constrangido, tentou estancar o sangue que brotava em seus lábios. O padre e o franciscano observavam-no atentamente.
Então, para seu horror, Padre Malcolm viu em seu próprio reflexo o Rosto do qual viera fugindo o dia inteiro.
Uma centelha ardente e triunfante em seus próprios olhos.
Naquele breve lançar de olhos, percebeu toda a sua duplicidade, vaidade, luxúria e ira.
Ante aquela imagem de heresia, Padre Malcolm curvou-se, estremeceu e rompeu em profundos soluços.
Comovidos, padre e franciscano acorreram.
— Eu fui feito um vaso do Senhor! — Padre Malcolm soluçava em sua degradação. — Renunciei à vida a não ser como um prolongamento de Sua graça! Desabrochei! Vivia em "êxtase” E Cristo — a doce paz de Seu suave amor — estava em minhas mãos e habitava em meu coração! Padre Malcolm secou as lágrimas na toalha áspera. — E, agora, Cristo me abandona! Sinto-me impuro! Melhor seria que eu nunca tivesse nascido.
Tanto o padre como o franciscano pousaram mãos gentis sobre o irmão decaído, enquanto seus lábios murmuravam orações.
De súbito, Padre Malcolm sentiu uma ansiedade enorme e inexplicável. Desvencilhou-se e virou-se de frente para os outros dois sacerdotes.
— Seus hipócritas miseráveis — ele sussurrou com voz rouca —, que passam seus dias na poeira das bibliotecas, ou servindo chá para um bispo que nem sequer chega a compreender verdadeiramente os mistérios de Cristo... e pensam que podem me proteger do mal!
Assustados, o franciscano e o padre deram um passo atrás.
— Não somos nós que o protegemos — lembrou o franciscano —, mas a sua absolvição através da penitência.
Padre Malcolm ouvia murmúrios acalorados sendo trocados na porta do dormitório. Enrolou a toalha ao redor dos punhos com tamanha força que seus dedos ficaram brancos. Aproximou-se do padre e do franciscano.
— O que sabem vocês de experiência religiosa? — ele perguntou com desdém. — O que podem imaginar que é? O que fariam se encarassem o anticristo? Rezariam?
— Que outra coisa poderíamos fazer?
Padre Malcolm sentiu-se cegar de raiva pela simplicidade intelectual dos clérigos, sua afetada superioridade. Até a vista de suas vestes e batinas, a gentileza cultivada de suas vozes, davam-lhe náuseas. Eram pura fraude. Pessoas que não poderiam enfrentar o mundo real, nem uma verdadeira experiência religiosa, e por isso procuravam abrigo na rotina negligente do seminário episcopal.
— Pois foi o que eu fiz! — ele gritou. — E Cristo não se fez presente!
O padre engoliu com dificuldade.
— Então, estava errado em seu coração. Não estava sendo sincero.
— Ah, sim. Racionalização. Faz-de-conta.
— Que outra explicação existe para a sua queda? — indagou zangado o franciscano.
Padre Malcolm não respondeu. No silêncio, ouviu passadas no corredor distante. Era o mensageiro voltando dos aposentos do bispo.
E, em vez de dar resposta, Padre Malcolm passou por eles e foi para o corredor. O franciscano agarrou-lhe o braço.
— Padre! — gritou. — O senhor está sob nossa autoridade...
Padre Malcolm jogou longe o franciscano, arremessando-o contra o padre, cascatas de toalhas caindo do cabide na porta do lavatório.
— Não estou sob a sua autoridade! — protestou em altos brados.
O mensageiro, voltando dos aposentos do bispo, correu de olhos esbugalhados para os dois religiosos. Tiveram uma rápida conferência, e, depois, levantando as fímbrias de suas vestes, saíram correndo pelos corredores, na direção oposta à tomada por Padre Malcolm.
— Cristo foi derrotado em Cataratas do Gólgota! — o jesuíta urrou para eles, com voz amarga e entrecortada.
Enquanto corria, procurando as sombras, Padre Malcolm passou por portas duplas, atravessou a cozinha. Outro padre de batina negra levantou-se de sua cadeira perto da porta.
Com um grito alucinado, Padre Malcolm investiu contra ele, jogando-o esparramado entre sacos de batatas.
Padre Malcolm virou-se, cheio de fúria, e tomou outro corredor. Fugiu pelo depósito de carvão e, cego, encontrou outra saída, ao mesmo tempo em que seus pulmões explodiam ao aspirar o gelado ar da noite.
Padre Malcolm atravessou tropegamente o jardim do bispo.
As luzes estavam acesas no quarto de Sua Reverendíssima e silhuetas se movimentavam contra as janelas.
Padre Malcolm teve a estranha sensação de que era parcialmente responsável. Mas não saberia explicar por quê.
Na verdade, se não fosse pelos gestos frenéticos dos vultos, não saberia dizer se algo anormal havia acontecido.
Caminhou, vacilante, até o estacionamento. A raiva intima passara. A força poderosa de uma presença controladora e alienígena cessara. Apertou-se, na tentativa de manter-se quente. Tudo parecia normal novamente.
Entrou no Oldsmobile, procurando encontrar um sentido para tudo o que acontecera.
Teria sido um sonho? A violência, a blasfêmia — não poderiam ser suas. Havia em seu corpo um poder independente de sua vontade. Repentinamente, sentiu-se tomado de pavor pela catedral, e saiu do beco. Padre Malcolm deu por si dirigindo o carro para a longa ponte sobre o Rio Charles, rumo ao norte. Estava voltando para Cataratas do Gólgota.
— Deus do Céu, tem piedade da minha alma! — rezou baixinho.
O volante girou brusco para a direita, e o carro foi de encontro a um vão de viga e cabos de aço da ponte. A breve memória de Bernard Lovell jogando-se sob as rodas de um carroção passou por sua mente, e ele compreendeu: fugindo da servidão. O Oldsmobile colidiu com um bloco de concreto escondido pela neve, deu um solavanco, e parou.
Padre Malcolm lutou para abrir a porta.
— Nunca! — ele jurou em voz alta. — Nunca servirei contra Cristo!
Escorregando no gelo, correu para as grades de proteção da ponte. Lá embaixo corria o Charles, aniquilante, frígido, negro.
Uma luz ofuscante deixou-o imobilizado. Virou-se rapidamente, e viu o nariz vermelho e o rosto redondo de um patrulheiro embaixo do capacete com protetores de orelha contra o frio.
O guarda aproximou-se, colocando a lanterna no cinto de couro.
— Padre — disse uma voz com sotaque irlandês de Boston. — O senhor está bem?
Padre Malcolm, incapaz de dar uma resposta, fitou o policial, percebendo em sua expressão um misto de ganância, luxúria e fingimento. A sensação dava-lhe ânsias.
Padre Malcolm desviou o rosto.
Pouco visível no nevoeiro, a catedral erguia-se como a antepara de um enorme navio navegando pelos montes ao sul.
— Para que lado estava indo quando derrapou na neve, padre?
— Para o norte.
— Sua paróquia fica longe?
— Paróquia?
— É. A que distância fica?
O policial aproximou-se ainda mais. Os olhos porcinos e cintilantes pareciam demoníacos, até mesmo sádicos. Padre Malcolm sabia que se tratava de uma alucinação. Fitava o Rosto de sua própria malignidade, o Mestre que dominava aqueles que se ausentavam de Cristo.
— O senhor está bem? — o guarda perguntou novamente.
— Estou, sim.
O homem examinou a fisionomia do jesuíta. Era óbvio que fora vítima de um trauma psicológico qualquer, mas não como resultado de um acidente.
— Quem sabe seria melhor o senhor passar a noite na catedral? — sugeriu ele. — É uma noite dos infernos para se sair dirigindo por aí.
— Não, não. Na catedral, não.
— Qual é o problema, padre? — ele perguntou gentilmente. — Talvez eu possa ajudar.
Padre Malcolm sentiu o lábio ferido. Tinha o sabor de vinagre.
— Alguma vez — Padre Malcolm perguntou delicadamente — o senhor duvidou da divindade de Cristo?
O homem não estava compreendendo nada, Finalmente, inclinou-se ante a autoridade do jesuíta.
— Não, padre. Nunca.
— O senhor é um felizardo.
Involuntariamente, Padre Malcolm virou-se para contemplar a estrada escura para o norte. Trevas infinitas se alongavam pela estrada tortuosa que conduzia a Cataratas do Gólgota.
O policial segurou-o pelo ombro.
— Já que não deseja ir para a catedral, o melhor mesmo é ir para a sua paróquia. Venha, vou ajudá-lo a pôr o carro na pista novamente.
Entorpecido, Padre Malcolm entrou no Oldsmobile. O policial usou o carro-patrulha para empurrar o automóvel para fora do acostamento e colocá-lo na pista.
A ignição pegou imediatamente.
— Mais alguma coisa que eu possa fazer? — o patrulheiro perguntou ao emparelharem os carros.
— Só Deus pode fazer alguma coisa — Padre Malcolm murmurou.
Mas o guarda não entendeu direito. E sorriu.
— Que Deus abençoe o senhor também, padre.
O carro-patrulha seguiu adiante.
Como que por vontade própria, o Oldsmobile começou a subida das estradas geladas, batidas pelo luar, e depois penetrou nas densas florestas que iam para o norte.
Um tremor gelado sacudiu Padre Malcolm. Seu corpo não lhe pertencia. Sentia medo agora. Será que Mário Gilbert, sendo um homem violento, teria percebido a violência sufocada que agora jorrava dele? Alguma força psicológica dividia sua personalidade, como um cão estraçalha com os dentes um chinelo velho.
Uma figura pálida, de olhos vermelhos, o contemplava.
O Cristo de plástico no painel do automóvel. A colisão com a grade da ponte havia disparado suas baterias. Agora, o Homem das Dores fitava com tristeza um mundo GlOw insensível. Os olhos pareciam penetrar Padre Malcolm.
Esquisito! Com a colisão, a imagem sofrera uma leve avaria.
As costas estavam curvas, formando uma corcunda. Os olhos vermelhos faiscavam malevolentes. As sombras faciais desfiguradas, a barba suja e estriada, se assemelhavam mais e mais ao antônimo de Cristo, cintilando a cada vez que atravessavam, entre grupos de árvores, clareiras batidas pelo luar.
A cada passagem, das árvores para o luar, a figura se metamorfoseava mais e mais.
De repente, com um grito inarticulado, Padre Malcolm desceu o vidro e jogou a imagem fora. Ouviu-a bater, tombar e rolar, quebrando-se no acostamento duro da estrada.
— Assim é melhor... muito melhor — exclamou numa voz irreconhecível até a seus próprios ouvidos. — Cristo, tem piedade de mim — murmurou.
Derrapando, resfolegando na subida sinuosa e coberta de gelo, o Oldsmobile corria desabaladamente para a lua cancerosa que iluminava Cataratas do Gólgota.
CAPITULO DEZESSEIS
CARDEAL BELLOCCH1 cruzou os vastos espaços da Praça de São Pedro. Sobre campanários e ogivas das igrejas da Cidade do Vaticano, uma lua cor de açafrão navegava entre estrelas. Tubos de esgoto tinham se rompido, e as poças nos paralelepípedos se agitavam ao sabor do vento empoeirado.
Ao longe, cães ganiam embaixo do aqueduto. Carabinieri patrulhavam o perímetro da cidade dentro da cidade de Roma.
O Tibre cheirava a umidade e preguiça. As oliveiras nos jardins do Vaticano exalavam sua fragrância. Cardeal Bellocchi deixou a praça, indo para a proteção das colunas e da sombra, passou pela alameda do jardim, e tomou a direção dos Apartamentos dos Borgia.
Sete jesuítas o acompanhavam em formação cerrada, carregando pastas de couro da América. Suas sombras passavam pela base das colunas de mármore iluminadas pelo luar, e iam cair no esquecimento das trevas mais densas da Basílica. Cardeal Bellocchi estugou o passo, como se fantasmas de antigos inimigos o perseguis-sem pela meia-noite.
Os jesuítas do Cardeal Bellocchi, ofegantes, tentavam acompanhar o ritmo de seus passos sobre os largos degraus de mármore. Tropeçavam como sombras verticais incertas na perspectiva de dornos, fontes distantes e basílicas cobertos pela luz da lua. No interior dos Apartamentos dos Borgia, os jesuítas carregaram suas pastas de couro, atravessando corredores decorados com afrescos, passando por mesas ocupadas por camareiros particulares, descendo e descendo, cada vez mais longe da metrópole de ruas agitadas.
Cardeal Bellocchi curvou a cabeça, passou por diferentes corredores, por rostos obscurecidos em capuzes brancos, sob lâmpadas que ardiam, até seus passos ecoarem como os dos jesuítas no mármore rendado dos aposentos papais.
O Vaticano estava às escuras, um lugar de sussurros oblíquos por trás de colunas barrocas. À distância, os sinos da cidade do Vaticano e de Roma começaram as badaladas da meia-noite, com suas vozes de cobre, ferro, e aço melodioso, ressonantes e profundas, com poucos segundos de diferença umas das outras, vibrando todas pela noite.
Um Superior beneditino surgiu, pálido, ao fundo do corredor. Cardeal Bellocchi segurou-lhe o braço.
— Ele está à sua espera.
— E...?
O beneditino soltou-se.
— Mais nada. Ele espera. Por Vossa Eminência.
O beneditino afastou-se. Cardeal Bellocchi e seus jesuítas recomeçaram a marcha rápida para os interiores.
Ultimamente, Sua Santidade vinha executando longas vigílias noturnas pelas basílicas menores de Roma. À meia-noite, fazia suas orações nas catacumbas úmidas em que fêmures e crânios humanos enfeitavam as galerias onde frades e monges, de há muito mortos, haviam retornado ao seio de Cristo. Visitas inesperadas tinham sido feitas ao Observatório do Vaticano, onde Sua Santidade teve ocasião de demonstrar seus extraordinários conhecimentos sobre a configuração dos movimentos celestes.
Duas vezes por mês, incógnito, acompanhado de um único jesuíta assistente, ele viajava para Bolonha, para a missa da meia-noite, e, uma vez por mês, ia até sua aldeia natal de San Rignazzi, na Sicília, para oficiar nas cavernas abandonadas.
Murmurava-se que na madrugada da última sexta-feira, as velas brancas da capela papal, nos Apartamentos dos Borgia, haviam sofrido combustão espontânea, evolando seus aromas para a abóbada dourada.
À meia-noite de sexta-feira, dois carabinieri juraram ter prestado continência à silhueta de Sua Santidade debruçado no balcão dos aposentos particulares. No entanto, naquela noite, regressando de San Rignazzi, Sua Santidade havia pernoitado em Castel Gandolfo.
Cardeal Bellocchi deixou seus jesuítas segurando suas pastas de couro, os rostos meio na sombra e meio iluminados pelas lâmpadas mortiças nas paredes, e avançou para as antecâmaras interiores. Ao aproximar-se da porta dourada, sentiu a aura da presença iminente de Francisco Xavier.
Na antecâmara dos Apartamentos dos Borgia, Cardeal Bellocchi fez uma breve pausa diante do afresco de uma paisagem, com moldura finamente folheada a ouro, na qual se via São Jerônimo esmagando o próprio peito, em sua solidão espiritual.
Nestes últimos tempos, por trás do carisma, profundezas maiores da personalidade estranha e poderosa de Francisco Xavier vinham se revelando. Comunicação de temores indefiníveis, insônia, dúvidas, melancolia; nada, contudo, conseguia deter ou sequer diminuir o seu avanço de peito aberto para um Concílio Ecumênico sobre o assunto da Ressurreição.
Sob as velas acesas, numa poltrona branca rebordada, sentava-se Francisco Xavier.
O roupão branco, bordado a ouro, e chinelos combinando, realçavam a figura elegante do siciliano. A fronte larga e inteligente, os profundos olhos cinzentos, agora quase negros à luz das velas, observando penetrantemente a entrada do Cardeal Bellocchi na câmara articular, as mãos fortes e nodosas que seguravam os braços da poltrona com segurança inquieta e régia, nada mais pareciam ser do que manifestações exteriores do carisma interior do próprio Espírito Santo.
Cardeal Bellocchi ajoelhou-se e reverentemente beijou o Anel de ouro do Pescador, na mão de Francisco Xavier.
— Como vai o trabalho de Cristo? — Francisco Xavier perguntou.
— Semeei onde me foi possível, Santidade. O solo, às vezes, era duro.
— As árvores mais fortes crescem em terreno áspero.
Cardeal Bellocchi sentou-se numa poltrona estofada de veludo, diante dele. A voz compassiva do papa contrastava com a profunda seriedade dos olhos. Francisco Xavier parecia fortificado, confiante, devido às vigílias.
Pelos corredores, o Cardeal ouvia, além de seus jesuítas, o pessoal das equipes do Vaticano, levando malas de couro e caixas ornamentadas de prata contendo os pertences pessoais para a longa jornada para a América do Norte.
Francisco Xavier também ouviu o tumulto, e pareceu libertar-se de um vago temor.
— Todos os nossos esforços em Quebec — ele instruiu — deverão ser no sentido de nos prepararmos, como missão fundamental da Igreja, para o Segundo Advento.
— Temos uma agenda apertada, Vossa Santidade...
vários compromissos de natureza política e social para atendermos.
Francisco Xavier franziu o cenho. Cardeal Bellocchi era o seu maior obstáculo ao conclave de Quebec.
— É, eu sei. E assim, segundo o mérito, receberão nossa atenção.
— João XXIII — Cardeal Bellocchi insistiu, inclinando-se —, ao convocar o Vaticano II, também foi inspirado pelo Espírito Santo. E, no entanto, sem a nossa prévia organização, o que mudou? Praticamente nada. Um suspiro da brisa noturna agitou as velas, e delicados anéis de fumaça desprenderam-se, retorceram-se, e elevaram-se da chama branca.
— Sendo romano, Cardeal Bellocchi — Francisco Xavier disse, — o senhor entende o mecanismo das instituições.
Entende os políticos. Mas o mundo da fé não é Roma.
— É mais como Roma do que Vossa Santidade deseja imaginar.
Francisco Xavier recostou-se no bordado floral da poltrona branca e dourada. Negou veementemente com a cabeça. Então, impulsivamente, inclinou-se. As mãos, flexionadas em seu colo, pareciam nodosas e ossudas como as de um campônio.
— Não. Quando vou a San Rignazzi, visito meus parentes. Regresso à velha casa de meus pais, meus velhos amigos, a igreja de pedra onde fui batizado. Passeio pelos olivais onde meu pai trabalhou. Meus tios e sobrinhos ainda trabalham ali. Sabe o que eles me perguntam?
— Não, Vossa Santidade.
— Eles perguntam: "Baldoni" — ainda me chamam de Baldoni — "quando será? Quando será a volta de Cristo?"
Francisco Xavier permaneceu curvado para a frente, olhos faiscando, as mãos, agora separadas, gesticulando, e sorriu alegremente.
— Entende, Cardeal Bellocchi? Não perguntam "se", mas "quando".
Cardeal Bellocchi passou um lenço branco de linho pela testa, lançou um olhar à poeira de Roma que deixara vagas impressões no lenço, e guardou-o de volta.
Francisco Xavier apontava um dedo terrível enquanto sorria.
— E eu lhes respondo que não sei quando, Cardeal Bellocchi. Mas será breve. Muito breve!
Cardeal Bellocchi ensaiou um sorriso. Francisco Xavier cutucou o joelho do cardeal para maior ênfase.
— Pois em San Rignazzi pode-se sentir Cristo! No céu, nas rochas, nas casas de pedra! Está a poucos minutos de distância, Bellocchi. Pode-se pressenti-lo no ar que se respira.
A declaração não pareceu surtir qualquer efeito sobre o cardeal. Francisco Xavier recostou-se novamente na poltrona. Enquanto estudava o Núncio, batia pensativo com a ponta dos dedos nos lábios, e um suave lampejo surgiu em seus olhos.
— Vou enviá-lo a San Rignazzi — decidiu. — Isso vai tirar o cosmopolitanismo romano de sua alma. — Francisco Xavier flexionou os dedos, entrelaçando-os, e depois sorriu.
— Isso mesmo. Um ano entre os trabalhadores e os pobres, Cardeal Bellocchi. Viria reavivar suas esperanças espirituais.
O cardeal não saberia dizer se Francisco Xavier estaria brincando. Será que haveria um projeto de expurgo contra os não-milenaristas? Cardeal Bellochi sentiu o coração acelerar-se ao tentar imaginar a catástrofe que seria um ano de banimento para a Sicília, entre a banalidade e as superstições dos camponeses.
Francisco Xavier levantou-se devagar da poltrona. Com a mão estendida, fez um gesto para que o Cardeal permanecesse sentado. A expressão sombria estava novamente em seus olhos.
— Lembra-se das circunstâncias da minha eleição? — perguntou.
Surpreendido com a pergunta, mas atento, Cardeal Bellocchi observou Francisco Xavier apanhar um crucifixo de prata pesadamente ornamentado, que descansava sobre uma base de ébano, alongado e triste, no estilo místico e torturado dos Habsburgos espanhóis.
— Lembra-se? — repetiu.
— Foi uma das mais extraordinárias manifestações do Espírito Santo — Cardeal Bellocchi comentou.
Com muito cuidado, Francisco Xavier recolocou o crucifixo no lugar e virou-se.
— Nunca lhe pareceu estranho — ele perguntou — que o Arcebispo de Gênova, transmitindo a mensagem do Espírito Santo, sofresse uma hemorragia cerebral no ato?
— Ele já passara bastante dos 90 anos, Vossa Santidade.
Francisco Xavier espiou pelas janelinhas abertas acima das velas. Cardeal Bellocchi maravilhou-se com a beleza mística daquele rosto, um
rosto que, com sua espiritualidade espontânea, comovia milhões de pessoas.
Mas, um rosto solitário. E, ultimamente, um rosto isolado e melancólico.
— Tive premonições — Francisco Xavier anunciou muito brandamente. — Recebi mensagens.
Francisco Xavier mais pressentiu do que ouviu as vestes de Cardeal Bellocchi farfalharem quando este se levantou e foi postar-se ao lado das velas.
— A Segunda Encarnação de Cristo — Francisco Xavier disse com doçura. — Reconheço-a em Roma como a reconheço em San Rignazzi.
— Mas esses sinais podem ser enganosos, Vossa Santidade.
— Esses sinais vêm me perseguindo a vida inteira.
— Homens santos, homens de fé extremada, são vulneráveis a tais sinais enganadores.
Por muito tempo, Francisco Xavier ficou calado. Um coro longínquo, vigorosamente mesclado à brisa noturna, trazia um canto gregoriano, em graves e agudos, de uma câmara além do jardim.
— Cristo não engana — ele argumentou.
Cardeal Bellocchi inclinou-se, nervoso, os dedos pressionando o veludo que cobria a mesa na base dos candelabros.
— Não pode ser a época certa — ele murmurou.
— Estive conversando com Monsenhor Tafuri — Cardeal Bellocchi trancou os maxilares.
— Monsenhor Taturi é um oportunista, Vossa Santidade!
— Monsenhor Tafuri supervisiona os arquivos do Santo Ofício — Francisco Xavier rebateu, sem expressão. — Um posto avançado bastante humilde para quem alimenta ambições, eu diria.
— O século XX está repleto de massacres — Cardeal Bellocchi protestou. -- Crianças aniquiladas por foguetes. A criação de embriões artificiais. Religiões bizarras e o culto aos entorpecentes. E o mundo civilizado se sufoca em riqueza material que não tem qualquer propósito. Este século, Vossa Santidade, não está preparado para Cristo!
Francisco Xavier sorriu de modo estranho.
— Esses são os sinais do anticristo.
E sentou-se, triunfante, na poltrona de veludo branco.
Cardeal Bellocchi andava de um lado para outro pelo tapete, os sapatos pretos pisando macio sobre a chave e a coroa bordadas no pêlo espesso.
— E o anticristo — Francisco Xavier concluiu — estará presente antes do Segundo Advento!
Cardeal Bellocchi fitou-o, depois curvou a cabeça, em sinal de aquiescência. Os estados de espírito de Francisco Xavier eram mercuriais. Em ocasiões como esta, nenhuma influência sobre ele seria possível.
Os sinos de Roma badalaram a primeira hora da madrugada, um crescendo, e em seguida uma ressonância diminuindo no ar nublado.
Fez-se um longo silêncio. Francisco Xavier descontraiu-se. Seus olhos se fixaram no tapete que os separava.
— O que é isto, meu caro Núncio? — ele perguntou gentilmente.
Um pesado envelope branco, endereçado à Sagrada Penitenciária Apostólica da Cidade do Vaticano, vindo da catedral da Sé Metropolitana de Boston, Massachusetts, jazia num retângulo de pálido luar aos pés de Francisco Xavier.
Havia caído da capa de couro do dossiê que ainda se encontrava sobre a poltrona do Cardeal.
— Uma confissão — Cardeal Bellocchi informou, adiantando-se. — Prometi entregá-la pessoalmente.
Francisco Xavier pousou delicadamente o pé sobre o envelope. Estava estranhamente frio.
— Enviei-o à América do Norte para preparar o meu conclave — ele brincou. — Em vez disso, o meu Núncio trabalha para a Sagrada Penitenciária.
Francisco Xavier curvou-se e apanhou o envelope.
Sopesou-o lentamente na palma da mão.
— Por favor — Cardeal Bellocchi solicitou constrangido.
— Deixe-me entregá-lo.
— Mas já o entregou — Francisco Xavier argumentou, passando a espátula de prata para abri-lo. — Não somos a suprema autoridade da Sagrada Penitenciária?
Cardeal Bellocchi ajeitou as vestes, enquanto o papa lia com os óculos sem aro ajustados sobre a ponte do nariz.
Uma a uma, foi entregando as páginas a Cardeal Bellocchi.
— Extraordinário — comentou. — Leu isto aqui?
— Claro que não.
— Mas não é, de forma alguma, uma confissão — ele comentou preocupado.
Com crescente excitação, Cardeal Bellocchi leu o conteúdo da última página.
— É o testamento de uma alma dividida.
— Cristo e Satanás. Duas vozes. Um só homem.
Francisco Xavier aguardou até que o Cardeal Bellocchi dobrasse as laudas e as devolvesse ao envelope, que colocou em sua pasta particular de couro.
Francisco Xavier estudava-o cuidadosamente.
— Como aconteceu de lhe darem a carta para ser entregue? — ele perguntou em voz baixa.
— Houve um incidente desagradável na diocese de Boston. Um jesuíta americano... o homem que se jogou a meus pés clamando pelo conforto de Cristo.
— Por quê?
Cardeal Bellocchi sentiu-se incomodado ante o olhar prolongado e sombrio de Francisco Xavier.
— Por quê, Cardeal Bellocchi?
— Ele havia sido expulso de sua igreja pelo anticristo.
Francisco Xavier flexionou os dedos, depois debruçou-se de súbito.
— Sabe quantos padres perdemos nestes últimos meses?
— perguntou num tom tenso. — Faz idéia do que está nos acontecendo?
Cardeal Bellocchi declinou de qualquer resposta.
— Igrejas que são abandonadas. Perversões. Heresias.
Mas sempre — sempre, Cardeal Bellocchi — depois de sinais visíveis do Segundo Advento.
— Sim — Cardeal Bellocchi admitiu sem convicção. — O homem menciona... sinais.., em seu texto...
Subitamente melancólico, Francisco Xavier agitou-se na poltrona.
— Mas é tão óbvio — ele disse. — A natureza das coisas.
Pôs-se de pé num movimento brusco, estendeu a mão, e Cardeal Bellocchi foi obrigado a ajoelhar-se e beijar o anel.
— Partiremos para Quebec de manhã — Francisco Xavier disse. — Por favor, apresente seus dossiês ao secretário de estado.
— Pois não, Vossa Santidade.
Cardeal Bellocchi caminhou com passos pesados para a porta ornamentada. Não havia registros, e apenas a tradição oral do Vaticano afirmava os perigos que circulavam como brisas mornas na direção da Barca de São Pedro. O mundo não poderia conceber os riscos que se apegavam fundo, pelos corredores renascentistas, por trás da cerimonia resplendente da magnificência do Vaticano.
Papas que se deixavam corromper por paixões consagradas, deformadas em heresias, retardando, por gerações, a missão da Igreja.
— É um imenso plano, Cardeal Bellocchi — Francisco Xavier sugeriu com mansidão. — É nós ouvimos. É nós vamos. Guiados pelo sobrenatural.
— Sim, Vossa Santidade.
Nas antecâmaras, Cardeal Bellocchi, de rosto fechado, levantou a mão e arrastou seus jesuítas para os corredores, junto com ele.
Depararam com Monsenhor Tafuri, esperando por uma audiência, cercado por cinco líderes milenaristas em semicírculo na retaguarda. De olhos fundos, fisionomia quase vampiresca no palor do luar que agora atravessava os balcões distantes.
— Está farejando o cheiro da presa, Monsenhor? — Cardeal Bellocchi indagou.
Monsenhor Tafuri sorriu untuosamente.
— Sua Santidade deseja ouvir nossa opinião.
Cardeal Bellocchi passou adiante, e seus jesuítas forçaram os milenaristas a se dividirem em duas metades para lhes dar passagem.
Todas as douradas antiguidades das cortes de Veneza e do império da Bavária ornamentavam os longos corredores.
Pinturas da monarquia espanhola, e os Cristos de Siena, Florença e Pisa. A Igreja avançava, apesar das dificuldades, século XX adentro.
E o conseguia através da motivação da fé e da excelente organização da Igreja, dirigindo a crença de bilhões de seres humanos. Conseguia-o não apenas graças a carismas pessoais e intrigas, mas pelo paciente acúmulo de vantagens operacionais sobre o mundo. Disto, Cardeal Bellocchi não tinha dúvidas.
*
No interior da câmara papal, Francisco Xavier permaneceu a sós ao lado das velas semiqueimadas, protegendo os olhos, com a cabeça apoiada nos dedos.
Uma tontura momentânea deixou-o desorientado.
Invadido de graves premonições, Francisco Xavier recolheu-se ã capela particular. Sua mão segurava firme o rosário negro de madeira que lhe fora dado pela mãe quando se ordenara sacerdote em San Rignazzi.
O Cristo de Duccio, folheado a ouro, cintilava atrás de dois ostensórios que exalavam fumos aromáticos pelos pilares barrocos em espiral. A toalha do altar tinha o bordado da coroa e das chaves. O tabernáculo, cravejado de pedras, faiscava sob as cerradas linhas de velas imaculadas, postas em diagonal sobre o altar.
Francisco Xavier ajoelhou-se em oração.
Pouco a pouco, a desagradável sensação deixada pela confissão do jesuíta americano diminuiu. Em seu lugar, emergiu a fulgente expansão do Cristo de Duccio, a confirmação radiante do dossel ao alto, e a sensação de movimentos etéreos e inefáveis do Espírito Santo em seu coração.
Um tênue tremular do lustre tilintou sobre sua cabeça.
A imagem tristonha de Jesus Cristo fitava Francisco Xavier, com uma centelha que poucos percebiam, da qual o halo pintado não passava de uma metáfora em pigmento.
Subitamente, o rosário apartou-se de seus dedos, desafiando a gravidade. As contas se elevaram mansamente, e pairaram suspensas no ar perfumado de incenso.
Lentamente, muito lentamente, Francisco Xavier apanhou o rosário entre os dedos, e as negras contas de madeira recuperaram o peso.
A capela brilhava numa dança musical e suave de luz dourada.
Breve, Francisco Xavier sentiu, no âmago de seu coração que meditava. Muito breve agora.
CAPÍTULO DEZESSETE
NOS BOSQUES mais altos do serro ao sul sobre o Vale do Gólgota, Harvey Timms, o menino surdo, botou as mãos nos ouvidos e gritou, em plena madrugada. O eco dos gritos desceu sobre o Siloam e infiltrou-se pelo cemitério e pelas ruas de Cataratas do Gólgota.
O balconista do armazém comentou que Harvey Timms tinha ouvido a gargalhada de triunfo do demônio depois de apossar-se do padre.
As infecções dos animais transmitiram-se dos recém-nascidos para o gado bovino e suíno já adulto. Jogados nas piras ardentes, suas barrigas estouravam devido ao calor intenso.
Fred Waller, o mecânico, fechou sua oficina, e esperou, como um cadáver, pelo domínio dos mortos profanados.
A Srta. Kenny, mentalmente perturbada desde a morte da irmã, percorria as ruas laterais de Cataratas do Gólgota, carregando uma lanterna e chamando, em sua voz esganiçada como a de um rato, pelo gêmeo estrangulado e violado, Maxwell McAliskey, cujo túmulo vazio estava agora marcado pelo galho ressequido de uma única rosa murcha.
Apenas o novilho ruivo parecia imune ao terror generalizado. O animal vagava solitário, ruminando pelo cemitério, o rabo puxado por crianças supersticiosas, o couro levando as marcas do flagelo de madeira queimada ou galhos pontudos. Pela madrugada, seu mugido se erguia em estranha harmonia com os gritos de Harvey Timms.
Hank Edmondson faleceu antes de completar seus 88 anos e foi enterrado no jazigo particular da família, perto de Kidron. Ao ser revolvida, a terra trouxe à superfície lagartas brancas que se contorciam e rastejavam para longe das pás.
Na madrugada da última sexta-feira, com os dois pulmões arruinados pela tuberculose, suas últimas palavras foram: — Os túmulos se abrirão.
Na taverna, suas palavras foram interpretadas como uma premonição da morte. O taverneiro comentou que significava outra coisa: os túmulos violados da Igreja das Dores Eternas seriam abertos por uma força maldita.
Os homens saíam aos pares ou em pequenos grupos, observando o céu, postados nas calçadas ou sentados no bar. Somente a idosa Srta. Kenny, lamentando-se em voz alta entre as ruínas da tecelagem e as desertas casas vitorianas, perturbava o silêncio gelado que envolvia Cataratas do Gólgota.
Histeria coletiva, Mário escreveu em suas notas. Como um neurótico se apega à sua moléstia, o povo de Cataratas do Gólgota apegou-se à Igreja das Dores Eternas como sendo o foco de sua pobreza e ansiedade. Se o padre voltar, absorverá a força emocional das superstições do povo.
Os lapsos de Mário, sintoma de exaustão, melhoraram depois do alvorecer. Anita ficava fumando no degrau da reitoria. Ainda se mostrava relutante em entrar na igreja.
No interior da igreja, as paredes adquiriram a cor cinzenta e desolada da esterilidade de pré-inverno dos campos e do terreno argiloso onde o templo fora construído.
A única luz dentro da igreja era a lamparina do altar, pulsando pálida e amarela, e o tom levemente esverdeado da imagem da besta na tela da termovisão. No curso dos longos dias e noites, Mário permanecia em seu posto, protegendo o equipamento contra a histeria da cidade. Com o revólver preto enfiado no cinto, ele continuava a fazer seus registros nos cadernos de anotações.
Eamon Malcolm desintegrou-se em sua falta de fé. Como resultado, os nítidos fragmentos visuais e aurais da sua libido estão sendo projetados como um sonho desestruturado.
Fluxo contínuo de imagem será possível se toda repressão for removida. Último vestígio da repressão: a idéia de Deus. Devo destruí-la.
Mário esperou, impaciente, pelo jesuíta. Com igual nervosismo, Anita ficou de guarda na porta da reitoria. A cada hora que passava, a possibilidade de regresso de Eamon diminuía e o terror começou a desanuviar-se em sua mente.
Foi quando, acima dos chamados estridentes da Srta. Kenny pela tecelagem, Mário ouviu o ronco de um grande automóvel se aproximando.
O Oldsmobile surgiu no alto da vertente, como se fosse um pássaro ferido, um pneu arrebentado na lama, a porta do lado direito arranhada e muito amassada, vapor subindo do radiador.
— Ah, meu Deus... não! — Anita murmurou.
O jesuíta não estacionou o automóvel, antes deixou motor morrer num contato macio com os arbustos da curva da estrada. Permaneceu sentado, de olhos baixos, desfigurado, lábios trêmulos.
Muito devagar, levantou o olhar e deu com Anita subindo a ladeira ao seu encontro. Estava frio e ela vestia uma jaqueta grossa de xadrez vermelho sobre a blusa branca. O cinturão e as botas de couro, à moda do oeste, pareciam singularmente deslocados contra a igreja branca em solo cinzento. Ele olhou primeiro para as próprias mãos e depois para o rosto pálido da moça.
Sinto muitíssimo — ele disse baixinho, — se a ofendi, Anita.
Por um momento, ela o examinou, a barba por fazer, os olhos que o autoconhecimento tornara mais profundos, a incapacidade de fitá-la por mais de um ou dois segundos.
Ao aproximar-se, ela notou o machucado dos lábios e o painel quebrado. O vidro da janela direita estava rachado e o metal abaixo dela selvagemente distorcido pela colisão.
— Isso não tem importância agora, padre — ela — Só uma coisa é necessária... desapareça de Cataratas do Gólgota!
Ao contrário, ele abriu a porta do Oldsmobile, saiu, vacilou, e agarrou-se à porta aberta.
— O livre arbítrio — ele disse em desespero — é, com tanta frequência, uma ilusão, Anita. — O lábio rachado começou a sangrar novamente. — O que fazemos, os pensamentos que movem nosso corpo, nossos desejos — são sinais de forças que podem explodir a Terra.
Em seus olhos, ela percebeu os resíduos fragmentados do outrora orgulhoso jesuíta cedendo lugar a um ser infinitamente mais complexo, um homem que se vira cara a cara com suas próprias paixões inconcebíveis e autodestrutivas.
— Este vale é o meu perímetro, Anita — ele explicou. Até que alguém, maior que eu, chegue aqui.
— Padre, deixe-me levá-lo de volta a Boston. Quero que o senhor tenha assistência médica.
Os lençóis de chuva acima do espinhaço abriam-se como uma coroa sobre os arbustos, e caíam, em seguida, pelos campos cinzentos. No Vale do Gólgota, o pessoal das fazendas e da cidade vagueavam sem destino pelos planos sulcados e ressequidos.
— Isto tudo aconteceu por minha causa, Anita — ele disse com suavidade. — Criei raízes aqui. Com trabalho...
orações... talvez as coisas se endireitem... novamente...
Mas a imensidão do trabalho de superar-se, e de uma vez mais consagrar a igreja, e de cuidar do povo do Vale do Gólgota pareceram momentaneamente aniquilar seu propósito.
— Fugi da absolvição para poder voltar — ele sussurrou para Anita. — Minha penitência deve chegar à catedral a qualquer momento, mas consegui escapar antes que ela fosse entregue.
Com o polegar limpou o fio de sangue que brotava do lábio.
— Não posso celebrar a missa — ele disse em voz entrecortada, — mas posso restaurar a igreja. Trabalho...
orações. Talvez... eu... seja capaz de... um dia... deixar Cataratas do Gólgota...
— Deixe-me levá-lo! Agora!
— A sua própria vida estaria em perigo.
Amargurado, no entanto resignado, fatalista, ele se pôs a descer a ladeira cinzenta que levava à igreja.
— Padre! — ela gritou, correndo atrás dele.
Mas Padre Malcolm não interrompeu a marcha, sem hesitação, sabendo bem dos horrores dentro da igreja.
— Padre!
Mário, com as pernas apoiadas na termovisão, onde a imagem da besta sorria para o jesuíta, sorriu também.
— Eu sabia que voltaria, padre.
Padre Malcolm avançou lentamente pela igreja imunda.
Seus sapatos esmigalhavam detritos caídos de pessegueiros mortos. A imagem da besta fitava-o malevolamente. Ele parou diante dela, os maxilares tensos.
— Foi por causa disso que voltei, Mário — ele murmurou.
Anita veio do vestíbulo, ofegante, e parou na área central da igreja.
Mario, sem cerimônias, abaixou as pernas e virou-se para o jesuíta.
— Foi por causa disso que você voltou — ele disse, e apontou para Anita.
Padre Malcolm girou nos calcanhares, pálido e trêmulo, para fitar Anita.
— A besta apareceu no instante em que quis fazer sexo com ela — Mário explicou com frieza. — É a sua própria luxúria, padre. Transformada em imagem. Pela sua mente.
A mandíbula do Padre Malcolm mexia-se, trancando-se e tornando a trancar-se, como se agora uma fúria amarga e profunda o dominasse.
Anita foi de mansinho para a parte principal da igreja.
Padre Malcolm ouviu o som de cada passada, sentindo quase que de maneira palpável o peso daquela mulher esguia sobre o soalho.
— Mário — ela explicou, — ele fugiu da absolvição para voltar para cá.
— Do quê?
— Escrevi uma confissão para o Cardeal Bellocchi — padre Malcolm murmurou, olhos fixos na figura de bode que silenciosamente o desafiava. — Mas, fugi da catedral às cegas... Parece que uma pessoa estranha e arrogante mora dentro de mim e corrompe cada um dos meus pensamentos!
— Vou levá-lo de volta — Anita decidiu.
Mário, desalentado, fitou Anita. Inacreditavelmente, ela desejava devolver o padre para a ficção de uma absolvição em Boston. A última coisa que Mário precisava era ver o superego do padre alimentado pela mitologia católica.
— Por que teve que fugir? — Mário indagou. — For que não saiu, simplesmente?
— Eu... eu... me deixei levar pela raiva — pela violência...
— Mas tem que haver uma explicação para o senhor ter ficado com raiva deles.
Padre Malcolm ergueu um olhar fuzilante.
— Eles não faziam idéia do que eu tinha sofrido!
Mário sorriu devagar e aproximou-se do jesuíta.
— E o que sofreu? — perguntou com perigosa lentidão.
— A experiência religiosa — Padre Malcolm explicou, piscando muito. — Estive com homens intelectualizados.
Frequentadores de bibliotecas. Acólitos do bispo. Meros administradores. Mas...
Mário, de súbito, inclinou-se e berrou: — ... você teve uma experiência sexual!
Padre Malcolm retrocedeu alguns passos. Olhou perplexo para Anita, para a tela da termovisão, para a mortiça lamparina amarela do altar. E negou, vigorosamente, sacudindo a cabeça.
— Você os desprezou pela assexualidade deles! — Mário investiu, implacável. — Ela estava bem à mão. Disponível.
Disposta. E bem a seu lado! E foi uma delícia!
— Mário... pelo amor de Deus! — Anita protestou.
Mário, no entanto, aproximou-se ainda mais do jesuíta.
— Aquela explosão emocional enviou sensações e idéias para dentro de sua mente e limpou toda aquela merda que já estava lá! Foi disso que fugiu, Padre Malcolm! É disso que vem fugindo a vida inteira!
Padre Malcolm afastou-se, até colidir com a coluna da nave; e fitou Mário com repugnância.
— Mas, até dentro da catedral, isso o perseguia! — Mário berrou. — Claro que o perseguiu até lá! Porque faz parte do senhor! E o senhor jamais se libertará!
Um olhar de ódio escapou do Padre Malcolm, o olhar de um homem encurralado.
Anita observava o jesuíta coberto de suor, e observava Mário, e percebia a estranha eletricidade entre os dois. Era como se o antagonismo pessoal não passasse de mera conjuntura numa confrontação muito mais destruidora.
— Sua própria sexualidade trouxe-o de volta a Cataratas do Golgota! — Mário provocou.
Padre Malcolm apontou com firmeza para as cruzes azuis de mofo que cintilavam em doze pontos da parede.
— Aquilo é trabalho do sexo? — ele perguntou acaloradamente.
— Não.
— Paródias heréticas da Crucificação... A mão do Mal esteve aqui e deixou sua marca!
Mário fez sarcasmo.
— O senhor crismou as paredes. O crisma contém umidade. Contém um nutriente. É óbvio que o mofo apareceria.
Padre Malcolm, perplexo, virou o rosto em desespero.
Repentinamente, gesticulou para o cenário desolado para fora da janela gótica.
— Quem sugou a vida do vale? — ele perguntou com voz forte, confiante mas preocupada.
— Estamos em outubro. Tudo fica devastado em outubro.
O jesuíta riu asperamente.
— Ridículo! Você mente a si mesmo como uma criança!
— Depois da seca vieram as chuvas. As árvores frutíferas floresceram. Agora é outubro, faz frio. O vale está morto. Por que buscar Satanás nos ritmos da natureza?
O mecanismo do cérebro do sacerdote começava a desintegrar-se. Impulsos obscuros, menos coerentes, subiam à superfície.
Anita percebeu seu sofrimento, o tremor das faces que mudamente expressavam a perda de todas as âncoras. Ao vê-la dar um único passo em sua direção, ele a temeu e afastou-se.
— Quem acendeu a lamparina? — ele perguntou apontando para a doentia chama amarela e pulsante.
Por um instante, ficaram todos contemplando as línguas amarelas saindo da tigelinha de óleo. À proporção que o dia escurecia, a força da lamparina parecia avivar-se, enviando sua luz baça sobre o tabernáculo, as câmeras e instrumento, e seus rostos.
— Anita a acendeu.
Padre Malcolm adiantou-se.
— E por que parece tão horrenda? — ele quis saber — Quem tornou a lamparina de Cristo doente de pecado?
— Anita quebrou o vidro ao acendê-la.
Mário puxou uma cadeira para perto da lamparina, rapidamente subiu nela, e deslocou um fragmento de vidro vermelho. Segurou-o entre os dedos para exibilo ao jesuíta.
Depois, deixou-o cair e espatifar-se. A lamparina amarela brilhou mais forte sobre seu rosto.
— E está pulsando porque falta óleo — Mário explicou, os olhos negros à luz amarela.
Bateu na tigelinha com os dedos, sacudiu-a, até que um ping oco ecoou pela igreja escura.
— Satanás coisa nenhuma! — Mário disse, sorrindo devagar.
Padre Malcolm vacilou, indo amparar-se no altar, agarrando-se a ele, embora relutasse em tocar a toalha sagrada. O resultado foi que caiu de comprido, em toda a extensão da pedra de sacrifício.
— A lamparina extinguiu-se — gritou ele — na hora do pecado!
— Foi o vento — Anita explicou mansamente. — O vento mudou de direção.
Horrorizado, Padre Malcolm olhou para ela. Mário conseguira momentaneamente seduzi-la. A lógica fria e implacável da ciência de Mário fê-la trair o que havia sentido naquela madrugada de sexta-feira. Padre Malcolm, como um navio a deriva, viu-se tateando no mesmo universo alucinatório do qual fugira pela ponte sobre o Charles.
Lutando contra o colapso, Padre Malcolm viu passar Lodo o idealismo de sua vida pregressa, seu irmão lan, seu tio James Farrell Malcohn, Elizabeth, até mesmo o próprio Cristo, testemunhando sua queda, uma queda irrevogável, sem salvação ou misericórdia.
Seus lábios, agora, sangravam muito.
Mário adiantou-se devagar, até chegar bem perto do jesuíta. Padre Malcolm retrocedeu, temeroso. Mário tocou de leve a boca ferida. O jesuíta desviou a cabeça num gesto de dor.
— Beijei o crucifixo do cardeal — explicou — e meus lábios começaram a sangrar. Como vocês vêem, meu próprio corpo está sendo atormentado por Satanás.
Caiu de joelhos diante do altar. Seus lábios moviam-se depressa, e tinha a respiração ofegante. Anita atravessou a nave, indo para ele, quando Mário segurou-a rudemente pelo ombro, mantendo-a parada.
A termovisão registrava fulgores vermelhos cada vez mais intensos.
Mário percebeu que a resistência do jesuíta se esfacelava.
— Mário... ele está tão doente...
— Ele está pronto para projetar — Mário sussurrou, de olhos brilhantes. — Mas está se contendo.
— Mário... ele não é um animal!
Mário riu na cara dela.
— Claro que é um animal! Todos nós somos animais!
Mário virou-se novamente para o jesuíta que, a cada lapso de concentração, aprofundava-se mais violentamente em suas orações.
— Que espécie de santo o senhor pensa que é? — Mário provocou. — Não há santos neste mundo!
Padre Malcolm interrompeu-se.
— Não vou abjurar o meu Deus! — respondeu com tranquilidade.
Virou-se lentamente para Mário, o rosto desfigurado.
— Ou os Seus santos — acrescentou suavemente.
Padre Malcolm voltou-se, e novamente seus lábios moveram-se em oração. Mário chegou-se a ele.
— Está tentando ser Deus? — Mário gritou. — Está pensando que é Jesus Cristo?
— Não.
— Quem então? — Mário quis saber. — Quem mais em toda a História foi tão santo quanto você está querendo ser?
Padre Malcolm novamente interrompeu a oração.
— Meu irmão Ian — respondeu com gentileza. — Ian foi tocado pela Graça do Senhor.
— É mesmo, e onde está esse santo agora?
— Morto. Morreu afogado aos 12 anos.
— E, por causa disso, seus pais o beatificaram.
Padre Malcolm fez uma pausa.
— Minha família devia um filho à Igreja. Fui mandado no lugar de meu irmão Ian.
— E detestou.
Padre Malcolm, incapaz de se concentrar, deixou que suas mãos se abaixassem. Estava sem defesas.
— A cada missa que celebrava — Mário acusou — sentia-se acorrentado ao irmão morto!
E adiantou-se.
— Mas você não é lan! Você é Eamon Malcolm! E, em algum ponto escondido dessa santidade toda, vive um homem de verdade, e esse homem de verdade tem necessidades e desejos sexuais! Liberte-o!
Exausto, Padre Malcolm friccionou o rosto. Não dormia desde o desmaio na catedral. Em algum lugar, porém, de seu subconsciente, Mário atingira o alvo. A raiva reprimida de um ser que lhe era alheio explodiu em rebelião inarticulada.
— Meu tio era um homem santo! — afirmou.
— É, e você passou tardes inteiras sentado no colo dele, admirando os nus renascentistas.
— Mário, você é tão pueril que me surpreende!
Mas, finalmente, Mário percebia que algo no âmago do jesuíta começava a desmoronar. Curvou-se sobre o homem ajoelhado.
— Você teve medo dos sentimentos que surgiram — Mário insistiu, pronunciando cada palavra com exagerado cuidado. — Assim, você idealizou seu tio. Eliminou-lhe a sexualidade. E a sua própria!
Anita tentou puxar Mário para longe; ele libertou-se com brutalidade.
— E, então, ficou sabendo como ele morreu! — Mário gritou. — E descobriu que ele não era santo coisa alguma!
A termovisão fulgurou em violentos tons escarlates, girou, formando figuras híbridas que morreram no fluxo vermelho.
Padre Malcolm, impedido de rezar, pôs-se furioso de pé e empurrou Mário para um lado. De repente, a meio caminho na direção do vestíbulo, estendeu o braço direito. Apoiou-se na coluna. Sua respiração escapava em estertores terríveis, e seus ombros se arquearam. Anita ouviu o timbre horroroso da voz sufocada de uma personalidade destruída.
— É verdade — Padre Malcolm chorava. — O que você diz é verdade! Ah, meu Deus.
Padre Malcolm tentou sair da igreja, trôpego, para longe tanto dos sarcasmos da besta sorridente como da cruel análise de Mário, que feriam seu ser vital.
— O que aconteceu a Bernard Lovell... está acontecendo comigo...
— Simples psicologia do anormal — Mário comentou, colocando um novo teipe na termovisão.
Padre Malcolm, num acesso de tosse, saiu cambaleando pela passagem central da igreja, tendo as costas iluminadas pela força total da lamparina amarela. Fitou-a cheio de terror. Anita percebeu que ele já não se dava conta de onde estava. Tateava, às cegas, evitando a lamparina que iluminava toda a igreja, ao mesmo tempo em que se sentia transfixado por ela.
— Lovell Lovell... eu sou Lovell — ele murmurou.
Anita passou por Mário.
— Vou tirá-lo daqui — ela disse em tom de desafio.
— Ainda não terminei com ele!
— Ah, terminou, sim.
Mário indicou as luzes vermelhas, alaranjadas e incandescentemente brancas que surgiam na termovisão.
— Agora não, Anita! Pelo amor de Deus, ele está ficando volátil!
Anita lutou para colocar o braço do jesuíta sobre o ombro. O calor do corpo dela deixava-o tonto.
— Eu sou Lovell! — ele murmurou. — Eu sou James Farrell Malcolm! Eu sou a encarnação do pecado!
A força hedionda do universo de Mário, um Nada agressivo, penetrava-o mais e mais fundo, e ele estremecia repetidamente. A voz de Anita elevou-se fraca, acima do caos iminente.
— Eamon Malcolm está doente demais para qualquer experiência! — ela suplicou. — Vou levá-lo de carro para Boston!
De repente, uma avalanche de imagens sugestivas surgiu no fluxo vermelho-alaranjado da termovisão. Anita e Mário viraram-se a tempo de ver figuras tomando forma e se desintegrando.
— É isso aí! — Mário comentou. — Projeção direta! Não me deixe agora!
— Não vale a pena, Mário. Nada disso vale a pena!
Afastou-se com Padre Malcolm. Mário seguiu-a, segurando-lhe o braço dolorosamente.
— Não sei o que deu em você, Anita — ele disse quieto.
— Antigamente, eu daria o mundo por você. Mas esse bastardo aí a fez mudar...
— Foi você mesmo, Mário... Você perdeu todo o senso de decência.
Afastou-se novamente, e mais uma vez Mário foi ao seu encalço até a porta, e segurou-a.
— A ciência sacrifica a todos nós, droga! — ele argumentou. — Dei metade de minha vida e metade de minha sanidade mental por este projeto. Você não pode fazer isso comigo agora!
Fitaram-se. O abismo entre os dois era completo.
— Não, Mário — ela respondeu. — O amor também faz sacrifícios.
Atônito, ele olhou para ela. Nesse momento, uma violenta corona de energia explodiu dentro do visor da termovisão, iluminando paredes, refletindo-se vermelha sobre as toalhas do altar, cintilando sobre as cruzes azuis.
Mário foi vacilante para junto do instrumento, do mesmo jeito que um sacerdote reverente cambaleia diante da imagem de Cristo. No mesmo instante Anita guiou o padre desorientado para fora da igreja.
Estavam passando pelos montículos de detritos, indo para o Volkswagen no final da Rua Canaan, quando Mário surgiu correndo à porta da igreja, olhando à esquerda e à direita, brandindo o revólver.
— Voltem! — ele trovejou.
Eamon virou-se para o vulto vigoroso na moldura da porta, um vulto preso numa armadilha de malignidade tão poderosa, tão assustadora, que chegava a empenar o próprio telhado e o campanário da igreja.
Um tiro soou.
— Voltem!
Anita puxou e empurrou o padre rua abaixo, até conseguir abrir a porta do Volkswagen.
Eamon batia os dentes. Premonições de catástrofe da morte — uma morte sem absolvição nem consagração — assaltavam sua alma.
A danação eterna parecia vir galopando ao seu encontro, na forma do cientista enfurecido que passava correndo pelos montes de sujeira.
— Entre no carro, Padre! — Anita disse num cicio.
Mas, era tarde demais. Mário jogou-se para a frente, agarrou o paletó do jesuíta, e arrastou-o do assento dianteiro.
Anita soltou um grito e correu para a outra porta. Padre Malcolm ficou jogado ao chão, gemendo, coberto de pó.
Tentou segurar as pernas de Mário, que deu uma coronhada firme nos dedos do jesuíta.
O motor roncou, galhos partidos saltaram dos pneus traseiros, a dianteira do furgão ergueu-se, e quando o veículo arrancou numa nuvem de poeira, Mário foi arremessado da porta aberta.
Fazendo mira nos pneus, apoiado num joelho, três vezes Mário puxou o gatilho. Os estampidos ecoaram secos pelo pôr-do-sol. Lenta, muito lenta, por três vezes ouviu-se a resposta desdenhosa: o doce badalar do sino do campanário.
— Deus tenha piedade de você — Padre Malcolm gemeu.
O furgão descreveu um semicírculo pelo campo e alcançou a estrada. Mário devolveu o revólver ao cinto. O jesuíta o contemplava. Incrédulo, o rosto pálido e tremente.
O jesuíta arrastou-se, na direção da cidade. Mário tirou-o do chão.
— Ainda não terminamos, padre — sibilou ao ouvido do sacerdote. — Vamos voltar para dentro daquela igreja!
Puxando o jesuíta, Mário brutalmente jogou-o para dentro, para perto do altar.
O teto da igreja iluminou-se de uma luz estranha.
Mário dirigiu-se vagarosamente para a termovisão. Ficou durante muito tempo olhando para ela. Padre Malcolm percebeu a expressão horrorizada do cientista.
— O que... o que é isto? — Mário murmurou. — O QUE É ISTO?
Mário girou o suporte da câmera lentamente.
O jesuíta arrastou-se para junto da tela, contemplou chocado a imagem nitidamente definida de uma figura esquelética, com carne pendendo da testa e das costelas, desarraigada das profundezas de um túmulo, segurando alto um crucifixo.
— É a minha morte — o padre sussurrou.
Mário reclinou-se na coluna, à procura de um cigarro no bolso da camisa.
O videoteipe gravou a imagem lúgubre, desvanecente.
Era horrenda, na luta contra a terra que a mantinha prisioneira. Os dentes do esqueleto pareciam rir com esforço, elevando a cruz bem alto para o ar escuro.
— Você projetou independente de religião — Mário analisou, recobrando a calma e a segurança nesse momento de triunfo. — Sem rituais. Sem litanias. A matéria-prima.
Padre Malcolm observava em desespero.
— É a imagem da minha penitência... — tentou dizer.
— É a sua depressão. O seu desespero.
A imagem semidecomposta guardava uma impressionante semelhança com Eamon Malcolm, até em detalhes como o paletó escuro e as mechas de cabelos louros. A agonia do rosto era, indiscutivelmente, a dele.
— Nem Cristo, nem Satanás — Mário comentou com frieza, exalando uma nuvem de fumaça. Apenas os seus próprios problemas humanos.
Padre Malcolm deixou-se abater em
dolorosa compreensão diante do altar. Mário chegou a sentir-se penalizado.
— Eu creio no sinal-da-cruz — o padre gemeu.
— Pura fantasia.
A cabeça de Malcolm pendeu, quase tocando o chão.
— Eu acreditava que a igreja estivesse cheia da presença divina.
— Sublimação sexual.
Mário fumava calmamente, esperando o peso final da verdade penetrar no sacerdote e reclamá-lo. A remoção da idéia repressiva de Deus tinha aberto o caminho para a projeção direta. Isto eliminaria as reivindicações de milagre da religião. Provaria a origem desses milagres: os impulsos reprimidos de seres sexuais.
A voz do jesuíta tornava-se mais e mais embotada, embriagada, viscosa.
— Homens... santos... crêem... nos sinais...
— Ora, pois é, sinto muito, padre. Foi a sua própria natureza ingênua que acreditou nessas imagens. Psicologia pura. Nada mais.
Mário afastou do rosto insetos que não conseguia ver e que o atacavam. Febre fazia-lhe arder a fronte. Sentiu a tensão de um ligeiro "branco" se aproximando.
Padre Malcolm curvou-se, muito próximo do chão.
Irritado, Mário espantou mais insetos invisíveis. O suor escorria-lhe pelo rosto. O cigarro caiu-lhe da mão. Apoiou-se na termovisão.
— Que droga, o que é que você fica aí gemendo? — ele disse.
A voz do jesuíta parecia vir das paredes mais distantes e das vigas do teto.
— Como... você... fez...
Mário deu uma olhada no sistema de som. Na igreja levemente ondulante, a estabilidade dos instrumentos transmitia-lhe segurança.
As agulhas moviam-se delicadamente ao som da voz do padre. No entanto, os lábios do padre não se moviam.
— O que é isso? Que diabos está acontecendo? — Mário gritou.
... O mal... é a destruição... do bem ... que existe... num homem...
As palavras reverberaram fundo na mente de Mário.
A termovisão mostrava o verde-escuro da igreja fria fluindo para dentro do jesuíta, ocupando-o completamente.
— O que...? O que está acontecendo?
Mário deu alguns passos para trás, tropeçou nos cabos trançados, e foi estatelar-se sobre pranchetas, xícaras de café, e videoteipes virgens.
O vulto prostrado no chão levantou-se. Os olhos azuis empalideceram. No fundo deles surgiu um cintilar de pura malignidade, o vermelho de lava derretida. Mário viu os lábios do jesuíta se repuxarem num ricto de esqualo — um amálgama hipnótico de humor e sarcasmo satânicos.
Sob a ação de tremores espasmódicos, Mário não conseguiu sufocar o grito de terror que subiu do fundo de sua alma. Examinou a tela, na procura desesperada de uma explicação lógica. A projeção do jesuíta havia, sem dúvida, invadido sua própria mente, assim como invadira a fita infravermelha. Pior do que a febre que o atacara durante o exorcismo, mais poderosa do que a alucinação coletiva durante sua palestra.
Mário sentiu a força plena de um ódio psíquico sem disfarces emanando do jesuíta.
Na névoa instável e trovejante da visão distorcida, Mário atentamente observava o jesuíta aos pés do altar.
... O Mal... o Mal... o Mal...
Os lábios do jesuíta permaneciam imóveis. No entanto, a agulha do sistema de gravação do som se movia. As projeções eram auditivas.
Foi quando o jesuíta, destramente, fez uma linha fina de sangue na palma da mão, usando um caco de vidro da lamparina. Deixou cair uma gota no vinho. Uma segunda gota ele espalhou pela borda da patena até que se misturasse inteiramente com o alto-relevo ornamental.
— Você está pervertendo a própria missa, seu idiota! — Mário gaguejou sem forças.
O vulto mergulhara em seu pesadelo particular. Mas o pesadelo era contagioso. Mário sentiu a nave ondular lentamente quando o jesuíta atravessou a passagem central para ir lavar a mão sangrando na pia de água benta do vestíbulo. Mário cambaleou atrás dele, segurando-se à coluna.
— Volte aqui, seu miserável! — Mário gritou, lutando contra o desvario. — Ainda não terminei com você!
O jesuíta olhou para ele. Era o olhar de um ser de algum planeta diferente. Olhos malignos e apertados, fitando-o.
Não, um revólver preto. Mário reconheceu sua arma. E retrocedeu.
— Mas eu terminei com você! — Eamon disse sem rodeios.
O desvario voltou numa onda violenta, multiplicada pelo pânico. Mário foi andando para trás, passou pelos instrumentos. A centelha escarlate nos olhos do padre era da cor de gotas de sangue.
... O Mal... é a sistemática destruição do bem ... que existe ... num homem ...
E, ainda assim, os lábios do jesuíta não se moviam. A igreja ecoava sons de pensamento não exprimido. Eamon cautelosamente acompanhava cada movimento de Mário pelas sombras dos instrumentos.
— Nós... nós podíamos fazer uso um do outro ... — Mário propôs, sem jeito, pálido e tremendo.
Eamon deu um sorriso matreiro.
— Eu não preciso de você para nada — ele disse, firmando o revólver com as duas mãos.
Mário tropeçou. Algo atingiu sua cabeça. As lentes da termovisão.
O aparelho vomitava imagens.
Vultos cruciformes, cabeças de bode, e, superposta sobre todas elas, a figura esquelética desesperadamente erguendo o crucifixo numa missão que não era desta terra.
Um tiro explodiu. Mário ouviu o projétil passar pela nave gótica. O papel do sismógrafo soltou-se, rolando aos saltos pelo chão da igreja.
— Ah, meu Deus... — Mário exclamou. — Meus instrumentos...
E sua última muralha, seu último refúgio, desmoronou à vista dos instrumentos em rebelião, da ciência submissa ao poder da ilusão. Mário foi cair sobre o sistema de gravação de som. O playblack estava ligado.
Gerasma — J-J-J-es — teralpia — o — teralpia — agora — perima — ima — ima — Sua própria voz, falando línguas, no soalho do auditório de Harvard.
G-G-Gerasma — meta — lata — alfa — — NÃO! — ele berrou.
A agulha do sistema de registro de temperatura ia para cima e para baixo, para cima e para baixo, oscilando preguiçosamente, sob o controle do jesuíta.
Eamon sorriu. Um vapor azulado desprendeu-se de seus lábios. E, ao erguer o revólver pela segunda vez, Mário notou que a cor das luminescências azuis era igual à do hálito do jesuíta.
Realidade objetiva e distorção psíquica fundiram-se subitamente. Mário viu-se correndo, correndo, correndo para fora do vestíbulo, aspirando profundamente o gelado ar da noite.
— Anita! Anita! Ajude-me! — ele gritou, sem qualquer resquício de controle racional.
Mário tropeçava pela alameda da igreja. Na porta, Eamon estava parado. O vulto era quase inumano. Possuía a malignidade da figura do bode. Muito lentamente, levantou o revólver num punho firme, preternatural.
— Obrigado, seu otário! Você trabalhou direitinho!
Relampejou, os olhos do jesuíta cintilaram vermelhos, e o vale ecoou a gargalhada vibrante e selvagem quando a arma disparou.
CAPITULO DEZOITO
O JATO do Vaticano atingiu a velocidade de cruzeiro a 34.000 pés de altitude e fez a volta para atravessar o Oceano Atlântico.
Na cabine de vante sentavam-se seis jesuítas, um assistente administrativo e o subsecretário de estado para o Vaticano. Os jesuítas mantinham-se muito ocupados escrevendo, ou batendo à máquina, ou ainda entretendo-se em conversas. O subsecretário e seu assistente faziam anotações a lápis para a agenda de Quebec.
Na cabine de ré, duas poltronas com forro de camurça tinham gravadas a coroa e as chaves papais. Sentado do lado esquerdo, Cardeal Bellocchi escrevia parágrafos à margem de documentos datilografados. Estalou os dedos e imediatamente um jesuíta apresentou-se. Logo, o ruído da máquina de escrever enchia o ar.
Na outra poltrona, Francisco Xavier retirou os óculos, friccionou a ponte do nariz, e depositou seus documentos no tampo da mesa.
— Tanta perfeição no céu — ele devaneou, fitando as nuvens tingidas de tons rosados e alaranjados do sol da tarde. — E tamanha confusão aqui embaixo.
Cardeal Bellocchi sorriu.
— É verdade, Vossa Santidade. Nossa missão é acabar com a confusão.
Francisco Xavier caiu num estado de sonolência e fadiga, descansando e esquentando-se ao sol que penetrava através da espessura dupla das janelas. Visões do passado vieram-lhe à mente.
Uma cena em San Rignazzi: um estouro de negras serpentes, escapando de pedras brancas sob as plantações de oliveiras.
Aconteceu na tarde, há quase 40 anos, em que Guido Baldoni, tio de Giacomo, cortou ao meio, com a foice, um ninho de víboras ao calor do sol. O camponês magro e profundamente religioso gritou e entrou correndo em San Rignazzi. Com três mordidas de cobra na perna e duas no braço, ele foi cair, tremendo como um cão, à porta da igreja.
Em seguida, vieram convulsões mais fortes, e ele acabou morrendo do fogo que ardia em seu cérebro.
E este foi o primeiro encontro de Giacomo com Satanás.
Outra cena da terra quente e estéril: a vizinha de Giacomo, mãe de um padre, envolta em trapos negros e afogada em seu próprio catarro, contorcendo-se num colchão de palha. Sobre a parede manchada, perto de seu rosto, pairava uma sombra alada. Giacomo já a vira antes: sobre o cadáver do tio. Quando as asas pousaram sobre a mulher, a respiração cessou.
A dura guerra de reconquistar territórios para Cristo apresentava uma série de obstáculos. Nas aranhas que infestavam os sacos de azeitonas, na morte de criancinhas ainda pagãs, nos troncos apodrecidos dos olivais, o jovem Giacomo via o avanço firme de Satanás pela paisagem.
A canção de Satanás borbulhava em gargantas onde rios escuros corriam entre árvores mortas, retorcidas, e alvas rochas.
Ossos calcinados de bodes brilhavam triunfantes, cobertos de moscas, pelos montes.
O jato do Vaticano entrou numa turbulência. Francisco Xavier viu Cardeal Bellocchi curvando-se sobre ele para tocar-lhe o braço com delicadeza.
— Vossa Santidade adormeceu.
Francisco Xavier esfregou os olhos.
— Sonhei que era, de novo, uma criança em San Rignazzi. A criança percebe tanto o Mal como o Bem, com olhos puros.
Cardeal Bellocchi sorriu. Francisco Xavier resvalou para um estado de espírito calmo e receptivo.
Uma cena do Seminário de Bolonha: o obstinado padre siciliano, Giacomo Baldoni, tarde da noite, na biblioteca sufocante, cercado por inquisidores jesuítas, encurralado numa posição de heresia.
De volta a San Rignazzi, viu a sombra alada pousando sobre o casaco do pai. Naquela noite, o vigoroso camponês Luigi Baldoni levantou-se do leito e pôs-se a gritar. Cuspindo sangue, cambaleante, foi cair entre pratos de cozinha, dando pontapés em panelas de ferro, mas os pulmões romperam-se com maior rapidez do que pareceria possível. O pai de Giacomo tombou, metade do corpo estirado na rua poeirenta de San Rignazzi, a mais de 50 metros da igreja.
Ao desvanecer-se no beco em frente, a sombra alada virou-se para o Padre Giacomo com um sorriso ardiloso.
— Vossa Santidade — murmurou o assistente do Papa.
Assustado, Francisco Xavier abriu os olhos. Depois, com um sorriso gentil, apanhou as laudas de papel, leu-as superficialmente, e as rubricou. O assistente fez sua reverência e levou os papéis de volta para a cabine de vante.
O jato do Vaticano oscilou levemente em tênues farrapos de nuvens e depois penetrou no fulgor denso do crepúsculo.
— A senhora sua mãe ainda está entre nós? — Cardeal Bellocchi indagou, vendo que os dedos de Francisco Xavier se enroscavam no rosário negro. Francisco Xavier sorriu.
— Está. Tem 83 anos de idade e ainda trabalha nos olivais. Mulher admirável.
Cardeal Bellocchi deu um sorriso amigo.
— Foi ela quem me transmitiu sua fé — Francisco Xavier confidenciou. — Há muito tempo.
O cardeal observou o rosto sutilmente mercurial do rapa. Capaz dos mais suaves gestos e das frases mais espirituais, estava, ainda assim, obcecado com o decisivo conclave de Quebec.
— E Vossa Santidade transmitiu essa fé a milhões de pessoas — Cardeal Bellocchi comentou.
— Sou apenas um padre.
Cardeal Bellocchi sacudiu-se numa risadinha silenciosa.
— Mas, apenas o padre de Roma é infalível — disse com doçura.
— Ninguém é infalível.
Ao celebrar sua primeira missa, Francisco Xavier recordou com embaraço, o vacilante Padre Baldoni que, por puro nervosismo, derramara vinho consagrado sobre o chão de pedras da igreja de San Rignazzi.
— Mas Vossa Santidade confia diretamente no Espírito Santo, de modo mais íntimo do que o padre de uma paróquia.
— Sou apenas um padre.
Cardeal Bellocchi admirou a franqueza da humildade de Francisco Xavier. As massas humanas o adoravam, porque percebiam no siciliano alguém mais perto de ser um santo do que de ser um homem.
— É para Vossa Santidade, e somente para Vossa Santidade, que a Igreja e também um bilhão de almas se voltam.
— Outros existem que também me observam — e um tom de premonição insinuou-se na voz do papa.
*
Em Bolonha: na cripta da grande igreja, Bispo Baldoni, incógnito, rezava de joelhos junto a outros peregrinos, e as sombras lançadas pelas tochas acesas coleavam pelo chão de pedras, e ele murmurava num momento de êxtase.
Era uma vigília noturna, e ele mergulhou em níveis mais e mais profundos de meditação. De súbito, um sussurro penetrou sua mente.
Deixa este lugar, pois um dia serás papa.
O coração de Baldoni estremeceu. Envolvendo os ombros com a capa preta, ele saiu rapidamente, pulando por cima de um emaranhado de pernas e sapatos dos humildes peregrinos franceses. A cripta estava úmida e infectada. m três semanas, dezessete pessoas tinham contraído a virose.
Antes que o contágio enfraquecesse, dez estavam mortas.
Seria uma mensagem de Cristo? Ou seria o teste secreto de Satanás para medir sua ambição, pela qual dez almas se haviam perdido?
*
Francisco Xavier ficou de olhos muito abertos. Seus punhos se fecharam. Pela janela, contemplou as nuvens noturnas.
A tinta dentro do tinteiro do jesuíta mais próximo esguichou de repente. Os dedos do atônito sacerdote gotejavam o líquido negro.
— Jesu figlio, Maria... — O jesuíta murmurou, e pôs-se a limpar a mão numa toalha de papel.
O jato roncava macio, sonolentamente, sacolejando, de vez em quando, nas nuvens da noite.
Depois, em rápida sucessão, as tampas de todos os tinteiros dos restantes oito jesuítas saltaram. Cascatas negras jorraram, manchando batinas, e paredes, e o carpete com a insígnia do Vaticano.
Perplexos, os jesuítas contemplaram a desordem.
— São as novas tampas pressurizadas dos tinteiros — explicou o subsecretário, um intelectual florentino de feições aquilinas. — A pressão da cabine baixou devido à tempestade.
Fulgores de relâmpagos iluminaram os jesuítas, de quatro pelo chão, limpando o carpete e as poltronas, com o auxílio de esponjas e toalhas que trouxeram do lavatório.
Francisco Xavier cutucou Cardeal Bellocchi e apontou para o tinteiro do cardeal. Na mesma hora, o cardeal cobriu o vidro com uma toalha branca. Um estouro abafado foi ouvido, e uma mancha negro-azulada vazou entre os dedos médio e anular do cardeal.
— A humanidade não foi feita para elevar-se tão alto na direção de Deus — Francisco Xavier comentou suavemente.
— Nossa aproximação causou o protesto visível do Espírito Santo.
E, de fato, os filamentos de tinta espalhados pelas paredes lembravam a caligrafia enfeitada de manuscritos monásticos.
Cardeal Bellocchi riu com vontade, sorriu para Francisco Xavier com afeição, e delicadamente recolheu a toalha suja e o vidro de tinta num saco plástico sob a mesa.
A mais remota lembrança: a mãe de Giacomo, prematuramente encanecida, explicava, na escura casa de pedra, que Cristo se empenhava em constantes combates, nos Céus, nos mares, e nas cidades, contra Satanás.
À luz da vela, explicava a Giacomo, preso ao leito com uma febre, que quando Cristo triunfasse, as pessoas boas e decentes viveriam para sempre, sem doença ou dor, na glória e na justiça da mão direita de Jesus.
Na leve crise de delírio, Giacomo, então com cinco anos, fez a promessa de ordenar-se padre e tornar-se o lugar-tenente de Cristo.
Ao acariciar-lhe os cabelos, a mãe de Giacomo franziu a testa, preocupada: percebera a extensão da vulnerabilidade nos altivos olhos cinzentos de seu filho mais novo.
O jato do Vaticano roncava contra os ventos de proa. E, na cabine de vante da aeronave, os jesuítas apertaram os cintos de segurança. Cardeal Bellocchi fingia dormir. Não adiantava. Virou o rosto.
Francisco Xavier estava mergulhado em seus pensamentos, rememorando o estranho desenrolar dos acontecimentos que o haviam acompanhado na longa escalada para o papado, e que, mesmo agora, o tornava sombrio, na véspera do conclave de Quebec.
— No dia em que atingi o cardinalato — ele disse — cheguei a Bogotá e celebrei uma missa campal com 27 sacerdotes, muitos deles índios, e todos recentemente batizados por nossos missionários na cordilheira.
Francisco Xavier voltou-se para o cardeal.
— Todos os 27 padres foram abatidos pelo governo militar. Por quê? Por que Satanás comemorou o meu cardinalato com 27 almas?
Cardeal Bellocchi percebeu que o estado de espírito melancólico voltava.
Tentou um sorriso de encorajamento.
— Ouvi dizer que na Sicília, as imagens de cera de Vossa Santidade foram postas em igrejas, enfeitadas de florezinhas e folhas verdes. Casais idosos curaram-se de glaucoma, Sem dúvida, esse é um sinal mais verdadeiro.
Francisco Xavier gentilmente acariciava o rosário negro.
Seu peso, momentaneamente inexistente na capela papal, era agora reconfortante entre seus dedos.
Tudo o que disse foi: — O milênio, Cardeal Bellocchi, está próximo.
Se chegou ou não a adormecer no jato que resfolegava e enfrentava os elementos, Francisco Xavier não o sabia. O ar simplesmente tornou-se mais escuro, e o vento zunia sobre as asas de aço.
A tempestade empurrava o jato para o sul, e, continuamente, os pilotos bordejavam para dentro da chuva ululante.
Uma série de explosões trouxe-o, assustado, de volta à realidade. As lâmpadas âmbar das paredes haviam se apagado, uma após outra, numa espécie de destruição cadenciada. Os jesuítas fitavam, incrédulos, as lascas de matéria plástica sobre a insígnia papal no carpete.
Muitos se persignaram.
Ao apagarem-se as luzes, um silêncio singular dominou o jato do Vaticano, apesar do tamborilar nas asas que vibravam e nas janelas.
Luminescências azuis, frias e ovais, deslizavam pelas paredes forradas de couro e pelas poltronas de camurça da cabine de vante, caçando, escorregando, buscando, na direção da popa, na atmosfera gélida que se instalou.
Os prelados observaram as luminescências ovais tornarem-se transparentes, resvalando pelas máquinas de escrever, pelo peito do subsecretário, e descendo da porta da cabine de comando.
Francisco Xavier ergueu dois dedos da mão direita, demonstrando a autoridade de seu posto.
— É um sinal — ele tranquilizou — que não tememos.
As luminescências refletiram-se nas vidraças grossas, e desapareceram na chuva e no frio da noite.
Os jesuítas trocaram olhares e caminharam pelo carpete espesso para seus lugares. Durante um momento, ficaram sentados no escuro. As luzes começaram a piscar, e daí a pouco acenderam-se. Contudo, ninguém se sentiu capaz de reiniciar o trabalho.
A porta da cabine de comando abriu-se. O co-piloto curvou-se diante do subsecretário, que meneou a cabeça, e os jesuítas viram o co-piloto retornar ao seu lugar.
— Não fique assustado — Francisco Xavier disse ao Cardeal Bellocchi.
A porta da cabine tornou a abrir-se. O co-piloto gesticulou agitadamente na direção da cabine de ré. O subsecretário cochichou com seu assistente, que tirou do armário um telefone branco, de pequenas proporções, e um catálogo; depois levantou-se da poltrona com esforço.
Para contrabalançar as imprevisíveis e nauseantes perdas de altitude, o subsecretário ia se equilibrando na direção do papa, cruzando a cabine de vante, lutando contra a vertigem.
— Vossa Santidade — ele disse, durante uma ausência repentina de vento sibilante. — O combustível já não dá para chegarmos a Quebec.
Os jesuítas, tomados de pânico, fitaram o subsecretário.
— Os contatos pelo rádio não estão bons. O co-piloto está procurando um aeroporto alternativo na Terra Nova.
— Não pousaremos na Terra Nova — Francisco Xavier replicou.
Em dúvida quanto ao significado do comentário de Sua Santidade, o subsecretário virou-se para Cardeal Bellocchi. O Núncio não lhe deu qualquer indicação.
— Manterei Vossa Santidade informado dos acontecimentos — ele disse.
O subsecretário voltou para junto de seu assistente, que tentava, sem sucesso, acordar a catedral de Quebec.
O ronco da aeronave era irregular, colidindo com massas de ar, empurrado sempre para o sul, e o gelo, agora, constituía uma carga extra nas brancas asas do avião.
— Nossos irmãos estão assustados — Cardeal Bellocchi comentou.
Pânico sussurrado circulava rapidamente pela cabine de vante. Apesar dos ruídos do subsecretário, batendo na mesa, primeiro com o lápis e depois com os nós dos dedos, os jesuítas fitavam as janelas fustigadas pelo gelo, e gemiam. O co-piloto abriu a porta da cabine. Seu rosto estava branco, e foi com boca seca e lábios rachados que ele cochichou com o subsecretário.
O subsecretário abriu caminho até a porta da cabine de ré.
— O combustível não é suficiente para chegarmos à Terra Nova!
Francisco Xavier ficou em silêncio.
O subsecretário abriu caminho, passando pelos jesuítas que não tiravam os olhos de cima dele.
Cardeal Bellocchi, nervoso, deixava correr as contas de seu próprio rosário, ao lado da janela coberta de gelo.
Quando o jato perdeu altitude, a sensação era de estarem deslizando. Os ventos amainaram.
— Está vendo? — disse o subsecretário entusiasmado. — A própria tempestade se acalma para a segurança de Vossa Santidade!
O rugido sólido de ar congelado dobrou em ângulo a fuselagem. Pastas, mantas, travesseiros, e máquinas de escrever, cascatearam ao redor dos jesuítas, indo colidir com copos quebrados.
O subsecretário e seu assistente folheavam desesperados as páginas do catálogo com capa espiral, do Vaticano. Furioso, o assistente bateu o contato do telefone e berrou ao receptor.
A porta da cabine de comando abriu-se.
— O que é agora? — o subsecretário perguntou, a voz cheia de medo.
A voz do co-piloto perdeu-se na tempestade. Com grande determinação, o subsecretário abriu caminho, pela última vez, para a cabine papal.
— Boston vai receber o jato.
Um suspiro coletivo de alívio flutuou pela cabine de vante.
O subsecretário, percebendo a estranha reação tanto do papa como do cardeal, fez uma reverência e retirou-se.
— A carta veio de Boston — Francisco Xavier comentou serenamente.
— É verdade.
— Talvez estejamos dando nossa resposta.
Nesse instante, intensa atividade eclodiu na cabine de vante. O subsecretário conseguia contato com a catedral de Boston.
Um jato militar americano, exibindo a estrela na asa rombuda, e depois um outro jato, bordejaram as nuvens e aproximaram-se, para escoltá-los na descida pelo litoral de Massachusetts, açoitado pela tormenta.
Os três jatos começavam, agora, a descida, rapidamente angulando a densa força da tempestade. Rádio e telefone vibravam com as arrastadas vozes americanas.
— Creio que aconteceu uma tragédia — um jesuíta anunciou, aparecendo, de repente, na porta da cabine de ré.
— Uma tragédia? — surpreendeu-se Cardeal Bellocchi.
— O bispo de Boston, Bispo Lyons, está internado na terapia intensiva.
Cardeal Bellocchi ficou de queixo caído.
— Mas estive com ele há apenas poucos dias! — exclamou. — Ele estava em plena forma!
— Um acidente vascular, Vossa Reverendíssima. Não um enfarte. Estão investigando a cavidade craniana à procura de um tumor maligno.
Cardeal Bellocchi persignou-se delicadamente, enquanto fazia uma oração silenciosa pela recuperação do bispo. Do lado de fora, o vento urrava, como cães ganindo, pelas asas inclinadas.
— Não fique tão assustado, Cardeal Bellocchi — Francisco Xavier disse com doçura. — Todos os homens são vulneráveis.
Cardeal Bellocchi tentou sorrir.
— Apenas lamento que entre o nascimento e a morte, que é quando se busca a salvação em Cristo, tanto sofrimento esteja reservado à humanidade.
— É a consequência do pecado original.
— Decerto que sim.
— Que perdurará até a Segunda Encarnação de Nosso Senhor Jesus Cristo.
O imenso clarão de um relâmpago banhou as cabines, tão intenso, tão próximo, que transformou os vultos dos jesuítas em sombras reversas.
Por um momento, a cena pareceu o negativo de uma fotografia.
As nuvens se apartaram, os cargueiros tornaram-se visíveis nas escuras águas embaixo, e, então, muito mais cedo do que o Cardeal Bellocchi acharia possível, as longas luzes e a pista de concreto surgiram quando o jato manobrou para a aterrissagem.
As luzes vermelhas rotativas de ambulâncias e carros de incêndio alinhavam-se ao longo das pistas.
Os jatos militares alçaram vôo e afastaram-se, quando o jato do Vaticano tocou, em grande velocidade, o concreto da pista.
O esteio da roda direita rachou. Tudo parecia curiosamente em suspensão, e, de repente, uma explosão de metal, guinchando, protestando, arrebentou a fuselagem.
— Oh, Dio Dio Jesu... — gritaram.
Cardeal Bellocchi olhava, perplexo, pela janela. A torre de controle parecia girar preguiçosamente ao redor deles.
Carne humana tomava a cor verde ou amarela ao passar das luzes do aeroporto. A espuma escorreu, curvou-se e jorrou das mangueiras para as entranhas do jato.
O nariz da aeronave do Vaticano embicou, levantou-se, endireitou-se e com um arranco de dar náuseas, como se um cabo de aço o prendesse pela popa, parou.
— Oh, Dio Jesu...
Cardeal Bellocchi pôs-se a enxugar, com vigor, a transpiração da fronte. Seu coração batia descompassado, os ventrículos perdendo algumas pulsações. Um tique nervoso forçava seus lábios a se abrirem, num arremedo grotesco de sorriso.
Limusines e carros da polícia correram para o jato avariado. Toda a pista animou-se, de repente, com grupos de homens vestidos de amarelo, correndo pela chuva na direção da fumegante roda dianteira.
Piloto e co-piloto saíram da cabine, extremamente nervosos, mas sorridentes, de polegares para cima, e os jesuítas aplaudiram.
— Chegamos, Vossa Santidade — Cardeal Bellocchi anunciou.
Uma calma invulgar fê-lo voltar-se para a figura em branco e dourado de Francisco Xavier, aquele ser humano a quem amava mais do que a si mesmo, cujo destino ele temia mais do que ao seu próprio, e nada disse, mas olhos cinzentos faiscaram, e ele ouviu: — Ainda não, meu caro Núncio — Francisco Xavier sussurrou com intensidade. — Ainda não!
A dúvida, a melancolia, a introspecção haviam desaparecido. Uma segurança profunda e carismática fluía de forma quase palpável do vulto de Francisco Xavier.
Cardeal Bellocchi contemplou-o, tomado de surpresa.
Lençóis de chuva castigavam o aeroporto. Francisco Xavier notou as nuvens negras em redemoinho sobre as luzes da cidade, e as vastidões de chuva sobre o negro oceano arfante. Vozes falando línguas, de todos ignoradas, agitavam o ar.
Sob os clarões escarlates, as luzes vermelhas rotativas, as lâmpadas a mercúrio, homens trabalhavam no temporal.
Olhares sombrios, uniformes encharcados. Francisco Xavier teve, através da água que chicoteava a torre de controle, o pressentimento da tempestade maior que acabaria por eliminar as pesadas cargas de cada um.
Imagem vinda do futuro: um esqueleto, com fragmentos de casaco escuro e mechas de cabelo claro, lutando para sair do túmulo, erguendo alto uma cruz dourada.
Certamente era um sinal.
Francisco Xavier mexeu-se irrequieto quando as cadeiras de roda foram trazidas para bordo do jato, e o bispo de Boston em exercício chegou numa limusine preta escoltada por duas filas de policiais.
— Ainda não, meu caro Núncio — ele murmurou de novo, e seus olhos se tornaram profundos pela visão incomum. — Ainda não!
CAPITULO DEZENOVE
LENÇÓIS DE CHUVA desabavam sobre as longas casas coloniais dos bairros de Cambridge. As persianas verde-escuras matraqueavam na tempestade noturna e os sinais luminosos tremulavam sob a chuva implacável. Galhos de árvores caíam e se quebravam pelas ruas largas e imaculadas.
Anita estacionou o furgão branco em frente ao n° 355 da Avenida Bilgaren. Pelo vaivém dos limpadores do pára-brisa, ela contemplou a residência, coberta de hera e com espaçosos gramados, do Deão Osborne. Um lustre estava aceso no vestíbulo e uma lareira refletia-se, parcialmente, pelas cortinas fechadas de veludo verde ao redor de uma janela redonda.
Ela cobriu o rosto com as mãos. A chuva açoitava impiedosamente o teto do furgão. Tudo o que sua memória conservava era a visão de Mário, parado à porta da igreja, segurando o revólver, e depois, Eamon Malcolm, arrancado do furgão e jogado ao chão, gemendo.
A polícia não poderia encerrar a experiência. Mário havia se envolvido demais para permiti-lo. E era louco o bastante para usar aquela arma contra as autoridades. Quem mais? Quem mais, nesta terra de Deus, poderia dissuadir Mário de aniquilar o sacerdote? Anita sabia, mas também sabia que, ao buscar esse auxílio, estaria, ao mesmo tempo, destruindo tudo o que já representara para Mário.
Não havia alternativa. Anita atravessou a rua, e um trovão ribombou profundo e poderoso pelos jardins desertos e encharcados; folhas secas batiam-lhe no rosto. Quando alcançou a porta de entrada da casa do Deão Osborne, seus cabelos longos e negros estavam ensopados e pesados da água da chuva.
Apertou a campainha, que imitava uma pérola, nada ouviu, e bateu a aldraba sobre a placa de metal onde se lia "Osborne". Bateu, e bateu de novo. A vidraça de uma janela do andar superior iluminou-se, passadas tornaram-se audíveis, e Emily Osborne, esposa do deão, vestindo um luxuoso robe de seda, abriu a porta com cautela.
— Ora se não é Anita Wagner...
— Sinto muitíssimo — Anita disse, sem graça. — Sei que já é muito tarde. O Deão está acordado?
— Sim. Esta no escritório.
A Sra. Osborne hesitou. Ao examinar a mulher mais jovem, filha de sua antiga rival, havia nela um laivo de cautela, e, mesmo, poder-se-ia dizer, de desconfiança.
Depois, sorriu de modo artificial e convidou Anita a entrar.
Anita esperou, tremendo de frio, pingando água no tapete Aubusson.
A luz do lustre era mortiça e amarela, o que a fez lembrar-se da lamparina do altar. O guarda-chuva preto do Deão Osborne descansava num cabide de madeira, e suas galochas secavam sobre um capacho de borracha. A tormenta varrendo o arvoredo no jardim atrás da casa fazia com que as árvores rangessem ameaçadoramente para a rua.
A Sra. Osborne voltou do escritório, sorriu educada mas friamente, e retirou-se para uma copa ao lado da cozinha.
Deão Osborne, vestindo um pesado suéter marrom e calças pretas, apareceu no vestíbulo.
Entendeu imediatamente que algo de terrível trouxera Anita sozinha à sua casa.
— Por favor — ele disse, indicando o escritório.
Anita entrou na sala ampla, coberta por um espesso carpete. Uma lareira alta ardia alegre sob um mantel de mármore, e vários relógios antigos de cobre moviam-se silenciosamente por sofisticados mecanismos em miniatura.
Águas-fortes, retratando marinhas do litoral de Massachusetts, alinhavam-se pelas paredes da biblioteca, e um imenso Frankenthaler dominava a área atrás da escrivaninha de mogno preto.
Acanhado, o Deão a contemplava. Ela estava parada, ainda pingando água, à porta.
Era a imagem da mãe, há vinte anos, a bela jovem de negros cabelos e grande arrogância que dispensava o auxílio de qualquer coisa ou qualquer pessoa, a fim de alcançar a plenitude de sua própria natureza.
Com uma diferença: Anita precisava de alguém, agora.
— Venha se secar ao fogo — ele convidou gentilmente.
Ela foi, hesitante, para junto das chamas douradas que também pareciam lançar o mesmo calor doentio da lamparina do altar.
— Vim pedir seu auxílio — ela disse.
Deão Osborne ponderou. Havia coisas que não poderia alterar, mesmo para atender a um apelo pessoal. Foi até a estante de sua biblioteca, pegou dois cálices e serviu um pouquinho de conhaque Napoleão em cada um.
Entregou um dos cálices a Anita.
— Durante sete anos protegi Mário — ele comentou suavemente. — Não posso mais fazê-lo.
— Não foi por isso que vim.
Deão Osborne levantou um supercílio. Sentou-se numa poltrona de couro preto, ao pé da lareira. Na mesa, diante do abajur, havia uma fotografia assinada pelo grupo de genética responsável pelo desenvolvimento do modelo do DNA.
— Então, o que é, Anita?
Ela, recusando sentar-se, em resposta a um gesto do deão que lhe indicou a poltrona defronte a ele, tomou um gole de conhaque. O calor da bebida pegou-a de surpresa.
Ela inspirou, ainda incapaz de encará-lo, e ficou contemplando as sugestivas metamorfoses do fogo na lareira — Mário está aniquilando um homem bom e decente. Um jesuíta — ela disse lentamente.
O rosto do Deão Osborne contorceu-se e seus olhos pareceram ficar mais escuros contra o fulgor vermelho da lareira.
— Eu sei. E foi uma das razões pelas quais cancelei o projeto.
— O pior, Deão Osborne — ela continuou, numa voz esquisita e sem expressão, — é que Mário está tendo resultados com a destruição do padre.
— Não entendo, Anita.
— Mário conseguiu projeções psíquicas diretas daquele homem. O mesmo tipo de imagens das que existem nos teipes que o senhor está guardando.
— Aquelas imagens não eram projeções, Anita. Eram uma espécie qualquer de pornografia.
— Não, não. Não estou falando do que o senhor viu; mas, do que está de fato gravado nos slides. A coisa real, Deão Osborne. A coisa de fato.
Sentindo-se culpado, Deão Osborne mudou o peso do corpo na poltrona, tentando mascarar seus sentimentos atrás de um sorriso gentil. Anita constituía .um enigma para ele. Uma moça linda demais para ficar com Mário, um intelecto refinado demais para deixar-se engambelar pela parapsicologia. E, agora, mostrava uma secreta obsessão teimosa.
— Não acredito — disse ele, sem rodeios.
— Uma daquelas imagens era bem semelhante à crucificação.
— Esse era o peixe que Mário tentou vender. Joguei-o para fora do meu gabinete.
— Pois era a pura verdade.
Deão Osborne guardou silêncio. Anita afastou-se lentamente da lareira, correndo o dedo pelos reluzentes relógios de cobre, nos quais os movimentos internos pareciam perfeitos demais, sofisticados demais para o mundo sem fronteiras que Mário havia descortinado em Cataratas do Gólgota.
— Na sexta-feira, uma outra imagem surgiu na tela da termovisão.
Deão Osborne engoliu em seco. Foi buscar um charuto numa caixa florentina lavrada. Remexeu entre livros e papéis sobre a escrivaninha à procura de um cortador.
— Que tipo de imagem?
— Satânica.
Deão Osborne acendeu o charuto, e a chama provocou sombras em sua testa.
— Parece que esse padre é uma espécie de conduíte santo entre o céu e o inferno — ele comentou com secura, jogando cinzas na lareira. Debruçou-se, consciente da presença feminina perto da parede, e nem sequer havia necessidade de olhar para ela. Uma singular intimidade, nascida do conflito e da simpatia, os unia. Suas sombras voaram pelo escritório, para longe da lareira.
— Olhe aqui, Anita — ele disse irritado. — Vi as imagens que Mário exibiu na palestra.
Eram incoerentes.
Embaraçosas. Pornográficas. Não havia Cristo algum no meio delas. E ele alegou que estávamos todos sofrendo alucinações. — Virou para ela. — Você não vai querer que eu concorde com ele, vai? — acrescentou.
O silêncio dela, seu olhar agitado e melancólico, eram uma afirmação que o deão achava desconcertante. E, ele pensou: esta é a nova raça — uma mente superior que recusava esconder-se sob os estratagemas familiares da feminilidade. Era vontade contra vontade, intelecto contra intelecto. Uma violação dos códigos mais sutis nos quais tinha sido educado.
Sentiu-se estranhamente perdido. Desandou a raciocinar depressa, tentando achar um meio de mantê-la sob controle.
— Não posso proteger Mário — repetiu. — Ele está acabado. Liquidado. Pelo menos, no que diz respeito a Harvard.
— É o padre que eu quero que o senhor proteja.
Deão Osborne voltou a fitá-la. As dimensões daquela mulher o deixavam desnorteado. Ele nem mesmo poderia começar a fazer idéia do que ela devia ter sofrido em Cataratas do Gólgota, ou do que estava sofrendo agora.
— O padre é uma das pessoas melhores, mais sinceras que já conheci — ela disse docemente. — Mário o está estraçalhando.
— Não sei o que eu possa fazer a respeito.
Ela virou-se com simplicidade, não num pedido, mas numa ordem.
— Vá a Cataratas do Gólgota. Diga a Mário que aceita a prova dele. Assim, ele não precisa mais destruir o padre.
Deão Osborne viu-se invadido por emoções confusas e conflitantes.
— ... esta noite — Anita acrescentou friamente.
— Esta noite? Mas, eu não posso. Não o farei. há um temporal lá fora. Anita...
— O padre está à beira de um colapso irreversível.
Deão Osborne trancou os maxilares. Seu senso natural de misericórdia conflitava com ódio profundo e indestrutível que nutria em relação a Mário. Fitou-a com olhar desalentado, e depois olhou para as chamas na lereira.
— Dizer a Mário que aceito a prova dele? — resmungou.
— Readmiti-lo? Depois de toda a humilhação que ele me causou? Aquela humilhação total e horrível!
Anita chegou-se para junto dele, pondo-se entre o deão e a lareira, os olhos dela destruindo as barreiras dele.
— Como supervisor do projeto, o senhor seria responsável por qualquer mal que ocorresse ao padre.
Deão Osborne parou, lançou-lhe um olhar irritado, e engoliu o resto do conhaque. Pegou a garrafa e serviu-se de outra dose.
— Não vou dirigir para Cataratas do Gólgota — ele teimou. — Fica a mais de duas horas de distância e há um furacão lá fora.
— O padre está começando a dissociar a personalidade!
Está desorientado! Pelo que sei, talvez já nem haja mais o que fazer!
— Telefone para a catedral. O problema é deles.
— Não posso telefonar para a catedral.
Surpreso, Deão Osborne girou nos calcanhares.
— Por que não?
Anita desviou o olhar. Estava emoldurada pela janela redonda, e atrás dela, gemendo, a tempestade lançava folhas e chuva cintilando na luz.
— Ele fugiu da absolvição. Pode não parecer muito para nós. Mas, para a Igreja, isto é um pecado mortal. Ele teria que penitenciar-se.
Deão Osborne sacudiu a cabeça, aturdido.
— Quem sabe é disso mesmo que ele precisa.
— Ele precisa é do nosso auxílio. E precisa desse auxílio ainda esta noite.
Deão Osborne foi até a escrivaninha, andando muito devagar, e parou, tomando o conhaque.
— Com uma condição — disse ele.
Anita levantou a cabeça, agudamente consciente da mudança no tom de voz.
— Qual? — ela perguntou.
— Desista da parapsicologia.
Ela o fitou, cheia de raiva e de curiosidade. Ele deu um passo em sua direção.
— Desista dela, Anita. Você está vendo o que a parapsicologia fez com o padre. Viu como transformou Mário num monstro.
— Mário é o intelecto mais brilhante de toda Harvard.
— A ciência dele não passa de maquiavelismo — Deão Osborne declarou com vigor. — Ele brinca de ditador com a mente das outras pessoas.
— Tem razão. Ele manipula. É violento. É mal-educado e grosseiro. Hoje à noite, tentou furar a tiros os pneus do furgão para impedir que eu viesse para cá.
Deão Osborne, chocado, limitou-se a fitá-la, admirado com o jeito calmo e impessoal com que relatava tamanha violência. E ela o contemplava com um olhar contundente, de tamanha beleza, tamanha segurança, que ele sentiu-se violentado.
— Mas quanto aos teipes e slides ele está certo!
Repugnado, o deão virou a cabeça.
— Não acredito em você.
E sentou-se, obstinado, à escrivaninha. Anita passou os dedos pelos volumes escuros e empoeirados da biblioteca. E seus olhos tomaram uma expressão singular. Foi até o interruptor de luz na parede, acendeu as luzes da biblioteca, uma a uma, até que uma série de lâmpadas amarelas, em delicados lustres invertidos, iluminassem as sólidas fileiras de periódicos, textos e ensaios colecionados.
— Deão Osborne, o senhor já foi um cientista.
Perplexo, furioso, ele fez menção de dizer alguma coisa, mas deixou que as palavras morressem. O pó que cobria os livros, escorrendo pelos dedos dela ao segurar os volumes contra a luz, era sobremaneira eloquente.
— Aptidão científica não é um defeito congênito — ele brincou, sem convicção.
Os retratos de homens ilustres, nas paredes, chamaram-lhe a atenção, e fê-lo virar o rosto.
— O desejo de saber, de entender, nunca acaba — ele disse, dirigindo-se mais aos quadros do que a Anita. — Mas, o impulso... alguma coisa aqui dentro... morre depressa...
Anita apanhou um volume encadernado que, sozinho, ocupava um dos nichos. Era a tese de doutorado de Osborne. Psicologia do comportamento. Deão Osborne sentiu uma pontada aguda no peito, ao ver sua velha ambição, seu profundo sonho de outrora, descansando nas mãos suaves de Anita, como se fosse uma peça de antiguidade já morta.
— Entra-se na administração — Deão Osborne explicou, — para fornecer oportunidade aos que conservariam o impulso... essa curiosidade insaciável, essa energia inexorável...
Anita virou-se devagar, ainda segurando o livro. Em seus olhos, Deão Osborne viu desprezo, raiva, e, inexplicavelmente, uma infinita compaixão.
— Mário é assim — ela murmurou.
Deão Osborne fez um trejeito.
— Está bem, faço um acordo. Volte a Cataratas do Gólgota. Veja como o padre está se saindo. E, se ele estiver tão mal como você diz, telefone para mim. Enviarei uma ambulância particular.
— A sanidade do padre está por um fio, Deão Osborne.
— Não vou justificar Mário. Não vou mesmo. Não vou dar essa satisfação a ele.
— Deão Osborne, vamos dar uma olhadinha naqueles slides. Se for pornografia, eu renuncio à parapsicologia. Mas, se tudo for verdadeiro, o senhor vem comigo para Cataratas do Gólgota.
Deão Osborne ficou cor de cera, avesso em levar avante uma confrontação com Mário, com sua carreira, consigo mesmo.
Tantas imagens rodopiaram soltas em sua mente, que sentiu-se tonto. Seu pai, seu avô, ambos catedráticos de Harvard. Seu tio Philip, famoso por seu trabalho sobre o ciclotron. Imagens de casas tranquilas, propriedades rurais, convenções científicas. Imagens de colegas e de estranhos, inaudivelmente pronunciando fracasso, ao contemplá-lo com olhos implacáveis. Depois de três gerações, algo enfraquece.
Um impulso vital se perde, mesmo nas famílias mais ilustres. A infelicidade do Deão Osborne fora ter herdado um destino além das forças de seu temperamento. Respeitado e citado nos jornais, um homem influente e de recursos, tinha passado sua vida em sutil mas constante humilhação no seio da comunidade científica. E, nesta noite, Anita reabria a velha ferida.
Deão Osborne relembrou a curiosidade onívora, o intenso e indisfarçado desejo de saber, ao ver, naquela outra noite, os slides de Mário.
Seria este o seu destino, sua humilhação final, o de contribuir para o sucesso de Mário Gilbert? Ou seria algo diferente, um renascimento de seu intelecto, o renascer do espírito que aprisionava, e que estava à espera dentro daquele cofre?
Ou, à espera, possivelmente, em Cataratas do Gólgota.
Um ruído abafado veio do corredor. A Sra. Osborne apareceu, carregando um livro debaixo do braço.
— Vou me deitar, Harvey — ela disse. — Você ainda demora?
— Um homem está morrendo, Sra. Osborne — Anita explicou.
A Sra. Osborne levantou um supercílio, sem perder a calma ou a frieza, mas preocupada.
— Isso é verdade, Harvey? O que está acontecendo?
Deão Osborne andou inquieto de um lado para outro, no espaço atrás da escrivaninha, e depois jogou os restos do charuto apagado dentro da lareira. O clarão de um relâmpago transformou as árvores, do lado de fora da janela, em vultos lívidos e ferozes.
— Não sei — ele confessou. — Não sei o que está acontecendo. O rosto refletia irritação. — Olhe, Emily, preciso dar um pulo rápido até o campus. Vá dormir, que estarei de volta em meia hora.
A Sra. Osborne lançou um olhar a Anita, e, em seguida, voltou-se para o marido.
— A previsão do tempo é que a tempestade vai atingir ventos de furacão, Harvey.
Ele deu-lhe um beijo carinhoso na testa.
— Deixe a luz do hall acesa — ele disse. — Eu volto logo.
Anita sentiu sobre si o olhar da Sra. Osborne, ao se retirarem para o hall. A frieza da Sra. Osborne nada mais era do que uma máscara para sua hipersensibilidade nervosa, e, a cada fulgor de raio, ela se contraía.
Deão Osborne deu um sorriso sem graça e, depois de calçar as galochas, vestir a capa, e apanhar o guarda-chuva, saiu pela porta acompanhando Anita.
O vento virou o guarda-chuva pelo avesso antes que alcançassem o furgão.
Em sete minutos chegaram ao estacionamento, atrás do edifício de ciências administrativas.
Deão Osborne destrancou a porta, e, juntos, pingando água, subiram as escadas de mármore. De muito longe, ouviram o gorgolejo das retortas que trabalhavam durante a noite toda, e sentiram o cheiro de compostos orgânicos sendo filtrados no curso de alguma experiência noturna.
O gabinete estava deserto, e as luzes fluorescentes tornavam-no surrealisticamente sombrio.
Deão Osborne ajoelhou-se e puxou os ferrolhos do cofre.
Suas mãos tremiam, e seu coração batia descompassado, e, ao puxar a porta, ele parou, sem saber ao certo o que esperava encontrar. Pingando água, sentou-se à escrivaninha usada para conferir boletins mimeografados, e colocou a caixa rotulada Cataratas do Gólgota entre si mesmo e Anita.
— Abra a caixa — Anita disse num sussurro.
Com dedos nervosos e desajeitados, Deão Osborne levantou o longo tampo da caixa. Os slides eram minúsculos, acondicionados muito apertados, e não saíam com facilidade. Ele deixou cair vários sobre a mesa.
As emulsões cintilaram verdes sob as lâmpadas fluorescentes.
Deão Osborne pegou um slide qualquer e levou-o à luz.
Um relâmpago iluminou silenciosamente seu perfil tenso.
Apanhou outro slide e examinou-o. Depois outro, e mais outro.
— Dê uma olhada — ele disse.
Anita levantou um slide, escolhido ao acaso, contra o longo, branco tubo de luz fluorescente. E ficou olhando durante muito tempo.
Esplêndida, nitidamente delineada, a imagem cruciforme pendia no espaço ambíguo do fluxo da termovisão.
— Então — Deão Osborne comentou com voz incerta, — Mário conseguiu.
Anita nada disse.
— Ele realmente, realmente, conseguiu — o deão repetiu, apertando os olhos para ver melhor.
Por um instante, Anita pensou que ele iria chorar. Os lábios tremeram, e o rosto, refletindo uma expressão peculiar de revolta contra o destino, contra Mário, contra a injustiça de um brilhantismo que não lhe pertencia, uma zombaria de suas próprias ambições juvenis, somente aos poucos recompôs-se. Cobriu o rosto com a mão, e em seguida voltou a olhar o slide virente.
— Jesus Cristo! — murmurou.
Fitou Anita.
— Nesse caso, o que aconteceu no auditório — ele gaguejou, — foi, de fato, alucinação coletiva.
Deão Osborne soltou o slide, que foi cair sobre os outros, cintilando suavemente. O deão os contemplou com repugnância.
— O paranormal me assusta — ele confessou num sussurro, bruscamente empurrando a pilha. — Não tem lugar neste mundo!
Anita levantou-se. Parou, altiva, diante dele.
— Deão Osborne. Um homem está morrendo. Vai me ajudar?
Confuso, o deão, vagarosamente, meneou a cabeça.
Anita foi para a porta.
— Por favor, telefone para sua esposa. Temos que ir para Cataratas do Gólgota neste instante.
O deão, obedientemente, fez a chamada, e foi, depois, juntar-se a Anita no corredor escuro, apagando as luzes ao deixar o gabinete.
Anita desceu o corredor, enquanto a chuva batia nas clarabóias do teto. Deão Osborne alcançou-a, e juntos desceram rapidamente as escadas, indo para o estacionamento.
Deão Osborne, ensopado, agarrou-se ao painel do furgão como se fosse um salva-vidas, e o Volkswagen partiu, os pneus cantando pelas ruas de Cambridge, de volta para as trevas, rumo a Cataratas do Gólgota.
CAPITULO VINTE
DO INTERIOR do jato do Vaticano, Francisco Xavier, desanimado, observava o edifício do terminal. Estava muito escuro. Os lençóis de chuva castigavam as janelas de vidro chapado dos salões do terminal, onde rostos se comprimiam, mesmerizados pelo espetáculo da aeronave papal inundada de luz.
— Para onde? — Cardeal Bellocchi resmungou, nervoso, andando pela cabine de ré. — Para onde iremos agora?
Francisco Xavier fechou os olhos e reclinou a cabeça na toalha que revestia o encosto de sua poltrona.
— Iremos aonde Cristo nos enviar — respondeu mansamente.
A chuva e o granizo batiam no teto. Na pista, embaixo de guarda-chuvas abertos, a delegação do Bispo James McElroy, de Springfield, conversava ansiosamente com o subsecretário de estado do Vaticano.
Na cabine de vante, os jesuítas aguardavam. Alguns sopravam os dedos para mantê-los aquecidos. Seus olhares iam, alternadamente, do Cardeal Bellocchi para Francisco Xavier.
Calmamente, Francisco Xavier abriu os olhos. Um carro-patrulha passou pela pista, as luzes girando. Feixes de lanternas e de holofotes faiscavam, iridescentes na violência da tormenta. Energia parecia espiralar-se, saindo da escuridão pura e aniquiladora.
— Mande trazer os petrechos da missa aqui para a frente — Francisco Xavier ordenou com calma.
Cardeal Bellocchi levantou uma sobrancelha, fazendo, em seguida, sinal a um jesuíta. Este aproximou-se, e Cardeal Bellocchi cochichou alguma coisa. Atônito, o jesuíta assentiu. Dois outros jesuítas o seguiram até a escada de metal.
O jesuíta tentou esquivar-se da chuva, e desceu rapidamente a escada de degraus antiderrapantes para o concreto.
Na cabine do jato, ninguém falou ou se mexeu ao escutar o rangido das portas dos compartimentos de bagagem serem abertos.
O Bispo de Springfield viu três jesuítas, cada um carregando ao ombro um pesado baú de nogueira, e que continham os paramentos pessoais e outros instrumentos do Ofício Pontifical. O Bispo McElroy, um homem grandalhão, de rosto corado, arrastou-se atrás deles.
— Há algum problema? — Bispo McElroy indagou. — Por que Sua Santidade continua esperando lá dentro?
O jesuíta olhou para ele, a água escorrendo pelas duas faces.
— Com licença — disse o jesuíta, passando pelo bispo.
O jesuíta voltou para o jato. Uma vez lá dentro, três baús foram colocados no centro do tapete grosso. A água fria gotejava sem cessar na insígnia do Vaticano. Silencioso, o jesuíta ficou observando as gotas cintilantes pingando, pingando...
Francisco Xavier estava de pé no compartimento de vante. Os jesuítas voltaram-se para ele reverentemente.
— A jornada que nos trouxe aqui é uma jornada de mais de seis horas — ele disse brandamente. — Contudo, é uma jornada que começou antes do meu Pontificado.
Os jesuítas trocaram olhares. Cardeal Bellocchi notou os lábios tensamente franzidos de Francisco Xavier e a fronte porejada de suor, que desmentiam a mansa enunciação das palavras.
— É uma jornada que começou até antes de nascermos.
Vários jesuítas engoliram com dificuldade. Alguns empalideceram de terror.
Francisco Xavier avançou para o centro da cabine, abrangendo a todos com o olhar.
— É uma jornada que começou há dois mil anos, quando Cristo enfrentou Satanás em combate — Francisco Xavier explicou devagar. — É a jornada empreendida pela Igreja na sua santa missão. Irmãos em Cristo, a jornada que começamos agora é a mais longa de todas.
O ronco surdo de um trovão rolou pelo céu sobre o aeroporto. Clarões vermelhos e luzes dos carros de polícia fulguraram sobre o rosto de Francisco Xavier, tornando seus olhos suaves e escuros na escuridão.
— Meus filhos — ele disse, com extrema ternura. — Meus soldados. A jornada está quase terminada.
As luzes âmbar das paredes da aeronave piscaram quando o piloto tentou acionar o circuito auxiliar. Os filamentos cintilaram, tornaram-se de um vermelho-rubi, e partiram-se em dois.
Os jesuítas se persignaram.
— Não temeremos — Francisco Xavier concluiu. — Pois nossa força está em Cristo.
Um punho vigoroso bateu na porta de metal.
Cardeal Kennedy, de Nova Iorque, um homem esguio e grisalho, com olhos alertas e penetrantes, estava no último degrau. Atrás dele, vinham o Bispo McElroy e quatro padres de batina negra, segurando guarda-chuvas.
— O aeroporto ficará fechado durante três horas por causa do temporal — Cardeal Kennedy explicou rapidamente ao Cardeal Bellocchi. — E também não haverá partidas até amanhã de manhã.
Bispo McElroy cochichou atrás do Bispo Kennedy.
— O serviço secreto está preocupado por causa da multidão que se aglomera nas portas de saída.
Cardeal Bellocchi esfregou o anel na palma da mão. A massa de rostos comprimidos contra as janelas de vidro do terminal de passageiros perturbava o Núncio. Havia nos olhos do povo um apelo sombrio e angustiado. Repórteres e equipes de televisão, carregando iluminação portátil, que atingia a porta do jato, pressionavam os cordões de isolamento formado por policiais.
— Venham para a catedral — Cardeal Kennedy pediu. — Sua Santidade poderá se refrescar. O tempo vai limpar com a chegada do dia.
Mas, a menção à catedral trouxe à memória do Cardeal Bellocchi a figura do jesuíta que se jogara aos pés do Bispo Lyons. Em seguida, viera a carta arrogante, suplicante, à Penitenciária Apostólica. Deixou o Cardeal Kennedy esperando na escada e entrou. Durante vários e longos minutos, ele e Francisco Xavier conferenciaram em voz baixa.
— Sua Santidade vai deixar o avião — Cardeal Bellocchi anunciou.
Três limusines negras circularam preguiçosamente ao redor do aeroporto. Grandes aplausos saudaram Cardeal Bellocchi, ao aparecer na escada metálica, atrás de Cardeal Kennedy. Câmeras espocavam e potentes holofotes iluminavam os degraus.
Os homens do serviço secreto liberaram as limusines e se afastaram um pouco. As vozes dos repórteres tornaram-se audíveis, falando alto aos microfones. Freiras de um convento de Boston, em êxtase, pressionavam o cordão de isolamento.
Então, três jesuítas desceram as escadas, cada um carregando um pesado baú de madeira. Cardeal Bellocchi indicou-lhes a primeira limusine.
— Sem dúvida, a equipe de terra poderia encarregar-se da bagagem de Sua Santidade! — Cardeal Kennedy murmurou.
A grita da multidão afogou a resposta de Bellocchi. Os carros-patrulha cercaram as limusines. Os homens do serviço secreto se aproximaram da escada. Mesmo os policiais, que impediam a passagem das freiras, voltaram-se para a porta de saída da aeronave, que cintilava branco-platinada sob as luzes da televisão.
O rugido da tempestade misturou-se aos gritos do público.
Fazendo-se pequeno, tímido, sorridente, acenando um braço, Francisco Xavier surgiu à porta, e as vestes brancas e o barrete faiscaram ao assalto das luzes lívidas.
Sob um guarda-chuva que o subsecretário de estado do Vaticano segurava, Francisco Xavier desceu a escada para entrar na ofuscação dos flashes das máquinas fotográficas. Um grupo inesperado de prelados, padres, e policiais ansiosos, surgiu ao redor do pé da escada. Francisco Xavier parecia desaparecer no centro daquela onda de corpos humanos.
Na primeira limusine, na frente dos três jesuítas carregando seus baús, Bispo McElroy sentou-se ao lado do motorista.
Na segunda limusine, junto com o subsecretário de estado e seu assistente, estava o Cardeal Kennedy, muito querido do povo, acenando para as multidões, em agradecimento aos aplausos.
Na terceira limusine, equipada com máquina de escrever e um telefone branco, Francisco Xavier sentava-se solitário, no banco traseiro. Cardeal Bellocchi acomodou-se no assento desmontável. Um homem do serviço secreto dirigia o longo e brilhante Cadillac.
Centenas de pequeninas máquinas fotográficas tiravam fotos, as freiras operavam máquinas-miniatura, o pessoal do aeroporto e passageiros acorreram dos outros terminais.
Francisco Xavier acenava gentilmente para eles. Os holofotes das câmeras de televisão, invadindo o interior dos carros, deixaram-no cego.
Três viaturas da Polícia Municipal de Boston iam na vanguarda e levavam as limusines para longe do jato do Vaticano, descrevendo uma amplo semicírculo. Quatro outras viaturas fechavam a retaguarda.
Sete motocicletas da polícia passaram pelo cortejo e foram colocar-se como batedores, debaixo da chuva.
Na primeira limusine, Bispo McElroy olhou para trás e, sem compreender, notou que os jesuítas guardavam com muito zelo os baús que carregavam.
Lenta e agourenta, a água gotejava deles. Bispo McElroy pegou um minúsculo telefone negro e contatou a catedral de Boston.
— Como, dificuldades? — ele trovejou. — Estou lhe dizendo que estou na comitiva do papa, e estamos deixando o aeroporto a caminho da catedral!
Com a raiva, o rosto rosado do Bispo McElroy tornou-se escarlate. Ficou ouvindo. Depois, apertou um botão na base do telefone. Na segunda limusine, Cardeal Kennedy escutava, apreensivo.
— Perturbações? — Cardeal Kennedy perguntou. — Que tipo de perturbações?
Ficou ouvindo, pensativo.
— Desde quando? — indagou. — De sábado?
Cardeal Kennedy consultou o relógio e esticou o pescoço para examinar o céu de leste. Ainda estava negro e ameaçador.
— Não — respondeu irritado. — Não sei coisa alguma a respeito desse jesuíta. Bem, se o Cardeal Bellocchi estava lá, talvez saiba alguma coisa.
Cardeal Bellocchi atendeu ao chamado no telefone branco.
— Entendo — disse, depois de algum tempo. — Sim, falarei com Sua Santidade.
Cardeal Bellocchi desligou o telefone. E, por muito tempo, contentou-se em contemplar a chuva caindo pelas rodovias. Depois, virou-se e, com voz muito quieta, falou com Francisco Xavier.
— Alguns sinais inquietantes apareceram na catedral — ele informou mansamente. — O pessoal da catedral está assustadíssimo.
— Quando começou?
— Aparentemente, depois daquele incidente que lhe relatei.
— E o padre?
— Ninguém sabe dele.
Francisco Xavier examinou minuciosamente as nuvens que se estendiam sobre a metrópole.
— Atrase nossa chegada até o raiar do dia.
Cardeal Bellocchi meneou a cabeça. Trabalhando em conjunto com o Bispo McElroy e com a equipe da catedral, conseguiu organizar um trajeto que circundaria os populosos centros católicos do norte.
Pelas cinco da madrugada, as estações de rádio de Boston tinham anunciado que Sua Santidade havia decidido fazer uma turnê de improviso pelas dioceses circun-vizinhas, antes de retornar à catedral.
Nos aposentos particulares da residência episcopal, o clérigo prostrado assistia, em mudo horror, à televisão colocada sobre um armário. Imagens de um esqueleto alternavam-se com imagens do cortejo papal pelas estradas sinuosas, rumando para o norte. O choque do déjà um paralisava o bispo. Era uma visão de morte, ele sabia, tendo Francisco Xavier por alvo.
— Absolve... — Bispo Lyons murmurou.
Um vaso veneziano espatifou-se no peitoril da janela, lançando cacos pelo tapete.
— Absolve...!
Uma lufada repentina virou as páginas do Evangelho colocado sobre a mesa antiga. Uma a uma, as páginas viravam-se, como se tocadas por dedos invisíveis, que acompanhavam a litania.
— ABSOLVE...! — o bispo berrou, o rosto avermelhado, a nuca tensa fazendo um arco, as veias dilatadas, as costas retesadas.
Os franciscanos aproximaram-se do leito. Para aliviar os tormentos do bispo, começaram a abrir os frascos contendo os santos óleos, e deram início aos ritos finais.
Era a atmosfera de uma madrugada cinza-azulada para o menino de oito anos chamado Eddie Fremont.
Algo de estranho pairava no ar. Na cozinha, sua mãe ouvia o rádio, debruçada sobre o aparelho, em atitude de êxtase. Amedrontado, Eddie esfregou os olhos para afastar o sono, e foi de pés descalços para junto dela.
O menino sentia-se confuso. Em estado de semi-sonolência, ouvira, ou julgara ter ouvido, um avião aterrissando, e milhares de fiéis reunidos no aeroporto de Boston. A princípio, Eddie pensou que seu pai morrera num acidente de aviação. Sua mãe, no entanto, ouvia o rádio com a expressão calma e serena do milagre.
Ela fitou o menino com um olhar íntimo, indagador e curioso.
— O Santo Padre chegou a Boston — ela informou em voz baixa, cheia de reverência.
Em seguida, chegaram os vizinhos, agasalhados em capas de chuva. Sem ao menos tomar o café da manhã, o menino foi vestido, puseram-lhe uma capa, e levaram-no para o estacionamento da fábrica, que ficava depois do último beco sem saída. Uma multidão já invadia o asfalto. As centenas de freiras, padres e seminaristas, com estandartes feitos às pressas, deixaram-no assustado.
— Francisco Xavier — entoava o povaréu.
De repente, a multidão deu vivas. Eddie virou-se. Pela estrada suburbana vinha uma limusine negra, precedida e seguida de carros-patrulha e de motocicletas.
O público avançou, em expectativa, e os padres tentaram em vão manter uma aparência de ordem. Eddie sentiu a alegria coletiva invadir seu peito. A limusine saiu, por instantes, do seu campo de visão, escondida na curva de um outeiro.
Dentro do veículo, Francisco Xavier apertava as têmporas com os dedos. A visão da imagem do esqueleto que se erguia, martelava em sua mente.
Francisco Xavier via, como em sonhos, as multidões se acotovelando embaixo de um oceano de guarda-chuvas ao longo da estrada. Mudos, aqueles rostos expressavam uma ânsia poderosa. Francisco Xavier se desviara de seu itinerário e avançava numa expedição de grande risco.
As aglomerações aumentavam à medida em que o cortejo circulava na direção do estacionamento da fábrica, iluminado profusamente por luzes perimetrais. Os que trabalhavam na cantina, os operários das linhas de montagem, mães com seus filhos, centenas de padres e freiras saudaram quando as limusines surgiram. Contudo, quando Francisco Xavier novamente analisou aqueles rostos, notou o mesmo terror sombrio e espiritual.
— Será que eles sentem? — ele murmurou. — Será que sentem algum efeito em suas almas?
E, inesperadamente, Francisco Xavier baixou a cabeça, cobrindo o rosto com as mãos.
— Cardeal Bellocchi, não tenho forças. Meus joelhos tremem como os de uma anciã.
Cardeal Bellocchi segurou o braço de Francisco Xavier.
— Aquele a quem o Espírito Santo elege — Cardeal Bellocchi sussurrou com fervor, repetindo suas mesmas palavras quando da eleição de Baldoni, — a ele o Espírito Santo dá forças.
E, do mesmo modo apaixonado, Francisco Xavier, numa súbita agonia de dúvida pessoal, novamente replicou: — Mas será o Espírito Santo?
O déjà vu, com a figura do esqueleto levantando-se, tornou-se insuportável.
— Parem o carro!
Vacilante, Francisco Xavier desceu da limusine, amparado por seu Núncio.
No estacionamento, a ovação das massas fez o chão tremer. Febrilmente, Francisco Xavier subiu a um outeiro coberto de grama, de onde quase 3.000 pessoas podiam vê-lo. Num gesto, que foi imediatamente transmitido para o mundo inteiro, as vestes elegantes tremulando ao vento úmido, Francisco Xavier estendeu os dois braços e abençoou a multidão.
— Não nos deixes cair em tentação! — Francisco Xavier orou. — Sentimos a Tua Santa presença e esperamos um sinal da Tua vontade!
Trabalhadores, crianças sonolentas, e funcionários administrativos, todos observaram o rosto pálido e tenso no alto do outeiro, e algo ç, invadiu a todos, algo que alterava, que elevava sua relação acima da terra material.
— Perdoa aqueles que enganam com falsos sinais! — Francisco Xavier clamou. — Que, na hora final, seus corações se abram para o mistério do Teu santo amor!
Francisco Xavier curvou a cabeça.
— Dá-nos a força de suportarmos os terrores que precederão o Teu Segundo Advento — ele rezou. — Guia-nos pelas tempestades para o porto seguro da paz eterna.
Muitos dos que o ouviam, tinham se posto de joelhos, e, de cabeça descoberta, ouviam, e depois faziam o sinal-da-cruz. Ao ver o papa, Eddie Fremont sentiu uma corrente elétrica dominar seu corpo, um desejo irreprimível de adiantar-se e tocá-lo, de ser tocado por ele, de participar daquele sentimento de bênção. Eddie não era o único. A multidão em peso avançou. Os homens do serviço secreto começaram a sentir pânico.
— Eles sentem! — Francisco Xavier exclamou, erguendo os punhos fechados ao peito. — Será breve! E muito próximo daqui!
Os policiais empurravam os representantes da Igreja de volta para dentro das limusines. Os cordões de isolamento formados pelos policiais começavam a se romper, e vultos passavam correndo, para agarrar e beijar a mão do papa.
— Bispo Lyons entrou em coma — Cardeal Kennedy informou, segurando o telefone preso ao fio enrolado. — Sua última palavra foi... "Absolve"...
Francisco Xavier, cheio de ansiedade, examinou o céu.
Uma aurora de chumbo rompia sobre a cidade, pesada do sofrimento de séculos e de gerações de promessas por cumprir.
— Será que estaria o padre se referindo a...? — Francisco Xavier pensou em voz alta, afastando-se um pouco, examinando o formato das nuvens ao norte. No âmago das cinzentas silhuetas em constante turbulência, estavam as sombras aladas percebidas por Francisco Xavier sobre seu tio morto, sobre a mulher agonizante, sobre o casaco do pai.
Francisco Xavier agarrou o rosário que pertencera à sua mãe, até que seus dedos ficaram lívidos.
— Há tanto saí à sua procura... — ele murmurou. — Em San Rignazzi. Na Bolonha. Nas montanhas bolivianas. Mas nunca, nunca cheguei tão perto!
A melancolia dos campos e florestas molhados subitamente pareceu animar-se. Sombras aproximavam-se das limusines. Francisco Xavier sentiu o calafrio de uma força que o espreitava.
— E quando encontrar a serpente — ele disse em dialeto siciliano, — eu lhe deceparei a cabeça!
Cardeal Kennedy tocou-lhe o braço.
— O tempo está melhorando — Cardeal Kennedy disse.
— Podemos voltar ao aeroporto.
— Não iremos para o aeroporto.
— Mas, Vossa Santidade, a conferência de Quebec já foi adiada por um dia!
— Estamos respondendo a um chamado, Cardeal Kennedy. — E, virando-se para Cardeal Bellocchi: — O padre, Eamon Malcolm creio, onde fica a sua paróquia?
— Cataratas do Gólgota, Vossa Santidade — o Núncio respondeu.
De imediato, Cardeal Kennedy adiantou-se.
— É uma igrejinha isolada num vale pobre, a horas daqui, naquela direção — ele queixou-se, apontando para um fiapo de azul, além das montanhas cobertas de árvores onde as formas escuras circulavam no céu. — Foi profanada, houve tentativas de reconsagrá-la. Mas todas as tentativas foram em vão.
Cardeal Bellocchi e Francisco Xavier trocaram olhares.
— Neste caso, nós iremos a Cataratas do Gólgota — disse Francisco Xavier.
CAPITULO VINTE E UM
MÁRIO TATEOU pela lama escura. O fedor de restolho mofado e de sangue coagulado penetrou-lhe pelas narinas.
Espinhos. Besouros negros sobre suas mãos e camisa.
... Otário...
Aos poucos, ele tornou a ver, com os olhos da mente que o pânico tornava mais vívidos, o vulto do jesuíta, parado à porta da igreja, revólver na mão. O rosto do sacerdote, semelhante ao de uma raposa, refletia uma complacente malignidade.
Otário.
Por quê? Como teria ele sido usado? E por quem?
Estampidos sucessivos pareciam explodir em sua cabeça. Tinha a impressão de que as touceiras afundavam à sua volta, ao tentar arrastar-se para o topo da ladeira. Suas botas mergulhavam na argila encharcada. A gargalhada insinuante do jesuíta ricocheteava em sua imaginação.
Na primeira projeção de Eamon Malcolm durante o exorcismo, um pouco daquela energia havia atingido Mário.
Na segunda projeção de Eamon Malcolm, Mário caíra em delírio durante sua palestra no auditório de Harvard. Mas, desta vez — a imagem do esqueleto se erguendo — era como um furacão de fogo varrendo seu cérebro. Não havia como diferenciar a alucinação da realidade. Tudo o que sabia era que tinha sido atingido pela força total de uma fúria insana e extraordinária.
Mãos masculinas agarraram Mário. Suas botas fizeram sulcos na lama.
— O quê?... Que diabos...?
Fazendeiros, vestidos em macacões de brim, de rostos graves e respingados de lama, arrastavam-no para um celeiro abandonado.
Mário, em pânico, dava pontapés furiosos.
— Soltem-me, seus filhos-da-mãe! O que pensam que estão fazendo?
Mas os fazendeiros limitaram-se a segurá-lo ainda mais firme por braços e pernas, lutando com ele, arrastando-o, carregando-o para a velha construção.
— Quase aconteceu, quando aquele padre, Lovell, estava por aqui — comentou um dos fazendeiros com assustadora amargura.
— O que aconteceu? De que estão falando?
Brutalmente, Mário sentiu um ramo de espinheiro cravando-se-lhe nas costas. Os fazendeiros carregavam-no inexoravelmente pela estrada enlameada. De vez em quando, voltavam as cabeças para contemplar, de rostos abatidos, a igreja.
— E quase aconteceu quando aquele homem de cabelos brancos veio de Boston — comentou um fazendeiro mais jovem. — Louvado seja Deus que ele morreu antes que acontecesse.
— Antes que o que acontecesse?
Mário lutava contra os braços que o aprisionavam.
Depois, notou que dois dos fazendeiros abriam as portas do celeiro. Um bocejante vazio o acolheu. Gritando com seus captores, Mário dava pontapés. As mãos fortes dos fazendeiros, no entanto, mantinham-no imóvel.
— E, então, você veio — disse o primeiro fazendeiro, soltando seu bafo na cara de Mário. — Você e esse novo padre. Ah, vocês dois conseguiram direitinho!
— O quê? Do que está falando?
— Sabemos para quem está trabalhando, moço!
E, então, inesperadamente, Mário foi arrojado às trevas.
O cheiro de esterco, feno molhado, e lama, o envolveu.
Mário rodou nos calcanhares e correu para a porta. Tarde demais. Ela se fechara. Desesperado, Mário socou a porta.
O olho de um dos fazendeiros espiou por um orifício na madeira.
A voz do homem, cheia de inegável horror, deixou Mário paralisado. Voltou a lembrar-se de tudo o que Anita dissera sobre a origem das imagens na termovisão, os acontecimentos dentro da igreja, e o temor no íntimo do jesuíta. Mário socou a porta.
— Dividir o quê? — ele berrou, compreendendo, afinal, a despeito de cada fibra de seu corpo.
O cano duplo de uma espingarda foi lentamente aparecendo numa rachadura da madeira cinzenta.
— Os justos e os malditos! — veio a voz grave.
Mário caiu de costas sobre os fardos de feno. As vozes do jesuíta, de Anita, de Padre Pronteus, explodiram dentro dele, através do deflagrar da carga de pólvora.
A repercussão dos tiros reverberou duas vezes pelos bosques escuros ao sul de Dowson's Repentance, a leste do Vale do Gólgota. Anita puxou os freios. Uma terceira explosão abafada chegou-lhe aos ouvidos.
— Deus do céu — ela exclamou, repentinamente rígida.
— Os tiros estão vindo de Cataratas do Gólgota.
Anita correu os olhos pelo vale. Vapor azul subia do Siloam e se espalhava, abraçando os campos. Eram quase 6 horas da manhã.
O furgão mantivera-se à frente da tempestade. Nuvens negras enfurecidas flutuavam do litoral para o mar. Rajadas de vento ainda açoitavam os carvalhos e os campos; portas de celeiros batiam, rompendo o silêncio sinistro. De vez em quando, uma coruja soltava o seu pio, e uma forma negra saía voando em largos círculos de asas, para dentro da floresta.
— É um lugar tão desolado — Deão Osborne comentou, nervoso. — Acho que o inferno deve ser assim.
— Aquela estrada — Anita disse, apontando com o dedo, — não sei se o furgão vai conseguir passar por ela.
O asfalto, que ia dar em galhos quebrados, estava muito ondulado. Rachaduras apareciam, como abismos, sob os faróis dianteiros. Vagos filamentos de vapor azul deslizavam pela estrada, saindo dos bosques molhados.
Anita deu partida no furgão. Resolutamente, enfrentou os detritos, o asfalto rachado, os galhos que se quebravam sob os pneus e eram projetados por trás do carro. Deão Osborne abaixou-se instintivamente, segurando-se ao painel quando o veículo dava solavancos.
A escuridão da hora que precede a aurora cobria o vale com um manto de quietude.
— Anita — Deão Osborne disse.
— O que é?
— Nunca acreditei em Deus.
Anita não respondeu.
— Tentei — ele prosseguiu, aliviando seu desconforto com palavras. — Frequentei a igreja regularmente, até completar 13 anos. Cheguei a estudar religião comparativa no colégio. Mas não fazia sentido para mim. Não tinha lógica. Entende o que estou dizendo?
Abriu os olhos e fitou Anita que, com a atenção presa na estrada, limpava a umidade do lado interno dos pára-brisas.
— E você, Anita? — ele Indagou gentilmente. — Você acredita?
Anita mantinha os olhos na trilha escura e arborizada entre samambaias.
— Conheci um homem que acreditava em Deus — ela disse, afinal. — E mudou meu modo de pensar.
Deão Osborne continuava segurando-se ao painel, enquanto o furgão pulava sobre galhos quebrados.
— O jesuíta?
Anita fez que sim com a cabeça.
— Por intermédio dele, senti... senti uma espécie de força, uma espécie de amor. Senti isso nele, e agora sinto-o em mim, também. — Lançou-lhe um olhar. — É como um pássaro cativo bem dentro da gente.
Impressionado, o deão voltou a prestar atenção na estrada.
— Minha esposa não está bem — ele confidenciou. — Os médicos não sabem direito o que ela tem. Tornei a buscar, Anita, uma resposta divina. E tudo o que encontrei foi um grande vazio.
Anita diminuiu a marcha do furgão. Aproximava-se de Cataratas do Gólgota pelo norte, a margem mais distante do Siloarn, fazendo a volta do vale. Aos poucos, a estrada foi se transformando numa trilha de lama endurecida e troncos podres. Subitamente, freou o veículo.
— O que foi? — o deão perguntou.
Na claridade dos faróis, havia um esquilo, com as patinhas da frente levantadas. As luzes ofuscantes haviam imobilizado o animalzinho. Suas patas agitavam-se, como se estivesse mesmerizado.
Anita saltou e delicadamente empurrou o bichinho com o bico da bota. Ele saiu saltitando para a segurança da floresta. Foi em ziguezague, entre cogumelos e galhos caídos no vapor azul.
Entre os troncos, brotava o azevinho, de folhas aguçadas e brilhantes. Havia frutos vermelhos e maduros no centro das folhas.
— Que estranho — comentou o deão, quando Anita voltou ao furgão. — Não é tempo de azevinho.
— Eu sei — ela respondeu de mansinho.
Confuso, Deão Osborne olhou para ela. Anita, então, acionou o motor, o Volkswagen arremeteu para a frente, e eles penetraram na fria madrugada final que raiava na extremidade do Vale do Gólgota.
Mário recobrou consciência sentindo uma dor lancinante no lado. Seu gemido penetrou na luz cinza-azulada de um alvorecer nublado. Por um instante, não conseguiu lembrar-se onde estava, ou quem era, ou o porquê de estar deitado naquele celeiro imundo.
Depois, o pesadelo de um jesuíta, que não era jesuíta coisa alguma, voltou e ele se recordou.
Os fazendeiros já haviam se retirado. Por que não haviam entrado no celeiro, para se certificarem de que haviam dado cabo dele, do mesmo modo como haviam destruído dezenas de carneiros e bezerros deformados? O tiro da espingarda lascara as tábuas maciças do fundo do celeiro, mas passara por cima de sua cabeça.
Talvez, Mário raciocinou, não tivessem tempo.
Libertou-se do feno e do esterco onde estivera deitado.
Limpou sujeira da camisa e das calças, enquanto inspecionava a área alta do jirau. Uma única janela oferecia um possível meio de fuga.
Mário empilhou fardos sobre o ancinho quebrado e trepou até o topo da pilha. Alcançou os degraus de uma escada raquítica, balançou o corpo e, penosamente, conseguiu chegar ao jirau. Da janela, tinha uma visão completa do Vale do Gólgota.
O nevoeiro dissipara-se. A manhã surgia clara. Ninguém à vista, nem fazendeiros, nem os moradores da cidade. A igreja parecia vazia. Do angulo em que se encontrava, Mário não era capaz de ver qualquer de seus instrumentos. Eamon Malcolm não estava à vista.
— Bastardo miserável — Mário resmungou.
Um som estranho soou pelo cerro do norte, um zumbido esquisito, como uma versão indistinta de abelhas em fuga.
Mário virou-se, esticou o pescoço. Acima dos bosques de vidoeiros, distinguia apenas as nuvens turbulentas da tempestade, bem a leste. As aves voaram dos galhos. O zumbido parecia aproximar-se.
Uma motocicleta surgiu no topo do espinhaço e começou a descida.
Atónito, Mário debruçou-se ainda mais na janela. A moto cintilava ao sol, muito longe, e o motociclista usava botas.
Era um policial. Mário esgueirou-se para dentro do celeiro.
Teria Anita mandado a polícia atrás dele? Quem sabe, alguém em Cataratas do Gólgota tivesse alertado as autoridades quanto ao perigo que Eamon Malcolm representava?
Devagar, tornou a espiar.
Uma segunda moto surgiu na crista da montanha e acompanhou a primeira pela estrada em caracol. Depois uma terceira e uma quarta entraram no vale.
Quatro tiras para pegar... quem?
Mas os quatro policiais pararam na curva aberta da estrada para conferenciar. Apontaram com as luvas para pontos ao redor da igreja e da cidade. Um deles falou pelo rádio. Agiram com eficiência e rapidez, e, em seguida, tomaram posição, abrindo-se, em leque para ocupar a Rua Canaan.
Teriam sido chamados pelo poder de projeção do padre?
Mário jogou alguns fardos para fora, embaixo da janela.
Agarrando a corda de uma polia, desceu sobre os fardos e, depois, a muito custo, saltou para o chão.
Foi descendo devagar pela ladeira sul. Mais duas motos, e, em seguida, mais uma, solitária, abruptamente surgiram ao alto dos bosques de vidoeiros. Mário abaixou-se entre os arbustos. Depois da passagem das motocicletas, ele fez a curva pelo lado do morro, de cabeça baixa, para ter uma visão melhor da cidade.
Um veado, apanhado na sombra de galhos retorcidos, ficou olhando para ele. No ponto onde a galhada se juntava à cabeça, uma forma em cruz brilhava, como um falo, ao nascer do sol.
— Jesus Cristo! — Mário exclamou, perdendo o fôlego.
Correu desesperado para o alto da vertente. Um tipo diferente de zumbido soou, depois desapareceu, para voltar mais forte pelo ar perfumado. Mário abaixou-se entre as folhagens densas.
Um carro da Polícia Municipal de Boston lançou poeira para todos os lados ao fazer a curva da ladeira.
Teria Anita denunciado que ele tinha um revólver a alguma delegacia? Ainda que assim fosse, era pouco provável que enviassem tantos policiais.
Um segundo carro-patrulha, derrapando de leve na estrada de cascalho e pedregulhos soltos, passou pela trilha do bosque. Mário observava. Os dois policiais pareciam muito eficientes, fazendo um levantamento do Vale do Gólgota, antes de começarem a descida.
Mário se pôs de pé. Que diabos estaria acontecendo?
Seguindo um terceiro e um quarto carro-patrulha, cintilando num trecho da estrada batido pelo sol, vinha uma limusine Cadillac negra, ostentando a insígnia católica da diocese de Boston. Mário saiu para a estrada, trôpego, em total confusão. Desajeitado, abanou os braços. Mas a limusine passou roncando por ele, sem diminuir a marcha.
Mário deu um passo atrás, tossindo por causa da poeira.
Três jesuítas, segurando baús de madeira, sentados no banco traseiro, olharam para ele. E ele olhou para o Cadillac.
Teria a catedral enviado seus jesuítas para reconsagrarem a Igreja das Dores Eternas, na ignorância dos poderes maníacos de Eamon Malcolm, sem suspeitar, talvez, sequer que o jesuíta ali se encontrava?
— Voltem! — Mário gritou.
E, nesse instante, viu, ao longe, duas motocicletas saírem da formação, vindo em sua direção. Mário percebeu o jeito agressivo como mantinham os queixos projetados, e os olhos duros preparados para a violência. Rapidamente, começou a descer a rodovia.
Uma segunda limusine surgiu na curva da estrada, saindo do bosque de vidoeiros.
Cardeal Kennedy, sentado no banco traseiro, lançou um olhar fulminante ao vulto na estrada, o cabeio úmido em desalinho, o rosto arranhado, os olhos ferozes. Mário parou, atordoado com a presença de um cardeal no vale desolado.
Cardeal Kennedy estendeu a mão para fora da janela do automóvel, diminuindo a velocidade do cortejo, e espiou, muito nervoso, para a limusine que vinha atrás.
Foi então que Mário notou as bandeiras pontifícias, em ouro e branco, tremulando no pára-brisa do último carro da comitiva. Em seu interior, a figura de Francisco Xavier, o papa em pessoa, olhava inquisitivamente no fundo dos olhos atônitos de Mário.
As palavras de Anita vieram-lhe, de súbito, à mente: — Ele se alimenta de padres... está atrás de caça mais grossa... !
E sua resposta carregada de cinismo: — E quem seria?... O bispo?... O papa?... O próprio Jesus Cristo? ...
Anita acreditava que Eamon corria perigo nas mãos do anticristo. Estaria o padre, afinal, possuído por ele?
Ou, seria — como Mário ainda insistia em acreditar — um poder inexplicável de projeção psíquica que emanava do padre?
Teria esse poder ultrapassado os limites de Harvard?
Chegando, digamos, à Catedral de Boston, dominando as mentes de prelados e sacerdotes? Ou mais longe, mais longe ainda do que a Catedral, ao próprio cerne da Igreja Universal, com o intuito de mesmerizar, falsificar, e torturar, através da extraordinária ira primeva da dor física?
De qualquer modo, apenas ele sabia o perigo para o qual o cortejo do papa, cheio de cega confiança, corria.
— Voltem! — ele gritou, agitando os braços diante do pontífice abismado.
Um carro-patrulha saiu do préstito, dirigindo-se ao intruso. As duas motocicletas convergiam para ele.
— Pelo amor de Deus, vão embora daqui! — Mário berrou, correndo para o Cadillac do papa e batendo com os punhos no vidro à prova de bala. — É UMA CILADA!
No mesmo instante, foi agarrado pelos dois policiais.
Rolaram no pó. Mário chutava, pulava, resistia, até que conseguiu jogar-se para a frente, arrastando-se sobre pés e mãos.
— O PADRE ESTÁ LOUCO! — ele gritou.
Um cassetete atingiu-lhe a cabeça. Ele caiu, mas não perdeu os sentidos. O carro-patrulha parou ao lado da limusine do papa, e mais dois guardas atiraram-se na turbulenta nuvem de poeira, revólveres em punho.
— O papa está... — Mário tentou falar, esperneando no ar, os braços torcidos e algemados nas costas.
Outros dois policiais desmontaram no alto da vertente, e de arma em punho inspecionaram a beira do bosque, à procura de outros intrusos.
O carro do chefe de polícia aproximou-se do homem algemado.
— Levem-no para o carro-patrulha! — o chefe gritou pela janela aberta. — E olho vivo nele!
Mário sentiu que era carregado e depois arremessado para o banco traseiro de um veículo, onde uma grade o separava do banco dianteiro.
Vagarosamente, as limusines reiniciaram a marcha, continuando a descida para o Vale do Gólgota.
— Saiam daqui! — Mário bradou, ajoelhando-se na direção da janela do carro-patrulha. — É uma...
Um punho rijo interrompeu o grito. Mário foi deslizando devagar contra o vidro. Viu campos ressequidos a seus pés, e o vulto do jesuíta dentro da igreja.
— ... cilada Deus... não o deixem...
Desgostoso, o policial no banco da frente fechou a grade.
— Doido varrido — comentou.
Do ponto de observação no alto do espinhaço, onde estava estacionado o carro-patrulha, Mário tinha a visão de cobertura de um drama que se desenrolava. Mais adiante, no topo da ladeira, o cortejo do papa se reunia, arranjando-se para a entrada triunfal na Igreja das Dores Eternas. Abaixo, um fluxo constante de tráfego avançava aos poucos, ao redor da multidão que já se reunia diante da igreja.
— Jesus Cristo — comentou um dos policiais, — parece que Boston inteira resolveu vir ao circo.
Mário jogou-se contra a grade.
— O papa — ele gaguejou entre dentes trincados. — Ele corre perigo mortal!
O policial virou-se e olhou para Mário.
— Por quê? — perguntou com secura. — Coleguinhas seus por aí?
Mário chegou junto à grade.
— O padre jesuíta dentro da igreja — explicou, rouco. — Ele tem uma arma!
O homem examinou a figura musculosa no banco traseiro.
— E onde ele teria arranjado uma arma?
Mário umedeceu os lábios. A hostilidade desses homens era muito mais intensa do que qualquer coisa pela qual tivesse passado com os policiais do campus de Harvard.
Estes eram homens acostumados à violência. Mário teve a sensação de que gostariam de fazê-lo experimentar os cassetetes que carregavam.
— Eu... eu tinha um revólver. E ele o roubou.
— Tem porte de arma?
— Não...
O guarda debruçou-se, com expressão atenta, na direção da grade. Sombras intermitentes do sol da manhã, filtrando-se entre as árvores, manchavam seu rosto.
— Para quem é que você trabalha? — ele perguntou tenso. — Alguma organização subversiva?
— Porcaria! — Mário perdeu a paciência. — Estou lhe dizendo que o padre dentro daquela igreja está louco! É capaz de projeções psíquicas! Consegue deformar o pensamento! É capaz de fazer uma pessoa ver Satanás!
O tira, piscando muito, olhou fixo para Mário. Depois, sem aviso, caiu na gargalhada. Riu tanto que precisou enxugar os olhos com um lenço. Seu parceiro acabou tomando parte na hilaridade.
— Satanás! — disse ele, sem fôlego, limpando os olhos.
— Deus do Céu... Satanás! — Concentrando em Mário os olhos injetados, ele balançou a cabeça. — Pára ver Satanás, cara, não é preciso vir a Cataratas do Gólgota. Podemos mostrar-lhe Satanás bem dentro da nossa delegacia. Temos lá um homem que assassinou a própria mãe e estuprou a irmã. Temos lá uma senhora muito distinta que botou estricnina no leite das crianças, na escola. Pra qualquer lado que se olhe, lá está Satanás!
Derrotado, Mário deixou-se cair no banco. Desesperado, ficou olhando o espetáculo no fundo do vale. A Igreja Católica, seguindo seu faro infalível para a exploração, transformava a mais evidente prova do paranormal numa bacanal religiosa.
Mário podia aguentar Harvard, o Deão Osborne, Eamon Malcolm. Podia aguentar toda a força policial do mundo.
Podia aguentar falsos sentimentos e ilusões, patrocinados pela todo-poderosa Igreja Católica. Mas não podia aguentar tudo de uma vez, ao mesmo tempo. Não algemado no fundo de um carro-patrulha, esquecido e desdenhado pelos que controlavam o poder.
O resíduo amargo da derrota total era como sal nos lábios de Mário.
— É isso aí, bastardos — murmurou. — Eu preveni.
CAPITULO VINTE E DOIS
FRANCISCO XAVIER estava de pé no alto do espinhaço do Vale do Gólgota.
O terreno, no fundo do vale, era cinzento, perturbado por uma brisa que agitava os sedimentos da argila no rio.
Lírios despontavam nas ladeiras, e íris vermelhas cintilavam nas margens. O odor de fumaça se enroscava pelo vale.
Na parte mais funda do vale, onde pó e cinza circulavam levados pelo vento, ficava a branca igreja de madeira.
Francisco Xavier estudou a Igreja das Dores Eternas.
— Não é como eu imaginava — ele murmurou. — Nem um pouco como eu imaginava.
Cardeal Bellocchi espiou para além dos arbustos de espinheiros e touceiras no limite do cemitério. Um movimento na porta da igreja despertou-lhe a atenção. O jesuíta da igreja sentiu-se observado e voltou correndo para dentro.
— Não estou gostando disto — Cardeal Bellocchi comentou preocupado.
O povo se juntava diante da igreja e pela Rua Canaan.
Seus rostos refletiram uma expectativa inquieta quando a força policial firmemente tomou posição ao seu redor.
Seus olhos deixavam transparecer uma extrema carência, um sentimento que vinha do âmago de seus corpos maltratados e suas almas derrotadas.
As vestes do Papa enfunaram-se ao vento. Ele friccionou as mãos para espantar o frio.
— É um lugar desolado. Como o são as cavernas do inferno e o sepulcro de Cristo.
Na cinza agitada e nos campos do vale que abraçavam a igreja, Francisco Xavier apreendeu a peculiar mistura de Cristo e Satanás, vida e morte, numa luta sem quartel, até o amargo e selvagem fim.
O chiado dos rádios dos carros-patrulha e os comentários baixos das equipes de rádio e televisão elevavam-se com a brisa. Um murmúrio estridente ergueu-se da multidão que pressionava, impaciente, o cordão de isolamento formado pelos policiais. De norte a sul, uma procissão ininterrupta de carros e caminhões avançava lenta para a cidade, todos convergindo para a igreja branca.
Nesse instante, o sino dobrou: cada dobre era forte, vibrante, dominador. Francisco Xavier viu cabeças se esticando para o alvo campanário, e a cada batida do sino de ferro, o povo comprimia-se para a frente, formando uma sólida falange. Policiais e homens do serviço secreto espalharam-se nervosos, na tentativa inútil de conter aquela gente toda.
— Sim — Francisco Xavier murmurou. — É aqui. E é agora.
A um sinal dele, os jesuítas levantaram ao ombro os baús de madeira e prepararam-se para a descida pela ladeira poeirenta.
— Estamos na presença viva do Mal — Francisco Xavier preveniu. — Confiem em Cristo e observem os sinais de seu Torturador.
Os jesuítas, pálidos, com os cabelos revoltos pelo soprar cada vez mais forte do vento seco, umedeceram os lábios e menearam a cabeça.
Os repórteres não conseguiam entender por que o Papa demorava-se tanto no topo do cerro, nem tampouco por que teriam as limusines parado naquele ponto.
Bispo McElroy deu meia-volta, aproximando-se de Francisco Xavier. As massas humanas tentavam subir, empurrando a barreira de policiais, e ele viu, na negra ânsia de seus olhares, algo como a mal contida raiva de um animal. Cardeal Kennedy, igualmente, sentiu o presságio da densidade emocional que imperava no vale.
— Extraordinário, realmente extraordinário — irradiava o comentarista da WABC ao microfone. — Francisco Xavier, procurando simplesmente uma igreja paroquial isolada, que possui um único jesuíta como pároco, conseguiu galvanizar católicos e não-católicos. O vale todo, assim como o aeroporto e os bairros, se enche de uma expectativa e de uma fé nunca testemunhadas anteriormente.
Pisando o solo do vale, Francisco Xavier apertou com força o rosário negro.
— Vamos começar — Francisco Xavier disse. E entrou no Vale do Gólgota.
A cada passo, o vapor levantava-se.
Bispo McElroy, aturdido, deu atrás. Cardeal Bellocchi puxou o bispo para a frente, segurando-o pelo cotovelo.
Atrás deles, vinham os jesuítas carregando seus baús, seguindo-se o subsecretário de estado e seu assistente, com suas vestes carmim e suas capas.
Cardeal Kennedy foi colocar-se atrás de Cardeal Bellocchi. Ao contornarem o cemitério, na direção do ajuntamento de fiéis, um odor ácido invadiu suas narinas.
Um policial, que tomava café ao lado de sua moto, defronte ao empório, olhou para trás. A Rua Canaan emanava vapores provindos de fissuras no asfalto velho, e que se erguiam acima de carros, caminhões, e da multidão.
Francisco Xavier dirigia-se para a Igreja das Dores Eternas, fotografado por três equipes de televisão.
Dois homens do serviço secreto saíram da igreja. Tudo o que tinham encontrado lá dentro era um jesuíta solitário, preparando a missa, e alguns cabos eletrônicos e instrumentos que julgaram pertencer à WABC.
Como um rebanho de ovelhas perante o pastor, fazendeiros, moradores da cidade e visitantes juntaram-se diante da porta da igreja, antecipando-se a Francisco Xavier.
Um cameraman da WSBN postou-se sobre um monte de detritos, à espera de um bom ângulo para a filmagem. Uma cacofonia de comentaristas de rádio e televisão silvava sobre sua cabeça, e a poeira subia em nuvens das botas e sapatos da multidão. Finalmente, a cabeça de. Francisco Xavier surgiu emoldurada pelo céu azul.
Através da lente, o papa olhou para ele. o cameraman sentiu como se tempo e espaço cessassem. Era sua primeira experiência frente com o carisma. E, de repente, acabou. Sua câmara fez um giro, quando duas mil pessoas, em êxtase total, diante do representante de Cristo na Terra, afastaram-se, abrindo passagem para o papa e sua comitiva.
Ao norte, um furgão Volkswagen branco levantou um lençol de pó cinzento ao sol da manhã.
O furgão freou guinchando na barreira colocada pela polícia, derrapando meio de lado no asfalto quebrado, lançando ao ar fragmentos do revestimento da estrada.
No mesmo instante, dois guardas aproximaram-se com as mãos pousadas de leve na coronha das armas.
Anita colocou a cabeça para fora da janela. O furgão estava, agora, atravessado na estrada, de onde ela podia ver a ladeira suave para Cataratas do Gólgota. O vapor subia das ruas. Policiais e repórteres circulavam de um lado para outro, e havia mais policiais posicionados nos telhados das casas.
Na ravina, entre grupos compactos de gente diante da igreja, ela reconheceu o mecânico Fred Waller e a Srta. Kenny — e a solteirona excêntrica. Em seguida, vislumbrou o manto carmin de um cardeal de mãos cruzadas, que se movia majestosamente entre os agrupamentos humanos na frente da Igreja.
Anita saiu do furgão. Por que estava ali toda aquela gente? Onde estava Eamon Malcolm? Onde estava Mário? Viu, depois, um outro prelado, usando vestes brancas e um solidéu, que parecia ir à frente do cortejo.
Virou-se para o policial que se aproximava.
— Quem são todos esses representantes católicos? O que estão fazendo em Cataratas do Golgota?
— Fazem parte da comitiva do Vaticano — informou o primeiro.
Anita fitou-o.
— A comitiva do Vaticano — os lábios dela formaram as palavras silenciosamente, enquanto avançava pela estrada.
O braço do guarda interrompeu sua marcha.
— Não pode ir adiante, senhorita — ele disse. — Já não cabe mais ninguém na cidade.
Ela soltou-se daquela mão. Na poeira cinzenta que se levantava Anita viu um vulto que lhe pareceu familiar aproximar-se da porta da igreja.
— Quem é aquele homem? — ela perguntou, a voz lenta e sem inflexão.
— Ora, quem a senhora acha que é? — o patrulheiro sorriu.
Anita examinou o rosto moreno sob o solidéu branco.
Um rosto agressivo, um rosto preocupado, sobretudo um rosto iluminado de confiança e determinação.
Anita levantou o olhar para o topo do cerro. Havia três limusines paradas, uma delas exibindo as flâmulas do Vaticano nos pára-lamas. De repente, a presença de tantos policiais fez um sentido terrível e inequívoco. E, de repente, ela entendeu quem era o vulto familiar.
O Deão Osborne também saltara do furgão e estava agora a seu lado.
— O que está acontecendo lá embaixo? — ele perguntou.
— Não acredito — ela murmurou em choque. Voltavam-lhe, neste momento, as palavras que tinha usado para alertar Mário.
— Ele coleciona padres... são apenas degraus!
Inesperadamente, ela desvencilhou-se e correu para a igreja.
— Não! — ela gritou. — Meu Deus, NÃO!
— Qual é o problema, minha senhora?
— O senhor tem que impedir! Ele não deve entrar naquela igreja!
— Impedir o papa? A igreja é dele!
Pela janela rósea, Anita divisou vagamente o vulto do jesuíta diante do altar. Movia-se de modo sinuoso, como um réptil, completamente diferente de Eamon.
— Não, não é! A igreja não é dele coisa nenhuma!
Francisco Xavier segurou firme o rosário negro, ao transpor o limiar da igreja.
O povo pressionava os cordões de isolamento. Muitos dos policias fizeram o sinal-da-cruz quando Francisco Xavier ajoelhou-se no pórtico e beijou o chão. Depois, levantando-se, Francisco Xavier chamou em voz alta: — Onde está o padre que nos trouxe aqui?
A porta da igreja abriu-se lentamente.
A figura do Padre Eamon Farrell Malcolm humildemente ajoelhou-se no vestíbulo. Estendeu sua mão para Francisco Xavier, que atravessou a soleira e entrou na Igreja das Dores Eternas.
Parado ao sol, Cardeal Bellocchi vagamente viu o rosto do jesuíta. Era o rosto de um homem sem absolvição. Os olhos sombreados eram confusos, perigosos, levados por um mudo horror.
Eamon segurou a mão estendida de Francisco Xavier, franziu os lábios e depositou seu beijo no Anel do Pescador, em sinal de obediência.
Cardeal Bellocchi correu depressa para a porta da igreja.
— Não, Vossa Santidade! — ele gritou. — Esse padre ainda não recebeu absolvição.
Eamon levantou-se rapidamente, virando-se para o Cardeal Bellocchi. Os olhos do jesuíta se apertaram, e um fulgor avermelhado brilhou no fundo deles. Um sorriso maligno deixou à mostra dentes brancos e afiados, e uma língua preta projetou-se entre os lábios.
Cardeal Bellocchi retrocedeu alguns passos, protegendo o rosto contra o mau cheiro.
— Baldoni é meu! — uma voz estranha e estridente saiu da garganta do jesuíta. Foi quando a porta da igreja fechou-se com estrondo, com ecos reverberantes, deixando de fora o Cardeal Bellocchi.
Cardeal Bellocchi batia desesperadamente na porta, puxando depois pelos ferrolhos.
— Abra esta porta! — ele gritou rouco.
— Não, até que o próprio Cristo toque a fechadura! — veio do vestíbulo a mesma voz distorcida.
Os jesuítas do Vaticano largaram seus baús e correram para juntar-se ao cardeal diante da porta. Puxaram maçanetas, bateram, tentaram deslocar os gonzos, mas a simples porta de madeira, brilhando ao sol de Cataratas do Gólgota, resistia a tudo.
Cardeal Bellocchi, desanimado, trêmulo por premonições de catástrofe, ia afastando-se debilmente da porta quando, vindo do interior da igreja, ele ouviu: — Venha, Baldoni — uma voz sibilante como o zunido de um inseto. — Venha para o meu altar.
A força policial e os homens do serviço secreto batiam na porta com furor. Em vão. O poder que mantinha aquela porta fechada era sobrenatural.
— Peguem os machados! — o chefe deu a ordem. — Vamos quebrar esta porta!
Dois dos guardas trouxeram pesados machados e, ao chegarem à porta, ergueram-nos acima das cabeças. Ao primeiro impacto de aço contra madeira um clarão de relâmpago e um jorro de faíscas incandescentes fizeram com que as ferramentas lhes saltassem das mãos, e seus corpos rolassem desfalecidos pelo chão. A multidão e os clérigos, horrorizados, afastaram-se.
Em desespero, Cardeal Bellocchi espiou pela janela gótica. Francisco Xavier, o rosto pálido à luz de uma esquisita lamparina amarelada e mortiça, caminhava para um altar de brancos reflexos. O jesuíta, em sua batina negra, curvando-se obsequiosamente e indicando o caminho, conduzia o papa para o centro de seus profanos domínios.
Francisco Xavier caminhava serenamente ao lado de Eamon, descendo o corredor central, e, enquanto isso, analisava o rosto do jesuíta. Naquele semblante arrogante e agoniado, havia duas almas: uma, que clamava por auxílio para libertar-se, e outra, cheia de ódio venenoso.
Durante muito tempo não trocaram palavra, cada um medindo a têmpera do outro.
Francisco Xavier virou-se para observar os detalhes daquela igreja do século XIX: a arquitetura modesta, as poucas colunas e vigas, as retas janelas góticas. Uma igreja que não possuía nem o esplendor de Roma, nem a nudez da pedra de San Rignazzi.
A luz do dia cessava nas janelas. Afastada do mundo exterior de matéria e aparência, a atmosfera da igreja alimentava-se da luz da lamparina amarela.
— Teria sido um prazer para mim servir nesta igreja — o papa comentou com suavidade.
Francisco Xavier encarou Eamon. Naqueles olhos, ele viu, superando a natureza do homem interior, o poder ancestral que o atormentava desde San Rignazzi, até Bolonha, até o Vaticano. Agora, sob o teto da criação maligna, cabia a Francisco Xavier exorcizar a conspurcação do jesuíta e sua igreja, ou sofrer, ele mesmo, a excruciante morte do espírito.
Travava-se a batalha. Que seria elementar, brutal, sem concessões.
— Seu idiota! — Eamon rosnou, levantando o lábio. — Esta igreja pertence a Satanás!
— Pois pertencerá a Jesus Cristo — Francisco Xavier retrucou calmamente, e, então, dirigindo-se a Eamon, no âmago daquele corpo, acrescentou: — por seu intermédio.
Mas o poder contorceu os lábios de Eamon num sorriso grotesco, revelando a língua escura e os dentes brancos e agudos.
— Olhe o que aconteceu — ele gritou em triunfo, — por meu intermédio!
Eamon levantou o braço, indicando as paredes da igreja.
Um crepúsculo sombrio descia das vigas. O nível de claridade da igreja caiu. Ao descerem as trevas, o frio tornou-se mais intenso, e a respiração de Francisco Xavier transformava-se em vapor. Luminescências azuis, como minúsculas barracudas, deslizavam pelas colunas da igreja e iam alimentar-se no altar profanado. A lamparina amarela cintilava soberana sobre suas cabeças.
— Não entende quem o trouxe a Cataratas do Gólgota? — Eamon indagou.
— O Espírito Santo.
Eamon soltou uma gargalhada, e os lábios ressequidos e azulados tornaram-se quase negros sob a luz da lamparina.
— Não — ele riu grosseiramente. — Foram os meus mensageiros.
Eamon apontou para as janelas góticas. Lá, silhuetadas contra a luz do dia, as sombras aladas se agrupavam. Os mensageiros da morte e do sacrilégio com quem Francisco Xavier se deparara em San Rignazzi.
As sombras aladas, que o tinham levado dos subúrbios para a igreja branca, invadiam preguiçosamente a igreja, agregando-se com intimidade sobre os ombros de Eamon, para depois se dissolverem nas trevas.
Na fria escuridão, os tons vermelhos dos olhos de Eamon ardiam ferozes na direção de Francisco Xavier.
— Eu o observei quando criança, Giacomo Baldoni — ele sussurrou com um ódio que atravessara anos. — Em Bolonha, cochichei ao seu ouvido.
Francisco Xavier recordou o bafo gelado e ambíguo que o forçara a deixar a cripta infestada, há tantos anos.
— Eu o escolhi para ser meu — Eamon continuou. — E acompanhei sua carreira, passo a passo.
Francisco Xavier lembrou-se, nessa hora, da morte dos sacerdotes, recém-batizados; os padres devotos que o haviam assistido em sua ascensão para o trono de São Pedro.
Eamon aproximou-se, o hálito fétido, os olhos cintilantes e sardónicos.
— Quando o arcebispo de Gênova saiu trôpego pela Capela Sistina, apontando para você e dizendo: "E ele, é ele", quem você pensa que ele viu no fundo de seus olhos?
— O Espírito Santo.
Eamon mostrou os dentes numa gargalhada sem som, que sibilou pelo silêncio morto da igreja.
— Foi a mim que ele viu! — Eamon riu estridente. — E ficou deveras surpreendido!
Francisco Xavier sorriu com doçura, fitando Eamon bem dentro dos olhos.
Eamon encolheu-se. Na simplicidade, na segurança inquebrantável de Francisco Xavier, ele começava a perceber uma obstinação insuportável.
— Quem o trouxe a Cataratas do Gólgota? — Eamon vociferou furioso.
— O Espírito Santo.
— Eu o trouxe aqui!
Eamon levantou a mão, de repente, e a manteve sobre o rosário negro nas mãos de Francisco Xavier. Lentamente, o rosário perdia peso. Francisco Xavier, pálido, viu seu rosário girar, solto, na sombria atmosfera da igreja.
— Contemple a sua visão da Ressurreição! — Eamon berrou.
Eamon apontou para a câmera de termovisão sobre o tripé retorcido, nas sombras. Na tela, Francisco viu o esqueleto levantar-se, segurando um crucifixo dourado: a visão que tivera durante a tempestade que o levara a Boston.
— Mimetismo — Francisco Xavier opinou com calma, virando-se para Eamon. — Você imita os sinais do Espírito Santo. Mas foi o próprio Espírito Santo quem me trouxe para cá. E com um único propósito.
Eamon ouvia atentamente. Francisco Xavier observou o semblante vulpino refletir agonias de ódio e dúvida, e viu também uma impaciência brutal. Também notou, no fundo de tudo, a alma vulnerável e sensível de um sacerdote aterrorizado.
— O de expulsá-lo do corpo desse padre — Francisco Xavier continuou serenamente.
Eamon exalou um jato azulado de vapor frio, rindo com desprezo.
— E desta igreja santificada — acrescentou o papa.
Desta vez, o corpo de Eamon se sacudiu numa estrepitosa gargalhada. Ergueu os braços amorosamente para a lamparina profanada.
— Minha igreja! — ele berrou. — Meu sacerdote!
A lamparina do altar oscilou como louca. Nuvens de óleo queimado escapavam do reservatório. Pequenas esferas de fogo espalharam-se, cheirando mal pelo chão da igreja e ao redor dos pés de Francisco Xavier.
— MEU MUNDO!
O riso torturado do jesuíta ecoou por Cataratas do Gólgota banhada pelo sol, O som era hipnótico. A multidão ajoelhada diante da igreja juntou as mãos em atitude de oração. Vários policiais puseram-se de joelhos e descobriram a cabeça. Até os incrédulos das equipes de rádio e televisão sentiram-se tocados, enquanto, dentro da igreja, a atmosfera parada sacudia-se com a gargalhada insana do sacerdote decaído.
— Per Dominum nostrum Jesum Christum Filium Tuumm...
A voz sofisticada do Cardeal Bellocchi elevou-se em escala ascendente, viril e confiante, guiando padres e freiras e cristãos reunidos diante da igreja, que responderam: — Qui venturus est judicare vivos et mortuos...
Do interior da igreja, a voz cristalina de Francisco Xavier juntou-se à oração: — Propitius esto, exaudi nos, Domine...
O Cardeal Kennedy e o Bispo McElroy traduziam.
— E livra-nos do mal, Senhor...
— Ab omni peccato, a morte perpetua...
— De todo o pecado e da morte eterna...
— Per mysterium sanctae Incarnationis tuae...
— Pelo mistério da Tua Santa Encarnação.
Técnicos de som da rede WABC gravaram todas as palavras.
Em seguida, como que levados por um sentido coletivo, todas as cabeças se levantaram, depois da oração, e viraram-se para olhar o leste. Formações maciças e turbulentas de nuvens avançavam para Cataratas do Gólgota.
Anita parara perto do cemitério, e um vento súbito açoitou-lhe os cabelos. Ao lado dela, Deão Osborne afrouxou a gravata e tirou o paletó.
Anita notou-lhe a palidez do rosto e como suas mãos tremiam.
— Algo de extraordinário está ocorrendo — ele murmurou.
Anita observou os olhos dele escurecerem, excitados, ansiosos, extraordinariamente ansiosos, ao perscrutarem o céu, a multidão, a igreja pálida e luminosa.
— Estudei psicologia de massa — ele explicou. — Meu Deus, Anita, algo sem precedentes está acontecendo aqui.
Anita ouvia a prece entoada que saía da igreja e as respostas do público. Contemplou os rostos levantados, mesmo os das crianças, plenos de uma fé que ela achou emocionante.
— E acha que isso é tudo? — ela perguntou. — Psicologia de massa?
Deão Osborne ajeitou os cabelos que o vento desarranjara e observou-a afastar-se para analisar as fisionomias do povo.
— O que essa gente está sentindo é quase palpável — ele comentou. — O ar está carregado.
Deão Osborne aproximou-se e segurou o braço de Anita.
—A realidade deles fundiu-se numa emoção coletiva — ele explicou. Meu Jesus, reconheço agora!
— A realidade deles? — Anita protestou brandamente, olhando-o fundo nos olhos. — Por que não, simplesmente... a realidade?
Perplexo, Deão Osborne ficou momentaneamente imóvel. Soltou-lhe o braço. Anita voltou-se novamente para a multidão.
— A realidade final — murmurou.
Nervoso, Deão Osborne saiu caminhando pela borda do cemitério. Fragmentos de teorias, idéias ultrapassadas há mais de dez anos, surgiram em sua mente. Não obstante, era uma sensação extraordinária estar no meio de tal fenômeno de massa.
Ele chegou mesmo a sentir o impulso, ao qual resistiu facilmente, de ajoelhar-se e rezar junto com os outros.
Mário comprimiu o rosto contra a vidraça do carro-patrulha. Vultos no cemitério pareciam ser de Anita e do Deão Osborne. Alucinações? Mário sacudiu a cabeça, tentando desanuviar as idéias. Quando olhou de novo, teve certeza de que era Anita. Um guarda corpulento bloqueou-lhe a visão.
— Belo traseiro — o patrulheiro comentou. — Amiguinha sua?
— É — Mário respondeu calmamente.
— Qual é a tarefa dela? Explodir pontes?
— Ela é parapsicóloga.
— E o que vem a ser isso?
— Uma matéria científica.
— Bem, seja o que for — o policial brincou, — talvez eu me matricule na classe dela, algum dia.
Mário, contudo, já não o ouvia. Seria realmente o Deão Osborne? O que poderia trazê-lo a Cataratas do Gólgota?
Francisco Xavier e Eamon Malcolm tornaram-se visíveis pela janela gótica.
À luz da lamparina do altar, os dois pareciam estar sofrendo de estase temporária. Mário sentiu a antiga sensação de reverência perante o Sumo Pontífice vir à superfície, apesar de todos os anos de psicanálise e treinamento científico. Em algum cantinho escondido de seu coração, Mário admitiu, a Igreja cravara fundo a sua lança.
Assustou-se quando viu Francisco Xavier adiantar-se inesperadamente, agarrar o pulso direito de Eamon e puxá-lo para si.
— Vim buscá-lo, Eamon Malcolm — ele murmurou, procurando a alma que estava perdida no fundo daquele rosto ardiloso.
Eamon tentou fazer com que Francisco Xavier o soltasse.
Mas as mãos possantes do camponês apertaram-se ainda mais ao redor do pulso. Os olhos cinzentos de Francisco Xavier mergulharam nos de Eamon.
— Reze comigo, Eamon — Francisco Xavier ordenou.
Devolva sua alma a Cristo!
Eamon lutou, sem resultado, contra seus grilhões.
Escorria catarro de suas narinas Os olhos injetados de sangue refletiam mudo desespero.
Atônito, Francisco Xavier divisou em Eamon o padre que, um dia, ele próprio deveria ter sido. Animado por aquela paixão que devia arder em seu cerne e que não conhecia fronteiras. Sem as armadilhas do poder eclesiástico. E que cintilava com uma pureza vulnerável e assustadora.
— Largue-me! — gritou a voz obscena e rouquenha, saindo da garganta de Eamon.
Francisco Xavier olhou ainda mais fundo dentro dos olhos azuis e suplicantes. E, subitamente, o sentido de sua missão a Cataratas do Gólgota revelou-se. As infindáveis visitas, que fizera incógnito a grutas, criptas e igrejas paroquiais pelo mundo todo, tinham tido apenas este único propósito: encontrar a chama eterna e poderosa da fé que outrora o consumira tão completamente, quando não passava de um menino em San Rignazzi.
— Reze comigo, Eamon — Francisco Xavier murmurou, novamente. — Como reza uma criança. Sem reservas.
Acreditando de todo coração; deve implorar a Cristo que entre novamente em seu coração!
— Não... posso... — Eamon vacilou, uma entrecortada voz humana emergindo por breves segundos de sua masmorra.
Os olhos de Francisco Xavier faiscaram ao conseguir aquele leve contato com o espírito interior de Eamon.
— Então, meu filho, eu lhe mostrarei como rezar — ele disse, muito suavemente.
Francisco Xavier ajudou Eamon a ajoelhar-se, muito devagar, diante do altar. Delicadamente, as mãos do camponês colocaram as mãos de Eamon em postura de oração. Francisco Xavier deu um sorriso de encorajamento.
Uma náusea terrível apoderou-se de Eamon e fê-lo contorcer-se. Francisco Xavier ajudou-o a erguer-se.
— Santo Padre — Eamon conseguiu sussurrar. — Sem dúvida, eu vou morrer...
Francisco Xavier, assombrado com a intensidade do tormento de Eamon, reconheceu nele o raro e extraordinário dom da fé.
— Aquele que crê em Cristo — Francisco Xavier disse amorosamente, — jamais morrerá.
Do âmago daquela prisão de um mal tão abominável que o fazia clamar pela morte, Eamon percebeu a cruz peitoral com reflexos dourados, os paramentos imaculados, e o rosto do siciliano, nobre e sonhador, nas trevas da igreja.
Vagamente, Eamon entendeu que ele próprio havia sido escolhido para ser o veículo de um combate tão violento que ameaçava de destruição o próprio planeta.
O carisma de Francisco Xavier fluiu livremente, cauterizando a corrupção, e Eamon ousou elevar-se espiritualmente, ao encontro daquela força.
Francisco Xavier entrelaçou as mãos em oração, e fitou Eamon de modo profundamente significativo.
— Repita as minhas palavras, Eamon — ele murmurou.
Eamon sentiu o demônio levantar-se dentro dele, formando uma muralha inexpugnável de vileza, um poder insolente e asfixiante, e sentiu-se sufocar. Fechou os olhos e sentiu-se resvalando de volta ao túnel profundo de sua prisão.
— Propitius esto, parce nobis, Domine — Francisco Xavier começou.
As palavras penetraram em Eamon como um farol. Os lábios rachados, com pavor da vingança, Eamon subitamente depositou sua fé em Francisco Xavier.
— Livra-nos, Senhor, de todo o mal — Eamon repetiu, em seu idioma.
Visões de camaleões brancos, cujos ventres deixavam rastros de sangue, perseguiam-no atrás dos olhos fechados.
A força que o mantinha prisioneiro lançava nuvens de insetos, alucinações asquerosas a assaltar-lhe a mente devota.
No silêncio, sentiu a presença próxima de Francisco Xavier.
— Ah onmi peccato, a morte perpetua — Francisco Xavier prosseguiu serenamente.
— De todo o pecado, da morte eterna!
Era a súplica que subia do coração de Eamon, tão angustiada que Francisco Xavier abriu os olhos e analisou o rosto do torturado padre. Era como um eco de suas próprias peregrinações a grutas, e criptas, e igrejas paroquiais.
— Per mysterium sanctae Incarnationis tuae — Francisco Xavier continuou audaciosamente.
Mas a devoção se rompera. Eamon deslizou para o poço escuro onde se afogava. Mais uma vez, o rosto do jesuíta refletia o sorriso malévolo e triunfante.
Eamon mostrou a língua preta e fez o sinal-da-cruz com gestos obscenos.
— Pelo m-m-mistério da santa en-en-encarna-na-na-ção-ção-ção — ele zombou.
Desanimado, Francisco Xavier fechou os olhos, buscando novamente a força meditativa.
— Per adventum Spiritis Sancti, in diejudicii...
Eamon soltou uma gargalhada sonora.
— O D-D-Dia do Julgamento — Eamon vociferou com sarcasmo. — Quando será esse Dia fodido do Julgamento, Baldoni?
Francisco Xavier sentiu que Eamon caía novamente nas trevas abjetas, censurou-se e, de súbito, deu-se conta do perigo.
Se ele, como chefe da Igreja Católica, não pudesse praticar o exorcismo, em virtude de uma falha pessoal em sua natureza espiritual, então, tudo estaria perdido.
Luminescências azuis enxameavam diante de seu rosto e pelas suas vestes, pousando na cruz peitoral, alimentando-se, finalmente, do siciliano.
Eamon aproximou-se, transpirando confiança e arrogância.
— Eu o enganei com truques infantis, Giacomo Baldoni, alimentando sua vaidade — ele sibilou.
Francisco Xavier procurou concentrar-se em oração, confundiu-se, e, em seguida, pôs-se a recitar a Litania dos Santos.
— Seus rituais recendem a vaidade! — Eamon gritou, abafando a litania. — Seus paramentos pesam de tanto ouro!
Francisco Xavier sentiu o déjà vu. Era como uma onda de trevas abrangentes. Perdeu o equilíbrio, e tentou segurar-se nas toalhas do altar.
— Roma senta-se sobre suas barras de ouro, enquanto crianças morrem de fome! — Eamon esganiçou. — O papa corre para grutas e cavernas, e igrejas paroquiais, à procura da alma perdida de sua própria religião!
— Sancte Michaello, ora pro nobis, San cte Gabriello, ora pro nobis, Sancte Giuseppe, ora pro nobis — Francisco Xavier rezava, sem fôlego.
— Está perdido, Baldoni! — Eamon berrou. Perdido, sob a riqueza de dois mil anos! Perdido, sob a pompa de sua própria vaidade! Perdido, sob o peso de políticos que traíram a simplicidade de Cristo! Perdido, Baldoni, perdido, como um cordeiro na cachoeira de San Rignazzil ... Perdido ... perdido ... perdido ... veio o eco lamentoso da apside.
Eamon sorriu com desdém. Tocou de leve os botões dourados, a cruz peitoral de ouro sobre a veste branca.
Correu o dedo pelo bordado a ouro da capa imaculadamente branca.
— Alcoviteiro... — Eamon sussurrou. — Alcoviteiro de Cristo!
Um intenso calor invadiu o cérebro de Francisco Xavier.
As dúvidas semeadas pelo supremo enganador desabrochavam em corrosivo desprezo.
— Onde está o seu Segundo Advento? — Eamon escarneceu. — Onde está a sua Ressurreição?
Desesperado, Francisco Xavier buscava, entre as imagens de San Rignazzi. Naquela paisagem hostil, viu o pai, cujo corpo se fortalecia a cada colheita desastrosa, cuja voz cantava mais alto no coro da igreja a cada morte, cada moléstia, cada praga que atacasse os olivais. Pois a oração é uma arma, assim fora ensinado, e fere Satanás no próprio berço do mal: a vacilação e o desespero do coração humano.
Em silêncio, Francisco Xavier reviveu a fé de seu pai.
— Sancte Joannes Baptista, ora pro nobis, Omrit Sancti A ngell et Archangeli, orate pro nobis!
Mas o poder semeado em Eamon percebera uma sutil qualidade de temor e dúvida em Francisco Xavier.
Eamon curvou-se sobre o vulto encolhido.
— Você está nu, Baldoni! — Eamon sussurrou. — Nem todos os seus paramentos, nem todo o seu ouro, nem todas as riquezas do Vaticano, podem agora aliviar sua miséria!
Vagas alucinações sonoras agitaram-se às costas de Francisco Xavier.
Ao virar a cabeça, para espiar por cima do ombro, viu, para seu horror, uma congregação de figuras de cera sentadas nos bancos, e cuja pele estava coberta de verniz aplicado de modo obsceno e desfigurante, todas elas vestidas em antiquadas roupas vitorianas, cabelos desgre-nhados sob chapéus esfarrapados.
Na ápside, o som de patas de animais. Francisco Xavier girou nos calcanhares. Um bode lascivo pulou das trevas, mexendo a língua rosada e úmida, tendo entre os chifres a batina de um padre.
Trémulo, Francisco Xavier cerrou os olhos, mas a voz de Eamon continuou ardente ao seu ouvido.
— Neste instante, nos unimos, Giacomo Baldoni — ele soprou. — A partir de agora, tudo o que disser, o será com a minha língua; tudo o que assinar, o será com a minha assinatura.
Era, subitamente, como se tudo estivesse sutilmente imóvel atrás do altar. Francisco Xavier abriu os olhos.
E viu sua própria imagem, resplendente no trono do Vaticano, segurando o Bastão do Pastor, e as vestes cintilavam um milhão de estrelas à luz da lamparina do altar.
Mas o sorriso daquele rosto era oblíquo, e os chifres de um carneiro despontavam curvos de sob a mitra pontifícia.
— Senhor Jesus... — Francisco Xavier bradou, sem fôlego, e levantando o braço para proteger os olhos, a voz elevou-se num grito agoniado.
— AJUDA-ME!
Eddie Fremont vagava sozinho pelo topo do serro, ao alto de Cataratas do Gólgota. A multidão em oração atraía-o, afastava-o dos carros, das camionetas, dos caminhões e furgões, largados atrás das barreiras armadas pela força policial.
Aquele estranho dia, o mais estranho de todos que sua jovem memória era capaz de recordar, começara ainda no escuro, quando o rádio anunciara alguma coisa de extraordinário acontecendo no aeroporto de Boston. Depois, os rumores trazidos pelos vizinhos, e a corrida até o estacionamento do parque da fábrica, pejado de operários, padres e freiras. E a esquisita sensação de luminosidade quando o distante Santo Padre, uma figura vestida toda de branco, sob nuvens ameaçadoras, abençoou-os a todos.
Era, agora, meio-dia e meia, e aquelas nuvens tempestuosas se avolumavam no vale desolado. E, a igreja branca, que sua mãe contemplava com fervor e em oração, parecia cheia de gemidos assustadores e risadas desdenhosas.
Eddie embrenhou-se mais fundo no bosque de vidoeiros.
Raios ocasionais de sol transformavam a fronde das árvores em formas estranhas. Um coelho — ou, quem sabe, um esquilo — pulou por cima de um tronco caído num berço fofo de cogumelos.
Então, a luz dourada foi tomando forma, sete formas, flutuando, densas, pelo bosque, irradiando feixes de luminescência prateada sobre os arbustos.
Eddie, hipnotizado, aproximou-se, contemplando todo aquele esplendor, o esplendor da metamorfose de sete formas de luz mercurial.
Daquelas formas vagamente humanas, uma voz desceu.
Eddie não conseguia perceber-lhes os olhos, mas sabia que elas tinham conhecimento de sua presença, e o fitavam, e lhe passavam instruções.
A voz disse: " Et puer Propheta A Itistusimi vocaberis: praebis enim ante fadem Domini parare vias ejus".
Eddie deu alguns passos para trás, tropeçou num galho caído, e caiu sobre macias samambaias. Protegendo a vista, ao virar o rosto para os vultos, viu que seguravam sete jarros. Pareciam inquietos, impacientes, mas decididos, na campanha final de se comunicarem com Eddie.
"Ad dandam scientam salutis plebi ejus, án rernissio-nem pecatorumeorum.”
Eddie sentia no rosto a luz que emanava das figuras.
Arrastando-se de costas, como um caranguejo, posse, depois, de pé, e saiu em corrida desabalada.
Correu até deixar o bosque para trás, e desceu a ladeira, onde encontrou uma mulher de negros cabelos, parada à beira do cemitério, ao lado um senhor alto e distinto.
Eddie parou, desnorteado, olhando primeiro para Anita e depois para o Deão Osborne.
— Eu vi os anjos — Eddie confidenciou muito baixinho.
— Sete deles. Carregando jarros.
Anita meneou a cabeça, pálida e linda, como se a notícia, de certa forma, não fosse inesperada.
— Eles falaram comigo — o menino contou.
— O que disseram? — perguntou ela com bondade.
Eddie engoliu, depois virou-se cautelosamente para os bosques de vidoeiros. A luz do sol dançava, flutuava, metamorfoseava-se sobre a fronde das árvores, dourando galhos, enquanto as nuvens de tempestade rolavam.
— Era uma língua esquisita — Eddie confessou.
Mas Deão Osborne reconheceu os sinais de inteligência no olhar do garoto, e imaginou que a psicologia de massas havia engendrado uma espécie de visão pessoal.
— Conte para nós — Deão Osborne encorajou.
Eddie descobriu, para sua surpresa, que as palavras haviam penetrado em seu coração, e embora pronunciadas em língua desconhecida, podia agora repeti-las em seu próprio idioma.
— Eles disseram: "E tu, criança, serás chamada o profeta do Altíssimo, pois irás à frente do rosto do Senhor, para preparar os Seus caminhos, para dar as novas da salvação ao Seu povo, para remissão de seus pecados".
Deão Osborne assombrou-se com a exatidão da passagem bíblica.
— E eu nem sei o que isso quer dizer — Eddie comentou com um sorriso sem graça.
— Quer dizer exatamente isso — Anita disse tranquilamente.
Deão Osborne percebeu a qualidade sobrenatural da afirmação de Anita.
— Vá — disse ela ao menino. — Repita essas mesmas palavras à sua mãe. E conte para as pessoas que estão perto da igreja.
Eddie fez que sim, depois virou-se e desandou a correr para a multidão que se comprimia e rezava de joelhos, diante da Igreja das Dores Eternas.
— Ora, vamos — Deão Osborne alertou. — Você não pode se deixar levar por este fenómeno religioso, Anita.
Deão Osborne interrompeu-se. O sorriso gentil de Anita lentamente paralisou-se. Seguiu o olhar da moça para o alto.
As formações de densas nuvens espalhavam-se, sem ambiguidade, num fluxo cruciforme, que ele vira uma única vez em toda a sua vida.
Nos slides de Mário.
Avermelhada, volátil, em movimento.
— Deão Osborne — Anita murmurou. — Creio que estamos chegando ao final da História.
Transfixado, Osborne viu as nuvens se estenderem, adquirindo forma definida.
As metamorfoses das nuvens que vinham do leste também não passaram despercebidas a Mário. Formas que se assemelhavam a animais, encravadas nas nuvens. Cavalos galopando. Tremores surdos sacudindo o solo sob o carro-patrulha.
O guarda sentado no banco da frente apanhou o microfone.
— Riley falando. Câmbio.
— O que é, Riley? — veio uma voz.
— Leve tremor de terra aqui no espinhaço — Riley reportou. — Alguma explosão por aí?
— Vou checar. Cambio e desligo.
Mário ficou intrigado com as formas turbulentas das nuvens avermelhadas. Reflexos, sem dúvida. Mas... reflexos de quê? Olhou para a floresta escura que ladeava o serro, depois para a ladeira íngreme que descia para o cemitério e para a igreja. A imensa estrutura de nuvens parecia vir empurrada de leste para a igreja.
A escuridão do céu deixava-o enervado. Que espécie de temporal estava se armando? A estrada do espinhaço onde estavam estacionados parecia dividir o universo em trevas por demais terríveis para se imaginar, de um lado e de outro, uma revelação que, igualmente, o aterrorizava. Que diabos estaria acontecendo?
O policial no banco da frente desceu o vidro da janela.
Da ravina, subiam até eles as litanias trêmulas da multidão, acentuadas por trovões distantes, e a gargalhada terrível que cascateava do interior da igreja.
O riso de Eamon aumentou e aumentou, mas os ecos não diminuíram, até que a cacofonia fez tremer as vigas.
— Você me perseguiu, na sua busca do Segundo Advento, carregando todo o fedor das riquezas da Igreja — Eamon gargalhou. — Mas era tudo uma armadilha, e você caiu direitinho nela, como um porco na lama.
Francisco Xavier segurou firme o rosário negro.
Renata Baldoni, a mulher camponesa de um siciliano grisalho, legara-lhe a fé inabalável. Uma fé que convivia intimamente com Cristo, em misericórdia nutriz, como mudas de árvore se nutrem pela irrigação de águas frescas.
A criança aprendera a nada desejar, nada sentir, exceto as sutis sensações daquela misericórdia vulnerável que se animava pelo mundo afora.
Era uma influência musical, devota, que outrora o fizera chorar lágrimas de encantamento.
— O que está fazendo? — Eamon perguntou, furioso, mas, ao mesmo tempo, estranhamente perturbado.
Francisco Xavier se levantara da posição genuflexa, e estava de pé, ao lado do altar. Lentamente, muito lentamente, tirou do dedo o maciço Anel do Pescador, colocando-o no assento de uma cadeira.
— Seu idiota! — Eamon disse num silvo.
Mas o rosto do jesuíta empalidecera, incerto, observando atento as ações de Francisco Xavier.
— Mesmo o maior enganador pode, quando fala a verdade, servir a Cristo — Francisco Xavier observou, enquanto desatava as borlas bordadas a ouro de sua capa.
Escolher entre a grandeza de Roma e os instintos que lhe tinham sido legados pela mãe, jamais constituíra um dilema penoso ou divisível. Neste instante, contudo, assim era. E Francisco Xavier fez sua escolha.
Dobrou a capa branca e dourada, e colocou-a, com carinho, na mesma cadeira, sobre o anel do Vaticano.
— Alcoviteiro! — Eamon praguejou.
As luminescências azuis fervilhavam ao redor de Francisco Xavier. Imperturbável, ele ergueu a cruz peitoral, passou-a pela cabeça, beijou-a com respeito, e depositou-a sobre a capa.
O solidéu de cetim, bordado pelos alfaiates do Vaticano, de acordo com os padrões secularmente tradicionais, também foi depositado na cadeira.
Eamon afastou-se, tomado de incerteza. O homem à sua frente, desvestido dos magníficos paramentos exteriores, perdera sua pompa e majestade. Tudo o que restava era um sacerdote siciliano.
Na mão retorcida, refletindo a luz da lamparina mortiça, repousava o rosário simples e negro.
— Alcoviteiro romano! — Eamon cacarejou, lívido de ódio.
Francisco Xavier aproximou-se do jesuíta. Estendeu levemente as mãos, como a mostrar que estava desarmado, exceto pelo rosário negro.
Francisco Xavier ajoelhou-se, fez o sinal-da-cruz, e beijou o rosário. E fechou os olhos.
— Reze comigo, Eamon — ele murmurou, com surpreendente simplicidade.
(sic... 407-408)
própria vulnerabilidade, tanto material como espiritual, seria a única arma de Francisco Xavier.
Atrás de ambos, os sons de patas de animais e o fedor trazido pelo ar assaltaram seus sentidos.
— Eu, também, já estive perdido, Eamon — Francisco Xavier disse. — Eu e você, nós dois. Padre algum pode viver sem servir a Cristo de todo o coração.
Os lábios de Eamon retorceram-se numa careta. As silhuetas aladas desceram céleres, alimentando-se fartamente da Hóstia profanada e no Cálice, sobre o altar.
Eamon estremeceu sob o impacto da espiritualidade serena e penetrante de Francisco Xavier.
— Foi você quem me mostrou isso, Eamon.
Eamon levantou as mãos, tapando os ouvidos. Francisco Xavier estendeu o braço e puxou as mãos de Eamon. Ao levantar o olhar, Eamon deparou com os profundos e viris olhos cinzentos do siciliano mergulhando fundo dentro dos seus.
— Você foi o escolhido de Cristo para me mostrar o caminho — Francisco Xavier insistiu.
As vigas da igreja estremeceram, depois acalmaram-se.
Eamon podia sentir a estranha vulnerabilidade de Francisco Xavier, e isto o aterrorizava. Porque o siciliano oferecia-se em sacrifício.
— Não... Santo Padre... — Eamon deixou escapar entre dentes cerrados. — E ele é forte demais para nós...
Francisco Xavier elevou o rosário negro.
— Nossa força está em nossa simplicidade, Eamon.
Eamon sentiu seu lado direito ser dolorosamente trespassado, agonia latejante nos pulsos e nos pés, e uma dor surda ao redor da cabeça, imitações do martírio na Cruz.
As mãos amenas de Francisco Xavier sustentaram-no.
— Tenho tanto medo, Santo Padre — Eamon gaguejou, os olhos transbordando de lágrimas, agarrando-se às mãos do camponês.
Eamon olhou fundo nos olhos de Francisco Xavier. Viu que, também lá, residia uma dor terrível e que, contudo, o siciliano não temia.
— Seja forte, Eamon — Francisco Xavier sussurrou. — Pois aquele que crer em Cristo com o coração de uma criança, a este Cristo virá.
Suavemente, pela segunda vez, Francisco Xavier colocou as mãos de Eamon em atitude de oração, sob a lamparina do altar.
— Per sanctam Ressurrection tuam, libera nos, Domine — Francisco Xavier começou, tranquilo e confiante.
Alimentando-se do exemplo de Francisco Xavier, Eamon atreveu-se a repetir, pela segunda vez: — Pela Tua Santa Ressurreição, Senhor, livra-nos.
Francisco Xavier continuou a litania. A voz de Eamon ganhou vigor, depois falhou, quando o velho inimigo levantou-se dentro dele mais forte do que nunca.
Imagens de seu pai morto, o tio morto entre serpentes negras, interferiram na litania.
Francisco Xavier ouviu a litania ser transformada, pelos ecos da igreja, numa denúncia de Cristo.
Pior que isso, no entanto, eram as ondas de ódio vil e concreto que emanavam de Eamon, vindo quebrar-se contra ele, corroendo sua determinação. A cada golpe brutal, a energia feria sua pele, e fedia, e subia por seus braços, em busca de sua alma.
Francisco Xavier sorriu levemente.
Forçou sua mente a perceber-se como criança, rezando no catre de madeira, com a mãe ao seu lado. Depois, as ondas de medo se dissipando quando ela mostrou-lhe como lutar, e, agora, ele sentia que vinha dela um poder mais indomável do que o medo ou a morte.
Aquela simplicidade, depois de tantos anos, depois de galgar, a contragosto, embora como resultado de seus dons, toda a hierarquia eclesiástica, até atingir o trono de São Pedro, fluiu como um riacho de águas claras. Francisco Xavier fez uma pausa.
— Per sanctam Ressurrection tuam, libera nos, Domine — ele repetiu, com inabalável convicção.
— Pela Tua Santa Ressurreição, Senhor, livra-nos! — Eamon gritou, com tal inteireza de seu ser, que o grito ecoou e reverberou pelas trevas da igreja.
E, inesperadamente, ondas de podridão vieram quebrar-se contra a alba do siciliano. Luzes faiscantes e dolorosas agrediam a mão retorcida que segurava o rosário.
Com destemor, Francisco Xavier levantou a cabeça para as vigas, e sua voz ergueu-se cristalina e magnífica: — Afasta-te, Satanás. Cristo está presente!
Flutuando para o oeste, sob sólidas nuvens avermelhadas, uma imensa cruz começou a tomar forma sobre os céus de Cataratas do Gólgota, acompanhada de raios dardejantes e o explodir de trovões que faziam tremer a terra.
Um silêncio sufocado espalhou-se pela multidão reunida diante da igreja; e todos se encolheram sob a visão esplêndida, mas amedrontadora, que se aproximava do leste.
Da igreja profanada, chegou a voz vigorosa de Francisco Xavier.
— Corpus Domini nostri Jesu Christi custodiat animam tuarn in vitarn aeternam.
E Cardeal Bellocchi traduzia em voz alta: — Possa o Corpo de Nosso Senhor Jesus Cristo preservar tua alma para a vida eterna.
Por todos os lados, as janelas de Cataratas do Gólgota refletiam a imagem cruciforme movendo-se firme pelo céu de leste.
— Laudate Dominum, omnes Gentes: laudate eum, omnes populi — soava a voz de Francisco Xavier, soando clara pelo vale.
— Louvai ao Senhor, todas as nações: louvai-O todos os povos — entoou a voz do Cardeal Kennedy.
E a ordem ancestral fez com que repórteres de televisão, cameramen e técnicos de som, todos se ajoelhassem. Um policial curvou a cabeça e começou a chorar, contemplando o céu de leste.
A nuvem cruciforme pairava, nesse instante, sobre Cataratas do Gólgota. Um murmúrio de temor e excitação correu pelo povo ajoelhado.
— Mamãe, nós vamos morrer? — uma vozinha de menina perguntou.
— Reze, Cindy. Reze para nosso Pai do Céu.
Em outros pontos da aglomeração, pais apertavam ao peito os bebês assustados, e murmuravam orações já meio esquecidas.
O chão tremia. Ao se dirigirem para as barreiras policiais, Anita e o Deão Osborne tentavam segurar-se aos arbustos, ou apoiarem-se mutuamente, na tentativa de se protegerem da poeira que o vento levantava.
Deão Osborne notou que a atmosfera religiosa conquistava até mesmo os guardas empedernidos. Por cima do ombro, ele viu os imensos braços da formação em cruz, e uma figura nítida começando a tomar forma no centro.
Que extraordinário, ele pensou, simultaneamente sentir e analisar as próprias percepções. Era algo mais subjetivo do que qualquer aspecto ousado por B. F. Skinner. Porém, páginas de sua tese emergiram na lembrança de Osborne e, inesperadamente, ele entendeu que o tema sempre estivera presente em sua mente, embora temeroso da autoridade estrita do ilustre behaviorista.
Anita pôs-se a andar mais depressa no solo irregular.
Deão Osborne reduziu o passo, contemplando com assombro os raios que atingiam os bosques de vidoeiros de Cataratas do Gólgota. Nunca sentira o peito invadido, de maneira tão triunfante, por tanta vitalidade, tanta curiosidade, tanta vida como agora. As fímbrias vermelhas das nuvens turbulentas acercavam-se dos limites da cidade, e rajadas de ar quente avançavam sem descanso para as barreiras.
Nos torvelinhos de poeira, Osborne perdeu o contato com Anita.
— Anita! — ele chamou.
Mas a ventania abafou seu grito. O deão encaminhou-se, trôpego, para a barreira policial, o braço protegendo os olhos, agarrando-se, contra o vento, aos arbustos.
— Deo gratias, alleluia, alleluia — veio a voz de Francisco Xavier, sobrepondo-se à tempestade.
Deão Osborne prescindia de um padre para entender.
— Deus seja louvado! — a multidão respondeu, ajoelhando-se. Aleluia! Aleluia!
A antífona assombrosa da vermelha imagem cruciforme assobiou pelas ruas de Cataratas do Gólgota.
— Contemplei a visão — Deão Osborne murmurou.
A formação em cruz, idêntica à que fora gravada nas fitas da termovisão, pendia, agora, triunfante, sobre a Igreja das Dores Eternas, curvando árvores e arrancando galhos tal a sua força e calor.
No alto do espinhaço, dois policiais de pé, ao lado do carro-patrulha, olharam com horror o holocausto próximo.
No instante seguinte, estavam ambos correndo, em busca de abrigo no bosque de vidoeiros mais perto.
Aprisionado no banco traseiro do carro, Mário gritou com voz rouca: — Tirem-me daqui! Seus filhos-da-puta miseráveis!
Apoiou as costas contra a porta do veículo e com as botas deu seguidos pontapés na janela oposta. O vidro inquebrável estilhaçou-se e pulverizou-se, afinal, sob o ataque cerrado. A muito custo, Mário espremeu o corpo pela janela estreita, arranhando rosto, braços e pernas. Deixou-se cair ao solo, tentando amortecer a queda com as mãos algemadas. Sem conseguir equilibrar-se, rolou pela ribanceira íngreme. Um toco de árvore interrompeu dolorosamente sua queda, e uma dor lívida explodiu entre seus olhos.
— ANITA! — ele gritou, embora sua voz se perdesse na ventania que uivava e nos roncos dos trovões.
— ANITA! — ele berrou.
Anita estacou, virou-se, tentando ouvir em meio aos detritos levantados pelo vento. Estaria imaginando aquele grito primitivo?
— MARIO!
Castigado impiedosamente pelo temporal, Mário começou a mexer-se, caindo de joelhos, cegamente, ao encontro da mulher que já fora sua amada.
— ANITA!
Anita mudou de direção, curvando-se baixo contra o vento. O sofrimento daquela voz misturava-se a uma espécie de peculiar e estranho desamparo.
Então, no meio da poeira, entre fiapos de tecido agitados pela ventania uivante, entre um espinheiro e o carro-patrulha, ela deparou com o vulto vestido numa jaqueta; ajoelhado, impenitente, confuso, mas embatido.
— MARIO! — ela exclamou, correndo para ele.
Acolheu-o em seus braços, sentindo que ele estremecia.
Lágrimas quentes e salgadas rolaram sem acanhamento contra seu rosto. Haviam-no algemado como a um criminoso comum, e sua alma estava quase morta.
— Anita — ele sussurrou. — Sem você, foi tudo um inferno!
Anita apertou o rosto dele contra o peito, embalando-o docemente.
— O inferno acabou, Mário — ela disse baixinho, junto ao seu ouvido Lentamente, Mário ergueu a cabeça. A segurança tranquila da voz de Anita dissipava a tormenta psíquica da noite anterior, dissipava até mesmo o medo irracional daquela tempestade que se metamorfoseava, e da qual surgia agora uma figura trôpega num paletó esfarrapado. Deão Osborne, tendo um lenço à boca, finalmente encontrava Anita e Mário. Este notou o entusiasmo que transfigurava a expressão do velho professor. Cheio de suspeita, Mário encolheu-se.
Deão Osborne estendeu seu paletó para cobrir Anita e Mário, protegendo-os da ventania.
No cemitério, os montículos de greda, inquietos, racharam e se elevaram. Lápides se libertaram dos espinheiros, causando o deslocamento das umas, de dentro das quais surgiam lascas de cobre vitoriano e fiapos de veludo.
— Eu creio em Deus — Anita disse, contemplando o cemitério e a igreja dentro da qual Francisco Xavier e Eamon rezavam. — Eu, sem reservas, creio num Deus Todo-poderoso!
As nuvens se romperam numa torrente de granizo e saraiva. As fachadas vitorianas tombaram pela Rua Canaan.
Deão Osborne, protegendo Anita e Mário contra a tormenta, viu tábuas quebrando-se sobre as fissuras do asfalto. Cães ganiam. O Siloam transbordou de suas margens, atacando os alicerces da igreja.
A objetividade científica porfiava ainda para vencer seu coração; ao mesmo tempo, um outro sentimento, mudo e poderoso, deixava-o dividido, confuso e estarrecido.
— Será mesmo verdade? — ele murmurou.
Mário, a custo, ficou de pé, contemplando, incrédulo, a greda escura movendo-se no cemitério. Caixões gemiam nos gonzos, emergindo da prisão de um século debaixo da terra.
E, então, ela surgiu. A visão do esqueleto, levantando-se de sua uma vitoriana, agarrando com dedos ossudos a cruz dourada. Quanto mais o solo ondulava, mais alto a figura erguia o crucifixo, na direção da nuvem cruciforme, apertado com força na rigidez da morte.
— Não! — Mário gritou em desafio. — Eu não acredito.
Anita abraçou-o mais forte.
— Eu creio no poder e na graça que não podem ser dimensionados — Anita murmurou, curvando a cabeça reverentemente, finalmente em paz consigo mesma.
Deão Osborne, paralisado de indecisão, umedeceu os lábios.
Mário virou-se, desesperado, o rosto congelado num ricto de incompreensão e recusa. Como num ato de traição, os policiais estavam de joelhos, e de joelhos estavam também as equipes de comunicação. Mário girou nos calcanhares para defrontar-se com a insígnia da tempestade.
EU NÃO CREIO EM DEUS! — ele berrou em desafio.
Anita, porém, percebeu a hesitação daquele grito. Sem dúvida, a Igreja, ou Deus, havia cravado fundo sua lança no coração de Mário.
E os três — o ateu, o agnóstico, e a crente — sentiram que as regiões mais profundas de suas personalidades eram inexoravelmente atraídas para a figuração em espiral, tingida de vermelho, flutuando sobre a igreja.
Como se estivessem todos morrendo, e uma parte final e imutável de seus corpos partisse para o alto.
O asfalto da Rua Canaan derretia-se em vapor azulado.
Carros e caminhões inclinavam-se, para depois tombarem de lado. Bolas de granizo saltitavam no solo.
E, através de tudo, o rosto de Anita ardia de um fulgor interior.
— Tem piedade, Senhor — ela rezou, levantando a cabeça, os cabelos esvoaçando para trás pelo efeito da agonia turbulenta.
— Tem piedade de todos nós!
E percebeu, perfeitamente definida na nuvem que flutuava, o Corpo com chagas naquele apocalipse vermelho.
No momento exato de sua libertação, Anita sentiu-se flutuar, como se tivesse criado asas, e, então, no limiar dos mais longínquos portais do conhecimento humano, entre os gemidos e os gritos de todas as multidões, todo o movimento cessou.
A tempestade amainou de repente.
A força neutralizou-se, e a quietude era de assombro.
Cardeal Bellocchi, Cardeal Kennedy, e o Bispo McElroy, os jesuítas italianos, o subsecretário de estado e seu assistente diplomático, em uníssono perfeito, entoaram e tornaram a entoar: — Benedictus vos omnipotens Deus! Benedictus vos omnipotens Deus!
Duas mil vozes os acompanharam.
A litania, forte como um trovão, penetrou no cérebro torturado de Eamon. Enfraquecido, ergueu os olhos para o papa.
Francisco Xavier estava prostrado diante do altar.
Havia resvalado para seu último refúgio, onde decência e esperança residem, no cerne da criança fundamental. E tudo para a salvação de Eamon.
Eamon estremeceu, de uma alegria que jamais experimentara antes, nem mesmo nos dias de sua infância.
Francisco Xavier voltou-se, a fim de contemplar Eamon.
Seu rosto refletia um coração amante.
— Pela Tua Santa Ressurreição! — Francisco Xavier disse ambiguamente. Eamon fitava o rosto do Sumo Pontífice Francisco Xavier. Dos olhos cinzentos, quase negros àquela luz, brotavam lágrimas.
Eamon olhou subitamente para cima. E entendeu.
— A lamparina — ele exclamou, faltando-lhe o fôlego. — A lamparina de Cristo!
A lamparina do altar, que o vidro quebrado protegia apenas em parte, adquirira o fulgor vermelho e santificado.
E toda a atmosfera no interior da igreja refletia um vermelho cálido, banhando as correntes preguiçosas de poeira numa radiação delicada.
Francisco Xavier ficou de pé, braços estendidos, e tombou sob a luz da lamparina.
O voto feito em San Rignazzi, há tantos anos, cumpria-se, finalmente. E para toda a eternidade.
— Estamos na presença viva de Jesus Cristo, Eamon! — Francisco Xavier murmurou, o rosto inundado de lágrimas.
— Eamon... sente a presença Dele?
E, de repente, algo arrastou-se pelo corpo de Eamon, uma substancia corrosiva e vil, queimando, destruindo, deixando-o pálido e trêmulo.
— Está queimando! Está queimando! — Eamon gritou, tentando afastar-se do resplendor da lamparina.
Sem hesitar, Francisco Xavier curvou-se e puxou as mãos de Eamon que cobriam os olhos.
— Abrace esta luz, Eamon! Deixe que ela penetre em você! Receba Aquele que a enviou!
— Não consigo! Está queimando! Está queimando por dentro!
— Eu sei, eu sei. Queima muito, Eamon! É a chama de Cristo. Deixe que ela o purifique, como purificou a mim!
Eamon contorceu-se, dobrado sobre o estômago, tentando afastar-se para longe. Foi quando viu a cadeira no corredor central. Sobre ela, os paramentos, o anel de ouro de preço inestimável, a pesada cruz peitoral, e a imaculada capa, branco e ouro, todos exibindo a insígnia do Vaticano.
Por ele, Francisco Xavier desnudara-se dos últimos resquícios do poder temporal, e oferecera-se em sacrifício, confiando em Cristo.
Que o Sumo Pontífice oferecesse sua alma eterna em sacrifício, para salvar o mais humilde sacerdote, numa igrejinha perdida num vale desolado, atraído por um poder que Eamon não conseguia compreender, era um fato espantoso.
Lágrimas de gratidão inundaram os olhos do jesuíta. Ele se virou e beijou os sapatos de Francisco Xavier.
— Ah, Santo Padre — ele chorou sem constrangimento.
— Eu pequei! Fui altivo de coração! Fui usado como instrumento para que a divindade de Cristo fosse escarnecida!
Francisco Xavier aninhou a cabeça do jesuíta entre suas mãos seguras de camponês, levantando o rosto de Eamon.
— Renuncias a Satanás, e todas as suas pompas, e todas as suas obras? — Francisco Xavier inquiriu.
— Renuncio!
— Crês em Jesus Cristo e na remissão dos pecados?
A lamparina vermelha calidamente cintilava sobre os dois, unindo-os no vínculo de uma extraordinária experiência que exigia apenas uma resposta.
— Creio!
Francisco Xavier contemplou Eamon carinhosamente. O jesuíta, pelo tormento, revelara a pureza de um coração crente, conseguindo galvanizá-lo mesmo do alto do esplendor do trono dourado de São Pedro, para que reconhecesse a mais simples de todas as verdades: que apenas aquele que é como uma criança pode pisar nos domínios de Cristo.
As peças componentes da consciência de Eamon foram desmontadas. Ian, seu tio, os seminaristas, Elizabeth — todos desintegrados e sem poder sobre seu coração. A solidão de uma criança cuja fome de Cristo gerava temor pelos outros, desvaneceu-se. Eamon, finalmente, entendeu que seus sacrifícios para atingir o sacerdócio estavam justificados. E esta fora a dupla missão de Cataratas do Gólgota.
— Eamon — Francisco Xavier entoou enquanto fazia o sinal-da-cruz sobre o jesuíta. — Eu te absolvo!
A lamparina do altar bruxuleou. Pelas janelas góticas, os dois homens transfigurados viram a multidão reunida, e Anita, Mário, os policiais, as equipes de repórteres, todos de joelhos naquele final de tarde.
A tempestade litorânea que atingira Cataratas do Gólgota com tamanho furor retraiu-se para a estratosfera, quando o sol começou sua lenta descida no oeste.
A nuvem cruciforme vermelha, dardejando raios em ziguezague pela base, flutuava alta sobre Cataratas do Gólgota, à proporção em que sua intensidade amainava.
Francisco Xavier e Eamon, simultaneamente, abaixaram os rostos, persignaram-se, e sentiram o fulgor da tempestade misturar-se num murmúrio sagrado com o rubi suave da lamparina do altar.
— Em nome do Pai, do Filho, e do Espírito Santo, amém!
— Francisco Xavier finalizou.
A formação cruciforme, elevando-se ainda mais no firmamento, lentamente dispersou-se, lançando véus de neblina sobre o vale. Um arco-íris duplo brilhou no céu da tarde.
O olhar de Anita foi da nuvem vermelha para a igreja. O que quer que tivesse se passado entre Francisco Xavier e Eamon Malcolm permaneceria, para sempre, um segredo.
Existem domínios onde a ciência não penetra, e que ficam para além dos mais remotos sinais externos. E, contudo, ao contemplar as fisionomias iluminadas dos sacerdotes ajoelhados, um deles o Sumo Pontífice da Igreja Católica e outro um padre da mais humilde ordem, ela entendeu, sem sombra de dúvida, que havia um elo entre o que transpirara entre os dois e a assombrosa configuração pairando sobre o vale.
A sensação de alguém a seu lado fez Anita virar-se.
Mário, ainda de joelhos, pulsos algemados, rosto e braços sangrando, olhando estarrecido para a igreja, estava em estado de choque, os lábios gaguejando.
— G-Gerasima... P-P-P-Pontífice... o... teralpi... pia...
Ponteus... ah, Deus... estou morto... torto... horto... gorto...groto...
Deão Osborne tentou confortar Mário.
— Está tudo bem, Mário — ele disse. — Não tente negar o que presenciou, o que sentiu.
Mário, porém, tinha sido levado além dos limites de suas forças.
Deão Osborne olhou em silêncio para Anita, pedindo auxílio. Ela abraçou Mário, lentamente, tristemente, mas seu coração dividia-se entre ele e a multidão.
Pois a numerosa massa humana tinha pressentido os movimentos, no interior da igreja, dos dois homens santos, e uma salva de regozijo escapou de suas gargantas.
Amplos raios do sol romperam entre as nuvens, iluminando a igreja e atingindo a porta. Intocada, ela abriu-se mansamente.
Diante de Anita, em testemunho vivo para todos os presentes, estavam o papa da Igreja Católica, olhos radiantes, em seus esplêndidos paramentos, e, ao lado dele, o exultante jesuíta Eamon Malcolm.
EPÍLOGO
"O EFEITO GÓLGOTA" tornou-se conhecido jargão da mídia para significar confusão e incompetência.
Das quatro equipes de televisão e duas de rádio, oito homens e mulheres foram demitidos.
Videoteipes da visão celestial mostraram apenas uma densa nuvem cúmulos, dividida em duas partes, elevando-se sobre o limite leste do Vale do Gólgota. Repórteres que examinaram os teipes não foram capazes de explicar a febre, e o temor, e a reverência religiosa daqueles que se deixaram aprisionar no paroxismo daquele dia de outubro.
Nem a Polícia Municipal de Boston encontrou uma explicação satisfatória para a negligência no cumprimento do dever de doze patrulheiros motorizados, e cinco oficiais de carro-patrulha.
O serviço secreto recusou-se a debater o assunto com repórteres de TV, imprensa, ou qualquer outra pessoa.
Os videoteipes da igreja mostraram flutuações de cor, temperatura e intensidade de luz em seu interior, mas nada que não pudesse ser explicado. Gravações de som, embora imperfeitas, revelaram uma quantidade de cantos gregorianos e litanias.
A amnésia atacou a quantos tinham estado presentes em Cataratas do Gólgota naquele dia. Ninguém respondia às indagações dos jornalistas.
Dentro de um ano, restavam apenas os videoteipes e as fotografias, socados entre outros, nos arquivos mortos de redações de jornais e estúdios de televisão de Boston.
Deão Osborne afastou-se do corpo docente de Harvard, tendo recebido uma licença de dois anos para escrever a história das ciências psicológicas. Cumpriu sua tarefa com erudição e discernimento. No curso desse trabalho, revisou suas pesquisas dos últimos dez anos. E preencheu uma profunda lacuna. Sua esposa falecera após uma longa batalha contra o câncer.
Trabalhava até tarde da noite, bebericando xerez, finalmente em paz entre os retratos de seus ancestrais, ao pé da lareira de seu escritório. Escrivaninha, estantes, e até tapete e poltronas, estavam atulhados de fólios, artigos e volumes de referência, numa bagunça bem-arrumada. Deão Osborne deixou-se fascinar pela grande questão epistemológica: qual a diferença entre o que um ser humano vê e o que ele pensa que vê?
Um enigma que teria confundido até mesmo William James, apesar de toda a experiência religiosa desse grande homem.
Com frequência, a mente penetrante do Deão Osborne desviava-se do assunto imediato e ele se punha a contemplar a lareira. O que, de fato, tinha acontecido em Cataratas do Gólgota? Seu treinamento tendia para uma posição materialista, a de que tinha testemunhado uma massa humana jorrando fé a um ponto tal que resultara em ilusão coletiva.
Na verdade, sua ânsia de religião tornara-o suscetível a essa mesma ilusão.
O deão, no entanto, nutria um profundo respeito por Anita Wagner, a quem emprestara seu apoio para candidatar-se a um cargo na Universidade da Pensilvânia, para descartar, sem escrúpulos, a possibilidade, embora remota, de fatores extra-subjetivos que pudessem estar operando.
Em especial durante a madrugada, as longas madrugadas de inverno, quando despertava e a governanta lhe servia café, e ele contemplava a pureza da propriedade coberta de neve até seu olhar elevar-se para o sol nublado, em especial, então, atentava para a atitude de Anita. Porque, naquela hora serena, naquela hora imensurável e silenciosa de perpétua renovação, ele sentia que, em algum determinado nível mais profundo do que o limite aonde sua pesquisa poderia levá-lo, ele também testemunhara a visão do apocalipse cristão.
Mário Gilbert internou-se na unidade psiquiátrica do Hospital Geral de Boston, onde ficou dois meses em observação.
Naqueles dois meses, preencheu doze cadernos com notas, teorias e futuros modelos experimentais. Mário chegou a escrever ao Deão Osborne, ao presidente de Harvard, e à Fundação Científica Nacional, exigindo o seu laboratório de volta, A Faculdade de Ciências de Harvard rejeitou seu pedido e afastou-o da universidade. Contudo, ao fecharem o departamento, as fitas, registros sismográficos, slides e gravações de som tomados na Igreja das Dores Eternas, lhe foram devolvidos.
Anita visitou Mário várias vezes durante seu período de internação. Gradualmente, ambos chegaram à conclusão de que seu relacionamento tornara-se impossível.
Ao receber alta do hospital, Mário trabalhou em suas notas, e editou-as, organizando suas teorias num volume intitulado "Cataratas do Gólgota — Um Assalto em Quarta Dimensão”, no qual expôs, com escrupuloso cuidado, em linhas gerais, o poder progressivo de um jesuíta doente de projetar imagens numa fita de termovisão, perante um auditório repleto de ouvintes e, finalmente, para uma multidão emocional de repórteres, policiais, população urbana, fazendeiros semi-analfabetos, alcançando mesmo os mais altos escalões da Igreja Católica. Mário jamais apresentou seu manuscrito para ser publicado.
Aceitou um emprego como engenheiro eletrônico de manutenção nos estaleiros navais ao sul de Boston. A raiva e a humilhação de Cataratas do Gólgota foram, aos poucos, diminuindo. Nunca mais batalhou pela parapsicologia.
Às vezes, à noite, em seu pequeno apartamento, folheava seus cadernos de anotações e remexia nas caixas de fotografias e slides. A caligrafia era quase toda ilegível. As idéias, desordenadas. Machucavam sua mente. Nem um dia se passava sem que ponderasse sobre aquele dia apocalíptico de outubro. Sua única salvação residia na colocação científica: tentar desenvolver uma racionalização legítima para o inexplicável. O sedimento vermelho, ele refletia, soprado pela ventania ciclônica, se espalhara em duas metades idênticas ao atingirem os níveis mais altos e mais rarefeitos da atmosfera. A multidão, excitada pela exibição do ritual e das vestes da delegação do Vaticano, sob a influência da sugestionabilidade do Vale do Gólgota, interpretara um acontecimento natural como sendo uma visão religiosa. A análise o satisfazia, apoiada pela pesquisa que levara à revelação de que o Exército estava efetuando testes secretos de novos motores a jato, na vizinha Falmouth, o que explicaria as ondas de choque e tremores que haviam minado as casas da Rua Canaan. Depois, também o Siloam, correndo mais depressa atrás da nuvem turbulenta, havia causado erosão mais rápida nas margens de argila, enfraquecendo o solo, o que também explicaria o deslocamento dos velhos túmulos no cemitério e a desintegração dos edifícios vitorianos vizinhos.
Todos esses fatos reunidos, somados aos poderes singulares de projeção de Eamon Malcolm haviam influenciado as multidões, os policiais, as equipes de comunicação, Anita, Deão Osborne, Francisco Xavier, e, Mário viu-se forçado a reconhecer, profundamente mortificado, ele próprio.
Mário sorriu com amargura, engolindo sua quarta garrafa de cerveja. Todos haviam esquecido.
Francisco Xavier, provavelmente, imaginava que a Encarnação de Cristo estava próxima.
Mário comprimiu as têmporas. A dor que pulsava dentro de sua cabeça sempre retornava quando pensava em Cataratas do Gólgota.
Nessas ocasiões, ele procurava os halteres e pressionava os velhos ferros contra o soalho do minúsculo apartamento que cheirava a suor. Ainda assim, a agonia não cedia.
Que trauma inexprimível teria feito com que o jesuíta projetasse aquele bode na tela da termovisão? Como, e por que, Eamon manifestara aquela imagem?
Rilhando os dentes, narinas fremindo, Mário aumentava os pesos, até que a dor muscular penetrasse na dor mental, fazendo com que o tormento ficasse suportável.
Mário parou, piscando muito, transpirando, solitário em seu perpétuo isolamento.
As sete figuras de anjos, relatadas peio menininho de oito anos. A habilidade de traduzir do latim para a língua pátria. O esqueleto levantando-se do túmulo, fato testemunhado por não menos de duas mil pessoas.
Seriam, de fato, precursores da Ressurreição?
Francisco Xavier encurtou a conferência de Quebec reduzindo-a a um conclave de cardeais e bispos norte-americanos. Regressou a Roma entusiasmado com o sucesso espetacular da vigília americana. Delegações européias e prelados latino-americanos convergiram para Roma, cheios das emoções que a proximidade do Segundo Milênio causava. Triunfante e reconfortado, Francisco Xavier dirigiu-se a mais de 200.000 fiéis na Praça de São Pedro.
Naquela noite, recebeu a notícia de que sua mãe, ao tentar resgatar seu cordeiro favorito, aquele que tinha uma única orelha preta, tinha tropeçado, sofrido uma queda e acabara por se afogar nas águas agitadas do Rio San Rignazzi.
Francisco Xavier, de casaco e chapéu de camponês, foi a San Rignazzi. Solitário ao lado do caixão, acompanhado pelos parentes e pelo pároco local, rezou em voz alta e com profunda concentração.
Lugar-tenente de Cristo ele jurara ser, e lugar-tenente de Cristo tinha se tornado. Nos primórdios de sua infância fora tocado por um destino que transcendia a compreensão.
Contudo, mesmo enquanto a Igreja navegava inexorável para o terceiro milênio, quais haviam sido as mudanças? Satanás ainda guerreava Cristo diariamente, tendo por campo de batalha as almas atormentadas atingidas pela amargura da mortalidade.
Francisco Xavier empunhou o velho rosário negro. Em Cataratas do Gólgota, ele compreendeu — compreendeu totalmente, além de qualquer possibilidade de dúvida — que o Segundo Advento estava próximo.
A grande revelação se fizera no momento em que desvestira os paramentos do ofício, e ao lutar com Satanás, encravado num homem de fé apaixonada mas corrompida.
Teria sido um alerta salutar? Para que não apenas ele, mas toda a Igreja Católica voltasse às raízes? Lembrasse suas origens nas cavernas e nas grutas do alvorecer da história, quando Deus se movia entre as gerações, como acontecia em San Rignazzi?
Na presença de sua mãe, Francisco Xavier encontrou conforto. Destemido, confiante, a própria vulnerabilidade e abnegação de sua fé interior haviam sido a cidadela contra a qual Satanás sucumbira.
Em Cataratas do Gólgota, no Vaticano, e agora, de volta a San Rignazzi. Suavemente, procedeu às litanias finais.
Francisco Xavier abençoou o corpo e a alma de sua mãe, Ainda que tomado de tristeza, recordando os sacrifícios da mãe por ele, durante os anos de pobreza, sentiu a mais profunda das certezas: para um cristão, a morte nada mais é do que o portal para a salvação eterna.
Cataratas do Gólgota dera a prova.
Era uma manhã clara de setembro na Universidade da Pensilvânia. A Dra. Anita Wagner apontou para o tríptico de imagens projetadas atrás da tribuna.
No auditório escuro, a figura cruciforme, o bode, e a imagem do esqueleto levantando-se do túmulo brilhavam para os alunos.
— O fluxo ao fundo é idêntico nos três casos — Anita explicou. — Uma característica de gravações em termovisão.
As projeções em si são altamente definidas. Já se conjeturou que teriam sido o produto de uma mente humana, de algum modo não gerada pelo fluxo ou por qualquer outro, talvez incorpóreo, fator.
Anita verificou suas notas, à luz de uma lâmpada diminuta. Os cabelos negros estavam cortados curtos, e os brincos de ouro refletiam a luz tremulante sobre a jaqueta de tweed. A partir de Cataratas do Gólgota, ela havia se transformado e amadurecido como conferencista profissional.
— No tratado não publicado de Gilbert, Cataratas do Gólgota — Um Assalto em Quarta Dimensão, o autor declara que quem projetava essas imagens era um padre jesuíta — Anita disse. — Um homem sofisticado, de grande cultura, de natureza refinada e sensível. As projeções ocorreram, segundo o Sr. Gilbert, no curso de crises psicológicas extremas.
Tendo tomado parte, pessoalmente, nessa experiência, devo dizer que não concordo com a opinião dele.
Anita virou-se para o enigmático trio de signos psíquicos. Pendiam resplandecentes no espaço, como ícones de um universo imaterial. Cativados, os alunos se abstiveram de fazer anotações.
— A extraordinária nitidez e variedade destas imagens — Anita prosseguiu — dão testemunho, creio eu, de um poder e de uma origem além da compreensão humana.
Os alunos estudaram as três imagens, que, de certo modo, permaneciam indecifráveis, hipnóticas, e implacávelmente proféticas.
— Ainda assim, em defesa da tese do Sr. Gilbert, a paranormalidade é frequentemente experimentada por pessoas que se envolveram em situações de grande stress emocional.
O sino do campus tocou. Os alunos recolheram seus cadernos e se dirigiram ruidosamente para a porta. As luzes do auditório voltaram lentamente a acender-se, num âmbar suave, e as imagens projetadas empalideceram.
Eamon Malcolm ficou de pé, sozinho entre as cadeiras.
Fitou Anita com expressão de quieto desespero, o fatalismo do passar do tempo.
Anita desceu depressa a escadinha, indo para ele, parou, e depois tomou a mão dele entre as suas.
— O que aconteceu com você, Eamon? — ela murmurou.
— Telefonei para a Catedral. Procurei pelos jornais. Você simplesmente sumiu!
Eamon ficou muito corado.
— Puseram-me num seminário em Vermont — confessou ele. — Uma espécie de casa de repouso para jesuítas atormentados. Disciplina rígida.
Deu um sorriso nervoso. Encontrar Anita era um choque maior do que imaginara. Seu embaraço foi momentaneamente aliviado pela chegada de um rapaz de rosto cheio de espinhas que saiu da sala de projeção.
Quando o jovem se retirou, Eamon sentiu o impasse voltar.
— E Mário? — perguntou. — Onde está?
O rosto de Anita ficou sombrio.
— Mário não respondeu às minhas cartas — ela contou.
— Ninguém sabe dele, desde aquela época.
Eamon meneou a cabeça.
— Eu não gostava dele — confessou. — Mas o homem era brilhante. Agressivo, grosseiro talvez, até mesmo cruel, mas possuía sua própria coragem.
Anita pressentiu o constrangimento de Eamon. Pousou a mão na dobra do braço dele e levou-o para a luz do outono.
Eamon parou na soleira da porta, ofuscado pelas árvores vermelhas e douradas banhadas de sol.
— Eamon, por que não me escreveu? — Anita perguntou.
— Em Harvard ter-lhe-iam dito onde me encontrar.
— Tive vergonha.
Outra aula começava. Os estudantes passavam por eles, na direção do auditório. Eamon e Anita caminharam pela alameda de asfalto que levava a um dossel formado pelos olmos.
— Depois... depois daquela madrugada de sexta-feira — Eamon confessou, — achei melhor... quero dizer, não me senti à vontade para procurá-la.
Eamon continuava a desviar o olhar. Quando virou-se para Anita, ela respondeu.
— Eu nunca o desprezei, Eamon — ela disse. — Na verdade, vê-lo pela janela foi que me deu coragem de enfrentar a tempestade.
Eamon sorriu.
— Anita, o que você acha que aconteceu naquele dia?
Anita franziu as sobrancelhas.
— Na verdade, não sei dizer. Penso muito nisso. Naquela ocasião, não tinha dúvidas de que se tratava realmente de uma experiência religiosa.
— E agora?
— Em determinado nível — ela explicou, — rios níveis mais profundos do conhecimento, talvez não haja diferença entre o religioso e o paranormal.
Eamon concordou, a voz ainda perturbada.
— Não posso conversar sobre este assunto com mais ninguém — ele disse. — Mas, durante estes últimos meses, sozinho na minha cela, trabalhando nos jardins, em meditação, cheguei à mesma conclusão.
Passaram sob um carvalho, todo desfolhado mas desafiador, contra o céu azul. O gramado estava coberto de folhas vermelhas e castanhas. O ar recendia a poeira de outono, um odor revigorante e nostálgico.
— Era como se eu estivesse num túnel — ele disse pensativo. Como uma caverna escura, até que Francisco Xavier chegou e pôs-se a escavar do outro lado. Afinal, a luz me alcançou e me libertei.
Anita tomou o braço dele novamente. Eamon sabia que estava falando multo depressa, com muita seriedade, sobre todas aquelas coisas sufocadas durante quase um ano de férrea disciplina e silêncio forçado.
— O mais extraordinário — ele prosseguiu entusiasmado, — foi o carisma de Francisco Xavier. Como um campo de luz pura que entrou na igreja. Eu estava clinicamente morto e, no entanto, ele soprou vida dentro do meu corpo.
Eamon virou-se para Anita, olhando dentro de seus olhos.
— De onde Francisco Xavier tira a sua força?
— De sua fé, é claro — Anita respondeu sorrindo.
Eamon balançou a cabeça. Pareceu alienar-se de repente.
Parou ao lado do roseiral do campus.
— Sabe qual é a minha penitência? — ele perguntou. — A penitência imposta pela Penitenciária Apostólica? Trabalhar dois anos como servente num hospital. A mais humilde categoria de servidores.
Eamon deu de ombros.
— Aceito a sabedoria da Igreja — ele prosseguiu. — Os intelectuais precisam aprender a lidar com o sofrimento, a canalizar suas emoções, a se tornarem humanos.
O sol resplandecia em sua fronte.
— Anita, fui designado para um hospital perto de Roma.
— Isso não é comum?
— Não. Mas... não consigo deixar de pensar que Francisco Xavier está por trás da minha penitência.
— Por quê?
— Porque a Igreja deu um giro de 180° depois de Cataratas do Gólgota. Houve expurgos e realinhamentos.
Todo o ímpeto para se reconsiderar o Segundo Advento está ganhando impulso.
Eamon hesitou, depois respirou profundamente.
— Acho que Francisco Xavier quer conversar comigo sobre Cataratas do Gólgota.
Anita parou.
— Eamon, e a Igreja das Dores Eternas? O que aconteceu com ela?
— Pelo que sei, está funcionando. Simples e eficientemente. Um jesuíta chamado Joseph Casper fiscaliza uma pequena paróquia.
— Que estranho... depois de tudo o que aconteceu, imaginei que se transformasse num santuário. Uma outra Lourdes.
— É, entendo o que quer dizer. Os mortais precisam de ícones e santuários. Mas, creio que o destino daquela igreja nunca esteve nas mãos de simples mortais.
Anita olhou para ele, sem compreender.
— De quem, então?
— Ora, você mesma disse em sua conferência. Um poder e uma origem muito além da compreensão humana.
Ao se despedirem na estação de trem que levaria Eamon para Nova Iorque, sentiram-se como dois irmãos dizendo adeus. Os instintos religiosos de Anita, e o respeito recém-encontrado de Eamon pelos fenômenos paranormais, tinham desabrochado no rastro de Cataratas do Gólgota.
— O dia chegará Eamon profetizou, — em que ciência e religião, matéria e espírito, simultaneamente revelarão seus propósitos secretos para a humanidade.
— Quando, Eamon?
Eamon sorriu com brandura.
— Ora, no dia final, é claro.
Frank De Felitta
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